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Howard Snyder

A Z U
EDITORA
Originalmente publicado por InterVarsity Press como The Community of the king,
de Howard A. Snyder. Copyright © 1997 by InterVarsity Christian Fellowhip/USA.
P.O. Box 1400, Downers Gorve, IL 60515, USA.
Traduzido e impresso com permissão da InterVarsity Press.

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Editora.
Tradução: Lucy Yamakami
Diagramação: Fred Utsunomiya
Revisão: Edison Mendes de Rosa
Capa: Shingo Sato
1.“ Edição - 2004

A ABU Editora é a publicadora da ABUB - Aliança Bíblica Universitária do Brasil.


A ABUB é um movimento missionário evangélico interdenominacional que tem como
objetivo básico a evangelização e o discipulado de estudantes (universitários e
secundaristas) e de profissionais, com apoio de igrejas e profissionais cristãos. Sua
atuação se dá através dos próprios estudantes e profissionais, por meio de núcleos de
estudo bíblico, acampamentos e cursos de treinamento. A ABUB faz parte da IFES -
International Fellowship of Evangelical Students -, entidade internacional que con­
grega movimentos estudantis semelhantes por todo o mundo.

Dados internacionais de catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Snyder, Howard A.
A comunidade do Rei / Howard A. Snyder ; [Tradução de
Lucy Hiromi Kono Yamakami]. —São Paulo : ABU Editora, 2004.
Título Original: The Community of the King.
Bibliografia.
ISBN 85-7055-056-1

1. Bíblia 2. Missão da Igreja 3. Reino de Deus


I. Título

04-1061 CDD-248.4

índices para catálogo sistemático:


1. Igreja e Rèino de Deus : Cristianismo 262.7
A
Gilbert M. James
e
Charles W. Kingsley
que de maneiras bem diferentes
combinam as dimensões evangelistic
e proféticas do reino de Deus.
SUMARIO

INTRODUÇÃO: É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO? ....... 11

I. A PERCEPÇÃO DO REINO............................................ 19
1. A consciência do R ein o ........................................................... 21
Do fundamentalismo ao evangelicalismo
Uma consciência hodierna do Reino
2. Modelos de ig re ja ..................................................................... 33
A concepção da Reforma
Uma mistura de metáforas
Os modelos de Lausanne
A igreja e o Reino
3. Novas correntes: modelos de igreja a partir de 1975............... 43

II. A COMPREENSÃO DA COMUNIDADE DO REINO........59


4. O plano mestre de D e u s..........................................................61
Mestre de uma grande família
Nada de mero “plano B”
Agora ou depois?
5. A igreja no plano de D e u s....................................................... 67
A perspectiva bíblica
A comunidade do povo de Deus
O mordomo da graça de Deus
A igreja é uma instituição?
O que significa carismático
Fermento ou bote salva-vidas?
6. A comunidade m essiânica....................................................... 85
A prioridade da comunidade
Os dons do Espírito
Como compreender dons específicos
Liderança carismática
O padrão neotestamentário e o nosso
A função messiânica
III. A INCORPORAÇÃO DA COMUNIDADE DO REINO ... 107
7. O mandato do rein o ............................................................ 109
O mandato evangelístico
A evangelização baseada na igreja
Sal, luz e ovelhas entre lobos
A função profética
8. Crescimento da igreja e crescimento do rein o.....................129
Crescimento normal da igreja
Ciclo vital de crescimento da igreja
Crescimento por divisão
Planta e fermento
9. A forma da ig re ja ..................................................................147
Estruturas manejáveis
Estrutura na igreja primitiva
Dois padrões
A igreja e as estruturas institucionais
Implicações para o testemunho transcultural
10. A unidade da Igreja................................................................179
Unidade: uma expressão do evangelho
Um ecumenismo evangélico
Um problema de estrutura
11. Daqui até o reino ................................................................. 193
Sete passos para uma renovação
O custo do Reino

BIBLIOGRAFIA 203
PREFACIO

Este livro é fruto de frustrações e esperanças. Frustrações com tanta


coisa que tenho visto e experimentado na igreja, coisas que me levam a
questionar seriamente se a igreja de hoje pode mesmo ser renovada.
M as também esperanças — esperanças por causa da ressurreição de
Jesus Cristo e do ministério presente do Espírito Santo e por causa da­
quelas comunidades fiéis de crentes que, ao longo da história, têm segui­
do honestamente o Ressurreto e, mediante o poder do Espírito, revelado
a realidade da comunidade do Rei.
Este livro foi publicado pela primeira vez em 1977, em parte como
seqüência do livro Vinho Novo, Odres Novos (1975), sobre a estrutura
da igreja. Em sua forma revisada, o interesse principal do livro ainda é
o relacionamento entre a igreja e o reino de Deus. A questão da estrutu­
ra da igreja é examinada de maneira apenas secundária. O livro foi to­
talmente revisto e atualizado, mas o centro ainda é a igreja como a co­
munidade visível do reinado de Deus. Ao revisar o livro, levei em conta
escritos importantes sobre a igreja e o reino que surgiram depois que a
obra foi publicada, em 1977.
O livro começou como uma expansão de uma tese intitulada “A Igre­
ja como Agente de Deus na Evangelização” , que escrevi para o Congres­
so Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne, Suíça, em 1974.
O capítulo dez compreende, de forma um tanto revista, o material apre­
sentado como um capítulo de The New Face o f Evangelicalism, editado
por C. René Padilla (Inter-Varsity Press, 1976).
Ao ler o Novo Testamento, fico impressionado com o fato de que os
cristãos primitivos e os escritores do Novo Testamento entendiam a igreja
como parte da ação grandiosa e histórica de Deus em Jesus Cristo para
reconciliar todas as coisas consigo, “coisas no céu e na terra” (Ef 1.10).
A Bíblia dá o nome de reino de Deus a essa obra de reconciliação. Este
livro explora o relacionamento entre a igreja e o reino.
Procuro simplesmente expor o que a Escritura ensina e o que a his­
tória ilustra sobre a igreja. Considero com muita seriedade o relato bí­
blico como revelação autorizada e fidedigna de Deus e pouco me preo­
cupo em seguir teorias e teologias específicas ou pontos de vista tradi­
cionais. Não se expõe nem se pressupõe no livro nenhum sistema mile-
10 A COMUNIDADE DO REI

nista particular. A igreja e o reino possuem um caráter dinâmico que


nenhuma teoria milenista ou dispensacional (quer moderna, quer medi­
eval) consegue comportar. Obviamente, este livro também não o com­
porta por completo.
Continuo especialmente grato a várias pessoas que leram os ma­
nuscritos originais e ofereceram críticas valiosas — especialmente John
F. Alexander, Donald W. Dayton, G. Roger Schoenhals, Ralph D. Win-
ter e a meu falecido pai, Edmund C. Snyder (1900-1994).
Esta edição revisada foi preparada por sugestão do amigo C. René
Padilla. Embora haja revisões em todo o livro, a maior mudança é o
acréscimo de um capítulo (capítulo 3) que analisa os pensamentos a
respeito da igreja a partir de 1975. Nesta versão, tenho em particular os
irmãos latino-americanos em mente, mas tenho plena consciência do
povo de Deus espalhado por todo o mundo e dos processos de globali­
zação que tornam todas as pessoas cada vez mais interdependentes. As­
sim, minha preocupação maior é a igreja de Jesus Cristo em todo o
mundo.

7 de dezembro de 2002
INTRODUÇÃO:
É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO?

Quando a igreja tem sucesso, essa notícia é boa?


Um teólogo escreveu, certa vez: “Sendo franco, realmente não sei se
a condição próspera atual da igreja é mais agradável a Deus que sua
humildade de antes. Aquela condição anterior talvez fosse melhor, mas
a atual é mais conveniente!” .1
Essas palavras são de Otto de Freising, apologista do Sacro Império
Romano no século XII. Otto identificava o reino de Deus com a igreja e
via o cumprimento do reino na ordem política e eclesiástica de sua épo­
ca. Ainda assim, sentiu-se atraído pela “fraqueza” e simplicidade da
igreja primitiva. O anseio por um retorno ao cristianismo primitivo aca­
bou culminando num impulso consciente em direção a uma reforma que
levou ao que alguns chamam de “renascimento do século XII” e alcan­
çou seu ápice espiritual em Francisco e Clara de Assis e seus humildes
seguidores.
O “sucesso” da igreja em vários pontos da história causou uma
inquietação que, juntamente com uma nova visão de seus primeiros dias,
propiciou reavaliações, reformas e até renovações. Para os protestantes,
a Reforma promovida no século XVI é o mais conhecido desses vários
momentos. Em nossos dias, os seguidores de Jesus fariam bem em pon­
derar sobre o contraste entre a aparente prosperidade do presente e a
humildade das comunidades cristãs primitivas.
Os protestantes evangélicos dão pouquíssima atenção à doutrina
da igreja — o que de fato significa ser o corpo de Cristo no mundo e
para o mundo. A maior parte da reflexão sobre evangelização, discipu-
lado e ação social não se aprofunda na eclesiologia (ou seja, a natureza
e missão da igreja). Em 1973, Donald Bloesch, em The Evangelical Re-
naissance [O Renascimento Evangélico], observou que “as doutrinas da
igreja e dos sacramentos estão eminentemente ausentes na maior parte
dos escritos evangélicos contemporâneos” .2Embora tenham surgido nos
últimos trinta anos algumas obras significativas a respeito da igreja,
ainda existe um pouco de “lacuna eclesiológica” em boa parte da teolo­
gia cristã — e uma lacuna ainda maior na prática.3
A reflexão adequada sobre os ministérios da igreja só pode ocorrer
no contexto de uma clara compreensão bíblica da igreja em si. Feliz-
12 A COMUNIDADE DO REI

mente, a questão da igreja tem subido à tona de novas maneiras em


décadas recentes. Um sinal do mover do Espírito tem sido o novo interes­
se em descobrir o retrato bíblico da igreja. Há uma consciência crescente
de que muitos problemas do cristianismo contemporâneo são decorrên­
cias diretas do conceito de igreja como algo essencialmente estático,
organizacional e institucional e, além disso, do fato de muito da cultura
ser considerado profético dentro dela.
Neste livro, a igreja é vista como a comunidade do povo de Deus —
um povo chamado para servi-lo e chamado para viver junto numa ver­
dadeira comunidade cristã, como testemunha do caráter e virtudes de
seu reino. Orlando Costas acerta ao insistir que a igreja é o agente da
missão de Deus sobre a terra.4 M as qual seria essa missão? Nada mais
do que colocar todas as coisas e, acima de tudo, todos os povos da terra
sob o domínio e liderança de Jesus Cristo. Mesmo que nem todos ve­
nham de bom grado, ainda assim, todo joelho se dobrará e toda língua
confessará que Jesus Cristo é Senhor (Fp 2.10-11).
Dizer que a igreja é o agente da missão de Deus sobre a terra equi­
vale a dizer que a igreja é o agente do reino de Deus. A igreja é a comu­
nidade messiânica Iiberadora — a comunidade daqueles que reconhe­
cem o verdadeiro Messias, já o confessam como Senhor, Salvador e Li­
bertador e proclamam suas boas novas até os confins da terra.
Assim, a igreja é o agente do reino de Deus. Falar da evangelização,
do testemunho profético ou de qualquer outra dimensão da igreja sem
ligá-los à missão da igreja no que diz respeito ao reino é perder a perspec­
tiva bíblica e desenvolver uma visão truncada da vocação da igreja. Bi­
blicamente, nem a evangelização, nem a ação social e nem mesmo a vida
de adoração da igreja ou qualquer outro aspecto de sua existência fazem
muito sentido dissociadas do fato de que a comunidade cristã é a expres­
são terrena visível do reino de Deus.
A igreja é o único meio indicado por Deus para disseminar o evan­
gelho.5 Como escreveu Melvin Hodges, “A igreja é o agente de Deus na
terra — o meio pelo qual Ele se expressa ao mundo. Deus não tem outro
agente redentor na terra” .6A vocação do evangelho é uma vocação para
algo, e esse algo é mais que uma doutrina, ou uma experiência, ou uma
transação jurídica celestial, ou o exercício da fé, ou mesmo exclusiva­
mente Jesus Cristo. O evangelho tem por propósito chamar as pessoas
para o corpo de Cristo, ou seja, a comunidade dos crentes que tem Jesus
Cristo como sua cabeça essencial e soberana. M as o corpo de Cristo
deve ser entendido biblicamente, como a comunidade do povo de Deus,
não como uma abstração teológica nem, principalmente, em termos das
INTRODUÇÃO: É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO? 13

expressões institucionais da igreja.


Assim, a igreja é o agente de Deus para estabelecimento de seu rei­
no. Ela é o principal meio pelo qual Deus está cumprindo seu propósito
reconciliador. Portanto, a igreja é inseparável do desígnio cósmico de
Deus de fazer convergir todas as coisas em Jesus Cristo (Ef 1.10) — a
essência e o alvo do reino.
Falo deliberadamente da igreja como o agente do reino e não como
mero sinal ou símbolo do reino ou como um instrumento inanimado
nas mãos de Deus. Agente vem do verbo latino agere, “agir” . E uma
palavra de ação. Deus age de maneira criativa e redentora. Suas ações
implicam “um plano para a plenitude dos tempos, para unir todas as
coisas” em Jesus Cristo. Nesse plano, não é só Deus quem age; as pessoas
também agem. O reino de Deus é a obra de Deus; mas dentro do plano de
Deus há lugar para ações humanas. A graça de Deus tem essa grandeza.
Assim, a igreja jamais é um instrumento inanimado nas mãos de Deus.
Ela não é apenas objeto, mas também sujeito e transforma as pessoas de
meros objetos a sujeitos ativos. Ela realiza a obra de Deus; mas esta
continua sendo, literalmente, obra de Deus. Portanto, a igreja em rela­
ção ao reino não é uma eventualidade, é um ato. Mais que um símbolo, é
um agente.
Jesus veio pregar o reino. Jesus andava “ensinando nas sinagogas
deles, pregando as boas novas do reino e curando todas as enfermidades
e doenças entre o povo” (Mt 4.23).7 Sua mensagem “Arrependam-se,
pois o reino dos céus está próximo” (Mt 4.17) era a mesma mensagem
que João havia pregado (Mt 3.2), pois o reino havia de fato surgido no
espaço e no tempo na própria pessoa de Jesus. Jesus se refere ao reino
mais de oitenta vezes nos evangelhos.8Ele até contou histórias a respeito
do reino (Mt 13), que nos dão uma idéia de como vem esse reino. A
missão de Jesus era contar as boas novas do reino, mostrar como era esse
reino, demonstrar suas obras, dizer como entrar nele e estabelecer a co­
munidade messiânica em forma embrionária. Ele morreu na cruz e res­
suscitou para derrotar o reino do mal e inaugurar a era do reino de Deus.
Sobre o que Jesus falou depois de ressuscitar? Ele apareceu a seus
seguidores “por um período de quarenta dias, falando-lhes acerca do
reino de Deus” (At 1.3). Esse era seu assunto principal. Quando os dis­
cípulos quiseram saber se finalmente, então, Jesus iria “ restaurar o rei­
no de Israel” , este respondeu que o importante era que eles seriam suas
testemunhas por meio do poder do Espírito Santo, até os confins da
terra (At 1.6-8). O testemunho deles — o testemunho da igreja — teria
importância para o reino.
14 A COMUNIDADE DO REI

M as precisamos definir o reino de Deus de forma um pouco mais


exata. O reino é o domínio ou reinado de Deus e não basicamente um
lugar ou área de atuação. Pela Bíblia, o reino “refere-se primeiro ao
reinado, domínio ou governo e só secundariamente ao território sobre o
qual um reinado é exercido” .10 Portanto, falar do reino de Deus é lem­
brar a nós mesmos que Deus é o Senhor soberano. “Do Senhor é a terra
e tudo o que nela existe” (SI 24.1).
O Antigo Testamento não fala do “ reino de Deus” como tal, mas
pelos Salmos e Profetas nos lembra continuamente de que Deus é Rei.11
No Novo Testamento, o mistério do reino é que o domínio e o plano de
Deus têm por centro a pessoa de Jesus Cristo. Ele é o M essias, o Filho
Ungido do Rei, aquele que tem o Espírito. Ele é Deus encarnado, “a
Palavra que se tornou carne” . E Jesus veio pregar o reino, anunciar que
nele o governo, o reinado e o domínio de Deus estavam presentes sobre
a terra de uma forma nova.
Observe o que Jesus disse e fez. Ele falou do reino; ele reuniu a igre­
ja. Ele não falou muito sobre a igreja e se recusou a estabelecer o tipo de
reino que as pessoas esperavam. Em vez disso, ele falou do “ mistério” do
reino. Através de sua vida, morte, ressurreição e visitação por meio do
Espírito no Pentecostes, ele estabeleceu não o reino, mas a igreja, a co­
munidade encarregada de viver e proclamar o mistério do reino até os
confins da terra.
Jesus fala do reino de Deus; Paulo fala de Deus reconciliando todas
as coisas por meio de Jesus Cristo (2 Co 5.19; Cl 1.20). São duas manei­
ras de dizer a mesma coisa, pois Deus está reinando e reconciliando por
intermédio de Cristo, no poder do Espírito Santo.
Esse entendimento do reino de Deus pode ser esclarecido com um
exame daquilo que o Novo Testamento chama de “ mistério” ou “ segre­
do” (musterion) do reino.12 Jesus disse a seus discípulos: “A vocês foi
dado o mistério do reino de D eus” (Mc 4.11; veja M t 13.11 e Lc 8.10).
Por meio da fé em Jesus, os discípulos eram capazes de compreender o
que era ocultado aos outros — que na própria pessoa de Jesus Cristo
aproximara-se o reino de Deus. M ais tarde, eles compreenderiam que
todas as promessas de Deus a respeito de seu reino se cumpririam por
meio de Jesus Cristo.
Paulo fala do “ mistério do evangelho” (Ef 6.19), “ mistério de Cris­
to” (Cl 4.3), “mistério da piedade” (1 Tm 3.16). Ele via esse mistério
como o desvendar de propósitos divinos antes escondidos, agora revela­
dos nos eventos da vida, morte e ressurreição de Jesus e na criação de
uma comunidade reconciliada e reconciliadora de crentes, por meio da
INTRODUÇÃO: É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO? 15

proclamação de Cristo (Rm 16.25-26; 1 Co 2.7-10; Cl 1.26-27; 1 Tm


3.16). Paulo fala de maneira mais completa desse “ mistério” em Efésios
3.2-10, em que diz que o “mistério de Cristo” é que a salvação agora se
estende aos gentios, tanto quanto aos judeus. Agora, ambos, judeus e
gentios, são membros de “um corpo” , a igreja. A vontade de Deus é que
“ agora, mediante a igreja, a multiforme sabedoria de Deus se tornasse
conhecida dos poderes e autoridades nas regiões celestiais, de acordo
com o eterno plano que ele realizou em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Ef
3.10-11). Ou, então, “o mistério da sua vontade” é “fazer convergir em
Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas” (Ef 1.9-10).
Jesus fala do “mistério do reino” ; Paulo fala do “ mistério de Cris­
to” , pois Cristo é a chave para o reino. O reino de Deus é a obra contí­
nua de reconciliação de Deus em Cristo vista da perspectiva do estabe­
lecimento final e definitivo do domínio de Deus, quando Cristo voltar à
terra. Cristo deve retornar para estabelecer seu reino de maneira plena.
M as, pelo seu Espírito, ele agora atua na terra por meio de seu corpo, a
igreja. E ele é capaz, mesmo agora, de “fazer infinitamente mais do que
tudo o que pedimos ou pensamos” por meio da igreja, em favor do rei­
no — “de acordo com o seu poder que atua em nós” (Ef 3.20), o mesmo
poder que ressuscitou Jesus.
Por que a obra reconciliadora e libertadora de Deus é um segredo,
um mistério? Há uma série de razões pelas quais a Escritura chama de
mistério o desígnio divino de formar um reino. Ele estava oculto até a
vinda de Jesus Cristo. Ele foi revelado pelo Espírito Santo, não pelo
entendimento humano. Ele é contrário à sabedoria do mundo. Ele está
presente agora em sofrimento e fraqueza. Ele se baseia unicamente na
obra de Cristo. Ele requer fé. E ele só será plenamente manifestado quan­
do Jesus Cristo voltar à terra.
O queé, então, o reino de Deus? E Jesus Cristo e, por meio da igreja,
a reconciliação de todas as coisas nele. Por enquanto, é a graça, a ale­
gria, a saúde, a paz e o amor vistos em Jesus crescendo na terra. O reino
é presente e também futuro, terreno e também celestial, escondido e tam­
bém em processo de manifestação. Ele é concreto e deste mundo como o pó
nos pés de Jesus ou o vento da Galiléia em seus cabelos; é oneroso como a
crucificação; é celestial como o Cristo ressurreto assentado à direita do
Pai. “Ele está se expandindo na sociedade como o grão de mostarda...;
trabalhando para permear a sociedade como o fermento na massa” .13Suas
verdades e valores são os vividos e ensinados por Jesus Cristo e confiados
ao corpo de seus seguidores. M as esse reino só pode tornar-se plenamente
manifesto quando Jesus Cristo voltar à terra em poder e glória.
16 A COMUNIDADE DO REI

Como a igreja e o reino devem ser encarados nestes dias entre a


primeira e a segunda vinda de Jesus? Vamos, agora, examinar essa ques­
tão de acordo com as percepções contemporâneas do reino e da igreja e,
depois, passar para uma análise bíblica mais detalhada.

NOTAS
1 Marie-Dominique Chenu, Nature, Man and Society in the Twelfth Century, trad. Jerome
Taylor e Lester K. Little (Chicago: University of Chicago Press, 1968), p. 240. Chenu
destaca que a aspiração de restaurar a igreja a seu estado primitivo não só provocou um
movimento de reforma moral, como também nutriu uma profunda indagação a respeito
da fé cristã que resultou em desenvolvimentos significativos na teologia. As duas verten­
tes desse ímpeto renovador podem ser simbolizadas pelos nomes de Francisco e Clara
de um lado e do teólogo Tomás de Aquino do outro. Floje, como naquela época, a igreja
necessita periodicamente de renovação na teologia, bem como em suas dimensões
pessoais e corporativas,
2 Donald G. Bloesch, The Evangelical Renaissance (Grand Rapids: Eerdmans, 1973), p.
41.
3 J. I. Packer discute a "eclesiologia reduzida" do evangelicalismo, embora creia que a
dificuldade seja "mais prática que teorética. A eclesiologia evangelical não é reduzida,
mas o eclesiasticismo como atitude e mentalidade é, e sem uma reavaliação e ajuste,
isso continuará..." ( J. I. Paker, "A Stunted Ecclesiology?" em Kenneth Tanner e Christo-
pher A. Hall, eds., Ancient and Postmodern Christianity: Paleo-Orthodoxy in the 21*
Century [Downers Grove: InterVarsity, 2002], 127). É questionável, porém, se esse tipo
de distinção entre teoria e prática é plausível e se o problema é mera questão de prática.
4 Orlando E. Costas, The Church and Its Mission: A Shattering Critique from the Third
World (Wheaton: Tyndale, 1974), pp. 8-10, 21-57. Em essência, a análise de Costas é
paralela à minha.
5 A atividade divina no mundo não se limita à redenção evangélica: ela também inclui
preservação e julgamento. Assim, Deus também age fora da igreja e até em julgamento
contra a igreja. Mas no que diz respeito à redenção, a igreja é o único agente escolhido
por Deus para que a salvação possa ser pela graça!
6 Melvin L. Hodges, A Guide to Church Planting (Chicago: Moody, 1973), p. 15.
7 A menos que haja outra indicação, todas as citações bíblicas são da Nova Versão Interna­
cional.
8 Jesus fala de "reino de Deus", "reino do céu", "meu reino", "reino de meu pai" e
assim por diante. Embora, talvez, pretendesse mostrar algumas diferenças de ênfase,
não creio que Jesus pretendesse mostrar diferenças fundamentais de significado
entre as expressões "reino de Deus" e "reino do céu" (ou, literalmente, "dos céus").
Aliás, as duas expressões podem representar a mera preferência de Mateus e não as
diferenças de sentido intencionais de Jesus. Jesus, provavelmente, usou as duas como
sinônimas.
9 Trato em maior profundidade da natureza do reino de Deus em si e da relevância do
reino para a existência e missão da igreja em Models o f the Kingdom (Nashville:
Abingdon, 1991) e Kingdom, Church, and World: Biblical Themes for Today (Eugene:
INTRODUÇÃO: É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO? 17

W ipf and Stock, 2002), republicação de um livro anterior, A Kingdom Manifesto


(Downers Grove: InterVarsity, 1985).
10 George Eldon Ladd, Jesus and the Kingdom (Waco: Word, 1964), pp. 42-43.
" Arnold A. Van Ruler, The Christian Church and the Old Testament, trad. Geoffrey W.
Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), pp. 75-83. Observe em especial os Salmos
145 e 146. Muito mais relacionados, claro, são os temas do Antigo Testamento: justiça
e retidão, shalom e jubileu. Veja Kindgom, Church, and World, capítulos 1, 5 e 7.
12 Veja Ladd, pp. 217-25. A palavra sacramento refere-se, via latim, à palavra grega
mysterion. (Veja Edward Schillebeeckx, The Mission o f the Church, trad. N. D. Smith
[New York: Seabury Press, 1973], pp. 44-45.) Embora eu não trate dos sacramentos
neste livro, qualquer discussão bíblica dos sacramentos deve começar nesse ponto.
Veja 'Th e Church as Sacrament", capítulo 4, em Howard A. Snyder, Liberating the
Church: The Ecology o f Church and Kingdom (Downers Grove: InterVarsity, 1983;
Eugene: Wipf and Stock, 1996), pp. 96-111.
13 Marvin R. Vincent, Word Studies in the New Testament (New York: Charles Scribner
& Sons, 1911), 1:311. Para Ladd, o ensino da parábola do fermento é que o reino de
Deus entra no mundo de maneira quase imperceptível, não que o reino atue como o
fermento, permeando a sociedade. Mas isso é uma discussão desnecessária: o ensino
é tanto que o reino começa de maneira oculta, como também que ele age gradual­
mente para levedar toda a massa. Embora Ladd entenda que a idéia de permeaçáo
seria "completamente estranha ao pensamento judaico", não é mais estranha que o
ensino de Jesus sobre a própria natureza do reino em si. Veja Ladd, Jesus and the
Kingdom, pp. 232-34.
UM
A PERCEPÇÃO
DO REINO
O reino de Deus não vem de modo visível, nem se
dirá: “Aqui está ele”, ou “Lá está”; porque o Reino
de Deus está entre vocês.
(Lc 17.20-21)
1
A CONSCIÊNCIA
DO REINO

Para perceber o reino é preciso, antes de tudo, perceber o contexto


teológico, social, político e econômico em que se questionam a igreja e
o reino.
Apesar de diferenças denominacionais e outras divergências, as igre­
jas cristãs dentro de uma sociedade muitas vezes revelam perspectivas
teológicas surpreendentemente semelhantes. Pode haver diferenças nas
tradições denominacionais, mas com freqüência evidencia-se uma ati­
tude comum.
Essa perspectiva em comum existe dentro do protestantismo con­
servador norte-americano e em muitas igrejas estabelecidas por meio
da evangelização missionária promovida por norte-americanos e euro­
peus. Embora inclua uma vasta variedade de denominações e tradições
específicas, o evangelicalismo global manifesta de maneira clara um
ponto de vista teológico particular. O evangelicalismo tem sido marca­
do não só pela Reforma Protestante, mas também pelos valores da cul­
tura norte-americana e pela herança comum do evangelicalismo recebi­
da dos avivamentos do século X IX e da controvérsia modernista-funda-
mentalista do início da década de 1900.1
N a América do Norte, a década de 1960 viu a reafirmação e a recu­
peração parcial da consciência social protestante evangelical. Foi redes-
coberta a preocupação social pré-fundamentalista do evangelicalismo
do século anterior, e livros como Revivalism and Social Reform, de Ti-
mothy Smith, ganharam popularidade.
M uitos evangelicais consideraram positivo esse desenvolvimento.
Se foi de fato um “Renascimento Evangelical” (segundo expressou o
teólogo Donald Bloesch), isso implicou, pelo menos em parte, a recupe­
ração da dimensão social do evangelho e o fim da controvérsia modernis-
ta-fundamentalista que reinou entre 1900 e 1950.
N as décadas de 70 e 80, alguns observadores levantaram questões
22 A COMUNIDADE DO REI

intrigantes sobre o rumo que o evangelicalismo estava tomando. Eles


perguntavam: Basta simplesmente reafirmar em palavras e atos uma
consciência social evangelical? A teologia evangelical repousa sobre uma
base bíblica suficientemente segura para avançar com criatividade e fi­
delidade em direção ao futuro? Em 1976, o veterano teólogo Cari F. H.
Henry percebeu que o evangelicalismo estava “ aos poucos sucumbindo a
uma crise de identidade”, apesar de continuar crescendo.2
O movimento evangelical cresceu de maneira significativa nos cerca
de cinqüenta anos entre o fim da Segunda Guerra e o ano 2000. O evan­
gelicalismo fez progresso significativo em termos teológicos, institucio­
nais e numéricos. Na América Latina e em outros lugares, o crescimento
numérico mais expressivo veio por meio do pentecostalismo em seus vá­
rios ramos.
Celebramos o crescimento da igreja onde quer que ocorra — onde
quer que as pessoas venham a conhecer Jesus Cristo como Salvador e
Senhor e .sejam reunidas em comunidades de culto, discipulado e teste­
munho. M as precisamos inquirir sobre a base teológica do testemunho
evangelical e pentecostal. Esse testemunho é firmado numa teologia bí­
blica da igreja e do reino? Evangelização casada com consciência social
é bom. A teologia plenamente bíblica, porém, vai além da consciência
social, chegando à consciência do reino.

Do fundamentalismo ao evangelicalismo
Uma rápida recapitulação histórica esclarecerá esse ponto. Para isso,
é preciso compreender a história do protestantismo norte-americano
no século X X , já que o protestantismo evangelical recebeu esse grande
impacto em todo o globo.
Podemos perceber três estágios na luta do evangelicalismo com a
questão do testemunho fiel à sociedade e seu envolvimento com ela:
1. Consciência Inquieta. Esse estágio pode, por conveniência, ser as­
sociado à publicação do livro de Cari F. H. Henry, The Uneasy Conscien-
ce o f M odem Fundamentalism, em 1947. Nesse livro, Henry escreveu:
A “ consciência inquieta” ... não é a perturbada com as grandes verdades
bíblicas ... mas a angustiada pelas falhas freqüentes na aplicação efici­
ente delas a problemas cruciais com que se defronta a mente moderna.
E uma aplicação dos fundamentos da fé, não uma revolta contra eles, o
que defendo,3
Esse estágio chegou quando se assentava a poeira do campo de bata­
lha — tanto literal (a Segunda Guerra) como figurada (a controvérsia
modernista-fundamentalista) — , e os de teologia conservadora tiveram
A CONSCIÊNCIA DO REINO 23

tempo para reavaliar suas idéias. A possibilidade de autocrítica surgiu


em pelo menos alguns círculos fundamentalistas norte-americanos.
Homens como Cari F. H. Henry e Harold Ockenga estavam na diantei­
ra dos reavaliadores da consciência.
O estágio da consciência inquieta correu entre cerca de 1947 e o
início da década de 60. As alfinetadas da consciência contra a estreiteza
do fundamentalismo provocaram, ou pelo menos acompanharam, al­
guns desdobramentos significativos nas décadas de 40 e 50. Alguns si­
nais significativos foram a fundação do Fuller Theological Seminary
(1947), da Visão Mundial (1947) e da Evangelical Theological Society
(1949) e o surgimento da revista Christianity Today (1956). O surgi­
mento da National Association of Evangelicals (NAE), um pouco antes,
(1942) não ocorreu à parte disso. De importância equivalente foi o ine­
gável impacto da evangelização em massa promovida por Billy Graham,
a partir de 1949. N as décadas de 60 e 70, esses desdobramentos foram
analisados em The New Evangelicalism, de Ronald Nash, The New Evan­
gelical Theology, de Millard Erickson, The Great Reversal, de David O.
Moberg, e The Evangelicals, de Wells e Woodbridge.4
Um resultado da consciência inquieta do fundamentalismo foi o
nascimento do evangelicalismo norte-americano.5Essa transição resul­
tou num novo interesse pela ética social e pelo envolvimento social, uma
ênfase renovada na erudição e na eclosão de uma apologética mais cor­
dial e dc base mais ampla. Isso levou diretamente ao próximo passo de
distanciamento do fundamentalismo.
2. Consciência Social. Entre o final da década de 60 e o início da de
70, nenhuma frase foi mais usada que consciência social para destacar a
ênfase ampliada do evangelicalismo. Um exemplo típico é The Social
Conscience o f the Evangelical, de Sherwood Wirt, publicado em 1968.
Essa fase começou em meados da década de 60 e em alguns aspectos
continua até o presente.
Entre os marcos da consciência social despertada no evangelicalis­
mo estão uma ênfase crescente em questões sociais na NAE e organiza­
ções semelhantes, a inclusão de ministérios sociais nas cruzadas de Bi­
lly Graham e Leighton Ford e a maior sensibilidade dos evangelicais à
questão racial e à crise urbana. Houve também as conseqüentes mu­
danças nos currículos e programas de faculdades e seminários evangeli­
cais. A Declaração de Chicago de Consciência Social foi publicada em
1973, e fundou-se a Evangelicals for Social Action (ESA).
A fase da consciência social foi mais evidente nas publicações. Sur­
giram livros tratando de questões sociais de uma forma ou de outra.
24 A COMUNIDADE DO REI

Publicações evangelicais davam mais atenção a questões sociais, e revis­


tas “ evangelicais jovens” , tais como The Other Side [O Outro Lado] e
Sojourners [Peregrinos], concentravam-se em questões sociais.4 David
Moberg registrou uma lista crescente de exemplos de “evangelização
mais ação social” em seu livro The Great Reversal. Ele concluiu: “Os
evangelicais estão despertando para suas incoerências e retornando à
totalidade do Evangelho cristão” .7
Os anos 70 e 80 talvez tenham sido o auge da fase de consciência
social do evangelicalismo norte-americano. Apelos à consciência social
eram reforçados por demonstrações significativas dessa preocupação.
Por trás disso, havia um consenso teológico de amplo alcance.
Em suma, esse consenso evangelical afirmava que a evangelização e
o interesse social seguem juntos e que ambos são essenciais para o evan­
gelho. Sherwood Wirt escreveu: “ Lançar a ação social contra a evange­
lização é levantar uma questão espúria, coisa que Jesus teria rechaçado
com uma frase. Ele ordenou a seus discípulos que disseminassem as
Boas Novas e permitissem que o grande valor da preocupação social
deles se tornasse manifesta por meio da vida transformada das pesso­
as” .8 Cari Henry disse: “A perspectiva bíblica declara que tanto a con­
versão individual como a justiça social são igualmente indispensáveis.
A Bíblia exige santidade pessoal e mudanças sociais amplas; ela se recu­
sa a substituir a responsabilidade social pela religião privada ou o com­
promisso pessoal com Deus pela responsabilidade ou envolvimento so­
cial” .9 De modo semelhante, Leighton Ford comentou: “E um escânda­
lo quando nós, como discípulos de Cristo, compartimentamos nossa
vida, colocando nossa piedade pessoal em um segmento e nossa res­
ponsabilidade social em outro” ; as duas andam juntas.10Declarações
semelhantes foram feitas por Billy Graham, Elton Trueblood, John
Warwick Montgomery e muitos outros.
Essa afirmação de uma consciência social evangelical foi, para mui­
tos, um desenvolvimento positivo bem-vindo. Talvez ela tenha marcado
o fim do desvio modernista-fundamentalista. Se os evangelicais do sécu­
lo X X não conseguiram o impacto social que deviam ter tido, pelo me­
nos a falha foi diagnosticada, e traçou-se um curso mais bíblico.
M as esse consenso em torno da consciência social foi plenamente
adequado? Embora muitos evangelicais apoiassem o consenso, ele ain­
da carregava marcas do pensamento dicotomista (ou isso ou aquilo) do
passado. Alguns líderes evangelicais, especialmente de fora dos Estados
Unidos, instaram os evangélicos a ir além dessa dicotomia para chegar a
uma visão mais abrangente.
A CONSCIÊNCIA DO REINO 25

Se o consenso em tomo da consciência social fosse condensado numa


fórmula, poderia ser: Deus salva as pessoas que, por sua vez, têm por
responsabilidade a evangelização e a ação social. A perspectiva é a de
um indivíduo cristão olhando para o mundo. M as há outra visão possí­
vel, a perspectiva daquele que se coloca por trás do debate evangeliza-
ção/ação social e tenta ver o plano completo de Deus para sua criação.
Isso é o que faz Paulo nos primeiros três capítulos de Efésios, quando
fala do plano de Deus para unir todas as coisas em Jesus Cristo por
intermédio da igreja (Ef 1.10; 1.20-23; 3.10). Ali, a pessoa não vê dois
pólos — evangelização e ação social — , mas um propósito cósmico.
Bem no centro desse desígnio ou “economia” (Ef 1.10) está a reconci­
liação pessoal com Deus por meio de Cristo. M as dentro do círculo
percebe-se um plano cósmico para a reconciliação de todas as coisas.
Se houvesse uma fórmula, talvez fosse: Deus em Cristo está reconcili­
ando toda a criação consigo, e sua ação por meio da igreja é essencial
para seu plano.11
Até a década de 50, havia sinais crescentes de que o evangelicalismo
estava caminhando rumo a essa visão abrangente.12 M as o verdadeiro
consenso ainda não chegou, e em alguns aspectos o evangelicalismo
norte-americano tem sido fragmentado. M as, no âmbito internacional,
é possível discernir um amplo entendimento em tornos dos temas do
reino de Deus e da missão da igreja como transformação. Talvez a arti­
culação mais abrangente dessa visão seja o livro Mission as Transfor-
mation: A Theology o f the Whole Gospel, editado por Vinay Samuel e
Chris Sugden, com contribuições de um leque globalmente diverso de
líderes evangelicais (inclusive pentecostais), como Peter Kuzmic, Dou­
glas Peterson, Graham Cray e René Padilla.13 Alertas nesse mesmo sen­
tido — para que se veja a missão da igreja de maneira ampla, em termos
do reino de Deus — têm aparecido em outras línguas.14
Esse estágio, que continua, pode ser chamado de consciência do rei­
no.15 E a principal perspectiva a partir da qual escrevo este livro.
3. Consciência do reino. Toda salvação vem de Deus. Toda renova­
ção e reconciliação genuína — pessoal, comunitária ou cultural — re­
montam à ação de Deus e, portanto, a seu propósito e plano. Começan­
do com essa percepção, é possível encontrar o lugar bíblico para cada
ênfase cristã legítima, quer seja a evangelização, a ação social, a reno­
vação da igreja ou o discipulado.
As Escrituras destacam o propósito, plano ou vontade eterna de
Deus, o que ele está fazendo na história para obter a reconciliação de
todas as coisas. Esse propósito divino é identificado com o reino ou o
26 A COMUNIDADE DO REI

reinado de Deus. N ão se trata, aqui, de acrescentar dimensões sociais a


um evangelho evangelístico. Em vez disso, a evangelização, a conversão,
a justiça social e outras ênfases evangélicas são vistas como parte do
plano redentor cósmico/histórico de Deus. Isso é o testemunho cristão
contemporâneo visto à luz do reino vindouro.
Até certo ponto, Cari Henry já aponta nessa direção no último capí­
tulo de A Plea for Evangelical Demonstration. Henry escreveu: “A Bí­
blia vislumbra nada menos que um novo homem, uma nova sociedade,
um novo céu e uma nova terra de verdade, em que prevalece a justiça
universal” .16 Henry falou do “ mandato cultural divino” dado à huma­
nidade e diz que “ tanto na perspectiva como na prática, o cristão deve
dar testemunho das dimensões espiritual e moral divinas no trabalho e
no lazer, nos estudos e nas artes, na família e na vida pública” .17 Eis o
início de uma perspectiva que ultrapassa a consciência social. Mesmo
agora, antes da volta de Cristo, os cristãos têm responsabilidade por
toda a cultura.18
Francis Schaeffer representou outro passo em direção à consciência
do reino. Praticamente desconhecido fora de um pequeno círculo antes
da publicação de O Deus que Intervém, em 1968, Schaeffer logo se tor­
nou o escritor teológico evangelical mais lido. Por que tanta populari­
dade? Um motivo, com certeza, foi a abrangência da análise feita por
ele. Schaeffer insistia que tudo na cultura está inter-relacionado, que o
plano de Deus abrange todas as áreas da vida e que nenhuma disciplina
ou categoria é independente de verdades e valores bíblicos. Em Poluição
e Morte do Homem, Schaeffer escreveu: “Assim como a morte de Cristo
redime os homens, incluindo seus corpos, das conseqüências da Queda,
assim Sua morte redimirá a natureza como um todo das conseqüências
do mal” . Embora essa redenção cósmica só venha a ocorrer de maneira
plena “ quando formos ressuscitados” dos mortos, “devemos procurar no
presente, com base na obra de Cristo, a cura ou recuperação fundamen­
tal de cada parte da criação que foi afetada pela Queda” .19
Schaeffer citou a quádrupla alienação que resulta da Queda (de Deus,
de nós mesmos, de outras pessoas e da natureza) e salientou que Deus
está promovendo uma restauração parcial em cada uma dessas áreas.
“ Os cristãos ... não são chamados simplesmente a dizer que ‘um dia’
haverá uma restauração completa, mas que pela graça de Deus, sobre o
fundamento da obra de Cristo, uma restauração verdadeira pode ser
uma realidade aqui e agora” .20
Schaeffer fez soar aqui uma nota que ia além do que muitos evange-
licais — mesmo os que enfatizavam a consciência social — diziam. Eis
A CONSCIÊNCIA DO REINO 27

uma perspectiva global, cósmica, que via o plano de Deus em sua tota­
lidade espaço-tempo e se concentrava no que Deus está fazendo por meio
da igreja aqui e agora. Essa perspectiva representava um passo, pelo
menos, em direção a uma nova consciência do reino de Deus.

Uma consciência hodierna do reino


Os cristãos de hoje precisam de uma concepção de reino que seja
completa. Só a clareza e amplidão teológica pode se contrapor à tecno-
globalização, de um lado, e ao relativismo religioso indistinto de outro.
Uma consciência da realidade presente do reino de Deus e a confi­
ança nele certamente não são alheias ao protestantismo ou, nesse as­
pecto, ao cristianismo em geral. Antes, têm-lhe sido características, es­
pecialmente durante certos períodos.21 H. Richard Niebhr observou, em
The Kingdom o f God in America, que “o Grande Despertamento e os
avivamentos foram promovidos por uma nova consciência do reino vin­
douro” .22 Niebuhr prosseguiu:
A expectativa do reino vindouro ... tornou-se a idéia dominante no cristia­
nismo [norte-] americano. Se o século XVII foi o da soberania e o XVIII, o
tempo do reino de Cristo, o X IX pode ser chamado de o período do reino
vindouro ... Entre os cristãos da América [do Norte], pelo menos, o otimis­
mo do século X IX estava intimamente relacionado com a experiência da
aguardada revolução cristâP
Embora cristãos contemporâneos possam discordar de certas ênfa­
ses dessa consciência norte-americana mais antiga do reino, é significa­
tivo que essa consciência existisse. Ela destacava a transformação pro­
movida por Deus em cada setor da sociedade, desde a igreja até a arte, a
ciência e o governo. Entre o final do século X IX e o início do X X , porém,
essa concepção do reino dividiu-se em duas. Os defensores do evangelho
social destacavam o significado terreno presente do reino e os fundamen-
talistas o postergavam e superespiritualizavam. Perdeu-se o equilíbrio, e
a controvérsia modernista-fundamentalista marcou as missões protes­
tantes norte-americanas e globais no meio-século seguinte e depois.
Niebuhr mostrou que embora “ muitos intérpretes do chamado ‘evan­
gelho social’ entendam que antes de 1907 ou 1890 a esperança de um
reino sobre a terra fosse praticamente inexistente enquanto os cristãos
dirigiam todas as suas expectativas para a cidade celestial” , isso é na
realidade uma caricatura.24 Os evangelicais de meados do século X IX
tinham uma consciência ativa do reino que frutificou em amplas refor­
mas sociais e culturais, bem como em evangelização ativa. Donald W.
Dayton documentou de maneira convincente esse movimento evangé-
28 A COMUNIDADE DO REI

lico de “ avivamento mais reforma” em Discovering an Evangelical


H eritage.15
Da perspectiva de hoje, essa ênfase no reino dada no século X IX
parece maculada por um otimismo não-bíblico. O fundamentalismo, é
claro, desviou-se para uma atitude essencialmente pessimista, adotan­
do o pré-milenismo e um dispensacionalismo rígido. Todo otimismo
ficou reservado para o reino milenar, que só poderia vir de maneira cata­
clísmica e só depois que as condições histórico-temporais piorassem:
“quanto pior, melhor” .
O pensamento evangelical desde a década de 70 tende para um equi­
líbrio mais bíblico entre o otimismo e o pessimismo, mas em muitas
partes permanece deficiente em consciência do reino. M as é precisa­
mente uma consciência profunda da natureza dual do reino como algo
presente e algo futuro que se faz necessária para manter esse equilíbrio
bíblico. Todos os cristãos de hoje precisam de uma consciência de reino
— uma percepção do reino de Deus — semelhante àquela do protestan­
tismo do início do século passado. M as ela deve ter maior base bíblica,
para não se tornar, por um lado, utópica ou, por outro, evangelho da
prosperidade.
Que elementos são essenciais para uma consciência do reino hoje?
Cinco ingredientes são particularmente cruciais.
Primeiro, uma ênfase na dimensão cósmica do evangelho. A salva­
ção pessoal é o centro do plano cósmico de Deus, mas não é a circunfe­
rência do plano. Todo o primeiro capítulo de Efésios ensina que a re­
denção pessoal enquadra-se num desígnio divino superior, a saber, a
reconciliação de todas as coisas em Cristo. A Bíblia inteira, aliás, fala
do desígnio cósmico de Deus, muito mais do que se costuma refletir na
teologia evangelical.26
Essa dimensão cósmica precisa ser redescoberta e explorada. Em ter­
mos teológicos tradicionais, precisamos relembrar que Deus é soberano,
que Jesus Cristo venceu os principados e potestades e que o Espírito Santo
está agindo no presente para restaurar a criação divina decaída.
Segundo, uma recuperação da amplitude dinâmica da Palavra de
Deus. A Bíblia é a Palavra de Deus, mas fica claro pela própria Bíblia
que “ a Palavra de Deus” é uma realidade dinâmica — Deus em comuni­
cação — , o que é mais amplo que as Escrituras. A Palavra é, acima de
tudo, Jesus Cristo (Jo 1.1, 14). Precisamos ser sábios o bastante para
continuar afirmando que a Bíblia é a Palavra infalível de Deus e, ao
mesmo tempo, ir adiante, dizendo que a Palavra é muito mais que um
livro. Ela é dinâmica, criativa, sempre nova — “viva e eficaz, e mais
A CONSCIÊNCIA DO REINO 29

afiada que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4.12). O contexto mos­
tra claramente que essa passagem não se refere só à Bíblia.
A Palavra de Deus é uma crítica constante à igreja, levando o povo
de Deus a compreender o reino ou reinado de Deus em todas as suas
dimensões e viver para ele. A abertura contínua ou renovada para a
Palavra de Deus em sua capacidade de convencer e inspirar é uma chave
para as igrejas existirem não só para si mesmas, mas para os propósitos
divinos de redenção e libertação.
Terceiro, uma recuperação de um senso de história. O reino de Deus
é um fato histórico. Ele não brota em sua plenitude no cenário do mun­
do sem nenhuma relação com a história, mas em certo sentido resulta
da ação de Deus ao longo da história e, de maneira suprema, na vida,
morte e ressurreição de Jesus. É verdade que o estabelecimento definiti­
vo do reino aguarda o retorno de Cristo; é também verdade que Deus
está agindo agora na história, principalmente “ mediante a igreja” (Ef
3.10). Os cristãos bíblicos precisam reafirmar a importância da ação
humana dentro do processo histórico, sem, porém, dicotomizar ou dei-
ficar a história.
Quarto, uma nova ênfase na ética do reino. Os ensinos de Jesus
deixam claro que o reino de Deus em sua realidade presente significa
uma vida de discipulado. “A igreja é a forma sofredora do reino de
Deus.”27 A presente expressão do reino exige uma ética de crucificação,
não uma ética triunfalista. A igreja não pode viver como se o reino já
estivesse plenamente estabelecido; ela é chamada para viver o paradoxo
do Rei que acabou numa cruz. Assim, a igreja é chamada para “dar a
vida” (veja Jo 10.17,15.13), mesmo quando experimenta a alegre espe­
rança da reconciliação final (Rm 15.13). Consciência do reino significa
profunda consciência do preço do discipulado.
E, por fim, uma perspectiva cristã da cultura é um componente ne­
cessário de uma visão do reino. Há, para os cristãos, um “mandato cul­
tural” , tanto quanto um mandato evangelístico — ou melhor, um man­
dato do reino, que combina os dois. O evangelho preocupa-se com toda a
sociedade, não apenas com a igreja institucional. E a esfera de ação
divina não se limita ao círculo dos que crêem, antes, abrange toda a
criação, como a Bíblia nos relembra repetidas vezes. Historicamente, os
evangelicais estão corretos em insistir na centralidade e prioridade da
conversão pessoal e da edificação da comunidade cristã, a igreja. Com
freqüência, eles também reconhecem que a conversão e a comunidade
cristã implicam uma responsabilidade social fundamental. M as essa vi­
são do reino vai além. Ela leva em conta toda a questão da cultura e da
30 A COMUNIDADE DO REI

formação da cultura. Quais são as implicações da perspectiva bíblica da


realidade para a arte, educação, política, economia, música, filosofia?
Todas essas áreas afetam as pessoas; todas são projeções do trabalho
humano e da percepção humana da realidade. E todas precisam ser colo­
cadas sob a soberania de Cristo.
O reino de Deus ainda não chegou em sua plenitude, mas está che­
gando. Seu pleno florescimento aguarda o retorno de Cristo. M as ela
continua a expandir e a crescer pela vida e obra do povo de Deus — a
igreja. E o entendimento do reino está intimamente ligado ao entendi­
mento da igreja.

NOTAS
1 "Evangelical" e "evangelicalismo" têm diferentes significados em diferentes contextos.
Em boa parte da América Latina, "evangelical" é praticamente sinônimo de "protestan­
te", enquanto em algumas partes da Europa significa essencialmente "luterano".
Neste livro, a menos que haja alguma ressalva, uso "evangelical" no sentido do
ressurgimento do protestantismo ortodoxo conservador na América do Norte, depois
da Segunda Guerra (com raízes no fundamentalismo e nos avivamentos do século
XIX), e do movimento evangelical global que surgiu principalmente das agências evan-
gelísticas e missionárias norte-americanas formadas depois de 1940. Hoje, o evange­
licalismo global é tipificado por redes como a World Evangelical Fellowship (WEF) e o
movimento de Lausanne. Veja em especial Donald W. Dayton e Robert K. Johnston,
The Variety o f American Evangelicalism (Downers Grove: InterVarsity, 1991).
2 Carl F. H. Henry, Evangelicals in Search o f Identity (Waco: Word, 1976), p. 22.
3 Carl F. H. Henry, The Uneasy Conscience o f Modem Fundamentalism (Grand Rapids:
Eerdmans, 1947), Prefácio.
4 Ronald Nash, The New Evangelicalism (Grand Rapids: Zondervan, 1963); Millard Erick­
son, The New Evangelical Theology! Old Tappan: Revell, 1968); David O. Moberg, The
Great Reversal (Philadelphia: Lippincott, 1972); David F. Wells e John Woodbridge, The
Evangelicals (Nashville: Abingdon, 1975).
5 Boa parte do fundamentalismo, porém, não sentiu essa "consciência pesada" e conti­
nuou praticamente intocado até o surgimento da chamada nova direita religiosa, no
final da década de 70. Veja R. Zwier, "New Religious Right", em Donald F. Reid ed.,
Dictionary o f Christianity in America (Downers Grove: InterVarsity, 1990), 817s.
6 Até 1976, o nome de Sojourners era The Post American. The Other Side, na realidade,
teve uma história anterior, mas surgiu como periódico "evangelical jovem" com esse
título na década de 70, Embora alguns evangelicais mais novos preferissem dissociar-
se do evangelicalismo e, portanto, do rótulo evangelical, as relações históricas e seu
compromisso com a autoridade bíblica (mesmo que redefinida) ainda os colocam
dentro do contexto mais amplo do evangelicalismo contemporâneo. Veja em especial
Richard Quebedeaux, The Young Evangelicals (New York: Harper & Row, 1974) e The
Other Side, 11:2 (March/April, 1975).
7 Moberg, p. 177. Veja também Donald W. Dayton, Discovering an Evangelical Heritage
A CONSCIÊNCIA DO REINO 31

(New York: Harper & Row, 1976; rev. ed., Peabody: Hendrickson Publishers, 1988).
8 Sherwood Wirt, The Social Conscience o f the Evangelicals (New York: Harper & Row,
1968), p. 154.
9 Carl F. H. Henry, A Plea for Evangelical Demonstration (Grand Rapids: Baker, 1971), p. 107.
,0 Leighton Ford, The Christian Persuader (New York: Harper & Row, 1966), p. 151.
11 Para evitar um entendimento universalista dessa "reconciliação de todas as coisas",
deve-se ter em mente aqueles textos bíblicos que falam do julgamento e da condenação
eterna de Satanás e de todos os que rejeitam a Cristo e da repulsão de tudo o que seja
impuro, profano ou falso.
12 O Pacto de Lausanne pode ser considerado um passo nessa direção (veja o cap. 2).
13 Vinay Samuel e Chris Sugden, eds., Mission as Transformation: A Theology o f the Who­
le Gospel (Oxford: Regnum, 1999).
14 Veja, por exemplo, C. René Padilla, El Evangelio Hoy (Buenos Aires: Certeza, 1975), e
Missão Integral — Ensaios sobre o Reino e a igreja (São Paulo/São Paulo: FTL-B/Temáti-
ca, 1992).
15 Pode ser produtiva e elucidativa uma pesquisa para comparar e contrastar o surgi­
mento de uma consciência do reino dentro do evangelicalismo global com a ênfase no
reino de Deus na origem do evangelho social na América do Norte um século antes.
,6 Henry, A Plea for Evangelical Demonstration, p. 108.
17 Ibid., pp. 113-14.
18 A noção de um "mandato cultural" dado à igreja tende a alargar o senso de missão
da igreja, não a limitando à evangelização no sentido estreito. É, porém, mais útil,
inclusivo e biblicamente saudável falar de um mandato do reino, dado à igreja, que
incorpora o "mandato cultural", o "mandato evangelístico" e muito mais.
19 Francis A. Schaeffer, Poluição e Morte do Homem — uma Perspectiva Cristã da
Ecologia (Rio de Janeiro: JUERP, 1976), pp. 71-72. Essa percepção penetrou de manei­
ra bem desigual no evangelicalismo norte-americano e em muitos casos tem sido
ignorada por completo.
20 Ibid., p. 74.
21 Veja Snyder, Models o f The Kingdom, capítulos 2— 10; Howard Snyder, "Models of
the Kingdom: Sorting Out the Practical Meaning of God's Reign", em Samuel e
Sugden, Mission as Transformation, pp. 118-33.
22 H. Richard Niebuhr, The Kingdom o f God in America (New York: Harper Torchbooks,
1959), p. 135.
23 Ibid., pp. 150-51.
24 Ibid., p. 151.
25 Dayton delineia o envolvimento e o empenho dos evangelicals do século XIX com o
abolicionismo, o feminismo, a reforma educacional e a preocupação de pregar o
evangelho aos pobres.
26 Muitos dispensacionalistas não hesitam em mapear um programa de atividade cósmi­
ca divina, mas esse programa tem pouco espaço para a atividade humana na socieda­
de (exceto pela atividade dos pecadores), além de não ter continuidade com a história
no espaço e no tempo.
27 R J. Hoedemaker, citado por Van Ruler, The Christian Church and the Old Testament, p. 82.
MODELOS
DE IGREJA

O que você vê depende muito da posição em que você se encontra. E


sua posição com respeito à igreja, por conseguinte, afeta o que você
pensa sobre como o evangelho deve ser vivido e o que você considera ser
o verdadeiro significado do reino de Deus.
Como devemos entender a igreja? Quais as figuras e metáforas bá­
sicas pelas quais podemos compreendê-la? Fazer essas perguntas é iden­
tificar certas mudanças no entendimento que o cristianismo tem de si
mesmo. Neste capítulo e no próximo, analisaremos as mudanças nos
modelos de igreja.
Meu entendimento da igreja foi moldado em parte pelo ministério
no Brasil, de 1968 a 1975. No fim desse período, fui convidado a escrever
um ensaio sobre “A Igreja como Agente Divino de Evangelização” para
o Congresso Internacional de Evangelização Mundial em Lausanne, Su­
íça, em 1974. A concepção de igreja endossada em Lausanne e incorpo­
rada ao Pacto de Lausanne enquadra-se de fato numa discussão mais
ampla acerca das concepções fundamentais da igreja. Será útil rever
alguns modelos proveitosos para compreender o corpo de Cristo.

Uma mistura de metáforas


Os modelos ou metáforas segundo os quais a pessoa entende a igre­
ja são mais poderosos do que pode parecer à primeira vista. O teólogo
jesuíta Avery Dulles indica isso em seu livro muito útil, Models o f the
Church.1Dulles mostra que, embora haja muitas figuras válidas de igre­
ja, diferentes figuras ou modelos têm prevalecido em diferentes épocas.
Hoje, alguns modelos são correntes, e perspectivas que dizem respeito a
aspectos específicos da igreja são determinadas, em grande parte, pelo
modelo pressuposto.
Peter Savage apresentou quatro modelos de igreja que operam no
nível popular. Muitos vêem a igreja como um auditório, aonde os crentes
34 A COMUNIDADE DO REI

vão para ouvir a exposição da Bíblia. Para outros, a igreja é um teatro,


em que se reúnem os fiéis para testemunhar o drama do sacramento
encenado diante deles. A igreja pode ser vista, ainda, como uma corpo­
ração eficiente e altamente orientada para programas, com uma equi­
pe pastoral de tempo integral envolvida em vender a religião no varejo,
para as massas. Por fim, diz Savage, muitos vêcm a igreja como um
clube social a que as pessoas se filiam para suprir certas necessidades,
exatamente como podem filiar-se a outras organizações para suprir
outras necessidades. Savage, então, discute a igreja como a comunida­
de escatológica e sacramental de discípulos.2
Em M odels o f tbe Church, Dulles apresenta cinco modelos básicos
que têm sido marcantes no cristianismo ocidental: a igreja como insti­
tuição, como comunhão mística, como sacramento, como arauto e como
serva. Essas metáforas não são mutuamente exclusivas c nenhuma
abrange toda a verdade a respeito da igreja — que, afinal, permanece
um mistério. M as creio que Dulles esteja correto em dizer que “embora
todos os modelos tenham seus méritos, não têm todos o mesmo valor, e
algumas apresentações de alguns modelos devem ser rejeitadas com
veemência” .3
O próprio Dulles não estava de todo satisfeito com esse leque de
modelos. Em 1987, numa edição revista de M odels o f the Church,
acrescentou um sexto modelo, algo importante: a igreja como comuni­
dade de discípulos. Esse modelo, afirma Dulles, é de fato mais próximo
da experiência neotestamentária da igreja e tem relevância hoje.4 Ele
também casa bem com alguns dos modelos discutidos a seguir.
Para um entendimento histórico, os dois primeiros modelos de Du­
lles são particularmente importantes — a igreja como instituição e
como comunhão mística. Existe, aqui, uma certa polaridade — duas
maneiras nitidamente distintas de ver a igreja. Esses modelos, em par­
ticular, levantam a questão da prioridade de alguns modelos sobre
outros à luz das Escrituras.
Historicamente, a teologia católica romana destacava a natureza
institucional da igreja como a “ sociedade perfeita” . A igreja como
instituição era o modelo básico por trás da eclesiologia católica ro­
mana pelo menos desde a Contra-Reforma (às vezes chamada de Re­
forma Católica) até a década de 60. M as, como destaca Dulles, o Va­
ticano II (1962-65) marcou uma mudança de ênfase. O Cardeal Joseph
Suenes deu expressão viva a essa mudança no livro A New PentecostP
Ele testifica:
MODELOS DE IGREJA 35

Quando eu era jovem, a igreja nos era apresentada como uma sociedade
hierárquica: ela era descrita como “juridicamente perfeita”, possuindo em
si todos os poderes necessários para garantir e promover a própria existên­
cia. Essa idéia refletia uma imagem da igreja moldada de maneira bem
próxima segundo a sociedade civil ou até mesmo militar: havia uma hierar­
quia descendente, uma uniformidade que era considerada como um ideal e
uma disciplina que se estendia ao mínimo detalhe, regendo a vida tanto do
clérigo como do leigo e impondo até aos bispos toda uma série de servidões
burocráticas.5
Suenens destaca, porém, que “ ao mesmo tempo ... outra visão da
igreja gradualmente tomava forma diante de nossos olhos” . Certo nú­
mero de teólogos católicos começou a falar da igreja como o corpo
místico de Cristo, e isso abriu caminho para as declarações do Vatica­
no II. Diz Suenens:
O Concílio Vaticano II enfatizou a igreja como Povo de Deus em peregrina­
ção, a serviço do mundo ... Isso era para salientar a prioridade do batismo
e a igualdade radical dos filhos de Deus, e implica automaticamente uma
reforma do conceito da igreja que boje chamamos de “piramidal”, situando
assim o ministério dentro do coração e a serviço de todo o corpo eclesiás­
tico. A perspectiva tornou-se mais evangélica e menos jurídica, sem, po­
rém, repudiar o papel da hierarquia.6
Essa declaração, vinda de um porta-voz católico tão eminente, é
notável em vários níveis. Da perspectiva deste capítulo, é importante
porque documenta uma mudança de ênfase importante entre os cató­
licos romanos: da igreja como instituição para a igreja como comuni­
dade de pessoas. Dulles defende o mesmo ponto:
O Concílio Vaticano II, em sua Constituição sobre a igreja, fez amplo uso
dos modelos do corpo de Cristo e do Sacramento, mas seu modelo domi­
nante foi, antes, o do Povo de Deus. Esse paradigma concentrou a atenção
na igreja como uma rede de relacionamentos interpessoais, na igreja como
comunidade. Esse, ainda, é o modelo dominante para muitos católicos
romanos que se consideram progressistas e invocam o ensino do Vaticano
II como autoridade sobre eles.7
Seria fácil exagerar a importância dessa mudança de uma concep­
ção institucional para uma concepção orgânica/comunal da igreja.
Deve-se lembrar que o caráter institucional da igreja e as prerrogati­
vas da hierarquia foram reafirmadas de maneira explícita pelo Vatica­
no II. M as é evidente certa redução do conceito institucional em favor
de um conceito baseado nos símbolos de povo e comunidade, e isso tem
exercido um grande impacto no catolicismo romano no quarto de sécu­
lo subseqüente.
36 A COMUNIDADE DO REI

A concepção da Reforma
Como aparecem essas trocas de modelos quando se observa da pers­
pectiva do pensamento protestante? A concepção de igreja esposada pe­
los reformadores protestantes recebeu sua formulação clássica de Lute-
ro e Melanchton na Confissão de Augsburgo (1530): a igreja é “a con­
gregação dos santos na qual o Evangelho é corretamente ensinado e os
sacramentos são corretamente administrados” . Sua “verdadeira unida­
de” é baseada na “unidade de fé com referência ao ensino do Evangelho
e à administração dos sacramentos” .8 Aqui, a igreja é vista fundamen­
talmente em termos de crença correta, ensino correto e ordem correta.
Essa definição de igreja, como observou E. Gordon Rupp, “tende a influ­
enciar todas as definições posteriores” .9
M ais calvinista em seu tom é a Confissão de Westminster, um sécu­
lo mais tarde, que disse que a igreja, invisível, “consiste de todo o nú­
mero dos eleitos” e, visível, “consiste de todos os que através do mundo
professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos” .10A ênfa­
se, aqui, está na eleição, na crença correta e, implicitamente, nos sacra­
mentos e na ordem correta.
Embora essas declarações sejam bem diferentes, três elementos se
destacam: (1) a ênfase principal é colocada sobre o evangelho e não
sobre a obediência à hierarquia; (2) a incorporação à igreja é vista prin­
cipalmente como uma questão de crença ou profissão correta; e (3) as
figuras de comunidade, povo ou corpo não são centrais. A ênfase passa
da instituição do sistema eclesiástico católico romano para a institui­
ção da Palavra proclamada e para os sacramentos administrados.
No século XVI, era difícil conceber a igreja como um povo distinto
do restante da sociedade ou como uma comunidade específica separada
do mundo. Esse conceito de igreja era revolucionário a ponto de ser
considerado herético, e ameaçador a ponto de parecer politicamente
subversivo. Principalmente por esse motivo, aqueles que chegaram mes­
mo a afirmar o direito e a necessidade de a igreja ser uma comunidade
separada, distinta, do povo de Deus — os anabatistas — morreram às
centenas pela fé que professavam. Não é por coincidência que a redes-
coberta contemporânea do valor da tradição anabatista para o cristia­
nismo contemporâneo tenha por paralelo uma nova ênfase na igreja
como comunidade e como um povo.11
Se os reformados não endossavam especificamente a concepção ins-
titucional/hierárquica da igreja, também não tinham razão para rejei­
tá-la. William R. Estep nos lembra que “ a Reforma foi uma revolta con­
tra a autoridade papal, mas não contra o conceito romano da igreja
MODELOS DE IGREJA 37

como uma instituição” .12 É verdade que, ao reduzir os sacramentos a


dois, os reformadores destruíram boa parte do sistema eclesiástico ca­
tólico romano, mas a Reforma realmente não desenvolveu um entendi­
mento bíblico da igreja. A Confissão de Augsburgo, por exemplo, é de­
certo compatível com um entendimento institucional da igreja, se é que
de fato não a pressupõe.
A vertente central do protestantismo, portanto, herdou conceitos
que se prestam a um entendimento institucional da igreja. Isso é mais
claro na aceitação quase que universal entre os protestantes da distin­
ção clero-laicato preservada pelos ritos de ordenação e na prática de dar
o nome de “igreja” a estruturas denominacionais.13É fácil essa tradição
combinar-se com as tendências seculares da sociedade moderna, produ­
zindo uma concepção essencialmente institucional/organizacional da igre­
ja que se choca com a idéia da igreja como comunidade e um povo.
Hoje, o fato de a cultura depender cada vez mais da tecnologia em
todo o globo tende a reforçar os conceitos de igreja como instituição ou
igreja como técnica. Isso produz o conceito de uma igreja por demais
preocupada com modos técnicos de operação e perigosamente susceptí­
vel a técnicas de administração e marketing, que dependem mais dos
gênios da propaganda do que de Paulo ou de Jesus.
E significativo que Jesus tenha rejeitado tanto os modelos religiosos
como os políticos para seus seguidores em duas passagens afins, M a­
teus 20.20-28 e 23.1-12.14Aqui, encontramos declarações radicais, como:
“Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas
importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao
contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser ser­
vo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo” (Mt 20.25-27).
“ Vocês não devem ser chamados ‘rabis’; um só é o Mestre de vocês, e
todos vocês são irmãos ... Tampouco vocês devem ser chamados ‘che­
fes’, porquanto vocês têm um só Chefe, o Cristo” (Mt 23.8,10). A arro­
gância e os títulos hierárquicos que criam distinções entre os crentes
são categoricamente rejeitados. Os seguidores de Cristo são vistos como
irmãos, irmãs e co-servos.
A luz dos conceitos da Reforma, é importante observar o que o Con­
gresso de Lausanne, em 1974, disse acerca da igreja.

Os modelos de Lausanne
O Congresso de Lausanne, realizado a apenas uma hora de Gene­
bra, Suíça, no verão de 1974, manteve-se na herança da Reforma Protes­
tante e, assim, das concepções reformadas da igreja. M as os cerca de
38 A COMUNIDADE DO REI

três mil e quinhentos líderes evangelicais reunidos em Lausanne também


representavam outros ramos da crescente família evangelical — anaba-
tistas, holiness de linha wesleyana, alguns grupos pentecostais e igrejas
mais novas influenciadas por alguma mistura dessas tradições.15
O Congresso Internacional de Evangelização Mundial (informal­
mente chamado de Congresso ou Conferência de Lausanne ou apenas
Lausanne 1974) juntou um amplo leque de líderes evangélicos interessa­
dos em missões e evangelização em todas as partes do mundo. O Con­
gresso emitiu um documento notável, o Pacto de Lausanne, expressando
o consenso dos participantes sobre uma série de questões relacionadas
com a evangelização mundial. Nosso interesse principal, aqui, está no
que o Pacto disse sobre a igreja.16
Lausanne certamente não foi uma assembléia eclesiástica formal
ou um “concílio ecumênico” no sentido técnico. M as, em certo sentido,
o Congresso Internacional de Evangelização Mundial equivale aos con­
cílios históricos da igreja. Considerando o número total de participantes
c a amplitude da representação dcnominacional e geográfica (ainda que
essa representação fosse não-oficial e teologicamente restrita), seria pos­
sível alegar que Lausanne tem mais direito ao título ecumênico que mui­
tos dos “concílios ecumênicos” da história. E, apesar do fato de que o
próprio Congresso não tinha a pretensão de se considerar um concílio
ecumênico, é instrutivo considerá-lo no contexto da história conciliar
do cristianismo. E ainda mais, se for de fato verdade, como afirma o
Pacto, que a igreja é “ antes a comunidade do povo de Deus do que uma
instituição” .
O Pacto de Lausanne é, portanto, significativo como a expressão de
um tipo de consenso global dos evangelicais quanto à natureza da igre­
ja. Por esse motivo, merece exame o que ele diz acerca da igreja.
As duas declarações chaves sobre a igreja no Pacto de Lausanne ocor­
rem na Seção 6, “A igreja e a Evangelização” : “A igreja ocupa o ponto
central do propósito divino para o mundo e é o agente que ele promoveu
para difundir o evangelho ... A igreja é antes a comunidade do povo de
Deus do que uma instituição, e não deve ser identificada com qualquer
cultura em particular, nem com qualquer sistema social ou político, nem
com ideologias humanas” . Em outro ponto, o Pacto fala de Deus cha­
mando “ um povo para si” (Seção 1) e da “nova comunidade” reunida por
Cristo (Seção 4).17 Fica claro que Lausanne via a igreja principalmente
em termos de comunidade e povo. O documento intitulado “Uma Res­
posta a Lausanne” , que brotou da reunião espontânea sobre “discipula-
do radical” realizada durante a conferência de Lausanne, também des-
MODELOS DE IGREJA 39

taca a “ comunidade” , falando da igreja como comunidade “carismáti­


ca” e “messiânica” .18
A importância dessas declarações repousa tanto no que não di­
zem como no que dizem. Seu valor torna-se mais óbvio quando colo­
cadas ao lado de formulações protestantes tradicionais da igreja e tam­
bém das declarações do Concílio Vaticano Segundo (Vaticano II), ca­
tólico romano.
É interessante que tanto o Pacto de Lausanne como o Vaticano II
dêem ênfase ao mesmo conceito básico de igreja: a igreja como a comu­
nidade do povo de Deus.19 Conforme se observou acima, isso sinaliza
uma mudança importante de ênfase na teologia católica romana — uma
mudança que por quase três décadas vem agindo como fermento em
todo o mundo católico.
O Pacto de Lausanne marca uma importante mudança similar no
conceito de igreja por parte do protestantismo evangelical.20 A mudan­
ça não foi tão grande, já que o protestantismo nunca desposou por com­
pleto uma concepção hierárquica e sacramental da igreja. M as a impor­
tância da mudança provocada pelo Pacto de Lausanne nos modelos para
o entendimento que a igreja tem de si mesma é óbvia, quando se compa­
ram suas declarações sobre “A Igreja e a Evangelização” com afirma­
ções protestantes históricas como as confissões de Augsburgo e West-
minster. Nesse sentido, o Pacto de Lausanne assinalou uma preocupação
crescente dos evangelicais pela eclesiologia (ou a inquietação crescente
com modelos herdados) e uma mudança rumo a concepções menos insti­
tucionais ou hierárquicas da igreja.21
Ao descrever a igreja mais como “a comunidade do povo de Deus
do que uma instituição” , Lausanne endossou uma concepção de igreja
radicalmente bíblica e importante para a prática. O Pacto de Lausanne
não fornece, claro, uma definição completa de igreja, e o Congresso
também não pretendia escrever uma declaração doutrinária como tal.
Uma vez que a palavra instituição tem um amplo leque de significados,
o Pacto talvez devesse ter preferido dizer que a igreja não é em primeiro
lugar uma instituição, em vez de renegar todo e qualquer aspecto insti­
tucional. M as a declaração conforme redigida é significativa e marca
um passo rumo a um entendimento mais autêntico e bíblico da igreja.
E significativo que as décadas finais do século X X tenham testemu­
nhado algumas vozes em várias partes conclamando para uma nova ênfa­
se na comunidade, no povo, no discipulado mútuo. Até aqui, tem sido um
movimento na direção correta. M as, conforme veremos, outras questões
estavam em jogo e outros modelos de igreja estavam exigindo atenção.
40 A COMUNIDADE DO REI

NOTAS
1 Avery Dulles. Models o f the Church (New York: 1974). Veja também a discussão em
Snyder, Models o f the Kingdom, cap. 1, "The Mystery of the Kingdom and the Use
of Models", 15-24.
2 Peter Savage, "The Church and Evangelism", em The New Face o f Evangelism, ed.
C. René Padilla (Downers Grove: InterVarsity, 1976), 106-20.
3 Dulles, 30 (ed. 1974).
4 Avery Dulles, Models o f the Church, rev. ed. (New York: Doubleday, 1987).
5 Cardeal Leon Joseph Suenens, A New Pentecost? trad. Francis Martin (New York:
Seabury Press, 1975), pp. 1-2.
6 Ibid., pp. 2-3.
7 Dulles, p. 27 (ed. 1974).
8 Henry Bettenson, ed., Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: Aste/Simpósio, 1998),
p. 318. Lutero distinguia sete marcas da Igreja, todas relacionadas com a Palavra de
Deus. A Igreja é marcada por (1) a Palavra pregada e crida, a Palavra simbolizada e
partilhada por meio do (2) batismo e (3) da Santa Comunhão; a Palavra propriamente
administrada e guardada que necessita de (4) ministros e (5) do ofício das chaves; (6)
a Palavra usada na adoração; e a Palavra vivida, que é uma vida marcada pela (7) cruz.
É evidente que todas essas marcas, exceto a última, estão ligadas exclusivamente ao
culto público da Igreja. O tratamento dado por Calvino às marcas da Igreja é, à
primeira vista, bem diferente do de Lutero, mas na realidade é bem semelhante.
Calvino diz várias vezes que há duas marcas da Igreja visível: o puro ministério da
Palavra e a pura celebração dos sacramentos. "Onde quer que vejamos a palavra
de Deus sinceramente pregada e ouvida, onde quer que vejamos os sacramentos
administrados de acordo com a instituição de Cristo, não podemos duvidar que ali a
Igreja de Deus tem alguma existência ..." (Instituías da Religião Cristã . IV, i, 12).
Aqui, só há duas marcas — ou, se separarmos os sacramentos, três. Mas, para
Calvino, a "administração adequada" dos sacramentos exige um ministério ordena­
do e a necessidade de provisão para excomunhão. E a administração dos sacramen­
tos é uma questão de adoração pública. Assim, em essência, não há diferença
básica entre Lutero e Calvino quanto à maneira pela qual a Igreja pode ser reconhe­
cida sobre a terra. Uma área de diferença é que Calvino não menciona a cruz ou a
perseguição como uma marca da Igreja. Calvino reconhece o lugar da cruz na
experiência cristã, mas, ao que parece, não via a perseguição ou o sofrimento como
uma marca necessária. Lutero menciona a cruz, apesar de colocá-la por último em
sua lista.
9 E. Gordon Rupp, "The Doctrine of the Church at the Reformation", em The Doctrine
o f the Church, ed. Dow Kirkpatrick (Nashville: Abingdon, 1964), p. 73. Tanto Lutero
como Calvino acreditavam, é claro, que a Igreja era mais que sua expressão visível. Era
o povo de Deus, a comunhão dos eleitos. Mas no que se tratasse de sua manifestação
reconhecível na história, no espaço e no tempo, a ênfase (não exclusiva, mas principal)
estava mais no ensino e na ordem adequada do que na comunidade e na formação de
um povo.
10 Bettenson, p. 343.
n Veja, por exemplo, William R. Estep, The Anabaptist Story, rev. ed. (Grand Rapids:
Eerdmans, 1975). Stanley Hauerwas e William H. Willimon, Resident Aliens: Life in the
Christian Colony (Nashville: Abingdon, 1989). Nem Lutero nem Calvino consideravam
a igreja idêntica ao estado ou à sociedade em geral. Eles até admitiam certa tensão
MODELOS DE IGREJA 41

entre a igreja e a sociedade. Mas não concebiam a igreja como uma entidade
sociologicamente distinta, uma comunidade autoconsciente existindo em evidente
tensão com a sociedade adjacente, ou seja, como uma contracultura.
12 Estep, p. 182.
13 Veja uma discussão das questões mais amplas de cultura e cosmovisão aqui apresen­
tadas em Howard A. Snyder e Daniel V. Runyon, Decoding the Church: Mapping the
DNA o f Christ Body (Grand Rapids: Baker, 2002), em especial o cap. 7.
14 Veja a discussão dessas passagens no capítulo 7.
15 Os pentecostais e carismáticos ficaram sub-representados em Lausanne, mas a parti­
cipação deles foi maior em Lausanne II, em Manila (1989). Parte da interessante dinâ­
mica do encontro de Manila foi que a melhor recepção dada aos evangelicais carismá­
ticos, dos quais muitos estavam construindo pontes com católicos romanos carismáti­
cos, criou tensões com os evangelicais não-carismáticos que viam a Igreja Católica
Romana de maneira mais negativa, talvez até como apóstata.
16 Veja John Stott, ed„ Making Christ Known: Historie Mission Documents from the
Lausanne Movement, 1974-1989 (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), pp. 28-30.
17 A Missão da Igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial,
1975), pp. 239-44; Stott, Making Christ Known, pp. 9, 20, 28.
18 É provável que a reunião sobre "discipulado radical" estivesse ainda mais alerta às
implicações da terminologia comunidade/povo do que os participantes em geral. Os
adjetivos carismático e messiânico no ensaio "Uma Resposta a Lausanne" sugerem
temas especialmente adequados ao intento deste livro. Veja Douglas, Let the Earth
Hear His Voice, Official Reference Volume of the International Congress on World
Evangelization (Minneapolis: World Wide Publications, 1975), pp. 1294-96.
19 Permanecem, obviamente, diferenças fundamentais e distintas entre a concepção
evangelical contemporânea e a concepção católica romana (oficial) da igreja. Alguns
elementos das declarações eclesiásticas do Vaticano II são ofensivos para os protes­
tantes, porque têm bem pouca base bíblica explícita. O que se destaca aqui é a
questão da ênfase central.
20 Uma m udança um tanto semelhante ocorreu na parte da igreja associada ao
Concílio Mundial de Igrejas. Veja uma discussão breve em Bernard Cooke, Ministry
to Word and Sacraments (Philadelphia: Fortress Press, 1976), pp. 2-5.
21 Isso é verdade pelo menos para os que participaram do Congresso de Lausanne.
Uma reunião de administradores de igrejas, em lugar de líderes de missões e de
evangelização (ou, nesse sentido, uma reunião restrita a teólogos sistemáticos) bem
poderia ter saído com uma declaração muito diferente a respeito da igreja.
3
NOVAS CORRENTES:
MODELOS DE IGREJAS
A PARTIR DE 1975

Durante o período do ressurgimento evangelical nas décadas de 70


e 80 e depois disso, outros modelos de igreja têm atraído a atenção e são
importantes para nossa pesquisa. Em particular, três correntes merecem
comentários: modelos de libertação, modelos pentecostal e carismático
e perspectivas trinitárias.

Modelos de libertação
A teologia da libertação, articulada por autores latino-americanos
como Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo e José Míguez Bonino foi
um novo desafio às maneiras tradicionais de entender a igreja.1A igreja
é, de fato, uma comunidade libertadora e um agente de libertação? Nes­
se caso, em que sentidos? O que significa praticar a libertação na igreja
e qual a responsabilidade pública da igreja na oposição à opressão, racis­
mo e injustiças? Salvação é libertação? Com o surgimento da teologia
da libertação, essas perguntas tiveram de ser encaradas como temas da
eclesiologia.
Gutiérrez alega que a igreja é uma comunidade em que deve ocorrer
uma “reflexão crítica sobre a práxis” . Assim, a vida da igreja tem um
“caráter fontal... para toda análise teológica. A palavra de Deus convoca
e encarna-se na comunidade de fé que se entrega ao serviço de todos os
homens” . A análise teológica da igreja assume “a importância da ação
humana como [seu] ponto de partida” .2A verdadeira “comunhão com o
Senhor significa, evidentemente, uma vida cristã centrada num compro­
misso, concreto e criador, de serviço aos outros” . Na realidade, porém, é
muito freqüente a igreja colocar a doutrina correta acima do serviço re­
dentor, libertador; ela “limitou-se à ortodoxia e acabou deixando a orto-
práxis em mãos dos que estavam fora dela e do número dos crentes” .3
Gutierrez falou da igreja em relação ao domínio de Deus, observan-
44 A COMUNIDADE DO REI

do que “a Igreja anuncia e acolhe o dom do reino de Deus no coração da


história humana” . Essa presença real do reino convoca a igreja a “ uma
hermenêutica política do evangelho” , não a uma preocupação consigo
mesma.4 O povo de Deus é chamado “a lutar contra estruturas opresso­
ras e a construir uma sociedade mais justa” . A igreja deve dedicar-se
“ao processo de libertação” — uma libertação que “passa necessaria­
mente por uma ruptura com a atual situação, por uma revolução soci­
al” . A igreja deve fazer e está começando a fazer “um compromisso
político em prol da criação de uma sociedade mais justa” .5
Leonardo Boff, teólogo da libertação brasileiro, associou explicita­
mente a libertação com a eclesiologia no livro Eclesiogênese: As Comu­
nidades de Base Reinventam a Igreja. Como outros teólogos da liberta­
ção católicos romanos, Boff via o surgimento das comunidades eclesi-
ais de base como um exemplo auspicioso da prática libertadora. Aqui,
nessas pequenas comunidades de origem popular, cristãos pobres esta­
vam sendo “conscientizados” das realidades da opressão política, eco­
nômica e social e do poder de uma nova leitura da palavra de Deus para
capacitá-los a uma resistência criativa e a uma libertação genuína.6
N as comunidades de base, afirmava Boff, vemos uma nova imagem:
a igreja como “um povo oprimido organizando-se para libertação” . Eis
um modelo não baseado em poder e hierarquia, mas em comunidade
cristã genuína. Boff escreveu:
A vida cristã nas comunidades de base é caracterizada pela ausência de
estruturas alienantes, por relacionamentos diretos, por reciprocidade, por
uma profunda comunhão, por assistência mútua, por comunidade de idéi­
as acerca do evangelho, por igualdade entre os membros. As características
específicas da sociedade são ausentes aqui: regras rígidas; hierarquias; re­
lacionamentos prescritos numa estrutura de distinção de funções, qualida­
des e títulos.7
A comunidade cristã — baseada não só no Cristo crucificado, mas no
Cristo ressurreto e no poder pentecostal do Espírito — é central para a
existência da igreja. “ O cristianismo, com seus valores que brotam do
amor, perdão, solidariedade, a renúncia do poder opressivo [e] a aceita­
ção dos outros ... é essencialmente orientada para a criação, dentro de
estruturas sociais, do espírito comunitário” , escreveu Boff. Essa perspec­
tiva torna “ a instituição da igreja mais flexível” , introduzindo “o ele­
mento ‘pneumático’” juntamente com o cristológico. “A igreja nasceu
não só do lado aberto de Cristo, mas também do Espírito Santo, no dia de
Pentecostes.” 8Boff conceitualiza e diagrama a igreja como a comunida­
de de Cristo/Espírito de ministérios e serviços, em contraste com concep-
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 45

ções hierárquicas católicas romanas mais tradicionais.9Assim, ele elabo­


ra e estende o foco do Vaticano II na igreja como povo mais do que insti­
tuição.
A igreja existe não para si mesma, afirma Boff, mas para o reino de
Deus, sendo, portanto, um “sinal escatológico” . Quando fiel ao seu
chamado, a igreja “testifica da nova rota que Deus, em misericórdia e
longanimidade, selecionou para continuar proclamando o reino como
o significado absoluto dos seres humanos em seu mundo, um reino em
que Deus será tudo em todos (1 Co 15.28)” .10
Entre evangelicais latino-americanos, a teologia liberacionista da
igreja mais profunda e mais rica em termos bíblicos foi articulada por
Orlando E. Costas antes de sua morte precoce, em 1987. De importância
especial são Tbe Cburcb an d Its M ission: A Shattering Critique from tbe
Third World\ Cbrist Outside tbe Gate: Mission Beyond Christendom e
Liberating News: A Theology Contextuai EvangelizationT
Embora use uma variedade de modelos bíblicos, Costas concentrou-
se especialmente na igreja como sinal do reino de Deus. “A comunidade
de fé (a igreja) não só é o fruto da obra divina de reconciliação em Cris­
to; é também um sinal do reino vindouro” . Referindo-se a Lucas 4.18-
19, Costas escreveu: “Em palavra e sinal, Jesus proclama ‘aos pobres e
oprimidos’ o Ano do Jubileu, a libertação da história” . Isso, portanto, é
determinante para a igreja. “ O reino que Jesus proclama e personifica
é, por conseguinte, um novo modo de vida que irrompe no presente. A
nova comunidade que toma forma em torno de Jesus — uma nova co­
munidade de amor, liberdade, justiça e paz — evidencia isso.” A igreja,
pois, é “o resultado, sinal e instrumento de um movimento salvador que
começa com a cruz” e, baseada na ressurreição de Jesus e na obra do
Espírito, proclama a salvação “ a todos os cantos da terra. Por esse mo­
tivo, a igreja é vista como uma comunidade peregrina, chamada, nas
palavras do livro de Hebreus, a seu encontro com Jesus ‘fora do acam­
pamento’, ‘suportando a desonra’ e formando, digamos, uma comuni­
dade no deserto (Hb 13.13ss.). Seu alvo final é Jesus (Hb 12.1-2) e a
manifestação de seu reino” .12
Costas alegava que o prometido cumprimento escatológico final dos
propósitos de Deus nos mostra o que a missão da igreja deveria ser
boje. Ele escreveu:
Se o reino de Deus representa a reconciliação definitiva entre Deus e a
humanidade, entre indivíduos, povos, sexos, gerações e raças, e entre a hu­
manidade e o restante da criação — uma promessa que será cumprida na
segunda vinda de Cristo — então a comunhão do povo de Deus é uma
46 A COMUNIDADE DO REI

necessidade primordial, para que o mundo possa compreender o que real­


mente é a salvação que Deus oferece no evangelho. Uma necessidade igual­
mente imperiosa é que a igreja busque comunhão com toda a humanidade
e com o meio ambiente. A esperança da reconciliação final da criação deve
ser demonstrada não só na comunhão interna do povo de Deus, mas tam­
bém num esforço contínuo pela paz e reconciliação entre as nações e seus
habitantes. ”

O chamado da igreja em relação ao reino é, portanto, um chamado


à “ reconciliação e comunhão” em todas as suas dimensões bíblicas.
Costas escreveu:
A esperança da reconciliação final de todas as coisas por intermédio de
Cristo encontra sua expressão concreta na busca da unidade do Povo de
Deus, bem como de uma comunidade mundial mais fraterna e um relacio­
namento cada vez mais harmonioso com a natureza. Preocupação e dedi­
cação a uma vida mais humana, uma sociedade mais justa e um meio am­
biente mais sadio (rios, mares e peixes, ar e aves, terra e animais) não são
estranhos à experiência e à esperança da salvação; são parte essencial dela.'4

Costas deixou explícito que o modelo verdadeiramente bíblico e


evangélico de igreja é um modelo libertador. Por causa da justificação e
libertação por meio da fé em Jesus Cristo, “mulheres e homens são ca­
pazes de dedicar-se de maneira livre e incondicional à causa da justiça” .
Segundo ele:
O Espírito Santo já nos está mostrando sinais de justiça social e política e
libertação estrutural em muitos lugares e situações. Sabemos que um even­
to é um sinal da justiça de Deus quando permite ao pobre e oprimido
experimentar certa medida de libertação econômica, sociocultural e polí­
tica. Sabemos que a libertação é “evangelical” quando rasga as estruturas
que perpetuam divisões entre povos, homens, mulheres e crianças, e entre
a família humana e a natureza ... Todo movimento que dignifica a vida
humana, que promove relações econômicas eqüitativas e que encoraja a
solidariedade entra indivíduos e povos pode ser considerado, pois, mani­
festação (ainda que parcial) do poder salvador do evangelho.'5

Um evangelho libertador requer, insistia Costas, uma comunidade


evangelical evangelizadora — a igreja. Ele escreveu:
A base da evangelização é a congregação. Como uma comunidade de amor,
fé e esperança, a congregação é instrumento de Deus para a transmissão do
evangelho. Sua vida deve ser uma proclamação contínua perpétua, ‘um
quinto evangelho', a encarnação de amor, fé e esperança, a reprodução das
boas novas de salvação em seu contexto social.16

Ele explicava o tipo de comunidade requerido para que fosse fiel ao


evangelho do reino:
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 47

O evangelho foi confiado a uma comunidade, é transmitido por essa co­


munidade e exige uma experiência comunitária. Sem comunidade não pode
haver uma representação viva do evangelho. E a comunidade de crentes que
anuncia o reino de Deus como uma realidade, que proclama uma nova
ordem de vida sob a soberana ação de Deus, que relativiza toda autoridade
humana, inclusive o das instituições ... O testemunho [da igreja] não tem
sentido ... se não tiver o respaldo de uma comunidade cujo amor é traduzi­
do em obras de misericórdia, uma comunidade cuja fé é manifestada num
compromisso com a justiça social e cuja esperança se reflete na luta por
uma paz justa.17
Combinando perspectivas evangelicais e liberacionistas, Costas ar­
ticulou um modelo de igreja coerente com Lausanne, mas foi além —
uma eclcsiologia que era liberacional, mas mais evangelical e funda­
mentada na Bíblia que a maior parte da teologia liberacionista. Ele de­
monstrou as maneiras legítimas pelas quais a teologia evangelical po­
dia aprender da teologia da libertação. Considero que o entendimento
que Costas tem da igreja é muito compatível com o meu e entro por
temas liberacionistas um pouco semelhantes em Liberating tbe Cburch:
The Ecology o f Church and Kingdom (1983).

Modelos pentecostal e carismático


O crescimento do pentecostalismo na América Latina e em outras
partes e, mais recentemente, do cristianismo carismático em todo o
mundo gera uma questão: Qual o modelo (ou modelos) de igreja adota­
do ou ensinado pelos pentecostais? Existe alguma eclesiologia especifi­
camente pentecostal ou carismática? Qual a contribuição do cristianis­
mo carismático para a discussão bíblica dos modelos de igreja?
A medida que cresce, o cristianismo pentecostal e carismático tam­
bém se torna mais diverso. Encontram-se tendências distintas, até con­
flitantes, em diferentes ramos do movimento. Ainda assim, é possível
identificar três aspectos centrais da eclesiologia pentecostal e carismá­
tica significativos para a discussão de uma eclesiologia bíblica e con­
temporânea: a igreja como uma comunidade de dons espirituais cheia
de poder, a igreja como uma comunidade missionária espontânea e a
igreja como um sinal escatológico.
1. A igreja como uma comunidade de dons espirituais cheia de po­
der. A ênfase pentecostal no batismo do Espírito e, em especial, nos
dons de línguas, profecia e cura traz à baila novas questões sobre o tema
dos dons espirituais. Os pentecostais e carismáticos, porém, não enten­
dem os charismata simplesmente como dons para indivíduos, mas como
equipamento para o culto e o testemunho de cada comunidade local.
48 A COMUNIDADE DO REI

Peter Hocken escreve: “A contribuição pentecostal mais caracterís­


tica para a eclesiologia é seu entendimento da igreja local” , em que os
dons espirituais são vistos como “um elemento intrínseco na vida e na
capacitação” da comunidade para testemunho. Ele acrescenta:
Assim como os ortodoxos e católicos vêem o batismo e a eucaristia como
essência da igreja, assim também alguns pentecostais vêem essas dotações
carismáticas do Espirito Santo não só como equipamento evangelístico,
mas como algo para formar e moldar a igreja. Assim, uma concepção pen­
tecostal da igreja espera que todo o leque de dons espirituais seja manifes­
to em cada assembléia local [mesmo que isso possa nem sempre ser verda­
de na prática].18
Essa ênfase pentecostal nos dons espirituais combinada com o cresci­
mento pentecostal e carismático tem sido a principal fonte de uma cons­
ciência renovada dos dons espirituais num âmbito maior na igreja cristã.
Dentro do pentecostalismo, essa ênfase nos dons tem várias implica­
ções para a eclesiologia. Uma das mais importantes é o nivelamento soci­
al e o poder concedido aos pobres e a todos os membros da igreja, não só
ao “clero”, para ministério e participação significativa. Como escreveu
Melvin Hodges (provavelmente o mais influente dos missiólogos pente­
costais da segunda metade do século X X ), o Espírito Santo não só traz
regeneração, como “vem como batismo para dar poder ao crente para ...
testemunho (At 1.5, 8)”. Esse “privilégio maravilhoso” de ser feito parte
vital e testificador da igreja de Cristo “não está reservado à elite espiritu­
al, mas é a herança de cada crente, não importa sua idade, sexo ou estado
social... O Espírito Santo é derramado sobre pessoas comuns” , para que
cada um “encontre um lugar importante no corpo de Cristo, à medida
que o Espírito Santo concede seus dons e capacidades (1 Co 12.4-13)” .19
Nesse sentido, o Espírito que dá poder e dons é também o Espírito que
liberta. O Espírito, assim, cria um movimento que, com o tempo, exerce
um impacto social e político, bem como espiritual, consideráveis.
Refletindo principalmente sobre a experiência pentecostal na Amé­
rica Latina, Douglas Peterson também destaca o elemento do poder que
vem pelo batismo do Espírito e, em particular, pelos dons de línguas e
cura. Ele escreve:
Num a sociedade que lhes nega sistematicamente o acesso aos direitos hu­
manos básicos e os marginaliza em grandes favelas e cortiços, os pentecos­
tais [sic], pelo ímpeto de sua experiência espiritual, reagem em termos prá­
ticos. Os sentimentos de poder, louvor e integridade são interpretados teo­
logicamente dentro das realidades concretas da libertação espiritual e soci­
al, dignidade e igualdade, e um senso de poder divino. Sua fé vibrante,
num surto de coragem e esperança irreprimível, rejeita pensamentos de
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 49

fuga para um mundo místico. A realidade pentecostal não é uma escapada


passiva do ambiente [como alegam algunsj, mas, pelo contrário, a criação
de uma nova existência.20

Essa nova existência, claro, é precisamente a igreja, a nova comuni­


dade de Jesus criada e vivificada pelo Espírito. O sentimento de ser uma
comunidade dotada, cheia de poder, é um elemento central da eclesio-
logia pentecostal.
2. A igreja como comunidade missionária espontânea. Os pentecos-
tais têm o senso aguçado de que ser batizado pelo Espírito significa ser
missionário: “ Os verdadeiros convertidos não precisam ser instados a tes­
temunhar, mas transbordam do zelo de compartilhar suas experiências
com os outros” , observa Hodges. “Os crentes compreendem intuitiva­
mente que, como ‘a boa semente do Reino’, devem multiplicar-se, levando
outros ao conhecimento de Deus” . Daí a ênfase na abertura de igrejas:
Cada igreja local (onde dois ou três estiverem reunidos em Seu nome) tor­
na-se uma célula viva do Corpo de Cristo e agente de Deus para levar a
mensagem de reconciliação à sua comunidade. Portanto, a abertura de novas
igrejas e o crescimento da igreja (multiplicação celular) são de suprema
importância na missão cristãA

Hocken deixa claro que esse elemento está intrinsecamente ligado


ao primeiro. A reflexão sobre a “experiência missionária pentecostal”
tem levado os pentecostais a se concentrar na natureza e no propósito
missionário da igreja.22 Um aspecto importante da eclesiologia pente­
costal, em especial na América Latina e outras áreas de rápido cresci­
mento, tem sido a associação da experiência pentecostal com uma teolo­
gia de crescimento espontâneo da igreja. Hodges afirma: “A ênfase em
princípios espontâneos de autopropagação, autonomia e auto-sustento”
tem sido uma chave do crescimento pentecostal. Ele escreve:
N os casos em que a Igreja tem feito avanços notáveis na América Latina,
observa-se que, sem exceção, a Igreja tem pressuposto a responsabilidade
pelas próprias decisões e tem encontrado nela mesma os recursos necessá­
rios para manter sua operação e avanço, sem depender de fundos e recur­
sos humanos externos. Há, entre os cristãos nativos, um aguçado senso de
responsabilidade pela evangelização do próprio povo. Há uma ausência
de “estrangeirismo” na atmosfera, a Igreja mantém as raízes na própria
nação e prospera em seu clima.23

Assim, uma chave da eclesiologia pentecostal — tanto na concei-


tuação como na prática — tem sido essa ênfase na autonomia. A igreja
deve ter raízes em seu próprio contexto cultural e multiplicar-se (sem
grande dependência de auxílio externo). O Espírito Santo proporciona
50 A COMUNIDADE DO REI

os recursos por meio de uma comunidade dotada de dons e poder.


3. A igreja como um sinal escatológico. N a teologia pentecostal, o
derramamento do Espírito e de seu poder é um dom dos últimos dias,
um sinal de que o fim dos tempos está próximo. “ Quase todas as de­
nominações pentecostais são pré-tribulacionaistas e pré-milenistas” ,
sustentando que a verdadeira igreja “ será arrebatada por Cristo antes
da Grande Tribulação, depois do que Cristo reinará sobre a terra com
os santos por mil anos” , observa Hocken.24
Embora nem todos os pentecostais ou carismáticos sustentem essa
escatologia hoje, praticamente todos os pentecostais veem a igreja
como um sinal do reino vindouro de Deus e entendem que ela exerce
uma função chave no plano de Deus para a história. Assim, a igreja
em sua existência e testemunho é um sinal escatológico.
Essa função escatológica concentra-se principalmente na evange­
lização e na abertura de igrejas, embora também haja lugar para obras
de misericórdia e justiça. Hodges observa que os pentacostais creem
que “ o remédio para muitas das enfermidades da terra devem aguar­
dar o Segundo Advento” de Cristo, o Rei, pelo que oram. A vinda de
Jesus, nota ele, “resolverá os problemas de ordem social” .
Até aí, os cristãos devem testemunhar com fidelidade na vida e na
palavra e preparar aquele corpo dos transformados [pessoas], que é o
próprio sal da terra nesta era presente e que form arão o núcleo da
raça redimida no Reino vindouro. E preciso conseguir convertidos,
plantar e multiplicar igrejas, preparar e enviar líderes cristãos até que
cada alma sobre a terra tenha tido uma oportunidade de ouvir a men­
sagem do amor de Deus e da redenção em Cristo Jesus.25
Douglas Peterson destaca que embora tradicionalmente a maior
parte dos pentecostais seja pré-milenista, isso não significa que consi­
derem a igreja uma simples “ sala de espera para o céu” . Antes, a esca­
tologia deles funciona como “permeação do presente” . Os pentecos­
tais “ estão altamente comprometidos em aliviar a dor e o sofrimento
no âmbito físico” , mesmo que não esperem uma reconstrução social
fundamental. Peterson escreve:
Os pentecostais, que [em muitos lugares] vivem sob a sombra da morte,
mas agora com a dignidade e a identidade recém-descobertas, não vivem a
vida só com os olhos voltados para o céu, mas toda a experiência deles é
toldada pela realidade de que a promessa escatológica do futuro já come­
çou a abrir caminho em direção ao presente.26
Eis uma das diferenças chaves entre as concepções pentecostal e li-
beracionista da igreja. Ambos, a teologia da libertação e o pentecosta-
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 51

lismo, vêem a igreja como sinal e, em algum sentido, agente do reino de


Deus. Ambos vêem a igreja como uma comunidade libertadora em al­
gum sentido. O pentecostalismo coloca, porém, a ênfase principal em
ganhar as pessoas para a fé em Cristo, plantar igrejas e no reino plena­
mente consumado depois da volta de Cristo. Em contraste, a teologia
da libertação destaca as dimensões políticas e sociais da obra de Deus
na ordem presente e define a evangelização principalmente nesses ter­
mos. Além disso, o pentecostalismo vê a igreja no poder do Espírito
como o agente principal do reino vindouro, enquanto a teologia da li­
bertação está mais pronta a ver a ação libertadora de Deus nos esforços
políticos e econômicos para construir uma sociedade justa.27

A igreja como imagem da Trindade


Talvez o desenvolvimento teológico mais significativo no último quar­
to do século X X tenha sido a ênfase renovada na antiga doutrina da Trin­
dade e suas implicações para o entendimento da igreja. Na teologia evan­
gélica, a Trindade é afirmada como doutrina básica, mas raramente rela­
cionada de algum modo fundamental com a eclesiologia. Como escreveu
José Míguez Bonino, a Trindade “ mantém-se como doutrina genérica que
não informa com profundidade a teologia e, o que é pior, a piedade e a
vida de nossas igrejas” .28 Apesar de Bonino estar fazendo referência ao
protestantismo latino-americano, isso é igualmente verdadeiro em rela­
ção ao protestantismo anglo-americano, conforme observa J. I. Packer:
Com muita frequência nós, os evangelicais, relegamos a verdade da Trinda­
de ao quarto de despejo da mente, para colocá-la em exposição só quando
aparecem seus contestadores, em vez de torná-la a estrutura e o centro de
toda adoração. A igreja, então, chega a ser considerada uma organização
para apoio da vida espiritual, em vez de um organismo de louvor perpétuo;
a doxologia é subordinada ao ministério, em vez de o ministério incorporar
e expressar a doxologia; e a vida da igreja é considerada e apresentada em
termos de promover a salvação das pessoas, em vez de adorar e glorificar
a Deus.23

A Trindade implica fundamentalmente que “Deus é em si mesmo uma


conversa permanente, uma comunhão de amor, uma identidade de propósito
e unidade de ação: Pai, Filho e Espírito Santo” , escreve Bonino. A trindade
“não é um enigma a resolver”, mas o modelo segundo o qual todas as
relações humanas, inclusive a igreja, devem ser estruturadas. A Trindade
tem profundas implicações sociais: “ Nem a autoridade completa de um
sobre os outros, nem uma uniformidade de massa indiferenciada, nem a
auto-suficiência daquele ‘que se fez sozinho’, mas a perichoresis [“ dan-
52 A COMUNIDADE DO REI

ça” ou interação mútua compartilhada] de amor é nosso início e nosso


destino — como pessoas, como igreja, como sociedade” .30
Nas últimas décadas, alguns teólogos vêm explorando as implica­
ções da doutrina da Trindade para todo o empenho teológico.31 Alguns
começam a perguntar: Como seria uma igreja segundo um modelo real­
mente trinitário? Uma recuperação teologicamente funcional da dou­
trina da Trindade afetaria em profundidade nosso entendimento do que
é a igreja e de como ela deve funcionar.32 Digo “ recuperação” porque,
conforme observaram alguns autores, uma teologia trinitária consis­
tente atuava nos séculos III e IV da igreja.33
Uma das melhores discussões da história do pensamento trinitário
e sua importância para a eclesiologia é do falecisdo Collin Gunton, The
Promise o f Trinitarian Theology.34Gunton observa que, na tradição cristã
ocidental, em contraste com a ortodoxia oriental:
H á muito existe a tendência de tratar a doutrina [da Trindade] como um
problema e não como o que envolve o coração do ei/angelho cristão. E
como se fosse preciso estabelecer a ortodoxia cristã enfrentando uma sé­
rie de dificuldades matemáticas e lógicas e não pelo gloriar no ser de um
Deus cuja realidade como uma comunhão de pessoas é a base de um uni­
verso racional em que pode tom ar form a a vida pessoal.35
Gunton alega que a razão principal para isso é a maneira pela qual
Agostinho de Hipona formulou sua doutrina trinitária. Influenciado
pela teologia neoplatônica de Agostinho, o cristianismo ocidental deu à
unidade de Deus prioridade sobre sua triunidade, priorizando com isso
a unidade e a uniformidade sobre a comunidade e a diversidade. De
maneira correlata, a tradição ocidental, seguindo Agostinho, tem tido
dificuldades em sustentar uma ênfase equilibrada na plena humanidade
de Jesus Cristo. Gunton afirma que “um firme entendimento da huma­
nidade material do Filho encarnado é um pré-requisito para uma dou­
trina da Trindade que não debande para a abstração, afastando-se da
história concreta da salvação” . M as para Agostinho, “ a doutrina da
divindade de Cristo é mais importante ... que a da humanidade” .36
Essas duas tendências — não conseguir manter igualmente a unida­
de e a triunidade de Deus e não conseguir salientar igualmente a huma­
nidade e a deidade de Jesus Cristo — gera uma eclesiologia desequili­
brada. O resultado é um entendimento distorcido do que a igreja é em
sua essência e de sua missão no mundo. Gunton afirma que “a manifes­
ta inadequação da teologia da igreja deriva do fato de que ela nunca se
firmou de maneira séria e consistente numa concepção da existência de
Deus como um ser triúno” .37
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 53

Dado o fato da Trindade, a igreja como corpo de Cristo, afirma


Gunton, é essencialmente uma comunidade, uma koinonia que é um
tipo de eco trinitário. Sua vocação é “ ser um eco temporal da comuni­
dade eterna, que é Deus” ; “a natureza da igreja deve ecoar a dinâmica
das relações entre as três pessoas que, juntas, constituem a deidade” .
Nessa eclesiologia, as idéias e estruturas hierárquicas são “substituídas
por um padrão que reflete melhor as relações pessoais livres que consti­
tuem a deidade” . Isso significa “uma eclesiologia de perichoresis” , em
que “não há estrutura permanente de subordinação” , mas “padrões so­
brepostos de relacionamentos, de modo que a mesma pessoa às vezes será
‘subordinada’ e às vezes ‘supervisora’, de acordo com os dons e graças
que estão em exercício” .38
A igreja, portanto, como uma comunidade real e visível, “ é chama­
da para ser o tipo de realidade, no nível finito, que é Deus na eternida­
de” . A perichoresis eterna do Pai, Filho e Espírito Santo deve “prover a
base para a dinâmica pessoal da comunidade” . Trata-se, porém, de uma
comunidade com uma missão real e concreta no mundo. Aqui, Gunton
destaca a maneira pela qual o apóstolo Paulo ancora “ a existência da
igreja no propósito do Pai para reconciliar todas as coisas consigo por
intermédio do Filho e no Espírito: ou seja, no cumprimento do destino
da criação” , conforme Colossenses 1.18. Assim, Gunton diz:
A igreja é o corpo chamado para ser a comunidade dos últimos tempos, ou
seja, para cumprir em sua vida a reconciliação prometida e inaugurada de
todas as coisas. Ela, portanto, torna-se um eco da vida da Trindade quan­
do é habilitada pelo Espírito para ordenar a vida rumo ao ponto em que a
reconciliação ocorre no tempo, ou seja, a vida, morte e ressurreição de
Jesus.39

Assim, a igreja verdadeira é uma comunidade visível que “ ordena e


disciplina livremente a vida, de modo que ecoe a comunidade do Pai,
Filho e Espírito” .40 Eis uma eclesiologia fundamentada na criação (o
que o Deus Trino fez e tinha por propósito na criação do mundo), na
história da redenção (que o Deus Trino realizou e está realizando por
intermédio de Jesus Cristo pelo Espírito Santo) e na escatologia (o rei­
no e a economia de Deus finalmente consumados em Cristo por inter­
médio do Espírito).
Parece emergir um consenso teológico significativo de que nosso
entendimento básico da igreja deve derivar não da cultura ou tradição,
mas da própria natureza de Deus, conforme revelada nas Escrituras. O
modelo e a idéia chaves, conforme afirma Miroslav Volf, é “ a igreja
como a imagem da Trindade” .41
54 A COMUNIDADE DO REI

A igreja e o reino
Essas diferentes correntes teológicas têm enriquecido e atiçado a
discussão eclesiológica nos últimos trinta anos. Embora possamos iden­
tificar temas diferentes e até conflitantes nesses diferentes modelos —
liberacionista, pentecostal-carismático e trinitário — é possível afirmar
que cada uma dessas correntes contribui com algo essencial para nosso
entendimento da riqueza da igreja. Pode ser verdade, conforme alega
Richard Foster, que as várias tradições na história da igreja podem ser
consideradas “correntes de água viva” que, testadas pelas Escrituras,
ajudam a nutrir a igreja.42 Ou, como Richard Lovelace escreveu, alguém
pode imaginar uma “ teoria de campo unificada” de espiritualidade e
renovação da igreja, em que discernimos as contribuições de diferentes
tradições para o “mistério” da igreja e do reino.43
O objetivo, porém, não é tentar uma simples síntese ou harmonia
entre diferentes modelos de igreja, o que poderia ser reducionista. Antes,
o objetivo é destacar a riqueza, diversidade e mistério bíblicos do verda­
deiro corpo de Cristo e procurar modelos práticos que sejam fiéis às
Escrituras e também altamente relevantes para a existência da igreja
hoje em seu contexto sociocultural concreto.
Conforme Dulles destacou, nenhum modelo pode definir por com­
pleto a igreja ou o que Deus está realizando por meio dela. Uma varie­
dade de modelos e figuras pode nos ajudar a compreender a variada
riqueza da igreja.
M as alguns modelos, é lógico, devem ter prioridade sobre outros.
Pela Bíblia, é mais válido compreender a igreja como a comunidade do
povo de Deus do que como uma instituição hierárquica ou uma “ socie­
dade juridicamente perfeita” , conforme veremos adiante. É certo que
figuras bíblicas, como o povo e o rebanho de Deus, o corpo e a noiva de
Cristo e a comunidade ou comunidade do Espírito Santo, têm prioridade
sobre modelos menos bíblicos. Os modelos liberacionista e pentecostal-
carismático de fato destacam temas bíblicos essenciais facilmente ne­
gligenciados. Em termos teológicos e bíblicos, a eclesiologia hoje certa­
mente precisa ser enriquecida pela concepção de igreja como pelo menos
um “eco” ou “imagem” da Trindade.
A questão, porém, não é só a igreja, mas o reino. Estou convicto de
que um entendimento de fato bíblico do reino de Deus só é possível se a
igrej a é entendida — predominantemente, senão exclusivamente — como
a comunidade carismática e o povo peregrino de Deus, seu reino de sa­
cerdotes. Neste livro, procuro mostrar por que essa é a maneira biblica­
mente mais sadia e culturalmente mais relevante de compreender a igre-
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 55

ja e como essa perspectiva incorpora os conceitos bíblicos válidos dos


outros modelos, e também como isso entra em conflito com várias con­
cepções populares.
Discutiremos, portanto, o que significa falar da igreja como a co­
munidade do reino de Deus, com uma ênfase na natureza orgânica da
igreja como corpo de Cristo.
Num mundo de globalização e tecnologia como o de hoje, a igreja
pode ser só uma máquina azeitada com um verniz de personalismo. Ou
pode ser uma comunidade radicalmente bíblica e afetuosa de crentes,
totalmente rendida a Jesus Cristo e a seu reino. A diferença depende,
em parte, do que pensamos a respeito da igreja.
O povo rendido a Jesus Cristo e vivendo para seus propósitos recon-
ciliadores e libertadores — o reino de Deus é isso e nada mais. Isso
significa ver a igreja como povo de Deus em relação com o reino de
Deus. Em outras palavras, como a comunidade messiânica, a comuni­
dade do Rei.

NOTAS
1 Veja, por exemplo, Gustavo Gutíérrez, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1975) e
José Míguez Bonino, Doing Theology in a Revolutionary Situation (Philadelphia: Fortress,
1974). 0 livro de Bonino contém uma ótima bibliografia de obras latino-americanas
sobre a teologia da libertação (a maioria em espanhol) entre 1963 e 73. Aqui, não é
o lugar para entrar numa discussão profunda sobre a teologia da libertação; o ponto
são as questões e contribuições eclesiásticas que ela traz.
2 Gutiérrez, Teologia da Libertação, pp. 20s. Gutiérrez observou que em grande parte
estimulado pelo marxismo "é que, apelando para suas próprias fontes, orienta-se o
pensamento teológico para uma reflexão sobre o sentido da transformação deste
mundo e sobre a ação do homem na história" (p. 22). Embora isso seja historicamente
verdadeiro, em especial no contexto latino-americano, as "próprias fontes" da teologia
cristã — em particular a Bíblia e a obra libertadora do Espírito — provêem a igreja do
mais profundo e revolucionário entendimento da transformação e da ação humana na
história quando ficam livres de crostas institucionais e eclesiásticas e podem reinar sem
impedimentos.
3 Ibid., pp. 23.
4 Ibid., pp. 24, 26.
5 Ibid., pp. 106, 90. No contexto, Gutiérrez refere-se primeiro à situação da Igreja
Católica Romana na América Latina. Obviamente, porém, o argumento possui impli­
cações para a igreja em qualquer contexto histórico-social.
6 Leonardo Boff, Edesiogênese: As Comunidades de Base Reinventam a Igreja (Petrópo­
lis: Vozes, 1977); ed. em inglês, Ecdesiogenesis: The Base Communities Reinvent the
Church, trad. Robert R. Barr (Maryknoll: Orbis, 1986). Sobre comunidades de base,
56 A COMUNIDADE DO REI

veja especialmente Alvaro Barreiro, Basic Ecclesial Communities: The Evangelization


o f the Poor (Maryknoll: Orbis, 1982); Guillermo Cook, The Expectation o f the Poor:
Latin American Base Ecclesial Communities in Protestant Perspective (Maryknoll: Or­
bis, 1985) e Sergio Torres e John Eagleson, eds., The Challenge o f Basic Christian
Communities (Maryknoll: Orbis, 1981). Na América Latina, "comunidades de base"
significam comunidades cristãs de origem popular entre os pobres, não simples grupos
pequenos na igreja.
7 Boff, Ecciesiogenesis, p. 4.
8 Ibid., p. 6, 24 (ênfase no original).
9 Ibid., pp. 25-29.
10 Ibid., pp. 51, 59.
11 Orlando E. Costas, The Church and its Mission: A Shattering Critique from que Third
World (Wheaton: Tyndale, 1974); Christ Outside the Gate: Mission Beyond Christendom
(Maryknoll: Orbis, 1982); Liberating News: A Theology o f Contextual Evangelization
(Grand Rapids: Eerdmans, 1989).
12 Costas, Christ Outside the Gate, pp. 31, 45f. Baseado nessa análise, Costas apresenta
uma critica e uma afirmação profundas do crescimento da igreja, falando da "nature­
za multidimensional" do crescimento autêntico da igreja para o reino. Pode-se falar
do crescimento da igreja como "alvo provisional de missão", mas o crescimento que
almeja apenas o aumento numérico pode ser uma "mutilação da missão" (Christ Out­
side Gate, pp. 44-54).
13 Ibid., pp. 31s.
14 Ibid., p. 32.
15 Ibid., pp. 29s.
16 Costas, Liberatin News, p. 133.
17 Ibid., pp. 134s. Temas semelhantes encontram-se nos escritos de John Howard Yoder,
como bem se observará depois.
18 P. D. Hocken, "Theology of the Church" em Stanley M. Burgess e Gary B. McGee,
eds., Dictionary o f Pentecostal and Charismatic Movements (Grand Rapids: Zonder-
van, 1988), p. 214.
19 Melvin L. Hodges, "A Pentecostal's View of Mission Strategy" em L. Grant McClung Jr.,
ed., Azusa Street and Beyond: Pentecostal Missions and Church Growth in the Twentie­
th Century!South Plainfield: Bridge Publishing, 1986), p. 83s.
20 Douglas Petersoon, "Pentecostals: Who Are They?" em Samuel e Sugden, Mission as
Transfornation, pp. 85s.
2’ Hodges, "A Pentecostal's View", pp. 84s.
22 Hocken, p. 214.
23 Hodges, "A Pentecostal's View", p. 85 (ênfase do autor).
24 Hocken, pp. 21s.
25 Hodges, "A Pentecostal's View", p. 88.
26 Peterson, "Pentecostals: Who Are They?", p. 98.
27 Essas diferentes concepções de igreja implicam, portanto, diferentes modelos do
reino de Deus. Veja Snyder, Models o f the Kingdom, especialmente os caps. 2, 8 e 9.
28 José Miguez Bonino, Faces o f Latin American Protestantism, trad. Eugene L. Sto-
ckwell (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), p. 113.
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 57

29 Packer, "A Stunted Ecclesiology?", pp. 125s.


30 Bonino, Faces o f Latin American Protestantism, pp. 115ss. (ênfase do original). Bonino
entende que uma teologia verdadeiramente trinitária oferece "uma estrutura de pensa­
mento teológico que nos pode salvar de reducionismos [teológicos]" e é "particular­
mente significativa ... com referência à eclesiologia, à doutrina da santificação e à
escatologia" (p. 117). Nesse ensaio, porém, ele se concentra nas implicações do
pensamento trinitário para a cristologia, não para a eclesiologia.
31 Veja, por exemplo, Jüngen Miltmann, The Trinity and the Kingdom: The Doctrine o f
God, trad. Margaret Kohl (San Francisco: Harper & Row, 1981).
32 Veja a discussão em Snyder e Runyon, Decoding the Church, cap. 3, "Church, Trinity,
and Mission".
33 Veja o excelente sumário em Lesslie Newbegin, The Open Secret: A n Introduction to the
Theology o f Mission, rev. ed. (Grand Rapids: Eerdmans, 1995), pp. 19-29 ("The Mission
of the Triune God"). Usando um modelo trinitário, Newbegin descreve missão como
"proclamar o Reino do Pai: Missão como Fé em Ação", "Partilhar a Vida do Filho: Mis­
são como Amor em Ação" e "Carregar o Testemunho do Espirito: Missão como Espe­
rança em Ação" (pp. 30-65).
34 Collin Gunton, The Promise o f Trinitarian Theology, 2. ed. (Edinburgh: T & T Clark,
1997). A primeira edição foi publicada em 1991.
35 Ibid., p. 31. Newbigin acrescenta: "O conceito dominante de Deus para a maior parte
dos cristãos comuns é — se alguém se aventurar a um palpite ousado — mais moldado
pela combinação de filosofia grega e teologia islâmica injetada de maneira poderosa no
pensamento da cristandade no início da Alta Idade Média do que pelo pensamento dos
pais dos quatro primeiros séculos".
36 Gunton, Promise o f Trinitarian Theology, p. 34.
37 Ibid., p. 56. Gunton faz um excelente trabalho, esboçando historicamente como os
principais problemas do auto-entendimento da igreja hoje derivam dessas distorções
teológicas. Veja em especial o capítulo 3, "Augustine, The Trinity and the Theological
Crisis of the West", e o capítulo 4, "The Community: The Trinity and the Being of the
Church". Guton sustenta que "a questão da natureza da igreja é um dos tópicos mais
negligenciados da teologia" (p. 56).
38 Ibid., pp. 78, 80.
39 Ibid., pp. 80s. (ênfase minha).
40 Ibid., p. 82.
41 Miroslav Volf, After Our Likeness: The Church as the Image o f the Trinity (Grand Rapids:
Eerdmans, 1998). Em acordo essencial com Gunton, Volf escreve: "Experimentar a fé
significa tornar-se um ser eclesial. Nem pode ser diferente se a igreja deve ser a experi­
ência proléptica dentro da história da integração escatológica de todo o povo de Deus
na comunhão do Deus triúno" (p. 175).
42 Richard J. Foster, Streams o f Living Water: Celebrating the Great Traditions o f Christian
Faith (New York: HarperSanFrancisco, 1998). Foster discute as contribuições daquilo que
rotula de tradições Contemplativa, Santidade, Carismática, Justiça Social, Evangelical e
Encarnacional (sacramental) para a vida da igreja.
43 Richard F. Lovelace, Dynamics o f Spiritual Life: An Evangelical Theology o f Renewal
(Downers Grove: InterVarsity, 1979), pp. 12, 17.
DOIS
A COMPREENSÃO DA
COMUNIDADE DO REINO
O Reino de Deus é semelhante a um homem que
lança a semente sobre a terra. N oite e dia, estando
ele dormindo ou acordado, a semente germina e
cresce, embora ele não saiba como. A terra por si
própria produz o grão: primeiro o talo, depois a
espiga e, então, o grão cheio na espiga. Logo que o
grão fica maduro, o homem passa a foice, porque
chegou a colheita.
(Mc 4.26-29)
4
O PLANO MESTRE
DE DEUS

Para ser bíblicos, precisamos ver a igreja e o evangelho no contexto


do plano cósmico de Deus.
Creio que Deus está salvando almas e preparando-as para o céu,
mas jamais aceitaria isso como uma definição adequada da missão da
igreja. E estreita demais. Não é uma definição bíblica, pois a Bíblia fala
de um plano mestre divino para toda a criação.

Senhor de uma grande família


Qual é esse plano cósmico? Ele é declarado de maneira bem concisa
nos primeiros três capítulos de Efésios, e é por esse ponto que iniciare­
mos nossa análise bíblica. Dois fatos impressionantes emergem desses
capítulos. Primeiro, Deus tem um plano e propósito. Segundo, esse pla­
no estende-se a todo o cosmo.
Paulo fala da “vontade de Deus” (1.1), do “ bom propósito da sua
vontade” (1.5) e do “ mistério da sua vontade, de acordo com o seu bom
propósito que ele estabeleceu em Cristo” (1.9). Paulo diz várias vezes
que Deus nos “escolheu”, “estabeleceu” , “destinou”, “predestinou”, etc.,
de acordo com sua vontade. Paulo queria falar da igreja como o produ­
to — e dentro do contexto — do plano e propósito de Deus.
Note em especial Efésios 1.10. A palavra às vezes traduzida por “pla­
no” ou “propósito” é oikonomia, que vem da palavra que significa
“casa” , “família” . Ela se refere à supervisão de uma família ou ao plano
ou arranjos para administração da casa. A idéia “é a de uma grande
família, da qual Deus é o Senhor e que possui certo sistema de adminis­
tração sabiamente organizado por Ele” .1 Eis um plano ou propósito
divino ordenado e premeditado de salvação.2 A figura de linguagem usa­
da por Paulo é especialmente adequada, uma vez que em outro momento
ele se refere à igreja como “família de Deus” , oikeios (Ef 2.19), e a
mesma figura às vezes se estende a todo o mundo habitado (ecuménico
62 A COMUNIDADE DO REI

vem da mesma raiz). Assim, a idéia de um plano cósmico está implícita


aqui no palavreado de Paulo. Talvez ele até tivesse em mente as parábo­
las de Deus como um dono de casa que acertará as contas no reino de
Deus (Mt 13.27; 20.1, 11; 21.33; Lc 13.25; 14.21).
Em segundo lugar, Paulo vê o plano de Deus da perspectiva cósmi­
ca. O plano de Deus é “fazer convergir em Cristo todas as coisas, celes­
tiais ou terrenas” (1.10). Paulo fala cinco vezes nas “ regiões [lugares]
celestiais” . Deus é “Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e
em todos” , e Cristo é quem “ subiu acima de todos os céus, a fim de
encher todas as coisas” (4.1, 10). Particularmente notável é 1.20-23,
quando Paulo fala do poder que Deus exerceu em Cristo, ressuscitando-
o dos mortos e fazendo-o assentar-se à sua direita, nas regiões celesti­
ais, muito acima de todo governo e autoridade, poder e domínio, e de
todo nome que se possa mencionar, não apenas nesta era, mas também
na que há de vir. Deus colocou todas as coisas debaixo de seus pés e o
designou cabeça de todas as coisas para a igreja, que é o seu corpo, a
plenitude daquele que enche todas as coisas, em toda e qualquer cir­
cunstância.
Que ponto de partida sublime para compreender a igreja e o reino!
Não ousamos correr para textos de estimação, conto Efésios 2.8-9, ou
4.11-12 ou 6.10-20, sem dar toda a atenção ao plano de Deus que depen­
de da vitória de Cristo. A Palavra de Deus é muito clara: começamos a
compreender a igreja e sua missão quando vemos a igreja como parte do
plano e do propósito de Deus para toda a criação.

Nada de mero “plano B”


M as qual é o plano mestre de Deus? Simplesmente este: Que Deus
possa ser glorificado ao unir todas as coisas em Cristo. “ O plano de
Deus é unir e reconciliar todas as coisas em Cristo, de modo que os
homens possam voltar a servir ao seu criador” .3
E nítido que a idéia chave é de reconciliação. O plano de Deus é a
restauração de sua criação, para reverter em realização gloriosa o dano
provocado às pessoas e à natureza pela Queda. O desígnio de Deus para
a reconciliação de todas as coisas em Cristo reafirma sua intenção origi­
nal no momento da criação, ajustada agora às realidades da presença do
pecado no mundo. Mas isso é falar do ponto de vista do ser humano, a
partir de nossa visão inferior da realidade; não podemos supor que o
plano cósmico de Deus para a reconciliação seja o “Plano B” , o segundo
melhor, um plano alternativo que Deus elaborou por ter falhado na cri­
ação. Ele existia na mente de Deus “ antes da criação do mundo” (Ef
O PLANO MESTRE DE DEUS 63

1.4).4 Esse plano inclui não só a reconciliação das pessoas com Deus,
como também a reconciliação de “todas as coisas, celestiais ou terre­
nas” (Ef 1.10). Ou, como Paulo expressa em Colossenses 1.20, a inten­
ção de Deus, por meio de Cristo, era reconciliar “consigo mesmo todas
as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, esta­
belecendo a paz pelo sangue derramado na cruz” . Central nesse plano é
a reconciliação de pessoas com Deus por meio do sangue de Jesus Cristo.
M as a reconciliação conquistada por Cristo alcança todas as alienações
que resultaram de nosso pecado — dentro de nós mesmos, entre pessoas,
entre nós e nosso ambiente físico. Por mais que a idéia confunda nossa
mente, a Escritura ensina que essa reconciliação chega a incluir a reden­
ção do universo físico dos efeitos do pecado, quando tudo for submetido
à devida liderança de Jesus Cristo (Rm 8.19-21). Ou como a Bíblia na
Linguagem de Hoje dá a entender em sua tradução de Efésios 1.10, o
propósito de Deus é “unir, no tempo certo, debaixo da autoridade de
Cristo, tudo o que existe no céu e na terra” .5
Esse é o plano mestre de Deus de acordo com Efésios. A mesma
perspectiva surge em outros escritos de Paulo, especialmente nos pri­
meiros dois capítulos de Colossenses. Em 2 Coríntios 5.17-21, aprende­
mos que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo” e
confiou à igreja tanto a mensagem (logos) como o ministério (diakonia)
da reconciliação. De importância semelhante é o ensino de Romanos 8,
de que a liberdade dada à vontade humana pela salvação, no plano de
Deus, estende-se a toda a criação, pois “a própria natureza criada será
libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a
gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21).
Em todas essas passagens, Paulo começa com o fato da salvação
pessoal individual e coletiva por meio de Cristo. Daí, ele segue, colocan­
do a salvação pessoal na perspectiva cósmica. N ão se permite aqui um
“isso” ou “aquilo” , nenhuma visão espiritual fechada como num túnel.
A redenção de pessoas é o centro do plano de Deus, mas não é a circunfe­
rência desse plano. Paulo troca a tomada em d ose por uma tomada de
longa distância. Ele usa uma lente zoom, fazendo na maior parte do
tempo tomadas em d ose da redenção pessoal, mas faz um zoom periódi­
co para, numa visão de longa distância e ângulo aberto, focalizar “todas
as coisas” — coisas visíveis e invisíveis, coisas passadas, presentes e fu­
turas; coisas no céu e coisas sobre a terra; todos os principados e potesta­
des — no cenário cósmico/histórico. Para, de fato, compreender o que
Deus em Cristo faz para as pessoas e por meio delas, precisamos dar um
passo para trás e ver todo o desígnio cósmico de Deus.
64 A COMUNIDADE DO REI

Essa é a concepção paulina do plano mestre de Deus. Seria também


a concepção bíblica mais ampla? Em outros textos, descobrimos em es­
sência a mesma perspectiva, pois toda a Escritura é inspirada por Deus.
Cabem aqui todas as promessas de restauração cósmica do Antigo Tes­
tamento, alcançando o ápice na visão sublime de Isaías (Is 11.6-9; 35.1-
10; 65.17-25). A mensagem básica do livro de Apocalipse é a reunião
harmoniosa de todas as coisas sob a soberania de Cristo, quando todo o
mal, toda a discórdia serão destruídos (Ap 1.5-7; 5.5-10; 11.15; 21.1—
22.5). Num contexto um pouco diferente, a mesma idéia de “reunião” é
evidente em Hebreus 1—2. As parábolas do reino, contadas por Jesus,
também apontam nessa direção. E Isaías, Pedro e João falam de Deus
criando um novo céu e uma nova terra (Is 65.17; 66.22; 2 Pe 3.13; Ap
21.1). O testemunho das Escrituras é consistente: o mesmo Deus que
criou o universo perfeito e o sustenta em sua condição decaída (Hb 1.3)
restaurará todas as coisas por intermédio da obra de Jesus Cristo. Con­
forme veremos, é tarefa particular de Paulo destacar o lugar da igreja
nessa redenção cósmica.
Não podemos compreender de maneira plena esse desígnio cósmi­
co, essa oikonomia de Deus para unir todas as coisas em Cristo. E por
isso que Paulo o chama continuamente de segredo, algo velado, um mys-
têrion.6 M as podemos ao menos compreender o esboço básico de seu
plano e que esse plano concentra-se na grande obra de reconciliação e
conquista de Jesus realizada por meio de sua vida, morte e ressurreição e
agora aplicada pela obra contínua do Espírito Santo.

Agora ou depois?
Um problema muito espinhoso é toda a questão do mal. Se Deus
está “reconciliando todas as coisas consigo” por intermédio de Jesus
Cristo, o que será dos que rejeitam Cristo? E quanto a Satanás e seu
reino? A Escritura não responde a todas as nossas perguntas aqui, mas
deixa claro que todas as autoridades e poderes estranhos serão destruí­
dos (1 Co 15.24-25). Jesus mesmo falou de maneira vigorosa sobre a
destruição eterna dos perversos (por exemplo, em M t 25.31-46). Apoca­
lipse diz que Satanás e seus seguidores sofrerão julgamento eterno (20.10;
21.8) e que nada impuro entrará na Nova Jerusalém (21.27). Esses textos
anunciam o que os Salmos proclamam repetidas vezes: Deus, o Rei, ven­
cerá e destruirá todos os seus inimigos. Nosso entendimento do plano de
Deus para a reconciliação deve ser consistente com esses textos, mesmo
que não possam os entender plenamente como isso é possível.
Quando Deus completa sua obra de reconciliação? Quase todos os
O PLANO MESTRE DE DEUS 65

cristãos admitem que, em um sentido ou outro, Deus está levando a


história a um auge cósmico. M as um ramo da igreja diz: “Não agora;
depois!” . E, em reação, outro grupo diz: “Não depois, agora!” . A discus­
são tem-se concentrado na natureza do reino de Deus. Os que adiam
qualquer presença real do reino até depois da volta de Cristo (“ Não
agora; depois!”) esperam renovação substancial agora só no âmbito da
experiência religiosa individual, mas não na política, arte, educação ou
cultura em geral, nem mesmo de fato na igreja. Do outro lado, ficam os
que enfatizam de tal modo a renovação social presente que tanto a con­
versão pessoal como a volta futura de Cristo no espaço e no tempo são
negadas ou ofuscadas, e nossa profunda pecaminosidade e rebelião não
são levadas a sério.7
Nossa esperança deve estar no fato de que os cristãos em todo o
mundo possam vir a perceber que o reino de Deus não é nem inteiramente
presente nem inteiramente futuro. Não deve haver nenhuma falsa antí­
tese entre a presença e a vinda futura do reino. O reino de Deus (a união
de todas as coisas sob Cristo) está aqui agora, está vindo e virá. Essa é,
com certeza, uma das lições das parábolas do reino.
Francis Schaeffer expressa essa concepção mais equilibrada quando
fala de uma “cura substancial” agora em todas as áreas de alienação
causadas pelo pecado. Evitando os extremos às vezes encontrados tanto
no pré-milenismo como no pós-milenismo, Schaeffer diz que os cristãos
não deviam colocar toda a reconciliação real longe, num futuro escato-
lógico, nem deviam esperar uma perfeição total agora. O que Deus pro­
mete é uma cura substancial agora e uma cura total após a volta de
Cristo.8
Deus já iniciou a reconciliação de todas as coisas na história huma­
na. A “plenitude dos tempos” chegou (Gl 4.4; Ef 1.10), mas não em
toda plenitude. O ato decisivo da obra reconciliadora de Deus deu-se
em Jesus Cristo. O plano cósmico de Deus está agora em andamento. O
tempo está se esgotando para os inimigos de Deus.
A igreja não é o reino, mas está totalmente ligada ao reino. A igreja
é o povo do reino de Deus, a “comunidade escatológica” que já vive sob
o domínio de Deus e o proclama.9 Os discípulos de Jesus são colabora­
dores dele na revelação do reino, pois cabeça e corpo agem juntos (2 Co
5.18—6.1; 1 Co 3.9). M as mesmo em sua ação, a igreja sabe e confessa
que a vinda plena do reino aguarda a revelação final de Jesus em sua
segunda vinda.
Seria possível discorrer muito mais acerca do plano mestre de Deus
— seu propósito cósmico total para o tempo e a história. E claro que
66 A COMUNIDADE DO REI

seu plano, sua oikonomia, tem profundas implicações para a justiça so­
cial, para a cultura, para a mordomia responsável do meio ambiente,
para a economia e os negócios. N osso interesse específico aqui, porém,
é a igreja como o agente chave, hoje, para a obra reconciliadora de Deus,
pelo poder do Espírito Santo.
Passamos agora, portanto, a examinar em mais detalhes a questão
do lugar da igreja no plano mestre de Deus.

NOTAS
1 W. Robertson Nicoll, e d , The Expositor's Greek Testament (Grand Rapids: Eerdmans,
1961), III, 259. Dal nossa palavra econômico. Observe também a palavra oikonomia e
suas várias traduções em Efésios 3.2; Colossenses 1.25; 1 Timóteo 1.4; Lc 16.2-4.
2 Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, eds., Theological Dictionary o f the New Testament,
trad. G. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1964-74), V, pp. 151-52.
3 Bernard Zylstra, citado em Perspective, boletim da Association for the Advancement of
Christian Scholarship, VII; 2 (March/April, 1973), p. 14.
4 Observe a repetição dessa frase significativa em Mateus 13.35; 25.34; João 17.24; Efé­
sios 1.4; Hebreus 4.3; 1 Pedro 1.20; Apocalipse 13.8; 17.8. Essas passagens deixam
claro que Cristo foi designado Salvador desde a eternidade e que o plano divino de
formar um reino é eterno.
5 Veja Kittel e Friedrich, eds., Theological Dictionary o f the New Testament, III, pp. 681-82.
6 A. A. Van Ruler, citando W. C. van Unnik, observa que os "Pais usam a palavra
mystêrion não só para os sacramentos, mas para toda a ação de Deus na história,
todo o tempo preenchido pelo Espírito Santo em Jesus Cristo e a partir dele. Penso
que devemos retornar a esse uso amplo e profundo do termo". The Christian Church
and the Old Testament, pp. 78-79.
7 Veja uma discussão das diferentes concepções milenistas e dispensacionalistas aqui
mencionadas em Snyder, Models o f the Kingdom, em especial o capítulo 10.
8 Francis Schaeffer, O Deus que Intervém (Jaú/São Paulo: Refúgio/ABU), pp. 233-34;
Poluição e Morte do Homem. pp. 71-75.
9 John Bright, The Kingdom o f God (Nashville: Abingdon Press, 1953), pp. 232-43.
67

5
A IGREJA NO
PLANO DE DEUS

Qual o lugar da igreja no plano cósmico de Deus? O que, de fato, é


a igreja?
Uma frase notável ocorre em Efésios 3.10. O plano cósmico de Deus,
diz Paulo, é que “ mediante a igreja, a multiforme sabedoria de Deus se
tornasse conhecida dos poderes e autoridades nas regiões celestiais” .1
Vamos observar melhor essa passagem:
Ao lerem isso vocês poderão entender a minha compreensão do mistério
de Cristo. Esse mistério não foi dado a conhecer aos homens doutras
gerações, mas agora foi revelado pelo Espírito aos santos apóstolos e pro­
fetas de Deus, significando que, mediante o evangelho, os gentios são co-
herdeiros com Israel, membros do mesmo corpo e co-participantes da
promessa em Cristo Jesus ... Embora eu seja o menor dos menores de
todos os santos, foi-me concedida esta graça de anunciar aos gentios as
insondáveis riquezas de Cristo e esclarecer a todos a administração deste
mistério que, durante as épocas passadas, foi mantido oculto em Deus,
que criou todas as coisas. A intenção dessa graça era que agora, mediante
a igreja, a multiforme sabedoria de Deus se tornasse conhecida dos pode­
res e autoridades nas regiões celestiais, de acordo com o seu eterno plano
que ele realizou em Cristo Jesus, nosso Senhor. (E f 3.4-6, 8-11)
O mistério, agora desvendado, é que os gentios, assim como os ju­
deus, podem participar da redenção divina prometida. Aliás, os judeus
e os gentios são juntados em “um corpo” . Por meio de Jesus Cristo,
conforme Paulo já havia explicado, Deus “de ambos fez um e destruiu a
barreira, o muro de inimizade” . Assim, todos os cristãos formam um
corpo, uma nova humanidade. Isso ocorreu “por meio da cruz, pela
qual ele destruiu a inimizade” (Ef 2.14-16).
Observe as duas dimensões aqui. Crentes judeus e gentios são recon­
ciliados, tanto com Deus como uns com os outros. Eles se juntam num
relacionamento de reconciliação com Jesus, o que transcende e destrói a
antiga hostilidade mútua. Já não são inimigos, são agora irmãos e irmãs.
I

68 A COMUNIDADE DO REI

Qual, então, seria o mistério do plano de Deus? É que em Cristo


Deus age com tamanho poder redentor, que é capaz de vencer o ódio e
curar hostilidades. O mistério não é apenas que o evangelho é prega­
do aos gentios; é que, por meio dessa pregação, os crentes gentios são
agora “co-herdeiros” e “ membros do mesmo corpo” .
E nesse contexto que podemos compreender o versículo 10. A “ mul­
tiforme sabedoria de D eus” agora se torna conhecida por meio do
amor reconciliador de Jesus, que junta judeus e gentios como irmãos na
comunidade do povo de Deus, a igreja. M as só judeus e gentios? O
milagre do evangelho se exaure com a reconciliação de judeus e genti­
os no primeiro século d.C.? Certamente que não! H á mais no mistério
do plano de Deus. Aquela reconciliação histórica inicial mostra-nos
que Deus reconcilia indivíduos e povos consigo mesmo por meio do
sangue da cruz. A reconciliação começou com judeus e gentios, mas
esse foi só o começo. Mediante Jesus, pelo Espírito, a reconciliação
estende-se aos livres e escravos, homens e mulheres, brancos e negros,
ricos e pobres, cultos e incultos (Cl 3.10-11; G13.28). Isso é fundamen­
tal para o significado do evangelho.
E por isso que Paulo pode dizer que, agora, “ mediante a igreja, a
multiforme sabedoria de Deus” se faz “ conhecida dos poderes e auto­
ridades nas regiões celestiais” . Pois é precisamente na igreja que essa
reconciliação torna-se visível. A igreja é o fruto do amor reconcilia­
dor de Cristo e, portanto, a revelação da multiforme sabedoria de Deus.
E a igreja, como corpo de Cristo, participa da obra reconciliadora de
Cristo.
E nesse sentido que se diz que a igreja é o agente do plano de Deus.
E por isso que Pedro, Paulo, T iago e João dirigem tantos apelos para
que os crentes se reconciliem uns com os outros, sejam cuidadosos
com os próprios passos, evitem toda parcialidade, andem em amor e
comunhão com os irmãos. A fidelidade deles e a nossa são importan­
tes para o reino.
A igreja é mais que um agente de Deus para evangelização ou trans­
formação social; ela é, em submissão a Cristo, o agente de todo o
propósito cósmico divino. O reino de Deus está vindo e, na medida
em que essa vinda do reino ocorre na história antes da volta de Cristo,
o plano de Deus deve ser cumprido por meio da igreja. Isso concorda de
maneira sublime com o que já vimos: o plano de Deus é reunir todas as
coisas em Cristo, e a igreja é o corpo de Cristo. O que Deus está fazen­
do em Jesus Cristo e o que ele está fazendo por meio da igreja são
partes do mesmo todo.
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 69

Qualquer que seja nossa concepção de igreja, precisamos vê-la em


relação aos propósitos do reino de Deus. M as dizer que a igreja é o
agente do reino de Deus pode significar coisas radicalmente diferentes
ou até contraditórias, de acordo com o entendimento que se tem da
igreja em si.2 Portanto, precisamos examinar com atenção o retrato
que a Bíblia faz da igreja.

A perspectiva bíblica
A Bíblia diz que a igreja é nada menos do que o corpo de Cristo. Ela
é a noiva de Cristo (Ap 21.9), o rebanho de Deus (1 Pe 5.2), o templo
vivo do Espírito Santo (Ef 2.21-22). Praticamente todas as figuras
bíblicas da igreja enfatizam um relacionamento essencial, vivo e am o­
roso entre Cristo e a igreja. Isso destaca a função chave da igreja no
plano de Deus e nos lembra que “ Cristo amou a igreja e entregou-se
por ela” (Ef 5.25). Se a igreja é o corpo de Cristo — o meio para a ação
da cabeça no mundo — então, a igreja é uma parte indispensável do
evangelho, e a eclesiologia é inseparável da soteriologia. Portanto,
adotar o que pode ser chamado de “ atitude anti-igreja” — ou simples­
mente desconsiderar ou ignorar a igreja — seria diluir o próprio evan­
gelho e ao mesmo tempo demonstrar uma compreensão falha do que a
Bíblia entende por “ a igreja” . A igreja não é algo que deva ser arrasta­
do para dentro do cenário só depois que os convertidos forem conquis­
tados, como um aquário para peixes novos. Também não se pode rele­
gar a igreja à condição de um pensamento teológico tardio. Afinal,
segundo a Bíblia, a igreja é nada menos que o Corpo de ninguém menos
que Jesus Cristo! Onde dois ou três se reúnem em nome de Cristo, ali já
está a igreja (Mt 18.20) — sejam esses dois ou três testemunhas, re-
cém-convertidos ou ambos.3
A Bíblia mostra a igreja no meio da cultura, lutando para ser fiel,
mas às vezes adulterada por alianças antinaturais com o paganismo e o
legalismo judaico. N as Escrituras, os lados terreno e celestial da igreja
ajustam-se, formando um todo, e não nos deixam com duas igrejas
incompatíveis ou com uma idéia de igreja dividida em dois níveis. A
igrejá é única; ela é o único corpo de Cristo que existe agora tanto na
terra como “nas regiões celestiais” (Ef 1.3; 2.6; 3.10). Essa perspectiva
da igreja é altamente relevante hoje por motivos fundamentais para a
perspectiva bíblica da igreja.4
Primeiro, a Bíblia vê a igreja em perspectiva cósmico-histórica.
Ela é vista na perspectiva do plano cósmico de Deus discutida no
capítulo anterior. A igreja é o povo que Deus vem formando e por
70 A COMUNIDADE DO REI

meio do qual ele tem agido ao longo da história. Nesse sentido, a


igreja possui raízes que remontam ao Antigo Testamento, antes mes­
mo da Queda. Sua m issão estende-se adiante, passando por toda a
história restante e entrando na eternidade. Essa linha do horizonte é
a dimensão histórica.
A dimensão cósmica nos lembra que nosso mundo limitado pelo
espaço e pelo tempo é, na realidade, uma parte de um universo espiritu­
al mais amplo, em que reina Deus. A igreja é o corpo dado a Cristo, o
Salvador vitorioso. Deus optou por colocar a igreja com Cristo bem
no centro de seu plano de reconciliar o mundo consigo (Ef 1.20-23).
A missão da igreja, portanto, é glorificar Deus, continuando na
terra as obras do reino iniciadas por Jesus (Mt 5.16). Isso justifica e
também exige o ministério mais amplo da igreja: “pregar boas novas
aos pobres ... proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista
aos cegos, ... libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do
Senhor” (Lc 4.18-1,9).
Segundo, a Bíblia vê a igreja em termos mais carismáticos que
institucionais. Embora, num sentido amplo, a igreja seja uma institui­
ção, ela é mais fundamentalmente uma comunidade carismática. Ou
seja, ela existe pela graça (cbaris) de Deus e é formada pelos dons da
graça (charismata) concedidos pelo Espírito. De acordo com a Bíblia,
ela não é estruturada como uma empresa ou universidade. Pelo con­
trário, ela é estruturada como o corpo humano — com base na vida.
Em seu nível mais básico, é uma comunidade, não uma hierarquia;
um organismo, não uma organização (1 Co 12; Rm 12.5-8; Ef 4.1-16;
Mt 18.20; 1 Pe 4.10-11).
Terceiro, a Bíblia vê a igreja como a comunidade do povo de Deus.
Aqui, convergem o cósmico e o carismático, e vemos a igreja tanto
dentro do mundo como transcendente a ele.
J á que a igreja é o povo de Deus, ela inclui todas as pessoas que
pertencem a Deus em todos os tempos e todos os lugares, bem como
os que cruzaram os limites do tempo e do espaço e vivem na presença
imediata de Deus. M as o povo de Deus deve ter uma expressão visível
local, e no nível local a igreja é a comunidade do Espírito Santo. Con­
forme disse Samuel Escobar, “ Deus chama os que se tornam seu povo
para participar de uma comunidade. Assim, a nova humanidade que
vem sendo criada por Cristo torna-se visível em comunidades que têm
uma qualidade de vida que reflete o exemplo de Cristo” .s
A igreja encontra sua identidade nesse ritmo unificado, comple­
mentar, de ser um povo e uma comunidade, tanto dentro de uma cidade
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 71

ou cultura como dentro de um contexto mundial mais amplo. Povo e


comunidade, juntos, constituem o que o Novo Testamento entende por
ekklesia, a igreja de Deus chamada e reunida por ele.
As figuras bíblicas do corpo de Cristo, noiva de Cristo, família,
templo ou videira de Deus nos dão a idéia básica de igreja. Q ual­
quer definição contemporânea deve estar em harmonia com essas
figuras ou modelos. M as elas são metáforas, não definições. Talvez
o mais perto que podemos chegar de uma definição bíblica seja dizer
que a igreja é a comunidade do povo de Deus. Os dois elementos
chaves aqui são a igreja como um povo, uma nova raça ou humani­
dade, e a igreja como uma comunidade ou comunhão — a koinonia
do Espírito Santo.6

A comunidade do povo de Deus


Esses conceitos gêmeos enfatizam que a igreja é, em primeiro lu­
gar, povo — não uma estrutura institucional. Eles enfatizam, além
disso que a igreja não é mera coleção de indivíduos isolados, mas que
possui uma natureza coletiva ou comunitária absolutamente essencial
para sua existência concreta. E, por fim, essas verdades mostram que
ser uma comunidade e um povo é um dom de Deus pela obra de Jesus
Cristo e a habitação do Espírito Santo. Ela não é produzida por técni­
cas ou planos humanos. A igreja é constituída povo de Deus pela ação
de Jesus Cristo, e essa realidade abre a porta para a possibilidade de
uma comunidade verdadeira e profunda. Aqui, a figura de um corpo
assume um significado maior, incluindo tanto o fato de formar uma
comunidade como o.fato de formar um povo (veja a Figura 1).
Esse conceito de povo está firmemente arraigado no Antigo Testa­
mento e sublinha o fato objetivo da ação divina ao longo da história
para chamar e preparar uma “geração eleita, sacerdócio real, nação
santa, povo exclusivo de Deus” (1 Pe 2.9; compare Ex 19.5-6). A pala­
vra grega que significa “povo” é laos, de onde vem a palavra “ leigo” .
Isso nos lembra que a igreja toda é leiga, um povo. Aqui, a ênfase está
na universalidade da igreja — o povo de Deus espalhado pelo mundo
em centenas de denominações, movimentos e outras estruturas espe­
cíficas. Ela é a realidade inclusiva, mundial, coletiva da multidão de
homens e mulheres que, ao longo da história, têm sido reconciliados
com Deus mediante Jesus Cristo. Esse fato celebra o mover de Deus
na história para constituir um povo peregrino e está especialmente
relacionado com o conceito da aliança. Vista da perspectiva cósmico-
histórica, a igreja é o povo de Deus.
72 A COMUNIDADE DO REI

COMUNIDADE do POVO de Deus

Koinonia Laos
Organismo carismático Realidade cósmico-histórica
Localidade da igreja - Universalidade da igreja
Comunhão -------------- Missão
Grupo pequeno — "Grande congregação1’
Dons espirituais — Reino de sacerdotes
Nova natureza moral Nova humanidade

Figura 1 . A igreja com o a com unidade do povo de Deus

Por outro lado, a igreja é uma comunidade ou comunhão, uma koinonia.


Essa ênfase é encontrada de maneira mais clara no Novo Testamento e
brota diretamente da experiência do Pentecostes. Se o conceito de povo
sublinha a continuidade do plano de Deus desde o Antigo até o Novo
Testamento, o de comunidade chama a atenção para a “nova aliança” ,
o “vinho novo” , a “ novidade” promovida por Deus na ressurreição de
Jesus Cristo e no batismo realizado pelo Espírito no Pentecostes. A ênfa­
se, aqui, está na localidade da igreja em sua vida em comum, intensa e
interativa. Vista como um organismo carismático, a igreja é a comuni­
dade do Espírito Santo.
A igreja como comunidade enfatiza a vida local, temporal, da igreja
em dado contexto cultural. Aqui, descemos das alturas etéreas para a
administração dos detalhes práticos dos cristãos vivendo juntos, parti­
lhando uma vida em comum. Aqui, também, descobrimos o fato básico
de que a verdadeira comunidade é essencial para o testemunho efetivo.
E aqui, também, por conseguinte, enfrentamos o problema dos odres —
a necessidade de lidar com estruturas práticas, a fim de permitir e incen­
tivar a verdadeira comunhão.
Falar da igreja como comunidade é tomar uma perspectiva um pouco
mais restrita, já que a igreja é mais que uma comunidade. É também o
povo disperso de Deus, o fermento do evangelho na massa do mundo,
espalhado, trabalhando em todas as áreas da sociedade. M as a comuni­
dade é essencial, pois, quando ela não existe ou quando não há estruturas
funcionais para nutri-la, o fermento torna-se inativo e o sal perde o sabor.
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 73

É criticamente importante — ainda mais numa situação mundial


multicultural como a que a igreja enfrenta hoje — ficar claro que a
essência da igreja é povo, não organização; que ela é uma comunidade,
não uma instituição. Essa distinção é crítica, e a falha nesse ponto com
freqüência cria grande confusão na igreja. Biblicamente, a igreja é a
comunidade do povo de Deus, e isso é uma realidade espiritual válida
em todas as culturas. M as todas as instituições culturais — sejam semi­
nários, estruturas denominacíonais, agências missionárias, casas publi-
cadoras ou o que você tenha —- não são a igreja. Em vez disso, são ins­
tituições de apoio criadas para servir à igreja em sua vida e missão. Elas
são condicionadas pela cultura e podem ser compreendidas e avaliadas
sociologicamente. M as não são igrejas em si. Quando essas instituições
são confundidas com a igreja ou vistas como parte de sua essência, re­
sultam disso todos os tipos de mal-entendidos infelizes. A igreja fica
tolhida por uma expressão cultural presente particular.
Uma das maiores necessidades da igreja institucional hoje é fazer
uma distinção clara e estrita entre a igreja conforme apresentada pela
Bíblia e as várias instituições eclesiásticas subsidiárias — inclusive es­
truturas denominacíonais — que com tanta freqüência confundimos
com a igreja. Uma vez compreendida essa distinção com clareza, a igre­
ja terá mais liberdade para evangelizar o mundo e proclamar o governo
libertador de Deus sem as tristes contaminações transculturais. Ao
mesmo tempo, todas as organizações eclesiásticas serão dessacraliza-
das e vistas como estruturas que podem ser usadas, modificadas ou des­
cartadas conforme as necessidades. (A relação entre a igreja, propria­
mente dita, e as estruturas eclesiásticas institucionais será discutida em
mais detalhes no capítulo nove.)

O mordomo da graça de Deus


O Novo Testamento e outros escritos cristãos primitivos mostram
que a igreja primitiva se via principalmente como uma comunidade ca­
rismática ou como um organismo, não como uma instituição ou uma
organização. Com a gradual institucionalização da igreja, porém, a idéia
da igreja como organização tornou-se mais proeminente e praticamen­
te toldou a concepção carismático-organizacional, em especial na tra­
dição ocidental. Assim, “na história da teologia, a igreja como a comu­
nidade reunida dos fiéis tem sido com muita freqüência negligenciada
em favor da igreja como instituição” , observa Hans Küng.7
Na concepção bíblica, Deus concede seu dom gracioso da salvação
com base na obra de Cristo e pela agência do Espírito Santo. Isso fornece
74 A COMUNIDADE DO REI

a base da vida comunitária da igreja. A luz pura da “ graça de Deus em


suas múltiplas form as” (1 Pe 4.10) é então refratada quando brilha atra­
vés da igreja, como a luz através de um prisma, produzindo os charisma­
ta ou os dons do Espírito variados e multicoloridos (veja a Figura 2). A
palavra grega poikilos (“ multiforme”), em 1 Pe 4.10 e Efésios 3.10, mui­
tas vezes expressa a idéia de “ multicolorido” , como na variedade de
cores em flores ou roupas.8Isso dá a entender que a luz pura, intensa, mas
invisível da glória graciosa de Deus torna-se visível em cores na diversi­
dade dos dons espirituais na comunidade cristã.

DEUS MUNDO

graça de Deus IGREJA Os dons multicoloridos


(charts)
do Espírito (charismata)

A graça de Deus tornada visível através do prisma da igreja

Figura 2. A igreja como “Mordomo da graça multicolorida de Deus" (1 Pe 4.10-11)

Essa operação do Espírito Santo fornece a base para a diversidade da


igreja dentro da unidade (Ef 4.1-12; 1 Co 12). A edificação da igreja resulta,
portanto, do exercício dos dons espirituais quando “todo o corpo, ajusta­
do e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo
em amor, na medida em que cada parte realiza a sua função” (Ef 4.16).
Isso é importante para a obra e o testemunho da igreja no mundo,
já que o Novo Testamento liga o ministério ao exercício de dons espiri­
tuais (Ef 4.11-12). Para que permaneça viva e em crescimento, a igreja
precisa ser baseada num modelo carismático, não num modelo institu­
cional. Esse contraste leva-nos de volta ao que é mais básico na igreja,
fazendo distinção entre o primário e o secundário. Esse é o primeiro
passo essencial para esclarecer um entendimento bíblico da igreja.
Mas, claro, fazer essa distinção cria muitas perguntas. A eclesiologia
católica romana tradicional desposa a carismática e a institucional jun-
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 75

tas, tornando a institucional primária e a carismática, secundária, sujeita


à autoridade da hierarquia institucional. Uma vez que o lado institucio­
nal dessa concepção é claramente baseado na tradição pós-apostólica e
não nas Escrituras, a concepção católica romana tradicional não é uma
rota que os protestantes possam tomar de maneira legítima. Se nosso
conceito de igreja deve repousar estritamente nas Escrituras, teremos de
insistir na prioridade do carismático sobre o institucional.9
É necessário, porém, definir com mais precisão o que entendemos
por institucional e carismático, já que as duas palavras são compreen­
didas de várias maneiras. Vamos considerar, antes de tudo, se é próprio
chamar a igreja de instituição.

A igreja é uma instituição?


A igreja como o povo de Deus não é, em absoluto, uma instituição
no mesmo sentido em que a Toyota, a Universidade de Oxford ou as
Nações Unidas são instituições. Isso é verdade, não porque as institui­
ções eclesiásticas sejam empiricamente muito diferentes de instituições
seculares, pois do ponto de vista sociológico as semelhanças são, com
freqüência, muito mais impressionantes que as diferenças. Além disso,
em seu nível mais básico e essencial, a igreja é algo diferente das estrutu­
ras institucionais associadas a ela. Não podemos confundir os odres com
o vinho.
Embora não seja em essência uma instituição, a igreja de fato pos­
sui um lado institucional, da mesma form a que, por exemplo, uma
família também o possui. Trata-se de uma realidade social com certos
aspectos identificáveis. E a igreja tem dado origem a literalmente mi­
lhares de estruturas institucionais que, em termos sociológicos, são
bem parecidas com outras organizações, corporações e burocracias
humanas.
Sociologicamente, é ingenuidade dizer que a igreja não é uma insti­
tuição em nenhum sentido. Qualquer padrão de comportamento cole­
tivo que se torna habitual ou costumeiro já é uma instituição. Nesse
sentido amplo, a Ceia do Senhor é uma instituição; e até um grupo pe­
queno de estudo bíblico, caso se reúna continuamente por um período,
torna-se uma instituição.
Um certo grau de institucionalização é, portanto, inevitável e até
desejável na igreja. E simplesmente uma conseqüência do fato de que
as pessoas vivem no espaço e no tempo. O sociólogo David M oberg
escreveu: “Toda organização religiosa possui algum grau de formalismo
ou institucionalização. Isso ocorre até em grupos que afirmam ser ‘só um
76 A COMUNIDADE DO REI

grupo de comunhão, não uma denominação’ e nos que estão organizados


de maneira tão informal e tênue, que dizem não ter organização nenhu­
ma” . E Moberg prossegue, citando os sociólogos Douglass e Brunner:
A tentativa, portanto, de conceber uma religião não-institucionalizada ...
é sociologicamente infantil. E um ataque à própria racionalidade e estabi­
lidade ética. A religião não pode ter trânsito sem desenvolver alguma for­
ma generalizada, e a forma generalizada implica hábitos resistentes à mu­
dança, que são a essência da institucionalização.10
Nesse sentido limitado, alguma institucionalização da igreja já se
evidencia no Novo Testamento — reuniões regulares nas casas, alguns
padrões de liderança, a celebração da Ceia do Senhor e, ao que parece,
algumas orações e confissões. O que impressiona, porém, é que esses
elementos institucionais eram altamente funcionais na igreja primitiva.
Não se encontrará nenhuma organização oficialmente estruturada e for­
malizada no Novo Testamento. A institucionalização desse tipo mais
rígido, hierárquico e organizacional só cresceu nos séculos II e III, em
parte como reação aos excessos carismáticos dos montanistas.11
A igreja manifestará inevitavelmente alguns padrões institucionais,
mas nenhuma instituição jamais poderá ser a igreja. A igreja nunca pode
ser essencialmente uma instituição, mesmo que seja necessariamente
institucional em alguns aspectos de sua vida.
A institucionalização é cumulativa. Ela cresce com o tempo. E já
que é inevitável que o processo seja uma mistura de elementos bons e
ruins, com o tempo, a institucionalização acaba se tornando mortal. A
menos que seja revertida de tempos em tempos por uma renovação ins­
titucional, a institucionalização é uma sentença de morte para qual­
quer igreja ou movimento. E já que o evangelho é vida, às vezes ele leva
a novos movimentos que buscam restaurar a vida da igreja primitiva
quando as estruturas institucionais tornam-se rígidas dem ais.12
Em muitas áreas, a igreja hoje está confinada em estruturas institu­
cionais rígidas que impedem o crescimento e a relevância cultural. Tal­
vez 80% dessas estruturas não sejam formais ou oficiais, mas simples­
mente tradicionais e culturais. Na América do Norte, por exemplo, se
houver, devem ser poucas as denominações que adotam um artigo de fé
afirmando que os cultos de adoração devem ser realizados entre as dez
horas e o meio-dia do domingo, mas esse é um dos padrões institucio­
nais mais rígidos do cristianismo norte-americano (se bem que agora
esteja mudando). Em muitas áreas, o mesmo ocorre na liturgia, no pro­
cesso de tom ada de decisões, nas idéias a respeito do “ clero” e até nos
métodos de evangelização. Grande parte disso é simples tradição, sem
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 77

nenhuma raiz bíblica. Só uma pequena porcentagem faz parte da políti­


ca oficial da igreja. M as o lado mais rígido da estrutura da igreja, o mais
resistente a mudanças e, com freqüência, o mais letal para a vida da
igreja é precisamente esse lado tradicional, só percebido em parte. Lem-
bro-me da reação inicial de John Wesley à “pregação ao ar livre” na
Inglaterra, há mais de dois séculos: “Eu devia pensar que a salvação de
almas seria um pecado, se não fosse feita dentro da igreja” .
E claro que nem toda forma tradicional ou institucional rouba a
vida da igreja, conforme já se observou. Algumas formas são necessári­
as e funcionais para a vida e o testemunho da igreja. M as em geral não
é o que acontece — e a dificuldade é que muitas igrejas não conseguem
perceber a diferença.
Há esperança para as igrejas cuja espontaneidade espiritual e vida
comunitária foram reprimidas por formas institucionais rígidas? Esse é
um problema de renovação institucional. Nessas igrejas, não basta uma
renovação espiritual individual entre os crentes. Sozinha, aliás, a reno­
vação individual pode provocar divisões e facções, assim como o vinho
novo estoura odres velhos. Um princípio geral para igrejas altamente
institucionalizadas é que a renovação institucional deve acompanhar a
renovação pessoal. Onde isso não é possível ou onde os guardiães ofici­
ais da instituição não o permitem, talvez seja preciso abandonar a insti­
tuição velha e formar novas estruturas. Há momentos em que é preciso
substituir odres velhos por novos. Isso tem ocorrido várias vezes na his­
tória da igreja.13
A igreja seria, portanto, uma instituição? N o sentido sociológico
mais amplo, sim. M as mesmo nesse sentido, o elemento institucional é
estritamente secundário e derivado, devendo ser funcional. Essa afir­
mação também não implica que toda e qualquer forma institucional
seja legítima para uso da igreja; é evidente que algumas não são. No
sentido mais estrito de uma organização hierárquica constituída for­
malmente, a igreja não é nem jamais pode ser uma instituição, pois a
igreja é a comunidade do povo de Deus, a comunidade do Espírito. Preci­
samos buscar alguma outra base para compreender estruturas eclesiásti­
cas institucionais e não as confundir com a essência da igreja.

O que significa carismático


Em que sentido a igreja é carismática? Embora alguns possam pre­
ferir não usar esse termo por causa de possíveis confusões com signifi­
cados sociológicos ou pentecostais modernos, creio que compreendere­
mos a igreja de maneira mais fiel à Bíblia se usarmos o termo e afir-
78 A COMUNIDADE DO REI

marmos que a igreja é de fato carismática.14


Uso o adjetivo carismático, aqui, no sentido bíblico preciso de rela­
tivo à obra e ao poder da graça ou cbarisàe Deus. A palavra nos lembra
daquela graça pela qual fomos salvos e daqueles dons especiais da gra­
ça ou carismas (cbarismata) que Deus promete à igreja. Nesse sentido,
carismático não faz referência específica à glossolalia, exceto no senti­
do geral de que falar em línguas é um dos carismas mencionados no
Novo Testamento.
A ênfase carismática e, em especial, a doutrina dos dons espirituais
são importantes demais para ser abandonadas por causa de uma contro­
vérsia em torno de uma palavra. Carismático é um bom termo altamen­
te bíblico que precisa ser restaurado à igreja em toda a sua riqueza bíbli­
ca. Embora não seja propriedade exclusiva do movimento carismático, o
termo nos lembra que Deus tem usado esse movimento para chamar o
corpo maior de Cristo de volta a uma ênfase bíblica negligenciada. Con­
forme comentou Geoffrey Bromiley, o protestantismo da reforma preci­
sa chegar a uma “percepção renovada do que é e do que precisa ser o
ministério cristão: um movimento carismático” .ls
A palavra carismático nos lembra a sina de outros termos com raí­
zes nas Escrituras, como presbiteriano, episcopal, batista e ecumênico.
Todas essas palavras vêm, como carismático, diretamente do grego do
Novo Testamento. As conotações que adquiriram no uso moderno não
nos fornecem bons motivos para abandonar tais palavras. Pelo contrá­
rio, deveriam nos motivar a redescobrir e reafirmar seu verdadeiro sen­
tido bíblico, pois falam algo significativo a respeito da igreja.
Como afirma Bromiley, a ênfase carismática relaciona-se em espe­
cial com o ministério da igreja. E importante, portanto, para a atuação
da igreja como agente do reino. Muitas igrejas que conheço não são
comunidades carismáticas, em que cada pessoa ministra de acordo com
os dons que recebeu. Antes, são um pouco mais que organizações sem
diferenças fundamentais com outras organizações da mesma cultura.
Essas igrejas tentam em vão ministrar por meio de programas, treina­
mentos e técnicas cada vez mais desenvolvidos e abrangentes. Sob lideres
com talento acima da média, elas têm sucesso e todos louvam esse suces­
so e as usam como modelo. M as na maior parte dos casos, essa tecnolo­
gia espiritual falha, só deixando igrejas locais frustradas, sedentas de
verdadeira comunhão espiritual, perguntando por que o programa infa­
lível de alguém “ não funciona” na situação delas. Por esses motivos,
sugiro que a igreja contemporânea deve ter autoconsciência e buscar
para sua vida um modelo carismático que ocupe o lugar do modelo insti-
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 79

tucional dominante.
Um modelo carismático ou orgânico é aquele marcado pela comuni­
dade, relacionamentos interpessoais, mutualidade e interdependência.
Ele é flexível e deixa espaço para um alto grau de espontaneidade. A
Bíblia nos dá tal modelo para a igreja: o corpo humano.
Em contraste, o modelo institucional ou organizacional é baseado
na hierarquia, delegação de autoridade, relacionamentos impessoais e
formalidade. Essa é uma legítima forma de organização humana, que se
adapta de maneira admirável a alguns tipos de empreendimentos, mas
não é um modelo adequado de estrutura para a igreja. Todas as figuras
bíblicas de igreja insinuam um modelo carismático e orgânico, não um
modelo institucional: árvore, videira, rebanho, família, nação, casa e até
“santuário santo” que vive e cresce (Ef 2.21). Os elementos institucionais
legítimos devem estar subordinados à natureza carismática da igreja.
Seria adequado começar, nesse ponto, uma discussão detalhada da
estrutura da igreja, mostrando a relevância do modelo carismático ou
orgânico como forma da comunidade do povo de Deus. Vamos adiar
essa discussão até o capítulo nove, porém, para voltar à pergunta básica
deste capítulo e mostrar de maneira mais completa como a igreja é o
agente do reino de Deus.

Fermento ou bote salva-vidas?


Se a igreja é, em essência, mais a comunidade do povo de Deus do que
uma instituição, então é por meio da igreja como povo que Deus cumpre
seu plano cósmico — não, em primeiro lugar, por meio de organizações
e instituições, embora estas possam ser instrumentos úteis.
Como, então, Deus está reconciliando todas as coisas mediante
Cristo e mediante a igreja? Será que a igreja cumpre o propósito cósmi­
co de Deus como um bote salva-vidas para almas que estão se afogan­
do? Será que é principalmente levedura para produzir fermentação e
mudança? Ou seria como um pigmento que se espalha cada vez mais,
penetrando progressivamente em todas as estruturas da sociedade, tin­
gindo gradualmente toda a cultura com a cor da justiça? Ou a igreja
seria algum tipo de combinação de tudo isso?
A carta aos Efésios revela uma resposta dupla. A passagem chave é
Efésios 2.8-10:
Pois vocês são salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vocês, é
dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie. Porque somos
criação de Deus realizada em Cristo Jesus para fazermos boas obras, as
quais Deus preparou antes para nós as praticarmos.
80 A COMUNIDADE DO REI

Dois fatos se destacam aqui: primeiro, todos os cristãos foram sal­


vos pela graça por meio da fé, como dom de Deus; e, segundo, todos os
cristãos foram criados para andar em boas obras preordenadas por Deus.
Isso significa que a igreja cumpre o plano de Deus pelo que é (uma co­
munidade redimida) e pelo que faz (boas obras). Isso tem por paralelo a
vida e obra de Jesus Cristo, a cabeça da igreja, que era a Palavra de
Deus encarnada e que disse ter vindo para fazer a vontade daquele que
o enviou e concluir a sua obra (Jo 4.34).
Portanto, a primeira tarefa da igreja é realmente ser uma comuni­
dade redimida. A demonstração genuína de comunidade cristã é o pri­
meiro passo rumo à concretização do plano cósmico de Deus. Isso é um
milagre, e milagres atraem. O plano de Deus exige que a igreja seja um
microcosmo dessa reconciliação cósmica que ele está realizando. As­
sim, a medida em que a igreja cresce e se expande pelo mundo e de­
monstra a verdadeira comunidade cristã é a medida em que o reino de
Deus chega à terra! O reino de Deus é muito mais que isso, mas suas
sementes estão aqui.
A igreja não é um instrumento inanimado nas mãos de Deus, algo
que ele usa para alcançar seus fins. Isso seria violar o próprio conceito
de igreja que já esboçamos. A igreja é antes de fazer. “ Cristo amou a
igreja e entregou-se por ela” (Ef 5.25). Assim, a igreja possui valor por­
que é, porque é o objeto do amor de Cristo. O amor de Cristo pela
igreja impede toda concepção meramente utilitarista da igreja.
Deus não usa a igreja como um objeto inerte, pois isso seria contrá­
rio a tudo o que ele deseja fazer dentro da igreja. A vontade de Deus é
que a igreja e cada membro dela alcance “ a medida da plenitude de
Cristo” (Ef 4.13). Deus deseja crescimento espiritual até a maturidade
na igreja. Quando cresce dessa maneira, ela cumpre o plano de Deus de
tornar conhecida “ mediante a igreja, a multiforme sabedoria de D eus...
[aos] poderes e autoridades nas regiões celestiais” (Ef 3.10).
Portanto, a igreja não deve ser compreendida primeiramente como
um meio para o fim de transformar a sociedade. Isso seria pisotear a
singularidade e o valor infinito da comunidade cristã para Deus.16Além
disso, o fato admirável e profundo é que a igreja transforma mais a
sociedade quando está crescendo e sendo aperfeiçoada no amor de Cris­
to, como acontece com centenas de milhares de igrejas que se reúnem em
casas hoje na China. Aliás, quando é vista apenas como um meio para
transformar a sociedade, a igreja realiza muito pouco. Pois, nesse caso, a
singularidade da igreja é negada e entramos na batalha nos mesmos
termos que as forças seculares sem Deus. Supomos que a batalha pelo
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 81

direito e pela justiça pode ser ganha pela força, pela técnica, pelo fazer.
Não pode. É bem claro que essas não são as armas da guerra cristã (Ef
6.10-12).17 A verdadeira transformação cristã da cultura vem do amor,
da comunidade e da existência à semelhança de Cristo (portanto, sacri­
ficial) e pela demonstração do poder do Espírito Santo.
M as esse fato de maneira alguma cancela a responsabilidade de fa­
zer, de agir, de andar nas obras de Deus. O ser e o fazer andam juntos. O
ser é fundamental, mas o fazer é o resultado natural.
O ensino de Efésios 2.10 é que somos salvos por Deus para que
possamos fazer boas obras. Parte do propósito de Deus em nos salvar é
que as boas obras sejam feitas. Além disso, essas mesmas obras “Deus
preparou antes” . Isso, não no sentido de predestinação de nossos atos,
mas no sentido de um plano divino preexistente que Deus está concreti­
zando por intermédio da salvação de pessoas e das obras que conse­
quentemente realizam. Essa é a “economia” divina, a oikonomia de Deus.
Portanto, voltamos a encontrar aqui o fato do plano, do propósito
de Deus. Somos salvos, não só por nós mesmos, mas porque há coisas
específicas — determinadas obras — que Deus, em sua sabedoria, dese­
ja realizar. E ele deseja realizá-las pela atividade dos que são salvos, ou
seja, pela igreja. O plano de Deus (“que agora, mediante a igreja, a
multiforme sabedoria de Deus se tornasse conhecida”) deve ser realiza­
do, ao menos em parte, pela igreja fazendo as obras que “Deus preparou
antes” .
A expressão “ as quais Deus preparou antes” (ou “de antemão” ,
ERAB) é crucial. Já está na mente e no plano de Deus que certas coisas
que fazem parte do plano geral que ele está realizando devem ser de
fato feitas pela igreja em forma de boas obras. Assim, homens e mulhe­
res redimidos participam da realização do desígnio cósmico de Deus. O
que Deus determinou fazer desde a criação do mundo — “fazer conver­
gir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas” — deve, em parte,
ser realizado pelas boas obras dos salvos.18Isso deve ser cumprido “me­
diante a igreja” , não como muitos indivíduos isolados, mas precisa­
mente como “uma nova espécie de comunidade que leva um tipo de
vida radicalmente novo” .19
Mas o que são, especificamente, essas “boas obras, as quais Deus
preparou antes” ? A Bíblia não nos dá um catálogo detalhado de tarefas
do reino.20 Não é difícil, porém, identificar critérios bíblicos para deter­
minar quais obras fazem parte do plano de Deus e quais se opõem a ele.
É possível aplicar cinco critérios: os cristãos estão cumprindo o desígnio
preordenado de Deus sempre que suas obras (1) brotam do amor cristão,
82 A COMUNIDADE DO REI

(2) são baseadas na obediência ao evangelho e à mordomia de dons espi­


rituais, (3) são feitas em nome de Jesus, (4) contribuem para a reconcili­
ação, cura e beleza no mundo, qualquer que seja a área, e (5) glorificam
o Pai. Sempre que um cristão está trabalhando em nome de Jesus para a
reconciliação no mundo, para sanar a deterioração do mundo e curar as
enfermidades causadas pela Queda, e onde essa atividade brota do amor
cristão e do verdadeiro senso de vocação cristã, ali Deus está em ação e
ali há um sinal do reino.21
A tarefa da igreja, portanto, e seu lugar no desígnio cósmico é, antes
de tudo, ser a comunidade messiânica genuinamente redimida e, em se­
gundo lugar, fazer as obras de Deus e continuar as obras de Jesus. Ao
ser verdadeiramente a comunidade dos discípulos de Jesus, a igreja de-
dica-se a um padrão de vida coletiva e um modo de relacionamento
mútuo que é uma rejeição e, portanto, um desafio às estruturas sociais
e políticas do mundo. A própria existência da igreja torna-se profética e
evangelística. E ao fazer as obras de Deus, a igreja repudia as armas
carnais do mundo (violência, força, engano, propaganda, tecnologia
manipulativa) e emprega as únicas armas coerentes com sua natureza e
as únicas realmente eficientes para isso: verdade, justiça, promoção da
paz, fé, oração e a Palavra de Deus (Ef 6.14-18).

NOTAS
1 A expressão mediante a igreja é traduzida de maneira ambígua como "pela igreja", em
algumas versões, encobrindo a força do fato de que a igreja é o agente do plano de Deus.
2 Veja Dulles, Models o f the Church. O significado de dizer que a igreja é o agente do
reino de Deus também depende, claro, de como se entende o reino ou o reinado de
Deus. Veja uma discussão ampla em Snyder, Models o f the Kingdom.
3 0 amor de Deus pela igreja deve ser um alerta para os que desconsideram de todo a
"igreja institucional", considerando-a corrupta, decaída, apóstata ou simplesmente irre­
levante. Na maior parte dos casos, a "igreja institucional", mesmo quando seriamente
comprometida, contém um número de crentes genuínos que cultuam de fato a Deus e
realizam algumas obras características do reino. Deus não desistiu delas nem (creio e
espero) das possibilidades de uma genuína e surpreendente renovação da igreja em tais
contextos. Isso já aconteceu antes.
4 Os três pontos que se seguem são resumidos do cap. 13 de Vinho Novo, Odres Novos
(São Paulo: ABU, 1997).
5 Samuel Escobar, "A Evangelização e a Busca de Liberdade, de Justiça e de Realização
pelo Homem", em A Missão da igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU, 1982), p. 186.
6 Hans Küng também descreve a igreja como "o Povo de Deus ... a comunidade dos
fiéis"; a igreja é "a comunidade do novo povo de Deus chamada e reunida". Structu-
res o f the Church, trad. Salvator Attanasio (London: Burns and Oates, 1964), pp. x, 11.
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 83

7 Ibid., p. 12.
8 Nicoll, III, p. 309.
9 Embora ainda sustentem que a igreja é legitímamente uma instituição, alguns eruditos
católicos contemporâneos admitem, e até insistem, que o lado carismático ou orgânico
da igreja deve ter precedência sobre o institucional. Veja, por exemplo, Dulles, Models o f
the Church. Ironicamente, ao mesmo tempo, alguns evangelicais "paleo-ortodoxos",
preocupados com a confusão doutrinária e eclesiológica de hoje, aceitam de maneira
acrítica a institucionalização da igreja que ocorreu nos séculos III e IV d .C , embora sua
concepção de igreja seja notavelmente diferente da que encontramos no Novo Testa­
mento.
10 David O. Moberg, The Church as a Social Institution (Englewood Cliffs, New Jersey:
Prentice-Hall, 1962), p. 6.
" Veja Geoffrey W. Bromiley, "The Charismata in Christian History", Theology, News and
Notes (do Fuller Theological Seminary), Mar. 1974, p. 3.
12 Essa afirmação obviamente não deve servir para justificar todo e qualquer movimento
de renovação, mesmo que teologicamente ortodoxa. Muitos fatores entram em jogo
nessas ocasiões e cada caso deve ser avaliado segundo seus méritos. Veja Howard A.
Snyder, Signs o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zondervan,
1989; Eugene: Wipf and Stock, 1997), em especial o cap. 2, "The Study of Renewal
Movements".
13 A renovação da igreja pode ser entendida em termos de cinco dimensões: pessoal,
corporativa ou comunitária, conceituai, estrutural e missíológica. Veja Snyder, Signs o f
the Spirit, cap. 8.
14 Quanto aos vários usos da palavra carismático, veja John Howard Yoder, "The Fullness
of Christ", Concern, Feb. 1969, pp. 63-65.
,5 Bromiley, p. 24.
,6 A igreja não possui valor especial, claro, exceto quando leva a imagem de Deus e é o
recipiente da graça e do amor de Deus. A igreja pode cair na armadilha de se
superestimar, esquecendo-se de que tem sobre si o chamado divino redentor e liber­
tador,
17 Veja a discussão da função profética da igreja no capítulo 7.
18 Em contraste, o plano de Satanás é reunir todas as coisas no céu e na terra sob sua
própria liderança ou controle ou sob a liderança de uma pessoa ou sistema que ele
controla.
19 John Howard Yoder, A Política de Jesus (São Leopoldo: Sinodal, 1987), p. 42.
20 Veja, no capítulo 6, uma melhor exposição das tarefas da igreja para a instalação do
reino.
21 Esses critérios sugeridos são inferidos de todo o teor da apresentação do evangelho
no Novo Testamento e por dedução de passagens como Mateus 5.3-16; 1 Pe 2.11-17;
Fp 2.12-16; 1 Co 10.31; Jo 13.35; Rm 12.3-21; 2 Co 5.16-21 e outras. Em Kingdom,
Church, and World apresentei oito maneiras pelas quais a igreja serve autenticamente
como um sinal do reinado de Deus e onze maneiras pelas quais a igreja costuma trair o
reino de Deus. Veja Kingdom, Church, and World: Biblical Themes for Today, pp. 88-90.
6
A COMUNIDADE
MESSIÂNICA

A igreja é o agente do reino de Deus, antes de tudo, pelo que é. Ela


serve melhor aos interesses do reino como a comunidade messiânica do
povo de Deus do que como instituição eclesiástica.
O livro de Atos apresenta um quadro equilibrado da experiência
cristã primitiva: evangelização e igreja, proclamação e comunidade, tes­
temunho e comunhão. As três preocupações principais da igreja primiti­
va eram louvar a Deus, proclamar o evangelho e edificar a comunidade
cristã. A evangelização brotava da vida comunitária e do culto, e a co­
munidade crescia por meio de seu testemunho. A evangelização não era
só algo que cada cristão fazia como indivíduo; antes, era o resultado
natural da presença e influência da comunidade cristã no mundo. A co­
munidade dava credibilidade à proclamação verbal.

A primazia da comunidade
A proclamação pressupõe uma comunidade que testemunha. Como
escreveu John Howard Yoder:
Pragm aticam ente, éevidente que não pode haverprocedim ento de procla­
m ação sem um a com unidade, distin ta do restante da sociedade, p ara
fazer a proclam ação. Pragm aticam ente, é tam bém m uito claro que não
pode haver nenhum apelo evangelistico dirigido a um a pessoa, convidan­
do-a a entrar num novo tipo de com unidade e aprendizado, se não existir
ta l corpo de pessoas, de novo distinto de toda a sociedade, a quem ela
possa chegar e com quem p ossa aprender ...S e não acontecer de haver, em
dado lugar, hom ens de várias características e origens que tenham sido
reunidos por Jesu s C risto, então naquele lugar não existe a nova hum ani­
dade e naquele lugar o evangelho não é verdadeiro. Se, p o r outro lado, esse
m ilagre da nova criação ocorreu, então todas a s verbalizações e interpre­
tações pelas quais essa fraternidade se com unica com o mundo ao seu
redor são sim ples explicações do fato de su a presença}
Se Jesus Cristo realmente gastou mais tempo preparando uma co-
86 A COMUNIDADE DO REI

munidade de discípulos do que proclamando as boas novas (o que de fato


fez), então a igreja deve também reconhecer a importância da comuni­
dade para a proclamação. Essa prioridade da comunidade é importante
tanto para cada crente como para o testemunho da igreja.
Em primeiro lugar, a comunidade é importante para cada crente.
No protestantismo em geral, desde suas estruturas até seus hinos e cân­
ticos, tem-se destacado o indivíduo acima da comunidade. Tem havido
um senso aguçado da responsabilidade individual da pessoa diante de
Deus, mas pouco senso correspondente da vida comunitária do cristão.
E muito comum a igreja ser vista mais como mera coleção de almas
salvas do que como comunidade de personalidades em interação. O cres­
cimento cristão tem sido mais uma questão de cultura da alma indivi­
dual do que de edificação da comunidade do Espírito. Os santos que
viviam de maneira isolada, solitária, eram muitas vezes colocados so­
bre um pedestal acima daqueles que passavam a vida em verdadeira
comunidade. Essas tendências, claro, faziam parte da herança pré-re-
forma do protestantismo.
M as quatro verdades bíblicas devem nos fazer voltar para a prima­
zia da comunidade: ( I) o conceito do povo de Deus, (2) o modelo de
Cristo com seus discípulos, (3) o exemplo da igreja primitiva e (4) os
ensinos explícitos de Jesus e dos apóstolos. A afirmação de Cristo “ Onde
se reunirem dois ou três em meu nome, ali estarei no meio deles” (Mt
18.20) é bem adequada para definir a igreja. A vida cristã autêntica é a
vida em comunidade cristã.
Isso não significa, obviamente, ir para o extremo oposto e dissolver
a identidade individual no grupo. A ênfase no indivíduo é bíblica, mas
parcial.2
O crescimento espiritual é maior numa comunidade que cuida das
pessoas. H á verdades espirituais que jamais compreenderei e padrões
cristãos que jamais atingirei, a menos que participe de uma comunida­
de junto com outros crentes — e isso faz parte do plano de Deus. O
Espírito Santo nos ministra, em grande medida, por meio da mutuali-
dade. E disso que Paulo está falando quando diz: “cresçamos em tudo
naquele que é a cabeça, Cristo. Dele todo o corpo, ajustado e unido
pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor,
na medida em que cada parte realiza a sua função” (Ef 4.15-16). Essa
interação dos muitos membros em um corpo é a vida do corpo. Karl
Barth estava correto ao indicar que, quando o Novo Testamento fala de
edificação, “ sempre fala da edificação da comunidade. Só posso edifi­
car a mim mesmo quando edifico a comunidade” .3
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 87

Isso traz implicações imediatas para a tarefa evangelística. A res­


ponsabilidade de cada crente é, em primeiro lugar, para com a comu­
nidade cristã e sua cabeça, Jesus Cristo. As primeiras tarefas de todo
cristão são a adoração e a edificação da comunidade dos crentes. Se
dissermos que a evangelização ou a salvação das almas é a primeira
tarefa do crente, vamos violentar o Novo Testamento e colocar nas
costas de alguns crentes um peso que não conseguirão carregar. A idéia
de que a primeira responsabilidade de todo cristão é ser um ganhador
de almas ignora os ensinos bíblicos sobre os dons espirituais. Além
disso, coloca toda a ênfase num único ponto, a conversão, e subestima
a edificação da igreja, algo essencial para a evangelização efetiva e o
crescimento da igreja.
Isso nos leva a afirmar, em segundo lugar, a prioridade da comuni­
dade em relação ao testemunho. A comunhão e a vida em comunidade
são necessárias dentro da igreja para capacitar os cristãos para seus
vários tipos de testemunho e serviço. De um jeito ou de outro, todos os
cristãos são testemunhas no mundo e devem compartilhar sua fé. Mas
eles só podem ser testemunhas eficazes quando têm a experiência capa-
citadora da vida em comum da igreja. E essa vida em comum só é de
fato capacitadora quando a comunidade se torna, pela habitação de
Cristo e o exercício dos dons espirituais, a koinonia do Espírito Santo.
Isso leva naturalmente a uma discussão sobre os dons do Espírito
na comunidade cristã. Ora, os dons devem ser vistos não como benefí­
cios secundários, mas como algo completamente central para a experi­
ência de vida e funcionamento da comunidade cristã.

Os dons do Espírito
Paulo diz: “Há diferentes tipos de dons, mas o Espírito é o mesmo”
(1 Co 12.4). “Temos diferentes dons, de acordo com a graça que nos foi
dada” (Rm 12.6). De modo semelhante, Pedro diz: “ Cada um exerça o
dom que recebeu para servir os outros, administrando fielmente a graça
de Deus em suas múltiplas formas” (1 Pe 4.10).4
Por gerações, o tema dos dons espirituais foi amplamente mal com­
preendido ou ignorado por grande parte da igreja cristã. O Novo Testa­
mento apresenta ensinos claros a respeito dos dons espirituais e declara
enfaticamente que o exercício desses dons faz parte da vida normal da
comunidade cristã (1 Co 12—14). M as, ainda hoje, muitos cristãos ou
negam a validade dos dons, limitando-os só à igreja primitiva, ou os
reinterpretam de um modo que lhes rouba o impacto e os vê como sinô­
nimos de habilidades naturais. Essa negligência e má interpretação dos
88 A COMUNIDADE DO REI

dons tem produzido uma ênfase às vezes exagerada neles em alguns


grupos. Essa reação pode representar um julgamento de Deus contra
aqueles ramos do protestantismo que têm negligenciado essa verdade
bíblica. O resultado foi uma polarização — um grupo negando ou
ignorando os dons espirituais e o outro com freqüência superestiman­
do-os ou elevando um ou dois dons à condição de carteira de identida­
de. Felizmente, estamos começando a ver uma nova ênfase entre os
pentecostais e não-pentecostais no fato de que os dons espirituais de­
vem ser entendidos em seu contexto bíblico, ou seja, como parte do
plano de Deus para o funcionamento normal da comunidade cristã.5
A questão básica não é se dons espirituais específicos, como os de
apóstolo, profeta ou falar em línguas, são válidos hoje. A questão é se o
Espírito ainda concede dons aos crentes, e a resposta é sim. Precisar
quais dons ele dá em alguma era ou lugar específico é prerrogativa de
Deus, não nossa, e não devemos limitar a livre escolha de Deus. As in­
terpretações quanto aos dons específicos podem variar. M as não temos
garantia bíblica para restringir os cbarismata à igreja primitiva ou para
banir dons específicos hoje. Os argumentos contra os dons brotam em
geral de considerações secundárias, não bíblicas, e do medo de excessos
ou abusos.6
Um estudo cuidadoso sobre a igreja no Novo Testamento mostra
que só podemos compreender o plano de Deus para a igreja quando
damos a devida atenção aos dons espirituais. Isso não c uma doutrina
estranha, mas algo que a igreja primitiva compreendia muito bem. Na
exposição que Paulo faz em Efésios, por exemplo, os dons espirituais
formam o elo entre o plano cósmico de Deus para a igreja e a descrição
da vida normal da igreja local: “ H á um só corpo e um só Espírito ... E a
cada um de nós foi concedida a graça conforme a medida repartida por
Cristo ... e ele designou alguns para apóstolos, outros para profetas,
outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” (Ef 4.4, 7,
11). Tendo sido salvos pela graça, “somos criação de Deus realizada em
Cristo Jesus para fazermos boas obras, as quais Deus preparou antes
para nós as praticarmos” (Ef 2.10). Há uma ligação entre essas “boas
obras” preparadas de antemão e os dons espirituais, pois é principal­
mente mediante o exercício dos dons espirituais que o indivíduo realiza
essas boas obras que cumprem o plano cósmico de Deus.
A melhor forma de ver a vida e o crescimento da igreja primitiva é
como uma comunidade de cristãos cheios do Espírito exercendo seus
dons espirituais. Alguns, como Pedro, Paulo, Barnabé, Silas, Filipe e
Apoio, usaram seus dons na proclamação direta do evangelho ao mun-
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 89

do. Outros usaram seus dons para sustentar a vida interna da igreja -—
pessoas como Timóteo, Ananias (At 9.10), M aria, mãe de Marcos (At
12.12), Febe (Rm 16.1-2), Priscila e Áqüila (Rm 16.3) e muitos outros
por demais numerosos para mencionar. Evidentemente, muitos desses,
inclusive Timóteo e Priscila e Áqüila, estavam sem dúvida envolvidos
na evangelização, bem como no discipulado.
Paulo afirma claramente que seu “dom da graça de Deus” como
apóstolo era “anunciar aos gentios as insondáveis riquezas de Cristo e
esclarecer a todos a administração desse mistério” do evangelho (Ef
3.7-9). Paulo era apóstolo, esse era seu dom espiritual. Isso, para ele,
implicava evangelizar e plantar igrejas, bem como ensinar e cuidar da
supervisão espiritual. Ele era eficiente porque exercia o dom e a voca­
ção que havia recebido de Deus, o Espírito.
Filipe era evangelista. Suas quatro filhas eram profetisas. Ágabo era
profeta; não temos indícios de que fosse evangelista. Dorcas “ se dedica­
va a praticar boas obras e dar esmolas” (At 9.36); era assim que ela
exercia seus dons espirituais. Lídia de Filipos liderava um grupo de ora­
ção e praticava o dom da hospitalidade (At 16.13-15). Silas era profeta
(At 15.32) e Febe era diaconisa ou ministra (Rm 16.1).7 E assim por
diante em toda a igreja primitiva. Nem todos eram evangelistas, mas
todos eram testemunhas da graça de Deus. E todos, à sua própria ma­
neira, eram úteis no testemunho da igreja.
Os exemplos do Novo Testamento revelam duas orientações de dons
espirituais: para fora, ministério no mundo; e para dentro, ministério
no interior da igreja. Ambas são importantes e ambas são necessárias,
pois a proclamação e o serviço precisam crescer a partir da experiência
comunitária da igreja.
O ensino de Pedro em 1 Pedro 4.10-11 talvez forneça o melhor su­
mário bíblico a respeito dos dons espirituais. Ele diz que cada crente
deve exercer “o dom [dom da graça, charisma]” que recebeu no serviço
aos outros, “administrando fielmente a graça de Deus [charis] em suas
múltiplas formas. Se alguém fala, faça-o como quem transmite a pala­
vra de Deus. Se alguém serve, faça-o com a força que Deus provê, de
forma que em todas as coisas Deus seja glorificado mediante Jesus Cris­
to” . Essa passagem é importante porque mostra que os dons espirituais
não eram só idéia de Paulo, mas algo aceito e compreendido pela igreja
primitiva em geral. Hebreus 2.4 (pressupondo que Paulo não seja o au­
tor) é importante pelo mesmo motivo: “Deus também deu testemunho
dela por meio de sinais, maravilhas, diversos milagres e dons do Espírito
Santo distribuídos de acordo com a sua vontade” .8
90 A COMUNIDADE DO REI

1 Pedro 4.10-11 entende que cada crente recebeu algum dom espi­
ritual, alguma distribuição específica da graça multiforme de Deus, e diz
que esses dons devem ser usados para glorificar a Deus. Pedro cita só dois
exemplos: o ministério da Palavra (“se alguém fala”) e o serviço prático
(“se alguém serve” , diakonei). Obviamente, isso não deve limitar os dons
espirituais só a dois. Pedro está falando de todos os dons espirituais e os
divide de modo genérico em duas categorias, proclamação verbal e servi­
ço prático, exatamente como os doze apóstolos fizeram em Atos 6.9 Essa
é uma divisão natural e prática, não uma divisão rígida técnica ou hierár­
quica. Pedro só está dizendo: “ Qualquer que seja o dom que tenha recebi­
do — seja o de falar, seja o de servir — use-o com fidelidade, como um
bom mordomo da graça de Deus, para que Deus possa ser glorificado”
(que é sempre o propósito final dos dons espirituais).

Como compreender dons específicos


Com esse cenário, podemos agora examinar algumas das listas mais
detalhadas de dons espirituais. A maneira pela qual esses dons são men­
cionados no Novo Testamento e a variedade de palavras gregas empre­
gadas devem nos alertar contra qualquer interpretação rígida ou estrei­
ta. A ênfase do Novo Testamento está na diversidade dos dons espiritu­
ais, não em definições exatas. Cada crente recebe a graça (charis) de
que ele, como ministro do evangelho — e a igreja — necessita.
As passagens paulinas mais importantes sobre dons são Romanos
12.6-8, 1 Coríntios 12.8-10 e 12.28 e Efésios 4.11-12. São quatro lista­
gens diferentes dos dons espirituais. Embora, em essência, sejam seme­
lhantes, em 1 Coríntios 12.28 e Efésios 4.11-12 talvez Paulo tivesse em
mente algo um pouco diferente do que tinha em Romanos 12.6-8 e 1
Coríntios 12.8-10. N as últimas duas passagens, a ênfase está no fato dos
próprios dons e na conseqüente diversidade dentro da unidade do cor­
po de Cristo. Paulo fala aqui de profecia, ensino, cura e assim por dian­
te, e não em profetas, mestres, operadores de curas, etc.
Em contraste, Paulo apresenta algo diferente em Efésios 4.11-12 e 1
Coríntios 12.28. Sua preocupação é clara na última passagem: “Assim,
na igreja, Deus estabeleceu...” . N essas duas passagens, a ênfase de Pau­
lo não está primeiro nos dons em si, mas na ordem da igreja. Ele concen­
tra a atenção nos meios fornecidos por Deus para o funcionamento ade­
quado dos dons dentro da comunidade cristã.
Colocadas lado a lado, essas duas passagens nos dão um quadro
composto da ordem na igreja, de acordo com princípios bíblicos e ca­
rismáticos, e sugerem uma distinção funcional entre dois tipos de dons:
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 91

1 Coríntios 12.28 Efésios 4.11-12


A pó sto lo s, profetas, m estres A pó sto lo s, profetas, evangelistas
pastores, m estres
depois para
os que realizam m ilagres, preparar os santos
os que têm dons de curar, ajudadores, etc. para a obra do m in isté rio

Observamos que apóstolos, profetas e mestres são alistados nas duas


passagens. Na passagem de Efésios 4, acrescentam-se evangelistas e pas­
tores, que podem ser considerados subdivisões posteriores dos incluí­
dos em 1 Coríntios como apóstolos, profetas e mestres.
Em 1 Coríntios 12.28, depois de mencionar “primeiramente após­
tolos; em segundo lugar, profetas; em terceiro lugar, mestres”, Paulo
passa a mencionar alguns outros dons: “ depois os que realizam mila­
gres, os que têm dons de curar, os que têm dom de prestar ajuda, os que
têm dons de administração e os que falam diversas línguas” . E evidente,
aqui, uma divisão natural. Essa é uma distinção funcional entre a lide­
rança básica ou dons de capacitação e a grande variedade de outros
dons, mais específicos, dados pelo Espírito.
Observe que Paulo não se refere, aqui, a nenhuma hierarquia na igre­
ja, embora às vezes se faça essa interpretação do texto. Antes, Paulo está
mostrando que Deus mesmo providenciou a ordem, dando, para cada
congregação local e para a igreja em geral, pessoas capazes de exercer
as várias funções necessárias. Trata-se de uma explicação funcional e,
até certo ponto, cronológica (“ apóstolos ... profetas ... mestres” ), não
uma hierarquia fixa.
Vemos, portanto, que os dons básicos de liderança — de apóstolo,
profeta, evangelista, pastor e mestre — são dados à igreja para exercer um
ministério de capacitação, preparando cada crente para um ministério
específico. E o que é essa “obra do ministério” ? Ela é diferente para cada
membro, mas vemos alguns elementos envolvidos: cura, ajuda, adminis­
tração, profecia. Em todos os casos, o alvo é o mesmo, ou seja, “para que
a igreja seja edificada” (1 Co 14.5), “até que todos alcancemos a unidade
da fé e do conhecimento do Filho de Deus, e cheguemos à maturidade,
atingindo a medida da plenitude de Cristo” (Ef 4.13), “de forma que em
todas as coisas Deus seja glorificado mediante Jesus Cristo” (1 Pe 4.11).

Liderança carismática
Como devemos entender essas funções capacitadoras de apóstolo,
profeta, evangelista, pastor e mestre hoje?10
92 A COMUNIDADE DO REI

Em primeiro lugar, há uma diferença no âmbito ou esfera de ação


desses vários dons. William Barclay resume a evidência bíblica e histó­
rica a respeito da liderança na igreja primitiva da seguinte maneira:
N a igreja primitiva, havia três tipos de oficiais [líderes capacitadores].
Havia uns poucos cujos escritos e autoridade percorriam toda a igreja
[apóstolos]. Havia muitos cujo ministério não era confinado em um lugar,
mas que desenvolviam um ministério itinerante, indo para qualquer lugar
que o Espírito os levasse, e para onde Deus os enviasse [profetas e evange­
listas], Havia alguns cujo ministério era um ministério local, confinado a
uma congregação e a um lugar [pastores e mestres].11

A função de liderança ampla dos apóstolos é clara em todo o Novo


Testamento. Embora o dom de profecia fosse com freqüência exercido
dentro de congregações locais (1 Co 14), muitos profetas e evangelistas
tinham um ministério itinerante, um tanto parecido com o dos profetas
do Antigo Testamento (At 11.27-28; 21.8-10; Ef 3.5; 2 Pe 3.2; Ap 18.20).
Diferentemente dos apóstolos, eles não eram supervisores. Por fim, o
ministério dos pastores e mestres era confinado basicamente a congre­
gações locais (At 13.1; 20.17-20). Os presbíteros são às vezes referidos
como pastores ou mestres (At 20.17-30; 1 Tm 5.17; 1 Pe 5.1-3).
O padrão de liderança que realmente existia na igreja primitiva
formou a base do que Paulo mais tarde ensinou a respeito dos dons em
suas cartas. Por esse motivo, o ensino de Paulo em Efésios e 1 Corind­
os deve ter prioridade sobre as descrições contidas em Atos, a respeito
dos vários líderes que estavam de fato emergindo. Em sua evangeliza­
ção, Paulo viu a necessidade de liderança e, liderado pelo Espírito,
estabeleceu presbíteros nas igrejas que fundou. M ais tarde, escreven­
do a essas igrejas, Paulo refletiu sobre o que havia acontecido e deu
uma interpretação, mostrando o que Deus havia feito: “na igreja, Deus
estabeleceu primeiramente apóstolos, em segundo lugar, profetas; em
terceiro lugar, mestres” . Sob inspiração divina, Paulo dá essa explica­
ção, mostrando que Deus tem agido e agirá para prover liderança. E
Paulo mostra que essa liderança deve ser compreendida em termos de
dons espirituais: ele deu “ alguns para apóstolos, outros para profetas,
outros para evangelistas, e outros para pastores e mestres” . Esses não
são todos os dons, mas os dons cruciais de liderança ou capacitação.
Aqui, portanto, a interpretação de Paulo torna-se não mera des­
crição, mas também revelação — a revelação do plano de Deus, sua
oikonomia, para liderança e ordem na igreja. Chamemos de presbíte­
ros, diáconos, pastores, bispos ou superintendentes, o fato é que Deus
providencia para que haja liderança na igreja pelo exercício dos dons
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 93

espirituais. Essa é a eclesiologia de Deus.


Nosso entendimento seria mais nítido se lembrássemos o significa­
do essencial das palavras que passaram a servir apenas como títulos.
Esses termos eram compreendidos nos dias do Novo Testamento não
como títulos eclesiásticos, mas como funções práticas. Alguns desses
termos eram usados para designar líderes do judaísmo (ancião, por exem­
plo), enquanto outros eram comuns na cultura grega. M as cada termo
foi adotado pela igreja porque descrevia uma função manifesta de lide­
rança. Observe os termos na Tabela l . 10

Palavra em Palavra grega Significado Derivados em


português básico português
presbítero, ancião presbuteros pessoa ou líd e r m ais presbítero
velho, m ais m aduro

servo, diakonos alguém que serve diácono,


m in is tro , diaconisa
diácono,
dia co n isa

pastor poimen pastor

bispo, episkopos s u p e rviso r bispo


su p e rv is o r episcopado

a p óstolo apostolos m ensageiro, alguém apóstolo


enviado ou
c o m issio n a d o

evangelista euaggelistés anunciador de boas novas evangelista

professor, didaskalos professor, m estre (didática)


m estre

Tabela 1. Raízes dos títu lo s eclesiásticos

Esses termos eram usados pela igreja primitiva para designar os lí­
deres que o Espírito de Deus estava levantando. Eles serviam mais como
descrição do que como prescrição. Em conjunto, não representam uma
hierarquia fixa de ofícios a ser preenchidos; antes, indicam as funções de
liderança desempenhadas por homens e mulheres levantados por Deus. E
isso o que significa liderança carismática — liderança inspirada pelo
Espírito de Deus, dotada das graças ou dos carismas necessários e devi­
damente reconhecida pela comunidade de crentes.
94 A COMUNIDADE DO REI

É útil, aqui, o estudo detalhado sobre a liderança carismática, se­


gundo a Bíblia, feito por John Yoder. Ele lança luz sobre a natureza da
liderança em geral e, em especial, sobre a questão do vocabulário neotes-
tamentário de ministério.13 Yoder observa que cada sociedade abre um
espaço para o “religioso profissional” , que é sustentado pela comunida­
de e cuida das funções religiosas dela. A medida que a igreja se afasta
dos princípios bíblicos, torna-se parecida com outros sistemas religio­
sos e culturais e aceita as funções e poderes dos religiosos profissionais.
Se chegarmos ao Novo Testamento com esse conceito de ministério
de “ religioso profissional” , perguntando: “ O que se diz sobre esse as­
sunto?” , podemos somar algumas coisas que Paulo disse sobre si mes­
mo como apóstolo, algumas coisas que escreveu a Timóteo e Tito sobre
eles, algumas outras coisas que escreveu a eles sobre bispos e diáconos,
algumas coisas que Atos registra acerca dos líderes em Jerusalém e An-
tioquia, salgar a mistura com algumas reminiscências do Antigo Testa­
mento e sair com um pacote bem impressionante como “A Perspectiva
Bíblica do Ministério” .14
M as se tomarmos o Novo Testamento em si e analisarmos seu vo­
cabulário a respeito do ministério, vamos descobrir uma “negação res­
sonante” das pressuposições por trás do conceito de religiosos profissi­
onais. Yoder destaca que “ há um número considerável de ministérios
[ou funções] discerníveis” no Novo Testamento, bem como “uma diver­
sidade em número, nome e relacionamento entre esses ofícios” . Além
disso, “há uma certa prioridade lógica na listagem de apóstolo e profe­
ta, mas não uma hierarquia de valor ... não há insinuação de uma ‘esca­
da’ pela qual o mesmo indivíduo possa progredir ‘para cima’ de um
ofício para outro” .15 Yoder diz:
Vamos levar a sério o alerta de 1 Co 12 contra a tentativa de estabelecer
uma hierarquia de valores entre os vários dons. Esse alerta é o centro da
passagem: que há muitos dons não é a mensagem do capítulo, pois isso se
evidencia por si, pelo menos em Corinto. Toda a preocupação de Paulo é que
se reconheça que todos esses muitos dons vêm da mesma fonte e que todos
são (cada um em seu lugar) do mesmo valor.16
A respeito do vocabulário neotestamentário sobre liderança:
Parece haver um conjunto de três termos usados para designar o mesmo
ofício. “Ancião” deriva da linguagem da sinagoga, “supervisor” (bispo) é
uma descrição funcional e “pastor”, uma palavra figurativa. Os três ter­
mos aparecem como sinônimos em Atos 20 e í Pe 5, e bispo/ancião em Tí
1. Eles constituíam a liderança colegiada da congregação local que gover­
nava a si mesma. Há vários desses homens numa congregação.17
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 95

Quanto ao suposto “ofício” de diácono, Yoder observa que no Novo


Testamento a palavra diakonos normalmente “ significa simplesmente
‘aquele que serve’, sem nenhuma implicação clara de ofício” .18 As pes­
soas, portanto, devem ser extremamente cautelosas em pressupor que o
chamado ofício de diácono era uma função fixa de liderança no Novo
Testamento.
Toda liderança na igreja, desse modo, é baseada em dons espiritu­
ais. Pela Bíblia, ninguém pode simplesmente chegar “ à conclusão de que
carisma e ofício estão em dois níveis, sendo um espontâneo e o outro
fixo, um dinâmico e o outro confiável ... O único meio de definir ‘ofí­
cio’ de tal maneira que não tenha nenhuma relação com ‘dom’ é tornar
uma tarefa tão objetiva, formal, impessoal, que deva e possa ser desem­
penhada por alguém que Deus não tenha preparado para isso” .19
A análise de Yoder mostra o quanto devemos ser cuidadosos para
não impor ao Novo Testamento estruturas de liderança rígidas e imutá­
veis que simplesmente não estão ali. De fato, a descrição neotestamen-
tária da igreja como a comunidade messiânica mina a própria base de
qualquer conceito institucional ou hierárquico e coloca o ministério so­
bre uma base carismática e orgânica. Os ensinos importantes extraídos
do Novo Testamento são: (1) Deus providenciava os líderes necessários,
(2) essa liderança era vista em termos de dons espirituais e (3) havia
grande flexibilidade e fluidez na maneira pela qual essas funções de li­
derança operavam e eram compreendidas. Assim, “em vez de promover
papéis distintos e autosuficientes, a igreja primitiva dava espaço para
uma variedade de funções. O retrato da liderança mais se parece com
uma série de ... círculos sobrepostos do que uma lista de entidades dis­
tintas” .20
Essa flexibilidade e fluidez na terminologia da liderança é confir­
mada por exemplos bíblicos. Filipe, por exemplo, era reconhecido como
alguém que “ servia a mesa” e também como evangelista (At 6.5; 21.8).
Silas, companheiro de Paulo, era um dos “líderes” e também profeta
(At 15.22, 32). A igreja de Antioquia possuía “profetas e mestres” (At
13.1), Os líderes reunidos no Concílio de Jerusalém são várias vezes
chamados de “apóstolos e presbíteros” (At 15); sem dúvida, muitos des­
ses pastores eram pastores e mestres de várias congregações locais. Es­
crevendo à igreja de Filipos, Paulo dirigiu-se “ a todos os santos ... com os
bispos e diáconos” (Fp 1.1). Parece que presbíteros, diáconos e bispos
(supervisores) eram líderes nomeados reconhecidos como portadores
de um ou mais dons de liderança citados por Paulo em 1 Coríntios 12 e
Efésios 4.21
96 A COMUNIDADE DO REI

O ensino bíblico mais claro a respeito da liderança na comunidade


cristã é o fato de que Jesus, como cabeça da igreja, dá a seu corpo os dons
cruciais de capacitação de apóstolo, profeta, evangelista, pastor e mestre
(Ef 4.11). Vamos fazer um breve estudo de cada uma dessas funções.
Apóstolos. Paulo tinha muita consciência de ser apóstolo e do mi­
nistério apostólico em geral. A igreja é “edificada sobre o fundamento
dos apóstolos e dos profetas, tendo Jesus Cristo como pedra angular”
(Ef 2.20). O plano de Deus por intermédio da igreja “foi agora revelado
pelo Espírito aos santos apóstolos e profetas de Deus” (Ef 3.5).
Na igreja primitiva, o apóstolo era uma pessoa reconhecida como
alguém que possuía lugar preeminente de liderança e autoridade. Com
freqücncia, ele desempenhava função chave na evangelização transcul-
tural. Os apóstolos originais, ou seja, os discípulos escolhidos de Jesus,
mais Paulo, eram reconhecidos como pessoas de autoridade especial
por causa de sua proximidade com Cristo; eles o haviam visto e eram
testemunhas de sua ressurreição, embora (de maneira significativa), no
caso de Paulo, isso tivesse ocorrido por visão e por revelação direta, não
por associação física.
Mas será que o apostolado continuou depois do período do Novo
Testamento? Por causa da singularidade óbvia dos apóstolos originais,
alguns têm afirmado que os apóstolos já não existem hoje. Mas essa
conclusão vai de encontro à evidência bíblica e cria uma ruptura muito
brusca entre os apóstolos originais e os líderes eclesiásticos que os se­
guiram.
A palavra apóstolo ou apóstolos ocorre oitenta e uma vezes no Novo
Testamento. Quando examinamos essas ocorrências, emergem algumas
conclusões.
Em primeiro lugar e de maneira mais óbvia, os “ apóstolos” eram os
doze discípulos especialmente escolhidos por Jesus. A palavra ocorre
com esse sentido sete vezes nos Evangelhos, bem como em Atos 1.2 e,
talvez, Judas 17.
Segundo, apóstolos designa os principais líderes da igreja primitiva
no livro de Atos. Em Atos 1, M atias foi escolhido para substituir Judas e
“foi acrescentado aos onze apóstolos” (At 1.26). A freqüente menção a
apóstolos em Atos 1 a 6 (catorze vezes) refere-se de maneira bem clara
aos “Doze” (At 6.2) — aparentemente, os onze originais mais Matias.
Mas a partir de Atos 8, já não podemos ter certeza de que aapóstolos
refere-se apenas aos Doze. Gradualmente, o significado do termo ex-
pande-se, passando a incluir outros líderes que vão surgindo. Com o
tempo, não só Paulo eBarnabé (At 14.1, 14), como também Tiago, ir-
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 97

mão de Jesus (G11.19), Apoio (1 Co 4.9) e Silas (1 T s 2.7) foram chama­


dos de apóstolos. Andrônico e Júnias (Rm 16.7), esta, talvez uma mu­
lher, também parecem ter sido considerados apóstolos.
No livro de Atos, apóstolos no sentido mais amplo de líderes eclesi­
ásticos em geral — não necessariamente restritos aos Doze — aparece
vinte e quatro vezes. A identidade dos “ apóstolos e presbíteros” em Atos
15 não é especificada, e não temos base sólida para afirmar que apósto­
los aqui significa só os Doze, ainda mais se considerarmos a proemi­
nência de Tiago no concílio de Jerusalém (At 15.13).22
Além desses significados, referindo-se aos Doze e depois a um gru­
po em expansão, o dos líderes da igreja, o Novo Testamento também
usa apóstolo num sentido ainda mais amplo, em referência a mensagei­
ros ou missionários. Esse é o caso, por exemplo, em João 13.16, 2 Co­
rindos 8.23 e Filipenses 2.25, os quais trazem apóstolo {apóstolos) no
texto grego.
É de acordo com esse uso que a igreja primitiva fazia do termo que
devemos compreender a designação de apóstolo dada por Paulo a um
dom espiritual (1 Co 12.28-29; Ef 4.11). Não temos garantias, aqui,
para restringir seu significado aos Doze originais.23 Decerto, podemos
reconhecer um apostolado singular que não pode ser repetido naquele
primeiro grupo de apóstolos. M as já nos dias de Paulo havia outros após­
tolos. O que Paulo está indicando em seus escritos não é o grupo origi­
nal dos Doze, mas a função de apóstolo que Deus deu como um aspecto
contínuo da natureza carismática da igreja. Nada no tratamento que
Paulo faz dos dons espirituais dá a entender que estivesse descrevendo
um padrão só para a igreja primitiva. Muito pelo contrário. Para Paulo,
a igreja é um corpo em crescimento preenchido pela graça, e os apósto­
los são parte permanente da vida desse corpo.
É evidente que o Novo Testamento não ensina que o ministério apos­
tólico tenha morrido com a morte dos Doze originais. Por outro lado,
também não há evidência bíblica de que o ministério apostólico foi trans­
mitido por mãos humanas ao longo da história da igreja. Pelo contrá­
rio, as Escrituras ensinam que o Espírito dá à igreja, de modo contínuo
e carismático, a função de apóstolo. Jesus, por seu Espírito, levanta após­
tolos quando e onde necessário.
Os apóstolos, portanto, costumam ser (1) líderes gerais para a igre­
ja (2) cujo lugar e autoridade são reconhecidos em toda a igreja (3) por
causa de uma convicção consensual de que o Espírito de Deus os levan­
tou. Eles são líderes gerais cuja autoridade é baseada no fato de terem
sido comissionados por Deus e na própria fidelidade à verdade revela-
98 A COMUNIDADE DO REI

da, ou seja, a Bíblia. A autoridade deles depende de sua fidelidade como


testemunhas; se deixam de ser testemunhas fiéis da verdade da revelação
divina, deixam de ter autoridade.
Os apóstolos hoje, portanto, são os líderes gerais da igreja, tendo
por responsabilidade a supervisão geral da igreja. Esses são os líderes
que Deus escolhe como testemunhas de sua revelação e guardiães dessa
revelação; líderes responsáveis pela boa ordem da igreja.
Como os apóstolos realmente escolhidos por Deus chegam a ser
reconhecidos e passam a exercer sua função dentro da igreja? Isso le­
vanta a questão da estrutura organizacional de que o Novo Testamento
não trata de maneira direta. Presume-se que uma variedade de padrões
organizacionais seja possível, desde que essas formas não violem justa­
mente os princípios bíblicos que tornam válida e funcional a liderança.
Biblicamente, faz pouca diferença se os apóstolos são hoje chamados
bispos, superintendentes, moderadores, presidentes ou o que for.24 E
importante que a estrutura seja suficientemente flexível e aberta, de modo
que verdadeiros apóstolos possam exercer sua função neotestamentária
(sem dúvida, uma coisa rara em muitas estruturas eclesiásticas). De
modo semelhante, é importante que os meios para selecionar ou confir­
mar apóstolos permitam e incentivem uma sensibilidade à voz do Espíri­
to Santo, para que os escolhidos possam ser de fato os que Deus está
escolhendo.
Deve ser óbvio que não há autoridade inerente no ofício do apósto­
lo, simplesmente porque o apostolado não é um ofício a ser entregue a
uma pessoa escolhida pela igreja.25 O apostolado é uma função, um
dom. Deus não estabeleceu os ofícios de apóstolo, profeta, evangelista e
assim por diante. Isso seria pensar em termos estáticos, institucionais.
Pelo contrário, “seus dons eram que alguns fossem apóstolos, profetas,
evangelistas” . O dom de Deus são pessoas, não ofícios. Essa distinção é
uma salvaguarda para que não se caia em concepções institucionais e
organizacionais, em lugar de concepções pessoais e carismáticas (e,
portanto, bíblicas).26 Por causa dessa natureza carismática do apostola­
do, a autoridade apostólica não pode ser nem conferida nem transferi­
da, a menos que isso seja feito pelo Espírito Santo.27
Profetas. Pelo Novo Testamento e por escritos primitivos do cristia­
nismo, sabemos um pouco da função do profeta na igreja primitiva.28
William Barclay observa: “Os profetas eram itinerantes em toda a igre­
ja. A mensagem deles era considerada não o resultado de reflexão e estu­
do, mas resultado direto do Espírito Santo ... Eles iam de Igreja em
Igreja, proclamando a vontade de Deus conforme Deus lhes dizia” .29
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 99

Evidencia-se, pelo uso que Paulo faz do termo em Efésios e outros tex­
tos, que os profetas, como os apóstolos, eram reconhecidos como de­
tentores de um ministério geral e preeminente em toda a igreja. Num
sentido um pouco mais restrito, a profecia era também um dom exerci­
do por indivíduos dentro da igreja local (1 Co 14.26-40).
Quem são os profetas dos dias de hoje? Muitas vezes, são os chama­
dos líderes carismáticos (no sentido sociológico) que surgem na igreja.
Quase todas as denominações e movimentos possuem em sua história
pessoas inspiradas pelo Espírito que são reconhecidas por todos como
líderes e homens de Deus, mesmo que talvez não tenham nenhum cargo
oficial na igreja. Em geral, não são administradores ou supervisores.
Muitas vezes, tornam-se evangelistas itinerantes e pregadores especiais
na igreja, ou podem fundar organizações ou movimentos especiais den­
tro de igrejas organizadas ou paralelos a elas (por exemplo, movimen­
tos de jovens ou organizações missionárias). Ou podem acabar sendo
convocados para a liderança denominacional como bispos ou executi­
vos gerais. E mais freqüente, porém, o líder carismático ser preterido
nessa escolha para tais funções, por ser independente e imprevisível de­
mais. Ou, se realmente escolhido, ele pode recusar a função por conside­
rá-la muito restritiva. Essas pessoas, se verdadeiros homens de Deus, são
grandes demais para o ofício previamente criado. (Um bom exemplo
contemporâneo disso foi E. Stanley Jones, missionário metodista que
recusou o ofício de bispo.)
Há provisão bíblica, pois, para os chamados líderes carismáticos
“individualistas” que emergem da comunidade cristã. Se forem homens
ou mulheres de Deus genuínos, cheios do Espírito (pois também abun­
dam falsos profetas), podem ser profetas levantados por Deus. O minis­
tério deles será de relacionamento direto com Deus e com a igreja. Te­
rão todo o poder — e toda a possibilidade de serem não convencionais
e imprevisíveis — dos verdadeiros profetas. Também estarão sujeitos
aos perigos do extremismo, já que a mensagem deles vem diretamente
de Deus e a tentação será de falar por si e afirmar estarem falando por
Deus. Em todos esses aspectos, vemos uma relação direta com os profe­
tas do Antigo Testamento.
Portanto, o profeta na igreja pode ser ou não um líder oficial. Isso é
incidental. O profeta é chamado pelo Santo Espírito de Deus, indepen­
dentemente de qualquer posição oficial. Se a igreja tiver discernimento
espiritual, reconhecerá o dom profético e tirará proveito dele.
Como na Bíblia, assim também na igreja: o profeta é instrumento
de Deus que fala diretamente a seu povo (e, talvez, ao mundo) com en-
100 A COMUNIDADE DO REI

corajamento, exortação, alerta ou julgamento, de acordo com a situa­


ção. A validade de sua mensagem não depende da aprovação ou aceita­
ção da igreja. A mensagem só é válida, porém, se estiver em harmonia
com a Bíblia, porque o Espírito de Deus é um Espírito de ordem, não de
confusão. Ele não se contradiz.
Assim, a igreja não escolhe seus profetas. Ela só os reconhece e lhes
dá ouvidos. Ela pode sustentá-los de um modo ou outro. E a manifesta­
ção de profetas verdadeiros na igreja, podemos ter certeza, é um sinal
da operação de Deus entre seu povo, pois ele prometeu levantá-los. Por
que deveríamos ficar espantados quando eles aparecem?
Evangelistas. E surpreendente, mas o termo evangelista é raro no
Novo Testamento. As únicas ocorrências são Efésios 4.11, Atos 21.8
(“Filipe, o evangelista” ) e 2 Timóteo 4.5 (“faça a obra de um evangelis­
ta” ). Por que tão poucas referências? A resposta é simples. Paulo, e a
igreja do Novo Testamento em geral, não considerava a evangelização
um trabalho realizado principalmente por especialistas. A evangeliza­
ção acontecia; era a expressão natural da vida da igreja. Havia pouca
necessidade de exortar as pessoas a evangelizar ou de criar uma classe
especial de evangelistas, porque os cristãos novos iam por toda a parte
“tagarelando” sobre as boas novas acerca de Jesus.
Mas, nesse caso, por que, então, Paulo menciona os evangelistas? E
provável que a resposta esteja no simples fato de que pessoas dotadas
como evangelistas e reconhecidas como tais (em distinção com apósto­
los e profetas com quem, presume-se, tinham muito em comum) haviam
surgido na igreja. Paulo reconhecia que essas pessoas estavam dentro da
eclesiologia de Deus. Normalmente, porém, o crescimento de uma igre­
ja saudável não depende do trabalho de evangelistas, pois a igreja é uma
comunidade de testemunhas. M as uma igreja saudável pode ter seus de­
vidos “especialistas” e usá-los com proveito em certas ocasiões. Essa, ao
que parece, era a situação na igreja primitiva.
Os apóstolos eram também evangelistas (Pedro, Paulo), mas Paulo
refere-se especialmente àqueles cuja função estava limitada de maneira
mais ou menos exclusiva à evangelização. Em particular, contrastando
com os apóstolos, normalmente os evangelistas não tinham a responsa­
bilidade da supervisão geral da igreja, embora a função deles talvez
incluísse a proclamação das boas novas tanto à comunidade cristã e
dentro dela, como aos de fora.30A função principal sempre era a procla­
mação, “levar as boas novas” .
Assim, os evangelistas exercem uma função legítima dentro da igre­
ja, e podemos esperar que Deus levante evangelistas em nossos dias na
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 101

igreja local e, de maneira mais geral, na igreja como um todo. A igreja


deve estar alerta para reconhecer essas pessoas, incentivando e facili­
tando o trabalho delas. Não deve, claro, cair no erro de pensar que só
esses evangelistas têm a responsabilidade da evangelização. Todos os
cristãos testemunham de um jeito ou de outro, e muitos têm dom na
área da evangelização, mesmo que não sejam chamados especificamen­
te de evangelistas. O mais importante é que a própria comunidade cris­
tã, quando é a comunidade do Espírito, seja o evangelista.
Pastores e Mestres. Pode-se pensar neles como um grupo ou como
dois ministérios um tanto distintos; alguns estudiosos os juntam como
pastores-mestres. Na prática, faz pouca diferença, já que essas distin­
ções não são rígidas. Pastorear e ensinar são funções mais ou menos
distintas que, porém, se sobrepõem. E isso, na maioria dos casos, envol­
ve líderes locais cujo ministério é exercido em beneficio da congregação
local e dentro dela.
Não existe nada em Efésios 4 (ou em outra parte do Novo Testa­
mento) que dê a entender que pastor, na igreja primitiva, tivesse alguma
relação com o sentido altamente especializado e profissional que pas­
sou a ter mais tarde, no protestantismo. Efésios 4.11 é, aliás, a única
ocorrência da palavra pastores no sentido de líderes congregacionais,
embora a idéia da congregação como um rebanho que precisa de cuida­
do ocorra em João 21.16; Atos 20.28 e 1 Pedro 5.2. Jesus, claro, é o Bom
Pastor, aquele que vem cumprir a promessa de que “virá um líder que,
como pastor, conduzirá Israel, o meu povo” (Mt 2.6).31
No Novo Testamento, portanto, encontramos não um ofício pasto­
ral como tal, mas simplesmente com a função pastoral. Esse ministério
pastoral é necessário para a edificação e crescimento da vida congrega-
cional (o rebanho). N a congregação local normal (ou seja, bíblica), Deus
levantará aqueles (não apenas um) cujo ministério é pastorear o reba­
nho. Isso é um dom espiritual e uma vocação estratégica, como enfatiza
Paulo em seu importante ensino pastoral em Atos 20.17-38 (observe em
especial o versículo 28).
Pastorear inclui ensinar. Os bons pastores ensinam. O ministério de
ensino foi e é essencial na igreja. Em outros textos, Paulo manifesta sua
preocupação com o ministério de ensino (1 Tm 3.2; 4.11-12; 2 Tm 2.2) e
ele mesmo dedicava tempo ao ensino dos convertidos nas cidades em
que evangelizava (At 20.20, 20.31).
Há muito o que ensinar. Há o ensino doutrinário, que é essencial;
ensino das disciplinas da vida cristã; treinamento para testemunho e
evangelização; instrução quanto à natureza e implicações culturais do
102 A COMUNIDADE DO REI

reino de Deus; e ensino da Bíblia em geral. Tudo o mais que possa ser
ensinado na igreja local, deve ser o currículo central.

O padrão neotestamentário e o nosso


Esses são, pois, os quatro ou cinto ministérios básicos de liderança
e capacitação no Novo Testamento — apóstolos, profetas, evangelistas,
pastores e mestres. São os dons essenciais de Deus para a igreja, a fim de
“preparar os santos para a obra do ministério” , para seu ministério no
mundo à semelhança de Jesus.
Seria ótimo se cada denominação e igreja local dos dias de hoje
tomasse essa lista e a colocasse ao lado de sua estrutura de liderança e,
diante de Deus, fizesse uma comparação. Existe alguma semelhança?
Como a igreja realmente funciona, comparada ao que a Palavra de Deus
diz? A aplicação prática de Efésios 4.11 e 1 Corindos 12.28 é ao menos
possível em nossas igrejas, dada a sua estrutura presente? Se não, o que
Deus quer que façamos? Em alguns casos, a escolha pode realmente
implicar ou uma mudança completa na estrutura organizacional ou um
cancelamento efetivo da Palavra de Deus.
Qual a relação entre essa liderança básica ou dons de capacitação e
os dons de ministério da comunidade cristã em geral? Efésios 4 e 1 Corin­
dos 12 deixam claro: esses ministérios de liderança devem capacitar os
santos para a obra do ministério deles, e essas obras do ministério impli­
cam (de maneira representativa, não exclusiva) o exercício de dons como
cura, profecia, milagres, línguas, socorro, administração e interpretação
de línguas (Ef 4.11; 1 Co 12). O alvo é a edificação da igreja e, por meio
dela, a glorificação de Deus e o cumprimento de seu plano cósmico.
É evidente que esse padrão bíblico de liderança e ministério acima
esboçado não permite uma distinção rígida entre clérigos e leigos. O
Novo Testamento simplesmente não fala em termos de duas classes de
cristãos —■ “ ministros” e “leigos” — como faz hoje a maior parte dos
cristãos. De acordo com a Bíblia, o povo (laos, “ laicato” ) de Deus com­
preende todos os cristãos, e todos os cristãos, pelo exercício dos dons
espirituais, têm alguma “obra do ministério” . Assim, se quisermos ser
bíblicos, teremos de dizer que todos os cristãos são leigos (povo de Deus)
e todos são ministros. A dicotomia clérigo-leigo não é bíblica e distorce
tanto as Escrituras como a prática e o testemunho da igreja. Ela cresceu
como um acidente da história da igreja e, na realidade, sinaliza um des­
vio que a afastou da fidelidade bíblica.
De fato, existia um sacerdócio profissional sagrado distinto nos
dias do Antigo Testamento. M as no Novo Testamento esse sacerdócio
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 103

é substituído por duas verdades: Jesus Cristo é nosso grande sumo sa­
cerdote e a igreja é um reino de sacerdotes (Hb 4.14; 8.1; 1 Pe 2.9; Ap
1.6). A doutrina neotestamentária de ministério repousa, portanto,
não sobre uma pedra fundamental rachada entre clérigos e leigos, mas
sobre três pilares paralelos e complementares: o sacerdócio de todos os
crentes, os dons do Espírito e o serviço no espírito de Jesus.32 Como
comunidade ministerial, a igreja é composta de sacerdotes de Deus que
são servos de Jesus Cristo e dotados pelo Espírito.
Hoje, quase cinco séculos depois da Reforma, ainda é preciso co­
locar em prática todas as implicações da afirmação protestante do
sacerdócio dos crentes. A dicotomia clérigo-leigo é um entulho direto
do catolicismo romano pré-reforma e um retrocesso ao sacerdócio do
Antigo Testamento. Esse é um dos principais obstáculos que impede
que a igreja seja, de maneira efetiva, o agente divino do reino hoje,
porque cria a falsa idéia de que só “ homens santos” , ou seja, minis­
tros ordenados, são realmente qualificados e responsáveis pela lide­
rança e por um ministério significativo. N o Novo Testamento, há dis­
tinções funcionais entre vários tipos de ministérios. M as isso não jus­
tifica uma divisão hierárquica entre “clero” e “ laicato” , nem mesmo o
uso desse tipo de linguagem.
Mesmo hoje, os cristãos vêem constantemente e, muitas vezes, de
maneira inconsciente essa dicotomia na Bíblia. Isso tem-se tornado
grande obstáculo ao entendimento bíblico da igreja. É preciso, aqui,
alguma reavaliação fundamental para recuperar a dinâmica bíblica
da comunidade do Rei.

A função messiânica
A afirmação primitiva do cristianismo de que “Jesus é o Senhor”
deve ser o clamor da igreja hoje. O Messias prometido veio, e a igreja é
tanto sua noiva como seu corpo. É essa nova realidade social, essa “ nova
criação” no mundo, que é chamada para demonstrar pelo Espírito o
caráter e o poder do reino vindouro.
É por isso que a igreja só é o verdadeiro agente do plano cósmico de
Deus quando é a verdadeira comunidade do povo de Deus. Como uma
instituição eclesiástica, a igreja pouco pode manifestar o reino, se é que
pode. M as como a comunidade messiânica funcionando como um cor­
po carismático, ela pode revelar e realmente revela a verdadeira nature­
za do reino e apressa sua vinda.
I

104 A COMUNIDADE DO REI

NOTAS
1John Howard Yoder, "A People in World: Theological Interpretation", em The Concept
o f the Believers' Church, ed. J. L. Garrett Jr. (Scottdale: Herald Press, 1969), p. 259. 0
evangelho é factualmente verdadeiro, à parte da infidelidade da igreja. Mas pode ser
traído e falsificado diante do mundo por desobediência da igreja.
2 André Biéler comenta: "Corpo e alma se equivalem; indivíduos e comunidades se
equivalem. Uma concepção dualista [do homem] e [sua] estrutura é uma divisão falsa
e uma alienação de sua verdadeira constituição. A Bíblia afasta materialistas e espiritu­
alistas. Assim, também, são alheias ao pensamento bíblico a concepção puramente
individualista, que isola o indivíduo da comunidade, ou a abordagem coletivista, que
concede à vida da comunidade uma posição privilegiada sobre o indivíduo". The
Politics o f Hope, trad. Dennis Pardee (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 35.
3 Karl Barth, Church Dogmatics, trad. Geoffrey W. Bromiley (Edinburgh: T. &T. Clark,
1958), IV, 2, p. 627.
4 A Versão Corrigida de Almeida traz: "Cada um administre aos outros o dom como o
recebeu", dando a entender que se trata do dom da salvação, mas o grego emprega
a palavra charisma aqui, e não há um artigo definido (veja a nota 26, abaixo). É
evidente, aqui, que o texto está falando de dons espirituais, não de algo mais geral,
o dom da salvação.
5 Veja o cap. 11, "O Lugar dos Dons Espirituais", em Vinho Novo, Odres Novos. Uma
das melhores e mais equilibradas discussões práticas que vi dos dons espirituais é
Gifts o f the Spirit, Kenneth Kinghorn (Nashville: Abingdon, 1976).
6 O contexto de 1 Corintios 13 deixa muito claro que a afirmação "Mas as profecias
desaparecerão, as línguas cessarão" (1 Co 13.8) refere-se ao fim da história, não ao
cessar dos dons espirituais após a era apostólica, conforme alegam alguns.
7 Díakonon, em Romanos 16.1, pode ser traduzido por "serva" ou "diaconisa" (como
observa corretamente a NVI). É impossível determinar a função exata de Febe. Veja
Kittel e Friedrich, Theological Dictionary o f the New Testament, II, 93.
8 Embora a palavra charisma não ocorra nessa passagem, a idéia de "distribuições do
Espírito Santo" indica que o autor estava falando dos carismas.
9 Há um paralelo notável entre 1 Pedro 4.10-11 e Atos 6.2-4 (onde Pedro bem pode ter
sido o porta-voz). Embora a passagem de Atos seja com freqüência entendida como
"a instituição dos diáconos", o substantivo diácono não ocorre. O que de fato temos
é "o ministério da palavra" (diakonia tou togou, v. 4) e o ministério de "servir mesas"
(idiakonein trapedzais, v. 2). Isso é paralelo à distinção de "se alguém fala... se
alguém serve", em 1 Pedro 4.11.
10 Em anos recentes, a chamada Nova Reforma Apostólica tem enfatizado esses
ministérios carismáticos e, em particular, os papéis dos apóstolos e profetas. Sua
ênfase no suposto oficio e autoridade dos apóstolos e na identificação de apóstolos
específicos hoje, porém, vai além das Escrituras, sendo, portanto, enganosa e po­
tencialm ente perigosa. Veja C. Peter Wagner, ed., The New A po sto lic Churches
(Ventura: Regal Books, 1998), pp. 13-25.
" William Barclay, The Letters to the Galatians and Ephesians (Edinburgh: St. Andrew
Press, 1966), p. 171. Barclay os denomina "oficiais", mas o Novo Testamento não usa
o termo ao falar de apóstolos, profetas ou mestres. Veja também Arthur G. Patzia,
The Emergence o f the Church: Context, Growth, Leadership and Worship (Downers
Grove: InterVarsity, 2001), 152-182.
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 105

'2 Baseado principalmente em Arndt e Gingrich, A Greek-English Lexicon o f the New


Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press,
1957). Observe a discussão em Patzia, pp. 154s., 162-76.
13 Yoder, "The Fullness of Christ", pp. 33-93.
M Ibid., pp. 37-38.
15 Ibid., pp. 38-39.
16 Ibid., p. 39.
,7 Ibid.
18 Ibid., p. 42.
19 Ibid., p. 65.
20 Patzia, p. 182.
21 Essa mesma fluidez de vocabulário aparece no Didaquê (cerca de 150 d em que
apóstolo e profeta são usados de maneira quase que intercambiável e bispos e diáco­
nos são associados com o ministério profético e didático.
22 Observe, também, as referências gerais não específicas em 1 Coríntios 9.5; 15.7; 17.9.
Apóstolos, ao que parece, possui um significado mais amplo que os Doze também em
1 Coríntios 15.3-7. Paulo diz que o Jesus ressuscitado apareceu primeiro a Pedro "e
depois aos Doze" e mais tarde "a Tiago e, então, a todos os apóstolos".
23 Watchman Nee afirmou que embora os doze apóstolos originais tenham sido nome­
ados por Jesus antes da ascensão, outros apóstolos foram designados pelo Espírito
Santo depois do Pentecostes. Assim, apóstolo como dom espiritual em Efésios 4 refe­
re-se não aos Doze, mas aos que Deus designa por meio do Espírito durante a era da
igreja. Veja o cap. 1 de Vida Normal da Igreja Cristã (São Paulo: Livraria Cristã Unida,
1973). B. T. Roberts apresenta uma defesa vigorosa da continuação do ministério
apostólico em Ordaining Women (Rochester, New York: Earnest Christian Publishing
House, 1891), pp. 79-85.
24 A terminologia usada causará diferenças práticas, claro, na maneira pela qual se enten­
de a função do apóstolo. Por esse motivo, talvez seja proveitoso trocar alguns dos títulos
eclesiásticos mais carregados de sentido por títulos mais funcionais (veja nota 26, abaixo).
25 Paulo enfatizou com frequência sua função apostólica e a usou como base de sua
autoridade. Seria fácil concluir com isso que Paulo estava baseando sua autoridade no
fato de deter o ofício de apóstolo. Mas seria uma conclusão enganosa. Paulo baseava
seu direito à autoridade precisamente no fato de ter recebido chamado e comissão
diretos de Deus. Para Paulo, o apostolado não era um ofício que ocupava, mas um
chamado e comissão da parte de Deus, aos quais precisava ser fiel. A autoridade
não era extrínseca, baseada no ofício, mas intrínseca, baseada no chamado e na
obra contínua do Espírito Santo na própria vida de Paulo. Para ele, o apostolado e
a fidelidade contínua eram inseparáveis.
26 A concepção realmente bíblica de ministério é muitas vezes obscurecida em algu­
mas versões da Bíblia, por causa da tradução de algumas passagens. 0 leitor moder­
no deve ter consciência de que a mesma estrutura de poder que lançou a Versão do
Rei Tiago (King James Version), em 1611, condenou no mesmo ano dois dissidentes
à morte pela ameaça que representavam ao sustentar que a igreja devia ser sepa­
rada do Estado e que ela devia ser mais uma comunidade de crentes do que uma
instituição hierárquica. Não admira, portanto, que a Versão Autorizada (Authorized
Version) reflita certas pressuposições institucionais ou hierárquicas que não estão
presentes nos documentos originais. Um exemplo é 1 Timóteo 3.1, em que a Versão
Autorizada fala do "ofício de um bispo". O grego não traz a palavra ofício; simples-
106 A COMUNIDADE DO REI

mente, diz: "se alguém aspira à supervisão'' (episkopes). A New International Version
(em inglês) traduz corretamente "se alguém empenha o coração em ser supervisor", e
a New English Version diz "se alguém aspira à liderança.,.". Supervisão deve ter prefe­
rência sobre episcopado, hoje, já que a tradição eclesiástica deu a bispo um significado
hierárquico completamente alheio ao Novo Testamento (compare com a nota 4).
27 Dizer que Deus deu à igreja a prerrogativa de transferir ou conferir autoridade
apostólica, de modo que um ato de autoridades eclesiásticas é, ipso facto, uma
operação do Espírito Santo, repousa sobre bases bíblicas duvidosas e leva facilmente
ao abuso das funções de liderança.
28 Ben Witherington III, The Acts o f the Apostles: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand
Rapids: Eerdmans, 1998), pp. 632s. Witherington observa que Lucas dá destaque espe­
cial aos lugares do profetas e profetisas em seu evangelho e em Atos.
29 Barclay, p. 172. Veja também Green, Evangelização na Igreja Primitiva, pp. 209-10,
245-47; Eduard Schweitzer, Church Order in the New Testament (London: SCM Press,
1961), p. 197.
30 Kittel e Friedrich, Theological Dictionary o f the New Testament, v. 2, pp. 736-37. Apa­
rentemente, Timóteo não recebeu o dom de evangelista, embora Paulo o tenha exorta­
do a "fazer a obra de um evangelista" como parte do “seu ministério" (2 Tm 4.5). A
evangelização fazia parte de seu ministério, mas não era sua ocupação principal.
31 O tema do pastor e do rebanho também possui ricas raízes no Antigo Testamento,
especialmente nos Profetas (p. ex., Ez 34).
32 Lutero, em seu sermão em Salmos 110.3, relaciona especificamente o sacerdócio de
todos os crentes com os dons do Espírito:
Aqui, o profeta aplica o oficio e o adorno sacerdotais aos cristãos, o povo do Novo
Testamento. Ele diz que seu culto a Deus deve consistir no belo e glorioso sacerdócio dos
que estão sempre na presença de Deus e nada realizam, exceto sacrifícios santos ...
Bem, o que é esse "santo adorno", essas vestes sacerdotais que adornam os cristãos
para que se tornem Seu santo sacerdócio? Nada mais que os belos, divinos e vários dons
do Espírito Santo, conforme S. Paulo (Ef 4.11, 12) e S. Pedro (1 Pe 4.10) dizem, que
foram dados à cristandade para promover o conhecimento e a adoração de Deus, uma
função cumprida preeminentemente pelo ministério da pregação do evangelho ...
... É o Espírito Santo que os adorna em glória e santidade e os veste em Seu poder e com
Seus dons. (Comentário do Salmo 110. Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehman, eds., Lu-
ther Works [Philadelphia: Fortress Press e St. Louis: Concordia Publishing House, 1956-
75], Vol. 13, pp. 294-95.)
Essa ligação entre o sacerdócio dos crentes e os dons do Espírito no pensamento de
Lutero recebeu, relativamente, pouca atenção. Mas, sem essa ênfase, a doutrina de
Lutero quanto ao sacerdócio de todos os santos parece mais estática do que ele mesmo,
aparentemente, concebia. Lutero via o exercício das funções sacerdotais dentro da co­
munidade cristã regida pela presença e pelo ministério vivificante do Espírito Santo.
Observe também os comentários de Lutero sobre 1 Pedro 4.10 em Luther Works, Vol.
30, pp. 123-24.
Em contraste, Calvino raramente menciona o sacerdócio dos crentes, entende o "sa­
cerdócio real" de 1 Pedro 2,9 (versículo chave para Lutero) em termos bem estáticos e,
em particular, em termos de eleição, e sustenta que "os dons estão necessariamente
ligados aos ofícios". A forte ênfase na eleição fez Calvino ver o "ministério da Palavra"
em termos de ofícios divinamente instituídos por um "decreto inviolável". (Veja o co­
mentário de Calvino sobre 1 Pedro 2.1-9 e sobre Efésios 4.11.) Dá-se, portanto, menos
ênfase aos dons do Espírito do que se encontra em Lutero, e a concepção de ministério,
para Calvino, é, portanto, mais rígida e insinua maior distinção entre clero e laicato.
TRES
A INCORPORAÇÃO DA
COMUNIDADE DO REINO
Digo-lhes a verdade: ninguém pode entrar no reino
de Deus, se não nascer da água e do Espírito.
(Jo 3.5)

Onde se reunirem dois ou três em meu nome,


ali eu estou no meio deles.
(Mt 18.20)
I

7
O MANDATO
DO REINO

A própria existência da comunidade crista é um sinal do reino de


Deus. Conforme vimos, a igreja é responsável por andar naquelas boas
obras que Deus preparou de antemão. Ela precisa continuar no mundo
as obras de Jesus Cristo, no espírito daquele que disse: “Meu Pai conti­
nua trabalhando até hoje, e eu também estou trabalhando” (Jo 5.17).
O mandato da igreja, em relação ao reino, é tanto evangelístico
como profético, sem que seja exclusivamente um ou outro. A evangeliza­
ção autêntica é em si profética, e uma voz verdadeiramente profética é
evangelística. A igreja é chamada para ser profeticamente evangelística
e evangelisticamente profética.
Em um sentido, a evangelização são boas notícias e a profecia, más
notícias. A evangelização e a profecia formam as cargas positiva e nega­
tiva do poder espiritual da igreja. A evangelização proclama a oferta de
perdão, nova vida em Cristo e novo estilo de vida em comunidade cris­
tã. A profecia proclama que, mesmo que essa oferta seja rejeitada, Deus
ainda é soberano e por fim estabelecerá seu reino em justiça e julgamen­
to. A evangelização é a oferta de salvação no presente; a profecia é a
garantia do julgamento final.
Há muitas maneiras de ver as tarefas da igreja com respeito ao rei­
no. Podem-se simplesmente alistar os tipos de coisas que a igreja devia
estar fazendo. Ou podem-se considerar as responsabilidades da igreja
em relação ao indivíduo, à família, ao Estado, ao ambiente e à cultura.
Neste capítulo, porém, optei por simplesmente delinear as funções evan­
gelística e profética e, ao mesmo tempo, enfatizar que isso não implica
nenhuma dicotomia, nenhuma ruptura entre as duas.

O mandato evangelístico
Do mesmo modo que a maior parte das figuras que representam a
igreja implica vida, também sugere crescimento ou reprodução. E da
110 A COMUNIDADE DO REI

natureza da igreja crescer e multiplicar-se, assim como o plano de Deus


sempre implicou a ordem: “Sejam férteis e multipliquem-se” (Gn 1.28). A
esse princípio de vida acrescenta-se a urgência da Grande Comissão, as
palavras do Cristo ressuscitado e a energia da obra do Espírito na igreja.
O mandato de proclamação e testemunho é central no plano cósmi­
co de Deus, pois esse plano concentra-se naquilo que Deus está fazendo
pelas pessoas (a redenção que traz salvação eterna e edifica a igreja). E
deve estar igualmente claro que a tarefa evangelística não é mera tarefa
de crentes como indivíduos, mas uma função da igreja como comunida­
de do povo de Deus.
Duas das palavras mais características em Atos são marturein, “ tes­
temunhar” (de onde vem a palavra mártir) e euaggelizesthai, “procla­
mar boas novas” (da qual vem a palavra evangelizar). Essas duas pala­
vras ocorrem de uma forma ou outra mais de vinte vezes em Atos. A
grande preocupação e dinâmica da igreja primitiva era contar as boas
novas acerca de Jesus e da ressurreição e dar testemunho do que haviam
visto, ouvido e experimentado.1
Alguns autores que escrevem sobre a igreja destacam a palavra
kerygma, referindo-se à pregação da igreja primitiva. Evidencia-se,
porém, pelos documentos do Novo Testamento, que a mensagem es­
sencial dos primeiros cristãos era mais que uma fórmula “kerigmáti-
ca” fixa, mais que uma pregação formal. E quase certo que era mais
do que a proclamação, feita pelos discípulos, de uma interpretação
subjetiva e existencial do “evento da ressurreição” . Antes, o kerygma
ou a pregação baseava-se na narração das boas novas acerca da res­
surreição de Cristo, que os primeiros cristãos haviam testemunhado.
Tanto a mensagem clara do livro de Atos como um estudo mais técni­
co de palavras revelam a prioridade do testemunho e da proclamação
do evangelho na igreja primitiva.2
Michael Green afirma, em Evangelização na igreja Primitiva, que
marturia, e não kerygma (testemunho, e não pregação), devia ser consi­
derada palavra característica da evangelização no Novo Testamento.3
Quando os primeiros cristãos proclamavam as boas novas, eram teste­
munhas, e quando morriam como mártires (martures), eram testemu­
nhas. A tarefa evangelística implicava — e ainda hoje implica — teste­
munho por palavra e por vida. Os cristãos primitivos haviam visto e
experimentado (1 Jo 1.1-3) as boas novas; o testemunho ocular deles
formava a base da pregação.
A tarefa evangelística da igreja é proclamar as boas novas de salva­
ção em Jesus Cristo por todo o mundo, fazendo discípulos e edificando
O MANDATO DO REINO 111

congregações, que são comunidades do reino. É cumprir a Grande Co­


missão de Mateus 28.19-20, Marcos 16.15 e Atos 1.8. Ainda que a res­
ponsabilidade evangelística da igreja no plano de Deus não termine com
a tarefa evangelística, ela começa aqui: a realização do propósito de
Deus depende da execução dessa tarefa.
Aqui, há três pontos chaves. Primeiro, a evangelização é a primeira
prioridade do ministério da igreja no mundo. “ O chamado a que homens
e mulheres se convertam, sigam a Jesus e façam parte de sua comunidade
está e sempre deve estar no centro da missão” .4 Isso é verdade por algu­
mas razões: o mandato bíblico claro de evangelização; a centralidade e
necessidade da conversão pessoal no plano de Deus; a realidade do julga­
mento; o fato de que é preciso pessoas transformadas para transformar a
sociedade; o fato de que a comunidade cristã só existe e se expande quan­
do há evangelização. A igreja que falha na evangelização é biblicamente
infiel e estrategicamente míope.
Alguns objetam ao que chamam de “priorização da evangelização”
como algo que trai a integridade do evangelho. Será que a evangelização
realmente deve ser colocada em primeiro lugar? A primeira vocação da
igreja é glorificar a Deus; será que isso não tem precedência mesmo sobre
a evangelização? Em última análise, sim, embora, evidentemente, a ver­
dadeira evangelização glorifique a Deus. Decerto o culto, a doxologia, é a
maior vocação da igreja. Mas o culto autêntico a Deus chama a igreja
com urgência para um testemunho evangelístico no mundo.
A evangelização, claro, pode ser autêntica ou uma negação do evan­
gelho, dependendo da forma pela qual é realizada. Uma evangelização
centralizada exclusivamente na alma ou numa transação “de outro mun­
do” que não acarrete uma diferença real aqui e agora é infiel ao evange­
lho. Uma evangelização de graça barata, que não exija uma verdadeira
aliança presente com Jesus como Senhor, não é verdadeira evangeliza­
ção. Uma evangelização verdadeira leva a um culto verdadeiro e a um
discipulado à semelhança de Cristo — uma concentração em Deus e
em seu reinado em todas as suas dimensões.
Precisa-se do tipo de evangelização radical que chame as pessoas a
Jesus Cristo e seu corpo e à identificação com as pessoas pelas quais
Jesus mostrou interesse. E preciso que homens e mulheres tenham os
pecados perdoados; que nasçam de novo pelo poder regenerador do Espí­
rito Santo. M as eles precisam saber que essa regeneração significa leal­
dade a Jesus como Senhor tanto quanto como Salvador. A evangelização
deve envolver, diz Gilbert James, “uma nova união dos aspectos pessoais
e sociais da experiência cristã que enfatiza uma obediência total a Cris-
112 A COMUNIDADE DO REI

to como Senhor em todas as categorias da vida” .5


Segundo, a evangelização é essencialmente testemunho. Ou seja, os
vários elementos que perfazem a evangelização brotam da experiência
do que Deus faz em Cristo e na igreja e por meio do encontro com ele
em sua Palavra. Evangelização é dar testemunho, de várias maneiras e
por vários meios, do que Deus tem falado e feito.
Dizer que a evangelização é essencialmente testemunho não é des­
considerar ou negar a proclamação verbal de uma mensagem específica
com conteúdo específico. Antes, é enfatizar que a evangelização é tanto
a pregação das boas novas como a demonstração das boas novas.
Esse testemunho significa testificar do que Deus tem feito na histó­
ria e, de maneira suprema, na vida, morte, ressurreição e reinado presen­
te de Jesus Cristo. É a proclamação e demonstração da libertação trazi­
da por Jesus. Essa libertação é, acima de tudo, espiritual e moral: ho­
mens e mulheres oprimidos são libertos do poder do pecado e levados à
comunhão com Deus e com outros crentes fiéis. E também social e polí­
tica, embora não no sentido de exigir ou justificar uma ideologia políti­
ca específica. Por ser uma realidade coletiva social, a igreja (quando fiel
ao evangelho) é um fato político e também um desafio político.6
Terceiro, o testemunho é uma função da igreja como comunidade.
Se o Novo Testamento nos mostra Pedro e Paulo viajando para pregar o
evangelho, também nos apresenta um retrato de comunidades cristãs
vitais que serviam como fonte e verificação da proclamação do evange­
lho. Os evangelistas do Novo Testamento eram testemunhas verbais fi­
éis, principalmente porque tinham o respaldo de comunidades cristãs
que eram testemunhas fiéis por meio de sua vida comum e sua ação no
mundo. Testemunho e comunidade seguem juntos. Um conceito de evan­
gelização que vê indivíduos isolados disseminando independentemente
a Palavra pelo mundo, sem considerar a vida e o testemunho da comu­
nidade cristã, é deficiente e nocivo. A evangelização ocorre pela vida de
uma comunidade que testemunha (Jo 13.35).

A evangelização baseada na igreja


Se a visão da igreja apresentada ao longo deste livro é válida, então a
evangelização bíblica deve ser uma evangelização fundamentada na igre­
ja. Ou seja, a evangelização deve provocar o crescimento da igreja, e a
vida e o testemunho da igreja devem produzir um testemunho fiel do rei­
no. Nesse sentido, a igreja é o agente e também o alvo da evangelização.
A evangelização centrada na igreja é a evangelização que edifica a
igreja. Ela brota da vida e do testemunho da comunidade cristã e resul-
O MANDATO DO REINO 113

ta no crescimento e reprodução da comunidade num processo contínuo,


um círculo contínuo.
Os defensores do crescimento da igreja têm criticado com veemên­
cia as concepções de evangelização que priorizem ou favoreçam o cres­
cimento da igreja. Falando da “evangelização por presença” e da “evan­
gelização por proclamação” , Wagner insiste que nem uma nem outra é
adequada, pois a evangelização deve incluir persuasão. A presença cris­
tã deve ser a base da proclamação cristã, e as duas juntas persuadem as
pessoas a chegar a Cristo:

PRESENÇA PROCLAMAÇÃO PERSUASÃO

A evangelização bíblica preocupa-se com frutos; preocupa-se com a


colheita, não só com a semeadura. Dessa perspectiva, o alvo máximo
da evangelização é fazer discípulos.7
M as seria suficiente dizer que o alvo maior da evangelização é fazer
discípulos? Muitos evangelicais têm uma visão muito estreita do disci-
pulado, considerando-o apenas como uma questão de ganhar e nutrir
indivíduos convertidos e não como algo que se concentra em edificar
uma comunidade de discípulos do reino. Embora, numa concepção es­
treita, fazer discípulos possa implicar a formação e edificação da comu­
nidade cristã, isso fica só implícito, não explícito.
Um entendimento bíblico adequado da igreja requer um passo a
mais: o alvo da evangelização é a formação da comunidade cristã.8 E
fazer discípulos e, depois, formar com esses discípulos as células vivas
do corpo de Cristo, novas expressões da comunidade do povo de Deus.
A evangelização baseada na igreja preocupa-se, portanto, com a propa­
gação (no sentido fundamental de reprodução ou multiplicação por
geração), bem como com a persuasão. Assim, a evangelização baseada
na igreja pode ser ilustrada de maneira mais completa pelo seguinte
diagrama:

PRESENÇA PROCLAMAÇÃO ^ PERSUASÃO PROPAGAÇÃO

Nesse processo, a propagação ou reprodução realimenta um círcu­


lo contínuo que, com o poder do Espírito Santo, faz da igreja um orga-
114 A COMUNIDADE DO REI

nismo vivo dinâmico. O alvo da evangelização, portanto, é a formação


da comunidade cristã, a koinonia do Espírito Santo. Isso não é uma defi­
nição total de evangelização, porque não inclui os muitos motivos e mei­
os possíveis implicados. Pode haver vários motivos legítimos para evan­
gelizar, sendo o principal o amor a Deus e às pessoas. Ainda assim, o alvo
sempre deve ser a formação da igreja bíblica. Isso é necessário para que
se alcance o verdadeiro alvo maior da evangelização: a glorificação de
Deus.
Se novas congregações cristãs estão sendo formadas, então todos os
outros alvos legítimos da evangelização também estão sendo alcança­
dos: os cristãos estão presentes; eles estão proclamando; conversões es­
tão ocorrendo; discípulos estão sendo formados. M as se algum desses
passos preliminares é tomado como alvo principal, o círculo bíblico de
crescimento pode ficar incompleto. Homens e mulheres podem ser ge­
nuinamente convertidos e até ensinados a ser discípulos, mas se não for­
mam a comunidade do povo de Deus, o plano de Deus para a igreja como
agente de evangelização permanece inatingido.
O crescimento da igreja, pois, devidamente compreendido, tem li­
gação direta com o mandato evangelístico da igreja. Vamos estudar a
função profética da igreja. M as também precisamos observar a respon­
sabilidade profética da igreja.

Sal, luz e ovelhas entre lobos


Em sua vida e ensinos, Cristo mostrou de maneira concreta os valo­
res do reino de Deus. O Sermão do Monte conta-nos como é o reino de
Deus, os tipos de valores e relacionamentos que o distinguem.
O efeito prático e a importância dos ensinamentos do reino anuncia­
dos por Cristo são, com muita freqüência, colocados em quarentena por
dois erros. Um deles diz que as palavras de Cristo são exclusivamente
para o reino estabelecido de maneira definitiva no futuro e, portanto, não
se aplicam à igreja hoje, exceto para mostrar como será (ou devia ter
sido) o reino. Esse tipo de dispensacionalismo deve ser rejeitado como
algo não bíblico. Isso tem o mesmo efeito que eliminar por completo tais
passagens da Bíblia e repousa numa interpretação altamente seletiva. São
aos próprios ensinos, que se nos defrontam como algo não prático ou ina­
plicável, que a igreja deve prestar a máxima atenção!
O outro erro diz que o Sermão do Monte trata da ética pessoal, mas
não da ética social; portanto, a igreja precisa procurar em outro lugar
(ou em outros textos bíblicos, ou na “análise científica da luta de clas­
ses” ou em algum outro mestre) sua orientação em questões sociais e
O MANDATO DO REINO 115

políticas. Essa idéia repousa numa falsa premissa e numa falsa dicoto­
mia. O Sermão do Monte, como os ensinos de Jesus em geral, é alta­
mente social (bem como econômico e político), se for alguma coisa. Em
Jesus, não há dicotomia entre as dimensões individual e social. A comu­
nidade cristã é um fato social, e no Sermão do Monte Jesus destaca as
qualidades cultivadas por essa comunidade. “A pessoalidade que ele pro­
clama como um chamado de cura e perdão para todos está integrada na
novidade social da comunidade de cura” .9
Portanto, Jesus mostra como é o reino de Deus, do que se trata. A
missão da igreja é encarnar e demonstrar os valores que ele ensinou. A
igreja deve ser um sinal do reino no mundo.
Jacques Ellul define a função do cristão no mundo em termos de três
figuras usadas por Cristo: sal da terra, luz do mundo eovelha entre lobos.10
Cada uma dessas figuras apresenta uma função específica da igreja.
O sal sugere a função preservadora da igreja. Como sal, a igreja é um
sinal da aliança entre Deus e seu povo (Lv 2.13). A igreja, na relação de
aliança com Deus, leveda a sociedade e suas estruturas, preservando-as
da morte e freando o ímpeto louco do mundo rumo à autodestruição. E
Cristo que, momento a momento, sustenta a criação decaída (Hb 1.3; Cl
1.17), e em seu próprio nível a igreja participa dessa obra de sustentação.
Como luz, a igreja é um meio de revelação aos homens. A igreja não
possui revelação em si mesma, claro; mas é “uma comunidade sob a
Palavra” . Ela não só deve viver em fidelidade à Palavra; sua função é
também fazer a luz da Palavra brilhar sobre o mundo e mostrar a verda­
deira natureza dos problemas do mundo. A igreja só pode fazer isso
porque primeiro recebeu a Palavra de Deus e obedeceu a ela. Aqui, a
função do cristão vai além da preservação: “Ele revela ao mundo a ver­
dade acerca de sua condição e testifica a respeito da salvação da qual é
um instrumento”.11
Por fim, a igreja vive como ovelha em meio a lobos. Isso sugere a
demonstração, na carne, da realidade do reino. Cristo é o Cordeiro de
Deus, e seu pequeno rebanho, a igreja, entra no reino pela mesma porta
pela qual Jesus teve de passar. O sacrifício de Jesus foi único e final, mas
“ a vida colocada no altar” é o princípio ético permanente para a igreja.
Nesse sentido, a única ética cristã verdadeira é a ética da crucificação.
Ellul explica:
N o mundo, todos querem ser “lobo " e ninguém é chamado para desempe­
nhar a parte da “ovelha ” , M as o mundo não pode viver sem esse testemu­
nho vivo de sacrifício. É por isso que é essencial que os cristãos tenham
muito cuidado para não ser “lobos” no sentido espiritual — ou seja,
116 A COMUNIDADE DO REI

pessoas que tentam dominar os outros. Os cristãos devem aceitar a do­


minação de outras pessoas e oferecer o sacrifício diário da própria vida
que é unido ao sacrifício de Jesus Cristo.12
Isso não significa, de maneira alguma, que a igreja deva aceitar a
dominação dos homens em relação às mulheres, seja na igreja, seja na
sociedade. Os homens cristãos vivem “a vida colocada no altar” ao ele­
var e servir as irmãs cristãs, demonstrando uma virtude crucial do rei­
no. As mulheres cristãs demonstram a ética do reino não ao servir, mas
também ao exercer de maneira livre e ousada os próprios dons na causa
de Cristo, o que também é um tipo de sacrifício. A igreja como comuni­
dade vive como ovelha entre lobos e recebe poder para fazer isso à medi­
da que pratica a submissão mútua, o serviço mútuo e o encorajamento
mútuo dentro do corpo (Ef 5.21; Jo 13.34-35; Rm 12.10, 15.7; Hb 3.13,
10.25). E as muitas passagens do Novo Testamento que tratam da mu-
tualidade aplicam-se inclusive e, talvez, particularmente, a relaciona­
mentos entre homens e mulheres, bem como a interações entre ricos e
pobres, negros e brancos, “senhores” e “servos” . E só por meio de prá­
ticas de “mutualidade” como essas que a igreja realmente se torna a
comunidade servil do Rei na sociedade.

A função profética
Esses comentários levam à discussão da função profética da igreja.
Como a igreja é profética e também evangelística? A igreja cumpre sua
vocação profética de pelo menos quatro maneiras.
1. A igreja é profética quando cria e sustenta uma comunidade re­
conciliada e reconciliadora de crentes (2 Co 5.16-21; Cl 1.21-23; Fp 2.1-
11; Ef 2.1-22). Quando isso ocorre, a evangelização assume dimensões
proféticas. A reconciliação com Deus deve ser demonstrada por uma
reconciliação genuína dentro da comunidade cristã e por um ministério
contínuo de reconciliação terapêutica no mundo.
Isso significa que em cada assembléia cristã local a reconciliação
deve ser mais que uma teoria e mais que uma transação espiritual invi­
sível. A reconciliação deve ser real e visível. A exploração racial e eco­
nômica e todas as formas de elitismo (inclusive a de um clero profissio­
nal) devem ser biblicamente combatidas. Divisões profanas no corpo de
Cristo devem ser consideradas pecado e mundanismo (1 Co 3.3-4). Igual­
mente, a igreja local deve trabalhar para promover a plena reconcilia­
ção entre cônjuges, pais e filhos, empregador e empregado, ao descobrir
alienação e discórdia nesses relacionamentos (Ef 5.1 - 6.9).
A igreja é profética quando cria comunidades que transcendem de
O MANDATO DO REINO 117

maneira visível as divisões que existem na sociedade e resultam do racis­


mo, da marginalização econômica e social ou de outras formas de injus­
tiça e opressão. Igrejas fiéis rejeitam a noção de que a igreja deve ser
formada de “ módulos homogêneos” para acelerar o seu crescimento. O
evangelho do Novo Testamento convoca a igreja para ser uma comuni­
dade de reconciliação visível. Como observa René Padilla, os primeiros
apóstolos “procuravam construir comunidades em que judeus e gentios,
escravos e livres, pobres e ricos pudessem cultuar juntos e aprender o
significado de sua unidade em Cristo desde o início, embora com fre-
qüência tivessem de lidar com dificuldades que surgiam das diferenças
de formação ou nível social entre os convertidos”. A igreja primitiva
“não só crescia, como crescia ultrapassando barreiras culturais” . E níti­
do que os apóstolos “jamais vislumbraram a possibilidade de formar
igrejas modulares homogêneas, que expressariam, posteriormente, a uni­
dade em termos de relacionamentos com outras igrejas. Esperava-se que
cada igreja retratasse a unidade de seus membros, independentemente
de suas diferenças raciais, culturais ou sociais” .13 Com base em estudos
no Novo Testamento, Padilla conclui corretamente:
A ruptura de barreiras que separam as pessoas no mundo era considerada
um aspecto essencial do evangelho, não uma simples consequência dele. A
evangelização, pois, implicava um chamado para incorporação numa nova
humanidade, que incluía todos os tipos de pessoas. A conversão nunca era
uma experiência meramente religiosa; era também um meio de tornar-se
membro de uma comunidade em que as pessoas encontrariam a identida­
de em Cristo e não na raça, no nível social ou no sexo. Os apóstolos
concordariam com o dito de [Edmund] Clowney de que “o ponto em que
as barreiras humanas são ultrapassadas é o ponto em que o crente é unido
a Cristo e a seu povo” .14
Por esse motivo, a teoria de crescimento da igreja que defende o “mó­
dulo homogêneo” é inaceitável como estratégia intencional, ainda que
possa ser útil no entendimento da dinâmica do crescimento da igreja em
alguns contextos e no fato de nos lembrar que devemos levar a sério a
função importante da etnia, da língua e de outras dinâmicas culturais.15
Por definição, todas as comunidades precisam ter algum grau de
homogeneidade para que existam. O evangelho, aliás, possui seu pró­
prio princípio de homogeneidade: chama-se reconciliação em Cristo.
Dentro da igreja, o grau de homogeneidade e diversidade irá, é claro,
variar de um lugar para outro, dependendo do contexto cultural, confor­
me vemos no Novo Testamento.16Mas o ponto chave da vida em comuni­
dade, o fio que mantém unida a igreja (se ela for fiel ao evangelho), é a
reconciliação por meio de Jesus Cristo. Baseadas nessa reconciliação,
118 A COMUNIDADE DO REI

pessoas de situações sociais diversas são unidas numa comunidade, um


corpo. Essa unidade na diversidade é um aspecto crucial e singular da
comunidade do Rei.17Nesse sentido, a homogeneidade da igreja deve ser
sua diversidade. O “princípio homogêneo” chave que junta cristãos di­
versos em sua unidade em Cristo, e a marca chave de uma igreja fiel na
maioria dos contextos, é sua diversidade.
Hoje, há alguns sinais promissores. Um número cada vez maior de
congregações demonstra que igrejas heterogêneas multiétnicas podem
crescer de maneira saudável e se reproduzir, como nos dias da igreja
primitiva.18 Dado o caráter bíblico do reino de Deus, fica claro que a
criação de comunidades reconciliadas e reconciliadoras desse tipo é uma
chave para o testemunho profético da igreja.
Essas comunidades de reconciliação encontram-se em tensão ativa
com a cultura ao seu redor. As diferenças e a distância entre a comuni­
dade cristã e a comunidade humana maior varia em cada tempo c lugar,
dependendo da dimensão que assumem a impiedade e o domínio de Sata­
nás na cultura. À medida que a sociedade torna-se mais ímpia, a igreja
deve ver cada vez mais a si mesma e a sua estrutura como uma contra­
cultura. Isso é necessário para sua própria fidelidade ao evangelho e
para ter alguma função verdadeiramente profética no mundo. Em boa
parte do mundo, a igreja está entrando numa era em que precisa, cada
vez mais, assumir as marcas da contracultura.’9
2. A igreja é profética quando reconhece e identifica o verdadeiro
inimigo (Mt 10.28; Lc 12.4-5; Ef 6.12; Rm 8.38-39; 1 Co 15.26; Ap 12.9;
20.2,14). O truque de Satanás é apontar falsos inimigos e postular alter­
nativas falsas. Os homens, em sua cegueira causada pelo pecado, seguem
com avidez, pois estão simplesmente muito dispostos a acreditar que o
verdadeiro vilão é alguma outra pessoa (não eles mesmos) e que o verda­
deiro poder é alguma força impessoal ou processo histórico (sina, desti­
no, progresso, tecnologia, dialética — ou até a “vontade de Deus” num
sentido impessoal, abstrato) fora de nosso controle. A reação de Adão e
Eva no Jardim após a Queda ilustra esse empurra-empurra moral.
O verdadeiro inimigo do homem é Satanás e os “principados e potes­
tades” sob seu controle (Ef 6.12). A verdadeira libertação sempre signi­
fica, antes de tudo, romper a escravidão do pecado no nível pessoal pelo
poder de Jesus Cristo. “Nele temos a redenção por meio de seu sangue, o
perdão dos pecados, de acordo com as riquezas da graça de Deus” (Ef
1.7). Isso significa que os indivíduos são “ revividos” depois de estar
“mortos em suas transgressões e pecados” (Ef 2.1). A salvação começa
aqui: essa é uma porta estreita indispensável que Satanás deseja bloque-
0 MANDATO DO REINO 119

ar, pois é aqui que o homem morre para si mesmo, repudia Satanás e
reconhece Deus como o soberano e Jesus Cristo como o único caminho
para Deus e, assim, para o reino de Deus (At 4.12).
Satanás quer apresentar um atalho para o reino que passa ao largo
da cruz e o tira do pedestal de arquiinimigo. Ele mantém perpetuamen­
te diante da igreja a mesma tentação que apresentou a Jesus: “Tudo isto
te darei se te prostrares e me adorares” (Mt 4.9). A resposta de Jesus é a
ordem permanente para o povo de Deus: “Adore o Senhor, o seu Deus, e
só a ele preste culto” (Mt 4.10).
A tentação de aceitar deuses substitutos e satãs falsificados está sem­
pre perante a igreja. Em vários períodos da história, a igreja tem sido
enganada, guerreando contra arquiinimigos falsos: turcos, sarracenos,
insubordinação à hierarquia, rebatismo, índios, judeus, negros, bran­
cos, nazismo, comunismo, socialismo, burguesia, capitalismo, imperia­
lismo, terrorismo. Em nome da oposição a esses inimigos, os cristãos se
dispõem a levar outros à morte. Quando a igreja aceita a definição de
inimigo dada por Satanás, também logo adota as táticas de Satanás.
A igreja deve ver com clareza suficiente a identidade do verdadeiro
inimigo e também discernir como e onde Satanás está agindo hoje. Sa­
tanás trabalha em estruturas sociais, ideologias, movimentos e pessoas.
M as a igreja deve ver o inimigo por trás do inimigo para evitar falsas
alternativas e uma falsa definição do problema. Ela não pode reduzir a
fé a uma ideologia — mesmo que uma ideologia religiosa (um dos tipos
mais perigosos) — e, com isso, comprometer o próprio evangelho.
Falsos inimigos induzem soluções falsas que, em geral, são a imagem
reversa do suposto culpado. Assim, a igreja cai numa cilada, sendo le­
vada a lutar no campo inimigo com as armas dele.
E muito freqüente a igreja deixar o mundo definir a natureza da
batalha. Se o comunismo ou o socialismo são vistos como o inimigo, os
cristãos são tentados a se dedicar sem reservas à livre iniciativa. Se o
inimigo é o “capitalismo dependente e o neocolonialismo”, os cristãos
tornam-se reféns da ideologia neo-marxista. Se o adversário é a globali­
zação, os crentes podem se tornar isolacionistas ou nacionalistas. Se o
perigo é um ponto da doutrina, os cristãos transformam a ortodoxia
num cassetete; se é um comportamento específico, a conformidade tor­
na-se a camisa-de-força.
A igreja deve sempre aceitar a definição que a Bíblia dá ao proble­
ma do homem e a identificação que ela faz do inimigo. A Bíblia deixa
claro que “o último inimigo a ser destruído é a morte” (1 Co 15.26). A
identificação desse inimigo pode ser um teste para a igreja. Todas as
120 A COMUNIDADE DO REI

ideologias, instituições, homens e movimentos são impotentes diante


da morte. A igreja tem o alvo certo apenas quando sua guerra e luta
levam à vitória sobre a morte. “ Que tipo de salvador ou deus seria
alguém que não pode ou não quer salvar-nos da morte, do pecado e do
inferno?” , escreveu Martinho Lutero. “ O que o Deus verdadeiro pro­
mete e cumpre deve ser algo grande” .20 Se a igreja enxergar com clare­
za e agir com fidelidade, participará da vitória de Cristo sobre a morte
literal, física, e também obterá muitas vitórias para o reino ao longo
do caminho. M as se for enredada para lutar contra inimigos falsos,
perderá seu poder redentor e ficará impotente diante das portas da
morte.
3. A igreja é profética quando renuncia à definição e à pratica
mundana de poder (Mt 20.20-28; 23.1-12; Mc 9.35-37; Lc 9.46-48;
22.24-27; Jo 13.12-17; Fp 2.1-11; 1 Co 1.18-31). Jesus falou de poder,
mas insistia que seus seguidores vissem e usassem o poder de maneira
diferente da maneira do mundo.
Das passagens alistadas acima, as duas de Mateus (20.2-28; 23.1-
12) devem ser examinadas com cuidado. Em Mateus 20.25-28, em res­
posta ao pedido de Tiago e João, que queriam poder superior no reino
vindouro, e à reação dos outros discípulos a esse pedido, Jesus disse:
Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas
importantes exercem poder sobre elas. N ão será assim com vocês. Ao
contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser ser­
vo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do
homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida
em resgate por muitos.

Superficialmente, parece que o problema, aqui, é o anseio de T ia ­


go e João por uma posição que não lhes pertence de maneira legítima.
M as Jesus vai mais fundo, explorando o centro do problema. O con­
ceito mundano de poder não deve operar dentro da igreja. “Não será
assim com vocês.” O poder na igreja não é uma questão de posição,
hierarquia ou autoridade: é uma questão de função e de serviço. A
grandeza de um cristão não se mede por ofício, posição, graus acadê­
micos ou reputação, mas de acordo com a maneira de a pessoa agir
como servo.
Na política, é diferente. Na política, “pessoas importantes exer­
cem poder” . M as não na igreja. Com uma declaração desconcertante,
Jesus rejeita o modelo político para a igreja. Em Mateus 23.1-12, Jesus
também rejeita o modelo hierárquico religioso. Os líderes religiosos,
como os políticos, exercem autoridade. M as não praticam o que pre-
O MANDATO DO REINO 121

gam. Eles estão preocupados com status, posição e títulos. M as Jesus


provocou consternação quando disse:
M as vocês não devem ser chamados ‘rabis’; um só é o Mestre de vocês, e
todos vocês são irmãos. A ninguém na terra chamem ‘p ai’, porque vocês
só têm um Pai, aquele que está nos céus. Tampouco vocês devem ser cha­
mados ‘chefes’, porquanto vocês têm um só Chefe, o Cristo. O maior
entre vocês deverá ser servo. Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar
será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exalta­
do.'4 (Mt 23.8-12)

Jesus mostra que a mentalidade política de Mateus 20.25 fora assi­


milada pelos líderes religiosos estabelecidos. Ele a rejeita para a igreja.
Status e autoridade baseados em posição hierárquica são totalmente
estranhos ao tipo de comunidade formada por Jesus.
Seria, talvez, possível alegar que Jesus está aqui apenas ensinando
humildade e não dando uma base fundamentalmente diferente para os
relacionamentos? Na verdade, não. O significado notório das declara­
ções de Jesus nas duas passagens sugere algo mais fundamental: o servi­
ço é o único modelo de ministério e relacionamentos entre os seguido­
res de Jesus. E se esses ensinos valiam para os Doze, valem para nós.
Eles expressam o desejo de Deus para a comunidade cristã nos dias en­
tre a primeira e a segunda vinda de Jesus.
O que realmente Jesus está rejeitando aqui? Está rejeitando todo
poder baseado em posição e status e não em caráter cristão e semelhança
de Cristo? A própria idéia é escandalosa para o mundo, pois o mundo diz
que poder e posição são sinônimos e que o alvo do poder é o controle.
Jesus diz que o alvo do cristão é servir os outros e glorificar a Deus, e o
caminho para esse serviço passa pela cruz. Esse é o verdadeiro poder, por
mais tolo que pareça ao mundo.
O mundo está iludido. Ele crê que o poder real é uma questão de
política. Como nos lembra Jacques Ellul, “Há um tipo de nuvem de
confusão envolvendo a política, uma obsessão política de acordo com a
qual nada tem significado ou importância à parte da intervenção políti­
ca e, em última instância, todas as questões são políticas” .22Essa supos­
ta importância máxima da política é a “ ilusão política” de que a igreja
torna-se presa. “Portanto, rejeitamos toda superestimação de decisões
políticas, toda idealização de qualquer regime político...”23 Isso, por­
que a política é relativa e provisória e, pela própria natureza, tende a
postular questões relativas em termos absolutos.
A igreja deve rejeitar a tentativa de fazer da política ou do Estado
algo supremo ou sagrado. Ela deve renunciar às armas políticas em favor
122 A COMUNIDADE DO REI

da armadura de Deus em Efésios 6.10-20. Essa passagem mostra-nos as


armas da igreja e, por contraste, as do mundo. As armas declaradas da
igreja são a verdade, a justiça, o evangelho da paz, a fé, a salvação, a
Palavra de Deus e a oração. Para cada uma delas o mundo possui sua
distorção demoníaca.
Em lugar da verdade, o mundo brande a propaganda. A propaganda
é a verdade distorcida para fins políticos ou lucro econômico. Na guerra
secular, a verdade não é sagrada, mas um mero instrumento a ser usado.
Mas na igreja, não pode ser assim! É preciso que haja apego irrestrito à
verdade em todos os sentidos. Não pode haver concessões nesse ponto,
pois Deus é o Deus da verdade e Jesus Cristo é a verdade (Jo 14.6).
No lugar da justiça ou retidão, o mundo coloca a violência e a opres­
são — e as chama de justiça. N a guerra, a justiça é a vítima em quase
todos os sentidos. Igrejas fiéis perseguem a justiça definida em termos
bíblicos e rejeita com firmeza toda violência, manipulação e injustiça.
Em vez do evangelho da paz, o mundo prega o evangelho do poder.
A liberação torna-se mera luta pelo poder, quando o poder político é
tomado da turma do mal e dado à turma do bem. A igreja, porém, deve
manter compromisso com o poder do evangelho, não com o evangelho
do poder. A arma da igreja é pregar as boas novas acerca do shalom que
Cristo traz — paz com Deus, reconciliação entre as pessoas e harmonia
em toda a criação de Deus. A igreja renuncia ao evangelho de poder,
considerando-o ilusório e totalmente ineficaz.
No lugar da fé, o mundo cria a ideologia. Ideologia é uma falsa fé
que leva a um compromisso total com falsos deuses (o Führer, o Estado,
a empresa, o sucesso ou a própria ideologia). O mundo reconhece o
valor da fé: a fé é funcional. Ela é indispensável para a guerra. E, com
isso, a fé torna-se uma técnica, apenas um meio para um fim, o instru­
mento da ideologia. Para a igreja, “o escudo da fé” significa compro­
misso total com Jesus Cristo e dependência dele (não de algum “ismo” ,
nem mesmo do “cristianismo” ). O relacionamento pessoal com o Jesus
vivo e libertador é a melhor defesa contra a ideologia.
Em lugar da salvação, o mundo coloca uma falsa utopia restrita a
este mundo. O mundo seculariza a escatologia cristã e depois sacrali-
za o resultado. Ele define um falso reino de Deus, moldado em termos
políticos e econômicos, e depois eleva esse alvo ao nível de bem abso­
luto. Mas a igreja insiste no significado bíblico pleno da salvação e
numa escatologia plenamente bíblica, uma reconciliação final que une
o céu e a terra (At 3.21; Ap 3.12; 21.2-3) e molda nossa maneira de
viver e agir hoje.
O MANDATO DO REINO 123

No lugar da Palavra de Deus, o mundo fabrica suas próprias fontes


humanas de revelação. Na maior parte das vezes, trata-se de ciência,
tecnologia, filosofia, o mercado, a experiência pessoal ou um falso mes­
sias (seja político, seja religioso). A igreja não crê na análise científica
ou em avanços tecnológicos, exceto se for possível provar que estejam
em harmonia com a Palavra encarnada e a Palavra escrita. Ela não de­
posita confiança em sentimentos pessoais e impressões íntimas, a me­
nos que tenham sido testados e corrigidos pela Palavra de Deus. A Pala­
vra de Deus que concede vida e discernimento deve sempre ser a fonte
máxima de revelação da igreja.
No lugar da oração, o mundo coloca a ação efetiva. Para o mundo, a
oração é uma fuga e um ópio para manter as pessoas longe daquilo que
é realmente importante. M as a igreja renuncia a essa concepção falsa e
insiste que, de acordo com a Palavra de Deus, a oração é uma ação
efetiva.
A igreja deve distinguir-se por uma confiança total e exclusiva na
armadura de Deus. Para o mundo, isso parecerá fraqueza e loucura.
“ Mas Deus escolheu o que para o mundo é loucura para envergonhar os
sábios, e escolheu o que para o mundo é fraqueza para envergonhar o
que é forte” (1 Co 1.27). O evangelho e a igreja são fracos precisamente
onde o mundo procura força. Esse é o padrão que Jesus Cristo deixou
para nós. Essa renúncia ao poder mostra o mistério e absurdo do reino
de Deus e é verdadeiramente profética. Esse é o poder da igreja e a fra­
queza do mundo.
A igreja não tem “ sucesso” superando o mundo, mas sendo fiel a
um cálculo totalmente diferente, baseado na maneira de Deus agir por
meio de Jesus Cristo, pelo Espírito. Uma igreja verdadeiramente profé­
tica compreende, nas palavras de Howard Ydoer, que “o triunfo de Deus
vem pela ressurreição e não por uma soberania efetiva ou pela sobrevi­
vência garantida. A relação entre a obediência do povo de Deus e o
triunfo da causa de Deus não é uma relação de causa e efeito, mas de
cruz e ressurreição” .24
4. A igreja è profética quando trabalha pela justiça na sociedade (Sl
82.1-4; Am 5.21-24; Lc 3.10-14; 4.18-21; Mt 11.4-6; Ef 5.11). Os cris­
tãos têm especial responsabilidade para com os pobres e oprimidos. O
povo de Deus é chamado para defender a causa dos pobres e necessita­
dos dentro de cada nação e em todo o mundo.25 O tratamento dado aos
pobres, necessitados e “ aos que não têm poder social” torna-se teste da
justiça de qualquer sociedade ou sistema político.26 Quando trabalha em
favor dos pobres, a igreja está suprindo necessidades humanas específi-
124 A COMUNIDADE DO REI

cas e fazendo uma contribuição política significativa, praticando a “po­


lítica de Jesus” .
A igreja trabalha pelas necessidades físicas e morais das pessoas,
não como se fossem a tarefa principal ou exclusiva da igreja, mas como
testemunho de que a redenção e a santidade (verdadeiramente espiritu­
ais e morais) incluem todas as áreas da vida.
Na esfera política, a igreja preocupa-se menos com a igualdade do
que com a liberdade e com a salvaguarda dos direitos e da dignidade
pessoais, especialmente dos indefesos. Como disse o grande jurista e
reformador brasileiro Rui Barbosa:
M as o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do
escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do
mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve
ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais maldefendi-
dos, os que suscitam menos interesse e os contra cujo direito conspiram a
inferioridade na condição com a míngua nos recursosP
O evangelho do reinado justo de Deus é, acima de tudo, uma mensa­
gem de libertação e, depois, por derivação, de igualdade. A insistência
na liberdade é necessária para garantir que qualquer igualdade obtida
não degenere numa igualdade de “mínimo denominador comum” , com­
preendida em termos meramente quantitativos ou econômicos.
Se os cristãos devem ou não participar de processos políticos e como
devem fazê-lo é uma questão multifacetada que depende de inúmeros
fatores. Talvez possamos conceber uma linha contínua, em que uma das
pontas é a contracultura e a outra, participação política e social. Em
alguns contextos, a igreja deve existir quase que exclusivamente como
contracultura; em outras situações, a sociedade pode estar tão permea­
da pelo evangelho, que a participação política e social é possível e etica­
mente necessária. Entre esses dois extremos, fica um amplo leque de
atuações possíveis para a igreja. Em qualquer contexto específico, com a
cultura moral e espiritualmente deterioradas e a dominação crescente de
Satanás, a igreja precisa mover-se de maneira progressiva do envolvi­
mento ativo para a uma atitude de contracultura. N a situação oposta, à
medida que a sociedade, em sua prática e visão do mundo, é gradual­
mente influenciada pelo evangelho, podem aumentar as oportunidades e
responsabilidades de um envolvimento político direto. Essas questões e
circunstâncias exigem grande discernimento espiritual.28
Em todo o caso, qualquer que seja o contexto, a igreja serve como
uma consciência moral, levantando questões de justiça, retidão, integri­
dade e, em especial, de tratamento de “ os estrangeiros, os órfãos e as
O MANDATO DO REINO 125

viúvas” (Dt 14.29; 16.11, 14). Seja por seus atos e advocacia ou pelo
testemunho silencioso de seu exemplo, a comunidade fiel do rei exerce
essa função de fermento, de conscientização. A igreja é profética quando
é verdadeiramente a comunidade messiânica que revela a natureza do
reino e também a mente e estatura de Jesus Cristo. Quando ela realiza
as obras de Cristo, cumpre suas tarefas características do reino.
Isso nunca será um caminho limpo, bem cortado e triunfante. A
obediência ao evangelho num mundo em que um Satanás fatalmente
ferido ainda está ativo significa viver em tensões. Isso faz parte do
significado da encarnação. A encarnação só faz sentido pela fé em
Deus. Se for fiel, a carreira da igreja terá muitos paralelos com a de
Jesus Cristo.
N ós, como cristãos, nunca podemos ter certeza de que temos todas
as respostas ou de que vemos todas as coisas com nitidez ou de que
estamos realmente “progredindo” . Somos, portanto, constantemente
forçados a voltar à dependência total do Cristo encarnado e de seu
Espírito que age em nós. Devíamos ficar alarmados quando nos senti­
mos à vontade no mundo ou temos uma plácida “ paz interior” . A vida
cristã num mundo não-cristão é repleta de tensão, estresse e, às vezes,
até angústia. Todo um sistema de técnicas sociais procura ajustar o
indivíduo ao mundo e eliminar tensões. M as ser seguidor de Jesus sig­
nifica aceitar o escândalo das declarações de Jesus, de que ele veio não
para trazer harmonia, mas discórdia; não a paz, mas a espada (Mt
10.34-36). Pois só assim pode finalmente vir a verdadeira paz — o
sbalom real.
Em suma, as tarefas do reino que a igreja tem de cumprir incluem a
proclamação do evangelho de tal maneira que homens e mulheres res­
pondam em fé e obediência a Jesus e participem da edificação da co­
munidade cristã. Essa comunidade é uma nova realidade social que,
pela sua semelhança a Cristo e sua renúncia às definições e táticas do
mundo, revela a verdadeira natureza do reino de Deus. “Nosso Senhor
convocou e continua a convocar uma nova sociedade de pessoas incon­
dicionalmente comprometidas em trocar os valores da sociedade ao
redor pelos padrões do reino de Jesus” .29 Só nessa base a igreja pode
agir com integridade pela justiça e paz no mundo. Assim, as dimensões
profética e evangelística do evangelho ficam inteiramente entrelaça­
das na vida e no testemunho da comunidade do rei.
H á, contudo, outras dimensões a explorar. E útil voltar um pouco,
agora, e examinar uma questão levantada anteriormente: Qual a rela­
ção entre o crescimento da igreja e o reino de Deus?
126 A COMUNIDADE DO REI

NOTAS
1 Green, Evangelização na Igreja Primitiva, p. 55.
2 Green observa: "Nos últimos anos, tem sido muito discutido no que consistia a
pregação da igreja primitiva, em especial depois que C. H. Dodd publicou, em 1936,
seu livro The Apostolic Preaching and its Developments. Essa discussão, no entanto,
concentrou-se demais no que passou a ser conhecido tecnicamente como o 'keryg-
ma', que, supõe-se, foi um conjunto fixo de material de pregação comum a todos os
primeiros missionários ... No Novo Testamento, a raiz de kêrussein ('pregar') de
forma algum a é primária. Ela é só uma das três grandes palavras usadas para
proclamar a mensagem cristã: as outras duas são euaggelizesthai ('contar boas
notícias') e marturein ('dar testemunho'). Veja Patzia, pp. 197-99.
3 Ibid., p. 84.
4 Newbegin, Open Secret, p. 121.
5 Gilbert James, preleção no terceiro Continental Urban Exchange (CUE) Conference,
Brooklyn, New York, 26-27 de fevereiro de 1976.
6 Veja Yoder, The Politics o f Jesus; Snyder e Runyon, Decoding the Church, especial­
mente o cap. 12. Embora o evangelho seja não-ideológico no sentido político e
econômico, a fidelidade ao evangelho num determinado contexto às vezes requer
que a igreja "tome partido" em assuntos políticos ou econômicos específicos, quan­
do estão em jogo questões fundamentais de justiça ou direitos humanos. A igreja
não deve silenciar, por exemplo, diante do genocídio, do aborto e da exploração dos
pobres. Veja a discussão da responsabilidade profética da igreja, adiante.
7 C. Peter Wagner, Frontiers in Missionary Strategy (Chicago: Moody, 1971), pp. 124-
34. Veja também Donald McGavran, ed., Eye o f the Storm (Waco, Texas: Word,
1972), pp. 205-18.
8 Alguns talvez digam que tudo o que vai além da produção de conversões já não é
evangelização, mas torna-se acompanhamento ou edificação. O ponto, porém, é
que a tarefa evangelística não está de fato completa até que se torne capaz de se
perpetuar— até que resulte na edificação de uma comunidade fiel de discípulos,
que, por sua vez, é boas novas e testemunha em relação às boas novas.
9 Yoder, The Politcs o f Jesus, p. 113.
10 Jacques Ellul, The Presence o f the Kingdom, trad. Olive Wyon (New York: Seabury
Press, 1967), pp. 9-11.
11 Ibid., p. 10. Ellul declara isso principalmente em termos do cristão como indivíduo; eu
enfatizaria que essa tarefa é, em especial, função da igreja como a comunidade
crente dos discípulos.
12 Ibid., p. 11.
13 C. René Padilla, Mission Between the Times (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), pp.
160, 167.
14 Ibid., pp. 166s., veja Edmund Clowney, "The Missionary Flame of Reformed Theolo-
gy", em Harvie M. Conn, ed., Theological Perspectives on Church Growth (Nutley:
Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1976), p. 167.
15 Alguns teóricos do crescimento da igreja, em especial Donald McGavran e Peter
Wagner, têm defendido o chamado "princípio da unidade homogênea" como es­
tratégia para crescimento da igreja. Na realidade, não parece haver nenhum "prin­
cípio" desse tipo nas Escrituras, de modo que é melhor chamá-lo de "teoria da
unidade hom ogênea".
O MANDATO DO REINO 127

16 Observe a descrição da igreja de Antioquia em Atos 11 e 13. A igreja de Antioquia


era muito mais diversa que a igreja primitiva de Jerusalém; mesmo assim, "muitos
creram e se converteram ao Senhor" e Paulo e Barnabé discipularam "a muitos".
Em grande parte por causa de sua diversidade, agora incluindo gentios tanto quan­
to judeus, "em Antioquia, os discípulos foram pela primeira vez chamados cristãos"
(At 11.21-26).
17 A diversidade é um "sinal" da igreja, tanto quanto a unidade, ainda que, obviamen­
te, os contornos demográficos e sociológicos precisos dessa diversidade variem de
acordo com o contexto cultural. (Veja Snyder e Runyon, Decoding the Church, cap.
1.) No mínimo, a diversidade da igreja normalmente inclui diferenças de idade, sexo,
personalidade, dons espirituais e, em geral, muito mais. Quanto maior o leque de
heterogeneidade social unida e reconciliada na igreja, maior a demonstração social
visível do poder do evangelho que ressuscitou Jesus Cristo. Mas seria uma distorção
do evangelho definir a diversidade aceitável de maneira tão ampla, que incluísse
comportamentos incompatíveis com os ensinos de Jesus.
18 Veja, por exemplo, Manuel Ortiz, One New People: Models for Developing a Multi­
ethnic Church (Downers Grove: InterVarsity, 1996); Stephen A, Rhodes, Where the
Nations Meet: The Church in a Multicultural World (Downers Grove; InterVarsity,
1998).
19 Michael L. Budde e Robert W. Brimlow, ed., The Church as Counterculture (Albany:
State University of New York Press, 2000); Darrell L Guder, ed.. Missionai Church: A
Vision for the Sending o f the Church in North America (Grand Rapids: Eerdmans,
1998): John R. W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte (São Paulo: ABU, 2001).
Stott observa: "Se a igreja aceitasse realisticamente os padrões e valores [de Jesus]
como apresentados [no Sermão do Monte] e vivesse de acordo com eles, seria a
sociedade alternativa que ele sempre pretendeu que fosse e ofereceria ao mundo
uma autêntica contracultura cristã".
20 Citado em Heinrich Bornkamm, Luther's World o f Thought, trad, martin Bertram (st.
Louis: Concordia, 1958), p. 130.
21 Jesus refere-se, aqui, aos títulos na igreja, não ao uso de termos como pai ou mestre
no sentido funcional. Assim, o termo pai é rejeitado não em seu sentido literal,
dentro de casa, mas como um título dentro da igreja. Os títulos mais adequados
dentro da igreja são irmão e irmã porque não são títulos, mas, antes, descrevem a
verdadeira relação entre os crentes companheiros em Cristo, os que formam a
família de Deus.
22 Jacques Ellul, False Presence o f the Kingdom, trad. C. Edward Hopkin (New Yprk:
Seabury Press, 1972), pp. 107-08.
23 Ibid., p. 15.
24 John Howard Yoder, como citado por Stanley Hauerwas, With the Grain o f the
Universe: The Church's Witness and Natural Theology (Grand Rapids: Brazos, 2001),
p. 220. Hauerwas combina citações das páginas 246 e 238 da obra The Politics o f
Jesus de, Yoder.
25 Veja Howard Snyder, Vinho Novo, Odres Novos, pp. 41-58.
26 André Biéler, The Politics o f Hope, trad. Dennis Pardee (Grand Rapids: Eerdmans,
1974), p. 97.
27 Rui Barbosa, Oração aos Moços (São Paulo: Papagaio, 2003), p. 46.
28 Assim, a igreja deve estar atenta ao aplicar as Escrituras a questões sociais e políticas
correntes, tendo o cuidado de considerar todo o leque de verdades bíblicas. Com
base em todas as ênfases das Escrituras, a igreja passou a condenar a escravidão.
128 A COMUNIDADE DO REI

por exemplo, ainda que a escravidão existisse em tempos bíblicos e ela não tenha
sido especificamente denunciada na Bíblia. A Palavra de Deus continua sendo dinâ­
mica e, pela Palavra de Deus, o Espírito de Deus pode estar guiando a igreja de
maneira semelhante, hoje, em relação a questões como papéis sexuais, eqüidade
econômica e meio ambiente. Quanto às questões hermenêuticas, aqui, veja David
Thompson, "Women, Men, Salves and the Bible: Hermeneutical Inquires", Christian
Scholar's Review 25, n.° 3 (1996): 326-49; William J. Webb, Slaves, Women and
Homosexuals: Exploring the Herm eneutics o f Cultural Analysis (Downers Grove:
InterVarsity, 2001).
29 Ronald J. Sider, "Watching Over One Another in Love", The Other Side, 11:3 (May-
June, 1975), p. 13.
8
O CRESCIMENTO DA IGREJA
E O CRESCIMENTO DO REINO

O crescimento da igreja equivale ao progresso do reino de Deus? O


crescimento numérico da igreja contribui para o crescimento do reino?
O crescimento da igreja, de fato, desenvolve o reino de Deus — des­
de que por “ crescimento da igreja” se entenda o crescimento tanto nu­
mérico como espiritual da genuína comunidade do povo de Deus. Nas
Escrituras, o plano de Deus por meio da igreja está aliado ao seu propó­
sito de “ reconciliar todas as coisas” em Jesus Cristo. Jesus é cabeça da
criação e cabeça da igreja (Ef 1.10, 22-23; Cl 1.17-20). A missão da
igreja é demonstrar seu comando dentro da comunidade cristã e mani­
festar sinais de sua verdade em todos os lugares. A tarefa da igreja é viver
sua fé de que Cristo de fato venceu os principados e potestades e, assim,
trabalhar para a manifestação progressiva do reino até Jesus Cristo vol­
tar à terra para estabelecer final e eternamente o reino de Deus.
O mesmo Deus que reina sobre o mundo é o Deus da igreja, o Pai de
Jesus Cristo. Quando fiel ao evangelho, portanto, a igreja por meio de
seu crescimento faz avançar a causa do reino. Mas é necessária uma pala­
vra de alerta! Se confundirmos estruturas eclesiásticas institucionais com
a autêntica igreja de Jesus Cristo, podemos nos enganar, equiparando o
sucesso da igreja institucional ao crescimento do reino. Isso é uma mentira
e um engano, e leva à idolatria. O crescimento numérico de uma denomi­
nação ou mesmo de uma igreja local não promove o reino de Deus, a menos
que a denominação ou igreja seja fiel ao evangelho em sua vida comunitá­
ria interna, seu culto e seu testemunho no mundo. As cartas às sete igrejas
em Apocalipse devem colocar-se diante de nós como um alerta constante.
M as Deus convocou sua igreja para fazer discípulos de todos os
povos em todas as terras, e isso implica crescimento numérico. Os discí­
pulos são contáveis. Assim, temos um registro surpreendente e, mesmo
assim, factual de crescimento numérico no livro de Atos. Lucas nos dá
estatísticas suficientes para mostrar que quando o Espírito age a igreja
130 A COMUNIDADE DO REI

cresce numericamente, mas não o suficiente que nos permita entender o


crescimento numérico como a essência da igreja ou como o único fator
para medir a vida e a eficiência de uma igreja. É crucial manter um
equilíbrio bíblico.
Como a igreja cresce? E como o reino cresce? Vamos examinar com
atenção o processo do crescimento da igreja e depois compará-lo com o
crescimento do reino.

Crescimento normal da igreja


A comunidade do povo de Deus cresce ao levar as pessoas à fé em
Jesus Cristo e ao incorporar esses novos discípulos no corpo de crentes.
Esse devia ser o padrão normal de crescimento da igreja. E preciso dis­
cutir alguns aspectos desse processo de crescimento.
Crescimento normal da igreja significa crescimento que se con­
forma com a norma do evangelho. Com normal, não quero dizer nem
médio nem costumeiro. Antes, crescimento normal é o que se segue quan­
do a igreja se apega à norma bíblica em sua vida, estrutura e testemu­
nho.1Essa é a única norma que conta, e o único critério válido.
Há algo espontâneo no crescimento genuíno da igreja. O crescimen­
to da igreja tem mostrado isso repetidas vezes ao longo da história. O
crescimento normal não depende de técnicas ou programas bem-sucedi­
dos, embora haja lugar para o planejamento. Na verdade, o crescimento
é a conseqüência normal da vida espiritual. O que vive, cresce. O cresci­
mento normal da igreja é espontâneo no sentido de que a natureza da
igreja é crescer — em termos espirituais, numéricos e em seu impacto
cultural. Como Jesus disse, seu crescimento deve ser “em sabedoria, es­
tatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2.52). Roland Allen
estava certo ao falar da “expansão espontânea da igreja” .2
O crescimento da igreja não é uma questão de trazer para a igreja o
que é necessário para o crescimento, pois Cristo está presente por meio
do Espírito Santo e as sementes do crescimento já estão presentes. Antes,
o crescimento da igreja é uma questão de remover os empecilhos ao
crescimento. A igreja crescerá naturalmente se não for limitada por bar­
reiras não bíblicas.
Quais são essas barreiras? Potencialmente, são muitas. Desunião
espiritual, imoralidade e doutrina falsa são algumas que vêm à mente
quando se pensa na igreja do Novo Testamento. Dois outros obstáculos
relacionados especialmente com a natureza e estrutura da igreja são
tradições não bíblicas e estruturas institucionais rígidas. Esses foram
dois dos fatores encontrados no judaísmo que exigiram a formação de
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 131

uma igreja distinta do judaísmo quando Cristo veio. Falando aos escri­
bas e fariseus, Jesus disse: “Por causa da sua tradição, vocês anulam a
palavra de Deus” (Mt 15.6). Em outra ocasião, ele disse: “Vinho novo
deve ser posto em vasilha de couro nova” (Lc 5.38). Em ambas as ocasi­
ões, ele se referiu às tradições e estruturas que haviam crescido no juda­
ísmo e praticamente sufocavam a obra de Deus.
O mesmo tem acontecido inúmeras vezes na história da igreja. Tra­
dições e estruturas não bíblicas têm limitado o crescimento da igreja até
que sejam corrigidas ou (com maior freqüência) a igreja as rompam à
força, assim como o vinho novo estoura odres velhos.
Evidentemente, essas barreiras resultam do pecado, assim como a
imoralidade e a falsa doutrina, porém mais no sentido de uma falha
causada pela Queda, impedindo-nos de perceber e seguir com fidelida­
de o plano de Deus para a igreja. Já chamei a atenção para a dicotomia
clero-laicato, que tende a limitar o crescimento, abafando a iniciativa
“leiga” e o exercício dos dons essenciais ao crescimento. Outros fatores
são o “complexo de edifícios” ou a dependência de prédios da igreja
institucional, a rigidez de estruturas denominacionais e missionárias e
tradições inflexíveis que ditam o horário e a forma das reuniões da igre­
ja.3Em muitas igrejas, os padrões estéreis de culto são uma área crucial
que necessita de reforma.4
O crescimento normal da igreja ocorre em poder, especialmente entre
as massas mais pobres. Michael Green observa que os cristãos primitivos
“se concentravam quase exclusivamente nas classes mais baixas, simples
e analfabetas” e “a tendência continuou sendo esta por algum tempo,
com algumas exceções notáveis” .5 Tertuliano disse, no segundo século:
“Os incultos sempre são a maioria entre nós” . Desde o início e ao longo
da história, o crescimento da igreja mais rápido, duradouro e transforma­
dor para a sociedade normalmente tem ocorrido entre os pobres.6
Enfrentamos aqui, porém, não um mero fato empírico, mas tam­
bém um mandato bíblico. Tanto o exemplo como os ensinos de Jesus
Cristo sustentam sua declaração de que, em cumprimento à profecia,
ele veio para “pregar boas novas aos pobres” (Lc 4.18).
O crescimento normal da igreja não é, na realidade, limitado por
falta de recursos financeiros ou instalações físicas. Não encontramos Paulo
reclamando que poderia realizar mais se tivesse mais fundos à disposição.
Também não há indícios de que a igreja primitiva tenha sido tolhida em
seu crescimento pela falta de prédios. Pode-se até dizer que o oposto é
verdadeiro. Investimentos pesados em edifícios, propriedades e programas
com o intuito de facilitar o crescimento da igreja com freqüência tornam-
132 A COMUNIDADE DO REI

se fatores limitadores. A atenção fica concentrada nesses elementos, e a


visão de ministrar o evangelho de modo simples e direto às pessoas fica
turvada, quando não se perde por completo.
A história das missões cristãs prova isso. No Brasil, por exemplo,
há uma pronunciada relação inversa entre o crescimento da igreja e a
quantidade de fundos recebida do exterior. As denominações que rece­
bem maior ajuda financeira crescem mais lentamente; as que recebem
pouca assistência monetária crescem rápido.
E óbvio que pode haver outros fatores envolvidos (mordomia sábia,
amplitude e maturidade da liderança nativa, força e dimensão das cor­
rentes a que está presa). E não se questiona que o amor e a mordomia
cristã exigem uma partilha transcultural de recursos. M as permanece o
fato de que o crescimento rápido da igreja não depende nem de dinheiro
nem de prédios. E mais provável que dependa da disponibilidade das
pessoas — estrangeiros ou nativos — abertas para o Espírito e dispostas
a exercer seus dons para testemunhar e ministrar.
Isso não deve servir de argumento contra o investimento disciplina­
do de fundos e prédios em ministérios específicos, tais como escolas,
hospitais, orfanatos e assim por diante. Essas instituições auxiliares, de
apoio, bem podem servir aos interesses maiores do reino. M as nem essas
nem outras formas de empreendimentos financeiros maiores são a chave
para o crescimento normal da igreja.

Ciclo de vida do crescimento da igreja


Há um padrão no crescimento da igreja. O crescimento varia de um
lugar para outro, de uma época para outra, mas certos padrões emergem
de maneira sistemática.
Donald McGavran e outros estão corretos ao destacar a importân­
cia de fatores externos — políticos, religiosos, culturais, ideológicos,
socioeconômicos — que influenciam a receptividade e, com isso, afe­
tam o crescimento da igreja. Esses fatores devem ser levados em consi­
deração, mas não nos falam da natureza da igreja em si. Os fatores
mais importantes no crescimento estão relacionados com o caráter es­
sencial da igreja como corpo de Cristo.
O Espírito Santo produz o crescimento da igreja, pois é o Espírito
quem leva as pessoas a Cristo. Observando o Novo Testamento e a his­
tória da igreja, podemos perceber algumas maneiras pela qual o Espíri­
to trabalha para produzir esse crescimento. Quatro fatores chaves fun­
damentados na natureza bíblica básica da igreja, em particular, são
componentes essenciais de crescimento. Esses quatro fatores constitu-
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 133

em o ciclo de vida da igreja em seu crescimento e reprodução. São eles:


(1) contar as boas novas, (2) multiplicar congregações, (3) edificar a
comunidade cristã e (4) exercer os dons espirituais.
1. Contar as boas novas. O mandato de proclamação é central no
plano cósmico de Deus, pois esse plano gira em torno do que Deus está
fazendo pelas pessoas. Ele diz respeito à redenção, que traz a salvação
eterna e edifica a igreja.
A igreja depois do Pentecostes evangelizava sem repressões. A gran­
de preocupação e dinâmica da igreja primitiva era contar as boas novas
acerca de Jesus e a ressurreição, dando testemunho do que haviam vis­
to, ouvido e experimentado. O impulso evangelístico é inerente no evan­
gelho e na experiência de conversão e batismo do Espírito.
A tarefa evangelística da igreja é proclamar as boas novas de salva­
ção em Jesus Cristo por todo o mundo, fazendo discípulos e edificando
a igreja (Mt 28.19-20; Mc 16.15). Desse modo, a evangelização deve
sempre ser a prioridade do ministério da igreja no mundo.
2. Multiplicar congregações cristãs. A proclamação evangelística
não é um fim em si. Ela deve ir além, até formar discípulos do reino.
Não o mero crescimento numérico, mas a multiplicação de igrejas lo­
cais é o teste de uma igreja saudável, em crescimento. O ideal bíblico
não é nem produzir uma multidão de novos crentes que vivem de manei­
ra desconexa, separada, nem expandir igrejas locais existentes até que
seu rol de membros atinja os milhares. O padrão bíblico é formar con­
gregações locais com novos convertidos e multiplicar o número de con­
gregações à medida que se acrescentam novos convertidos.
O ministério de Paulo e de outros evangelistas do Novo Testamento
era um ministério de multiplicação de igrejas. Os convertidos em mui­
tas cidades logo chegavam aos milhares; mas por quase dois séculos não
se erigiu nenhum prédio para abrigar a igreja. Tal crescimento, sob tais
condições, só pode ser explicado como sendo a multiplicação de congre­
gações pequenas. Não surpreende, portanto, que o Novo Testamento
muitas vezes se refira à “igreja que se reúne na casa deles [ou sua casa]”
(Rm 16.5; 1 Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2)7
Um pastor disse, recentemente: “Estou convencido de que a igreja
local pode tornar-se uma grande instituição” . E verdade, mas o alvo
está errado. Há uma tendência muito fácil de construir grandes igrejas
locais, com a conseqüente e inevitável institucionalização, burocracia e
ênfase em prédios. A sutil tentação de imitar modelos institucionais
seculares, tais como governos, shopping centers e universidades, torna-se
avassaladora, e a igreja escorrega para a institucionalização com a rigi-
134 A COMUNIDADE DO REI

dez, impessoalidade e hierarquia incluídas no pacote. In Sik Hong alerta


que é fácil igrejas grandes transformarem-se em “centros de poder” que
criam, inevitavelmente, as próprias “periferias” . Ele escreve: “O concei­
to trinitário de Deus rejeita a idéia da criação de um centro de poder” ; o
modelo triúno é, pelo contrário, de intercomunhão e interconexão. “Em
vez de plantar megaigrejas que criam exatamente esse monopólio de
poder” , escreve ele, devemos construir “comunidades eclesiásticas que
trabalham em rede, em intercomunicação” .8
O crescimento normal vem pela divisão de células, não pela expan­
são ilimitada das células existentes. O crescimento de uma célula além
de certo ponto, sem divisão, é patológica. Estudos sobre o crescimento
da igreja mostram que “só quando o número de igrejas se multiplica,
aumenta a parte cristã da população geral” em uma sociedade.7
O melhor tamanho de uma igreja local varia, é claro, de acordo
com fatores culturais, e não se pode estabelecer nenhum limite arbitrá­
rio. Pesquisas sobre crescimento de igrejas indicam, porém, que depois
que a congregação cresce e atinge algumas centenas de membros, o ín­
dice de crescimento diminui, a menos que se formem novas congrega­
ções filiais, por meio do crescimento por divisão.10
Quando se descobrem exceções notáveis a esse padrão, um exame
mais detalhado cm geral revela que a “congregação” local formada por
milhares é, na realidade, toda uma rede de “subcongregações” menores,
em que o crescimento por divisão ocorre como padrão normal." Talvez a
primeira pergunta sobre como discernir o melhor tamanho para uma
congregação local seja: em que ponto um crescimento complementar
exigiria grandes mudanças em instalações, tais como um novo prédio? A
chave c planejar para plantar uma ou mais novas congregações quando a
igreja se aproximar do limite de suas instalações atuais.
Geralmente, o crescimento ocorre pela multiplicação de congrega­
ções ou células de crentes, não pela multiplicação de prédios ou de estru­
turas institucionais. Se a igreja só pode crescer na velocidade em que se
constroem prédios, ou os pastores se formam academicamente ou se au­
menta o orçamento, então o crescimento é limitado pelos recursos dispo­
níveis para esses fins.
De maneira notável, a igreja primitiva não era nem um pouco limita­
da por esses fatores. Ao longo da história, o rápido crescimento da igreja
tem rompido ou ignorado essas dinâmicas limitadoras. E esses fatores —
prédios, dinheiro e educação formal — não são os verdadeiros obstáculos
ao crescimento das igrejas hoje. Muitas vezes, o maior obstáculo é sim­
plesmente a incapacidade de reproduzir igrejas, assim como crentes.
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 135

3. Edificar a comunidade cristã. A multiplicação de congregações


não é, porém, o alvo final. A multiplicação deve levar à edificação (cres­
cimento em maturidade e discipulado) da comunidade cristã em todos
os casos. Ora, a vontade de Deus é que todos alcancem “ a unidade da fé
e do conhecimento do Filho de Deus” (Ef 4.13). Isso é discipulado.
A evangelização requer a existência de uma comunidade de testemu­
nhas, para que o crescimento da igreja torne-se um processo contínuo.
Conforme indicado no capítulo seis, a pregação efetiva pressupõe a exis­
tência de uma comunidade de crentes que fazem a proclamação. Isso é
verdade mesmo na sociedade mais pagã, em que ainda não existe nenhuma
igreja organizada. Pois mesmo ali, logo que o testemunho cristão entra na
sociedade, a igreja está presente (Mt 18.20) e os ouvintes são chamados a
se unir à nova comunidade. Embora alguém possa, talvez, apontar algu­
mas exceções, esse parece ser o padrão bíblico normal.
Normalmente, nem Jesus, nem Pedro, nem Paulo evangelizavam so­
zinhos. Quase imediatamente após o batismo, Jesus tinha discípulos ao
seu redor — uma comunidade cristã incipiente (Jo 1.29-42). Jesus en­
viou seus discípulos dois a dois, não um a um. Pedro levou consigo outros a
Samaria e à casa de Cornélio, em Cesaréia (At 8.14; 10.23). Paulo estava
quase sempre com um ou mais colaboradores; Atos 13.13 fala de “Paulo e
seus companheiros” . As exceções a esse padrão (Filipe em At 8 e Paulo em
Atenas) parecem ser realmente exceções, não a regra.12 Normalmente,
aonde os missionários iam, a igreja ia com eles (no sentido de pelo menos
um acompanhante), de modo que o chamado evangelístico era um chama­
do não só para Jesus, mas também para uma comunhão comunal existente
visível, para uma nova maneira de vida em comum. O chamado é para
Jesus Cristo, cabeça e corpo. Isso dá novo sentido à declaração de que Jesus
está presente em meio a dois ou três crentes reunidos (Mt 18.20), bem
como à evangelização de famílias.
Muitas igrejas não compartilham o evangelho com eficiência porque
sua experiência comunal do evangelho é tão tênue e insossa que não vale a
pena partilhar. Elas não entusiasmam o crente o suficiente para que deseje
testemunhar e (como o crente desconfia, aborrecido) não são nem um
pouco atraentes para o incrédulo. M as onde a comunhão cristã demonstra
o evangelho, os crentes se revigoram e os pecadores ficam curiosos, que­
rendo saber qual é o segredo. Assim, a verdadeira comunidade cristã (koi-
nonia) torna-se tanto a base como o alvo da evangelização.
Uma das importantes funções da vida da comunidade cristã é a ma­
nutenção da disciplina e dos padrões grupais aceitos. Aqui, comunidade
e doutrina caminham juntas, e a “ ortodoxia de crença” junta-se à “orto-
136 A COMUNIDADE DO REI

doxia de comunidade” , para usar termos de Francis Schaeffer. A comuni­


dade é a única escola efetiva para o discipulado.13 Por todos esses moti­
vos, edificar uma verdadeira koinonia é um elo indispensável no ciclo de
vida do crescimento da igreja.
4. Exercer os dons espirituais. A importância dos dons espirituais
em relação à comunidade já foi salientada no capítulo seis. Aqui, enfa­
tizo que o despertamento e o exercício dos dons são parte essencial do
processo de crescimento da igreja. Uma igreja verdadeiramente caris­
mática é uma igreja que cresce. O crescimento produz diversidade, e a
diversidade traz mais crescimento. Este é o segredo da igreja: o corpo que
manifesta dons.
Não devemos pensar, pois, que só o dom de evangelização é evange-
lístico! Todos os dons espirituais contribuem para a evangelização de
um jeito ou de outro. Em primeiro lugar, alguns dos líderes escolhidos
por Deus (cspecialmente os que recebem dons de apóstolo, profeta e
evangelista) realizam um trabalho evangelístico significativo no mun­
do. Essa evangelização serve para ganhar convertidos, fortalecer e trei­
nar a igreja cm sua evangelização e testemunho no dia-a-dia e interpre­
tar para o mundo a fonte da vida da igreja. Segundo, cada crente tem um
testemunho evangelístico no mundo, quando são capacitados para fazê-
lo pelos ministros capacitadores. Embora nem todos venham a ser evan­
gelistas talentosos, o exercício fiel de cada dom será um verdadeiro tes­
temunho do amor de Cristo. Terceiro, os que exercem os dons mais
“ internos” (cura, exortação, ensino e assim por diante) proveem o sus­
tento espiritual contínuo (e às vezes até sustento econômico) para os que
promovem a evangelização no mundo.14 Quarto, os que exercem seus
dons para sustentar a vida interna da comunidade contribuem para a
evangelização pelo treinamento e a integração de novos convertidos na
igreja — uma função essencial muitas vezes negligenciada. Por fim, esse
funcionamento geral harmonioso da comunidade cristã é uma demons­
tração da verdade do evangelho em carne e osso, sendo, assim, um teste­
munho no mundo e para o mundo.
Quando examinamos esses quatro componentes de crescimento, ve­
mos que não são fatores isolados. Um contribui o outros, num círculo
progressivo de edificação e expansão (Figura 3). Quando a igreja está
crescendo de acordo com a Bíblia, a proclamação do evangelho leva à
multiplicação de congregações. Isso provê à igreja um impacto evangelís­
tico maior no mundo, à medida que se formam novas igrejas. Dentro de
cada congregação, porém, é preciso construir uma verdadeira comunidade
cristã. Quando a comunidade “cresce na verdade em amor”, um caleidos-
O CRESCIMENTO DA IGREJA E 0 CRESCIMENTO DO REINO 137

cópío de dons espirituais é despertado e começa a funcionar, e o discipula-


do é levado a sério. Por meio de seus dons, os crentes ministram externa­
mente ao mundo e internamente à comunidade cristã.

Figura 3. Ciclo de vida da igreja local

Uma conseqüência é a cura substancial nas várias áreas da soci­


edade. Isso produz um impacto cultural significativo, glorificando a
Deus. Alguns dons são mais diretamente evangelísticos e, assim, forta­
lecem e mantêm o movimento evangelístico da igreja; com isso, comple­
ta-se o ciclo dinâmico do crescimento normal da igreja.

Figura 4. V ida normal da igreja


I

138 A COMUNIDADE DO REI

Esse ciclo é o que ocorre, digamos, no plano horizontal. Tal cresci­


mento só é bíblico de fato, contudo, quando a igreja mantém um relaci­
onamento verticalmente vivo e vital com Deus. Assim, uma concepção
mais completa da vida da igreja é esboçada na Figura 4. Uma avaliação
cuidadosa de cada um dos elementos desse diagrama deve revelar os elos
fracos no ciclo de vida de qualquer igreja ou organização evangelística.
(Alguns aspectos complementares dessa análise quádrupla do crescimento
da igreja são apresentados na tabela 2 a seguir.)

P ro clam a ção M ultiplicação de E d ific a çã o da E x e rc ício s de


E v a n g e lís tic a C o n g re g a çã e s Com unidade Dons

P alavras de V ã o p e lo m u n d o F a ça m d is c íp u lo s E n s in a n d o -o s a Se a lg u é m p e r-
Cristo to d o e p re g u e m o de to d a s as n a çõ e s o b e d e c e r a tu d o o m a n e ce r em m im ...
e v a n g e lh o (M c ( M t 2 8 .1 9 ). que eu lhes orden ei esse d a rá m u ito
1 6 .1 5 ). S erão J e r u s a lé m ... Ju d é ia (M t 2 8 .1 9 ), P ara fru to (J o 1 5 .5 ). Fará
m in h a s te s te m u ­ e S a m a ria , e a té os que sejam um , a s sim c o is a s a in d a
n h a s (A t 1 .8 ) c o n fin s d a te rra com o nós som os m a io re s d o que
(A t 1 .8 ) u m (J o 1 7 .2 2 ) esta s (J o 1 4 .1 2 ).

Exemplo de P ro c la m a ç ã o d o P reparação de V id a c o m u n itá ria P re g a ç ã o , c u ra ,


Cristo e v a n g e lh o d is c íp u lo s p a ra esse c o m o s d is c íp u lo s a c o n s e lh a m e n to ,
m in is té rio e n s in o , e tc. d e J e su s

P rin cíp io S e m e a d u ra R e p ro d u ç ã o , M e ta b o lis m o ,v id a V id e ir a e ra m o s ,


de Vida d iv is ã o c e lu la r d o c o rp o d iv e rs id a d e d e n tro
d a u n id a d e

Fun ção C o m u n ic a ç ã o , E sta b e le c im e n to de M a tu ra ç ã o M in is té r io in te rn o e


o b te r c o n v e rs õ e s n o v a s ig re ja s, e s p iritu a l, e x te rn o ,
c o n s e rv a ç ã o de c a p a c ita ç ã o , e v a n g e liz a ç ã o ,
fru to s , a c o m p a ­ “ a p e rfe iç o a m e n to ", p le n itu d e , a u to -
n h a m e n to d is c ip lin a e x p re s s ã o

M ovim entos M o v im e n to s de M o v im e n to s de M o v im e n to s de M o v im e n to s
R e lacio n ad o s e v a n g e liz a ç ã o em c re s c im e n to de re n o v a ç ã o , c a ris m á tic o s ,
m assa e ig re ja e a lg u n s m o v im e n to s de p e n te c o s ta íis m o
e v a n g e liz a ç ã o m o v im e n to s g ru p o s p e q u e n o s
pessoal m is s io n á rio s

Perigo de P e rd a d e fru to s , D e n o m in a c io n a - S u b je tiv is m o In d iv id u a lis m o


Ê n fa se s fo m e e s p iritu a l, lis m o e x agerad o, e x a g e ra d o , e x a g e ra d o ,
P a r c ia is te c n o lo g ia m e n ta lid a d e de e g o c e n tr is m o , n e g lig ê n c ia d a
e v a n g e lís tic a su ce s so , a fa s ta m e n to d o d o u trin a ,
a co m o d a çã o ao m undo fa c c io s is m o
m undo

Tabela 2. Quatro fatores no crescim ento norm al da igreja


O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 139

Crescimento por multiplicação


O crescimento por multiplicação de congregações locais não é um
princípio bíblico, no mesmo sentido que a vida cristã comunitária ou o
exercício de dons espirituais são princípios bíblicos. Ou seja, está implí­
cita, e não explícita, nas Escrituras uma conclusão a que se chega pelo
estudo do Novo Testamento, bem como do crescimento da igreja através
da história. Sua base bíblica é dupla: a analogia da vida física e o exem­
plo da igreja primitiva.
O crescimento por multiplicação pode levantar perguntas em al­
guns. Será útil responder algumas perguntas plausíveis que surgem quan­
do consideramos o ciclo de vida da igreja.
O crescimento por multiplicação é possível em todas as situações?
A multiplicação de células locais de crentes é mais difícil em algumas
culturas e circunstâncias que em outras, mas só é totalmente impossível
sob os regimes totalitários mais repressivos. Onde a vigilância do esta­
do é mais presente, é difícil seguir esse princípio. Trata-se de algo que
precisamos deixar nas mãos de Deus.
E importante deixar claro, todavia, o que realmente significa cresci­
mento por multiplicação. Não estamos falando nem de multiplicação
de prédios nem da proliferação de organizações eclesiásticas oficiais
sancionadas pelo governo. Antes, estamos falando da reprodução contí­
nua de células locais, talvez altamente informais, de cristãos. Em regi­
mes totalitários, talvez não consigam crescer e formar grandes igrejas
organizadas, mas a multiplicação de comunidades pequenas é muitas
vezes possível, mesmo que arriscada. Em alguns casos, porém, a igreja
precisa simplesmente continuar vivendo como igreja sofredora, com a
vida comunitária restrita quase que totalmente a unidades familiares,
esperando ou o dia da colheita ou o dia do livramento. A ampla prolife­
ração de células cristãs subterrâneas na China mostra que tal crescimen­
to é possível, mesmo sob um governo autoritário. Nesse caso, aliás, é o
único tipo possível de crescimento efetivo de igreja! Na maior parte dos
casos, o crescimento por multiplicação pode ocorrer se houver a visão
para tanto.
O crescimento por multiplicação é sábio em áreas em que já exis­
tem muitas igrejas cristãs? Em algumas áreas em que a igreja está esta­
belecida há séculos, parecem existir igrejas demais, embora muitas de­
las sejam apenas nominalmente cristãs. A multiplicação seria de fato a
resposta nesses casos?
De novo, não estou falando de multiplicação de prédios ou organi­
zações. Em muitas cidades do Ocidente, a última coisa de que a igreja
140 A COMUNIDADE DO REI

precisa é de mais prédios! O que de fato ela precisa com maior freqüên-
cia, porém, é redescobrir a verdadeira comunhão ou comunidade cristã.
Os grupos pequenos de vários tipos são úteis nesse ponto. Quando se
formam grupos pequenos, eles tendem a se multiplicar, especialmente se
houver boa liderança. O número de igrejas oficiais organizadas pode
permanecer igual, enquanto o número de igrejas bíblicas realmente se
multiplica rápido, à medida que mais e mais indivíduos descobrem a
nova vida em Cristo e o novo estilo de vida na comunidade cristã. Esse foi
o padrão da Reforma do século XVI, tanto em sua forma principal como
em boa parte do Avivamento Evangélico do século XVIII na Europa. Em
vez de desencorajar esse movimento, as igrejas organizadas deviam incen­
tivá-lo e estimulá-lo, procurando dar-lhe direcionamento bíblico.
A “multiplicação" em geral não resulta de divisões que ocorrem
mais por motivos carnais que espirituais? Isso é comum demais. Muitas
igrejas têm-sc multiplicado e crescido, não porque tenham uma visão de
crescimento, mas só porque os irmãos não conseguem conviver! E claro
que isso é errado, mas mesmo assim Deus, em sua providência, tem usa­
do essas divisões de maneira miraculosa para o crescimento da igreja.
Mas divisões por motivos não santos muitas vezes sc desenvolvem
exatamente por causa da falta de uma visão saudável de multiplicação
de igrejas. Se novas igrejas são formadas com a visão de um crescimento
posterior por divisão, então o crescimento ocorrerá de modo natural,
pelos motivos corretos, não pelos errados.
Sim, as igrejas podem dividir-se por motivos errados, mas isso não
cancela o princípio de multiplicação, da mesma forma que o câncer não
invalida o princípio da divisão celular normal. Os líderes podem guiar
o crescimento por multiplicação pelos motivos corretos, em vez de dei­
xar que ocorra pelos motivos errados.
A multiplicação de grupos pequenos e de comunidades de igreja
não aumenta o potencial de desvios doutrinários? A multiplicação, de
fato, pode aumentar o risco, pois mais vidas significam mais oportuni­
dades de aberrações. M as há salvaguardas. As mais potentes delas são o
Espírito e a Palavra. A primeira deve ser ouvida com atenção; a segun­
da, estudada e aplicada por toda a igreja. Líderes cristãos sábios vão
nutrir uma igreja que cresce e se multiplica por meio de um estudo bíbli­
co consistente e contínuo e ajudarão cada crente a crescer no Espírito.
Além disso, é importante que dentro de uma igreja local ou conjun­
to de igrejas haja alguma coordenação de esforços para multiplicação
de igrejas. Líderes de igrejas locais muito temerosos às vezes não conse­
guem perceber que um ministério de grupos pequenos e multiplicação
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 141

de células, iniciadas e coordenadas pela igreja local, tem muito mais


possibilidade de manter-se na linha em termos doutrinários do que gru­
pos que se formam de maneira independente, quando a igreja não con­
segue prover esse tipo de liderança. Faz mais sentido prover o alimento
necessário do que condenar fontes estranhas de suprimento.
Onde a igreja encontra líderes suficientes quando se formam novas
congregações? A resposta a essa pergunta é encontrada no discipulado,
nos dons espirituais e na vida comunitária da igreja. Se vivemos com
nossos irmãos em verdadeira comunidade cristã e se entendemos que o
Espírito proverá os dons espirituais necessários, os devidos dons de li­
derança surgirão no devido tempo para cuidar das demandas do cresci­
mento. A estrutura eclesiástica tradicional, com sua baixa média de
líderes por seguidores, muitas vezes falha no desenvolvimento da lide­
rança latente porque as responsabilidades ficam concentradas em pou­
cas pessoas. Multiplicar congregações facilita, na realidade, a multi­
plicação de líderes.
Quando encontramos pessoas dotadas como multiplicadores de igre­
jas, podemos trabalhar com elas e dirigi-las para que tenham eficiência
cada vez maior. Normalmente, o crescimento por multiplicação será,
então, um processo carismático baseado em dons espirituais.
A multiplicação de congregações deve resultar do crescimento de
grupos pequenos de comunhão. Esses grupos oferecem a estrutura ideal
para despertar, disciplinar e treinar dons espirituais. O crescimento por
multiplicação é simplesmente um passo no processo geral da vida e do
crescimento da igreja. Quando a igreja é de fato a comunidade do povo
de Deus, é Deus Espírito quem provê a liderança necessária. Essa é sua
promessa para nós.
O crescimento por multiplicação não enfraquece a igreja mãe? Onde
o crescimento por multiplicação faz parte de um processo contínuo,
conforme esboçado acima, ocorre fortalecimento, ao invés de enfraque­
cimento, da igreja mãe. O êxodo contínuo, previsto, da igreja mãe cria
novas oportunidades para a comunhão e o uso de dons espirituais entre os
que permanecem. Dons e ministérios não usados ou não detectados emer­
gem. Uma igreja local deve medir seu sucesso não por prédios ou orça­
mento, mas pelo número de filhos e netos espirituais (ou seja, novas
congregações) que produz. Isso vale em especial para igrejas grandes. As
igrejas podem estar apenas ficando mais gordas, não mais saudáveis.
Dar à luz a novas congregações é um dos maiores privilégios concedidos
a uma igreja local e é cem vezes mais significativo que orçamentos vulto­
sos, equipe numerosa e prédios novos.
142 A COMUNIDADE DO REI

A igreja mãe não sofrerá, desde que ela mesma esteja vivendo e cres­
cendo de acordo com princípios bíblicos. Se estiver estruturada de acor­
do com um modelo carismático, e não institucional, prosperará. M as se
for estruturada de maneira institucional e depender muito de uma longa
lista de quadros e comissões, terá dificuldades para produzir novas con­
gregações. Como já afirmei, o crescimento por multiplicação é um pro­
cesso orgânico e carismático, não um processo institucional.

Planta e fermento
O reino de Deus — não só a igreja — deve crescer. Aliás, Jesus falou
mais do crescimento do reino do que do crescimento da igreja! Ele falou
da extensão progressiva do reinado de Deus sobre nações e povos até o
reino prometido chegar de maneira plena (Mt 13.18-52; Mc 4.26-32; Lc
18.20). As Escrituras revelam o plano de Deus para levar toda a criação
a se submeter a Jesus Cristo. Deus falou às nações há muito tempo por
meio de Isaías, dizendo:
Voltem-se para mim e sejam salvos,
todos vocês, confins da terra;
pois eu sou Deus, e não há nenhum outro.
Por mim mesmo eu jurei,
a minha boca pronunciou
com toda a integridade
uma palavra que não será reprovada:
Diante de mim todo joelho se dobrará,
junto a mim toda língua jurará. (Is 45.22-23)
Paulo retomou o tema, dizendo:
Ao nome de Jesus
se dobre todo joelho,
nos céus, na terra e debaixo da terra,
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para a glória de Deus Pai. (Fp 2.10-11).
Há um crescimento progressivo, oculto, do reino de Deus, mesmo
diante da severa fúria e oposição satânica, até Cristo voltar para estabe­
lecer seu reinado em definitivo.
Então virá o fim, quando ele entregar o reino de Deus, o Pai, depois de ter
destruído todo domínio, autoridade e poder. Pois é necessário que ele reine
até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. O último
inimigo a ser destruído é a morte. Porque ele “tudo sujeitou debaixo de seus
pés” ... Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o próprio Filho se
sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a fim de que Deus seja tudo
em todos. (1 Co 15.24-28)
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 143

O crescimento do reino de Deus é a extensão progressiva do reinado de


Deus sobre toda a criação. Em princípio, isso não é um crescimento geo­
gráfico. O campo de batalha central na luta entre o reino de Deus e a
falsificação de Satanás é a mente e o coração das pessoas. E aqui que
ocorre o choque de vontades: “O reino de Deus está entre vocês” (Lc 17.21).
Jesus falou com freqüência do reino de Deus como uma realidade
oculta, que as pessoas podem experimentar ou na qual podem entrar
agora, mas que se tornará manifesta só no futuro. Aos olhos do mundo o
reino está ausente ou adormecido, mas os que crêem sabem que em Jesus
o reino está próximo (Mt 4.17; 10.7) e em seu meio (Lc 17.21). O reino
pode e deve proclamado (Mt 24.14; Lc 4.43; 8.1; 9.2, 60; 10.9-11). Ago­
ra, sua presença é um segredo visto apenas pelo olhos da fé. M as isso não
significa que o reino esteja ausente ou impotente ou que esteja estático
ou congelado. Ele continua a se disseminar e a crescer, mas de maneira
oculta.
Algo estranho e maravilhoso está acontecendo no mundo, e o mundo
não sabe do que se trata. O mundo não crê porque não vê nenhum grande
poder — nenhum exército ou parlamento que o impressione. Mas os cris­
tãos sabem que o reino de Deus apareceu em Jesus e está agora presente de
modo implícito na igreja, age secretamente no mundo e virá em poder
restaurador e julgador verdadeiro e criativo, quando Jesus Cristo voltar.
Algumas das parábolas de Jesus falam do crescimento do reino.
Observe em especial as duas parábolas registradas cm Mateus 13.31-33:
O reino dos céus é como um grão de mostarda que um homem plantou em
seu campo. Embora seja a menor dentre todas as sementes, quando cresce
torna-se a maior das hortaliças e se transforma numa árvore, de modo que
as aves vêm fazer os seus ninhos em seus ramos ... O reino dos céus é como
o fermento que uma mulher tomou e misturou com uma grande quantidade
de farinha, e toda a massa ficou levedada.
Planta e fermento — são figuras extraídas da vida. O mesmo Deus
que escondeu a vida na semente de mostarda e na célula do fermento está
trabalhando diariamente, de modo imperceptível, para reconciliar to­
das as coisas em Jesus Cristo. E assim que o reino cresce. O início é
pequeno e inexpressivo, mas vem o crescimento e o reino avança. E as
pessoas ficam surpresas.
Assim, o crescimento do reino não é igual ao crescimento da igreja.
Os dois estão relacionados; o mesmo Deus está em ação; é o mesmo Jesus
que é o Senhor. M as o crescimento do reino é mais oculto, mais misteri­
oso, mais sutil. O crescimento da igreja é visível e pode ser estudado por
estatísticas; o crescimento do reino jamais pode ser igualado ao cresci-
144 A COMUNIDADE DO REI

mento quantitativo da igreja.16 O crescimento do reino jamais pode ser


manipulado por técnicas humanas; é sempre invariavelmente fiel à pró­
pria natureza do Rei. O reino opera só e exclusivamente com base no
padrão de verdade e vida revelado em Jesus Cristo.
O reino de Deus é o reino da verdade. Ele não conhece falsidade.
Como cresce o reino? Como fermento, como levedura. Assim, onde o
evangelho entra com fidelidade, ali a verdade leveda a sociedade. A igreja
pode ser muito pequena em número; mas o poder da verdade abre seu
caminho até a trama da sociedade, eliminando a falsidade. E em grande
parte por fruto do evangelho que em muitas culturas, hoje, barreiras
sociais e barreiras de castas caíram, as mulheres ganharam liberdade e
igualdade, a escravidão é considerada errada e desumana e religiões pa­
gãs têm sido livradas de seus elementos mais grosseiros.17O budismo, o
hinduísmo e o islamismo são, em pequeno grau, fermentados aqui e ali
pela verdade cristã. O próprio comunismo é um produto da verdade cris­
tã, no sentido de que assumiu alguns ideais cristãos (fraternidade, igual­
dade social, paz), secularizou-os e tornou-os base de uma visão falsa e
demoníaca do reino.
Assim, o reino de Deus age como o fermento. Ele leveda culturas e
sistemas sociais, substituindo o falso pelo verdadeiro. M as Satanás está
agindo para subverter a verdade onde quer que ela se encontre, torcê-la
e fazê-la voltar-se contra Deus.
A igreja deve sempre testemunhar do reinado de Deus. Ela jamais se
deve satisfazer com o crescimento dos próprios membros e perder de vista
seu verdadeiro alvo. Eia deve lembrar que é a comunidade do Rei e jamais
tornar-se indiferente à qualidade e integridade do evangelho que procla­
ma e demonstra. Ela deve fornecer a base para uma sociedade humana
justa e verdadeiramente reconciliada, tanto em sociedades de grande avanço
tecnológico como nos países do Mundo dos Dois Terços, em que é preciso
lidar com o anseio pela democracia, o idealismo inerente dos jovens e as
influências políticas e econômicas que emergem. E crucial que o evangelho
completo seja pregado no poder do Espírito e vivido em todas as suas
dimensões proféticas e evangelísticas. Devemos tomar cuidado precisa­
mente nesse ponto, se estamos preocupados com o testemunho e a fidelida­
de da igreja não só hoje, mas daqui cinquenta, cem anos.18
No capitulo anterior, examinamos o papel profético da comunidade
cristã. Quando a igreja é de fato profética, promove a causa do reino. E
quando é profética e evangelística, é fiel ao evangelho. Então, cresci­
mento da igreja significa crescimento do reino.
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 145

NOTAS
1 O que descrevo como "crescimento normal da igreja" é semelhante ao modelo de
"desenvolvimento natural da igreja", esboçado por Christian A. Schw arz em O
Desenvolvimento Natural da Igreja (Curitiba: Esperança, s.d.) e compatível com ele.
Apesar de os dois modelos diferirem em alguns aspectos, ambos enfatizam a natu­
reza orgânica da igreja e a maneira pela qual igreja saudáveis desenvolvem estrutu­
ras funcionais coerentes com sua natureza orgânica. Schwartz dá menos ênfase ao
reino de Deus e às questões de justiça.
2 Roland Allen, The Spontaneous Expansion o f the Church (Grand Rapids: Eerdmans,
1962). Em essência, isso é o que Christian Schwarz quer dizer quando menciona o
princípio do "por si" em Desenvolvimento Natural da Igreja.
3 Veja Vinho Novo, Odres Novos, em especial os caps. 4, 5 e 6.
4 Robert Webber, "Agenda for the Church, 1976-2000", Eternity, January 1976, pp. 15-
17, 59-61.
5 Michael Green, Evangelização na igreja Primitiva, p. 46. Rodney Stark, em The Rise o f
Christianity, está correto ao destacar os papéis chaves desempenhados na igreja primi­
tiva por pessoas bem colocadas e proeminentes na sociedade, mas erra ao dizer (sem
evidências reais) que a igreja não era formada predom inantem ente por pobres.
Sem dúvida, na igreja primitiva, como mais tarde, um número significativo de indiví­
duos da elite social e intelectual converteram-se e tornaram-se cristãos influentes.
Mas as evidências indicam que a maioria dos crentes primitivos, os que aceitaram de
pronto o evangelho, era das massas pobres. Veja Rodney Satrk, The Rise o f Christi­
anity: A Sociologist Reconsiders History (Princeton: Princeton University Press, 1996).
6 Veja Vinho Novo, Odres Novos, cap. 3, onde trato de maneira mais detalhada do
"evangelho aos pobres".
7 Veja George W. Peters, Saturation Evangelism (Grand Rapids: Zondervan, 1970), pp.
147-49.
8 In Sik Hong, lU m a Iglesia Posmoderna? Em Busca de um Modelo de Iglesia y Misión
em la Era Posmoderna (Buenos Aires: Kairos, 2001), p. 128.
9 Neil Braun, Laity Mobilized: Refletions on Church Growth in Japan and Other Lands
(Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 21.
10 Os sociólogos Rodney Stark e Roger Finke documentam um motivo chave para isso:
igrejas menores costumam vivenciar um nível mais elevado de envolvimento entre os
membros, em comparação com igrejas maiores. "O tamanho da congregação é inver­
samente proporcional ao nível médio de compromisso dos membros", observam,
acrescentando que "os índices de participação declinam com o tamanho da congre­
gação, e os declínios mais acentuados ocorrem quando as congregações excedem
50 membros". Rodney Stark e Roger Finke, Acts o f Faith: Explaining the Human Side
o f Religion (Berkeley: University of California, 2000), p. 155. Ao que parece, isso é
uma tendência inata, embora uma liderança sábia possa alterá-la um pouco.
11 Peter W agner observa a eficácia de uma estrutura "celebração - congregação -
célula" em igrejas maiores (Your Church Can Grow [Grendale, California: Regal,
1976)], pp. 97-109).
12 Considere que o encontro de Filipe com o eunuco etíope foi uma situação singular
de homem a homem e que os esforços de Paulo em Atenas não tiveram resultados
notáveis. O ministério de Filipe em Samaria teve êxito numérico memorável, mas foi
deficiente na questão da comunidade, até Pedro e João chegarem de Jerusalém.
146 A COMUNIDADE DO REI

Veja Ray C. Stedman, Birth o f the Body (Santa Ana: Vision House, 1974), pp. 131-40.
13 Veja Cari Wilson, With Christ in the School o f Disdple Building (Grand Rapids: Zonder-
van, 1976), especiaimente o cap. 12.
14 O dom de cura também pode, claro, implicar um ministério externo evangelistico e
profético importante no mundo.
15 Compare um modelo um tanto semelhante, de "ecologia da igreja", em Vinho Novo,
Odres Novos, p. 133, e em Howaerdn Snyder, Liberating the Church: The Ecology o f
Church a n d Kingdom (Downers Grove: InterVarsity, 1983; Eugene: W ipf & Stock, 1996),
p. 82, bem como as "Oito Marcas de Qualidade", em Schwartz, O Desenvolvimento
Natural da Igreja.
16 Mas isso não significa que o reino de Deus seja a-histórico ou que seus frutos não
possam ser estudados pela sociologia. Em princfpio, deve ser possível desenvolver um
tipo de "índice do reino" ligado aos tipos de virtudes, valores e qualidades que as
Escrituras revelam serem características do reino de Deus e, com base nisso, discernir
de algum modo o progresso do reino em diferentes culturas e períodos históricos. Os
critérios podem incluir algo como índices de mortalidade, abortos, casamentos e di­
vórcios, saúde, desnutrição, crimes, percentagem da população vivendo em pobreza e
em cárceres, cuidado com o meio ambiente ou sua degradação, etc., bem como índi­
ces de conversões ou batismos e crescimento de igrejas. Esse índice mediria, claro, só
os frutos (ou primícias) do reino, não o reino em si. Embora esse "índice de indicadores
do reino" só possa dar um retrato vago e tenha de considerar uma miríade de fatores
culturais, poderia revelar uma variação significativa ao longo do tempo e também,
de maneira geral, comparar o crescimento da igreja com o crescimento do reino. É
possível discernir algum a relação? Que diferença empírica faz o crescimento da
igreja para o reino de Deus, já que "O Reino de Deus não vem de modo visível" (Lc
17.20)?
17 Veja outros exemplos em Alvin J. Schmidt, Under the Influence: How Christianity
Transformed Civllization (Grand Rapids: Zondervan, 2001). Schmidt detém-se em fato­
res como valor da vida humana, moralidade sexual, tratamento dado às mulheres,
saúde e educação e artes e literatura.
18Veja uma análise em geral otimista do impacto global cada vez maior do crescimento
da igreja, especialmente no Mundo dos Dois Terços, em Philip Jenkins, The Next
Christendom: The Corning o f Global Christianity (New York: Oxford University, 2002).
147

9
A FORMA
DA IGREJA

Era uma vez um homem chamado Sam. Ele estava farto da igreja
institucional. “A Igreja é tão fechada nas tradições” , dizia, “não há li­
berdade espiritual. Não adianta! Desisto da igreja institucional” .
Assim, Sam juntou um grupinho de amigos que pensavam como
ele. “Vamos jogar fora todo o institucionalismo e ter uma igreja sim­
ples, sem estruturas, como no Novo Testamento” , resolveu.
Todos se reuniram domingo à noite. Eram onze. Passaram cerca de
duas horas e meia só compartilhando, cantando, orando e estudando a
Bíblia. Foi ótimo! Todos ficaram animados. Era a primeira vez que a
maioria deles experimentava uma comunhão tão livre, tão aberta, e o
grupo sentiu-se motivado e espiritualmente fortalecido. Isso é que era
igreja\
N a hora de encerrar, naquela noite, Sam falou: “Bem, isso aqui foi
realmente maravilhoso! Acho que alguma coisa está começando. Va­
mos nos reunir de novo na semana que vem?” .
Todos concordaram. Mesma hora, mesmo lugar. (De novo, a ques­
tão prática do espaço e do tempo.) Valia a pena continuar essa nova
experiência de comunhão.
E assim nasceu uma nova comunidade — na prática, uma nova igreja
local. O grupo cresceu, diversificou-se um pouco e supria várias neces­
sidades à medida que surgiam. Como cuidar das crianças? Como ficam
o horário e a duração das reuniões? Como fica a liderança? Como ficam
os cultos nas datas comemorativas? Que fazer com a despesas com os
materiais? Para cada problema, adotavam procedimentos padrão fixo,
para que o grupo pudesse funcionar sem tropeços e não tivesse de tomar
decisões secundárias toda vez.
Funcionou. O grupo prosperava.
M as era “desestruturado” ou “não-institucional” , como esperava
Sam no início? Claro que não! O grupo logo desenvolveu suas próprias
14 8 A COMUNIDADE DO REI

estruturas; assumiu, inevitavelmente, uma forma institucional. Talvez


as formas adotadas fossem boas; talvez fossem bem melhores que as
que deixaram para trás e servissem melhor aos propósitos da igreja.
M as as estruturas apareceram, sim, pois toda vida precisa de forma.
Vida sem forma é defeituosa e morre; perece porque não consegue se
sustentar. Isso ocorre com qualquer vida, seja espiritual, humana ou
botânica, pois Deus é consistente em sua criação.
Assim, chegamos agora à questão da estrutura da igreja, a forma da
Igreja. A tese deste capítulo é que a estrutura é inevitável — mas que
nem todas as estruturas são igualmente válidas ou adequadas para a
igreja.
Vimos o que a igreja é segundo a Bíblia: a comunidade do povo de
Deus, não uma estrutura institucional ou organizacional. Também vi­
mos como a igreja cumpre o plano de Deus: demonstrando a realidade
da salvação divina na comunidade e realizando aquelas obras prepara­
das de antemão que produzem curas substanciais e apontam para o fu­
turo estabelecimento definitivo do reino de Deus. Além disso, vimos
que a igreja cumpre seu mandato sendo uma comunidade messiânica e
testemunhando de acordo com os dons dados por Deus. E isso o que
significa ser a comunidade do Rei.
Ao examinar melhor a estrutura, lembramos que esta não é a igreja,
assim como o odre não é o vinho. M as as estruturas são necessárias para
a que a igreja viva e sirva no espaço e no tempo. Toda comunidade cristã
deve ter um meio culturalmente adequado de fazer o que deve fazer em
certas horas e em certos lugares.
Uma igreja que pretenda crescer e servir ao reino de Deus deve ser
estruturada em harmonia com o entendimento bíblico da igreja. Isso
não quer dizer que uma igreja estruturada de outra maneira não cresce­
rá, pois é óbvio que igrejas das mais diversas estruturas têm crescido e
sobrevivido. M as uma igreja não estruturada em harmonia com os prin­
cípios bíblicos jamais alcançará a qualidade de crescimento e a autenti­
cidade do discipulado pretendido por Deus. Pouco resolve, por exem­
plo, os pastores exortarem o povo a crescer espiritualmente e a seguir os
ensinos de Jesus, se a igreja não provê estruturas funcionais para pro­
mover esse crescimento.
Em si, a estrutura da igreja não é nem má nem indesejável. O pro­
blema é saber quais tipos de estruturas servem melhor à igreja em sua
vida e testemunho. Estruturas específicas serão legítimas ou ilegítimas,
dependendo não só do que pretendem realizar, mas também de sua fun­
ção — o que de fato realizam.
A FORMA DA IGREJA 149

Este capítulo estuda, em primeiro lugar, os critérios para identifi­


car estruturas que funcionam: Como podemos ter certeza de que odres
específicos são realmente funcionais? Em segundo lugar, vamos anali­
sar a necessidade de estruturas que mais ajudam a igreja em seu teste­
munho, fazendo uma distinção entre a igreja e as estruturas paraeclesi-
ásticas. Por fim, vamos apresentar algumas diretrizes para estabelecer
estruturas eclesiásticas para os dias de hoje e aplicá-las à questão do
testemunho transcultural da igreja.

Estruturas manejáveis
A Bíblia fornece pouquíssima orientação específica sobre a estrutu­
ra da igreja. Ela pinta um quadro nítido do que a igreja é convocada a
ser e dá a história primitiva da igreja em dois contextos culturais princi­
pais: a sociedade judaica palestina e a sociedade greco-romana do sécu­
lo I. Com base nesse testemunho bíblico, a igreja em cada época forma
os odres que parecem mais compatíveis com sua natureza e missão den­
tro de seu contexto cultural.
A questão da estrutura surge dentro da vasta área de liberdade
quanto à forma permitida pela Bíblia. Estruturas específicas não são
prescritas de maneira explícita nas Escrituras. Antes, vemos uma vari­
edade de exemplos e acomodações a circunstâncias específicas (como
em At 6). M as a descrição bíblica da igreja nos ajuda a discernir crité­
rios práticos para avaliar a estrutura da igreja em qualquer contexto
cultural. Analisaremos três. (Será útil lembrar a discussão a respeito
dos modelos institucional versus carismático para o entendimento da
igreja no capítulo cinco.)
Primeiro, a estrutura da igreja deve ser biblicamente válida. Ou seja,
a estrutura da igreja deve ser compatível com a natureza e a forma do
evangelho e da igreja segundo apresentadas na Bíblia.
Os autores do Novo Testamento foram zelosos em guardar a verda­
de do evangelho e a igreja contra incursões do mundo e do judaísmo.
Insistir na circuncisão era negar o evangelho (Gl 5.2-6). Fazer distin­
ções dentro da comunidade cristã com base em posses, posição social
ou tradições religiosas era transgredir a lei de Deus (Gl 2.11-21; Tg2.1-
13). Jesus alertou contra o perigo de se cancelar a Palavra de Deus pelo
apego à tradição humana (Mt 15.6). Qualquer tradição, estrutura ou
padrão que leve os crentes a contradizer na prática o que professam em fé
não é bíblica e precisa ser rejeitada.
Embora esse princípio deva ser óbvio e fundamental, é violado com
freqüência. Brotam ou formam-se estruturas que entram em conflito
150 A COMUNIDADE DO REI

fundamental com a Bíblia ou a contaminam. Elas se transformam nas


tradições não bíblicas e instituições rígidas mencionadas anteriormente.
M as como é comum — mesmo no nível local — fracionar a comunhão
entre ricos e pobres, ministros e leigos, brancos e negros, jovens e velhos!
Dedicamo-nos muito a preservar programas, mas como nos dedicamos
pouco uns aos outros ou a estruturas que realmente nos ajudem a ser igreja!
Precisamos fazer algumas perguntas duras (e, em alguns contextos, assus­
tadoras): Os crentes realmente adoram a Deus ou o encontram nos nossos
cultos? A Palavra de Deus é realmente ensinada e ouvida? Os crentes real­
mente “falam a verdade em amor” uns com os outros ou dizem coisas
simpáticas, sem muito sentido? Nossas estruturas levam a sério os dons do
Espírito e o sacerdócio dos crentes? A estrutura tradicional da escola do­
minical (ou outros programas) é biblicamente defensável? Há estruturas
vivificantes de koinonia e missões?
Simplificando, o critério de validade bíblica significa que todas as
estruturas da igreja devem, de fato, ajudar a igreja a ser a igreja e desem­
penhar sua missão na esperança do reino de Deus. Devem ser estruturas
que promovam a comunidade, formem discípulos e sustentem o testemu­
nho e a esperança no reino. Estruturas que de fato fazem isso são válidas;
estruturas que não o fazem são inválidas, não importa o quanto sejam
atraentes, eficientes ou veneráveis.
Em segundo lugar, a estrutura da igreja deve ser culturalmente viá­
vel. As estruturas devem ser compatíveis com as formas culturais da
sociedade em que a igreja se encontra. Por esse motivo, as estruturas da
igreja não podem ser transplantadas de maneira acrítica de uma cultu­
ra para outra, sem que se causem sérios problemas e equívocos funda­
mentais no que diz respeito à verdadeira natureza da igreja.
A igreja do século I, apesar de todos os seus problemas, ainda provê
exemplos notáveis de adaptação e viabilidade culturais. Por meio de
Estêvão, Filipe, Paulo e outros, a igreja primitiva logo alcançou o mun­
do mediterrâneo de fala grega (At 6 em diante). Reunindo-se em casas
e, em geral, primeiro seguindo o padrão da sinagoga quanto à estrutura
local, esses cristãos primitivos foram capazes de se multiplicar rapida­
mente sem uma grande superestrutura organizacional. Por meio de um
padrão de pregadores, evangelistas itinerantes e o testemunho de cren­
tes comuns envolvidos na rotina do cotidiano, a igreja mantinha uma
rede de comunicação, ensino e abertura de igrejas que penetrou em boa
parte do Império Romano. Um padrão semelhante foi usado com gran­
des resultados pelas ordens pregadoras no fim da Idade Média.
Na atual era missionária, a igreja tem crescido de maneira mais
A FORMA DA IGREJA 151

efetiva e autêntica quando consegue adaptar-se às realidade culturais


sem comprometer a verdade transcultural do evangelho. Por outro lado,
a violação do princípio de viabilidade cultural às vezes resulta numa
entrada lenta, quando as diferenças culturais são grandes. Um dos prin­
cipais fatores por trás do lento crescimento da igreja no Japão foi a
introdução de tradições de vida congregacional e ministério pastoral
estranhos e culturalmente não adequados que ainda hoje tolhem a igre­
ja ali. Isso é uma violação do princípio de viabilidade cultural. (Pode-se
questionar também se essas tradições eram biblicamente válidas.)
M as não é preciso atravessar o oceano para encontrar uma cultura
diferente. As cidades globais de hoje são um microcosmo cultural. As­
sim, um ministério efetivo em áreas urbanas exige sensibilidade nesse
aspecto.
Obviamente, a validade bíblica tem precedência sobre a viabilidade
cultural. A igreja fiel, afinal, sofrerá tensão com a cultura ao redor. Mas
precisamos nos esforçar para garantir que essa tensão brote do conflito
entre a luz e as trevas, não da incompatibilidade entre as formas cultu­
rais. Se a ética permitir, a igreja deve estruturar-se de acordo com as
outras estruturas da cultura em que está inserida. M as isso exige discer­
nimento, já que só pode ocorrer enquanto não se comprometer a fideli­
dade bíblica.
A igreja não pode copiar estruturas de maneira acrítica da cultura
adjacente, assim como não pode importá-las de maneira acrítica. M as
pode avaliar cada estrutura quanto à sua validade bíblica e viabilidade
cultural. Com freqüência, ela descobrirá que algumas estruturas nativas
(por exemplo, talvez, a estrutura familiar) não são de todo incompatí­
veis com a vida e o testemunho da igreja, desde que essas estruturas
sejam entregues a Deus.
Em terceiro lugar, a estrutura da igreja deve ser temporalmente fle­
xível. Ela deve estar aberta a modificações de tempos em tempos, de
acordo com as circunstâncias.
Aqui, enfrentamos não só a dimensão espacial, mas também a tem­
poral. As culturas não são estáticas, mas dinâmicas — e cada vez mais,
nesta era de globalização. A medida que a cultura muda, também são
necessárias mudanças na estrutura da igreja. A estrutura eficiente hoje
pode ser menos eficiente daqui trinta (ou até dez) anos. Isso é ainda
mais verdadeiro nesta época tecnológica pós-moderna de descontinui-
dade e mudanças rápidas. O fato é que a fidelidade à verdade bíblica
imutável muitas vezes requer que haja mudanças nas estruturas com o
passar do tempo.
152 A COMUNIDADE DO REI

Estrutura na igreja primitiva


O livro de Atos e outros escritos do Novo Testamento mostram que
a igreja primitiva não era de todo desestruturada, embora não existis­
sem estruturas organizacionais formais.1As necessárias funções de ado­
ração, comunhão, liderança, edificação e testemunho eram todas supri­
das. Atos mostra que todas essas necessidades eram reconhecidas e tra­
tadas na igreja primitiva:
1. Adoração. Os primeiros cristãos não negligenciavam o louvor e o
culto coletivo. Aliás, a doxologia era o centro de sua vida (Ef 1.5-14;
3.14-21; 2 Pe 3.18; Ap 1.6; 7.9-12). Eles cultuavam juntos no pátio do
templo (At 2.46; 5.42), “louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o
povo” (At 2.47), bem como nas casas. M ais tarde, claro, quando os cris­
tãos judeus foram barrados do culto judaico e muitos gentios se conver­
teram, surgiu o culto exclusivamente cristão. A igreja tornou-se essenci­
almente uma rede de igrejas em casas, lugares em que diversos grupos
de fiéis cristãos oravam, cantavam, mantinham comunhão e cultuavam
juntos (1 Co 14.26-31; Ef 5.19; Cl 3.16).
2. Comunidade. A igreja primitiva era uma comunidade (koinonia).
Os primeiros cristãos “se dedicavam ... à comunhão” (At 2.42). Eles se
reuniam em grupos em casas particulares (At 2.46; 5.42) e cuidavam
das necessidades materiais uns dos outros (At 4.34-35; 1 Co 16.1-3). A
casa era o centro da vida em comum da igreja durante os primeiros
duzentos anos.
3. Liderança. A igreja primitiva devotava-se “ ao ensino dos apósto­
los” (At 2.42). Sinais e maravilhas eram realizados “ pelos apóstolos”
(At 2.43). De início, a liderança estava nas mãos dos apóstolos originais
(At 43.32-35); mais tarde surgiram ou foram escolhidos outros líderes
— apóstolos, profetas, mestres, presbíteros, diáconos, por exemplo. Ob­
servamos que “na igreja de Antioquia havia profetas e mestres” (At 13.1).
4. Edificação. A igreja primitiva devotava-se “ ao ensino dos apósto­
los” . A edificação não ocorria por acaso; a verdade cristã era ensinada
de maneira consciente. Os apóstolos ficavam “no pátio do templo, ensi­
nando o povo” (At 5.25), entre os quais provavelmente havia muitos
novos convertidos. E mesmo com perseguição, “todos os dias, no tem­
plo e de casa em casa, não deixavam de ensinar e proclamar que Jesus é
o Cristo” (At 5.42). Paulo disciplinava e nutria com desvelo, direta ou
indiretamente, as igrejas que fundava (veja At 20.20-31).
5. Testemunho. E evidente que a igreja primitiva tinha um testemu­
nho evangelístico impressionante, pela proclamação dos apóstolos (At
4.33; 5.42) e pelo exemplo e testemunho de um corpo cada vez maior de
A FORMA DA IGREJA 153

crentes comuns (At 8.1-4; 11.19-21). O poder da proclamação e o poder


do amor demonstrados na comunidade faziam, primeiro, com que tives­
sem “a simpatia de todo o povo” e, depois, que o Senhor acrescentasse
“diariamente os que iam sendo salvos” (At 2.47). Quanto ao testemu­
nho verbal, incluía a pregação no templo e em casas particulares, pre­
gação ao ar livre e testemunho diário, um a um, da multidão dos cren­
tes. M as era mais que verbal: incluía serviço (diakonia), bem como pro­
clamação.
Todas essas necessidades funcionais eram supridas durante os pri­
meiros dias da igreja cristã. Quando percorremos Atos e todo o Novo
Testamento, descobrimos essas cinco funções exercidas continuamen­
te, ainda que de maneiras diversas. O próprio Paulo pregava e ensinava
constantemente, estabelecia comunidades cristãs, enfatizava a adora­
ção e tomava providências para que houvesse uma liderança contínua.
Que tipo de estruturas nutria essa vida rica e variada na igreja pri­
mitiva? É vão tentar descobrir uma organização formal subjacente à
vida da igreja primitiva. A suposição de que os primeiros crentes “de­
vem ter tido” uma organização mais formal do que parece no Novo
Testamento é uma especulação infundada, que diz mais de nossa mania
moderna de nos organizar do que daquilo que a igreja realmente precisa
para ser eficiente. Vale notar que não só não se detecta nenhuma estrutu­
ra formalizada, como também não se prescreve nenhuma.
Se alguém percorrer o livro de Atos prestando atenção na estrutura,
pode chegar a algumas conclusões importantes.
Primeiro, há indícios consideráveis de estruturas emergentes em todo
o livro. Os líderes surgem ou são escolhidos; surgem padrões de reuniões;
tomam-se decisões. Vemos uma igreja jovem desenvolvendo formas fun­
cionais à medida que surgem necessidades ou problemas específicos.
Segundo, não há um ensino formal sobre estruturas nem uma expo­
sição de estruturas como tais.
Terceiro, algumas terminologias de estruturas e liderança são, ao
que parece, tomadas da prática judaica, como o padrão da sinagoga.
Quarto, novas estruturas são criadas para atender necessidades
emergentes. Isso se evidencia especialmente em Atos 2,4—6 .1 2 ,1 3 ,1 5 e
20. Nem sempre fica evidente, porém, se providências específicas (como
a escojha dos sete em At 6) tornaram-se práticas fixas ou não passavam
de soluções circunstanciais.
Quinto, certas coisas estão nitidamente ausentes em Atos — as mais
notáveis, um clero formalmente designado e uma constituição oficial
ou livro de disciplina. Observamos que “um grande número de sacerdo-
154 A COMUNIDADE DO REI

tes obedecia à fé” (At 6.7), mas não há indícios de que eles se tornavam
imediata ou automaticamente líderes da comunidade cristã.
Por fim, Atos revela diferenças de estruturas em diferentes circuns­
tâncias. Não se diz que o padrão da igreja de Jerusalém (At 2-5) foi
seguido em Antioquia ou que o padrão de Antioquia foi seguido em
Éfeso. Sem dúvida, havia muitas semelhanças entre um lugar e outro,
mas podemos assumir que as diferença e adaptações eram comuns. Não
vemos nenhuma preocupação de padronizar modelos, e nenhuma estru­
tura geral é prescrita a todos. Ao que parece, padrões comuns emergi­
am com base em entendimentos em comum, mas com adaptações e ino­
vações locais.
O que as comunidades cristãs locais do primeiro século têm em co­
mum? Que estruturas as ajudavam a desempenhar as funções necessári­
as e o testemunho do reino? A Bíblia evidencia escassos padrões que
podem ser devidamente chamados de “estruturas” . M as podemos iden­
tificar quatro estruturas gerais ou princípios estruturais fundamentados
no auto-entendimento teológico da igreja: liderança carismática, ado­
ração em grupos grandes, comunhão em grupos pequenos e trabalho
em rede “translocal” .
Liderança carismática. A discussão dos dons espirituais no capítu­
lo seis destaca a importância da liderança carismática para o entendi­
mento bíblico da igreja. O ponto que deve receber ênfase aqui é que a
liderança baseada em dons era, na prática, a norma para a igreja primi­
tiva (não só uma bela teoria de Paulo!). E legítimo considerar isso uma
estrutura, porque implica propósitos normativos e maneiras padroniza­
das de fazer as coisas.
Na igreja primitiva, a liderança era, em essência, uma questão de
reconhecer, por meio da sensibilidade à ação do Espírito na distribui­
ção dos dons espirituais, os líderes apontados por Deus. De início, não
havia uma providência organizacional formal para escolha ou substi­
tuição de líderes; os que tinham dons de liderança os exerciam e acaba­
vam reconhecidos como apóstolos, profetas, evangelistas, pastores ou
mestres. Na igreja local, eram em geral chamados de diáconos ou pres­
bíteros (1 Tm 5.17). Esse, aparentemente, era o padrão do Novo Testa­
mento. Além disso, não é possível discernir provisões bíblicas para estru­
turas de liderança. Assim, hoje, cada comunidade cristã local é livre
para desenvolver seus próprios padrões de liderança, desde que esses pa­
drões levem em conta as provisões bíblicas de liderança por intermédio
dos dons espirituais e estejam em harmonia com elas. A terminologia de
liderança, claro, variará de acordo com o contexto cultural.
A FORMA DA IGREJA 155

M as a “liderança carismática” não é fundamentalmente espontâ­


nea e não-estruturada? E justo chamar de estrutura a liderança por in­
termédio de dons espirituais? Sim, porque acima de tudo trata-se de
uma perspectiva da qual se considera a questão da liderança. E, segun­
do, na ausência dessa perspectiva, rapidamente surgem padrões muito
explícitos e fixos. Em qualquer grupo, são os padrões de liderança que se
institucionalizam de maneira mais rápida e rígida.
Reuniões de grupos grandes e grupos pequenos. Cultos em grupos
grandes e comunhão em grupos pequenos são estruturas básicas e com­
plementares. A igreja primitiva mantinha sua vida e testemunho reu­
nindo-se no pátio do templo e partindo o pão nas casas dos crentes (At
2.46). Os dois pontos centrais de sua vida ficavam “no templo e de casa
em casa” (At 5.42). Esse era o padrão tanto para testemunho como para
manutenção da vida que levava ao testemunho.
Nem todas as reuniões de grupos grandes eram no templo, claro.
Vemos uma feliz liberdade da dependência de prédios bem no início da
igreja. As vezes, essas reuniões eram mantidas em casas ou salas maiores
(At 1.13; 12.12) ou eram reuniões ao ar livre (At 2.6-13; 3.11). E prová­
vel que reuniões grandes tenham sido mantidas em uma variedade de
locais, à medida que a igreja crescia e se expandia, e (como acontece hoje
na China) algumas “igrejas no lar” talvez tenham-se expandindo, for­
mando grupos de cem ou duzentos que necessariamente se reuniriam
ao ar livre ou em algum espaço alugado.2
E provável que as reuniões de grupos grandes nem sempre eram uma
opção para as igrejas do Novo Testamento, e as reuniões nas casas pare­
cem ter sido o padrão mais comum. Ironicamente, comparadas com a
prática da maior parte das igrejas hoje, na igreja primitiva reuniões
pequenas nas casas eram o “modelo padrão” e as reuniões de grupos
grandes eram, ao que parece, mais raras. Na maioria dos lugares hoje,
pelo menos em sociedades em que os cristãos podem cultuar aberta­
mente, o que acontece é o contrário. Com freqüência, as reuniões nas
casas são consideradas complementares ou secundárias, desnecessárias
ou até subversivas.
H á, porém, uma dinâmica saudável na alternância de grupos gran­
des e pequenos, quando vemos ambos na igreja primitiva e em toda a
história. Onde os cristãos aprenderam isso? Em grande parte, era sim­
plesmente o jeito natural ou lógico de fazer as coisas. É, porém, signifi­
cativo que esse fosse o padrão que os apóstolos haviam seguido com
Jesus. Por dois ou três anos, os Doze haviam passado a maior parte do
tempo com Jesus, ou em meio a multidões ao ar livre ou em discussões
J

156 A COMUNIDADE DO REI

particulares em grupos pequenos com ele. Sempre havia essa alternância


harmoniosa de grupos grandes e grupos pequenos, em que o grupo peque­
no provia a vida comunitária intensa de prestação mútua de contas, que,
por sua vez, dava profundidade às reuniões em grande grupos (fossem
estes para culto ou para testemunho).
Aqui, também, seria possível citar vários exemplos, tanto do minis­
tério de Paulo como dos primeiros dois séculos da história da igreja.
Sabemos que Paulo utilizou a sinagoga, reuniões ao ar livre e, pelo me­
nos numa ocasião, uma escola (At 19.9-10). E também observamos fre-
qüentes referências de Paulo a reuniões em casas — “ à igreja que se
reúne com você em sua casa” (Rm 16.5; 1 Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2).
Rede “translocal”. O Novo Testamento revela um quarto padrão
básico, facilmente desconsiderado, na vida da igreja primitiva. Pode­
mos chamá-lo de rede “translocal” — a manutenção de contatos fre-
qüentes e vitais entre as centenas de corpos locais de igrejas, utilizando
as idas e vindas dos apóstolos e seus companheiros e as muitas mensa­
gens orais e cartas entregues em mãos. Essa rede, com certeza, não era
uma estrutura denominacional ou uma associação formalizada. M as,
por outro lado, também não significava que cada corpo local de crentes
era totalmente independente. Antes, o modelo da igreja primitiva era de
interdependência e contatos vitais. O nome “igreja independente” não
faria sentido no primeiro século.
Temos muitos indícios disso no Novo Testamento, de maneira mais
notável nas referências ao trabalho em rede realizado por pessoas que
viajavam com Paulo e outros apóstolos e líderes ou eram enviadas aqui
e ali por eles.3 Considere as implicações do trabalho em rede de Atos
20.2-4 e dos sete “operadores de rede” identificados, além de Paulo:
[Paulo] viajou por aquela região, encorajando os irmãos com muitas pala­
vras e, por fim, chegou à Grécia, onde ficou três meses. Quando estava a
ponto de embarcar para a Síria, os judeus fizeram uma conspiração contra
ele; por isso, decidiu voltar pela Macedônia, sendo acompanhado porSópa-
tro, filho de Pirro, de Beréia; Aristarco e Secundo, de Tessalônica; Gaio, de
Derbe; e Timóteo, além de Tíquico e Trófimo, da província da Ásia.
Além desses contatos face a face, sem dúvida numerosos, as muitas
cartas às igrejas que formam parte riquíssima do Novo Testamento são
em si provas e exemplos desse trabalho de rede. Cada carta implicava
pelo menos um mensageiro que a transportava.
A independência total de congregações locais não é o padrão bíbli­
co, pois há um corpo de Cristo, não múltiplos corpos. A metáfora do
corpo em 1 Coríntios 12 aplica-se legitimamente à igreja toda, não só a
A FORMA DA IGREJA 157

igrejas locais. As igrejas precisam umas das outras, e isso é tão verdade
hoje quanto nos dias do Novo Testamento. A igreja do Novo Testamento
serve-nos como exemplo de um bom equilíbrio entre os extremos da inde­
pendência total e das estruturas denominacionaís rígidas. Nem um nem
outro é bíblico. Igrejas independentes precisam encontrar alianças vitais
de colaboração translocal, assim como as igrejas denominacionaís pre­
cisam transformar-se em redes de transmissão de vida por meio de enco­
rajamento, edificação mútua e testemunho conjunto.4

Dois padrões
Hoje, claro, já não vivemos no mundo do cristianismo do primeiro
século. Analisamos a vida da igreja primitiva através de lentes embaça­
das por vinte séculos. Ainda que isso seja um problema (que fazer com o
peso acumulado em dois milênios de tradições eclesiásticas?), também
há uma vantagem. Uma leitura atenta dos séculos intermediários deve
nos dar um posto de observação ímpar, do qual podemos examinar o que
aconteceu naquelas primeiras décadas da era cristã.5
Donald Bloesch, analisando o impacto do ressurgimento da vida
comunitária cristã durante a década de 1970, examinou vários padrões
de discipulado cristão no livro Wellsprings o f Renewal. Ele concluiu que
“todos os cristãos são chamados à santidade” , mas “ nem todos os cris­
tãos são chamados à santidade do mesmo modo” . Bloesch entende que as
Escrituras apresentam dois padrões de discipulado:
N a história bíblica e eclesiástica, é possível discernir dois caminhos para
a santidade e ambos devem ser vistos como algo de igual valor aos olhos
de Deus. Surgiram dois padrões de discipulado, am bos com fundamenta­
ção biblica. Por um lado, há os chamados para viver totalmente no mundo
por am or ao Evangelho, e isso inclui vida familiar, posses e participação
nos negócios de estado ... Por outro lado, alguns cristãos estão sob o
imperativo de cumprir sua vocação à parte do mundo, em comunidades
religiosas ou em testemunho solitário, que muitas vezes implica renúncia
à família, a posses e ao uso da força e da violência. Tais pessoas sempre
serão uma minoria criativa, mas não se pode negar que são necessárias à
vida da igreja.6
Esses comentários podem ser úteis quando estudamos a questão da
estrutura. Bloesch colocou o ressurgimento das comunidades cristãs e
de outros tipos de comunidades intencionais da década de 1970 no con­
texto de toda a tradição monástica. Muitas das ordens monásticas
eram, pelo menos em seu início, formas de discipulado radical que
combinavam separação do mundo com serviço ao mundo. O exemplo
mais notável e, para muitos, ainda o mais atraente é o dos francisca-
158 A COMUNIDADE DO REI

nos, seguidores de S. Francisco de Assis.7


O que incomoda em qualquer sugestão de “dois padrões de discipu-
lado” — especialmente para os protestantes — é a implicação de um
tipo de nível superior ou de dois padrões de ética que cancele as duras
exigências do evangelho para a maioria dos crentes e eleve uma minoria
a uma elite superespiritual. Essa tendência deve ser rejeitada. Certa­
mente, não pode haver dois níveis de discipulado. Alguns não são chama­
dos para ser mais santos que os outros, como também não é possível
alguns serem legitimamente menos obedientes que os outros.
M as Bloesch estava apresentando não dois níveis, mas dois padrões
(estruturas) de discipulado. Se conseguimos admitir que todos são cha­
mados ao discipulado, mas nem todos são chamados do mesmo modo,
podemos dar um passo a mais em nosso entendimento da estrutura da
igreja.
Bloesch considerou as várias comunidades que têm surgido “em
protesto ao mundanismo da igreja” como formas paraeclesiásticas, “ já
que têm existência paralela à paróquia ou igreja institucional. Ao mes­
mo tempo, é importante que tenham um relacionamento orgânico com a
igreja, para que não se torne sectária ... Idealmente, uma comunidade
religiosa deve ser uma ecclesiola (pequena igreja) na ecclesia” .8Bloesch
apresentou sete marcas de “uma comunidade ou fraternidade funda­
mentada na Bíblia no mundo hoje” : (1) deve ser genuinamente evange­
lical, dedicada ao evangelho e extrair sua principal inspiração da Bí­
blia; (2) deve ser um modelo reduzido da igreja, mostrando assim, de
maneira visível, a realidade da comunidade cristã; (3) deve ser um agen­
te de reconciliação entre as igrejas, sendo nesse sentido católica e tam­
bém evangelical; (4) deve estar voltada para fora, com um fervor evan-
gelístico, missionário; (5) deve estar em conflito com os valores domi­
nantes e o espírito da cultura ambiente, destacando assim a linha entre
a igreja e o mundo; (6) deve ser um sinal escatológico do reino vindouro
de Deus por meio de seu testemunho radical da soberania de Cristo; e
(7) deve dedicar tempo ao estudo e instrução, bem como à oração e
proclamação.5
Ao falar dos dois padrões de discipulado, Bloesch falava, na reali­
dade, da questão da estrutura da igreja. Embora nem todos os crentes
sejam chamados à vida comunal ou quase comunal, afirmou Bloesch, a
igreja ainda precisa dessas comunidades intencionais como padrão bá­
sico dentro de sua estrutura geral. Alguns crentes receberão um chama­
do especial para esse padrão. Assim, há lugar para a comunhão menor,
mais íntima, ou ecclesiola dentro da comunidade maior da igreja. To-
A FORMA DA IGREJA 159

dos os cristãos são chamados para a mesma dedicação total a Cristo,


mas os membros dessa comunidade têm um compromisso mais com­
pleto com os outros membros do grupo e com a missão específica para a
qual o grupo existe.
O missiólogo Ralph Winter examinou a questão da estrutura da
igreja de outra perspectiva. Seu interesse principal era identificar as es­
truturas mais eficientes para disseminação do evangelho e formação de
igrejas pelo mundo. Essa análise instigante de estruturas para missões é
paralela aos “dois padrões de discipulado” apresentados por Bloesch em
alguns aspectos importantes.10
Como a primeira das “duas estruturas da missão redentora de Deus”,
Winter indicou a igreja local, cuja característica básica é incluir famílias
inteiras. Portanto, essa comunidade deve preocupar-se com toda a gama
de preocupações humanas. Ela não pode concentrar-se de maneira efe­
tiva numa única preocupação; pelo menos, isso não pode durar muito.
Em outras palavras, há algo na natureza da igreja — seja uma estrutura
local, uma denominação que alcance o país, uma comunhão internacional
ou toda uma tradição eclesiática (por exemplo, família de igrejas) — que
depende vitalmente da completitude humana. A glória da igreja, mesmo de
uma igreja local, é que pacientemente se empenha em promover uma co­
munhão equilibrada e redentora que atinja todo o leque de idades, as dife­
renças de sexo e até as diferenças de etapa da vida."

Em contraste, Winter indica uma segunda “estrutura redentora” ,


mais restrita. Tomando um grupo da Aliança Bíblica Universitária como
exemplo, Winter observou que esse grupo “existe de maneira expressa (e
urgente) para suprir a necessidade de culto e comunhão homogênea, mas
com isso carece precisamente da outra necessidade contínua de culto e
comunhão heterogênea”. A função de um grupo mais restrito como esse
pode ser contrastado com o papel mais amplo da igreja: “A igreja, por­
tanto, tem por característica preservar a completa unidade da comuni­
dade humana, enquanto o estudo bíblico dos homens, a sociedade de
senhoras, a escola dominical e o grupo de jovens manifestam a completa
diversidade da comunidade humana” .12
Winter acredita que essas duas estruturas — uma, mais inclusiva e
geral, e outra, mais restrita e potencialmente direcionada para missões
— podem ser encontradas ao longo de toda a história da igreja, remon­
tando até aos dias do Novo Testamento. Ele dá o nome de modalidade
e sodaltcio a essas duas estruturas. A modalidade é a comunidade com­
pleta da igreja, compreendendo famílias inteiras, enquanto o sodalício
é uma comunidade menor dentro da igreja, com participação mais res-
160 A COMUNIDADE DO REI

trita e em geral dedicada a uma tarefa específica, tal como missões ou


evangelização.13 Winter salientou que a comunidade da igreja primitiva
repetia a estrutura básica da sinagoga: “ Vamos reconhecer que a estru­
tura chamada com tanto carinho de ‘Igreja do Novo Testamento’ é ba­
sicamente uma sinagoga cristã” .14As novas igrejas fundadas por Paulo,
em particular, eram “essencialmente edificadas segundo as linhas das
sinagogas judaicas, envolvendo a comunidade dos fiéis em um dado lu­
gar” .15Na realidade, a única característica singular nessas novas comu­
nidades era a sua capacidade de, por meio da obra reconciliadora de
Cristo, derrubar “o muro divisor de hostilidades” entre judeus e gentios
e juntá-los numa comunhão aberta (Ef 2.11-22). O padrão comum da
igreja no Novo Testamento era uma comunidade do tipo encontrado nas
sinagogas, a qual (conforme observado acima) em geral se concentrava
em torno de cultos coletivos de grupos grandes e comunhão em grupos
pequenos e células de culto que se reuniam principalmente em casas.
Mas Winter vê uma segunda estrutura, mais restrita, atuante no
Novo Testamento, especialmente no trabalho missonário de Paulo:
Embora saibamos muito pouco acerca da estrutura do esforço evangelísti-
co em que atuavam os proselitistas judeus pré-paulinos, sabemos ... que
trabalhavam em todo o Império Romano. Seria surpreendente se Paulo não
seguisse em alguma medida os mesmos procedimentos. E sabemos muito
mais sobre como Paulo trabalhava. Ele foi, é bem verdade, enviado pela
igreja de Antioquia. M as uma vez longe de Antioquia, ele parecia bem
autônomo. A pequena equipe por ele formada era economicamente auto-
suficiente quando as circunstâncias exigiam. Ela também dependia, de tem­
pos em tempos, não só da igreja de Antioquia, mas de outras igrejas que
haviam surgido como resultado dos labores evangelísticos. A equipe de
Paulo certamente pode ser considerada uma estrutura.16
Em outras palavras, Paulo tomou do judaísmo tanto a estrutura da
sinagoga como a estrutura de uma equipe missionária. Isso serviu de
padrão em seu trabalho de plantar igrejas e no ministério missionário.
Assim, de acordo com Winter, “a equipe missionária de Paulo pode ser
considerada um protótipo de todos os empreendimentos missionários
subseqüentes organizados por obreiros dedicados e experientes que se
alistavam como uma segunda decisão além da filiação à primeira es­
trutura” .17
Essa segunda estrutura complementar de segundo passo voltada
para o trabalho mantinha vínculos com a igreja de Antioquia, mas era
semi-autônoma. Já que era composta por um grupo menor de adultos,
todos dedicados à mesma missão, tinha liberdade e flexibilidade para
desempenhar sua missão (evangelização e formação de igrejas) com
A FORMA DA IGREJA 161

muito mais eficiência do que conseguiria a comunidade maior agindo


como um todo.
O que aconteceu quando a igreja primitiva ganhou domínio por
todo o Império Romano? Winter percebe a continuidade do mesmo pa­
drão de duas estruturas complementares, mas de maneiras diferentes.
Igrejas paroquiais dentro das dioceses desenvolveram-se por todo o im­
pério e “ainda preservavam a constituição básica da sinagoga, a saber, a
combinação de velhos e novos, homens e mulheres — ou seja, um orga­
nismo biologicamente perpetuador” . Ao mesmo tempo, “a tradição
monástica desenvolveu-se de várias formas primitivas como estrutura
secundária” . Assim, “há já no século IV dois diferentes tipos de estrutu­
ras — a diocese e o monastério— , ambos significativos na transmissão e
expansão do cristianismo. Ambos os padrões são tomados do contexto
cultural de seu tempo, exatamente como a sinagoga e a equipe missio­
nária cristãs primitivas” .18
M uitos protestantes reagem quase que instintivamente contra o
monasticismo, mas a reação deles é, em geral, contra a forma decadente
do monasticismo que existia na época da Reforma. O monasticismo
primitivo, apesar de um dualismo infeliz entre o espírito e a matéria na
teologia, era muitas vezes altamente criativo e reformador em relação à
sociedade. Em todo caso, a conversão de boa parte da Europa em muito
se deve às ordens monásticas, e muitos movimentos de renovação medie­
vais começaram dentro dessas ordens ou levaram à fundação de novas
ordens. Sem justificar toda a teologia implicada, pode-se ainda desta­
car a utilidade da estrutura e citá-la como exemplo de um grupo mais
restrito, voltado para uma tarefa.
Winter tece um último paralelo histórico: o surgimento da socieda­
de missionária independente durante os últimos duzentos anos, a que
se deve grande parte da fundação de milhares de novas igrejas cristãs
em todo o mundo. De novo, exteriormente, essa estrutura é diferente
tanto da equipe missionária do Novo Testamento como das ordens mo­
násticas ou catequéticas medievais, mas pode-se notar a equivalência
funcional e ponderar sobre a importância do paralelo.
O principal ponto de contato entre os “dois padrões de discipula-
do” de Bloesch e as “duas estruturas missionárias” de Winter é o reco­
nhecimento da utilidade prática de comunidades consagradas mais res­
tritas, de segundo passo, para cumprir a missão cristã no mundo. Am­
bos alegam (corretamente, creio) que essas duas estruturas têm justifi­
cativa bíblica e encontram numerosos precedentes na história da igreja.
Estamos lidando, aqui, com estruturas para alguma missão. Isso
162 A COMUNIDADE DO REI

significa estruturar a comunidade do povo de Deus de tal maneira que


sirva com mais eficiência como agente do reino, desempenhando aque­
las tarefas “ que Deus preparou antes” (Ef 2.10). As análises um tanto
diferentes de Bloesch e Winter, junto com minha experiência e refle­
xão, indicam a necessidade de grupos menores, mais restritos, voltados
para tarefas, dentro da comunidade maior da igreja. Isso certamente é
verdade no nível local, mas também em nível denominacional e em
outros níveis mais amplos. Dentro da igreja local, por exemplo, os
cristãos preocupados com necessidades específicas ou interessados em
determinados ministérios podem ter bons resultados se formarem gru­
pos missionários que funcionem como comunidades de grupos peque­
nos em torno daquele ministério ou missão específica. Gordon Cosby
mostrou como tais grupos podem funcionar no livro Handbook for
Mission Groups, baseado cm sua ampla experiência com esses grupos
na inovadora Igreja do Salvador, em Washington D.C.’9
Em nível denominacional, regional ou em outros níveis, estruturas
semelhantes de ministério especial também são úteis. Elas podem assu­
mir a forma de sociedades semi-autônomas para formação de igrejas,
como apresentadas por Winter, ou podem existir como comunidades
intencionais dedicadas a um ministério social cristão específico, con­
forme citado por Bloesch. Esses grupos podem ser totalmente indepen­
dentes de denominações existentes ou podem ser filiadas a uma. Os
pontos importantes são que essas estruturas (1) consistem em pessoas
comprometidas umas com as outras e com uma missão em particular e
(2) consideram-se uma forma especializada da igreja— uma “ordem”
ou estrutura missionária dentro da igreja maior, com a qual continuam
em comunhão e comunicação.
No nível local, pode-se imaginar o seguinte cenário. Algumas co­
munidades em forma de grupos pequenos funcionam dentro da comu­
nidade maior da igreja. Trata-se de grupos voltados para tarefas ou
objetivos, e cada uma existe para um propósito específico, mas dife­
rente. Embora o estudo da Bíblia, a oração e o compartilhar sejam
comuns a todos os grupos, cada um também possui uma missão bem
específica para a qual existe e se dedica.
Assim, nas noites de quarta-feira, por exemplo, a comunidade de
música acaba de completar seu período de estudo bíblico e oração e
está entrando numa sessão de planejamento musical. Alguns dos mem­
bros dp grupo vão se encontrar no fim da semana para ensaiar. Do
outro lado da cidade, mais uma dúzia de pessoas reúne-se na casa de
um dos membros. E a comunidade missionária. O grupo orou junto a
A FORMA DA IGREJA 163

respeito dos pedidos recentes do campo missionário e agora se ocupa


do planejamento e concretização do programa missionário da igreja.
Simultaneamente, em outra casa, a comunidade de justiça social estu­
da um trecho da legislação que está no Congresso, decidindo qual deve
ser a posição da igreja. Enquanto isso, duas das equipes de visitas evan-
gelísticas estão percorrendo o bairro e outra está num estudo bíblico de
confirmação. M as nem todos os grupos de trabalho estão reunidos essa
noite; algumas células de discipulado e os grupos de multimídia, edu­
cação cristã e outros reúnem-se em outros dias.20
As vantagens dessa estrutura são muitas. Alistamos algumas a
seguir.
Em primeiro lugar, a organização em torno de grupos de ministé­
rio reconhece e permite a diversidade de personalidades e dons espiri­
tuais. Nem todos os cristãos são chamados para a mesma tarefa e
nem todos têm os mesmos dons espirituais. “Portanto, usemos os nos­
sos diferentes dons de acordo com a graça que Deus nos deu” (Rm
12.6, BLH). E uma tragédia tentar forçar todos os crentes a estar no
mesmo ministério, como se todos ocupassem o mesmo lugar no cor­
po. É uma tragédia ainda maior quando os dons ficam sem uso. Os
grupos de missão oferecem uma estrutura compatível com os dons
espirituais.
Segundo, a organização em torno de grupos de missão reconhece
que certas tarefas são tão urgentes e tão prioritárias que exigem com­
prom isso total de algumas pessoas dedicadas. Assim, essa estrutura
favorece o devido reconhecimento das prioridades e meios práticos de
cuidar de maneira eficiente de necessidades prioritárias. E mais útil e
menos frustrante conseguir que um grupo pequeno se envolva numa
missão específica do que tentar conseguir que um número grande de
pessoas se entusiasme e se dedique à mesma tarefa.
Terceiro essa forma de organização também reconhece que a mis­
são é desempenhada melhor no contexto da comunidade. O empreen­
dedor solitário e o individualista obstinado não exemplificam um
modelo adequado de serviço cristão. O cristão bíblico é chamado
tanto para a comunidade como para a missão. Isso é bíblico e psico­
logicamente realista. Embora haja lugar legítimo para líderes fortes,
essa liderança deve trabalhar por meio de comunidades pequenas que
permitam liderança colegiada e distribuição de tarefas. O serviço
cristão efetivo sempre é Jesus Cristo trabalhando por meio de seu
corpo, realizando as obras que ele realizou quando esteve sobre a
terra.
164 A COMUNIDADE DO REI

Quarto, a organização em torno de grupos pequenos supre as ne­


cessidades de comunhão e culto homogêneos e heterogêneos.21 A igre­
ja deve ser uma comunhão conciliadora que derruba barreiras de sexo,
nível social, idade, antecedentes raciais e étnicos e condição econô­
mica. Ainda assim, algumas tarefas são mais bem cumpridas por gru­
pos mais homogêneos em um aspecto ou outro. Esse arranjo junta a
unidade e a diversidade, a homogeneidade e a heterogeneidade, de
um modo que permite ao corpo de Cristo ser o que Deus desejava que
ele fosse.
Por fim, pelos motivos acima, os grupos de ministério são, com
freqüência, mais eficientes para cumprir certas tarefas e atingir alvos
específicos que indivíduos solitários, comissões e diretorias nomeadas
ou toda a comunidade da igreja em geral. O grupo de ministério tem
um nível mais alto de compromisso com respeito à missão específica
implicada. Ele concentra e direciona a luz do evangelho, a fim de que
siga direto para o alvo. O número menor de membros, o alto compro­
misso e a isenção de outras preocupações (já que não se incumbe de
todo o peso do programa da igreja) lhe dá uma flexibilidade invejável,
que aumenta sua eficiência.
Todos os grupos de ministério, porém, devem estar ligados ao cor­
po. Cada grupo, na realidade uma subcomunidade, funciona corno parte
da comunidade maior da igreja. Pode causar muito dano ao corpo um
grupo pequeno com espírito independente que escape pela tangente e
crie divisão. Essas estruturas devem, portanto, ser coordenadas de
maneira efetiva e orgânica, tanto no nível local como no nível mais
amplo. Na comunidade de uma igreja local, pelo menos uma pessoa de
cada grupo com alguns dons de liderança deve participar de um grupo
de coordenação que funcione como câmara de compensação para tro­
ca de informações e centro de idéias de planejamento. Assim, os grupos
têm apoio mútuo, cada um contribuindo com o outro, demonstrando
ainda em outro aspecto a mutualidade do corpo de Cristo.
De modo semelhante, cada grupo não deve desempenhar sua mis­
são específica de maneira isolada, independente dos outros grupos.
Todos os grupos fazem parte do corpo. E necessário cooperação entre
os grupos para obter eficiência máxima. Isso acontece dentro da comu­
nidade de uma igreja local, e o mesmo se aplica a um grupo de igrejas
locais dentro de uma cidade ou região. Jam es F. Engels e H. Wilbert
Norton, no livro W hats Gone Wrong with the Harvest?, demonstram
a necessidade dessa cooperação e mostram como consegui-la.22
Essa cooperação é igualmente necessária nos níveis regional, nacio-
I

A FORMA DA IGREJA 165

nal e global, onde é notória a falta de planejamento e coordenação


cooperativos entre sociedades missionárias, organizações evangelísti-
cas e grupos semelhantes. Um dos desdobramentos animadores em mis­
sões globais nas últimas décadas tem sido as cooperações, parcerias e
redes de trabalho crescentes entre organizações missionárias. Algumas
organizações estão começando a fazer amplo uso de equipes transcul-
turais e trans-étnicas, embora isso possa ser difícil. E a cooperação e a
parceria em missões globais estão crescendo, especialmente na form a­
ção de igrejas em lugares remotos. Phil Butler, diretor internacional da
Interdev, cita o surgimento de “uma infraestrutura completamente nova
de missões e evangelização” , hoje, em missões em campos pioneiros:
parcerias que demonstram “ que o povo de Deus pode trabalhar junto
por longos períodos e com resultados extraordinários” .23
Estruturar igrejas, tanto em nível local como em níveis mais gerais,
com base em tarefas identificadas e dons espirituais descobertos, é um
caminho para uma estrutura mais carismática e orgânica da igreja. Isso
é, ao mesmo tempo, mais fiel ao quadro neotestamentário e mais funci­
onal numa sociedade pós-moderna e tecnológica. Devidamente conce­
bida e seguida, é um caminho para afastar o institucionalismo e evitar os
efeitos mortais de programas e promoções impessoais.
M as é preciso acrescentar uma nota de cautela. E fácil demais o
cristão nominal padrão, bem-institucionalizado, dizer: “Isso mesmo, é
ótimo: duas estruturas de discipulado. Você pega o caminho difícil e eu
pego o fácil. Discipulado oneroso pode ser negócio para você, mas não
para mim” .
E claro que não é assim. Ou se é discípulo de Jesus Cristo ou não se
é cristão de jeito nenhum. A menos que os crentes experimentem uma
koinonia estreita e onerosa com os irmãos em Cristo, só terão uma
pálida noção do que é a igreja.
Sim, nem todos os discípulos de Jesus estavam entre os doze que
deixaram tudo para segui-lo. Para cada discípulo é dado um dom dife­
rente e um jeito diferente de ministrar. Alguns até recebem o dom de
celibato (1 Co 7.1-7). M as todos, sem exceção, são chamados para o
mesmo nível de discipulado.
Podemos, portanto, introduzir duas restrições ao que se disse nas
páginas anteriores. Primeiro, todos os cristãos devem estar envolvidos
em alguma forma de convivência em grupo pequeno em torno da Pala­
vra. N ão falamos, aqui, de grupos de comunhão superficial, mas de
células de verdadeira koinonia, em que os crentes assumem responsabi­
lidade pesada uns pelos outros enquanto seguem vivendo no mundo.
166 A COMUNIDADE DO REI

Segundo, não podemos confundir nenhuma expressão histórica par­


ticular de padrões de discipulado com a norma bíblica. Podemos apren­
der, por exemplo, do monasticismo, das estruturas missionárias con­
temporâneas ou dos exemplos do Novo Testamento. M as nenhuma delas
deve ser considerada um modelo perfeito para hoje. Acima de tudo, pre­
cisamos evitar a concepção de discipulado que o divide em duas catego­
rias, o que muitas vezes comprometeu o testemunho da igreja no passa­
do, levando ao sincretismo funcional (se não doutrinário). A tarefa da
igreja é encontrar os padrões de obediência que, por um lado, reconhe­
çam diferenças de chamado e, por outro, lance uma convocação univer­
sal ao discipulado e à obediência.

Igrejas em células
Um desdobramento animador na igreja mundial nos últimos trinta
anos tem sido o reconhecimento crescente de que igrejas saudáveis que
se reproduzem são essencialmente celulares em estrutura. Isso 6 uma
implicação natural do fato de que a igreja é, na realidade, um organis­
mo vivo social e espiritual.
A maioria das igrejas comete o erro de construir a vida muito ex­
clusivamente em torno do culto de adoração dominical. Quando a igreja
é um movimento, possui muitos pontos de vida, energia iniciativa, en­
corajamento e reforço. Ela compreende que sua vida não gira em torno
de um único evento principal. A congregação existe em muitos pontos
de vida e, de maneira vital, onde o Espírito age de múltiplas maneiras.
Sua vida é uma rede de células e relacionamentos, e o conjunto todo —
não só o culto de domingo — é igreja.
Muitas igrejas carecem da vitalidade inerente à vida da igreja por
causa de uma concentração exclusiva ou quase exclusiva no culto se­
manal de adoração. Isso não é só conseqüência de uma ênfase exagera­
da nos prédios. E também uma questão de mentalidade e modelo—
uma concepção limitada pelo excesso de confiança em modelos insti­
tucionais e ênfase demasiada em prédios; um conceito limitado de igreja
estabelecida (muitas vezes literalmente) de tijolos e cimento. Em con­
traste, a igreja do Novo Testamento— e a igreja em todos os tempos e
lugares em que tem demonstrado grande impacto espiritual e social—
tem vivido e mantido seu testemunho por meio de relacionamentos
múltiplos, células e redes que permeiam toda a sociedade (veja, por
exemplo, At 5.32, 9.36-43, 16.32, 17.17, 20.20; Rm 16.5, 16.19; ICo
10.3; Hb 3.13; 1 Pe 2.16-25).
E aqui que a vida celular da igreja é especialmente relevante. Os
A FORMA DA IGREJA 167

modelos de igrejas em células lembram à igreja algo essencial quanto à


sua natureza. M esmo assim, as estruturas celulares não são panacéia.
A menos que a igreja realmente se compreenda de acordo com a Bíblia,
tentativas de edificar uma estrutura de células podem dar para trás e
acabar vacinando a igreja contra uma descoberta sadia da vida orgâni­
ca, celular, na igreja.
Agora, há vários modelos de igrejas em células, alguns melhores e
mais capazes de irradiar vida que outros. A rede mais conhecida foi
desenvolvida pelo ministério de Ralph Neighbour nos Estados Unidos,
em Cingapura e em outras partes do mundo. Esse movimento, ainda
que controverso em alguns contextos, tem demonstrado o poder de cír­
culos pequenos e dedicados de crentes e a sede de muitos por uma pro­
fundidade significativa de discipulado.24
Igrejas em células têm-se tornado populares em alguns lugares em
todo o mundo, inclusive na Colômbia c no Brasil. O Instituto Jetro,
cujo ministério é desenvolvido em parceria com a Faculdade Teológica
Sul-Americana em Londrina, Paraná, realizou em 2003 uma pesquisa
com uma amostragem de igrejas que adotaram estruturas celulares.
Uma, com cerca de 1.600 pessoas que participam de igrejas em células,
revelou que o modelo em geral está funcionando bem no auxílio ao
crescimento espiritual das pessoas, especialmente pela experiência da
uma comunidade vital capaz de transformar vidas. M as alguns proble­
mas vieram à tona. As duas questões citadas com maior freqüência
foram o problema de como integrar crianças à estrutura celular e o
fato de que muitos adultos não estavam correspondendo às expectati­
vas de que todos seriam, com efeito, evangelistas e discipuladores, le­
vando outros às células.25
Isso indica uma fraqueza em alguns modelos de igrejas em célu­
las— uma falta de flexibilidade estrutural. As igrejas precisam adap­
tar as estruturas para seu contexto particular, sem concessões quanto a
ensinos bíblicos básicos a respeito da vida da igreja e do discipulado.
A idéia de que cada cristão será evangelista e discipulador dentro da
estrutura celular é, na realidade, um erro de interpretação do discipula­
do bíblico. Ela desconsidera a diversidade de dons, temperamentos e
chamados concedidos por Deus, bem como as variações de responsabili­
dades e tempo disponível que as pessoas podem ter numa igreja saudável.
Em Londrina, no Brasil, falei com dois pastores que supervisionam
um ministério em células altamente bem-sucedido numa congregação
com quase 4.000 membros. A igreja está crescendo e expandindo-se
por uma rede de células. O sistema estava funcionando bem, mas os
168 A COMUNIDADE DO REI

pastores estavam preocupados com o fato de que muitos participantes


não estavam levando novas pessoas às células. Aventei que talvez esti­
vessem trabalhando com expectativas pouco razoáveis e precisassem
expandir o modelo e variar as estruturas.
Não estou falando de concessões no discipulado, mas de reconhe­
cer a diversidade de pessoas e dons que Deus traz para dentro da igreja.
Já que os dons e a personalidade variam, as estruturas devem variar e
ser flexíveis. O mais importante é que as estruturas precisam ajudar a
igreja a atingir o âmbito, a variedade e a riqueza de ministérios que
Deus deseja. Pode ser que aquela irmã que não consegue levar novas
pessoas à célula não esteja realmente funcionando no nível padrão;
talvez ela tenha dons de com paixão que a igreja não reconheceu nem
incentivou. Talvez aquele irmão que parece pouco interessado na evan­
gelização tenha paixão pela justiça que, por meio de estruturas de edi­
ficação e facilitação, poderiam florecer em novas áreas de ministério.
Dentro da ecologia maior da igreja, essas novas iniciativas podem, na
realidade, também ampliar o testemunho evangelístico da igreja.
Estruturas celulares que nutrem de maneira genuína a vida e o
testemunho da igreja de fato aprofundam o discipulado autêntico, mes­
mo que se diversifiquem o quanto for necessário para que a igreja possa
expandir e progredir por meio de toda a gam a de dons e vocações con­
cedidos pelo Espírito. Aqui, é crucial uma liderança pastoral sábia e
cheia de discernimento.
A igreja em células é outra variação na longa experiência da igreja
na redescoberta da importância da comunidade em que haja prestação
mútua de contas e da necessidade de estruturas funcionais para ali­
mentar e expandir a vida da igreja. M odelos celulares podem ser com­
preendidos dentro da longa história das estruturas de ecclesiola e soda-
lício, que têm enriquecido a vida da igreja e multiplicado seu testemu­
nho repetidas vezes. A abordagem da igreja em células é uma das coi­
sas que estão sendo usadas por Deus hoje para ajudar as igrejas em
muitos lugares a se tornar verdadeiras comunidades do Rei.

A igreja e as estruturas institucionais


A discussão sobre a dimensão carismática da igreja contra a insti­
tucional, no capítulo cinco, salientou que é inevitável que a igreja as­
suma algumas formas institucionais, ainda que ela não seja uma insti­
tuição. Agora, é bom dizer um pouco mais sobre as diferenças entre a
igreja como a comunidade do povo de Deus, conforme apresentada nas
Escrituras, c todas as estruturas institucionais ou paraeclesiásticas de
A FORMA DA IGREJA 169

apoio que existem de maneira ostensiva para servir à igreja.


Quando olhamos para a igreja contemporânea, não vemos só a
comunidade do povo de Deus: também vemos uma proliferação de or­
ganizações eclesiásticas, denominações, instituições, agências, asso­
ciações, etc. Obviamente, essas estruturas não possuem base bíblica
explícita. Como encará-las?
Há duas tendências comuns. Uma é dizer que essas estruturas são,
de fato, parte da essência da igreja, “ sacralizando-as” com isso, na
prática (tornando-as sagradas e, portanto, intocáveis). A outra ten­
dência é marcar uma posição anti-institucional e dizer que todas essas
estruturas estão erradas e devem ser abandonadas. A primeira opção é,
em essência, a eclesiologia católica romana pré-Vaticano II, embora
muitos protestantes adotem inconscientemente a mesma idéia. A se­
gunda opção é popular entre os que vêem as manchas do cristianismo
institucional e que, como Sam no início deste capítulo, entendem que
de algum modo é possível um cristianismo sem instituição.
Uma opção mais propícia, porém, é considerar todas as estruturas
institucionais como estruturas paraeclesiásticas, que têm existência
paralela à comunidade do povo de Deus, mas não são em si a igreja.
Essas estruturas têm três fatores em comum: são, em geral, estrutura­
das de maneira institucional e não orgânica ou carismática; têm exis­
tência paralela à comunidade da igreja; e existem de maneira ostensi­
va para servir a igreja.
Essas estruturas paraeclesiásticas são úteis na medida em que aju­
dam a igreja em sua missão, mas são artefatos humanos, moldados
pela cultura. Embora a igreja em si faça parte do vinho novo do evan­
gelho, todas as estruturas paraeclesiásticas são odres — úteis, às vezes
indispensáveis, mas também sujeitas ao desgaste e à decadência.
Ao lidar com toda a questão da estrutura da igreja, portanto, é bom
fazer distinção clara entre a igreja como comunidade do povo de Deus e
todas as estruturas paraeclesiásticas, sejam formas organizacionais de
uma igreja local, estruturas denominacionais, agências missionárias,
organizações evangelísticas ou instituições educacionais (Figura 5). As­
sim, a igreja é uma realidade espiritual visível sempre válida em qual­
quer cultura. Mas as estruturas paraeclesiásticas não são a essência da
igreja. Os crentes dentro dessas estruturas, em sua vida comum como
povo e comunidade, são a igreja (Mt 18.20). Quando essas estruturas
paraeclesiásticas são confundidas com a igreja ou consideradas parte de
sua essência, resultam todo tipo de enganos infelizes, e confinamos a
igreja à sua expressão cultural e estrutural particular.
170 A COMUNIDADE DO REI

Figura 5. A Igreja e as Estruturas Paraeclesiásticas

Essa distinção entre a igreja e as estruturas paraeclesiásticas traz


alguns benefícios: (1) Aquilo que é sempre relevante em todas as cultu­
ras (a igreja) é distinto do que se atrela à cultura e é por ele determinado
(estruturas paraeclesiásticas). Há liberdade para considerar a igreja cul­
turalmente relevante e por ela influenciada, mas, apesar disso, não atre­
lada à cultura. (2) Também há liberdade para se modificar estruturas
paraeclesiásticas quando há mudanças na cultura, pois, em si, as estru­
turas não são igrejas e, portanto, são em grande parte regidas mais pela
A FORMA DA IGREJA 171

cultura do que pela Bíblia. (3) Por fim, e mais importante, essa distinção
torna possível considerar uma vasta gama de legitimidade em confis­
sões e estruturas denominacionais. Se, em si, essas estruturas não são a
igreja, sendo moldadas pela cultura, então volumes inteiros de contro­
vérsias e polêmicas em torno da igreja e sua estrutura perdem a urgên­
cia e tornam-se meramente secundárias. Confissões bem divergentes
ganham liberdade (pelo menos em potencial) para se concentrar naquilo
que as unem, ou seja, ser o povo de Deus e cumprir suas responsabilidades
do reino, ao mesmo tempo que relegam as diferenças estruturais aos
planos da relatividade cultural e histórica. Assim, a consideração cruci­
al sobre a estrutura passa da legitimidade bíblica para a relevância fun­
cional.
O Quadro 3 apresenta outras implicações dessa distinção entre a
igreja bíblica e as estruturas paraeclesiásticas. A bem da análise, as
diferenças entre as duas são mais salientadas do que ocorrem normal­
mente na prática.

A Igreja Estruturas Paraeclesiásticas


1. C ria ç ã o de D e u s ------------------------------------------------ 1. C ria ç õ e s h u m a n a s
2 . F a to e s p iritu a l ---------------------------------------------- 2. F a to s s o c io ló g ic o s
3 . V á lid a e m q u a lq u e r c u ltu ra ------------------------ 3 . M o ld a d a s p e la c u ltu ra
4 . C o m p re e n d id a e a v a lia d a s e g u n d o a s — 4 . C o m p re e n d id a s e a v a lia d a s s e g u n d o a
E s c ritu ra s s o c io lo g ia
5 . V a lid a d e d e te rm in a d a p e la s q u a lid a d e s - 5 . V a lid a d e d e te rm in a d a p e la fu n ç ã o e m re la ç ã o
e s p iritu a is e p e la fid e lid a d e à s E s c ritu ra s à m is s ã o d a Ig re ja
6 . A g e n te d iv in o d e e v a n g e liz a ç ã o e ---------- 6 . A g e n te s h u m a n o s p a ra e v a n g e liz a ç ã o e
re c o n c ilia ç ã o s e rv iç o
7 . E s s e n c ia l ------------------------------------------------------- 7. D is p e n s á v e is
8 . E te rn a ------------------------------------------------------------ 8 . T e m p o ra is e te m p o rá ria s
9 . R e v e la ç ã o d iv in a ------------------------------------------ 9. T ra d iç õ e s h u m a n a s
10 . P r o p ó s ito d e g lo r ific a r a D e u s ----------------- 10. P r o p ó s ito de s e rv ir a Ig re ja

Quadro 3. D iferenças entre a Igreja e as Estruturas Paraeclesiásticas

Note que a distinção entre a igreja e as estruturas paraeclesiásti­


cas não é uma simples redefinição dos conceitos de igreja visível e invisí­
vel. A igreja é visível e invisível, como também as estruturas paraeclesi­
ásticas. Até as organizações seculares têm suas dimensões invisíveis,
conforme destacou Jacques Ellul, e quanto mais espiritual a igreja, tan­
to mais visível, quando sua espiritualidade torna-se observável em co-
172 A COMUNIDADE DO REI

munhão e testemunho.26 A distinção chave está mais entre a igreja com­


preendida de acordo com a Bíblia e estruturas eclesiásticas auxiliares,
que não existiam de maneira normativa nos dias do Novo Testamento,
mas apareceram em muitas formas ao longo da história da igreja. Elas
são paraeclesiásticas, pois têm existência paralela à igreja, funcionando
na prática como estruturas ministeriais. Dizer que essas estruturas são
teologicamente necessárias para a existência da igreja seria dizer que a
igreja do primeiro século não era verdadeira e completamente igreja.
O termo estruturas paraeclesiásticas tem sido usado para designar
organizações não-denominacionais e interdenominacionais, como Ali­
ança Bíblica Universitária, Cruzada Estudantil e Profissional para Cris­
to, Visão Mundial ou um conselho de igrejas. M as uma análise bíblica
(não meramente pragmática) da igreja e da estrutura eclesiástica deve
questionar essa concepção. Não há base bíblica, afinal, para uma dis­
tinção teológica entre estruturas denominacionais e paradenominacio-
nais. Também não há nenhuma base para considerar organizações ob­
viamente idealizadas por homens (um desenvolvimento relativamente
recente na história da igreja) algo essencial para a igreja. A distinção
mais básica parece estar entre a igreja como o corpo de Cristo, como a
comunidade do povo de Deus, e todas as estruturas institucionais, inclu­
sive denominações. Ralph Winter sugere que essas estruturas sejam cha­
madas de estruturas infraeclesiásticas, para destacar sua relação de su­
bordinação e também de apoio à igreja e para evitar que se faça uma
ruptura completa entre a comunidade cristã e essas estruturas.
A concepção protestante das Escrituras e da revelação não nos per­
mite incluir estruturas organizacionais ou outras estruturas não encon­
tradas na Bíblia como parte real da igreja propriamente dita. Há uma
diferença fundamenta] entre a concepção protestante de igreja e a cató­
lica romana tradicional, ainda que as implicações da Reforma nessa
área da eclesiologia nunca tenham sido levadas até sua conclusão lógica.
Os protestantes que fazem distinção entre a revelação bíblica e a tradi­
ção da igreja não deviam ter dificuldades para discernir entre a igreja
bíblica e as estruturas eclesiásticas institucionais. As categorias são pa­
ralelas. A igreja bíblica é fundamentada na revelação bíblica; estruturas
paraeclesiásticas ou infraeclesiásticas são baseadas em tradições pós-
bíblicas.
Seria essa distinção entre igreja e paraigreja só outro jeito de distin­
guir entre povo e organização? Em certo sentido, sim. A igreja é o povo
de Deus. M as esse povo, para ser a igreja, deve viver em comunidade por
meio de estruturas adequadas e por meio do exercício dos dons espiritu-
A FORMA DA IGREJA 173

ais — não importam as organizações em que as pessoas possam viver e se


mover secundariamente. Depois que distinguirmos entre estruturas ecle­
siásticas institucionais e a igreja como o povo de Deus (traçando a linha
de demarcação aqui, e não entre a denominação ou igreja local e os
ministérios não-denominacionais), então poderemos ver mais nitidamen­
te com que eficiência podemos e devemos desenvolver a missão.27
Pela Bíblia, é irrelevante, por exemplo, se a evangelização é realiza­
da por uma denominação ou por alguma organização não-denominaci-
onal. Em ambos os casos, a estrutura responsável é, na realidade, uma
estrutura paraeclesiástica, não a igreja em si. Não tem importância te­
ológica fundamental se as missões transculturais (para tomar outro
exemplo) são realizadas por quadros missionários denominadonais ou
por agências missionárias independentes. Ambas as formas de ministé­
rio podem ser igualmente válidas ou inválidas, dependendo do fato de
realmente estenderem e edificarem a comunidade do povo de Deus. E
ambas as opções têm suas vantagens e desvantagens práticas.
A evangelização, não importa a agência que a patrocine, só é legíti­
ma quando planta e edifica a igreja, estende seu testemunho e proclama
o reino de Deus. Todo ministério social, não importa a estrutura patro­
cinadora, é biblicamente válida só quando, de algum modo, é uma ex­
pressão autêntica da comunidade do povo de Deus e dos propósitos re-
conciliadores divinos. Empreendimentos evangelísticos e missionários
que formam novas comunidades cristãs ou somam às já formadas são
legítimos se realmente edificam a igreja da maneira bíblica e dão teste­
munho autêntico do reino de Deus. Caso contrário, são um esforço per­
dido, não importa o quanto sejam estruturados ou a legitimidade bíbli­
ca que aleguem possuir. Evidentemente, é de importância fundamental
que todo ministério, seja evangelístico, seja profético, tenha o cuidado
de contribuir para a unidade visível e espiritual, em vez de desunir o
corpo de Cristo.
O importante, para cada forma de ministério, é que a igreja bíblica
seja edificada e cresça rumo à maturidade em Cristo — ou seja, que co­
munidades cristãs locais ou grupos de comunhão se multipliquem, que
essas comunidades demonstrem de fato a qualidade de vida vista em Je­
sus Cristo e seu reino e que a igreja viva no mundo como o povo redimido de
Deus. Da perspectiva bíblica, questões de filiação ou estrutura denomina-
cional ou não-denominacional são estritamente secundárias.
Em suma, a igreja como a comunidade do povo de Deus estrutura-
se melhor por meio de dons espirituais de liderança, alternância de reuni­
ões em grupos grandes e pequenos e redes de ligações translocais. Ela
174 A COMUNIDADE DO REI

deve reconhecer a utilidade de grupos de ministério mais restritos de


segundo passo e incentivá-los dentro da comunidade maior. Além dis­
so, a igreja deve ter o cuidado de fazer distinção entre a essência de sua
personalidade e todas as estruturas paraeclesiásticas, de modo que não
fique presa à cultura e, por outro lado, para que em períodos de aviva-
mento o vinho não transborde dos odres. Esses princípios são ilustrados
na figura 6.

Figura 6. Um Modelo de Estrutura de Igreja

Implicações para o testemunho transcultural


Por fim, dessa discussão sobre a estrutura da igreja surgem algumas
conclusões sobre testemunho transcultural.
A FORMA DA IGREJA 175

1. A igreja, conforme revelada na Bíblia, é sempre relevante em qual­


quer cultura. Isso ocorre porque a igreja como a comunidade de crentes
no espaço e no tempo é um organismo cósmico, histórico e carismático
que procede da ação divina e transcende qualquer forma cultural em
particular.
2. De modo semelhante, as estruturas básicas de liderança carismá­
tica, as reuniões em grupos grandes e grupos pequenos e o trabalho em
redes translocais são sempre viáveis em qualquer cultura. Isso decorre
da análise acima e também tem sido demonstrado com abundância em
toda a história da igreja e na prática missionária corrente.
3. Por outro lado, as estruturas paraeclesiásticas não são necessari­
amente válidas em qualquer cultura. Uma vez que são moldadas pela
cultura, estruturas paraeclesiásticas específicas só serão transferíveis de
uma cultura para outra na medida em que as duas culturas forem com­
patíveis. Com freqüência, serão necessárias adaptações. Os missionári­
os devem estar preocupados com a transferência e implantação da igreja
conforme descrita pela Bíblia, não com a reprodução de instituições ou
formas secundárias que, na realidade, nada mais são do que estruturas
paraeclesiásticas.28
4. O exercício dos dons espirituais resultará em evangelização e teste­
munho transcultural. Desde o avanço rumo aos gentios registrado em Atos
e ao longo dos séculos, Deus tem convocado e enviado seus missionários
carismaticamente capacitados. O padrão de Antioquia (At 13.1-3), às
vezes aumentado por perseguição (11.19-21), vem-se repetindo inúmeras
vezes e continuará a se repetir até a volta de Cristo (Mt 24.14). E Deus
quem chama e quem dá os dons, e o dom e o chamado seguem juntos.
5. A igreja é, em si, uma comunidade missionária, e qualquer grupo
de missionários pode ser uma encarnação legítima da igreja. Isso signi­
fica que não pode haver nenhuma controvérsia de igreja versus estrutu­
ras missionárias. Onde quer que estejam os cristãos, ali está a igreja e
ali os crentes têm o dever de demonstrar a realidade da comunidade
cristã. O verdadeiro ponto de tensão, por conseguinte, fica entre a igre­
ja como a comunidade do povo de Deus e as expressões institucionais
da igreja. Os missionários nunca podem ir a outra cultura e deixar para
trás a igreja! M as podem, e muitas vezes devem, deixar para trás ou
modificar as formas paraeclesiásticas peculiares à sua própria cultura.
6. Por outro lado, devem-se criar estruturas paraeclesiásticas para
missão e testemunho sempre que for necessário realizar uma tarefa. Em­
bora a igreja seja o agente divino para missão, estruturas paraeclesiásti­
cas dinâmicas podem ser agentes humanos para o ministério, úteis nas
I

176 A COMUNIDADE DO REI

mãos de Deus para a propagação mais rápida e eficiente do evangelho.


Grupos denominacionais devem colaborar livremente com outras orga­
nizações paraeclesiásticas que estejam fazendo o trabalho que eles não
conseguem realizar ou que os ajudem a levar adiante o próprio testemu­
nho. Essas organizações, porém, sempre devem ter por objetivo central a
formação da igreja (por mais que os meios sejam bem diferentes) e o
anúncio do reino de Deus, ao mesmo tempo em que não se devem deixar
confundir com a igreja ou tornar-se fins em si mesmas.
7. Já que são formadas por homens e moldadas pela cultura, todas as
estruturas paraeclesiásticas devem estar sujeitas a uma análise sociológi­
ca e teológica rigorosa, para determinar sua eficiência como instrumentos
da igreja. Não devemos hesitar em submeter agências missionárias, movi­
mentos evangelísticos, grupos de reforma social ou estruturas denomina­
cionais a análises sociológicas e antropológicas rigorosas. A história nos
ensina que muitas dessas estruturas acabarão sucumbindo ao institucio-
nalismo e se tornarão mais obstáculos ao evangelho do que apoios. O fato
de Deus ter levantado um movimento não é garantia contra infidelidade
ou idolatria posteriores. Depois de fazer uma distinção clara entre essas
estruturas e a essência da igreja, podemos perguntar livremente até que
ponto essas formas estão de fato funcionando — sem o medo de estar de
algum modo profanando coisas santas.29
Em última análise, a estrutura da igreja é uma questão de a comuni­
dade do povo de Deus usar a inteligência e a criatividade que Deus lhe
deu para produzir instrumentos úteis para ampliar o testemunho da
igreja, sempre lembrando que esses instrumentos humanos estarão sob
o julgamento divino e não podem jamais ser cultuados .

NOTAS
1 Nossa teologia da igreja deve ser baseada não só nas Epístolas e nos Evangelhos, mas
também no livro de Atos, porque vemos a teologia encarnada na cultura e na história.
Atos é a melhor fonte de informações quanto ao funcionamento e estrutura da igreja
primitiva. A comparação de Atos com o restante do Novo Testamento ajuda-nos a discer­
nir as verdades e os princípios chaves por trás da história específica registrada em Atos.
2 Embora o uso que Paulo fez da escola de Tirano pareça ter sido principalmente de
natureza evangelística (At 19.9), ainda assim sugere a diversidade de opções de que
dispunha para reuniões no mundo do século I.
2 Observe, por exemplo, as seguintes passagens: At 8.14; 9.32; 9.38; 10.23; 11.1, 12,
25-30; 11.25-30; 12.25; 13. 3-6, 49; 14.21-27; 15.1-4; 15.22-16.5; 18.22-28; 20.1-6,
17; 21.8-10; 27.1-2; 1 Co 16.3-12; 17-18; Ef 6.21; Cl 4.7; Tt 3.12.
A FORMA DA IGREJA 177

4 Teologicamente, isso talvez pareça implicar que a resposta adequada para a questão
aflitiva da unidade da igreja não é nem a unidade organizacional global nem a diversida­
de e proliferação denominacional irrestrita, mas algo entre uma e outra que tenha algu­
ma forma de trabalho orgânico efetivo e funcional numa rede por todo o mundo. A
questão é discutida em mais detalhes no próximo capítulo.
5 Hoje, os cristãos estão na situação privilegiada de saber de fato mais, pelo menos
potencialmente, sobre a igreja primitiva e os primeiros séculos cristãos do que qualquer
geração anterior. Isso se deve principalmente às descobertas e progressos na arqueolo­
gia, história, estudos a respeito da Bíblia e campos afins ocorridos no século XX. Os que
levam a sério o nascimento e a vida da igreja cristã como algo que provê direção para a
igreja hoje devem estar na vanguarda dessa pesquisa, Quanto à relevância da história da
igreja e, em especial, dos movimentos de renovação, para a vitalidade da igreja hoje,
veja Snyder, Signs o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zonder-
van, 1989; Eugene: Wipf & Stock, 1997).
6 Donald G. Bloesch, Wellsprings o f Renewal, Promise in Christian Communal Life (Grand
Rapids: Eerdmans, 1974), pp. 19-20.
7 Um estudo proveitoso de S. Francisco, apresentando perspectivas variadas desse santo
do século XII, é a antologia Brother Francis, ed. Lawrence Cunningham (Huntington:
Our Sunday Visitor, 1975). Uma biografia ficcionalizada inspirativa escrita por um autor
protestante, Glen Williamson, é Repair My House (Carol Stream: Creation House, 1073).
Veja também Francis and Clare: The Complete Works, trad. Regis J. Armstrong e Ignatius
C. Brady, na série Classics of Western Spirituality (New York, Paulist Press, 1982).
8 Bloesch, Wellsprings o f Renewal, p. 108.
9 Ibid., pp. 106-12.
10 Veja Ralph D. Winter e R. Pierce Beaver, The Warp and the Woof: Organization for
Mission (South Pasadena: William Carey Library, 1970), e Ralph D. Winter, "The Two
Structures of God's Redemptive Mission", em Ralph D. Winter e Steven C. Hawthor­
ne, eds.. Perspectives on the World Christian Movement: A Reader, 3. ed. (Pasadena:
Willian Carey Library, 1999), pp. 220-30 (originalmente publicado em Missiology, 2:1
n.° 1 [1974]: 121-39).
11 Winter e Beaver, The Warp and the Woof, p. 54.
12 Ibid., p. 45.
13 Ibid., pp. 52-62; Winter, "Two Structures", pp. 223-24. No catolicismo romano, "soda-
lício" é um termo que costuma designar ordens religiosas.
14 Winter, "Two Structures", p. 220.
15 Ibid., p. 221.
16 Ibid.
17 Ibid. À medida que esses ecdesiolae ou grupos missionários assumem formas instituci­
onais, tornam-se estruturas paraeclesiásticas, e os crentes dentro deles não represen­
tam menos a igreja verdadeira que uma congregação local. Onde quer que se encon­
trem e como quer que funcionem, estruturas eclesiásticas institucionais devem ser con­
sideradas estruturas paraeclesiásticas (paralelas à igreja), não a essência da igreja.
18 Winter, "Two Structures", pp. 222-23. O plano diocesano foi tomado da administra­
ção política romana; Winter entende que a comunidade monástica segue os moldes
da organização militar romana. Veja uma elaboração complementar da tese das
"duas estruturas" de Winter em Charles J. Mellis, Committed Com m unities: Fresh
Streams for World Missions (South Pasadena: William Carey Library, 1976).
19 Gordon Cosby, Handbook for Mission Groups (Waco: Word, 1975).
178 A COMUNIDADE DO REI

20 Esses grupos missionários específicos são meras sugestões. Uma igreja locai, depen­
dendo do tamanho, pode ter dois ou mais grupos envolvidos com questões sociais
específicas, como bom uso do meio ambiente, abuso de drogas, aborto, trabalho com
crianças ou distribuição de alimentos, em lugar de uma comunidade de justiça social
que englobe tudo. Assim, também, alguns grupos podem estar envolvidos com evan­
gelização e missões de diferentes tipos. Os grupos surgem de um senso de necessida­
de, de modo que serão tão variados quanto os dons dos grupos e tão específicos
quanto as necessidades identificadas. Veja a história da Heartland Evangelical Church
em Snyder e Runyon, Decoding the Church: Mapping the DNA o f Christ's Body (Grand
Rapids:: Baker, 2002).
21 Winter e Beaver, The Warp and the Wolf, pp. 5-55.
22 James F. Engel e H. Wilbert Norton, What's Gone Wrong with the Harvest? (Grand
Rapids: Zondervanm 1975), em especial pp. 79-102.
23 Phil Butler, "Looking Back... Looking Forward", Mission Frontiers 22, n.°3 (2000): 9
(ênfase no original).
24 As fontes essenciais são Ralph W. Neighbour, Where Do We Go from Here? A Guide-
boof for the Cell Group Church (Houston: Touch Publications, 1990); William A. Be­
ckham, The Second Reformation: Reshaping the Church for the 21st Century (Houston:
Touch Publications, 1995); Joel Comiskey, Home Cell Group Explosion: How Your Small
Group Can Grow and Multiply (Houston: Touch Publications, 1998) e Groups o f 12: A
New Way to Mobilize Leaders and Multiply Groups in Your Church (Houston: Touch
Publications, 1999). Veja também CellChurch: A Magazine for Second Reformation (Box
19888, Houston, TX 77224); Joel Comiskey, Reap the Harvest: How a Small-Group Sys­
tem Can Grow Your Church (Houston: Touch Publications, 1999); Karen Hurston,
Breaktrough Cell Groups: H ow One Am erican Church Reaches People for Christ
through Creative Small Groups (Houston, Touch Publications, 2001) — a história do
Victory Christian Center, Tulsa, OK.
25 Instituto Jetro, "Pesquisas com Células", Londrina, Paraná, Brasil, 2003. É interessante
que os participantes das células mostraram mais preocupação com a questão das crian­
ças do que os líderes das células, e os líderes das células mostraram mais preocupação
com a questão da evangelização que os participantes das células em geral.
26 Jacques Ellul, The Meaning o f the City (Grand Rapids: Eerdmans, 1970).
27 Veja uma crítica conservadora do uso do termo paraedesiástico em quatro artigos de
James A. DeJong em The Banner, começando por "Parachurch Groups: A Look at a
New Term", na edição de 10 de junho de 1977 (pp. 14-15).
28 Uma reflexão sobre a situação um tanto semelhante da tradução das Escrituras de
uma língua para outra pode ajudar a esclarecer esse ponto.
29 Engel e Norton estão corretos ao afirmar que "um departamento de análise deve
fazer parte de qualquer organização cristã de comunicação, por menor que seja".
Engel e Norton, What's Gone Wrong with the Harvest? p. 123.
179

10
A UNIDADE
DA IGREJA

A igreja local sempre faz parte da igreja una, santa, apostólica, uni­
versal de Jesus Cristo. Aliás, já que um corpo de Cristo é tanto local
como universal, podemos dizer que a verdadeira igreja sobre a terra é
simultaneamente uma e diversa, santa e carismática, apostólica e profé­
tica, universal e local, contextualizada em tempos e lugares específi­
cos.1Ser verdadeiramente igreja, conforme escreveu J. I. Packer:
significa reconhecer a centralidade da igreja e a primazia do coletivo no
propósito de Deus. O coletivo significa a negação do individualismo numa
conjunção consciente de vida e ação em, sob e para nosso Senhor Jesus
Cristo.
Em termos locais, isso significa envolvimento, abertura, dependên­
cia e ministério mútuos dentro da congregação; em termos ecumênicos,
significa concretizar a fraternidade [e irmandade] com todos os cris­
tãos em todo o mundo, mais “toda a companhia do céu” ... em adora­
ção contínua do Pai e do Filho por intermédio do Espírito.2
Deve-se ver a igreja em sua perspectiva universal e ecumênica mais
ampla para compreendê-la corretamente. Em certo sentido, a igreja está
plenamente presente em cada comunidade local de crentes, pois ali está
Jesus Cristo. Ela possui toda a carga genética do corpo de Cristo. M as
cada igreja local também participa do único povo de Deus espalhado
por todo o mundo.
Esse fato nos impõe a questão da unidade da igreja. No capítulo dois,
observamos o que o Pacto de Lausanne, em 1974, disse acerca da natureza
da igreja. Começamos, agora, observando o que o pacto disse acerca da
unidade da igreja sob o título “ Cooperação na Evangelização” :
Afirmamos que o propósito de Deus é que haja na Igreja unidade visível de
pensamento quanto à verdade. A evangelização também nos convoca à
unidade, posto que a união de forças robustece o nosso testemunho, assim
como a desunião solapa o evangelho da reconciliação. Reconhecemos, po-
180 A COMUNIDADE DO REI

rèm, que a união puramente oriunda de organização pode se apresentar de


várias formas, sem, contudo, necessariamente contribuir para a intensifi­
cação da evangelização. Todavia, nós que compartilhamos da mesma fé
bíblica, devemos estar estreitamente unidos pelos laços da comunhão fra­
ternal, da obra e do testemunho. Confessamos que o nosso testemunho, às
vezes, tem sido desvirtuado pelo individualismo culposo e pela desnecessá­
ria duplicação de esforços. Dispomo-nos a buscar uma união mais profun­
da em torno da verdade, do culto a Deus, da santidade e da nossa missão.3
Participantes do Congresso Internacional de Evangelização Mundi­
al realizado em Lausanne, em 1974, regozijaram-se na unidade que sen­
tiram e partilharam juntos durante dez dias. Culturas, línguas e tradi­
ções eclesiásticas diversas foram temporariamente mescladas, quando
cristãos participaram juntos de cultos e estudos, tiveram comunhão e
diálogo, unidos pelo Espírito na mesma fé vital em Jesus Cristo. Gran­
des ajuntamentos de cristãos em outras ocasiões e lugares muitas vezes
têm tido o mesmo efeito.
A alegria experiencial muito real e válida de estarmos juntos em
ocasiões tão especiais, porém, não nos deve cegar para três fatos funda­
mentais em torno do problema da cooperação na missão e do testemu­
nho da igreja em todo o mundo. (1) Experiências como as do Congresso
de Lausanne são possíveis porque crentes de carne e osso juntam-se num
tempo e lugar específicos. (2) A unidade nesses momentos, embora real,
é temporária; permanece mais como lembrança do que como fato pre­
sente. (3) Essas experiências de unidade, ainda que baseadas no evange­
lho transcendente, são possibilitadas por estruturas de tempo e espaço,
redes de trabalho, comissões e grupos de apoio específicos, tudo feito
por homens. Experimenta-se uma unidade porque criam-se estruturas
facilitadoras específicas.
E bom manter esse tipo de realismo sociológico em mente quando
ponderamos sobre a unidade da igreja.

Unidade: uma expressão do evangelho


A unidade é característica fundamental e essencial do evangelho. A
fé bíblica repousa sobre a seguinte afirmação básica: “ O Senhor, o nos­
so Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus , de todo o seu
coração, de toda a sua alma e de todas as suas forças” (Dt 6.4-5; veja
Mc 12.29-30). A Bíblia insiste que só há um Deus, que Deus, a Trinda­
de, é um e que tudo o que existe vem de suas mãos. As Escrituras rejei­
tam radicalmente qualquer dualismo ontológico (seja entre o bem e o
mal, seja entre o espírito e a matéria) ao começar com Deus e fazer o
universo depender da palavra criativa de Deus. Deus e o universo são
A UNIDADE DA IGREJA 181

distinguíveis, e só Deus é eterno.


Em contraste, toda filosofia e religião não-bíblica é fundamental­
mente dualista, sustentando uma realidade dividida em dois níveis.4 Ao
rejeitar a verdade revelada, a humanidade tende a empurrar o problema
presente do mal de volta lá para a eternidade e a tornar toda a realidade
eternamente dicotômica. Esse dualismo está por trás de todo pensa­
mento não-bíblico e tem, muitas vezes, infectado a teologia cristã.
O fato de que Deus é um provê o fundamento para a ênfase dada
pelo Novo Testamento na unidade do evangelho e da igreja. “Há um só
corpo e um só Espírito, assim como a esperança para a qual vocês fo­
ram chamados é uma só; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo;
um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em
todos” (Ef 4.4-6). Há, portanto, uma certa “previsibilidade” na unida­
de da igreja. O evangelho é único e só há um evangelho, pois é a verdade
revelada do Deus único. M as o fato de que a igreja é, por natureza,
única, caso não considerado segundo a Bíblia, pode facilmente levar a
um dualismo platônico entre uma igreja ideal (verdadeira e seguramen­
te única) e a igreja real sobre a terra. A igreja visível é de fato fragmen­
tada, mas pensamos que não precisamos nos preocupar com isso por­
que, afinal, a igreja ideal, “espiritual” , é inalteravelmente única, e isso é
o que realmente importa — pelo menos é o que pensamos.
Porque há um Deus, só há um evangelho. E porque só há um evan­
gelho, só há uma igreja. Jesus Cristo é um, e a igreja é seu único corpo.
Diante das facções na igreja de Corinto, Paulo perguntou: “Acaso Cris­
to está dividido?” (1 Co 1.13). Não está, nem na cabeça nem no corpo.
M as é muito comum a realidade da igreja no espaço e no tempo falhar
e não conseguir manifestar essa unidade, exatamente como ocorreu em
Corinto, no primeiro século. Muitos grupos “professam ser seguidores
do Senhor, mas diferem em mente e seguem seus diferentes caminhos,
como se o próprio Cristo fosse dividido” .5
Os evangelicais não têm dificuldades em afirmar a unidade de Deus
e até do evangelho, mas com frequência temos dificuldades com respei­
to à igreja. O que significa “um só Senhor, uma só fé, um só batismo”
cm termos práticos, quando somos confrontados com a realidade da
igreja na história?
Desde que o segmento da igreja que se denomina evangelical tem
dificuldades com a unidade da igreja, isso denuncia o problema teológi­
co que é o centro deste livro: a doutrina da igreja.* Apesar da Reforma
do século XVI em seus vários ramos, o protestantismo nunca desenvol­
veu uma doutrina plenamente bíblica da igreja. O protestantismo (e,
182 A COMUNIDADE DO REI

assim, o evangelicalismo contemporâneo) opera com uma concepção


muitas vezes confusa e um tanto platônica da igreja, que mina a possibi­
lidade de se chegar a uma solução biblicamente saudável para muitos
problemas relacionados com a natureza e a missão da igreja. Isso ocor­
re quer o problema seja a unidade, evangelização, justiça, preocupação
ambiental ou qualquer outro. A única solução, portanto, é voltar às
Escrituras e escavar conscienciosamente uma eclesiologia bíblica que
não entre em conflito com a soteriologia bíblica, que considere a eclesi­
ologia e a soteriologia interdependentes e considere a igreja parte do
evangelho.
A eclesiologia católica romana baseia-se nos pilares duplos das Es­
crituras e da tradição. M as a tradição em geral tem significado predo­
minância do institucional sobre o carismático na experiência e doutri­
na da igreja, conforme vimos.7 Com freqüência, os protestantes conser­
vadores têm aceitado, inconscientemente, essa maneira de entender o
corpo de Cristo. O resultado é um bloqueio sobre a questão da unidade
organizacional versus unidade espiritual, que as consideram categorias
quase mutuamente excludentes. Por causa das deficiências notadas no
catolicismo romano e no movimento ecumênico, muitos evangelicais
tendem a rejeitar de imediato qualquer conversa sobre unidade organi­
zacional e ficam satisfeitos com uma vaga unidade “espiritual” indefi­
nida, que, por conseguinte, possui pouco valor prático e histórico. Henri
Blocher estava correto ao dizer que “ a unidade invisível deve ser expressa
de maneira visível” . Sua pergunta “Será que não caímos na satisfação
própria fácil quando aclamamos nossa unidade espiritual?” pode ser res­
pondida com um sim.8
A recuperação de um entendimento bíblico da igreja significará uma
capacidade de ver que a unidade espiritual e a unidade organizacional
(ou melhor, estrutural) são diferentes, mas não opostas. As opções não
se limitam a aceitar a igreja como algo essencialmente institucional (a
concepção católica romana tradicional) ou a rejeitar a validade e, por­
tanto, a necessidade, de toda e qualquer unidade organizacional. Estru­
turas organizacionais e institucionais têm sua validade funcional, desde
que sejam consideradas estruturas paraeclesiásticas e não sacralizadas.
Já que só existe um Deus e um evangelho, só pode haver uma igreja
(amplamente diversificada!) de Jesus Cristo. M as a afirmação uma igreja
deve ser compreendida de acordo com a Bíblia. Só há um povo de Deus
sobre a terra, e é como povo de Deus que a igreja é uma.9 Isso é muito
mais que uma unidade espiritual invisível. Essa unidade não deve ser
desviada para a “ eternidade” , pois existe no espaço e no tempo, ainda
A UNIDADE DA IGREJA 183

que de maneira imperfeita. Por motivos teológicos e práticos — ou seja,


para o bem de um testemunho efetivo — deve receber alguma expressão
estrutural visível. A unidade da igreja é, pois, exigida como expressão
do próprio evangelho. A igreja deve ser de fato “uma no Espírito” .
Por duas vezes, a declaração de Lausanne sobre a “ Cooperação na
Evangelização” (citada anteriormente) usa a idéia de união em torno da
verdade. A união na verdade é uma união em Jesus Cristo, que é a verda­
de. Ele é, aliás, a verdade encarnada. Assim, a unidade da igreja em
torno da verdade significa encarnar a verdade de Jesus Cristo no mundo
e nas culturas de hoje.
A oração de Jesus em João 17 é especialmente útil nesse ponto. Vá­
rios elementos destacam-se nessa oração notável em favor da unidade da
igreja.
Primeiro, o propósito principal da unidade da igreja é que Deus
possa ser glorificado. Jesus orou: “ Glorifica o teu Filho para que o teu
Filho te glorifique” (Jo 17.1). A preocupação maior de Cristo, aqui e
sempre, era que Deus Pai fosse glorificado. Oito vezes Jesus referiu-se a
isso em sua oração. Cristo orou pela unidade e pelo testemunho de seus
discípulos para que Deus pudesse receber glória. Jesus disse sobre seus
seguidores, no versículo 10: “E eu tenho sido glorificado por meio deles” .
Esse, acima de tudo, é o propósito e objetivo da igreja. O povo de Deus é
chamado para viver de maneira doxológica, “para o louvor da sua gló­
ria” (Ef 1.12); “a ele seja a glória na igreja e em Cristo Jesus” (3.21).
Conforme disse Peter Beyerhaus, “ Hoje é extremamente importante en­
fatizar a prioridade desse objetivo doxológico antes de todos os outros
objetivos de missão” .10
O propósito secundário da unidade da igreja é a comunicação au­
têntica das boas novas. Isso é afirmado de maneira mais clara nos versí­
culos 21 e 23 de João 17. Jesus orou para que todos os seus seguidores
“ sejam um, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também
estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste ... eu neles
e tu em mim. Que eles sejam levados à plena unidade, para que o mun­
do saiba que tu me enviaste e os amaste como igualmente me amaste” .
A igreja deve demonstrar “união em verdade” , para que as boas novas
possam receber crédito.
Em terceiro lugar, união na verdade é unidade com Cristo e, assim,
com a Trindade. A oração de Jesus era “que sejam um, assim como
somos um” (Jo 17.11). Essa unidade é “ eu neles e tu em mim” (v. 23). O
mesmo tipo de unidade que existe entre as pessoas da Trindade deve ser
encontrado dentro da igreja e entre Cristo e a igreja. A igreja deve ser
184 A COMUNIDADE DO REI

uma “como tu estás em mim e eu em ti” (v. 21). A palavra chave em toda
essa oração é “como” . Observe em especial o versículo 18: “Assim como
me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo” . A igreja deve demons­
trar dentro dela mesma e em relação a Jesus Cristo a mesma qualidade
de relacionamento que existe entre Jesus Cristo e Deus o Pai. Isso é união
em verdade — verdadeira unidade.
Ainda que de modo mais implícito que explícito, as palavras de Je ­
sus têm conteúdo altamente trinitário. Talvez nossa dificuldade em
manter juntas a unidade e a diversidade da igreja deva-se em parte ao
fato de não conseguirmos prestar atenção suficiente à natureza trina e
una de Deus. Aqui, alguns dos modelos trinitarianos mais recentes de
igreja anotados no capítulo três podem ser úteis, desde que sejam sadi­
os, fundamentados nas Escrituras.
Por fim, essa união na verdade significa tanto unidade na fé como
unidade de vida; tanto ortodoxia como ortopraxia. União na verdade
significa união na fé, pelo menos a respeito das grandes verdades cen­
trais da fé. Os cristãos partilham a mesma esperança, a mesma fé (Ef
4.4-5). Jesus orou por seus discípulos porque eles haviam recebido e
mantido suas palavras (Jo 17.6-8). A declaração chave é o versículo 17:
“Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” . União na verdade
é união na Palavra de Deus e nas palavras de Cristo que, em si, é um
dom do Espírito Santo. Por quatro vezes, Jesus falou da palavra que
havia recebido do Pai e transmitido aos discípulos.
O que Jesus partilhou com seus seguidores continha um conteúdo
verdadeiro, que podia ser comunicado; não era uma simples experiência
existencial supra-racional. E significativo que Cristo tenha orado: “por
aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles” (Jo 17.20),
não só por meio da vida deles. As boas novas do reino implicam comuni­
car uma mensagem. E a união na verdade deve ser fundamentada numa
concordância básica em torno do conteúdo da mensagem.
M as união na verdade também significa união de vida. Significa
ortopraxia, ou o que Francis Schaeffer chamou de “ortodoxia de comu­
nidade” . A encarnação exige que as implicações da verdade revelada
sejam vivenciadas na experiência diária. Isso também está envolvido na
oração: “santífica-os na verdade” (Jo 17.17). Os seguidores de Cristo
são enviados para o mundo como o próprio Jesus foi: como verdade
encarnada (v. 18). Seus discípulos devem ser conhecidos pelo amor (v.
26) e pela alegria (v. 13) que demonstram, O fato de a igreja ser uma em
Cristo, como Cristo é um com o Pai por meio do Espírito, certamente
significa mais que acordo doutrinário. A cruz deve ser tomada como
A UNIDADE DA IGREJA 185

base, não só da soteriologia, mas também da ética.11 “Não há dicotomia


bíblica entre a Palavra falada e a Palavra tornada visível na vida do povo
de Deus. [As pessoas] vão ver enquanto ouvem, e o que vêem deve estar
de acordo com o que ouvem” .12 Tanto a unidade como a evangelização
implicam muito mais que simplesmente transmitir o que Samuel Esco-
bar chamou de “sumários verbais” do evangelho.
A unidade da igreja, especialmente em escala mais ampla, com cer­
teza não envolverá acordo em cada ponto da doutrina, prática ou meto­
dologia. M as ela deve ser baseada na união na verdade, tanto na dimen­
são da fala como na da encarnação.

Um ecumenismo evangélico
Conforme já se observou, o próprio Jesus destacou a importância
pragmática da unidade para o testemunho, quando orou: “para que to­
dos sejam um ... para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21).
É estranho que a preocupação evangelística e missionária entre os
evangelicais com freqüência tenda mais à fragmentação do que à unida­
de. Pessoas profundamente preocupadas com a evangelização são, mui­
tas vezes, as que se opõem com mais rigidez ou então são indiferentes
às questões práticas da unidade. Zelo pela evangelização muitas vezes
significa que os missionários têm pouco zelo pela unidade e coopera­
ção. M as essa não era a atitude de Jesus. A bem de uma evangelização
eficiente, devemos considerar mais seriamente a oração de Jesus pela
unidade.
Se a evangelização e a glória de Deus nos convocam à unidade, essa
questão torna-se, para cristãos diligentes, uma preocupação maior do
que geralmente é. Os evangelicais fariam bem em considerar o que
Donald Bloesch escreveu em seu capítulo sobre unidade cristã em Re-
form o f the Church:
O alvo do ecumenismo autêntico não é uma superigreja com poder e pres­
tigio, mas, antes, uma comunhão mundial de crentes unidos sob a Palavra e
dedicados à conversão e salvação [de todas os povos], O que devíamos
almejar é ... um ecumenismo evangelical que colocasse a missão cristã
acima da sobrevivência institucional.11
O alvo desse “ecumenismo evangelical” , disse Bloesch, “ não seria a
simples unidade da igreja, mas também, e acima de tudo, a conversão
do mundo” .14 O motivo missionário, em vez de ser uma desculpa para a
fragmentação contínua, deve ser a razão da convergência evangelical.15
No século X X , muitos ecumenistas pareciam mais interessados na uni­
dade da igreja do que na evangelização (no sentido bíblico), enquanto
186 A COMUNIDADE DO REI

muitos evangelicais estavam preocupados com a evangelização em si,


mas pouco preocupados com a unidade e a cooperação evangelistica-
mente necessárias. O apelo de Bloesch por um ecumenismo evangelical
ainda é oportuno.
A maioria dos evangelicais não parece estar convencida de que a coo­
peração e a unidade são essenciais para uma missão efetiva. Se está con­
vencida, é legítimo perguntar: onde estão as provas? Há poucos sinais visí­
veis de unidade, a não ser por “cruzadas” evangelísticas ou esforços seme­
lhantes essencialmente excepcionais e breves e, em geral, ligados de ma­
neira apenas marginal com a igreja. A tendência tem sido desconsiderar
essa falha, afirmando a “unidade invisível espiritual” da igreja.
Conforme já se observou antes, hoje há alguns sinais encorajadores
de maior cooperação, e isso pode produzir frutos significativos. Pode­
mos orar para que as parcerias e outros esforços cooperativos gerem
uma consciência evangelical crescente e consciência do interesse de Je ­
sus de que todos os seus filhos sejam um.
O que está por trás dessa questão da unidade, repito, é o entendi­
mento básico que temos da igreja. A falta de uma concepção suficiente­
mente bíblica da igreja produz dois resultados: primeiro, a tendência de
limitar a questão da unidade ao âmbito invisível, espiritual; e, segundo,
a tendência de esforços de cooperação serem apenas marginalmente re­
lacionados com a verdadeira edificação e discipulado da igreja.
Qual é mais essencial para a proclamação efetiva do evangelho —
os esforços evangelísticos cooperativos ou a unidade visível da própria
igreja? Qual é mais crucial — a unidade na evangelização ou a unidade
do povo de Deus? O mundo se convencerá mais prontamente por em­
preendimentos evangelísticos conjuntos ou pela demonstração de uni­
dade da igreja como povo de Deus?
Essas perguntas não pedem uma resposta “isto ou aquilo” . E certo
que o testemunho cooperativo em muitas áreas deve ser incentivado.
M as esse testemunho deve estar integralmente relacionado com a vida
e o discipulado de comunidades locais de crentes. O principal problema
nos empreendimentos cooperativos até agora tem sido que esses esfor­
ços são, em grande parte, desligados da vida cotidiana comunitária da
igreja. Em geral, os empreendimentos evangelísticos cooperativos têm
sido programas especiais, extraordinários, intensivos, enxertados, que
não podem ser integrados à experiência diária de congregações cristãs
locais específicas. H oje, há um reconhecimento generalizado de que
essa foi a principal fraqueza das antigas cruzadas da Evangelização
em Profundidade.16
A UNIDADE DA IGREJA 187

O mandato evangelístico e missionário em favor do reino de Deus


convoca a igreja hoje para empreendimentos cooperativos mais efeti­
vos em missão e também para alguma forma de unidade visível da
igreja em si. E, em ambos os casos, a unidade torna-se não só um pro­
blema de conceito, como também um problema de estrutura.
Em sua oração sacerdotal, Jesus pede pela unidade de todos os
crentes, não apenas por uma “ cooperação na evangelização” . Jesus
estava preocupado com a unidade da igreja, e os cristãos hoje devem
partilhar dessa preocupação. M as qualquer “ ecumenismo evangélico”
válido deve ser baseado não num pragmatismo evangelístico, mas, de
modo ainda mais básico, num entendimento bíblico claro da igreja.
Nem a evangelização nem o ecumenismo são uma entidade em si.
Ambos são aspectos da vida da igreja no mundo. E ambos são definidos
por um mandato bíblico da igreja e pelas boas novas do reino. Quando
ambos, evangelização e ecumenismo, são compreendidos através das
lentes do entendimento bíblico da igreja (ou seja, da eclesiologia e não
só da soteriologia no sentido estrito), então a inter-relação desses dois
interesses torna-se óbvia.
Tanto o mandato evangelístico como o motivo ecumênico convo­
cam a igreja para uma busca contínua do entendimento bíblico do povo
de Deus. A unidade da igreja como tema central da eclesiologia bíblica
precisa de uma reflexão contínua para prover uma base adequada para
o futuro desenvolvimento de interesses evangelísticos e ecumênicos.

Um problema de estrutura
Enfatizei que o Congresso Internacional de Evangelização Mundi­
al de 1974, como outros eventos “ ecumênicos” semelhantes antes e
depois, foi uma estrutura específica produzida por homens. Além dis­
so, o Congresso de Lausanne foi possibilitado em grande parte pela
existência e recursos de outra estrutura evangelical importante: a As­
sociação Evangelística Billy Graham.
A cooperação e a unidade não “ acontecem” simplesmente, à parte
de uma liderança intencional e de estruturas facilitadoras. Deus atua
hoje como tem atuado ao longo da história, tanto mediante seres hu­
manos como mediante estruturas humanas. A cooperação e a unidade
da igreja são também, portanto, questões de estrutura. A questão é:
que tipos de estruturas podem e devem existir para aumentar a unidade
da verdadeira igreja e a proclamação efetiva do evangelho?
As estruturas para cooperação e unidade das várias comunidades
do povo único de Deus devem existir em vários níveis. A diversidade
188 A COMUNIDADE DO REI

cultural dita uma variedade considerável no culto e na vida comunitária


da igreja, mas em cada nível a diversidade deve ser transcendida por
alguma expressão visível de unidade. A diversidade cultural não deve ser
usada como desculpa para a falta de demonstração visível de reconcilia­
ção e verdadeira unidade. Os argumentos em favor da evangelização de
“módulos homogêneos” não devem esvaziar a insistência bíblica na uni­
dade do corpo de Cristo.
O princípio estrutural para expressão da unidade da igreja é o do
corpo. A igreja é o corpo, do qual Cristo é a única cabeça. O princípio da
unidade é o princípio de muitos órgãos em um corpo, em outras palavras,
estruturas orgânicas, genéticas, celulares. Esse princípio é adequado em
todos os níveis da igreja. Assim, estruturas válidas para unidade devem
ser baseadas num modelo carismático e orgânico e não num modelo ins­
titucional e hierárquico. N a prática, isso significa que essas estruturas
devem ser flexíveis e funcionais e devem ser consideradas estruturas pa-
raeclesiásticas para expressão de unidade, não como parte essencial da
igreja em si.
Deve-se dar prioridade à expressão de unidade cristã nos centros
urbanos de boje. Jacques Ellul afirma que a cidade é “a maior obra” da
humanidade. Ela é “a grande tentativa da humanidade para obter auto­
nomia, exercer vontade e inteligência” .17Hoje, a cidade é um campo de
batalha chave em que a igreja confronta-se com principados e potesta­
des. Ela é, portanto, o lugar principal em que a unidade cristã precisa
ser demonstrada.
Sempre que possível, em cidades por todo o mundo, devem-se pro­
mover regularmente grandes encontros públicos, unindo o povo de Deus
que deseje cooperar. Se nas principais cidades do mundo todos os cristãos
verdadeiros unirem-se regularmente numa “grande congregação” para
cantar louvores a Deus com alegria, ouvir a Palavra e dar testemunho da
justiça, misericórdia e verdade do reino de Deus, o impacto será incalcu­
lável. Esses eventos dariam testemunho público visível da unidade do
corpo de Cristo e colocariam mais uma vez a fé no centro da praça públi­
ca. Essas reuniões devem ser regulares e freqüentes (várias vezes por ano)
e devem unir todos os que desejem confessar que Jesus Cristo é Senhor e
Salvador, sejam católicos, protestantes ou ortodoxos, incluindo cristãos
pentecostais e carismáticos, bem como os que não o são. Essas reuniões
devem ser realizadas em grandes áreas públicas sempre que possível. Ali,
a igreja em cada cidade recuperaria algum sentido de povo unido que
transcendería linhas denominacionais e confessionais, e ali o mundo vis­
lumbraria a realidade visível da igreja unificada. Alguns esforços signi-
A UNIDADE DA IGREJA 189

ficativos nesse sentido têm sido feitos em várias cidades pelo mundo nas
últimas duas ou três décadas, com bons resultados.
Alguma forma de estrutura global para comunhão e missão unifi­
cada fortaleceria o testemunho da igreja. Essa estrutura serviria prin­
cipalmente como (1) “centro nervoso” de informações para monitorar
o que está acontecendo no mundo no que diz respeito ao crescimento e
testemunho da igreja; (2) um ponto de contato e comunicação entre as
muitas estruturas evangelicais pelo mundo, tais como estruturas de
evangelização e missão, denominações, sociedades bíblicas, seminári­
os, faculdades e comunidades cristãs que têm surgido ultimamente; e
(3) uma estrutura facilitadora ou catalisadora para obter uma comu­
nicação direta entre estruturas semelhantes em várias partes do mun­
do. Sua função deve ser principalmente informar, comunicar e coorde­
nar, não a de iniciar novos programas próprios que só tenderiam à ins­
titucionalização e à duplicação de ministérios existentes.
Se essa estrutura for baseada num entendimento claro da igreja,
terá sucesso em dar alguma expressão visível e organizada à unidade
da igreja, sem resvalar numa superigreja. A estrutura deve ser essenci­
almente uma paraigreja e não uma saperigreja. Ela deve colocar-se ao
lado da igreja e servir ao verdadeiro corpo de Cristo, nunca tendo sobre
si as prerrogativas da cabeça, Jesus Cristo, nem se apropriando delas.
Com isso, ela promoverá uma unidade tanto espiritual como visível.
O cristianismo evangelical hoje é mais que um grupo de igrejas
teologicamente conservadoras. E cada vez menos um ramo específico
do protestantismo ocidental e cada vez mais um movimento transcon-
fessional pelo cristianismo bíblico dentro da igreja de Jesus Cristo em
todo o mundo. Até certo ponto, tornou-se um movimento global, dan­
do esperança de que o evangelicalismo ocidental transcenda sua servi­
dão ao “ cristianismo cultural” . Os evangelicais norte-americanos pre­
ocupados com um testemunho mais radical e com a superação da limi­
tação teológica e servidão cultural podem ganhar alguma coragem do
fato de que o evangelicalismo em todo o mundo já não é definido por
suas expressões norte-americanas. Muitos líderes evangelicais do Mundo
dos Dois Terços partilham de suas preocupações em relação ao reino e
têm muito a ensinar para a igreja norte-americana.
É tempo, porém, não de triunfalismo (as falhas e tensões do evan­
gelicalismo são por demais sérias para isso), mas de emergir o que
Donald Bloesch chama de “ um evangelicalismo católico” . “ O tipo de
teologia que devemos buscar” , escreveu Bloesch, “é o que seja profun­
damente evangelical e autenticamente católico” . Biblicamente, “ não
190 A COMUNIDADE DO REI

se pode ser plenamente evangelical sem ao mesmo tempo ser verdadei­


ramente católico. E não se pode ser católico sem ser também evangeli­
cal” .18 Ao explorar a unidade e a variada riqueza da igreja, podemos
também, como escreve Richard Foster, “ celebrar as grandes tradições
da Fé cristã” como “ correntes de água viva” , que, juntas, compõem a
única igreja de Jesus Cristo — evangelical e católica, apostólica e ca­
rismática, contemplativa e profética, encarnacional e sacramental.19
Nesta era de globalização, talvez o tempo esteja maduro para que
surja um movimento evangelical completamente bíblico que inclua ca­
tólicos, protestantes, ortodoxos, judeus cristãos e, talvez, até mesmo
as crescentes igrejas semi-secretas dentro das sociedades islâmicas, hin­
dus e budistas.20 Arthur Glasser observou certa vez que “muitos católi­
cos leais conhecem e amam Jesus Cristo com uma intimidade e devo­
ção que ultrapassam a deles” .21 As ênfases bíblica e carismática dentro
do catolicismo romano na esteira do Vaticano II têm discutido a vali­
dade de muitas críticas protestantes tradicionais contra a Igreja Ro­
mana. Enquanto isso, o movimento carismático tem juntado muitos
católicos e evangelicais.22 Em alguns países em que comunhões católi­
cas e ortodoxas estão experimentando renovação, já é questão aberta
se são os católicos, os ortodoxos ou os protestantes que mais evangeli­
zam.
O influente Pacto de Lausanne de 1974 é um documento não-sectá­
rio. Nem é, aliás, um documento especificamente protestante. Por ter
procurado ser evangelical e bíblico, também conseguiu ser surpreen­
dentemente católico. Algo como o Pacto de Lausanne bem serviria de
base para uma fraternidade cristã mundial que seja ao mesmo tempo
evangelical, católica e carismática.
Não deviam ser essas, de fato, as marcas da “ união na verdade” do
evangelicalismo? Pois a igreja de Jesus Cristo deve ser evangelical —
solidamente baseada no evangelho bíblico puro e em suas exigências de
testemunho e discipulado orientado para o reino. A igreja deve ser
também católica — preocupada com a unidade, universalidade e san­
tidade, bem como com sua diversidade e relevância contextual. E deve
também ser carismática — vivendo em estreita comunhão mediante a
habitação do amor, graça e poder do Espírito Santo como realidade
presente, uma comunhão visível com o rei. É assim que “todo o corpo,
ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si
mesmo em amor” (Ef 4.16).23
A UNIDADE DA IGREJA 191

NOTAS
' A Bíblia deixa claro que a igreja não é só uma, santa, apostólica e católica ou universal
(as marcas nícenas clássicas da igreja), mas também diversa, carismática, profética e
local, conforme afirmam Howard Snyder e Daniel V. Runyon em Decoding the Church:
Mapping the DNA o f Christ's Body (Grand Rapids: Baker, 2002), cap. 1.
2 J. I. Packer, "A Stunted Ecclesiology?", em Kenneth Taylor e Christopher a. Hall, ed.,
Ancient and Postmodern Christianity: Paleo-Orthodoxy in the Twenty-First Century: Es­
says in Honor o f Thomas C. Oden (Downers Grove: InterVarsity Press, 2002), pp. 123-24.
3 Missão da Igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial,
1982), p. 243.
4 Veja Yehezkel Kaufmann, The Religion o f Israel, trad. Moshe Greenberg (Chicago:
University of Chicago Press, 1960).
5 Concílio Vaticano II, Decree on Ecumenism (Washington D.C.: National Catholic Wel­
fare Conference, 1964), p. 1.
6 Veja G. C. Berkouwer, The Church, trad. James E. Davidson (Grand Rapids: Eerdmans, 1976).
7 Hans Küng, Structures o f the Church, trad. Salvator Attanasio (London: Burns &
Oates, 1964), p. 12.
8 Henri Blocher, "The Nature of Biblical Unity", em Douglas, Let the World Hear His
Voice, pp. 382-83.
9 Essa afirmação não significa excluir os judeus que continuam sendo povo de Deus
num sentido especial.
10 Peter Beyerhaus, Shaken Foundations: Theological Foundations for Mission (Grand
Rapids: Zondervan, 1972), p. 42.
11 C. René Padilla, "Evangelização e o Mundo" em A Missão da Igreja no Mundo Hoje
(São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial, 1982), p. 151.
12 "A Response to Lausanne" em Douglas, Let the World Hear His Voice, p. 1.294.
13 Donald Bloesh, The Reform o f the Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 184.
14 Ibid., p. 186.
15 É bom lembrar que o movimento ecumênico moderno surgiu de uma preocupação
evangelística e missionária genuína. Mas, com o tempo, rompeu com suas âncoras
bíblicas e teológicas e ficou à deriva. Por esse motivo, infelizmente, muitos evange­
licals quase igualam o ecumenismo a uma heresia.
16 C. Peter Wagner, Frontiers in Missionary Strategy (Chicago: Moody Press, 1971), pp. 153-60;
George W. Peters, Saturation Evangelism (Grand Rapids: Zondervan, 1970), pp. 76-77.
17 Jacques Ellul, The Meaning o f the City (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 154.
18 Bloesch, Reform o f the Church, pp. 186-87.
19 Richard J. Foster, Streams o f Living Water: Celebrating the Great Traditions o f
Christian Faith (New York: HarperSanFrancisco, 1998).
20 Veja, por exemplo, Herbert E. Hoefer, Churchless Christianity (Pasadena: William
Carey Library, 2001).
21 Arthut F. Glasser, "The Evangelicals: World Outreach" em William J. Danker e Wi Jo Kang,
ed., The Future o f the Christian World Outreach (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 109.
22 Veja Vinson Synan, Charismatic Bridges (Ann Arbor: Word of Life, 1974).
23 Lembre-se, aqui, das várias "marcas" ou "sinais" da igreja, conforme discutidas
brevemente no capítulo 2 e em Snyder e Runyon, Decoding the Church, cap. 1.
11
DAQUI ATÉ
O REINO

“Tanto em nossas pesquisas como em reações de missionários pro­


fissionais a quem ensinamos” , escreveu Charles Kraft, em 1972, “vem
uma impressão esmagadora de que uma das blindagens mais fracas em
nossa armadura teológica é a doutrina da igreja. Nossa tendência é ou
falar da igreja em termos idealistas ou criticar com severidade as ex­
pressões da igreja ao nosso redor por não chegarem perto do ideal. M as
muitas vezes parece que temos pouquíssimo entendimento real daquilo
que está errado ou de algum remédio para isso, já que as abordagens
teológicas da doutrina ignoram de tal maneira as facetas culturais e
sociológicas que constituem a maioria das características observáveis
daquilo que faz ‘da igreja uma igreja’” .1
O objetivo deste livro é juntar o ideal e o real nesse estranho orga­
nismo chamado “igreja” e alinhar entendimentos teológicos com reali­
dades culturais e sociológicas, pelo menos de um modo exemplificativo
e rudimentar. Como tentativa complementar de ser prático e falar da
igreja em termos funcionais, este capítulo conclusivo apresenta alguns
passos práticos rumo à renovação da autenticidade da igreja e à contri­
buição para que tenha a visão e a fidelidade características do reino.

Sete passos para a renovação


O que a igreja local deve fazer para aumentar sua visão de reino e
tornar-se uma comunidade mais autêntica do reino?2
1. Estudar com afinco a natureza bíblica da igreja. Muitas congre­
gações locais poderiam ser revolucionadas com um ano de estudos so­
bre a igreja. A pregação e o ensino poderiam ser coordenados com estu­
dos bíblicos individuais e em grupos pequenos. O tópico seria a igreja e
sua missão. Os holofotes estariam em livros como Atos, 1 Coríntios,
Efésios e Colossenses, com atenção voltada também ao desenvolvimen­
to do plano de Deus no Antigo Testamento (em especial, os conceitos de
194 A COMUNIDADE DO REI

aliança, povo de Deus e reino de Deus) e aos materiais relevantes nos


Evangelhos. Os livros de Hebreus e Apocalipse também têm rico conteú­
do eclesiológico. A leitura de livros significativos sobre a igreja também
pode fazer parte desse processo. O material bibliográfico ao final deste
livro dá algumas sugestões.3
Toda leitura e outras informações, porém, devem estar subordina­
das ao estudo das Escrituras e ao que elas revelam acerca da igreja e do
reino. Eu mesmo fui imensamente beneficiado em minhas idéias sobre a
igreja ao examiná-la em meu estudo pessoal e em estudos bíblicos em
grupos pequenos.
2. Avaliar a qualidade da vida comunitária da igreja. Algum tipo de
autoavaliação — de novo com o uso de grupos pequenos — pode ser
útil. A tarefa de avaliar mantém a objetividade, enquanto a interação
em grupo pequeno aprofunda a experiência pessoal da comunidade.
Lawrence Richards, em A New Face o f the Cburch, delineou diretrizes
para essa avaliação, junto com exemplos e ilustrações.4 O Desenvolvi­
mento Natural da Igreja, de Christian Schwarz, também é um recurso
proveitoso.5 Um estudo bíblico deve acompanhar a avaliação.
3. Rever o que a Bíblia ensina sobre os dons do Espírito. Às vezes,
esse assunto gera mais incêndio que luz, mas os ensinos bíblicos são
claros. A ênfase nos dons, tanto na pastoral como nos grupos pequenos
(os dois devem caminhar juntos), está em passagens como Romanos 12,
1 Coríntios 12— 14, Efésios 4 e 1 Pedro 4, com o estudo complementar
das doutrinas afins do serviço e do sacerdócio dos crentés.
4. Trabalhar de maneira consciente e contínua para transcender a
dicotomia clero-laicato em pensamento e discurso. Essa sugestão, fútil
à primeira vista, é mais substancial do que parece. N ossos padrões de
discurso refletem e reforçam nossos conceitos, e nossos conceitos em
última análise determinam nossos atos. A preocupação com a lingua­
gem não-bíblica ao falar da igreja é tão importante quanto a preocu­
pação com termos sexistas ou racistas. Banir “leigo” de nosso vocabu­
lário, por exemplo, obriga-nos a rever nosso entendimento da igreja,
sendo essa uma disciplina que produz bons frutos. Hoje, o uso não-
bíblico dos termos “ministro” , “ ministério” (que só designam o minis­
tério profissional ou ordenado) e “ leigo” é o modo mais extensivo e
opressivo de linguagem excludente na igreja. Quando usamos lingua­
gem sexista excluímos cerca de 50% de todos os cristãos. M as quando
fazemos distinção entre ministros e leigos, excluímos 90 ou 95% de
todos os cristãos! E tempo de sermos inclusivistas de verdade, referin-
do-nos a todos os cristãos como ministros e banindo o termo “leigo” ou
DAQUI ATÉ O REINO 195

“ leiga” sempre que signifique cristãos que não são ministros.


Grupos pequenos podem-se beneficiar com o estudo do rico signifi­
cado de termos bíblicos como ministério, membro e povo para começar
a introduzir suas descobertas em seus conceitos e fala. O alvo é curar
dualismos não-bíblicos e criar a consciência de que todos os crentes são
povo de Deus, membros funcionais do corpo, e possuem alguma “obra de
ministério” . (Neste livro, “leigo” e “laicato” não são usados, exceto em
passagens explicativas como esta.)
5. Considerar a geração de uma ou duas novas congregações a partir
da igreja local existente. Algumas igrejas nunca vão começar a crescer
se não se dividirem. Igrejas com algumas centenas de membros devem
pensar seriamente em juntar algumas famílias que vivem na mesma área
e usá-las como núcleo de uma nova congregação (como fazem rotineira­
mente as igrejas de algumas tradições). Muitas vezes, isso é mais eficien­
te que campanhas de pregação ou avivamento ou outros projetos de
curta duração, porque cria um segundo centro ou núcleo de crescimen­
to e aprofunda o envolvimento de todos os participantes. A igreja preci­
sa discernir, claro, quando alcançou o tamanho, a maturidade e o mo­
mento de iniciar o crescimento por multiplicação e não tentar gerar
outra igreja antes de estar pronta. A maioria das igrejas, porém, espera
demais para se multiplicar — e assim nunca o faz.
Esse processo de multiplicação poderia ser o produto natural das
primeiras três sugestões acima. Como um novo corpo vivo, o grupo re­
cém-formado não corta sua ligação com a igreja mãe de imediato, mas
começa a desenvolver o próprio ministério e vida comunitária por meio
de grupos pequenos, serviço e culto. Com certo crescimento, o grupo
talvez precise mudar-se para um salão, sala, garagem ou outra estrutu­
ra mais ampla (dependendo do contexto cultural). E possível alugar
uma escola, um salão social ou centro comunitário. Concentrando-se
em pessoas e não em programas ou prédios, o grupo logo será capaz de
sustentar um ou mais obreiros de tempo integral. Com o crescimento
normal da igreja, outras divisões podem ocorrer. O processo pode con­
tinuar indefinidamente, se as igrejas não ficarem atreladas a imóveis e a
estruturas superelaboradas.
6. Forme grupos pequenos de comunhão como grupos de missão ou
de ministérios especiais, conforme sugere o capítulo nove. Esses grupos
podem ser especialmente efetivos para o trabalho social da igreja e seu
testemunho por meio da justiça. Gordon Cosby dá uma bela explicação
de como esses grupos podem funcionar em Handbook for Mission
Groups.
196 A COMUNIDADE DO REI

A criação de grupos de ministério ou “uma mutação” que transfor­


me grupos pequenos de comunhão em grupos de ministério ajuda a resol­
ver o problema do inchaço ou “koinonite” que às vezes aflige as igrejas. E
fácil os grupos pequenos gostarem demais da companhia uns dos outros
e perderem de vista o objetivo do reino — os grandes interesses divinos
por justiça, shalom e transformação. Uma liderança pastoral sábia na
igreja detectará isso e tomará medidas para envolver mais membros em
grupos de missão e ministérios, para que seus membros sejam saudáveis
na “jornada externa” de testemunho e serviço, bem como na “jornada
interna” de oração, estudo e cura pessoal.6
7. Identificar segmentos da população ao redor especialmente aber­
tos para o evangelho em lugares em que seria possível plantar novas
igrejas. Dando um passo além da quinta sugestão, uma igreja local pode
realmente procurar grupos receptivos de acesso fácil para a igreja e ten­
tar ministrar ali. Especialmente em centros urbanos, é provável que al­
guns membros da igreja morem perto de grupos específicos que podem
ser altamente receptivos ao evangelho. Esses grupos podem incluir po­
bres de centros decadentes ou periferias, grupos étnicos ou ocupacio-
nais ou pessoas internadas em hospitais, asilos ou prisões, a maioria
esquecida pela sociedade. Duas ou três famílias, com apoio ativo de toda
a igreja, podem iniciar um ministério evangelístico com o alvo especifico
de plantar uma nova congregação auto-sustentada. O livro A Guide to
Church Planting, de Melvin Hodges, dá conselhos excelentes para os que
desejam começar um ministério de formação de igrejas.7

O preço do reino
Esses passos para renovação não significam que outras mudanças
fundamentais não sejam essenciais na igreja hoje. N ossa experiência
com a igreja, na grande maioria dos casos, permanece muitíssimo rasa.
Em muitas igrejas, a koinonia e o discipulado genuíno ainda não são
vistos em suas dimensões bíblicas ou, então, permanecem como um alvo
distante que ainda anelamos. Sonhamos ser abertos, prestativos e afetu­
osos com nossos irmãos e irmãs e desejamos que eles façam o mesmo
conosco e também que pratiquemos um discipulado mútuo. M as os
meios para chegar a esse nível de cuidado e prestação de contas uns aos
outros ou nos escapam ou nos parecem muito custosos. Isso exige que
abramos para os outros algumas áreas da vida em que até Deus raramen­
te consegue se intrometer.
Precisamos, portanto, aprender de nossos irmãos cristãos de várias
comunhões ao redor do mundo que estão vivendo e experimentando a
DAQUI ATÉ O REINO 197

profunda realidade do compartilhar na igreja. Em muitos casos, pode­


mos descobrir que a prática deles é pelo menos tão pura e bíblica quan­
to a nossa doutrina.
Precisamos examinar as novas formas de comunidade cristã que têm
crescido ao longo das últimas décadas e, quando necessário, iniciar no­
vos padrões. Várias formas de comunidades cristãs intencionais podem
ajudar a igreja maior a aprender de maneira mais completa o que signi­
fica discipulado. Elas podem mostrar como ministrar e incorporar os
recursos extraídos daquilo que é mais antigo e institucionalizado. Elas
podem mobiliar a casa para ministérios criativos nas artes, na escrita, na
missão global, no cuidado com a criação e na reflexão teológica.8
O reino de Deus em sua plenitude provavelmente não virá amanhã.
Nem na semana que vem. Por enquanto, mais importante do que voltar
os ouvidos para os céus, querendo escutar o toque da trombeta, é prestar
atenção aos gritos dos perdidos e das pessoas sem esperanças, bem como
cuidar das crianças fracas demais para gritar porque não têm comida.
E certamente devemos olhar para Jesus — ressuscitado, assentado
à direita do Pai, trabalhando agora por meio do Espírito Santo e que
sem dúvida voltará. M as também precisamos lembrar que Jesus andou
sobre esta terra e morreu sobre a cruz — e disse: “Assim como o Pai me
enviou, eu vos envio” (Jo 20.21).
Veja Jesus na cruz. O que significa o sofrimento dele para nós nesse
ínterim, antes da plena vinda do reino? Será que seu corpo, a igreja
sobre a terra hoje, deve ser como ele era dois mil anos atrás?
Alguns dizem que Cristo sofreu para que nós não tivéssemos de so­
frer (como me garantiu tempos atrás um cristão próspero). Afinal, Je ­
sus tomou nosso lugar na cruz e ali sofreu para nos salvar. Por sua morte,
temos vida. Por seu sofrer, temos gozo. Por seu esvaziar-se, somos enri­
quecidos. M as outros discípulos vêem de maneira diferente o sofrimento
de Jesus. Eles dizem que seu sofrimento revela as dimensões do discipula­
do cristão. A morte e ressurreição de Cristo nos mostram o que acontece
com as pessoas que buscam primeiro o reino de Deus. A crucificação
demonstra para nós o significado e preço do discipulado. A cruz, portan­
to, não é nosso escape do sofrimento, mas nossa garantia de sofrimento.
Jesus é mais nosso modelo que nossa via de escape.

Qual das duas idéias é bíblica?


Ambas. Jesus tomou nosso lugar na cruz; por meio desse sacrifício,
temos vida. Tornamo-nos ricos. “ Pois vocês conhecem a graça de nosso
Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês,
198 A COMUNIDADE DO REI

para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos” (2 Co 8.9).
M as essa história não está completa e não é a definição de discipu-
lado. Pois Paulo disse:
Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus,
que, embora sendo Deus,
não considerou que o ser igual a Deus
era algo a que devia apegar-se,
mas esvaziou-se a si mesmo,
vindo a ser servo,
tornando-se semelhante aos homens.
P, sendo encontrado em forma humana,
humilhou-se a si mesmo
e foi obediente até a morte
e morte de cruz! (Fp 2.5-8)
E Jo ão disse: “neste mundo somos como ele” ( l j o 4.17). Jesus disse:
“ Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diaria­
mente a sua cruz e siga-me” (Lc 9.23). “Aquele que afirma que permane­
ce nele, deve andar como ele mandou” (1 Jo 2.6). E o apóstolo Pedro nos
disse: “ Para isso vocês foram chamados, pois também Cristo sofreu no
lugar de vocês, deixando-lhes exemplo, para que sigam os seus passos” (1
Pe 2.21).
Quando falamos de nossa redenção, nossa salvação eterna, podemos
dizer com alegria que Cristo sofreu para que, com isso, não tenhamos de
sofrer. Ele tomou sobre si a culpa, a dor e a punição do pecado. M as
quando falamos de nossa vida no mundo, de discipulado, vemos outra
verdade em ação. As Escrituras mostram de várias maneiras que os dis­
cípulos devem ser como seu mestre e que a abnegação, o auto-esvazia­
mento e a crucificação são marcas universais daqueles que segem a Je­
sus.
M as que tipo de auto-esvaziamento? É fácil ter uma visão distorcida
daquilo que a Bíblia quer dizer sobre isso. Deus não está pedindo que
enfiemos as mãos pela garganta espiritual, arranquemos nosso ego pelas
raízes e o joguemos fora. A verdadeira fé cristã valoriza a pessoa e não
provoca auto-mutilação. Cristãos verdadeiros não tentam fugir de si ou
matar a própria vontade; antes, de bom grado resolvem fazer a vontade
do Pai. O verdadeiro discipulado é resolver fazer o que Jesus mostrou que
seus seguidores devem fazer. Amar a Cristo significa obediência à vida
de Jesus.
Quando Paulo disse “fui crucificado com Cristo” (G1 2.20), não
estava descrevendo um processo psicológico introspectivo pelo qual esta­
va reduzindo o próprio ego a zero. Antes, estava dizendo, na realidade:
DAQUI ATÉ O REINO 199

“Resolvo renunciar aos meus direitos exatamente como fez Jesus; resol­
vo não só acumular os benefícios providos por Cristo, mas seguir o mode­
lo dele, dividindo esses benefícios com o mundo e, em especial, com os
pobres” . Assim, Paulo disse, em outra parte: “ Considero tudo como per­
da, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Je ­
sus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas ... Quero conhecer Cris­
to, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos,
tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a
ressurreição dentre os mortos” (Fp 3:8,10-11).
A ética do reino, portanto, é a ética da crucificação. É a vida coloca­
da no altar. Sim, isso vai contra a natureza.9 Preferimos colocar a ética
triunfal no lugar da ética da crucificação. Queremos correr da cruz para
a coroa ou nos desvencilhar completamente da Sexta-Feira da Paixão.
Queremos viver agora como se o reino já tivesse vindo em sua plenitu­
de; preferimos “ reinar sobre a terra” (Ap 5:10) espiritualmente. Ao lon­
go dos séculos, a igreja tem sido tentada a agir como se o reino já tivesse
vindo, feito as pazes com o mundo e se assentado para usufruir confor­
tavelmente dos frutos do evangelho.
M as então vislumbramos Jesus, caminhando na penumbra com seu
grupinho de discípulos ou cochilando, cansado, num barco que não pára
de balançar. Ou olhamos para cima e o vemos esticado sobre uma cruz,
preso por três pregos de ferro. Suas mãos estão completamente abertas e
a coroa que usa é feita de espinhos.
É bem verdade que não temos de morrer na cruz. Jesus já fez isso por
nós. Mesmo assim, somos chamados para viver a ética da crucificação.
Somos chamados mais para levar a cruz do que para vesti-la. E a cruz
não é simplesmente nossas doenças, nossos problemas ou o vizinho que
não conseguimos suportar. Antes, cruz significa escolher voluntariamente
viver para os outros, deixar a vida de Jesus mostrar o que é a verdadeira
espiritualidade. A questão não é tanto “O que faria Jesus?” , mas “ Como
Jesus viveu?”
Durante uma discussão informal em torno de uma mesa, uma jo­
vem senhora crente, muito querida, perguntou: “É errado os cristãos
aproveitarem as coisas boas da vida?” .
É? N ão, claro que não. Nossos olhos devem estar sensíveis à beleza,
à excelência e à harmonia. Também não era errado Jesus desfrutar das
coisas boas. Não seria errado se tivesse nascido num palácio, ou tivesse
possuído roupas caras ou tivesse comido refeições suntuosas todos os
dias, pois ele é Deus, Rei e Senhor.
M as voltemos para Filipenses 2. Jesus era e é Deus, mas “humilhou-
200 A COMUNIDADE DO REI

se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz” . Não é errado


desfrutar das coisas boas. M as o que Jesus quer que façamos? Não é
errado os cristãos terem esses bens terrenos, mas João disse: “Se alguém
tiver recursos materiais e, vendo seu irmão em necessidade, não se com­
padecer dele, como pode permanecer nele o amor de Deus?” (1 Jo 3.17).
Não é errado comer três refeições por dia e ter um teto sobre a cabe­
ça. M as o que Jesus pensa dos que não têm um teto sobre a cabeça e,
muitas vezes, nenhuma comida ? Fico incomodado quando ouço cristãos
dizendo que, já que Deus nos prometeu “os desejos do coração” , devemos
então esperar todos os tipos de “ bênçãos materiais” de Deus. Podemos
acabar pensando que o padrão de vida de classe média, sempre ascenden­
te, é um tipo de salário mínimo garantido da fé cristã, algo que vem
junto com a salvação. As implicações teológicas dessa visão distorcida
são tremendas. Deus é Rei, mas se pensamos que isso significa que os
cristãos devem viver como reis num mundo faminto, então precisamos
voltar para o Novo Testamento e ver mais uma vez o Jesus que pregou o
reino.
Graças a Deus por todos os benefícios que recebemos pela morte de
Jesus sobre a cruz! M as também devemos lhe agradecer por nos mos­
trar o tipo de vida que seus seguidores devem levar. Vamos agradecer-lhe
por seu Santo Espírito, dado para nos permitir viver como discípulos de
acordo com os valores do reino.
O método de trabalho eficiente no reino hoje não gira principal­
mente em torno da ênfase na evangelização ou na justiça como fins em
si, mas na redescoberta da igreja como a comunidade do rei. Quando a
igreja é igreja compreendida de acordo com a Bíblia, ela cresce e infecta
o mundo com uma epidemia de saúde, torna-se uma “igreja de influên­
cia irresistível” .10
O testemunho do reino e o crescimento da igreja não significam
trazer para a igreja o que ela precisa para ter sucesso por meio de méto­
dos, técnicas ou estratégias. Fidelidade ao reino significa remover as
barreiras à vida e ao crescimento. Uma vez removidas essas barreiras
(não só pecados pessoais, como também tradições humanas, estruturas
ultrapassadas e conceitos fundamentais errados sobre a natureza da igre­
ja), a igreja crescerá pela dinâmica de Deus dentro dela.
Quando Lázaro foi ressuscitado, estava “com as mãos e os pés en­
volvidos em faixas” . Jesus disse: “Tirem as faixas dele e deixem-no ir”
(Jo 11.44). Essa é uma lição para a igreja hoje. A igreja possui a vida
ressurreta dentro de si. Ela foi chamada à vida por Jesus Cristo (Ef 2.1-
5). O corpo de Cristo não precisa de um novo conjunto de roupas. Não
DAQUI AT É O REINO 201

é preciso acrescentar-lhe algo. Só é preciso soltá-lo e deixá-lo ir.


Jesus Cristo é vida! A igreja, seu corpo e noiva, é vida! Precisamos
voltar à Palavra de Deus e deixar que ela nos fale a respeito da igreja e
seu lugar no desígnio cósmico de Deus — a igreja por causa do reino de
Deus.
A igreja é o corpo de Cristo, a comunidade do Espírito Santo, o
povo de Deus. E a comunidade do rei e, por meio do Espírito, o agente
do plano de Deus no mundo para reconciliação de todas as coisas. O
agente divino do reino não deve ser considerado só um meio entre vári­
os. Pois, desde a cruz até a eternidade, permanece a verdade de que “ Cris­
to amou a igreja e entregou-se por ela para santificá-la ... e para apre-
sentá-la a si mesmo como igreja gloriosa, sem mancha nem ruga ou
coisa semelhante” (Ef 5.25-27).
Por enquanto, a igreja é chamada para servir fielmente ao Senhor
Jesus Cristo, o único que “ não mostrará fraqueza nem se deixará ferir
até que estabeleça a justiça na terra” (Is 42.4).

NOTAS
1 Charles H. Kraft, "Spinoff from the Study of Cross-Cultural Mission", Theology News
and Notes 18, n.° 3 (1972): 3.
2 Veja mais elaborações sobre os sete passos em Howard A. Snyder, Kingdom, Church,
and World: Biblical Themes for Today (Eugene: Wipf & Stock, 2002), caps. 10-11; Signs
o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zondervan, 1989; Eugene:
Wipf & Stock, 1997), cap. 9; Model o f the Kingdom (Nashville: Abingdon, 1991), cap.
12, e Liberating the Church: The Ecology o f the Church and Kingdom (Downers
Grove: InterVarsity Press, 1983); Eugene: Wipf & Stock, 1996), caps. 11-15.
3 Devemos, porém, guardar-nos contra o perigo de nos concentrar de maneira muito
estrita ou exclusiva na igreja. Um estudo da igreja é muitas vezes necessário, porque
essa área tem sido negligenciada. Mas é possível ir para o outro extremo. Uma igreja
local precisa compreender a igreja e o plano de Deus para a igreja, mas depois precisa
prosseguir com a tarefa de ser a comunidade do rei. Nesse ensino, é preciso cobrir
todo o leque de ênfases encontradas na Bíblia. Veja uma exploração exemplificativa
dos temas da paz (shalom), terra, casa e cidade de Deus, justiça ao pobre, sábado e
jubileu em Snyder, Kingdom, Church and World.
4 Lawrence Richards, A New Face for the Church (Grand Rapids: Zondervan, 1970).
5 Christian A. Schwarz, em O Desenvolvimento Natural da Igreja (Curitiba: Esperança,
s.d.). Veja também David S. Young, A New Heart and a New Spirit: A Plan for Renewing
Your Church (Valley Forge: Judson Press, 1994); David S. Young, Servant Leadership
for Church Renewal: Servants by the Living Springs (Scottdale: Heral Press, 1999).
6 Elizabeth O'Connor, Journey Inward, Journey Outward (New York: Harper& Row,
1968). Principalmente uma reflexão sobre a vida da Church of the Savior em Wa-
202 A COMUNIDADE DO REI

shington, D.C., esse livro conta a história de alguns grupos missionários criativos e
efetivos.
7 Veja também Roger S. Greenway, ed„ Guide for Urban Church Planting (Grand
Rapids: Baker, 1976).
8 A reflexão sobre exemplos contemporâneos pode e deve ser enriquecida pelo estudo de
experiências semelhantes da igreja em épocas anteriores. Veja, além das fontes já men­
cionadas, George G. Hunter III, The Celtic Way o f Evangelism: How Christianity Can
Reach the West... Again (Nashville, Bingdon, 2000).
9 Isso ocorre especialmente com muitos homens. Muitas mulheres demonstram sensibili­
dade afetiva e pode ser-lhes mais fácil viver "a vida colocada à disposição", O discipula-
do delas pode ser mais de descobrir forças para afirmar e usar (às vezes diante de
oposição ou má compreensão) os dons espirituais que Deus lhes deu, do que a luta da
abnegação â semelhança de Cristo. Por outro lado, alguns homens são naturalmente
muito afetivos e algumas mulheres, naturalmente muito assertivas, e louvamos a Deus
por essa diversidade. Seja como for, todos são chamados para o discipulado, para a
submissão mútua (Ef 5.21) e para o ministério em favor do reino.
10 Robert Lewis e Rob Wilkins, The Church o f Irresistible Influence (Grand Rapids: Zonder-
van, 2001).
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vro, bem como outras de particular relevância à vida da igreja hoje.

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