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A Z U
EDITORA
Originalmente publicado por InterVarsity Press como The Community of the king,
de Howard A. Snyder. Copyright © 1997 by InterVarsity Christian Fellowhip/USA.
P.O. Box 1400, Downers Gorve, IL 60515, USA.
Traduzido e impresso com permissão da InterVarsity Press.
Snyder, Howard A.
A comunidade do Rei / Howard A. Snyder ; [Tradução de
Lucy Hiromi Kono Yamakami]. —São Paulo : ABU Editora, 2004.
Título Original: The Community of the King.
Bibliografia.
ISBN 85-7055-056-1
04-1061 CDD-248.4
I. A PERCEPÇÃO DO REINO............................................ 19
1. A consciência do R ein o ........................................................... 21
Do fundamentalismo ao evangelicalismo
Uma consciência hodierna do Reino
2. Modelos de ig re ja ..................................................................... 33
A concepção da Reforma
Uma mistura de metáforas
Os modelos de Lausanne
A igreja e o Reino
3. Novas correntes: modelos de igreja a partir de 1975............... 43
BIBLIOGRAFIA 203
PREFACIO
7 de dezembro de 2002
INTRODUÇÃO:
É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO?
NOTAS
1 Marie-Dominique Chenu, Nature, Man and Society in the Twelfth Century, trad. Jerome
Taylor e Lester K. Little (Chicago: University of Chicago Press, 1968), p. 240. Chenu
destaca que a aspiração de restaurar a igreja a seu estado primitivo não só provocou um
movimento de reforma moral, como também nutriu uma profunda indagação a respeito
da fé cristã que resultou em desenvolvimentos significativos na teologia. As duas verten
tes desse ímpeto renovador podem ser simbolizadas pelos nomes de Francisco e Clara
de um lado e do teólogo Tomás de Aquino do outro. Floje, como naquela época, a igreja
necessita periodicamente de renovação na teologia, bem como em suas dimensões
pessoais e corporativas,
2 Donald G. Bloesch, The Evangelical Renaissance (Grand Rapids: Eerdmans, 1973), p.
41.
3 J. I. Packer discute a "eclesiologia reduzida" do evangelicalismo, embora creia que a
dificuldade seja "mais prática que teorética. A eclesiologia evangelical não é reduzida,
mas o eclesiasticismo como atitude e mentalidade é, e sem uma reavaliação e ajuste,
isso continuará..." ( J. I. Paker, "A Stunted Ecclesiology?" em Kenneth Tanner e Christo-
pher A. Hall, eds., Ancient and Postmodern Christianity: Paleo-Orthodoxy in the 21*
Century [Downers Grove: InterVarsity, 2002], 127). É questionável, porém, se esse tipo
de distinção entre teoria e prática é plausível e se o problema é mera questão de prática.
4 Orlando E. Costas, The Church and Its Mission: A Shattering Critique from the Third
World (Wheaton: Tyndale, 1974), pp. 8-10, 21-57. Em essência, a análise de Costas é
paralela à minha.
5 A atividade divina no mundo não se limita à redenção evangélica: ela também inclui
preservação e julgamento. Assim, Deus também age fora da igreja e até em julgamento
contra a igreja. Mas no que diz respeito à redenção, a igreja é o único agente escolhido
por Deus para que a salvação possa ser pela graça!
6 Melvin L. Hodges, A Guide to Church Planting (Chicago: Moody, 1973), p. 15.
7 A menos que haja outra indicação, todas as citações bíblicas são da Nova Versão Interna
cional.
8 Jesus fala de "reino de Deus", "reino do céu", "meu reino", "reino de meu pai" e
assim por diante. Embora, talvez, pretendesse mostrar algumas diferenças de ênfase,
não creio que Jesus pretendesse mostrar diferenças fundamentais de significado
entre as expressões "reino de Deus" e "reino do céu" (ou, literalmente, "dos céus").
Aliás, as duas expressões podem representar a mera preferência de Mateus e não as
diferenças de sentido intencionais de Jesus. Jesus, provavelmente, usou as duas como
sinônimas.
9 Trato em maior profundidade da natureza do reino de Deus em si e da relevância do
reino para a existência e missão da igreja em Models o f the Kingdom (Nashville:
Abingdon, 1991) e Kingdom, Church, and World: Biblical Themes for Today (Eugene:
INTRODUÇÃO: É A IGREJA QUEM TRAZ O REINO? 17
Do fundamentalismo ao evangelicalismo
Uma rápida recapitulação histórica esclarecerá esse ponto. Para isso,
é preciso compreender a história do protestantismo norte-americano
no século X X , já que o protestantismo evangelical recebeu esse grande
impacto em todo o globo.
Podemos perceber três estágios na luta do evangelicalismo com a
questão do testemunho fiel à sociedade e seu envolvimento com ela:
1. Consciência Inquieta. Esse estágio pode, por conveniência, ser as
sociado à publicação do livro de Cari F. H. Henry, The Uneasy Conscien-
ce o f M odem Fundamentalism, em 1947. Nesse livro, Henry escreveu:
A “ consciência inquieta” ... não é a perturbada com as grandes verdades
bíblicas ... mas a angustiada pelas falhas freqüentes na aplicação efici
ente delas a problemas cruciais com que se defronta a mente moderna.
E uma aplicação dos fundamentos da fé, não uma revolta contra eles, o
que defendo,3
Esse estágio chegou quando se assentava a poeira do campo de bata
lha — tanto literal (a Segunda Guerra) como figurada (a controvérsia
modernista-fundamentalista) — , e os de teologia conservadora tiveram
A CONSCIÊNCIA DO REINO 23
uma perspectiva global, cósmica, que via o plano de Deus em sua tota
lidade espaço-tempo e se concentrava no que Deus está fazendo por meio
da igreja aqui e agora. Essa perspectiva representava um passo, pelo
menos, em direção a uma nova consciência do reino de Deus.
afiada que qualquer espada de dois gumes” (Hb 4.12). O contexto mos
tra claramente que essa passagem não se refere só à Bíblia.
A Palavra de Deus é uma crítica constante à igreja, levando o povo
de Deus a compreender o reino ou reinado de Deus em todas as suas
dimensões e viver para ele. A abertura contínua ou renovada para a
Palavra de Deus em sua capacidade de convencer e inspirar é uma chave
para as igrejas existirem não só para si mesmas, mas para os propósitos
divinos de redenção e libertação.
Terceiro, uma recuperação de um senso de história. O reino de Deus
é um fato histórico. Ele não brota em sua plenitude no cenário do mun
do sem nenhuma relação com a história, mas em certo sentido resulta
da ação de Deus ao longo da história e, de maneira suprema, na vida,
morte e ressurreição de Jesus. É verdade que o estabelecimento definiti
vo do reino aguarda o retorno de Cristo; é também verdade que Deus
está agindo agora na história, principalmente “ mediante a igreja” (Ef
3.10). Os cristãos bíblicos precisam reafirmar a importância da ação
humana dentro do processo histórico, sem, porém, dicotomizar ou dei-
ficar a história.
Quarto, uma nova ênfase na ética do reino. Os ensinos de Jesus
deixam claro que o reino de Deus em sua realidade presente significa
uma vida de discipulado. “A igreja é a forma sofredora do reino de
Deus.”27 A presente expressão do reino exige uma ética de crucificação,
não uma ética triunfalista. A igreja não pode viver como se o reino já
estivesse plenamente estabelecido; ela é chamada para viver o paradoxo
do Rei que acabou numa cruz. Assim, a igreja é chamada para “dar a
vida” (veja Jo 10.17,15.13), mesmo quando experimenta a alegre espe
rança da reconciliação final (Rm 15.13). Consciência do reino significa
profunda consciência do preço do discipulado.
E, por fim, uma perspectiva cristã da cultura é um componente ne
cessário de uma visão do reino. Há, para os cristãos, um “mandato cul
tural” , tanto quanto um mandato evangelístico — ou melhor, um man
dato do reino, que combina os dois. O evangelho preocupa-se com toda a
sociedade, não apenas com a igreja institucional. E a esfera de ação
divina não se limita ao círculo dos que crêem, antes, abrange toda a
criação, como a Bíblia nos relembra repetidas vezes. Historicamente, os
evangelicais estão corretos em insistir na centralidade e prioridade da
conversão pessoal e da edificação da comunidade cristã, a igreja. Com
freqüência, eles também reconhecem que a conversão e a comunidade
cristã implicam uma responsabilidade social fundamental. M as essa vi
são do reino vai além. Ela leva em conta toda a questão da cultura e da
30 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
1 "Evangelical" e "evangelicalismo" têm diferentes significados em diferentes contextos.
Em boa parte da América Latina, "evangelical" é praticamente sinônimo de "protestan
te", enquanto em algumas partes da Europa significa essencialmente "luterano".
Neste livro, a menos que haja alguma ressalva, uso "evangelical" no sentido do
ressurgimento do protestantismo ortodoxo conservador na América do Norte, depois
da Segunda Guerra (com raízes no fundamentalismo e nos avivamentos do século
XIX), e do movimento evangelical global que surgiu principalmente das agências evan-
gelísticas e missionárias norte-americanas formadas depois de 1940. Hoje, o evange
licalismo global é tipificado por redes como a World Evangelical Fellowship (WEF) e o
movimento de Lausanne. Veja em especial Donald W. Dayton e Robert K. Johnston,
The Variety o f American Evangelicalism (Downers Grove: InterVarsity, 1991).
2 Carl F. H. Henry, Evangelicals in Search o f Identity (Waco: Word, 1976), p. 22.
3 Carl F. H. Henry, The Uneasy Conscience o f Modem Fundamentalism (Grand Rapids:
Eerdmans, 1947), Prefácio.
4 Ronald Nash, The New Evangelicalism (Grand Rapids: Zondervan, 1963); Millard Erick
son, The New Evangelical Theology! Old Tappan: Revell, 1968); David O. Moberg, The
Great Reversal (Philadelphia: Lippincott, 1972); David F. Wells e John Woodbridge, The
Evangelicals (Nashville: Abingdon, 1975).
5 Boa parte do fundamentalismo, porém, não sentiu essa "consciência pesada" e conti
nuou praticamente intocado até o surgimento da chamada nova direita religiosa, no
final da década de 70. Veja R. Zwier, "New Religious Right", em Donald F. Reid ed.,
Dictionary o f Christianity in America (Downers Grove: InterVarsity, 1990), 817s.
6 Até 1976, o nome de Sojourners era The Post American. The Other Side, na realidade,
teve uma história anterior, mas surgiu como periódico "evangelical jovem" com esse
título na década de 70, Embora alguns evangelicais mais novos preferissem dissociar-
se do evangelicalismo e, portanto, do rótulo evangelical, as relações históricas e seu
compromisso com a autoridade bíblica (mesmo que redefinida) ainda os colocam
dentro do contexto mais amplo do evangelicalismo contemporâneo. Veja em especial
Richard Quebedeaux, The Young Evangelicals (New York: Harper & Row, 1974) e The
Other Side, 11:2 (March/April, 1975).
7 Moberg, p. 177. Veja também Donald W. Dayton, Discovering an Evangelical Heritage
A CONSCIÊNCIA DO REINO 31
(New York: Harper & Row, 1976; rev. ed., Peabody: Hendrickson Publishers, 1988).
8 Sherwood Wirt, The Social Conscience o f the Evangelicals (New York: Harper & Row,
1968), p. 154.
9 Carl F. H. Henry, A Plea for Evangelical Demonstration (Grand Rapids: Baker, 1971), p. 107.
,0 Leighton Ford, The Christian Persuader (New York: Harper & Row, 1966), p. 151.
11 Para evitar um entendimento universalista dessa "reconciliação de todas as coisas",
deve-se ter em mente aqueles textos bíblicos que falam do julgamento e da condenação
eterna de Satanás e de todos os que rejeitam a Cristo e da repulsão de tudo o que seja
impuro, profano ou falso.
12 O Pacto de Lausanne pode ser considerado um passo nessa direção (veja o cap. 2).
13 Vinay Samuel e Chris Sugden, eds., Mission as Transformation: A Theology o f the Who
le Gospel (Oxford: Regnum, 1999).
14 Veja, por exemplo, C. René Padilla, El Evangelio Hoy (Buenos Aires: Certeza, 1975), e
Missão Integral — Ensaios sobre o Reino e a igreja (São Paulo/São Paulo: FTL-B/Temáti-
ca, 1992).
15 Pode ser produtiva e elucidativa uma pesquisa para comparar e contrastar o surgi
mento de uma consciência do reino dentro do evangelicalismo global com a ênfase no
reino de Deus na origem do evangelho social na América do Norte um século antes.
,6 Henry, A Plea for Evangelical Demonstration, p. 108.
17 Ibid., pp. 113-14.
18 A noção de um "mandato cultural" dado à igreja tende a alargar o senso de missão
da igreja, não a limitando à evangelização no sentido estreito. É, porém, mais útil,
inclusivo e biblicamente saudável falar de um mandato do reino, dado à igreja, que
incorpora o "mandato cultural", o "mandato evangelístico" e muito mais.
19 Francis A. Schaeffer, Poluição e Morte do Homem — uma Perspectiva Cristã da
Ecologia (Rio de Janeiro: JUERP, 1976), pp. 71-72. Essa percepção penetrou de manei
ra bem desigual no evangelicalismo norte-americano e em muitos casos tem sido
ignorada por completo.
20 Ibid., p. 74.
21 Veja Snyder, Models o f The Kingdom, capítulos 2— 10; Howard Snyder, "Models of
the Kingdom: Sorting Out the Practical Meaning of God's Reign", em Samuel e
Sugden, Mission as Transformation, pp. 118-33.
22 H. Richard Niebuhr, The Kingdom o f God in America (New York: Harper Torchbooks,
1959), p. 135.
23 Ibid., pp. 150-51.
24 Ibid., p. 151.
25 Dayton delineia o envolvimento e o empenho dos evangelicals do século XIX com o
abolicionismo, o feminismo, a reforma educacional e a preocupação de pregar o
evangelho aos pobres.
26 Muitos dispensacionalistas não hesitam em mapear um programa de atividade cósmi
ca divina, mas esse programa tem pouco espaço para a atividade humana na socieda
de (exceto pela atividade dos pecadores), além de não ter continuidade com a história
no espaço e no tempo.
27 R J. Hoedemaker, citado por Van Ruler, The Christian Church and the Old Testament, p. 82.
MODELOS
DE IGREJA
Quando eu era jovem, a igreja nos era apresentada como uma sociedade
hierárquica: ela era descrita como “juridicamente perfeita”, possuindo em
si todos os poderes necessários para garantir e promover a própria existên
cia. Essa idéia refletia uma imagem da igreja moldada de maneira bem
próxima segundo a sociedade civil ou até mesmo militar: havia uma hierar
quia descendente, uma uniformidade que era considerada como um ideal e
uma disciplina que se estendia ao mínimo detalhe, regendo a vida tanto do
clérigo como do leigo e impondo até aos bispos toda uma série de servidões
burocráticas.5
Suenens destaca, porém, que “ ao mesmo tempo ... outra visão da
igreja gradualmente tomava forma diante de nossos olhos” . Certo nú
mero de teólogos católicos começou a falar da igreja como o corpo
místico de Cristo, e isso abriu caminho para as declarações do Vatica
no II. Diz Suenens:
O Concílio Vaticano II enfatizou a igreja como Povo de Deus em peregrina
ção, a serviço do mundo ... Isso era para salientar a prioridade do batismo
e a igualdade radical dos filhos de Deus, e implica automaticamente uma
reforma do conceito da igreja que boje chamamos de “piramidal”, situando
assim o ministério dentro do coração e a serviço de todo o corpo eclesiás
tico. A perspectiva tornou-se mais evangélica e menos jurídica, sem, po
rém, repudiar o papel da hierarquia.6
Essa declaração, vinda de um porta-voz católico tão eminente, é
notável em vários níveis. Da perspectiva deste capítulo, é importante
porque documenta uma mudança de ênfase importante entre os cató
licos romanos: da igreja como instituição para a igreja como comuni
dade de pessoas. Dulles defende o mesmo ponto:
O Concílio Vaticano II, em sua Constituição sobre a igreja, fez amplo uso
dos modelos do corpo de Cristo e do Sacramento, mas seu modelo domi
nante foi, antes, o do Povo de Deus. Esse paradigma concentrou a atenção
na igreja como uma rede de relacionamentos interpessoais, na igreja como
comunidade. Esse, ainda, é o modelo dominante para muitos católicos
romanos que se consideram progressistas e invocam o ensino do Vaticano
II como autoridade sobre eles.7
Seria fácil exagerar a importância dessa mudança de uma concep
ção institucional para uma concepção orgânica/comunal da igreja.
Deve-se lembrar que o caráter institucional da igreja e as prerrogati
vas da hierarquia foram reafirmadas de maneira explícita pelo Vatica
no II. M as é evidente certa redução do conceito institucional em favor
de um conceito baseado nos símbolos de povo e comunidade, e isso tem
exercido um grande impacto no catolicismo romano no quarto de sécu
lo subseqüente.
36 A COMUNIDADE DO REI
A concepção da Reforma
Como aparecem essas trocas de modelos quando se observa da pers
pectiva do pensamento protestante? A concepção de igreja esposada pe
los reformadores protestantes recebeu sua formulação clássica de Lute-
ro e Melanchton na Confissão de Augsburgo (1530): a igreja é “a con
gregação dos santos na qual o Evangelho é corretamente ensinado e os
sacramentos são corretamente administrados” . Sua “verdadeira unida
de” é baseada na “unidade de fé com referência ao ensino do Evangelho
e à administração dos sacramentos” .8 Aqui, a igreja é vista fundamen
talmente em termos de crença correta, ensino correto e ordem correta.
Essa definição de igreja, como observou E. Gordon Rupp, “tende a influ
enciar todas as definições posteriores” .9
M ais calvinista em seu tom é a Confissão de Westminster, um sécu
lo mais tarde, que disse que a igreja, invisível, “consiste de todo o nú
mero dos eleitos” e, visível, “consiste de todos os que através do mundo
professam a verdadeira religião, juntamente com seus filhos” .10A ênfa
se, aqui, está na eleição, na crença correta e, implicitamente, nos sacra
mentos e na ordem correta.
Embora essas declarações sejam bem diferentes, três elementos se
destacam: (1) a ênfase principal é colocada sobre o evangelho e não
sobre a obediência à hierarquia; (2) a incorporação à igreja é vista prin
cipalmente como uma questão de crença ou profissão correta; e (3) as
figuras de comunidade, povo ou corpo não são centrais. A ênfase passa
da instituição do sistema eclesiástico católico romano para a institui
ção da Palavra proclamada e para os sacramentos administrados.
No século XVI, era difícil conceber a igreja como um povo distinto
do restante da sociedade ou como uma comunidade específica separada
do mundo. Esse conceito de igreja era revolucionário a ponto de ser
considerado herético, e ameaçador a ponto de parecer politicamente
subversivo. Principalmente por esse motivo, aqueles que chegaram mes
mo a afirmar o direito e a necessidade de a igreja ser uma comunidade
separada, distinta, do povo de Deus — os anabatistas — morreram às
centenas pela fé que professavam. Não é por coincidência que a redes-
coberta contemporânea do valor da tradição anabatista para o cristia
nismo contemporâneo tenha por paralelo uma nova ênfase na igreja
como comunidade e como um povo.11
Se os reformados não endossavam especificamente a concepção ins-
titucional/hierárquica da igreja, também não tinham razão para rejei
tá-la. William R. Estep nos lembra que “ a Reforma foi uma revolta con
tra a autoridade papal, mas não contra o conceito romano da igreja
MODELOS DE IGREJA 37
Os modelos de Lausanne
O Congresso de Lausanne, realizado a apenas uma hora de Gene
bra, Suíça, no verão de 1974, manteve-se na herança da Reforma Protes
tante e, assim, das concepções reformadas da igreja. M as os cerca de
38 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
1 Avery Dulles. Models o f the Church (New York: 1974). Veja também a discussão em
Snyder, Models o f the Kingdom, cap. 1, "The Mystery of the Kingdom and the Use
of Models", 15-24.
2 Peter Savage, "The Church and Evangelism", em The New Face o f Evangelism, ed.
C. René Padilla (Downers Grove: InterVarsity, 1976), 106-20.
3 Dulles, 30 (ed. 1974).
4 Avery Dulles, Models o f the Church, rev. ed. (New York: Doubleday, 1987).
5 Cardeal Leon Joseph Suenens, A New Pentecost? trad. Francis Martin (New York:
Seabury Press, 1975), pp. 1-2.
6 Ibid., pp. 2-3.
7 Dulles, p. 27 (ed. 1974).
8 Henry Bettenson, ed., Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: Aste/Simpósio, 1998),
p. 318. Lutero distinguia sete marcas da Igreja, todas relacionadas com a Palavra de
Deus. A Igreja é marcada por (1) a Palavra pregada e crida, a Palavra simbolizada e
partilhada por meio do (2) batismo e (3) da Santa Comunhão; a Palavra propriamente
administrada e guardada que necessita de (4) ministros e (5) do ofício das chaves; (6)
a Palavra usada na adoração; e a Palavra vivida, que é uma vida marcada pela (7) cruz.
É evidente que todas essas marcas, exceto a última, estão ligadas exclusivamente ao
culto público da Igreja. O tratamento dado por Calvino às marcas da Igreja é, à
primeira vista, bem diferente do de Lutero, mas na realidade é bem semelhante.
Calvino diz várias vezes que há duas marcas da Igreja visível: o puro ministério da
Palavra e a pura celebração dos sacramentos. "Onde quer que vejamos a palavra
de Deus sinceramente pregada e ouvida, onde quer que vejamos os sacramentos
administrados de acordo com a instituição de Cristo, não podemos duvidar que ali a
Igreja de Deus tem alguma existência ..." (Instituías da Religião Cristã . IV, i, 12).
Aqui, só há duas marcas — ou, se separarmos os sacramentos, três. Mas, para
Calvino, a "administração adequada" dos sacramentos exige um ministério ordena
do e a necessidade de provisão para excomunhão. E a administração dos sacramen
tos é uma questão de adoração pública. Assim, em essência, não há diferença
básica entre Lutero e Calvino quanto à maneira pela qual a Igreja pode ser reconhe
cida sobre a terra. Uma área de diferença é que Calvino não menciona a cruz ou a
perseguição como uma marca da Igreja. Calvino reconhece o lugar da cruz na
experiência cristã, mas, ao que parece, não via a perseguição ou o sofrimento como
uma marca necessária. Lutero menciona a cruz, apesar de colocá-la por último em
sua lista.
9 E. Gordon Rupp, "The Doctrine of the Church at the Reformation", em The Doctrine
o f the Church, ed. Dow Kirkpatrick (Nashville: Abingdon, 1964), p. 73. Tanto Lutero
como Calvino acreditavam, é claro, que a Igreja era mais que sua expressão visível. Era
o povo de Deus, a comunhão dos eleitos. Mas no que se tratasse de sua manifestação
reconhecível na história, no espaço e no tempo, a ênfase (não exclusiva, mas principal)
estava mais no ensino e na ordem adequada do que na comunidade e na formação de
um povo.
10 Bettenson, p. 343.
n Veja, por exemplo, William R. Estep, The Anabaptist Story, rev. ed. (Grand Rapids:
Eerdmans, 1975). Stanley Hauerwas e William H. Willimon, Resident Aliens: Life in the
Christian Colony (Nashville: Abingdon, 1989). Nem Lutero nem Calvino consideravam
a igreja idêntica ao estado ou à sociedade em geral. Eles até admitiam certa tensão
MODELOS DE IGREJA 41
entre a igreja e a sociedade. Mas não concebiam a igreja como uma entidade
sociologicamente distinta, uma comunidade autoconsciente existindo em evidente
tensão com a sociedade adjacente, ou seja, como uma contracultura.
12 Estep, p. 182.
13 Veja uma discussão das questões mais amplas de cultura e cosmovisão aqui apresen
tadas em Howard A. Snyder e Daniel V. Runyon, Decoding the Church: Mapping the
DNA o f Christ Body (Grand Rapids: Baker, 2002), em especial o cap. 7.
14 Veja a discussão dessas passagens no capítulo 7.
15 Os pentecostais e carismáticos ficaram sub-representados em Lausanne, mas a parti
cipação deles foi maior em Lausanne II, em Manila (1989). Parte da interessante dinâ
mica do encontro de Manila foi que a melhor recepção dada aos evangelicais carismá
ticos, dos quais muitos estavam construindo pontes com católicos romanos carismáti
cos, criou tensões com os evangelicais não-carismáticos que viam a Igreja Católica
Romana de maneira mais negativa, talvez até como apóstata.
16 Veja John Stott, ed„ Making Christ Known: Historie Mission Documents from the
Lausanne Movement, 1974-1989 (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), pp. 28-30.
17 A Missão da Igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial,
1975), pp. 239-44; Stott, Making Christ Known, pp. 9, 20, 28.
18 É provável que a reunião sobre "discipulado radical" estivesse ainda mais alerta às
implicações da terminologia comunidade/povo do que os participantes em geral. Os
adjetivos carismático e messiânico no ensaio "Uma Resposta a Lausanne" sugerem
temas especialmente adequados ao intento deste livro. Veja Douglas, Let the Earth
Hear His Voice, Official Reference Volume of the International Congress on World
Evangelization (Minneapolis: World Wide Publications, 1975), pp. 1294-96.
19 Permanecem, obviamente, diferenças fundamentais e distintas entre a concepção
evangelical contemporânea e a concepção católica romana (oficial) da igreja. Alguns
elementos das declarações eclesiásticas do Vaticano II são ofensivos para os protes
tantes, porque têm bem pouca base bíblica explícita. O que se destaca aqui é a
questão da ênfase central.
20 Uma m udança um tanto semelhante ocorreu na parte da igreja associada ao
Concílio Mundial de Igrejas. Veja uma discussão breve em Bernard Cooke, Ministry
to Word and Sacraments (Philadelphia: Fortress Press, 1976), pp. 2-5.
21 Isso é verdade pelo menos para os que participaram do Congresso de Lausanne.
Uma reunião de administradores de igrejas, em lugar de líderes de missões e de
evangelização (ou, nesse sentido, uma reunião restrita a teólogos sistemáticos) bem
poderia ter saído com uma declaração muito diferente a respeito da igreja.
3
NOVAS CORRENTES:
MODELOS DE IGREJAS
A PARTIR DE 1975
Modelos de libertação
A teologia da libertação, articulada por autores latino-americanos
como Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo e José Míguez Bonino foi
um novo desafio às maneiras tradicionais de entender a igreja.1A igreja
é, de fato, uma comunidade libertadora e um agente de libertação? Nes
se caso, em que sentidos? O que significa praticar a libertação na igreja
e qual a responsabilidade pública da igreja na oposição à opressão, racis
mo e injustiças? Salvação é libertação? Com o surgimento da teologia
da libertação, essas perguntas tiveram de ser encaradas como temas da
eclesiologia.
Gutiérrez alega que a igreja é uma comunidade em que deve ocorrer
uma “reflexão crítica sobre a práxis” . Assim, a vida da igreja tem um
“caráter fontal... para toda análise teológica. A palavra de Deus convoca
e encarna-se na comunidade de fé que se entrega ao serviço de todos os
homens” . A análise teológica da igreja assume “a importância da ação
humana como [seu] ponto de partida” .2A verdadeira “comunhão com o
Senhor significa, evidentemente, uma vida cristã centrada num compro
misso, concreto e criador, de serviço aos outros” . Na realidade, porém, é
muito freqüente a igreja colocar a doutrina correta acima do serviço re
dentor, libertador; ela “limitou-se à ortodoxia e acabou deixando a orto-
práxis em mãos dos que estavam fora dela e do número dos crentes” .3
Gutierrez falou da igreja em relação ao domínio de Deus, observan-
44 A COMUNIDADE DO REI
A igreja e o reino
Essas diferentes correntes teológicas têm enriquecido e atiçado a
discussão eclesiológica nos últimos trinta anos. Embora possamos iden
tificar temas diferentes e até conflitantes nesses diferentes modelos —
liberacionista, pentecostal-carismático e trinitário — é possível afirmar
que cada uma dessas correntes contribui com algo essencial para nosso
entendimento da riqueza da igreja. Pode ser verdade, conforme alega
Richard Foster, que as várias tradições na história da igreja podem ser
consideradas “correntes de água viva” que, testadas pelas Escrituras,
ajudam a nutrir a igreja.42 Ou, como Richard Lovelace escreveu, alguém
pode imaginar uma “ teoria de campo unificada” de espiritualidade e
renovação da igreja, em que discernimos as contribuições de diferentes
tradições para o “mistério” da igreja e do reino.43
O objetivo, porém, não é tentar uma simples síntese ou harmonia
entre diferentes modelos de igreja, o que poderia ser reducionista. Antes,
o objetivo é destacar a riqueza, diversidade e mistério bíblicos do verda
deiro corpo de Cristo e procurar modelos práticos que sejam fiéis às
Escrituras e também altamente relevantes para a existência da igreja
hoje em seu contexto sociocultural concreto.
Conforme Dulles destacou, nenhum modelo pode definir por com
pleto a igreja ou o que Deus está realizando por meio dela. Uma varie
dade de modelos e figuras pode nos ajudar a compreender a variada
riqueza da igreja.
M as alguns modelos, é lógico, devem ter prioridade sobre outros.
Pela Bíblia, é mais válido compreender a igreja como a comunidade do
povo de Deus do que como uma instituição hierárquica ou uma “ socie
dade juridicamente perfeita” , conforme veremos adiante. É certo que
figuras bíblicas, como o povo e o rebanho de Deus, o corpo e a noiva de
Cristo e a comunidade ou comunidade do Espírito Santo, têm prioridade
sobre modelos menos bíblicos. Os modelos liberacionista e pentecostal-
carismático de fato destacam temas bíblicos essenciais facilmente ne
gligenciados. Em termos teológicos e bíblicos, a eclesiologia hoje certa
mente precisa ser enriquecida pela concepção de igreja como pelo menos
um “eco” ou “imagem” da Trindade.
A questão, porém, não é só a igreja, mas o reino. Estou convicto de
que um entendimento de fato bíblico do reino de Deus só é possível se a
igrej a é entendida — predominantemente, senão exclusivamente — como
a comunidade carismática e o povo peregrino de Deus, seu reino de sa
cerdotes. Neste livro, procuro mostrar por que essa é a maneira biblica
mente mais sadia e culturalmente mais relevante de compreender a igre-
NOVAS CORRENTES: MODELOS DE IGREJAS A PARTIR DE 1975 55
NOTAS
1 Veja, por exemplo, Gustavo Gutíérrez, Teologia da Libertação (Petrópolis: Vozes, 1975) e
José Míguez Bonino, Doing Theology in a Revolutionary Situation (Philadelphia: Fortress,
1974). 0 livro de Bonino contém uma ótima bibliografia de obras latino-americanas
sobre a teologia da libertação (a maioria em espanhol) entre 1963 e 73. Aqui, não é
o lugar para entrar numa discussão profunda sobre a teologia da libertação; o ponto
são as questões e contribuições eclesiásticas que ela traz.
2 Gutiérrez, Teologia da Libertação, pp. 20s. Gutiérrez observou que em grande parte
estimulado pelo marxismo "é que, apelando para suas próprias fontes, orienta-se o
pensamento teológico para uma reflexão sobre o sentido da transformação deste
mundo e sobre a ação do homem na história" (p. 22). Embora isso seja historicamente
verdadeiro, em especial no contexto latino-americano, as "próprias fontes" da teologia
cristã — em particular a Bíblia e a obra libertadora do Espírito — provêem a igreja do
mais profundo e revolucionário entendimento da transformação e da ação humana na
história quando ficam livres de crostas institucionais e eclesiásticas e podem reinar sem
impedimentos.
3 Ibid., pp. 23.
4 Ibid., pp. 24, 26.
5 Ibid., pp. 106, 90. No contexto, Gutiérrez refere-se primeiro à situação da Igreja
Católica Romana na América Latina. Obviamente, porém, o argumento possui impli
cações para a igreja em qualquer contexto histórico-social.
6 Leonardo Boff, Edesiogênese: As Comunidades de Base Reinventam a Igreja (Petrópo
lis: Vozes, 1977); ed. em inglês, Ecdesiogenesis: The Base Communities Reinvent the
Church, trad. Robert R. Barr (Maryknoll: Orbis, 1986). Sobre comunidades de base,
56 A COMUNIDADE DO REI
1.4).4 Esse plano inclui não só a reconciliação das pessoas com Deus,
como também a reconciliação de “todas as coisas, celestiais ou terre
nas” (Ef 1.10). Ou, como Paulo expressa em Colossenses 1.20, a inten
ção de Deus, por meio de Cristo, era reconciliar “consigo mesmo todas
as coisas, tanto as que estão na terra quanto as que estão nos céus, esta
belecendo a paz pelo sangue derramado na cruz” . Central nesse plano é
a reconciliação de pessoas com Deus por meio do sangue de Jesus Cristo.
M as a reconciliação conquistada por Cristo alcança todas as alienações
que resultaram de nosso pecado — dentro de nós mesmos, entre pessoas,
entre nós e nosso ambiente físico. Por mais que a idéia confunda nossa
mente, a Escritura ensina que essa reconciliação chega a incluir a reden
ção do universo físico dos efeitos do pecado, quando tudo for submetido
à devida liderança de Jesus Cristo (Rm 8.19-21). Ou como a Bíblia na
Linguagem de Hoje dá a entender em sua tradução de Efésios 1.10, o
propósito de Deus é “unir, no tempo certo, debaixo da autoridade de
Cristo, tudo o que existe no céu e na terra” .5
Esse é o plano mestre de Deus de acordo com Efésios. A mesma
perspectiva surge em outros escritos de Paulo, especialmente nos pri
meiros dois capítulos de Colossenses. Em 2 Coríntios 5.17-21, aprende
mos que Deus “nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo” e
confiou à igreja tanto a mensagem (logos) como o ministério (diakonia)
da reconciliação. De importância semelhante é o ensino de Romanos 8,
de que a liberdade dada à vontade humana pela salvação, no plano de
Deus, estende-se a toda a criação, pois “a própria natureza criada será
libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a
gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8.21).
Em todas essas passagens, Paulo começa com o fato da salvação
pessoal individual e coletiva por meio de Cristo. Daí, ele segue, colocan
do a salvação pessoal na perspectiva cósmica. N ão se permite aqui um
“isso” ou “aquilo” , nenhuma visão espiritual fechada como num túnel.
A redenção de pessoas é o centro do plano de Deus, mas não é a circunfe
rência desse plano. Paulo troca a tomada em d ose por uma tomada de
longa distância. Ele usa uma lente zoom, fazendo na maior parte do
tempo tomadas em d ose da redenção pessoal, mas faz um zoom periódi
co para, numa visão de longa distância e ângulo aberto, focalizar “todas
as coisas” — coisas visíveis e invisíveis, coisas passadas, presentes e fu
turas; coisas no céu e coisas sobre a terra; todos os principados e potesta
des — no cenário cósmico/histórico. Para, de fato, compreender o que
Deus em Cristo faz para as pessoas e por meio delas, precisamos dar um
passo para trás e ver todo o desígnio cósmico de Deus.
64 A COMUNIDADE DO REI
Agora ou depois?
Um problema muito espinhoso é toda a questão do mal. Se Deus
está “reconciliando todas as coisas consigo” por intermédio de Jesus
Cristo, o que será dos que rejeitam Cristo? E quanto a Satanás e seu
reino? A Escritura não responde a todas as nossas perguntas aqui, mas
deixa claro que todas as autoridades e poderes estranhos serão destruí
dos (1 Co 15.24-25). Jesus mesmo falou de maneira vigorosa sobre a
destruição eterna dos perversos (por exemplo, em M t 25.31-46). Apoca
lipse diz que Satanás e seus seguidores sofrerão julgamento eterno (20.10;
21.8) e que nada impuro entrará na Nova Jerusalém (21.27). Esses textos
anunciam o que os Salmos proclamam repetidas vezes: Deus, o Rei, ven
cerá e destruirá todos os seus inimigos. Nosso entendimento do plano de
Deus para a reconciliação deve ser consistente com esses textos, mesmo
que não possam os entender plenamente como isso é possível.
Quando Deus completa sua obra de reconciliação? Quase todos os
O PLANO MESTRE DE DEUS 65
seu plano, sua oikonomia, tem profundas implicações para a justiça so
cial, para a cultura, para a mordomia responsável do meio ambiente,
para a economia e os negócios. N osso interesse específico aqui, porém,
é a igreja como o agente chave, hoje, para a obra reconciliadora de Deus,
pelo poder do Espírito Santo.
Passamos agora, portanto, a examinar em mais detalhes a questão
do lugar da igreja no plano mestre de Deus.
NOTAS
1 W. Robertson Nicoll, e d , The Expositor's Greek Testament (Grand Rapids: Eerdmans,
1961), III, 259. Dal nossa palavra econômico. Observe também a palavra oikonomia e
suas várias traduções em Efésios 3.2; Colossenses 1.25; 1 Timóteo 1.4; Lc 16.2-4.
2 Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, eds., Theological Dictionary o f the New Testament,
trad. G. Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1964-74), V, pp. 151-52.
3 Bernard Zylstra, citado em Perspective, boletim da Association for the Advancement of
Christian Scholarship, VII; 2 (March/April, 1973), p. 14.
4 Observe a repetição dessa frase significativa em Mateus 13.35; 25.34; João 17.24; Efé
sios 1.4; Hebreus 4.3; 1 Pedro 1.20; Apocalipse 13.8; 17.8. Essas passagens deixam
claro que Cristo foi designado Salvador desde a eternidade e que o plano divino de
formar um reino é eterno.
5 Veja Kittel e Friedrich, eds., Theological Dictionary o f the New Testament, III, pp. 681-82.
6 A. A. Van Ruler, citando W. C. van Unnik, observa que os "Pais usam a palavra
mystêrion não só para os sacramentos, mas para toda a ação de Deus na história,
todo o tempo preenchido pelo Espírito Santo em Jesus Cristo e a partir dele. Penso
que devemos retornar a esse uso amplo e profundo do termo". The Christian Church
and the Old Testament, pp. 78-79.
7 Veja uma discussão das diferentes concepções milenistas e dispensacionalistas aqui
mencionadas em Snyder, Models o f the Kingdom, em especial o capítulo 10.
8 Francis Schaeffer, O Deus que Intervém (Jaú/São Paulo: Refúgio/ABU), pp. 233-34;
Poluição e Morte do Homem. pp. 71-75.
9 John Bright, The Kingdom o f God (Nashville: Abingdon Press, 1953), pp. 232-43.
67
5
A IGREJA NO
PLANO DE DEUS
68 A COMUNIDADE DO REI
A perspectiva bíblica
A Bíblia diz que a igreja é nada menos do que o corpo de Cristo. Ela
é a noiva de Cristo (Ap 21.9), o rebanho de Deus (1 Pe 5.2), o templo
vivo do Espírito Santo (Ef 2.21-22). Praticamente todas as figuras
bíblicas da igreja enfatizam um relacionamento essencial, vivo e am o
roso entre Cristo e a igreja. Isso destaca a função chave da igreja no
plano de Deus e nos lembra que “ Cristo amou a igreja e entregou-se
por ela” (Ef 5.25). Se a igreja é o corpo de Cristo — o meio para a ação
da cabeça no mundo — então, a igreja é uma parte indispensável do
evangelho, e a eclesiologia é inseparável da soteriologia. Portanto,
adotar o que pode ser chamado de “ atitude anti-igreja” — ou simples
mente desconsiderar ou ignorar a igreja — seria diluir o próprio evan
gelho e ao mesmo tempo demonstrar uma compreensão falha do que a
Bíblia entende por “ a igreja” . A igreja não é algo que deva ser arrasta
do para dentro do cenário só depois que os convertidos forem conquis
tados, como um aquário para peixes novos. Também não se pode rele
gar a igreja à condição de um pensamento teológico tardio. Afinal,
segundo a Bíblia, a igreja é nada menos que o Corpo de ninguém menos
que Jesus Cristo! Onde dois ou três se reúnem em nome de Cristo, ali já
está a igreja (Mt 18.20) — sejam esses dois ou três testemunhas, re-
cém-convertidos ou ambos.3
A Bíblia mostra a igreja no meio da cultura, lutando para ser fiel,
mas às vezes adulterada por alianças antinaturais com o paganismo e o
legalismo judaico. N as Escrituras, os lados terreno e celestial da igreja
ajustam-se, formando um todo, e não nos deixam com duas igrejas
incompatíveis ou com uma idéia de igreja dividida em dois níveis. A
igrejá é única; ela é o único corpo de Cristo que existe agora tanto na
terra como “nas regiões celestiais” (Ef 1.3; 2.6; 3.10). Essa perspectiva
da igreja é altamente relevante hoje por motivos fundamentais para a
perspectiva bíblica da igreja.4
Primeiro, a Bíblia vê a igreja em perspectiva cósmico-histórica.
Ela é vista na perspectiva do plano cósmico de Deus discutida no
capítulo anterior. A igreja é o povo que Deus vem formando e por
70 A COMUNIDADE DO REI
Koinonia Laos
Organismo carismático Realidade cósmico-histórica
Localidade da igreja - Universalidade da igreja
Comunhão -------------- Missão
Grupo pequeno — "Grande congregação1’
Dons espirituais — Reino de sacerdotes
Nova natureza moral Nova humanidade
DEUS MUNDO
tucional dominante.
Um modelo carismático ou orgânico é aquele marcado pela comuni
dade, relacionamentos interpessoais, mutualidade e interdependência.
Ele é flexível e deixa espaço para um alto grau de espontaneidade. A
Bíblia nos dá tal modelo para a igreja: o corpo humano.
Em contraste, o modelo institucional ou organizacional é baseado
na hierarquia, delegação de autoridade, relacionamentos impessoais e
formalidade. Essa é uma legítima forma de organização humana, que se
adapta de maneira admirável a alguns tipos de empreendimentos, mas
não é um modelo adequado de estrutura para a igreja. Todas as figuras
bíblicas de igreja insinuam um modelo carismático e orgânico, não um
modelo institucional: árvore, videira, rebanho, família, nação, casa e até
“santuário santo” que vive e cresce (Ef 2.21). Os elementos institucionais
legítimos devem estar subordinados à natureza carismática da igreja.
Seria adequado começar, nesse ponto, uma discussão detalhada da
estrutura da igreja, mostrando a relevância do modelo carismático ou
orgânico como forma da comunidade do povo de Deus. Vamos adiar
essa discussão até o capítulo nove, porém, para voltar à pergunta básica
deste capítulo e mostrar de maneira mais completa como a igreja é o
agente do reino de Deus.
direito e pela justiça pode ser ganha pela força, pela técnica, pelo fazer.
Não pode. É bem claro que essas não são as armas da guerra cristã (Ef
6.10-12).17 A verdadeira transformação cristã da cultura vem do amor,
da comunidade e da existência à semelhança de Cristo (portanto, sacri
ficial) e pela demonstração do poder do Espírito Santo.
M as esse fato de maneira alguma cancela a responsabilidade de fa
zer, de agir, de andar nas obras de Deus. O ser e o fazer andam juntos. O
ser é fundamental, mas o fazer é o resultado natural.
O ensino de Efésios 2.10 é que somos salvos por Deus para que
possamos fazer boas obras. Parte do propósito de Deus em nos salvar é
que as boas obras sejam feitas. Além disso, essas mesmas obras “Deus
preparou antes” . Isso, não no sentido de predestinação de nossos atos,
mas no sentido de um plano divino preexistente que Deus está concreti
zando por intermédio da salvação de pessoas e das obras que conse
quentemente realizam. Essa é a “economia” divina, a oikonomia de Deus.
Portanto, voltamos a encontrar aqui o fato do plano, do propósito
de Deus. Somos salvos, não só por nós mesmos, mas porque há coisas
específicas — determinadas obras — que Deus, em sua sabedoria, dese
ja realizar. E ele deseja realizá-las pela atividade dos que são salvos, ou
seja, pela igreja. O plano de Deus (“que agora, mediante a igreja, a
multiforme sabedoria de Deus se tornasse conhecida”) deve ser realiza
do, ao menos em parte, pela igreja fazendo as obras que “Deus preparou
antes” .
A expressão “ as quais Deus preparou antes” (ou “de antemão” ,
ERAB) é crucial. Já está na mente e no plano de Deus que certas coisas
que fazem parte do plano geral que ele está realizando devem ser de
fato feitas pela igreja em forma de boas obras. Assim, homens e mulhe
res redimidos participam da realização do desígnio cósmico de Deus. O
que Deus determinou fazer desde a criação do mundo — “fazer conver
gir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas” — deve, em parte,
ser realizado pelas boas obras dos salvos.18Isso deve ser cumprido “me
diante a igreja” , não como muitos indivíduos isolados, mas precisa
mente como “uma nova espécie de comunidade que leva um tipo de
vida radicalmente novo” .19
Mas o que são, especificamente, essas “boas obras, as quais Deus
preparou antes” ? A Bíblia não nos dá um catálogo detalhado de tarefas
do reino.20 Não é difícil, porém, identificar critérios bíblicos para deter
minar quais obras fazem parte do plano de Deus e quais se opõem a ele.
É possível aplicar cinco critérios: os cristãos estão cumprindo o desígnio
preordenado de Deus sempre que suas obras (1) brotam do amor cristão,
82 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
1 A expressão mediante a igreja é traduzida de maneira ambígua como "pela igreja", em
algumas versões, encobrindo a força do fato de que a igreja é o agente do plano de Deus.
2 Veja Dulles, Models o f the Church. O significado de dizer que a igreja é o agente do
reino de Deus também depende, claro, de como se entende o reino ou o reinado de
Deus. Veja uma discussão ampla em Snyder, Models o f the Kingdom.
3 0 amor de Deus pela igreja deve ser um alerta para os que desconsideram de todo a
"igreja institucional", considerando-a corrupta, decaída, apóstata ou simplesmente irre
levante. Na maior parte dos casos, a "igreja institucional", mesmo quando seriamente
comprometida, contém um número de crentes genuínos que cultuam de fato a Deus e
realizam algumas obras características do reino. Deus não desistiu delas nem (creio e
espero) das possibilidades de uma genuína e surpreendente renovação da igreja em tais
contextos. Isso já aconteceu antes.
4 Os três pontos que se seguem são resumidos do cap. 13 de Vinho Novo, Odres Novos
(São Paulo: ABU, 1997).
5 Samuel Escobar, "A Evangelização e a Busca de Liberdade, de Justiça e de Realização
pelo Homem", em A Missão da igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU, 1982), p. 186.
6 Hans Küng também descreve a igreja como "o Povo de Deus ... a comunidade dos
fiéis"; a igreja é "a comunidade do novo povo de Deus chamada e reunida". Structu-
res o f the Church, trad. Salvator Attanasio (London: Burns and Oates, 1964), pp. x, 11.
A IGREJA NO PLANO DE DEUS 83
7 Ibid., p. 12.
8 Nicoll, III, p. 309.
9 Embora ainda sustentem que a igreja é legitímamente uma instituição, alguns eruditos
católicos contemporâneos admitem, e até insistem, que o lado carismático ou orgânico
da igreja deve ter precedência sobre o institucional. Veja, por exemplo, Dulles, Models o f
the Church. Ironicamente, ao mesmo tempo, alguns evangelicais "paleo-ortodoxos",
preocupados com a confusão doutrinária e eclesiológica de hoje, aceitam de maneira
acrítica a institucionalização da igreja que ocorreu nos séculos III e IV d .C , embora sua
concepção de igreja seja notavelmente diferente da que encontramos no Novo Testa
mento.
10 David O. Moberg, The Church as a Social Institution (Englewood Cliffs, New Jersey:
Prentice-Hall, 1962), p. 6.
" Veja Geoffrey W. Bromiley, "The Charismata in Christian History", Theology, News and
Notes (do Fuller Theological Seminary), Mar. 1974, p. 3.
12 Essa afirmação obviamente não deve servir para justificar todo e qualquer movimento
de renovação, mesmo que teologicamente ortodoxa. Muitos fatores entram em jogo
nessas ocasiões e cada caso deve ser avaliado segundo seus méritos. Veja Howard A.
Snyder, Signs o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zondervan,
1989; Eugene: Wipf and Stock, 1997), em especial o cap. 2, "The Study of Renewal
Movements".
13 A renovação da igreja pode ser entendida em termos de cinco dimensões: pessoal,
corporativa ou comunitária, conceituai, estrutural e missíológica. Veja Snyder, Signs o f
the Spirit, cap. 8.
14 Quanto aos vários usos da palavra carismático, veja John Howard Yoder, "The Fullness
of Christ", Concern, Feb. 1969, pp. 63-65.
,5 Bromiley, p. 24.
,6 A igreja não possui valor especial, claro, exceto quando leva a imagem de Deus e é o
recipiente da graça e do amor de Deus. A igreja pode cair na armadilha de se
superestimar, esquecendo-se de que tem sobre si o chamado divino redentor e liber
tador,
17 Veja a discussão da função profética da igreja no capítulo 7.
18 Em contraste, o plano de Satanás é reunir todas as coisas no céu e na terra sob sua
própria liderança ou controle ou sob a liderança de uma pessoa ou sistema que ele
controla.
19 John Howard Yoder, A Política de Jesus (São Leopoldo: Sinodal, 1987), p. 42.
20 Veja, no capítulo 6, uma melhor exposição das tarefas da igreja para a instalação do
reino.
21 Esses critérios sugeridos são inferidos de todo o teor da apresentação do evangelho
no Novo Testamento e por dedução de passagens como Mateus 5.3-16; 1 Pe 2.11-17;
Fp 2.12-16; 1 Co 10.31; Jo 13.35; Rm 12.3-21; 2 Co 5.16-21 e outras. Em Kingdom,
Church, and World apresentei oito maneiras pelas quais a igreja serve autenticamente
como um sinal do reinado de Deus e onze maneiras pelas quais a igreja costuma trair o
reino de Deus. Veja Kingdom, Church, and World: Biblical Themes for Today, pp. 88-90.
6
A COMUNIDADE
MESSIÂNICA
A primazia da comunidade
A proclamação pressupõe uma comunidade que testemunha. Como
escreveu John Howard Yoder:
Pragm aticam ente, éevidente que não pode haverprocedim ento de procla
m ação sem um a com unidade, distin ta do restante da sociedade, p ara
fazer a proclam ação. Pragm aticam ente, é tam bém m uito claro que não
pode haver nenhum apelo evangelistico dirigido a um a pessoa, convidan
do-a a entrar num novo tipo de com unidade e aprendizado, se não existir
ta l corpo de pessoas, de novo distinto de toda a sociedade, a quem ela
possa chegar e com quem p ossa aprender ...S e não acontecer de haver, em
dado lugar, hom ens de várias características e origens que tenham sido
reunidos por Jesu s C risto, então naquele lugar não existe a nova hum ani
dade e naquele lugar o evangelho não é verdadeiro. Se, p o r outro lado, esse
m ilagre da nova criação ocorreu, então todas a s verbalizações e interpre
tações pelas quais essa fraternidade se com unica com o mundo ao seu
redor são sim ples explicações do fato de su a presença}
Se Jesus Cristo realmente gastou mais tempo preparando uma co-
86 A COMUNIDADE DO REI
Os dons do Espírito
Paulo diz: “Há diferentes tipos de dons, mas o Espírito é o mesmo”
(1 Co 12.4). “Temos diferentes dons, de acordo com a graça que nos foi
dada” (Rm 12.6). De modo semelhante, Pedro diz: “ Cada um exerça o
dom que recebeu para servir os outros, administrando fielmente a graça
de Deus em suas múltiplas formas” (1 Pe 4.10).4
Por gerações, o tema dos dons espirituais foi amplamente mal com
preendido ou ignorado por grande parte da igreja cristã. O Novo Testa
mento apresenta ensinos claros a respeito dos dons espirituais e declara
enfaticamente que o exercício desses dons faz parte da vida normal da
comunidade cristã (1 Co 12—14). M as, ainda hoje, muitos cristãos ou
negam a validade dos dons, limitando-os só à igreja primitiva, ou os
reinterpretam de um modo que lhes rouba o impacto e os vê como sinô
nimos de habilidades naturais. Essa negligência e má interpretação dos
88 A COMUNIDADE DO REI
do. Outros usaram seus dons para sustentar a vida interna da igreja -—
pessoas como Timóteo, Ananias (At 9.10), M aria, mãe de Marcos (At
12.12), Febe (Rm 16.1-2), Priscila e Áqüila (Rm 16.3) e muitos outros
por demais numerosos para mencionar. Evidentemente, muitos desses,
inclusive Timóteo e Priscila e Áqüila, estavam sem dúvida envolvidos
na evangelização, bem como no discipulado.
Paulo afirma claramente que seu “dom da graça de Deus” como
apóstolo era “anunciar aos gentios as insondáveis riquezas de Cristo e
esclarecer a todos a administração desse mistério” do evangelho (Ef
3.7-9). Paulo era apóstolo, esse era seu dom espiritual. Isso, para ele,
implicava evangelizar e plantar igrejas, bem como ensinar e cuidar da
supervisão espiritual. Ele era eficiente porque exercia o dom e a voca
ção que havia recebido de Deus, o Espírito.
Filipe era evangelista. Suas quatro filhas eram profetisas. Ágabo era
profeta; não temos indícios de que fosse evangelista. Dorcas “ se dedica
va a praticar boas obras e dar esmolas” (At 9.36); era assim que ela
exercia seus dons espirituais. Lídia de Filipos liderava um grupo de ora
ção e praticava o dom da hospitalidade (At 16.13-15). Silas era profeta
(At 15.32) e Febe era diaconisa ou ministra (Rm 16.1).7 E assim por
diante em toda a igreja primitiva. Nem todos eram evangelistas, mas
todos eram testemunhas da graça de Deus. E todos, à sua própria ma
neira, eram úteis no testemunho da igreja.
Os exemplos do Novo Testamento revelam duas orientações de dons
espirituais: para fora, ministério no mundo; e para dentro, ministério
no interior da igreja. Ambas são importantes e ambas são necessárias,
pois a proclamação e o serviço precisam crescer a partir da experiência
comunitária da igreja.
O ensino de Pedro em 1 Pedro 4.10-11 talvez forneça o melhor su
mário bíblico a respeito dos dons espirituais. Ele diz que cada crente
deve exercer “o dom [dom da graça, charisma]” que recebeu no serviço
aos outros, “administrando fielmente a graça de Deus [charis] em suas
múltiplas formas. Se alguém fala, faça-o como quem transmite a pala
vra de Deus. Se alguém serve, faça-o com a força que Deus provê, de
forma que em todas as coisas Deus seja glorificado mediante Jesus Cris
to” . Essa passagem é importante porque mostra que os dons espirituais
não eram só idéia de Paulo, mas algo aceito e compreendido pela igreja
primitiva em geral. Hebreus 2.4 (pressupondo que Paulo não seja o au
tor) é importante pelo mesmo motivo: “Deus também deu testemunho
dela por meio de sinais, maravilhas, diversos milagres e dons do Espírito
Santo distribuídos de acordo com a sua vontade” .8
90 A COMUNIDADE DO REI
1 Pedro 4.10-11 entende que cada crente recebeu algum dom espi
ritual, alguma distribuição específica da graça multiforme de Deus, e diz
que esses dons devem ser usados para glorificar a Deus. Pedro cita só dois
exemplos: o ministério da Palavra (“se alguém fala”) e o serviço prático
(“se alguém serve” , diakonei). Obviamente, isso não deve limitar os dons
espirituais só a dois. Pedro está falando de todos os dons espirituais e os
divide de modo genérico em duas categorias, proclamação verbal e servi
ço prático, exatamente como os doze apóstolos fizeram em Atos 6.9 Essa
é uma divisão natural e prática, não uma divisão rígida técnica ou hierár
quica. Pedro só está dizendo: “ Qualquer que seja o dom que tenha recebi
do — seja o de falar, seja o de servir — use-o com fidelidade, como um
bom mordomo da graça de Deus, para que Deus possa ser glorificado”
(que é sempre o propósito final dos dons espirituais).
Liderança carismática
Como devemos entender essas funções capacitadoras de apóstolo,
profeta, evangelista, pastor e mestre hoje?10
92 A COMUNIDADE DO REI
Esses termos eram usados pela igreja primitiva para designar os lí
deres que o Espírito de Deus estava levantando. Eles serviam mais como
descrição do que como prescrição. Em conjunto, não representam uma
hierarquia fixa de ofícios a ser preenchidos; antes, indicam as funções de
liderança desempenhadas por homens e mulheres levantados por Deus. E
isso o que significa liderança carismática — liderança inspirada pelo
Espírito de Deus, dotada das graças ou dos carismas necessários e devi
damente reconhecida pela comunidade de crentes.
94 A COMUNIDADE DO REI
Evidencia-se, pelo uso que Paulo faz do termo em Efésios e outros tex
tos, que os profetas, como os apóstolos, eram reconhecidos como de
tentores de um ministério geral e preeminente em toda a igreja. Num
sentido um pouco mais restrito, a profecia era também um dom exerci
do por indivíduos dentro da igreja local (1 Co 14.26-40).
Quem são os profetas dos dias de hoje? Muitas vezes, são os chama
dos líderes carismáticos (no sentido sociológico) que surgem na igreja.
Quase todas as denominações e movimentos possuem em sua história
pessoas inspiradas pelo Espírito que são reconhecidas por todos como
líderes e homens de Deus, mesmo que talvez não tenham nenhum cargo
oficial na igreja. Em geral, não são administradores ou supervisores.
Muitas vezes, tornam-se evangelistas itinerantes e pregadores especiais
na igreja, ou podem fundar organizações ou movimentos especiais den
tro de igrejas organizadas ou paralelos a elas (por exemplo, movimen
tos de jovens ou organizações missionárias). Ou podem acabar sendo
convocados para a liderança denominacional como bispos ou executi
vos gerais. E mais freqüente, porém, o líder carismático ser preterido
nessa escolha para tais funções, por ser independente e imprevisível de
mais. Ou, se realmente escolhido, ele pode recusar a função por conside
rá-la muito restritiva. Essas pessoas, se verdadeiros homens de Deus, são
grandes demais para o ofício previamente criado. (Um bom exemplo
contemporâneo disso foi E. Stanley Jones, missionário metodista que
recusou o ofício de bispo.)
Há provisão bíblica, pois, para os chamados líderes carismáticos
“individualistas” que emergem da comunidade cristã. Se forem homens
ou mulheres de Deus genuínos, cheios do Espírito (pois também abun
dam falsos profetas), podem ser profetas levantados por Deus. O minis
tério deles será de relacionamento direto com Deus e com a igreja. Te
rão todo o poder — e toda a possibilidade de serem não convencionais
e imprevisíveis — dos verdadeiros profetas. Também estarão sujeitos
aos perigos do extremismo, já que a mensagem deles vem diretamente
de Deus e a tentação será de falar por si e afirmar estarem falando por
Deus. Em todos esses aspectos, vemos uma relação direta com os profe
tas do Antigo Testamento.
Portanto, o profeta na igreja pode ser ou não um líder oficial. Isso é
incidental. O profeta é chamado pelo Santo Espírito de Deus, indepen
dentemente de qualquer posição oficial. Se a igreja tiver discernimento
espiritual, reconhecerá o dom profético e tirará proveito dele.
Como na Bíblia, assim também na igreja: o profeta é instrumento
de Deus que fala diretamente a seu povo (e, talvez, ao mundo) com en-
100 A COMUNIDADE DO REI
reino de Deus; e ensino da Bíblia em geral. Tudo o mais que possa ser
ensinado na igreja local, deve ser o currículo central.
é substituído por duas verdades: Jesus Cristo é nosso grande sumo sa
cerdote e a igreja é um reino de sacerdotes (Hb 4.14; 8.1; 1 Pe 2.9; Ap
1.6). A doutrina neotestamentária de ministério repousa, portanto,
não sobre uma pedra fundamental rachada entre clérigos e leigos, mas
sobre três pilares paralelos e complementares: o sacerdócio de todos os
crentes, os dons do Espírito e o serviço no espírito de Jesus.32 Como
comunidade ministerial, a igreja é composta de sacerdotes de Deus que
são servos de Jesus Cristo e dotados pelo Espírito.
Hoje, quase cinco séculos depois da Reforma, ainda é preciso co
locar em prática todas as implicações da afirmação protestante do
sacerdócio dos crentes. A dicotomia clérigo-leigo é um entulho direto
do catolicismo romano pré-reforma e um retrocesso ao sacerdócio do
Antigo Testamento. Esse é um dos principais obstáculos que impede
que a igreja seja, de maneira efetiva, o agente divino do reino hoje,
porque cria a falsa idéia de que só “ homens santos” , ou seja, minis
tros ordenados, são realmente qualificados e responsáveis pela lide
rança e por um ministério significativo. N o Novo Testamento, há dis
tinções funcionais entre vários tipos de ministérios. M as isso não jus
tifica uma divisão hierárquica entre “clero” e “ laicato” , nem mesmo o
uso desse tipo de linguagem.
Mesmo hoje, os cristãos vêem constantemente e, muitas vezes, de
maneira inconsciente essa dicotomia na Bíblia. Isso tem-se tornado
grande obstáculo ao entendimento bíblico da igreja. É preciso, aqui,
alguma reavaliação fundamental para recuperar a dinâmica bíblica
da comunidade do Rei.
A função messiânica
A afirmação primitiva do cristianismo de que “Jesus é o Senhor”
deve ser o clamor da igreja hoje. O Messias prometido veio, e a igreja é
tanto sua noiva como seu corpo. É essa nova realidade social, essa “ nova
criação” no mundo, que é chamada para demonstrar pelo Espírito o
caráter e o poder do reino vindouro.
É por isso que a igreja só é o verdadeiro agente do plano cósmico de
Deus quando é a verdadeira comunidade do povo de Deus. Como uma
instituição eclesiástica, a igreja pouco pode manifestar o reino, se é que
pode. M as como a comunidade messiânica funcionando como um cor
po carismático, ela pode revelar e realmente revela a verdadeira nature
za do reino e apressa sua vinda.
I
NOTAS
1John Howard Yoder, "A People in World: Theological Interpretation", em The Concept
o f the Believers' Church, ed. J. L. Garrett Jr. (Scottdale: Herald Press, 1969), p. 259. 0
evangelho é factualmente verdadeiro, à parte da infidelidade da igreja. Mas pode ser
traído e falsificado diante do mundo por desobediência da igreja.
2 André Biéler comenta: "Corpo e alma se equivalem; indivíduos e comunidades se
equivalem. Uma concepção dualista [do homem] e [sua] estrutura é uma divisão falsa
e uma alienação de sua verdadeira constituição. A Bíblia afasta materialistas e espiritu
alistas. Assim, também, são alheias ao pensamento bíblico a concepção puramente
individualista, que isola o indivíduo da comunidade, ou a abordagem coletivista, que
concede à vida da comunidade uma posição privilegiada sobre o indivíduo". The
Politics o f Hope, trad. Dennis Pardee (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), p. 35.
3 Karl Barth, Church Dogmatics, trad. Geoffrey W. Bromiley (Edinburgh: T. &T. Clark,
1958), IV, 2, p. 627.
4 A Versão Corrigida de Almeida traz: "Cada um administre aos outros o dom como o
recebeu", dando a entender que se trata do dom da salvação, mas o grego emprega
a palavra charisma aqui, e não há um artigo definido (veja a nota 26, abaixo). É
evidente, aqui, que o texto está falando de dons espirituais, não de algo mais geral,
o dom da salvação.
5 Veja o cap. 11, "O Lugar dos Dons Espirituais", em Vinho Novo, Odres Novos. Uma
das melhores e mais equilibradas discussões práticas que vi dos dons espirituais é
Gifts o f the Spirit, Kenneth Kinghorn (Nashville: Abingdon, 1976).
6 O contexto de 1 Corintios 13 deixa muito claro que a afirmação "Mas as profecias
desaparecerão, as línguas cessarão" (1 Co 13.8) refere-se ao fim da história, não ao
cessar dos dons espirituais após a era apostólica, conforme alegam alguns.
7 Díakonon, em Romanos 16.1, pode ser traduzido por "serva" ou "diaconisa" (como
observa corretamente a NVI). É impossível determinar a função exata de Febe. Veja
Kittel e Friedrich, Theological Dictionary o f the New Testament, II, 93.
8 Embora a palavra charisma não ocorra nessa passagem, a idéia de "distribuições do
Espírito Santo" indica que o autor estava falando dos carismas.
9 Há um paralelo notável entre 1 Pedro 4.10-11 e Atos 6.2-4 (onde Pedro bem pode ter
sido o porta-voz). Embora a passagem de Atos seja com freqüência entendida como
"a instituição dos diáconos", o substantivo diácono não ocorre. O que de fato temos
é "o ministério da palavra" (diakonia tou togou, v. 4) e o ministério de "servir mesas"
(idiakonein trapedzais, v. 2). Isso é paralelo à distinção de "se alguém fala... se
alguém serve", em 1 Pedro 4.11.
10 Em anos recentes, a chamada Nova Reforma Apostólica tem enfatizado esses
ministérios carismáticos e, em particular, os papéis dos apóstolos e profetas. Sua
ênfase no suposto oficio e autoridade dos apóstolos e na identificação de apóstolos
específicos hoje, porém, vai além das Escrituras, sendo, portanto, enganosa e po
tencialm ente perigosa. Veja C. Peter Wagner, ed., The New A po sto lic Churches
(Ventura: Regal Books, 1998), pp. 13-25.
" William Barclay, The Letters to the Galatians and Ephesians (Edinburgh: St. Andrew
Press, 1966), p. 171. Barclay os denomina "oficiais", mas o Novo Testamento não usa
o termo ao falar de apóstolos, profetas ou mestres. Veja também Arthur G. Patzia,
The Emergence o f the Church: Context, Growth, Leadership and Worship (Downers
Grove: InterVarsity, 2001), 152-182.
A COMUNIDADE MESSIÂNICA 105
mente, diz: "se alguém aspira à supervisão'' (episkopes). A New International Version
(em inglês) traduz corretamente "se alguém empenha o coração em ser supervisor", e
a New English Version diz "se alguém aspira à liderança.,.". Supervisão deve ter prefe
rência sobre episcopado, hoje, já que a tradição eclesiástica deu a bispo um significado
hierárquico completamente alheio ao Novo Testamento (compare com a nota 4).
27 Dizer que Deus deu à igreja a prerrogativa de transferir ou conferir autoridade
apostólica, de modo que um ato de autoridades eclesiásticas é, ipso facto, uma
operação do Espírito Santo, repousa sobre bases bíblicas duvidosas e leva facilmente
ao abuso das funções de liderança.
28 Ben Witherington III, The Acts o f the Apostles: A Socio-Rhetorical Commentary (Grand
Rapids: Eerdmans, 1998), pp. 632s. Witherington observa que Lucas dá destaque espe
cial aos lugares do profetas e profetisas em seu evangelho e em Atos.
29 Barclay, p. 172. Veja também Green, Evangelização na Igreja Primitiva, pp. 209-10,
245-47; Eduard Schweitzer, Church Order in the New Testament (London: SCM Press,
1961), p. 197.
30 Kittel e Friedrich, Theological Dictionary o f the New Testament, v. 2, pp. 736-37. Apa
rentemente, Timóteo não recebeu o dom de evangelista, embora Paulo o tenha exorta
do a "fazer a obra de um evangelista" como parte do “seu ministério" (2 Tm 4.5). A
evangelização fazia parte de seu ministério, mas não era sua ocupação principal.
31 O tema do pastor e do rebanho também possui ricas raízes no Antigo Testamento,
especialmente nos Profetas (p. ex., Ez 34).
32 Lutero, em seu sermão em Salmos 110.3, relaciona especificamente o sacerdócio de
todos os crentes com os dons do Espírito:
Aqui, o profeta aplica o oficio e o adorno sacerdotais aos cristãos, o povo do Novo
Testamento. Ele diz que seu culto a Deus deve consistir no belo e glorioso sacerdócio dos
que estão sempre na presença de Deus e nada realizam, exceto sacrifícios santos ...
Bem, o que é esse "santo adorno", essas vestes sacerdotais que adornam os cristãos
para que se tornem Seu santo sacerdócio? Nada mais que os belos, divinos e vários dons
do Espírito Santo, conforme S. Paulo (Ef 4.11, 12) e S. Pedro (1 Pe 4.10) dizem, que
foram dados à cristandade para promover o conhecimento e a adoração de Deus, uma
função cumprida preeminentemente pelo ministério da pregação do evangelho ...
... É o Espírito Santo que os adorna em glória e santidade e os veste em Seu poder e com
Seus dons. (Comentário do Salmo 110. Jaroslav Pelikan e Helmut T. Lehman, eds., Lu-
ther Works [Philadelphia: Fortress Press e St. Louis: Concordia Publishing House, 1956-
75], Vol. 13, pp. 294-95.)
Essa ligação entre o sacerdócio dos crentes e os dons do Espírito no pensamento de
Lutero recebeu, relativamente, pouca atenção. Mas, sem essa ênfase, a doutrina de
Lutero quanto ao sacerdócio de todos os santos parece mais estática do que ele mesmo,
aparentemente, concebia. Lutero via o exercício das funções sacerdotais dentro da co
munidade cristã regida pela presença e pelo ministério vivificante do Espírito Santo.
Observe também os comentários de Lutero sobre 1 Pedro 4.10 em Luther Works, Vol.
30, pp. 123-24.
Em contraste, Calvino raramente menciona o sacerdócio dos crentes, entende o "sa
cerdócio real" de 1 Pedro 2,9 (versículo chave para Lutero) em termos bem estáticos e,
em particular, em termos de eleição, e sustenta que "os dons estão necessariamente
ligados aos ofícios". A forte ênfase na eleição fez Calvino ver o "ministério da Palavra"
em termos de ofícios divinamente instituídos por um "decreto inviolável". (Veja o co
mentário de Calvino sobre 1 Pedro 2.1-9 e sobre Efésios 4.11.) Dá-se, portanto, menos
ênfase aos dons do Espírito do que se encontra em Lutero, e a concepção de ministério,
para Calvino, é, portanto, mais rígida e insinua maior distinção entre clero e laicato.
TRES
A INCORPORAÇÃO DA
COMUNIDADE DO REINO
Digo-lhes a verdade: ninguém pode entrar no reino
de Deus, se não nascer da água e do Espírito.
(Jo 3.5)
7
O MANDATO
DO REINO
O mandato evangelístico
Do mesmo modo que a maior parte das figuras que representam a
igreja implica vida, também sugere crescimento ou reprodução. E da
110 A COMUNIDADE DO REI
políticas. Essa idéia repousa numa falsa premissa e numa falsa dicoto
mia. O Sermão do Monte, como os ensinos de Jesus em geral, é alta
mente social (bem como econômico e político), se for alguma coisa. Em
Jesus, não há dicotomia entre as dimensões individual e social. A comu
nidade cristã é um fato social, e no Sermão do Monte Jesus destaca as
qualidades cultivadas por essa comunidade. “A pessoalidade que ele pro
clama como um chamado de cura e perdão para todos está integrada na
novidade social da comunidade de cura” .9
Portanto, Jesus mostra como é o reino de Deus, do que se trata. A
missão da igreja é encarnar e demonstrar os valores que ele ensinou. A
igreja deve ser um sinal do reino no mundo.
Jacques Ellul define a função do cristão no mundo em termos de três
figuras usadas por Cristo: sal da terra, luz do mundo eovelha entre lobos.10
Cada uma dessas figuras apresenta uma função específica da igreja.
O sal sugere a função preservadora da igreja. Como sal, a igreja é um
sinal da aliança entre Deus e seu povo (Lv 2.13). A igreja, na relação de
aliança com Deus, leveda a sociedade e suas estruturas, preservando-as
da morte e freando o ímpeto louco do mundo rumo à autodestruição. E
Cristo que, momento a momento, sustenta a criação decaída (Hb 1.3; Cl
1.17), e em seu próprio nível a igreja participa dessa obra de sustentação.
Como luz, a igreja é um meio de revelação aos homens. A igreja não
possui revelação em si mesma, claro; mas é “uma comunidade sob a
Palavra” . Ela não só deve viver em fidelidade à Palavra; sua função é
também fazer a luz da Palavra brilhar sobre o mundo e mostrar a verda
deira natureza dos problemas do mundo. A igreja só pode fazer isso
porque primeiro recebeu a Palavra de Deus e obedeceu a ela. Aqui, a
função do cristão vai além da preservação: “Ele revela ao mundo a ver
dade acerca de sua condição e testifica a respeito da salvação da qual é
um instrumento”.11
Por fim, a igreja vive como ovelha em meio a lobos. Isso sugere a
demonstração, na carne, da realidade do reino. Cristo é o Cordeiro de
Deus, e seu pequeno rebanho, a igreja, entra no reino pela mesma porta
pela qual Jesus teve de passar. O sacrifício de Jesus foi único e final, mas
“ a vida colocada no altar” é o princípio ético permanente para a igreja.
Nesse sentido, a única ética cristã verdadeira é a ética da crucificação.
Ellul explica:
N o mundo, todos querem ser “lobo " e ninguém é chamado para desempe
nhar a parte da “ovelha ” , M as o mundo não pode viver sem esse testemu
nho vivo de sacrifício. É por isso que é essencial que os cristãos tenham
muito cuidado para não ser “lobos” no sentido espiritual — ou seja,
116 A COMUNIDADE DO REI
A função profética
Esses comentários levam à discussão da função profética da igreja.
Como a igreja é profética e também evangelística? A igreja cumpre sua
vocação profética de pelo menos quatro maneiras.
1. A igreja é profética quando cria e sustenta uma comunidade re
conciliada e reconciliadora de crentes (2 Co 5.16-21; Cl 1.21-23; Fp 2.1-
11; Ef 2.1-22). Quando isso ocorre, a evangelização assume dimensões
proféticas. A reconciliação com Deus deve ser demonstrada por uma
reconciliação genuína dentro da comunidade cristã e por um ministério
contínuo de reconciliação terapêutica no mundo.
Isso significa que em cada assembléia cristã local a reconciliação
deve ser mais que uma teoria e mais que uma transação espiritual invi
sível. A reconciliação deve ser real e visível. A exploração racial e eco
nômica e todas as formas de elitismo (inclusive a de um clero profissio
nal) devem ser biblicamente combatidas. Divisões profanas no corpo de
Cristo devem ser consideradas pecado e mundanismo (1 Co 3.3-4). Igual
mente, a igreja local deve trabalhar para promover a plena reconcilia
ção entre cônjuges, pais e filhos, empregador e empregado, ao descobrir
alienação e discórdia nesses relacionamentos (Ef 5.1 - 6.9).
A igreja é profética quando cria comunidades que transcendem de
O MANDATO DO REINO 117
ar, pois é aqui que o homem morre para si mesmo, repudia Satanás e
reconhece Deus como o soberano e Jesus Cristo como o único caminho
para Deus e, assim, para o reino de Deus (At 4.12).
Satanás quer apresentar um atalho para o reino que passa ao largo
da cruz e o tira do pedestal de arquiinimigo. Ele mantém perpetuamen
te diante da igreja a mesma tentação que apresentou a Jesus: “Tudo isto
te darei se te prostrares e me adorares” (Mt 4.9). A resposta de Jesus é a
ordem permanente para o povo de Deus: “Adore o Senhor, o seu Deus, e
só a ele preste culto” (Mt 4.10).
A tentação de aceitar deuses substitutos e satãs falsificados está sem
pre perante a igreja. Em vários períodos da história, a igreja tem sido
enganada, guerreando contra arquiinimigos falsos: turcos, sarracenos,
insubordinação à hierarquia, rebatismo, índios, judeus, negros, bran
cos, nazismo, comunismo, socialismo, burguesia, capitalismo, imperia
lismo, terrorismo. Em nome da oposição a esses inimigos, os cristãos se
dispõem a levar outros à morte. Quando a igreja aceita a definição de
inimigo dada por Satanás, também logo adota as táticas de Satanás.
A igreja deve ver com clareza suficiente a identidade do verdadeiro
inimigo e também discernir como e onde Satanás está agindo hoje. Sa
tanás trabalha em estruturas sociais, ideologias, movimentos e pessoas.
M as a igreja deve ver o inimigo por trás do inimigo para evitar falsas
alternativas e uma falsa definição do problema. Ela não pode reduzir a
fé a uma ideologia — mesmo que uma ideologia religiosa (um dos tipos
mais perigosos) — e, com isso, comprometer o próprio evangelho.
Falsos inimigos induzem soluções falsas que, em geral, são a imagem
reversa do suposto culpado. Assim, a igreja cai numa cilada, sendo le
vada a lutar no campo inimigo com as armas dele.
E muito freqüente a igreja deixar o mundo definir a natureza da
batalha. Se o comunismo ou o socialismo são vistos como o inimigo, os
cristãos são tentados a se dedicar sem reservas à livre iniciativa. Se o
inimigo é o “capitalismo dependente e o neocolonialismo”, os cristãos
tornam-se reféns da ideologia neo-marxista. Se o adversário é a globali
zação, os crentes podem se tornar isolacionistas ou nacionalistas. Se o
perigo é um ponto da doutrina, os cristãos transformam a ortodoxia
num cassetete; se é um comportamento específico, a conformidade tor
na-se a camisa-de-força.
A igreja deve sempre aceitar a definição que a Bíblia dá ao proble
ma do homem e a identificação que ela faz do inimigo. A Bíblia deixa
claro que “o último inimigo a ser destruído é a morte” (1 Co 15.26). A
identificação desse inimigo pode ser um teste para a igreja. Todas as
120 A COMUNIDADE DO REI
viúvas” (Dt 14.29; 16.11, 14). Seja por seus atos e advocacia ou pelo
testemunho silencioso de seu exemplo, a comunidade fiel do rei exerce
essa função de fermento, de conscientização. A igreja é profética quando
é verdadeiramente a comunidade messiânica que revela a natureza do
reino e também a mente e estatura de Jesus Cristo. Quando ela realiza
as obras de Cristo, cumpre suas tarefas características do reino.
Isso nunca será um caminho limpo, bem cortado e triunfante. A
obediência ao evangelho num mundo em que um Satanás fatalmente
ferido ainda está ativo significa viver em tensões. Isso faz parte do
significado da encarnação. A encarnação só faz sentido pela fé em
Deus. Se for fiel, a carreira da igreja terá muitos paralelos com a de
Jesus Cristo.
N ós, como cristãos, nunca podemos ter certeza de que temos todas
as respostas ou de que vemos todas as coisas com nitidez ou de que
estamos realmente “progredindo” . Somos, portanto, constantemente
forçados a voltar à dependência total do Cristo encarnado e de seu
Espírito que age em nós. Devíamos ficar alarmados quando nos senti
mos à vontade no mundo ou temos uma plácida “ paz interior” . A vida
cristã num mundo não-cristão é repleta de tensão, estresse e, às vezes,
até angústia. Todo um sistema de técnicas sociais procura ajustar o
indivíduo ao mundo e eliminar tensões. M as ser seguidor de Jesus sig
nifica aceitar o escândalo das declarações de Jesus, de que ele veio não
para trazer harmonia, mas discórdia; não a paz, mas a espada (Mt
10.34-36). Pois só assim pode finalmente vir a verdadeira paz — o
sbalom real.
Em suma, as tarefas do reino que a igreja tem de cumprir incluem a
proclamação do evangelho de tal maneira que homens e mulheres res
pondam em fé e obediência a Jesus e participem da edificação da co
munidade cristã. Essa comunidade é uma nova realidade social que,
pela sua semelhança a Cristo e sua renúncia às definições e táticas do
mundo, revela a verdadeira natureza do reino de Deus. “Nosso Senhor
convocou e continua a convocar uma nova sociedade de pessoas incon
dicionalmente comprometidas em trocar os valores da sociedade ao
redor pelos padrões do reino de Jesus” .29 Só nessa base a igreja pode
agir com integridade pela justiça e paz no mundo. Assim, as dimensões
profética e evangelística do evangelho ficam inteiramente entrelaça
das na vida e no testemunho da comunidade do rei.
H á, contudo, outras dimensões a explorar. E útil voltar um pouco,
agora, e examinar uma questão levantada anteriormente: Qual a rela
ção entre o crescimento da igreja e o reino de Deus?
126 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
1 Green, Evangelização na Igreja Primitiva, p. 55.
2 Green observa: "Nos últimos anos, tem sido muito discutido no que consistia a
pregação da igreja primitiva, em especial depois que C. H. Dodd publicou, em 1936,
seu livro The Apostolic Preaching and its Developments. Essa discussão, no entanto,
concentrou-se demais no que passou a ser conhecido tecnicamente como o 'keryg-
ma', que, supõe-se, foi um conjunto fixo de material de pregação comum a todos os
primeiros missionários ... No Novo Testamento, a raiz de kêrussein ('pregar') de
forma algum a é primária. Ela é só uma das três grandes palavras usadas para
proclamar a mensagem cristã: as outras duas são euaggelizesthai ('contar boas
notícias') e marturein ('dar testemunho'). Veja Patzia, pp. 197-99.
3 Ibid., p. 84.
4 Newbegin, Open Secret, p. 121.
5 Gilbert James, preleção no terceiro Continental Urban Exchange (CUE) Conference,
Brooklyn, New York, 26-27 de fevereiro de 1976.
6 Veja Yoder, The Politics o f Jesus; Snyder e Runyon, Decoding the Church, especial
mente o cap. 12. Embora o evangelho seja não-ideológico no sentido político e
econômico, a fidelidade ao evangelho num determinado contexto às vezes requer
que a igreja "tome partido" em assuntos políticos ou econômicos específicos, quan
do estão em jogo questões fundamentais de justiça ou direitos humanos. A igreja
não deve silenciar, por exemplo, diante do genocídio, do aborto e da exploração dos
pobres. Veja a discussão da responsabilidade profética da igreja, adiante.
7 C. Peter Wagner, Frontiers in Missionary Strategy (Chicago: Moody, 1971), pp. 124-
34. Veja também Donald McGavran, ed., Eye o f the Storm (Waco, Texas: Word,
1972), pp. 205-18.
8 Alguns talvez digam que tudo o que vai além da produção de conversões já não é
evangelização, mas torna-se acompanhamento ou edificação. O ponto, porém, é
que a tarefa evangelística não está de fato completa até que se torne capaz de se
perpetuar— até que resulte na edificação de uma comunidade fiel de discípulos,
que, por sua vez, é boas novas e testemunha em relação às boas novas.
9 Yoder, The Politcs o f Jesus, p. 113.
10 Jacques Ellul, The Presence o f the Kingdom, trad. Olive Wyon (New York: Seabury
Press, 1967), pp. 9-11.
11 Ibid., p. 10. Ellul declara isso principalmente em termos do cristão como indivíduo; eu
enfatizaria que essa tarefa é, em especial, função da igreja como a comunidade
crente dos discípulos.
12 Ibid., p. 11.
13 C. René Padilla, Mission Between the Times (Grand Rapids: Eerdmans, 1985), pp.
160, 167.
14 Ibid., pp. 166s., veja Edmund Clowney, "The Missionary Flame of Reformed Theolo-
gy", em Harvie M. Conn, ed., Theological Perspectives on Church Growth (Nutley:
Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1976), p. 167.
15 Alguns teóricos do crescimento da igreja, em especial Donald McGavran e Peter
Wagner, têm defendido o chamado "princípio da unidade homogênea" como es
tratégia para crescimento da igreja. Na realidade, não parece haver nenhum "prin
cípio" desse tipo nas Escrituras, de modo que é melhor chamá-lo de "teoria da
unidade hom ogênea".
O MANDATO DO REINO 127
por exemplo, ainda que a escravidão existisse em tempos bíblicos e ela não tenha
sido especificamente denunciada na Bíblia. A Palavra de Deus continua sendo dinâ
mica e, pela Palavra de Deus, o Espírito de Deus pode estar guiando a igreja de
maneira semelhante, hoje, em relação a questões como papéis sexuais, eqüidade
econômica e meio ambiente. Quanto às questões hermenêuticas, aqui, veja David
Thompson, "Women, Men, Salves and the Bible: Hermeneutical Inquires", Christian
Scholar's Review 25, n.° 3 (1996): 326-49; William J. Webb, Slaves, Women and
Homosexuals: Exploring the Herm eneutics o f Cultural Analysis (Downers Grove:
InterVarsity, 2001).
29 Ronald J. Sider, "Watching Over One Another in Love", The Other Side, 11:3 (May-
June, 1975), p. 13.
8
O CRESCIMENTO DA IGREJA
E O CRESCIMENTO DO REINO
uma igreja distinta do judaísmo quando Cristo veio. Falando aos escri
bas e fariseus, Jesus disse: “Por causa da sua tradição, vocês anulam a
palavra de Deus” (Mt 15.6). Em outra ocasião, ele disse: “Vinho novo
deve ser posto em vasilha de couro nova” (Lc 5.38). Em ambas as ocasi
ões, ele se referiu às tradições e estruturas que haviam crescido no juda
ísmo e praticamente sufocavam a obra de Deus.
O mesmo tem acontecido inúmeras vezes na história da igreja. Tra
dições e estruturas não bíblicas têm limitado o crescimento da igreja até
que sejam corrigidas ou (com maior freqüência) a igreja as rompam à
força, assim como o vinho novo estoura odres velhos.
Evidentemente, essas barreiras resultam do pecado, assim como a
imoralidade e a falsa doutrina, porém mais no sentido de uma falha
causada pela Queda, impedindo-nos de perceber e seguir com fidelida
de o plano de Deus para a igreja. Já chamei a atenção para a dicotomia
clero-laicato, que tende a limitar o crescimento, abafando a iniciativa
“leiga” e o exercício dos dons essenciais ao crescimento. Outros fatores
são o “complexo de edifícios” ou a dependência de prédios da igreja
institucional, a rigidez de estruturas denominacionais e missionárias e
tradições inflexíveis que ditam o horário e a forma das reuniões da igre
ja.3Em muitas igrejas, os padrões estéreis de culto são uma área crucial
que necessita de reforma.4
O crescimento normal da igreja ocorre em poder, especialmente entre
as massas mais pobres. Michael Green observa que os cristãos primitivos
“se concentravam quase exclusivamente nas classes mais baixas, simples
e analfabetas” e “a tendência continuou sendo esta por algum tempo,
com algumas exceções notáveis” .5 Tertuliano disse, no segundo século:
“Os incultos sempre são a maioria entre nós” . Desde o início e ao longo
da história, o crescimento da igreja mais rápido, duradouro e transforma
dor para a sociedade normalmente tem ocorrido entre os pobres.6
Enfrentamos aqui, porém, não um mero fato empírico, mas tam
bém um mandato bíblico. Tanto o exemplo como os ensinos de Jesus
Cristo sustentam sua declaração de que, em cumprimento à profecia,
ele veio para “pregar boas novas aos pobres” (Lc 4.18).
O crescimento normal da igreja não é, na realidade, limitado por
falta de recursos financeiros ou instalações físicas. Não encontramos Paulo
reclamando que poderia realizar mais se tivesse mais fundos à disposição.
Também não há indícios de que a igreja primitiva tenha sido tolhida em
seu crescimento pela falta de prédios. Pode-se até dizer que o oposto é
verdadeiro. Investimentos pesados em edifícios, propriedades e programas
com o intuito de facilitar o crescimento da igreja com freqüência tornam-
132 A COMUNIDADE DO REI
P alavras de V ã o p e lo m u n d o F a ça m d is c íp u lo s E n s in a n d o -o s a Se a lg u é m p e r-
Cristo to d o e p re g u e m o de to d a s as n a çõ e s o b e d e c e r a tu d o o m a n e ce r em m im ...
e v a n g e lh o (M c ( M t 2 8 .1 9 ). que eu lhes orden ei esse d a rá m u ito
1 6 .1 5 ). S erão J e r u s a lé m ... Ju d é ia (M t 2 8 .1 9 ), P ara fru to (J o 1 5 .5 ). Fará
m in h a s te s te m u e S a m a ria , e a té os que sejam um , a s sim c o is a s a in d a
n h a s (A t 1 .8 ) c o n fin s d a te rra com o nós som os m a io re s d o que
(A t 1 .8 ) u m (J o 1 7 .2 2 ) esta s (J o 1 4 .1 2 ).
M ovim entos M o v im e n to s de M o v im e n to s de M o v im e n to s de M o v im e n to s
R e lacio n ad o s e v a n g e liz a ç ã o em c re s c im e n to de re n o v a ç ã o , c a ris m á tic o s ,
m assa e ig re ja e a lg u n s m o v im e n to s de p e n te c o s ta íis m o
e v a n g e liz a ç ã o m o v im e n to s g ru p o s p e q u e n o s
pessoal m is s io n á rio s
precisa é de mais prédios! O que de fato ela precisa com maior freqüên-
cia, porém, é redescobrir a verdadeira comunhão ou comunidade cristã.
Os grupos pequenos de vários tipos são úteis nesse ponto. Quando se
formam grupos pequenos, eles tendem a se multiplicar, especialmente se
houver boa liderança. O número de igrejas oficiais organizadas pode
permanecer igual, enquanto o número de igrejas bíblicas realmente se
multiplica rápido, à medida que mais e mais indivíduos descobrem a
nova vida em Cristo e o novo estilo de vida na comunidade cristã. Esse foi
o padrão da Reforma do século XVI, tanto em sua forma principal como
em boa parte do Avivamento Evangélico do século XVIII na Europa. Em
vez de desencorajar esse movimento, as igrejas organizadas deviam incen
tivá-lo e estimulá-lo, procurando dar-lhe direcionamento bíblico.
A “multiplicação" em geral não resulta de divisões que ocorrem
mais por motivos carnais que espirituais? Isso é comum demais. Muitas
igrejas têm-sc multiplicado e crescido, não porque tenham uma visão de
crescimento, mas só porque os irmãos não conseguem conviver! E claro
que isso é errado, mas mesmo assim Deus, em sua providência, tem usa
do essas divisões de maneira miraculosa para o crescimento da igreja.
Mas divisões por motivos não santos muitas vezes sc desenvolvem
exatamente por causa da falta de uma visão saudável de multiplicação
de igrejas. Se novas igrejas são formadas com a visão de um crescimento
posterior por divisão, então o crescimento ocorrerá de modo natural,
pelos motivos corretos, não pelos errados.
Sim, as igrejas podem dividir-se por motivos errados, mas isso não
cancela o princípio de multiplicação, da mesma forma que o câncer não
invalida o princípio da divisão celular normal. Os líderes podem guiar
o crescimento por multiplicação pelos motivos corretos, em vez de dei
xar que ocorra pelos motivos errados.
A multiplicação de grupos pequenos e de comunidades de igreja
não aumenta o potencial de desvios doutrinários? A multiplicação, de
fato, pode aumentar o risco, pois mais vidas significam mais oportuni
dades de aberrações. M as há salvaguardas. As mais potentes delas são o
Espírito e a Palavra. A primeira deve ser ouvida com atenção; a segun
da, estudada e aplicada por toda a igreja. Líderes cristãos sábios vão
nutrir uma igreja que cresce e se multiplica por meio de um estudo bíbli
co consistente e contínuo e ajudarão cada crente a crescer no Espírito.
Além disso, é importante que dentro de uma igreja local ou conjun
to de igrejas haja alguma coordenação de esforços para multiplicação
de igrejas. Líderes de igrejas locais muito temerosos às vezes não conse
guem perceber que um ministério de grupos pequenos e multiplicação
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 141
A igreja mãe não sofrerá, desde que ela mesma esteja vivendo e cres
cendo de acordo com princípios bíblicos. Se estiver estruturada de acor
do com um modelo carismático, e não institucional, prosperará. M as se
for estruturada de maneira institucional e depender muito de uma longa
lista de quadros e comissões, terá dificuldades para produzir novas con
gregações. Como já afirmei, o crescimento por multiplicação é um pro
cesso orgânico e carismático, não um processo institucional.
Planta e fermento
O reino de Deus — não só a igreja — deve crescer. Aliás, Jesus falou
mais do crescimento do reino do que do crescimento da igreja! Ele falou
da extensão progressiva do reinado de Deus sobre nações e povos até o
reino prometido chegar de maneira plena (Mt 13.18-52; Mc 4.26-32; Lc
18.20). As Escrituras revelam o plano de Deus para levar toda a criação
a se submeter a Jesus Cristo. Deus falou às nações há muito tempo por
meio de Isaías, dizendo:
Voltem-se para mim e sejam salvos,
todos vocês, confins da terra;
pois eu sou Deus, e não há nenhum outro.
Por mim mesmo eu jurei,
a minha boca pronunciou
com toda a integridade
uma palavra que não será reprovada:
Diante de mim todo joelho se dobrará,
junto a mim toda língua jurará. (Is 45.22-23)
Paulo retomou o tema, dizendo:
Ao nome de Jesus
se dobre todo joelho,
nos céus, na terra e debaixo da terra,
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para a glória de Deus Pai. (Fp 2.10-11).
Há um crescimento progressivo, oculto, do reino de Deus, mesmo
diante da severa fúria e oposição satânica, até Cristo voltar para estabe
lecer seu reinado em definitivo.
Então virá o fim, quando ele entregar o reino de Deus, o Pai, depois de ter
destruído todo domínio, autoridade e poder. Pois é necessário que ele reine
até que todos os seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés. O último
inimigo a ser destruído é a morte. Porque ele “tudo sujeitou debaixo de seus
pés” ... Quando, porém, tudo lhe estiver sujeito, então o próprio Filho se
sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, a fim de que Deus seja tudo
em todos. (1 Co 15.24-28)
O CRESCIMENTO DA IGREJA E O CRESCIMENTO DO REINO 143
NOTAS
1 O que descrevo como "crescimento normal da igreja" é semelhante ao modelo de
"desenvolvimento natural da igreja", esboçado por Christian A. Schw arz em O
Desenvolvimento Natural da Igreja (Curitiba: Esperança, s.d.) e compatível com ele.
Apesar de os dois modelos diferirem em alguns aspectos, ambos enfatizam a natu
reza orgânica da igreja e a maneira pela qual igreja saudáveis desenvolvem estrutu
ras funcionais coerentes com sua natureza orgânica. Schwartz dá menos ênfase ao
reino de Deus e às questões de justiça.
2 Roland Allen, The Spontaneous Expansion o f the Church (Grand Rapids: Eerdmans,
1962). Em essência, isso é o que Christian Schwarz quer dizer quando menciona o
princípio do "por si" em Desenvolvimento Natural da Igreja.
3 Veja Vinho Novo, Odres Novos, em especial os caps. 4, 5 e 6.
4 Robert Webber, "Agenda for the Church, 1976-2000", Eternity, January 1976, pp. 15-
17, 59-61.
5 Michael Green, Evangelização na igreja Primitiva, p. 46. Rodney Stark, em The Rise o f
Christianity, está correto ao destacar os papéis chaves desempenhados na igreja primi
tiva por pessoas bem colocadas e proeminentes na sociedade, mas erra ao dizer (sem
evidências reais) que a igreja não era formada predom inantem ente por pobres.
Sem dúvida, na igreja primitiva, como mais tarde, um número significativo de indiví
duos da elite social e intelectual converteram-se e tornaram-se cristãos influentes.
Mas as evidências indicam que a maioria dos crentes primitivos, os que aceitaram de
pronto o evangelho, era das massas pobres. Veja Rodney Satrk, The Rise o f Christi
anity: A Sociologist Reconsiders History (Princeton: Princeton University Press, 1996).
6 Veja Vinho Novo, Odres Novos, cap. 3, onde trato de maneira mais detalhada do
"evangelho aos pobres".
7 Veja George W. Peters, Saturation Evangelism (Grand Rapids: Zondervan, 1970), pp.
147-49.
8 In Sik Hong, lU m a Iglesia Posmoderna? Em Busca de um Modelo de Iglesia y Misión
em la Era Posmoderna (Buenos Aires: Kairos, 2001), p. 128.
9 Neil Braun, Laity Mobilized: Refletions on Church Growth in Japan and Other Lands
(Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 21.
10 Os sociólogos Rodney Stark e Roger Finke documentam um motivo chave para isso:
igrejas menores costumam vivenciar um nível mais elevado de envolvimento entre os
membros, em comparação com igrejas maiores. "O tamanho da congregação é inver
samente proporcional ao nível médio de compromisso dos membros", observam,
acrescentando que "os índices de participação declinam com o tamanho da congre
gação, e os declínios mais acentuados ocorrem quando as congregações excedem
50 membros". Rodney Stark e Roger Finke, Acts o f Faith: Explaining the Human Side
o f Religion (Berkeley: University of California, 2000), p. 155. Ao que parece, isso é
uma tendência inata, embora uma liderança sábia possa alterá-la um pouco.
11 Peter W agner observa a eficácia de uma estrutura "celebração - congregação -
célula" em igrejas maiores (Your Church Can Grow [Grendale, California: Regal,
1976)], pp. 97-109).
12 Considere que o encontro de Filipe com o eunuco etíope foi uma situação singular
de homem a homem e que os esforços de Paulo em Atenas não tiveram resultados
notáveis. O ministério de Filipe em Samaria teve êxito numérico memorável, mas foi
deficiente na questão da comunidade, até Pedro e João chegarem de Jerusalém.
146 A COMUNIDADE DO REI
Veja Ray C. Stedman, Birth o f the Body (Santa Ana: Vision House, 1974), pp. 131-40.
13 Veja Cari Wilson, With Christ in the School o f Disdple Building (Grand Rapids: Zonder-
van, 1976), especiaimente o cap. 12.
14 O dom de cura também pode, claro, implicar um ministério externo evangelistico e
profético importante no mundo.
15 Compare um modelo um tanto semelhante, de "ecologia da igreja", em Vinho Novo,
Odres Novos, p. 133, e em Howaerdn Snyder, Liberating the Church: The Ecology o f
Church a n d Kingdom (Downers Grove: InterVarsity, 1983; Eugene: W ipf & Stock, 1996),
p. 82, bem como as "Oito Marcas de Qualidade", em Schwartz, O Desenvolvimento
Natural da Igreja.
16 Mas isso não significa que o reino de Deus seja a-histórico ou que seus frutos não
possam ser estudados pela sociologia. Em princfpio, deve ser possível desenvolver um
tipo de "índice do reino" ligado aos tipos de virtudes, valores e qualidades que as
Escrituras revelam serem características do reino de Deus e, com base nisso, discernir
de algum modo o progresso do reino em diferentes culturas e períodos históricos. Os
critérios podem incluir algo como índices de mortalidade, abortos, casamentos e di
vórcios, saúde, desnutrição, crimes, percentagem da população vivendo em pobreza e
em cárceres, cuidado com o meio ambiente ou sua degradação, etc., bem como índi
ces de conversões ou batismos e crescimento de igrejas. Esse índice mediria, claro, só
os frutos (ou primícias) do reino, não o reino em si. Embora esse "índice de indicadores
do reino" só possa dar um retrato vago e tenha de considerar uma miríade de fatores
culturais, poderia revelar uma variação significativa ao longo do tempo e também,
de maneira geral, comparar o crescimento da igreja com o crescimento do reino. É
possível discernir algum a relação? Que diferença empírica faz o crescimento da
igreja para o reino de Deus, já que "O Reino de Deus não vem de modo visível" (Lc
17.20)?
17 Veja outros exemplos em Alvin J. Schmidt, Under the Influence: How Christianity
Transformed Civllization (Grand Rapids: Zondervan, 2001). Schmidt detém-se em fato
res como valor da vida humana, moralidade sexual, tratamento dado às mulheres,
saúde e educação e artes e literatura.
18Veja uma análise em geral otimista do impacto global cada vez maior do crescimento
da igreja, especialmente no Mundo dos Dois Terços, em Philip Jenkins, The Next
Christendom: The Corning o f Global Christianity (New York: Oxford University, 2002).
147
9
A FORMA
DA IGREJA
Era uma vez um homem chamado Sam. Ele estava farto da igreja
institucional. “A Igreja é tão fechada nas tradições” , dizia, “não há li
berdade espiritual. Não adianta! Desisto da igreja institucional” .
Assim, Sam juntou um grupinho de amigos que pensavam como
ele. “Vamos jogar fora todo o institucionalismo e ter uma igreja sim
ples, sem estruturas, como no Novo Testamento” , resolveu.
Todos se reuniram domingo à noite. Eram onze. Passaram cerca de
duas horas e meia só compartilhando, cantando, orando e estudando a
Bíblia. Foi ótimo! Todos ficaram animados. Era a primeira vez que a
maioria deles experimentava uma comunhão tão livre, tão aberta, e o
grupo sentiu-se motivado e espiritualmente fortalecido. Isso é que era
igreja\
N a hora de encerrar, naquela noite, Sam falou: “Bem, isso aqui foi
realmente maravilhoso! Acho que alguma coisa está começando. Va
mos nos reunir de novo na semana que vem?” .
Todos concordaram. Mesma hora, mesmo lugar. (De novo, a ques
tão prática do espaço e do tempo.) Valia a pena continuar essa nova
experiência de comunhão.
E assim nasceu uma nova comunidade — na prática, uma nova igreja
local. O grupo cresceu, diversificou-se um pouco e supria várias neces
sidades à medida que surgiam. Como cuidar das crianças? Como ficam
o horário e a duração das reuniões? Como fica a liderança? Como ficam
os cultos nas datas comemorativas? Que fazer com a despesas com os
materiais? Para cada problema, adotavam procedimentos padrão fixo,
para que o grupo pudesse funcionar sem tropeços e não tivesse de tomar
decisões secundárias toda vez.
Funcionou. O grupo prosperava.
M as era “desestruturado” ou “não-institucional” , como esperava
Sam no início? Claro que não! O grupo logo desenvolveu suas próprias
14 8 A COMUNIDADE DO REI
Estruturas manejáveis
A Bíblia fornece pouquíssima orientação específica sobre a estrutu
ra da igreja. Ela pinta um quadro nítido do que a igreja é convocada a
ser e dá a história primitiva da igreja em dois contextos culturais princi
pais: a sociedade judaica palestina e a sociedade greco-romana do sécu
lo I. Com base nesse testemunho bíblico, a igreja em cada época forma
os odres que parecem mais compatíveis com sua natureza e missão den
tro de seu contexto cultural.
A questão da estrutura surge dentro da vasta área de liberdade
quanto à forma permitida pela Bíblia. Estruturas específicas não são
prescritas de maneira explícita nas Escrituras. Antes, vemos uma vari
edade de exemplos e acomodações a circunstâncias específicas (como
em At 6). M as a descrição bíblica da igreja nos ajuda a discernir crité
rios práticos para avaliar a estrutura da igreja em qualquer contexto
cultural. Analisaremos três. (Será útil lembrar a discussão a respeito
dos modelos institucional versus carismático para o entendimento da
igreja no capítulo cinco.)
Primeiro, a estrutura da igreja deve ser biblicamente válida. Ou seja,
a estrutura da igreja deve ser compatível com a natureza e a forma do
evangelho e da igreja segundo apresentadas na Bíblia.
Os autores do Novo Testamento foram zelosos em guardar a verda
de do evangelho e a igreja contra incursões do mundo e do judaísmo.
Insistir na circuncisão era negar o evangelho (Gl 5.2-6). Fazer distin
ções dentro da comunidade cristã com base em posses, posição social
ou tradições religiosas era transgredir a lei de Deus (Gl 2.11-21; Tg2.1-
13). Jesus alertou contra o perigo de se cancelar a Palavra de Deus pelo
apego à tradição humana (Mt 15.6). Qualquer tradição, estrutura ou
padrão que leve os crentes a contradizer na prática o que professam em fé
não é bíblica e precisa ser rejeitada.
Embora esse princípio deva ser óbvio e fundamental, é violado com
freqüência. Brotam ou formam-se estruturas que entram em conflito
150 A COMUNIDADE DO REI
tes obedecia à fé” (At 6.7), mas não há indícios de que eles se tornavam
imediata ou automaticamente líderes da comunidade cristã.
Por fim, Atos revela diferenças de estruturas em diferentes circuns
tâncias. Não se diz que o padrão da igreja de Jerusalém (At 2-5) foi
seguido em Antioquia ou que o padrão de Antioquia foi seguido em
Éfeso. Sem dúvida, havia muitas semelhanças entre um lugar e outro,
mas podemos assumir que as diferença e adaptações eram comuns. Não
vemos nenhuma preocupação de padronizar modelos, e nenhuma estru
tura geral é prescrita a todos. Ao que parece, padrões comuns emergi
am com base em entendimentos em comum, mas com adaptações e ino
vações locais.
O que as comunidades cristãs locais do primeiro século têm em co
mum? Que estruturas as ajudavam a desempenhar as funções necessári
as e o testemunho do reino? A Bíblia evidencia escassos padrões que
podem ser devidamente chamados de “estruturas” . M as podemos iden
tificar quatro estruturas gerais ou princípios estruturais fundamentados
no auto-entendimento teológico da igreja: liderança carismática, ado
ração em grupos grandes, comunhão em grupos pequenos e trabalho
em rede “translocal” .
Liderança carismática. A discussão dos dons espirituais no capítu
lo seis destaca a importância da liderança carismática para o entendi
mento bíblico da igreja. O ponto que deve receber ênfase aqui é que a
liderança baseada em dons era, na prática, a norma para a igreja primi
tiva (não só uma bela teoria de Paulo!). E legítimo considerar isso uma
estrutura, porque implica propósitos normativos e maneiras padroniza
das de fazer as coisas.
Na igreja primitiva, a liderança era, em essência, uma questão de
reconhecer, por meio da sensibilidade à ação do Espírito na distribui
ção dos dons espirituais, os líderes apontados por Deus. De início, não
havia uma providência organizacional formal para escolha ou substi
tuição de líderes; os que tinham dons de liderança os exerciam e acaba
vam reconhecidos como apóstolos, profetas, evangelistas, pastores ou
mestres. Na igreja local, eram em geral chamados de diáconos ou pres
bíteros (1 Tm 5.17). Esse, aparentemente, era o padrão do Novo Testa
mento. Além disso, não é possível discernir provisões bíblicas para estru
turas de liderança. Assim, hoje, cada comunidade cristã local é livre
para desenvolver seus próprios padrões de liderança, desde que esses pa
drões levem em conta as provisões bíblicas de liderança por intermédio
dos dons espirituais e estejam em harmonia com elas. A terminologia de
liderança, claro, variará de acordo com o contexto cultural.
A FORMA DA IGREJA 155
igrejas locais. As igrejas precisam umas das outras, e isso é tão verdade
hoje quanto nos dias do Novo Testamento. A igreja do Novo Testamento
serve-nos como exemplo de um bom equilíbrio entre os extremos da inde
pendência total e das estruturas denominacionaís rígidas. Nem um nem
outro é bíblico. Igrejas independentes precisam encontrar alianças vitais
de colaboração translocal, assim como as igrejas denominacionaís pre
cisam transformar-se em redes de transmissão de vida por meio de enco
rajamento, edificação mútua e testemunho conjunto.4
Dois padrões
Hoje, claro, já não vivemos no mundo do cristianismo do primeiro
século. Analisamos a vida da igreja primitiva através de lentes embaça
das por vinte séculos. Ainda que isso seja um problema (que fazer com o
peso acumulado em dois milênios de tradições eclesiásticas?), também
há uma vantagem. Uma leitura atenta dos séculos intermediários deve
nos dar um posto de observação ímpar, do qual podemos examinar o que
aconteceu naquelas primeiras décadas da era cristã.5
Donald Bloesch, analisando o impacto do ressurgimento da vida
comunitária cristã durante a década de 1970, examinou vários padrões
de discipulado cristão no livro Wellsprings o f Renewal. Ele concluiu que
“todos os cristãos são chamados à santidade” , mas “ nem todos os cris
tãos são chamados à santidade do mesmo modo” . Bloesch entende que as
Escrituras apresentam dois padrões de discipulado:
N a história bíblica e eclesiástica, é possível discernir dois caminhos para
a santidade e ambos devem ser vistos como algo de igual valor aos olhos
de Deus. Surgiram dois padrões de discipulado, am bos com fundamenta
ção biblica. Por um lado, há os chamados para viver totalmente no mundo
por am or ao Evangelho, e isso inclui vida familiar, posses e participação
nos negócios de estado ... Por outro lado, alguns cristãos estão sob o
imperativo de cumprir sua vocação à parte do mundo, em comunidades
religiosas ou em testemunho solitário, que muitas vezes implica renúncia
à família, a posses e ao uso da força e da violência. Tais pessoas sempre
serão uma minoria criativa, mas não se pode negar que são necessárias à
vida da igreja.6
Esses comentários podem ser úteis quando estudamos a questão da
estrutura. Bloesch colocou o ressurgimento das comunidades cristãs e
de outros tipos de comunidades intencionais da década de 1970 no con
texto de toda a tradição monástica. Muitas das ordens monásticas
eram, pelo menos em seu início, formas de discipulado radical que
combinavam separação do mundo com serviço ao mundo. O exemplo
mais notável e, para muitos, ainda o mais atraente é o dos francisca-
158 A COMUNIDADE DO REI
Igrejas em células
Um desdobramento animador na igreja mundial nos últimos trinta
anos tem sido o reconhecimento crescente de que igrejas saudáveis que
se reproduzem são essencialmente celulares em estrutura. Isso 6 uma
implicação natural do fato de que a igreja é, na realidade, um organis
mo vivo social e espiritual.
A maioria das igrejas comete o erro de construir a vida muito ex
clusivamente em torno do culto de adoração dominical. Quando a igreja
é um movimento, possui muitos pontos de vida, energia iniciativa, en
corajamento e reforço. Ela compreende que sua vida não gira em torno
de um único evento principal. A congregação existe em muitos pontos
de vida e, de maneira vital, onde o Espírito age de múltiplas maneiras.
Sua vida é uma rede de células e relacionamentos, e o conjunto todo —
não só o culto de domingo — é igreja.
Muitas igrejas carecem da vitalidade inerente à vida da igreja por
causa de uma concentração exclusiva ou quase exclusiva no culto se
manal de adoração. Isso não é só conseqüência de uma ênfase exagera
da nos prédios. E também uma questão de mentalidade e modelo—
uma concepção limitada pelo excesso de confiança em modelos insti
tucionais e ênfase demasiada em prédios; um conceito limitado de igreja
estabelecida (muitas vezes literalmente) de tijolos e cimento. Em con
traste, a igreja do Novo Testamento— e a igreja em todos os tempos e
lugares em que tem demonstrado grande impacto espiritual e social—
tem vivido e mantido seu testemunho por meio de relacionamentos
múltiplos, células e redes que permeiam toda a sociedade (veja, por
exemplo, At 5.32, 9.36-43, 16.32, 17.17, 20.20; Rm 16.5, 16.19; ICo
10.3; Hb 3.13; 1 Pe 2.16-25).
E aqui que a vida celular da igreja é especialmente relevante. Os
A FORMA DA IGREJA 167
cultura do que pela Bíblia. (3) Por fim, e mais importante, essa distinção
torna possível considerar uma vasta gama de legitimidade em confis
sões e estruturas denominacionais. Se, em si, essas estruturas não são a
igreja, sendo moldadas pela cultura, então volumes inteiros de contro
vérsias e polêmicas em torno da igreja e sua estrutura perdem a urgên
cia e tornam-se meramente secundárias. Confissões bem divergentes
ganham liberdade (pelo menos em potencial) para se concentrar naquilo
que as unem, ou seja, ser o povo de Deus e cumprir suas responsabilidades
do reino, ao mesmo tempo que relegam as diferenças estruturais aos
planos da relatividade cultural e histórica. Assim, a consideração cruci
al sobre a estrutura passa da legitimidade bíblica para a relevância fun
cional.
O Quadro 3 apresenta outras implicações dessa distinção entre a
igreja bíblica e as estruturas paraeclesiásticas. A bem da análise, as
diferenças entre as duas são mais salientadas do que ocorrem normal
mente na prática.
NOTAS
1 Nossa teologia da igreja deve ser baseada não só nas Epístolas e nos Evangelhos, mas
também no livro de Atos, porque vemos a teologia encarnada na cultura e na história.
Atos é a melhor fonte de informações quanto ao funcionamento e estrutura da igreja
primitiva. A comparação de Atos com o restante do Novo Testamento ajuda-nos a discer
nir as verdades e os princípios chaves por trás da história específica registrada em Atos.
2 Embora o uso que Paulo fez da escola de Tirano pareça ter sido principalmente de
natureza evangelística (At 19.9), ainda assim sugere a diversidade de opções de que
dispunha para reuniões no mundo do século I.
2 Observe, por exemplo, as seguintes passagens: At 8.14; 9.32; 9.38; 10.23; 11.1, 12,
25-30; 11.25-30; 12.25; 13. 3-6, 49; 14.21-27; 15.1-4; 15.22-16.5; 18.22-28; 20.1-6,
17; 21.8-10; 27.1-2; 1 Co 16.3-12; 17-18; Ef 6.21; Cl 4.7; Tt 3.12.
A FORMA DA IGREJA 177
4 Teologicamente, isso talvez pareça implicar que a resposta adequada para a questão
aflitiva da unidade da igreja não é nem a unidade organizacional global nem a diversida
de e proliferação denominacional irrestrita, mas algo entre uma e outra que tenha algu
ma forma de trabalho orgânico efetivo e funcional numa rede por todo o mundo. A
questão é discutida em mais detalhes no próximo capítulo.
5 Hoje, os cristãos estão na situação privilegiada de saber de fato mais, pelo menos
potencialmente, sobre a igreja primitiva e os primeiros séculos cristãos do que qualquer
geração anterior. Isso se deve principalmente às descobertas e progressos na arqueolo
gia, história, estudos a respeito da Bíblia e campos afins ocorridos no século XX. Os que
levam a sério o nascimento e a vida da igreja cristã como algo que provê direção para a
igreja hoje devem estar na vanguarda dessa pesquisa, Quanto à relevância da história da
igreja e, em especial, dos movimentos de renovação, para a vitalidade da igreja hoje,
veja Snyder, Signs o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zonder-
van, 1989; Eugene: Wipf & Stock, 1997).
6 Donald G. Bloesch, Wellsprings o f Renewal, Promise in Christian Communal Life (Grand
Rapids: Eerdmans, 1974), pp. 19-20.
7 Um estudo proveitoso de S. Francisco, apresentando perspectivas variadas desse santo
do século XII, é a antologia Brother Francis, ed. Lawrence Cunningham (Huntington:
Our Sunday Visitor, 1975). Uma biografia ficcionalizada inspirativa escrita por um autor
protestante, Glen Williamson, é Repair My House (Carol Stream: Creation House, 1073).
Veja também Francis and Clare: The Complete Works, trad. Regis J. Armstrong e Ignatius
C. Brady, na série Classics of Western Spirituality (New York, Paulist Press, 1982).
8 Bloesch, Wellsprings o f Renewal, p. 108.
9 Ibid., pp. 106-12.
10 Veja Ralph D. Winter e R. Pierce Beaver, The Warp and the Woof: Organization for
Mission (South Pasadena: William Carey Library, 1970), e Ralph D. Winter, "The Two
Structures of God's Redemptive Mission", em Ralph D. Winter e Steven C. Hawthor
ne, eds.. Perspectives on the World Christian Movement: A Reader, 3. ed. (Pasadena:
Willian Carey Library, 1999), pp. 220-30 (originalmente publicado em Missiology, 2:1
n.° 1 [1974]: 121-39).
11 Winter e Beaver, The Warp and the Woof, p. 54.
12 Ibid., p. 45.
13 Ibid., pp. 52-62; Winter, "Two Structures", pp. 223-24. No catolicismo romano, "soda-
lício" é um termo que costuma designar ordens religiosas.
14 Winter, "Two Structures", p. 220.
15 Ibid., p. 221.
16 Ibid.
17 Ibid. À medida que esses ecdesiolae ou grupos missionários assumem formas instituci
onais, tornam-se estruturas paraeclesiásticas, e os crentes dentro deles não represen
tam menos a igreja verdadeira que uma congregação local. Onde quer que se encon
trem e como quer que funcionem, estruturas eclesiásticas institucionais devem ser con
sideradas estruturas paraeclesiásticas (paralelas à igreja), não a essência da igreja.
18 Winter, "Two Structures", pp. 222-23. O plano diocesano foi tomado da administra
ção política romana; Winter entende que a comunidade monástica segue os moldes
da organização militar romana. Veja uma elaboração complementar da tese das
"duas estruturas" de Winter em Charles J. Mellis, Committed Com m unities: Fresh
Streams for World Missions (South Pasadena: William Carey Library, 1976).
19 Gordon Cosby, Handbook for Mission Groups (Waco: Word, 1975).
178 A COMUNIDADE DO REI
20 Esses grupos missionários específicos são meras sugestões. Uma igreja locai, depen
dendo do tamanho, pode ter dois ou mais grupos envolvidos com questões sociais
específicas, como bom uso do meio ambiente, abuso de drogas, aborto, trabalho com
crianças ou distribuição de alimentos, em lugar de uma comunidade de justiça social
que englobe tudo. Assim, também, alguns grupos podem estar envolvidos com evan
gelização e missões de diferentes tipos. Os grupos surgem de um senso de necessida
de, de modo que serão tão variados quanto os dons dos grupos e tão específicos
quanto as necessidades identificadas. Veja a história da Heartland Evangelical Church
em Snyder e Runyon, Decoding the Church: Mapping the DNA o f Christ's Body (Grand
Rapids:: Baker, 2002).
21 Winter e Beaver, The Warp and the Wolf, pp. 5-55.
22 James F. Engel e H. Wilbert Norton, What's Gone Wrong with the Harvest? (Grand
Rapids: Zondervanm 1975), em especial pp. 79-102.
23 Phil Butler, "Looking Back... Looking Forward", Mission Frontiers 22, n.°3 (2000): 9
(ênfase no original).
24 As fontes essenciais são Ralph W. Neighbour, Where Do We Go from Here? A Guide-
boof for the Cell Group Church (Houston: Touch Publications, 1990); William A. Be
ckham, The Second Reformation: Reshaping the Church for the 21st Century (Houston:
Touch Publications, 1995); Joel Comiskey, Home Cell Group Explosion: How Your Small
Group Can Grow and Multiply (Houston: Touch Publications, 1998) e Groups o f 12: A
New Way to Mobilize Leaders and Multiply Groups in Your Church (Houston: Touch
Publications, 1999). Veja também CellChurch: A Magazine for Second Reformation (Box
19888, Houston, TX 77224); Joel Comiskey, Reap the Harvest: How a Small-Group Sys
tem Can Grow Your Church (Houston: Touch Publications, 1999); Karen Hurston,
Breaktrough Cell Groups: H ow One Am erican Church Reaches People for Christ
through Creative Small Groups (Houston, Touch Publications, 2001) — a história do
Victory Christian Center, Tulsa, OK.
25 Instituto Jetro, "Pesquisas com Células", Londrina, Paraná, Brasil, 2003. É interessante
que os participantes das células mostraram mais preocupação com a questão das crian
ças do que os líderes das células, e os líderes das células mostraram mais preocupação
com a questão da evangelização que os participantes das células em geral.
26 Jacques Ellul, The Meaning o f the City (Grand Rapids: Eerdmans, 1970).
27 Veja uma crítica conservadora do uso do termo paraedesiástico em quatro artigos de
James A. DeJong em The Banner, começando por "Parachurch Groups: A Look at a
New Term", na edição de 10 de junho de 1977 (pp. 14-15).
28 Uma reflexão sobre a situação um tanto semelhante da tradução das Escrituras de
uma língua para outra pode ajudar a esclarecer esse ponto.
29 Engel e Norton estão corretos ao afirmar que "um departamento de análise deve
fazer parte de qualquer organização cristã de comunicação, por menor que seja".
Engel e Norton, What's Gone Wrong with the Harvest? p. 123.
179
10
A UNIDADE
DA IGREJA
A igreja local sempre faz parte da igreja una, santa, apostólica, uni
versal de Jesus Cristo. Aliás, já que um corpo de Cristo é tanto local
como universal, podemos dizer que a verdadeira igreja sobre a terra é
simultaneamente uma e diversa, santa e carismática, apostólica e profé
tica, universal e local, contextualizada em tempos e lugares específi
cos.1Ser verdadeiramente igreja, conforme escreveu J. I. Packer:
significa reconhecer a centralidade da igreja e a primazia do coletivo no
propósito de Deus. O coletivo significa a negação do individualismo numa
conjunção consciente de vida e ação em, sob e para nosso Senhor Jesus
Cristo.
Em termos locais, isso significa envolvimento, abertura, dependên
cia e ministério mútuos dentro da congregação; em termos ecumênicos,
significa concretizar a fraternidade [e irmandade] com todos os cris
tãos em todo o mundo, mais “toda a companhia do céu” ... em adora
ção contínua do Pai e do Filho por intermédio do Espírito.2
Deve-se ver a igreja em sua perspectiva universal e ecumênica mais
ampla para compreendê-la corretamente. Em certo sentido, a igreja está
plenamente presente em cada comunidade local de crentes, pois ali está
Jesus Cristo. Ela possui toda a carga genética do corpo de Cristo. M as
cada igreja local também participa do único povo de Deus espalhado
por todo o mundo.
Esse fato nos impõe a questão da unidade da igreja. No capítulo dois,
observamos o que o Pacto de Lausanne, em 1974, disse acerca da natureza
da igreja. Começamos, agora, observando o que o pacto disse acerca da
unidade da igreja sob o título “ Cooperação na Evangelização” :
Afirmamos que o propósito de Deus é que haja na Igreja unidade visível de
pensamento quanto à verdade. A evangelização também nos convoca à
unidade, posto que a união de forças robustece o nosso testemunho, assim
como a desunião solapa o evangelho da reconciliação. Reconhecemos, po-
180 A COMUNIDADE DO REI
uma “como tu estás em mim e eu em ti” (v. 21). A palavra chave em toda
essa oração é “como” . Observe em especial o versículo 18: “Assim como
me enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo” . A igreja deve demons
trar dentro dela mesma e em relação a Jesus Cristo a mesma qualidade
de relacionamento que existe entre Jesus Cristo e Deus o Pai. Isso é união
em verdade — verdadeira unidade.
Ainda que de modo mais implícito que explícito, as palavras de Je
sus têm conteúdo altamente trinitário. Talvez nossa dificuldade em
manter juntas a unidade e a diversidade da igreja deva-se em parte ao
fato de não conseguirmos prestar atenção suficiente à natureza trina e
una de Deus. Aqui, alguns dos modelos trinitarianos mais recentes de
igreja anotados no capítulo três podem ser úteis, desde que sejam sadi
os, fundamentados nas Escrituras.
Por fim, essa união na verdade significa tanto unidade na fé como
unidade de vida; tanto ortodoxia como ortopraxia. União na verdade
significa união na fé, pelo menos a respeito das grandes verdades cen
trais da fé. Os cristãos partilham a mesma esperança, a mesma fé (Ef
4.4-5). Jesus orou por seus discípulos porque eles haviam recebido e
mantido suas palavras (Jo 17.6-8). A declaração chave é o versículo 17:
“Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” . União na verdade
é união na Palavra de Deus e nas palavras de Cristo que, em si, é um
dom do Espírito Santo. Por quatro vezes, Jesus falou da palavra que
havia recebido do Pai e transmitido aos discípulos.
O que Jesus partilhou com seus seguidores continha um conteúdo
verdadeiro, que podia ser comunicado; não era uma simples experiência
existencial supra-racional. E significativo que Cristo tenha orado: “por
aqueles que crerão em mim, por meio da mensagem deles” (Jo 17.20),
não só por meio da vida deles. As boas novas do reino implicam comuni
car uma mensagem. E a união na verdade deve ser fundamentada numa
concordância básica em torno do conteúdo da mensagem.
M as união na verdade também significa união de vida. Significa
ortopraxia, ou o que Francis Schaeffer chamou de “ortodoxia de comu
nidade” . A encarnação exige que as implicações da verdade revelada
sejam vivenciadas na experiência diária. Isso também está envolvido na
oração: “santífica-os na verdade” (Jo 17.17). Os seguidores de Cristo
são enviados para o mundo como o próprio Jesus foi: como verdade
encarnada (v. 18). Seus discípulos devem ser conhecidos pelo amor (v.
26) e pela alegria (v. 13) que demonstram, O fato de a igreja ser uma em
Cristo, como Cristo é um com o Pai por meio do Espírito, certamente
significa mais que acordo doutrinário. A cruz deve ser tomada como
A UNIDADE DA IGREJA 185
Um ecumenismo evangélico
Conforme já se observou, o próprio Jesus destacou a importância
pragmática da unidade para o testemunho, quando orou: “para que to
dos sejam um ... para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.21).
É estranho que a preocupação evangelística e missionária entre os
evangelicais com freqüência tenda mais à fragmentação do que à unida
de. Pessoas profundamente preocupadas com a evangelização são, mui
tas vezes, as que se opõem com mais rigidez ou então são indiferentes
às questões práticas da unidade. Zelo pela evangelização muitas vezes
significa que os missionários têm pouco zelo pela unidade e coopera
ção. M as essa não era a atitude de Jesus. A bem de uma evangelização
eficiente, devemos considerar mais seriamente a oração de Jesus pela
unidade.
Se a evangelização e a glória de Deus nos convocam à unidade, essa
questão torna-se, para cristãos diligentes, uma preocupação maior do
que geralmente é. Os evangelicais fariam bem em considerar o que
Donald Bloesch escreveu em seu capítulo sobre unidade cristã em Re-
form o f the Church:
O alvo do ecumenismo autêntico não é uma superigreja com poder e pres
tigio, mas, antes, uma comunhão mundial de crentes unidos sob a Palavra e
dedicados à conversão e salvação [de todas os povos], O que devíamos
almejar é ... um ecumenismo evangelical que colocasse a missão cristã
acima da sobrevivência institucional.11
O alvo desse “ecumenismo evangelical” , disse Bloesch, “ não seria a
simples unidade da igreja, mas também, e acima de tudo, a conversão
do mundo” .14 O motivo missionário, em vez de ser uma desculpa para a
fragmentação contínua, deve ser a razão da convergência evangelical.15
No século X X , muitos ecumenistas pareciam mais interessados na uni
dade da igreja do que na evangelização (no sentido bíblico), enquanto
186 A COMUNIDADE DO REI
Um problema de estrutura
Enfatizei que o Congresso Internacional de Evangelização Mundi
al de 1974, como outros eventos “ ecumênicos” semelhantes antes e
depois, foi uma estrutura específica produzida por homens. Além dis
so, o Congresso de Lausanne foi possibilitado em grande parte pela
existência e recursos de outra estrutura evangelical importante: a As
sociação Evangelística Billy Graham.
A cooperação e a unidade não “ acontecem” simplesmente, à parte
de uma liderança intencional e de estruturas facilitadoras. Deus atua
hoje como tem atuado ao longo da história, tanto mediante seres hu
manos como mediante estruturas humanas. A cooperação e a unidade
da igreja são também, portanto, questões de estrutura. A questão é:
que tipos de estruturas podem e devem existir para aumentar a unidade
da verdadeira igreja e a proclamação efetiva do evangelho?
As estruturas para cooperação e unidade das várias comunidades
do povo único de Deus devem existir em vários níveis. A diversidade
188 A COMUNIDADE DO REI
ficativos nesse sentido têm sido feitos em várias cidades pelo mundo nas
últimas duas ou três décadas, com bons resultados.
Alguma forma de estrutura global para comunhão e missão unifi
cada fortaleceria o testemunho da igreja. Essa estrutura serviria prin
cipalmente como (1) “centro nervoso” de informações para monitorar
o que está acontecendo no mundo no que diz respeito ao crescimento e
testemunho da igreja; (2) um ponto de contato e comunicação entre as
muitas estruturas evangelicais pelo mundo, tais como estruturas de
evangelização e missão, denominações, sociedades bíblicas, seminári
os, faculdades e comunidades cristãs que têm surgido ultimamente; e
(3) uma estrutura facilitadora ou catalisadora para obter uma comu
nicação direta entre estruturas semelhantes em várias partes do mun
do. Sua função deve ser principalmente informar, comunicar e coorde
nar, não a de iniciar novos programas próprios que só tenderiam à ins
titucionalização e à duplicação de ministérios existentes.
Se essa estrutura for baseada num entendimento claro da igreja,
terá sucesso em dar alguma expressão visível e organizada à unidade
da igreja, sem resvalar numa superigreja. A estrutura deve ser essenci
almente uma paraigreja e não uma saperigreja. Ela deve colocar-se ao
lado da igreja e servir ao verdadeiro corpo de Cristo, nunca tendo sobre
si as prerrogativas da cabeça, Jesus Cristo, nem se apropriando delas.
Com isso, ela promoverá uma unidade tanto espiritual como visível.
O cristianismo evangelical hoje é mais que um grupo de igrejas
teologicamente conservadoras. E cada vez menos um ramo específico
do protestantismo ocidental e cada vez mais um movimento transcon-
fessional pelo cristianismo bíblico dentro da igreja de Jesus Cristo em
todo o mundo. Até certo ponto, tornou-se um movimento global, dan
do esperança de que o evangelicalismo ocidental transcenda sua servi
dão ao “ cristianismo cultural” . Os evangelicais norte-americanos pre
ocupados com um testemunho mais radical e com a superação da limi
tação teológica e servidão cultural podem ganhar alguma coragem do
fato de que o evangelicalismo em todo o mundo já não é definido por
suas expressões norte-americanas. Muitos líderes evangelicais do Mundo
dos Dois Terços partilham de suas preocupações em relação ao reino e
têm muito a ensinar para a igreja norte-americana.
É tempo, porém, não de triunfalismo (as falhas e tensões do evan
gelicalismo são por demais sérias para isso), mas de emergir o que
Donald Bloesch chama de “ um evangelicalismo católico” . “ O tipo de
teologia que devemos buscar” , escreveu Bloesch, “é o que seja profun
damente evangelical e autenticamente católico” . Biblicamente, “ não
190 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
' A Bíblia deixa claro que a igreja não é só uma, santa, apostólica e católica ou universal
(as marcas nícenas clássicas da igreja), mas também diversa, carismática, profética e
local, conforme afirmam Howard Snyder e Daniel V. Runyon em Decoding the Church:
Mapping the DNA o f Christ's Body (Grand Rapids: Baker, 2002), cap. 1.
2 J. I. Packer, "A Stunted Ecclesiology?", em Kenneth Taylor e Christopher a. Hall, ed.,
Ancient and Postmodern Christianity: Paleo-Orthodoxy in the Twenty-First Century: Es
says in Honor o f Thomas C. Oden (Downers Grove: InterVarsity Press, 2002), pp. 123-24.
3 Missão da Igreja no Mundo Hoje (São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial,
1982), p. 243.
4 Veja Yehezkel Kaufmann, The Religion o f Israel, trad. Moshe Greenberg (Chicago:
University of Chicago Press, 1960).
5 Concílio Vaticano II, Decree on Ecumenism (Washington D.C.: National Catholic Wel
fare Conference, 1964), p. 1.
6 Veja G. C. Berkouwer, The Church, trad. James E. Davidson (Grand Rapids: Eerdmans, 1976).
7 Hans Küng, Structures o f the Church, trad. Salvator Attanasio (London: Burns &
Oates, 1964), p. 12.
8 Henri Blocher, "The Nature of Biblical Unity", em Douglas, Let the World Hear His
Voice, pp. 382-83.
9 Essa afirmação não significa excluir os judeus que continuam sendo povo de Deus
num sentido especial.
10 Peter Beyerhaus, Shaken Foundations: Theological Foundations for Mission (Grand
Rapids: Zondervan, 1972), p. 42.
11 C. René Padilla, "Evangelização e o Mundo" em A Missão da Igreja no Mundo Hoje
(São Paulo: ABU; Belo Horizonte: Visão Mundial, 1982), p. 151.
12 "A Response to Lausanne" em Douglas, Let the World Hear His Voice, p. 1.294.
13 Donald Bloesh, The Reform o f the Church (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 184.
14 Ibid., p. 186.
15 É bom lembrar que o movimento ecumênico moderno surgiu de uma preocupação
evangelística e missionária genuína. Mas, com o tempo, rompeu com suas âncoras
bíblicas e teológicas e ficou à deriva. Por esse motivo, infelizmente, muitos evange
licals quase igualam o ecumenismo a uma heresia.
16 C. Peter Wagner, Frontiers in Missionary Strategy (Chicago: Moody Press, 1971), pp. 153-60;
George W. Peters, Saturation Evangelism (Grand Rapids: Zondervan, 1970), pp. 76-77.
17 Jacques Ellul, The Meaning o f the City (Grand Rapids: Eerdmans, 1970), p. 154.
18 Bloesch, Reform o f the Church, pp. 186-87.
19 Richard J. Foster, Streams o f Living Water: Celebrating the Great Traditions o f
Christian Faith (New York: HarperSanFrancisco, 1998).
20 Veja, por exemplo, Herbert E. Hoefer, Churchless Christianity (Pasadena: William
Carey Library, 2001).
21 Arthut F. Glasser, "The Evangelicals: World Outreach" em William J. Danker e Wi Jo Kang,
ed., The Future o f the Christian World Outreach (Grand Rapids: Eerdmans, 1971), p. 109.
22 Veja Vinson Synan, Charismatic Bridges (Ann Arbor: Word of Life, 1974).
23 Lembre-se, aqui, das várias "marcas" ou "sinais" da igreja, conforme discutidas
brevemente no capítulo 2 e em Snyder e Runyon, Decoding the Church, cap. 1.
11
DAQUI ATÉ
O REINO
O preço do reino
Esses passos para renovação não significam que outras mudanças
fundamentais não sejam essenciais na igreja hoje. N ossa experiência
com a igreja, na grande maioria dos casos, permanece muitíssimo rasa.
Em muitas igrejas, a koinonia e o discipulado genuíno ainda não são
vistos em suas dimensões bíblicas ou, então, permanecem como um alvo
distante que ainda anelamos. Sonhamos ser abertos, prestativos e afetu
osos com nossos irmãos e irmãs e desejamos que eles façam o mesmo
conosco e também que pratiquemos um discipulado mútuo. M as os
meios para chegar a esse nível de cuidado e prestação de contas uns aos
outros ou nos escapam ou nos parecem muito custosos. Isso exige que
abramos para os outros algumas áreas da vida em que até Deus raramen
te consegue se intrometer.
Precisamos, portanto, aprender de nossos irmãos cristãos de várias
comunhões ao redor do mundo que estão vivendo e experimentando a
DAQUI ATÉ O REINO 197
para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos” (2 Co 8.9).
M as essa história não está completa e não é a definição de discipu-
lado. Pois Paulo disse:
Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus,
que, embora sendo Deus,
não considerou que o ser igual a Deus
era algo a que devia apegar-se,
mas esvaziou-se a si mesmo,
vindo a ser servo,
tornando-se semelhante aos homens.
P, sendo encontrado em forma humana,
humilhou-se a si mesmo
e foi obediente até a morte
e morte de cruz! (Fp 2.5-8)
E Jo ão disse: “neste mundo somos como ele” ( l j o 4.17). Jesus disse:
“ Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diaria
mente a sua cruz e siga-me” (Lc 9.23). “Aquele que afirma que permane
ce nele, deve andar como ele mandou” (1 Jo 2.6). E o apóstolo Pedro nos
disse: “ Para isso vocês foram chamados, pois também Cristo sofreu no
lugar de vocês, deixando-lhes exemplo, para que sigam os seus passos” (1
Pe 2.21).
Quando falamos de nossa redenção, nossa salvação eterna, podemos
dizer com alegria que Cristo sofreu para que, com isso, não tenhamos de
sofrer. Ele tomou sobre si a culpa, a dor e a punição do pecado. M as
quando falamos de nossa vida no mundo, de discipulado, vemos outra
verdade em ação. As Escrituras mostram de várias maneiras que os dis
cípulos devem ser como seu mestre e que a abnegação, o auto-esvazia
mento e a crucificação são marcas universais daqueles que segem a Je
sus.
M as que tipo de auto-esvaziamento? É fácil ter uma visão distorcida
daquilo que a Bíblia quer dizer sobre isso. Deus não está pedindo que
enfiemos as mãos pela garganta espiritual, arranquemos nosso ego pelas
raízes e o joguemos fora. A verdadeira fé cristã valoriza a pessoa e não
provoca auto-mutilação. Cristãos verdadeiros não tentam fugir de si ou
matar a própria vontade; antes, de bom grado resolvem fazer a vontade
do Pai. O verdadeiro discipulado é resolver fazer o que Jesus mostrou que
seus seguidores devem fazer. Amar a Cristo significa obediência à vida
de Jesus.
Quando Paulo disse “fui crucificado com Cristo” (G1 2.20), não
estava descrevendo um processo psicológico introspectivo pelo qual esta
va reduzindo o próprio ego a zero. Antes, estava dizendo, na realidade:
DAQUI ATÉ O REINO 199
“Resolvo renunciar aos meus direitos exatamente como fez Jesus; resol
vo não só acumular os benefícios providos por Cristo, mas seguir o mode
lo dele, dividindo esses benefícios com o mundo e, em especial, com os
pobres” . Assim, Paulo disse, em outra parte: “ Considero tudo como per
da, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Je
sus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas ... Quero conhecer Cris
to, o poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos,
tornando-me como ele em sua morte para, de alguma forma, alcançar a
ressurreição dentre os mortos” (Fp 3:8,10-11).
A ética do reino, portanto, é a ética da crucificação. É a vida coloca
da no altar. Sim, isso vai contra a natureza.9 Preferimos colocar a ética
triunfal no lugar da ética da crucificação. Queremos correr da cruz para
a coroa ou nos desvencilhar completamente da Sexta-Feira da Paixão.
Queremos viver agora como se o reino já tivesse vindo em sua plenitu
de; preferimos “ reinar sobre a terra” (Ap 5:10) espiritualmente. Ao lon
go dos séculos, a igreja tem sido tentada a agir como se o reino já tivesse
vindo, feito as pazes com o mundo e se assentado para usufruir confor
tavelmente dos frutos do evangelho.
M as então vislumbramos Jesus, caminhando na penumbra com seu
grupinho de discípulos ou cochilando, cansado, num barco que não pára
de balançar. Ou olhamos para cima e o vemos esticado sobre uma cruz,
preso por três pregos de ferro. Suas mãos estão completamente abertas e
a coroa que usa é feita de espinhos.
É bem verdade que não temos de morrer na cruz. Jesus já fez isso por
nós. Mesmo assim, somos chamados para viver a ética da crucificação.
Somos chamados mais para levar a cruz do que para vesti-la. E a cruz
não é simplesmente nossas doenças, nossos problemas ou o vizinho que
não conseguimos suportar. Antes, cruz significa escolher voluntariamente
viver para os outros, deixar a vida de Jesus mostrar o que é a verdadeira
espiritualidade. A questão não é tanto “O que faria Jesus?” , mas “ Como
Jesus viveu?”
Durante uma discussão informal em torno de uma mesa, uma jo
vem senhora crente, muito querida, perguntou: “É errado os cristãos
aproveitarem as coisas boas da vida?” .
É? N ão, claro que não. Nossos olhos devem estar sensíveis à beleza,
à excelência e à harmonia. Também não era errado Jesus desfrutar das
coisas boas. Não seria errado se tivesse nascido num palácio, ou tivesse
possuído roupas caras ou tivesse comido refeições suntuosas todos os
dias, pois ele é Deus, Rei e Senhor.
M as voltemos para Filipenses 2. Jesus era e é Deus, mas “humilhou-
200 A COMUNIDADE DO REI
NOTAS
1 Charles H. Kraft, "Spinoff from the Study of Cross-Cultural Mission", Theology News
and Notes 18, n.° 3 (1972): 3.
2 Veja mais elaborações sobre os sete passos em Howard A. Snyder, Kingdom, Church,
and World: Biblical Themes for Today (Eugene: Wipf & Stock, 2002), caps. 10-11; Signs
o f the Spirit: How God Reshapes the Church (Grand Rapids: Zondervan, 1989; Eugene:
Wipf & Stock, 1997), cap. 9; Model o f the Kingdom (Nashville: Abingdon, 1991), cap.
12, e Liberating the Church: The Ecology o f the Church and Kingdom (Downers
Grove: InterVarsity Press, 1983); Eugene: Wipf & Stock, 1996), caps. 11-15.
3 Devemos, porém, guardar-nos contra o perigo de nos concentrar de maneira muito
estrita ou exclusiva na igreja. Um estudo da igreja é muitas vezes necessário, porque
essa área tem sido negligenciada. Mas é possível ir para o outro extremo. Uma igreja
local precisa compreender a igreja e o plano de Deus para a igreja, mas depois precisa
prosseguir com a tarefa de ser a comunidade do rei. Nesse ensino, é preciso cobrir
todo o leque de ênfases encontradas na Bíblia. Veja uma exploração exemplificativa
dos temas da paz (shalom), terra, casa e cidade de Deus, justiça ao pobre, sábado e
jubileu em Snyder, Kingdom, Church and World.
4 Lawrence Richards, A New Face for the Church (Grand Rapids: Zondervan, 1970).
5 Christian A. Schwarz, em O Desenvolvimento Natural da Igreja (Curitiba: Esperança,
s.d.). Veja também David S. Young, A New Heart and a New Spirit: A Plan for Renewing
Your Church (Valley Forge: Judson Press, 1994); David S. Young, Servant Leadership
for Church Renewal: Servants by the Living Springs (Scottdale: Heral Press, 1999).
6 Elizabeth O'Connor, Journey Inward, Journey Outward (New York: Harper& Row,
1968). Principalmente uma reflexão sobre a vida da Church of the Savior em Wa-
202 A COMUNIDADE DO REI
shington, D.C., esse livro conta a história de alguns grupos missionários criativos e
efetivos.
7 Veja também Roger S. Greenway, ed„ Guide for Urban Church Planting (Grand
Rapids: Baker, 1976).
8 A reflexão sobre exemplos contemporâneos pode e deve ser enriquecida pelo estudo de
experiências semelhantes da igreja em épocas anteriores. Veja, além das fontes já men
cionadas, George G. Hunter III, The Celtic Way o f Evangelism: How Christianity Can
Reach the West... Again (Nashville, Bingdon, 2000).
9 Isso ocorre especialmente com muitos homens. Muitas mulheres demonstram sensibili
dade afetiva e pode ser-lhes mais fácil viver "a vida colocada à disposição", O discipula-
do delas pode ser mais de descobrir forças para afirmar e usar (às vezes diante de
oposição ou má compreensão) os dons espirituais que Deus lhes deu, do que a luta da
abnegação â semelhança de Cristo. Por outro lado, alguns homens são naturalmente
muito afetivos e algumas mulheres, naturalmente muito assertivas, e louvamos a Deus
por essa diversidade. Seja como for, todos são chamados para o discipulado, para a
submissão mútua (Ef 5.21) e para o ministério em favor do reino.
10 Robert Lewis e Rob Wilkins, The Church o f Irresistible Influence (Grand Rapids: Zonder-
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