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Crer

e observar Sproul, R.C.

Crer e Observar © 2009 Editora Cultura Cristã. Publicado originalmente nos Estados Unidos com o título
Trust and Obey © 1996 by Soli Deo Gloria Publications, a division of Ligonier Ministries. Traduzido com
permissão. Todos os direitos são reservados.

Conselho Editorial

Ageu Cirilo de Magalhães, Jr. Aided Souza de Matos André Luís Ramos Cláudio Marra
(Presidente) Fernando Hamilton Costa Francisco Solano Portela Neto Mauro Fernando Meister Tarcízio
José Freitas de Carvalho Valdeci da Silva Santos

Produção Editorial

Tradução

Heloísa Cavallari Ribeiro Martins Revisão

Elvira Castanon Edna Guimarães Wilton de Lima Editoração

Carlos Roberto de Oliveira

Capa

Leia Design

Ia edição - 2009 - 3.000 exemplares

Sproul, R.C

Sp87c Crer e observar/R.C. Sproul; traduzido por Heloisa Cavallari. São Paulo: Cultura Cristã, 2009.

144 p.; 16x23 cm.

Tradução de Trust and obey

ISBN 978-85-7622-245-3

1. Vida crista 2. Santidade I. Titulo

248.4 CDD

CDITORA CULTURA CRISTÃ


R. Miguel Teles Jr., 394 - Cambuci - SP 15040-040-Caixa Postal 15.136 Fone (011) 3207-7099 - Fax (011) 3279-
1255 www.editoraculturacrisla.com.br

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

Sumário
Prefácio
Oh! Como amo a tua lei!
Trapos sujos (da imundícia) ou perfeita justiça?
Obediência: amor ou legalismo?
Quão mortal é o legalismo?
Martinho Lutero
Legalismo e antinomianismo: duas rotas mortais fora do caminho estreito
O cristão carnal
Alegre obediência: o terceiro uso da lei
O sábado como sinal escatológico
Posfácio
Notas
Sumário
137

Don Kistler

Notas
Prefácio

ivemos numa era pragmática. Não perguntamos mais: isso é

verdadeiro? Ao contrário, perguntamos: isso funciona? A ênfa

se num experimentalismo pragmático promoveu uma confusão que se infiltrou


na igreja, manifestada ao colocarmos o interesse pessoal: o que eu recebo com
isso? à frente da pergunta mais escriturística que seria: o que devo fazer a esse
respeito? Os artigos deste livro não tratam do que o homem ganha, mas sim
quem é Deus e o que ele fez, faz e fará para colocar o indivíduo numa posição
em que ele glorificará e desfrutará Deus para sempre. Nesse caso, a pergunta
crítica se toma: o que farei com aquilo que Deus tem feito? A questão é
obediência.

O amor a Deus, implantado no coração do pecador pela regeneração, é possuído


por todo aquele que é nascido do alto e está justificado (Ez 36.26,27). Deus faz
por nós, em nossa pecaminosidade, o que não poderíamos fazer em nossa justiça
- ele nos dá o princípio e o poder para obedecer. O amor a Deus se toma o
grande princípio e a fonte de toda obediência aceitável, e o Espírito é o poder
sempre presente para nos ajudar a cumprir a obediência que as Escrituras tão
expressamente exigem para que alcancemos o deleite de Deus. “Se me amais,
guar-dareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará
outro Consolador, a fim de que esteja para sempre convosco, o Espírito da ver-

dade” (Jo 14.15-17a). Essas palavras de Jesus afirmam explicitamente que tanto
a santidade de coração (amor) quanto a santidade de conduta (obediência) são
absolutamente necessárias para evidenciar nossa confissão de fé. A essência da
obediência se encontra num amor sincero e cordial que impele à ação e não a
ação em si mesma. A questão não é tanto o que estamos fazendo ou dizendo,
mas o que o nosso coração está compreendendo e pretendendo - embora o que o
nosso coração está compreendendo e pretendendo seja normalmente visto
naquilo que estamos fazendo ou dizendo. Pela obediência aos mandamentos de
Deus damos evidência de nossa santa conversão. Por isso, nossa fé é declarada
genuína diante do mundo. Quem quer que pretenda crer em Jesus e não seja
habitualmente zeloso em ser obediente, sua fé, sendo manifestada por falta de
obras, é estéril, inútil, morta. Ao andar nos caminhos do dever, expressamos
nossa gratidão a Deus por seus graciosos benefícios, e também glorificamos seu
santo nome, que é o grande objetivo de toda obediência (Mt 5.16).

É necessário afirmar que nem nossa obediência externa, nem nossa santidade
interna constituem uma porção de justiça pela qual possamos ser justificados
(declarados justos diante de Deus). Nem são, ambas, a causa ou a condição de
sermos aceitos por Deus. A justiça pela qual somos justificados deve ser
absolutamente perfeita (ver nosso livro Justification by Faith ALONE!). Assim,
Paulo, o grande mestre dos gentios, ao considerar que estaria em pé diante do
tribunal de Deus, declarou sua esperança de que pudesse “ser achado nele, não
tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo,
a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.9). Essa justiça, tendo
sido forjada antes do nosso nascimento, é o único fundamento por intermédio do
qual nosso Juiz supremo pode absolver (desonerar) nossa culpa. Se alguém
perguntasse: como poderei me colocar diante de Deus e ser considerado justo? A
resposta seria: confie na obediência de Cristo. Se a pergunta fosse: como posso
expressar minha gratidão a Deus por sua graciosa misericórdia para comigo?, a
resposta seria: obedeça aos mandamentos de Cristo e viva em conformidade com
sua vontade revelada.

E nossa intenção, como editores deste trabalho, relembrar à igreja a adequação e


a propriedade das boas obras. Como afirmado previamen-

te, embora nossas obras de obediência não sejam levadas em consideração para
conseguirmos justificação ou para obtermos uma qualificação para a vida eterna,
elas são de suma importância para contrabalançar aqueles dois extremos opostos
e fatais: legalismo e antinomianismo. O primeiro comete delito contra a glória da
graça, exalta o eu e fere a nossa paz. O segundo transforma a graça de Deus em
licenciosidade, endurece a nossa consciência e nos toma piores que os
descrentes. Os ilustres autores deste trabalho se uniram a nós na exortação ao
rebanho do Senhor para distinguirmos com seriedade os fundamentos de
nossa aceitação diante de Deus (justificação) da superestrutura da
santidade prática (santificação).

O arguto puritano John Owen, alguns séculos atrás, escreveu a respeito de


Salmos 130: “Nosso fundamento no trato com Deus é unicamente Cristo,
simples graça e perdão nele. Nossa edificação se faz em e por meio da santidade
e obediência, como frutos daquela fé pela qual recebemos a reconciliação”.

O princípio que sustenta este livro é que o amor é o fundamento da obediência, e


que a obediência é o resultado e a conseqüência verdadeira do amor. Nenhuma
pessoa pode assentar outro fundamento, que não seja Jesus Cristo, para confiar e
obedecer. Soli Deo Gloria!

Dr. Bruce Bickel

Presidente da Junta Soli Deo Gloria

John Bishop Millersville, Maryland Peter Neumeier Atlanta, Geórgia Rev. Don
Kistler Pittsburgh, Pensilvânia Rev. Lance Quinn Little Rock, Arkansas
Oh! Como amo a tua lei!

Quando pensamos nas bem-aventuranças,


imediatamente pensamos também no Sermão do
Monte. Em termos de cenário histórico da
redenção pensamos, sem dúvida, no Novo
Testamento, -aventuranças estão relacionadas ao
ensino de Jesus, e a forma usada por Jesus para
comunicá-las foi uma reversão ao Israel do
Antigo Testamento - a adaptação de um modo
profético de comunicação que usava, como
meio, o oráculo.
Nas religiões pagãs, o oráculo era visto como uma forma de comunicação vinda
de Deus, como era o caso do oráculo de Delfos. Era um anúncio divino, um
pronunciamento que poderia ser positivo ou negativo. Sendo positivo, poderia
proclamar prosperidade a uma pessoa ou nação; sendo negativo, era um anúncio
do julgamento divino que proclamava uma destruição iminente e completa -
como aquela que é declarada no livro do Apocalipse, no qual se lê que um anjo
apareceu nos últimos tempos gritando no meio do céu: “Ai! Ai! Ai”. Esse é
um oráculo de julgamento. É o tipo de oráculo que Jesus pronunciou sobre os
fariseus de seus dias. Mas o oráculo de felicidade, o anúncio divino de bênção, a
declaração de Deus da felicidade, eram expressos em oráculos de bênçãos.

A palavra “bênção” tem sido quase totalmente esvaziada de seu

sentido bíblico. Depreciamos a expressão quando nos referimos a ela


simplesmente como uma experiência de felicidade. Ser abençoado,
na mentalidade hebraica, significa ter a alma cheia da capacidade de
experimentar o encanto, a excelência e a doçura do próprio Deus. A
palavra “felicidade” expressa menos do que isso. Até mesmo “completude”,
ou plena satisfação, não alcança o objetivo. Certamente, ela envolve
um preenchimento, uma plenitude, uma abundância de alegria, paz e
estabilidade. O judeu anelava pelo dia em que ouviria Deus pronunciando sua
bênção. O povo se agitou quando ouviu o seu Messias declarar a eles: “Bem-
aventurados os humildes de espírito... Bem-aventurados os que choram, porque
serão consolados. Bem-aventurados os mansos... Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça, porque serão fartos ... Bem-aventurados os pacificadores,
porque serão chamados filhos de Deus” (M 5.3-9).

Tendemos a restringir nossa compreensão das bem-aventuranças ao Novo


Testamento quando, de certo, o conceito de bem-aventurança, de uma
experiência beatífica, está enraizado e fundamentado no Antigo Testamento.

Às vezes, cantamos uma das mais ricas bem-aventuranças de toda a Escritura:


aquela que introduz o Saltério. Esse primeiro poema é uma bem-aventurança,
uma bênção. Não é uma bênção final no sentido de uma mensagem que é dada
no final do culto, mas manifesta o sentido original da “bênção” - uma boa
palavra, um anúncio divino de beatitude, de felicidade. Em Salmos 1.1 se lê:
“Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém
no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escamecedores”. O salmo
usa a forma poética do paralelismo para criar um apogeu. A primeira coisa que é
dita sobre essa pessoa abençoada é que ela não anda no conselho dos ímpios. Ela
é surda aos conselhos dos pagãos, que nos induzem a participar dos caprichos
deste mundo.

No primeiro capítulo de Romanos, Paulo exprime o grau de de-pravação em que


o mundo havia caído, o mergulho de cabeça da humanidade em pecado
abominável que é marcado pela recusa de honrar a Deus e ser agradecido. O
apóstolo, então, continua para registrar os pecados familiares ao coração e à raça
humanos.

Paulo escreve: “E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio


Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas
inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos
de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores,
caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores
de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem
misericórdia” (Rm 1.28-31).
Essa pequena lista de características dos ímpios alcança seu ápice no versículo
32: “Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os
que tais coisas praticam, não somente as fazem, mas também aprovam os que
assim procedem”.

Paulo diz que nossas inclinações pecaminosas são tão intensas que não apenas
fazemos as coisas que Deus proibiu, mas também encorajamos outras pessoas a
fazê-las conosco.

De alguma forma imaginamos que nossos pecados não serão vistos como
pecados, se pudermos reunir um bom número de pessoas para participar deles
conosco. Mas bem-aventurado é o homem que não anda de acordo com esse tipo
de conselho, que não anda no conselho dos ímpios, que não se detém no
caminho dos pecadores. Isso não quer dizer que uma pessoa é abençoada quando
se coloca diante dos pecadores, impedindo-os de se movimentarem. Não é esse o
sentido de “não se detém no caminho dos”. Esse é um linguajar arcaico.
Significa a pessoa que não permanece no caminho dos pecadores, que não
participa da impiedade dos ímpios. Bem-aventurada a pessoa que não se assenta
com os escamecedores.

A forma mais rasteira de reconhecimento intelectual que uma pessoa, que não
tem profundidade em sua análise intelectual, pode apresentar, o modo mais
rápido e vil para alcançar uma respeitabilidade intelectual enganosa, é o cinismo.
Qualquer um pode ser cínico. E não há nenhum tipo pior de cinismo do que
aquele que se compraz em zombar da busca do ser humano por santidade. O
salmista nos diz que bem-aventurado é o homem que não se assenta nessa roda.
O oposto é concluído por meio de uma elipse: “Maldito o homem que age
assim”. Mas observe que até esse ponto o salmo está descrevendo a pessoa em

termos negativos, isto é, a bem-aventurança pertence à pessoa que não faz as


coisas mencionadas.

O que ela faz? O que caracteriza uma pessoa abençoada? “Antes, o seu prazer
está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (SI 1.2). Não é
apenas uma questão de “bem-aventurado aquele que não faz essas coisas”, mas
“bem-aventurado aquele cujo prazer está na lei do Senhor”. Estou me alongando
sobre isso porque se há uma coisa que não caracteriza a igreja contemporânea,
uma coisa que não capta o espírito do assim chamado “evangelicalismo” do
século 20, é o prazer difundido e penetrante na lei de Deus. Sei que há pessoas
lendo o que escrevi e retrucando: “Você está louco? Por onde tem andado? Você
não sabe que vivemos deste lado da cruz? A lei foi colocada de lado. Nós somos
cristãos. Não ficamos sentados nos deliciando com a lei de Deus”.

Se você é um cristão, você tem prazer. E se você não tem prazer na lei de Deus,
não engane a si mesmo pensando que é uma pessoa regenerada. Não pense que o
evangelho que o liberta da maldição da lei é uma licença para você desprezar e
ignorar a lei. Esse pronunciamento de bem-aventurança é aplicável hoje assim
como quando foi escrito. Sei que não falamos dessa maneira, contudo, ele é
verdadeiro.

Salmos 119 é uma das mais magníficas peças literárias do Antigo Testamento. É
um elogio sem paralelo à doçura da lei de Deus. E segue o alfabeto hebraico em
métrica poética. Chamo sua atenção para o versículo 97, em que lemos as
seguintes palavras: “Quanto amo a tua lei!”.

Você percebe o que o salmista está dizendo? A pessoa que escreveu essas
palavras faz parte da comunhão dos santos. A pessoa que escreveu essas palavras
faz parte da família de Deus. A pessoa que escreveu essas palavras é um santo do
Antigo Testamento. A pessoa que escreveu essas palavras fez isso sob a
inspiração de Deus, o Espírito Santo. E temos aqui um derramamento de afeição
religiosa, uma explosão não contida de emoção. O Espírito Santo, assim nos diz
o Novo Testamento, algumas vezes nos leva a gemer. Posso imaginar o
salmista gemendo enquanto escrevia essas palavras. “Oh! Como amo a tua
lei!” Quando foi a última vez que você ouviu um cristão derramar seu coração
em afeição pela lei de Deus? Como isso é estranho para nós!

O que o salmista ama e por quê? Do que estaria ele falando quan-

do menciona essa lei a qual ama tão desesperadamente e qual é a razão desse
amor?

No Antigo Testamento, assim como no Novo, as Escrituras com freqüência


fazem uma distinção entre lei e evangelho e entre lei e profetas. Há vezes em que
a palavra “lei” é usada num sentido geral e inclusive. Outras vezes, quando o
termo é contrastado com outros aspectos, assume um sentido mais restrito e
específico. Algumas vezes, lei se refere exclusivamente aos mandamentos
entregues por Moisés ou ao código de santidade. Mas um dos usos mais
significativos do conceito de “lei” no Antigo Testamento é o sentido genérico da
lei de Deus, referindo-se indiscriminadamente à Palavra de Deus, porque a Lei
de Deus é a Palavra de Deus e a Palavra de Deus é a Lei de Deus. O evangelho é
a Palavra de Deus e essa Palavra não pode ser quebrada. Quando são
pronunciadas por Deus, mesmo as palavras de promessa carregam a força de lei.

Na versão de Hollywood do filme O rei e eu, o rei do Sião muitas vezes repetia a
afirmação: “Que seja escrito; que seja cumprido”. Todos no Sião aceitavam a
palavra do rei como lei (exceto Ana). Mas a pessoa piedosa se maravilha com
cada palavra que sai da boca de Deus. Jesus a considerava como sua comida e
bebida. E, para resistir a Satanás e às próprias forças do inferno, ele disse: “Está
escrito: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da
boca de Deus”. Jesus afirmou que as Escrituras não podem ser infringidas.

“Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios ... Antes, o seu
prazer está na lei do SENHOR, e na sua lei medita de dia e de noite” (SI 1.1,2).
Será que é isso que acontece? Não.

Seria: “Bem-aventurado o homem que, conscientemente, aplica a lei à sua vida


durante cinco minutos por dia?” Não.

O homem abençoado é aquele que medita na Lei do Senhor de dia e de noite.

Tomo a fazer a pergunta: “Por que ele a ama?” Observe Salmos 119.89-91: “Para
sempre, ó Senhor, está firmada a tua palavra no céu. A tua fidelidade estende-se
de geração em geração; fundaste a terra, e ela permanece. Conforme os teus
juízos, assim tudo se mantém até hoje; porque ao teu dispor estão todas as
coisas”.

A moral, os costumes e tabus de todas as culturas humanas mu-

dam de geração em geração. Em 1950, não chegava a 1 % a porcentagem da


população dos Estados Unidos que aprovaria o aborto. Ele era considerado um
pecado da pior espécie. Hoje vivemos do lado de cá da revolução moral dos anos
de 1960 na qual vício e virtude trocaram de lugar, mas o salmista amava a lei de
Deus e amava a Palavra de Deus porque a Palavra dele está firmada.

Com freqüência menciono minha reação à frase repetida constantemente: “Deus


disse. Eu creio. Está estabelecido”. Esse sentimento beira a blasfêmia. Para ser
uma afirmação realmente cristã, devemos dizer: “Deus disse, está estabelecido”.
Não importa se cremos ou não. Foi isso que o salmista compreendeu e disse que
[a palavra] está estabelecida no céu desde a eternidade.

Converso com cristãos que se afligem com o estado de sua alma, que não estão
certos de sua salvação, e lhes digo: “A prioridade das Escrituras é que tenhamos
certeza de nossa eleição. Resolvam isso”. Ajo assim porque nossa consistência
como cristãos está ligada à firmeza de nossa fé. A pessoa irresoluta é alguém
com duas mentes, uma pessoa instável em todos os seus caminhos e levada por
todo vento de doutrina. Não é isso que o salmista deseja. O salmista deseja uma
âncora para a alma e ama aquilo que firma essa âncora para ele. “Oh! Como amo
a tua lei porque está firmada no céu e estende-se de geração em geração”.

Como Maria expressou isso? Ela se regozijou na tradição que transmitia as


promessas de Deus de uma geração para a seguinte. Uma promessa feita em
primeiro lugar a Adão e Eva, uma promessa renovada com Abraão, Isaque e
Jacó, sobre aquele que deveria vir e esmagar a cabeça da serpente. Ele redimiria
seu povo.

Milênios se passaram e, finalmente, numa aldeia camponesa, sem nenhum aviso,


um visitante vindo da presença de Deus, chamado Gabriel, apareceu a uma
jovem camponesa e disse: “O Senhor é contigo” (Lc 1.28b). Enquanto tomava
consciência do anúncio, sob o ímpeto do Espírito Santo, ela cantou: “A minha
alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador,
porque contemplou na humildade da sua serva. Pois, desde agora, todas as
gerações me considerarão bem-aventurada” (Lc 1.46-48). E continuou dizendo:
“... a fim de lembrar-se da sua misericórdia a favor de Abraão” (vs. 54,55).

No passado, os sábios costumavam pensar que, quando estavam estudando


ciência, estavam, seguramente, estudando a mão invisível da Providência. Isaac
Newton acreditava que pensava os pensamentos de Deus. As leis da natureza
eram consideradas como evidências da obra dele. Hoje, em nossa arrogância
humana, pesquisamos as leis sem um Legislador e menosprezamos a lei de Deus.
O salmista diz: “Não fosse a tua lei ter sido o meu prazer, há muito já teria
perecido na minha angústia”.

Salmos 119.105 afirma: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e luz, para
os meus caminhos”.

Quando eu era menino, minha tarefa era ir até um armazém buscar o pão, pegar
a encomenda que minha mãe havia feito, ou ir à farmácia, à noite, buscar os
medicamentos para a família. Eu gostava muito de ir à farmácia à noite e fazer
hora no balcão onde eram servidas bebidas gasosas, mas depois que o sol se
punha, sempre sentia medo e tremor porque, para chegar até o armazém, eu
precisava atravessar o pomar dos Green. Para um garoto, aquele era um dos
lugares mais assustadores do oeste da Pensilvânia. Havia um caminho estreito
que atravessava o pomar coberto de árvores, uma das quais era um enorme
carvalho. No auge do inverno, quando seus galhos varavam a noite estrelada,
parecia que tinha braços enormes que ele poderia baixar e agarrar qualquer ga-
rotinho que corresse pelo pomar. Eu ficava apavorado quando precisava ir buscar
alguma coisa à noite. Fiz isso mil vezes, mas toda vez que me aproximava do
pomar era como passasse por um cemitério. O que eu desejava era uma lua
cheia, uma lanterna, uma lâmpada para os meus pés, uma luz para o meu
caminho.

A árvore nunca me machucou e nunca me agarrou. Mas tenho passado por outras
experiências como aquela no mundo e ainda preciso de uma lâmpada, ainda
preciso de uma luz. “Oh! Como amo a tua lei!”, porque a lei de Deus é um
espelho e um reflexo de sua santidade e de sua excelência. João Calvino
compreendeu claramente sua importância para o cristão do Novo Testamento
quando discutiu seu terceiro uso da lei, o caráter de revelação - de que a lei de
Deus revela para nós o que é agradável aos olhos do Pai. Quando um cristão diz:
“Não tenho de prestar nenhuma atenção à lei”, eu pergunto imediatamente:
“Você tem de

prestar atenção em como viver uma vida que agrade a Deus?”

Certa vez, fiz uma conferência em Nova York sobre “A Santidade de Deus”.
Concordei em ir à casa de um dos presentes, após o culto da noite, para um
momento de oração com outras vinte pessoas. Após os refrescos, eles disseram:
“Agora vamos ao nosso momento de oração”. Apagaram as luzes e
repentinamente começaram a orar aos parentes mortos.

Eu interrompi: “Esperem um minuto! O que significa isso?”

A resposta foi: “Essa é uma oração dirigida pelo Espírito e o Espírito nos
possibilitou fazer contato...”.

Eu indaguei: “Vocês sabem o que a Bíblia diz a esse respeito? Vocês não sabem
que no Antigo Testamento isso era uma ofensa capital? Deus descreve esse tipo
de comportamento como uma abominação pela qual, se não for punido, ele
amaldiçoará uma nação inteira”.

Eles responderam: “Sim, nós sabemos disso. Mas isso é Antigo Testamento. Não
fique preso à lei, Sproul”.

Eu retruquei: “O que aconteceu na história da redenção que se apropria de uma


prática que era totalmente repugnante para Deus, no Antigo Testamento, e agora
se transformou em algo que o agrada? Uma leitura superficial do Antigo
Testamento e uma compreensão também superficial da lei de Deus poderia tê-los
informado, imediatamente, de que isso é algo que Deus odeia”. Nós, cristãos,
devemos consultar até mesmo a lei do Antigo Testamento para saber o que
agrada a Deus.

O salmista amava a lei de Deus. Leia novamente o que ele escreveu: “Oh! Como
amo a lei!”. É assim que está escrito? O que eu mudei? O salmista diz: a “tua”
lei. Não podemos passar do pessoal para o impessoal, para uma lista de leis e
regulamentos abstratos. Ninguém, em Israel, estava morrendo de amores por
leis. O salmista diz: “Oh! Como amo a tua lei!”

Amavam a lei porque eles compreendiam que a lei revelava o Senhor a quem ela
pertencia. Se nós o amamos, então obviamente desejamos viver uma vida que o
agrade. Desejamos compreender que aquilo que ele diz é virtuoso. Amamos a lei
porque é a sua lei, porque amamos o Legislador. Como é possível amar a Deus e
odiar a sua lei? É exatamente isso que Jesus disse: “Se me amais, guardareis os
meus mandamentos”.

Salmos 119.140 diz: “Puríssima é a tua palavra; por isso, o teu servo a estima”.

“Oh! Como amo a tua lei!” Não há nenhuma impureza nela; não há nenhum erro
nela. Ela é pura e imaculada. Tudo o mais, todas as deliberações, todas as
introspecções, todas as opiniões dos homens que eu já examinei são falíveis. Não
existe nelas aquela qualidade de pureza, da pureza essencial, mas “A tua palavra
é pura, por isso eu a amo”.

“Pureza” é uma palavra que praticamente desapareceu de nossa língua. Onde


estão os puritanos de hoje que desejam um evangelho puro, a pura verdade, a
vida pura de obediência? Onde estão aqueles que buscam o favor de Deus acima
de todas as outras considerações?
Finalmente, em Salmos 119.142 lemos: “A tua justiça é justiça eterna, e a tua lei
é a própria verdade”. Cristo permanecia em pé diante de Pôncio Pilatos que
estava ali para julgá-lo. “Entendo que tem se dito que você é um rei. E isso
mesmo? Você é um rei?”

Jesus respondeu a Pilatos: “O meu reino não é deste mundo. Se... fosse... os
meus ministros se empenhariam por mim... Eu para isso nasci e para isso vim ao
mundo, a fim de dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve
a minha voz” (Jo 18,36,37).

Quando estava em julgamento, Jesus, nas palavras mais claras que poderia usar
para definir sua missão, a razão para vir ao mundo, escolheu descrevê-la da
seguinte forma: “Eu vim para dar testemunho da verdade”. Hoje vivemos numa
igreja que se incomoda menos com a verdade que com qualquer artigo. O amor à
verdade não é nem mesmo uma virtude; é um defeito, porque a verdade divide as
pessoas. A verdade causa controvérsia. A verdade causa debate. A verdade causa
transtorno aos relacionamentos. A verdade crucifica pessoas. Jesus afirmou:
“Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz” (Jo 18.37).

“Oh! Como amo a tua lei!”, porque “tua palavra é a verdade”. O homem que
escreveu essas palavras era como a árvore plantada junto ao ribeiro de água viva
cujos frutos não murcham e que dá frutos no devido tempo. Mas “os ímpios não
são assim, são como a palha que o vento dispersa”.

Os capítulos deste livro procuram mostrar o que significa, para os cristãos, amar
a lei de Deus. Amar a lei de Deus é amar a Deus. Todo

verdadeiro cristão deve amar a Deus. E, uma vez que amar a Deus é guardar (e
amar) seus mandamentos, então, todo verdadeiro cristão deve dizer como o
salmista: “Oh! Como amo a tua lei!”
Trapos sujos (da imundícia) ou perfeita justiça?

Alguém poderia pensar que os escritores bíblicos


eram banqueiros, advogados e alfaiates pela
freqüência das analogias e metáforas que
usavam ao descrever a obra salvadora de Deus.
Os cristãos têm “crédito” com justiça e
obediência de Cristo, assim como os “débitos”
de Adão foram “lançados” em sua conta. Ou, no
espírito do advogado, as Escrituras trabalham em
ambos os testamentos para firmar a idéia de que
o pecado é uma transgressão legal que requer
perfeita justiça e que o sacrifício propiciatório de
Cristo responde a esse dilema. Os crentes são,
portanto, “declarados justos” em um fórum.
Mas é uma terceira imagem (a do alfaiate) que oferece o rico mundo de
metáforas para a tarefa deste capítulo.

Vestindo roupas alheias

A metáfora do vestuário aparece nas primeiras páginas da Bíblia. Em sua


inocência, certamente, Adão e Eva estavam bastante satisfeitos com sua
constituição natural. Afinal, Deus os havia considerado “bons” e isso se referia
não meramente à excelência moral, mas também à beleza física. Dificilmente
considerado como objeto de vergonha e desgraça, o

corpo humano era mais esplendoroso que o templo de Salomão. Então veio a
revolta infame. Após descobrirem que, em vez de iluminados, es-tavam nus e
envergonhados, eles se voltaram para os próprios recursos. “Abriram-se, então,
os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira e
fizeram cintas para si” (Gn 3.7).

Conscientes da condição perdida, nossos primeiros pais não faziam idéia de


como reparar a situação. Tudo o que podiam ver eram as coisas externas,
sintomas da crise; daí as folhas de figueira. A criação dessa proteção caseira,
entretanto, não resolveu seu conflito interior, então Adão e Eva fugiram para a
floresta, saindo da presença daquele cuja proximidade, antes, havia sido um
deleite. Deus encontrou Adão e Eva e os colocou face a face com o problema
real. Não era apenas o fato de que estavam nus nem de que estavam
envergonhados. As pessoas podem se sentir envergonhadas sem serem culpadas,
mas aquilo era diferente. Então Deus prosseguiu seu julgamento. Com a leitura
dos autos e pronunciamento da sentença, a lei entrou em cena.

Se essa fosse a única palavra contida no pronunciamento de Deus, ela poderia


terminar em destruição total da raça humana; e Deus não era obrigado a dizer
nenhuma palavra. Não obstante, ele livremente escolheu prosseguir o julgamento
com a justificação, a sentença com a salvação. Em meio a essas terríveis
maldições está o proto-evangelho, o primeiro anúncio do evangelho: “Porei
inimizade entre ti e a mulher”, diz Deus à serpente, “entre a tua descendência e o
seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15).

Enquanto as folhas de figueira haviam simbolizado a autojustifi-cação, esse


anúncio evangélico é seguido de novas roupas: “Fez o SENHOR Deus vestimenta
de peles para Adão e sua mulher e os vestiu” (v. 21). É de eterno significado que
o que justificou Adão e Eva (cobriu os efeitos devastadores dos seus pecados)
não foi algo que Deus fez com eles, mas o que fez por eles, o que pôs sobre eles.

Quando Deus fez seu pacto com Abraão, o patriarca creu e foi justificado (Gn
15.6). A despeito da infidelidade de Abraão, e da infidelidade de seus filhos, o
pacto de graça de Deus segue seu curso. Deus é o único herói dessas histórias.
Após a estranha luta de Jacó com a manifestação do Senhor, ele finalmente
encetou seu retomo vitorioso a

Betei, onde Deus lhe aparecera em sonho, prometendo salvar Jacó, em


conformidade com seu juramento incondicional. E a resposta de Jacó, agora
como crente e não como conspirador, foi comandar toda a sua família, dizendo:
“Lançai fora os deuses estranhos que há no vosso meio, purificai-vos e mudai as
vossas vestes” (Gn 35.2b). Então eles se foram com ele até o altar em Betei e,
ali, adoraram a Deus com um sacrifício de substituição. Exatamente como Deus
havia substituído as folhas de figueira de nossos primeiros pais por vestes reais
de um animal sacrificado, assim o Israel revestido só poderia entrar em
segurança na presença de Deus vestido de perfeita justiça.

Por todo o Antigo Testamento o ato de Deus revestir seu povo pecador em sua
justiça é um tema recorrente. Jó clama: “Eu me cobria de justiça, e esta me
servia de veste” (Jó 29.14). O salmista se alegra: “Converteste o meu pranto em
folguedos; tiraste o meu pano de saco e me cingiste de alegria” (SI 30.11).
“Regozijar-me-ei muito no SENHOR”, exulta Isaías, “a minha alma se alegra no
meu Deus; porque me cobriu de vestes de salvação e me envolveu com o manto
de justiça, como noivo que se adorna de turbante, como noiva que se enfeita com
as suas jóias” (Is 61.10). Sem essa vestimenta real, a situação do pecador é de-
sesperadora: “Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças,
como trapo da imundícia” (Is 64.6a). Observe que não são apenas nossos atos de
desobediência, mas nossos atos de justiça também são descritos assim.

Uma cena particularmente marcante é encontrada em Zacarias

3.1-5:

Deus me mostrou o sumo sacerdote Josué, o qual estava diante do Anjo do


SENHOR, e Satanás estava à mão direita dele, para se lhe opor.

Mas o SENHOR disse a Satanás: O SENHOR te repreende, ó Satanás; sim, o SENHOR, que
escolheu a Jerusalém, te repreende; não é este um tição tirado do fogo?

Ora, Josué, trajado de vestes sujas, estava diante do Anjo.

Tomou este a palavra e disse aos que estavam diante dele: Tirai-lhe as vestes
sujas. A Josué disse: Eis que tenho feito que passe de ti a tua

iniqüidade e te vestirei de finos trajes.

E disse eu: ponham-lhe um turbante limpo sobre a cabeça. Puseram-lhe, pois,


sobre a cabeça um turbante limpo e o vestiram com trajes próprios; e o Anjo do
SENHOR estava ali.
Dadas as freqüentes aparições do “anjo do SENHOR” em contextos em que é
difícil imaginar que ele seja meramente um dos mensageiros celestiais, pode-se
concluir seguramente tratar-se aqui de uma referência ao Filho pré-encamado.
Isso também faz sentido à luz da revelação posterior, que o júri celestial consiste
do Juiz, do advogado de acusação (Satanás) e do advogado de defesa (Jesus). É o
Anjo do SENHOR quem dirige os servos a despirem Josué de seus trajes sujos e
vesti-lo de perfeita justiça. Somente assim seus pecados podem ser cobertos.
Lembremo-nos de que Josué era o sumo sacerdote de Israel, o único homem que
tinha permissão de entrar anualmente no Santo dos Santos com o sacrifício pelo
povo. Entretanto, ele estava vestido de “trapos sujos”, até que foi vestido com
vestes de salvação.

Mas essas imagens são conduzidas até seu cumprimento no Novo Testamento.
Ficamos admirados pela graciosidade do pai recebendo o filho pródigo, que
havia desperdiçado sua herança com prostitutas, em um país distante. Desejando
retomar como servo e não mais como filho à casa de seu pai, o filho, entretanto,
foi recebido com pura misericórdia. Embora o pródigo confessasse sua
indignidade de ser chamado filho, o pai pede a seus servos: “Trazei depressa a
melhor roupa, vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei
também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos” (Lc 15.22,23).
Na parábola das bodas, Jesus compara sua obra à de um rei que enviou seus
servos às ruas para convidar participantes para a recepção festiva.
“Entrando, porém, o rei para ver os que estavam à mesa, notou ali um homem
que não trazia veste nupcial.” Como Deus perguntando a Adão como soube que
estava nu, o rei pede ao cavalheiro: “Amigo, como entraste aqui sem a veste
nupcial?” Mudo, o homem é lançado fora, nas trevas (Mt 22.1-14).

Nas epístolas de Paulo, essa imagem é especialmente enfatizada. “Revesti-vos


do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13.14). “Pois todos vós sois

filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus; porque todos quantos fos-tes


batizados em Cristo de Cristo vos revestistes” (G1 3.26,27). Assim como a
Bíblia começa com essas ricas imagens, ela também termina com os santos
vestidos de vestiduras brancas e trajados na vitória de Cristo (Ap 3.18; 6.11).

A maior evidência de nossa natureza pecaminosa talvez não seja encontrada em


horríveis atos de imoralidade, violência ou ambição egoísta, mas no fato de que,
mesmo quando Deus nos oferece os trajes nupciais de justiça perfeita, nós
persistimos em nossa justificação. Quaisquer que sejam as folhas de figueira,
sejam elas feitas de terapia da auto-estima ou de enérgico moralismo, nós nos
recusamos a ver que nossos trapos sujos são insuficientes para nos colocar na
presença de um Deus santo. Como disse um grande puritano antigo: “Tentamos
cobrir sujeira com sujeira”.

Mas a maioria dos leitores deste volume não estará entre o vasto corpo de
homens e mulheres que hoje recusam o evangelho da graça livre. A doutrina da
justificação não será problema para a maioria dos leitores de um livro como este;
mas o usufruto dele, na vida cristã, é outra coisa. Um livro sobre a relação da fé
com a obediência provavelmente não é capaz de nos estimular a uma fidelidade
maior; ele poderá levar alguns ao desespero total. Mas esse é o efeito que tais
pensamentos devem ter em todos nós. Precisamos não apenas ouvir os apelos à
fidelidade, repetidas vezes, porque somos lentos para ouvir e obedecer;
precisamos ouvi-los como uma sentença divina até sobre as nossas melhores
obras como cristãos! Augustus Toplady estava bem certo ao lamentar
que mesmo as melhores coisas que fez em sua vida mereciam condenação.

Ouvimos chamados sérios para confiar e obedecer mas, antes de anelarmos


(pecadores que ainda somos), nós começamos a pensar que nossa fé e dedicação
são perfeitas (“perfeita submissão”, “entrega absoluta”, “vitória”, etc.) ou a fazer
uma avaliação mais acurada que nos leva a duvidar de nossa salvação por causa
das fraquezas de nossa fé e arrependimento. É justamente nesses momentos que
ficamos espantados por um renovado senso de nossa depravação que nos
prendeu de início, e é esse senso que nos leva, uma vez mais, ao nosso perfeito
Salvador, cuja imbatível justiça nos recobre. Nossa pobre fé e a corrupção
agarrada às

nossas melhores obras não podem condenar, porque a força de nossa fé e a


pureza de nossas ações não podem salvar. Mesmo a fé não pode salvar, ela pode
apenas estender as mãos vazias para receber a obediência e o mérito de um
perfeito Salvador.

Esse é um ponto importante, pois, mesmo onde muitos evangélicos têm resistido
às óbvias distorções e desvios, há uma tendência de incorporar uma sutil forma
de justiça de obras ao conceito da fé em si mesma. É essencial que não vejamos
a fé como algo derivando de nós, que de alguma forma possui uma qualidade
que substitui outras obras, talvez mais difíceis. A fé em si mesma não é de
nenhum modo uma virtude. Ela é, em questão de justificação, um instrumento de
recebimento, e não um instrumento de doação. Enquanto essa fé produz boas
obras, ela não é em si mesma uma boa obra que serve de base para uma
posição correta. É apenas Cristo quem salva, somente pela graça, somente
pela fé. Cristo é a base da salvação; a graça é o motivo; a fé é o
instrumento. Devemos resistir à tendência de ver a fé como a base de nossa
justificação em vez de justiça de Cristo.

Mas tal ensino não vai inibir a santidade?

Uma das mais notáveis ironias da história da igreja é que os períodos


especialmente marcados pelo temor de enfatizar o caráter objetivo, livre,
soberano e completamente gracioso da salvação são também os períodos mais
ímpios. O moralismo de Pelágio pode ter visto o agostinismo como uma rejeição
pérfida da instrução moral de Cristo; mas o pelagianismo falhou em produzir
piedade em qualquer geração. Como se não bastasse estar ele sob o anátema
divino por pregar outro evangelho - .que não é evangelho nenhum - essa religião
naturalista e moralista nunca procurou alcançar os resultados desejados,
“tendo forma de piedade, negando-lhe, entretanto, o poder” (2Tm 3.5). Pois o
poder da piedade é o mesmo que o poder de Deus para a salvação: o evangelho
da livre justificação pela imputação de uma justificação alheia (Rm 1.16).

Muitos “testemunhos” que um indivíduo ouve para se tornar cris-

tão, atualmente, podem ser dados por mórmons ou outros cujo estilo de vida tem
melhorado grandemente; mas onde está o evangelho? As boas-novas não são o
que acontece dentro de mim, mas o que aconteceu há dois mil anos por mim! O
que realmente importa é o relato de testemunhas oculares daquele evento, se é
que somos pessoas centradas no evangelho. Embora o evangelicalismo moderno
foque seu alcance no testemunho de “vidas transformadas”, em vez da vida,
morte e ressurreição do Deus-homem por nós, parece haver uma carência de
vidas transformadas. Perdemos o poder da espiritualidade, porque colocamos de
lado o poder de Deus para a salvação. Ao nos voltarmos do evangelho para
abordagens mais “práticas”, nós, além de deixarmos de honrar o evangelho,
sabotamos a única possibilidade de conversão genuína e de crescimento em
santidade.

Em nossos dias, a doutrina da justificação é mal conhecida - uma derrota


resultante da ignorância religiosa de nossa era. Mas é mais do que isso. Sempre
que a igreja esquece qualquer coisa que seja, é isto o que ela esquece: que Deus
a poupou não por causa da bondade dela, mas pela bondade dele (Dt 9.1-6). Na
medida em que setores terapêuticos e administrativos ameaçam banir as
categorias bíblicas do pecado e da graça, assistimos a tendência do coração
humano à ação. Todos desejamos uma divindade controlável, afável, fácil de
lidar, e isso tem sido verdade desde a Queda. Com certeza, todos cometemos
erros, mas se tivermos apenas bons exemplos para imitar e instruções práticas
para seguir, evidentemente nos adaptaremos! Recuperação, não redenção, é
a necessidade mais sentida no momento atual.

Tanto em minha vida quanto em meu ministério pastoral, a importância da


condição de termos essas verdades arraigadas no coração tem se comprovado
repetidas vezes. Por um lado, ainda somos pecadores, a despeito de quanto
tempo somos crentes. “Simultaneamente justificados e pecadores”, essa é a
condição em que se encontra o crente ao longo de todos os seus dias, até que a
santificação surja, jubilosa, em perfeita conformidade com a santa vontade de
Deus na celestial Terra Prometida. Como está no Catecismo de Heidelberg:
“Mesmo o melhor que façamos nesta vida é imperfeito e manchado de pecado”
(pergunta 62). Mas essa perspectiva está se esvaindo em muitos círculos cristãos,
em razão de

uma estranha combinação de antinomianismo místico e perfeccionismo


(especialmente em relação às influências da sorrateira “Vida Superior”).

O professor de seminário batista E. Glenn Hinson adverte quanto a “um


imperialismo da teologia paulina” no ensino reformado clássico. O problema
com os que defendem essa perspectiva é que eles “ainda se apegam ao conceito
jurídico de Lutero” e ignoram “a posição tradicional católica de que a
justificação envolve a transformação do pecador”. O perigo desse “conceito
reformado” é que ele adota “uma visão estreita da graça, considerando-a como
algo dado, e não como o Deus vivo tomando nossa vida e transformando-nos”.1
De modo semelhante, o professor Russell R Spittler, do Seminário Fuller,
pergunta: “Mas será que pode ser verdade - santo e pecador simultaneamente?
Eu gostaria que assim fosse... E espero que seja verdade! Simplesmente temo
que não seja”.2 O professor Laurence W. Wood, do Seminário Asbury,
acrescenta que “justificação é libertação dos atos do pecado”, “uma infusão do
amor divino”. “Por conseguinte”, ele argumenta, “«o final seremos justificados
se, por meio da fé e da obediência, tivermos assim conduzido a nossa vida”.3

O que encontramos repetidamente dentro dos círculos evangélicos dominantes é


a crescente aceitação de conceitos que, na melhor das hipóteses, são
reavivamentos dos erros de Roma e, na pior, representam noções explicitamente
pelagianas. A citação do professor Wood é um sério exemplo do primeiro caso.
Exemplos do segundo caso podem ser encontrados em Clark Pinnock e seus
colaboradores, que trabalham, agora, num projeto de eliminação radical de
vestígios não só da teologia protestante clássica, mas também do agostinismo.4

Mas isso está acontecendo no nível acadêmico. Muitos dos cristãos, atualmente,
de maneira semelhante aos leigos medievais, são simplesmente deixados na
ignorância, enquanto sermões sobre auto-estima, estresse e sucesso aprofundam
o narcisismo da “geração eu”. Oitenta e quatro por cento dos evangélicos
confessos sustentam que “Deus ajuda aqueles que se ajudam”, coisa que faz
sentido quando se sabe que 77% acreditam que os seres humanos são
basicamente bons. Na teologia evangélica, quaisquer que sejam as revisões
detalhadas que possam ser necessárias nos seminários, parece que a dieta de
pregação, evangeliza-

ção, culto, discipulado, publicação e comunicação de massa favorece essa


“megamudança”. Se o pelagianismo é a religião do homem natural, como B. B.
Warfield insistia, não deveria ser surpresa nenhuma que isso esteja se tomando o
credo não oficial de uma igreja sem credo e sem pensamento.

E nós? Como estamos executando nossos deveres, nós que nos consideramos
herdeiros dos apóstolos, de Agostinho e dos puritanos? Que a justificação é útil
para sermos assentados com Deus em primeiro lugar é uma coisa certa. Todavia,
com muita freqüência, paramos aí, mudando para outras doutrinas para guiar a
vida cristã. Na verdade, somos comissionados a pregar toda a deliberação de
Deus, e não pode haver nenhum crescimento genuíno em Cristo, a não ser que
entendamos o novo nascimento, santificação, união com Cristo, ministério da
Palavra e sacramento e deveres práticos. É importante que não apenas
algumas, mas todas as doutrinas da salvação sejam restabelecidas, antes que
um avivamento genuíno possa acontecer e produza, pelo poder do
Espírito Santo, homens e mulheres que estejam crescendo para o discipulado
maduro. Não obstante, a justificação precisa ser mais que o centro de
nosso modo de entender como somos inicialmente aceitos por Deus, ela
não pode nunca ser movida para a periferia nas discussões da vida cristã.

Em muitos casos, tenho ouvido as pessoas dizerem que houve graça para elas no
início, quando se tomaram cristãs, mas que agora não têm tanta certeza disso.
Deus me salvou como pecador, mas será que ele ainda me salva como um
pecador? Especialmente nos planos de “vida cristã vitoriosa”, em que a morada
do Espírito Santo é simplificada a favor de um tipo de perfeccionismo místico,
muitos chegam a crer (implicitamente, pelo menos) que foram justificados
somente pela graça, por meio da fé somente no início, mas agora não estão
seguros. Assim, voltam aos andrajos das folhas de figueira e argumentos.

Se “o melhor que podemos fazer nesta vida é imperfeito e manchado pelo


pecado”, teríamos condição de trocar nossa confiança no favor de Deus da
justificação para a santificação? Embora nosso crescimento em santidade, com
freqüência, nos ofereça preciosos indícios da graça perseverante de Deus em
nossa vida, isso seria suficiente para ancorar nossa confiança? Como disse
Calvino:

Como nenhuma perfeição pode ser atribuída a nós nesta vida, e a lei, ademais,
pronuncia morte e julgamento sobre todos aqueles que não mantêm perfeita
justiça em suas obras, ela sempre terá base para nos acusar e condenar a não ser
que, ao contrário, a misericórdia de Deus se contraponha e por seu contínuo
perdão de pecados repetidamente nos absolva.5

Uma distinção sem a qual não podemos

viver nem crescer

Aqui somos novamente auxiliados pelas categorias bíblicas restauradas pelos


reformadores e puritanos. No centro da hermenêutica reformada estava a
distinção entre lei e evangelho. Para os reformadores, essa distinção não era
equivalente a Antigo Testamento e Novo Testamento respectivamente, ao
contrário, ela significava, nas palavras de Theodore Beza, que: “Dividimos essa
Palavra em duas partes ou tipos principais: uma é chamada a lei, a outra,
evangelho. Pois tudo o mais pode ser reunido sob um desses dois tópicos”. A lei
“é escrita pela natureza em nosso coração”, ao passo que “o que chamamos
evangelho (boas-novas) é uma doutrina que de modo nenhum se encontra em
nós naturalmente, mas nos é revelada do céu” (Mt 16.17; Jo 1.13). A lei nos leva
a Cristo no evangelho, nos condenando e nos levando ao desespero por nossa
“justiça”. “A ignorância sobre essa distinção entre lei e evangelho”, escreve
Beza, “é uma das principais fontes de injúria que corrompeu e ainda corrompe o
Cristianismo”.6
Lutero tomou essa prática hermenêutica central, mas ambas as tradições da
Reforma Protestante declaram, unanimemente, essa dis-tinção-chave. Em grande
parte da pregação medieval, lei e evangelho eram tão confundidos que “boas-
novas” parecia significar que Jesus era um “Moisés mais bondoso e gentil” que
abrandara a lei, transformando-a em exortações mais leves como amar a Deus e
ao próximo de todo o coração. Segundo a percepção dos reformadores, Roma
ensinava que o evangelho era simplesmente uma “lei” mais simples do que
aquela apresentada no Antigo Testamento. Em vez de seguir uma grande

quantidade de regras, Deus espera apenas amor e submissão. Calvino replicou:

Como se pudéssemos pensar em algo mais difícil do que amar a Deus de todo o
nosso coração, de toda a nossa alma e com toda a nossa força! Comparado a essa
lei, tudo o mais poderia ser considerado fácil ... [Pois] a lei não podia fazer nada
mais senão acusar e culpar tudo ao homem, condená-lo e, por assim dizer,
prendê-lo; em punição, condená-lo ao julgamento de Deus: de modo que apenas
Deus pudesse justificar, que toda carne pudesse guardar silêncio diante dele.7

Assim, observa Calvino, Roma podia considerar o evangelho apenas como


aquilo que capacita o crente a se tomar justo pela obediência e que aquilo é “uma
compensação pela sua falta”, não percebendo que a lei requer perfeição, não
aproximação.8

Claro, ninguém alega ter chegado à perfeição, mas, diz Calvino, muitos alegam
“ter se submetido completamente a Deus, [alegando que] guardaram a lei em
parte, e que, em respeito a essa parte, são justos”.9 Apenas o terror da lei pode
nos abalar dessa autoconfiança. Assim, a lei condena e nos leva a Cristo de
modo que o evangelho possa nos confortar sem ameaças ou exortações que nos
poderiam levar à dúvida. Em um de seus primeiros escritos, Calvino defendeu a
distinção evangélica entre lei e evangelho:

Tudo isso será prontamente compreendido pela descrição da lei e descrição do


evangelho e, a seguir, comparando-as. Portanto, o evangelho é a mensagem, a
proclamação que traz a salvação concernente a Cristo, de que ele foi enviado por
Deus, o Pai... para obter vida eterna. A lei está contida em preceitos; ela ameaça,
ela oprime, não promete nenhuma boa vontade. O evangelho age sem ameaças;
ele não nos dirige por preceitos, mas, ao contrário, nos ensina a respeito da
suprema boa vontade de Deus para conosco. Portanto, permitam, a quem quer
que esteja desejoso de ter plena e honesta compreensão do evangelho, que teste
tudo por meio das descrições sobre a lei e o evangelho supra. Aqueles que não
seguem esse método de tratamento nunca estarão adequadamente versados na
filosofia de Cristo.10

Enquanto a lei continuar a guiar os crentes na vida cristã, Calvino insiste que ela
não poderá nunca ser confundida com as boas-novas. Mesmo após a conversão,
o crente está em desesperada necessidade do evangelho porque ele lê os
mandamentos, as exortações, as ameaças e as advertências da lei e, muitas vezes,
hesita em sua verdadeira confiança porque não vê em si mesmo a retidão que é
requerida. Eu realmente me submeti? Será que eu me entreguei
verdadeiramente em todas as áreas da minha vida? E se eu não experimentei o
mesmo que outros cristãos consideram normativo? Será que eu realmente possuo
o Espírito Santo? E se eu cair em algum pecado sério? Essas são perguntas que
todos nós encontramos no ministério pastoral assim como em nossa vida. O
que poderá restaurar nossa paz e esperança diante de tais questões? Os
reformadores, com os profetas e apóstolos, estavam convencidos de que apenas
o evangelho poderia trazer conforto para o cristão que se debate.

Sem essa ênfase constante na pregação, nunca ninguém conseguirá adorar


verdadeiramente a Deus nem servi-lo com liberdade; seu olhar estará fixado
sobre si mesmo em desespero ou autojustificação em vez de em Cristo. Lei e
evangelho, ambos devem ser pregados sempre, tanto para convicção quanto para
instrução; contudo, afirma Calvino, a consciência nunca descansará enquanto o
evangelho estiver misturado com a lei. “Por conseguinte, esse evangelho não
impõe nenhum mandamento, mas, ao contrário, revela a bondade de Deus, sua
misericórdia e seus benefícios.”11 Essa distinção, afirma Calvino com Lutero e
outros reformadores, marca a diferença entre o Cristianismo e o paganismo.
“Todos aqueles que negam isso viram o evangelho inteiro de cabeça para
baixo; enterram completamente a Cristo e destroem toda a verdadeira adoração a
Deus.”12

Ursino, o principal autor do Catecismo de Heidelberg, disse que a distinção


entre lei e evangelho “compreende o todo e a essência das Sagradas Escrituras”,
e se constitui “na divisão principal e geral das Sagradas Escrituras e encerra toda
a doutrina contida nelas”.13

Confundir lei e evangelho é corromper a fé no seu âmago.14 Embora a lei deva


ser pregada como instrução divina para a vida cristã, ela nunca deveria ser usada
para abalar os crentes em sua confiança de que Cristo é sua “justiça, e
santificação, e redenção” (ICo 1.30). O crente

busca a lei e ama essa lei em razão da sabedoria divina desta, pois ela revela a
vontade daquele com quem estamos agora reconciliados por meio do evangelho.
Mas o crente não pode encontrar perdão, misericórdia, vitória nem mesmo
capacidade para obedecê-la buscando a lei em si mesma, mais depois de sua
conversão do que antes. Não obstante, será sempre a lei que ordena e o
evangelho que doa. Essa é a razão por que todo sermão deve ser cuidadosamente
formulado sobre essa distinção fundamental.

Ao observar a Igreja Batista da Inglaterra dar lugar ao moralismo na assim


chamada “Controvérsia Decadente”, Charles Spurgeon declarou:

Não há nenhum ponto a respeito do qual o homem cometa erros maiores do que
a respeito da relação existente entre lei e evangelho. Alguns propõem a lei em
vez do evangelho, outros propõem o evangelho em vez da lei. Certos grupos
declaram que a lei e o evangelho estão misturados... Esses homens não
compreendem a verdade e são falsos mestres.15

Em nossos dias, esses grupos se encontram mais uma vez confusos até mesmo
nas igrejas mais conservadoras. Mesmo onde grupos de psicologia, marketing e
política não substituem a lei e o evangelho, muitos pregadores evangélicos, hoje,
suavizam a lei e confundem o evangelho com exortações, deixando, muitas
vezes, os ouvintes com a impressão de que Deus não espera a perfeita justiça
descrita peta lei, mas uma atitude geral de bondade e esquiva de pecados
maiores. Apesar de uma afirmação geral das doutrinas evangélicas, em grande
parte da pregação evangélica atual prevalece um moralismo polido e cortês, e
raramente ouvimos a lei pregada como a condenação e a ira de Deus, mas sim
como sugestões úteis para uma vida mais abundante.

Algumas vezes, esse erro se deve menos à convicção do que a uma falta de
precisão. Por exemplo, com freqüência ouvimos convites para “viver o
evangelho”, entretanto, em nenhum ponto das Escrituras somos chamados a
“viver o evangelho”. Ao contrário, somos instados a crer no evangelho e a
obedecer a lei, recebendo o favor de Deus de um e a direção de Deus da outra. O
evangelho - ou boas-novas - não é a afirmação de que Deus nos ajudará a
alcançar o seu favor por meio de

seu auxílio, mas que alguém viveu a lei em nosso lugar e cumpriu toda a justiça.
Outros confundem a lei e o evangelho substituindo as exigências da lei por um
mandamento simples de “entregar tudo” ou “fazer de Jesus seu Senhor e
Salvador”, como se essa pequena obra assegurasse a vida eterna. No começo do
século 20, J. Gresham Machen declarou:

De acordo com o liberalismo moderno, fé é essencialmente o mesmo que “fazer


de Jesus o senhor” da vida de alguém... Mas isso simplesmente significa que a
salvação é interpretada como sendo obtida por nossa obediência aos
mandamentos de Cristo. Essa instrução é apenas uma forma sublimada de
legalismo.16

Em outro trabalho, Machen acrescentou:

Que proveito eu teria dizer que o tipo de religião que a Bíblia apresenta é um
tipo muito especial e fino de religião e que a coisa certa para eu fazer seria
começar imediatamente a praticá-la?... Eu lhe direi, meu amigo. Isso não me
faria nem um pouco bem... O que necessito, antes de qualquer coisa, não é
exortação, mas do evangelho, não de orientação para salvar a mim mesmo, mas
do conhecimento de como Deus me salvou. Você tem alguma boa-nova? Essa é a
pergunta que lhe faço. Sei que suas exortações não irão me ajudar. Mas se
alguma coisa já foi feita para me salvar, você poderia me contar o que foi?17

Isso quer dizer que a Palavra de Deus não exige nossa obediência, ou que tal
obediência é opcional? Certamente que não. Mas significa que a obediência não
deve ser confundida com o evangelho. Nossa melhor obediência é corrompida,
portanto, como ela poderia ser boa-nova? O evangelho é a proclamação de que
Cristo foi crucificado por nossos pecados e ressuscitou para a nossa justificação.
O evangelho produz vida nova, novas experiências, e uma nova obediência, mas,
com muita freqüência, nós confundimos os frutos ou efeitos com o próprio
evangelho. Nada daquilo que acontece dentro de nós é o “evangelho”
propriamente

dito, mas o efeito do evangelho. Assim Paulo nos instrui: “Vivei, acima de tudo,
por modo digno do evangelho de Cristo” (Fp 1.27). Enquanto o evangelho não
contém nenhum tipo de ordem ou ameaças, a lei, de fato, contém, e o cristão
ainda tem compromisso com essas duas palavras que ouve da boca de Deus.
Assim como a Trindade, ou as duas naturezas de Cristo, não devemos nem
separar, nem confundir lei e evangelho.
Quando promessas gentis suavizam a lei e condições e exortações endurecem o
evangelho, o crente, muitas vezes, se descobre num estado deplorável. Como já
vimos, para os que conhecem o próprio coração, a pregação que tenta abrandar a
lei, por meio da asseveração de que Deus olha para o coração, os atinge como
má notícia, não boas-novas: “Enganoso é o coração, mais do que todas as
coisas” (Jr 17.9). Muitos cristãos têm experimentado uma confusão de lei e
evangelho em seu sustento, na qual o evangelho era livre e incondicional quando
se tomaram cristãos, mas agora foi empurrado para o fundo para dar lugar a uma
ênfase quase exclusiva em exortações. Novamente, não estamos dizendo que as
exortações não tenham o seu lugar, mas elas nunca devem ser confundidas com o
evangelho; e o evangelho do perdão divino é tão importante para os ouvidos dos
crentes pecadores quanto para os não-crentes. Nós também não devemos aceitar
que os crentes irão progredir sempre depois do estágio em que tenham
necessidade de ouvir o evangelho, como se as boas-novas terminassem com a
conversão. Pois, como disse Calvino: “Somos parcialmente não crentes ao longo
de toda a nossa vida”. Precisamos ouvir constantemente a promessa de Deus
para contrabalançar as dúvidas e medos que são naturais em nós.

Mas há muitos, especialmente em nossa era narcisista, cuja ignorância da lei os


leva a uma segurança carnal. Assim, as pessoas, com freqüência, concluem que
estão “a salvo e seguras contra qualquer alarme” porque foram à frente [na
igreja] em resposta a um apelo, fizeram uma oração, ou assinaram um cartão,
embora nunca tenham precisado abandonar suas folhas de figueira para serem
revestidas da justiça do Cordeiro de Deus. Ou, talvez, embora elas não tenham
amado perfei-tamente a Deus e ao próximo, concluem que estão pelo menos
“submissas”, “dóceis” ou “permitindo que o Espírito as dirija”; ou, ainda mais
audaciosamente, que estão “vivendo em vitória sobre todo pecado

conhecido” e apreciando a “vida superior”. Iludindo a si mesmas e aos outros,


essas pessoas necessitam ser despidas de suas folhas de figueira para serem
revestidas com a pele do Cordeiro de Deus. Assim escreve Machen:

Uma nova e mais poderosa proclamação da lei é, talvez, a necessidade mais


premente do momento; as pessoas teriam menos dificuldade com o evangelho se
ao menos tivessem aprendido a lição da lei. Assim como está, estão se afastando
do caminho cristão; estão se encaminhando para a vila da Moralidade, para a
casa do Sr. Legalidade, que é conhecido como alguém muito capaz de aliviar
as pessoas de seus fardos... “Fazer de Cristo o Senhor” na vida, colocar em
prática “os princípios de Cristo” pelos próprios esforços - essas são apenas novas
maneiras de ganhar a salvação pela obediência aos mandamentos de Deus. E elas
são assumidas por causa de uma visão negligente do que são esses
mandamentos. E assim é sempre: uma visão menor da lei sempre traz legalismo
à religião; uma visão maior da lei faz do homem alguém que busca a graça.18

A ironia da vida cristã é que a força propulsora de nossa santificação é


exatamente o oposto do que a natureza humana poderia aconselhar. A religião
natural insiste em que devemos ser levados às boas obras pelo medo da punição
ou pela esperança de recompensa, enquanto a fé bíblica declara que o anúncio da
justificação unicamente pela graça, independentemente das obras, é que leva às
boas obras. O que poderia ser mais obviamente falso para a sabedoria humana?
Certamente uma obsessão com “fé somente” levará à presunção e à licença,
raciocinamos nós. E, decerto, cristãos professos mas não regenerados
utilizarão o evangelho exatamente com esse propósito (Jd 4). Entretanto, quer
legalistas, quer antinomianos seguem as hipóteses da razão natural
nesta questão: ambos crêem que a graça leva à licenciosidade porque
nenhum deles compreendeu verdadeiramente o poder de santidade que existe
no evangelho.

John Murray sabiamente escreve que a lei não é só incapaz de prover


justificação: “A lei não pode fazer nada para aliviar a escravidão

do pecado, ela acentua e confirma essa escravidão”, de modo que “há uma
absoluta antítese entre o poder e as provisões da lei e o poder e as provisões da
graça”.19

Outra forma de ajudar a demonstrar esse ponto é seguir a distinção entre o modo
indicativo e o modo imperativo. O indicativo nos diz aquilo que já é verdade a
nosso respeito, enquanto o imperativo se refere às obrigações que temos à luz
daquela verdade. Na maioria dos casos, a mudança do modo indicativo para o
imperativo é anunciada pela conjunção “portanto”. Em Romanos, capítulo 6, por
exemplo, le-mos que somos sepultados com Cristo no batismo e ressuscitados
com ele para uma nova vida. Não somos ordenados a morrer, a “entregar tudo a
Deus” a “entregar tudo diante do altar”, ou a conquistar a vitória. Apenas somos
informados de que Deus já nos enterrou com Cristo e nos ressuscitou em
novidade de vida. Ele nos deu um coração novo e colocou dentro de nós o seu
Espírito, cumprindo as expectativas proféticas. Assim, na segunda metade do
capítulo 6, nos é dito para apresentar nosso corpo a Deus em serviço santo. O
imperativo se segue ao indicativo em vez de levar a ele.
A não ser que nossa confiança nessa novidade de vida que já nos foi assegurada
nos leve outra vez à autoconfiança ou ao triunfalismo, Paulo prossegue, no
capítulo 7 de Romanos, descrevendo a verdade do pecado interior e a luta
constante que é a santificação. Nas Escrituras, não é a ausência da luta contra o
pecado, mas é a presença dessa luta contra o pecado que se toma a marca
característica e a evidência da santificação. Quando as pessoas concluem que,
provavelmente, não são verdadeiramente convertidas porque ainda lutam contra
o pecado residente, elas estão, de fato, confirmando seu chamado! Não é o não-
regenerado que luta contra sua pecaminosidade (ICo 2.14), mas o crente, como
observa Paulo. Ele ama a lei de Deus e se submete ao seu conselho,
mas descobre outro fator trabalhando em sua vida: o pecado residente. É
essa batalha que garante santificação progressiva em vez de imediata.
Paulo expressa uma profunda insatisfação com sua santificação, sua alma
é novamente restaurada quando levanta seu olhar de si mesmo e o focaliza em
Cristo (Rm 7.24,25).

Assim, o total de nossa vida cristã é um processo constante de

descoberta do julgamento e da justificação de Deus, movendo-nos da auto-


aversão para olhar “firmemente para o Autor e Consumador da fé” (Hb 12.2).
Sermos despidos de nossas folhas de figueira e sermos revestidos por Cristo é
um processo constante. Alegremente aceitando o novo coração e a nova vida que
são nossos em Cristo pelo poder da habitação do Espírito, lutamos firmemente
contra o pecado interior sem jamais desesperar, apesar de nossos fracassos e
fraquezas, porque nosso Capitão já venceu a guerra que põe fim a todas as
guerras. Portanto, sigamos lutando!
Obediência: amor ou legalismo?

Alguns anos atrás escrevi um livro que se tomou


motivo de grande controvérsia. O livro, The Gospel
According to Jesus, argumentava que Jesus é apresentado nos evangelhos tanto
como Salvador quanto Senhor, e que ele exige obediência. Para ser
preciso, Jesus, na verdade, nunca é apresentado na Bíblia como “Salvador e
Senhor”, mas sempre como “Senhor e Salvador”. Logo, aqueles que
permanecem obstinadamente relutantes em obedecê-lo são, certamente, culpados
de rejeitar o Cristo que é oferecido nos evangelhos. Também, a pessoa que
afirma aceitar Jesus como seu Salvador enquanto persiste em recusar seu
senhorio, na verdade rejeitou o verdadeiro Cristo e, por conseguinte, não é cristã.

Isso, sem dúvida, não é nada mais, nada menos que a linha central do
evangelicalismo tem, historicamente, afirmado. Praticamente todos os
pronunciamentos de fé importantes dentro do Protestantismo dizem exatamente
a mesma coisa. No Breve Catecismo de Westminster, por exemplo, a questão 86
é: “O que é fé em Jesus Cristo?” E a resposta: “Fé em Jesus Cristo é uma graça
salvadora, pela qual o recebemos e confiamos só nele para a salvação, como ele
nos é oferecido no evangelho” (grifo nosso). A questão 87 segue definindo
arrependimento para a vida como “uma graça salvadora, pela qual o pecador,
tendo uma verdadeira

consciência de seu pecado e percepção da misericórdia de Deus em Cristo, se


enche de tristeza e de aversão pelos seus pecados, os abandona, e volta para
Deus, inteiramente resolvido a prestar-lhe nova obediência” (grifo nosso).

Nossa obediência não nos toma merecedores de salvação, é claro. Mas a


conversão genuína a Cristo, inevitavelmente, produz obediência. Portanto,
embora a obediência nunca seja uma condição para a salvação, todavia, ela é
sempre fruto da salvação. Essa é a razão pela qual as Escrituras falam da
obediência como uma evidência essencial do verdadeiro Cristianismo: “Aquele
que diz: Eu o conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele
não está a verdade” (1 Jo 2.4). “Nisto são manifestos os filhos de Deus e os
filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça não procede de Deus” (3.10).
“Aquele que pratica o bem procede de Deus; aquele que pratica o mal jamais viu
a Deus” (3Jo 11b).

Obedecemos por amor ou por dever?

Em meio à controvérsia sobre esse assunto, um colega pastor me escreveu:

Caro John,

Sou solidário com sua postura sobre o senhorio de Cristo. Você está certo
quando ensina que o evangelho chama pecadores ao arrependimento e clama à
obediência a Cristo como Senhor. Seu senhorio é tão crucial para a mensagem do
evangelho quanto sua divindade. De fato, como você demonstrou, sua divindade
e seu senhorio são tão inextricavelmente ligados que um Cristo que não é Senhor
de tudo não é o Cristo que salva. A noção moderna de que o pecador
pode rejeitar a Cristo como Senhor, mas pode recebê-lo como Salvador, é
estranha a todos os credos históricos. No meu entendimento, toda mensagem que
exclua o senhorio de Cristo não é, de modo nenhum, evangelho.

Se você me permite, entretanto, gostaria de colocar uma crítica que,

espero, considere útil, não ofensiva: observo que você apresenta a obediência
cristã como um dever. Você sempre cita passagens que falam do cristão como
um escravo, como se isso significasse que somos escravos abjetos de Cristo. Sua
ênfase é colocada na autoridade do Senhor para exigir obediência. E, portanto,
você fala de obediência como uma obrigação à qual o crente está amarrado.

Percebo uma ênfase diferente nas Escrituras. A fé trabalha por meio do amor (G1
5.6). O cristão obedece a Cristo em razão de seu amor por ele. Obediência, para
o cristão, não é tanto um dever quanto um prazer. Os crentes obedecem porque
nisso encontram sua satisfação, não porque são obrigados a fazê-lo.
Obedecemos por amor a Cristo, não por medo ou por obrigação. Creio que essa
perspectiva é essencial para uma vida cristã cheia de alegria. E faz toda a
diferença entre legalismo e verdadeiro Cristianismo.

Sinceramente, apreciei os comentários desse homem. E concordo que é possível


colocar tanta ênfase sobre a obrigação de obedecer que perdemos de vista a
alegria de fazê-lo. Afinal, a obediência cristã deveria ser um prazer. O amor a
Cristo é um motivo mais elevado que o medo. Portanto, certamente há uma
verdade real no que esse pastor escreveu.
No entanto, o perigo de colocar uma ênfase demasiada é real para ambos os
lados dessa verdade. Está muito certo dizer: “obedecemos por amor a Cristo... e
não por dever”. Dever e amor não são motivos incompatíveis. Um pai provê o
necessário para seus filhos porque os ama. Mas esse é, também, seu dever moral
e legal. O fato de que um pai ama seus filhos não diminui seu dever para com
eles. Quanto mais ele os ama, mais ele considerará o dever uma alegria e não um
trabalho enfadonho, uma labuta. E mesmo quando o dever é uma alegria, esta
não deveria enfraquecer o solene senso de dever do pai.

Nossa obediência a Cristo se assemelha a isso. Certamente, devemos obedecê-lo


em razão do profundo amor que temos por ele. E a simples alegria de agradá-lo
deveria permear nossa obediência. Entretanto, nunca deveríamos pensar em
obediência como algo menor que um dever sagrado. Nosso amor a Cristo não
transforma nossa submissão a ele

em algo opcional. Cristo ainda é nosso Mestre, e nosso relacionamento com ele
acarreta uma grande responsabilidade. Devemos servi-lo como servos devotados
e amorosos. “Escravos abjetos”, provavelmente, não é um termo tão forte.

O próprio Jesus enfatizou exatamente isto:

Qual de vós, tendo um servo ocupado na lavoura ou em guardar o gado, lhe dirá
quando ele voltar do campo: Vem já e põe-te à mesa? E que, antes, não lhe diga:
Prepara-me a ceia, cinge-te e serve-me, enquanto eu como e bebo; depois,
comerás tu e beberás? Porventura, terá de agradecer ao servo porque este fez o
que lhe havia ordenado? Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos
foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que
devíamos fazer (Lc 17.7-10).

Essa ilustração pinta um retrato claro do tipo de servidão que devemos


apresentar a Cristo como seus servos.

Mas isso é apenas metade do quadro. O Senhor também nos chama para a
obediência do amor: “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo
14.15). E ele elevou aqueles que obedeciam à condição de amigos:

Vós sois meus amigos, se fazeis o que eu vos mando. Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas tenho-vos chamado amigos,
porque tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer (Jo 15.14,15).
Obviamente nosso Senhor encarava nosso amor por ele e nosso dever para com
ele como motivos para a obediência, que estão inextricá-vel e necessariamente
ligados: “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me
ama” (Jo 14.21). “Se guardares os meus mandamentos, permanecereis no meu
amor; assim como também eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai e no
seu amor permaneço” (Jo 15.10).

Longe de ser uma labuta enfadonha, a obediência cristã é o víncu-

lo de nosso relacionamento com Cristo e a fonte de nossa mais profunda alegria.


E o fato de que somos obrigados a nos submeter ao seu senhorio não deveria
nunca alterar a alegria que encontramos em proceder assim.

Sem dúvida, porque ainda somos criaturas carnais, nossa obediência nem sempre
é prazerosa. E assim devemos compreender que, mesmo quando nosso coração
não está transbordando de alegria pelo Senhor, a obediência continua sendo um
dever. Devemos obedecer quando isso nos traz prazer, mas também devemos
obedecer quando não sentimos vontade de fazê-lo. Tanto nosso amor pelo
Senhor, quanto nosso senso de dever para com ele devem motivar nossa
obediência. Um não deveria nunca eliminar o outro.

Temo que a igreja, em nossa geração, esteja perdendo de vista o papel do dever
na vida cristã. Multidões consideram o “dever” como algo completamente
estranho ao Cristianismo. A obediência aos mandamentos de Cristo é
considerada opcional. Se ousar sugerir que a obediência é obrigatória, você será
acusado de legalista.

“Não estamos sob a lei, mas sob a graça” tem se tomado o lema do Cristianismo
moderno. Mas muitos dos que apregoam essa frase hoje em dia querem dizer
algo dramaticamente diferente daquilo que o apóstolo Paulo intentou dizer em
Romanos 6.14 quando escreveu: “pois não estais debaixo da lei, e sim da graça”.

Em que sentido estamos livres da lei quando nos encontramos sob a graça?

A frase “sob a lei” ocorre pelo menos dez vezes nas epístolas de Paulo e,
portanto, sabemos que esse é um conceito importante em sua teologia. Em
Gálatas 3.23, por exemplo, ele escreve: “Mas, antes que viesse a fé, estávamos
sob a tutela da lei”. No entanto, em Gálatas 5.18 ele afirma: “...se sois guiados
pelo Espírito, não estais sob a lei” (grifos nossos).
Com freqüência, ouço cristãos recitando a frase: “Não sob a lei, mas sob a
graça”, como se isso significasse que nenhum padrão de lei,

qualquer que seja ele, será obrigatório para os cristãos. A graça é vista como uma
vasta permissibilidade, em contraste com o padrão moral intransigente da lei.
Certo homem escreveu:

De acordo com Paulo, não estou sob a lei. Isso tem conseqüências práticas
radicais para a minha vida cristã. Significa que não preciso me preocupar com a
lei e julgar a minha vida por ela. A lei tinha um padrão negativo. Estava cheia de
proibições e punições. A graça é o oposto. Está cheia de estímulos positivos e
promessas. Qual deles você preferiria ter como regra de vida? Eu vivo sob a
graça, não sob a lei. E isso significa que todas as vezes que a lei traz sua
mensagem negativa - quando ela diz: não farás - isto não se aplica a mim.

A noção de que nenhuma lei é obrigatória para o cristão é uma forma clássica de
antinomianismo. Esse tipo de concepção coloca a graça contra a lei, como se as
duas fossem antitéticas. E há algumas terríveis conseqüências teológicas.

E absolutamente importante compreender que, em relação aos padrões morais, a


graça não permite o que a lei proíbe. Graça nunca significa o rebaixamento das
exigências morais de Deus. A palavra “graça”, nas Escrituras, significa muitas
coisas, mas licenciosidade não é uma delas. Na realidade, aqueles que
transformam a graça de Deus em promiscuidade são expressamente condenados
como falsos mestres (Jd 4).

Graça, de acordo com as Escrituras, significa a bondade imerecida de um Deus


soberano. Mais do que isso, graça significa que Deus, misericordiosamente, nos
dá exatamente o oposto daquilo que nossos pecados merecem. Graça inclui não
meramente o perdão de nossos pecados, mas também o poder para vivermos
uma vida transformada. Em outras palavras, a graça que as Escrituras descrevem
é uma força dinâmica, a influência soberana de um Deus santo operando na vida
de pecadores indignos. Essa é a chave para a compreensão da graça: é Deus
trabalhando em nós para assegurar que trabalhemos para ele (Fp 2.13). A
graça primeiro transforma o coração e então faz o crente se tomar
inteiramente disposto a confiar e obedecer. Portanto, a graça transmite a nós
tanto o desejo quanto a energia para cumprirmos o bom prazer de Deus. Muito

mais que simples perdão, a graça também garante a nossa obediência, confere a
nós um verdadeiro amor a Deus e transforma nossa vida em todos os sentidos.

Finalmente, a graça nos toma totalmente conformes à imagem de Cristo (Rm


8.29). Mesmo agora, a graça está operando o que a lei não poderia fazer: está
cumprindo em nós as justas exigências da lei (Rm 8.3,4).

Portanto, o padrão moral estabelecido pela lei não muda quando estamos sob a
graça. De fato, isso não seria possível; a lei é um reflexo do caráter de Deus.
Mas a graça divina, na verdade, nos capacita a cumprir as exigências da lei
moral de uma forma que a lei sozinha nunca poderia fazer.

O que exatamente o apóstolo Paulo quer dizer quando afirma que não estamos
sob a lei? Há dois sentidos segundo os quais as Escrituras claramente nos
ensinam que não estamos sob a lei:

1. Não estamos sob a lei cerimonial

A epístola de Paulo aos Gálatas apresenta várias vezes a expressão “sob a lei”
(3.23; 4.4,5-21; 5.18). Paulo escreveu essa epístola para defrontar a influência
dos judaizantes, legalistas judeus que estavam tentando impor as cerimônias e
rituais da lei mosaica sobre todos os cristãos. De acordo com os judaizantes, para
se tomar um verdadeiro cristão o gentio deveria se tomar primeiro um prosélito
judeu.

A circuncisão e as leis relativas à dieta se tomaram as questões-chave. Isso tinha


sido uma disputa corrente desde o começo da igreja primitiva. O primeiro
concilio da igreja em Jerusalém havia sido convocado para tratar exatamente
essa questão. De acordo com Atos 15.5, alguns fariseus que tinham se
convertido ao Cristianismo se levantaram e exigiram que os gentios que se
unissem à igreja fossem circuncidados e orientados a obedecer a lei de Moisés.
Lucas registra o que aconteceu:

Então, se reuniram os apóstolos e os presbíteros para examinar a questão.


Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse: Irmãos, vós sabeis
que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio,
ouvissem os gentios a palavra

do evangelho e cressem. Ora, Deus, que conhece os corações, lhes deu


testemunho, concedendo o Espírito Santo a eles, como também a nós nos
concedera. E não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-lhes
pela fé o coração. Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos
discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós? Mas
cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o
foram (At 15.6-11).

O concilio viveu um debate acalorado sobre a questão. Porém, presididos por


Tiago, eles finalmente chegaram a um consenso:

Pelo que, julgo eu, não devemos perturbar aqueles que, dentre os gentios, se
convertem a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contaminações dos
ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas, da came de animais sufocados e
do sangue (vs. 19,20).

Isso significou que as exigências cerimoniais da lei mosaica não deveriam ser
impostas sobre a igreja. A circuncisão não poderia ser exigida dos gentios. A
obediência estrita às leis relativas à dieta não deveria ser prescrita. No entanto,
para não ofender os irmãos judeus, os gentios foram solicitados a se abster das
práticas dietéticas mais ofensivas: comer as carnes oferecidas aos ídolos ou de
animais sufocados e do sangue. Ainda que essas restrições não tivessem sido
impostas como questões obrigatórias de necessidade legal, elas eram requeridas
dos gentios apenas como uma questão de boa vontade para com seus irmãos
judeus.

Como sabemos que a proibição de comer certos alimentos não tinha a intenção
de se tornar um padrão permanente para a igreja para sempre? Como Paulo
escreveu a Timóteo: “ ... tudo que Deus criou é bom, e, recebido com ações de
graças, nada é recusável” (lTm 4.4). Mas essas medidas foram estabelecidas pelo
Concilio de Jerusalém na igreja primitiva como uma questão de boa vontade e
respeito para com os muitos crentes judeus que viam tais práticas como
inerentemente pagãs. O apóstolo Paulo resume esse princípio de liberdade e
deferência:

Eu sei e estou persuadido, no Senhor Jesus, que nenhuma coisa é de

si mesma impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura.
Se, por causa de comida, o teu irmão se entristece, já não andas segundo o amor
fraternal (Rm 14.14,15).

É necessário um parêntese aqui em relação à restrição contra “relações sexuais


ilícitas”. As proibições bíblicas relativas às relações sexuais ilícitas são
mandamentos morais, não cerimoniais. Assim, por que foi necessário incluir
uma proibição formal às relações sexuais ilícitas nas instruções do Concilio de
Jerusalém? Afinal de contas, tais relações seriam, sem sombra de dúvida,
consideradas moralmente repreensíveis e rigorosamente proibidas na igreja
primitiva em todas as circunstâncias. E, desde o início, a disputa que instigou a
realização do Concilio de Jerusalém tinha relação, exclusivamente, com aspectos
cerimoniais da lei de Moisés.

A resposta está na compreensão das religiões pagãs das quais tinham vindo
muitos gentios convertidos. A prática de relações sexuais de caráter cerimonial
era comum. Muitos dos santuários pagãos davam destaque a prostitutas cultuais
com as quais os atos sexuais eram considerados como experiências religiosas.
Portanto, quando proibiu “contaminação dos ídolos e... relações sexuais ilícitas”,
o Concilio estava proibindo a observância de cerimônias religiosas pagãs. E
quando pedia a “abstinência de animais sufocados e do sangue”, estava
solicitando aos gentios que tivessem respeito pelos escrúpulos profúndamente
enraizados de seus irmãos judeus, que eram resultado de uma
obediência perpétua às cerimônias mosaicas.

Em outras palavras, as cerimônias religiosas pagãs eram proibidas, e as


cerimônias judias não deveriam se tomar padrão. Mas o respeito e o amor
fraternal eram prescritos para todos.

É de suma importância compreender que esse Concilio não estava estabelecendo


explicitamente a lei cerimonial mosaica ou outra porção dessa lei como padrão
para a igreja. O Novo Testamento é explícito ao afirmar de ponta a ponta que os
símbolos e as cerimônias da lei não são obrigatórios para os cristãos. As
exigências em relação à dieta e aos cerimoniais da lei de Moisés são sombras
“das coisas que haviam de vir; porém o corpo é de Cristo” (Cl 2,17). O
sacerdócio e o culto no templo na

economia do Antigo Testamento também servem como “figura e sombra das


coisas celestes” (Hb 8.5). Cristo é o cumprimento de todas aquelas práticas e
cerimônias, e ele é o mediador de uma nova aliança. Apegar-se aos símbolos e
sombras da velha aliança é, de fato, negar que Cristo, aquele que é prefigurado, é
superior. Portanto, os aspectos cerimoniais da lei de Moisés não têm nenhum
lugar na igreja.

Por que tanto Paulo quanto o escritor de Hebreus consideraram a doutrina dos
judaizantes um erro tão sério? Porque retrocedendo aos tipos e sombras da velha
aliança essas pessoas eram culpadas de substituir a verdade absolutamente
importante de um Salvador vivo por símbolos ultrapassados que apenas
apontavam para ele. Sua vinculação com aqueles agora irrelevantes símbolos
religiosos, necessariamente, os inseria num sistema de obras. Voltar para a velha
aliança seria uma rejeição real de Cristo a favor de tipos e símbolos obsoletos.

Em um dos encontros mais insólitos entre dois apóstolos registrados nas


Escrituras, Pedro e Paulo tiveram um grande conflito público a respeito da
questão de obediência à lei cerimonial. Paulo descreve o confronto em Gálatas
2.11 -14:

Quando, porém, Cefas veio a Antioquia, resisti-lhe face a face, porque se tomara
repreensível. Com efeito, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, comia
com os gentios; quando, porém, chegaram, afastou-se e, por fim, veio a apartar-
se, temendo os da circuncisão. E também os demais judeus dissimularam com
ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela dissimulação deles.
Quando, porém, vi que não procediam corretamente segundo a verdade
do evangelho, disse a Cefas, na presença de todos: se, sendo tu judeu, vives
como gentio e não como judeu, por que obrigas os gentios a viverem como
judeus?

O tema em debate, nesse caso, não era mais a questão de respeito para com os
irmãos judeus, mas toda a doutrina de justificação pela fé. Aparentemente,
mesmo depois de o Concilio de Jerusalém já ter pronunciado sua decisão, os
judaizantes, no entanto, voltaram a exigir a circuncisão de todos os gentios
convertidos. Eles estavam, na realidade,

sugerindo que a observância à lei cerimonial era essencial para a justificação. E,


como Paulo sugere, Pedro, mais que todos os outros, deveria agir e pensar
melhor:

“Sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim
mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que
fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras da
lei, ninguém será justificado” (G1 2.16).

2. Não estamos sob a lei para a justificação

A questão central da teologia do Novo Testamento é a justificação pela fé. Essa é


a doutrina que toma o Cristianismo distinto. Todas as outras religiões do mundo
ensinam algum tipo de sistema de mérito humano. Apenas o Cristianismo ensina
que o mérito necessário para a nossa salvação é suprido por Deus a nosso favor.

A justificação é teologicamente definida como um ato de Deus pelo qual ele


declara justo o pecador crente.

Quando Deus justifica um pecador, ele olha para a pessoa e diz: “Eu aceito essa
pessoa como perfeitamente justificada”. E um veredicto divino de “não
culpado”, e mais que isso, ele eleva o pecador da condenação que merece para
uma posição de privilégio divino em Cristo.

A justificação apresenta um problema teológico imenso. Provérbios 17.15


afirma: “O que justifica o perverso e o que condena o justo abomináveis são para
o SENHOR, tanto um como o outro”. Em outras palavras, o próprio Deus nos
proíbe terminantemente de declarar justa uma pessoa culpada. E, em Êxodo 23.7
Deus diz claramente: “porque não justificarei o ímpio”.

Existem dois obstáculos em relação à justificação dos pecadores. Um é o nosso


pecado. Acumulamos culpa todas as vezes que pecamos, e a verdadeira justiça
exige que cada pecado seja punido. Permitir que um malfeitor saia impune é, por
definição, injusto. Assim, Deus é obrigado, por seu padrão perfeito de justiça, a
exigir penalidade máxima para todo pecado.

O segundo obstáculo para a justificação é nossa absoluta ausência de mérito.


Não apenas acumulamos culpa (ou demérito) todas as vezes que pecamos, mas
também carecemos do mérito necessário. Mesmo que

nossa ficha pudesse ser completamente limpa, tudo o que teríamos seria uma
ficha em branco. Porém, para sermos aceitáveis a Deus, nos é exigido ter todo o
mérito que se alcança mediante a perfeita obediência à sua lei. Perdão para os
nossos pecados não é suficiente. Nós ainda precisamos do mérito de uma justiça
absolutamente perfeita (Mt 5.20,48).

De uma perspectiva humana, esses pareceriam obstáculos intransponíveis para a


justificação de um pecador. Certamente podemos compreender a perplexidade
dos discípulos diante dessas mesmas dificuldades: “Sendo assim, quem pode ser
salvo?” (Mt 19.25).

Todavia, houve pessoas no tempo de Paulo que pensavam que, se elas pudessem
ser tão boas, tanto quanto fosse possível, elas poderiam conseguir mérito
suficiente para agradar a Deus. Essa era a atitude por detrás da insistência dos
judaizantes em relação à observação das leis cerimoniais. Eles estavam tentando
justificar a si mesmos diante de Deus por meio das suas obras.

Eles estavam tentando ganhar a própria justificação. Essa é a verdadeira


definição de autojustificação aos próprios olhos. O Sermão do Monte proferido
por Jesus foi um ataque a esse tipo de pensamento. Ele apontou para os fariseus,
isto é, os legalistas que guardavam a lei mais meticulosamente que qualquer
pessoa. Pelos padrões humanos eles eram tão “bons” quanto era possível ser.
Mas Jesus afirmou que a bondade deles simplesmente não era suficiente para
receber o favor de Deus: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder
em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus” (Mt 5.20).

Jesus ensinou tão claro quanto possível que Deus não se agradaria a não ser com
a justiça absoluta e perfeita. Ele ensinou que não é suficiente evitar matar
alguém, devemos também evitar o pecado do ódio (v. 22). Ele ensinou que se
adulterarmos em nosso coração, isso seria o mesmo que cometer adultério (v.
28). Ele estabeleceu o padrão mais alto possível e então afirmou que, se não
alcançássemos esse padrão perfeito, não poderíamos entrar no reino de Deus. E,
assim, condenou todos nós.

O apóstolo Tiago destruiu todo vestígio de esperança que ainda pudéssemos ter
de ser justificados pela lei quando escreveu: “Pois qualquer que guarda toda a
lei, mas tropeça em um só ponto, se toma culpado de todos” (Tg 2.10).

O que devemos concluir? Que não podemos ser justificados pelas obras da lei. É
absolutamente impossível. O apóstolo Paulo reafirma a mesma verdade muitas
vezes:

... vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés (At 13.39).

Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se
cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém
será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o
pleno conhecimento do pecado (Rm 3.19,20).

... porque a lei suscita a ira (Rm 4.15).

Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição; porque está
escrito: Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no
Livro da lei, para praticá-las... ninguém é justificado diante de Deus (G1
3.10,11).

Paulo não poderia declarar essa verdade de modo mais claro do que o fez.
Cometer o erro fatal de pensar que podemos ser justificados sendo
suficientemente bons para nos fazermos aceitáveis diante de Deus é nos
colocarmos sob a condenação da lei.

Esse foi o âmago do problema na Galácia. Algumas pessoas es-tavam ensinando


que era necessário obedecer à lei para ser justificado. No primeiro capítulo,
Paulo chama isso de “outro evangelho”, e pronuncia uma solene maldição sobre
aqueles que o ensinavam.

Quando Paulo falou sobre aqueles que estavam “sob a lei”, ele estava falando de
pessoas que pensavam que poderiam ser justificadas pela obediência à lei. Duas
expressões paralelas em Gálatas tomam isso extremamente claro. Uma é em
Gálatas 4.21: “Dizei-me vás; os que quereis estar sob a lev. acaso, não ouvis a
lei?” (grifo nosso). Se tivessem ouvido a lei em si mesma, teriam ouvido que ela
estabelece condições impossíveis para a justificação. Para pecadores, a lei
poderia ser um meio de condenação, mas nunca de justificação.

Para um pecador, abraçar a lei como meio de justificação é pura tolice. E, no


entanto, havia na Galácia aqueles que queriam “estar sob a lei” (4.21).

Observe a expressão paralela em Gálatas 5.4: “vós que procurais justificar-vos


na lei”. Aqueles que estavam procurando ser “justificados pela lei” em Gálatas
5.4 são os mesmos que queriam “estar sob a lei” em 4.21.

Portanto, estar “sob a lei” na terminologia de Paulo é estar sob a lei como um
meio de justificação. É essencial compreender como Paulo usa essa expressão.
Quando ele diz, em Romanos 6, que não estamos sob a lei, mas sob a graça, ele
não está descartando os ensinamentos morais da lei. Ele não está dando
credenciais a nenhum tipo de doutrina antinomianista. Não está minimizando o
pecado de desobediência aos ensinos morais da lei. Não está desprezando a lei
em si mesma. Na verdade, em Romanos 7.12, ele afirma: “a lei é santa; e o
mandamento, santo, e justo, e bom”.

O ensino consistente de Paulo em relação à lei é que ela nunca pode ser um meio
de justificação. E quando ele diz que “não estamos sob a lei” ele quer dizer que
não baseamos nossa justificação em nossa obediência pessoal.

Não estamos mais tentando nos justificar pela obediência à lei. Somos
justificados pela graça por meio da fé, não pelas obras da lei (G1 2.16). E,
portanto, não estamos mais sob a condenação da lei.

Como Deus pode justificar o ímpio?

Como então podemos ser justificados? Como Deus pode declarar pecadores
culpados como justos sem diminuir ou comprometer seus padrões de justiça?

A resposta pode ser encontrada na obra de Cristo a nosso favor. Em Gálatas 4.4,
o apóstolo afirma que Jesus Cristo nasceu “sob a lei”. Obviamente isso não
significa meramente que Jesus nasceu judeu. Significa que ele estava sob a lei no
sentido paulino, obrigado a cumprir a lei perfeitamente como um sentido de
justificação.

Nesse mesmo contexto, no intervalo de dois versículos, Paulo duas vezes


enfatiza a frase “sob a lei”. Há uma clara conexão lógica entre a última frase no
versículo 4 e a primeira no versículo 5: “Deus enviou seu Filho, nascido... sob a
lei, para resgatar os que estavam sob a lei”

Já dissemos que a lei não pode ser um meio de justificação para pecadores. Mas
Cristo não era pecador. Ele viveu impecavelmente “sob a lei”. Hebreus 4.15 nos
diz que ele foi “tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem
pecado”. Ele cumpriu a lei perfeitamente nos mínimos detalhes. Em 1 Pedro
2.22, lemos: “o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua
boca”. Novamente Hebreus 7.26 nos diz que ele é “inculpável, sem mácula,
separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus”. Assim, sua obediência
impecável à lei obteve o perfeito mérito que é necessário para agradar a Deus.

Se Cristo era perfeitamente sem pecado, então ele não merecia morrer. Ele
estaria sujeito à maldição da lei, se tivesse violado um só mandamento, mas,
obviamente, ele não o fez - ele não poderia fazê-lo, pois era Deus. Ele cumpriu
todos os aspectos da lei em seus mínimos detalhes.

Todavia, ele morreu. Mais do que isso, ele sofreu a ira total de Deus sobre a
cruz. Por quê? As Escrituras nos dizem que a culpa de nossos pecados foi
imputada a ele, e Cristo pagou o preço por ela. Por conseguinte, o mérito de sua
perfeita obediência também pode ser imputado a nosso crédito. Esse é o
significado de 2 Coríntios 5.21: “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez
pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”.

Sua morte se encarrega da nossa culpa, e sua vida perfeita nos supre de todo o
mérito de que necessitamos para ser aceitáveis a Deus. Desse modo, Deus supera
os dois grandes obstáculos para a nossa justificação. E como Paulo escreve em
Romanos 3.26, essa é a maneira que Deus pode permanecer justo e justificar
aqueles que crêem em Jesus. Cristo pagou pessoalmente a penalidade pelos
pecados e obteve pessoalmente uma perfeita justiça a favor dos pecadores.
Assim, ele pode justificar o ímpio (Rm 4.5).

As Escrituras não ensinam outro meio de justificação. Esse é o âmago de toda


verdade evangélica. Desde Gênesis 15.6, as Escrituras

ensinam que Abraão foi justificado por uma justiça que lhe foi atribuída. Seja
qual for a ocasião, todo e qualquer pecador redimido nas Escrituras o é por uma
justiça atribuída a ele, não por uma justiça que tenha sido conquistada de alguma
forma ou ganha pelo pecador para a própria redenção.

Romanos 4.6,7 nos diz que Davi também conhecia a bem-aven-turança do


homem a quem Deus atribui justiça, independente de obras. Certamente, essa é a
posição que Paulo está defendendo em Romanos no capítulo 4: a justificação
sempre foi pela fé, não pelas obras, e por meio de uma justiça que é atribuída ao
crente. Abraão compreendeu a doutrina da justificação dessa forma. Davi
conhecia a mesma verdade. Portanto, desde o começo até o fim das Escrituras
somos ensinados que o único mérito aceito por Deus é o mérito que é atribuído a
nosso favor. Ele nunca nos considera justos por causa das nossas obras de
justiça.

Ao contrário, Deus afirma que toda a nossa justiça é fatalmente imperfeita e


falha. Para Deus ela não vale mais que trapos sujos (Is 64.6). E assim que Deus
vê as nossas obras - sem importar quão boas elas sejam pelos padrões humanos.
Para Deus, elas são inaceitáveis, sujas.

Essa é a razão pela qual nossa obediência não pode nunca ser suficientemente
boa. Essa também é a razão pela qual os que apoiam a esperança do céu em suas
boas obras, na realidade, apenas condenam a si mesmos.
Quão mortal é o legalismo?

Tudo isso deveria deixar muito claro que o legalismo condenado por Paulo como
“outro evangelho” é um tipo de legalismo que procura estabelecer a nossa
justificação na obediência pessoal, em vez de colocá-la na justiça que nos é
atribuída de Cristo. Quão mortal é esse legalismo?

O apóstolo Paulo sugere que essa foi precisamente a causa que determinou a
rejeição a Cristo por parte da maioria em Israel: “Porquanto, desconhecendo a
justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que
vem de Deus” (Rm 10.3).

Afastando-se da perfeita justiça de Cristo (que seria atribuída a eles pela fé),
optaram, ao contrário, pela própria justiça imperfeita. Er-radamente assumiram,
como fazem muitas pessoas hoje, que o melhor que podiam fazer seria
suficientemente bom para Deus.

Aqui estão as boas-novas do evangelho: para todos os que crêem, o sangue de


Cristo vale como pagamento para todos os nossos pecados, e cumprimento da
lei, da parte dele, eqüivale a todo o mérito de que necessitamos. Por conseguinte,
Romanos 10.4 afirma: “Porque o fim [do grego telos ‘o que tencionamos
alcançar’] da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê”. Cristo é o
cumprimento de tudo aquilo que a lei tencionava. Em Cristo, o objetivo último
da lei, uma perfeita justiça, se torna disponível para todo crente. Sua justiça é
atribuída a nós pela fé, e essa é a razão por que Deus nos aceita em Cristo e por
causa de Cristo.

Para o próprio Paulo, essa verdade tinha profundas implicações pessoais. Ele
havia lutado durante toda a vida como um fariseu legalista tentando estabelecer a
própria justiça pela lei. Ele descreve seus esforços em Filipenses 3.4-8:

Bem que eu poderia confiar também na came. Se qualquer outro pensa que pode
confiar na came, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao
zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Mas o
que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Sim, deveras,
considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo
Jesus, meu Senhor; por amor do qual perdi todas as coisas e as considero como
refugo, para ganhar a Cristo.

Por que era tão importante para Paulo a rejeição de toda a sua justiça? Por que
ele reputava como refugo toda uma vida de boas obras? Porque ele sabia que
tudo isso era imperfeito. E sabia que, em Cristo, ele seria o recipiente de uma
justiça perfeita. Atente para o versículo 9: "... e ser achado nele, não tendo
justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a
justiça que procede de Deus, baseada na fé”.

Toda a justiça, a não ser a justiça de Cristo atribuída a nós, é mero legalismo. É
incapaz de salvar alguém. Mais do que isso, é uma afronta a Deus - como se
pudéssemos oferecer a ele trapos sujos e esperar que ele nos aplaudisse por isso.
Esse tipo de legalismo é espiritualmente fatal.

A obediência cristã é diferente do legalismo?

Tomou-se moda em alguns círculos colocar um rótulo de “legalismo” em


qualquer ensino que enfatize a obediência a Cristo. No começo deste capítulo
citei alguém que afirmou: “a diferença entre legalismo e verdadeiro
Cristianismo” está ligada à seguinte questão: Se consideramos a obediência um
dever.

Biblicamente, não existe base para esse pensamento. Como cristãos, ainda
somos obrigados a obedecer a Deus, embora saibamos que nossa obediência não
oferece base para a nossa justificação. Essa é, precisamente, a razão por que
nossa obediência deveria ser motivada em primeiro lugar pela gratidão e amor
pelo Senhor. Estamos livres da ameaça da condenação eterna (Rm 8.1). Estamos
livres da lei do pecado e da morte (v. 2) e capacitados pela graça de Deus para
tanto desejar quanto realizar seu bom propósito (Fp 2.13). Temos todas as razões
para obedecer alegremente - e nenhum verdadeiro cristão nunca pensará
em obediência como algo opcional.

Não estamos sob a lei, mas sob a graça. Entretanto, longe de ser um manifesto a
favor do antinomianismo, ou uma autorização para um comportamento
licencioso, essa importante verdade nos ensina que tanto nossa justificação
quanto nossa obediência devem estar corretamente fundamentadas em Cristo e
naquilo que ele fez por nós, e não em nós mesmos e naquilo que possamos fazer
para Deus.
A doutrina da justificação pela fé, portanto, provê o mais alto e puro incentivo
para a obediência cristã. Como Paulo escreveu em Romanos, as misericórdias
que Deus nos dispensa em nossa justificação oferecem todas as razões de que
necessitamos para nos submeter a ele como sacrifícios vivos (Rm 12.1).
Libertados das penalidades da lei

- isentados da ameaça de condenação por nossa desobediência - somos assim


capacitados pela graça a nos submeter a Deus de uma forma que éramos
incapazes de fazer como não crentes. E essa é a razão pela qual a vida cristã é
continuamente retratada como uma vida de obediência nas Escrituras.

Não, obediência não é uma questão de legalismo como muitos em nossa época
libertina gostariam que acreditássemos, ela é uma questão de amor - amando a
Deus como ele nos ordena fazer, cumprindo seus mandamentos - e nós fazemos
isso porque o amamos.

O relacionamento entre fé e obediência tem provocado, ao longo dos tempos,


um sério debate na igreja. Historicamente isso foi verdade no grande debate do
século 16 entre os reformadores protestantes e os teólogos católicos romanos
que, no Concilio de Trento, reagiram contra a doutrina dos reformadores. O
relacionamento entre esses dois setores continua, até hoje, muito próximo do
centro do ensino cristão moderno, seja ele evangélico ou católico. Qual é a
relação bíblica entre a fé nas promessas de Deus e a obediência pessoal à
vontade de Deus revelada nas Escrituras?

Parece que, na era moderna, as definições claras sobre fé salvadora são poucas e
raras. E definições claras concernentes à relação correta entre a fé dada por Deus
e a obediência humana estão menos disponíveis ainda. De um lado, os
evangélicos modernos, ao insistirem corretamente que fé e obediência não são a
mesma coisa, colocam fé e obras uma contra a outra transformando-as
praticamente em sinônimos. Nessa abordagem não é feita nenhuma distinção
relevante entre fé e obediência. De outro lado, um grande número de professores
modernos tem argumentado que, pelo menos em princípio, fé e obediência não
têm nenhuma relação necessária ou intrínseca, portanto, são praticamente
exclusivas. Nesse modelo, o qual em geral resulta em práticas aberrantes, o povo
crê

em Cristo e em seu evangelho, mas para todos os propósitos práticos, na


realidade ele nunca se interessa pelo tipo de obediência evangélica
que necessariamente acompanha a verdadeira fé.

No Novo Testamento, são abundantes os textos que demonstram a vital ligação


entre fé evangélica e obediência. Para todos os propósitos práticos, esses textos
são ou ignorados, ou mal interpretados por um número incontável de pessoas
que não vêem qualquer relacionamento necessário entre fé salvadora e
obediência. Paulo, num exemplo original do tipo de texto que tenho em mente,
escreve: “Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi
concedida, não se tomou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles;
todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo” (1 Co 15.10). Não há lugar aqui
para uma fé que não obedece.

Talvez a ligação mais direta entre fé e obediência nos escritos de Paulo possa ser
encontrada nas seguintes palavras familiares:

Assim, pois, amados meus, como sempre obedecestes, não só na minha


presença, porém, muito mais agora, na minha ausência, desenvolvei a vossa
salvação com temor e tremor; porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer
como o realizar, segundo a sua boa vontade (Fp 2.12,13).

Certamente, mesmo a leitura mais superficial desses versículos convenceria uma


pessoa ainda não predisposta de que existe uma fé, uma fé viva e vital e que essa
fé é íntima e diretamente ligada à obediência. Lutero, o grande campeão da sola
fide, com freqüência dizia: a salvação de Cristo vem àqueles que crêem no
evangelho baseados somente na fé (cf. Rm 4.5), mas a fé que crê no evangelho
nunca está sozinha. Crer é ser transformado por e por meio dessa fé viva. Sem
dúvida, a ênfase central do Novo Testamento insiste nisto - a fé viva leva a
pessoa a uma união vital com Cristo, o qual está diariamente
transformando aquele que crê.

Aqui, abordarei essa ligação vital entre fé e obediência, que é fundamentada em


nossa união com Cristo. Dirigirei seu pensamento para aquele que é, talvez, o
texto mais produtivo a respeito desse relaciona-

mento em todo o Novo Testamento. O que é particularmente inspirador em


relação a essa abordagem é que baseio meu raciocínio, inteiramente, na obra
magna de Paulo sobre sola gratia e sola fide, isto é, a epístola aos Romanos.
Planejo demonstrar que confiança (fé) e obediência (obras) se relacionam
essencial e necessariamente na mente de Paulo. Além disso, procurarei
demonstrar que, na verdade, esse relacionamento constitui o núcleo essencial do
pensamento paulino, no modo como ele apresenta o evangelho a um grupo de
pessoas às quais nunca encontrara pessoalmente.

Tem-se dito muitas vezes que os maiores movimentos de reforma e


reavivamento vindos do alto aconteceram quando os grandes temas de Romanos
foram pregados com renovada clareza e poder. Se estou correto em minha
compreensão da questão que se coloca diante de nós neste capítulo, então
necessitamos desesperadamente recuperar a correta relação entre fé e obediência.
Se desejamos ver uma nova reforma, aqueles que pregam necessitam
extremamente dessa clareza.

O exercício da "obediência por fé"

Em suas saudações iniciais aos cristãos de Roma, Paulo, após identificar a si


mesmo e a sua missão, apresenta seu objetivo nestas palavras: “por intermédio
de quem viemos a receber graça e apostolado por amor do seu nome, para a
obediência por fé, entre todos os gentios” (Rm 1.5).

O trecho “a obediência que vem da fé”, ou simplesmente, “a obediência por fé”,


é uma construção exclusiva de Paulo e ocorre apenas nesse versículo, e mais
adiante, nessa mesma epístola, numa forma um tanto diferente (cf. 16.25,26). O
que ele tem em mente, como logo descobriremos, é o que chamo “obediência
crente” ou “obediência por fé”. Sua motivação é apresentada pelas palavras:
“Por amor do seu nome (isto é, de Cristo)”. Podemos concluir exatamente que:
“a totalidade dos esforços missionários de Paulo está resumida nessas palavras”.1
Como já foi mencionado, a afirmação de Paulo está ligada a uma visão
missionária inclusiva e de grande alcance, que corresponde claramente à obedi-

ência da fé ou ao tipo de confiança que sempre resulta, necessariamente, em


obediência.

Já dissemos que essa frase ocorre novamente no final dessa carta aos Romanos
16.25-27:
Ora, àquele que é poderoso para vos confirmar segundo o meu evangelho e a
pregação de Jesus Cristo, conforme a revelação do mistério guardado em
silêncio nos tempos eternos, e que, agora, se tomou manifesto e foi dado a
conhecer por meio das Escrituras proféticas, segundo o mandamento do Deus
eterno, para a obediência por fé, entre todas as nações, ao Deus único e sábio
seja dada glória, por meio de Jesus Cristo, pelos séculos dos séculos. Amém!

O trecho “obediência por fé” é praticamente o mesmo que ocorre em Romanos


1.5 e, muito provavelmente, é uma referência à mesma “obediência por fé” como
em 1.5. Portanto, a mesma frase que dirige a intenção de Paulo ao escrever a
introdução é central em sua conclusão e doxologia. Creio que no uso e no
sentido dessa pequena frase, que espero demonstrar que é intencionalmente
ambígua, existe um tipo de chave gramatical e lingüística para o pensamento de
toda a epístola.

Tem-se observado, apropriadamente, que essa frase carrega uma importante


significação escatológica em seu contexto.

Análogo a 1.5, a obediência da fé por parte dos gentios é o objetivo que a


revelação do mistério contemplava. Por conseqüência, fé e obediência por fé
assumem um caráter distintamente escatológico. Vista por essa óptica, a
“obediência por fé” deve ser considerada uma frase com alguma significação
para a compreensão de Paulo. Ela é, em outras palavras, a enunciação do
modelo e propósito de seu esforço missionário: Deus está agora realizando seu
propósito na história da salvação por meio do evangelho de Paulo, isto é,
por intermédio da pregação de Jesus Cristo (v. 25). A missão de Paulo, portanto,
é vista nada menos como a atualização escatológica do plano etemo de criar a
obediência da fé entre as nações (grifos do original).2

Mas qual seriam o sentido exato e a importância da declaração “a obediência por


fé” para a relação entre fé verdadeira e obediência evangélica? Vamos depositar
nossa atenção nessa questão.

A relação entre fé e obediência

A questão exata é: “Qual é a relação entre fé e obediência?” Sugiro que essa


sentença essencial, central para todo o esforço e objetivo missionário de Paulo,
deva ser considerada o âmago de uma resposta correta para essa questão. Além
disso, estou sugerindo que na frase “a obediência por fé” existe uma idéia
fundamental nem sempre observada.

Os comentaristas têm discordado significativamente sobre a exata abrangência


de significados que devem estar associados à frase “obediência por fé”
(“obediência da fé”, na NVI). Há duas maneiras principais pelas quais ela tem
sido interpretada. Ambas oferecem contribuições significativas à exegese correta
do versículo, mas nenhuma faz justiça àquilo que espero mostrar que é uma
compreensão contextual mais acurada da utilização da frase.

1. A obediência que vem da fé

Primeiro, essa frase poderia ser interpretada como se referindo à obediência que
a fé produz, ou que é resultante da fé. Aqui, a palavra fé é um substantivo no
caso genitivo. Esse é o caso da definição, da fonte ou da descrição. Os
especialistas em gramática grega concordam que isso, geralmente, faz um
substantivo ter função adjetivada. Nesse caso, os comentaristas discordam se a
palavra “fé” (no caso genitivo) tem função subjetiva ou objetiva.

Argumentos a favor do genitivo objetivo, nesse caso, não são tão fortes quanto
os favoráveis ao subjetivo. O ponto de vista subjetivo argumenta que Paulo tem
em mente tanto a “obediência que é produzida pela fé” como a “obediência que é
exigida pela fé”. A real intenção dessas duas opções é que a obediência encontra
sua verdadeira fonte na fé. Embora seja verdadeiro, isso não abrange o sentido
total da frase.

A verdade quanto à questão exegética, nesse caso, como Douglas Moo apresenta
com propriedade, é que: “O genitivo pisteos é difícil de ser estabelecido”.3 Se a
fé em questão aqui é subjetiva, então ela poderia ser traduzida por “a obediência
que procede da fé”. Essa interpretação é sustentada por um grande número de
comentaristas importantes. William Hendriksen é um exemplo dos que adotam
essa posição:

O propósito para o qual Paulo foi designado foi produzir obediência da fé. Tal
obediência é baseada na fé e procede da fé. De fato, fé e obediência estão tão
intimamente relacionadas que podem ser comparadas a gêmeos idênticos e
inseparáveis. Uma pessoa não pode ter fé genuína sem obediência, e vice-versa.4

F. F. Bruce, outro exegeta que sustenta o ponto de vista subjetivo genitivo,


conclui que: “a fé, nesse caso, não é o evangelho, o corpo de doutrinas
apresentado para que se creia, mas a crença em si mesma ” (cf. Rm 15.18;
16.26).5

Charles Hodge, o teólogo de Princeton no século 19, escreveu:

O sentido subjetivo de pistis [fé] no Novo Testamento é tão predominante que é


mais seguro mantê-lo nessa passagem. A obediência da fé é a obediência que
consiste em fé, ou da qual a fé é o princípio controlador. O projeto de todo o seu
apostolado era levar todas as nações a crerem em Cristo, o Filho de Deus, de tal
forma que elas es-tariam inteiramente devotadas ao serviço dele. O sentido é o
mesmo se pistis (fé) for considerado objetivamente, desde que se
entenda, entretanto, não do evangelho, mas do princípio interno da fé, da qual as
nações deveriam ser obedientes.6

Nessa compreensão de fé, a ênfase é colocada clara e diretamente sobre um


compromisso pós-conversão, isto é, certificando-se de que o fruto que segue
corretamente a fé salvadora será comprovado na obediência. Essa conclusão,
com certeza, está correta, mas creio que Paulo está dizendo mais que isso.

2. A obediência que é dirigida para a fé

Essa concepção considera a fé como um genitivo de aposição. Deveria ser lido:


“a obediência dirigida para, ou [na] fé”, caso em que pis tis (fé) poderia se referir
a “um corpo de doutrinas ou à mensagem do evangelho [em si mesma]”.7 Nesse
caso, o genitivo seria traduzido para: “a obediência que consiste em fé”. Douglas
Moo também observa que uma versão popular dessa idéia, mantida por vários
comentaristas importantes e muito diferentes entre si como Calvino, Nygren e
Cran-field, é a assim chamada “noção epexegética” que traduz a frase para:
“a obediência que é fé”. C. E. B. Cranfield, que tem feito trabalhos
eruditos importantes sobre Romanos, escreve:

Consideramos “de fé” como o que os gramáticos chamam de genitivo de


aposição. Isso parece estar mais próximo da verdade do que qualquer uma das
sugestões já apresentadas, por exemplo, que a expressão significaria “requerida
pela fé”, ou que ela seria simplesmente um adjetivo equivalente a “crença”.8

Quanto a esse significado de fé, o apoio pode ser encontrado em vários textos
em que obediência e fé, na verdade, ocorrem juntas nessa epístola.
Romanos 1.8 e 16.19 são um importante par de passagens que ilustram esse
ponto. Em Romanos 1.8 Paulo escreve: “Primeiramente, dou graças a meu Deus,
mediante Jesus Cristo, no tocante a todos vós, porque, em todo o mundo, é
proclamada a vossa fé”. No texto paralelo de Romanos 16.19, ele diz: “Pois a
vossa obediência é conhecida por todos; por isso, me alegro a vosso respeito...”.
Aqui, a fé dos crentes romanos, a qual é amplamente reconhecida, é equiparada à
obediência deles, que é igualmente reconhecida. Paralelos semelhantes podem
ser encontrados em Romanos 10.16a e 10.16b, assim como em 11.23
com 11.30,31.

Além disso, Paulo fala claramente de “obedecer” ao evangelho. Foi isso que
levou João Calvino a afirmar corretamente que: “Fé é exatamente o meio pelo
qual obedecemos ao evangelho”.9

Incluo várias opiniões que comprovam essa interpretação. D.

Martyn Lloyd-Jones escreveu:

O apóstolo diz: “a obediência da fé” com o intuito de salientar o seguinte ponto -


que ele está falando sobre uma obediência que consiste em fé ou, se preferirem,
uma obediência cujo princípio central é a fé.10

O professor John Murray, já morto, observou:

É compreensível e correto considerar “fé” como uma aposição à “obediência” e


compreendê-la como obediência que consiste em fé. Fé é considerada como um
ato de obediência ou o comprometimento com o evangelho de Cristo.11

Receber o evangelho é agir em obediência ao mandamento de Deus que exige


que todos se arrependam e creiam. A noção apositiva do professor Murray
reconhece bem isso.

Em um trabalho do século 19, Robert Haldane concluiu:

O evangelho reforma aqueles que nele crêem; mas estaríamos apresentando uma
visão imperfeita do assunto se disséssemos que ele foi dado para reformar o
mundo. Ele foi dado para que as pessoas pudessem crer e ser salvas. Portanto, a
obediência aqui referida significa submissão à doutrina do evangelho.12

Tudo isso aponta para a tragédia de grande parte da pregação moderna. Com
freqüência ouvimos a fé sendo oferecida às pessoas como algo que é (em nossa
opinião), bom para elas. Ela trará felicidade e paz à vida delas. Assim, pensamos
que devemos encorajá-las a crer embora tenham completa liberdade para dizer
“não!” Demonstramos essa falsa noção quando fazemos pronunciamentos tolos
como: “O Espírito Santo é um cavalheiro, ele não o forçará a crer no
evangelho!” Ou “Cristo bate pacientemente à porta de seu coração, mas não
entrará a não ser que você abra a porta. Ele respeita a sua escolha a ponto de não
fazer mais do que bater, portanto você deve tomar a iniciativa seguinte!” Tudo
isso le-

vou James M. Boice a observar que com tal estrutura “o pecado se toma um
pouco mais que más escolhas, e fé significa simplesmente começar a ver mais
claramente as questões”.13

O que está faltando na maioria desses pronunciamentos contemporâneos é a


verdade simples - mas profundamente importante - de que pecado é,
originalmente, uma rebelião contra Deus. Significa, em uma palavra,
desobediência! Na verdade, a descrença é, em si mesma, uma absoluta
desobediência, como todo o evangelho de João deixa claro. Concluímos,
portanto, que a mensagem do evangelho deve ser pregada como um mandamento
e não meramente como uma oferta. Essa idéia parece estar clara na mente de
Paulo quando ele coloca a “obediência por fé” no contexto de seu papel como
fiel embaixador às nações.14

A mesma idéia pode ser captada no sermão de Paulo aos atenienses:

Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica
aos homens que todos, em toda parte, se arrependam; porquanto estabeleceu um
dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio de um varão que
destinou e acreditou diante de todos, ressuscitando-o dentre os mortos (At
17.30,31).

Existe uma evidência sólida de fraqueza na igreja evangélica contemporânea


porque nós não apresentamos o evangelho como um mandamento de Deus.
Banalizamos o trabalho de evangelismo quando tratamos o evangelho como uma
mensagem que ajuda o povo “a colocar a vida em ordem”, e o leva a uma vida
abundante pela qual pode, agora, “viver feliz para sempre”.

Uma leitura alternativa de fé e obediência


A opção subjetiva, como observado supra, tende a colocar demasiada ênfase
apenas na obediência pós-conversão. A opção mais objetiva, como as
apresentadas nas melhores expressões no que tem sido chamado de “noção
epexegética”, pode facilmente deixar escapar outras

considerações importantes que devem ser comentadas mais cuidadosamente.


Douglas Moo resume de modo proveitoso minha percepção da maneira que
essas duas interpretações interagem e por que se deve preferir uma compreensão
alternativa. Moo observa:

A tarefa de Paulo era chamar homens e mulheres à submissão ao senhorio de


Cristo (cf. 4b e 7b), uma submissão que começou com a conversão, mas que
deveria continuar num compromisso profundo e para toda a vida. Essa
obediência a Cristo como Senhor está sempre intimamente relacionada à fé.
Tanto no passo inicial e decisivo da fé quanto num relacionamento continuado
de “fé” com Cristo. A luz disso, compreendemos que as palavras hypakoe
[obediência] e pis-teos [fé] devem ser interpretadas reciprocamente: obediência
sempre envolve fé, e fé sempre envolve obediência. Elas não deveriam
ser igualadas, colocadas em compartimentos, ou dispostas como estágios
separados da experiência cristã.15

Paulo não está dizendo que fé, mais “observar a lei” (isto é, as obras da lei) (cf.
G1 2.16; 3.2, etc.), justifica o pecador diante de Deus. Nem o cumprimento de
rituais ou cerimônias, mesmo os rituais ordenados por Deus (isto é, o batismo e a
Ceia do Senhor), nem a guarda pactuai da própria lei podem levar alguém a um
relacionamento com Deus ou manter alguém nesse relacionamento.

Mas Paulo não está afirmando que se pode crer sem obedecer, ou que a
necessidade de fidelidade ao Deus do pacto é, de alguma forma, opcional. Paulo
chamou homens e mulheres a uma fé em Jesus Cristo que era concebida como
inseparavelmente ligada à obediência a Deus e à aliança. O Salvador ao qual os
adoradores crentes se aproximam é o Senhor Jesus Cristo. Os mestres do assim
chamado “não senhorio” são propensos a sugerir que vamos a Jesus como Deus
(isto é, divindade) e que isso não tem nenhuma relação com nossa submissão a
ele como nosso Senhor (em termos da resolução e do compromisso de segui-lo).
Na verdade, essa explicação exige um debate, porque se alguém vem a Jesus
como Deus, então essa pessoa deve verdadeiramente responder a Jesus, em fé,
como Deus Iahweh. Fazer isso, obviamente, implica que ela se submeta.
Nós só podemos ir a Cristo por meio da fé, não “por aquilo que nossas mãos
culpadas fizeram”. Mas a fé com a qual nos achegamos está claramente unida à
obediência que Deus confere àqueles que vêm crendo. Além disso, nós só
podemos obedecer a Jesus como Senhor, dia após dia, quando nos entregamos
continuamente a ele em fé. Moo complementa:

Encarada por essa óptica, a frase [“a obediência por fé”] capta a completa
dimensão da tarefa apostólica de Paulo, uma tarefa que não estava confinada à
evangelização inicial, mas que também incluía a edificação e o firme
estabelecimento de igrejas.16

As distinções de Paulo, em seu argumento,

... são feitas entre os justos e os ímpios, os crentes e os não crentes, os


obedientes e os desobedientes. Essas são as distinções que constituem os
contornos do evangelho de Paulo, aquele evangelho da justiça de Deus com o
qual ele havia sido comissionado para promover a obediência por fé por amor a
Cristo entre as nações.17

E interessante que Cranfield, um campeão do genitivo de aposição como já


vimos (isto é, “A obediência que consiste em fé”), também admitiu:

Também é verdadeiro dizer que tomar a decisão de fé é um ato de obediência


para com Deus, e também que a verdadeira fé, por sua natureza, inclui em si
mesma o sincero desejo e vontade de obedecer a Deus em todas as coisas.18

O professor John Murray conclui que as implicações são

... de longo alcance. Pois a fé que o apostolado tencionava promover não era um
ato evanescente de emoção, mas um compromisso de devoção sincera e convicta
a Cristo e à verdade de seu evangelho. E para essa fé que todas as nações são
chamadas.19

Com efeito, tudo isso é uma maneira de dizer que “a obediência que consiste em
fé não pode ser abstraída da obediência exigida pelo evangelho”.20

A frase “a obediência por fé”, afinal, parece muito ambígua. Pelo menos não é
uma frase simples. Isso deveria levar os exegetas a serem cautelosos. Parece que
é possível apresentar razões para ambos os sentidos: “a obediência que consiste
em fé” e “a obediência que é o produto da fé”.

Em última análise, isso significa que muitas das opiniões sobre esse texto são
muito restritivas. Por conseqüência, uma tradução como “obediência por fé” (ou
“obediência crente”) parece melhor para preservar a ambigüidade erudita de
Paulo. Essa tradução, na verdade, preserva a ambigüidade e honra o modo pelo
qual Paulo relaciona fé e obediência ao longo da epístola.

O que dizer sobre sola fide?

Fé, ao longo de todas as cartas de Paulo, tem início tanto na ação de escutar o
evangelho quanto confiar no prometido a todos os que crêem. Mas a fé nunca
termina aí. A fé é dinâmica e viva. Ela sempre leva o crente a uma união viva
com Cristo Jesus que é Senhor. “A palavra [fé] implica a resposta de total
submissão pessoal do crente ao Senhor ressurreto.” Esse “fator de compromisso”
demonstra que a preocupação principal de Paulo em relação aos crentes de Roma
era a perseverança deles na verdadeira fé.21

O leitor evangélico perspicaz, que tem algum conhecimento sobre a história do


debate protestante-católico no tocante a graça e fé, pode objetar: “Essa
compreensão de fé e obediência não poderia comprometer a verdade da sola
gratia e sola fideT’ Não creio.

O teólogo já morto G. C. Berkouwer, que observou que a frase “a obediência por


fé” na verdade nos dá uma indicação sobre a natureza da verdadeira fé,
complementa:

Essa obediência não pode ser abstraída daquele a quem o crente se

submete. Não podemos fechar nossos olhos ao elemento de obediência na fé,


mas se a enxergarmos corretamente compreenderemos que ela serve para nos
mostrar quão completamente a fé é dirigida ao seu objeto.22

Don Garlington compreendeu maravilhosamente a essência dessa frase fecunda


para uma teologia mais plena do Novo Testamento:

... embora a frase “a obediência por fé” ocorra apenas duas vezes (ou apenas
uma) em toda a literatura paulina, ela compreende o início, o meio e o fim da
pregação de Paulo. Observada dentro do contexto de seu esforço missionário, “a
obediência por fé” é uma forma sucinta de trazer à memória a necessidade de fé
inicial, fé perseverante, e a fé que justifica no último julgamento. Nessa
perspectiva, [“a obediência por fé”] forma o complemento de “a justiça de Deus”
como revelada [“de fé em fé”] (Rm 1.17). Em resumo, “a obediência por fé”
concentra, em uma pequena seqüência de palavras, a essência do evangelho de
salvação de Paulo para o mundo.23

Em Romanos, Paulo está demonstrando como os gentios, que não têm a lei e as
alianças, realmente chegaram a um relacionamento pactuai com o Deus de Israel
crendo no evangelho, e assim foram integrados na obediência de um novo
homem (cf. Rm 5.12-21). Por intermédio da união com esse homem, aqueles que
crêem também entram num relacionamento vital com o próprio Deus. Essa união
resulta em fidelidade a Deus por meio da nova aliança. E essa fidelidade é
“obediência” ou, como tenho chamado por uma questão de clareza, “obediência
evangélica”.

Ao usar a palavra “evangélica” desejo sublinhar que essa “obediência” não é a


obediência da carne ou a “obediência” de nossos esforços para guardar as
exigências da lei, como base para a nossa aceitação diante de Deus. Mas “estaria
a nossa futura e final justificação diante de Deus no último dia baseada em nossa
obediência à lei?” Essa é, no meu entender, a questão central da Reforma,
embora Lutero nem sempre a colocasse exatamente nesses termos. Ele estava
interessado em saber

se um crente pode ter certeza do perdão final. Posso ter certeza de que tenho a
“justificação de Deus”, de modo que eu poderia me apresentar absolvido de
todos os meus pecados, coberto pela perfeita justificação que Deus aceitará no
último dia?

Falar de obediência como necessária e como vitalmente ligada à fé faz parecer,


para alguns, que a obediência, na verdade, acrescenta algo à justificação de
Deus. Eu respondo: a obediência, por si só, é produto da fé, quando está baseada
no evangelho, e onde a verdadeira fé existe haverá - de fato deve haver -
justificação por Deus, tanto presente quanto final. Creio que Don Garlington nos
oferece uma advertência correta quando conclui: “Quando causa e efeito são
mantidos assim numa sucessão exata, toda ansiedade quanto à noção de
justificação pelo ‘fazer’ deveria ser mitigada, se não completamente
eliminada”.24
Deus, no final dos tempos, não julgará o crente com base em quantas boas obras
ele fez, mas sim se ele, realmente, se uniu ou não unicamente a Cristo para a
justificação de Deus. Mas alguém ainda poderia objetar: “Como posso saber se
estou unido a Cristo? E se minha fé não for a fé da obediência?” A idéia de
obediência e perseverança sendo vitalmente ligadas à fé, na verdade, não
destruiria a confiança e a segurança cristãs?

Confiança?

Primeiro é necessário reconhecer que a todos os crentes no Novo Testamento são


dadas advertências reais. Essas advertências são endereçadas àqueles que
demonstram a todos uma aparência externa de estarem unidos a Cristo. Tais
avisos devem ser levados a sério. De fato, levá-los a sério, no Novo Testamento,
conduz a um excelente fim - a saber, permanecer na fé. Muitas noções modernas
sobre segurança eterna claramente deixam de levar a sério esses avisos. Em
poucas palavras, nem todos aqueles que professam ter fé em Cristo têm a
“obediência por fé”. Existe uma fé, mencionada com freqüência no Novo
Testamento, que é insuficiente como fé salvadora. Judas tinha esse tipo de fé.
Outros que possuíam tal tipo de fé são freqüentemente mencionados nas cartas

de Paulo. As advertências de Paulo, contidas em uma frase como “a obediência


por fé”, são, na verdade, “dirigidas não àqueles que, por fraqueza ou
vulnerabilidade cometem pecados, mas [ao contrário, são dirigidas àqueles que]
são orgulhosos, culpados de presunção e vivem num estado de ilusão”.25 Os
crentes pecam e os crentes falham, muitas vezes em razão de profundas
fraquezas humanas. Mas os crentes continuam a crer e por isso se unem a Cristo
em sua aliança. Vivem como aqueles que são fiéis a Deus que lhes mostrou
graça e misericórdia. Experimentam a obra do Espírito Santo produzindo neles o
tipo de fé apontada em Romanos 1.

Então, o que significam esses avisos para a segurança da fé? Creio que Paulo
responde apropriadamente essa questão quando escreve: “Todavia, não é assim o
dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos,
muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo,
foram abundantes sobre muitos” (Rm 5.15). “O dom gratuito de Deus é a vida
eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6.23). G. C. Berkouwer, em seu
clássico trabalho sobre perseverança (o qual pessoalmente sustentou minha alma
durante os dias que cercaram a morte de meu pai), coloca muito bem esse
relacionamento quando diz: “A fé conhece a precedência da graça de Deus e o
dom da perseverança que é idêntico ao ato de preservação de Deus, porque, pela
graça, a transição da morte para a vida é irreversível”.26 Essa é, afinal, a correta
abordagem para uma segurança bem firmada.

Mesmo quando o apóstolo exorta os crentes a examinar sua fé, o que ele faz
sinceramente (cf. 2Co 13.5), deve-se observar que ele os exorta para verificar se
estão se apegando à fé e não às obras. Esse apelo demonstra que não ganhamos
confiança levando em consideração as nossas obras. Recebemos e mantemos
uma forte confiança contemplando Cristo com a fé que essencialmente medita
em sua glória e seu trabalho completado. Nós nos lembramos de que ele, apesar
de tudo, está intercedendo por nós e levando em seu corpo as marcas de
nossa redenção.

Além disso, o método pastoral utilizado por Paulo a esse respeito é digno de
cuidadosa atenção. Paulo escreve: “não que tenhamos domí-

nio sobre a vossa fé, mas porque somos cooperadores de vossa alegria;
porquanto, pela fé, já estais firmados” (2Co 1.24). Muitos pastores modernos,
ao compreenderem passagens de advertência e a relação entre fé e obediência
como descrito supra, deixam de lutar pela alegria de seus ouvintes e, na verdade,
levam homens e mulheres a se apoiarem em algo diferente da fé.
Martinho Lutero

Mas e quanto à solafidel Deveríamos ainda falar de uma salvação que vem
totalmente pela graça e é apropriada unicamente pela fé? Ao longo deste
capítulo, temos visto uma relação positiva entre o que podemos denominar
apropriadamente de justificação e santificação. A salvação é uma iniciativa de
Deus, entretanto, a resposta a essa iniciativa em graça também é parte da obra
salvadora de Cristo. É isso o que Deus faz ao dar o seu Espírito àqueles a quem
ele, graciosamente, escolhe redimir. É o Espírito de vida que fortifica e capacita
o crente tanto a vir para a fé quanto a permanecer na fé. Uma concepção mais
trinitária de salvação protegeria nosso pensamento de inúmeras idéias falsas.

Lutero e outros reformadores estavam reagindo contra a introdução do conceito


de mérito pessoal na justificação. Na Idade Média, o foco de grande parte da
teologia escolástica tinha sido colocado sobre o fato de como o indivíduo
poderia se apropriar da graça de Deus. O que se desenvolveu ao longo de vários
séculos foi o conceito de que, se fizesse o melhor possível para ir a Deus, seus
esforços seriam recompensados com graça suficiente e você poderia ser ajudado
a caminhar os passos seguintes o que, eventualmente, poderia levá-lo de volta ao
lar e ao Pai. (Teólogos historiadores falam corretamente dessa concepção como
uma confusão entre a justificação como um ato legal realizado e a santificação
como um processo de crescimento e obediência. Roma mantém essa mesma
confusão até os nossos dias, como se pode verificar no moderno Catechism of
the Catholic Church.)

Por vários séculos, até o tempo de Lutero, a missa e a penitência eram as


respostas dadas pela igreja à pergunta: “Como posso realmente

voltar para o Pai?” O que Lutero descobriu foi que a justiça de Deus, a qual o
homem deve possuir se deseja ser perdoado e aceito, não é fruto de esforços
humanos, mas nos é dada unicamente “pela fé do começo ao fim” (cf. Rm 1.17).
A salvação de Lutero e sua plena libertação vieram da compreensão de que a
graça não procede do esforço e da luta humana - apesar dos sacramentos e da
vida eclesiástica - mas somente pela fé. Ele entendeu receber a graça como
crença verdadeira nas promessas oferecidas aos pecadores no evangelho.27

Enquanto a sola fide for compreendida nesse contexto, o que não tem sido o
caso mesmo do lado protestante do debate, ela é uma afirmação adequada e
válida.28 Entretanto, quando a justificação não é considerada no contexto mais
amplo do Novo Testamento, inevitavelmente aparecem problemas porque não
damos a devida atenção ao ensino da própria Bíblia. Permitam-me explicar.

"A justiça de Deus" sozinha

O Novo Testamento não contém uma doutrina de justificação pela fé somente


como tal. O que realmente temos é uma doutrina da justificação de Deus
somente, sob a qual a historicamente debatida doutrina da justificação pela fé
somente deveria estar subordinada. Essa é a razão pela qual deveríamos enfatizar
que “nós [deveríamos] prosseguir para falar mais propriamente da relação entre
justiça e julgamento final”.29 Porque a justiça de Deus é a única necessidade dos
pecadores, a questão no Novo Testamento é, na verdade: “Onde adquiro a justiça
exigida?” A resposta tanto dos reformadores quanto da Bíblia é que recebemos
essa justiça apenas em Cristo. Eu argumentaria que, mesmo
historicamente, solus Christus foi uma questão vital. Sola gratia e sola fide
foram compreendidas, em essência, como proteção para essa verdade central -
que a salvação não é encontrada em “nenhum outro nome debaixo do
céu”. Devemos ser salvos somente (isto é, diretamente) por Cristo, não pela ou
por intermédio da igreja, seus sacramentos ou outra coisa que possamos trazer
para a obra da graça.

Grande parte do problema nesse debate é que ficamos presos a ca-

tegorias históricas. Estas devem ser consideradas como parte da providência e do


cuidado de Deus para com a verdade, mas, ao mesmo tempo, perdemos parte
significativa de categorias exegéticas que são reveladas no próprio Novo
Testamento.

A dicotomia histórica e corrente entre fé e obras, tanto na arena popular quanto


no campo do estudo, exatamente porque foi estabelecida de um severo contraste,
tem sido exposta, com freqüência, de modo precário

... entre graça de Deus de um lado e a conquista humana como base e


instrumento de justificação de outro. Fé e obras nesse sentido são mutuamente
exclusivas. Mas o apóstolo espera que a fé trabalhe por meio do amor (G15.6),
enquanto ele associava “fé” e “obras” em uma de suas primeiras referências à fé
(pistis), ver 1 Tessalonicenses 1.3 (na verdade, a primeira vez se lTs foi a
primeira carta de Paulo).30

É realmente difícil, como sugere a afirmação supra, compreender como e por


que Paulo colocaria “obras” e “fé” juntas na passagem de Tessalonicenses, como
mencionado, se suas idéias são tão dicotômicas quanto muitos propõem. Elas
estão claramente colocadas juntas e exatamente na mesma frase porque são,
como tenho argumentado, indispen-savelmente e intimamente relacionadas ou
conectadas. Para usar uma frase apropriada de um contexto diferente: “O que
Deus ajuntou não o separe o homem” (Mt 19.6).

A verdadeira base para nos colocarmos diante de Deus

Na compreensão mais tradicional de sola fide, com freqüência, se diz que os


cristãos se apropriam da justiça de Deus para si mesmos na base da fé. O modo
mais paulino de compreender isso deveria acrescentar que em Cristo somos
levados a uma união vital na qual compartilhamos sua lealdade pactuai que antes
era exclusivamente de Deus. Nesse relacionamento pactuai, baseado unicamente
na união com

Cristo, a justiça de Deus “comunicada aos cristãos não é senão a contínua justiça
de Cristo, a contínua obediência do único homem justo, agora vivida nos cristãos
e constituindo a base de seu destino para a vida eterna”.31

Steve Motyer apresentou muito bem essa compreensão decididamente mais


cristocêntrica da justiça de Deus e de seu relacionamento com nossa justificação
e salvação. Ele escreve:

A base para toda a vida do povo de Deus é a justiça dele - sua misericórdia
abrangente e salvadora, que resgata sua criação para si mesmo. Essa justiça foi
agora supremamente expressada em Cristo. Mas à medida que os homens são
alcançados por ela, “justificados” e feitos aceitáveis diante de Deus, eles também
são marcados com a imagem de seu justo Salvador, e chamados a viver em
imitação a ele como seu povo.32

Por tudo isso, devo pleitear uma aplicação mais equilibrada das conclusões a que
chegamos neste capítulo. Devemos sempre afirmar e reafirmar, por causa de
nossa propensão à confusão a esse respeito, que não há, absolutamente,
nenhuma possibilidade de uma “justiça pelas obras” (cf. Rm 5.15-17; 6.23).
Nesse sentido, a sola fide é apropriadamente defendida e permanece até hoje
como “a edificação ou queda da verdadeira igreja” (Lutero). O caráter de dádiva
da justiça de Deus em Cristo exclui apenas toda conquista moral ou jactância
humanas. Não há nada que possamos trazer à obra reconciliadora de Deus em
Cristo, senão nossas vidas pecaminosas. Por essa razão, o modelo comum jus-
tificação/santificação, com sua ênfase no fato de que a salvação é totalmente de
Deus, ainda é útil.

Ao mesmo tempo, precisamos considerar, com o discernimento de John Murray,


que uma vez que o Novo Testamento fala da santificação mais como um
acontecimento único que um processo, devemos concluir que (como diz
Garlington): “Sob essa luz é difícil pensar que ‘justificação’ e ‘santificação’
sejam radicalmente distintas porquanto ambas, no emprego principal que é feito
dessas palavras no Novo Testamento, fazem referência ao mesmo evento”. Por
isso quero dizer que

ambas as doutrinas se referem à “atuação da ‘justiça de Deus’, começando com a


absolvição/libertação do crente em Cristo e resultando na vida eterna”.33

Ordo salutis?

O pensamento protestante reformado tende a falar de uma ordo salutis, ou de


“uma ordem da salvação”. Esse conceito tem a própria utilidade no que diz
respeito a proteger a natureza sola gratia da salvação na soberania de Deus. Ao
mesmo tempo, vários teólogos reformados modernos têm criticado com
propriedade alguns aspectos desse esquema tradicional a partir de bases mais
exegéticas.

Richard B. Gaffin tem sugerido que a ordo salutis é desprovida do contexto


escatológico do pensamento de Paulo. Gaffin deseja enfatizar que, em Paulo,
soteriologia é escatologia de forma muito real. Toda a experiência de salvação,
no entendimento de Gaffin, está enraizada na solidariedade com a ressurreição
de Cristo e na vinda da outra criação, inaugurada por aquela ressurreição.
Garlington reflete corretamente a preocupação de Gaffin quando conclui:

Assim, a compreensão da presente experiência cristã como uma tensão


escatológica entre ressurreição realizada e ressurreição ainda por vir é totalmente
estranha à ordo salutis, na qual as categorias de justificação, adoção,
santificação e regeneração estão privadas de todo sentido escatológico e de toda
conexão real completa com o futuro (grifos do original).34
Gaffin sugere, em segundo lugar, que o conceito de ordo salutis geralmente trata
a justificação, a adoção e a santificação como atos separados. Entretanto,
observa Gaffin com propriedade, Paulo as trata não como atos distintos, mas
como aspectos distintos de um único ato salvador. A parte mais problemática de
todas no conceito de ordo salutis é a maneira pela qual o problema de fé e
obediência se relaciona com o todo maior de nossa união com Cristo. Garlington
está certo quando conclui

que “se esses outros atos são, de certa forma, anteriores à união com Cristo,
então essa união está impropriamente subordinada a eles, e sua importância
bíblica, severamente enfraquecida” (grifos do original).35

O teólogo reformado falecido Anthony A. Hoekema foi outro que questionou a


idéia da ordo salutis, ao sugerir que eram necessários considerações e estudos
adicionais à luz de interesses ou preocupações bíblicas no que diz respeito ao
trabalho de Deus na salvação de pecadores. Ele assinala as seguintes
preocupações importantes que têm moldado profundamente meu pensamento a
respeito dessa questão:

1) Os termos usados no conceito de ordo salutis (regeneração, conversão,


renovação, etc.) não são empregados na Bíblia da mesma forma que os teólogos,
com freqüência, os têm utilizado.

2) A ordem sucessivamente conferida a essas doutrinas na salvação de Deus


não é a ordem citada em várias passagens pelas Escrituras (por exemplo, 1 Co
6.11).

3) O texto principal citado freqüentemente para o conceito de ordo salutis é


Romanos 8.30, o qual simplesmente não tem como propósito original estabelecer
medidas na ordem da salvação como comu-mente apresentadas por teólogos
sistemáticos.

4) A fé não deve nunca ser considerada como um estágio na ordem da


salvação, uma vez que deve ser exercida ao longo de toda a vida cristã.

5) Justificação e santificação não são estágios sucessivos na vida cristã, mas


são simultâneos [tanto o item 4 quanto o 5 são percepções decisivas que refletem
muito o ponto de vista apresentado por mim neste capítulo]; e

6) Finalmente a ordem sugerida por vários teólogos deixa de lado vários


aspectos essenciais da doutrina bíblica da salvação, por exemplo, amor e
esperança.36

Categorias como regeneração, justificação e santificação são distintas e úteis


para efeito de cuidadosa consideração, mas devemos ter em mente que essas
classes distintas não podem ser separadas nunca. É muito melhor pensar em
salvação não tanto em termos de ordem (uma vez que

mesmo nesse caso não estamos exatamente seguros quanto ao pensamento ou


tempo de Deus), mas em termos de um caminho - um caminho no qual há vários
aspectos distintos. Anthony Hoekema nos auxilia a pensar de modo mais bíblico
ao sugerir que a salvação é mais bem concebida não como uma linha com
gradações ou estágios sucessivos (isto é: regeneração, conversão, justificação,
santificação, perseverança), mas sim como um prédio em forma de pentágono
cujas cinco paredes são construídas de experiências que começam e continuam
simultaneamente.

Conclusão

Hoekema descreve as implicações dessa maneira de pensar sobre salvação. A


regeneração deve ocorrer, por exemplo, no início de nosso relacionamento com
Cristo, mas ele não termina aí. Seus efeitos continuam de tal modo que a pessoa
que é regenerada vive um estilo regenerado de vida. Embora fé e arrependimento
estejam no início da jornada de um cristão, ambos devem continuar até o fim.
Martinho Lutero compreendeu essa questão do arrependimento como sendo
algo que se prolonga por toda a vida quando, na primeira das suas famosas 95
teses, ele escreveu: “Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo diz ‘arrependei-
vos’, ele quer dizer que a vida inteira do crente deve ser de arrependimento”.
Isso significa que o arrependimento “não pode nunca ser reduzido a um ato
único que permanece sozinho no início da vida cristã, nem deve ser
compreendido de modo superficial e unidimensio-nal”.37 Calvino também fala
dessa forma, e se refere ao fato de que nossa união com Cristo deve resultar
naquilo que ele chama de “mortificação e vivificação”. A justificação ocorre
quando alguém aceita a Cristo por fé, mas ela é seguida por uma apropriação de
seus graciosos benefícios durante toda a vida. A santificação ocorre ao longo de
todo o curso da vida e é completada apenas depois da morte; portanto,
perseverança na fé e arrependimento (expressos na obediência evangélica) são
necessários ao longo de toda a vida de um cristão.
Outra maneira de dizer tudo isso é compreender que os vários aspectos da
salvação de Deus pela graça são interativos. Fé não é um meio

unitário e singular de receber a justificação, como muitas vezes compreendido


nos imensuráveis erros práticos que se avolumam em nossos dias. Fé, ao
contrário, é uma necessidade ao longo de toda a vida de uma pessoa. Como a
tradição reformada sempre insistiu, é impossível ser justificado sem ser também
santificado. Outra maneira de dizer a mesma coisa é insistir que, se você é
regenerado, você também perseverará na mesma fé que lhe foi dada pela
operação ativa do Espírito.

Finalmente, como crentes, devemos reconhecer que ainda permanecemos na


tensão já/não entre este tempo e o tempo por vir. Essa é a dimensão escatológica
da “obediência por fé” que tenho procurado enfatizar em toda parte. Aqueles que
crêem já estão em Cristo e, em certo sentido, tão justificados quanto sempre o
serão. Ao mesmo tempo, esses mesmos crentes justificados ainda não são
perfeitos. Os crentes estão no caminho que leva à glória por vir, mas ainda não
alcançaram essa glória. Portanto, Hoekema com certeza está correto quando
conclui que os crentes são “genuinamente novas criaturas, mas ainda não
totalmente novas” (grifos do original).38

A pessoa que tem fé em Cristo experimentará um conflito persistente ao longo


de toda sua vida. Conhecerá também, de acordo com o realismo da epístola de
Paulo aos Romanos (cf. Rm 7), derrotas periódicas. A perfeição, assim como
qualquer conceito de salvação que possa ser estabelecido em mérito humano,
está completamente descartada. Finalmente, pela graça de Deus apenas, pela
(por meio da) obediência crente (ou obediência da fé) aqueles que se entregam
somente a Cristo serão “mais que vencedores, por meio daquele que nos
amou” (Rm 8.37).
Legalismo e antinomianismo: duas rotas mortais fora
do caminho estreito

tidões estremecem de medo implorando às montanhas que caiam

momento final da História ocorreu. O Senhor retomou! As mul

sobre elas de modo a que não vejam a iminente ira do Cordeiro. Muitos,
entretanto, aglomeram-se para ver Cristo, saudando-o não como um grande
mestre, mas como quem ele verdadeiramente é - o Senhor. Esses viveram em
alegre antecipação desse dia realizando admiráveis obras de ministério em nome
de Cristo. O Senhor Jesus vira-se para essa multidão de crentes com palavras que
ressoam pelos céus e pela terra: “Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim, os
que praticais a iniqüidade”

(Mt 7.23).

Essa cena do final dos tempos permanece como uma das mais importantes lições
que o Senhor ensinou aos seus discípulos. Apropriadamente, ela aparece no final
do Sermão do Monte, endereçada de forma especial àqueles que haviam
suportado suas duras palavras anteriores e que ainda estavam considerando a
possibilidade de segui-lo. Além dos muitos que serão perdidos, e sabem disso,
quando Cristo retomar haverá muitos perdidos que confiantemente se apressarão
para encontrar aquele que consideram como seu Senhor.

A realidade dessa espantosa verdade das Escrituras levou à conjectura de que as


pessoas podem perder sua salvação. Entretanto, a ver-

dade é muito mais assustadora do que a teoria. Esse aviso de Cristo não é sobre
apostasia. Ele não dirá: “Eu os conheci, mas vocês se desviaram”. Ao contrário,
ele dirá: “Nunca os conheci. Durante toda a vida de vocês nesta terra, em todo o
ministério feito em meu nome, eu nunca os conheci”. Cristo não adverte os que
conhecem o perigo de se afastar. Adverte seus discípulos a que verifiquem se são
realmente discípulos dele. Alguém pode operar feitos maravilhosos, e até mesmo
miraculosos em nome de Cristo, ter absoluta confiança de que está vivendo
num estado de graça salvadora, ser suficientemente confiante para saudar
a Cristo no dia do julgamento sem nunca ter tido uma relação viva com ele.

Este capítulo tem por objetivo se ocupar dos fundamentos teológicos por trás
dessa sóbria verdade. Há dois erros idênticos que abrem as portas para a falsa
segurança dos perdidos. O legalismo envolve as muitas maneiras pelas quais os
indivíduos crêem que as próprias ações morais são pelo menos uma parte da
base para a sua justificação diante de Deus. O legalismo é, provavelmente, o erro
de muitos no grupo mencionado no Sermão do Monte, pois eles rapidamente
relembram a Cristo os atos que fizeram em nome dele. Isso implica uma
confiança nesses atos ao se apresentarem diante do Senhor.

O erro oposto é chamado antinomianismo. Essa ideologia diz que a pessoa pode
estar em conformidade com Deus por meio de um tipo de fé que não transforma
a vida da pessoa e não produz boas obras. Esses indivíduos condenados são os
“obreiros da iniqüidade”, aqueles que vivem uma vida sem arrependimento.

Alguns defendem a legitimidade de viver em pecado deturpando a doutrina da


graça. Estes são antinomianos. Ou outros eram legalistas que acreditavam que
seus atos piedosos faziam parte de sua retidão diante de Deus e ocultavam, sem
arrependimento, a iniqüidade ainda existente na vida deles. Ambos, legalistas e
antinomianos, encontraram-se para abraçar a Cristo apenas para serem
identificados como “obreiros da iniqüidade” e serem lançados nas trevas
exteriores.

Ao longo de toda a História, esses dois perigos precisam ser cuidadosamente


examinados e expostos. Exatamente porque tais falsificações vivem e
desabrocham na igreja, elas devem ser claramente demonstra-

das. Hoje, contudo, existe uma explosão sem precedentes desses erros entre
evangélicos professos. Apontar a natureza prevalecente desses erros é um dever
espinhoso. Examinaremos o excesso de termos para livrar aqueles que são
inocentemente acusados. Homens e mulheres que têm expulsado demônios e
feito muitas obras maravilhosas em nome de Cristo ainda serão encontrados
entre os que defendem um evangelho falsificado. Pessoalmente, tenho sido
abençoado pelos escritos e conferências dos que, hoje, defendem outro
evangelho, assim como estou certo de que os crentes no tempo de Paulo tinham
memórias agridoces do começo do ministério de Demas. Minha mais profunda
esperança é que Deus será glorificado e que sua misericórdia use este capítulo
para condenar e converter pessoas tanto famosas quanto desconhecidas, para que
juntos possamos nos regozijar naquele dia.

O escândalo do caminho estreito

“Entrai pela porta estreita (larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz
para a perdição, e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta, e
apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com
ela” (Mt 7.13,14). Nosso Senhor tem um dom especial para “discursos duros”.
Poucos têm sido tão devastadores e difíceis de aceitar como esse sobre quão
incomparável é, na verdade, o caminho para a vida.

Obviamente, a doutrina de um caminho estreito não apela àqueles que


atualmente se encontram no caminho largo. O evangelho parece tolo para os que
apreciam a própria estrada de muitas pistas onde há lugar para todas as opiniões
espirituais.

Infelizmente, esse discurso duro também tem a tendência de fazer tropeçar


aqueles que se consideram no caminho estreito. Existe no homem decaído uma
pressão obstinada de pertencer à maioria. Se alguma manobra pode ser feita para
introduzir à força outras pistas, ela será feita.

Entretanto, estreito é o caminho, e assim ele permanecerá. Deus é santo; os


humanos são pecadores. Não há razão alguma pela qual ele

deva providenciar um caminho para a salvação. Mas em sua infinita


misericórdia, ele providencia um.

Somente Jesus Cristo é o Salvador. Mas como Cristo salva? Se Cristo tivesse
sido meramente um bom professor, então muitas pistas poderiam ser encontradas
no caminho da vida. Fragmentos de seu ensino divino permanecem em outras
religiões e filosofias. Entretanto, o caminho estreito proclama que Cristo era o
único Deus-Homem inteiramente Deus e inteiramente homem. Ele veio para
morrer, para ser o sacrifício que desviaria a ira de Deus de certos pecadores.

Como esse sacrifício é aplicado aos humanos? Se fosse aplicado arbitrariamente


por Deus independente de quaisquer meios secundários, não haveria sentido na
discussão de nosso Senhor sobre os dois caminhos. Deus conduziria a redenção à
parte de qualquer atuação humana, sem portas para entrar nem a necessidade de
peregrinos fazerem a sua jornada.

Mas as Escrituras deixam muito claro que a redenção adquirida por Cristo deve
ser aplicada pelo seu Espírito na vida, no tempo e no espaço sobre esta terra. A
aplicação da redenção adquirida por Cristo é mais bem resumida na fórmula que
meu pai, Dr. John H. Gerstner, produziu tão sucintamente e está registrada em
seu Primer on Justification (hoje reunido a todos seus outros escritos num
volume que ele denominou Primitive Theology, publicado pela Soli Deo Gloria):

Fé -» Justificação + Obras

Uma pessoa pecadora é tomada justa aos olhos de Deus unicamente pela fé.
Passivamente, ela recebe a redenção confiando que Cristo comprou essa
redenção para ela. Mas a confiança em si mesma nasce apenas pela ação do
Espírito de Deus, que abre o coração para crer, e o novo coração, dado pelo
Espírito instantaneamente, nos leva adiante na busca por realização de obras de
gratidão, para trazer glória ao Senhor que nos redimiu.

Há dois precipícios íngremes em cada lado do caminho estreito que conduz à


vida. Ambos levam o caminhante a uma queda que, inexoravelmente, significa
destruição. Até mesmo aqueles que não seguem

esse caminho estão em grande perigo de afirmar a validade das estradas ao largo
da margem como, de fato, partes integrantes do caminho estreito.

Legalismo: o suborno ofensivo a um juiz santo

A primeira pista da rota ampla que pretende ser parte do caminho estreito é o
legalismo. O legalismo deve ser muito cuidadosamente definido. O legalismo
ensina que a posição de retidão da pessoa diante de Deus e o recebimento da
vida eterna são adquiridos totalmente ou em parte pela observância à lei por
parte dessa pessoa. O homem ganha toda ou parte de sua redenção por meio dos
próprios bons esforços.

O legalismo clássico não adulterado pode ser mais bem representado pela
fórmula:
Obras Justificação - Fé

Em outras palavras, não importa no que a pessoa crê; ela irá para o céu se
realizar boas obras.

O Cristianismo liberal, isto é, a ideologia que proclama abraçar o Cristianismo


enquanto nega os acontecimentos miraculosos por trás dele, patrocinou essa
posição. As boas obras, geralmente na maneira de lutar pela justiça social, são a
chave para tomar um indivíduo justo diante de Deus.

A teologia da libertação apresenta uma ênfase muito mais séria quanto ao papel
das Escrituras que o liberalismo clássico; no entanto, na prática, ela transforma o
fato de colocar-se ao lado dos oprimidos como o critério-chave para ser
considerado justificado diante de Deus. Minha permanência temporária na igreja
da África do Sul, nos últimos anos do governo branco, demonstrou semelhanças
assustadoras nos dois maiores campos opostos que então lutavam pela alma do
Cristianismo. De um lado, muitos dos defensores da segregação [apartheid]
agiam como se todas as pessoas que defendiam esse entendimento das culturas
fossem justas diante de Deus, quer fossem evangélicas professas ou

agnósticas. De outro lado, muitos consideravam os que se opunham ao sistema


como justos aos olhos de Deus, quer fossem evangélicos professos ou
muçulmanos.

Uma ênfase perigosa sobre questões políticas e sociais na igreja, sem


discernimento teológico, sofre o risco de permitir que o papel principal da igreja,
como proclamadora do evangelho, seja substituído pelo falso evangelho do
legalismo. A boa obra justificadora toma-se o tema do dia. Porquanto temos de
falar firmemente contra o mal social do aborto, estaríamos sendo ingênuos se
ignorássemos que o movimento contemporâneo pró-vida está certamente
enfrentando esse perigo. Na verdade, documentos recentes alegando unidade
espiritual entre católicos romanos ortodoxos e evangélicos seriam inconcebíveis
à parte desse movimento pró-vida e outros esforços que promovem os valores
morais na sociedade.

Contudo, se mantivermos o evangelho puro em primeiro lugar, descobriremos


que “tudo o que não provém de fé é pecado” (Rm 14.23). Em outras palavras,
sem estarmos bem com Deus, toda moralidade externa não é realmente boa.
Portanto, podemos trabalhar legitimamente com outras pessoas de qualquer fé
para promover justiça cívica ou exterior, estando, ao mesmo tempo, conscientes
de que nenhum grau de justiça civil alcançado por pessoas decaídas tomará essas
pessoas justas diante de Deus. Usar boas obras para se justificar é censurável
para o Senhor do céu, como o suborno o é para um juiz honesto. Somando tolice
à malícia, o legalista tenta subornar o Juiz santo com atos que são desprezíveis
em vez de atraentes ao Juiz. Toda a sua justiça se reduz a trapos sujos (Is 64.6).

É impossível deixar de observar a unidade entre religiões mundanas e o


cristianismo falso ou liberal em seu legalismo básico. Embora nenhum dos
seguidores dessa falsa religião se apresse em abraçar a Cristo como Senhor no
último dia, muitos ainda aguardam ansiosamente pela redenção que estão
comprando por meio de suas ações. Os muçulmanos ensinam que a pessoa é
justa diante de Alá com a submissão à sua vontade. O Budismo e o Hinduísmo
falam em conquistar a liberação deste mundo de ilusão, vivendo uma vida
altruísta de negação pessoal. Na medida em que as religiões não cristãs falam de
fé ou de doutrinas

certas, elas têm valor apenas como um tipo de obra. A pessoa carrega sua
compreensão correta das realidades espirituais ao tribunal da redenção como
parte de sua moralidade genérica. Essa rota ao longo da margem conquistou a
maioria do mundo.

Quanto mais se depara com o ocidental típico sem relacionamento com a igreja,
mais se descobre que o legalismo legítimo está vivo e forte entre os não-
religiosos também. O método da Explosão do Evangelismo fez a, hoje famosa,
pergunta a inúmeras pessoas: “Se você fosse morrer esta noite e Deus lhe
perguntasse ‘Por que eu deveria deixá-lo entrar no meu céu?’, o que você diria?”
A maioria absoluta dos que não têm nenhum relacionamento com algum tipo de
religião deu uma resposta do tipo legalista: “Sou uma boa pessoa”. “Tento viver
uma vida moralmente decente.” “Nunca machuquei ninguém.” No fundo da
condição decaída do homem está o desejo de conquistar a própria redenção.

Parte desse desejo universal do homem, de redimir-se por meio de obras, reflete
uma arraigada nostalgia do relacionamento original que havia entre Deus e os
humanos. Deus criou a humanidade para um relacionamento com ele. Viver uma
vida de completa santidade, ser reflexo humano da natureza de Deus,
proporcionaria a continuidade da vida eterna. Esse relacionamento, muitas vezes
denominado “pacto das obras”, ligava a vida eterna na presença de Deus à
fidelidade aos mandamentos de Deus e à capacidade de refletir a sua natureza.
Em sentido básico, esse pacto nunca foi revogado, pois a natureza de Deus
jamais muda. Cristo ainda pode dizer ao especialista na lei, que tolamente
pensou que guardava perfeitamente os mandamentos: “Faze isto e viverás” (Lc
10.28). O problema não é o instinto dado por Deus de que as boas obras são um
caminho para a vida, mas sim a terrível incapacidade de compreender que, neste
mundo decaído, “Bom só existe um” (Mt 19.17). “Pois todos pecaram e carecem
da glória de Deus” (Rm 3.23). Em outras palavras, qualquer ação que seja menor
que o perfeito reflexo da bondade de Deus não é verdadeiramente boa.
Legalismo é, na sua essência, uma incapacidade humana de reconhecer o próprio
estado moral.

Legalismo legitimado: a heresia dos gálatas

Dentro da comunidade cristã, contudo, há outra invasão de legalismo, mais sutil


que um legalismo não deturpado. Essa forma de legalismo ainda fala ao caráter
essencial da fé em Cristo, e pode confundir a muitos dentro da igreja visível. Sua
negação do evangelho acontece pela combinação de obras e fé como fonte da
justificação da pessoa diante de Deus:

Fé + Obras Justificação

Esse antigo erro é a primeira heresia registrada no Novo Testamento, a heresia


de Gálatas. A manifestação inicial dependia do papel do crente na observância
da lei cerimonial. Os legalistas de Gálatas diziam que o homem não poderia estar
justificado diante de Deus a não ser que fosse circuncidado. Aqueles dentre os
próprios irmãos que, quando creram, tiveram a certeza de estar justificados
diante de Deus, estavam lamentavelmente errados. A circuncisão era um pré-
requisito para a justificação.

E importante distinguir entre a heresia de Gálatas e outras diferenças de opinião


reais em relação ao papel da lei cerimonial para o crente. O próprio Paulo
circuncidou Timóteo, pelo menos parcialmente, para que ele não ofendesse os
crentes que consideravam a circuncisão como parte importante da vida de
gratidão do crente. Paulo estava corretamente convencido de que a circuncisão
havia sido cumprida no batismo, que era a circuncisão de Cristo, e que as
pessoas batizadas não tinham necessidade de ser circuncidadas. Mas esse debate
cristão interno tinha pouca importância para Paulo e ele, de boa vontade,
circuncidou Timóteo. Quando os legalistas da Galácia, entretanto, alegaram que
a circuncisão era um pré-requisito para a justificação diante de Deus, Paulo
intransigentemente declarou o anátema sobre eles como negadores perdidos do
evangelho. Se qualquer crente professo do evangelho concordasse em ser
circuncidado à luz do ensino desses heréticos, estaria negando o evangelho e,
assim, estaria perdido. Justificação pela fé não é o evangelho. Justificação pela
fé somente é o único evangelho! Todo o livro de

Gálatas prova que a Bíblia nos ensina que a fé é o único caminho para a
justificação.

Essa heresia mostrou novamente sua face feia no tempo da igreja medieval. A fé
ainda era vista como essencial; ninguém seria justificado sem fé. Fé e obras
cooperavam na justificação. A bela passagem sobre a “fé que atua pelo amor”
(G1 5.6) foi torcida para defender essa heresia. Esse texto, vindo do âmago da
luta de Paulo contra a heresia da Galácia, ensina claramente a verdade ortodoxa:
que a única fé que justifica é a verdadeira fé, evidenciada por seus frutos de
atuação amorosa. Entretanto, aqueles que deturparam as palavras de Paulo,
assim como outros textos das Escrituras, para a destruição deles mesmos,
alegavam que a fé com suas obras de amor eram os elementos com que
adquiriam redenção.

Essa heresia começou a ganhar um controle cada vez mais profundo na igreja
medieval. A invenção do purgatório, um lugar onde os crentes podiam completar
a aquisição de mérito aos olhos de Deus para serem admitidos no céu,
acrescentava mais estrutura e peso ao erro. De modo semelhante, a penitência,
um comportamento prescrito para conseguir a aprovação de Deus, tornou-se um
sacramento falso de um evangelho falso. Historicamente, a penitência tem suas
raízes na percepção da necessidade de uma evidência externa da sinceridade da
pessoa que alegava arrependimento e fé. No entanto, como todas as inovações
extrabíblicas da igreja, ela foi rapidamente utilizada pela crescente heresia.

A heresia medieval foi uma negação do evangelho no coração da própria igreja.


As Escrituras a condenam como outro evangelho. Ela foi também rejeitada pelos
primitivos pais da igreja. Quando Lutero e Zwinglio, com a assistência dos
escritos de Agostinho, redescobriram o evangelho e começaram claramente a
proclamá-lo atacando as exte-rioridades que eram inconsistentes com o
evangelho, a heresia nascente se tomou oficial. O Concilio de Trento afirmou, de
uma vez por todas, que aqueles que ensinavam o evangelho da justificação pela
fé somente estavam condenados, e a Igreja Católica Romana afirmou
solenemente que fé e obras juntas eram a base para a justificação diante de Deus.
Esta heresia se tomou “ortodoxia” para a maior parte dos cristãos.

Tendências contemporâneas do legalismo

Crentes evangélicos contemporâneos têm presenciado algumas tendências


singulares no legalismo. As mais penetrantes e sedutoras são, com freqüência, as
tentativas inconscientes de transformar a própria fé em obras. Em certo sentido,
todas as teorias arminianas que ensinam que a fé é um produto da vontade
humana, se firmemente aplicadas, levariam a uma heresia legalista. Por um ato
gracioso de Deus, parece que muitos arminianos deixam de elaborar sua doutrina
de fé até a sua conclusão consistente, e são salvos como pelo fogo. Entretanto,
alguns dos perdidos se apegarão à própria fé humana naquele último dia quando
se apressarem para encontrar o Senhor que nunca os conheceu.

Um crescente número de evangélicos tem adotado uma noção de fé


indiscutivelmente legalista. Para eles, a fé é, claramente, uma questão de esforço
humano, tomando-se assim, ela mesma, uma obra, levando à fórmula: obras -»
justificação. Os curadores radicais da fé descrevem a fé como algo que a
pessoa deve produzir para ser curada. Se o indivíduo se permitir duvidar de que
está curado, ele perderá sua cura. De modo semelhante, a fé justificadora deve
depender dos esforços do crente.

A mais sutil de todas é a tendência, entre evangélicos crentes, de afirmar que a


noção herética de Gálatas sobre justificação adotada pela Igreja Católica
Romana é uma opção cristã aceitável. Desde que a fé seja essencial para a
justificação, eles argumentam, não é necessário que seja pela fé somente.

O documento terrível de 1994, Evangelicals and Catholics Together (ECT)


alegou que evangélicos e católicos romanos são irmãos em Cristo. Ele traz a
afirmação de que ambos os grupos crêem na justificação pela fé, e menciona a
citação-chave de Trento: “fé que atua pelo amor”. O documento não comenta
sobre o crescente número de evangélicos que, confusamente, permaneceram na
Igreja Católica Romana; mas afirma claramente que católicos romanos
ortodoxos e evangélicos são um em Cristo. Pela graça de Deus, alguns
evangélicos que assinaram o documento desde então repudiaram seu erro;
todavia, a maioria tem perseverado e defendido o ECT por escrito, sem se
envergonhar.
Um grupo significativo de evangélicos entre os signatários do

ECT, mais tarde, escreveu um documento esclarecedor que afirmava sua


convicção pessoal na justificação pela fé somente. Esse documento esquiva-se
completamente da questão central. A questão não é se alguns dos signatários
crêem na justificação pela fé somente. A questão é se eles continuam a declarar,
com ao ECT, que a noção católico-romana ortodoxa da justificação não se
constitui uma barreira para ser um em Cristo. É claro que, recusando-se a
renunciar ao ECT, eles mantêm que a unidade em Cristo não exige anuência ao
evangelho da justificação pela graça somente.

Os signatários do ECT, tanto católicos romanos quanto evangélicos professos,


reconhecem que a justificação pela fé somente é uma fórmula aceitável assim
como a fórmula católico-romana de justificação pela fé e pelas obras. Uma ou
outra pode ter a preferência pessoal dos indivíduos, mas isso não impede que se
reconheça aquele que aceita a visão alternativa como um irmão em Cristo. A
distinção entre o evangelho e a heresia da Galácia é, assim, colocada no mesmo
nível que a distinção entre as diferentes opiniões milenares. Dessa maneira,
temos a forma mais sutil de legalismo a atingir a igreja em sua história.
Embora professando crer no evangelho, esses signatários afirmam que rejeitar
o evangelho, substituindo-o pelo velho tipo de heresia dos gálatas, não é uma
barreira para ser um em Cristo.

Eles bem poderiam dizer: “Se eu ou um anjo do céu pregar outro evangelho, que
ele seja reconhecido como meu irmão em Cristo, co-signatário de manifestos
religiosos e co-autor de livros que encorajam níveis ainda mais altos de
cooperação”. Paulo, pelo Espírito de Deus, condena aqueles que colaboraram
com os hereges da Galácia, assim como os próprios heréticos. Pela graça de
Deus, um número crescente de organismos e instituições cristãs tem exercido
disciplina para barrar a entrada de signatários do ECT em seus ministérios até
que esses homens se arrependam e renunciem ao documento retirando os seus
nomes dele.

O ECT produziu também uma das mais extraordinárias combinações de heresia


na história da igreja. Provavelmente pela primeira vez na História, podemos
encontrar pessoas que podem ser legitimamente identificadas ao mesmo tempo
como legalistas e como antinomianas.

Alguns escritores evangélicos são há muito tempo conhecidos por seus escritos
antinomianos. Suas afirmações em defesa do Evangelicals and Catholics
Together têm demonstrado que eles crêem que o fato de se manterem fiéis à
heresia legalista dos gálatas não representa uma barreira para serem um em
Cristo. Embora mantendo uma teologia pessoal antinomiana, ao mesmo tempo
eles aparentemente crêem que podem ter unidade espiritual com pessoas que
aderem a esse tipo de legalismo. Ou Deus tem preservado esses crentes ao longo
de uma inconsistência sem paralelos enquanto ele mantém neles um amor
escondido pelo verdadeiro evangelho, ou consistentemente eles estão declarando
um legalismo em que obras justificação, um legalismo em que a fé é a única
obra requerida. Assim, aquele que possui essa fé produzida humanamente
é salvo, mesmo se acreditar erroneamente que outras obras humanas são também
pré-requisitos, ainda que da perspectiva do signatário a fé seja a única obra
necessária não exigindo nem mesmo boas obras subseqüentes como evidência de
verdadeira fé. O documento ECT não divide o evangelicalismo, ele apenas
revela que muitos evangélicos professos estão tão perdidos quanto católicos
romanos ortodoxos.

O abuso do termo legalismo

Antes de concluirmos a seção sobre legalismo é importante lembrar um infeliz


abuso do termo que tem dominado o linguajar evangélico contemporâneo.
Noventa por cento das vezes em que ouvi o termo “legalismo”, com certeza, ele
foi mal empregado. Em vez de se referir à doutrina de que pelo menos parte da
dádiva da vida eterna é merecida por minhas ações, o “legalismo” é usado para
se referir a uma ênfase demasiadamente pesada sobre certos princípios éticos
exegeticamente questionáveis (segundo o ponto de vista do interlocutor). Um
exemplo típico desse abuso do termo seria: “Fui criado numa igreja legalista
que não permitia que fôssemos ao cinema”. Esse abuso do termo, por um lado,
coloca em risco tanto a diminuição da severidade de, exatamente, quão nocivo é
o verdadeiro legalismo e, por outro lado, expõe à difamação irmãos e irmãs
evangélicos que estão defendendo o evangelho. Se

aquele que ataca a igreja contrária ao cinema for capaz de demonstrar que sua
igreja de fato ensina que a pessoa justificada pela fé não pode ir ao cinema, então
ele realmente provou que aquele grupo faz parte de um culto legalista e não de
uma igreja. Esse grupo seria análogo aos judaizantes da Galácia. Se eles
encontrassem um crente professo que vai ao cinema, eles diriam que esse
indivíduo ainda não pode ser um verdadeiro crente porque se abster do cinema é
um pré-requisito para ser cristão. Espero ter demonstrado quão absurdo (bem
como descaridoso) é esse uso comum da palavra, e duvido que uma pessoa que
usa o termo tão superficialmente, quando confrontada, tenha condições de
estabelecer tal declaração.

Até onde posso falar, a pessoa que grita “legalismo” está atacando grupos que
pensam que a lei de Deus exige, explícita ou implicitamente, algum tipo de
comportamento que ela pessoalmente não acredita ser exigido. Voltando ao
nosso exemplo, parece-me que à resposta dos membros da igreja em questão, se
fossem desafiados quanto à sua posição, diriam que eles crêem que a justificação
é pela fé somente, e que parte da vida de gratidão que se segue ao fato de ser
redimido inclui não ir ao cinema. Obviamente, esses crentes estariam
moralmente obrigados a basear seu argumento contra o cinema nas Escrituras, e
estou certo de que estariam dispostos a aceitar o desafio. Quer sejam capazes de
persuadir outros ou não, esses crentes certamente não são legalistas. O
uso incorreto do termo distorceu uma questão exegética entre dois crentes e fez
parecer que há uma diferença entre o evangelho verdadeiro e o falso evangelho!
Em meio à luta de vida ou morte contra o verdadeiro legalismo, o uso errado e
indelicado do termo deve cessar.

Uma última observação àqueles que acreditam que a Palavra de Deus identifica
uma ação particular como parte do caminho da obediência agradecida que o
convertido deve demonstrar enquanto outro crente professo não participa da
mesma opinião (devo mencionar que, num contexto ou outro, esse conflito,
provavelmente, está presente entre todo par de crentes). Em nosso exemplo, o
irmão que pensa que a Bíblia não exige que ele se abstenha de ir ao cinema pode
não ser chamado de antinomiano ou libertino pelo irmão que vai ao cinema.
Aqui, também, temos uma diferença exegética entre dois crentes, não uma
negação do

evangelho. Parte do nosso crescimento na graça está em nos tornarmos cada vez
mais capazes de perceber as implicações da Bíblia e não apenas a literatura.
Como nós, que andamos com o Senhor há anos (e todos que compreendem o
Sermão do Monte), sabemos o espírito da lei é mais rigoroso que o da literatura,
e não mais indulgente. Ensinar um jovem cristão vai ajudá-lo, inevitavelmente, a
perceber as implicações nos mandamentos de Cristo que ele não vira
anteriormente, assim como vai ajudá-lo a perceber os valores culturais que têm
sido confundidos com implicações da lei de Deus. Entretanto, isso não significa
que, quando o indivíduo ainda não enxergou a ramificação especial da lei, ele
esteve alegando ser crente enquanto intencionalmente está vivendo em pecado.

Tenho visto pessoas fazerem de tudo em sua vida espiritual a esse respeito.
Primeiro, como jovens cristãos, guardam uma obediência implícita a Deus, na
medida em que observam os outros na igreja. Mais tarde, sob a influência de
ainda outros que não vêem a implicação, passam a atacar a prática em questão de
forma incorreta e insensata, como “legalista”. Finalmente, descobrem a base
bíblica para o princípio e são persuadidos de que a prática era, de fato, uma
implicação da lei de Deus e voltam, então, a observá-la. Sem dúvida, nem todas
as inferências são válidas e alguns indivíduos, inconscientemente, permitem que
valores culturais sejam confundidos com implicações das Escrituras, mas
não devemos condenar como legalistas nem mesmo aqueles que erram tirando
falsas inferências do ensino ético das Escrituras, não obstante, não devemos
condenar como antinomianos aqueles que deixam de perceber as inferências
válidas desses ensinamentos.

Eu acredito que esta discussão nos tomou mais interessados no campo prático da
ética bíblica ou, como os puritanos gostavam de chamar, nos casos de
consciência.

Antinomianismo clássico: a heresia do porco justificado

O Dr. D. James Kennedy gosta de ilustrar a diferença entre o pecado na vida de


um crente e o pecado na vida de um não-crente usando

a analogia do gato e do porco. Se um gato cai numa poça de lama, ele


imediatamente começa a se limpar. Se o porco cai na lama ele, tendo descoberto
o próprio fundamento, alegremente chafurda nela. Antinomianismo é a heresia
do porco justificado:

Fé Justificação - Obras

O antinomianismo também é encontrado no coração da igreja visível. Ele fala


eloqüentemente sobre a necessidade da fé salvadora em Cristo. Entretanto, a fé
mencionada é vista não necessariamente como transformadora de vidas
individuais. “Se me amais, guardareis os meus mandamentos” (Jo 14.15) se
torna uma passagem estranha. O julgamento do último dia, inclusive as boas
obras como um sinal visível da verdadeira fé, também é rejeitado apesar da
abundante evidência bíblica.

As Escrituras apresentam o antinomianismo como um ataque satânico ao


evangelho. Réprobos se introduzem na igreja, e esses homens ímpios
“transformaram em libertinagem a graça de nosso Deus” (Jd 4). O
antinomianismo é um antievangelho igualmente como o legalismo. Dizer que
uma pessoa pode ser transformada pelo Espírito de Deus para crer no evangelho
e ainda continuar a viver uma vida de imoralidade é um insulto ao próprio
Espírito de Deus.

Os pecados horrendos impostos à igreja por aqueles que reclamam o nome de


Cristo são estarrecedores! A porcentagem desses escândalos é, provavelmente, o
resultado dos fracassos de santos verdadeiramente arrependidos, mas as
Escrituras afirmam explicitamente que muitos destes encontram suas raízes em
imitações perigosas que sustentam fé salvadora sem transformação a qual, sem
exceção, brota da fé salvadora.

Tomemos o sétimo mandamento como ilustração, dada a epidemia de casos de


pecado sexual nos círculos de evangelhos confessos. Por favor, observem que
essa advertência pode ser, apropriadamente, aplicada a ladrões, trapaceiros ou
caluniadores; mas nenhum adúltero praticante herdará o reino de Deus. Aqueles
que foram justificados, pelo poder do Espírito Santo colocaram tais atos no
passado. Com freqüência, os antinomianos rebatem com o exemplo da
condenação de Cristo

à sensualidade como um adultério do coração. Querer dizer que uma pessoa que
tenha uma quantidade normal de desejo sexual é, de fato, adúltera, é má
interpretação. De fato, a sensualidade é também um pecado evidente, a escolha
de desejar aquilo que não se tem. Nenhum crente praticará a cobiça assim como
não praticará o adultério. Qualquer adúltero praticante, aquele que vive em
imoralidade sexual explícita, estará perdido etemamente, seja ele membro da
igreja visível ou não.

Uma das mais bonitas afirmações históricas do evangelho em rejeição ao


antinomianismo pode ser encontrada na fórmula clássica da Ceia do Senhor da
Igreja Reformada da Holanda. Ela inclui uma longa lista de pessoas que não
devem se achegar à mesa do Senhor para não transformar sua condenação em
algo ainda mais severo. Na lista estão muitas ofensas explícitas, concluídas com
um resumo: “todos os que vivem vidas ofensivas”. Ela explica essa proibição
com admirável simplicidade bíblica. A mesa do Senhor é planejada apenas para
os crentes. Um verdadeiro crente não viverá em pecado impenitente. A pessoa
que vive em pecado impenitente não herdará o reino de Deus. Fé
produz justificação; fé produz uma vida transformada. Um crente pode cair
em pecado, mas ele não viverá em pecado. A fórmula deixa claro que o pecado
remanescente que existe em nós contra nossa vontade (isto é, contra o qual
estamos sinceramente lutando), não pode nos impedir de sermos legítimos
participantes da mesa do Senhor, nem da festa das bodas do Cordeiro.

O antinomianismo clássico se funda na condição profundamente perdida do


homem, Autopreservação e interesse próprio são atributos exibidos por toda a
criação de Deus. Ninguém escolhe voluntariamente o sofrimento eterno.
(Poderíamos pensar que isso é evidente, se não fosse pelo crescente número de
teólogos que, num desejo de aliviar a ma-lignidade do inferno, inferem que os
próprios condenados optaram por essa escolha.) Mas uma pessoa espiritualmente
morta tampouco escolhe amar a Deus ou ao próximo. Antinomianismo é a
doutrina diabólica de que um crente pode ser salvo em seus pecados e não dos
seus pecados. Ele alega que os ímpios herdarão o reino de Deus.

Os antinomianos são amaldiçoados ao longo das páginas das Escrituras. Os


filhos de Eli eram filhos de Belial, ainda assim ministravam

na igreja enquanto viviam vidas de imoralidade impenitente. Grande parte da


horrenda imoralidade que se esconde na igreja daquela época e de agora vem
desses antinomianos que não são meramente antinomia-nos na teologia, mas o
são também na prática.

Entretanto, podemos encontrar um problema mais estranho do que o


antinomiano ativo. O problema aparece naqueles que em si mesmos não são
antinomianos em sua vida pessoal, mas defendem o antinomianismo como uma
possibilidade cristã. Esses crentes têm uma fé viva, mas chamam aqueles irmãos
e irmãs em Cristo com fé morta. Antinomianismo é uma opção, embora uma rota
não recomendada. É a faixa mais afastada do caminho estreito, não é a saída
errada para o lado que leva ao caminho largo. Quando cantam “Crer e observar
(obedecer), pois não há outro caminho para ser feliz em Jesus senão crer e
obedecer”, as pessoas provavelmente pensam que podem estar em Jesus
sem confiar e obedecer, mas não apenas ser feliz em Jesus. Alguém pode perder
recompensas no céu, ou paz de espírito, ou alegria, mas para eles o fator que
persiste é que nenhum padrão de ilegalidade vai contestar que um indivíduo é
redimido. Como meu pai gostava de responder: “Crer e obedecer, pois não há
outro modo de estar em Cristo, e não apenas feliz!”
O cristão carnal

Uma clássica defesa do antinomianismo é o pequeno tratado produzido por Bill


Bright, em seu movimento de Cruzada Universitária conhecido como “The
Spirit-Filled Life”. Nele o cristão carnal é apresentado como aquele que aceitou
a Cristo, em seu coração, como Salvador, mas “não permite que ele seja
Senhor”. Obviamente, a razão de ser do livrete é encorajar o cristão carnal a
reconhecer Cristo como Senhor. Porém, incontestavelmente, a pessoa que
comumente rejeita o senhorio de Cristo, mas ainda o reconhece como Salvador
é, de acordo com esse breve tratado, um cristão salvo quer ele observe o
conselho ou não.

Outro clássico é o livrete “My House, Christ’s Home”. Nele, o indivíduo aceita a
Cristo em sua vida, e quase na totalidade de sua vida.

Mas um aposento permanece trancado. Finalmente, anos mais tarde, a porta é


aberta e Cristo é convidado a entrar. Então, a pessoa convertida pode se agarrar à
prática de um pecado prazeroso ou mantê-lo soberanamente sobre uma parte de
sua vida durante anos e ainda ser justificada aos olhos de Deus.

Na verdade, “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática de pecado...
esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (1 Jo 3.9). Cristo não
permanecerá numa casa em que todas as portas não estejam abertas. Com
certeza, cada crente descobre que alguns pecados são desafios especiais, mas ele
luta contra todos os pecados que conscientemente reconhece, ou não será um
crente.

O cristão carnal, na visão de Paulo, não é de modo algum alguém que vive em
pecado ou nega o senhorio de Cristo. Ele está percebendo as coisas de modo
infantil, de uma perspectiva terrena e não está discernindo as realidades
espirituais como deveria fazer. O cristão carnal ainda não cresceu o suficiente
para, por exemplo, saber que é pecaminoso exaltar um professor acima de outro
provocando, assim, uma divisão na igreja. Esse pecado tênue está além de sua
percepção. Ele não está consciente da existência daquele quarto no porão, mas
não está delibe-radamente impedindo que Cristo entre nele.

Raízes teológicas da tolerância ao antinomianismo


Há pelo menos três fatores que facilitam o nascimento desse estranho híbrido
entre aqueles que evidenciam uma fé viva:

Movimento do pêndulo: é uma reação exagerada ao legalismo. A igreja


primitiva experimentou um fenômeno semelhante. Ela vacilou de heresia em
heresia, primeiro de um grupo que afirmava que Cristo era Deus, mas não
homem, depois de que ele era homem, mas não Deus. Assim o antinomiano luta
contra o legalismo de “Fé + Obras -» Justificação”, caindo no erro oposto:
Fé -» Justificação - Obras. Esses pensadores infelizmente cogitam que estão
defendendo o evangelho contra o legalismo, mas de fato estão proclamando
outro evangelho.

Livre da lev. em segundo lugar, o dispensacionalismo intencionalmente separou


a antiga e a nova aliança, considerando a lei como evangelho. A libertação da
condenação da lei por intermédio de Cristo veio a ser encarada como libertação
da lei como o princípio de obediência escrito no coração dos verdadeiros crentes.
O antinomianismo é uma conseqüência natural da incapacidade de perceber esse
papel imutável da lei ao longo de toda a história do povo de Deus.

Perseverança do pecador, finalmente, o dispensacionalismo tem demonstrado


uma tendência para uma compreensão particularmente confusa sobre a
perseverança dos santos. Comumente referida como “uma vez salvo, sempre
salvo”, essa noção substitui o enfoque bíblico na santificação como o caminho
assegurado, com a garantia oferecida de uma vez por todas para quem acredita
que nenhuma quantidade de pecado pode abalar. A ortodoxia bíblica reformada
ensina que aquele que é verdadeiramente redimido perseverará e lutará por mais
retidão até o fim. Aquele que permanece em pecado revela não ter sido
verdadeiramente justificado.

Tendências contemporâneas do antinomianismo

Os “embainhadores” de espada: mesmo aqueles que rejeitam o antinomianismo


estão em grande perigo de permitir que o fruto evangélico das boas obras esteja
ausente de sua pregação. Tenho denominado esse fenômeno de enfraquecer o
ensino central da necessidade de boas obras de “embainhar a espada”. Tais
professores, alegremente, atenuam as passagens que condenam explicitamente as
práticas antinomianas e, assim, abrandam a agudeza da Palavra. Sua exposição
sobre “Nenhum adúltero herdará o reino de Deus” os leva a um “Se você é um
adúltero, você talvez não seja um cristão”. A palavra literal de Deus é
suavizada para permitir a prática antinomiana no reino.

Os falsos amigos de Lutero: a vibrante defesa da justificação pela fé somente


feita pelo grande reformador Martinho Lutero tem sido, muitas vezes, mal-usada
pelos antinomianos. Às vezes, parece que

cada palavra desconexa de Lutero tem sido apresentada pelos antino-mianos.


Uma leitura equilibrada da teologia de Lutero o revela como inimigo do
antinomianismo. Entretanto, há poucas figuras na História tão fáceis de falsificar
com o uso de citações dramáticas fora do contexto.

Tudo Jesus pagou, não devo nada a ele: um grupo surpreendentemente diverso
de evangélicos professos tem aconselhado a rejeição do conceito cristão central
da gratidão. Essa compreensão errônea, co-mumente, resulta de uma
incapacidade de distinguir entre a completa redenção em Cristo de todo aquele
que crê, e o nosso contínuo débito a ele. De acordo com esse falso ensino,
porque Cristo pagou inteiramente o nosso débito, nós não devemos fazer nada.
“Todo o meu débito está pago.” Esses antinomianos terminam a frase com um
ponto final em vez de usar um ponto e vírgula. Nos casos mais extremos, o
crente é proibido até mesmo de confessar os seus pecados, uma vez que Cristo já
os pagou todos!

Na verdade, todo o meu débito está pago - até eu mesmo fui comprado. Desde
que fomos comprados por um preço, todos nós pertencemos ao nosso Salvador.
Os crentes pertencem a Cristo como “servos da justiça” (Rm 6.18) para a sua
glória. A vida do crente deve ser confessar os seus pecados e lutar diariamente
contra eles, sabendo que ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos
purificar de toda injustiça (Do 1.9). Os discípulos que estão limpos ainda
necessitam ter seus pés diariamente lavados por Cristo (Jo 13.10).

Alguns têm duvidado mais habilmente do valor da gratidão como motivação. As


Escrituras não apresentam nada disso. A Bíblia é explícita quanto ao valor da
gratidão como motivação. “Amo o SENHOR, porque ele ouve a minha voz e as
minhas súplicas” (SI 116.1). “Se me amais, guardareis os meus mandamentos”
(Jo 14.15). Por causa da graça de Cristo, somos verdadeiramente comprados para
ele. De boa vontade vivemos nossa vida cheios de gratidão por aquilo que o
Mestre fez por nós.

O antinomianismo é uma heresia que possui uma extraordinária elasticidade.


Oferece grande felicidade ao não-convertido e é assustadoramente tentador para
os crentes. Entretanto, nenhum obreiro da iniqüi-

dade entrará no reino do céu. Os redimidos servirão ao seu Mestre com gratidão
constante por aquilo que ele lhes fez.

De volta ao dia do julgamento

Identificamos os principais erros teológicos daqueles que correrão para Cristo


naquele dia chamando-o “Senhor” apenas para serem rejeitados. Antinomianos e
legalistas negam o Senhor que, alegam, os tem comprado.

Qualquer um que tenha como base tanto uma fé que não produz uma vida
transformada quanto uma fé associada a obras como um pré-requisito necessário
para ganhar a vida eterna, para reivindicar Cristo como Salvador, estará perdido
etemamente. Alguns que têm pregado o verdadeiro evangelho e têm sido usados
pelo Espírito para levar outros à vida eterna têm vivido no próprio coração outro
evangelho com uma fé morta e falsificada. Eles estarão perdidos, enquanto
alguns indivíduos que ouvirem o evangelho por seu intermédio serão salvos.

Começar e terminar no dia do julgamento deixou a questão do legalismo e do


antinomianismo sob a luz apropriada. Uma pergunta permanece. Afirmamos que
uma pessoa pode pregar o verdadeiro evangelho e estar perdida. Seria possível
alguém pregar os caminhos falsos e ser salvo?

Parte da resposta é dolorosamente simples. Se eles são antinomianos ou


legalistas em seu coração, certamente estão condenados. Se em sua pregação
proclamam legalismo ou antinomianismo, certamente serão duplamente
condenados. A pergunta inquietante e delicada se refere àqueles que falsamente
ensinam legalismo ou antinomianismo como opções para outros, muito embora
não recomendáveis, ao passo que aparentemente têm, eles mesmos, uma fé viva
no verdadeiro evangelho.

Pode alguém ser salvo e aconselhar outros a caminhar pacificamente pelo


caminho largo que conduz à destruição? Obviamente, todos os evangélicos
confessos ficam estarrecidos ao ouvir a respeito de professores que alegam haver
outros caminhos para a salvação além

da cruz de Cristo. Não deveríamos ficar igualmente estarrecidos com professores


que dizem haver outros caminhos para nos apropriarmos de Cristo além do
evangelho? Devemos rejeitar todo mestre que afirme haver outros meios de
salvação além de Cristo, mesmo que esse mestre pessoalmente afirme confiar em
Cristo. Assim, devemos rejeitar como mestre todo professor que afirme que o
legalismo ou antinomianismo, em qualquer de suas formas, é aceitável, mesmo
que essa pessoa afirme seguir o evangelho.

O próprio Deus determina o destino eterno de todos aqueles que ensinam em seu
nome. Entretanto, como ministro do evangelho, devo colocar uma admoestação
final a todo professor que esteja defendendo a possibilidade de haver outros
meios de apropriação da salvação a não ser somente pela fé viva. O profeta
Ezequiel adverte, com respeito àqueles que não chamam os ímpios ao
arrependimento, que o sangue daqueles que perecem cairá sobre suas cabeças
(Ez 33). Paulo retrata a verdade eterna dessa advertência ao se declarar inocente
do sangue de todos os homens, pois ele nunca deixou de anunciar todo o
desígnio de Deus (At 20.26,27). Uma leitura objetiva das Escrituras, sem
considerarmos os indivíduos, deixaria claro que nenhum professor
regenerado proclamaria ou ensinaria que noções heréticas do evangelho como
legalismo ou antinomianismo são permissíveis. Assim, um professor que tenha o
sangue de perdidos sobre sua cabeça, tanto quanto um adúltero, não herdará o
reino de Deus.

O dia do julgamento é uma questão muito séria para permitir que se encubra a
verdade a esse respeito. Posso expressar uma esperança pessoal de que alguns
desses mestres serão salvos pelo fogo, se pecaram por ignorância ao ensinar tais
opções errôneas. Mas também devo dizer que minha esperança é apenas uma
suposição; as afirmações explícitas da Palavra apontam na direção oposta.

Este capítulo está sendo lido por muitos pastores que vivem num pecado sem
arrependimento, inclusive o pecado de declarar paz por meio de outro caminho
que não o verdadeiro evangelho. Espero e oro para que o Espírito sustente a
todos os que lêem este capítulo numa condição de arrependimento e crença nas
boas-novas. Possa esse dia raiar quando todos pudermos correr para encontrar o
nosso Senhor com

apropriada alegria, estando revestidos de sua justiça a qual recebemos pela fé


viva que nos levou a lutar constantemente contra o pecado, especialmente o
pecado de promover outros evangelhos. Que inexprimível alegria a de ser capaz
de ouvir as preciosas palavras: “Habita comigo, eu sempre o conheci”.
Alegre obediência: o terceiro uso da lei
Afasta de mim o caminho da falsidade e favorece-me com a tua lei.

Escolhi o caminho da fidelidade e decidi-me pelos teus juízos.

Aos teus testemunhos me apego; não permitas, Senhor, seja eu


envergonhado. Percorrerei os caminhos dos teus mandamentos, quando me
alegrares o coração.1

Alei de Deus se dirige ao mundo e à vida de


cada indivíduo, direta ou indiretamente. Os
teólogos protestantes escreveram bastante sobre
as várias aplicações ou usos da lei na vida da
sociedade como um todo e na vida individual,
tanto do não-crente quanto do cristão. A teologia
protestante clássica propõe três usos da lei: o
ususprimus (uso primeiro), ou uso civil da lei na vida e nos negócios do Estado
e da sociedade; o usus secundus (uso segundo) ou uso evangélico da lei como
um dominador do pecado na experiência ou processo de conversão a Deus; e o
usus tertius (uso terceiro), ou uso didático da lei como

uma regra de grata obediência por parte do cristão.2 O último ou o terceiro uso
da lei inspirou a oração do salmista citada no começo do capítulo, pois ele sabe
que apenas a lei de Deus poderia dirigi-lo em seu esforço para viver “em alegre
obediência” como um filho de Deus.

Os usos da lei

Neste capítulo daremos um resumo dos dois primeiros usos da lei, para examinar
o terceiro uso no contexto exato da santificação que, necessariamente, envolve
uma alegre obediência a Deus por toda sua inclusiva salvação em Cristo Jesus. O
crente que é justificado pela fé somente {sola fide), e que aceita o princípio de
somente as Escrituras (sola Scriptura), confiará graciosa e sinceramente no
Senhor. Essa resposta de alegre obediência é corporificada num estudo de caso
do mandamento mais controvertido da lei: a santificação do dia do sábado. Tudo
isso nos permitirá extrair várias conclusões significativas sobre o cristão e
seu relacionamento com o terceiro uso da lei.

O uso civil da lei

O primeiro uso da lei é seu exercício na vida pública como um guia para o
magistrado civil em sua tarefa como ministro de Deus em assuntos pertinentes
ao Estado. Do magistrado se exige que recompense o bem e castigue o mal (Rm
13.3,4). Nada poderia ser mais importante para este trabalho que um padrão
confiável de certo e errado, bem e mal; e não nenhum padrão melhor do que a lei
de Deus.

Nesse ponto os reformadores protestantes estavam de pleno acordo. No que diz


respeito à restrição ao pecado, Martinho Lutero escreve em seu Lectures on
Galatians (3.19):

A primeira compreensão e uso da lei é coibir o perverso... Essa restrição cívica é


extremamente necessária e foi instituída por Deus tanto em atenção à paz pública
quanto no interesse de preservar todas as coisas, mas, especialmente, para
prevenir que o progresso do evangelho seja impedido pelos tumultos e sedições
de homens violentos.3

João Calvino concorda:

A... função da lei é a seguinte: pelo menos por medo da punição coibir certos
homens que não são tocados por quaisquer cuidados por aquilo que é justo ou
direito a não ser obrigados a ouvir as terríveis ameaças contidas na lei. Esses são
coibidos não porque a mente deles foi instigada ou afetada mas porque, sendo,
por assim dizer, refreados, eles se abstêm de atividades externas e mantêm para
si mesmos a depravação que, de outra forma, teriam audaciosamente saciado.4

O uso civil da lei está profundamente enraizado nas Escrituras (mais


especificamente em Rm 13.1-7) e na doutrina realista da natureza humana
decaída. A lei nos ensina que os poderes que existem são ordenados por Deus
com o propósito de administrar justiça - justiça essa que necessariamente inclui a
necessidade de ser aterrorizante para os obreiros da iniqüidade. Os poderes que
existem carregam a espada; possuem o direito divinamente conferido de punir,
até mesmo com pena capital (vs. 3,4).

O primeiro uso da lei, entretanto, serve não apenas para prevenir a sociedade de
mergulhar no caos; mas serve também para promover a justiça: “Antes de tudo,
pois, exorto que se use a prática de súplicas, orações, intercessões, ações de
graças, em favor de todos os homens, em favor dos reis e de todos os que se
acham investidos de autoridade, para que vivamos vida tranqüila e mansa, com
toda piedade e respeito” (lTm 2.1,2).

Os “poderes superiores” devem se empenhar não apenas para intimidar o mal,


mas também para promover um contexto pacífico no qual o evangelho, a
bondade e a honestidade possam prosperar. Segundo os reformadores, esse dever
obriga o Estado a preservar certos direitos como liberdade de culto, liberdade
para pregar e liberdade de guardar o dia do Senhor.

Para o cristão, as implicações do primeiro uso da lei são inevitáveis: ele deve
respeitar e obedecer o Estado até onde o Estado não exija aquilo que Deus proíbe
ou não proíba o que Deus ordena. Em todos os outros casos, a desobediência
civil é ilegal. Resistir à autoridade é resistir à ordenança de Deus, “e os que
resistem trarão sobre si mesmos condenação” (Rm 13.2). É difícil afirmar isso
em nossos dias em que

até mesmo os cristãos estão propensos a ser engolfados por um espírito mundano
de rebelião e desprezo pela autoridade. Precisamos ouvir e atender ao que
Calvino escreve:

O primeiro dever dos súditos para com os seus magistrados é considerar seu
ofício como altamente honrado, o qual eles reconhecem como uma jurisdição
outorgada por Deus e por causa disso apreciá-los e reverenciá-los como
ministros e representantes de Deus... [Até mesmo] em uma pessoa muito iníqua
absolutamente indigna de toda honra, uma vez que tenha o poder público em
suas mãos, aquele nobre e divino poder consiste em que o Senhor tem por sua
palavra dado aos ministros de sua justiça e julgamento.5

Sem dúvida, isso não significa que o crente perde o direito de criticar ou mesmo
condenar uma lei que fuja dos preceitos das Escrituras. Mas significa dizer que
uma parte significativa de atendermos ao apelo de Paulo de “a fim de ornarem...
a doutrina de Deus” (Tt 2.10) envolve a nossa sujeição de boa vontade à
autoridade legal em todas as esferas da vida - seja no lar, escola, igreja ou
Estado.

O uso evangélico da lei6

Autorizada pelo Espírito de Deus, a lei moral também exerce uma função crítica
na experiência da conversão. Ela disciplina, educa, declara culpado e condena. A
lei não expõe apenas nossa pecamino-sidade; ela também nos condena,
pronuncia maldição sobre nós e nos declara passíveis da ira de Deus e dos
tormentos do inferno. “Maldito todo aquele que não permanece em todas as
coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las” (G1 3.10). A lei é um feitor
cruel, ela não conhece misericórdia. Ela nos aterroriza, despe-nos de toda
justificação e nos conduz ao fim da lei, Cristo Jesus, o qual é a nossa única
justiça aceitável diante de Deus. “De maneira que a lei nos serviu de aio para
nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé” (G1 3.24). Não
que a lei em si mesma possa nos levar a um conhecimento salva-

dor de Deus em Cristo. Ao contrário, o Espírito Santo usa a lei como espelho
para nos mostrar nossa impotência e culpa, para nos obrigar a esperar
unicamente na misericórdia, e para induzir ao arrependimento, criando e
sustentando a percepção da necessidade espiritual da qual a fé em Cristo nasce.

Nesse ponto, também Lutero e Calvino concordam.7 Os comentários de Lutero,


sobre Gálatas 2.17, são simbólicos:

O uso apropriado e o objetivo da lei são tomar culpados os que são presunçosos
e estão em paz, de sorte que possam ver que estão em perigo de pecado, ira e
morte, de modo que fiquem aterrorizados e desesperados, empalidecendo e
tremendo ao farfalhar de uma folha (Lv 26.36) [...] Se a lei é um ministro do
pecado, segue-se que ela é também um ministro da ira e da morte. Pois assim
como a lei revela o pecado, ela também lança a ira de Deus sobre o homem e o
ameaça com morte.8

Calvino não é menos veemente:

[A lei] adverte, informa, declara culpado e finalmente condena, todo homem pela
própria iniqüidade... Depois que ele é compelido a pesar sua vida pelo padrão da
lei, colocando de lado toda presunção de justificação inventada, ele descobre que
está muito longe da santidade, e está, de fato, cheio de um enorme número de
vícios dos quais ele anteriormente se julgava imaculado... A lei é como um
espelho. Nele contemplamos nossas fraquezas, a seguir a iniqüidade que surge
delas, e finalmente a maldição que vem de ambas - assim como o espelho nos
mostra as marcas em nosso rosto.9

Esse uso condenatório da lei é também importante para a santificação do crente,


pois serve para prevenir a ressurreição da autojustifi-cação - aquela
autojustificação que está sempre disposta a se reafirmar mesmo nos santos mais
consagrados e puros. O crente continua a viver sob a lei como um penitente por
toda a vida.

Essa função disciplinadora da lei não implica que a justificação

do crente seja diminuída ou anulada. Desde o momento de sua regeneração, seu


estado diante de Deus é fixo e irrevogável. O crente é uma nova criatura em
Cristo Jesus (2Co 5.17). Ele nunca poderá reverter a um estado de condenação
ou perder sua filiação. No entanto, a lei expõe diariamente a continuada pobreza
de sua santificação. Ele aprende que há uma lei em seus membros tal que,
quando deseja fazer o bem, o mal está presente com ele (Rm 7.21). Ele necessita,
repetidamente, condenar a si mesmo, deplorar sua mesquinhez e implorar
diariamente por renovadas diligências do sangue de Jesus Cristo que nos purifica
de todo pecado (Rm 7.24; lJo 1.7-9).

O uso didático da lei

Esse terceiro uso da lei, o uso didático, se aplica à vida diária do cristão. Nas
palavras do Catecismo de Heidelberg, a lei instruí o crente como expressar sua
gratidão a Deus pelo livramento de todo o seu pecado e miséria (questão 2). O
terceiro uso da lei é um assunto que preenche um rico capítulo na história da
doutrina reformada.

Felipe Melanchthon (1497-1560). A história do terceiro uso da lei começa com


Felipe Melanchthon, cooperador e braço direito de Martinho Lutero. Já em 1521,
Melanchthon plantara a semente ao afirmar que “os crentes devem fazer uso do
decálogo” para assisti-los na mortificação da carne.10 Num sentido formal ele
aumentou, pela primeira vez, o número de usos ou funções da lei de dois para
três na terceira edição de seu trabalho sobre Colossenses, publicado em 1534,11
dois anos antes de Calvino produzir a primeira edição de suas
Institutas. Melanchthon argumentou que a lei coage (primeiro uso), infunde
terror (segundo uso), e exige obediência (terceiro uso). “A terceira razão para
conservar o decálogo”, escreve ele, “é o fato de que a obediência é exigida”.12

Por volta de 1534, Melanchthon começara a utilizar a natureza forense da


justificação como alicerce para estabelecer a necessidade de boas obras na vida
do crente.13 Ele argumentava que embora a primeira e primordial retidão do
crente fosse sua justificação em Cristo, havia

também uma segunda justiça - a justiça de uma boa consciência a qual, não
obstante sua imperfeição, ainda é agradável a Deus, uma vez que o próprio
crente está em Cristo.14 A consciência do crente, tomada boa pela declaração
divina, deve continuar a usar a lei para agradar a Deus, pois a lei revela a
essência da vontade de Deus e oferece a estmtura da obediência cristã. Ele
declarou que essa “boa consciência” é uma “grande e necessária consolação
divina”.13 Como Timothy Wengert assevera, sem dúvida ele foi encorajado a
enfatizar a conexão entre uma boa consciência e boas obras pelo desejo de
defender Lutero e outros protestantes da acusação de que eles rejeitavam as boas
obras “ao mesmo tempo, sem despojar a consciência da consolação do
evangelho. Assim, ele delineou uma forma de falar sobre a necessidade das
obras para o crente excluindo sua necessidade para a justificação”.16 Wengert
conclui que, argumentando a partir da necessidade de saber como somos
perdoados para a necessidade de obedecer a lei e para a necessidade de
sabermos como essa obediência agrada a Deus, Melanchthon conseguiu
colocar lei e obediência no centro de sua teologia.17

Martinho Lutero (1483-1546). Diferente de Melanchthon, que prosseguiu com a


codificação do terceiro uso da lei nas edições de 1535 e 1555 de seu principal
trabalho sobre doutrina cristã,18 Lutero nunca sentiu a necessidade de acatar
formalmente um terceiro uso da lei. Eruditos luteranos, porém, debateram
prolongadamente enquanto Lutero, na verdade, ensinou de fato, apesar de não
mencionar um terceiro uso da lei.19 Seria suficiente dizer que Lutero defendia
que embora o cristão não estivesse “sob a lei”, isso não deveria ser
compreendido como se ele estivesse “sem a lei”. Para Lutero, o crente tem uma
atitude diferente para com a lei. A lei não é uma obrigação, mas um prazer. Ele é
alegremente levado à lei de Deus pelo poder do Espírito. E, livremente,
se conforma com a lei não por causa das exigências da lei, mas por causa de seu
amor a Deus e a sua justiça.20 Uma vez que em sua experiência o fardo pesado
da lei é substituído pelo fardo leve de Cristo, fazer o que a lei manda se torna
uma atitude alegre e espontânea. A lei leva os pecadores a Cristo, por intermédio
do qual eles “se tomam praticantes da lei”.21 Além do mais, o cristão, porque
permanece pecador, precisa da lei para dirigir e orientar sua vida. Assim, Lutero
pode afirmar que a

lei, a qual serve como uma “vara” (isto é, bastão - o segundo uso) usada por
Deus para empurrá-lo para Cristo é, simultaneamente, uma “vareta” (isto é uma
vara - que Calvino chamaria de terceiro uso) que o assiste em seu caminho na
vida cristã. Essa ênfase na lei como uma “bengala” surge implicitamente pela
sua exposição sobre os Dez Mandamentos em vários contextos - cada um dos
quais indica que Lutero acreditava firmemente que a vida cristã deve ser
regulada por esses mandamentos.22

A preocupação de Lutero não era negar a santificação nem a lei como uma
norma diretiva na vida do crente; ao contrário, ele desejava enfatizar que boas
obras e obediência à lei não podem de forma alguma nos tomar aceitáveis diante
de Deus. Portanto, ele escreve em seu The Freedom of the Christian: “Nossa fé
em Cristo não nos isenta das obras, mas das falsas opiniões a respeito das obras,
isto é, da tola presunção de que a justificação é adquirida pelas obras”. Em Table
Talk, ele é citado afirmando que “Aquele que tem a Cristo cumpriu corretamente
a lei, mas retirar completamente a lei, que está cravada na natureza e está escrita
em nosso coração e nasce em nós, é algo impossível e contrário a Deus”.23

João Calvino (1509-1559). O que Melanchthon começou a escrever com


referência a uma justiça agradável a Deus em Cristo, e o que Lutero deixou de
certa forma inconcluso como uma ação jubilosa e uma “bengala”, Calvino
corporificou numa doutrina plenamente desenvolvida, ensinando que o principal
uso da lei, para o crente, é como regra de vida. Embora Calvino tenha
emprestado o termo “terceiro uso da lei” (tertius usus legis) de Melanchthon e,
provavelmente, tenha compilado material adicional de Martin Bucer,24 ele
produziu novos contornos e conteúdo à doutrina e foi o único, dentre os
primeiros reformadores, a enfatizar essa terceira função da lei como norma e
guia para o crente, é o seu uso “exato e principal”.25

O ensino de Calvino, sobre o terceiro uso da lei, é absolutamente claro. “Qual é a


regra de vida que [Deus] nos deu?”, pergunta ele no Catecismo de Genebra, e
responde: “Sua lei”. Depois, no mesmo catecismo, ele escreve:
[A lei] mostra o alvo que devemos visar, o objetivo que devemos

perseguir, que cada um de nós, de acordo com a medida da graça derramada


sobre nós, possa moldar a vida de acordo com a mais alta retidão, e, pelo estudo
constante, avançar continuamente mais e mais.26

Já no ano de 1536, na primeira edição de sua Institutas da Religião Cristã,


Calvino escreveu de modo conclusivo sobre o terceiro uso da lei:

Crentes... beneficiam-se da lei porque por meio dela aprendem mais cabalmente
a cada dia qual é a vontade de Deus... É como se um servo já preparado com
absoluta sinceridade de coração para recomendar-se ao seu mestre devesse
procurar e observar as atitudes de seu mestre para conformar-se e acomodar-se a
elas. Além disso, por mais que sejam impelidos pelo Espírito e desejosos de
obedecer a Deus, ainda são fracos na came e poderiam preferir servir ao
pecado em vez de servir a Deus. A lei, para essa came, é como um chicote para
um asno preguiçoso e empacado, para espicaçar, incitar e estimulá-lo ao
trabalho.27

Na última edição das Institutas, terminada em 1559, Calvino conserva o que


tinha escrito em 1536, mas reafirma de maneira ainda mais clara e positiva que o
crente se beneficia da lei de duas maneiras; primeira: “esse é o melhor
instrumento para eles aprenderem mais cabalmente, a cada dia, a natureza da
vontade de Deus a qual aspiram, e para confirmá-los em sua compreensão dela”;
segunda: e por meio de “meditação freqüente a respeito disso, serem levados à
obediência, serem fortalecidos nela, e serem resgatados do caminho escorregadio
da transgressão. Desse modo, os santos devem prosseguir”. Calvino conclui:
“Pois o que seria menos amável que a lei, se apenas com importunação e
ameaça afligiu as almas pelo medo e as constrangeu pelo terror? Davi
mostra, principalmente, que na lei ele compreendeu o Mediador, sem o qual
não há prazer ou doçura”.28

Essa noção predominantemente positiva da lei como norma e guia para o crente,
para encorajá-lo a apegar-se a Deus e a obedecê-lo

cada vez mais fervorosamente, é o ponto em que Calvino se distancia de Lutero.


Para Lutero, a lei geralmente denota algo negativo e hostil - algo normalmente
listado em estreita proximidade com pecado, morte ou o diabo. O interesse
dominante de Lutero está no segundo uso da lei, mesmo quando ele considera a
função da lei na santificação do crente. Para Calvino, como I. John Hesselink
corretamente observa: “a lei é vista primeiramente como uma expressão positiva
da vontade de Deus... a noção de Calvino poderia ser denominada
deuteronômica, pois, para ele, lei e amor não são antitéticos, mas correlates”.29
Para Calvino, o crente se empenha em seguir a lei de Deus não como um ato de
obediência compulsória, mas como uma resposta de obediência agradecida. A
lei promove, sob a tutela do Espírito, uma ética de gratidão no crente que, ao
mesmo tempo, o encoraja à obediência amorosa e o admoesta contra o pecado,
de tal forma que ele canta com Davi em Salmos 19.7-10:

A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma; o testemunho do Senhor é fiel e dá


sabedoria aos símplices.

Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor


é puro e ilumina os olhos.

O temor do Senhor é límpido e permanece para sempre; os juízos do Senhor são


verdadeiros e todos igualmente, justos.

São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são mais
doces do que o mel e o destilar dos favos.30

Em suma, para Lutero, a lei ajuda o crente - especialmente a reconhecer e


confrontar o pecado residente; para Calvino, o crente necessita da lei para dirigi-
lo num viver santo para servir a Deus em amor.31

Catecismo de Heidelberg (1563). Em última análise, a noção de Calvino sobre o


terceiro uso da lei triunfou na teologia reformada. Uma indicação anterior dessa
forte noção calvinista da lei é encontrada no Catecismo de Heidelberg,
composto um ano ou dois antes da morte de Calvino. Embora o catecismo
comece com uma forte ênfase sobre o uso evangélico da lei ao dirigir os
pecadores para Cristo (questões 3-18), na seção final está reservada uma
exortação detalhada sobre as proibições e o requerimento da lei colocada sobre o
crente que ensina: “como posso expressar minha gratidão a Deus” pelo
livramento em Jesus Cristo (questões 92-115).32 O Decálogo oferece o conteúdo
material para as boas obras que são praticadas em gratidão pela graça de Deus
em seu amado Filho.

Os Puritanos. Os puritanos levaram avante a ênfase de Calvino sobre o caráter


normativo da lei para o crente como regra de fé e para despertar uma gratidão
sincera, que, por sua vez, promove genuína liberdade em vez de licenciosidade
antinomiana.33 Para citar apenas algumas das centenas de fontes puritanas
disponíveis sobre esses temas: Anthony Burgess condena aqueles que julgam
estar acima da lei ou que essa lei escrita no coração pela regeneração “toma a lei
escrita desnecessária”.34 A afirmação de Thomas Bedford, sobre a necessidade
da lei escrita como um guia para o crente, é tipicamente puritana:

Deve existir também outra lei escrita sobre tábuas, para ser lida pelos olhos e
ouvida pelos ouvidos: do contrário... como poderá o crente se assegurar de que
ele não se desviou do caminho certo pelo qual deveria andar?... O Espírito, eu
concordo, é o Guia e o Mestre do homem justificado... Mas ele os ensina... pela
lei e pelo testemunho.35

O ensino do Espírito resulta em transformar os crentes em “amigos” da lei,


zombou Samuel Rutherford, pois “depois que Cristo promoveu o acordo entre
nós e a lei, nós temos prazer em andar nela por amor a Cristo”.36 Esse prazer,
baseado na gratidão pelo evangelho, produz

uma indizível liberdade. Samuel Crooke coloca desta forma: “Do mandamento
como regra de vida, [os crentes] não estão livres, ao contrário, estão inclinados e
dispostos, por [seu] espírito livre, a obedecê-lo. Assim, para o regenerado, a lei
se toma, por assim dizer, evangelho, e até mesmo uma lei de liberdade”.37 O
Catecismo maior de Westminster, que em grande parte foi composto pelos
teólogos puritanos, nos proporciona o mais adequado resumo da visão reformada
e puritana sobre o relacionamento do crente com a lei moral.

Questão 97. De que utilidade é a lei moral aos regenerados? Resposta: Embora
os que são regenerados e crentes em Cristo sejam libertados da lei moral, como
pacto de obras, de modo que nem são justificados nem condenados por ela,
contudo, além da utilidade geral dessa lei comum a eles e a todos os homens, é
ela de utilidade especial para lhes mostrar quanto são devedores a Cristo por
cumpri-la e suportar a maldição dela, em lugar e para o bem deles, e
assim constrangê-los a uma gratidão maior, e a expressar essa gratidão por um
maior cuidado de sua parte em conformar-se a essa lei, como regra de sua
obediência.38

Mas como os princípios de gratidão funcionam na prática porquanto o crente


busca obedecer a lei como regra de vida? Sobre essa pergunta nós agora
mudamos para a estrutura de estudo de caso porque consideramos a lei moral a
mais controvertida de nossos dias: “Lembra-te do dia de sábado, para o
santificar” (Êx 20.8).

O quarto mandamento: um estudo de caso

A santificação do primeiro dia da semana como o sábado cristão é a principal


preocupação fomentada pelo Cristianismo reformado em aplicar a lei moral à
vida cristã. Se houve algum grau de ambigüidade entre os reformadores
protestantes do século 16, esta foi completamente banida quando, em meados do
século 17, os teólogos de Westminster se reuniram para escrever a Confissão de
fé (Capítulo 21):

Vil. Como é lei da natureza que, em geral, uma devida proporção de tempo seja
destinada ao culto de Deus, assim também, em sua Palavra, por um preceito
positivo, moral e perpétuo, preceito que obriga a todos os homens, em todas as
épocas, Deus designou particularmente um dia em sete para ser um sábado (=
descanso) santificado por ele; desde o princípio do mundo, até a ressurreição de
Cristo, esse dia foi o último da semana; e desde a ressurreição de Cristo, foi
mudado para o primeiro dia da semana, dia que, na Escritura, é chamado dia do
Senhor (= domingo), e que há de continuar até o fim do mundo como sábado
cristão.

VIII. Esse sábado é santificado ao Senhor quando os homens, tendo devidamente


preparado os seus corações e de antemão ordenado os seus negócios ordinários,
não só guardam, durante todo o dia, um santo descanso de suas obras, palavras e
pensamentos a respeito de seus empregos seculares e de suas recreações, mas
também ocupam todo o tempo em exercícios públicos e particulares de culto e
nos deveres de necessidades e de misericórdia.39

Essa grande percepção do sábado conquistou o seu lugar na Inglaterra, na


América do Norte, ao longo de todo o Império Britânico e também na Holanda.
Embora tenha sido uma preocupação-chave dos cristãos reformados, a guarda do
sábado (dia do descanso) foi adotada como regra pelos cristãos de praticamente
todas as denominações. No despertar dos poderosos reavivamentos dos meados
do século 18 e começo do século 19, a guarda do sábado cristão foi adotada
também pela população em geral.

Esse feliz estado de coisas prevaleceu durante todo o século 19 e no século 20.
Grandes centros urbanos, como Filadélfia e Toronto, eram conhecidos pelo
cuidado que o sábado era observado por seus habitantes. No final do século 19,
algumas ferrovias importantes cessaram suas operações durante o domingo.
Balneários à beira-mar tomaram medidas a respeito de todo o tráfego motorizado
nas ruas aos domingos (Ocean Grove, Nova Jersey) e ao uso de cinemas para o
culto público, nos domingos à noite (Ocean City, Nova Jersey).

A cultura de nossos dias apresenta uma cena imensamente alte-

rada. As forças de secularização e o aparecimento da cultura do lazer, obcecada


pela procura de entretenimento de todos os tipos, extinguiram a preocupação
pela guarda do dia de descanso entre a população em geral. Ainda mais trágico é
o contínuo desgaste dessa convicção entre os cristãos. O maior estrago foi feito
pelos ataques modernistas à autoridade das Escrituras, corroendo e subvertendo
assim todas as normas bíblicas para a vida. Entretanto, o fundamentalismo
também deve levar sua parte da culpa. Sob a influência do dispensacionalismo,
um crescente antinomianismo se desenvolveu nos círculos cristãos
americanos mais conservadores. O Antigo Testamento em geral e a lei moral
em particular chegaram a ser encarados como monumentos de uma era
ultrapassada. O resultado foi uma total destruição da convicção no que diz
respeito ao Dia do Senhor, mesmo entre presbiterianos que aceitam os Padrões
de Westminster - não obstante o inconseqüente conflito envolvido!

Com certeza, a ocasião para os cristãos examinarem novamente a Palavra de


Deus em busca de instruções relativas ao quarto mandamento e suas exigências
sobre nós é oportuna. Se não houver outro motivo, o estudo deveria ser realizado
em vista da crescente evidência e do alto grau de estresse destrutivo escondido
por trás da atraente fachada da assim chamada “cultura do entretenimento”. As
pessoas estão se destruindo porque não conseguem dizer não, nem ao trabalho,
nem à diversão. Grandes bênçãos espirituais são prometidas àqueles que se
submetem à renúncia disciplinadora da guarda do Dia do Senhor.

O sábado como instituição divina

“O sétimo dia é o sábado do SENHOR, teu Deus” (Êx 20.10). Essas palavras nos
relembram de que o sábado é uma instituição divina em dois sentidos. Primeiro,
o sábado semanal é instituído pela palavra de ordem de Deus. Em segundo lugar,
Deus requer esse dia para si mesmo: “o sábado do SENHOR, teu Deus”. Os seis
dias de trabalho foram cedidos ao homem para a busca de seu trabalho e lazer;
mas não o sábado que Deus chama de “meu santo dia” (Is 58.13). Não devotar
esse dia aos

propósitos e atividades ordenadas para a sua santificação é roubar de Deus algo


que lhe pertence.

Essa verdade é reforçada pelas palavras do Senhor Jesus Cristo, registradas pelos
três primeiros evangelistas (Mt 12.8; Mc 2.28; e Lc 6.5), quando ele afirmou: “O
Filho do homem é senhor do sábado”. Em uma só frase, Cristo declara sua
completa divindade e identidade com lahweh e reafirma a reivindicação de Deus
sobre as horas do sábado semanal, adotando a exigência e a apresentando
novamente em seu nome. A reivindicação deixou sua marca nas crenças, práticas
e usos da igreja apostólica de tal forma que, ao final daquela era, o sábado
cristão era conhecido como “dia do Senhor” (Ap 1.10).

O sábado como ordenação da criação

Assumir que o sábado se originou na entrega da lei no Sinai é um erro comum.


Essa maneira de ver ignora o fato de que ele não é introduzido como algo novo
mas, ao contrário, reconhecido como algo antigo e histórico e que agora deve ser
relembrado e observado pelo povo de Deus: “Lembra-te do dia de sábado, para o
santificar” (Êx 20.8 [grifo nosso]).

E o que, especificamente, deve ser relembrado no padrão de seis dias de trabalho


pontuado por um dia de descanso santo? “Porque, em seis dias, fez o SENHOR OS
céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso,
o SENHOR abençoou o dia de sábado e o santificou” (Êx 20.11).

A resposta bíblica para a questão de quando o sábado foi instituído é muito clara:
o sábado foi instituído por Deus no alvorecer da História. Sem dúvida, o homem
estava presente e, significativamente, foi o primeiro dia completo de sua vida
sobre a terra (Gn 2.1-3). Se o padrão foi perpetuado depois desse dia ou não
talvez seja uma questão especulativa, mas a história do sábado não foi perdida.
Tudo que foi necessário no Sinai foi recordar aquela história e ordenar ao povo
que, posteriormente, mantivesse sempre a sua lembrança.

O sábado, portanto, não é uma ordenança estritamente mosaica.

Sua origem está enraizada na própria criação e, como o casamento, o sábado é


uma instituição muito significativa para a raça humana. Suas bênçãos temporais
podem ser apreciadas por toda a humanidade, e suas bênçãos espirituais são
prometidas a todos os que procuram por elas, até os “eunucos” e “estrangeiros
que se chegam ao SENHOR” (IS 56.1-8).

O sábado como um memorial redentor

Na recapitulação dos Dez Mandamentos (Dt 5.6-21), descobrimos que a


redenção não altera nem anula a exigência de manter o sábado santo. Ao
contrário, o texto apenas acrescenta o significado do dia para aqueles que são “os
redimidos do SENHOR”. Assim como os escravos no Novo Testamento deveriam
partilhar cabalmente com seus senhores a bênção do evangelho, assim também
era a lei em Israel de que os servos deveriam desfrutar o descanso estabelecido
no quarto mandamento com seus senhores: “para que o teu servo e a tua serva
descansem como tu” (Dt 5.14). A isso se acrescenta a seguinte
recomendação: “porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que o
SENHOR, teu Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que
o SENHOR, teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado” (v. 15). Com
essas palavras, o sábado assume novo sentido e função como memorial da
redenção da escravidão que conquistou para seu povo. Esse sentido adicional
reforça o sábado como uma instituição entre o povo de Deus.

Aqui também está uma antecipação da morte e ressurreição de Cristo na


observação do sábado por parte de seus seguidores. Tão grande foi o ápice do
cumprimento decisivo da promessa de redenção, seguido de perto pela descida
do Espírito no dia de Pentecoste, que daquele dia em diante o sábado foi
“mudado para o primeiro dia da semana, dia que na Escritura é chamado dia do
Senhor, e que há de continuar até o fim do mundo como o sábado cristão”
(Confissão de fé de Westminster XXI: VII).

O resultado é que o apóstolo Paulo escreve em Hebreus 4.9: “Portanto, resta um


repouso para o povo de Deus”. O sábado ainda continua

conosco como um sinal de algo que ainda será alcançado, experimentado,


desfrutado na eternidade. Ao mesmo tempo, porque a palavra que ele usa para
“descanso” é sabbatismos, ou “a guarda do sábado”, a obrigação de observar um
sábado semanal continua protegida no evangelho. A guarda do sábado se tomou,
de fato, uma das marcas do discipulado cristão no tempo dos mártires, como
relata Maurice Roberts:
“Uma pergunta feita aos mártires antes de serem mortos era: Domi-nicum servas
ti?" (Você guarda o Dia do Senhor?).40
O sábado como sinal escatológico

A profecia de Isaías termina com o anúncio da promessa de novos céus e nova


terra para o povo de Deus: “Pois eis que eu crio novos céus e nova terra; e não
haverá lembrança das coisas passadas, jamais haverá memória delas” (Is 65.17).
Nessa outra criação, o trabalho do povo de Deus será completamente redimido
da maldição: “Não trabalharão debalde, nem terão filhos para a calamidade,
porque são a posteridade bendita do SENHOR, e os seus filhos estarão com eles”
(v. 23).

Essa nova ordem da criação subsistirá como a consumação da promessa de


redenção. Não é apenas o trabalho do povo de Deus que deve ser totalmente
redimido da maldição, o sábado também, afinal, receberá sua merecida
consagração como o dia universal de culto ao Senhor. Esta é a promessa de
Deus:

Porque, como os novos céus e a nova terra, que hei de fazer, estarão diante de
mim, diz o SENHOR, assim há de estar a vossa posteridade e o vosso nome. E será
que, de uma Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a came
a adorar perante mim, diz o SENHOR (Is 66.22,23).

Resumindo, o sábado permanece como uma instituição tão antiga quanto a


criação. Pertence à ordem das coisas como elas foram desde o início antes da
queda do homem no pecado. E tão universal tanto quanto

qualquer ordenança da criação conservando a promessa de bênção para toda a


humanidade. Essa promessa de redenção e seu cumprimento apenas acrescentam
à significação do sábado como o dia que deve ser observado pelos redimidos do
Senhor. O sábado é um sinal da promessa de redenção tanto em seu
cumprimento agora quanto também naquele que ainda virá. E o dia de Deus, um
dia santo - um dia para ser conservado santo pelos cristãos.

Cristo e o sábado

O sábado é parte essencial tanto do ambiente do Novo Testamento quanto do


Antigo. A questão do sábado, e de como ele deve ser guardado, foi um campo de
batalha com freqüência revisitado nos conflitos de Cristo com os fariseus. Tão
intensa era sua oposição às idéias farisaicas sobre a guarda do sábado que muitos
concluíram que Cristo se opunha ao próprio sábado e, portanto, se oporia a
qualquer continuação da guarda do sábado entre seus seguidores.

Tal conclusão ignora ou diverge de três fatos importantes registrados nos


evangelhos. Primeiro: Cristo mesmo guardava fielmente o sábado (ver Lc 4.16).
Segundo: Cristo declarou que não tinha vindo para destruir a lei, segue-se,
portanto, que ele não tinha vindo para destruir ou abolir o sábado (ver Mt 5.17).
Terceiro: como já vimos, Cristo reivindicou o sábado como sendo sua
propriedade: “O Filho do homem é senhor do sábado”.

O conflito entre Cristo e os fariseus deve ser encarado, portanto, como uma
campanha não para destruir, mas ao contrário, para tomar a reclamar e restaurar
a instituição bíblica do sábado. Para tanto, Cristo acolheu o sábado e o requereu
como sua propriedade. Além disso, declarou que ele pessoalmente cumpriria a
promessa do sábado na vida de seus discípulos: “Vinde a mim, todos os que
estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração; e achareis
descanso para a vossa alma” (Mt 11.28,29). Mesmo aqui Cristo faz soar a nota
de oposição aos fariseus e ao seu “jugo” de proibições e prescrições tradicio-

nais, em relação ao sábado. Pedro se referiu a esse jugo e declarou que “nem
nossos pais puderam suportar, nem nós” (At 15.10). Cristo oferece um jugo
muito diferente e diz: “... meu jugo é suave, e o meu fardo é leve” (Mt 11.30).
Tomar o jugo de Cristo é tomar-se seu discípulo, assim como aceitar o jugo dos
fariseus era tomar-se discípulo deles. Àqueles que aceitam a Cristo com fé
verdadeira, ele promete descanso como cumprimento da redenção em agudo
contraste com a negação desse descanso para os israelitas não crentes e
desobedientes (Sl 95.10,11). Esse descanso consiste em colocar um fim no
trabalho infrutífero de buscar ser justificado pelas obras da lei. Cristo também
retira de nossas costas a carga da culpa por todos os nossos pecados. E isso não é
tudo, pois há a promessa de mais para o futuro quando tivermos nos livrado “do
corpo desta morte” (Rm 7.24).

Então, ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os mortos que,
desde agora, morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem das
suas fadigas, pois as suas obras os acompanham (Ap 14.13).

Com isso em mente, o apóstolo relembra aos crentes que “sendo-nos deixada a
promessa de entrar no descanso de Deus”, e acrescenta essa exortação,
envolvendo um profundo jogo de palavras: “Esforcemo-nos, pois, por entrar
naquele descanso” (Hb 4.1-11).

O cristão e o sábado

Como os crentes em Cristo deveriam guardar o dia do descanso hoje em dia?


Muitos escritores têm apresentado respostas a essa pergunta.41 Para o presente
propósito, entretanto, preferimos indicar três ricas fontes de orientação: o quarto
mandamento, em si mesmo, o profeta Isaías, e os ensinos e o exemplo de Cristo
Jesus nosso Senhor.

O quarto mandamento, em suas duas formas canônicas (Êx 20.811 e Dt 5.12-15),


fornecem muita orientação. Primeiro, devemos colocar de lado nossas tarefas
diárias e empregos. Devemos fazer isso indivi-

dualmente, como famílias, como congregações e como comunidades. Segundo,


devemos voltar nossa mente e coração para os grandes temas das Sagradas
Escrituras: as maravilhosas obras de Deus como Criador, Redentor e
Santificador. Terceiro, devemos nos ocupar daquelas atividades que adquirem,
aumentam e expressam nosso conhecimento da santidade de Deus e de nossa
santidade em Cristo. “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar” (grifo
nosso).

O profeta Isaías viveu numa época muito parecida com a nossa, um período de
prosperidade e abundância geral. Ele tem uma palavra clara para falar sobre os
perigos dessa abundância, na forma da “cultura do lazer” que a prosperidade
toma possível:

Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses


no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno
de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a
tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. EU te
farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu
pai, porque a boca do SENHOR O disse (Is 58.13,14).

Aqui o profeta expande a proibição a respeito do trabalho para incluir a procura


de nossas recreações pessoais e atividades de lazer. Até mesmo as palavras que
falamos devem ser orientadas pelo mandamento. Em troca, o profeta anuncia um
tipo maravilhoso de liberdade espiritual e deleite em Deus: “então te deleitarás
no SENHOR”.

Finalmente, devemos considerar os ensinos e o exemplo do Senhor Jesus Cristo.


Ele marcou o dia com um caráter cristão indelével quando disse: “O Filho do
homem é senhor do sábado”. Desde então, é perfeitamente legítimo falarmos de
um sábado cristão. Cristo reafirmou o dia como uma instituição projetada para o
bem e a bênção da humanidade quando relembrou os fariseus que: “O sábado foi
estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc
2.27). Desse modo, ele nos ensinou a não sobrecarregar o dia com um tipo de
rigidez que trabalha contra as necessidades básicas do ser humano. Além
disso, ele insistiu que “é lícito, nos sábados, fazer o bem” (Mt 12.12; Lc 6.9).

Aqui ele sanciona e aprova as obras de misericórdia e compaixão feitas em seu


nome e para a sua glória.

Do exemplo de Cristo aprendemos a atender diligentemente aos trabalhos da


igreja de Deus, congregando-nos no sábado cristão para ouvir a Palavra de Deus
(Lc 4.16). É também um dia em que os ministros da igreja devem se devotar ao
ensino e à pregação (Lc 4.31). É um dia para fazer o bem aos irmãos membros
da comunidade da fé (Lc 4.38,39) e para oferecer e receber a graça da
hospitalidade cristã (Lc 14.1) como parte da comunhão dos santos apropriada
para o dia (veja também Lc 24.29-42). Finalmente, os dias de descanso devem
ser especiais para a manifestação do regozijo na graça de Deus revelada no
evangelho - graça que abre nossos olhos cegos, repreende em nós a febre do
pecado, nos liberta de nossa triste escravidão, triunfa sobre o pecado e suas
hostes, restaura aquilo que o pecado fez murchar, e cura toda a enfermidade de
nosso coração e de nossa mente. Pode-se dizer honestamente que tudo o que
Cristo fez aos sábados tinha como propósito único este objetivo: revelar e
proclamar a graça de Deus aos pecadores.

Concluímos, portanto, que omitir ou negligenciar a santificação do sábado


cristão é desobedecer a Deus, violar nossa relação com Jesus e nos despojar de
bênçãos muito grandes. De modo igual, guardar o sábado como ele deve ser
guardado, de acordo com os ensinos e o exemplo de nosso Senhor, representa
uma grande parcela de vivermos para a glória de Deus e não é nada menos do
que “começarmos nesta vida a viver o eterno descanso” (Catecismo de
Heidelberg, questão 103).
Conclusões

O caráter bíblico do terceiro uso da lei Podemos agora tirar várias conclusões
importantes sobre o terceiro uso da lei por parte dos cristãos.42 Primeiro: o
terceiro uso da lei é bíblico. As escrituras do Antigo e do Novo Testamento são
prolíficas em exposições da lei dirigidas principalmente aos crentes, para ajudá-
los em sua constante busca de santificação. Os Salmos repetidamente

afirmam que o crente sente prazer na lei de Deus tanto no íntimo de sua pessoa
quanto em sua vida pública.43 Uma das maiores preocupações do salmista é
certificar-se a respeito da boa e agradável vontade de Deus e então andar nos
caminhos de seus mandamentos. O Sermão do Monte e as porções éticas das
epístolas paulinas são exemplos primordiais no Novo Testamento do uso da lei
como regra de vida. As orientações contidas nessas porções das Escrituras são
dirigidas principalmente para aqueles já redimidos, e procuram encorajá-los a
refletir uma teologia da graça com uma ética de gratidão. No contexto dessa
ética de gratidão, o crente vive sua vida e segue nas pegadas de seu Salvador que
foi, ele mesmo, o servo do Senhor e Legislador, diariamente obedecendo a todos
os mandamentos de seu Pai ao longo de sua jornada terrena.

Em oposição ao antinomianismo e ao lega lis mo

Segundo, o terceiro uso da lei combate ambos, o antinomianismo e o legalismo.


O antinomianismo (anti = contra; nomos = lei) ensina que os cristãos não têm
mais nenhuma obrigação para com a lei moral porque Jesus a cumpriu e os
libertou dela ao salvá-los pela graça somente. Paulo, sem dúvida, rejeita
enfaticamente essa heresia em Romanos 3.8, assim como o fez Lutero, em suas
batalhas contra João Agrícola, e também como o fizeram os puritanos da Nova
Inglaterra, em sua oposição contra Anne Hutchinson. Os antinomianos
compreendem mal a natureza da justificação pela fé, a qual, embora conferida à
parte das obras da lei, não exclui a necessidade de santificação. E um dos
mais importantes elementos constitutivos da santificação é o cultivo diário
de uma grata obediência à lei. Como Samuel Bolton afirma de modo
bem descritivo: “A lei nos envia ao evangelho para sermos justificados, e
o evangelho nos envia de volta à lei para, uma vez justificados, inquirir qual é
nosso dever”.44

Os antinomianos alegam de modo acusatório que aqueles que mantêm a


necessidade da lei como regra de vida para o crente se tomam presas do
legalismo. Sem dúvida, é possível que o abuso em relação ao terceiro uso da lei
possa resultar em legalismo. Quando um código elaborado é desenvolvido para
os crentes seguirem cobrindo todo o problema e tensão possíveis da vivência
moral, nenhuma liberdade é deixada para

os crentes, em qualquer área da vida, para tomarem decisões pessoais e


existenciais baseados nos princípios das Escrituras. Num contexto como esse,
leis elaboradas por seres humanos sufocam o evangelho divino e a santificação
legalista destrói a justificação graciosa. O cristão, então, é levado de volta a um
cativeiro semelhante ao do monasticismo católico romano medieval.

A lei nos confere uma ética abrangente, mas não uma aplicação exaustiva. As
Escrituras nos fornecem princípios amplos e paradigmas ilustrativos, mas não
particularizações minuciosas que podem ser mecanicamente aplicadas a todas as
circunstâncias. Diariamente, o cristão deve utilizar as amplas pinceladas da lei
para auxiliá-lo em suas decisões particulares, pesando cuidadosamente todas as
coisas de acordo com a lei e o testemunho (Is 8.20), lutando e orando durante
todo o tempo por um crescente senso de prudência cristã.

Legalismo e grata obediência à lei de Deus operam em duas esferas radicalmente


diferentes. Diferem tanto uma da outra quanto uma escravidão compulsória e a
contragosto de um serviço bem disposto e alegre. Infelizmente, muitos em
nossos dias confundem “lei” ou “legal” com “legalismo” ou com “ser legalista”.
Raramente compreendemos que Cristo não rejeitou a lei quando rejeitou o
legalismo. O legalismo é, na realidade, um tirano e um antagonista, mas a lei
deve ser nosso amigo necessário e útil. O legalismo é uma tentativa fútil de obter
mérito com Deus. Legalismo é o erro dos fariseus: cultiva uma
conformidade externa com a letra da lei sem levar em consideração a atitude
íntima do coração.

O terceiro uso da lei toma um rumo intermediário entre antino-mianismo e


legalismo. Nem o antinomianismo, nem o legalismo fazem justiça quer à lei quer
ao evangelho. Como John Fletcher observou com discernimento: “Nem os
fariseus são tão cumpridores da lei, nem os antinomianos são tão evangélicos”.45
O antinomianismo enfatiza a liberdade cristã da condenação da lei, às expensas
da busca do crente por santidade. Dá ênfase à justificação às expensas da
santificação. O antinomianismo deixa de perceber que a abolição do poder
condenató-rio da lei não revoga o poder ordenatório da lei. O legalismo
acentua de tal forma a busca do crente por santidade que a obediência à lei se
toma algo mais que um fruto da fé. A obediência se toma, então, um elemento
constituinte da justificação. O poder ordenatório da lei para a justificação sufoca
o poder condenatório da lei para a justificação. Em última análise o legalismo
nega na prática, se não em teoria, um conceito reformado de justificação. Ele dá
relevo à santificação às expensas da justificação. O conceito reformado do
terceiro uso da lei ajuda o crente, tanto na prática quanto na doutrina, a
salvaguardar um equilíbrio saudável entre justificação e santificação.46 A
justificação necessariamente conduz e encontra seu fruto adequado na
santificação.47 A salvação é pela fé graciosa somente, mas não pode senão
produzir as obras de uma obediência agradecida.

Promove amor espontâneo

O terceiro uso da lei promove o amor. “Porque este é o amor de Deus: que
guardemos os seus mandamentos; ora, os seus mandamentos não são penosos”
(1 Jo 5.3). A lei de Deus é uma dádiva e uma evidência de seu temo amor para
com seus filhos (SI 147.19,20). Não é um feitor cruel ou duro para aqueles que
estão em Cristo. Deus não é mais cruel ao dar a lei para os seus do que seria um
fazendeiro que constrói cercas para proteger seu gado e seus cavalos de
caminharem pelas estradas e rodovias. Isso foi vividamente ilustrado em Alberta
recentemente, quando um cavalo que pertencia a um fazendeiro passou pela
cerca, encontrou o caminho até a rodovia e foi atropelado por um carro. O cavalo
e também o motorista, de 17 anos de idade, morreram instantaneamente. O
fazendeiro e sua família choraram a noite toda. Cercas quebradas
provocam danos irreparáveis. Mandamentos quebrados colhem conseqüências
in-dizíveis. Mas a lei de Deus obedecida e o amor trabalhado pelo
Espírito promovem alegria e regozijo de coração. Agradeçamos a Deus por
sua lei que nos cerca no agradável contentamento dos pastos verdes de
sua Palavra.

Nas Escrituras, lei e amor não são inimigos, mas amigos inseparáveis. Na
realidade, a essência da lei é o amor: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu
coração, de toda a tua alma e todo o teu entendimento. Este é o grande e
primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo. Destes dois mandamen-

tos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.37-40; cf. Rm 13.8-10). Assim
como um súdito dedicado obedece ao seu rei, um filho amoroso obedece ao seu
pai, uma esposa amorosa se submete ao seu marido, assim um crente dedicado
almeja obedecer à lei de Deus. Então, como temos visto, a dedicação do sábado
inteiro a Deus se toma não um jugo, mas um prazer.

Promove autêntica liberdade cristã

Finalmente, o terceiro uso da lei promove liberdade - genuína liberdade cristã. O


difundido abuso da idéia de liberdade cristã que vemos hoje, a qual é unicamente
uma liberdade usada como ocasião para servir a came, não deveria obscurecer o
fato de que a verdadeira liberdade cristã é, ao mesmo tempo, definida e
protegida pelas linhas traçadas para o crente na lei de Deus. Onde a lei de Deus
limita nossa liberdade, ela o faz unicamente para o nosso bem maior; e onde a lei
de Deus não impõe tais limites, em questões de fé e culto, o cristão desfruta
perfeita liberdade de consciência de todas as doutrinas e mandamentos dos
homens. Em questões da vida diária, a verdadeira liberdade cristã consiste na
bem disposta, agradecida e alegre obediência que o crente oferece a Deus e a
Cristo. Calvino escreveu sobre os verdadeiros cristãos afirmando que eles
“observam a lei, não como constrangidos pela necessidade da lei, mas livres do
jugo da lei, eles com boa disposição obedecem à vontade de Deus”.48

A Palavra de Deus nos sujeita como crentes, mas nos sujeita apenas a ele e à sua
Palavra. Apenas ele é Senhor de nossa consciência. Somos verdadeiramente
livres em guardar os mandamentos de Deus, pois a liberdade flui de uma
servidão agradecida, não da autonomia ou da anarquia. Fomos criados para amar
e servir a Deus acima de todas as coisas, e ao nosso próximo como a nós
mesmos - tudo de acordo com a vontade de Deus e da sua Palavra. Somente
quando compreendemos de novo esse propósito encontramos verdadeira
liberdade cristã. Liberdade verdadeira, escreve Calvino, é “uma servidão livre e
uma liberdade servidora”. Liberdade verdadeira é uma liberdade obediente.
Apenas “aqueles que servem a Deus são livres. Obtemos liberdade para que
possamos obedecer a Deus mais pronta e rapidamente”.49

Sou, ó Senhor, teu servo, escravo, entretanto livre,

Filho teu, feitura de tuas mãos cujas algemas tu quebraste; Redimido pela
graça, renderei como oferta de gratidão meu constante louvor a ti.50

Essa é, por isso, a única maneira de viver e de morrer. “Pertencemos a Deus”,


conclui Calvino, “vivamos, portanto, para ele e morramos para ele. Pertencemos
a Deus: permitamos que sua sabedoria e vontade dirijam todas as nossas ações.
Pertencemos a Deus: deixemos que todas as partes de nossa vida em conjunto se
empenhem em direção a ele como nosso único objetivo legítimo”.51
Posfácio

Os cristãos vivem no melhor e no pior dos


tempos. Nunca tivemos tamanha disponibilidade
de rica literatura cristã, profunda e desafiadora.
Nunca houve tantas pessoas afirmando serem
nascidas de novo. Entretanto, a igreja moderna
está perigosamente perto da maneira de pensar
daqueles que, nas Escrituras, são descritos
nestes termos: “... cada um fazia o que achava
mais reto” (Jz 21.25). Nossa versão atual dessa
frase é: “Cada um pensa o que é certo segundo o
próprio entendimento”.
Para a grande maioria, não importa mais o que séculos de história da igreja nos
ensinaram, ou o que séculos de diligente exegese produziram; hoje a
hermenêutica universal se resume a uma atitude como: “Eu gosto disso!”, ou
“Eu não gosto disso!” A preferência pessoal de cada um é só o que importa. A
questão não é mais o que uma passagem significa, mas o que ela significa para
mim\ Não perguntamos mais: “O que Deus disse?”, mas “Vai funcionar?” Nós
nos tomamos pessoas de conseqüência e não pessoas de convicção.

O individualismo de nossos dias (tão bem ilustrado pelos Doobie Brothers: “Eu e
Jesus levamos uma boa conversa, não precisamos de ninguém para nos dizer o
que isso significa”) produziu uma confusão no que diz respeito ao papel da
obediência para o cristão. Alguns desejam

abolir a lei (“não estou sob a lei, estou sob a graça!”). Entretanto, Paulo
escreveu: “ ... a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Rm 7.12).
Por que alguém desejaria pôr de lado algo que era santo, justo e bom? O
verdadeiro crente não deseja suprimir a lei, assim como não o fez Jesus, que
afirmou especificamente que não tinha vindo para abolir a lei, mas para cumpri-
la. Ao contrário, como R. C. Sproul afirmou, o verdadeiro crente, como Davi,
ama a lei de Deus! Ela é o seu compasso moral e espiritual. A lei de Deus, como
os puritanos gostavam de dizer, é o caráter de Deus em forma escrita.

Obediência a Deus e à sua lei é a marca do verdadeiro crente. Ele diz como
Davi: “Tua lei é o meu prazer”. Ele afirma com Cristo: “Vim para fazer a tua
vontade, ó Deus”. Ele concorda com Cristo quanto ao fato de que a evidência de
nosso amor por Cristo é a nossa obediência a Cristo. Deus deseja nossa
obediência, pois dessa forma o honramos por nossa submissão a suas leis, seus
estatutos e seus mandamentos. Entretanto, como Spurgeon afirmou
acertadamente: “Ele ordena e recebe obediência, mas é a obediência de boa
vontade do rebanho bem cuidado que expressa alegremente ao seu amado pastor
cuja voz eles conhecem tão bem”.

João foi muito claro ao afirmar que obedecer a Cristo é amar a Cristo: “E o amor
é este: que andemos segundo os seus mandamentos”. No entanto, é muito
importante que compreendamos que nossa obediência não contribui nem
adiciona qualquer coisa à nossa justificação. Como se pode adicionar água a um
copo cheio? Jesus pagou tudo! Constantemente afirmamos que obediência a
Cristo, nossas boas obras, provam nossa salvação, não trazem nossa salvação!
Como poderia uma pessoa em pleno uso de sua razão pensar que nossas obras
imperfeitas adicionam alguma coisa a sua perfeita obediência e retidão? O
grande poeta de hinos Horatius Bonar escreveu estas palavras para meu hino
favorito:

Não o que fizeram minhas mãos Pode purificar minha alma culpada Não o
que minha carne suportou Pode curar o meu espírito Não o que sinto ou faço

Pode me dar paz com Deus;

Nem todas as minhas orações, ânsias e lágrimas Podem suportar meu terrível
fardo.

Tua obra somente, ó Cristo Pode aliviar este peso de pecado;

Apenas o teu sangue, ó Cordeiro de Deus,

Pode me dar paz interior.


Teu amor por mim, ó Deus,

Não o meu, ó Senhor, a ti,

Pode livrar-me deste escuro desassossego,

E libertar o meu espirito.

Ou como escreveu Augustus Toplady:

Nada trago em minhas mãos Simplesmente me apego à tua cruz.

Não, não é uma questão de fazer o que pudermos e Cristo fazer o restante; é
Cristo cumprindo toda a obra da salvação e nós respondendo com gratidão para
fazer o que ele ordena com coração cheio de amor por sua grande salvação.
William Seeker disse: “Temos o penhorado dever de viver em obediência, mas
viver pela obediência provaria nossa absoluta ruína”.

Jesus foi absolutamente claro em Lucas 17.10 ao dizer que mesmo que
guardássemos perfeitamente todos os mandamentos durante todos os dias da
nossa vida, não mereceríamos nem sequer um “muito obrigado”. Teríamos
apenas feito o nosso dever e isso nos qualificaria como servos indignos, sem
proveito, inúteis nas palavras do próprio Cristo! Portanto, se obras perfeitas não
mereceriam nada de Deus, então certamente nossas obras imperfeitas merecem
ainda menos! Não existe possibilidade de alguém pensar que qualquer coisa que
fizéssemos colocaria Deus sob a obrigação de nos salvar. Entretanto, os Cânones
e decretos do Concilio de Trento da Igreja Católica Romana nos dizem que:
“Por meio de tais boas obras feitas pela graça de Deus e dos méritos de Cristo de
quem ela

é um membro vivo, [uma pessoa] verdadeiramente merece um acréscimo de


graça, vida eterna, e o recebimento de vida eterna se morrer em graça” (grifo
nosso). Todas as nossas obras são manchadas pelo pecado e pela corrupção que
permanecem e, portanto, nunca poderia merecer nada! Assim, Jesus ensinou a
doutrina da “justificação pela fé somente” muito antes de Lutero.

Quando Jesus contou a história do fariseu e do publicano, foi o fariseu quem


listou tudo o que havia feito segundo o que Deus realmente ordenara; mas foi o
publicano quem voltou para casa justificado. É isso que Paulo afirma em
Romanos 4.5: “ ... ao que não trabalha” a justificação é livremente concedida.
Aqui ele contrasta trabalhar e crer como meios de justificação. Ninguém o
interpretaria mal dizendo que alguém que creia em Cristo nunca trabalhará, mas
o que ele está dizendo é que uma justiça que se assemelha a trapos sujos nunca
merecerá perfeita salvação. O imperfeito nunca poderá ocasionar o perfeito,
razão por que a fé é, necessariamente, uma dádiva de Deus, não das obras. Que
ninguém se glorie!

Quando Deus vem morar na alma de um homem ou de uma mulher, de um


menino ou de uma menina, essa pessoa, transbordante de gratidão (Cl 2.7) agora
caminha em obediência a Cristo. Como disse John MacArthur: “Agora a
obediência é a direção de nossa vida, não a perfeição de nossa vida”.

Nós cantamos:

Crer e observar, tudo quanto ordenar O fiel obedece ao que Cristo mandar.

Verdadeiro como isso é igualmente verdadeiro que não há outra maneira de estar
em Jesus! “Tomai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes,
enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1.22). Não se engane. Judas ouviu todos os
sermões de Cristo, no entanto, hoje está no inferno atormentado pelo que ouviu e
ao qual deixou de responder. Aqueles que um dia verão a Cristo são os que o
obedecem de coração - não para ganhar o seu favor, mas para evidenciar o seu
favor.

Soli Deo Gloria!


Notas
Trapos sujos (da imundícia) ou perfeita justiça? - Michael Horton
1
Donald L. Alexander, org. Christian Spirituality: Five Views of Sanctification (Downers Grove:
InterVarsity Press, 1988), pp. 44-46.

2 Ibidem, pp. 42,43.

3 Ibidem, pp. 37,38.

4 Clark Pinnock, org. The Grace of Gad and the Will of Man (Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1989).

5 João Calvino, Institutos da Religião Cristã, 3.14.10.

‘Theodore Beza.Trad.James Clark. The Christian Faith (East Sussex, Inglaterra: Focus Christian Ministries
Trust, 1992), pp. 40,41. Publicado primeiramente em Genebra, em 1558, como Confession de foi du chrétien.

7 João Calvino.Trad. F. L. Battles. Institutos (ed. 1536), 2.7.5 (Grand Rapids: Eerdmans, 1975), pp.
30,31, cf.ed. 1559,2.11.10.

8 Ibidem, Institutos (ed. 1559), 3.14.13.

5 Ibidem.

10 Essas palavras foram pronunciadas por Nicolas Cop no seu Ato de Posse da Reitoria da
Universidade de Paris; há um grande consenso (embora não unânime) entre os estudiosos de Calvino de que
Calvino tenha sido o autor. Elas foram citadas na tradução das institutos, edição de 1536, feita por F. L.
Battles (Grand Rapids Mich.: Eerdmans, 1975), p. 365.

11 Ibidem, p. 366.

12 Ibidem, p. 369.

13 Ursinus, Commentary an the Heidelberg Catechism (Phillipsburg, Nova Jersey: Presbyterian and Reformed,

da 2a ed. americana, 1852), p. 2.

14 Ibidem, p. 3.

15 Charles Spurgeon. New Park Street Pulpit (Pasadena,Texas: Pilgrim Publications, 1975, vol. I), p. 285.

l6J.Gresham Machen, Christianity and Liberalism (Nova York: Macmillan, 1923), p. 143.
17 J. Gresham Machen, Christian Faith in the Modern World (Nova York: Macmillan, 1936), p. 57.

18 J.Gresham Machen, What is Faith? (Nova York: Macmillan, 1925), pp. 137- 139-152.

19
John Murray, The New International Commentary on the New Testament'Romans (Grand Rapids, Michi

gan: Eerdmans, 1968), p. 229.

Obediência por fé - John Armstrong


' Don B. Garlington, Faith, Obedience and Perseverance, trad. Paul Siebeck. (Tubingen, Alemanha: J. C. B.
Mohr, 1994),p. I I.

2 Ibidem, p. 13.

1 Douglas Moo, Romans 1-8: TheWycliffe Exegetical Commentary (Chicago: Moody Press, 1991), p. 44.

4 William Hendriksen, Romans 1-8: The New Testament Commentary (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans,
1980), p. 45.

5F. F. Bruce, The Epistle of Paul to the Ramans (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1963), p. 74.

6 Charles Hodge, Commentary on Romans, 2‘ ed. (Edimburgo: Banner of Truth, 1972), pp. 21,22.

7 Douglas Moo, op. cit., p. 44.

8 Cranfield, Romans: A Shorter Commentary (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1985), p. 8.

’ João Calvino, Commentary on Romans, ed. de 1979, Beveridge Edition, vol. 19 (Grand Rapids, Michigan:
Baker), p. 18.

10 D. Martyn Uoyd-Jones, Romans.’An Exposition of Chapter I,The Gospel of God (Grand Rapids, Michigan:
Zondervan, 1985), pp. 137,138.

1 ' John Murray, The Epistle ta the Romans (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1968), p. 13.

12 Robert Haldane, An Exposition to the Romans (s.d., MacDill AFB, Flórida: MacDonald),pp. 30,31. l3James
M. Boice, Romans I —4:An Expositional Commentary (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1991), p. 55.

14 Ibidem, Romans 1-4, p. 56.

15 Douglas Moo, op. cit., pp. 44,45.

16 Douglas Moo, op. cit., p. 45.


17 Glenn N. Davies, Faith and Obedience in Romans:A Study in Romans 1-4 (Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1990), p. 19.

18 C. E. 8. Cranfield, A Critical and Exegetical Commentary an the Epistle to the Romans, 2 vols.
(Edimburgo: T.&T. Clark, 1979), 1:66,67.

Murray, Epistle to the Romans, p. 14.

20
Don B. Garlington, Faith, Obedience and Perseverance, trad. Paul 5iebeck (Tubingen, Germany: J. C.
B. Mohr, 1994), p. 17.

21 Ibidem, p. 31.

22 G. C. Berkouwer, Faith and Justification (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1954), p. 195.

23 Don B. Garlington, Faith, Obedience and Perseverance, trad. Paul Siebeck (Tubingen, Germany: J. C.
B. Mohr, 1994), p. 145.

24 Ibidem, p. 147.

25 Ibidem, p. 147.

24 G. C. Berkouwer, Faith and Perseverance (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, I9S8), pp. 237,238.

27 Ver John H. Armstrong, org. Roman Catholicism: Evangelical Protestants Analyse What Divides and Unites

Us; 1994. No capítulo 2, D. Clair Davis,“How Did the Church in Rome Become Roman Catholicism?’’,
mostra com clareza como toda a matéria se desenvolveu. No capítulo 3, Robert D. Godfrey, “What Caused
the Great Divide?” mostra como Lutero creu e encontrou paz.

28
Ver Don Kistler, org. Justification by Faith ALONE! (Morgan, Pensilvânia: Soli Deo Gloria, 1994).

Don B. Garlington, Faith, Obedience and Perseverance, trad. Paul Siebeck (Tubingen, Germany: J. C. B.
Mohr, 1994), p. 153.

30D.A. Carson, org., Right With Gad (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1992), cf. capítulo de P.T. O’Brien’s,
“Some Crucial Issues of the Last Two Decades”, p. 94.

3LDon B. Garlington, op. at., p. 154.

32-5teve Motyer, “Righteousness By Faith in the New Testament”, in Here We Stand: Justification By Faith
Today (Londres: Hodder & Stoughton, I9B6), pp, 53,54.

33' Don B. Garlington, Faith, Obedience and Perseverance, trad. Paul Siebeck (Tubingen, Germany: J. C. B.
Mohr, 1994), p. 157.
34' Ibidem, p. 158.

35 Ibidem, p. IS8.

36
Anthony A. Hoekema, Saved by Grace (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1989), pp. 11-17. Esse
é um excelente livro que usei muitas vezes, de modo proveitoso, como texto nas aulas de
soteriologia. Utilizei profusamente esse material nos últimos parágrafos deste capítulo. Ele considera, com
propriedade, a importância das categorias de pensamento sistemático e reformado, assim como os debates e
questões históricas. Ao mesmo tempo, baseia profundamente a doutrina da salvação na exegese do texto das
Escrituras.

"■Sinclair B. Ferguson, “Recovery and Confession”, in James M. Boice, org. Here / Stand:A Call from
Confessing Evangelicals (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1996), no cap. 6,“Recovery and Confession”,
Sinclair B. Ferguson, p. 135.

“ Anthony A. Hoekema, Saved by Grace (Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1989), pp. 11-17.

Alegre obediência: o terceiro uso da lei - Joel Beeke e Ray Lanning


'■ Salmo 119.29-32, versão métrica, de The Psalter (1912 reimp. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1995).
N“-324, vs. 3,4.

1 Muitos teólogos reformados seguindo Calvino invertem o primeiro e o segundo usos da lei.

3i Lectures on Galatians, 1535, vol. 26 de Luther’s Works, org. Jeroslav Pelikan (St. Louis: Concórdia, 1963), pp.
30B.309.

4João Calvino, Institutos da Religiãa Cristã, org.JohnT. McNeill,trad. Ford Lewis Battles (Filadélfia:West-
minster Press, 1960). Livro 2, capítulo 7, parágrafo 10 (daqui em diante: Institutos 2.7.10).

5-Calvino, institutos 4.20.22-25.

6,Ao selecionar um termo para esse uso da lei, estamos conscientes das muitas possibilidades existentes na
literatura, mas escolhemos o termo que melhor expressa a noção reformada do relacionamento entre lei e
evangelho, a saber, que elas são complementares e não antitéticas. Estamos aqui tratando daquela função da
lei que prepara o coração do pecador para receber a Cristo livremente oferecido nos evangelhos aos
pecadores como o único Salvador da condenação, maldição e punição da lei - isto é, a convicção evangélica
e não legal. Os puritanos se destacaram na descrição dessa distinção, enfatizando o conceito de que a
convicção legal lida com o pecado em si mesmo e com a necessidade

de ser libertado dele por Cristo. Por exemplo, Stephen Charnock escreveu: “Uma pessoa convencida
legalmente estaria livre unicamente da dor [o pecado], a pessoa convencida evangelicamente estaria livre do
pecado [em si mesmo]”. (I. D. E.Thomas, Puritan Quotations (Chicago: Moody, 1975), p. 167.

7 A única diferença substancial entre Lutero e Calvino sobre o uso evangélico da lei é que, para
Lutero esse é o primeiro uso da lei, enquanto para Calvino o terceiro uso é o primeiro.
8 Luther’s Works, vol. 26, pp. 148, 150.

9 Calvino, Institutos 2.7.6,7.

'“ The Loci Communes of Philip Melanchthan [1521] trad. Charles Leander Hill (Boston: Meador, 1944), p. 234.

"■ Scholia in Epistalam Pauli ad Calassense iterum ab authore recognita (Wittenberg: J. Klug. 1534), XLVIII r,
LXXXII v - LXXXIII v.

12 Ibidem, XCIIII v.

13 Ibidem, XVII r.

14 Ibidem, XC v.

I5, Ibidem, L v.

16 Timothy Wengert, Lex et Poenitentia: The Anatomy of an Early Reformation Debate Between
Philip Melanchthon and John Agricola from Eisleben (a sair), 303 (trabalho datilografado).

17 Wengert, Lex et Poenitentia/, p. 305.

18 Melanchthon on Christian Doctrine (Lad communes 1555), trad, e ed. Clyde L. Manschreck
(Oxford: University Press, 1965), p. 127.

19
Cf. Hans Engelland,Melanchthon, Glauben und Handeln (Munique: KaiserVerlag, l93l);Werner Elert, “Eine
theologische Falschung zur Lehre vom tertius usus legis”, Zeitschrift fur Religions- und Geistesge-schichte I
(1948): pp. 168-170; Wilfried Joest, Gesetz und Freiheit: Das Problem des tertius usus legis bei Luther und die
neutestamentliche Parainese (Gottingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1951); Hayo Gerdes, Luthers Streit mit den
Schwarmern urn das rechte Verstandnis des Gesetzes Mose (Gottingen: Gottiner Verlagsanstalt, 1955), pp. I I l-l
16: Gerhard Ebeling, Luther:An Introductions to His Thought, trad. R. A. Wilson (Filadélfia: Fortress, 1970);
Eugene F. Klug,“Luther on Law, Gospel, and the Third Use of the Law”, The Springfielder 38 (1974), pp. I55-
I69;A. C. George,“Martin Luther’s Doctrine of Sanctification with Special Reference to the Formula Simul
lustus et Peccator: A Study in Luther’s Lectures on Romans and Galatians” (dissertação de doutorado,
Westminster Theological Seminary, 1982), pp. 195-210.

20 Cf. Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, trad. Robert Schultz (Filadélfia: Fortress, 1966), p. 267.

21 Luther’s Works, vol. 26, p. 260.

22 Ver tratados de Lutero: On Good Works,The Freedom of the Christian, Small Catechism, Large Catechism, e
Disputations with Antinomians.

23 Citado por Donald MacLeod,“Luther and Calvin on the Place of the Law”, in Living the Christian
Life (Huntingdon,lnglaterra:Westminster Conference, 1974),pp. 10,11.
24 Falando sobre os crentes, Bucer ensinou que “Cristo certamente nos libertará [//berosse], mas não nos
eximirá [so/visse] da lei”, (Enarratianes [1530], 158b; cf. 50a-5lb). François Wendel sugere que as três
funções da lei “reconhecidas por Melanchthon” foram “mais enfatizadas por Bucer em seu Commentaries”
(Calvin: The Origins and Development of His Religious Thought, trad. Philip Mairet [Nova York: Harper & Row,
1963], 198). Por exemplo, Bucer escreveu que a lei “de forma nenhuma está abolida, mas é tão mais potente
em cada um daqueles que são mais ricamente contemplados com o Espírito de Cristo” (Wendel, Calvin, p.
204). Cf. Ralph Roger Sundquist,“The Third Use of the Law in theThought of John Calvin: An
Interpretation and Evaluation” (Ph.D. dissertation, Union Theological Seminary, 1970), pp. 317,318.

25 Para Calvino, o uso condenatório da lei não é o seu uso “apropriado”, pois essa função servia apenas
para conduzir o pecador a Cristo, e o uso civil representou apenas um propósito “acidental”. Cf. Victor
Shepherd, The Nature and Function of Faith in the Theology of John Calvin (Macon, Geórgia: Mercer University
Press, 1983), pp. I53ss.

26 Selected Works of John Calvin: Tracts and Letters, org. Henry Beveridge and Jules Bonnet, 1849; reimp.

(Grand Rapids, Michigan: Baker, 1983), vol. 2, pp. 56-69.

27 João Calvino, Institutos do Religião Cristã: 1536, trad. Ford Lewis Battles (Grand Rapids,
Michigan: Eerdmans, 1975), p. 36.

28 Institutos 2.7.12. Calvino colige considerável apoio para esse seu terceiro uso da lei dos salmos da-
vidicos (cf. /nst/tutas 2.7.12 e seu Commentary on the Book of Psalms, trad. James Anderson, 5 volumes [Grand
Rapids: Eerdmans, 1949]).

29 I. John Hesselink,“Law - Third Use of the law", in Encyclopedia of the Reformed Foith, org. Donald
K. McKim (Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox, 1992), pp. 215,216. Cf. Edward A.
Dowey,Jr.,“Law in Luther and Calvin”, Theology Today 41,2 (1984): 146-153; I. John Hesselink, Calvin's
Concept of the Low (Allison Park, Pensilvânia: Pickwick, 1992), pp. 251-262.

“• The Psalter, NM2.

31 W. Robert Godfrey, “Law and Gospel”, in The New Dictionary of Theology, org. Sinclair B.
Ferguson, David F. Wright, e J. I. Packer (Downers Grove, III.: InterVarsity Press, 1988), p. 379.

32 The Psalter, pp. 26-88.

33 Ernest F. Kevan, The Groce of Law (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1990) fornece uma exposição
completa do ensino puritano sobre o relacionamento do crente com a lei.

34 Anthony Burgess, Spiritual Refining: or o Treatise of Grace ond Assurance (Londres: A. Miller, 16S2),
p. 563.

35 Thomas Bedford, An Examination of the Chief Points of Antinomionism (Londres, 1646), pp. 15,16.

36 Samuel Rutherford, The Trial andTriumph of Faith (Edimburgo:William Collins, 1845),p. 102; Catechisms of
the Second Reformation, org.Alexander F. Mitchell (Londres: James Nisbet, 1886), p. 226.
37 Samuel Crooke, The Guide unto True Blessedness (Londres, 1614), p. 85.

38 Westminster Confession of Foith (Glasgow: Free Presbyterian, 1994), pp. 180,181.

34
Westminster Confession of Foith, pp. 94,95.

40 Maurice Roberts, “Sabbath Observance”, Banner of Truth, na-392 (maio de 1996) p. 5.

41 Além dos tratados sobre os Dez Mandamentos e sobre os Padrões de Westminster, veja
Thomas Shepard,The Doctrine ofthe Sabbath (Pittsburgh: Soli Deo Gloria, 1992); John Owen, An Exposition of
the Epistle to the Hebrews, org.W. H. Goold (Londres: Johnstone & Hunter, 1855), vols. 3,4 sobre
Hebreus 3,4; Jonathan Edwards,"The Perpetuity and Change of the Sabbath”, in TheWorks of Jonathon
Edwards (1834; reimp. Edimburgo: 8anner ofTruth Trust, 1974), vol. 2, pp. 93-103; Robert Dabney,“The
Christian Sabbath: Its Nature, Design, and Proper Observance”, in Discussions: Evangelical ond Theological
(1890; reimp. Londres: Banner ofTruth Trust, 1967), vol. I, pp. 496-S50; Matthew Henry,"A 5erious
Address to Those that Profane the Lord's Day”, in The Complete Works of Matthew Henry (1855; reimp.
Grand Rapids, Michigan: Baker, 1979), vol. I, pp. 118-133;W. B. Whitaker, Sundoy in Tudor ond Stuart Times
(Londres: Houghton, 1933); Daniel Wilson, The Divine Authority and Perpetual Obligation of the Lord's Day (1827;
reimp. Londres: Lord’s Day Observance Society, 1956); John Murray, “The Moral Law and the Fourth
Commandment", in Collected Writings (Edimburgo: Banner of Truth Trust, 1976), pp. 193-228; James I.
Packer,“The Puritans and the Lord’s Day", in A Quest for Godliness (Wheaton: Crossway, 1990), pp. 233-
243; RogerT. Beckwith and Wilfrid Stott, The Christian Sundoy:A Biblicol ond Historical Study, 1978; reimp.
(Grand Rapids, Michigan: Baker, 1980); Errol Hulse,“Sanctifying the Lord’s Day: Reformed and Puritan
Attitudes", in Aspects of Sanctification (Westminster Conference of 1981; Hertfordshire,
Inglaterra: Evangelical Press, 1982), pp. 78-102; James T. Dennison, Jr. The Morket Day of the Soul.-The Puritan
Doctrine of the Sobboth in England, 1532-1700 (Nova York: University Press of America, 1983); Walter
Chantry, Coll the Sobboth o Delight (Edimburgo: Banner ofTruth Trust, 1991).

42 Cf. MacLeod,“Luther and Calvin", pp. 12,13, a quem somos devedores por um útil resumo de
observações sobre a normatividade da lei para o crente.

43 Cf. Salmo I 19 para um exemplo extraordinário.

44 Citado em John Blanchard, Gothered Gold (Welwyn, Hertfordshire, Inglaterra: Evangelical Press, 1984),

p. 181.

45 "Second Check on Antinomianism”, in TheWorks ofJohn Fletcher, vol. I, p. 338.

46- Para uma descrição mais detalhada do relacionamento entre justificação e santificação, veja Joel
R. Beeke,“The Relation of Faith to Justification”, in Justification by Faith ALONE!, org. Don Kistler
(Morgan, Pensilvânia: Soli Deo Gloria, 1995), pp. 82ss.

47- Ernest F. Kevan, Keep His Cammondments:The Place of Law in the Christian Life (LondresrTyndale
Press, 1964), p. 28.

48 Calvino, Institutas 3.19.4.


49-João Calvino, Commentary on I Peter 2.16.

50 The Psalter; N° 426, v. 9 (Salmos I 16).

51
Calvino, Institutas 3.7.1.

Não se pergunta mais: isso é verdodeiro? Ao contrário, pergunta-se: isso


funciona? A ênfase num empirismo pragmático promoveu uma confusão que se
infiltrou na igreja, manifestada ao colocarmos o interesse pessoal (o que eu
ganho com isso?) à frente da pergunta mais bíblica que seria: o que devo fazer a
esse respeito? Os artigos deste livro não tratam do que o homem ganha, mas
sim quem é Deus e o que ele fez, faz e fará para colocar o indivíduo numa
posição em que ele glorificará e desfrutará Deus pora sempre. Nesse caso, a
pergunta crítica se torna: o que farei com aquilo que Deus tem feito? A questão é
obediência.
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