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Paul Miller

O PODER
DE ORAÇAO
C o m o v i v e r em
c o m u n h ã o com
D e u s em um
mundo caótico

VIDA NOVA
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro» SP, Brasil)

Miller, Paul E.
O poder de uma vida de oração /
Paul E. Miller; tradução Eulália P. Krçgness.
— São Paulo : Vida Nova, 2010.

Título original: A praying liíe: connecting with


God in a distracting world
ISBN 978-85-275-0453-9

1. Oração - Cristianismo 2. Vida espiritual -


Cristianismo I. Título

10-11022 C D D -248.32

índices para catálogo sistemático:


1. Oração : Cristianismo 248.32
O PODER
DE UMAVIDA
DE ORAÇAO
C o m o v ive r em
co m u n h ão com
D eus em um
m undo ca ó tico

T ra d u çã o : E u lá lia P. K reg n e ss

VIDA NOVA
Copyright © 2009 Paul Miller
Título original: A Praying Life: Connecting with God in a Distracting World
Originalmente publicado por Navpress, um selo da Navigators, P.O. Box
35001, Colorado Springs, C O , 80935, EUA

l . a edição: 2010
Reimpressão: 2014

Publicado no Brasil com a devida autorização e com todos os direitos


reservados por S o c i e d a d e R e l i g i o s a E d i ç õ e s V id a N o v a ,
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xerográficos, fotográficos, gravação, estocagem em banco de
dados, etc.), a não ser em citações breves com indicação de fonte.

ISBN 9 7 8 -8 5 -2 7 5 -0 4 5 3 -9

Impresso no Brasil IPrinted in B razil

CO O RD EN AÇÃ O ED ITO RIA L


Marisa K. A. de Siqueira Lopes

REVISÃO D E PROVAS
Mauro Nogueira

CO O RD EN AÇÃ O DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura

DIAGRAMAÇÃO
Luciana D i Iorio

CAPA
Souto Crescimento de Marca
Em m em ória de Benjam in Edtvard M iller
10 de março de 2 0 0 9
Nosso sétimo neto, um tesouro celestial

Agradecimentos especiais a

Ja n e H ebden da Chelten Baptist Church, Dresher, Pennsylvania;


The Huston Foundation;
E a nossos amigos da Trinity Presbyterian Church em Lakeland,
Flórida — inclusive Ron e Kim Avery, H ow ard e D eanna Bayless,
Jack e Tina Harrell, Tim e Tina Strawbridge, Jim e Christi
Valenti, Justine Jen Wilson — cuja ajuda tornou este livro possível.
SUMARIO

1. “O que vai a d ia n ta r o ra r? ” ................................................................. ..... 1*>

2. Aonde queremos chegar....................................................... 21

P a r te 1: A p r e n d e n d o a o r a r c o m o c r ia n ç a

3. Torne-se como uma criança........................................................ 31


4 . A p re n d a a c o n v e rs a r c o m o P a i...................................................... ....... 3 9

5. Passe te m p o c o m o Pai......................................................... ..... 4 £>


6. Aprenda a ser dependente................................................... ....... 5 4
7. Clame “Aba, Pai”, sem cessar.............................................. 64

8. Curve seu coração diante do Pai........................................ ....... 7 1

P a r t e :2 : A p r e n d e n d o a c o n f ia r n o v a m e n t e

9. Entenda o ceticismo..................................................................... 7 9
10. Siga a Jesus e deixe para trás o ceticismo.......................... 86

11. Procure desenvolver a capacidade de ver a presença


de Jesus.......................................................................................... 99
P arte 3 : A pr en d en d o a p e d ir ao P ai

12. Por que é tão difícil pedir?...................................................... 107


13. Por que podemos pedir?............................................................117
14. O quanto Deus é pessoal?........................................................ 123
15. O que fazer com as exuberantes promessas de
Cristo sobre a oração?..................................................................136
16. Algo que não pedimos a Deus: “O pão nosso de
cada dia” ...................................................................................... 148
17. Algo que não pedimos a Deus: “Venha o teu reino” ....... 155
18. Entrega total: “Seja feita a tua vontade”................................ 162

P a r t e 4 : P a r t ic ipa n d o da h is t ó r ia d o P ai

19. Observando o desenrolar da história.................................... 173


20. Amor de pai................................................................................. 182
21. Oração não respondida: Entenda os contornos
da história......................................................................................189
22. Como Deus se apresenta na história...................................... 199
23. Orar sem ter uma história........................................................ 205
24. Esperança: o fim da história.................................................... 215
25. Viva histórias do evangelho..................................................... 222

P a r te 5 : O r a n d o n a v id a rea l

26. Ferramentas de oração............................................................... 233


27. Acompanhando a história: Fichas de oração....................... 237
28. Exercitando a oração................................................................. 246
29. Ouvindo a voz de Deus............................................................. 251
30. Diário de oração: Tome-se consciente da jornada
interior........................................................................................... 262
31. Orando na vida real................................................................... 271
32. Histórias inacabadas...................................................................277

A g r a d e c i m e n t o s f i n a i s .............................................................................................. 2 8 3
PRE FAC IO

ORAR É DIFÍCIL. Para muitos de nós já não é nada fácil pedir a um


amigo de confiança algo de que precisamos de verdade. Porém, quan­
do o pedido recebe o nome de “oração” e esse amigo se chama “Deus”,
as coisas se complicam ainda mais. Quem já não teve de suportar
aquelas orações pomposas, com frases feitas, repetições descabidas,
pedidos vagos, um tom piedoso de voz e uma certa confusão no ar?
Seus parentes e amigos com certeza achariam que você perdeu o juízo
se falasse desse jeito com eles! Mas é bem provável que já tenha falado
assim com Deus alguma vez. Por certo também conhece pessoas que
tratam a oração como um pé de coelho para afastar o azar e trazer boa
sorte. Ou conhece pessoas que se sentem culpadas por não orarem
tanto quanto se convencionou como padrão. Talvez você mesmo seja
uma dessas pessoas.
E quanto à oração propriamente falando, temos a tendência de
transformá-la em obrigação e problema. Obrigações e problemas que,
por sinal, já fazem parte da vida. Passamos e repassamos nossa lista de
coisas a fazer, e revivemos, dia após dia, as mesmas ansiedades, preocu­
pações, pressões, prazeres e irritações.
Mas em meio a isso tudo, Deus se torna uma presença distante: ele
está lá, em algum lugar, algumas vezes.
E de algum modo quase sempre oração e vida, essas duas coisas tão
problemáticas, e o Senhor do céu e da terra nunca entram em sintonia.
No entanto, a finalidade da oração não é ser nem obrigação nem
problema. E Deus, por sua vez, está presente sim, aqui e agora. A fi­
nalidade da oração é ser um diálogo onde a vida e Deus se encontram.
Paul Miller entende bem isso e o objetivo desta obra é ajudar o leitor a
colocar em prática esse entendimento.
Por incrível que pareça, a vida de oração é um jeito estranhamente
normal de viver. O máximo que o mundo tem a oferecer é ensinar você
a fa la r consigo mesmo. “Mude seu discurso”, dizem por aí, “e sua pers­
pectiva sobre os acontecimentos mudará. Mude o que diz a si mesmo,
e a opinião que tem de si mesmo mudará. Convença-se a não ficar cha­
teado com aquilo que não pode mudar. Faça algo construtivo a respeito
daquilo que pode mudar”. E isso é tudo o que mundo tem a oferecer.
Muito embora seja um jeito comum de viver, também é anormal.
Jesus, porém, vive e ensina algo bem diferente. O que ele faz — e
ajuda você a fazer — é algo pouco comum, porém absolutamente nor­
mal. É humano e humanizador: assim como a vida deve ser. Jesus ensina
você a parar de falar consigo mesmo. Mostra como parar de transformar
a oração em uma obrigação. Ele o ensina a falar com o Pai — “meu Pai e
vosso Pai” (Jo 20.17), como explicou a Maria Madalena. Ele nos ensina
a conversar com Deus, aquele que governa o mundo e que, por livre
e espontânea vontade, resolveu dedicar sua atenção aos interesses que
tocam nosso coração.
Conversar sobre a vida com esse Deus sempre presente é o tipo
de diálogo que merece ser chamado “oração”. A Bíblia dá centenas de
exemplos desses diálogos, e Paul Miller chama atenção para eles. As
orações da Bíblia têm a ver com a vida cotidiana e com um Deus real.
Levam problemas genuínos e necessidades reais a um Deus que ouve
de verdade. Essas orações nunca se parecem com uma obrigação. Elas
soam e parecem autênticas porque de fato são autênticas.
Paul Miller mostra como pensa, fala, sente e age alguém que vive
em verdadeira comunhão com Deus. Miller nos revela a intimidade de
sua vida familiar e de sua vida de oração. E ao observar como a vida
e Deus estão entrelaçados, você descobrirá a alegria que é ser filho de
Deus, e viverá a aventura de caminhar junto de seu Pai e bom Pastor.
Esta obra certamente trará uma realidade vibrante e cheia de vida
a suas orações. Portanto, dedique a ela toda sua atenção.

D avid Powlison, MDiv, PhD


INTRODUÇÃO

MINHA INTENÇÃO NÃO era escrever um livro sobre oração. Sim­


plesmente descobri que havia aprendido a orar. As mudanças inespe­
radas da vida abriram em meu coração um caminho para Deus. E ele
me ensinou a orar por intermédio do sofrimento.
No final da década de 1990 fui convidado a substituir no púlpito,
durante um mês, um pastor que sairia de férias. Aceitei o convite, e em
uma bela tarde coloquei no papel o que havia aprendido sobre oração.
Aquelas anotações se transformaram no seminário sobre oração que eu
e meu amigo Bob Allums já apresentamos mais de sessenta vezes. Os
resultados têm sido de arrepiar! O seminário toca em um ponto nevrál­
gico na vida dos participantes.
Achei que o seminário fosse suficiente, e que ninguém precisaria
de outro livro sobre o assunto. Além disso, eu vivia muito ocupado. Po­
rém, meu amigo David Powlison e minha esposa, Jill, me incentivaram
a escrever um livro, e a presidente da diretoria da minha Missão, Lynette
Hull, sugeriu que eu começasse meu dia escrevendo. E foi assim que
escrevi este livro. Eu o escrevi para os cristãos, para os que enfrentam
lutas na vida, para os que não sabem orar direito, mas anseiam em se
comunicar com o Pai celeste.
O livro começa com um capítulo sobre nossas frustrações com
a oração, e outro que mostra aonde queremos chegar. Na Parte 1,
“Aprendendo a orar como criança”, analisaremos os princípios de nosso
relacionamento com o Pai celestial como se fôssemos uma criança. Na
Parte 2, “Aprendendo a confiar novamente”, iremos mais fundo e exa­
minaremos alguns hábitos de adultos que podem deixar nosso coração
insensível à oração e nos impedir de mergulhar na vida do Pai. Na Par­
te 3, “Aprendendo a pedir ao Pai”, examinaremos algumas barreiras —
construídas pela cultura atual — aos pedidos que fazemos em oração. A
Parte 4, “Participando da história do Pai”, entrelaça tudo isso. Quando
temos uma vida de oração, ficamos mais conscientes e participamos
da história que Deus está escrevendo em nossas vidas. A última parte,
“Orando na vida real”, propõe algumas ferramentas e formas simples
de oração que já ensinaram muitas pessoas a orar. Ao examinarmos
essas ferramentas, conheceremos mais a fundo nosso coração e como
Deus tece histórias em nossa vida.
Essa é basicamente a estrutura do livro. O conteúdo é recheado
com as histórias que relato sobre minha família. Não são histórias me­
lodramáticas; são histórias que contam a essência de como sobreviver
e florescer num mundo de estresse e decepções. Ao acompanhar essas
histórias, desejo que o leitor possa sentir a presença de Jesus.
Certa vez, o apóstolo Paulo, falando sobre como funciona o mi­
nistério verdadeiro, disse: “Pois, assim como os sofrimentos de Cristo
transbordam sobre nós, assim também a nossa consolação transborda
por meio de Cristo” (2Co 1.5). Minha oração é que, por meio deste li­
vro, meu sofrimento relativamente leve transborde sobre sua vida como
um consolo, libertando-o para que possa tocar o coração de Deus.
C a p ít u lo i

“O Q U E VAI
ADiANTAR ORAR?
\ ..............

CERTO FIM DE SEMANA, eu e cinco dos meus seis filhos fomos


acampar nas montanhas do estado da Pensilvânia. Minha esposa, JilI,
e nossa filha Kim, de oito anos, não foram conosco. Após uma de­
sastrosa experiência ocorrida nas férias anteriores, JilI, de bom grado,
decidiu ficar em casa. Ela disse que havia desistido da ideia de acampar
na Quaresma.
Pois bem, eu caminhava do acampamento para o nosso carro,
quando notei minha filha Ashley, de catorze anos, muito tensa e agitada
em frente da van. Perguntei qual era o problema, e ela respondeu: “Per­
di uma das lentes de contato. Perdi mesmo”. Eu e Ashley olhamos para
o chão coberto de grama, folhas e gravetos. Havia milhões de pequenas
fendas por onde a lente poderia ter desaparecido.
‘Ashley, não se mova. Vamos orar , propus. Mas antes que eu co­
meçasse, a menina caiu no choro. “O que vai adiantar orar? Orei para
que a Kim falasse, mas ela continua muda”.
Minha filha Kim lutava com autismo e problemas de atraso do
desenvolvimento neuropsicomotor. Em virtude da coordenação mo­
tora deficiente e dos problemas na área de planejamento motor, ou
seja, em sua habilidade de planejar e executar de forma organizada uma
seqüência de movimentos, Kim também era muda. Certo dia, após
cinco anos de fonoaudiologia, Kim se arrastou aos prantos para fora do
consultório da terapeuta, em total frustração. E JilI tomou uma decisão:
"Chega”, e nós paramos com a terapia.
Entendi que, para Ashley, oração não era uma simples formalida­
de. Ela havia levado Deus a sério e pedido que ele curasse a irmã. Mas
nada acontecera. A mudez de Kim apontava para um Deus silencioso.
Pelo jeito, não adiantava orar.

Eu me peguei perguntando: A oração fa z alguma


diferença? Será que Deus chega a nos ouvir?

Poucos têm a coragem que Ashley teve de colocar em palavras a


descrença silenciosa ou a fadiga espiritual que se instala dentro de nós,
quando uma oração fervorosa não é respondida. Escondemos a dúvi­
da até de nós mesmos, pois não queremos parecer maus crentes. Não
temos motivo que justifique a atitude de acrescentarmos a vergonha à
nossa incredulidade. Assim, nossos corações se trancam.
O modo leviano como as pessoas se referem à oração muitas vezes
intensifica nossa descrença. Terminamos nossos bate-papos dizendo:
"Vou orar por você”. Temos alguns ' jargões de oração , tais como, “Con­
tinuarei orando por você e Lem brarei de você em minhas orações .
Muitas pessoas que usam essas frases, inclusive nós mesmos, nunca
oram, Por quê? Porque achamos que a oração não faz muita diferença.
Mas dúvida e leviandade é apenas parte do problema. A frustração
mais comum está no próprio ato de orar. Tentamos nos concentrar por
cerca de quinze segundos e, então, a lista das tarefas diárias surge do
nada e nossa mente "muda de estação”. Percebemos nossa distração e,
reunindo todas as forças, voltamos a orar. Mas quando menos espera­
mos, lá vamos nós de novo. Em vez de orar, nós nos vemos envolvidos
num misto de devaneio e preocupação. E a culpa se instala. Tem alguma
coisa errada comigo. Parece que os outros crentes oram sem problem a ne­
nhum. Depois de cinco minutos, simplesmente desistimos de orar:
'Não sou bom nisso. O melhor mesmo é ir trabalhar”.
De fato, há algo de errado conosco. O desejo natural de orar vem
da Criação. Fomos feitos à imagem de Deus. Nossa incapacidade de
orar vem da Queda. O pecado arruinou a imagem de Deus em nós. De­
sejamos conversar com Deus, mas não conseguimos. O conflito entre
nosso desejo natural de orar e nossa ' antena de oração completamente
danificada pela Queda resulta em constante frustração. E como se tivés­
semos sofrido um derrame.
Para complicar mais um pouco, existe uma enorme confusão sobre
o que vem a ser uma boa oração. Temos a vaga sensação de que deve­
ríamos começar a oração nos concentrando em Deus, e não em nós
mesmos. Assim, começamos a orar com uma tentativa de adoração.
Isso funciona por um minuto, mas parece artificial, e a culpa se instala
de novo. Será que adorei o suficiente? F oi de todo o coração? E assim fica­
mos a nos perguntar.
Em um ataque de entusiasmo espiritual, decidimos fazer uma lista
de oração, mas orar seguindo essa lista acaba sendo um tédio, e parece
que não vemos resultados. A lista se torna longa e pesada; alguns pe­
didos acabam caindo no esquecimento. Orar se parece com falar ao
vento. Quando alguém é curado ou atendido, imaginamos se isso não
teria acontecido de qualquer maneira. E aí, deixamos a lista de lado.
A oração expõe o quanto nossas preocupações estão voltadas para
nós mesmos e traz à tona nossas dúvidas. N ão orar facilitaria nossa fé.
Nossa oração vacila depois de apenas alguns minutos. Mal começamos
a correr, e já desmaiamos à beira do caminho — descrentes, cheios de
culpa e sem esperança.

O lugar mais difícil do mundo para orar


É provável que a sociedade em que vivemos seja o lugar mais difícil do
mundo para se aprender a orar. Vivemos tão ocupados que, quando
paramos para orar, ficamos pouco à vontade. Valorizamos muito a ati­
tude de fazer, realizar coisas. Orar, porém, nada mais é do que falar com
Deus. Parece futilidade, perda de tempo, pois cada músculo do nosso
corpo clama: “Vá trabalhar”.
Quando não estamos trabalhando, estamos nos divertindo. A tele­
visão, a Internet, os videogames e o telefone celular ocupam as horas de
folga tanto quanto o trabalho. Quando diminuímos o ritmo, caímos na
apatia. Esgotados pela correria, ficamos largados em frente da televisão
ou nos isolamos com nossos fones de ouvido.
Se tentamos nos aquietar, somos atacados pelo que C. S. Lewis
chamou de “o Reino da Barulheira”.' Ouvimos barulho por todos os
cantos. Se não fazem barulho à nossa volta, carregamos conosco nosso
próprio barulho em um iPod.
Até os cultos das igrejas chegam a sofrer dessa mesma agitação
incansável. Há pouca chance de ficarmos em quietude na presença de
Deus. Desejamos tudo a que temos direito e, com isso, as coisas pre­
cisam estar sempre acontecendo. O silêncio é algo que nos incomoda.
Um dos obstáculos mais sutis à oração é provavelmente o mais co­
mum. Na sociedade em geral e também na igreja, valorizamos o preparo
intelectual, a competência e a riqueza. Como achamos que podemos
viver sem Deus, orar é considerado algo bom, mas desnecessário. O di­
nheiro consegue o mesmo que a oração, só que de modo mais rápido e
em menos tempo. A confiança que temos em nós mesmos e em nossas
habilidades nos torna essencialmente independentes de Deus. O resulta­
do disso é que exortar as pessoas a orar é algo que não surte muito efeito.

Orar é estranho
A coisa piora um pouco se pararmos para pensar o quanto é estranho
orar. Quando conversamos ao telefone, ouvimos a voz de alguém e

1 C. S. Lewis, The Screwtape Letters. Nova Iorque: HarperCollins, 2001, p. 171. [Pu­
blicado em português pela Edicora Vida sob o título Cartas do infemõ\.
podemos responder a essa pessoa. Quando oramos, falamos com o ven­
to. Só malucos falam sozinhos. Como é que vamos conversar com um
Espírito, com alguém que não fala em voz audível?
E se acreditamos que Deus fala conosco em oração, como diferen­
ciamos nossos pensamentos dos pensamentos dele? Orar é algo con­
fuso. Sabemos, por alto, que o Espírito Santo está envolvido nisso de
certa forma, porém não temos certeza de como e quando ele irá surgir
e nem o que isso significa. Temos a impressão de que algumas pessoas
são cheias do Espírito. Mas não nós.
Mas vamos deixar Deus de lado por um minuto. E quanto a você,
onde se encaixa nesse esquema todo? Você pode orar pelo que deseja
receber? E por que precisa orar, se Deus já conhece suas necessidades?
Para que entediá-lo? Parece amolação. Só de pensar em orar já sentimos
um nó no estômago.
Será que essa tem sido a sua experiência em termos de oração? Se
tem, saiba que você não está sozinho. Em geral, os crentes se sentem
frustrados quando o assunto é oração!

Consulta a um terapeuta de oração


Imagine que você pudesse consultar um terapeuta para colocar sua vida
de oração em ordem. E ele propõe: "Vamos começar por seu relaciona­
mento com o Pai celeste. Deus disse: ‘Serei para vós Pai, e sereis para
mim filhos e filhas’ (2Co 6.18). Para você, o que significa ser filho ou
filha de Deus?"
Você responde que é ter completo acesso ao Pai por meio de Jesus.
Diz que sua intimidade com ele é verdadeira não porque você seja bom,
mas porque Jesus é bom. Além disso, Jesus é seu irmão e você é herdeiro
juntamente com ele.
O terapeuta sorri e diz: "Corretíssimo. Você descreveu perfeita­
mente a doutrina da filiação. Agora me diga como é estar com seu Pai.
Como é conversar com ele?”
Com muita cautela você explica como é difícil estar na presença
do Pai, mesmo que por poucos instantes. Sua mente divaga. Vo
sabe o que dizer. Será que a oração fa z mesmo algum a diferença? Será
que Deus me ouve de verdade? Você se sente culpado por ter dúvidas, e
simplesmente desiste.
O terapeuta revela o que você já sabe. Seu relacionamento com
o Pai não é normal. Você fala como se fosse íntimo dele, mas não é.
Teoricamente tem um relacionamento próximo. Na prática, porém,
são distantes um do outro. Você precisa de ajuda”.

A lente de contato de Ashley


Eu precisei de ajuda quando Ashley desabou a chorar em frente ao carro.
Fiquei sem ação, aprisionado pelas dúvidas da menina e por minhas
próprias dúvidas. Nunca imaginei que Ashley estivesse orando para que
a Kim falasse. O que tornou seu choro mais desconcertante foi o fato
de que ela estava certa. Deus não havia respondido às suas orações. Kim
continuava muda. Temi pela fé da minha filha e pela minha própria.
Não sabia o que fazer.
Será que a situação ficaria pior se eu orasse? Se orássemos e a lente
não aparecesse, a descrença de Ashley aumentaria. Eu mesmo e minha
esposa já estávamos começando a ficar desanimados. A fé inocente que
Ashley tinha em Deus estava sendo substituída pela fé nos rapazes. Mi­
nha filha era bonita, carinhosa e extrovertida. JilI estava tendo dificul­
dades em se lembrar da lista de nomes dos namorados da Ashley, então
passou a se referir a eles como aos reis de antigamente. O primeiro
namorado foi o Frank, seu sucessor foi o Frank II, depois veio o Frank
III, e assim por diante. Estava claro que nós precisávamos de ajuda.
Duvidei que Deus fosse fazer alguma coisa, mas orei em silêncio:
“Pai, esta é uma excelente oportunidade de o Senhor agir. O Senhor tem
de atender esta oração, p ara o bem da Ashley.” Depois orei em voz alta,
junto com a menina: “Pai, nos ajude achar a lente de contato
Tão logo eu terminei de orar, agachei e procurei entre a sujeira e os
gravetos. E vi, em cima de uma folha, a lente perdida.
No final, orar fez toda diferença.
C a p itu lo 2

AONDE QUEREMOS
CHEGAR

M ESM O SE ACHARMOS QUE oramos muito mal, precisamos saber


o que significa orar bem para, então, desenvolver uma vida de oração.
Saber aonde queremos chegar ajuda bastante nessa jornada. Portanto,
antes de entrar nos detalhes práticos sobre como orar, vamos entender
bem qual é o nosso objetivo.

A vida de oração parece um jantar com bons amigos


O ponto alto da semana de Kim é o jantar de sábado com a avó, num
restaurante da cidade. Seja num dia de muito calor ou de frio intenso,
Kim volta exausta de seu trabalho num canil (onde é responsável por le­
var os cachorros para passear), mas fica toda animada quando vai jantar
com a avó. Colocamos o computador com um sintetizador de voz em
frente da menina e ela tagarela o tempo todo, usando as cento e doze
teclas. Não nos cansamos de sua voz eletrônica, principalmente porque
nunca sabemos o que ela vai dizer.
Certa vez, num restaurante, Kim usou três ícones do computa­
dor para pedir lasanha.' Quando a garçonete informou que a lasanha
era vegetariana, Kim, que não é fã de legumes e não gosta de nenhum
tipo de mudança, deu um soco na mesa, fazendo voar pratos e talhe­
res. A coitada da garçonete quase morreu de susto. Quando voltou
com nossos pedidos, a moça se aproximou com cautela, sem saber
se seria brindada com outro show de Kim. Não esqueceremos dessa
cena tão cedo.
Nossos melhores momentos em família ocorrem em torno da mesa
do jantar. Em casa, após a refeição, empurramos os pratos de lado e
ficamos conversando, tomando café ou chocolate quente. Não temos
nada definido para conversar; simplesmente gostamos de ficar juntos,
ouvindo, conversando e rindo. Se você tem essa mesma convivência
com amigos e familiares, então sabe que isso é um pedacinho do céu.
Quando descreve a intimidade que deseja ter conosco, Jesus fala
em se juntar a nós para comer. “Estou à porta e bato; se alguém ouvir
a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele
comigo” (Ap 3-20).
A vida de oração se parece com essas refeições em família, pois ora­
ção tem tudo a ver com relacionamento. É algo íntimo, profundo, que
nos faz vislumbrar a eternidade. Não pensamos em comunicação nem
em palavras, mas sim na pessoa com quem estamos conversando. A
oração é simplesmente um meio através do qual vivenciamos a presença
de Deus e nos conectamos a ele.
É estranho dizer isso, mas algumas pessoas sentem dificuldade de
aprender a orar porque se concentram na oração, e não em Deus. Fazer
da oração o objetivo é o mesmo que fazer da conversa em si o centro

1 Para falar a palavra lasanha, a Kim seleciona primeiro o ícone de “Maçã” que é usado
para os grupos de alimentos. Depois seleciona o ícone “Caminhão”, que restringe a
busca em comida italiana. A seguir, Kim seleciona o terceiro ícone, “Arco-íris”. As faixas
do arco-íris se parecem com as camadas da lasanha. Quando Kim usa o terceiro ícone,
o sintetizador fala a palavra lasanha.
tl.is releiçõcs em família. Quando se trata de oração, concentrar-se na
i uiivcrsa c o mesmo que tentar dirigir olhando para o para-brisa e não
dele. Ficamos sem ação, sem saber para onde devemos ir. A
mnversa é apenas um meio que nos leva a conhecer uns aos outros.
1'tniamo, a oração não é a essência deste livro. Sua essência é conhecer
.1 uma pessoa, Deus.

A vida de oração está interligada com


Iodos os aspectos da vida
( j mio a oração tem tudo a ver com relacionamento, não podemos
vonsidcrá-la um aspecto isolado da vida. É o mesmo que ir à academia
e trabalhar apenas os músculos do braço esquerdo. O braço ficará mus-
i nloso, mas seu corpo ficará bem esquisito. Muita gente se frustra com
•i oração porque a vê como uma atividade abstrata.
Não aprendemos a orar nos isolando dos outros aspectos da vida.
IW exemplo, quanto mais eu amo Emily, nossa filha caçula, mais eu
oro por ela. E o inverso também é verdade; quanto mais oro por Emily,
mais eu a amo. A fé também não está separada da oração. À medida
que minha fé se desenvolve, mais ousadas se tornam minhas orações
por Jill. E quanto mais respostas de oração a favor dela eu recebo, mais
a minha fé cresce. Da mesma forma, se sofro, aprendo a orar. À medida
que aprendo a orar, aprendo a suportar o sofrimento. Este mesmo en-
nelaçamento se aplica a todos os aspectos da vida cristã.
Uma vez que a vida de oração está interligada com todos os aspec­
tos da nossa vida, aprender a orar é quase idêntico a amadurecer com
o tempo. Como acontece o processo de amadurecimento? Amadurecer
é viver uma enxurrada de sentimentos a cada dia. Aprender a orar é
exatamente isso.
Portanto, não fique atrás de sentimentos na oração. Bem lá no
fundo, queremos ter uma experiência com Deus ou uma experiência de
oração. Mas quando fazemos disso a nossa busca, nos distanciamos de
Deus. N ão devemos experim entar Deus, mas sim conhecê-lo. E nos sub­
meter a ele. Usufruir sua presença. Afinal, Deus é uma pessoa.
Consequentemente, uma vida de oração não é algo que possa ser
alcançado em um ano. É uma jornada que dura para sempre. Aprender
a amar o cônjuge ou um amigo também é assim. A vida é um eterno
aprendizado. As pessoas têm uma profundidade tão grande que isso
nos impede de aprender a amá-las com facilidade. Da mesma forma,
existe em Deus uma profundidade tal que nos impede de aprender a
orar com facilidade.
No entanto, certos processos como am adurecer e aprender a am ar
possuem características comuns. São processos lentos, constantes e re­
pletos de altos e baixos. Não têm nada de espetacular, porém, mesmo
assim, são bem reais. Não existe uma solução mágica, e sim milhares de
alfinetadas que nos impelem na direção de uma longa jornada, uma ver­
dadeira peregrinação espiritual. E cada jornada espiritual é uma história.

A vida de oração torna-se consciente da história


Se Deus é soberano, então ele está no controle de todos os detalhes da
minha vida. Se ele é amoroso, então irá moldar os detalhes da minha
vida em meu benefício. Se ele é inteiramente sábio, então não fará tudo
o que peço, pois não sei direito do que preciso. Se Deus é paciente,
então gastará tempo com tudo isso. Quando juntamos todas essas coi­
sas — a soberania, o amor, a sabedoria e a paciência de Deus — temos
uma história acerca de Deus.
Geralmente as pessoas tratam a oração como algo que não tem re­
lação com o que Deus está realizando em suas vidas. No entanto, somos
atores no teatro de Deus, atentos às nossas falas, aquietando o coração
para ouvir a voz do divino dramaturgo.
Toda boa história tem de ter suspense, conflito e uma porção de
coisas que saem errado. Orações não respondidas também criam certos
suspenses na história que Deus está escrevendo em nossa vida. Ao per­
ceber isso, queremos logo saber o que Deus está fazendo. Que forma ele
está imprimindo à trama da minha vida?

A vida de oração faz nascer a esperança


Se Deus está escrevendo uma história em nossa vida, então ela deixa de
ser estática. Ela não mais nos paralisa; temos esperança.
Muitos crentes se entregam a uma incredulidade silenciosa que os
deixa paralisados, sem que nem ao menos percebam. Para eles o mundo
é algo sólido, estático. Pedir que Deus mude essa situação significa ser
confrontado pela dúvida: Será que a oração faz alguma diferença? É
possível haver mudança? Deus não controla tudo? E se controla, então
de que adianta orar? Por ser desconfortável sentir essa incredulidade,
ficar frente a frente com sua própria descrença, as pessoas anestesiam a
alma com um narcótico: o ativismo.
A maioria dos cristãos não deixou de crer em Deus; simplesmente
se transformou em deísta funcional, vivendo com ele um relacionamen­
to à distância. O mundo se torna uma caixa com espaços bem delimi­
tados. Todavia, quando aprendemos a orar corretamente, descobrimos
que este mundo pertence ao Pai. E como o Pai controla tudo, posso lhe
fazer pedidos, pois ele é um Deus que ouve e interage. Como sou filho
dele, as mudanças são possíveis — e isso faz nascer a esperança.

A vida de oração é uma vida integrada


Muita gente acha que pessoas espirituais não se aborrecem com nada
na vida, não se intimidam com as pressões. A ideia de que essas pessoas
pairam acima dos mortais comuns é coisa do mundo antigo e, em par­
ticular, do pensamento grego — embora também esteja bem presente
no pensamento oriental.
No entanto, mesmo um estudo superficial sobre Jesus mostra que
ele teve uma vida bem ativa. Todos os autores dos evangelhos observam
como Jesus era ativo, porém Marcos enfatiza isso de modo particular.
A certa altura do ministério de Jesus, sua família tenta intervir, achando
que ele andava ocupado demais. “Depois ele entrou numa casa, e no­
vamente aglomerou-se uma multidão, de modo que não podiam nem
mesmo comer. Quando seus familiares souberam disso, saíram para
impedi-lo, pois diziam: ‘Ele está fora de si” (Mc 3.20-21). Uma vez que
cear com as pessoas era um hábito muito valorizado no mundo antigo,
a vida de Jesus parecia um pouco fora de equilíbrio. Mas ele amava as
pessoas e tinha poder para ajudá-las; por isso, as interrupções nunca
paravam. É bem provável que se Jesus vivesse nos dias de hoje, o celular
dele não parasse de tocar.
A busca por uma vida contemplativa pode na verdade se tornar
egocêntrica, centrada na quietude e em mim mesmo. Mas se amamos
as pessoas e temos como ajudá-las, então vamos viver ocupados. Apren­
der a orar não deixa nossa vida mais sossegada, porém, acalma nosso
coração. Em meio ao corre-corre do mundo ao nosso redor, podemos
adquirir uma tranqüilidade interior. Se estivermos menos agitados in­
teriormente, teremos mais capacidade de amar... e, consequentemente,
ficaremos bastante ocupados, o que, por sua vez, nos impulsiona ainda
mais para uma vida de oração. Quando passamos tempo com o Pai
em oração, integramos nossa vida à dele, ao que ele está realizando em
nós. Nossa vida se torna mais coerente, mais calma, mais organizada,
mesmo em meio à confusão e às pressões externas.

A vida de oração revela o coração


Por fim, à medida que for conhecendo o Pai celeste, você também co­
nhecerá seu próprio coração. E à medida que for amadurecendo seu
relacionamento com Deus, isso mudará você. Mais especificamente fa­
lando, Deus mudará você. E a verdadeira mudança acontece no coração.
Vivemos nos esquecendo do fato de que Deus é uma pessoa. Não
aprendemos a amar alguém sem sermos transformados por esse amor.
Esta é simplesmente a natureza do amor, que reflete o coração de Deus.
E porque o amor de Deus é imutável, Jesus de Nazaré, a segunda pessoa
da Trindade, tem hoje um corpo marcado por cicatrizes. A Trindade é
diferente por causa desse amor.
Você mudará conforme seu relacionamento com o Pai for se de­
senvolvendo. Você descobrirá recantos de incredulidade, orgulho e
egocentrismo em seu coração. Sua máscara cairá. Ninguém gosta de
ficar exposto. Somos alérgicos à dependência, mas esta é a condição
central mais imprescindível para uma vida de oração. Um coração ne­
cessitado é um coração que ora. A dependência é como o batimento
cardíaco da oração.
Portanto, quando o desconforto chegar, não se afaste de Deus. O
Senhor está começando a trabalhar em sua vida. Tenha paciência.
Agora, permita-me integrar essas ideias na história abaixo.

A caminho da estação de trem


Certo dia eu estava caminhando para a estação de trem, após o tra­
balho, e, sem nem ao menos perceber, comecei a comparar a missão
para a qual eu trabalhava com outra missão. De repente percebi que
eu estava com inveja, tentando me sentir mais importante à custa de
outra pessoa. Minha inveja me surpreendeu. Não era a primeira vez que
eu sentia inveja nessa área, mas foi a primeira vez que chamei isso que
sentia de inveja.
Enquanto caminhava, pensei: “ Que coisa ridícula isso de ter inveja,
com petir interiorm ente com outros cristãos que estão envolvidos na mesma
t a r e f a Assim, antes de pegar o trem, orei silenciosamente, entregando
meu ministério a Jesus. Lembro até de ter pensado que ele iria mesmo
tomar tudo em suas mãos.
É evidente que ele tomou. Tudo aconteceu ao longo de vários
anos, a começar por minha estafa alguns meses mais tarde. Seis anos
depois, eu estava em outra estação, aguardando o trem para casa, quan­
do as lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Tinha tido um
dia difícil no escritório, e percebi que era o fim. Eu teria que deixar o
trabalho que amava tanto.

Aprender a orar não deixa nossa vida mais


sossegada, porém, acalm a nosso coração.

De que modo essa história ilustra a vida de oração? Primeiro, ela


reflete um relacionamento verdadeiro. Durante aqueles seis anos, Deus
me atraiu cada vez mais para perto de seu coração. Foi um verdadeiro
banquete para a minha alma. Exatamente como minha esposa faria,
Deus estava me dando uns toques sobre uma área de minha vida que
não estava correta.
Segundo, minha oração estava interligada com todos os demais
aspectos da minha vida. Ela afetou minha atitude em relação ao traba­
lho — na verdade, afetou a tudo mais. Abrir mão do controle de algo
que eu gostava tanto abriu as portas para uma comunhão com Deus.
Terceiro, minha vida se tornou uma história repleta de suspense,
que mais tarde acabou gerando mudanças e trazendo esperança, pois
durante aqueles seis anos, aprendi a orar.
Quarto, minha vida tornou-se integrada. Entendi as ligações que
existiam entre minha oração e algumas das coisas difíceis que aparece­
ram no caminho. A oração não era algo separado da minha vida.
Finalmente, minha oração era algo inseparável do meu arrepen­
dimento, do meu encontro com Deus. Como Anthony Bloom, um
escritor grego ortodoxo, certa vez afirmou: “Abandone tudo, e você
receberá o céu”.2 Quando você entrega sua vida a Deus, ele se dá de
presente a você.
Vejamos, então, passo a passo, como desenvolver uma vida de oração.

2 Anthony Boom, Beginning to Pray. Nova Iorque: Houghton Miffiin, 2005, p. 202.
PARTE 1

APRENDENDO
A ORAR COMO
CRIANÇA
C a p ít u l o 3

TORNE-SE C O M O

EM MAIS DE UMA situação, Jesus manda os discípulos se tornarem


como as criancinhas. O episódio mais conhecido é aquele em que as
mães tentam chegar perto de Jesus para que ele abençoe seus filhinhos.
Quando os discípulos tentam impedir que elas se aproximem, Jesus
os repreende com firmeza. “Deixai as crianças virem a mim e não as
impeçais, porque o reino de Deus é dos que são como elas. Em verda­
de vos digo que qualquer que não receber o reino de Deus como uma
criança, jamais entrará nele” (Mc 10.14,15). A repreensão de Jesus
deve ter intrigado os discípulos. Que coisa esquisita! No primeiro sé­
culo, as crianças não eram consideradas engraçadinhas nem inocentes.
Foi só a partir do romantismo do século xix que começamos a idola­
trar as crianças.'
Outro incidente aconteceu quando, numa jornada, os discípulos
iniciam uma discussão sobre quem era o mais importante deles (veja
Mc 9.33-37). Ao chegarem à casa de Pedro, em Cafarnaum, Jesus quis

1 Rousseau, filósofo iluminista francês, ensinou que as crianças nasciam boas, mas
eram corrompidas pelos adultos. Não é de surpreender que Rousseau tenha entregado
seus cinco filhos a um orfanato. Leo Damrosch, Jean-Jacques Rousseau: Restless Genius.
Nova Iorque: Houghton Mifflin, 2005, p. 202.
saber o que eles conversaram pelo caminho. Os discípulos abaixaram a
cabeça e tentaram desconversar. Jesus não disse nada. Sentou-se, pegou
uma criança no colo e afirmou: “Se não vos tornardes como crianças,
nunca entrareis no reino do céu” (Mt 18.3). Criancinhas, mesmo que
em tamanho adulto, são valiosas para Jesus.
Um fato menos conhecido ocorreu quando os discípulos voltavam
animadíssimos de sua primeira viagem missionária e anunciaram: “Se­
nhor, até os demônios se submetem a nós em teu nome” (Lc 10.17).
Jesus reage com uma oração exultante: “Graças te dou, ó Pai, Senhor
do céu e da terra, pois ocultastes essas coisas aos sábios e eruditos e
as revelastes aos pequeninos”(Lc 10.21). Jesus fica empolgado ao ver
que os discípulos eram como criancinhas.
Não é de espantar que, muitas vezes, os discípulos tenham se com­
portado como criança. Por exemplo, o que Pedro faz quando algo lhe
vem à cabeça? Solta a língua. Também é assim que as crianças agem.
Certa vez, quando fui convidado a pregar numa igreja, uma senhora fez
um solo ao estilo de uma ópera. Depois do culto, ela se aproximou de
Kim e carinhosamente perguntou o que minha filha tinha achado do
solo. Kim, que por causa do autismo tem pavor de música alta, tocou a
testa com a mão fechada, o sinal, nos Estados Unidos, para “tolice”. A
solista se voltou para JilI e perguntou o que a menina havia respondido.
JilI engoliu em seco. Minha esposa estava estudando para ser intérprete
da linguagem de sinais, e o intérprete aprende a dizer exatamente o que
foi dito pela outra pessoa. Assim, JilI respondeu: “Uma tolice”.
Os discípulos, exatamente como a Kim, falam o que pensam, sem
pensar no que falam. Depois da última ceia, dizem a Jesus: “Agora falas
abertamente, e não por figuras” (Jo 16.29)! Quando Tiago e João deci­
dem ser os mais importantes no reino, pedem que a mãe interceda em
favor deles (Mt 20.20,21). Com exceção de Judas, os discípulos não
têm segundas intenções.
Jesus espera que nós também não tenhamos segundas intenções
quando nos aproximamos dele em oração. Mas geralmente tentamos
parecer o que não somos. Logo de início nos concentramos em Deus,
mas quase que de imediato nossos pensamentos tomam dezenas de
rumos diferentes. Os problemas do dia a dia afastam a boa intenção
de sermos espirituais. Puxamos nossas próprias orelhas e tentamos de
novo, mas a vida sufoca a oração. Sabemos que não é assim que a oração
deve ser; então, desalentados, desistimos de vez. É melhor ir trabalhar.
Mas qual é o problema, afinal? Estamos tentando ser espirituais,
fazer as coisas direito. Nós sabemos que para ser cristão não temos de
dar primeiro um jeito na vida, mas nos esquecemos disso quando o
assunto é oração. E como é típico dos adultos, tentamos endireitar a
nós mesmos. Jesus, ao contrário, quer que nos aproximemos dele como
criancinhas, exatamente do jeito que somos.

Venha todo atrapalhado mesmo


A dificuldade em nos aproximarmos de Jesus do jeito que somos é que
vivemos “enrolados” demais. E a oração só piora as coisas. Quando
paramos para orar, somos imediatamente confrontados com a nossa
miséria espiritual, com a dificuldade imensa que sentimos em nos con­
centrar em Deus. Quando tentamos ser bons descobrimos o quanto
somos maus. Nada expõe mais nosso egoísmo e fraqueza espiritual do
que a oração.
As crianças, por outro lado, nunca ficam paralisadas pelo egocen­
trismo. Assim como os discípulos, elas vão a Jesus exatamente como
são, totalmente voltadas para si mesmas. Dificilmente as crianças en­
tendem as coisas direito. Como pais ou amigos, sabemos bem disso. Na
verdade, é divertido (na maioria das vezes!) descobrir o que se passa em
seus coraçõezinhos. Não as repreendemos por pensarem em si mesmas
ou sentirem medo. Esse é o jeito delas.
É exatamente assim que eu e minha esposa sempre agimos com a
Kim. Não tínhamos certeza se ela aprenderia a andar; portanto, quando
a menina deu seu primeiro passo, aos três anos de idade, não dissemos:
“Muito bem, Kim, parabéns, mas você está dois anos atrasada. Vai ter
de correr para ficar em dia com muita coisa, inclusive caminhadas mais
longas, sem mencionar corridas, saltos e pulos”. Não criticamos sua
falta de jeito nem seu atraso. Sabe o que fizem oÁ Comemoramos; gri­
tamos; pulamos. O restante da família veio correndo saber o que estava
acontecendo. Câmaras fotográficas surgiram de todos os lados, e a Kim
repetiu sua façanha. Foi incrível!
Isso não é uma mera observação casual sobre como os pais reagem
aos filhos pequenos. Isso é o evangelho, o coração acolhedor de Deus.
O Pai também se alegra quando nos aproximamos dele com nossas
orações titubeantes, inseguras. Jesus nunca disse: “Vinde a mim, todos
os que aprenderam a se concentrar na oração, cujas mentes não diva­
gam, e eu vos darei descanso”. Não. Jesus abre os braços para seus filhos
necessitados e chama: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e so­
brecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). A fadiga é o critério para
irmos a Jesus. Vá até ele com sua vida massacrada. Vá com sua mente
divagante. Vá com todos os seus problemas.
Mas o que é estar cansado? E ter dificuldade de concentração.
Os problemas do dia a dia são como garras apertando seu cérebro.
Parece que você levou uma surra da vida.
E o que é estar sobrecarregado? É a mesma coisa. Os problemas são
tantos que você nem sabe por onde começar. Não dá mais para tocar a
vida sozinho. E assim que Jesus quer que nos aproximemos dele! A fadiga
nos conduz ao Pai.
Não tente orar bonitinho; simplesmente conte a Deus sua situação
e o que lhe passa pela cabeça. É assim que as crianças agem. Elas vão
do jeito que estão, com nariz escorrendo e tudo mais. Assim como os
discípulos, as crianças falam exatamente o que lhes “dá na cabeça”.
Entendemos que para ser cristãos não precisamos nos endireitar
antes, mas nos esquecemos disso completamente quando o assunto é
oração. Entoamos o velho hino, “Tal qual estou”; porém, no caso da
oração, nunca vamos até Jesus do jeito que estamos. Como os adultos
sempre fazem, tentamos endireitar um pouco a vida antes.
A oração individual, particular é um dos últimos grandes redutos
do legalismo. Para orar como uma criança, você terá que desaprender a
orar de modo impessoal e sem autenticidade como lhe ensinaram.

Seu verdadeiro eu
Por que é tão importante ir a Deus exatamente como estamos? Porque
se formos de outro modo, seremos falsos e hipócritas, exatamente
como os fariseus. Eles raramente diziam a Jesus o que estavam pen­
sando. Jesus os acusou de serem hipócritas, mascarados, dissimulados.
Não eram pessoas autênticas. E também não gostavam de crianças.
Os fariseus ficaram indignados quando elas entraram no templo (de­
pois de o Mestre ter feito a limpeza) e começaram a adorar a Jesus.
Ele respondeu com o Salmo 8: “Da boca de pequeninos e de bebês
obtiveste louvor” (Mt 21.16).
A única maneira de irmos a Deus é sem nenhuma máscara espiri­
tual. Nosso eu verdadeiro tem que encontrar o Deus verdadeiro, pois
ele é uma pessoa.

Vá até ele com sua vida massacrada. Vá com sua


mente divagante. Vá com todos os seus problemas.

Portanto, em vez de ficar paralisado por suas próprias preocupa­


ções, converse com Deus sobre seus temores. Diga-lhe do que você está
cansado. Se você não começar por onde está, essa situação vai sorratei­
ramente escapar pela porta dos fundos. E sua mente começará a divagar
até chegar ao ponto que está causando o seu cansaço.
Vivemos tio ocupados e sufocados que, quando paramos para
orar, nem sabemos por onde anda nosso coração. Não sabemos o que
nos deixa atribulados. E então, por mais estranho que pareça, devemos
procurar saber onde ele anda antes de orar. Só assim nossa oração fará
sentido, pois estará ligada à vida real.
Seu coração pode estar, e geralmente está, em desordem. Mas não
faz mal. Você precisa começar pela situação em que se encontra. Jesus não
veio para os justos, mas sim para os pecadores. Todos nós nos encaixamos
nessa condição. E são justamente as coisas das quais queremos nos livrar
— cansaço, distrações, confusões — que nos abrem a porta da frente!
É assim que o evangelho funciona. É assim que a oração funciona.
Ao ser autêntico com Jesus, você lhe dá a oportunidade de tra­
balhar no seu verdadeiro eu, e as mudanças acontecerão aos poucos.
O reino virá. Você ficará menos egoísta.
O reino vem quando Jesus se torna o rei da sua vida. Mas tem
que ser a sua vida. Não crie um reino fictício, onde você é melhor do
que parece. Jesus chama a isso de hipocrisia — usar uma máscara para
encobrir o que você é de verdade.
Por incrível que pareça, muitas tentativas de ensinar as pessoas
a orar incentivam o surgimento de uma dupla personalidade. Somos
ensinados a “orar do jeito certo”. Em vez do seu eu verdadeiro e confu­
so ter um encontro com Deus, você tenta se reinventar como alguém
mais espiritual.
Não é de admirar que a oração não lhe traga satisfação alguma.
Portanto, em vez de se deixar paralisar por quem você é, comece
exatamente por quem você é. É assim que o evangelho funciona. Deus
começa com você. Eu sei, dá um pouco de medo, pois, afinal, você é
uma confusão só.
Torne-se como as criancinhas que Jesus abraçou. A primeira vez
que Natanael ouviu falar sobre Jesus, ele respondeu o que lhe veio à
mente: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1.46). Esse é um
Natanael puro, sem censura. Quando Jesus cumprimenta Natanael,
quase podemos notar um sorriso em seus lábios, quando ele afirma:
“Este é um verdadeiro israelita, em quem não há fingimento!” (1.47).
Jesus ignora o preconceito de Natanael contra toda sua família e amigos
de Nazaré. Ele simplesmente aprecia o fato de Natanael ser verdadeiro,
sem hipocrisia, um homem que não é fingido. Temos a impressão de
que Jesus não vê o pecado, ele vê a pessoa. É típico de Jesus. Ele ama
pessoas autênticas.
Deus prefere lidar com aquilo que é verdadeiro. Jesus afirmou que
veio para os pecadores, para os encrencados que continuam se encren­
cando (veja Lc 15.1,2). Vá a ele com todos os seus problemas. O ponto
central do evangelho é que não temos, por nós mesmos, condições de
dar início a um relacionamento com Deus e seu reino. Muitos oram me­
canicamente pelo reino de Deus (pelos missionários, pela igreja, e coisas
assim), mas continuam absorvidos em seus próprios reinos. Não pode­
mos fazer do reino de Deus um mero verniz sobre o nosso próprio reino.

Toque o coração do Pai


“Pai nosso”, é assim que começa a oração ensinada por Jesus. Você é
o centro da afeição do Pai celeste. É nessa afeição que você encontra
descanso para sua alma. Se afastarmos a oração do coração acolhedor
de Deus (como fazem muitos ensinos sobre o Pai Nosso), ela se tornará
uma tarefa legalista. Cumprimos nossa responsabilidade, porém não
tocamos o coração de Deus. Quando vamos a ele “cansados e sobrecar­
regados”, encontramos o coração do Pai; o céu alcança a terra e é feita
a vontade de Deus.
Há muito o que aprender sobre o assunto, mas se apenas nos apro­
ximarmos do Pai como crianças, já teremos entendido a essência da
oração. Éde propósito que digo “teremos”, pois eu também vivo me es­
quecendo da simplicidade da oração. Às vezes fico deprimido e, quando
não consigo encontrar uma solução para o que me deprime, desisto de
mim mesmo e me afasto de Deus. Esqueço-me de que o coração do
Pai está sempre de portas abertas para mim. Ele me quer mesmo com
depressão, do jeitinho que estou.
Se conseguir entender essa verdade tão simples, então, como acon­
teceu com minha filha Kim, você terá dado seu primeiro passo, ainda
que titubeante. Talvez você até queira dar mais um passo titubeante ago­
ra mesmo, fazendo uma pausa para orar como uma pequena criança.
C a p ít u l o 4

APRENDA A
comi
COM (
COMO APRENDEMOS A CONVERSAR com o Pai? Pedindo como
criança, crendo como criança, e até brincando como criança.

Peça como uma criança pede


Vamos fazer uma análise rápida sobre as crianças e seus pedidos.
O que elas pedem? Tudo, seja lá o que for. Se ouvem falar de um
brinquedo novo, querem aquilo imediatamente.
Quantas vezes elas pedem? Inúmeras. Repetidamente. Enchem
tanto a paciência que muitas vezes cedemos só para que nos deixem
em paz.
E como elas pedem? Sem rodeios. Dizem o que têm na cabeça.
Não “filtram” o que é apropriado ou não.
Jesus disse que se quisermos aprender a pedir em oração, devemos
observar as crianças. No Sermão do Monte, depois de introduzir o con­
ceito que devemos pedir com audácia (“Pedi, e vos será dado”), Jesus
explica por que podemos ser ousados em nossos pedidos. “Qual dentre
vós, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir peixe,
lhe dará uma cobra? Se vós, sendo maus, sabeis dar boas coisas a vossos
filhos, quanto mais vosso Pai, que está no céu, dará boas coisas aos que
lhe pedirem!” (Mt 7.7,9-11).
Quando nosso filho John estava com seis meses, ele esticou o braço
na direção do bolo e pediu, “bobo”. Não o repreendemos: “John, peça
‘por favor’. E não é ‘bobo’, é BOLO. Além do mais, você está pensando
só em si mesmo, e se não parar com isso agora mesmo, o egoísmo arrui­
nará sua vida”. Bobo foi a primeira palavra que nosso filho disse; então,
rimos e lhe demos um pedaço de bolo.
Kim ganhou seu primeiro computador com sintetizador de voz
quando tinha cinco anos. Fomos passar uns dias na praia e levamos o
equipamento. Explicamos como as teclas funcionavam, e ficamos ob­
servando. Kim se debruçou sobre o computador e apertou a tecla que
mostrava o arco dourado do McDonalds. Eram duas horas da tarde, e
tínhamos acabado de almoçar. Mas largamos tudo, entramos no carro
com a menina, fomos para a lanchonete e compramos hambúrguer e
refrigerante para ela. Estávamos vibrando. Nossa filha aprendeu logo a
fazer o pedido completo. E ela fica particularmente feliz quando a mãe
não está junto, pois assim pode pedir batata frita.
Se nós, pais terrenos, com todas as falhas, damos coisas boas a nos­
sos filhos, será que nosso Pai celeste iria deixar por menos? Os pedidos
de nossos filhos, por mais triviais que sejam, amolecem nosso coração.
Acontece o mesmo com Deus.

Creia como uma criança crê


A segunda coisa que temos de fazer para aprender a orar é crer como
as crianças creem. Elas têm confiança total no amor e no poder dos
pais. Confiam instintivamente. Acreditam que os pais desejam o que é
melhor para elas. Se você sabe que seus pais o amam e protegem, seu
mundo fica repleto de possibilidades. Você lhes abre o coração sem
medo algum.
O mesmo acontece no mundo da oração. Quem aprende a orar,
aprende a sonhar novamente. Digo “novamente” porque sonhar e ter
esperança é natural para toda criança. Aprender a orar é entrar de novo
nesse mundo infantil, onde tudo é possível. Não passa pela cabeça das
crianças que os pais não acabarão fazendo aquilo que elas pedem. Sa­
bem que, se continuarem importunando, eles irão ceder. A fé infantil
alimenta essa persistência.

Não se envergonhe do quanto seu coração está necessitado e do


quanto precisa clamar por graça. Simplesmente comece a orar.

Mas com a idade, ficamos menos inocentes e mais desconfiados.


Em vez de esperança e sonho, as decepções e promessas quebradas pas­
sam a ser o normal da vida. Nossa fé infantil sofre milhares de pequenas
mortes. Para nos incentivar a crer como as crianças, Jesus conta histó­
rias de adultos que agiram como crianças: a parábola da viúva insisten­
te, que não aceita a recusa do juiz injusto (veja Lc 18.1-8) e a parábola
do homem que incomoda o vizinho, pedindo-lhe três pães para servir a
um amigo que chegou à meia-noite (veja Lc 11.5-8).
Nas raras ocasiões em que Jesus encontra um adulto que tem a
fé de uma criança, ele praticamente grita a plenos pulmões: “Prestem
atenção nesta pessoa aqui. Vejam só que fé!” Isto aconteceu apenas duas
vezes, e com gentios, pessoas que nem eram da comunidade da fé.
O primeiro caso envolveu um oficial romano, um centurião, que
confiou tanto no poder de Jesus para curar um servo à beira da morte,
que chegou a pedir que o Mestre o curasse de longe, sem nem mesmo
entrar em sua casa. O homem diz a Jesus: “Dize, porém, uma palavra, e
o meu servo será curado” (Lc 7.7). Jesus fica atônito. Ele se volta para a
multidão que o seguia e diz: “Eu vos afirmo que nem mesmo em Israel
encontrei tamanha fé” (7.9).
O segundo caso foi de uma mulher cananeia, cuja filha estava en-
demoninhada. Apesar de Jesus não lhe dar atenção nenhuma, ela conti­
nua indo atrás dele. Jesus se maravilha com aquela fé, e entrega a ela seu
segundo grande prêmio pela fé: “Mulher, grande é a tua fé! Seja feito a
ti como queres” (Mt 15.28).
Vimos no capítulo anterior que crer no evangelho — saber que
Deus nos aceita por meio de Jesus — é o que nos facilita a ir até ele com
todos os nossos problemas. Agora, acabamos de ver que o evangelho
também nos dá liberdade de pedir o que acalentamos em nosso coração.

Aprenda a brincar novamente


Além de pedir e crer como as crianças, aprender a orar requer — pas­
mem — que possamos aprender a brincar novamente. E como as crian­
ças brincam? Se você perguntar a uma mãe quanto tempo o filho de
um ano se concentra em uma atividade, ela vai apenas sorrir. Mas se
quer mesmo saber, varia de três segundos a três minutos. Não é muito
tempo, nem é algo particularmente estruturado.
Como isso nos ensina a orar? Pense um pouco. De que modo nós,
os adultos, estruturamos nossas conversas? Na verdade, não as estrutu­
ramos. O papo vai de um assunto a outro, especialmente se estivermos
conversando com velhos amigos. A conversa tem um toque divertido,
flexível, aberto a brincadeiras. Por que nossos momentos de oração de­
veriam ser diferentes? Afinal, Deus também é uma pessoa.
Até mesmo a oração de Paulo em Efésios tem esse caráter descon­
traído. Ele começa assim: “Não cesso de dar graças por vós, lembrando-
me de vós nas minhas orações, para que o Deus de nosso Senhor Jesus
Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria” (1.16-17). Paulo
continua orando por mais alguns versículos, mas não dá para saber di­
reito onde a oração termina. O apóstolo começa a orar de novo no início
do capítulo 3: “Por essa razão, eu, Paulo, sou prisioneiro de Cristo Jesus
por amor de vós, gentios...”, mas, assim que menciona os gentios, parece
que ele se distrai e interrompe a oração. Por fim, volta a orar em 3.14:
“Por essa razão, dobro meus joelhos perante o Pai”. A oração de Paulo
corre para todos os lados. É o exemplo clássico de uma oração que sofre
de transtorno do déficit de atenção. Paulo começa a orar, interrompe a
oração, volta a orar, distrai-se e, finalmente, termina a oração.
Uma oração sem essa natureza lúdica, descontraída é quase como
uma pessoa autista. As pessoas que sofrem de autismo têm dificulda­
des em seguir as convenções sociais. Por exemplo, a Kim me telefona
quando chega do trabalho, por volta de 13h30. Ela liga o viva-voz do
telefone, disca o número do meu celular e, pelo sintetizador do compu­
tador, me conta como foi seu dia. Kim nunca diz “oi”; entra direto na
conversa, fala o que tem a dizer e desliga. Não faz perguntas. Não diz
“tchau” ou “até mais tarde”. Simplesmente desliga.
Quando você estiver orando e sua mente divagar, faça como as
crianças. Não se preocupe em seguir um roteiro fixo ou se manter preso
a um mesmo assunto. Paulo não estava nem aí para isso! Lembre-se de
que você está conversando com uma pessoa. Em vez desistir de orar,
aprenda a brincar de novo. Ore sobre o que lhe vier à mente. Talvez seja
algo importante para você. Talvez o Espírito queira que você medite
sobre outra coisa.

Aprenda a balbuciar novamente


Durante os últimos nove anos, minha esposa tem feito fonoterapia com
a Kim. O progresso da menina é notável, mas ela chegou no estágio em
que precisa se exprimir verbalmente, sem levar em conta a pronúncia
ruim. Mas em geral ela se envergonha da pronúncia. Recentemente
levei a Kim para fazer uma radiografia do joelho direito, que a estava
incomodando. Ela perdeu a paciência três vezes, pois tinha de ficar
imóvel durante o raio X. Ao chegarmos em casa, sentei-me com ela e
perguntei o que achava do que fizera. Kim fez o sinal de “desculpa”.
Pedi a ela: “Use sua voz”. Kim orou aos tropeções: “Senhor; me perdoe
por ter ficad o nervosa . Quase não deu para entender, mas ela orou de
todo o coração.
Quando estamos orando, só precisamos colocar as palavras para
fora. Sinta-se à vontade para parar de ler agora e orar. Tudo bem se
sua mente divagar ou a oração for interrompida. Não se envergonhe
do quanto seu coração está necessitado e do quanto precisa clamar por
graça. Simplesmente comece a orar. Lembre-se de que o cristianismo
não ensina que você aprenda um monte de verdades e, assim, não pre­
cise mais de Deus. Não conhecemos a Deus por meio de teorias. Somos
atraídos para a intimidade dele.
Portanto, tome-se como uma criança — peça, creia, e, sincera­
mente falando, brinque um pouco também. Quando você parar de
querer ser adulto e fazer as coisas direito, a oração vai fluir, porque Deus
realizou algo de extraordinário. Ele lhe deu uma nova voz, a voz dele
mesmo. Deus substituiu sua antena de oração toda danificada por outra
novinha em folha — o Espírito, que ora dentro de você. Paulo afirma
que o Espírito coloca em nós o mesmo coração com que Jesus ora.
“Deus enviou ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba,
Pai” (G1 4.6). Você verá seu coração se entrelaçar ao coração de Deus.
E descobrirá que a oração é um banquete. Depois que tiver se
livrado do entulho que traz no coração e na mente, será mais fácil se
aquietar na presença de Deus. Então, você dirá como Davi: “Acalmo e
sossego minha alma; como uma criança desmamada nos braços da sua
mãe” (SI 131.2).
C a p ít u lo s

PODE SER QUE ALGUÉM imagine que Jesus, por ser o Filho de
Deus, não precisava orar. Ou pelo menos não precisava ter um mo­
mento específico para orar, já que vivia em constante estado de oração.
Não estranharíamos se ele tivesse uma linha direta com o Pai celeste,
um tipo de conexão banda larga com o céu. Ou no mínimo, pode ser
que alguém pense que Jesus não se deixava afetar tanto quanto nós
pela agitação do mundo. Porém, para nossa surpresa, parece que o
Mestre precisava tanto quanto nós de um tempo a sós com Deus.
No primeiro dia de seu ministério na Terra, Jesus ensina na sinago­
ga de Cafarnaum, e é sábado (veja Mc 1.21-39). Enquanto as pessoas
que o, escutam se maravilham com sua autoridade, um homem ende-
moninhado grita: “Sei quem tu és, o Santo de Deus”. Jesus repreende
o demônio severamente e, num piscar de olhos, manda-o embora. O
povo fica boquiaberto.
Depois do culto na sinagoga, Jesus volta à casa de Pedro para a re­
feição do sábado, e descobre que a sogra do pescador está de cama, com
muita febre. Jesus pega na mão dela e a cura imediatamente. A mulher
se levanta e prepara a refeição.
A história da cura e do exorcismo se espalhou pela cidade litorâ­
nea de Cafarnaum. Como a tradição não permitia curas no sábado, a
não ser em caso de risco de vida, o povo aguardou até o fim do dia.
De acordo com Marcos, assim que o sol se pôs, “toda a cidade estava
reunida à porta da casa”. É fácil imaginar a rua em frente da casa toda
iluminada pela luz suave de centenas de lamparinas bruxuleantes. Jesus
realiza curas até bem tarde da noite. Era para isso que ele viera ao mun­
do — não deve haver crianças mudas nem esposas abandonadas nem
patrões grosseiros.
Na manhã seguinte, antes do nascer do sol, Jesus se levanta, sai da
cidade e vai orar num lugar afastado. Ele fica tanto tempo fora que se
forma de novo uma multidão, e os discípulos são obrigados a ir atrás
dele. Quando o encontram, Pedro explica: “Todo mundo está procu­
rando o senhor”.
Foi um dia extraordinário — a tarde e manhã do primeiro dia de
uma nova criação. O novo Adão acaba com a maldição e derrota o mal.
Demônios e doenças fogem da presença da Vida. Aslan entra em ação.

Quando você (assim como Jesus) entende que não pode viver
por suas próprias forças, então a oração fa z todo sentido.

Por que Jesus precisava orar


Por que Jesus vai orar de madrugada, num lugar isolado, onde não ha­
veria interrupções? Sua vida nos dá três indícios do motivo.

1. Sua identidade
Sempre que fala de seu relacionamento com o Pai, Jesus parece uma
criança. “O Filho nada pode fazer por si mesmo” (Jo 5.19). “Não posso
fazer coisa alguma por mim mesmo” (Jo 5.30). “Nada faço por mim
mesmo; mas falo como o Pai me ensinou” (Jo 8.28). “O Pai, que me
enviou, ordenou-me o que dizer e o que falar” (Jo 12.49). E coisa de
criança dizer: “Eu só faço o que vejo meu Pai fazer”.
Quando Jesus diz para sermos como crianças, não está nos dizen­
do para fazer algo que ele mesmo não faça. Sem dúvida, Jesus foi o ser
humano mais dependente que o mundo já viu. Por entender que não
podia viver por suas próprias forças, Jesus ora, ora e ora. Lucas conta
que Jesus “se retirava para lugares desertos, e ali orava” (5.6).
Quando Jesus afirma que “sem mim nada podeis fazer” (Jo 15.5),
está nos convidando a fazer parte de sua vida, uma vida de dependên­
cia ao Pai. Quando Jesus nos diz para ter fé, não está sugerindo que
façamos um esforço para arrumar um punhado de força espiritual. Está
abrindo nossos olhos para o fato de que, assim como ele, não temos, em
nós mesmos, os recursos para viver. Quando você (assim como Jesus)
entende que não pode viver por suas próprias forças, então a oração faz
todo sentido.
Porém há muito mais do que isso. Jesus só pode conceber a si mes­
mo interligado ao Pai. Adão e Eva saíram em busca de uma identidade
própria, depois da Queda. Só depois de terem agido de forma indepen­
dente de Deus é que perceberam a existência de um eu separado.1 Por
não ter essa mesma noção da existência de um eu separado de Deus,
Jesus não tem crise de identidade nem crise existencial. Por conseqüên­
cia, não tenta “se encontrar”. Ele apenas se concebe interligado a seu
Pai. Não se imagina existindo fora desse relacionamento.
Imagine-se conversando com Jesus. Você pergunta como ele está.
A resposta é: “Eu e meu Pai estamos ótimos. Ele já me deu tudo o que
preciso para hoje”. Você continua: “Que bom que seu Pai está bem,
mas, por enquanto, gostaria de me concentrar em você. Jesus, como
é que você está?” Jesus faria uma cara estranha, como se você estivesse
“falando outra língua”. A pergunta não faria o menor sentido, pois ele

1 R. Scott Rodin, Stewards in the Kingdom. Downers Grove: InterVarsicy, 2000, p. 99.
não pode responder à pergunta “Como vai você?” sem incluir seu Pai
celeste na resposta. É por isso que antecipar o horror da cruz, quando
esteve no Getsêmani, foi a mais pura agonia para Jesus. Ele nunca havia
passado um instante sequer longe da comunhão do Pai. E essa agonia
que ele sentiu é parte normal da nossa vida.
A vida de oração de Jesus é uma expressão de seu relacionamento
com o Pai. Ele quer ficar a sós com a pessoa amada.

2. Sua atenção ao indivíduo


Quando Jesus interage com o povo, ele concentra sua atenção em uma
só pessoa. Ao encontrar o aleijado no tanque de Betesda, Jesus viu pri­
meiro a multidão; depois, viu apenas aquele homem. No meio de uma
“grande multidão de doentes, cegos, mancos e paralíticos”, Jesus, “ven­
do-o deitado”, aproximou-se (Jo 5.3,6). Quando Jesus conversa com
uma pessoa é como se não houvesse mais ninguém por perto. Ele reduz
o ritmo e dá atenção a uma pessoa de cada vez. Jesus ama as pessoas da
mesma forma que ora ao Pai.
É assim que o amor procede, com essa mesma atenção individual.
O amor se traduz em termos concretos quando diminui o passo e se
concentra apenas na pessoa que ama. Náo amamos de maneira gené­
rica; amamos uma pessoa de cada vez. Lembro-me disso todas as ma­
nhãs, quando me ajoelho diante da Kim para amarrar os cadarços de
suas botas. Esse é o lava-pés diário da minha alma.

3- Sua humanidade limitada


Essa atenção individual de Jesus decorre do fato de o Jesus plenamen­
te humano não conseguir fazer bem muitas coisas ao mesmo tempo.2

2 Jesus também é plenamente Deus, mas quando viveu no mundo, sua divindade
estava encoberta. Os teólogos debatem sobre o que Paulo quis dizer em Filipenses 2.7
com “esvaziou-se a si mesmo” (e k e v í o o e v ). Não sabemos como nem quanto Jesus foi
esvaziado de sua divindade. É um mistério. Temos um vislumbre de sua divindade no
monte da transfiguração.
Para se comunicar com o Pai, por exemplo, ele tinha de se afastar
ilas pessoas.
Em tese, Jesus poderia se concentrar no Pai enquanto curava os
enfermos. Poderia ter usado sua divindade para se livrar da demora e
ineficiência da vida. Quando a mulher que sofria de hemorragia inter­
rompeu Jesus a caminho da casa de Jairo, ele poderia tê-la curado sem
icr parado para interagir pessoalmente com ela (veja Lc 8.40-48). Mas
Jesus não faz isso. Quando rejeita a tentação de Satanás de transformar
pedras em pães, Jesus rejeita a eficiência e escolhe o amor (veja Mt 4.1-4).
Portanto, por ser plenamente humano, ele tem que se afastar para orar.
Quando Jesus sai da casa lotada em Cafarnaum e vai orar no de­
serto, está seguindo o conselho que ele mesmo havia dado, no Sermão
do Monte: “Entra no teu quarto e, fechando a porta, ora a teu Pai”
(Mt 6.6). Jesus se relaciona com o Pai desde a eternidade. Ele sente
necessidade de se concentrar no Pai. Ele quer estar junto do seu Pai;
então fica sozinho para orar.

Nada substitui o tempo passado com alguém


O exemplo de Jesus nos ensina que a oração tem tudo a ver com rela­
cionamento. Quando ora, Jesus não está cumprindo uma obrigação;
está se aproximando do Pai.
Para qualquer relacionamento se desenvolver, as pessoas precisam
de um espaço reservado, de um tempo descontraído juntas, para se co­
nhecerem mais. Isso cria uma atmosfera onde a intimidade tem chance
de crescer, e começamos a entender o coração um do outro.
Não conseguimos criar intimidade, mas somente dar espaço para
que ela se desenvolva. Isso tanto é verdade em relação a um cônjuge ou
um amigo quanto a Deus. Precisamos passar tempo juntos. Viver atrás
de eficiência, de fazer várias coisas ao mesmo tempo, ou viver sempre
ocupado são atitudes que matam a intimidade. Em resumo, não dá
para conhecer Deus em meio à correria.
Se Jesus teve de se afastar das pessoas e da agitação para orar, então
a lógica diz que devemos fazer o mesmo.

Ore como Jesus orou


O costume que Jesus tinha de orar ao amanhecer segue o mesmo ritmo
tradicional dos escritores hebreus, que abriam o coração a Deus logo
pela manhã. Vejam alguns exemplos do livro de Salmos que descrevem
essa prática:

Ó Senhor, de manhã ouves minha voz; de manhã te apresento minha


oração e fico aguardando (5.3).

Pela manhã, louvarei com alegria teu amor fiel (5 9 .1 6 ).

Eu, porém, sen h o r, clamo a ti; de madrugada minha oração chega à

tua presença (8 8 .1 3 ).

Faze-me ouvir do teu amor pela manhã, pois em ti confio; mostra-me o


caminho que devo seguir, pois a ti elevo a minha alma (1 4 3 .8 ).

Será que somos obrigados a orar logo pela manhã? Não. A oração
intercessória de Jesus, em João 17, e a oração que fez mais tarde, no
Getsêmani, aconteceram ao cair da tarde.
No livro de Salmos temos uma indicação da maneira como os he­
breus oravam. A maioria dos salmos têm pelos menos um exemplo de
oração em voz alta, tal como “Atende à voz do meu clam or (...) Atende
o meu clam or (...) Ouve minhas súplicas quando clamo a ti' (veja Salmo
5.2,3; 17.1; 28.2). Fomos nós que transformamos esses exemplos em
metáforas da alma; todavia, os hebreus estavam literalmente suplicando
em voz alta para que Deus os socorresse.
Jesus segue o costume de orar em voz alta. Sabemos o conteúdo
de sua oração intercessória, pois os discípulos ouviram suas palavras.
Do mesmo modo, sabemos o que ele orou no Getsêmani porque os
discípulos ouviam enquanto ele abria o coração diante do Pai. “Nos
dias de sua vida, com grande clamor e lágrimas, Jesus ofereceu orações
e súplicas àquele que podia livrá-lo da morte” (Hb 5.7).
Ao contar a parábola do fariseu e do coletor de impostos, Jesus
explica que os dois oravam em voz alta. Depois, ele nos encoraja a orar
na privacidade do nosso quarto, para que a oração em voz alta não se
transforme em um mero show de palavras. A oração em voz alta ajuda a
nossa concentração; transforma nossos pensamentos em algo concreto.
No entanto, é bem mais que uma técnica; é também uma declaração de
fé. Afirmamos de maneira audível nossa confiança no Deus vivo.
Orar em voz alta não é uma regra no Novo Testamento; é apenas
outra forma de sermos autênticos quando oramos. Somos diferentes
uns dos outros. Eu, particularmente, acho difícil orar em voz alta, pois
estou bastante acostumado a orar em silêncio. No entanto, quando
confesso um pecado em voz alta, minha confissão parece mais genuína.
Quando ouço minha própria voz admitindo um erro, fico espantado
em ver como o pecado se torna concreto. Já cheguei a pensar: “ Uau,
acho que errei mesmo . Muitas vezes, a caminho de um evento social,
oro em voz alta no carro para não ceder à tentação sexual ou não ser
bajulador. Isso me leva a ficar mais atento às minhas fraquezas. Minhas
orações ganham mais seriedade.

Rebata as desculpas
Independentemente de quando ou como oramos, sempre arrumamos
desculpas que nos impedem de parar o suficiente para orar com regula­
ridade. Uma das desculpas é: “Estou sempre em oração”. Embora “estar
sempre em oração” (Rm 12.12) seja um jeito importante de orar, sobre
o qual conversaremos mais tarde, nada substitui um tempo específico
concentrado na oração. Por exemplo, um casal que só troca palavras rá­
pidas no decorrer do dia não tem um relacionamento muito profundo.
Parecem mais sócios do que duas pessoas que se amam. É impossível
edificar um relacionamento trocando só meia dúzia de palavras.
Outra desculpa comum é o corre-corre da vida. Quando fiquei saben­
do que Lutero disse que não conseguia fazer nada sem antes passar três
ou quatro horas diárias orando, cocei a cabeça.3 Sabendo como Lutero
era um homem ocupado, alguém poderia ter imaginado que ele dimi­
nuiria o tempo de oração. Hoje, muitos anos depois, é possível entender
perfeitamente o motivo de ele ter agido assim. Na verdade, quanto mais
pressões eu sofro, mais necessidade tenho de orar. Oro logo de manhã
porque minha vida parece uma panela de pressão em fogo alto.
Se você não ora, então deve estar muito confiante de que tempo,
dinheiro e talento é tudo o que precisa na vida. Estará sempre cansa­
do demais, ocupado demais. Mas se você, assim como Jesus, sabe que
não tem forças por si mesmo para viver, então, independentemente do
corre-corre e do cansaço, sempre encontrará tempo para orar.
O tempo de oração nos torna ainda mais dependentes de Deus,
pois ficamos com menos tempo ainda para realizar nossas tarefas. Cada
minuto gasto em oração é um minuto a menos de “produtividade”.
Assim, orar significa que temos de confiar cada vez mais em Deus.

Um passinho de cada vez


Em se tratando de ficar a sós com Deus, dê um passinho de cada vez.
Não estabeleça alvos impossíveis, só para desistir em seguida. Não use
como padrão a época em que você passava trinta minutos fabulosos
com Deus. Comece devagar. Comece com cinco minutos.
Não existe um jeito único de fazer isso. Algumas pessoas oram a
caminho do trabalho. Mas saiba que é difícil ter intimidade com Deus
quando se faz mil coisas ao mesmo tempo. Qualquer casamento corre
perigo se os cônjuges só conversam no carro, a caminho do trabalho. O
mesmo acontece com nosso relacionamento com Deus.
Gostaria de oferecer sete sugestões simples de como passar tempo
com Deus logo de manhã:

3 Marjorie J, Thompson, prefácio em Martin Luther, A Simple Way to Pray. Londres:


Wesrminster John Knox Press, 2000, p. 11.
• Vá dorm ir. O que você faz à noite determina suas manhãs.
O conceito hebraico de que noite e manhã formam um dia
(veja Gn 1) ajuda no tempo de oração. Se você quer orar de
manhã, organize sua noite de modo a não ficar acordado até
tarde. A noite e a manhã estão interligadas.
• Levante-se. Orar na cama é uma delícia. Na verdade, quanto
mais orarmos fora da cama, mais oraremos na cama. Porém,
nunca conseguiremos desenvolver o hábito de orar de manhã
se ficarmos na cama. Alguns de meus momentos mais pre­
ciosos de oração acontecem à noite. Já acordo orando, mas
esses momentos de oração pela manhã só acontecem porque
levanto da cama para orar.
• Desperte. Talvez você precise de uma dose dupla de cafeína ou
de um banho.
• Encontre um lugar sossegado. Pode ser uma sala, uma poltrona
ou um lugar com uma bela vista. Talvez seja melhor dar uma
caminhada. O importante é não ser interrompido.
• Fique à vontade. Não sinta nenhuma obrigação de se ajoelhar.
Durante muito tempo tive dificuldade em orar porque achava
muito desconfortável ficar ajoelhado.
• Comece. Para começar, ore apenas cinco minutos. Em vez de
algo grandioso, estabeleça um alvo pequeno que dê para ser
alcançado. Você vai descobrir como o tempo voa.
• Siga em frente. Consistência é mais importante do que tem­
po. Se você orar cinco minutos todos os dias, seu tempo de
oração vai aumentar aos poucos. Um dia você perceberá que
passou vinte minutos orando. Passar tempo com Deus será
muito gostoso. Jesus valoriza tanto a perseverança na oração
que conta aos discípulos “uma parábola sobre o dever de orar
e nunca desanimar” (Lc 18.1).

Não importa como nem quando você ora, se der lugar para Deus
entrar, ele tocará sua alma. Deus sabe que você está exausto, mas, mes­
mo assim, deseja muito fazer parte de sua vida. Um banquete o aguarda.
C a p ít u lo ó

A P R E N D A A SER
D EPÉ^ D EN TE

POR ALGUMA RAZÃO, KIM sempre acorda muito cedo; às vezes,


lá pelas 4h30min da manhã. Ela sabe que não deve se levantar tão
cedo. Assim, vai até o corredor, acende a luz e volta para cama. Cinco
minutos depois, levanta-se de novo, apaga a luz e volta para cama, e
o processo se repete muitas vezes. Quando ela começa a circular no
segundo andar, eu e a Jill mandamos que volte para cama. Como dor­
mimos em um andar diferente do andar da Kim, parece que estamos
berrando com ela.
Quando eu e a Jill levantamos para orar, a coisa fica ainda pior.
Minha esposa ora na parte térrea da casa, e eu oro no primeiro andar.
A Jill é mais sensível a barulho do que eu; então, quando ouve a Kim
zanzando lá em cima, ela pede que eu mande a menina ficar quieta. Às
vezes, eu grito com a Kim para evitar que a Jill grite comigo, pedindo
que eu grite com a Kim para ela parar. Para dizer a verdade, a Jill tem
toda razão em reclamar, pois as passadas da Kim são tão fortes que pa­
rece que ela está fazendo Cooper lá em cima.
No mundo do autismo, esse vai e vem da Kim é chamado padrão
repetitivo de comportamento. A situação ficou tão difícil que a leva­
mos a um neurologista, que prescreveu um remédio. Tentamos usar o
remédio, mas a Kim engordou muito; assim, paramos com o remédio
e voltamos a gritar!
Eu e a Jill estamos sempre orando pela vida da Kim, porém, recen-
iemente percebi que nunca havia orado por essa dificuldade específica.
l’or quê? Porque achava que eu podia resolvê-la: “A BCim tem de parar
com essa andança. Vou mandar que ela pare de zanzar lá em cima”.
Resumindo, eu não me sentia incapaz de lidar com a situação, sabia o
que fazer. Chamo a isso de forma ignorante de abordar os problemas da
vida. Ou seja, você diz: “Ei, ignorante, veja se para de fazer tal coisa”.
As crianças são mestres em aceitar sua impotência. É o que fazem
melhor. Mas na vida adulta, logo nos esquecemos como é importante
reconhecer nossa limitação. Eu, por exemplo, tenho verdadeira aversão
ile admitir minhas limitações. Detesto isso. Quero sempre ter um plano,
uma ideia, quem sabe um amigo para ouvir meus problemas. É assim
que, instintivamente, encaro tudo, pois confio em minhas próprias ha­
bilidades. Isso acontece até quando dou palestras sobre oração. Embora
eu ministre seminários sobre oração e seja autor de um guia de estu­
do sobre o assunto, até pouco tempo nunca havia me ocorrido orar de
modo sistemático e regular por nosso ministério de oração. Por que não?
Porque eu não me sentia fraco, vulnerável. Sentia que conseguia dirigir
nosso ministério de oração sozinho. Nunca disse nem pensei tal coisa,
no entanto era assim que eu agia. Ironicamente, a limitação humana é
um dos temas centrais de nosso seminário sobre oração. E eu não reco­
nhecia minha própria limitação ao ensinar sobre limitação! Que ironia!
Mas o coração humano é assim mesmo. Só comecei a orar regularmente
a respeito do nosso ministério quando ele estagnou — quando me tor­
nei vulnerável, ou seja, quando minha limitação se tornou evidente.

Oração = Fraqueza, vulnerabilidade


Deus espera que nos aproximemos dele de mãos vazias, cansados, opri­
midos. E natural querermos nos livrar da nossa própria incapacidade
antes de ir até Deus. Em um de nossos seminários sobre oração, um dos
participantes colocou a questão da seguinte maneira:
Estou começando a entender que existe uma diferença entre “fazer ora­
ções” e orar com honestidade. Na aparência, as duas coisas são iguais,
mas a primeira é quase sempre motivada por obrigação e sentimento
de culpa; a segunda, no entanto, é motivada pela convicção de que sou
totalmente incapaz de “viver” por minhas próprias forças. O u no caso
de orar a favor dos outros, que sou totalmente incapaz de ajudar as
pessoas sem a graça e o poder de Deus.

Ole Hallesby, luterano norueguês, descreve a importância dessa


incapacidade em seu famoso livro Oração: o segredo de abrir o coração.
Hallesby explica por que o pedido de Maria a Jesus, nas bodas de Caná
— “Eles não têm mais vinho” (Jo 2.3) — é uma descrição perfeita de
oração.1 Orar é levar sua incapacidade, sua limitação diante de Jesus.
Thomas Merton, monge trapista, resumiu isso de modo esplêndido:
“A oração é uma expressão do que somos... Somos uma incompletude
vivente. Um vão, um vazio pedindo preenchimento”.2
Por todo o evangelho de João notamos pessoas indo a Jesus por
causa de suas limitações. A samaritana não tem água (cap. 4). Mais adian­
te, no mesmo capítulo, o filho do oficial não tem saúde. O paralítico de
Betesda não tem ajuda para se atirar no tanque (cap. 5). A multidão não
tem comida (cap. 6). O cego não tem visão (cap. 9). E finalmente, Lázaro
não tem vida (cap. 11).
Aceitamos a Jesus porque somos fracos, impotentes e é assim que
o seguimos. Paulo instruiu os colossenses: “Portanto, assim como rece-
bestes Cristo Jesus, o Senhor, também andai nele” (2.6). Esquecemos
que é na fraqueza que a vida cristã acontece.
Paulo tomou consciência disso após orar três vezes para que Deus
removesse o espinho de sua carne. Nada aconteceu. Ao contrário,

' O le Hallesby, Prayer. Minneapolis: Augsburg, 1994, p. 18-28. [Publicado em portu­


guês pela Editora Encontro sob o título Oração: o segredo de abrir o coração.]
2 Thomas Merton, citado em Mark E. Thibodeaux. S. J., A rm cbair Mystic. Cincinnati:
St. Antony Messager, 2001, ix.
Deus lembrou-o de como o evangelho funciona. “Mas ele me disse:
‘A minha graça te é suficiente, pois o meu poder se aperfeiçoa na fra­
queza’. Por isso, de muito boa vontade me gloriarei nas minhas fraque­
zas, a fim de que o poder de Cristo repouse sobre mim” (2Co 12.9).
O evangelho, a graça que nos foi concedida por Deus em Jesus, só
produz resultados quando admitimos nossa fraqueza. O mesmo acon­
tece com a oração. Exatamente aquilo que rejeitamos — nossa inca­
pacidade, nossa limitação — é a mola propulsora da oração. A oração
funciona porque somos fracos, incapazes. Não podemos viver com base
em nossas próprias forças.
A oração reflete o evangelho. No evangelho, o Pai nos recebe como
somos por causa de Cristo e nos concede a salvação de presente. Na
oração, o Pai nos recebe como somos por causa de Cristo e nos concede
ajuda de presente, nos estende a mão. Olhamos para a inadequação de
nossas orações e desistimos, por achar que tem algo errado conosco.
Deus olha para a adequação de seu Filho e se alegra com nossas orações
desajeitadas e inconsistentes.

O conceito errado de maturidade


Dizemos a nós mesmos: “Crentes maduros, firmes na fé oram bastante.
Se eu fosse assim, oraria mais”. É verdade que essas pessoas oram mais,
no entanto, elas oram mais porque sabem o quanto são fracas. Não
tentam esconder isso de si mesmas. A fraqueza é o canal que lhes dá
acesso à graça de Deus.
Não estou me referindo a crentes famosos. Um repórter pergun­
tou à escritora Edith Schaeffer, esposa do evangelista e filósofo Francis
Shaeffer: “Quem você diria que é a maior mulher cristã da atualidade?”
Edith respondeu: “Não sabemos seu nome. Provavelmente é alguém
que está morrendo de câncer, em algum hospital da índia”. É de gente
assim que estou falando. No alicerce da vida de obediência de uma
pessoa assim existe uma sensação de incapacidade, que se tornou parte
de sua própria natureza. Para ela isso natural, é quase como respirar.
Por quê? Porque reconhece que é uma pessoa fraca. Sente o coração
inquieto, a tendência de se comparar aos outros. Fica estarrecida ao no­
tar como a inveja brota em seu íntimo. Percebe a facilidade com que o
mundo a prende em suas garras. Em resumo, não confia em si mesma.
Ao observar os outros, percebe que lutam as mesmas batalhas. O mun­
do, a carne e o diabo são demais para ela. E qual é o resultado disso?
Sua alma clama a Deus em oração. Ela precisa de Jesus. À medida que
amadurecemos como cristãos, percebemos cada vez mais nossa índole
pecadora; entretanto, ao mesmo tempo, percebemos Jesus mais e mais.
Ao notar de modo bem claro nossa fraqueza, começamos a entender a
necessidade que temos de receber mais graça.
O gráfico abaixo mostra como isso acontece na vida cristã. O cren­
te imaturo, à esquerda do gráfico, tem uma cruz pequena e uma visão
mínima de seus pecados. Não sente muita necessidade de orar. O cris­
tão maduro, à direita do gráfico, tem uma cruz grande e uma visão
ampla de seus pecados. O resultado disso? Ele ora mais.

NATUREZA PECADORA

Sonship, co p y rig h t© 2 0 0 2 . G ráfico reproduzido co m perm issão escrita de W orld Harvest


M ission (www.whm.org). Todos os direitos reservados.
Lembrei-me desse gráfico quando limpava o chão da cozinha, de­
primido com a falta de progresso das pessoas que estava discipulando.
Enquanto esfregava o chão, percebi que eu sofria do mesmo problema,
o que me deixou ainda mais deprimido. De repente percebi que minha
incapacidade, aquela pontinha de depressão que eu estava sentindo,
era minha porta para Deus. Na verdade, Deus queria que eu ficasse
deprimido em relação a mim e encorajado em relação ao Filho dele.
O evangelho usa minha fraqueza como porta que leva à graça de Deus.
E assim que a graça funciona.
Crentes imaturos sentem pouca necessidade de orar. Quando son­
dam seus corações (o que raramente fazem), quase nunca notam a in­
veja que está ali. Mal se dão conta da impaciência. Ao contrário, ficam
irritados com os lerdos que encontram pelo caminho. Crentes imaturos
slo rápidos em dar conselhos. Para eles não existe nada complexo, pois
acham que as respostas são simples: “Faça o que digo, e sua vida será
bem mais fácil”. Sei disso porque, a bem da verdade, digo “eles” quando
deveria dizer “eu”, pois na verdade estou me referindo a mim mesmo.
Por natureza, é assim que sou sem Jesus.
E algo surpreendente, mas os crentes maduros se sentem menos
amadurecidos interiormente. Quando ouvem Jesus dizer: “Sem mim
nada podeis fazer” (Jo 15-5), concordam logo. Lembram de tudo que
fizeram sem Jesus que já desapareceu na poeira, sem deixar rastro. Os
crentes maduros estão absolutamente convictos de sua incapacidade de
criar os filhos. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber isso. Mes­
mo que sejam pais perfeitos, não conseguem penetrar o coração dos
filhos. E é por isso que os crentes maduros oram mais.
John de Landsberg, um monge católico do século xvi, resumiu esse
sentimento muito bem em sua famosa obra A Letter from Jesus Christ.
Ele imaginou Cristo conversando face a face conosco:

Conheço bem esse seu estado de espírito, quando você fica totalmente
sozinho, aflito, roendo-se de infelicidade, no mais puro sofrimento.
Você não se aproxima de m im, mas supõe, em seu desespero, que tudo
o que fez na vida já foi com pletam ente perdido e esquecido. Essa
espécie de desespero e autocomiseração na verdade não passam de
uma form a de orgulho. Esse patamar de absoluta segurança em que
você imaginava estar, e de onde caiu, não passava de excesso de con­
fiança em sua própria força e capacidade (...) o que magoa você é o
fato de as coisas sim plesmente não terem acontecido do je ito que
você esperava e queria.
Na realidade, eu gostaria que deixasse de se basear em seus próprios
planos, em sua própria força e capacidade, que duvidasse deles, de você
mesmo, e confiasse apenas em mim e em mais ninguém, em mais nada.
Enquanto depender inteiramente de si mesmo você está destinado a
sofrer. H á uma lição importantíssima que precisa aprender: confiar em
sua própria força ajudará tanto quanto se escorar numa taquara racha­
da. N ão perca a confiança em mim. Você pode ter esperança e confiar
plenamente em mim . M inha misericórdia é infinita.3

Jesus só está pedindo que façamos o que ele já vem fazendo há


tempos. Na verdade, ele está nos convidando a participar de sua vida
de dependência absoluta ao Pai. Tornar-se mais parecido com Jesus é se
sentir cada vez mais incapaz de viver sozinho, cada vez mais desconfia­
do do próprio coração. Paradoxalmente, você se torna mais consagrado
quando se sente menos consagrado. Aquilo de que tenta escapar — sua
incapacidade — é exatamente o que lhe abre a porta da oração e, então,
da graça.
Quando meus filhos estavam com dois, cinco, oito, doze, catorze
e dezesseis anos de idade, escrevi o seguinte em meu diário de oração:

10 de março de 1991. É impressionante, mas quando não oro logo


cedo, o mau simplesmente inunda nosso lar. É imperativo que eu ore!
Ah, Senhor, dê-me graça para orar.

3 John ofLandsburg, A Letterfrom Jesus Christ. Nova Iorque: Crossroad, 1981, p. 58-59.
Levei dezessete anos para entender que não poderia educar meus
filhos sozinho. Essa percepção não foi fruto de um despertar espiri­
tual fabuloso, apenas de uma observação realista. Se eu não meditasse e
orasse de modo deliberado pelos meus filhos, todas as manhãs, citando
o nome de cada um, eles se matavam. Eu era incapaz de tocar-lhes
o coração. Ficava desesperado. Além disso, eu era incapaz de mudar
meu próprio coração autoconfiante. O diário de oração revela tanto
minha incapacidade de mudar meus filhos quanto minha incapacidade
de mudar minha autoconfiança. É por isso que preciso receber graça
até para orar.
Deus respondeu minha oração. Quando passei a orar regularmen­
te por meus filhos, Deus começou a trabalhar no coração deles. Por
exemplo, comecei a orar para que John, o mais velho, fosse mais humil­
de. (Como a Jill sempre diz: “Tal pai, tal filho”.) Cerca de uns seis meses
depois, John veio conversar comigo: “Pai, ultimamente tenho pensado
muito sobre minha falta humildade”. Percebi logo que o melhor jeito
de ser pai era orando. Passei a reclamar menos com meus filhos e a
conversar mais com Deus. Para falar a verdade, foi um grande alívio.
Se acharmos que podemos levar a vida por conta própria, não le­
varemos a oração a sério. Nossa omissão em orar parecerá outra coisa
— falta de disciplina ou obrigações em excesso. Todavia, quando algo é
importante para nós, achamos tempo para aquilo. É lamentável, mas a
oração simplesmente não é importante para muitos cristãos porque para
eles o Mestre já se tornou um acessório. É por isso que o sofrimento é
tão importante para o aprendizado da oração, como veremos mais tarde.
Ele é um dom que Deus usa para nos mostrar como a vida é de verdade.

E quando você abre a porta...


Há poucos dias, Kim recomeçou suas andanças logo de madrugada.
Comecei a me levantar e a Jill me perguntou, zonza de sono: “Você
já vai berrar com a Kim?” Respondi: “Não. Faço isso há dez anos sem
o menor resultado; por isso, decidi orar com ela”. A JilI caiu na gar­
galhada: “Que história é essa de dez anos? Faz pelos menos uns vinte,
isso sim!”
Fui para o quarto da Kim, ciente de que absolutamente nada do
que dissesse iria parar suas andanças. Aproximei-me da cama bem de­
vagar, coloquei as mãos sobre as cobertas (ela fingiu que dormia) e pedi
que o Espírito a acalmasse. Deus atendeu a oração. Kim voltou a dor­
mir e não zanzou mais pelo corredor naquela manhã.

Percebi logo que o melhor jeito de ser p ai era orando.


Passei a reclamar menos com meus filhos e a conversar mais
com Deus. Para fa la r a verdade, fo i um grande alívio.

Assim que comecei a orar, um pensamento me veio de repente: Eu


havia subestimado a capacidade de Kim orar sozinha, de se conectar
com Deus. Minha visão sobre ela era muito bitolada. Nesse aspecto
de sua vida, eu sempre a vi como uma pessoa deficiente, e não como
uma jovem feita à imagem de Deus, capaz de se comunicar com seu
Pai celeste. Isso criou uma nova expectativa em meu coração quanto
à minha filha, uma nova esperança de que ela podia crescer espiritual­
mente. Quando ela morde os punhos, oro com ela sobre isto. Quan­
do massageio com creme seus punhos calejados, oro com ela. Em vez
de lutar enraivecido contra os problemas da Kim, concentro-me nessa
nova esperança de que ela aprenda a orar.
Mas a Kim continuou com suas andanças pelo corredor. Noite
sim, noite não, eu me arrastava para fora da cama e ia orar com ela.
Então, um dia, mudamos de casa, e a andança da Kim parou com­
pletamente. Sabíamos que, por causa do autismo, a Kim era extrema­
mente sensível a barulho, mas nunca imaginamos que os caminhões
da fábrica que ficava em frente da outra casa em que morávamos e o
barulho normal da rua estivessem acordando a garota. Nossa casa nova
fica afastada da rua e o barulho é mínimo. Deus respondeu minha
oração em favor da Kim.
Todos os aspectos de uma boa oração estão embutidos nessa his­
tória da minha oração pela Kim: reconhecer sua incapacidade, relacio-
nar-se, arrepender-se, pedir, contar e ter esperança. Quando abrimos a
porta para Deus, descobrimos tesouros inimagináveis lá dentro.
C A P ÍT U L O 7

/ \
clame “A b a , P a i ” ,

DURANTE UMA REUNIÃO DA diretoria, nosso consultor, repa­


rando que eu não estava participando da discussão, comentou: “O
Paul está muito quieto hoje. Não parece interessado em nada, a não
ser, talvez, na pessoa de Cristo”. Dei um sorriso, em parte porque
achei engraçado o comentário dele e em parte porque, interiormen­
te, sou uma pessoa insegura, que clama por atenção. Meu cérebro
fervilha com ideias e minha língua está sempre disposta a contribuir
para uma discussão.
Então, por que eu parecia tão quieto? Porque estava orando si­
lenciosamente, repetindo: Pai, Pai, Pai. Algumas vezes, uso o nome
de Jesus ou Cristo. Em outras ocasiões, eu me pego orando uma frase
curta, algo como: Venha, Espírito Santo.
Isso não é uma ladainha sem sentido ou algo que eu pratique na
tentativa de alcançar um nível espiritual mais elevado. Muito pelo con­
trário. Sei que estou em um nível espiritual baixo, e clamo por ajuda,
como uma criança que corre para a mãe, chamando: “M amãe, m am ãe .
Meu coração está em busca de seu verdadeiro lar.
No salmo 63, Davi captou bem esse sentimento da alma em oração:
“Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. M inha alma
tem sede de ti; meu ser anseia por ti em uma terra seca e exaurida, onde
não há água.”

Por que suplico por ajuda em silêncio? Minha tendência de in­


terromper as reuniões da diretoria é como uma “terra seca e exaurida”.
Quando meu ego clama por atenção, oro em silêncio: Jesus, Jesus, Jesus.
Como Agostinho, sinto meu coração inquieto e preciso encontrar des­
canso em Deus.1
O que tenho de pior vem à tona quando me encanto com uma
nova ideia. Em vez de ouvir os outros, quero convencê-los e, facilmen­
te, me pego tentando dominar a situação. Meu coração é como aquela
terra seca e exaurida. Mas quando começo a orar, minha energia se
volta para a vida de Deus, e não para a tentativa de mudar a opinião dos
outros... e, então, eu calo a boca!
Se alguém compartilha com os demais alguma ideia que sugeri,
quero logo esclarecer que aquela ideia foi minha. Fico agitado, como se
o universo estivesse em tumulto. Em resumo, quero mesmo é me van­
gloriar. A única maneira de aquietar esse desejo que sinto de aparecer é
começando a orar: Sem Ti nada posso fazer.
Interromper a reunião, convencer os outros e vangloriar-me são
apenas algumas das coisas que me levam a orar sem cessar, a depender
do Pai como uma criança. Cada um de nós tem sua própria lista de
coisas. Deixemos, portanto, que ela nos guie à vida de oração.

Pobreza de espírito, e não de disciplina


Orar sem cessar não foi algo que aprendi; quando dei por mim, já es­
tava fazendo isso. Deparei-me com situações difíceis, que estavam fora
do meu controle. Tudo o que eu podia fazer naquelas circunstâncias era

' Santo Agostinho, Confessiom. Nova Iorque: Oxford University Press, 1998, p. 3.
|Publicado em português pela Editora Mantin Claret sob o título Confissões.]
suplicar ao Pai. E isso aconteceu tantas vezes que acabou se tornando
um hábito, abrindo um via de comunicação entre minha alma e Deus.
Mesmo hoje em dia raramente percebo que estou orando. E pos­
sível que nem seja eu mesmo orando, mas sim o Espírito Santo. Paulo
afirma: “Deus enviou ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que
clama: Aba, Pai” (G1 4.6). O Espírito não está nos ajudando a orar; na
verdade, é ele mesmo quem está orando. É ele quem ora.
Para ser mais preciso, é o Espírito do Filho que ora. O Espírito
põe o coração de Cristo — que é semelhante ao de uma criança — em
meu próprio coração e clama: Aba, Pai. O anseio que Jesus tem do Pai
se torna o meu anseio. Meu espírito se liga ao Espírito, e eu também
clamo: Aba, Pai.
A opinião da maioria dos teólogos é que, ao orar, Jesus normal­
mente chamava o Pai de aba. Essa palavra significa algo parecido com
papai. A explicação lógica dos teólogos é a seguinte: conhecemos o ter­
mo aba porque ele ficou gravado na mente dos discípulos. Eles ficaram
tão surpresos ao ver Jesus usá-lo — pois nunca tinham ouvido antes
ninguém falar com Deus de maneira tão íntima — que, quando fa­
laram de Jesus aos cristãos gregos, usaram o termo aramaico aba nas
versões gregas da Bíblia.
Paulo ficou tão impressionado com isso que usou o termo aba
em Romanos e Gálatas. Os tradutores deram continuidade ao padrão
estabelecido pelos primeiros discípulos e também usam o termo aba,
independentemente do idioma em que a Bíblia seja traduzida.
Essa oração de uma palavra, Pai, é exclusiva de Jesus. A primeira
fala dele de que se tem registro, aos doze anos de idade, foi sobre seu
Pai: “Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai?” (Lc 2.49).
A ba é a primeira exclamação do filho pródigo na volta ao lar. É a pri­
meira palavra do Pai Nosso, e é a primeira que Jesus pronuncia ao orar
no Getsêmani. É sua primeira palavra na cruz — “Pai, perdoa-lhes”
(Lc 23.34) — e é também a última — “Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espírito” (Lc 23.46). P ai foi minha primeira oração, quando co­
mecei a orar sem cessar, e continua sendo minha oração mais freqüente.

Não precisamos de autodisciplina para orar sem


cessar; só precisamos ser pobres de espírito.

Eu me descobri fazendo orações de duas a três palavras, tais como,


ensina-me ou ajuda-m e, Senhor. Os salmos estão repletos dessas orações-
relâmpago. Fazer uma oração simples, de uma palavra só, ou usar um
versículo como oração, tira um fardo dos nossos ombros porque não
temos de definir com exatidão o que precisamos. Paulo confirma: “Não
sabemos como devemos orar, mas o próprio Espírito intercede por nós
com gemidos que não se expressam com palavras” (Rm 8.26). Geral­
mente estamos cansados demais para descobrir qual é o problema. Só
sabemos que a vida em geral — inclusive a nossa — não está indo mui­
to bem. Então oramos: Pai, Pai, Pai.
Isso é justamente o oposto do que faz o misticismo oriental, com
sua técnica psicoespiritual que se distancia de um relacionamento e,
para fugir da aflição, entorpece o eu. O que os místicos orientais pro­
curam fazer é esvaziar suas mentes e se fundir a um “todo” impessoal.
Nós, porém, como cristãos, sabemos que não podemos curar a nós
mesmos. Assim clamamos ao Pai, aquele que faz parte do nosso relacio­
namento mais importante.
Certo dia, a caminho do escritório, eu analisava mentalmente to­
das as opções que tinha para um plano de três anos de trabalho. Quan­
to mais perto do escritório, mais angustiado eu ficava — faltava-me
sabedoria suficiente para analisar aquelas opções. “Leva-me até a rocha
que é mais alta do que eu” (SI 61.2): esse versículo me veio à mente e
t u fiz dele minha oração. Precisava de uma rocha mais alta do que eu.
A pobreza espiritual daquele momento (o fato de eu me sentir angus­
tiado, não ter sabedoria suficiente) foi uma porta para a oração. Não
precisamos de autodisciplina para orar sem cessar; só precisamos ser
pobres de espírito. A pobreza de espírito dá espaço para o Espírito. Cria
em nosso coração um vazio que só pode ser preenchido por Deus e nos
mostra um jeito novo de nos relacionarmos com as pessoas.
O espírito de oração modifica a maneira como vemos os outros.
Numa caminhada pelo shopping, somos tentados a criticar, menos­
prezar e cobiçar as outras pessoas. Encontramos gente gorda e gente
magra, adolescentes cobertos de piercings e tatuagens, mulheres bem-
vestidas, pessoas que trabalham como seguranças do local e idosos que
caminham com dificuldade. Quando somos tentados a criticar um obe­
so, por que não oramos para que ele emagreça? Quando vemos uma
adolescente com piercing no nariz, por que não oramos para que ela
encontre sua turma em Jesus? Quando nos depararmos com um segu­
rança, vamos orar por seu trabalho. Quando passarmos por idosos que
caminham com dificuldade, vamos orar para que Deus lhes conceda
graça na velhice.
O apóstolo Paulo tinha plena consciência de sua vulnerabilidade e
da vulnerabilidade das igrejas que ele tanto amava — e, por isso, orava
sem cessar.

O exemplo e o ensino de Paulo


“Orai sem cessar” é a descrição mais freqüente que Paulo faz do modo
como orava e de como ele quer que a igreja ore. Isso era parte de sua
experiência de vida, e não uma fórmula. Nas doze vezes em que ele
menciona a oração contínua, dificilmente usa a mesma frase duas vezes
(ênfase acrescentada):

• Pedindo constantemente em minhas orações (Rm 1.9,10).


• Sempre dou graças a Deus por vós (1 Co 1.4).
• N ão cesso de dar graças por vós (Ef 1.16).
• Orando em todo o tempo no Espírito (Ef 6.18).
• N ão cessamos de orar por vós (Cl 1.9).
• Perseverai na oração (Cl 4.2).
• Sempre luta por vós em suas orações (Cl 4.12).
• Sempre (...) mencionando-vos em nossas orações (lTs 1.2).
• N ão deixam os de agradecer a Deus (1 Ts 2.13).
• Rogando continuamente, noite e dia (lTs 3.10).
• Oramos sempre por vós (2Ts 1.11).
• Ao mencionar-te sempre em minhas súplicas noite e dia (2Tm 1.3).

Quando Paulo instrui as novas igrejas a orar, incentiva-as a adotar


o mesmo hábito de “perseverar na oração” (ênfase acrescentada):

• Perseverai na oração (Rm 12.12).


• Orai sem cessar (lTs 5.17).

Em virtude dessa ênfase de Paulo, é natural que as primeiras igrejas


orassem sem cessar, como observamos na Bíblia.

Oração de Jesus
A Igreja Ortodoxa grega continua a usar uma oração bem simples, do
século v, algumas vezes chamada de Oração de Jesus: Senhor Jesus Cristo,
Filho de Deus, tende piedade de mim, pecador.1 A tradição ortodoxa
denomina orações como essa de “orações de um fôlego”, pois podem
ser feitas num só fôlego.
A versão mais antiga dessa oração veio da boca de um mendigo
cego, chamado Bartimeu, que clamou enquanto Jesus passava: “Jesus,
Filho de Davi, tem compaixão de mim!” (Lc 18.38). Se acrescentarmos
a isso o hino de Paulo em Filipenses, “confesse que Jesus Cristo é o

2 The P hilokalia: The Complete Text, vol. 4, compilado por Nikodimos e Makarios,
craduzido e editado por G. E. H. Palmer, Philip Sherrard e Kallistos Ware. Londres:
Faber e Faber, 1999, p. 206.
Senhor” (Fp 2.11), temos a oração de Jesus. Essa oração foi feita sem
cessar desde o princípio. Quando a multidão mandou que Bartimeu
se calasse, “ele, porém, gritava ainda mais” (Lc 18.39). O homem deve
ter berrado a plenos pulmões, pois três dos evangelhos mencionam sua
persistência em altos brados!
Minha esposa tem sua própria versão da oração de Jesus. Quando
passeamos com nossos cachorros nos domingos de manhã, passamos
em frente de uma casa espetacular, com um gramado muito bem cuida­
do. Nossa caminhada fica ainda mais interessante no outono, quando
os donos dessa casa recolhem com um aspirador portátil cada folhinha
que cai na grama. Por causa de seu sangue alemão, a Jill tem uma certa
compulsão por limpeza. Quando passamos em frente dessa casa impe­
cável, ela começa a orar repetidamente: Senhor, salve-me de mim mesma.
Senhor, salve-m e de mim mesma.
Quando nossos filhos eram adolescentes, certa vez a Jill me pergun­
tou: “Sabe do que a nossa família mais precisa?” Uma porção de coisas
me veio à mente, inclusive um carro mais novo. A resposta dela, de uma
palavra só, me pegou de surpresa: “Misericórdia”. Não precisávamos de
mais disciplina. Não precisávamos de mais dinheiro. Precisávamos de
misericórdia. Eis a mentalidade que produz um coração que ora.
Ter uma vida de oração não é simplesmente orar de manhã; é orar
a qualquer hora do dia, não porque somos disciplinados, mas por ter­
mos consciência de nossa pobreza de espírito e saber que não conse­
guimos nem mesmo caminhar pelo shopping ou pela vizinhança sem a
ajuda do Espírito de Jesus.
C a p ít u l o 8

C UR VE SEU C O R A Ç Ã O
d ianj;e W Pa i

CERTA VEZ, DURANTE UMA viagem de avião, sentei-me ao lado


de uma representante de um famoso laboratório farmacêutico. Du­
rante o bate-papo, eu disse que, pelo que costumava ouvir, achava
que uma entre três mulheres americanas usavam antidepressivos. A
representante discordou: “O senhor está enganado. São pelo menos
duas entre três”.
A maioria de nós simplesmente quer ficar livre da ansiedade. Al­
gumas pessoas buscam uma pílula mágica que alivie o estresse. Outras
vão atrás de terapia. Embora antidepressivos e aconselhamento tenham
ajudado muita gente, inclusive a mim, a busca pela “pílula da felicida­
de” ou por “pensamentos positivos” não acaba com a nossa inquietação.
Ela é profunda demais.
Gostaria de sugerir que, em vez de lutar contra a ansiedade, nós a
usássemos como um ponto de partida para curvarmos o coração dian­
te de Deus. Em vez de tentar reprimir e lidar com a ansiedade, ou
sufocá-la com distrações, vamos canalizá-la para Deus. Se fizermos isso,
descobriremos que, mesmo sem perceber, passaremos a orar sem cessar.
Vejamos um exemplo de como a ansiedade abre caminho para a
oração.
Na infância, eu não gostava de atender telefone, talvez por não
fosse muito ágil com as palavras. Situações inesperadas às vezes me
deixam sem palavras e, no passado, tive de lutar contra a gagueira. A
Jill sempre brincava, dizendo que chamaria uma de nossas filhas de
Lilian, pois eu tinha uma dificuldade enorme de pronunciar a letra L.
E também a letra H. Dizer “hello” ao telefone era um sufoco. Ainda
hoje, quando ouço o telefone tocar, sinto uma pontada de ansiedade.
Antes de atendê-lo, quase sempre faço uma oração silenciosa e rápi­
da. Simplesmente me curvo diante de Deus e a minha ansiedade se
transforma em oração.

Um breve histórico sobre ansiedade e oração


A ligação entre a ansiedade e o orar sem cessar teve início no Éden,
naquele tempo em que Adão e Eva tinham um relacionamento perfeito
com Deus e orar de forma ininterrupta era algo normal. Quando eles
tentaram ser independentes de Deus, deixaram de caminhar com o Se­
nhor no cair da tarde, e esse elo de oração se partiu.
Com que se parece esse elo de oração interrompido? Com a ansie­
dade. Em vez de se conectar com Deus, nosso espírito se bate de um
lado para o outro, como um fio de eletricidade partido, destruindo
tudo o que toca. Ansiedade é o desejo de ser Deus, mas não ter a sabe­
doria, o poder nem o conhecimento que ele tem. Assumir a postura de
ser como Deus sem o caráter e a capacidade que só ele possui é angústia
pura. Como a ansiedade é o ser em total independência, ela procura
assumir o controle de tudo. A ansiedade é a incapacidade de descansar
diante do caos que se instala. Quando um problema é resolvido, o pró­
ximo da fila já se apresenta, e parece tão grande que nos esquecemos da
libertação anterior.
Por mais estranho que pareça, foi o próprio Deus quem nos mos­
trou como não sermos deuses. Jesus foi a primeira pessoa que não ten­
tou ser independente. Ele queria estar em ligação constante com o Pai.
Na verdade, humilhou-se até a morte de cruz, angustiando-se para que
ficássemos livres da angústia. Agora, o Espírito coloca a humildade de
( ,risto em nosso coração. Não temos mais que ser pequenos deuses, no
controle de tudo. Muito pelo contrário; diante do caos, orando sem
cessar, nos agarramos ao Pai. Clamamos por sua graça, pois sabemos
que não temos controle de nada. Em vez de se debater, nosso espírito
de oração abençoa tudo o que tocamos.
No salmo 131.1-2, Davi entendeu essa ligação entre um coração
humilde e um coração tranqüilo.1

Senhor, meu coração não é arrogante, nem meus olhos são altivos; não
busco coisas grandiosas e maravilhosas demais para mim . Na verdade,
acalmo e sossego minha alma; com o uma criança desmamada nos bra­
ços da mãe, assim é minha alma, com o essa criança.

Ficamos ansiosos quando “tentamos ser como Deus”, e nos ocupa­


mos com coisas grandes demais para nós. Para recuperar a sanidade, te­
mos de nos tornar como uma criança que descansa nos braços da mãe.

Ansiedade é a incapacidade de descansar diante do caos.


D iante do caos, orando sem cessar, nos agarramos ao Pai.

Uma das singularidades da oração constante é que ela é sua própria


resposta de oração. Ao orar o salmo 131, seu coração se aquieta. Você
descansa, não porque as palavras sejam mágicas, mas porque seus olhos
não estão mais altivos.
Charles Hodge, um teólogo do século XDt e professor do seminário
de Princeton, oferece-nos este exemplo singelo sobre a oração contínua:

1 David Powlison, “'Peace Be Still’: Learning Psalm 131 by Heart”, The Jou rn al o f
fíiblical Counseling 18, no. 3 (Primavera, 2000): p. 2.
M inha infância foi o período em que estive mais próximo do “orai sem
cessar” do que em qualquer outra época da vida. Até onde me lembro,
tinha o hábito de agradecer a Deus por tudo o que recebia, e pedir-lhe
tudo o que desejava. Se perdesse um livro ou um brinquedo, eu orava
até encontrá-lo. Orava ao caminhar pelas ruas, na escola e fora dela,
quando estava brincando ou estudando. N ão fazia isso para obedecer
a alguma regra preestabelecida. Era algo natural. Para mim, Deus era
um ser sempre presente em qualquer lugar, cheio de bondade e amor,
que não se zangava quando as crianças falavam com ele. Eu sabia que
ele cuidava das andorinhas. Vivia satisfeito e alegre com o os pássaros e
agia como se fosse um deles.2

Seu coração pode se transformar em um gerador de orações


porque, assim como Jesus, você é completamente dependente. Você
precisou de Deus há dez minutos atrás, e precisa dele agora. Em vez
de sair em busca da condição espiritual perfeita para sair do caos,
ore no caos. Enquanto seu coração ou suas circunstâncias estiverem
gerando problemas, continue gerando orações, e verá que a confusão
diminuirá.
Vemos isso no conselho que Paulo deu aos filipenses a respeito
da ansiedade.

N ão andeis ansiosos por coisa alguma; pelo contrário, sejam os vossos


pedidos plenamente conhecidos diante de Deus por meio da oração e
súplica com ações de graças; e a paz de Deus que excede todo o enten­
dimento, guardará o vosso coração e os vossos pensamentos em Cristo
Jesus. (Fp 4 .6 ,7 )

Se orarmos, experimentaremos a paz que excede todo o enten­


dimento.

2 Archibald A. Hodge, The L ife ó f Charles Hodge. Manchester: Ayer, 1979, p. 13.
Convite à oração
Quando oramos sem cessar, aqueles momentos que nos levam à ansie­
dade se transformam em convites à oração. O trânsito parado, a mágoa
causada por um amigo ou a pressão para entregar algum trabalho são
portas que o levarão a Deus. Você vai desligar o rádio do carro porque
deseja conversar com o Pai. Acordará no meio da noite e verá que está
orando. Será algo tão natural e essencial para você quanto respirar.
Quando desistir de tentar controlar a própria vida e permitir que
as ansiedades e problemas o levem a Deus, você deixará de se preocupar
e passará a observar. Observará a mão de Deus escrevendo a história
da sua vida. Em vez de querer dominar e tecer a trama de sua própria
existência, perceberá que você faz parte do enredo divino. Enquanto
espera, irá vê-lo trabalhando, e sua vida vai adquirir um novo brilho
diante das maravilhas de Deus. Você vai aprender a confiar novamente.
PARTE 2

APRENDENDO
A CONFIAR
NOVAMENTE
Ca p ít u l o 9

ENTENDA O

O OPOSTO DE TER um coração de criança é ter um coração cético.


O ceticismo é, cada vez mais, o espírito predominante em nossos dias.
Pessoalmente, posso dizer que é minha maior luta no que diz respeito à
oração. Quando recebo uma resposta de oração, algumas vezes penso:
Teria acontecido de qualquer jeito. Outras vezes, tento orar, mas me
pergunto se de fato fará alguma diferença.
Muitos cristãos estão à beira de um precipício, lutando para não
se entregarem a uma atitude de desânimo. Seu espírito está começando
a ficar insensível; porém, ao contrário dos céticos, eles ainda não per­
deram a esperança. Meu amigo Bryan resumiu desta forma esse sen­
timento: “Acho que vamos ficando calejados pelas frustrações, e não
queremos mais nos expor. O medo nos sufoca”.
O ceticismo e o desânimo têm algo em comum: questionam a
bondade de Deus que age em nosso favor. Se essas duas posturas não
forem desafiadas, as pequenas dúvidas abrirão espaço para dúvidas
maiores. E com isso as pessoas vão deixando de ser como crianças e se
tornam incapazes de buscar o Pai.
Quando digo que o ceticismo é o espírito predominante em nossos
dias, quero dizer que ele é uma forte influência, um clima que permeia
nossa cultura, uma das maiores tentações de nossa época. Ao refletir
sobre o ceticismo e esse sentimento de desânimo, estamos meditando
sobre a última petição do Pai Nosso: “Não nos deixe entrar em tenta­
ção; mas livra-nos do mal” (Mt 6.13).
O ce ticism o é algo tão p en etran te q u e, às vezes, parece tangível. Por
trás da filosofia d a ép oca e n co n tra -se u m a presen ça m aligna, invisível,
u m esp írito. Se Satanás n ão conseg u ir im p ed ir você de orar, fará co m
que sua alm a fiqu e insensível, na ten tativa de roubar o fru to da oração.
E m b o ra ele n ão ten h a p o d er para criar, tem p od er para corrom p er.

A sensação de ceticismo
As primeiras palavras de Satanás que foram registradas são cheias de
ceticismo. Ele diz a Adão e Eva: “Na verdade Deus sabe que no dia em
que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como Deus,
conhecendo o bem e o mal” (Gn 3.5). Satanás está sugerindo que os
motivos de Deus para que eles não comam o fruto são questionáveis.
Em essência, ele está dizendo: “Deus não foi honesto ao falar sobre a
árvore no meio do jardim. A ordem para que não comam da árvore não
tem nada a ver com a proteção de vocês. Deus quer mesmo é se livrar
da concorrência. Ele é invejoso. Finge estar cuidando de vocês, mas seu
plano é proteger a si mesmo. Deus tem duas caras”. De maneira seduto­
ra, o Inimigo esclarece a Adão e Eva sobre o que se passa nos bastidores
— o que está realm ente acontecendo atrás das cortinas. É esse tipo de
intimidade fatal que a intriga nos oferece.
Satanás vê m ald ad e em tu d o , até m esm o em D eu s. Iro n ica m e n te ,
isso se to rn o u u m a p ro fe cia que se cu m p riu . D esd e a Q u e d a , o m al
parece estar em to d o lugar, tra n sfo rm a n d o o ce ticism o em u m p ro d u to
fácil de ser vend id o. C o m o o ce ticism o passa a im pressão de saber o que
está “realm en te a co n te c e n d o ”, vend e u m a im ag em de q u e é real, a u tên ­
tico . Isso lh e dá u m a lto statu s, u m a vez q u e a a u ten ticid a d e é u m a das
ú ltim as virtu d es p ú blicas q u e restam e m nossa socied ad e.
Conversei sobre essas minhas reflexões com a Cathie, uma amiga
que lutava contra o ceticismo. Ela explicou o que sentia em seu próprio
coração: “O ceticismo é ensinado em nossas escolas, abraçado por nossa
cultura e exaltado como um ideal. Para mim é algo insidioso. De certa
forma, essas verdades parciais, obtusas, passam a imagem de ser mais
reais do que as verdades ensinadas na Bíblia. Para mim, é mais fácil ser
cética e não sentir nada do que sentir uma profunda convicção. E assim
o ceticismo vai criando raízes e ‘parecendo’ mais real do que a verdade”.
“Sei que não estou sozinha na minha luta contra o ceticismo. Po­
rém a maioria nem percebe que isso é um problema, ou que é algo que
toma conta dos nossos corações. Simplesmente não conseguimos mais
encontrar alegria nas coisas, como se fossemos conscientes demais para
confiar ou ter esperança.”
As observações da Cathie acertam em cheio o alvo. O ceticismo
reinante leva a uma insensibilização em relação à vida.
Ele começa com a convicção distorcida de que todo mundo tem
segundas intenções. Atrás de todo arco-íris existe uma nuvem negra. A
pessoa cética está sempre observando e criticando tudo, mas nunca se
envolve em nada, não ama nem tem esperanças. Segundo R. R. Reno,
um acadêmico católico, o ceticismo é uma versão perversa do “estar no
mundo, mas não ser do mundo”. Saímos de uma era heróica de grandes
feitos e entramos em uma era de apatia e indiferença.' Yoani Sánchez,
blogueira cubana de trinta e dois anos, porta-voz influente de sua gera­
ção, escreveu: “Ao contrário de nossos pais, nós nunca acreditamos em
nada. O ceticismo é a característica que nos define. Porém, ele também
é uma espada de dois gumes. Ao mesmo tempo em que nos protege de
dolorosas desilusões, também nos incapacita de fazer qualquer coisa”.2

' R. R. Reno, “Postmodern Irony and Petronian Humanism”. Mars Hill Audio
Resource Essay, vol. 67 (Março/Abril 2004): p. 7.
’ Yoani Sánchez, citada em Joseph Contreras, “Island o f Failed Promises”, Time (3 de

março, 2008): p. 31.
Ser cético é ser distante. Embora o ceticismo pareça oferecer a falsa
intimidade de alguém que está “por dentro” das coisas, na verdade,
ele mata qualquer possibilidade de intimidade. E leva a uma amargura
cada vez mais intensa que pode enfraquecer e até aniquilar o espírito.
Minha amiga Cathie já está sentindo as primeiras pontadas desse mal.
A vida de oração, contudo, é exatamente o contrário. Ela encara o
mal de frente. Não aceita “não” como resposta. O salmista colocou-se
diante de Deus, esperando, sonhando, pedindo. A oração é ativa. O
ceticismo, por outro lado, só critica. É passivo, vive se esquivando das
emoções da grande batalha cósmica na qual estamos envolvidos. Ele
não tem esperança.
Se colocarmos um verniz de oração sobre um coração cético ou até
mesmo esgotado, vai parecer falso. Para o cético, a vida em si já é falsa;
ele só vai ter a sensação de que está apenas contribuindo para aumentar
ainda mais a confusão toda.

A jornada em direção ao ceticismo


Por mais estranho que pareça, o ceticismo começa com o excesso da­
quele tipo de fé equivocada, com aquele otimismo ingênuo e a confiança
tola. Quando olhamos de relance, a fé genuína e o otimismo ingênuo
parecem iguais, pois ambos trazem confiança e esperança. Mas é uma
semelhança apenas superficial. A fé genuína se baseia no fato de eu
saber que o Pai me ama, gosta de estar comigo e cuida de mim. Já o
otimismo ingênuo não tem base alguma. É uma confiança pueril e órfã,
pois não tem um Pai amoroso.
Vivemos numa sociedade excessivamente otimista. O espírito de
que “tudo é possível” vem da confiança judaico-cristã na bondade de
Deus que age em nosso favor. Saber que o Bom Pastor está atento e
cuida de mim é algo que me enche de coragem para atravessar o vale da
sombra da morte. Mesmo na presença dos meus inimigos, delicio-me
com um banquete maravilhoso, pois Deus está comigo. A fé em Deus
gera uma sensação arrojada de que tudo posso e uma atitude ousa­
da, que são características distintas da civilização ocidental. No século
xix esse otimismo transferiu seus alicerces da bondade de Deus para a
bondade do ser humano. A fé se tornou um fim em si mesma. Duran­
te a Grande Depressão, o presidente Roosevelt convocou os Estados
Unidos a ter fé na fé. Em A noviça rebeUle, Julie Andrews fala sobre
ter confiança na própria confiança. A Disneylândia, um dos maiores
monumentos a esse otimismo ingênuo, garante que encontraremos o
príncipe encantado e viveremos felizes para sempre.
O otimismo baseado na bondade humana desaba quando se vê
diante do lado sombrio da vida. Para a maioria de nós, a descoberta do
mal é uma experiência bastante pessoal. Descobrimos a crueldade dos
amigos na pré-adolescência e adolescência. Na faculdade, os príncipes
não se mostram mais tão encantados assim. Quando temos filhos, no­
tamos logo como crianças podem ser exigentes e egocêntricas.
Algum tempo atrás, durante o café da manhã, perguntei a Kim
se ela gostaria de se casar um dia. Por meio do sintetizador, ela me
respondeu: “Não. Dá muito trabalho”. De início, achei que se referia
à cerimônia e à festa de casamento, mas ela explicou que se referia aos
filhos. E ela está certa. As crianças são centradas em si mesmas e exigem
atenção constante. As famílias modernas, totalmente centradas nos fi­
lhos, apenas reforçam essa verdade. Jesus está bastante atento a esse lado
egoísta das crianças quando chama os fariseus de crianças birrentas:

“A que, pois, compararei os homens desta geração? A que são seme­


lhantes? São semelhantes a crianças que, sentadas na praça, gritam
umas às outras: ‘Tocamos flauta para vós, e não dançastes; cantamos
lamentações, e não chorastes’” (Lc 7.31,32).

Esse otimismo, uma vez estraçalhado, nos leva a cair no desânimo


e, finalmente, no ceticismo. Pode ser que imaginássemos que as frustra­
ções nos levariam apenas a ficar menos otimistas; porém, nós, os seres
humanos, não lidamos bem com a neutralidade. Passamos do lado bri­
lhante para o lado sombrio da vida. E ficamos com a sensação amarga
de que a vida nos traiu.
Ao refletir sobre o porquê disso ser verdade em sua vida, minha
amiga Cathie fez a seguinte observação: “Eu passei tão rápido do oti­
mismo para a total escuridão por não estar alicerçada na fé firme e cons­
tante de que Deus está presente na situação, seja ela qual for. Estou em
busca de resultados que me agradem, e não de realidades profundas”.
Passar do otimismo ingênuo para o ceticismo apático é o novo
caminho pelo qual segue a sociedade em que vivemos. Quando se vive
no otimismo ingênuo, não é preciso orar porque tudo está sob controle,
tudo é possível. Quando se vive no ceticismo apático, não se pode orar
porque tudo está fora de controle e quase nada é possível.
E como o Bom Pastor não está mais nos guiando pelo vale da som­
bra da morte, precisamos de algo que preserve nossa sanidade. A postu­
ra irônica do ceticismo é uma frágil tentativa de manter um equilíbrio
alegre e despreocupado num mundo enlouquecido. Mas essas coisas
não são apenas tendências culturais benignas; são a sua própria vida.
Chega uma hora em que todos nós temos de enfrentar o vale da
sombra da morte. Não há como ignorá-lo. Não podemos ficar neutros
em relação ao mal. Ou desistimos e nos distanciamos ou aprendemos a
andar com o Bom Pastor. Não dá para ficar em cima do muro.
Sem o Bom Pastor, estamos completamente sozinhos, perdidos em
uma história sem sentido. A exaustão e o medo nos deixam arrasados,
incapazes de nos mover. O ceticismo nos deixa cheios de dúvidas, in­
capazes de sonhar. Essa combinação fecha a porta do nosso coração, e
passamos a viver apenas mecanicamente, como autômatos. Às vezes é
difícil até arrumar forças para levantar da cama de manhã.

A era do ceticismo
Nossa luta pessoal contra o ceticismo e o desânimo é agravada pela ten­
dência progressiva rumo ao perfeccionismo. Acreditar que você tem de
ter relacionamentos perfeitos, filhos perfeitos, ou um corpo perfeito dá
espaço a um espírito crítico, que é um solo fértil para o ceticismo. Na
ausência da perfeição, tentamos projetar uma boa imagem, inconscien­
temente nos fragmentando entre uma personalidade pública e outra
privada. Deixamos de ser reais e nos tornamos céticos.
A tendência dos meios de comunicação de encontrar respostas
para tudo, explicando por que “isso nlo deveria ter acontecido”, molda
a maneira como reagimos ao mundo e, assim, passamos a querer uma
vida livre de sofrimentos e de problemas. A ideia de que podemos tudo
está assumindo a forma de um egocentrismo implacável.
A tendência da psicologia de buscar motivos ocultos por trás de
tudo acrescenta outra camada à nossa capacidade de julgamento e, com
isso, nos tornamos céticos em relação ao comportamento alheio. As
pessoas não cometem adultério por causa da luxúria, mas sim porque
têm desejos que precisam ser satisfeitos.
O ceticismo está no ar que respiramos, sufocando nosso coração. A
menos que nos tornemos discípulos de Jesus, esse clima atual de iniqüi­
dade irá primeiro enfraquecer e depois destruir completamente nossa
vida de oração, sem falar de nossa alma. Nossa única esperança é seguir
a Jesus, pois ele nos afasta do ceticismo.

Quando recebo uma resposta de oração, algumas


vezes penso: Teria acontecido de qualquer jeito.
C a p ítu lo 10

SIGA A J E S US E
D' " S
a
CRISTO OFERECE SEIS TIPOS de cura para o ceticismo. Estudemos
um de cada vez.

1. Seja terno, mas cauteloso


Jesus não ignora o pecado. Ao enviar os discípulos em sua primeira
viagem missionária, Jesus lhes disse: “Eu vos envio como ovelhas no
meio de lobos; portanto, sede astutos como as serpentes e sem malícia
como as pombas” (Mt 10.16). Diante do mal, a grande tentação é nos
tornarmos lobos, ficarmos céticos e deixarmos de lado o espírito de
ovelha. Jesus, porém, nos diz para sermos ternos, porém cautelosos —
afetuosos como as pombas, mas espertos como as serpentes.
Jesus mantém em equilíbrio a postura de estar vigilante contra o
mal e sua fé inabalável na bondade do Pai. Ele continua: “Cuidado com
os homens” (10.17); e logo a seguir, enternece nossos corações para o
amor do Pai, dizendo: “Não temais; vaieis mais do que muitos passa­
rinhos” (10.31). Se o Pai está tão envolvido com a morte até de um
passarinho, será que não cuidaria da sua vida? Você não precisa se isolar,
adotando uma postura cética e recriminatória. Não tem de fechar seu
coração em face do mal. Você pode enfrentá-lo.
Em vez de um otimismo ingênuo, Cristo nos convoca a ser cau­
telosos, a ter confiança em nosso Pai celeste. Devemos combinar a fé
sólida no Bom Pastor com a vigilância contra o mal, tanto em nosso
próprio coração quanto nos corações alheios.
O otimismo cauteloso é o que define a vida de oração — devo ser
cauteloso por causa da Queda; devo ter otimismo por causa da reden­
ção. O otimismo cauteloso permite que Jesus envie com ousadia seus
discípulos a um mundo perverso.
Quando falei disso a minha amiga Cathie, ela exclamou: “Puxa,
adorei! Não sou obrigada a viver num mar de rosas e enxergar tudo
como algo bonito, bom e inspirador. Ao contrário, isso me lembra de
que devo confiar que Deus vê o que vejo. Na verdade, ele vê além do
que vejo. Ele vê o quadro inteiro e posso ter certeza que ele trabalha em
grande escala e também nas minúcias, e até mesmo em minha vida”.

O otimismo cauteloso é o que define a vida de oração — devo ser


cauteloso por causa da Queda; devo ter otimismo por causa da redenção.

A confiança, quando enfrentamos o mal, vem diretamente do es­


pírito de Jesus e incentiva o espírito de oração. A fé audaciosa é uma
das características dos discípulos de Jesus. Como veremos mais tarde, a
oração é a principal via que nos leva a essa expansão do reino de Cristo.
Jesus não está simplesmente propondo uma sabedoria prática. A
sabedoria dele funciona porque em sua morte ele agiu com ousadia,
confiando no auxílio do Pai. Enquanto Jesus estava pendurado na cruz,
os líderes religiosos, incrédulos, zombavam de sua confiança como fi­
lho. “Ele salvou os outros e não consegue salvar a si mesmo (...) Con­
fiou em Deus; que ele o livre agora” (Mt 27.42-43). Na verdade, esta-
vam dizendo: “Veja só o que acontece quando você age feito criança e
confia no seu Pai. Ele o abandona”. Acusaram Jesus de ser ingênuo, de
agir como um simplório por acreditar na bondade de Deus.
Jesus não reagiu aos zombadores, pois seus ouvidos estão em sin­
tonia com o Pai. Como uma serpente sábia, ele nada responde. Como
uma pomba inofensiva, ele nada faz. Mesmo quando o Pai lhe vira as
costas, Jesus confia. Diante das tempestades da vida, ele se agarra ainda
mais ao Pai.
A fé inocente de Jesus alegra seu Pai, e na manhã da Páscoa o
Pai agiu sobre o corpo morto de Jesus, trazendo-o de volta à vida.
Ele confiou em Deus; Deus o libertou. O mal não teve a última palavra.
A esperança renasceu.

2. Aprenda a ter esperança de novo


A incredulidade mata a esperança. O mundo de um cético é fixo, imó­
vel; segundo a sua visão, somos arrastados por forças maiores que nós.
Para ele, sonhar parece uma grande tolice. O risco passa a ser into­
lerável. Orar parece ser inútil, como se estivéssemos falando com as
paredes. Por que colocar Deus e a nós mesmos nessa situação fadada
ao fracasso?
Mas Jesus tem tudo a ver com esperança. Veja o que ele diz antes
de ajudar estas pessoas. Antes de curar o cego, ele esclarece aos discí­
pulos que “isso aconteceu para que nele se manifestassem as obras de
Deus” (Jo 9.3). Antes de ressuscitar o filho da viúva de Naim, Jesus a
consola, “Não chores” (Lc 7.13), contrariando o antigo canto fúne­
bre judaico: “Chore, todos vocês amargos de coração”. Quando Jairo
conta que sua filha morreu, Jesus responde, “Não temas; crê somente”
(Lc 8.50). Antes de curar a mulher que andava encurvada, Jesus lhe
garante: “Mulher, estás livre da tua enfermidade” (Lc 13.12). Em cada
um desses casos, Jesus traz esperança antes da cura. Ele não é uma má­
quina de curar — Jesus toca o coração das pessoas e cura suas almas,
antes de curar seus corpos.
A esperança tem origem no coração de Deus. Quando você enten­
der como é o coração do Pai, o quanto ele é generoso, então orar lhe
parecerá algo inteiramente normal.
A maioria de nós acredita na esperança bíblica da redenção final,
contudo se deixa impregnar pelo espírito de ceticismo de nossa época,
e não compreende o coração de Deus. Percebi isso com maior clareza
quando uma viúva me explicou a filosofia de vida de seu marido: “Não
espere nada da vida. Assim, se algo de bom acontecer, agradeça”.
Ele havia sido para mim um amigo muito querido e um grande
conselheiro, mas fiquei tão surpreso com o que ela me contou que,
sem pensar, me vi citando para Sue, a esposa dele, uma mistura de
Romanos 15-13 e Hebreus 13.20: “Sue, isso parece muito diferente
de ‘Que o Deus da esperança, que trouxe dentre os mortos nosso
Senhor Jesus, vos encha de toda alegria e paz na vossa fé, para que
transbordeis na esperança pelo poder do Espírito Santo’ ”. Paulo e o
autor de Hebreus estavam com o coração transbordando de felicidade
pela bondade de Deus.
Disney tem toda razão. Porque um Deus bom entrou nesse mun­
do mal, os finais felizes acontecem. Uma das últimas coisas que Deus
diz na Bíblia é: “Eu faço nova todas as coisas!” (Ap 21.5). Quando
oramos, estamos tocando o coração de Deus repleto de esperança. E
quando compreendemos isso, a oração se torna uma aventura.

3. Cultive um espírito de criança


Há pouco tempo, passei por um momento de ceticismo quando estu­
dava a Bíblia de manhã. Enquanto pensava em algumas respostas de
oração do dia anterior, senti um toque persistente de amargura em mi­
nha alma. Tudo o que eu tinha feito foi orar, e Deus agiu. Parecia fácil
demais. Banal demais. Percebi que queria arrumar algo para duvidar.
Também estava caçando algo para fazer. No fundo, a graça não me sa­
tisfazia. Eu queria ter alguma participação na resposta de Deus ao meu
pedido. Na verdade, naquela hora eu não estava muito disposto a gostar
de Deus. Eu me sentia mais à vontade tendo ele à distância.
O que fazer com este meu velho coração? Ora, justamente o que
tenho falado até aqui para fazer: clamar pela graça de Deus, como uma
criança sedenta. Tão logo comecei a clamar, fiquei outra vez parecido
com uma criança. Deixei de lado meu ceticismo. Por mais estranho que
pareça, minha oração é respondida quase que imediatamente, pois no
ato de orar eu me torno como uma criança. A cura para o ceticismo
é nos tornarmos novamente como criancinhas. Em vez de criticar a
história alheia, preste atenção na história que nosso Pai está compondo.
Para ouvir uma boa história só precisamos resgatar a inocente ca­
pacidade que só as crianças têm de se encantar. Em uma biografia
de C. S. Lewis, o escritor Alan Jacobs pondera que “quem nunca se
permite passar por tolo nunca se encanta, pois sem esse esquecimento
voluntário de si mesmo não existe encantamento”.1 Lewis só escreveu
tantas histórias infantis cativantes porque nunca perdeu esse encanta­
mento que só as crianças possuem. Já um cético nunca se encanta, pois
jamais se permite passar por tolo.
Certa vez atravessei um período em que minha vida estava tão
complicada que eu não conseguia orar. Simplesmente não conseguia
me concentrar. Por isso, parei de tentar fazer orações coerentes, e du­
rante semanas a fio, usei o salmo 23 como oração, e mais nada. Estava
tentando lutar pela minha vida. Naquela época eu ainda não sabia, mas
estava seguindo a prática conhecida como lectio divina, desenvolvida
pelos primeiros cristãos. Ao ler lentamente uma porção da Bíblia e orar,
eu permiti que ela moldasse minhas orações.
Enquanto usava o salmo 23 como oração, comecei a refletir sobre
0 dia anterior e a buscar a presença do bom Pastor, seu toque amoroso.
Mesmo nos dias mais difíceis, passei a notar sua presença em todos os

1 Alan Jacobs, The N am ian: The Life and Imagination ó f C. S. Lewis. São Francisco:
HarperSanFrancisco, 2005, p. XXV.
lugares, preparando uma mesa perante mim na presença de meus ini­
migos, seguindo-me com seu amor. Tanto a criança quanto o cético que
havia em mim caminharam pelo vale da sombra da morte. O cético ha­
via se concentrado na escuridão; a criança se concentrou no bom Pastor.
Logo após minhas conversas com a Cathie a respeito do ceticismo,
ela passou pelo vale da sombra da morte, e explicou: “Agora, o ceti­
cismo para mim se parece mais com uma escravidão. Ao me mostrar
os interesses escusos e egoístas aos quais me agarro em meu ceticismo,
Jesus me liberta para amar. Sei muito bem que essa jornada está longe
de acabar, mas estou aprendendo a viver na esperança. Só preciso de um
pouco mais de prática”.
A presença do Pastor no vale sombrio é tão imediata, tão pode­
rosa, que o ceticismo simplesmente desaparece. Não há espaço para o
distanciamento sarcástico quando você luta por sua vida. Quando você
se agarra ao Pastor, o nevoeiro do ceticismo se dissipa.
Como o ceticismo não nota a presença do bom Pastor, ele inverte
o quadro descrito em ljoão da luz invadindo as trevas. Assim como
Saruman em O Senhor dos Anéis, o ceticismo fita longamente a bola
de cristal de Sauron. Não percebe, contudo, que na tentativa de des­
mascarar o mal, faz o mal crescer ainda mais. Estamos cada vez mais
retornando ao mundo do paganismo anterior ao cristianismo, quando
o mal aparentemente falava mais alto e tinha a última palavra.
A sociedade secular em que vivemos cortou o bom Pastor do salmo 23.
Veja só o que acontece quando cortamos o bom Pastor e tudo o que ele fàz:

0 S E N H O R é u meu pasror; rradg me faltará.


file me íuz deita* em pasiiw veidejaiina; guia-me para-as águas uaiiquihs.
Renova a minha alma; guia-me pdas veftxláJ da jm iiça por anttn-do
seu n u m e.

Quando eu tiver de andar pelo vale da sombra da morte, nSs=temerei


mal algum, porque tu « j^Fcomigo; a rua vara i o n u ijja d u me-tran-
Preparas para mim uma m esa diante dos meus inimigos, unges a minha
cabeça eoTTfóioo, o meu cálice transbord a i
Bondade e a misericórdia certamente me seguirão todos os dias da m i­
nha vida, e habitarei na casa do S E N H O R pafa todiR» senfpre.

Ficamos no vale da sombra da morte consumidos por nossas ne­


cessidades, paralisados pelo medo diante dos nossos inimigos. É por
isso que tantos são tão céticos. Quando cortamos o Bom Pastor, fica­
mos sozinhos num mundo repleto de maldade.
Por outro lado, o espírito ingênuo de uma criança é aquele que
contempla a vida por meio das lentes do salmo 23. Jesus coloca o salmo
23 em prática ao alimentar as cinco mil pessoas. Ao ver que as multi­
dões pareciam “ovelhas que não têm pastor”, ele as alimenta espiritual­
mente começando a “ensinar-lhes muitas coisas”. Então, manda “todos
se assentarem (...) sobre a grama verde” e alimenta-os com tanta comida
que os cestos transbordam (Mc 6.34-44).
Ao se preparar para morrer, Jesus medita no salmo 22. Na cruz,
dilacerado pelo mal, ele recita o versículo 1: “Deus meu, Deus meu, por
que me desamparaste?” Em meio à escuridão, Jesus não analisa o que
não sabe. Ele se agarra ao que sabe.

4. Cultive um espírito de gratidão


Meditar no salmo 23 se tornou um hábito para mim durante esse perío­
do de sofrimento. Orar não era uma questão de autodisciplina, mas de
desespero. Eu começava agradecendo a Deus pelo toque de sua graça no
dia anterior. Ou eu cultivava esse espírito de gratidão a Deus ou come­
çava a sentir a amargura gerada pelo ceticismo. Não havia meio-termo.
Mesmo agora, anos depois, começo meus momentos de oração re­
fletindo sobre os cuidados do bom Pastor na minha vida. Eu repasso na
mente o dia anterior e vejo a mão de Deus trabalhando. Não há nada
melhor para acabar com o ceticismo do que um espírito de gratidão.
Você começa a perceber que sua vida inteira é uma dádiva de Deus.
Ser grato não é uma questão de se forçar a ver o lado bom da vida.
Isso seria um retorno ao otimismo ingênuo. Agradecer restaura a ordem
natural das coisas, a nossa dependência de Deus. Capacita-nos a ver a
vida exatamente como ela é.
Não é de surpreender, portanto, o fato de que a ingratidão seja o
primeiro pecado que brota de nossa velha rebeldia contra Deus. Paulo
afirma: “Mesmo tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como
Deus, nem lhe deram graças” (Rm 1.21).
A própria vida de Paulo reflete esse espírito de gratidão. Quase
todas as vezes em que descreve suas orações pelas pessoas, o apóstolo
menciona a gratidão:

• Em primeiro lugar, dou graças ao meu Deus, por intermédio


de Jesus Cristo, por todos vós (Rm 1.8).
• Sempre dou graças a Deus por vós (IC o 1.4).
• Não cesso de dar graças por vós, lembrando-me de vós nas
minhas orações (Ef 1.16).
• Dou graças ao meu Deus todas as vezes que me lembro de vós
(...) em todas as minhas orações (Fp 1.3-4).
• Damos graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, oran­
do sempre por vós (Cl 1.3).
• Sempre agradecemos a Deus por todos vós, mencionando-vos
em nossas orações (lTs 1.2).
• Também não deixamos de agradecer a Deus (lTs 2.13)-
• Quanta gratidão podemos expressar a Deus por vós (lTs 3-9).
• Irmãos, tem os sempre de agradecer a Deus por vós (2Ts 1.3).
• Devemos sempre agradecer a Deus por vós (2Ts 2.13).
• Dou graças a Deus (...) ao mencionar-te sempre em minhas
súplicas noite e dia (2Tm 1.3).
• Sempre que me lembro de ti em minhas orações, dou graças
ao meu Deus (Fm 4).
Paulo incentiva as igrejas a orar dessa mesma forma:

• Sejam os vossos pedidos plenamente conhecidos diante de Deus


por meio de oração e súplica com ações de graças (Fp 4.6).
• Perseverai na oração, nela permanecendo atento com ações de
graças (Cl 4.2).
• Orai sem cessar. Sede gratos por todas as coisas (lTs 5.17-18).

Ser grato é estar envolvido na comunhão entre Pai, Filho e Espírito


Santo, nessa alegria que sentem por estarem juntos, pela vida e pelas
pessoas.
O ceticismo olha a realidade de frente, rotula essa realidade como
falsa e se vangloria por ter essa percepção, enquanto se distancia dela.
A gratidão encara a realidade de frente e se aJegra pelos cuidados de
Deus. Ela substitui o espírito amargo por um espírito generoso.
Diante do pecado de Adão e Eva, Deus pega linha e agulha e, com
toda paciência, tece roupas de peles para o casal (veja Gn 3.21). Ele
cobre de amor esses seres divididos, que dele se escondem. O mesmo
Deus permite que seu Filho seja despido para que sejamos vestidos.
Deus não fica cético diante do mal. Ele ama.

5. Cultive um espírito de arrependimento


Os céticos se veem como observadores desinteressados em busca de au­
tenticidade. Acham-se humildes porque não oferecem nada. Na verda­
de, sentem-se profundamente superiores por achar que enxergam tudo.
C. S. Lewis afirmou que se você enxerga tudo, acaba não enxer­
gando nada:

Ninguém consegue “explicar tudo” sempre; se fizer isso, descobrirá que


acabou explicando a própria explicação. N inguém consegue “enxer­
gar através de tudo” sempre. O motivo de tentarm os enxergar atra­
vés de algo é podermos ver algo através disso (...) Se você enxergar
através de tudo, então tudo ficará transparente. Contudo, um mundo
com pletamente transparente tam bém é um mundo invisível. Assim,
“enxergar através de tudo” é o mesmo que não enxergar nada.2

Lewis disse que havia necessidade de restaurar o olhar inocente, o


olhar capaz de ver com encantamento.3 Este é o olhar de uma criança.
Os céticos pretendem “enxergar” o que está atrás das máscaras das
pessoas, mas não têm pureza de coração. Uma importante fonte de ce­
ticismo é a ruptura entre meu coração e meu comportamento. O que
acontece pode ser descrito mais ou menos assim: meu coração perde
a sintonia com Deus, porém a vida segue em frente. Então, continuo
a agir e falar como cristão, porém, é só da boca para fora. Falo sobre
Jesus sem estar na presença de Jesus. Há um falta de ligação entre meu
comportamento e o que sou de verdade. Minhas palavras têm um ar
de falsidade e, com isso, as palavras dos outros também parecem falsas.
Em resumo, minha atitude religiosa vazia me leva a achar que todo
mundo é falso. Acuso as pessoas de agirem mal, no entanto, estou
cometendo os mesmos erros. Somar um espírito crítico à hipocrisia
resulta em ceticismo.
Todo e qualquer pecado envolve personalidade divida — o que
Tiago chama de ser “vacilantes” (4.8). Quando nos tomamos arrogan­
tes, nosso ego infla e perde contato com quem somos de verdade. O
marido que acessa pornografia na internet e depois abraça carinhosa­
mente a esposa dividiu-se em duas pessoas — uma que todos conhecem
e outra que se esconde nas sombras. Se você fala mal dos amigos pelas
costas, também desenvolveu essa dupla personalidade — é, ao mesmo,
o amigo carinhoso e o amigo fofoqueiro. Na tentativa de manter essas
personalidades separadas, você pede às pessoas a quem fez a fofoca:
“Não contem isso para ninguém, tá”.

■ C. S. Lewis, The Abolition ofM an. Nova Iorque: Macmillan, 1978, p. 81.
’ Jacobs, p. 158.
A primeira aparição dessa duplicidade foi logo depois da queda
de Adão e Eva. As pessoas amigáveis, que andavam com Deus foram
substituídos pelos seres nus, que se escondem da presença de Deus. A
pergunta penetrante que Deus faz, “Onde estás?”, teve como propósito
expor essa fragmentação da personalidade de Adão e Eva.
O arrependimento consegue juntar de novo essa personalidade
dividida e, assim, restaura a integridade à vida. O verdadeiro ego se re­
vela. Quando a pessoa orgulhosa se humilha, o ego inflado se submete
ao ego verdadeiro.
O ceticismo, por outro lado, se concentra na personalidade divi­
dida das outras pessoas e em sua necessidade de arrependimento. Falta-
lhe a humildade que brota da atitude de se tirar primeiro a trave do
próprio olho. É o próprio Cristo quem diz: “Hipócrita! Tira primeiro a
trave do teu olho; e então enxergarás bem para tirar o cisco do olho do
teu irmão” (Mt 7.5).
Vemos essa mesma dinâmica na chegada de Davi ao acampamento
de Saul, quando foi levar comida para os irmãos mais velhos. Davi fica
surpreso ao ouvir Golias escarnecendo dos israelitas e de seu Deus. Fica
estarrecido ao ver que ninguém tem coragem de desafiar Golias e diz,
enfurecido: “Quem é esse filisteu incircunciso, para afrontar os exérci­
tos do Deus vivo?” (ISm 17.26). Davi reage à ruptura entre a fé pública
de Israel e sua covardia no campo de batalha.
Davi tinha estado longe por um tempo, afastado da onda de ce­
ticismo que dominava a sociedade de sua época, e cultivara uma rica
caminhada com o Senhor. A obscuridade de Davi o havia protegido do
espírito cético da época. Havia harmonia entre a fé que ele professava
publicamente e a atitude que adotava em sua vida privada. O norm al
na vida de Davi era andar na companhia de Deus pelo vale da sombra
da morte, onde matou leões e ursos com sua funda. Para ele, Golias era
como um grande urso. O resultado disso era que, para Davi, a incredu­
lidade de Israel parece uma coisa estranha, fora de propósito.
Quando Eliabe, irmão mais velho de Davi, fica sabendo que o ca­
çula está de papo com os soldados, zomba do menino: “Por que viesce
para cá e com quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Eu
conheço o teu orgulho e a maldade do teu coração; pois desceste para
ver a batalha” (17.28). Eliabe, redondamente enganado, acha que co­
nhece os motivos do irmão. Acha que Davi, entediado com as ovelhas,
está atrás de façanhas, instigando os soldados só para conseguir assistir
a uma batalha. A maneira como Eliabe vê os motivos de Davi provavel­
mente reflete seus próprios motivos. Ele projeta em Davi seus próprios
motivos, e inescrupulosamente acusa o irmão caçula de ter segundas
intenções. Eliabe não tem um coração puro e pressupõe q^p Davi tam­
bém não o tenha.
Essa mesma dinâmica pode ser observada no jardim do Éden.
Satanás acusa Deus de ter segundas intenções, quando, na verdade, é
ele quem distorce descaradamente as ordens de Deus em benefício pró­
prio. A desconfiança é a semente que dá origem à rebeldia de Adão e
Eva contra Deus, assim como é a semente da nossa própria rebeldia.
Enquanto tenta desmascarar o pecado, o cético acaba por criá-lo.
Eliabe também vê a si próprio pelas lentes erradas. Ele tem um
conceito falso e arrogante de si mesmo. Zomba da função humilde de
Davi como pastor de ovelhas: “Com quem deixaste aquelas poucas ove­
lhas no deserto?” Eliabe, o poderoso guerreiro, menospreza o trabalho
simples de seu irmão caçula de cuidar das ovelhas; mas o verdadeiro
Eliabe está se acovardando, assim como todos os demais israelitas do
acampamento.
Davi não leva em conta o sarcasmo de Eliabe e acaba recebendo a
bênção e a armadura de Saul. Mas o rapaz logo percebe que não con­
seguirá lutar usando a armadura. Davi percebe que não pode ser o que
não é. Ele é um pastor de ovelhas, e não um guerreiro. Aquilo que ele
é por dentro e por fora têm que estar em harmonia. Ele é autêntico.
Davi pega seu cajado, junta cinco pedrinhas lisas de um riacho e
vai em direção a Golias. O gigante, enraivecido e insultado porque os
israelitas mandaram um simples menino para lutar com ele, não perce­
be a funda e enxerga somente o cajado. “Por acaso sou algum cachorro,
para que venhas contra mim com pedaços de pau?” (17.43).
A resposta de Davi evoca o espírito de oração: “O Senhor salva,
não com espada, nem com lança; pois a batalha é do Senhor, e ele vos
entregará nas nossas mãos” (17.47). Davi aperta o passo. Quanto mais
se aproxima, maior é a velocidade das pedras e mais certeira é a ponta­
ria. Golias mal consegue vê-las.
Assim como Davi, os puros de coração olham primeiro para suas
próprias motivações. Depois de terem confrontado seus próprios ursos
e leões no vale da sombra da morte, percebem com clareza como é
anormal Golias maldizer o Deus vivo. Por cultivarem o arrependimento
como um estilo de vida, os puros de coração desenvolvem integridade
de vida e têm suas próprias fissuras curadas. Ao reconhecerem o próprio
pecado, evitam a postura recriminatória e negativa do ceticismo.
A boa notícia é que, se seguirmos a Jesus, não teremos que ser es­
cravos do espírito da época em que vivemos. Não teremos que ser defini­
dos pela nossa sociedade. Como Paulo em Filipo, entoaremos cânticos
mesmo na prisão (veja At 16.25). Como Davi, diante de circunstâncias
impossíveis, usaremos tranquilamente cinco pedrinhas lisas.
Quanto ao sexto tipo de cura para o ceticismo, eu o deixei para o
próximo capítulo.
C a p ítu lo 11

P R OC U R E ------

DE V E R
ÚE JESUS

EU E A JILL trabalhamos uma vez por ano fazendo declarações de


imposto de renda. Certa vez, já faz algum tempo, fui mais cedo para
o escritório para organizar um pouco as coisas antes de os clientes
chegarem. Eu estava deprimido, lutando contra o ceticismo e a incre­
dulidade. Assim que comecei a trabalhar, percebi que o disco rígido
do computador estava quase cheio, e então decidi apagar um arquivo
antigo. Sem pensar, cliquei o “sim” confirmando “Apagar os arquivos
compartilhados?”, e me vi frente a frente com uma tela azul e o mais
profundo desespero. O computador tinha pifado.
Dei uma olhada na agenda e vi que o primeiro cliente só viria às
11 h30m. As horas seguintes foram uma maratona de conversas com a
assistência técnica e busca de discos para recuperar o sistema. O pro­
blema ainda não tinha sido resolvido quando a cliente chegou. Pedi
que o contador lhe informasse que estaríamos prontos “dentro de uns
minutinhos”.
Eu tinha de buscar um disco lá em casa. Passei de fininho pela
cliente, evitando seus olhos. Era quase meio-dia quando passei fur­
tivamente por ela de novo, para buscar outro computador. Olhei-a
de relance e percebi que estava sentada tranquilamente, sem nenhum
sinal de impaciência. Quando voltei, às 13 horas, ela continuava se­
rena, aguardando. Sua postura calma continuava a mesma quando,
finalmente, terminamos de fazer sua declaração de renda às 15 horas.
O mais incrível é que estou falando de alguém que mora numa cidade
enorme, agitadíssima!
Falo sério — a mulher passou três horas e meia aguardando, em
nosso escritório, sem fazer perguntas nem reclamações. Ela havia vindo
de ônibus, então lhe ofereci uma carona pra casa. Deprimido e frus­
trado, disse num impulso: “Jesus faz alguma diferença na sua vida?”
(Achei que ela era católica.) Veja bem, eu não estava querendo dar tes­
temunho de Jesus — ao contrário, estava querendo que testemunhas­
sem dele para mim. A cliente respondeu: “Jesus é tudo na minha vida.
Converso com ele o tempo todo”.
Fiquei sem palavras; em parte pela força e simplicidade da fé da­
quela mulher, mas especialmente pela demonstração de uma paciência
fora comum que essa mesma fé havia dado. Meu corre-corre estava em
nítido contraste com sua espera silenciosa, em oração. Essa cliente era
o retrato do espírito de oração. Eu era o retrato do espírito da autossu-
ficiência humana.
Eu havia começado o dia em depressão, em parte porque lutava
com a relevância de Jesus em minha vida. Agora me sentia massacrado
pela ironia de minha descrença. Jesus tinha estado sentado naquela sala
de espera, bem na minha frente, de modo tão claro quanto a luz do sol.
Eu havia passado por ele o dia todo. Algumas vezes havia me pergun­
tado se Jesus estava por perto, e ele havia esperado ali o tempo inteiro,
silenciosamente, sem dizer nada. Fora uma demonstração desconcer­
tante de paciência.

Jesus tinha estado sentado naquela sala de espera, bem


na minha frente, de modo tão claro quanto a luz do sol.
A incredulidade sempre olha na direção errada. Ela busca defeitos
no cristianismo, em vez de buscar a presença de Jesus. Essa é a tendên­
cia do nosso coração. Portanto, o sexto tipo de cura para o ceticismo,
para a incredulidade é procurar desenvolver a capacidade de ver a pre­
sença de Jesus.
Pelos estudos que fiz dos Evangelhos, sei bem onde procurar por
Jesus. Na maior parte do tempo, sua vida aqui na Terra ficou oculta como
uma semente enterrada no solo. Se tivéssemos um álbum de fotos da vida
de Jesus, não o veríamos entre pessoas cultas e importantes, mas sim entre
as mais simples e humildes. Em sua única foto com alguém famoso, Jesus
estaria ao lado de Pilatos, em seu julgamento, mas sua aparência nessa
foto não seria das melhores. A semente estava começando a morrer.
Uma grande fonte de ceticismo está em se espelhar em líderes
cristãos que acabaram misturando o reino de Jesus com seus próprios
reinos. O ministério em si pode criar uma máscara de desempenho,
conferir uma aparência de sucesso. Todo mundo quer ser um vencedor.
Jesus, ao contrário, nunca usou seu poder para aparecer. Usou-o para
demonstrar amor. Assim, não se destacava logo de cara. A humildade
faz você desaparecer, e é por isso que nós a evitamos tanto.
Para ver Jesus, eu teria que olhar mais para baixo. Teria que ver
as pessoas com simplicidade, como as crianças fazem. Então, comecei
a me perguntar: “Onde vi Jesus hoje?” Tive de descobrir a diferença
entre o que as pessoas normalmente seriam sem Jesus e no que elas se
transformavam por causa da presença dele. A presença de Jesus — a
única pessoa realmente autêntica que já existiu — é demonstrada na
restauração da autenticidade do ser humano. Ele está presente quando
vejo cristãos cujas vidas interior e exterior estão em sintonia.

Vendo Jesus em Cleveland


Quando procuramos por Jesus, vamos encontrá-lo nas situações mais
simples, como me aconteceu certa manhã na cidade de Cleveland, um
mês depois do episódio com essa cliente.
Meu amigo Jim me pegou às 6h l5m da manhã e fomos para um
estudo bíblico. Depois do estudo, devolvi o carro alugado e, durante
a viagem de ônibus até o aeroporto, conversei ao telefone com minha
esposa. Pouco depois, conversei com minha mãe.
Quando o Jim passou para me pegar, foi logo se desculpando por
não ter orado pela Kim na noite anterior. Durante o jantar, havíamos
conversado e orado rapidamente por minha filha. Dificilmente alguém
se desculpa por uma questão aparentemente tão simples, ou se interessa
por algo tão banal. Seu pedido de desculpas tinha o aroma de Cristo.
No estudo bíblico, os homens estavam lendo um livro escrito por
puritanos do século xvn sobre a perspectiva divina acerca do traba­
lho. Os participantes do estudo estavam levando a sério a exortação
de Jesus sobre edificar suas vidas sobre a rocha da obediência aos seus
mandamentos. O livro nem era assim tão envolvente, porém eu faço
uma ideia do que poderia acontecer se os políticos ou executivos en­
volvidos em escândalos recentes estudassem esse livro dos puritanos
sobre ética no trabalho!
Quando devolvi o carro alugado, o funcionário da locadora me
cumprimentou com um sorriso. Ao ler meu nome no recibo, o rapaz
comentou: “Seu nome é bíblico”. Em parte, ele estava dando uma es­
pécie de testemunho, mas ao mesmo tempo também estava tentando
descobrir um irmão em Cristo, bem como simplesmente demonstran­
do sua paixão pela Bíblia. A alegria e a fé exuberante daquele simples
funcionário não refletiam a aparente humildade de sua posição naquela
empresa. Mais uma vez, pude perceber ali a presença de Jesus.
Quando já estava no ônibus a caminho do aeroporto, a JilI me te­
lefonou. Ela estava rindo tanto que tive dificuldades de entendê-la. No
começo da semana, o motorista do ônibus escolar havia nos telefonado
para avisar que a Kim — que já estava no colegial nessa época — atra­
vessava a rua antes de o ônibus parar. Assim que ele diminuía a marcha,
a Kim atravessava a rua movimentada. Por causa do autismo, esperar
era algo difícil para ela.
Por isso, a Jill pegou um giz, desenhou um quadrado na calçada
em frente de casa e mandou a Kim ficar dentro dele, até o ônibus parar
completamente. Quando me telefonou naquela manhã, a Jill estava do
lado da Kim, debaixo da maior chuva, com uma caixa de giz na mão,
morrendo de rir daquela situação ridícula. Era um riso de fé, que se
alegrava na tribulação porque a tribulação era mesmo muito engraçada.
Mais uma vez pude ver também naquela situação a presença de Jesus.
Logo em seguida, enquanto eu caminhava pelo aeroporto, minha
mãe telefonou e descreveu em poucas palavras como havia sido acu­
sada falsamente em uma determinada situação, e depois me disse que
havia sentido a necessidade de perdoar seu ofensor de modo unilateral,
ainda que não houvesse a menor possibilidade de reconciliação. Não
contou os detalhes sórdidos; apenas fez uma reflexão íntima, em seu
próprio coração.
Percebi que Jesus estava por todos os lados, transformando aquela
manhã simples — estava no cuidado e nas desculpas de Jim, estava
no estudo e na obediência dos homens que participaram do estudo
bíblico, estava no testemunho e na amizade do rapaz da locadora de
veículos, estava no sofrimento e nas gargalhadas de Jill, estava no per­
dão e na atitude nobre de minha mãe. Cada uma dessas pessoas estava
demonstrando sua fé, sem máscaras. Com um pouquinho de reflexão
consciente fica fácil ver a beleza de Cristo.
Em vez de nos concentrarmos na falta de integridade das pessoas,
em sua dupla personalidade, vamos nos concentrar em como Jesus está
dando à igreja uma nova forma, para que ela se torne mais parecida
com ele. Precisamos ver o corpo de Cristo com os olhos da graça.
Paulo se regozija com a influência de Cristo na vida dos outros.
Esse é o cerne de suas orações. O apóstolo não demonstra um espíri­
to de gratidão generalizada; ele agradece por “pessoas” determinadas.
Paulo agradece até mesmo pela igreja atrapalhada de Corinto: “Sempre
dou graças a Deus por vós” (1 Co 1.4). A seguir, trata da permissividade
do incesto, dos processos de um irmão contra o outro e da bebedeira
durante a Ceia do Senhor! No entanto, por manter os olhos na obra
que Jesus está fazendo, Paulo não se deixa vencer pelo mal, mas vence
o mal com o bem. A bondade está sempre presente na vida de oração
de Paulo. Ele de fato vive o evangelho. Assim como Deus estendeu sua
graça a Paulo, Paulo também estende graça aos coríntios. Ele enxergava
a igreja através de lentes especiais banhadas no sangue de seu Mestre.
É evidente que os cristãos não são melhores do que os não cris­
tãos. Na verdade, Paulo afirma em 1Coríntios que a matéria-prima de
que são feitos os cristãos chega a ser pior do que a dos não cristãos.
Os próprios coríntios são prova disso! Os cristãos não são superiores a
ninguém, mas nosso Salvador é. Jesus faz toda a diferença. Ele está vivo
e agindo em sua igreja.

Olhando para frente


Até agora estudamos os fundamentos da vida de oração e aprendemos o
que significa ser como uma criança. A coisa que mais tememos — nossa
condição pecadora, vulnerável — é justamente a porta que nos leva ao
coração do Pai. Olhar para o mundo a partir de uma perspectiva satu­
rada de graça nos torna capazes de vencer o ceticismo e falar com o Pai,
restaurando em nós a simplicidade e o encantamento de uma criança.
Nosso ponto de vista até agora tem se voltado amplamente para o
nosso interior, para um exame do coração e das barreiras que, como o
ceticismo, nos distanciam do Pai.
Na Parte 3, estudaremos um ponto de vista mais voltado para o
mundo exterior e destacaremos a súplica. Passaremos do ser para o fa ­
zer, das minhas necessidades para as suas. Para ser equilibrada, a vida de
oração precisa dessas duas perspectivas. Também continuaremos a ver
como o ceticismo criou raízes na cultura dominante e insensibilizou
nossos corações para a possibilidade de uma vida de oração.
PARTE 3

APRENDENDO
A PEDIRÃO
PAI
C a p ítu lo 12

POR QUE É TÃO

EMILY, NOSSA FILHA CAÇULA, decidiu medir os níveis de conta­


minação por bactérias presentes nas margens de um riacho da cidade
para um projeto de ciências da sétima série. Eu estava dando uma
mãozinha a ela no projeto. Como primeiro passo, entramos no riacho,
recolhemos um pouco de água e, meticulosamente, fizemos o teste. Es-
távamos um pouco inseguros quanto ao rigor da execução dos passos
do projeto, então, decidimos orar antes de começar.
O histórico de nossa família em projetos de ciências não era lá dos
melhores. No ano anterior, a Emily mal conseguira tirar a nota mínima
em seu projeto, que consistira em treinar peixes para que comessem em
resposta ao estímulo da luz de uma lanterna. (Pavalov devia saber o que
estava fazendo quando usou cães e não peixes em suas experiências.) Um
pouco antes disso, a JilI havia doado o projeto de nosso filho Andrew a
uma instituição de caridade, achando que era um saco de coisas usa­
das, bem no dia anterior à data de entrega. Ela então passou o resto
daquele dia procurando o saco com as coisas do projeto dele nas caixas
da instituição, numa tentativa inútil de encontrar o projeto científico
do menino. Como dá para perceber, não há dúvidas de que precisamos
muito de oração nessa área.
Quando terminamos o primeiro teste, a Emily pegou o caderno de
ciências para anotar passo a passo o que havíamos feito. Ela me pergun­
tou o que fizéramos primeiro, e respondi que havíamos orado.
— “Não posso anotar isso.”
— “Por que não? Nós oramos, filha.”
— “Não é assim que a coisa funciona, pai. Eles não querem que
mencionemos isso.”
Emily havia estudado em escolas evangélicas desde o maternal.
Freqüentava a igreja e a escola dominical regularmente e nas férias
participava de acampamentos evangélicos. Todos os seus amigos eram
cristãos, assim como os irmãos, as irmãs, as tias e os tios. Para dizer
a verdade, a Emily vivia num mundinho cristão. Mesmo assim, esse
misterioso “eles” parecia superar a grande influência cristã em sua vida.
Assim como as culturas que surgiram por meio do comunismo
(tais como as da Rússia e China), a cultura ocidental (da América do
Norte e Europa) é a mais abertamente ateísta que já existiu. Entre mi­
lhares de culturas na história da humanidade, a nossa cultura (america­
na e europeia) é a única que não reconhece na arena pública a existência
de um mundo espiritual. Diante da visão de toda a história humana, a
cultura ocidental foge à regra.
Fazendo uma reflexão sobre o mundo antigo, N. T. Wright, aca­
dêmico bastante respeitado, escreveu: “A religião estava firmemente
entrelaçada em toda a estrutura social do mundo de então, como acon­
teceu em quase todas as épocas e em quase todos os lugares na história
da humanidade, com exceção de algumas partes do Ocidente nos dois
últimos séculos”.1 Se analisarmos a situação de um ponto de vista pu­
ramente antropológico, é estranho que os repórteres de televisão não
comecem seus programas com uma oração.2

1 N. T. Wright, The Crown an d the Fire. Grand Rapids: Eerdmans, 1992, p. 42.
2 Como exemplo dessa atitude em uma cultura não ocidental, podemos citar o fato de
que o imperador japonês ora publicamente em monumentos feitos em memória dos
espíritos dos soldados japoneses mortos na Segunda Guerra Mundial.
Como isso aconteceu? Se voltarmos o bastante no tempo, veremos
que esse “eles”, presente nas palavras de Emily, surgiu com o Iluminis-
mo do século xvm. Durante esse período da história, os intelectuais de
destaque resolveram que não precisavam mais de Deus. Como é mos­
trado no gráfico abaixo, pensadores como Kant dividiram o mundo
em sentimentos — coisas que são verdadeiras somente para mim — e
fatos — coisas que são verdadeiras para todos. Kant incluiu a oração e
a religião em meio a outras coisas sobre as quais também não podemos
ter certeza como, por exemplo, o amor, o certo e o errado.3
Essas coisas pertencem ao mundo sensível da opinião pessoal refle­
tido na metade superior do gráfico. Na metade inferior, estão as coisas
sobre as quais temos certeza, por exemplo, coisas materiais, como árvo­
res e carros. Essas coisas são vistas por todos e tidas como reais — como
verdadeiras para todo mundo.

MODO COMO A MAIORIA DAS PESSOAS ENXERGA O MUNDO

seníim enios
“tudo o que é verdadepara mim’ j
/ apeSSO
al ísfeta<s1\Cll(líÕ0
'CU'ar f „irH“ai' '\
Co‘*a> Livros d e fic ç ã o

FATOS
"tudo o que é verdade para todos" '

3 Nancy Pearcey, TotalTruth. Chicago: Crossway, 2004, p. 101-106.


A autora Nancy Pearcey resumiu da seguinte forma essa divisão
entre fatos e sentimentos: “A porção inferior se tornou o campo dos
fatos publicamente verificáveis, e a porção superior se tornou o campo
dos valores socialmente construídos”.4 Esta maneira de ver o mundo
chama-se secularismo. Quando colocamos Deus no mesmo nível de
sentimentos e opiniões subjetivas então Deus fica marginalizado. A ora­
ção parece algo estranho.
Antigamente só os professores universitários acreditavam no secula­
rismo, mas com o advento da televisão e a ascensão da cultura popular, o
Iluminismo invadiu nossas casas. Ele tomou conta do mundo ocidental,
obscurecendo nossa visão acerca do que o mundo realmente é. Agora
enxergamos um mundo plano, bidimensional, que relega Deus ao papel
secundário de alguém que nos encoraja, que nos faz sentir bem. A ora­
ção passou a ser algo particular e pessoal, e não algo público e real. Se
orar faz você se sentir bem, então ore pelos enfermos ou fale com Deus,
mas não leve a oração muito a sério nem a torne pública.
C. S. Lewis referia-se a essa cosmovisão iluminista quando disse:
“Quase tudo de que gostava (coisas como as que estão na porção supe­
rior do gráfico), eu acreditava ser imaginário; quase tudo o que acredi­
tava ser real (coisas como as que estão na porção inferior do gráfico),
eu achava deprimente e sem sentido”.5 Quando seu bom amigo J. R.
R. Tolkien lhe disse que o cristianismo era um “mito verdadeiro”, essa
afirmação uniu em si duas grandes buscas de Lewis: a busca pela beleza
e a busca pela verdade.6

O poder do Iluminismo
Antes do Iluminismo, os primeiros cientistas ocidentais relatavam em
suas anotações que oravam. Johannes Kepler, o astrônomo dinamarquês

4 Pearcey, p. 106.
5 C. S. Lewis, Surprised by Joy. Nova Iorque: Harcourt, 1955, p. 170. [Publicado em
potruguês pela Editora Mundo Cristão sob o título Surpreendido pela alegria.]
6 Walter Hooper, C. S. Lewis: A Complete Guide to His Life & Works. Nova Iorque:
HarperOne, 1998, p. 583.
que descobriu as leis sobre o movimento dos planetas, anotou que esta­
va “pensando os pensamentos do próprio Deus”.7 Era comum Newton
e outros cientistas darem glórias a Deus em seus escritos.
Ironicamente, a ciência moderna só é possível porque o cristia­
nismo ensinou que Deus criou um mundo separado dele mesmo. Se o
mundo é algo separado, então podemos investigá-lo.
Algumas culturas antigas foram incapazes de investigar o mun­
do de forma mais séria porque seus deuses eram inseparáveis do mun­
do. Por exemplo, Baal, o deus dos cananeus, é o deus do trovão e da
tempestade. Quando troveja, estamos ouvindo a Baal. Se o trovão é o
próprio Baal, então não existe nada a ser investigado. Esses deuses se
confundem com o mundo.
Até mesmo os gregos antigos, que pareciam ter mais intimidade
com a ciência do que qualquer outro povo, não se tornaram cientistas
de verdade por suspeitarem que a matéria era o caos. Faltava-lhes a vi­
são judaico-cristã que acredita que Deus criou um mundo separado de
si mesmo, tendo a sabedoria por companheira (veja Pv 8.22-31).
O secularismo é uma crença de caráter religioso que é fruto da arro­
gância em relação às conquistas humanas, em particular, às descobertas
científicas. Ele se faz passar por ciência ou realidade, opondo-se à religião,
à qual atribui o status de opinião. O secularismo reivindica ter-nos brin­
dado com a ciência quando, na verdade, esse papel coube ao cristianismo.
Gostaria de fazer uma demonstração rápida do poder do Iluminismo.
Quase todas as faculdades americanas mais conceituadas, assim
como algumas centenas de universidades, foram fundadas como insti­
tuições cristãs. No entanto, sob a influência do secularismo, acabaram
deixando de lado a fé cristã. O mesmo aconteceu com a fé judaica
ortodoxa. Ela sobreviveu às tentativas de extermínio pelas mãos de
faraó (Moisés), dos filisteus (Davi), dos sírios (Elias), dos babilônios
(Daniel), dos persas (Ester) e dos samaritanos (Esdras). Sobreviveu aos

7 Todos atribuem a citação a Johannes Kepler, mas a fonte é desconhecida.


gregos durante a época dos macabeus, à destruição romana de Jerusa­
lém em 70 d.C., e ao êxodo forçado da Palestina em 135 d.C. Sobre­
viveu ao Islamismo, às Cruzadas, à Inquisição Espanhola, aos czares
russos e à “solução final” de Hitler. Porém, o judaísmo ortodoxo quase
não sobreviveu ao Iluminismo. Não passa de uma sombra do que foi,
tendo conservado apenas de 10 a 15 por cento do judaísmo.
O ponto de vista do Iluminismo marginaliza a oração, pois não
acredita que Deus se comunique com o mundo. Você pode até ter um
deus local e pessoal, desde que o mantenha fora de suas anotações cien­
tíficas e não o leve a sério.

Primeiro, a oração é definida como algo artificial, e depois soa artificial.

Peter Jennings, que foi âncora da rede de televisão ABC nos Esta­
dos Unidos, costumava dizer aos repórteres: “Quando perguntarem a
alguém: ‘O que tirou você dessa crise?’, e a pessoa responder, ‘Deus’, ja­
mais retruque: ‘Deixe de brincadeira, vai. O que de fato ajudou você?”’8
Jennings tinha consciência de que a densa névoa do Iluminismo tentava
nossas elites culturais a desprezar o valor da oração e da ação de Deus.
Charles Malik, grego ortodoxo, filósofo, teólogo e diplomata, des­
creve com muita percepção o espírito do Iluminismo:

N ada pode estar mais distante nem ser mais estranho à índole do ser
hu m ano atual do que o clam or angustiado de D avi: “C lam o a ti desde
a extrem idade da terra; m eu coração está abatido; leva-m e até a rocha
que é m ais alta d o que eu .” O ser h u m ano atual não reconhece tal
rocha, e essa é a fo n te de toda sua alienação e tragédia.9

8 “Interview with Peter Jennings," Beliefnet.com, http://www.beliefnet.com/Faiths/


2000/06/Interview-With-Peter-Jennings.aspx.
9 Charles Malik, The Wonder o f Being.W aco: Word, 1974, p. 94.
A raiz moderna do ceticismo
O Iluminismo não afirm a que a religião não é real. Ele a define como algo
que não é real. E uma vez que foi definida como algo que não é real, ela
náo pode ser discutida. Se acrescentarmos a essa estrutura secular de rea­
lidade nossa incapacidade de seguir a Jesus, teremos artificialidade pura.
Primeiro, a oração é definida como algo artificial, e depois soa artificial.
Quando nossos filhos se deparam com os atrativos do mundo na
adolescência, para eles fica fácil dizer que “esse papo sobre Deus” é pura
bobagem, pois esse papo foi relegado a um mundo irreal. Por isso, mi­
nha filha Emily, de doze anos, sentiu instintivamente que vivia em dois
mundos: o mundo de Deus e o mundo real. Quando esses mundos se
encontraram, ela tentou mantê-los separados, pois estava respirando os
ares da cultura.
O secularismo tem uma visão cética da realidade. Segundo essa vi­
são, o amor, por exemplo, como não é algo que possa ser quantificado,
fica relegado à porção superior do gráfico, destinada à categoria dos sen­
timentos. Quando se demitiu da presidência do seminário para cuidar da
esposa doente, Robertson McQuilkin participou de uma palestra cujo
preletor afirmou que a dedicação do ex-presidente à esposa enferma era,
na verdade, sentimento de culpa.10 O preletor não tinha uma categoria
para o amor. Esse é um exemplo perfeito da visão limitada que o Ilumi-
nismo tem da realidade. O amor, esse ideal que todos buscam, não faz
parte de nenhuma categoria levada em conta entre os cientistas sociais.
No entanto, existe algo de muito errado com uma perspectiva de mundo
que não consegue explicar os elementos mais fundamentais da vida.

Uma criança ora no mundo secular


Em um artigo escrito para a revista The New York Times, Dana Tierney
relata como ela e o marido, John, jornalista do The New York Times,

10 Robertson McQuilkin, “Muriel's Blessing”, Cbristianity Today, (5 de fevereiro de


1996); p. 33.
abandonaram a fé que seguiam desde crianças. A concessão máxima
do casal foi batizar o filho Luke, para apaziguar suas famílias, mas só
foram até aí.
Quando John foi para o Iraque com a tarefa de escrever reporta­
gens sobre o dia a dia dos soldados, Dana ficou com muito medo, o
que é compreensível, mas se surpreendeu com a calma de Luke, então
com quatro anos. Dana creditou essa calma à inocência da criança,
até o dia em que viram na televisão o casamento de um soldado que
havia retornado do Iraque. Imaginando que algo assim não causaria
nenhum temor excessivo em Luke, Dana permitiu que o filho assistisse
ao programa com ela. A certa altura, o soldado falou sobre seu medo
de retornar ao Iraque. Por um breve instante, Dana viu Luke juntar as
mãos em oração. Quando a mãe perguntou o que ele estava fazendo,
o menino respondeu imediatamente “nada”, mas depois, ao repetir o
gesto, confessou que estava orando.
Dana ficou atônita, em parte pela fé do pequeno Luke, e em
parte por ver como essa fé lhe permitia ficar calmo, enquanto sua
própria falta de fé enchia o coração dela de medo. Dana também
ficou envergonhada ao notar que o filho, de apenas quatro anos, sabia
instintivamente que orar pelo pai era visto como algo socialmente
inapropriado.
Como Luke foi criado para ter comunhão com Deus, orar para
ele era algo natural. O menino não sabia que há dois séculos atrás Kant
havia dividido o conhecimento em duas esferas diferentes, a pública e
a particular, marginalizando assim a oração. Quando Luke se tornou
consciente de sua própria cultura, também entendeu que não podia
orar na frente da mãe.
Sob a influência do Iluminismo, a cultura atual excluiu a oração
e a religião da arena das discussões. Isso faz com que Emily não relate
em suas anotações científicas que orou, e Luke junte as mãos em oração
disfarçadamente na presença da mãe.
No entanto, o fato de Dana ter escrito o artigo é sinal de que ventos
pós-modernos andam soprando por toda a sociedade em que vivemos.
A ciência está começando a perder seu status quase divino.
Dana perguntou a Luke quando ele começou a acreditar em Deus.
“Sei lá. Sempre acreditei que ele existe”. Ao contrário de muitos de
nossos intelectuais influentes, Dana não desdenha os cristãos. Em seu
artigo, ela explica que muitos de seus amigos que não são religiosos
se sentem libertos da religião como se tivessem se livrado de uma su­
perstição. Não é o caso de Dana. Ela sente que está perdendo algo. Ao
observar seus amigos religiosos, ela percebe que eles “tem um entusias­
mo de espírito. Quando caminham ao longo de um riacho, não veem
apenas água correndo sobre pedras; o cenário os deixa extasiados. Eles
enxergam um reino de esperança que vai além deste mundo. Eu só vejo
um riacho borbulhante. Não capto a mensagem”.11
A observação que a Dana fez sobre os cristãos — esse deslumbra­
mento deles diante da natureza — é a própria razão de a ciência existir.
Quem concebe o riacho como um resultado acidental das forças da
natureza só enxerga água, pedras e terra. Quem defende que o riacho é
Deus adora o deus riacho, e não o criador do riacho. Mas quem acredi­
ta que Deus criou o riacho, tem como reações naturais a admiração e a
curiosidade que, por sua vez, nos levam à pesquisa.
Em sua crítica à cosmovisão do Iluminismo, Charles Malik, o “C.
S. Lewis” grego ortodoxo, afirmou que o segredo de vermos Deus atrás
de todas as coisas está em nos tornarmos crianças novamente — em nos
tornarmos como o pequeno Luke.

Só conseguiremos ver o Deus além da criação se nos tornarmos como


“bebês e crianças de peito”. Assim com o as crianças — que ao contrário
dos principais sacerdotes e escribas — exclamaram “Hosana ao Filho

11 Dana Tierney, “Coveting Luke's Faith,” The New York Times M agazine (11 de ja­
neiro de 2004).
de Davi”, quando viram Jesus em forma humana no templo, nós tam ­
bém, se nascermos de novo e nos tornarmos com o elas — intuitivas,
puras, simples, diretas, receptivas, abertas — conseguiremos passar da
criação ao Criador (...) Com isso, quero dizer que o coração tem cer­
teza absoluta de que, além de tudo isso que vemos (...) existe Alguém
que criou o mundo e continua a sustentá-lo. A “força” que os bebês e
as crianças na fé demonstram por meio da declaração simples, direta e
resoluta, envergonha a força dos inteligentes e poderosos.12

Essa atitude de se maravilhar diante do universo também estava


presente no coração da ciência de Einstein. Ele estava totalmente fora
de sintonia com o espírito da era moderna, quando escreveu: “Um es­
pírito se manifesta nas leis do universo — um espírito vastamente supe­
rior ao do homem; um espírito diante do qual nós, com nossos poderes
modestos, devemos nos humilhar”.13
Como este mundo pertence a meu Pai, quando eu e Emily nos
ajoelhamos ao lado do riacho para fazer uma experiência científica, tí­
nhamos de orar e pedir sua ajuda. Este mundo é uma união perfeita de
pensamento e sentimento, material e espiritual, público e pessoal. Este
é o mundo de meu Pai.
E por falar em pai, o pai do Luke voltou são e salvo do Iraque, e o
projeto de ciências da Emily ficou em primeiro lugar na feira de ciên­
cias da região e também na do estado.

12 Malick, p. 69.
13 Albert Einstein, “Einstein to Phyllis Wright”, 24 de janeiro de 1936, AEA 52-337,
citado em Walter Isaacson, Einstein: His L ife an d Universe. Nova Iorque: Simon &C
Schuster, 2007, p. 388.
C a p ítu lo 13

P OR QUE PODEMOS
PEDIR?

CERTA VEZ FUI A Londres dar um curso sobre oração numa igreja
composta de pessoas que haviam sido hindus, muçulmanas e siques.
No domingo de manhã, após o curso e logo no começo do culto,
Asha, uma senhora que havia sido hindu, se aproximou de mim e per­
guntou se eu poderia orar por sua neta de doze anos, que não se dava
bem com os pais e queria morar com ela. Respondi: “Claro. Vou orar
por sua neta”. Asha entrou discretamente no culto, pegou a neta e fez
sinal para que eu entrasse numa sala ao lado, e ali orasse pela menina.
Depois da oração, voltamos para o culto. A coisa toda não levou mais
que uns dois minutos.
Nos Estados Unidos, poucas pessoas se aproximariam de um pas­
tor visitante, a quem tivessem acabado de conhecer, e pediriam a ele
que orasse por sua neta, bem ali, na mesma hora. Um comportamento
assim pareceria inconveniente, egoísta, impróprio. Nossa visão de ora­
ção como algo particular e pessoal nos impede de chamar alguém para
orar num canto.
Alguns de nós até se aproximariam do pastor visitante para pedir
um conselho. Estaríamos prontos a admitir nossa falta de conhecimen­
to; contudo, jamais pensaríamos que o pastor tivesse acesso ao poder
divino. Mesmo porque, para nós, isso não faria a menor diferença, pois
confiamos na ciência, e não em Deus. A questão do poder — da ca­
pacidade de fazer diferença, de mudar alguma coisa — é o que está no
centro de um pedido de oração.
A cultura de Asha nunca havia lhe ensinado que a oração é um ato
particular e pessoal, e foi por isso que, publicamente e sem se envergonhar,
ela buscou o poder de Deus para resolver o dilema que estava passando.
Por não ter sido contaminada pelo Iluminismo, e por estar ciente de que
“este mundo é do meu Pai”, ela não hesitou em me pedir que orasse.
Asha trazia na mente outra ideia que não é ocidental, a de que
algumas pessoas têm mais poder diante de Deus. Qualquer asiático
dirá que isso é verdade. Os africanos concordam com essa ideia, assim
como os latino-americanos. Os únicos que não concordam com ela
são os americanos e europeus. Reconhecemos essa diferença de “poder”
em outras áreas da vida. Por exemplo, aceitamos que alguns consulto­
res financeiros e médicos sejam melhores que outros. Porém, em nossa
sociedade igualitária, nem nos passa pela cabeça a ideia de que isso
também seja verdade no mundo espiritual.
Porém, ao contrário do que acontece no caso dos especialistas aci­
ma mencionados, o poder da oração resulta de admitirmos nossa fra­
queza. Para nos ensinar a orar, Jesus contou histórias de pessoas fracas,
pessoas que sabiam ser impossível viver apenas por suas próprias forças.
A viúva insistente e o amigo que procura por pão à meia-noite conse­
guem ser ouvidos não por serem fortes, mas por estarem desesperados.
Um sábio desespero encontra-se no cerne da vida de oração.

Um Deus infinito e pessoal


Asha acredita que o Deus infinito está pessoalmente envolvido nos de­
talhes de sua vida. O conceito de um Deus infinito e pessoal é tão
espantoso que temos dificuldade em entendê-lo. O mundo atual aceita
um Deus infinito, desde que ele não chegue muito perto, que ele fique
fora das anotações científicas. Já as culturas não ocidentais acatam bem
a ideia de que Deus seja pessoal, mas duvidam que seja infinito. É por
isso que as batalhas entre as nações antigas eram quase sempre vistas
como uma luta de poderes entre os diferentes deuses.
Os sírios acharam que perderam a batalha contra Israel nos montes
porque estavam no lugar errado, longe do centro do poder do deus de­
les. Explicaram ao rei: “Seus deuses são deuses dos montes, por isso eles
foram mais fortes do que nós; mas lutemos com eles na planície e cer­
tamente seremos vitoriosos” (lR s 20.23). Assim, transferiram a batalha
para a planície, onde acreditavam que seu deus era mais forte. Os sírios
não duvidavam que o Deus dos israelitas fosse verdadeiro e pessoal.
Só duvidavam que fosse infinito. Mas se esqueceram de avisar o Deus
de Israel. Ele venceu a batalha na planície, assim como a vencera nos
montes. Os sírios encontraram pela frente o Deus infinito e pessoal.
Davi retrata esse Deus pessoal e infinito na primeira frase do salmo 23:
“O Senhor (infinito) é meu pastor (pessoal)”. Em todo o Oriente Pró­
ximo não havia nada parecido com essa imagem de intimidade. Às ve­
zes um rei era descrito como o pastor de seus súditos, porém os deuses
nunca se interessavam por “mim, em minha humilde insignificância”.
Os pronomes meu e me ecoam treze vezes por todo o salmo. Esse é um
Deus infinito que tem interesse em mim.

"O Senhor

(pesso a l)
Também vemos esse mesmo deslumbramento em Salomão, na
oração que ele faz para a dedicação do templo, quando pensa no Deus
infinito que habita pessoalmente entre nós. “Mas, na verdade, habitaria
Deus com os homens na terra? Nem o céu e os céus dos céus podem te
conter; muito menos este templo que te edifiquei!” (2Cr 6.18). Por ser
infinito e pessoal, Deus ouvirá “o clamor e a oração que teu servo faz
diante de ti” (6.19).

O Deus do universo
( in f in it o )
•*--------------------------------------►

habita entre nós


(p e s s o a l )

Isaías também se maravilha com o fato de Deus habitar “num lu­


gar alto e santo (infinito), e também com o contrito e humilde de espí­
rito (pessoal)” (57.15).
Majestade e humildade formam um par estranho. É por isso que
lutamos tanto com a oração. Simplesmente não achamos que Deus se
preocupa com os detalhes insignificantes de nossas vidas. Achamos que
ele é grande demais ou que não temos importância nenhuma. Não é
de admirar que Jesus tenha mandado que fossemos como crianças! As
crianças não se intimidam com o tamanho de seus pais. Achegam-se a
eles, e pronto.
"Eu habito num
lugar alto e santo,

com o contrito e
humilde de espírito"
(p e s s o a l )

Einstein lutou com a peculiaridade de um universo que reflete


esse Deus infinito e pessoal. Por um lado, falava sempre a partir de
uma perspectiva iluminista, que vê Deus como algo impessoal e dis­
tante. Certa vez, uma garota de onze anos que freqüentava a escola
dominical perguntou a Einstein: “Os cientistas oram?” Ele respondeu:
“Dificilmente um cientista vai acreditar que as orações influenciam os
acontecimentos”.1 Por outro lado, Einstein com frequência se referia a
Deus de modo pessoal. Quando debateu com Niels Bohr sobre a teo­
ria quântica, Einstein disse: “Deus não joga dados”. Em sua biografia
de Einstein, Walter Isaacson afirmou que suas freqüentes referências
a um Deus pessoal eram genuínas. “Não era o estilo de Einstein usar
de meias palavras só para parecer que concordava (...) Vamos lhe dar

1 Albert Einstein, “Einstein to Phyllis Wright,” 24 de janeiro de 1936, AEA 52-337,


citado em Walter Isaacson, Einstein: His Life an d Universe. Nova Iorque: Simon &
Schuster, 2007, p. 388.
a honra de acreditar em suas palavras.”2 Na verdade, Einstein afirmou
que sua ciência era impelida pela crença num “Deus que revela a si mes­
mo na harmonia de tudo o que existe” (ênfase acrescentada).3
Mas nós não queremos Deus muito perto, especialmente se ele for
um Deus que não podemos controlar. Desde o princípio, temos medo
de caminhar com Deus no jardim, nus, totalmente despidos. Ansia­
mos por intimidade, mas quando ela acontece, nós nos afastamos com
medo de um Deus que é pessoal demais, puro demais. Ficamos mais à
vontade com Deus à distância.
A vida de oração se abre para um Deus infinito que busca as pes­
soas. Porém, como veremos, isso não acontece sem abrirmos mão do
controle, sem nos rendermos constantemente a Deus. “Seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.10) é algo que nos dá
muito medo.

Um sábio desespero encontra-se no cerne da vida de oração.

1 Isaacson, p. 389-
3 Albert Einstein, “Einstein to Herbert S. Goldstein,” 25 de abril de 1929, AEA 33-
272, citado em Walter Isaacson, Einstein: His Life an d Universe. Nova Iorque: Simon
& Schuster, 2007, p. 551.
C a p itu lo 14

O QUANTO DEUS

HÁ POUCO TEMPO LI um livro sobre oração que seria excelente,


não fosse o fato de o autor ter sugerido que não devemos orar por coi­
sas triviais, tais como arrumar uma vaga no estacionamento. Segundo
ele, pedidos assim parecem egoístas. Mal pude esperar para contar isso
a minha mãe, Rose Marie Miller.
Na ocasião, ela estava na Filadélfia para o casamento de um de seus
vinte e quatro netos. Minha mãe, à época com oitenta e dois anos, era
missionária em tempo integral em Londres. Depois de criarem cinco
filhos com o minguado salário de pastor, meus pais foram proclamar o
evangelho nas favelas de Uganda e nas ruas de Dublim. Nesse período,
além de discipular mulheres do sul da Ásia, minha mãe estava fazendo
amizade com taxistas, vindos dessa mesma região e que agora moravam
em Londres, com o propósito de falar de Cristo para eles.
Nós dois saímos para tomar um café, e quando lhe contei o que
esse autor a quem me referi achava de orar por vagas de estacionamen­
to, ela se mostrou surpresa, jogou a cabeça para trás, começou a rir e
perguntou: “De que outra maneira você encontra um lugar para esta­
cionar? Em Londres, quando estou com meus netos no carro, eles sem­
pre pedem: ‘Vovó, a senhora pode orar para a gente achar uma vaga?’”
A resposta dela me fez lembrar do episódio em que Sara riu com a
bondade de Deus, quando ele a surpreendeu com um filho. O presente
de Deus havia transformado na mais pura alegria o riso incrédulo que
ela havia dado um ano antes.
Recentemente minha mãe encontrou uma carta que ela havia es­
crito de Kampala, Uganda, em dezembro de 1979, pouco depois que o
ditador Idi Amin fugiu do país. Meus pais estavam em Uganda, moran­
do no oitavo andar de um hotel velho, pregando o evangelho e fazendo
o que podiam para ajudar o povo dali. A coleta de lixo havia parado
na cidade. Juntamente com um grupo de ugandenses, meus pais en­
contraram um caminhão de lixo e começaram a compartilhar o amor
de Deus, enquanto ajudavam a recolher o lixo. Na carta, minha mãe
descreve um dia típico de sua vida lá:

“N ão existem palavras que possam exprimir o caos quase absoluto de


um país depois de oito anos de uma guerra civil brutal. Q uando usa­
mos o banheiro, se tivermos sorte, a descarga funciona; se não, você
tem que usar uma mangueira de água, que fica no fim do corredor;
se chegar tarde, vai descobrir que outros já usaram a mangueira — e,
então, você aprende a orar p ed in d o água. Se a água chegar no meio da
noite, você enche a banheira para se lavar de manhã...

Passamos em frente de prédios bombardeados. Passamos por ruas


cheias de escombros, orando enquanto cam inham os para que ninguém
nos roube a carteira...

Conhecem os alguns asiáticos no hotel. Eles se mostraram bastante in­


teressados em nosso projeto de tecelagem, e se ofereceram para parti­
cipar: “Gostaríamos de ajudar a levar o material, mas não temos meios
de transporte”, e então oram os d e novo p o r isso...

A tentação de ficar olhando para nós mesmos e nossas terríveis limi­


tações é grande. Às vezes, chego a orar. “Senhor, acho que não vou
sobreviver a mais este dia” (ênfase acrescentada).
Esta é a mesma mulher que ora pedindo a Deus por uma vaga para
estacionar. Afinal, como ela mesma disse, de que outra maneira você
encontraria uma vaga?

Uma perspectiva sem ligação com a vida real


Alguns teólogos acham que não devemos orar por uma vaga de esta­
cionamento, pois isso significa que outra pessoa vai ficar sem vaga. Um
desses escritores mais “espirituais” afirmou: “Se uma pessoa notar um
carro de bombeiro vindo pela rua, e orar: ‘Senhor, que não seja a minha
casa’, está fazendo uma oração deplorável, pois espera que seja a casa de
outro que esteja pegando fogo. Seria melhor orar: ‘Senhor, que seja a
minha casa, mas que ninguém saia ferido’”.1
Quando contei isso para a Jill, ela deu risada. Coisas inesperadas
podem acontecer quando a Kim fica sozinha em casa. Então, sempre
que a Jill ouve uma sirene, ela ora para que não estejam indo para nossa
casa. Tempos atrás, no meio do inverno, alguém estava nos ajudando
com a Kim. Lá pelas tantas, a pessoa resolveu dar uma saidinha rápida,
mas não disse a Kim quando voltaria. A menina entrou em pânico e
começou a andar pela rua, chorando e procurando essa pessoa. Quando
um vizinho me telefonou, corri para casa. Ao virar a esquina de casa,
dei de cara com dois carros de polícia bloqueando as duas pontas da rua
com tochas acesas. E lá estava a Kim, no meio da confusão, sem casaco
nem sapatos, quase histérica.
Quando a Jill ora para que nossa casa não pegue fogo está agindo
com simplicidade, como uma criança. Está sendo honesta com Deus
sobre o que se passa em seu coração. É por isso que as pessoas oram.
Deus vai impedir que algo aconteça em nossa família? Não sei. O
que aconteceria se nossa casa pegasse fogo? Não sei. Figurativamente
falando, nossa casa pegou fogo com o nascimento da Kim. Percebemos

1 John Westeroff, Spiritua.1 Life: The Foundation fo r Preaching an d Teaching. Louisville:


Westminster John Knox, 1994, p. 63.
logo que “essa casa em chamas” seria uma bênção. Deus tinha uma casa
melhor para nós. Tínhamos que nos desligar da antiga casa. Eu e a JilI
oramos, pois ficamos impotentes diante das surpresas da vida. Quando
oro por um problema, ele começa a brilhar com a energia de Deus. E
coisas estranhas acontecem.

Se quiser entrar nessa dança divina que chamamos


de oração, então terá que abrir mão do desejo de estar no
controle, de descobrir como a oração funciona.

Aquele escritor “espiritual”, que diz que não devemos orar para
que a casa em chamas não seja a nossa, transformou a oração em um
jogo no qual um lado tem que perder para o outro ganhar. Um carro de
bombeiro na rua não significa necessariamente que uma casa esteja em
chamas. Há outras possibilidades. Talvez um gato esteja preso em cima
de uma árvore. Talvez alguém tenha se machucado. A raiz da questão é
que o escritor espiritualizou demais a oração. Ele se rende a Deus com
tanta rapidez que desaparece como pessoa. Quando Jesus, no Getsêmani,
ora “afasta de mim este cálice”, está sendo autêntico. Os cristãos passam
apressadamente para o “não seja feita a minha vontade, mas a tua”,
sem antes derramar seu coração diante de Deus (Lc 22.42). Rendem-se
com tamanha pressa que desaparecem. Espiritualizar demais a oração
é reprimir o desejo natural de que não seja a nossa casa pegando fogo.
E quando deixamos de ser nós mesmos com Deus, nossa conversa com
ele deixa de ser honesta.
O pensamento desse escritor tem raízes no neoplatonismo, uma
corrente de pensamento da Grécia antiga que tirou a ênfase do mun­
do físico. Os estoicos gregos se orgulhavam da capacidade de não se
deixarem perturbar diante da vida; Sócrates, imperturbável, bebeu o
cálice de veneno que lhe fora dado pelos carrascos. O neoplatonismo se
infiltrou dentro da igreja, fazendo da espiritualidade um sinônimo de
repressão de desejos e emoções. É por isso que, em muitos filmes, Jesus
é retratado como um homem estranho e meio afeminado. Ele caminha
a passos lentos, fala pausadamente e se move bem devagar. Dá até von­
tade de lhe dar uma espetada com um alfinete.
Agostinho, um dos mais importantes pais da igreja, foi influen­
ciado por essa filosofia. Ele escreveu: “Nada peçam a Deus, exceto ele
mesmo”.2 Agostinho tinha razão em metade do que disse. Jonathan
Edwards e seu discípulo John Piper nos lembram que o melhor pre­
sente que recebemos de Deus é ele mesmo. Porém “nada peçam a
Deus” é uma perspectiva sem ligação com a vida real. Deixe-me
explicar isso melhor.
Imaginemos um marido que ame muito a esposa. Ele supre suas
necessidades. Ouve o que lhe vai no coração. Ele é o maior presente que
ela tem neste mundo. Como ela reagiria se o marido lhe dissesse: “Não
peça nada a mim. Sou seu melhor presente”. Quando apresento esse
quadro em meus cursos de oração, os participantes caem na gargalhada.
O amor do marido pela esposa não o desobriga de responder de modo
prestativo e generoso a seus pedidos. Se separarmos nossas necessidades
neste mundo (o fazer) da dádiva maior de Deus — de sua presença
amorosa (de seu ser) — estaremos espiritualizando demais a oração.
Se não pedirmos nada a Deus, ficaremos à deriva num mundo de
maldades. Uma atitude dessas talvez pareça espiritual porque tem um
certo ar de desprendimento, mas não é bíblica, pois separa o mundo
real, o mundo dos nossos desejos, do mundo de Deus. E assim o reino
não poderá vir porque estará pairando no ar, distante de nós.
Ao desacreditar os mundos físico e espiritual, o neoplatonismo
agiu do mesmo modo que o Iluminismo. A única diferença é que o

2 Agostinho, citado em Donald G. Bloesch, The Struggle ofPrayer. Colorado Springs:


Helmers and Howard, 1988, p. 75. Outra versão possível é “Ama-se a Deus gratuita­
mente; não se pede mais nada. Aquele que pede outra dádiva a Deus faz daquilo que
deseja uma dádiva mais preciosa do que o próprio Deus. A dádiva de Deus é o próprio
Deus” (Agostinho, Enarr, em Salmo 72, 32; P. L. 36, 923).
primeiro valorizou o mundo espiritual e o segundo valorizou o mundo
físico. Portanto, a igreja é influenciada pelo neoplatonismo (o mundo
físico não é importante) e o mundo é moldado pelo Iluminismo (o mun­
do espiritual não é importante). Essas duas perspectivas reprimem a
oração honesta, de caráter pessoal, na vida da igreja.
Nos últimos tempos, a inclinação da igreja para uma espiritualida­
de que nada tem de natural tem sido bastante influenciada pela aceita­
ção da espiritualidade budista em nossa cultura. Segundo o budismo, a
pessoa se torna iluminada e alcança o nirvana quando para de desejar.
Assim, os monges budistas repetem seus mantras mecanicamente para
si mesmos, numa tentativa de se tornarem um com o todo. O objetivo
deles é reprimir todo o desejo.
Jesus não poderia ter sido mais diferente disso. Basta ler os evan­
gelhos para encontrar um homem sensível e entusiasmado com a vida.
Graças a Deus temos um Salvador ligado ao mundo real, que ora para
não beber do cálice da ira de seu Pai, que clama da rude cruz de ma­
deira: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (M t 27.46).
Jesus não reprimiu seus sentimentos nem permitiu que eles o dominas­
sem, pois é autêntico.
Portanto, é perfeitamente natural orarmos: Senhor, ajude a pessoa
cuja casa está pegando fogo; mantenha todos sãos e salvos, e, p o r favor, que
a casa em chamas não seja a minha. Estamos sendo honestos quanto ao
que desejamos e, ao mesmo tempo, amorosos com o próximo. Se esti­
ver naufragando no Titanic, você ora, Senhor, me arranje um bote salva-
vidas, e então se esforça para ajudar os outros a entrar no bote. Desejo
e rendição é o que dá o equilíbrio perfeito à oração.

Pijama e leite
Minha primeira experiência com uma resposta de oração foi incen­
tivada por minha mãe, quando eu tinha nove anos de idade e estava
precisando de um pijama. Havíamos acabado de mudar do interior
da Califórnia para São Francisco, onde meu pai conseguiu emprego
de jornalista em uma fundação. O preço de moradia nos pegou de
surpresa, e nossa família de sete pessoas teve que se espremer em um
bangalô de dois quartos, ao sul de São Francisco. Por causa da falta de
espaço, eu dormia numa cama estreita de lona, na varanda da casa, que
ficava de frente para as colinas. Achava o máximo, pois meu sonho era
ser guarda florestal. O único problema é que a varanda não era coberta.
Minhas irmãs trancavam a porta à noite, e quando chovia, nem sempre
me escutavam chamar. Com o tempo, descobri que poderia dormir na
chuva se deitasse em um dos lados da cama, e deixasse a água empoçar
no meio da lona. Só precisava ter cuidado para não rolar para o meio da
cama. No inverno, eu ia para dentro de casa e dormia num espaço bem
apertado, que ficava no corredor, embaixo da clarabóia. Ter um pijama
para usar, portanto, era algo de suma importância para mim.
Quando disse à minha mãe que precisava de um pijama, ela su­
geriu que eu orasse pedindo um. E orei. Dentro de uma semana, um
pijama vermelho, enviado por amigos, chegou pelo correio. Duas se­
manas depois, recebi outro pijama pelo correio. É a mais pura verdade.
Não me lembro de ter ganhado nunca mais pijamas de presente, nem
antes nem depois dessa época. Minha resposta de oração fora tão clara,
tão rápida, que não podia ser ignorada. Deus se preocupa com coisas
como pijamas.
Ele também se preocupa com coisas simples como despejar leite
numa tigela de cereal. Todas as manhãs, na hora do café, oro silen­
ciosamente enquanto a Kim despeja leite na tigelinha de cereal. Sua
visão monocular lhe tirou a percepção de distância; por isso, para ela,
mirar um ponto é algo difícil. Assim que ela começa a despejar o leite
na tigela, a deficiência motora a impede de parar, e como não gosta de
palpites, não obedece quando a mando parar. O resultado é a mais pura
expectativa, todos os dias. A JilI normalmente sai da cozinha quando a
Kim aparece com o litro de leite. Deus se preocupa com coisas simples
como despejar o leite em uma tigela. Ele sempre está ali, presente em
nossas vidas.
Será que isso quer dizer que todos devemos orar quando estiver­
mos despejando leite numa tigela? Claro que não. Espero que a essa
altura da vida você tenha aprendido a encher um copo ou uma tigela
com leite! Saber fazer isso não é uma necessidade para você. Mas é para
a Kim, e por isso oramos. Não somos mais espirituais por isso; essa é
apenas mais uma das pequenas jornadas de oração que eu e a Kim per­
corremos todos os dias.

Um momento de encarnação
A maravilha de um Deus infinito e pessoal é revelada na encarnação,
mais do que em qualquer outro acontecimento. Nada poderia nos pre­
parar para o nascimento de Deus: um bebê judeu, rechonchudinho,
cabelos escuros e encaracolados, nascido no outono ou inverno do ano
5 a.C., numa gruta de pastores de ovelhas que ficava na encosta de uma
colina, na cidade de Belém, na província romana da Judeia, situada no
oeste da Ásia. É algo tão sem igual que confunde a mente. É como se
Deus tivesse achado uma vaga para estacionar, um lugar e um tempo
específicos onde seu amor tocaria o mundo.
A oração é um momento de encarnação — é Deus conosco. É
Deus envolvido nos pormenores da minha vida. Li outro livro sobre
oração que seria nota dez, se o autor não tivesse dito que o objetivo
principal da oração é nós nos aproximarmos de Deus, e não Deus res­
ponder às nossas orações. Como exemplo, o autor menciona que “na
época em que a taxa de mortalidade infantil era alta, as mães oravam
desesperadamente para que seus filhos não morressem na infância. A
medicina moderna deu fim a essas orações no Ocidente”.3 Pode ser.
Mas também pode ser que a medicina moderna tenha se desenvolvido

3 James Houston, The Transforming Power o f Prayer. Colorado Springs: NavPress,


1996, p. 27,37.
no Ocidente porque as jovens mães daquela época oraram pela vida
de seus filhos.
É impressionante como tantos autores que parecem “espirituais”
reagem mal às especificidades de uma oração genuína. Essa reação
é mais profunda do que o neoplatonismo grego e a influência da
espiritualidade budista. Se formos bem sinceros, reconheceremos que
ficamos apreensivos quando Deus chega muito perto. Não queremos
depender dele fisicamente. É muita pretensão, como se pudéssemos
controlar o Senhor. Bem lá no fundo não gostamos muito da graça.
Não queremos correr o risco de nossa oração não ser respondida. Em
vez de nos envolvermos com o Deus vivo, preferimos a segurança do
isolamento. Abraçar o Pai e consequentemente a oração é aceitar o que
um pastor chamou de “a ferroada da especificação”.4
Essa nossa aversão por pedir algo tem a ver com o desejo de ser
independente. Reinhold Niebuhr, teólogo influente do período pos­
terior à Segunda Guerra Mundial, acertou em cheio quando disse: “O
ego humano presume ser autossuficiente e senhor de si e imagina-se
seguro (...) Não reconhece o caráter contingente e dependente da vida,
e acredita ser o autor de sua própria existência”.5 Não gostamos de estar
condicionados a nada, de viver em completa dependência de outros.
A criança que Jesus nos disse para ser depende completamente do Pai,
para tudo.
O que perco, quando tenho uma vida de oração? Controle. Inde­
pendência. E o que ganho? Intimidade com Deus. Um coração em paz.
A obra viva de Deus nos corações das pessoas que amo. A capacidade
de desfazer o laço cruel da maldade. Em essência, perco meu reino e
recebo o reino de Deus. Passo de franco atirador independente a filho
amado e dependente. Deixo de ser órfão para ser filho de Deus.

4 Bowen Matthews, citado em C. Jack Orr, “A Fírst-Time Visit to an Old-Time Place,”


DreamSeeker M agazine2, no. 4 (Outono de 2002): p. 9.
5 Reinhold Niebuhr, Human Nature. Nova Iorque: Scribner, 1964, p. 201.
Todos os dias sinto a presença amorosa do Pai. Uma manhã de
sábado, por exemplo, eu estava numa loja comprando baterias para o
interfone do quarto da Kim, quando recebi um telefonema apavorado
da JilI. Ela havia acabado de conversar com o rapaz que ajudava a Kim
a passear com os cachorros do canil. Na hora do almoço, nossa filha
havia ido a uma lanchonete do McDonalds, mas como não achou o
cartão de crédito, eles pegaram de volta o lanche dela. A Kim ficou
nervosíssima. Tentei ligar para o rapaz que a ajudava, mas o celular dele
só dava ocupado.
Como notei o cuidado de Deus nesse episódio? A loja em que eu
me encontrava ficava a uns dez minutos de onde a Kim estava. Quan­
do finalmente consegui falar com o rapaz, ele se enganou e me deu o
endereço de outra loja do McDonalds. Enquanto esperava no farol,
vi um McDonalds do outro lado da rua. Naquele momento, percebi
que havia algo errado com o endereço que recebi do rapaz. Fui para o
estacionamehto da lanchonete perto dali, e dei de cara com a Kim. Dez
minutos depois do telefonema da JilI, eu estava com a nossa filha. O
amor de Deus por ela é mesmo muito especial.
O sufoco daqueles dez minutos serviu como um lembrete da mi­
nha dependência, levando-me a uma dependência ainda maior. O so­
frimento é uma dádiva de Deus que nos mantém conscientes da incer­
teza do nosso viver, pois cria um ambiente em que podemos perceber a
verdadeira natureza de nossa existência: uma natureza de dependência
do Deus vivo. Ainda assim, o modo como Deus trabalha na oração con­
tinua sendo um grande mistério para nós.

O mistério da oração
Quando oramos, algo de misterioso acontece nos caminhos ocultos e
sinuosos da vida. Se tentamos solucionar esse mistério, ele se esquiva de
nós. É um verdadeiro enigma.
Como uma criança autista, só conseguimos ter uma visão limitada
de como a oração funciona. Ao cumprimentar as pessoas, a Kim não
olha de frente para elas, mas apenas com o canto dos olhos. Segundo
alguns especialistas, para os autistas, olhar diretamente nos olhos das
pessoas é penoso.
Existem várias coisas na vida que não podem ser olhadas de frente.
Na física quântica, não conseguimos observar a velocidade e a massa de
uma partícula ao mesmo tempo. A relação sexual é linda no casamento;
mas quando se torna objeto de observação se transforma em pornografia.
O ato de observar altera a intimidade sexual. Há certas coisas que sim­
plesmente desaparecem no ar, quando tentamos captá-las ou observá-las.
Estudos que tentam provar que a oração funciona não entendem
a natureza da oração. Isso seria algo tão estranho quanto alguém tentar
provar que está vivo ou tentar medir o amor. Deus é uma pessoa, e seu
universo reflete seu caráter pessoal. E quanto mais algo se aproxima do
caráter de Deus, mais reflete o Senhor e menos pode ser medido. Coi­
sas como integridade, beleza, esperança e amor estão enquadradas na
mesma categoria da oração. Podemos sentir sua presença e até mesmo
descrevê-las, mas não podemos defini-las, simplesmente por estarem
tão próximas da imagem de Deus.
A presunção de que conseguimos descobrir como as coisas fun­
cionam é baseada no princípio iluminista de que todas as coisas não
passam de matéria e energia. Essa definição de “todas as coisas” deixa
de fora tudo o que é importante na vida, como o amor, a beleza e as
pessoas. As coisas mais preciosas da vida não podem ser medidas nem
observadas diretamente; porém, cremos que elas existem tanto quanto
cremos na existência do sol e da lua.
Em 1983 começamos a orar para que a Kim aprendesse a falar.
Ela estava com um ano e meio nessa época. Sem que soubéssemos,
engenheiros de uma fábrica de computadores do estado de Ohio esta-
vam criando o primeiro computador com sintetizador de voz de fácil
acesso. Quatro anos depois a Kim falou sua primeira palavra eletrônica
— M cD onald’s. Hoje ela usa a terceira geração de um desses computa­
dores, o Pathfinder.
Alguém pode discordar, dizendo: “Esse tipo de computador teria
sido inventado de qualquer maneira, mesmo se não tivessem orado”. É
verdade que, muitas vezes, em se tratando de respostas de oração, quan­
do analisamos os fatos tudo parece se encaixar perfeitamente, como
se aquilo fosse acontecer de qualquer maneira. Mas olhar para trás é,
na verdade, colocar-se na posição de Deus, presumindo saber como
tudo funciona. Quem é como criança diz: “Senhor, meu coração não
é arrogante, nem meus olhos são altivos; não busco coisas grandiosas e
maravilhosas demais para mim” (SI 131.1).
A oração é algo incrivelmente íntimo, pessoal. No exato mo­
mento em que alguém pega uma resposta específica de oração e tenta
descobrir como ela aconteceu, deixa Deus de fora. Simplesmente não
conseguimos enxergar as ligações de causa e efeito entre nossas ora­
ções e seus resultados. Mas veja bem; isso não acontece apenas com a
oração. Nenhuma das coisas boas da vida tem essa linha causai visível.
Por exemplo, o amor abnegado, aquele que não recebe crédito nem
recompensa, é algo totalmente irracional para as elites intelectuais,
pois náo há uma ligação visível entre o que o amor oferece e o que
recebe em troca. No entanto, a sociedade “se prostra em adoração aos
pés do amor”.6 Por exemplo, quando a madre Teresa de Calcutá falou
às elites intelectuais de Harvard, foi aplaudida de pé.7 O amor, assim
como a oração, só faz sentido quando percebemos que é um reflexo
da imagem de Deus.
A incapacidade de ver essa ligação entre causa e efeito é algo intrín­
seco à natureza da oração, pois ela é diretamente o agir de Deus. Tentar
dissecar como a oração funciona é o mesmo que usar uma lupa para
descobrir porque uma mulher é bela. Se transformarmos Deus em um

6 The Village, D V D , direção de M . Night Shyamalan. Burbank: Touchstone Pictures/


Buena Vista Home Entertainment, 2004.
7 Philip Lawler, “A Life o f Purity”, The Wall Street Journal, segunda-feira, 8 de setem­
bro de 1997: A18.
objeto, ele encontra um jeito de desaparecer de cena. Fazemos a mesma
coisa quando outra pessoa insiste em nos tratar como se fôssemos um
objeto: recuamos.
Quase sempre as respostas de oração começam antes mesmo de
orarmos. (A empresa fabricante do computador da Kim foi fundada
catorze anos antes de a menina nascer.) A única maneira de sabermos
como a oração funciona é tendo total conhecimento e controle do pas­
sado, presente e futuro. Ou seja, você só descobre como a oração fun­
ciona se for Deus.
Se quiser entrar nessa dança divina que chamamos de oração, en­
tão terá que abrir mão do desejo de estar no controle, de descobrir
como a oração funciona. Terá que permitir que Deus esteja no coman­
do. Terá que aprender a confiar. Aí então Deus vai deixá-lo maravilha­
do, não apenas com o dom da sua presença, mas também com vagas no
estacionamento, pijamas, leite despejado na tigela e sintetizadores de
voz. Ninguém faz o que Deus faz!
C a p ítu lo 15

O QUE FAZER C O M
AS E X U B E R A N T E S
PROM ESSAS.DE
C RI ST©~£ jQBRE
A ORAÇÃO?

CRISTO TEM UM JEITO todo especial de nos deixar inquietos,


especialmente quando fala sobre oração. Depois da última ceia, ele
disse algumas coisas espantosas. Quando estava assentado à mesa
com os discípulos, Jesus disse: “Eu farei tudo o que pedirdes em
meu nome, para que o Pai seja glorificado no Filho”. Logo a seguir,
enfatiza o que disse: “Se me pedirdes alguma coisa em meu nome, eu
o farei” (Jo 14.13,14).
Naquela mesma noite, a caminho do Getsêmani, Cristo e os dis­
cípulos caminharam pelas ruas escuras de Jerusalém. Talvez, quando
passavam pela porta do templo com suas videiras douradas, Jesus tenha
dito a seus seguidores que ele era a videira verdadeira, a fonte da vida.
“Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em
vós, pedi o que quiserdes, e vos será concedido” (Jo 15.7).
Nossos frutos serão expressos na oração respondida — “a fim de que
o Pai vos conceda tudo o que lhe pedirdes em meu nome” (Jo 15.16). Ao
concluir sua última “aula” com os discípulos, Jesus enfatiza o que havia
ensinado: “Em verdade, em verdade vos digo que o Pai vos concederá
tudo o que lhe pedirdes em meu nome (...) Pedi, e recebereis, para que a
vossa alegria seja plena” (Jo 16.23,24). Em seis ocasiões diferentes Jesus
afirma: “Pedi e eu lhes darei”.
Quando peço aos participantes dos nossos seminários sobre ora­
ção para que digam, com toda honestidade, o que acham disso que
mais parece ser um cheque em branco assinado por Jesus na última
ceia, todo mundo fica sem jeito. Um deles me perguntou certa vez:
“Jesus não está exagerando?” Outro respondeu: “Não gosto de fracas­
sar. Se oro e não obtenho resposta, fico me perguntando: será que mi­
nha fé é verdadeira? O que há de errado comigo? O que há de errado
com Deus?” Outra pessoa me disse: “Nunca passei por nada disso”.
Muitos disseram: “Orei, e nada aconteceu”. Aqueles que prestaram
atenção nas orientações de Jesus (“Se permanecerdes em mim...” ou
“o que pedirdes em meu nome”) ficaram deprimidos porque não per­
maneceram nele.
O que fazer, então, com as exuberantes promessas que Cristo faz
sobre a oração?

Os teólogos vêm em nosso socorro


Os teólogos tentam fazer com que Jesus não passe por culpado. Um
deles afirmou:

Uma leitura superficial de João 1 4 .1 3 ,1 4 talvez dê a entender que Jesus


nos concederá tudo o que pedirmos (...) Satanás adoraria nos fazer
acreditar no engano de que Deus responde às orações conform e nossa
vontade (...) quando descobrimos que Deus não está respondendo aos
nossos pedidos de riqueza, fama e glória (...) consideramos a oração
uma fraude e acusamos Jesus de quebrar suas promessas...

O que Jesus de fato está dizendo é: “Peça-me para fazer qualquer coisa
por você na minha área de atuação, e eu a farei.”(...) Se quisermos ter
um testemunho eficaz, devemos recorrer à ajuda de Deus por meio da
oração, e pedir que seja feita apenas a vontade dele, e não a nossa. Só
então nossas orações serão respondidas.1

Parafraseando esse teólogo, o que Jesus queria de fa to dizer é


que, se decidirmos participar de uma viagem missionária, Deus nos
ajudará, porém, mesmo nesse caso, devemos dizer: “Seja feita a tua
vontade”. Esse autor limitou a riqueza da promessa de Cristo a uma
atividade religiosa de caráter público, tal como evangelismo. Sem nem
ao menos perceber, ele adotou o modelo do Iluminismo e relegou a
oração à nossa vida particular. Resolveu o problema das exuberantes
promessas do Senhor racionalizando-as, explicando-as de modo racio­
nal. É bem verdade que ele preservou o caráter infinito de Deus, mas
perdeu sua intimidade.
Ele está certo quando diz que a oração não é magia nem uma ten­
tativa de controlar Deus. Hofni e Fineias levaram a arca da aliança para
a batalha contra os filisteus, como se fosse um amuleto que iria ajudá-
los a derrotar o inimigo. Os dois costumavam violentar as mulheres que
iam ao templo, mas agora, com a ameaça dos filisteus, queriam Deus
por perto. Os filisteus saíram vitoriosos, mataram Hofni e Fineias e
ainda levaram a arca (veja ISm 4.1-11).
Não faça pouco caso de Deus. Ele não é seu brinquedo nem é
Papai Noel. Você tem que permanecer na videira. Mas a mesma dúvi­
da persiste: O que fazer com as exuberantes promessas que Cristo faz
sobre a oração?

Pedir algo “em nome de Jesus” não é mais uma coisa que preciso
fazer direito para que minhas orações sejam perfeitas. É mais uma
dádiva de Deus por minhas orações serem tão imperfeitas.

1 Dr. Bob Burrelli, “Questions Sc Answers,” The Songtime Newsletter, Novembro de


1998, http://www.songtime.com/news.
Tiago vem em nosso socorro
Tiago, irmão de Jesus, também entra em ação e traz equilíbrio à exube­
rância das promessas de Jesus. Tiago mostra que há dois perigos no que
diz respeito a pedidos de oração. O primeiro, à esquerda do gráfico, está
em não pedir. Tiago afirma: “Não tendes porque não pedis”. O segun­
do perigo é pedir com egoísmo: “Pedi e não recebeis, porque pedis de
modo errado, só para gastardes em vossos prazeres” (4.2,3). Podemos
cair tanto de um lado quanto de outro do penhasco.

N ã o P ed ir P ed ir c o m eg o ís m o

Distanciar-se de Deus Exigir de Deus


(D eus n ão faz nada) (q ue e le fa ça a m inha vo n tad e)

EU
I
DEUS

A ntíd o to : A n t Id o t o :

P e d ir c o m o u s a d i a . E n t r e g a r - s e p o r c o m p le to .
“Aba, Pai, tudo te é possível. '..todavia não seja o que eu quero,
Afasta de mim este cálice.'' mas o que tu queres".

A oração de Jesus no Getsêmani demonstra esse perfeito equilí­


brio. Ele evita o perigo do não pedir, dizendo: “Aba, Pai, tudo te é
possível. Afasta de mim este cálice” (Mc 14.36). Quem não pede erra
porque se entrega a Deus antes de ter aberto o coração para ele. Muitas
vezes, fazemos tanto esforço para sermos bons que acabamos não sendo
autênticos. O resultado é um deísmo funcional em que vivemos distan­
tes de Deus. O meu eu real não encontra o Deus real.
Logo a seguir, Jesus evita o perigo de pedir com egoísmo, renden­
do-se completamente a Deus: “Todavia não seja o que eu quero, mas
o que tu queres” (14.36). Jesus é autêntico quanto a seus sentimentos,
mas não deixa que estes o controlem, nem tenta usá-los para controlar
a Deus. Jesus não usa sua capacidade de se comunicar com o Pai para
conseguir o que quer. Ele se rende à história que o Pai está escrevendo
em sua vida.
Se tentarmos compreender a oração de Jesus pelo lado puramente
racional, parecerá uma loucura. Por que Jesus pediria ao Pai uma coisa
que sabia que não iria receber? No entanto, a capacidade de sermos
racionais é só uma parte de quem somos como portadores da imagem
de Deus. Desejos, sentimentos e emoções também fazem parte daquilo
que somos. Se nos lembrarmos que Jesus é uma pessoa, e não um robô,
veremos que orar assim faz sentido.
Uma analogia poderá nos ajudar a compreender isso. Quando as
torres gêmeas foram atacadas, o intenso calor do fogo no World Trade
Center impedia a descida dos que estavam presos pelas chamas, mas
também os impossibilitava de continuar onde estavam. Muitas pessoas
recorreram à única alternativa, pular para a morte, e muitas o fizeram
de mãos dadas. Por que segurar na mão de alguém? Elas sabiam que
iriam morrer, de mãos dadas ou não. Contudo a vida é mais do que
pura lógica. Como seres humanos, refletimos a complexidade de Deus.
Parte da beleza divina está no fato de que fomos criados para viver em
comunidade; por isso, quando pulamos para a morte, seguramos na
mão de um amigo. Quando Jesus pede ao Pai para afastar “de mim esse
cálice”, sabe que a comunidade divina que tem com seu Pai se romperá
na cruz. Ao pedir e render-se a esse fato, Jesus fica alguns instantes de
mãos dadas com o Pai.
Sadraque, Mesaque e Abednego se encontram em situação pare­
cida, quando encaram a fornalha ardente. Demonstrando o mesmo
equilíbrio de Jesus, os três contrariam a ordem de Nabucodonosor para
que se curvassem diante dele. Responderam ao rei: “O nosso Deus, a
quem cultuamos, pode nos livrar da fornalha de fogo ardente; e ele nos
livrará da tua mão, ó rei” (Dn 3.17). Evitaram o perigo de não pedir ao
declararem com ousadia que Deus iria libertá-los. Mas se apressaram
em completar: “Mas se não, fica sabendo, ó rei, que não cultuaremos a
teus deuses” (3.18). Embora pareça uma atitude contraditória, os três
homens estavam pedindo com ousadia e, ao mesmo, rendendo-se por
completo. Ao afirmarem com ousadia que o Senhor os libertaria, evita­
ram o deísmo funcional e o distanciamento de Deus. Em seguida, eles
se resguardaram de uma vida egoísta, quando se renderam totalmente à
história em que Deus os havia inserido.

De volta a Jesus
Agora que entendemos uma das estruturas básicas da oração ainda temos
que lidar com a exuberante promessa de Jesus: “peçam o que quiserem”.
Por que ele não trouxe mais moderação para essa promessa, se de fato era
isso que ele pretendia dizer? Acho que é porque nós não somos equilibra­
dos. Por instinto, ou confiamos em nós mesmos ou perdemos a esperança.
E nos dois casos, ficamos paralisados, sem dar um passo sequer em
direção a Deus. Então, como um pai cujo filho pequeno está correndo
para longe, Jesus grita: “Meu Pai tem um grande coração. Ele se inte­
ressa pelos detalhes da sua vida. Peça o que você precisa e ele lhe dará”.
Jesu s q u er q u e possam os co n h ece r o co ração g eneroso de seu Pai.
Q u e r nos ver ab rin d o m ão de to d a a c o n fia n ça q u e tem o s em nós m es­
m os, pois “sem (Jesus) nad a podeis fazer”; espera q u e ten h a m o s c o n ­
fiança ab so lu ta nele, p ois “q u em p erm an ece em m im e eu nele, esse dá
m u ito fru to ” (Jo 1 5 -5 ).
Tudo o que Jesus ensinou sobre a oração nos evangelhos pode ser
resumido em uma palavra: peça. A maior preocupação do Mestre é que
nossa falta de fé ou hesitação em pedir nos distancie de Deus. Mas não
é só por isso que Jesus nos manda pedir o que queremos. Deus quer nos
dar bons presentes. Ele adora presentear.
Na parábola da viúva persistente (veja Lc 18.18), Jesus conta que
um juiz injusto virou as costas para a viúva desamparada. Como a se­
nhora continuou a incomodar o magistrado, ele finalmente cedeu, não
por dó, mas por olhar de modo realista para seus próprios interesses.2
Se ele não resolvesse o problema da mulher, ela faria da vida dele um
tormento só. Se até um juiz injusto socorre uma viúva, seu Pai não fará
o mesmo por você?
Na parábola do homem que bate à porta do vizinho, à meia-noite,
em busca de pão, porque um amigo chegou (veja Lc 11.5-8), o vizinho
grita em resposta, pedindo que ele pare de incomodar quem já está na
cama. Por fim, resolve que, como não “dá pra dormir com um barulho
desses”, o melhor é se levantar e dar ao homem os três pães, nem que
seja só para o outro dar sossego. Assim como o juiz injusto, esse vizinho
podia não ser generoso, mas não era bobo.
Por que ele pediu três pães? O primeiro é para dar ao amigo que
chegou à meia-noite. O segundo é para ele mesmo, pois não vai deixar
o outro comer sozinho. E quando o amigo terminar de comer, ele po­
derá lhe oferecer o terceiro pão como demonstração de sua generosida­
de. O homem não quer parecer uma pessoa mesquinha. Sua reputação
e a reputação da comunidade estão em jogo. Ou seja, o primeiro pão é
para saciar a necessidade física de seu amigo. O segundo é para saciar
sua necessidade relacionai, sua necessidade de viver em comunidade. O
terceiro é para saciar sua necessidade íntima de ser amado. Nós temos
um Deus que nos dá três pães. Ele adora nos presentear.

Orar em nome de Jesus


Bem lá no fundo, simplesmente não acreditamos que Deus seja tão
generoso quanto insiste em afirmar. Foi por isso que Jesus acrescen­
tou este detalhe:“Peça em meu nome”. Gostaria de explicar o que
isso significa.

2 Vern Poythress, “Keep on Praying,” Decision (Outubro de 1998): p. 33.


Imagine que sua oração seja um mendigo maltrapilho, imundo
e mal cheiroso, exalando a álcool, cambaleando a caminho do palá­
cio de um grande rei. De repente, você se transforma em sua oração.
À medida que você cambaleia rumo ao portão fechado, os guardas se
aprumam. Seu odor desagradável chega primeiro. De modo confuso,
você gagueja uma mensagem a ser entregue ao grande rei: “Eu gostaria
de ver o rei”. Suas palavras são praticamente ininteligíveis, mas você
sussurra uma última frase: “Jesus. Eu venho em nome de Jesus”. Ao
ouvir o nome de Jesus, como que num passe de mágica, tudo ganha
vida. Os guardas passam a olhá-lo com atenção e se curvam diante de
você. As luzes são acesas, e as portas escancaradas. Você é conduzido ao
interior do palácio, e anda por um longo corredor até chegar ao trono
do maravilhoso rei, que corre em sua direção e o abraça com força.
O nome de Jesus faz com que minhas orações tenham acesso ao
rei. Elas chegam ao seu destinatário. Jesus não é apenas o Salvador de
minha alma. É também o Salvador de minhas orações. Minhas orações
chegam ao trono de Deus como se fossem as orações de Jesus.
Pedir algo “em nome de Jesus” não é mais uma coisa que preciso
fazer direito para que minhas orações sejam perfeitas. É mais uma dádi­
va de Deus por minhas orações serem tão imperfeitas.
O selo de Cristo não só garante a entrega da minha encomenda,
mas também a transforma. Paulo diz em Romanos 8.26: “O Espírito
nos socorre na fraqueza, pois não sabemos como devemos orar, mas o
próprio Espírito intercede por nós com gemidos que não se expressam
com palavras”.

Orações respondidas
Quando faço um balanço da minha vida, a afirmação de Jesus, “Se me pe­
dirdes alguma coisa em meu nome, eu a farei” faz todo sentido (Jo 14.14).
Para explicar melhor, vamos dar uma olhada em minhas fichas de ora­
ção. (Depois explico por que uso fichas, em vez de listas.) Na ficha de
meu filho John, tenho cinco pedidos de oração; quatro deles foram
claramente respondidos. Mantenho uma ficha separada para os pedidos
relacionados ao emprego dele. Alguns meses depois de eu começar a
orar, Deus respondeu de modo fantástico meus pedidos pelo John. A
ficha da Emily tem seis pedidos. Deus já respondeu a cinco deles. Em
outra ficha, anotei mais sete pedidos em favor dela. Deus respondeu a
todos. Estou quebrando a cabeça sobre o que orar pela Courtney, pois
Deus já atendeu quatro dos meus pedidos por ela, e agora não sei mais
pelo que orar.
Em um dos nossos seminários sobre oração, um senhor que lutava
com a típica incredulidade cristã, que todos conhecemos bem desde o
Éden, questionou se essas respostas não eram apenas um reflexo da lei
das probabilidades. Ou seja, uma porção de coisas acontece natural­
mente, com o passar do tempo. Será que talvez eu não estava dando
créditos a Deus por algo que viria a acontecer de qualquer maneira?
Excelente pergunta. Agradeci sua coragem de verbalizar o que muitos
de nós pensamos, mas não ousamos colocar em palavras.
Eu não quis entrar em um debate teórico com ele, então, compar­
tilhei minha vida e comecei a descrever direitinho como Deus vinha res­
pondendo às minhas orações. “Como o senhor explica todas as respostas
que recebi ao orar por meus filhos? Não são apenas probabilidades.”
Durante o intervalo, ele retomou o questionamento. Para que o homem
tivesse um exemplo concreto, mostrei uma das fichas de oração de um
dos meus filhos. Ele perguntou se poderia pegar uma ficha aleatoria­
mente, suspeitando que eu pudesse manipular a prova com uma ficha
“boa”. Respondi que sim. Sem olhar, o homem abriu as fichas em leque
e colocou o dedo em um pedido de oração, que foi feito há um ano.
Ele não poderia ter escolhido uma resposta mais espetacular. Contei-lhe
como Deus havia respondido àquela oração. Junto com a resposta, veio
um presente, algo que eu nem havia pedido: cinqüenta mil dólares para
nos ajudar a implantar um ministério de oração em tempo integral. O
homem se afastou pensativo. Talvez Deus esteja vivo mesmo.
Ontem mesmo recebi três respostas claras de oração. É uma esta­
tística alta para um dia normal, mas não é incomum. Três das respostas
envolvem pessoas por quem oro especificamente a respeito de algum as­
pecto do caráter de Cristo em suas vidas. Outra resposta foi pela cura de
nosso contador, que há um ano e meio luta contra uma fadiga crônica
severa. Ele não teve nenhuma resposta impressionante até agora, apenas
um diagnóstico de melhora. A última resposta foi este capítulo. Faz me­
ses que batalho para escrevê-lo e, finalmente, ontem tudo se encaixou.
Vejo que quanto mais perto minhas orações chegam do coração
de Deus, mais poderosas e rápidas são as respostas. Três das respostas
relacionadas aos pedidos sobre semelhança ao caráter de Cristo vieram
de maneira particularmente extraordinária, duas delas por meio de te­
lefonemas de meus filhos. Um deles compartilhou como Deus o havia
libertado de um comportamento idólatra; o outro contou que havia se
arrependido por ser tão egocêntrico. Eu não tinha conversado com ne­
nhum deles sobre essas questões. A única pessoa com quem falei foi
com Deus. Ele também estava trabalhando com a natureza rude da ter­
ceira pessoa por quem orei. Deus havia permitido que essas três pessoas
passassem pelo sofrimento; isso revelou seus corações, permitindo que
vissem seu pecado. O Pai se alegra em trazer seus filhos para a vida do
Filho, para sua vida, morte e ressurreição. Ele quer que permaneçamos
firmes na videira. Este é o jeito do Pai.
Quando estamos mergulhados em nossas orações, podemos ver
claramente o agir de Deus, mas geralmente é difícil explicar isso a
alguém de fora. Às vezes não podemos explicar, pois a explicação iria
envergonhar a pessoa desnecessariamente. Outras vezes é difícil explicar
porque você tem que ser parte da história para entendê-la. Para que o
Espírito trabalhe, ela tem de permanecer oculta.
Jesus disse que até o ato de orar deve ser secreto (veja Mt 6.5,6).
Explicou que o reino é como um tesouro escondido em um campo
ou uma semente enterrada no chão. A vida de Cristo na Terra — do
nascimento à morte — teve essa mesma característica. No entanto, de
um ponto de vista puramente secular, sua vida foi a mais influente da
história mundial. Ninguém jamais chegou perto de sua influência.
Mas ainda hoje, a presença de Jesus na Terra continua a ter essa carac­
terística. Está submersa, oculta na vida de seus seguidores.

Aprenda a permanecer em Cristo


A vida de oração é a vida que permanece em Cristo. Muitos crentes se
deparam com um obstáculo quando associam permanecer com pedir.
Ficam imóveis, pensando: Se eu estivesse permanecendo em Cristo, mi­
nhas orações seriam respondidas. Esse permanecer adquire um aspecto
ilusório, como se fosse um sonho impossível. Permanecer é tudo, me­
nos algo desconectado da vida. É a forma como a vida deve ser vivida,
em parceria com Deus.
A melhor maneira de aprendermos a permanecer em Cristo é pe­
dindo alguma coisa. Das seis vezes em que nos disse para pedir alguma
coisa, em apenas uma delas Jesus acrescentou: “permanecei em mim”.
Sua grande preocupação era nos envolver no jogo. Comece pedindo.
Não peça simplesmente coisas espirituais ou coisas “boas”. Fale com
Deus sobre o que você quiser. Antes de permanecer, o seu verdadeiro eu
tem de se encontrar com o verdadeiro Deus. Assim, peça qualquer coisa.
Se pretende levar a sério a promessa de Jesus sobre pedir “alguma
coisa”, o que você tem que fazer primeiro? Qualquer criança sabe a
resposta. Tem que pedir, e para isso, tem que refletir sobre o que quer.
Agora as coisas estão ficando mais complicadas. Você quer um milhão
de dólares? Suei frio outro dia, quando um dos meus filhos disse que
estava considerando seguir uma certa profissão que o faria ganhar mui­
to dinheiro. Não há nada errado em ganhar muito dinheiro; o que me
incomodava era simplesmente a consciência que tinha do que a riqueza
pode fazer com nossa alma. Thomas Merton, um monge trapista, es­
creveu: “Se realmente soubéssemos o que queríamos ser, por que passar
a vida toda lutando para ser o que jamais gostaríamos de ser? Por que
perdemos tempo fazendo coisas que (...) são exatamente o oposto da­
quilo para que fomos criados?”3
É preciso refletir para responder à pergunta: “O que quero?” Se
fizer isso, não vai demorar muito para que você esteja prestando aten­
ção nas orientações deixadas por Jesus: “Se permanecerdes em mim, e
as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e vos
será concedido” (Jo 15.7).
Meus três pedidos de oração foram fruto dessa minha atitude de
permanecer em Cristo. Mas começaram com minha reflexão sobre o
que eu queria que Deus fizesse.
Por experiência própria, percebo que a maioria das pessoas não
está disposta a fazer um teste com a oração. Não pedem o que desejam.
Falo isso com toda cautela porque muitos ainda não receberam respos­
tas às suas orações, e continuam a lutar com isso. Falaremos mais a esse
respeito na Parte 4. No entanto, a maioria das pessoas continua caindo
para o lado esquerdo daquele gráfico que mostramos. Elas simplesmen­
te não pedem nada, nunca.
Nos próximos dois capítulos estudaremos algumas áreas em que
não pedimos nada a Deus; áreas das quais o mantemos sempre distante.

3 Thomas Merton, No M an Is an IslancL Nova Iorque: Shambhala, 2005, p. 124.


C a p ít u lo ió

ALG O Q U E NÃO
PEDIMOS A DEUS:
"O PÃO N O S S O
DE C A D A DIA"
NA IGREJA, QUASE TODOS os pedidos de oração se limitam a doen­
ças, pedidos de emprego, problemas com os filhos e, talvez, um ou
outro pedido em favor de um missionário. Porém, a oração de Jesus
pelo pão diário foi um convite para que levássemos a ele todas as ne­
cessidades. No grego, “o pão nosso de cada dia nos dai hoje” é uma
expressão meio obscura, que literalmente significa “nos dai hoje o pão
de amanhã”.' Isso nos dá ideia do tipo de fartura que Deus quer trazer
às nossas vidas. Creio que nossa geladeira e nossa conta bancária já
tenham hoje o “pão de amanhã”.
Só uma vez na vida eu e a Jill não tivemos hoje o pão de amanhã.
Eu era estudante em período integral na faculdade e sustentava com
um emprego de meio período, como pintor de parede, minha pequena
família (Courtney, nossa primeira filha, tinha um ano de idade).
No dia 1 de janeiro de 1975 não tínhamos comida nem dinheiro
nem trabalho. Vendemos nossos livros, joias e até os anéis de formatura.

1 Para uma discussão mais detalhada do assunto, veja J. D. G. Dunn, “Prayer,” em


Dictionary o f Jesus an d the Gospels, eds. Joel Green, Scot McKnight, and I. Howard
Marshall. Chicago: InterVarsity, 1992, p. 622.
Então, sentamos à mesa da cozinha e oramos por alimento. Assim que
terminamos de orar, o telefone tocou. Era uma cliente querendo saber
se eu poderia fazer um serviço no dia seguinte.
Quando nos encontramos, não só lhe contei que ela era uma res­
posta de oração, mas também pedi um adiantamento. Não havia razão
para ser espiritual demais.
Fiquei tão impressionado com a rapidez com que Deus respondeu
minha oração que, quando me deitei, pedi que ele fizesse algo maior:
D aria para o senhor me transformar*. Eu nem tinha certeza se era mesmo
crente; para ser bem sincero, eu deveria, no mínimo, reconhecer que
o cristianismo não estava funcionando muito bem em minha vida. Eu
lutava contra meus questionamentos intelectuais; a Bíblia me parecia
ultrapassada. Não era apenas uma “desconfiança” momentânea — mi­
nha vida toda tinha sido daquele jeito. Na manhã seguinte, acordei
com um cântico na alma e uma fome da Palavra que nunca mais me
abandonou. Deus havia de fato me transformado.
Muitas vezes nossa necessidade do pão de cada dia abre caminho
para a necessidade que o coração tem de ser alimentado de verdade.
Um dia depois de Jesus ter alimentado os cinco mil, as multidões foram
atrás dele nas praias de Cafarnaum, em busca do café da manhã. Jesus
explicou que tinha uma comida melhor para dar a eles: “O pão de Deus
é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6.33).
Que outros tipos de pães dos quais precisamos a cada dia deixamos
de pedir? De que modo nossa necessidade do pão de cada dia revela
nossa necessidade do pão do céu?

Coisas materiais: egoístas demais, vulnerável demais


Já esclarecemos que as pessoas em geral não gostam de pedir coisas
triviais, como pijamas, por exemplo, mas existem muitas outras coi­
sas, especialmente materiais, que nem pensamos em levar a Deus em
oração. Por exemplo, hesitamos em pedir: Senhor, quero uma casa na
praia. D á para me arrum ar umál Não temos problemas em agir como
egoístas, mas fa la r como egoístas é vergonhoso. Afinal, não somos mais
criancinhas. Uma casa na praia é algo tão fora da área de abrangência
do pão de cada dia que achamos muita presunção pedir uma a Deus.
Em vez de pedir uma casa na praia, o que fazemos, então? Verifica­
mos nossas economias, consultamos um corretor imobiliário e compra­
mos uma casa — e tudo isso sem orar seriamente antes da decisão. Não
me entenda mal. Não estou dizendo que adquirir uma casa na praia é
em si um pecado. Deus se alegra em dar boas coisas a seus filhos, inclu­
sive casas na praia. No entanto, ele quer participar de todas as decisões
que tomamos. Quer que as necessidades materiais nos direcionem para
as necessidades da alma. É isso que significa permanecer em Cristo:
incluir Deus em todos os aspectos de nossa vida.
Permanecer é uma maneira perfeita de descrever a vida de oração. Por
exemplo, muitos crentes que planejam comprar uma casa na praia podem
até orar, fazendo perguntas práticas a Deus, tais como, “Será que tenho
condições financeiras?” “Vai me dar muito trabalho?” “Devo negociar a
compra daquela casa?” São boas perguntas. Porém, raramente fazemos a
Deus perguntas mais íntimas, como: “O fato de ter mais de uma casa vai
me colocar em um patamar acima das outras pessoas?” “Vai me isolar?”
No primeiro grupo de perguntas, Deus é apenas nosso consultor
financeiro. No segundo, ele se transforma em nosso Senhor. Estamos
permanecendo nele. Estamos nutrindo a alma com o pão eterno.
Fazemos a mesma coisa com uma promoção no trabalho. Parece
egoísmo orar pedindo por isso, então, trabalhamos duro para conseguir
uma promoção! Acabamos excluindo Deus de uma grande parte de
nossa vida por querermos nos sentir bem em relação a nós mesmos.
Como já disse, criamos dois seres: um espiritual e outro material.
As pessoas evitam orações desse tipo porque abrem as portas para
Deus controlar nossa vida. Elas nos deixam vulneráveis. Demais. Como
as multidões de Cafarnaum, queremos o café da manhã, e não o ali­
mento para a alma. Se depender de nós, queremos que Deus seja um
gênio da lâmpada, e não uma pessoa. Segundo os acadêmicos, as refe­
rências de Jesus ao reino são maneiras sutis de ele se apresentar como
rei. Quando fazemos o primeiro pedido do Pai Nosso, “Venha o teu
reino”, estamos dizendo, “Rei Jesus, governe minha vida”. O coração
humano é um dos maiores campos missionários de Deus.
Ainda que possa parecer estranho, também podemos usar a oração
para manter Deus à distância. Fazemos isso ao conversar somente com
Deus, e não com cristãos maduros. A explicação para isso é simples. O
que é mais fácil, confessar pensamentos impuros a um amigo firme na
fé ou a Deus? Confessar a um amigo é muito mais difícil. A coisa se
torna real. Temos de fazer ao corpo de Cristo — que é a presença física
de Jesus na terra — as mesmas perguntas que fazemos a Deus.
Se você isolar a oração do domínio de Cristo, não permitindo que
outros cristãos estejam envolvidos no processo, acabará fazendo sua
própria vontade. Muitos cristãos afastam do corpo de Cristo o pro­
cesso de decisão, e acabam se isolando em suas casas na praia. Depois
justificam: “Eu e meu marido oramos sobre o assunto, e chegamos à
conclusão de que Deus confirmou nossa decisão”. É possível que ele
tenha confirmado. Também é possível que você tenha usado a oração
como um revestimento espiritual para “fazer o que queria”. Consegui­
mos esconder nossa vontade até de nós mesmos.
Veja como a Bíblia e um coração disposto a ouvir se entrelaçam
nesta conversa hipotética com um cristão maduro.

Beto, eu e minha esposa gostaríamos de comprar uma casa na praia.


Você sabe com o nossa vida tem sido um corre-corre, e seria ótimo ter
um lugar sossegado pra relaxar. Ficamos sabendo de uma casa ideal que
a família toda aproveitaria bem. Mas estamos pensando no que isso
fará aos nossos corações. Queremos seguir a Jesus, e ele adverte sobre
essa inclinação de construir celeiros cada vez maiores e melhores. Será
que essa casa não seria um celeiro maior e melhor? Vamos nos colocar
em um patamar acima das outras pessoas se a comprarmos? Ficaremos
isolados dos outros? É de fato um bom uso de nossos recursos? Isso
limitará as ofertas que fazemos a pessoas necessitadas? Por outro lado,
poderemos oferecer a casa aos amigos que não têm condições de passar
férias na praia. O que você acha?

Além dessas perguntas, forneça informações suficientes para que


seu amigo faça uma avaliação inteligente da questão. Fale sobre o preço
da casa, sua situação financeira e como a compra irá afetar seu dízimo,
ofertas e conta bancária.
O individualismo do mundo ocidental é uma das razões de não
conversarmos com amigos mais experientes. Esse individualismo tem
suas raízes no legado judaico-cristão, bem lá no passado, no salmo 23 e
no cuidado amoroso de Deus por mim. Quando o bom pastor me ama,
tenho dignidade e valor. Valor como indivíduo. Porém, o secularismo
moderno arrancou o bom pastor do salmo 23, deixando-m e sozinho na
tentativa de criar minha própria dignidade e valor. O dinheiro é meu;
fui eu que o ganhei. Eu preciso de férias. Então nem me passa pela ca­
beça incluir Deus ou quem quer que seja em minha decisão de comprar
uma casa na praia.

Sabedoria: inesperada demais


Quando precisamos de conselho, procuramos alguém com sabedoria,
fazemos perguntas e ouvimos com atenção. Mas dificilmente pensamos
em fazer o mesmo com Deus. Para começar, não sabemos o que Deus
vai responder. Não temos como ouvir sua voz. Então, descartamos a
possibilidade de Deus falar à nossa vida. Na verdade, pensamos: “Preci­
so prever o resultado disso. Tenho de estar no controle”. E esquecemos
que não controlamos quase nada nesta vida. No que se refere a pessoas,
geralmente não sabemos de antemão o que vai acontecer. Esquecemos
que somos espíritos encarnados, criados para ouvir a Deus.
Sem nem ao menos perceber, agimos de acordo com o pensamen­
to do Iluminismo, que nega a possibilidade de um Deus infinito agir
pessoalmente em nosso viver. É por isso que prefiro o termo bíblico
sabedoria ao termo mais comum orientação. Orientação significa que
eu estou na direção e pergunto a Deus qual é o caminho a seguir. Sabe­
doria é algo mais rico, mais pessoal. Não preciso de ajuda somente com
meus planos, mas também com meus questionamentos e até mesmo
com meu coração.

Evitamos orações que abrem as portas para que Deus


controle nossa vida. Elas nos deixam vulneráveis.

Veja um exemplo de como pedi sabedoria a Deus. Mostro abaixo


uma página de um diário de oração que eu tive no final da década de
90. (Na Parte 5, falaremos mais sobre como usar um diário de oração.)
Nessa ocasião, eu tentava fazer um planejamento para os dois anos
seguintes. Estava entrando no seminário e, ao mesmo tempo, queria
escrever um livro e um estudo bíblico sobre Jesus. Não sabia qual deles
deveria escrever primeiro ou mesmo se deveria sequer tentar.

rruyijbve.-tn£, co/n» pEíUveiaa- o4. ioVy ojvob.


HJiey !>ei, Oorruy ÍMo-. OtuAAtoada, íhJMatA,
O vjLuÁo &ÍÂÍLQO'&UJtrJdxjy &ájfaoib &

(z^OtriO <>*UUliiXíWA£Í/trdUju
------- (Jccê/âjUx> doK o pahíajaé IhJUUoJL?

ir ÚMCO= OoJxk: U/rv tjUloJLi nUXJtyfrode/yuyb


------- de, aluAujd.
Enquanto estava escrevendo essas palavras, Deus começou a res­
ponder minha oração por sabedoria. Quando eu anotava as perguntas,
um versículo me veio à mente: “Cuida dos teus negócios lá fora, prepara
bem tua lavoura e depois forma a tua família” (Pv 24.27). Entendi que
escrever um livro era como construir uma casa. Então anotei: “Livro
= casa”. Um livro é como uma casa: é um projeto legal, mas não uma
necessidade. Sempre havia a possibilidade de alugar uma. Então adiei
o projeto de escrever o livro. Um ano depois, um de meus professores
permitiu que eu fizesse um estudo independente, e acabei escrevendo
os oito primeiros capítulos de um livro sobre Jesus.
Admitir sua própria fraqueza é o ponto-chave dessa anotação no
diário de oração. Eu não estava só pedindo um conselho a Deus — se
tivesse, eu ainda ficaria no controle de tudo. Estava bem ciente de que
não tinha recursos necessários para encarar os próximos dois anos de
vida. Eu não estava nem pedindo que Deus fosse meu parceiro. Estava
me curvando aos pés de Deus, enquanto pedia. Estava permanecendo
em Cristo. Essa dependência não é algo natural para mim. Certa vez a
Jill pensou em me comprar uma camiseta com a seguinte frase: “Quase
sempre errado, nas nunca em dúvida”.
Anotar aquelas perguntas no diário de oração foi um jeito de me
render. Eu não concordava com a mentalidade da época e sua incan­
sável busca por liberdade e autoexpressão sem limites. Ao contrário,
desejava estar em harmonia com meu Criador. Como Albert Einstein
observou: “Seres humanos, vegetais ou poeira cósmica, todos dançamos
uma música misteriosa, tocada à distância por um músico invisível”.2
Eu queria estar no compasso da música do meu Pai. Eu desejava que
meu pão verdadeiro de cada dia viesse do céu.

2 Albert Einstein, citado em George Viereck, “W hat Life Means to Einstein,” The
Saturday Evening Post (26 de outubro de 1929): p. 117.
ALGO QJJE NÃO
P lú s:
‘V í n h a D~t E u r e in o "
QUANDO ORAMOS "VENHA O teu reino”, temos feito coisas es­
tranhas e, com isso, mantido à distância o senhorio de Cristo. Às vezes
espiritualizamos o reino, achando que ele está ligado apenas ao que é
espiritual. Em outras ocasiões, identificamos o reino com instituições
cristãs. Embora o reino esteja presente nessas instituições, elas são ape­
nas uma expressão do reino.
Veja abaixo uma lista parcial das orações relacionadas ao reino que
dificilmente fazemos:

• Dificilmente peço por mudanças nos outros (eles são contro­


ladores demais, não têm conserto);
• Dificilmente peço por mudanças em mim (tenho medo
demais);
• Dificilmente peço por mudanças nas coisas que me desagra­
dam na cultura (seria impossível demais).

A seguir, vamos analisar essa lista em detalhes.


Dificilmente peço por mudanças nos outros
(eles são controladores demais, não têm conserto)
E muito difícil nos preocuparmos em orar com constância por aque­
les que amamos, para que lutem contra os pecados que os afligem.
Neste capítulo vou pegar um pouco no pé dos maridos, pois a maio­
ria deles não ora criteriosamente por suas esposas; só reclama ou se
afasta delas.
E quando oram, geralmente pedem por si mesmos, para se verem
livres de aborrecimento. Os homens trabalham para sustentar a família,
lavam o carro e até jogam futebol com os filhos, porém muitos não se
dedicam nem mesmo pensam no que é eterno.
Por exemplo, os maridos dificilmente oram para que as esposas se
tornem mais parecidas com Jesus. Digamos que a esposa viva criticando
o marido. Quando ele tenta falar no assunto, ela responde: “Eu não
faria isso se você não fosse tivesse tantos defeitos”. Quando tentou falar
do assunto, ele só conseguiu ser mais criticado, portanto, tranca seu
coração em silêncio. Então deixa de se importar. A esposa é como é, e
pronto. Ele liga a televisão e toca a vida para frente.
Sem perceber, começou a duvidar da possibilidade de uma mu­
dança real em sua mulher. Ter um coração de criança é muita ingenui­
dade, é como um sonho distante. O marido é sábio como a serpente,
mas não é manso como a pomba. Acha que vive cercado de idiotas e
a única saída é “segurar a barra”, como faziam os estoicos. O mal foi
pouco a pouco minando suas forças.
A decisão de buscar a Deus em oração sobre a atitude da esposa é
como abrir uma velha ferida. Só de conversar com Deus sobre o assun­
to já se sente frustrado, pois parece um caso perdido, é como ficar ba­
tendo a cabeça na parede. O melhor mesmo é nem pensar no assunto.
A culpa se mistura à frustração. A esposa não está totalmente
errada em suas críticas. Na verdade, ele não sabe bem onde o pecado da
esposa termina e o seu começa.
O marido também hesita em orar porque lhe disseram que não deve
tentar controlar a esposa. No entanto, o objetivo da oração é transferir o
controle de nossas mãos para as mãos de Deus. Além disso, o desejo do
Pai é que todos sejam mais parecidos com o Filho, não é mesmo?

Quando começar a “p edir o que quer", ficará surpreso ao notar


como sua vida começará a brilhar com a presença de Deus.

Por onde o marido deve começar? Como as crianças fazem, deve


começar pedindo a Deus o que deseja. Uma boa ideia é anotar num
diário ou numa ficha de oração as mudanças que gostaria de ver na
esposa, e também encontrar versículos que descrevam a semelhança de
Cristo nela. Então poderá usá-los como oração diária pela esposa, e
pedir que Deus também trabalhe em seu próprio coração.
Esse pedido de oração será uma aventura que vai durar uns vinte
anos. A aventura começa com esta pergunta a Deus: Senhor, será que eu
também sou crítico demais? Reajo com críticas às críticas de minha esposai
Geralmente temos os mesmos defeitos que nos incomodam nas outras
pessoas. Ao tirar primeiro a trave de seu olhos (veja M t 7.1-5), o ma­
rido libera na vida da esposa a força invisível do Espírito Santo. E o
reino começa a vir.
Ele pode deixar que Deus use as críticas da esposa para torná-lo
mais parecido com Jesus. Em vez de rebater o que a esposa diz, deverá
fazer todo o possível para lhe dar ouvidos. Não dá para lutar contra o
mal sem permitir que antes Deus destrua o mal que há em nós, pois são
coisas muito interligadas.
Bem lá no fundo, por instinto, sabemos que é assim que Deus
age, e por isso nos afastamos da oração. Como Jonas fez às portas de
Nínive, reclamamos da misericórdia de Deus: “Senhor, eu sabia que
isso iria acontecer. Mal comecei a orar por ela, e o Senhor já começa a
trabalhar em mim”.
Quando leva a sério as críticas da esposa, o marido pode sentir
que está perdendo sua identidade, tornando-se um cristão dependente,
tentando ser bonzinho da boca para fora. Mas não é nada disso. Está
simplesmente seguindo seu Mestre que, levantando-se “da mesa (...)
e, pegando uma toalha, colocou-a em volta da cintura. Em seguida,
colocou água em uma bacia e começou a lavar os pés dos discípulos e a
enxugá-los com a toalha que trazia em volta da cintura” (Jo 13.4,5). O
amor de Cristo é muito concreto. Nosso amor tem de ser tão concreto
quanto o do Mestre.
O marido não está se colocando “debaixo do controle da esposa”,
mas sim participando da vida de Cristo. Nenhum marido pode crer no
evangelho a não ser que também viva esse evangelho. Ou seja, quando
você entende que Deus o ama, precisa estender seu amor aos outros.
Caso contrário, o amor de Deus se esfria em nosso peito. Ao estender
graça à esposa, o marido é atraído para a vida do Filho. E ficará mais
parecido com Jesus.
O marido também não pode deixar um vazio em seu próprio co­
ração. Deve substituir o espírito crítico que arrancou do peito por um
espírito de gratidão. Um bom jeito de fazer isso é escrever em fichas, ou
num diário ck oração, frases curtas de gratidão pela esposa. Ao agrade­
cer diariamente por coisas específicas, passará a vê-la como ela de fato
é: uma dádiva de Deus.
À primeira vista, pode ser que ele tenha a impressão de que está
tampando o sol com a peneira. A vida parece discrepante, injusta. Afi­
nal, é a esposa que tem espírito crítico. Além do esforço que precisa
fazer para analisar seu próprio espírito crítico (e que não é tão ruim
quanto o dela), ele também está procurando ser agradecido pela esposa.
E a única coisa que ele tem a seu favor é uma simples oração, mais nada.
Um coração agradecido continua estendendo graça porque rece­
beu graça. O amor e a graça são coisas discrepantes mesmo. Deus trans­
feriu para seu próprio Filho as críticas que eu merecia. Agora ele pede
que eu derrame graça sobre alguém que me magoou. Mas a graça gera
graça. E o marido começa uma jornada rumo ao coração do Pai.
Seja bem-vindo à vida de Deus! A vida repleta de graça é assim mes­
mo, especialmente no início. Aquela simples oração que você faz está
ligada ao poder central do universo. Se o marido aguentar firme, vai se
maravilhar com a energia criadora de Deus. A graça vencerá no final.
Orar constantemente pela esposa ajudará o marido a ter mais
consciência dela como pessoa. Pedro incentiva os maridos a que tratem
suas esposas com “honra (...) como (...) herdeira convosco na graça da
vida, para que as vossas orações não sejam impedidas” (lPe 3.7). Não
dá para separar a oração do amor.
Veja só o que acontece com o passar do tempo. Quando tira seu
ego do caminho, o marido abre espaço para que o Espírito Santo traba­
lhe na vida da esposa. Deus trabalhará com uma eficiência muito maior
do que o marido jamais conseguiria. Ele é um Mestre incomparável.
Depois de um tempo, o marido verá que sua coragem e sabedo­
ria estão aumentando. Encontrará as melhores palavras, a melhor hora
para ter uma conversa franca com sua esposa. Desistirá de vencer a
discussão e passará a amar sua companheira. O reino está chegando!

Dificilmente peço por mudanças em


mim (tenho medo demais)
E quanto a pedir por mudanças em mim? A maioria dos cristãos acre­
dita que Deus responde quando oramos para que ele mude nosso jeito
de ser, e isso nos deixa simplesmente apavorados. Por exemplo, o que
acontece se você orar por paciência? Deus permite que haja sofrimento
em sua vida. O que acontece se orar por humildade? Deus irá humilhá-
lo. Morremos de medo dessas orações porque não queremos abrir mão
do controle de nossas vidas. Bem no fundo, não confiamos em Deus.
Também não oramos por mudanças em nós porque não queremos
admitir que precisamos mudar. Veja só que oração difícil: Senhor, estou
irritadíssimo hoje. O senhor me ajudaria a ser mais gentil com as pessoas?
Para orar assim, tenho que colocar a irritação de lado e admitir para
mim mesmo a minha chatice. É difícil enxergar minha atitude, porque
eu não sou o problema; o problema são sempre os outros à minha volta.
O fatalismo, algo tão inerente à psicologia moderna, também nos
imobiliza. Nossos humores são sagrados. Se estou rabugento, tenho o
direito de me sentir assim e de expressar meus sentimentos. As pessoas
que me cercam têm de “aguentar e superar isso”. De acordo com a
psicologia popular, um dos piores pecados que alguém pode cometer
é reprimir suas emoções. Assim, orar para não sentir raiva parece algo
ilegítimo, como se eu estivesse tentando reprimir quem sou de verdade.
Certa vez Claire, nossa neta, disse para a Jill: “Vovó, não estou
num dia legal”. A Jill estava ciente de que a Claire não estava num
de seus melhores dias, mas mesmo assim respondeu carinhosamente:
“Claire, com Jesus você pode começar de novo qualquer dia”. No mun­
do em que vivemos, essa resposta é quase uma heresia. Uma vez que
descobrimos nossos sentimentos, nos tornamos reféns deles.
É uma atitude estranha, pois idolatrar nossas emoções não nos
liberta para que sejamos nós mesmos; ao contrário, acabamos sendo
controlados pelos ventos caprichosos dos sentimentos. Somos fragmen­
tados em mil pedacinhos ou, usando as palavras de Jesus, nos tornamos
como “um caniço agitado pelo vento” (Mt 11.7).
Mas se levarmos a sério a promessa de Jesus — “Eu farei tudo o
que pedirdes em meu nome” (Jo 14.13) — a porta se abrirá para uma
mudança real, para a esperança. Não seremos mais escravos da menta­
lidade da cultura que nos cerca. O Senhor nos convida a reinar, junto
com ele. O rei chegou.

Dificilmente peço por mudanças nas coisas que me


desagradam na cultura (seria impossível demais)
Vivemos reclamando das coisas de que não gostamos em nossa cultura,
mas nem nos passa pela cabeça a ideia de orar para que ela mude. Certa
época eu estava chateado com a falta de consciência das pessoas em
relação ao pecado. O secularismo nega a existência de um mundo espi­
ritual, transformando o mal num criação social, num produto da nossa
imaginação. Isso me incomodava. Assim, escrevi uma pequena oração
para que os “americanos se tornassem mais conscientes do mal”. Um
ano depois, após o fatídico 11 de setembro, os americanos voltaram a
falar sobre o problema do mal.
Quando contei isso ao meu filho John, ele me encarou com um
sorrisinho maroto e perguntou bem devagar e bem alto: “Por acaso o
senhor provocou o 11 de setembro?” E evidente que o John só estava
caçoando de qualquer pretensão que eu pudesse ter de influenciar os
acontecimentos do mundo. (A missão eterna de minha família é me
conservar humilde.)
A oração é algo que escapa à minha compreensão. Orar é algo pro­
fundamente pessoal e misterioso. Os adultos tentam explicar a causa de
tudo. As crianças não. Elas simplesmente pedem.
Faça uma reflexão sobre tudo isso. Se você fizer uma pausa para
refletir um pouco, descobrirá grandes áreas de sua vida pelas quais não
tem orado.
Ca pitu lo is

E N T R E G A TOTAL:
“S E J A- F EI TA À
TUA V O N T A D E ”

CERTO DIA A EMILY me chamou para resolver um problema com


o modem (isso foi antes do tempo da banda larga). Ela estava no pri­
meiro colegial e precisava usar a internet para um trabalho da esco­
la, porém o modem não estava colaborando. Depois de uma olhada,
descobri que o software precisava ser reinstalado. Felizmente a Dell
havia mandado um disco original. Procurei-o na caixa que veio com o
computador, mas não o encontrei. Havia desaparecido.
Me^sangue ferveu. Eu sabia qual dos meninos havia pegado o dis­
co e esquecido de devolvê-lo à caixa. Na mesma hora gritei: “Andrew,
venha aqui agora mesmo”. Ele desceu do banheiro para a sala. Dava
para ver que o garoto estava irritado com minha grosseria, mas nem
liguei. Estava cansado de vê-lo pegar as coisas e náo recolocá-las no
devido lugar. Isso era egoísmo puro.
Andrew procurou pela casa, encontrou o disco, e voltou lá para
cima. Sentindo a tensão entre nós, imaginei se não havia sido duro de­
mais com ele. O arrependimento normalmente começa com uma dú­
vida, com um ligeiro desconforto. Eu havia agido por conta própria, de
modo bem diferente de Jesus, que diz: “O Filho nada pode fazer por si
mesmo”(Jo 5.19). Não pedi que Deus me ajudasse a lidar com Andrew.
E u sabia q u e ele havia pegado o d isco e q ue n ão o havia recolocad o no
lugar. C aso en cerrad o. A m in h a o b stin a çã o havia fech ad o a p o rta para
o esp írito de oração.
A té p erceb erm o s o q u a n to so m o s ob stin ad o s, n ão en ten d erem o s
o segu nd o ped id o do Pai N o sso : “seja feita a tu a v o n ta d e” (M t 6 .1 0 ).

A lém de n ão ter orad o sob re o in c id e n te , eu ta m b é m n u n c a havia ora­


do p o r essa área da vida d o A ndrew . N u n c a m e o co rre u o ra r para que
o A n d rew recolocasse os o b je to s n o lugar, pois para m im a solu ção era
óbvia. B astava eu gritar: “A ndrew , re co lo q u e as coisas n o lugar” . N ã o
havia n e n h u m a am bigü id ad e sob re o q u e deveria acontecer.

O resu ltad o fo i q u e eu acab ei a g in d o da m esm a fo rm a q u e o


Andrew . E le havia sido n eg lig en te ao n ão reco lo ca r o d isco n o lugar;
eu havia sido n eglig en te qu and o perd i a p a ciên cia e g ritei para que ele
descesse até a sala de estar. O A n d rew tin h a sido eg oísta, m as eu ta m ­

b ém tinha.

Eu estou no centro da minha própria vontade, esculpindo


um mundo à minha imagem. Porém, Deus está no centro
da oração, esculpindo-me à imagem de seu Filho.

O pecad o é u m a coisa m u ito co m p lica d a . N u n c a som os ob ser­


vadores passivos, ch eio s de sabed oria e ju stiç a . S em p re som os parte
da con fu são. E as soluções que arru m am o s para os p ro blem as acabam

co m p lica n d o aind a m ais as coisas. É p o r isso que n ão p o d em os nos dar


ao luxo de fazer as coisas sozinhos.
Q u a n d o agi segu nd o a m in h a p ró p ria vo n tad e, sem c o n ta r c o m a
aju d a do Pai, m in h as palavras tiveram de dar co n ta de to d o o trabalh o.

C o m o não pedi q u e D eu s trabalhasse n o co ração d o A ndrew , achei que


a responsabilid ad e de lid ar c o m o p ro b lem a da irresp on sabilid ad e dele

era m in h a , e isso só a u m en to u m in h a d eterm in ação .


Imagine se eu tivesse feito como Jesus, e dependido do Pai para
agir com sabedoria, graça e coragem — sabedoria para dialogar com
meu filho, graça para falar com ele sem ser tão incisivo, e coragem
para colocar tudo isso em prática. Suponhamos que eu tivesse aca­
bado de descobrir que a caixa estava vazia. Então, em vez de exigir
que o Andrew viesse até a sala, eu parasse por uns instantes e orasse.
Senhor, acho que o Andrew pegou o disco e não o colocou de volta no
lugar. Isso me deixa furioso. Ajude-m e a conversar com ele sem ser tão
incisivo. O Senhor sabe como sou rápido em fa z e r acusações. Depois isso,
eu chamaria: “Andrew, eu e a Emily não achamos o disco para dar um
jeito no modem. Você poderia descer e dar uma mãozinha aqui? Sua
irmã não consegue acessar a internet.”
Então, eu esperaria ao lado da Emily, em frente ao computador. Isso
significa que teria que observar a menina ficar cada vez mais exasperada
enquanto aguardava o irmão. E enquanto nós esperássemos, eu oraria
silenciosamente pela Emily. Também oraria pelo Andrew. E oraria para
que Deus me desse graça para esperar. Meu espírito impaciente sempre
quer tomar a frente da ação, mas quando aceito a situação em que Deus
me colocou — preso no trânsito, numa fila do supermercado ou aguar­
dando pacientemente ao lado de um filho que não para de reclamar —
eu abro 4jna fresta na janela da minha alma para que ele entre.
Quando finalmente meu filho aparecesse e encontrasse o modem,
eu esperaria até que ele resolvesse o problema, agradeceria e então per­
guntaria: “Você tem um minuto para conversar sobre o disco?” Se o
menino respondesse que não, eu perguntaria: “Você tem um tempinho
antes de ir dormir?” Quando nos sentássemos para conversar, talvez
ele se antecipasse: “Pai, já sei o que o senhor vai dizer”. Eu deixaria
o Andrew falar, e completaria os espaços em branco com algumas per­
guntas: “Você se esqueceu de pôr o disco de volta na caixa, não foi? Isso
já não aconteceu antes? Você costuma não recolar as coisas no lugar
onde estavam, não é? Você percebe como isso atrapalhou a mim e à sua
irmã? Percebe como foi uma atitude egoísta?”
Note como não impus a minha própria vontade nessa forma ca­
rinhosa de buscar me entender com o Andrew. Não vamos esquecer
também que estou falando de uma situação hipotética. Na verdade, eu
me desculpei com o Andrew pelo que realmente aconteceu.
Se tivesse reconhecido minha teimosia em fazer valer a minha pró­
pria vontade, teria aberto um caminho para a oração, para permanecer
em Cristo. A grande luta da minha vida não é tentar discernir a vontade
de Deus; é tentar discernir e renunciar à minha própria vontade. Quan­
do ajo assim, a oração flui. E daí tenho que continuar orando, pois não
estou mais no controle. Na verdade, só me restam duas atitudes; ou vejo
tudo na vida como uma dádiva ou exijo que a vida seja como eu quero.

Reconhecendo nossa vontade própria


O sermão de Jesus no monte, em Mateus 5, 6 e 7, é um guia para
reconhecer quando estamos agindo por vontade própria e entregar o
controle a Deus. Jesus explica o que significa ser filho do Pai celeste.
Para entender o sermão, imagine que sua vida seja um cômodo com
várias portas abertas. Cada porta recebe um nome: dinheiro, sexo, po­
der, fama.
Jesus começa o sermão dizendo que irá sondar sua vida e fechar
todas as portas da glória e do poder humanos. Com relação às bem-
aventuranças, ele afirma: “Bem-aventurados os humildes, pois herdarão
a terra” (Mt 5-5). Ou seja: “Desista de controlar seus relacionamentos, e
eu lhe mostrarei um jeito totalmente diferente de viver. Não tenha medo
de depender de mim, de sair do centro do palco. Eu cuidarei de você”.
No restante do capítulo 5, Jesus vai fechando uma porta depois da
outra. Ele manda você amar seus inimigos, aqueles que exploram você,
diz para pensar na necessidade dessas pessoas (5.43-47). Se achar que
alguém está zangado com você, não espere que a pessoa o procure; vá
atrás dela, mesmo que a culpa não seja sua (5-23-24).
Jesus fecha a porta da vingança, até mesmo da vingança emocio­
nal feita por meio do distanciamento (5.38-42). Se estiver negociando
alguma coisa, não tente controlar as pessoas fazendo juramentos ou
prometendo mais do que pode cumprir (5.33-37).
Ele fecha a porta da vida oculta dos prazeres sexuais, quando lhe diz
para arrancar o olho que cobiça as mulheres com a intenção de usá-las
(5.27-30). Se fizer o que Jesus manda no capítulo 5, você começará a
se sentir espiritual.
No capítulo 6, Jesus trata da vontade que temos de parecer espi­
rituais. Ele nos manda ocultar a vida de oração para que não tenha­
mos a tentação de usá-la para passar uma imagem de espiritualidade.
Quando orar, faça-o em particular (6.5-8). Se jejuar, não deixe nin­
guém perceber (6.16-18). Se ofertar, não conte a ninguém (6.1-4).
Não use a espiritualidade como uma ponte para alcançar poder e
glória. Jesus fecha a porta que nos leva a construir uma identidade
sobre nossa própria retidão.
Depois Jesus fecha a porta que leva à segurança que se busca no
dinheiro. Ele diz para não se apegar ao dinheiro (6.19-24). Ao perder
a segurança que o dinheiro oferece, a pessoa se desespera e quer saber:
“E agora, quem vai cuidar de mim?” Jesus responde: “Seu Pai. O b­
serve os lírios do campo. Busque em primeiro lugar o reino do Pai”.
Além de abrir mão do dinheiro, também é preciso deixar de se preo­
cupar corjjj ele (6.25-34). Mais duas portas se fecham para a glória e
o poder humanos.
No início do capítulo 7, você passa a observar o mundo por um
novo ângulo, pois aprendeu a colocar Deus no centro da vida. Para
onde quer que olhe, verá pessoas envolvidas com uma porção de coisas.
Mas Jesus lhe dá um tapinha nos ombros e diz: “Pare de julgar as pes­
soas. Quando descobrir o pecado de alguém, não use o que descobriu
para repreender essa pessoa, mas sim para humilhar a si mesmo. Como?
Ora, retirando primeiro a trave de seu próprio olho”. Em vez de usar o
que sabe sobre a vida dos outros como uma arma espiritual, Jesus espera
que você use o que sabe para ir mais fundo e aprofundar seu próprio
arrependimento (7.1-5). Ai de mim! Como devo viver?
Ame Dê a
seu inimigo outra face

Oferte em segredo

A bre- se nova

PORTA DE ORAÇÃO

Ajunte tesouros / p
no céu

Não se preocupe Não julgue

Depois que fechar todas as portas, Jesus abre a porta da oração e


explica como ele consegue as coisas (7.7). Ele pede ajuda ao Pai. Con­
versa com o Pai e pede a ele o que deseja. A oração é o lado positivo da
vontade que se rendeu. Quando parar de fazer sua própria vontade e
passar a esperar em Deus, você conhecerá a mente do Pai e permanecerá
nele. Assim é a vida de oração.

Quem vai levar o lixo para fora?


Vejamos outro exemplo de como reconhecer que nossa vontade própria
é uma porta para a oração. Suponhamos que Joel, marido da Susana,
leve o lixo pra fora todas as terças-feiras. Esta tarefa é dele. Na semana
passada, ele se esqueceu de pôr o lixo para fora, o que também aconte­
ceu nesta semana. Normalmente Joel cumpre com responsabilidade essa
tarefa, mas Susana comenta: “Meu bem, você se esqueceu de novo de
levar o lixo para fora”. E enfatiza o de novo com uma ponta de irritação.
O que está por trás dessa irritação? Por que Susana teve neces­
sidade de enfatizar a expressão de novo! Porque levar o lixo para fora
atrapalha sua vida. Ela se atrasa para o trabalho. Se não acrescentar o de
novo, o marido vai continuar esquecendo. Se ele não perceber que isso
está virando rotina, ela vai acabar tendo que pôr o lixo na calçada pelo
resto da vida.
Observe a suposição que está por trás dos pensamentos da Susana.
“Tudo depende de mim nesta casa. Se eu não chamar a atenção do
Joel, ninguém chama”. Deus não está presente em seus pensamentos;
consequentemente, ela acredita que cabe a ela mesma fazer o marido
mudar de atitude. Caso contrário, ela teme ficar sobrecarregada pelo
esquecimento dele.
Susana fala por si mesma, usando a frase de novo com o intuito de
controlar o marido. Jesus, ao contrário, afirma: “Pois não falei por mim
mesmo; mas o Pai, que me enviou, ordenou-me o que dizer e o que
falar” (Jo 12.49). Susana usa as palavras para fazer sua própria vontade.
Ela se recusa a assumir a tarefa de levar o lixo para fora todas as terças-
feiras pelo resto da vida. Para ela isso é inadmissível.
Susana assumiu o controle de sua vida, determinada a deixar seu
próprio reino livre de sofrimentos. Mesmo se orasse, a oração seria ape­
nas outra arma em seu arsenal de controle. É bem provável que Deus
a decepcionasse, e ela acabasse magoada tanto com o marido quanto
com Deus. Ironicamente, a nossa vontade acaba se voltando contra nós
mesmos. O cônjuge repreendido se afasta; ele não só para de colocar o
lixo n í calçada como também para de abrir o coração.
Existem duas maneiras de conseguirmos fazer as coisas: orando ou
seguindo nossa própria vontade. Eu estou no centro da minha própria
vontade, esculpindo um mundo à minha imagem. Porém, Deus está no
centro da oração, esculpindo-me à imagem de seu Filho.
Nunca passou pela cabeça da Susana que Deus possa querer que
ela leve o lixo para fora pelo resto da vida, pois para ela isso significa
deixar que o marido a explore. Mas Jesus não vive recolhendo o “lixo”
da igreja? Essa atitude não é outra forma de amar o inimigo?
O que aconteceria se Susana abrisse mão da sua vontade? Ela não
tem a menor ideia. Como Deus vai interferir na vida do marido? O que
Deus quer fazer na vida dela? Que traves ela descobrirá em seu próprio
olho? Perdoar o marido significa perder o controle.
Se Susana abrir mão da sua vontade, ela se juntará a Abraão e
Isaque na caminhada para o monte Moriá. Ela se juntará a Davi na
caverna que, baixando a faca, poupou a vida de Saul. Ela permanecerá
em Cristo, abrindo mão de ter o controle da história.
Durante um tempo particularmente difícil em minha vida, perce­
bi que o fato de Deus ser minha fortaleza não significa que ele tenha
dado essa fortaleza para mim, mas sim que a fortaleza é ele mesmo
(veja SI 62.2). Se não fosse por Deus, eu estaria completamente sozi­
nho. Eu não queria isso, de jeito nenhum.
Quando Susana trocar a sua vontade pela comunhão da oração vai
sentir medo, como se estivesse pulando em queda livre. Mas na verdade,
ela estará deixando o alicerce instável de sua vontade própria e passando
para o alicerce estável de Deus. Estará colocando em prática a oração:
Venha o teu reino, faça-se a tua vontade. Em vez de tentar compor uma
história com suas próprias mãos, ficará feliz em deixar que Deus seja o
autor dessa história. Se o esquecimento do marido se tornar um hábito,
ela aprofundará a comunhão da oração. Provavelmente o lixo é como a
ponta de um iceberg na vida dele. Talvez Joel tenha problemas relacio­
nados à teimosia, à preguiça ou simplesmente ao egoísmo. Mas Susana
falará menos com o marido e mais com Deus. Também refletirá sobre o
que sente em seu próprio coração. Será que ela não age da mesma forma
em algumas áreas da sua própria vida? Ela verá Jesus do outro lado de
toda essa questão em torno da lata de lixo.
Não conseguiremos orar como devemos até lidarmos com a crian­
ça malcriada que vive dentro de nós. Quando reconhecermos que esta­
mos fazendo nossa vontade própria, as portas se abrirão para que tudo
aconteça por meio de Deus. Em vez de fazer tudo do nosso jeito, vamos
entrar na história de Deus e observá-lo fazer as coisas do jeito dele.
E ninguém trabalha como ele!
PARTE 4

PARTICIPANDO
DA HISTÓRIA
DO PAI
C a p ítu lo 19

OBSERVANDO
O DESENROLAR
DA H I S T Ü R Í Â

COM O NASCIMENTO DA Emily, em 1987, ficamos com um sério


problema de espaço no carro. As cinco crianças mais velhas mal cabiam
em nossa van compacta — os dois mais velhos tinham que se espremer
na parte de trás, sem cintos de segurança. Após dez anos morando no
centro da cidade, eu era agora diretor de uma agência missionária com
obreiros no exterior e que lutava para sobreviver. O dinheiro era escas­
so; então, decidimos fazer um empréstimo e comprar uma van maior,
usada. Com seis crianças e dois adultos ainda ficava faltando um lugar,
mas o Andrew (com 3 anos) e a Kim (com 6 anos) eram pequenos o
suficiente para compartilhar um único cinto de segurança.
A Emily passou a maior parte de seu primeiro ano de vida amar­
rada na cadeira de bebê num dos bancos da van. A Jill praticamente
vivia no carro, levando a Kim para fazer fonoaudiologia, fisioterapia e
consultas médicas. Nossa preocupação era que a parte de trás da cabeça
da Emily fosse ficar achatada!
Só percebemos o quanto a Emily gostava da van quando, tempos
depois, a transmissão quebrou e vendemos o carro para o nosso me­
cânico. Compramos uma van mais velha. Em mais de uma ocasião, a
Emily (na época com seis anos) mencionou saudosa a velha minivan; eu
e a Jill chegamos a comentar entre nós que esse era um lado da Emily
que desconhecíamos até então.
Alguns anos mais tarde, comecei a orar pela Emily quase todos os
dias, usando uma ficha de oração, para que ela não amasse “o mundo
nem o que nele há” ( l j o 2.15).

f^foãjy <4.18: 'Vip- amxyt, ►vôo- fa* mzâo-i j^lo-

Cotv&tÓAio-, o- jpenj^eito- amo>o eíi/ninx^ o- me/to-.

f^fo&o- 2 .1 5 ,1 6 : T Iã o - asnjtüy <y KZtn, o- íju/C. vjrfU- hí. S e -

aigiii/rv amaj o rrjjjrujjy, O. âx>*Pai/ não- tótá, yjá&. u£>tuÂo-


o- ^á/ wo- muyjLo-i o átóíjo- ia/ da^uve-, o áü>e^> (toir oí^oV e. o<i^mÍÍUv

á o i' á < *v V / kcLo- o € / 7 v áo- mai sim/ c£o m uj^do-.

O amor pelas coisas materiais não chegava a ser um pecado que


tinha tomado conta da vida da Emily. Era apenas uma pequena falha
de seu coração. Se um navio sai da rota apenas alguns graus, o desvio é
imperceptível no início, mas ao longo do tempo se torna uma grande
distância. Eu orava para que o coraçãozinho errante da Emily não se
distanciasse demais. Eu orava pela pequena Emily porque não podia
entrar em seu coração.

Somos moldados por nossas orações


Deus quer fazer algo maior do que simplesmente responder às minhas
orações. A oração atrai Deus para minha vida e começa a transformar a
mim — a pessoa que ora — de maneiras sutis.
Uma das primeiras coisas que percebi enquanto orava pela Emily
foi que me tornei mais consciente dela como pessoa. Também perdi
a ânsia de tentar consertar a menina com meus comentários rápidos.
Como estava conversando com meu Pai celeste sobre a possibilidade
de o coração da Emily vir a se distanciar dele, consegui me tranqüilizar
diante do pecado. A oração me abrandou.
Orar de maneira regular e comprometida sobre essa tendência
da Emily também determinou os tipos de carros que eu e a Jill com­
právamos. Em 2003, a transmissão do nosso carro ano 93, que estava
com quase 250 mil quilômetros, quebrou. De novo, vendemos o carro
para nosso mecânico. Nossos três filhos mais velhos já estavam moran­
do fora de casa, por isso a conta bancária estava um pouquinho mais
“folgada”. Pensamos em comprar nosso primeiro carro zero na vida,
e fomos a uma concessionária da Honda. A Jill gostou de um Honda
Civic; eu gostei mais de uma van. Na hora do jantar, conversávamos
sobre nossas preferências e notei que a Emily (na época com 15 anos)
ficou toda eufórica com a possibilidade de um carro novo. Seu prestígio
diante dos amigos subiria um pouco. Eu e a Jill trocamos um rápido
olhar, e, depois do jantar, conversamos em particular sobre a compra.
Emily estudava numa escola onde havia muitos alunos de famílias
abastadas, e a pressão para “dar uma de menina rica” estava começando
a mexer com ela. Chegar à escola num carro novo elevaria seu status.
Não queríamos contribuir para uma falsa identidade em sua vida nem
pegar dinheiro emprestado para comprar um carro. Assim, compramos
um sedã 96, da Toyota, que a Jill e nossos filhos mais velhos logo apeli­
daram de “carro de vovô”. E eu continuei orando para que a Emily não
amasse o mundo nem as coisas do mundo.

Enquanto não se convencer de que não consegue mudar


o coração de seus filhos, você não levará a oração a sério.
O amor que eu e a Jill temos pela Emily estava direcionando
nossas orações que, por sua vez, estavam moldando o modo como a
amávamos. Nossas orações não se distanciavam da grande história que
Deus estava tecendo em nossa vida e na vida de nossa filha. As orações
estavam nos alertando e determinando nossas decisões. Vou dar um
exemplo de como isso acontece.
Um ano depois de comprarmos o Toyota, a Emily poupou mil dó­
lares que havia ganhado com um trabalho temporário no McDonalds,
no meio do ano. Ela queria usar o dinheiro para comprar o Toyota
Corolla ano 90, da irmã mais velha. Mas isso só aconteceria depois que
a irmã e o marido fossem para Bangladesh, no fim do ano. Nesse meio
tempo, a vida social da Emily consumiu metade do dinheiro que ela
havia poupado. Perto do Natal, ela me pediu dinheiro emprestado e
prometeu pagar tudo dentro de “uns dois meses”, sem juros. Porém, as
regras que seguimos em casa são bem claras. Os pais fornecem o básico
e os filhos pagam pelos extras, coisas como carros e celulares. Assim,
minha resposta para ela foi negativa.
Algumas semanas depois, a Jill escutou a Emily orando por um
carro, derramando o coração diante de Deus. Sua oração nos sensi­
bilizou, especialmente porque demonstrava que o coração da menina
estava inclinado para Deus e não para coisas materiais — e, então, nós
emprestamos o dinheiro a ela.
Minhas orações pela Emily revelaram meu próprio coração.
Comecei a perceber que eu também amava o mundo e as coisas do
mundo. Mesmo minha mentalidade econômica era uma forma de
amar o dinheiro. A obsessão em poupar pequenas quantias de dinheiro
não é diferente da obsessão de ganhar muito dinheiro. Nos dois casos,
o fo co é o dinheiro. Também comecei a notar que costumava ser ex­
traordinariamente gentil com as pessoas que contribuíam para nosso
ministério. Isso também é uma forma de amar o dinheiro.
Já percebi que, quando Deus não responde a uma oração, é por­
que deseja revelar algo em mim. Nossas orações não existem num
mundo à parte, só delas. Quando oramos, falamos com um Espírito
divino e pessoal que quer nos moldar tanto quanto quer nos ouvir.
Se Deus agisse de imediato com as nossas orações, isso seria paganis­
mo, cuja crença ensina que os deuses realizam nossos desejos quando
oramos para eles.
Quando alguém diz que suas orações não foram respondidas, que­
ro logo saber a história toda. Quanto tempo essa pessoa orou? O que
Deus fez no coração dela quando ela orou? Como Deus estava agindo
na situação? Quase todos nós separamos a oração das coisas que Deus
está fazendo em nossa vida, mas não é assim que ele age. A oração não
existe num mundo espiritual etéreo; ela faz parte da trama de nossa
vida. A própria oração se torna a história.

Criar filhos e orar


É incrível como os livros sobre criação de filhos raramente mencionam
a oração. Por instinto, cremos que se conhecermos os princípios bíbli­
cos corretos e os aplicarmos com consistência, nossos filhos darão certo
na vida. Mas isso não funcionou para Deus no jardim do Éden, um
ambiente perfeito, com relacionamentos perfeitos; no entanto, mesmo
assim, dois filhos de Deus se enveredaram pelo mau caminho.
De início, muitos pais, inclusive eu mesmo, acreditam que podem
mudar seus filhos. Não cedemos à vontade da criança (o que é correto),
porém, tentamos dominá-la com a nossa vontade (o que é errado). Sem
perceber, nos tornamos dominadores. Somos levados por uma esperan­
ça de transformação verdadeira, todavia, achamos que essa transforma­
ção acontece por fazermos tudo certinho.
Enquanto não nos convencermos de que não conseguimos mudar
o coração de nossos filhos, não levaremos a oração a sério. O resultado
disso é que nos falta uma atitude de arrependimento. Por exemplo,
quando notamos que um filho está sendo voluntarioso, normalmente
não perguntamos: D e que m aneira mostro que tam bém estou sendo
voluntarioso? D e que modo demonstro m inha raiva? Queremos que Deus
nos ajude a dominar nosso filho. Esquecemos que ele não é o gênio da
lâmpada, mas uma pessoa que deseja nos moldar à imagem de seu Filho
tanto quanto deseja responder às nossas orações.
Os pais desta geração estão cada vez mais se encaminhando para o
extremo oposto e tornando-se passivos, permissivos. Costumam dizer
coisas como: “Meu filho sempre foi agitado” ou “ele faz birra desde
pequeno”. Essa passividade é reforçada por uma tendência da psicolo­
gia moderna de descrever os estágios da infância como se fossem um
padrão. Por exemplo, se uma criança de dois anos se comporta mal, a
mãe talvez não tome nenhuma atitude e apenas diga: “Ela está naquela
fase terrível”. A mãe caiu na armadilha dessa tendência da psicologia
moderna de ter explicação para tudo. Sua passividade é reforçada pelo
fato de ter conversado com a criança, ou até de ter lhe aplicado uma
disciplina, mas nada disso ter funcionado. Essa mãe lutou contra a
realidade, mas a realidade não cedeu. Tentou orar, mas não obteve
grandes resultados. Bateu de frente com a vontade de outra pessoa e
rendeu-se. Aceitou passivamente o mundo como ele é. Como os gre­
gos antigos, caiu na armadilha do destino. Quando deixamos que isso
aconteça, a vida passa a ter um caráter fixo e previsível. A oração não
faz mais sentido.
O gráfico a seguir resume as duas atitudes que nos impedem de
participar da história que Deus está escrevendo na vida de nossos filhos
(ou de qualquer um de nós). De início, normalmente tentamos assumir
o controle, mas depois, quando nos deparamos com os caprichos de
outro ser humano, entramos em desespero.
Se você estiver na trilha da atitude correta, também já terá desisti­
do — mas da maneira certa. Já terá desistido de sua vontade de mudar
os outros. Em vez disso, agarra-se ao Pai e o observa, enquanto ele tece
as tramas da história. Honestamente falando, eu e a Jill educamos me­
lhor nossos filhos por meio da oração.
Atitude de desespero: Atitude Correta: Atitude domiwadora:

N ão ten ho poder. Deus tem Eu te n h o poder.


A situ ação está fora poder. Deus Eu esto u n o controle.
d o controle está no c o n tro le.'

Foco: Foco: Foco:


Está no m odo co m o a outra Está em D eu s.TragdS Está no m od o com o a
p esso a n ão co n seg u e mudar. minha d e ce p çã o outra pesso a precisa m udar.
diante dele. C o m e ç o '
por minha própria
n ecessid ad e d e
m udança.

P apel da oraçAo: Papel da oraçào: P apel da oração:


Nulo. Eu já desisti de lutar. Central. Oro a um Deus É m ais um a arm a na
pessoal, por isso, p eço e m e m inha batalha.
rendo ao m esm o tem po.

Hockey no gramado e fé
Uma palavra resume nossas orações pela Emily: fé. Desejamos que a
força de sua vida venha de Deus, e não das pessoas ou coisas que a cer­
cam. Queremos que ela permaneça em Cristo. Vejam a história a seguir,
fruto de nossa oração.
A Emily adora jogar hockey no gramado, um jogo parecido com
o hockey no gelo, só que menos agressivo, e só requer onze jogadores
no campo. Na época da Emily, a equipe feminina da escola dela era
ótima e muito bem treinada. O time normalmente vencia em sua divi­
são e quase sempre participava do campeonato estadual. O técnico era
excelente, embora a Emily achasse que ele favorecia algumas jogadoras.
Num certo ano, Emily e suas amigas não estavam entre as favoritas, e
muitas vezes ela ficou o jogo inteiro no banco de reservas.
Certo dia, a mãe de uma jogadora, sabendo que o técnico esta­
va deixando as meninas de “molho” no banco, perguntou, enquanto
conversávamos no ginásio de esportes: “Não é demais o que o técnico
vem aprontando? Você não fica louco da vida?” Respondi: “Na verdade,
não. Somos agradecidos porque a Emily está passando por essa pequena
decepção enquanto está sob nossos cuidados. É uma oportunidade ma­
ravilhosa para ela crescer na fé. Ela aprenderá muito mais sobre Deus
no banco de reservas do que em campo”.
Essa mãe esperava que eu e a JilI ficássemos furiosos com o que
estava acontecendo com a Emily. O objetivo dela para sua filha estava
voltado para a realização da menina. Nosso objetivo estava voltado para
a fé da Emily. Por isso, víamos o esporte apenas como outro modo de
nossa filha aprofundar suas raízes em Deus. Eu via o banco de reservas
como uma resposta às minhas orações diárias para que a Emily não
amasse o mundo nem as coisas do mundo.
Não me interprete mal. É lógico que eu gostaria que minha filha
jogasse mais. O coração me doía ao olhar para o banco de reservas e
vê-la sentada o jogo inteiro. No entanto, a decepção era abrandada pela
certeza de que ficar no banco era uma excelente lição para a vida. A vida
está mais para ficar sentado no banco do que para ser a estrela do time.
Perguntei se Emily queria que eu conversasse com o técnico, e ela
respondeu que cuidaria disso sozinha. Falou com ele em várias oca­
siões, sem muito resultado. Contudo, fiquei exultante em ver que ela
conseguiu conversar abertamente com um adulto sobre o que parecia
uma injustiça.
Conversar com alguém que está acima de você e que de fato pode
estar sendo injusto com você aum enta suas chances de ser ainda mais
marginalizado. Aquela foi mais uma oportunidade para a Emily não vi­
ver de acordo com os caminhos do mundo. Foi outra resposta de oração.
No ano seguinte, durante as férias, Emily foi conselheira num
acampamento evangélico, e sua fé cresceu a olhos vistos. Ela nem par­
ticipou do acampamento do time de hockey. Quando voltou para casa,
ela não sabia se conseguiria jogar bem naquela temporada. O melhor
de tudo é que não estava preocupada com o que as amigas e o técnico
pensavam. Sabe o que aconteceu? Ela nunca jogou tão bem quanto na­
quele último ano do colegial. Perguntei-lhe o motivo, e ela respondeu:
“Não ligo mais para o que os outros pensam. Quero ser eu mesma”.
Porque estávamos orando com diligência pela Emily, consegui­
mos enxergar a grande trama que Deus estava tecendo por meio das
decepções que ela passava. Deus permitiu um pouco de sofrimento na
vida da Emily para que sua alma se ligasse à dele. Ninguém trabalha
como Deus!
C a p ítu lo 20

A M O R DE PAI

M EU RELACIO NAM EN TO COM A Emily não ia nada bem. Havia


um distanciamento cada vez maior entre nós. Ela vivia me criticando.
Em 2002, anotei em sua ficha de oração: A juda-m e a me aproxim ar
dela. Essa anotação estava umas linhas acima da anotação para que o
amor do mundo não substituísse o amor do Pai em sua vida. Eu não
fazia ideia do quanto estavam ligadas as imagens que a Emily tinha do
pai terreno e do Pai celeste.
Decidi colocar minhas orações em ação, e convidei a Emily para
me acompanhar em dois seminários que daria em San Diego. Nós nos
divertimos bastante juntos, mas a distância continuava. Em 2006, fiz
outra anotação em sua ficha de oração para que nos tornássemos mais
próximos. Eu não conseguia vencer o abismo entre nós; então orava.

Guatemala
Em setembro de 2007, eu e a Emily caminhávamos pelo quintal de
um orfanato na Guatemala, onde ela passaria nove meses. Enquanto o
sol se punha, ainda era possível enxergar a cerca de arame farpado no
topo do muro de três metros que cercava a propriedade. A Emily havia
decidido não começar a faculdade, e ir trabalhar com quarenta e cinco
crianças órfãs em Villa Nueva, na Guatemala. O orfanato ficava numa
favela, cercado por gangues.
Havíamos incentivado nossa filha a ir não somente porque o
orfanato precisava de ajuda, mas também para afastá-la dos ídolos da
adolescência: esportes, rapazes, aparência e amigos. Acima de tudo,
queríamos que crescesse na fé, que permanecesse em Cristo. A disposi­
ção da Emily de ir para a Guatemala foi outra resposta às nossas orações
para que ela não amasse o mundo; no entanto, grande parte da oração
continuava sem resposta.
Enquanto caminhávamos, de repente a Emily fez um comentário
ríspido sobre o fato de eu não permitir que ela tivesse um celular nos
Estados Unidos. Havíamos acabado de comprar um celular para ela
usar na Guatemala, e isso deve ter despertado sua irritação por não ter
tido um em casa. Eu já havia explicado a ela que poderia comprar seu
próprio celular, mas seria difícil arcar com as despesas com telefone e
carro. Mas como eu sabia que ela estava com medo de ficar sozinha
num país estranho, longe da família, dos amigos e de tudo que conhe­
cia, não disse nada.
Isto é, não disse nada para a Emily. Eu sabia que o fio que inter­
ligava seu medo, seu distanciamento de mim e sua vontade de ter um
celular era a fé. Ela caminhava um pouco à minha frente, então dimi­
nui o passo e orei: Deus, o Senhor precisa colocarf é na vida de Emily este
ano. N ão tem outra saída. Eu estava plenamente consciente da minha
incapacidade em fazer com que a fé crescesse em seu coração. Deus
teria de fazer isso. Ele não tinha outra saída. Estava amarrado à sua
própria promessa.
Será que essa era uma oração poderosa, aquele tipo de oração que
pede e reivindica as coisas a Deus? Não, na verdade era uma oração sem
poder algum. Orei porque era fraco. Não estava tentando controlar
Deus. E muito menos a Emily, pois eu certamente não tinha nenhum
controle sobre ela. Estava simplesmente orando a Deus sobre algo que
já estava no coração dele. Não acreditava que Deus fosse deixar essa
oração sem resposta.
Os nove meses seguintes foram os mais difíceis da vida da Emily.
Ela estava convivendo com quarenta e cinco crianças hispânicas, e seu
conhecimento do espanhol era mínimo. Deus usou o isolamento em
que ela se viu e o desafio que teve de enfrentar para fazer amizade com
adolescentes temperamentais para quebrantá-la repetidamente e atraí-
la para si. A Emily era outra pessoa quando voltou para casa.
Um ano depois, quando já estava na faculdade, Emily me pediu
para revisar o trabalho abaixo, escrito para uma das matérias que ela
estava cursando. O texto fala sobre uma das tramas que Deus teceu em
sua vida naquele ano fora de casa.

Todas as terças-feiras de manhã, na época do colegial, eu tinha ensaio da


banda de jazz. Numa dessas manhãs, eu estava atrasada. Devia ter saído
às 7 h l 5min e o relógio marcava 7h21m in. Meu pai já esperava no carro,
então peguei o rímel e saí correndo de casa, com a mochila nos ombros.

Sentei no banco da frente, e reclamei o tempo todo que não gostava de


tocar na banda, embora eu mesma tivesse decidido participar dela. Abai­
xei o espelho do passageiro, para passar o rímel. Mas a aba continuava
caindo, tampando o espelho e dificultando meu trabalho. Depois de a
aba ter caído três vezes, dei um empurrão tão forte que ela se quebrou.

Meu pai com eçou a falar sobre minha atitude. Quando paramos na
frente da escola, saí do carro mal-humorada e bati a porta, sem dizer
tchau nem agradecer.

Poderia tentar justificar meu com portam ento, no entanto, o motivo


verdadeiro era o meu coração. Eu estava amargurada porque a Kim ,
m inha irmã autista, parecia receber mais atenção do que eu. Eu me
sentia insegura na escola. N ão tinha roupas de grife, meu cabelo era
um desastre e estava cansada de não fazer parte da turma. Talvez tenha
sido a insegurança o que me levava a criticar meu pai sem dó nem
piedade. Porém, a razão principal era que eu não tinha o amor de Jesus
em meu coração.

No fim do colegial, decidi dar um tempo antes de entrar na faculda­


de, e fui para a Guatemala, ajudar num orfanato. Naquele ano, Deus
apontou várias áreas da minha vida onde eu havia erguido muros, lu­
gares onde não queria que ele entrasse.

Certo dia, conversava com uma voluntária que iria nos ajudar por
algumas semanas, e decidi lhe mostrar fotos da minha família. Meu pai
tinha um blog no site do trabalho, e eu sabia que havia fotos lá. En­
quanto passava por artigos antigos postados no blog, deparei-me com
fotos minhas tiradas num jantar do colegial (em junho de 2 0 0 5 ). Ao ler
os comentários que ele fez abaixo das fotos, o amor de meu pai por mim
tomou conta do meu coração. Quando as Lágrimas começaram a rolar, a
voluntária deve ter achado que eu estava louca. Lembrei-me de todas as
vezes que havia gritado porque ele fazia barulho ao mastigar, das vezes
que explodi dizendo que não o amava, das vezes que saí da sala batendo
os pés — não apenas naquele ano, mas durante quase toda a adolescên­
cia. Enquanto lia os comentários e olhava as fotos, senti-me totalmente
indigna de todo o amor, atenção, paciência e gentileza dele para comigo.

Sentada diante do computador, de olhos fixos na tela, meus pensa­


mentos se voltaram para Deus. O jeito de meu pai me amar retratava
o amor de Deus por mim. Meus pensamentos voaram para todas as
vezes que ignorei Deus em meus relacionamentos com as pessoas, nos
esportes, na música, em todas as áreas da vida.

Quando as coisas iam bem, eu ignorava a Deus; quando as coisas iam


mal, eu o culpava. Porém, nada do que eu fizera me separou do amor
de Cristo. “Mas Deus prova o seu amor para conosco ao ter Cristo
morrido por nós quando ainda éramos pecadores” (Rm 5.8 ). Eu, to­
talmente sem merecer, recebera o m aior presente deste mundo, a vida
eterna, por causa do amor e da graça de Deus para comigo.

Eu tenho o amor de um pai. Meu pai terreno mostrou, por meio de


uma simples página na internet, que não me ama por causa do que
faço ou deixo de fazer. Ele me ama porque sou sua filha. M eu com ­
portamento desrespeitoso não sufocou seu amor por mim. Isso era um
pequeno retrato do amor que meu Pai celeste tem por mim . Nunca en­
tenderei plenamente com o posso ser tão amada, especialmente quando
meu coração é tão feio e indigno de ser amado. Mas acho que é isso que
torna a graça táo maravilhosa.

Meus dois pedidos de oração — pelo relacionamento da Emily


com seu pai terreno e com seu Pai celeste — estavam interligados. A
revolução em um provocou a revolução no outro. Ao observar o de­
senrolar das histórias de Deus, fiquei de olho em seus pequenos toques
artísticos, em sua poesia.
Também fui atingido em cheio pela sabedoria de Deus em esperar
cinco anos para responder às nossas orações pela Emily. À medida que
seu coração se enternecia por meio da amizade e cuidado com os órfãos,
seus objetivos de vida foram se transformando. Ela mudou de faculda­
de e de carreira profissional. Sua vida tomou um rumo completamente
diferente. Deus esperou para tirar a venda dos olhos da Emily até ela
estar no ponto em que ele queria.
Quando orei para que a Emily não amasse as coisas do mundo, a
impressão que eu tinha é que ela estava sozinha no meio de um campo
cercado pelos ícones da sociedade adolescente moderna: namorados,
amigos, aparência, esportes e roupas. Jesus era uma recordação apagada
da infância.
Minha oração pela Emily parecia tão fraca, tão sem poder. Agora, as
palavras sussurradas suavemente em seu coração varreram para longe es­
sas imagens antes poderosas. A busca por popularidade fora substituída
pelo amor, pelo desejo de estar com quem não tem nada para oferecer. A
oração saíra vitoriosa. Assim como o apóstolo Paulo, posso testemunhar
que “Deu escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as for­
tes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as
que nada são, para reduzir a nada as que são” (IC o 1.27-28).
Imagens imperfeitas de Deus
E se o seu pai tiver decepcionado você? Algumas pessoas até se arrepiam
só de ouvir a palavra pai. Como ver Deus como pai se você teve um pai
distante, ausente ou violento?
A boa notícia é que o nosso Pai celeste prevalece sobre as falhas dos
pais terrenos. Leiam essa história de Ravi Zacharias, famoso evangelista
e apologista:

Conheci a Cristo no leito do suicídio, aos dezessete anos — desolado e


desesperado. Meu pai havia acabado de me dizer que eu era um fracasso
total. Tinha dito que eu nascera um fracassado. Alguém levou uma Bíblia
até minha cama. Sou muito agradecido porque meu Pai celeste permitiu
que meu pai vivesse o bastante para me escrever uma carta — pois ele
faleceu bem jovem — pedindo: “Será que você me perdoaria pelas coisas
que lhe disse?” Mas ainda assim, nas sombras da noite escura da alma,
percebi que o Pai celeste estava muito mais perto do que eu imaginava.'

Como vivemos num mundo caído, Deus tem de usar imagens im­
perfeitas de si mesmo, como os pais. Na verdade, todas as imagens que
Deus nos apresenta de si mesmo na Bíblia são defeituosas. Pense num
rei ou senhor. Quantos bons governantes você conhece? A experiência
dos primeiros cristãos com César não foi nada agradável, mas, mes­
mo assim, pegaram o título de César, “Senhor”, e aplicaram a Jesus,
chamando-o de “Senhor Jesus”.

Quando orei para que a Emily não amasse as coisas do mundo, a


impressão que eu tinha é que ela estava sozinha no meio de um campo
cercado pelos ícones da sociedade adolescente moderna: namorados,
amigos, aparência, esportes e roupas. Jesus era uma recordação apagada
da infância. M inha oração pela Emily parecia tão fraca, tão sem poder.

' Ravi Zacharias, “National Day o f Prayer Address”, 1 de maio de 2008.


Entender que nosso rei ou pai tem defeitos significa saber como
um bom pai deve ser. Por termos sido criados à imagem do Deus triúno,
sabemos instintivamente como um pai deve amar. Se não soubéssemos
como um bom pai deve ser, não criticaríamos os nossos pais.2 A psico­
logia moderna pode nos prender inconscientemente ao passado. Isso
não passa de outra forma de fatalismo que mata nossa capacidade de
perceber a história que Deus está tecendo em nossas vidas.
A Emily ainda pode apontar uma lista de minhas falhas como pai.
Fazer barulho ao mastigar certamente aparece no topo da lista! Um de
seus pedidos é que eu evite comer cenoura e batata frita na presença
dela. Deus usa as coisas fracas deste mundo — inclusive os pais — para
tecer a sua história em nossa vida.

2 David Powlison, T beJou rn alofB iblical Counseling \2, no. 1 (Outono de 1993): p. 2-6.
C a p ítu lo 21

ORAÇÃO NÃO
RE SP O NDIDA: E NT E N DA
OS CONTORNOS
DA HISTÓRIA

QUANDO A JIL L ESTAVA grávida da Kim, ela orava, citando o sal­


mo 121, e pedia que Deus protegesse o bebê. Junto ao salmo, anotou
a data (agosto de 1981) em que começou a fazer essa oração.
Quando a Kim nasceu, tudo deu errado. O médico injetou uma
dose muito grande do medicamento para induzir o parto e deixou a Jill
sem a menor assistência. Minha esposa havia tido três partos naturais,
mas esse era diferente. Ela estava com dores violentas. O médico não
retornou à sala de parto. A Kim nasceu com uma cor azulada e os re­
sultados dos primeiros testes das reações do bebê deram abaixo do nor­
mal. Para mim, o bebê tinha uma aparência estranha. De um telefone
público no hospital, liguei para os pais da Jill. “Tem algo errado com o
bebê”, disse, e cai no choro.
Não recebemos um diagnóstico claro do que havia de errado — e
só conseguimos obter um diagnóstico quando a Kim estava com deze­
nove anos. Assim, como a maioria dos pais de filhos deficientes, agía­
mos no escuro.
Não sabíamos se a menina havia sido machucada no parto ou nas­
cido com algum tipo de problema. Conversei com o administrador do
plano de saúde sobre o comportamento do médico, e ouvi: “É, ele não
é um bom médico”. Conversei com o médico sobre seu comportamen­
to, e ele ameaçou nos processar se fizéssemos alguma coisa. Eu e a JilI
éramos jovens, estávamos confusos e amedrontados.
Com o tempo, a JilI passou a detestar aqueles gráficos que des­
crevem o que seu filho deveria estar fazendo nesta ou naquela idade.
Alguns médicos nos encorajavam, afirmando que não havia nada er­
rado com a Kim. Outros, nem tanto. Um neurologista de um centro
médico importante até perguntou se a JilI havia batido na Kim.
Já estávamos sufocados com a grande quantidade de problemas
da menina, mas eles só aumentavam. Sua musculatura era fraca. Seus
olhos não focalizavam em nada. Ela teve pneumonia. Tinha dificulda­
des respiratórias, especialmente no inverno, e ficava letárgica quando
ligávamos o aquecedor central, que era a gás. O problema respiratório
era tão sério que usamos todas as nossas economias para converter o
aquecedor para eletricidade. Durante os vinte anos seguintes, pratica­
mente trabalhamos só para comer e pagar contas.
Foi uma agonia, especialmente para a Jill. Ela havia pedido que
Deus protegesse a Kim, mas t/nhamos um bebê enfermo em nossos
braços. A certa altura, sugeri à minha esposa: “Por que você simples­
mente não entrega a Kim para Deus?” Ela respondeu: “Paul, todos os
dias eu pego a Kim no colo, subo até os pés da cruz e depois viro as
costas e desço”. Teria sido mais fácil para nós se a Jill não tivesse orado
para que a Kim nascesse sã e salva. Na verdade, a promessa de Deus só
piorou as coisas. A esperança machucava.
O gráfico a seguir descreve o mundo em que vivíamos. A linha da
esperança representa nosso desejo de ter um filho normal, enfatizado
por nossas orações do salmo 121. A linha de baixo é a realidade de uma
criança doente. Estávamos no meio, no deserto, agarrados à esperança
de que a Kim, de algum modo, fosse normal, porém encarando a rea­
lidade de sua deficiência. Vivemos num mundo muito complicado.
Cada parte de nosso ser quer fechar esse espaço que separa a
esperança da realidade. Fazemos de tudo para não viver no deserto.
No início, a Jill teve dificuldade de aceitar as deficiências da Kim —
em parte porque não tínhamos um diagnóstico dos problemas e em
parte porque dói muito enfrentar a realidade.
O próximo gráfico descreve uma abordagem de negação do so­
frimento. É uma atitude repleta de esperança, mas que não enfrenta a
realidade. Por exemplo, alguns cristãos, fugindo do sofrimento, insis­
tem em dizer que foram curados por Deus, e então morrem de câncer.

NEGAÇÃO

TEMPO

Passado o choque inicial causado pelo sofrimento, nós resolvemos


dar um jeito no que está causando a dor. Você enfrentou obstáculos
enormes antes e venceu a todos, e desta vez não será diferente. Não vai
deixar pedra sobre pedra. Dinheiro não será problema. Tem certeza que
em algum lugar há alguém que sabe dar um jeito no que está errado.
Com base na sua força de vontade, e mobilizando-se em oração, você
vai dar um jeito nisso tudo.
O gráfico abaixo ilustra tentativas diferentes de fechar a distân­
cia que separa a esperança da realidade. Geralmente essa determina­
ção só consegue acrescentar outra camada de sofrimento ao que você
já está passando.

t
<
u-
2
DETERMINAÇÃO

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oc
LU
Q.
1/1
LU

O caminho da determinação ao desespero é curto, quando você


percebe que não conseguirá mudar a situação, o que quer que faça. É
doloroso manter a esperança diante do fracasso constante; então, para
acabar com a dor, você desiste de ter esperança.
A Jill lutou com a negação; eu briguei com a esperança. Achei que
tínhamos de aceitar a realidade, e pronto. Todavia, a esperança da Jill e
seu amor pela Kim levaram-na a tentar coisas novas. A Jill passou a me
chamar de incrédulo. Só depois de uns quinze anos é que passei a olhar
para a Kim e crer.
No gráfico abaixo, o desespero acaba com essa tensão entre espe­
rança e realidade. De um modo muito estranho, o desespero pode ser
reconfortante; no entanto, ele anda de mãos dadas com a descrença, e
ambos conseguem matar a alma.
DESESPERO
í<
^ AUSÊNCIA DE ESPERANÇA

a. REALIDADE
LU
Q_
UO
LU

TEMPO >

Por outro lado, as pessoas de fé vivem no deserto. Assim como


Abraão, elas têm consciência da realidade das circunstâncias, mas se
apoiam na esperança. Paulo explica que "Abraão (...) creu com esperan­
ça” (Rm 4.18). Mesmo diante da infertilidade e idade avançada de Sara,
Abraão continuou a ter esperança.

“E, sem enfraquecer na fé, considerou que seu corpo já não tinha vitali­
dade (pois já contava com cem anos), e o ventre de Sara já não tinha vida.
Contudo, diante da promessa de Deus, não vacilou em incredulidade;
pelo contrário, foi fortalecido na fé, dando glória a Deus” (4.19-20).

Abraão colocou sua vida na linha da esperança, mas nunca desviou


o olhar da linha da realidade. Mas ele também teve lá seus momentos.
Tentou sair do deserto, sugerindo a Deus que seu servo Eliézer fosse
adotado como filho (veja Gn 15). Sara também tenta acabar com a
distância que separa a esperança da realidade, pedindo que Abraão en­
gravide sua serva Agar (veja Gn 16).
Finalmente, quando Deus avisa Abraão que Sara ficará grávida,
ela, escutando atrás da porta, dá risada (veja Gn 18). Mais uma vez
Sara tenta transpor essa separação, desistindo de ter esperança. Um ano
depois, quando Isaque nasce, ela percebe que Deus transformou sua
descrença em alegria. Então, ela zomba da própria descrença, dando ao
filho um nome que significa “riso” (veja Gn 21).
A vida no deserto
A parte mais difícil de se estar no deserto é que não há porta de saída.
Você não sabe quando aquilo vai acabar. Não vê alívio por perto.
O deserto pode ser praticamente qualquer coisa. Um filho que se
desviou do caminho, um patrão insuportável ou até mesmo um pecado
ou uma tolice. Talvez você esteja casado com seu deserto.
Nossos desertos são feitos sob medida por Deus. Para José, o deser­
to foi ser traído e esquecido numa prisão do Egito. Moisés viveu qua­
renta anos no deserto de Midiã como proscrito. Os israelitas também
viveram no deserto quarenta anos. Ao fugir de Saul, Davi corre para o
deserto. Todos se agarram à esperança da palavra de Deus, mas enfren­
tam a realidade da situação em que se encontram.
O deserto é um tema tão forte na Bíblia que Jesus, no início de seu
ministério, revive a jornada do deserto, quando jejua por quarenta dias
debaixo das tentações de Satanás. Seu deserto está repleto da esperança
da ressurreição, porém, Jesus enfrenta a realidade de ver seu Pai lhe virar
o rosto na cruz.
O âmago da experiência do deserto acontece quando o Pai vira o
rosto, vira as costas para nós. A vida parece que terminou. Nada mais faz
sentido. Você pode não pensar em suicídio, mas reconhece que a morte
seria um alívio. Sobreviver no deserto com o pão da amargura oferecido
por Satanás é algo bastante tentador: você se sente tentado a manter uma
postura de distanciamento sarcástico e descrente diante da vida, encon­
trando uma alegria perversa em desprezar quem continua a ter esperança.

Cresça no deserto
No entanto, Deus leva para o deserto todas as pessoas a quem ama.
O deserto é a cura para os nossos corações errantes, que buscam sem
descanso um novo Éden. Veja como isso funciona.
Primeiro, desistimos aos poucos de lutar. Nossos desejos cedem
diante da realidade da circunstância em que vivemos. As coisas que nos
motivavam vão aos poucos morrendo. Nossos ídolos morrem de fome.
Foi isso que aconteceu com a Emily na Guatemala. Foi isso que acon­
teceu com a Jill em relação a Kim.
O ar seco e parado do deserto cria em nós uma sensação de de­
samparo que é crucial para o espírito de oração. Ficamos face a face
com nossa incapacidade de viver, de sentir alegria, de fazer coisas que
tenham um valor eterno. Somos esmagados pela vida.
O sofrimento extingue totalmente o falso ego gerado pela descren­
ça, pelo orgulho ou pela ambição. Você deixa de se preocupar com que
os outros pensam a seu respeito. O deserto é a maior esperança para a
criação de um ego autêntico.
A vida no deserto nos santiííca. Você nem percebe que está mu­
dando. Depois de passar um tempo no deserto, nota que está diferente.
O que antes era importante não tem mais valor. Por exemplo, antes do
nascimento da Kim, fazíamos um de nossos filhos pentear as franjas do
tapete da sala para que ficasse impecável. Agora, temos sorte quando
conseguimos encontrar tempo para pentear os cabelos.
Depois de um tempo, você percebe sua sede verdadeira. No deser­
to, Davi escreve:

“Ó Deus, tu és o meu Deus; eu te busco ansiosamente. Minha alma


tem sede de ti; meu ser anseia por ti em uma terra seca e exaurida, onde
não há água” (SI 63.1).

O deserto se torna uma porta para o coração de Deus. Ele acaba


conseguindo sua atenção porque é a única “celebridade” que resta.
Você clama a Deus tanto e tantas vezes que começa a se abrir um
canal de comunicação entre você e ele. No carro, você desliga o rádio
porque quer ficar a sós com Deus. Na cama, ora todas as vezes que
acorda no meio da noite. Quase sem perceber, aprendeu a orar sem
cessar. A água fresca e límpida da presença de Deus, que você encontra
no deserto, jorra como uma fonte em seu coração.
A maior dádiva do deserto é a presença de Deus. Vemos isso no
salmo 23. No início do salmo, o Pastor segue na minha frente — “guia-
me para as águas tranqüilas” (v. 2); no final, ele está atrás de mim —
“bondade e misericórdia me seguirão” (v. 6 );1 porém, no meio do
percurso, quando tenho de “andar pelo vale da sombra da morte”, ele
está junto a mim — “não temerei mal algum, por que tu estás comi­
go” (v. 4). A proteção do amor do Pastor me dá coragem para enfrentar
minha jornada interior.

O deserto floresce
Logo de início, eu e a Jill compreendemos que, por causa da Kim, Deus
estava nos tornando humildes, fazendo-nos mais parecidos com seu
Filho. A Kim salvou nossa família, a começar por mim. Deus a usou
para me despertar espiritualmente. Na época, eu estava pensando em
deixar a escola no centro da cidade, onde era diretor e professor, pois
queria expandir meu negócio com as declarações de imposto de renda.
Eu abrira outro escritório e percebi que podia ganhar dinheiro. Embora
não haja nada de errado com isso, ao mesmo tempo meu coração estava
se afastando de Deus. Após o nascimento da Kim, todos esses planos se
evaporaram e, seis meses depois, eu estava orando para ir trabalhar com
meu pai e ajudá-lo a organizar seu trabalho missionário. Mais tarde, ele
chamou a Jill para ajudá-lo. Fui como voluntário, e no final de 1983,
fundamos a World Harvest Mission. A agência missionária não existiria
se não fosse a dádiva da presença da Kim.
A pressão causada por um filho com autismo como a Kim — um
transtorno invasivo do desenvolvimento — pode ser sufocante. A pres­
são dessa condição, somada às outras frustrações, levou a Jill, em 1991,
a questionar meu amor por ela.
Esse foi o começo da minha jornada para a vida de Cristo, e que
me levou ao ministério seejesus.net e a escrever os estudos Love W alked
Among Us e The Person o f Jesus.

1 No hebraico, “me seguirão” significa “me procurarão”.


A Kim levou a Jill e a nossa filha Ashley a se tornarem professoras
de crianças com necessidades especiais. Agora passamos nossas férias no
acampamento “Joni and Friends” (fundado por Joni Erickson Tada),
voltado para adultos com deficiências. Jesus estava nos trazendo mais
para baixo, para onde ele estava.

Protegidos de todo mal


Lembra-se do problema respiratório da Kim? Dez anos mais tarde,
quando vendemos a casa, descobrimos que o aquecedor a gás não tinha
sido bem instalado. A condição frágil da Kim a deixava especialmente
sensível aos efeitos do monóxido de carbono que se espalhava pela casa.
Ela era como os canários que os mineradores antigos usavam para de­
tectar vapores perigosos no fundo das minas. Por causa dela tivemos de
trocar o aquecedor e isso impediu que sofrêssemos danos físicos.
Certa vez, quando a Kim estava com uns vinte anos, eu estava
preparando um estudo bíblico sobre o salmo 121 para ensinar ao nosso
pequeno grupo. Nem me lembrava mais da oração da Jill.
Levantei a cabeça e disse: “Jill, foi Deus. Ele nos protegeu de todo
mal. Ele tornou verdade o salmo 121.” Achávamos que o mal era ter
tido uma filha com deficiências, mas isso não era nada comparado ao
perigo de ter dois pais arrogantes e voluntariosos. Por causa do silêncio
da Kim, eu e a Jill aprendemos a ouvir. Sua fragilidade nos ensinou a
ser frágeis também.
A Kim trouxe Jesus para nossa casa. A Jill e eu já não podíamos
mais viver sem ajuda. Precisávamos de Jesus do começo ao fim do dia.
Pedimos pão. E em vez de nos dar pedras, nosso Pai nos preparou um
banquete no deserto. Obrigado, Senhor, p ela Kim.

Você clama a Deus tanto e tantas vezes que começa a


se abrir um canal de comunicação entre você e ele.
Quando não recebemos o que pedimos ou desejamos, isso não
significa que Deus não esteja agindo em nosso favor. Ao contrário, sig­
nifica que o Senhor está tecendo as tramas da história dele. Paulo nos
manda perseverar “na oração, nela permanecendo atentos com ações de
graças” (Cl 4.2). As ações de graças nos ajudam a voltar nossos olhos
para a graça, e então vemos que tudo é uma dádiva. Essa gratidão nos
faz ver como as bênçãos de Deus no passado impactam nossa vida. Se
ficarmos atentos, observaremos a história que se desenrola no presente.
Essa postura atenta busca descobrir a obra que Deus está realizando no
presente e que nos trará graça futura.2
Preste atenção na história que Deus está tecendo em sua vida.
Não fuja do deserto. O pai da Corrie ten Boom sempre a lembrava:
“O melhor está por vir”.3

2 “Graça futura” é uma expressão de John Piper.


3 Corrie ten Boom, In My Fathers's House. Grand Rapids: Revell, 2000, p. 79.
C a p ítu lo 22

com o D e u s se
APRES.ENTA NA
HISTORIA
QUANDO ESTAMOS ATRAVESSANDO O deserto, Deus nos pa­
rece distante. Desejamos desesperadamente que ele se revele de forma
mais clara, que nos explique a lógica daquela confusão toda que esta­
mos vivendo. Assim como Jó, perguntamos a Deus: “Por que escondes
o rosto?” (13.24). Para encontrar a resposta, vamos observar como
Jesus lidou com três mulheres que também sofriam dentro de uma
história que parecia sem sentido.

A mãe cananeia e sua pobre filha


O evangelho de Mateus conta a história de uma mãe gentia, uma ca­
naneia que não deu trégua a Jesus nem aos discípulos porque sua filha
estava endemoninhada e precisava de ajuda. Logo de início, Jesus não
se pronuncia; não manda a mulher embora nem tão pouco lhe dá aten­
ção. Ele é ambíguo de propósito. Apenas ouve.
Os discípulos se sentem incomodados com a situação e pedem a Jesus:
“Manda-a embora, porque vem gritando atrás de nós” (15.23). É provável
que soubessem que fora outra mulher cananeia, Jezabel, quem havia in­
troduzido o culto satânico em Israel. Ela estava recebendo o que merecia.
Jesus ignora os discípulos. Em vez de mandar a mulher embora,
ele aumenta ainda mais sua confusão, pois fala com ela, mas, ao mesmo
tempo, levanta entre eles um muro, ao fazer referência à barreira étnica
que havia entre ambos. Jesus afirma: “Eu fui enviado somente às ove­
lhas perdidas da casa de Israel” (15.24).
Aproveitando a brecha, a mulher se atira aos pés de Jesus e suplica:
“Senhor, socorre-me!” (15.25). Ela ignora o significado do que Jesus
dissera e concentra-se no fato de ele finalmente reconhecer sua presen­
ça. A atitude de Jesus fala mais alto que suas palavras.
A reação de Jesus é de enlouquecer. Ele continua a ser ambíguo,
e levanta outra barreira: “Não é justo tomar o pão dos filhos e jogá-los
para os cachorrinhos” (15.26). Porém, ao mesmo tempo, dá mais um
passo em direção à mulher, ao conversar com ela que, não levando em
conta mais uma vez o que ele dissera, dá uma cartada de mestre: “Sim,
Senhor, mas até os cachorrinhos comem das migalhas que caem da
mesa do dono” (15.27). A mulher tinha vencido o embate. Ela sabia
disso e Jesus também. Como Jesus, com seu coração receptivo, poderia
resistir ao total desamparo dessa mãe? O Mestre se maravilha diante de
sua fé e entrega a ela um grande prêmio: “Mulher, grande é a tua fé! Seja
feito a ti como queres” (15.28).
Se Jesus agisse como se fosse uma máquina mágica de oração, teria
curado a menina instantaneamente, e não teríamos tido oportunida­
de de conhecer o espírito audacioso e inventivo da mulher. O mesmo
acontece conosco, pois a ambigüidade de Jesus abre espaço não somen­
te para que ele se revele, mas também para que nós nos manifestemos.
Se o milagre for feito muito depressa, não deixa espaço para a descober­
ta, para o relacionamento. Tanto no caso da mulher quanto tio nosso
Jesus se envolve num relacionamento divino, atraindo-nos para si.

Quando persistimos em meio ao vazio espiritual, quando


resistimos à ambigüidade, então conhecemos a Deus.
A espera, que é a essência da fé, fornece o contexto desse relaciona­
mento. Fé e relacionamento se entrelaçam como em uma dança divina.
Todos concordam que oração é relacionamento, mas quase sempre o
que têm em mente é o calor do colo de Deus. Embora não haja nada
de errado com esse colo, o relacionamento é algo bem mais rico e com­
plexo que isso.

Outra mãe e sua pobre filha


Eu vi Jesus fazer a mesma coisa com outra mãe e sua pobre filha. Por
mais de vinte e cinco anos, a Jill lutou com Deus pela Kim. Todas as
semanas, durante o culto doméstico, a Jill orava por força e fé — força
para chegar ao fim do dia e fé para não desistir. O restante da família
nem perguntava mais se a Jill tinha um pedido de oração. Todo mundo
já sabia qual era.
Veja o que motivava a Jill a pedir fé. Quando descobriu que estava
grávida de nosso sexto bebê, a Emily, ela escreveu o seguinte em seu
diário (a Kim estava com cinco anos de idade na época):

Tenho 3 2 anos. Meu Deus! Fico imaginando o que acontecerá este


ano. Talvez a Kim comece a falar? Tem sido muito duro para mim ver
tão pouco progresso nela. Ela está sendo submetida a uma avaliação no
Hospital Infantil da Filadélfia. E muito difícil saber o que ela é capaz
e o que não é capaz de fazer. Tudo isso é muito difícil...difícil de ver e,
ainda assim, continuar acreditando que Jesus ama a nós duas, e que me
ouve suplicar para que a saúde da Kim continue melhorando. N a ver­
dade, é a fé que está em risco — o sofrimento já se tornou uma questão
secundária. Som ente falar de minhas necessidades a Jesus e deixar tudo
em suas mãos já é um esforço enorme — especialmente quando vejo a
luta diária da Kim. Isso me dilacera o coração.

Dois dias mais tarde, após a consulta no hospital infantil, a Jill


escreveu: “Dê-me fé para deixar tudo isso em suas mios. Por favor,
ajude-a a falar”. E o diário silencia. Só dez anos mais tarde é que a Jill
teve fé e energia para voltar a escrever no diário de oração. Duas déca­
das se passaram antes de a Kim começar a falar; ela estava com vinte
e cinco anos quando falou. Durante esse tempo todo Deus deixou a
Jill confusa, para que sua fé e capacidade de se relacionar com ele au­
mentassem. Para se tornar como uma criança, a Jill precisava tornar-se
frágil novamente.
A maneira ambígua de Jesus interagir com a Jill e a mulher cana-
neia é como um curso sobre oração. Deus permitiu uma situação difícil
na vida dessas duas mães, e ficou à margem. Não se colocou no meio
da situação, mas sim ao lado. Se estivesse no meio, se as duas o vissem
constantemente, elas não teriam desenvolvido essa fé que leva a um ver­
dadeiro relacionamento com ele. Deus teria agido como se fosse uma
máquina mágica de oração, e não como o amigo e amado.
Quando Deus parece calar-se, e nossas orações não são respondi­
das, ficamos bastante tentados a abandonar a história — a abandonar
o deserto e tentar criar uma vida normal. Mas quando persistimos em
meio ao vazio espiritual, quando resistimos à ambigüidade, então co­
nhecemos a Deus. Na verdade, é assim que a intimidade cresce em
todos os relacionamentos.

Maria Madalena em um pequeno deserto


Jesus trata Maria Madalena de modo parecido quando a encontra no
domingo de Páscoa, pela manhã. Ao cumprimentá-la junto ao túmulo,
Jesus oculta propositadamente sua identidade, e depois faz Maria extra­
vasar seus sentimentos com uma pergunta: “Mulher, por que choras? A
quem procuras?” (Jo 20.15).
É típico de Jesus fazer uma pergunta genuína mesclada com uma
repreensão carinhosa. Maria não precisa chorar, pois ele está vivo. Jesus
se coloca à margem da história, não querendo sobrecarregá-la, para que
uma Maria mais sábia, mais plena, venha à tona. Jesus permite que o
sofrimento dela continue por uns instantes, pois deseja se encontrar
com Maria como pessoa.
Ela responde, achando que fala com um jardineiro: “Senhor, se
tu o levaste dize-me onde o puseste, e eu o levarei” (20.15). Claro que
Maria não pode “levá-lo”; ela é fraca fisicamente. O que ela quer dizer é
que tem servos ou amigos que podem fazer isso. Ela sabe como resolver
as coisas. Ela tem dinheiro, acesso a pessoas e autoconfiança de sobra.
Lucas afirma que Maria Madalena, juntamente com outras mu­
lheres, “os serviam [a Jesus e discípulos] com seus bens” (8.2,3).
Caso Jesus tivesse se revelado de imediato, nunca teríamos conheci­
do esse lado administrador de Maria. O novo Adão é um jardineiro
sensível, carinhoso.
Jesus anuncia sua presença apenas chamando-a pelo nome: “Maria”.
Ou seja, “Maria, para de correr, de planejar. Eu estive aqui o tempo
todo, à margem da história. Sou tudo o que você precisa”. É caracterís­
tico de Jesus se identificar de modo tão simples, tão sutil. É pura poesia.
Quem não gostaria que Deus fosse mais visível? Temos a impressão
de que, se o víssemos com mais clareza ou se soubéssemos o que está
acontecendo, a fé viria com mais facilidade. Porém, se Jesus dominasse
0 cenário e deslumbrasse nossa visão, não conseguiríamos nos relacio­
nar com ele. Na Bíblia, todas as pessoas que tiveram uma visão clara de
Deus caíram ao chão, como se estivessem mortas. É difícil se relacionar
com essa luz puríssima.
Leiam esta descrição da ressurreição de Jesus, registrada no Evange­
lho de Pedro, livro apócrifo escrito cem anos depois do acontecimento.

[Os soldados que guardavam o túmulo] viram três homens saírem dele;
dois deles amparavam o terceiro, e uma cruz seguia atrás deles. A ca­
beça dos dois homens que os soldados viram alcançavam o céu, mas
a cabeça daquele [Jesus] que estava sendo amparado ia além do céu.1

1 Evangelho de Pedro 10.2-3.


Dá para ver que esse é um dos falsos evangelhos gnósticos, pois é
muito voltado para “o além”. Como vimos anteriormente, o pensamen­
to grego não apreciava o mundo físico. Assim, tentou criar um Jesus
etéreo. Nesse relato, a cabeça de Jesus está literalmente nas nuvens. Ele
é tão grande que precisa da ajuda de dois anjos para ficar em pé. Tama­
nha imensidão não deixa espaço para relacionamentos. Não há como
nos relacionarmos com um Jesus como esse. Esse conceito de Jesus não
deixa lugar para a fé.
Em meio ao sofrimento, desejamos que Deus fale claramente, que
nos conte o fim da história e que, acima de tudo, revele-se a nós. Mas
caso ele se revelasse de modo completo e imediato, se respondesse a
todas nossas perguntas, jamais cresceríamos; nunca deixaríamos nossa
crisálida porque seriamos dependentes por toda a vida.
A Jill passou por uma profunda mudança em sua espera de vinte
anos. Se Deus tivesse explicado tudo logo para ela e curado a Kim, essa
mudança não teria acontecido. Ninguém trabalha como Deus. Ele ama
nossa alma com tão grande paixão!
C a p ítu lo 23

O R A R SEM T E R
U M Ar.H I S T Ó R I A

O QUE ACONTECE QUANDO você acha que sua vida não é uma
história que está sendo escrita pelo Pai? Leia a seguir a história de
Joanne, contada por Philip Yancey.

Q uando era jovem, se alguém perguntasse se acreditava em oração, na


mesma hora eu diria que sim. Contaria sobre a vez em que escorreguei
na neve e saí ilesa, ou quando passei horas procurando a chave do carro
e só a encontrei depois de orar. Sei lá, talvez Deus cuide dos crentes
novos. Mas acho que ele não se importa muito com os mais velhos.

Posso fazer uma lista de centenas de orações que não foram respon­
didas. E não estou falando de pedidos egoístas, mas de orações im ­
portantes: Senhor, cu id e d e m eus filh o s, m an ten ha-os lon ge das m ás
com pan hias. Todos os três se encrencaram com a polícia por causa de
drogas e bebidas.

Para dizer a verdade, a parábola de Jesus sobre a viúva persistente que


azucrinou o juiz tem um sabor amargo. Milhares de pessoas oram por
um líder cristão que está com câncer, e ele morre. O que Jesus quis
dizer com essa parábola, que temos de continuar batendo a cabeça
na parede?
Já faz um tempão que vivo na beira do abismo. Não nego que tive
momentos de intimidade com Deus, que senti sua presença, e são essas
lembranças que me impedem de abandonar tudo de vez.

Em duas ou três ocasiões, ouvi Deus falar comigo. Um a vez foi quase
audível. Eu era jovem, havia terminado a faculdade, e estava indo para
o hospital porque havia acabado de saber que tinha leucemia, e estes
versículos de Isaías me vieram com muita clareza à mente: “Não te as­
sustes, porque sou o teu Deus; eu te fortaleço, ajudo e sustento com a
minha mão direita fiel” [4 1 .1 0 ]. Agarro-me a essas poucas lembranças,
e não recebo mais nada, nenhum sinal recente de que Deus ouve.

Acho que só uns 2 0 por cento das minhas orações são respondidas do
jeito que espero. C om o tempo, acabo desistindo. O ro só pelas coisas
que acredito que vão acontecer, ou então simplesmente não oro. Leio
meu diário e vejo Deus agindo cada vez menos. Fico louca da vida.
C om o uma criança, calo a boca. Adoto uma atitude passiva e ao mes­
mo tempo agressiva com Deus. Deixo Deus de lado. Talvez mais tarde
a gente converse.

Procurei um conselheiro e abri meu coração, descrevendo os detalhes


de tudo o que vivi nos últimos anos em relação à saúde e principalmen­
te com meus filhos. “O que faço?”, perguntei a ele. O conselheiro ficou
calado um tempão, e respondeu: “Não sei, Joanne”, e deu um suspiro.
Eu queria ouvir palavras de sabedoria. Não ouvi nada. O mesmo acon­
tece com a oração.1

Meu coração chora por Joanne. Sua vida não tem sido fácil. Leu­
cemia quando ainda estava na faculdade. Problemas com os três filhos e
uma profunda decepção com Deus. Muitos salmos ecoam a súplica do
coração da Joanne: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
(SI 22.1). Na cruz, o próprio Jesus expressa a agonia da Joanne.

1 Philip Yancey, Prayer: Does It M akeAny Difference? Grznd Rapids: Zondervan, 2006,
p. 64-65.
Sei como é sentir-se abandonado por Deus. Durante um ano em
particular, vivi essa agonia. Não houve uma única semana em que eu não
caísse no choro. No fim daquele ano, comecei a especular se não havia
compreendido mal a Deus. Será que minha visão de seu coração bondoso
estava distorcida? Será que havia superestimado a graça de Deus?
Não gostamos da confusão que as orações não respondidas provo­
cam nem de respostas de oração diferentes daquilo que pedimos. Um
coração aflito, como o de Joanne, nos causa desconforto. Sua história
nos faz ver como a oração é algo difícil de se perceber.

Refletindo sobre a história


Se eu fosse a pessoa que aconselhou Joanne, primeiro gostaria de conhe­
cer sua história. Acho que ela mostrou apenas a ponta do iceberg. De
que modo pecaram contra ela? Foi negligenciada pela igreja ou pelo ma­
rido? Teve de se virar por conta própria? Teve de criar os filhos sozinha?
Por outro lado, como é que Joanne havia pecado? Fez escolhas que con­
tribuíram para os problemas dos filhos? O que fez assim que notou os
primeiros sinais de problemas? Não estou querendo dizer que, se os pais
fizerem tudo certo, então Deus protegerá os filhos. Até mesmo Deus
tem problemas com seus filhos. Porém, só conhecemos um lado da his­
tória da Joanne. Ouço ela dizer “pecaram contra mim”, mas não a ouço
dizer “eu pequei”. Do jeito que ela fala, Deus é o único vilão da história.
Se a Joanne desse chance para perguntas, gostaria de saber o que
ela pensa da oração. Ela fala como muitos crentes, separando a oração
do restante da vida, como se a oração existisse num vácuo, como um
satélite que gira em torno da Terra. Não vejo nenhum traço na história
que mostre de que modo a oração da Joanne está ligada aos outros
aspectos do seu viver. A vida de oração é inseparável da obediência, do
amor, da espera e do sofrimento.
Ela diz ter doces recordações de oração. Afirmou: “...senti a pre­
sença de Deus, e são essas lembranças que me impedem de abandonar
tudo de vez”. Essas lembranças nos incentivam; todavia, se a experiên­
cia se tornar um fim em si mesma, Deus se transforma num objeto à
minha disposição. Não é de admirar que Deus responda a apenas 20
por cento das orações dela.
A parte mais difícil de lidar com a Joanne é a sua amargura. De­
sespero e descrença estão presentes em quase todos os parágrafos de sua
história. Será que ela não ficou propensa à amargura devido a algum
ensino equivocado que desconectou a oração da vida real? Será que a
amargura da Joanne não contribuiu para os problemas dos filhos? Ela
falou sobre a distância entre os filhos e Deus e, então, reconheceu que
também está distante dele.
Pode ser que Joanne seja um Jó dos dias atuais, suportando so­
frimentos sem sentido, dos quais não é culpada. Jó, porém, não se
amargurou. Nunca fechou o coração. Sua fé sólida se expressou em
declarações abertas da própria inocência. É preciso fé para sustentar
sua inocência, quando seus três melhores amigos acreditam que você é
culpado. Jó, repetidamente, pede que Deus se explique. Jó se põe cara
a cara com Deus. Mas Joanne, como ela mesma reconhece, se afastou
dele. Um é fé pura; o outro não. Um tem certeza que Deus está tecendo
uma história mais ampla; o outro não.
Se não nos entregarmos a Deus nas decepções, como fez a mulher
cananeia, a descrença toma conta e nossos corações vão endurecendo.
Nós nos transformamos em mortos-vivos.
O gráfico abaixo mostra duas formas de abordar a vida de oração.

Sem ter uma história Com uma história


amargura espera
raiva atenção
incerteza reflexão
descrença oração
controle submissão
desesperança esperança
ingratidão gratidão
acusação arrependimento
Outra história tecida por Deus
Eu adoraria contar para Joanne a história dos vinte e cinco anos que
Deus levou respondendo nossas orações para que a Kim falasse. Descre­
veria a sincronia entre as orações que fazíamos e a Kim desenvolvendo
lentamente uma maneira de se comunicar depois da outra. Foram anos
de trabalho, oração, fracassos, frustração, mais trabalho, mais oração,
progresso, trabalho, oração, e assim por diante. Vimos reiteradamente
a provisão de Deus, muitas vezes no último minuto. Mas Deus nunca
agiu sem antes nos deixar mais humildes.
Em 1993 a Jill conseguiu ajuda financeira através da escola para com­
prarmos um sintetizador de voz para a Kim. Depois do entusiasmo inicial,
o computador ficou na estante. Aprender a lidar com 128 teclas e uma lín­
gua composta de três mil palavras era demais para nós e para Kim. Mesmo
que a Kim aprendesse a linguagem, não tinha capacidade de formar uma
sentença coerente, e nem tínhamos certeza se conseguiria isso um dia.
Na metade do ano de 1996 Kim ia bem na escola com a ajuda de
um intérprete da linguagem de sinais. Eu queria usar meu tempo livre
para escrever um livro sobre Jesus e seu amor por nós. Enquanto orava
sobre o assunto, fui assaltado por este pensamento: Paul, como é que você
pode fa la r de mim quando a Kim não conseguefalar*. O pequeno desafio à
integridade do meu caráter tinha o toque de Deus. Ele exigia que minha
vida privada, em família, estivesse de acordo com minha vida pública,
no ministério. Ele não queria um ministério público atuante, voltado
para o amor (o livro), e um ministério particular inacabado (a mudez da
Kim). Não queria que a vida exterior fosse mais importante que a inte­
rior. Não queria que eu desenvolvesse uma dupla personalidade.
Assim, deixei de lado os planos para escrever o livro e comecei a
procurar maneiras de ajudar a Kim a usar o computador. Logo após um
período de oração, recebi um boletim evangélico que mencionava um
curso para quem usava sintetizador de voz, dirigido por um dos pionei­
ros da área. Eu e a Kim passamos uma semana fazendo o curso, imersos
no uso do sintetizador. Ver outras crianças usando seus computadores
desfez um pouco da esquisitice de ouvir aquela voz eletrônica.
Quando as aulas recomeçaram em agosto, pedimos ao diretor que
reabrisse o programa de educação individualizada para a Kim, para que
ela aprendesse a linguagem falada do computador.
Dávamos a ela todas as oportunidades de falar por meio do com­
putador, como orar às refeições, por exemplo. Às vezes, num restauran­
te, não percebíamos que o volume estava alto demais. O computador
berrava: “JESU S, OBRIGADA POR ESTE A LIM EN TO ”. Quando
isso acontecia, nossos filhos adolescentes tentavam inutilmente se tor­
nar invisíveis, escorregando cadeira abaixo. Certa vez Andrew puxou a
Emily de lado e disse: “Pode esquecer. Você nunca vai fazer sucesso com
a Kim por perto”.
Pouco a pouco as sentenças da Kim foram ficando mais claras. Ela
começou a “falar” com sua voz eletrônica — o que era divertido, pois
podíamos manipular o sintetizador para deixar sua voz parecida com a
da Olívia Palito ou do Pato Donald.
Um ano depois de eu ter colocado de lado o plano de escrever,
Linda, uma amiga que não sabia nada a respeito do livro, me ligou de
surpresa: “Paul, tenho um amigo que é um escritor talentoso e vai dar
um curso sobre criação literária. Você tem interesse?”
E as “coincidências” foram acontecendo. Numa visita de encora­
jamento a um pastor que lutava contra a depressão, descobri que ele
conhecia um editor evangélico de renome. Num retiro em que fui pa­
lestrante, fiquei amigo de uma escritora indiana que havia estudado em
Oxford. Concordei em lhe dar um curso de discipulado se editasse o
livro que eu queria escrever.
As portas, então, se abriram para que eu fizesse o seminário, onde
comecei a escrever sobre a vida de Jesus. Três anos após Deus ter impe­
dido meus planos, assinei o contrato para escrever “Love W alkedAmong
Us”. Seis meses depois, uma oferta generosa de alguns bons amigos
permitiu que eu me dedicasse a escrever em tempo integral.
No meu caso, buscar primeiro o reino de Deus significou não
escrever publicamente sobre Jesus, mas sim realizar um trabalho oculto
de amor. Quase todas as portas que se abriram antes de eu escrever o
livro apresentavam um pequeno teste de integridade.
Para que a Kim conseguisse falar mais claramente, o Pai atrasou,
de propósito, um livro sobre a beleza de seu Filho. Deus colocou a Kim
à frente da glória a seu próprio Filho. Não entendo esse tipo de amor.
Mas acho que tem tudo a ver com a cruz.
Consegue perceber a diferença entre fazer uma oração isolada e
orar no contexto da história que Deus está escrevendo? Deus respondeu
nossa oração para que a Kim falasse, mas a resposta estava interligada
ao arrependimento, ao serviço, à maneira como foi administrando as
coisas e à espera. A maioria de nossas orações é respondida no contexto
da história mais ampla que Deus está tecendo em nossa vida.

Vivendo a história do Pai


Viver a história do Pai significa viver em suspense. (O livro vai sair?
Como a Kim vai falar se não consegue formar nem uma sentença?)
Afinal, suspense e obstáculos intransponíveis fazem parte de uma boa
história! Se a oração funcionasse como num passe de mágica, a vida
seria um tédio só. Não haveria relacionamento com Deus, nem vitória
sobre pequenos pontos de maldade.
Para viver a história do Pai, lembre-se destas três coisas:

1. Não exija que a história siga o enredo que você planejou. (Re­
sumindo, renda-se totalmente.)
2. Preste atenção no Autor da história. Procure pela mão dele,
e então ore à luz do que está vendo. (Resumindo, aprenda a
ficar de olho em Jesus.)
3. Continue na história. Não feche o livro, quando o enredo
tomar um caminho diferente.
Continuar na história pode ser algo particularmente difícil. Quan­
do a história não estiver do jeito que você gosta, pergunte-se: O que
Deus está fazen do? E prepare-se para receber as dádivas mais estranhas.
Deus adora nos surpreender com bebês enrolados em panos, deitados
em manjedouras.
Muitas vezes quando dizemos que “Deus está calado” o que está
de fato acontecendo é que ele não contou a história do jeito que que­
ríamos. Deus ficará em silêncio quando pedirmos que ele preencha as
lacunas da história que nós estamos criando. Mas dificilmente ele se
cala em suas próprias histórias, aquelas em que nós vivemos.
O caso a seguir resume bem o que quero dizer. Em um acampamen­
to para crianças deficientes em que fui palestrante, uma das voluntárias
achou que tinha sido acusada injustamente por um dos pais. Depois de
ouvir sua história, ofereci-lhe encorajamento e disse: “Agora você pode
servir a Jesus, e não aos pais”. Como havia passado por situações seme­
lhantes, fiquei alegre por ela. Não existe nada melhor para acabar com o
orgulho de se sentir justo do que servir a alguém que critica você.
Para vermos o Autor da história, temos que acalmar nossa vida in­
terior e prestar atenção. Temos que mergulhar na Palavra para conhecer
a mente do Autor e seguir o ritmo de sua voz. Temos de ficar atentos à
história, à voz do Autor, ao que ele fala sobre os detalhes de nossa vida.
A história que Deus tece não é esquisita nem etérea. Sempre exige que
nos curvemos diante da majestade de Deus com os cacos de nossa vida.

Preste atenção no artista divino


Para explicar o que quero dizer, vou refletir um momento sobre a histó­
ria que Deus estava tecendo na vida de José.
A vida de José, assim como a da Joanne, é marcada por decepções.
Os irmãos invejosos o venderam por vinte moedas de prata, arrancaram
sua túnica multicolorida e depois a usaram como “evidência” de que ele
estava morto. Quando ele pensa que a vida vai dar uma guinada para
melhor, a esposa de seu dono arranca-lhe outra túnica, que é usada
como “evidência” de que ele tentou violentá-la. José acaba na prisão,
sozinho e esquecido (veja Gn 37,39,40).
Mas preste atenção na história que Deus está compondo. José per­
de duas túnicas enquanto está aprendendo a ser humilde; nas duas ve­
zes, as túnicas são usadas como prova de uma traição. Mas duas vezes,
quando é exaltado por Deus, José recebe uma túnica nova do Faraó.
Obviamente José percebe que Deus está tecendo uma história com
essas túnicas e as moedas de prata, pois quando seus irmãos chegam,
José entrega uma túnica e um punhado de moedas de prata a cada um
deles. Ele conclui a história de sua vida abençoando os irmãos com os
mesmos objetos que haviam roubado dele (veja Gn 41— 45).
José não se entregou à amargura e à descrença; ao contrário, en­
contra o coração gracioso de Deus e estende graça àqueles que o preju­
dicaram. O perdão flui de seu coração.
Quando presenteou os irmãos com as túnicas, José se tornou um
artista. Ele percebeu os temas usados por Deus em sua vida e levou-os
adiante. Usou o pincel de Deus e terminou o quadro, pois havia apren­
dido a seguir os traços do Pai.

Quando a história não estiver do jeito que você gosta,


pergunte-se: O que Deus está fazen do? E prepare-se para
receber as dádivas mais estranhas.

Observe a mão do artista na história de como a Kim aprendeu a


usar o computador. Quando me veio à mente o pensamento como você
pode fa la r de mim quando a Kim não conseguefalar?, o verbo fa la r foi usa­
do em dois sentidos para revelar uma área do meu coração. (O primeiro
fa la r refere-se a escrever, proclamar. O segundo fa la r é literal e refere-se
ao ato de falar.) Foi uma frase poética. Observe a arte divina em “quando
voltei minhas forças para o coração de Deus [ajudando a Kim a falar],
Deus inundou meu coração com sua força [ajudando-me a escrever um
livro]”. E incrível observar a mão de Deus tecendo uma história.
Perdemos esse sentido da arte divina em nossa vida quando o Ilu-
minismo colocou a arte, a poesia e a literatura na mesma categoria da
religião. O Iluminismo definiu todas essas coisas como “irreais”. Assim,
a poesia não tem permissão para entrar nos livros de história e biologia.
Naturalmente, esta é uma separação arbitrária. Basta abrirmos qualquer
livro de biologia para sermos imediatamente confrontados com o traba­
lho de um artista, de um designer espetacular.
Ao lidar com um sofrimento constante ou até mesmo com um
probleminha de nada, em vez de nos concentrarmos na mão do Mestre,
instintivamente voltamos a atenção para o que está faltando, como as
túnicas perdidas e a traição na história de José.
Quando temos a sensação de que tudo deu errado geralmente é por­
que estamos no meio de uma história. Se prestar atenção na história que
Deus está tecendo em sua vida, você, assim como José, começará a notar
os traços dos desenhos. Vai se tornar um poeta, sensível à voz do Pai.
C a p ítu lo 24

ESPERANÇA: O FIM
DÁ m S T Ô R l A

ESPERANÇA É UM CONCEITO novo na história, uma visão exclusi­


vamente cristã. Para nós a fé é algo natural porque a mente de Cristo
teve grande influência na formação do pensamento moderno; toda­
via, nem sempre foi assim. Na Grécia antiga existiam dois tipos de
histórias: a comédia e a tragédia. A comédia era divertida, mas irreal.
A tragédia era real, mas nada divertida. Se levasse a vida a sério, veria
que ela era triste. Se a ignorasse, então seria divertida. A filosofia grega
refletia seu teatro. Os filósofos estoicos procuravam ser morais num
mundo sem sentido. A vida era uma tragédia e eles suportavam essa
vida difícil. Os epicureus só queriam se divertir; a vida era uma co­
média. Eles cunharam a frase: “Comamos, bebamos e nos divirtamos,
porque amanhã morreremos”.
O evangelho é a boa nova. Na cruz, Deus acabou com a força do
mal, e assim podemos, juntamente com Sara, encarar a descrença de
frente e rir. Não é de admirar que o primeiro milagre de Jesus tenha
sido fazer cerca de 570 litros do melhor vinho para que uma boa festa
se transformasse numa festa maravilhosa (veja Jo 2). A tragédia não dá
a última palavra. Deus guarda o melhor para o fim da história.
Alguns escritores sugerem que o único interesse de Deus é que o
conheçamos. Isso não passa de uma outra versão daquele gráfico sobre
o desespero (veja p. 191). Deus também se preocupa com nossa situa­
ção. Preocupa-se com o fato de a Kim não conseguir falar. A oração
desesperada da Ashley para que a Kim falasse tocou o coração de Deus.
O Senhor cuida dos detalhes da vida da Kim. Ele quer que a Kim pros­
pere. Afinal, ele é o Deus da esperança.
Esses escritores desistem da esperança quando a espiritualizam.
No entanto, Abraão e Sara tiveram um filho. Os irmãos de José se cur­
varam diante dele. Davi se tornou rei e Jesus ressuscitou dentre os mor­
tos. E por último, mas não menos importante, a Kim aprendeu a falar
usando o sintetizador e agora está começando a usar sua própria voz.
O Deus infinito nos toca pessoalmente. Paulo se refere a isso, quando
diz: “Àquele que é poderoso para fazer bem todas as coisas, além do que
pedimos ou pensamos, pelo poder que age em nós” (E f 3.20). Podemos
sonhar grande porque Deus é grande.

Se souber esperar, o Pai celeste o carregará no colo noite adentro, e fará


sua vida brilhar. Deus quer deslumbrar você com o mistério do seu amor.

Sonhando grande para a Kim


Gostaria de contar uma história de esperança; a esperança da Kim e de
seu sonho de arrumar um emprego. É uma tragédia que se transformou
em comédia.1
Quando a Kim estava com dezesseis anos, eu e a Jill começamos a
entrar levemente em pânico sobre o que a menina faria depois de termi­
nar o colegial, aos vinte e dois anos. Com tantas deficiências ao mesmo

1 Tomei emprestada essa imagem de Frederick Buechner em Telling the Truth: The
Gospel as Tragedy, Comedy an d Fairy Tale. Nova Iorque: HarperColüns, 1977.
tempo, como encontraria emprego? Passamos a orar diariamente para
que Deus providenciasse um trabalho para a Kim.
Tentamos tudo. A menina foi ser voluntária numa casa para ido­
sos. Ela adorava alimentar os coelhos, mas detestava arrumar as mesas.
Organizar as coisas era demais para ela, mesmo com a ajuda de alguém.
A Jill tentou ensiná-la a arrumar a mesa para as refeições. Com um pin­
cel, a Jill desenhou num jogo americano de plástico o lugar do prato,
do copo e dos talheres. Todavia, quando a Kim terminava de ajeitar os
utensílios, a mesa parecia ter sido atingida por um pequeno furacão.
Como a Kim gostava muito de livros foi ser voluntária na biblio­
teca. Sua tarefa era recolocar os livros nas estantes. Porém, isso era o
mesmo que pedir a um alcoólatra para guardas bebidas nas prateleiras.
A Kim guardava dois livros e lia um. Arranjar os livros em ordem alfa­
bética era um desafio e tanto para ela. Além disso, a menina sabia bem
ser cabeça-dura. Certa vez, começou a dar uma de boba, atazanando
a vida da pessoa que a ajudava. A moça, em prantos, ligou para a Jill.
Minha esposa detesta quando a Kim usa sua deficiência para manipu­
lar as pessoas. Jill foi até a biblioteca e perguntou quantos livros ela
poderia retirar com um cartão. Cinqüenta. Ela emprestou três cartões
de amigos e retirou duzentos livros, colocou-os em dois carrinhos da
biblioteca e levou a Kim para casa. A Jill mandou a Kim colocar os
livros em ordem. Depois, misturou tudo, e mandou a filha organizá-los
novamente. E assim foi por dois dias. Resumindo: “Kim, se você não
obedecer à pessoa que ajuda você, sua vida vai ser um inferno de carri­
nhos cheios de livros”. Depois disso, a Kim virou um anjo com a moça.
O primeiro trabalho remunerado da Kim foi numa locadora; sua
tarefa era recolocar os vídeos nas prateleiras. Mais uma vez, foi como
colocar um alcoólatra para trabalhar em um bar, pois a Kim é louca
por filmes. Certo dia, ela desceu do ônibus na porta da locadora, mas a
pessoa que a ajudava não apareceu.
Os autistas necessitam da estrutura de um horário bem organiza­
do. Quando há qualquer mudança, o pânico se instala. A Kim entrava
em pânico quando as aulas começavam com duas horas de atraso por
causa de uma tempestade. Assim, quando a auxiliar não apareceu, ela
perdeu o controle. Nós estávamos acostumados com aquilo; mas para
a Blockbuster foi novidade. Em alguns dias, a Kim estava procurando
emprego de novo.
Como ela adora cachorros, fomos atrás de emprego em pet shops
e canis. Encontramos trabalho voluntário, mas nada permanente. Le­
vamos a Kim a alguns seminários profissionalizantes, pois este era o
nosso plano B, mas ela não gostou de nada. Cinco meses antes da
formatura, continuava sem emprego. Com um cenário de trabalho
nada promissor, levamos a Kim a mais um seminário profissionali­
zante. Eu e a Jill gostamos do lugar, mas dentro de poucos minutos,
os olhos da Kim se encheram de lágrimas. Ela queria sair dali. A Jill e
eu trocamos um olhar, saímos do local e fomos conversar. Decidimos
que pagaríamos um auxiliar para ajudá-la, não importava o quanto
custasse; o importante era a Kim arranjar um emprego remunerado.
No entanto, tínhamos de encontrar alguém que quisesse empregar
um adulto com deficiências.
A Jill não se acanhava em pedir a desconhecidos que orassem por
um emprego para a Kim. Ele fazia a viúva insistente da parábola parecer
uma iniciante.
Seis semanas antes da formatura, a Kim ainda não tinha arrumado
emprego. Um dia, a Jill estava conversando com o dono da gráfica que
imprimia nossos cartões e ele perguntou: “A Kim já arrumou empre­
go?” Quando a Jill disse que não, ele telefonou para um amigo que é
dono de um canil. O amigo disse que empregaria a Kim para passear
com os cães se ela tivesse um auxiliar. Quando levamos a Kim ao canil,
ela achou a maior graça porque seu auxiliar, Skip, um ex-marinheiro de
l,80m que pesava uns 115 quilos, estava com medo de entrar nas jaulas
dos animais. Ela não tinha um pingo de medo.
A Kim achou o emprego, mas eu e a Jill tínhamos de encontrar um
jeito de pagar o auxiliar. O município se recusou a nos ajudar. Porém,
duas semanas antes da formatura, a assistente social que atendia nos­
sa família ligou: “Paul, a auditoria estadual apareceu aqui e disse que
temos de ser mais criativos em nosso trabalho. Sugeri que pagássemos
um auxiliar para a Kim, e aprovaram. Vamos pagar o auxiliar da Kim”.
Tudo correu bem nas primeiras semanas, até que outro auxiliar
substituiu o primeiro, e a Kim teve um “chilique” no estacionamento
do canil. Recebi o temido telefonema: “Acho que isso não vai dar cer­
to!” Supliquei. Implorei. Prometi. Cheguei quase a vender minha alma,
e o canil resolveu dar outra chance pra Kim.
Ela passeia com os cachorros desde 2003 e adora o que faz. A Kim
faz 75 por cento das tarefas; o auxiliar cuida dos 25 por cento restantes.
Mesmo nos dias mais frios ou nos mais quentes, ela sai pra caminhar
com os animais. A Kim poupa dinheiro o ano inteiro para ir à Flórida
nas férias, ela adora a Disney.
Quando fica sem um auxiliar, eu ou a Jill preenchemos a vaga. Eu
havia orado por humildade e de repente me ocorreu que Deus estava
respondendo à minha oração. Eu preferia que a humildade me envol­
vesse num passe de mágica. Mas Deus ensina humildade nas situações
mais modestas. Deus mantém meus pés no chão quando tenho de
catar cocô de cachorro, logo após de ter sido palestrante em alguma
conferência importante. O que eu achei que fosse uma pedra era, na
verdade, um pão.
O fato de a Kim ter encontrado trabalho foi um milagre de Deus.
Acho que a taxa de desemprego entre adultos que têm o nível de de­
ficiência da Kim é perto de 99 por cento. Enquanto orávamos pelo
emprego da menina, várias vezes sentimos que estávamos orando para
o céu mudar de azul para cor-de-rosa. No entanto, como o anjo disse a
Maria: “Para Deus nada é impossível” (Lc 1.37).
Nossas orações não ficaram pairando acima da vida. Nossa fa­
mília tinha os olhos tanto na linha da realidade quanto na linha da
esperança. Orar era algo inseparável de trabalhar, planejar, e do bom
e velho implorar.
Disposição para se encantar
Enquanto esperamos e oramos, Deus tece sua história e cria algo mara­
vilhoso. Em vez de vagarmos entre comédia (negação) e tragédia (rea­
lidade), nós nos relacionamos com o Deus vivo, que está intimamente
ligado aos detalhes da nossa vida. Vamos aprendendo a observar o de­
senrolar da história, a esperar o milagre.
Quando nossos filhos eram pequenos, às vezes arrumávamos
um jeito de sair de férias sem gastar muito, quando eu era preletor
em algum acampamento. Certa vez, numa dessas ocasiões, eu estava
com a Courtney, de 4 anos, no colo, caminhando na escuridão da
noite, mostrando-lhe o céu. Apontei para Orion, Cassiopeia e Ursa
Maior. Chamei-lhe a atenção para as diferentes cores das estrelas e
da Via Láctea.
A Courtney ficou extasiada com a criação de Deus. Se souber es­
perar, o Pai celeste o carregará no colo noite adentro, e fará sua vida
brilhar. Deus quer deslumbrar você com o mistério do seu amor.
Para poder ver o esplendor da história que o Pai está contando,
precisamos nos tornar como crianças. Esse era o segredo de C. S. Lewis
como contador de histórias. Ruth Pitter, grande amiga de Lewis, expli­
cou certa vez: “Sua vida inteira foi orientada e movida por um senso
infantil único e persistente de glória e pesadelo”.2 O escritor Alan
Jacobs disse o seguinte sobre Lewis:

O pensamento de Lewis era acima de tudo caracterizado por um desejo


de se deixar encantar, e foi essa porta aberta para o encantamento que
manteve entrelaçados os vários fios de sua vida: seu prazer em rir, sua
disposição em aceitar o mundo criado por um Deus bom e amoroso
(e acima de tudo, de certa maneira) sua prontidão em se submeter aos
encantos de uma história maravilhosa.3

Eu também me encanto com as histórias que Deus tece na vida


da Kim.

Mais que um emprego, um chamado


Em meio às frustrações da procura de emprego, eu e a Jill começamos
a fazer orações ainda mais importantes pela Kim. Orávamos não só
por emprego, mas por um chamado — que a Kim sentisse a alegria de
Deus em seu trabalho e ministrasse aos outros. Pensávamos: O ra!Já que
estamos no marco zero, p or que não p ed ir logo o céu?”
O que Deus fará com o chamado da Kim? Não sei, porém é um
prazer observar e orar. A Kim já falou algumas vezes em conferências
e seminários. Geralmente eu a entrevisto sobre acontecimentos em sua
vida. No próximo capítulo contarei o que aconteceu da primeira vez
que ela me acompanhou a um seminário. Quando contamos essa histó­
ria numa conferência organizada por Joni Erickson Tada, a Kim socava
a cabeça quando achava algo engraçado. O auditório quase caiu da
cadeira de tanto rir. A tragédia se transformou em comédia.

2 Ruth Pittter, citada por Alan Jacobs em The N arnian: The L ife an d Im agination o f
C. S. Lewis. São Francisco: HarperSanFrancisco, 2005, p. xxv.
3 Jacobs, p. xxiii
C a p ítu lo 25

VIVA H I S T Ó R I A S
D 0~E YANGE LH O

EM 2001, EU E a Jill participamos de um dia de oração promovido


pela L’Arche, uma comunidade para deficientes que havia sido pasto­
reada por Henri Nouwen, famoso teólogo e autor holandês. Por acaso,
sentei-me ao lado do Bill, um deficiente adulto que tinha sido compa­
nheiro de viagem de Nouwen. Ao conhecer Bill, pensei: Por que não
levar a Kim no meu próximo seminário? A Jill teria um descanso mais
do que merecido e, além disso, eu adoro passar tempo com a Kim.
Numa sexta-feira de maio, eu e a Kim rumamos para a Flórida.
Enquanto esperávamos o ônibus que nos levaria para o aeroporto, Kim
percebeu que a Jill tinha esquecido de colocar um livro para ela ler na
viagem. E lá estava eu, carregando duas malas e uma caixa enorme com
o logotipo seejesus [vejajesus], em letras vermelhas garrafais, quando a
Kim começou a choramingar baixinho, e os companheiros de viagem
só observando. Tive vontade de estrangular a Kim. Pensei até em virar
a caixa e esconder o logotipo.
Finalmente a Kim parou de reclamar, mas só porque eu gritei com
0 motorista do ônibus, pois ele estava fechando a porta em cima de
mim enquanto eu ajudava Kim a subir os degraus. Chegamos correndo
ao aeroporto e demos de cara com uma fila que não acabava mais.
Nosso voo sairia em meia hora; coloquei a caixa — que chamava cada
vez mais atenção — na esteira do detector de metais. Assim que entra­
mos na fila, fecharam uma das duas esteiras e juntaram as duas filas em
uma. A Kim começou a choramingar de novo.
Quando chegamos ao detector de metais, a garota se recusou a
colocar o computador na esteira e começou a discutir com o segurança,
digitando: “Isso aqui é a minha voz”. Arranquei o computador da mão
dela e mandei-a passar pelo detector de passageiros. Claro que minha
caixa enorme não passava pelo espaço do detector. Teve que ser escanea-
da por um guarda bastante escrupuloso.
Tínhamos apenas vinte minutos para chegar ao portão de embar­
que, que ficava lá do outro lado. Pensei em sair correndo com a Kim
e as bagagens de mão, porém vi um carro elétrico para o transporte de
passageiros idosos e deficientes, e implorei que o motorista nos levasse.
Quando disparamos rumo ao nosso portão, a Kim abriu um sorriso.
Era como se estivéssemos na nossa montanha russa particular. Meus
ombros estavam começando a relaxar, quando empacamos atrás de um
senhor que falava ao celular, totalmente alheio à buzina de nosso carri­
nho. A Kim achou a maior graça. Eu não. Chegamos ao portão quase
sem tempo para respirar antes do embarque.
A Kim havia acabado de se ajeitar na poltrona e ouvia um CD,
quando o piloto avisou: “Por favor, desliguem todos os aparelhos
eletrônicos”. Ela teria de desligar não apenas o CD, mas também o
computador. Quando foi derrotada na discussão com o atendente de
voo, o choramingo recomeçou. Dez minutos depois, quando o piloto
anunciou que teríamos de esperar onze aviões decolarem, a válvula de
paciência da Kim explodiu: mudança de horário, falta do livro e espera.
0 choramingo virou um berreiro.1
Com os nervos em frangalhos, enquanto a Kim soluçava ao meu
lado, pensei: Essa viagem fo i um erro. Nunca mais faço isso. O que não

1 Essa história foi primeiramente publicada como um artigo, "LovingKim", em Disci-


pleship Journal, edição 131 (setembro/outubro de 2002).
percebi foi que o reino tinha vindo. O reino é sempre assim. Ele é tão
estranho, tão humilde; dificilmente é reconhecido. Parece um erro.
Mais tarde, refletindo sobre aquele fim de semana e o jeito de Deus
fazer as coisas, percebi que tinha sido envolvido em uma de suas histó­
rias. No sábado, falei a um público que prestou atenção a cada palavra
que eu disse e mostrou bastante respeito por mim. Quando você é o
palestrante, fica no centro das atenções, querendo ou não. Mesmo se
estiver falando sobre Jesus e seu amor por nós, como era o meu caso, é
grande a tentação de querer ser elogiado pelo que diz.
Mas na sexta-feira, incapaz e envergonhado, eu havia estado diante
de três públicos diferentes (no ponto de ônibus, na fila do detector de
metais e no avião). Eu parecia inadequado, me senti inadequado e fui
inadequado. Deus estava me lembrando de como eu sou de verdade.
Na sexta-feira, o Senhor estava preparando o meu coração para que eu
não ficasse confuso com os elogios das pessoas no sábado. Eu queria
sucesso; Deus queria autenticidade.
O Pai estava me levando na mesma jornada descendente em que
havia levado seu Filho. Paulo convidou a igreja de Filipos a se unir a
Jesus, “que, existindo em forma de Deus, não considerou o fato de ser
igual a Deus algo a que se devesse apegar, mas, pelo contrário, esvaziou
a si mesmo, assumindo a forma de servo e fazendo-se semelhante aos
homens” (Fp 2.6,7). A jornada descendente é a história do evangelho.

Histórias do evangelho
O evangelho, a dádiva de Deus em entregar seu Filho para morrer em
nosso lugar, é tão impressionante que desde a morte de Jesus ninguém
foi capaz de contar uma história melhor. Para se contar uma história
boa, é preciso contar uma história do evangelho.
No best-seller “ The L ife ofP í', escrito por Yann Martel, um garoto
hindu chamado Pi conhece o padre Martin, que lhe conta a história do
evangelho. Pi quer saber mais:
Pedi que me contasse outra história, uma que me satisfizesse mais. Cla­
ro que essa religião tinha mais de uma história no bolso — as religiões
são ricas em histórias. Mas o padre M artin me levou a entender que
(...) a religião deles tinha apenas uma História, e que voltam a ela con­
tinuamente, sempre e sempre. Essa história bastava para eles.2

Minha viagem com a Kim foi uma história do evangelho. Eu abri


mão de uma parte de minha vida pela Jill. No domingo, enquanto eu e
a Kim esperávamos o trem numa estação (e a garota estava reclamando
de novo porque havíamos perdido o trem anterior!), telefonei para casa.
A Ashley atendeu. Ela e a Jill estavam num almoço em comemoração
ao dia das mães. A Ashley contou: “De quinze em quinze minutos a
mamãe diz, ‘Que maravilha. Não dá para acreditar em tanto sossego’”.
No evangelho, Cristo ficou com meu pecado, e eu fiquei com sua justi­
ça. É assim que funcionam as histórias do evangelho. A Jill teve um fim
de semana tranqüilo, enquanto eu me estressava todo. Sempre que faz
um gesto de amor, você representa a morte de Cristo.
Em conseqüência disso, sempre há sofrimento nas histórias do
evangelho. A sociedade tem alergia a essa parte do evangelho. Gosta­
mos muito de ouvir sobre o amor de Deus por nós, mas o sofrimento
não combina com nosso direito de “buscar a felicidade”. Assim, oramos
para escapar de uma história do evangelho, quando ela é o melhor pre­
sente que o Pai tem para nós dar. Lá no avião, quando pensei, Tudo está
dando errado, era exatamente quando tudo estava dando certo. É assim
que o amor funciona.

Essa viagem fo i um erro. Nunca mais faço isso.

O Pai quer nos colocar na história de seu Filho. Ele não tem uma
história melhor para contar, então continua repetindo-a em nossas vidas.

2 Yann Martel, The L ife ó f Pi. Nova Iorque: Harcourt, 1954, p. 53.
Quando representamos o evangelho, somos atraídos para uma comu­
nhão estranha. Experimentar a Cristo é tão bom que o apóstolo Paulo
disse aos filipenses que gostaria de ter “participação nos seus sofrimentos
[nos sofrimentos de Jesus]” (Fp 3.10). Essa foi a oração de Paulo.
Viver uma história do evangelho expõe nossos ídolos, as fontes fal­
sas de amor. Veja o que se revelou em minha vida naquela sexta-feira. A
necessidade de aprovação pública, eficiência e organização eram ídolos
que eu acalentava e foram todos revelados, quando tentei demonstrar
meu amor por minha esposa e filha. Quando nossos ídolos são expos­
tos, entramos em desespero, oprimidos pelo pecado da outra pessoa
e pelo nosso. Porém, se tão-somente permanecermos na história, se
continuarmos levando a vida adiante, mesmo que pareça inútil, o reino
virá. A pobreza de espírito deixa de ser apenas um ponto de vista. E algo
que possuímos. Algo que nos descreve.
O arrependimento estranhamente nos restaura. Em A Viagem do
Peregrino da Alvorada, de C. S. Lewis, o personagem Eustace se transfor­
ma em dragão após ser dominado pela cobiça. Quando Aslan arranca a
pele de dragão com um golpe de sua pata enorme, Eustace compara isso
à alegria infantil de arrancar a casca de uma ferida: “Dói à beça, mas é
tão legal ver a casca saindo”.3 Quando arrancamos nosso ego artificial, o
arrependimento gera integridade. Voltamos à verdadeira fonte de amor:
nosso Pai celeste. Nós nos tornamos autênticos.

Saboreando a história do Pai


Se pararmos de lutar e abraçarmos a história do evangelho que Deus
está tecendo em nossa vida, encontraremos alegria. Paulo, apesar de
estar acorrentado entre dois soldados romanos, transborda de felici­
dade ao escrever a carta aos filipenses. Até ora com alegria: “Fazendo

3 C. S. Lewis, Voyage ofth e Dawn Treader. Nova Iorque: Macmillian, 1967, p. 89. [Pu­
blicado em português pela Editoia Martins fontes sob o título A Viagem do Peregrino
da Alvorada.}
sempre súplicas por todos vós, em todas as minhas orações, com ale­
gria” (Fp 1.4) Se buscarmos diretamente a alegria, ela escapará de
nossas mãos. Porém, se começarmos com Jesus e aprendermos a amar,
acabaremos encontrando alegria.
Você precisava ver o sorriso da Kim quando fizemos canoagem, ou
quando ela alimentou as girafas no zoológico. Quando nos ligamos a
alguém que nos causa transtornos de vez em quando, temos oportuni­
dade de encontrar Deus e a alegria.
E como isso muda o que penso sobre a viagem da Kim à Flórida?
Ora, eu não sou obrigado a levar a Kim à Flórida. Tenho a chance de
levá-la comigo. É um privilégio meu. É uma alegria.

As histórias do evangelho dão significado ao sofrimento


Poucas pessoas lutaram mais com o sofrimento do que Abrahan Lincoln.
Quando foi eleito presidente dos Estados Unidos pela segunda vez,
apenas seis semanas antes de ser assassinado, em seu discurso de posse
Lincoln falou da difícil situação de dois adversários que lutam entre
si, cada um orando para ser o vencedor. Lincoln disse o seguinte sobre
essa disputa: “Os dois lados leem a mesma Bíblia e oram ao mesmo
Deus; e cada um invoca sua ajuda contra o outro”. Lincoln não era um
relativista: “Deus não podia atender os dois lados; não podia atender
completamente nem um nem outro”. Para Lincoln algo mais profundo
estava acontecendo. Deus estava tecendo uma história mais ampla —
na verdade, uma história do evangelho — trazendo redenção por meio
do sangue onde “cada gota de sangue arrancada pelo chicote será paga
com outra derramada pela espada”.4
José teve a mesma percepção de uma história redentora, da mão de
Deus gerando graça por meio do sofrimento. A traição por parte dos
irmãos era o reverso do evangelho. Os irmãos entregaram a vida de José

4 Carl Sandburg, Abraham Lincoln: The Prairie Years an d the War Years (O ne Volume
Edition). Nova Iorque: Harcourt, 1954, p. 664.
para se verem livres do favoritismo do pai. Vinte anos mais tarde, Judá,
um dos irmãos, se apresenta a José e diz que dará sua vida pelo irmão
Benjamim, a quem José havia ameaçado de escravidão (veja Gn 44.33).
A disposição de Judá em entregar sua liberdade pela vida do irmão foi
uma história do evangelho que reverteu a traição anterior.
Sob a percepção que José e Lincoln tinham da história do evange­
lho está uma profunda consciência da soberania de Deus, a consciên­
cia de que ele é o tecelão das histórias. No discurso de posse, Lincoln
afirmou: “O Todo-Poderoso tem seus propósitos”. Refletindo sobre seu
discurso, Lincoln escreveu a um amigo: “Os homens não se sentem
lisonjeados ao notar que existe diferença entre o propósito deles e o do
Todo-Poderoso”.5José disse algo parecido. Quando os irmãos foram le­
vados a sua presença, temerosos de vingança, José lhes assegurou: “Não
temais. Por acaso estou no lugar de Deus? Certamente planejastes o mal
contra mim. Porém Deus o transformou em bem, para fazer o que se vê
neste dia, ou seja, conservar muita gente com vida. Agora, não temais”
(Gn 50.19-21). Se enxergarmos esse mesmo plano fundamental em
nossas vidas, teremos imensa alegria e liberdade.

Fique atento às ligações invisíveis


Para identificar uma história do evangelho, temos de refletir sobre
como alguns aspectos que parecem incompatíveis estão interligados. A
melhor situação para entendermos as ligações invisíveis de Deus, nosso
designer, é em meio à decepção e ao estresse, como, por exemplo, na
viagem que fiz com a Kim. Vimos a ligação invisível entre a lição de
humildade durante o voo e o potencial orgulho em frente ao auditório.
Vimos a ligação entre meu estresse e o alívio da Jill. No capítulo 23,
quando a Kim estava aprendendo a usar o sintetizador de voz, observa­
mos a ligação invisível entre o arrependimento (“Paul, como você pode

5 Sandburg, p. 665.
falar de mim quando a Kim é incapaz de falar?) e a graça (“Paul, você
gostaria de fazer um curso de criação literária?”). O que quero dizer
com invisível é que não há ligações palpáveis, de causa e efeito. Mas
quando trazemos a mente de Deus para nossas histórias, podemos ver
sua mão tecendo as ligações entre os diversos cenários.
Nada na mentalidade moderna nos incentiva a prestar atenção nas
ligações invisíveis que estão por trás de tudo na vida. Não achamos
que vivemos na presença de um Pai amoroso e que temos de prestar
conta de tudo o que fazemos. O lema de Las Vegas, a cidade americana
famosa por seus cassinos — “O que acontece em Vegas permanece em
Vegas”— descreve a visão que a sociedade de hoje tem da vida. A pessoa
vai a Las Vegas, faz sexo no anonimato e volta para casa, para seu cônju­
ge, como se nada tivesse acontecido. Não há conexão entre Las Vegas e
o restante da vida. A pessoa tem liberdade ilimitada para buscar aquilo
que a faz se sentir bem.
Conversa fiada. Este mundo pertence a meu Pai. O que você fizer
em Las Vegas está relacionado a tudo em sua vida. Tudo o que fazemos
tem conexão com quem somos e, assim, gera a pessoa em que estamos
nos transformando. Tudo o que fazemos afeta nossos entes queridos.
Tudo na vida está entrelaçado.
Embutido no conceito de oração existe uma visão, ricamente de­
talhada, de um mundo onde tudo é organizado ao redor de laços ou
alianças invisíveis que nos unem. Não vivemos num mundo “estático”.
Vivemos no mundo do nosso Pai, um mundo construído para rela­
cionamentos divinos entre as pessoas em que, por causa da boa nova,
tragédias se transformam em comédias e a esperança nasce.
PARTE 5

ORANDO NA
VI DA REAL
C a p ít u l o 26

FERRAMENTAS
DEORAÇÃO

EM M EUS CURSOS SOBRE oração sempre pergunto aos partici­


pantes quem usa agenda eletrônica. Geralmente um entre três parti­
cipantes levanta a mão. Então pergunto quem usa agenda de bolso,
calendário de parede ou de qualquer outro tipo. A esta altura, quase
todo mundo, cerca de 95 por cento do auditório, está com a mão
levantada. Poucas pessoas ainda vivem na era dos dinossauros, sem ca­
lendário nenhum. É bem verdade que certos homens usam as próprias
esposas como calendários! Enfim, a seguir, pergunto quantos fazem
uso regular de um sistema escrito de oração. Apenas alguns levantam a
mão, geralmente 5 por cento dos presentes.
Quando procuro saber por que 95 por cento anotam seus com­
promissos, mas apenas 5 por cento anotam seus pedidos de oração,
geralmente alguém responde: “Se esquecer um compromisso, você está
frito”. A implicação óbvia é que se alguém se esquecer de orar, não tem
problema. Se você não orar, ninguém percebe! Mas a minha resposta
predileta foi esta: “Nossos compromissos envolvem pessoas. E por isso
que os anotamos na agenda”. Isso significa dizer que a oração não en­
volve pessoas? O mundo atuai continua sob a velha influência do Ilu-
minismo, onde a oração foi relegada à categoria de valores e opiniões.
Desse modo, ela não é vista como algo relevante para a vida.
A grande verdade é que não anotamos nossos pedidos de oração
porque não levamos a oração a sério. No fundo, achamos que ela
não funciona.
Nas cartas de Paulo, pela descrição que ele faz de sua vida de ora­
ção, fica claro que orava regularmente por um grande número de pes­
soas. James Dunn, estudioso do Novo Testamento, escreveu: “A lista de
oração de Paulo deve ter sido longa e, possivelmente, ele gastava um
bom tempo todos os dias falando para Deus de todas as igrejas, com­
panheiros e mantenedores. Isso o ajudava a manter e fortalecer a fé que
compartilhava com ‘todos os santos’”.1
Pelo amor que vemos em Paulo em cartas como lTessalonicenses,
fica claro que ele estava orando por eles. No caso dos tessalonicenses,
Paulo pressupõe que Satanás os esteja atacando e teme que a fé deles
esteja sendo abalada. Ele transborda de gratidão quando ouve relatos
sobre a fé dos tessalonicenses, pois eles moram em seu coração.
Sou introvertido por natureza, mas quando uso algum sistema es­
crito para orar regularmente por alguém, meu coração entra em sinto­
nia com essa pessoa. Não tenho acanhamento em perguntar como vão
as coisas, pois essa pessoa já está em meu coração.

Incapacitados pela Queda


Lembre-se de que não somos pessoas normais que estlo aprendendo a
orar. Assim como a Kim, somos pessoas afetadas por uma deficiência
causada pela Queda. Sofremos de uma deficiência que afeta nossa ca­
pacidade de falar com Deus. Assim como a Kim precisa de um com­
putador com sintetizador de voz para se comunicar, nós precisamos de
ajuda de recursos escritos para nos comunicarmos com Deus.
Bem no fundo de nossa alma se esconde um ideal romântico dos
anos 60, criado por Emerson e Rousseau, de que se algo não nos parece

' James D. G. Dunn, The Epistles to the Colossians an d to Philemon. Grand Rapids:
Erdmans, 1996, p. 316.
natural, então não é autêntico. Pensamos que as coisas espirituais — se
feitas de modo correto — deveriam fluir naturalmente. Porém, como
temos uma deficiência, nada flui, especialmente no início.
Certa manhã, quando a Kim estava com seis meses, a Jill me cha­
mou na sala. A menina estava deitada de bruços, lutando para ficar de
costas. A Kim erguia um ombro o mais que podia; depois virava os
pequenos quadris para dar um impulso e virar de costas. Quando es­
tava quase conseguindo, caía de novo. Enquanto eu e a Jill ficamos ali,
torcendo por ela, a Kim tentou várias vezes.
Não podíamos ajudar nossa filha, ou ela nunca aprenderia a se
virar sozinha. Por instinto, a Kim sabia o que fazer; tinha apenas que
colocar isso em prática. Finalmente, depois de meia hora e inúmeras
tentativas, ela conseguiu levantar os ombrinhos o suficiente e rolou de
barriga para cima.
Assim como a Kim teve que se empenhar para virar de costas, nós
temos que persistir quando a oração não parecer algo natural, espe­
cialmente durante o nosso período de aprendizado, quando ainda não
conseguimos “nos virar” totalmente.

Lembre-se de que na vida a mesma mão que afaga também


esfrega o chão. A vida tanto envolve o ser quanto o fazer.

Existem inúmeras ferramentas de oração à nossa disposição; po­


rém, nesta parte final do livro, iremos considerar apenas duas: diários
de oração e fichas de oração. Mas antes, uma palavra de cautela sobre as
ferramentas e técnicas usadas na oração.

Cuidado com as técnicas


Uma técnica de oração que tem ajudado muita gente é a chamada ACAS
(Adoração, Confissão, Agradecimento e Súplica). Contudo, técnicas
podem virar rotina, deixando-nos insensíveis a Deus como pessoa.
Talvez nos deixem artificiais ou desatentos ao orar.
Relacionamentos não funcionam dessa maneira. Quando chego
em casa depois do trabalho, não costumo adorar a Jill por uns minutos,
nem confessar a seguir minha falha por não ter colocado o lixo para
fora, ou depois lhe agradecer por fazer o jantar e aí lhe entregar uma lis­
ta de pedidos. A Jill nasceu em uma cidade que vaia os próprios times es­
portivos. Pode ser que eu conseguisse ter uma conversa desse tipo com
ela uma única vez; na segunda, a Jill reviraria os olhos e perguntaria se
tenho algum tipo de autismo. E com razão. Os autistas têm dificuldade
em entender os “sinais” da linguagem utilizada no comportamento em
sociedade. Estão tão mergulhados em si mesmos que não enxergam as
outras pessoas. Mas ninguém gosta de ser tratado como robô. Muito
menos Deus. Afinal de contas, ele é uma pessoa.
Muitos já têm tanta consciência disso que desconfiam de todas as
técnicas ou ferramentas de oração. Acham que isso mata o Espírito. Pare­
cem ir contra tudo o que aprendemos sobre orar como crianças. Porém,
todos nós desenvolvemos certas técnicas para coisas que consideramos
importantes. Lembre-se de que na vida a mesma mão que afaga também
esfrega o chão. A vida tanto envolve o ser quanto o fazer. Os diários e fi­
chas de oração fàzem parte do lado da vida que envolve o “esfregar”. Orar
como criança faz parte do lado da vida que envolve o “afagar”. Precisamos
desses dois lados.
C a p ítu lo 21

ACOMPANHANDO A
HISTÓRIA: FICHAS
DE O R A Ç Ã O

EU TIVE A IDEIA de usar fichas de oração, em vez de uma lista, um


dia que estava sentado no sofá da sala, tentando orar. Nos meses ante­
riores minha vida tinha se tornado quase insuportável. Eu estava me
sentido morto por dentro.
E foi assim, sentado ali daquele jeito, meio anestesiado espiritual­
mente, que uma ideia me veio à mente: Ponha a Palavra para trabalhar.
Peguei algumas fichas de arquivo; escrevi em cada uma o nome de um
membro da família e um versículo que usaria para orientar minhas ora­
ções por aquela pessoa.
Do meu lado começou a se formar uma pilha de fichas de oração
que me levaria a orar durante a vida inteira — por familiares e amigos,
por não crentes dos quais estava me aproximando, pela igreja e seus
líderes, por missionários, por meu trabalho e colegas, por mudanças em
minha própria vida, e por meus sonhos.
Apresento a seguir um esboço geral dos critérios que uso para a
criação dessas fichas de oração.

1. A ficha é como se fosse um retrato dos motivos de oração


sobre a vida de uma pessoa. Por isso, uso frases curtas para
descrever o que quero.
2. Quando oro, não me demoro mais que alguns segundos em
cada ficha. Simplesmente escolho uma ou duas áreas das que
anotei e oro por elas.
3. Para colocar a Palavra para trabalhar, escrevo em cada ficha
um versículo que expresse meu desejo por aquela pessoa ou
situação em particular.
4. A ficha não muda muito. Talvez eu acrescente uma coisa ou
outra por ano. O que está anotado na ficha são aquelas áreas
da vida da pessoa por quem estou orando que precisam ser
melhoradas.
5. Geralmente não anoto as respostas. Para mim elas são óbvias,
pois pego as fichas para orar quase todos os dias.
6. Às vezes anoto o mês e ano de algum pedido.

A ficha tem algumas vantagens sobre a lista de oração. Geralmente


a lista é composta de uma série de pedidos dispersos, enquanto a ficha
se concentra numa pessoa ou em uma área de sua vida. Permite que
olhemos para a pessoa ou situação de vários pontos de vista. Com o
tempo, a ficha nos ajuda a refletir sobre como Deus responde às ora­
ções. Você começa a notar o surgimento de certos padrões; a história
vai pouco a pouco se desenrolando e nos atraindo para si. Uma lista
costuma ser uma coisa mais mecânica. Desanimamos só de ver o nú­
mero de coisas pelas quais temos que orar. Como os itens na lista não
têm nenhuma relação entre si, é difícil manter a disciplina da oração.
Quando oro, pego uma ficha de cada vez, e isso me ajuda a me concen­
trar na pessoa ou necessidade.

Se tentar controlar seus dias com as próprias mãos, será tragado


por eles. Em vez disso, agarre-se a uma ponta da túnica de Cristo
e não solte até ser abençoado. EU transformará seus dias.
Fichas de oração pela família
Você já teve oportunidade de ver as fichas de oração que fiz para a Jill e
a Emily. Agora veja a ficha do meu filho Andrew:

a Ô / O 2 .: u/tv lyJ^juÂi^jliúAoKr j^õJux> o- *l£í>u>

a- yitCí>^£Í-“í>o^unA- ao^ ouí^oS', Como (2,‘áiío- >v>íy


oJk>$JUjs, jpaJtíb <^Láhí/Xs àe, c& eu b . ÍÕ.~7
uoct-
}^ item áfe c^ / + ^fydtu JtíL + (Bi&vCúi, + ^ lituuLyò- ^^oCUlHy + '^BiÂiúxX

'\ \ ow )Í j A q £' oJhi+utoniXndk> to d o - e*rj^ xtuo- — A& t&o, â<Wxt^uxfce-, oÍÍ£ÍIA/tu>,

pái^a^^3on^ct<'
y^c/ru^oíy —ôonÀ- íUni^Oi- OJrJür^Ou'^ujy
Õl.Ô: '“fc íÍAi^aA' a- vjbe^ h/y í*ti/nx>.
Qo*££££A* a> £ OóJrútJUia- &vn, e& 1/03 ‘E J& Lo ^ 4 . 2 : dcvrv toAj,
halrüiAoÁ**

Observe que cada frase representa uma área da vida do meu filho
pela qual estou orando. A ordem não importa. Oro por suas amizades,
seu caráter, seus relacionamentos, seu coração e sua mente — nada é
banal. Quando o Andrew estava na oitava série, tentando descobrir de
que esporte gostava, anotei algumas modalidades — basquete, atletis­
mo — que me ajudassem a orar. Ele se apaixonou por atletismo.
Quando anoto um versículo, estou colocando a Palavra para
trabalhar. Eu e a Jill já vimos Deus responder várias vezes à minha
oração para que o Andrew desejasse “que a verdade esteja no [seu]
íntimo” (SI 51.6). Enquanto eu observava esse pedido de oração agindo
na vida do Andrew, uma coisa levou a outra, e acabamos fazendo acon­
selhamento juntos. Isso criou uma amizade duradoura entre nós. Deus
me arrastou para dentro do meu próprio pedido de oração.
Com o passar do tempo, quase todas as frases dessa ficha se torna­
ram uma pequena história repleta de voltas e reviravoltas a caminho de
uma resposta. Quando mostrei a ficha para Jill, muito tempo depois de
tê-la feito, sua única resposta foi: “Uau!”
Veja agora a ficha da Kim:

5 .2 2 ,2 3 : O ào- i (^.^) dorrúrúo- jviófvdo-.


6.1: sede a, ooy>&>y .

£ o> Am, toda> a> ^ lqj^Oji e/*v C^jújJto ooV cta/nou, à> iuxo/ Ú£Hj\ú* (^jytwQj,
djepoity d&bu>&ij££& ÚÂ&usn,poccCo-, e£&m£Vn<>' ooV efe KZoÁÚitaK,
CoK^MJncJc, ^ pxíaliW o V clUí C&uÇjxK'. fPeíí*ü> 5 .1 0 .

yi*jieô!»...e<vn>joaci&vttúu 4.2..
â£&jj> <^u£> fafr^-buütdido em. to^to^- ai- CoüaA- e ^ux- ten/oA' Vuíiff',
aMÍ/>vComo- a/tu-cPal/n/is i*cL 'cf^óõjy 2.
- mjyo-òc dU>(UsmÇnj£oÀoK - hJ^ÁoA^ d&Co/ruuuCíLÇdz> -
- cn.tp.iiiA*, muxAJMMflhsbo- - io^fcwiAe- - toMA^uCa^é- áa/nuiy&Ò*
- &im, em,ÇulMiXU* - Q/umífr
S Z rryyu ^ o -: *re C fp e ia tú Jiía ,, ê iM ió ttC íh , ttjA * . — a m . c k a m a d o , u/n, rru ydfr d& t£A, úSiZ

A ficha da Kim segue o padrão geral da ficha do Andrew e tam­


bém passa a impressão de que as anotações foram casuais, feitas a
esmo. Oculto na ficha da Kim está um modo de orar que aprendi com
J. O. Fraser, que há cem anos foi missionário ao povo Lisu, no sudo­
este da China. Diante da impossível tarefa de levar Jesus ao resistente
povo Lisu, Fraser aprendeu a usar dois tipos de oração: a oração grande
e a pequena.1 Se voltar ao gráfico Esperança-Realidade (veja p. 191),

1 GeraldineTaylor, BehindtheRanges. Chicago: Moody, 1964, p. 140-158. Republicado


sob o título M ountain Rain.
verá que as orações grandes se concentram na linha da esperança e as
orações pequenas, na linha da realidade. Precisamos desses dois tipos
de orações.
Minhas orações grandes pela Kim inspiram-se nos versículos de
1Pedro, Efésios e 3João. A vida da Kim tem sido difícil, então, oro por
bênçãos. Normalmente oro: “E o Deus da graça (...) depois de haverdes
sofrido um pouco, ele mesmo vos haverá de reabilitar” (1 Pedro 5.10).
No final da ficha da Kim, anotei orações práticas relacionadas a
pequenos assuntos de sua vida diária. Encontrar um mouse para ela foi
um tormento de dois anos. Finalmente, achamos um que tem o forma­
to de uma bola grande e que a Kim consegue manipular com facilida­
de. “Liberdade de comunicação” é uma oração por um sintetizador de
voz. Anotei o pedido quando a Kim fez o curso para aprender a usar o
computador. Anotei “cavalo” porque a Kim sempre quis ter um cavalo.
Mais tarde, ela mudou para vaca. Como o Andrew vai se casar com a
filha de um fazendeiro que cria vacas leiteiras, talvez a gente consiga dar
um jeitinho.
As orações grandes eram enormes, orações impossíveis, como o pe­
dido para que a Kimberly fosse confirmada e fortalecida (1 Pedro 5.10).
Lembro que quando anotei o versículo, pareceu estranho, como se eu
estivesse abrindo uma porta que eu nem sabia que existia. Vivíamos tão
preocupados em sobreviver que era difícil imaginar a Kim prosperando.
Mas as orações grandes são assim mesmo: elas nos ajudam a sonhar
sonhos impossíveis, a pensar grande.
Agora, onze anos depois de ter feito esses pedidos de oração, es­
tou vendo Deus respondê-los devagar, pouco a pouco. Pense em algo
simples como “fortalecida”. Quando fiz essa ficha, a Kim era tudo, me­
nos fortalecida, especialmente na parte física. Porém, quando leva os
cachorros para passear, no seu emprego, ela tem que pular mangueiras
de água, agachar-se nas jaulas e guiar o cachorro durante a caminhada.
Com isso ela ficou bem mais fortalecida em termos físicos, literalmen­
te falando.
Ficha de oração pelos que sofrem
A igreja ora direitinho por uma pessoa enferma, se a pessoa tiver um
diagnóstico claro com uma solução em vista. Mas se o diagnóstico for
incerto ou se o caso não tiver solução, os irmãos da igreja logo se perdem
na questão da oração. Ou seja, quando o sofrimento é real, não oramos!
“Vou orar por você” é a maneira mais fácil de escapar da situação
com gentileza. Numa tradução rápida, significa: “Tenho toda a inten­
ção de orar por você, mas como não anotei seu pedido, talvez nunca
ore. Mas digo que vou orar porque, no momento, eu me preocupo, e
fica chato não dizer nada”. Isso nada mais é do que a versão do século
xxi para “aquecei-vos e saciai-vos” (Tg 2.16).
Ter uma ficha de oração dedicada às pessoas que sofrem nos capacita
a levar o sofrimento a sério, pois, com o tempo, veremos o que Deus irá
realizar em suas vidas. Ao redor de um versículo de Isaías, anotei os no­
mes de pessoas que estão lutando com uma situação difícil ou uma doen­
ça. Por orar regularmente por elas, meu coração entra em sintonia com
as suas lutas. Tenho mais coragem de perguntar como vão as coisas, pois
essas pessoas passam a morar em meu coração. Não me sinto hipócrita.

liaínly 61.1a., 20-, 3a*

Vi/loçafy qjoi- (ftj&tem, & doJ>oA,


(RajujÍ
<àiu'*
Ficha de oração por pessoas que não são crentes
Já tive várias fichas dessas. A primeira foi por algumas pessoas que par­
ticipavam de um estudo bíblico evangelístico que eu liderava. Antes de
fazer a ficha, o estudo ia mais ou menos bem, porém a mensagem não
penetrava no coração das pessoas. Depois de seis meses, resolvi fazer
uma ficha de oração e orar diariamente por todas elas. Quase que ime­
diatamente uma porção de coisas começou a acontecer em suas vidas.
Os três filhos da Jane começaram a ter problemas. Seu marido, Brad,
largou o estudo bíblico, dizendo que Bíblia era coisa de gente fraca.
Mais tarde, o Brad voltou, ficou uns meses e desistiu de novo, dando a
mesma desculpa. Deus acatou sua explicação e deixou-o fraco através
de um câncer. Embora continue inexperiente na fé, o Brad agora pro­
fessa sua crença em Jesus.

''&\OuL: <L> CASnixAo- dte- to*IKdX QK£tyt&\

I. —4 & C A £A s é- O- Ú Jrd ü x y Camt>J\o-F po/uv

Com » t <^ui#jL>tuatúJb âxyaiAu*to.


2.. e- — Coníwuxím- h a ,

3 . Xv <x>itfnjX' ’E5o«À0KLa> ^ojuíj üxJUm* o (fome, fia&uu.

4. ^ÍÕ^ve-Sclk^u1/—dimtçjljfr i.Oj

Ficha de oração por amigos


Eu não teria começado a orar por outros homens se não tivesse feito
uma ficha para eles. Geralmente não oramos por coisas da vida que
funcionam como papel de parede, ou seja, estão ali e cumprem a sua
função. Só começamos a orar quando o papel começa a descascar.
4"Íw n£*ví>'
Síwv: 'y\àx> paMÚKV/ it*SXtrúÂ4ÀZ'/o]ç>>vy/Jjr^oJyÃJ>Com,cu$o£a*tA<, e. n2Lo-
Cok&VlÉot, j^d^xXUÁoÀ^.
*Rh&v í^joe- eu, p^cofiuAo- o^ohaj o &juwVoifoV^om£*ii- otu o ^uh^l- <íf/< X^Axb?
Swi' p^oCuAo- a^ui/íaA- cl llomoii? Se- erfu^etóe- oIaÂõsoj^ia&x+dto' a-
Cíx, Kdo- Waííl Síaxk>áe- (E-tiito. C^áhitcJ> 1.10
cQpÂ&t£: c&uxçãjy,
<:Q(x£l&: fWlJxHlHs %juêa*u>ir&&*$tfux*uy*r
^a/ní^: fauJfójuy + mudo- &&& íLCaoju> t>(Uflt>wju>/ eb&uio&v, \)Gjjj&£/
&Oi.d^J±hy\ bMyC$jZL&à&C^AtAÍo-, IfVlQJi^i&údôjJU' ►
C vOi'rO^ÓGiob'

Como formar um conjunto de fichas de oração


Apresento a seguir uma amostra singela de como formar um conjunto
de fichas de oração que ajudará você a orar durante a vida toda. Uso
algumas fichas diariamente; faço um rodízio com outras, usando uma
ou duas por dia. Seu estilo de vida determina quantas fichas você vai
usar para uma área em particular. É você quem decide.

• 4 a 10 fichas para a família (uma para cada pessoa)


• 1 a 3 fichas pelos que sofrem
• 1 ficha para os amigos
• 1 ficha para os não crentes
• 1 ficha para os líderes da igreja
• 1 ficha para seu pequeno grupo
• 1 ficha para missionários e ministérios
• 1 a 3 fichas para problemas mundiais ou da sociedade
• 3 fichas para o trabalho
• 1 ficha para os colegas de trabalho
• 3 a 5 fichas sobre arrependimentos (coisas de que preciso me
arrepender)
• 3 a 5 fichas sobre esperança ou grandes sonhos

Se não tiver tempo para fazer todas essas fichas, então use os mo­
mentos de oração para isso. Uma vez por semana, em vez de orar, prepare
uma ficha para uma dessas áreas. Comece escrevendo parte de uma ficha.
Foi assim que dei início às minhas fichas. Por exemplo, anote um versícu­
lo e uns dois nomes na ficha das pessoas que sofrem, e deixe assim.
A parte difícil de se preparar as fichas não é falta de tempo, é a
falta de fé. Raramente a descrença nos ataca de forma direta — ela nos
espreita por trás dos sentimentos que vem à tona quando começamos
a fazer nossas anotações nas fichas. Você pensará, por exemplo: “Isso é
tão piegas” ou “parece que estou preso numa camisa de força” ou “será
que isso dá resultado?” O velho disfarce do legalismo talvez nos venha
à mente. Pode ser que fique com medo de que esse negócio de ficha de
oração acabe com sua espontaneidade de orar como criança.

Arregace as mangas
Orar é pedir que Deus se encarne, que se envolva em sua vida. Acredite,
o Deus eterno também esfrega o chão. Sabemos que ele também lava
pés. Por isso, cobre de Jesus o que ele prometeu. Peça-lhe. Diga-lhe
exatamente o que você quer. Arregace as mangas. Anote seus pedidos
de oração; não passe pela vida em brancas nuvens, anestesiado pelos
afazeres diários.
Se tentar controlar seus dias com as próprias mãos, será tragado
por eles. Em vez disso, agarre-se a uma ponta da túnica de Cristo e não
solte até ser abençoado. Ele transformará seus dias.
C a p it u lo 28

EXERCITANDO

O BOB NÃO GOSTAVA muito de mim — e já fazia um tempo. Não


gostava do meu jeito de falar, ser e vestir. E isso só para começar. Lá de
vez em quando, ele explodia comigo, mas geralmente me tratava como
seu empregado. O abrandamento e aceitação que vêm naturalmente
com o passar do tempo em qualquer relacionamento não acontece­
ram. Na verdade, o Bob ficava cada vez mais irritado comigo.
De repente percebi que tolerava o Bob e até lhe demonstrava amor,
mas não orava regularmente por ele. Para mim, o jeito com que ele me trata­
va era como o azul do céu, era algo que fàzia parte da vida, que não mudava.
Estou sempre descobrindo áreas assim na minha vida. Então, decidi fazer
uma ficha de oração para o Bob, anotei a passagem de 1Pedro 3.4 e comecei
a orar diariamente para que Deus abrandasse seu espírito. E esperei.

um- 3 .4

- Oj <&ULÍypíVLt-rj&o Á&
- (uomstotoJL
Um ano depois, o Bob passou por um sofrimento, e pude ajudá-
lo. Alguns anos mais tarde, mais sofrimentos vieram, e tive a chance
de servi-lo novamente. Dessa vez, o sofrimento era tanto que a única
saída do Bob foi aceitar meu amor e cuidado por ele. Pela primeira vez
em nosso relacionamento sua atitude para comigo abrandou de modo
significativo.
Quando começo a orar para que Cristo entre na vida de uma pes­
soa, Deus normalmente permite que ela passe por algum sofrimento.
Se o plano básico de Satanás é o orgulho, em busca de nos atrair para
sua vida de arrogância, então o plano básico de Deus é a humildade,
atraindo-nos para a vida de seu Filho. O Pai não pode pensar em nada
melhor para nos oferecer do que seu próprio Filho.
O sofrimento nos convida a participar da vida, morte e ressurrei­
ção do Filho. Uma vez que entendemos isso, o sofrimento deixa de ser
estranho. Pedro afirma: “Amados, não estranheis a provação que como
fogo vos sobrevem, como se vos estivesse acontecendo alguma coisa
estranha. Mas alegrai-vos por serdes participantes dos sofrimentos de
Cristo” (lPe 4.12,13).

Exercitando suas orações


Minha oração pelo Bob era dividida em três passos, segundo o pa­
drão tradicional. Primeiro, escrevi a oração na ficha. Depois, enquanto
orava, fiquei esperando que Deus agisse. Por fim, Deus providenciou-
me a chance de “exercitar” meu pedido de oração. Exercitar significa
que Deus me envolveu em minhas próprias orações, geralmente de um
modo físico e humilde.
Veja como esse padrão é semelhante à descrição que Jesus faz do
reino de Deus:

O reino de Deus é comparável a um homem que lança a semente à


terra; quer esteja ele dormindo à noite, quer acordado de dia, a semente
acaba brotando e crescendo sem ele saber como. A terra produz o grão
por si mesma, primeiro a planta, depois a espiga, e por último o grão
que enche a espiga. Mas, assim que o grão amadurece, o homem logo
lhe passa a foice, porque chegou a colheita (M c 4 .2 6 -2 9 ).

Observe a seqüência de três passos: lançar a semente, esperar e


trabalhar na colheita. A descrição de Jesus sobre o modo como o reino
funciona é diferente do modo como muitos de nós oramos. Primeiro,
raramente nos ocorre lançar uma semente de oração criteriosa, pois
costumamos achar que pessoas como o Bob não mudam. Ou seja, orar
parece fácil demais, quase uma válvula de escape.
Segundo, mesmo quando oramos, não sabemos esperar. Quere­
mos resposta imediata. Reclamamos justamente na hora em que Deus
vai realizar seu trabalho mais importante. Quando o Bob sofre, acha­
mos que seu “carma” finalmente chegou, que ele só está recebendo o
que merece. Não gostamos de admitir, mas no fundo somos tentados a
curtir o sofrimento dele. E gente como o Bob não sofre calado.
Por último, não reconhecemos quando chega a hora da colheita. Vi­
vemos tão distantes de uma sociedade agrária que nem imaginamos que
a descrição de Jesus sobre a colheita envolve trabalho duro. Revertemos
o padrão do reino: pedir (semente), esperar (crescimento) e trabalhar
(colheita). Em vez de trabalharmos em parceria com Deus, atacamos
diretamente o problema. Falamos para o Bob que ele é uma pessoa di­
fícil. Então, observamos o relacionamento se deteriorar. Quando nada
mais funcionar, talvez oremos. Porém, a essa altura, já teremos chegado
à conclusão de que o Bob não tem jeito mesmo, que Deus não pode
mudá-lo e que a oração não funciona.
Mas na verdade, o que não funciona somos nós. Para começar,
só oramos depois de termos piorado a situação. E então, tendo orado
só quando já não há mais nada a ser feito, não sabemos esperar e dar
tempo a Deus para que ele teça as tramas da sua história. Bem no ín­
timo, queremos que o Senhor responda à nossa oração realizando uma
mágica no coração da outra pessoa. Dizer que “a oração não funciona”
quase sempre significa “o Senhor não fez a minha vontade, do meu jeito
e na hora em que pedi”.

O Bob mais uma vez


Só quando paramos um pouco para observar é que notamos as estra­
nhas ligações que Deus traça no reino. Quando orei para que Deus
transformasse o Bob numa pessoa mais gentil, sua resposta foi fazer
com que eu o servisse, como amigo, num período de grande sofrimen­
to. O sofrimento do Bob transbordou para minha vida. De acordo com
Paulo, isso é a essência do ministério: “Pois, assim como os sofrimentos
de Cristo transbordam sobre nós, assim também a nossa consolação
transborda por meio de Cristo” (2Co 1.5). O sofrimento abre as portas
para o amor e colhe a verdadeira mudança.
O Bob continua o mesmo, porém está mais gentil comigo. Tam­
bém tenho por ele um novo tipo de amor. Quando cuidamos de alguém
que está sofrendo, criamos uma forte ligação com essa pessoa. Veja o
trecho de uma conversa que tivemos recentemente:
— “Paul, você já fez algum curso de oratória?”
— “Fiz, no seminário.”
— "Você tem feito muitas palestras?”
— “Tenho.”
— “Você repete ãh toda hora, quando conversa comigo. Você sabe
que diz ãh o tempo todo?”
— “Sei. É um dos meus maus hábitos.”
— “É muito chato.”
— “Você tem razão. É chato mesmo. Tenho de trabalhar nisso.”
— “Em vez de dizer ãh, não diga nada.”
— “Tem razão. Você poderia me ajudar, e chamar minha atenção
cada vez que eu disser ãhi"
— “Será um prazer.”
O Bob está se empenhando de verdade em me ajudar quando
aponta uma falha minha. Para mim é bom saber que o Bob é dessas
pessoas que se relacionam por meio de críticas. Pessoas como o Bob
encontram satisfação em restaurar a ordem das coisas.
Ao pensar no Bob e em sua vida, fiquei impressionado ao entender
que nós dois temos genericamente os mesmos padrões de pecado. Nós
dois precisamos de Jesus. Entender que posso ser parecido com o Bob é
provavelmente a melhor colheita do reino.

Se o plano básico de Satanás é o orgulho, em busca de nos


atrair para sua vida de arrogância, então o plano básico de Deus
é a humildade, atraindo-nos para a vida de seu Filho.
C a p ítu lo 29

OUVIND s O A/
V O\ ^ Ü E 'DTTÚ -S-

HÁ ALGUNS ANOS FIZ um retiro de um dia em dezembro, para


orar sobre meus alvos para o ano seguinte. Nos períodos de oração
mais longos como esse, medito e oro usando textos da Bíblia. Às vezes
simplesmente me calo diante de Deus, e paro um pouco para ficar
mais atento aos rumos da minha vida e do meu coração. Pergunto a
mim mesmo: D e que modo Deus está falan d o à m inha vida? O que Deus
está fazendo?
Enquanto pensava no ano que estava chegando, escrevi em meu
diário de oração: O Senhor deseja que eu me concentre em quê? Como
quer que me concentre? A resposta me veio à mente de forma tão clara
quanto as palavras que escrevo nesta página: N ão quero que você tenha
alvo nenhum p ara o ano que vem. Vou trabalhar no seu caráter. Surpreso,
perguntei: M as qu al é o problem a com meu caráter! Mais uma vez a res­
posta foi clara: Você sabe. E eu sabia mesmo. De imediato, sete itens me
vieram à mente, e anotei todos em meu diário de oração.
: o :

1, €/ c y u v o .

2 . O t -u K * / ,* í>e*t/ p c L C i e n í c - C < v > v oJty p & tA o a ò '.

3 . m jxU y â ^ M i& d b u tiâ jo * C o/>v oò- o o Í k o & .

5 . y h ^ jjjd ofa O t t t V U JjÇ d O ' d ia h tt A&


6. âX^\jÁaAsL,
"7, k á o te*, ÁJb d e , Ç jú J iX o .

Deus havia mesmo falado comigo naquele retiro de oração ou as


ideias que eu tinha anotado eram minhas? Para responder, vou contar o
resto da história; depois, refletiremos sobre os benefícios e os riscos de
ouvirmos a Deus.
Se, em vez de orar, eu tivesse usado aquele dia para anotar meus
alvos, teria feito um esforço inútil. No ano seguinte, Deus não fez ou­
tra coisa senão trabalhar no meu caráter. Cada uma das sete áreas que
apontei se transformou numa pequena história escrita por Deus através
de sofrimento. Para explicar melhor, vejamos o último dos sete itens:
Testemunhar: não ter vergonha de falar de Cristo.
Pouco antes do retiro, perguntei a meu chefe (que também era
meu pai) como eu poderia melhorar meu desempenho. Ele respon­
deu: “Gostaria que você se preocupasse mais com os perdidos”. Fiquei
indignado por dentro. Fazia treze anos que trabalhávamos lado a lado
no crescimento de nossa missão; tínhamos agora noventa missionários.
Poucas pessoas haviam feito mais do que eu para alcançar os perdidos.
Contudo, eu sabia que não era disso que meu pai estava falando.
Seu desejo era que eu pessoalm ente mostrasse mais interesse por aqueles
que não conheciam a Jesus. Mas isso me intimidava. Por ter crescido
num lar cristão e estudado em escolas evangélicas, não estava acostu­
mado a lidar com não crentes. Pensei: Paul, você é orgulhoso dem ais para
adm itir que seu p a i está certo. Então, comecei a orar para que Deus me
ajudasse a amar e a me sentir bem com os não crentes.
Quatro meses depois, em abril, eu orava enquanto caminhava à
beira do mar Mediterrâneo, na Espanha. Meu coração estava pesado
no peito. Meu pai havia feito uma cirurgia cardíaca e não passava bem.
Na verdade, ele estava morrendo. Enquanto caminhava pelo cais, atur­
dido, lembrei novamente do amor de meu pai pelos não crentes, e orei
pedindo que Deus me desse um coração igual ao dele e o multiplicasse.
Depois do enterro, um amigo me telefonou perguntando se seu
queria adiar o começo de um estudo bíblico evangelístico que havíamos
planejado. Respondi: “Não. Meu pai gostaria que eu começasse o estu­
do”. No início de junho, um tanto apreensivo, dei meu primeiro estudo
sobre a pessoa de Jesus a um grupo bastante variado de participantes.
Aquela pequena semente começou a se multiplicar e hoje, muito tempo
depois, recebo regularmente e-mails do mundo inteiro de pessoas que
usam esse estudo para falar de Jesus a quem não o conhece.

Era Deus falando?


Era mesmo Deus falando? Fui movido pelo Espírito ou foi apenas mi­
nha intuição? Creio que Deus estava pessoalmente envolvido, traba­
lhando em mim, falando comigo naquele dia de oração. E explico por
quê penso assim.
Primeiro, minha pergunta e a resposta posterior estavam imersas
em reflexões bíblicas. Esse foi apenas um estágio dessa história de arre­
pendimento que começou a se desenrolar, orientada pela Bíblia. Lemos
no salmo 25-14: “O conselho do Senhor é para os que o temem, e ele
lhes dá a conhecer a sua aliança”. Isso era justamente o oposto da in­
tuição humana desenfreada. Na verdade, minha intuição estava sendo
controlada por Deus.
Segundo, a resposta que recebi me pegou de surpresa. Sou quase
obsessivo em relação a alvos, mas aquele pensamento de não ter alvos
nunca havia me ocorrido. Na Bíblia, observamos essa mesma caracte­
rística surpreendente em toda intervenção divina. Quem mais poderia
ter pensado na encarnação, na cruz e na ressurreição? A ideia de que
eu era arrogante demais só podia ter vindo de Deus. Era nitidamente
a sua voz. Estava de acordo com a Bíblia. Deus escreve sua Palavra em
nossos corações.
Por fim, o objetivo divino se concretizou. Naquele ano Deus não
fez mais nada senão trabalhar em meu caráter. Os alvos teriam mesmo
sido inúteis. O reino veio. A vontade de Deus foi feita. A Bíblia ensina
que podemos discernir se um profeta é falso quando sua profecia não se
realiza (veja D t 18.21,22).

Onde os cristãos erram


Vejamos dois erros comuns que os cristãos costumam cometer no que
diz respeito a ouvir a voz de Deus e como podem discernir quando ele
está falando.

1. "Só a Bíblia” — Quando as pessoas


cometem o erro de não ouvir
Quando estivermos procurando enxergar a mão de Deus em nossa
vida, se olharmos exclusivamente para a Palavra, mas deixarmos de vi­
giar e orar, perderemos o desenrolar da história de sua obra em nós.
Deixaremos de ver o artista divino esculpindo o caráter de seu Filho
em nosso coração. Nossa vida deixará de ter o brilho e a intimidade da
presença de Deus.
Quando o Espírito apontou meu pecado, estava aplicando a Pa­
lavra de forma pessoal ao meu coração. “Portanto, humilhai-vos sob a
poderosa mão de Deus” (lPe 5.6). Se naquela manhã de dezembro eu
não tivesse separado tempo para orar e colocar minhas questões diante
de Deus, o ano seguinte teria perdido um pouco do rico significado que
Deus tinha em mente. E eu teria perdido a emoção da história.
Aquele pensamento — Paul, vou trabalhar em seu caráter — cau­
sou em mim o mesmo impacto que as palavras de Jesus a Pedro —
“Três vezes me negarás” (Mt 26.34). Depois de ter fracassado, relem­
brar o que Jesus havia dito levou Pedro a um arrependimento ainda
mais profundo. Contudo, também lhe trouxe esperança, possivelmen­
te livrando-o do suicídio, pois Pedro podia afirmar: “Jesus sabia o que
eu iria fazer, e mesmo assim me amou e orou para que eu não entrasse
em desespero”. Na minha vida, quando a dor chegou no ano seguinte,
aquele pensamento inesperado deu significado e propósito ao sofri­
mento. Deu-me esperança.
Se acharmos que a Bíblia só tem uma aplicação geral à vida das
pessoas, não notaremos como Deus torna seu conselho intimamen­
te pessoal a cada um de nós, como indivíduos. Talvez nos tornemos
deístas, afastando Deus de nossa vida. No entanto, por toda a Bíblia
ouvimos Deus nos falar com um toque pessoal, incentivando-nos a
obedecer e a amar.
Observe a variedade de situações em que o Espírito estava apli­
cando a Palavra de forma pessoal em minha vida: (1) quando per­
guntei a meu pai como poderia melhorar, (2) quando meu pai me
incentivou a ter mais amor pelos perdidos, (3) quando percebi que
era muito orgulhoso, (4) quando orei na Espanha e (5) quando iniciei
o estudo bíblico. Cada uma dessas situações se qualifica como uma
“comunicação divina específica”.
Ver a mão de Deus em nossas circunstâncias, na criação, em outros
crentes e na Bíblia nos impede de elevar os pensamentos a um patamar
único. Deus fala continuamente a todos nós, mas não somente através
da nossa intuição. Observar o trabalho de Deus nos detalhes da nossa
vida realça a aplicação da Palavra. Na verdade, iremos minar o impacto
da Bíblia se definirmos de forma muito estreita o que é o falar de Deus.
O que está em jogo aqui é náo perdermos o bom Pastor de vista.
Tenho que sintonizar a voz do Pai acima do tumulto do meu coração
e do mundo ao redor — que C. S. Lewis chama de “o reino da baru-
Iheira”. Tenho que adquirir um olhar de poeta, um olhar que consiga
identificar os traços do Pai na sua admirável criação. Como um bom
contador de histórias, preciso ter o mesmo ritmo e o mesmo pulsar do
coração do Divino Contador de histórias.
Eu e Jill nos transformamos em poetas quando, pouco a pouco,
fomos notando que grande dádiva a Kim era para nós, duas pessoas tão
autoconfiantes. Praticamente todas as histórias que contei neste livro
têm um toque de poesia. “Vigiai e orai” é o lema que Jesus repete aos
discípulos no Getsêmani (Mc 14.38). Mas não ore no escuro. Ore com
os olhos abertos. E procure identificar as tramas que Deus está tecendo
em sua vida.

2. “Só o Espirito" — Quando as pessoas cometem


o erro de exaltar a intuição humana
Certa manhã, eu estava orando no quarto da Emily quando ouvi uma
voz que vinha do alto, tão clara como se você estivesse falando comigo
agora: “Paul, aqui é Deus. Sua esposa precisa de uma cozinha nova”.
Logo depois, o rosto sorridente da Jill apareceu na porta. “Paul, Deus
falou de alguma maneira especial com você hoje? Ele disse alguma coisa
sobre uma cozinha nova?”
A brincadeira da Jill explica a questão das pessoas que estão a toda
hora ouvindo Deus falar. Quando alguém chama seus próprios pensa­
mentos ou sentimentos de “a voz de Deus”, está tentando controlar a
Deus, e acaba minando a Palavra de Deus, pois eleva a intuição humana
ao patamar de revelação divina. A menos que a Bíblia guarde e direcione
nossas intuições, é fácil perder o rumo e tentar santificar nossos desejos
egoístas com linguagem religiosa (“Deus me mandou casar com ela...”).
A primeira escola evangélica em que fui professor costumava
fazer os cheques de pagamento “pela fé”, crendo que Deus provi­
denciaria o dinheiro. Nós, os professores, também depositávamos os
cheques na base da fé, mas infelizmente o banco não tinha fé, e os
cheques eram devolvidos. Ninguém ficou surpreso quando a escola
faliu. Aquela linguagem religiosa na verdade escondia a irresponsabi­
lidade financeira.
Se depois do retiro em dezembro eu tivesse anunciado à diretoria
da missão: “Deus me falou para não fazer alvos para o ano que vem”,
teria elevado meus próprios pensamentos ao nível de autoridade bí­
blica. Na verdade, só me lembrei daquela oração quando o novo ano
começou a ficar difícil. Foi uma palavra pessoal de Deus para mim que
deu significado e esperança a um momento complicado. Sua palavra
não foi um alicerce sobre o qual eu devesse construir minha vida, mas
simplesmente um toque carinhoso do meu Pai celeste.
O problema é que o Espírito Santo vem pelo mesmo canal que
o mundo, a carne e o Diabo. O Senhor nos guia — só precisamos ter
o cuidado de não usar o Senhor como disfarce para nossos próprios
desejos. Se começarmos a interpretar pensamentos e desejos aleatórios
como coisas que “Deus me disse”, passaremos a agir de modo estranho.
Foi isso que aconteceu com um casal de amigos.
O marido, que era pastor, lutava contra a síndrome da fadiga crô­
nica e outras doenças. Ao descobrir que ele estava viciado em analgési­
cos, a esposa se voltou contra Deus. Durante uma visita, ela me contou:
“Meu marido e eu recebemos uma palavra clara do Senhor para não co­
mermos nada que contenha fermento. Joguei fora todo o fermento que
tínhamos em casa, mas ele continua doente”. Fiquei tão espantado que
disse: “Mas isso é uma heresia! Vocês estão elevando a intuição humana
ao mesmo patamar da Bíblia”. Também lhes expliquei que o fermento,
na Bíblia, é uma metáfora para uma ponta de mal que contamina todo
o resto. Dei a entender que o fermento era a dependência de remédios
do marido. Aquele casal fora literal em sua maneira de interpretar a voz
de Deus. Os dois precisavam desenvolver olhos de poeta.
O problem a não está no ouvir, mas no coração que ouve. Estou
atento a Deus? Meu coração é m aleável e disposto a aprender?

Às vezes tenho premonições de que algo ruim vai acontecer a um


ente querido. Nessas situações, oro contra minhas intuições. Peço que
Deus abençoe, proteja e dê vida longa à pessoa. A simplicidade e a
clareza da Bíblia — “Amado, desejo que sejas bem-sucedido em todas
as coisas e que tenhas saúde, assim como a tua alma vai bem” (3Jo 2) —
impede-me de ficar perdido em meus sentimentos. Pergunto-me se a
“noite escura da alma” que muitos místicos experimentam não significa
apenas ficar perdido na escuridão de seu próprio coração.
Paulo adverte os colossenses contra a pessoa que se baseia “em coisas
que tenha visto, inutilmente arrogante em seu conhecimento carnal, e
não retendo a Cabeça” (2.18,19). O apóstolo liga a comunicação vinda
de Deus com o perigo de se criar uma espiritualidade fingida e superior.
Paulo nos orienta a manter os olhos na Cabeça, o Bom Pastor, e não nas
formas como a comunicação acontece. Na verdade, ele jamais mencio­
na que Deus lhe falou diretamente, a não ser em 2Coríntios 10— 12,
quando os que se diziam super apóstolos estavam se gabando das visões
recebidas de Deus e atacando Paulo. Mesmo assim, não esclarece que
foi ele mesmo quem teve as visões. Paulo disse: “Conheço um homem”
(2Co 12.2). O mesmo acontece em Atos, quando, às vezes, Lucas relata
que Paulo recebeu uma orientação específica de Deus, geralmente em
situações complicadas. Porém, é mais comum Paulo simplesmente falar
de seus desejos e planos como sendo seus mesmo, próprios.
Para discernir se é mesmo Deus falando conosco, temos de manter
unidos a Bíblia e o Espírito Santo.
As pessoas do tipo “só o Espírito” (lado direito do gráfico) fazem
uma separação entre ouvir a Deus e obedecer à Bíblia. Sob o pretexto
de que estão sendo “guiados pelo Espírito” podem tranquilamente fazer
o que querem. O que “ouvem” de Deus talvez seja um disfarce para sua
própria vontade. Isto é emocionalismo (uma forma de romantismo)
que torna os sentimentos absolutos.

Só a BIblia BIblia e Esp Irito unidos Sá o EspIrito


D eus fala so m e n te Ao im pregn ar 1 D eus fala por m eio d o
pela Bíblia. minha vida Espirito co m a m esm a
com a Palavra, au to rid a d e d a Bíblia.
Faço a v o n ta d e d e Deus,
dou a o Espirito
m as m e co n cen tro a p en a s D eus faz a m inha v o n tad e.
o vocabulário
na obediên cia. q u e é preciso E n ten do m eu s pe n sa m en to s
para aplicar essa co m o se fo sse m o s d e Deus.
P ecado s por om issão: Evito
adulterar, m as n ão ten h o com paixão. Palavra P ecad o s p o r com issão:
pessoalmente a mim. M eus sentim entos
guiam m inha vida,
abrin d o portas para a
a m b ição e o ego ísm o .
Resultado: Resultado:
Vida sem graça, qu ase não Vida integrada, Resultado:
percebe a m ão d o Mestre rep leta d e significado Vida dirigida pelos
m oldando o seu viver. e com unh ão. sentim entos, confusão
entre a vontade própria
Racionalismo: e a von tad e d e Deus.
Razão e lógica são Romantismo:
as m edidas da Instituições e sen tim en tos
verdade. são a s m ed id as da verd ade.

As pessoas do tipo “só a Bíblia” também separam o ouvir do obe­


decer, pois se concentram na obediência e ignoram a necessidade de
ouvir e arrepender-se. Ouvir e obedecer a Deus são coisas tão inter­
ligadas no conceito bíblico que no hebraico são uma única palavra,
shamar. Sob o pretexto de obedecer à Bíblia, muitas vezes se tornam
pessoas rígidas, inflexíveis. Temos de evitar tanto o racionalismo quan­
to o emocionalismo.
Precisamos do caráter absoluto e apurado da Bíblia, e da liderança
pessoal e intuitiva do Espírito. A Bíblia fornece a estrutura, o vocabulá­
rio. O Espírito torna isso pessoal em nossa vida. Manter unidos a Bíblia
e o Espírito nos protege do perigo do “Deus me falou” se transformar
em um disfarce para nossos próprios desejos, bem como do perigo de
vivermos uma vida afastada do Senhor.
Cultive um coração atento
Não existem segredos para viver em comunhão com Deus. Se vivermos
de modo santo diante dele, acabarmos com o orgulho e a vontade pró­
pria e clamarmos por sua graça, teremos comunhão com Deus. Nada
pode ser mais simples que isso.
Ouvir é apenas uma das coisas que acontecem ao longo do proces­
so em que a minha alma começa a se conectar com Deus. Mas não dá
para ouvir a Deus sem uma vida de entrega que nos coloque dentro da
história que ele tem preparada para cada um de nós. Tem que ser uma
história do evangelho. Com isso quero dizer que a única coisa que tra­
zemos diante de Deus é o nosso morrer, a nossa fraqueza. E Deus traz
sua graça, sua ressurreição.
Os cristãos tendem a ficar empolgados com a ideia de “ouvir a
Deus”, como se tivessem descoberto um novo jeito de se comunicar
com o Senhor, algo que vai revolucionar sua vida de oração. Normal­
mente, quando tocam nessa questão, os autores apresentam o tema cor­
retamente (“o ouvir tem que estar no contexto de obediência à Bíblia”).
Porém, muitas pessoas costumam transformar o ouvir a Deus na coisa
principal. De um modo sutil, isso acaba enaltecendo a experiência com
Deus, e não o próprio Deus. Sem perceber, é como se ficássemos olhan­
do para o vidro em si e não através da jan ela.
Quando se refere à comunicação com Deus, a Bíblia pressupõe
que sabemos o que Deus está dizendo. O problema não está no ouvir,
mas no coração que ouve. Estou atento a Deus? Meu coração é maleá­
vel e disposto a aprender? Tenho me lembrado dos caminhos e manda­
mentos do Senhor? Lemos no salmo 25.15: “Meus olhos estão sempre
atentos no Senhor”. O meio como essa comunicação acontece é algo
secundário para o coração que se rendeu a Deus. Nossa tarefa é cultivar
um coração atento, que sabe ouvir a voz de Deus em meio aos tumulto
provocado por Satanás, pelo mundo e por nosso próprio coração.
Essa interação entre o Espírito de Deus e o meu espírito é um
mistério. Davi retratou esse mistério no salmo 16.7: “Bendigo o Senhor
que me aconselha, pois até durante a noite meu coração me ensina”.
O paralelismo do versículo indica que a frase “o Senhor que me acon­
selha” eqüivale a “meu coração [literalmente ‘minhas vísceras’] me en­
sina”. O que acontece aqui? O coração de Davi fala com ele ou é Deus
quem o aconselha? É impossível separar as duas coisas.
Estar em sintonia com a voz de Deus é algo difícil de ser definido,
mas ainda assim é real, verdadeiro. Tudo o que podemos fazer é viven-
ciar essa experiência e observar algumas de suas características. Não
temos capacidade para analisar essa interação.
O conselho de Deus a Davi é inseparável da busca ativa de Davi
por Deus: “Sempre tenho o Senhor diante de mim” (16.8). O conselho
de Deus não funciona como se fosse uma adivinhação; é algo insepará­
vel de buscarmos humildemente a Deus.
C a p ítu lo 30

D I Á R I Q DE
O R A Ç Ã p r T Q R N E-

] Q ^ A ^ r T ^ r T E RI O R

0 HÁBITO DE MANTER um diário de oração e a ideia de que minha


vida é uma história com um sentido são atitudes cujas raízes vêm do
cristianismo. As Confissões de Agostinho, autobiografia escrita por vol­
ta do ano 400 d.C., relata a jornada interior do autor. Foi o primeiro
diário de verdade de que se tem notícia. Agostinho foi a primeira pes­
soa a reconhecer que algo se passava em seu coração e a escrever como
o significado disso estava entrelaçado à sua vida.
Ele descreve como encontrou o Deus vivo — um Deus que fala —
ao ouvir uma criança vizinha entoando uma cantiga. Agostinho estava
acompanhando as pregações do bispo Ambrósio e sendo convencido de
seus pecados, particularmente do pecado sexual. Ele escreveu:

E lá estava eu m urmurando e chorando com o coração amargo e


contrito quando, de repente, ouvi uma voz que vinha da casa vizinha,
que parecia ser de m enino ou menina, não sei, cantando repetida­
mente: “Pegue e leia; pegue e leia”. N o mesmo instante meu sem­
blante se alterou... levantei-m e, interpretando isso com o nada menos
que uma ordem vinda de Deus para que eu abrisse o livro [o Novo
Testam ento], e lesse o prim eiro capítulo que encontrasse... peguei
o livro, abri e em silêncio li os versículos sobre os quais meus olhos
caíram: “não em orgias e bebedeiras, não em imoralidade sexual e
depravação, não em discórdias e inveja. Mas revesti-vos do Senhor
Jesus Cristo; e não fiqueis pensando em com o atender aos desejos da
carne”.... imediatamente, quando cheguei ao final desta sentença, por
meio de um a luz... que entrou em meu coração, toda a escuridão da
dúvida desapareceu.1

O Espírito, falando por meio de uma criança, tornou a Bíblia viva


no coração de Agostinho. Quando Deus lhe tocou a alma, Agostinho
reviveu, e sua vida ficou repleta de sentido.
Quando a vida passa a fazer sentido, ela se torna uma jornada,
uma aventura espiritual. Escrever o desenrolar dessa aventura nos dá
a visão do nosso lugar na história que Deus está tecendo em nossa
vida. As anotações em um diário de oração nos levam a ficar cientes
dessa jornada.
Essa ideia de que estamos envolvidos em uma jornada espiritual
tem suas raízes na essência do cristianismo. Observe as marcas que
encontramos no salmo 23 e que nos levam a pensar em uma jorna­
da. O bom Pastor “guia-m e p aia as águas tranqüilas (...) guia-m e pelas
veredas da justiça (...) Quando eu tiver de andar pelo v aleàa sombra da
morte (...) [ele está] (...) comigo (...) Bondade e misericórdia me segui­
rão todos os dias da m inha v id a’ (ênfase acrescentada).
Vários perigos estão à espreita ao longo da jornada. Na jornada
exterior, “o vale da sombra da morte” e “diante dos meus inimigos” são
coisas ameaçadoras. Na jornada interior, luto com uma alma inquieta.
Do mesmo modo que o personagem de um bom romance, tenho de
fazer escolhas. Fugirei da presença dos meus inimigos ou esperarei que
0 Senhor prepare a mesa para mim? Tentarei me satisfazer com coisas

1 Santo Agostinho, Confessions, Book viu, Section 12.29, http://ccat.sas.upemm.edu/


jod/augustine/Pusey/book08. [Publicado em português pela editora Paulus sob o título
Confissões.]
materiais ou deixarei que o bom Pastor me faça “deitar em pastor ver-
dejantes”? A vida se transforma numa aventura.
A consciência de uma jornada interior continuou ao longo da his­
tória do cristianismo. No entanto, a prática do diário de oração dos
puritanos ingleses dos séculos xvi e xvii elevaram a jornada interior a
um novo patamar. Ele queriam manter um registro do que Deus estava
fazendo em suas vidas. Essa prática abriu caminho para “O Peregri­
no”, de John Bunyan e “As aventuras de Robinson Crusoé”, de Daniel
Defoe. Essas duas obras descrevem aventuras interiores que serviram
de inspiração para o desenvolvimento do personagem no romance.
Edward Said, acadêmico palestino de renome, mostra que “o romance
é uma forma particularmente cristã de literatura. Pressupõe um mundo
incompleto, que anseia por salvação, e sai à sua procura. Em contraste
(...) temos o mundo islâmico, fechado e completo em si”.2
As histórias que contei neste livro também são pequenas aventuras.
Será que Ashley encontra a lente perdida? Será que Kim conseguirá
falar? Será que Kim encontrará emprego? Caminhar com Deus é tudo,
menos entendiante.
Muitos vivem envolvidos no corre-corre cotidiano sem ter muita
consciência da jornada que Deus está traçando em sua vida. Quando
uma calamidade os abate, descobrem que nao aprenderam os caminhos
de Deus e, assim, não têm um ponto de referência para reagir. E com
isso, arrastam-se pela vida, sem perceber o toque da mão de Deus em
sua jornada.
Fazer um diário de oração nos ajuda a avaliar a posição em que
estamos ao longo dessa jornada. Nossa alma ganha olhos de poeta, de
artista. O diário de oração nos ajuda a refletir sobre o que o Pai está
fazendo, em como ele cuida de nós, em vez de simplesmente reagirmos
às circunstâncias. Se encararmos nossa vida como uma jornada, ela se

2 Peter J. Leithart, resumindo Edward Said, “Bunyan, Defoe, and the Novel”, 5 de
novembro de 2005. htp/://www.leithart.com/archives/print/001586.php.
transforma em uma história completa e integrada. Ela passa a fazer sen­
tido. Quando entendemos a história, nossa alma se aquieta. O grande
problema não é ter uma vida agitada, mas sim uma alma agitada.

Torne-se consciente de si mesmo na jornada


Quando caminhamos com o bom Pastor, ficamos conscientes do nosso
verdadeiro ser. Em sua autobiografia, Agostinho relata que, quando era
menino, roubava peras verdes do pomar do vizinho, embora tivesse
peras maduras no seu quintal.3 Ao conhecer o Deus vivo, conseguiu ver
essa irracional inclinação de seu coração para o mal.
Vimos como o salmo 23 é pessoal, pois pronomes como me, m eul
m inha e eu aparecem uma porção de vezes ao longo do salmo. Quan­
do conhecemos o Pastor do salmo, nosso ser é libertado. Davi tem
consciência de si mesmo porque está consciente do amor de Deus. É a
luz de Deus que ilumina essa jornada interior e nos permite vê-la.
A busca do mundo atual pela realização pessoal é uma visão se-
cularizada dessa descoberta cristã do ser. Sem que o bom Pastor nos
leve a ver quem somos de verdade em nosso relacionamento com ele,
acabamos nos perdendo pelo caminho e ficamos obcecados com nos­
so próprio ser. Em vez de reconhecermos essa inclinação para o mal,
ficamos cada vez mais melindrados, ultrassensíveis em relação a nós
mesmos, porém insensíveis em relação aos outros. Perdemos a visão
clara de nós mesmos.
A jornada espiritual é exatamente o oposto. A descoberta do nosso
ser em relação a Deus leva a um estilo de vida de arrependimento. Por
exemplo, raramente nos damos conta de nossa impaciência. Sempre
achamos que os outros é que são lerdos. Por sermos naturalmente o
centro de nosso próprio universo, não nos achamos impacientes. Tudo
o que conseguimos ver é como as pessoas nos atrapalham. É aqui que o
diário de oração se torna útil.

3 Santo Agostinho, The Confessíons ofSt. Augustine. Grand Rapids: Revell, 2008, p. 11.
A comunhão ou o diálogo com Deus no diário de oração é com­
posto das seguintes perguntas:

1. Como estou? O que está acontecendo comigo? Estou feliz,


triste, agradecido, desencorajado, zangado, frustrado?
2. O que Deus está me falando? O que a Bíblia diz?

Quando reflito sobre essas perguntas no diário de oração, o Deus


vivo dissipa a nuvem que encobre minha compreensão, e então vejo
quem sou de verdade, e o arrependimento vem. Não é à toa que o arre­
pendimento tem lugar de destaque na oração do Pai Nosso. Como vi­
mos, “Venha o teu reino, seja feita a tua vontade” (Mt 6.10) é algo que
atinge em cheio o âmago do nosso reino e da nossa vontade própria;
“não nos deixe entrar em tentação” (6.13) busca nos impedir de pecar;
e “perdoa-nos as nossas dívidas” (6.12) recolhe os cacos que sobraram.
É impossível caminhar com o bom Pastor e não começar a mudar.
Sua presença leva a uma análise interior bastante honesta. Gostaria de
apresentar duas perspectivas de como isso funciona em minha vida.
A primeira mostra o uso do diário no decorrer de um ano; a segunda
mostra o uso do diário em um momento a sós com Deus.

O uso do diário de oração no decorrer de um ano


O ano seguinte àquele retiro de oração que fiz em dezembro foi uma
verdadeira jornada interior. Em fevereiro, quando as dificuldades co­
meçaram, escrevi em meu diário de oração: A juda-m e a não fu g ir de
nenhum cálice de sofrim ento que o Senhor tenha preparado p ara mim.
Lembrei-me da lista de sete itens que havia anotado no diário dois
meses antes, e decidi transformar cada um deles em oração. Não ti­
nha dúvidas de que Deus queria desenvolver meu caráter por meio
do sofrimento.
No fim de março, anotei a seguinte reflexão a respeito de mim
mesmo:
Q uando acho que estou certo, geralmente sou rápido em me defender
e vagaroso em encarnar (em compreender). Posso ser enérgico, crítico
e orgulhoso. Jesus, torna-me sereno, prudente e humilde, e até que isso
aconteça, ajuda-me a ficar de boca fechada!

Em dezembro, Deus revelou áreas do meu caráter que eu precisava


submeter a ele; agora, com o diário de oração, posso ver o que Deus
estava fazendo na história mais ampla, na história de sua determinação
em me deixar parecido com o Filho. Deus foi trabalhando em mim
mês a mês.
Em junho, notei que Deus não estava particularmente interessado
em me tirar da situação difícil. Ele apenas queria me transformar. Es­
crevi: “Pela primeira vez nos últimos quatro meses, a ideia de me con­
centrar no arrependimento me parece boa". Foi um alívio perceber que
Deus não havia me deixado saída. Um pouco da pressão que eu sentia
desapareceu. Parei de tentar encontrar maneiras de melhorar a situação,
e concentrei-me no meu próprio arrependimento.
No fim de junho, percebi que Deus queria me ensinar a ouvir as
pessoas que tinham problemas comigo. Escrevi o seguinte sobre o que
estava aprendendo:

• Ser sensível à dificuldade que o outro tem de compartilhar. Per­


guntar: “Você quer que eu responda ou só pense no assunto?”
• Mesmo que não me pareça ser verdade, tentar descobrir o que
fiz de errado.
• Não ficar pensando só no que é ou não verdade. A verdade é
que preciso amar a outra pessoa.
• Tentar repetir o que a pessoa disse.
• Fazer perguntas à pessoa.
• Esperar para me explicar.
• Não ter pressa de dizer à pessoa o que ela fez de errado, espe­
rar um pouco.
No mês seguinte, achei que não havia feito muitos progressos.
Escrevi o seguinte a respeito de uma situação pela qual havia passado:
N ão fu i tardio em irar-m e. N ão fu i pronto a ouvir. N ão fu i tardio em
falar. No final daquele ano, estava anotando frases como estas no diá­
rio: Estou bem diferente do que era quando tudo isso começou. Oro para
continuar assim. Senhor, dê-m e um coração obediente.
Quando mantemos os olhos no bom Pastor, ficamos conscientes
de nós mesmos. O vale da sombra da morte se torna um vale de sonhos.
Como pudemos ver, o diário de oração nos leva a descobrir a história
que Deus está escrevendo em nossa vida. Em vez de passarmos pela vida
sem pensar, o diário nos faz parar e refletir.

O uso do diário de oração em um


momento a sós com Deus
O diário de oração nos ajuda a colocar em palavras aquilo que está em
nosso coração. Siga-me nesta manhã de oração, durante um período
difícil da minha vida.
Naquele dia, assim que parei para orar e refletir em como me sen­
tia, notei que estava transtornado. A primeira palavra que escrevi foi
raiva. Escrevi o motivo da raiva, e orei, pedindo graça. Então refleti
sobre o que Deus poderia estar querendo me dizer. Folhei os salmos
até encontrar um que refletisse o estado do meu coração: o Salmo 102.

• Sou como um passarinho solitário no telhado (v. 7).


• Tu me levantaste e me lançaste para longe de ti (v. 10).
• Meus dias são como a sombra que declina, e vou murchando
como a erva (v. 11).
• Não me leves na metade da minha vida (v. 24).

Meditar num texto que refletia a situação da minha vida era es­
tranhamente reconfortante. Disse a Deus: N ão tenho certeza de que o
Senhor me libertou. Sinto que estou afundando. Orei para que Deus me
salvasse, e depois de um segundo, escrevi: A té que o Senhor m e salve,
dê-m e f é para esperar.
Em seguida, passei a refletir sobre o estado em que minha alma se
encontrava: M inha incapacidade de esperar em ti vem de eu achar que a
salvação depende de mim. Isso me levou a pensar em todo sofrimento
registrado em Apocalipse; então, procurei ali versículos sobre perseve­
rança (ênfase acrescentada).

• Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, no reino


e na perseverança em Jesus (1.9).
• E lhes foi falado que repousassem um pouco m ais (6.11).
• Aqui estão a f é e a perseverança Aos santos (13-10).
• Aqui está a perseverança dos santos (14.12).

Lembrei-me então de três situações recentes em que eu não fora


paciente. Anotei-as no diário. No fim do meu período de oração, abri
em Isaías 30.15, onde Deus diz aos israelitas que, em vez de se atri­
bularem e tentarem salvar a si mesmos, eles encontrariam a salvação
“voltando e descansando” e “no sossego e na confiança”.
O período de oração havia começado com raiva e transtorno, mas
terminou com o Espírito individualizando a Bíblia para o estado em
que meu coração se encontrava. Sem que eu percebesse, naquele mo­
mento de oração passei de “Paul, a vítima” para “Paul, o pecador”.
No fim, eu tinha um objetivo claro: não fazer nada. Esperar em Deus.
O segredo estava em ser honesto sobre meus sentimentos e deixar
a Bíblia falar ao meu coração. Quando fui honesto, meu verdadeiro eu
estava falando. Não estava tentando ser bonzinho, mas ser eu mesmo.
Quando olhamos para nossa vida pelas lentes da Bíblia, dificilmente
perdemos o rumo. Podemos ser genuínos sem nos perdemos em nos­
sos sentimentos.
Se não tivesse anotado minhas reflexões, não teria percebido o que
Deus estava me ensinando. Quando terminei, sabia qual era minha
participação na grande história que Deus estava escrevendo. Então, fi­
quei fora de cena, num canto, esperando. Isso não é nada glamoroso,
mas é ser transparente como um diamante. Deixar Deus falar ao meu
coração, por meio de sua Palavra, abriu as portas ao arrependimento.
Meu momento de oração em sí já foi uma jornada, uma pequena
aventura.
Não é preciso ser um grande escritor para manter um diário de
oração, nem é preciso ser consistente. O diário é apenas uma versão
um pouco mais organizada daquelas orações que as crianças costumam
fazer, algo bem ingênuo, simples. Comece com o que está em seu co­
ração, com as coisas que o incomodam e aquelas pelas quais se sente
grato. Se for honesto diante de Deus, o restante começará a fluir.
O hábito de escrever suas preocupações e alegrias, e também suas
orações, ajuda a manter o foco e impede a mente de ficar divagando.
Porém, o melhor de tudo é que, com o tempo, começamos a ver as tra­
mas de Deus e a entender os fios que compõem nossa história.

Se encararmos nossa vida como uma jornada, ela se transforma


em uma história completa e integrada. Ela passa a fazer sentido.
C a p ítu lo 31

É ORANDO QUE FAÇO o meu melhor como esposo, pai, profissional


e amigo. A oração me torna consciente das sementes de descrença em
mim e das lutas que as outras pessoas enfrentam. O Espírito Santo me
aponta problemas que só ele sabe como resolver.
Na verdade, administro toda a minha vida através de um tempo
diário de oração. Estou moldando meu coração, meu trabalho, minha
família — na realidade, tudo que amo — por meio da oração, da co­
munhão com meu Pai celeste. Faço isso porque não tenho controle
sobre meu coração e minha vida nem sobre os corações e vidas daqueles
que me cercam. Mas Deus tem.
O resumo abaixo é uma pequena amostra de como tudo isso acon­
tece em uma manhã de oração.

Uma manhã de oração


No dia em que escrevi este resumo sobre meu tempo matinal de oração,
meu alarme despertou às 5h45min. Dormi mais cinco minutos, me ar­
rastei para fora da cama, me vesti e fiai orar na sala. A Jill estava orando
em outro lugar da casa. Assim que me sentei, a Kim começou a zanzar
para lá e para cá. Mandei que ela voltasse para cama. (Isso foi antes de
me ocorrer que deveria orar para que o vaivém da menina parasse).
Voltemos ao meu período de oração. Comecei a orar como uma
criança, refletindo sobre o dia anterior e agradecendo a Deus por mo­
mentos específicos em que havia percebido seu cuidado de pastor para
com a nossa família. No dia anterior, tínhamos recebido um telefone­
ma maravilhoso da Emily, nossa filha de dezenove anos que estava na
Guatemala, dizendo que havia decidido ir para a faculdade de nossa
preferência. Dois dias antes, havíamos falado com ela sobre possíveis
faculdades, e a conversa fora meio tensa. Quando desligamos, eu e a Jill
oramos sobre o assunto. Decidimos apoiar a escolha da Emily. Então
ela nos telefona para dizer que estava orando e estudando o livro de
Ester, e que Deus lhe mostrou que deveria seguir nossa orientação do
mesmo modo que Ester seguiu Mordecai.
Meu coração transbordava de gratidão. Há dez anos eu havia escri­
to este versículo na ficha de oração da Emily: “Filhos, sede obedientes
a vossos pais no Senhor, pois isso é justo” (Ef 6.1). Havia orado muitas
vezes para que o versículo se tornasse real na vida da minha filha. Po­
rém, a disposição da Emily em estudar na faculdade que preferíamos
era algo secundário; o mais importante era a mudança em seu coração,
que se refletia em sua nova atitude para conosco ao telefone. Atualizei
meu diário e escrevi uma breve oração de agradecimento.

Recentemente acordei no meio da noite com uma pergunta


bem estranha na mente: Como am ar alguém sem orar?

Em meio a isso tudo, comecei a pensar num blog de notícias que


eu costumava ler com frequência. No dia anterior me ocorreu que
visitar o blog várias vezes ao dia era uma boa forma de descansar a
mente, mas talvez as notícias alimentassem a descrença em minha
vida. Na semana anterior, orei pedindo que o Pai revelasse o que nutria
a falta de fé em minha vida.
Comecei a perceber que, de modo sutil, o excesso de exposição
à mídia estava estruturando minha visão do mundo. Anotei isso, não
tanto como oração, mas como uma ideia.
A Kim começou a zanzar de novo. Mandei-a voltar para cama. Ela
se aquietou. Comecei a orar usando as fichas. Uma das primeiras foi uma
ficha nova que eu havia feito há alguns meses; intitulava-se “Pressões da
Jill” e continha áreas da vida dela em que estava se sentindo pressionada.
No começo, havia apenas quatros áreas, mas agora já eram oito.

__ N _ í-t&P»v4£4.2.I4-I6
d o j^ f d í

to d a J y OJy C oiÀ d ^ âiò O Á H d íaly', jfX U tfa íjjU Í- to*>\£Üy

fyM&y âjb >-u>mtío c£eu/rw^etaç<jU>-


COVíM^tl/& KUbl^uJL Co/ru>ÇuSru*uiA&tr KOtruu^Ao,
h.eteyu&o <x> do~> uíÂoj, £tyJ£' yu> Ài/b A& s x ò t o Ul>te^ J^ moíuH> áe-

m£* cfe' k^wv Qoô em/ oãx> (UytnL otv ttux&oM&L 2 ..1 Ò ).

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Y 'Y ' ' Y 'V *"Y 'Y
^V 'Y ’ 'Y /,”Y ’ 'Y ' ‘Y ’ 'Y ’ ^Y /V/
/w/^w ^ ^

Usei os versículos como oração, pedindo que a Jill fosse uma filha de
Deus irrepreensível e sincera “no meio de uma geração corrupta e perver­
sa”, na qual pudesse resplandecer como luminar “no mundo” (Fp 2.15).
Logo depois das seis horas, ouvi novamente o tum-tum-tum de
passadas leves. Gritar não estava adiantando; então subi até o quarto
da Kim e disse-lhe para não sair da cama. Ela ficou tão zangada que
mordeu o próprio braço. Como castigo, disse a ela que não iria assistir
a nenhum filme naquele dia. Ela mordeu de novo o braço. Suspirei.
Tirar-lhe o privilégio de ver filmes só iria complicar mais o meu dia.
A Kim estava com pneumonia dupla, e eu tinha prometido à minha
esposa que iria trabalhar em casa para ficar com a menina, pois ela já
havia faltado dois dias no trabalho. A garota se acalmou, e voltei a orar.
Usei as fichas para orar pelo restante da família; algumas orações
eram de agradecimentos, outras eram de petições. Meu genro Ian pre­
cisava de emprego; meu filho John precisava crescer espiritualmen­
te; meu filho Andrew estava começando um estágio como professor.
Quando cheguei à ficha “Um lugar para a Kim morar”, agradeci a Deus
pela resposta clara que ele havia nos dado recentemente, após dois anos
de busca por um sobrado grande o suficiente para que ela tivesse seu
próprio canto, mas ficasse perto de nós.
Prossegui com as fichas, orando por meus amigos, minha igreja,
meu trabalho — por todas as áreas da minha vida. A certa altura, a Jill
apareceu e começou a conversar comigo enquanto ajeitava a casa. Eu ia
de Deus para a Jill, orando quando ela se calava. Terminei às 6h l 5min.

Reflexões sobre uma manhã de oração


As interrupções da Kim dão à oração um sabor de vida real. Enquanto
oro, não estou lidando com superficialidades, mas com o estado do
meu coração e das pessoas por quem oro. Meu tempo de oração é tudo,
menos uma chatice. Agradeço, arrependo-me, protejo e cuido. Meu
tempo de oração com Deus é cheio de vida.
Tirando os meus gritos com a Kim, esse momento de oração que
acabo de descrever é uma amostra de como é a vida de oração. É ao
mesmo tempo ser e agir. Estou ao lado de Deus. Sinto sua presença.
Ele fala à minha vida, porém nosso relacionamento não fica solto no
ar. Não estou em busca de uma experiência com Deus; estou pedindo a
Deus para participar das experiências da minha vida. Ele está em mim,
e eu estou nele. Quando lhe apresento minha vida real com minhas
necessidades reais, ele age de maneiras incríveis. Toca em minha vida,
fazendo o que não consigo fazer. Sabe qual é o resultado de tudo isso?
Gratidão. Não temos de nos esforçar para adorar quando Deus é tão
ativo, tão real.
A consciência da minha vulnerabilidade, do meu desamparo es­
tava bem ali, sob a superfície do meu tempo de oração. Simplesmente
não posso tocar minha vida sozinho. Sem a intervenção de Deus, sinto-
me completamente desamparado. Preciso de Jesus.
Recentemente acordei no meio da noite com uma pergunta bem
estranha na mente: Como am ar alguém sem orar*. Ou seja, como amar
uma pessoa se não conseguimos orar por ela? Era um mistério para
mim. Não conseguia entender isso. Amar uma pessoa e não ser capaz
de orar por ela é algo deprimente e frustrante, como tentar correr com
os tênis nos pés trocados. Eu não seria nem um pouco útil a essa pessoa.
O ser humano é complicado demais; o mundo é perverso demais; e meu
próprio coração desequilibrado demais para conseguir amar alguém
adequadamente sem orar. Preciso que Jesus me ajude.
Nunca é demais repetir que as coisas acontecem porque oro. A atitu­
de da Emily mudou drasticamente. Está feliz da vida na faculdade que
nós a orientamos a escolher. Vimos tudo claramente em nossa busca de
um lugar para a Kim. Logo depois de eu ter orado para que a Jill fosse
um “luminar no mundo”, alguém no trabalho disse a ela: “Jill, você
ilumina este lugar todo”. Deus, com sua própria poesia, está tocando
na vida das pessoas que amo.
A obra de Deus segue o formato comum das histórias. Minha ale­
gria pela Emily foi o desfecho, o fim de uma longa história de dez
anos. Fiquei alegre porque sempre tive muita consciência da história
que Deus estava tecendo.
A gratidão que senti pela clara orientação em nossa busca por um
sobrado foi o meio de uma história. A clareza veio da Jill. Ela sugeriu:
“Paul, com o mercado imobiliário tão em baixa, deveríamos vender
nossa casa primeiro. Não sabemos quanto vale, mas com dinheiro na
mão e o mercado mais favorável ao comprador, estaríamos em vanta­
gem”. Achei que acabaríamos ficando sem casa nenhuma, porém a Jill
estava certa.
Três meses depois de orarmos, vendemos nossa casa. Estávamos
dispostos a comprar um terreno e construir (hoje vejo que teria sido
uma péssima ideia), mas decidimos esperar e orar mais um dia. Na
manhã seguinte, o sobrado perfeito foi colocado à venda.
Algumas histórias, como as andanças da Kim, não haviam nem se­
quer começado. Eu ainda viria a perceber que falar com ela não adian­
tava. Era com Deus que eu tinha que falar.
Não precisamos ter uma vida de oração porque orar é nossa obri­
gação. Se assim fosse, orar logo se tornaria uma grande chatice. Temos
que dedicar um tempo diário ao Pai porque todos os dias ervas dani­
nhas tomam conta de nossos corações e dos corações das pessoas que
nos cercam. Temos que refletir sobre nossa vida e colocar diante de
Deus a situação de nossa alma e das almas que ele confiou a nossos cui­
dados ou colocou em nosso caminho. Vivemos em um mundo caído,
onde as coisas não se resolvem automaticamente.
C a p ítu lo 32

HI S T Ó R I A S )
in a c a b X d a s J
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NAS HISTÓRIAS CONTADAS NESTE livro, vemos Deus bordando


uma tapeçaria. Digo por experiência própria que, se permanecermos
em Cristo, Deus geralmente nos mostra o que está tecendo. Mas às
vezes, não mostra. Jó é o exemplo mais famoso disso. Ele nunca soube
por que sofreu tanto.
Neste capítulo, gostaria de lidar com um grupo particularmente
difícil de histórias: as histórias inacabadas, aquelas com finais tristes, as
aparentes tragédias. Vivemos muitas histórias ao mesmo tempo, e elas
quase sempre abrangem mais do que apenas nossas vidas. Todos nós
morreremos com histórias inacabadas. Não podemos jamais nos esque­
cer de que Deus é Deus. Afinal de contas, a história é dele, e não nossa.
Muitas vezes os próprios personagens não chegam a ver o final da
história. Esse foi o caso dos filhos de Israel, depois da invasão babilôni-
ca, em 586 a.C.

A agonia de Israel
Israel estava em agonia. “Às margens do rio da Babilônia nos assenta­
mos e choramos, recordando-nos de Sião” (SI 137.1). Os babilônios
haviam destruído a cidade de Jerusalém; derrubaram muros e demo­
liram o templo de Salomão. Mataram os filhos do rei diante de seus
próprios olhos, depois o cegaram e levaram-no acorrentado para o exí­
lio. Os rapazes — como Daniel e seus amigos — o futuro do reino
de Israel, tornaram-se eunucos a serviço do rei da Babilônia. Até seus
nomes foram mudados. O reino de Israel desapareceu; o rei desapare­
ceu; o reinado desapareceu. Em termos práticos, Israel deixou de existir.
Assim, à margem do rio da Babilônia, eles sentaram e choraram.
A volta do cativeiro não ajudou muito. Em 520 a.C., na ceri­
mônia de dedicação do templo provisório que haviam construído, as
pessoas mais velhas choraram, ao se lembrar do edifício majestoso que
Salomão havia construído. O profeta Ageu perguntou a Zorobabel:
“Dentre vós, os sobreviventes, quem viu este templo na sua primeira
glória? E agora, como o veem? Não é como se nada fosse a vossos
olhos?” (Ag 2.3).
A única esperança dos israelitas eram umas poucas palavras dos
profetas. Na mesma cerimônia, Ageu profetizou:

Em pouco tempo farei tremer os céus e a terra, o mar e a terra seca.


Farei tremer todas as nações; as coisas preciosas de todas as nações serão
trazidas, e encherei este templo de glória (...) A glória deste novo tem­
plo será maior que a do primeiro (2.6,7,9).

Todas as pessoas que ouviram essas palavras morreram sem ver


nada acontecer. Na verdade, nem seus filhos e netos viram. Nada acon­
teceu durante quinhentos e cinqüenta longos anos. Deus estava presen­
te, mas em silêncio.
Mesmo assim, os filhos de Israel não deixaram de ter esperança e
orar. A cena de abertura do evangelho de Lucas é uma reunião de ora­
ção. Quando Zacarias entrou no templo para queimar incenso, “toda
a multidão estava orando do lado de fora” (1.10). O que Deus estava
fazendo? De que modo havia respondido a oração do povo?
É dificil, é muito difícil, mas acredite, Deus sabe o que faz.

A tapeçaria tecida pelas mãos de Deus


Juntemo-nos aos poetas que choravam junto às margens do rio da
Babilônia, orando para que Deus restaure a glória de Israel.
A resposta de Deus às orações pela reedificação do templo e da na­
ção de Israel vai além da compreensão humana. O que aconteceu com
Israel? Deus criou um novo Israel, que inclui os gentios como povo de
Deus. E o templo? Ele enviou seu único Filho para ser o templo. Veja
como Deus usou o cativeiro, essa história aparentemente inacabada,
para preparar a vinda de seu Filho e o nascimento da igreja:

1. Deus usou a destruição do templo e o exílio dos israelitas na


Babilônia para criar a sinagoga, instituição precursora da igre­
ja local. Se o culto no templo tivesse continuado sem inter­
rupção, a igreja primitiva não teria tido um modelo para a
congregação local. O povo aprendeu a adorar a Deus mesmo
sem ter um templo.
2. O cânon do Antigo Testamento foi organizado durante essa
época. Afastados da sua terra e vivendo num verdadeiro de­
serto espiritual, os israelitas se agarram com todas as forças
aos pergaminhos. Isso deu à igreja primitiva o Antigo Testa­
mento, que, por sua vez, foi a base para o Novo Testamento.
3. Deus purificou Israel de sua mistura com outras religiões.
4. A dispersão dos judeus forneceu a base a partir da qual Paulo
e outros facilmente espalharam o evangelho.
5. Israel foi purificada para sempre da idolatria estrangeira. Nun­
ca mais os judeus adorariam ídolos. O monoteísmo se tornou
central para sempre em Israel. Esse é o alicerce do pensamento
cristão e da civilização ocidental.
6. Por terem se tornado monoteístas piedosos, os judeus ficaram
revoltados quando Jesus afirmou que era Deus. Quando Jesus
reivindicou ser o unigênito de Deus, o sumo sacerdote rasgou
a própria túnica e entregou Jesus para ser crucificado.

Deus estava tecendo uma tapeçaria admirável por meio do sofri­


mento de Israel. Sem o cativeiro babilônico não existiria Israel, nem a
cruz, nem o cristianismo nem a civilização ocidental. Ageu estava certo;
a glória do novo templo foi maior que a glória do templo de Salomão.
Contudo, o poeta judeu que chorou às margens do rio da Babilô­
nia nunca viu o fim da história. Da mesma forma que todos os heróis
da fé de Hebreus 11, ele viveu uma história inacabada durante sua vida.
Ele viveu pela fé.

Essa não é a sua história


Na Parte 4 deste livro, Joane mencionou outro tipo de história inaca­
bada quando disse: “Milhares de pessoas oram por um líder cristão que
tem câncer, e ele morre”. Cheguei à conclusão de que quanto mais dis­
tante eu estiver de uma história, menos saberei a respeito do que Deus
está fazendo. Deus irá me ajudar com a minha história, e não com a
história de outra pessoa.
Ao caminhar junto ao mar da Galileia, logo após ter ressuscitado,
Jesus diz a Pedro que um dia ele morrerá pelo Mestre. A resposta de
Pedro foi se voltar para João, que estava logo atrás, e perguntar a Jesus o
que aconteceria com o outro. Jesus responde-lhe: “Se eu quiser que ele
fique até que eu venha, que te importa? Segue-me tu!” (Jo 21.22). O
que Jesus está de fato dizendo é: “Pedro, vou ajudar você com a sua his­
tória, e não com a história do João. Para ser bem sincero, a história do
João não é da sua conta”. A resposta de Jesus foi um tanto ríspida por­
que Pedro estava querendo assumir uma posição que pertence a Deus.
Às vezes posso ver o que Deus está fazendo na vida de alguém,
mas se contar a essa pessoa, irei abater seu espírito. Acho que muitas
vezes Deus não diz nada sobre nossas histórias porque simplesmente
não aguentaríamos saber naquele momento.

“Deus sabe o que faz”


Certo dia, no supermercado, um amigo meu ouviu uma mãe dizer à
filha, cujo filho havia morrido há apenas três dias: “É difícil, é muito
difícil, mas acredite, Deus sabe o que faz”. Claro que meu amigo inter­
rompeu para dizer que ele concordava que a vida era difícil, mas que
Deus sabia o que estava fazendo.
Tony Snow, comentarista de notícias e secretário de imprensa da
Casa Branca, descreveu como é acordar num leito de hospital, depois
de uma operação, ainda zonzo pela anestesia, e saber que estava com
câncer, possivelmente terminal. Quando o choque inicial passou, a rea­
ção natural do Tony foi se voltar para Deus, na esperança de que o
Senhor se transformasse num “Papai Noel” e lhe trouxesse a cura.
Porém, o Tony sabia que, de um jeito incompreensível, Deus es­
tava permitindo aquele câncer, usando a doença para levá-lo para mais
perto dele, mais perto dos entes queridos, e mostrar-lhe o que era real­
mente importante na vida.
Uma das primeiras descobertas do Tony no vale da sombra da
morte foi que o cristianismo está longe de ser algo sem consistência.
Na verdade, o sofrimento nos leva para dentro de “um mundo repleto
de precauções e temores”. Descobrimos que a vida passou de um carros­
sel tranqüilo a uma montanha-russa, completamente fora de controle,
mas cheia de aventura.
Tony descobriu que “por meio das provações, Deus nos leva a decidir:
acreditamos ou não acreditamos em Deus? Teremos ousadia para amar,
audácia para servir, humildade para nos submeter e coragem para reco­
nhecer nossas limitações? Deixaremos de nos preocupar com coisas sem
importância para nos dedicar às que são de fato importantes?”
Um amigo do Tony, que também estava morrendo de câncer, lhe
disse: “Vou tentar vencer a doença, mas se não conseguir, vejo você do
outro lado”.1 Um ano depois, Tony encontrou seu amigo do outro lado.
Do mesmo modo que os israelitas e a jovem mãe no supermercado, ele
nunca soube o porquê. “É difícil, é muito difícil, mas acredite, Deus
sabe o que faz”.

Vem, Senhor Jesus


A primeira vez que a Kim me acompanhou em um retiro onde eu seria
o palestrante, uma garotinha se aproximou no fim do jantar e pergun­
tou à minha filha: “Por que você não fala?” A Kim digitou no compu­
tador, que estava aberto sobre a mesa: “Terei uma voz maravilhosa no
céu”. Saímos do jantar com os olhos cheios de lágrimas.
Algumas histórias só terminarão no céu. Por causa da Kim, a Jill
anseia pelo céu. Esse desejo está sempre em suas conversas. A Jill não
diz: “Está um dia lindo hoje”. Ela diz: “Este seria um excelente dia para
a volta de Cristo. Todo mundo o veria”. A Jill quer ir para casa.
Viver histórias inacabadas nos aproxima do ato final de Deus, o
retorno de Cristo. Enquanto esperamos sua volta, é fácil prever as cenas
dos últimos dias. O Apocalipse revela uma igreja em sofrimento, uma
igreja que está morrendo enquanto a criação se desfaz.
Por meio do sofrimento, Deus irá finalmente tornar a igreja linda
e revelar a glória dele. No deserto, vemos sua glória. Nos últimos dias,
a noiva ficará linda, pura, aguardando seu amado. Vem, Senhor Jesus.

1 Tony Snow, “Cancers Unexpected Blessings”, Christianity Today 51, n° 7, (julho de


2007), http://www.christianitytoday.com/ct/2007/julho/25.30.htmJ.
SEM AS HISTÓRIAS DA minha família, este livro seria como uma
concha vazia. A generosidade de pessoas da minha família em comparti­
lhar suas histórias me permitiu demonstrar de forma mais concreta esse
caráter prático e acessível da oração. Sou especialmente agradecido a Jill,
Kim e Emily por me deixar expor aqui algumas áreas de suas vidas.
Um bom livro é um trabalho de grupo. O autor fica envolvido
demais no texto, e precisa da honestidade de bons amigos para manter
a perspectiva. Alguns desses amigos dedicaram um tempo especial para
ler e comentar o manuscrito: Bob Allums, Gena Cobb, Boyde Clarke,
Patricia Clarke, Julie Courtney, Lindy Davidson, Cathie Martin, Emily
Miller, Jill Miller, Courtney Sneed, David Powlison, Glen Urquhart,
David Rice e Annie Wald.
Sou muito agradecido a Liz Heaney por sua revisão cuidadosa — este
é nosso segundo livro juntos. Liz fez mais do que revisar; foi uma amiga do
livro, analisando cada parágrafo, verificando se tudo se encaixava.
Carol Smith realizou a difícil tarefa de converter meus rabiscos nos
gráficos que aparecem no livro.
A diretoria do ministério seejesus — Keith Albritton, Lynette Hull,
Jeff Owen, Michael Simone, Tim Strawbridge, Doug Wallace e Justin
Wilson — continua a me abençoar com sua sabedoria, apoio e enco­
rajamento.
O entusiasmo de Don Simpson por este livro, assim como o en­
tusiasmo de todo o pessoal da NavPress, foi o que tornou possível sua
publicação.
Este livro esplêndido nos convida a viver uma vida de
oração, "a maior de todas as obras". As histórias
comoventes que Paul Miller compartilha nos trazem de
volta a alegria de viver na presença do Senhor.

O autor ensina a nos aproximarmos de Deus em oração


como uma criança, com o coração confiante e inocente,
em busca da proteção, do consolo e da direção que só
encontramos nos braços do Pai. Ele também fornece
sugestões práticas de como resgatar a intimidade e o
poder da vida de oração.

Muitas pessoas lutam contra a frustração de não


conseguir ter a vida de oração que gostariam. E com o
tempo passam a encarar a oração como uma obrigação,
como um monólogo solitário, que não tem impacto em
sua vida e nem sequer chega aos ouvidos de Deus.

Mas não é isso que o autor nos mostra nesta obra. Ele
mostra que a vida de oração é possível, pois a finalidade
da oração é ser um diálogo onde a vida e Deus se
encontram. A Bíblia dá centenas de exemplos desses
diálogos, e Paul Miller chama atenção para eles. As
orações da Bíblia têm a ver com a vida cotidiana e com
um Deus real. Levam problemas genuínos e
necessidades reais a um Deus que ouve de verdade.

Nestas páginas, Paul Miller nos ensina como pensa, fala,


sente e age alguém que vive em verdadeira comunhão
com Deus, alguém que vive uma vida de oração.

ISBN 978-85-275-0453-9

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V1ÜAN 0VA
www.vidanova.com.br 9 788527 504539

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