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ia/

Vida

NO PODER DO ESPÍRITO
Fundamentos da experiênciapentecostal um chamado ao diálogo

W l L L I A M W. M E N Z I E S & R O B E R T P. M E N Z I E S
O
s pentecostais sempre foram reconhecidos por valorizar mais a ex­
periência que a teologia, sendo mais divulgadas sua vitalidade e dis­
posição evangelística que seu apego às questões intelectuais. No entanto,
o movimento pentecostal se sustenta sobre sólida fundamentação teoló­
gica. Por isso, cristãos de quaisquer denominações precisam conhecer as
bases da teologia pentecostal, para compreender melhor as crenças e prá­
ticas que mudaram a dinâmica da evangelização no mundo.
O momento que a igreja atravessa é bastante propício à reflexão, permi­
tindo a elaboração de uma teologia consistente. Pentecostais tiveram a
consciência despertada de que suas crenças não devem ser apresentadas
apenas como canal de poder, mas também como um sistema de crenças
coerenteefundamentado nas Escrituras.
No poder do Espírito é fruto dessa visão. Trata-se de obra oportuna que
contribuirá grandemente no desafio de explicar o pentecostalismo. Os
conceitos defendidos pelos autores estão expressos na linguagem do
ambiente teológico contemporâneo, sem se afastar dos valores tradi­
cionais do movimento. Este livro foi escrito para pastores e seminaristas
de todas as correntes teológicas, bem como para todos os que desejam
conhecer melhor a doutrina pentecostal.

William Menzies é teólogo pentecostal. Ele já lecionou nas três escolas


teológicas das Assembléias de Deus nos Estados Unidos e ocupou vários
cargos na denominação. Foi um dos editores da Bíblia de estudo pente­
costal e é consultor da revista Christianity Today [Cristianismo Hoje],

Robert Menzies recebeu o grau de doutor pela Aberdeen University. Foi


missionário nas Filipinas (com seu pai, William) e trabalhou no Asia Pacific
Theological Seminary. Hoje é missionário na China.

ISBN 85-7367-599-3

Categoria: Teologia/ Pentecostalismo


NO PODER DO ESPÍRITO
Vida

E d iro ra do g ru p o Di reção executi va


ZONDERVAN E ude M a r t in s

H a r r e r G o l l in s
Ge rênci a a d m i n i s t r a t i v a
G ilso n L opes
E d iro ra filiad a a
A ssociação B rasileira Comunicação e marketing
de E ditores C ristãos S érgio P avarini

C âmara B rasileira do L ivro


Gerênci a e d i t o r i al
Associação N acional
F abiani M edeiros
de L ivrarias

A ssociação N acional de Super vi s ã o e d i t o r i al


L ivrarias E vangélicas
A ldo M enezes

Associação B rasileira
de M arketing D ireto Coo r d e n a ç ã o e d i t o r i al
J u d so n C a n t o • obras de interesse geral
R o g ério P o rtella • obras teológicas, de
referência e multimídia
R o sa F erreira * Bíblias
S ílvia J u st in o • obras de autores nacionais,
infantis e juvenis

Super vi s ã o de produçã o
S a n d r a L eite
W lL L IA M W . M EN ZIES & ROBERT P. MENZIES

NO PODER DO ESPIRITO
Fundamentos da experiência pentecostal— umjchajmajiq. ao diájogo

Heber Carlos de Campos

V
Editora

Vida
© 2000, de W illiam W . Menzies e Robert P Menzies
Título do original • S p ir it a n d p o w e r ,
edição publicada pela
ZONDERVAK PUBLI-SHING HüUSK
(Grand Rapids, Michigan, eua)

Todos os d ireito s em lín gu a p o rtu gu esa reservados p o r

E d it o r a V id a
Rua Júlio de Castilho, 2 8 0 : Belenzinho
<:kp 0 3 0 5 9 -0 0 0 c: São Paulo, SP
Telefax 0 xx 11 6 0 9 6 6 8 1 4
www.cditoravida.com.br

P roibida a reprodução por quaisquer meios,


SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Todas as citações bíblicas foram extraídas da


N ova Versão In tern a cio n a l ( nvi), © 2001, publicada
pela Editora Vida, salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câm era Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Menzies, William W. -
No poder do Espírito: fundamentos da experiência pentecostal: um chama­
do ao diálogo / William W. Menzies, Robert P. Menzies; tradução Heber Carlos
de Campos — São Paulo : Editora Vida, 2002,
Título original: Spirit and power: fbundation of Pentecostal experience: a
call to Evangelical dialogue

Bibliografia.
ISBN 85- 7367- 599-3

1. Batismo no Espírito Santo 2. Dons espirituais 3. Espírito Santo 4.


Pentecostalismo 5. Pentecostalismo-História 6. Teologia doutrinai L Menzies,
Robert P. IL Título.

02-2969 _______________________________________ cdd 270.82

índice para catálogo sistemático


1. Pentecostalismo: Cristianismo: História 270.82
Para
J e ssic a , S a r a h , S a m u e l e L u c a s
a geração seguinte pela qual oramos
para que seja poderosa
em seu testem unho de Cristo
Sumário

■ Abreviações 8
■ Introdução 9

Primeira parte: Fundamentos teológicos

1. História: entendendo o novo contexto 15


2. Hermenêutica: a revolução silenciosa 43
3. Hermenêutica: a contribuição inconfundível de Lucas 55
4. Hermenêutica: pulando fora do trem da
pós-modernidade 75
5. Exegese: réplica a James Dunn 83
6. Exegese: réplica a Max Turner 107

Segunda parte: Declarações teológicas

7. A questão da posterioridade 135


8. Línguas como evidência 149
9. Línguas: acessíveis a todos 165
10. Sinais e maravilHas 181
11. Cura na expiação 199
12. A providência de Deus 215
13. Dons espirituais: princípios essenciais 225
14. Batismo no Espírito e dons espirituais 237
15. Batismo no Espírito e fruto do Espírito 251

■ Conclusão 261
■ Bibliografia selecionada 265
Abreviações

ab Anchor Bible
ajps Asian Journal of Pentecostal Studies
atr Australian Theological Review
BTB Biblical Theological Bulletin
EvQ Evangelical Quarterly
EvT Evangelische Theologie
ExpTim Expository Times
h tr Harvard Theological Review
IBS Irish Biblical Studies
In t Interpretation
IRM International Review of Missions
jpt Journal of Pentecostal Theology
jP T Sup Journal of Pentecostal Theology Supplement Series
JSNT Journal for the Study o f the N ew Testament
JSN TSup Journal for the Study ofthe N ew Testament Supplement Series
ncb New Century Bible
NICNT New International Qommentary on the N ew Testament
NIGTC New International Greek Testament Commentary
nvi Nova Versão Internacional
novt Novum Testamentum
n ts New Testament Studies
OTK.NT Okumenischer Taschenbuck-Kommentar zum Neuen Testament
rb Revue biblique
RevRel Review for Religions
SJY Scottish Journal of Theology
SNT Studien zum Neuen Testament
TDNT Theological Dictionary of the New Testament
Them Themelios
TJ Trinity Journal
TWNT Theologisches Worterbuch zum Neuen Testament
w bc Word Biblical Commentary
ZNW Zeistscbnft fur die Neutestamentlichen Wissenschaft
Introdução

advento do movimento pentecostal moderno é, sem dúvida,


0 um dos acontecimentos mais marcantes do século XX. Iniciado
por um pequeno e esquecido grupo no começo da década de 1900, o
movimento cresceu e passou a ser uma força significativa dentro da
cristandade. Ao longo do caminho, os pentecostais causaram im­
pacto em muitas outras tradições cristãs e, da mesma forma, tam­
bém sofreram influência. Todavia, hoje, a despeito da vitalidade e
do crescimento, o futuro do pentecostalismo é incerto. Isto se deve
em grande parte ao fato de que a teologia dá orientação para nossa
experiência e prática, e o legado teológico pentecostal é ambíguo.
Os pentecostais ficaram conhecidos por sua vitalidade espiritual,
não pela superioridade teológica ou rigor intelectual. Mas a história
nos mostra que sem uma base teológica forte, os movimentos entu­
siásticos se dissipam ou evoluem para outras direções. Assim, o fu­
turo do movimento pentecostal permanece incerto. À medida que
se aproximava do século xxi, o movimento passou a enfrentar um
desafio genuíno: Serão os pentecostais capazes de transmitir à gera­
ção seguinte um fundamento doutrinário sólido para suas convic­
ções e práticas?
Paradoxalmente, do mesmo modo que o movimento pentecostal
enfrenta esse importante desafio teológico, também se vê diante
de oportunidades ímpares para uma nova reflexão teológica. O
contexto atual revela-se solo fértil para o crescimento de uma teo­
logia verdadeiramente pentecostal. Este livro é uma tentativa de
registrar essa notável história, expor os desafios e as oportunida­
des que se apresentam ao pentecostalismo. Os autores também
esperam que a obra de alguma forma contribua para o crescimento
dinâmico da teologia pentecostal, que está começando a acontecer
em todo o mundo.
NO PODER 0 0 ESPIRITO 10

Embora este livro tenha sido escrito pensando nas necessidades


dos institutos bíbhcos, seminários e pastores, os autores crêem que
ele também será muito útil para aqueles que desejam entender melhor
os pentecostais e suas convicções. Ainda que represente uma aborda­
gem contemporânea, que fala a linguagem do ambiente teológico
do movimento pentecostal dos dias de hoje, os autores acreditam
que a obra se mantém fiel aos valores tradicionais que deram dina­
mismo ao movimento. Com o tal, oferece uma idéia das perspecti­
vas pentecostais, mas procura fazer isso de modo coerente e atrativo.
O presente trabalho é essencialmente uma teologia do pente-
costalismo. A concessão do Espírito no Pentecoste, registrada em
Atos 2, definiu o movimento. A experiência dinâmica que deu coe­
são ao movimento — experiência que os pentecostais denominam
“batismo no Espírito” — está arraigada na promessa de poder as­
sociada ao dom pentecostal (At 1.8). Apesar de sua importância, a
natureza do dom pentecostal e sua relação com um amplo leque de
experiências e conceitos teológicos não foram explicadas claramen­
te. Nas páginas que se seguem, os autores esperam começara traba­
lhar para essa finalidade. Certamente ficamos em débito com outros,
em geral os não-pentecostais, que se foram antes de nós. Não
obstante, um considerável número das questões discutidas tem re­
cebido atenção restrita na literatura de erudição até agora. Espera­
mos que este volume, além de servir às necessidades de estudantes e
pastores, possa estimular um trabalho revigorado nessas áreas.
A maioria dos capítulos é inter-relacionada e construída sobre
material apresentado em porções anteriores do livro. Contudo, cada
capítulo é também projetado como uma unidade independente. A s­
sim, um leitor interessado num tópico específico pode ir imediata­
mente ao capítulo de interesse e lê-lo com proveito. Tentamos manter
a repetição de material no mínimo, todavia, ao mesmo tempo, es­
crevemos cada capítulo de modo que possa ser lido e entendido in­
dependentemente.
No poder do Espírito consiste de duas partes. A primeira esboça
os fundamentos teológicos de nossa empreitada. Começamos com
um resumo das origens do movimento pentecostal moderno (cap. 1),
que proporciona um contexto apropriado do qual podemos ver os
INTRODUÇÃO 11

capítulos seguintes.1 Os capítulos de 2 a 4 tratam de várias questões


hermenêuticas, auxiliam o leitor a entender o contexto contempo­
râneo e as questões mais importantes que precisam ser enfrentadas
agora. Os capítulos 5 e 6 respondem às questões exegéticas levanta­
das por dois preeminentes estudiosos tradicionais da Bíblia. James
Dunn, como veremos, começou o diálogo tradicionais—pentecos-
tais2 na década de 1970, com a publicação do seu livro Baptism in
the Holy Spirit [Batismo no Espírito Santó\. E, no que se refere à
pneumatologia do N ovo Testamento, Max Turaer se mostrou o
intelectual mais prolífico da década passada. Em muitos aspectos,
pode ser visto como o herdeiro de James Dunn, o defensor de uma
avahação atualizada do movimento pentecostal e sua teologia por
parte dos evangélicos tradicionais. Em seguida, esses mesmos capí­
tulos dialogam respectivamente com essas duas figuras centrais.
História, hermenêutica e exegese — estabelece-se desse modo o fun­
damento.
A segunda parte constrói-se sobre esse fundamento e procura
tratar do amplo leque de questões relacionadas com a experiência

'O capítulo 1, o pós-escrito do capítulo 13 e a conclusão, são de autoria de


William Menzies. Os demais capítulos foram escritos por seu filho, Robert Menzies.
Por esta razão, mantivemos em geral o emprego do pronome de primeira pessoa
nesses capítulos. Não obstante, o livro inteiro foi redigido e revisado por ambos os
autores. Desse modo, em sua totalidade, é um trabalho cooperativo. Vários capí­
tulos são versões modificadas de publicações anteriores de Robert Menzies. O
capítulo 3 foi adaptado de “Pentecostals, evangelicals, and the distinctivecharacter
of Luke’s pneumatology”, em Paraclete 25, 1991, p. 17-30; o capítulo 4 é essencial-
mente ‘‘Jumping off the postmodern bandwagon”, Pneuma, 16, 1994, p. 115-20; o
capítulo 5 contém muito do material de “Luke and the Spirit: a reply to James
Dunn”, J P T 4, 1994, p. 115-38; o capítulo 6 contém material de “The spirit of
prophecy, Luke-Acts and pentecostal theology: a response to Max Turner”yJ P T
15,1999, p. 49-74; os capítulos 7 e 8 valem-se de material publicado em Empowered
forw itness: the Spirit in Luke—Acts; muito do capítulo 10 apareceu em “A pente­
costal perspective on ‘signs and w o n d e r s Pneuma 17, 1995, p. 265-78; e o capí­
tulo 14 apareceu em Pentecostalism in contou: essays in honor of William W.
Menzies, org. Wònsuk Ma e R. Menzies.
2Embora os pentecostais representem um subgrupo distinto dentro do grupo
conhecido como evangélicos, para o propósito deste livro distinguircmos entre
pentecostais (presumindo sua identificação com os valores evangélicos tradicio­
nais), que afirmam um batismo no Espírito posterior à conversão, e evangélicos
tradicionais, que não concordam com essa posição.
NO PODER DO ESPÍRITO 12

pentecostal. O capítulo 7 trata do cerne da matéria, no qual os auto­


res procuram definir mais especificamente o caráter do dom pente­
costal. O que significa ser batizado no Espírito Santo, na percepção
de Lucas (At 2) ? Pode essa experiência ser equiparada à conversão?
O capítulo 8 segue tratando de uma questão relacionada. Os pente-
costais têm em geral sustentado que a glossolalia é evidência de que
o indivíduo foi batizado no Espírito; como avaliaremos essa doutri­
na e suas alegações? O capítulo 9 também trata de assunto relacio­
nado à controversa questão de línguas. É o dom de línguas acessível
a todos os crentes? O que indicam as evidências da capacidade de
Paulo?
O capítulo 10 procura dialogar com a teologia da “Terceira Onda”
e apresenta o ponto de vista pentecostal do evangelismo de poder.
O capítulo 11 prossegue tratando da também controvertida ques­
tão concernente à cura, se ela deve ser situada na expiação. O capí­
tulo 12 procura tratar de um tema muito negligenciado nos círculos
pentecostais numa espécie de reflexão teológica acerca do sofrimen­
to. Os capítulos 13 e 14 tratam de vários aspectos dos dons do Espí­
rito. O capítulo 13 enfoca os princípios fundamentais, enquanto o
capítulo 14 discute a natureza da relação entre o batismo no Espíri­
to e os dons espirituais. Finalmente, o capítulo 15 discute uma ques­
tão que tem sido amplamente mal-entendida e causado divisão
indevida na igreja: Qual é a natureza da relação entre o batismo no
Espírito e o fruto do Espírito?
Um capítulo final, que lança o olhar no futuro, procura estimu­
lar mais reflexão e serve para relacionar o livro todo em forma de
conclusão.
Fundamentos
teológicos
capítulo • 1

História: entendendo
o novo contexto

uando Houver decorrido tempo suficiente para que o século XX


Q seja analisado com algum distanciamento, o surpreendente cres­
cimento mundial do pentecostaHsmo moderno certamente será ar­
rolado entre os fenômenos religiosos mais significativos do século.
Em 1900 o movimento pentecostal não existia. No final do século XX,
se fossem incluídos os carismáticos juntamente com os pentecos-
tais, o movimento coletivo compreendería um número maior que
todos os grupos da Reforma juntos e seria sobrepujado apenas pela
Igreja Católica Romana em números absolutos entre as igrejas da
cristandade.1 Em algumas partes do mundo, as missões e o ministé­
rio pentecostais são responsáveis por uma proporção significativa
de todos os novos convertidos ao cristianismo. Enquanto muitas
denominações cristãs clássicas têm decrescido, os grupos pentecos­
tais crescem rapidamente. Embora a influência do pentecostaHsmo
não tenHa correspondido ao seu crescimento numérico, os contornos
do cristianismo têm sido progressivamente moldados pelos valores
pentecostais. Deve-se, porém, observar de início que o crescimento
marcante do pentecostaHsmo não é sem perigos e desafios, os quais
trazem também consigo grandes oportunidades. Neste momento
de reflexão, é apropriado considerar a mordomia da oportunidade
exigida. Os pentecostais devem evitar tornar-se presas do triunfa-
lismo.
Neste capítulo vamos procurar fazer um breve esboço das origens
e do desenvolvimento do movimento pentecostal moderno. Também

'David Barrett, org., World Christian encyclopedia: a comprehensivc' survey


of churches and religions in the modern world, A.D. 1900-2000, p. 792-3.
NO PODER DO ESPÍRITO 16

vamos examinar a emergência de um movimento de reavivamento


semelhante, a Renovação Carismática. Identificaremos alguns dos
desafios e oportunidades que se apresentam aos pentecostais atual­
mente, desafios e oportunidades esses ocasionados em parte pelo
crescimento rápido do interesse mundial na obra do Espírito. Este
capítulo é apresentado como contexto histórico para os capítulos
seguintes. A intenção é proporcionar um ângulo do qual pode-se
observar o desenvolvimento da teologia pentecostal e demonstrar
esquematicamente os desafios que os pentecostais enfrentam.

0 SURGIMENTO DO REAVIVAMENTO
PENTECOSTAL MODERNO

Em primeiro de janeiro de 1901, na cidade de Topeka, Kansas, E U A ,


Agnes Ozman experimentou o batismo no Espírito Santo, acompa­
nhado pelo falar em línguas. Ela não foi a primeira a falar em lín­
guas. Episódios isolados do derramamento do Espírito têm sido
narrados desde a década de 1850, não somente nos Estados Unidos,
mas também em várias partes do mundo. A singularidade a respeito
da experiência da srta. Ozman, aluna da Charles F. Parham’s Bethel
College, é que ocorreu dentro de um entendimento teológico cons­
ciente de que o batismo no Espírito, a capacitação do Espírito para
o ministério, experiência posterior ao novo nascimento, é marca­
do pela evidência associada do falar em outras línguas. A Escola
Bíblica de Parham forneceu o ambiente no qual se desenvolveu um
auto-entendimento teológico para valorizar a importância dessa ex­
periência espiritual. Foi o começo da história do movimento pente­
costal moderno.
Os alunos do curso rápido da Escola Bíblica de Parham estavam
estudando a Bíblia com o objetivo de aprender o que ela ensinava a
respeito da evidência de que alguém de fato fora batizado no Espíri­
to Santo. Esses alunos concluíram que o livro de Atos ensina que o
batismo no Espírito é acompanhado pelo falar em línguas. Enten­
deram que essa experiência tinha o objetivo de fortalecer os crentes
e capacitá-los a testemunhar eficazmente a respeito de Cristo. É sig­
nificativo que esse reavivamento tenha começado no contexto do
estudo bíblico e sua identidade teológica tenha aí recebido sua forma.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO • ; 17

Tem-se conhecimento de pessoas que falaram em línguas numa va­


riedade de lugares no final do século XIX, e muitos evangélicos tradi­
cionais empregaram a terminologia do batismo no Espírito antes de
1901, para ser exato. Mas foi em Topeka, sob a orientação de Charles
F. Parham, que a ligação entre o batismo no Espírito como revesti­
mento de poder e a evidência associada das línguas foi estabelecida.
Depois de uma sucessão de campanhas de reavivamento no Meio-
Oeste, Charles Parham abriu em 1905 uma escola bíblica de curso
rápido em Plouston, no Texas. Essa escola transformou-se por um
tempo no novo quartel-general do ministério de Parham. Um pre­
gador negro do m ovim ento H oliness [santidade], W illiam J.
Seymour, foi convencido da verdade da experiência pentecostal no
ano letivo de 1905-1906 em Houston. Na primavera de 1906, em
resposta ao convite de uma mulher negra do movimento Holiness
de Los Angeles, Seymour foi a Los Angeles para dirigir algumas
reuniões. Na missão Holiness, sua proclamação da experiência pen­
tecostal foi rejeitada pelos líderes locais, o que obrigou Seymour a
procurar outro lugar para exercer seu ministério.
Seymour e seus seguidores se mudaram para um lugar simples na
rua Bonnie Brae, onde ele continuou a proclamação da mensagem
pentecostal. O poder de Deus se manifestou entre os fervorosos
crentes. Aquela casa na rua Bonnie Brae logo ficou pequena para
acomodar as multidões que ali chegavam. Seymour e seu grupo de
seguidores mudaram-se para um edifício de dois pavimentos numa
área industrial de Los Angeles. O prédio, outrora sede de uma igre­
ja metodista, havia-se deteriorado e, mais tarde, fora transformado
numa estrebaria. Essa construção primitiva na rua Azusa tornou-se
a plataforma de lançamento para projetar o reavivamento pentecostal
moderno para o mundo todo.
Entre 1906 e 1909, as reuniões realizaram-se continuamente na
rua Azusa. Notável na história social norte-americana durante a época
de Jim C row é o caráter de mistura de raças das reuniões da rua
Azusa. Negros e brancos cultuavam juntos, unidos pelo poder do
Espírito Santo. Por causa da localização estratégica de Los Angeles
para viagens internacionais e da divulgação pela imprensa local dos
acontecimentos sensacionais da rua Azusa, viajantes de várias na­
NO PODER DO ESPÍRITO / , 18

ções foram atraídos para lá. Alguns visitantes eram missionários li­
gados a várias agências missionárias. Muitos desses curiosos visi­
tantes receberam a experiência pentecostal. Com grande entusiasmo
por Deus, esses novos pentecostais, quase sempre deixados no es­
quecimento por seus grupos de origem, dispersaram-se para espa­
lhar o evangelho, às vezes sem nenhuma credencial nem qualquer
meio visível de sustento. Não tinham quase nada a não ser a alegria
do Senhor e uma grande consciência do cuidado providencial de
Deus. Esses foram os pioneiros pentecostais.
E digno de nota que Parham tentou liderar o reavivamento da
rua Azusa. Ele foi repehdo em Los Angeles e seu papel na formação
do movimento pentecostal diminuiu desse ponto em diante. Na ver­
dade, o reavivamento pentecostal norte-americano não pode reivin­
dicar um único pai. Além das terras norte-americanas, parece que
com a mais tênue das ligações, surgiram reavivamentos pentecostais
em várias partes da Europa, Ásia e América Latina nessa época. As
muitas linhas de comunicação indicam a influência da rua Azusa,
mas é forçoso comprovar-se que o papel da rua Azusa serviu muito
mais de catalisador dos derramamentos que ocorreram em outros
lugares. Foi na verdade um tempo de plenitude no mundo, quando
as pessoas fam intas de Deus reconheceram que a experiência
pentecostal lhes satisfazia as expectativas.

A n t e c e d e n t e s do r e a v iv a m e n t o
PENTECOSTAL MODERNO
Raízes no movimento Holiness

No final do século xix, em inúmeras nações do mundo, crentes de


várias tradições estavam buscando a Deus para obter dele e nele uma
vida mais profunda e mais plena. Essa fome de experiência expres­
sou-se em duas orientações totalmente diferentes. A primeira foi o
renascimento do interesse entre os wesleyanos na recuperação da
mensagem do século XVIII de John Wesley e seus seguidores. A Igre­
ja Metodista havia se tornado bem-sucedida nos Estados Unidos,
mas no processo de ascensão na escala do reconhecimento, muito
do fervor espiritual dos primórdios dos metodistas se perdeu. Por
volta da década de 1860, em reação a esse declínio dentro do
HISTÓRIA: ENTENDENDO 0 NOVO CONTEXTO >'} 19

metodismo, nascia um novo conjunto de grupos cristãos de orien­


tação wesleyana, cuja maioria expressava fome da experiência de san­
tificação pregada pelos líderes metodistas pioneiros. Essa constelação
de igrejas forma a mais simples e importante sementeira do movi­
mento pentecostal moderno.
Donald Dayton descreveu as ênfases comuns nesses círculos, as
quais passaram com facilidade para a vida do movimento pentecos­
tal. Entre os temas enfatizados, estavam a convicção na segunda bên­
ção, a expectativa de uma experiência de recebimento de poder, a
convicção na validade da cura divina e a afirmação da escatologia pré-
milenarista.2 Muitos desses crentes eram comprometidos com uma
soteriologia de dois estágios e criam que deviam buscar uma experiên­
cia posterior à salvação, a qual se chamava comumente de “santifica­
ção total”. Quando o reavivamento pentecostal se expandiu, esses
crentes Holiness inclinaram-se a adotar uma visão soteriológica de
três estágios, na qual a “santificação total” era entendida como “pu­
rificação”, um prelúdio necessário para o terceiro estágio, ou “pre­
enchimento”, conhecido como o batismo pentecostal no Espírito.
Outro tipo de anelo do movimento Holiness do século XIX apa­
receu em formato não-wesleyano. Muitos presbiterianos, batistas,
anglicanos e outros crentes que vinham mais ou menos de uma tra­
dição reformada, estavam buscando a Deus para uma vida “mais
profunda” e “mais elevada”. Em meados da década de 1870, as con­
ferências de Keswick no mundo de fala inglesa tornaram-se um ponto
de encontro importante para ensinar a respeito desse tipo de vida.
O ensino de Keswick, diferentem ente do ensino w esleyano,
enfatizava a vida cristã como um processo em vez de um momento
decisivo de “santificação total”. Os defensores da teologia de Keswick
que adotaram a teologia pentecostal no começo do século XX des­
cartaram a noção de uma experiência crítica de santificação como
precursora necessária do batismo no Espírito, favorecendo a idéia
de santificação como um processo contínuo na vida do cristão antes
e depois do batismo no Espírito. De 1867 em diante, os acampa­
mentos Holiness foram importantes locais para desenvolver a soli-

'V. Theological roots ofPentecostalism.


NO PODER DO ESPÍRITO ; 20

dariedade entre os defensores e inspirar os seguidores na busca da


santidade. Mais tarde, os pentecostais adotaram rapidamente as reu­
niões de acampamento como meio útil para proporcionar inspira­
ção, comunhão e ensino ao povo.
O ensino de Charles G. Finney e de seu colega, Asa Mahan, de
Oberlin, Ohio, é importante para entender como a terminologia do
batismo no Espírito se tornou tão prontamente empregada pelos
pentecostais. Por volta de 1875, Finney e Mahan haviam popularizado
essa expressão. Muito do cristianismo tradicional na virada do século
xix incluía livremente a expressão em seus escritos e pregações. Os
militantes da Holiness usavam a expressão para denotar a santifica­
ção total. Os simpatizantes de Keswick tenderam a definir o batis­
mo no Espírito como um revestimento de poder para c serviço. O
livro de A. J. Gordon, The ministry of the Holy Spirit, transmitiu
praticamente todos os valores com os quais os pentecostais vieram
a fazer coro exceto a ligação entre línguas e batismo do Espírito.3

Fundamentalismo

A segunda maior influência que moldou os valores dos primeiros


pentecostais foi o fundamentalismo. O fundamentalismo surgiu na
última terça parte do século xix, como reação consciente à alarman­
te tomada de controle das instituições cristãs norte-americanas pe­
los ministros e estudiosos que haviam adotado a teologia liberal. O
liberalismo daquele período, conhecido como modernismo, foi mar­
cado pelo ceticismo com relação aos milagres bíblicos, entre eles a
rejeição do nascimento virginal de Cristo, de sua ressurreição física
e de sua segunda vinda de fato. O modernismo traçou uma visão
otimista da raça humana e da perfectibilidade deste mundo. A esca-
tologia modernista padrão, portanto, se encaixava bem com o pós-
milenarismo. Os modernistas estavam convencidos de que por meio
da educação e da ação social poderiam transformar o mllndo num
paraíso terrestre.
Os modernistas rejeitavam a precisão histórica da Bíblia e limita­
vam em grande parte seu interesse pelo ensino das Escrituras aos

3P. 67-96.
HISTÓRIA: ENTENDENDO 0 NOVO CONTEXTO 21

princípios éticos, a fim de organizar a conduta humana construtiva.


Os ensinos de Schleiermacher, Hegel, Kant, Ritschl e Harnack —
pensadores das universidades alemãs do século XIX — tiveram im­
pacto profundo na formação do liberalismo americano no final des­
se século. A grande luta pelo controle das instituições religiosas
norte-americanas começou na geração imediatamente anterior ao
nascimento do reavivamento pentecostal. Aquela geração foi o am­
biente no qual o fundamentalismo americano foi forjado. Esse foi o
início do período que veio a ser conhecido na religião norte-ameri­
cana como a grande Controvérsia Fundamentalista-Modernista.4
O fundamentalismo, semelhantemente ao movimento Holiness,
teve duas vertentes. Uma foi a ortodoxia protestante. Essa vertente
do protestantismo acadêmico centrou-se no Seminário de Princeton
e veio a ser conhecida como a “Escola de Princeton”. A í foram pro­
duzidos os grandes recursos intelectuais para o fundamentalismo
— a teologia sistemática dos Hodges e as obras apologéticas de
Warfield, Grecn e, mais tarde, de Machen. Princeton, sozinho entre
os seminários norte-americanos influentes, sobreviveu ao ataque
violento do modernismo nesse período, sucumbindo à fascinação
do liberalismo somente no final da década de 1920.
A outra vertente do fundamentalismo foi o reavivalismo tradi­
cional. Desde o tempo de Jonathan Edwards na América colonial, o
país foi renovado por uma série de reavivamentos, ou despertamen-
tos, profundos. No século XIX, principalmente por intermédio do
ministério de Charles G. Finney, desenvolveu-se um padrão para
conduzir reuniões de avivam ento, e surgiu toda urna cultura
reavivalista. Isso incluiu uma modificação do calvinismo severo clás­
sico do qual a maioria dos reavivalistas surgiu, abrindo a porta para
a salvação a “todos que quisessem” em vez de concentrar a atenção
na soberania de Deus. D. L. Moody, R. A. Torrey, A. B. Simpson e
uma plêiade de outros grandes líderes de reuniões públicas, quase
sempre de diversas linhas dcnominacionais, chamavam as pessoas
ao arrependimento e ao evangelho à moda antiga.

4V. Ernest R. S a n d e e n , The roots o f Fundamentalism ; Stewart G. C o l e , The


history o f Fundamentalism, para estudos padronizados do fundamentalismo. George
M. Marsden fornece uma crítica tradicional em Understanding Fundamentalism
an d Evangelicalism.
NO PODER DO ESPÍRITO 22

Os reavivalistas tradicionais, reconhecendo que estavam em gran­


de luta contra o modernismo pela alma da nação, criaram novas insti­
tuições para mobilizar recursos nessa santa guerra. Na década de 1870,
D. L. Moody e A. B. Simpson lançaram programas de impacto para
treinar obreiros para evangelização e missões. Com o advento do
Instituto Bíblico Moody, em Chicago, e do Instituto de Treinamen­
to Missionário de Simpson, em Nyack, Nova York, o período dos
institutos bíblicos foi inaugurado. Quando o reavivamento pente-
costal chegou, o mecanismo dos institutos bíbhcos foi adotado pron­
tamente como instrumento útil para fornecer uma liderança bem
treinada para o reavivamento. Os fundamentalistas empregaram tam­
bém uma variedade de publicações para espalhar sua mensagem.
Entre os aspectos característicos do fundamentalismo norte-ame­
ricano no final do século xix estava a conferência bíblica. Foi nesse
ambiente que a componente do fundamentalismo de Princeton se
juntou com a componente do reavivalismo tradicional. Os acadê­
micos não ficavam à vontade nas reuniões de reavivamento, mas com­
partilhavam profundamente com os reavivalistas em sua abordagem
do estudo bíblico. Se os reavivalistas eram “o coração” do funda­
mentalismo, podia-se dizer que os de Princeton eram o “cérebro” do
movimento, fornecendo as grandemente valiosas fontes exegéticas
e apologéticas.
É de especial importância que o método de estudo bíblico pron­
tamente adotado nas conferências e como base para o currículo dos
institutos bíblicos tenha sido o dispensacionalismo de Scofield. O
dispensacionalismo fundamentalista advogava uma visão da ordem
do presente mundo muitíssimo diferente da visão modernista. O
dispensacionalismo descrevia a igreja como responsável pela missão
não de reform ar a sociedade, mas de resgatar os indivíduos de um
navio que afunda. Convictos a respeito do fim próximo, a esperança
que os fundamentalistas tinham para o futuro era o retorno cataclís­
mico de Jesus Cristo para resgatar os crentes da grande tribulação. O
sistema dispensacionalista de Scofield proveu para o povo leigo um
método de estudo bíblico facilmente assimilável, e esse meio tor­
nou a mensagem do evangelho disponível às pessoas comuns, uma
mensagem fácil de compartilhar com os vizinhos e amigos.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO 23

É moda hoje reclamar de aspectos do sistema hermenêutico de


Scofield, mas pondo-se no contexto da época, deve-se levar em conta
que talvez ninguém tenha contribuído tanto para o estudo sério da
Bíblia na era da controvérsia fundamentalista-modernista. A bem
da verdade, nem todos os fundamentalistas eram dispensacionalistas,
mas, por volta de 1895 certamente, o fórum de conferência bíbhca
tinha-se transformado em grande medida em conferências proféti­
cas, empregando as categorias de Scofield “por atacado”. Por esse
tempo, os “fundamentos” estavam muito bem estabelecidos, cha­
mando atenção para os ensinos básicos como o nascimento virginal
de Cristo, a expiação substitutiva de Cristo, a morte e a ressurrei­
ção literais de Cristo, o retorno físico pré-milenar de C risto e a
autoridade da Bíblia, definida como “inerrante nos autógrafos”.
Devemos também observar que, embora o movimento Holiness
e o fundamentahsmo tenham sido revistos aqui como grupos sepa­
rados, havia uma intersecção considerável. Isto é particularmente
verdadeiro a respeito do ramo de Keswick do movimento Holiness
e dos reavivalistas tradicionais no fundamentalismo. Os oradores
das convenções anuais de Keswick e os oradores das conferências
bíbhcas fundamentalistas eram basicamente os mesmos. As véspe­
ras do reavivamento pentecostal, quase todas essas pessoas empre­
gavam a linguagem do batismo no Espírito Santo.
Quando o reavivamento pentecostal chegou, os pentecostais to­
maram muitos empréstimos tanto do movimento Holiness quanto
dos arraiais fundamentalistas, tanto das metodologias quanto dos va­
lores teológicos desses grupos. Até a estrutura política das Assem­
bléias de Deus, a maior das denominações pentecostais, foi retirada
totalmente da Aliança Cristã e Missionária, uma associação Hohness,
fundada por A. B. Simpson. Desse modo, ainda que tenham sido
rejeitados tanto pelos fundamentalistas como pelos do movimento
Holiness, os pentecostais adotaram muitas de suas idéias e práticas.
Em resumo, deve-se observar que os pentecostais pioneiros es­
tavam tão impregnados pela incrível obra do Espírito Santo que fa­
lavam comumente desse reavivamento como sendo a chuva serôdia
há tanto esperada, profetizada nas Escrituras. Posto que viram pou­
cos precedentes para as manifestações do Espírito que estavam ex­
NO PODER DO ESPÍRITO 24

perimentando, pareceu para muitos ser uma coisa nova. A maioria


achava que aquela experiência de reavivamento era prenuncio do re­
torno iminente do Senhor. Disso veio um grande senso de urgência,
visto que acreditavam que o tempo era curto. O intenso espírito de
pioneirismo e o zelo missionário que marcaram essa geração primi­
tiva de pentecostais é sem dúvida ligado ao senso de que o tempo
deles era de fato o tempo do “derramamento dos últimos dias”.
Olhando para trás, devemos convir que o reavivamento na realidade
não veio como um raio do céu, pois teve os antecedentes discerníveis
discutidos acima.
Um ponto adicional importante deve ser considerado aqui. De
certo modo o reavivamento pentecostal moderno é, com efeito, sin­
gular. Desde a era apostólica, talvez duas dezenas de episódios de
renovação com traços pentecostais, ou pelo menos carismáticos, po­
dem ser identificados.5 Todavia, todos esses movimentos anteriores
terminaram sombriamente, dissolvendo-se em fanatismo e/ou he­
resia. A singularidade do reavivamento pentecostal moderno repousa
em sua própria sobrevivência — sobrevivência suficiente para ser
ouvido em âmbito eclesiástico mais amplo e para emergir como com­
ponente significativo do mundo cristão.

C aracterísticas do pentecostalismo primitivo

À medida que o movimento pentecostal começou a tomar forma na


primeira década do século XX, surgiu um caráter coletivo, o que tor­
na possível descrever um perfil de marcas distintivas dos adeptos do
movimento. Diversas características comuns em praticamente to­
dos os ambientes onde se podiam encontrar os pentecostais são
identificáveis. Encontrei pelo menos oito dessas características.

Batismo no Espírito

Os primeiros pentecostais, como era de esperar, proclamavam vigo­


rosamente o que acreditavam ter experimentado no batismo no Es­
pírito e o que criam que a Bíblia ensinava a respeito dessa experiência.
Foi essa experiência que os colocou à parte dos outros cristãos. Os
pentecostais foram rejeitados por quase todos os setores do mundo
5Bernard Bresson, Studies in ecstasy.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO 25

cristão; eles pagaram um preço muito alto por esse valor que lhes
era tão precioso, mas aceitaram voluntariamente o opróbrio dos ou­
tros. Para muitos, foi o cumprimento da profecia bíblica, a vinda da
prometida “chuva serôdia”. O reavivamento foi tão notável que para
muita gente era algo que jamais ocorrera antes. Somente décadas
mais tarde é que a maioria dos pentecostais se dispôs a reconhecer
que houve de fato antecedentes em anos anteriores dos quais eles se
alimentaram, e que o reavivamento, mesmo sendo notável, não era,
portanto, único.

Compromisso com evangelização e missões

Desde o começo, os pentecostais entenderam o propósito do batis­


mo no Espírito como recebimento de poder para testemunhar. Em­
bora tenham-se deleitado na gloriosa experiência espiritual, muitos
organizaram prontamente a vida em torno do princípio de alcançar
os perdidos deste mundo. Do episódio da rua Azusa em diante, o
pentecostahsmo foi marcado pelo senso de urgência na dissemina­
ção do evangelho de Jesus Cristo. Esse reconhecimento imediato da
necessidade de ir além de si mesmos e alcançar os perdidos deste
mundo é uma das marcas que distingue o pentecostahsmo do movi­
mento carismático, que veio sessenta anos depois. Quando as deno­
minações pentecostais vieram a existir (nascidas da necessidade), a
organização para dar sustento às missões estrangeiras era uma das
motivações que as impulsionava.

Fé firme

Dominados pelo senso da presença imediata de Deus entre eles, os


pentecostais rapidamente creram no fato da intervenção divina nas
coisas desta vida. Eles oravam pelos doentes, esperando que Deus
libertasse os aflitos do sofrimento. Estavam dispostos a trocar o
conhecido e o seguro pelos horizontes distantes da fronteira minis­
terial no próprio país e no estrangeiro. As páginas da literatura pen-
tecostal primitiva são testemunhos de respostas notáveis às orações
e exortações fundadas na fé. Os pentecostais primitivos criam ar­
dentemente na oração intercessória. Ensinavam o princípio da “ora­
ção contínua”, de vigília perante o Senhor até que tivessem a
NO PODER DO ESPÍRITO /j 26

impressão de que a oração estava sendo respondida. Crentes que


buscavam o batismo no Espírito eram trazidos para “reuniões de­
moradas”, nas quais um grupo de crentes já batizados no Espírito
ficava ao redor do candidato, proporcionando um contexto de apoio
em que o indivíduo podia buscar a Deus para obter a bênção.

Expectativa

Esses pentecostais primitivos esperavam que Deus interviesse não


somente nas circunstâncias de necessidade imediata nas quais se en­
contravam, mas, em sentido mais amplo, no retorno de Jesus para
encerrar a história do mundo. Patente no pentecostalismo primiti­
vo era o comprometimento forte com a convicção da segunda vinda
de Cristo — um retom o pré-milenar e físico, hteralmente. Adotando
de imediato a escatologia fundamentahsta (ainda que adaptada para
se conformar às necessidades pentecostais), os pentecostais criam
que a ordem do mundo atual estava inevitavelmente condenada, e a
tarefa deles era resgatar o maior número possível de indivíduos do
desastre iminente, visto que tinham pouco tempo.
As reuniões dos pentecostais, ainda que em geral tivessem uma
forma simples, eram pontuadas de manifestações do Espírito. Os
primeiros pentecostais relutavam em faltar a uma única reunião se­
quer com medo de perder algo que Deus tivesse preparado sob me­
dida para suas necessidades particulares. Os cultos nas igrejas não
eram repetições cansativas de uma liturgia pré-planejada; ao contrá­
rio, cada culto tinha o potencial para ser a ocasião de um derrama­
mento especial do Espírito.

Realidade

A proclamação da volta iminente do Senhor era marcada não por


melancolia ou predições, mas por intensa sensação de expectativa
jubilosa. Os pentecostais haviam experimentado o sabor da presen­
ça da glória de Deus e anelavam vê-lo face a face. Alguns observado­
res do pentecostalismo ficaram inclinados a descartar isso como um
mecanismo de escape da aspereza da pobreza e da privação em que a
maioria dos pentecostais se encontrava. Não obstante, a alegria e o
calor encontrados nos grupos pentecostais freqüentemente rejeita­
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO / / 27

dos faziam surpreendente contraste com o formalismo frio típico


da grande parte do protestantismo norte-americano daquela época.
Na entrada de uma missão pentecostal, uma faixa anunciava o
que os visitantes podiam esperar com os seguintes dizeres: “Venha
para a igreja onde Jesus é real”. “Realidade” era uma palavra usada
para descrever o que esses crentes haviam experimentado. O batis­
mo no Espírito tornara Jesus intensamente real para eles. Esse sen­
so da proximidade de Deus na vida deles levou-os naturalmente a
um estilo de vida que não ofendesse o Espírito Santo. A santidade
de vida era uma busca autêntica para esses crentes fervorosos. Quan­
do as definições de conduta aceitável foram codificadas e, em segui­
da, impostas aos adeptos mais jovens, essa espécie de rigor moral
decaiu rapidamente para um legalismo austero. Ansiosos por não
ofender o Espírito Santo, os pentecostais primitivos procuravam
purgar drasticamente a conduta de qualquer procedimento que pu­
desse extinguir a chama do Espírito.

Adoração entusiástica

Desde o começo, os pentecostais foram conhecidos no mundo todo


pelas reuniões de culto alegres e ruidosas. As reuniões de oração,
nas quais todos os presentes coletiva e eloqüentemente derrama­
vam o coração perante Deus, eram quase universais. O levantar das
mãos é outra resposta comum à percepção da presença e da bênção
de Deus. O cântico em alta voz, acompanhado de palmas e eventu­
almente entremeado pelo “dançar no Espírito”, era praticado am­
plamente desde os primeiros dias. Nessas reuniões ardentes, não
era raro uma pessoa — ou muitas — cair numa espécie de transe, às
vezes agitando-se violentamente. “Cair no poder” era também um
fenômeno muito difundido.
Esse comportamento levou os críticos a rotular os pentecostais
de “bamboleadores santos” (holy rollers).
A proclamação sincera,
quase sempre em alta voz, das verdades sustentadas profundamente
marcou muito a pregação dos pentecostais primitivos. Algumas ve­
zes os crentes chegavam a equiparar o volume de voz da pregação
com a “unção”, embora a liderança sábia procurasse orientar os cren­
tes a julgar o valor da pregação pelo conteúdo da mensagem em vez
NO PODER DO ESPÍRITO 28

de o fazer pelo estilo de comunicação. Em qualquer parte do culto


— às vezes durante a pregação — podia-se esperar os dons do Espí­
rito como interrupções divinas. Os cultos na igreja eram sempre
planejados com um grau de improviso, visto que ninguém podia ter
certeza do que havia de acontecer.

Comunhão enriquecedora

Esquecidos pelo mundo religioso, os pentecostais valorizavam a co­


munhão que encontravam entre eles mesmos. Os cremes, cheios do
amor de Deus, alcançavam os que estavam ao redor deles para en­
corajar e abençoá-los. O centro da vida dos primeiros pentecostais
era o lugar de ajuntamento para o culto. As reuniões freqüentes, às
vezes “reuniões de oração nas casas”, fortaleciam os laços de apoio
mútuo desenvolvidos. Quase sempre essas pessoas conseguiam de
modo habilidoso “grupos evangelísticos” para dirigir reuniões ao ar
livre, reuniões de oração nas casas, reuniões em tendas, ou outras
espécies de esforço para levar o evangelho a comunidades ou bairros
onde não havia igreja pentecostal. Embora não se saiba bem quanto
essa prática foi difundida nos dias primitivos, é certo que alguns
pentecostais prim itivos chegaram a acreditar que fora da realida­
de pentecostal, a salvação de alguém era questionável. Havia segu­
rança espiritual dentro da comunhão.

Autoridade da Bíblia

É significativo que o reavivamento pentecostal tenha começado en­


tre os cristãos que estavam estudando a Bíblia. O anseio pela verdade,
não meramente uma busca de experiência, estimulava esses primeiros
crentes que buscavam. Quando se indaga por que o reavivamento
pentecostal moderno sobreviveu enquanto movimentos anteriores
não sobreviveram, é provável que a resposta mais simples e mais im­
portante esteja no compromisso com a autoridade da Bíblia para
governar toda crença, experiência e prática. Os líderes perspicazes
desde o início do reavivamento enfatizaram a necessidade de julgar
o mérito de todos os ensinos, manifestações e conduta à luz da Palavra
objetiva e revelada de Deus, a Bíblia. O reconhecimento da Bíblia como
totalmente autorizada foi um valor prontamente adotado do funda-
HISTÓRIA: ENTENDENDO D NOVO CONTEXTO P 29

mentalismo. A corrente principal da teologia ortodoxa também foi


tomada em grande escala de empréstimo ao fundamentalismo.
------« -------
Seria impreciso retratar as gerações mais antigas de pentecostais
como tão piedosas a ponto de estarem isentas de erro, pois houve
problemas nos anos germinais. Um desses problemas resultou da
tendência de crentes simples se reunirem em torno de personalida­
des fortes, o que muitas vezes resultou em grupinhos e facções. A
falta de uniformidade no ensino gerou confusão entre os pentecos­
tais. Alguns líderes caíram em imoralidade; outros prejudicaram a
imagem do pentecostalismo por deixar de cumprir suas obrigações
financeiras. Por causa desses desapontamentos, desenvolveu-se a
consciência da necessidade de disciplina.
Através desses primeiros anos, o reavivamento pentecostal nas­
cente foi marcado por completo ostracismo em relação ao mundo
eclesiástico mais amplo. Rejeitados pelos fundamentalistas, pelos
grupos Holiness e pelas grandes denominações da época, os pente­
costais foram forçados a abrir o próprio caminho no isolamento.
Eles não só foram isolados das correntes religiosas do mundo mais
amplo, mas também as igrejas pentecostais ficavam muitas vezes
isoladas umas das outras.

A FORMAÇÃO DAS DENOMINAÇÕES


PENTECOSTAIS

Em Los Angeles, o reavivamento da rua Azusa acabou levando à


formação de uma federação independente de crentes que veio a ser
conhecida como Fé Apostólica. Em 1910, William Durham, um pre­
gador batista de Chicago batizado no Espírito Santo, foi para Los
Angeles. Ele defendia “a obra concluída”, uma visão de santificação
à moda de Keswick, que conflitava com o ensino Holiness wesleyano
de Parham e Seymour. Dessa forma, ocorreu uma divisão na área de
Los Angeles. O componente da Fé Apostólica foi rapidamente obs-
curecido pelo ensino de Durham da “obra concluída”, mais atraente.
Por volta de 1913, manifestava-se uma tendência surgida da necessi­
dade notória de comunhão entre pentecostais que pensavam da mes­
ma form a. Essa tendência inclinava-se para o ensino da “obra
NO PODER DO ESPÍRITO 30

concluída”. Isso resultou na convocação de um “concilio geral”, que


se deu em H ot Springs, Arkansas, em abril de 1914.
Cerca de duzentos delegados se reuniram em Hot Springs para o
encontro em que se form ou o Concilio Geral das Assembléias. Em­
bora não tenha sido a primeira denominação pentecostal, esse con­
cilio refletia o grupo mais amplo de defensores daquele período
prim itivo e rapidamente despontou como a maior e mais represen­
tativa das denominações pentecostais americanas, um microcosmo
do pentecostalismo. Algumas das razões apresentadas para formar
as Assembléias de Deus eram a necessidade de facilitar a tarefa das
missões mundiais, de providenciar escolas para treinar futuros líde­
res, de coordenar empreendimentos de publicações e de padroni­
zar o ensino doutrinário e tom ar providências para a disciplina
ministerial.
Evitando as armadilhas das estruturas eclesiásticas contemporâ­
neas, as pessoas que formaram as Assembléias de Deus resistiram
ao estabelecimento de uma denominação formal, preferindo identi­
ficar a organização como uma “comunhão cooperativa” de crentes e
de igrejas locais autônomas. Resistiu-se à adoção de uma declaração
de fé até 1927, quando ficou evidente que esse documento era es­
sencial. Somente em 1916, foi adotada uma “Declaração das verda­
des fundamentais”. Esses dezesseis pontos são uma reflexão da crise
teológica daquela época. A intenção original de não ter nenhum cre­
do era um ideal impossível de sustentar.
Em 1895 formou-se a denominação Igreja de Deus em Cristo,
uma das muitas denominações wesleyanas que haviam sido criadas
quando se percebeu que o metodismo se apartara das raízes de Wesley.
Este grupo, composto em grande parte de afro-americanos, adotou
prontamente a mensagem pentecostal em 1906, depois da visita à
rua Azusa do presbítero C. H. Mason, líder deles. Ele levou consigo
a mensagem pentecostal para o Tennessee e instou seus seguidores a
acrescentar à doutrina deles o batismo no Espírito como a terceira
obra da graça. A denominação cresceu e chegou a ter mais de dois
milhões de membros nos anos 1990, competindo com as Assem­
bléias de Deus em termos numéricos.
As raízes complexas da Igreja de Deus (Cleveland, Tennessee)
remontam pelo menos a 1902, com a formação de um núcleo de
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO • / 31

crentes no que se considera a primeira igreja na denominação atual.


Os historiadores da Igreja de Deus mencionam um reavivamento
notável em Camp Creek, na Carolina do N orte, não muito longe de
Cleveland, no Tennessee, ainda mais cedo. Ali, em 1896, uma gran­
de ação divina, incluindo o falar em línguas, varreu a área. Os parti­
cipantes não entenderam plenamente o que aquilo significava, mas
o episódio condicionou os crentes da região para aceitarem o ensino
pentecostal quando chegou ao sul, vindo de Los Angeles.
Uma associação de igrejas afins organizou-se formalmente em
1906 para formar a Igreja de Deus. Dois anos depois, por intermé­
dio do ministério de G. B. Cashwell — que trouxera a mensagem do
Pentecoste para o sul dos Estados Unidos — , o supervisor geral da
Igreja de Deus, A . J. Tomlinson, recebeu a experiência pentecostal.
Muitos pastores da Igreja de Deus já haviam recebido o batismo no
Espírito, de forma que foi relativamente fácil para a Igreja de Deus
se mover em direção à família das denominações pentecostais
Holiness. Em tempo, a Igreja de Deus veio a ser o mais influente
dos grupos pentecostais wesleyanos.6
Durante o ministério de G. B. Cashwell, de Dunn, Carolina do
N orte, não apenas a Igreja de Deus se tornou um grupo pentecos­
tal, mas também outros grupos do sul seguiram caminho semelhan­
te. Entre estes, é digna de nota a história da Igreja Pentecostal
Hohness. Em 1908, esse pequeno grupo Hohness adotou a mensa­
gem pentecostal e juntou-se aos grupos wesleyanos semelhantes do
sul, acrescentando à sua doutrina a experiência pentecostal como a
terceira obra da graça. Em anos mais recentes, membros ilustres da
Igreja Pentecostal Holiness foram o evangelista Oral Roberts e o
historiador Vinson Synan.
Deve-se observar que no breve período de 1906 a 1909, algumas
denominações Holiness importantes passaram rapidamente para o
movimento pentecostal, todas do sul dos Estados Unidos. Por vol­
ta de 1910, a reação do movimento Holiness havia endurecido, re­
sultando no mais amargo antagonismo ao movimento pentecostal,
posição que tem sido amenizada somente em anos recentes.

kThe Holiness-Pentecostal tradition, de Vinson Synan, é uma excelente resenha da


história do movimento pentecostal moderno do ponto de vista wesleyano.
IMO PODER DO ESPÍRITO 32

O DESENVOLVIMENTO DO MOVIMENTO
PENTECOSTAL MODERNO

Embora as igrejas pentecostais tenham começado de um modo he­


sitante, não desejando formar novas denominações, a necessidade
dos serviços fornecidos pelas organizações formais exigia que esses
primeiros crentes criassem novas estruturas. As Assembléias de
Deus, como o maior grupo representativo, adotaram uma declara­
ção de fé (credo) em 1916, produto da necessidade devida a uma
importante crise doutrinária.7 Em 1927, com a adoção de uma cons­
tituição, as Assembléias de Deus tinham-se desenvolvido plenamente
numa denominação.
Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, os pente­
costais cresceram nos Estados Unidos e no exterior. Durante gran­
de parte desse período, as Assembléias de Deus foram consideradas
a denominação que mais rápido crescia nos Estados Unidos. Gran­
de parte do crescimento era resultado de numerosas congregações
pentecostais independentes que resolviam filiar-se às Assembléias
de Deus, uma vez que se tornava evidente que a organização não
estava causando desaprovação de Deus, como alguns temiam, e as
bênçãos inerentes à comunhão com um grupo disciplinado tinha
muitas vantagens. Foi também durante esses anos que o mecanismo
da escola dominical provou ser um bom meio para mobilizar os cren­
tes lei gos cheios do Espírito para o empreendimento de evangelização
e ensino dos neoconvertidos. Em conseqüência, no período da Gran­
de Depressão, em que as denominações históricas perdiam mem­
bros, os grupos vibrantes como os pentecostais acrescentavam
muitos convertidos.

7A polêmica “Jesus somente”, surgida no primeiro ano da formação das A s­


sembléias de Deus, quase destruiu a nova denominação. O ensino heterodoxo dos
integrantes do “Jesus somente” atraiu muitos líderes, mas foi combatido com su­
cesso por J. Roswell Flower com seu relatório que afirmava que isso não era ne­
nhuma nova revelação, mas uma heresia antiga condenada pelos cristãos ortodoxos
do século iv. A maior parte dos primeiros desertores para o novo ensino, esclarecida
pelas descobertas de Flower, retornou às Assembléias de Deus. Contudo, um núme­
ro significativo de ministros e igrejas permaneceu leal à doutrina do “Jesus somen­
te” (ou unicidade), o que forneceu o núcleo de toda uma família de denominações
pentecostais. V. William W Menzies, Anointed to serve, p. 106-21.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO 33

Se o crescimento interno nos Estados Unidos nesses anos foi


digno de nota, a expansão das igrejas pentecostais no exterior foi
ainda mais espetacular. O apaixonado impulso missionário que mar­
cou o reavivamento desde o começo encontrou expressão na im­
plantação de igrejas pioneiras em muitos países. O padrão típico era
os indivíduos experimentarem o senso de vocação missionária e co­
meçarem imediatamente a plantar num campo estrangeiro escolhi­
do. De início, não se dispunha de nenhuma estrutura organizacional
formal para facilitar o envio e o sustento de missionários, mas em
grupos como a Assembléia de Deus criou-se rapidamente um de­
partamento para aprovar candidatos e supervisionar fundos e distri­
buição de pessoal.
A filosofia missionária evoluiu através dos anos, assimilando fa­
cilmente os princípios da diligência com relação aos nativos, de for­
ma que em meio século a estratégia de missões das Assembléias de
Deus centrou-se no cultivo do autogoverno, da auto-sustentação e
da autopropagação dos grupos e igrejas nacionais autônomos. A forte
convicção no princípio “não por força, nem por violência, mas pelo
meu Espírito” estimulava os pioneiros a crer que Deus moldaria
denominações nacionais fortes iniciadas praticamente do zero. Em­
bora os dados estatísticos da igreja dos Estados Unidos tenham so­
frido um ou outro período de estabilização do crescimento, a curva
de crescimento da organização de igrejas das Assembléias de Deus
no exterior manteve ascensão constante ao longo do século, de for­
ma que no final dos anos 1900 o número de membros das Assem­
bléias de Deus no mundo chegou perto dos trinta milhões.s
Um instrumento de princípios empregado com grande eficiência
no desenvolvimento rápido das igrejas nacionais foi o instituto bíbli­
co. As Assembléias de Deus de todo o mundo dirigem mais de tre­
zentos institutos bíblicos, a maioria deles por meio de uma liderança
local. Essas escolas treinaram jovens na vida da igreja para exercerem
postos de liderança. Progressivamente, igrejas que apenas uma gera­
ção atrás eram “receptoras”, agora estão se unindo a suas corres­
pondentes ocidentais no envio de missionários para outras fronteiras.

*Sherry D o t y , estatística da AOG, org., The Assemblies <>f God: currcnt facts,
based on calendar year 1998, Office o f Public Relations, junho 1999.
NO PODER DO ESPÍRITO 34

A década de 1940 é importante na história do movimento pente-


costal moderno porque foi o período em que o pentecostalismo saiu
do isolamento no qual vivia desde os dias da rua Azusa. Durante a
Segunda Guerra Mundial, os líderes tradicionais norte-americanos
esboçavam um esforço combinado de ação, querendo com isso for­
mar uma voz coletiva para falar em favor de seus interesses. E, des­
contentes em ser apresentados ao público pelo Concilio Mundial de
Igrejas e seu equivalente norte-americano, criaram uma entidade que
veio a ser conhecida como Concilio Nacional de Igrejas. Cento e
cinqüenta líderes reuniram-se em Saint Louis numa convenção cons­
titucional para form ar a Associação Nacional de Evangélicos (a n e ),
em abril de 1942.
Líderes das Assembléias de Deus foram convidados para tomar
parte nesse encontro histórico. Os tradicionais, muitos dos quais
haviam sido levados a crer que os pentecostais deviam ser classifica­
dos como seita, vieram a reconhecer que, com exceção do ensino
pentecostal a respeito do batismo no Espírito acompanhado do si­
nal de falar em línguas, o ensino pentecostal alinhava-se com a teo­
logia cristã ortodoxa. A associação com os pentecostais durante o
curso da Segunda Guerra Mundial aproximara os tradicionais dos
pentecostais, e foi basicamente desse encontro que surgiu a cons­
ciência de solidariedade espiritual. Esta é a primeira evidência de
que o reavivamento pentecostal do século XX tinha sobrevivido tempo
bastante para chamar a atenção do mundo eclesiástico mais amplo.
É isso que de fato torna singular o reavivamento moderno na histó­
ria da igreja.
Deve-se observar uma distinção ocorrendo no evangelicalismo
norte-americano nesse período, distinção que tornou possível o con­
vite à participação dos pentecostais. O que se pode chamar de “fun-
damentalismo prim itivo” é esse amálgama de valores formado por
volta de 1895, que caracterizava os valores centrais que os funda-
mentalistas achavam estar ameaçados pelo modernismo. A evidên­
cia parece indicar que os modernistas varreram os campos das grandes
denominações, tomando conta dos seminários, das casas publicadoras
e das posições de influência eclesiástica não por argumentação bem
sucedida, mas por meio de subterfúgios.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO 35

Na verdade, os fundamentalistas náo foram de modo algum ar­


ruinados pela convicção modernista. O nível de debate no período
anterior foi sofisticado. As grandes obras dos primeiros apologistas
do fundamentalismo foram brilhantes e ainda contam entre as me­
lhores declarações para sustentar a divindade de Cristo, seus mila­
gres, sua morte sem pecado e sua ressurreição, e a autoridade absoluta
da Bíblia. Por volta de 1925, a época do infame “julgamento dos
macacos”, que ridicularizava a crença na afirmação bíblica literal da
criação, o fundamentahsmo havia se retirado das posições de co­
mando na maioria das grandes denominações. Daí para a frente,
engajaram-se numa espécie de guerrilha religiosa.
Esses “últimos fundamentalistas” criaram uma imagem negativa.
Desprovido de posição, o fundamentalismo passou a ser um movi­
mento marginal. A literatura produzida era em forma de panfletos,
documentos que revelavam o espírito de defensiva e rancor. O s fun­
damentalistas tornaram-se muito agressivos, às vezes até para com
os próprios colegas que diferiam num ponto ou noutro. Essa luta
destrutiva produziu cisão entre o povo que já se havia separado de
grupos aparentados, aos quais consideraram apóstatas. O resultado
dessa atividade defensiva levou por fim ao reconhecimento pelos
líderes tradicionais importantes do início da década de 1940 de que
essa não era a plataforma adequada da qual o evangelho devia ser
anunciado no pós-guerra que se aproximava. Líderes como Harold
J. Ockenga e J. Elsin Wright, mais tarde apoiados por Carl F. H.
Henry, entre outros, deram início ao que veio a ser conhecido como
“novo evangelicalismo”.
O espírito do novo evangelicalismo era positivo, conciliador e
inclusivo, não obstante sustentando a mesma teologia ortodoxa do
“fundamentalismo mais recente”. Tentou-se, na verdade, recuperar
o espírito dos primeiros fundamentalistas. O periódico Christianiíy
Today e o Seminário Teológico Fuller são produtos diretos do espí­
rito do novo evangelicalismo. O importante para os pentecostais é
que os novos protestantes lhe deram espaço. Os fundamentalistas
recentes se separaram da ane por causa da questão de dever ou não
incluir os pentecostais e constituíram uma organização chamada
Concilio Americano de Igrejas Cristãs ( caic ). Através dos anos a
NO PODER DO ESPÍRITO /■ ■ 36

ane tem crescido substancialmente (com as Assembléias de Deus


em tempo tornando-se a maior organização-membro) enquanto o
CAIC permaneceu como empreendimento periférico.

A RENOVAÇÃO CARISMÁTICA*

Até cerca de 1955, qualquer pastor ou membro de igreja das grandes


denominações americanas — modernista, fundamentalistá ou holiness
— que relatasse ter recebido o batismo no Espírito Santo com o
falar em línguas era automaticamente separado da denominação,
voluntária ou involuntariamente. As igrejas pentecostais receberam
um número substancial de pessoas que vinham de outras denomi­
nações. Contudo, as pessoas conscienciosas de muitas denominações
começaram a perceber que estavam perdendo alguns de seus melho­
res e mais brilhantes membros.
Já no ano de 1955, alguns pastores da Igreja Episcopal America­
na receberam a experiência pentecostal e começaram a proclamá-la
dentro de sua denominação, normalmente acompanhados de encon­
tros proporcionados pelos interessados. Nos encontros havia a unção
dos doentes e a oração pela cura. Após cuidadoso escrutínio dos res­
pectivos líderes diocesanos, foi dada aprovação cautelosa a alguns
episódios locais dessa renovação. Quando se observou que essas igrejas
da renovação eram o elemento mais vital na diocese, os líderes fica­
ram relutantes em rejeitar aquilo que era visivelmente o melhor de
seus interesses eclesiásticos. Uma série semelhante de episódios
ocorreu dentro da Igreja Presbiteriana.
Em 1960, em Van Nuys, Califórnia, a mensagem do domingo de
Páscoa do pároco episcopal da Igreja de St. Mark, Dennis Bennett,
produziu uma séria controvérsia dentro de sua igreja. Ele contou a
história de seu próprio encontro com o Espírito Santo, experiência
para a qual ele fora conduzido por meio de influências pentecostais.
O relato foi divulgado pela imprensa, o que trouxe a questão caris-

^No Brasil, o termo “carismático” é automaticamente associado à Igreja


Católica Romana, mas a palavra inglesa (charismatic ) tem sentido mais amplo e
refere-se a alguém que teve profunda experiência com o Espírito Santo, abrin­
do-se para o falar em línguas e os outros dons espirituais — a quem também
chamamos “renovado”. (N. do R.)
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO 37

mática ao conhecimento nacional.9 Esse fato é em geral visto como


o equivalente carismático do que aconteceu em 1906 na rua Azusa,
em Los Angeles, para o movimento pentecostal. A partir daí o mo­
vimento carismático assumiu vida própria.
Nas décadas seguintes, quase todas as denominações norte-ameri­
canas foram afetadas pelo Movimento de Renovação Carismática,
de modo tal que hoje há associações carismáticas dentro de pratica­
mente todas essas denominações. Diversas denominações impor­
tantes fizeram estudos sérios do fenômeno e emitiram documentos
oficiais sobre o assunto.10 Esses estudos tornaram possível distinguir
os aspectos distintivos da Renovação Carismática em relação ao mo­
vimento pentecostal tradicional mais antigo. Os carismáticos deviam
ser entendidos como uma agência de renovação dentro das igrejas
mais antigas. Como tal, esses crentes ardorosos chamaram a aten­
ção das igrejas históricas para a possibilidade da presença capacita-
dora de Deus na igreja hoje — algo que poucos esperavam realmente.
Nesse modo de renovação, a primeira porta a se abrir foi a expec­
tativa da manifestação de dons do Espírito. Essa preocupação com
os dons ( cbarismata
, cujo termo Paulo emprega em IC o 12— 14)
faz do adjetivo “carismático” altamente apropriado. Os carismáticos
normalmente não se concentram no evento pentecostal de Atos 2,
como fazem os pentecostais. Tendem a não falar do batismo no Es­
pírito como uma experiência separada do novo nascimento. Mesmo
se o fizessem, provavelmente não iam referir-se à experiência do
falar em línguas como uma experiência subseqüente necessária.
Evidente também é a diferença na atitude relacionada à evangeli-
zação e missões. Os pentecostais desde o princípio viram sua razão
de ser na evangelização do mundo. Os carismáticos, em oposição,
tendem a ver seu papel como uma influência revitalizadora dentro

9V. Dennis BENNETT, Nine o’clock in the moming, para conhecer o seu
testemunho.V. MENZIES, Anointed to serve, p. 177-227, a história da emergência
das Assembléias de Deus do isolamento para a associação com outros grupos
cristãos.
10V. Kilian M cD onnell, Presence, power, praise: documents on the Charismai ic
Renewal, que é a melhor coletânea de respostas oficiais das denominações à Reno­
vação Carismática.
NO PODER DO ESPÍRITO / ; 38

de sua própria tradição. É animador que ultimamente os carismáti­


cos estejam descobrindo o desafio das missões mundiais.
O movimento de Renovação Carismática tem três fases distin­
tas. 1) A primeira fase, iniciada por volta de 1955, causou impacto
no protestantismo das igrejas históricas. Os sociólogos da religião
ficaram perplexos pelo modo como esse reavivamento ocorreu: de
cima para baixo, não de baixo para cima, como a maioria dos reavi-
vamentos. A alta cúpula da Igreja Episcopal Americana foi a pri­
meira a so frer o im pacto. O utras denom inações, quase todas
alinhadas com o Concilio Mundial de Igrejas ( c m i ), sofreram o im­
pacto logo em seguida.
A história de David duPlessis aparece de maneira proeminente
nessa primeira fase da Renovação Carismática. Líder pentecostal sul-
africano, duPlessis percebeu já nos anos 1930 que Deus ia trabalhar
entre as grandes denominações. Seus irmãos pentecostais olharam
para essa idéia com desconfiança. Numa seqüência fascinante de
acontecimentos, duPlessis viu-se imerso nas reuniões do Concilio
Mundial de Igrejas já em 1954. A li encontrou líderes cristãos muito
preocupados com as divisões dentro da cristandade. Eles estavam
começando a buscar de Deus uma solução espiritual em vez de de­
pender das resoluções aprovadas e da promulgação das proclama­
ções. Essa preocupação com a qualidade espiritual da igreja abriu a
porta para discussões sérias com duPlessis a respeito do papel do
Espírito Santo na vida da igreja.
DuPlessis levou muitos de seus amigos do c m i a uma experiência
pentecostal. Esse envolvimento com o c m i mostrou-se um embara­
ço para os seus amigos pentecostais, e ele foi posteriormente dis­
pensado da denominação que adotara, a Assembléia de Deus dos
Estados Unidos. (Mais tarde, antes de morrer, foi reintegrado em
silêncio.) A recente aceitação de grupos como a Assembléia de Deus
pela a n e fez que os evangélicos tradicionais pressionassem seus ami­
gos pentecostais a se distanciar do CMI. Tinha havido uma abertura
importante para a pessoa e obra do Espírito Santo na liderança do
CMI que colocou os pentecostais no meio de um conflito durante
esses anos. A história de duPlessis ilustra a ambigüidade que os pen­
tecostais enfrentavam. Como se relacionar com o revigorante vento
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO ■ ' .< 39

do Espírito entre pessoas cuja teologia está em desarmonia com a


ortodoxia é questão ainda não resolvida.
2) A segunda fase da Renovação Carismática começou de manei­
ra marcante em 1967, na Universidade DuQuesne, em Pittsburgh,
Pensilvânia. Os católicos romanos leigos estavam buscando a Deus
com seriedade. Experimentaram um movimento poderoso do Espí­
rito Santo numa reunião de oração. Isso parece ter repercutido en­
tre os professores e alunos da Universidade N otre Dame, em South
Bend, Indiana. A renovação católica, comumente conhecida como
pentecostalismo católico, espalhou-se pelo mundo num tempo es­
pantosamente curto. Hoje, essa renovação carismática é encontrada
em praticamente todo lugar, embora alguns achem que ela já tenha
atingido o ponto máximo em alguns lugares. Desde a década de 1970,
um diálogo contínuo entre católicos romanos e pentecostais foi
conjuntamente patrocinado pelo Vaticano e pelos pentecostais e
carismáticos da América do N orte.11 Entretanto, as incertezas que
cercam as relações com o movimento pentecostal católico são refor­
çadas pelas tensões que os pentecostais em geral enfrentam quando
tentam evangelizar em países predominantemente católicos romanos.
Um número considerável de literatura bíblica e teológica tem sido
produzido pelos estudiosos católicos carismáticos. Embora haja al­
guma variação em como os católicos entendem suas experiências, a
maioria adota o ensino da “realização”. Nisto, o católico insiste que
os rituais de iniciação do batismo e da confirmação comunicam a
graça da plenitude do Espírito ao comungante, embora isso em ge­
ral não fique evidente nos momentos da iniciação. Pode ser que so­
mente mais tarde, talvez numa reunião de oração, em que as pessoas
são encorajadas a orar pela “plenitude do Espírito”, elas venham a
irromper em louvores, o que inclui línguas e outras manifestações
do Espírito. Nessa experiência o que era latente desde o começo do
batismo e da confirmação é trazido ao nível consciente.

nV. Pneu.ma 12 (outono 1990). Essa edição é toda dedicada ao diálogo católi-
co/pentecostal, que começou em 1972 e desde então se renova a cada cinco anos.
O número contém um editorial excelente de Cecil M. R obkck, Splinters and logs,
catholics and pentecostais (p. 77-83), e é acompanhado de reportagens dos três pri­
meiros qüinqüênios das sessões de diálogos.
NO PODER DO ESPÍRITO 40

Em outras palavras, os teólogos católicos tendem a dizer que o


batismo no Espírito ocorreu na iniciação, mas é manifestado em
data posterior. O leigo sem treinamento provavelmente dirá: “Na
noite da última sexta-feira eu fui salvo e batizado no Espírito San­
to ”, para desapontamento do padre. Deve-se observar que os teólo­
gos carismáticos católicos romanos estão se esforçando sinceramente
para estruturar um entendimento da experiência pentecostal de tal
modo que ela possa manter-se dentro do limite do ensino aceitável
da igreja.12
3) Peter Wagner cunhou a expressão “terceira onda” para desig­
nar outra fase da Renovação Carismática. Com isso ele se refere à
inclusão de manifestações do Espírito comuns entre pentecostais e
outros carismáticos dentro das fronteiras do evangelicalismo con­
servador. Isso, acredita ele, pode remontar ao ano de 1985.13 Alguns
discordariam da tese de Wagner, afirmando que houve uma evolu­
ção através de um longo período de tempo de aceitação de temas
típicos de pentecostais dentro do grupo dos tradicionais. Em todo
caso, fica evidente que, um pouco mais tardiamente que os protes­
tantes liberais ou os católicos romanos, os grupos tradicionais fo­
ram forçados a concordar com a explosão do fenômeno pentecostal
no meio deles. Talvez os que têm sustentando os compromissos mais
vigorosamente sejam os mais difíceis de ser persuadidos a fazer
modificações nas convicções e atitudes. Com certeza tem-se verifi­
cado uma mudança clara na aceitação dos valores pentecostais pelos
tradicionais, mesmo que essa tendência tenha ocorrido num perío­
do de tempo mais longo do que o assinalado por Wagner. Os semi­
nários tradicionais dão destaque a cursos populares em assuntos
carismáticos, entre eles, como incorporar a oração em favor do en­
fermo no ministério pastoral.
Se o relacionamento entre pentecostais e o contexto eclesiástico
mais amplo (c m i ) permanece incerto, o relacionamento do pente-
costalismo tradicional (clássico) com o evangelicalismo é também

l2Heribert M uhlen, A Cbarismatic theology. V. tb., de Donald L, G elpi,


Pentecostalism: a theological viewpoint.
13V. Sinais e prodígios.
HISTÓRIA: ENTENDENDO O NOVO CONTEXTO / , 41

um tanto ambíguo. Com o navios que navegam à noite, os tradicio­


nais têm-se aproximado dos valores esposados pelos pentecostais,
embora poucos tenham registrado aceitação completa. Por outro
lado, os pentecostais têm procurado identificar-se fortemente com
os evangélicos tradicionais, uma vez que em essência há uma natural
afinidade pelos valores centrais.
Esse anelo pela aceitação tradicional, contudo, tem um preço,
mais claramente manifestado na área da hermenêutica. A adesão cega
à plena armadura do padrão de princípios evangelicais da hermenêu­
tica fez com que os pentecostais caíssem inadvertidamente numa
armadilha. A razão repousa nas regras restritivas que regem o em­
preendimento hermenêutico dos tradicionais, restrições essas que
descartam a possibilidade de um resultado de cunho pentecostal.
Com a aproximação entre pentecostais e tradicionais que surgiu nas
décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, os pentecostais abdi­
caram em grande parte de sua programação teológica em favor da
hderança acadêmica dos tradicionais. A s escolas bíblicas dos pente­
costais começaram a empregar livros didáticos dos evangélicos tra­
dicionais em toda parte. Havia evidentemente pouca coisa de que
discordavam, exceto em assuntos da doutrina do Espírito Santo.
Entretanto, os pentecostais ficaram desapontados porque não
tiveram êxito em persuadir os tradicionais a aprovar-lhes seu enten­
dimento da obra do Espírito Santo. Ademais, alguns estudantes
pentecostais que estavam imersos nos livros-texto dos evangélicos
tradicionais começaram a questionar as premissas da teologia pen­
tecostal. Ficou evidente que uma razão central para o abismo teoló­
gico eram as premissas diferentes a partir das quais a Bíblia era
estudada. Os tradicionais trabalhavam com um conjunto de regras
hermenêuticas, os pentecostais, com uma abordagem diferente. So­
mente na década de 1970 este problema foi entendido claramente. E
im portante levar em conta mudanças significativas na teoria
hermenêutica tradicional desde 1970, as quais tornaram mais fácil
para os evangélicos tradicionais e os pentecostais de hoje falarem
língua semelhante.
Uma vez que o papel da hermenêutica é fundamental para a teo­
logia e que as questões por ela abrangidas têm-se mostrado cruciais
NO PODER DO ESPÍRITO 42

para articular uma teologia pentecostal coerente, os próximos capí­


tulos são dedicados à exploração da hermenêutica pentecostal.

Perguntas para estudo


1. De que modo o movimento pentecostal moderno é singular, di­
ferente de todos os outros movimentos carismáticos semelhan­
tes desde a era apostóhca? Que razões o autor oferece para essa
distinção?
2. Com o os pentecostais primitivos definiram sua contribuição teo­
lógica singular? O que lhes deu identidade?
3. Alguns pentecostais primitivos empregavam expressões como
“chuva serôdia” para designar o reavivamento. O que eles queriam
dizer com essa expressão? Você acha que esse entendimento é
válido?
4. Que influências moldaram a formação teológica do movimento
pentecostal moderno?
5. Por que os pentecostais primitivos foram deixados isolados por
outros cristãos?
6. Com o você distinguiria teologicam ente os pentecostais dos
carismáticos?
7. Qual o impacto que a Renovação Carismática causou no pente-
costalismo?
capítulo • 2

Hermenêutica: a
revolução silenciosa

stá ocorrendo uma revolução na hermenêutica evangélica tradi­


E cional. Não, não me refiro às influências da teoria literária pós-
moderna. Embora sem dúvida vamos ter de tratar do impacto do
pós-modernismo em alguma medida, de maneira geral podemos di­
zer que os evangélicos tradicionais têm reagido com clareza e pers­
picácia a esse novo movimento. A s influências positivas têm sido
devidamente registradas e os elementos negativos têm sido correta­
mente criticados e descartados.1
Antes, eu me refiro à mudança substancial nas atitudes evangéli­
cas tradicionais em relação à importância teológica da narrativa bí­
blica. Os primórdios dessa mudança remontam à década de 1970
por razões que esboçarei a seguir. Desde esse tempo, as atitudes dos
tradicionais têm mudado lenta e silenciosamente, mas com cons­
tância, de modo que podemos falar hoje de um quase consenso so­
bre esse assunto. No decorrer deste capítulo, gostaria de esboçar a
natureza dessa transformação, as forças que a têm produzido e as
implicações importantes que surgem para a reflexão teológica con­
temporânea. Mais especificamente, procurarei 1) esboçar a perspec­
tiva de uma geração anterior dos evangélicos tradicionais acadêmicos;
2) mostrar como um novo consenso surgiu; e 3) olhar para as opor­
tunidades significativas que essa nova perspectiva proporciona para
a reflexão teológica dentro da tradição pentecostal quando entra­
mos no novo milênio.
'Entre as influências positivas, está a ênfase na importância de nosso entendi­
mento prévio para o empreendimento interpretativo, e entre as influências negati­
vas corretamente criticadas estão o não-historicismo radical c o relativismo inerente
a muitas abordagens pós-modernas.
NO PODER DO ESPÍRITO /} 44

O p a s s a d o : u m c â n o n dentro
DE OUTRO CÂNON
Uma visão geral de três livros influentes na época em que eu era
aluno do seminário vai ser de grande ajuda. Esses três livros perma­
necem representativos do ponto de vista da prim eira fase do
evangelicalismo moderno (1945-1970): Protestant biblical interpre-
tation [.Interpretação bíblica protestante], de Bernard Ramm (1956);
Batismo eplenitude do Espírito Santo, de John R. W. Stott (1964);
Entendes o que lês?, de Gordon Fee e Douglas Stuart (1981). A últi­
ma obra, embora escrita depois de 1970, reflete a perspectiva da gera­
ção a n terio r e vem de um período de transição — em que a
perspectiva tradicional estava começando a ser desafiada e as impli­
cações de novos conhecimentos para a teoria hermenêutica, parti­
cularmente no estudo dos evangelhos, estavam começando a ser
examinadas. Esses livros foram muito usados nas escolas bíblicas e
seminários tradicionais e em conjunto exerceram impacto substan­
cial numa geração de alunos evangélicos tradicionais.
Eles representam uma trajetória de Ramm a Stott e Fee. Ramm
estabelece o tom quando, citando Horne, explica a analogia da fé
como “a harmonia perpétua e constante das Escrituras nos pontos
fundamentais de fé e prática deduzidos das passagens em que eles
são discutidos pela pena de homens inspirados seja direta ou ex­
pressamente e em linguagem clara, comum e inteligível”.2 Em ou­
tras palavras, Ramm realça a unidade das Escrituras e dá a entender
que as passagens mais claras da Bíblia devem ser usadas para ajudar a
entender as passagens menos explícitas. Como Ramm aplicaria a ana­
logia da fé às porções narrativas das Escrituras não é exatamente espe­
cificado. Mas esse assunto é retomado e esclarecido por Stott e Fee.
Stott, na versão original de seu livro em 1964, afirma que “a reve­
lação do propósito de Deus na Escritura deve ser buscada em sua
parte didática, em vez das partes históricas
”.3 Na segunda edição
publicada em 1976, ele insiste que não está afirmando que as passa­
gens narrativas não têm valor. Contudo, prossegue: “Estou dizendo

1Protestant biblical interpretation, 3. ed., p. 107. Note-se que a primeira edição


do livro de Ramm é de 1956.
Batismo e plenitude do Espírito Santo.
HERMENÊUTICA: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA / 45

que o descritivo tem valor somente na medida em que é interpreta­


do pelo didático”.
Em seu livro de larga influência (em co-autoria com Douglas
Stuart), Entendes o que lês?,
Gordon Fee repercute essa linha básica.
Num capítulo intitulado “Atos — o problema do precedente histó­
rico”, Fee articula um princípio agora famoso: “Nossa suposição,
juntamente com muitas outras, é que a não ser que a Escritura expli­
citamente nos mande fazer alguma coisa, aquilo que é meramente nar­
rado ou descrito nunca pode funcionar de modo normativo ”.4
H oje, para muitos é difícil imaginar com o essa abordagem
restritiva veio a ser axiomática para a interpretação tradicional. A fi­
nal de contas, esse princípio não soa muito semelhante a um cânon
dentro de outro cânon? Muita coisa da teologia do Antigo Testa­
mento não nos vem em forma de narrativa? O próprio Jesus não
ensinou freqüentemente contando histórias ou parábolas? Não ten­
de essa teoria a reduzir os evangelhos e Atos (assim como outras
porções narrativas das Escrituras) a um mero apêndice das porções
didáticas da Bíblia, particularmente as cartas de Paulo? (Talvez isso
exphque o caráter preponderante das epístolas pauhnas, que têm
muito da teologia evangélica tradicional. Diante de tudo isso, não
tem a teologia evangélica tradicional a tendência a ser uma teologia
paulina?) Em todo caso, mesmo o leitor menos formal não pode
deixar de perceber a tensão com o texto de 2 Timóteo 3.16: “Toda a
Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreen­
são, para a correção e para a instrução na justiça”.
Entretanto, antes de julgar os nossos precursores tradicionais tão
severamente, reconheçamos que eles estavam tratando de um pro­
blema real e que fizeram isso num contexto singular. Stott e Fee,
por exemplo, procuravam tratar do problema de discernir o que
exatamente podemos coligir de uma narrativa. Embora reconheces­
sem a possibilidade de a doutrina fluir de uma narrativa, o problema

4P. 91. (Fee escreveu o capítulo mencionado; o "rifo é dele.) Na segunda edi­
ção, publicada em 1993, observe que Fee qualifica esse princípio fazendo uma
emenda: “A menos que se demonstre em outras bases que o autor pretendia que
funcionasse desse modo”. Para comentários sobre Fee e seu papel tanto no
evangelicalismo como no pentecostalismo, v. cap. 7 deste livro.
NO PODER DO ESPÍRITO 46

era como destacar com precisão que doutrina podia ser essa. Que ele­
mentos de uma história devem ser entendidos como base para a teolo­
gia normativa e que elementos não devem? Como Fee observa, a menos
que estejamos preparados para escolher os líderes da igreja por sorteio
ou incentivar os membros da igreja a vender todas as suas posses, não
podemos simplesmente presumir que uma narrativa histórica especí­
fica forneça base para uma teologia normativa.
Naturalmente essa é uma preocupação legítima, um problema
real. Como já vimos, a geração anterior ofereceu uma resposta clara:
a doutrina não pode estar arraigada apenas na narrativa porque a
narrativa é simplesmente muito escorregadia, elástica e imprecisa.
Vamos examinar essa questão mais plenamente a seguir, mas por ora
é suficiente lembrar que as preocupações que deram origem a essa
postura restritiva não podem ser evitadas.
Além disso, devemos ser sensíveis ao contexto, ao conjunto sin­
gular de fatos históricos, que causou impacto no modo de ver dessa
geração anterior. Talvez devéssemos remontar a meados do século
xix e ao surgimento da escola de Tübingen, sob a influência de
Ferdinand Christian Baur, onde vemos as sementes de uma polêmi­
ca responsável em grande parte por dar forma à postura “restritiva”
dos tradicionais. Baur, docente da Universidade de Tübingen, apli­
cou a dialética hegeliana (tese, antítese e síntese) à história do cris­
tianismo primitivo, o que resultou num retrato extremamente crítico
da confiabilidade histórica de Atos. Baur sustentava que Atos era
essencialmente o produto de história revisionista: uma síntese do
cristianismo judaico (tese) e do cristianismo gentílico (antítese).5
Em resumo, Baur deu a entender que o livro de Atos nos fornece
pouco no que diz respeito a fatos históricos, mas muito de pensa­
mento desejoso de teologizar para a geração seguinte. Embora sua
tese tenha sido amplamente rejeitada por ser outra ilustração de que o
hegelianismo ficou louco,6 sua idéia estabeleceu o palco para outros

5Baur escreveu uma série de livros, mas um artigo escrito em 1831 expressou
primeiro suas idéias.
6Entre os exemplos de aplicação excessivamente forte do hegelianismo em ou­
tros campos do conhecimento estão as idéias de Darwin, na biologia, e a teoria
política de Karl Marx.
HERMENÊUTICA: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA •' 47

desdobramentos que haveriam de abalar as sensibilidades tradicio­


nais. De um lado, falo do influente comentário sobre Atos escrito
por Ernst Haenchen7; de outro, do surgimento da crítica da redação.
Haenchen, seguindo nos trilhos de Baur, também destacou o ca­
ráter teológico de Atos. Segundo ele, Lucas praticamente forjou
grandes porções de A tos a fim de arranjar os pontos homiléticos
que achou que sua igreja precisava ouvir. Lucas teve pouca preocupa­
ção com a história; ele era essencialmente pregador e teólogo. Se os
fatos interferiam na história que ele queria contar, pior para os fatos.
Aproximadamente na mesma época, novas correntes do estudo
dos evangelhos surgiram na Alemanha. Essas correntes consolida­
ram-se numa nova m etodologia chamada “crítica da redação”.
Günther Bornkamm aplicou primeiro o método ao evangelho de
Mateus.8 Foi logo seguido por Hans Conzelmann e Willi Marxsen,
que ofereceram leituras críticas (da redação) de Lucas e Marcos, res­
pectivamente.9 O impulso principal de cada uma dessas obras foi
este: cada escritor do evangelho escreve com seus próprios motivos
teológicos distintos, e essa perspectiva pode ser descoberta com um
cuidadoso exame da maneira que o autor seleciona e molda sua fon­
te (seja ela Marcos, Q ou outras fontes). Os primeiros praticantes
da crítica da redação, como Baur e Haenchen em relação a Atos,
subhnharam o caráter teológico dos evangelhos e menosprezaram
drasticamente a preocupação histórica dos evangelistas. Segundo os
críticos da redação, os evangelhos nos dizem muito a respeito das
preocupações teológicas de Mateus, Marcos e Lucas; dizem-nos mui­
to pouco dos fatos históricos que cercaram o ministério de Jesus.
A reação dos evangélicos tradicionais foi compreensivelmente
negativa. Qualquer ataque à confiabilidade histórica dos evangelhos
e de Atos era um ataque aos próprios fundamentos do cristianismo.

7The Acts of the Apostles: a commentary. (O original em alemão foi publicado


em 1955.)
8Günther Bornkamm, G. Barth & H. J. Held, Tradition and interpretation in
Matthew. (Este livro incorporou um artigo fundamental publicado pela primeira
vez em 1948.)
9Hanz C onzelmann, The theology of st. Luke. (A edição alemã original foi
publicada em 1954.) W M a r x s i n , Mark the cvangelist. (Original alemão publicado
em 1956.)
NO PODER DO ESPÍRITO ,' , 48

Os tradicionais procuraram rebater ponto por ponto: os escritores


dos evangelhos não eram teólogos, eram historiadores. Nos círcu­
los tradicionais qualquer discussão sobre a motivação teológica dos
escritores dos evangelhos, e portanto o propósito teológico da nar­
rativa deles, era emudecida. Os evangelhos e Atos eram vistos como
registros históricos, não narrativas que refletiam preocupações teo­
lógicas de autoconsciência.
Essa reação às expressões iniciais e mais radicais da crítica da re­
dação teve um impacto importante, eu diria, sobre a hermenêutica
tradicional. Visto que o caráter teológico dos evangelhos e de Atos
havia sido rejeitado em grande parte, houve pouca razão para pro­
por que a teologia pudesse fluir, em si e de si, das páginas desses
documentos históricos. Esse ponto de vista, aliado ao problema de
como é possível localizar os propósitos teológicos de uma narrati­
va, levou ao princípio restritivo enunciado por Stott e Fee. Novos
ventos, contudo, estavam soprando dentro do evangelicalismo. Es­
tavam destinados a ser ventos de mudança.

0 p r e s e n t e : a f ir m a ç ã o d a im p o r t â n c ia
TEOLÓGICA DA NARRATIVA

Em 1970, o influente livro de I. Howard Marshall, Luke: historian


and theologian [Lucas: historiador e teólogo], apareceu em cena. O
título da obra em si sugere por que ele é tão importante para a nossa
presente discussão. Era um livro escrito por um líder tradicional
estudioso do N ovo Testamento que argumentou ser Lucas ao mes­
e
mo tempo historiador confiável teólogo esclarecido. Marshall pro­
pôs que Lucas escreveu história, história precisa e cuidadosa, não
vazia, mas objetiva, uma história imparcial. Lucas—Atos representa
história com um propósito: história com uma agenda teológica em
mente. O livro de Marshall estabeleceu um divisor de águas no pen­
samento teológico. Embora em 1970 muitos ainda não haviam per­
cebido que as implicações plenas da posição de Marshall, a reavaliação
do caráter teológico da narrativa bíblica, particularmente dos evan­
gelhos e Atos, estavam começando a acontecer.
Ao mesmo tempo, uma nova geração de intelectuais tradicionais
e docentes de seminários, muitos dos quais haviam estudado com
HERMENÊUTICA: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA T 49

Marshall, começou a tomar posse novamente das ferramentas da


crítica da redação e utilizá-las. Esses estudiosos — e.g., G rant
Osborne, Robert Stein, Joel Green, Darrell Bock, Craig Blomberg
— começaram a empregar de maneira sensata os conhecimentos po­
sitivos desse método de análise ao mesmo tempo que descartavam
algumas de suas pressuposições mais radicais. Isso resultou numa
impressionante série de estudos acadêmicos que mostravam o valor
do método e de sua compatibilidade — se empregado devidamente
— com uma elevada estima pelas Escrituras.10 O impacto sobre a
hermenêutica tradicional foi inevitável, senão imediato. Os estudio­
sos tradicionais destacavam os pontos de vista teológicos distinti­
vos dos vários escritores dos evangelhos. Além disso, enfatizavam
não apenas o fato de os escritores dos evangelhos serem realmente
teólogos, mas demonstravam com habilidade considerável como sua
mensagem distintiva podia e devia ser ouvida.
Em resum o, a revolução marcada pela publicação de Luke:
historian and theologian ofereceu uma resposta nova às perguntas
que causaram impacto, conscientemente ou de outra forma, na ge­
ração anterior de estudiosos tradicionais. A resposta exagerada a
Baur, Haenchen, Conzelmann e companhia — de que os escritores
dos evangelhos eram historiadores, não
teólogos — foi modificada.
Ofereceu-se uma resposta mais cautelosa, que se harmonizava mais
precisamente com os dados dos próprios textos bíblicos: os evan­
gelhos apresentam a história exata, mas com um propósito. Com
efeito, eles foram inspirados por preocupações teológicas e contêm
lições teológicas direcionadas a seus leitores. Além do mais, a ques­
tão concernente a como podemos descobrir a mensagem teológica
das narrativas bíblicas começou a receber respostas concretas. As
ferramentas da crítica da redação, auxiliadas por recursos mais
abrangentes de análise literária, foram empregadas com sucesso con­
siderável.

I0V., p. ex., Grant R. O sborne, The resurrection narratives: a redactional study;


Robert H. Stein, Thesynopticproblem: an introduction; Joel G reen, The theology
of the gospel of Luke; Darrell L. Bock, Luke; Craig BlOMBKRG, Interpreting the
parahles.
NO PODER DO ESPÍRITO / ; 50

Esses desenvolvimentos convergiram para produzir o que hoje


é um consenso claro. Agora há o reconhecimento difundido no
mundo evangélico tradicional de que as narrativas bíblicas, par­
ticularmente as dos evangelhos e de Atos, foram moldadas com
preocupações teológicas em mente e, por isso, transmitem uma men­
sagem teológica. A questão crucial não é mais se Lucas e os outros
eram teólogos; a questão central agora é qual é a forma ou o conteú­
do específico da teologia deles.
Essas conclusões produziram uma revolução importante na her­
menêutica tradicional. A posição mais antiga, que ocasionava o or­
gulho teológico de determinar porções didáticas da Escritura, foi
em grande parte, se não universalmente, rejeitada. Um exemplo ex­
celente dessa mudança de pensamento se encontra no novo livro-
texto de hermenêutica produzido por William Klein, Craig Blomberg
e Robert Hubbard intitulado Introduction to biblical interpretation
[Introdução ã interpretação bíblica
]. Os autores, tratando do assun­
to, afirmam:

Já afirmamos que a narrativa quase sempre ensina mais indireta­


mente do que a literatura didática sem se tornar menos normativa.
Por isso, rejeitamos a máxima de Fee e Stuart de que “a menos
que as Escrituras explicitamente nos digam que devemos fazer
algo, o que é meramente narrado ou descrito nunca pode funcio­
nar como norma”.11

Grant Osborne expressa posições semelhantes em seu livro so­


bre hermenêutica. Numa seção intitulada “Narrativa”, ele escreve:
Além disso, eu também me oponho à tendência atual de negar a
dimensão teológica com base em que a narrativa é indireta, e não
direta. Isso ignora as conseqüências da crítica da redação, que de­
monstrou que a narrativa bíblica é de fato teológica no seu cerne
e procura guiar o leitor e a reviver a verdade encapsulada na histó­
ria. A narrativa não é tão direta quanto o material didático, mas
tem um ponto teológico e pretende que o leitor interaja com essa
mensagem. Minha tese é que a narrativa bíblica é em algumas for-

"P. 349-50.
HERMENÊUTICA: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA / / 51

mas até melhor do que o ensino aplicado a situações semelhantes


na vida dos indivíduos.12

Assim, a revolução aconteceu. Ela veio chegando gradativamente,


por um período de muitos anos, quase sem ser percebida: uma revo­
lução silenciosa. Não obstante, as mudanças são reais e não podem
ser deixadas de lado. Por conseguinte, os evangelhos, o livro de Atos
e outras narrativas bíblicas adquiriram nova vida e significado. Por
sua vez, sopram vida nova na teologia evangélica. As implicações
dessa revolução na hermenêutica estão apenas começando a ser sen­
tidas, mas as contribuições potenciais para o nosso entendimento
teológico não devem ser subestimadas.

0 futuro : preservar todo o cân o n

A implicação de mais longo alcance dessa mudança hermenêutica é


que ela abre a possibilidade de produzir, de um modo novo, uma
teologia bíblica por inteiro. No passado, como observei, a teologia
tradicional era uma teologia predominantemente paulina. A atitude
dominante, moldada por uma hermenêutica arcaica e conservada
como relíquia, era que devíamos ir a Paulo para fazer teologia (uma
vez que suas cartas têm caráter didático); os evangelhos e A tos sim­
plesmente fornecem os dados históricos crus para essa reflexão teo­
lógica. Isso inevitavelmente restringiu o cânon para nós e, conquanto
falasse da unidade das Escrituras de um modo um pouco mais fácil,
também nos cegava para a riqueza e amplitude do testemunho bíblico.
A ênfase mais recente no papel da narrativa abriu novas janelas
para nós e nos capacitou a experimentar ventos novos de reflexão
teológica. Neste livro, meu pai e eu gostaríamos de esboçar a nossa
tradição pentecostal a fim de mostrar como a teologia evangélica
tradicional pode ser enriquecida por uma abordagem mais integral
(do seu todo), abordagem essa que dá plena voz aos autores inspira­
dos pelo Espírito para escrever a narrativa bíblica.
Desde o seu começo, o movimento pentecostal tem enfatizado a
narrativa de Lucas—Atos. E evidente que os aspectos distintivos da
teologia pentecostal — principalmente a ênfase no batismo no Es-
n The hermeneutical spiral: a comprebensive introduction to bíblica] interpre-
tation, p. 172.
NO PODER DO ESPÍRITO / ; 52

pírito como experiência distinta da conversão — estão enraizados


em LucasJ—Atos. Sem os escritos de Lucas não haveria nenhuma
teologia pentecostal, porque não conheceriamos o dom pentecos-
tal (A t 1 e 2). Pelo fato de Lucas— A tos ser tão central para a teolo­
gia e a experiência pentecostais, a mudança hermenêutica recente
dentro do mundo evangélico mais amplo teve impacto especial so­
bre os pentecostais. Os pentecostais, quase sempre censurados no
passado por argumentos simphstas de precedentes históricos, en­
traram numa nova era de reflexão teológica criativa. Os estudiosos
pentecostais aproveitaram a oportunidade criada pelo contexto da
nova hermenêutica e levantaram questões importantes a respeito da
natureza da pneumatologia (doutrina do Espírito Santo) de Lucas e
sua relação com a de Paulo. Por sua vez, isso estimulou discussões
dentro do mundo evangélico mais amplo a respeito da natureza de
uma pneumatologia bíbhca de caráter global e como isso pode pro­
vocar impacto na vida da igreja contemporânea.
Atualmente, o debate animado a respeito da natureza da pneuma­
tologia de Lucas e sua importância contemporânea continua.13 Na
verdade, este livro procura contribuir para essa discussão contínua.
A esta altura, contudo, é suficiente observar que as questões cen­
trais do debate agora se concentram na exegese e na formação da
teologia de Lucas. Já se foram os dias em que podíamos discutir se
Lucas devia ser visto como um teólogo importante com uma men­
sagem distintiva. O novo contexto é resultado da revolução silencio­
sa — revolução que tem enfatizado a importância das narrativas
bíblicas e as riquezas do testemunho bíbhco.

C onclusão
A revolução silenciosa com efeito causou impacto significativo nas
atitudes tradicionais em relação a Lucas e Atos e o empreendimento
hermenêutico em geral. Revelou novas questões, novos pontos fru­
tíferos de discussão. Acima de tudo, capacitou-nos a reconhecer a
diversidade maravilhosa que encontramos nas Escrituras e a nos apro­
priar de uma teologia bíbhca mais integral.

13V., p. ex., as recentes respostas de Max Turner à intelectualidade pentecostal:


The H oly Spirit an d spiritual gifts: then and now e Power from on high.
HERMENÊUTICA: A REVOLUÇÃO SILENCIOSA 53

A revolução também desafiou os princípios mais antigos e bem-


estabelecidos de interpretação. Não podemos mais dar prioridade
às porções didáticas das Escrituras como questão de princípio. Não
mais podemos nos ocupar de reflexões teológicas sem dar o lugar
devido a todas as evidências de um autor. Na verdade, estamos ape­
nas começando a avaliar as implicações dessa revolução de longo
alcance. Embora nós, os autores deste livro, pretendamos desenvol­
ver uma linha de pesquisa aberta por estudiosos pentecostais recen­
tes, reconhecemos que muitos acadêmicos de um espectro mais
amplo de tradições contribuíram para essa revolução, e sem sombra
de dúvida continuaremos a explorar suas possibilidades. E nossa es­
perança que a revolução resumida anteriormente venha ajudar a to­
dos a assimilar mais plenamente as riquezas do testemunho bíblico.

P erguntas para estudo

1. Que influências históricas incentivaram os primeiros evangéli­


cos tradicionais a reduzir a importância teológica das porções
narrativas da Bíblia?
2. Os estudiosos tradicionais contemporâneos rejeitaram em gran­
de parte a hermenêutica “restritiva” do passado e destacaram a
importância da narrativa bíblica. Que influências ajudaram a pro­
duzir essa mudança de perspectiva?
3. Por que essa nova apreciação da narrativa bíblica dos estudiosos
tradicionais é especialmente importante para os pentecostais? De
que modo ela cria oportunidades novas para os pentecostais à
medida que procuram articular sua teologia de maneira nova e
relevante?
capítulo • 3

Hermenêutica: a contribuição
inconfundível de Lucas

as duas décadas passadas, o abismo teológico que antes separa­


N va os pentecostais dos outros evangélicos foi parcialmente re­
duzido por uma ponte. Impulsionados pelos escritos acadêmicos de
James Dunn e pelas análises pragmáticas de Peter Wagner no que
diz respeito ao crescimento da igreja pentecostal, os evangélicos tra­
dicionais reexaminaram suas posições teológicas. Os resultados fo ­
ram im pressionantes. O s evangélicos tradicionais que antes
reservavam uma variedade de manifestações do Espírito exclusiva­
mente para o período apostólico, hoje proclamam esses mesmos
dons como bênçãos contemporâneas. Uma “terceira onda” de evan­
gélicos agora celebra com os pentecostais os graciosos dons divinos
de profecia, cura e línguas.
Os pentecostais têm apenas de aplaudir a abertura de nossos ir­
mãos tradicionais para as novas dimensões da obra do Espírito. To­
davia, essa recente aproximação teológica confronta os pentecostais
com um sério desafio. Esse desafio empurra-nos a definir mais cla­
ramente o que significa ser pentecostal. Com efeito, novas pergun­
tas estão sendo levantadas e, à luz dos acontecimentos relatados antes,
elas não podem ser ignoradas: Em que nós, os pentecostais, diferi­
mos de nossos irmãos tradicionais que estão abertos aos dons? Se
liá diferenças importantes em nossa teologia e prática, podemos
apresentar uma base bíblica sólida para as nossas posições diferen­
tes? Está claro para este escritor que as respostas — ou talvez a
ausência delas — que os pentecostais dão a essas perguntas vão in­
fluenciar a configuração do movimento tradicional, bem como a do
movimento pentecostal, nas gerações futuras.
NO PODER 0 0 ESPÍRITO ’ . 56

Este capítulo é escrito com a convicção de que os pentecostais


ainda têm muito com que contribuir, de forma mais ampla, para a
comunidade evangélica. A fenda teológica ainda não foi fechada, pois
uma diferença importante ainda nos separa. O ponto de discórdia
localiza-se na questão relacionada à parte mais importante da teolo­
gia e da herança pentecostais: qual é a natureza do dom pentecostal
(At 2.4)? Para os tradicionais a resposta foi formulada principal­
mente pelo influente livro de James Dunn, Baptism in the Spirit.
Dunn assevera que a concessão do Espírito no pentecostalismo é o
meio pelo qual os discípulos entram numa nova era e experiência de
bênçãos do novo pacto.1
Em outras palavras, para o evangélico tradicional, o batismo no
Espírito é equivalente à conversão. E o que torna uma pessoa verda­
deiramente cristã. Ao contrário, a maioria dos pentecostais insiste
que o Espírito veio sobre os discípulos no Pentecoste não como
fonte da existência do novo pacto, mas como a fonte de poder para
um testemunho eficaz. Assim, os pentecostais em geral definem o
batismo no Espírito como uma experiência (ao menos do ponto de
vista lógico, se não cronológico) distinta da conversão. Essa expe­
riência desencadeia uma nova dimensão do poder do Espírito, é um
revestimento de poder para o serviço.
A diferença esboçada acima não pode simplesmente ser des­
cartada como se fossem jogos semânticos dos teólogos, coisas ori­
ginadas em torres de marfim sem nenhum respaldo na vida da igreja.
Enquanto a expressão “um batismo, muitas plenitudes” pode ser
afirmada por tradicionais e pentecostais igualmente, os nossos en­
tendimentos diferentes sobre a natureza desse batismo (e as pleni­
tudes subseqüentes) causam impacto marcante nos contornos de
nossa fé e prática. Pense nisto: se os tradicionais estão certos, os
pentecostais não podem mais proclamar o revestim ento do Espí­
rito distinto da conversão e acessível a todos os crentes — pelo

'V. p. 38-54. V. tb. G. W. H. Lampe, The H oly Spirit in the writings o f Saint
Luke, em Studies in the Gospels, p. 162; v. Lampe, God as Spirit: the Bampton
lectures, p. 65; F. Büchsel, Der Geist Gottes irn Neuen Testament, p. 234-5; F.
F. Bruce, The H oly Spirit in the Acts o f the Apostles, Int 27, 1973, p. 170-2; F.
D. Brunf.r, Teologia do Espírito Santo.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 57

menos não com a mesma consciência de expectativa. Pois essa ex­


pectativa está arraigada na universalidade da promessa do Pentecos-
te (At 2.8,17,18,38). Ademais, se os evangélicos tradicionais estão
certos, os pentecostais não mais podem sustentar que o propósito
principal do dom pentecostal é conceder poder para a tarefa missio­
nária. Em resumo, o ponto de vista pentecostal sobre o batismo no
Espírito é integral para a nossa consciência contínua de expectativa
e eficácia em missão.
Destarte encontramo-nos, como pentecostais, numa situação
empolgante, apesar de incerta. A maré da terceira onda está entran­
do em nosso meio, desafiando-nos a dar sustentação bíblica convin­
cente para a nossa posição distintiva acerca do batismo no Espírito.
Se aceitarmos o desafio, continuaremos a influenciar a teologia e a
prática da comunidade evangélica mais ampla. Se falharmos, corre­
remos o risco de ser submersos pela onda e perder nossa identidade.
O capítulo seguinte é um esforço de propor como esse desafio
pode ser enfrentado. Vamos argumentar que 1) o reconhecimento
do caráter distintivo da pneumatologia de Lucas é essencial para nós
pentecostais provermos suporte bíblico convincente para nossa po­
sição acerca do batismo no Espírito; 2) a evidência de Atos mostra
o caráter distintivo da pneumatologia de Lucas; e 3) embora os tra­
dicionais se inclinem a rejeitar as descrições da pneumatologia de
Lucas como “distintivas”, com base em certas pressuposições teo­
lógicas e históricas, esse julgamento não é comprovado.

A BASE BÍBLICA PARA A TEOLOGIA


PENTECOSTAL

Se nós pentecostais devemos nos comunicar eficazmente com a co­


munidade evangélica mais ampla, não podemos simplesmente confiar
nas respostas oferecidas pela geração anterior de exegetas pentecos­
tais. Embora os nossos antepassados pentecostais tenham entendi­
do intuitivamente a correlação entre a realidade que experimentaram e
a promessa de Atos 1.8, eles nem sempre articularam a teologia de­
les de maneira inteiramente coerente ou convincente para os outros
crentes comprometidos com a autoridade das Escrituras. Claro que
escrever teologia não foi a principal preocupação deles, embora
NO PODER DO ESPÍRITO ' 58

muitas boas contribuições tenham sido feitas. Todavia, o legado teo­


lógico do passado não é adequado para as exigências do presente.
Esse julgamento se reflete no ensaio apresentado por Roland
Wessels numa reunião da Sociedade de Estudos Pentecostais, em
1990. Wessels relatou algumas dificuldades das tentativas passadas
de distinguir 1) entre “ele [o Espírito] vive com vocês [conversão] e
estará em vocês [batismo no Espírito]”, em João 14.16,17; 2) entre
batismo no corpo de Cristo, no qual o Espírito é o agente (ICo 12.13),
e batismo no Espírito, em que C risto é o agente (Lc 3.16); e 3) entre
receber o Espírito “dentro” (Jo 20.19,20) e ter o Espírito vindo “so­
bre” (At 2.4).2 Esse ensaio representa a percepção que muitos têm.
Na verdade, mais de vinte anos atrás James Dunn assinalou a falha
metodológica característica dessas posições.
A crítica de Dunn tinha como alvo especificamente argumentos
para a seqüência baseada na combinação de João 20.22 com a narra­
tiva de Lucas em Atos, mas é igualmente válida para as posições
esboçadas anteriormente:
O erro comum [...] é tratar o Novo Testamento (e mesmo a Bí­
blia) como um todo homogêneo, de qualquer parte que os textos
de determinado assunto possam ser retirados, e adaptado a uma
estrutura e um sistema que muitas vezes são extrabíblicos.3
De acordo com o consenso dominante entre os estudiosos, Dunn
deu a entender que havia uma abordagem melhor. Devemos
tomar cada autor e livro separadamente e [...] esboçar suas ênfa­
ses [as do autor e as do livro] teológicas específicas. Somente
quando tiver estabelecido um texto no contexto do pensamento
e intenção de seu autor [...] somente então pode o teólogo bíbli­
co sentir-se livre para deixar que o texto interaja com outros tex­
tos de outros livros.
Dunn sustenta que esse método “sempre tende a proporcionar o
quadro mais verdadeiro do pensamento bíblico do que o anterior”.

2“How is the baptism in the H oly Spirit to be distinguished from receiving the
Spirit at conversion?” (Ensaio apresentado no 20.° Encontro Anual da Sociedade
de Estudos Pentecostais, 9 de novembro de 1990.)
3Estas citações e as seguintes são de Dunn, op. cit., p. 39.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 59

Ele está sem dúvida correto. A ironia é que Dunn não aplicou coe­
rentemente seu próprio método. Ele tem sido criticado, e com acer­
to, por ler Lucas— Atos através das lentes da teologia paulina. A
despeito das deficiências de sua própria obra, Dunn prestou um ser­
viço valioso. Desafiou-nos a reconhecer uma verdade importante:
os pentecostais não podem continuar a confiar nos métodos inter-
pretativos do movimento Holiness do século XIX e esperar ser ouvi­
dos no mundo evangélico contemporâneo.4 Ademais, por insistir
que levemos a sério a perspectiva teológica de cada autor bíbhco,
Dunn mostrou uma alternativa positiva.
O desafio metodológico de Dunn foi oportuno, pois ocorriam
desenvolvimentos nos estudos de Lucas que haviam de causar im­
pacto significativo na forma da teologia tradicional e pentecostal.
Como já observamos, a publicação em 1970 do livro de I. Howard
Marshall, Luke: bistorian and theologianmarcou uma mudança im­
portante no pensamento evangélico tradicional. No passado os evan­
gélicos tradicionais enxergaram o livro de A tos como um texto
histórico com pouca importância teológica. Essa perspectiva foi uma
reação ao ceticismo histórico radical que marcou muito as obras
mais antigas que classificavam Lucas como teólogo.5 Lucas foi apre­
sentado tanto como historiador com pouco interesse em teologia
como teólogo com pouco interesse em história. Entretanto, os evan-
géhcos tradicionais começaram lentamente a reconhecer que Lucas
era de fato tanto historiador quanto teólogo: ele escreveu uma nar­
rativa histórica, mas com um propósito teológico em mente. O tí­
tulo do livro de Marshall reflete essa mudança im portante na
concepção evangélica tradicional.
Essas mudanças nas atitudes dos tradicionais com relação a Lucas
marcaram o início de uma era empolgante para os pentecostais. O
estudo da obra em dois volumes de Lucas recebeu novo ímpeto da
nova consciência de que ele tem de fato uma contribuição teológica

‘Tanto Dunn (op. cit., p. 39) quanto Wessels (How is the baptism, 1-23, n. 69)
observam a influência que o movimento Holiness exerceu sobre os métodos pen­
tecostais de interpretação.
5Ver o capítulo anterior e a descrição do ceticismo histórico no livro de Ernst
Haenchen, The Acts ofthe Apostles.
NO PODER DO ESPÍRrrO 60

a fazer para a igreja. Em conseqüência, as perguntas a respeito do


caráter da teologia de Lucas receberam novo destaque nos últimos
anos. Isso é particularmente importante para os pentecostais, que
recorrem a Lucas—Atos para embasar sua teologia distintiva. A nova
ênfase na teologia de Lucas, aliada à aplicação rigorosa do método
interpretativo definido por Dunn, criou um clima fértil para o pen-
tecostal fazer teologia. Os pentecostais tinham então (e continuam
tendo) uma oportunidade singular de articular uma teologia bíbhca
do Espírito persuasiva tanto para os tradicionais como para os pen­
tecostais.
As “primícias” desse ambiente teológico fértil vieram da pena de
Roger Stronstad. Em sua obra germinal, The charismatic theology of
St.Luke [A teologia carismática de Lucas], Stronstad argumenta que
Lucas era tanto teólogo quanto historiador e, portanto, Lucas— Atos
é “uma fonte legítima para a doutrina do Espírito Santo”.6 Além
disso, Stronstad argumentou que Lucas era um teólogo por seus
próprios méritos e sua perspectiva acerca do Espírito era diferente
— embora complementar — da de Paulo.7 Diferentemente de Pau­
lo, que quase sempre fala do aspecto soteriológico da obra do Espí­
rito, Lucas retrata com coerência o Espírito como a fonte de poder
para o serviço. Logo, Stronstad conclui, “a teologia de Lucas acerca
do Espírito é carismática, não soteriológica”.8
A tese de Stronstad representa um desafio direto aos pontos de
vista evangélicos tradicionais sobre o Espírito. Se Stronstad está cer­
to, o aspecto carismático do Espírito, do qual Lucas dá testemunho,
deve ser posto ao lado do aspecto soteriológico, tão preeminente
nos escritos de Paulo. Pois uma teologia do Espírito verdadeiramente
bíbhca deve fazer justiça à pneumatologia de cada
autor bíblico.
Mais especificamente, enquadrando a narrativa do Pentecoste na
moldura da teologia do Espírito distintiva de Lucas, Stronstad de­
6P. 11.
7Stronstad (ibid., p.ll) cita Marshall (Luke: historian and theologian, p. 75)
com aprovação: “Lucas tem direito a suas próprias idéias, e o fato de serem dife­
rentes em alguns aspectos das de Paulo não deve pesar contra. Ao contrário, ele é
teólogo por seus próprios méritos e deve ser tratado como tal”.
“S tronstad , ibid., p. 12.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 61

monstra que o Espírito veio sobre os discípulos no Pentecoste não


como a fonte da existência da nova aliança, mas como a fonte de
poder para o testemunho eficaz. Visto que o dom pentecostal em
seu caráter é carismático, o não soteriológico, ele deve ser distinto
do dom do Espírito que Paulo associa com a conversão-iniciação.
Stronstad fornece desse modo um argumento forte para a doutrina
da subseqüência — a saber, que o batismo no Espírito (no sentido
pentecostal e de Lucas) é logicamente distinto da conversão. Essa
distinção é um reflexo da teologia do Espírito característica de Lucas.
A importância real da tese de Stronstad, ao menos da perspectiva
pentecostal, pode-se encontrar em sua alegação de que a teologia de
Lucas acerca do Espírito é diferente
da de Paulo. A maioria dos tra­
dicionais sustenta que Lucas, de maneira semelhante a Paulo, relacio­
na o dom do Espírito à salvação. Ele simplesmente resolve enfatizar
o papel do Espírito em preparar a igreja para sua missão. Essa abor­
dagem da “mesma teologia, mas ênfase diferente” mina a base bíbli­
ca da teologia pentecostal. Permite que os tradicionais definam o
dom do Espírito recebido no Pentecoste (em termos paulinos) como
o elemento principal da conversão-iniciação, o meio pelo qual os
discípulos experimentam as bênçãos da nova aliança (i.e., purifica­
ção, justificação, transformação moral), embora reconheçam que a
capacitação divina é preeminente na narrativa de Lucas. Stronstad
desafia essa abordagem argumentando que Lucas vê o dom do Espí­
ritoexclusivamente em termos carismáticos. Sua narrativa reflete mais
do que uma ênfase especial, dá testemunho de uma teologia distin­
tiva do Espírito. Conseqüentemente, o caráter carismático do dom
pentecostal não pode ser questionado, e a contribuição singular de
Lucas (e pentecostal) à pneumatologia bíblica deve receber o que
lhe é devido.
Stronstad sem dúvida será criticado por alguns por deduzir sua
própria experiência pentecostal de Lucas— Atos. Todavia, ele não
foi o primeiro a enfatizar o caráter distintivo da teologia do Espíri­
to conforme Lucas. Mais de um século atrás, Herman Gunkel che­
gou a conclusões semelhantes e foi seguido nos últimos anos por
E. Schweizer, David Hill e Gonzalo Haya-Prats, todos que escreve­
ram obras que salientam o caráter distintivo da pneumatologia de
NO PODER DO ESPÍRITO ■ 62

Lucas.9 Além disso, não é possível que a experiência pentecostal de


Stronstad o tenha realmente capacitado a ler Lucas—Atos com mais
cuidado? A análise de Lucas— Atos revela que este é o caso.
A teologia do Espírito conforme Lucas é de fato diferente da de
Paulo. Lucas não somente deixa de se referir aos aspectos soterioló-
gicos da obra do Espírito, mas também sua narrativa pressupõe uma
pneumatologia que não inclui esse aspecto (e.g., Lc 11.13; A t 8.4-
25; 18.24— 19.7). Naturalmente um exame detalhado da obra em
dois volumes de Lucas nos fará defender essa afirmação. Os capítu­
los 5 e 6 deste livro procuram fornecer uma exegese detalhada das
passagens relevantes.10 Por enquanto, é possível argumentarmos con­
centrando-nos numa das passagens que dão testemunho da pers­
pectiva distinta de Lucas: A tos 8.4-25.

Evidências de A tos 8.4-25


Atos 8.4-25 proporciona um verdadeiro problema para os que ale­
gam que para Lucas, assim como para Paulo, a recepção do Espírito
é elemento necessário na iniciação cristã. A narrativa indica que os
samaritanos creram na pregação de Filipe e, portanto, foram batiza­
dos (v. 12), todavia não receberam o Espírito senão algum tempo
depois (v. 15-17). Visto que Lucas considerava os samaritanos cris­
tãos (i.e., convertidos) antes de receberem o Espírito, dificilmente
pode-se sustentar que ele entendia o Espírito como “algo que faz de
um homem um cristão”.11
Os que defendem um elo necessário entre a recepção do Espírito
e o batismo/iniciação cristã têm tentado reduzir a força desse texto

’ H. G unkel, The influence of the H oly Spirit (original em alemão, 1888); E.


S chweiser, nvevpa, tdnt, 6:389-455; D. H ill, Greek w ords andHehrew meanings;
G. H aya-P rats, EEprit force de Téglise. E lamentável que a posição de Schweitzer
tenha sido obscurecida por uma tradução ruim. A declaração sumária em inglês
[aqui em português] inclui incorretamente uma negativa: “Lucas desse modo com­
partilha com o judaísmo a idéia de que o Espírito é essencialmente o Espírito de
profecia. Isto não o impede de atribuir diretamente ao 7tveu|ia tanto o xaptopocta
tapaTeov de um lado e, de outro, os efeitos éticos como a vida comum da comuni­
dade primitiva” (7tveupa, tdnt, 6:409). Compare essa tradução com o original
alemão (jtveupa, twnt, 6:407).
10Y tb. Robert R M enzies, E m poweredforwitness-. the Spirit in Luke-Acts.
"D unn, op. cit., 93.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVa DE LUCAS 63

de várias maneiras. Alguns procuram diminuir a tensão descrevendo o


curso dos eventos narrados em Atos 8.4-25 como uma exceção singu­
lar, necessária para um ponto de transição novo e decisivo na missão
da igreja: o Espírito foi retido até a saída dos apóstolos de Jerusalém
a fim de demonstrar aos samaritanos “que eles haviam-se tornado
membros da igreja, em comunhão com as ‘colunas’ originais”.12
Esta posição enfrenta uma série de objeções. 1) Há pouca razão
para presumir que esse exemplo represente uma exceção singular,
quer historicamente, quer para Lucas. Nada no texto em si dá apoio
a essa idéia, e Lucas regularmente separa o dom do Espírito do rito
batismal (At 2.4; 8.15,16; 9.17,18; 10.44,45).13 2) Essa explicação é
muito improvável. Ou seja, é improvável que os samaritanos neces­
sitassem de alguma garantia posterior de sua incorporação na igreja
após o batismo. Em semelhantes momentos de transição, a certeza
da incorporação na igreja (bem como a própria realidade) não de­
pende do contato com os representantes de Jerusalém (At 8.26,27;
9.17,18; 18.24,25) nem da concessão do Espírito aos recém-conver-
tidos por eles (At 11.22-24).14
Mesmo que essa explicação de Atos 8.4-25 seja aceita, o proble­
ma colocado pelo texto não é erradicado. Pois por mais excepcional
que o fato possa ter sido (para a história e para Lucas), ainda temos
de explicar a interpretação cuidadosamente elaborada de Lucas des­
se acontecimento. Na verdade, a narrativa de Lucas revela uma pneu-

,2G. W H. Lampe, The seal of the Spirit, p. 70. Idéias semelhantes são sustenta­
das por M. A. C hevallier, Soufflé de Dieu, p. 201-2. Bruner, op. cit.; D. Ewert,
The Holy Spirit in the New Testament, p. 119-20; M. G rekn, I believe in the Holy
Spirit, p. 138-9; I. H. Marshall, TheActs ofthe Apostles, p. 153,157; R. F. 0 ’Tooi.k,
“Christian baptism in Luke”, RevRel 39, 1980, 861-2.
13S. Brown, “‘Water-baptism’ and ‘Spirit-baptism’ in Luke-Acts”, atr 59, 1977,
p. 143-4; J. D. D errett, “Simon Magus (At 8.9-24)”, znw 73, 1982, p. 53. As
respostas de Haenchen (“os poucos casos em Atos em que o recebimento do F.spí-
rito é separado do batismo são exceções justificadas”, Acts, 184), J. H. F,. H ui.i.
(“exceções somente provam a regra”, The Holy Spirit in the Acts of the Apostles, p.
119, e Bruner ( “ o Espírito é temporariamente suspenso do batismo aqui ‘só’ e
precisamente para ensinar [...] que a suspensão não pode ocorrer”, op. cit., 178)
dificilmente são convincentes.
14V. D unn, op. cit., p. 62-3, e G.R. B easuíy-M urray, Baptism in the New Testa­
ment, p. 117-8. Lampe também reconhece que a hipótese esboçada acima não justifi­
ca adequadamente toda as evidências e, portanto, modifica a sua tese (Seal, p. 70).
NO PODER DO ESPÍRITO ,< 64

matologia decididamente diferente da de Paulo e da de João, ne­


nhum dos quais podendo conceber a idéia de existirem crentes bati­
zados sem o Espírito.15 Plenamente cônscios de que as implicações
para a pneumatologia de Lucas surgidas da posição delineada acima
são incompatíveis com suas respectivas tentativas de ligar a recep­
ção do Espírito com a conversão-iniciação (Dunn) e o batismo
(Beasley-Murray) em Lucas— Atos, Dunn e Beasley-Murray ofere­
cem interpretações alternativas de Atos 8.4-25.
Beasley-Murray argumenta que Lucas “via esses cristãos não como
sem o Espírito, mas sem os dons espirituais que caracterizavam a
vida comum das comunidades cristãs”.16
Segundo Beasley-Murray, a “grande alegria” (polle chara
) de Atos
8.8 implica que os samaritanos receberam o Espírito quando foram
batizados e o emprego de “Espírito Santo” (pneuma hagion)
sem o
artigo definido em Atos 8.15,16 dá a entender que os apóstolos trans­
mitiram dons espirituais, não o Espírito propriamente. Nenhum
desses argumentos se recomendam. A “grande alegria” de A tos 8.8
resulta dos exorcismos e das curas realizadas por Filipe, não implica
a posse do Espírito.17 Nem tampouco se pode fazer distinção nítida
entre o Espírito Santo com o artigo e sem o artigo; são títulos equi­
valentes.18 Mas a objeção decisiva contra a tese de Beasley-Murray é

15J. COPPENS, L’imposition des mains dans les Actes des Apôtres em LesActes
des Apôtres, org. J. K remer, p. 430; H ull, Acts, p. 107-8; A. W eiser, Die
Apostelgeschichte, 1:203; M. T urner, Luke and the Spirit (tese de Ph.D., Universi-
ty of Cambridge, 1980), p. 169; Lampe, Seal, 53, 65, 70-8.
xkBaptism, p. 119; v. p. 118-20 para sua argumentação. Idéias semelhantes são
defendidas por J. E. L. O ulton, The H oly Spirit, baptism, and laying on o f hands
in Acts, ExpTim 66,1955, p. 236-40; M. G ougers, Esprit des commencements et
Esprit des prolongements dans les Actes: note sur la “Pentecôte des samaritains”
(Act., VIII, 5-25), RB 93, 1986, p. 376-85; e muitos outros da tradição reformada
que seguem a liderança de João C alvino, The Acts of the Apostles 1-13, p. 235-6.
17T urner, op. cit., p. 168. Turner, citando como exemplos Lucas 13.17 e 19.37,
observa que "essa alegria é freqüentemente mencionada como resposta aos vários
atos salvadores de Deus ao longo de Lucas—Atos".
18V. D unn, op. cit., p. 56, 68-70; T urner, Luke and the Spirit, p. 167-8. Como
diz habilmente Dunn: “A fórmula verdadeira não é Ttvevpa ayiov = charismata
(somente), mas jtVEupa ayio\ = Santo Espírito + charismata, ou mais precisa­
mente, o Espírito Santo vindo e manifestando sua presença pelos dons [charisma-
ta ]", p. 56.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 65

a afirmação explícita de Lucas no versículo 16: “... pois o Espírito


ainda não havia descido sobre nenhum deles”.19
Dunn procura estabelecer que os samaritanos não eram realmen­
te cristãos antes de receberem o Espírito. Sustenta que a “resposta
inicial e o comprometimento deles eram deficientes” e Lucas “pre­
tendia que seus leitores soubessem disso”.20 Vários argumentos são
produzidos em apoio a essa alegação, mas os mais relevantes são: 1) a
narrativa que Lucas faz de Filipe simplesmente pregando “o C risto”
(ton Christon, v. 5) e “o Reino de Deus” (tes basileias tou theou,
v. 12)
dá a entender que os samaritanos compreenderam a mensagem de
Filipe no que se referia a suas próprias expectativas nacionalistas
sobre o Messias e o reino que ele estava para trazer — expectativas
já “ardentemente despertadas” pelo mago Simão. Porque a primeira
expressão “é sempre usada em Atos sobre o Messias da expectativa
pré-cristã” e a última, quando pregada a não-cristãos, sempre se re­
fere às “expectativas judaicas do Reino”.21 2) Uma vez que “crer”
(pisteuo ) com dativo normalmente significa assentimento intelec­
tual, o emprego que Lucas faz da expressão “eles creram em Filipe”
em vez de “eles creram no ou\eis epi]
Senhor” (v. 12) dá a entender
que a resposta samaritana foi simplesmente um assentimento do
intelecto, não o reflexo de fé genuína.
A hipótese de Dunn foi submetida a crítica intensa e deve ser
rejeitada.22 Na verdade, nenhum dos argumentos expostos acima
pode ser sustentado. 1) Não há nada no relato de Lucas que indique
que a mensagem de Filipe tenha sido deficiente ou entendida incor-

i9D unn, op. cit., p. 56; M arshall, Acts, p. 157; F. Bovon, L uc le théologien, p.
247, 249-50, 252.
20D unn , op. cit., p. 63; para sua argum entação v. p. 63-8.
21Citações ibid., p. 64.
22V. p. ex., as críticas de E. A. R ussell, “They believed Philip preaching” (Acts
8.12), IBS 1, 1979, p. 169-76; Turner, op. cit., p. 163-7; H. F.rvin, Conversion-
initiation and the baptism in the H oly Spirit, p. 25-40; M arshall, Acts, p. 156;
ewert, H oly Spirit, p. 118-9; H. D. H unter, Spirit-baptism: a pentecostal alterna-
tive, p. 83-4; K. G iles, I s Luke an exponent of “early protestantism”? Church
order in the lukan writings (Part 1), E v Q 54, 1982, p. 197; 0 ’T ooi.K, Christian
baptism, p. 861; G reen, op. cit., p. 138; D. C arson, Showing the Spirit: a theological
exposition of lCorinthians 12— 14, p. 144; W R ussei.l, The anoiting with the
Holy Spirit in Luke-A cts, T J, 7, 1986, p. 60-1; Stkondstad, Charismatic theology,
p. 64-5.
NO PODER DO ESPÍRITO 66

retamente. Ao contrário, Filipe é apresentado como um do grupo


m encion ad o em A to s 8.4 que saiu “p regan do a p a la v ra ”
(euangelizomenoi ton logon). Visto que “a palavra” (ton logon)
in­
corpora o conteúdo do querigma (cf. 2.41; 6.2; 8.14)23, fica evidente
que Lucas entendeu a pregação de Filipe, descrita de modos dife­
rentes (v. 5,12), como “querigmática no pleno sentido”.24
Além disso, não há nada nas expressões “ [ele] ali lhes anunciava
o C risto” (v. 5) e “lhes pregou as boas novas do Reino de Deus e do
nome de Jesus C risto” (v. 12) que afirme que os samaritanos enten­
deram incorretamente a mensagem de Filipe. A expressão “o C ris­
to” (ton Christon ) sozinha aparece com freqüência na proclamação
cristã de Atos e com referência aos elementos centrais do querigma:
a morte de Cristo (e.g., 3.18) e sua ressurreição (e.g., 2.31 ).25 No
versículo 5, como em outros lugares em A tos (9.22; 17.3; 26.23;
cf. 18.5,28), serve como um sumário do querigma.26 Semelhante­
mente, a expressão “o Reino de Deus e o nome de Jesus Cristo” ra­
ramente pode significar menos, visto que corresponde ao conteúdo
da pregação de Paulo em Roma (28.31).27 Se os samaritanos tivessem
entendido Filipe erroneamente, deveriamos esperar que os apósto­
los corrigissem a deficiência com ensino adicional (cf. 18.26), toda­
via qualquer referência a tal atividade é patentemente ausente.28
2) A tentativa de Dunn de dar importância ao fato de o objeto do
verbo “creram” ser a pregação de Filipe em vez de “Senhor” ou “Deus”
é desautorizada. No relato da conversão de Lídia, em 16.14, por exem­
plo, Lucas equipara crer na mensagem de um evangelista com crer em
Deus.29 Além do mais, Lucas usa o verbo “crer” com dativo em outro
lugar para designar a fé genuína em Deus (16.34; 1 8.8).30 Também não
faz distinção entre “crer” com dativo (cf. 18.8) e com as preposições

23J. Roloff, Die Apostelgeschicbte, p. 133.


“ R ussell, op. cit., p. 170.
“ Ibid.
“ Roloff, op. cit., p. 133; T urner, op. cit., p. 163.
“ R usseli, op. cit., p. 170. G. Schneider observa que essa frase é uma descrição
de Lucas do conteúdo da proclamação (Die Apostelgescbichte, vol. 1, p. 490).
“M arshall, Acts, p. 158; T urner, Luke and the Spirit, p. 164.
“T urner, op. cit., p. 165 (para o emprego depisteuõ num contexto semelhante
v. At 4.4).
30Ervin, op. cit., p. 31; M arshall, op. cit., p. 156.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 67

eis (cf. 14.23) ou epi


(cf. 9.42), construções que aparecem com “Se­
nhor” em descrições de fé genuína.31 A expressão “deu unânime aten­
ção ao que ele dizia” (v. 6) na verdade refere-se a uma fé genuína,
confirmada pelo relato que chegou aos apóstolos em Jerusalém:
“Samaria havia aceitado a palavra de Deus” (8.14). Relato semelhan­
te anuncia a conversão de Cornélio e sua casa (11.1; cf. 2.41; 17.11).
Visto que este último não se questiona, “não devemos, portanto,
encontrar razão alguma para questionar o primeiro”.32
Ficou evidente que a separação do recebimento do Espírito da
iniciação cristã no batismo, em Atos 8.4-25, não pode ser desconsi­
derada como exceção singular. Essa posição é baseada numa recons­
trução hipotética do acontecim ento e ignora a importância da
narrativa existente para a pneumatologia de Lucas. Não se pode eli­
minar a contradição postulando uma “concessão” silenciosa do Es­
pírito no batismo, nem contestar a fé dos samaritanos: a evidência
fala decisivamente contra essas duas idéias. Atos 8.4-25 coloca um
problema insolúvel para os que sustentam que Lucas, semelhante­
mente a Paulo, estabelece um elo necessário entre a iniciação cristã
do batismo e o dom do Espírito.
Esse problema é resolvido, contudo, quando reconhecemos o
caráter distintivo da pneumatologia de Lucas. Lucas pode falar de
crentes batizados sem o Espírito porque sua teologia do Espírito
não é a mesma que a de Paulo. Ela é carismática, não soteriológica.
Lucas evidentemente enxergou o dom do Espírito recebido pelos
samaritanos em Atos 8.17 como do mesmo caráter do dom do Pen-
tecoste, isto é, uma dotação profética concedida aos convertidos,
que os capacitou a participar efetivamente na missão da igreja.

Uma resposta às objeções dos tradicionais


A despeito das evidências do próprio punho de Lucas, duas suposi­
ções comumente sustentadas têm coibido muitos evangélicos tradi­
cionais de reconhecer o caráter distinto da pneumatologia de Lucas.

31R uSSELL, op. cit., p. 173. Russell também assinala que pisteuõ é usado em
relação às Escrituras com ambos os dativos simples (At 2 4 .14; 26 e 27) e a prepo­
sição epi (Lc 24.45).
32G ilks, Church order (Part 1), p. 173. V. tb. T urnkr, op. cit., p. 165.
NO PODER DO ESPÍRITO : ,/ 68

A primeira suposição está associada com a inspiração das Escritu­


ras, a segunda, nasce da convicção sustentada pela maioria dos tra­
dicionais que Lucas viajava com Paulo. Vamos tratar da primeira
objeção teológica e, em seguida, da objeção histórica.

A pneumatologia distintiva e a inspiração das Escrituras

Em geral supõe-se que, uma vez que o Espírito Santo inspirou cada
um dos autores do N ovo Testamento, eles todos devem falar com
uma só voz. Isso quer dizer que cada autor bíblico deve partilhar da
mesma perspectiva teológica. Desse modo, falar da pneumatologia
distintiva de Lucas é questionar o caráter divino e normativo das
Escrituras.
Uma visão evangéhca tradicional ou conservadora das Escrituras
exige essa postura? Em seu útil artigo “An evangelical approach to
‘theological criticism”’ [“Uma abordagem tradicional da ‘crítica teo­
lógica”’], I. Howard Marshall assinala que uma doutrina conserva­
dora da Bíblia presume que as “Escrituras com o um todo se
harmonizem”.33 Mas observa que essa suposição não elimina as di­
ferenças teológicas entre autores bíblicos. A o contrário, dá a enten­
der que as diferenças existentes são “diferenças harmoniosas, não
contradições irreconciliáveis”.34 Portanto, propomos que uma visão
elevada das Escrituras exija não que Lucas e Paulo tenham o mesmo
ponto de vista pneumatológico, mas que a pneumatologia própria
de Lucas seja, em última análise, conciliável com a de Paulo e que
ambas as perspectivas possam ser vistas como contribuição para o
processo de desenvolvimento harmonioso.
É imperativo observar que quando falamos da pneumatologia tí­
pica de Lucas não estamos asseverando que a perspectiva dele seja
inconciliável com a de Paulo.35 Ao contrário, queremos dizer que as

nThem 13, 1988, p. 81.


34Ibid„ p. 83.
35Essa posição também não é defendida por Stronstad, não obstante a infeliz
deturpação de D. A. C arson da posição de Stronstad (Showingthe Spirit, p. 151)
tenha nutrido essa noção enganosa. Se Carson houvesse lido mais cuidadosamente
a obra de Stronstad, não teria afirmado que Stronstad caracteriza a teologia de
Lucas e a de Paulo como contraditórias. Além do mais, não poderia ter menospre­
zado com eloqüência a tese de Stronstad como se ela gerasse “mais problemas do
que resolvesse” (p. 151).
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 69

pneumatologias de Lucas e de Paulo são diferentes mas compatíveis


e as diferenças não devem ser obscurecidas, pois ambas as perspec­
tivas nos oferecem discernimentos valiosos para a obra dinâmica do
Espírito Santo. A visão de Paulo é nitidamente mais desenvolvida,
pois ele enxerga a riqueza plena da obra do Espírito. Ele nos ajuda a
entender que o Espírito é a fonte de purificação (Rm 15.16; IC o
6.11), retidão (Rm 2.29; 8.1-17; 14.17; G l 5.5, 16-26) e comunhão
íntima do cristão (Rm 8.14-17; Gl 4.6) com Deus, assim como a
fonte de poder para as missões (Rm 15.18,19; Fp 1.18,19). Paulo
atenta tanto para os aspectos soteriológicos quanto para os carismá­
ticos da obra do Espírito.
A perspectiva de Lucas, pelo contrário, é menos desenvolvida e
mais limitada. Ele dá testemunho somente do aspecto carismático
da obra do Espírito, e isso nos dá um vislumbre de apenas uma parte
da visão mais plena de Paulo. Não obstante, da mesma forma que
Paulo, Lucas tem uma contribuição importante a fazer. Ele nos con­
voca a reconhecer que a igreja, por causa do recebimento do dom
pentecostal, é uma comunidade profética capacitada para a tarefa
missionária. Em suma, as perspectivas carismática e teológica de Lucas
e Paulo, respectivamente, não são apenas compatíveis, mas também
complementares. Ambas representam contribuições importantes
para uma teologia bíblica do Espírito harmoniosa e integral.
Isso nos leva a outra observação importante: se as diferenças en­
tre as perspectivas de Lucas e Paulo não forem reconhecidas, a ri­
queza plena do testemunho bíblico não poderá ser assimilada. Eis
por que é trágico quando, em nome da inspiração bíblica, repudia-se
a diversidade teológica legítima dentro do cânon. Devemos exami­
nar os textos bíblicos e ser sensíveis à diversidade teológica existen­
te, pois a harmonização, quando impingida ao texto, cobra um alto
preço. No caso de Lucas e Paulo, esse preço é a sustentação bíblica
para uma posição pentecostal sobre o batismo no Espírito.

A interação de Lucas com Paulo

Os tradicionais em geral identificam Lucas como alguém que viajava


com Paulo. Se for esse o caso, é compreensível que alguns se inclinem
a questionar se a pneumatologia de Lucas pode ser diferente da de
NO PODER DO ESPÍRITO 70

Paulo. Teria sido possível para Lucas permanecer sem ser influenci­
ado pela perspectiva soteriológica paulina acerca do Espírito?36
Afirmamos que um exame mais completo de Lucas—Atos revela
que foi exatamente isso que ocorreu. Diversos fatores indicam que
essa conclusão não nos deve surpreender embora Lucas, como com­
panheiro de viagem de Paulo, provavelmente tenha passado tempo
considerável com o apóstolo. 1) Em geral reconhece-se que Lucas
não estava familiarizado com nenhuma das cartas de Paulo,37 de for­
ma que o contato de Lucas com a teologia de Paulo talvez tenha-se
limitado às conversas pessoais ou fontes secundárias (orais ou es­
critas). E provável que Lucas não conhecesse as cartas de Paulo por­
que elas não foram amplamente disponíveis ou reconhecidas em
setores não-paulinos da igreja. Por isso, o ponto de vista de Paulo
não havia ainda influenciado significativamente esses elementos não-
paulinos e mais amplos da igreja primitiva.
2) Visto que outros aspectos da teologia de Paulo não influencia­
ram Lucas de forma relevante, nossa sugestão é muito mais aceitá-

5íHá uma pergunta prévia: A perspectiva de Paulo sobre o Espírito foi influen­
ciada pela tradição cristã pré-paulina (hinos, formulações litúrgica etc.)? Em geral
se supõe que o aspecto soteriológico da obra do Espírito, tão preeminente nos
escritos de Paulo, era universalmente reconhecido e admitido na igreja primitiva.
Desse modo, muitos estudiosos sustentam que a pneumatologia de Paulo foi mol­
dada pela tradição pré-paulina e que a perspectiva de Lucas também deve ter sido
influenciada por tradições semelhantes. Em meu livro The development of early
christian pneumatology with special reference to Luke-Acts, tentei mostrar que essa
suposição é errônea por demonstrar que a tradição cristã tomada por Paulo não
atribui funções soteriológicas ao Espírito. Argumento que Paulo foi o primeiro
cristão a atribuir funções soteriológicas ao Espírito e que este elemento original da
pneumatologia de Paulo não influenciou setores mais amplos (não-paulinos) da
igreja primitiva senão depois dos escritos de Lucas—Atos.
37M. H engf.l, Acts and the history of earliest christianity, p. 66-7; J. C. 0 ’N eill,
The theology of Acts in its historical setting, p. 135; C.K. Barrett, Acts and the
pauline corpus, Exp-Tím 88, 1976, p. 2-5; R. M addox, The purpose of Luke-Acts,
p. 68: “Hoje em geral se reconhece que Lucas não conhecia as cartas paulinas”. A.
Lindemann, contudo, afirma que Lucas conhecia um pouco das cartas de Paulo
(Rm, 2Co e, talvez, Gl), mas, como Mateus e Marcos, não foi significativamente
influenciado pela teologia de Paulo (Paulus im ãltesten Christentum, p. 171-3).
Naturalmente, Paulo menciona Lucas em três de suas cartas (Cl 4.14; 2Tm 4.11;
Fm 24), todas provavelmente escritas de Roma. Conquanto isso indique que Lucas
sabia que Paulo escrevera essas cartas, não indica que Lucas as tenha lido. E, visto
que Lucas— Atos não revela nenhum contato com as cartas (citações, alusões etc.),
é improvável que Lucas as tivesse lido.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 71

vel. Um exemplo da independência teológica de Lucas em relação a


Paulo (i.e., que ele não imita Paulo como um servo) pode ser encon­
trado na base lógica para a salvação. Embora Lucas enfatize que a
salvação se encontra em Jesus porque ele é Senhor e Messias, não
desdobra, como Paulo, as implicações plenas da cruz como o meio
de salvação.38 Novamente vemos que as perspectivas de Lucas e Paulo
complementam uma à outra: juntas elas nos conduzem a um enten­
dimento mais profundo e mais pleno da verdade.
3) As sínteses que Lucas faz das pregações de Paulo — geralmen­
te vistas como representações precisas do evangelho de Paulo por aque­
les que alegam que Lucas viajava com o apóstolo — não contêm
nenhum traço da pneumatologia soteriológica paulina. Isso indica
que se, como é mais provavelmente o caso, Lucas ouviu Paulo pre­
gar ou debateu com ele e daí chegou a um entendimento aprimora­
do do seu evangelho, é provável que tenha feito isso sem concordar
com a perspectiva mais plena da pneumatologia de Paulo.39
Esses pontos são apresentados como desafio para que se deixe o
texto de Lucas—Atos falar por si mesmo. O que quer que venha­
mos a pensar desses pontos específicos, um fato é inegável: as supo­
sições com respeito à extensão em que Lucas foi influenciado por
Paulo devem ser julgadas à luz das evidências disponíveis, não sobre
especulações do que podería ter sido.

C onclusão
Em 1918, Roland Allen escreveu estas palavras reveladoras a uma
igreja que havia perdido a visão da natureza missiológica e do pro­
pósito do dom pentecostal:

38M arshall, Luke: historian and theologian, p. 175: “ [Lucas] demonstra mui­
to claramente que a salvação é concedida por Jesus em virtude de sua posição
como Senhor e Messias. O que falta é um entendimento pleno da importância da
cruz como meio de salvação”.
39Uma vez que os escritos joaninos se originam num ambiente geográfico em que
Paulo está ativo (Efeso) e numa era consideravelmente posterior aos escritos Lucas—
Atos, temos razão de presumir que os elementos soteriológicos da pneumatologia de
João refletem a influência paulina. Devido às semelhanças das perspectivas teológicas
de Paulo ejoão (e . g o Espírito como o fator controlador da nova vida), U- Schnelli;
argumenta que a tradição paulina alcançou a escola de João por meio da tradição oral
e que a transmissão da tradição reflete o ambiente geográfico dominante, provavel­
mente Éfeso (Paulus und Johannes, E v T 47, p. 212-28).
NO PODER DO ESPÍRITO / / 72

Em geral reclamamos de que o povo cristão local tem pouco zelo


pela propagação do evangelho. Como poderia ser diferente se se
lhe ensina que o Espírito é dado, se se lhe ensina a reconhecê-lo
em sua própria alma, quase totalmente como o santificador, o
revelador da verdade, o fortalecedor e, na igreja, como o
organizador e o diretor das deliberações, ao passo que não se lhe
ensina nada dele [o Espírito] como o espírito de amor redentor,
ativo no cristão em relação aos outros, que move a alma de cada
indivíduo sobre o qual ele [o Espírito] vem e a igreja em que [o
Espírito] habita para desejar trazer todos os
homens de toda par­
te a Deus, em Jesus Cristo, e a trabalhar por isso?40

Os pentecostais hoje têm uma oportunidade sem precedentes de


incentivar a comunidade evangélica mais ampla a reconhecer o Es­
pírito do Pentecoste como o Espírito “ativo neles em relação aos
outros”. Se quisermos tirar o máximo dessa oportunidade, devemos
salientar o caráter distintivo da pneumatologia de Lucas e trabalhar
em direção a uma teologia bíblica integral do Espírito que faça jus­
tiça a essa perspectiva. Essa teologia será de natureza pentecostal.
Nas páginas seguintes, procuraremos demonstrar com que essa teolo­
gia poderia parecer. Como introdução a esse empreendimento, argu­
mentamos que a evidência de Atos 8.4-25 dá suporte à tese de que a
pneumatologia de Lucas é diferente da de Paulo e é ao mesmo tempo
coerente com a alta estima pela Escritura e historicamente aceitável.

Perguntas para estudo


1. A proximidade teológica dos evangélicos não-pentecostais, es­
pecialmente os da terceira onda, com os pentecostais apresenta
novos desafios para estes? Quais são esses desafios?
2. De acordo com o autor, o reconhecimento do caráter peculiar da
pneumatologia de Lucas fornece fundamento importante para a
teologia pentecostal. Por quê?

40The revelation of the Holy Spirit in the Acts of the Apostles, p. 167.
HERMENÊUTICA: A CONTRIBUIÇÃO INCONFUNDÍVEL DE LUCAS 73

3. O autor propõe que a pneumatologia de Lucas é diferente da de


Paulo, porém complementar. Como devemos avaliar essa alegação?
4. A alta estima pelas Escrituras demanda que todos os autores bí­
blicos tenham a mesma perspectiva? E possível que os autores
bíblicos tenham teologias diferentes mas, em última análise, com­
patíveis e mesmo complementares?
5. O N ovo Testamento dá testemunho de um processo de desen­
volvim ento teológico na igreja prim itiva supervisionado pelo
Espírito Santo e, portanto, investido de autoridade singular. O
que você acha dessa declaração? Comente.
capítulo • 4

Hermenêutica: pulando fora


do trem da pós-modernidade

trem da pós-modernidade está correndo em direção ao futuro.


O Logo, explica Timothy Cargal, se não quisermos nos tornar
“irrelevantes” e ficar para trás, é melhor entrar nele.1 Neste capítu­
lo, eu gostaria de explicar por que discordo da avaliação triunfalista
que Cargal faz do pós-modernismo, especialmente no que diz res­
peito à hermenêutica bíblica, e por que minha opinião com respeito
a esse trem é: se você já está dentro, “pule fora”.
Resolvi responder ao ensaio de Cargal porque ele foi lúcido,
criterioso e, em últim a análise, perturbador. Após ler volumes
saturados da retórica de Ricouer, achei revigorante ler um artigo
com tão pouco jargão. A habilidade de Cargal é evidente, e eu o
recomendo por comunicar sua visão pós-moderna do futuro de for­
ma tão clara e atraente. Seu artigo é importante para a nossa tarefa
porque fala diretamente da questão da hermenêutica bíblica.
Trabalhando sobre o fundamento de três características da her­
menêutica pentecostal como descritas por French Arrington (ênfa­
se na iluminação pneumatológica; no papel dialógico da experiência;
e nas narrativas bíblicas), Cargal procura mostrar as afinidades en­
tre a hermenêutica do pentecostalismo tradicional e a do pós-mo-
dernismo. Na visão dele, tudo o que é necessário para os pentecostais
entrarem na era pós-moderna é lançar fora os grilhões fundamenta-
listas e tradicionais. Mais especificamente, Cargal nos desafia a re­
jeitar a preocupação com a nossa raiz histórica em favor de uma
abordagem mais dinâmica e orientada pelo leitor, própria do pós-

‘Beyond the Fundamentalist-Modernist controversy: Pentecostais and herme-


neutics in a postmodern age, Pneuma 15, p. 163-87 (p. 187).
NO PODER DO ESPÍRITO / , 76

modernismo. Somos chamados a reconhecer a subjetividade ineren­


te a toda interpretação e a usar esse conhecimento para a nossa van­
tagem a fim de revelar que, nos significados múltiplos do texto, o
Espírito pode iluminar. Na verdade, esse caminho não só está aber­
to para nós, mas também é o caminho que devemos trilhar se espe­
ramos nos comunicar com o nosso mundo pós-moderno.
Que fazer do “admirável mundo novo” de Cargal? Responderei
a essa pergunta com referência à percepção que Cargal tem do pas­
sado, presente e futuro.

0 PASSADO E A BUSCA DO SIGNIFICADO

O artigo de Cargal constitui uma crítica da abordagem das Escritu­


ras pelos evangélicos tradicionais e um convite para abraçarmos o
paradigma de interpretação pós-moderno. Especificamente, Cargal
censura os estudiosos pentecostais por trabalhar “dentro de um
paradigma dominado por preocupações históricas”.2 Convoca os
pentecostais a seguir o pós-modernismo no que diz respeito à rejei­
ção da noção que “apenas o que é histórico e objetivamente verda­
deiro é importante”.3 A chamada de Cargal choca-se diretamente
com duas preocupações importantes dos tradicionais.
Os evangélicos tradicionais em geral insistem em que a averigua­
ção do significado histórico de um texto é o alvo central da herme­
nêutica. Essa preocupação com o significado histórico está evidente
no excelente livro-texto de hermenêutica recentemente escrito por
três membros do corpo docente do Denver Seminary. Os autores
definem significado textual como “aquilo que as palavras e as estru­
turas gramaticais do texto revelam a respeito da intenção provável
do seu autor/editor e o entendimento provável desse texto por seus
leitores pretendidos”.4 Neste caso, reconstruir o passado é um as­
pecto crucial na busca do significado.
Os pós-modernistas são rápidos para criticar essa ênfase históri­
ca. As tentativas de reconstrução do passado são consideradas ilu­
sórias e, em última análise, irrelevantes, porque nunca são objetivas,

2Ibid., 164.
3Ibid., 171.
4K lein, Blomberg e H ubbard, In tro d u c tio n to b ib lic a l in te rp re ta tio n , p. 133.
HERMENÊUTICA: PULANDO FO RA DO TR EM DA PÓS-MODERNIOADE 77

mas sempre coloridas pelo entendimento prévio do intérprete. A


honestidade intelectual exige que paremos com essa ênfase episte-
mologicamente defeituosa do passado. Cargal observa que na prática
os pentecostais nunca foram preocupados demais com o significado
histórico. Portanto, a aproximação com o pós-modernismo não se­
ria muito difícil.
Meu temor é que a análise de Cargal do pentecostahsmo e de seu
potencial para ser significativamente influenciado pelo modelo pós-
modernista esteja correta. Certamente o pós-modernismo tem muito
a contribuir para aqueles que ouvirem. Em conseqüência das tendên­
cias recentes, os evangélicos tradicionais estão mais conscientes de sua
falta de objetividade, da natureza de seu entendimento prévio e da
necessidade de ouvir aqueles de quem possam discordar. Todavia, a
postura não-histórica e o ceticismo epistemológico do pós-modernis­
mo é extremo e conduz ao relativismo. Enquanto não podemos che­
gar à plena certeza com respeito à intenção dos autores dos textos
históricos, podemos adquirir conhecimento. O círculo hermenêu­
tico não é totalmente vicioso, é na realidade uma espiral.56E é a preo­
cupação com o significado histórico que permite ao texto confrontar
e transformar o nosso entendimento prévio, tornando possível, desse
modo, a espiral (ou o desenvolvimento do entendimento). Se afrou­
xarmos as amarras históricas de um texto, como avaliaremos as in­
terpretações várias e até contraditórias? Com o poderemos evitar
que nossas próprias ideologias e preconceitos obliterem o texto?5
Cargal silencia neste ponto, porque no paradigma pós-modernista
que ele descreve não há critério pelo qual avaliar uma interpretação.
Sua chamada para abraçar os múltiplos significados reflete esta rea­
lidade: todas as interpretações são válidas.7 Um paradigma filosófi­
co e um método hermenêutico que não distinguem entre o verdadeiro
e o falso, interpretações válidas e inválidas, tem pouca atração para a

5V. G. R. O sborn, The hermeneutical spiral, p. 379-80, 397-415 c K lein,


Blomberg e H ubbard, op. cit., p. 114.
6K lein, Blomberg e H ubbard, op. cit., p. 135: “Podemos aplicar os controles
interpretativos somente se procuramos como nosso alvo principal o significado
que teria feito sentido ao escritor original e a seus leitores”.
7Cargal podería fazer objeção ao nosso uso de “todas”, mas não está claro como
ele julgaria alguma interpretação inválida.
NO PODER DO ESPÍRITO 78

maioria dos cristãos. Com o Allan Bloom observa, “o historicismo


[a visão de que todo pensamento está essencialmente relacionado ao
seu próprio tempo e não pode transcendê-lo] e o relativismo cultural
são os meios reais para evitar o teste de nossos preconceitos”.8
O paradigma pós-modernista desafia uma segunda perspectiva
evangélica tradicional: os tradicionais crêem que a fé cristã está inti­
mamente ligada com os fatos redentores centrais da história da sal­
vação registrados nas Escrituras. Portanto, os evangélicos tradicionais
estão preocupados com o registro bíblico dos fatos passados (i.e., a
historicidade do texto). Isso não significa afirmar que somente o
que é histórico é verdadeiro ou importante. As parábolas, por exem­
plo, embora não registrem fatos históricos, são importantes e trans­
mitem verdades. Ao contrário, é afirmar que levamos a sério a
intenção dos autores bíblicos no que se refere ao modo que seus
textos devem ser interpretados, se como história, ficção ou uma
mistura dos dois. Além disso, o significado e a veracidade dos tex­
tos que se pretendem históricos não podem ser divorciados de sua
historicidade. Era importante para Paulo que a ressurreição de fato
ocorrera (IC o 15 .12-19)! Como pode ser diferente para nós?
Em resumo, Cargal talvez esteja certo: o pentecostalismo, por
causa de sua ênfase na prática e na experiência, pode ser facilmente
atraído para a posição não-histórica inerente ao pensamento pós-
modernista. Isso, contudo, é uma fraqueza, não uma força. Embo­
ra, como observa Cargal, o pós-modernismo “proporcione espaço
filosófico no qual é significativo falar de um encontro com a reali­
dade transcendente”,9 devemos perguntar a que preço. O pós-mo­
dernismo pode perm itir que os cristãos falem a respeito desses
encontros, mas não com autoridade, pois somos apenas mais uma
voz numa cacofonia de sons ininteligíveis.

0 PRESENTE E A BUSCA DA RELEVÂNCIA

O pós-modemismo de Cargal não somente diminui o lugar da inves­


tigação histórica no empreendimento interpretativo, mas também re­
duz o papel do próprio texto. O foco do significado transfere-se do

“O declínio da cultura ocidental.


‘'Postniodern age, p. 179.
HERMENÊUTICA: PULANDO FORA DO TREM DA PÓS-MODERNIDADE 79

autor/texto para o leitor. Essa transferência fica evidente no modo


que Cargal enfatiza a “influência modeladora da experiência [do in­
térprete]” e os múltiplos significados que ela produz.10
Esse foco no leitor reflete a admirável preocupação com a vida
contemporânea. Na verdade, essa preocupação com a relevância tem
levado ao surgimento de numerosas abordagens centradas no leitor
em relação à interpretação bíblica. Todavia, apesar de aspirações
nobres, há motivo para preocupação. Ainda que muitas formas da
nova crítica literária, quando usadas em conjunto com os métodos
mais tradicionais, tenham muito para oferecer, a subjetividade ex­
trema de algumas metodologias centradas no leitor (como a crítica
resposta-do-leitor e o desconstrucionismo) é perturbadora. Essas
abordagens me chocam como as sucessoras lógicas de uma crítica
bíblica estéril que castrou tanto o texto até não lhe restar nada de
importante para transmitir. Em algum ponto, a questão tinha de ser
levantada: por que se importar com tudo isso? A solução para esse
dilema era óbvia: se não se pode encontrar importância no significa­
do do texto, então deve-se importá-la de fora do texto.
Talvez o motivo de muitos pós-modernistas atacarem tão veemen­
temente as abordagens tradicionais seja este: esses métodos críticos
são vestígios de um passado obscuro e destituído de significado. Cargal
é mais comedido do que a maioria, embora também satirize a busca da
“descoberta do cerne pela reconstrução histórica objetiva e crítica”.11
Todavia, essa crítica do método histórico-crítico, pelo menos como
empregado pelos evangélicos tradicionais, parece ser mal-orientada.
Por exemplo, as críticas da fonte e da redação são empregadas não
para obter por detrás do texto algum “cerne” antigo e autorizado,
usamo-las, todavia, de forma que possamos entender melhor o tex­
to em si (em sua forma final, não menos). Para os evangélicos tradi­
cionais, os métodos críticos ajudam a revelar o significado textual.
Isso é importante e relevante porque é a Palavra de Deus para nós.
Naturalmente, a ênfase no significado original do texto não re­
solve todos os problemas de interpretação. Ainda temos de adequar
a mensagem para a nossa cultura e a nossa época de modo fiel c

,0Ibid„ p. 1 8 1 2 .
"Ibid., p. 168.
NO PODER DO ESPÍRITO 80

relevante. Como missionário, estou muitíssimo consciente da com­


plexidade desta tarefa. Contudo, a distinção entre o significado do
texto e as muitas aplicações (ou importâncias) que ele possa ter para
as várias situações e culturas é necessária se quisermos refrear-nos
de distorcer o texto. Infelizmente, essa distinção se perdeu no para­
digma pós-modernista. Clark Pinnock fala francamente: “Repudio
a idéia hoje tão dominante de que o ponto de vista humano age como
uma espécie de lente ou rede por cujo intermédio podemos enten­
der a Bíblia. Quando isso acontece, o indivíduo não está interpre­
tando a Bíblia, mas julgando-a e reescrevendo-a”.12

0 FUTURO E A BUSCA DA IDENTIDADE


PENTECOSTAL

O “admirável mundo novo” de Cargal tem pouco espaço para o


evangelicalismo moderno, enlameado como está no pensamento
iluminista. Não, o evangelicalismo será deixado para trás. Mas o que
será do pentecostalismo? Segundo Cargal, se nos livrarmos dos que
nos procuram escravizar — aqueles que promovem a evangelicaliza-
ção do pentecostalismo — , pode haver esperança. Devemos tam­
bém reconhecer que nem todas as nossas interpretações são mediadas
pelo Espírito e assim livrar-nos a nós mesmos das “interpretações
insidiosas do sexismo, racismo e classismo”.13 Naturalmente, nunca
se falou claramente como devemos fazer esses julgamentos e alcan­
çar essa libertação.
Minha visão do futuro é muito diferente. Vejo a assimilação do
movimento pentecostal moderno no mundo evangélico mais amplo
como um acontecimento emocionante e positivo. Olhando para cin-
qüenta anos atrás, podemos declarar a força que encontramos em
nossa herança evangélica tradicional. Isso é particularmente verda­
deiro com respeito à interpretação bíblica. Podemos também nos
regozijar com nossas próprias contribuições positivas para a igreja
de forma mais ampla. Vinte anos atrás, quem teria pensado que hoje
encontraríamos essa abertura a respeito dos dons do Espírito? Olhan­

l2CIark H. P innock, The work o f the Holy Spirit in hermeneutics, jpt 2 ,19 9 3,
p. 15-6.
13Postmodern age, p. 187.
HERMENÊUTICA: PULANDO FO RA 0 0 TREM OA PÓS-MODERNIDADE 81

do para a frente, vejo o potencial de contribuições teológicas mais


abrangentes para a igreja.
O nosso entendimento do dom pentecostal é importante nesse
aspecto. De fato, hoje temos muitas oportunidades. Com o já ob­
servamos em capítulos anteriores, o clima hermenêutico dentro do
evangelicalismo é mais propício do que jamais foi para nossas con­
tribuições teológicas.14 E, por causa de nossa ênfase pentecostal, po­
demos servir como ponte importante entre os outros evangélicos e
o mundo não-evangélico.
Na verdade, como Cargal observa, podemos nos tornar irrele­
vantes se não embarcarmos no trem pós-modernista. Mas em vista
do fraco interesse no estruturalismo e do vigor da erudição tradicio­
nal, particularmente no campo da hermenêutica, argumentaria que
o oposto é que é verdadeiro.

P erguntas para estudo

1. O que é central para a perspectiva pós-modernista?


2. O autor dá a entender que os elementos centrais do pós-moder-
nismo não são compatíveis com os valores do movimento pente­
costal. Por que não são?
3. De que forma os pensadores pós-modernistas ajudaram a tornar
mais clara nossa perspectiva teológica?
4. O autor propõe que a abordagem pós-modernista do significado
histórico é pessimista demais e que o processo hermenêutico é
mais bem descrito como uma espiral do que como um círculo. O
que ele quer dizer com isso?
5. Que valores essenciais ligam os pentecostais com os evangélicos
tradicionais? De acordo com o autor, por que os pentecostais
deveríam identificar-se com o mundo evangélico mais amplo e
procurar trabalhar juntos com esse grupo e influenciá-lo?

14V. K lein, Blomberg e H ubbard, op. cit., p. 349-50. Observe também os co­
mentários deles a respeito dos modos diferentes que Lucas e Paulo descrevem a
atividade do Espírito: “Essas descrições são complementares, não contraditórias.
A doutrina correta das Escrituras não permite que Atos se subordine a Paulo”
(p. 351).
capítulo * 5

Exegese: réplica a
James Dunn

J
ames Dunn moldou de maneira significativa o contexto em que a
atual discussão sobre a obra do Espírito Santo está-se desenvol­
vendo. Quando as perguntas geradas pelo surgimento dos movimen­
tos pentecostal e carismático se tomaram particularmente preeminen-
tes, o livro de Dunn,Baptism in the Holy Spirit, forneceu respostas
para muitas delas. Embora Dunn tenha afirmado o caráter carismático
da igreja primitiva, desafiou o entendimento pentecostal clássico do
batismo no Espírito. Desse modo, enquanto Dunn encorajou muitos
a levar a sério o aspecto carismático da vida cristã, suas idéias deram
suporte aos não-pentecostais na relutância em aceitar e procurar o
batismo no Espírito distinto da conversão. Dunn tornou-se rapida­
mente o paladino da comunidade evangélica não-pentecostal.
Apesar disso, a contribuição de Dunn para o movimento pente­
costal também foi enorme. Ele demonstrou que os pentecostais não
podiam mais continuar confiando nos métodos interpretativos do
movimento Holiness do século xix e esperar ser ouvidos no mundo
eclesiástico contemporâneo. Dunn não só desafiou o fundamento
hermenêutico das posições pentecostais tradicionais (uma herme­
nêutica que tratava a Bíblia como um “todo homogêneo”), mas tam­
bém apontou o caminho a seguir ressaltando a integridade teológica
de cada autor bíblico. Uma teologia verdadeiramente bíblica, anseio
correto de Dunn, pode-se desenvolver apenas quando nós “toma­
mos cada autor e livro separadamente [...] Somente então o teólogo
bíblico poderá sentir-se livre para deixar que o texto interaja com
outros textos de outros livros”.1
>E 39.
NO PODER DD ESPÍRITO/ / 84

A crítica de Dunn estimulou uma erupção de reflexão teológica


criativa entre os estudiosos pentecostais. Seguindo a metodologia
que ele esboçou, os pentecostais têm procurado interpretar Lucas
em seus próprios termos e, desse modo, enfatizar a contribuição
peculiar de Lucas para uma teologia bíblica do Espírito. Embora
muitos desses esforços tenham sido críticos do tratamento que Dunn
dá a Lucas— Atos, sua influência é evidente. Na verdade, dificilmente
se pode discutir a pneumatologia do cristianismo primitivo sem
interagir com as idéias de Dunn.
Por causa da influência de Dunn e de seu papel de protagonista
crítico, os estudiosos pentecostais quiseram saber como ele podia
responder a seus esforços recentes. Todos esperavam ansiosamente
a resposta de Dunn. O desejo de saber sua posição e a espera termina­
ram com seu artigo de 1993, “Baptism in the Spirit in Luke-Acts: a
response to pentecostal scholarship on Luke-Acts” [“Batismo no Es­
pírito em Lucas— Atos: resposta à intelectualidade pentecostal so­
bre Lucas— Atos”] ,2 Esse artigo serve como excelente ponto de partida
para analisar uma série de pontos exegéticos centrais no debate atual a
respeito do caráter da pneumatologia de Lucas. Portanto, neste ca­
pítulo vamos resumir o artigo de Dunn, avaliar os principais argu­
mentos que ele apresenta, e calcular suas implicações significativas.

Resumo da resposta de Dunn


Em sua obra anterior, Baptism in tbe Holy Spirit, Dunn argumentou
que os autores do Novo Testamento apresentam o dom do Espírito
Santo uniformemente como “o aspecto mais fundamental do aconte­
cimento ou processo de tornar-se cristão, o clímax da conversão-ini-
ciação”.3 De acordo com Dunn, a perspectiva pneumatológica de Lucas
é desse modo semelhante às de Paulo e João: o Espírito inicia os cren­
tes na nova vida e lhes propicia a vida da nova aliança. A intelectualidade
pentecostal moderna desafiou essa posição, asseverando que Lucas é
teólogo por seus próprios méritos e que seu ponto de vista do Espírito
é diferente do de Paulo, embora complementar. Diferentemente de
Paulo, que quase sempre fala do aspecto soteriológico da obra do

2Publicado no JPT 3, 1993, p. 3-27.


3Citado em ibid., p. 5.
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN ' / 85

Espírito,4 Lucas retrata coerentemente o


Espírito como a fonte de
poder para o serviço. Essa linha de pensamento tem afinidades com
os escritos anteriores de H. Gunkel, E. Schweizer e G. Haya-Prats,
mas foi desenvolvido mais recentemente por Roger Stronstad, James
Shelton (de modo mais experimental) e por mim.5
Minha contribuição para essa discussão veio na forma de uma
monografia no qual argumentava que Paulo foi o primeiro cristão a
atribuir funções soteriológicas ao Espírito e que esse elemento ori­
ginal de sua pneumatologia só influenciou setores mais amplos (não-
paulinos) da igreja primitiva depois da escrita de Lucas— Atos. O
ponto crucial de discordância com Dunn foi minha insistência em
que Lucas nunca atribui funções soteriológicas ao Espírito, e sua
narrativa pressupõe uma pneumatologia que exclui esse aspecto (e.g.,
Lc 11.13; A t 8.4-17; 19.1-7). Ou, para expor de modo positivo, Lucas
descreve o dom do Espírito exclusivamente em termos carismáti­
cos como a fonte de poder para o testemunho eficaz.
O artigo de Dunn apresenta sua resposta a essa avaliação da pneu­
matologia de Lucas. A questão central do atual debate é claramente
afirmada no princípio do artigo: “Lucas separa o derramamento do
Espírito sobre os indivíduos da ‘conversão-iniciação’ e o vê como
dom capacitador em vez de dom soteriológico?”.6 Sua resposta a
essa pergunta — um “não” enfático —■vem em quatro seções intitu­
ladas: “O Espírito de profecia”, “O Espírito soteriológico”, “O Es­
pírito escatológico” e “O Espírito e a fé”.
Em “O Espírito de profecia”, Dunn assevera que, enquanto Lucas
de fato apresenta linguagem inspirada e outras manifestações visí­

4Paulo descreve o Espírito como a fonte de purificação do cristão (lCo 6.11;


Rm 15.16), de retidão (G1 5.5; Rra 2.29; 14.17; cf. G1 3.14) e de comunhão íntima
com Deus (G1 4.6; Rm 8.14-17). Logo, na presente era, o dom do Espírito é a
“instalação inicial” ou as “primícias” (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14; Rm 8.23) da trans­
formação mais gloriosa ainda por vir.
5Para as obras de G unkel, Schweiser e Haya-P rats, . nota de rodapé 9 do v

capítulo 3; para Stronstad, . nota de rodapé 6 do capítulo 3; J. Shelton, Migbty


v

in word an d deed; R. M enzies, The development o f early christian pneumatology


with special referente to Luke-Acts. Para uma avaliação do livro de Shelton, ver
minha resenha James Shelton’s Mighty in word and deed: a review article, jl<T 2,
1993, p. 105-15.
6D u n n , Response, p. 6 .
NO PODER 00 ESPÍRITO 86

veis do Espírito, não é sustentável propor que essa é a única função


do Espírito em Lucas—Atos. Nessa altura, a discussão repousa em
grande parte sobre uma série de perguntas retóricas (e.g., “Não há
nenhum perigo de confundir o efeito mais pleno da entrada do Es­
pírito numa vida com as manifestações físicas desse impacto?”).7
Dunn dá a entender que as evidências de Atos 8.4-17 são escassas e,
em última análise, não conclusivas. Com efeito, essa é a negativa de
Dunn quando de minha alegação de que a narrativa de Lucas pressu­
põe uma pneumatologia que exclui o aspecto soteriológico.
Dunn se põe na ofensiva em “O Espírito soteriológico”. Procura
demonstrar que Lucas de fato atribui funções soteriológicas ao Es­
pírito. Seu argumento repousa basicamente na análise de dois tex­
tos: Atos 2.38,39 e 19.43-48 (e os textos paralelos, 11.14-18 e 15.7-9).
Conforme Dunn, 2.38,39 apresenta o Espírito como o mediador da
“graça doadora de vida”, e as passagens de Cornélio indicam que o
Espírito é a fonte de purificação e perdão.8
Na seção “O Espírito escatológico”, Dunn reconhece que sua
opinião anterior baseou-se numa esquematização artificial excessi­
vamente rígida das épocas de Lucas—Atos. Não obstante, ele insis­
te que Lucas pretendia “dar importância escatológica ímpar aos
acontecimentos do Jordão e do Pentecoste” e que esses aconteci­
mentos representam muito mais que simplesmente uma unção do
Espírito para o testemunho.9
Especificamente, Dunn argumenta que a vinda do Espírito no
Jordão e no Pentecoste inaugurou novos estágios no plano de Deus,
estágios com importância escatológica. Embora essa conclusão não
apresente nenhuma surpresa — os fatos do Jordão e do Pentecoste
claramente inauguram o ministério de Jesus e a missão da igreja (e
quem há de negar a importância escatológica deles?) — , Dunn pros­
segue argumentando que esses acontecimentos iniciam de fato Je ­
sus e os discípulos na nova era! Logo, em seu entender, o Espírito
vem sobre os discípulos no Pentecoste não principalmente para lhes

7Ibid., p. 9.
8Ibid., p. 12-6.
9Ibid., p. 17.
EXEGESE: RÉPLICA A JAM ES DUNN >(j 87

dar poder para sua missão, mas, ainda mais importante, para intro­
duzi-los na nova era e mediar as bênçãos dessa era.
Dunn afirma que a ligação entre o Pentecoste e a passagem de
Cornélio (At 10.47 e paralelas) confirma esse julgamento. A profe­
cia de João Batista (Lc 3.7-9,16,17) é citada como mais uma evidên­
cia dessa posição. Novamente atribui-se a Atos 2.39 importância
especial. De acordo com Dunn, esse texto indica que “a promessa
do Pai” (cf. Lc 24.49; A t 1.4; 2.33) tem importância soteriológica.
Além disso, Dunn sustenta que o entendimento que Lucas tem da
“promessa do Pai” — claramente expresso em Joel 2.28,29 — também
foi moldado por várias outras profecias do Antigo Testamento com
respeito ao papel escatológico do Espírito (e.g., Is 32.13; 44.3-5;
Ez 36.26,27). Embora Lucas não cite nenhum desses textos, Dunn
critica minha “completa desconsideração” por eles.10*
A seção final (“O Espírito e a fé”) contém a justificativa de Dunn
para o elo inextricável entre fé e recepção do Espírito. Aqui Dunn
tenta conciliar as narrativas dos samaritanos (At 8.4-17) e dos efésios
(19.1-7) com seu ponto de vista. Isso leva a sua conclusão, reafirmação
de sua posição mais antiga, de que “a pneumatologia de Lucas em
essência constitui uma unidade com a pneumatologia de Paulo”.11
Embora o artigo de Dunn seja em grande parte reafirmação de
sua posição anterior e ofereça pouca novidade, com efeito reflete a
idéia atual do motor principal da discussão. Talvez o aspecto mais
importante do artigo seja o fato de identificar com clareza a questão
crucial surgida após a publicação de Baptism in the Holy Spirit:
Lucas,
de maneira análoga a Paulo, apresenta o Espírito como agente
soteriológico (a fonte da purificação, justificação e santificação)?
Ou descreve a obra do Espírito exclusivamente em termos carismá­
ticos como a fonte de poder para o testemunho eficaz? O artigo de
Dunn também ressalta textos específicos e questões exegéticas de
particular importância para todos os que procuram responder a es­
sas perguntas. Agora vamos analisar esses textos específicos e o tra­
tamento que Dunn lhes dá.

I0Ibid., p. 21.
''Ibid., p. 27.
NO PODER DO ESPÍRITO 88

Evidências a favor da pneumatologia


DISTINTIVA DE LUCAS
Começaremos examinando a abordagem de Dunn dada a dois tex­
tos que propus serem indicadores de que o ponto de vista pneuma-
tológico de Lucas é na verdade mais restrito que o de Paulo: Atos
8.4-17 e 19.1-7.

AtOS 8.4-17
A narrativa dos samaritanos (At 8.4-17), que os descreve como cren­
tes batizados mas sem o Espírito, é a mais problemática para Dunn.
Ela indica que eles creram na pregação de Filipe e por isso foram
batizados por ele (v. 12), todavia não receberam o Espírito senão
algum tempo depois (v. 15-17). As implicações desse relato para o
entendimento de Lucas acerca do Espírito são evidentes. Uma vez
que Lucas considerava os samaritanos cristãos (i.e., convertidos)
antes de receberem o Espírito, dificilmente se pode sustentar que
ele entendeu o Espírito como “uma coisa que faz [o indivíduo] o
cristão”.12
Como já vimos, Dunn inicialmente procurou diminuir a força
desse texto argumentando que, na visão de Lucas, os samaritanos
não eram realmente cristãos antes de receberem o Espírito. Susten­
tou que “a resposta inicial e o comprometimento [deles] eram fa­
lhos”, e Lucas “tinha a intenção que seus leitores soubessem disso”.13
Contudo, essa hipótese foi submetida a intensa crítica e rejeitada
por quase todos os estudiosos que a avaliaram.14 Com sua antiga

'-Dunn, Baptism , p. 93.


13Ibid., p. 63; v. p. 63-8 para sua argumentação.
14V., p. ex., as críticas de E. A. RUSSEL, “They believed Philip preaching”, p.
169-76; T urner, Luke and the Spirit, p. 163-7; H. Ervin, Conversion-initiation
an d the baptism in the H oly Spirit, p. 25-40; M arshall, Acts, 156; D. Ewert, The
H oly Spirit in the N ew Testament, p. 118-9; H. D. H unter, Spirit-baptism , p.
83-4; K. G iles, I s Luke an exponent of “early protestantism ”? Church order in
the lukan writings, p. 197; 0 ’Toole, “Christian baptism in Luke”, p. 861; Michael
G reen, Ib eliev e in the H oly Spirit, p. 138; D. C arson, Showingthe Spirit, p. 144;
W. R ussell, The anoiting with the H oly Spirit in Luke-Acts, p. 6 0 -1; R.
Stronstad, C harism atic theology, p. 64-5; e M enzies, Developm ent, p. 252-7.
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN : 89

posição efetivamente desacreditada, Dunn tenta conciliar o texto


com sua tese através de uma postura de dúvida em relação ao texto.
Enfatizando a brevidade da narrativa e a escassez de informação que
ele oferece, Dunn sustenta que “o único fato fornecido por Lucas é
que a vinda do Espírito foi adiada”.15 O que vai além disso é especu­
lação inútil. Na verdade, Dunn alega que a escassez da narrativa nos
leva não a pensar em por que o Espírito foi adiado, mas no simples
fato de que foi adiado. O adiamento serve para enfatizar o que é de
fato importante, a vinda do Espírito. Dunn continua definindo o
impacto dessa “vinda do Espírito” de maneira coerente com sua tese:
O Espírito insere os crentes no corpo de Cristo e media as bênçãos
da nova vida.16
O que fica esquecido em tudo isso é que Lucas nos dá mais do
que um simples fato. Sua narrativa é realmente explícita. Ele descre­
ve os samaritanos antes do recebimento do Espírito como pessoas
que haviam “crido” (8.12), “aceitado a palavra de Deus” (8.14) e
sido “batizadas” (8.12). E, ainda que o motivo da recepção do Espí­
rito e da fé separados na narrativa (“motivo” com que, Dunn dá a
entender, não precisamos nos incomodar) possa não ser auto-evi-
dente, simplesmente indica que para Lucas, essa espécie de lingua­
gem não apresenta nenhum problema. Certamente não nos permite
ignorar as implicações claras da narrativa da pneumatologia de Lucas.
Na verdade, sua interpretação cuidadosamente elaborada desse acon­
tecimento nos diz muito a respeito de seu modo de entender o Es­
pírito.17O fato essencial que Dunn ignora é este: a narrativa de Lucas
mostra sinais de que a sua pneumatologia é decididamente diferen­
te da de Paulo ou da de João, que não podiam conceber crentes ba­
tizados sem o Espírito.
A intenção primária da narrativa, como Dunn propõe, pode ter
sido enfatizar a importância de receber o dom do Espírito (como

15Response, p. 10. V. tb. comentários nas páginas 24-5.


l6Ibid., p. 25. “A recepção do Espírito [...] constitui-se da aceitação divina e da
identidade cristã.”
,7Observe que a passagem “problemática" (v. 14-17) é clieia de temas e da lin­
guagem característicos de Lucas.
NO PODER DO ESPÍRITO / 90

doador de poder para missão, eu acrescentaria18) . De qualquer modo,


é improvável que Lucas tenha procurado conscientemente ensinar
aqui que o dom é normalmente separado da fé. Todavia, o fato de
separar os dois revela com clareza sua visão pneumatológica pe­
culiar. Como já observamos, Paulo não teria interpretado nem nar­
rado o acontecimento dessa maneira — na verdade, não poderia.
Além do mais, a separação refuta a interpretação de Dunn de que
o dom de Lucas é “o clímax da conversão-iniciação”. Isso porque
inicialmente, contra todas as evidências, Dunn procurava negar que
essa separação tenha de fato ocorrido. Talvez o convite de Dunn
para fazermos vista grossa — em favor de sua versão da mensagem
de Lucas — à patente falta de continuidade da narrativa parecesse
mais plausível se o evangelista mostrasse não ter aptidão editorial.
Apesar disso, diante da capacidade óbvia de Lucas, é difícil acreditar
que ele fosse incapaz de desenvolver esse relato sem contradizer sua
própria pneumatologia. Quem sabe, se essa fosse a única exceção a
um padrão uniforme, o convite de Dunn tivesse algum crédito. Mas
em outras passagens Lucas separa conversão de recepção do Espíri­
to (e.g., Lc 11.13; At 1 9 .1 - 7 ) . Na realidade, a posição recente de
Dunn é notavelmente semelhante a sua posição anterior: uma ten­
tativa desesperada de fugir das implicações óbvias do texto.

AtOS 19.1-7
A narração de Lucas com respeito ao recebimento do Espírito pelos
discípulos efésios mais uma vez é cheia de dificuldades para Dunn.
Primeiramente, há a pergunta de Paulo: “Vocês receberam o Espíri­
to quando creram?” (19.2). Depois, há também a referência a “dis­
cípulos” (19.1) que não tinham recebido o batismo cristão nem o
dom do Espírito.

18As considerações a seguir indicam que Atos 8.17 descreve a comissão e a


capacitação dos crentes samaritanos para a tarefa missionária que lhes foi coloca­
da. 1) A linguagem de Lucas em 8.15,16 indica que ele considerava o dom do
Espírito recebido pelos samaritanos idêntico ao dom do Pentecoste. 2) A associa­
ção do dom do Espírito com a imposição de mãos (8.17) dá a entender que Lucas
via o dom como revestimento para o serviço na missão da igreja. 3) A afirmação
concisa de Lucas em 9.31 indica que um novo centro de atividade missionária ha­
via sido estabelecido em Samaria. Estes pontos são desenvolvidos mais plenamente
em meu livro Development, p. 258-60.
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN 91

O tratamento breve que Dunn dá a essa passagem enfoca a per­


gunta de Paulo e a relação temporal do particípio aoristo {pisteusan-
tes; lit., “tendo crido”) com a ação do verbo principal ( , elabete
“receberam”?). Argumenta com base no contexto que a expressão
central deveria ser traduzida por “quando creram”, em vez de “de­
pois que creram”. Na realidade, o matiz temporal do particípio é
irrelevante em última análise, pois a possível distinção de tempo
entre crer e receber o Espírito é pressuposta pela própria pergunta.
A outra questão crucial centra-se na condição dos “discípulos”
(19.1) sem o Espírito: são eles discípulos de Jesus verdadeiramen­
te? Quando se considera o contexto imediato, que contém a perícope
intimamente relacionada referente a Apoio (18.24-28), a evidência
exige uma resposta afirmativa. A condição de Apoio dificilmente
pode ser questionada, pois Lucas indica que ele “fora instruído no
caminho do Senhor” e “ensinava com exatidão acerca de Jesus”
(18.25). A última frase, que descreve a pregação de Paulo em 28.31,
dá a entender que Apoio pregava o evangelho cristão. Visto que de
acordo com Lucas o dom do Espírito não é inextricavelmente atado
ao rito do batismo (e.g., 8.17; 10.44), não há contradição na descri­
ção de Apoio como eloqüente ministro do evangelho que não havia
recebido o batismo cristão.
Do mesmo modo, a experiência cristã de Apoio não pressupõe
consciência do evento ou da promessa pentecostal. Logo, não impe­
de o contato dele com os discípulos de Éfeso, que não haviam ouvi­
do da disponibilidade do Espírito. Ao contrário, Lucas construiu a
narrativa cuidadosamente a fim de enfatizar a relação entre Apoio e
os efésios (cf. 19.1), os quais, Apoio e eles, conheciam somente “o
batismo de João” (18.25; 19.3). A dedução clara é que os doze de
éfeso eram convertidos do hábil pregador que atuava na mesma ci­
dade.19 Devemos, portanto, concluir que na avaliação de Lucas os
efésios eram, como Apoio, discípulos de Jesus. Essa conclusão é
apoiada pela descrição que Lucas faz dos efésios como “discípulos”
(mathetai, 19.1), pois quando emprega essa palavra sem nenhum

19Para as associações literárias entre 18.24-28 e 19.1-7 v. M. W oi.tf.r, Apollos


und die ephesinischen Johannesjünger (Acts 18.24-19-7), z.NW 78, 1987, p. 61-
2, 71.
NO PODER DO ESPÍRITO 92

qualificativo refere-se sempre aos discípulos de Jesus.20 E uma vez


que a fé (pistis
) é a essência do discipulado21, a descrição dos efésios
como “crentes” (19.2) confirma essa descoberta.22
Em Baptism in the Holy Spirit, Dunn defende sua tese argumen­
tando que Lucas emprega o pronome indefinido “alguns” {tinas)
com “discípulos” em 19.1 a fim de realçar a falta de relação dos efésios
com a igreja de Efeso: “eles são discípulos, mas não pertencem aos
discípulos”.23 Entretanto, esse argumento ignora o uso que Lucas
faz em outro lugar: emprega o mesmo pronome no singular com
“discípulo” para descrever Ananias (9.10) e Timóteo (16.1). Para
seu mérito, Dunn agora reconhece a fraqueza de sua posição an­
terior24, todavia insiste em que seu argumento não é dependente
dela. Na verdade, continua a seguir sua proposição anterior de que a
pergunta de Paulo em 19.2 é “de suspeita e surpresa”: os efésios
alegavam ser homens de fé, mas Paulo indaga se a alegação deles é
válida. Segundo Dunn, Paulo acha que é falsa.25
E digno de nota que o argumento de Dunn neste ponto, desen­
volvido em Baptism in the Holy Spirit, baseia-se na observação de
que o Paulo das epístolas não podia consentir a idéia de “crentes”
sem o Espírito (Rm 8.9; IC o 12.3; GI 3.2; lTs 1.5,6; Tt 3.5). Natu­
ralmente, essa objeção não leva em conta o fato de que a narrativa
como existe atualmente (em particular A t 19.2-4) foi significativa­
mente desenvolvida por Lucas. O diálogo entre Paulo e os efésios
foi escrito por Lucas26 para salientar a necessidade que tinham os

20V. Lucas 9.16,18,54; 10.23; 16.1; 17.11; 18.15; 19.29; 19.37; 20.45; 22.39,45;
Atos 6.1,2,7; 9.10,19,26,29; 13.52; 14.20,22,28; 15.10; 16.1; 18.23,27; 19.1,9,30;
20.1,30; 21.4,16. K. H aacker, Einige Fàlle von “erlebter Rede” im von Neuen
Testament NovT 12 (1970), p. 75: “Der absolut Gebrauch von wird von
alecn Auslegern ais eine Bezeichnung für Christen erkannt”.
21V. K. H. R engstorf, px9rl't:llÇ. tdnt, 4:447.
22Ver, por exemplo, F. F. Bruce, Commentary on the Book ofActs , p. 385: “A
pergunta de Paulo: ‘Vocês receberam o Espírito Santo quando creram?’ dá a en­
tender que ele os considerava crentes em Cristo verdadeiros”.
2:1Baptism, p. 85.
“Response, p. 24.
23Baptism, p. 86.
26A. W eiser, Die Apostelgeschichte, 2:513: “Die Formung von Dialogen ist ein
von Lukas oft angewandtes Gestaltungsmittel”. Lucas 1.34,35; Atos 1.6-8; 4.7-12;
8.34-36; 16.30-32.
EXEGESE: RÉPLICA A JAM ES DUNN : 93

efésios da capacitação do Espírito e seu pré-requisito normal, o ba­


tismo cristão. Paulo sem dúvida teria relatado a história de modo
diferente, pois a potencial distinção entre crer no Espírito e recebê-
lo está implícita na pergunta.27Novamente, em face de todas as evi­
dências, Dunn não deixa Lucas ser Lucas.
Todos nós vamos ao texto com pressuposições teológicas. E Dunn
foi mais direto do que a maioria nesse ponto. Numa resposta ante­
rior à crítica de seu tratamento do episódio samaritano, Dunn reco­
nheceu prontam ente que sua in terpretação do incidente foi
influenciada por sua convicção de que “Lucas compartilhava da vi­
são comum entre os escritores mais importantes do Novo Testa­
mento que é o dom do Espírito que faz de alguém um cristão”.28
Essa sinceridade é admirável. Contudo, visto que o nosso alvo é
deixar que a exegese informe e, se necessário, desafiar nossas pres­
suposições teológicas, a sinceridade a respeito das pressuposições
precisa ser aliada à abertura para o texto.
À parte do tratamento dunniano dos textos observados acima,
outro aspecto de sua resposta indica que sua interpretação de Lucas—
Atos em geral, e destes textos em particular, foi moldada em grande
parte por pressuposições questionáveis. A seção inicial do seu arti­
go, que é também a seção em que ele menciona pela primeira vez o
texto samaritano (“O Espírito de profecia”), é essencialmente uma
coleção de questões retóricas. Antes de citar qualquer evidência ou
proferir qualquer razão, lemos: “Não há perigo aqui de falar como
se [...] de fato, o Espírito de profecia fosse um Espírito diferente
do Espírito de salvação?”. Dunn indaga outra vez: “Por que se deve
supor que Lucas pensa no Espírito apenas como o poder de inspira­
ção?”. E, de novo, desta vez respondendo a sua própria pergunta:
“Certamente há aqui o perigo de que alguém fique tão surpreso com
os efeitos visíveis da vinda do Espírito em Lucas— Atos que reduza
a pneumatologia de Lucas a esses efeitos”.29

27Lucas parece ter condensado a narrativa tradicional do acontecimento. De qual­


quer modo, não precisamos questionar os aspectos essenciais da narrativa de Lucas,
ele simplesmente conta a história de sua própria perspectiva teológica.
28They believed Philip preaching (Acts 8.12): a reply, p. 178.
2?Response, p. 10.
NO PODER DO ESPÍRITO / / 94

Por trás dessas perguntas está a pressuposição controladora men­


cionada acima: a igreja primitiva, desde seus primeiros dias, viu una­
nimemente o Espírito como a fonte da existência cristã. Todavia,
essa suposição é exatamente o ponto que eu, e outros antes de mim30,
questiono. Dunn praticam ente ignora a riqueza de evidências
indicativas de que os judeus do primeiro século identificavam o dom
do Espírito como a fonte de inspiração profética, não como neces­
sidade soteriológica. Essa visão era dominante para o judaísmo que
deu origem à igreja primitiva, com exceção da Sabedoria de Salomão
e os Hinos de Qumram.31
Além do mais, Dunn ignora o fato de que não há evidências nas
cartas de Paulo de que sua visão mais ampla da obra do Espírito,
abrangendo as funções soteriológicas, esteja baseada numa tradi­
ção pré-paulina subjacente. Com o argumentei com detalhes em
outro lugar, as evidências dão a entender que Paulo foi o primeiro
cristão a atribuir função soteriológica ao Espírito.32 Tudo isso indi­
ca que as pressuposições de Dunn, baseadas numa interpretação
questionável das evidências externas de Lucas—Atos, moldaram sua
leitura do texto de Lucas— Atos. As evidências do próprio punho
de Lucas são convincentes, e Dunn não forneceu nada novo a título
de evidência que pudesse refutar nossa tese: A tos 8.4-17, 19 .1-7 e
outros textos de que Dunn não trata33 confirmam que a pneuma-
tologia de Lucas não só é diferente da de Paulo, mas também não
abarca as funções soteriológicas que Paulo tão freqüentemente
atribui ao Espírito. Isto não é fraqueza, como Dunn dá a enten­
der, pelo contrário, é testemunho da riqueza da diversidade que
encontramos no Novo Testamento e uma afirmação da contribui­
ção singular de Lucas para isso.

J0Observe especialmente as obras de H. Gunkel, The influence o f the H oly


Spirit; E. Schweizf.r, icveopa, tdnt , 6.389-455; G. H aya-P rats, E Sp rit force de
Teglise.
3lVer M enzies, Development, p. 52-112.
32Ibid., p. 282-315.
33V., p.ex., minhas discussões acerca de Lucas 11.13 e a adaptação que Lucas
faz do texto de Joelem Atos 2.18 em ibid., p. 180-5 e 218-21, respectivamente.
EXEGESE: REPLICA A J A M E S DUNN '
/. 95

Evidências contrárias à pneumatologia


DISTINTIVA DE LUCAS
Vamos examinar agora os textos que Dunn insinua indicarem que Lucas
atribuiu funções soteriológicas ao Espírito. Os textos centrais que
aparecem repetidamente no artigo de Dunn são Atos 2.38,39 e as
passagens sobre Cornélio (10.43-48; 11.14 -18 ; 15.7-9). Dunn tam­
bém discute brevemente aprofecia de João Batista (Lc 3.16,17), mas
trataremos desse texto no capítulo seguinte.

Atos 2.38,39

Atos 2.38,39 representa um elo muito importante no argumento de


Dunn. Sua abordagem do texto pode-se resumir em três pontos:
1) a referência à “promessa” em 2.39 liga o dom do Espírito (v. 38)
à salvação; 2) o entendimento de Lucas da “promessa do Pai” foi
informado por várias profecias do Antigo Testamento em relação
ao papel escatológico do Espírito, exceto Joel 2.28-32; 3) a coloca­
ção do arrependimento, do batismo e da promessa do Espírito em
Atos 2.38 demonstra que Lucas via o recebimento do Espírito como
elemento necessário da iniciação cristã.34 Um exame das evidências,
contudo, revela que nenhum desses pontos é convincente.
1) A princípio, deve-se observar que Lucas se refere a “a promes­
sa” do Espírito em quatro ocorrências bem próximas (Lc 24.49; At
1.4; 2.33; 2.39). “A promessa” é identificada com o dom pentecostal
do Espírito (2.33) e explicitamente definida: o recebimento da “pro­
messa” resultará nos discípulos “revestidos com poder do alto”, que
os capacitará para serem “testemunhas” eficazes (Lc 24.48,49; A t 1.8).
Ademais, para Lucas “a promessa” com referência ao Espírito, refe­
re-se ao dom do Espírito de profecia prometido em Joel 2.28-32.
Isso fica claro pela citação que Lucas faz de Joel 2.28-32 em Atos
2.17-21 e mais enfatizado em sua introdução redacional da citação.
Essa introdução inclui a frase “Deu diz” e desse modo identifica
a profecia de Joel como “a promessa do Pai” — a descrição plena da
“promessa” em três das quatro referências de Lucas (Lc 24.49; A t 1.4;

34Para uma discussão de Dunn sobre esses pontos, v. Response, p. 12, 21-2 (cf.
Dunn, B a p tism , p. 47-8, 90-3).
NO PODER DO ESPÍRITO 96

2.33). Na profecia de Joel, o Espírito vem como a fome de inspiração


profética, um ponto que novamente Lucas realça quando altera o tex­
to grego de Joel inserindo a expressão “e eles profetizarão” (At 2.18).
Outra alteração, a transformação que Lucas faz dos “escravos” de
Joel para “servos de Deus” — efetuada pela inserção de “meus/mi-
nhas” em Atos 2.18 (fato não refletido em J l 2.29 na NVl) — , realça
o que está implícito no texto de Joel: o dom do Espírito é concedi­
do somente aos que são membros da comunidade de salvos.35 Logo,
as definições explícitas de Lucas (Lc 24.49; A t 1.4-8) e sua citação
de Joel indicam que “a promessa” do Espírito, inicialmente cumpri­
da no Pentecoste (At 2.4), capacita os discípulos a iniciar a sua vo­
cação profética para o mundo.
Embora a “promessa” de Lucas acerca do Espírito deva ser inter­
pretada à luz da “promessa” de Joel referente à restauração do Espí­
rito de profecia, Atos 2.39 inclui um elemento extra à medida que
Lucas estende o alcance da promessa prevista para incluir a promes­
sa da salvação oferecida em Joel 2.32 (como também a promessa do
Espírito de profecia em Jl 2.28). Como Dunn observa, Atos 2.39
ecoa a linguagem de Joel 2.32/Atos 2.21: “Todo aquele que invocar
o nome do Senhor será salvo”. Em Atos 2.39, Lucas estende o alcan­
ce da promessa para incluir essa dimensão salvífica porque os desti­
natários não são discípulos.
Todavia, não devemos esquecer o fato de que “a promessa” de
Atos 2.39 abrange mais do que a experiência de conversão. De acor­
do com Lucas 24.49 e Atos 1.4 e 2.33, o dom prometido do Espírito
em Atos 2.39 refere-se à promessa do Espírito de Joel 2.28 e por­
tanto é uma promessa de capacitação profética concedida aos que se
arrependem.36 A promessa de Atos 2.39, igual à promessa de Jesus em
1.8, aponta para além da “restauração dos remanescentes de Israel”: a

35Como D unn observa, “na profecia de Joel o derramamento do Espírito ante­


cede os sobreviventes de Jerusalém que invocavam o Senhor por salvação”
(Response, p. 12). E antecedente porque é entendido como sinal — e, certamente
para Lucas, o meio pelo qual a mensagem é proclamada (cf. Lc 24.49; At 1.4-8) — de
que os “últimos dias”, período (da oportunidade para arrependimento) imediata­
mente precedente ao Dia do Senhor, haviam chegado.
36K. Lake e H. J. C adbury (Landon, Macmillan, 1933), The beginnings o f
Christianity , 4:26.
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN ) 97

salvação é oferecida Q1 2.32), mas a promessa inclui a renovação da


vocação profética de Israel para ser a luz para as nações (Jl 2.28) ?7
Dunn critica essa abordagem, propondo que leiamos as referên­
cias anteriores de Lucas à promessa do Espírito à luz da promessa
da salvação oferecida em Atos 2.39.3738 Porém, como vimos, Atos 2.39
não indica que o Espírito vem como a fonte da existência do novo
pacto. Em vez disso, simplesmente lembra que a profecia de Joel
2.28-32 inclui dois elementos: o dom do Espírito de profecia (v. 28)
e a oferta de salvação àqueles que invocam o nome do Senhor (v. 32).
Atos 2.39 refere-se a ambos, mas não propõe que os dois sejam idên­
ticos. De fato, essa espécie de equação vai de encontro às afirmações
explícitas de Lucas (Lc 24.49; A t 1.4-8), a citação e sua redação de
Joel (cf. A t 2.17,18) e o contexto mais amplo de sua obra em dois
volumes (e.g., Lc 3.16,17; A t 8.4-17; 19.1-7).
2) Dunn tenta dar suporte a sua interpretação de Atos 2.38,39
asseverando que o entendimento de Lucas da “promessa” do Espíri­
to — formulada claramente em Joel 2.28,29 — foi moldado tam­
bém por muitas outras passagens proféticas do Antigo Testamento
referentes ao papel escatológico do Espírito (e.g., Is 32.15; 44.3-5;
Ez 36.26,27). Na verdade, ele critica minha “completa falta de consi­
deração” por esses textos do Antigo Testamento. Além disso, dá a
entender que minha ênfase nas perspectivas pneumatológicas do ju­
daísmo intertestamentário é imprópria uma vez que Lucas não era
judeu da Palestina e teria familiaridade com a LXX (Septuaginta, a
versão grega do a t ) . 39 Mas os comentários de Dunn se esquecem de
vários pontos importantes.
a) Martin Hengel estabeleceu que as distinções rígidas entre ju­
daísmo helenista e palestino não devem ser enfatizadas demasiada­
mente, pois “a Palestina judaica não era uma ilha hermeticamente
selada no mar do sincretismo helenístico oriental”.40

37D. L. T iede, The exaltation of Jesus and the rcstoration o f Israel in Acts 1,
htr 79, 1986, p. 268-86.
3SResponse, p. 12, 21.
39Ibid., p. 21-2.
*°Judai$m andbellenism: studies in their encounter in Palestine duving the carly
hellenistic period, 1:312.
NO PODER DO ESPÍRITO 98

b) Muitas das fontes judaicas que cito têm origem no pensamento


do judaísmo helenístico que Lucas supostamente conhecia tão bem.
c) Dunn deixa de examinar como os textos do Antigo Testamento
que ele cita eram interpretados no judaísmo (do século i) que deu
origem ao cristianismo que Lucas conheceu. Por exemplo, ele não
reconhece que a transformação do coração referida em Ezequiel
36.26.27 era entendida como pré-requisito para a concessão escatoló-
gica do Espírito e que os rabinos interpretavam Isaías 44.3 como
referência ao derramamento do Espírito de profecia em Israel. Em
vez de simplesmente interpretar o ambiente do primeiro século de
acordo com nossos parâmetros e nossa exegese, é melhor perguntar
como os judeus mais próximos temporalmente dos primeiros cris­
tãos entendiam os textos relevantes e que importância lhes davam.
Isso é particularmente importante neste ponto, pois o derrama­
mento do Espírito era em geral interpretado à luz de Joel 2.28,29
como restauração do Espírito de profecia. Ao contrário, Ezequiel
3 6 .2 6 .2 7 era norm alm ente in te rp re ta d o com o uma p rofecia
concernente à remoção do “impulso” para o mal no fim dos tempos
e muitas vezes sem referência à atividade do Espírito. Na verdade, a
erradicação do “impulso” para o mal era apresentada como pré-re­
quisito para a concessão do Espírito de profecia no final dos tem­
pos.41 Isso significa que o convite de Dunn a que interpretemos a
“promessa” do Espírito à luz de uma abundância de textos do A n ti­
go Testamento conflita com as evidências das fontes judaicas antigas
e com o próprio punho de Lucas. (Lucas, como já observamos, não
cita nenhum desses outros textos do Antigo Testamento.) Simples­
mente não há evidências que dêem apoio à noção de que, ao referir-
se a Joel 2.28,29, Lucas pretendia que seus leitores pensassem em
alguma concessão soteriológica todo-abrangente do Espírito comu-
mente esperada, cujos detalhes tirados de uma variedade de textos
do Antigo Testamento se juntassem.
3) Por fim, a menção de arrependimento, batismo e recebimento
do Espírito em Atos 2.38 nos deve fazer reconsiderar essas conclu­
sões? Não, pois nos diz pouco a respeito da natureza do dom do

4lPara discussão adicional destes pontos e textos relevantes, v. M enzies,


Development , p. 52-111, especialmente p. 104-11.
EXEGESE: RÉPLICA A JA M E S DUNN 99

Espírito. Embora a menção possa indicar que para Lucas o ritual do


batismo na água é normalmente acompanhado da concessão do Es­
pírito, o uso que ele faz em outro lugar dá a entender que até essa
conclusão pode estar exagerando o caso. Não há certamente nada
no texto que dê crédito à alegação de Dunn de que o Espírito é
apresentado aqui como o “portador da salvação”.42
A opinião de Dunn faria sentido se pudéssemos estabelecer que o
texto pressupõe um laço inextricável entre batismo na água e o perdão
de pecados, de um lado, e o recebimento do Espírito, do outro. Mas
essa conclusão é forçada. Uma vez que Lucas não estabelece nenhuma
ligação forte entre o batismo na água e a concessão do Espírito e nor­
malmente separa o rito do dom (Lc 3.21,22; A t 8.12,13; 9.17,18; 10.44;
18.24), a frase “e vocês receberão o dom do Espírito Santo” (2.38)
deve ser interpretada como uma promessa de que o Espírito será
“transmitido aos que já são convertidos e batizados”.43 De qualquer
modo, o máximo que se pode depreender do texto é que o arrepen­
dimento e o batismo na água são os pré-requisitos normais para o
recebimento do Espírito, prometido para todo crente.
Em resumo, Dunn propõe que interpretemos o testemunho explí­
cito de Lucas a respeito da importância da “promessa” do Espírito em
Lucas 24.49, Atos 1.4 e 2.17,18 — textos que descrevem o dom pneu-
matológico como capacitação profética para a obra missionária
— à luz de uma interpretação questionável de Atos 2.38,39, conflitante
com o uso de Lucas em outro lugar (e.g., A t 8.4-17; 19.1-7). Além
disso, ele nos convoca a interpretar a “promessa” à luz de uma enorme
quantidade de textos do Antigo Testamento — nenhum dos quais
mencionado por Lucas ou ligado (da maneira sugerida) com o texto
de Joel pelos pensadores judeus da época — em vez de à luz do texto
que Lucas de fato cita (Jl 2.28-32) e das expectativas judaicas con­
temporâneas do evangelista. Alguns podem ser persuadidos por esses
argumentos, mas eu não os acho convincentes.

*2Baptism, p. 92.
43E. Schweiser, ttveupa, 6:412. O julgamento oferecido por S. Brown é con­
vincente: “Certamente é preferível interpretar a passagem de acordo com todos os
outros textos que consideramos e entender as palavras ‘e recebereis’ como se indi­
cassem um acontecimento posterior ao baiismo” (“Water-baptism” and “Spirit-
baptism” in Luke-Acts, p. 144).
NO PODER DO ESPÍRITO / i 100

Os textos relativos a Comélio: Atos 10.43-48; 11.14; 15.7-9

Os textos relativos a Cornélio são outro elo importante na argu­


mentação de Dunn. Indicando esses textos, Dunn escreve confian­
te: “Aqui [...] é difícil com certeza, além da perspicácia humana,
evitar a conclusão de que Lucas pretendia que seus leitores enten­
dessem a vinda do Espírito em termos soteriológicos”.4445Dunn en­
contra apoio para essa conclusão em Atos 10.43-48. Observa que o
Espírito desce justamente quando Pedro anuncia a promessa do per­
dão aos que crêem. A conclusão mais natural a ser retirada disso, ele
nos diz, é que o Espírito é o “transmissor do perdão”.43
Entretanto, isso ignora dois fatos importantes. 1) Em outras
partes Lucas sempre atribui o perdão ( aphesis
), que é concedido
em resposta à fé/arrependimento, a Jesus, nunca ao Espírito.46 Isso
nos deve prevenir contra fazer suposições fáceis nesse ponto, par­
ticularmente por causa da atribuição de perdão ao nome de Jesus
em 10.43.
2) Pedro também falou do testemunho dos profetas imediata­
mente antes da interrupção do Espírito: “Todos os profetas dão tes­
temunho dele” (10.43). Ora, o sinal decisivo do favor de Deus para
os gentios é seu recebimento do dom do Espírito, manifesto em
discurso inspirado (10.46). É esse sinal que surpreende os compa­
nheiros circuncidados de Pedro (10.45,46) e resulta em sua ordem
de batizar os convertidos gentios (10.47,48). E também é referin­
do-se a esse sinal que Pedro justifica sua comunhão à mesa com os
incircuncisos (11.3 ,15 -17 ) eaadmissão deles na igreja (15.8,9). Essa
ênfase no valor do sinal do batismo no Espírito está bem de acordo
com a pneumatologia profética típica de Lucas. Visto que, de acor­
do com Lucas, o recebimento do Espírito é privilégio exclusivo dos

44Response, p. 12. Para a discussão de Dunn desses textos, v. p. 12-4, 22-3.


45Ibid., p. 13.
44Aphesis é atribuído a Jesus (At 5.31; 13.38), ao nome de Jesus (Lc 24.47; A t
2.38; 10.43) e à fé em Jesus (At 26.18). V. tb. Lucas 1.77; 3.3; 4.18 (2x). Observe
as conclusões de G. H aya-P rats: “N ous n’avons trouvé aucun indice nous
permettant de dire que les Actes attribuent à 1’Esprit Saint le pardon des péchés
ou une purification progressive” (LEsprit , p. 123); “Luc attribue à Jésus toute
1’oeuvre du salut” (p.125).
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN >{ i 101

“servos” de Deus e em geral resulta em fala miraculosa e audível,47


por sua própria natureza o dom fornece prova demonstrativa de
que os membros incircuncisos da casa de Com élio tinham sido in­
corporados na comunidade de salvos. O sinal do dom profético tam­
bém é enfatizado na narrativa do Pentecoste (2.4,5,17-20). Seja dos
lábios de um judeu em Jerusalém, seja de um gentio em Cesaréia, a
manifestação da fala inspirada marca o falante como membro da co­
munidade profética dos últimos dias.
As evidências dão a entender que Pedro e seus companheiros (por­
tanto, Lucas também) viram o recebimento do Espírito pelos gen­
tios como um sinal decisivo de sua aceitação por Deus. A perspectiva
de Lucas baseia-se na natureza profética do dom pneumatológico.
Embora nesse exemplo (ao contrário de 8.17 e 19.6) o recebimento
do Espírito acompanhe a conversão, o texto não indica que o dom é
o meio pelo qual os incircuncisos são realmente purificados e per­
doados. Essa suposição não autorizada tem base nos resumos do
acontecimento registrados em 11.1 5 -17 e 15.8-10.
Indicando as semelhanças entre Atos 11.17a e 1 1 .1 8b, J. Dunn
declara: “Deus deu o Espírito (11.17) significa que Deus deu o arre­
pendimento para a vida (11.18 )”.48 Contudo, a equação de Dunn
deve ser rejeitada visto que em outros lugares o “arrependimento”
metanoia épré-requisito
(; ) para receber o Espírito (2.38,39) e é clara­
mente distinto do dom em si (cf. 5.31,32).49 As semelhanças entre
11.17a e 18b simplesmente refletem a lógica do argumento de Pe­
dro: uma vez que Deus concedeu aos gentios o dom do Espírito,17

17Dos oito exemplos em que Lucas descreve o recebimento inicial do Espírito


por um indivíduo ou grupo, cinco especificamente aludem a alguma forma de dis­
curso inspirado como conseqüência imediata (Lc l.4 l; 1.67; A t 2.4; 10.46; 19.6) e
um indica a ocorrência dessa atividade (At 8.15,18). Nos dois exemplos restantes,
embora o discurso inspirado esteja ausente do relato de Lucas (Lc 3.22; At 9.17), é
aspecto preeminente nas perícopes que se seguem (Lc 4.14,18,19; At 9.20).
“ Response, 14 (cf. Baptism, p. 81).
49M. T urner, Luke and the Spirit, p. 172; G. H aya-Prats, L'Esprit, p. 122-25.
Atos 5.31,32 é instrutivo: o arrependimento (m etanoia) e o perdão (apbesis)
são atribuídos diretamente a Jesus, a quem Deus exaltou à sua destra como
Salvador; o Espírito, dado aos obedientes, dá testemunho da verdadeira identi­
dade de Jesus.
NO PODER DO ESPÍRITO / 102

segue-se a fortiori que eles também receberam “arrependimento para


a vida” e são qualificados para o rito batismal.50
Dunn trata Atos 15.7-9 de maneira semelhante a 11.17,18: a con­
cessão do Espírito por Deus (15.8) é equiparada com a purificação
divina do coração deles (15.9).51 Mas outra vez o argumento de Pe­
dro em 15.7-9 fala contra essa equivalência.52 O versículo 8 é a pre­
missa da qual se retira a conclusão do versículo 9: a concessão do
Espírito por Deus dá testemunho (v. 8) da realidade de seu ato de
purificação (v. 9). Dunn observa que a gramática dá a entender que
tanto a purificação como a concessão do Espírito ocorrem simulta­
neamente, mas isso tem pouca importância. Embora em 10.44,45 a
conversão e o batismo no Espírito ocorram simultaneamente, a dis­
tinção lógica (nitidamente exigida pelas instâncias da separação cro­
nológica citada acima) está implícita na narrativa. O argumento de
Pedro aqui é semelhante ao de 11.16-18 . Em cada um a distinção
entre a premissa (dom do Espírito) e a conclusão (arrependimento/
purificação) é evidente.
Como observamos, nossa análise se apóia no emprego que Lucas
faz de “perdão” ( aphesis)
e “arrependimento” ( metanoia
) em outras
partes e nos exemplos de separação cronológica em sua narrativa
(At 8.17; 19.6). Entretanto, a objeção decisiva à interpretação de
Dunn é que Lucas equipara o dom do Espírito concedido à casa de
Cornélio não com a purificação e o perdão, mas com o dom pen-
tecostal da inspiração profética.53 Lucas enfatiza o ponto pela repeti­
ção: os gentios receberam o mesmo dom concedido aos discípulos
judeus no Pentecoste (10.47; 11.15,17; 15.8). A importância que Pe­

50I. H. Marshall, Acis, p. 197. Marshall observa que o texto de Atos 11.16
provavelmente signifique: “João batizou (meramente) com água, mas vocês serão
batizados (não somente com água, mas também) com o Espírito Santo”. Por isso,
Pedro considerou o batismo com água pré-requisito normal para o dom do Espíri­
to e sua conclusão é feita posteriormente. O batismo com água implica que o
batizando recebeu “arrependimento para a vida”.
51Response, p. 14 (cf. Baptism, p. 81-2).
52J. Taeger, D e r Mensch und, sein H eil, p. 108.
53D. H ill, N ew Testamentprophecy, p. 96-7: “O fato de Lucas ser tão cuidado­
so ao registrar os mesmos sinais da posse do Espírito naquelas duas grandes ocasiões
[At 3.4,5; 10.44,45] demonstra que para ele o caráter ‘profético’ do dom é central:
é a preparação para a proclamação do evangelho”.
EXEGESE: RÉPLICA A J A M E S DUNN 103

dro dá ao dom como sinal da aceitação de Deus baseia-se na natureza


profética desse dom, explicitamente afirmada no Pentecoste (2.17,18).
Na verdade, a manifestação do dom profético pelos gentios é o
acontecimento mais importante de uma série de intervenções divinas
que servem para iniciar e validar a missão gentílica. Uma vez que
esse é o propósito central de Lucas, ele não continua a se preocupar
nesse ponto com a importância do dom para a atividade missionária
dessa comunidade cristã recém-formada. Contudo, podemos pre­
sumir que o grupo profético de Cesaréia, como as comunidades de
Jerusalém e Samaria, por causa do dom do Espírito, participava efi­
cazmente do empreendimento missionário (cf. A t 18.22; 21.18).

C o nclusão

Argumentei, sobretudo contra as objeções de Dunn, que Lucas des­


creve o dom do Espírito exclusivamente em termos carismáticos ou
proféticos como a fonte de poder para o testemunho eficaz. Embo­
ra Dunn dê a entender que essa conclusão diminui “o peso e a força
da pneumatologia de Lucas”54, argumento que ela realmente confirma
a contribuição especial que Lucas tem a fazer para uma teologia bíbli­
ca do Espírito — contribuição que tem implicações de longo alcance
para a vida da igreja contemporânea. Na verdade, a tentativa de Dunn
de “salvaguardar a plenitude e a integridade da pneumatologia de
Lucas” tira a nitidez e o vigor da mensagem do evangelista.55
Mais de vinte anos atrás, Dunn observou as contribuições positi­
vas do movimento pentecostal, especialmente “a descoberta deles
do Espírito em termos de experiência”. E com tristeza, expressou a
esperança de que “alguma síntese da experiência pentecostal com as
tradições mais antigas” podia “resultar numa nova presença caris­
mática tanto mais fiel ao [...] Novo Testamento quanto mais adap­
tável ao nosso mundo de mudanças rápidas”.56 Essa esperada síntese,
do ponto de vista de Dunn, incluía a rejeição do entendimento pen­
tecostal do Pentecoste e do batismo no Espírito. Apesar disso, não
há nenhuma ligação entre a experiência e a teologia? É possível que

54Response, p. 26.
55Ibid., p. 26.
56Spirit-baptism and pentecostalism, sj r 23, 1970, p. 406-7.
NO PODER DO ESPÍRITO / ■ 104

nossas “tradições mais antigas”, ao menos com referência à teologia


de Lucas e o Pentecoste, possam embotar nossa consciência de ex­
pectativa, entendimento e, em última análise, de experiência do dom
pentecostal?
Os pentecostais, como observamos, há muito afirmaram que o
propósito do dom pentecostal é dar poder aos crentes para ser tes­
temunhas eficazes. Esse entendimento missiológico do batismo no
Espírito, enraizado na narrativa do Pentecoste em Atos 1 e 2, dá
nitidez significativa à experiência. Ao contrário das descrições do
batismo no Espírito (no sentido de Lucas) tímidas (e.g., “purifica­
dor”) ou vagas (“poderoso” ou “carismático”), os pentecostais ex­
pressaram um propósito claro: poder para missão. Contudo, quando
o caráter distintivo da pneumatologia de Lucas é obscurecido e o
dom pentecostal identificado com conversão, esse enfoque missio­
lógico (e eu acrescentaria, de Lucas) se perde.
Além do mais, esse obscurecimento do foco inevitavelmente di­
minui o senso de esperança das pessoas. Pois é sempre possível ar­
gumentar, como faz a maioria dos evangélicos tradicionais, que
enquanto todos experimentam o aspecto soteriológico do dom pen­
tecostal na conversão, somente uns poucos selecionados recebem
dons de poder missiológico. Todavia, a voz distintiva de Lucas nos
lembra de que a igreja, por causa do dom pentecostal recebido, é
uma comunidade profética capacitada para a tarefa missionária.

P erguntas para estudo

1. Em que medida James Dunn foi ao mesmo tempo crítico da teo­


logia pentecostal e colaborador dela?
2. James Dunn destaca claramente a continuidade entre a pneuma­
tologia de Lucas e a de Paulo. Por que isso o leva a rejeitar a
teologia pentecostal?
3. Segundo o autor, qual é a questão central do debate atual entre
tradicionais e pentecostais?
4. Que textos importantes são citados para dar apoio à tese de que
a pneumatologia de Lucas é diferente da de Paulo?
/
EXEGESE: REPLICA A JA M E S DUNN 105

5. Que textos importantes são citados por Dunn para apoiar sua
tese de que Lucas, como Paulo, apresenta o Espírito como agen­
te soteriológico, o elemento principal na conversão?
6. Como você avalia a tese central de Dunn? Com o avalia a respos­
ta de Menzies? Que implicações surgem dessa discussão para a
teologia pentecostal?
capítulo • 6

Exegese: réplica a
Max Turner

ax Turner escreveu recentemente duas monografias substan­


M ciais. O primeiro volume, muito extenso e técnico, concen­
tra-se em particular na pneumatologia de Lucas.1A segunda obra,
mais concisa e dirigida aos não-especialistas, tem alcance mais am­
plo em seu objetivo.2 Discute a forma da pneumatologia do Novo
Testamento de maneira mais geral e trata de questões relacionadas ao
interesse da igreja hoje. Os dois livros são o que esperaríamos do prof.
Turner. São marcados por conhecimento impressionante da litera­
tura secundária, análise cuidadosa dos pontos de vista opostos e pela
apresentação lógica e detalhada do seu próprio ponto de vista.
A tese principal de ambos os livros é que todos os escritos do
N ovo Testamento refletem o entendimento comum do Espírito
como o Espírito de profecia. Com certeza, esse fundamento teoló­
gico é tomado e desenvolvido de diversos modos por vários auto­
res, mas pode-se encontrar uma unidade essencial através de todo o
Novo Testamento. O Espírito, como o Espírito de profecia, conce­
de sabedoria e revelação assim como o discurso profético e o lou­
vor. A sabedoria proporcionada pelo Espírito vem com poder
transformador e santificador e por isso é essencial para a fé autênti­
ca e a existência cristã. Esse núcleo essencial se reflete nas contri­
buições importantes de Lucas, João e Paulo. Todos eles descrevem o
dom do Espírito como necessidade soteriológica e central para a
conversão. Por essa razão, o prof. Turner rejeita “a visão pentecostal

'Power from on high.


2The H oly Spirit an d spiritual gijis. Nossa resenha dará destaque a esse livro,
que tem escopo mais amplo e é mais aeessível ao leitor em geral.
NO PODER DD ESPÍRITO 108

clássica do recebimento do Espírito em dois estágios” em favor de


um “paradigma mais amplamente carismático da conversão-inicia-
ção num só estágio”.3
Neste capítulo, vou analisar essa tese. Meu alvo não é oferecer
uma crítica detalhada e abrangente dessas obras substanciais.4 Em
vez disso, gostaria de assinalar o que creio ser os principais pontos
de fraqueza da tese geral de Turner, particularmente no que se rela­
ciona a Lucas— Atos. Desse modo creio que a discussão progressiva
a respeito da obra do Espírito no Novo Testamento e nos dias de
hoje pode, de algum modo, continuar.
Quero prefaciar minha crítica com uma palavra de apreciação pela
obra do prof. Turner. Encontrei-o pela primeira vez na Universida­
de de Aberdeen, Escócia. Eu era um jovem aluno de doutorado; ele
acabara de chegar como um novo integrante do corpo docente da
faculdade de teologia da universidade. Tenho vivas memórias de
nossas discussões naquela época, às vezes muito animadas e estimu­
lantes. Nossas conversas não terminaram com a minha saída (e mais
tarde a dele) de Aberdeen;5 antes, continuamos as discussões tanto
em vários fóruns acadêmicos quanto por correspondência parti­
cular. Embora tenhamos muitos pontos em comum, nosso diálogo
público tem inevitavelmente destacado áreas de discordância. Sem­
pre enxerguei as alfinetadas, as críticas e as indagações como bênção
em vez de maldição. É exatamente por esse tipo de diálogo que cres­
cemos na compreensão um do outro e das questões diante de nós.
Valorizo enormemente o prof. Turner como amigo, ex-professor e
colega talentoso.
Há obviamente muita coisa nesses dois livros que eu gostaria de
corroborar. Vejo-me de acordo com a noção de que, pelo menos num
sentido, todos os cristãos, por causa do recebimento do Espírito na

}IbicL, p. xii.
'Para uma perspectiva mais ampla, ver a convincente resenha de John Christo-
pher Thomas, que discute a análise de Turner a respeito de Paulo e João assim como
de Lucas (J.C. Thomas, M ax Tumer’s The Holy Spirit and spirilual gifts: then and
now: an appreciation and critique”, JP T 12,1998, p. 3-21. Observe também a respos­
ta de Turner no mesmo número (M. T urner, Readings and paradigms: a response to
John Christopher Thomas, j p t 12, 1998, p. 23-38).
sO prof. Turner agora é vice-diretor para assuntos acadêmicos na London Bible
College.
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER '0 109

conversão, são carismáticos e devem ser cada vez mais. A obra


transformadora e santificadora quase sempre vem em forma de sa­
bedoria carismática. Assim, Turner corretamente salienta a natureza
carismática de nossa vida no Espírito. Considero essa discussão dos
dons do Espírito particularmente útil. Em minha opinião, ele de­
senvolve um argumento devastador contra as alegações cessacionistas.
Há, entretanto, vários pontos que exigem consideração extra. 1)
Q uero esclarecer minha própria posição com respeito à natureza da
obra do Espírito em Lucas— Atos. 2) Pretendo desafiar a idéia de Turner
de que os escritos do judaísmo intertestamentário (freqüentemente)
e os de Lucas (mesmo eventualmente) descrevem o Espírito como a
fonte de sabedoria necessária para viver um relacionamento correto
com Deus. 3) Responderei à crítica de Turner ao meu método teoló­
gico e a sua rejeição ao modelo pentecostal de dois estágios.

0 E s p ír it o em Lu c a s— A to s:
ESCLARECIMENTO DE MINHA POSIÇÃO

É evidente que Turner e pelo menos um de seus alunos às vezes


deixaram de compreender as nuanças de meu argumento e portanto
fizeram uma caricatura de minha posição. Dessa forma, com o títu­
lo “O Espírito exclusivamente como capacitação para missão?”,
Turner avalia minha tese com estas palavras:

Essa interpretação é obviamente restrita demais para ser susten­


tada [...] essa concepção precisa fazer vista grossa para uma série
toda de textos pneumatológicos de Atos que tem pouco ou nada
a ver com a capacitação missionária, mas servem para a vida espi­
ritual da igreja (ou dos membros individualmente).6

6The H oly Spirit, p. 47-8. Observe também o desprezo arrogante encontrado


em W . A t k i n s o n , Pentecostal responses to Dunn’s Baptism irt the H oly Spirit:
Luke-Acts, j p t 6, 1995, p. 120-4. Por exemplo, após afirmar que a minha tese da
capacitação profética é demasiadamente limitada, Atkinson observa que há “evi­
dências de que Lucas também pensa no Espírito como a orientação da igreja na
conduta de seus próprios afazeres” (p. 123). Essas afirmações ignoram o contexto
maior de minha obra e, particularmente, os Apêndices de Empowered fo r witness,
p. 258-9; v. tb. p. 187 n. 4.
NO PODER DO ESPÍRITO .1 1 0

Isso, claro, dá a entender que eu nego a atividade do Espírito, em


qualquer sentido, na vida comunitária da igreja. Esse mal entendido
talvez se deva à minha falta de esforço para apresentar essa opinião a
um público mais amplo. E sempre difícil captar a essência do pensa­
mento de alguém numa frase curta, embora às vezes se exija isso.
Em meu livro Empoweredforwitness [Capacitadopara testemunhar ],
classifiquei a pneumatologia de Lucas como “profética” e forneci
argumentos e explicação detalhados desta postura. Em artigos pos­
teriores, a maioria dirigida ao público mais amplo, descrevi a pneu­
matologia de Lucas como “carismática”, “profética” e “missiológica”.
Creio que cada um desses termos, se entendido devidamente, realça
aspectos importantes do entendimento de Lucas acerca do Espírito.
Talvez, o emprego eventual do adjetivo “exclusivo” em relação aos
termos acima tenha causado alguma confusão. De qualquer modo,
sou grato por esta oportunidade de ajudar a esclarecer alguns mati­
zes importantes de minha própria posição.
Minha definição concisa do entendimento que Lucas tem do
dom do Espírito é a seguinte: “capacitação profética que dá poder
ao indivíduo para a participação na missão de Deus”. Essa defini­
ção, entendida no contexto mais amplo de meu livro, na realidade
tem três propósitos principais. Sustento que o dom do Espírito
em Lucas— Atos é não-soteriológico (ou carismático), profético
e missiológico.

Aspecto não-soteriológico (ou carismático)

Lucas não apresenta o recebimento do Espírito como necessário para


que alguém entre e permaneça na comunidade de salvos: a fonte de
purificação, justiça, comunhão íntima com Deus e conhecimento
dele.7 Claro que em Atos o Espírito, como a fonte da sabedoria
profética e do discurso, de fato às vezes causa impacto na vida mo­
e.g
ral ou ética da igreja ( ., A t 5 .1-11). Esse tipo de influência in-
7Ao contrário, Paulo apresenta claramente o Espírito como a fonte de purifica­
ção (Rm 15.16; ICo 6.11), justiça (Rm 2.29; 8.1-17; 14.17; G1 5.5,16-26), comu­
nhão íntima com Deus (Rm 8.14-17; G 14.6) e conhecimento de Deus (ICo 2.6-16;
2Co 3.3-18).
/
EXEGESE: REPLICA A M AX TURNER " 111

direta sobre a comunidade mais ampla, mediada pelo profeta, é to­


talmente coerente com o julgamento expresso acima: em Lucas—
Atos o dom do Espírito jamais é apresentado como a fonte de
transformação moral para o seu recipiente.
Uma coisa é afirmar que o Espírito influencia, de maneira indire­
ta (i.e.,
por meio do dom profético), a vida ética da comunidade,
outra totalmente diferente é declarar que o Espírito transforma de
modo direto a vida ética de cada indivíduo
da comunidade.8 Esta
última noção, embora expressa claramente por Paulo (e.g., IC o 6.11),
não é um aspecto da pneumatologia de Lucas. Portanto, mantenho
que para Lucas o dom do Espírito não é uma necessidade sotcrioló-
gica, é, sim, um donum superadditum (ou um dom carismático)\
Quando emprego o vocábulo “exclusivo” (e.g., “exclusivamente pro­
fético” ou "exclusivamente missiológico”), deve ser entendido nes­
te contexto: o Espírito em Lucas—A tos nunca é
apresentado como
agente soteriológico.

Aspecto profético

Também argumentei que o Espírito em Lucas— A tos é apresenta­


do quase que exclusivamente como a fonte de discurso inspirado
e revelação especial. Os milagres (curas, exorcismo, atos de poder)
também são associados com o Espírito, mas apenas indireta e caute­
losamente. Segundo Lucas, a manifestação principal do Espírito é a
inspiração profética, que resulta em sabedoria carismática e/ou dis­
curso inspirado. Dessa forma, prefiro caracterizar a pneumatologia
de Lucas como “profética” em vez de “carismática”.

Aspecto missiológico

Para Lucas, o Espírito é “o Espírito para os outros”, e o impacto da


inspiração do Espírito é associado principalmente com o empreen­
dimento missionário da igreja, a) O Espírito em Lucas— Atos não é

sVeja os meus comentários relacionados a esse assunto em E m p o w e re d , p. 258.


A expressão latina do n u m su p era d d itu m significa “dom acrescentado posterior­
mente” — dado nesse caso como uma “segunda bênção” —, que não havia sido
dado na conversão. (N. do T.)
NO PODER DO ESPÍRITO / , 112

dado principalmente para o benefício do recebedor, ao contrário, é


dirigido para outros. Roland Allen descreve belamente essa ênfase
de Lucas quando fala do Espírito como “o Espírito do amor reden­
tor [de Deus], ativo [em nós] para com os outros”.9
b) O Espírito em Lucas— Atos é também Espírito de missão.10
Conquanto seja verdade que a profecia dentro da comunidade (i.e.,
dirigida aos crentes) está associada com o Espírito, este não é o foco
de Lucas. Mesmo aqui, Lucas liga a inspiração do Espírito à missão
ou à expansão externa da igreja (At 9.31; 11.24). Novamente, o lou­
vor não é realçado como manifestação do Espírito de profecia."
Embora isso não seja incompatível com a teologia de Lucas (eu en­
xergaria isso como uma forma de discurso inspirado), essa não é sua
preocupação. E a alegria e outros efeitos psicológicos e emocionais
da presença do Espírito são às vezes relacionados à missão da igreja,
mas não são vistos como significativos em si ou como ênfase da
obra do Espírito.
Enfim, não nego que em Lucas—A tos o Espírito esteja associa­
do com os fenômenos proféticos dentro da comunidade dos cren­
tes, simplesmente sustento que isso precisa ser reconhecido como
expressão do “Espírito para os outros” e como efeito secundário da
inspiração do Espírito de profecia: o testemunho da igreja para o
mundo incrédulo.
Creio que este esclarecimento, ainda que breve, vai auxiliar ou­
tras pessoas a formar um entendimento mais claro da minha posi­
ção. Sempre se espera que os vários matizes dos argum entos
apresentados num livro extenso sejam entendidos, mas nem sempre
isso ocorre. E talvez a eventual necessidade de expor uma posição
de modo conciso aumenta a probabilidade de entendimento incor­
reto. De qualquer modo, acho, com efeito, que o menosprezo de
minha posição com base no fato de eu não dar espaço para a obra do

‘'The revelation of the Holy Spirit in the Acts o f the Apostles, p. 160-7.
,0V. John Michael Penney, The missionary emphasis oflukan pneumatology.
"O discurso inspirado descrito em Atos 2.11 não deve ser entendido simples­
mente como louvor dirigido a Deus. E, acima de tudo, proclamação. V. minha
discussão deste texto em Empowered, p. 177.
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER " 113

Espírito na comunidade é infundado. É necessário uma leitura mais


cuidadosa dos meus escritos.

T urner: o E s p ír it o de p r o f e c ia c o m o
AGENTE SOTERIOLÓGICO

Com o observei, Turner enfatiza a unidade fundamental que perpas­


sa a pneumatologia dos vários autores do N ovo Testamento. Eíe
afirma que Lucas, João e Paulo atribuem quatro funções centrais ao
Espírito. O Espírito como o Espírito de profecia inspira revelação
ou orientação e sabedoria carismáticas, discurso profético intrépido
e adoração ou louvor carismático vivo.12
A compreensão de Turner em relação à sabedoria carismática dada
pelo Espírito é de importância especial, pois ele sustenta que o Es­
pírito atua como agente soteriológico: o Espírito concede a sabedoria
necessária para o indivíduo entrar e permanecer na comunidade dos
salvos. O Espírito como a fonte de sabedoria carismática é o elo
essencial que liga o crente a Cristo. Sem essa sabedoria inspirada
pelo Espírito, a existência cristã autêntica é inconcebível. Turner
sustenta que esse conceito do Espírito como o dispensador de sabe­
doria que dá vida é central na pneumatologia de Lucas, na de João e
na de Paulo. Portanto, é fundamental para sua tese mais ampla, pois
é o principal meio pelo qual reúne em nível fundamental ou soterio­
lógico a pneumatologia dos vários escritores do N ovo Testamento.
Entretanto, deve-se perguntar: Isto representa exatamente a pers­
pectiva de Lucas? Poucos, se é que alguém, hão de negar que Paulo
(ICo 2.6-16) e João (Jo 16.12-15) apresentam o Espírito como a fon­
te da sabedoria que dá vida — a sabedoria essencial para a existência
cristã. Mas seria passível sustentar que esse também é o entendi­
mento de Lucas? Proponho que a tese de Turner é imprecisa nesse
ponto crucial. Com seus quatro dons prototípicos (citados acima),

l2Para uma descrição desses “dons prototípicos”, v. T urnkr, op. cit., p. 6-12.
Para Turner, o termo “invasivo” significa “como o Espírito vem sobre as pessoas
tomadas e inspiradas para falar”. Essa forma “invasiva” de discurso profético dife­
rente da “forma usual de profecia, que não era inspirada imediatamente, mas en­
volvia o relato a um público-alvo de alguma revelação concedida (talvez dias ou
semanas) de antemão” (ibid., p. 10).
NO PODER DO ESPÍRITO A 114

Turner criou um sistema e o impingiu a Lucas.13 Os textos relevantes


(textos judaicos intertestamentários e Lucas—Atos) em geral descre­
vem o Espírito como a fonte da sabedoria hermética, mas raramente
as fontes judaicas, e jamais Lucas, apresentam o Espírito como a fonte
de sabedoria no nível mais fundamental de sabedoria doadora de vida.
Um exame da argumentação de Turner revela uma série de fraquezas.

0 contexto judaico

Turner começa seu estudo com um exame das atitudes judaicas em


relação ao Espírito. E onde encontramos pela primeira vez os qua­
tro dons prototípicos, incluindo sua avaliação do Espírito como a
fonte da sabedoria que dá vida. A suposição de Turner de que o
Espírito provê sabedoria “essencial para a existência humana plena­
mente autêntica diante de Deus”14 é apoiada por diversas citações
da literatura de Qumran, que Turner observa mostrarem-se extraí­
das de Ezequiel 36.26,27. Ele também propõe que as tradições
rabínicas acerca de Ezequiel 36 e as concepções judaicas do Espírito
sobre o Messias fortalecem sua tese. Não obstante, nenhum desses
pontos é tão importante quanto Turner pensa. Seguramente não
apoiam a noção de que os judeus do século i associavam o Espírito
com a sabedoria que dá vida. Vamos examinar as várias partes da
evidência.
1) Turner dá muita importância às tradições messiânicas relacio­
nadas a Isaías 11.1-4 como, por exemplo, o Targum de Isaías,
que
fala do Messias como possuidor de “espírito de sabedoria e entendi­
mento, espírito de conselho e de poder, espírito de conhecimento e
de temor do Senhor”.15 Conclui que essas tradições associam o Es­

13É também duvidoso se o conceito de Paulo acerca do Espírito pode ser enten­
dido corretamente apenas como uma forma desenvolvida do Espírito de profecia.
A proposta de Craig Keener de que o Espírito é a fonte da pureza e da profecia
indica uma corrente adicional e importante na concepção paulina (1 Co 6.11), cor­
rente que falta em Lucas—Atos (v. C. K eener, The Spirit in the Gospels andA cts:
divine purity and power. Além disso, a obra transformadora do Espírito (Rm 8) e
as referências ao Espírito como a fonte da ressurreição (Rm 1 .4; cf. 1Co 15.42-49)
parecem transcender as categorias do Espírito como o Espírito de profecia tam­
bém. Esta discussão, contudo, leva-nos muito além dos limites deste estudo.
14T urner, op. cit., p. 15.
15Ibid., p. 17.
EXEGESE: REPLICA A M A X T U R N E R rj 115

pírito de profecia com a vitalidade ética e dá a entender que apoiam


por isso sua caracterização do Espírito como um agente soterioló-
gico, a fonte da sabedoria que dá vida.
Todavia, não é certo que os judeus do século i não teriam entendido
que esses textos indicam que o Espírito concedeu ao Messias a sabe­
doria doadora de vida ou a sabedoria necessária para o Messias viver
em relacionamento correto com Deus. O que se relata nessas tradi­
ções é a concessão do Amtscbarisma, a capacidade de governar com
sabedoria e poder. Embora nesses textos o Espírito esteja associado
com a sabedoria e a perspectiva ética, ainda é sabedoria hermética
(uma forma especial e elevada de sabedoria) em vez de sabedoria doa­
dora de vida. Diante das tradições judaicas que falam da retirada do
Espírito como conseqüência do pecado de Israel ( ., mhg 135, e.g Geri.
139-40), é admissível pensar no Espírito concedendo ao Messias a
justiça e a sabedoria “necessárias à existência autêntica perante
Deus”? Por certo, é mais plausível entender esses textos como refe­
rência a uma capacitação especial e carismática para governar dada
ao Messias porque ele é digno e justo.
É interessante observar que Turner entende a unção de Jesus pu­
ramente no que se refere a capacitação para a missão, e não a algo
que lhe traga “novo pacto de vida” ou “filiação escatológica”.K> Isso
dá a entender que a ligação entre esses textos messiânicos e a sabe­
doria doadora de vida é motivada mais pelo desejo de Turner cons­
truir sua tese que pela própria evidência.
2) Turner indica as tradições rabínicas relacionadas a Ezequiel 36
como apoio a sua tese. Entretanto, como já observei em outra oca­
sião, a maioria dessas tradições interpreta Ezequiel 36.26 como re­
ferência à remoção do impulso para o mal (yetzer
) no fim dos
tempos e, desse modo, quase sempre sem referência à atividade do
Espírito. Os rabinos em geral apresentam a transformação do cora­
ção aludida em Ezequiel 36 como pré-requisito para o derramamen­
to escatológico do Espírito, entendido como a restauração do
Espírito de profecia (J1 2.28-32).1617 Ainda que seja possível interpre­

16Ibid., p. 34.
I7V. M enzies, Empowered, p. 94-8, c os textos rabínicos aí citados.
NO PODER DO ESPÍRITO 116

tar alguns desses textos de modo diferente, o máximo que Turner


pode dizer é que a evidência é confusa, ambígua e tardia.
3) Por fim, Turner indica a literatura de Qumran. Nela, como já
observei em outra ocasião, de fato encontramos textos que descre­
vem o Espírito como a fonte da sabedoria que dá vida.18 Todavia,
essa linha de evidência de um grupo sectário (ver também Sabedoria
de Salomão 9.17) precisa ser vista em relação à vasta quantidade de
literatura que fala do Espírito unicamente como a fonte de sabedo­
ria hermética. O ponto de vista dominante, ilustrado claramente em
Siraque e 4 Macabeus, é que a sabedoria doadora de vida é associada
com a lei e pode ser alcançada por meios puramente racionais —
estudar sem a ajuda da iluminação do Espírito. Em resumo, enquan­
to alguns textos de fato atribuem sabedoria hermética (ou níveis
mais elevados de sabedoria) à inspiração do Espírito (e.g.,Siraque
39.1-8), também afirmam que a realização sapiencial em nível mais
fundamental é acessível simplesmente pelo estudo da lei.
Tudo isso indica que é incorreto presumir que a maioria dos judeus
do século i identificava o Espírito como a fonte da sabedoria doadora
de vida — a sabedoria necessária para uma “existência autêntica pe­
rante Deus”. As evidências indicam que essa perspectiva pneumato-
lógica era realmente rara nos círculos judaicos do século i. Quando se
trata do N ovo Testamento, e particularmente de Lucas—Atos, te­
mos de exigir evidências claras para alegações semelhantes. Contudo,
isso é exatamente o que Turner deixa de fazer.

Lucas— Atos

Que textos dão suporte à alegação de Turner de que Lucas apresenta


o Espírito como a fonte de sabedoria que dá vida? Turner aduz
quatro linhas principais de evidência: 1) a profecia de João Batista
(Lc 3.16,17) é citada como referência à obra de purificação e restau­
ração do Messias inspirado pelo Espírito; 2) Jesus vence as tenta­
ções no deserto (Lc 4.1-13) com a “sabedoria carismática” concedida
pelo Espírito; 3) o resumo da vida da comunidade em Atos 2.42-47
implica que o Espírito é a força operante na vida moral e religiosa da
comunidade cristã; e 4) a descrição de Lucas do dom Pentecostal

,8Op. cit., p. 71-82.


EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER 117

em Atos 2 dá a entender que esse dom é central para a restauração


de Israel, a maneira que Jesus exerce seu governo de purificação e
transformação sobre Israel. Vamos dar uma olhada em cada um des­
ses pontos.19
1) A profecia de João Batista. Pode haver pouca dúvida com
relação à importância da profecia de João Batista (Lc 3.16,17) para
nossa discussão atual. Craig Keener ilustra esse ponto quando de­
clara:
Enquanto João Batista, Paulo, João, o apóstolo e outros do Novo
Testamento normalmente falaram do batismo no Espírito como
toda a esfera da obra do Espírito (incluindo o novo nascimento e
a inspiração profética), Lucas focaliza quase que com exclusivida­
de o aspecto da capacitação profética do Espírito. Como muitos
de nós argumentaram em outros lugares, Lucas enfatiza particu­
larmente o papel do Espírito no discurso inspirado [...] Manten­
do o contraste de João entre o Espírito e o fogo, Lucas 3.16pode
constituir a única exceção clara a essa ênfase.20
Mas quando a profecia de João Batista é entendida corretamente,
essa “única exceção clara” desvanece. O contexto histórico judaico
é particularmente instrutivo. Não há referências pré-cristãs a ne­
nhuma concessão messiânica do Espírito que purifica e transforma
o indivíduo. Entretanto, há uma riqueza de passagens que descre­
vem o Messias como capacitado de maneira carismática com o Espí­
rito de Deus para poder governar e julgar ( ., e.g lEnoque
49.3; 62.2).
E Isaías 4.4 refere-se ao Espírito de Deus como o meio pelo qual a
nação de Israel (não os indivíduos!) será peneirada e os justos sepa­
rados dos ímpios e assim tornados puros.
Alguns textos harmonizam esses dois conceitos. Talvez mais
notável seja Salmos de Salomão 17.26-37, uma passagem que descre­
ve como o Messias, “poderoso no Espírito Santo” (17.37), purifica­
rá Israel expulsando todos os estranhos e pecadores da nação. Isaías

19Turner também dá a entender que a associação íntima entre a conversão e o


recebimento do Espírito em Atos indica que o Espírito é essencial para a existência
do cristão autêntico. Uma vez que tratamos dessa objeção em capítulo anterior,
não vamos discuti-la aqui.
2:3 crucial questions about the H oly Spirit, p. 35 (grifo meu).
NO PODER DO ESPÍRITO J) 118

11.2,4, eco de lEnoque62.2 e lQ Sb 5.24,25, declara que o Messias


capacitado pelo Espírito matará o ímpio “com o sopro dos \ruach\
seus lábios”. Nesse contexto não é difícil antever o Espírito de Deus
como instrumento empregado pelo Messias para mudar e purificar
a nação. Na verdade, esses textos dão a entender que quando João
Batista se referiu em linguagem m etafórica ao derram am ento
messiânico do Espírito, ele tinha em mente os oráculos inspirados
pelo Espírito do julgamento pronunciado pelo Messias (cf. Is 11.4),
sopros do Espírito que separariam o trigo do joio.
Lucas, escrevendo à luz do Pentecoste, enxerga o quadro mais
pleno e aplica a profecia ao testemunho inspirado pelo Espírito da
igreja primitiva (At 1.4,5). Pelo testemunho desses crentes, o trigo
é separado do joio (Lc 3.17; cf. 2.34). Resumindo, João Batista des­
creveu a obra do Espírito não purificando os indivíduos arrependi­
dos, mas como uma rajada da “respiração” de Deus que peneiraria a
nação. Lucas vê a profecia, pelo menos com referência à obra de
peneiramento do Espírito, cumprida na missão da igreja inspirada
pelo Espírito. O ponto essencial é que aqui Lucas apresenta o Espí­
rito não como a fonte de purificação do indivíduo, mas como a for­
ça encorajadora por detrás do testemunho da igreja.
A interpretação de Turner desse texto crucial é na realidade se­
melhante à minha. Ele também reconhece a importância do pano de
fundo judaico e afirma: “Não temos necessidade alguma de presu­
mir que João tenha ido além da expectativa tradicional de uma figu­
ra messiânica cumprindo poderosamente Isaías 11.1-4 ”.21 Mas Turner
não destaca a importância desse fato: o Espírito é então visto não
purificando indivíduos arrependidos e dando-lhes um coração para
Deus, mas como uma força que peneira a nação, separando os
arrependidos dos impenitentes. Isso sem dúvida se deve ao fato de
que Turner aceita a tese apresentada por Robert Webb de que o ins­
trumento daquele que estaria por vir é uma pá, e portanto ele viría
para purificar ou hmpar a eira, não para separar o trigo do joio em
Israel.22 Turner fala desse assunto claramente:

2,Op. cit., p. 26.


22R. L. W ebb, The activity o f John the Baptist’s expected figure an the threshing
floor (Matthew 3.12 = Luke 3.1 7 ) ,J S N T 43, 1991, p. 103-11.
EXEGESE: RÉPLICA A M AX TURIMER ^ 119

Da perspectiva de João Batista, a tarefa daquele que estava por vir


não é separar o trigo do joio em Israel, nem o instrumento em sua
mão é uma pá (como em geral se afirma). João entendeu que ele
mesmo já havia cumprido grande parte do processo de separação
por intermédio de sua pregação e ministério batismal. De seu pon­
to de vista, o que resta para aquele que está porvir para “limpara
eira” (Lc 17b) é cuidar do trigo já separado do joio: logo, correta­
mente, ele vem com a pá (ptuon
) na mão.23

Há, contudo, algumas objeções de peso à opinião de que a profe­


cia de João trata da limpeza (normalmente associada com o arrepen­
dimento individual) em vez do peneiramento (como Is 4.4 indica
que a nação será limpa), a) A importância da argumentação de Webb
de que o termo ptuon se refere a uma pá em vez de ancinho não deve
ser sobreestimada. Acho que esse é um exemplo clássico de exegese
exagerada. Morei na China nos últimos seis anos. Nas regiões rurais
de nossa província ainda se podia ver o processo de tamisação reali­
zado como há milhares de anos. A separação real do trigo do joio é
feita com uma série de instrumentos, entre eles cestas, pás e garfos.
Teria sido diferente na Palestina? Afinal de contas, tanto a pá quan­
to o garfo podem ser utilizados para joeirar o trigo. Creio que não é
razoável presumir que se o público de Lucas lesse “pá” em vez de
“garfo”, teria compreendido imediatamente a metáfora toda (Lc 3.17)
para referir-se simplesmente à limpeza da eira, e não ao peneirar.
b) A segunda crítica dessa interpretação é que é visivelmente
sem informação do entendimento de Lucas acerca da profecia de
João. Observe as palavras proféticas de Simeão proferidas sobre o
C risto pequenino, claras a esse respeito: “Este menino está destina­
do a causar a queda e o soerguimento de muitos em Israel” (Lc 2.34).
Acima de tudo, é Jesus, não João Batista, que vai peneirar e separar
(cf. 12.49-53). Como já observamos, o trabalho de peneirar é conti­
nuado pelos discípulos por meio de seu testemunho inspirado pelo
Espírito (At 1.4,5). Em resumo, propor que “aquele que está por
v ir” simplesmente trata “do trigo já separado do joio” é ler errado
Lucas— Atos.

»O p. cit., p. 26 (grifo meu).


NO PODER DO ESPÍRITO S) 120

c) Por fim, o contexto histórico judaico dá forte indicação para


entendermos que a limpeza da nação prevista por João Batista se
cumprirá na separação do ímpio do justo (Is 4.4; Salmos de Salomão
17.26-37; lEn 62.2; IQSb 5.24,25). Todas essas passagens impor­
tantes realçam esse aspecto de peneiramento da obra do Espírito:
não descrevem o Espírito transformando indivíduos arrependidos,
mas, o Messias capacitado pelo Espírito peneirando a nação.
Logo, a profecia de João não deve ser entendida como “a única
exceção clara” da pneumatologia profética de Lucas. Ao contrário, a
profecia é totalmente coerente com ela e não oferece nenhum apoio
para a tese de Turner de que o Espírito de profecia em Lucas— Atos
atua como agente soteriológico, conferindo a sabedoria que dá vida.
Como já observamos, o Espírito é apresentado aqui como a força
animadora por detrás do ministério profético de Jesus (cf. Lc 4.18,19)
e o testemunho da igreja (At 1.4-8).
2) O relato da tentação. Turner propõe que com o relato da ten­
tação (Lc 4.1-13 ), Lucas apresenta implicitamente o Espírito como
a fonte das “novas profundezas da sabedoria e do discernimento
carismáticos”, que por sua vez capacita Jesus a vencer as tentações
do Maligno.24 Mas isso não é afirmado por Lucas, e duas observa­
ções dão a entender que não é assim que Lucas ou seus leitores teriam
entendido o texto, a) As Escrituras, não o Espírito, são apresenta­
das como a fonte do poder moral de Jesus (Lc 4.4,8,12).
b) Embora as referências ao Espírito que aparecem no começo
(Lc 4.1) e no fim (4.14) do relato realcem o fato de que Jesus é
realmente o Ungido e portanto capacitado pelo Espírito, elas não
apresentam o Espírito como a fonte da determinação moral de Je­
sus. Pelo contrário, Lucas tem em mente exatamente o oposto: per­
manecendo fiel a sua vocação em face das tentações de Satanás, Jesus
demonstra que ele é deveras digno de ser o portador do Espírito e
por isso ele sai do deserto como entrou — cheio do Espírito Santo
(4.1,14). Em poucas palavras, a idéia de Lucas não é que Jesus é fiel
e reto porque o Espírito o capacita a ser assim, mas Lucas declara
que porque Jesus é fiel e reto, ele é o portador do Espírito.

21lbid., p. 29.
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER /} 121

Essa conclusão é confirmada pelos paralelos entre Jesus sendo ten­


tado no deserto e a tentação dos filhos de Israel. O próprio Turner
observa que “as ‘tentações’ finais ecoam as de Israel no deserto, mas
enquanto eles ‘se revoltaram e entristeceram o Espírito Santo (Is 63.10),
o novo representante de Israel permanece fiel e vence o tentador”.25
A idéia é clara: diferentemente do Israel do passado, Jesus demons­
tra que é digno de ser o portador do Espírito. Nesse pano de fundo
conceituai, é difícil imaginar que o texto proclame qualquer outra
mensagem.
3) Resumos da vida com unitária. Turner tem plena consciência
de que um exército de estudiosos, de H. Gunkel a G. Haya-Prats,
observou que “nada nos resumos da nova vida da igreja (At 2.42-47;
4.32-37) se atribui diretamente ao Espírito”.26 Não obstante, ele
procura desenvolver sua própria tese:
A tensão narrativa da expectativa de um “Israel do Espírito” é
construída cuidadosamente com base em Atos 2.1 a 2.38,39. Con­
tudo, o resumo das conversações e da vida dessa comunidade
(2.40-47) não tem nem sequer uma única menção do Espírito.
Esse
artifício requer que o leitor resolva a tensão supondo que o ad­
vento e o carisma do Espírito prometido não mencionados são
responsáveis pela dinâmica global da nova comunidade.27

Como resposta podemos simplesmente assinalar que a “tensão”


que Turner percebe é gerada por suas próprias pressuposições teo­
lógicas. É uma tensão que não teria sido percebida pelos leitores de
Lucas do século i. Em outras partes ele não hesita em descrever cren­
tes batizados que ainda não tinham recebido o Espírito (At 8.16).
Por que deveria ele sentir-se compelido a apresentar o Espírito como
a fonte da vida ética da igreja?
Entretanto, Lucas fala continuamente do Espírito como o ímpe­
to por detrás do testemunho da igreja primitiva. Na verdade, ele é
claro a respeito da natureza e do impacto do Espírito do Pentecoste:

25Ibid.
26Ibid., p. 49.
27Ibid. (grifos de Turner).
NO PODER DO ESPÍRITO ■ 'J 122

“Mas receberão o poder quando o Espírito Santo descer sobre vocês,


e serão minhas testemunhas” (At 1.8). O “Israel do Espírito” é cha­
mado e capacitado a assumir a vocação profética de Isaías 49.6: eles
devem ser “luz para os gentios” e levar a salvação “para os confins
da terra” (cf. At 1.8; 13.47).
A narrativa realça esse fato de várias maneiras. A repetição da
promessa de poder (Lc 24.49; A t 1.8), a relação das pessoas presen­
tes e do dramático milagre das línguas (A t 2.4-11) e a citação de Joel
2.28-32 com as respectivas referências ao poder profético (At 2.17-
2 1), tudo realça a importância missiológica desse acontecimento.
De fato, Lucas expressa a questão de maneira clara. Não precisamos
criar subterfúgios literários sutis, nem fazer suposições desautori­
zadas para dar sentido ao texto.
4) A restauração de Israel. A despeito das afirmações explícitas
de Lucas que definem o propósito da vinda do Espírito em termos
de poder para testemunhar (Lc 24.48,49; A t 1.4-8), Turner dá a en­
tender que na realidade há mais. N o Pentecoste o Espírito vem não
simplesmente para capacitar os discípulos a ser luz para as nações
(Is 49.6), mas também para levantar e restaurar o remanescente de
Israel. O Espírito que inspira o testemunho dos discípulos também
purifica e transforma o coração deles. Turner argumenta que esse
entendimento mais abrangente da obra do Espírito é desenvolvido
por Lucas de três modos: a vida da comunidade descrita nos sumá­
rios de Lucas (At 2.42-47; 4.32-35) associa o Espírito com a salva­
ção esperada, em Lucas 1 e 2; a promessa de João Batista da limpeza
de Israel é percebida na vida da igreja primitiva (cf. A t 5.3,9; 11.16);
e a narrativa do Pentecoste (2.1-3) ecoa a narrativa judaica da teofania
no Sinai e, portanto, apresenta o dom do Espírito como “um dom
da importância fundamental que [Jesus] dá ao seu povo” numa nova
fase decisiva na existência dele.28
Já observamos que Lucas não associa o Espírito com os resumos
da vida comunitária em Atos 2.42-47 e 4.32-35. Omissão surpreen­
dente que lança sérias dúvidas sobre a tese de Turner. Já vimos que o

28Ibid., p. 53; v. p. 52-5 para a discussão de Turner sobre a restauração de Is­


rael.
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER /. 123

entendimento de Turner acerca da profecia de João Batista é falho:


João não prevê uma concessão do Espírito que vá purificar e trans­
formar indivíduos em Israel. Mas o que dizer dos paralelos alegados
relacionados à teofania no Sinai? Lucas teceu a narrativa do Pente-
coste conscientemente a fim de realçar os paralelos entre a doação
da lei por Moisés no Sinai e a concessão da parte de Jesus de um
dom superior (o Espírito) no Pentecoste? Duas observações pro­
põe que isso é altamente improvável.
a) Um exame dos paralelos pretendidos (os paralelos mais pree-
minentes se encontram em Filo, Dec.
46-7; Spec. Leg.
2.188-89 e
TargPs.-J. sobre Ex 20.2) revela que os termos partilhados por Lucas,
Filo e Jonatham Ben Uzziel não são exclusivos das tradições do Sinai,
mas característicos da linguagem teofânica em geral. Esse fato e as
diferenças notáveis entre Atos 2.1-13 e os textos de Filo e o Targum
Pseudo-Jonathan indicam que a narrativa de Lucas do Pentecoste
não foi influenciada por essas nem por tradições sinaíticas seme­
lhantes. Em vez disso, as semelhanças são mais bem explicadas por
sua relação comum com a linguagem teofânica dos judeus.29
b) A ausência de qualquer referência a Moisés, à lei, ou ao pacto
em Atos 2 fala decisivamente contra a proposta de Turner. Embora
Atos 2.33 signifique que o derramamento pentecostal do Espírito
constitui prova irrefutável de que Jesus foi exaltado à destra de Deus,
essa prova não consiste na transformação pneumatológica poderosa
da vida ética do recipiente. Antes, ela é uma irrupção da atividade
profética inspirada pelo Espírito visível a todos.30
A tentativa de Turner de associar o Espírito com purificação e
transformação moral de cada crente individualmente em Lucas—
Atos falha em todos os pontos. Sua abordagem unificadora da pneu-
matologia neotestamentária não é com patível com a realidade.

29Para um exame das evidências ver M enzies, Empowered, p. 189-201.


30E instrutivo observar que Ezequiel 36.26,27 é importante para o desenvolvi­
mento dos temas do novo pacto nos escritos de Paulo (e.g., 2Co 3) e de João (e.g.,
Jo 3.1-21). No entanto, Lucas surpreendentemente se cala nesse ponto. T urner,
falando de Paulo, escreve: “Desde o começo, ele evidencia consciência do Espírito
como o Espírito de profecia, mas associa-o com Ezequiel 36 e 37, de modo que faz
do Espírito de profecia uma necessidade soteriológica” (op. ciu, p. 113). Lucas
não faz essa associação.
NO PODER DO ESPÍRITO /’' j 124

Precisamos ser mais sensíveis à diversidade teológica refletida nos


escritos do N ovo Testamento e, com respeito àpneumatologia, pre­
cisamos particularmente ouvir a voz peculiar de Lucas. Isso nos leva
à questão do método teológico.

0 MÉTODO t e o l ó g ic o : e m d e f e s a do m o d e l o
do r e c e b im e n t o do E s p ír it o e m d o is e s t á g io s

Como vimos, Turner acentua aquilo que ele considera a unidade es­
sencial de junção da pneumatologia de Lucas, de Paulo e de João, os
quais retratam o dom do Espírito como necessidade soteriológica e
central para a conversão. Não deve nos surpreender, então, saber
que Turner também defende o recebimento do Espírito no modelo
de um só estágio. De acordo com ele, há um dom do Espírito con­
cedido como parte do complexo conversão-iniciação e esse dom é a
fonte de toda experiência cristã. Experiências carismáticas poste­
riores devem ser entendidas como experiências renovadoras desse
único dom dado a todo cristão na conversão-iniciação.31
Naturalmente isso deixa pouco espaço para a teologia pentecos-
tal clássica, com o seu modelo de recebimento do Espírito em dois
estágios. Mas, segundo Turner, nós não devemos ficar excessiva­
mente preocupados com esse assunto, pois o modelo de dois estági­
os deixa de integrar a percepção de Lucas e a de Paulo de maneira
coerente. Turner afirma que minha abordagem implica uma simples
adição:
Os crentes primeiro, na conversão, recebem o Espírito como o
Espírito soteriológico regenerador de filiação e a nova vida do
pacto (como Paulo e João concordam) depois em algum ponto
recebem o ‘Espírito de profecia’, conforme Lucas, como uma
capacitação distinta, do ponto de vista experiencial, para missão.32

Turner dá a entender que essa abordagem funcionaria se Lucas


associasse “o dom do Espírito” a atividades distintas das que mar­
cam o “dom do Espírito” de Paulo. Mas Turner insiste que esse não

3lIbid., p. 157-68.
32Ibid., p. 152.
/
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TUBNER ■ . 125

é o caso: “A concepção de Paulo do dom do Espírito é simplesmen­


temais ampla do que a de Lucas, embora contenha tudo o que Lucas
implica ”.3i Logo, “o entendimento abrangente de Paulo acerca do
dom do Espírito concedido aos cristãos na conversão não deixa nada
para Lucas acrescentar”.
Turner reconhece que Paulo não prevê os crentes recebendo tudo
o que iam receber do Espírito na conversão, mas o ponto crucial são
essas experiências posteriores ou o fruir do dom do mesmo Espíri­
to recebido na conversão: Paulo “ não propõe que os crentes devam
procurar alguma segunda doação do Espírito antes que lhes sejam con­
cedidos essespoderes”?* Em outras palavras, Turner insiste que a pneu-
matologia de Paulo abarca tudo o que realmente importa (os aspectos
soteriológico e profético) e, visto que o apóstolo não fala de um
segundo dom normativo do Espírito, nós também não devemos.
Turner portanto oferece uma reafirmação reflexiva da aborda­
gem evangélica tradicional da pneumatologia, embora aberta à plena
gama dos dons paulinos. Naturalmente, qualquer tentativa de siste-
matização se baseia nos dados crus do texto (exegese). E conquanto
Turner sustente que devemos ouvir cada autor em particular e não
fundir prematuramente os horizontes deles, temos razão para ques­
tionar se Turner foi bem-sucedido em seu esforço. Ele ouviu real­
mente a voz característica de Lucas?
Isso conduz ao primeiro problema com a abordagem de Turner.
Ele perdeu de vista este fato fundamental: Lucas de fato tem algo
distintivo para oferecer.Embora Paulo tenha consciência tanto do
aspecto soteriológico como do aspecto profético da obra do Espíri­
to, nunca faz alusão ao Pentecoste nem ao dom pentecostal. Mas
Lucas faz. Isso pode não parecer importante se identificamos o dom
pentecostal com a conversão como faz Turner. Mas se a nossa inter­
pretação de Lucas—Atos for correta, a importância da contribuição
de Lucas neste ponto não pode ser deixada de lado. De modo singu­
lar, Lucas nos chama a reconhecer a riqueza dos recursos do Espíri­
to, acessíveis a todos nós. Somente Lucas fala do dom pentecostal34

33Ibid., p. 154 (grifo de Turner).


34Ibid., p. 155 (grifo de Turner).
NO PODER DO ESPÍRITO 126

— uma capacitação profética disponível para todo crente que os


habilita a participar eficazmente da missão divina. Essa promessa de
poder pentecostal dá à igreja uma base sólida para um senso de ex­
pectativa intrépido e centrado no que diz respeito ao poder espiritual.
Esse senso de propósito e expectativa é diminuído em grande parte
se o aspecto pentecostal do Espírito fo r simplesmente fundido com
o soteriológico.
Lucas declara que devemos esperar
ser uma comunidade de teste­
munho, capacitada pelo Espírito do Pentecoste. Essa expectativa é
de natureza missiológica, não soteriológica, pois é definida pelo cará­
ter do dom pentecostal. Diz respeito a todo crente, pois está en­
raizada na universalidade da promessa pentecostal (At 2.8,17,18,38).
A teologia de Turner enraizada como é na teologia paulina, deixa de
dar fundamento teológico sólido para essa expectativa. A questão
crucial é, afinal, o que aconteceu no Pentecoste? Segundo Turner,
pode-se ainda descrever o dom do Espírito recebido no Pentecoste
(em termos paulinos) como o elemento principal da conversão-ini-
ciação. Desse modo, a universalidade (e a natureza específica) de
nossas expectativas de “capacitações posteriores”
— enraizadas na
promessa pentecostal — é minada: todos experimentam a dimensão
soteriológica do dom pentecostal na conversão, mas talvez somente
uns poucos recebam o poder missiológico.
Alguém pode argumentar que o dom de línguas de Paulo oferece
a mesma espécie de promessa de capacitação divina. Mas nãoé esse
o caso, como indica uma revisão de atitudes evangélicas tradicionais
para com os dons espirituais. Essa atitude de muitos cristãos tradi­
cionais pode ser descrita da seguinte maneira: todos os dons do Es­
pírito são válidos para a igreja hoje, mas, uma vez que Deus deu
soberanamente dons a indivíduos selecionados, devemos esperar e
observar o que Deus resolve fazer. É certo que Deus concede dons
a todo crente, mas não podemos presumir saber que dom ou quais
ele nos deseja conceder. Conquanto possamos receber dons de po­
der missiológico, há sempre a possibilidade de não recebermos.
Embora essa abordagem capte um aspecto importante do ensino
de Paulo, não é a palavra final a respeito da promessa de poder de
Deus. Todavia, esta perspectiva paulina limitada molda a teologia e
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER ^ 127

a expectativa de muitos evangélicos tradicionais, entre eles, Turner.35


E instrutivo observar que teologicamente há pouco que distingue
Turner de muitos irmãos evangélicos tradicionais que permanece­
ram passivos na questão da capacitação divina. Leia, por exemplo,
os comentários de Millard Erickson a respeito dos dons em Paulo:

Se a Bíblia ensina que o Espírito dispensa dons especiais hoje não


é questão de grande conseqüência prática. Pois mesmo que ele
dispense, não devemos pôr nossa vida na busca deles. Ele os con­
cede soberanamente, somente ele determina os receptores (lC o
12.11). Se nos quiser dar um dom especial, fará isso independen­
temente de esperarmos ou o procurarmos.36

O segundo problema da abordagem de Turner é sua insistência


em que Paulo não deixa lugar para um segundo dom do Espírito —
um dom distinto da conversão e que serve como porta de entrada
para uma nova dimensão do poder do Espírito. É verdade que Paulo
não menciona o Pentecoste nem o dom pentecostal. Mas isso não
nos deve surpreender já que o apóstolo não se propõe escrever uma
teologia sistemática abrangente, mas, sim, cartas que tratam de situa­
ções e necessidades específicas. Embora Paulo mostre consciência
do espectro pleno da obra do Espírito, não registra cada estágio ou
experiência na vida do cristão. Seguramente Turner não quer propor
que fora do corpuspaulino não pode haver mais contribuições nem
inspiração para o refinamento de nossa compreensão teológica. Mas
parece aproximar-se dessa posição de cânon dentro do cânon quan­
do escreve:

Não se pode usar Lucas para impor


essa distinção [entre pneuma-
tologia carismática e soteriológica] na interpretação de Paulo,
como se o esforço de Lucas pudesse trazer nuança teológica a
Paulo e esclarecer-nos que Paulo deve ter “pretendido” ensinar

35Observe príncipalmente Ibid., p. 162: “O relato [de Lucas] deixa de dar a


impressão de que todos os cristãos são capacitados como missionários”. Se nós
entendemos “missionários” no sentido mais amplo de testemunhas, discordo mui­
to sinceramente (e.g., A t 1.8; 2.17,18; 4.31).
36Christian theology, p. 881.
NO PODER DO ESPÍRITO J 128

algo como uma doutrina da subseqüência, mesmo que jamais a


tenha expressado bem claramente.37

Se quisermos ouvir as contribuições multifacetadas dos vários


autores do Novo Testamento, inevitavelmente precisamos deixá-los
apresentar suas idéias singulares que, às vezes, ajudam a aclarar po­
sições incompletas de seus colegas na autoria da Bíblia. Por exem­
plo, Paulo nos ajuda a entender que o Espírito é ativo desde o começo
da vida cristã do crente: concedendo íntima comunhão com Deus,
dons espirituais para melhorar a vida da comunidade e conformar
nossa vida com a de Cristo. Muito disso se perdería se Paulo não
tivesse sido capaz de informar as contribuições mais restritas de
Lucas e os outros escritores do N ovo Testamento.
Todavia, como vimos, o mesmo é verdadeiro para Lucas. Ele tam­
bém oferece uma importante reflexão sobre a vida dinâmica do Es­
pírito de Deus. Embora a pneumatologia geral de Lucas seja mais
restrita que a de Paulo, isso não significa que não tenha nada com
que contribuir. Com o Turner observa, o próprio Paulo prevê que os
vários dons, os vários aspectos da obra do Espírito, vão-se tornar
ativos em nossa vida depois da nossa experiência de conversão (e.g.,
IC o 12.31; 14.1). Paulo não nos diz como isso acontece precisamente,
como esses dons do Espírito se realizam em nossa vida. Logo, há lu­
gar para que as contribuições de Lucas se integrem com as de Paulo.
Mais adiante, no capítulo 14, argumentarei que o dom pentecos-
tal tem intersecção com um grupo especial de dons paulinos — dons
que classifico de proféticos. Entre eles se encontram palavra de sa­

37Op. cit., p. 155 (grifo dele). Turner também afirma: “É claro que Paulo pre­
via uma igreja alegremente ‘carismática’, na qual cada área da vida e do ministério
cristãos seriam profundamente moldados pela consciência da experiência do Espí­
rito. Todavia, evidentemente, ele não tinha nenhuma necessidade de elucidar ne­
nhuma teologia da segunda bênção para fortalecer isso [...] Não há razão para
condicionar a orientação e o zelo missionários à teologia da segunda bênção. As
igrejas de Paulo parecem ter crescido rapidamente sem que ele expressasse a
idéia de que o Espírito é concedido a cada um como capacitação para o testemu­
nho” (p. 166-7). Esses comentários presumem que as cartas a d h o c de Paulo nos
dão uma descrição abrangente da teologia e da prática das igrejas paulinas. Tam­
bém refletem a tendência de Turner de ver a perspectiva de Paulo como defini­
tiva.
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER 129

bedoria, palavra de conhecimento, profecia, capacidade de discernir


espíritos, capacidade de falar em diferentes espécies de línguas e in­
terpretação de línguas ( lC o 12.8-12). Embora reconheça que não se
pode sustentar que o batismo no Espírito (i.e., o dom pentecostal)
é a porta de entrada para todo dom espiritual, vou insistir que o
batismo no Espírito é a porta de entrada para um grupo especial de
dons descritos por Paulo, os dons do tipo profético mencionados
acima.
Aqui podem-se integrar de maneira construtiva os pontos de vis­
ta de Paulo e de Lucas. Paulo nos diz que, em um sentido, todo
cristão “é, e deve ser cada vez mais, carismático”.38 Enfatiza esse
fato insistindo que cada crente tem algo a oferecer, todo crente é capa­
citado pelo Espírito para contribuir para o bem comum (lC o 12.11).
Mas Lucas também nos diz que há uma dimensão da capacitação do
Espírito em que se ingressa em virtude de um batismo no Espírito
distinto da conversão. Essa dimensão pode ser chamada com pro­
priedade de dimensão profética.39 Na perspectiva de Lucas, a co­
munidade da fé é potencialmente uma comunidade de profetas, e é
pela recepção do dom pentecostal (batismo no Espírito) que esse
potencial se realiza. Lucas ajuda a esclarecer aspectos da experiência
cristã de que Paulo não trata definitivamente.
Seguramente não há nenhuma razão convincente para propor que,
uma vez que Paulo não fala especificamente de uma experiência como
porta de entrada distinta da conversão, também não devemos falar.
O nosso cânon cristão é, afinal, bem mais amplo que as cartas de
Paulo. Embora sem dúvida a interpretação que Turner faz de Lucas—
Atos (e do Novo Testamento em geral) tenha interferido em sua
abordagem nesse ponto, ele quase chega a insistir perigosamente
que a pneumatologia do N ovo Testamento é na verdade pneumato-

38H. 1. Lederle, Treasures old a n d new: interpretations o f “Spirit-baptism” in


the Charismatic Renewal Movement, p. 228.
390 aspecto profético em Lucas—Atos é muito mais amplo do que o entendi­
mento de Paulo do dom de profecia. Juntamente com profecia dentro da congre­
gação, ela abarca atividades como proclamação inspirada, orientação carismática,
glossolalia e, acima de tudo, testemunho intrépido e perseverança em face da opo­
sição (“poder permanente”). A natureza desse aspecto profético é desenvolvida
mais plenamente nos capítulos 7, 8, 10, 14 c 15 a seguir.
NO PODER DO ESPÍRITO 130

logia paulina. Essa é uma abordagem a que os pentecostais resistem


corretamente.

C onclusão
Nos últimos quinze anos testemunhamos o surgimento de uma nova
geração da intelectualidade pentecostal. Os escritos desses estudio­
sos desafiaram as velhas suposições evangélicas tradicionais acerca
da forma da pneumatologia do Novo Testamento, em particular da
natureza da teologia de Lucas acerca do Espírito. Trinta anos se pas­
saram desde que James Dunn escreveu seu influente Baptism in the
Holy Spirit. Ora, exatamente na hora em que os argumentos de Dunn
começam a perder sua força de persuasão, Max Turner fornece uma
abordagem atualizada, plenam ente fam iliarizada com a nova
intelectuahdade, que mais uma vez anima a posição evangélica tra­
dicional.
Turner com efeito produziu dois livros notáveis, e qualquer discus­
são sobre pneumatologia terá de lidar com eles. The Holy Spirit and
spiritual gifts: then and now [O Espírito Santo e os dons espirituais:
antes e agora] é mais acessível e abrangente do que Power Jrom on
high [Poder do alto ] e destina-se a servir de influência para muitos
evangélicos tradicionais que procuram tratar das questões dessa nova
geração. A parte das conclusões confortantes, o livro tem muitos
outros pontos positivos que não passarão despercebidos pela co­
munidade evangélica tradicional (e os de fora dela). Turner interage
com uma surpreendente quantidade de pesquisas detalhadas, entre
elas as contribuições pentecostais mais recentes, e expõe uma tese
ágil e precisa que provê análise coesa e coerente da pneumatologia
do Novo Testamento. Também dá mais detalhes das implicações de
suas conclusões para a vida da igreja de modo claro e refletido.
A abordagem de Turner, contudo, também tem suas limitações.
Sua tese central — de que todos os escritos do N ovo Testamento
refletem o entendimento comum do Espírito como o Espírito de
profecia: a fonte da sabedoria que dá vida, revelação carismática,
discurso profético e louvor — não é flexível bastante para fazer jus­
tiça à perspectiva distintiva de Lucas e é provavelmente estreita de­
mais também para Paulo e João. Fica evidente que Turner, com seus
EXEGESE: RÉPLICA A M A X TURNER 131

quatro dons prototípicos (citados acima), criou um sistema para


impingir em Lucas— Atos e em todo o Novo Testamento.
Desafiamos especificamente a alegação de Turner de que Lucas
apresenta o Espírito como a fonte de sabedoria que dá vida. Os tex­
tos relevantes em geral retratam o Espírito como a fonte de sabedo­
ria hermética, mas as fontes judaicas raramente, e Lucas jamais,
apresentam o Espírito como a fonte de sabedoria no nível mais fun­
damental, isto é, sabedoria que dá vida. A tentativa de síntese teoló­
gica de Turner, baseada numa leitura estreita dos dados, também
não convence. Ele parece igualar a pneumatologia bíblica com a pneu-
matologia paulina e por isso não reconhece a contribuição singular
de Lucas. O resultado é talvez um sistema coerente, mas que deixa
de captar a plena riqueza e o poder do testemunho do Novo Testa­
mento a respeito da obra do Espírito.

P erguntas para estudo

1. Turner sustenta que Lucas descreve o Espírito como a fonte de


sabedoria que dá vida. À luz do contexto histórico judaico, pode-
se esperar isso? As evidências que Turner oferece de Lucas— Atos
são convincentes?
2. Em que as posições de Max Turner e James Dunn são semelhantes?
3. Em oposição a Turner, Menzies argumenta que Lucas tem algo
singular e importante para oferecer a uma teologia bíblica inte­
gral do Espírito. Qual é essa contribuição?
4. Turner afirma que Paulo não dá espaço para um segundo dom do
Espírito, dom este distinto da conversão. Como você avaha essa
alegação?
5. Quais as implicações da reconstrução que Turner faz da pneuma­
tologia do Novo Testamento para a nossa compreensão do dom
pentecostal?
S E G U N D A • PARTE

Declarações
teológicas
capítulo • 7

A questão da
posterioridade

D
esde os primeiros dias do movimento pentecostal moderno, os
pentecostais têm proclamado que todos os cristãos podem, e
na verdade devem, experimentar um batismo no Espírito Santo “dis­
tinto da experiência do novo nascimento e posterior a ela”.1 Essa
doutrina da posterioridade surgiu naturalmente da convicção de que
o Espírito desceu sobre os discípulos no Pentecoste (At 2) não como
a fonte da existência do novo pacto, mas como a fonte de poder para
o testemunho eficaz. Embora os primeiros pensadores tradicionais,
como R. A. Torrey e A. J. Gordon, também tenham defendido um
batismo no Espírito subseqüente à conversão, teólogos tradicionais
mais recentes rejeitaram em grande parte a doutrina da posteriorida­
de, particularmente a forma pentecostal. Consideravelmente influen­
ciados pela obra seminal de James Dunn, Baptism in the Holy Spirit,
os evangélicos tradicionais normalmente identificam o batismo do
Espírito Santo com a conversão. Assim sendo, os evangélicos tradi­
cionais vêem o batismo no Espírito como a condição indispensável
para a existência cristã, o elemento essencial da conversão-iniciação.
Embora por muitos anos os pentecostais e tradicionais tenham
ficado entrincheirados em suas respectivas posições e raramente
entrado em diálogo, após 1970 essa situação mudou muito. A avalia­
ção dunniana simpática mas crítica da doutrina pentecostal estabe­
lece um divisor de águas no pensamento pentecostal, pois estimulou
uma explosão de reflexão teológica criativa entre os pentecostais.
Por conseguinte, o terreno teológico hoje é consideravelmente di-

'Minutes o f the 44th session o f the General Council o f the Assemblies o f G o d ,


Portland, agosto 6-11, 1991, p. 129.
NO PODER DO ESPÍRITO ... 136

ferente do de trinta anos atrás. Todavia, a despeito de mudanças


significativas, a questão da posterioridade ainda permanece intocável
na atual ordem teológica do dia.
Esse fato se reflete no livro de Gordon Fee, Gospel and Spirit
[O
evangelho e o Espírito'], que contém dois artigos sobre este assunto
previamente publicados mas atualizados.2 Ministro pentecostal e
ilustre estudioso evangélico, Fee tem sido participante ativo e in­
fluente no diálogo pentecostal-tradicional pós-Dunn. Embora fale
do interior da tradição pentecostal, seu ponto de vista reflete em
geral atitudes tradicionais predominantes. Farei uma avaliação da
posição de Fee acerca da doutrina da posterioridade com a esperança
de realçar as questões mais importantes desta discussão. Especifica­
mente, argumentarei que a discussão de Fee ignora desenvolvimen­
tos importantes na pesquisa neotestamentária e pentecostal e que,
quando se leva em conta esses desenvolvimentos, a intenção de Lucas
de ensinar um batismo no Espírito distinto da conversão para todo
crente (pelo menos lógica senão cronologicamente) — a essência da
doutrina da posterioridade — facilmente se demonstra.

A CRÍTICA DE Fee à posiçáo pentecostal


Fee conquistou reputação de discernimento apurado na área da
hermenêutica, e sua crítica simpática à doutrina pentecostal da pos­
terioridade destaca as deficiências nessa área. Observa que os pente-
costais em geral apoiam a alegação de que o batismo no Espírito é
distinto da conversão recorrendo aos vários episódios registrados
no livro de Atos. Essa abordagem, em sua forma mais comum, indi­
ca a experiência dos samaritanos (At 8), de Paulo (cap. 9) e dos efésios
(cap. 19) como modelo normativo para todos os cristãos. Mas Fee,
seguindo a orientação de muitos evangélicos tradicionais, sustenta
que essa linha de argumentação repousa num fundamento herme­
nêutico instável. Seu defeito fundamental é não dar valor ao gênero

2Gospel an d Spirit: issues in New Testament hermeneutics. Os capítulos 6 e 7


são versões atualizadas dos seguintes artigos: Hermeneutics and historical precedent
— a major problem in pentecostal hermeneutics, em Perspectives on the new
Pentecostalism, org. R. P. Spittler, p. 118-32; Baptism in the Holy Spirit: the issue
of separability and subsequence, Pneuma 7:2, 1985, p. 87-99.
A QUESTÃO DA POSTERIORIDADE / , 137

do livro de Atos: Este livro é uma narração de fatos históricos. A


menos que estejamos preparados para escolher os líderes da igreja
lançando sorte ou desejemos estimular os membros da igreja a vender
todas as suas posses, simplesmente não podemos presumir que um
relato histórico específico sirva de base para uma teologia normativa.
A preocupação de Fee é legítima: Com o distinguir os aspectos
normativos da narrativa de Lucas dos não normativos? Sua resposta
é que o precedente histórico, “para ter valor normativo, deve relacio-
nar-se com a intenção”.3 Isso quer dizer que os pentecostais devem
demonstrar que Lucas pretendeu
que os episódios freqüentemente
citados em Atos estabelecessem um precedente para os cristãos fu­
turos. De outra forma, os pentecostais não podem falar legitima­
mente de um batismo no Espírito distinto da conversão como fato
normativo para a igreja. Conform e Fee, é exatamente nesse ponto
que falha a posição pentecostal.
Fee menciona dois tipos de argumento oferecidos pelos pente­
costais: argumentos da analogia bíblica e argumentos do precedente
bíblico. 1) Os argumentos da analogia bíblica indicam a experiência
de Jesus no Jordão (posterior a seu nascimento miraculoso pelo
Espírito) e a experiência dos discípulos no Pentecoste (subseqüente
a jo 20.22) como modelos normativos para a experiência cristã. To­
davia, esses argumentos, como todos os argumentos da analogia bí­
blica, são problemáticos porque, para Fee, “raramente se pode
demonstrar que nossas analogias são intencionais no próprio texto
bíblico”.4 Essas pretensas analogias são particularmente problemá­
ticas porque a experiência de Jesus e a dos apóstolos — vividas ante­
riormente à “grande linha de demarcação”, o dia do Pentecoste —
“são de espécie tão diferente da experiência cristã subseqüente que
dificilmente podem ter valor normativo”.5
2) Os argumentos do precedente bíblico procuram enxergar um
padrão normativo da experiência cristã na experiência dos saniarita-
nos, de Paulo e dos efésios. Fee afirma que esses argumentos tam­
bém pecam e não convencem porque não se pode demonstrar que

3Gospel a n d Spirit , p. 92.


4Ibid., p. 108.
5Ibid., p. 94.
NO PODER DO ESPÍRITO 1 138

Lucas pretendia apresentar nessas narrativas um modelo normativo.


O problema aqui é duplo, a) As evidências não são uniformes: Entre­
tanto vemos que a experiência dos samaritanos e a dos efésios, bem
como a de Cornélio e sua casa (At 10), mostra o recebimento do Espíri­
to quando se converteram, b) Mesmo quando se pode demonstrar a
posterioridade, como no caso dos samaritanos em Atos 8, é duvidoso
que isso possa estar ligado à intenção de Lucas. Fee dá a entender que
a intenção primária de Lucas era validar a experiência dos cristãos à
medida que o evangelho se espalhava para além de Jerusalém.6
Isso faz que Fee rejeite a posição pentecostal tradicional. Ele con­
clui que um batismo no Espírito distinto da conversão e pretendi­
do para a capacitação “não é ensinado no N ovo Testamento nem
necessariamente deve ser visto como um padrão normativo (sem
falar em padrão único) para a experiência cristã”.7 Todavia, essa re­
jeição da subseqüência é, de acordo com Fee, de pouca importância,
pois a verdade central identificadora do pentecostalismo é sua ênfa­
se no caráter poderoso e dinâmico da experiência do Espírito. Se a
presença poderosa do Espírito é experimentada na conversão ou de­
pois é irrelevante, e insistir em que tudo tem de seguir “caminho
único” é dizer mais que o Novo Testamento permite.8 Em resumo,
Fee sustenta que, embora os pentecostais precisem reformular sua
teologia, sua experiência é válida.
Antes de passar para uma avaliação da posição de Fee, dois pon­
tos precisam ser colocados. 1) Embora Fee dê a entender que sua
crítica da posterioridade não causa impacto na essência do pente-
costahsmo, essa alegação é questionável. Deve-se observar que a
posição de Fee é teologicamente indistinguível da posição dos mui­
tos outros estudiosos evangéhcos tradicionais, James Dunn em par­
ticular. Sua mensagem essencial é que os pentecostais, no que se
refere a teologia, não têm nada novo para oferecer ao mundo evan­
gélico mais amplo. Conquanto o fervor pentecostal sirva como lem­
brete de que a experiência cristã tem uma dimensão dinâmica e
poderosa, a teologia que dá esclarecimento e expectativa dessa di­

6Ibid„ p. 97.
7Ibid., p. 98.
sIbid., p. 111.
A QUESTÃO DA POSTERIORIDADE 139

mensão é rejeitada. Além do mais, a crítica de Fee não só questiona


o entendimento pentecostal do tempo adequado do batismo no
Espírito (i.e., se é experimentado simultaneamente com a conver­
são ou depois dela), mas também desafia o entendimento pentecos­
tal dessa experiência no seu nível mais profundo.
A questão central é se o batismo no Espírito, no sentido pente­
costal (At 2), pode ser igualado à conversão. Os evangélicos tradi­
cionais afirmam que os dois são uma coisa só — e Fee concorda,
embora reconüeça que o caráter dinâmico e carismático da expe­
riência (por uma variedade de razões) em nosso contexto moderno
está quase sempre ausente. A declaração de Fee, não obstante quali­
ficada, ainda enfraquece os aspectos cruciais da teologia pentecos­
tal. Os pentecostais, como dissemos, afirmaram em geral que o
propósito do batismo no Espírito é capacitar os crentes a ser teste-
munüas eficazes. Essa compreensão missiológica do batismo no
Espírito, enraizada na narrativa do Pentecoste de Atos 1 e 2, dá im­
portante definição para a experiência. Ao contrário das descrições
vagas de Fee do batismo no Espírito como “dinâmico”, “poderoso”
ou mesmo “carismático”, os pentecostais expressaram um propósi­
to claro: poder para missão.
Quando se confunde o dom pentecostal com conversão, perde-
se esse enfoque missiológico. O pentecostalismo torna o cristianismo
fervoroso (seja lá o que isto signifique) em vez de um cristianismo
capacitado para missões. Além disso, o obscurecimento do foco ine­
vitavelmente diminui o senso de expectativa do indivíduo. Pois é
sempre possível argumentar, como faz a maioria dos evangélicos
tradicionais, que conquanto todos experim entem o aspecto
soteriológico do dom pentecostal na conversão, somente uns pou­
cos seletos recebem dons de poder missiológico. O esforço de Fee
para reter o senso de expectativa, embora rejeitando a distinção en­
tre batismo no Espírito e conversão, peca neste ponto.
A questão básica é esta: se Fee está correto, os pentecostais não
podem mais falar de uma capacitação do Espírito distinta da con­
versão e acessível a todo crente, pelo menos com o mesmo senso de
expectativa, nem tampouco sustentar que o propósito fundamental
desse dom é conceder poder para a tarefa de missões. Resumindo, a
NO PODER DO ESPÍRITO / j 140

doutrina da posterioridade expressa uma convicção crucial para a


teologia e prática pentecostal: o batismo no Espírito, no sentido
pentecostal, é distinto (ao menos lógica, se não, cronologicamente)
da conversão. Essa convicção, eu acrescentaria, faz parte do senso
contínuo que os pentecostais têm da expectativa e eficácia de missões.
2) Embora Fee concentre nossa atenção numa questão impor­
tante (i.e., a natureza da intenção teológica de Lucas), sua crítica se
baseia numa pressuposição fundamental. Afirm a repetidas vezes que
“no Novo Testamento a presença do Espírito foi o elemento princi­
pal da conversão cristã”.9 Na verdade, Fee declara que “devemos
entender que o Espírito era o elemento principal, o ingrediente bá­
sico”, da existência na nova aliança.10*Essa é a perspectiva de Paulo e
de Lucas tambéml Fee escreve confiante que “nessa análise das coi­
sas, parece-me que todos os estudiosos do N ovo Testamento estão
de acordo”.11
Desse modo, na realidade, o artigo de Fee levanta duas perguntas
importantes: 1) Lucas pretendia que entendéssemos o batismo no
Espírito como um dom distinto da conversão, doador de testemu­
nho eficaz e acessível a todo crente? 2) E verdade que os escritores
do Novo Testamento apresentam unanimemente o dom do Espíri­
to como o elemento principal da conversão-iniciação? O restante
deste capítulo procurará tratar dessas perguntas. Vamos começar
com a última, visto que diz respeito a uma pressuposição funda­
mental do argumento de Fee.

0 NOVO c o n t e x t o : d e f in ir
A QUESTÃO CRUCIAL

Com o se observou anteriormente, a crítica de Fee da posição pente­


costal concentra-se nas fraquezas hermenêuticas, em particular no
uso do precedente histórico como base para estabelecer uma teolo­
gia normativa. Habilmente, Fee demonstra a fraqueza inerente nos
argumentos pentecostais tradicionais baseados nas analogias sim-

9Ibid., p. 98. Para afirmações que refletem essa pressuposição v. p. 94, 98,
109-17.
10Ibid„ p. 114.
"Ibid., p. 115.
A QUESTÃO DA PQSTERIORIDADE <’ 141

pies ou nos episódios selecionados de Atos. Aqui ouvimos um eco


da crítica oportuna de James Dunn a respeito dos argumentos para
a subseqüência baseados numa combinação de João 20.22 com a nar­
rativa de Lucas em A tos.12
Quando publicados inicialmente, os artigos de Fee, ainda que
dolorosos, serviram para um propósito valioso: desafiaram os pente-
costais a aceitar as questões novas e urgentes levantadas pelos irmãos
tradicionais. Essas questões eram o que havia de mais urgente em
face da rápida assimilação do movimento pentecostal pela corrente
principal do evangelicalismo, processo que por volta de meados da
década de 1970 estava em grande parte completo. Talvez por causa
de sua condição de “participante direto”, Fee tenha sido capaz de fazer
ecoar uma mensagem muito necessária: os pentecostais não podiam
continuar confiando nos métodos interpretativos do movimento
Holiness do século xix e esperar ser ouvidos no mundo evangélico
tradicional contemporâneo — um mundo que estava moldando com
crescente vigor o sistema de valores distintivo do pentecostalismo.
Todavia, o panorama teológico que Fee contemplou nos meados
da década de 1970 e na década de 1980 mudou consideravelmente.
Os argumentos simphstas do precedente histórico, embora tenham
sido o baluarte da teologia pentecostal, foram substituídos por abor­
dagens que falam a linguagem do evangelicalismo moderno. Embo­
ra isso talvez não seja totalmente verdadeiro no que diz respeito à
questão das línguas como evidência inicial, o é seguramente para a
doutrina da posterioridade. O livro de Roger Stronstad, A teologia
carismática de Lucas, ilustra esse fato. Publicado em 1984 nos e u a ,
marca uma mudança importante no pensamento pentecostal. A tese
central de Stronstad é que Lucas é teólogo por seus próprios méritos
e sua perspectiva do Espírito é diferente da de Paulo, embora com­
plementar. Diferentemente de Paulo, que sempre fala do aspecto
soteriológico da obra do Espírito13, Lucas descreve coerentemente
o Espírito como a fonte de poder para o serviço.

,2Baptism in the H oly Spirit, p. 39.


13Paulo apresenta o Espírito como a fonte de purificação, justificação e santifi­
cação (e.g., ICo 6.11).
WQ PODER DO ESPÍRITO ■ 142

Meu livro The development of early Christian pneumatology with


special reference to Luke-Acts [O desenvolvimento da pneumatologia
cristã primitiva com especial referência a Lucas—Atos] também salien­
ta o caráter distintivo da pneumatologia de Lucas. A tese do livro
corrobora a de Stronstad, pois argumento que Paulo foi o primeiro
cristão a atribuir funções soteriológicas ao Espírito e que este ele­
mento original da pneumatologia de Paulo não influenciou os seto­
res mais amplos (não-paulinos) da igreja primitiva senão depois da
escritura de Lucas— Atos.
O ponto crucial no qual Stronstad e eu concordamos é que Lucas
jamais atribui funções soteriológicas ao Espírito e sua narrativa pres­
supõe uma pneumatologia que exclui essa dimensão (e.g., Lucas 11.13;
Atos 8.4-17; 19.1-7). Ou, para dizer de modo positivo, Lucas des­
creve o dom do Espírito exclusivamente
em termos carismáticos
como a fonte de poder para o testemunho eficaz.14 A narrativa de
Lucas, portanto, reflete mais que simplesmente um programa ou
ênfase diferente, sua pneumatologia é diferente
da de Paulo, embora
lhe seja complementar.
Nos capítulos anteriores tentamos provar essa concepção da pneu­
matologia de Lucas. No restante deste capítulo, gostaria de mostrar
de que maneira essa avaliação da pneumatologia de Lucas fornece
fundamento bíblico para a doutrina da posterioridade.
Do ponto de vista bíblico, a questão central é: qual é a natureza
do dom pentecostal (At 2)? Com o vamos demonstrar, está bem
claro que Lucas pretendia
que seus leitores entendessem que esse
dom (qualquer que seja sua natureza) era acessível a todos e devia
ser experimentado por todos. Fee e praticamente todos os evangéli­
cos tradicionais insistem que esse dom é o elemento principal da
conversão-iniciação. Embora a maioria dos tradicionais reconheça

h F ee declara que concorda veementemente “com Stronstad na ‘natureza caris­

mática’ da teologia de Lucas” (Op. cit., p. 101). Todavia, parece não entender
Stronstad nesse ponto, pois diz em outro lugar que Lucas, do mesmo modo que
Paulo, via o dom do Espírito como “o principal elemento da conversão e da vida
cristã” (ibid., p. 98). Essas duas afirmações são, na verdade, contraditórias. Quan­
do Fee fala da “natureza carismática” da pneumatologia de Lucas, parece querer
dizer meramente que Lucas associa as funções carismáticas, juntamente com as
funções soteriológicas, ao Espírito.
A QUESTÃO DA POSTERIORIDADE 143

que a capacitação divina é preeminente na narrativa, esse aspecto do


relato de Lucas é em geral considerado reflexo dessa ênfase especial.
Presume-se que Lucas e Paulo tenham compartilhado essencialmente
a mesma perspectiva pneumatológica, e portanto os aspectos sote-
riológicos mais amplos da obra do Espírito são também entendidos
como presentes. Desse modo, facilmente se explica o caráter uni­
versal do dom pentecostal: todos devem experimentar o dom por­
que ele é o meio pelo qual as bênçãos do novo pacto são ministradas.
Entretanto, a descrição da pneumatologia de Lucas esboçada aci­
ma desafia essa avaliação tradicional do dom pentecostal. Pois se
Lucas vê o dom do Espírito exclusivamente em termos carismáticos,
não é possível associar o dom pentecostal com a conversão ou a
salvação. Na verdade, enquadrando a narrativa do Pentecoste na
moldura da teologia do Espírito característica de Lucas, os pente-
costais podem argumentar com força considerável que o Espírito
veio sobre os discípulos no Pentecoste não como a fonte da existên­
cia no novo pacto, mas como a fonte de poder para o testemunho
eficaz. E, visto que o dom pentecostal é de natureza carismática,
não soteriológica, deve ser distinto do dom do Espírito que Paulo
associa com a conversão-iniciação. Eis, portanto, um argumento forte
para a doutrina da posterioridade, a saber, que o batismo no Espíri­
to (no sentido pentecostal ou de Lucas) é logicamente distinto da
conversão. Essa distinção lógica reflete a teologia do Espírito carac­
terística de Lucas.
Note que esse argumento não se baseia na analogia bíblica nem
no precedente histórico. Não procura demonstrar que os discípulos
haviam recebido o Espírito, pelo menos da perspectiva de Lucas,
antes do Pentecoste. Nem tampouco depende de passagens isoladas
em livro de Atos. Ao contrário, retirado do escopo total da obra em
dois volumes de Lucas, focaliza a natureza da pneumatologia de Lucas
e, desse ponto de vista, procura entender o caráter do dom
pentecostal. Essa convicção de que o dom é distinto da conversão
tem raízes na função do dom: ele proporciona poder para o teste­
munho, não justificação perante Deus ou purificação pessoal. O
caráter universal do dom estabelecido na narrativa de Lucas, em vez
de precedente histórico, é a base para a sua natureza normativa.
NO PODBUK) ESPÍRITO / 144

Tudo isso indica que a crítica de Fee sobre a hermenêutica pente-


costal, concentrada nos apelos ingênuos do precedente histórico,
faiha por não tratar da questão crucial de hoje: Lucas, de maneira
semelhante a Paulo, apresenta o Espírito como a fonte da existência
no novo pacto? Fee, como observamos, presume que sim e declara
confiante que nesse ponto “todos os estudiosos do N ovo Testa­
mento” concordam. Todavia, essa afirmação confiante, à parte dos
dois estudos pentecostais mencionados acima, ignora um grupo sig­
nificativo de estudiosos do N ovo Testamento. Mais de um século
atrás Herman Gunkel chegou a conclusões muito diferentes e, mais
recentemente, foi seguido por E. Schweizer, David Hill e Gonzalo
Haya-Prats, todos autores de obras que destacam o caráter distinti­
vo da pneumatologia de Lucas.15 A questão real concentra-se não na
hermenêutica ou no precedente histórico, mas na exegese e na natu­
reza da pneumatologia de Lucas.

E stabelecer a in t e n ç ã o de Lucas

O problema da intenção de Lucas, tão importante no argumento de


Fee, está visivelmente subordinado à questão mais fundamental
esboçada acima, pois se a nossa descrição da pneumatologia caracte­
rística de Lucas está certa, a intenção de ensinar um batismo no Es­
pírito distinto da conversão e visando à capacitação demonstra-se
com facilidade. Precisa-se apenas estabelecer que a narrativa de Lucas
foi planejada para estimular todo cristão a receber o dom pentecos-
tal. Uma vez que Lucas chama a atenção para o Pentecoste como cum-
prifnento da profecia de Joel a respeito do derramamento do Espírito
sobre “todos os povos” (At 2.17-21), isso se mostra auto-evidente.
A comunidade da fé, ao menos potencialmente, é uma comuni­
dade de profetas. E era expectativa de Lucas que esse potencial se
realizasse na igreja de seu tempo como se realizara no passado (e.g.,
2.4; 19.6). Embora muitos outros textos possam ser citados em apoio
a essa conclusão, limitaremos nossa discussão a um texto importan­
te não tratado anteriormente: Lucas 11.13.

I5H. G unkel, The influence o f the H oly Spirit ; E. S chweizer, itvEupa T D N T ,


6:389-455; D. H ill, Greek words an d Hebrew meanings\ G. H aya-P rats, LEsprit
force de Teglise.
A QUESTÃO DA POSTERIORIDADE / 145

Lucas 11.1-13 constitui uma seção dedicada ao ensino de Jesus


sobre a oração. Inicia com o pedido de instrução de um discípulo
acerca de como orar ( I I .1), ao qual Jesus responde na forma de uma
oração modelo (11.2-4), e o ensino parabólico a respeito da pronti­
dão e da certeza da resposta de Deus (11.5-13). A seção encerra
com a comparação entre o Pai celestial e seu equivalente terreno:
“Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus
filhos, quanto mais o Pai que está nos céus dará o Espírito Santo a
quem o pedir!” (11.13). Essa comparação conclusiva, com sua refe­
rência ao Espírito Santo, demanda um exame.
As semelhanças de redação entre Lucas 11.9-13 e Mateus 7.7-11
indicam que a passagem procede de uma fonte comumente chama­
da de Q (um documento hipotético das passagens do evangelho
comuns apenas a Mateus e Lucas). Mas há uma diferença crucial:
Mateus 7.11b menciona “boas coisas” em vez de “Espírito Santo”
(Lc 11.13b). Pode haver pouca dúvida de que as “boas coisas” de
Mateus representem o palavreado original do hipotético documento
Q .16 Mateus segue suas fontes à risca no que diz respeito ao Espíri­
to, nunca omite nenhuma referência a ele contida nessas fontes nem
jamais insere pneuma (“Espírito”) no material Q ou no de Marcos.
Lucas, ao contrário, insere pneuma
no material Q em pelo menos
três ocasiões (Lc 4.1; 10.21; acrescentando a 11.13) e no material de
Marcos uma vez (4.14).17 Esses dados indicam que Lucas, não Mar­
cos, alterou Q. Nossa conclusão se confirma pela estranheza da cons­
trução de Lucas: a inserção de “Espírito Santo” quebra o paralelismo
do argumento um minore ad maius (“do menor para o maior”) que
liga as “boas coisas” dadas pelos pais terrenos (Lc 11.13a = Mt 7.11a)
com as “boas coisas” dadas pelo Pai celestial (Mt 7.11b).
Uma vez estabelecido que o “Espírito Santo” de Lucas 11.13b é
um acréscimo de redação feito por Lucas, qual a importância dessa
alteração para sua pneumatologia? Observamos três coisas.

16C . K . Barret, The H oly S p iritan d th e Gospel Tradition, p. 126-7; Schulz, Q :


D ie Spruchquelleder Evangelisten, p. 162; Schweizer, irveupa, 6:409; T.W M anson,
The sayings o f Jesus, 2. ed., p. 81; F itzmyer, T he gospel according to Luke, 2:915-6;
Ellis, The gospel o fL u k e em ncb, p. 164.
17V. R odd, Sp irit o r finger, ExpTim 72, 1960-1961, p. 157-8.
NO PODER DO ESPÍRITO 146

1) A alteração de Lucas do texto do documento Q antecipa a ex­


periência pós-ressurreição da igreja.18 Isso é evidente no fato de a
promessa de que o Pai vai dar o Espírito Santo aos que o pedem
começar a ser percebida somente no Pentecoste. Contemporizando
o texto desse modo, Lucas enfatiza a relevância da declaração para a
comunidade pós-pentecoste para a qual escreve.
2) O contexto indica que a promessa é feita a discípulos (Lc 11.1).
Logo, a versão contemporizada de Lucas da declaração dirige-se aos
membros da comunidade cristã. Uma vez que se destina aos que já
são crentes, a promessa não pode referir-se a um dom iniciatório ou
soteriológico.19 Esse raciocínio se confirma pelo caráter repetitivo
da exortação a orar:20 Orar pelo Espírito (e, à luz da promessa, po­
demos supor que isso inclui a recepção do Espírito) deve ser uma
prática contínua. O dom do Espírito Santo ao qual Lucas se refere
não inicia ninguém na nova aliança nem é para ser recebido uma só
vez 21, em vez disso o dom pneumatológico é dado aos discípulos
para ser experimentado continuamente.
3) O uso que Lucas faz em outras partes indica que ele enxergava
o dom do Espírito Santo em Lucas 11.13b como revestimento do
poder profético. Em duas ocasiões em Lucas— Atos o Espírito é
concedido aos que oram;22 em ambas, o Espírito é retratado como a
fonte da atividade profética, a) Lucas altera o relato de Marcos acer­
ca do batismo de Jesus de modo que Jesus recebe o Espírito depois
do batismo enquanto orava (Lc 3.21). Esse dom do Espírito, retra­
tado principalmente como a fonte da proclamação de Jesus (4.18,19),

18F itzmyer, op. cit., 2:916; Ellis, op. cit., p. 164; StrONSTAD, Charism atic
theology, p. 46.
l9MONTAGUE, The H oly Spirit: growth of a biblical tradition, p. 259-60.
20Note, por exemplo, a força repetitiva de Lucas 11.2 (lit.: “Quando vocês
orarem, digam”) e a ação contínua implícita dos verbos no presente em 11.10:
“Pois todo o que pede, recebe; o que busca, encontra”.
2lBüCHSEL (D e r Geist Gottes, p. 189-90) e M ontague (op. cit., p. 259-60)
observam o caráter repetitivo da exortação.
22Ver Lucas 3.31 e Atos 4.31. Observe também que em Atos 8.15-17 o Espírito
vem sobre os samaritanos em resposta às orações de Pedro e João. A oração está
implicitamente associada com a recepção do Espírito no Pentecoste (1.14; 2.4).
Aqui, como em outras passagens observadas acima, o dom do Espírito é apresen­
tado como capacitação profética.
A QUESTÃO DA POSTERIORIDADE / . 147

preparou Jesus para sua tarefa messiânica, b) Posteriormente, em


Atos 4.31, os discípulos depois de terem orado “foram cheios do
Espírito Santo e anunciavam corajosamente a palavra de Deus”.
Novamente o Espírito dado em resposta à oração é o m otor por
detrás da proclamação da palavra de Deus.
Resumindo, por meio de recurso editorial em Lucas 1 1.13b, Lucas
estimula os discípulos pós-pentecoste a pedir o dom do Espírito
Santo, que para ele significava o acesso aberto ao Espírito divino —
a fonte de poder que os capacitaria a ser testemunhas eficazes de
Cristo (Lc 12.12; A t 1.8) provendo o que se exigia em tempo de
necessidade, seja conhecimento especial, seja capacidade para pro­
clamar poderosamente o evangelho em face da perseguição. Esse
texto, portanto, reflete a intenção de Lucas de ensinar o batismo no
Espírito para a capacitação, distinto da conversão. Também apóia
nossa afirmação pentecostal de que a pneumatologia de Lucas é dis­
tinta da de Paulo, embora lhe seja complementar, pois em Lucas
11.13, o autor apresenta o Espírito não como a fonte de purificação
e de uma nova habilidade para guardar a lei, mas como a fonte de
poder para o testemunho eficaz.

Conclusão
Os pentecostais estão procurando chegar a um acordo com sua he­
rança evangélica tradicional. O livro de G ordon Fee, Gospel and
Spirit,representa a pesquisa de um intelectual respeitado. Quando
os artigos desse livro foram inicialmente escritos, prestaram um
valioso serviço. Ajudaram os pentecostais a reconhecer a própria
necessidade de tratar de questões novas e urgentes levantadas por
seus irmãos tradicionais. A pesquisa de Fee incentivou outros a en­
trar nessa empreitada. Todavia, o cenário teológico mudou conside­
ravelmente desde o início da publicação dos artigos dc Fee. E embora
esses artigos tenham sido atualizados, não mostram a consciência
de um novo terreno. Por isso, tratam de preocupações de pouca
importância. Hoje, a questão crucial concentra-se não na herme­
nêutica ou no precedente histórico, mas na exegese e na natureza da
pneumatologia de Lucas. Se Fee e os estudiosos evangélicos quise­
rem se engajar num diálogo significativo com a intelectualidade
pentecostal contemporânea, vão precisar tratar desse assunto.
NO PODER DO ESPÍRITO / , 148

P erguntas para estudo

1. Por que os argumentos em favor da doutrina da posterioridade


baseados no precedente histórico não foram convincentes?
2. Fee dá a entender que a doutrina da posterioridade trata de assun­
tos sem importância e, por isso, rejeitá-la não representa nenhu­
ma perda significativa para os pentecostais. Isso é realmente
verdade? A doutrina só procura tratar de assuntos de tempo?
3. Que nos diz a doutrina da posterioridade a respeito da natureza
do batismo no Espírito? De que maneira ela afeta nossa expecta­
tiva?
4. A tese de Fee repousa numa suposição importante, aquela que os
autores desafiam em todo este livro. Que suposição é essa?
5. Menzies alega que a questão da “intenção” de Lucas não é real­
mente a questão central. Qual, então, é a questão central do atual
debate tradicional-pentecostal?
capítulo * 8

Línguas como
evidência

omo missionário-educador, viajo freqüentemente para várias par­


C tes da Ásia a fim de ensinar. Aonde quer que eu vá, independente­
mente do curso ou do tópico em discussão, sempre posso contar com
uma pergunta de meus alunos pentecostais: O que acha das línguas
como evidência inicial? O fato de a pergunta ser levantada tantas
vezes e numa variedade de situações indica que os pentecostais não
trataram desse assunto com eficácia. Deixamos de prover suporte
bíblico e teológico convincente para a nossa posição de que a glossola-
lia é a “evidência física inicial” do batismo no Espírito (At 2.4).1
Em grande parte isso ocorre porque deixamos de falar desse as­
sunto de maneira que faça sentido no contexto hermenêutico de
hoje. No passado quase sempre confiamos nas pressões sociais em
vez de nos argumentos teológicos claros. A conseqüência é a confu­
são disseminada dentro de nossas igrejas e a indiferença desnecessá­
ria de muitos cristãos de fora de nossas igrejas. Escrevo o capítulo a
seguir com a esperança de estimular uma reflexão teológica muito
necessária nessa importante questão. O próximo capítulo represen­
ta minha resposta à questão com que freqüentemente deparo e mi­
nha própria tentativa de conciliar minhas convicções e experiências
pentecostais com minha herança e formação tradicionais.

U ma história de duas questões

No capítulo anterior, afirmei que os pentecostais lançaram luz so­


bre uma questão extremamente importante: Qual a natureza do dom
pentecostal? Vamos voltar nossa atenção agora para uma segunda

'Minutes of the 44tb session ofthe General ( '.ouucil of the Assemblies of God, p. 130.
NO PODER DO ESPÍRITO 150

pergunta distinta: Qual a natureza da relação entre línguas (glosso-


lalia) e o dom pentecostal? E imperativo reconhecer que essas duas
perguntas são distintas. Na verdade, muito da confusão relativa a
essas perguntas vem da falha em distingui-las. De um lado, essa fa­
lha tem levado muitos pentecostais a identificar incorretamente o
dom pentecostal com as línguas. De outro, é a razão por que muitos
evangélicos tradicionais, com visão parcial, têm se concentrado na
hermenêutica do precedente histórico e esquecido da questão fun­
damental a respeito da natureza da pneumatologia de Lucas.
Essas duas perguntas devem ser abordadas e, em última instân­
cia, respondidas de modos diferentes. A questão concernente à na­
tureza do dom pentecostal é uma questão de teologia bíblica, da
qual o próprio Lucas trata claramente. Com efeito, nos capítulos
anteriores examinamos as evidências de Lucas— Atos que dão apoio
a nossa alegação de que Lucas apresenta com coerência o dom pen­
tecostal em termos carismáticos como a fonte de poder para o tes­
temunho eficaz. Além disso, ele incentiva conscientemente seus
leitores a experimentar esse dom. A intenção de Lucas é clara. Mas a
questão das línguas como evidência inicial nos conduz ao domínio
da teologia sistemática.
Na teologia bíblica, concentramo-nos na programação dos auto­
res bíblicos. Procuramos ouvir as perguntas que levantaram e as res­
postas que ofereceram. G. B. Caird comparou habilmente a tarefa
da teologia bíblica com a capacidade de ouvir o diálogo dos autores
bíblicos sentados ao redor da mesa.2 Ao contrário, na teologia siste­
mática em geral começamos com a ordem do dia e as perguntas de
nosso ambiente contemporâneo. Levamos as questões prementes
de nosso tempo para o texto bíblico e, à medida que lutamos com as
implicações que emergem do texto para nossas perguntas, procura­
mos respondê-las de modo coerente com o testemunho bíblico. Na
teologia sistemática, não ficamos sentados passivamente, ouvindo a
discussão da mesa redonda. Ao contrário, colocamos nossas per­
guntas no diálogo e ouvimos as várias respostas. Finalmente, pro­
curamos juntar essas respostas numa única resposta coerente.

2A abordagem de Caird é resumida por L. D. H urst, New Testament theological


analysis em IntroducingNew Testament study, Scot M c K night, org., p. 145.
LÍNGUAS CO M O EVIDÊNCIA 151

A questão referente à relação entre as línguas e o batismo no


Espírito pertence ao domínio da teologia sistemática. Larry Hurtado
observa corretamente que “o problema originado ‘pela evidência ini­
cial’ do recebimento do ‘batismo no Espírito’ simplesmente não é
levantado no Novo Testamento”.3 Lucas, como havemos de enfatizar,
não é uma exceção neste ponto. Isso significa que nem Lucas, nem
nenhum outro autor bíblico tenta deliberadamente demonstrar que
“línguas” são a evidência física inicial da experiência capacitadora e
da dimensão da atividade do Espírito que os pentecostais apropria­
damente chamam de “batismo no Espírito”.
Entretanto, como Hurtado observa, isso não necessariamente
“torna a doutrina inválida”, nem indica que as questões associadas
com ela são incorretas.4 Não obstante, Hurtado prossegue dando a
entender que nesse exemplo a doutrina é inválida (examinaremos
essa objeção mais tarde). Para o momento, é importante notar que
ela não só é legítima, mas também em geral necessária para levar
nossas perguntas ao texto ou (como Caird poderia dizer) dialogar
ao redor da mesa. Aqui devemos também ouvir com atenção a voz
das Escrituras. Embora os autores bíblicos não tratem diretamente
de nossas perguntas, nosso alvo é identificar as implicações para
nossas questões que emergem das várias perspectivas teológicas que
elas representam.

A S LIMITAÇÕES DA TEOLOGIA BÍBLICA

A doutrina das línguas como evidência é tratada em geral meramen­


te nos termos das categorias da teologia bíblica. Isto vale para as
apresentações pentecostais e para as avaliações não-pentecostais. Os
pentecostais em geral apoiam a doutrina argumentando que os vá­
rios relatos de Atos apresentam um modelo normativo para a expe­
riência cristã. Embora nem sempre expressa de maneira clara, está
implícita nessa abordagem a noção de que Lucas formulou consci­
entemente a sua narrativa a fim de realçar o caráter normativo das
línguas como evidência. Todavia, como Gordon Fee assinalou, esse

3Normal, but not a norm: initial evidence and the New Testament em Initial
evidence, G. M c G ee, org., p. 191.
4Ibid.
NO PODER DO ESPÍRITO 152

tipo de argumento não foi convincente.5 No capítulo anterior, ob­


servamos que a crítica de Fee aos argumentos baseados no prece­
dente histórico foi importante porque desafiou os pentecostais a
tratar desse assunto.
Nossa incapacidade de dar sustentação teológica clara a nossa
doutrina das línguas como evidência não se demonstra em lugar al­
gum mais claramente do que na recente publicação do livro Initial
evidence [Evidência inicial] .6 Os artigos de Hurtado e J. Ramsey
Michaels representam elaborações posteriores da mensagem básica
expressa por Fee mais de uma década atrás.7 Os pentecostais não
conseguiram convencer porque não foram capazes de demonstrar
que Lucas pretendia apresentar um modelo normativo da experiência
cristã nos relatos centrais de Atos.
O problema tem duas faces. 1) A evidência não é uniforme: se
Lucas pretendia ensinar as línguas evidenciais como normativas, por
que não as apresentou coerentemente como conseqüência imediata
do batismo no Espírito (e.g., A t 8.17; 9.17,18)? 2) Mesmo quando
as línguas são associadas com o batismo no Espírito, há dúvida de
que essa associação se faça para apresentar as línguas evidenciais como
doutrina normativa. Em outras palavras, é difícil argumentar que
Lucas pretendia ensinar com sua narrativa essa doutrina tal como
ela é apresentada pelos pentecostais modernos. Não parece ser essa
a sua preocupação.
Como se notou acima, devemos ser cuidadosos para não saltar
imediatamente para a conclusão desautorizada de que essa avaliação
necessariamente invalida a doutrina das línguas como evidência. Mas
essa é exatamente a conclusão que em geral se tira. O motivo é ex­

5Hermencutics and historical precedent — a major problem in pentecostal her-


meneutics, Perspectives on the newpentecostalism, R. P. S pittler, org., p. 118-32;
ver também F ee, Baptism in the H oly Spirit: the issue of separability and
subsequence, Pneuma 7:2, 1985, p. 87-99.
6A despeito do excelente artigo de Donald A. J ohns, Some new directions in
the hermeneutics of classicalpentecostalism’s doctrine of initial evidence, em Initial
Evidence, p. 145-67, é esse o caso. O artigo de Johns enfatiza a metodologia e, por
isso, representa intencionalmente uma afirmação provisória.
7H urtado, Normal, p. 189-201; J. Ramsey M ichaels, Evidences of the Spirit,
or the Spirit as evidence? Some of non-pentecostal reflections em Initial evidence,
p. 202-18.
LÍNGUAS COM O EVIDÊNCIA 1S3

presso declaradamente por Fee, que propõe que a teologia normativa


sobre esse assunto deve basear-se na “intenção principal” ou “inten­
ção de ensinar” de Lucas.8 Mas isso seguramente é muito restritivo.
Nem todas as questões de ensino normativo estão enraizadas dire­
tamente na intenção do autor. Hurtado observa a ilustração da Trin­
dade quase sempre citada, que não é ensinada explicitamente no Novo
Testamento, mas desenvolvida com base em inferências do ensino
bíblico. Não vale a pena pesquisar a respeito do caráter da pneuma-
tologia de Lucas e depois lidar com as implicações que emergem de
sua pneumatologia para nossas questões contemporâneas? Apenas
“a forma mais grave de biblicismo” negaria a validade desse tipo de
exercício.9
O enfoque exclusivo da “intenção principal” ou “intenção de ensi­
nar” do autor muito freqüentemente leva a uma visão estreita que
ignora as implicações de um texto individual para a perspectiva teo­
lógica do autor. Essa miopia é ilustrada no tratamento que Fee dá ao
episódio samaritano em Atos 8.4 -17.10 Ele argumenta que essa pas­
sagem é em última análise irrelevante para as discussões a respeito da
doutrina da posterioridade, pois a “intenção principal” de Lucas está
em outro lugar. Ora, a intenção primordial da narrativa, como Fee
propõe, pode ser enfatizar que a expansão do evangelho além dos
limites do judaísmo tinha “a aprovação divina e apostólica”. E, eu
concordaria, é improvável que Lucas tenha procurado consciente­
mente ensinar nessa passagem que o dom do Espírito é normalmen­
te separado da fé salvadora. Mas isso não nos permite ignorar as
implicações claras da narrativa para a pneumatologia de Lucas.
Na verdade, o fato de Lucas com efeito
separar o dom do Espírito
da fé salvadora revela claramente sua perspectiva pneumatológica
distintiva. Paulo não poderia nem teria interpretado e narrado o fato
desse m odo. Ademais, essa separação refuta a interpretação
comumente aceita do dom (conforme Lucas) como “o clímax da
conversão-iniciação”. Em outras palavras, o valor de uma passagem
"Hermeneutics and bistorical precedent, p. 83-99.
5H urtado , op. cit., p. 191.
l0Gordon F ee e Douglas Stuart , E n ten des o qu e lês?. V tí>. Fee, G o sp e l a tu i
S p irit, p. 97.
NO PODER DO ESPÍRITO 154

para avaliar a perspectiva teológica de um determinado autor não


pode ser reduzido a sua “intenção principal”. Uma passagem deve
ser entendida nos termos de seu propósito e sua situação originais,
mas a carga teológica que ela contém pode transcender sua “inten­
ção primeira”. Cada peça das evidências deve ser levada a sério quando
reconstruímos o ponto de vista teológico do autor bíblico.
Isso leva a uma conclusão importante com respeito ao método
teológico. A busca de uma teologia normativa é com freqüência uma
tarefa de duas etapas que abarca tanto a disciplina da teologia bíblica
quanto da teologia sistemática. 1) Devemos reconstruir a perspecti­
va teológica dos autores bíblicos e daí permitir-lHes tomar seus pró­
prios lugares na mesa de discussão. Essa tarefa de reconstrução não
pode limitar-se a uma visão panorâmica da “intenção principal” de
passagens isoladas, ao contrário, exige análise cuidadosa da impor­
tância teológica da obra toda do autor. 2) Depois de encerrada a
tarefa de reconstrução teológica, devemos levar nossas perguntas
para a mesa de discussão e ouvir atentamente o diálogo resultante.
Aqui procuramos ouvir as respostas (por inferência) surgidas das
várias perspectivas teológicas dos autores bíblicos. Na seção seguinte
procuraremos empregar esse método de duas etapas na tentativa de
avaliar a doutrina pentecostal das línguas como evidência.

A S CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA BÍBLICA

Juntemo-nos à mesa redonda dos autores bíblicos. Para nossos pro­


pósitos, Lucas e Paulo são suficientes. Contudo, antes de fazermos
nossas perguntas, é bom ouvir. Devemos ouvir a discussão deles
sobre os assuntos importantes relacionados à manifestação de lín­
guas e do discurso profético. Paulo é o primeiro a se manifestar.
Embora sua afirmação não seja a resposta definitiva a nossa pergun­
ta, é significativa. Paulo afirma quetodo cristão pode e na verdade

deve — ser edificado pela manifestação particular de línguas.
Essa declaração é importante, pois alguns propuseram que Paulo
limita o falar em línguas a poucos da comunidade que foram dota­
dos para isso. Os comentários de Don Carson em Showingthe Spirit
[Revelando o Espírito] são representativos dessa posição.11 Com base
"ShowingtheSpirit: a theological exposition of 1 Corinthians 12— 14.
LÍNGUAS COMO EVIDÊNCIA 155

na pergunta retórica de IC oríntios 12.30 (“Falam todos em lín­


guas?”), Carson argumenta que é incorreto insistir que todos po­
dem falar em línguas; nem todos têm o mesmo dom. Esse princípio
é central na desconsideração de Carson em relação às línguas como
evidência de uma experiência pós-conversão distinta.
Carson falha por não reconhecer a complexidade da questão, pois
ICoríntios 12.30 deve ser conciliado com 14.5 ("Gostaria que to­
dos vocês falassem em línguas.”). Além disso, não leva em conside­
ração se a referência em 12.30 se limita à manifestação de pública
línguas. Se esse for o caso, como o contexto permite entender, está
aberto o caminho para todo crente ser edificado pessoalmente com
a manifestação particular de línguas. E notável que Carson não dis­
cuta essa opção exegética quando ele reconhece que embora nem
todos sejam profetas (12.29), todos podem profetizar (14.31). O
comentário de Paulo em 14.18 (“Dou graças a Deus por falar em
línguas mais do que todos vocês”), somado com a referência em 14.5
mencionada acima, indica que o apóstolo considerava a manifestação
privada de línguas edificante, desejável e acessível a todo cristão.123
Carson evidentemente interpretou Paulo de forma errônea e incor­
retamente restringiu o falar em línguas a um grupo seleto da comu­
nidade cristã.
Voltamos agora nossa atenção para Lucas. Sua contribuição é
multifacetada. Em primeiro lugar, Lucas nos lembra do caráter pro­
fético do dompentecostal.Já mencionamos que Lucas descreve o dom
do Espírito exclusivamente em termos carismáticos como a fonte de
poder para o testemunho eficaz. Isso quer dizer que Lucas não apre­
senta, como Paulo, o Espírito como agente soteriológico (a fonte
de purificação, justificação e santificação). Se questionarmos mais
especificamente a respeito do impacto do Espírito em Lucas— Atos,
veremos que a perspectiva de Lucas é semelhante à do judaísmo do
seu tempo. Os judeus do século i identificavam o dom do Espírito
como a fonte de inspiração profética. Essa visão era predominante
no judaísmo que deu origem à igreja primitiva. Sabedoria de Salomão
e os hinos de Qumran são as únicas exceções a essa visão.'3

l2O b se rv e tam b ém I C o 14.4: “ Q u e m fala em lín gu as a si m esm o se e d ific a ...” .


l3R o b e rt M enzies, T he d e v elo p m en t o f ea rly ch ristia n p n eu m a to lo g y , p. 5 2 - 1 12.
NO PODER DO ESPÍRITO 156

Com o a fonte de inspiração profética, o Espírito concede revela­


ção especial e discurso inspirado. Essas funções gêmeas são
exemplificadas pelos muitos exemplos em que os rabinos falam de
“ver” ou de “falar no Espírito”.Uma citação antiga (provavelmente
pré-cristã), Aboth de Rabbi Nathan A.34> também é ilustrativa: “Por
dez nomes o Espírito Santo foi chamado, a saber: parábola, metáfo­
ra, enigma, discurso, dito, glória, mandamento, fardo, profecia e vi­
são”.14 Note como “os vários nomes” se identificavam com o aspecto
de revelação carismática do Espírito Santo (e.g., “profecia”, “visão”)
e o dom do falar (e.g., “discurso”, “dito” e “mandamento”).
Lucas também apresenta o Espírito como a fonte de inspiração
profética. Isso é evidente desde o começo do seu evangelho, que
retrata manifestações de discurso profético por Isabel (Lc 1.41,42),
Zacarias (1.67) e Simeão (2.25-28). E realçado nos relatos progra-
máticos do sermão de Jesus em Nazaré (4.18,19) e do sermão de
Pedro no dia de Pentecoste (At 2 .17,18), os quais indicam que o
dom do Espírito em Lucas está intimamente ligado ao discurso ins­
pirado. Além disso, a obra em dois volumes de Lucas é pontuada de
referências ao discurso inspirado pelo Espírito (e.g., Lc 10.21; 12.10-
12; At 4.31; 6.10). Desse modo, quando Lucas nos lembra do cará­
ter profético do dom do Espírito, ele está afirmando na verdade que
o dom pentecostal é intimamente ligado ao discurso inspirado.

AS CONTRIBUIÇÕES DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Estamos agora em posição de ir além das contribuições iniciais e


fundamentais da teologia bíblica, particularmente a de Paulo e a de
Lucas. Agora precisamos expor nossas perguntas para eles: Qual é a
natureza da relação entre as línguas (glossolalia) e o dom pentecos­
tal? Mais especificamente, a glossolalia é a “evidência física inicial”
do batismo no Espírito Santo (At 1.5; 2.4)?
Paulo precisa permanecer em silêncio neste ponto. Já observa­
mos que sua teologia não está em contradição com a glossolalia como
evidência. Não obstante, uma vez que ele não fala especificamente

l4Tradução para o inglês da obra de J. G oldin, The fatbers according to rabbi


Nathan. Sobre a datação de arn A.34, ver Menzies, Development, p. 97-99.
LÍNGUAS COMO EVIDÊNCIA 157

do dom pentecostal,15 ficamos incapazes de reconstruir sua contri­


buição para a discussão desse assunto.
Lucas, no entanto, tem muito que dizer. No que tange à questão
da “evidência física inicial”, pode-se ficar inclinado a ouvir na resposta
dele uma alusão à revelação carismática e ao discurso inspirado, o
que inclui tanto as falas inteligíveis quanto ininteligíveis (glossola-
lia). Certamente Lucas apresenta o dom pentecostal como a fonte
de inspiração profética, e essa inspiração inclui todas as três ativida­
des (revelação carismática, discurso inteligível e glossolalia).
Todavia, à medida que refletimos sobre a questão e ouvimos aten­
tamente, podemos perceber que a resposta de Lucas é mais precisa.
Afinal, “evidência física” sugere sinais visíveis e audíveis que cons­
tatam a recepção do dom pentecostal. Portanto, podemos, sem mais
delonga, eliminar a revelação carismática da resposta de Lucas. A reve­
lação carismática, a menos que pronunciada de algum modo, não pode
servir de “evidência física”, pois carece de aspecto visível ou audível.
Além disso, como se pode distinguir o discurso inteligível inspi­
rado do não inspirado? Embora todos nós possamos pensar em
exemplos de quando se fez um discurso inteligível de maneira que
indicava a inspiração do Espírito (espontâneo, edificante e apropria­
do), o problema é que os julgamentos dessa espécie são muito su­
perficiais ou aproximados. O falar em línguas, contudo, por causa
de seu caráter incomum e demonstrativo (o verdadeiro motivo por
que é em geral tão amaldiçoado quanto superestimado), é particu­
larmente bem adequado para servir como “evidência”. Enfim, se fi­
zermos a pergunta a respeito da “evidência física inicial” de Lucas, o
falar em línguas é singularmente adequado em razão de seu caráter
intrinsecamente demonstrativo.
Há evidências, à parte da pneumatologia mais ampla de Lucas,
indicativas de que essa conclusão está em harmonia com o ponto de
vista de Lucas. O sinal decisivo do favor de Deus para com os gen­
tios é o fato de terem recebido o dom do Espírito, manifesto no
falar em línguas (At 10.46). Foi esse sinal que surpreendeu os com-

,5E m b o ra P au lo n ão relacion e esp ecificam en te a d im en são cap ac ita d o ra d o E s ­


p írito a o d o m p e n tec o stal, e ssa co n trib u iç ã o de L u c as c o n c o rd a bem co m a p e r s ­
p ectiva te o ló g ic a de Paulo.
NO PODER DO ESPÍRITO / 158

panheiros circuncisos de Pedro e resultou em sua ordem de batizar


os gentios convertidos (10.45-48). Essa ênfase no valor do sinal de
falar em línguas está enraizada na pneumatologia profética de Lucas.
Uma vez que, de acordo com esse evangelista, a recepção do Espíri­
to é privilégio exclusivo dos “servos” de Deus e produz um discur­
so audível e miraculoso, por sua própria natureza, a glossolalia
fornece a prova demonstrativa de que os membros incircuncisos da
casa de Cornélio foram incorporados na comunidade da salvação. O
sinal do falar em línguas também é enfatizado na narrativa do
Pentecoste (2.4,5,17-20). Seja dos lábios de um judeu em Jerusa­
lém, seja de um gentio em Cesaréia, a manifestação do falar em lín­
guas marca o falante como um membro da comunidade profética
do fim dos tempos.
Agora estamos prontos para resumir nossas descobertas. Argumen­
tei que a doutrina das “línguas como evidência inicial”, embora não
encontrada de maneira explícita no Novo Testamento, é uma inferên­
cia correta do caráter profético do dom pentecostal e do caráter
evidenciai do falar em línguas. Embora o falar em línguas, como uma
forma de discurso profético ou inspirado, seja parte integrante do
dom pentecostal, Paulo faz uma contribuição importante para a dis­
cussão realçando-lhe o caráter potencialmente universal. Voltemo-nos
agora para uma análise de nossa abordagem e de nossas descobertas.

A S LIMITAÇÕES DA TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Nossa abordagem da questão das “línguas” não se apóia em argu­


mentos de precedente histórico. Não procurei, com base numa aná­
lise de passagens isoladas do livro de Atos, demonstrar que Lucas
pretendia ensinar as línguas como evidência. Em vez disso, retiran­
do do escopo total do livro de dois volumes de Lucas, enfatizei a
natureza da pneumatologia desse autor e, com base nessa estrutura
teológica, procurei responder a nossa pergunta contemporânea a
respeito da “evidência inicial”. Também foram consideradas evidên­
cias importantes de Paulo. O caráter normativo da glossolalia como
evidência surge, portanto, não da intenção principal de Lucas, mas
como resultado de sua pneumatologia profética e da perspectiva
complementar de Paulo.
LÍNGUAS COMO EVIDÊNCIA /> 159

Larry Hurtado, como observamos, reconhece que as doutrinas


não podem ser julgadas inválidas simplesmente porque não são en­
sinadas explicitamente nas Escrituras. Em princípio, é válido basear
uma doutrina em inferências retiradas do texto. E, na prática, em­
bora tenhamos consciência de que a doutrina da Trindade não seja
explicitamente ensinada nas Escrituras, confirmamos sua validade.
Apesar disso, Hurtado dá a entender que a doutrina da glossolalia
como evidência não pode ser comparada com a da Trindade e, em­
bora esta seja válida, aquela não é. O movimento cristão, desde os
seus primitivos estágios “se comprometeu a tentar entender Deus à
luz de C risto”.16 Por isso, as declarações trinitarianas posteriores
representam o auge de um processo que remonta à era apostólica.
Hurtado opõe as origens apostólicas do pensamento trinitariano à
origem relativamente moderna das línguas como evidência:

Diferentemente de problemas como a doutrina cristã de Deus, a


questão de haver um nível distinto de capacitação do Espírito sub-
seqüente à regeneração, com sua devida “evidência”, parece não
se refletir de modo nenhum no Novo Testamento.17

Apesar disso o julgamento de Hurtado precisa ser reexaminado.


Como já observamos, uma análise cuidadosa de Lucas— Atos indica
que, desde seus dias mais antigos, a igreja primitiva tinha conheci­
mento de “um nível distinto de capacitação do Espírito subseqüen-
te à regeneração”. Esse nível de capacitação Lucas descreveu em
termos da promessa e do dom pentecostal. Além disso, os escritos
de Marcos, Mateus, Lucas, Paulo e João refletem um processo de
desenvolvimento do entendimento da obra do Espírito na igreja
primitiva. As evidências, tenho argumentado, indicam que Paulo foi
o primeiro cristão a atribuir importância soteriológica ao dom do
Espírito e que seu discernimento não causou impacto nos setores
não-paulinos da igreja primitiva antes da escritura de Lucas— Atos
(provavelmente por volta do ano 70 d.C.). Isto significa que desde
os seus primeiros dias a igreja primitiva conhecia apenas “um nível

l6O p . cit., p. 192.


l7Ib id .
NO PODER DO ESPÍRITO ' 160

de capacitação do Espírito subseqüente à [ou pelo menos logicamente


distinto da] regeneração”. O entendimento mais pleno de Paulo ti­
nha de ser integrado a essa perspectiva mais primitiva. Desse modo,
a doutrina pentecostal do batismo no Espírito também tem raízes
apostólicas.
Reconheço que a “evidência física inicial” é uma formulação teo­
lógica relativamente recente. Na verdade, até as palavras da expres­
são são condicionadas pelas circunstâncias históricas. O foco em
“evidência” nos lembra de uma época em que o método científico
havia prendido a imaginação do povo norte-americano. Não obstante,
essa formulação moderna está relacionada com um processo de de­
senvolvimento doutrinário refletido no Novo Testamento e em gran­
de parte ignorado pelos exegetas modernos: qual a natureza do dom
pentecostal? Essa pergunta acompanha a igreja desde o primeiro dia
do Pentecoste.
A questão com que nos debatemos neste capítulo — a natureza
da relação entre línguas (glossolalia) e o dom pentecostal — sem
dúvida gerou uma discussão considerável entre os colegas de Pedro.
Desse modo, é praticamente certo que ela acompanhou a expansão
da igreja entre os gentios.18 E aparece como questão inevitável para
os que tentam conciliar a linguagem de dons utilizada por Paulo
com o dom pentecostal de Lucas. Em outras palavras, o histórico da
doutrina pentecostal não é tão esfarrapado quanto Hurtado dá a
entender.
Isto não significa propor que as formulações pentecostais mo­
dernas são inspiradas. Todas as formulações teológicas são produto
de seres humanos e, por isso, bem ou mal, são tentativas humanas
de chegar a um acordo sobre a importância da Palavra de Deus. To­
das essas formulações permanecem sob o juízo dessa Palavra. A ex­
pressão “evidência física inicial”, como todas as formulações teológicas,
tem suas limitações. O foco em “evidência” pode facilmente levar a
uma confusão do dom com o sinal. O dom pentecostal não são as
línguas. Ele é uma experiência de poder que capacita o recipiente a
participar eficazmente da missão de Deus. A manifestação de lín­

l8P. F. Esler, Glossolalia and the admission of gentiles into the early christian
community, B T B 22, 1992, p. 136-42.
LÍNGUAS COM O EVIDÊNCIA 161

guas é uma evidência do aspecto pentecostal da obra do Espírito,


mas não é em si o dom. O destaque exagerado da “evidência” pode
resultar em cristãos que, olhando para o passado distante, se lembrem
do momento em que “o obtiveram”, mas para quem o aspecto pente­
costal de poder para testemunhar é desconhecido no presente.19
Todavia, essa formulação humana também capta bem o sentido de
expectativa exigido por Lucas e Paulo: falar em línguas é parte inte­
grante do dom pentecostal, é edificante e universalmente disponí­
vel. Portanto, quando se recebe o dom, deve-se que ele se esperar
manifeste em línguas. Além disso, a manifestação de línguas é um
lembrete poderoso de que a igreja é, em virtude do dom pentecos­
tal, uma comunidade profética capacitada para a tarefa missionária.
Naturalmente, isso não esgota a importância teológica da glos-
solalia. Frank Macchia, num artigo estimulante, convida apropria­
damente os pentecostais a refletirem ainda mais sobre a importância
teológica do falar em línguas.20 Em meu entender, ele destaca três
áreas de importância especial.
Missiologia: Não é significativo que as “línguas” acompanhem (e
sejam um “sinal” decisivo da) a iniciativa de Deus no rompimento
das barreiras raciais e econômicas?21
Escatologia: A manifestação de línguas nos lembra que nós, como
aqueles do primeiro Pentecoste, vivemos nos “últimos dias” — o
período da libertação graciosa de Deus que precede imediatamente
o Dia do Senhor (At 2.17) — e que Deus nos chamou para ser parte
de seu plano glorioso de salvação.
Eclesiologia : As línguas foram descritas como um “sacramento”
pentecostal (um sinal visível de uma realidade espiritual), mas um
sacramento não ligado ao clero nem à instituição e, portanto, um
sacramento de efeito democratizante poderoso na vida da igreja. E
mera coincidência o falar em línguas ter quase sempre acompanha­
do uma visão renovada do ministério entre os leigos?

” A e x p re sã o “ sinal que aco m p an h a” é um a altern ativa útil p o ssív e l.


20The question of tongues as initial evidence: a review of Initialevidence , Gary
B. M c G ee, org. J P T 2, 1993, p. 117-27.
21Ver M. D empster, The church’s moral witness: a study of glossolalia in Luke’s
theology of Acts, Paraclete 23.1, 1989, p. 1-7.
NO PODER 0 0 ESPÍRITO 162

C onclusão
Argumentamos que a doutrina pentecostal das línguas como evi­
dência é uma inferência correta do caráter profético da pneumato-
logia de Lucas (e, mais especificamente, o dom pentecostal) e da
afirmação de Paulo do caráter edificante e potencialmente universal
da manifestação em particular de línguas. Nossa argumentação pode
ser resumida da seguinte maneira:

1. Paulo afirma que a manifestação em particular de línguas é


edificante, desejável e universalmente acessível. Enfim, todos
devem falar em línguas.
2. Lucas afirma que o dom pentecostal está intimamente ligado
com o discurso inspirado, do qual o falar em línguas é uma
forma preeminente com caráter exclusivamente evidenciai.
3. Portanto, quando alguém recebe o dom pentecostal, deve ter
expectativa de manifestar línguas, e essa manifestação é um
sinal (evidência) unicamente demonstrativo de que se recebeu
o dom.

Embora a doutrina das línguas como evidência seja formulada na


linguagem moderna e diga respeito a preocupações contemporâne­
as, está ligada a um processo de desenvolvimento doutrinário que
remonta à era apostólica. Na verdade, a questão de que ela trata acom-
panKou indubitavelmente a expansão da igreja entre os gentios e é
inevitável para os que tentam conciliar a linguagem de dons usada
por Paulo com o dom pentecostal de Lucas. A doutrina nos convida
a manter o sentido bíblico de expectativa, pois ela nos lembra que a
glossolalia é parte integrante do dom pentecostal, que é edificante e
universalmente disponível. Acima de tudo, a manifestação das lín­
guas é um lembrete poderoso de que a igreja é, em virtude do dom
pentecostal, uma comunidade profética cliamada e capacitada para
testemunliar ao mundo.

P erguntas para estudo

1. Qual a diferença entre as teologias bíblica e sistemática? Por que


a questão relativa à natureza do dom pentecostal é do domínio da
LÍNGUAS COMO EVIDÊNCIA - 163

teologia bíblica? Por que a questão referente às línguas como evi­


dência é do domínio da teologia sistemática?
2. Menzies afirma que nenhum dos autores bíblicos tentou consci­
entemente demonstrar que a glossolalia é a evidência física inicial
do batismo no Espírito. Isto significa que a doutrina deve ser
inválida?
3. Segundo Menzies, a importância teológica de uma passagem não
pode ser reduzida a sua “intenção principal”. O que ele quer di­
zer? Em que medida isso causa impacto na nossa maneira de “fa­
zer” teologia?
4. Menzies afirma que uma abordagem sistemática, que procura in­
tegrar as contribuições de Lucas e Paulo, fornece suporte para a
doutrina das línguas como evidência. Qual é a contribuição de
Paulo? O que Lucas acrescenta a essa discussão?
5. Quais são alguns pontos fortes importantes da doutrina das lín­
guas como evidência? E alguns de seus pontos fracos potenciais?
capítulo * 9

Línguas: acessíveis
a todos

E
m ICoríntios 12— 14 Paulo se refere à glossolalia (falar em lín­
guas) como um dos dons que Deus concede à igreja. Uma leitu­
ra atenta desses capítulos revela que, a despeito do entendimento
errôneo e do abuso desse dom em C orinto, Paulo tem a manifesta­
ção particular de línguas em alta estima.1 Embora Paulo esteja pre­
ocupado em conduzir esses crentes em direção à expressão mais
madura dos dons espirituais “na assembléia”2 (12.28; 14.19) — e por
isso se concentra na necessidade de edificação e na primazia da pro­
fecia sobre o falar em línguas sem interpretação no ambiente coleti­
vo — Paulo nunca denigre o dom de línguas.
Na verdade, Paulo afirma que a manifestação particular de lín­
guas é edificante para o que fala (IC o 14.5), e numa nota autobio­
gráfica, ele agradece a Deus pelas freqüentes manifestações de línguas
em sua vida particular de oração (14.18). Temeroso de que suas ins­
truções aos coríntios a respeito do uso devido de línguas “na assem­
bléia” pudessem ser mal entendidas, ele ordena explicitamente que
eles não proíbam o falar em línguas (14.39). E com referência à
manifestação particular das línguas, Paulo declara: “Gostaria que to­
dos vocês falassem em línguas” (14.5).
As palavras de Paulo sobre este assunto, particularmente o seu
desejo expresso em ICoríntios 14.5, têm levado muitos a concluir
que ele via a manifestação particular de línguas como edificante e
acessível a todos os crentes. Por conseguinte, a maioria dos pente-

'V. tb ., de G o rd o n D . F ee , T he First E pistle to th e C orin th ia n s , p. 659.


2A e x p re ssã o grega aqui é en t ê ekklêsia , que a NVi trad u z “ na ig reja” . N e s te
a rtig o , trad u zo -a p o r “ na asse m b lé ia” , v isto que Paulo p arece te r em m en te a igreja
reunida.
NO PODER DO ESPIRITO 166

costais e muitos carismáticos crêem e ensinam que todo crente pode


ser fortalecido pela manifestação das línguas nos momentos de ora­
ção particular. Essa conclusão e interpretação de Paulo foram desa­
fiadas recentemente por um artigo ponderado e interessante de Max
Turner. Na minha opinião, o artigo de Turner, de tom pacífico e
dirigido aos integrantes da comunidade pentecostal, serve para esti­
mular exatamente a espécie de diálogo que precisamos ter na comu­
nidade cristã. Esse artigo e as respostas resultantes sem dúvida
vão-nos ajudar a todos a entender melhor um ao outro, nos pontos
comuns e nas nossas diferenças em certas questões.
Esse tipo de diálogo também desafia todos nós a reexaminar nos­
sas posições à luz das Escrituras. Embora esse processo não vá resul­
tar sempre em acordo, acredito que servirá para formar uma consciência
de unidade e respeito mútuo dentro do corpo de Cristo. Finalmente,
nos ajudará a refletir mais fielmente a mente de Cristo. E com essa
esperança que escrevo a seguinte resposta ao artigo de Turner. Serão
tratadas três questões importantes: 1) a natureza do problema de que
Paulo trata em lCoríntios 12— 14 e suas implicações para a nossa
questão relativa à universalidade potencial das línguas; 2) a força da
questão retórica em 12.30b, “falam todos em línguas?”; e 3) a impor­
tância da declaração desejosa de Paulo em 14.5, “gostaria que todos
vocês falassem em línguas”. Concluirei respondendo à questão
investigativa de Turner a respeito do atual modelo de teologia pen­
tecostal, especialmente a sua crítica à doutrina da evidência inicial.

0 PROBLEMA DE C0RINT0

Turner observa que lC orín tios 12— 14 é polêmico. Nesse texto,


Paulo tenta corrigir problemas no entendimento dos coríntios acer­
ca das línguas e seu uso. Pelo menos alguns deles parecem ter visto
a glossolalia como expressão de um nível superior de espiritualidade.
Por isso, valorizavam as línguas acima dos outros dons e, no ambien­
te de reuniões coletivas, o elitismo espiritual deles em geral encon­
trava expressão em manifestações ininteligíveis que prejudicavam
os encontros e não edificavam a igreja.3 Essa reconstrução básica do

•'T o n gu es: an e x p e rie n c e fo r all in the pauline c h u rc h e s? , A ]PS 1, 1998, p.


235-6.
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 167

problema de Corinto encontrou ampla aceitação. Entretanto, como


Turner observa, um assunto está menos claro. Todos os coríntios
foram acometidos por essa forma elitista de espiritualidade (e por
isso se opuseram a Paulo) ou a própria igreja estava dividida quanto
ao assunto? A primeira hipótese foi defendida por Fee, e a última,
por Forbes.4
O próprio Turner opta pela última posição, seguindo de perto a
liderança de Forbes. Por isso, propõe que em Corinto o dom de
línguas era exercido por alguns para estabelecer ou reforçar sua po­
sição como membros de uma elite espiritual. O exercício de línguas
era, portanto, parte do “jogo de poder” que dividia a igreja daquela
cidade. Turner afirma que isso por sua vez indica que o exercício de
línguas em C orinto “era um fenômeno relativamente restrito”5.
Raciocina: “Se todos ou a maioria podiam falar em línguas — ainda
que apenas como oração particular e glorificação — , a manifestação
do dom não podia fornecer base para as alegações elitistas”.6
Porém, o raciocínio de Turner parece se esquecer de um ponto
vital: a questão central não é se todos os de C orinto fala­ realmente
vam em línguas, mas se Paulo ensinou ou deu a entender que isso
era potencialmente possível? Vale a pena observar que, se a recons­
trução do problema feita por Turner é precisa — a saber, que alguns
membros elitistas estavam perturbando as reuniões com as mani­
festações de línguas porque achavam que isso os destacava como
parte de um grupo superespiritual — , as referências de Paulo ao
caráter potencialmente universal das línguas como aspecto edificante
da vida de oração particular do indivíduo são facilmente explicáveis.
A análise do argumento de Paulo é instrutiva nesse caso.
Paulo procura corrigir o entendimento errôneo dos coríntios:
ressalta a variedade e a origem dos dons graciosos de Deus ( lC o 12,
especialmente os v. 4-6), que cada um tem um papel a exercer (12.11 -
27) e que a edificação é a meta principal (12.7). Com referência a

4F ee, op. cit., p. 4-15; Christopher F orbes, P roph ecy a n d in sp ire d speech in
e a rly C h ristia n ity a n d its H e lle n istic e n v iro n m e n t, p. 14-6, 171-5, 182-7, 260-4.
5Op. cit., p. 237.
6Ibid.
NO PODER DO ESPIRITO / , 168

línguas, ele insiste que “na assembléia”, a menos que sejam interpreta­
das, as línguas não edificam a igreja, portanto, deve-se preferir a pro­
fecia (14.2-5). No contexto de seu argumento de que a profecia é maior
que as línguas na assembléia, Paulo também afirma que a manifesta­
ção particular de línguas é edificante para o que fala e, além disso,
não se limita a um grupo de elite, mas é acessível a todos (14.5,18).
Em outras palavras, da mesma maneira que Paulo observa que
está familiarizado com as línguas e portanto qualificado para falar
da importância do dom (talvez aqui ele derrote os coríntios no pró­
prio jogo deles de reivindicações elitistas; lC o 14.18), ele também
corrói o senso de superioridade dos coríntios com seus comentários
a respeito da universalidade do dom. Se a reconstrução que Turner
faz do problema é correta, então este pode ser de fato o tema prin­
cipal de 14.5: todos podem ser edificados pela manifestação parti­
cular das línguas (ela não se limita a um grupo seleto), mas na
assembléia reunida é mais espiritual profetizar (visto que isso é in­
teligível e edificante).
Em resumo, a reconstrução que Turner faz do problema não in­
dica que Paulo via o dom de línguas como limitado a um grupo
seleto dentro da igreja. Na verdade, é exatamente o oposto. A re­
construção de Turner realmente oferece uma razão positiva para
Paulo afirmar a universalidade das línguas. Em face das alegações
elitistas, podemos entender as palavras de Paulo em 14.5 (“Gostaria
que todos vocês falassem em línguas”) como uma correção sutil.
Embora a reconstrução de Turner possa dar a entender que ape­
nas os membros do grupo-problema de Corinto falavam na realida­
de em línguas, de modo nenhum esse é necessariamente o caso. De
um lado, como propõe Fee, é possível ver a igreja toda opondo-se a
Paulo. Se este é o caso, as línguas eram exercidas por toda a igreja.
De outro lado, mesmo se o problema se localizasse num grupo den­
tro da igreja, ainda é provável que a manifestação particular das lín­
guas não era limitada a esse grupo seleto. O problema central de
Corinto com referência às línguas era o abuso do dom “na assembléia”
(a saber, quando a igreja se reunia; cf. lC o 12.28; 14.4-6,9-19).
Por certo é possível imaginar um grupo elitista deleitando-se em
sua exibição pública de línguas, sem levar em conta se havia ou não
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 169

outros que exerciam o dom particularmente, como Paulo por exem­


plo (ICo 14.18).7 Essa exibição pública de “falar mistérios” (14.2)
seria um sinal suficiente do conliecimento especial e da posição de­
les, superior a qualquer uso particular. Naturalmente, Paulo não pode
concordar com esse pensamento falHo. Neste caso, as palavras de
Paulo em 14.5 serviríam para lembrar o grupo elitista da realidade
mais ampla refletida no meio deles (da qual eles podiam ou não es­
tar cônscios): todos podem ser edificados pela manifestação parti­
cular do dom.

A PERGUNTA RETÓRICA DE PAULO


( I Co 12.30b)
Em seguida Turner se concentra na pergunta retórica de lC oríntios
12.30b: “Falam todos em línguas?”. Como a gramática grega indica,
a resposta esperada é “não”. Para os que não desejam tratar das com­
plexidades do argumento de Paulo, essa declaração é em geral tida
como a palavra final nessa matéria. No entanto, o tratamento que
Paulo dá às línguas no capítulo 14 adverte-nos contra fazer julga­
mento prematuro. Numa análise mais acurada, vemos que Paulo aqui
está obviamente tratando do exercício dos dons “na assembléia”
(12.28). Em outras palavras, quando Paulo pergunta: “Falam todos
em línguas?”, ele não está perguntando: “Podem todos falar em lín­
guas (no ambiente particular ou coletivo)?” Na verdade, a pergunta
é feita em relação ao que precede no capítulo 12: Quando nos reuni­
mos, nem todos contribuem para o corpo do mesmo modo, nem
todos falam em línguas ou as interpretam no ambiente coletivo, não
é?8 Paulo não está discutindo a manifestação particular de línguas
aqui. As perguntas pertencentes a essa esfera de uso não estão em
pauta aqui.
No capítulo anterior, demonstrei a lógica defeituosa apresentada
por aqueles que, de um lado, estão prontos para citar lC oríntios
12.30 como declaração que Kmita a manifestação de línguas (públi­

7A oposição entre lCoríntios 14.18 (“Dou graças a Deus por falar em línguas
mais do que todos vocês”) e 14.19 (“Todavia, na igreja...”) indica que os comentários
autobiográficos de Paulo em 14.18 se referem ao exercício particular de línguas.
8F ee, op. cit., p. 623.
NO PODER DO ESPÍRITO 170

ca ou particular) a um grupo seleto dentro da igreja e, de outro lado,


afirmam que todos podem profetizar. Se, apesar da pergunta retóri­
ca em 12.29 (“São todos profetas?”), se reconhece que potencial­
mente todos podem profetizar (normalmente com base em 14.1,31),
por que é tão diferente com línguas? Se, como Turner observa, “a
distinção entre o círculo mais restrito dos reconhecidos como ‘pro­
fetas’ e o círculo mais amplo dos ‘capazes (eventualmente) de profe­
tizar’ é [...] aceita largamente”, por que é tão difícil enxergar a
distinção entre línguas exercidas “na assembléia” (ambiente coleti­
vo) e o exercício de línguas em particular, especialmente quando
Paulo fala com clareza dessas duas funções distintas (e.g., pública:
14.27,28; particular: 14.5,18)?9 É difícil não achar que outros fato­
res além do texto controlam a exegese nesse assunto.
Turner, contudo, é útil no ponto em que dá razões para seu julga­
mento. Ele argumenta que há pouca coisa no texto que “prepare o
leitor para pensar se a pergunta de Paulo, ‘Nem todos falam em
línguas, não é verdade?’, se refere exclusiva ou principalmente ao
uso de línguas no culto público”.10 Turner reconhece que o contex­
to mais amplo enfoca claramente o problema relacionado à adora­
ção congregacional (IC o 8— 14), com enfoque específico dos
capítulos 12— 14 no abuso das línguas “na assembléia”.
O contexto imediato também concentra nossa atenção na vida
coletiva da igreja. Paulo, que havia realçado a importância e singula­
ridade do papel dos crentes na vida coletiva da igreja (observe a me­
táfora do corpo, IC o 12.12-26), declara em 12.27: “Ora, vocês são o
corpo de C risto ...”. A lista de ministérios, dons e ações de culto c
as questões retóricas associadas seguem-se imediatamente (12.28-
30) e são prefaciadas pela expressão “na assembléia” (12.28). Em
outra passagem essa expressão refere-se à reunião coletiva de cren­
tes, a assembléia local (11.18; 14.19,23,28,33,35). Para muitos, isso
é suficiente para indicar que Paulo tem a congregação local de Corinto

9A questão acerca de haver ou não dois dons distintos de línguas (um para
edificação particular e outro para o uso no contexto coletivo) não é relevante. O
essencial, e em que Turner e eu concordamos, é: “Paulo distingue duas esferas do
uso das línguas — pública e particular” (Turner, op. cit., p. 238).
l0Ibid., p. 240.
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 171

em vista.11 Fee afirma isso com todas as letras: “Uma vez que [o v. 28]
se harmoniza com o v. 27, com o enfático ‘vocês são’ referindo-se à
igreja de Corinto, pode haver pouca dúvida de que com essa expres­
são [“na assembléia”] Paulo também se dirigia principalmente à as­
sembléia local de C orinto”.12
Turner, contudo, permanece sem convicção. Não obstante es­
ses marcadores contextuais, ele argumenta que Paulo tem em
mente a igreja universal em vez de a assembléia local de Corinto.
Esse julgamento provém da referência de Paulo aos “apóstolos” (lC o
12.28,29): “Não havia regularmente (se houve) pluralidade de após­
tolos nas reuniões de C o rin to”.13 Apesar de não haver nenhuma
dúvida quanto ao peso da evidência, Turner faz concessão neste ponto
e parte para sua objeção mais importante:

Mesmo se Paulo tivesse em mente a igreja de Corinto (cf. 12.27)


em primeiro lugar, sua descrição do que Deus colocou “na igreja”
não pode limitar-se simplesmente a referir o que ocorre quando
“a igreja de Corinto” se reúne em assembléia formal para o culto
público em oposição ao que ocorre por meio dos crentes (indivi­
dualmente ou em grupos) na variedade de contextos que a vida de
Corinto proporcionava.14

Turner argumenta que as perguntas retóricas — “São todos após­


tolos? São todos profetas? São todos mestres? Têm todos o dom de
realizar milagres? Têm todos dons de curar?” — indicam que Paulo
está falando a respeito de atividades que não podem ser restritas ao
que acontece na assembléia local. Paulo é um apóstolo quer esteja
naufragado no mar, quer fugindo de perseguição, quer “na igreja”. Da
mesma forma, os profetas freqüentemente profetizam fora da assem­
bléia (cf. At 21.4,11). E os relatos de milagres e curas informam que
eles ocorrem normalmente fora da assembléia (e.g., 8.36-41; 28.7,8).
À luz de tudo isso, Turner indaga: “Como se pode esperar que o leitor

uF ee, op. cit., p. 618; James D. G. D unn, Jesus and the Spirit, p. 262-3; R. Banks,
Paul’s idea of community, p. 35-7.
12Ibid., p. 618, n. 13.
•3Op. cit., p. 240.
“Ibid.
NO PODER DO ESPIRITO < 172

perceba que quando Paulo pergunta: ‘Falam todos em línguas?’, está


se referindo somente à expressão de línguas na assembléia?”.15
Na realidade, algumas razões indicam que é exatamente isso que
deveriamos esperar. 1) Com o observamos, o contexto concentra
nossa atenção na vida coletiva da igreja. Paulo enfatizou a neces­
sidade da diversidade no corpo de Cristo. E agora ilustra isso com
exemplos concretos da vida da igreja de Corinto. A lista e as per­
guntas retóricas de ICoríntios 12.28-30 oferecem exemplos da va­
riedade de ministérios e dons exercidos na vida coletiva da igreja.
Nesse contexto, as referências a “apóstolos”, “profetas”, “mestres”,
etc., aludem às diversas funções
que esses indivíduos exercem “na
assembléia”.
Isso se confirma pela mudança na lista de pessoas (apóstolos,
profetas, mestres) para dons e ações (lit., “milagres”, “dons de cura”,
“socorros”, “administração”, “diferentes espécies de línguas”).16
Todas as funções aqui arroladas podem ter acontecido na assembléia
local em Corinto. E particularmente à luz do versículo 28 (“na as­
sembléia”), os leitores de Paulo muito naturalmente teriam enxer­
gado a lista desse modo. O que está por trás das perguntas retóricas
é muito claro: quando nos juntamos, todos contribuem do mesmo
modo para edificar o corpo de Cristo? Claro que não.
2) Embora Turner observe corretamente que alguns ministérios
mencionados nesses versículos (12.28-30) talvez possam acontecer
fora da assembléia formal, deve-se notar que todas as funções arro­
ladas se referem a atividades que ocorrem no ambiente coletivo. Ne­
nhum desses ministérios ou ações pode acontecer em ambiente
particular (i.e., por um indivíduo isolado dos outros). A única exce­
ção possível seria a referência de Paulo a línguas. Contudo, visto
que em outro trecho Paulo fala abertamente de expressão coletiva desse
dom (em oposição à expressão particular), seu leitor teria naturalmente
entendido o texto deste modo. Que de fato era isso o que ele preten­
dia confirma-se não só pelo contexto, mas também pela colocação das
perguntas retóricas ligadas às línguas e à interpretação de línguas (a
última exige o ambiente coletivo; cf. lC o 14.5) em 12.30.

l5Ibid., p. 241.
16F ee, op. cit., p. 621-2.
LÍN G UAS: ACESSÍVEIS A TODOS 173

3) A falta de confiança de Turner na capacidade dos leitores de


Paulo de captar esses marcadores contextuais é flagrante quando ele
próprio reconhece que Paulo distingue nitidamente entre expres­
sões particulares e expressões coletivas do dom de línguas. Se Turner
pode enxergar essa distinção no texto, por que supor que os leitores
de Paulo não podiam? A luz de nossa discussão acima, seria estra­
nho se os coríntios houvessem perdido de vista esse ponto. De qual­
quer forma, não precisamos fazer o mesmo.
4) Deve-se notar um último ponto com referência a ICoríntios
12.28-30. Turner procura justificar os que, como D. A. Carson, en­
tendem essa passagem como limitação das línguas a um grupo sele­
to, mas vêem a profecia como disponível para todos. Observa que a
profecia é “um ministério estabelecido” e por isso alguns exercem o
dom mais freqüente e profundamente que outros. Enquanto todos
podem profetizar (14.31), nem todos são profetas. O problema com
as línguas, ele afirma, é que não havia um ministério de línguas esta­
belecido, ou pelo menos faltava terminologia para falar desse minis­
tério de línguas. Mas não é óbvia a distinção entre os que exercem o
dom de línguas no ambiente coletivo com interpretação para a edi­
ficação do corpo e os que exercem o dom em ambiente particular
para a própria edificação? Embora Paulo não cunhe um termo espe­
cial para designar indivíduos que exercem o dom de línguas no am­
biente coletivo, a distinção entre essas funções
é clara.
Na verdade, a distinção entre o exercício coletivo das línguas
(12.28-30) e o exercício particular (IC o 14.4,5) é mais facilmente
percebida que a distinção entre os que profetizam de modo particu­
larmente profundo e aqueles que o fazem apenas de vez em quando
e de maneira menos poderosa. Paulo, em 12.28,29, refere-se ao ofí­
cio do profeta ou à função de profecia mais genericamente? Fee afir­
ma que “a resposta é provavelm ente sim e não”.17Essa resposta
ambígua chega aonde eu quero: a distinção aqui entre o ofício de
profeta e a função de profetizar (Paulo na realidade parece enfatizar
a última) não é tão clara como a distinção entre a expressão coletiva
e a expressão particular do falar em línguas.
O que quase sempre se esquece nessa discussão é que a preocu­
pação de Paulo, seja em relação a profecia ou línguas, não
é delinear

17Ibid., p. 621.
NO PODER DO ESPÍRITO 174

quem pode ou quem não pode exercer esses dons. Fee observa cor­
retamente que “a retórica” de Paulo “não pergunta ‘todos podem
fazer isso?’ cuja resposta provavelmente seria ‘C laro’. Em vez disso,
pergunta ‘todos fazem?’, cuja resposta é ‘Claro que não”’.18 Em
outras palavras, do mesmo modo que Paulo nesses versículos não
pretende excluir ninguém da possibilidade de declarar qualquer pa­
lavra de profecia (todos podem, mas nem todos fazem), o apóstolo
também não pretende restringir a ninguém a potencialidade de ex­
pressar alguma mensagem em línguas (com interpretação) para o
benefício da igreja (todos podem, mas nem todos fazem). O que
deve ficar ainda mais claro é que as palavras de Paulo aqui não têm
absolutamente nada a ver com a limitação do escopo daqueles que
manifestam línguas em particular para um grupo seleto.

0 desejo de P aulo ( 1 Co 14.5)


Vamos agora para o ponto mais importante do assunto. Como de­
vemos interpretar as palavras de Paulo: “Gostaria que todos vocês
falassem em línguas, mas prefiro que profetizem” ( lC o 14.5a)? Esse
trecho tem sido com muita freqüência usado de modo indevido,
como Turner corretamente observa.19 Turner, juntamente com Fee,
rejeita a noção de que Paulo aqui, como em outra parte, está “conde­
nando o falar em línguas com um ligeiro elogio”.20 Turner rejeita es­
pecificamente a noção de que em 14.5a Paulo admite “o que vai
efetivamente revogar por meio da estratégia do discurso ”.21 Ele todo
reconhece que Paulo valoriza muito as línguas. Como vimos, o após­
tolo afirma explicitamente que a manifestação particular de línguas é
edificante para o que fala (14.4), e ele próprio exercia com freqüên­
cia esse dom e era grato a Deus por isso (14.18). Por isso, Turner vê
pouca evidência de ironia no desejo de Paulo e o considera genuíno.
Não obstante, e isso é o principal para Turner, nada disso signifi­
ca que Paulo achava que o desejo seria realmente realizado. É um

l8Ibid., p. 623.
19V. op. cit., p. 245, e as referências que ele cita no n. 30.
20A citação é de Fee, op. cit., p. 653. Para os comentários de Turner, v. op. cit.,
p. 245.
21Ibid., p. 245 (grifo de Turner).
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 175

desejo genuíno, mas Paulo não espera vê-lo concretizado. Segundo


Turner, essa idéia é apoiada pelo emprego que Paulo faz da constru­
ção gramatical, “Gostaria [...] mas p refiro ...”, também encontrado
em ICoríntios 7.7. Neste versículo, Paulo expressa o desejo de que
todos pudessem ser celibatários como ele: “Gostaria que todos os
homens fossem como eu; mas cada um tem o seu próprio dom da
parte de Deus”. Turner observa corretamente que não devemos for­
çar para que isso “signifique que Paulo de fato declare a opinião que
todos podem e (talvez) devam ser solteiros e celibatários”. Entretan­
to, eu acrescentaria que sabemos que esse desejo não pode e não
deve ser universalmente cumprido, não por causa da construção gra­
matical que Paulo usa, mas porque o contexto explicitamente nos
diz que é isso. Como Turner observa, 7.2-6 nos fala da necessidade
que alguns têm de relações sexuais no contexto do casamento, e o
desejo é qualificado em 7.7 de maneira a realçar esse aspecto. O
contexto de 14.5 é marcantemente diferente, pois não há nada no
capítulo 14 que dê a entender que o desejo de Paulo aí não possa ou
não deva ser realizado.
O contexto de ICoríntios 14 na verdade indica o contrário. O
versículo 5 faz parte de uma unidade maior (14.2-5). O argumento
de Paulo aqui pode ser analisado em relação à estrutura do texto.
Ele contém três dísticos, que consistem em declarações paralelas a
respeito de línguas e profecia. Paulo tinha acabado de estimular os
coríntios a “buscar com dedicação os dons espirituais, principal­
mente o dom de profecia” (14.1). Em seguida lhes diz por que isso
(“pois”, 14.2). Cada dístico vai de uma descrição das línguas como
benéficas para o indivíduo e portanto adequada ao ambiente parti­
cular para uma descrição da profecia como benéfica para o corpo e
portanto adequada ao ambiente coletivo. Os dísticos vão gradativa­
mente ao ponto final: na assembléia, a profecia é preferida às lín­
guas, a menos que interpretadas, porque é edificante para todos.

Pois
a) quem fala em uma língua não fala aos homens, mas a Deus
[ambiente particular].
De fato, ninguém o entende; em espírito fala mistérios.
NO PODER DO ESPÍRITO 176

b) Mas quem profetiza o faz para edificação, encorajamento e


consolação dos homens [ambiente coletivo],

a) Quem fala em língua a si mesmo se edifica [ambiente parti­


cular],
b) mas quem profetiza edifica a igreja [ambiente coletivo],

a)Gostaria que todos vocês falassem em línguas [ambiente par­


ticular],
b) mas prefiro que profetizem [ambiente coletivo],

(Portanto, na assembléia:)
Quem profetiza é maior do que aquele que fala em línguas, a
não ser que as interprete, para que a igreja seja edificada.

Essa análise da estrutura de lC oríntios 14.2-5 realça alguns as­


pectos importantes da atitude de Paulo para com as línguas. 1) É
evidente que para Paulo as línguas são edificantes e apropriadas no
seu contexto próprio, o domínio privado. Pelo menos alguns de
Corinto não entendiam corretamente esse ponto. 2) O desejo de
Paulo de que todos falassem em línguas (14.5a) deve, como indi­
cam a estrutura e a lógica do seu argumento, referir-se à manifes­
tação particular do dom. A oposição a 14.5b indica que nessa parte
Paulo está falando de línguas não interpretadas. Seria incompreen­
sível Paulo desejar que na assembléia todos falassem em línguas sem
interpretação. 3) Uma vez que as línguas, como a profecia, têm
contribuição muito positiva (embora em grande parte não-congre-
gacional e por isso menor) a fazer, seria evidente que ambas podem
ser exercidas por qualquer membro da comunidade.
Como observamos, nada no contexto indica que o desejo de Paulo
de que todos falassem em línguas não possa ou não deva ser realiza­
do. O paralelismo entre 14.5a e 14.5b (e em todo o texto de 14.2-4)
dá a entender que tanto profecia quanto línguas são acessíveis a to ­
dos da comunidade dos crentes. Isso significa que, uma vez que Paulo
parece crer que todos podem profetizar e, na verdade, estimula os
coríntios a fazerem isso (14.5b; cf. 14.1,31), parece mais provável
que à luz de 14.5 (cf. 14.18) Paulo tinha atitude semelhante para
com a manifestação particular de línguas. Na verdade, se o dom
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 177

de línguas tem m érito em sua expressão particular, por que Deus


o reteria?22
Naturalmente, a intenção principal de Paulo nessa passagem não
é dar a seus leitores um tratamento detalhado da manifestação par­
ticular do falar em línguas. Com o vimos, ele está procurando corri­
gir os mal-entendidos e os abusos concernentes ao exercício do dom
de línguas na assembléia. Não obstante, podemos perguntar acerta-
damente que implicações brotam da instrução de Paulo nesse ponto
para nossa questão. Embora seu desejo em ICoríntios 14.5 consti­
tua parte de um argumento maior que procura estimular os coríntios
a valorizar a profecia na assembléia, oferece uma valiosa introvisão
na mente do apóstolo acerca dessa questão. Em vista de sua atitude
positiva em relação à manifestação particular do falar em línguas
(14.2-4,18) e da falta de qualquer restrição clara para o desejo além
de colocar as línguas no ambiente particular, Paulo muito certamen­
te entendia que esse desejo não apenas era genuíno, mas também
expressava uma situação potencialmente realizável.23

C o nclu são

A exegese bíblica é o fundamento da reflexão sistemática sólida.


Nossas formulações sistemáticas variadas e diferentes refletem nos­
sas avaliações diferentes de textos específicos. Neste capítulo, ten­
tei explicar por que acredito que Paulo nos estim ula a ver a
manifestação particular de línguas como edificante e acessível a todo
crente. Max Turner vai provavelmente discordar de minha análise
dos dados bíblicos e, portanto, vai querer formular a matéria de for­
ma diferente. Apesar disso, há áreas substanciais de concordância.
Para concluir, quero salientar alguns pontos que penso serem parti­
cularmente significativos.

t u r n e r observa que o judaísmo e, especialmente o Antigo Testamento, previa


um derramamento universal de profecia. Todavia, no que se refere às línguas, as
iradições judaicas são praticamente silentes. Logo, Paulo tinha “boa base
cscriturística” para uma expectativa universal com respeito à profecia, mas não às
línguas (Turner, op. cit., p. 246). Contudo, isso deixa de lado o fato de que as
liiiguas eram vistas, ao menos por Lucas, como expressão de profecia (At 2.) 7,18).
‘Lee, op. cit., p. 623.
NO PODER DO ESPÍRITO 178

1) Creio de fato que os pentecostais estão corretamente desafi­


ando muitos a reavaliar sua reconstrução negativa da atitude de Paulo
em relação ao dom de línguas. lC oríntios 12— 14 foi muitas vezes
tratado como uma tentativa de Paulo de derrubar a prática da glos-
solalia, embora o refinamento retórico contenha comentários que
podem à primeira vista parecer confirmá-la. Essa leitura de Paulo
precisa ser desafiada. E, é bom que se diga, nesse ponto Turner e eu
estamos de pleno acordo.
2) Embora eu me sinta confiante pelas razões declaradas acima
de que Paulo realmente cria que todos podem ser edificados pela
manifestação particular de línguas, também concordo que o exercí­
cio desse dom não nos leva ao centro da espiritualidade cristã. Há
uma gama toda de questões que os teólogos devem ponderar, e em­
bora essa questão não seja insignificante, não é tão importante quanto
muitas. Enfim, a questão de línguas não nos leva ao centro da fé
cristã e, na verdade, não representa em minha opinião a mais impor­
tante contribuição teológica dos pentecostais para o restante do
corpo de Cristo. Acredito que a avaliação pentecostal do batismo
no Espírito tem implicações de alcance muito maior para a vida da
igreja e é mais claramente apoiada nas Escrituras.24
3) Quando Turner questiona a conveniência de ver nas línguas a
“evidência” do batismo no Espírito,25 ele nos desafia a reconhecer
as limitações de nossas formulações humanas. Todas as formula­
ções teológicas representam tentativas humanas de chegar a um acor­
do sobre o significado da Palavra de Deus. Essas form ulações
humanas em geral têm pontos positivos e negativos. Embora eu acre­
dite que a doutrina do pentecostalismo clássico das línguas como
“evidência física inicial” do batismo no Espírito Santo capta bem o
senso de expectativa inerente nas palavras de Paulo, reconheço que
essa afirmação não deixa de ter suas hmitações. O foco em “evidên­
cia” pode levar a uma preocupação com uma simples experiência
crítica. As línguas como evidência podem também ser facilmente

24V. R. P. M enzies, Evidential tongues: an essay on theological method, a j p s 1,


1998, p. 122-3.
25Op. cit., p. 249-50: “Não se tem a impressão de que o Deus da Bíblia tem
especial favor para com a busca humana de ‘provas’”.
LÍNGUAS: ACESSÍVEIS A TODOS 179

confundidas com um emblema de santidade, uma experiência que


significa que o indivíduo entra num grau mais alto de maturidade
espiritual. No nível popular, os pentecostais muito freqüentemente
sucumbem diante dessa tentação de C orinto. O artigo de Turner
pode servir como apelo para que os pentecostais sejam mais claros
nesses pontos.
Achei as alfinetadas de Turner acerca das línguas e, particular­
mente acerca da atitude de Paulo para com o dom, extremaniente
úteis. Nós, pentecostais, às vezes, simplesmente presumimos que
nossa posição é correta e assim nem sempre refletimos sobre ela
nem a relacionamos com as nossas várias posições teológicas. Deve­
mos valorizar amigos como o dr. Turner, que com suas alfinetadas
bem-intencionadas nos desafia a lidar com esses assuntos que de
outro modo deixaríamos passar despercebidos. Esse diálogo tem-
me desafiado a comprometer-me com o texto de maneira nova e
mais rigorosa e tem-me auxiliado a entender melhor aqueles de
quem discordo. Por sua vez, isso me dá esperança de que possamos
de fato “seguir o caminho do amor” (IC o 14.1) e encorajar uns aos
outros a caminhar em direção à meta de refletir mais fielmente a
mente de Cristo.

Perguntas para estudo


1. Alguns acham que a pergunta retórica de Paulo em ICoríntios
12.30, “Falam todos em línguas?”, indica claramente que o dom
de línguas é restrito a uns poucos seletos. Por que Menzies dis­
corda dessa posição?
2. Por que o contexto, que se concentra no ambiente coletivo, é tão
importante para o nosso entendimento da intenção de Paulo em
ICoríntios 12.30?
3. Turner argumenta que, embora o desejo de Paulo em ICoríntios
14.3, “Gostaria que todos vocês falassem em línguas”, fosse ge­
nuíno, era uma vontade que Paulo sabia que não podia realizar-
se. Que base Turner oferece para essa posição? Como Menzies
replica?
NO PODER DO ESPÍRITO / , ' 180

4. O que a estrutura de ICoríntios 14.2-5 nos diz a respeito da pers­


pectiva de Paulo?
5. Qual é a intenção principal de Paulo em ICoríntios 14? Que im­
plicações derivam das palavras de instrução de Paulo para a nossa
questão acerca da disponibilidade do dom de línguas?
capítulo • 10

Sinais e maravilhas

ma característica surpreendente do evangelicalismo moderno é


U a crescente valorização do miraculoso. Essa tendência gerou um
subgrupo dentro do evangelicalismo em geral identificado como
“movimento de sinais e maravilhas” ou a “terceira onda”. Este últi­
mo título indica a relação íntima entre este movimento e o pente-
costalismo. A “terceira onda” refere-se a uma obra energizadora do
Espírito entre os evangélicos tradicionais subseqüente à “primeira
onda” de renovação, que deu origem às denominações pentecostais
clássicas, e à “segunda onda”, que causou impacto nas denomina­
ções históricas e deu início ao movimento carismático. Os cristãos
da terceira onda e os pentecostais têm evidentemente muito em co­
mum já que ambos os grupos enfatizam a validade contínua e a im­
portância dos dons do Espírito descritos por Paulo (e.g., IC o 12),
entre eles, os dons mais demonstrativos, como, por exemplo, cura e
profecia, que muitos evangélicos tradicionais haviam reservado so­
mente para a era apostólica.
Todavia, os participantes da terceira onda distinguem-se de seus
precursores pentecostais. O ponto principal de diferença é o modo
que esses dois grupos vêem o batismo no Espírito. Os pentecostais
há muito afirmaram a existência de um batismo no Espírito “distin­
to da experiência do novo nascimento e subseqüente a ela”.1 Ao
contrário, os participantes da terceira onda “em geral entendem o
batismo no Espírito não como uma segunda bênção, mas como par­
te da conversão”.2 Portanto, embora os pentecostais e os da terceira
1Minutes of the 44th session ofthe General Council ofthe Assemblies ofGod , p. 129.
2Gary S. G reig e Kevin N. Springer, org., The kingdom and thepower, p. 21. V.
tb. a literatura citada nesta obra referente à terceira onda.
NO PODER DO ESPÍRITO <’ < 182

onda salientem a relevância contemporânea dos dons miraculosos


de Deus, a ênfase pentecostal na distinção entre conversão e o batis­
mo no Espírito (i.e., o dom pentecostal de A t 2) separa esse grupo
do movimento da terceira onda.
Essa diferença de perspectiva teológica reflete diferentes interpre­
tações da pneumatologia de Lucas em geral e do dom pentecostal de
Atos 2 em particular. A doutrina pentecostal da “posterioridade” flui
naturalmente da convicção de que o Espírito veio sobre os discípu­
los no Pentecoste (A t 2) não como a fonte da existência no novo
pacto, mas como a fonte de poder para o testemunho eficaz. Estu­
dos pentecostais mais recentes têm apoiado essa análise no caráter
distintivo da pneumatologia de Lucas: Lucas retrata coerentemente
0 Espírito como a fonte de poder para o serviço. Os da terceira
onda, ao contrário, coerentes com suas origens evangélicas não-pen-
tecostais, vêem o recebimento do dom pentecostal como condição
sine qua non da existência cristã, o elemento essencial da conversão.
Essas idéias diferentes levaram os pentecostais e os da terceira
onda a desenvolver suas respectivas ênfases no “evangelismo de po­
der” seguindo linhas diferentes. O s pentecostais dão destaque es­
pecial a Lucas—Atos e, principalmente ao Pentecoste, como portador
de uma promessa importante e um paradigma de capacitação. Na
verdade, para os pentecostais, qualquer discussão do “evangelismo
de poder” ou de “sinais e maravilhas” deve ter como ponto de parti­
da o registro de Lucas do primeiro Pentecoste (At 1 e 2).
Isso não significa querer dizer que os cristãos da terceira onda
ignoraram Lucas—Atos. As referências de Lucas aos milagres são
citadas freqüentem ente — mesmo que quase sempre de modo
anedótico — como evidência da associação íntima entre os milagres
e o crescimento da igreja. Todavia, a apropriação que a terceira onda
fez de Lucas—Atos não se liga a nenhum aspecto distintivo da teo­
logia de Lucas. Em vez disso, simplesmente reflete a grande quanti­
dade de material milagroso contido nessa obra de dois volumes. As
referências de Lucas— Atos são entremeadas com as de outras par­
tes do Novo Testamento, e a homogeneidade do testemunho do
Novo Testamento, não a contribuição distintiva de Lucas, é o foco.3

3V., p. ex., os artigos e os apêndices de G reig e Springer, op. cit.


SINAIS E MARAVILHAS '{ / 183

N o capítulo a seguir quero explorar algumas implicações que a


teologia do Espírito de Lucas pode ter para uma perspectiva bíblica
dos “sinais e maravilhas”. Em seguida, devido ao papel singular que
Lucas—Atos exerce na formação da teologia pentecostal, quero tam­
bém mostrar como a perspectiva de Lucas tem contribuído para uma
abordagem exclusivamente pentecostal do “evangelismo de poder”.
Espero, ao oferecer esse ponto de vista pentecostal, contribuir de
algum modo para estimular o debate a respeito dos “sinais e maravi­
lhas” que atualmente ocorre na comunidade cristã mais ampla.
" S inais e m aravilhas " da perspectiva de Lucas

A defesa de Lucas do evangelismo de poder

Poucos questionariam a alegação de que Lucas é um advogado do


“evangelismo de poder”. Em termos de espaço absoluto, o evange­
lho de Lucas dedica considerável parte (mais de 160 versículos) à
discussão de milagres. Lucas é particularmente afeiçoado aos rela­
tos de cura e emprega o verbo ia o m a i (curar) mais do que qualquer
outro escritor dos evangelhos (Lc 11 vezes; At 4 vezes; Mt 4 vezes;
Mc 1 vez; Jo 3 vezes). Quando o livro de Atos é comparado com o
evangelho de Lucas, a quantidade de material que destaca os mila­
gres é muito impressionante. A expressão “sinais e maravilhas” ocorre
com especial freqüência no livro de Atos (At 9 vezes; Mt 1 vez; Mc 1
vez; Jo 1 vez; restante do NT 4 vezes). N a verdade, devido a narrati­
va de Lucas ser tão cheia de relatos de acontecimentos miraculosos,
sua apresentação foi classificada de “grosseira” e “assimétrica”.4
Bem à parte da grande quantidade de material referente a mila­
gres de Lucas, dois textos particularmente importantes declaram o
assunto explicitamente. 1) A promessa de Jesus registrada em Atos
1.8 (“Mas receberão poder [d y n a m is ] quando o Espírito Santo des­
cer sobre vocês”) inclui a capacidade de reahzar milagres de cura e
exorcismos. Lucas repetidamente define d y n am is como a fonte de
milagres de cura, exorcismo e atos maravilhosos.5 De modo mais
decisivo, sempre que Lucas emprega p n e u m a (espírito) e d y n am is,
ele tem em vista uma combinação de fenômeno profético (discurso
4Dunn, Jesu s a n d the Spirit, p. 190-1.
5Lucas 4.36; 5.17; 6.19; 8.46; 9.1; Atos 4.7; 6.8.
NO PODER DO ESPÍRITO r } 184

inspirado e/ou revelação especial) e atividade miraculosa.6 Uma vez


que a promessa de capacitação pentecostal se estende a todos os
servos de Deus (At 2.17,18), esse texto é de importância especial
para a igreja contemporânea.
2) A modificação que Lucas faz do texto de Joel, em Atos 2.19, é
particularmente marcante.7 Nessa passagem, Lucas acrescenta três
palavras que não estão no texto de Joel na l x x : ano (em
cima), se­
meia (sinais) ekato (embaixo). O texto de Joel é portanto transfor­
mado de modo que se leia: “Mostrarei maravilhas em cima>
no céu, e
sinais embaixo , na terra”. A importância dessas inserções, que for­
mam uma locução com “maravilhas” e “sinais”, torna-se evidente
quando se olha o contexto mais amplo de Lucas— Atos. O versículo
de Atos que vem imediatamente depois da citação de Joel é: “Jesus
de Nazaré foi aprovado por Deus diante de vocês
por meio mila­ de
gres, maravilhas sinais”
e (2.22). Depois, por todo o livro de Atos
repetidas vezes lemos a respeito dos seguidores de Jesus operando
“maravilhas e sinais”.8
Logo, por meio da alteração de Joel 2 em Atos 2.19, Lucas liga os
acontecimentos miraculosos associados com Jesus (At 2.22) e seus
discípulos (e.g., 2.43) com os portentos cósmicos mencionados por
Joel (v. 2.19b,20) como “sinais é maravilhas” que marcam o fim dos
tempos. Em outras palavras, os milagres de Jesus e seus discípulos são
precursores dos sinais cósmicos que indicam o Dia do Senhor. Para
Lucas, “estes últimos dias” — período inaugurado com o nascimento
de Jesus e que vai até o Dia do Senhor — representam uma época
marcada por “sinais e maravilhas”. Sem dúvida, Lucas tem consciência
do importante papel que os milagres exerceram no crescimento da
igreja primitiva e prevê que esses “sinais e maravilhas” vão continuar
caracterizando o ministério da igreja nestes “últimos dias”. Nesse
sentido, Lucas seguramente é defensor dos “sinais e maravilhas”.
Todavia, não nos atrevemos a parar aqui. A perspectiva de Lucas
é muito mais desenvolvida e complexa do que essa amostra limitada

‘Lucas 1.17; 1.35; 4.14; 24.49; Atos 1.8; 10.38.


7Atos 2.17-21 = Joel 2.28-32 ( lxx, Joel 3.1-5).
*Ou algumas vezes “sinais e maravilhas”. A combinação de semeia e terata é
encontrada em Atos 2.19,22,43; 4.30; 5.12; 6.8; 7.36; 14.3; 15.12.
SINAIS E M ARAVILH AS 185

indica. Na verdade, embora a narrativa de Lucas seja repleta de rela­


tos de milagres, também é cheia de material que indica que ele está
bem consciente do perigo de dar ênfase exagerada ao miraculoso. A
narrativa de Lucas, argumentarei, não é “grosseira” nem “assimétri­
ca”. Sua atitude para com “os sinais e maravilhas” pode ser classifi­
cada de positiva, mas ele não deixa de ser crítico. Além do mais, as
evidências de Lucas— Atos indicam qüe para Lucas, a manifestação
principal do Espírito não era o poder de operar milagres, mas o tes­
temunho verbal intrépido e inspirado, particularmente em face da
perseguição. E para essa outra faceta da perspectiva de Lucas que
me volto agora.

Espírito e milagre em Lucas— Atos

Qualquer tentativa de elucidar a perspectiva de Lucas acerca dos


“ sinais e m aravilhas” deve levar em conta o modo singular que o
autor inspirado relaciona o Espírito aos milagres. A análise do modo
que ele relaciona o Espírito aos fenômenos proféticos (discurso ins­
pirado e/ou revelação especial) de um lado, e aos milagres (de cura,
exorcism o, e atos de poder) do outro, é particularmente instrutiva.
1) Embora Lucas apresente freqüentemente o Espírito como fonte
exclusiva (sem referência ao dynamis
) de atividade profética, ele
nunca faz isso com referência aos milagres de cura, exorcismo e atos
maravilhosos. O caso é esse, embora signifique que Lucas teve de
alterar suas fontes em diversas ocasiões.9
2) Embora Lucas defina repetidas vezes dynamis
como a fonte
exclusiva (sem referência ao Espírito) de milagres de cura, exorcis­
mo e atos maravilhosos,10 ele nunca
faz isso com referência ao dis­
curso inspirado ou à sabedoria hermética.
3) Toda vez que há uma combinação de atividade profética e mi­
raculosa, Lucas reluta em citar apenas opneuma
como a fonte (mes­
mo que isso concorde com a tradição), mas sente-se compelido a
quahficar o termo com o acréscimo de dynamis
." Em suma, a evi­
dência indica que Lucas distanciou conscientemente o Espírito da

•'V. Lucas 4.18; 11.20; 12.10.


l0Edição: Lucas 4.36; 6.19; 9.1; tradicional: Lucas 5.17; 8.46; Atos 4.7; 6.8.
"Ver Lucas 1.17,35; 4.14; 24.49; Atos 1.8; 10.38.
NO PODER DO ESPÍRITO 185

associação direta ou exclusiva com os milagres, modificando suas


fontes (e.g., Marcos e Q) e empregando dynamis
como termo quali-
ficador im portante.12 Por que Lucas relutava em atribuir milagres
diretamente (ou exclusivamente) ao Espírito? O que o impeliu a ser
tão cuidadoso no modo que relaciona o Espírito aos milagres? A
forte ligação que Lucas faz entre a proclamação (testemunho ver­
bal) e a inspiração do Espírito indicam um motivo: Lucas conside­
rava a proclamação inspirada, não o poder de operar milagres, a
manifestação principal da obra do Espírito.13
Lucas 11.20 e 12.10, em comparação com Mateus 12.22-32, ser­
vem como amostras excelentes da tendência de Lucas de associar o
Espírito com a proclamação em vez de aos milagres.

Lucas 11.20 Mateus 12.28

"Mas se é pelo dedo de Deus que eu ex­ "Mas se é pelo Espírito de Deus que eu
pulso os demônios, então chegou a vocês expulso demônios, então chegou a vocês
o Reino de Deus." o Reino de Deus."

Lucas 12.9-12 Mateus 12.22-3214

v. 9 — "M as aquele que me negar dian­ v. 24 — "Mas quando os fariseus ouvi­


te dos homens será negado..." ram isso, disseram: 'É somente por
v. 10 — "... mas quem blasfemar contra Belzebu [...] que ele expulsa demônios.'"
o Espírito Santo não será perdoado." v. 32 — "... mas quem falar contra o
v. 11 — "Quando vocês forem levados Espírito Santo não será perdoado."
às sinagogas [...] não se preocupem [...]
com o que dirão, pois naquela hora o Es­
pírito Santo lhes ensinará..."

12Para um tratamento mais detalhado do uso que Lucas faz desse ponto, ver
Menzies, Development, p. 124-8; a crítica ponderada de Max T urner, The Spirit
and the power of Jesus’ miracles in the lucan conception, N o v T 33, 1991, p. 124-
52, e minha resposta a Turner (R. E M enzies, Spirit and power in Luke-Acts: a
response to Max Turner, p. 11-20).
130 Espírito é fregüentemente descrito como o agente do discurso inspirado
em Atos (ver At 1.8,16; 2.4,14,17,18, 33; 4.8,25,31; 5.32; 6.10; 7.51; 9.31; 10.44,45;
13.9; 18.25; 19.6; 28.5).
HV Marcos 3.22-29.
SINAIS E MARAVILHAS <f. / 187

O tratamento de Lucas desses textos representa duas modifica­


ções de um único texto, a Controvérsia de Belzebu em Q15 (Mt 12.22-
30,32 = Lc 11.14-23; 12.10). 1) Lucas emprega “dedo de Deus”
(Lc 11.20) em vez de “Espírito de Deus” (Mt 12.28). Fazendo isso,
eliminou uma referência que atribuía exorcismos de Jesus à agência
do Espírito. 2) Lucas também tomou o dito da blasfêmia (Lc 12.10
= Mt 12.32) de seu contexto original suposto e o inseriu em outro
bloco do material Q (Lc 12.2-9,11,12) que contém exortações para
dar testemunho ao Filho do homem. Desse modo, Lucas alterou a
função que se atribui ao Espírito: não mais o poder de exorcizar
demônios como Mateus registra no contexto de Lucas, o Espírito é
o meio pelo qual os discípulos corajosamente dão testemunho de
Jesus em face da perseguição.
Essa evidência, então, fornece apoio substancial a minha afirmação
de que Lucas apresenta a proclamação (testemunho verbal), não o poder
de operar milagres, como o produto principal da inspiração do Espírito.

Palavra e milagre em Lucas— Atos

Uma pesquisa da linguagem de Lucas em outras passagens, particu­


larmente sua narração das histórias de milagres, acrescenta mais peso
à avaliação mencionada anteriormente. Embora seja verdade que para
Lucas “palavra e sinal são complementares” e “ambas as realidades
estão juntas no empreendimento missionário”16, também é verdade
que Lucas tem preocupação especial com a “palavra” ou proclama­
ção. Já observamos que sua pneumatologia enfatiza a primazia do
testemunho verbal. Essa ênfase é encontrada também no modo que
Lucas se apropriou das narrativas de atividade miraculosa de suas
fontes e as modificou.17 Em diversas ocasiões Lucas insere referên­
cias a “ensinar” nas histórias de milagres que ele recebe de Marcos.

,5Q simboliza os versículos comuns a Mateus e Lucas, mas não são encontrados
em Marcos. A maioria dos estudiosos acredita que tanto Mateus como Lucas usa­
ram esse documento quando escreveram seus respectivos evangelhos.
16L. 0 ’Reilly, Word and sign in theActs oftbeAposdes: a study in lucan theology,
p. 217.
17Aceito a hipótese dos dois documentos como axiomática. Por isso, presumo
que Lucas conhecia Marcos e uma fonte escrita Q (v. Lc 1.1-3). Restrinjo minha
análise do uso que Lucas faz da fonte a seu evangelho, uma vez que o nosso conhe­
cimento de fontes para o livro de Atos é muito limitado.
NO PODER DO ESPÍRITO / ; 188

Em Lucas 5.12-16, ele narra a cura de um leproso por Jesus. Esse


relato segue de perto o de Marcos e é visivelmente dependente dele
(Mc 1.40-45).18 Todavia, Lucas se desvia da narrativa de Marcos em
vários pontos, um dos quais é particularmente digno de nota. Mar­
cos e Lucas registram o impacto dessa cura maravilhosa: a despeito
de Jesus ter ordenado silêncio, as notícias do milagre se espalharam
velozm ente — tanto que “Jesus não podia mais entrar publica­
mente em nenhuma cidade” (Mc 1.45). Todavia, Lucas observa es­
pecificamente que, em conseqüência da cura, as pessoas vinham não
apenas para ser curadas (como se esperaria), mas também “para ou­
vir” Jesus.19
Esse tema é transportado para Lucas 6.6. Outra vez seguindo
Marcos (Mc 3.1-6 = Lc 6.6 -11),20 Lucas narra a cura de um homem
com a mão mirrada. Porém, enquanto Marcos começa a história do
milagre afirmando simplesmente que Jesus “entrou na sinagoga”
(Mc 3.1), Lucas insere o milagre no contexto do ensino de Jesus:
“ele entrou na sinagoga e começou,
a ensinar ” (Lc 6.6).
O gosto de Lucas por introduzir as histórias de milagres com
referências ao ensino de Jesus se reflete também em dois de seus
relatos que não são encontrados nos outros evangelhos. Lucas in­
troduz a história da pesca maravilhosa (Lc 5 .1-11) com a frase nar­
rativa: “C erto dia Jesus estava perto do lago de Genesaré, e uma
multidão o comprimia de todos os lados para ouvir a palavra de Deus”
(5.1). Novamente: “Certo sábado Jesus estava ensinando
numa das
sinagogas” (13.10), onde viu e curou uma mulher aleijada (13.10-17).
O relato de Lucas do comissionamento dos doze (Lc 9.1-6) re­
flete outra vez sua preocupação especial em enfatizar a proclamação
no contexto do milagre. Lucas segue Marcos 6.6b-13 bem de perto,
com uma exceção importante. Marcos nos diz que, depois de Jesus
ter chamado os discípulos, “enviou-os de dois em dois e deu-lhes
autoridade sobre os espíritos imundos” (Mc 6.7). Lucas, por sua vez,

lsV. I. H . M arshall, T he g o sp e l o f Luke: a co m m en tary on the greek tex t em


n ic t c , p. 206.
|l,V. tb. J . N olland, que vê L u c as aqui “ co rrigin d o u m a aten ção unilateral à
cura” (Luke 1— 9.20, p. 2 2 8 ).
’°Ibid., p. 259-60.
SIN AIS E MARAVILHAS I8 S

retirando de Q material que também utiliza no comissionamento


dos setenta (Lc 10.9 = Mt 10.7), expande sua narrativa de forma
que se lê: “Jesus deu-lhes poder e autoridade para expulsar todos os
demônios e curar doenças, e os enviou a pregar o Reino de Deus e a
curar os enfermos” (Lc 9.1,2). Desse modo, Lucas salienta o fato de
que a comissão dos doze não se restringia somente ao exorcismo,
mas também incluía a pregação e a cura.
Em outras palavras, Lucas é propenso a se referir às duas atividades
de Jesus: ensino e cura. Mais de uma vez ele inclui material referente a
essas atividades no que obteve das suas fontes (Lc 5.15; 6.17-19;
9.1-2).21 Embora essa tendência indique que a proclamação e os mi­
lagres são complementares, o fato de tais referências geralmente ocor­
rerem no contexto de uma história de milagre dá a entender que
Lucas tem especial preocupação de salientar a importância da pro­
clamação. A inclinação de Lucas para introduzir histórias de mila­
gres com referências ao ensino de Jesus confirma essa idéia (Lc 5.1;
6.6; 13.10).22 Jesus é mais do que um operador de milagres, ele é o
mestre-profeta há muito anunciado. Seus discípulos, como um gru­
po de profetas do fim dos tempos (At 2.17-21), seguem-lhe os pas­
sos com o testemunho inspirado. Aos olhos de Lucas, a palavra e o
sinal são complementares, mas não têm importância igual.

A cautela de Lucas a respeito do evangelismo de poder

A preocupação de Lucas de apresentar Jesus e seus discípulos como


mais do que simplesmente operadores de milagres também se refle­
te numa série de textos que parecem advertir contra a preocupação
com milagres. Neles vemos de maneira clara que Lucas é crítico na
aceitação e na narração de milagres.
Apenas Lucas registra o retorno dos setenta (Lc 10.17-20). Num
relato que salienta a vitória e a autoridade dos discípulos sobre “o

2lOb$erve também outras passagens em que Lucas mantém referências tanto a


proclamação quanto a milagres, conforme encontradas em suas fontes (Lc 4.40-
44; 7.18-22; 8.1-3; 9.6; v. At 6.7). Em Lucas 4.40-44, Lucas mantém referências a
exorcismos e curas encontrados em Marcos 1.32-34, mas omite a referência de
Marcos a exorcismos na finalização desse trecho (Mc 1.39 = Lc 4.44) de forma que
“toda ênfase recai sobre [...] pregação” (M arshall, The Gospel o f Luke, p. 198).
22Ver também Lucas 4.31 e 5.17para referências semelhantes que seguem Marcos.
NO PODER DO ESPÍRITO Jj 190

poder do inimigo”, as palavras de Jesus são surpreendentes: “Contu­


do, alegrem-se, não porque os espíritos se submetem a vocês, mas
porque seus nomes estão escritos nos céus” (Lc 10.20). Fitzmyer cap­
ta bem a essência: “Jesus desvia a atenção dos discípulos do sucesso
sensacional para uma reflexão sobre a condição celestial deles”.23 Desse
modo, com seu uso característico desse material, Lucas apresenta
uma advertência a sua igreja (e à nossa): a preocupação com o poder
sobre os demônios é mal orientada, pois “não é garantia de vida”.24
No meio da controvérsia sobre Belzebu (Mt 12.22-30/ Mc 3.22-
27/ Lc 11.14-23), Lucas tem um versículo que não se encontra nem
em Mateus, nem em Marcos: “Outros o punham à prova, pedindo-
lhe um sinal do céu” (11.16). O contexto, particularmente em razão
da referência a esse mal, a geração que procura sinal em 11.29, lança
esse apelo numa luz decididamente negativa. O pedido de um “si­
nal” marcante é negado. Em vez dele, Jesus oferece o “sinal de Jonas”
(11.29). Com o Jonas e sua pregação foram um sinal para Nínive,
assim também a pregação de Jesus serve como “sinal” para essa ge­
ração.25 A ironia é evidente, pois as multidões que pediam uma exi­
bição espetacular do poder já haviam ouvido a mensagem de Jesus.
Uma vez mais, Lucas está consciente das limitações dos “sinais e
maravilhas” e da mentalidade que os busca.
Finalmente, o registro de Lucas acerca da tentativa de Simão de
comprar a capacidade de conceder o Espírito (At 8.9-24) também
serve de advertência contra atitudes mundanas e egoístas em relação
ao poder espiritual. Lucas não desconhece os potenciais abusos e
dirige-se diretamente àqueles que procuram usar os dons de Deus
para lucro pessoal.
Em resumo, a perspectiva de Lucas dos “sinais e maravilhas” é rica
e plena. Ele reconhece com clareza o importante papel que os milagres
tiveram no ministério de Jesus e da igreja primitiva. Sua narrativa é
repleta de referências aos milagres. Em quase toda oportunidade,
ele nos lembra de que a palavra e o sinal andam juntos. Além disso,
do ponto de vista de Lucas os “sinais e maravilhas” devem caracterizar

23J. A. F itzmyer, The gospel according to Luke, 1:860.


24Ibid.
25Ibid., 933.
SINAIS E MARAVILHAS ' 1 9 1

o ministério da igreja destes “últimos dias” (At 1.8; 2.19). Em


todos esses aspectos, Lucas é defensor dos “sinais e maravilhas”.
Não obstante, Lucas também tem aguçada noção do perigo de
dar ênfase excessiva ao miraculoso. Sua narrativa não é nem “gros­
seira”, nem “assimétrica”, mas pontilhada de declarações e histórias
que falam das limitações dos “sinais e maravilhas” e da mentalidade
que os busca. A atitude de Lucas para com os “sinais e maravilhas”
pode ser classificada de positiva, mas não de acrítica. Isso se reflete
com mais nitidez em sua ênfase na proclamação: para ele, a manifes­
tação mais importante do Espírito não é o poder de operar milagres,
mas o testemunho intrépido e inspirado.26
Com essas conclusões em mente, vou agora procurar demons­
trar como a perspectiva de Lucas fornece a base para uma aborda­
gem exclusivamente pentecostal do “evangelismo de poder”.

"S in a is e m a r a v il h a s ": a p e r s p e c t iv a
PENTECOSTAL

Já observei como os pentecostais dão importância especial a Lucas—


Atos, principalmente o Pentecoste (At 2), como paradigma da ca­
pacitação de Deus. Esse fundamento teológico fornece uma estrutura
de referência singular para pensar nas questões geradas pelo movi­
mento dos “sinais e maravilhas” e leva os pentecostais a desenvolver
sua própria teologia do "evangelismo de poder”. A perspectiva pen­
tecostal difere da perspectiva da terceira onda de três modos impor­
tantes.

A natureza diversa da capacitação divina

Os pentecostais tendem a entender a natureza da capacitação divina


de maneira mais ampla que os da terceira onda. Estes procuram
recapturar a importância dos dons do Espírito descritos pelo apóstolo
Paulo (e.g., ICo 12), principalmente os dons mais espetaculares como

26V. a excelente tese de N e ls o n Estrada: A redaction al criticai stu d y on lhe


relation sh ip o f the Spirit, proclam ation , and m iracle-w orkin g pow er in L u k c -A cts.
E stra d a tam b ém argum en ta que a pro clam ação é o p ro d u to p rin cipal d a in sp iração
d o E sp ír ito em L u c as— A to s.
NO PODER DO ESPÍRITO 192

a cura e a profecia. Uma vez que não vêem o dom pentecostal como
experiência de capacitação (mas como conversão), moldaram seu ponto
de vista na maior parte com a perspectiva e a linguagem teológica de
Paulo, em vez da de Lucas. Desse modo, bebendo em grande medida
das cartas de Paulo, os adeptos da terceira onda procuram reivindicar
dons miraculosos para a igreja contemporânea. Além disso, enfatizam
a importância desses dons espetaculares para o crescimento da igreja.
O fato de o movimento ser conhecido como movimento de “sinais e
maravilhas” não é acidental. O título reflete o foco importante da ter­
ceira onda nos dons dramáticos e espetaculares (e.g., curas e profecia)
como chave para o crescimento da igreja.
Entretanto, como dissemos, a perspectiva de Lucas da capacitação
divina é muito mais ampla do que o foco estreito nos sinais dramá­
ticos. Embora Lucas reconheça e até realce o impacto positivo e
poderoso dos milagres, sua ênfase no testemunho verbal é ainda
maior. O foco na proclamação inspirada pelo Espírito move Lucas a
realçar as dimensões da capacitação divina que os seguidores da ter­
ceira onda em geral deixam de mencionar. A capacidade de dar tes­
temunho intrépido de C risto em face da perseguição ou privação é
central no conceito que Lucas tem de “evangelismo de poder” (e.g.,
Lc 12.8-12; A t 4.31).27
Esse é um tema que a terceira onda não enfatiza. Embora os mi­
lagres tenham facilitado o crescimento da igreja primitiva, esse “po­
der permanente” — a capacidade de permanecer firme diante da
oposição e privação — é um enfoque indiscutível da obra do Espíri­
to na narrativa de Lucas. Os pentecostais, influenciados como foram
por Lucas— Atos, tendem a retratar esse aspecto do “evangelismo
de poder”. Embora os “sinais e maravilhas” tenham sido a parte des­
tacada da mensagem pentecostal, o ponto focal
das missões pente­
costais sempre foi o “poder de perseverar” possível pelo batismo no
Espírito Santo.
Esse enfoque de Lucas no testemunho inspirado em face da opo­
sição foi sem dúvida moldado pelo ambiente de sofrimento e per-

27E n tre o u tro s a sp e c to s da c ap acitação divina en fatizados p o r L u c as e stã o a


cap ac id ad e d e d a r te ste m u n h o c o m p o d e r e sp e c ia l e e fic á cia , d isc e rn im e n to
carism ático e a co n sciên cia especial de se n sib ilid ad e ao plano re d e n to r de D e u s.
SINAIS E M A RAVILH AS ■' 193

seguição em que a igreja primitiva floresceu. É interessante obser­


var os paralelos com o movimento pentecostal moderno, que tam­
bém experimentou um crescimento rápido em meio à oposição e
privação. Talvez aqui encontremos uma idéia da força e da impor­
tância desse foco no “poder de perseverar”. Ele não serve como lem­
brete constante da realidade de oposição e sofrimento, de um lado,
e de nossa vulnerabilidade e fraqueza, de outro? Não nos lembra
também que nesta vida o sofrimento não será sempre removido e
que ele não é, em caso nenhum, o objetivo da capacitação de Deus?
Acredito que, de fato, seja um lembrete necessário à medida que
buscamos e recebemos a capacitação de Deus. Ele nos ajuda, no meio
de nossa experiência dos dons miraculosos de Deus, a evitar uma
visão superficial, egoísta e, principalmente, secular. James Bradley
fala abertamente:

Os sinais carismáticos de cura são todos procurados com muita


freqüência como tentativa de remover os últimos vestígios de
sofrimento nas áreas em que a medicina moderna ainda não des­
cobriu meio de prover alívio. A cura ainda é em geral associada
com a preocupação total com o bem-estar material, preocupação
que a maioria dos cristãos em outros tempos e outros países teriam
achado escandalosa.28

Seguramente, qualquer análise dos “sinais e maravilhas” na igreja


primitiva não deve esquecer o contexto de sofrimento e persegui­
ção. O foco no “poder de perseverar” como central na capacitação
divina tem a vantagem de oferecer a visão e o equilíbrio necessários.
Enfim, esse foco de Lucas e dos pentecostais não somente oferece
uma perspectiva mais ampla e mais plena do “evangelismo de po­
der”, mas também pode assistir-nos em nossos esforços de evitar o
perigo do triunfalismo inerente nos “sinais e maravilhas”.29

2SM iracles and m artyrdom in the early church: some theological and
ethical implications em A l l to g e th e r in o n e p la c e , org., H. H unter e P. H ocken,
p. 240.
-''Reconhecidamente, esse potencial nem sempre se realiza nos círculos pente­
costais.
NO PODER DO ESPÍRITO • ' 194

A expectativa da capacitação divina

A teologia da terceira onda é, em parte, uma rejeição das tentativas


tradicionais anteriores de limitar os vários dons paulinos do Espíri­
to à era apostólica. Desse modo, a terceira onda retêm a estrutura
teológica tradicional básica, mas simplesmente insiste que todos os
dons estão disponíveis e são necessários hoje. Esse tratamento tem
a vantagem de tornar a ênfase dos “sinais e maravilhas” mais palatável
para os cristãos não-pentecostais. Peter Wagner em particular (não
muito preocupado com distinções teológicas) prestou o serviço
notável de vender vários temas pentecostais de um modo que apela
para os evangélicos tradicionais. O resultado foi uma impressio­
nante abertura da parte de muitos tradicionais para os dons gracio­
sos do Espírito de Deus.
Os pentecostais podem e devem se regozijar com essa obra ma­
ravilhosa do Espírito de Deus nas congregações da terceira onda.
Não obstante, a questão que deve ser levantada (especialmente pe­
los pentecostais) é: No meio desse marketing
, o que se perdeu? Mi­
nha resposta a essa pergunta é que a terceira onda, ao rejeitar a
perspectiva pentecostal (eu diria também a de Lucas) do Pentecos-
te, perdeu o argumento teológico para o forte senso de expectativa.
Embora a terceira onda hoje esteja orando e procurando a capacitação
de Deus com expectativa fervente, tenho vontade de saber se esses
cristãos têm base teológica suficiente para sustentar o movimento.
Será a terceira onda capaz de passar seu legado espiritual à geração
seguinte? Temo que a resposta seja não.
Meus temores têm origem no fato de que a expectativa da tercei­
ra onda se baseia apenas no ensino de Paulo acerca dos dons espiri­
tuais. Não vejo no ensino de Paulo sobre os dons espirituais uma
base adequada para um sentido verdadeira e plenamente bíblico de
expectativa no que concerne à capacitação divina. A perspectiva de
Lucas é necessária exatamente nesse ponto.
Uma revisão das atitudes dos evangélicos tradicionais com res­
peito aos dons espirituais é instrutiva nesse caso. A postura de mui­
tos evangélicos tradicionais pode ser descrita da seguinte maneira:
visto que Deus soberanamente concede seus dons a determinados
indivíduos, devemos esperar e observar o que Deus quer fazer.
SINAIS E M ARAVILH AS \ / 195

Não temos certeza de que Deus nos dará algum dom particular.
Embora possamos receber dons de poder missiológico, há sempre a
possibilidade de não recebê-los.30
Certamente, essa abordagem capta um aspecto importante do
ensino de Paulo, mas não é a palavra final a respeito da promessa de
poder da parte de Deus. Todavia, essa perspectiva limitada de Paulo
molda tanto a teologia quanto a expectativa da terceira onda e dos
evangélicos que não fazem parte desta. Isso quer dizer que, teologi­
camente não há nada concreto que distinga a terceira onda de mui­
tos evangélicos tradicionais que têm permanecido passivos em suas
respectivas abordagens da capacitação divina. A postura agressiva
de muitos da terceira onda parece ser uma questão de atitude sem
base teológica. Em suma, os da terceira onda não se preocupam em
articular uma teologia que retrate adequadamente sua postura em
relação ao poder e à experiência divinos.
O relato de Lucas a respeito do Pentecoste fornece o necessário:
promessa de poder missiológico para todo crente. Com o deixa cla­
ro a citação de Joel, todos estão incluídos na promessa: filhos, filhas,
jovens, velhos, homens, mulheres — todos os servos de Deus (At
2.17-21) !31 Embora não seja verdadeiro alegar que aqui Lucas pro­
mete o poder de operar milagres a todos os crentes, é correto afirmar
que ele de fato lhes promete a capacitação do Espírito para testemu­
nhar de Cristo intrépida e eficazmente.32 Essa promessa pentecos-
tal, portanto, é crucial se quisermos reter o sentido bíblico pleno de
expectativa.
Entretanto, como já observei, os da terceira onda tendem a igua­
lar o batismo no Espírito (i.e., o dom pentecostal) com a conversão

30V. p. ex., o comentário de Millard Erickson, Christian theology, 8 8 1: se a


Bíblia ensina que o Espírito dispensa dons especiais hoje não é questão de grande
conseqüência prática. Porque, mesmo que ele o faça, não devemos dedicar toda a
nossa vida à procura deles”.
31Sobre a universalidade do dom pentecostal, ver M knziks, Development, p.
227-9.
32Como dissemos, o uso que Lucas faz do Espírito e poder em Atos 1.8 dá a
entender que essa capacitação em geral inclui o poder de operar milagres. Contu­
do, as atividades previstas nessa promessa têm abrangência mais ampla e incluem o
discurso inspirado e a revelação especial, bem como o poder de operar milagres.
NO PODER DO ESPÍRITO 196

em vez de com a capacitação missiológica. Esse entendimento do


dom pentecostal inevitavelmente diminui o senso de expectativa. È
sempre possível argumentar que, embora todos experimentem a di­
mensão soteriológica do dom pentecostal na conversão, somente
uns poucos seletos recebem dons de poder missiológico. Desse
modo, perde-se a noção correta de expectativa de Lucas.
Resumindo, a interpretação pentecostal de Lucas— Atos, e parti­
cularmente do Pentecoste, pode ajudar a terceira onda, uma vez que
seus integrantes procuram desenvolver um argumento teológico para
sua postura agressiva em relação à capacitação divina. Na verdade,
uma noção plenamente bíblica de expectativa quanto à promessa de
poder missiológico divino depende dela.

Perspectiva histórica da capacitação divina

Finalmente, tendo em vista as preocupações de Lucas com o possível


abuso do poder miraculoso de Deus (Lc 10.20; 11.16,29; A t 8.9-24),
quero observar um terceiro aspecto característico da abordagem
pentecostal do “evangelismo de poder”: sua perspectiva histórica.
Embora o movimento pentecostal moderno seja ainda muito jo­
vem, ele já tem quase cem anos de experiência direta à qual recorrer
quando aborda esse assunto. A própria experiência de abusos e ex­
tremos no passado oferece reflexões muito necessárias para muitas
questões de hoje.
Essa perspectiva histórica é ausente nas discussões da terceira
onda acerca dos “sinais e maravilhas”. Alguns líderes desse movi­
mento, recém-chegados que são aos dons carismáticos, exibem o
equivalente espiritual da mentalidade dos novos ricos e aceitam sem
crítica tudo que se pareça com milagre. Um pouco de reflexão nas
experiências do recente passado pentecostal pode incentivar um tra­
tamento mais sóbrio e com mais capacidade de discernimento. Por
exemplo, a ênfase atual na profecia com a finalidade de orientação
pessoal deve ser moderada pela observação do abuso da profecia
pessoal no movimento da “chuva serôdia” de 1948-1949.35 E o mo­
vimento de salvação-cura da década de 1950 constitui mais um exem-3*

33Para uma discussão desse movimento, v. W MENZIES, A n o in te d to serve, p.


321-5.
SINAIS E M ARAVILH AS 197

plo valioso de armadilhas potenciais para o movimento dos “sinais e


maravilhas”.34 Do mesmo modo que Lucas incentiva seus leitores a
aprender com os erros do passado, assim também os da terceira onda
podem-se beneficiar com os erros passados dos pentecostais.

C onclusão
Afirmei que a teologia de Lucas tem muito que contribuir para uma
perspectiva bíbhca dos “sinais e maravilhas”. Ele reconhece clara­
mente a importância dos milagres na igreja apostólica e afirma a
importância contínua deles para a igreja hoje. Significativamente,
sua narrativa pentecostal contém uma promessa de capacitação di­
vina que se estende a todo crente (At 1.8; 2.19). Todavia, Lucas está
muito consciente dos perigos inerentes. Sua narrativa não é “gros­
seira” nem “assimétrica”, mas borrifada de palavras de cautela. A
atitude de Lucas para com “os sinais e maravilhas” pode ser classifi­
cada de positiva, mas não de acrítica. Mais importante: Lucas adiciona
fôlego a uma perspectiva bíblica do “evangelismo de poder” enfati­
zando o testemunho eficaz e destemido como a manifestação prin­
cipal da inspiração do Espírito.
Por causa da importância especial que os pentecostais dão a
Lucas— Atos, especialmente o Pentecoste (At 2), como paradigma
da capacitação divina, eles foram capazes de se apropriar de maneira
singular da riqueza da perspectiva de Lucas. O ponto de vista teoló­
gico resultante tem muito que contribuir para aqueles da terceira
onda que procuram apoiar sua experiência nas Escrituras: oferece
entendimento amplo e pleno do “evangelismo de poder”, argumen­
to sólido para o alto senso de expectativa da capacitação divina e
encorajamento para evitar os perigos inerentes.

P erguntas para estudo

1. Em que os participantes da terceira onda diferem dos pente­


costais?
2. Qual a diferença central entre a abordagem da terceira onda e a
dos pentecostais com relação ao “evangelismo de poder”?

3*V ibid., p. 330-5.


NO PODER DO ESPÍRITO ' / 198

3. Por que Menzies afirma que Lucas é defensor do “evangelismo


de poder”?
4. Com o Lucas apresenta sua perspectiva equilibrada dos “sinais e
maravilKas”?
5. Menzies alega que embora palavra e sinal sejam complementares,
não têm igual importância. Qual é mais importante e por quê?
6. Que lições acerca do “evangelismo de poder” Lucas procura en­
sinar? Por que os pentecostais estão numa posição especialmente
boa para ouvir e se apropriar das palavras de sabedoria de Lucas?
capítulo • 11

Cura na expiação

empre afirmei que a cura flui da cruz e, para dizer a verdade,


S orava pelos doentes regularmente. Todavia, lembro-me do dia
em que fui forçado a rever a base de minha convicção e prática. Um
colega pediu-me que fizesse uma palestra para sua classe sobre “a
cura na expiação”. Ele tinha assistido à luta de uma parente contra
um câncer que lhe destruía o corpo. Testemunhara muitas orações
pedindo cura. Ele sabia que a mulher necessitava de cura e a maior
parte dos que oravam em favor dela eram pessoas de grande fé. Ouviu
as palavras de estímulo e aconselhamento. E em meio a tudo isso ele
observava sua parente querida m orrer lenta e agonizantemente. Meu
colega, homem a quem respeito, pediu-me para apresentar a pales­
tra porque sabia que ele não podia. Com o ele havia testemunhado o
sofrimento de sua parente, ficou convencido de que a doutrina da
cura na expiação era imperfeita.
Sua luta com a doutrina, até mais do que o compromisso de ensi­
no que eu aceitara, apresenta-se-me como um desafio. Quando olho
para essa situação passada, vejo que as objeções do meu amigo com
relação ã doutrina refletem o ponto de vista e, às vezes também a
experiência, de muitos: como pode o dom divino de cura estar en­
raizado na expiação, quando a nossa experiência desse dom é tão
incerta, tão limitada e tão pouco freqüente?1
No que diz respeito ao perdão divino e aos aspectos espirituais
da salvação, meu amigo declarava, as questões são relativamente cla-

'Essa preocupação levou John W ilkinson a rejeitar a doutrina, em seu artigo


Physical heahng and the atonement, EvQ 63, 1991, p. 149-67. V. tb. as preocupa­
ções semelhantes expressas por David P ktts em seu ensaio Healing and the
atonement, epta Bulletin 12, 1993, p. 23-7 (esp. p. 34).
NO PODER DO ESPÍRITO 200

ras. Respondemos a C risto com fé e somos salvos. Não há exce­


ções, não há demora. C risto supriu tudo para a nossa salvação es­
piritual (i.e., o perdão de nossos pecados) na cruz, de modo que
podemos nos apossar da salvação pela fé. Entretanto, com a cura
física é muito diferente. Podemos orar por cura com fé, mas nem
sempre compreendemos completamente o dom. Diferentemente dos
aspectos espirituais da salvação, nossa experiência de cura física é
esporádica e incerta. Meu amigo achou que a conclusão inevitável
era clara: a cura física não pode estar ligada à expiação.
Uma amostra de qualquer banco de igreja revelará que a doutrina
da cura na expiação — isto é, que a cura física flui da obra expiatória
de Cristo na cruz — continua sendo uma fonte de debate em muitas
igrejas. Embora os pentecostais tenham afirmado tradicionalmente
essa doutrina, mesmo em seus círculos a doutrina tem provocado
controvérsia. Muitos falam apaixonadamente em favor dessa dou­
trina, enquanto outros a rejeitam completamente como mal-enten­
dido perigoso. Por que essa doutrina tem causado tanta polarização?
Parece haver duas razões para essa divisão. 1) Idéias extremadas
de alguns proponentes da doutrina têm-na desacreditado na mente
de muitos. Em alguns círculos, a doutrina significa que todos nós
devemos ser curados aqui e agora.2 A cura foi providenciada para
nós, argumentam, logo, é nosso direito e responsabilidade recebê-la
pela fé. Se não formos curados, deve haver algo errado com nossa
fé, com nossa capacidade de compreender a cura. Naturalmente, as
realidades da vida assim como uma leitura cuidadosa das Escrituras
falam contra essa abordagem simplista. Não obstante, a demora desse
legado nos lembra de que a doutrina da cura na expiação e suas im­
plicações não são sempre cuidadosa e plenamente consideradas nem
desenvolvidas de maneira coerente.3

2Para uma visão geral da história da doutrina, ver W ilkinson, op. cit., p.
149-54.
3A D eclaração das verdades fun dam en tais das A ssem bléias de D eus n. 12 diz:
“A cura divina é parte integrante do evangelho. A libertação da enfermidade é
proporcionada pela expiação e é um privilégio de todos os crentes (Is 53.4,5;
Mt 8.16,17; Tg 5.14-16)”. A frase “um privilégio de todos os crentes” é um tanto
imprecisa.
CU RA N A EXPIAÇÃO 201

2) Há um segundo motivo de divisão com respeito a essa doutri­


na. Em geral a discussão tem sido moldada por compreensões dife­
rentes da expiação de Cristo. Os que se opõem à doutrina tendem a
concentrar-se mais estreitamente na abrangência semântica da “ex­
piação” na Bíblia e nas palavras relacionadas.4 Por isso, em geral de­
finem a expiação como o “cobrir dos pecados” e interpretam a
importância da cruz em termos forenses. Sobre a cruz, Jesus levou
sobre si os pecados de um mundo culpado. Ele suportou a punição
que todos nós merecemos por justiça. Expiação, portanto, tem a ver
com a erradicação do problema do pecado. Se se vê a expiação desse
modo, sua relação com a cura física é facilmente reduzida ou me­
nosprezada.
O ponto central a ser observado é: de que modo se entende que a
expiação inevitavelmente molda a maneira que se responde à per­
gunta presente. O foco estreito no leque semântico de palavras iso­
ladas traduzidas por “expiação” ou relacionadas com ela pode fazer
que se focalize exclusivamente o perdão de pecados e daí excluir a
cura física da discussão. Todavia, como Gustaf Aulen observa, essa
concepção limitada da expiação dificilmente faz justiça ao testemu­
nho bíblico ou ao entendimento histórico da igreja. Voltamo-nos
agora para esse ponto essencial.

0 PONTO DE PARTIDA

Dissemos que aqueles que se opõem à cura na expiação tendem a


entender a obra expiatória de Cristo em termos forenses como o
meio pelo qual Deus lida com o problema do pecado. A ilustração é
a de um tribunal de justiça. Deus, o Pai, senta-se diante de nós como
o juiz sábio e justo. Nós nos sentamos na cadeira de réus e somos
com justiça declarados culpados. Mas exatamente quando parece que
o nosso destino está selado, o próprio Deus providencia os meios
pelos quais podemos ser declarados inocentes e, ao mesmo tempo,
as exigências de sua justiça são satisfeitas. Com o isso acontece? Je­

4V. p. ex., as discussões de W ilkinson, op. cit., p. 156-9; John R. W. Stott, A


cruz de C risto. Entre as palavras centrais do Novo Testamento estão bilastêrion
(“sacrifício da expiação” ou “propiciação”, Rm 3.25) e lytroti (“resgate”, Mc 10.45).
NO PODER DO ESPÍRITO / 202

sus, o Justo, toma o nosso lugar. Ele suporta a penalidade que por
justiça era nossa. Isso é uma descrição poderosa da graça de Deus
expressa nas Escrituras. Essa descrição, por retratar a figura de um
tribunal de justiça, foi classificada competentemente como a visão
forense da expiação.
Sem dúvida essa visão forense oferece aspectos importantes da
obra de Cristo na cruz. Mas convém levantar uma questão impor­
tante: A visão forense faz justiça ao testemunho bíblico pleno
a res­
peito da importância da m orte de C risto? Essa visão sozinha é
adequada para explicar o pleno significado da morte de Cristo? Em
um criterioso livro, Gustaf Aulen argumenta que esse não é o caso.5
Ele resume três abordagens do entendimento da obra de Cristo na
cruz. 1) Encontramos a visão latina ou forense, que acabamos de
esboçar. Cristo como o homem sem pecado que satisfaz as exigên­
cias morais de um Deus justo. Com o dissemos, esse ponto de vista
capta um aspecto importante e poderoso do ensino bíblico.
2) Há a visão liberal. Aqui, a morte abnegada de C risto na cruz é
apresentada como exemplo da mais alta forma de amor. Esse ato
exige uma resposta, compele outros a viver de modo semelhante.
Essa visão, embora com toda certeza limitada, acrescenta outro as­
pecto ao nosso entendimento de expiação, aspecto em que a morte
sacrificial de Cristo na cruz com efeito constitui um desafiante mo­
delo de amor. Não obstante, a morte de Cristo representa muito
mais que isso. Ela na verdade causa impacto na nossa relação com
Deus. Nossa condição perante Deus é, por meio da fé, alterada fun­
damentalmente em virtude da morte sacrifical de Cristo.
3) Aulen descreve a visão clássica da expiação, que ele competen­
temente denomina Christus Victor(Cristo o Vencedor). Essa visão
enfatiza que, em virtude de sua morte e ressurreição, Cristo venceu
os poderes. A cruz não é simplesmente apresentada como o meio
para tratar do problema do pecado. Ela agora é vista com mais am­
plitude, como o ponto em que os poderes (do diabo, da morte e
do pecado) são derrotados decisivamente. Aqui a cruz é vista como

sChristus Victor. an historical study of the three main types of the idea of the
atonement.
CURA NA EXPIAÇÃO 203

possuidora de importância cósmica, que liberta toda a criação de


seus captores. Essa visão associa a encarnação de Jesus com sua morte
apresentando toda a vida e o ministério de Jesus, do mesmo modo que
sua morte e ressurreição, como significativos. O ministério de Cristo,
que culminando com sua morte e ressurreição é, dessa forma, apre­
sentado como uma derrota avassaladora dos poderes — vitória que
liberta toda a criação para que possa cumprir seu destino ordenado
por Deus. Aulen argumenta que essa visão “clássica” era predomi­
nante na igreja primitiva. Seu livro é um convite a recuperar essa
dimensão importante do testemunho bíblico a respeito da expiação.
A obra de Aulen é importante porque nos lembra de que nenhu­
ma visão sozinha da expiação é suficiente. As visões clássica e latina
têm algo importante para nos dizer acerca da importância da morte
de Cristo. Também servem para nos advertir contra o foco estreito
na semântica de um grupo particular de palavras e nos conclama a
incluir em nossa discussão da expiação outros elementos do teste­
munho bíblico. Para resumir, o ponto de partida para nosso debate
sobre a cura na expiação não pode ser simplesmente o significado da
palavra “expiação”. Se quisermos fazer justiça à amplitude do teste­
munho bíblico, temos de alargar nossa visão e perguntar: Qual a
importância plena da morte de Cristo na cruz? Só então poderemos
tratar adequadamente da questão presente.

A CURA E A c r u z : reflexõ es
TEOLÓGICAS

Vamos oferecer três proposições inter-relacionadas que ajudam a


esclarecer a importância da obra de Cristo na cruz. Juntas, essas
proposições nos convidam a reconhecer que a cura física, como to­
dos os outros benefícios da salvação, flui da cruz.

A cruz e o senhorio de Cristo

Os oponentes da doutrina freqüentemente fazem distinção entre


curas operadas soberanamente por Deus e cura como obra da graça
enraizada na cruz. Reconhecem que Deus eventualmente realiza
milagres de cura, mas acrescentam rápido que essa atividade
miraculosa tem origem na vontade soberana de Deus. O ponto es­
NO PODER DO ESPÍRITO 204

sencial aqui é que a cura não pode ser localizada na expiação, de


outra forma, todos os doentes poderíam, e na verdade deveriam,
ser curados. Se a cura se localiza na vontade soberana de Deus,
não na sua provisão graciosa, a incerteza da cura se explica mais
facilmente.
A lógica desse argumento é bastante clara, mas simplesmente não
se harmoniza com os dados do N ovo Testamento. Igualmente im­
portante, a oposição entre a certeza da salvação espiritual e a incer­
teza da cura física se rompe, pois repousa numa analogia falsa.
Examinemos nossa primeira proposição, a que põe em dúvida a
dicotomia entre a cura como ato soberano de Deus e a cura como
dom gracioso que flui da cruz.
Proposição 1: Jesus é Senhor e Salvador em virtude de sua obra na
cruz (Ap 5.9).
A distinção entre os dons de Deus que vêm de sua vontade sobe­
rana e os que fluem da obra expiatória de Cristo é falsa. Isso fica
particularmente evidente quando começamos a reconhecer que o
reino de Deus, sua soberania, é inextricavelmente ligado à cruz. Isso
está explícito em Apocalipse 5.9. O louvor da sala do trono no céu
ressoa com estas palavras:

Tu és digno de receber o livro


E de abrir os seus selos,
Pois foste morto,
E com teu sangue compraste para Deus
Gente de toda tribo, língua, povo e nação.
Observe a hgação entre a cruz de Cristo e o seu governo sobera­
no. Cristo é capaz de tomar o livro, que representa o destino das
nações, porque ele foi morto. E a cruz, portanto, que conduz aos
louvores registrados em Apocalipse 11.15: “O reino do mundo se
tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará para todo o
sempre”. Essa mensagem tem ressonância nas palavras de Paulo em
ICoríntios 1.24, em que ele descreve a cruz de Cristo como “o po­
der de Deus e a sabedoria de Deus”. Talvez em nenhum lugar a
mensagem seja tão poderosamente confirmada como em Colossen-
ses 2.12-15.
CURA NA EXPIAÇÃO 205

Quando vocês estavam mortos em pecados e na incircuncisão da


sua carne, Deus os vivificou com Cristo. Ele nos perdoou todas
as transgressões, e cancelou a escrita de dívida, que consistia em
ordenanças, e que nos era contrária. Ele a removeu, pregando-a
na cruz, e, tendo despojado os poderes e as autoridades, fez deles
um espetáculo público, triunfando sobre eles na cruz.

João no Apocalipse, Paulo em todas as suas cartas e quase todo o


Novo Testamento requerem que vejamos a cruz como o ponto cen­
tral da história, o meio pelo qual Cristo derrotou o poder do malig­
no e assumiu o seu justo lugar como Senhor soberano. Todos os
santos que viveram antes da cruz e todos os acontecimentos da his­
tória da salvação que a precederam olharam em direção à cruz como
expectativa. Por isso, João fala do “Cordeiro que foi m orto desde a
criação do mundo” (Ap 13.8). E como os textos citados acima indi­
cam, todos os crentes e fatos que vieram depois têm esse evento
como referência.
A cruz é de fato a razão central por que C risto reina como Se­
nhor. Deve ficar claro, portanto, por que distinções entre ações ba­
seadas na soberania de Deus e ações baseadas na cruz são destituídas
de significado. Jesus é o Senhor soberano, ele age como Rei, porque
ele é o Cordeiro que foi morto! Todas as bênçãos do reino de Deus
fluem desse evento crucial, o centro da história da salvação.
A natureza progressiva da salvação

Dissemos que os oponentes da doutrina da cura na expiação vêem


distinção entre a nossa experiência dos aspectos espirituais da salva­
ção e nossa experiência de cura física. Quando nos arrependemos e
cremos, por meio da graça transformadora de Deus, recebemos per­
dão imediatamente, e é-nos concedida uma nova relação com Deus.
Mas nossa experiência de cura física é de ordem diferente, mais in­
certa e mais esporádica. Todavia, esse argumento repousa em gran­
de parte numa analogia imperfeita. Na realidade, a nossa experiência
das dimensões espirituais da salvação não é tão imediata e completa
como podemos supor. Esse ponto é elaborado em nossa proposição
seguinte.
NO PODER DO ESPÍRITO 206

Proposição 2: A salvação proporcionada por Jesus como Senhor e


Salvador é de natureza progressiva (2Co 3.18).
Todos os aspectos das bênçãos do reino (i.e., salvação), quer físi­
cos, quer espirituais, são-nos mediados de modo progressivo. Paulo
demonstra isso poderosamente em 2Coríntios 3.18: “E todos nós,
que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, se­
gundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada
vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito”. De acordo com
Paulo, quando alguém se torna cristão, embarca numa viagem de
transformação mediada pelo Espírito — uma viagem de natureza
progressiva e que culmina na transformação definitiva, a ressurrei­
ção do corpo (IC o 15.42-54). Esta é a razão por que Paulo fala do
dom do Espírito como a “garantia do que está por v ir” (2Co 5.5).
Naturalmente, isso indica que não é de todo correto falar em ser
“salvo” como se a salvação fosse apreendida num único momento
no passado. A realidade é mais complexa. Entramos na vida do Es­
pírito (ou o reino) num determinado ponto do tempo, mas isso
meramente constitui o início de uma jornada em que somos trans­
formados progressivamente na imagem de Cristo. Gosto de per­
guntar aos meus alunos: Você conhece C risto agora com o o
conhecerá no céu? A resposta certa, naturalmente, é “não, não co­
nheço”. Da mesma maneira que o nosso relacionamento com Cris­
to amadurece e se aprofunda, assim também todas as bênçãos do
reino são aprofundadas e percebidas progressivamente em nossa vida.
Isso se aplica aos aspectos espirituais da salvação (e.g., nossa cons­
ciência de filiação) bem como ao físico. Lembre-se, nossa meta final
inclui um corpo ressuscitado transformado pelo Espírito (IC o 15.42-
54). Estamos no processo de movimento da morte para a vida. Em
suma, todas as dimensões da salvação são apropriadas e realizadas
em nossa vida progressivamente. Do mesmo jeito que nossa experi­
ência atual do Espírito é “garantia do que está por v ir”, assim tam­
bém a nossa experiência atual de cura é um antegozo do corpo
glorioso ressurreto que nos espera.
Isso, é claro, não significa que o nosso corpo será fortalecido e
revitalizado gradativamente até que obtenhamos a imortalidade.
Nosso corpo ficará cada vez mais frágil e débil e enfim morrerá.
CURA NA EXPIAÇÃO J 207

Contudo, num sentido mais amplo, é verdadeiro dizer que nós —


isto é, nosso ser total (corpo e espírito) — estamos sendo transfor­
mados. Estamos nos movendo em direção a nosso destino definiti­
vo em Cristo, o que inclui a plenitude física. Atualmente, vemos
apenas uma sombra, as primícias da glória que nos espera. Mas en­
tão veremos em plenitude (IJo 3.2). Embora a transformação física
possa ser menos notória do que a espiritual, ela é, não obstante, parte
importante do processo, um aspecto importante de nosso destino glo­
rioso em Cristo. Os que negam esse aspecto físico da salvação têm
mais em comum com os gnósticos do que com a igreja primitiva.

A natureza cósmica da salvação

Um ponto fraco importante na perspectiva daqueles que negam a


cura na expiação é a visão truncada da salvação. A tentativa de limi­
tar a expiação às dimensões “espirituais” da vida parece repousar
numa soteriologia que se esquece dos aspectos centrais do testemu­
nho bíblico. Embora comumente falemos de “almas salvas” e des­
crevamos a esperança futura como desvinculada deste mundo, na
realidade, o plano de Deus para a sua criação é muito maior e muito
mais abrangente. Isso nos leva a nossa terceira proposição.
Proposição 3: A salvação proporcionada por Jesus como Senhor e
Salvador é de natureza cósmica e inclui a totalidade física (Rm 8.23;
ICo 15.42-54).
O plano de Deus para nós e para o seu mundo — de fato, toda a
criação — é de uma abrangência de tirar o fôlego. O fim da história
não se completará até que Deus cumpra os seus propósitos para a
criação, a restauração de todas as coisas. N o nível pessoal, Paulo nos
convida a enxergar-nos no futuro não como espíritos sem corpo
flutuando num mundo etéreo, mas como pessoas transformadas,
cuja vida, inclusive o corpo, seja moldada pelo Espírito — pessoas
completas. Desse modo, Paulo declara que “o corpo que é semeado
é perecível e ressuscita imperecível; é semeado em desonra e ressus­
cita em glória; é semeado em fraqueza e ressuscita em poder; é se­
meado um corpo natural e ressuscita um corpo espiritual” (IC o
15 .4 2 ,43 ). Paulo nos dá pouca razão para considerar o corpo
irrelevante. Na verdade, muito do seu ensino ético que combate o
NO PODER DO ESPÍRITO 208

hedonismo protognóstico se baseia na importância do corpo ( ., e.g


ICo 6.12-20).
Paulo também nos dá pouca razão para desconsiderar nosso mun­
do. Apesar de os sermões apocalípticos populares quase sempre nos
deixarem com a impressão de que o nosso mundo deve causar-nos
pouca preocupação (não será ele destruído numa bola de fogo com­
pacta?), a reahdade bíblica é muito diferente. Paulo nos lembra de
que Deus está trabalhando na restauração de toda a criação e que os
seus propósitos não serão frustrados. A abrangência de sua obra
salvadora não se limita à redenção de pessoas (embora isso seja a
peça principal), mas inclui a transformação do mundo. Essa espe­
rança maravilhosa é expressa em Romanos 8.20-22.
Pois ela foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha,
mas por causa da vontade daquele que a sujeitou, na esperança de
que a própria natureza criada será libertada da escravidão da deca­
dência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos
filhos de Deus.
Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em
dores de parto.
Esse tema é retomado no livro de Apocalipse, que descreve a
esperança futura tanto em termos de continuidade com este mundo
(Ap 20), o milênio, como em termos de descontinuidade (Ap 21, o
novo céu e a nova terra). João convida sua igreja (e a nossa por ex­
tensão) a se regozijar na esperança que nos aguarda: esperança que
inclui a transformação deste mundo presente, mas que é tão grande
que finalmente transcende qualquer de nossas frágeis tentativas de
compreendê-la. Não, simplesmente não dá, descartar o mundo no
qual vivemos, o mundo de Deusy como se ele tivesse pouca impor­
tância para o Criador.
As implicações das proposições vistas anteriormente são eviden­
tes. Os propósitos de Deus, suas preocupações, incluem o corpo
físico, nosso ambiente e o mundo em que vivemos. Portanto, essas
dimensões da criação também devem causar-nos preocupação. A cura
física é um lembrete poderoso desse fato — lembrete da natureza
global dos propósitos redentores de Deus. E, como vimos, o ponto
central da obra redentora de Deus é a cruz de Jesus Cristo.
CU B A N A EXPIAÇÃO 209

A CURA EA cruz: reflexões exegéticas


Muito da sustentação bíblica para as asserções mencionadas acima
já foi discutido. Nesta seção trataremos de uma passagem central
não mencionada anteriormente: Mateus 8.14-17.
As discussões sobre cura na expiação geralmente começam com
Isaías 53.4,5, o texto do Antigo Testamento citado em Mateus 8.14-
17. Esses estudos normalmente examinam o texto de Isaías a fim de
verificar se esses versículos têm em vista a cura física. Alguns estu­
diosos concluíram que a passagem é simplesmente uma metáfora
que se refere à maneira que o Messias vai carregar os nossos pecados
e qualquer ligação com a cura física não fazia parte da intenção ori­
ginal de Isaías. Essas discussões são na maior parte irrelevantes para
nossos propósitos e não precisam ser examinadas. A questão crucial
é: Com o Mateus entendeu Isaías 53.4? Seu entendimento não pre­
cisa limitar-se ao de Isaías. Ele, como os outros escritores do Novo
Testamento, escreve à luz da cruz e da ressurreição. Portanto, lê
muitas passagens do Antigo Testamento com olhos nas novas refle­
xões inspiradas pelo fator Cristo.
Quando examinamos Mateus 8.14-17, e particularmente a referên­
cia de Mateus a Isaías 53.4, três pontos importantes surgem. 1) O
contexto centra-se indiscutivelmente na cura física (Mt 8.16, “e curou
todos os doentes”) e a apresenta como cumprimento de Isaías 53.4.
Desse modo, a fórmula de cumprimento, tão preeminente no evange­
lho de Mateus, é aplicada ao ministério de cura realizado por Jesus.
2) O uso que Mateus faz de “enfermidades” {asthenia)e “doen­
ças” (nosos ) em Mateus 8.17 indica a cura física. O vocábulo nosos
ocorre em 4.23,24; 8.17; 9.35; 10.1 e sempre se refere a moléstias
físicas. O vocábulo asthenia é encontrado somente nesse texto do
evangelho de Mateus, mas em outro lugar do Novo Testamento tam­
bém se refere a doença.
3) A comparação da citação que Mateus faz de Isaías 53.4 com a
LXX é instrutiva. Mateus não segue a tradução grega do texto hebrai­
co comumente usado nas sinagogas helenistas, em vez disso, apre­
senta sua própria tradução do texto hebraico. Na verdade, se Mateus
tivesse simplesmente seguido a septuaginta, como ele em geral faz,
não poderia ter feito a ligação à cura física. A lxx traduz livremente
o texto hebraico e interpreta o texto como uma referência aos peca-
NO PODER DO ESPÍRITO 210

dos. Ao contrário, Mateus “traduz de forma independente a fim de


fazer a citação se aplicar às moléstias físicas curadas por Jesus”.6

Mateus 8.17 Isaías 53.4


(tradução literal) (tradução literal da lxx )
E assim se cumpriu o que fora dito Ele suporta os nosso specados, e
pelo profeta Isaías: “Ele tomou so­ é afligido por nós
bre si as nossas enfermidades e so­
bre si levou as nossas doenças”.

Em outras palavras, sem levar em consideração de que modo Isaías


entendia o que declarou em 53.4, Mateus entendeu-o de modo
messiânico e o aplicou ao ministério de cura de Jesus. Fazendo isso,
Mateus, que escreveu depois da cruz e da ressurreição, dá testemu­
nho da fé da igreja primitiva. Mateus 8.14-17 estabelece que a igreja
primitiva entendia Isaías 53.4,5 como uma profecia messiânica cum­
prida na obra expiatória de Jesus na cruz (cf. lPe 2.24) e, além disso,
que a essa profecia incluía o dom de cura física.
Se colocarmos Mateus 8.17 no contexto mais amplo do evange­
lho de Mateus, poderemos ver seu significado pleno. É mais do que
uma descrição do ministério terreno de Jesus referente à cura; é o
resumo que Mateus faz da importância da missão messiânica de Je­
sus, que culmina na cruz. Mateus apresenta Jesus como o Messias
em palavras (5— 7) e atos (10.1— 11.1). Jesus é o Rei-Messias, que
reina no reino de Deus. As bênçãos do reino de Deus fluem da cruz
e têm muitas facetas. A salvação que o Rei-Messias traz inclui a in­
teireza física. E a cura agora, como durante o ministério de Jesus, é
um testemunho deste fato.7
6Robert G u n d r y , M atthew : a commentary on his literacy and theological
art, p. 150.
7Por que Deus cura? Em seu ministério, algumas vezes Jesus curou não por
nenhuma outra razão evidente a não ser a compaixão pelo sofrimento humano
(Mt 14.14; 20.34). Há outro objetivo evidente, não somente no ministério de Je­
sus, mas também na expansão intrépida da igreja apostólica. A cura do enfermo e
a libertação das pessoas oprimidas são freqüentemente citadas como que para cha­
mar atenção para a pessoa de Cristo e, por isso, tornam-se uma chave importante
para a evangelização eficaz. Parece que há mais curas nas fronteiras da fé do que
nas situações rotineiras e confortáveis dos cristãos. Evidentemente, a intervenção
sobrenatural de Deus está ligada à causa da missão mundial.
CURA N A EXPIAÇAO '.J 211

C onclusão
Argumentamos que a cura, como todo dom de Deus, é-nos media­
da em virtude da obra de Cristo na cruz. Embora isso não nos in­
centive a desconsiderar as complexidades de nossa vida entre as duas
eras — esta presente era má e a era por vir, que já se descortinou em
nosso mundo em Jesus — nem a exigir de modo simplista que to ­
dos recebam cura física agora, convida-nos a reconhecer que Deus
está preocupado com toda esta criação, inclusive o nosso corpo. Por
sua vez, isso nos desafia, como o fazem as palavras de Tiago em
Tiago 5.13-16, a ter uma postura vigorosa no que se refere ao sofri­
mento físico. A igreja é chamada a orar pelos enfermos para que
sejam curados e lutem contra o sofrimento físico.8 Na verdade, a
menos que Deus dê outra ordem, somos chamados para fazer exata­
mente isso.
Uma abordagem bíblica do ministério de cura na igreja deve,
portanto, começar a se identificar com a vontade revelada de Deus
de lutar contra o sofrimento físico. Isso significa identificar ativa­
mente pessoas com necessidades específicas e orar sinceramente por
elas. Eventos na vida da igreja propícios para a unção com óleo e a
reunião dos presbíteros da igreja para orar pelos aflitos representam
um método claramente bíblico para começar a combater o sofri­
mento físico de modo concreto. A oração pelos enfermos feita pe­
los presbíteros, inclusive a unção com óleo, é um com eço. A
intercessão por cura deve vir em seguida. A luta contínua com o
mistério do sofrimento deve ser descontinuada somente quando os
líderes espirituais da comunidade da fé que estão ao redor do doen­
te tiverem a consciência coletiva de que Deus não vai trazer liberta­
ção nesse caso. A essa altura, e somente a essa altura, é correto fazer
uma oração de desistência.

8Há na realidade três modos bíblicos que retratam Deus curando pessoas em
nossa época. 1) Há a intervenção providencial de Deus, que é produto de sua graça
insondável. Em muitos casos, não se pode discernir nenhuma instrumentalidade
humana; Deus apenas age. 2) A cura pertence à lista de dons carismáticos (ICo
12.9). Parece que Deus dá um ministério especial de orar eficazmente pelo enfer­
mo a alguns dentro do círculo da fé. 3) Em resposta à oração da fé dos presbíteros,
na reunião rotineira dos crentes, Deus se agrada em intervir freqücntemente. É
um ato de obediência e fé (Tg 5.13-16).
NO PODER DO ESPÍRITO 212

Os pentecostais, que se vêem como ministrando entre dois perío­


dos de tempo, reconhecem que há um mistério entre a destruição
de um mundo caído e o começo da futura redenção plena de Deus.
Nesse ínterim, os crentes são chamados a lutar contra o pecado e o
sofrimento. Todavia, como observamos, esta é uma era mista, e ain­
da vemos somente pelo espelho, obscuramente. As pessoas ainda
morrem. Com efeito, esse é o destino de todos os viventes a menos
que o Senhor retorne rapidamente. Nossa era é na verdade marcada
pelas coisas destruídas. Mas as curas, mesmo que não sejam a rotina,
são um anúncio de que Cristo triunfou na cruz e finalmente restau­
rará todas as coisas. Em vez de reclamar quando nem todos são cura­
dos, devemos regozijar-nos quando pelo menos alguém é
curado!
Muitos tradicionais (e muitos pentecostais, também) são rápidos
demais para orar de forma resignada.
A doutrina da cura na expiação não apenas nos convida a ter uma
postura combativa em relação ao sofrimento físico, mas também
nos desafia a ver a amplitude do plano e da preocupação cósmica de
Deus. Deus está preocupado com os aspectos físicos da vida, com o
sofrimento físico e com o mundo que ele criou. A cura, embora seja
apenas um antegozo da transformação final que nos aguarda, é um
lembrete poderoso desse propósito mais amplo. Ela serve, portan­
to, como catalisador para o nosso envolvimento no ministério de
Cristo para um mundo caído.

Perguntas para estudo


1. Por que a doutrina da cura na expiação tem sido tão polêmica?
2. Por que a visãoChristus Victor da expiação é tão importante para
a nossa discussão?
3. Alguns procuram distinguir entre a cura como resultado da von­
tade soberana de Deus ou como resultado da cruz. Por que
Menzies acredita que essa é uma dicotomia falsa?
4. Alguns rejeitam a doutrina porque, diferentemente de nossas
orações por perdão, as nossas orações pela cura, mesmo quando
feitas com coração sincero, nem sempre são respondidas. Como
Menzies trata dessa objeção?
CURA N A EXPIAÇÃO .• 213

5. A doutrina da cura na expiação necessariamente implica que to­


dos podem ou devem esperar ser curados aqui e agora?
6. Em que medida a doutrina da cura na expiação, conforme apre­
sentada aqui, causa impacto em nossa postura em relação à ora­
ção pelo enfermo?
7. Qual a importância dessa doutrina para o nosso entendimento
do plano de Deus? Para a natureza da salvação? Para a natureza
da missão da igreja?
capítulo • 12

A providência
de Deus

s pentecostais têm sido repreendidos freqüentemente por não


O desenvolver uma teologia adequada a respeito do sofrimento.
A nossa teologia tem enfatizado apropriada e corretamente o poder
e a presença dinâmica de Deus ativos na vida dos cristãos. Entretan­
to, não desenvolvemos a amplitude da perspectiva necessária para
lidar com o sofrimento. Na mente de muitos, os pentecostais têm
uma teologia da glória, não uma teologia da cruz.1
Embora essas críticas sejam exageradas, a maioria concorda que
os pentecostais precisam pensar mais profunda e mais cuidadosa­
mente a respeito do sofrimento. Este capítulo é uma tentativa de
fazer exatamente isso. Além do mais, estou convencido de que essa
meta é mais bem alcançada pela reflexão sobre a providência de Deus.
Quando falamos da providência de Deus, simplesmente afirma­
mos que Deus protege, guia e cuida dos crentes. Muitos de nós po­
demos olhar para trás, para os momentos de nossa vida em que
notamos a intervenção de Deus, sentimos sua mão amparando-nos
para que não fôssemos despedaçados pelos acontecimentos caóti­
cos que nos cercavam, percebemos o seu poder protetor — algumas
vezes de modo verdadeiramente miraculoso. Em outras ocasiões per­
cebemos que Deus havia determinado os acontecimentos daquele
dia para proporcionar oportunidades imprevistas de servirmos.

‘Um dos temas mais importantes que se vê através da teologia de Martinho


Lutero é o conjunto de opostos conhecidos como “teologia de glória” e “teologia
da graça”. Com a primeira expressão, Lutero procurava identificar o triunlalismo
autoconfiante que tende a infectar muita coisa da religião. A outra expressão reti­
ra da humanidade a fonte de todas as bênçãos c aponta para a graça que se concen­
tra na cruz de Cristo.
NO PODER 0 0 ESPÍRITO 216

Embora os detalhes de nossa vida sejam muito diferentes, a maioria


dos cristãos inequivocamente afirma que Deus de fato cuida deles
de modo maravilhoso e singular.
Mas como afirmar a verdade da providência de Deus, a realidade
do seu envolvimento profundo em nossa vida, nas circunstâncias de
dor e sofrimento que vemos ao nosso redor e experimentamos em
nossa vida? Com o nos regozijar, de um lado, na proteção divina
quando Deus nos livra de um acidente fatal e, de outro lado, o que
dizer do sofrimento daqueles que não foram abençoados da mesma
maneira?
Essa pergunta me foi feita muitos anos atrás por um amigo mis­
sionário. Meu amigo era um médico, ex-editor de uma revista dedi­
cada a questões de seguro médico, homem de muita fé. Durante
uma conversa, ele saiu com uma pergunta investigativa. “Creio que
Deus guia e protege seus filhos e lhes dá provisão. Ele cuida de nós.
Creio firmemente nisso”, meu amigo declarou. “Mas como médico
e especialista em problemas de seguro médico, também sei que se
Deus interviesse na vida de apenas um entre dez cristãos — esten-
dendo-lhes a vida por meio de proteção miraculosa — isso seria es­
tatisticamente insignificante. As companhias de seguro refletiríam
esse fato em suas análises de estatística, política e tarifas. Mas não é
o que vejo. A pesquisa indica que, à parte dos assuntos de escolha
(i.e., se alguém escolhe fumar, beber etc.), não há nenhuma diferen­
ça significativa no tempo de vida e índice de doenças no que diz
respeito a crentes e incrédulos. Como conciliar esse fato com nossa
crença na providência de Deus?.”
Enquanto me debatia com a pergunta, comecei a pensar no evan­
gelho de Marcos, particularmente no relato da transfiguração. Deus
protege, guia e provê? Se é verdade, por que não é mais evidente?
Creio que Marcos 9.2-10 nos ajuda a responder a essa pergunta. Nessa
passagem, Marcos descreve a transfiguração de Jesus. Mas faz isso
com motivação pedagógica, para nos ensinar lições de discipulado.
Especificamente, quando vemos como Deus revela sua glória em
Jesus e por meio dele, como opera na vida de Jesus, podemos apren­
der lições importantes de como ele deseja operar em nossa vida e
por meio dela. Eis o texto:
A PROVIDÊNCIA DE DEUS 217

Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e os


levou a um alto monte, onde ficaram a sós. Ali ele foi transfigura­
do diante deles. Suas roupas se tornaram brancas, de um branco
resplandecente, como nenhum lavandeiro no mundo seria capaz
de branqueá-las. E apareceram diante deles Elias e Moisés, os quais
conversavam com Jesus. Então Pedro disse a Jesus: “Mestre, é
bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para
Moisés e uma para Elias”. Ele não sabia o que dizer, pois estavam
apavorados. A seguir apareceu uma nuvem e os envolveu, e dela
saiu uma voz, que disse: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no”.
Repentinamente, quando olharam ao redor, não viram mais nin­
guém, a não ser Jesus.
Enquanto desciam do monte, Jesus lhes ordenou que não
contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do
homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles guardaram o assun­
to apenas entre si, discutindo o que significaria “ressuscitar dos
mortos”.

Esses versos apresentam duas perspectivas do cuidado de Deus:


uma é a visão de Pedro, a visão do topo da montanha, a outra é a
perspectiva de Jesus, a visão do vale.

A VISÃO DD TOPO DA MONTANHA

A perspectiva de Pedro aparece no versículo 5: “Mestre, é bom es­


tarmos aqui”. Pedro está maravilhado com a impressionante mani­
festação da glória (e quem pode culpá-lo disso?). Na verdade, ele
está tão admirado que dá a entender que eles todos deviam perma­
necer no monte quando propõe fazerem tendas. As palavras de Pedro
podem ser parafraseadas da seguinte maneira: “Esqueçam-se da via­
gem de volta para Jerusalém com todos os seus possíveis proble­
mas. Fiquemos aqui. As nações verão a glória do Senhor. Elas virão
até nós. Estabeleçamos o nosso quartel-general aqui”.
É evidente que o ponto de vista de Pedro é limitado, na melhor
das hipóteses, e egoísta, na pior. Veja como Marcos caracteriza as
palavras de Pedro como uma gafe produzida pelo temor (v. 6). Pedro
parece ainda pensar não “nas coisas de Deus, mas nas dos homens”
NO PODER DO ESPÍRITO •?: 218

(cf. 8.33). Sua reação é um exemplo clássico do que eu chamo de


“veia cômica” no evangelho de Marcos.
Por todo o evangelho de Marcos, os discípulos, especialmente
Pedro, sempre fazem trapalhadas e sempre entendem mal o que Je ­
sus pretende. Parece que Jesus, em quase todo ponto, precisa corri­
gi-los e repreendê-los. E visível nesse evangelho um comportamento
constante:

• Marcos 7 .1 8 - “Será que vocês também não conseguem enten­


der?” Os discípulos não entendiam as palavras de Jesus a res­
peito da “impureza”.
• Marcos 8.21 - “Vocês ainda não entendem?” Os discípulos
não entendiam as palavras de Jesus a respeito “do fermento
dos fariseus”.
• Marcos 8.33 - “Para trás de mim, Satanás!” Jesus repreende
Pedro por propor que Jesus não precisava sofrer.
• Marcos 9.10 - Os discípulos não entendiam os comentários
de Jesus a respeito de “ressuscitar dos m ortos”.
• Marcos 9.32 - Os discípulos não entendiam que Jesus devia
sofrer.
• Marcos 1 0 . 3 5 - Tiago e João procuravam a sua própria glória e
não entendiam o que significava seguir Jesus.
• Marcos 14.41 - “Vocês ainda dormem e descansam?” Os dis­
cípulos adormeceram enquanto Jesus estava orando no G et-
sêmani.
• Marcos 14.50 - “Então todos o abandonaram e fugiram.” Je ­
sus foi completamente abandonado quando preso.
• Marcos 14.68 - Pedro nega a Jesus.

Esse tema se torna mais significativo quando nos lembramos que,


como Papias afirma, Marcos nos transmite as memórias de Pedro.2
Todas as trapalhadas, todos os erros — como se Pedro estivesse con­
vidando-nos para aprender com seu passado.

2P apias, o b isp o de H ie rá p o lis, cita o testem un h o de um p re sb íte ro a re sp e ito


da asso c iaç ã o entre M a rc o s e Pedro: “M arcos, ten d o -se to rn ad o o in térp rete de
P edro, reg istro u exatam en te aq uilo de que ele [o a p ó sto lo ] se lem b rou das co isas
ditas e feitas p e lo S e n h o r” ( E u s é b io , H ist. eccl. 3.39.15)
A PROVIDÊNCIA DE DEUS 219

Novamente em Marcos 9.5, Pedro se esquece do principal. l)e


novo sua visão se mostra míope. Contudo, essa visão é tão humana
que todos nós podemos nos identificar com ela. Todos desejamos
que a glória de Deus se revele visível e poderosamente em nossa
vida. Todos queremos que seu poder curador flua por nosso inter­
médio para levar cura e graça a outras pessoas. Anelamos que a gló­
ria de Deus se revele em deslumbrante demonstração do seu poder.
Todavia, vemos aqui que a experiência do topo da montanha dura
pouco em seu propósito; dá lugar (como devia) à experiência do
vale. Certamente podemos ser agradecidos pelos momentos em que
a demonstração deslumbrante ocorre. Entretanto, não importa quão
maravilhosa seja, ela não é o modo principal que Deus escolheu para
se revelar, seja em Jesus, seja em nós.

A VISÃO DD VALE

Quando olhamos para o vale e para a perspectiva de Cristo, enxer­


gamos três verdades a respeito do cuidado providencial de Deus.

0 alvo do cuidado de Deus

Pedro queria que Jesus permanecesse no monte, mas em Marcos 9.9


lemos que Jesus desceu da montanha para o vale. A notícia da via­
gem vem quase como um aparte: “Enquanto desciam do m onte...”.
Nessa breve observação, vemos a diferença entre a perspectiva de
Pedro e a de Jesus. Pedro ainda está cogitando das “coisas dos ho­
mens”. Jesus, entretanto, está comprometido com o plano redentor
de seu Pai. Ele entende o verdadeiro alvo
do cuidado de Deus. Jesus
vê que o alvo do cuidado providencial de Deus não é necessaria­
mente seu bem-estar aqui e agora. O alvo do cuidado de Deus é que
o plano redentor do Pai se realize.
Essa visão nos ajuda a entender por que o cuidado protetor de
Deus não é imediatamente óbvio para o mundo, por que os cristãos,
de acordo com as estatísticas, não vivem melhor do que os não-
cristãos. Apesar de como cristãos algumas vezes experimentarmos
a proteção de Deus e outras, experimentarmos o sofrim ento e a
miséria porque procuramos seguir a Cristo, nossas experiências tanto
de proteção como de sofrimento são conseqüência dos decretos de
NO PODER DO ESPÍRITO 220

Deus. As duas situações são arranjadas para levar adiante o seu pla­
no redentor.
Essa é uma lição importante, pois quando entendemos o alvo do
cuidado providencial de Deus, podemos começar a ver a plenitude
da obra de Deus em nossa vida. Podemos perceber sua operação nas
circunstâncias difíceis assim como nas boas. Podemos buscar com
esperança e ação de graças sua orientação tanto no meio da tragédia
como no meio da felicidade.
Em geral pensamos que as circunstâncias difíceis se põem diante
de nós a fim de preparar-nos para a obra futura de Deus. Mas tam­
bém não é verdade que em geral é no meio da dificuldade que o
poder de Deus se demonstra de maneira mais bela (cf. 2C o 12.7-
10)? Fiquemos atentos ao fato de que o alvo do cuidado de Deus
não é o nosso bem-estar, mas sua glória.

0 caráter do cuidado de Deus

Enquanto Jesus e os discípulos desciam do monte, Jesus lhes orde­


na que “não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o
Filho do homem tivesse ressuscitado dos m ortos” (Mc 9.9). Jesus
lhes ordena silêncio. Por quê? Por que não deixar que as nações sou­
bessem de sua glória? Creio que o mal-entendido de Pedro nos dá
uma dica. Se Pedro e os discípulos — que tinham vivido com Jesus,
visto os milagres e ouvido seu ensino — tiveram dificuldade para
entender a natureza do reino (e sabemos disso pela informação de
At 1.6), quanto mais as multidões? A ordem de silêncio nos lembra de
um fato surpreendente: Jesus encobriu sua glória de propósito.
Se Jesus escondeu sua glória, devemos esperar que seja diferente
conosco? Não devemos esperar que o cuidado providencial de Deus
em nossa vida também seja propositalmente encoberto? Parece ser
esse o modo que Deus em geral resolve trabalhar. Embora Deus
revele seu plano por meio de nossa vida, essa incrível ação divina
não é necessariamente visível ao mundo. O seu cuidado normal­
mente é velado.
Aqui novamente vemos por que as estatísticas não podem captar
o cuidado de Deus. Imagine por um momento o que aconteceria se
os cristãos tivessem muita sorte na vida. O que aconteceria se os
A PROVIDÊNCIA DE DEUS 221

cristãos tivessem vida mais longa do que os não-cristãos? Se nossas


estatísticas nas seguradoras fossem melhores que as das pessoas in­
crédulas? Com que a igreja se pareceria? É improvável que a igreja
se fortalecesse com essa demonstração pública de glória. Antes, ela
estaria cheia de “procuradores de sinais”, pessoas obcecadas com o
próprio bem-estar e sem nenhuma noção das “coisas de Deus”.
Aqui vemos talvez por que Deus propositalmente esconde ou
vela por sua glória. Ele age assim para que sua glória seja discernível
apenas pelos olhos da fé. Marcos insta-nos a olhar para os aconteci­
mentos de nossa vida não meramente de modo superficial, com o
foco nas circunstâncias externas, mas a olhar mais fundo, com os
olhos da fé, e enxergar a firmeza da mão de Deus em funcionamen­
to. O cuidado divino existe, embora não seja visível a todos e, na
verdade, quase sempre esquecido de nós.

A realidade do cuidado de Deus

Enquanto desciam do monte, os discípulos discutiam sobre o que sig­


nificaria “ressuscitar dos mortos” (Mc 9.10). Obviamente nós, que
sabemos como a história termina, não podemos ajudar, mas podemos
rir, pois os discípulos estão diante de uma grande surpresa. Vejo
nisso um lembrete dizendo que Deus ordena nossa vida e se alegra
em nos fazer surpresas. Do mesmo modo que Deus causou a sur­
presa suprema na ressurreição — vida provindo da morte, que in­
versão maior de acontecimentos pode ser imaginada? — , ele também
tem prazer em trazer oportunidades inesperadas para a nossa vida.
Deus decreta os acontecimentos de nossa vida de modo que pos­
samos render-lhe glória, que seu plano possa se cumprir em nossa
vida. Ele tem prazer em produzir acontecimentos inesperados e
incomuns por meio dos quais podemos ampliar o reino. Natural­
mente, é preciso fé para vermos as mãos divinas trabalhando. A
obra de Deus não é tão evidente a todos, talvez seja para a menor
parte dos crentes. Mas porque Deus ordena nossa vida, podemos
viver com a expectativa de que ele vai sempre trazer “agradáveis
surpresas” para nós. E quando a nossa visão for ampla e clara, não
concentrada apenas nas impressionantes manifestações de poder,
poderemos ver a riqueza e a plenitude do seu cuidado providencial.
NO PODER DO ESPÍRITO 222

Então veremos sua mão em todas as circunstâncias, boas e más.


Reconheceremos as muitas “surpresas agradáveis” que ele nos vai
trazer.

C o nclu são

Os pentecostais tendem a dar destaque às deslumbrantes manifes­


tações da glória de Deus, às experiências do topo do monte. Talvez
a razão disso seja que os pentecostais nem sempre foram bons para
enxergar o alcance pleno do cuidado providencial de Deus. Pode
também ser esse o motivo por que nós, como Pedro e os discípulos,
em geral não conseguimos entender o alvo do cuidado de Deus.
Marcos, que dá idéia clara das memórias de Pedro, insta-nos a apren­
der com os erros dos discípulos e nos agarrar firmemente ao alvo
verdadeiro do cuidado de Deus. Ele nos exorta a v e r que Deus
ordena os acontecimentos de nossa vida não simplesmente para o
nosso bem-estar, mas para que os seus propósitos redentores se
cumpram.
Marcos também nos incentiva a enxergar o verdadeiro caráter do
cuidado de Deus, que por mais deslumbrantes que sejam as demons­
trações, elas não são o modo normal de Deus revelar sua glória. Não
foi o modo que ele normalmente trabalhou em Jesus e por meio
dele e não é o seu método usual para nós hoje. Embora possamos
nos regozijar quando as demonstrações deslumbrantes acontecem,
nossa expectativa e visão devem ser mais amplas. Precisamos culti­
var a capacidade de esperar as muitas “surpresas agradáveis” que nos
vêm e nos regozijar nelas, aqueles acontecimentos inesperados e
aparentemente comuns de nossa vida que mostram a marca da mão
amorosa de Deus. Precisamos também cultivar a capacidade de per­
ceber que algumas vezes Deus nos fala mais alto por meio do sofri­
mento, pois nos tempos de fraqueza vem a necessidade de nos
inclinarmos mais humildemente diante da graciosa mão de Deus.

P erguntas para estudo

1. Por que os pentecostais em geral não são bons no trato com o


sofrimento?
A PROVIDÊNCIA DE DEUS 223

2. Menzies fala da “veia cômica” do evangelho de Marcos. O que


ele quer dizer com isso? Com o essa característica lança luz res­
posta de Pedro em Marcos 9.5,6?
3. Qual a fraqueza central na perspectiva de Pedro? Por que a visão
de Jesus é tão radicalmente diferente?
4. Por que é tão crucial apegar-se ao objetivo do cuidado de Deus?
De que maneira ele causa impacto em nossa fé e em nosso senso
de expectativa? De que modo nos ajuda a lidar mais adequada­
mente com o sofrimento?
5. Menzies afirma que devemos dar graças pelas deslumbrantes de­
monstrações da glória de Deus, mas que Deus normalmente não
se revela desse modo. Com o Deus normalmente revela sua glória
em nossa vida e por meio dela?
capítulo • 13

Dons espirituais:
princípios essenciais

uitas igrejas retiram seu nome de regiões da Bíblia: Beréia,


M Betânia e Antioquia pontuam a paisagem. Mas ainda estou
para encontrar uma igreja chamada de Corinto. A Primeira Igreja
Batista Coríntia eu ainda não encontrei. E por uma boa razão: a
igreja de Corinto era crivada de problemas. Quem quer se identifi­
car com igreja tão famigerada? Divisões, imoralidade sexual, demanda
judicial, ensino herético — essa igreja tinha tudo isso, o que torna as
palavras de Paulo em lC oríntios 1.4-7 mais notáveis ainda:

Sempre dou graças a meu Deus por vocês, por causa da graça que
lhes foi dada por ele em Cristo Jesus. Pois nele vocês foram enri­
quecidos em tudo, isto é, em toda palavra e em todo conhecimen­
to, porque o testemunho de Cristo foi confirmado entre vocês,
de modo que não lhes falta nenhum dom espiritual, enquanto vocês
esperam que o nosso Senhor Jesus Cristo seja revelado.

“De modo que não lhes falta nenhum dom espiritual”. Essas pa­
lavras são particularmente surpreendentes. Paulo não se enganou de
endereço? Está realmente escrevendo à igreja de Corinto? Quase
todos nós teríamos simplesmente rejeitado os coríntios por sua fal­
ta de qualidades espirituais.
Mas essa não é a visão de Paulo. Ele não nega que a igreja possuía
dons espirituais. Recusa-se a denegrir os dons ainda que a igreja
tivesse muito que aprender acerca do exercício deles. Tudo isso real­
ça a importância que o apóstolo deu aos dons espirituais. Se os dons
foram tão importantes no entender de Paulo, certamente devem ser
também no nosso. Todavia, lC oríntios nos lembra que os dons não
NO PODER DO ESPÍRITO 226

vêm sem a possibilidade de abuso ou de mal-entendido. Com o po­


demos enxergar os dons de Deus usados de modo a dar-lhe glória
verdadeiramente, a edificar o corpo de Cristo? Quero responder a
essas perguntas focalizando três princípios encontrados em lC o -
ríntios 12.1-11.

0 PRINCÍPIO DA GRAÇA

Os dons não são emblema de maturidade espiritual (ICo 12.4).


Em ICoríntios 12.1, Paulo começa a tratar de questões pertinen­
tes aos dons espirituais levantadas pelos membros da igreja de
Corinto em cartas que recebera deles (cf. IC o 7.1). É instrutivo
observar que Paulo começa empregando o que era provavelmente o
vocábulo coríntio para dons espirituais, pneumatika.
Esse vocábulo
é construído da raiz pneuma, palavra grega para “espírito”. O termo
pneumatika hteralmente refere-se a “coisas do Espírito” e salienta a
associação entre e o Espírito e os dons espirituais. Os coríntios evi­
dentemente viam os dons — em especial os mais espetaculares, como,
por exemplo, falar em línguas — como marca de espiritualidade,
um sinal da inspiração do Espírito. Mas Paulo rapidamente muda o
termo da linguagem de Corinto para o de sua preferência, charismata
("dons", 12.4). Essa palavra é formada de charis,
palavra grega para
"graça". Com essa mudança de vocabulário, Paulo habilmente enfa­
tiza que os dons espirituais, acima de tudo, são dons da graça.
A mudança sutil na terminologia reflete um aspecto importante
da perspectiva de Paulo. Os dons do Espírito não são emblema de
maturidade espiritual. Em vez de distintivo de membro da elite es­
piritual, os dons espirituais são reflexo da graça de Deus para a igre­
ja e eram disponíveis para todo crente. A descrição de Paulo dos
imaturos coríntios como igreja ã qual não faltava nenhum dom (IC o
1.7) destaca essa verdade. Embora a maturidade espiritual por meio
de uma vida de amor possa capacitar alguém a exercer os dons de
modo mais eficaz e edificante (cf. cap. 13), os dons espirituais não
se reservam apenas aos espiritualmente maduros. A força total do
argumento de Paulo nos capítulos de 12 a 14 indica que os dons são
dados livremente por Deus a todo crente (12.11).
DONS ESPIRITUAIS: PRINCÍPIOS ESSENCIAIS 227

A perspectiva de Paulo não é ambígua: os cristãos não precisam


alcançar nenhum nível de santidade ou espiritualidade para receber
dons espirituais. Logo, os dons espirituais não servem como emble­
ma de maturidade espiritual. Alguns da igreja de Corinto mostra­
vam ter adotado essa postura. É exatamente esse entendimento
elitista dos dons que Paulo procura corrigir.
Lembro-me de ter participado quando jovem de uma série de reu­
niões evangelísticas realizadas na minha cidade natal. As reuniões
eram dinâmicas e inevitavelmente incluíam longos períodos de ora­
ção junto ao altar. Muitas pessoas faziam sua pública profissão de fé
e havia muitos registros de cura. Algumas semanas depois de terem
terminado as reuniões, recebemos a notícia de que o evangelista que
havia sido usado poderosamente por Deus levava uma vida imoral.
Essa notícia me perturbou e despertou muitas perguntas. Os dons
espirituais que eu havia testemunhado eram genuínos? Deus usara
esse homem para tocar outros a despeito de sua própria fraqueza?
Perguntei a meu pai o que ele achava. Ainda me lembro da resposta:
“Os dons espirituais não são necessariamente dados àqueles que al­
cançaram maturidade espiritual”. Essa resposta, creio, capta bem a
força do ensino de Paulo.1
Ela tem duas implicações importantes para a vida da igreja hoje.
1) O fato de a dotação espiritual não estar necessariamente liga­
da à maturidade espiritual serve de advertência contra ficar muito
maravilhado por demonstrações de poder espiritual. Os dons espi­
rituais não são necessariamente marca de liderança espiritual. Por
isso, as igrejas devem ser cuidadosas para não adotar os dons como
critério principal para a liderança. No âmbito pessoal, devemos ser
cuidadosos para não identificar nossa dotação com profundidade
espiritual. O orgulho era o núcleo dos problemas de Corinto e é
igualmente perigoso hoje.
2) O fato de Deus conceder livremente seu dom aos crentes —
mesmo àqueles que estão longe de ser perfeitos — deve estimular-
nos a ser abertos aos dons que ele possa pôr em nosso caminho. Se
os dons fossem concedidos somente à elite madura ou espiritual,

'P ara u m a leitura adicion al so b re esse tó p ic o ver Jo h n W h itk , When th e Spirit


co m es w ith p o w e r : sign s and w on d ers am o n g G o d ’s people.
NO PODER DD ESPÍR ITO 228

poucos de nós se qualificariam para isso. É muito fácil rejeitar nos­


so papel na vida da igreja com desculpas depreciativas acerca da falta
de adequação pessoal. Com o Deus pode me usar? Afinal de contas,
eu tenho meus próprios problemas, minhas lutas espirituais. Mas a
passagem libertadora de Paulo satisfaz-nos exatamente nesse pon­
to. A despeito de nossa fraqueza, Deus se apraz em usar-nos para
abençoar outras pessoas. Deus se apraz em dar-nos abundantemen­
te dos dons de sua graça. Desse modo, Paulo incentiva a igreja toda,
não simplesmente a liderança ou a elite espiritual, a “buscar com
dedicação os dons espirituais” ( lC o 14.1).

0 PRINCÍPIO DA EDIFICAÇÃO

Os dons são concedidos para que possamos edificar outros (lCo 12.7).
Os coríntios haviam perdido de vista a verdadeira finalidade dos
dons espirituais. Por isso, a correção de Paulo inclui o esclarecimen­
to desse ponto importante. A mensagem é transmitida através de
todo o texto de 1 Coríntios 12— 14, mas em nenhum lugar mais cla­
ramente que em 12.7: “A cada um, porém, é dada a manifestação do
Espírito, visando ao bem comum”. Os dons espirituais são conce­
didos para que o corpo de Cristo seja edificado. Resumindo, a meta
é a edificação. Essa é a razão por que Paulo, no capítulo 14, incentiva
os coríntios a preferir a profecia ao falar em línguas no ambiente
coletivo: “Quem fala em língua a si mesmo se edifica, mas quem
profetiza edifica a igreja” (lC o 4.4). Na assembléia, a profecia é
maior porque é coerente com esse alvo magnífico.
Desse ponto central deriva um corolário importante: os dons
devem ser exercidos e valorizados tendo em vista a edificação do
corpo. A declaração é de fato uma palavra inspirada? O dom foi
exercido corretamente? A chave para responder a essas perguntas se
encontra nesta questão simples, neste padrão fundamental: O dom
edificou a igreja?
Lembro-me de um senhor bem-intencionado que muitas vezes,
de maneira bem bombástica, caminhava até a frente do templo e
pronunciava em tom de autoridade sua mensagem “profética”. De­
pois de várias ocasiões desse tipo de manifestação, as pessoas come­
çaram a se sen tir meio desconfortáveis com essas exibições.
DONS ESPIRITUAIS: PRINCÍPIOS ESSENCIAIS 229

Começaram a querer saber como deviam responder aos pronuncia­


mentos daquele homem. O conteúdo das mensagens era inócuo.
Elas não continham heresia clara, embora as palavras em geral não
fossem apropriadas para o ambiente. O problema principal era que
quase sempre as mensagens simplesmente não eram edificantes. Fi­
nalmente a liderança encorajou aquele homem a submeter suas pro­
fecias a um dos presbíteros antes de proferi-las em público. A
intenção era ajudá-lo a aprender como exercer o dom de modo
edificante. A decisão foi tomada corretamente com base nesse prin­
cípio importante de Paulo, e o resultado foi positivo.
Em muitas ocasiões testemunhei a beleza e o poder de palavras
de exortação inspiradas pelo Espírito. Quando um grupo de crentes
se reúne, muitas vezes é dita uma palavra, sempre de fonte inespera­
da, que ministra precisamente para as necessidades dos presentes.
Esse tipo de expressão profética é quase sempre imprevisto e ofere­
ce estímulo adequado para a situação e específico para o ambiente.
É belo ver como o Espírito abençoa o corpo por meio dos mem­
bros. Paulo era muito consciente das necessidades da igreja quanto
a essa espécie de edificação espontânea, inspirada pelo Espírito. O
apóstolo entendia que a edificação era o alvo principal. Talvez seja
este o motivo por que ele ressaltou a necessidade do amor (IC o 13).
O amor não procura seus próprios interesses, ao contrário, procura
o bem dos outros. Paulo reconhecia que quando se exercem os dons
no contexto do amor, o alvo certamente é alcançado.

0 PRINCÍPIO DA PARTICIPAÇÃO

Todos têm algo a contribuir (ICo 12.11).


Finalmente, Paulo nos lembra de que todos têm um papel a exer­
cer no corpo de Cristo. Ninguém é excluído da participação dinâmica
produzida pelo Espírito que edifica a igreja. Em IC oríntios 12.11
Paulo declara: “Todas essas coisas, porém, são realizadas pelo mes­
mo e único Espírito, e ele as distribui individualmente, a cada um,
como quer”. As implicações deste versículo (“ele as distribui indivi­
dualmente”) são mais bem explicadas na “metáfora do corpo” que vem
em seguida: cada pessoa tem uma contribuição importante a fazer.
Por que Deus não é mais seletivo? Por que usa todos, até os que
tem falhas e fraquezas? Porque Deus tem prazer em dar dons. Ele
NO PODER DO ESPÍRITO 230

anela usar-nos para exortar e edificar outras pessoas. O corolário


importante deve ser óbvio: devemos procurar ser usados por Deus.
Na verdade, como Paulo implora: “Busquem com dedicação os dons
espirituais” (IC o 14.1).
A esta altura, talvez uma palavra de advertência seja necessária.
Em geral é fácil ficar ansioso acerca de que dons temos ou deveria­
mos ter. Enquanto analisamos a nossa situação e nos comparamos
com outros, gastamos tempo e energia desnecessariamente em ati­
vidades inúteis. Meu conselho é: em vez de analisar a natureza de
seu dom, simplesmente aja diante das necessidades que estão ao seu
redor. Exerça isso mergulhado em oração. Peça a orientação e o po­
der do Senhor; mas responda às necessidades. Acelere seus passos
nas áreas de serviço e ministério e veja o que Deus vai fazer.
Quando agirmos desse modo, verificaremos que os dons de Deus
não são limitados a uma elite seleta. Com certeza a lista de dons em
lC oríntios 12.8-10 não é exaustiva, mas meramente uma amostra
de dons, uma am ostra “retirada de um suprim ento in fin ito ”.2
Quantos dons existem? Há tantos dons disponíveis quanto as ne­
cessidades na vida da igreja. Deus tem prazer em usar-nos para sa­
tisfazer essas necessidades.
Os coríntios nos lembram de que também é possível nos preocu­
parmos com o caráter espetacular ou sobrenatural dos dons espiri­
tuais. Alguns dons espirituais são mais espetaculares que outros, e
em Corinto dava-se muito destaque a esses dons, particularmente à
manifestação pública de línguas. Apesar disso, Paulo afirma que to­
dos os dons se originam do mesmo Espírito e por isso todos são, de
certo modo, de natureza sobrenatural.
É possível delinear uma série contínua de dons, indo dos dons
que envolvem mais habilidade natural e menos poder sobrenatural
(e.g., dons de administração) aos que têm pouco ou nenhum ele­
mento humano e são explicitamente sobrenaturais (e.g., dons de
cura). Mas independentemente de como se analisem as listas de dons
de Paulo, é evidente que para ele todos os dons — sejam talentos

2Stan ley H orton, O q u e a B íb lia diz so b re o E spírito Santo.


DONS ESPIRITUAIS: PRINCÍPIOS ESSENCIAIS 231

naturais dedicados a Deus e, portanto, elevados ou fortalecidos pelo


Espírito, sejam dons que requeiram a intervenção dinâmica de Deus
de maneira particularmente visível — fluem do Espírito, são deseja­
dos para satisfazer as nossas necessidades concretas e portanto são
importantes para a vida da igreja. Talvez a pergunta central a fazer
não seja que dons eu tenho?, mas que necessidade Deus quer que eu
satisfaça?

P ó s - e s c r it o so b r e os do ns
E ADORAÇÃO

O ensino mais importante no Novo Testamento sobre o uso devido


dos dons do Espírito se encontra em lC oríntios 12— 14. E signifi­
cativo que o ambiente onde os dons são descritos é a igreja reunida
para a adoração. De certo há ocasiões em que os dons do Espírito
operam fora do ambiente da adoração, mas é precisamente dentro
da comunidade adoradora que esperamos ocorrer com certa regula­
ridade as manifestações do Espírito.
O vocabulário que Paulo usa para expressar o modo que o Espí­
rito Santo se move entre o povo de Deus é instrutivo. A expressão
“diferentes tipos de dons” (IC o 12.4) chama atenção sobre o dom
não como algo depositado, mas que está na fonte desse derrama­
mento de graça. Em toda essa passagem, o vocábulo grego dorort,
empregado para designar a concessão de algo a um indivíduo no
sentido em que isso passe a ser uma posse do receptor, é notadamente
ausente. Paulo emprega termos como “manifestação” (v. 7) para de­
signar o modo que o Espírito opera. E é o Espírito soberano que
escolhe quando e como os dons vão funcionar e, na verdade, por
intermédio de quem a bênção pode fluir para o corpo reunido.
O que vimos, portanto, é que a atenção concentra-se na esfera
coletiva em que o Espírito funciona em vez de indivíduos que “pos­
suem” um ou mais dons. Na realidade, os dons são posse do corpo
de crentes mais do que de indivíduos do grupo. O Espírito está no
controle! E o corpo adorador é a arena onde o Espírito fala e se
move entre o povo de Deus.
E importante enfatizar isso para evitar a elitização espiritual pe­
rigosa. Se alguém entrou pela fé na manifestação de um dom do
NO PODER DO ESPÍRITO . ' 232

Espírito, em outra ocasião esse indivíduo pode ter mais facilidade


de exercitar esse dom, pois já experimentou esse ministério ante­
riormente. Finalmente, alguém pode aprender a cultivar abertura
para um empurrãozinho do Espírito Santo e desse modo obter com
o tempo graça na manifestação desse dom particular. Em vez de
dizer que o indivíduo possui este ou aquele dom, não é mais bíblico
dizer que ele cultivou um ministério no dom? Na verdade, o indiví­
duo é possuído pelo Espírito para ministrar, em vez de ele possuir o
dom do Espírito.
Esse conceito se adapta bem com a intenção de Paulo de elevar a
adoração acima do ritual e da rotina religiosa. A ênfase na variedade
abre a porta para outros entrarem nos ministérios do Espírito, em
vez de um grupo de crentes depender de um ou dois praticantes
conhecidos por exibir freqüentemente determinada manifestação do
Espírito. A ênfase deve ser na espontaneidade e na pureza da mani­
festação. Pode acontecer que Deus resolva usar-me nesse serviço
hoje para abençoar o grupo?
Que Paulo considerava a adoração da igreja mais abrangente que
as manifestações subjetivas do Espírito está evidente em passagens
como lTimóteo 4 .11-16 . Nesse série de admoestações, Paulo ins­
trui seu jovem colega, entre outros assuntos, a procurar equilíbrio
entre o objetivo e o subjetivo, entre a leitura e o ensino das Escritu­
ras e a manifestação dos dons espirituais.
Lucas faz algo semelhante em Atos 13.1-3. A igreja em Antio-
quia é retratada como composta de três ênfases:
v. 1 — a ministração da igreja para os crentes por meio dos pro­
fetas (aqueles cujo ministério era espontâneo, imediato e
não-estudado, pertencente à categoria que denominamos
"dons do Espírito") e mestres (o papel didático, que exi­
gia estudo das Escrituras e capacidade de explicar o ensi­
no objetivo contido nelas);
v. 2 — a ministração da igreja para o Senhor na adoração;
v. 3 — a ministração da igreja ao mundo.

O quadro aqui apresentado é de uma igreja que exibe as funções


de nutrição interna e de adoração, e fora desse ambiente de edifica­
DONS ESPIRITUAIS: PRINCÍPIOS ESSENCIAIS 233

ção, um povo chamado para servir como missionário além do suas


fronteiras. O princípio é claro: a igreja ideal, como a representada
em Antioquia, é um centro de aprendizado, porém mais do que uma
escola. E um centro de adoração. Não existe para ficar contente com
as próprias bênçãos, mas é chamada para servir os que estão de fora.
Edificação e adoração estão ligadas totalmente a alcançar os perdi­
dos deste mundo. Adoração e missões crescem juntas numa igreja
verdadeiramente espiritual.
Um mistério na dispensação divina dos dons espirituais é que
esses tesouros estão contidos em “vasos de barro” (2Co 4.7). O
aditivo da surpresa é que o discurso profético para abençoar os adora­
dores reunidos é um fenômeno que admite o componente humano.
Está dentro da esfera de ação daquele que tem uma manifestação do
Espírito decidir até que ponto sua contribuição será mais edificante
(IC o 14.32). Paulo admoesta seus leitores a exercitar restrição quan­
do operam com seus dons, reconhecendo que os discursos proféti­
cos devem ser limitados (14.26-28). Essa é a maravilha que Deus, o
Espírito, pode ministrar por meio de vasos de barro!
Esta é a principal razão por que os crentes são chamados à humil­
dade quando se fala da operação dos dons do Espírito. E por sua
graça que ele resolve usar um de nós! Exercer os dons não significa
dizer para a congregação que alguém é mais piedoso que os outros,
mas somente que aquele indivíduo tem tido fé para ser usado por
Deus e está disponível para o serviço divino.3
Por causa da propensão do Espírito Santo em intervir no ambiente
da adoração, intervenções que pelo seu próprio caráter são espontâ­
neas, os pentecostais tendem a planejar os cultos de adoração com
um grau de improviso. Seguindo as orientações de passagens como
lTimóteo 4 .11-16 , uma forma básica de culto de adoração é nor­
malmente arranjada de forma que os participantes tenham uma no­
ção geral do que esperar. O culto tem lugar para a oração, a pregação
da Palavra, o cântico e em geral para compartilhar testemunhos. No
encerramento da maioria dos cultos faz-se uma chamada ao altar, de

3V D av id L im , S p iritu a lgifts: a fresh lo o k . E um excelen te m anual, que co m b i­


na ex e ge se b íb lica com re fle x õ e s p ráticas, para o s in te re ssad o s em e stu d ar o tem a
da o p e raç ão d o s d o n s d o E sp írito .
NO PODER DO ESPÍRITO 234

modo que o alvo da pregação possa ser selado com um período de


oração, normalmente em frente do auditório. E durante esse tempo
que há a ministração aos pedidos especiais, acompanhada da unção
dos doentes com óleo. Os crentes se reúnem ao redor do indivíduo
com imposição de mãos e intercessão. Os que desejam ser batizados
no Espírito são igualmente rodeados pelos crentes para terem o apoio
de um ambiente de fé.
O que é evidente na ordem do culto, não obstante as linhas ge­
rais possam ser previsíveis, é que a qualquer momento — mesmo
durante a pregação de um sermão — pode haver uma interrupção
divina. Pode ser uma fala no Espírito, às vezes uma palavra de profe­
cia na própria língua das pessoas, às vezes em línguas, seguida de
interpretação. O fato de as manifestações do Espírito serem admi­
nistradas pelos frágeis vasos humanos requer uma liderança espiritual
perspicaz nessas reuniões.
Primeira aos Coríntios 14.29 indica que as manifestações do Espí­
rito, mediadas como são através dos instrumentos humanos, reque­
rem que outros julguem. Isso significa que quando uma manifestação
é discernida pela liderança espiritual como da carne e não edificante,
não do Espírito, essa conduta deve ser corrigida. Essa disciplina é
para ensinar a comunhão e deixar claro que nem tudo que se diz ser
do Espírito é realmente dele. Apenas com o exercício do discerni­
mento nesse assunto de supervisão espiritual é que os excessos são
controlados e o erro corrigido.
Alguns são inclinados a perguntar: Se essas manifestações estão
sujeitas a esse abuso, por que se importar com elas? Elas são real­
mente necessárias? A resposta está evidente nas Escrituras. A des­
crição da igreja apostólica é de uma igreja que não despreza a profecia,
uma igreja que procura dar lugar aos movimentos do Espírito.
No final do século I, um problema que as igrejas enfrentavam era
como discernir os verdadeiros profetas itinerantes dos mercenários
da religião. Um estudo dos séculos seguintes revela que a igreja
estabeleceu uma rotina para os ofícios e ministérios do Espírito e
descartou os elementos espontâneos da adoração pública. Poucos
admitiríam que a igreja medieval melhorou com essa amputação.
Tem sido sempre assim. As coisas do Espírito (pneumatika
) são pre­
DONS ESPIRITUAIS: PRINCÍPIOS ESSENCIAIS 235

ciosas e facilmente mal usadas. Não é um ideal mais nobre imitar a


igreja apostólica e aprender como incentivar as manifestações espi­
rituais, fazendo concessões à real possibilidade de erros humanos
eventuais ao longo do caminho?

C onclusão
Deus não é obrigado a usar-nos. Pode usar outras pessoas. Mas no­
tável e maravilhosamente, ele tem prazer em nos usar. Por isso, ele
nos chama para participar de sua obra e nos prepara para essa tarefa.
A discussão de Paulo sobre os dons espirituais nos encoraja a viver
com senso de expectativa, de que Deus vai nos usar para satisfazer
as necessidades prementes ao redor de nós. A postura do cristão, de
cada cristão, deve ser de esperança, perguntando a Deus: Com o vais
abençoar outras pessoas por intermédio de minha vida hoje?

Perguntas para estudo


1. Os dons do Espírito são concedidos apenas a pessoas espiritual­
mente maduras?
2. Com o podemos saber se uma declaração ou um dom específico é
verdadeiramente do Espírito?
3. Os dons do Espírito são limitados a um grupo seleto dentro da
igreja?
4. O que o autor quer dizer com princípio do “equilíbrio” na opera­
ção dos dons do Espírito no ambiente de adoração?
5. Por que o autor insiste que o dom do Espírito não é "possuldo"
pelo indivíduo?
6. Por que a supervisão espiritual é importante no ambiente onde as
manifestações do Espírito são estimuladas?
7. Se a operação dos dons espirituais é tão problemática, por que
não se livrar deles? Não seria muito mais fácil se a igreja não
tivesse que se preocupar com esses assuntos?
capítulo • 14

Batismo no Espírito e
dons espirituais

esde os primórdios do reavivamento pentecostal moderno, os


D pentecostais defendem um batismo no Espírito Santo distinto
da conversão (At 1.5,8; 2.4) e a realidade atual dos dons espirituais
(IC o 12.8-10). Esses temas gêmeos do batismo no Espírito e dos
dons espirituais marcaram decisivamente o movimento. Todavia,
surpreendentemente, a natureza da relação entre o batismo no Es­
pírito e os dons do Espírito nunca recebeu muita atenção. Os pri­
meiros escritores pentecostais em geral descreveram o batismo no
Espírito como a “porta” ou a entrada para os dons, mas essa posi­
ção foi afirmada ou suposta, e não desenvolvida de maneira signifi­
cativa.1 Os escritos pentecostais mais recentes têm lançado luz sobre
esse assunto, e as suposições implícitas da geração anterior ainda se
mostram determinantes. Hoje os pentecostais quase todos afirmam
que o batismo no Espírito é “a porta de entrada” dos dons, mas
nunca se articulou um argumento bíblico claro para essa posição.2

*Por isso, Myer Pearlman declara que o batismo no Espírito Santo capacita os
cristãos a experimentar “a operação carismática do Espírito” (Conhecendo as dou­
trinas da Bíblia). V. tb. Willard C antelon, The baptism of the Holy Spirit, p. 15;
Ernest S. W illiams, Systematic theology, 3:63-75; Ralph R iggs, N ós cremos; Donald
G ee, Spiritual gifts in the work of the ministry today, p. 18.
2V P. C. N elson, Doutrinas bíblicas; Stanley M. H orton, O que a Bíblia diz
sobre o Espírito Santo', G. Raymond C arlson, Our faith and fellowship, p. 65-7.
Observe também As Declaração das verdades fundamentais das Assembléias de
Deus, n. 7, A promessa do Pai: “Todos os crentes são designados a buscar sincera­
mente a promessa do Pai, o batismo no Espírito Santo e fogo, de acordo com o
mandamento de nosso Senhor Jesus Cristo. Essa era a experiência normal de to­
dos na igreja cristã primitiva. Com ela vêm o revestimento de poder para a vida e
para o serviço, a concessão dos dons e o uso deles no serviço do ministério”.
NO PODER DO ESPÍRITO 238

O entendimento do batismo no Espírito como a porta de entra­


da dos dons era geralmente ligado à ênfase nos “nove dons espe­
ciais” de ICoríntios 12.8-10.3 Todavia, hoje poucos falam de nove
dons apenas. Donald Gee reflete o que hoje é consenso entre os
estudiosos da Bíblia: “Penso agora que é um erro referir-se sempre a
‘nove dons’ como se o catálogo ali [lC o 12.8-10] fosse exaustivo”.4
O reconhecimento de uma variedade rica de dons espirituais levou
muitos carismáticos a rejeitar a visão de “porta de entrada” do pen-
tecostalismo. H. L Lederle declara esse assunto diretamente: “Não
há apoio bíblico para nenhuma experiência crítica particular ou acon­
tecimento que seja a porta de entrada para o funcionamento dos
dons do Espírito [...] Todo cristão é, e deveria ser cada vez mais,
carismático”.5
Mais recentemente a posição pentecostal foi desafiada por outro
adversário. Um grupo grande e crescente de evangélicos não-pente-
costais está buscando e experimentando dons espirituais. A ênfase
recente nos dons é notável pelo fato de estar ocorrendo nos círculos
evangélicos tradicionais, que no passado rejeitavam a vahdade con­
tínua dos dons espirituais. O novo derramamento da vitalidade
carismática foi designado de “terceira onda”.6 Os seguidores da ter­
ceira onda rejeitam conscientemente o ponto de vista pentecostal
do batismo no Espírito, mas confirmam a importância e a disponi­
bilidade dos dons relacionados em ICoríntios 12.8-10 para todos.7

3Para um enfoque dos “nove dons” de lC o 12.8-10 v. P earlman, op. cit.; Carl
Brumback, What meaneth thisf, p. 153; Cantelon, op. cit., p. 15; Riggs, op. cit..
"Donald G ee, op. cit., 5. Ver E. W illiams, op. cit., 3:75-82; Stanley M. H orton,
op. cit., que também reconhece que os “nove dons” de ICoríntios 12.8-10 são
indicativos.
^Treasures old and new: interpretations of “Spirit-baptism” in the charismatic
renewal movement, p. 218, 228. V. tb. Dennis e Rita Bennett, Trindade do ho­
mem, que afirma que os crentes não batizados no Espírito podem manifestar sete
dos nove dons mencionados em ICoríntios 12.8-10 (línguas e interpretação de
línguas são a exceção).
6Para m ais in fo rm açõ es so b re a terceira on da, v. cap. 10.
7V, p.ex., Gary S. G reig e Kevin N. Springer, org., The kingdom and thepower,
p. 21; C. Peter W agner, Sinais e prodígios; John W imber e Kevin Springer, Power
points, p. 135-6, e Power evangelism, p. 148.
BATISMO NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 239

A teologia e a experiência deles representam um desafio importante


para a posição pentecostal da “porta de entrada”.
Dessa form a, os pentecostais estão sendo desafiados hoje a
reavahar as suposições anteriores e a articular mais claramente a base
bíblica de sua posição. Na verdade, a ênfase carismática na natureza
diversa dos dons, juntamente com a explosão de dons entre os evan­
gélicos não-pentecostais, levanta perguntas cruciais: É verdade que
uma pessoa deve ser batizada no Espírito Santo antes de experi­
mentar qualquer um dos dons? Qual a natureza da relação entre o
batismo no Espírito e os dons do Espírito? Procuraremos respon­
der a essas perguntas criticando primeiro a posição da “porta de
entrada” esboçada acima e depois propondo uma abordagem alter­
nativa que faz justiça às perspectivas teológicas tanto de Lucas como
de Paulo.

Pentecoste: porta de entrada


PARA OS DONS?
O conceito pentecostal de que o batismo no Espírito Santo consti­
tui requisito necessário para a operação dos dons (qualquer um)
enfrenta três obstáculos intransponíveis. 1) Com o observamos, essa
posição era em geral associada com um foco exclusivo nos “nove
dons” arrolados em lC oríntios 12.8-10. Hoje, mesmo nos círculos
pentecostais clássicos, a maioria reconhece que a lista de dons de
Paulo nesse texto é sugestiva, não definitiva. Uma comparação das
listas de dons de Paulo (Rm 12.6-8; IC o 12.8-10; 12.28; 12.29,30;
Ef 4.11) praticamente exige essa conclusão. Stanley H orton, um dos
principais estudiosos pentecostais, fala por muita gente quando
conclui: “Parece melhor tomar todas essas listas [as listas de IC o
12.8-10,12.28 e 12.29,30] como simples amostras dos dons e das voca­
ções do Espírito, amostras tiradas de um suprimento infinito”.8
Essa avaliação, contudo, representa um obstáculo importante para
o conceito da “porta de entrada”. Uma coisa é dizer que o batismo
no Espírito é a “porta de entrada” para dons específicos como, por
exemplo, falar em línguas e profetizar, outra coisa totalmente di­

8Op. cit..
NO PODER DO ESPÍRITO • 240

ferente é dizer que todos os dons, até os dons de “administração”


(IC o 12.28), “serviço” (Rm 12.7) e “contribuição” (Rm 12.8), ne­
cessariamente provêm de um batismo no Espírito anterior. Isso equi­
vale a dizer que, se Paulo estava falando apenas de um grupo seleto
de dons, pode ser plausível afirmar que o batismo no Espírito, dis­
tinto da conversão, funciona como a “porta de entrada” para o fun­
cionamento deles. Mas a ênfase do apóstolo na variedade dos dons
estimula-nos a enxergar sua linguagem de dons abrangendo toda a
gama de capacitações que o Espírito concede aos membros da co­
munidade cristã para o bem comum. A rica diversidade de dons,
portanto, dá a entender que eles não podem ser descritos como con-
seqüência de uma experiência específica distinta da conversão.
2) Isso nos conduz a outro obstáculo. Paulo não apenas salienta
o caráter diverso dos dons, mas também declara que todo cristão
tem um papel a exercer. Essa conclusão se confirma pelas palavras
do apóstolo em ICoríntios 12.11: “Todas essas coisas, porém, são
realizadas pelo mesmo e único Espírito, e ele as distribui individual­
mente, a cada um, como quer”. Logo, na perspectiva de Paulo, todo
cristão é um carismático. Nem mesmo Paulo fala aqui de um batis­
mo no Espírito distinto da conversão que possa servir como a “por­
ta de entrada” para os dons. Embora ele incentive cada cristão a “ser
cheio do Espírito” (Ef 5.18), essa experiência se prende à maturida­
de cristã, não à operação dos dons. Centra-se no fruto do Espírito,
não nos dons.9 Portanto, é impossível argumentar que Paulo via essa
experiência como pré-condição necessária para entrar na dimensão
carismática do Espírito.
3) O terceiro obstáculo nos leva ao âmago do assunto, pois ex­
plica por que a posição da “porta de entrada” não entende Paulo
corretamente. Essa posição baseia-se num erro metodológico fun­
damental. Sem nenhum critério, mistura conceitos teológicos de
Lucas (batismo no Espírito) e de Paulo (dons espirituais) levando
em pouca consideração o contexto em que esses assuntos são trata­
dos pelos respectivos autores. Desse modo, os proponentes da “porta

9Observe o contexto, especialmente Efésios 5.15: “Tenham cuidado com a ma­


neira como vocês vivem; que não seja como insensatos, mas como sábios”.
BATISMO NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 241

de entrada” supuseram que o batismo no Espírito distinto da con­


versão descrito por Lucas (At 1.5,8; 2.4) representa a “porta de en­
trada” para os dons paulinos (Rm 12.6-8; lC o 12.8-10; 12.28;
12.29,30; Ef 4.11), apesar de Paulo nunca falar explicitamente do
batismo no Espírito de Lucas (i.e., o dom pentecostal) e, portanto,
nunca o relacionar aos dons espirituais. A fraqueza dessa aborda­
gem é evidente. Impôs-se uma estrutura estranha à perspectiva dos
autores bíblicos aos dados bíblicos, produzindo um sistema essen­
cialmente extrabíblico.
Há um caminho melhor. Só se desenvolve uma teologia verda­
deiramente bíblica quando tratamos “cada autor bíblico ou livro se­
paradamente e [...] esboçamos sua ênfase teológica particular”.
Somente depois de ter “estabelecido um texto no contexto do pen­
samento e da dimensão do seu autor [...] pode o teólogo bíblico
sentir-se livre para deixar que o texto interaja com outros textos de
outros livros”.10 Logo, para responder às perguntas concernentes à
natureza da relação entre o batismo no Espírito e os dons espiritu­
ais, devemos em primeiro lugar pôr esses conceitos dentro dos
contextos próprios de Lucas e Paulo. Comecemos essa tarefa agora.

Duas trajetórias: as perspectivas


de Paulo e Lucas
Com o vimos, a análise das pneumatologias de Paulo e de Lucas re­
vela um número significativo de diferenças. Cada uma parece ter
uma trajetória peculiar, movendo-se numa direção singular e signi­
ficativa. Por essa razão, é importante esboçar as características bási­
cas de cada trajetória. Então, nesse pano de fundo, vamos procurar
definir os conceitos de batismo no Espírito e dons espirituais.

A trajetória de Paulo
A princípio, é evidente que Paulo apresenta uma descrição mais
ampla e mais plena da obra do Espírito que Lucas. Para Paulo, a
vida cristã em sua inteireza é uma realização do Espírito de Deus.
O Espírito é a fonte de purificação (Rm 15.16; IC o 6 .11), de justi­

10Dunn, James. B aptism in th e H o ly Spirit, p. 39.


NO PODER DO ESPÍRITO / 242

ça (Rm 2.29; 8.1-17; 14.17; G l 5.5, 16-26), de comunhão íntima com


Deus (Rm 8.14,17; G l 4.6), de conhecimento de Deus (lC o 2.6-16;
2C o 3.3-18) e, finalmente, de vida eterna por meio da ressurreição
(Rm 8.11; lC o 15.44-49; G l 6.8).
Portanto, não é de surpreender que Paulo fale da capacidade de
cada crente contribuir para a vida da comunidade com uma mani­
festação ou dom do Espírito (Rm 12.6-8; lC o 12 .8 -10 ; 12.28;
12.29,30; Ef 4.11). Mais especificamente, a rica variedade de dons
concedidos a cada crente para o bem comum mostra-se como ex­
tensão natural da perspectiva pneumatológica mais ampla de Paulo.
Uma vez que de seu ponto de vista a vida cristã desde o seu prin­
cípio é moldada pelo Espírito de Deus, há pouca razão para supor
que os dons espirituais sejam transmitidos ou percebidos por algu­
ma experiência subseqüente à conversão. O dom do Espírito, que
traz vida cristã, também traz a capacidade de abençoar a comunidade.

A trajetória de Lucas

A perspectiva de Lucas é bastante diferente da de Paulo. Diferente­


mente de Paulo, que em geral fala do aspecto soteriológico da obra
do Espírito, Lucas retrata com consistência o Espírito como a fonte
de inspiração profética. Desde o começo de sua obra em dois volu­
mes, Lucas enfatiza o aspecto profético da atividade do Espírito. A
profusão dos pronunciamentos inspirados pelo Espírito nas narrati­
vas da infância anuncia a chegada da era do cumprimento (Lc 1.41-45,
67-79; 2.25-32). Essa era é marcada pela atividade profética de João,
pelo ministério de Jesus e pela missão da igreja, todas levadas a efei­
to no poder do Espírito.
Cheio do Espírito Santo desde o ventre materno (Lc 1.15-17),
João Batista anuncia a inauguração do ministério de Jesus. Na ela­
boração cuidadosa de sua narrativa, Lucas liga o relato da unção de
Jesus pelo Espírito (3.22) com o anúncio dramático de Jesus em
Nazaré (4.18-21), indicando dessa forma que o Espírito veio sobre
Jesus no Jordão a fim de prepará-lo para sua tarefa de arauto
messiânico. Os paralelos literários entre o relato da unção de Jesus
no Jordão e o dos discípulos no Pentecoste dão a entender que Lucas
interpretou o último acontecimento à luz do primeiro: o Espírito
BATISMO NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 243

veio sobre os discípulos no Pentecoste para prepará-los para sua


vocação profética.
Essa idéia é apoiada pela profecia de João Batista a respeito do
vindouro batismo de Espírito e fogo (Lc 3.16), pois Lucas entende
que a atividade de peneiramento do Espírito da qual João profeti­
zou se realizará na missão da igreja dirigida e capacitada pelo Espíri­
to (At 1.5,8). E confirmada pela narração de Lucas do evento do
Pentecoste (At 2.1-13 ), sua interpretação desse evento à luz de sua
versão ligeiramente modificada de Joel 2.28-32 (3.1~5a na lxx ) , 11 e
de sua descrição subseqüente da igreja como uma comunidade pro­
fética capacitada pelo Espírito. Seja João no ventre da mãe, seja Je­
sus no Jordão, sejam os discípulos no Pentecoste, o Espírito vem
sobre eles todos como a fonte de inspiração profética, concedendo
discernimento especial e discurso profético.
Portanto, na perspectiva de Lucas, os discípulos recebem o Espí­
rito não como a fonte de purificação e nova capacidade de guardar a
lei, nem como o laço essencial pelo qual (cada um) se ligam a Deus,
nem mesmo como antegozo da salvação vindoura. Em vez disso, os
discípulos recebem o Espírito como unção profética que os capacita a
participar eficazmente do empreendimento missionário da igreja.12
Dessa visão panorâmica da pneumatologia de Lucas, surgem al­
gumas implicações importantes. 1) Os pentecostais estão corretos
em falar de um batismo no Espírito Santo “distinto da experiência
do novo nascimento e posterior a ela”.13 Esse entendimento pente-
costal do batismo no Espírito como distinto da conversão flui natu­
ralmente da convicção de que o Espírito veio sobre os discípulos no
Pentecoste e através de todo o livro de Atos não como a fonte da
existência no novo pacto, mas como a fonte de inspiração profética.

nV. cap. 10 para uma análise dessas mudanças.


12Observe que Lucas não apenas evita atribuir funções sotcriológicas ao Espíri­
to de maneira análoga a Paulo, mas também sua narrativa pressupõe uma pneuma­
tologia que exclui esse aspecto (e.g., Lc 11.13; A t 8.4-17; 19.1-7). Para uma
argumentação detalhada que apóia essa análise da pneumatologia de Lucas, ver R.
P M enzies, Empowered for witness.
l3Minutes of the 44th session of the General Council of the Assemblies of God
(Portland, 6-11 de agosto, 1991), p. 129.
NO PODER DO ESPÍRITO ' 244

2) Lucas descreve a obra do Espírito de maneira surpreendente­


mente diferente — embora complementar — da de Paulo. Para Lucas,
o Espírito vem exclusivamente como a fonte de inspiração proféti­
ca, concedendo revelação especial e discurso inspirado.
3) Embora Lucas jamais empregue as palavras-chave de Paulo,
como charismata pneumatika,
e ele de fato associa os fenômenos
encontrados nas listas de dons de Paulo com a inspiração do Espíri­
to. A narrativa de Lucas é cheia de referências à profecia e ao falar
em línguas.

Síntese teológica
Agora é preciso definir mais especificamente os conceitos de batis­
mo no Espírito e dons espirituais colocando-os no contexto dado
pelo nosso esboço das pneumatologias de Paulo e Lucas. Nosso
objetivo é sintetizar os achados numa resposta concisa e coerente
que faça justiça aos pontos de vista tanto de Paulo quanto de Lucas.
Comecemos definindo osconceitos de batismo no Espírito e dons
espirituais e, em seguida, vamos procurar descrever a natureza da
relação deles.

Batismo no Espírito

Vimos que o conceito de um batismo no Espírito distinto da con­


versão flui da teologia do Espírito de Lucas. Na perspectiva de Lucas,
o Espírito vem sobre os discípulos como fonte de inspiração profé­
tica, em vez de justificação, purificação ou uma nova consciência de
relação filial com Deus. Isso indica que o dom do Espírito confor­
me Lucas não deve — na verdade não pode — ser igualado ao dom do
Espírito paulino, que constitui o clímax da experiência da conversão e
media as bênçãos soteriológicas de Cristo (i.e., justificação, purifica­
ção, relação filial) para o crente. O batismo no Espírito no sentido de
Lucas (i.e., o dom do Espírito ou dom pentecostal) deve ser distin­
to do dom do Espírito que Paulo associa com a conversão.
Esse conceito de um batismo no Espírito distinto da conversão,
ainda que não especificamente expresso por Paulo, é coerente com
(e complementar a) sua perspectiva teológica. Paulo freqüentemen-
te se refere ao poder do Espírito capacitando o seu próprio ministé­
BATISM O NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 245

rio (Rm 15.19; IC o 2.4; lTs 1.5). E também se refere a unções espe­
ciais que dão poder ao ministério de outros (lT m 4.14; 2Tm 1.6.7;
cf. lTs 5.19). Tendo em vista o caráter ad hoc
das cartas de Paulo,
não nos deve surpreender que ele não fala em lugar algum do dom
pentecostal. Ele não se pôs a escrever um tratado teológico exausti­
vo que delineasse a dinâmica da vida espiritual. Não obstante, é evi­
dente que a ênfase de Lucas na importância do dom pentecostal (At
1.8; 2.17,18) para a vitalidade da igreja e o empreendimento missio­
nário repercute a perspectiva de Paulo.
Se perguntarmos mais especificamente a respeito do impacto do
batismo no Espírito em Lucas— Atos, de imediato vamos observar
que a perspectiva de Lucas é semelhante à do judaísmo de seu tem­
po. Com o observamos em outros capítulos, os judeus do século I
identificavam o dom do Espírito com a inspiração profética.
Lucas também apresenta o Espírito como a fonte de inspiração
profética. Isso é evidente no começo do seu evangelho, que apre­
senta arrebatamentos de discurso profético. E destacado nos rela­
tos programados do sermão de Jesus em Nazaré (Lc 4.18,19) e no
sermão de Pedro no dia do Pentecoste (At 2.17,18). Ambas as nar­
rativas indicam que o dom do Espírito, conforme Lucas, está inti­
mamente ligado com a revelação especial e com o discurso inspirado.
Além disso, referências à revelação e ao discurso carismáticos são
constantes na obra em dois volumes de Lucas (e.g., Lc 10.21; 12.10-
12; A t 4.31; 6.10; 7.55; 10.19; 13.2). Desse modo, Lucas afirma que
o batismo no Espírito está intimamente ligado à concessão da sabe­
doria e do discurso carismático.
A associação com a linguagem e a perspectiva de Paulo é de ime­
diato evidente. Em relação ao dom pentecostal, Lucas com efeito se
refere aos dons específicos nomeados por Paulo: glossolalia e pro­
fecia (e.g., A t 2.4,18; 10.46; 19.6). E, claro, Paulo refere-se aos dons
espirituais centrados na revelação e no discurso inspirado pelo Es­
pírito. Passemos agora a esses dois fatos importantes.

Dons espirituais

A linguagem paulina referente a dons tem, na realidade, nuanças. Em


lC oríntios, ele emprega duas palavras gregas para referir-se aos dons
NO PODER DO ESPÍRITO 246

concedidos pelo Espírito: charismata e pneumatika


(“dons”) 14 (“dons
espirituais”).15 A palavra masculina pneumatikos (“homem espiritual”,
lC o 2.15; “dotado espiritualmente”, 14.37) também é destacada.
A importância da linguagem de Paulo nesse ponto é debatida.
Earl Ellis argumenta que o termo charismata
tem amplo espectro de
significado e pode ser usada para se referir a qualquer um dos dons
ou a todos eles. O termo pneumatika, ao contrário, refere-se a um
grupo mais restrito de dons espirituais, os “dons proféticos”.16 Ellis
afirma que as palavras pneumatika pneumatikos
e “denotam, respec­
tivamente, dons de discurso inspirado ou discernimento e homens
que exercem tais dons”-17 Alguns pontos indicam que a avaliação de
Ellis pode, de fato, estar correta.
1) 0 modo que Paulo alterna entre pneumatika
(lC o 12.1; 14.1)
e charismata (12.4; 12.31) em lC oríntios 12— 14 dá a entender que
o primeiro termo denota uma subcategoria do último. O peri de
(“quanto aos”) da construção de 12.1 indica que os coríntios, na
carta a Paulo, haviam levantado perguntas a respeito do exercício do
pneumatika, Seria natural para os coríntios, apaixonados como esta­
vam pela glossolaha, enfatizar esse grupo de dons mais específicos.
Paulo, por sua vez, procura alargar a perspectiva dos coríntios quan­
do se refere ao grupo de dons mais am plo, o charismata.
O
paralelismo entre 12.31, “busquem com dedicação os melhores dons
[charismata]” e 14.1, “busquem com dedicação os dons espirituais
[pneumatika]” dá sustentação a essa leitura do texto. Aqui os
pneumatika são identificados como uma subclasse dos charismata e
intimamente ligada à profecia. “Os melhores dons” de 12.31 são
dons proféticos que edificam o corpo (e por isso, como Paulo
enfatiza, devem transmitir uma mensagem inteligível).
2) O segundo ponto a favor da tese de Ellis vem de lC o rín tio s
14.37 — “Se alguém pensa que é profeta ou espiritual [pneumati-
14Normalmente se usa a forma plural de charisma ou “dom”. V. lCoríntios 1.7;
7.7; 12.4,9,28,30,31.
15A forma pluralpneumatikon aparece em lCoríntios 12.1 (provavelmente no
neutro) e 14.1. Em ambos os casos a NVI traduz por “dons espirituais”.
I6E. Ellis, Prophecy in the NewTestament church —- and today em Prophetic
vocation in the New Testament and today, J. Panagopoulos, org., p. 48.
17“‘Spiritual' gifts in thepauline community", NTS 20, 1973-1974, p. 128.
BATISMO NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 247

kos\...”. Esse texto identifica ou associa intimamente os que pos­


suem os pneumatika (i.e., o pneumatikos) com os profetas.
3) Finalmente, o discernimento característico dos profetas é, em
ICoríntios 2.6-16, atribuído zo pneumatikos: “Mas quem é espiritual
[pneumatikos ] discerne todas as coisas, e ele mesmo por ninguém é
discernido” (2.15). Entretanto, Gordon Fee desafia a noção de que
essa passagem distingue entre um grupo especial de pneumáticos e
crentes em geral. Segundo ele, o contraste é entre incrédulos, sem o
Espírito, e crentes, todos os que possuem o Espírito de Deus.18 Não
obstante, mesmo que a interpretação de Fee seja aceita nesse ponto,
a tese de Ellis permanece plausível como descrição da linguagem de
Paulo nos capítulos de 12 a 14.
A tese de Ellis não fica sem suas críticas,19 mas realça textos im­
portantes que associam os pneumatika com os dons de revelação
especial e discurso inspirado. Se Ellis estiver certo, a categoria paulina
àe pneumatika é surpreendentemente semelhante em função ao dom
do Espírito conforme Lucas. Mesmo que Ellis esteja errado e a
pneumatika não se refira a um grupo especial de dons proféticos, é
evidente que as hstas de Paulo em ICoríntios 12 contêm de fato
vários dons que são proféticos em seu caráter. Entre os dons associ­
ados com a revelação especial e/ou discurso inspirado, estão: “pala­
vra de sabedoria” (v. 8), “palavra de conhecimento” (v. 8), “profecia”
(v. 10), “discernimento de espíritos” (v. 10)20, “variedade de línguas”
(v. 10) e “interpretação de línguas” (v. 10).
Já observamos que o batismo no Espírito no sentido de Lucas
também concede revelação especial e discurso inspirado. A í, por­
tanto, está o cruzamento principal em que as trajetórias de Lucas e
de Paulo se encontram, o ponto de contato entre o batismo no Es­
pírito de Lucas— Atos e os dons espirituais de Paulo. Embora Paulo
não se refira explicitamente ao dom pentecostal, ele reconhece que

18Gordon F ee, The First Epistle to the Corinthians, p. 97-120.


I9V., p. ex., as objeções levantadas a essa perspectiva por D. A. C akson em
Showing the Spirit: a theological exposition o f ICorinthians 12— 14, p. 23-4; S.
S chatzmann, A pauline theology of the charismata, p. 7.
20lsso é especialmente verdadeiro se associarmos intimamente esse dom ao peso
da profecia descrito em ICoríntios 14.29. Note que a palavra grega diakrinõ ocor­
re tanto em ICoríntios 12.10 como em 14.29.
NO PODER DO ESPÍRITO / 248

o Espírito funciona de maneira semelhante. A linguagem e as cate­


gorias paulinas são diferentes das de Lucas, mas a intersecção é evi­
dente. O dom do Espírito segundo Lucas e os dons proféticos (sejam
estes descritos como pneumatika
ou não) que Paulo enumera têm
praticamente o mesmo impacto nos seus recipientes.

C onclusão
Agora estamos prontos para responder à pergunta concernente à
natureza da relação entre o batismo no Espírito e os dons espirituais.
Embora não se possa sustentar que o batismo no Espírito é a “porta
de entrada” para cada dom espiritual, as evidências bíblicas indicam
que o batismo no Espírito é a “porta de entrada” para um grupo de
dons especiais descritos por Paulo: os dons proféticos associados com
a revelação especial e o discurso inspirado. Certamente é verdade que,
num sentido, todo cristão “é, e deve ser cada vez mais, carismático”.21
Paulo realça esse fato: todo crente pode contribuir; cada um é capa­
citado pelo Espírito a contribuir para o bem comum (IC o 12.11).
Mas também é verdade que há uma dimensão da capacitação do
Espírito em que se entra em virtude de um batismo no Espírito
distinto da conversão. Essa dimensão pode ser corretamente cha­
mada de dimensão profética. Na perspectiva de Lucas, a comunida­
de da fé é uma comunidade de profetas em potencial. E é pela recepção
do dom pentecostal (batismo no Espírito) que esse potencial se reali­
za. Era esperança de Lucas que esse potencial se realizasse na igreja
do seu tempo, como fora no passado (e.g., Lc 3.16; 11.13; A t 2.17,18).
As cartas de Paulo revelam um senso de expectativa semelhante,
embora seja em geral manifesta na forma de desafio: “Entretanto,
busquem com dedicação os melhores dons” (IC o 12.31).

P erguntas para estudo

1. Os primeiros pentecostais falavam freqüentemente do batismo


no Espírito como a “porta de entrada” para os dons do Espírito.
Em que a experiência dos seguidores da terceira onda desafia essa
posição?

-'L kderle, op. cit., p. 228.


BATISMO NO ESPÍRITO E DONS ESPIRITUAIS 249

2. Atualmente reconhece-se em geral que os dons do Espírito níío


podem ser limitados aos nove relacionados em ICoríntios 12.8-
10. De que forma esse reconhecimento mina a posição da “porta
de entrada”?
3. A posição da “porta de entrada” baseia-se num erro metodológico
fundamental. Qual é esse erro?
4. De que jeito Menzies procura relacionar os dons do Espírito em
Paulo ao batismo no Espírito em Lucas? Em que medida esses
dois conceitos se entrelaçam?
5. Todo cristão é carismático e deve-o ser cada vez mais. Em que
essa afirmação é verdadeira? Com o os pentecostais desejam qua­
lificar essa afirmação?
capítulo • 15

Batismo no Espírito e
fruto do Espírito

rgumentamos que Paulo foi o primeiro cristão a ligar o Espíri­


A to com os aspectos soteriológicos mais amplos da vida de fé.
Diferentemente de Lucas, que via o Espírito de modo mais limita­
do, como a fonte de inspiração profética, Paulo entendia que o Es­
pírito opera na vida do crente desde o princípio, transformando
progressivamente a velha natureza, sempre predisposta a pecar, rumo
à nova criação plena. Essa transformação inclui o refazer radical dos
padrões éticos e de conduta do indivíduo. O Espírito, declara Paulo,
infunde em nossa vida o verdadeiro caráter de Cristo. “Os que per­
tencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os
seus desejos” (Gl 5.24). A nova vida de discipulado é produzida pelo
Espírito (5.25), cujo fruto é descrito por Paulo em termos concre­
tos: “Mas o fruto do Espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabi-
lidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (5.22,23).
Raramente se discute o modo preciso em que essa dimensão éti­
ca da obra do Espírito que Paulo realça se relaciona com o batismo
no Espírito de Lucas. Embora Hermann Gunkel e outros tenham
observado que Paulo e Lucas têm perspectivas teológicas diferen­
tes, nenhum deles procurou relacionar as duas de modo coerente.
Isso se deve em grande parte ao fato de que até recentemente, pelo
menos para a maioria, Lucas era interpretado através das lentes das
categorias paulinas, e a singularidade da sua mensagem se perdia.
Mas estudos acadêmicos mais recentes, em especial os produzidos
dentro dos círculos pentecostais, conclamam-nos uma vez mais a
reconhecer o caráter distintivo da pneumatologia de Paulo e de Lucas.
Essas novas abordagens, portanto, levantam uma questão intrigan­
NO PODER DO ESPÍRITO , 252

te, de importância considerável para a vida do crente e da igreja:


Qual a relação entre o fruto do Espírito e o batismo no Espírito?
De outro modo: Qual a ligação entre o batismo no Espírito e a ma­
turidade cristã?
Para muitos da tradição pentecostal, essa pergunta pode, à pri­
meira vista, soar estranha. A ligação entre o batismo no Espírito e a
santidade ou maturidade cristã é pressuposta há gerações. O movi­
mento pentecostal moderno surgiu num contexto moldado pelo
movimento Holiness, e essa herança Holiness continua a exercer
forte influência em muitos círculos. A pregação mais popular nos
círculos pentecostais insiste numa ligação causai entre o batismo no
Espírito e a santidade. E muitos testemunhos pessoais implicam um
elo semelhante. Nossa própria experiência não indica que a maturi­
dade cristã se sustenta nessa experiência dinâmica do Espírito que
chamamos de batismo no Espírito?
Mais recentemente a ligação tem-se tornado explícita pela co­
nhecida e influente publicação Bíblia de estudo pentecostal. O
artigo
intitulado “O batismo no Espírito Santo” nessa bíbha de estudo
afirma que o batismo no Espírito Santo resulta, entre outras coisas,
em “maior sensibilidade contra o pecado” e numa “percepção mais
profunda do juízo divino contra a impiedade”.1
A pregação popular, o testemunho dos crentes e a literatura re­
cente apresentam o batismo no Espírito como um impulso para um
nível mais alto de vida cristã. Não obstante, pergunta-se: Essa asso­
ciação entre batismo no Espírito e maturidade cristã é coerente com
o ensino das Escrituras? Neste capítulo, vamos procurar respostas a
essa pergunta.

P roblemas de C orinto
A noção de que o batismo no Espírito necessariamente conduz a
maior santidade tem notável semelhança com as alegações que Pau­
lo procurava combater na igreja de Corinto. Pelo menos alguns cris­
tãos de Corinto viam o falar em línguas como expressão de um nível
superior de espiritualidade. Em virtude de seu conhecimento e sua

1Bíblia de estudo pentecostal, Donald S tamps, org., p. 1627.


BATISMO NO ESPÍRITO E FRUTO DO ESPÍRITO 253

experiência espiritual especial, essas pessoas acreditavam que haviam


entrado num nível de existência espiritual “mais profundo” e “mais
elevado”. Formavam uma elite espiritual e os seus dons espirituais,
especialmente a capacidade de falar em línguas, confirmavam sua
condição especial.
Paulo ataca esse elitismo ponto por ponto. Repreende a atitude
orgulhosa escrevendo: “O conhecimento traz orgulho, mas o amor
edifica. Quem pensa conhecer alguma coisa, ainda não conhece como
deveria” (ICo 8.1,2). Mais especificamente, ele combate repetidas ve­
zes a idéia de elite espiritual dentro da igreja. Essa mensagem é trans­
mitida com clareza e força especiais pelo emprego da metáfora do corpo
em 12.12-31, onde Paulo enfatiza que a “todos nós foi dado beber de
um único Espírito” (v. 13) e todos são de igual importância, pois cada
membro do corpo tem uma contribuição significativa a fazer.
Paulo entendia que não pode haver nenhuma elite de cristãos,
porque o. mesmo Espírito opera em todos os crentes, transforman­
do-os à imagem de Cristo. Embora alguns possam, de fato, ser mais
maduros do que outros, a maturidade cristã não pode ser ligada a
uma única experiência ou marcada por algum sinal especial, como
alguns de Corinto sustentavam. Na visão de Paulo, fazer divisões
ou comparações a esse respeito significava perder de vista o sentido
da comunidade cristã. Por isso, declara:
Mas Deus estruturou o corpo dando maior honra aos membros
que dela tinham falta, a fim de que não haja divisão no corpo,
mas, sim, que todos os membros tenham igual cuidado uns pelos
outros. Quando um membro sofre, todos os outros sofrem com
ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram
com ele.
Ora, vocês são o corpo e Cristo, e cada um de vocês, individual­
mente, é membro desse corpo (lC o 12.24-26).
Tudo isso indica que, quando os pentecostais ligam o batismo no
Espírito com a maturidade cristã, estão muito mais próximos do
pensamento orgulhoso dos coríntios do que do apóstolo Paulo. Se
quisermos ser coerentes com o ensino paulino, devemos rejeitar a
noção de que a igreja é composta de duas classes de cristãos: os
maduros, que foram batizados no Espírito Santo, e os imaturos,
NO PODER DO ESPÍRITO 254

que não o foram. O batismo no Espírito não pode servir como


emblema de santidade, marca de maturidade cristã. Em vez disso,
deve ser visto de acordo com o propósito que Lucas afirma que deve
ser: a fonte de intrepidez e poder em nosso serviço e testemunho.
Não deve ser confundido com a maturidade cristã. Da mesma for­
ma que os dons do Espírito são muitas vezes concedidos a imaturos
— e a igreja de Corinto estava cheia de cristãos que provam isso (cf.
IC o 1.7) — também acontece com o batismo no Espírito. Os dons
graciosos de Deus não se limitam a uns poucos de elite.
A teologia elitista dos coríntios teve um impacto devastador na
vida da igreja. As formas modernas de teologia elitista que confun­
dem o batismo no Espírito com santidade em geral levam a proble­
mas semelhantes. Deixe-me dar exemplo de três particularmente
comuns hoje.
1) Uma teologia elitista sempre produz baixas espirituais desne­
cessárias. Os pentecostais enfatizaram corretamente, creio, a im­
portância de serem batizados no Espírito (í.e., de receber o dom
pentecostal). Embora o batismo no Espírito (no sentido de Lucas)
seja meramente o ponto de entrada para uma dimensão da capacitação
do Espírito, da qual se deve apropriar continuamente, é apenas o
começo ou uma experiência importante disponível a todo crente
(At L8; 2.17).
Todavia, nem todos os que procuram os dons de Deus recebem
imediatamente o que procuram ou nem mesmo o de que necessi­
tam. Isso vale para o dom de Pentecoste assim como para outros
dons. Deus tem o seu próprio tempo, o seu próprio plano, que trans­
cende os nossos. Nem todos que oram pelo dom pentecostal o re­
cebem sem demora. Os cristãos primitivos esperaram cinqüenta dias,
de nós também se pode requerer um tempo de espera.
Em geral os que não recebem questionam. Eu orei com muitos
diante do altar. Tenho participado de numerosas reuniões de oração,
cheias de crentes ardorosos alcançando tudo o que Deus tinha para
eles. Entesouro essas experiências e testifico com júbilo que essas
horas de oração tiveram e continuam a ter impacto poderoso e posi­
tivo em minha vida. Não obstante, tenho visto também homens e
mulheres deixando o altar de oração frustrados e desanimados.
BATISMO NO ESPÍRITO E FRUTO 0 0 ESPÍRITO 255

Não receberam de Deus o que sabiam que ele tinha para eles e fica­
vam cheios de indagações: “Por que não fui batizado no Espírito? C)
que está errado comigo?”.
Descobri que essas questões não são difíceis de ser tratadas quan­
do reconhecemos que os dons de Deus não são necessariamente
dados aos maduros na vida espiritual. O incentivo para persistir em
oração e viver com esperança chega facilmente. Mas quando se faz a
ligação com a santidade — e importa pouco se o batismo no Espíri­
to é visto como a causa ou o resultado da maturidade cristã — , sobe­
jam os problemas pastorais e as baixas que os acompanham.
2) A ligação entre o batismo no Espírito e a santidade também
leva à confusão do poder espiritual com a maturidade cristã. A igre­
ja de Corinto deveria ser prova suficiente de que o poder espiritual
não é necessariamente ligado à maturidade espiritual. Com o obser­
vamos, os coríntios tinham dons espirituais (cf. IC o 1.7). A nossa
própria experiência não é menos reveladora. Quantos homens ou
mulheres não têm sido usados poderosamente por Deus a despeito
de suas fraquezas ou defeitos?
Há um perigo aqui, porém, que deve ser enfrentado. Quando se
associa o poder espiritual à maturidade espiritual, nossa visão se
obscurece e ficamos incapazes de distinguir entre as duas coisas.
Isso deixa a igreja vulnerável a líderes carnais que possuem poder
espiritual, mas quase nada mais. Para pessoas individualmente, a
confusão de poder com santidade também pode ter conseqüências
devastadoras. Quantos líderes de igreja têm justificado seu estilo de
vida pecaminoso alegando a eficácia do seu ministério? Para salva­
guardar nossa saúde espiritual, precisamos captar este ponto impor­
tante: o poder espiritual não é garantia de que tudo está bem.
3) A associação entre batismo no Espírito e santidade leva ao
repúdio da mensagem pentecostal. Quando definimos o batismo
no Espírito como a fonte de santidade pessoal, nossa teologia é ra­
pidamente menosprezada como se caísse na armadilha coríntia do
elitismo. As críticas de Wayne Grudem, estudioso tradicional aber­
to à idéia do pleno alcance dos dons do Espírito, ilustra esse ponto.
Em sua Teologia sistemática, Grudem rejeita a concepção pentecos­
tal do batismo no Espírito distinto da conversão por causa de suas
NO PODER 0 0 ESPÍRITO 256

insinuações elitistas. Falando da distinção entre os que foram bati­


zados no Espírito e os que não foram, Grudem escreve: “O proble­
ma é que ela contribui para a mentalidade ‘nós e eles’ nas igrejas e
leva à inveja, ao orgulho e às divisões”.2 Esta crítica se justifica quan­
do os pentecostais apresentam o batismo no Espírito como um im­
pulso geral para a vida cristã, a fonte do fruto do Espírito.

Q uestões teológicas

Embora as preocupações pastorais relacionadas acima sejam reais, o


problema fundamental em estabelecer uma ligação necessária e cau­
sai entre o batismo no Espírito e a maturidade cristã é que vai de
encontro com o ensino das Escrituras. Nós já dissemos como a dou­
trina conflita com a teologia de Paulo. Agora, quero focalizar o cen­
tro do problema.
A posição Holiness esboçada anteriormente baseia-se num erro
metodológico fundamental. Ela confunde a linguagem de Paulo, que
fala do fruto do Espírito (G1 5.22,23) e do aspecto ético da vida
cristã com referência a ser “cheio do Espírito” (Ef 5.18), com a lingua­
gem do Pentecoste usada por Lucas (At 1.8; 2.17,18). Como já obser­
vamos nos capítulos anteriores, o método teológico sólido exige
que esbocemos em primeiro lugar a ênfase teológica característica
de um autor bíblico específico. Somente depois de termos feito isso
podemos nos sentir livres para relacionar esses temas teológicos com
os que emergem de outros autores bíblicos. Neste caso, deve-se
observar que não é imediatamente óbvio que o “fruto do Espírito”
de Paulo ou a sua linguagem ética em geral esteja relacionado ao
batismo pentecostal no Espírito descrito por Lucas. Na verdade, se
o nosso trabalho exegético nos capítulos anteriores é sólido, os dois
não podem ser associados por uma relação de causa e efeito.
Certamente Lucas descreve uma experiência poderosa do Espíri­
to que agora está disponível para todo crente. Essa experiência, que
pode ser devidamente chamada de batismo no Espírito (At 1.5),
inicia um crente na dimensão profética do poder do Espírito. Como
a fonte de inspiração profética, o Espírito inspira o testemunho

2Op. cit., p. 777.


BATISMO NO ESPÍRITO E FRUTO 0 0 ESPÍRITO 257

intrépido de Cristo, principalmente em face de oposição, e guia c en­


coraja a igreja em sua missão (e.g., A t 1.8; 2.17,18; 4.31; 9.31). O
Espírito do Pentecoste é, portanto, acima de tudo, o Espírito de
missão. Como já observamos, Lucas não apresenta o Espírito como
um agente soteriológico, nem descreve o Espírito como a fonte direta
de transformação ética. O batismo no Espírito, no sentido de Lucas,
por isso, não pode ser associado com santidade ou maturidade cristã.
Como dissemos, a perspectiva de Paulo é mais ampla do que a de
Lu cas. Paulo reconhecia que o Espírito é mais que simplesmente a
fonte de discurso inspirado e sabedoria carismática, o Espírito está
também presente desde o começo da vida cristã, trazendo transfor­
mação ética progressiva, moldando o crente à imagem de Cristo.
Segundo o apóstolo, a vida cristã em sua totalidade é moldada pelo
Espírito. Precisamente, o Espírito é um agente soteriológico que
infunde poder de transformar a vida em cada crente. Na obra de
Paulo, esse poder transformador de vida está presente desde o co­
meço da vida cristã. Com a regeneração e o recebimento do Espíri­
to, inicia o processo de transformação ética (Rm 8.1-17; 2C o 3.8-18).
Lucas e Paulo, portanto, falam dos dois aspectos do Espírito,
que, embora possam entrelaçar-se, são distintos. Lucas descreve o
aspecto missiológico da obra do Espírito e o relaciona com o dom
pentecostal. Paulo realça o aspecto ético e o associa com a regenera­
ção. É evidente que os dois não podem ser igualados nem associados
sem critério nenhum. Mas como podemos integrar essas duas pers­
pectivas complementares? Com o relacionar os impulsos missioló­
gico e ético da obra do Espírito? Vamos para essas questões agora.

0 CAMINHO A SEGUIR

Alguns anos atrás, eu estava num trem de Xangai a Nanquim. Viaja­


va com os deões e os presidentes de dois seminários. Nós cinco
fomos escalados para visitar líderes de igreja nessas duas cidades
históricas. Enquanto o trem rodava ruidosamente pelos trilhos, co­
meçamos a discutir vários aspectos de teologia. A discussão mudou
para o tópico geral em voga. Mais especificamente, começamos a
discutir o problema da relação entre a experiência e a teologia. Se a
NO PODER DO ESPÍRITO 258

relação entre o batismo no Espírito e a maturidade cristã não pode


ser vista de modo necessário e causai, como explicar os testemu­
nhos de tantos crentes — crentes, que descrevem o batismo no Es­
pírito como um catalisador para o crescimento espiritual deles?
Meu colega e, naquele tempo, meu diretor acadêmico, John Carter,
valendo-se da sua formação em psicologia, propôs um conceito útil
e chamou-o co-relacional, que designa a relação entre duas coisas
freqüentemente encontradas juntas, mas sem relação causai neces­
sária. Quase sempre vêem-se pássaros e esquilos juntos, mas não há
nenhuma relação causai nisso. Pode-se encontrar um sem o outro,
ainda que raramente isso ocorra.
Enquanto o dr. Carter definia o termo co-relacional, eu comecei
a ver que era um modo útil de falar da relação entre o batismo no
Espírito e a maturidade cristã. Em geral, nossa vida espiritual é
moldada por duas dimensões da obra do Espírito: a profética ou
missiológica e a ética ou soteriológica. Quase sempre experimenta­
mos essas duas em nossa vida simultaneamente. Na verdade, esse é
o ideal bíblico. Desse modo, quando temos uma experiência es­
piritual poderosa, como quando somos batizados no Espírito ou
cheios dele (no sentido de Lucas), nós em geral experimentamos os
dois aspectos da obra do Espírito em nossa vida. O profético e o
ético fluem juntos em nossa experiência.
Entretanto, é importante lembrar que embora esses dois aspec­
tos sejam quase sempre experimentados juntos (na verdade, esse é o
ideal), nem sempre isso ocorre. Um aspecto pode ser experimenta­
do independentemente do outro. Isso quer dizer que, embora pos­
samos sentir o encorajamento do Espírito em nossa vida mais
amplamente em momentos de inspiração profética (e.g., quando al­
guém transmite uma mensagem profética ou fala em línguas), isso
não significa que os dois estão sempre e necessariamente relaciona­
dos de modo causai. Um não precisa necessariamente servir como
indicador ou causa do outro. O batismo no Espírito e a sensibilida­
de intensificada ao pecado podem freqüentemente andar juntos. De
fato esse é o ideal, mas é importante observar que eles não são
inseparavelmente ligados de modo causai.
BATISMO NO ESPÍRITO E FRUTO DO ESPÍRITO 259

C onclusão
A precisão teológica nesse assunto é de vital importância. Se basear­
mos a teologia normativa em experiências gerais, correremos graves
riscos. Já discutimos os perigos inerentes quando se confunde o
batismo no Espírito com a santidade cristã. Todavia, um exame do
N ovo Testamento convoca-nos para buscar um caminho mais exce­
lente. Podemos de coração aberto procurar Deus e esperar que ele
derrame o seu Espírito sobre nós de tal modo que transforme a nos­
sa velha natureza, inclinada para os caminhos pecaminoso, e nos
conceda poder e intrepidez para ser as testemunhas que ele quer que
sejamos. Essas duas dimensões podem quase sempre parecer uma
só em nossa vida. À medida que prosseguimos nos caminhos do
Espírito, vamos provavelmente encontrar momentos de refrigério
eticamente transformadores e missiologicamente inspiradores. Mas
uma dimensão pode desenvolver-se sem a outra.
Oremos para que Deus nos conceda ambas. Que possamos procu­
rar apresentar o fruto do Espírito assim como o poder do Espírito.

P erguntas para estudo

1. Muitos pentecostais associam o batismo no Espírito com a ma­


turidade espiritual. Por que Menzies afirma que esse ponto de
vista tem mais afinidades com a teologia dos elitistas de Corinto
do que com a do apóstolo Paulo?
2. Quais são alguns problemas causados por se apresentar o batis­
mo no Espírito como a fonte da maturidade espiritual?
3. Segundo Menzies, a associação entre o batismo no Espírito e a
maturidade espiritual repousa numa suposição falsa. Que supo­
sição é essa?
4. O que o termo co-relacional significa? Por que Menzies acha que
esse termo pode nos ajudar a definir e a entender mais claramen­
te a natureza da relação entre o batismo no Espírito e a maturida­
de espiritual?
Conclusão

s pentecostais tradicionalmente gastam muito tempo na ação e


O pouco na reflexão. Enfatizam muito mais a experiência do que
a teologia. Esse é um comportamento típico dos movimentos de
reavivamento. Quem pode dizer que isso é errado? Certamente os
pentecostais do século xx chamaram a atenção de muitos da comu­
nidade eclesiástica mais ampla para o privilégio e a oportunidade de
experiências profundas com Deus. A obra do Espírito Santo foi
demonstrada por todo o mundo no alcance de novas fronteiras da
missão cristã.
Nos primeiros tempos, quando os pentecostais eram rejeitados
de maneira unânime por outros grupos cristãos, não se requeria
muito a não ser a proclamação fiel da mensagem básica do pente-
costalismo: que Jesus é o Salvador, cura as pessoas hoje, que todos
os crentes devem procurar ardentemente o batismo no Espírito San­
to, e que Jesus voltará logo. Poucas questões vinham à tona dentro
das fileiras dos fiéis, e eles andavam muito ocupados alcançando os
perdidos para Cristo para se preocupar com ninharias de assuntos
teológicos.
Além disso, nos primeiros tempos, os de fora dos arraiais pente­
costais não tinham interesse suficiente em que os pentecostais pro­
pusessem questões. Até a metade do século xx, os pentecostais
estavam preocupados com a proclamação. Cheios de zelo, confian­
tes da justiça de sua causa, os pentecostais se associavam com êxito
às pessoas comuns de todo o mundo com a mensagem de libertação
e esperança. Servindo quase que isoladamente da comunidade ecle­
siástica mais ampla, não ficaram apreensivos com a necessidade de
elaborar argumentos sofisticados de teologia.
Mas o quadro está mudando. Pela metade do século xx, o cresci­
mento e a vitalidade surpreendente do pentecostalismo tinha come­
NO PODER DO ESPÍRITO 262

çado a atrair mais do que um interesse passageiro dentro de uma


faixa mais larga de crentes. Os evangélicos tradicionais acabaram acei­
tando os pentecostais como irmãos ortodoxos (exceto alguns funda-
mentalistas, que continuam rejeitando o pentecostalismo por acharem
que é uma distorção grave da verdade bíblica), e os protestantes
históricos abandonaram a tendência de expulsar automaticamente
seus ministros e leigos que relataram o recebimento da experiência
pentecostal.
Com o surgimento da renovação carismática, que pela década dè
1960 incluiu não somente protestantes históricos, mas também teve
penetração significativa na Igreja Católica Romana, a literatura so­
bre a pessoa e obra do Espírito Santo apareceu como uma verdadei­
ra explosão no mundo cristão. Por volta da década de 1980, os
evangélicos tradicionais se envolveram em algum grau com o reavi-
vamento. Também escreveram livros sérios, que procuravam desco­
brir modos novos de entender a teologia da experiência espiritual.
A fascinação do mundo cristão na última parte do século xx com
a capacitação e a dotação do Espírito Santo e o que isso significa
para a igreja, mudou o ambiente em que os pentecostais operam. As
escolas pentecostais que trabalham no treinamento de ministros têm
usado há anos livros-texto escritos na maior parte por evangélicos
tradicionais, visto que se escrevem muito poucos livros acadêmicos
em suas próprias fileiras. Tendo praticamente abdicado da própria
programação em favor dos evangélicos tradicionais, os pentecostais
agora se vêem diante de problemas importantes em campos básicos
como a hermenêutica e a exegese das Escrituras que se apoiam nes­
sas regras para o estudo da Bíblia.
É evidente que as pressuposições básicas que norteiam os evan­
gélicos tradicionais não servem necessariamente aos interesses dos
pentecostais em todos os aspectos. Em grande parte, o produto dos
estudiosos tradicionais simpáticos ao pentecostalismo (ainda que
críticos das convicções pentecostais básicas) gera questões que de­
safiam o pentecostalismo a uma resposta. Os estudantes pentecos­
tais sérios e os pastores dedicados vêem sua fé desafiada não por
difamadores sarcásticos como em tempos passados, mas por ami­
gos evangéhcos que lhes têm simpatia e apreciam o grande sucesso
CONCLUSÃO 263

evangelístico e missionário. Amigos estes que não estão convenci­


dos da solidez bíblica do ensino pentecostal.
Obviamente os primeiros pronunciamentos dos defensores pen-
tecostais não são mais adequados para satisfazer os desafios que se
apresentam ao mundo eclesiástico de hoje. A verdade não muda,
mas os alvos mudam com o tempo. Questões de reflexão exigem
igualmente respostas refletidas. E necessário um reexame dos valo­
res que durante muito tempo foram caros ao movimento de reavi-
vamento. Este livro é um esforço modesto de juntar as questões
levantadas pela pesquisa recente com a idéia de prover uma base de
apoio mais forte para a experiência pentecostal.
Num importante momento de união na história, no começo de um
novo século e de um novo milênio, as oportunidades e esperanças
para o ministério pentecostal são extraordinariamente brilhantes.
Não mais apreensivos com a rejeição e condescendência dos dias
passados, os pentecostais podem respaldar-se no apoio acadêmico
desfrutado em muitos níveis. Os anos vindouros parecem promis­
sores. Podem-se esperar crescimento rápido e influência crescente.
Há apenas poucas sombras no horizonte. Uma é a possibilidade
da perda da batalha intelectual para os críticos cujas perguntas não
recebem resposta. Seria triste se os estudantes e pastores mais pro­
missores e brilhantes dentre nós se desviassem simplesmente por
não ter em mãos material substancial que fortaleça sua experiência e
fé pentecostal. É por essa razão que este livro é apresentado: contri­
buir, pelo menos modestamente, para que o debate teológico cause
impacto no reavivamento pentecostal.
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