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GRANDES DOUTRINAS BÍBLICAS

Volume 1

Deus o Pai,
Deus o Filho

D. Martyn Lloyd-Jones

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287
01059-970 - São Paulo - SP
Título original:
God the Father, God the Son

Editora:
Hodder and Stoughton Ltd., Londres

Primeira edição em inglês:


1996

Copyright:
Lady E. Catherwood
Ann Desmond

O direito de Dr. Martyn Lloyd-Jones de ser identificado como o autor desta


obra tem sido asseverado de acordo com o ato de Copyright, Design e
Patents 1988

Tradução do inglês:
Valter Graciano Martins

Revisão:
Antonio Poccinelli

Capa:
Sergio Luiz Menga

Primeira edição em português:


1997

Impressão:
Imprensa da Fé
ÍNDICE

Prefácio...........................................................................................7
1. Meu Propósito e Método.......................................................... 9
2. A Revelação........................................................................... 22
3. A Autoridade da Bíblia.......................................................... 36
4. Como Achamos as Doutrinas.................................................50
5. A Existência e o Ser de Deus................................................. 67
6. Os Atributos da Personalidade Absoluta de Deus................. 80
7. Os Atributos Morais de Deus................................................ 95
8. Os Nomes de Deus e da Santa Trindade..............................108
9. Os Decretos Eternos de Deus...............................................124
10. Os Anjos Bons..................................................................... 138
11. O Diabo e os Anjos Apóstatas............................................. 153
12. A Criação do Mundo............................................................167
13. A Providência.......................................................................184
14. A Criação do Homem.......................................................... 200
15. A Imagem Divina no Homem..............................................216
16. A Queda............................................................................... 231
17. A Posteridade de Adão e o Pecado Original........................245
18. A Corrupção Original...........................................................259
19. Redenção: o Plano Eterno de Deus....................................... 274
20. O Pacto da Graça no Velho Testamento..............................288
21. O Pacto da Graça no Novo Testamento............................... 302
22. O Senhor Jesus Cristo.......................................................... 314
23. A Encarnação....................................................................... 326
24. Evidência para a Deidade e a Humanidade de Cristo.. 339
25. Deus-Homem: a Doutrina..................................................... 353
26. Cristo o Profeta.................................................................... 368
27. Cristo o Sacerdote................................................................ 378
28. A Expiação...........................................................................390
29. Substituição..........................................................................404
30. A Necessidade de Expiação................................................. 417
31. Cristo o Vitorioso.................................................................429
32. As Bênçãos do Novo Pacto............................................ 443
33. Cristo o Rei.......................................................................... 456
PREFACIO
Nas noites de sexta-feira, após a guerra, o Dr. Lloyd-Jones
passou a manter reuniões de debates numa das salas da Capela
de Westminster, em Londres. Os temas desses debates versavam
sobre questões práticas da vida cristã, e as reuniões eram
freqüentadas por um grande número de pessoas. As questões que
surgiram demandavam um sólido conhecimento de todo tipo de
ensino bíblico. As vezes surgiam também problemas
doutrinários, com os quais “o Doutor” tinha que tratar,
geralmente em sua conclusão, no encerramento do debate. Em
parte era resultado disso, e em parte porque o número foi se
tornando muito grande para a sala comportar, e talvez também
porque as pessoas que lhe pediam informação sobre as doutrinas
bíblicas eram tantas, que ele começou a sentir a necessidade de
mudar a “reunião noturna de sexta-feita” para a própria Capela,
e ministrar ali uma série de preleções sobre esses grandes temas.
Ele fez isso de 1952 a 1955, e então deu início à sua magistral
série sobre a Epístola aos Romanos, à qual deu seguimento até
sua aposentadoria em 1968. As preleções doutrinárias eram
muitíssimo apreciadas pelas grandes congregações que as
ouviam; e, ao longo dos anos, muitos têm dado testemunho da
maneira como, por meio delas, sua vida cristã se fortaleceu.
Mais tarde, o próprio Doutor se sentiu mais satisfeito em
pregar sobre doutrinas como parte da exposição regular, como
certa vez afirmou: “Se as pessoas desejam conhecer uma doutrina
em particular, poderão encontrá-la nos manuais de doutrina.”
Mas a grande força de seus estudos doutrinários consiste em que
eles não são áridos compêndios de preleções. Ele era acima de
tudo um pregador, e isso se salienta em todas as suas preleções.
Ele era também pastor, e desejava que homens e mulheres
compartilhassem de seu senso de admiração e de sua gratidão a
Deus pelos fatos poderosos do evangelho. Daí sua linguagem clara

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e destituída daquela complexa fraseologia acadêmica. À
semelhança de Tyndale, ele queria que a verdade se revestisse de
palavras “compreensíveis ao povo”. Outro desejo seu era que o
ensino não ficasse só na cabeça, por isso há em cada preleção
uma aplicação para que se assegurasse que o coração e a vontade
também fossem tocados. A glória de Deus era a sua principal
motivação na ministração destas preleções.
Os que conhecem a pregação e os livros do Dr. Lloyd-
-Jones, ao lerem as preleções, haverão de se lembrar que seus
pontos de vista sobre alguns temas se desenvolveram ao longo
dos anos, e que suas ênfases provavelmente nem sempre eram
as mesmas. Todavia esta constitui parte da riqueza do seu
ministério, como o foi do ministério de muitos dos grandes
pregadores do passado. Não obstante, no tocante às verdades
essenciais e fundamentais da Palavra de Deus, não há qualquer
mudança em sua proclamação, e nenhum som incerto tem-se
emitido.
Temos encontrado certa dificuldade na preparação destas
preleções para a publicação. Elas foram há muito tempo
pronuciadas e gravadas em fitas, de modo que em certos lugares
houve dificuldade em decifrarem-se as palavras, e algumas fitas
se perderam. Além disso, só pouquíssimo das preleções foi
taquigrafado, e assim, num ou dois casos, não temos nem fita
nem manuscrito. Afortunadamente, contudo, o Doutor guardou
suas anotações pessoais de todas as preleções, e assim as temos
usado, embora, naturalmente, significa que esses capítulos não
se acham tão completos quanto os demais.
As fitas do Doutor são distribuídas pelo Martyn Lloyd-
-Jones Recordings Trust, e de todas as suas fitas o maior número
de pedidos consiste nestas preleções doutrinárias. A carência de
conhecimento das verdades vitais da fé cristã é maior agora do
que antes - com certeza ainda maior agora do que na década de
1950! Portanto a nossa oração é para que Deus use e abençoe
estas preleções novamente, para o nosso fortalecimento e para a
glória dEle.
Os Editores

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MEU PROPÓSITO E MÉTODO
E sempre bom começar com um texto. Não significa que eu
pretenda pregar, mas desejo começar com algumas palavras que
oferecerão uma base para tudo o que me proponho dizer agora, e
que esclarecerão o que me proponho fazer nesta série de estudos
sobre doutrinas bíblicas. A minha referência é Deuteronômio
29:29: “As coisas encobertas são para o Senhor nosso Deus;
porém as reveladas são para nós e para nossos filhos para sempre,
para cumprirmos todas as palavras desta lei.”
Ora, inevitavelmente, teremos que começar com
introduções; isso se faz necessário, penso eu, por diversas razões.
Uma delas consiste em que algumas pessoas poderão questionar
a propriedade do que nos propomos fazer. Vivemos numa época
em que não ouvimos muito sobre doutrinas, e há alguns que são
bastante insensatos em afirmar que não gostam delas. A atitude
de tais pessoas parece-me um tanto patética e lamentável. Houve
tempo em que preleções ou sermões sobre doutrinas bíblicas eram
comuns, mas agora se tornaram comparativamente incomuns,
especialmente ao longo deste século. Entretanto, ainda que não
iremos tratar diretamente dessa crítica, todavia ela constitui um
bom ponto de partida e me induz a dizer que há certas coisas
que devemos ter bem delineadas em nossas mentes.
Consideraremos três coisas: o que iremos fazer nestes estudos;
como o faremos; e por que o faremos.
Então, o que iremos fazer? Esta deverá ser uma série de
estudos sobre doutrinas bíblicas. O que pretendemos, quando
falamos de doutrina bíblica? A resposta é que a Bíblia se preocupa
particularmente com o ensino de certas verdades, e nada é mais
importante do que compreendermos esse fato, e que devemos
começar com ele. A Bíblia é um livro que possui um objetivo
bem definido. Todo o seu ensino é destinado a um certo fim; ela
se preocupa em pôr diante de nós suas doutrinas, as verdades

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específicas que ela quer enfatizar e imprimir na mente de todos
nós.
Coloquemos isso mais claramente na forma de uma negativa.
A Bíblia não é, por exemplo, uma história geral do mundo. Nem
sempre nos lembramos de tal fato, porém notemos como ela, em
Gênesis, acumula dois mil anos em apenas onze capítulos. A
Bíblia não está primariamente interessada na história do mundo;
o seu tema é outro.
Permitam-me usar outra negativa. A Bíblia nem sempre se
preocupa em fornecer-nos uma história completa de tudo quanto
Deus tem feito - Ele tem feito muitas coisas que não se acham
mencionadas na Bíblia - mas ela seleciona certos fatos que ajudam
a realçar o seu próprio propósito e plano. Os quatro Evangelhos,
por exemplo, não pretendem ser uma biografia completa do Filho
de Deus, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ao contrário,
eles se preocupam em apresentar certas verdades acerca dEle, a
saber, eles abrangem ✓apenas três anos de Sua vida - há muito
pouco além disso. E verdade que nos contam algo de Seu
nascimento, mas a principal ênfase nos Evangelhos é ao Seu
ministério público; o que Lhe aconteceu após a idade de trinta
anos.
João, em seu Evangelho, nos põe isso de forma muito clara.
Ele nos relata: “Jesus, pois,-operou também em presença de seus
discípulos muitos outros sinais, que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome”
(João 20:30,31). João não se propôs a fornecer-nos um relato exato
e detalhado da vida de nosso Senhor. Ao contrário, ele tinha um
objetivo em vista, e no último versículo de seu Evangelho ele
declara: “Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e
se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo
todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém” (João
21:25).
“Então, o que a Bíblia de fato ensina?” - perguntaria alguém.
Seguramente, não pode haver hesitação alguma quanto à resposta
a esta pergunta. A Bíblia, em sua essência, é a grande história da

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redenção. É a história do que Deus fez a respeito dos homens e
das mulheres em conseqüência do pecado deles, e tudo o mais
que se encontra na Bíblia é, em realidade, uma decorrência desse
fato. A Bíblia se preocupa em apresentar-nos a mensagem de
redenção através de Deus e provinda dEle, de uma forma que
pudéssemos compreender, ver e crer. Daí, quando falamos de
doutrinas bíblicas, nos referimos a esses aspectos da redenção,
os quais se acham desvendados na Bíblia para nós. Tais aspectos
constituem as diversas verdades que deparamos na Bíblia acerca
desta grande questão.
Ora, as classificações são muitas, mas permitam-me sugerir-
-lhes algumas das doutrinas cuja avaliação somos obrigados a
considerar. Uma delas, naturalmente, é o próprio Livro. Por que
damos tanta atenção a este Livro? Por que nos restringimos a
ele? O que ensina-nos a Bíblia acerca de si mesma?
Evidentemente, devemos partir desse ponto. Não poderemos
insistir em considerar as doutrinas da Bíblia, a menos que
tenhamos uma idéia nítida quanto ao que ela intrinsecamente
é, e o que ela alega ser.
Portanto, uma vez aceita a nossa autoridade, o nosso padrão,
daremos início com a grande doutrina que sempre deve preceder
a qualquer outra doutrina, ou seja, & doutrina relativa a Deus. “No
princípio Deus” (Gen. 1:1). Encontramos Deus aqui. E a Sua
revelação. Portanto, assim que abrimos a Bíblia, aprendemos a
verdade sobre Ele, e, estritamente falando, este é o sentido do
termo Teologia.
Em seguida, obviamente, vem a doutrina sobre o homem.
Sempre digo que a tarefa da Bíblia é ensinar-nos acerca da
redenção, e redenção é o que Deus está fazendo com respeito ao
homem. E isso é o que se chama Antropologia.
Então nos deparamos com a doutrina de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo - a Cristologia - visto que, afinal, toda a
redenção está nEle, e tão-somente nEle. Tudo o que sucede no
Velho Testamento está voltado para Ele. Ele é o clímax, e a Bíblia
tem muito a dizer-nos sobre Ele.
Uma vez, porém, descoberto como a redenção nos foi

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providenciada, o próximo assunto que nos ocorre é o seguinte:
como aplica-se a nós esta doutrina? A Bíblia contém grande
ensino sobre isto, ou seja, a doutrina da salvação aplicada ou
Soteriologia.
Então, o que nos sucede assim que somos redimidos? Bem,
somos introduzidos na Igreja e somos feitos membros do corpo
místico de Cristo. Assim, obviamente, vocês esperariam que a
Bíblia nos ensine algo sobre a Igreja, e é isso o que ela faz. E isso
chama-se Eclesiologia - a doutrina da ecclesia, a Igreja.
E então, naturalmente, formulamos esta pergunta: aqui
estamos nós, os redimidos, membros de Cristo, de Seu corpo, a
Igreja. E então? O que nos sucederá? Para onde isso conduzirá?
A Bíblia novamente nos satisfaz neste ponto, visto que ela contém
a doutrina das últimas coisas, a qual se chama Escatologia. Todo o
ensino bíblico está sempre nos conduzindo a algo, a um grande
clímax e consumação. Neste ponto permanece um resultado final,
as últimas coisas, e encontramos muito ensino na Bíblia sobre
essa doutrina.
Eis aí algumas das verdades que, se Deus quiser, esperamos
considerar juntos, e isso é tudo quanto me proponho fazer.
Portanto, que ninguém conclua que a nossa preocupação, aqui, é
oferecer uma visão geral ou sinopse da Bíblia e seu conteúdo.
Fazer isso é perfeitamente conveniente, mas não é o que
estaremos fazendo. Apresentei-lhes um perfil geral destas
doutrinas, e dirigiremos nossa atenção para o mesmo.
Descobriremos as doutrinas no texto, na Palavra, e nossa tarefa
é extraí-las e estudá-las.
Agora, porém, focalizemos a segunda pergunta: como iremos
fazer isso? E aqui, novamente, devemos tomar muito cuidado, a
fim de obtermos uma boa definição, bem como ter bem delineado
em nossa mente o que estamos realmente empreendendo, visto
que freqüenteniente surgem mal-entendidos nesta questão.
Coloquemo-la novamente em termos negativos. Não pretendo
apresentar uma série de preleções sobre teologia. Será que isso
surpreende a alguém? Será que alguém pensou: “Bem, com
certeza não se pode prelecionar sobre doutrinas bíblicas sem

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ministrar preleções sobre teologia”? Sugiro-lhes que as duas
coisas não são uma só, e é importante que percebamos a diferença
enquanto refletimos sobre esta série de mensagens. Temos,
necessariamente, que restringir-nos ao que a Bíblia diz, e somente
ao que ela diz.
Ora, a teologia não procede assim; ela nos leva para um
campo muito mais amplo. A teologia se introduz afirmando que
Deus Se nos revelou não somente na Bíblia, como também na
história. Ele Se revela experimentalmente na experiência, e a
teologia afirma que antes de recebermos a doutrina bíblica, o
dogma bíblico, precisamos levar em consideração estes outros
aspectos da revelação. Naturalmente, a teologia inclui a Bíblia
também, mas ela inclui mais do que a Bíblia. Noutras palavras,
o teólogo procede mais ou menos assim: ele vai à Bíblia; estuda -
-a; esboça e organiza suas doutrinas ou toma em consideração o
que algum outro já fez. Então prossegue a refletir sobre essas
doutrinas; pondera sobre elas e as analisa. Ele tenta produzir
um esquema para elas. Então introduz a filosofia, a qual
subentende pensamentos e raciocínios humanos. Enfeixa todas
essas coisas e pondera sobre elas, e o fim de tal processo constitui
o que chamam de teologia.
Portanto, espero que esteja bem claro que isso não é o que
me proponho fazer. Isso não significa que eu não creia em
teologia - eu creio nela. Mas quando digo que estarei ministrando
uma série de mensagens sobre doutrinas bíblicas, não estou
querendo afirmar que irei ministrar preleções sobre teologia.
Permitam-me apresentar-lhes um exemplo que esclareça
precisamente o que estou tentando dizer. Houve um famoso
preletor e expositor da Bíblia, na América, no final do século
dezenove e começo do século vinte, que publicou um livrinho
intitulado As Grandes Doutrinas da Bíblia. Ora, despertou-se o
meu interesse quando me voltei para aquele livro com o fim de
descobrir o que o autor tinha a dizer, por exemplo, sobre a
doutrina referente a Deus. Para o meu espanto, descobri que o
seu primeiro título era este: “Provas da Existência de Deus.” De
repente percebi que dizia de mim para mim mesmo: “Ele não

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deveria ter dado tal título ao seu livro; deveria ter dito que é um
livro sobre teologia cristã, visto que ninguém encontra quaisquer
provas da existência de Deus na Bíblia.”
O que quero dizer por essas provas é o seguinte: certas
pessoas argumentam que é possível chegar a crer em Deus pelo
simples exame introspectivo de sua própria consciência. Vocês
dizem a si mesmos: “Penso, portanto existe... Penso em Deus,
mas a idéia deve ter vindo de algum lugar, deve haver algo
correspondente ao meu pensamento. Portanto deve existir e tem
que existir Deus”, e assim por diante. Então usam o argumento
da natureza. Afirmam que vocês olham para a natureza e, por
assim dizer, então vêem nela ordem e desígnio, e assim concluem
que tudo isso deve ter vindo de algum lugar - deve haver um
criador. Um ótimo argumento.
Existe também o argumento moral. Reconheço que existe
bom e melhor neste mundo. E isso me sugere que deve haver,
em algum lugar, o melhor, deve haver uma perfeição absoluta, e é
a isso que chamam de argumento moral da existência de Deus.
Ora, o dito escritor, a quem me referi, discute minuciosamente
tudo isso em seu livro, bem como muitos outros argumentos.
Entretanto isso é algo que a Bíblia nunca faz. Eis um homem
que nos informa que escreveu um livro sobre as grandes doutrinas
da Bíblia, mas cujo comportamento é de um teólogo!
Não estou afirmando que não haja valor algum nesses
argumentos, os quais visam provar a existência de Deus. O meu
intuito, porém, é enfatizar o fato de que não os encontramos na
Bíblia. E é interessante notar como esse homem, que apresenta
um texto para tudo quanto diz, de repente não tem um só texto
para esta seção em particular. Portanto, ele vai além do que se
propusera fazer.
Entretanto, no tocante a nós, trataremos dedoutrinas bíblicas.
A Bíblia não nos fornece provas da existência de Deus; ela O
proclama; ela apenas nos relata sobre Ele. Além disso, como já
afirmei, embora não signifique que eu não creia na teologia,
todavia pretendo deixar bem claro, desde o início, que devemos
ter em mente o fato de que existe certo perigo relacionado à

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teologia. No momento em que introduzimos a filosofia e a
especulação, bem como nossos próprios pensamentos e razão
humana, estaremos começando a fazer algo que pode, embora
não necessariamente, vir a constituir-se um perigo para nós.
Pois bem, evitaremos tudo isso.
Evitaremos algo mais. Não tentaremos defender estas
doutrinas. Além do mais, tal defesa seria um procedimento
perfeitamente legítimo, o que é denominado de apologética.
Todavia, não estamos interessados em defender as doutrinas, e
digo isso porque alguns de vocês, ao dirigirem-se a algumas
doutrinas em particular, talvez se sintam desapontados vendo
que esse não será o meu procedimento. Por exemplo, quando
chegarmos à doutrina da Criação, e toda a questão da evolução
vier a lume, o propósito primário não será tratar dela
exaustivamente. As doutrinas bíblicas não nos levam a recorrer
a esse expediente. Naturalmente teremos que fazer alusão à
evolução; mas, primariamente, teremos que fazer uma
apresentação expositiva do que a Bíblia mesma tem a dizer.
Por conseguinte, a posição que tomamos é também aquela
de Deuteronômio 29:29: “As coisas encobertas (a explicação final
das coisas) são para o Senhor nosso Deus.” Também estaremos
tratando da doutrina do pecado, e alguém talvez queira saber:
“De onde veio o mal?” Eu não posso dizer-lhes. A Bíblia não
no-lo diz. Podemos especular, podemos arrazoar, mas isso não é
doutrina bíblica. Temos que restringir-nos às coisas que foram
reveladas, não às coisas secretas que estão no recôndito da mente
de Deus.
Essa, então, é mais ou menos a definição do procedimento
com que nos propomos considerar estas doutrinas. E isso nos
conduz à última pergunta: por que cremos que isso deveria ser
feito? Ora, eis algumas das respostas que sugeriria a essa pergunta.
A primeira é que a Bíblia mesma o faz, e portanto nós devemos
fazê-lo também. Eu lhes disse no início que a Bíblia não é
meramente uma história geral. É um livro que se preocupa em
colocar certas verdades específicas com clareza diante de nós, e
essas verdades são doutrinas. Daí, para ler minha Bíblia

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corretamente, significa que preciso me interessar em doutrina.
A Bíblia quer que eu apreenda a sua doutrina. Noutras palavras,
posso conhecer minha Bíblia muito bem, mas, a não ser que
compreenda a importância de apropriar-me de suas doutrinas, o
meu conhecimento dela poderá tornar-se totalmente inútil para
mim.
Permitam-me colocar isto diante de vocês, da seguinte
forma: acaso não foi exatamente isso que os profetas fizeram?
Lemos a respeito deles no Velho Testamento - o que faziam
aqueles homens? Tomavam posse dessas doutrinas - a doutrina
da lei, em particular - e as puseram em vigor. Faziam aplicação
da lei. Dirigiam-se às nações e lhes diziam: “Vocês imaginam
que, porque possuem a lei, têm conhecimento dela, mas não a
conhecem!” Diziam: “A lei está expondo isso diante de vocês, e
isso é o que têm de captar e compreender.” Eles proclamavam
doutrina ao povo.
Não seria exatamente isso o que nosso Senhor mesmo fez?
Qual foi o Seu procedimento no Sermão do Monte, senão o
mesmo (dos profetas)? Disse ele: “Ouvistes... Eu, porém, vos
digo...” (Mat. 5:27,28). Ele tomou a lei e a expôs na forma de
doutrina. Ele a explicou. Disse que uma mera familiaridade geral
com a lei não era de nenhum valor; precisamos saber o que ela
exatamente diz. Ele extraiu os princípios, aplicou-os e os impôs.
Obviamente, esse foi também o mesmo procedimento dos
apóstolos. Leiam o livro de Atos e observem a pregação daqueles
primeiros pregadores cristãos. O que fizeram eles? Vocês não
constatarão que eles tomaram um texto e então ofereceram seu
exato significado à luz do grego e do hebraico, e em seguida o
analisaram, e assim por diante. Não, e não! Seu método de
pregação era o de proclamar doutrinas. Eles tinham uma
mensagem, e a apresentavam ao povo; usavam as Escrituras para
mostrar qual era a doutrina do texto.
Naturalmente isso é o que está compreendido no termo
pregação-, esse é o propósito e a função da pregação. Ela não
consiste numa mera oportunidade para alguém expressar seus
próprios conceitos. Ela não consiste, reitero, numa mera

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oportunidade de apresentar uma tradução alternativa das
Escrituras. Ao contrário, o seu propósito é apresentar a verdade
à congregação. Os apóstolos fizeram isso, assim como a pregação,
em sua essência, sempre o faz.
Ou, tomemos as Epístolas do Novo Testamento. O que são
elas? Ora, nestas Epístolas certas doutrinas proeminentes são
tomadas, sublinhadas e aplicadas. Houve uma particular neces­
sidade de tal procedimento em certas igrejas. Portanto o escritor
da Epístola apresenta sua doutrina e a aplica de uma maneira
prática. Vocês perceberão continuamente que a preocupação dele
é com a expressão e a elucidação da doutrina. Essa, então é a
minha primeira razão para proceder assim. Afirmo que a Bíblia
o exige. Ela mesma o faz e nos exorta a fazê-lo.
Outra razão consiste em que é arriscado estudarmos a Bíblia
sem tal procedimento. Falamos, não é verdade? sobre não ver a
floresta por causa das árvores - e quão terrível é tal perigo! O
problema real dos judeus nos dias de nosso Senhor era que se
detinham na letra e nunca alcançavam o espírito. Noutras
palavras, jamais se apropriavam da doutrina. Sentiram-se
satisfeitos em ter uma familiaridade geral com as palavras, mas
não obtiveram a Palavra. E isso é algo que todos nós temos de
compreender como sendo uma possibilidade terrivelmente
perigosa para nós, pois se nos detivermos unicamente na letra,
ela não nos será de nenhum proveito; aliás, até mesmo nos
desencaminhará. Pode até causar a condenação eterna para nossas
almas. Não atingir sua doutrina depois de ter estudado suas
Bíblias significa que o seu estudo se tornou completamente
inaproveitável. Ele pode ser muito intelectual. Pode até ser uma
forma de gastar bem seu tempo. Conheço pessoas que têm se
utilizado da Bíblia da mesma maneira que usam enigmas de
palavras cruzadas, ou mesmo um quebra-cabeça, para juntar
peças, mas jamais chegam à doutrina. O seu estudo é de nenhum
valor. É infrutífero.
Existe ainda outra razão para estudarmos a doutrina bíblica,
a saber, a Igreja, ao longo dos séculos, esteve sempre cônscia de
que é essencial dar ênfase às doutrinas da Bíblia. Nos próprios

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dias iniciais da Igreja, ninguém era recebido como membro dela
sem fazer a confissão, a qualquer preço, de que Jesus é Senhor.
Mas no instante em que vocês dizem: “Jesus é Senhor”, estarão
fazendo uma afirmação doutrinal. Então, depois de algum tempo,
os cristãos primitivos descobriram que não era suficiente dizer
meramente: “Jesus é Senhor” - descobriram a necessidade de
introduzir o que se chamou fórmula batismal. Os candidatos ao
batismo eram instruídos, eram-lhes dirigidas certas perguntas,
e tinham que estar aptos a respondê-las.
Todavia vocês se lembram do que sucedeu? Logo, logo as
heresias começaram a surgir. Pessoas dentro da Igreja começaram
a dizer coisas que não eram corretas. Tais pessoas eram
autênticas e sinceras, porém muitas estavam dizendo coisas
equivocadas e até mesmo nocivas. E esses mestres heréticos e
falsos, naturalmente, não só provocavam confusão dentro da
Igreja, mas também desencaminhavam as pessoas que se
achavam do lado de fora da Igreja. O surgimento de heresias
dentro da Igreja levou a Igreja Primitiva a redigir o que
comumente chamamos credo-, por exemplo, o Credo dos
Apóstolos, o Credo Niceno e o Credo Atanasiano.
Ora, tais credos faziam-se necessários, uma vez que havia
muito erro e heresia na Igreja, e esta, sob as diretrizes do Espírito
Santo, disse: “Precisamos saber perfeitamente tanto o que
devemos crer quanto o que não devemos crer. Não é bastante
que simplesmente apresentemos ao povo uma Bíblia aberta.
Homens e mulheres perfeitamente sinceros, autênticos e capazes
podem ler este livro e ainda dizer coisas que são completamente
equivocadas. É preciso que definamos nossas doutrinas” - e as
definições doutrinárias são o que chamamos credos.
Naturalmente, pois, após algum tempo, aquela Igreja que,
em certo sentido, fora apenas uma, agora estava dividida em
duas - a Igreja Oriental e a Igreja Ocidental. No entanto, a
doutrina era mais ou menos a mesma. A Igreja estava morta,
estou ciente disso, mas ela era governada por esses três grandes
credos.
Então chegou a Reforma Protestante. Chegou também nova

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vida, novo vigor, nova compreensão, e novamente a Igreja
descobriu que era absolutamente essencial extrair suas doutrinas
e enunciá-las de uma forma perfeitamente clara e definida. E
assim temos o que comumente denominou-se entre os
protestantes, as grandes Confissões. Essas não são outra coisa
senão uma classificação e exposição das doutrinas da Bíblia. Os
líderes novamente disseram: “Não basta oferecer às pessoas uma
Bíblia aberta.” É preciso guiá-las. É preciso ajudá-las. Elas são
facilmente passíveis de desvio. Portanto, é preciso que lhes
digamos que é nisso que cremos sobre Deus e não cremos naquilo.
É preciso falar-lhes sobre Cristo, sobre a Igreja, e assim por
diante. A Igreja da Inglaterra possuía sua Confissão, à qual
chamou os Trinta e Nove Artigos. Houve também muitas
confissões famosas no Continente, por exemplo, a da Igreja
Moraviana e a da Igreja Reformada. E então surgiu a grande
Confissão, a qual foi elaborada na Abadia de Westminster, no
século dezessete, e é, portanto, conhecida como A Confissão de
Westminster. É a Confissão da Igreja da Escócia e de todas as
Igrejas Presbiterianas em todas as partes do mundo.
Ora, todas estas Confissões, tanto quanto os catecismos que
as acompanham, não são nada mais do que uma afirmação de
doutrinas bíblicas, para que o povo dentro da Igreja pudesse saber
exatamente o que crer e o que não crer, bem como as razões para
crer. Todas elas foram destinadas à nossa edificação na fé, bem
como capacitar-nos a conhecermos exatamente a nossa posição.
Ora, se tudo isso foi necessário nos dias da Igreja Primitiva,
se foi necessário no tempo da Reforma e no século dezessete,
não seria também algo de urgente necessidade para o nosso
tempo? A Igreja de hoje está cercada por seitas; seus representantes
chegam à nossa porta falando - como dizem - “das Escrituras”.
Afirmam que crêem na mesma Bíblia que ensinamos. De repente
fazem uma afirmação que nos leva a sentir instintivamente que
há algo de errôneo nela, contudo não conseguimos responder-
-lhes. Aliás, um dos propósitos de estudarmos as doutrinas
bíblicas consiste em capacitar-nos para descobrir juntos o erro
em tais ensinos. Não que eu pretenda prelecionar sobre seitas; o

19
que farei é o seguinte: lembrar-lhes-ei do que a Bíblia ensina.
Então, uma vez adquirido uma firme percepção e conhecimento
desse ensino, estaremos em condição de testar muitos outros
ensinos que nos são apresentados.
Mas não é somente o caso de haver todos esses erros e seitas
ao redor da Igreja, mesmo dentro dela existe terrível confusão.
Há ausência de doutrina; há falta de definição clara e há
prontidão para permitir a qualquer um que diga o que bem quiser.
E isso significa que nunca houve momento em que se fez mais
urgentemente necessário que o povo cristão considere junto as
doutrinas da Bíblia. Devemos conhecer a nossa posição, e
devemos ser capazes de rechaçar cada inimigo que surja com o
intuito de atacar-nos, cada adversário sutil, cada sutileza usada
pelo diabo, o qual se mostra dissimulado em “anjo de luz” para
trazer ruína às nossas almas.
Tenho, porém, uma razão ainda mais importante para
considerar estas doutrinas com vocês. Enfim, esta é a única
maneira real de se conhecer a Deus, de entrar em Sua gloriosa
presença e de aprender um pouco das maravilhas de Seus
caminhos em relação a nós. Sim, prossigamos lendo e estudando
nossas Bíblias, contanto que não nos percamos nos detalhes.
Escalemos estas grandes, poderosas e altaneiras montanhas
doutrinárias, e compreendamos daí quem é Deus e o que Ele
tem feito por nós na Pessoa de Seu Filho, a despeito de nosso
pecado.
Esse, em todo caso, é o objetivo que tenho em mente. Não
estou fazendo isso com o fim de fornecer-lhes algum
conhecimento ou informação intelectual que porventura vocês
não possuíam anteriormente. Que Deus me livre de tentar tal
coisa, ou que alguém pense dessa forma sobre o que estamos
fazendo. Diz Paulo: “A ciência incha, mas o amor edifica” (1
Cor. 8:1). Portanto, o clima dessa série de discursos ou debates
sobre doutrinas bíblicas não será a de uma sala de aula. Não
haverá nenhum exame final para determinar quanto vocês
aprenderam, nem lhes será conferido algum diploma! Não, e
não! Estamos interessados em Deus - em conhecê-10. Isso é

20
adoração. Qualquer exame da Bíblia se constitui em adoração, e
ao meu ver não há nada mais perigoso do que alguém aproximar-
-se da Bíblia e de seu ensino, da mesma maneira que se aproxima
de qualquer outro livro.
Certas pessoas às vezes me perguntam: “O que há de errado
com esses colégios teológicos? Tenho conhecido um grande
número de homens que, ao entrarem neles, estava tudo bem; no
entanto, observem-nos quando saem!” Ora, isso nem sempre é
assim - há pessoas que sempre falam dessa maneira - mas, se às
vezes esse é o caso, creio que posso dizer-lhes o porquê. Sucede
que, em tais escolas, as pessoas se aproximam da Bíblia como se
ela fosse mais um manual de pesquisa. As vezes se aproximam
destas grandes doutrinas como se as mesmas fossem apenas idéias
e pensamentos humanos. Nem sempre se aproximam delas numa
atitude de adoração e temor. Estão interessados na tradução e
no conhecimento intelectual. Isso é essencial, mas não devemos
parar aí.
As doutrinas da Bíblia não são um assunto para ser estudado;
devemos, antes, almejar conhecê-las a fim de que, uma vez
conhecendo-as, não venhamos a sentir-nos “inchados” com o
conhecimento e excitados em razão de nossa informação, mas
nos aproximemos mais de Deus em culto, em louvor e em
adoração, porque temos percebido, de uma maneira muito mais
plena do que tivemos visto antes, a glória de nosso admirável
Deus. Que Ele nos dê razão para procedermos assim e conceda
que, em resultado destas doutrinas, todos nós venhamos a
conhecê-10, o único Deus vivo e verdadeiro, e a Jesus Cristo a
quem enviou - e, como resultado disso, sejamos todos renovados.
E assim expresso a esperança de que, através de nós, e de outros
como nós, toda a Igreja seja vivificada e venha a experimentar
novamente em nosso meio a manifestação do glorioso poder de
Deus.

21
2
A REVELAÇÃO
Talvez seja aconselhável conservarmos em nossa mente as
palavras que se encontram em Atos 14:15-17:

“E dizendo: varões, por que fazeis essas coisas? Nós


também somos homens como vós, sujeitos às mesmas
paixões, e vos anunciamos que vos convertais dessas
vaidades ao Deus vivo, que fez o céu, e a terra, e o mar, e
tudo quanto há neles; o qual nos tempos passados deixou
andar todas as gentes em seus próprios caminhos. E
contudo, não se deixou a si mesmo sem testemunho,
beneficiando-vos lá do céu, dando-vos chuvas e tempos
frutíferos, enchendo de mantimento e de alegria os vossos
corações. ”

Ora, qualquer consideração das doutrinas bíblicas, bem


como da doutrina cristã em geral, obviamente se preocupa,
finalmente, com esta grande pergunta: como é possível
conhecermos a Deus? A exclamação está aí no coração humano,
como expresso tão perfeitamente por Jó: ‘Ah, se eu soubesse
que o poderia achar!” (Jó 23:3). Tomamos por certo o que se tem
freqüentemente salientado, ou seja, que se acha presente em toda
a raça humana aquilo que podemos descrever como “consciência
da presença de Deus”. Muitos declaram que não crêem em Deus,
mas, ao afirmarem isso, se encontram lutando contra algo
fundamental e inerente em seu próprio ser, que lhes dá
testemunho de que Deus existe, que terão de tratar com Ele e
que, de um modo ou de outro, terão de vir e entrar em acordo
com Ele, ainda que tal acordo lhes venha a ser uma completa
negação dEle. Aqui, pois, afirmo que está algo que é básico à
natureza humana e fundamental em todo o gênero humano. E
esta consciência da presença de Deus, este pressentimento acerca

22
de Deus, é algo que abençoa homens e mulheres, ou então os
atormenta. E todos têm de enfrentar esse algo.
Os que se preocupam com isso, e os que anseiam por
encontrar e conhecer a Deus, são confrontados por duas possíveis
formas de o conseguirem. A primeira, aquela que nos surge
instintivamente em razão de nossa condição decaída, consiste
em crermos que nós, por nossos próprios esforços e buscas,
podemos encontrar Deus; e desde os primórdios da história,
homens e mulheres têm se engajado nessa aventura. Eles têm
procedido assim fazendo uso de dois métodos principais. Um
deles é segair esse tipo de sentimento instintivo e intuitivo que
nos é inerente, e que se apresenta de várias formas. Alguns às
vezes falam de “luz interior”, e dizem que tudo o que precisamos
fazer é seguir essa luz e sua orientação.
Esse é o caminho dos místicos e outros. Dizem eles: “Se
você deseja conhecer a Deus, então a melhor coisa a fazer é
mergulhar em você mesmo. Dentro de cada um de nós há uma
luz interior que afinal levará a Deus. Você não precisa de
conhecimento” - dizem eles. “Você não necessita de coisa
alguma, exceto daquela resignação de si mesmo e de suas
faculdades, dando lugar a essa luz e sua orientação.” Ora, esse
método intuitivo é algo com o qual todos nós estamos
familiarizados. Ele assume numerosas formas, e está presente
em muitas das seitas do mundo moderno.
O outro método que tem sido adotado é aquele que tem por
base a razão, a sabedoria e o discernimento. A pessoa pode
começar, por exemplo, com a Natureza e a Criação, e ela é
persuadida a partir disso. Ela acredita que, como resultado desse
processo, pode chegar ao conhecimento de Deus. Outros dizem
que, ao olhar para a história, e ao ponderar sobre o curso da
história, eles podem chegar a acreditar em Deus. Outros,
entretanto, dizem que para se chegar a Deus, basta entregar-se a
um processo de raciocínio puro. Garantem que, se vocês se
sentarem e raciocinarem genuína e apropriadamente, é possível
chegar a uma crença em Deus. Isso é ilustrado, vocês se lembram
pelo argumento moral, ou seja, visto que sou consciente neste

23
mundo de uma moral boa e de uma melhor, então esse fato
implica que deve haver, em algum lugar, uma moral perfeita.
Contudo, onde está ela? Não a encontro neste mundo, então
deve estar fora dele, e a crendice diz que tal coisa é Deus.
Ora, outra vez digo: não quero discutir essas coisas. Estou
simplesmente lembrando-os de que essas são as formas pelas
quais muitos acreditam que podem encontrar a Deus, bem como
chegar ao conhecimento dEle. Mas a resposta cristã é que tal
método está inevitavelmente condenado ao fracasso. O apóstolo
Paulo o põe nestas memoráveis palavras: “Visto como na
sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua
sabedoria” (1 Cor. 1:21). E é significativo que ele tenha dito isso
aos coríntios, pessoas gregas, e que, portanto, estavam
familiarizadas com o ensino filosófico. Entretanto, apesar de
Paulo ter dito isso, as pessoas ainda confiam nas idéias e nas
deduções humanas para encontrarem a Deus.
A mim me parece que este não é um assunto sobre o qual
argumentar, visto ser ele justamente uma questão de fato-, e o
fato é que ninguém pode chegar ao conhecimento de Deus por
esses meios, por duas razões bem óbvias. A primeira (como
esperamos ver mais adiante ao considerarmos estas doutrinas
especificamente) é a natureza inerente de Deus; Sua infinitude,
Seu caráter e propriedades absolutas, bem como Sua perfeita
santidade. Tudo isso, em si e por si mesmo, torna impossível a
alguém adquirir algum conhecimento de Deus por meio da razão
ou da intuição.
Mas quando adicionamos a isso a segunda razão, a qual é o
caráter e a natureza de homens e mulheres, enquanto se acham
num estado de pecado, o fato se torna duplamente impossível. A
mente humana é por demais diminuta para abarcar ou apropriar-
-se de Deus e para compreendê-10. E quando compreendemos
que, em razão da Queda, todas as faculdades e poderes humanos
ficaram afetados pelo pecado e pela inimizade natural, então,
repito, o conhecimento de Deus através da diligência humana
se torna uma completa impossibilidade.
A Bíblia sempre afirmou isso, e no entanto muitos em sua

24
insensatez, ainda prosseguem tentando esses métodos obsoletos,
os quais já demonstraram ser um fracasso. Portanto, é
indispensável que estabeleçamos este postulado: a nossa única
esperança de conhecer a Deus genuinamente consiste em que
Ele graciosamente queira revelar-Se a nós, e o ensino cristão
assevera que Deus já o fez. Por isso, é evidente que a primeira
doutrina que precisamos considerar juntos é a doutrina bíblica
da revelação. Não posso chegar-me a Deus pela via de meus
próprios e desamparados esforços. Sou dependente de que Deus
Se revele. A questão é: “Ele o fez?” E a resposta é: “Sim, Ele o
fez”, e a Bíblia no-lo confirma.
Por conseguinte, antes de chegarmos à discussão dessas
várias doutrinas e verdades concernentes a Deus e à nossa relação
com Ele - o que se constitui na busca máxima em que estamos
todos engajados - devemos estar perfeitamente esclarecidos sobre
a questão da revelação. O que é revelação? Ora, creio que a
seguinte é uma das melhores definições que podemos obter, ou
seja, revelação é o ato pelo qual Deus comunica aos seres humanos
a verdade concernente a Si próprio, Sua natureza, obras, vontade
ou propósitos, bem como a revelação de tudo isso - a remoção
do véu que o oculta, a fim de podermos vê-lo.
Pois bem, segundo a Bíblia Deus Se revelou de duas maneiras
principais. A primeira é o que chamamos revelação geral-, a
segunda, obviamente, é a revelação especial. Portanto, antes de
tudo, focalizemos a revelação geral. O que é ela? Ora, já nos
referimos ao fato de que certas pessoas, observando a natureza,
acreditam que podem chegar-se a Deus por um processo racional,
e a Bíblia concorda com isso até este ponto: ela nos diz que
Deus Se revelou, em geral, e, antes de tudo, através da Criação e
da Natureza. Paulo fez ao povo de Listra uma declaração
muitíssimo importante sobre este tema. Disse ele: “(Deus) não
se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos lá do
céu, dando-vos chuva e tempos frutíferos, enchendo-vos de
mantimento e de alegria os vossos corações” (Atos 14:17).
Imediatamente antes, Paulo havia dito: “que fez o céu, e a terra,
e o mar, e tudo quanto há neles” (Atos 14:15).

25
A outra afirmação clássica sobre esse mesmo ponto pode
ser encontrada em Atos 17:24; além disso, encontramos a mesma
coisa declarada em Romanos 1:19,20: “Porquanto o que de Deus
se pode conhecer neles se manifesta, porque Deus lho
manifestou. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do
mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se
entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas,
para que eles fiquem inescusáveis” - eis aí outra passagem de
grande importância. Todas essas afirmações nos lembram que
Deus, antes de tudo, deixou Suas marcas, Suas impressões, na
Natureza e na Criação; elas são “as obras de Suas mãos”. E,
naturalmente, a mensagem que percorre toda a Bíblia como um
tema, é: “Os céus manifestam a glória de Deus” (Sal. 19:1), e
assim por diante. Tudo quanto foi criado é em si mesmo uma
revelação de Deus. Essa é a primeira definição de revelação geral.
Mas, naturalmente, temos o mesmo tipo de revelação no
que é comumente denominado de providência: a disposição das
coisas neste mundo, sua manutenção, seu sustento, bem como o
fato de que tudo prossegue em plena atividade e persiste na vida.
Como é possível ser tudo isso explicado? Bem, afinal de contas,
esta é uma questão da providência. Não pretendo entrar nela
agora, porque, ao tratarmos da doutrina da providência de Deus,
focalizaremos toda a questão em maiores detalhes. Lembremo-
-nos, porém, de passagem, que a ordem da providência, as
estações, a chuva e a neve, bem como a frutificação dos cereais
são todas manifestações de Deus.
O terceiro aspecto da revelação geral é a história. Toda a
história do mundo, se pudéssemos apenas vê-la, é uma revelação
de Deus.
Entretanto, agora temos de declarar que, em si e por si
mesma, a revelação geral não é suficiente. Deveria ser suficiente,
mas não é. E esse, parece-me, é o primeiro argumento de Paulo
no primeiro capítulo de Romanos, onde diz: “Para que eles
fiquem inescusáveis” (v. 20). A evidência jaz aí, porém não tem
sido suficiente. Por quê? Por causa do pecado. Se os homens e as
mulheres não fossem pecadores, ao contemplar os milagres e as

26
obras de Deus na criação, na providência e na história, seriam
capazes de chegar-se a Deus pelo processo racional. Contudo
por causa do pecado não podem. Deliberadamente, voltam suas
costas a essa realização. Esse é o grande argumento no restante
de Romanos, capítulo 1, que deixo a vocês a tarefa de fazerem
para si mesmos uma cuidadosa leitura. Diz Paulo: “Porquanto,
tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem
lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o
seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios,
tornaram-se loucos” (vv. 21,22). E prossegue dizendo que
passaram a adorar a criatura em lugar do Criador.
Então podemos sumariar o acima exposto como segue: a
providência que é exibida na Criação, etc., é suficiente para fazer
os homens e as mulheres inescusáveis quando se põem diante
de Deus e agem erroneamente. Todavia não é suficiente para
trazê-los, em seu estado pecaminoso, ao conhecimento de Deus.
Portanto, eis a pergunta: há alguma esperança? Esta forma
racional de buscar a Deus, mesmo em seu melhor e mais sublime
aspecto, segundo o argumento de Paulo, só pode conduzir-nos
ao conhecimento dEle como Criador. Seu poder, diz Paulo, se
manifesta dessa maneira, mas esse não é o conhecimento de
Deus pelo qual ansiamos e o qual cobiçamos. Os homens e as
mulheres clamam por um conhecimento mais profundo.
Queremos conhecer a Deus num sentido mais pessoal. Queremos
ser relacionados com Ele. Quando somos despertados, esse é o
conhecimento que queremos; e tal conhecimento, a criação, a
providência e a história, em seu melhor aspecto, não podem
oferecer: elas podem simplesmente ensinar-nos que Deus é o
Todo-poderoso, e que Ele é o Criador.
Agora, pois, perguntamos novamente: há alguma esperança
para nós? A resposta se encontra no segundo tipo de revelação
de que a Bíblia fala, e à qual chamamos revelação especial. E a
revelação especial que encontramos na Bíblia tem um objetivo
bem distinto e definido, que é revelar-nos o caráter de Deus, a
natureza de Deus, e especialmente o caráter e natureza de Deus
como são revelados em Sua graça salvadora. Esse é o fator sobre

27
o qual estamos interessados - como conhecer a Deus, ser amado
por Ele e ser abençoado por Ele.
Ora, a Bíblia faz uma só reivindicação neste ponto;
reivindica que ela, e somente ela, nos oferece este conhecimento
especial de Deus. A Bíblia, em si mesma, alega que ela é o registro
da revelação especial que Deus faz de Si mesmo e de todos os
Seus graciosos e salvíficos propósitos acerca de homens e
mulheres. A Bíblia, em si mesma, alega muito mais que isso,
mas aqui só trataremos dessa primeira reivindicação. E,
naturalmente, ela tem muito a dizer sobre este tema. Em certo
sentido, esta é a grande mensagem deste Livro, do princípio ao
fim: ela é Deus revelando-Se a Si mesmo. Ela não é a grande
busca religiosa da humanidade. Ao contrário, ela retrata o grande
e eterno Deus descerrando o véu e concedendo discernimento e
conhecimento dEle mesmo e de Seus grandes e graciosos
propósitos. Esse é o tema da Bíblia.
Deixem-me inserir uma observação neste ponto. Quando
estudamos a Bíblia, é de vital importância que retenhamos de
forma bem nítida
✓ em nossa mente esta idéia, este conceito de
revelação. E a única maneira de entendermos a mensagem da
Bíblia; nós nos veremos emaranhados nela se porventura não
for esse o nosso procedimento. É preciso que compreendamos
que o seu único objetivo e intenção, em todas as suas partes,
consiste em Deus revelar-Se a Si mesmo; e eu e vocês temos de
descobrir as formas pelas quais Ele Se agradou fazer isso.
Deixem-me sumariá-las. Muitas classificações são possíveis,
mas parece-me que esta é a única que segue mais de perto a
própria ordem da Bíblia. A primeira e mais importante é: a Bíblia
nos relata que aprouve a Deus revelar-Se aos homens e às
mulheres por meio do que chamamos teofanias - manifestações
de Deus ou as várias aparições de Deus.
Tomem, por exemplo, Êxodo, capítulo 33, que é a mais
importante passagem quando focalizamos esta doutrina da
revelação. Deus disse a Moisés que iria atender ao seu pedido, e
que lhe manifestaria Sua glória. Moisés havia exteriorizado este
grande desejo: “Mostra-me a tua glória”. O que ele disse era mais

28
ou menos o seguinte: “Tu estás conferindo a mim a grande
incumbência de guiar este povo. Quem sou eu e quem é o povo
que está subindo comigo?” “Antes de realizar esta grande obra”,
disse Moisés, “preciso saber se a Tua presença nos acompanhará.”
Então disse Deus: “Minha presença irá contigo.” Mas Moisés
insistiu, e disse: “Rogo-te que me mostres a tua glória.” Deixa-
-me vê-la.
E então disse Deus a Moisés: “Não poderás ver a minha
face, porquanto homem nenhum me verá dessa forma, e viverá.”
Não obstante, revelar-te-ei Minha glória.
Então tomou Deus a Moisés e o colocou na fenda de uma
rocha, e alí o cobriu com Sua mão. E isso constituía um
maravilhoso exemplo de antropomorfismo, ou seja, que Deus, o
eterno Espírito, condescenderia em falar de Si mesmo em termos
humanos, e agiria de uma maneira humana. Sou obrigado a
introduzir este verbete, não é verdade? Ele cobriu Moisés com
Sua mão, e então passou diante dele, e nos é dito que a Moisés só
foi permitido ver Deus pelas costas. Não lhe foi permitido ver
Seu rosto. Em certo sentido, ele viu a Deus; ele viu a glória de
Deus; ele viu a Deus pelas costas, passando. Essa é uma declaração
desconcertante. Vejam quão vital é isso em relação a toda esta
questão da revelação - que o grandioso e eterno Deus concedesse
ao ser humano ter um vislumbre dEle, para que homens e
mulheres pudessem conhecer pelo menos um pouquinho dEle.
Há também freqüentes referências aoAnjo do Concerto. Não
tenho nenhuma dúvida de que estão certos aqueles que acreditam
que as muitas referências ao Anjo do Concerto fazem alusão ao
Senhor Jesus Cristo. Ele apareceu neste mundo antes da
encarnação. Não havia Se encarnado ainda, mas apareceu. Ele
assumiu certas formas a fim de oferecer uma revelação. A Gideão
foi dada tal revelação - estudem a mesma em Juízes, capítulo 6.
O pai e a mãe de Sansão também tiveram o privilégio de
presenciar uma dessas teofanias, a fim de que sua fé fosse
fortalecida. Aprouve a Deus conceder muitas dessas
manifestações de Si próprio.
A próxima forma em que aprouve a Deus graciosamente

29
revelar-Se foi por intermédio dafala direta. Estamos lidando aqui
com imensidades e profundidades. No entanto, a Bíblia nos diz
que a voz de Deus tem sido ouvida neste mundo. Adão e Eva
ouviram-na no Jardim do Éden. Deus pronunciou palavras. E
temos a mesma coisa, naturalmente, em conexão com a entrega
da Lei a Moisés. A voz de Deus foi novamente ouvida, e isso é
algo com que teremos de tratar, e sobre o qual devemos meditar
e ponderar profunda e seriamente enquanto refletimos sobre toda
esta questão da revelação. Reflitam e descubram vocês mesmos
outros exemplos desta fala direta e voz de Deus.
O meu próximo tema é que Deus Se agradou revelar-Se
através de milagres, sinais e prodigios. Ora, deparamos com isso
tanto no Velho quanto no Novo Testamento. Há milagres
registrados no Velho Testamento. Por exemplo, pensem nos
milagres operados através de Moisés na presença de Faraó;
pensem no Mar Vermelho se abrindo; pensem nos milagres que
alguns servos de Deus, tais como Elias e Eliseu, foram capazes
de realizar, e assim por diante. Houve milagres, e eles são sempre
manifestações do poder de Deus, e portanto de Deus mesmo.
Deus fez com que trovões e relâmpagos aparecessem em épocas
especiais, tais como os fenômenos relacionados com a entrega
da Lei, quando o monte Sinai se tornou em chamas de fogo.
Todas essas eram revelações e manifestações de Deus. Ele tem
operado certos feitos extraordinários na Natureza e na Criação.
E quando aproximamos do Novo Testamento, deparamo-
-nos com os milagres de nosso Senhor, e a principal função desses
era revelação. Deparamo-nos também com os milagres operados
pelos primeiros apóstolos e pelos primeiros pregadores. E temos
a autorização de Hebreus 2:4 para afirmar que esses foram
operados pelos apóstolos porque Deus estava, por esse meio,
confirmando o evangelho deles. O escritor afirma que eles
pregavam o evangelho: “Testificando também Deus com eles,
por sinais, e milagres, e várias maravilhas e dons do Espírito
Santo, distribuídos por sua vontade”. Dessa forma Deus
confirmava que eles eram Seus servos, e que o evangelho era
verdadeiro. E, naturalmente, refulgindo acima de muitos outros

30
milagres estava o grandioso e incomparável milagre da
ressurreição.
Teremos ocasião, mais tarde, de considerar algumas dessas
coisas detalhadamente; aqui, porém, minha preocupação é
enfatizar que esses “sinais, maravilhas e diversos milagres”
revelam a intenção óbvia de Deus de cientificar aos homens e
mulheres que Ele estava Se revelando - e que eles olhassem para
essas coisas. Quão ífeqüentemente se nos diz que, em conexão
com esses milagres, o povo “glorificava a Deus”. Temiam;
sentiam-se dominados por aquela sensação de pasmo;
glorificavam-nO. Por quê? Porque sabiam que o milagre era uma
manifestação do poder de Deus, e portanto estavam recebendo
um vislumbre do caráter e do Ser do próprio Deus.
Continuemos com mais algumas formas nas quais esta
revelação especial chegou aos homens e às mulheres. A próxima
é que aprouve a Deus revelar-Se de vez em quando através de
■visões esonhos. A passagem clássica sobre isso é Jó 33:15,16, onde
lemos: “Em sonho ou em visão de noite, quando cai sono
profundo sobre os homens, e adormecem na cama, então abre
os ouvidos dos homens, e lhes sela a sua instrução.” E quão
frequentemente Deus falou através de sonhos e visões! Vocês se
lembram dos sonhos que foram dados a José, esposo de Maria,
mãe de nosso Senhor. E ao retrocederem ao Velho Testamento,
vocês descobrem que Deus falava constantemente por esse meio.
Através dessas visões e sonhos Deus dizia às pessoas que fizessem
certas coisas, ou as advertia sobre coisas que Ele estava para
realizar, e o resultado era que elas compreendiam que Deus existe.
Era Deus quem lhes dava a visão, ou o sonho, ou a advertência,
ou a profecia, ou o que quer que fosse, e portanto eram revelações,
eram provas da existência de Deus.
Agora devo introduzir uma categoria à parte: inspiração. Esta
é uma questão importantíssima. Teremos de mencioná-la
novamente, mais adiante, porém é necessário introduzi-la neste
ponto. Somos informados na Bíblia que Deus pode inspirar
pessoas: inspirá-las para que escrevam Sua Palavra; inspirá-las
para que compreendam; transmitir-lhes uma mensagem nessa

31
forma específica. Afinal de contas, essa é toda a base da profecia.
Portanto, ao proceder assim, Deus estava outra vez Se revelando,
revelando a verdade sobre Ele mesmo, o fato de que Ele existe e
aquilo que Ele iria fazer.
Além de tudo, porém, quando discutimos esta questão da
revelação especial, o grande e esplêndido fato é o que podemos
descrever como o relato bíblico dos atos redentivos de Deus.
Nenhuma outra revelação de Deus é mais importante do que
esta. Enfim, do quê estou falando? Ora, estou me reportando a
Noé e ao dilúvio. Deus manifestou-Se a Noé; comunicou-lhe
uma revelação; fê-lo entender o que Ele estava para fazer; então
prosseguiu agindo nas águas do dilúvio e no juízo sobre a terra e
no maravilhoso salvamento de Noé e de sua família, as oito
pessoas na arca. Esse foi um ato tremendo, não só de revelação,
como também de redenção. Todo o mundo antigo foi condenado
e destruído, exceto a família de Noé. Portanto, isso foi um
exemplo de salvação e redenção. A separação daquelas pessoas
era um exemplo essencial do ato que culminaria na vinda do
Filho de Deus a este mundo.
E temos a mesma revelação, naturalmente, de uma forma
quase igualmente impressionante, na vocação de Abraão e nos
eventos de sua vida. Deus tomou esse homem, quando ainda
habitava entre os pagãos. Ele o escolheu e o separou. Abraão
não sabia para onde estava indo, mas Deus o guiou. Deus estava
novamente desenvolvendo este grande plano e propósito de
redenção. Eles haviam começado lá atrás com Noé; agora eles se
tornavam ainda mais especiais em Abraão. E tudo o que Deus
disse e fez a Abraão era uma maravilhosa parte da revelação.
Depois disso houve outra manifestação desse (plano) na
vocação de Moisés. Já nos reportamos a uma manifestação de
Deus a Moisés. Todavia, que dizer da sarça ardente? (Êxodo,
capítulo 3.) Que sarça era aquela, toda em chamas e ardendo, e
no entanto não se consumia? O que era isso? Era Deus - Deus
Se revelando! Não era só Deus Se revelando, e o fato de que Ele
existe, para Moisés, mas era Deus dando mais um importante
passo nesta grande questão da redenção. Faz parte do grande

32
plano redentivo - um grande ato redentor. A
E o plano nos conduz ao Mar Vermelho (Exodo, capítulo
14), conduz-nos àquele evento que é tão freqüentemente referido
nas Escrituras. Descobrimos que os salmistas repetidamente
apresentam uma lista do que Deus fizera em favor de Israel,
enfatizando sempre o procedimento de Deus na travessia do Mar
Vermelho. Encontramo-lo ainda ocorrendo como uma espécie
de tema em muitos dos salmos (por exemplo, o Salmo 106). Por
quê? Bem, porque é muito importante. E central. Deus estava
dizendo ao povo que z o separava do cativeiro do Egito para ser
Seu e o tirou de lá. E uma parte de todo o processo de redenção,
e nós a encontramos novamente no cativeiro de Babilônia e na
volta do remanescente à Canaã.
Naturalmente tudo isso é vital e importante, ainda que
pareça de pouca importância quando chegamos àquele fato que
ultrapassa todos os fatos, ao ponto focal de toda a história, ao
ponto central de todo o curso da humanidade: “Mas, vindo a
plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher,
nascido sob a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a
fim de recebermos a adoção de filhos” (Gál. 4:4,5) - a revelação
de Deus em Jesus Cristo. Isso, naturalmente, nos ocupará
consideravelmente, mas é essencial que eu mencione, nesta parte
ainda preliminar, o Nome que é acima de todo outro nome. Em
tempos passados, diz o escritor de Hebreus, Deus falou em
pensamentos ou visões, um pouco aqui, um pouco ali, porém
agora Ele tem falado em Seu Filho, a efulgência e a santidade, a
revelação final, a essência do grande ato de redenção; e,
particularmente, em relação a nosso Senhor, devemos enfatizar
a ressurreição como outro grande ato redentivo, o qual proclama
a suficiência de Sua obra, anuncia e revela que Deus está
satisfeito, e que a humanidade pode ser salva.
Além disso, precisamos incluir o dia de Pentecoste, e não
devemos jamais recuar-nos diante desse fato, pois o que
aconteceu, quando as línguas como de fogo desceram sobre
aquelas pessoas, era uma parte de toda a grande ação redentiva
de Deus. Foi um ato vital, no qual o Espírito Santo desceu sobre

33
a Igreja para realizar Sua grande e gloriosa obra, a fim de aplicar
a redenção que já havia sido consumada.
Mas, em acréscimo a tudo o que já mencionei, Deus falou a
homens e mulheres e os instruiu concernente a Ele e Seus
propósitos. Não só revelou-Se através de Suas ações, de Suas
manifestações e de sonhos e visões - Deus ensinou acerca de Si
mesmo, diretamente, literalmente. Ele falou a Adão. Falou a Caim
e a Noé. Falou de uma maneira especial a Abraão, o amigo de
Deus, como foi denominado. Deus revelou a Abraão Seus
segredos, porque este era Seu amigo. Ele lhe fez uma grande
promessa. Esta promessa, nesse sentido, começa com Abraão, e
essa é a razão por que achamos tantas referências a ela ao longo
das Escrituras. Deus contou-lhe o segredo e o que Ele estava
para fazer. Disse nosso Senhor: “Abraão, vosso pai, exultou por
ver o meu dia, e viu-o, e alegrou-se” (João 8:56). Deus o instruiu
sobre ele (Seu dia).
Pois bem, desejo enfatizar isso para aqueles dentre vocês
que se inclinam para a teologia moderna e para a diferença entre
os chamados bartianos e a teologia evangélica. E assim sublinho
a diferença a esta altura. Os teólogos bartianos negam o fato de
que Deus revelou o que chamam “verdade proposicional”.
Verdade proposicional significa que há afirmações da verdade,
da doutrina, na Bíblia, as quais posso aceitar e crer. Afirmamos
que Deus fez isso, que há aqui proposições da verdade revelada
por Deus.
Certamente que Ele fez isso de uma maneira esplêndida na
entrega da Lei a Moisés. O propósito disso era para que os filhos
de Israel vivessem de uma certa maneira. A função primordial
da lei era dar expressão à santidade e ao caráter de Deus, e o
povo teria que viver dessa maneira porque Deus é Deus, porque
Ele é assim. Portanto Deus, ao outorgar a lei, estava ensinando
sobre Si mesmo. Além do mais, 2 Samuel, capítulo 7, onde Sua
promessa é feita especificamente a Davi, é um dos mais
proeminentes capítulos do Velho Testamento. Então temos os
profetas - a profecia, o ensino lhes dado sobre Deus, Sua
santidade e Sua lei - tudo isso era parte da revelação de eventos

34
futuros, ou seja, a verdade comunicada.
Mas, naturalmente, no Novo Testamento encontramos as
bases de nossa convicção na autoridade das Escrituras
neotestamentárias. A verdade foi ministrada por Deus aos
apóstolos através do Espírito Santo, exatamente como o Senhor
mesmo, em João, capítulo 16, a prometera.
Assim, na Bíblia temos o registro dos mais proeminentes
atos redentores de Deus. Mas temos também o comentário de
Deus sobre esses atos; a exposição deles, por Deus; a explicação
de Deus sobre o caminho da salvação tanto quanto a revelação
do próprio caminho. E a Bíblia alega que ela, e tão-somente ela,
tem esta revelação - não há outra! Se Deus não Se revelou, então
não podemos conhecê-10; contudo Ele Se revelou, e essa
revelação só pode ser encontrada neste Livro (a Bíblia). Quer eu
a perceba quer não, o fato é que ela (a revelação) está aqui. Ela
nos foi dada, e a pergunta que surge é: posso eu confiar neste
Livro? Seria ele confiável no que afirma e no que reivindica?
Acaso posso crer nas suas reivindicações e submeter-me à sua
autoridade? Devemos, pois, prosseguir examinando a autoridade
e a confiabilidade das Escrituras.

35
3
A AUTORIDADE DA BÍBLIA
Doravante podemos considerar toda a questão a respeito
do que a Bíblia tem a dizer sobre si mesma. Isso é inevitável se
seguirmos a seqüência bíblica, em nossa consideração das
doutrinas, mas também chegamos a ela desta mesma maneira.
Como já vimos, o fím e objetivo supremos de tudo em relação à
fé cristã consistem em conhecer a Deus. Já vimos também que,
se queremos conhecer a Deus, então Ele tem de querer revelar-
-Se. E Ele Se revelou, não só na criação, na história e na
providência, porém muito mais. Ele Se revelou na forma
registrada neste Livro, a Bíblia, a qual é o registro da auto-
-revelação de Deus. Assim, já temos considerado as várias formas
pelas quais, segundo a Bíblia, Deus fez isso.
Obviamente, portanto, as perguntas que imediatamente
surgem são: podemos aceitar o testemunho da Bíblia? Podemos
considerá-la como autoritativa? Como podemos justificar nossa
reivindicação como cristãos evangélicos protestantes de que é
aqui, e tão-somente aqui, que temos uma declaração autoritativa
com respeito à revelação de Deus a homens e mulheres? Por que
confiamos neste Livro, em vez de confiarmos na Igreja, em
alguma tradição, em alguma “luz interior” ou em nossa própria
razão e entendimento? Essa é a nossa posição; essa é a nossa
tese. E é, pois, necessário que justifiquemos tal alegação, e o
caminho para se conseguir tal intento é considerar o que a Bíblia
mesma tem a dizer sobre esta questão.
Ora, observem vocês que enfatizo isso porque, ao tratarmos
das doutrinas bíblicas, devemos ficar nisso. Há outras coisas que
poderiam ser ditas. Há outros argumentos que poderiam ser
adicionados, no entanto é a prerrogativa da teologia tratar disso.
Nós, porém, estamos tentando desenvolver uma exposição
positiva das doutrinas bíblicas. Portanto, não concebo que uma
parte de minha tarefa seja considerar o assim chamado

36
movimento de “alta crítica”. Tanto a teologia quanto a apologética
fazem isso. Contudo, aqui, estamos tentando ser mais positivos,
por isso tenhamos em mente nosso objetivo definido e restrito.
Vejam, a Bíblia alega que ela não é só o registro da revelação
divina; ela vai além disso. Ela alega ser a Palavra de Deus. Alega
ser divinamente inspirada, e que sua autoridade está alicerçada
neste fato. Ora, é importante que tenhamos bem nítida em nossa
mente a diferença entre revelação e inspiração, porquanto as
duas coisas não são uma só. Tudo o que se acha na Bíblia não é
revelação, mas tudo o que está nela é inspirado.
Deixem-me explicar o que isso significa. Revelação significa
Deus Se manifestando. Vocês poderão ver prontamente que há
muitas coisas na Bíblia que não são revelação. Tomem, por
exemplo, o livro de Eclesisates, ou as afirmações registradas na
Bíblia, pronunciadas por pessoas pecaminosas e ímpias. Não há
revelação em tais afirmações; não obstante, a Bíblia diz que todas
essas afirmações, justamente como se acham registradas, foram
feitas de uma maneira inspirada. As afirmações não nos ajudam
a conhecer mais sobre Deus. Elas de forma alguma nos ajudam a
adquirir conhecimento de Deus. Não há revelação, nenhuma
auto-manifestação por parte de Deus. Todavia o que a Bíblia
alega é que tudo o que ela contém é um registro inspirado, e
portanto um registro infalível e inerrante.
Obviamente, pois, a primeira pergunta que temos de levar
em conta é: qual é o significado de inspiração? Quando dizemos
que a Bíblia é divinamente inspirada, o que queremos dizer
exatamente? Comecemos novamente com uma negativa. Não
queremos dizer que certas porções da Bíblia são inspiradas e
outras não. Há quem pense assim. Dizem alguns: há porções,
afirmações e ensinamentos específicos que são inspirados,
especialmente aqueles concernentes a nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas, dizem eles, os livros históricos e várias outras seções não
são inspirados. Ora, isso não é o que queremos dizer quando
afirmamos que a Bíblia é divinamente inspirada.
Tampouco queremos dizer simplesmente que os homens
que escreveram, o fizeram de uma forma exaltada ou criativa.

37
Quando um poeta produz uma obra prima, vocês ouvem
freqüentemente dizer que tal poeta foi “inspirado”. Entretanto
não significa que òs escritores dos livros da Bíblia, ao escreverem
esses livros, foram inspirados dessa maneira. Outros dizem que
consideram a inspiração no sentido em que apenas as idéias dadas
aos escritores foram inspiradas. Certamente que isso é correto,
mas queremos dizer muito mais que isso. Tampouco significa
que os livros - os escritos como tais - são o produto de origem
humana sobre os quais o sopro ou insuflação divina vem.
Então, o que queremos dizer? Queremos dizer que as
Escrituras são um produto divino soprado por Deus. Inspirado
realmente significa “soprado por Deus”. Queremos dizer que
Deus soprou estas mensagens nos homens e através deles, e estas
Escrituras são o resultado dessa ação divina. Cremos que foram
produzidas pelo sopro criativo do Deus Todo-poderoso. Colocado
numa forma mais simples, queremos dizer que tudo o que temos
aqui foi dado por Deus ao homem. E, claro, isso obviamente
transmite a idéia de que essa é a medida exata das palavras
específicas. Portanto, tentarei demonstrar-lhes que a Bíblia
reivindica para si mesma o que se chama inspiração verbal. Não
significa meramente que os pensamentos são inspirados, não
meramente as idéias, porém o registro real, procedente das
palavras específicas. Não significa meramente que as afirmações
são corretas, mas que cada palavra é divinamente inspirada.
De fato, poderíamos gastar tempo discutindo as várias
teorias sobre inspiração, porém estou mais interessado em expor
o que as Escrituras mesmas dizem - e elas pressupõem esta
inspiração verbal. Todavia, devemos esclarecer que quando
dizemos que a Bíblia é verbalmente inspirada por Deus nessa
forma, não ensinamos alguma espécie de ditado mecânico. Não
queremos dizer que os escritores se sentaram, por assim dizer,
como faz o estenógrafo, e que Deus ditou-lhes todas as palavras.
A diferença de estilo existente entre os escritores evidencia que
não foi isso que aconteceu. Observem que cada um deles parece
possuir suas próprias idiossincrasias e hábitos, seu próprio estilo
individual. Vocês são capazes de dizer prontamente que algo foi

38
escrito por Paulo, e não por Pedro ou por João.
Além do mais, se vocês lêem a introdução ao Evangelho de
Lucas, perceberão que o próprio Lucas diz que havia lido vários
outros registros a fim de examinar certas notícias. E vocês
acharão amiúde a mesma coisa no Velho Testamento. Assim,
toda a nossa concepção de inspiração deve levar em consideração
não só o escritor individualmente e suas características, mas
também sua pesquisa e suas consultas a outras autoridades. O
que, pois, significa a inspiração? Significa que o escritor foi
controlado pelo Espírito Santo de Deus de tal forma que ele não
poderia ser culpado de cometer erro nos seus escritos.
Existe muitos exemplos disso. Ao meu ver, o melhor é aquele
que o representa em termos de um homem cavalgando de um
lugar a outro. Hoje ele cavalga um cavalo; então, amanhã ele
inicia a mesma viagem, porém num cavalo diferente. O cavalo
que ele monta hoje é fogoso, cheio de vivacidade e energia. O
cavalo que ele montará amanhã é, ao contrário, mais velho e já
se tornou cansado e vagoroso. Ora, em ambos os exemplos, o
homem que cavalga os cavalos sai e chega aos mesmos lugares,
mas a forma específica na qual ambos os cavalos o carregam
pode ser completamente distinta. Um deles pode curvetear um
bocado, mas pode ser mantido na pista até alcançar o destino. O
maneirismo - o estilo, por assim dizer - varia tremendamente,
mas ambos os cavalos são guiados e controlados pelo mesmo
cavaleiro, e o resultado é o mesmo.
A inspiração verbal significa que o Espírito Santo governou,
controlou e guiou esses homens, até mesmo na escolha de
palavras específicas, de maneira tal que os impediu de cometer
erros, e acima de tudo para que se produzisse o resultado que
fora originalmente pretendido por Deus.
Como, pois, a Bíblia afirma isso? Sugiro-lhes que os
seguintes tópicos serão de alguma ajuda. Incidentalmente, estou
tentando o impossível para conseguir cobrir tudo de forma breve;
é um tema sobre o qual grandes livros têm sido escritos. Estou
simplesmente tentando fornecer-lbes um esquema por meio do
qual vocês possam elaborar o seu próprio esquema, em seu estudo

39
das Escrituras. Se vocês querem um grande e versado livro sobre
o tema, ele é intitulado The Inspiration and Authority of the Bible
(A Inspiração e Autoridade da Bíblia), escrito pelo Dr. B. B.
Warfield. Aqueles entre vocês que gostam de estudar uma obra
prima sobre qualquer tema serão bem orientados se obtiverem
um exemplar desse livro. E há muitos outros livros sobre este
tema, os quais vocês poderão consultar pessoalmente.
O meu primeiro ponto é o seguinte: a Bíblia faz alegações
específicas sobre este assunto de inspiração. Tomem, por
exemplo, certos termos que ela usa em relação a si própria, tais
como o termo Escritura. Ele designa “santos escritos”; não
escritos comuns, mas especiais - escritos sagrados.
Então tomem a descrição que ela faz de si própria como a
Palavra de Deus. Quantas vezes vocês se depararão com a Bíblia
usando esse termo em referência a si própria! Ora, eis aqui um
fato esplêndido e interessante - e alguém se esforçou para
computar tudo isso - as palavras: “O Senhor disse”, “O Senhor
falou”, “Veio a palavra do Senhor”, e expressões cognatas, são
realmente usadas 3808 vezes só no Velho Testamento!
Evoquemos, porém, algumas reivindicações mais
específicas. Tomem também aquela grande profecia, a qual é
muito crucial nesta questão, expressa por Moisés e registrada
em Deuteronômio 18:18. Estas são as palavras: “Eis lhes
suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei
as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu
lhe ordenar.” Essa não é uma profecia apenas sobre a vinda de
nosso Senhor, ela também nos fala muito sobre a pessoa de Moisés
e seu próprio ministério. Ora, certamente que todos os profetas
do Velho Testamento fazem essa reivindicação. Não dizem que
de repente decidiram escrever; apenas dizem: “Veio a palavra
do Senhor...” (vejam, por exemplo, Ez. 1:3; Os. 1:1; Jon. 1:1), e
eles nos dizem exatamente quando ela veio. Eles eram chamados;
eram comissionados; e a palavra lhes era comunicada. E assim
estavam sempre dizendo algo mais ou menos assim: “Assim diz
o Senhor.” Essa é a sua reivindicação.
Outro fato interessante, e um argumento muitíssimo valioso,

40
consiste em que alguns desses profetas nos dizem muito
honestamente que às vezes se sentiam relutantes em falar. Com
freqüência Jeremias não queria falar, mas era compelido (Jer.
1:6,7). A mesma relutância é vista na forma como ele repudia
sua própria autoria, porém o “peso” veio. Ele foi colocada por
Deus sobre o profeta, e simplesmente ele entregava o que era
proposto.
Ainda outro fato importante é que vocês encontrarão o
profeta dizendo que ele mesmo não entendia o que escrevia.
Olhem para a declaração em Daniel 12:8, onde ele diz: “Eu, pois,
ouvi, mas não entendi.” Vocês encontram Pedro dizendo a mesma
coisa:
“Da qual salvação inquiriram e trataram
diligentemente os profetas que profetizaram da graça que
vos foi dada, indagando que tempo ou que ocasião de tempo
o Espírito de Cristo, que estava neles, indicava,
anteriormente testificando os sofrimentos que a Cristo
haviam de vir, e a glória que se lhes havia de seguir. Aos
quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós,
eles ministravam estas coisas que agora vos foram
anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado
do céu, vos pregaram o evangelho: para as quais coisas os
anjos desejam bem atentar” (1 Ped. 1:10-12).

Então o apóstolo Paulo faz uma afirmação crucial. Diz ele:


“As quais também falamos, não com palavras de sabedoria
humana...” Vejam vocês que ele está se referindo não só ao
assunto, não só à doutrina, mas à forma como ele a expressa. As
palavras pelas quais se expressa, diz ele, não são segundo o
homem, “mas com as que o Espírito Santo ensina” (1 Cor. 1:13).
O capítulo inteiro é muito importante nesta conexão.
Então há aquela interessante, e para mim sempre muito
fascinante, declaração que vocês acharão em 2 Pedro 3:15,16,
onde Pedro, referindo ao nosso “amado irmão Paulo”, diz:
“...como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi dada; falando disto como em

41
todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis de
entender, que os indoutos e inconstantes torcem” - notem bem!
- “e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição.”
Ao usar esta frase: “as outras Escrituras”, o apóstolo Pedro, ali,
nivela as Epístolas de Paulo com as Escrituras do Velho
Testamento e as coloca sobre as mesmas bases.
Há também aquela importante afirmação em Efésios,
capítulo 2, onde Paulo diz que os cristãos são “Edificados sobre
o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é
a principal pedra da esquina” (v. 20). Ora, vocês e eu somos
edificados sobre esse fundamento. Não consideramos autoritativa
qualquer coisa que tenha sido expressa subseqüentemente ao
cânon do Novo Testamento. Aqui está o nosso fundamento, e
não aceitamos qualquer outro ensino de qualquer igreja ou de
qualquer tradição como sendo divinamente inspirado. Esta é a
base, e a Igreja deve ser edificada sobre este ensino em virtude
de sua única autoridade.
Ora, isso me leva ao que chamaria de passagens cruciais. A
primeira delas se acha na Segunda Epístola a Timóteo. “Toda
Escritura é dada pela inspiração de Deus, e é proveitosa para
doutrinar, para reprovar, para corrigir, para instruir em justiça;
para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente
instruído para toda boa obra” (2 Tim. 3:16,17). Assim se acha na
Authorised Version, mas ^Revised Version é diferente, ou seja: “Cada
Escritura inspirada de Deus é também proveitosa para o
ensino...” Este é um assunto muito sério, porque não há nenhuma
dúvida de que a Revised Version não está apenas equivocada, porém
está trágica e lamentavelmente equivocada. Insinua-se
claramente que há Escrituras que não são divinamente
inspiradas. A Authorised Version, contudo, é plenamente clara
sobre este ponto: “Toda Escritura é dada pela inspiração de Deus.”
Então, o que se pode dizer sobre isso? Bem, a Revised Version
faz o apóstolo Paulo culpado do que se chama tautologia, repetindo
a mesma coisa duas vezes, divagando sobre o óbvio. Traduzir
“Toda Escritura (cada Escritura) inspirada de Deus é também
proveitosa” o torna ridículo, visto que cada Escritura inspirada

42
de Deus é necessariamente proveitosa, e não há qualquer
necessidade de o dizer. Mas a Authorised Version, como se pode
notar, não se expressa assim. Diz: “Toda Escritura é dada por
inspiração de Deus, e é proveitosa...”, que é uma maneira bem
diferente de se expressar.
Além disso, o fato é que a Revised Version simplesmente
contradiz o que as Escrituras dizem de si mesmas. A Bíblia não
diferencia entre partes e porções; ela não diz que certas Escrituras
são divinamente inspiradas, porém que outras não são. “Toda
Escritura é dada por inspiração de Deus.” Além do mais, a Revised
Version, ao introduzir o termo “também”, faz algo que não o faz
noutro lugar. As autoridades estão muitíssimo habilitadas para
convencerem tais tradutores de auto-inconsistência. Por
exemplo, em Hebreus 4:13 vocês encontram esta afirmação:
“...todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com
quem temos de tratar.” Ora, para serem consistentes consigo
mesmos, os tradutores da Revised Version deveriam ter traduzido
assim: “Todas as coisas estão nuas e também patentes aos olhos
daquele...” Mas não o fizeram ali, e assim não aplicaram o seu
próprio princípio, porque perceberam que seria obviamente
ridículo; se tudo está “nu”, então deve ser “patente”.
Há vários outros exemplos do mesmo fato que poderiam
ser apresentados, todavia temos que prosseguir. Entretanto
precisamos lembrar que certos membros importantes do comitê
que traduziu ^Revised Version, tais como o bispo Trench e o bispo
Wordsworth, e outros, protestaram forteniente na época. O Dr.
Tregelles, que era um dos maiores estudiosos da Bíblia do último
século, fez um protesto semelhante, como o fizeram outras
autoridades. Portanto, lembremo-nos sempre, quando estamos
tratando desse versículo, de que devemos aderir resolutamente
à Authorised Version e a uma declaração tão precisa como esta:
“Toda Escritura é dada por inspiração de Deus.”* Não pode
haver exceção.
A segunda passagem crucial é 2 Pedro 1:20,21: “Sabendo
* Nota do Editor: Compare também a New International Version: “All
Scripture is God-breathed.” (“Toda Escritura é soprada por Deus...”)

43
primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de
particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida
por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus
falaram movidos pelo Espírito Santo.” Declaração essa
muitíssimo vital. Ora, a interpretação disso é sem dúvida
importante. O que Pedro teria em mente quando diz que
“nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação”?
Ele não está simplesmente dizendo que ninguém tem o direito à
sua própria interpretação particular das Escrituras. Não! Pedro
está aqui preocupado com a origem da profecia, com a origem
das Escrituras, e o que ele quer dizer é que nenhuma profecia
das Escrituras faculta a alguém uma compreensão ou
interpretação particular sobre as coisas espirituais. Noutras
palavras, ele não tem em mente que a profecia surgiu da forma
como alguns da assim chamada alta crítica andaram ensinando
ao longo do século passado. Eles afirmaram algo mais ou menos
assim: “Ora, estes profetas eram homens preeminentes e capazes.
Eram pensadores profundos. Observavam a vida e a história, e
então as meditavam e as ruminavam; e, como resultado disso,
desenvolveram uma teoria, elaboraram uma idéia, e então a
escreveram.”
Aqui, porém, Pedro está nos dizendo que a profecia não
vem dessa forma. Ela não é a interpretação privativa de alguém
sobre a vida, sobre pessoas, sobre Deus e sobre a história, visto
que a profecia “nunca foi produzida por vontade de homem”.
Não foi nenhum homem, diz ele, que a produziu.
Então, o que é ela? “Homens santos de Deus falaram ao
serem eles movidos pelo Espírito Santo.” Há várias traduções
deste termo “movidos”. Há quem diga que ele significa ser
“arrastado”; outros diriam que ele significa “conduzido junto
de”; e alguns diriam ainda “impelido juntamente”.
Provavelmente tudo isso está certo; a palavra pode conter todos
esses diversos significados. O importante para nós é que todos
eles concordam nisto: que quando essas profecias foram escritas,
não foi o caso de um homem estar sob seu próprio controle,
usando suas faculdades, propriedades e habilidades naturais,

44
meditando sobre coisas e então escrevendo como melhor
pudesse. Absolutamente, não! Continuamente ele se achava sob
o controle desse vendaval do Espírito, desse vento de Deus, dessa
energia divina. Esse impulso divino veio sobre ele, o agarrou, o
carregou e ele foi levado pelo Espírito. E isso se deu como
resultado do processo que essas profecias e essas Escrituras
chegaram a ser.
Essas, pois, são o que chamo as grandes reivindicações
específicas feitas pela Bíblia a favor de si mesma nesta questão
da inspiração verbal. São postas nesses termos, e nada menos
que isso. Eis a origem das Escrituras; dizem elas: “Toda Escritura
é dada por inspiração de Deus.”
Mas agora me permitam apresentar-lhes o segundo tópico.
Sempre me fascina observar as coisas que a Bíblia admite sobre
si e suas afirmações. Apresento primeiramente a afirmação feita
pelo próprio Senhor. Ao enfrentar certos hereges, Ele cita-lhes
as Escrituras, dizendo: “Não está escrito na vossa lei: eu disse:
sois deuses? Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra
de Deus foi dirigida (e a Escritura não pode ser anulada), aquele
a quem o Pai santificou, e enviou ao mundo, vós dizeis:
blasfemas, porque disse: Sou Filho de Deus?” (João 10:34-36). A
afirmação crucial é a seguinte: “A Escritura não pode ser desfeita”,
significando que não pode ser anulada ou resistida; ela não pode
ser negada.
Então, consideremos também Gálatas 3:16, que por sua vez
é uma afirmação vital em toda esta questão. Diz: “Ora, as
promessas foram feitas a Abraão e à sua posteridade. Não diz: e
às posteridades, como falando de muitas, mas como de uma só:
e à tua posteridade, que é Cristo.” Vocês percebem a importância
disso? O apóstolo se prende ali à importância de apenas uma
única letra: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à sua
posteridade.” Com relação a toda esta questão da inspiração verbal,
esta é uma das afirmações mais importantes. Todo o argumento
do apóstolo depende do fato de que as Escrituras dizem
“posteridade”, e não “posteridades”. Se tivera dito
“posteridades”, então este argumento específico teria sido

45
irrelevante, mas visto que usa o singular e não o plural, ela aponta
para o Senhor Jesus Cristo. É-nos impossível atribuir importância
e peso demais a este argumento específico.
Então, de vez em quando vocês descobrirão que a Bíblia
combina uma afirmação do Novo Testamento com outra do Velho
Testamento, e faz referência a ambas juntas como “Escrituras”.
Tomem, por exemplo, 1 Timóteo 5:18: “Porque diz a Escritura:
não ligarás a boca ao boi que debulha. E: digno é o obreiro do
seu salário.” Como se vê, as duas Escrituras estão aí - a primeira
é de Deuteronômio 25:4, e a segunda é uma afirmação feita por
nosso Senhor, a qual se acha registrada em Lucas 10:7. Vocês
poderão ainda observar a forma como Paulo a coloca: “Porque
diz a Escritura.” Isso é igualmente importante, visto que nos
mostra que a Bíblia considera ambos, Novo e Velho Testamentos,
como escritos sagrados - as Escrituras.
Outro segmento de evidência também importante é a forma
como o Novo Testamento cita o Velho Testamento. É muito
difícil saber escolher as melhores passagens, porém aqui está
uma do livro de Atos: “E ouvindo eles isto, unânimes levantaram
a voz a Deus, e disseram: Senhor, tu és o que fizeste o céu, e a
terra, e o mar, e tudo o que neles há; que disseste pela boca de
Davi...” (Atos 4:24,25), e então há uma citação do Salmo 2. O
que estão dizendo é que é Deus quem disse isso pela boca de Seu
servo Davi. Ou tomem outro exemplo de Atos: “Pelo que também
em outro Salmo diz...” (Atos 13:35)-uma referência novamente
a Deus, mostrando que Ele, por assim dizer, é o autor dos salmos.
Os salmos de Davi são os salmos de Deus; é Deus quem os
expressou.
Mas talvez não haja nada mais interessante do que a forma
como achamos isso na Epístola aos Hebreus. Eis um exemplo:
“Portanto, como diz o Espírito Santo, se ouvirdes hoje a sua
voz” (Heb. 3:7), citação essa extraída do Salmo 95. Manuseiem o
seu Novo Testamento e observem a maneira como ele cita do
Velho Testamento e atribui as palavras a Deus e ao Espírito Santo,
ou usa a expressão: “diz” - o que sempre significa a mesma coisa.
O meu último ponto geral é que, quando lemos a Bíblia,

46
podemos fazer outras deduções óbvias que claramente
comprovam esta doutrina da inspiração. Sessenta e seis livros
foram escritos cobrindo um período de pelo menos dezesseis
séculos, por mais de quarenta autores, e todavia há um só tipo
de doutrina em toda a Bíblia, bem como um só tipo de moralidade
em toda a extensão das Escrituras. Vocês poderiam fornecer uma
outra explicação?
Tomem o Velho Testamento. Prestem atenção naquele
espírito que o permeia - a esperança do Messias. Em todos os
séculos, entre estes diferentes homens, há uma esperança
messiânica. E no Novo Testamento há apenas um grande tema
- Jesus Cristo e este crucificado. Tudo aponta para Ele - tudo O
focaliza. A variação entre os escritores não faz qualquer
diferença; prevalece ainda esse único grande tema.
Mas o testemunho mais vital que temos de acrescentar é o
do próprio Senhor Jesus Cristo. Leiam os Evangelhos e observem
a maneira como Ele constantemente cita o Velho Testamento.
Observem a maneira como Ele admite que ele (o Velho
Testamento) é autoritativo, como se acha acima de qualquer
argumento e além de qualquer disputa. Ele apenas diz: “Está
escrito”, e isso é final (Veja, por exemplo, Luc. 19:46; João 6:45).
Ele obviamente aceitou o Velho Testamento in tolo como
autoritativo, final e supremo.
Eis algumas afirmações específicas feitas por Ele: “Não
cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar,
mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a
terra passem, nem um jota ou um til se omitirá da lei, sem que
tudo seja cumprido” (Mat. 5:17,18). E num sentido que envolve
todo o Velho Testamento - Moisés e os profetas - “não vim
destruir, mas cumprir”. Então vocês o encontrarão, por exemplo,
dizendo isto: “Ele, porém, respondendo, disse-lhes: não tendes
lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez...”
(Mat. 19:4). Teremos que nos reportar a este ponto, porém
lembremo-nos de que esta única citação é suficiente para mostrar
que nosso Senhor considerava o que lemos nos primeiros
capítulos de Gênesis como sendo autoritativo para toda a questão

47
que envolve o homem e a mulher e seu aparecimento neste
mundo. Portanto, se vocês começam a agir levianamente no
tocante à autoridade e a inspiração verbal das Escrituras, logo se
vêem necessariamente envolvidos em dificuldades concernentes
à Pessoa do próprio Senhor.
Vocês encontrarão muitas outras afirmações. Permitam-me
solicitar que vocês leiam para si mesmos Marcos 12:26,27, e então
considerem também Lucas 24:44: “E disse-lhes: são estas as
palavras que vos disse estando ainda convosco: que convinha
que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na lei de
Moisés, e nos profetas, e nos salmos.” Eis aí todo o Velho
Testamento novamente. A lei de Moisés não consiste meramente
dos Dez Mandamentos e a lei moral; constitui-se dos cinco livros
de Moisés. Moisés, e os Profetas, e os Salmos - Ele aceitava tudo,
e pediu que os discípulos considerassem o seu ensino
concernente a Ele. E Ele o expôs a eles.
Novamente faço referência a João 10:35, onde Ele nos diz:
“Pois, se a lei chamou deuses àqueles a quem a palavra de Deus
foi dirigida (e a Escritura não pode ser anulada).” Portanto, em
última análise, a nossa autoridade para nossa compreensão da
inspiração tem de ser encontrada no próprio Senhor Jesus Cristo.
Esse era o Seu ponto de vista acerca das Escrituras.
Ora, eu sei que muitos gostariam de formular uma pergunta
neste ponto. O que se dizer das várias diferenças? Não seria
verdade que há certas discrepâncias? Muito bem, existe uma
resposta muito confortante para tudo isso. Segundo temos em
nossas versões, há certas coisas que simplesmente não podemos
explicar, e a nossa tarefa é confessar isso pronta e francamente.
Permitam-me, porém, sem demora, acrescentar que a maioria
das assim chamadas dificuldades e discrepâncias que os críticos
trazem a lume pode ser explicada; aliás, a maioria delas tem sido
explicada. Muitas delas já foram explicadas nos anos mais
recentes como resultado da arqueologia e de um conhecimento
lingüístico mais profundo das Escrituras.
Todavia, há certas diferenças que ainda persistem, mas é
importante dizer que elas nunca atingem o campo da doutrina

48
ou os fatos históricos. É uma questão de figuras ou algo que é
comparativamente sem importância, e que pode ser explicado
de imediato - o equívoco, talvez, de um copista ou de algum
tradutor. Não há nada que de alguma forma interfira na doutrina
vital, essencial. Portanto, o que afirmamos e declaramos é o
seguinte: os documentos originais, como escritos originalmente,
são inerrantes e infalíveis. Dizemos ainda desta Authorised Version
que, com exceção de um mero punhado de discrepâncias
menores, as quais até hoje não foram explicadas e que são
completamente sem importância, esta é a Palavra de Deus e a
única infalível regra de fé e conduta.
Há também outros argumentos que alguém pode produzir,
porém não são oriundos das declarações bíblicas - o estilo, a
elevação do pensamento, o que a leitura da Bíblia tem feito para
as pessoas ao longo dos séculos, o testemunho que os santos dão
da Bíblia. Mas, finalmente, vocês não podem provar a ninguém
que a Bíblia é unica e divinamente inspirada. Afinal, a pessoa
tem que ser iluminada pelo Espírito Santo. Portanto, deixem-
-me concluir citando uma passagem da Confissão de Fé de
Westminster, cuja afirmação é perfeita:

Pelo testemunho da Igreja podemos ser movidos e


incitados a um alto e reverente apreço pelas Escrituras
Sagradas; a suprema excelência do seu conteúdo, a eficácia
da sua doutrina, a majestade do seu estilo, a harmonia de
todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a
Deus toda a glória), a plena revelação que faz do único
meio de salvação do homem, as suas muitas outras
excelências incomparáveis e completa perfeição são
argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser
ela a Palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão
e certeza da sua infalível verdade e divina autoridade
provêm da operação interna do Espírito Santo que, pela
Palavra e com a Palavra, testifica em nossos corações
(Capítulo 1:V).

49
4
COMO ACHAMOS
AS DOUTRINAS
Visto que chegamos ao nosso terceiro estudo, seria bom
que mantivéssemos em primeiro plano em nossas mentes os
versículos 18-21 do segundo capítulo da Primeira Epístola de
João:
“Filhinhos, éjá a última hora: e, como ouvistes que
vem o anticristo, também agora muitos se têm feito
anticristos: por onde conhecemos que éjá a última hora.
Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se fossem de
nós, ficariam conosco: mas isto é para que se manifestasse
que não são todos de nós. E vós tendes a unção do Santo,
e sabeis tudo. Não vos escrevi porque não soubésseis a
verdade, mas porque a sabeis, e porque nenhuma mentira
vem da verdade. ”

Chamo a atenção de vocês para essa afirmação específica,


visto que ela se nos apresenta no exato contexto em que devemos
considerar outro assunto geral antes de chegarmos a tratar das
doutrinas específicas que são ensinadas na Bíblia. Podemos
sumariar a posição a que chegamos, desta forma: o alvo principal
de nossa busca é o conhecimento de Deus. Não estamos
interessados em doutrinas meramente como doutrinas, mas
simplesmente quando elas nos levam ao conhecimento de Deus.
“O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-10 para
sempre” (Breve Catecismo).
O problema, portanto, é o seguinte: como é possível
conhecermos a Deus? Por nossos próprios esforços não podemos
chegar-nos a Deus. Deus mesmo precisa revelar-Se, e Ele o fez
em Sua infinita graça e benevolência, não só na criação, na
história e na providência, mas supremamente neste Livro ao

50
qual chamamos Bíblia. E então passamos a considerar alguns
aspectos da inspiração. Tomamos um conceito bem geral dela, e
vimos que ela poderia ser dividida muito naturalmente em certas
classificações.
Então isso por sua vez nos levou à pergunta: podemos
confiar neste Livro e em sua revelação apresentada?
Consideramos isso, e chegamos à conclusão de que a Bíblia é
um livro divinamente inspirado. Vimos que a Bíblia mesma
ensina o que é conhecido como a doutrina da inspiração verbal.
Portanto, aceitamo-la como completa, final e infalível em todas
as questões de fé e prática.
“Muito bem”, diz alguém, “uma vez feito tudo isso, por que
você não começa imediatamente focalizando a primeira grande
doutrina central - a doutrina de Deus?”
Mas não posso fazer isso, e lhes direi por que. O problema
que surge no momento é este. “Ora”, diz você, “eis aqui um livro
que contém as doutrinas que são essenciais ao conhecimento
de Deus.” Muito bem, tomo minha Bíblia e a abro, mas não
descubro que ela é apenas uma coleção de doutrinas expressas.
Há uma porção de história aqui, um grande tratado sobre
reis, príncipes, nascimentos, mortes e relatos de casamentos,
e assim por diante. Se a Bíblia fosse apenas uma coleção de
doutrinas claramente expressas, não haveria dificuldade alguma,
e tudo o que teríamos de fazer seria achar a página número um e
então olhar para a primeira doutrina, expondo-a e ponderando-
-a juntos.
Contudo a Bíblia não é desse gênero - meramente literatura.
Não nos achegamos a ela dessa maneira. Então surge a pergunta:
como essas doutrinas podem ser encontradas na Bíblia? O que
fazer para descobri-las? Essa não é uma pergunta frívola, como
acredito que posso mostrar-lhes facilmente. Nunca basta dizer,
porém: “Não estou interessado em doutrinas. Sou uma pessoa
da Bíblia. Que as pessoas curiosas discutam sobre doutrinas se
desejarem; você me dá a Bíblia, e eu fico satisfeito.” Essa é uma
declaração muito insensata, aliás, muito ridícula de se fazer,
porquanto a pessoa que se aproxima da Bíblia deve crer em algo

51
como resultado de sua leitura. A pergunta é: estão crendo no que
deveriam crer?
A maioria das seitas que são mais proeminentes no mundo
moderno alega que ela se acha fundamentada na Bíblia.
“Naturalmente”, dizem os sectaristas, “cremos em tudo o que a
Bíblia diz; nosso ensino está alicerçado nela.” Aliás, vocês
descobrirão que algumas dessas pessoas parecem conhecer suas
Bíblias muito bem. Portanto, não adianta apenas dizer que vocês
não crêem no que elas crêem porque vocês crêem na Bíblia.
Devemos saber como a doutrina pode ser encontrada na Bíblia,
se porventura esperamos, de alguma maneira, libertar essas
pessoas; caso estejamos ansiosos em transformá-las em
verdadeiros cristãos e levá-las a um real conhecimento de Deus.
Devemos estar na condição de explicar-lhes onde laboram em
erro e onde não são bíblicas, e ajudá-las a descobrirem a fonte de
seus erros.
Observem que a Igreja Primitiva chegou a essa mesma
condição. Havia entre as pessoas de toda a Igreja Cristã os que
alegavam crer na verdade, porém alguns, diz João, a haviam
abandonado: “Saíram de nós, mas não eram de nós; porque, se
fossem de nós, ficariam conosco: mas isso é para que se
manifestasse que não são todos de nós” (1 João 2:19). Eram
culpados de erro e de heresia em uma ou outra parte.
Tal como foi nos dias da Igreja Primitiva, assim é também
hoje; e nunca houve um tempo quando tanto convinha ao povo
de Deus conhecer o que ele crê e por que ele crê, do que nesta
presente hora. Então, como podemos chegar ao conhecimento
dessas doutrinas? O que devemos fazer? Dado que possuímos o
Livro que agora cremos ser autoritativo e divinamente inspirado
- os oráculos de Deus, a palavra de Deus, a verdade de Deus,
revelada de uma forma única - como encontrar a doutrina que
nele existe? Ora, parece-me que o melhor a fazer é considerar as
três proposições principais que nos guiarão e nos ajudarão nesta
matéria.
A primeira delas, com a qual teremos que tratar, queiramos
ou não, é o lugar que a razão, o discernimento e o intelecto

52
ocupam nestas questões. Admito que esse é um tema muitíssimo
difícil. Todavia ele é vitalmente importante, e é preciso que
tenhamos algumas idéias claras em nossa mente sobre qual deve
ser a nossa posição a esse respeito. Já tocamos de leve neste ponto,
de uma forma muito geral em nossa introdução. O ponto que
estabelecemos nela foi que, somente por meio da razão, ninguém
tem como chegar a Deus. O intelecto é insuficiente. “O mundo
não conheceu a Deus pela sua sabedoria” (1 Cor. 1:21). Esse é um
fato que pode ser comprovado. E vocês podem observar,
incidentalmente, como todas as pessoas talentosas do mundo
moderno estão agora, uma após a outra, se prontificando a
admitir que as pessoas, as quais eram tão preeminentemente
consideradas durante o período pós-guerra, estão confessando a
completa insuficiência da mente e da razão humanas, e ainda
confessam a necessidade de algo além delas. Mas agora estou
bastante desejoso de enfatizar esse mesmo conceito geral de uma
maneira ligeiramente diferente. Portanto, coloco-o diante de
vocês na forma de uma série de proposições.
A primeira coisa que devemos fazer, em vista de tudo o que
consideramos juntos, é consentir em apegar-nos à Bíblia como
nossa plena e final autoridade em todas as questões da revelação.
Tendo visto que não podemos ir a parte alguma sem a Bíblia,
então a coisa óbvia a fazer é confessar: “Muito bem, aceito a
Bíblia. Não conheço nada à parte dela. Não possuo conhecimento
de Deus à parte do que a Bíblia me comunica. Posso conjecturar,
e outros podem fazer o mesmo, todavia o fato é que não conheço
nada à parte do que encontro neste Livro.” Por conseguinte, a
primeira decisão que devemos tomar é que vamos ser, como João
Wesley o colocou, homens e mulheres “de um Livro”. Eis aqui
minha única fonte, minha autoridade exclusiva.
Desejo, porém, sublinhar isso e imprimir-lhe uma maior
ênfase. Devo submeter-me inteiramente à Bíblia, e tal fato terá
em mira certas coisas. Primeiramente, começo dizendo a mim
mesmo que, ao abrir a Bíblia para lê-la e suas doutrinas, estou
penetrando uma esfera que se acha além do alcance de meu
entendimento. À guisa de delimitação, estarei tratando de coisas

53
que se acham fora de minha faculdade cognitiva. A própria idéia
de revelação, em si e por si mesma, lembro-lhes, deve conter tal
implicação. Vamos tentar conhecer a Deus e estudar a doutrina
relativa a Ele; e o fato é que essas verdades se acham além de
nosso entendimento. Se eu pudesse entender a Deus, então seria
igual a Ele. Se minha mente fosse capaz de apreender e de abarcar
a verdade relativa a Deus, então significaria que minha mente é
igual à mente de Deus; e tal pensamento, é claro, é totalmente
errado.
Por exemplo, em nossa próxima preleção esperamos poder
tratar da doutrina da Trindade. Ora, à guisa de delimitação, eis
aí uma doutrina que possivelmente ninguém poderá entender;
admitamos, porém, tal fato antes de nos aproximarmos da
doutrina. Que ninguém conclua, contudo, que quando nos
dedicamos à Bíblia cometemos suicídio intelectual. Significa
simplesmente que reconhecemos haver um limite para a razão.
Concordamos com o grande matemático e filósofo francês,
Pascal, que o supremo empreendimento da razão é ensinar que
há um fim e um limite para a razão. Nossa razão nos conduz até
esse ponto, e então entramos na esfera da revelação, onde Deus
graciosamente Se apraz em manifestar-Se a nós.
Agora, porém, desejo enfatizar o segundo ponto. Significa
que devemos aceitar verdades onde não podemos entendê-las
nem plenamente explicá-las. Devemos não só admitir que não
podemos, necessariamente, entender tudo, mas também, quando
formos de encontro a doutrinas e verdades específicas, devemos
aceitá-las, se estão na Bíblia, independentemente de podermos
ou não entendê-las. Confesso que, de certo modo gosto de pensar
na fé nestes termos. E bem provável que a melhor definição de
fé a que podemos chegar é a seguinte: fé significa que homens e
mulheres decidem muito deliberadamente viver satisfeitos
somente com o que têm na Bíblia, e então param de fazer
perguntas.
Vocês podem dizer prontamente se alguém é ou não
verdadeiramente uma pessoa de fé. Basta ouvi-la. Alguns estão
sempre questionando: “Mas eu não vejo isso e não posso entender

54
aquilo.” Fé, entretanto, pressupõe que vivemos felizes em nos
achar apegados a este Livro, e que estamos sempre prontos a
declarar: “Deus revelou tudo o que quis revelar, e tudo o que é
bom para eu saber se acha na Bíblia. E se não está nela, então
fico feliz em não tomar conhecimento disso.” Tenham em mente,
por exemplo, quando vocês se põem a discutir o problema do
mal - como ele entrou neste mundo. A Bíblia não nos informa
por que Deus um dia o permitiu. Portanto, se vocês deixam a fé
assumir o comando, nem mesmo farão perguntas sobre ele.
Apenas se sentirão satisfeitos em dizer: “Não sei; a Bíblia não
me fala sobre isso, e não sei nada além do que a Bíblia me diz.”
Este é um princípio muitíssimo importante.
Permitam-me, porém, elaborá-lo um pouco mais, pondo-o
nestes termos: não há nada que devemos evitar de forma tão
veemente quanto a constante tentação de misturar filosofia à
revelação. Pode ser que alguns de vocês concluam que isso não
se aplica a vocês. Talvez digam: “Não estou interessado em
filosofia. Jamais li, em toda a minha vida, um livro sobre
filosofia.” Entretanto, meu querido amigo, isso não significa que
você não seja um filósofo! Todos nós somos filósofos. Você não
deve restringir o termo filósofo àqueles que têm por profissão ou
por dever, na vida, estudar ou ensinar filosofia. Cada pessoa que
tem uma opinião sobre alguma coisa é automaticamente um
filósofo. E creio ser-me possível mostrar-lhes num instante que
cada um de nós não é apenas filósofo, mas também estamos
sempre nos metendo em problemas devido ao fato de filosofarmos
demasiadamente. Portanto, advirto a todos contra o risco de
misturar-se filosofia com revelação.
Eis a maneira pela qual fazer isso. Estamos sempre dispostos
a rejeitar certas doutrinas, ou, talvez, se não as rejeitamos de
fato e de verdade, pelo menos hesitamos crer nelas, ainda que
sejam claramente ensinadas na Bíblia. Procedemos assim porque
não conseguimos entendê-las, ou porque não conseguimos
explicá-las, ou porque elas não parecem ajustáveis ao nosso
esquema de coisas. Sucede com muita freqüência que, quando
confrontamos as pessoas com uma afirmação específica da Bíblia,

55
cm vez de dizer: “Bem, estou preparado para crer nisso, embora
não o entenda”, elas dizem: “Mas, se isso é correto, então como
é possível Deus ser um Deus de amor?” - ou algo parecido. Ao
falarem assim, falam como filósofos. E creio que, se se
examinarem, perceberão que isso é pecisamente o que vocês
fazem com muita frcqüência.
Aliás, estou receoso de que aqueles dentre nós, que são
evangélicos, freqüentemente se vêem culpados de ser
demasiadamente inconsistentes neste ponto. Argüimos com os
chamados modernistas, e dizemos: “Imaginem! Ele não crê em
milagres, não crê no sobrenatural, só porque diz que não pode
entender um milagre” - e denunciamos tal procedimento. Ótimo!
Mas, quando às vezes nos aproximamos de alguns destes grandes
termos que se acham presentes no primeiro capítulo de Efésios,
tais como predestinados e eleitos segundo a presciência de Deus, nós,
evangélicos, começamos a dizer: “Ora, se isso é assim, então
não vejo como Deus pode ser justo” - e assim por diante.
Ora, esse é precisamente o mesmo procedimento de nosso
amigo modernista com respeito aos milagres. Percebemos muito
claramente no caso dele porque, quanto a nós, sucede crermos
na questão dos milagres. Entretanto, quando se dá com uma
doutrina que não acatamos tão prontamente, usamos exatamente
o mesmo argumento usado pelo modernista que introduz sua
filosofia. Portanto, isso é algo que deve aplicar-se a todos nós.
Não devo hesitar em crer numa doutrina só porque não consigo
encaixá-la; tampouco devo rejeitar uma doutrina só porque não
consigo entendê-la. Se essa é a verdade de Deus, e é claramente
ensinada, então tenho que aceitá-la, quer a entenda, quer não.
Daí, o ponto final que eu poria a esta divisão: jamais
devemos permitir que sejamos governados por nossa própria
lógica ou por nosso próprio desejo de possuir um sistema perfeito.
É um risco a que todos nós estamos expostos. Instintivamente,
gostamos de ter um sistema completo; não com lacunas nem
com o gume dentado. A razão, reitero, é porque somos todos
filósofos. É porque o filósofo sempre quer um todo completo,
quer ser capaz de entender tudo, quer ser capaz de afirmar tudo

56
- e todos nós somos assim. O perigo consiste, vocês vêem, em
que forçamos nossa própria lógica e nossos próprios esquemas a
um ponto que ultrapassa o ensino das Escrituras. Nesse ponto
somos também culpados de equívoco e de pecado. Devemos
atribuir plena relevância a cada declaração das Escrituras. Não
devemos jamais minimizar ou ignorar uma delas, a fim de fazer
com que o nosso esquema seja completo.
Eu poderia fornecer-lhes muitas ilustrações desse fato. Há
pessoas, por exemplo, que são sempre descritas como sendo
hiper-calvinistas, e esse é o seu problema. Vão além das Escrituras
e são dirigidas por sua própria lógica e por seus próprios
argumentos, e reivindicam coisas que não podem ser
demonstradas a partir das Escrituras. Vivem tão ansiosas em
possuir um esquema perfeito, que caem nessa engenhosa e
perigosa armadilha.
Assim, pois, a última coisa a dizer, dentro desta divisão, é a
seguinte: devemos submeter-nos não só à autoridade do Livro,
mas também à orientação, à inspiração e à iluminação do
Espírito Santo. Não devemos jamais ler a Bíblia exatamente da
mesma maneira que lemos qualquer outro livro. Se acaso é
verdadeiro tudo quanto se diz sobre ela, então devo aproximar-
-me dela consciente de minha inabilidade, compreendendo que
qualquer capacidade natural que porventura eu tenha, não é
suficiente aqui. Preciso ter em mente que as coisas espirituais
devem ser entendidas de uma forma espiritual, e portanto devo
começar sempre rogando a Deus, pelo Espírito Santo, que me
instrua, que me ilumine, que me guarde do erro e dos perigos
sutis e que eu seja guiado a toda a verdade. E assim, tendo feito
isso, posso aproximar-me da Bíblia; e, com mente já cônscia de
seus limites, sendo ela instruída pelo Espírito Santo, passo a
descobrir as doutrinas da Bíblia.
Muito bem, isso, pois, me conduz à minha segunda
proposição principal, que é o método pelo qual podemos chegar à
doutrina. Além disso, lembro vocês de que a Bíblia não é uma
mera coleção de doutrinas; e como agora vamos buscar nossas
doutrinas na Bíblia, não significa que iremos meramente enfeixar

57
um certo número de textos. Alguns parecem entender que esse é
o processo. Tendo descoberto várias afirmações sobre uma certa
matéria em toda parte da Bíblia, eles lhes apresentam uma série
de textos e deixam vocês nisso. Ora, essa não é a forma de se
chegar à doutrina, porque evidentemente isso não avança
suficientemente.
Ao contrário, sugiro que façamos o seguinte: coletemos
nossos textos; descubramos toda declaração que pudermos achar
na Bíblia sobre um tema específico. E então, tendo-os reunido,
tendo-os ordenado, procedamos a descobrir a doutrina que
repousa no fundamento. Isso é o que nos interessa no momento.
Aqui estão várias afirmações. Qual é a doutrina que estão
propondo? O que elas nos expressam? Qual o elemento básico
que é comum a todas essas afirmações? Essa é a nossa doutrina.
A medida que fizermos isso, veremos que há certas regras
que devem ser observadas muito cuidadosamente. Antes de tudo,
atentemos para uma série de regras gerais. Eis a primeira.
Qualquer doutrina na qual alegamos crer, a partir da Bíblia, deve
ser sempre claramente encontrada na Bíblia. Deve ser facilmente
demonstrada na Bíblia. Se não posso provar-lhes que a doutrina
que defendo se encontra na Bíblia, ou que a Bíblia a comprova
ou demonstra, então devo rejeitá-la.
Permitam-me apresentar-lhes algumas ilustrações do que
afirmo. Vocês descobrirão, como já vimos, que as pessoas virão
a vocês dizendo que crêem na Bíblia. Então propõem-lhes suas
doutrinas, e vocês perguntam: “Mas donde veio essa doutrina?”
“Ah!”, lhes dirão, “certa vez alguém teve uma visão ou uma
mensagem.” Vocês estão acostumados a tais afirmações. Pois bem,
o que pretendo enfatizar aqui é que devemos dizer que não
estamos prontos para aceitar qualquer afirmação desse gênero.
Não nos importamos com quem o diga nem com as maravilhosas
experiências que tal pessoa possa ter tido. E-nos completamente
indiferente, se tal afirmação não pode ser comprovada e
estabelecida nas Escrituras e a partir delas.
Contudo, esperem um momento: não estou apenas me refe­
rindo às seitas. Essa é a nossa réplica evangélica, por exemplo, aos

58
católicos romanos. Vejam vocês, eles vêm e lhes contam certas coisas.
E vocês lhes dizem: “Mas não encontro tal coisa nas Escrituras.”
“Naturalmente que não”, dizem eles, “mas temos nossa
tradição; a revelação não se detém no final do cânon do Novo
Testamento - a verdade tem sido recebida diretamente de Deus,
desde então. O apostolado e o discernimento apostólico têm
continuado, e, portanto, argüimos que a igreja católica romana,
sua tradição e seu ensinamento são de igual autoridade e valor
com as Escrituras.”
Outra vez respondemos com um firme e resoluto, não! Não
nos interessa que autoridade um ensino possa reivindicar para
si. Se o mesmo não pode ser comprovado pelas Escrituras,
rejeitemo-lo.
E afirmamos exatamente a mesma coisa, sem dúvida,
quanto a qualquer reivindicação a favor de qualquer doutrina
cuja origem venha da habilidade ou do entendimento humano.
Tomem, por exemplo, a doutrina católico-romana da
transubstanciação. Os católicos romanos ensinam que, como
resultado da ação do sacerdote, o mesmo pão na mesa da Ceia do
Senhor se converte no corpo literal do Senhor Jesus Cristo.
“Mas”, vocês replicam, “ainda o vejo como pão.”
Então replicam eles: “Claro que sim” - e então introduzem
sua filosofia, pela qual lhes dizem que há certa diferença entre a
substância de uma coisa e os acidentes dela. O que querem dizer
por “acidentes” são as propriedades, como cor e textura. E dizem
que a substância foi mudada, porém os acidentes permanecem
os mesmos. Um formidável bocado de filosofia! Mas não
aceitamos nenhuma doutrina, mesmo quando a explicação seja
sutil e habilidosa, se porventura não a pudermos encontrar nas
próprias Escrituras, ou prová-la a partir das Escrituras.
Deixem-me, porém, prosseguir para um segundo ponto.
Nossa doutrina deve ser exclusivamente escriturística. Não só
devemos rejeitar toda doutrina que evidentemente tem vindo
de fora das Escrituras, mas não devemos nem mesmo aceitar
uma doutrina que é em parte escriturística e em parte algo mais.
Ela deve ser pura, Escritura sem adulteração. Este é outro ponto

59
muitíssimo importante devido à constante tendência da filosofia
de tentar solertemente entrar pelos fundos.
Então, o terceiro ponto que apresento dentro desta
proposição consiste em que a doutrina deve ser inteligível e clara
nas Escrituras. Posso apresentar-lhes um termo técnico? Estou
tentando não fazer isso, no entanto este é um grande termo -
aquele que foi usado por nossos pais protestantes. Eles falaram
da perspicuidade da doutrina escriturística, pela qual queriam
dizer que a genuína doutrina escriturística é sempre inteligível
e clara. As próprias Escrituras a enfatizam por toda parte. Aliás,
elas a pressupõem.
As vezes cometemos um grande erro quando começamos a
estudar as Escrituras, ou seja, não paramos para nos lembrar do
tipo de pessoas a quem elas foram escritas. Pouparia uma porção
de suspeitas e uma porção de aborrecimentos, se todos quantos
elaboraram uma exposição das Epístolas de Paulo se lembrassem,
antes de começar a exposição, que as Epístolas não foram escritas
para estudantes nem para professores de doutrina de Oxford e
Cambridge, porém para escravos e para pessoas comuns e
corriqueiras! “Porque, vede, irmãos, a vossa vocação, que não
são muitos os sábios segundo a carne, nem muitos os poderosos,
nem muitos os nobres que são chamados” (1 Cor. 1:26). Foi a
tais pessoas que as Epístolas aos Efésios e aos Colossenses, etc.,
foram escritas; e nos metemos em dificuldades quando
ignoramos esse fato. Quando Paulo escreveu essas Epístolas, ele
tomou por certo que as pessoas a quem as escrevia as
entenderiam. Elas não contavam com tais professores para lhes
explicá-las. Não. Ao contrário, ele as escreveu para aqueles a
quem pudesse ensinar, e sabia que eles entenderiam. Isso é o
que os pais queriam dizer por perspicuidade das Escrituras.
Aliás, essa é a razão por que às vezes receio que eu expresso
certa medida de impaciência para com pessoas que sempre
baseam a suasdoutrina no significado de um termo grego ou
hebraico. A luz do que já afirmamos, tal procedimento,
necessariamente, seria errôneo. Devemos poder atingir o
significado da doutrina a partir do conteúdo da passagem.

60
Portanto eu o colocaria desta forma: não necessitamos de
nenhuma autoridade especial para orientar-nos nestas questões.
O apóstolo João nos diz que não temos nenhuma necessidade de
sermos instruídos nesse sentido por causa desta unção. “E a
unção, que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes
necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção
vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, como
ela vos ensinou, assim nele permanecereis” (1 João 2:27). Por
conseguinte rejeitamos o parecer católico-romano de que as
pessoas comuns não se acham aptas para lerem suas Bíblias, e
que somente a igreja pode legitimamente explicá-la. Ao contrário,
afirmamos que estes manuscritos foram escritos por pessoas
como nós, e que os mesmos nos foram destinados para que nós
e elas pudéssemos entendê-los.
Da mesma forma, repudiamos terminantemente a idéia de
haver alguma necessidade absoluta de determinada filosofia
especial ou de algum conhecimento idiomático, ou mesmo do
conhecimento de certa outra língua, a fim de entendermos estes
assuntos, contanto que nos seja apresentada uma clara e acurada
tradução. Portanto, digo reiteradamente que rejeitamos o ensino
católico-romano.
Rejeitamos também muito da teologia dos últimos cem anos,
visto que ela tem sido em grande parte mesclada com teologia
filosófica. E rejeitamos muitos tipos de teologias que estão muito
em voga nestes tempos modernos, porque, antes que possamos
entendê-las, temos que apreender os sentidos especiais atribuídos
às palavras “história”, “tempo” e “mito”. Temos de ser
engenhosos e filosóficos; e, por definição, isso seria errado.
Podemos confiar no ensino patente; cremos na perspicuidade
da doutrina escriturística.
Essas, pois, são minhas regras gerais. E agora nos voltamos
para as específicas. Visto que já coletamos e reunimos nossos
textos, o que fazer com eles? Ora, vocês descobrirão que há duas
coisas primordiais a fazer. Às vezes é algo muito simples deduzir
a doutrina das afirmações. Vocês apenas olham para as
afirmações, e logo dizem: “Isso, inevitavelmente, significa assim

61
e assim.” Isso é dedução - vocês deduzem o significado.
Mas há outro método que é chamado “indução”. Tomem
como exemplo de indução a doutrina da Trindade. Vocês não
encontrarão a doutrina da Trindade expressa, quer implícita,
quer explicitamente, em lugar nenhum na Bíblia. No entanto,
descobrirão que há referências a “Deus o Pai”, a “Deus o Filho”
e a “Deus o Espírito Santo”. E, tendo encontrado essas
afirmações, vocês dizem: “Disso deduzo a doutrina da Trindade
- que Deus é uma e três pessoas”. Isso não é dedução, é indução.
Estão construindo a doutrina a partir de certas declarações.
Portanto, vocês chegam à sua doutrina através de dois processos,
ou seja, a dedução e a indução.
Deixem-me apresentar-lhes alguns pontos simples e
práticos. Jamais devemos basear nossa doutrina em apenas uma
afirmação na Bíblia, menos ainda em parte de uma afirmação.
Há pessoas que se dão mal porque têm procedido assim, às vezes
até mesmo contando com apenas metade de um versículo.
Esquecem a outra metade, porque essa é a única que lhes convém.
Esse procedimento nunca deve ser o nosso.
E a outra regra é que nunca devemos chegar a qualquer
conclusão procedente das Escrituras que nos leve a contradizer
alguma coisa que se acha expressa nelas. Devemos ser “obreiros”
que “distinguem corretamente a palavra da verdade” (2Tim.2:15).
Essa é uma exortação escriturística. E assim, se eu chego à
doutrina e descubro que a mesma é contraditada por algo mais
claramente expresso na Bíblia, então sei que minha doutrina
deve estar errada. Acaso perceberam a importância de se fazer
o que fiz na última preleção, a importância de estabelecer a
doutrina da inspiração verbal, de afirmar que todo este Livro é
o Livro de Deus? A Bíblia é uma grande mensagem. Ela forma
sempre um todo homogêneo, de modo que um ponto nunca
deve contradizer outro. E espantoso observar na história da
Igreja como algumas das principais heresias surgiram só
porque homens preeminentes se esqueceram desta regra tão
simples.
Agora, porém, terei de tratar de uma questão final. Vocês

62
indagam: “A luz de tudo o que você disse, seria possível que
cada cristão fosse capaz de concordar com todos os demais
cristãos sobre cada doutrina bíblica?” E acrescentam: “Nada é
mais patente e claro do que o fato de haver diferenças entre os
cristãos. O que você tem a dizer a respeito?”
Bem, eu desejo apenas fazer uma série de observações. Por
que existe essas diferenças de opinião? A primeira razão é que
as pessoas persistirão em cair nos diversos erros que já
enumeramos. Apoiam-se em sua filosofia, ou baseiam sua
doutrina em um texto, ou na metade de um texto, ou em algo
semelhante. Se alguém procede assim, então haverá diferenças
de opinião, visto que alguns de nós nos recusaremos a fazer tal
coisa, e assim vocês se defrontarão com duas escolas de
pensamento sem maiores investigações.
Mas há ainda outra causa para tais diferenças. Sempre há
de nossa parte aquela tendência de começar com uma teoria; e,
uma vez iniciado, tentamos forçar as Escrituras a favorecerem
nossa teoria. Já me reportei várias vezes ao ensino da igreja
católica romana. Esta é seguramente a essência dos erros católico-
-romanos. Tendo postulado uma dada igreja e uma dada ordem,
tudo tem que ser forçado para adequar-se a esse esquema. Não
fundamentam toda a sua doutrina na Bíblia. Alegam que algumas
doutrinas lhes vieram de fora da Bíblia, e que as mesmas estão
em pé de igualdade com o que se acha na Bíblia.
Todavia, tal fato não se aplica exclusivamente aos católicos
romanos. E também aplicável a muitos protestantes. Se vocês
começarem com uma teoria específica sobre o livre-arbítrio, ou
algo semelhante, então lhes asseguro que se envolverão em
dificuldades sobre certas doutrinas bíblicas. Devemos ser
cuidadosos para não virmos à Bíblia com idéias preconcebidas,
parcialidades e teorias filosóficas. Essa é uma causa muito
prolífera de inquietação e controvérsia.
Outra maneira pela qual as pessoas chegam a essas diferenças
é que muito freqüentemente elaboram suas teorias em detalhes
sobre os quais não podemos ter certeza. Aliás, se vocês querem
uma ilustração desse fato, deixem-me mencionar a palavra

63
“profecia”. Talvez isso seja o maior perigo em relação a esse
assunto. Quando estudamos profecia, a nossa tendência é elaborar
sobre detalhes acerca dos quais ninguém pode estar
absolutamente certo. Alguém diz: “Estou certo” - e então cria-
-se a teoria. Entretanto, se não podemos demonstrar os pontos a
partir da Bíblia, não temos nenhum direito de elaborar uma
teoria.
Outra causa de conflito consiste em que algumas pessoas
persistem em tomar literalmente o que obviamente tem um
sentido simbólico. Por exemplo, faz algum tempo, eu viajava de
trem. Após algum tempo, achei-me envolvido numa conversação
com um católico romano. Inevitavelmente, ele me levou para
este assunto: disse que indubitavelmente a Bíblia diz: “Isto é o
meu corpo.”
Eu disse: “Mas nosso Senhor estava lá nessa hora;
obviamente Ele não queria dizer que o pão fosse Seu corpo real
quando estava falando do corpo. Isso só pode ser simbólico.”
Replicou ele: “Ah, eis o problema dos protestantes: vocês
sempre dizem coisas como essa. No entanto, vocês precisam
considerá-lo literalmente.”
“Muito bem”, disse eu, “se você diz isso, então eis minha
resposta: nosso Senhor disse: “Isto é o meu corpo que é dado
por vós.”
“Sim”, disse o católico romano.
Então lhe disse: “Sim, mas então Ele prosseguiu dizendo:
“Este cálice é o novo testamento em meu sangue.” Ele não fala
do vinho no cálice. Disse: “Este cálice.” Você está me dizendo
que Ele estava falando do cálice num sentido literal?”
E, naturalmente, ele teve que admitir que não poderia
afirmar tal coisa. “Então”, disse eu, “por que não seja honesto o
bastante para admitir que tudo é simbólico? O cálice representa
o vinho, e o vinho é a representação simbólica do sangue.” Se
uma vez tomamos como sendo literal o que é simbólico, com
toda certeza teremos problemas.
Deixem-me, porém, novamente lembrá-los que isto ocorre
não somente com os católicos romanos. Porventura não

64
conhecemos pessoas que fazem a mesma coisa com livros como
o do Apocalipse, as quais nos dizem que tudo ali é simbólico? E
não tem havido amiúde tristes conflitos, só porque haja quem
tome os símbolos e trate com eles literalmente? É exatamente o
mesmo procedimento. Portanto, devemos tomar o mesmo
cuidado em cada área.
Nosso Senhor Jesus teve que dizer a alguns de Seus próprios
discípulos: “O espírito é o que vivifica, a carne para nada
aproveita; as palavras que eu vos disse são espírito e vida” (João
6:63). Foi preciso que lhes dissesse que, a não ser que comessem
a carne do Filho do homem, e bebessem o Seu sangue, não teriam
vida em si mesmos. E eles disseram: “Como podemos fazer isso?”
Estavam materializando-o, literalizando-o. Então Ele disse:
“Minhas palavras são espírito; a carne para nada aproveita.”
Finalmente, claro, o que se deve evitar acima de qualquer
outra coisa é o espírito partidário. A maior maldição do
denominacionalismo consiste em começarmos com certas
opiniões preconcebidas, só porque fomos educados com elas, e
nossos pais creram nelas, e dizemos que temos de defendê-las a
todo custo. Essa é uma terrível maneira de aproximar-se da
verdade de Deus. Por conseguinte, oremos para que sejamos
libertos do espírito partidário e das opiniões preconcebidas, as
quais são sempre a característica de tal espírito.
Assim, pois, o meu próximo ponto é que há certos assuntos
nas Escrituras sobre os quais não podemos falar em termos
conclusivos. Há certas coisas sobre as quais homens e mulheres
igualmente bons e idôneos não concordam e nem podem
concordar. Quando chegamos a tais assuntos, certamente é nosso
dever confessar que não sabemos. Não podemos prová-las, e
sentimo-nos felizes por esperar até que cheguemos à glória e
tudo se faça patente e claro aos nossos olhos. Agora vemos e
entendemos em parte, “como em espelho, obscuramente” (1 Cor.
13:12). Nosso conhecimento não é perfeito. Não é final.
Estejamos contentes com a revelação que nos é dada.
Há, porém, certas doutrinas sobre as quais somos convictos
e devemos ser absolutamente conclusivos, pois são as doutrinas

65
essenciais à vereda da salvação. Não me refiro ao mecanismo da
salvação. Ao se aproximarem disso, vocês encontram boas
pessoas freqüentemente se diferindo. Eu aceito isso. Estou
disposto a dizer: “Eu creio nisso, e não estou disposto a crer
naquilo.” E outro diz: “Tudo bem, contanto que ambos
concordemos sobre o caminho da salvação.” Quando chegarmos
a essa doutrina, enfatizarei este ponto um pouco mais. Entretanto
não deve haver nenhuma discordância sobre a Pessoa de Cristo,
sobre o miraculoso e o sobrenatural, sobre a morte substitutiva
na cruz e sobre a ressurreição literal e física. Não pode haver
discordância aí. Isso é conclusivo; isso é absoluto.
Com referência a todos os demais assuntos, porém, onde
não podemos ser conclusivos e absolutos, sejamos compreensivos.
Sejamos tolerantes. Admitamos nossa incapacidade de provar, e
desfrutemos juntos da grande salvação da qual somos
participantes, vislumbrando aquele dia quando as coisas ocultas
se farão manifestas, e conheceremos assim como somos
conhecidos.

66
5
A EXISTÊNCIA E
O SER DE DEUS
“Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria como da ciência
de Deus!” (Rom. 11:33). Essa é a maneira como o apóstolo encerra
o capítulo onze de Romanos; e não podemos fazer nada melhor,
ao estudarmos estas doutrinas bíblicas, do que conservar essas
eloqüentes palavras em nossa mente. Tendo completado a
introdução geral ao assunto como um todo, podemos agora
avançar para as doutrinas específicas. Muito mais poderia ser
dito à guisa de introdução, mas cumpre-nos prosseguir, e a
primeira doutrina à qual devemos prestar bastante atenção,
aquela que é colocada em primeiro plano na própria Bíblia, é a
doutrina acerca de Deus.
Ora, isso não é tão plenamente óbvio quanto parece, porque,
se vocês considerarem a introdução típica à teologia e aos
assuntos bíblicos nos últimos cem anos, ou mais, então
descobrirão que quase invariavelmente o ponto de partida é com
o homem. Tudo o que se acha associado com o que é às vezes
chamado modernismo é sempre caracterizado assim; a teologia
é sempre subjetiva; sempre começa com o próprio homem. Visto
que o modernismo está interessado em si mesmo e em suas assim
chamadas idéias psicológicas da origem, inevitavelmente ele
começa, ou com o homem ou com o mundo, e daí prossegue
para estudar a doutrina sobre Deus.
Mas isso não é o que a Bíblia diz. A Bíblia começa com
Deus. Lembrem-se de sua grande afirmação inicial, a qual
realmente nos diz tudo: “No princípio Deus...”. É muitíssimo
importante que frisemos isso e o compreendamos claramente.
Conhecer a Deus é, afinal, a súmula de todas as demais doutrinas.
Não há nenhum sentido, não há nenhum significado ou
propósito, em qualquer outra doutrina, à parte desta grande,

67
central, toda-inclusiva doutrina sobre o próprio Deus. Não há
nenhum objetivo em considerarmos a doutrina da salvação, ou
a doutrina do pecado, a não ser que comecemos com a doutrina
a respeito de Deus. Todavia, independentemente de tais
considerações, mais ou menos lógicas, começamos com a
doutrina acerca de Deus, em razão de Deus ser Deus, e porque,
se colocarmos algo ou alguém antes dEle, estaremos dessa forma
desonrando-O. Fracassamos em adorá-10 como deveríamos, bem
como fracassamos em comportar-nos na Sua presença segundo
o que a Bíblia nos ensina.
Por conseguinte, inevitavelmente temos de começar com
esta tremenda afirmação que abre a Bíblia: “No princípio Deus.”
Ora, obviamente, como esta doutrina é todo-inclusiva, nos vemos
face a face com um tema infinito, um tema que não se pode
exaurir. E, segundo entendo o ensino da Bíblia, e segundo parece
completamente inevitável da própria natureza e ser de Deus, eis
aí um tema que ocupará o povo de Deus ao longo das infindas
eras da eternidade. Mesmo assim, porém, é vital que tentemos
classificar nosso conhecimento tanto quanto pudermos, que
tentemos ter nossos pensamentos sobre Deus organizados de
uma forma ordenada. Isso nos ajudará em todas as áreas de nossa
vida cristã, especialmente em nossa adoração. Pode haver pouca
dúvida, parece-me, de que Deus nos deu Seu Livro, a Bíblia,
com sua revelação, para que pudéssemos fazer isso mesmo.
Contudo, como já concordamos, não basta meramente tomar a
Bíblia em sentido geral. Devemos sublinhar os grandes e
excelentes princípios e, conhecendo esses, podemos prosseguir
para adorar a Deus.
Evidentemente, o primeiro aspecto com o qual devemos
começar é este: a existência de Deus. Afirmamos que queremos
adorar a Deus e conhecê-10. Então o primeiro pensamento que
vem à nossa mente é a existência de Deus, porque, como todos
nós sabemos muito bem, há muitas pessoas que nos dizem que
não crêem nela. Não é o caso de nos preocuparmos tanto com
elas e seus argumentos, quanto é essencial, do nosso próprio ponto
de vista, que haja clareza em nosso pensamento sobre este tema.

68
Ora, o único item que desejo estabelecer neste ponto pode
ser expresso assim: a Bíblia não argumenta sobre a existência
de Deus - ela a declara. A Bíblia não nos apresenta quaisquer
provas da existência de Deus - ela a pressupõe. Tomemos aquela
frase inicial. Gênesis não começa, dizendo: “Ora, mediante as
seguintes provas, estabelecemos a existência de Deus; e, visto
que Ele era existente, estabelecemos que no princípio Ele criou...”
- absolutamente, não! “No princípio criou Deus...”; ela apenas
afirma Sua existência e Seu Ser. Naturalmente, em Atos, capítulos
14 e 17, bem como em Romanos, capítulo 1, a Bíblia nos ensina
que, por causa da benevolência de Deus, deixar de crer em Deus
é algo inteiramente indesculpável. Mas ela apenas o põe assim,
em termos negativos; não diz, positivamente, que à luz da
natureza, etc. e etc., a existência de Deus pode ser comprovada.
Ela diz que, se alguém não crê em Deus, há evidência que pode
surgir contra ele, porque Deus deixou Suas marcas na natureza.
Portanto, como Paulo argumenta, o homem incrédulo é
inescusável. Em Romanos 1:20, ele escreve: “Porque as suas coisas
invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder,
como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas
coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis.”
Não pretendo ficar aqui com a questão de provas, mas me
sinto ansioso por ser prático, e não tenho dúvidas de que muitos
de vocês têm lido sobre as “provas” do Ser e da existência de
Deus, e sentem que elas têm algum valor, por isso cumpre-me
dizer algo sobre nossa atitude para com elas. Há uma série de
argumentos, e vocês os acharão na maioria dos compêndios sobre
doutrinas bíblicas e teologia, com grandes detalhes. Há o assim
chamado argumento cosmológico, o qual é extraído da natureza,
ou seja, cada efeito tem uma causa. Em seguida vem o argumento
de ordem e desígnio, chamado argumento teleológico, o qual diz
que tudo conduz a algo - isso é claramente evidente. E então
temos o argumento moral, o qual conclui que nossa consciência
do bem e do mal, nosso senso de certo e errado, aponta para a
existência de um Deus moral. Em seguida existe o assim chamado
argumento de que as pessoas de todos os lugares, mesmo nas

69
mais primitivas raças, pensam e sentem que há um Deus. Sugere-
-se que deve haver alguma base para se pensar assim, e que tal
coisa é uma prova da existência de Deus.
Com efeito, o que a Bíblia ensina sobre tais argumentos é
que os mesmos jamais poderão gerar a fé. São úteis em certo
sentido, porém jamais levarão à fé e, segundo as Escrituras,
ninguém pode crer em Deus sem fé, sem a obra interior do
Espírito Santo que conduz à fé. Lembrem-se da forma como
isso é posto em Hebreus 11:6, onde se nos diz que para alguém
vir a Deus é preciso que “creia que ele existe, e que é galardoador
dos que o buscam”, de modo que, afinal, ninguém crerá em Deus
sem o dom da fé, que é o dom do próprio Deus.
Quando os homens e as mulheres crêem em Deus pela fé,
as provas são de valor como suporte de sua fé, e assim são de
alguma ajuda, porém duvido que elas tenham algum outro valor.
Se vocês estão interessados nelas, poderão fazer das mesmas
algum uso, ou seja, para fortalecer e apoiar sua fé e para mostrar
às pessoas com quem vocês estiverem arrazoando estes assuntos
que estas coisas as fazem inescusáveis.
Então, o próximo assunto a ser posto diante de nós é a
possibilidade de se conhecer a Deus. Deus existe de eternidade a
eternidade, e a Bíblia, obviamente, começa aí. No entanto, Deus
tendo criado o mundo e tendo-nos posto no mundo, a questão
para nós é a seguinte: é possível conhecer este Deus que é posto
diante de nós, na Bíblia, o Deus cuja existência a Bíblia assevera?
Esse é um aspecto muitíssimo importante de todo o tema. Esta
questão do conhecimento de Deus é o propósito, o supremo
propósito, de toda a religião; é a coisa suprema que deve ocupar
a predominância da mente e coração de todos nós. Qual é a
necessidade de vocês, qual é o seu objetivo, por que se dispõem
a estudar estas doutrinas?
Ora, segundo o ensino bíblico, nossa suprema necessidade
seria sempre a de conhecer a Deus, portanto a pergunta é: pode
Ele ser conhecido? Isso porque há pessoas que crêem na
existência de Deus, mas que nos insinuam que Ele não pode ser
conhecido. Tal ensino era muito popular há uns duzentos anos

70
atrás. É conhecido sob o nome de. deísmo, e há um grande número
de pessoas que crêem nesse ensino, hoje. Creem que Deus criou
o mundo como um relojoeiro faz um relógio. Então o concluiu
e, tendo-o dado corda, o colocou para funcionar e não teve mais
interesse por ele, nem fez nada mais por ele. Segundo tal teoria,
obviamente Deus não pode ser conhecido.
Vemos muitas razões para dizermos que estas idéias são
totalmente errôneas, mas o aspecto do assunto que anseio
enfatizar é o seguinte - e é um que precisa ser mais salientado
que qualquer outro, a todos nós que somos cristãos evangélicos
- devemos sempre tomar cuidado para enfatizar que o
conhecimento de Deus tem prioridade sobre qualquer bênção
particular que venhamos a desejar dEle. O alvo de toda a nossa
busca, de todo o nosso culto e de todo o nosso empenho não
deve ser o de termos uma experiência pessoal; não deve ser o de
pedirmos certas bênçãos; deve ser o de conhecermos a Deus
pessoalmente - o Doador, não a dádiva; a origem e a fonte de
toda bênção, não a bênção propriamente dita.
Acredito que vocês concordarão comigo, de que
necessitamos sempre dessa lembrança. Todos nós somos tão
propensos a começar conosco e com nossos problemas. As vezes
me sinto alarmado ao ter a impressão de que certas pessoas e
livros realmente não revelam interesse por Deus, necessaria­
mente, exceto como agência que pode oferecer-lhes bênçãos. Tal
coisa é indubitavelmente errônea e completamente antibíblica.
Ouçam o nosso Senhor dizendo isto: “Bem-aventurados os
limpos de coração; porque eles verão a Deus” (Mat. 5:8). Eis o
summum bonum (supremo bem); eis o nosso objetivo e alvo. Essa
afirmação registrada em Mateus (5:8) é uma das grandes
beatitudes, aquela que é a soma de todas as outras. Não há nada
além dela; ela deveria ser a coisa suprema a cobiçarmos, e todos
os nossos esforços deveriam ser em função dela.
Ou tomem também a definição que nosso Senhor faz de
vida eterna. Que é vida eterna? Pergunto-me qual seria nossa
resposta se porventura fôssemos confrontados com essa pergunta.
Nossa tendência seria descrevê-la de uma maneira subjetiva,

71
como algo que temos recebido, uma experiência que tivemos,
etc. - e ela inclui isso. Mas a definição de nosso Senhor é a
seguinte: “E a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só,
por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”
(João 17:3).
Portanto, conservemos isso em sua correta posição. Oh, sim,
é lícito sentir que gostaríamos de saber que somos perdoados; é
lícito sentir que gostaríamos de ser libertados do pecado - tudo
isso é perfeitamente legítimo - porém se essas coisas vêm antes
do desejo de conhecer a Deus, então toda a nossa atitude se
torna muitíssimo errônea e defeituosa. Não seria possível que a
maioria de nossos problemas pessoais surja do fato de que não
começamos com o desejo de conhecer a Deus e de pôr isso
em primeiro lugar?
Assim, pois, a pergunta é: é possível? E aqui tenho que
introduzir um termo, uma grande palavra, porém vital. A Bíblia
ensina aquilo que é chamado a incompreensibilidade de Deus.
Significa que Deus não pode, em última instância, ser
compreendido ou entendido pelos seres humanos; significa que
podemos ler todos os aspectos da doutrina sobre Deus e tentar
apreendê-la com nossas mentes, mas, à guisa de delimitação,
Deus é incompreensível, jamais poderemos conhecê-10 em
sentido máximo, final e completo. Leiam como se acha expresso
em 1 Timóteo 6:16, ou novamente em Romanos 11:33, ou em
Isaías 55:8,9. Deus habita naquela luz da qual ninguém pode
aproximar-se. Deus é incompreensível em Seu Ser eterno e
absoluto.
Todavia descobrimos que, embora Deus seja finalmente
incompreensível, Ele é, não obstante, conhecível. Ele não pode
ser compreendido, entretanto - graças a Deus! - Ele pode ser
conhecido. Que sejamos bem claros sobre isto. Há aqueles que
tentam fazer-nos crer que Deus não pode ser conhecido em Seu
Ser real, que Ele só pode ser conhecido em Suas comunicações
com homens e mulheres. Todavia, essa é uma posição muitíssimo
errônea, quando posta à luz do ensino bíblico. Naturalmente
que Deus é mais facilmente conhecido em Suas comunicações

72
com homens e mulheres, mas, como já vimos, a Bíblia ensina
que Ele pode ser conhecido, mesmo em Seu Ser essencial.
Ora, ao expressar-me assim, não estou negando a doutrina
da incompreensibilidade; o meu desejo é mostrar-lhes como a
concilio. O conhecimento que temos do Ser de Deus jamais ultra­
passará um conhecimento parcial; contudo, embora seja parcial,
ele é, não obstante, real; embora não seja completo, não obstante
é um conhecimento verdadeiro, suficiente para levar-nos a
glorificá-10. E temos este conhecimento de Deus porque aprouve
a Ele no-lo conceder. Indubitavelmente, este é o ponto máximo
e o propósito de todo o ensino que temos na Bíblia. Aqui
encontramos a revelação que Deus fez de Si mesmo à luz de
várias afirmações feitas por Ele; seguramente elas intentam
ensinar-nos sobre o Ser de Deus tanto como sobre Suas
comunicações com a humanidade.
Há ainda outro termo, a saber, antropomorfismo - aquelas
afirmações no ensino bíblico onde Deus Se expressa como se
fosse homem. Elas se referem a Deus falando isso e sentindo
aquilo, e seguramente elas também se destinam a levar-nos a
conhecer algo sobre o Ser essencial de Deus.
Um argumento adicional que devo trazer a lume são as
várias visões que se acham registradas nas Escrituras, como tendo
sido visualizadas por alguns dos profetas e outros servos de Deus,
como, por exemplo, o que aconteceu a Moisés ao ser ele colocado
na fenda da rocha - a visão de Deus (Ex. 33:18-23). O que eram
essas visões? Bem, seguramente não eram outra coisa senão
exemplos e ilustrações de Deus manifestando algo de Seu próprio
e glorioso Ser. Essas não eram Suas comunicações com os homens
e as mulheres na salvação, e assim por diante, contudo que Deus
estava concedendo aos Seus servos apenas um vislumbre de Sua
glória transcendente, e para que jamais a esquecessem. E assim
argumentamos que, embora Deus seja incompreensível, Ele, por
Sua infinita graça, bondade e condescendência, pode ser
conhecido. Na verdade Ele é conhecido.
Se, pois, tal é o caso, então a próxima pergunta é: o que
conhecemos sobre Deus? O que podemos conhecer sobre Ele?

73
E aqui acredito ser oportuno começar com o que a Bíblia nos
ensina sobre Deus em Sua própria natureza e ser essenciais. Ora,
neste ponto devo deter-me por um momento. Quando
começamos estes estudos, eu disse que pretendia prosseguir com
freqüente reiteração; que estamos estudando estas coisas juntos,
não simplesmente visando a entreter uns aos outros
intelectualmente. Se eu soubesse que alguém está acalentando
esse motivo - e digo isto muito séria e solenemente - então não
daria prosseguimento a estes estudos. Nosso objetivo é conhecer
a Deus, e conhecer a Deus é adorá-10 - e aqui estou eu, um
pigmeu, um pregador, limitado pelo tempo, falando sobre a
natureza e ser essenciais de Deus!
Não, neste ponto só temos uma coisa a fazer: temos de fazer
o que fez Moisés quando viu a sarça ardendo. Primeiramente
ele disse: “Agora me virarei para lá, e verei esta grande visão”
(Êx. 3:3), e ele se aproximou para investigar este notável
fenômeno, esta sarça que ardia e não se consumia. Mas lhe veio
a palavra: “Não te chegues para cá; tira os teus sapatos de teus
pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa” (v. 5). Cada vez
mais, ao considerar essas coisas e gastar sempre mais tempo na
leitura de minha Bíblia, entendo por que os antigos judeus nunca
mencionavam o nome Jeová. Enchiam-se de um senso tal de
temor e reverência; possuíam uma concepção tal da majestade
de Deus, que em certo sentido não ousavam nem mesmo
pronunciar o nome. Prefiro ver essa atitude mais do que ouvir o
povo dizer: “Querido Deus”. Não encontro tal expressão na
Bíblia. Encontro, sim, “Pai Santo”, porém jamais “Querido
Deus”. Devemos aproximar-nos dEle “com reverência e piedade,
porque o nosso Deus é um fogo consumidor” (Heb. 12:28,29).
E assim, conservando tudo isso na mente, aproximemo-
-nos deste tema nesse espírito, e permitam-me que os lembre de
algumas das coisas que a Bíblia nos diz sobre a natureza e ser
essenciais de Deus. E muito interessante observar aqui que só
podemos, em certo sentido, tratar com termos negativos, por
causa de nossa finita condição e da transcendente grandeza e
glória de Deus, até mesmo nossas afirmações positivas são, em e

74
por si mesmas, negativas. Tomem, por exemplo, a primeira
afirmação. A Bíblia nos ensina sobre a infinitude de Deus - a
natureza de Deus é infinita. Ora, isso realmente significa não
finita; vocês não podem pô-lo em termos positivos. Significa
que Ele é um Ser absoluto; Ele não é derivado de coisa alguma
nem é condicionado por coisa alguma - “Eu sou o que sou” (Êx.
3:14). Disse Moisés a Deus: “Eis que quando vier aos filhos de
Israel, e lhes disser: o Deus de vossos pais me enviou a vós; e
eles me perguntarem: qual é o seu nome? Que lhes direi?” E
Deus lhe ordenou que dissesse: “Dirás aos filhos de Israel: Eu
sou me enviou a vós” (Êx. 3:13,14). Que pensamento
surpreendente: um ser supremo e absoluto!
Noutras palavras, a infinitude de Deus pressupõe que Ele é
a causa de todas as coisas, de toda a existência; todo ser têm sua
origem nEle. Sua infinitude nos lembra também que Ele é livre
de todas e quaisquer restrições e de todas e quaisquer fronteiras.
Não há nenhuma limitação onde Deus é concernido. Ele está
em tudo, em toda parte; Ele é ilimitado. Ou, talvez, a melhor
maneira de raciocinar sobre isso seja: a exaltação de Deus, a
sublimidade de Deus, a majestade inefável de Deus, ou a
transcendência de Deus, acima e além de tudo: “Eu sou o que
sou”. Lemos em Apocalipse 4:8: “Santo, Santo, Santo é o Senhor
Deus, o Todo-poderoso, que era, e que é, e que há de vir.” A
infinitude de Deus é enfatizada por toda a Bíblia, do começo ao
fim, e jamais devemos orar sem lembrar-nos desse fato. Muitas
vezes somos enganados pelos próprios antropomorfismos, pelos
quais agradecemos a Deus, contudo lembremo-nos de que o Ser
de quem nos aproximamos em oração é este Ser infinito e
absoluto.
Então, a próxima qualidade que é sempre enfatizada nas
Escrituras sobre o ser essencial de Deus é S\ia.espiritualidade. Isso
foi declarado uma vez para sempre por nosso Senhor Jesus Cristo.
“Deus é Espírito”, disse Ele, e por estranho que seja, essa
tremenda afirmação foi feita não a alguém como Nicodemos,
mas à mulher de Samaria. Naturalmente, nosso Senhor disse
isso em parte a ela porque obviamente ela alimentava uma falsa

75
concepção de Deus - “Devemos adorar”, indagou ela, “neste
monte, ou em Jerusalém?” “Não”, disse nosso Senhor, “Deus é
Espírito...” (João 4:24). Estêvão disse a mesma coisa em sua
famosa mensagem no capítulo sete de Atos: “Mas o Altíssimo
não habita em templos feitos por mãos de homens” (Atos 7:48).
E Paulo, pregando ao povo de Atenas, usou precisamente as
mesmas palavras: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele
há, sendo Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos
por mãos de homens” (Atos 17:24). O que temos em mente quando
dizemos que Deus é Espírito? Bem, até onde nossa linguagem
pode expressá-lo, isso exclui toda e qualquer idéia de Deus ser
corpóreo, um ser confinado a uma forma ou a um corpo. Em
Seu ser essencial, Deus não possui nenhuma das propriedades
que pertencem à matéria. Isso nos leva a dizer - e isto é mais
importante de um ponto de vista prático - que Ele, portanto,
jamais pode ser discernido pelos sentidos físicos. Aqueles que
parecem acreditar que têm visões sempre farão bem em ter isso
em mente - “Deus nunca foi visto por alguém. O Filho
unigénito, que está no seio do Pai, este o fez conhecer”, escreve
João (João 1:18). “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao
único Deus seja honra e glória para todo o sempre. Amém”, diz
Paulo, escrevendo a Timóteo (1 Tim. 1:17). E é por causa da
espiritualidade do ser de Deus que o Velho Testamento
freqüentemente proíbe a produção de imagens e similitudes.
Vocês encontram isso nos primeiros dois dos Dez Mandamentos,
e é repetido por toda parte.
Por quê? Porque no momento em que vocês começam a
fazer isso, obviamente estão esquecendo a espiritualidade de
Deus - a natureza espiritual e essencial do Seu Ser. Mas talvez a
mais extraordinária prova da espiritualidade de Deus seja outra
verdade concernente a Ele, a qual consideraremos mais adiante,
ou seja, Sua onisciência, a verdade de que Deus está em toda
parte, e que em toda parte está ininterruptamente.
Neste ponto, antecipo uma pergunta. Alguém poderá dizer:
“Tudo isso é correto, mas o que dizer daquele incidente em que
Deus põe Moisés na fenda da rocha, e em seguida lhe diz que

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veria Suas costas? (Vejam Êx. 33:23.) E o que nosso Senhor quis
dizer, quando falou: “O Pai, que me enviou, ele mesmo testificou
de mim. Vós nunca ouvistes a sua voz, nem vistes o seu parecer”
(João 5:37)? Há duas respostas simples a essa pergunta. A primeira
é que, embora seja espiritual em Seu ser essencial, quando Ele
assim decide, pode também apresentar aparências de Si mesmo.
Está escrito que nosso Senhor antes de Sua encarnação apareceu
como o Anjo da Aliança. Portanto, quando Ele decide ensinar
algo sobre Si mesmo, Ele pode oferecer aparências de Si e todavia
não ser Seu verdadeiro ser.
Em segundo lugar, permitam-me colocá-lo assim: Deus, a
fim de contar-nos sobre a Si mesmo, falou em linguagem que
vocês e eu pudéssemos entender. E praticamente impossível
apreendermos a idéia de infinitude e espiritualidade. Por isso
Deus fala como se Ele fosse homem. Ele procede assim apenas
para que possamos entender; para que possamos conhecê-10 e
confiar nEle, Ele fala como se fosse homem - isso transmite
toda a idéia de antropomorfismo. E, assim, sumariemos: Deus é
invisível, sem membros, sem corpo, independente de toda e
qualquer limitação.
Isso, pois, nos conduz à última característica do ser essencial
de Deus, ou seja: Sua personalidade. O termo real não é usado na
Bíblia, porém se acha implícito por toda parte, e graças a Deus
por isso. O que significa personalidade? Personalidade existe
onde há mente, inteligência, vontade, razão, individualidade,
autoconsciência e autodeterminação. Onde vocês têm esses
elementos, aí se encontra personalidade, e a Bíblia assevera que
Deus é uma pessoa. Quão vitalmente importante é esse fato. Foi
importante quando nosso Senhor esteve aqui no mundo, por
causa do panteísmo, o qual é ainda popular em suas várias formas.
Os que crêem no panteísmo dizem que tudo o que existe é Deus,
e Deus é tudo o que existe. Afirmam que não devemos falar da
Pessoa de Deus, visto que Ele não é uma pessoa. O panteista
cultua a natureza por essa razão; ele acha Deus na natureza.
Ora, o povo não fala tanto sobre panteísmo hoje. Declaram
que acreditam que Deus é uma grande Mente, ou uma grande

77
Força, ou uma grande Energia. Mente com um “M” maiúsculo.
Entretanto Ele não é uma mente; Ele é uma pessoa. Tampouco é
Ele uma Força com “F” maiúsculo, nem uma Energia com “E”
maiúsculo, porquanto todas essas concepções negam a
consciência. Não é bíblico dizer que Ele é apenas energia, energia
inconsciente, poder inconsciente, força e dinamismo
inconscientes. A Bíblia diz que Deus é uma pessoa, e isso é
absolutamente vital para qualquer genuína noção de culto, e para
que não tenhamos um sentido de confiança a respeito de nós
mesmos e do mundo.
Como, então, a Bíblia nos ensina que Deus é uma pessoa?
Ela o faz tanto direta quanto indiretamente. Indiretamente, ela
nos diz que Deus pôs na Criação marcas de Si mesmo, de Sua
mente e de Sua sensibilidade. Vocês percebem aí a evidência de
Sua mente, de Sua vontade e de Sua regência. O que dizer das
leis da natureza? Donde vem todas as nossas maravilhosas
invenções? Foram simplesmente descobertas devido ao fato de
termos percebido que existe aquilo que chamamos “leis da
natureza”. E a resposta é que tiveram sua origem em Deus; nas
leis da natureza, do desígnio e da ordem, vemos a obra de Deus,
tal como Paulo argumenta em Romanos, capítulo 1. São todos
uma indicação da mente e da vontade de Deus em operação.
Mas há muita evidência direta para dizer-se que Deus é
uma pessoa. Vocês não percebem como a presença de Deus é
sempre descrita de forma pessoal? Tomem o nome de Deus que
temos considerado: “Eu sou”, que é uma afirmação pessoal. Só
uma pessoa pode dizer: “Eu sou”, e Deus diz que Ele fala de Si
mesmo dessa maneira. Cada coisa representativa de Deus tem
declarado que Ele é uma pessoa e não simplesmente uma força
inconsciente. Então tomem a forma como as Escrituras
contrastam Deus com os ídolos. Leiam-no em Salmo 115 —
percebem o contraste? Esses ídolos, diz o salmista, têm olhos,
sim, mas não podem ver, não são pessoas; têm boca, porém não
podem falar; têm mãos, mas não podem apalpar; e Deus é
contrastado com todos esses ídolos mudos. Paulo fala dos
tessalonicenses, que haviam sido convertidos dos ídolos para

78
servirem ao Deus vivo e verdadeiro (1 Tess. 1:9). Não apenas
isso, porém a Bíblia nos ensina que as pessoas conversam com
Deus, e que Ele é capaz de ter comunicações específicas com
homens e mulheres. Ele escolhe pessoas específicas e abençoa
pessoas específicas - repetindo, tudo isso é pessoal.
Todavia, é claro que a prova final é o próprio Senhor Jesus
Cristo. Na encarnação, na Pessoa de Seu Filho, Deus declarou
que Ele é um ser pessoal. Nosso Senhor disse: “quem me vê a
mim vê o Pai” (João 14:9), e: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30);
portanto, Deus deve ser pessoal, porque era uma pessoa que estava
falando. Além do mais, o ensino do nosso Senhor sobre Deus
era sempre em termos dessa qualidade pessoal. Ele falou de Deus
como “o Pai”, e vocês podem averiguar isso em sua forma muito
gloriosa ao contemplar nosso Senhor Jesus Cristo orando. Em
João, capítulo 17, por exemplo, o que Ele está fazendo? Está
orando, não a “quaisquer deuses”, e sim ao “Pai Santo”, a pessoa.
E assim, de todas as formas e em todos os lugares, a Bíblia
assevera que Deus é um ser pessoal.
E, finalmente, a Bíblia ensina também que Deus é uma
unidade. “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor”
(Deut. 6:4), e quando chegarmos à doutrina da Trindade,
trataremos desse elemento. Referimo-nos a ele agora para fazer
nossa consideração completa dessa doutrina, como ensinada na
Bíblia - “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e
os homens, Jesus Cristo homem” (1 Tim. 2:5).
Por conseguinte vemos que a gloriosa verdade que temos
tentado considerar juntos é apenas isto: que esse ser infinito,
sublime, transcendente, glorioso, majestoso, poderoso, eterno,
que é Espírito, que é verdade, que habita em luz inacessível,
esse Deus agradou-Se graciosamente em que vocês e eu O
conhecêssemos, para que pudéssemos falar com Ele e para que
pudéssemos adorá-10. E Ele está disposto a ouvir-nos, a
satisfazer-nos e a receber nosso indigno e mísero culto, nosso
louvor e adoração. Bendito seja o nome de Deus!

79
6
OS ATRIBUTOS DA
PERSONALIDADE ABSOLUTA
DE DEUS
Enquanto resumimos nossa consideração sobre a grande e
central doutrina de Deus, permitam-me lembrá-los que a
existência de Deus não é discutida nas Escrituras. Ela é
pressuposta. Além do mais, vimos que podemos deduzir das
Escrituras que Deus é conhecível, porém incompreensível.
Podemos conhecê-lO, mas isso não significa que podemos
entendê-lO perfeita e exaustivamente. E então prosseguimos
considerando algo sobre o ser e a natureza essenciais de Deus.
Mencionamos Sua infinitude, Sua espiritualidade, Sua
personalidade e a unidade essencial da Deidade.
Mas, afortunadamente para nós, a Bíblia nãó pára aí; ela
vai além. Tendo revelado que Deus, em Seu supremo ser e
essência, é totalmente incompreensível, pela mesma razão que
Ele é caracterizado por essas qualidades que acabo de enumerar,
a Bíblia continua a dizer-nos mais sobre Ele, e obviamente seu
objetivo é que possamos conhecer a Deus e adorá-10 mais
perfeitamente. E esse é o nosso motivo para considerarmos esta
grande doutrina sobre Deus, porque, a menos que entendamos o
que a Bíblia nos diz sobre Deus, nosso culto jamais poderá ser
autêntico.
Nosso Senhor disse à mulher samaritana: “Vós adorais o
que não sabeis...” (João 4:22). Pensavam que conheciam a Deus.
E da mesma forma, o apóstolo Paulo disse aos atenienses: “Esse,
pois, que vós ignorais, não o conhecendo, é o que eu vos anuncio”
(Atos 17:23). Eram adoradores de um Deus desconhecido. E isso
é vital - embora possamos dizer que cremos em Deus, e cremos
que somos Seus adoradores, não estamos necessariamente
procedendo assim. Jamais adoraremos verdadeiramente até que

80
adoremos na forma prescrita por nosso Senhor à mulher
de Samaria. Disse Ele: “Deus é Espírito, e importa que os
que o adoram, o adorem em espírito e em verdade” (João 4:24);
e disse ainda: “porque o Pai procura a tais que assim o adorem”
(João 4:23).
Portanto, não estamos nos engajando em alguma mera
discussão teológica. Continuo lembrando-os de que nossa
intenção é essencialmente prática. Todo o objetivo dessas
considerações é que podemos aprender agora a cultuar a Deus e
como verdadeiramente ser pessoas de Deus. Ele Se inclinou e Se
condescendeu a vir até nós, bem como agradou-Se conceder-
-nos revelações mais detalhadas concernentes a Ele próprio.
Ora, essas revelações adicionais são costumeiramente
divididas em duas seções principais. A Bíblia nos diz algo daquilo
que se chama os atributos de Deus, e também nos fornece certos
nomes por meio dos quais Deus Se revelou. Os grandes teólogos
e estudantes da Bíblia, do passado, especialmente na Idade Média,
na época da Reforma e no século dezessete, gastaram uma grande
parte de seu tempo na discussão sobre qual desses deveria ser
considerado primeiramente. Essa é uma discussão muito
interessante, a qual não pode conclusivamente ser estabelecida;
ela, afinal, se torna uma questão de escolha e predileção pessoais
de alguém. Quanto a mim, sinto que somos mais ou menos
obrigados a considerar primeiramente os atributos e em seguida
os nomes.
Minhas razões são as que se seguem. Parece-me que nossa
aproximação de Deus deve ser algo assim. A Bíblia nos revela
que Deus se acha numa glória da qual nenhum homem ou mulher
é capaz de jamais aproximar-se, numa luz que é plenamente
inacessível, isto é, Deus em Sua natureza e ser supremos - e
tentamos visualizar isso na última preleção. A próxima coisa a
dizer, obviamente, é que há certos elementos que caracterizam
a Deus, os quais aprouve a Ele revelar-nos, e esses são Seus
atributos. Mas Deus Se aproximou de nós muito mais que isso.
Ele aplicou certos nomes a Si próprio, e o objetivo desses nomes
é, por assim dizer, trazer Deus ainda mais para perto de nós,

81
para que não sejamos deixados perplexos e desnorteados, e sim,
para que saibamos que, de alguma forma, Deus nos comunicou
certas coisas sobre Se mesmo.
Ora, essa é a minha razão pessoal para focalizar os atributos
antes de chegarmos à consideração dos nomes de Deus. E devo
novamente lembrar-lhes de que somos inteiramente dependentes
da revelação bíblica para nosso conhecimento de ambos.
Entretanto, como vêem, já estamos começando a descobrir que
a Bíblia não é outra coisa senão um grande Livro no qual aprouve
a Deus revelar-Se. Não há como vocês se livrarem da revelação.
Ela é Deus mostrando-Se, manifestando-Se, para que possamos
conhecê-10, para que possamos cultuá-IO, para que possamos
ter comunhão com Ele.
Assim, pois, uma vez mais devemos ter em mente a injunção
para tirar os sapatos de nossos pés, porque a terra em que pisamos
é solo santo; uma vez mais nos lembramos que Deus não é um
fenômeno que temos de investigar, e que quando nos
aproximamos dos atributos da grande e eterna personalidade de
Deus estamos tão afastados quanto se pode imaginar do
procedimento científico de dissecação. Não, não; ao contrário,
simplesmente levamos em conta o que aprouve a Deus dizer-
-nos sobre Si próprio. Nós o observamos. Tentamos tê-lo em
nossa lembrança. E, humildemente, cheios de adoração e louvor,
agradecemos a Ele por Sua condescendência.
Portanto, precisamos estar cientes que essa análise, a qual é
de fato absolutamente essencial caso queiramos saber o que
vamos fazer, não pode ser o tipo comum de análise científica ou
lógica. Sinto-me demasiadamente receoso de desviar-me neste
ponto. Sinto-me extremamente receoso por mim mesmo,
independentemente de qualquer um de vocês, porque a mente,
ainda que seja um dom de Deus, pode, em razão da Queda, ser-
-nos muitíssimo perigosa. Desejo tornar isso bastante claro, e
permitam-me pô-lo, pois, na seguinte forma particular.
Normalmente pensamos de análise -não é? - como algo assim:
vocês analisam uma flor. Arrancam as pétalas e o estame, e então
os contam e no final nada ficou. Eis a nossa habitual concepção

82
de análise. Todavia aqui não vamos fazer absolutamente nada
disso. Deus Se dispôs comunicar esta revelação a fim de que
pudéssemos ter algum conceito dEle. Por conseguinte, essas não
são partes separadas que vão compor um todo. São aspectos de
Deus, panoramas particulares de Deus e, se me é permitido usar
tal termo, perfis de Deus. Não existe, porém, nenhuma divisão
na personalidade. E assim, enquanto somos compelidos pela
insuficiência de linguagem para falar de análise, lembremo-nos
do que estamos fazendo.
Portanto, vamos começar considerando alguns dos atributos
de Deus; e por atributos quero dizer algumas das perfeições de
Deus, ou, colocando-o de outra forma, algumas das virtudes de
Deus. Pedro diz em sua Primeira Epístola: “... para que anuncieis
as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua
maravilhosa luz” (1 Ped. 2:9). É isso. O cristão é destinado a
manifestar os atributos de Deus - essas perfeições, essas
excelências de Deus.
Ou, se vocês preferirem, eis outra definição dos atributos
de Deus: eles são elementos sobre Deus, certos aspectos de Sua
imensa e gloriosa natureza eterna, os quais Ele quis revelar-nos,
e os quais, em certa medida, podemos apreender. Ora, aqui
também os estudiosos têm-se diligenciado muito, tentando
classificar estes atributos, tentando, por sua própria causa e por
causa de outros, colocá-los em certas categorias. Todavia, uma
vez mais devo sugerir-lhes que tal coisa é, em última análise,
impossível. Têm-se sugerido todos os tipos de classificações.
Alguns têm sugerido que a divisão deve ser com base nos atributos
naturais de Deus e nos atributos morais de Deus, isto é, os
atributos que são inerentes a Deus, em Si e de Si próprio, e aqueles
que têm uma espécie de implicação moral.
Bem, não importa muito que nome lhes demos. Minha
sugestão é que devemos classificá-los da seguinte maneira:
primeiramente, os atributos da personalidade absoluta, os quais
são inerentes a Deus; e, em segundo lugar, os atributos morais
de Deus.
Na última preleção dissemos que Deus é uma pessoa; Ele é

83
uma personalidade num sentido absoluto. Então, quais são os
atributos que são inerentes à Sua personalidade? São,
naturalmente, a expressão de Seu Ser eterno; e o primeiro,
portanto, que temos de observar é a eternidade de Deus; e com
ela, a imutabilidade de Deus. Deus é sem princípio e sem fim; Ele
é eterno. Vocês encontrarão uma grande afirmação disso no
Salmo 90: “Antes que os montes nascessem, ou que tu formasses
a terra e o mundo, sim, de eternidade a eternidade, tu és Deus”
(v. 2). Vocês a encontrarão na mesma forma no Salmo 102. Sua
eternidade é algo que apenas asseveramos e em que nos
maravilhamos.
Precisamos, porém, atentar um pouco mais para a
imutabilidade de Deus. Ela significa que Deus é absolutamente
invariável. Ele jamais pode ser diferente em essência. Deus é
sempre e eternamente o mesmo. Será jamais possível que Deus
Se diferencie em algum aspecto do que Ele sempre é e do que
sempre tem sido. Um dos Seus grandes nomes sugere isso: o
nome Jeow - Eu sou o que sou - que significa, Eu sou sempre o
mesmo; Eu sou O imutável. Não é possível, noutras palavras,
que Deus possua um atributo numa época, e outro atributo noutra
época. Pois bem, creio que vocês perceberão imediatamente a
importância de se enfatizar isso, visto que nós mesmos somos
por demais mutáveis; somos uma coisa um dia, e algo diferente
outro dia, não obstante continuarmos sendo a mesma pessoa.
Não somos imutáveis - somos mutáveis. Mas isso é algo
inconcebível em Deus. Deus, em Sua perfeição absoluta, é sempre
o mesmo.
Tiago faz uma grande afirmação a esse respeito, quando
fala sobre “... o Pai das luzes, em quem não há mudança nem
sombra de variação”, ou, “aparência de variação” (Tiago 1:17).
Isso é Deus em Sua natureza e em Seu caráter. Ele não é somente
livre de mudança, mas até mesmo completamente livre da
possibilidade de mudança.
Neste ponto, alguém provavelmente gostaria de formular
esta pergunta: “A Bíblia não nos diz que Deus arrependeu-Se de
certas coisas? Não lemos em Gênesis 6:6: “Então arrependeu-se

84
o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em
seu coração”? Acaso não nos vem a mesma idéia de Deus
arrependendo-Se no livro de Jonas, quando resolveu não destruir
a cidade de Nínive? Como você pode a um e ao mesmo tempo
dizer que Deus é imutável e invariável, e ainda afirmar que a
Bíblia nos fala de Deus arrependendo-Se, visto que
arrependimento significa mudança de mente?”
E, evidentemente, a resposta é a seguinte: o caráter de Deus
jamais muda; mas Seu procedimento com as pessoas muda. O
que estamos asseverando, e o que a Bíblia assevera por toda parte,
é que Deus, em Seu caráter, em Seu Ser, é sempre e eternamente
o mesmo; contudo, em Seu procedimento com os seres humanos,
Ele varia Sua maneira de agir conforme se arrependam ou não.
Noutras palavras, quando usamos um termo como
“imutabilidade”, devemos ser cuidadosos para não negarmos o
conceito de personalidade em Deus. Como alguém certa vez
colocou, e creio muito bem colocado: “A imutabilidade de Deus
não é a imutabilidade de uma pedra.” Uma pedra é imutável; ela
nunca muda, absolutamente. Uma pedra é uma pedra, e nunca
será algo mais. Mas essa não é a imutabilidade de Deus. A dEle
não é a imutabilidade de algo inerte ou de uma máquina. A dEle
é a imutabilidade da perfeição absoluta. Visto que Deus é um Ser
pessoal em Seu procedimento com os homens e as mulheres,
Ele varia Suas ações.
Ora, isso é - e creio que vocês concordarão comigo - uma
das doutrinas mais profundas e gloriosas de todas as demais.
Não conheço nada, em certo sentido, em minha vida e
experiência cristãs que seja tão consolador como o é a doutrina
da eternidade e imutabilidade de Deus. Naturalmente, para o
pecador, ela é uma das mais terrificantes de todas as doutrinas.
Noutras palavras, Deus é eternamente justo. Deus é eternamente
santo. Haveria algo mais estupendo do que isso, especialmente
neste mundo moderno?
Tudo o que vejo ao meu redor muda e se deteriora.
Oh, Tu, que não mudas, fica comigo!
- H. E Lyte

85
Não seria algo maravilhoso e glorioso saber que Deus jamais
muda? Somos tão mutáveis; outras pessoas são tão mutáveis;
tudo é mutável. Vocês, porém, podem estar absolutamente certos
de que o eterno Deus é sempre o mesmo. Sublime doutrina, sim,
mas uma doutrina muito prática e consoladora. Gostaria de
demorar-me nela; temos, porém, de prosseguir.
O próximo atributo de Deus (e permitam-me lembrar-lhes
de que estamos ainda tratando dos atributos que são inerentes
ao Seu Ser essencial e eterno) é Sua onipresença. Significa que
Deus está presente em toda parte. Ora, vocês se lembram de que
já concordamos em que Deus é Espírito; portanto, quando
dizemos que Deus está em toda parte, não nos expressamos em
termos corporais. É quase impossível assimilar estas idéias, não
é mesmo? Todavia, elas nos são ensinadas tão claramente na
Bíblia que se torna nosso dever encará-las, apreendê-las e possuí­
das com nossa mente e nosso entendimento.
Devemos dizer também que Ele não está necessariamente
presente da mesma maneira em toda parte, porque a Bíblia nos
diz que o céu é o lugar de Sua habitação (1 Reis 8:30). (Vocês se
lembram daquele grande termo que eu já havia introduzido - o
termo antropomorfismo. Esses termos são absolutamente essenciais
para transmitir-nos algum entendimento.) Por isso é preciso dizer
que Deus está presente em toda parte, e no entanto há certos
lugares - esse termo é quase inadequado - onde Deus está
especialmente presente. Temos que dizer isso a fim de nos
salvaguardar do panteísmo, o qual, segundo vimos em nossa
última preleção, afirma que Deus é uma espécie de prisioneiro
permanente em todas as coisas - negando, porém, Sua
personalidade.
Ora, é o seguinte o que a Bíblia nos diz sobre a onipresença
de Deus: tomem, por exemplo, Jeremias 23:23,24: “Sou eu apenas
Deus de perto, diz o Senhor, e não também Deus de longe?
Esconder-se-ia alguém em esconderijos, de modo que eu não o
veja? diz o Senhor: porventura não encho eu os céus e a terra?
diz o Senhor.” Ele enche os céus. Ele enche a terra. Ele está em
toda parte. Então, particularmente sobre este ponto, tomem o

86
Salmo 139: “Para onde me irei do teu Espírito, ou para onde
fugirei da tua face? Se subir ao céu, tu aí estás; se fizer no Seol a
minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da
alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me
guiará e a tua destra me susterá” (vv. 7-10). Não importa onde eu
for, Deus está lá. E Paulo expressa a mesma coisa ao pregar aos
instruídos atenienses: “Porque nele vivemos, e nos movemos, e
existimos...” (Atos 17:28). E impossível escapar da presença ou
da vista de Deus - da onipresença de Deus.
Eis aí, lembro-os, uma outra grande e consoladora doutrina.
O salmista, no Salmo 139, a focaliza, naturalmente, como uma
advertência; e ele está certo. Todas estas grandes questões que
estamos considerando são advertências. Esses atributos de Deus
são a um e ao mesmo tempo advertências e consolações. Se vocês
têm pecado contra Deus, então descobrirão ser impossível escapar
dEle. Leiam novamente o poema de Francis Thompson - “O x

Caçador vindo do Céu”: “Eu fugia dEle durante as noites e


durante os dias...” Estejam onde estiverem não podem escapar,
não importa os “labirínticos meandros” de sua mente ou qualquer
outro lugar onde estejam escondidos. Sim, contudo não seria
algo maravilhosamente consolador imaginar e compreender que,
não importa onde suas circunstâncias os coloquem, Deus está
ainda com vocês? Não há lugar algum, seja ele qual for, onde
vocês poderão estar, mas Deus estará ali.
E isso, por sua vez, me conduz ao Seu próximo grande
atributo: a onisciência de Deus. Deus conhece todas as coisas, e ✓
Seu conhecimento é sempre um conhecimento absoluto. E
conhecimento perfeito, um completo conhecimento de tudo.
Há muitíssimas afirmações disso, naturalmente, nas
Escrituras. Tomem, por exemplo, o Salmo 147:5: "... seu
entendimento é infinito.” Em seguida, lemos em Provérbios 15:3:
“Os olhos do Senhor estão em todo lugar, contemplando os maus
e os bons.”
Assim, pois, dividamos nosso assunto da seguinte forma: a
Bíblia nos fala com uma porção de detalhes sobre este
conhecimento, esta onisciência de Deus. Por exemplo, ela nos

87
fala sobre o conhecimento que Deus tem da natureza: “Conta o
número das estrelas, chamando-as a todas pelos seus nomes”
(Sal. 147:4). Deixem-me, porém, apresentar-lhes outro exemplo.
Acaso se lembram daquelas ternas palavras de nosso Senhor nas
quais Ele nos diz que nenhum pardal cai por terra sem que nosso
Pai o queira? (Vejam Mat. 10:29.) Tudo quanto existe no reino
da natureza é do conhecimento de Deus. Tal coisa é
completamente inconcebível em relação a nós, mas a Bíblia
assevera que é a verdade em relação a Deus. Olhem para os céus,
para a noite estrelada, e vejam toda a multiplicidade de estrelas.
Ele as conhece, a cada uma delas, e Ele tem um nome para cada
uma delas. Não há nada na Criação que Deus desconheça,
naquele sentido íntimo e pessoal.
Mas estamos obviamente mais interessados naquele
conhecimento que Deus tem de nós e de nossa experiência
humana, e aqui novamente o Salmo 139 é muito eloqüente.
Coincidentemente, nesse salmo específico, encontramos uma
perfeita exposição dos atributos de Deus; é como se todos
tivessem sido agrupados num todo. O salmista diz: “Tu conheces
o meu assentar e o meu levantar: de longe entendes o meu
pensamento” (v. 2). Meu próprio pensamento! Ele conhece tudo
sobre mim. “Cercas o meu andar, e o meu deitar; e conheces
todos os meus caminhos” (v. 3). Aliás, ele vai mais além no
versículo 4, e diz isto: “Sem que haja uma palavra na minha
língua, eis que, ó Senhor, tudo conheces.” Que exato e detalhado
conhecimento Deus tem de nós! Lemos de como Ele disse a
Moisés: “Tenho visto atentamente a aflição do meu povo” (Ex.
3:7). Ele sabia o que o Seu povo estava sofrendo ali no Egito; Ele
tinha conhecimento de suas misérias.
Infelizmente o povo de Deus em sua falta de fé e de
conhecimento, muitas vezes é tentado a acreditar que Deus não
sabe. Vocês acharão isso em muitos salmos. Deus não sabe?
pergunta o salmista: “Esqueceu-se Deus de ter misericórdia?”
(Sal. 77:9). Porventura Ele não atina para o que nos acontece?
Ora, jamais deveríamos pensar dessa maneria. Falamos
assim devido à nossa ignorância. Deus sabe tudo sobre nós.

88
Permitam-me citar novamente nosso bendito Senhor. Diz Ele:
“E até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados” (Luc.
12:7). Vocês poderiam imaginar um conhecimento mais
detalhado do que esse? Deus nos conhece detalhadamente dessa
forma.
Então encontramos aquela poderosa afirmação de Hebreus
4:13: “E não há criatura alguma encoberta diante dele; antes,
todas as coisas estão nuas e patentes aos olhos daquele com quem
temos de tratar.” Não há uma afirmação maior e mais eloqüente,
sobre a onisciência de Deus, do que essa. Ela sumaria tudo
perfeitamente. Esse é o conhecimento que Deus tem de nós e de
nossas experiências humanas.
Além disso, no entanto, a Bíblia por toda parte nos diz que
Deus tem um perfeito conhecimento de toda a história humana
passada e futura. Tomem os profetas, por exemplo, e as profecias;
tomem o segundo capítulo do livro de Daniel, com suas predições
dos reinos que haveriam de vir. Ali Deus revela Sua completa e
perfeita presciência. O capítulo oito de Daniel faz exatamente a
mesma coisa; e há muitos outros exemplos desse mesmo
princípio. Em Atos 15:18, vocês encontram isso afirmado
explicitamente nestas palavras: “...diz o Senhor, que faz todas
estas coisas. Que são conhecidas desde toda a eternidade.” Deus
vê o fim desde o início; Ele conhece tudo de eternidade a
eternidade.
Obviamente, temos que usar termos como presciência, e assim
por diante. Em certo sentido, eles são completamente
inadequados quando nos referimos a Deus, pois em relação a
Deus não existe tempo; não existe passado, presente e futuro no
que concerne a Ele: tudo é um glorioso, vivo e eterno presente.
Não podemos compreender isso, mas a Bíblia no-lo ensina.
Vivemos dentro do tempo e raciocinamos segundo tais termos.
Todavia Deus está acima do tempo. Ele está na eternidade, e vê
todas as coisas como se fossem uma só, por assim dizer. Daí não
existir dificuldade em falar na presciência de Deus. Deus vê toda
a história segundo Ele a visualiza. Ele está sempre presente nela.
Portanto, não nos surpreende que Paulo exclame, dizendo: “O

89
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência
de Deus!” (Rom, 11:33).
A menção do termo sabedoria me leva a outra subseção deste
ponto relativo à onisciência, porque lemos muito na Bíblia sobre
a sabedoria de Deus; e a sabedoria de Deus é uma parte, um
aspecto, do Seu perfeito conhecimento. Portanto, tenham isso
em mente enquanto eu esboço algumas distinções entre
conhecimento e sabedoria. Creio ser essencial proceder assim,
visto que encontramos ambas as coisas mencionadas tantas vezes
na Bíblia.
Qual, pois, é a diferença entre conhecimento e sabedoria?
Sinto que esta é uma das distinções mais urgentemente
necessárias nesta atualidade. Se entendo alguma coisa sobre o
mundo moderno e seus sistemas educacionais, então diria que
temos errado porque temos falhado em retratar a vital distinção
entre conhecimento e sabedoria. Hoje enfatizamos muito o
conhecimento. Estamos produzindo enciclopédias. Estamos na
era dos digestos, das coleções de conhecimento, e somos um
povo cheio de erudição. Suponho que homens e mulheres
modernos saibam muito mais do que quaisquer de seus
predecessores jamais souberam. Sim, mas o que então está
faltando ao mundo moderno?
Permitam-me sugerir-lhes certas coisas para que possam
ponderar sobre as mesmas. Primeiramente, a fonte do
conhecimento é o estudo; a fonte da sabedoria é o discernimento.
Obtemos conhecimento estudando, contudo não obtemos a
sabedoria dessa maneira. Alguém pode estudar em grande
medida, porém não obter sabedoria, visto que lhe falta
discernimento, visto que lhe falta a capacidade para ver.
Em segundo lugar, conhecimento é comumente chamado
discursivo em seu caráter, ao passo que a sabedoria é mais
intuitiva. Conhecimento é algo que vocês podem alcançar por
meio de conversação, de discurso e de consideração. Por outro
lado a sabedoria é, em certo sentido, quase como que algo com o
qual alguém nasce, como um dom. Todos nós compreendemos
isso, não é verdade? Há certas pessoas que parecem ter nascido

90
naturalmente sábias. Podem não ter grande conhecimento, mas
se desejamos ser aconselhados, então é só irmos a elas. Há outras
pessoas que possuem um grande volume de conhecimento, porém
jamais devemos sonhar em tomar sua opinião, visto percebermos
ser elas carentes de sabedoria. Vocês descobrirão com freqüência,
por exemplo, que muitos dos membros da profissão de advocacia
podem tornar-se bons advogados, porém seriam muito pobres
juízes, mesmo que possuam um grande conhecimento de leis.
As duas coisas são bem distintas.
E ainda há diferenças adicionais entre o conhecimento e a
sabedoria. O conhecimento é geralmente teórico; a sabedoria é
sempre prática. O conhecimento, como tal, não se preocupa
realmente com a vida e o viver; está simplesmente interessado
na cognição das coisas por amor a conhecê-las. Mas a sabedoria
sempre tem um objetivo prático. É a capacidade para fazer uso
do conhecimento que você adquiriu; para trazê-lo ao nível da
prática. Ela quer subsistir. Ela quer fazer algo.
E minha última distinção é que no conhecimento vocês
têm a mente ativa independentemente da vontade, enquanto
que respeitante à sabedoria, vocês têm a mente ativa em
subserviência à vontade. Noutras palavras, sabedoria é o tipo
correto de conhecimento. E creio que vocês concordarão comigo
em que este tipo de conhecimento é seriamente necessário no
mundo moderno. Vocês encontram um grande número de pessoas
talentosas, todavia, quão trágica carência de sabedoria!
Bem, a Bíblia realça a sabedoria de Deus. Deus aplica Seu
conhecimento. Ele a traz à luz. E vocês a verão, supremamente,
em três aspectos principais. Vêem a sabedoria de Deus na
Criação. Espero discutir isso quando chegarmos à doutrina da
Criação. Mas há muitas pessoas que vivem preocupadas sobre a
hipótese e teoria da evolução. E o que as preocupa, dizem elas, é
que vêem algo semelhante a ela o tempo todo. Sim, concordo, eu
vejo a mesma coisa, entretanto o que vejo ali não é evolução, e,
sim, a sabedoria de Deus na Criação, na ordem e no arranjo
perfeito. Vejo em tudo a harmonia, em tudo a cooperação. Olhem
para o livro da natureza, e se vocês têm olhos verdadeiramente

91
cristãos, então perceberão por toda parte a maravilhosa sabedoria
de Deus. A multiplicidade é uma manifestação de sabedoria; a
maneira como Ele repete as coisas - primavera, verão, outono,
inverno - e como as faz da mesma maneira.
No entanto, se vocês desejam ver a sabedoria de Deus, então
devem vir e contemplá-la como manifestada na redenção. Esse
é o grande argumento, sem dúvida, em 1 Coríntios, capítulo 1:
“...os gregos buscam sabedoria” (v. 22). Diz Paulo, se desejam
sabedoria, olhem para o Senhor Jesus Cristo, o qual é o “poder
de Deus, e sabedoria de Deus” (v. 24). “Mas vós sois dEle, em
Jesus Cristo, o qual para nós foi feito por Deus sabedoria, e justiça,
e santificação, e redenção” (v. 30).
Então vocês percebem também a sabedoria de Deus em Seus
arranjos providenciais - a providência de Deus. De novo espero
tratar disso separadamente; apenas o menciono neste ponto. Mas,
à medida que consideram o que a Bíblia tem a dizer sobre a
grande providência de Deus, então verão esta extraordinária
exibição de Sua perfeita sabedoria.
Devo tratar em seguida da onipotência de Deus: Deus é
todo-poderoso. A onipotência de Deus é aquilo pelo qual Ele faz
acontecer tudo o que quer. Por isso, quando vocês a consideram,
devem subdividi-la em duas seções principais: primeira, avontade
de Deus; e segunda, o poder de Deus.
A onipotência é a vontade de Deus operando. Quão
freqüentemente lemos na Bíblia sobre a vontade de Deus - por
exemplo, Paulo escreve “daquele que faz todas as coisas, segundo
o conselho da sua vontade” (Ef. 1:11). O que é a vontade de Deus?
É a base final de tudo, de toda a existência. E a explicação final
de tudo o que já aconteceu ou de tudo o que acontecerá. E a
Bíblia nos ensina que a vontade de Deus é soberana; noutras
palavras, ela não é determinada por nada senão por Deus mesmo.
Ela é a expressão de Seu senhorio, de Seu Ser absoluto.
Lembremo-nos, porém, que Sua vontade nunca é arbitrária.
Ela nunca é exercida a não ser em perfeita harmonia com todos
os demais atributos do imenso e glorioso Ser de Deus. O Deus
onipotente é o mesmo Deus que é onisciente e onipresente.
✓ Eo
mesmo Deus que é glorioso e maravilhoso. E o mesmo Deus que

92
é amor, compaixão e misericórdia. Não devemos dividir esses
elementos, ainda que os distingamos com o propósito de
compreendê-los no pensamento e no entendimento.
Além do mais, vocês descobrirão que a vontade de Deus se
expressa de duas maneiras principais. Ele declara certas coisas
que Ele mesmo está para fazer: isso é chamado a vontade decretiva
de Deus. Ele também prescreve certas coisas para nós fazermos:
essa é a vontade prescritiva de Deus. Os termos não são de grande
importância, mas na Bíblia vemos constantemente esses dois
aspectos da vontade de Deus: Deus nos diz o que Ele mesmo irá
fazer, e Ele nos transmite ordens sobre o que nós devemos fazer.
No tocante ao Seu poder, ele é infinito. Deus é onipotente.
“Haveria coisa alguma difícil ao Senhor?”, perguntou Deus a
Abraão (Gên. 18:14), e o anjo Gabriel disse a Maria: “Porque
para Deus nada é impossível” (Luc. 1:37). Sua energia, Seu poder,
Sua força são infinitos. A Bíblia está saturada desta idéia! Ele
tudo fez do nada - Ele falou e aconteceu. Ele disse: “Haja luz. E
houve luz” (Gên. 1:3). Ele envia Suas geadas e Suas neves. Leiam
os Salmos, e vocês descobrirão que eles se gloriam no infinito
poder de Deus.
Essa vontade e poder soberanos de Deus têm se manifestado,
acima de tudo e mais claramente, de três maneiras: na criação,
na salvação e na providência. E presumo que não há maior
manifestação do poder de Deus do que aquela à qual Paulo faz
referência no primeiro capítulo de Efésios: “... segundo a operação
da força do seu poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-
-o dos mortos” (vv. 19,20). Esse conceito de onipotência é
espantoso! Há muitas coisas que não entendemos sobre a vontade
de Deus. Contudo não é para nós entendê-las; é para nós
contemplá-las com reverência, com temor e adoração.
Precisamos compreender que não haveria nenhuma esperança
para nós, absolutamente, se não fosse pela onipotência de Deus.
Digo-o com reverência, nada menos que a onipotência de Deus
poderia salvar uma única alma. Mas - graças a Deus! - Ele é
onipotente, e somos salvos pelo poder de Deus em e através do
Senhor Jesus Cristo.
E assim, finalmente, a Bíblia também nos fala da bem-

93
-aventurança absoluta de Deus. Ela fala de Sua perfeição plena e
absoluta. Deus é a soma plena de toda excelência. Não há nada
mais elevado, mais imenso, melhor do que Deus. Toda perfeição
concebível está em Deus numa forma absoluta, e Ele é exaltado
acima de todas as deficiências e de todas as limitações. A Bíblia,
pois, fala da perfeição de Deus, e também fala da bem-aventurança
de Deus. Tomem aquelas muitas expressões das Epístolas de
Paulo - por exemplo, as palavras dele: “Conforme o evangelho
da glória do Deus bem-aventurado, que me foi confiado” (1 Tim.
1:11). O que Paulo pretende quando se refere a Deus como “bem-
-aventurado”? Ora, ele quer dizer que a própria perfeição de Deus
é o objeto do próprio conhecimento de Deus e de Seu próprio
amor. Deus Se regozija em Si mesmo. Deleita-Se em Si mesmo e
é perfeita e absolutamente auto-suficiente. Deus é, segundo as
Escrituras, perfeitamente satisfeito em Si mesmo e Seu glorioso
Ser: a bem-aventurança de Deus.
O último elemento é a glória de Deus, e essa é a maneira
bíblica de descrever Sua grandeza, Seu esplendor, Sua majestade.
Lemos da glória de Deus enchendo a casa - o templo (1 Reis
8:11) - e da glória de Deus se manifestando, em ofuscada visão,
a certas pessoas. Isso significa que elas tiveram alguma concepção
da grandeza, do esplendor, da majestade, do poder do Seu Ser.
E assim visualizamos juntos alguns dos atributos de Deus.
Não começamos ainda a considerar os assim chamados atributos
morais de Deus. Temos tratado somente daqueles atributos de
Deus que são inerentes ao Seu Ser e personalidade essenciais. E
a não ser que estejamos, neste momento, mais desejosos do que
jamais estivemos de cair a Seus pés, almejando render-nos
completa e irrestritamente a Ele, compreendendo que o maior
privilégio que jamais nos foi dado é adorá-10 e comungar-nos
com Ele, então gastamos inutilmente o nosso tempo. Temos
contemplado o Deus bem-aventurado, que habita na luz
inacessível (1 Tim. 6:16), a Quem ninguém jamais viu e jamais
poderá ver, e Aquele a Quem agradou-Se, graciosamente, em
falar-nos sobre Si mesmo. Sejamos-Lhe agradecidos e adoremo-
-10.

94
7
OS ATRIBUTOS MORAIS
DE DEUS
Deixem-me lembrá-los que estamos tratando dos atributos
de Deus. Já consideramos aqueles que pertencem à Sua
personalidade absoluta, e agora vamos considerar os que são
comumente chamados os atributos morais de Deus, às vezes
descritos como os atributos comunicáveis de Deus. Aqueles
atributos que já consideramos pertencem exclusivamente ao Ser
de Deus; são incomunicáveis; e, digo-o com reverência, nem
mesmo Deus os pode comunicar ao Seu povo. Os atributos que
serão considerados agora - os atributos morais - são, em certo
sentido, comunicáveis. Há algo correspondente a eles que pode
ser encontrado nos homens e nas mulheres.
Quais são eles? Bem, em primeiro lugar devemos colocar a
santidade de Deus. O que é santidade? Creio que nos inclinamos,
quase que inevitavelmente, a tratar dela em termos negativos, e
a definimos em termos de Deus estar inteiramente separado do
pecado e independente dele. Santidade, primariamente, significa
separação - separação do mal.
Mas, naturalmente, santidade é também algo positivo. E
pureza absoluta e essencial. A Bíblia nos ensina em toda parte
que Deus é santo, e que uma parte da manifestação desta santidade
consiste em Seu ódio ao pecado e em Sua separação do pecado,
do pecador e de todo o mal.
Deixem-me apresentar-lhes certos exemplos e ilustrações
salientes do ensino da Bíblia sobre esta verdade. Deus revelou
Sua santidade ao conceder visões de Si mesmo a certas pessoas.
Temos o grande caso de Moisés em Êxodo, capítulo 34, e em
outros lugares, onde Deus apareceu a ele, figurativamente
falando, e Moisés ficou perturbado ao sentir a Sua santidade. O
mesmo ocorreu com Jó, com Isaías e com Ezequiel. Todo aquele

95
que, em algum lugar, se aproximou de Deus, sempre se sentiu
impressionado com a Sua santidade absoluta. A Bíblia ensina
tal coisa através de certos termos usados por ela. Ela refere a
Deus como “O Santo” (Is. 40:25), e temos a injunção de Deus:
“Sede santos, porque eu sou santo” (1 Ped. 1:16), a qual é uma
específica e explícita afirmação da santidade de Deus.
Ora, com freqüência ignoramos, receio, que em certo sentido
a grande missão do Velho Testamento consiste em revelar a
santidade de Deus. Muitos de nós temos sido demasiadamente
influenciados pelo falso ensino do século passado, o qual tentaria
fazer-nos crer que a história do Velho Testamento não passa de
um relato da busca humana por Deus. Passa sim! O Velho
Testamento é primariamente uma revelação da santidade de Deus
e do que Deus fez como resultado desse fato. Portanto,
encontramos esse ensinamento por toda parte. Qual foi o
propósito da entrega da lei senão revelar e ensinar aos filhos de
Israel a santidade de Deus? Ele separou ali um povo que fosse
Seu, e quis que esse povo conhecesse que espécie de povo era. Só
poderia saber disso à medida que compreendesse e apreciasse a
santidade divina; assim, a entrega da lei destinava-se
primariamente a esse fim.
Levem em conta, pois, todas as várias instruções sobre a
construção do tabernáculo - a divisão no átrio exterior e o lugar
santo, bem como o santo dos santos, onde só ao sumo sacerdote
era permitido entrar uma vez por ano, e jamais sem sangue. O
tabernáculo foi simplesmente designado a representar, na prática,
por assim dizer, este grande ensino sobre a santidade de Deus.
Em seguida, levem em conta tudo o que vocês lêem sobre a lei
cerimonial e sobre os animais limpos e impuros. Por que tudo
isso? Bem, a razão apresentada é a seguinte: vocês são um povo
santo, e Eu sou um Deus santo; vocês não devem comer o que
todo o mundo come. Foi preciso que houvesse esta divisão, esta
separação, entre puro e impuro. Toda essa longa lista de regras e
regulamentos é também uma parte do ensino sobre a santidade
de Deus.
Naturalmente, pois, os profetas ensinaram constantemente

96
sobre a santidade de Deus. Esse era o grande onus e mensagem
deles. Ela é perfeitamente sumariada no livro de Habacuque,
onde se nos diz: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver o
mal, e a vexação não podes contemplar” (Hab. 1:13).
E temos a mesma ênfase também no Novo Testamento.
Nosso Senhor, por exemplo, dirigiu-Se a Deus como “Pai Santo”
(João 17:11). Esse é o supremo ensino sobre a santidade de Deus.
Mesmo Ele, que era igual a Deus e viera do seio eterno, ainda Se
dirigiu a Deus como “Pai Santo”. E há uma definição disso em 1
João: “Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas” (1 João 1:5).
E assim, a Bíblia se acha saturada desse ensino. Ela refere a Deus
o Pai como “o Santo de Israel” (Sal. 71:22; etc.). O Senhor Jesus
Cristo é descrito como “teu santo Filho Jesus” (Atos 4:27), e “o
Santo” (Atos 3:14). Em seguida falamos do “Espírito Santo”, e
assim as três Pessoas da gloriosa Trindade são constantemente
referidas e descritas em termos desse atributo de santidade.
Presumo, porém, que se lhes fosse solicitado responder onde
a Bíblia ensina a santidade de Deus mais poderosamente teriam
de ir ao Calvário. Deus é tão santo, tão plenamente santo, que
nada senão aquela morte terrível poderia tornar possível que
Ele nos perdoasse. A cruz é a suprema e a mais sublime declaração
e revelação da santidade de Deus.
Gostaria de continuar expondo este grande tema, porém
não posso; temos de prosseguir. Lembremo-nos de que, segura­
mente, o propósito da revelação bíblica da santidade de Deus
consiste em ensinar-nos como nos aproximar dEle. Não é apenas
conhecimento teórico que temos de tentar apreender com nosso
entendimento. Seu propósito é muito prático. Nas palavras do
autor da Epístola aos Hebreus, temos que aproximar-nos de Deus
“com reverência e santo temor” (Heb. 12:28). Devemos sempre
aproximar-nos dEle dessa forma, onde quer que estejamos;
quando estamos sozinhos numa sala, ou quando estamos reunidos
com uma família para orar, ou quando estamos em culto público,
Deus é sempre Deus, e é assim que devemos aproximar-nos dEle
- “com reverência e santo temor”. Nenhuma expressão como
“querido Deus”, por exemplo, se encontra nas Escrituras.

97
Há muitas ilustrações disso. Pensem novamente em Moisés
diante da sarça em chama (Êxodo, capítulo 3); então vem o
terrível caso daquele homem chamado Uza, que estendeu sua
mão para firmar a Arca quando era levada sobre um carro (2
Samuel, capítulo 6). Essa é uma terrível declaração sobre como
devemos aproximar-nos de Deus e cultuá-10. Lemos o relato de
como a lei foi dada; como o monte ficou ardendo em chamas de
fogo, e nada era permitido aproximar-se dele (Êx. 19:16-25): a
santidade de Deus.
Esta doutrina também nos ensina, naturalmente, a terrível
natureza do pecado. Vocês jamais terão conhecimento do pecado,
a menos que tenham uma genuína concepção da santidade de
Deus. E essa é, provavelmente, a razão por que a concepção
moderna de pecado é tão inadequada. Não gastamos tempo
suficiente com a doutrina de Deus e com a santidade de Deus.
Essa é a forma de vermos o pecado - não primariamente por
meio de auto-exame, e sim, por meio de entrar na presença de
Deus. As vezes as pessoas dizem: “Mas você não pode esperar
que todos nós sintamos que somos miseráveis pecadores. Pode?
Será que você espera que todos nós digamos, como o fez Charles
Wesley: “Quão vil e cheio de pecado eu sou”? Isso pode ser
apropriado no caso de bêbados e de pessoas como eles, mas não
em nosso caso!”
Algumas pessoas se preocupam com isso. Dizem elas:
“Realmente nunca me senti um pecador. Como seria isso o meu
caso, eu que fui educado num lar cristão e tenho sempre
freqüentado um lugar de culto? Seguramente, não se pode esperar
que eu tenha esse terrível senso de pecado!” Ora, a resposta a
tudo isso é a seguinte: se você realmente entrasse na presença
de Deus com alguma concepção de Sua santidade, então logo
saberia por experiência própria o quanto é um vil e terrível
pecador. Diria com Paulo que não existe em você coisa alguma
boa (Rom. 7:18). A maneira de você compreender sua própria
pecaminosidade não é olhando para suas ações nem para sua
vida, mas entrando na presença de Deus.
E, por fim, naturalmente que a santidade de Deus nos revela

98
a necessidade absoluta da expiação. Isso é o inverso do que eu
disse há pouco sobre a cruz como a manifestação da santidade
de Deus. Sim, mas enquanto ela nos manifesta isso, também
nos mostra que sem derramamento de sangue não há remissão
de pecado, que a santidade de Deus insiste sobre o mesmo, exige
uma expiação pelo pecado.
O próximo atributo moral de Deus que a Bíblia realça é a
retidão ou a justiça de Deus. Ora, esta vem em seguida,
naturalmente, à santidade de Deus. O que é retidão? Bem, é a
santidade manifestada no procedimento de Deus para conosco.
Creio ser esta a melhor definição que se pode obter. Ou, vocês
podem considerá-la assim: é aquela qualidade em Deus que
sempre O revela fazendo aquilo que é certo. É aquela qualidade
em Deus que O torna incapaz de fazer algo que seja errado.
Retidão e justiça são a santidade de Deus em ação e a expressão
dela no governo do mundo.
Há muitas maneiras pelas quais essa concepção pode ser
analisada, e uma delas é a seguinte: retidão é a demonstração da
santidade legislativa de Deus. Ele dá Suas leis a fim de impor sobre
nós Suas justas exigências. Ele legisla para nós. Justiça, em
contrapartida, é a santidade judicial de Deus, pela qual,
naturalmente, Ele exige a punição daqueles que têm sido culpados
de quebrar Sua lei, daqueles que têm sido culpados de pecado.
Ainda uma definição adicional consiste em que a retidão
de Deus é o amor dEle pela santidade, e a justiça de Deus é a Sua
abominação pelo pecado. E creio ser essa a definição mais
apropriada.
Pois bem, a retidão e a justiça de Deus, certamente, são
reveladas em quase todas as partes das Escrituras. A ira de Deus
é ensinada tanto no Velho Testamento quanto no Novo. Nosso
Senhor mesmo a ensinou. Uma das doutrinas cardeais de toda a
Bíblia é que Deus odeia o pecado, e isso é expresso em Sua ira.
Se alguém não crê, diz João, “a ira de Deus sobre ele permanece”
(João 3:36). Todos nós somos por natureza, diz Paulo, “filhos da
ira” (Ef. 2:3).
Todavia, a retidão e a justiça de Deus não se manifestam

99
somente em Sua ira. Ele revela estas mesmas qualidades em
perdoar os nossos pecados: “Se confessarmos os nossos pecados,
ele é fiel e justo, para nos perdoar os pecados, e nos purificar de
toda a injustiça” (1 João 1:9). Tendo preparado o caminho do
perdão, se nos conformamos a ele, a justiça de Deus entra e,
mediante Sua justiça, Ele nos perdoa. E Deus preparou o caminho
do perdão ao prover propiciação para os nossos pecados - e essa
é a coisa mais notável de todas. A clássica afirmação disso se
acha na Epístola aos Romanos: “Ao qual Deus propôs para
propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça
pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de
Deus” (Rom. 3:25). Foi a justiça de Deus, em parceria com Seu
amor, Sua misericórdia e Sua compaixão que proveu a oferenda
e o sacrifício - a propiciação - que eram necessários.
Outra forma pela qual Deus manifesta Sua justiça e Sua
retidão é que ele sempre mantém Sua palavra. O que Ele
prometeu, sempre cumpre. Voltarei novamente a essa questão
mais adiante. Ele, porém, nos mostra que é o vingador de Seu
povo. Ora, essa é toda a mensagem do profeta Habacuque. Vocês
se lembram de seu problema. Disse ele a si mesmo: “Como é
possível que Deus permita que Seu próprio povo sofra dessa
maneira? E os pagãos, esses caldeus pecaminosos, como podem
ser eles o povo que irá castigá-lo e destruí-lo? Como é possível
que Deus aja dessa maneira?” E sua resposta ao problema é a
seguinte: “Está tudo bem”, diz ele. “Não olhe para o imediato e
para o presente; alongue sua vista e você descobrirá que Deus
manifestará Sua retidão e Sua justiça. Os filhos de Israel, no
momento, merecem ser punidos, e Deus está usando os caldeus
temporariamente; mais tarde, porém, eles serão desarraigados e
destruídos. Deus é absolutamente justo, e se você alongar sua
vista, então o verá.”
Ele também recompensa os justos. Ouça o que Paulo diz no
final de sua vida, em 2 Timóteo 4:8: “Desde agora, a coroa da
justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará
naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que
amarem a sua vinda.” Não estou preocupado com isso, diz Paulo.

100
Ele é um Juiz justo, e a coroa que prometeu, Ele certamente
dará. Doravante, esta maravilhosa graça é concedida em Cristo.
Portanto, Deus, na cruz, está fazendo isso.
A seguir, lemos em Romanos 3:25 que Deus declara Sua
própria retidão e absoluta justiça. Ele está justificando Seu
próprio perdão dos pecados daqueles que se arrependem. Essa
é uma concepção imensa e exaltada. Vemo-la, finalmente, neste
aspecto: Deus, na salvação, não só perdoa os pecados do pecador;
Ele vai além disso. Ele declara os pecadores justos; Ele os
faz justos. Essa é uma verdade muitíssimo vital. Se não
formos esclarecidos sobre essa questão da retidão e da justiça
de Deus, podemos concluir que tudo o que Ele faz é perdoar-
-nos dos nossos pecados. Absolutamente, não! Visto que Deus
é justo, também devemos tornar-nos justos; e Ele nos declara
justos num sentido legal ou forense. Isso é justificação pela
fé. Mas Ele também nos faz justos. Essa é a nossa justificação.
Isso continuará até finalmente nos acharmos sem mancha e
sem culpa, irrepreensíveis, justos e santos, assim como Ele
mesmo o é.
Deixem-me agora trazer a lume o terceiro grande atributo
de Deus, dentro desta seção dos atributos morais. E aqui
apresentamos a bondade ou o amor de Deus. Observem a ordem
na qual os estamos considerando - santidade, retidão e justiça,
bondade e amor. E algo perigoso e terrível não colocar estes
atributos na ordem correta. Muitos se fazem freqüentemente
culpados disso, e o resultado é que naufragam em sua fé.
E então chegamos à bondade e ao amor de Deus. Nas
Escrituras, essas duas palavras são mais ou menos inter-
cambiáveis; às vezes a verdade é apresentada em termos da
bondade de Deus, às vezes em termos do amor de Deus; e os
mesmos pontos são abarcados por ambos esses termos.
Todavia há uma espécie de distinção entre eles, e sugiro o
seguinte: a bondade de Deus é aquela perfeição de Deus que O
induz a tratar generosamente e de uma maneira benevolente a
todas as Suas criaturas. Diz Paulo: “Considera, pois, a bondade
e a severidade de Deus” (Rom. 11:22). “O Senhor é bom para

101
todos, e as suas misericórdias são sobre todas as suas obras” (Sal.
145:9). Observem os termos “bom” e “bondade” enquanto vocês
lêem as Escrituras, e então descobrirão que eles abrangem esta
concepção da generosidade de Deus.
O amor de Deus é aquele atributo em Deus pelo qual Ele é
eternamente movido a comunicar-Se a outrem. As Escrituras
fazem plenamente evidente que o amor de Deus é algo que se
comunica; Deus é eterno, portanto o amor de Deus é eterno.
Conseqüentemente, essa será nossa introdução à doutrina da
Trindade. O próprio fato de Deus ser amor é, em certo sentido,
prova da Trindade. Posto que Deus é eterno e eterno Seu amor,
então deve ter havido alguém a quem Ele sempre amou. Isso
torna a doutrina da Trindade uma necessidade absoluta. Não
obstante, por ora, tentaremos definir a diferença entre bondade
e amor.
Como, pois, se revelam e se manifestam essas gloriosas
qualidades em Deus? Para nossa conveniência, tenho tentado
colocá-las dentro de certas subdivisões. Primeiramente, Deus
manifesta Sua bondade e Seu amor para com Suas criaturas em
geral. Encontramos isso, por exemplo, em Mateus 5:45: “Para
que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o
seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos
e injustos.” Eis aí a bondade de Deus manifestada a todas as
criaturas, indiscriminadamente. Então temos expresso em
Mateus 6:26 que Ele alimenta “as aves do céu”. Em Atos 14.T7,
vocês encontrarão Paulo argüindo em Listra, que Deus “não se
deixou a si mesmo sem testemunho” nesse aspecto, “dando-vos
chuvas e tempos frutíferos, enchendo de mantimento e de alegria
os vossos corações”. Tudo é resultado da manifestação da
bondade de Deus. Mesmo quando os homens e as mulheres se
esquecem dEle e se afastam do conhecimento que têm dEle, Deus
continua a ser bom para com eles dessa maneira.
Ao dizer isso, porém, aproximemo-nos de algo mais
específico e ainda mais glorioso. A segunda forma pela qual a
bondade e o amor de Deus se manifestam é por meio do que a
Bíblia chama & graça de Deus. Não me surpreende que o grande

102
Philip Doddridge, ao ponderar sobre essa palavra, tenha dito
efusivamente: “Graça - eis um som em extremo agradável e
harmonioso ao ouvido!” Não existe expressão mais gloriosa do
que a palavra graça. Graça - esta grandiosa palavra que vocês
encontram constantemente nas Escrituras - é a bondade ou o
amor de Deus para com aqueles que nada fazem, absolutamente,
por merecê-la. É a imerecida bondade ou amor de Deus para
com aqueles que se privaram de toda reivindicação em relação a
Deus e ao Seu amor, os quais merecem juízo e condenação.
A Bíblia ensina que a graça de Deus é a fonte de toda bênção
que já nos foi conferida. Tudo emana da fonte de eterna e infinita
graça. Recomendo-lhes que façam um estudo mais detido e
cuidadoso desta palavra nos primeiros dois capítulos da Epístola
aos Efésios. Oh, quão grande é a bondade provinda da graça de
Deus - esta espantosa graça de Deus! “Porque a graça de Deus”,
diz Paulo a Tito, “se há manifestado, trazendo salvação a todos
os homens” (Tito 2:11). E então leiam ainda mais Tito, capítulo
3; novamente é uma afirmação extremamente magnificente
sobre a graça de Deus. A medida que vocês lêem esses capítulos
e se regozijam e se prostram em adoração, então passam a
entender o maravilhoso amor e bondade de Deus, os quais Ele
revelou no Senhor Jesus Cristo.
E o próximo elemento na manifestação da bondade e do
amor de Deus é a Sua misericórdia. Se vocês gostam de termos
alternativos, então é a amorosa bondade de Deus, a tema compaixão
de Deus. Todos esses termos desfrutam um significado especial.
Acaso vocês já observaram como, nas saudações de muitas das
Epístolas, está registrada: “Graça, misericórdia e paz”? Daí,
misericórdia e paz não são a mesma coisa. Então, o que é
misericórdia? Ela pode ser definida como a bondade ou o amor
de Deus para com os que vivem em miséria ou aflição resultante
de seus pecados, sem levar em conta seus méritos. Atentem bem
para esta palavra - “misericórdia” - e vocês perceberão que ela
significa exatamente isso. O Salmo 103 contém algumas
afirmações gloriosas sobre a misericórdia de Deus. E na
introdução do Evangelho de Lucas acharão estas palavras:

103
“Auxiliou a Israel seu servo, recordando-se da sua misericórdia”
(Luc. 1:54). Em seguida, os versículos 77 e 78 registram: “(ele é
enviado) para dar ao seu povo conhecimento da salvação, na
remissão dos seus pecados; pelas entranhas da misericórdia do
nosso Deus”. E vocês se depararão constantemente com a
misericórdia de Deus afirmada nas Epístolas do Novo
Testamento. Paulo diz: “Logo, pois, compadece-se de quem quer,
e endurece a quem quer” (Rom. 9:18). Mas vocês a encontrarão
ainda mais nas saudações e nas introduções às Epístolas.
Ainda outra subdivisão desta bondade e deste amor de Deus
- e quão glorioso isto é, novamente! - é a paciência e a
longanimidade de Deus. Nenhum de nós estaria aqui esta noite,
não fosse por elas! Se Deus não fosse longânimo, todos nós já
teríamos sido destruídos. No entanto Deus é longânimo. O que
isso significa? Significa que Ele suporta o obstinado e o mau.
Ele demonstra tolerância para com os pecadores que, a despeito
de todos os Seus benefícios e misericórdias, ainda pecam contra
Ele. Paulo o coloca assim: “Ou desprezas tu as riquezas da sua
benignidade, e paciência e longanimidade, ignorando que a
benignidade de Deus te leva ao arrependimento?” (Rom. 2:4).
Ele aiz ainda: “E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira,
e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os
vasos da ira, preparados para perdição?” (Rom. 9:22). Pedro o
coloca claramente ao dizer-nos que Deus foi paciente para com
aqueles espíritos e seres, “os quais noutro tempo foram rebeldes,
quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé” (1
Ped. 3:20). E há aquela famosa afirmação em sua Segunda Epístola,
onde ele diz que devemos ter “por salvação a longanimidade de
nosso Senhor” (2 Ped. 3:15).
Ora, isso me conduz ao quarto atributo moral de Deus, ou
seja: a.fidelidade de Deus. Esta, em certo sentido, está inclusa em
Sua retidão e justiça, bem como na idéia da imutabilidade de
Deus. No entanto me sinto, como muitos outros, compelido a
colocá-la numa categoria à parte, por causa da ênfase que é tão
freqüentemente posta nela nas Escrituras. O que ela significa?
Bem, jamais encontrei uma melhor definição da fidelidade de

104
Deus do que esta: quando se diz que Deus é fiel, o que tem em
mente é que Ele é Aquele em Quem podemos repousar em
segurança. Significa Aquele em Quem podemos inteiramente
confiar; Aquele de Quem podemos depender; Aquele em Quem
podemos esperar sem jamais ser assaltados por qualquer dúvida
de que Ele subitamente nos abondonará e nos deixará.
A Bíblia contém algumas afirmações gloriosas sobre isso.
Ela nos afirma que a fidelidade de Deus “chega até às mais excelsas
nuvens” (Sal. 36:5). Ela nos diz continuamente que Deus sempre
cumpre Suas promessas, e jamais anula Suas alianças. Ela nos
diz que Deus sempre cumprirá toda palavra que saiu de Sua boca
(Is. 55:11). Ela nos diz que Deus sempre, fielmente e com toda
certeza, defenderá e livrará Seus servos em todos os tempos de
tribulação, de provação e de conflito. Ela nos diz que em Deus
se pode confiar para confirmar e para estabelecer a todos quantos
Ele chamou, guardando-os do maligno, sustentando-os e guiando-
-os até que Seus propósitos sejam cumpridos neles.
Ouçam a maior de todas as afirmações: “Fiel é Deus, pelo
qual fostes chamados para a comunhão de seu Filho Jesus Cristo
nosso Senhor” (1 Cor. 1:9). Seja o que for que venha a acontecer,
seja o que for que venha a sair errado, Paulo diz a essas pessoas
que estejam certas disto: Deus é fiel. Ou, também, ele diz: “E o
mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso
espírito, e alma, e corpo, sejam plenamente conservados
irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1
Tess. 5:23). Notem ainda: “Fiel é o que vos chama, o qual também
o fará” (1 Tess. 5:24). E absolutamente certo: nada pode frustrá-
-10; nada pode fazê-10 desistir do que Ele prometeu; nada pode
levá-10 a mudar o que propôs a nosso respeito. Se vocês são
filhos de Deus, então seu destino final está absolutamente seguro.
Há ainda outra afirmação disso, e que grande conforto traz!
Temos pecado contra Ele; não podemos perdoar a nós mesmos e
não sabemos o que fazer. Contudo, nossa esperança é esta: “Se
confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo, para nos
perdoar os pecados, e nos purificar de toda a injustiça” (1 João
1:9). Ele garante que o fará, e visto que Ele o diz, então Ele o

105
fará. Ele é fiel. Portanto, vocês não precisam preocupar-se;
lancem-se sobre a fidelidade de Deus, e digam ao diabo que vocês
já foram perdoados, que já confessaram seus pecados e que a
fidelidade de Deus garante o seu perdão.
E assim posso sumariar esta seção sobre a fidelidade de Deus
da seguinte forma: nosso Senhor certa vez voltou-Se para Seus
seguidores e disse: “Tende fé em Deus” (Mar. 11:22) - essa é a
Authorised (King James') Version. O grande e piedoso Hudson
Taylor,* porém, sempre disse que isso não deve ser traduzido
como “Tenham fé em Deus”, e sim “Apeguem-se à fidelidade de
Deus”. E isso tornou-se o moto de sua vida e de sua obra.
Naturalmente, isso é ter fé em Deus; entretanto, vejam bem, se
vocês o põem nessa forma - “Tenham fé em Deus” - a ênfase
parece estar em sua fé. “Não é essa a questão importante”, disse
Hudson Taylor, “e, sim, a fidelidade de Deus. Quando vocês não
têm fé em si mesmos, então apegam-se à Sua fidelidade.” Deus é
imutável. Deus é fiel. Ele jamais sofrerá mudança. Isso é o que
fé em Deus realmente significa. Seja o que for que lhes aconteça,
ou onde vocês estejam, apeguem-se à fidelidade de Deus.
Assim, pois, sinto-me receoso de termos tratado dos
atributos de Deus apressadamente. Antes de deixá-los, permitam-
-me mais uma vez enfatizar isto: ainda que, por amor à clareza e
em busca da compreensão intelectual, os consideramos um a
um, devemos, contudo, ser cuidadosos para jamais isolar qualquer
um deles em nossa ponderação sobre Deus. Deus está
integralmente e a um só tempo em cada um de Seus atributos;
de modo que devemos nunca colocar os atributos uns contra os
outros. Jamais devemos contrastar a santidade e a misericórdia
de Deus. Deus é santo, Deus é misericórdia - sempre
integralmente e a um só tempo.
Preciso enfatizar isso porque, devido às nossas mentes e
compreensão limitadas, temos de fazer estas distinções. Mas,
que Deus nos livre de chegarmos a dividir o próprio Deus! Não

* O fundador da Missão do Interior da China, no século dezenove (atualmente


Fraternidade Missionária Ultramar).

106
podemos fazer isso, realmente, todavia podemos fazê-lo
falsamente, para nossa própria destruição. Portanto, lembrem-
-se, de uma vez por todas, que Deus em Sua totalidade Se acha
em cada atributo, e que Deus é todas essas qualidades a um só
tempo. Seu amor é um amor santo. Seria uma tragédia nos
esquecermos disso, e colocar Seu amor contra Sua justiça! Não,
e não! Tudo em Deus é amoroso. Tudo em Deus é perfeitamente
justo e reto, sempre. Devemos preservar continuamente em nosso
pensamento a perfeição do equilíbrio que existe no Ser de Deus.

107
8
OS NOMES DE DEUS E
DA SANTÍSSIMA TRINDADE
Já consideramos os assim chamados atributos morais ou
comunicáveis de Deus, e ao fazê-lo nos lembramos de que não
estamos preocupados com um enfoque meramente intelectual
ou teórico. Tudo isso é necessário para chegarmos ao
conhecimento de Deus, para podermos adorá-10
verdadeiramente, para podermos ter com Ele comunhão e ser
por Ele abençoados. Portanto, enquanto nos preocupamos com
a excelência da própria doutrina, tudo tem um propósito muito
prático. A história da Igreja, através dos séculos, nos revela muito
claramente que erros, heresias e calamidades têm se infiltrado
na vida individual e na vida da Igreja como um todo, só porque
as pessoas têm ignorado algumas partes do ensino ou da revelação
concernentes a estas grandes doutrinas. De modo que
constantemente estaremos mantendo estes dois grandes
pensamentos juntos. Desejamos conhecer a Deus, sim; mas não
meramente para que tenhamos conhecimento. E, sim, para que
também vivamos de conformidade com Ele e com Seu plano
para nossas vidas. Lembramo-nos também de que, para
conhecermos a Deus, somos inteiramente dependentes da
revelação dado por Deus de Si mesmo.
Por isso, a próxima coisa que temos a dizer é isto:
Deus nos deu a verdade sobre Ele e Seus atributos de uma
forma muito especial, aplicando nomes especiais a Si próprio;
e assim chegamos ao grande tema dos nomes de Deus. Não
é possível lermos as Escrituras sem notar que certos nomes são
dados por Deus a Si próprio, e o propósito desses nomes consiste
também em focalizar a atenção sobre um aspecto ou outro
do Ser de Deus, do caráter de Deus. E assim podemos
considerar esses nomes de Deus como que definindo Seus

108
atributos ainda mais especifícamente.
O nome sempre representa o caráter. Muitas vezes dizemos
sobre alguém que ele tem “um bom nome”. Podemos estar nos
referindo a um médico ou a um advogado; e quando dizemos
isso sobre ele, queremos dizer que ele tem um bom caráter, nesse
sentido. Ele tem certas qualidades e habilidades que apreciamos.
Um nome, pois, representa o que realmente a pessoa é: seu
caráter, suas propensões e perfeições. E sempre que vocês
encontrarem esses nomes usados por Deus na Bíblia, descobrirão
que isso é exatamente o que eles fazem; e assim vocês descobrem
que houve certas pessoas na Bíblia que queriam saber de Deus
qual era o Seu nome.
O famoso incidente, neste sentido, é aquele de Jacó em
Peniel, naquela noite decisiva em que ele voltava ao seu país de
origem. Ele se tornara um homem rico; tudo parecia em perfeita
ordem. Sim, porém havia uma grande dificuldade. Ele sabia que
seu irmão Esaú vinha vindo ao seu encontro, e recordou-se de
que havia pecado contra ele, portanto, estava com medo. Então
enviou suas esposas e seus bens - tudo! - para que atravessassem
o rio, e ele permaneceu na retaguarda, sozinho, do outro lado.
De repente, um homem começou a lutar com ele, e Jacó
compreendeu que aquilo era algo muito estranho. Estava cônscio
de que havia algo de divino em tudo aquilo. Portanto, disse à
pessoa com quem lutava: “Dá-me, peço-te, a saber o teu nome”
(Gên. 32:29). Com isso queria dizer: quem é você? Diga-me a
verdade sobre você. De fato, ele disse: “Pressinto que você não é
uma pessoa comum. Eu quero saber exatamente.”
Que o nome de Deus representa o Seu caráter, é expresso
também no Salmo 22:22: “Então declararei o teu nome aos meus
irmãos.” E, no Novo Testamento, vocês descobrirão que a grande
reivindicação de nosso Senhor, justamente antes de Sua morte
na cruz, foi: “Manifestei o teu nome aos homens que do mundo
me deste” (João 17:6). Mais adiante Ele disse: “E eu lhes fiz
conhecer o teu nome” (v. 26). Declarar o nome de Deus é dizer
a verdade sobre Ele. É colocar esta grande verdade acerca do
Ser de Deus numa forma em que os homens e as mulheres

109
possam apropriá-la e apreendê-la.
Desse modo, notemos alguns dos nomes que são atribuídos
a Deus nas Escrituras, bem como o significado deles. Em
primeiro lugar, vem o nome El. Este significa Ser primeiro, Ser
supremo. Ele contém a idéia de energia e de poder - grandeza.
Então o próximo nome é Elohim, que é plural na forma. Esse
também contém a idéia de que Deus é alguém que deve ser temido,
bem como alguém que é poderoso; e esse é o nome que Deus
geralmente usa quando está falando de Si próprio em termos de
criação. Então o próximo nome é Elyon, que significa Aquele
que é sublime e exaltado. Vejam como cada um desses nomes
nos fala algo em particular sobre Deus, como é usado na narrativa
e como se destina a comunicar uma impressão particular em
relação à Pessoa e à personalidade de Deus.
Em seguida vem o grande nome Adonai, significando o
Senhor Onipotente, o Soberano a Quem tudo está sujeito e a
Quem o ser humano se relaciona como servo. E o nome que era,
portanto, freqüentemente usado por Deus quando Se dirigia aos
filhos de Israel. Ora, todos esses nomes descrevem Deus como
um Deus transcendente, imenso, sublime, poderoso e exaltado
em Sua glória.
Mas ainda agradecemos a Deus porque Ele não Se deteve
aí, pois Lhe aprouve apresentar-Se com outros nomes que se
destinam a demonstrar a relação desse Ser excelso, eterno,
onipotente, com Suas criaturas e Sua criação. Por exemplo, há o
termo Shaddai. Ora, este descreve Deus como possuidor de todo
o poder no céu e na terra, mas especialmente Aquele que a tudo
subjuga e a tudo faz que seja subserviente à obra de Sua graça.
Vejam vocês agora a importância disso. Esse nome descreve Deus
em Seu poder sobre os elementos, em Seu poder sobre a natureza
e a criação. Sim, porém não Seu mero poder; ele particularmente
enfatiza o controle que Deus mantém sobre todas essas coisas
para o propósito de Sua graça e de Sua misericórdia, bem como
o Seu procedimento com os homens e as mulheres. Por exemplo,
Ele controla o vento, a chuva e a neve para que possamos ter
alimento para comermos. Eis o significado de Shaddai.

110
Acima de tudo, porém, o nome mais importante e mais
significativo, em relação a nós, é o grande nome Yahweh
(traduzido por Jehovah, na AV). Esse, a própria Bíblia no-lo diz,
de todos é o nome mais excelente. Ele significa Deus Se
chamando de Eu sou o que sou. Ou vocês podem traduzi-lo como
Eu serei o que serei. E ambos são verdadeiros. O nome transmite,
portanto, Sua imutabilidade, especialmente Sua imutabilidade
em Sua relação com Seu povo. Talvez a melhor forma de
mentalizá-lo seja esta: o nome contém o significado de que Deus
é o Auto-existente - Eu sou quem eu sou-, Eu serei quem eu serei -
que, não obstante, Se revela ao Seu povo. Ele contém ambas as
idéias juntas.
Daí, vocês podem descrever este nome -Jehovah - como o
grande nome pactuai de Deus. Vocês descobrem a Bíblia dizendo
que Deus entrou em alianças com Seu povo. Ele fez uma aliança
com Adão. Ele fez uma aliança com Noé. Ele fez uma aliança
com Seu próprio Filho. Deus é um Deus que faz alianças - Ele
promete, Ele Se compromete fazer certas coisas. Ora, quando
Ele procede assim, geralmente vocês descobrem que Ele Se chama
pelo grande nome Jehovah. E quão magnífica concepção é essa!
Esse Ser onipotente, a Quem adoramos, que é em Si mesmo
auto-existente, todavia decide revelar-Se e evidentemente
vincular-Se a meras criaturas temporárias como nós, a quem
Ele trouxe à existência.
No entanto, vocês descobrem nas Escrituras que certos
termos qualificativos são com muita freqüência adicionados a
esse grande nome - Jehovah. Tomem, por exemplo, o nome
Jehovah-sabaoth - “o Senhor dos exércitos” (1 Sam. 1:3). Tem
havido acirrada discussão em torno do significado do termo
sabaoth. Há quem diga que ele significa as estrelas nos céus; outros
afirmam que ele significa os exércitos de Israel. No entanto,
creio que estaremos, provavelmente, mais seguros tomando
“exércitos” - Jehovah dos exércitos, Jehovah de sabaoth - como
se referindo aos anjos. Ele é o Onipotente, o Auto-existente,
Aquele que é o Senhor de todas as hostes angelicais.
E em seguida vem o grande nome Jehovah-jireh, o nome com

111
que Deus Se apresentou a Abraão quando estava para oferecer
seu filho Isaque. A provisão para o sacrifício - o carneiro - foi
encontrada na moita, e Abraão falou este nome: Jehovah-jireh -
“O Senhor proverá” (Gên. 22:14).
Em seguida, Deus apresentou-Se a Moisés com outro nome,
logo após o êxodo do EgitoJehovah-ropheh - o Senhor que sara.
Deus disse ao povo, depois de adoçar as águas amargas de Mara
para ele: “Se ouvires atento a voz do Senhor teu Deus, e obrares
o que é reto diante de seus olhos, e inclinares os teus ouvidos
aos seus mandamentos, e guardares todos os seus estatutos,
nenhuma das enfermidades porei sobre ti, que pus sobre o Egito;
A

porque eu sou o Senhor que te sara” (Ex. 15:26).


O próximo nome é Jehovah-nissi: o Senhor é minha bandeira.
Os filhos de Israel haviam combatido o inimigo, e Deus lembrou-
-os de que estivera com eles, e que estaria com eles. Ele seria sua
bandeira sob a qual venceriam e prevaleceriam (Ex. 17:15).
Prosseguindo, achamos quejehovah-shalom foi o nome por
meio do qual Deus revelou-Se a Gideão. Vocês o encontrarão em
Juízes 6:24 - ele significa: o Senhor envia paz; o Senhor nossa
paz. Aliás, Ele é o Deus da paz. Foi na qualidade de Deus da paz
que Ele trouxe novamente dentre os mortos o nosso Senhor Jesus,
o grande Pastor das ovelhas (Heb. 13:20). E Ele havia Se revelado
como o Senhor da paz lá nos dias dos juízes, quando a lei não
vigorava.
Em seguida vem o nome muito formoso do Salmo 23: o
Senhor é o meu Pastor-Jehovah-ro’eh. “O Senhor é o meu Pastor:
nada me faltará.” E em Jeremias 23:6, encontrarão Jehovah-
-tsidkenu: o Senhor é nossa justiça. Vocês o encontram em letras
maiúsculas, em muitas Bíblias - O SENHOR JUSTIÇA NOSSA. E
em seguida vem Jehovah-shammah'. o Senhor está presente.
Encontramo-lo em Ezequiel 48:35: “O Senhor está ali.” E assim
vocês descobrem que cada um desses nomes leva consigo uma
grande e maravilhosa significação, transbordante de conforto e
consolação. E o propósito, em certo sentido, de proclamar e
explicar as Escrituras é que esses nomes de Deus, em seu sentido
e importância, nos sejam realçados.

112
Como o nosso bendito Senhor Jesus Cristo mesmo disse:
“Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste”
(João 17:6) - Ele estivera revelando Deus em todas essas
características. Estivera ensinando Seus seguidores como pensar
em Deus e como conhecê-10. Ele lhes mostrara que Deus não
deve ser concebido como se fosse alguma vaga energia. Não; ao
contrário. Deus é pessoal, e como uma pessoa Ele age e Se revela.
E através dos nomes com que Deus Se apresentou que Ele nos
diz esta grandiosa verdade sobre Si mesmo. E é quando chegamos
a conhecer a Deus nos termos desses nomes que encontramos
paz, conforto, alegria em crermos nEle.
Nosso problema consiste em que cremos que anunciando
Deus é suficiente, sem realmente nos preocuparmos em
descobrir tudo o que Ele nos transmitiu sobre Si próprio. Mas
Deus nos transmitiu toda essa revelação a Seu respeito, e
finalmente Se revelou na Pessoa de Seu Filho, cujo nome é o
mais excelente de todos, o próprio Senhor. Ele é Emanuel -
Deus-conosco, o soberano todo-poderoso, o eterno Deus, que
habitou entre nós e no tempo.
Ora, lamento de ter que deixar esta questão dos nomes de
Deus. No entanto, quando lermos as Escrituras, e quando
meditarmos sobre esses nomes, descobriremos que eles nos
transmitem uma grande riqueza de ensinamento. As vezes
compreendemos muito pouco desse assunto, e desse modo
empobrecemos nossa experiência.
Pois bem, tendo dito isso, prossigamos para aquilo que
muitos dizem ser o maior, o mais vital e o mais importante
aspecto desta sublime doutrina a respeito de Deus, que é,
naturalmente, a doutrina da bem-aventurada santíssima Trindade.
Mesmo ao considerar os nomes de Deus e Seus vários atributos,
em certo sentido estivemos nos preparando para esta grande
doutrina. Todavia, reconheçam vocês ou não esse fato, ninguém
pode ler a Bíblia sem, necessariamente, ver-se face a face com
esta doutrina da Trindade. Ora, eu disse mais de uma vez, durante
o curso destas preleções, que tenho me sentido à semelhança
de Moisés diante da sarça ardente, e tenho ouvido uma voz

113
me dizendo: “Cuidado! Não te chegues para cá; tira os teus
sapatos de teus pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa”
(Êx. 3:5).
Muito bem, se isso é o que sentimos até aqui, quanto mais
devemos senti-lo ao considerarmos esta excelsa doutrina da
santíssima Trindade - pois ela é, além de qualquer dúvida, a
mais misteriosa e a mais difícil de todas as doutrinas bíblicas.
Não há outra doutrina que revele tão claramente aquilo acerca
do que concordamos desde o início - nossa absoluta dependência
da revelação que temos nas Escrituras. Nenhum ser humano
poderia ter concebido a doutrina da Trindade. Ela vem
diretamente da Bíblia, e absolutamente de nenhum outro lugar.
Os homens e as mulheres têm pensado em Deus; eles têm seus
deuses; mas ninguém jamais pensou na Trindade.
Outra recomendação que eu faria, ao nos aproximar desta
doutrina, é que não há nenhuma dúvida de que a doutrina da
Trindade é a mais distintiva doutrina da fé cristã. Isso pode soar
como surpresa para alguns de vocês, porém espero estabelecê-lo
à medida que avançamos. Não lhes ocorre, pois, à luz deste fato,
que é algo bastante curioso ouvirmos tão pouco sobre esta
doutrina? Falo particularmente àqueles que são cristãos
evangélicos: por que temos enfatizado tão pouco esta doutrina?
Não tenho dúvida de que a resposta é que ela é difícil, ela é
um mistério. Isso, contudo, não serve de escusa. Aliás, cada
doutrina que encontramos nas Escrituras deve ser considerada
como que oriunda de Deus, e não há nada mais importante do
que isso. Receio que esse seja outro exemplo da indolência que
nos tem dominado - o anseio por conforto, e a tendência de
tomar por base as experiências e fugir de tudo quanto demanda
esforço intelectual. Mas se temos negligenciado a doutrina da
Trindade, envergonhemo-nos disso! Ela é, em certo sentido, a
mais excelsa e a mais gloriosa de todas as doutrinas, a coisa mais
espantosa e estonteante que aprouve a Deus revelar-nos sobre Si
mesmo.
O que fazer, portanto, para abordarmos esta doutrina?
Começo prontamente afirmando que não devemos tentar fazer

114
isso em termos de filosofia. Faço tal declaração porque muitos
acreditam que podem explicar a doutrina da Trindade nesses
termos. Eles têm usado exemplos como estes: afirmam que a
doutrina da Trindade é comparável ao sol e aos raios emitidos
pelo sol; outros a têm comparado à semente, ao solo e à flor;
vocês vêem, dizem eles, a unidade e no entanto a divisão, ou
seja, três em um e um em três.
Todavia, pressinto que todas essas tentativas para entender
a doutrina da Trindade, filosoficamente, não só nos privam de
auxílio, mas ainda se nos tornam, provavelmente, muito
perigosas. Ao meu ver, só há uma coisa a fazer, isto é, reconhecer
que estamos diante do mistério que é revelado na Bíblia. Não
podemos esperar que a entendamos. Não podemos esperar que a
apreendamos com nossas mentes; ela está inteiramente além de
nós e acima de nós. Simplesmente podemos contemplá-la com
admiração, com temor e com adoração, bem como ficarmos
atônitos diante dela.
Se me aventurasse a dizer apenas metade de uma palavra,
filosoficamente, diria que, como já dissemos de passagem, a
doutrina de Deus como amor, ou enfatizando que um dos
atributos de Deus é o amor, parece-me, em si e de si mesma,
implicar simplesmente uma pluralidade de Pessoas na Deidade.
Se o Deus eterno é amor, então Ele sempre amou, antes da
Criação, antes que houvesse tempo. Contudo, a quem Ele amou?
Acaso isso não implica quase que necessariamente numa
Trindade? E isso é realmente o que a Bíblia ensina, ou seja, que
as três bem-aventuradas Pessoas na Trindade têm amado umas
às outras perfeitamente desde toda a eternidade. Mas vocês não
precisariam aceitar isso. Eu simplesmente o coloco diante de
vocês como uma breve sugestão.
Não! Voltemos e olhemos para a Palavra e descubramos o
que a Bíblia mesma tem a nos dizer. Vocês notarão, enquanto a
percorrem, que não se faz uma única afirmação explícita desta
doutrina. Em parte alguma da Bíblia vocês acharão uma afirmação
de que em Deus há três Pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo.
Por implicação, porém, a doutrina da Trindade, como veremos,

115
será encontrada no Velho e no Novo Testamentos. Ela é
pressuposta por toda parte e nos mais improváveis e inesperados
lugares.
Mas antes de apresentar-lhes tal evidência, deixem-me
estabelecer certos pontos que são de vital importância nesta
conexão. A doutrina da Trindade não significa que haja três
Deuses - o que se chama triteísmo. É preciso que façamos esta
afirmação negativa, visto que os unitarianos estão sempre
prontos a acusar os cristãos de crerem em três Deuses. Dizem
eles: “Vocês nos chamam unitarianos; nós os chamamos
triteístas, com sua doutrina do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Vocês realmente estão falando de três Deuses.”
Ora, nós rejeitamos o triteísmo, completamente. A ênfase
específica, através de todo o Velho Testamento, é que há somente
um Deus vivo e verdadeiro. Lemos: “Ouve, Israel, o Senhor
nosso Deus é o único Senhor” (Deut. 6:4). Essa foi a mensagem
constantemente repetida aos filhos de Israel, e ela era absoluta e
naturalmente essencial, porque os filhos de Israel eram a única
nação no mundo que havia recebido esta informação e esse
conhecimento. Estavam cercados por nações que criam numa
variedade de deuses. O problema, na época do Velho Testamento,
era o politeísmo; as pessoas criam em diversas divindades: da
guerra, da paz, e assim por diante. Baal, Astarote, Júpiter, Marte,
Mercúrio - todos esses eram seus vários deuses. E, acima de
tudo o mais, os filhos de Israel foram chamados a proclamar a
unidade de Deus e o fato de haver somente um único Deus.
Nosso Senhor, de fato, disse a mesma coisa quando usou as
palavras: “Eu e o Pai somos um” (João 10:30). Não dois. Então
vocês descobrirão que Tiago salienta o mesmo ponto. Diz ele:
“Tu crês que há um só Deus...” (Tiago 2:19). Assim, pois,
enquanto consideramos esta grande e bendita doutrina da
santíssima Trindade, finalmente, quer entendamos quer não o
que estamos dizendo, devemos continuar afirmando que não
cremos em três Deuses. Há um só Deus.
Mas, em segundo lugar, estabeleço este postulado: embora
Deus, em Sua natureza mais íntima, seja um só, Ele, não obstante,

116
existe como três Pessoas. Ora, já estamos em apuros, não é
verdade? Porventura vocês não desejam perguntar-me, aqui: você
está afirmando que há três Pessoas, distintas em substância? Se
é esse o caso, então tem que haver três Deuses? Eis minha
resposta: “Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor.”
Sou obrigado dizer isso.
Então, qual é o problema? Bem, o problema, uma vez mais,
consiste na linguagem inadequada. Só podemos falar de “pessoas”,
visto não podermos pensar numa categoria mais elevada do que
pessoas, e quando pensamos em pessoas, pensamos em
indivíduos, por isso as separamos. Mas, quando a Bíblia usa essas
expressões, obviamente significam algo diferente. Ora, eu não
presumo entender. Ninguém entende. As mentes mais excelentes
da Igreja, ao longo dos séculos, têm lutado com isso e têm tentado
explicá-lo, porém não puderam entendê-lo. Daí, nada puderam
fazer além do que estamos fazendo agora. Dizem que Deus é um
só, não obstante este Deus, que é um só, em Sua natureza mais
íntima, existe em três Pessoas.
Deixem-me apresentar-lhes a declaração da famosa Confissão
de Fé de Westminster com referência a esta doutrina: “Na unidade
da Deidade há três pessoas de uma mesma substância, poder e
glória - Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo.”
(Cap. Il.iii.) Recomendaria insistentemente que vocês adquiram
um exemplar da Confissão de Fé de Westminster. Vocês
encontrarão ali algumas dessas grandes definições em sua forma
mais conveniente. Isso é o que ela diz sobre esta grande doutrina
da Trindade, e posso colocá-lo nestes termos: o Pai é Deus, o
Filho é também Deus; não dois Deuses, mas o mesmo Deus em
substância. O mesmo Ser eterno é Pai e Filho.
Essa deve ser a nossa afirmação. O primeiro versículo do
primeiro capítulo do Evangelho de João nos motiva a dizer
isto: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus,
e o Verbo era Deus.” Isso soa como algo contraditório, porém
é verdadeiro. Isso é o que estou tentando dizer. O Verbo é Deus
assim como o Pai é Deus, e todavia não há dois Deuses - há
somente uma Deidade. Novamente lembro-lhes do que disse

117
nosso Senhor: “Eu e o Pai somos um.”
Vocês também encontrarão o apóstolo Paulo dizendo:
“Cristo... o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente:
Amém” (Rom. 9:5). Em Colossenses 2:9, Paulo diz: “Porquenele
habita corporalmente toda a plenitude da divindade." Então, em
Tito 2:13, nos é ensinado que aguardemos “a bem-aventurada
esperança e o aparecimento da glória do grande Deus e nosso
Senhor Jesus Cristo.” Jesus Cristo é Deus. Não somente o Pai é
Deus, mas o Filho também é Deus. Há afirmações explícitas
quanto a isso.
Contudo não é só isso; vocês não podem ler os Evangelhos
sem descobrir que os atributos atribuídos ao Senhor Jesus Cristo
só podem ser atribuídos a Deus. Sua eternidade, por exemplo:
“Antes que Abraão existisse eu sou” (João 8:58); Ele não hesita
em dizê-lo. Há também Sua santidade, bem como Sua vida. Diz
nosso Senhor: “Porque, como o Pai tem a vida em si mesmo,
assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo” (João 5:26).
E disse também: “Assim como lhe destepoder sobre toda a carne,
para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste” (João 17:2).
Isso só é verdadeiro em relação a Deus. Em seguida temos Sua
imutabilidade: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, e hoje, e
eternamente” (Heb. 13:8). Lembrem-se de que consideramos isso
quando tratamos dos atributos de Deus.
Vem a seguir Sua onipotência: “É-me dado todo o poder no
céu e na terra” (Mat. 28:18). Nada Lhe é impossível. Então vem
Sua onipresença: “E eis que estou convosco todos os dias, até à
consumação dos séculos. Amém”, diz Ele (Mat. 28:20). E Sua
onisciência. Jesus sabia tudo; nada Lhe era oculto. Ele sabia o
que estava numa pessoa, e não era preciso que alguém Lhe
dissesse algo (vejam João 2:25). Ele conhecia os pensamentos
das pessoas. Ele pôde dizer a Natanael: “Antes que Filipe te
chamasse, te vi eu estando tu debaixo da figueira” (João 1:48).
Ele podia ler os pensamentos e as imaginações nos recessos mais
íntimos dos homens e das mulheres. Foi através dEle que todas
as coisas foram criadas. É por meio dEle que todas as coisas
subsistem. Ele afirma que tem autoridade para julgar (João 5:27),

118
e que Ele será o Juiz, Portanto, vejam vocês que esses atributos
da divindade e da Deidade são-Lhe livremente atribuídos. Daí
dizermos que o Pai é Deus, e dizermos que o Filho é Deus.
Sim, porém devemos afirmar também que o Espírito Santo
é Deus. Vocês se lembram das terríveis palavras que Pedro dirigiu
a Ananias e Safira? Disse ele: “Ananias, por que encheu satanás
o teu coração, para mentires ao Espírito Santo...? Não mentiste
aos homens, mas a Deus” (Atos 5:3,4). Você proferiu mentira,
disse ele, contra o Espírito Santo; e visto que você mentiu contra
o Espírito Santo, então você proferiu mentira contra Deus.
E então somos informados no Novo Testamento sobre a
blasfêmia contra o Espírito Santo. Disse nosso Senhor: “Todo
pecado e blasfêmia se perdoarão aos homens; mas a blasfêmia
contra o Espírito Santo não será perdoada aos homens” (Mat.
12:31). E vocês acharão a mesma coisa nas passagens paralelas.
Temos também a fórmula do batismo encontrada no final
do Evangelho de Mateus: “...batizando-as em nome do Pai, e do
Filho e do Espírito Santo” (Mat. 28:19). E a bênção apostólica
diz: “A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a
comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós. Amém” (2
Cor. 13:13). Portanto, vejam vocês, a Bíblia assevera que o
Espírito Santo é Deus, da mesma forma que o Pai e o Filho. Há
ainda muitos outros exemplos nas Escrituras, onde as três
Pessoas referem uma à outra. Vocês encontrarão nosso Senhor
fazendo referência ao “outro Consolador” (João 14:16), a quem
Ele e o Pai iriam enviar; e assim por diante.
Há aqueles que têm tentado negar a doutrina da santíssima
Trindade, desta forma: “Não há três Pessoas”, dizem eles, “há
somente uma Pessoa, há somente um Deus; entretanto o único
Deus pode revelar-Se de diferentes modos. Uma vez revelou-Se
como Pai; então, em outras vezes revelou-Se como o Filho; e
ainda em outras vezes revelou-Se como o Espírito Santo.” E
tentam usar analogias para ajudar-nos a entender. Dizem, por
exemplo, que o mesmo homem pode ser esposo e pai e pregador
- uma pessoa em três relações.
Mas a Bíblia rejeita tudo isso. Pai, Filho e Espírito Santo

119
não são meramente modos nos quais Deus Se revela. Não, e não!
Há três Pessoas na Deidade. As Pessoas Se inter-relacionam.
Cristo falou sobre as outras, dirigiu-Se a Elas, não Se referindo a
Si mesmo, e sim às outras Pessoas da santíssima Trindade.
Portanto, rejeitamos qualquer ensino de que há somente um Deus
que Se revela nessas diferentes formas. Além do mais, isso pode
ser provado muito conclusivamente, visto que nos deparamos
com as Escrituras mencionando as três Pessoas juntamente. Por
exemplo, quando o anúncio foi feito àquela virgem, Maria, em
referência ao nascimento de seu Filho, as três Pessoas foram
mencionadas: o poder de Deus, o poder do Espírito e o poder do
Filho que nasceria (Luc. 1:26-38).
Vocês vêem isso novamente no batismo. Lá estava o Filho
no rio Jordão; o Espírito Santo desceu sobre Ele na forma de
uma pomba; e a voz de Deus o Pai foi ouvida, dizendo: “Este é o
meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mat. 3:13-17).
Também, nesta conexão, estudem muito cuidadosamente os
capítulos 14,15 e 16 do Evangelho de João. Em João 15:16, vocês
encontrarão isso perfeitamente posto nesta forma: “Mas, quando
vier o Consolador, que eu da parte do Pai vos hei de enviar,
aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele testificará de
mim.” Aqui, o Filho está falando sobre o Consolador, a quem o
Pai iria enviar. E novamente trago à sua lembrança a fórmula
batismal e a bênção apostólica.
Mesmo no Velho Testamento há muito ensino sobre o
Espírito Santo e o Filho. Ora, vocês não esperariam encontrar a
doutrina da Trindade exposta tão claramente no Velho
Testamento como o é no Novo (Testamento), pela razão que já
apresentei - a constante ameaça do politeísmo. Mas, além disso,
vocês obviamente não poderiam ter uma completa nem uma
explícita doutrina da Trindade até que o Filho surgisse encarnado,
e até que Ele enviasse o Espírito Santo. Era somente a partir daí
que os homens e as mulheres poderiam possivelmente receber a
doutrina; e, mesmo agora, como temos descoberto, ela é uma
santa e misteriosa doutrina, e difícil de se apreender.
Ela, porém, está aí no Velho Testamento. Noprimeiro capítulo

120
de Gênesis vocês encontrarão a doutrina da Trindade com
bastante evidência, se apenas atentarem para ela. Tomem aquele
nome de Deus - Elohim. É um termo plural. Deus fala de Si
próprio no plural. Vocês estão lembrados do que Ele diz sobre a
criação do homem em Gênesis 1:26: “Façamos o homem à nossa
imagem.” Qual a razão disso? Só há uma explicação plausível: é
por causa da bendita santíssima Trindade. Então, quando o
homem pecou, é afirmado a seu respeito em Gênesis 3:22: “...eis
que o homem é como um de nós...” E então, em conexão com a
Torre de Babel, em Gênesis 11:7, lemos: “Eia, desçamos e
confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua
do outro.” E, finalmente, vocês se deparam com Isaías 6:8:
“Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: a quem enviarei,
e quem há de ir por nós?” Podem ver que esses termos por si
mesmos, sugerem a Trindade.
E assim vocês podem lembrar-se de que numa das preleções
anteriores nos referimos ao Anjo do Concerto, a quem tantas
referências são feitas no Velho Testamento, e chegamos a uma
única possível conclusão - que o Anjo do Concerto não é nenhum
outro senão o próprio Senhor Jesus Cristo. Sim; Ele Se revelou
nessa forma. Não era Sua encarnação; era uma teofania, um
aparecimento do Filho como o Anjo do Concerto.
E vocês se lembram, também, das referências ao Espírito
Santo lá no início de Gênesis. Ali nos é dito que o Espírito
“pairava” sobre as águas. Era o Espírito que capacitava os profetas
para falarem. Foi o Espírito que veio sobre Bezaleel e o capacitou
para trabalhar na edificação do tabernáculo (Êx. 31:2-5). E assim
vocês percebem que há uma riqueza de ensino no Velho tanto
quanto no Novo Testamento com respeito a esta grande doutrina
da santíssima Trindade.
Deixem-me formular uma última pergunta: que relação
existe entre as três Pessoas? A resposta em todas as partes das
Escrituras é que elas são coeternas. Não há subordinação como
tal. Quando o Filho é chamado o Filho;, não significa que Ele
esteja subordinado, ou como se fosse inferior a Seu Pai. O fato
de ser o Filho significa que Ele é igual ao Pai. Ele é “a expressa

121
imagem da sua pessoa” (Heb. 1:3). Não subordinado a Ele, ou
diferente dEle. Ele é o mesmo que o Pai e igual ao Pai, de Quem
é Filho.
Muito bem, vou resumi-la assim: a Trindade tem existido
na Deidade desde toda a eternidade. A afirmação do Credo
Atanasiano a esse respeito nos dá uma definição perfeita: “O Pai
é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e no entanto
não há três Deuses, mas sim um só Deus. O Pai é Senhor, o
Filho é Senhor, o Espírito Santo é Senhor, e no entanto não há
três Senhores, e sim um só Senhor. Na verdade, como somos
compelidos pela verdade cristã a reconhecer cada Pessoa, por Si
mesma, a ser Deus e Senhor, assim somos proibidos pela mesma
verdade a afirmar que há três Deuses ou três Senhores.” E de
fato vocês não podem jamais ir além disso. A verdade
escriturística, a verdade cristã, insiste em nos dizer que há três
Pessoas, e no entanto não devemos afirmar que há três Deuses.
Esse é um grande e eterno mistério.
Contudo - e de muitas maneiras este é o mais glorioso
aspecto desta doutrina - ainda que as três Pessoas na Trindade
sejam co-iguais e co-eternas, para os propósitos de nossa salvação
vocês têm o que às vezes se chama a Trindade econômica. Faz-se
uma separação entre as três Pessoas, e, para os propósitos desta
obra e desta salvação, há uma espécie de sujeição das três Pessoas.
O Pai cria; o Pai elege; o Pai planejou a salvação. O Filho foi
enviado pelo Pai para efetuar esta salvação. O Espírito Santo foi
enviado pelo Pai e pelo Filho para aplicar a salvação.
Ora, essa é uma idéia atordoante, ou seja, que estas três
bem-aventuradas Pessoas, na bem-aventurada santíssima
Trindade, para minha salvação, quiseram dividir assim o
trabalho. O Filho Se pôs à disposição do Pai, e o Espírito Se pôs
à disposição do Pai e do Filho. O Espírito não fala de Si mesmo,
mas testifica do Filho. O Filho não falou de Si mesmo, mas
recebeu do Pai Suas palavras e Suas obras, embora fosse igual e
eterno - a Trindade econômica. De modo que, enquanto, em
certo sentido, podemos dizer que foi o Pai quem enviou o Filho,
e o Filho quem veio e realizou a obra, e o Espírito a aplicou,

122
devemos, ao mesmo tempo, dizer isto: Deus estava presente em
tudo. “Deus estava em Cristo” reconciliando o mundo consigo,
não lhe imputando suas transgressões” (2 Cor. 5:19). Havia uma
espécie de divisão de trabalho, e no entanto havia uma unidade
em propósito e uma unidade em realizá-lo cabalmente.
Ora, eu lhe disse, logo no início, que estaríamos penetrando
o maior mistério da Bíblia e da fé cristã - a mais excelsa e a mais
sublime verdade. Peço-lhes, com sinceridade, que não tentem
entender tudo isso com sua mente. Cumpre-nos receber,
humildemente e como criancinhas, a verdade como nos é
revelada; cumpre-nos postar-nos em culto, em adoração e
espanto. Ela está muito além de nós, porém é verdadeira. E ela é
plenamente verdadeira de uma forma especial, para nós e para
nossa salvação.

123
9
OS DECRETOS ETERNOS
DE DEUS
Em nossa consideração destas doutrinas bíblicas, chegamos
agora a uma nova seção da doutrina particular com que estivemos
tratando, ou seja, a doutrina sobre Deus. Vocês se lembrarão de
que temos considerado o que a Bíblia nos diz sobre o ser, a
natureza e o caráter de Deus, como aprouve a Ele nos revelar
essas particularidades nas Escrituras. Consideramos, igualmente,
os nomes que Deus aplicou a Si próprio como uma parte desta
revelação de Seu ser essencial, bem como Sua relação com a
criação. E isso, por sua vez, nos trouxe à consideração da grande,
poderosa e inescrutável doutrina da bem-aventurada santíssima
Trindade.
Agora, considerando ainda a doutrina sobre Deus, chegamos
à próxima seção, que é obviamente a seguinte: as obras de Deus;
a atividade de Deus; o que Deus fez. Esta é uma espécie de
subseção ou ramo da doutrina geral concernente a Deus. E a
pergunta é: o que vem a seguir? Que é que vamos considerar?
Estamos para considerar as obras de Deus; portanto, se lhes fosse
formulada a seguinte pergunta: “O que vocês pensam vir a seguir
na seqüência bíblica e na ordem lógica?” Sinto-me curioso em
saber a resposta que vocês dariam. Posso estar equivocado, mas
acredito que, se eu fosse fazer a pergunta, muitos provavelmente
diriam que obviamente nos dirigiremos imediatamente à
doutrina da Criação.
Ora, é evidente que há um sentido em que essa seria a
resposta correta, mas, francamente, a minha impressão é que
não é, embora descobrirão, se examinarem certos livros que
tratam destes assuntos, que é precisamente isso o que eles fazem.
Vocês poderiam citar um bom número de autoridades que vão
diretamente da doutrina da natureza e caráter de Deus à questão

124
da Criação. Mas tal procedimento parece-me completamente
errôneo. É antibíblico, e portanto não é a coisa certa e própria a
fazer.
Antes de abordarmos a doutrina sobre a Criação, há algo que
devemos considerar primeiro, e procedemos assim porque a
Bíblia nos fala sobre ele, ou seja, a Bíblia, antes mesmo de dizer-
-nos o que Deus fez, nos conduz ao caráter de todas as atividades
de Deus. Há muito na Bíblia, como pretendo mostrar-lhes, sobre
o modo como Deus faz as coisas, e é importante que consideremos
isso antes de considerarmos exatamente o que Deus fez.
Há seguramente grandes princípios que sublinham e
caracterizam todas as obras de Deus. Noutras palavras, antes de
Deus criar o mundo e o homem, Ele ponderou, Ele intentou e
determinou certas coisas. Daí, esta abordagem deve entrar neste
ponto. Certas coisas foram decididas na mente e no conselho
eternos de Deus, antes que Ele fizesse qualquer coisa no âmbito
da Criação, e a impressão que tenho, portanto, é que esta é a
seqüência obviamente cronológica (se podemos usar tal termo),
certamente a seqüência obvia e lógica que deve ser seguida.
Ora, a descrição que é apresentada na Bíblia referente ao
modo ou ao método de Deus operar consiste no que comumente
se chama a doutrina dos decretos eternos de Deus. Essas são coisas
que Deus determinou e ordenou antes que tivesse feito qualquer
coisa. Ora, quero admitir muito francamente que estou
chamando sua atenção outra vez para um tema extremamente
difícil. Não peço desculpas por isso porque, como lhes mostrarei,
esta não é uma questão de escolha. A obrigação de alguém, ao
expor a Bíblia, é a de expor toda a Bíblia. Todavia admito que
este é um tema muito difícil, e creio que é por isso que muitos
dos livros não o incluem. Mas ele é tão escriturístico, que precisa
ser encarado. E como a doutrina sobre a santíssima Trindade -
em certo sentido, se acha além de nossas mentes. Entretanto,
segundo vimos acerca dessa doutrina, não devemos evitá-la só
pelo fato de ser difícil.
Para o encorajamento de vocês, contudo, creio poder
prometer-lhes que algumas destas doutrinas primárias e

125
preliminares são mais difíceis em razão de estarmos tratando
com a mente do Eterno, e de estarmos, portanto, considerando
algo que se acha além do nosso finito entendimento e da
apreensão de nossos débeis e ínfimos intelectos. De certo ponto
de vista, as doutrinas do homem, da criação e da salvação são,
necessariamente, muito mais fáceis.
“Mas”, alguém poderá dizer, “em vista da dificuldade e
inescrutabilidade dela, por que é preciso considerá-la? Por que
não entramos diretamente nas doutrinas da Criação, do homem
e da Queda? E nisso que estamos realmente interessados; é isso
que queremos saber.” Muito bem, é preciso que apresentemos
algumas respostas a uma objeção como essa. Minha primeira
razão para chamar sua atenção para esta doutrina, como já me
expressei, é que ela se acha revelada na Bíblia; e diante desse
fato, ela exige obviamente a nossa consideração e estudo.
Posso colocá-lo assim: não seria bastante surpreendente
observar e considerar quão inclinados somos nós a ler apenas
certas porções da Bíblia? Gostaria de saber se vocês lêem o nono
capítulo da Epístola aos Romanos com tanta freqüência como
lêem o oitavo. Se porventura vocês são daqueles que lêem a Bíblia
a esmo, então não o fazem. Ora, não temos o direito de escolher
e selecionar somente o que queremos da Bíblia. Já concordamos
que ela é a Palavra inspirada de Deus. Se creio nisso acerca da
Bíblia, do começo ao fim, então devo levar em conta toda a
minha Bíblia. O fato de haver porções que me deixam perplexo,
não é motivo para afastar-me delas. Devo lê-la inteiramente,
apegar-me a ela toda; devo tentar compreendê-la totalmente. E
desde que esta eminente doutrina dos decretos de Deus está na
Bíblia, então é minha obrigação estudá-la.
Eis outra razão - e creio que vocês concordarão comigo
quando tivermos concluído: ela nos revelará inusitados aspectos
da glória do próprio Deus. Ela nos oferecerá, por assim dizer,
uma maior e mais excelente concepção de Deus, o que, por sua
vez, promoverá nossa adoração a Deus. Jamais me canso de dizer
que a real dificuldade da evangelização moderna é que não
empregamos tempo suficiente com a doutrina a respeito de Deus.

126
Sentimo-nos tão interessados numa experiência subjetiva, e numa
salvação subjetiva, que nos esquecemos desta doutrina do próprio
Deus; e tal fato é responsável por muitos de nossos conflitos e
problemas. Quanto mais conhecermos sobre Deus e Sua
infinitude, tanto mais O adoraremos.
Outra razão, portanto, para considerarmos esta doutrina
está no fato de que ela nos poupará de muitos erros. A maioria
dos erros em que homens e mulheres têm caído ao longo dos
séculos, e em muitas outras questões que se têm suscitado, tem
sido em razão do fato de nunca terem chegado a compreender,
como deviam compreender, o ensino da Bíblia no tocante aos
decretos eternos de Deus.
E minha última razão para chamar sua atenção para ela é
que, quanto a mim, não conheço nada que me transmite maior
consolação do que esta doutrina particular. Não hesito em dizer
que nada me transmite conforto mais profundo do que saber
que por trás de mim, ínfima criatura que sou, transitando por
este mundo momentâneo, existe esta doutrina dos decretos
eternos do próprio Deus.
Muito bem, se essa é a razão por que a estamos considerando,
então deixem-me dizer apenas uma palavra sobre como a
consideraremos, e como tal coisa é tão importante. A primeira
coisa que temos a fazer, quando estamos considerando esta
doutrina, consiste em livrar-nos de nossos preconceitos e de todo
e qualquer gênero de espírito partidário. Pelo termo “espírito
partidário” quero dizer que todos nós somos inclinados a assumir
certas posições e, inconscientemente, estamos às vezes muito
mais preocupados em defender o que pensamos ser aquilo em
que temos sempre crido, do que em descobrir a verdade.
A outra forma negativa é que não devemos aproximar-nos
deste tema filosoficamente. Sei que continuo falando sobre isso!
A filosofia é uma grande maldição na esfera da fé cristã porque,
por implicação, a filosofia é sempre algo que se inclina a entender
todas as coisas como um todo. Esse é o intento da filosofia -
avaliar tudo com a mente humana. Mas estamos agora tratando
de algo para o qual a mente é completamente inadequada.

127
Portanto, devemos compreender que, quando nos aproximamos
deste tema, há aspectos dele que, por implicação, não
conseguiremos entender.
E então, positivamente, devemos aproximar-nos deste tema
com humildade; devemos aproximar-nos dele com reverência;
devemos aproximar-nos dele pela fé e com uma pronta admissão
de nossas próprias limitações. Devemos aproximar-nos dele com
uma mente aberta, buscando e inquirindo pelo ensino das
Escrituras. Devemos achegar-nos num espírito infantil, prontos
a receber o que nos é revelado, e prontos, devo acrescentar, a
não fazer perguntas que vão além da revelação das Escrituras.
Aliás, estou cada vez mais convencido de que fé éA a
disposição de alguém submeter-se aos limites bíblicos. E a
disposição de não fazer perguntas sobre coisas que não se acham
reveladas nas Escrituras. Fé consiste em dizer: “Muito bem,
levarei em conta tudo quanto é registrado na Bíblia, e não quero
saber de nada mais além disso. Estou satisfeito com a revelação.”
Devemos aproximar-nos desta grande doutrina dessa forma.
Acima de tudo, é preciso que compreendamos que há certas
coisas que, com nossas mentes finitas, não seremos capazes de
conciliar umas com as outras. Ora, estou tentando evitar o uso
de termos técnicos o quanto posso, todavia aqui devo introduzir
a palavra antinomia - não antimônio. O que é uma antinomia? É
aquela posição em que nos são dadas duas verdades, as quais,
por nós mesmos, não podemos conciliar. Há certas antinomias
finais na Bíblia, e, como pessoas de fé, devemos estar dispostos
a aceitar tal fato. Quando alguém diz: “Oh, mas você não pode
conciliar esses dois”, você deve prontamente dizer: “E verdade,
não posso. Não presumo ser capaz de fazê-lo. Eu não sei. Só
creio no que me é dito nas Escrituras.”
Pois bem, aproximamo-nos desta grande doutrina assim: à
luz das coisas que já consideramos sobre o ser, a natureza e o
carárter de Deus, esta doutrina dos decretos eternos deve ser
deduzida como uma necessidade suprema e absoluta. Devido
Deus ser quem é e o que Ele é, Ele tem de operar da maneira
como Ele opera. Como temos visto, todas as doutrinas na Bíblia

128
são consistentes umas com as outras, e quando estamos
considerando alguma doutrina específica, devemos lembrar que
ela deve ser sempre consistente com todas as demais. Portanto,
quando decidimos estudar o que a Bíblia nos afirma sobre o modo
como Deus age, devemos tomar cuidado para não dizermos algo
que contradiga o que já afirmamos sobre Sua onisciência, Sua
onipotência e todas as demais coisas, que juntos temos
concordado estarem nas Escrituras.
Ora, tendo dito tudo isso, permitam-me fazer uma afirmação
positiva da doutrina e, a fim de torná-la clara, pô-la-ei na forma
de uma série de princípios. O primeiro é que, desde a eternidade,
Deus tem tido um plano imutável com referência às Suas criaturas. A
Bíblia está constantemente fazendo uso de uma frase como esta:
“Antes da fundação do mundo” (Vejam Ef. 1:4). Como o apóstolo
Paulo disse sobre o nascimento de nosso Senhor: “Mas, vindo a
plenitude dos tempos...” (Gál. 4:4).
Podemos colocá-lo em termos negativos: Deus jamais faz
algo com indiferença. Nunca há algo incerto em Suas atividades.
Poderia pô-lo ainda noutra forma: Deus jamais tem uma segunda
reflexão. Lembrem-se de que já concordamos que Ele é
onisciente e onipresente, que Ele conhece tudo desde o princípio
até o fim, portanto Ele não pode ter uma segunda reflexão. Nada
é acidental, casual, incerto ou fortuito. Deus tem um plano, um
propósito definido sobre a criação, sobre os homens e as
mulheres, sobre a salvação, sobre a vida neste mundo na sua
totalidade, sobre o fim de tudo, sobre o destino final. Tudo o que
Deus tem feito e causado é segundo o Seu próprio plano eterno,
e esse é fixo, certo, imutável e absoluto. Essa é a primeira
afirmação.
A segunda consiste em que o plano de Deus compreende e
determina todas as coisas e eventos, de toda espécie, que acontecem. Se
vocês crêem que Deus determinou certos fins, então precisam
crer que Ele determina tudo o que conduz a esses fins. Se crêem
que Deus decidiu criar num dado ponto, que Ele decidiu que o
fim do mundo, de acordo com o tempo, deve suceder num dado
ponto, seguramente, se o fim é determinado, tudo o que conduz

129
a esse fim deve ser também determinado; e vocês compreendem
que há também uma espécie de interrelação entre todos os eventos
e coisas que acontecem, e que todos estão se dirigindo para esse
fim. Desse modo, a doutrina dos decretos eternos de Deus declara
que todas as coisas são finalmente determinadas e decretadas
por Ele.
Por conseguinte, se tudo está determinado por Deus, devem-
-se incluir, necessariamente, as ações livres, as ações voluntárias
de agentes livres e voluntários. Ora, essa é uma afirmação
fundamental. Deixem-me fragmentá-la um pouco e apresentar-
-lhes a evidência escriturística. Com respeito ao sistema como
um todo, isso é colocado muito claramente pelo apóstolo Paulo.
Diz ele: “De tornar a congregar em Cristo todas as coisas, na
dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos céus
como as que estão na terra; nele, digo, em quem também fomos
feitos herança, havendo sido predestinados, conforme o propósito
daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua
vontade” (Ef. 1:10,11). Com efeito, isso se aplica a todas as coisas.
Paulo está falando ali do cosmo como um todo sendo unido em
Cristo, e ele diz que Deus irá realizar isso dessa maneira.
Em seguida temos mais evidência escriturística a
demonstrar que Deus, dessa maneira, governa, controla e
determina os eventos que aparentam aos nossos olhos ser
totalmente fortuitos. No livro de Provérbios, lemos: “A sorte se
lança no regaço, mas do Senhor procede toda a sua disposição”
(Prov. 16:33). Chamamos “sorte” uma questão de probabilidade
e casualidade, não é verdade? Vocês “lançam” a sorte. Sim, diz
essa passagem das Escrituras: “mas do Senhor procede toda a
sua disposição”. Também no Novo Testamento lemos que nosso
Senhor diz: “Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? e
nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai” (Mat.
10:29). Um pequeno pardal estatela-se morto e cai por terra.
Acidente, diz você. Casualidade. Absolutamente, não! “Nenhum
deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.” A vida de um
pequeno pardal está nas mãos de Deus. Ele, porém, prossegue:
“E até mesmo os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”

130
(v. 30). Há eventos que parecem ser totalmente acidentais, no
entanto são controlados por Deus.
Em seguida, tomem nossas ações livres. Leiam Provérbios
21:1: “Como ribeiros de águas, assim é o coração do rei na mão
do Senhor; a tudo quanto quer o inclina.” O rei parece estar
livre, porém Deus está controlando-o como controla os próprios
rios. Efésios 2:10 nos declara: “Porque somos feitura sua, criados
em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para
que andássemos nelas.” E Filipenses 2:13 nos diz: “Porque Deus
é o que opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a
sua boa vontade.”
Não obstante, chegamos a algo mais extraordinário e
surpreendente: as Escrituras nos ensinam que até mesmo as
ações pecaminosas estão nas mãos de Deus. Ouçam Pedro pregando
no dia de Pentecoste, em Jerusalém: “A este que vos foi entregue
pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o
vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos” (Atos 2:23).
Em seguida, Pedro o coloca nestes termos: “Porque
verdadeiramente contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste,
se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios
e os povos de Israel” - prestem atenção - “para fazerem tudo o
que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente
determinado que se havia de fazer” (Atos 4:27,28). O terrível
pecado daqueles homens fora determinado de antemão, pelo
conselho de Deus.
Temos também um tremendo exemplo disso no livro de
Gênesis, aquela famosa declaração de José a seus irmãos. José,
rememorando os fatos de sua história, virou para seus irmãos e
disse: “Assim não fostes vós que me enviastes para cá, e sim
Deus...” (Gên. 45:8). Do nosso ponto de vista, foram eles que o
fizeram. Eles haviam agido perversamente, haviam feito algo
muito ímpio, movidos por motivos mercenários e como
resultado de sua própria inveja. “Mas”, disse José, “não fostes
vós que me enviastes para cá, e sim Deus”. Estas ações
pecaminosas emanaram deste grande e eterno decreto de Deus.
Ora, sejamos bem explícitos sobre isto. Em vista do que já

131
concordamos sobre a santidade de Deus, devemos uma vez mais
dizer o seguinte: Deus não causa o mal em nenhum sentido, em
nenhum grau. Deus não aprova o mal. Ele, porém, permite que
os agentes perversos o realizem, e então o administra para Seus
próprios fins sábios e santos.
Ou avaliem-no assim, se o preferirem: o mesmo decreto de
Deus que ordena a lei moral, que proíbe e pune o pecado, também
permite sua ocorrência. Limita-o, porém, e determina o canal
específico ao qual ele será restringido, bem como a finalidade
exata para a qual ele será dirigido, e controla suas conseqüências
para o bem. A Bíblia nos ensina isso claramente. Ouçam
novamente aquele relato sobre José e seus irmãos em Gênesis
50:20. Disse José: “Vós bem intentastes mal contra mim, porém
Deus o tornou em bem, para fazer como se vê neste dia, para
conservar em vida a um povo grande.” E creio que, em muitos
aspectos, o exemplo mais chocante de todos se encontra na
traição de Jesus por Judas: uma ação livre e voluntária, e no
entanto um componente do grande e eterno propósito e plano
de Deus.
Assim sendo, isso me conduz à minha terceira proposição
geral, ou seja: todos os decretos de Deus são incondicionais e soberanos.
Eles não dependem, em nenhum sentido, das ações humanas.
Não são determinados por alguma coisa que a pessoa possa ou
não fazer. Os decretos de Deus não são nem ainda determinados
à luz do que Ele sabe que as pessoas irão fazer. Eles são
absolutamente incondicionais. Não dependem de nada, a não
ser da própria vontade e da própria santidade de Deus.
Entretanto - quero deixar isto bem claro - não significa
que não exista o que se chama causa e efeito na vida. Isso não
significa que não exista o que se chama ações condicionais. Sim,
existe aquilo a que se chama, na natureza e na vida, causa e
efeito. O que a doutrina afirma, porém, é que cada causa e efeito,
bem como as ações espontâneas, são componentes do decreto
do próprio Deus. Ele determinou agir dessa maneira particular.
Deus decretou que o fim que Ele tem em vista será cumprido,
certa e inevitalmente, e que nada poderá impedi-lo nem frustrá-lo.

132
Deixem-me apresentar-lhes agora minha evidência para
tudo isso. Tomem a profecia de Daniel: “E todos os moradores
da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele
opera com o exército do céu e os moradores da terra: não há
quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: que fazes?” (Dan.
4:35). Nada pode impedir a mão de Deus, nem mesmo questioná-
-la. Ou então ouçam a nosso Senhor afirmar este mesmo fato
em Mateus 11:25,26: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da
terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim te aprouve.”
Por que Deus tem escondido estas coisas aos “sábios e
entendidos” e as revelado aos “pequeninos”? Só existe uma
resposta - “porque assim te aprouve”, porque assim pareceu bem
aos Seus olhos.
Paulo também afirma a mesma coisa: “E nos predestinou
para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o
beneplácito de sua vontade” (Ef. 1:5). Recomendo-lhes um
cuidadoso estudo da primeira metade do primeiro capítulo da
Epístola aos Efésios. Atentem bem para tudo o que ela diz, e
saberão que tudo o que Deus tem feito é sempre “segundo o
beneplácito de Sua vontade”. Nada mais, absolutamente. É
inteiramente pela graça.
Mas, naturalmente, vocês encontrarão esta doutrina
afirmada ainda mais claramente naquele grande e poderoso
capítulo nove da Epístola aos Romanos. Desejo, neste momento,
enfatizar especialmente o versículo 11. Vocês descobrirão que
ele é um versículo entre parênteses; porém, que grandioso
versículo! Que declaração! “Porque, não tendo eles ainda nascido,
nem tendo feito bem ou mal (para que o propósito de Deus,
segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas
por aquele que chama).” O argumento de Paulo consiste em que
Deus decretara que o mais velho servisse ao mais jovem, porque,
mesmo antes que houvessem nascido, Ele havia dito: “Amei Jacó,
e aborreci Esaú” (v. 13).
“Por que”, vocês perguntam, “Deus amou Jacó, porém odiou
Esaú? Foi em razão do que eles fizeram?” Não. Antes que

133
nascessem, antes mesmo que fossem concebidos, Deus escolheu
Jacó e não Esaú. Não tinha nada a ver com suas obras, em sentido
algum.
O propósito de Deus é incondicional e absolutamente
soberano. Ouçam a Paulo dizer novamente: “Que diremos, pois?
que há injustiça da parte de Deus? de maneira nenhuma” (Rom.
9:14). Que Deus os livre de chegarem a tal conclusão! E impossível -

“Pois diz a Moisés: compadecer-me-ei de quem me


compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer,
nem do que corre, mas de Deus, que se compadece. Porque
diz a Escritura a Faraó: para isto mesmo te levantei; para
em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja
anunciado em toda a terra. Logo, pois, compadece-se de
quem quer, e endurece a quem quer. ” (Rom. 9:15-18.)

Deixem-me apresentar o quarto princípio, o qual é que: os


decretos de Deus são eficazes. Ora, isso, naturalmente, se deduz
necessariamente. Visto que Deus é um Senhor soberano, em
virtude de Sua onipotência e de Sua grandeza, Seus propósitos
jamais podem fracassar. O que Deus determina e decreta,
infalivelmente deverá ser cumprido. Nada pode impedi-lo. Nada
pode frustrá-lo.
E isso me traz ao quinto princípio: os decretos de Deus são em
todos os aspectos perfeitamente consistentes com Sua própria natureza
muitíssmo sábia, benevolente e santa. Creio que não é necessário
que eu argumente tal fato. Noutras palavras, não existe
contradição em Deus. Nem pode haver. Deus é perfeito, como
temos visto, e Ele é absoluto, e tudo quanto estou expressando
agora se entrosa perfeitamente com tudo quanto já consideramos
antecipadamente. Conforme já os adverti na introdução, vocês
e eu, aqui na terra, com nossas mentes finitas e pecaminosas,
somos confrontados com um problema. Ei-lo: por que Deus
decretou permitir o pecado? E há somente uma resposta a essa
pergunta: simplesmente não sabemos. Sabemos que Ele decretou

134
permitir o pecado, do contrário o pecado jamais teria acontecido.
Por quê, não sabemos. Eis aqui um problema insolúvel. Veremos,
porém, tudo claramente quando estivermos na glória e face a
face com Deus.
De duas coisas podemos estar certos e devemos sempre
asseverar: primeira, Deus jamais é a causa do pecado. Em
Habacuque 1:13, vocês encontrarão expresso: “Tu és tão puro de
olhos, que não podes ver o mal.” Tiago diz: “... Deus não pode
ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta” (Tiago 1:13). Segunda,
o propósito de Deus é, em todas as coisas, perfeitamente
consistente com a natureza e o modo de agir de Suas criaturas.
Noutras palavras, ainda que não possamos conciliá-lo, há uma
conciliação final. Os decretos de Deus não negam a existência
de agentes livres e ações livres. Tudo o que sabemos é isto: ainda
que Deus concedeu esta liberdade, Ele, não obstante, a tudo
governa a fim de que Seus fins determinados possam ser
concretizados.
Como pode Deus decretar tudo e ainda manter-nos
responsáveis pelo que fazemos? Eis a resposta:

“Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas?


Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: por que
me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro,
para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro
para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a
sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita
paciência os vasos da ira, preparados para perdição; para
que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos
vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou”
(Rom. 9:20-23).
“Mas”, talvez vocês perguntem, “como você concilia estas
duas coisas?”
Respondo: não posso. Sei que a Bíblia me afirma as duas
coisas: que o homem, em certo sentido, é um agente livre, e, em
contrapartida, que os decretos eternos de Deus governam todas
as coisas.

135
Em seguida, devo apresentar minha última proposição, ou
seja, a salvação dos homens e das mulheres e dos anjos, e alguns deles
em particular, foi determinada por Deus antes da fundação do mundo.
Isso Ele faz inteiramente de acordo com o Seu beneplácito e de
Sua graça. Devo remetê-los novamente a Mateus 11:25,26. E em
João 6:37, lemos: “Todo aquele que o Pai me dá virá a mim; e o
que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora.” E no
versículo 44 nosso Senhor diz: “Ninguém pode vir a mim, se o
Pai que me enviou o não trouxer.” Em Atos 13:48, leio o seguinte:
“e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna.”
Em 2 Tessalonicenses 2:13, vocês encontram: “Mas devemos
sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor,
por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em
santificação do Espírito, e fé da verdade.” Em seguida, em sua
carta a Timóteo, Paulo diz: “Que nos salvou, e chamou com
uma santa vocação; não segundo as nossas obras, mas segundo o
seu próprio propósito e graça que nos foi dada em Cristo Jesus
antes dos tempos dos séculos” (2 Tim. 1:9).
Especialmente, porém, gostaria de enfatizar novamente
aquela grande afirmação, a qual já citei, de Romanos 9:20-23. O
apóstolo Paulo, pregando esta grande doutrina dos decretos
eternos de Deus, imagina alguém em Roma dirigindo-lhe uma
pergunta e dizendo: eu não entendo isso. A mim soa
contraditório, injusto. Se o que você me diz sobre estes decretos
é verdadeiro, então a impressão que fica é que Deus é injusto. O
questionador diz a Paulo: “Por que se queixa ele ainda?
Porquanto, quem resiste à sua vontade?” (Rom. 9:19).
E a réplica de Paulo é: “Mas, ó homem, quem és tu, que a
Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou:
por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o
barro, para da mesma massa fazer um vaso para honra e outro
para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira,
e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os
vasos da ira, preparados para perdição; para que também desse a
conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia,
que para glória já dantes preparou?”

136
Eis aí a resposta do apóstolo. Eis aí a resposta das Escrituras.
Eis aí, portanto, a resposta de Deus, a nós e por nós, enquanto
estamos neste mundo passageiro. Ela se acha além de nós. Não
podemos apreender o supremo funcionamento da mente de
Deus. Não adianta perguntar: por que isso? e, por que aquilo?
Por que Deus levantou Faraó? Por que Ele escolheu Jacó e não
Esaú? Por que Ele nos castiga, se todas as coisas estão
determinadas e decretadas? A resposta é: “Mas, ó homem, quem
és tu?” Vocês estão opondo sua própria mente contra a de Deus.
Estão ignorando quão ínfimos vocês são, quão finitos vocês são,
quão pecaminosos em resultado da Queda. Vocês têm que abrir
mão do entendimento até chegarem à glória. Tudo o que vocês
têm a fazer aqui, no momento, é crer que Deus é sempre
consistente conSigo mesmo, e aceitar o que Ele explícita e
abertamente nos revelou sobre Seus decretos eternos, sobre o
que Ele determinou e decidiu antes mesmo que criasse o mundo.
E, acima de tudo, compreendam que, se vocês são filhos de
Deus, é em razão de Deus o ter determinado, e o que Ele
determinou a seu respeito é indiscutível, seguro e certo. Nada e
ninguém pode jamais tirá-los de Suas mãos, nem tampouco levá-
-10 a renunciar Seu propósito com relação a vocês. A doutrina
dos decretos eternos de Deus existiu antes da fundação do mundo!
Ele me conheceu. Conheceu a vocês. E os nossos nomes foram
escritos no “livro da vida do Cordeiro”, antes mesmo que o
mundo fosse criado, antes mesmo que vocês e eu, ou algum outro,
entrássemos nele.
Curvemo-nos diante de Sua Majestade. Humilhemo-nos em
Sua augusta presença. Submetamo-nos à revelação que Ele tão
graciosamente Se agradou em nos comunicar.

137
10
OS ANJOS BONS
Antes de chegarmos a tratar da doutrina da Criação, há ainda
outra doutrina que temos de considerar. Estamos aproximando
a estas grandes doutrinas bíblicas numa ordem que me parece
ser bastante inevitável. Estamos interessados em Deus - não no
homem, como é a tendência moderna. Estamos interessados na
revelação do próprio Deus. Temos considerado Seu Ser, Sua
Pessoa e Seu Caráter. Já abordamos a grande doutrina da
santíssima Trindade, e então, naturalmente, formulamos a
pergunta: o que Deus tem feito? E vimos que antes de Deus
realmente fazer qualquer coisa, Ele determinou uma série de
coisas e planejou o que iria fazer. As ações de Deus não são casuais
nem fortuitas; não há nada contingente sobre elas. Deus, sendo
Deus, por Sua própria natureza (se é possível expressar-se com
reverência) deve agir de uma só maneira, e a Bíblia nos diz que
Ele assim o fez.
Assim, pois, creio que o próximo passo, muito logicamente,
é este: qual foi a primeira ação de Deus? Usamos o termo
“primeira” porque obviamente falamos partindo do ângulo do
tempo. É plenamente evidente na Bíblia que antes que Deus
fizesse o mundo, ou antes que Ele fizesse qualquer coisa em
relação a homens e mulheres, Ele, antes de tudo, trouxe à
existência aquelas inteligências celestiais que chamamos anjos.
Sei que algumas autoridades focalizam a doutrina da
providência antes da doutrina dos anjos. Entendo, porém, que
tal ordem é errônea, uma vez que vemos muito claramente na
Bíblia que os anjos estavam em existência mesmo antes da
criação do mundo. Portanto, eu argumentaria que a doutrina da
providência deve vir depois, visto que ela tem a ver com este
mundo, como também com os homens e as mulheres no mundo.
Permitam-me formular uma pergunta neste ponto: quantas
vezes vocês têm ouvido uma exposição, seja sermão, seja palestra,

138
sobre a doutrina bíblica dos anjos? Com que freqüência vocês
têm considerado esta doutrina ou meditado sobre ela? Formulo
essas perguntas com o fím de formular outra: por que nos
inclinamos a negligenciar certas partes da revelação bíblica? Por
que, mesmo como pessoas evangélicas, aparentamos viver
contentes com um mínimo de doutrina? Por que nos interessamos
somente na doutrina da salvação? Mais e mais sou convencido
de que nos defraudamos de uma riqueza de verdades em razão
de não separarmos essas doutrinas e não as examinarmos para o
nosso estudo e contemplação. Como sugeri desde o início,
qualquer tipo de estudo da Bíblia que não atinge a doutrina,
provavelmente nos será inútil no fim; e creio que o resultado
frequentemente é que nunca chegamos a considerar o que a Bíblia
tem a informar-nos acerca dos anjos.
O termo “anjo” significa “mensageiro”. É uma palavra usada
não só em referência aos anjos, e seu uso para descrever os anjos
indica que eles são enviados como mensageiros. Ela foi usada
pelo próprio Filho de Deus. Ele, como já dissemos, era
indubitavelmente o Anjo do Concerto, a quem várias referências
são feitas na literatura do Velho Testamento. Mas agora estamos
interessados no que o termo “anjos” significa, essas brilhantes
inteligências, esses seres de quem lemos nas Escrituras. Portanto,
antes de tudo, consideremos alguns pontos gerais sobre eles.
A primeira coisa que lemos sobre os anjos é que eles são
seres criados, e essa é a razão por que os colocamos neste lugar
específico na ordem das doutrinas. O primeiro capítulo da
Epístola aos Hebreus traça uma distinção entre o Filho de Deus
e os anjos. Os anjos, conquanto sejam seres espirituais, não
obstante, são seres criados. Não existiram desde a eternidade,
como Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo existiram.
Aliás, Paulo, em Colossenses 1:16, bem definidamente ensina
que eles foram criados pelo Filho. Diz ele: “Porque nele foram
criadas todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e
invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados,
sejam potestades” - e esses, como já vimos, são termos descritivos
de anjos - “tudo foi criado por ele e para ele.” Dessa forma

139
começamos compreendendo que os anjos são seres que foram
criados por Deus antes que Ele criasse o mundo.
Outro ponto que também tem sido amiúde discutido ao longo
da história da Igreja consiste na questão se os anjos possuem ou
não corpos. A questão surge em virtude de serem eles referidos
como espíritos, à semelhança das pessoas que, após a morte, são
descritas como sendo espíritos. Por exemplo, em 1 Pedro 3:19 há
uma referência a “os espíritos em prisão”. Estes eram pessoas,
não no corpo, e isso tem às vezes levado alguns a pensarem que
os anjos não possuem corpos. E, no entanto, de um modo geral
estou de acordo com aqueles que afirmam ser esse provavelmente
um falso ensino, e que os anjos possuem corpos. Possuem corpos
espirituais, como eventualmente nós teremos corpos espirituais,
e como o corpo humano de nosso Senhor se transformou em
corpo espiritual, um corpo glorificado, após Sua ressurreição.
Os anjos possuem um corpo que é apropriado à sua condição
espiritual, e assim vocês podem dar razão ao que se chama
“aparições” ou “aparecimentos” de anjos a diferentes pessoas.
Ao mesmo tempo, porém, devemos lembrar-nos que os anjos
podem aparecer na forma de seres humanos. Em Gênesis,
capítulo 18, por exemplo, somos informados sobre os três homens
que apareceram diante de Abraão, e há outros exemplos
semelhantes. E, todavia, na história do pai e mãe de Sansão, e o
anjo, houve obviamente algo estranho em sua aparição,
porquanto o anjo foi capaz de mover-se de uma forma em que
um corpo comum, físico, terreno não pode mover-se (Juízes,
capítulo 13).
Ainda outra questão que somos compelidos a encarar, é esta:
são os anjos assexuais? São eles distinguidos em macho e fêmea?
Eis uma questão que deve interessar a nós, filhos dos homens.
Não podemos falar em termos dogmáticos, mas em Mateus
22:29,30 nos é apresentada evidência a esse respeito. Vocês se
lembram da resposta de nosso Senhor aos saduceus quando
tentaram apanhá-10 numa armadilha no caso da mulher que
casou-se com sete irmãos. Nosso Senhor disse-lhes que eram
ignorantes no tocante às Escrituras, e que não tinham discerni­

140
mento, “Porque”, disse Ele, “na ressurreição dos mortos nem
casam nem são dados em casamento; mas serão como os anjos
de Deus no céu.” Além disso, entretanto, devemos notar que os
anjos são sempre referidos pelo pronome “ele”, como se fossem
do sexo masculino.
Outra coisa sabemos com certeza sobre os anjos, ou seja,
eles jamais morrem, e minha evidência para isso se encontra
em Lucas 20:36, onde são mencionados novamente os que já
passaram pela experiência de ressurreição: “Porque já não podem
mais morrer; pois são iguais aos anjos...” E em seguida somos
informados em Hebreus 2:9 que nosso Senhor “foi feito menor
do que os anjos, por causa da paixão da morte”. Se Ele não fora
feito menor do que os anjos, então não poderia ter sofrido a
morte. Disso deduzimos também que os anjos não morrem e
nem podem morrer; são imortais.
O último ponto geral, acerca dos anjos, é o seu status. Já
notamos que eles são inferiores ao Filho, o Senhor Jesus Cristo.
É igualmente claro, porém, que eles, em contrapartida, são
superiores ao homem. Já vimos que nosso Senhor foi feito um
“pouco menor do que os anjos”, e as mesmas palavras são usadas
no Salmo 8, em referência ao homem: “Que é o homem mortal
para que te lembres dele? e o filho do homem, para que o visites?
Contudo, pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de
honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as
obras das tuas mãos...” (vv. 4-6). Daí, pensando nos anjos,
compreendemos que são inferiores à Deidade, inferiores ao
Filho, em particular, porém, numa esfera acima do homem, são
superiores ao ser humano em muitos aspectos.
Em seguida devemos considerar alguns nomes que se acham
relacionados aos anjos, certas designações que lhes são atribuídas
nas Escrituras. A eles se faz referência, como já os lembrei, como
sendo “espíritos”, mas também os achamos descritos nesses
termos em Efésios 1:21: “Acima de todo principado, e poder, e
potestade e domínio...” Ora, quando esses termos são usados,
são sempre usados para designar seres angelicais, tanto bons
quanto maus. Quando Paulo, em Efésios 6:12, fala que a nossa

141
luta não é “contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os
principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas
deste século”, ele está fazendo referência a seres angelicais, a
anjos maus.
Outro termo que é usado para os anjos é “santos” anjos (Luc.
9:26). Temos também uma descrição deles em 1 Timóteo 5:21,
como os anjos “eleitos” - voltaremos a esse termo “eleito” mais
adiante. Alguns anjos, porém, são descritos dessa forma, enquanto
que outros não o são. Em seguida, eles são muitas vezes descritos
como “anjos ministradores”, e temos aquela importantíssima
afirmação no último versículo de Hebreus, capítulo 1, onde são
descritos como “espíritos ministradores” - “Não são porventura
todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor
daqueles que hão de herdar a salvação?”
Ora, enquanto estamos tratando desta questão de nomes e
designações, devemos, naturalmente, referir-nos àqueles seres
que são descritos como “querubim” (por exemplo, Sal. 99:1; Ez.
10:1-22), ou “serafim” (Is. 6:2), bem como devemos, também,
considerar os que são descritos no Apocalipse, capítulo 4, como
as “criaturas viventes” ou “animais”. Não podemos agora
examinar todas as evidências, mas cremos que podemos
considerar que esses termos são sinônimos, e todos esses nomes
provavelmente se refiram aos mesmos seres. Falamos com
comparativa ignorância; recebemos pouquíssima informação
sobre eles. Somos informados, porém, que têm a aparência de
diferentes animais, ainda que geralmente com rosto de homem.
De qualquer maneira, aparentam ser seres compostos, em sua
representação.
Então, o que são eles? Bem, não há dúvida de que pertencem
a esta categoria genérica de anjos, porém são seres muito
especiais. Parecem representar e tipificar os redimidos e a
humanidade glorificada. Aparentam ser símbolos das
propriedades mais sublimes da vida criada, e pouca dúvida pode
haver se sua principal função é a de serem ministros em nosso
favor. E é um conceito muito glorioso de que a natureza humana,
eventualmente, quando a salvação se completar, será tão exaltada

142
que habitará na presença da própria Deidade! Se vocês manterem
seus olhos em todas as referências aos querubins e aos serafins,
bem como àqueles animais ou criaturas viventes, então
descobrirão que eles sempre habitam diretamente na presença
da Deidade; e o ensino bíblico consiste em que esse é o futuro a
que vocês e eu estamos destinados. São simbólicos de nossa
salvação e glorificação finais, bem como de nossa existência
eterna na presença imediata do Deus glorioso.
Pois bem, eu creio, portanto, que há uma significância muito
real na afirmação que nos é dada no terceiro capítulo de Gênesis.
Somos informados que quando o homem e sua esposa foram
expulsos do Jardim, querubins foram postos lá no extremo oriente
do Jardim do Éden - querubins e uma espada flamejante. Creio
que há uma profunda significação nisso. A espada flamejante
tinha por função impedir que o homem entrasse novamente no
Paraíso. Ele jamais poderá voltar por conta própria. Existe um
único modo de voltar, e é pelo caminho que foi aberto pelo Senhor
Jesus Cristo. Sim, mas devemos agradecer a Deus porque, além
da espada flamejante, havia os querubins, como se dissesse a um
e ao mesmo tempo: “Vocês não poderão voltar; vocês poderão
voltar. Vocês não voltarão por si próprios, mas voltarão - voltarão
por outro caminho, mas voltarão.” A presença dos querubins
indica, ao meu ver, que aqueles que foram expulsos (Adão, Eva e
com eles os eleitos) também regressarão novamente. Fiquemos
nisso. Eis um grande e obscuro assunto, do qual somos muito
pouco informados. Somos, porém, informados o suficiente, e é
nosso dever apegar-nos a isso, regozijar-nos nisso e louvar a Deus
por isso.
A próxima pergunta que devemos formular sobre os anjos é
sobre o número deles. Quantos anjos existem? A resposta que
temos nas Escrituras é que são muitos, e que seu número é
incontável. Quando Seus discípulos quiseram defendê-lO, nosso
Senhor disse que, caso quisesse, poderia ordenar a doze legiões
de anjos para defendê-10 (Mat. 26:53). Lembro-lhes, também,
de que somos informados que os pastores, no nascimento de
Jesus, ouviram “uma multidão dos exércitos celestiais”,

143
pressupondo uma companhia inumerável (Luc. 2:13); e, de fato,
no quinto capítulo do livro do Apocalipse somos informados
que esse é o caso, que há milhares de milhares, uma hoste grande
e poderosa, uma miríade desses seres angelicais. (Apoc. 5:11).
E isso, naturalmente, nos leva por sua vez à próxima questão,
ou seja, há hierarquias entre os anjos? São eles todos idênticos?
São eles iguais em poder e em autoridade, ou possuem eles
hierarquias e distinções? Parece-me muito evidente que existe
uma divisão tanto em status quanto em atividade. Por exemplo,
lemos nas Escrituras de um que é descrito como o “arcanjo”, o
mais proeminente de todos, o supremo. A palavra “arcanjo” só
aparece duas vezes, mas é importante considerá-la. Em 1
Tessalonicenses 4:16, lemos: “Porque o mesmo Senhor descerá
do céu com alarido e com voz de arcanjo, e com a trombeta de
Deus.” E a outra referência se acha na Epístola de Judas, o nono
versículo: “Mas o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo,
e disputava a respeito do corpo de Moisés, não ousou pronunciar
juízo de maldição contra ele; mas disse: o Senhor te repreenda.”
Creio, tomando esses versículos em conjunto, que devemos
chegar à conclusão de que o arcanjo, portanto, é o mesmo que
também é referido como “Miguel”.
A dois anjos se atribuem nomes específicos: o primeiro,
como acabamos de ver, é Miguel, o arcanjo, que é também referido
em Daniel, capítulo 10. Tudo indica que Miguel teve um
relacionamento especial com os filhos de Israel. Ele foi o mesmo
que lutou por eles contra o Príncipe da Pérsia (Dan. 10:13). Tudo
indica quezlhes fora destinado para que cuidasse deles de maneira
especial. Ele é seu protetor, e sua principal função consiste em
guardá-los. Em seguida, o outro anjo mencionado pelo nome é
Gabriel, e somos informados de que ele permanece na presença
de Deus, esperando, por assim dizer, receber a incumbência de
uma mensagem. E ele recebeu a incumbência de mensagens.
Foi ele, vocês devem lembrar-se, que foi enviado com o fim de
dizer a Maria tudo o que lhe aconteceria, e como ela se tornaria
a mãe do Filho de Deus (Luc. 1:26). E somos informados que
foi ele também que transmitiu a mensagem a Zacarias (Luc. 1:19).

144
Assim, vemos que ele tinha uma função especial em relação à
vinda de nosso Senhor a este mundo.
Obviamente existe, portanto, alguma espécie de ordem,
alguma espécie de divisões entre os anjos. Aliás, notamos que
em todas as obras de Deus esse aspecto é uma característica, e
existe também entre os anjos maus, “principados... potestades...
príncipes das trevas deste século... hostes espirituais da maldade,
nos lugares celetiais” (Ef. 6:12). Há uma espécie de gradação, e
indubitavelmente há a mesma gradação entre os demais anjos.
E isso nos leva à questão toda de seu poder. A Bíblia é explícita
sobre isso - são muito grandes em poder. Somos informados
sobre os anjos poderosos, que são “magníficos em poder” (Sal.
103:20). Seu poder é indubitavelmente maior do que o poder
humano; não somente são superiores em dignidade e em status,
mas também são indubitavelmente superiores em poder.
De nosso ponto de vista, porém, talvez o ponto mais
importante de todos seja o fato de que os anjos são claramente
divididos em dois grupos. O próprio termo anjos “eleitos”, o
qual tenho citado da Epístola a Timóteo, pressupõe que há anjos
que não são eleitos, que são perdidos. Noutras palavras, somos
lembrados de que há anjos bons e anjos maus. Lemos em Mateus
25:41 sobre “o diabo e seus anjos”; eles são anjos maus, os mesmos
que, como já vimos, são referidos como “espíritos maus”, e já
vimos a designação a eles aplicada em Efésios, capítulo 6.
Em primeiro lugar, contudo, devemos tratar dos anjos bons,
e a informação que recebemos a respeito deles é que habitam o
céu. Seremos semelhantes “aos anjos de Deus no céu”, diz nosso
Senhor (Mat. 22:30), e nos reportaremos muitas vezes à
afirmação de Mateus 18:10, isto é: “... seus anjos nos céus sempre
vêem a face de meu Pai que está nos céus.” E evidente, pois, que
o lugar de habitação, o lugar da existência desses anjos bons, é
no céu, ao redor do trono de Deus. E assim, a grande questão é:
qual é a ocupação ou o propósito desses anjos bons? O que eles
fazem? E é muito interessante e muitíssimo iluminador e
encorajador considerar esta maravilhosa doutrina.
Deixem-me lembrá-los de algumas coisas gerais que nos são

145
comunicadas sobre sua ocupação. Somos informados,
primeiramente, que ocupam seu tempo em adorar a Deus e ao
Cordeiro. Leiam também o quinto capítulo do livro do
Apocalipse, e descobrirão que eles estão cantando o Seu louvor,
servindo-0 e adorando-O. Isso é o que vem em primeiro lugar;
é nisso que se deleitam; é para isso, por assim dizer, que eles
vivem. E lembremo-nos novamente do versículo 10 de Mateus,
capítulo 18, de que no céu eles “sempre vêem a face” do Pai.
Ora, não há dúvida de que o significado do termo “vêem a face”
é que vivem em vigilância, por assim dizer, em busca de alguma
indicação de Sua vontade e de Seu deleite. São servos, e vivem
servindo. Estão olhando para Ele; não são indolentes; não
necessitam de ser despertados. Estão sempre a espera da mais
leve indicação da vontade de Deus. “Sempre vêem a face de meu
Pai.” Devemos começar com isso. Começando a considerar o
que eles fazem, lembremo-nos de que anelam realizar essa grande
obra, como cães atrelados, por assim dizer, esperando que sejam
libertados para entrarem em ação.
Em seguida, há algo mais sobre o qual os anjos se acham
muito ocupados. Nunca leio este próximo ponto sem ter uma
percepção ainda mais gloriosa de minha salvação. Somos
informados que empregam uma boa parte de seu tempo
inspecionando a questão da nossa salvação. Deixem-me
apresentar-lhes minha fonte autoritativa. Pedro, ao falar sobre
nossa salvação, diz: “para as quais coisas os anjos desejam bem
atentar” (1 Ped. 1:12). E algo tão maravilhoso e tão extraordinário,
que esses espíritos angélicos criados, que sempre passaram sua
eternidade na presença de Deus, estejam, por assim dizer,
assistindo aquilo que para eles é o de mais excepcional que existe,
aquilo que excede a tudo mais.
Juntem a isso aquela afirmação de Efésios 3:10, onde Paulo
realmente nos informa que é através da Igreja que Deus irá
mostrar aos seres angelicais, esses principados e potestades, os
prodígios do Seu Cristo. Tenho dito que os anjos são superiores
ao homem. Sim, porém vocês sabiam que se não fosse por vocês
e por mim, por aqueles que são redimidos, eles jamais

146
conheceriam coisa alguma acerca da graça de Deus? É somente
onde a graça de Deus se faz presente, que os anjos fazem acurada
pesquisa. Eles se abismam nela. “O que é isso?! - perguntam
eles. “Esta é a coisa mais estupenda de tudo quanto existe!”
Empregam seu tempo perscrutando, ponderando e inquirindo
sobre esta grandiosa salvação.
Então, a próxima coisa de que somos informados é a seguinte
- tenhamo-la sempre em mente: eles não só contemplam a face
de Deus, não só perscrutam a salvação, mas também estão nos
observando. Em 1 Coríntios 11:10, Paulo usa estas palavras:
“Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio,
por causa dos anjos.” Vocês estão lembrados de que Paulo está
considerando a questão da mulher orar sem que sua cabeça esteja
coberta. E evidente que algumas das mulheres na igreja de
Corinto estavam tomando parte na oração com suas cabeças
descobertas, e o apóstolo lhes afirma que tal coisa é
completamente errônea. A mulher deve manter sua cabeça
coberta para mostrar que ela está sob a autoridade do homem; e,
além disso, Paulo diz que ela deve cobrir-se por causa da presença
dos anjos. Noutras palavras, as Escrituras ensinam que quando
os cristãos se encontram, e quando se reunem em oração, então
os anjos de Deus se fazem presentes, e as mulheres devem cobrir-
-se quando tomam parte na oração pública, e isso por causa da
presença dos anjos. Isso é algo tremendo e notável. Tenhamo-lo
sempre em nossa mente.
Finalmente, e este é o ponto que mais desejo enfatizar, a
Bíblia nos ensina que Deus usa os anjos como os instrumentos de
Sua vontade. Deixem-me apresentar-lhes algumas das formas
pelas quais Ele fez isso, e ainda o faz. Antes de tudo, somos
informados de que a lei foi dada aos filhos de Israel mediante os
anjos. Lemos em Hebreus 2:2,3: “Porque, se a palavra falada pelos
anjos permaneceu firme, e toda transgressão e desobediência
recebeu a justa retribuição, como escaparemos...?” Essa era uma
referência à entrega da lei, e temos ainda versículos similares
em Gálatas 3:19 e Atos 7:53.
Ainda outra função dos anjos consiste em revelar os

147
propósitos de Deus. Foi através de anjos que Deus revelou a Abraão
Seu propósito em relação a Sodoma e Gomorra (Gênesis, capítulo
18), e Ele revelou Sua vontade a Jacó mais de uma vez da mesma
forma. Gideão também foi informado do propósito de Deus para
com ele por meio de um anjo, e no Novo Testamento Zacarias
foi informado sobre o nascimento de seu filho, que se tornou
conhecido como João Batista, mediante um anjo que lhe apareceu
quando ministrava no templo. Já consideramos a função do anjo
Gabriel e a de Miguel; e deixem-me lembrá-los também de que
foi um anjo que comunicou a José que ele não precisava
preocupar-se com a condição de sua comprometida esposa Maria.
Foi também um anjo que lhe disse que fugisse para o Egito, bem
como foi um anjo que lhe disse para sair do Egito.
Outra vez diria, porém, que o mais consolador, e o mais
maravilhoso aspecto deste ensino é a informação que recebemos
das Escrituras sobre a maneira como Deus usa os anjos para
abençoar e cuidar do Seu próprio povo: “Não são porventura
todos eles espíritos ministradores, enviados (chamados) para
servirem a favor daqueles que hão de herdar a salvação?” (Heb.
1:14). O que, afinal, é a maior função dos anjos? E para
ministrarem a vocês e a mim - para ministrarem em favor dos
herdeiros da salvação.
Então, o que eles fazem? Ao meu ver, pelo prisma do ensino
bíblico, sinto-me autorizado a dizer que os anjos são usados por
Deus em relação a nós e à nossa salvação. Eles ajudam a preparar-
-nos do princípio ao fim. Por exemplo, no relato da conversão
de Cornélio, em Atos, capítulo 10, somos informados que
Cornélio, certo dia, estava orando quando um anjo subita­
mente lhe apareceu e começou a fazer-lhe uma “prévia”, por
assim dizer, de sua própria salvação, e disse-lhe o que deveria
fazer a fim de que sua salvação pudesse ser efetuada. Creio que
estamos em condição de deduzir desse fato, que os anjos
executam uma parte muito maior em preparar-nos para nossa
salvação do que já temos compreendido. Vocês conhecem aquelas
coisas ocasionais que ocorrem - casualmente encontraram
alguém; vocês não pretendiam ir ao lugar de culto, mas aconteceu

148
que encontraram alguém... e assim por diante.
Mas isso não é tudo. Descobrimos que os anjos nosprotegem.
Salmo 91:10,11 afirma: “Nenhum mal te sucederá, nem praga
alguma chegará à tua tenda. Porque aos seus anjos dará ordem a
teu respeito, para te guardarem em todos os teus caminhos.”
Vocês se lembram de como Daniel foi lançado na cova dos
leões, todavia saiu completamente incólume? Eis sua explicação:
não fique surpreso, disse ele ao rei, “O meu Deus enviou o seu
anjo, e fechou a boca dos leões, para que não me fizessem dano”
(Dan. 6:22).
Os anjos, porém, não só nos protegem, eles também nos
orientam. Em Atos 8:26, somos informados que o anjo do
Senhor disse a Filipe: “Levanta-te, e vai para a banda do sul...”
E essas diretrizes, dadas pelo anjo, levaram à conversão do
eunuco etíope.
E deduzo, pois, de Atos 27:23,24, que os anjos são às vezes
usados por Deus para animar-nos e a transmitir-nos conforto e
consolação. O apóstolo Paulo disse a seus companheiros daquele
navio, os quais já se achavam numa condição de naufrágio:
“Porque esta mesma noite” - notem bem - “o anjo de Deus, de
quem eu sou, e a quem sirvo, esteve comigo” (Atos 27:23). O
anjo tinha uma mensagem para Paulo. Fora enviado por Deus
para animar o apóstolo. E realmente não há dúvida de que
também foram os anjos que capacitaram àquele pobre e
amedrontado servo de Eliseu a compreender que, embora o
inimigo estivesse chegando com grande poder para atacá-los,
também se achavam cercados por um exército invisível que
destruiria o inimigo. Leiam a história para si mesmos, em 2
Reis, capítulo 6.
Mas os anjos são também usados por Deus para trazer-nos
livramento. Em Atos, capítulo 12, lemos de Pedro sendo preso e
lançado na prisão; porém, o que lhe aconteceu? “E eis que
sobreveio o anjo do Senhor, e resplandeceu uma luz na prisão; e,
tocando a Pedro na ilharga, o despertou, dizendo: levanta-te
depressa. E caíram-lhe das mãos as cadeias. E disse-lhe o anjo:
cinge-te, e ata as tuas alparcas” (vv. 7,8). E então o anjo foi e

149
abriu portas e portões, e Pedro simplemente o seguiu. Ele foi
libertado da prisão por um anjo. Tudo isso é grandioso e
maravilhoso, não é verdade? Isso é o que os anjos fazem por nós
enquanto permanecemos nesta vida.
Há, porém, algo mais que, espero, comunicará grande
conforto e consolação a muitas pessoas que podem estar pensando
com preocupação e medo sobre o fim de sua vida neste mundo -
receio do aspecto físico da morte. No entanto, não é necessário
que tenhamos medo, pois lemos em Lucas 16:22,23: “E aconteceu
que o mendigo morreu, e foi levado pelos anjos para o seio de
Abraão; e morreu também o rico, e foi sepultado. E no Hades,
ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu ao longe Abraão, e
Lázaro no seu seio.” Os anjos nos preparam no início, nos vigiam,
nos protegem, nos guardam e nos livram - sim, eles fazem todas
essas coisas. E quando a morte chega, eles haverão de receber
nosso espírito e de levar-nos para o Paraíso. Eis o ensino do
próprio Senhor Jesus Cristo. Jamais, ó cristãos, imaginem que
quando enfrentarem a morte irão sentir alguma espécie de terrível
solidão como um espírito desencorporado, indo para um mundo
desconhecido. De maneira alguma.1 Os anjos de Deus estarão lá
para recebê-los, para conduzi-los e para levá-los a estarem com o
Senhor no Paraíso. Que coisa maravilhosa!
Que a vergonha nos sobrevenha por negligenciarmos a
doutrina dos anjos, por não lermos nossas Bíblias meticulosa e
completamente. Não nos é dito que os anjos cuidam dos
incrédulos quando morrem, pois lemos que o rico “morreu e foi
sepultado”. Não somos informados que alguns anjos vieram a
recebê-lo. Demais disso, devo salientar aqui que não me parece
que a Bíblia nos ensina a doutrina que às vezes se denomina
“anjo da guarda”, destinado a cada um de nós. Creio que tal não
constitui uma dedução verídica. Tudo o que sabemos é que os
anjos estão cuidando de nós dessa maneira conforme Deus quer;
não há, porém, ensino específico de que para cada pessoa há um
anjo da guarda específico. Isso é totalmente sem importância. O
que é importante é que os anjos fazem por todos nós as coisas
que abordamos até aqui.

150
Os anjos bons têm ainda duas outras funções.
Primeiramente, somos informados que eles executam os juízos
divinos sobre os inimigos de Deus. Que grande capítulo é Atos,
capítulo 12! Foi um anjo que libertou a Pedro, como já vimos.
No versículo 23, porém, desse mesmo capítulo, lemos: “E no
mesmo instante feriu-o o anjo do Senhor, porque não deu glória
a Deus” - essa é uma referência ao rei Herodes que, vestido em
trajes reais, apresentara ao povo um grande discurso. E eles o
louvaram e disseram: “Voz de Deus, e não de homem” (v. 22). E
ele consentiu com o povo, “E no mesmo instante feriu-o o anjo
do Senhor... e, comido de bichos, expirou.”
E assim somos conduzidos à obra final dos anjos, a saber:
somos informados que os anjos bons estarão em ação no juízo
final. Vocês se lembram da explicação que nosso Senhor fez da
parábola do joio? “Assim como o joio é colhido e queimado no
fogo, assim será na consumação deste mundo. Mandará o Filho
do homem os seus anjos, e eles colherão do seu reino tudo o que
causa escândalo, e os que cometem iniqüidade, e lançá-los-ão na
fornalha de fogo; ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mat.
13:40-42). Essa tarefa é destinada aos anjos. Leiam também o
versículo 49: “Assim será na consumação dos séculos: virão os
anjos, e separarão os maus dentre os justos.” Em seguida, leiam
também Mateus 24:30,31: “Então aparecerá no céu o sinal do
Filho do homem; e todas as tribos da terra se lamentarão, e verão
o Filho do homem, vindo sobre as nuvens do céu, com poder e
grande glória. E ele enviará os seus anjos com rijo clamor de
trombeta, os quais ajuntarão os seus escolhidos desde os quatro
ventos, de uma à outra extremidade dos céus.” Ajuntarão os
eleitos simultaneamente, para encontrá-10 e para iniciar sua
glória com Ele.
Paulo diz algo semelhante em 2 Tessalonicenses 1:6-8: “Se
de fato é justo diante de Deus que dê em paga tribulação aos que
vos atribulam, e a vós, que sois atribulados, descanso conosco,
quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos
do seu poder; como labareda de fogo, tomando vingança dos que
não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de

151
nosso Senhor Jesus Cristo.” E esse é o fim de tudo. Eles existiam
antes da criação do mundo e do homem, e sua será aquela última
ação, por assim dizer, de separar o mal do bem, destruindo o
mal, reunindo num só lugar os eleitos e trazendo-os Àquele que
morreu por eles e os comprou, a Quem pertencem e a Quem eles
servem.
Creio que vocês concordarão comigo no fato de que
negligenciamos o ensino bíblico sobre os anjos, para nosso
próprio prejuízo. Vocês já haviam compreendido que tudo isso é
verídico? Verídico para vocês e verídico para mim! Não tentem
perscrutar algo que é um mistério, creiam, porém, no ensino
bíblico. Essa é a Palavra de Deus, e isso é o que ela ensina sobre
os anjos e sobre o seu relacionamento conosco. Eles são espíritos
ministradores de Deus, designados e enviados para ministrar a
nós, os herdeiros do céu. Quer vocês e eu compreendamos, quer
não, os anjos estão fazendo isso em nosso favor. E bem provável
que prossigamos pela vida a fora sem de forma alguma ver algum
anjo, porém, quer os vejamos quer não, podemos estar
absolutamente certos de que essa é a obra que estão realizando
em nosso favor. Estão cuidando de nós; estão nos vigiando; estão
nos protegendo; estão nos servindo de abrigo. Vezes sem conta
eles nos livram, e são dessa forma usados por Deus para socorrer-
-nos.
Apossemo-nos do ensino bíblico. Não nos furtemos dele
como temos feito. Perscrutemos esta grande Palavra, e recebamo-
-la tal como ela é, e descobriremos coisas que nos deixarão
atônitos, e enchamo-nos de um senso ainda mais intenso de
admiração, ao conhecermos melhor nosso maravilhoso Deus e
Seu admirável amor para conosco.

152
11
O DIABO E
OS ANJOS APÓSTATAS
Devemos prosseguir com a doutrina dos anjos, visto que,
infelizmente, tudo o que já consideramos juntos sobre os santos
anjos não exaure o que a Bíblia nos transmite sobre essas
potestades espirituais que habitam os lugares celestiais. Além
desses seres que nos ajudam e cuidam de nós, há outros que se
constituem em nossos maiores inimigos. Eles se nos opõem e
agem contra nós, e obviamente, pois, devemos considerar o
ensino da Bíblia a respeito deles. Há muitas razões para fazermos
isso. E completamente impossível entender a história humana
sem considerar o que a Bíblia nos relata sobre esses anjos
apóstatas e perversos. Não podemos esperar entender o homem
conforme ele é hoje, não podemos entender o mundo,
independentemente desse fato. E de modo crescente, ao meu
ver, a essência do erro que a maioria das pessoas parece cometer,
mesmo na história deste século vinte, à qual pertencemos,
consiste em que elas negligenciam a consideração da doutrina
bíblica do diabo e seus anjos.
Ela, porém, é também a doutrina mais prática do ponto de
vista da experiência pessoal do cristão individualmente. Descubro
mais e mais, em minha experiência pastoral, à medida que sou
privilegiado em entrevistar pessoas e em ajudá-las em sua luta
pessoal de fé, bem como nos seus problemas pessoais, que a
essência do conflito freqüentemente é que tais pessoas não
perceberam os poderes que se põem contra elas. Muitas vezes
tenho que lidar com pessoas que foram enviadas a um psicólogo,
a um psiquiatra, ou a um outro profissional do gênero, e cujo
problema, com muita freqüência, simplesmente é que elas
ignoram que se acham assediadas e atacadas pelo diabo. E a
essência do tratamento e da cura consiste em esclarecê-las a esse

153
respeito; em fazê-las ver que o que elas tem atribuído a si mesmas,
bem como seu pecado e fracasso pessoais (talvez até mesmo as
doenças mentais), devem ser realmente atribuídos somente a
esse poderoso antagonista que é descrito na Bíblia como sendo
o diabo. Desse modo, por estranho que nos pareça, o compreender
a doutrina bíblica sobre o diabo e seus anjos pode ser algo
muitíssimo confortador e libertador.
Assim, pois, visualizemo-la como a mesma se nos revela
nas Escrituras, e iniciemos uma vez mais com aquele ser que é
descrito como o diabo. Eis aqui um ser ao qual a Bíblia se refere
do princípio ao fim, do Gênesis ao Apocalipse. Invariavelmente,
passando os olhos rapidamente, nos deparamos com referências
ao diabo e seus cativos. Neste ponto também, como já fizemos
anteriormente, precisamos perguntar: por que aqueles dentre
nós que somos cristãos evangélicos tão raramente estudam esta
doutrina e deixam de dar-lhe o devido lugar e atenção em sua
vida cristã? Afirmo seriamente que o nosso fracasso neste ponto
deve seguramente esclarecer muitas das armadilhas em que
caímos tão prontamente, não só em nossas experiências pessoais,
como também em nossa evangelização e em muitos outros
aspectos. Ora, se o diabo puder pelo menos manter-nos apáticos,
ele nos encherá de falso zelo, nos levará a confundir a carne e o
espírito, e assim, quando aparentarmos ser muito zelosos,
poderemos estar inconscientemente sob a influência do inimigo.
Então, o que a Bíblia tem a dizer-nos sobre o diabo? Antes
de tudo, consideremos alguns dos nomes que lhe são aplicados
nas Escrituras. Ele é referido como “satanás”; e a palavra -satanás
- significa “adversário”. É também referido como o “diabo”,
nome esse que significa “caluniador”, aquele que nos calunia. É
também descrito como “Belzebu”, significando que ele é o
príncipe dos demônios. E descrito como “Apolion”, bem como
o “anjo do abismo insondável”. E denominado de “o príncipe
deste mundo” e “o deus deste mundo”. Ele é descrito também
como “o príncipe da potestade do ar, o espírito que agora atua
nos filhos da desobediência” (Ef. 2:20). É referido como o
“dragão”, como um leão, como “Lúcifer, a antiga serpente”, e,

154
talvez o mais importante de todos os nomes, como o “maligno”.
Ora, vocês encontrarão amiúde no Novo Testamento o
seguinte: enquanto na Authorised Version a palavra “mal” foi
usada, talvez seja preferível dizer que a mesma deva ser
“maligno”. Às vezes vocês encontrarão “ímpio”, quando deveria
ser “o maligno”. Há quem diga que quando oramos “livra-nos
do mal” (Mat. 6:13), deveria ser “livra-nos do maligno”. E quando
João, no último capítulo de sua Primeira Epístola, diz que o
“mundo todo jaz na impiedade” (AV), ele está indubitavelmente
dizendo que o mundo todo jaz no “maligno” (1 João 5:19). E da
mesma forma, em João, capítulo 17, quando nosso Senhor faz
Sua oração sacerdotal - “Não peço que os tires do mundo, mas
que os livres do mal” - deveria ser traduzido: “do maligno” (João
17:15). Eis um termo muitíssimo importante - o maligno.
A segunda coisa que a Bíblia nos transmite sobre o diabo é
que ele é uma pessoa. Isso é muito mais importante na atualidade,
visto que tem sido costume por pelo menos um século não crer
que o diabo é uma pessoa. Isso é patente não só acerca dos que
são incrédulos, mas também de muitos que se chamam cristãos.
Dizem que crêem no poder do mal, ou numa influência maligna,
ou numa espécie de deficiência em nós, porém defendem a
opinião de que crer num diabo pessoal seria viver desatualizado.
Tal coisa, porém, é completamente antibíblica, porque a Bíblia,
como lhes mostrarei, nos ensina que o diabo é uma pessoa. Para
mim, pessoalmente, há uma prova que é mais do que suficiente
em si e por si mesma, a qual consiste naquele relato que temos
nos Evangelhos sobre a tentação de nosso Senhor. Ora,
obviamente, as tentações de nosso Senhor vieram de algum lugar,
e quando alguém diz que tentação para o mal é algo que tem sua
origem unicamente dentro de nós e vem de alguma carência de
poder ou de qualidades positivas em nós, então não tem qualquer
explicação a oferecer para as tentações de nosso Senhor. (Vejam
o capítulo 24, sobre a Pessoa de Cristo.) Era uma pessoa que
tentava nosso Senhor, e Ele Se dirigiu a essa pessoa como tal.
Era o diabo que falava com Ele, e Ele falava com o diabo (Luc.
4:1-13) - não com uma influência, e sim, uma pessoa. Demais

155
disso, encontramos a mesma coisa demonstrada muito
claramente no livro de Jó, no primeiro capítulo, onde o diabo
comparece claramente como pessoa e se dirige a Deus. E Deus
Se dirige a ele.
O ensino bíblico não deixa nenhuma dúvida sobre isso.
Nosso Senhor, dirigindo-Se a alguns judeus, certo dia, disse-lhes:
“Vós tendes por pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de
vosso pai” (João 8:44). Quantas vezes vocês encontram esta
expressão: “o maligno” - “vem o maligno, e arrebata o que foi
semeado no seu coração” (Mat. 13:19) - e essa expressão, deixem-
-me enfatizar novamente, é muito significativa. Aliás, todos esses
nomes que são aplicados ao diabo confirmam, de diferentes
modos, que ele é uma pessoa. Ora, não devo deter-me aqui, mas
notem vocês como existe sempre uma espécie de paralelismo na
falsa doutrina. Em se tratando da doutrina sobre Deus, tivemos
que enfatizar que Ele é uma pessoa, porém tais pessoas tentam
descrever Deus como alguma espécie de Força ou algum tipo de
Energia. Elas têm dito que Ele é alguma forma de grande Intelecto
por trás do universo, e assim têm negado Sua personalidade. O
mesmo erro, vejam bem, tem sido cometido com respeito ao
diabo.
E o que se aplica ao diabo, aplica-se igualmente àqueles que
o seguem, aqueles que são descritos como “diabos” ou
“demônios” ou “anjos apóstatas”. Vocês se lembram, por exemplo,
do diálogo entre nosso Senhor e a legião de demônios que se
achava no pobre homem de Gadara. Dirigiram-se a nosso Senhor
e fizeram-Lhe um pedido. Não Lhe disseram apenas: “Meu nome
é legião”, mas pediram-Lhe que lhes permitisse entrar nos porcos
- novamente revelando que possuíam personalidades definidas.
Devemos, portanto, compreender que, independentemente do
pecado que há em nós, bem como do mal inerente à nossa
natureza, em resultado da Queda, somos confrontados por uma
pessoa fora de nós que anda em nosso encalço, uma pessoa que
tem um reino, do qual é a cabeça, o qual é altamente organizado
e cuja grande preocupação consiste em destruir a obra de Deus.
Temo-nos reportado à grande afirmação de Efésios 6:12 - “contra

156
os principados, contra as potestades, contra os príncipes das
trevas deste século” - um reino, o reino organizado de satanás,
o diabo.
Evidentemente, pois, logo no início da história humana,
nos primeiros capítulos de Gênesis, são-nos apresentadas
evidências positivas de que o diabo é uma pessoa, porque ele
veio e tentou Eva e a levou à Queda. Aliás, se quiserem outra
prova, sugiro-lhes que o próprio termo o “Espírito Santo", que é
uma pessoa, pressupõe o oposto - o “espírito maligno”, o diabo,
que também é uma pessoa e que tenta falsificar tudo o que Deus
faz. Eis aí, pois, algo que jamais devemos esquecer. E de vital
importância compreender que existe essa pessoa que se põe
contra o reino de Deus e Seu Cristo, bem como tudo quanto
pertence a esse reino.
Em seguida devemos enfrentar uma questão muito
importante e difícil: qual é a origem do diabo? A Bíblia assevera
o fato do diabo e de sua personalidade. De onde ele veio? Ora,
não somos bem informados sobre isso na Bíblia, pois ela
geralmente se preocupa simplesmente em afirmar coisas sobre
o diabo e suas atividades. A origem do diabo parece estar
pressuposta em Gênesis; creio, porém, haver pouco espaço para
dúvida de que em Ezequiel 28:11-19 nos é apresentado um relato
sobre o diabo. Ora, é evidente que em todo o capítulo acham-se
em evidência duas pessoas. A primeira é a pessoa do rei de Tiro.
Uma boa porção, porém, das descrições nos versículos 11-19,
obviamente não é descritiva de qualquer ser humano; ela aponta
para alguém mais.
Isso é típico das Escrituras. Vemo-lo nas profecias
concernentes à vinda do Senhor Jesus Cristo. A profecia é
freqüentemente posta nessa espécie de forma dual; ela refere em
parte a algum rei ou a algum príncipe; além disso, porém, há
uma alusão adicional sobre o Messias. Há muitos exemplos disso
nas profecias de Isaías e noutras profecias - uma referência
imediata, mas também, nela e acima dela, há uma referência
remota. E aqui em Ezequiel, ao meu ver, temos exatamente a
mesma coisa. Estes versículos, pois, claramente se referem a

157
satanás e à sua origem, e há certas coisas neles que devemos
realçar.
A primeira coisa de que somos informados sobre satanás é
quee/ey&icriado: “... no dia em que foste criado foram preparados”
(v. 13); “Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que
foste criado, até que se achou iniqüidade em ti” (v. 15). O diabo
não existiu desde toda a eternidade; ele não é um ser eterno; ele
é um ser criado. Houve um período na história da Igreja quando
isso precisou ser enfatizado poderosamente, porquanto havia
aqueles que ensinavam que o mal era eterno, que satanás era
eterno, e que havia dois deuses, o deus bom e o deus mau. Essa
idéia, porém, era antibíblica. O diabo não é eterno - ele foi criado
por Deus. Não apenas isso. Somos informados que ele possuía
grande poder e habilidade. Vocês encontram isso no versículo
12: “Tu és o aferidor da medida, cheio de sabedoria e perfeito
em formosura.” Tal era o diabo quando foi criado por Deus. Ele
parecia sumariar a perfeição.
Ele também é descrito, notem bem, como o “querubim
ungido para proteger” (v. 14). Ora, essa é uma afirmação muito
significativa - “o querubim ungido”. Vocês se lembram que, ao
tratar dos anjos de uma forma introdutória, no capítulo anterior,
realçamos que os querubins eram, indubitavelmente, a forma
mais excelente de existência, e que sua função especial consistia
em adorar a Deus e apresentar-Lhe o culto do universo inteiro.
Vocês podem ver isso nos quatro animais de Apocalipse, capítulo
4. Eles são as representações do homem adorando a Deus e,
portanto, do universo inteiro adorando a Deus - as “criaturas
viventes”. Muito bem, aqui parece que temos uma indicação de
que o diabo foi originalmente criado por Deus como o querubim
ungido, o principal de todos os querubins. A suposição (e não
passa de uma suposição) é que quando Deus criou este ser, Sua
intenção, por assim dizer, era que ele fosse o representante de
todo o universo, em seu louvor, serviço sagrado e adoração. Ele
era o querubim ungido - o querubim “para proteger”. Acaso tal
fato não nos lembra a arca da aliança, protegida pelas asas dos
querubins, acrescida da idéia de serviço sagrado e adoração? Há

158
muito nas Escrituras que nos leva à conclusão de que o diabo era
o mais excelente de todos os seres angelicais, dado esta posição
de superioridade em que ele era a cabeça de todo o universo
criado, ao representar o serviço sagrado e a adoração a Deus.
Vocês vêem também que somos informados que ele estava
“no Éden, jardim de Deus” (Ez. 28:13). Tal, porém, não é uma
referência ao diabo estar no Jardim do Éden, quando tentou Eva
e Adão, e caíram, porque a descrição apresentada aqui deste Éden,
jardim de Deus, não corresponde de✓ maneira nenhuma à
descrição em Gênesis. Aqui temos um Eden caracterizado não
tanto por fruto quanto por pedras preciosas, e no versículo 13 é
apresentada uma lista dessas pedras. Ora, muitos homens
piedosos, ao lerem esta passagem, meditaram sobre ela e provavel­
mente especularam um pouco, e sugeriram uma explicação que
não pode ser provada. Faço-lhes, porém, menção dela, caso tenha
algum valor, e a impressão que tenho é que há muito a ser dito a
favor dela. Acha-se pressuposto que o diabo e seus anjos apóstatas
estavam presentes na criação original do mundo, e foi quando o
diabo e seus anjos caíram, que uma calamidade irrompeu-se, a
qual reduziu o primeiro mundo a uma condição tal que se tornou
deformado e vazio, e necessitou a criação que é descrita no
primeiro capítulo do livro de Gênesis. Voltaremos a esse ponto
mais adiante. Menciono apenas de passagem, que este Éden, o
jardim de Deus, ao qual se faz referência aqui, talvez se refira
àquela primeira criação original de Deus.
E em seguida somos informados, aqui no versículo 15, que
o diabo era perfeito em todos os seus caminhos, mas que -
infelizmente! - ele não guardou esse primeiro estado: “Perfeito
eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que
se achou iniqüidade em ti.” Então, no versículo 17, lemos:
“Elevou-se o teu coração por causa da tua formosura,
corrompeste a tua sabedoria por causa do teu resplendor” Esse
resplendente e glorioso ser angélico era perfeito em beleza, porém
exaltou-se e foi consumido pelo orgulho. Em vez de conduzir o
culto e a adoração de Deus, ele mesmo desejou ser cultuado e ser
igual a Deus; e por isso levantou-se contra Deus, pecou contra

159
Deus, foi subjugado e banido por Deus. Esse parece ser o ensino
de Ezequiel, capítulo 28, e em Isaías, capítulo 14, encontramos
algo semelhante. Nos versículos 12-15 de Isaías, capítulo 14,
lemos: “Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva!
Como foste lançado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu
dizias no teu coração: eu subirei ao céu, acima das estrelas de
Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me
assentarei, da banda dos lados do norte. Subirei acima das mais
altas nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E contudo levado
serás ao inferno, ao mais profundo abismo.” Essa,
indubitavelmente, é uma referência ao mesmo fato.
Pois bem, notem vocês que a Bíblia não nos informa como
tudo isso se tornou possível. Ela não nos explica como todos
esses pensamentos uma vez entraram no coração de satanás, o
diabo. Ela simplesmente nos informa que tal se deu. A Bíblia
não nos apresenta qualquer explicação final quanto à origem do
mal, e sugiro-lhes, portanto, que se gastarem um segundo sequer
de seu tempo em tentar especular sobre isso, vocês serão culpados
por carência de fé, visto que fé significa viver satisfeito com a
revelação feita. A origem do mal ultrapassa o nosso entendimento.
Não podemos entendê-la. Os teólogos têm especulado e têm
afirmado que, uma vez que o diabo era perfeito, certamente ele
era perfeitamente livre, e a perfeita liberdade, inerentemente,
contém em si mesma a possibilidade de escolher contra Deus.
Tudo bem! Ainda assim, tal coisa não parece explicar cabalmente
a origem do mal; tudo o que sabemos é que o diabo foi criado,
como já vimos. Então esse mal entrou em seu coração, e ele
rebelou-se contra Deus e foi por Ele subjugado.
O que sabemos mais sobre ele? Ora, somos informados
sobejamente na Bíblia sobre o seu poder, e o que aprendemos
sobre isso não causa surpresa à vista do que somos informados
sobre sua origem. Pedro nos informa que o diabo é como um
“leão que ruge” (1 Ped. 5:8). Ele é descrito como “leviatã” (Is.
27:1), e o “dragão”, em vários lugares no Apocalipse. Pergunto se
vocês têm notado, ao percorrerem suas Bíblias, que existe uma
indicação de que o poder de satanás é ainda maior do que o

160
poder do arcanjo. Em Judas, versículo 9, lemos: “Mas o arcanjo
Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito
do corpo de Moisés, não ousou pronunciar juízo de maldição
contra ele; mas disse: o Senhor te repreenda.” Até mesmo o
arcanjo Miguel fala ao diabo dessa forma - não “pronuncia juízo
de maldição contra ele”; não o trata com desdém, como se fosse
um alguém sem importância. Até mesmo Miguel afirma: “O
Senhor te repreenda.” Vocês encontrarão a mesma indicação
em 2 Pedro 2:10,11.
Não há qualquer dúvida sobre o poder do diabo ser maior
que o poder humano. Nosso Senhor descreveu satanás como “o
homem fortemente armado”, que “guarda sua casa, em segurança
está tudo quanto tem” (Luc. 11:21). E vocês se lembrarão de que
o diabo é tão poderoso (deverei voltar a abordar isso, mas apenas
o menciono para completar esta seção neste ponto), que ele é
capaz de influenciar nossos corpos. Estão lembrados do que ele
fez a Jó? E Pedro nos relata que nosso Senhor “andou fazendo o
bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus era
com ele” (Atos 10:38). Em seguida vocês podem lembrar-se do
que Paulo nos diz sobre si mesmo e o “mensageiro de satanás”
que fora enviado para esbofeteá-lo (2 Cor. 12:7). Sim, o diabo
pode afetar e influenciar nossos corpos.
Qual é seu status? Ele é descrito como “o deus deste mundo”
(2 Cor. 4:4). Ele é o “príncipe da potestade do ar” (Ef. 2:2). Ele é
o iníquo, a concentração do mal; todo o mal, por assim dizer, se
acha centralizado nele; ele é a cabeça, e todo o mal parece emanar
dele. Aliás, somos informados nas Escrituras que ele é aquele
que controla o poder da morte (Heb. 2:14). E em Mateus 25:41,
lemos que nosso Senhor Se refere ao “diabo e seus anjos”,
novamente mostrando que ele é poderoso.
Ora, realço tudo isso por uma razão: se há uma lição que
devemos aprender acima de todas as demais, extraída desta
consideração, é a seguinte: jamais deveríamos falar displicente
ou desrespeitosamente do diabo. Sinto-me freqüentemente
assustado ao ouvir bons cristãos fazendo referências jocosas ao
diabo. A Bíblia nunca se refere a ele de maneira leviana e

161
desrespeitosa. Ela enfatiza seu poder, seu status. Não obstante,
deixem-me dizer de passagem: seu poder é limitado; ele não é
todo-poderoso. No primeiro capítulo de Jó, somos informados
que Deus, por assim dizer, concedeu ao diabo permissão para
fazer certas coisas a Jó; impôs-lhe, porém, um limite bem
definido, e o diabo não pôde ir além disso.
Eis aqui um grande mistério: o diabo, enfim, age dentro do
poder de Deus, e no entanto a Bíblia ensina muito claramente
que, por alguma inescrutável razão que não podemos entender,
Deus parece atribuir ao diabo certo status e posição. Ele lhe
permite fazer certas coisas; esses diversos nomes e distinções
lhe são aplicados. Deus, em Sua eterna sabedoria, permite que o
diabo seja detentor de um certo volume de poder até ao fim,
todavia esse poder se acha afinal sob o controle de Deus. E Sua
vontade permissiva que o permite, e ao diabo, como no caso de
Jó, foi permitido ir até certo ponto, não mais (Jó 1:12; 2:6).
Onde o diabo existe? Onde fica o seu domicílio? Onde ele
age? Bem, lemos em muitos textos que ele habita nos “lugares
celestiais”. Ele é o príncipe da potestade do ar, e no entanto ele
rodeia a terra e passeia por ela (Jó 1:7). Esse é igualmente um
ponto muito importante, e a mim, particularmente, é muito
consolador. O diabo, visto que é um ser criado, e visto que é
finito, é limitado e só pode, portanto, estar apenas num lugar
em dado momento. Sim, porém ele é enganador, e devido contar
com muitos emissários, e uma vez que ele é representado por
seus agentes, em toda parte, ele nos engana para que pensemos
que ele está presente em toda parte ao mesmo tempo. Mas não
está. Ele não é onipresente.
Qual é o caráter do diabo? Eis as coisas que supremamente
o caracterizam: seu orgulho, orgulho acima de qualquer outra
coisa; sua malignidade; sua sutileza; e sua falsidade. Outro termo
a ele aplicado por nosso Senhor é “homicida”: “Vós tendes por
pai ao diabo, e quereis satisfazer os desejos de vosso pai:
ele foi homicida desde o princípio, e não se firmou na
verdade, porque não há verdade nele; quando ele profere mentira,
fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira”

162
(João 8:44). Esse é o seu caráter: enganador, mentiroso,
murmurador, homicida; aquele que odeia a Deus e é cheio de
sutileza e orgulho.
Em seguida a Bíblia menciona as “obras do diabo”. João
nos informa que Cristo veio destruir as obras do diabo (1 João
3:8). Portanto, quais são suas atividades? Ora, elas são
demonstradas em seus ataques dirigidos ao Filho de Deus: seu
grande objetivo foi sempre destruir a obra de Deus e estabelecer-
-se como Deus. Portanto, a primeira atividade do diabo, registrada
na Bíblia, é a queda do homem (Gênesis, capítulo 3). Se alguns
de vocês, porém, tiverem dúvidas (as quais não deveriam existir)
sobre a historicidade de Gênesis, capítulo 3, então vocês
encontrarão sua resposta em 2 Coríntios 11:3, onde Paulo diz:
“como a serpente enganou Eva”. E o que ele fez ali, naturalmente,
foi produzir em Adão e Eva antagonismo contra Deus: “É assim
que Deus disse?” (Gên. 3:1). A insinuação foi que Deus era injusto,
que Deus os humilhava. Colocar tudo contra Deus - eis sua
atividade.
E então, visto que Adão e Eva lhe deram ouvidos, e caíram,
o diabo se transformou naquele que passou a controlar o poder
da morte. Já lembrei vocês daquela afirmação de Hebreus 2:14.
E um versículo difícil de compreender, posto que, em última
instância, o poder da morte se acha nas mãos de Deus. Ao meu
ver, porém, ele significa o seguinte: no momento em que o
homem deu ouvidos ao diabo, ele se pôs debaixo do poder, bem
como do domínio, do diabo, e por isso a sentença de morte fora
pronunciada sobre ele. E o diabo, podemos dizer, reivindica essa
sentença de morte, porquanto quem quebra a lei automaticamente
pertence ao diabo e vive em seu território, que é o território e o
domínio da morte. Somente nesse sentido é que o diabo tem o
poder da morte.
Em seguida somos informados, naturalmente, que ele
mantém todos os incrédulos sob seu controle, todos quantos não
são cristãos, em suas vidas e em todas as suas atividades. Nosso
Senhor afirma que eles são os filhos do diabo (João 8:44), e João
afirma que “somos de Deus, e que todo o mundo está no maligno”

163
(1 João 5:19). Também Paulo, em 2 Coríntios 4:4, descreve o
diabo como “o deus deste século”, enquanto que em Efésios 2:2,
ele o descreve como “o espírito que agora opera nos filhos da
desobediência”. Já vimos, também, que nosso Senhor o descreve
como “o homem fortemente armado”, que mantém sob constante
controle os que são incrédulos.
Como ele faz isso? Bem, a primeira coisa que ele faz é cegá-
-los em relação à verdade. “Mas, se ainda o nosso evangelho está
encoberto, para os que se perdem está encoberto. Nos quais o
deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos...” (2
Cor. 4:3,4). E esse é o problema com cada homem e mulher no
mundo moderno que não é cristão. São perdidos, não porque
sejam cientistas ou filósofos, não porque tenham cérebros
gigantescos, ou tenham lido mais do que outras pessoas que se
chamam cristãos, mas porque o diabo, o deus deste mundo, cegou
suas mentes em relação à verdade, e não lhes permite ver que ele
a está ocultando deles. Eis a única explicação por que ainda há
pessoas no mundo que não crêem em Deus ou em Seu Cristo.
Então, a segunda coisa que o diabo faz é ordenar e controlar as
vidas de tais pessoas: “o espírito que opera nos filhos da
desobediência”. Ele é o pai da concupiscência, do desejo e do
mal, em todas as formas, na vida dos ímpios.
Se, pois, isso é o que ele faz em relação aos incrédulos, quais
são suas atividades no tocante aos crentes? A Bíblia o descreve
como nosso “adversário” - aquele que se nos opõe de todas as
formas. Ele é também nosso acusador; ele é essencialmente o
acusador dos irmãos. Ele nos acusa diante de Deus, e nos acusa
diante de nós mesmos. O que ele faz em particular?
Primeiramente, ele se opõe às nossas obras e às nossas atividades.
Em Zacarias 3:1, vocês encontrarão isto: “E me mostrou o sumo
sacerdote Josué, o qual estava diante do anjo do Senhor, e satanás
estava à sua mão direita, para se lhe opor.” Daniel 10:13 nos
informa que o príncipe do reino da Pérsia resistiu ao arcanjo
Miguel. Paulo escreve sobre o “mensageiro de satanás enviado
para esbofeteá-lo” - para impedir sua pregação, e fazer que
sua obra não fosse realizada como ele gostaria. Em seguida, em

164
1 Tessalonicenses 2:18, Paulo diz: “Pelo que bem quisemos uma
e outra vez ir ter convosco, pelo menos eu, Paulo, mas satanás
no-lo impediu.”
Satanás também nos desanima. Ele está sempre pronto para
devorar-nos (1 Ped. 5:8), para afligir-nos e enganar-nos. “eis que
satanás vos pediu para vos cirandar como trigo” (Luc. 22:31).
Ele nos tenta com seus ardis, seus laços, seus dardos inflamados,
seus enganos e suas insinuações; ele excita nossas paixões; ele
afeta nossas mentes. Ele é responsável pela maioria de nosso
mau humor, nossas depressões, nosso senso de desesperança e
nosso senso de desespero. Aliás, vocês podem estar certos disto:
toda vez que vocês se voltam para si mesmos, e se deparam
contemplando suas fraquezas, seus fracassos, sua falta de
habilidade, ou seja o que for que exista em si mesmos, ao mirar-
-se dessa maneira, é sempre o diabo que o faz. Não hesito em
dizer que o diabo torna introspectivos os homens e as mulheres,
sabendo que quando eles estão olhando para si próprios, não
estão olhando para Deus; e é por isso que ele produz todos esses
ânimos negativos e depressões dentro de nós. Ele ainda afeta
nossos corpos, como já lhes trouxe à memória (Jó 2:7; 2 Cor.
12:7). Ele pode produzir enfermidades e indisposições; ele tem
o poder de proceder assim e ele o usa. Mais adiante nesta série,
espero voltar a esses elementos; apenas tabulei-os para vocês
neste ponto.
Como o diabo faz toda essa obra? Ele faz uma grande porção
dela direta e pessoalmente, mas também a realiza através de seus
anjos. Já vimos que o Senhor Se refere a “o diabo e seus anjos”
(Mat. 25:41), e em 2 Pedro 2:4, lemos: “Porque, se Deus não
perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no
inferno, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados
para o juízo...” Houve alguns anjos que pecaram à semelhança
do diabo, e Deus os lançou fora.
Noutras palavras, aqueles a quem a Bíblia refere como
demônios ou como diabos, ou como espíritos imundos, são
indubitavelmente anjos apóstatas, os anjos que pecaram contra
Deus, juntamente com o diabo, os anjos que o seguiram, “que

165
não guardaram seu principado” (Judas, versículo 6). Esses são os
anjos do diabo, seus emissários, seus agentes, os instrumentos
que ele usa para a realização de sua obra. Esses são os principados
e potestades, “os príncipes das trevas deste século”, “as hostes
espirituais da maldade, nos lugares celestiais” (Ef. 6:12). Todos
esses são anjos apóstatas. Claro que sim - que outra coisa
poderiam ser? O diabo não pode criar; ele não pode produzir
tais seguidores; ele não pode produzir seus próprios anjos, porque
ele mesmo não passa de um ser criado. Não! Os demônios, ou os
diabos, são aqueles que seguiram esse “querubim ungido”, os
quais foram também expulsos por Deus.
Eis, pois, em sua essência, a doutrina bíblica sobre o diabo e os
anjos apóstatas, e somos confrontados por este adversário. Não
podemos, porém, concluir sem enfatizar o seguinte: jamais
devemos esquecer que o poder do diabo é limitado; ele está sujeito
a Deus. Cristo, em Sua vida, Sua morte e Sua ressurreição, já
derrotou o diabo. E nós, como cristãos, podemos ser capacitados
pelo Senhor para resisti-lo, e podemos, segundo nos diz Tiago,
“Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós” (Tiago 4:7). Não é o caso
de nos referirmos a ele injuriosamente, ou que lancemos contra
ele acusação vituperante ou julgá-lo como digno de gracejo. Não!
Ao contrário, no poder do Senhor ressurreto podemos resisti-
-lo, sabendo que podemos derrotá-lo, podemos opor-nos a ele.
Somos informados no Apocalipse que os santos “o venceram
pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do seu testemunho” (Apoc.
12:11).
Quão importante é que nos lembremos destes dois lados:
jamais devemos ser levianos e irreverentes; jamais devemos ser
temerários. Existe sempre o adversário. Sim, mas não é
necessário que passemos nossas vidas temendo-o covardemente,
embora seja ele poderoso. “Filhinhos, sois de Deus, e já os tendes
vencido; porque maior é o que está em vós do que o que está no
mundo” (1 João 4:4). Portanto, segundo vimos a verdade sobre o
diabo, que compreendamos mais do que nunca a verdade sobre
nosso Deus e sobre o Seu Cristo.

166
12
A CRIAÇÃO DO MUNDO
Chegamos agora à doutrina da Criação propriamente dita,
ou seja, como geralmente a consideramos. Temos, de fato, tratado
dela dentro da doutrina sobre os anjos, onde vimos que Deus
criou tanto os céus quanto a terra; e agora estamos focalizando a
criação da terra e de tudo quanto nela existe.
Quando nos aproximamos desta doutrina, há certos pontos
gerais que precisam ser considerados. Primeiramente, não nos
foi dado um relato ou filosofia sobejamente detalhada da Criação,
e no entanto alegamos que o relato que nos foi dado é
perfeitamente acurado. A Bíblia alega que o relato é de Deus.
Lemos em Hebreus 11:3: “Pela fé entendemos que os mundos
pela palavra de Deus foram criados; de maneira que aquilo que
se vê não foi feito do que é aparente.” Deus transmitiu a Moisés
ou a algum outro um relato da Criação; portanto, esse relato não
consiste de idéias ou teorias humanas. Entretanto, o relato bíblico
não alega explicar tudo.
Em segundo lugar, devemos estar esclarecidos sobre o
significado da Criação. Ela tem sido definida como “Aquele ato
soberano de Deus por meio do qual Ele... no princípio trouxe à
existência o universo visível e invisível, sem o uso de materiais
preexistentes, e assim imprimiu-lhe uma existência distinta da
existência dEle e, contudo, sempre dependente dEle” (Berkhof).
Ora, esta é a nossa defesa contra outras teorias que têm sido
postas em evidência. Há quem creia que a matéria é
inerentemente eterna; enquanto que outros crêem na geração
espontânea da matéria, bem como em seu desenvolvimento
espontâneo. Outros pontos de vista consistem em que Deus
simplesmente deu forma à matéria já existente, ou que a matéria
é apenas uma emanação da substância divina. O panteísmo ensina
que a matéria é apenas uma forma de Deus - que elaé Deus. Em
contrapartida, os que crêem no dualismo afirmam que Deus e a

167
matéria são eternos; enquanto que alguns ensinam que o mundo
foi produzido por um espírito antagônico, outro deus ou
demiurgo.
A doutrina bíblica, porém, é clara: Deus fez tudo a partir do
nada. O mundo tem uma existência distinta; ele, porém, é
sempre dependente de Deus. “... e todas as coisas subsistem por
ele”, diz Paulo (Col. 1:17).
A terceira observação geral é que a Bíblia não fornece uma
razão para a Criação. Ela não ocorreu devido alguma necessidade
em Deus; não houve necessidade para ela. Tampouco foi
motivada pelo amor de Deus. Ela foi um ato soberano em
concordância com Sua vontade e glória; e, afinal das contas,
não sabemos qual foi mesmo a razão.
Em quarto lugar, surge continuamente a pergunta: existem
dois relatos da Criação - um em Gênesis, capítulo 1 e outro em
Gênesis 2:4 e seguintes? A resposta é: não! Gênesis 2:4 não
presume ser um relato da Criação. Ele é o início do relato da
história do homem, e começa com a fórmula típica para isso -
“Este é o livro das gerações...” (Vejam Gên. 5:1).
Essas são, pois, as observações gerais, e agora voltamos a
considerar o ensino da própria Bíblia. Ela, primeiramente, nos
afirma que a Criação foi obra do Deus triúno. Em geral, ela é
atribuída ao Pai, as Escrituras, porém, deixam bem claro que ela
é também obra do Filho. Lemos em João 1:3: “Todas as coisas
foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” E em
1 Coríntios 8:6: “Todavia para nós há um só Deus, o Pai, de
quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus
Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele.” Paulo também
diz, em sua carta aos Colossenses: “Porque nele foram criadas
todas as coisas que há nos céus e na terra, visíveis e invisíveis...
tudo foi criado por ele e para ele” (Col. 1:16).
A Criação é também obra do Espírito Santo. Gênesis 1:2
diz: “E o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.” E
lemos em Isaías 40:13: “Quem guiou o Espírito do Senhor? e
que conselheiro o ensinou?” Portanto, ela é a obra perfeita do
Três-em-Um - do Pai, através do Filho e do Espírito Santo. Ou,

168
como tem sido expresso: a existência está no Pai, a idéia está no
Filho e a vida está no Espírito.
Em segundo lugar, devemos focalizar o que a Bíblia nos
ensina sobre o tempo da Criação. Nas memoráveis palavras
iniciais da Bíblia, lemos: “No princípio Deus...” Somos
informados, em muitos lugares, que para com Deus não existe
tempo, e que o mundo e o tempo surgiram concomitantemente.
Ora, tudo isso significa que houve um princípio, mas quando
surgem as perguntas: o que havia antes? ou: o que ocorreu na
Criação? Nossa única resposta é que não sabemos.
Em terceiro lugar, há o interessante aspecto quanto às
palavras que são usadas na Bíblia com referência à Criação. A primeira
é bara’, a qual significa chamar à existência sem o uso de material
preexistente. Essa palavra é usada apenas três vezes em Gênesis,
capítulo 1, e somente em relação à atividade de Deus no Velho
Testamento. Bara’ jamais é usada em conexão com material
existente, e sempre descreve a atividade divina. Vejam Gênesis
1:1,21,27. A segunda é ’asah, a qual significa dispor de material
existente, um termo que é usado para descrever a obra da maioria
dos dias da Criação: Gên. l:7,16,25,26e31.Eaterceirapalavraé
yatsar, a qual significa modelar de material preexistente. Ela é
usada em Gênesis 2:7. Entretanto, esses termos são obviamente
intercambiáveis.
Nosso quarto tema a ser considerado é: o que exatamente
aconteceu na Criação? Aqui chegamos imediatamente ao problema
da relação existente entre os dois primeiros versículos de Gênesis,
capítulo 1. Qual é a interpretação deles? Tem havido duas
respostas principais. Uma delas é que esses versículos descrevem
os dois estágios de um processo; enquanto que a outra diz que
houve um intervalo entre os dois versículos. No segundo ponto
de vista, o versículo 1 fala da criação original do céu e da terra,
provavelmente com satanás e anjos habitando neles. Então
sobreveio uma calamidade e uma destruição em conseqüência
da queda dos anjos, e o versículo 2 fala da obra de reconstituição
e reconstrução.
Há, ao meu ver, dois pontos em favor da segunda

169
interpretação. Primeiramente, as palavras “sem forma e vazia”
pressupõem devastação e destruição. Esse é o significado em
Isaías 24:1: “Eis que o Senhor esvazia a terra, e a desola, e
transtorna a sua superfície, e dispersa seus moradores.” E em
Jeremias 4:23, lemos: “Observei a terra, e eis que estava assolada
e vazia.” A segunda interpretação também explicaria todo o
problema do estrato geológico. Os cristãos, porém, se acham
divididos em tudo isso, e não podemos prová-lo de um modo ou
de outro.
Em segundo lugar, ainda sob o nosso tópico quanto ao que
exatamente ocorreu, devemos focalizar, naturalmente, os
detalhes no relato bíblico dos dias da Criação. No primeiro dia,
foi criada a luz; a luz e as trevas foram separadas, e então o dia e
a noite foram constituídos. Tudo indica que a luz significa o
éter luminoso ou a eletricidade - o sol é o condutor de luz.
No segundo dia, houve também uma separação. O
firmamento foi estabelecido por meio da divisão das águas acima
e as águas embaixo. A palavra “sobre” se refere às nuvens;
enquanto que o “firmamento” significa uma expansão.
No terceiro dia, houve separação de mar e terra seca, e o
reino vegetal de plantas e árvores veio à existência. Este se
constitui de três tipos: relva, ervas, vegetais e grãos; e árvores
frutíferas - todas “segundo a sua espécie”. Há dois pontos a serem
observados aqui. O primeiro é que Deus fez isso, e o segundo é
que “segundo a sua espécie”, no versículo 12, significa que as
espécies são distintas e não se evoluem umas das outras.
O quarto dia viu a criação do sol, da lua e das estrelas, como
condutores de luz. Sua função consiste em dividir dia e noite;
agir como sinais da mudança do tempo, de importantes eventos
futuros e do juízo por vir; afetar a mudança das estações e a
sucessão de dias e anos, e servir como luzeiros.
O quinto dia viu a criação de pássaros e peixes. Notem
novamente, no versículo 21, as palavras “segundo a sua espécie”.
Uma vez mais, isso é uma indicação de espécies diferentes.
No sexto dia, primeiramente foram criados os animais.
Notem também o uso das palavras “E fez Deus”, e, novamente,

170
“segundo a sua espécie”; e “segundo a sua espécie”, no versículo
25. Então, em segundo lugar, no versículo 26, lemos sobre a criação
do homem, e isso é especial.
Há um paralelo a ser notado entre a obra dos primeiros três
dias e dos últimos três dias:

Dia 1A criação da luz Dia 4 A criação dos condutores


Dia 2 A criação da expansão e a de luz
separação das águas Dia 5 A criação dos pássaros do
Dia 3 A separação de água e terra ar e dos peixes do mar
seca, e a preparação da terra Dia 6 A criação dos animais do
como uma habitação para campo, gado e seres
o homem e os animais rastejantes, e o homem

E finalmente somos informados que no sétimo dia Deus


descansou e contemplou Sua obra. Ele viu a Sua obra como faz
um artista, e estava satisfeito com ela. “E viu Deus tudo quanto
tinha feito, e eis que era muito bom.”
O próximo assunto que precisamos focalizar é o exato
significado do termo dia. Há dois pontos de vista principais. O
primeiro é que ele significa um dia de vinte e quatro horas, e o
segundo é que ele significa um extenso período de tempo.
Há considerável discordância entre as pessoas sobre este
tema, pessoas essas que igualmente são bons cristãos, e o
significado correto não pode, afinal, ser provado de um modo
ou de outro. Em favor do segundo ponto de vista está o fato de
que, na Bíblia, a palavra traduzida em Gênesis, capítulo 1, por
“dia” nem sempre significa um dia de vinte e quatro horas. Nos
versículos 5,16 e 18, de Gênesis, capítulo 1, o termo se refere às
horas diurnas, enquanto que nos versículos 5, 8 e 13, significa
luz e trevas; e em Gênesis 2:4, significa o sexto dia da criação.
Em seguida, noutras passagens da Bíblia a mesma palavra
significa um infinito período de tempo, como “o dia da calami­
dade” (Jer. 51:2), ou “o dia do Senhor” (Is. 13:6; Joel 3:14), e,
naturalmente, em 2 Pedro 3:8, lemos: “um dia para o Senhor é
como mil anos, e mil anos como um dia”. Essa última referência,
contudo, não é relevante para a nossa discussão, visto que o

171
propósito de Pedro era mostrar as diferenças entre eternidade e
tempo.
Por outro lado, em favor do dia de vinte e quatro horas está,
antes de tudo, o fato de que este é o primeiro significado da
palavra hebraica. Em segundo lugar, há a importância da frase
“tarde e manhã” ao longo de Gênesis, capítulo 1. Como
deveríamos explicar tal repetição? Surge imediatamente a
questão: se vocês tomarem dia no sentido de um período extenso,
então como explicariam a expressão tarde e manhã? Se vocês
tomarem o ponto de vista que afirma que na criação do mundo
Deus envolvera milhões de anos para fazer algo que é descrito
aqui como havendo sido feito num dia, e então seguiu-se uma
tarde na qual houve trevas, e não ocorrendo nada aparentemente,
e então outro período extenso, e assim por diante, como, pois,
vocês considerariam tanto essas tardes quanto essas manhãs
extensas? O que estaria acontecendo durante esses milhões de
anos de tardes? Demais disso, vocês terão que responder à
questão aparentemente impossível: como poderia a vida - a vida
vegetal e animal - existir de algum modo durante esse extenso
período de milhões de anos de trevas e ausência de luz? Não
apenas isso, parece perfeitamente evidente que os últimos três
dias no relato deste primeiro capítulo de Gênesis foram
determinados pelo sol, e portanto eram dias de vinte e quatro
horas. A partir do instante em que o sol vem à existência e
determina a diferença entre dia e noite, seguramente todos devem
concordar que agora de qualquer forma estamos tratando de vinte
e quatro horas. Daí, se a outra teoria é correta, então somos
solicitados a crer que os primeiros três dias significam um
período extenso, mas que os últimos três dias significam apenas
dias de vinte e quatro horas, e obviamente não há nada no
próprio relato que sugira que a palavra tenha dois significados
diferentes. Não posso provar que não haja diferença, mas
seguramente seria algo bem estranho se houvesse essa abrupta
mudança de significado quando a descrição é idêntica em ambos
os pares de três dias.
Ao meu ver, porém, o argumento mais importante de todos

172
se acha no que nos é dito sobre o repouso de Deus no sétimo dia,
contemplando com satisfação a obra que criara. Notem, também,
a importância que é atribuída a isso nas Escrituras, e particular­
mente, sem dúvida, na questão de nossa observância e guarda
do sétimo dia. Em Êxodo, capítulo 20, lemos: “Lembra-te do dia
de sábado, para o santificar. Porque em seis dias fez o Senhor os
céus e a terra, o mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descan­
sou: portanto abençoou o Senhor o dia de sábado, e o santificou”
(vv. 8 e 11). E isso é repetido diversas vezes nas Escrituras.
Ora, nesse ponto, naturalmente, não pode haver qualquer
discussão. A referência é a um dia de vinte e quatro horas. O
sábado que eles foram ordenados a observar não podería ser um
extenso período; só podería ser um dia de vinte e quatro horas,
e a razão apresentada é que, depois que Deus criou o mundo em
seis dias, Ele descansou no sétimo. Não diz que Ele descansou
ao longo de um período de milhões de anos.
Bem, ao meu ver, aí está a evidência relativa a ambas essas
teorias. Creio ter deixado bem claro que até onde me diz respeito
(é só uma opinião, não a posso provar), não posso ver como
seríamos autorizados a interpretar este termo “dia” por outro
sentido senão pelo significado normal de vinte e quatro horas.
As dificuldades das outras suposições a tornam, pelo menos para
mim, completamente impossível.
Devo lembrá-los novamente, porém, que eminentes eruditos
e devotos cristãos têm defendido e sustentado o outro ponto de
vista. Graças a Deus que a nossa salvação não é determinada por
nossa opinião sobre esta questão em particular. Espero que iremos
todos atentar para a evidência, mantendo essa tão importante
verdade na mente. Penso ser correto e importante que olhemos
para estas coisas; porém, sermos dogmáticos ou insistirmos que
uma partícula de evidência pode certamente provar nossa tese,
é tornarmo-nos burlescos.
Portanto, prossigamos para outra questão. Pergunta alguém:
“O que pensar de tudo isso face a ciência moderna?” Ora, como
disse no início desta série de preleções, elas não pretendem ser
preleções sobre apologética, e gostaria de enfatizá-lo novamente.

173
Aliás, se eu consultasse meus próprios sentimentos não faria o
que estou propondo fazer agora. Mas, afinal, sei muito bem, tendo
sido eu mesmo um estudante, e um estudante de ciência e
biologia, que muitos cristãos se metem em dificuldades sobre
estes assuntos. Portanto, considero parte da função de um
ministro cristão tentar ajudar. Sei que, ao fazê-lo, ele se expõe a
ataques de todos os lados, todavia isso realmente não importa. É
nosso dever ajudar uns aos outros o máximo que pudermos.
Deixem-me esclarecer bem que não estou asseverando que sou
capaz de provar muito, contudo, de qualquer modo, creio poder
discordar de algumas conjecturas comuns e populares.
Assim, pois, o que dizer de tudo isso face a ciência
moderna? Ora, certas coisas podem ser afirmadas sem qualquer
receio de contradição, e eis a primeira: este problema, a controvérsia
entre a ciência e a Bíblia, é um dos que são grandemente exagerados. A
dificuldade, geralmente, se deve ao fato de que, por um lado, o
que se propõe como ciência não é ciência, e sim, meramente
opinião e pressuposição; e, por outro lado, o que se considera
como bíblico, muitas vezes não é o ensino bíblico. Por isso, se
vocês tiverem uma falsa concepção da Bíblia e da ciência, então
óbvia e facilmente se verão provocando uma acirrada disputa
entre ambas. O problema se deve largamente ao fato de que as
pessoas persistem em citar erros como fatos, e pressuposições
como verdades. Devo asseverar sempre, porém, que não estou
cônscio de qualquer contradição real entre o ensino da Bíblia e
os verdadeiros fatos científicos estabelecidos. Ora, essa é a coisa
mais importante de todas.
É deveras surpreendente observar o modo como a Bíblia
faz afirmações que entram na esfera da ciência. Tem-se realçado
freqüentemente que, se compararmos o livro de Gênesis com
alguns dos relatos da literatura egípcia ou babilónica acerca da
origem da vida, do mundo e do homem, o contraste é
simplesmente incrível. Ali existem mitos e superstições,
exageros e grosseiras declarações que, manifestamente, são
impossíveis e ridículos. Não há nada disso nas Escrituras. Se
puserem a Bíblia em confronto com a literatura que é mais ou

174
menos da mesma data, a diferença é verdadeiramente notável.
E isso, creio eu, é uma partícula de evidência muito importante.
Muito bem, já lhes lembrei de passagem - mas é importante
dizê-lo novamente - que mesmo na época do livro de Jó já era
conhecido que a terra é um globo. A Bíblia jamais diz que a terra
é achatada. Em Jó 26:7 lemos isto: “O norte estende sobre o
vazio; suspende a terra sobre o nada.” Ora, se o livro de Jó é
(como provavelmente seja o caso) talvez o livro mais antigo do
mundo, remontando à mais remota antiguidade, então devemos
perguntar: como uma coisa dessas poderia ser conhecida? Quem
jamais teria pensado ou imaginado tal coisa? Evidentemente,
foi revelado por Deus. E atual. Caso vocês o prefiram, é ciência
moderna. E uma descrição da terra como globo.
Também, outra coisa que tem sido realçada com muita
freqüência é que a própria ordem da Criação apresentada no
primeiro capítulo de Gênesis é idêntica com a ordem que os
cientistas modernos nos dão - o que quero dizer por cientista
moderno é alguém que não é cristão e que rejeita a Bíblia.
E em seguida há outro ponto muito notável, a saber, foi
descoberto neste presente século que só há quatro grupos
sangüíneos, que toda a humanidade pode ser dividida nesses
quatro grupos, e que todos eles podem ser derivados de apenas
um casal. Então vocês se lembram do que o apóstolo Paulo falou
às pessoas de Atenas, que Deus “de um só fez toda a geração dos
homens...” (Atos 17:26). Finalmente, temos um contraste entre
o luzeiro maior e o luzeiro menor no livro de Gênesis. Noutras
palavras, eles compreenderam que havia certa diferença entre o
sol e a lua, fato este extremamente notável.
“Por outro lado”, pergunta alguém, “o que dizer das
declarações dos geólogos que nos dizem que uma camada foi
assentada, e em seguida veio outra camada, e assim vocês têm os
vários estratos?” Isso tem causado bastante problemas. Muitos
cristãos têm se sentido perplexos com isso, e muitas teorias têm
se apresentado numa tentativa de conciliar a Bíblia com essa
suposta evidência da geologia.
Alguns têm formulado a teoria de que Gênesis não pressupõe

175
ser um tratado científico, mas é apenas alegoria ou poesia, que a
Bíblia não reivindica ser cientifícamente exata, porém que é
uma maneira típica, poética e alegórica de descrever a Criação.
A isso responde-se que, naturalmente, não existe nenhum indício
de poesia nesses primeiros capítulos de Gênesis. A forma não é
de maneira alguma poética. Ela reivindica ser histórica.
Reivindica apresentar fatos, e a história que se segue imediata e
diretamente dela é certamente genuína história, e não alegoria.
Então outros dizem: “Bem, é claro que, sem dúvida, isso é
um mito.” E um mito, eles dizem, é algo que encorpora verdade
religiosa. É uma afirmação que não é necessariamente verdadeira
em si e por si mesma; é histórico, em certo sentido, e no entanto
não é histórico. Um mito não fornece informação sobre o que
realmente aconteceu, porém revela um significado e verdade
religiosos. Entretanto, no momento que dizemos que Gênesis,
capítulo 1 é um mito, nos pomos em dificuldades em relação à
Pessoa e ao ensino do Senhor Jesus Cristo, visto que em Seu
ensino sobre o divórcio, Ele Se referiu à criação do homem e da
mulher. Ele baseou todo o Seu argumento no fato de que a Criação
é história literal. Isso nos leva a estabelecer outra proposição, ou
seja, que vocês devem ser sempre cuidadosos, para que, ao
tentarem solucionar uma dificuldade, não se vejam criando uma
outra mais séria ainda. Voltaremos a isso mais adiante.
Então, outra forma de propor uma resposta à questão
geológica é a de introduzir aquela antiga concepção de que um
dia significa um longo período - argumento que já tratamos. E
aqui, outra vez me parece, voltamos para duas possibilidades:
uma é aquela teoria da restituição, à qual já me referi, que declara
que há um intervalo entre os versículos 1 e 2. Essa aparenta-me
ser uma explicação que seria adequada. Não estou afirmando
que é correta, mas parece ser a resposta para muitas dificuldades.
Se vocês, porém, não a aceitarem, então devem lembrar que,
afinal, os geólogos não estão todos concordes, e que ainda é
possível que estejam equivocados. Não posso provar isso,
entretanto devemos tê-lo sempre em mente como uma
possibilidade. A própria queda do homem pode ter produzido

176
tal cataclismo sobre a terra, o que resolveria a maior parte do
problema. Sabemos que Deus amaldiçoou a terra por causa do
pecado do homem. Qual foi o limite dessa maldição? O que
aconteceu, então, e o que aconteceu no dilúvio? A resposta,
naturalmente, é que simplesmente não sabemos. Mas é possível
que ali, de alguma maneira, algo aconteceu que esclarece
suficientemente essas diferentes camadas de que falam os
geólogos. Contudo, afinal de contas, há certos assuntos sobre os
quais é melhor dizer que não sabemos; é a única posição honesta
e segura a assumir.
Podemos afirmar, porém, que hoje a ciência é muito mais
humilde do que foi no início do século. Têm ocorrido grandes
mudanças e admissões nas atitudes e pontos de vista científicos.
A posição, por exemplo, em relação à astronomia, hoje, é muito
diferente da que era antigamente, e isso é algo admitido por todos
os competentes investigadores neste campo. Por conseguinte,
parece-me haver aqui uma regra: sejamos sempre cuidadosos
em diferenciar entre teorias e fatos, suposições e provas. Quando
alguém diz: “A ciência tem feito assim e assim”, verifiquem se
ele lhes está apresentando um fato e não meramente promovendo
a teoria de um cientista em particular.
. Ao mesmo tempo, porém, que aqueles dentre nós, que são
cristãos, sejam muito cuidadosos ao encarar os fatos quando os
mesmos são postos diante de nós. Que jamais levemos a culpa
de obscurantismo. Que jamais recusemos um fato só porque ele
torna as coisas difíceis para nós; que jamais tentemos inventar
fatos e jamais promovamos teorias que não sejam patentemente
genuínas. Por exemplo, houve um homem que certa vez tentou
defender o relato de Gênesis, afirmando crer que quando Deus
criou o mundo, Ele realmente criou esses estratos geológicos, e
que criou até mesmo os fósseis existentes neles. Tal atitude,
porém, faz toda a posição da Bíblia ridícula e fútil. Não devemos
jamais simplesmente sepultar nossas cabeças na areia e dizer:
“Bem, continuarei afirmando isto, seja o que for que venha a
ser dito!” Devemos ser razoáveis e dispostos a encarar a evidência
real, peneirando-a e examinando-a, mas lembrando sempre que

177
os cientistas são seres humanos, e que, como nós, são seres
humanos pecadores. Por essa razão, quando o pedirem a crer
que, só porque alguém é um cientista, ele é um mero intelectual,
não tem preconceito algum e é consumido por uma paixão pela
verdade, excluindo tudo mais, lembrem-se de que isso não é
verdade. Os cientistas, como o restante de nós, são cheios de
erros e de falhas. Aliás, eles estão entre os mais teimosos do
mundo moderno. Certamente que o dogmatismo não é algo
pertencente só aos púlpitos! Vocês podem achá-lo nos laboratórios
científicos, no rádio e nos livros.
Ora, isso me leva a sugerir uma ou duas palavras sobre a
difícil questão da evolução. Digo uma vez mais que, se eu fosse
consultar minhas próprias inclinações e sentimentos, eu não
faria isto. Por trinta e sete anos, mais ou menos, que tive que ler,
por várias razões, o argumento acerca da evolução, e confesso
que me sinto cansado dele. E até agora, indubitavelmente, eu sei
que ela é uma questão viva e ardente para muitos. Sei que muitos
jovens nas escolas e colégios, e outros lugares, estão sendo
ensinados coisas como se a evolução já fosse algo provado além
de qualquer dúvida. Sinto que por essas razões, se não por outras,
devo novamente fazer apenas um ou dois comentários, embora
do ponto de vista da doutrina bíblica não haja necessidade para
que eu faça isso.
Ora, quando nos aproximamos desta questão da evolução,
temos de começar com uma definição. Evolução, como comum
e popularmente compreendida, significa isto: a vida é algo que
se procria. É uma força e um poder em si e por si mesmos, e
produz um tipo de outro tipo anterior. Começamos com algo
completamente simples e não diferenciado, e disso evolui-se algo
mais desenvolvido e complexo, e isso por sua vez evolui em algo
ainda mais complexo, e assim por diante, e dessa maneira
subimos a escala de um ponto a outro.
Há muitos grupos de pessoas que crêem na evolução, e o
grupo mais comum e mais numeroso de todos compreende os
ateus que excluem Deus completamente - a assim chamada
evolução ateísta. Outrossim, existe também a teoria às vezes

178
chamada evolução deísta. Os proponentes deste ponto de vista
dizem: “Sim, cremos em Deus e cremos que Deus criou a matéria
no princípio. Tendo, porém, criado a matéria, Ele não fez nada
mais que isso. Ele injetou poder na matéria, e esta fez o resto
sozinha. Deus, por assim dizer, deu corda ao relógio; e, tendo
feito isso, Ele o deixou de lado, e o relógio teve que prosseguir
sozinho. Todas as grandes mudanças conducentes ao homem,
dizem eles, têm ocorrido, por assim dizer, automaticamente
saindo desse poder.
E há um terceiro grupo que defende o ponto de vista que se
chama evolução teísta. É constituído de pessoas que se dizem cristãs
- crêem em Deus, e ao mesmo tempo crêem na evolução. Vocês
os encontrarão tanto entre os católicos romanos como entre os
protestantes - inclusive os cristãos evangélicos protestantes.
Dizem que o desenvolvimento desses diferentes tipos e espécies
tem prosseguido, porém Deus o tem governado e tem intervido
freqüentemente no processo. Portanto, são distintos dos deístas
- são teístas e enfatizam a atividade de Deus.
Pois bem, não pretendo ficar nisso; gostaria simplesmente
de fazer alguns comentários. A primeira coisa que temos de
sempre lembrar é que a evolução não passa de teoria. Ninguém
pode prová-la. Aliás, há muitas teorias diferentes (as quais não
concordam entre si). Se porventura vocês quiserem conhecer
um dos melhores ataques de real valor contra a teoria particular
de Darwin, eu lhes recomendaria que lessem (e é provável que
vocês se assustem por eu citar o nome de tal homem) a introdução
de Bernard Shaw ao seu drama Man and Superman para uma
devastadora crítica contra o estigma particular da evolução
de Darwin. Shaw, vocês se lembram, cria em outro tipo de
evolução.
Tenho dito isso com freqüência, toda vez que me vejo
envolvido em discussões, e o passo a qualquer um que se vê
perturbado por pessoas que falam com muita loquacidade sobre
a evolução: a próxima vez que alguém vier a vocês e começar a
brandir esta palavra “evolução”, apenas interrompam e
proponham esta pergunta: “Em que marca ou teoria da evolução

179
você acredita?” E creio que vocês descobrirão que em nove casos,
entre dez, estarão introduzindo-os pela primeira vez ao
conhecimento da existência de mais de uma teoria. De maneira
que há muitas teorias, e um interessante argumento continua
bailando entre os seus advogados; todavia, nada está provado.
Demais disso, nenhuma das teorias realmente explica a origem
de tudo. Os cientistas falam de um grande planeta que começou
a esfriar - mas, de onde veio tal planeta? Falam desse limo
primitivo, desse protoplasma, porém de onde isso veio? De onde
vieram os gases que se resfriaram? E assim por diante. Não há
explicação para a origem das coisas. Eles admitem isso
francamente. E ainda é muito importante. Não apenas isso, eles
têm fracassado completamente em explicar por que certas
mudanças devem acontecer de qualquer modo. Por que esse limo
ou protoplasma não diferenciado se tornaria mais complicado e
envolvido? O que o fez assim? Não o sabem. Há um fracasso
total em explicar as mudanças, menos ainda para explicar por
que as mudanças seriam sempre ascendentes.
Os geólogos falam sobejamente sobre a evidência provida
pelos fósseis, e assim por diante. Entretanto, é um fato que os
registros geológicos mostram que existe uma fixidez de
protótipos. Um protótipo é sempre o mesmo no registro
geológico. Outra coisa que os registros demonstram é que cada
protótipo apareceu de repente. Não houve o evolver gradual de
um novo protótipo; subitamente, vocês encontram um novo
protótipo absolutamente completo. E o terceiro ponto sobre o
registro geológico consiste na escassez de evidência do assim
chamado elo perdido. Se um protótipo gradual e quase
imperceptivelmente se transforma em outro, então vocês
esperariam encontrar alguma evidência nesses depósitos de
algum desses estágios intervindo, e eles simplesmente não podem
ser encontrados. O elo perdido é um poderoso argumento.
Além disso, se vocês estiverem interessados em minha
opinião pessoal, colocá-la-ei na seguinte forma:
independentemente de minha fé na Bíblia como a inspirada e
autoritativa Palavra de Deus, unicamente sobre bases científicas,

180
jamais consegui aceitar a teoria da evolução. As dificuldades que
teria de enfrentar, se eu aceitasse a teoria da evolução, seriam
muitíssimo maiores do que as poucas dificuldades residuais que
me restaram quando aceitei o registro bíblico. Para que vocês
não venham a pensar, porém, que essa é simplesmente minha
opinião pessoal, deixem-me apresentar-lhes uma ou duas
afirmações de algumas autoridades nesses assuntos, para que
vejam o quanto substanciam minha afirmação. Existe um biólogo
chamado Delage, que creu na evolução, e eis o que ele disse:
“Alguém é ou não conformista (ou seja, crente na evolução), não
tanto por motivos deduzidos da história natural, quanto por
motivos baseados na opinião filosófica pessoal.” Aqui um homem
que crê na evolução e diz que o que realmente determina o ponto
de vista de uma pessoa não é tanto seu conhecimento científico
quanto sua opinião científica. Ele prossegue, dizendo: “Se alguém
assume sua posição baseando-se exclusivamente em fatos, deve-
-se reconhecer que a formação de uma espécie de outra espécie
não tem sido demonstrada de maneira alguma.” E esse foi um
homem que creu na evolução e foi um grande biólogo.
Outro cientista afirmou: “O darwinismo é mais uma religião
do que uma ciência.” Ele é, diz ainda, não tanto uma questão de
fato científico quanto de perspectiva conclusiva de uma pessoa.
Dessa forma, diz ele, a idéia da evolução tem-se tornado uma
convicção sagrada de milhares, convicção essa que não tem mais
nada a ver com pesquisa científica imparcial. Este ponto de vista
foi reiterado pelo Professor D. M. F. Watson, que certa vez disse
numa radiodiíusora: “A evolução propriamente dita é aceita pelos
zoólogos, não porque tenha sido vista ocorrer, ou porque possa
ser provada como verdadeira pela evidência logicamente
coerente, mas porque a única alternativa, a criação especial, é
claramente inacreditável.” Vejam vocês: como ele não tinha os
fatos para comprovar sua teoria, porém, visto que não podia crer
na idéia de um Deus que cria, então creu na evolução.
Poderia prosseguir apresentando-lhes citações. Outros -
como Sir Arthur Keith, por exemplo - admitem que a evolução
é “um dogma básico do racionalismo”. Então, deixem-me

181
apresentar-lhes apenas mais uma declaração. Um membro da
Royal Society (e ser um membro da Royal Society é a maior
distinção que um cientista poderia ter neste país ou em qualquer
outro) observou que é um “suicídio profissional” para um biólogo
atacar a evolução. Noutras palavras, ela é um dogma que envolve
sentimento e calor, e aquele que se aventura, mesmo a despeito
desses fatos, a dizer que não crê em tal coisa, essa pessoa está,
mais ou menos, cometendo “suicídio profissional”. Há, porém,
um certo número de grandes nomes, na esfera da ciência, que
jamais aceitaram a evolução. Sir Ambrose Fleming, Sir William
Shelton, e muitos outros, dos quais poderia fazer-lhes menção.
Permitam-me, porém, apresentar-lhes apenas duas citações
finais: a única afirmação, escreve um biólogo, que a ciência pode
fazer é dar a impressão de que ela nada sabe sobre a origem do
homem. Temos alcançado, diz outro, “um estágio de muito
ceticismo generalizado.”
E, por isso, devemos compreender que tudo o que está sendo
ensinado e constantemente asseverado não passa de teoria, sem
qualquer comprovação. E uma forma de dogmatismo, uma
religião anti-Deus. Isso não se aplica, naturalmente, ao
evolucionista teísta, mas, falando em termos gerais, descreve os
outros.
Portanto, torna-se duplamente desgastante ver com quanta
freqüência a mídia se recusa a permitir que o ponto de vista
anti-evolução seja declarado. Tal coisa, naturalmente, apenas
confirma o prejuízo que se acha envolvido. A despeito dessas
admissões por diversos cientistas, o prejuízo é tal que o outro
lado nem mesmo é permitido falar para si mesmo. Daí tudo
indicar, nitidamente, que estamos diante, não de um problema
de ciência, mas de um problema de um espírito e de uma atitude
de antagonismo em relação a Deus, e cuja preocupação, como
alguns desses cientistas têm prontamente admitido, consiste em
provar que a terra não podia ter começado como a Bíblia diz.
Aqui, pois, deixamos esta consideração da relação do relato
bíblico da criação com a popular e prevalecente opinião
científica. Não tive tempo de tratar dos evolucionistas teístas,

182
porém não consigo entender pessoas que se prontificam a aceitar
a teoria da evolução ante a ausência de provas e permitir que
elas mesmas se metam em dificuldades. Que jamais
comprometamos a verdade de Deus para encaixar alguma teoria
científica. O tempo logo virá quando essa teoria científica, se
ela contradiz a Bíblia, será substituída por outra. Portanto, que
jamais admitamos que nossa posição nos seja determinada por
passageiras teorias ou correntes da assim chamada opinião
científica. Defendamos a verdade como se acha revelada, e
sempre, repito, com uma mente aberta, atentando para os fatos
que são colocados diante de nós. Tornemo-nos, porém,
inteiramente livres desse dogmatismo pseudo-científico que
tantas vezes se oculta por trás da aparência de um genuíno
espírito científico.

183
13
A PROVIDÊNCIA
Em nossa abordagem destas doutrinas bíblicas, chegamos
agora à consideração da doutrina bíblica da providência. Creio
ser correto considerarmos esta doutrina antes de tratarmos do
homem em particular, visto que ela vêm a seguir, em seqüência
lógica, a doutrina da Criação. Ora, talvez a melhor maneira de
descrever o que entendemos por providência seja defíni-la em
termos de sua relação com a Criação. Podemos colocá-la assim:
a Criação, como já vimos, significa trazer à existência algo que
antes não existia. Assim, se isso é Criação, então providência
significa a continuação, ou dar prosseguimento, ao que foi trazido
à existência. A Criação traz coisas à existência; a providência as
conserva ou garante seu prosseguimento na existência, no
cumprimento dos propósitos de Deus. A doutrina da providência,
portanto, não significa apenas que Deus tem presciência do que
está por acontecer. Ao contrário, é uma descrição de Sua atividade
contínua, do que Ele faz no mundo e do que tem continuado a
fazer desde que criou o mundo inicialmente.
Ora, não pode haver dúvida alguma de que esta doutrina,
na atualidade, é uma doutrina muito importante para nossa
consideração. Cada doutrina bíblica, naturalmente, é importante,
e não devemos considerar nenhuma em detrimento de outra,
mas se contemplarem a longa história da Igreja, descobrirão que,
em diferentes épocas e em diferentes séculos, certas doutrinas
assumiram particular importância. A grande doutrina, nos
primeiros séculos da Igreja, foi, necessariamente, a da Pessoa de
Cristo. E precisava ser. Essa era a doutrina mais hostilizada; e
assim a Igreja colocou sua máxima ênfase sobre ela. Na época da
Reforma, foi a doutrina da justificação pela fé somente, e assim
por diante, em diferentes épocas. Cabe a nós pôr especial ênfase
sobre doutrinas particulares, e estou preparado para asseverar
que, talvez, neste século vinte, no qual vivemos, a mais

184
importante, em muitos aspectos, é a da providência.
Espero, no entanto, que ninguém pense que eu esteja
argumentando que a doutrina da providência é mais importante
do que a doutrina da encarnação, ou da expiação; essa não é
minha posição. Estou simplesmente afirmando que há certas
razões por que devemos prestar particular atenção a esta doutrina.
Permitam-me apresentar-lhes minhas razões. A primeira é o
estado do mundo nesta presente época, especialmente o estado
do mundo ao longo de todo este século, até ao presente momento.
Esta doutrina da providência é a pedra de tropeço para um grande
número de pessoas que se acham fora de Cristo e fora da Igreja.
Dizem: “Não posso crer em sua doutrina; não posso crer em seu
evangelho. Você afirma que Deus é um Deus de amor - ora, olhe
bem para o mundo; olhe bem para as coisas que têm acontecido
no mundo; olhe bem para essas duas guerras mundiais! Como
lhe seria possível conciliar algo assim com um Deus de amor,
um Deus que você diz ser todo-poderoso, tão poderoso que não
há nada que Ele não possa fazer, caso o queira? Como poderia
ser explicado tudo isso? Como vocês podem ver, a própria situação
histórica neste século concentra a atenção imediatamente sobre
esta grande doutrina da providência.
Outra coisa também que tem concentrado a atenção na
doutrina da providência é o que chamamos “providências
especiais”. Ora, as providências especiais são intervenções
especiais de Deus em favor de indivíduos ou de grupos de pessoas.
Por exemplo, em Dunquerque, durante a guerra, uma espécie de
nevoeiro desceu para proteger os soldados enquanto que, ao
mesmo tempo, o mar estava inusitadamente calmo e agradável,
e muitas pessoas deste país estavam prontas a afirmar que tal
coisa foi um ato providencial de Deus. Diziam que Deus havia
intervido a fim de salvar nossas tropas, ao tornar-lhes possível
que fossem trazidas de volta a este país. Há também os que dizem
a mesma coisa sobre a defesa de Malta no tempo da guerra. Então,
evidentemente, tornou-se costumeiro e tradicional neste país
dizer-se que a mesma coisa aconteceu na época da Armada
Espanhola: o que realmente explicaria a destruição dessa frota

185
foi a mudança na direção do vento.
Além do mais, há pessoas que reivindicam providências
especiais em suas próprias vidas pessoais. “É maravilhoso
demais”, dizem. “Vocês sabiam? eis o que me aconteceu...” - e
descrevem-lhes como certas coisas parecem ter sido combinadas
a fim de se conformarem às suas circunstâncias especiais! E
então, quando vocês lhes dizem que não podem afirmar tal coisa,
elas se ressentem de toda a doutrina da providência.
Outra razão por que é importante ser esclarecido sobre esta
doutrina, neste século, é que muito do pensamento dos homens
e mulheres de hoje parece estar determinado pelo que é chamado
“perspectiva científica”. E por isso que, indubitavelmente,
grande número de pessoas nem mesmo começa a considerar a
grande mensagem do cristianismo, pois dizem: “Toda a sua
mensagem inclui a idéia de milagres e de intervenções de Deus.
Para todos aqueles que assumem uma perspectiva científica, como
eu faço, para a totalidade da vida, tais coisas são uma total
impossibilidade, e se o seu evangelho contém o sobrenatural,
realmente não posso começar a considerá-lo.”
E a última razão que adicionaria é esta: vocês não podem
começar a falar sobre oração, sobre oração respondida, sem ao
mesmo tempo introduzir a doutrina da providência. Por isso
devemos considerar esta doutrina, visto que muitas outras
questões a pressupõem.
Então, o que a Bíblia nos diz sobre a doutrina da
providência? Estamos novamente encarando um tema muito
difícil. As doutrinas específicas sobre a salvação, as quais
estaremos abordando, são muito simples em comparação com
uma doutrina como esta. Ela é uma daquelas doutrinas
inescrutáveis, e há um hino que nos lembra isso. Diz William
Cowper:

“Deus opera de uma forma misteriosa, Suas maravilhas a realizar. ”


e
“A incredulidade cega com certeza errará. ”

186
E não só a incredulidade cega, mas também a carência de fé,
aquele desejo de entender o que é impossível, com certeza nos
levará ao conflito, se não ao erro. Portanto, aproximemo-nos da
doutrina da providência com reverência e humildade, indo só
até onde as Escrituras nos levam, porém não indo além disso.
Ora, a Bíblia ensina em toda parte, muito claramente, como
lhes mostrarei, que Deus está no controle de todas as coisas. O
Salmo 104 é suficiente, em si e por si mesmo, para estabelecer
essa doutrina. Não há limite para o que Ele faz. O Salmo 103:19
também diz: “O Senhor tem estabelecido o seu trono nos céus, e
o seu reino domina sobre tudo.” Em toda parte. E a Bíblia nos
ensina isso acima de tudo, ao contrário do deísmo, ao qual já fiz
referência, que ensina a doutrina que considera o universo como
uma espécie de relógio feito pelo relojoeiro, ao qual dá corda, e
então o põe a funcionar sozinho. Mas a doutrina da providência
contradiz isso, e gosto bastante da comparação uma vez usada
para salientar a diferença. A doutrina da providência nos diz
que o universo, bem como tudo quanto nele existe, é como um
grande navio que está sendo pilotado dia a dia, hora a hora,
minuto a minuto, segundo a segundo, por Deus mesmo. Demais
disso, naturalmente que ela é contra também o panteísmo, o
qual diz que Deus é tudo e em tudo, e que por isso vocês não
podem diferenciar entre o universo e o próprio Deus. A doutrina
da providência contradiz ambos esses conceitos.
O que fazer, pois, para encontrarmos esta doutrina na Bíblia?
Bem, antes de tudo a encontramos numa série de afirmações
diretas nas Escrituras. Fornecer-lhes-ei uma lista delas mais
adiante. Em seguida, outro argumento muito poderoso em favor
da doutrina da providência tem por base o fato da profecia. Não
seria possível para um homem inspirado por Deus predizer o
que está para acontecer, talvez em várias centenas de anos, a
menos que Deus estivesse no comando de tudo. Profecia não é
meramente presciência, é uma garantia de que os eventos
profetizados irão acontecer, visto que Deus está no controle.
Por conseguinte, outro grande argumento, como já vimos,
deriva das respostas às orações. Se não crêssemos que Deus

187
controla tudo, não haveria nenhuma razão para orarmos - não
oraríamos para que haja sol; não oraríamos para que haja chuva;
não oraríamos para termos saúde e para que as enfermidades
fossem controladas. A oração, em certo sentido, seria algo
ridículo, se não crêssemos na doutrina da providência. E essa é
a razão por que os deístas não crêem na oração. Os panteístas
não oram; para eles não há qualquer propósito nela. Aqueles,
porém, que crêem na doutrina da providência, obviamente oram,
porque a própria idéia dessa doutrina leva imediatamente à
oração.
E o nosso último argumento geral é o argumento acerca dos
milagres. Não fosse o fato da doutrina sobre a providência ser
verídica, não fosse o fato de Deus ter suas mãos sobre todas as
coisas, e de estar no comando de tudo, então os milagres
simplesmente não aconteceriam nunca.
Então, o que exatamente queremos dizer por providência?
Não consigo imaginar uma definição ou descrição melhor do
que esta: “Providência é o exercício contínuo da energia divina,
por meio do qual o Criador sustenta todas as Suas criaturas, é
operante em tudo o que ocorre no mundo, e dirige todas as coisas
ao seu destinado fim.” Consideraremos a prova bíblica para essa
afirmação mais adiante. Claramente, há três elementos nessa
idéia de providência, e devemos fazer diferenciação entre eles
tanto no pensamento quanto na prática, ainda que, naturalmente,
os três tendem a operar juntos. É possível visualizar os três
aspectos da providência de diferentes ângulos. O primeiro é o
aspecto ou elemento da preservação - “aquela obra contínua de
Deus por meio da qual Ele sustenta as coisas que criou,
juntamente com as propriedades e energias com as quais Ele as
dotou.” Ora, isso é muito importante. A Bíblia ensina que Deus
preserva tudo quanto Ele criou. É uma obra contínua. Há quem
insista em afirmar que esta doutrina da preservação
simplesmente significa que Deus não destrói a obra que Ele uma
vez fez. Isso, contudo, não é preservação. Ela significa mais do
que isso; significa que Ele conserva tudo em existência.
Outros, também, têm entendido mal esta doutrina.

188
Incidentalmen te, o grande Jonathan Edwards, um dos maiores
teólogos que a Igreja Cristã já conheceu, esse grande americano
que viveu há dois séculos atrás - se alguma vez encontrarem
qualquer um de seus escritos, comprem-no e devorem-no! - o
próprio Jonathan Edwards quase caiu em erro sobre este assunto.
E aquele erro que afirma que preservação significa um processo
contínuo de criação, de modo que Deus está continuamente
recriando, sob nova forma e mais uma vez, tudo quanto existe, e
tudo continua funcionando, de momento a momento, ao ser
recriado. Isso, porém, não é realmente preservação, como a
entendo, e como a mesma tem sido tradicionalmente entendida.
Então a colocaremos assim: tudo quanto foi criado por Deus
tem uma real e permanente existência propriamente sua,
independentemente do Ser de Deus; isso, porém, jamais deve
ser tomado no sentido de auto-existência, a qual pertence unica­
mente a Deus. Se porventura as coisas fossem auto-existentes,
então não dependeriam de Deus a fim de continuarem. Eis a
diferença. Deus criou uma coisa e Ele a mantém viva. Ele
sustenta todas as coisas, e elas continuam a existir como
resultado de um exercício contínuo e positivo de Seu divino
poder.
Notem como o Salmo 104 o coloca nos versículos 28-30:
“Dando-lho tu, eles o recolhem; abres a tua mão, e enchem-se
de bens. Escondes o teu rosto, e ficam perturbados: se lhes tiras
a respiração, morrem, e voltam para o seu pó. Envias o teu
Espírito, e são criados, e assim renovas a face da terra.” Ora,
Deus não cria esses animais da terra constantemente. O que Ele
faz é conservar a vida, preservar o que já criou. Paulo,
naturalmente, pôs isso com exatidão em Atos 17:28: “Porque
nele vivemos, e nos movemos, e existimos.” Ele tem em mente
a mesma coisa em Colossenses 1:17: “E ele é antes de todas as
coisas, e todas as coisas subsistem por ele.” São preservadas,
prosseguem por meio dEle. Tal coisa é afirmada ainda mais
notavelmente em Hebreus 1:3: “sustentando todas as coisas pela
palavra do seu poder.” Ele não somente as criou; Ele as sustenta.
Não há nada no universo que continuaria avançando se Deus

189
não o sustentasse. Por isso, jamais deveríamos pensar, pois, a
respeito do universo como algo que Deus criou e então permitiu
que agisse por conta própria. Isso é deísmo.
Em segundo lugar, há um aspecto governamental da
providência. Isso significa a atividade contínua de Deus por meio
da qual Ele conduz todas as coisas para um fim e um objetivo
definidos, e faz assim a fim de assegurar a consumação de Seu
próprio propósito divino. “O Senhor reina; regozije-se a terra”
(Sal. 97:1). Ele é o Rei do universo. Eleé o Senhor dos senhores.
Tudo se acha debaixo de Seu controle: “O Senhor tem
estabelecido o seu trono nos céus” (Sal. 103:19). “Eis que as nações
são consideradas por ele como a gota dum balde, e como o pó
miúdo das balanças: eis que lança por aí as ilhas como a uma
coisa pequeníssima” (Is. 40:15). Eis a idéia de governo. Ou, então,
tomem a poderosa afirmação de Daniel 4:34,35:

“Mas ao fim daqueles dias eu, Nabucodonosor,


levantei os meus olhos ao céu, e tomou-me a vir o meu
entendimento, e eu bendisse o Altíssimo, e louvei, e
glorifiquei ao que vive para sempre, cujo domínio é um
domínio sempiterno, e cujo reino é de geração em geração.
E todos os moradores da terra são reputados em nada; e
segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra: não há quem possa estorvar a sua mão,
e lhe diga: que fazes?”

O aspecto governamental da doutrina da providência de Deus


é de vital importância, e percorre toda a Bíblia do começo ao
fim. “Seus propósitos prosseguirão inabaláveis, desenrolando-
-se a cada hora”, diz William Cowper. Há um fim para esta
criação, um propósito, um objetivo. Tudo se encaminha para o
determinado propósito de Deus.
O terceiro aspecto da providência, que preciso enfatizar, é
o que geralmente se chama o aspecto de concorrência. Significa
“a cooperação de Deus e Seu divino poder com todos os poderes
subordinados segundo as leis preestabelecidas de sua operação,

190
levando-as a agir, e agir precisamente como fazem.” Se
preferirem, ela significa a totalidade da idéia da relação das causas
secundárias com a ordenação de Deus de todas as coisas. O
ensino da Bíblia é que Deus opera em e através das causas
secundárias. Suponho que estamos todos informados a respeito
de causas secundarias. Descobrimos, queiramos ou não, que tudo
quanto acontece tem uma causa; certas coisas conduzem a outras
coisas. Vocês vêem isso através de toda a natureza. Uma coisa
produz outra. Ora, essas são as causas secundárias, e a doutrina
bíblica da providência ensina a existência de causas secundárias.
Ela, porém, é muitíssimo clara em sua ênfase de que as causas
secundárias não operam automaticamente nem independente­
mente. Deus opera através delas. Elas têm sua própria operação,
Deus, porém, está acima de todas essas operações.
Além disso, é importante realçar este ponto, visto que tantas
pessoas hoje falam dos poderes da natureza como se eles fosssem
algo independente. Mas não o são. Há poderes e leis na natureza,
não, porém, independentes de Deus. Deus está em direta relação
com eles, e os usa e os ordena e os manipula; por isso, sustentamos
as duas idéias a um e ao mesmo tempo - a realidade das causas
secundárias, entretanto sua dependência de Deus e Seu controle
sobre elas.
Tal fato é um mistério, sem dúvida. Eis um aspecto difícil
desta doutrina - como podem essas coisas ser verídicas a um e
ao mesmo tempo? As Escrituras, porém, o ensinam. Vocês o
encontrarão no Salmo 104:20,21 e 30. Amós 3:6, diz: “Tocar-se-
-á a buzina na cidade, e o povo não estremecerá? Sucederá
qualquer mal à cidade, e o Senhor não o terá feito?” Mateus 5:45
nos diz: "... porque faz que o seu sol se levante sobre maus e
bons, e a chuva desça sobre justos e injustos.” Noutras palavras,
essas coisas não acontecem automaticamente como resultado
das causas secundárias ou leis da natureza. Deus está por trás
delas. Ele está operando nelas e através delas. Ele não é
divorciado delas.
Portanto, aí estão, abreviadamente, os três aspectos da
providência. Vocês poderão ponderá-los assim: a idéia de

191
preservação nos faz pensar na existência de todas as coisas. A
idéia de governo nos fala que essa existência é orientada. E a
doutrina da concorrência nos fala sobre como a atividade é
orientada. Existência, orientação e atividade.
Em seguida, a próxima questão a ser considerada é esta: de
que maneira é a providência exercida? Ou, pondo-a de outra
forma: quais são os objetivos da providência? Ora, aqui costuma-
-se dividir a providência em geral e especial. Temos justamente
visto que em toda a Bíblia somos instruídos que a totalidade do
universo está sendo controlada por Deus. Isso é providência geral.
Ele não somente o fez; Ele o faz prosseguir, e o mantém sob
controle.
Em seguida vem a providência especial, a qual pode ser
concebida de três formas. Antes de tudo está o cuidado de Deus
por cada parte particular do universo em sua relação com o todo.
Há sobejas referências escriturísticas para prová-lo. O Salmo 104
outra coisa não é senão uma grande elaboração desse ponto. Deus
não só controla o universo todo, mas também controla os riachos,
os mananciais, as árvores e as plantas - não só geral, mas também
particularmente.
A providência especial também significa que Deus tem um
cuidado especial para com todas as criaturas racionais: animais
e seres humanos. Através da Bíblia somos informados que Deus
controla a existência de todas as pessoas, quer más quer boas.
Eis a razão por que Ele faz Seu sol nascer e a chuva cair sobre
todos os tipos de pessoas. Deus assim Se relaciona até mesmo
com os pecadores, até mesmo com homens e mulheres que O
negam e não crêem nEle. As Escrituras ensinam que eles não
estão fora de relacionamento com Deus.
Acima de tudo, porém, inevitavelmente a providência
especial significa o cuidado especial de Deus para com Seu próprio
povo, bem como o que Ele faz por esse povo.
Desse modo, passemos agora às afirmações escriturísticas e
aos princípios escriturísticos. Primeiramente, a Bíblia nos afirma
que a providência de Deus é exercida sobre o universo como um
todo. O Salmo 103:19, o qual já citamos, declara: “seu reino

192
domina sobre tudo”. Encontramos o mesmo em Efésios 1:11: “o
propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho de
sua vontade”. Deus está controlando todas as coisas em todos os
lugares - os céus e a terra, e debaixo da terra. Ele tem um
propósito por trás de tudo.
Em segundo lugar, a providência de Deus é exercida sobre o
mundo físico; peço-lhes que examinem a totalidade do Salmo
104, bem como Mateus 5:45.
Em terceiro lugar, a providência de Deus está controlando
a criação irracional - os animais. Vemos isso novamente no
Salmo 104, bem como em Mateus 6:26, onde lemos sobre “as
aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em
celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta.” Enquanto que em
Mateus 10:29, somos informados sobre os pardais: “Não se
vendem dois passarinhos (pardais) por um ceitil? e nenhum deles
cairá em terra sem a vontade de vosso Pai.”
Em quarto lugar, somos informados que Sua providência é
exercida sobre os negócios das nações; você encontrará isso em
Jó 12:24: “Tira o coração aos chefes das gentes da terra, e os faz
vaguear pelos desertos, sem caminho.” Ou novamente em Atos
17:26: “E de um só fez toda a geração dos homens, para habitar
sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes
ordenados, e os limites da sua habitação.”
Em quinto lugar, somos informados de que Deus governa
providencialmente o nascimento do homem e seu quinhão neste
mundo. Lemos em 1 Samuel 16:1: “Então disse o Senhor a
Samuel: até quando terás dó de Saul, havendo-o eu rejeitado,
para que não reine sobre Israel? Enche o teu vaso de azeite, e
vem, enviar-te-ei a Jessé o belemita; porque dentre os seus filhos
me tenho provido de um rei.” E Paulo diz sobre si mesmo em
Gálatas 1:15,16: “Mas quando aprouve a Deus, que desde o ventre
de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça, revelar
seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios.”
Em sexto lugar, descobrimos que a providência de Deus
determina os sucessos exteriores e insucessos da vida humana:
“Porque nem do oriente, nem do ocidente, nem do deserto vem

193
a exaltação. Mas Deus é o Juiz; a um abate, e a outro exalta” (Sal.
75:6,7).
O sétimo é este: que Deus governa as coisas que parecem
ser fortuitas, ou aparentemente insignificantes. Meu texto
favorito para provar isso é o primeiro versículo de Ester, capítulo
6, onde somos informados de que o rei “não podia dormir”.
“Caramba!”, diz alguém, “com certeza isso nada tem a ver com
a providência de Deus!” Leiam, porém, o livro de Ester, e então
vocês descobrirão este ponto crucial. Faz-se plenamente evidente
que o rei não podia dormir nessa noite porque Deus o manteve
acordado. Então Mordecai foi salvo, e Ester e seu povo salvos
através da instrumentalidade de Deus em causar a insônia - algo
ostensivamente trivial e aparentemente fortuito.
Em oitavo lugar, a providência de Deus protege os justos.
Leiam o Salmo 4:8: “Em paz também me deitarei e dormirei,
porque só tu, Senhor, me fazes habitar em segurança”, diz o
salmista. Por quê? O Senhor o havia protegido. Aliás, isso é
demonstrado em ambos os Salmos, 4 e 5.
E Deus supre, em nono lugar, através da providência, as
necessidades de Seu povo: “O meu Deus, segundo as suas
riquezas, suprirá todas as vossas necessidades em glória, por
Cristo Jesus” (Fil. 4:19).
E em décimo e último lugar, vocês descobrirão que toda
resposta à oração que se acha nas Escrituras é apenas uma
afirmação de que Deus providencialmente ordena as coisas dessa
forma para o Seu povo.
Aliás, isso nos leva ao que se chama “providências
extraordinárias”, ou, usando outros termos: milagres, pois
milagres são pertinentes a este tópico sobre a providência. Um
milagre é uma providência extraordinária. “Qual é a diferença
entre a providência ordinária e a extraordinária?”, perguntaria
alguém. E eu responderia a essa pergunta assim: na providência
ordinária, Deus opera através de causas secundárias, de acordo
com as leis que Ele estabeleceu na natureza. Nas providências
extraordinárias, porém, ou milagres, Deus opera imediatamente,
diretamente, e sem as causas secundárias. Um milagre consiste

194
em Deus operar, não contra a natureza, e sim, de uma forma
sobrenatural.
Pessoas freqüentemente se metem em dificuldades sobre esta
questão dos milagres, porque começam a imaginar que um
milagre é algo contrário à natureza. Mas isso é completamente
errôneo, e é errôneo devido sua idéia sobre a natureza ser
igualmente errônea. Eles esquecem que Deus opera na natureza.
Isso se deve simplesmente ao fato de que Deus tem duas
diferentes maneiras de operar. Geralmente, Ele executa Seus
propósitos através das causas secundárias; às vezes, porém, Ele
o faz diretamente, e isso constitui um milagre. Deus está
operando, como já vimos extensamente, em tudo, sempre e em
toda parte; de modo que quando temos um milagre, é ainda Deus
operando, mas operando de uma forma distinta; e negar a
possibilidade de milagres é afirmar que Deus Se acha confinado,
ou limitado, por Suas próprias leis.
Algumas pessoas, naturalmente, insistem que os milagres
são impossíveis, em razão de interromperem as leis da natureza.
Se tais pessoas têm qualquer crença em Deus, mesmo assim elas
inferem que Deus está agora circunscrito pelas leis que Ele
mesmo dispôs na natureza, e nada pode fazer a respeito. Reduzem
Deus a uma posição subserviente à Sua própria lei. Isso, porém,
nega a doutrina acerca de Deus em todos os sentidos. Existe
igualmente uma tendência entre algumas pessoas de crerem em
milagres somente quando pensam que podem explicá-los!
Permitam-me ilustrar isso com uma história. Lembro-me
que certa vez um homem, um diácono, veio falar comigo sobre
seu pastor. Ele se sentia bastante preocupado com o chamamento
desse pastor para sua igreja, uma vez que não estava certo sobre
a integridade e a ortodoxia desse homem. Mas certo dia ele veio
a mim com grande emoção e alegria, dizendo: “Você sabia que
nosso pastor agora crê em milagres?!”
“O que o convenceu?”, perguntei. “Qual é a sua evidência?”
“Bem”, respondeu ele, “ele pregava no domingo à noite,
quando nos contou que algumas recentes descobertas feitas na
região de Sodoma e Gomorra revelaram que houve certas

195
substâncias ali que podiam muito bem esclarecer o que está
descrito no Velho Testamento.” Por isso, seu pastor agora cria
em milagres! O fato, entretanto, é que ele continuava não crendo
em milagres, pois se vocês podem explicar uma coisa
cientificamente, não é mais um milagre. À guisa de definição,
um milagre é algo que você não pode explicar.
Alguém, certa vez, disse que um astrólogo havia descoberto
justamente naquele tempo - a pessoa que me falava estava
realmente muito excitada com esse fato, e era evangélica - que
quando os filhos de Israel atravessaram o Mar Vermelho, o sol e
a lua se achavam tão posicionados, que era mais do que provável
que uma espécie de temporal irrompera, rechaçando uma parte
do Mar Vermelho. E assim foi possível aos filhos de Israel
atravessarem em terra enxuta, apesar de tudo. E tal pessoa
credulamente pensava que agora era crente em milagres! Não, e
não! Vocês notarão, provavelmente, que existe uma tendência
para tal procedimento hoje. Significa simplesmente que tais
pessoas não estão contentes em sua crença nos milagres, e que
realmente não aceitam a doutrina bíblica. Um milagre, à guisa
de definição, é algo sobrenatural. Não pode ser explicado em
termos da operação comum das leis da natureza ou das causas
secundárias. Ele consiste na ação direta e imediata de Deus.
Creio que o real problema em relação à crença nos milagres
se deve ao fato de que as pessoas se aproximam deles do ângulo
da ciência ou da natureza, em vez de fazerem isso pelo prisma
de Deus, que é todo-poderoso, que governa e controla tudo. O
perigo neste século consiste na deificação da natureza,
considerando-a uma espécie de poder absoluto no qual nem
mesmo Deus pode interferir. Essa é uma noção completamente
falsa. Uma vez que tenhamos uma idéia correta da providência
de Deus, creio que a maior parte de nossas dificuldades em relação
aos milagres será removida.
Agora cabe-nos mencionar uma ou duas dificuldades que as
pessoas às vezes têm em relação a esta doutrina da providência.
Dizem que estão dispostos a crer na providência em geral,
mas não podem compreender plenamente o conceito de

196
uma providência especial, e afirmam que têm duas razões
para tal atitude. A primeira é que Deus é seguramente grande
e todo-poderoso demais para inquietar-Se e preocupar-Se com
os detalhes de nossos mesquinhos problemas. A segunda é que
as leis da natureza tornam tal interferência impossível. Mas a
Bíblia nos ensina que Deusestó, sim, preocupado com os detalhes
de nossas vidas. Ele responde às orações de Seu povo,
detalhadamente, em ínfimas questões, e Ele nos encoraja a levar
todas as coisas a Ele. Paulo diz: “Não estejais inquietos por coisa
alguma: antes as vossas petições sejam em tudo conhecidas diante
de Deus” (Fil. 4:6). No tocante a essa segunda objeção, o ensino
bíblico a nega peremptoriamente. As Escrituras ensinam esta
providência especial de Deus positivamente; e os milagres,
naturalmente, a provam cabalmente.
Em última instância, porém, eis o grande problema: se Deus
governa e controla todas as coisas, então qual é Sua relação com
o pecado? Tudo o que posso fazer, em resposta, é estabelecer
uma série de proposições que são claramente ensinadas nas
Escrituras. A primeira é que os atos pecaminosos se acham sob
o controle divino, e ocorrem somente pela permissão de Deus e
de acordo com o Seu supremo propósito. Se querem prova disso,
vocês a acharão no caso de José e seus irmãos. “Assim não fostes
vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por
pai de Faraó”, disse José (Gên. 45:8). Deus permitiu a ação
pecaminosa deles, e a controlou. Encontrarão o mesmo ensino
referente à morte de nosso Senhor como se acha exposta por
Pedro, no dia de Pentecoste (Atos, capítulo 2).
A segunda é que Deus restringe e controla o pecado. No
Salmo 76:10, lemos: “Porque a cólera do homem redundará em
teu louvor, o restante da cólera tu o restringirás.”
A terceira é que Deus governa o pecado para o bem. Gênesis
50:20 o põe nestes termos: “Vós bem intentastes mal contra mim,
porém Deus o tornou em bem, para fazer como se vê neste dia,
para conservar em vida a um povo grande.” Deus governava o
pecado, e Ele fez exatamente o mesmo no caso da morte de nosso
Senhor.

197
Minha última proposição é que Deus jamais causa o pecado,
nem o aprova. Ele apenas o permite, o dirige, o restringe, o limita
e o governa. Tão-somente as pessoas são as responsáveis por
seus pecados. O primeiro capítulo de Tiago nos transmite esse
ensino específico com muita clareza.
Concluamos com dois pontos gerais. O primeiro é para mim
um dos mais confortantes de todos. Ao ler a Bíblia, não posso
deixar de crer que, afinal de contas, toda a providência é por
causa do povo de Deus. Se vocês quiserem uma prova disso, ela
se acha em Romanos 8:28: “E sabemos que todas as coisas
contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus...”
Para mim é perfeitamente evidente que, afinal, Deus está,
portanto, preocupado com tudo por causa do próprio povo de
Deus, e tudo está sendo manipulado para o nosso benefício e
para o nosso bem. Esse é um pensamento maravilhoso, e eu lhos
recomendo. Enquanto vocês lêem a Bíblia, mantenham seus
olhos nisto: a providência realmente se preocupa com a salvação,
e que tudo transcorre no mundo por causa do povo de Deus.
Não fosse pelo Seu povo, tudo seria destruído. Todos os demais
- todos os pecadores - claramente marcham para a destruição.
São preservados e mantidos ativos por causa do povo de Deus e
por causa da salvação divina.
Meu outro ponto é o seguinte: sejam prudentes - eis uma
advertência! Sejam sempre prudentes na aplicação de qualquer
evento específico. Deixem-me explicar: sempre que algo bom
acontece a nós ou ao nosso país, nos achamos muito dispostos,
queiramos ou não, a dizer que foi indubitavelmente uma ação
de Deus - a providência de Deus. Tenho explicado o que a
doutrina da providência ensina, mas devo adverti-los de que é
perigoso particularizar alguma coisa específica. Tome o famoso
caso de Dunquerque. Não pretendo expressar minha opinião
quanto ao que aconteceu em Dunquerque; tenho uma opinião,
porém não a apresentarei. Tudo o que farei é mostrar-lhes que
se vocês alegarem que ele foi um ato de Deus, então devem fazê-
-lo à luz do seguinte. Em 1934, os cristãos alemães - e muitos
excelentes cristãos entre eles - emitiram esta afirmação:

198
“Estamos muitíssimo agradecidos a Deus por Ele, como Senhor
da história, ter-nos dado Adolf Hitler, nosso líder e salvador de
uma grande parte de nossas dificuldades. Reconhecemos que nós,
com corpo e alma, estamos ligados e dedicados ao Estado Alemão
e a seu Führer. Esta servidão e obrigação contêm para nós, cristãos
evangélicos, sua mais profunda e a mais santa signifícância em
sua obediência ao mandamento de Deus.” Tal coisa sem dúvida
nos faz pensar, não é verdade? Eis aqui outra declaração deles
em 1933: “Isto desvia a história”, disseram, referindo-se à subida
de Hitler ao poder, “dizemos que Deus no-lo deu, a Deus seja a
glória. Compelidos pela Palavra de Deus, reconhecemos nos
grandes eventos de nossos dias uma nova comissão de Deus à
Sua Igreja.”
Ora, tais pessoas eram absolutamente sinceras; eram
absolutamente autênticas. Eram cristãos evangélicos, e criam
em tal coisa! Por isso, creio que vocês concordarão comigo de
que devemos ser um tanto cautelosos quando chegamos a fazer
reivindicações específicas. Ou, uma vez mais, alguém em
Moscou certa vez disse de Stalin: “Ele é o líder divinamente
designado de nossas forças armadas e culturais, guiando-nos à
vitória.” É uma coisa tão simples, vocês se persuadirem de que
Deus tem um incomum e especial interesse em seu país. Sejamos
muito cuidadosos para não levarmos Deus e Sua causa à infâmia
por meio de reivindicações injudiciosas e precipitadas. Durante
a Segunda Guerra Mundial, às vezes comemorávamos o Dia
Nacional de Oração. Terríveis coisas, porém, aconteceram quase
no dia seguinte. Lembrem-se disso. Meu ponto, pois, é o
seguinte: a doutrina é patente e clara, mas sejamos judiciosos e
cautelosos, mantendo uma grande preocupação pela glória e pelo
nome de Deus quando reivindicarmos algum evento particular
como um exemplo de Sua especial providência, quer em relação
a nós quer ao nosso país.

199
14
A CRIAÇÃO DO HOMEM
Estamos estudando estas doutrinas bíblicas em sua ordem
cronológica e teológica, e assim chegamos agora,
necessariamente, a uma abordagem da doutrina bíblica acerca
do homem. Começamos pela consideração do que a Bíblia nos
afirma sobre o Ser de Deus, e confessamos que não podemos ter
conhecimento dEle independentemente do que temos na Bíblia.
Por isso tivemos que começar com a doutrina das Escrituras e
do que as próprias Escrituras dizem de si mesmas. E então
focalizamos o que elas nos dizem sobre Deus, bem como sobre o
que Deus fez. E isso nos levou à doutrina da Criação. Por sua
vez, isso nos levou à consideração de como Deus mantém o que
Ele criou. Essa é a doutrina da providência, a qual estivemos
considerando juntos no capítulo anterior.
Ora, uma vez feito isso, é preciso que nos concentremos
particularmente sobre o homem, visto que este é o especial
assunto das Escrituras. Elas nos foram dadas a fim de podermos
chegar a um conhecimento da verdade concernente a nós
mesmos e à nossa relação com Deus. Devemos, pois, começar
com um rápido relance sobre o que as Escrituras nos afirmam
sobre a origem dos homens e das mulheres, e elas descrevem
isso em termos de sua criação por Deus. Uma série de coisas nos
choca imediatamente com respeito a esse relato bíblico, e fizemos
referência a duas ou três delas, rapidamente, quando tratamos
da doutrina da Criação, indicando que teríamos de voltar a elas
mais particularmente quando chegássemos especificamente a
tratar da doutrina a respeito do homem.
E evidente, quando lemos o relato no primeiro capítulo de
Gênesis - e é igualmente verídico no tocante ao segundo - que o
próprio relato das Escrituras sobre a criação do homem transmite
a óbvia impressão de que algo especial acontecia, algo distinto,
algo que deve ser realçado. Há uma espécie de pausa aqui, e na

200
maioria das Bíblias ela é posta como um parágrafo à parte. Tudo
isso é destinado a lembrar-nos da singularidade do que estava
então para ser feito. Em adição a essa ênfase geral, porém, certas
coisas são postas diante de nós, em particular. Por exemplo,
somos informados que, antes da criação do homem, Deus disse:
“Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança”
z
(Gên. 1:26).
E bastante evidente - e parece-me ser a única explicação
adequada - que as três pessoas da bem-aventurada Trindade Se
reuniram em conselho antes de haver criado o homem. É
totalmente inadequado pressupor que esta expressão: “Façamos”,
é simplesmente um gênero de plural majestático, tal como usado
pelos personagens reais, que dizem: “Nós”, em vez de “Eu”. Isso
é algo que não é feito nas Escrituras. Deus geralmente Se refere
a Si mesmo no singular; aqui, porém, temos este plural.
Tampouco pode-se alegar, evidentemente, que isso foi uma
espécie de conferência ou consulta de Deus feita aos anjos; não
existe qualquer alusão desse gênero, em qualquer parte das
Escrituras.
Não, desde o início tem geralmente havido concordância
de que isso é indubitavelmente uma alusão a uma conferência
entre Deus o Pai, Deus o Filho e Deus o Espírito Santo. Ora,
este é um fato singular. Não ouvimos isso em relação à criação
das demais coisas. Tendo criado as demais coisas, houve uma
espécie de pausa, e as três bem-aventuradas Pessoas Se reuniram
em conselho, e disseram: “Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança.”
Assim, pois, a segunda coisa de que somos informados é
que o homem foi criado à imagem de Deus. Lembrem-se de que
em outros casos continuamos lendo a frase “segundo sua espécie”,
mas aqui não temos tal frase. O homem não foi criado segundo
alguma espécie, e não lhe foi dito que se reproduzisse segundo
alguma espécie. Eis aqui algo peculiar sobre o homem: ele foi
feito e criado à imagem de Deus, conforme a Sua semelhança.
Em seguida somos informados de algo mais em Gênesis 2:7:
“E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em

201
seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.”
Noutras palavras, no caso do homem, há uma distinção dos
elementos que o compõem; há uma distinção entre o corpo e o
espírito, entre as partes material e imaterial. Novamente está
aqui algo único, algo que não encontramos antes. Deus tomou
do pó da terra, e disso fez Ele o corpo do homem. Mas Ele não
tirou alguma coisa para pôr na alma do homem; Ele soprou em
suas narinas o fôlego da vida. Portanto, a coisa importante a
observar aqui é a distinção dos elementos que compõem o homem
e sua existência.
E a outra coisa, naturalmente, que é realçada consiste na
posição exaltada que imediatamente lhe foi dada: ele foi feito
senhor sobre toda a Criação, sobre toda a natureza, sobre as
criaturas e todos os animais. Voltaremos a esse ponto mais
adiante. Aqui simplesmente observo isso a fim de enfatizar a
singularidade do homem em todo este processo de criação.
Ora, mais uma vez parece-me necessário desviar-nos por
um pouco, como já indiquei que faríamos, para a desagradável
questão da evolução. Há muitos, como vocês mesmos sabem,
que acreditam que o homem simplesmente evoluiu do animal.
Quer eles digam que o homem evoluiu-se de alguma criatura
semelhante ao símio, quer eles digam que os símios e o homem
têm provindo de um tronco comum, isso não importa. A teoria
em geral é, como já vimos, que ele originariamente evoluiu de
algum animal, negando, assim, a doutrina da criação especial do
homem.
Devo mostrar-lhes, porém, sem voltar novamente ao
argumento da evolução,' que tal teoria em relação ao homem é
algo que muito definitiva e especificamente contradiz o ensino
bíblico. Há, repito, esta pausa na Bíblia, e a considero como
sendo muito significativa. Se o homem evoluiu do animal, então
não existiria tal pausa entre a criação dos animais e o relato da
criação do homem; o relato teria continuado diretamente de
um para o outro. Mas a Bíblia se detém, e diz que Deus fez uma
coisa sem par; houve uma conferência entre as três pessoas da
Trindade. Por que ela diz isso, se foi apenas uma continuação do

202
processo anterior? Tal coisa seria, parece-me, completamente
desnecessária.
Em seguida, como já os lembrei, as Escrituras nos relatam,
e o enfatizam, que Deus fez o homem do pó da terra. Portanto, a
pergunta a ser formulada é: se o homem tem evoluido de alguma
criatura anterior, por que isso não está expresso? Por que diz
especificamente que Ele o fez do pó da terra? Certamente que,
se a teoria da evolução fosse verídica, essa afirmação sobre o
homem ser feito dessa forma seria enganosa, e assim poderiamos
acusar as Escrituras de enganar-nos, e de enganar-nos deliberada-
mente, o que é, naturalmente, inconcebível.
Ora, é inútil tentar argumentar que as pessoas daquele tempo
não conheciam nada sobre a doutrina da evolução, porque, se
vocês, de algum modo, crêem na inspiração divina, então esse
argumento não resistirá nem por um segundo. Mas há outros
pontos que devemos notar nesta conexão, e o primeiro é a
diferença essencial entre o homem e todos os animais.
Imediatamente somos informados de certas coisas sobre o
homem que o caracterizam como sendo essencialmente distinto
de todos os tipos de animais. Ele possui consciência própria; ele
possui liberdade moral; ele é claramente capaz de pensamentos
abstratos; ele é capaz de exercer religião e culto. Não há qualquer
dúvida sobre a presença dessas qualidades em relação a algum
dos animais; no entanto desde o início a Bíblia enfatiza - e
podemos sublinhar e corroborar o que ela ensina - que essas são
peculiares diferenças qualitativas entre o homem e todos os tipos
de animais, mesmo os tipos mais excelentes.
Em seguida, outro ponto, o qual é extremamente importante,
do ponto de vista da doutrina, é este: a teoria da evolução nos
diz que o homem não só evoluiu, mas que esse processo é sempre
um processo ascendente, partindo do primitivo e do simples para
o mais altamente organizado e desenvolvido, movendo-se
resolutamente em direção à perfeição. A teoria nos diz que o
homem começou lá embaixo, dificilmente podendo ser
diferenciado dos animais, e então desenvolveu-se mais e mais,
afastando-se dos animais, até eventualmente ser perfeito.

203
Mas a Bíblia, naturalmente, nos diz exatamente o oposto;
ela nos diz que o homem começou, por assim dizer, no topo, e
então caiu de lá. Ela ensina a doutrina da Queda, e, como terei
de mostrar muitas vezes, essa doutrina da Queda é uma parte
vital da doutrina bíblica da salvação. Essa é a razão por que é tão
importante que sejamos esclarecidos sobre essas coisas e vejamos
por que não podemos aceitar essa idéia da evolução do homem.
O caso bíblico para a salvação, na sua inteireza, repousa sobre o
fato de que o homem, que fora criado perfeito, caiu e se tornou
imperfeito - o que é exatamente o oposto da doutrina da evolução.
Por isso, devemos realmente batalhar neste ponto. A doutrina
da evolução do homem a partir dos animais, e a negação de sua
especial criação por Deus, nos envolve imediatamente numa
negação da doutrina da Queda, e por conseguinte nos põe em
sérias dificuldades em relação à doutrina da salvação.
“Sim, mas espere um momento”, diz alguém, “o que dizer
da pessoa que é evolucionista e teísta?”
Bem, tudo o que temos a dizer é que acima de tudo, com
base puramente científica, ela tem de estabelecer que os seres
humanos evoluiram da forma que a teoria nos diz. Vocês se
lembram do que a evolução teística significa - é uma teoria que
afirma que o corpo do homem evoluiu-se dos animais, mas que
a alma foi implantada especialmente por Deus. Mas não há
evidência ou prova disso. Aliás, a evidência, como já vimos, é
contra ela. Em adição a isso, porém, a doutrina da evolução
teística não resolve o nosso problema, de forma alguma. Ela ainda
nos deixa com o grande problema da Queda; ainda permanece
inexplicado esse fato. Portanto, a evolução teística, que tenta
conciliar o que vem com o nome de ciência, porém que na
verdade não passa de mera teoria da evolução, com o ensino
escriturístico, é desnecessária, visto que ela, afinal, não nos ajuda.
A próxima coisa que a Bíblia nos diz, e no-lo diz
categoricamente, é que a raça humana é uma só. Ela ensina
claramente a doutrina da unidade da raça humana inteira. Ela
nos diz que a totalidade da humanidade proveio de duas pessoas
- Adão e Eva. A Bíblia de forma alguma erra quanto a isso; ela

204
simplesmente o declara. Ninguém negará que tal coisa se acha
declarada em Gênesis, mas ela não só está declarada ali, e quero
enfatizar isso muito particularmente, visto que algumas pessoas
insinuam que ela só é encontrada naqueles primeiros capítulos
de Gênesis. Ela é algo que está também afirmado alhures nas
Escrituras. Tomem, por exemplo, Deuteronômio 32:8: “Quando
o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os
filhos de Adão uns dos outros, pôs os termos dos povos, conforme
ao número dos filhos de Israel.” Além disso, todo o incidente
em conexão com a Torre de Babel, em Gênesis 11:1-9, obvia­
mente ensina a mesma verdade - que aqui encontrava esta
unidade que então se tornou dividida e separada. E então o
apóstolo Paulo disse a mesma coisa ao povo de Atenas: “E de
um só fez toda a geração dos homens...” (Atos 17:26).
Todavia, por que estamos tão preocupados com isso, e por
que estamos enfatizando-o tanto? Novamente, temos de proceder
assim porque as outras doutrinas centrais e cruciais dependem
desta mesma idéia. Lembro-me de certa vez me encontrar numa
conferência com um grupo de cristãos cientistas, os quais
sentiam-se dominados por seus pares cientistas, cuja única
preocupação era simplesmente sair de suas dificuldades em
relação aos primeiros três capítulos de Gênesis. Mas foi uma
coisa muito simples mostrar-lhes, e de fato convencê-los, que o
seu problema não era só em relação aos três primeiros capítulos
de Gênesis; tinham que encarar também Romanos, capítulo 5.
Todo o argumento nesse capítulo é que a raça humana é uma só;
que toda ela saiu de Adão, de modo que, quando Adão caiu, toda
a raça humana caiu com ele. Portanto, vejam bem, não podemos
dar-nos ao luxo de lidar irresponsavelmente com essas teorias.
Ora, enfatizo-o dessa maneira porque acredito que não há
nada tão perigoso para a fé, ou tão fatal, quanto ter medo da
pretensa ciência. Se vocês começarem a ser complacentes num
ponto, logo estarão negando outra doutrina nalgum outro ponto.
Toda a doutrina de Romanos, capítulo 5, está baseada na unidade
de toda a raça humana em Adão, bem como a unidade de todos
os cristãos em Cristo. Leiam para si mesmos, e então descobrirão

205
esse paralelo. “Pois assim como por uma só ofensa veio o juízo
sobre todos os homens para condenação, assim também por um
só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para
justificação de vida” (Rom. 5:18); e vocês encontram a mesma
coisa em 1 Coríntios 15:21,22. Por isso, devemos insistir sobre
esta doutrina.
E, evidentemente, de uma maneira muito interessante, de
modo crescente está sendo descoberto que o que a Bíblia sempre
ensinou e asseverou pode agora ser corroborado pela evidência
extra-bíblica. Deixem-me propor-lhes algo dela para sua conside­
ração. Os cientistas, ainda hoje, têm que admitir que a raça
humana é simplesmente uma só raça; há obviamente diferentes
famílias, mas há uma só raça. E simplesmente não podem
esclarecer esse fato. Acham-se em dificuldades com ele. Tomem,
por exemplo, o povo que foi encontrado na América do Norte e
na América do Sul, quando Colombo e outros chegaram lá.
Segundo a teoria científica, foi muito difícil explicar sua
semelhança conosco, visto que os animais dos quais
supostamente se evoluiram eram distintos dos animais dos quais
os povos da Asia supostamente descenderam.
Em seguida temos a fascinante evidência que a pesquisa e o
conhecimento históricos proporcionaram sobre a história das
migrações dos povos. E provável que vocês tenham lido sobre
isso muitas vezes - como as várias tribos se mudaram da Ásia
central, alguns se movimentando para o norte, e alguns para a
área ocidental do Mediterrâneo. E juntemos a isso o fato - o
qual é plenamente estabelecido e creditado entre os antropólogos
- de que, embora as raças sejam amplamente separados e
diferentes, a maioria delas tem certas tradições comuns - a
tradição de um dilúvio, por exemplo, e a tradição de uma Queda.
Pois bem, a evidência da história das migrações dos povos,
somada a essas tradições comuns, apontam conclusivamente para
o fato de que houve um ancestral comum para todas as famílias
da humanidade em algum lugar da Ásia central. Tal coisa não é
uma teoria minha, nem simplesmente a do povo cristão. É a
teoria dos antropólogos, que têm estudado o homem e têm tentado

206
descobrir a verdade sobre ele. Tudo isso vem confirmar e
substanciar o ensino bíblico sobre a unidade da raça inteira.
Também existe a evidência proveniente do estudo de línguas
- filologia. Essa evidência é muito importante. Porventura
vocês sabiam que a maioria das assim chamadas línguas indo-
-germânicas pode ser determinada por uma língua primitiva
comum? A que mais se assemelha a ela ainda existente hoje é o
sânscrito antigo, mas todas elas, inclusive o inglês, podem ser
traçadas dessa maneira. Não só isso. Há boas evidências, parece,
para que se possa dizer (estou simplesmente comunicando-lhes,
agora, os resultados do que os peritos têm descoberto) que o
egípcio antigo pode muito bem ser o vínculo conectivo entre
essas línguas indo-européias e as línguas semíticas. Noutras
palavras, os filólogos têm sido capazes de traçar todas essas
línguas de volta à sua fonte comum. Este é um tema muitíssimo
fascinante. Aqueles dentre vocês que conhecem diferentes
línguas provavelmente têm freqüentemente notado como
praticamente a mesma palavra em francês, em latim, em inglês
(em português) e na língua céltica é empregada para a mesma
coisa. Precisamos explicar qual a origem comum para essas
palavras. E tudo aponta retrospectivamente para a unidade
original da raça, como vocês mesmos podem ver.
Em seguida temos um argumento muito poderoso a partir
do que se chama “psicologia acerca do homem”, o que significa
que, onde quer que encontrem um homem, vocês sempre
encontram uma criatura do mesmo tipo, da mesma espécie; ela
possui os mesmos instintos, os mesmos desejos. Uma pode ser
totalmente iletrada e a outra muito sofisticada, porém é
surpreendente notar quão similares são no que querem, no que
gostam e no que fazem. Assim, pois, é muito importante para
nós, particularmente à luz do ensino bíblico sobre a nossa
unidade em Adão e a nossa unidade em Cristo, aferrarmo-nos
ao ensino da unidade da raça.
Consideraremos em seguida a natureza constitutiva do
homem, e a grande questão aqui é se “alma” e “espírito” são um
ou dois. Há duas teorias primordiais: a primeira é a dicotomia -

207
o homem como corpo e alma; a segunda é a tricotomia - o homem
possuindo um corpo que é material, uma alma, que é o princípio
da vida animal, e um espírito, que é o elemento racional e
imortal, relacionado com Deus.
Os argumentos para a dicotomia são: primeiro, os termos
para “alma” e “espírito” são usados intercambiavelmente nas
Escrituras.
Segundo, as palavras “espírito” e “alma” são ambas aplicadas
aos animais. No livro de Eclesiastes, lemos: “Quem adverte que
o fôlego dos filhos dos homens sobe para cima, e que o fôlego
dos animais desce para baixo da terra?” (Ecl. 3:21). O apóstolo
João escreveu: “E o segundo anjo derramou a sua salva no mar,
que se tornou em sangue como de um morto, e morreu no mar
toda alma vivente” (Apoc. 16:3).
Terceiro, no livro do Apocalipse, os mortos desencorporados
são referidos como “almas” e “espíritos”. Apocalipse 6:9 fala de
“as almas dos que foram mortos”, que se achavam debaixo do
altar; e, na famosa passagem sobre o milênio, no Apocalipse 20:4,
lemos sobre “as almas daqueles que foram degolados”, reinando
com Cristo.
Quarto, vocês descobrem também que os mais excelentes
exercícios da religião e do culto são atribuídos mais à alma do
que ao espírito: “Pois que aproveitaria ao homem ganhar todo o
mundo e perder a sua alma?” (Mar. 8:36). “Amarás, pois, ao
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças” (Mar. 12:30).
A parte que é engajada no culto e na relação com Deus não é
referida como espírito, e sim, como alma. Vocês podem lembrar-
-se como Maria, em seu cântico, diz: “A minha alma engrandece
ao Senhor...” (Luc. 1:46). Em Hebreus 6:19, vocês têm: “A qual
temos como âncora da alma, segura e firme, e que penetra até ao
interior do véu.” Em Tiago 1:21, lemos sobre “a palavra em vós
enxertada, a qual pode salvar as vossas almas” - não espíritos; e
da mesma forma vocês descobrirão que a morte é às vezes descrita
nas Escrituras como entregando a “alma”, e às vezes como
entregando o “espírito”.

208
Quinto, o elemento imaterial do morto é às vezes descrito
como alma e às vezes como espírito. Tomem, por exemplo,
aquelas duas passagens do Apocalipse às quais tenho feito
referência (6:9 e 20:4); elas descrevem o elemento imaterial como
“as almas”. Mas em Hebreus 12:23, lemos a respeito de “aos
espíritos dos justos aperfeiçoados”.
Portanto, há dificuldade a esse respeito. O homem é descrito
em Mateus 10:28 como corpo e alma, mas em outros lugares como
corpo e espírito (Ecl. 12:7; 1 Cor. 5:3-5). Noutras palavras, parece
evidente, à luz das Escrituras, que os dois termos são
freqüentemente intercambiáveis, e a conclusão que extraímos
disso é que o homem parece ter apenas dois elementos: corpo e
alma (ou espírito).
“Muito bem”, dirá alguém, “mas o que dizer de
ITessalonicenses 5:23?” “E o mesmo Deus de paz vos santifique
em tudo; e todo o vosso espírito e alma, e corpo, sejam
plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo.” E lemos também em Hebreus 4:12: “Porque
a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada
alguma de dois gumes, e penetra até à divisão da alma e do espírito,
e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e
intenções do coração.” “Ora, pois”, prossegue o questionador,
“aí temos especificamente, por duas vezes - corpo, alma e
espírito; e espírito separado e considerado como distinto.”
Muito bem, a réplica daqueles que crêem na dicotomia ou
na idéia bipartida é que duas passagens como essas obviamente
precisam ser consideradas à luz das Escrituras como um todo, e
se o todo dá a impressão de não haver essencialmente qualquer
diferença entre os dois, então esses versículos devem ser
explicados de uma forma que não os divida. E assim continuamos
a dizer que nem um nem outro desses versículos realmente prova
que as duas coisas são substâncias, ou essências distintas, não
mais que Marcos 12:30 nos mostra que há diferença entre
entendimento e alma, como, por exemplo: “Amarás, pois, ao
Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de
todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças.” Ora, qualquer

209
um concorda que mente e coração - o pensamento e as afeições
- são partes da alma, mas nosso Senhor Jesus Cristo dá a
impressão de fazer distinção entre eles. Por isso, sugere-se que
separar a alma do espírito pode conter um propósito similar.
Daí, o que é enfatizado na passagem de 1 Tessalonicenses,
capítulo 5, é a inteireza da santificação: a pessoa inteira deve ser
santificada e preservada irrepreensível. E em Hebreus 4:12, a
ênfase é posta na perfeição com que somos examinados: a Palavra
de Deus distingue mesmo entre os “pensamentos e intenções”,
e penetra às próprias profundezas.
Então, o que dizer sobre tudo isso? Receio que uma vez
mais tenho de dizer que não posso decidir a qual dos dois grupos
pertenço. Nenhuma das teorias pode ser provada; posso, porém,
dizer que as Escrituras traçam certa distinção entre espírito e
alma, ainda que não diga que haja certa diferença entre eles. Pode
haver distinção sem diferença. Deixem-me colocar isso nos
seguintes termos: certamente que as Escrituras nos ensinam que
o espírito é aquela parte do elemento espiritual ou imaterial
existente em cada um de nós que se relaciona com Deus, e é
capaz de receber a operação do Espírito de Deus através de Sua
Palavra. O espírito é aquele que nos põe em relação com Deus e
possibilita ao Espírito de Deus agir em nós. Se há somente um
elemento imaterial, então uma parte desse elemento imaterial é
chamado espírito, e é esse que, por assim dizer, nos une a Deus,
enquanto que a alma é a parte do elemento imaterial que anima
o corpo, que nos capacita a pensar, a querer e a sentir. Ela é
também a sede das afeições. É aquela parte de nós que nos liga
ao corpo e nos capacita, através do corpo, a comunicarmos com
os demais.
Vocês podem não estar satisfeitos com essa explicação, mas
pelo menos é uma tentativa à acomodação. Noutras palavras,
vocês devem convir comigo que há certa distinção entre espírito
e alma, mas se forçarem sua distinção a ponto de dizer que há
duas coisas essencialmente diferentes, isso é algo sobre o qual
pessoalmente não estou convencido. E assim podemos dizer que
o homem tem espírito, porém é uma alma. Vocês' descobrirão

210
que o termo “alma” é às vezes usado no lugar do pronome pessoal,
e às vezes em referência a toda a personalidade. Vocês descobrirão
que o número de pessoas que foram para Canaã, foi tal e tal
número de “almas” (Gên. 12:5) ou que o número de “almas” que
desceram para o Egito foi sessenta e seis (Gên. 46:26), e assim
por diante. Portanto, receio não poder chegar a alguma conclusão
definitiva; de qualquer forma, porém, nos é saudável observar
que o elemento material e o imaterial, juntos, compõem uma
pessoa, e que o elemento imaterial possui esta distinção de espírito
e de alma.
Uma vez dito isso, consideremos abreviadamente a relação
existente entre corpo e alma. Novamente, é preciso dizer que
não sabemos exatamente o que é isso; sabemos, contudo, que
ambos são orgânica e vitalmente relacionados. Sabemos que eles
agem um sobre o outro, e que afetam um ao outro. As Escrituras
nos ensinam essas coisas claramente, ainda que não nos digam
detalhadamente o que é a relação entre ambas. Certas coisas são,
porém, evidentes. Lembro-me de certa vez ouvir o famoso Sir
Arthur Keith no enunciamento de uma preleção, quando ele
disse, em meio a efusivos e calorosos aplausos, que havia
dissecado muitos corpos humanos, mas que ainda não havia
descoberto um órgão que descreveria como alma. A réplica a
isso é, naturalmente, que começamos afirmando que a alma é
imaterial, que é algo que vocês não esperam encontrar ao dissecar
um corpo. Entretanto, ela está ali, e é ela que anima o corpo.
Demais disso, sabemos que, embora a alma normalmente
usa o corpo como o instrumento pelo qual se expressa e faz o
que tenciona fazer, ela pode existir independentemente do corpo;
e quando o corpo é sepultado no túmulo, a alma continua e ainda
existe, e pode manifestar-se sem o corpo. Portanto, embora use
o corpo, não é uma parte dele; não é exclusivamente dependente
dele. Há uma relação orgânica e vital entre eles, porém o que
exatamente ela é, nos é deixado como um grande mistério.
Uma última pergunta: qual é a origem da alma em cada
indivíduo? Cada pessoa nascida neste mundo possui uma alma,
mas de onde ela lhe veio? De que maneira nossas almas fazem

211
parte de nós? Uma vez mais, a resposta é: não sabemos. “Então,
se você não sabe”, pergunta alguém, “por que se preocupa com
isso?” A resposta a isso é: logo trataremos da doutrina do pecado
original, e vocês não podem tratar desse assunto sem considerar
alguma coisa sobre a origem da alma. A questão que levantaremos,
em preparação, é a seguinte: como o pecado de Adão me afeta?
Qual é minha exata relação com ele (Adão)? Cremos que cada
alma nascida no mundo nasceu numa condição de queda. Como
ela caiu? Quando? Se realmente levarmos essas doutrinas a sério,
é impossível evitarmos esse questionamento. E outra razão para
considerarmos esta questão é que teremos de olhar para a Pessoa
do Senhor Jesus Cristo, e então declararemos que Ele possuía
uma alma humana. Donde Ele a obteve? Ele a obteve de Maria?
Vejam vocês, a questão é inevitável.
Nesta altura fornecerei apenas alguns conceitos. Há aqueles
que crêem na preexistência da alma - que todos nós já existíamos
antes mesmo de entrarmos neste mundo. Não existe qualquer
evidência bíblica que favoreça tal ponto de vista. Muitas pessoas,
porém, têm lido Wordsworth, particularmente sua grande Ode,
e pensam:
Mas arrastando nuvens de glória
Viemos de Deus,
Que é nosso lar.

Platão o ensinou, e amiúde sucede que um misto de platonismo


e filosofia penetre na religião, sem que se perceba.
Existe um outro conceito, chamado traducianismo. Esse
significa que a alma, juntamente com o corpo, é propagada pela
geração humana; que a alma do recém-nascido foi derivada de
seus progenitores, de seus pais, que assim como seu corpo lhe é
dado dessa forma, assim também é sua alma. O que existe em
favor dessa teoria? Ora, eis algumas das coisas que geralmente
são ditas: primeiramente, Deus soprou no homem uma única
vez. Jamais ouvimos que tal coisa tenha sido repetido, e que
após isso ao homem foi ordenado que enchesse a terra, e assim
por diante.

212
Em segundo lugar, não somos informados que a alma de
Eva fora uma criação especial ou que Deus soprasse no corpo
que extraíra do lado de Adão. Somos igualmente informados que
Deus cessou a obra da Criação depois de ter criado a Adão e Eva.
Há ainda algumas afirmações bíblicas muito interessantes sobre
os descendentes saindo dos “lombos” de seus pais. Somos
informados em Hebreus 7:9,10, por exemplo, que quando Abraão
pagou os dízimos a Melquisedeque, era Levi mesmo, em essência,
nos “lombos de Abraão”, que pagava os dízimos a Melquisedeque.
Essa é a doutrina denominada identidade seminal, e por sinal
uma doutrina muito fascinante em que se pensar. Então somos
informados que há analogias, ou seja, existe esse tipo de coisa
no mundo vegetal e no mundo animal - e é nos dito que é a
única forma de realmente explicarmos os traços familiares na
aparência física, nas características e nas faculdades mentais.
Surgem certas objeções a essa teoria. Primeiramente, a alma
parece ser considerada como algo material, não é verdade?
Parece ser alguma coisa que pode ser dividida em diferentes
partes, e nos leva a perguntar: a alma origina-se do pai, da mãe
ou de ambos? E em que estado ela existia no pai ou na mãe, se
era preexistente lá? E, em segundo lugar, há grave dificuldade,
também, sobre a Pessoa de nosso Senhor, caso tenha Ele derivado
Sua alma do homem.
Então, a outra teoria em relação à origem da alma é o que se
chama criacionismo, a qual ensina que cada alma individual é
uma criação imediata de Deus, e que não recebemos nossa alma
de nossos pais. Nosso corpo vem de nossos pais, mas, num ponto
ou noutro - não sabemos quando - se nos primórdios do feto
humano ou posteriormente, quando a criança se torna pronta
para a vida, ou quando nasce, a alma é introduzida nela. Ao meu
ver, surge uma objeção muito grave a essa teoria. Ei-la: se a alma
é uma criação imediata de Deus, de onde vem sua tendência
para o pecado e para o mal? Significa que Deus seria o autor do
mal moral.
Ou se vocês dizem que só o corpo vem dos pais, e que a
razão porque existe pecado original é que Deus põe esta alma

213
pura num corpo pecaminoso, o qual seguramente é o que leva a
alma a pecar, então vocês atribuem a Deus a autoria indireta do
mal moral e do pecado. Se Deus cria cada alma separadamente,
onde e como o pecado original entra? Como vocês o
justificariam? Como vêem, o conceito traducianista não está em
dificuldades sobre isso. Ela diz que todos nós estávamos, por
assim dizer, nos lombos de Adão quando ele pecou, e todos nós,
portanto, herdamos nossa natureza caída diretamente dele. O
criacionismo, conquanto seja correto em sua visão da natureza
da alma, no entanto nos deixa em graves dificuldades com
respeito ao pecado original, e aparentemente ensina que Deus,
de algum modo, produziu algo que é mal, o que é inconcebível.
Portanto, sumario tudo assim: quando nos defrontamos com
uma questão como esta, é vitalmente importante que nos
aproximemos dela humildemente, com reverência e santo temor.
Devemos tomar cuidado para não irmos além do que as Escrituras
nos declaram - e creio que neste ponto atingimos algo que não
podemos entender nem explicar. Mas podemos dizer certas coisas
bem definidamente: Deus não cria coisa alguma que seja má -
isso é indiscutível. Deus não pode criar uma alma pecaminosa.
Estamos igualmente bem esclarecidos, à luz das Escrituras, que
a depravação humana é herdada - “Eis que em iniqüidade fui
formado, e em pecado me concebeu minha mãe” (Sal. 51:5).
Estamos igualmente certos de que a humanidade ou a natureza
humana de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo não era culpada
de pecado, e não era de forma alguma pecaminosa.
Espero ter deixado minha atitude bem evidente a esse
respeito. Essa última questão, bem como a anterior, obviamente
não é essencial à nossa salvação. Entretanto, se desejamos, como
estou certo de que todos nós desejamos, e como todos nós
devemos estar, de compreender, na maior extensão possível, as
doutrinas que são clara e patentemente ensinadas nas Escrituras,
então temos que levantar certas questões, ainda quando não
sejamos capazes de oferecer as respostas finais. Por isso, diria
em conclusão, que não devemos despender muito de nosso tempo
com esses problemas. Não caiamos no erro de tantos filósofos,

214
de gastar uma vida com os mesmos, porque terminaremos onde
começamos. Acima de tudo, sejamos criteriosos para não nos
tornarmos “homens partidários” a respeito dessas coisas. Quando
não podemos atingir uma conclusão definitiva, que jamais nos
envolvamos com algum partido. Porventura seria correto alguma
vez pertencer a algum partido sobre alguma coisa? Mas sobre
essas questões, certamente, como já disse, sejamos humildes e
estejamos felizes em ir somente até onde as Escrituras nos levam;
estejamos, porém, sempre ansiosos para irmos até onde elas nos
levam.
Que mistério é o homem! Que mistério é seu ser! Aqui
estamos nestes corpos, e todavia possuímos esta parte imaterial.
Somos criados por Deus e somos criados para Deus. E embora
não compreendamos exatamente como tudo acontece, todavia
agradecemos a Deus que há absoluta clareza sobre as coisas que
são essenciais à salvação. Contudo agradecemos a Deus porque
assim nos dotou com faculdades para podermos suscitar questões
e divisar sua significância, mesmo quando nem sempre podemos
respondê-las.

215
15
A IMAGEM DIVINA NO HOMEM

Tendo focalizado a criação do homem, sua constituição e


alguns dos problemas oriundos daí, vimos agora considerar a
grande questão do significado de o homem ser criado à imagem
e semelhança de Deus. Nossa primeira razão para considerarmos
isto são as próprias Escrituras - deixem-me apresentar-lhes uma
série de versículos que tratam desta questão.
Em primeiro lugar estão os textos de Gênesis 1:26,27: “E
disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa
semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves
dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil
que se move sobre a terra. E criou Deus o homem à sua imagem;
à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou.”
Os próximos são dois versículos de Gênesis, capítulo 5 - os
versículos 1 e 3: “Este é o livro das gerações de Adão. No dia em
que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez. E Adão
viveu cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança,
conforme a sua imagem, e chamou o seu nome Sete.”
Em seguida temos Gênesis 9:6, onde lemos: “Quem
derramar o sangue do homem, pelo homem o seu sangue será
derramado; porque Deus fez o homem conforme a sua imagem.”
Eis um texto muito importante. O contexto trata da questão do
homicídio e, em última análise, o ensino escriturístico sobre o
homicídio é que ele destrói a imagem de Deus. Portanto, sempre
que abordarem a questão da pena de morte, vocês devem ter em
mente que este texto é um argumento muito potente em relação
a ela.
Ainda outra importante referência se encontra em Tiago
3:9: “Com ela (Tiago está se referindo, aqui, à língua - “um
pequeno membro”) bendizemos a Deus e Pai, e com ela
amaldiçoamos os homens, feitos à semelhança de Deus.” E a

216
mesma idéia mais uma vez. Duas outras referências são
claramente muito importantes. Efésios 4:24: “E vos revistais do
novo homem, que segundo Deus é criado em verdadeira justiça
e santidade.” E a afirmação paralela em Colossenses 3:10: “E
vos revistais do novo, que se renova para o conhecimento,
segundo a imagem daquele que o criou.”
Ora, talvez vocês queiram saber por que apresentei a citação
de Tiago antes de apresentar as de Efésios e Colossenses. Minha
razão para agir assim é que os últimos dois versículos fazem
menção de “o novo homem”; enquanto que todas as citações
anteriores referem ao homem como ele é, independentemente
da regeneração, e explicarei mais adiante a importância de traçar
essa distinção. Contudo, à luz dessas citações escriturísticas - e
há outras a que farei referência - é, naturalmente, nosso dever
encarar toda esta questão quanto ao que a Bíblia quer dizer pela
idéia de sermos feitos “à imagem e semelhança de Deus”. Não
temos o direito de ler as Escrituras sem a intenção de descobrir
o que elas estão afirmando. O fato de um assunto ser difícil não
serve de justificativa para não tentarmos entendê-lo.
Em aditamento a isso, porém, há outra razão que lhes
recomendaria, a qual nos compele a considerar este assunto, e
essa é uma razão doutrinária. O que quero dizer com isso é que
há outras doutrinas que necessariamente trazem a lume esta
doutrina da imagem de Deus em cada homem e em cada mulher.
Por exemplo, a totalidade da doutrina do próprio homem nos
força a considerar esta doutrina. As grandes questões, hoje, são:
o que é o homem? Que é que está errado com ele? O que
aconteceu com ele? Como se explica a vida como ela é no mundo
atual? Isso é chamado antropologia, o conhecimento e o estudo
do homem. É um estudo se desenvolvendo rapidamente, e
obviamente muito importante. Evidentemente - e isso é
especialmente verdadeiro no tocante aos que, como nós, aceitam
a revelação bíblica e são cristãos - não podemos explicar o mundo
e o que estamos fazendo nele, a menos que sejamos esclarecidos
sobre nossa origem e nossa natureza e ser essenciais.
Por conseguinte, em adição a isso, certamente que a doutrina

217
concernente à Pessoa do Senhor Jesus Cristo nos compele a
focalizar esta questão da imagem de Deus no homem.
Asseveramos que Ele era verdadeiramente homem, mas o que
isso significa? O que cremos sobre Sua humanidade? O que
asseveramos concernente à Sua natureza humana? Obviamente,
pois, sem termos alguma espécie de idéia disso, não podemos
esperar ser esclarecidos sobre nossa cristologia, nossa
compreensão ou nosso conhecimento da Pessoa de Cristo.
Demais disso, é evidente que toda a doutrina da salvação
suscita este problema agudamente: o que acontece no novo
nascimento? Qual é a diferença entre uma pessoa não regenerada
e uma pessoa regenerada? Qual é a diferença entre a pessoa
regenerada e Adão? Essas são questões que hão de surgir. Se
queremos, de fato, saber o que é que Cristo fez por nós, bem
como a posição em que Ele nos colocou, se nos sentimos
interessados, em algum sentido, na denominada “psicologia
bíblica”, então esta questão da imagem divina nos confronta logo
que começamos a aproximar-nos do tema.
Finalmente, há outra razão para considerarmos esta
doutrina, que eu descreveria como uma razão geral. Toda a
revelação bíblica, na qual Deus Se revela ao homem a fim de
reconciliá-lo e restaurá-lo conSigo mesmo, obviamente procede
do fato de que o homem foi constituído originalmente de tal
maneira que tornou-se o tema dessa revelação e redenção. Se
cremos, como cremos, que Deus nos concedeu uma revelação
para que pudéssemos conhecê-10 e fôssemos reconciliados com
Ele, para que fôssemos redimidos de nossos pecados e preparados
para o céu e para a glória; se cremos que isso é possível, então
estamos imediatamente pressupondo que há algo em nós que
nos faz capazes disso; há algo ali, se vocês preferem usar o termo
teológico, algum “ponto de contato” ao qual a revelação pode
dirigir-se, e o qual faz cada um de nós suscetível da redenção,
renovação e livramento.
Estas, pois, são as razões principais para considerarmos este
grande tema. Evidentemente, ele tem sido considerado na Igreja
desde o princípio. Tem surgido muito argumento sobre ele ao

218
longo dos séculos, especialmente nos dias da Reforma
Protestante, visto que a doutrina reformada da imagem de Deus
é muito diferente daquela dos católicos romanos; e se vocês
desejam ser reais polemistas a esse respeito, creio ser conveniente
que se concentrem nesse ponto em particular. Além de suas
práticas, é à sua doutrina que devemos objetar com mais
veemência, e isso estava, pois, na própria vanguarda no tempo
da Reforma Protestante, como tem sido desde então.
Contudo, não pretendo entrar na história; muito me
alegraria fazer isso, porém não devo, porque ela, estritamente
falando, não se encaixa num tópico de teologia bíblica. No
entanto, a história desta doutrina é extremamente fascinante -
visto que alguns têm afirmado que a “imagem” significa o corpo
do homem, e que a “semelhança” significa o seu espírito, e assim
por diante. Mas devemos deixar isso e restringir-nos por ora a
uma exposição positiva do que as Escrituras ensinam. Uma vez
mais, devo prefaciar isto, dizendo que o assunto é muito elevado
e muito difícil e, além disso, há certos aspectos sobre os quais
não podemos chegar a uma decisão final. Sobre isto, no entanto,
e no tocante a outras doutrinas que temos considerado, é nosso
dever ir até onde pudermos, e não devemos ser dogmáticos
quando não estivermos numa posição de o sermos.
Assim, pois, há algumas coisas que podem ser ditas, e eis a
primeira: é geralmente consensual que não há diferença real de
significado entre “imagem” e “semelhança”. Observem que ambos
os termos foram usados em Gênesis 1:26- “Façamos o homem à
nossa imagem, conforme a nossa semelhança”. Se percorrerem
as referências das Escrituras, vocês descobrirão que os termos
são usados intercambiavelmente, às vezes “imagem”, às vezes
“semelhança”, e significam precisamente a mesma coisa. Isso
ocorre obviamente por uma questão de ênfase, com o fim de
realçar a grandeza deste tema.
A grandeza do homem é, talvez, nossa suprema razão para
considerarmos a doutrina. Jamais me cansa realçar que, ao meu
ver, uma das grandes tragédias no mundo moderno é o fracasso
do homem em compreender isso. Isso soa estranho numa época

219
em que o homem está adorando o homem; sim, mas o que ele
adora é totalmente indigno da concepção bíblica. O real problema
no mundo moderno consiste em que o homem não sabe quem
ele é e o que ele é; ele não compreende sua própria grandeza. Por
exemplo, a teoria da evolução é um consumado insulto ao homem
visto pelo prisma do relato bíblico - o homem é grande, glorioso
e maravilhoso na mente e na concepção de Deus.
Ora, este termo “imagem” ou “semelhança”, indubitavel­
mente, nos comunica a idéia de um espelho e de um reflexo.
Paulo o usa nesse sentido em 2 Coríntios 3:18, onde ele diz: “Mas
todos nós, com cara descoberta, refletindo como um espelho a
glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na
mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.” O hino de
Charles Wesley o expressa assim:
Transformados de glória em glória,
Até que no céu ocupemos nosso lugar.
Todos nós, diz Paulo, somos capazes de olhar para Ele, em Cristo,
sem o véu que cobria a face de Moisés, o véu que ainda permanece
entre os judeus e a percepção disso. Com o rosto “desvendado”,
com o rosto “exposto”, somos capazes de mirar, e quando assim
fazemos, a imagem de Deus, por assim dizer, é formada em nós,
e é refletida novamente; e à medida que prosseguimos olhando,
a imagem se torna mais e mais gloriosa. Eis a idéia de imagem,
de modo que, fundamentalmente, quando falamos em ser feito à
imagem de Deus, o que temos em mente é que Deus nos fez de
tal forma que nos tornamos alguma espécie de refletor de Deus.
Não devemos ser tão mecânicos em nossas noções, mas não
podemos chegar mais perto do que isso, ou seja, que o homem,
quando criado por Deus, era uma espécie de refletor de algo da
própria glória divina. Essa é a idéia essencial.
O próximo princípio que devo enfatizar é que este termo é
usado após a Queda, bem como antes da Queda. Este é um ponto
muitíssimo vital, como veremos. Tomem aquelas citações das
Escrituras e descobrirão que a maior parte vem depois da Queda.
Assim, a imagem de Deus não foi inteiramente perdida quando
Adão e Eva pecaram e caíram. Tem havido escolas de pensamento

220
que têm ensinado isso. Tem havido noções indignas e
inadequadas da imagem que têm sugerido que quando o homem
pecou, tudo o que pertencia à imagem de Deus nele desapareceu,
e no novo nascimento o que estava inteiramente perdido, é
devolvido. As citações escriturísticas, porém, demonstram muito
claramente que o termo “imagem” é usado após a Queda tanto
quanto antes. Noutras palavras, quando o homem caiu, ele perdeu
algo, ele perdeu um aspecto da imagem, entretanto não perdeu a
imagem por inteiro; algo essencial à imagem ainda permanece.
E tal fato imediatamente sugere que há certos elementos nesta
imagem de Deus que ainda são encontrados em cada pessoa.
O próximo ponto que elaboro é este - e aqui chegamos à
minha razão para.colocar a citação da Epístola de Tiago antes
das outras duas - tenho um pressentimento (e não estou sozinho
nisso) de que é um tanto enganoso definir a imagem original de Deus
no homem em termos do que somos informados sobre o homem
regenerado. As citações de Efésios, capítulo 4, e Colossenses,
capítulo 3, são descrições do que nos tornamos quando somos
regenerados, quando somos salvos, quando a vida de Deus
penetra em nós. Ora, proponho que embora essas duas citações
possam dizer-nos algo sobre a imagem de Deus no homem, seria
muito errôneo determinar nossa idéia da imagem no princípio,
anterior à Queda, em termos dessas citações.
E digo isso pela seguinte razão: creio que posso demonstrar-
-lhes, à luz das Escrituras, que o que aconteceu na regeneração
não é meramente que somos restaurados à condição que era a de
Adão antes da Queda, mas que avançamos além disso: “...onde o
pecado abundou, superabundou a graça” (Rom. 5:20). Sim, como
Isaac Watts o colocou:
NEle (em Cristo) as tribos de Adão ostentam
Maiores bênçãos do que seu pai perdeu.
A salvação, a redenção e a regeneração simplesmente não nos
colocam onde Adão se encontrava; encontramo-nos numa
posição muito mais elevada. Portanto, aqui novamente, vocês
vêem, a doutrina da imagem é muito importante do ponto de
vista da doutrina da salvação, e devemos ser muito cautelosos

221
para a interpretarmos corretamente. Assim, embora ainda
usaremos essas duas citações, elas não determinarão nossa exata
definição do que é significado pela imagem divina.
E o meu último princípio geral é que evidentemente há uma
diferença entre o homem como foi criado no princípio por Deus e a
humanidade ou natureza humana do Senhor Jesus Cristo. Se vocês
focalizarem aqueles versículos iniciais de Hebreus, capítulo 1,
descobrirão isto: Cristo é a “expressa imagem de sua pessoa”.
Toda a efulgência da glória está nEle. Tal coisa não se pode dizer
do homem. O homem, por assim dizer, é uma cópia criada -
Cristo é a imagem. Ele é deveras a própria imagem expressa,
essencial, de Deus mesmo. Será importante ter isso em mente
quando viermos a tratar da Pessoa do Senhor Jesus Cristo.
Em seguida devemos continuar afirmando que parece
evidente, portanto, que há dois elementos principais no conceito
da imagem de Deus em nós. Às vezes esses dois elementos têm
sido descritos comoa imagem natural eaimagem espiritual. O grande
Jonathan Edwards, por exemplo, disse que “a imagem natural
consiste muitíssimo naquilo pelo qual Deus em Sua criação
distinguiu o homem dos animais, ou seja, naquelas faculdades e
princípios da natureza por meio dos quais ele é suscetível de
agência moral.” Essa é a parte natural do homem. A parte moral
e espiritual, diz ele, consistiu naquela excelência moral com que
o homem no princípio foi dotado por Deus. Acaso vocês
percebem a diferença entre os aspectos natural e espiritual?
Deixem-me colocá-lo assim: podemos dizer que a imagem
consiste da natureza intelectual e moral do homem, bem como
sua perfeição moral original. Sua natureza intelectual e moral -
essa é a natural; sua perfeição moral original - essa é a espiritual.
Aqui pode ser oportuno citar o ensino de João Calvino, como
ele foi capaz de explicar talvez mais claramente que qualquer
outro de seu tempo a diferença essencial entre os pontos de vista
reformado e católico-romano. Ele o colocou assim: “A sede da
imagem no homem é a alma, ainda que alguns raios dela brilhem
igualmente no corpo.” E quando chega a definir a imagem, ele
diz que ela realmente significa a integridade original do homem,

222
sua unidade, sua justiça, sua retidão. No entanto ele diz também
que “a imagem de Deus se estende a tudo no que a natureza do
homem excede a de todas as demais espécies de animais.” Vejam,
todos eles estão realmente afirmando a mesma coisa. A imagem
divina no homem, estão de fato afirmando, significa tudo no
homem como um ser natural que o diferencia do animal. Mas
há mais do que isso; em adição a isso, o homem possuía uma
justiça original, e esse é o aspecto espiritual.
Pois bem, tendo lhes apresentado algumas definições em
geral, agora cumpre-me considerá-la um pouco mais
detalhadamente, porque, de fato, podemos dividi-la. O que é esta
imagem de Deus segundo a qual o homem foi criado no
princípio? O que é esta semelhança de Deus em nós? Antes de
tudo, ela obviamente refere à alma ou ao espírito - nossa natureza
espiritual, nossa “espiritualidade”. Ou podemos usar o seguinte
termo também, como conceito - nossa “invisibilidade”. Olhamos
uns para os outros, e num sentido vemos uns aos outros, mas
noutro sentido não nos vemos. Nenhum de nós vê o eu essencial
de alguém, nem o de nós próprios. Na verdade, vocês jamais se
viram. Será que vocês já pensaram nisso? Tentem pensar em si
próprios e com que vocês se assemelham; na verdade não o
conseguirão. A razão é porque nosso ser essencial, nossa
personalidade, é invisível. Quando olham para outra pessoa,
vocês estão vendo certas manifestações dessa pessoa, mas na
verdade vocês não podem ver a pessoa.
Ora, o homem, nesse sentido - digamo-lo com reverência -
é semelhante a Deus. Deus é invisível - “Deus nunca foi visto
por alguém” (João 1:18). Estariam lembrados de como, ao tratar
da doutrina de Deus, um dos pontos que elaboramos foi o de Sua
invisibilidade? E esse, em certo sentido, é verdadeiramente
também o nosso caso; nossa alma ou espírito é invisível. E ao
mesmo tempo devemos referir à nossa imortalidade. Como
originalmente feitos e criados, Adão e Eva não estavam sujeitos
à morte. Lembro a vocês novamente que dissemos ser isso algo
próprio de Deus, segundo o ensino das Escrituras.
Em seguida, em segundo lugar, apresentamos o que

223
poderiam ser chamados nossas capacidades e faculdades
psicológicas; as capacidades e faculdades da alma. Observem: eu
disse “psicológicas”, e não “psíquicas”. Não estou interessado
em fenômenos psíquicos, e sim, estou muito interessado no
psíquico. Significa tudo quanto é peculiar à alma ou pertence a
ela, e isso, pelo consenso geral, é uma parte da imagem divina.
Quero dizer mais ou menos o seguinte: somos seres racionais e
morais; possuímos intelecto e podemos pensar; possuímos
vontade e podemos desejar; e o intelecto e a vontade possuem
seus poderes e suas propensões. Nossa capacidade para raciocinar
e pensar, para analisar e meditar é um reflexo da mesma coisa,
num grau eterno, em Deus. E ela é exclusivamente dos seres
humanos; vocês não a encontram em qualquer outro lugar.
Possuímos também autoconsciência. Somos cônscios de nós
mesmos. Novamente, temos de asseverar isso a respeito de Deus.
E nossa autoconsciência, nossa autociência, nossa incapacidade
de fugir do ego - tudo isso é uma parte, também, da imagem
divina. Talvez seja digna de ênfase muito especial, neste ponto,
nossa capacidade para a autocontemplação e análise; o que
seguramente é algo que pertence aos seres humanos. O homem
pode contemplar-se a si próprio; ele pode examinar-se a si próprio
e analisar-se a si próprio. Esta é uma capacidade extraordinária,
e de vez em quando todos nós certamente temos desejado não
possuí-la. No entanto, é impossível ser uma pessoa sem ela, e ela
é uma parte da maldição que a Queda trouxe sobre nós, de modo
que não podemos fugir de nós mesmos, nem podemos parar de
contemplar-nos e analisar-nos. Embora estando numa condição
caída, por meio desta mesma capacidade, proclamamos para nós
mesmos a nossa própria grandeza original.
A terceira característica da imagem divina colocaremos da
seguinte forma: ela é a integridade intelectual e moral revelando-
-se (para usar novamente as palavras das passagens de Efésios e
Colossenses) no conhecimento, na justiça e na santidade. O
homem foi feito intelectual e moralmente de tal forma que havia
uma espécie de integridade nele, nada falso, nada imperfeito,
nada errado. Havia retidão, havia justiça, havia verdade. Sua

224
natureza era uma só; era equilibrada; era exatamente o que estava
destinada a ser: integridade moral e intelectual, expressando-se
em “verdadeira justiça e santidade” (Ef. 4:24).
Em seguida, em quarto lugar, focalizo algo sobre o qual nem
sempre tem havido concordância, que é a questão do corpo. O
corpo, de alguma forma, participaria desta imagem divina?
Quanto a mim, estou pronto para dizer que sim. Ao dizer isso,
não estou me referindo à substância material da qual o corpo é
feito, e sim, ao corpo como um órgão apropriado para a alma, o
instrumento da alma, o elemento através do qual a alma e a
personalidade se expressam, e portanto, finalmente, o
instrumento através do qual exercemos domínio sobre a criação
inferior, especialmente sobre os animais. Ora, esse é,
naturalmente, o aspecto mais difícil de todos, e não podemos
estar certos, segundo afirmo, exceto que há muitas alusões nas
Escrituras de que em certo sentido fomos criados semelhantes a
Deus, mesmo no aspecto corporal.
“Mas”, diz alguém, “pensei que você nos ensinou que Deus
é Espírito, e que você enfatizou Sua invisibilidade.”
Sim, lembrem-se, porém, de que Paulo nos diz que nosso
Senhor, antes da encarnação, existia na forma de Deus (Fil. 2:6).
Além disso, falando certo dia aos judeus, nosso Senhor afirmou-
-lhes que eles jamais haviam ouvido a voz de Deus, e então
continuou a dizer-lhes: “nem vistes seu parecer” (João 5:37). Há
pressuposições aqui acerca da forma de Deus, embora seja Ele
Espírito, acerca da espécie de aparência de Deus.
Além do mais, somos informados em Filipenses, capítulo
3, que aguardamos a vinda de Cristo desde o céu, o qual, diz o
apóstolo Paulo, “transformará o nosso corpo abatido, para ser
conforme o seu corpo glorioso” (Fil. 3:21)- esse corpo espiritual.
Nosso Senhor vive nesse corpo espiritual agora, e obviamente -
visto que Ele está na glória, e visto que nós, quando nossos corpos
forem transformados e glorificados, estaremos na glória - então
nesse ponto teremos lá uma semelhança. Não sabemos ainda o
que seremos, diz João, mas sabemos isto: quando O virmos,
“seremos como Ele é” (1 João 3:2). E proponho-lhes que a

225
semelhança incluirá o corpo - o corpo glorificado, o genuíno -
mas isso me leva a propor que o corpo humano original ostentou
algo disto. Assim, sugeriria que a imagem em parte se expressa e
se manifesta em nosso ser físico.
Então a quinta e última característica da imagem divina, e
aquela que desejo enfatizar, é esta: a imagem de Deus se revela
também no domínio do homem sobre a terra. Não há dúvida,
absolutamente, de que esta é uma parte da imagem divina. É
nesse particular que o homem em parte reflete o senhorio e a
soberania de Deus sobre tudo. Notem bem como há uma alusão
a isso em Gênesis 1:26: “Façamos o homem à nossa imagem,
confome a nossa semelhança: e domine ele sobre os peixes do
mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo réptil que se move
sobre a terra.” No momento em que a imagem é mencionada,
essa função é mencionada, de modo que ela certamente é uma
parte da imagem de Deus para que ele exercesse este senhorio.
Considerem também o Salmo 8, na mesma conexão: “Ó Senhor,
Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra,
pois puseste a tua glória sobre os céus! Da boca das crianças e
dos que mamam tu suscitaste força, por causa dos teus adversários,
para fazeres calar o inimigo e vingativo.” Então o salmista
prossegue: “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua
e as estrelas que preparaste; que é o homem mortal para que te
lembres dele? (à luz de tudo isso) e o filho do homem, para que o
visites? Contudo, pouco menor o fizeste do que os anjos, (Alguns
diriam: “pouco menor do que Deus”.) e de glória e de honra o
coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das
tuas mãos...” Tendo este domínio, este controle, este governo
sobre a criação, é uma parte da glória e da honra. O que Deus é
para com todo o universo, Ele fez o homem, por assim dizer,
para com a Criação.
Tendo-o assim visualizado em detalhe, deixem-me sumariá-
-lo assim: os elementos essenciais na imagem são aqueles que o
homem não pode perder sem deixar de ser homem; são aquelas
qualidades e faculdades da alma humana que permanecem
sempre. Mas há outros elementos que podemos chamar

226
elementos “acidentais”, os quais o homem pode perder e
permanecer ainda sendo homem. Noutras palavras, quando o
homem pecou e caiu, ele não perdeu a totalidade da imagem; ele
reteve os elementos essenciais, mas perdeu os elementos
acidentais. É indispensável que sejamos bem claros sobre isso.
Quando o homem caiu, ele não cessou de ser homem. Sua
humanidade essencial permaneceu, e ela retém aquela parte da
imagem divina com a qual ele foi originalmente criado.
Portanto, é importante que enfatizemos isso. Jamais
devemos confinar nosso conceito da imagem de Deus no homem
meramente à justiça e santidade originais do homem. Alguns
têm feito isso com freqüência, e isso os tem colocado em aflitiva
situação acerca de outras doutrinas. Dizem eles, notem bem,
que a imagem divina no homem significou simplesmente sua
justiça e santidade originais; portanto, quando ele caiu, perdeu
tudo. Mas essa não é a verdade. O elemento natural na imagem
divina deve ser enfatizado, visto que, como nos ensinam as
Escrituras, ela persiste após a Queda. Ela estava presente em
Gênesis, capítulo 5; ela está presente em Gênesis, capítulo 9; ela
está presente no terceiro capítulo de Tiago. O homem, mesmo
em pecado, retém esses elementos e aspectos da imagem divina;
eles constituem uma parte da natureza humana. Se ele os tivesse
perdido, então não mais seria humano.
Muito bem, agora podemos afirmar: a essência da alma
dotada com a faculdade de conhecimento e vontade - a geral
congruidade e analogia entre a natureza de Deus e a natureza do
homem - e o domínio que o homem exerce sobre as criaturas,
sobrevivem à própria Queda; a conformidade moral com Deus,
porém, foi perdida na Queda. O racional, o intelectual, bem como
esses elementos gerais, sobrevivem à Queda; porém, após ter ele
pecado, sua conformidade moral com Deus foi perdida, como
veremos quando chegarmos à consideração da doutrina da
Queda.
Portanto, a pergunta que devemos formular neste ponto é:
qual era o estado original do homem se tudo isso é verdade?
Ora, existe dois perigos primordiais aqui. Um deles é o perigo

227
do exagero e de fazer de Adão uma espécie de Colosso. O outro é
o perigo de subestimar dolorosamente o que ele foi, e aqui surgem
novamente os evolucionistas e o descrevem como algum tipo
meio selvagem, meio animal. Ambos constituem erro. Eis o que
devemos dizer: o homem, como criado originalmente, foi
claramente conectado com a terra, mas estava também conectado
com Deus.
Em segundo lugar, Deus o fez Seu representante no mundo.
Em terceiro lugar, ele era obviamente inteligente e hábil
para entender. Deus lhe trouxe os animais e ordenou-lhe que
lhes desse nome, e assim foi Adão que deu nome a todos esses
animais e criaturas (Gên. 2:19,20). Ele tinha capacidade para
diferenciar e distinguir; ele conhecia a espécie certa e o gênero
de nome a dar, e são nomes que contêm significados e nos
revelam algo sobre o caráter de cada animal. Portanto, ele fora
obviamente dotado de uma elevada inteligência. Deduzimos
também que ele era feliz. Ele trabalhava sem fadiga. Ele exercia
autoridade sobre o mundo. Ele obtinha seu sustento do reino
vegetal sem se afadigar por ele. E ele se via claramente num
estado de familiaridade com os animais.
Qual era sua relação com Deus? Era a de filial dependência,
a dependência de uma criança, de um filho. Ele dedicava a Deus
obediência implícita e, o que é muitíssimo importante, sua
comunhão, seu companheirismo, sua comunicação com Deus
eram inteiramente sem temor. Qual, também, era sua condição
espiritual? Eis aqui um tema muito importante. Outra vez, tem
havido muito erro em torno dele. Somos informados de que
quando Deus fez tudo, inclusive o homem, “viu Deus tudo quanto
tinha feito, e eis que era muito bom” (Gên. 1:31). Em Eclesiastes
7:29 somos informados que Deus fez o homem reto. Esta não é
apenas uma referência à sua estrutura física, mas também à sua
constituição essencial, moral e espiritual.
Ora, segundo o vejo, isso significa que nunca houve qualquer
conflito no homem, no princípio, entre seus elementos inferiores
e os superiores, entre seus elementos físicos e os espirituais. Os
católicos romanos dizem que houve - que desde o princípio o

228
corpo foi sempre um perigo ao homem, e que Deus teve de dar
ao homem um dom extra para protegê-lo contra a possibilidade
de ser tragado por sua natureza inferior. Esse é o conceito
católico-romano da imagem. Noutras palavras, uma espécie de
capacidade para pecar já estava presente antes de o homem cair.
Mas tal coisa é algo que as Escrituras não ensinam. Não havia
conflito algum; havia perfeita harmonia entre o corpo e o
espírito. A consciência certamente prova isso. O fato de a
consciência nos acusar continuamente é uma prova de que o
homem era originalmente sem pecado. Sentimos que não
deveríamos ter pecado, que era errado pecar. Sim, essa é uma
memória, uma recordação da condição original do homem, da
condição sem pecado.
Eis outro ponto negativo: não devemos pensar em Adão
como que existindo apenas num estado de inocência. Alguns
pensam dele como se fosse simplesmente uma criança - embora
homem, uma criança em perspectiva e mentalidade - e dizem
que ele era moralmente neutro. Não era nem bom nem mau,
dizem eles; não tinha pecado, não era nada, era neutro. A Bíblia,
porém, não nos ensina tal coisa. A Bíblia nos ensina que o
homem existia num estado de santidade positiva e de genuína
justiça. É aí que as citações de Efésios e Colossenses são
importantes. A salvação deve de algum modo levar-nos de volta
a isso, e algo mais.
E então vocês perguntam: qual é a diferença entre Adão
antes de pecar e o homem na regeneração e salvação? Proponho-
-lhes que a diferença é que essas coisas estavam presentes em
Adão germinalmente, em forma embrionária. Não eram
plenamente desenvolvidas. Estavam lá, e enquanto estavam lá,
eram perfeitas. Eram perfeitas em parte, mas não em grau.
Noutras palavras, o homem era perfeito até onde ele estava,
porém havia espaço para desenvolvimento. Não havia absoluta­
mente nada imperfeito nele. Podemos ter uma bolota perfeita e
um carvalho perfeito. É uma perfeição diferente, e no entanto
estão conectados um ao outro. O fato de a bolota não ser um
carvalho não significa que ela é imperfeita. Ao contrário, ela é

229
uma bolota perfeita, e todas as potencialidades do carvalho
perfeito se acham presentes na bolota perfeita. Adão e Eva, no
princípio, eram certamente semelhantes a isso. O conhecimento,
a justiça e a genuína santidade estavam presentes germinalmente,
embrionariamente, de forma perfeita, porém não estavam ainda
plenamente desenvolvidos. Noutras palavras, o homem vivia em
fase de ensaio, de prova. Ele vivia numa condição preliminar, a
qual poderia levá-lo ou à dignidade e glória infinitamente
maiores, ou poderia terminar numa queda. Sabemos que ela
terminou realmente numa queda, mas poderia ter prosseguido
em crescimento e desenvolvimento até que atingisse a plena
beleza e perfeição.
Eis a forma como Deus fez o homem. Ele o colocou em tal
condição no Éden, e fez um pacto com ele. Ele lhe disse que, se
obedecesse às Suas leis, então ele continuaria crescendo e se
desenvolvendo em direção a essa perfeição completa e final. Em
contrapartida, se ele fizesse o que Deus lhe havia proibido fazer,
se transgredisse os mandamentos de Deus, cairia e perderia certas
bênçãos.
Muito bem, devemos parar neste ponto - o homem criado à
imagem de Deus, com essas faculdades intelectuais, morais,
racionais, sim. Mas, além disso, essa justiça e santidade originais.
Ei-lo colocado no Jardim, senhor da Criação, refletindo algo de
Deus, mesmo em sua forma, em seu próprio corpo, e com estas
duas grandes possibilidades: se permanecesse em
correspondência com Deus, haveria um perene desenvolvimento
em sua perfeição, até tornar-se absoluta; em contrapartida, se se
rebelasse, e não prosseguisse com Deus, haveria a possibilidade
de uma queda. Assim Deus fez o homem à Sua própria imagem
e segundo a Sua própria semelhança. Tal era o homem no
princípio, a despeito da Queda, a despeito do pecado, alguns
elementos desses permanecem ainda hoje. Eis a tragédia do
mundo. Esse deveria ser o maior impulso e motivação ao
evangelismo. Em certo sentido, nossa primeira mensagem para
o homem deve ser para que ele compreenda quem ele era tal
qual Deus o criou, e então o que ele fez e tem feito a si mesmo.

230
16
A QUEDA
Lembrem-se de que em nosso último estudo concluímos
focalizando o homem tal como fora criado à imagem e
semelhança de Deus e habitando o Paraíso. Consideramos o
caráter e a natureza do seu ser. Examinamos, tanto quanto
possível, à luz do ensino das Escrituras, o que significa essa
imagem de Deus. Descobrimos que o homem vivia em
correspondência com Deus, em comunhão com Ele, refletindo
algo de Sua glória. Feliz, despreocupado, capaz de viver sem
fadiga, comendo dos frutos do Jardim, ele vivia num estado de
bem-aventurança. Ele possuía justiça, retidão, um ser moral e
um caráter correspondente ao de Deus, com quem ele vivia dessa
forma em comunhão.
Agora, porém, ao focalizarmos o homem moderno,
obviamente visualizamos algo muito diferente, o quadro todo
está inteiramente mudado. E a pergunta que devemos dirigir a
nós mesmos, portanto, é: o que produziu essa mudança? Olhamos
para a atual condição moral e espiritual do homem, e mesmo
física, reitero, vemos algo inteiramente diferente. Somos
confrontados por uma nova série de fenômenos em relação à
vida e à morte. Vemos a corrupção da natureza humana, bem
como todo o caráter da vida humana neste mundo, e então,
inevitavelmente, a primeira pergunta que o evangelho e a
pregação do evangelho de Jesus Cristo sempre formulam é
simplesmente esta: qual é o problema? O que aconteceu? Se
falamos sobre a salvação, por que é ela necessária? Vocês não
podem eximir-se de toda esta doutrina do homem e do pecado.
Ora, muitas explicações têm sido oferecidas na tentativa de
esclarecer o estado do homem e do mundo como os conhecemos
presentemente. Não posso delongar-me aqui, ainda que muitas
delas são dignas de criterioso exame para que sejam refutadas.
Tento não fazer mais do que me cumpre, visto que me sinto

231
desejoso de apresentar uma exposição positiva do ensinamento
bíblico. E no entanto é necessário fazermos referência a essas
outras teorias e conceitos apenas de passagem, se for somente
por esta razão - que há pessoas que às vezes pensam que se um
pregador não menciona algo, significa que ele nunca ouviu nada
a respeito! Gostaria, pois, que quaisquer “intelectuais” que estão
considerando essas doutrinas conosco saibam que embora não
gastamos muito tempo com essas coisas, não significa que as
ignoramos, mas achamos mais proveitoso ser positivo do que
negativo.
Tendo dito isso, contudo, gostaria de mencionar uma ou
duas (teorias). Existe uma teoria muito antiga, que remonta ao
tempo ainda antes da era cristã, a qual afirma que existem dois
princípios de vida igualmente grandes: o princípio do bem e o
princípio do mal. O termo técnico para isso é dualismo. O
dualismo afirma que o bem e o mal são de igual essência de vida,
bem como afirma que há um deus que controla o mal e também
um deus que controla o bem. Tem havido diversas ramificações
dela; vocês encontrarão esses conceitos em algumas outras
religiões, e essa é a razão por que é importante que tomemos
conhecimento de sua existência. Já tratamos, porém, do dualismo
em preleções anteriores, e o rejeitamos não só porque não existe
nada sobre ele sugerido no ensino bíblico, mas também porque
não pode ser substanciado a partir do exame das pessoas ou da
vida.
Outra pretendida explicação é a teoria que se desenvolve
através da teoria da evolução - que o homem não passa de animal,
e que o que testemunhamos na vida e no mundo nada é senão
uma manifestação de certas qualidades e características
animalescas. Não preciso adentrar isso novamente porque, ao
refutar a teoria da evolução, já respondemos a esse conceito
particular.
Quando, pois, vocês recorrem às teorias que não se
encontram baseadas na evolução, ou no princípio do bem e do
mal, mas que são elaboradas para que o homem seja visualizado
em si e de si mesmo, vocês se deparam novamente com uma

232
grande variedade de explicações. Há aqueles que afirmariam que
aquilo que a Bíblia chama mal e pecado não passa de uma espécie
de resistência, que é uma parte essencial da natureza humana
posta ali por Deus, a fim de que tenhamos algo a superar; e que,
ao superá-lo, possamos desenvolver-nos. Ora, esse é o grande
princípio de todo exercício, não é verdade? Vocês erguem pesos
a fim de devenvolver seus músculos; a resistência do peso é o
elemento que os desenvolve.
Há ainda outras teorias que consideram o pecado meramente
como a ausência de algumas qualidades positivas, a ausência de
conhecimento, a ausência de discernimento. Afirma-se que o
que a Bíblia chama pecado e mal não passa de condições
negativas, e que se pelo menos os homens e as mulheres tivessem
mais conhecimento e fossem melhor educados, mais civilizados
e melhor treinados, eles suplantariam tudo isso. Por exemplo,
ela o coloca assim: “Você não deve dizer de uma pessoa que ela é
má; o que realmente deve dizer é que ela não é boa.”
Bem, vejam que espécie de teoria se tem promovido. Há
muitas outras, todas, porém, mais ou menos, se concentram
naquelas que já consideramos. Terei de voltar a este ponto mais
adiante, quando vier a considerar a doutrina do pecado um pouco
mais diretamente, mas creio que tenho feito o suficiente para
demonstrar que o homem e a mulher, face a face com este
problema, bem como com todo problema, sempre fazem o
máximo para evitar o pleno e claro ensino das Escrituras; e assim
eles inventam e imaginam essas teorias, as quais eles não podem
substanciar de forma alguma.
Diante de tudo isso, porém, somos confrontados pela
doutrina bíblica da queda do homem, a explicação bíblica do
atual estado do homem e do mundo. E de uma maneira muito
interessante, vocês descobrirão que esse conceito bíblico tem
permeado várias outras religiões, e mesmo as crenças populares,
em certo sentido confirmando a história bíblica sobre a unidade
da raça humana e da queda do homem. Por onde quer que os
homens e as mulheres tenham andado, esta história, este conceito
da Queda, de um modo ou de outro, os tem acompanhado,

233
proporciando desse modo muito notável evidência a favor da
verdade que estamos para considerar.
Ora, o relato bíblico da atual condição do homem encontra-
-se nesse grande capítulo no início da Bíblia - o terceiro capítulo
de Gênesis. O que é isso? É ou não é história? O que lemos ali
seria fato evidente, simples, histórico, ou não? Esta é uma questão
obviamente crucial, e no entanto vocês encontram pessoas
alegando que não é história, e sim, alegoria, que não é realmente
verídica e que não sucedeu dessa forma. Dizem que é um
maravilhoso conto destinado a oferecer-nos, de uma maneira
pitoresca, um relato da mudança gradual do homem. Essa é a
maneira pela qual pessoas têm tentado evitar a clara afirmação
que é feita aqui.
Há ainda outros que dizem que não temos aqui propriamente
uma alegoria, e sim, um mito. Um mito, dizem, é uma estória
que expressa as verdades religiosas. Não é realmente história,
mas os conceitos que ele contém, dizem, são verídicos.
A ingenuidade e a imaginação humanas têm se exercitado
muitíssimo através dos séculos. As pessoas dizem que a serpente
não era realmente um animal. Era simplesmente uma espécie
de símbolo, um símbolo que, segundo alguns, é destinado a
representar a cobiça. Não, dizem outros, a serpente é, ao
contrário, um símbolo do desejo sexual. Outros dizem que ela é
um símbolo da razão pecadora e errante. E ainda outros que ela
é um símbolo, uma figura, a representar o próprio satanás.
Noutras palavras, não crêem na serpente literal. Não obstante,
mesmo aqueles que aceitam a serpente enfrentam suas
dificuldades - digladiam com a questão se de fato a serpente
falou ou não.
Ora, menciono todas essas dificuldades, essas objeções que
se têm formulado, a fim de podermos considerá-las todas
juntamente. O que temos a dizer sobre esses problemas?
Evidentemente, é indisputável que todo esse capítulo nos é
apresentado como história; não existe qualquer insinuação a
alegoria. Ele se nos oferece como fato evidente, simples, e se
vocês começam a dizer que ele não é história, ou que partes dele

234
não são história, logo se verão numa posição totalmente
contraditória. Por exemplo, somos informados nos versículos
14 e 15 sobre o castigo que se seguiu ao pecado de Adão e Eva; e
se vocês não aceitam tal coisa, então têm de pôr uma porção da
Bíblia de lado, visto que as conseqüências que se seguiram, as
quais são descritas aqui, têm prosseguido indefinidamente, e todo
o ensino da Bíblia com respeito ao homem depende da existência
desse fato. Daí, se uma parte de Gênesis, capítulo 3, é fato, por
que não o todo? E assim parece-me que a única coisa possível a
fazer é aceitar tudo como fato.
Pessoalmente, não me vejo em nenhuma dificuldade sobre
isso. No momento em que vocês crêem em Deus, no momento
em que vocês crêem no diabo, então têm direito de esperar
milagres, vocês têm direito de esperar coisas da esfera
sobrenatural. A Bíblia afirma isso, e ela é a resposta final às
pessoas que têm dificuldades com milagres. No momento em
que vocês crêem em Deus como a Bíblia O descreve, então vocês
não devem mais nutrir alguma dúvida sobre milagres, e o mesmo
se dá acerca desta questão da serpente falando. Se vocês crêem
no diabo como a Bíblia o descreve, então não devem ter qualquer
dificuldade em crer que ele tem poder até mesmo para fazer uma
serpente falar. E assim, toda esta dificuldade não só contradiz
aquilo sobre o que já concordamos, mas, parece-me, é também
completamente desnecessária.
Além disso, desejo chamar a atenção de vocês para certo
número de outros textos escriturísticos que claramente ensinam
que o que temos no terceiro capítulo de Gênesis é história literal.
Tomem, por exemplo, Jó 31:33: “Se, como Adão, encobri as
minhas transgressões, ocultando o meu delito no meu seio” -
isso apoia a historicidade de Gênesis, capítulo 3. Em seguida,
tomem Oséias 6:7. Na Authorized Version, lê-se assim: “Mas eles,
como homens, transgrediram o concerto”, mas o consenso geral
é, e vocês descobrirão tanto na Revised como na Revised Standard
Version, que a leitura deve ser a seguinte: “Mas eles, como Adão,
têm transgredido o concerto.”
Temos, porém, um versículo ainda mais importante em 2

235
Coríntios 11:3, onde o apóstolo escreve: “Mas temo que, assim
como a serpente enganou Eva com a sua astúcia, assim também
sejam de alguma sorte corrompidos os vossos sentidos, e se
apartem da simplicidade que há em Cristo.” Notem bem o que
Paulo diz: “Assim como a serpente enganou Eva” - ele trata
Gênesis, capítulo 3, como fato histórico. O apóstolo alega ser
divinamente inspirado, e o que ele escreveu era, portanto, isento
de erro; todavia, isso é o que ele disse. E vocês têm ainda outra
referência em 1 Timóteo 2:14, onde o apóstolo trata da questão
do ensino pela mulher na Igreja, e coisas desse gênero. Eis o que
ele diz: “E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada,
caiu em transgressão.”
Noutras palavras, sempre me parece muitíssimo patético
quando a pessoa, no interesse de algum suposto conhecimento
científico, entende que deve descartar a historicidade de Gênesis,
capítulo 3, e dizer que ele não passa de mito, ou algo parecido,
ou que partes dele são verídicas e partes não o são, e então
imagina ter resolvido seus problemas! Mas, se tal é o seu
procedimento, vocês estarão criando tremendos problemas para
si próprios. O que vocês fazem com as afirmações de outras partes
das Escrituras? Como já vimos, se começam a fazer jogo com o
ensino bíblico, em qualquer ponto, vocês descobrirão que todo
o seu sistema será abalado. E assim - uma vez mais é preciso
dizê-lo - ainda que haja certas coisas que alguém não entenda,
todavia, no tocante a mim mesmo, não encontro qualquer
dificuldade em aceitar este terceiro capítulo de Gênesis como
sendo literal, como sendo história real.
Muito bem, uma vez aceito os termos, examinemos Gênesis,
capítulo 3, e vejamos o que ele nos ensina. A primeira coisa é
que o mal, o pecado e a tentação vieram de fora; vieram de
satanás, fazendo uso da serpente. A coisa que anseio enfatizar é
que não houve nada no próprio homem que teria produzido essa
queda no pecado. Não houve nenhuma causa física. Não houve
nada de sensual no homem que causasse isso. Essa tentação veio
para o homem inteiramente de fora, e ele tinha perfeito livre-
-arbítrio para decidir o que fazer com ela. Esse é um ponto

236
muitíssimo importante, o qual constitui a própria essência do
ensino bíblico. Precisamos desfazer-nos de todos os conceitos
que afirmam que foi alguma coisa no corpo, na constituição
humana, na carne do homem, alguma forma de desejo natural,
que tragou o homem.
Como vimos, a doutrina católico-romana sobre a imagem
de Deus no homem sugere isso de forma muito veemente. Seu
conceito é que o homem sempre teve certo tipo de luta, que o
aspecto animal do homem, a parte corporal, teve sempre a
tendência de puxá-lo para baixo, e que Deus lhe concedeu um
dom especial de justiça original, a fim de habilitá-lo a manter
sob controle essa outra parte que tinha sempre a propensão de
puxá-lo para baixo. A Bíblia não diz absolutamente nada sobre
isso. O homem era perfeitamente equilibrado; não havia
absolutamente nada dentro dele que o pudesse arrastar para baixo.
O pecado veio inteiramente de fora, e isso é vital para a nossa
doutrina, como veremos ainda repetidas vezes.
Quais, pois, foram os passos para a Queda? Estou agora
simplesmente lembrando-lhes do que nos é dito em Gênesis,
capítulo 3. A primeira coisa foi que a serpente atacou a mulher,
não o homem. Vejam a importância disso em algumas das citações
que já lhes apresentei. Não entraremos nisso agora; voltaremos
a elas talvez em outra ocasião. Contudo a Bíblia o enfatiza, não
só neste capítulo, mas noutros lugares, e isto é o que aconteceu:
a mulher começou a dar ouvidos às calúnias do diabo contra
Deus; e ela começou a ter dúvida da palavra e do amor de Deus.
Em seguida, lembro-lhes, ela começou a olhar para aquilo que
Deus havia proibido, e havendo observado o fruto e percebido
que ele era apetitoso para se comer, começou a desejá-lo e a cobiçá-
-lo ardentemente, e isso por sua vez a levou a um definitivo ato
de desobediência. Ela deliberadamente quebrou o mandamento
de Deus e fez aquilo que Deus havia dito a ela e a Adão que não
fizessem. Então Adão, ao ser-lhe oferecido o fruto, tomou dele e
o comeu com ela. Então ambos caíram na transgressão - a mulher
primeiro, seguida pelo homem.
Então, a pergunta que surge é: o que os fez agir assim? Afinal,

237
infelizmente não nos é possível responder a essa pergunta.
Ninguém foi achado capaz de respondê-la. O melhor que
podemos dizer é que a constituição moral do homem - ele ser
feito à imagem de Deus e possuir livre-arbítrio - de qualquer
forma reteve a possibilidade de sua desobediência, mas além disso
não podemos ir, mesmo como não podemos alcançar qualquer
explicação final de como o próprio satanás originalmente caiu.
Notem que a ambição entrou, e a ambição assumiu uma forma
particular: desejo para uma curta caminhada para chegar ao
conhecimento divino.
Ora, eu almejo enfatizar isso, visto que nunca me cansa dizer
que o maior problema com a maioria das falsas doutrinas, e
especialmente com a maioria das falsas doutrinas sobre a
santificação, é que elas estão tentando chegar a algo seguindo
por um atalho, e vocês verão que essa foi a causa original da
ruína do homem. Deus teve Seu plano para Adão e Eva, o qual
se constituía no desenvolvimento da comunhão com Ele, e
finalmente eles teriam que chegar a essa posição; mas o diabo
surgiu em cena e disse: “Vocês não precisam seguir esse caminho;
não precisam empregar tanto tempo nele. Apenas façam o que
lhes digo, e vocês estarão lá imediatamente” - um atalho. Os
atalhos sempre nos apelam. Temos sempre certo pressentimento
de que o caminho de Deus é por demais demorado e por demais
laborioso, e vocês descobrirão que a maioria das seitas tem por
base a idéia de oferecer-lhes algo através de um método fácil e
rápido - sempre muito mais rápido, simples e direto, do que o
método bíblico.
E o segundo elemento, naturalmente, era este: (o diabo)
insinuou dúvidas sobre o amor de Deus. Qual foi o resultado
disso? Ora - estou ainda falando, não das conseqüências reais,
mas do resultado em suas mentes - foram levados à transgressão
da lei de Deus e à separação de Deus. Talvez possamos sumariar
tudo assim: foi a recusa por parte de Adão e Eva de submeterem-
-se à vontade de Deus e de deixar Deus determinar o curso de
sua vida; foi determinação sua estabelecer isso por conta própria.
A essência do que aconteceu foi que eles empurraram para um

238
lado o plano de Deus, o propósito de Deus, e o substituíram por
seu próprio conceito, seu próprio método. O famoso professor
Emil Brunner tem uma análise muito interessante, uma análise
psicológica, se vocês o preferirem, do que aconteceu. Ele o coloca
assim: houve três elementos - o desejo pelo fruto, então a dúvida
sussurrada acerca de Deus, a qual incendeu e inflamou o desejo
ainda mais e, finalmente, a ambição se tornou decisiva.
Primeiramente havia o desejo original, então a serpente o tocou
de leve com a dúvida murmurada, mas ainda havia hesitação.
Então a ambição entrou - “Vocês podem ser como Deus, vocês
conhecerão tudo... basta...” A ambição provou demais. A balança
pendeu, e eles caíram.
O outro ponto para o qual gostaria de chamar a atenção de
vocês é a extraordinária correspondência existente entre o que
é descrito aqui em Gênesis, capítulo 3, e o que João nos afirma
em sua Primeira Epístola. No capítulo 2:15, ele diz: “Não ameis
o mundo.” Em seguida ele divide esse amor em “a concupis­
cência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida”
(v. 16). Em Gênesis, capítulo 3, há o desejo, e então vendo que o
fruto era bom para ser considerado - a concupiscência dos olhos;
em seguida a soberba da vida, a ambição de ser grande, de ser
maravilhoso e fenomenal. Os mesmos elementos! Aliás, como
já lhes propus, eles reaparecem por toda a Bíblia e são
desenvolvidos por toda parte.
A tudo isso, porém, acrescentaria dois pontos especiais, e
aqui estão: o pecado só é possível, e só foi possível ao homem no
princípio, visto que ele possuía uma personalidade espiritual
livre. O pecado não é possível a um animal. Na mais
extraordinária forma, ao ser o homem feito à imagem de Deus,
o pecado se lhe tornou possível, por causa de sua personalidade
livre, por causa de seu livre-arbítrio. O próprio fato de Adão e
Eva terem sido criados à imagem e semelhança de Deus, em e
de si mesmos, os expôs a essa possibilidade. Não mais que isso,
mas certamente fez isso.
O segundo ponto que gostaria de expor para sua consideração
é este: sabemos e temos descoberto nas Escrituras que anjos

239
também caíram, mas notem bem que nunca se nos diz em parte
alguma da Bíblia que os anjos, os anjos apóstatas, se destinam a
ser redimidos. A salvação é exclusivamente para o homem, e é
possível que vocês tenham perguntado a si mesmos: por quê?
Os anjos caíram como o homem caiu. Por que não há salvação
para os anjos como há para o homem? E eu, de minha parte,
sinto-me bem disposto a aceitar a explicação que tem sido
apresentada, ou seja, que, no caso do homem, a tentação e a
Queda vieram de fora, justamente como já lembrei a vocês. Não
constitui uma justificativa, e no entanto faz certa diferença.
Quando satanás caiu, ele caiu por causa de algo interno; a
tentação não veio a satanás externamente. O que foi não o
sabemos, porém existe de qualquer forma essa diferença. E seria
possível, eu gostaria de saber, que Deus, em Sua infinita graça e
benevolência, tenha delineado essa distinção? Visto que o
homem ficou sujeito à sutileza, à sedução, ao angélico e maligno
poder desse anjo apóstata, seria possível que Deus tivesse
misericórdia, compaixão e piedade, e provido um meio de
salvação, a qual Ele não proveu no caso dos anjos? Deixo isso
para a consideração de vocês.
Aproximemo-nos agora de um ponto prático: quais foram
os resultados dessa desobediência, dessa transgressão da lei e
mandamento de Deus? São descritos aqui muito claramente. A
primeira coisa de que somos informados é que Adão e Eva se
tornaram conscientes de sua nudez (Gên. 3:7). Isso é algo
extraordinário. O homem, como fora criado originalmente por
Deus, era completamente inconsciente no tocante ao seu corpo
(Gên. 2:25). O homem e a mulher viviam nus, e tal coisa de
forma alguma os preocupava. Mas no momento em que pecaram,
no momento em que caíram, a vergonha evidenciou-se, e
tentaram cobrir-se com folhas de figueira.
As Escrituras enfatizam esse fato porque ele evidentemente
tem grande importância. Devemos ser precavidos quando o
observamos, porque há dois perigos que nos confrontam. Há o
perigo de enfatizar em demasia o elemento sexo em pecado, e há
o perigo de não enfatizá-lo suficientemente, porém as Escrituras

240
chamam especificamente nossa atenção para ele. A primeira
coisa que aconteceu foi que os corpos de Adão e Eva se tornaram
em problema para eles, e ainda continuam sendo um problema
desde então. A única diferença entre um homem e um animal é
que um animal não tem consciência de seu próprio corpo da
maneira como o homem tem. É da própria essência da condição
pecaminosa do homem que o corpo que lhe foi dado por Deus, e
que em certo sentido é um reflexo da glória do próprio Deus, a
forma de Deus, como já vimos, tenha se tornado um problema.
Um de seus maiores problemas é que existe este senso de
vergonha em conexão com ele.
Então, a próxima coisa que é enfatizada é seu senso de culpa.
No momento em que comeram do fruto, perceberam que haviam
feito algo errado. Foram imediatamente condenados em seu ser
interior e se tornaram culpados. Logo a seguir eles começaram a
ter medo de Deus, e em vez de correrem para Deus ao ouvirem
Sua voz no frescor da tarde, eles fugiram (Gên. 3:8). Antes disso,
ouvir a voz de Deus constituía-se na bênção mais excelente
possível. Eles haviam estado em perfeita correspondência com
Ele. Não tinham nenhum medo de Deus, corriam para Ele. Agora
fugiam dEle. E seu medo de Deus persistiu. Outra maneira de
colocar isso é dizer que eles perderam sua comunhão com Deus,
bem como seu senso de comunhão com Deus - aquilo em que
haviam se gloriado acima de tudo.
A próxima coisa a ser enfatizada é que eles evidentemente
experimentaram a morte espiritual. Viam-se numa situação
inteiramente nova, e nesse estado, somos informados, foram
expulsos do Paraíso, do Jardim do Éden, e não lhes foi permitido
retornar lá por sua própria vontade. Estão lembrados da espada
flamejante que guardava o caminho para a árvore da vida e
barrava sua entrada no Jardim? (Gên. 3:24).
Em acréscimo a isso, porém, vocês descobrem que eles
viviam numa relação inteiramente nova para com a natureza.
Não haviam tido nenhuma labuta até então, mas agora Adão
tinha que labutar, tinha que suar; era pelo suor do seu rosto que
ele teria que comer seu pão. Dificuldades e obstáculos surgiriam

241
na natureza; teria que domesticar a natureza e superar os
espinhos e abrolhos, bem como a todos os demais problemas
(Gên. 3:17-19).
Além do mais, descobrimos que Adão e Eva tinham
evidentemente experimentado uma perversão de sua natureza
moral; vemos isso imediatamente na história de Caim que se
segue à Queda. Havia perversão na própria natureza de Caim, a
qual herdara de seus pais.
E a última conseqüência que é observada aqui consiste na
morte física. Ora, tocamos apenas de leve neste ponto em outra
ocasião. Deixem-me colocá-lo assim: não havia necessidade de
o homem morrer. Se tivesse obedecido a Deus, se continuasse
vivendo sua vida em correspondência com Deus, jamais teria
experimentado a morte física. Era-lhe possível, portanto, não
morrer. O resultado da Queda foi que agora não lhe era mais
possível não morrer. Em latim é colocado assim: a condição
original era: posseznon morv, agora é: non posse non mori. Agora ele
tem de morrer. E impossível para ele não morrer, a menos que
haja alguma intervenção especial. As Escrituras o colocam desta
maneira: Adão é informado que deve voltar ao pó do qual viera
(Gên. 3:19). Isso não teria acontecido exceto por este pecado. E
isso é confirmado em Romanos 5:12: “Pelo que, como por um
homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte...” A
morte veio dessa maneira, por meio do pecado e como resultado
do pecado.
Ora, essas são as coisas que imediatamente resultaram, mas
há também certas coisas sobre as quais devemos ser criteriosos
em observar. Notem bem que, embora tivesse acontecido tudo
isso a Adão e Eva, contudo não perderam imediatamente toda a
sua faculdade intelectual - aliás, o homem jamais perdeu
subseqüentemente sua faculdade intelectual. Ele a reteve.
Prossigam e leiam os próximos capítulos de Gênesis, e
descobrirão que ele se tornou musicista, edificou cidades,
desenvolveu uma grande civilização. Não perdeu sua faculdade
intelectual, nem morreu imediata e fisicamente. Aliás,
aparentemente não houve qualquer mudança física imediata.

242
Noutras palavras, os efeitos do pecado se delongaram tanto
física quanto mentalmente. Houve subseqüentemente um
declínio muito acentuado nas faculdades intelectuais, morais e
em todas as demais áreas, segundo vemos descrito em Gênesis,
capítulo 6; contudo, tal fato não se deu imediatamente. As vezes
as pessoas pensam que no momento em que Adão pecou e caiu,
ele chegou ao máximo que o homem pode chegar. Contudo não
foi assim. Ele caiu em caráter essencial, como já descrevi, mas
havia um declínio e uma degradação paulatina como resultado.
Ele não morreu fisicamente de imediato; morreu algum tempo
depois. E o mesmo resultado delongado é verdadeiro também
no tocante às suas qualidades mentais e morais.
De modo que, deixem-me sumariar os resultados desta
forma: alguns resultados legais se consumaram imediatamente.
O homem imediatamente se viu sob condenação e foi punido
por Deus, enquanto que, anteriormente, só havia sido abençoado.
Espiritualmente, ele caiu imediatamente de sua justiça original.
Não houve delonga para o segundo. No momento em que ele
pecou, perdeu aquela retidão, aquela correspondência com o
caráter moral de Deus. E, igualmente, se viu separado de Deus
imediatamente. Seu medo surgiu, bem como as várias outras
coisas das quais já os lembrei. No entanto as conseqüências
físicas se seguiram mais lentamente. Noutras palavras, estou
enfatizando que, quando o homem caiu, ele não cessou de ser
homem; não perdeu nenhuma de suas qualidades ou atributos
essenciais. Seu intelecto, seu poder de auto-análise, seu
discernimento, sua vontade, todas essas coisas permaneceram.
Mas perdeu sua justiça original e sua comunhão com Deus. Foi
dominado pelo medo, escondeu-se e encheu-se de vergonha, a
“autoconsciência” num sentido negativo - não sabia mais o que
fazer de si mesmo.
Tal é o homem em resultado da Queda. O que podemos dizer
sobre ele? Bem, a melhor descrição que já li ou ouvi foi feita por
um velho puritano, John Howe. Ele disse que o homem, em
resultado da Queda, lembrava-o de algum desses grandes edifícios
que podemos ver em Londres, bem como em vários países

243
distantes. Certa vez existiu um grande palácio que agora jazia
caído em ruínas, e traz um sinal externo que diz: “Séculos atrás,
um rei, certa vez, residiu aqui.” Agora, em resultado da Queda,
ficou escrito sobre o homem: “Certa vèz Deus residiu aqui.”
Temos estado considerando uma das verdades mais
profundas e mais espantosas que os homens e as mulheres já
encararam. Isso é a razão por que as pessoas e o mundo são como
continuam sendo ainda hoje. A partir daquele glorioso início
chegaram a isto: “Certa vez Deus residiu aqui.” Que terrível,
que desastrosa, que calamitosa coisa é o pecado!

244
17
A POSTERIDADE DE ADÃO
E O PECADO ORIGINAL
Na última preleção começamos nossa consideração da
doutrina da queda do homem. Visualizamos o mundo moderno
e vimos que há uma grande diferença entre o quadro que vemos
aí e o quadro que consideramos anteriormente quando
visualizamos o homem criado por Deus à Sua própria imagem e
semelhança, e posto no Jardim do Eden, no Paraíso. E
consideramos juntamente o relato apresentado no terceiro
capítulo de Gênesis sobre o que produziu a diferença - a queda
do homem, o primeiro pecado. Prosseguimos esboçando algumas
conseqüências imediatas, algumas das coisas que sucederam
imediatamente no caso de Adão e Eva; mas não concluímos
totalmente nossa abordagem dessas conseqüências. Houve outras
conseqüências que se seguiram imediatamente. Houve, por
exemplo, a maldição que foi pronunciada sobre a serpente. Vocês
podem encontrá-la em Gênesis 3:14,15:

“Então o Senhor Deus disse à serpente: porquanto


fizeste isto, maldita serás mais que toda besta, e mais que
todos os animais do campo: sobre o teu ventre andarás, e
pó comerás todos os dias da tua vida. E porei inimizade
entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente:
esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. ”

Não ficamos por aqui, porém para fazer o nosso registro


completo é preciso notar que isso foi uma conseqüência direta e
imediata do pecado e da queda do homem.
Então, vocês se lembram, algumas conseqüências se
seguiram no caso da mulher. Estas estão descritas no versículo
16: “E à mulher disse: multiplicarei grandemente a tua dor, e a

245
tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será para o
teu marido, e ele te dominará.” Essa é obviamente uma afirmação
muitíssimo importante, e uma que é muitíssimo significativa.
É algo que se fez verdadeiro desde então, e é importante que
compreendamos o significado desse fato. O parto, originalmente,
nunca se destinou a ser como agora é. Ele é uma das conse-
qüências do pecado e da queda do homem.
E a outra conseqüência imediata foi a maldição da terra.
Vocês o encontrarão nos versículos 17 e 18: “E a Adão disse:
porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher e comeste da árvore
de que te ordenei, dizendo: não comerás dela: maldita é a terra
por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida.
Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do
campo.” E em seguida a passagem continua a afirmar algo que já
consideramos antes: “No suor do teu rosto comerás o teu pão,
até que te tornes à terra; porque dela foste tomado: porquanto és
pó, e em pó te tornarás” (v. 19). Por causa da queda do homem, a
própria terra foi amaldiçoada, e espinhos e cardos vieram à
existência, intensificando o labor e o esforço do homem,
confrontando-o com um problema perpétuo. A terra enfrenta a
constante tendência de se tornar numa condição de aridez. Se
vocês cessam o cultivo do solo, ele prontamente cai nesse estado.
Ora, tudo isso é uma conseqüência da Queda. O apóstolo Paulo
traz a lume este ponto tão importante: “Porque a criação ficou
sujeita à vaidade, não por sua vontade , mas por causa do que a
sujeitou” (Rom. 8:20). Aí somos lembrados desse fato vital em
conexão com toda a vida do mundo. Esta maldição que se segue
à queda do homem tem afetado a criação, e a criação não é hoje
o que foi no princípio, nem o que será quando o mal e o pecado
forem removidos do mundo.
Essas, pois, foram as conseqüências imediatas da Queda.
Todavia agora vamos considerar outro aspecto vital desta grande
doutrina. Temos de considerar o efeito do pecado e da Queda
sobre a posteridade de Adão - agora, não sobre o próprio Adão,
e sim sobre todos quantos têm procedido dele. Provavelmente,
o melhor modo de nos introduzirmos a este tema seja,

246
novamente, colocando-o assim: estamos face a face com o fato
da universalidade do pecado. Ora, isso é algo sobre o que todos
concordam. Nem todos o chamam de pecado; alguns não se
dispõem a chamá-lo por esse nome. De várias formas, porém,
todos, quer sejam cristãos quer não, têm de admitir que há algo
de errado com o homem em toda parte, onde quer que se
encontre. Não importa quão primitivo seja ele, quer civilizado
quer não civilizado. E evidente que falta alguma coisa no homem;
há algo que provoca miséria e infelicidade. Portanto, a Bíblia
chama esse fato, e assim o fazemos também, de universalidade
do pecado.
Ora, isso é algo que precisamos explicar. Cumpre a todos
quantos estão interessados no mundo e no homem explicar este
fato, este fenômeno. Anteriormente mencionei de passagem que
há aqueles que têm suas explicações. A mais popular de todas,
suponho, é aquela que se baseia na teoria da evolução, e afirma
que o homem é imperfeito em razão dele não se achar ainda
plenamente desenvolvido. Ele apenas saiu da floresta. Ele ainda
não se livrou de todas as relíquias e de todos os vestígios de seu
passado selvagem. A isso se deve a sua imaturidade. (Já
consideramos este ponto de vista e já apresentamos nossa
resposta.) Outros dizem que a causa consiste na falta de
conhecimento; ainda outros, na falta de boas condições
econômicas e sociais, e assim por diante. Muitas razões são
apresentadas, e não dispomos de tempo para deter-nos nelas e
refutá-las. Podemos simplesmente dizer que todas elas são
inadequadas. São contraditórias, e todas elas são por demais
superficiais para explicar o problema pelo qual agora somos
confrontados.
Ora, o fato da universalidade do pecado é asseverado ao
longo de toda a Bíblia. Para exemplificá-lo, deixem-me
simplesmente selecionar algumas passagens bem conhecidas,
mais ou menos ao acaso. Tomem a grande afirmação de Isaías
53:6: “Todos nós andamos desgarrados como ovelhas; cada um
se desviava pelo seu caminho.” Todos nós! Mas, seja como for,
evidentemente a afirmação clássica desta doutrina é aquela de

247
Romanos, capítulo 3, O apóstolo prossegue reiterando: “Não há
um justo, nem um sequer” (v. 10). "... todo o mundo seja
condenável diante de Deus” (v. 19). “Porque todos pecaram e
destituídos estão da glória de Deus” (v. 23). Não há exceção -
judeu e gentio, bárbaro e grego. Não importa, o fato é que o
mundo todo, o homem em sua totalidade, é culpado diante de
Deus. Esta é uma doutrina vital, essencial, para um verdadeiro
entendimento da doutrina bíblica da salvação. Tiago diz
exatamente a mesma coisa: “Porque todos tropeçamos em muitas
coisas...” (Tiago 3:2). Reiterando, ele é universal. João, em sua
Primeira Epístola, o diz duas vezes, no primeiro capítulo: “se
dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos,
e não há verdade em nós. Se dissermos que não pecamos, fazemo-
-lo mentiroso, e a sua palavra não está em nós” (1 João 1:8,10).
Aí estão, pois, algumas afirmações bíblicas típicas, e
podemos sumariá-las, dizendo que a Bíblia assevera que o mundo
inteiro é culpado de pecado. Mas a Bíblia vai além, e diz que o
pecado não só afetou todos os homens e mulheres, como também
afetou sua natureza inteira, que todas as partes de seu ser estão
envolvidas - corpo, alma e espírito.
E, evidentemente, a pergunta que surge imediatamente é:
como foi ele transmitido? Antes, porém, de discutirmos isso,
pode ser coisa boa estarmos bem claros em nossas mentes quanto
ao que exatamente queremos dizer por pecado. Qual é o caráter
do pecado? O que é pecado, segundo o termo usado e ensinado
nas próprias Escrituras? Bem, deixem-me sumariá-lo assim:
antes de tudo, a Bíblia ensina claramente que pecado é um tipo
especial de mal. Ora, é possível que exista mal que, em certo
sentido, não seja pecado. O mal pode ser alguma coisa geral, por
exemplo, alguma coisa física - calamidades e coisas desse gênero.
Isso é uma manifestação do mal, porém não necessariamente do
pecado. A diferença entre eles consiste em que pecado é mal
moral ou ético; não o mal em geral, e sim um tipo especial de
mal.
Ora, a Bíblia possui um bom número de termos para
descrever pecado. Uma palavra que ela usa com muita freqüência

248
significa “errar o alvo” ou desviar-se da rota certa. Outra palavra
significa ausência de integridade, de autenticidade e inteireza,
carência de retidão, abandono do caminho designado. É uma
distinção muito importante. Ainda outra palavra contém o
significado de revolta, de rebelião, de recusa a submeter-se a
autoridade legal. Significa uma transgressão positiva da lei e uma
quebra deliberada de uma aliança. Ora, é muito importante que
compreendamos sempre que pecado inclui todas essas várias
coisas e ainda outras.
Outra palavra bíblica traduzida por “pecado” significa
“culpa”, e essa é uma consideração muito importante. Outro
termo significa infidelidade e igualmente traição: não é uma
questão de simplesmente sermos infiéis, e sim que somos
culpados de traição. Outra palavra que seguidamente é usada nas
Escrituras para expressar esta idéia de pecado é “vaidade”, ou
presunção, futilidade. Pedro fala sobre nossa “vã conversação”
(“vã maneira de viver”, ERC), herdada da tradição de nossos
pais (1 Ped. 1:18). Paulo, em Efésios, capítulo 4, escreve para não
andarmos na vaidade de nossas mentes (v. 17) - vaidade é uma
concepção bíblica muito comum de pecado. E então, finalmente,
somos informados de que pecado significa uma perversão ou
uma distorção da natureza - algo que tem sido torcido e
pervertido. Tais, pois, são algumas das palavras que são usadas
nas Escrituras para englobar esse conceito de mal moral e ético.
Então, o segundo elemento que a Bíblia ensina sobre o pecado
é que pecado tem um caráter absoluto. A Bíblia sempre designa o
bem e o mal como antítese perfeita. Não conhecemos
absolutamente nada entre os dois. Na Bíblia, uma coisa ou é
preta ou é branca, jamais existe uma cor cinza. Não existe
comunhão entre luz e trevas, bem e mal, Deus e Belial. A
consistência do pecado é uma propriedade absoluta; ele é real e
positivamente mau. Pecado não é meramente ausência de bem;
ele é uma espécie de algo positivo e tem um caráter claramente
definido. Não há meio termo entre dois opostos, disse Aristóteles,
e isso pode ser aplicado aqui. Não há variação gradual do mal
para o bem. Ou uma coisa é boa ou é má.

249
O terceiro elemento que a Bíblia enfatiza é que o pecado é
sempre algo que se acha diretamente relacionado com Deus, Sua vontade
e Sua lei. A Bíblia sempre define pecado em termos de nossa
relação com Deus. É aí onde o conceito bíblico de pecado deve
ser diferenciado muito agudamente das idéias morais que não
procedem da Bíblia. Deus é sempre envolvido, e o que faz o
pecado ser pecado, é que ele é uma relação errada com Deus.
Pecado quer dizer homens e mulheres numa condição na qual
não amam a Deus e não vivem inteiramente para a glória e a
honra de Deus.
A quarta ênfase bíblica é apito pecado é algo que está no coração
dos homens e das mulheres, não algo na superfície de suas vidas, mas
completamente nas profundezas delas. É do coração que “procedem
os maus pensamentos, homicídios, adultérios”, e assim por
diante (Mat. 15:19). E coração, na Bíblia, não significa
meramente a sede de minhas afeições, não é meramente algo
que se acha na superfície de minha vida, não é meramente a
maneira pela qual manifesto minha personalidade, antes, ele é o
próprio centro ou raiz de minha personalidade. Ora, o pecado
reside aí, diz a Bíblia.
Outra maneira de expressar isso é, em quinto lugar, que o
pecado não consiste apenas de ações, mas essencialmente ele é uma
condição. Ora, há aqueles que definem pecado apenas em termos
de ações, e esses têm se esquecido de que ele é uma condição
antes de manifestar-se em atos. Noutras palavras, o pecado pode
ser conceituado em termos de camada (de tijolos ou pedras):
antes de tudo, existimos num estado e condição pecaminosos, e
por causa disso nos inclinamos a desenvolver os hábitos
pecaminosos dos quais somos constantemente culpados. Então,
visto que somos criaturas de hábitos pecaminosos, nos
entregamos a obras ou a atos particulares de pecado. Por isso, é
superficial e completamente antibíblico conceituar o pecado tão-
-somente em termos de ações particulares.
E, finalmente, a Bíblia sempre inclui em suas descrições e
definições o fato de que o pecado é culpa e poluição. Reiterando, a
poluição é um estado, uma condição, mas a culpa é uma parte do

250
pecado; e, segundo as Escrituras, a culpa é pecaminosa em si e
de si mesma. Uma das melhores definições compreensíveis de
pecado que já encontrei é que pecado é falta de conformidade
com a lei moral de Deus, quer em estado, disposição ou ato. Essa
é uma síntese de tudo. Portanto, as grandes questões são: por
que todos nós somos culpados de pecado? Como nos tornamos
culpados de pecado? Qual é a razão da universalidade do pecado?
Evidentemente, muitos pensam que tal coisa pode ser explicada
de vários modos - um ponto que já tocamos de leve. A Bíblia
nos diz que tudo se deve ao pecado de Adão, que tudo isso resulta
diretamente como conseqüência daquele pecado original que já
abordamos juntos. Mas há aqueles que não aceitam esse conceito.
Dizem que todos nós nascemos no mundo numa espécie de
condição neutra, porém que de repente vemos o mau exemplo
ser praticado por outros, e então o imitamos, e desse modo
pecamos.
Mas isso é uma negação da doutrina bíblica do pecado
original. Isso não vincula o pecado diretamente com Adão, mas
afirma que Adão deixou um mau exemplo que foi seguido por
outros, e este processo de imitação continuou desde então.
Todavia, não devemos pensar de pecado nesses termos, caso
queiramos ser bíblicos. Tampouco devemos pensar dele
meramente em termos de algum tipo de inabilidade ou
incapacidade. Não, a Bíblia vincula o pecado diretamente com
aquele primeiro pecado de Adão.
Ora, se esse é o caso, a questão que surge é: como aquele
pecado de Adão afetou a totalidade de sua descendência? E aqui
tem havido duas explicações principais, as quais devemos
necessariamente abordar. A primeira, que é geralmente chamada
teoria realística, é que o pecado é universal, visto que a totalidade
da natureza humana estava em Adão. A humanidade inteira era
residente nele. Portanto, argumenta-se, quando Adão pecou e
caiu, a natureza humana toda caiu com ele. Contudo não apenas
isso, toda ela caiu em Adão naquele exato momento.
Ora, vocês se lembrarão de que, quando estávamos tentando
visualizar o caráter ou a natureza da alma, foi preciso

251
perguntarmos se a alma é algo que passa de pais para filhos, de
uma maneira semifísica, ou se cada alma é uma criação especial
de Deus. Esta teoria realística sustenta o ponto de vista de que a
alma é algo que é herdado de nossos pais e, lembro-lhes, introduz
o argumento que descrevemos como sendo o argumento da
identidade seminal. Em Hebreus 7:9,10, somos informados que
Levi, que ainda não havia nascido, pagou dízimos a
Melquisedeque em Abraão. Abraão, lembro-lhes, pagou dízimos
a Melquisedeque. Sim, diz o autor de Hebreus, e quando Abraão
pagou aqueles dízimos, Levi (“que existia nos lombos de seu
pai”) estava portanto pagando, ele mesmo, o dízimo. Essa é a
teoria da identidade seminal. Ora, a teoria realística do pecado
original faz uso desse argumento. Ela diz que toda a humanidade,
todos nós, estávamos nos lombos de Adão quando ele pecou, e
visto que estávamos nos lombos de Adão, como Levi pagou
dízimos nos lombos de Abraão, assim todos nós pecamos quando
Adão cometeu seu pecado original no princípio. Essa é a base
bíblica para este ponto de vista de como o pecado se tornou
universal.
Ora, há uma série de dificuldades nesta teoria. Uma
dificuldade imediata é que ela, evidentemente, como ressaltei
na discussão anterior, tende a materializar a alma. Ela quase que
necessariamente considera a alma como algo material que de
um modo ou outro pode passar fisicamente de pais para filhos.
Esse é o argumento que geralmente tem sido posto contra ela, e
até certo ponto admito a força do mesmo, e no entanto essa não
me parece ser uma objeção conclusiva.
Há ainda outra dificuldade. Se esta teoria da identidade
seminal é verdadeira, se temos todos pecado em Adão, visto que
toda a natureza humana estava nele, então, por que a Bíblia
ensina tão claramente, como ela faz, que somos responsáveis
somente pelo primeiro pecado de Adão? Por que não somos
responsáveis por todos os seus pecados? Além do mais, por que
não somos responsáveis por todos os pecados de todos os filhos
de Adão, e de todas as pessoas que saíram de Adão desde então,
bem como de todos os nossos ancestrais até ao nosso nascimento?

252
A Bíblia não diz que somos responsáveis por todos esses pecados.
O ensino dela é que somos responsáveis por aquele único pecado
de Adão que procedeu da Queda. Segundo essa teoria, porém,
em certo sentido - e admito que este argumento é muito poderoso
- a Bíblia realmente devia ensinar que somos responsáveis por
todos os pecados de todos os nossos ancestrais.
E a outra dificuldade com respeito a essa teoria é que ela
apresenta certo problema com relação à Pessoa do próprio Senhor
Jesus Cristo. Se a natureza humana é algo que é assim divisível,
e é derivada por um processo físico de pai para filho, acaso não
se segue, quase que necessariamente, que a natureza humana
que nosso Senhor recebeu era, portanto, pecaminosa? Se cremos
nesta unidade comum da natureza humana em Adão, a qual tem
sido dividida desde então, é difícil ver como evitar essa
dificuldade.
A segunda teoria, a respeito de como o pecado de Adão afetou
sua descendência, nos afirma que todos nós herdamos este
pecado, e que ele se tornou universal porque Adão foi não
somente o cabeça da raça humana, mas que Deus fez com ele
um pacto, e o designou como representante da raça humana.
Afirma que Deus fez o homem e com efeito disse: “Ora, você irá
representar a humanidade inteira, e farei um pacto com você.
Se você fizer o que lhe digo, então o abençoarei, e o farei crescer
e desenvolver-se, e eventualmente chegará à maturidade. Mas,
em contrapartida, se você fracassar, então não só você terá
fracassado, porém todos quantos provierem de você, a tantos
quantos você representar fracassarão da mesma maneira.” Isso
é chamado teoria do pacto. Ele afirma que Adão era uma espécie
de representante federal da raça humana inteira, que Deus o
designou como tal, e que, portanto, tudo o que Adão fez teve
conseqüências para todos quantos provieram dele. Por exemplo,
enviamos um homem ao parlamento a fim de representar-nos, e
quando um membro do parlamento vota, ele não só vota por ele,
mas também vota por nós - seus constituintes, o povo a quem
ele representa. Ele é nosso representante no parlamento.
Ou lancemos mão de outra ilustração. Um embaixador

253
representa todo um país, e se ele se fizer culpado de algum erro,
o país inteiro arcará com as conseqüências. Se ele cometer uma
asneira, e o país for à guerra, ainda que não concordemos com o
que ele fez, todos nós sofreremos. Ele era o nosso representante
e agia por nós. Ora, essa é a idéia do pacto, o qual declara que
Adão era o representante federal da raça humana inteira, e que,
por essa razão, seu pecado foi imputado a todos nós, e todos nós
sofremos as conseqüências.
Ora, há uma série de vantagens em favor desta segunda
teoria. Uma delas é que ela explica bem claramente por que só o
primeiro pecado de Adão nos é imputado. Não há necessidade
de imputar qualquer pecado ulterior, posto que era esse único
pecado que levou Adão a perder sua posição. Esse único pecado
por si só era suficiente. Esta teoria também evita a dificuldade
com respeito à Pessoa do Senhor Jesus Cristo, visto que as
Escrituras nos ensinam, como veremos, que o Senhor Jesus Cristo
não era simplesmente uma pessoa humana. Ele é uma pessoa
divino-humana. Existe nEle algo único. Ele não é um em série
com todo o restante.
Bem, se estiverem interessados em minha opinião pessoal,
devo admitir que encontro muita dificuldade em posicionar-me
inteiramente de um lado ou de outro. Há muito, como disse antes,
na doutrina da identidade seminal que me atrai. Não posso evitar
aquela afirmação explícita de Hebreus 7:10, e a impressão que
tenho é que, se ele é um argumento justo ali, então ele é um
argumento justo aqui. Ao mesmo tempo, admito que há essas
grandes dificuldades sobre a doutrina da identidade seminal, às
quais já me referi, bem como há aspectos sobre esta segunda
idéia de Adão como nosso representante federal que me atraem
fortemente. Não me agrada comprometer-me, mas não vejo por
que, em certo sentido, não podemos adotar ambos os pontos de
vista.
De qualquer forma, se qualquer uma das teorias é verdadeira,
ou se ambas o são, o fato é que, segundo a Bíblia, é de Adão
diretamente e de seu primeiro pecado que nos veio o pecado em
teor universal. Além disso, a forma pela qual isso é geralmente

254
descrito é a seguinte: o nome que se lhe dá é doutrina do pecado
original. Ora, o que queremos dizer com isso? Antes de tudo,
desvencilhemo-nos de uma série de mal-entendidos em torno
desta doutrina, especialmente o mal-entendido em torno desta
palavra “original”. Ela não significa, e jamais se deve permitir
que signifique, que o pecado pertenceu à constituição original
dos seres humanos. Especificamente falando, não pertenceu, e
já esforçamo-nos bastante anteriormente para enfatizar isso. Não
significa que o pecado se deve a algo que fora originalmente um
defeito na constituição do homem.
O que significa, antes de tudo, é que ele é oriundo da raiz
original da raça humana - Adão - que todo pecado proveio de
Adão. Ou, pondo-o em termos negativos, ela assevera que o
pecado não teve sua origem em nossa imitação dos exemplos de
outros que vieram antes de nós, ou a quem observamos, mas que
agora é algo inerente à natureza humana desde o nascimento,
que todos nós nascemos nessa condição. Ele, desse modo, derivou
da raiz original, e portanto nascemos em pecado, “formado em
iniqüidade” (Sal. 51:5).
E a outra coisa que devemos enfatizar é que ele é algo que se
constitui na raiz interior de todos os pecados que realmente
cometemos e que nos maculam. Ele é original no sentido em
que flui, como já vimos, diretamente do centro de nosso ser e de
nossa personalidade.
Mas é necessário que continuemos realçando que o pecado
original se constitui de duas partes. A primeira é culpa original.
A segunda é corrupção original. Segundo as Escrituras, herdamos
esses dois elementos de Adão e de seu pecado, e desejo realçar
isto com muito critério, porquanto vocês descobrirão que muitos
daqueles que crêem na corrupção original rejeitam a doutrina
da culpa original. “Sim”, dizem eles, “é perfeitamente correto
dizer que herdamos esta corrupção de Adão”, mas afirmam que
consideram como sendo injusto e ímpio, bem como impossível
de conciliar-se com o amor de Deus, dizer que somos realmente
culpados do pecado de Adão, e que herdamos dele tanto a culpa
quanto a corrupção. No entanto, esta, pretendo mostrar-lhes, é

255
a doutrina bíblica. Ela assevera que nascemos sob a penalidade
da lei e da justiça, e que merecemos essa penalidade e castigo,
que somos realmente culpados da transgressão de Adão.
Com efeito, as pessoas não gostam disso. Dizem que não
somos culpados até que tenhamos feito algo errado, que de fato
nascemos com esta inabilidade ou incapacidade como herança,
com essa inclinação, sim, para o erro, mas tal coisa, dizem, não
é culpa. No momento em que praticam alguma coisa, então vocês
se fazem culpados, entretanto não até então. Ainda alguns, indo
um pouco além, e se fazendo um pouco mais bíblicos, dizem:
“Sim, somos culpados, mas aquilo de que somos culpados vem
de nossa natureza contaminada. Não somos culpados da real
transgressão de Adão, mas, desde que herdamos dele a natureza
corrompida, vivemos em condição culposa, uma vez que ser
corrompido é ser culpado.” Ora, a Bíblia, devo asseverar, não
ensina nenhum desses pontos de vista. Ela ensina, sim, que
somos realmente culpados do pecado que foi cometido por Adão.
Então, a grande e clássica passagem sobre isso é Romanos
5:12-19:
“Pelo que, como por um homem entrou o pecado no
mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte
passou a todos os homens por isso que todos pecaram.
Porque até à lei estava o pecado no mundo, mas o pecado
não é imputado, não havendo lei. No entanto a morte
reinou desde Adão até Moisés, até sobre aqueles que não
pecaram à semelhança da transgressão de Adão, o qual é
a figura daquele que havia de vir. Mas não é assim o dom
gratuito como a ofensa. Porque, se pela ofensa de um
morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom
pela graça, que é dum só homem, Jesus Cristo, abundou
sobre muitos. E não foi assim o dom como a ofensa, por
um só que pecou. Porque o juízo veio de uma só ofensa,
na verdade, para condenação, mas o dom gratuito veio de
muitas ofensas para justificação. Porque, se pela ofensa
de um só, a morte reinou por esse, muito mais os que
recebem a abundância da graça, e do dom da justiça,

256
reinarão em vida por um só - Jesus Cristo. Pois assim
como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens
para condenação, assim também por um só ato de justiça
veio a graça sobre todos os homens para justificação de
vida. Porque, como pela desobediência de um só homem,
muitos foram feitos pecadores, assim pela obediência de
um muitos serão feitos justos.”

Como alguém poderia disputar ou negar isso, ultrapassa


minha compreensão! E tão evidente, que o apóstolo prossegue
reiterando-o. Grande mestre como era, ele se repete, ele o repete,
ele ainda o repete, porquanto ele sabia que os homens e as
mulheres em pecado são filósofos naturais e são avessos à
doutrina, e levantariam objeções e argumentariam contra ela.
Deixem-me, porém, apresentar o argumento da seguinte
forma: notem que neste parágrafo o apóstolo está traçando um
paralelo, e o que está afirmando é realmente uma exposição e
explicação adicionais do que já havia dito nos primeiros dez
versículos deste grande capítulo. Ele está magnificando a graça
de Deus em Cristo. Ele está mostrando como devemos tudo a
Cristo, tudo é oferecido gratuitamente por Sua graça, e somos
justificados por meio dEle, e somente por meio dEle. Portanto,
eis o argumento de Paulo: como somos justificados? Ora, é assim:
somos justificados sem fazer absolutamente nada, porque Deus
nos imputou a justiça de Jesus Cristo. Seu ato, não o meu, de
maneira alguma, é imputado a mim. Vocês percebem a maneira
como Paulo nos realça esse fato? Diz ele: vou apresentar uma
ilustração perfeita aqui. Vocês sabem que quando Adão cometeu
aquele primeiro pecado, embora não o tivéssemos cometido, ele
foi imputado a todos nós. Exatamente da mesma forma, esse ato
de Cristo nos é imputado, embora nada tenhamos feito, e por
meio desse ato somos justificados.
Notem, porém, que Paulo entra em detalhes. Ele diz aqui:
“Pelo que, como por um homem entrou o pecado no mundo, e
pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os
homens, por isso que todos pecaram” (v. 12). Com efeito ele diz:

257
posso provar-lhes isso, pois até à vinda da lei, a qual foi entregue
a Moisés, o pecado jazia no mundo, porém o pecado não é
imputado onde não existe lei.
“Ora, pois”, vocês poderão perguntar, “se o pecado não é
imputado, como é possível que todas essas pessoas morreram?”
Eis a resposta: “Não obstante, a morte reinou desde Adão
até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram segundo a
similitude da transgressão de Adão.” Noutras palavras, todas essas
pessoas que morreram, desde Adão até Moisés, morreram, não
por causa de qualquer coisa que tenham feito, mas por causa
daquele pecado de Adão. A lei não havia ainda sido dada, e o
pecado não é imputado onde não há lei, porém esses morreram
por causa do pecado de Adão, o qual lhes foi imputado. É esse
pecado que traz a morte sobre eles.
Inversamente, diz ele - e gloriosamente! - esse grande ato
do Filho de Deus é imputado a mim. Não fiz nada. Ele fez tudo.
Todavia Seu ato é imputado a mim porque Ele Se fez o meu
representante federal, ou porque eu me achava em Seus lombos,
seja qual for dos dois que lhes agrade, mas observem o paralelo.
O que também anseio realçar, portanto, é que a Bíblia assim
ensina patente e claramente esta doutrina da culpa original; e se
não tivermos uma completa concepção da doutrina do pecado
original, teremos que precaver-nos de enfatizar essa culpa
original, tanto quanto a corrupção original, a qual herdamos
também, e o que espero prosseguir considerando com vocês.
Recomendo-lhes, porém, novamente, esse grande capítulo
5 de Romanos. Ele exibe a graça de Deus em Cristo, em nossa
salvação, de uma maneira espantosa, mas o argumento todo é
realmente dependente de nossa aceitação tanto da doutrina da
culpa original quanto da corrupção original. Uma vez mais, à
luz de tudo isso, lhes pediria que considerem comigo a grandeza
da graça e do amor de Deus ao tratar conosco como Ele o faz em
Cristo Jesus.

258
18
A CORRUPÇÃO ORIGINAL
Resumiremos, agora, nossa abordagem da doutrina bíblica
do pecado original. Ele constitui um grande e vasto tema, e no
último capítulo fomos somente capazes de tratar de uma pequena
parcela dele. Estamos considerando em geral as conseqüências
do pecado de Adão, do pecado e da transgressão originais de
Adão, o que significou sua queda e nele e através dele a queda de
toda a raça humana. Então consideramos as conseqüências em
Adão mesmo, bem como as conseqüências que lhe sobrevieram
imediatamente, e prosseguimos focalizando os efeitos disso na
progénie de Adão. Vimos que este tema do pecado original se
divide em duas seções primordiais, ou, pondo-o de outra forma,
há dois aspectos principais da questão. O primeiro é a culpa
original, e a nossa última consideração foi essa. Todos nós
retemos a culpa e a responsabilidade pelo primeiro pecado de
Adão; ele é imputado a nós, posto na nossa conta.
Agora consideraremos o segundo aspecto desta doutrina, e
isso é o que se conhece como corrupção original, porque, vocês se
lembram, no momento em que Adão pecou, duas coisas
aconteceram imediatamente. Uma foi que ele se tornou culpado,
e a segunda foi que ocorreram mudanças nele; ele não era mais
o mesmo de antes. Ora, a doutrina do pecado original afirma
que ambas essas conseqüências atingiram também a nós, por
isso é que nos tornamos culpados tanto da corrupção original
quanto da culpa original.
O que, pois, queremos dizer pelo termo corrupção original?
Bem, primeiro e antes de tudo, é óbvio que ele significa em nós
o que significou em Adão - a ausência dessa justiça original que
Adão possuía. Ele foi feito à imagem e semelhança de Deus, e
uma parte disso é que ele era justo com uma justiça
correspondente à justiça de Deus. Mas Adão a perdeu, de modo
que todos nós nascemos carentes de justiça original. Não apenas

259
isso - nascemos também com a presença, em nosso íntimo, de
um mal positivo. Esses são os dois aspectos do problema da
corrupção.
Agora temos que examinar esta questão um pouco mais.
Esta corrupção, a qual todos nós sofremos em decorrência do
primeiro pecado, não é meramente uma enfermidade; é uma
condição pecaminosa e portanto culposa. Somos culpados porque
somos corruptos. E algo que deve ser considerado, portanto, até
certo ponto de forma legal. Outra coisa que merece prudência
de nossa parte ao observá-la, é que não devemos dizer ter havido
uma mudança na substância da alma. Pelo termo “substância da
alma” tenho em mente sua constituição. Como temos visto, não
sabemos o que é essa constituição, todavia devemos ser muito
precavidos, para não dizer que há alguma mudança na alma.
Houve, ao contrário, uma mudança ao longo dos traços que vou
elaborar.
Antes de fazer isso, porém, consideremos outra negativa.
Não devemos considerá-la, tampouco, como uma mera privação
de algo que uma vez tivemos. A corrupção não é meramente
negativa. Não significa simplesmente ausência de alguma coisa
na alma. Não, ela é algo de caráter positivo, uma inerente
disposição positiva para com o pecado. Esta corrupção é algo
ativo. Não significa simplesmente que não somos o que
deveríamos ser; somos positivamente o que não deveríamos ser.
Vimos isso, logicamente, no último capítulo quando estivemos
considerando alguns dos termos e definições bíblicos com
respeito ao pecado. Isso não agrada aos psicólogos modernos.
Dizem que o que chamamos pecado, não passa de mera ausência
de uma série de propriedades. Não devemos dizer que uma pessoa
é positivamente má; o que devemos dizer é que ela não é boa;
pecado é negativo. Mas a Bíblia diz que o pecado é positivo. Ele
não é a ausência de bondade, é a presença positiva do mal e da
maldade. E isso é algo que devemos enfatizar, porque ele é
constantemente enfatizado nas próprias Escrituras, desde o
princípio.
Como, pois, essa condição, essa ausência de justiça original

260
e a presença de mal positivo, se manifesta na humanidade caída?
Como ela se manifesta em todos nós? E aqui novamente há uma
dupla divisão que é ensinada e enfatizada através de toda a Bíblia.
Os termos geralmente usados são estes: primeiramente, ela se
revela no que se chama depravação total-, e, em segundo lugar, na
inabilidade total.
Focalizemos ambas separadamente. O que queremos dizer
por depravação total? Este, também, é um termo freqüentemente
atacado. Aliás - infelizmente - há até mesmo cristãos que o
detestam, quase invariavelmente porque não conhecem o
significado do termo. Atribuem-lhe um falso significado, e então
dizem que não podem aderir a esse conceito de depravação total.
Entretanto, se lhes perguntarmos o que entendem pelo termo,
provavelmente nos apresentarão uma ou outra das seguintes
definições falsas.
Primeiramente, com a expressão depravação total não
queremos dizer que todos os homens e as mulheres são tão
completamente maus e depravados como podem ser. Ora,
geralmente vocês notam que as pessoas que têm ojeriza pela idéia
de depravação total caracterizam-na dessa forma. Nenhum
teólogo respeitável, porém, jamais definiu depravação total
nesses termos. Certamente eu não o faço e tampouco o fazem as
Escrituras.
Em segundo lugar, nem ainda significa que homens e
mulheres, em seu estado caído, não possuam qualquer
conhecimento inato de Deus, porque eles o têm. São totalmente
depravados, e ainda possuem um senso de Deus no seu interior.
Em terceiro lugar, não significa que os homens e as mulheres
não têm consciência. Portanto, não significa que não possuem
qualquer conhecimento do bem e do mal. As pessoas em estado
de depravação total têm consciência e discernem a diferença
existente entre o bem e o mal.
Todavia, ainda não concluí minha lista de negativas.
Depravação total não significa que os homens e as mulheres
sejam incapazes de reconhecer ou de admirar virtudes, ou que
sejam incapazes de sentimentos e ações desinteressados.

261
Observem a razão por que estou realçando essas negativas. “Ah!”,
dizem os psicólogos modernos - e também o fazem muitos
cristãos, desafortünadamente - “não posso aderir a essa doutrina
da depravação total; ela não pode ser correta.” Dizem ainda:
“Observem muitas pessoas que não são cristãs; elas cultivam os
conceitos de virtude, esforçam-se por fazer o bem, podem até
ser idealistas.”
Plenamente correto! Negar tal fato não é uma parte da
definição de depravação total. E a última negativa é que não
pretendemos dizer pelo conceito de depravação total que toda
pessoa não-regenerada pratica todas as formas de pecado.
“Então”, alguém pergunta, “o que ela significa?”
Muito bem, positivamente, ela significa que o homem, em
sua condição caída, possui uma natureza inerentemente corrupta,
e que essa corrupção se estende através de cada parte do seu ser,
a cada faculdade da sua alma e do seu corpo. Também significa
que não há nele qualquer bem espiritual (observem o adjetivo).
Sim, existe abundância de bem natural, existe moralidade natural,
ele pode discernir virtude, e assim por diante. Mas não existe
nele bem espiritual, seja qual for. Isso é o que ela significa.
Ou, um pouco mais elaborado: alguém em estado de
depravação total, toda pessoa não-regenerada está em inimizade
contra Deus e a santa lei de Deus. Essa é sempre a grande
característica da depravação total. Pondo-o de outra forma, todas
as faculdades dessa pessoa são mal empregadas e pervertidas.
Deixem-me agora apresentar provas bíblicas desse fato. A
primeira afirmação clara de tudo isso se encontra em Gênesis
6:5: “E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara
sobre a terra, e que toda a imaginação dos pensamentos de seu
coração era só má continuamente.” Eis uma afirmação
muitíssimo surpreendente e abrangente; recomendo um estudo
muito criterioso dela. Contudo, considere também o Salmo 51:5:
“Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu
minha mãe.” Eis aí novamente um relato dessa depravação total
- “formado em iniqüidade”, “concebido em pecado”.
Em seguida tomem Jeremias 17:9: “Enganoso é o coração,

262
mais do que todas as coisas, e perverso: quem o conhecerá?”
Mas presumo que a afirmação clássica desta doutrina da
depravação total, em muitos sentidos, se encontra no sétimo
capítulo da Epístola aos Romanos. Ela se encontra aí em toda a
sua plenitude, com a variação no uso dos termos descrevendo o
homem como um produto do pecado. Não iniciarei, neste ponto,
uma exposição desse capítulo; estou simplesmente preocupado
em mostrar-lhes que sua definição da depravação total do homem
é completa e exaustiva. Mas atentem também para Romanos 8:7:
“Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois
não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser.” Essa é
outra terrível afirmação desse mesmo fato.
Paulo, outra vez, em Efésios 4:17,18, fala sobre os gentios
vivendo "... na vaidade do seu sentido. Entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que
há neles, pela dureza do seu coração.” Quão espantosa é essa
afirmação! Ou atentem para o que Paulo escreve a Tito: “Porque
também nós éramos noutro tempo insensatos, desobedientes,
extraviados, servindo a várias concupiscências e deleites, vivendo
em malícia e inveja, odiosos, odiando-nos uns aos outros” (Tito
3:3). Que terrível descrição de depravação como resultado do
pecado!
Notem que as Escrituras, em algumas das passagens que lhes
tenho citado agora e anteriormente, a fim de fazer este elemento
perfeitamente patente e claro, usam uma série de termos para
descrever esta corrupção, e devemos estar familiarizados com
eles. Espero não deixar ninguém perplexo porque estamos
examinando tudo isso. A explicação óbvia é que ninguém pode
tér um genuíno e adequado entendimento da doutrina bíblica
da salvação, nenhum de nós pode apreciar nossa salvação pessoal,
genuinamente, a menos que compreendamos a natureza da
enfermidade, da condição da qual deveremos ser salvos pelo
evangelho. Noutras palavras, devemos entender a verdade sobre
nós mesmos em pecado. Jamais poderemos realmente conhecer
o amor de Deus até que compreendamos isso. A maneira de
medir a altura do amor de Deus é antes de tudo medir a

263
profundidade de nossa própria depravação como resultado da
Queda.
Por isso as Escrituras, a fim de pôr a culpa diretamente em
nós, usam uma série de termos, e aqui estão alguns deles. Elas
fazem referência à carne, à concupiscência e ao velho homem. Elas
fazem referência à lei de nossos membros1, ao corpo de pecado e ao
corpo de morte. Fazem, igualmente, referência à mente carnal. Há
outros termos, mas esses são os principais, e creio ser
provavelmente correto dizer que, de modo geral, todos esses
termos significam e descrevem a mesma coisa. O mais
importante - presumo ser o mais importante de todos, visto que
é o único que tende a ser o mais mal-entendido - é o termo
came. O que querem dizer as Escrituras por esse termo?
Ora, as Escrituras usam esse termo de três formas principais;
primeiramente, elas usam carne para descrever o corpo, o corpo
físico. Em segundo lugar, elas às vezes usam a palavra para
determinar a pessoa como um todo - “Para que nenhuma carne
se glorie perante ele” (1 Cor. 1:29). Isso não significa nenhum
“corpo físico”; significa que nenhuma pessoa se gloriará na
presença de Deus. Portanto, às vezes carne significa a
personalidade inteira. O terceiro significado pode ser descrito
como o sentido ético de carne, ou ainda o sentido espiritual, e
esse é aquele que eu desejo muito tratar agora.
Mas posso imaginar alguém perguntando: “Você nos diz que
a palavra carne é usada em três sentidos diferentes, quando vou
saber qual deles está sendo usado em algum dado ponto?”
A resposta a isso não é - sinto-me feliz em dizer-lhes -
que vocês terão de conhecer o grego, mas que terão de conhecer
o contexto. O grego não o ajuda nem um pouco; ele, todavia, usa
o mesmo termo. A única maneira de entendermos qual dos
significados a palavra contém é através do contexto, e o contexto,
se o deixarmos que nos fale, invariavelmente fará isso
plenamente claro.
Portanto, consideremos o significado ético do termo carne.
E muito importante compreendermos que a palavra não significa
o corpo quando ela é usada nesse sentido ético. O problema

264
conosco é a nossa própria carne - essa é a coisa que nos causa
problema, diz a Bíblia. Esse é o argumento de Paulo em Romanos,
capítulo 7, e quando nos diz isso, ele não está pensando no corpo.
Isso é obviamente importante, porque toda a idéia do
monasticismo se achava baseada nesse falso entendimento. Os
homens se faziam monges, em parte se abstinham e mutilavam
seus corpos porque acreditavam que o pecado residia em sua
estrutura física, e o que tinham a fazer era manter o corpo físico
em submissão; e se o conseguissem, acreditavam, tudo estaria
bem.
Mas as Escrituras não designam o corpo nesse contexto.
Posso facilmente provar isso da seguinte forma: se vocês lerem
as listas que são apresentadas em várias partes da Bíblia com
respeito às operações da carne, descobrirão que algumas das coisas
mencionadas não têm absolutamente nada a ver com o corpo
físico. Tomem, por exemplo, a famosa lista de Paulo em Gálatas
5:19-21, onde ele o põe assim: “Porque as obras da carne são
manifestas, as quais são: prostituição, impureza, lascívia...” Todas
essas são definidamente conectadas com a carne, a parte física
de nosso ser. Mas Paulo, então, prossegue: “Idolatria, feitiçarias,
inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões,
heresias...” Ora, a heresia não tem absolutamente nada a ver
com a estrutura física; é um pecado sediado na esfera do espírito.
Entretanto essas são todas catalogadas juntas como “obras da
carne”, o que, creio eu, é suficiente para provar que carne,
quando assim usada num sentido ético, nunca deve ser tomada
no sentido de estrutura física, a parte animal de nosso ser.
Ou, coloquemos isso positivamente desta forma: a carne,
nas Escrituras, é quase invariavelmente oposta ao espírito, e
especialmente ao Espírito Santo dentro de nós. Então carne
significa a operação daquela natureza que herdamos de Adão, a
qual é inteiramente natural, e a qual é inteiramente isenta da
influência do Espírito Santo sobre ela. Essa é uma definição,
mas tomem outra. A carne, nesse sentido ético, é “o princípio,
ou a sede do princípio, que na natureza humana caída resiste à
lei divina e milita contra o espírito.” “Porque a carne cobiça

265
contra o Espírito, e o Espírito contra a carne” (Gál. 5:17). Ou, se
vocês preferem uma definição ainda mais simples, a carne tem
sido descrita como “a natureza humana em sua alienação da vida
divina”. Creio que essa é tão boa como qualquer outra.
Provavelmente, porém, a melhor maneira de entender este
termo, “a carne”, é considerando aquela famosa afirmação que
nosso Senhor fez a Nicodemos: “O que é nascido da carne é
carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (João 3:6). Ora,
quando nosso Senhor disse: “O que é nascido da carne é carne”,
Ele não estava pensando simplesmente em nossa estrutura física.
Não, Ele estava afirmando a Nicodemos que ele, um líder em
Israel, estava ainda pensando em termos carnais, ainda pensando
“segundo a carne”, em termos destituídos do Espírito. Carne,
noutras palavras, é a raça humana evoluída e continuada por si
mesma; é a raça humana sem o Espírito de Deus. Aí está, pois,
nossa principal definição deste termo que é usado tão amiúde
nas Escrituras. E a informação que recebemos sobre nosso estado
em condição de total depravação é que estamos na carne e agimos
em consonância com ela.
Ora, uma das principais características de nossa vida como
resultado dessa influência é que ela é uma vida que falta
equilíbrio, e esta é a questão mais importante. O homem consiste,
como já vimos, de corpo e alma - ou, de corpo, alma e espírito.
(Vejam capítulo 15.) Ora, nós vimos que, quando ele foi a
princípio feito por Deus, o homem vivia numa condição
perfeitamente equilibrada. Aquela parte dele que era relacionada
com Deus estava presente e funcionando; aquela parte que incluía
sua mente, seu entendimento, a parte racional dele, a qual o
capacitava a comunicar-se com outros em torno dele, lá estava,
operando perfeitamente, e o corpo era perfeito. Sim, mas a coisa
importante era que as partes estavam operando juntas, num estado
de perfeita harmonia.
Freqüentemente me sinto, na área de ilustrações, um tanto
bisonho, porque receio que talvez muitas pessoas não possuam
suficiente conhecimento agrícola em suas vidas para entenderem
o que estou dizendo. Mas se vocês já viram a ordenha de uma

266
vaca leiteira (na época em que se costumava ordenhar com as
mãos e não com essas máquinas que se usam hoje), então
descobririam que muitas vezes as ordenhadoras costumavam
sentar-se num banquinho tripé, e era sempre um problema se
um pé era mais curto do que os outros, ou se um pé de súbito
quebrava. Ora, o homem, no princípio, era semelhante a esse
banquinho; havia perfeito equilíbrio, cada parte cumprindo
justamente sua função certa, e não mais que isso.
O que fez, porém, o pecado? Transtornou o equilíbrio. Essa
condição de viver “na carne” significa que o equilíbrio foi
desfeito. Anteriormente, o espírito controlava tudo, mantinha
o equilíbrio. O homem na perfeita relação com Deus funcionava
perfeitamente em seu espírito, em sua alma, em seu corpo; o
corpo era mantido em seu lugar. Vocês se lembram que Adão e
Eva estavam nus e tudo estava bem. No momento em que
pecaram, tiveram vergonha de seus corpos, e tentaram cobrir-
-se. Vejam vocês, o corpo tinha imediatamente saído de
proporção, e esse foi o início dessa moderna sexomania, dessa
consciência sexual, dessa reflexão sobre ele, lendo sobre ele,
sugerindo-lhe coisas, perscrutando-o externamente. E o homem,
nessa condição carnal, nesse estado de depravação, tornando-se
totalmente assimétrico.
Paulo o descreve em Efésios 2:3 como culpado de ser
controlado pelos “desejos da carne, fazendo a vontade da carne e
dos pensamentos” - algo que as pessoas esquecem. Todo mundo
reconhece os desejos da carne, mas, segundo o apóstolo Paulo,
os desejos da mente são tão maus quanto os desejos da carne.
Pois o homem nunca fora destinado a ser controlado por sua
mente nem destinado a ser controlado por seu corpo. Ele fora
destinado a ser controlado por seu espírito. Mas esse fator foi
perdido em conseqüência do pecado e da Queda, e o homem,
caso vocês prefiram, tornou-se excêntrico, não se sente à
vontade, é assimétrico, não encontra seu equilíbrio. Algumas
pessoas são totalmente controladas por seus corpos - no comer
e no beber, bem como em várias outras coisas. Sim, mas outros,
que não são culpados disso, podem igualmente ser achados num

267
estado de luxúria, e igualmente na carne, porque são controlados
por suas mentes mundanas, por seus próprios pensamentos, pelas
filosofias dos homens, não pela revelação de Deus e nem pelo
Espírito Santo.
E essa é a razão por que encontraremos que a Bíblia parece
ensinar por toda parte que o pecado máximo é o orgulho
intelectual. Ele era o grande problema dos gregos. Seu orgulho
era o do intelecto, por isso não queriam atentar para o evangelho.
Eis a razão por que às vezes parece algo muitíssimo fácil que
alguém culpado de luxúria da carne seja salvo, enquanto que
alguém culpado de orgulho intelectual não o é. Ele é igualmente
terrível, se não o mais terrível, na definição bíblica.
Outras características do homem em estado de depravação
total são estas: primeiro, que ele é controlado por si mesmo e
não por Deus, segue-se necessariamente. O pecado original - a
tentação - foi exposto dessa forma, não é verdade? Foi feito
apelo ao orgulho humano: por que vocês deveriam ser
subservientes a Deus? Por que deveriam permitir que Deus oculte
isso de vocês? Por que vocês não se defendem? (Gên. 3:1-6). Eva
cedeu à tentação, Adão anuiu, e o resultado tem sido algo muito
espantoso, ou seja, o homem se fez uma vítima de si mesmo!
Vocês mesmos, e eu mesmo, somos nossos maiores inimigos. A
maldição da vida é que nos tornamos todos egocêntricos.
Vivemos para nós mesmos e não para Deus, e assim nos
tornamos egoístas, ciumentos, invejosos. Como Paulo o coloca:
somos “odiosos, odiando-nos uns aos outros” (Tito 3:3). Por quê?
Porque tentamos promover a nós mesmos. Em vez de vivermos
para Deus, para servi-10 e glorificá-10, todos nós transformamos
a nós mesmos em deuses. Vivemos a girar em torno de nós
mesmos, e nossos pequenos planetas se colidem com outros
planetas, e daí vêm as discórdias, os choques, as disputas e as
divergências. O homem, em conseqüência dessa depravação,
tornou-se egocêntrico, e não consegue escapar de si próprio.
E isso por sua vez, evidentemente nos leva a fazer mau uso
de todas as nossas faculdades. Fomos destinados a usá-las para a
glória de Deus, porém agora as usamos para nossa própria glória.

268
Elas nunca tiveram esse objetivo, por isso estão sendo ultrajadas,
e o resultado do persistente abuso é que os hábitos errôneos se
desenvolvem e, eventualmente, nossas faculdades se tornam
defectivas. As Escrituras nos ensinam que isso pode acontecer
mesmo à consciência; a consciência pode ser “cauterizada” (1
Tim. 4:2), e ela pode chegar a um estado tal, por causa da
ignorância, que nos engane. Podemos imaginar que estamos
certos, quando estamos errados. A consciência precisa ser
educada. E essa é a razão por que descobrimos que a consciência
de uma pessoa de um país idólatra se expressa diferentemente
da consciência de uma pessoa que foi educada na virtude e na
moralidade.
A depravação final e máxima consiste em que somos todos
escravos de satanás. Nossa própria natureza não só se tornou
torcida e pervertida da maneira como já vimos; mais terrível
ainda, porém, é o fato de que nos tornamos os escravos do diabo.
Nosso Senhor nos descreveu como sendo por natureza, à parte
da regeneração, filhos do diabo. Disse Ele: “quereis satisfazer os
desejos de vosso pai” (João 8:44). Pertencemos ao reino das
trevas. Nosso Senhor, novamente, diz: “Quando o valente
guarda, armado, sua casa, em segurança está tudo quanto tem”
(Luc. 11:21). A humanidade não-regenerada outra coisa não é
senão “os bens” do diabo. Quão terrível é o estado em que
vivemos por natureza em conseqüência do pecado e transgressão
originais de Adão - depravação total!
A seguir, o segundo efeito do pecado e corrupção originais é
a inabilidade total, e isso aponta obviamente para as nossas
faculdades espirituais. A Bíblia ensina que o homem é totalmente
incapaz, e eu enfatizo ambos os termos. Isso, porém, não significa
que ele não possa realizar algum bem natural. Com certeza ele o
pode. Isso é óbvio. Não significa que ele seja incapaz do bem e
justiça cívicos, porquanto com certeza ele o é, e a história o
comprova. Aliás, nem ainda significa que não seja capaz de
expressar algum tipo externo de religião; ele é capaz disso. Uma
pessoa pode ser muito religiosa, e contudo ainda dizemos dela
que é totalmente depravada e totalmente incapaz. Como vocês

269
provariam isso? Ora, o homem é totalmente incapaz no sentido
em que todas as suas ações são defectivas, ainda que sejam boas
em muitos aspectos, visto que ele não é movido pelo amor de
Deus e pela preocupação de fazer a vontade de Deus e de buscar
a Sua glória. Por isso, ainda que as ações venham a ser em si e
por si mesmas moralmente boas, todavia são inúteis, devido sua
motivação não ser correta.
Deixem-me colocá-lo de uma forma ainda mais específica.
Quando dizemos que o homem é totalmente incapaz, o que temos
em mente é que ele não pode realizar algum ato que
fundamentalmente satisfaça a aprovação de Deus, ou que satisfaça
as exigências da lei de Deus. “Não há justo, nem um sequer.
Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”
(Rom. 3:10,23). Toda a bondade do mundo não passa de “trapos
da imundícia” (Is. 64:6). Toda a bondade do mundo não passa de
excremento, de refugo, de perda; afinal, ela é destituída de valor,
porque não pode granjear a aprovação de Deus, ou satisfazer
Sua lei.
Por depravação total, ou incapacidade total, porém,
queremos dizer também que o homem não pode mudar sua
preferência fundamental pelo pecado e por si mesmo. Ele não
pode mudar sua natureza. Não pode desvencilhar-se da
depravação que venho definindo. E digo mais. Ele não pode nem
mesmo fazer um esforço em direção a tal mudança, para livrar -
-se da depravação. Ele não pode fazer absolutamente nada em
relação à sua condição caída, à sua total e fundamental depravação
e inabilidade. Além disso, eu preciso dizer o seguinte: ele não
aprecia, de maneira nenhuma, a verdade espiritual. Encontro
isso afirmado em 1 Coríntios 2:14, onde Paulo diz: “Ora, o homem
natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque
lhe parecem loucura, e não pode entendê-las, porque elas se
discernem espiritualmente.” Leiam esse capítulo muito
cuidadosamente, e vocês descobrirão que todo o caso apontado
pelo apóstolo consistia em que a pessoa natural, a pessoa que
vive na condição da carne, não só não pode mudar sua natureza,
mas também não compreende nem aprecia a verdade espiritual.

270
Por que é assim? Bem, Paulo responde sua própria pergunta
no segundo capítulo de Efésios, onde ele nos afirma, no primeiro
versículo, que a pessoa natural ou carnal está “morta em delitos
e pecados”. Ou tomem aquela afirmação de Romanos 8:7:
“Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois
não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser.” Essa é
uma afirmação absoluta da inabilidade total. Deixem-me
apresentar-lhes alguns outros textos das Escrituras. A nova
pessoa em Cristo é descrita em João 1:13 como alguém que não
“nasceu do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade
do varão, mas de Deus”. Já me referi às palavras de nosso Senhor:
“O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito
é espírito” (João 3:6), e em João 6:44, lemos: “Ninguém pode vir
a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer.” Lemos novamente
em Romanos, capítulo 7, onde Paulo nos afirma o que o homem
natural não pode fazer - ele é completamente incapaz.
E assim acabamos de ver duas grandes conseqüências do
pecado original - a culpa original e a corrupção original. E a
corrupção se manifesta de duas maneiras terríveis e terrificantes
- a depravação total e a inabilidade total. E observem que a
essência da definição tanto da depravação quanto da inabilidade
é que elas se concentram em descrever o estado espiritual do
homem. Não significa, enfatizemo-lo novamente, que todo
homem é tão mau quanto pode ser. Não significa que ele não
seja capaz de alguma espécie de bem, em absoluto. Ora, até mesmo
os animais são capazes disso; vocês podem vê-los às vezes
praticando bondade uns aos outros e demonstrando consideração
uns pelos outros. Claro! Mas a questão é que não há valor espiritual
nessas coisas; elas são de nenhum valor aos olhos de Deus. O
homem não pode fazer absolutamente nada em prol de sua
própria salvação; ele não pode mudar sua natureza. “Pode o etíope
mudar sua pele, ou o leopardo suas manchas?” (Jer. 13:23).
Aí, pois, segundo a Bíblia vemos o homem como ele é em
resultado do pecado e da queda de Adão. Ele é culpado; ele é
condenado pela lei de Deus; ele é corrupto e poluído; é depravado;
vive sob o domínio do ego, do pecado e de satanás; ele é completa

271
e absolutamente desamparado. Ele não dá nenhum valor à
verdade espiritual, devido à sua depravação e devido ser cegado
pelo deus deste mundo, o qual não lhe permite ter tal apreciação,
ainda que ele o quisesse. 2 Coríntios 4:3,4 diz: “Mas, se ainda o
nosso evangelho está encoberto, para os que se perdem está
encoberto. Nos quais o deus deste século cegou os entendimentos
dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho
da glória de Cristo, que é a imagem de Deus.”
Por conseguinte, eis o homem! E novamente devo lembrar-
-lhes daquela grande afirmação quando o visualizamos: “Certa
vez Deus residiu aqui”! Que calamidade trouxe o pecado de Adão!
Que coisa terrível e devastadora! Que horríveis conseqüências
sobrevieram ao homem! O que se pode fazer em prol de tal
criatura? Haveria alguma esperança para ela? Haveria alguma
coisa que possamos dizer a nós mesmos quando visualizamos o
homem tal como ele é, em consequência do pecado e da Queda?
Não temos vacilado. Não temos tentado proteger-nos ou ocultar­
mos. Temos deixado as Escrituras falar-nos, e temos visto esse
horrível retrato, essa medonha fotografia de nós mesmos, ao
nascermos neste mundo. Não haveria esperança?
Bem, graças a Deus que todos nós sabemos a resposta - sim,
há! Nessa medonha condição embutiu-se uma cruz, e a coisa
que nos fascinará e nos atrairá por toda a eternidade, creio eu, é
esta: que a promessa veio através de Deus mesmo, contra quem
o homem se rebelou. E ainda mais espantoso e admirável é que
ela veio quase que imediatamente após o homem ter-se rebelado,
pois a promessa foi dada a Adão e Eva mesmo antes de serem
eles lançados fora do Paraíso; a promessa lhes foi dada ainda no
próprio Jardim, onde em sua completa loucura haviam dado
ouvidos ao diabo e - infelizmente - trouxeram todas essas
horríveis conseqüências sobre si próprios. Mesmo então, sem
qualquer delonga, este maravilhoso Deus, a quem servimos e
adoramos, em Seu celestial e eterno amor, prometeu que a
semente da mulher esmagaria a cabeça da serpente (Gên. 3:15).
Haveria de vir um livramento, um Salvador, uma salvação; e o
universo de Deus, o homem acima de tudo, não só seria

272
restaurado ao que havia sido antes, porém a algo ainda muito
mais excelente:
Nele as tribos de Adão ostentam
Bênçãos maiores do que as que seus pais perderam.
- Isaac Watts

Por isso continuaremos a considerar aquele ato máximo e


crucial, o qual fez tudo isso possível, no qual o Filho de Deus
entregou-Se a Si mesmo e “levou ele mesmo em seu corpo os
nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os
pecados, pudéssemos viver para a justiça” (1 Ped. 2:24).

273
19
REDENÇÃO:
O PLANO ETERNO DE DEUS
"Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo,
para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em caridade; e
nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo,
segundo o beneplácito de sua vontade. ” - Ef. 1:3,4
Antes de prosseguirmos com o nosso estudo de doutrinas
bíblicas, talvez seja aconselhável que nos lembremos do ponto
exato ao qual chegamos. Começamos com a proposição geral de
que achamos difícil entender tanto o mundo quanto a nós
mesmos. Temos dentro de nós o senso de Deus, todavia tal coisa,
em si mesma, não é suficiente para levar-nos ao conhecimento
dEle, e chegamos à seguinte conclusão: se realmente vamos
conhecer algo a respeito de Deus, algo a respeito de nós e do
nosso mundo, então devemos necessariamente chegar à Bíblia,
este livro que afirmamos ser a Palavra de Deus, inspirado por
Ele e infalível. E, portanto, temos de nos submeter a ela,
compreendendo que há muitas coisas que não podemos entender,
mas que nos aproximamos com mentes feitas receptivas pela
operação do Espírito Santo em nós.
A primeira coisa que descobrimos, quando agimos assim, é
que Deus graciosamente tem Se revelado, e temos considerado
essa revelação. Então prosseguimos refletindo sobre o que Deus
fez, a criação dos céus e da terra, bem como as várias categorias
de seres que Ele trouxe à existência. Mas concentramo-nos no
homem, e vimos que Deus o criou perfeito (homem e mulher).
Ele os fez “à nossa imagem, segundo a nossa semelhança” (Gên.
1:26). Tentamos considerar o que a Bíblia nos ensina sobre isso,
e aí vimos o homem e a mulher no Paraíso, isentos de pecado,
perfeitos e usufruindo de uma vida de comunhão com Deus.
Daí, então, focalizamos os homens e as mulheres tais como

274
são hoje; focalizamos a nós mesmos, tais como nos conhecemos,
e a grande questão é: por que somos como somos agora, se Adão
e Eva foram assim? E assim fomos levados à consideração da
doutrina da Queda, e esse é o ponto ao qual chegamos. Vimos
que homens e mulheres, todos são o que são em razão da Queda.
Adão e Eva desobedeceram a Deus, e isso os levou à sua queda
(Gênesis, capítulo 3). E ao elaborar a doutrina do pecado original,
como é chamado, vimos que os homens e as mulheres, como
resultado desse fato, vivem em condição decaída. São culpados
diante de Deus, sua própria natureza é poluída e pervertida, e
são completamente desamparados - desamparados especialmente
na questão de voltar para Deus e de chegar a um conhecimento
de Deus (Rom. 5:12). Vocês se lembram de que o resumimos,
colocando-o assim: é possível focalizar um homem ou uma
mulher, hoje, e dizer como disse o puritano John Howe: “Certa
vez Deus residiu aqui.” O homem é uma ruína, ruína de seu ser
original. E aí o focalizamos, expulso do Paraíso, do Jardim de
Deus, comendo seu pão com o suor de seu rosto; e vimos tudo
que é verídico sobre ele como se encontra agora, e como se
encontra a natureza humana em conseqüência do pecado.
Ficamos felizes, porém, concluindo com uma nota de
esperança. Descobrimos que no terceiro capítulo de Gênesis, no
qual nos é apresentado o relato da Queda, de suas imediatas
conseqüências e também de algumas das consequências remotas,
que há, acima de tudo, uma esperança: antes de Deus expulsar
Adão e Eva do Jardim, Ele lhes fez uma promessa. Ela chegou
num momento quando tudo estava irremediavelmente perdido.
Adão e Eva, tendo dado ouvidos ao diabo na forma de uma
serpente, se tornaram escravos do diabo, debaixo de seu poder,
incapazes de resisti-lo e desamparados em suas mãos. Parecia
que o futuro do homem estava completamente perdido e sem
esperança. Mas, mesmo assim, Deus fez cintilar nas sombras e
nas trevas um raio de luz. Ele Se dirigiu à serpente e pronunciou
uma maldição sobre ela, dizendo-lhe que haveria guerra entre
ela e “a semente da mulher”; que ela traspassaria, por assim dizer,
o calcanhar da semente da mulher, mas que sua própria cabeça

275
seria esmagada. E aí despontou o vislumbre de esperança.
Assim, pois, passamos a considerar o que essa esperança
significa exatamente. Tendo focalizado a história do homem e
da mulher desde sua perfeição original até à sua degradação e
corrupção, em estado de pecado e culpa, perguntamos: haveria
alguma esperança para eles? E eis a resposta: sim, há. Noutras
palavras, estamos iniciando a abordagem da doutrina da
redenção ou da salvação. De muitas maneiras pode-se dizer,
evidentemente, que este é o tema central de toda a Bíblia, e não
obstante tudo quanto consideramos até aqui é absolutamente
essencial. Em virtude de tantas pessoas fracassarem
continuamente em considerar esse poderoso antecedente, sua
concepção da doutrina da salvação é às vezes incompleta e mesmo
falaciosa em certos pontos. É somente quando entendemos
realmente algo da natureza e do caráter de Deus, bem como da
condição dos homens e das mulheres em pecado, que podemos
entender esta grande doutrina da redenção. Portanto, é
absolutamente correto que empreguemos todo este tempo na
abordagem destas grandes doutrinas que nos conduzem a ela.
De qualquer modo, eis-nos aqui agora, face a face com esta
grande e central doutrina. Obviamente, ela é muito abrangente,
e teremos que dividi-la em vários pontos. Todavia não faremos
isso agora. Quero, antes de tudo, que demos uma olhada nela em
geral. Eis aqui, outra vez, um procedimento que defendo com
muita veemência. E um procedimento sábio, um procedimento
muito bíblico, dar uma passada geral sobre esta doutrina da
redenção antes mesmo de entrar em seus aspectos específicos; e
à medida que o dermos, descobriremos que certas coisas se
realçam de forma muito proeminente e gloriosa, e que
precisamos apreendê-las e apegar-nos firmemente a elas.
Permitam-me apresentar-lhes uma série de pontos.
Primeiro: a redenção é inteiramente de Deus. O que temos na Bíblia
é o registro da atividade de Deus na redenção do homem. Ora,
isso, evidentemente, é algo que encontramos imediatamente, lá
no terceiro capítulo de Gênesis. No momento em que o homem
caiu e se viu nessa condição deplorável, e quando lhe pareceu

276
estar absolutamente sem esperança, essa esperança foi oferecida
por Deus. Foi Deus quem falou. E foi Deus quem apresentou
uma síntese do que tencionava fazer.
Pois bem, isso nunca pode ser enfatizado com demasiada
força. A Bíblia, acima de tudo, é um relato do que Deus fez em
relação à redenção do homem. Não é um relato do homem
buscando a Deus. Esse tem sido, provavelmente, a maior das
heresias que tanto têm caracterizado a Igreja e seu ensino durante
os últimos cem anos. A assim chamada “alta crítica” nunca se
cansou em afirmar-nos, influenciada como estava pela teoria da
evolução, a qual aplicou às Escrituras, que o Velho Testamento
nada era senão um registro do zhomem em busca de Deus. Mas é
precisamente o oposto disso. E o registro da atividade de Deus,
o que Ele fez e o que Ele pretende fazer.
Podemos colocá-lo de uma forma bem mais clara. Vimos
que quando Deus fez o homem à Sua própria imagem e
semelhança, e o colocou no Jardim, então fez um pacto com ele,
o qual tem sido geralmente chamado, muito apropriadamente, o
“pacto das obras”. Com efeito, Deus disse a Adão: se você guardar
o meu mandamento, se você fizer o que lhe digo e abster-se de
comer dessa árvore especial, se você abster-se de fazer o que lhe
tenho proibido, então continuará crescendo e se consolidando
até à perfeição.” E assim Deus fez certas promessas. O futuro do
homem era então dependente de sua própria ação; era um pacto
de obras.
Por outro lado, lembrem-se, o homem falhou em guardar o
pacto; ele rebelou-se contra Deus. E o resultado foi que ele acabou
nessa condição que descrevemos como sendo inabilidade total.
Então, evidentemente, Deus não podia mais fazer outro pacto
de obras com o homem. Ele, quando era perfeito, fracassou em
guardar esse pacto, então Deus, obviamente, não fez outro. A
luz do que já vimos, isso era impossível. Mas - graças a Deus! -
não parou aí, e a doutrina bíblica da redenção é um relato do que
Deus tem feito a respeito do homem.
Ou, colocando-o de outra forma, não é uma questão do que
o homem pode fazer para aplacar a Deus. A Bíblia não faz tal

277
colocação. Há alguns que parecem entender que a mensagem da
Bíblia é aquela que nos diz o que temos de fazer a fim de agradar
esse Deus a quem temos ofendido. Isso, também, é
completamente errado. A Bíblia nos fala do que Deus tem feito
a fim de reconciliar-nos conSigo. Pretendo colocar isso de forma
bem forte. Deus não só está disposto a receber-nos, mas Ele
mesmo sai em busca de nós. Portanto, se desejamos apreender a
doutrina bíblica da redenção, devemos de uma vez por todas
desvencilhar-nos de tal noção, a qual tem sido instilada na mente
e no coração humanos pelo próprio diabo, o qual é adversário de
Deus, e nosso adversário, e o qual tenta fazer-nos crer que Deus
está contra nós. No entanto a mensagem da Bíblia é que “Deus
amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito...”
(João 3:16).
Aliás, deixem-me continuar um pouco mais e colocá-lo nesta
forma extrema: a Bíblia nem mesmo nos diz que o Senhor Jesus
Cristo tem de aplacar a Deus por nós ou que Ele fez isso por nós.
Ainda encontramos pessoas que sustentam esse ponto de vista.
Retratam a Deus em Sua justiça e em Sua retidão absoluta, e
então pintam o Senhor Jesus Cristo como pleiteando junto a
Deus a nosso favor, e rogando que Ele nos perdoe. Encontrarão
isso em certos hinos e coros. Mas tal coisa é completamente
falsa à luz do ensino bíblico, o que pode ser sumariado no que
Paulo afirma em 2 Coríntios 5:19: “Isto é, Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus
pecados.” A questão bíblica não é que Cristo, por assim dizer,
vive apelando a Deus com o fim de mudar Sua mente. Foi Deus
quem enviou a Cristo; foi Deus mesmo quem tomou a iniciativa.
Portanto, não é possível enfatizar com suficiente freqüência e
com bastante força esta primeira proposição, a qual é que a
redenção e a salvação são inteiramente de Deus, e que a Bíblia
não é outra coisa senão o registro do que Deus já fez, está fazendo
e fará a respeito de nós, homens e mulheres, e a respeito de
nossa salvação.
O segundo princípio é este: a salvação é totalmente pela graça.
Tudo foi feito a despeito da rebelião do homem, a despeito da

278
arrogância do homem, a despeito de sua loucura e pecado. Voltem
àquele relato em Gênesis, capítulo 3, e é isso mesmo que
encontrarão. Adão e Eva desobedeceram e se rebelaram
temerariamente, e lá estavam eles, amedrontados e alarmados,
quando ouviram a voz de Deus, e se esconderam; seu instinto
foi fugir de Deus. Mas foi Deus quem foi atrás deles, quem os
chamou de volta.
Ora, isso é todo o argumento da Bíblia: esse ato gracioso
por parte de Deus, que não voltou Suas costas contra nós e contra
o mundo a despeito do pecado, da desobediência e da Queda,
não obstante o fato de sermos tão indignos de Seu amor e de
Sua misericórdia e compaixão, este Deus olha para nós com
olhares de piedade, e nos fala em termos de graça e amor. Vocês
se lembram que quando estivemos considerando o caráter de
Deus, enfatizamos o caráter da graça. Graça significa “favor
imerecido”, e essa é a essência da mensagem bíblica. O escritor
do hino diz: z
O Deus das grandes maravilhas!
Todos os Teus caminhos
São incomparáveis, celestiais e divinos.
~ Samuel Davies
Não existe nada comparável à graça de Deus, à maneira como
Ele olha para nós e para o mundo, a despeito do que temos feito,
e nos oferece essas promessas. Não temos nenhum direito ao
amor de Deus. Nós o perdemos. A salvação é totalmente pela
graça.
O próximo ponto que a Bíblia torna muito claro acerca desta
doutrina da redenção, é que toda ela foi planejada antes da fundação
do mundo. Ora, isso é muitíssimo importante. Leiam o que Paulo
diz sobre ela no primeiro capítulo de sua carta aos Efésios. A
redenção não é uma reflexão posterior. Não foi algo que Deus
cogitou após a queda do homem e porque o homem caiu. Afirmar
tal coisa é contradizer as Escrituras. A Bíblia sempre insiste em
mencionar isso como algo que foi concebido antes que o mundo
fosse criado. Antes mesmo que o homem fosse criado, este plano
de redenção estava nitidamente esboçado na mente de Deus.

279
Aqui somos uma vez mais confrontados com um grande
mistério. Há um sentido em que se faz impossível apreendê-lo.
Somos tão limitados pelo fator tempo, estamos tão acostumados
a ver tudo pelo prisma da seqüência de tempo! Pensamos em
termos cronológicos, e se faz completamente inevitável que
procedamos assim. Mas Deus se acha fora do tempo. Deus vê o
fim desde o princípio, e todas as coisas se acham sempre em Sua
presença. Eis um pensamento estonteante, e no entanto ei-lo
aqui, o qual é muito claramente ensinado por toda parte nas
Escrituras: “Como também nos elegeu nele antes da fundação
do mundo...” (Ef. 1:4). Ora, vamos sempre encontrar certas
pessoas que dão a impressão que Deus continuamente tem que
modificar Seu plano e Seus propósitos em virtude das coisas que
são realizadas pelo homem. Tal coisa, contudo, jamais pode ser
substanciada pelas Escrituras. Antes de tudo ser criado, o plano,
a idéia da redenção, já se achava presente na mente de Deus.
A próxima coisa que vamos avaliar é algo que deveríamos
abordar com reverência, louvor e adoração, ou seja, as três Pessoas
da bem-aventurada Trindade tomaram parte neste plano e propósito
de redenção. Não pode haver dúvida alguma de que as Escrituras
ensinam que antes da fundação do mundo houve um conselho
em referência ao homem entre as três Pessoas da Trindade - o
Pai, o Filho e o Espírito Santo. E ali nesse eterno conselho tudo
indica com bastante clareza que distribuíram a obra da redenção,
de modo que podemos descrever o Pai como o originador, o Filho
como o executor e o Espírito Santo como Aquele que aplica o que
o Filho realizou.
Mas é igualmente muito evidente que um acordo
pormenorizado, sim, um pacto, foi feito entre Deus o eterno Pai
e Deus o eterno Filho. E plenamente evidente, segundo as
Escrituras, que o Filho foi feito o “herdeiro de todas as coisas”
(Heb. 1:2), significando que tudo neste mundo foi dado ao Filho,
tudo foi, por assim dizer, legado a Ele. E tudo o que acontece
neste mundo e nesta terra pertence, portanto, ao Seu domínio.
Em Sua oração como Sumo Sacerdote, em João, capítulo 17, nosso
Senhor lembra a Seu Pai: “Assim como lhe deste (a Cristo) poder

280
sobre toda carne,.,” (v. 2). Eis a mesma idéia. Deus o Pai entrega
o mundo como ele é ao Filho, e Lhe confere autoridade sobre
tudo. O oitavo salmo não só se refere ao homem, ele se refere de
uma forma muito especial ao Filho de Deus:

“Que é o homem mortal para que te lembres dele? e o


filho do homem para que o visites? Contudo, pouco menor
o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste.
Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas
mãos; tudo puseste debaixo de seus pés: todas as ovelhas e
bois, assim como os animais do campo. As aves dos céus,
e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos
mares. ”
Além disso, porém, vemos claramente nas Escrituras que
dentro do propósito da redenção Deus o Pai fez o Filho o cabeça
representante de uma nova humanidade. Tomem, por exemplo,
a informação que recebemos de Romanos, capítulo 5, onde nos
é oferecido um contraste - “Como em Adão...assim em Cristo.”
O apóstolo elabora isso, e seu ensino é que Adão, como já vimos,
foi o cabeça e o representante da raça humana, mas agora, pelo
propósito da redenção, Deus designou um novo cabeça e um
novo representante - Seu próprio Filho. Ele não podia designar
um homem, obviamente, porque todos os homens caíram em
Adão, e Deus não poderia designar o homem caído como
representante. Se o homem em estado de perfeição fracassou,
quanto mais fracassaria o homem em Adão, em estado de
imperfeição.
Por isso vocês podem ver agora por que a encarnação foi
absolutamente necessária. Não havia ninguém sobre a terra com
quem Deus poderia fazer Seu pacto; não havia ninguém a quem
Ele pudesse selecionar e fazer cabeça e representante. Por isso
Ele tomou Seu próprio Filho, a quem enviaria ao mundo na
semelhança de carne pecaminosa, e O designou como o cabeça
e o representante dessa nova humanidade. Vocês encontram isso
em Romanos, capítulo 5, e igualmente de forma definida, em
1 Coríntios 15:22: “Porque, assim como todos morrem em Adão,

281
assim também todos serão vivificados em Cristo”. Trata-se do
mesmo contraste existente entre Adão e o nosso Senhor. E
evidentemente acharão o mesmo ensino no Salmo 2: “Tu és o
meu Filho, eu hoje te gerei” (v. 7), com as demais coisas que
procedem disso.
O próximo passo nesse acordo, ou pacto, entre o Pai e o
Filho era que Deus o Pai deu a Deus o Filho esse povo a quem
Ele ressuscitaria no último dia. Leiam, por exemplo, João,
capítulo 6, e vocês descobrirão que nosso Senhor Se refere
constantemente a esse fato, e Ele diz que não perderia nada do
que o Pai Lhe deu. O mesmo é muito claro, também, em João,
capítulo 17, em Sua oração sacerdotal. Nosso Senhor
constantemente reitera que Ele está fazendo tudo isso por causa
daqueles a quem o Pai Lhe tem dado. “Pai, é chegada a hora”,
diz Ele, “glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te
glorifique a ti; assim como lhe deste poder sobre toda carne,
para que dê a vida eterna a todos quantos lhe deste” (João 17:1,2).
E Ele continua reiterando a frase: “Manifestei o teu nome aos
homens que do mundo me deste” (v. 6). E em seguida Ele lembra
a Seu Pai: “Estando eu com eles no mundo, guardava-os em teu
nome. Tenho guardado aqueles que tu me deste, e nenhum deles
se perdeu, senão o filho da perdição, para que a Escritura se
cumprisse” (v. 12). Portanto, eis outra parte do acordo.
A seguir, temos outra referência a ele em Hebreus 2:13, onde
o Filho diz: “Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu.”
E assim, evidentemente, houve um ajuste concernente ao povo
que Lhe havia sido dado. Ele é o cabeça deste povo, desta nova
humanidade, dos redimidos.
Ainda mais, porém, vemos que Deus não só Lhe deu o povo;
Ele também Lhe deu uma certa obra a realizar com respeito a
esse povo. Novamente em João, capítulo 17, lemos: “Eu te
glorifiquei na terra, tendo consumado a obra que me deste a
fazer” (v. 4). E assim o Pai, na eternidade, deu ao Filho uma
determinada obra a realizar, e então, tendo-a dado a Ele, O enviou
a executá-la. “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que
deu seu Filho” (João 3:16). “Mas, vindo a plenitude dos tempos,

282
Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei”
(Gál. 4:4). E há ainda muitas outras afirmações semelhantes. E,
deveras, de uma maneira muitíssimo maravilhosa, somos
informados que o Pai preparou um corpo para Ele. Há uma
referência a esse fato em Salmo 40, e vocês a encontrarão citada
em Hebreus 10:5: "... corpo me preparaste.” Portanto, esse é o
ensino essencial; foi o Pai quem enviou o Filho.
O próximo, o quinto ponto geral, que sugiro é este: este plano
e esquema de redenção é um plano definido. Não há nele nada fortuito
ou contingente. E um plano perfeito, e ele era perfeito antes
mesmo da fundação do mundo. Deus o projetou na eternidade, e
então o pôs em operação neste mundo temporal. Não podemos
ler a Bíblia sem notar de uma maneira muito especial o elemento
tempo. Tudo quanto aconteceu até este momento, aconteceu
segundo o plano e programa de Deus.
Existem alguns exemplos notáveis disso, e é muitíssimo
fascinante e encorajador considerar alguns desses exemplos e
elaborá-los detalhadamente. Por exemplo, Deus realmente
informou a Abraão acerca dos quatrocentos anos que seus
descendentes passariam no cativeiro egípcio (Gên. 15:13-16).
Também o tempo do dilúvio era conhecido de Deus. Quando no
início Ele deu a Noé Seu mandamento para começar a construir
a arca, quando o mundo começou a escarnecer e a dizer: “Onde
está a promessa desse juízo sobre o qual você tem falado?”. Deus
sabia, e, no momento predeterminado, ele aconteceu (Gên. 6,7).
E o mesmo é verdadeiro quanto ao tempo em que Ele escolheu
um homem chamado Abraão, e fundou nele uma nação (Gên.
12:1). Estaremos considerando isso outra vez detalhadamente,
mas todas essas coisas aconteceram no preciso tempo que Deus
lhes designara. E assim, quando percorremos toda a história dos
Juízes, dos Reis e dos Profetas, descobrimos que ela se acha
totalmente em consonância com este plano perfeito, e que o
mesmo está total e perfeitamente cronometrado.
E isso nos conduz especialmente, sem dúvida, àquela grande
afirmação que já citamos em parte: “Mas vindo a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob

283
a lei...” (Gál. 4:4). Há pessoas que às vezes perguntam: “Se Deus
deu essa promessa lá no Éden, por que Ele esperou tanto tempo
antes de enviar Seu Filho?” É supérfluo formular tal pergunta.
Deus, porém, tem Seu grande propósito em tudo. É muito fácil
sugerir muitas razões por que Deus não enviou Seu Filho até
àquele exato momento quando por fim O enviou. Parece-me
cada vez mais claro que Ele procedeu assim para revelar aos
homens e às mulheres o total desamparo deles. A lei tinha de
ser dada a fim de que pudessem descobrir que não poderiam
guardá-la. Era mister que a filosofia tivesse a oportunidade de
fazer tudo o que ela podia; igualmente uma oportunidade tinha
que ser dada à lei e às idéias romanas de justiça e governo. Tudo
quanto os homens e às mulheres poderiam imaginar para redimir-
-se e ao mundo já haviam tentado, e fracassaram mesmo antes
de Deus enviar Seu Filho.
Deus conhecia tudo isso desde o princípio. Se somos
informados que “aquele que crê não se apresse” (Is. 28:16), quão
infinitamente mais verdadeiro é isso de Deus, que vê o fim desde
o princípio. Por isso enfatizo que ele é um plano perfeito e
definido, completo e genuíno. O apóstolo Paulo, em Romanos,
capítulo 11, não hesita em falar sobre um tempo quando a
“plenitude dos gentios for consumada. E assim todo o Israel será
salvo” (vv. 25,26). Ora, Deus já conhecia tudo isso desde a
fundação do mundo. O plano era perfeito, e Ele deu essas
revelações dele a Seus servos para que pudessem escrever acerca
dele e pudéssemos ler sobre ele. Deus conhece o número da
plenitude dos gentios; Ele conhece o número de Israel; Ele
conhece o número desta nova humanidade que está em Cristo
Jesus. O plano da redenção é um plano completo: um plano
perfeito e definido, até nos mais ínfimos detalhes.
A próxima coisa sobre o plano que desejo enfatizar, o sexto
princípio, é este: a certeza absoluta da consumação deste plano de
redenção. Esta é uma das coisas mais gloriosas e encorajadoras
que poderíamos considerar juntos. Graças a Deus que isso se faz
muito evidente mesmo em Gênesis, capítulo 3. Quando Deus
pronunciou Sua maldição ali sobre a serpente, e anunciou guerra

284
entre a semente da mulher e a serpente, Ele tornou patente que
esse inimigo que havia lançado o homem, que era perfeito, ao
pó, à vergonha e à degradação, iria ser completamente derrotado
e destruído.
E a Bíblia prossegue nos lembrando esse fato. Em seu último
livro, ela nos apresenta um quadro da consumação de tudo,
quando até mesmo o diabo será lançado no lago que arde com
fogo, e será destruído por toda a eternidade. Sejam quais forem
as aparências, quaisquer que sejam os pressupostos apresentados
em contrário, em diferentes tempos e em diferentes épocas, o
fato é que o plano de Deus é certo. Nada pode frustrá-lo, nada
pode impedi-lo de ser executado nos mínimos detalhes. Esse é
indubitavelmente o maior tema da Bíblia. É-nos apresentado
um relato tanto do fim quanto do princípio. Tudo está aí;
podemos descansar seguros de que nenhum poder humano ou
terreno ou infernal jamais impedirá o que Deus propôs nesse
eterno conselho antes da fundação do mundo.
E, então, o próximo ponto - e novamente trata-se de algo
que se acha enfatizado em Efésios, capítulo 1 - é que o propósito
de Deus na redenção se aplica não somente ao homem, mas também a
todas as coisas. Isso se aplica ao próprio mundo e, como já vimos,
inclui o que Deus propôs até mesmo em relação a Seus inimigos.
Paulo diz: “Descobrindo-nos o mistério de sua vontade” - o
desígnio estava lá em Seu propósito, mas era um mistério oculto,
e não o teríamos conhecido se não Lhe aprouvesse graciosamente
fazê-lo conhecido a nós - “segundo o seu beneplácito, que
propusera em si mesmo” - é tudo de graça; tudo está em Seu
amor. Por quê? Porque “na dispensação da plenitude dos tempos”
- ei-lo aí novamente - “de tornar a congregar em Cristo todas as
coisas, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra”
(Ef. 1:9,10).
Aí está o plano. Receio que muitos de nós sejamos
freqüentemente tentados a pensar na salvação somente em
termos de nós mesmos, ou somente em termos de um número
de indivíduos. Não deveríamos jamais fazer tal coisa. Este grande
propósito de Deus inclui os céus e a terra. Todas as coisas, em

285
todos os lugares, estão envolvidas no Seu propósito, até mesmo
ao ponto de determinar de antemão o estado e o destino finais
de satanás, do mal e de tudo quanto pertence ao seu domínio.
Haverá uma destruição final, e haverá “novos céus e nova terra,
onde habita justiça” (2 Ped. 3:13), que será o grande resultado da
obra de redenção executada pelo Filho de Deus.
E isso me conduz ao meu oitavo ponto, ou seja, este grande
plano de redenção sempre se centraliza no Senhor Jesus Cristo. Paulo
nos diz que o propósito de Deus consiste em “congregar em Cristo
todas as coisas, tanto as que estão nos céus como as que estão na
terra” - e ele se repete - “nele, digo” (Ef. 1:10,11). Terei ocasião
de outra vez voltar a enfatizá-lo e reiterá-lo. Estabeleço-o aqui
como um princípio, porque receio que certas pessoas de forma
definida ensinem que alguma forma de redenção seja possível à
parte de nosso Senhor Jesus Cristo. Vocês encontrarão em certas
“Notas sobre as Escrituras” um ensinamento que diz que virá
um tempo quando a dispensação da graça se encerrará e uma
nova dispensação da lei entrará em vigor, e o povo será salvo
pela observação da lei, e não será salvo caso não a observe.
Ora, não hesito em asseverar que tal concepção é
completamente errônea e uma contradição da Bíblia. Não há
nenhuma menção de qualquer salvação que seja, em qualquer
parte da Bíblia, exceto em e através do Senhor Jesus Cristo. Só
há um evangelho; só há um único meio de salvação. Os santos
do Velho Testamento são salvos em Cristo assim como vocês e
eu o somos, e todos quantos ainda viverão serão salvos em Cristo,
ou jamais o serão. E em Cristo que Deus irá reconciliar tudo, e
não existe nenhum outro meio de reconciliação. Não podemos
enfatizar isso com exagerada freqüência nem com exagerada
força.
Colocando-o de outra maneira, chamamos Bíblia a este livro,
e o dividimos em duas partes - Velho Testamento e Novo
Testamento. O que significa isso? Significa que o Velho
Testamento, como também o Novo, se preocupam com a mesma
Pessoa, que é o Senhor Jesus Cristo. O Velho Testamento é a
preparação, a promessa, a profecia de Sua vinda. Lá em Gênesis,

286
capítulo 3, vocês a encontram; tudo é posto de modo tão nítido.
Quem é a semente da mulher que pisará e esmagará a cabeça da
serpente? Não é nenhum outro senão o Filho de Deus, e Ele o
fez naquela cruz no monte do Calvário. O Velho Testamento,
desde o início até ao fím, aponta para Ele.
Então, o que é o Novo Testamento senão o glorioso
cumprimento de cada tipo e de cada sombra? Ele é a substância
de todas as sombras. Ele é o grande antítipo de todos os tipos.
Ele é o cumprimento de tudo o que Deus indicara que Ele seria.
Portanto, eis a Bíblia - Velho Testamento, Novo Testamento -
mas tudo está em Cristo. O plano, o propósito, o meio de redenção
estão sempre nEle.
E isso me conduz ao meu último ponto, ou seja, este pro­
pósito de Deus na. redenção foi revelado à humanidade em vários
pactos. Não pretendo entrar nesse ponto agora; espero considerar
essa questão dos pactos em nosso próximo estudo. Mas Deus,
em Sua imensa condescendência, em Sua infinita graça e
benevolência, não só determinou efetuar este plano de redenção,
porém também fez algo mais que de certa forma é ainda mais
extraordinário e maravilhoso: Ele fez acordos com os homens.
O onipotente e eterno Deus, o soberano Senhor, Se volve para
homens e mulheres que têm pecado e se rebelado contra Ele e
começa a contar-lhes o que Ele pretende fazer. E, como veremos,
quando Ele fez isso com Abraão, não só lhe informou o que
pretendia fazer, mas também o confirmou com um juramento, a
fím de que o homem pudesse ter uma plena e segura esperança
(Heb. 6:17-20).
Assim, pois, consideramos uma espécie de visão sinóptica
da doutrina bíblica da redenção. Visualizamo-la em termos
gerais. Visualizamos toda a paisagem, por assim dizer.
Visualizamo-la do começo ao fim, e vimos que Deus, em Sua
bondade, amor, misericórdia e compaixão, e em Sua infinita
graça, buscou homens e mulheres, quando nada mereciam senão
o inferno e a destruição, e lhes deu a promessa de sua maravilhosa
redenção, a qual seria fínalmente consumada em Seu próprio
Filho eterno, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Portanto, a
Ele, e tão-somente a Ele, deve necessariamente ser todo o louvor,
toda a honra e toda a glória!

287
20
O PACTO DA GRAÇA
NO VELHO TESTAMENTO
Agora prosseguimos com nossa abordagem da doutrina
bíblica da redenção, ou salvação. Já vimos que o homem, tendo
falhado em guardar a lei e o mandamento de Deus, fez-se escravo
de satanás, morto em transgressões e pecados, e que, se tivesse
sido entregue a si próprio, sua condição teria se transformado
em total desesperança. Mas Deus, em Sua infinita graça, amor e
misericórdia, buscou o homem com compaixão e o informou de
Seu grande plano de salvação. E temos considerado o caráter
geral deste grande plano de redenção. Terminei dizendo que Deus
o revelou ao homem na forma de um pacto feito com ele. Esse é
comumente chamado o pacto de redenção ou o pacto de salvação,
o qual será agora o nosso tema especial - a maneira pela qual
Deus fez conhecido Seu gracioso propósito de salvar o homem
da culpa e da corrupção que resultaram dele ter dado ouvidos à
insinuação de satanás.
Ora, o grande termo que deveremos considerar é a palavra
pacto. E aquela palavra que Deus empregou quando falou com
Abraão (Gênesis, capítulo 17). O que é um pacto? Bem, ele pode
ser definido como uma aliança ou um acordo que é assumido
por duas partes, sendo essas duas partes, geralmente, mais ou
menos de posição igual. Ainda hoje as pessoas freqüentemente
fazem pactos; por exemplo, se comprometem em dar ofertas para
boas causas. Há também a Aliança da Liga das Nações ou a
Aliança das Nações Unidas. Um pacto (ou aliança) é geralmente
confirmado por alguma espécie de cerimônia solene -faz-se um
juramento, ou, talvez, faz-se um culto religioso. E, no pacto, os
dois lados se comprometem a cumprir certas promessas feitas
sobre as bases de certas condições.
Na Bíblia, vocês encontrarão pactos sendo feitos entre

288
pessoas - Davi e Jônatas fizeram um pacto, e ele tinha por base
a igualdade. Mas quando chegamos ao caso de Deus e o homem,
é evidente que há necessariamente uma diferença; a idéia de
pacto sofre algumas modificações. Essa diferença aparece
especialmente na Authorised Version da Bíblia, desta forma: a
palavra é às vezes traduzida por “testamento” e não por “pacto”.
Por isso falamos de “Velho Testamento” e “Novo Testamento”;
e vocês encontrarão ainda a palavra “testamento” em 2 Coríntios
3:6, bem como em outros lugares.
Ora, é geralmente consensual que a palavra estabelecida para
essa idéia deve ser sempre traduzida por pacto, exceto num caso,
e essa única exceção se encontra em Hebreus 9:16,17, onde
evidentemente deve ser traduzida por testamento, pois ela se
refere a uma pessoa moribunda fazendo um testamento. No
entanto, independentemente desse único caso, vocês descobrirão
que as demais traduções, a Revised Standard Version, por exemplo,
sempre a tranduzem por pacto, e não por testamento.
Enfatizo isso pela seguinte razão: os tradutores daAuthorised
Version tiveram um objetivo bem definido em vista quando
empregaram a palavra “testamento”. Seu propósito era enfatizar
a prioridade de Deus. Quando Deus faz um pacto com um
homem, não há dois participantes em igualdade, mas Deus está
conferindo, por assim dizer, Seu pacto ao homem. Por isso os
tradutores concluíram que se tratava mais de um testamento do
que um pacto, e decidiram usar essa palavra. Estritamente
falando, estavam errados, porém eles certamente queriam
enfatizar a idéia da prioridade de Deus em oposição à idéia do
homem como parte igual. Fizeram-no também porque podiam
perceber nitidamente que em Hebreus, capítulo 9, o termo
significa testamento, e enquanto se pode argumentar que, afinal
de contas, todas as bênçãos que nos vêm do pacto da graça vêm
como resultado da morte do Senhor Jesus Cristo, há um sentido
em que herdamos tudo como resultado de Seu derradeiro
testamento. Portanto, houve pelo menos isso a ser dito sobre
sua tradução. Demais disso, foram indubitavelmente em parte
influenciados pelo fato de que a palavra latina para tudo isso é

289
testamentum, e se viram em parte dependentes das traduções
latinas das Escrituras.
Entretanto, o que mais devemos guardar em mente é que se
deve enfatizar a prioridade de Deus. O pacto é um dom de Deus
que foi introduzido pela morte de Cristo, e posto que ele vem de
Deus, então é algo seguro, inviolável e inquebrável. E no entanto
temos de prosseguir com essa idéia de pacto, porque Deus, em
Seu maravilhoso amor, graça e condescendência, decidiu revelar
Seu propósito de uma forma especial. Ele chamou o homem para
Si e decidiu fazer com ele um acordo. Não havia necessidade de
Deus agir assim, mas Ele o fez. A despeito da rebelião humana,
de pecado e arrogância, Deus, por assim dizer, chamou o homem
e lhe disse: “Quero fazer um acordo com você.” Em certo sentido,
não há nada que demonstre melhor o maravilhoso amor, a graça,
a benevolência e a condescendência de Deus do que este ensino
da Bíblia com respeito a Ele fazer pactos com os homens.
Ora, já vimos que Deus originalmente fez um pacto com
Adão. Vocês se lembram que Ele o pôs no Jardim e lhe disse que,
se fizesse certas coisas, receberia certo galardão. Isso se chama
um pacto de obras, porque a herança que Adão receberia dessa
promessa era inteiramente dependente de suas obras, do que ele
faria. Mas, vocês se lembram, Adão quebrou o pacto; ele fracassou
e entregou a si mesmo e a sua posteridade àquela condição terrível
que estivemos descrevendo. Então, depois disso Deus fez um
novo pacto, o qual se chama o pacto da graça.
Evidentemente, como já vimos, Deus não poderia fazer com
o homem outro pacto com base nas obras. Se o homem, numa
posição ideal e ao tempo em que era perfeito, não pôde guardar
o pacto com base nas obras, qual seria o objetivo de se fazer com
o homem caído outro pacto com base nas obras? Por isso a Bíblia
nos informa que Deus não fez isso, mas que Ele fez o pacto com
base na graça. E, mesmo nesse pacto, Deus introduziu uma
condição. Ele fez Suas promessas. Ele nos informa sobre o que
está fazendo possível para nós. Ele, porém, nos impõe uma
exigência. Informa-nos que só receberemos e desfrutaremos
dessas promessas, se tivermos fé, e temos de aceitar tal condição

290
voluntariamente antes que venhamos a desfrutar das bênçãos.
Além do mais, porém, Deus, também, nos informa no pacto que
Ele mesmo irá fazer algo que torna possível o usufruto desses
benefícios, e que essa é a razão por que ele é chamado o pacto da
graça.
Agora, permitam-me dividir isso um pouco. Deus, eu afirmo,
fez uma série de promessas. Portanto, qual é a grande promessa
central que Ele fez no pacto da graça? Bem, na verdade é possível
colocá-lo desta forma: Ele prometeu ser Deus para o homem.
Eis a grande promessa: “Serei Deus para ti.” Vocês percebem a
importância e o significado disso? Deus havia sido o Deus de
Adão, mas Adão pecou contra Ele e caiu; tornou-se escravo de
satanás e rompeu a conexão entre ele e Deus. E a coisa notável e
espantosa é que Deus Se voltou para o homem e assegurou-lhe
que no pacto da graça Ele encontrara um caminho, Ele tinha
uma saída por meio da qual ainda poderia ser o Deus do homem.
“Eu vos tomarei por meu povo, e serei o vosso Deus” (Êx. 6:7).
Observem isso porque, ao percorrer as Escrituras, vocês
descobrirão que essa é a grande promessa reiterada
incessantemente. Vocês a encontrarão em Jeremias 31:33; 32:38-
-40. Vocês a encontrarão em Ezequiel 34:23-25:36:25-28; 37:26,27.
Vocês a encontrarão em 2 Coríntios 6:16-18; em Hebreus 8:10; e,
de uma forma grandiosa, em Apocalipse 21:3, onde lemos: “Eis
o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará.”
Essa é a condição final. E assim vocês percebem que essa é a
própria essência da promessa de Deus no pacto da graça - que o
que foi quebrado pelo pecado e pela Queda, ia ser restaurado.
Portanto, a suprema bênção, a bênção suprema, a bênção das
bênçãos, consiste em que Deus é o meu Deus, e que tenho o
direito de dizer: “meu Deus.” E toda a salvação se acha inclusa
nisso.
Não devo delongar-me aqui agora, porém quão frequente­
mente nos esquecemos disso! Quão amiúde nos inclinamos a
definir salvação em outros termos e não nesses! Todavia, a maior
coisa que um ser humano já pôde dizer, desde a Queda, é: “Deus
é o meu Deus.” E a maior bênção de todas é saber com certeza

291
que Deus está dizendo-lhe: “Eu sou o teu Deus.” “Eu serei Deus
para ti.” Isso é o que Ele prometeu.
Mas o pacto inclui também uma série de outras coisas. Deus
prometeu certas bênçãos temporais tanto quanto espirituais.
Prometeu especialmente aquelas sob a antiga dispensação, e
jamais esqueçamo-nos de que as bênçãos temporais são destinadas
para serem ilustrações das bênçãos espirituais, bem como para
as simbolizarem.
Ele também prometeu, obviamente, um meio de justificação.
Deus não pode ser o meu Deus, e eu não posso dizer “meu Deus”,
a menos que eu seja justificado; a menos que o meu pecado seja
perdoado; a menos que o meu pecado seja removido, e a menos
que eu seja adotado e feito filho de Deus. Tudo isso se acha
implícito na promessa de que Deus será o meu Deus. Aliás, isso
inclui a promessa de vida eterna, a dádiva do Espírito Santo e a
plena aplicação e realização da redenção em minha santificação
e glorificação finais. As promessas no pacto da graça incluem
tudo isso, e somos convocados a responder pela fé, pelo desejo
de possuir tudo isso e pela fidelidade e obediência a Deus nessas
novas condições.
Dessa forma tenho tentado apresentar-lhes uma definição
todo-abrangente do que pretendemos pelo conceitoptzcw da graça.
Podemos colocá-lo assim: o pacto da graça é aquele arranjo entre
o Deus Triuno e Seu povo, por meio do qual Deus executa Seu
eterno propósito e decreto de redenção, ao prometer Sua amizade.
A promessa consiste na salvação plena e gratuita a Seu povo
com base na expiação vicária do Senhor Jesus Cristo, que é o
Mediador do pacto, e Seu povo aceita essa salvação pela fé. É a
promessa da amizade de Deus, de ser Ele o nosso Deus, de entrar
em íntima relação com Ele e de conhecê-10, e tudo se torna
possível por meio de Jesus Cristo.
Mas há algo que quero agora considerar, a saber, este grande
pacto que Deus fez com o homem, este pacto da graça, pode ser
dividido em duas dispensações, ou, se vocês o preferirem, em
duas administrações. Este grande pacto tem sido administrado
de duas formas distintas: a forma que é descrita no Velho

292
Testamento e a forma que é descrita no Novo Testamento. Vocês
percebem o que estou dizendo? Há um único pacto da graça, e
espero que mesmo antes de terminar este estudo eu possa provar
isso a vocês.
Quais, pois, foram as formas utilizadas para ministrar o pacto
da graça sob a antiga dispensação? Muito bem, antes de tudo,
vocês devem dirigir-se a Gênesis 3:15. Se estiverem interessados
no termo técnico, ele é geralmente intitulado proto evangelho.
Noutras palavras, há em Gênesis 3:15 uma espécie de
prefiguração de todo o evangelho. Ora, para mim esta é uma das
coisas mais fascinantes e emocionantes que alguém pode
contemplar. Aqui está este grande livro; dividimo-lo e o
denominamos o Velho Testamento e o Novo Testamento, e todos
nós sabemos o que isso significa. Mas, vocês sabem que se
fôssemos ser estritamente exatos, não o descreveríamos dessa
forma. A divisão real da Bíblia é esta: primeiramente, tudo se
depreende de Gênesis 1:1a Gênesis 3:14; em seguida, tudo se
depreende de Gênesis 3:15 ao próprio final da Bíblia. O que vocês
têm até Gênesis 3:14 é o relato da Criação, do pacto original de
Deus com o homem, com base nas obras, e de como isso foi
desfeito em virtude do homem o ter quebrado. A partir de Gênesis
3:15, vocês depreendem o anúncio do evangelho, o pacto da graça,
o meio de salvação, e esse é todo o tema da Bíblia até chegar ao
último versículo do livro do Apocalipse. Essa é a divisão real da
Bíblia.
Mas, evidentemente, falamos em termos de Velho
Testamento e Novo Testamento em razão de querermos enfatizar
as formas principais pelas quais este único grande pacto da graça
tem sido administrado, e aqui ele tem seu início em Gênesis
3:15 - “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente
e a sua semente: esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o
calcanhar.” Ora, a totalidade do evangelho jaz aí. Ei-lo aí nessa
forma criptográfica, nessa forma muito pouco desenvolvida;
porém, ei-lo aí.
Elaboremo-lo. O que Deus nos diz em Gênesis 3:15? Bem,
antes de tudo, Ele estaria insuflando inimizade entre a serpente

293
e a mulher e sua semente. Até então, vejam vocês, não tinha
havido nenhuma inimizade entre elas; mas a serpente enganara
Eva, e assim se tornaram muito amigas; a mulher estava agora
sob o domínio do diabo. Não tivera Deus feito algo, esse teria
sido o término de tudo. Deus, porém, veio e disse: “Eu vou agora
desfazer essa amizade. Seu destino era manter relação de amizade
coMigo, não com o diabo. Por isso vou pôr inimizade entre você
e o diabo, entre o diabo e você.” Esse foi o primeiro anúncio de
salvação. O homem não pode ser salvo enquanto for amigo do
diabo e inimigo de Deus. Ele tem que ser amigo de Deus. Por
isso ele precisa tornar-se inimigo do diabo.
A segunda coisa, portanto, que se acha implícita é que Deus
iria comunicar ao homem poder e graça para combater o diabo.
O homem já foi enganado por ele e já se tornou seu escravo. O
homem precisa ser auxiliado e fortalecido, e Deus lhe prometeu
fazer isso. Deus prometeu estar ao lado do homem nesta guerra
contra o inimigo. Ele aplicou a promessa também à “semente” -
“entre a tua semente e a sua semente”. Isso é muitíssimo
importante. Não foi uma promessa temporária dada lá no Eden;
ela tinha que prosseguir até que tivesse atingido seu propósito
final.
Observem também que Deus afirmou que a discórdia iria
continuar não só entre a mulher e sua semente e o diabo, mas
também entre a semente da mulher e a semente da serpente.
Noutras palavras, a humanidade estava aqui dividida em duas
facções - aqueles que não pertencem a Cristo, pertencem ao
diabo; são os filhos, a semente do diabo. Assim, a humanidade
pode ser dividida em semente de Deus e de Cristo, e em semente
do diabo. E persiste uma batalha entre eles - tudo anunciado em
Gênesis 3:15.
Em seguida, observem que nos é comunicada aí a promessa
de que Deus e Seu caminho certamente triunfariam. A serpente
iria ser esmagada, sua cabeça seria esmagada, ela seria destruída.
Acaso vocês não percebem como temos aí a prefiguração do
Calvário? Foi lá que ela foi exposta à ignomínia pública; foi lá
que ela foi derrotada - tudo prometido no proto evangelho. E,

294
finalmente, há aí aquela idéia que podemos divisar claramente à
luz das Escrituras subseqüentes, ou seja, que a real semente da
mulher não é nenhum outro senão o próprio Senhor Jesus Cristo
(Gên. 3:16). Ora, eis aí o primeiro anúncio deste pacto. Deus
não lhe deu o nome de pacto, neste ponto, mas ele era uma
prefiguração do pacto que mais tarde se tornou mais explícito.
Em segundo lugar, porém, aproximemo-nos do pacto feito
com Noé. Vocês encontrarão isso descrito no nono capítulo do
livro de Gênesis, após o dilúvio. Deus prometeu aqui que Ele
nunca mais destruiria a terra e toda carne por meio de água, pela
repetição de um dilúvio. Além do mais, Ele garantiu que haveria
sempre uma sucessão de semeadura e colheita; frio e calor; verão
e inverno; dia e noite. Deus prometeu que isso continuaria, viesse
o que viesse. Ele prometeu ainda que as forças da natureza seriam
controladas. Noutras palavras, os efeitos e os resultados do pecado
e da Queda seriam reprimidos, seriam mantidos em equilíbrio
no pacto feito com Noé.
Da mesma forma, os poderes do mal ficaram sujeitos a uma
maior restrição, e ao homem não foi permitido ser tão violento
quanto o fora e como ele gostaria de ser, contra outros homens.
O homem foi protegido contra a violência tanto do próprio
homem como dos animais. Leiam para si mesmos Gênesis,
capítulo 9. E foi tudo confirmado e selado pelo sinal do arco-íris
nas nuvens.
Ora, o que eu gostaria de enfatizar aqui é o seguinte: o pacto
feito com Noé não era um novo pacto com base na graça. O
pacto da graça foi prenunciado em Gênesis 3:15. Esse não
interferiu com aquele, absolutamente, mas simplesmente
introduziu uma série de promessas e ordenanças subsidiárias. O
pacto com Noé não foi um novo pacto no sentido extremo de
graça e redenção. Era simplesmente uma legislação temporária;
era o que às vezes se chama graça comum, como algo distinto da
graça especial que nos assegura a salvação.
Em terceiro lugar, pois, houve o pacto feito com Abraão.
Esse é o que encontramos em Gênesis, capítulo 17, e foi
aqui que Deus primeiro, explícita e claramente, afirmou Seu

295
propósito de redenção na exata forma de um pacto. O que
encontramos aqui? Bem, descobrimos que aqui, pela primeira
vez, de uma maneira definida, temos o início de um tipo de
igreja. Houve uma separação entre as pessoas pertencentes a Deus
e aquelas pertencentes ao mundo. Houve uma espécie de culto
doméstico, em casas ou tendas, e assim por diante, mas algo
novo era introduzido no pacto com Abraão. Deus escolheu um
homem específico, uma família específica, e fez uma promessa
a Abraão e seus descendentes - e a ninguém mais. Houve essa
separação; houve a formação de um corpo único, um povo
especial de Deus.
Isso é muitíssimo importante. Notem também a ênfase posta
sobre a fé de Abraão, sobre sua resposta. Foi por meio de sua fé
que ele entrou no pacto e começou a receber os benefícios e as
bênçãos. Notem ainda o caráter espiritual das bênçãos que lhe
foram prometidas. Além da promessa concernente à terra, etc.,
houve uma grande promessa de uma progénie espiritual, de que
todas as nações do mundo seriam abençoadas nela.
Ora, caso vocês quiserem ampliar mais essa idéia, leiam
simplesmente a Epístola aos Romanos, capítulos 3, 4 e 5, e a
Epístola aos Gálatas, capítulo 3, o qual citarei logo adiante.
Observem que em Seu pacto com Abraão, Deus estava lhe
oferecendo justificação. Somos informados na Epístola aos
Romanos de que Abraão foi justificado mediante a fé, justificado
num sentido espiritual - justificado do pecado, foi perdoado, foi
adotado na família de Deus e feito o pai dos fiéis, o pai de todos
os crentes. E então, em acréscimo a isso, houve também bênçãos
temporais. Jamais poderemos pôr demasiada ênfase sobre o pacto
feito com Abraão. Se vocês mantiverem seus olhos postos nas
referências a Abraão, nas partes subseqüentes da Bíblia,
descobrirão que esse pacto é absolutamente crucial. Ele é a
grande, explícita e original promessa que Deus prenunciou em
Gênesis 3:15, só que aqui o afirmou explicitamente.
Em seguida, evidentemehte temos que passar para o pacto
do Sinai, o pacto sinaítico, o pacto feito através de Moisés, o
qual vocês encontrarão em Êxodo, capítulo 19 e seguintes. Ora,

296
isso é muitíssimo importante. Aqui a ênfase é colocada
especialmente sobre o fato de que este era um pacto de caráter
nacional, e daqui em diante a Igreja e a nação se tornaram uma
só. Portanto, pertencer à nação de Israel era pertencer à Igreja, e
vocês não poderiam ser postos para fora da Igreja sem ser postos
para fora da nação. Aquele que transgredisse a lei era eliminado
com a morte. Não era meramente punido num sentido espiritual;
ele era literalmente destinado à morte, eliminado da existência,
tanto quanto eliminado da nação.
É evidente que no Sinai a proeminência era posta na
promulgação da lei. Todavia, desejo tornar bem claro que a
promulgação da lei não significava, em hipótese alguma, que
Deus estava restabelecendo o pacto das obras. Já lhes mostrei a
absoluta impossibilidade disso. Qual o propósito, novamente
pergunto, de se fazer um pacto com base nas obras, de dizer ao
homem que ele pode salvar a si mesmo, se ele fizer certas coisas,
quando o homem fracassou nisso no Paraíso?! Não! A
promulgação da lei não significa um retorno a um pacto de obras.
Os filhos de Israel cometeram o terrível engano de pensar assim;
esse foi o seu erro. A lei não tinha esse sentido. Ela foi
simplesmente dada a fim de que a vida da nação fosse balizada
em certos aspectos, bem como também por algumas outras razões.
No pacto do Sinai, Deus deu a Moisés a lei cerimonial e
todos os sacrifícios e serviços típicos em conexão com o Templo
- os holocaustos e várias outras oferendas, bem como a
designação de certas pessoas separadas como sacerdotes. E temos
também a promulgação do fato de que o evangelho, o grande
pacto da graça, seria anunciado agora em símbolos e em tipos.
Esses são destinados a mostrar-nos as exigências de Deus sobre
nós e, ao mesmo tempo, também para nos lembrar a grande
promessa de Deus de perdão e de salvação.
Vocês podem dividir a lei como regra de vida de uma
maneira tríplice - a lei moral, a lei civil e a lei cerimonial, ou
seja, certos grandes princípios fixos de moralidade, a legislação
especial para a vida da nação, bem como as leis governando as
cerimônias e os ritos. Desejo agora enfatizar que a elaboração

297
deste pacto subsidiário com Moisés a favor dos filhos de Israel
no Sinai, em hipótese alguma interferiu no pacto da graça que já
havia sido dado a Abraão, e que havia sido previamente
mencionado no Jardim do Éden. Preciso explicar isso agora,
porque há pessoas que consideram isso como um pacto
inteiramente novo. Entretanto não o é; e o provarei da seguinte
maneira: em Romanos 4:13, lemos: “Porque a promessa de que
havia de ser herdeiro do mundo não foi feita pela lei a Abraão,
ou à sua posteridade, mas pela justiça da fé.” Isso é muitíssimo
importante. Atentem novamente para Gálatas 3:17: “Mas digo
isto: que tendo sido o testamento anteriormente confirmado por
Deus, a lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não o
invalida, de forma a abolir a promessa.” Noutras palavras, o
grande argumento de Paulo em Romanos e Gálatas é que o pacto
subsidiário feito com Moisés, no Monte Sinai, não interferiu
em nenhuma medida com o grande pacto da promessa e da graça
que Deus havia feito com Abraão.
“Mas”, dizem alguns, “o que dizer de Gálatas 4:21,22, onde
lemos: “Dizei-me, os que quereis estar debaixo da lei, não ouvis
vós a lei? Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da
escrava, e outro da livre”? E Paulo continua dizendo que isso é
uma alegoria, porque esses são dois pactos. Tal coisa não ensinaria
que houve um pacto subsidiário?” Eis a resposta para essa
pergunta: não pode ter esse sentido, porque, se o seu significado
fosse esse então em Gálatas, capítulo 4, Paulo contraditaria seu
próprio grande argumento em Gálatas, capítulo 3, e Romanos,
capítulo 4.
Todavia à parte disso, o contexto seguramente o faz
muitíssimo claro. O único propósito de Paulo em Gálatas,
capítulo 4, é diferenciar entre o Israel natural e o Israel espiritual.
É sua maneira de denunciar a equivocada compreensão dos
judeus, os quais argumentavam que pertencer ao Israel segundo
a carne era o mesmo que, necessariamente, pertencer à genuína
semente de Abraão. Mas isso não é verdade. Havia um acordo
terreno, e havia outro acordo celestial, e é precisamente o acordo
celestial que salva. Afinal, a promessa que Deus fez com Abraão,

298
em certo sentido, incluía Ismael e Esaú, não é verdade? Todas
essas pessoas foram circuncidadas, sim, mas não eram os filhos
da fé, e não eram os legítimos filhos da promessa. Pertenciam à
esfera da carne. Deus explicara isso a Abraão ainda em Gênesis,
capítulo 17.
Muito bem, o pacto feito através de Moisés, quando a lei foi
promulgada, de forma alguma interferiu no pacto da graça, mas
fora simplesmente destinado a fazer duas coisas. Primeira, foi
destinado a intensificar a consciência de pecado; primariamente,
a sua função foi essa. “Veio, porém”, diz Paulo, “a lei para que a
ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou
a graça” (Rom 5:20). Ele levanta a mesma questão em Romanos
4:13: “Porque a promessa de que havia de ser herdeiro do mundo
não foi feita pela lei a Abraão, ou à sua posteridade, mas pela
justiça da fé.” E em Gaiatas 3:17, Paulo diz: “Mas digo isto: que
tendo sido o testamento anteriormente confirmado por Deus, a
lei, que veio quatrocentos e trinta anos depois, não o invalida,
de forma a abolir a promessa.” Portanto, esse é o primeiro grande
argumento - que a lei foi promulgada a fim de mostrar a profunda
gravidade do pecado, a fim de convencer a nação, bem como
todas as nações, da total desesperança do homem tratando de
sua própria pecaminosidade.
E assim podemos estabelecer o segundo propósito da lei na
forma como o faz Gálatas 3:24: “De maneira que a lei nos serviu
de aio, para nos conduzir a Cristo, para que pela fé fôssemos
justificados.” Vejam, o pacto original era o pacto que ensina a
justificação pela fé; que era o pacto que Deus fez com Abraão e
sua progénie. Isso se constitui em algo fundamental. Qual era o
objetivo da lei? Para guiar-nos; para funcionar como uma espécie
de mestra, de pedagoga; para agir como uma treinadora - ela
nos revelou a nossa total carência de Cristo e nossa absoluta
necessidade dEle. A lei, por sua própria natureza, nunca foi
promulgada como meio de salvação.
Atentem bem que estou enfatizando esse fato com
considerável emoção, e a minha razão de agir assim é porque
vocês encontrarão certas Bíblias anotadas, bem como certos

299
livros sobre a Bíblia, ensinando que Deus disse aos filhos de
Israel que poderiam ser salvos mediante a obediência à lei, a
qual Ele providenciou para que tivessem outro meio de ser salvos.
Como já vimos, porém, tal coisa é uma total contradição do
ensino das Escrituras.
Temos tratado, pois, das formas como o grande pacto da
graça foi administrado e revelado ao povo sob a antiga
dispensação. Isso nos leva, evidentemente, à nova dispensação,
que é a maneira pela qual Deus revelou e aperfeiçoou, ratificou e
cumpriu a promessa; e tudo isso está contido no pacto em e
através de Seu Filho, nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Portanto, deixem-me tentar sumariar o que venho
considerando até este ponto. Antes de tudo, Deus fez com o
homem - o homem perfeito, o homem criado à imagem e
semelhança de Deus - um pacto com base nas obras. O homem
herdaria a vida eterna, com a possibilidade de comunhão com
Deus, se guardasse o mandamento da lei. O homem caiu -
quebrou a lei de Deus; seguiram-se pecado, corrupção e
degradação.
Desde então, pois, Deus só fez um pacto fundamental com
o homem, que é o pacto da graça; Ele revelou esse grande pacto
da graça no Velho Testamento, das formas como o tenho descrito.
Desse modo, creio que todos nós, provavelmente, tenhamos
aprendido uma coisa, e espero que a tenhamos percebido mais
claramente do que a percebemos antes. Pessoas cristãs às vezes
têm se manifestado surpresas com o fato de que a Igreja Primitiva
decidiu incorporar oVelho Testamento na sua nova literatura, e
então dizem: “Não vejo por que, como cristão, preciso preocupar-
-me com o Velho Testamento.” Bem, se alguém ainda mantém
essa opinião, então falhei, e-falhei lamentavelmente, porque
tenho tentado demonstrar que a mesma grande e fundamental
mensagem está presente tanto no Velho Testamento quanto no
Novo. E se queremos tomar conhecimento do grande propósito
de Deus, então temos de sentir prazer em investigá-lo logo no
princípio, no Jardim do Éden, percorrendo toda a trajetória
até chegar a nosso Senhor. É preciso que atentemos para o

300
maravilhoso plano de Deus como se acha revelado na antiga
administração do pacto da graça, bem como a nova
adiministração do mesmo pacto. O evangelho começa, não
propriamente em Mateus 1:1, mas em Gênesis 3:15. Jamais nos
esqueçamos disso, e assim aproximemo-nos de nosso Velho
Testamento e procuremos ver nele o evangelho. Vocês o
encontrarão ali, em quase toda parte e de uma forma
surpreendente. E é nosso dever, bem como nosso privilégio,
buscá-lo e desfrutar dele como o encontramos ali.

301
21
O PACTO DA GRAÇA
NO NOVO TESTAMENTO
“Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas
maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias,
pelo Filho...” - Heb. 1:1,2
Até aqui tratamos da antiga dispensação do pacto da graça,
e vimos, vocês se lembram, que ele é um só pacto. Ele foi
administrado ou dispensado de duas formas - a antiga e a nova
dispensações, ou, caso vocês prefiram outro termo, sobre o qual
raramente se fala hoje, isto é, “economia”, mas que ambos são
aspectos do mesmo pacto da graça. Ele foi feito e entregue na
íntegra a Abraão, como se acha registrado em Gênesis, capítulo
17. Mas vimos também que ele foi afiançado, e deveras delineado
suficientemente claro em Gênesis 3:15.
Demais disso, focalizando a antiga dispensação deste pacto,
vimos que Deus fez outros pactos subsidiários em relação à nação
de Israel, porém devemos tomar o cuidado de enfatizar que
nenhum desses pactos adicionais interfere, desvia, ou mesmo
interrompe o pacto da graça firmado com Abraão. À parte desse
pacto não há, absolutamente, nenhuma esperança para nós.
E assim chegamos agora à nova dispensação do pacto da
graça - a palavra “nova” simplesmente significa uma nova
administração do mesmo pacto - e lembremo-nos novamente
do propósito de Deus neste pacto da graça. Pelo pecado e pela
Queda, os homens e as mulheres perderam seu conhecimento
de Deus, tonaram-se alienados dEle, e o propósito de Deus na
redenção era conduzir-nos de volta ao conhecimento dEle. E
quando focalizarmos o desenvolvimento da nova economia deste
pacto, veremos como tudo isso foi feito em e através de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. É importante, antes de tudo,
que determinemos claramente que estamos ainda tratando do

302
mesmo pacto. Portanto, permitam-me apresentar-lhes estas
provas.
A primeira, como já vimos, é que não há senão um só pacto
da graça, e que ele é o mesmo pacto tanto no Velho quanto no
Novo Testamento. Notemos que a grande promessa feita no
Velho Testamento: “e ser-lhes-ei o seu Deus” - a promessa feita
a Abraão em Gênesis 17:8 - é mencionada diversas vezes no
Novo Testamento. E uma e a mesma promessa. Espero que
sejamos claros sobre isso. A maior coisa, permitam-me reiterar,
que possa acontecer a alguém é poder dizer: “Meu Deus.” Nada
é comparável a isso, e é o termo que se acha presente tanto no
Novo quanto no Velho Testamento.
A segunda prova é que encontramos a mesma espécie de
bênção no Velho e no Novo Testamentos. Tomem o Salmo 51 e
vejam qual é a oração de Davi ali: “Cria em mim, ó Deus, um
coração puro, e renova em mim um espírito reto” (v. 10), e anseia
ter a alegria de sua salvação restaurada nele (v. 12). Poderíamos
despender de um bom tempo neste ponto, mas não o faremos,
pois temos que prosseguir. Não obstante, às vezes os cristãos
falam muito equivocadamente do gênero de experiência que os
santos do Velho Testamento desfrutaram. Enfrentamos a
tendência de afirmar que nós temos tal experiência, mas que
eles não tiveram nenhuma. Vocês ficariam surpresos ao ouvir
que o salmista é mais avançado espiritualmente do que vocês! O
tipo e gênero de bênção é exatamente o mesmo em ambos os
Testamentos. Notem bem que me refiro ao tipo e gênero de
bênção; há certa diferença, e vou chegar lá. Contudo a mesma
bênção está presente no Velho Testamento; é uma bênção
espiritual, e o Salmo 51 sozinho é uma prova disso.
A terceira prova é que a Bíblia ensina muito claramente
que só há um evangelho; o evangelho é o mesmo tanto no Velho
quanto no Novo Testamento. Novamente fico surpreso quando
um pregador não o percebe no Velho Testamento, pois se alguém
não o vê ali, tenho dúvida se ele entende o evangelho no Novo
Testamento. ✓ Tomem o evangelho que foi pregado por Deus no
Jardim do Eden e também a promessa feita a Abraão; eis a

303
essência do evangelho. Focalizem todos os tipos e sombras;
focalizem as diversas oferendas descritas em Levíticos e alhures.
Visualizem ainda o mobiliário do tabernáculo. Todas essas coisas
proclamam o evangelho; são os tipos do evangelho e de sua
mensagem.
É muitíssimo importante que apreendamos isso sempre que
lermos a Bíblia. Atentem para o ensino dos profetas, focalizem
as grandes mensagens em Isaías e Jeremias; aliás, em todos os
livros proféticos. As afirmações do evangelho são as mesmas
em ambos os Testamentos. Considerem, igualmente, as
afirmações específicas feitas por Paulo em Gaiatas 3:8, onde ele
fala de Deus justificando os pagãos através da fé. Diz ele: “Ora,
tendo a Escritura previsto que Deus havia de justificar pela fé os
gentios, anunciou primeiro o evangelho a Abraão, dizendo: todas
as nações serão benditas em ti.” Indubitavelmente, essa
afirmação é em si e por si mesma suficiente para demonstrar
que só há um evangelho - ainda que haja outras afirmações
semelhantes no mesmo capítulo.
Minha quarta prova é que há uma série de afirmações diretas
que nos garante que os santos do Velho Testamento vivem agora
no reino de Deus exatamente da mesma forma que nós hoje, e
participam conosco das mesmas bênçãos divinas. Tomem, por
exemplo, Lucas 13:28: “Ali haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes Abraão, e Isaque, e Jacó, e todos os profetas, no
reino de Deus, e vós lançados fora.” Tomem em seguida outra
ilustração, uma que é muitíssimo importante. Em Romanos,
capítulo 11, em seu grande ensino sobre a unidade do povo de
Deus, Paulo se dirige aos gentios e diz:

“E se as primícias são santas, também a massa o é; se


a raiz é santa, também os ramos o são. E se alguns dos
ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste
enxertado em lugar deles, e feito participante da raiz e da
seiva da oliveira, não te glories contra os ramos; e, se
contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas
a raiz a ti. ”

304
Noutras palavras, os gentios são introduzidos na mesma
árvore; foram enxertados nela. Não numa nova árvore, mas na
antiga; alguns ramos foram cortados, outros foram enxertados.
É um só tronco, e é o tronco que importa; pertencemos ao tronco.
O versículo 24 do mesmo capítulo afirma: “Porque, se tu foste
cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado
na boa oliveira, quanto mais esses, que são naturais, serão
enxertados na sua própria oliveira!”
Portanto, o argumento de Romanos, capítulo 11, obviamente,
é que a antiga e a nova economias, ambas, pertencem à mesma
árvore, a qual é um só reino, um só pacto da graça, uma só
salvação. Em seguida lemos em Gálatas 3:14: “Para que a bênção
de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela
fé nós recebamos a promessa do Espírito.” Ei-la aí uma vez mais,
e a encontramos também no versículo 29: “E, se sois de Cristo,
então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a
promessa.” Quão tremendamente importante é o terceiro
capítulo de Gálatas!
Mas agora prosseguimos com Efésios 2:11-13, onde lemos:

“Portanto, lembrai-vos de que vós noutro tempo éreis


gentios na came, e chamados incircuncisão pelos que na
carne se chamam circuncisão feita pela mão dos homens;
que naquele tempo estáveis sem Cristo, separados da
comunidade de Israel, e estranhos aos concertos da
promessa, não tendo esperança, e sem Deus no mundo.
Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe,
já pelo sangue de Cristo chegastes perto. ”

Os gentios “chegaram perto” do pacto da graça, como Paulo


o colocou no versículo 19: “Assim que já não sois estrangeiros,
nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de
Deus” - os mesmos termos usados em relação a Abraão.
É evidente e inequívoco, e Paulo não se satisfaz em afirmá-
-lo apenas uma vez, ele o reitera em Efésios 3:6, onde diz: “... os
gentios são co-herdeiros, e de um mesmo corpo, e participantes

305
da promessa em Cristo pelo evangelho.” Paulo sempre alegou
que essa era a mensagem especial a ele entregue, que os gentios
serão co-herdeiros com os escolhidos da nação de Israel. São
ligados um ao outro na recepção das bênçãos do reino, pois a
promessa está em Cristo por meio do evangelho.
Em seguida, focalizem também Hebreus 6:12,13 - só escolhi
alguns dos textos relevantes: “Para que vos não façais negligentes,
mas sejais imitadores dos que pela fé e paciência herdam as
promessas. Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como
não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo.” E
o versículo 18 afirma: “Para que por duas coisas imutáveis, nas
quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação,
nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança
proposta.” Isso se refere à promessa que Deus fez a Abraão, com
um juramento que a acompanhou, como algo que se destina a
fortalecer nossa fé na nova dispensação, sob a nova economia.
Em Hebreus, capítulo 11, vocês perceberão que o grande
argumento ali acerca da fé é uma extensa e maravilhosa exposição
desse mesmo ponto. O escritor resume seu argumento nos
versículos 39 e 40, dizendo: “E todos estes, tendo tido testemunho
pela fé, não alcançaram a promessa: provendo Deus alguma coisa
melhor a nosso respeito, para que eles sem nós não fossem
aperfeiçoados.” Seu enfoque é que tanto eles quanto todos nós
seremos aperfeiçoados concomitantemente. A unidade total é
estabelecida entre esses santos do Velho Testamento, sobre os
quais temos lido, e aqueles que se acham sob a nova dispensação.
Essas afirmações são explícitas e específicas de que todos nós,
da nova aliança e da antiga, temos os mesmos benefícios da
salvação.
Minha quinta prova é que, evidentemente, segundo as
Escrituras, só há um único meio de obter a salvação e todas essas
bênçãos, e esse é o caminho da fé. Todos os santos do Velho
Testamento criam em Deus explicitamente e exerceram fé. Em
Habacuque 2:4, lemos: “mas o justo pela sua fé viverá.” Esse é o
tema e a mensagem do Velho Testamento, do princípio ao fim,
os quais, como em Hebreus, capítulo 11, são reiterados no Novo

306
Testamento. Paulo, citando Habacuque, diz em Romanos 1:17:
“Mas o justo viverá da fé.” E esse é o tema de toda a sua Epístola.
Mas Paulo coloca-o mais clara e especificamente em
Romanos 4:23-25, onde, referindo-se a Abraão, diz: “Ora, não
só por causa dele está escrito, que lhe fosse tomado em conta,
mas também por nós, a quem será tomado em conta; os que
cremos naquele que dos mortos ressuscitou a Jesus nosso Senhor;
o qual por nossos pecados foi entregue, e ressuscitou para nossa
justificação.” E evidente que recebemos justificação pela fé,
exatamente como Abraão a recebeu pela fé. E assim, uma vez
mais, sob este ponto, lemos reiteradamente, desde o final de
Hebreus, capítulo 10, percorrendo o capítulo 11, até ao início do
capítulo 12. E a mesma verdade, elaborada mais extensamente.
A sexta e última prova é que só há um único Mediador nas
duas dispensações; o mesmo Mediador, o Senhor Jesus Cristo -
“o Cordeiro morto desde a fundação do mundo” (Apoc. 13:8).
Tomem a promessa feita a Adão acerca da semente da mulher.
Deus diz que a salvação vai acontecer dessa forma, bem como
outras provas bíblicas de que a semente da mulher não é outra
senão o Senhor Jesus. Ele é o Mediador nos tipos do Velho
Testamento; todos apontam para Ele; todas as profecias apontam
para Ele; trata-se sempre do próprio Senhor.
Em João 5:39 - ao meu ver isto é ainda mais maravilhoso -
nosso Senhor mesmo diz: “Examinais as Escrituras, porque vós
cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam.”
Essa é uma afirmação perfeitamente clara e explícita, Ele, porém,
a reitera no versículo 46: “Porque, se vós crêsseis em Moisés,
creríeis em mim; porque de mim escreveu ele.” Ele, e tão-
-somente Ele, é o Mediador. Ouçam-nO novamente em João
8:56: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia, e viu-o, e
alegrou-se.”
Avancemos, porém, para Atos 10:43, onde Pedro se encontra
pregando na casa de Cornélio: “A este dão testemunho todos os
profetas, de que todos os que nele crêem receberão o perdão dos
pecados pelo seu nome.” Ou, ainda, Paulo escreve em Romanos
3:25: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue,

307
para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes
cometidos, sob a paciência de Deus.” Só Ele era, e é, o único
Mediador, e tão-somente Ele pode justificar o que foi feito na
antiga dispensação.
O escritor de Hebreus nos diz: “E por isso é Mediador dum
novo testamento, para que, intervindo a morte para remissão
das transgressões que havia debaixo do primeiro testamento, os
chamados recebam a promessa da herança eterna.” (Heb. 9:15).
Observem bem o argumento: aqueles que estavam debaixo do
primeiro testamento só podem receber a promessa de herança
eterna através daquele que é o Mediador do novo testamento. E
assim temos aí as seis provas destinadas a mostrar que só há um
pacto com base na graça, o qual é o mesmo no Novo Testamento
e no Velho Testamento.
Agora, em segundo lugar, devemos focalizar diferenças
existentes nas duas dispensações. Há, por exemplo, certas coisas
que são características do Velho Testamento, e não do Novo. No
Velho Testamento, tudo aponta para Cristo: a promessa aponta
para Ele. Outra característica do Velho Testamento são os tipos
e sombras, os presságios e alusões prefigurativos, os quais são a
forma que a promessa assume na primeira dispensação. Todos
esses fazem referência ao pacto específico feito com Abraão, e
são restringidos a uma só nação, Israel. É de Israel que Deus fala
em Amós 3:3: “Andarão dois juntos, se não estiverem de
acordo?” Ela (Israel) era o Seu povo especial.
Portanto, ponhamos tudo isso em termos positivos, sob três
novos pontos. Primeiro, devemos enfatizar a superioridade da
nova dispensação do pacto sobre a antiga dispensação do mesmo
pacto. A antiga foi mediada através dos servos, Abraão e Moisés,
mas a nova tem sido mediada através do Filho de Deus. Hebreus
3:5,6 torna este fato muito claro: “E na verdade, Moisés foi fiel
em toda a sua casa, como servo, para testemunho das coisas que
se haviam de anunciar; mas Cristo, como Filho, sobre a sua
própria casa; a qual casa somos nós, se tão-somente conservarmos
firme a confiança e a glória da esperança até ao fim.”
Segundo, a verdade na antiga dispensação estava em parte

308
revelada e em parte oculta nos tipos e sombras. Todavia, na nova
dispensação, ela está claramente revelada na encarnação de Jesus
Cristo, no que Ele fez, ensinou e realizou, bem como na obra do
Espírito Santo. O mistério que estivera oculto, agora está sendo
revelado na linguagem do Novo Testamento.
Terceiro, na nova dispensação a verdade não só é revelada
claramente, mas a revelação, é claro, tem sido desenvolvida e
tornada mais clara mediante a encarnação do próprio Senhor e
da obra do Espírito. Isso vocês verão em Hebreus 1:1-3:

“Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e


de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, a nós falou-
-nos nestes últimos dias pelo Filho, a quem constituiu
herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O qual,
sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da
sua pessoa, e sustentando todas as coisas, pela palavra do
seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos
nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas
alturas.”

A revelação está agora completa, perfeita e final, ela está


toda nEle. “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude
da divindade”, diz Paulo aos Colossenses, e: “Em quem estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Col.
2:9,3).
Isso nos leva à quarta forma na qual a nova dispensação é
superior à antiga. Sob a antiga dispensação, a revelação foi
abundantemente carnal e material na forma, ao passo que agora
ela é inteiramente espiritual. Vemos isso em Hebreus, capítulo
9, onde o escritor, falando de “o primeiro pacto” (v. 1), diz:

“Consistindo somente em manjares, e bebidas, e várias


abluções e justificações da came, impostas até ao tempo
da correção. Mas, vindo Cristo, o sumo sacerdote dos bens
futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo, não
feito por mãos, isto é, não desta criação, nem por sangue

309
de bodes e de bezerros, mas por seu próprio sangue, entrou
uma vez no santuário, havendo efetuado uma eterna
redenção” (Hebreus 9:10-12).

Quinta: a antiga dispensação, como já vimos, se destinava


a um só povo. Agora ela não é mais restringida; ela se destina a
todas as nações em todos os lugares; ela se destina ao mundo.
A sexta superioridade é que a antiga dispensação foi
claramente preparatória, enquanto que a nova é final. Todo o
propósito da Epístola aos Hebreus consiste em demonstrar a
finalidade da cruz. Nada pode ser adicionado, nada precisa ser
adicionado, pois tudo está nEle.
Então, a sétima, sob esta nova economia o Espírito Santo
foi derramado. Ele não foi derramado sob a antiga dispensação;
no entanto Ele veio especificamente sobre certos homens para
que pudessem realizar dadas tarefas. Indubitavelmente, o povo
de Deus foi feito filhos do Reino em virtude da obra do Espírito
Santo neles e sobre eles, porém Ele não havia sido derramado da
forma como o foi no Pentecoste. O resultado é que a bênção é
maior no seu escopo no Novo Testamento. Há maior
conhecimento, maior percepção e, portanto, maior desfruto
dessas bênçãos. Abraão viu essas coisas apenas “de longe” (Heb.
11:13), ainda que, vendo-as de longe, exultou (João 8:56). Nós
não vemos de longe. Vemos na radiante plenitude do dia, e por
isso nossa alegria é maior.
A diferença entre a antiga dispensação e a nova é a diferença
entre uma criança e um adulto. Isso é extremamente importante,
e podemos focalizá-lo assim: um filho permanece filho dos pais
tanto na idade de um ano quanto na idade de quarenta anos. A
relação não muda, mas à medida que a criança cresce e se
desenvolve, conhece melhor os pais e entra no desfruto dessa
relação com um maior grau de discernimento do que antes. Essa,
ao meu ver, é a diferença essencial entre estas duas dispensações
do pacto da graça. Eles são crianças; nós somos adultos. Em certo
sentido, eles não poderiam ser esta coisa maior. Como Hebreus
11:40 o coloca, “Provendo Deus alguma coisa melhor a nosso

310
respeito, para que eles sem nós não fossem aperfeiçoados.” Eles,
porém, a desfrutam conosco; outrora não podiam, mas agora o
podem.
Tendo visto, pois, algo da superioridade da nova dispensação
sobre a antiga, sumariemo-lo e enfatizemo-lo. Há tão-somente
um pacto da graça, e todo ele se concentra em torno do Senhor
Jesus Cristo. O antigo aponta para Ele; o novo no-10 revela e
no-10 exibe pessoalmente. Exclusivamente, Ele, e só Ele, é o
cumprimento de tudo o que é prometido desde Gênesis 3:15 em
diante. Tudo está nEle. O pacto original em relação à redenção
foi plena e claramente feito com Ele.
As vezes vocês ouvem pessoas afirmando que a Bíblia não é
um livro, e sim, uma biblioteca. Creio entender o que querem
dizer; saibam, porém, que esse tipo de conceito é errôneo, e
jamais deveria ser dito. Ela é na verdade um só livro. Ela foi
escritapor homens diferentes, em épocas diferentes e em lugares
diferentes, mas só existe um livro e uma só mensagem. Ela é um
só livro com um só tema sobre uma única Pessoa. Sigamos nossos
pais, os quais sempre falaram de “O Livro” - pois é isso o que
ela é, não uma biblioteca. Ela é infinitamente maior; eis a glória
dela; e esses diferentes homens foram usados pelo Espírito Santo
para escrever este livro, inspirado pelo Autor.
Isso me leva ao último ponto que devo elaborar, ou seja,
enquanto é verdadeiro dizer que há um só pacto, é igualmente
verdadeiro dizer que o pacto foi originalmente feito entre o Pai
e o Filho. O homem, tendo caído, não estava em condição de
fazer um pacto com Deus; então Deus o fez com Seu Filho, e
vocês e eu entramos nesse pacto. Seu Filho é o nosso
representante, nosso Mediador, nosso Fiador, nosso Avalista; o
que Ele fez, Ele Se comprometera fazer. Isso é perfeitamente
evidente.
Mas o que foi que Ele Se comprometera fazer?
Primeiramente, Ele Se comprometera guardar, honrar e cumprir
o pacto das obras que fora antes quebrado por Adão no Jardim
do Éden.
Em segundo lugar, Ele Se comprometera tratar com os

311
resultados da Queda, do pecado e da corrupção do homem.
Obviamente, não podemos ser reconciliados com Deus até que
isso seja feito.
Em terceiro lugar, Ele garantiu a realização, de nossa parte,
de todos os deveres lançados sobre nós no pacto. Deus prometera,
sob a condição de que certas obrigações seriam cumpridas; o
Filho Se comprometera a fazer isso para que este pacto pudesse
tornar-se possível. Ele garantiu fazer isso em nosso lugar.
O que, pois, tudo isso envolve? Apresentar-lhes-ei
simplesmente três pontos:
O Filho precisa tornar-Se o segundo homem, o segundo
Adão, e é precisamente isso que Ele é chamado em 1 Coríntios
15:45,47. No versículo 45, Paulo diz: “O primeiro homem, Adão,
foi feito em alma vivente: o último Adão, em espírito
vivificante.” Então, no versículo 47, lemos: “O primeiro homem,
da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu.” E
assim Ele é o “último” Adão e o “segundo” Adão.
Segundo, é-Lhe mister assumir nosso lugar; é-Lhe mister
tomar nossa natureza sobre Si - “Mas, vindo a plenitude dos
tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob
a lei, para remir os que estavam debaixo da lei, a fim de
recebermos a adoção de filhos” (Gál. 4:4,5). E Ele tem que
apresentar-nos irrepreensíveis na presença de Deus (Judas v. 24).
Finalmente: Ele precisa incumbir-Se de todas as nossas
obrigações. Obviamente, o pacto não pode ser executado por
nós, portanto Ele precisa assumir todas as coisas que Deus exige
de nós.
Nossa consideração, portanto, do pacto da graça revela o
plano, o propósito, a redenção e a salvação provindo de Deus.
Ele (o pacto) nos leva a Cristo e todas as direções apontam para
Ele. Portanto, em nosso próximo estudo, teremos a felicidade de
começar nossa abordagem a partir da doutrina bíblica de nosso
Senhor Jesus Cristo.
Deixem-me, porém, enfatizar-lhes e incutir em vocês a
importância de chegarmos a esta doutrina sobre essa bendita
Pessoa na forma como temos feito. Freqüentemente vocês

312
encontram pessoas começando com a redenção e a salvação,
precipitando-se imediatamente para a Pessoa de nosso Senhor,
não compreendendo que Ele é a declaração final, a verdade desse
grande pacto da graça que Deus prometera no Jardim do Éden,
específica e explicitamente firmado com Abraão. Porventura isso
não lança um raio de luz sobre o Velho Testamento, e não revela
a importância de se estudar tanto a ele quanto ao Novo
Testamento? Leiamo-lo constantemente, procurando este pacto
da graça como demonstrado em tipos e sombras, os quais revelam
que tudo está apontando para Ele. E espero que das bênçãos que
todos esperamos desfrutar, da realização do grande pacto, seremos
todos ajudados a conhecer o Velho Testamento de uma forma
mais profunda do que o conhecíamos antes.

313
22
O SENHOR JESUS CRISTO
Ao final de nosso último estudo sobre a doutrina do grande
pacto da graça, concluímos enfatizando o fato de que o pacto,
em ambas as suas dispensaçÕes, sempre aponta para a Pessoa de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. E assim chegamos agora à
nossa consideração da doutrina concernente a Ele. Embora este
não seja obviamente o ponto de partida da doutrina bíblica, é
certamente seu centro. A verdade concernente ao Senhor Jesus
Cristo é o central e o mais estupendo fato na história da redenção.
Esse fato se sobressai como o único evento em toda a história.
Esta verdade concernente a Ele é o maior e o mais espantoso
evento de todos.
Não é só isso. Já vimos diversas vezes que toda a história
aponta para Ele e para este evento. Tudo quanto antecedeu este
evento aponta para frente, tudo quanto aconteceu após este evento
aponta para trás; é deveras o ponto decisivo da história. Isso é
reconhecido, certamente no caso de nosso calendário. Ao dividir
a história em antes de Cristo (a.C.) edepois de Cristo (d.C.), pagamos
tributo ao fato de que isso é indubitavelmente o evento central e
mais importante que já ocorreu. E assim somos compelidos, por
diversas razões, a considerar esta doutrina. A Bíblia mesma o
faz sobejamente claro que toda a essência da posição cristã é
dependente da Pessoa do Senhor Jesus Cristo.
Ora, essa é uma das muitas formas pelas quais vocês podem
evocar a “differentia” do cristianismo. Esse é o elemento que
separa a fé cristã de todas as demais religiões. Seus fundadores,
ainda que importantes, não são absolutamente essenciais a elas.
Se Buda jamais tivera existido, ainda poderiamos ter o budismo.
Se Maomé jamais tivera vivido, ainda poderiamos ter o
islamismo. Nas demais religiões, o ensino é que importa, e a
pessoa não é essencial. As demais pessoas o poderiam ter
realizado igualmente bem, e o ensino permaneceria o mesmo.

314
Mas isso não é o que sucede com a fé cristã. O cristianismo,
como se tem salientado amiúde, é o próprio Cristo. Ele não é
apenas central; Ele é absolutamente vital. Temos, pois, de cuidar
para que nos preocupemos primária e invariavelmente com Ele.
Aqui está algo que terei, evidentemente, de enfatizar com
freqüência, mas a pedra de toque da profissão de fé cristã de
alguém é, necessariamente, aquela de uma relação pessoal com o
Senhor Jesus Cristo. O que evidencia imediatamente que tantos
dos que se chamam cristãos, e não o são, é o fato de Cristo como
pessoa não ser absolutamente essencial para eles.
Estou me referindo aqui a pessoas que pensam que um cristão
é apenas um bom homem ou uma boa mulher. Obviamente, é
possível ser uma boa pessoa sem mesmo mencionar o Senhor
Jesus Cristo. Mas no cristianismo Ele é vital, e se a verdade a
Seu respeito não for a verdade, toda a posição se desvanece. Ora,
isso é algo que ninguém pode enfatizar demasiadamente. A fé
cristã está inteiramente voltada para Ele, para quem Ele é, para
o que Ele tem feito e para o que fez válido e possível para nós. E
assim vocês descobrem a vital importância de termos plenamente
claro em nossas mentes e de sermos absolutamente certos sobre
todas essas coisas.
Portanto, não apresento nenhuma apologia por fazer uma
colocação tão dogmática e tão abrupta quanto essa. Para mim,
aqueles que se desculpam em dizer tal coisa são duvidosamente
cristãos, se é que de fato são cristãos. Há certa intolerância acerca
da fé cristã, expressa pelo apóstolo Paulo nestes termos: “Mas,
ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro
evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema”
(Gál. 1:8). E nós temos de afirmar a mesma coisa. A verdade é
clara, é bem definida, é perfeitamente definida, e devemos ter
certeza, pois, com respeito ao que cremos sobre Ele. Não basta
dizer: “Eu creio em Cristo.” O que cremos sobre Cristo? Qual é
o ensino acerca dEle. Essa é a nossa preocupação agora.
Ora, o próprio Novo Testamento nos exorta a proceder
assim. Por que razão vocês crêem que os quatro Evangelhos
foram escritos? Com certeza não pode haver qualquer hesitação

315
quanto à resposta a tal pergunta. Foram escritos pela ação de
Deus que fez com que homens os escrevessem, e os guiava, através
do Espírito, enquanto escreviam, a fim de que a verdade
concernente ao Senhor Jesus Cristo pudesse ser conhecida com
exatidão. Toda espécie de histórias falsas se tornaram correntes
no primeiro século. Surgiram evangelhos apócrifos, e neles
muitas coisas Lhe foram atribuídas, e foi registrado ter Ele feito
e dito coisas que jamais aconteceram. Então os Evangelhos foram
escritos para definir a verdade, a fim de excluir certas falsidades,
bem como firmar esses outros fatos com exatidão e clareza. Lucas,
na introdução ao seu Evangelho, afirma esse fato. E vocês
perceberão que João, no final do seu Evangelho, diz virtualmente
a mesma coisa: “Estes, porém, foram escritos para que creiais
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus...” (João 20:31).
Mas não são só os Evangelhos que nos dizem isso. Há
também diversas seções nas demais partes do Novo Testamento
que especificamente fazem a mesma sugestão. Tomem, por
exemplo, a primeira Epístola de João. Por que foi ela escrita?
Ora, indubitavelmente, por uma razão maior, isto é, para
neutralizar o falso ensino que era corrente, o ensino que negava
que Jesus Cristo viera em carne, aquela falsa doutrina do
docetismo. E por isso não faço apologia por chamar sua atenção
não só para esta doutrina, mas também para definir com clareza
uma série de coisas, e realçar uma série de erros que devemos
descartar.
Permitam-me também adverti-los, antes de prosseguirmos,
de que não estamos tratando apenas de um grande e misterioso
tema, porém daquele que faz exigências de nós, de nossa reflexão
e de nossa atenção. Mas ele é essencial, e desejo muito tratar
do caso de alguém que talvez esteja pensando: “Bem, realmente
não tenho muito tempo para interessar-me por doutrina
como esta. Não passo de um simples crente no Senhor Jesus
Cristo.” Se vocês assumem essa posição, então se tornam
completamente antibíblicos! Foi em virtude de tais cristãos
simplórios estarem prontos a crer em falsos mestres, e de fato
criam neles, que tantas das Epístolas tiveram que ser escritas,

316
com suas severas advertências contra o terrível perigo para a
alma de crer nesses ensinos errôneos e falsas idéias concernentes
a nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Não basta dizer: “Eu creio em Jesus Cristo.” O Novo
Testamento lhes dirige perguntas quando vocês assim se
expressam. Ele lhes pergunta: “O que vocês crêem sobre Ele?
Ele é apenas homem? Ele é apenas Deus? Ele realmente veio em
carne, ou não? O que Ele fez? Qual é o significado de Sua morte?
O Novo Testamento se preocupa com definições, e não há nada,
eu afirmo, que está mais afastado de Seu ensino do que dizer:
“Está tudo bem; desde que você creia no Senhor Jesus Cristo,
não importa tanto o que você diz em detalhe.” O “detalhe”, como
espero mostrar-lhes, é importantíssimo e absolutamente vital.
Além do mais, não somente é tudo isso declarado no Novo
Testamento, mas se vocês lêem a história subseqüente da Igreja
Cristã, então descobrirão que nos primeiros três ou quatro séculos
as heresias invadiram continuamente a Igreja, e ela teve que
reunir-se para definir ou rejeitar certas idéias. Por isso, várias
discussões e concílios foram realizados, os quais se viram
amplamente comprometidos em salvaguardar esta grande e
central doutrina da Pessoa do Senhor Jesus Cristo. Portanto, é
mister que estudemos as doutrinas à medida que valorizamos
nossas almas e nossa salvação, e ao mesmo tempo devemos
cultivar o desejo de ser esclarecidos em nossas concepções, bem
como de ser capazes de apresentar aos outros a razão da esperança
que há em nós (1 Ped. 3:15).
Então, quais são as declarações gerais formuladas pela Bíblia
concernentes a esta Pessoa? O que ela nos diz sobre Cristo quando
focaliza a atenção sobre Ele e nos compele a considerá-10?
Primeiramente, ela nos diz que o Senhor Jesus Cristo é o
cumprimento de todas as profecias e promessas do Velho
Testamento. A grande afirmação central disso se encontra em 2
Coríntios 1:20: “Porque todas quantas promessas há de Deus,
são nele sim, e por ele o Amém, para glória de Deus por nós.”
Elas vêm para uma focalização, para um ponto convergente, nEle.
Ora, não posso conduzi-los através de todas essas promessas

317
e profecias em detalhes. Gostaria simplesmente de selecionar
algumas que evidentemente são as mais importantes, a fim de
estabelecer este ponto. Por exemplo, como já vimos, Ele é o
cumprimento da promessa que foi feita no Jardim do Éden, onde
Deus disse que a semente da mulher esmagaria a cabeça da
serpente (Gên. 3:15). Há também a promessa feita a Abraão em
Gênesis, capítulo 17, sobre a posteridade. Paulo se refere a esse
fato em Gálatas 3:16: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e
à sua posteridade. Não diz: e às posteridades, como falando de
muitas, mas como de uma só: e à tua posteridade, que é Cristo.”
Ora, já consideramos esse fato, portanto olhemos também para
algumas outras promessas e profecias que ainda não
consideramos.
Tomem, por exemplo, a promessa feita em Gênesis 49:10:
“O cetro não se arredará de Judá, nem o legislador dentre seus
pés, até que venha Siló; e a ele se congregarão os povos.” Essa é
uma promessa tremenda e uma afirmação muitíssimo vital, a
qual cumpriu-se literalmente na vinda do Senhor Jesus Cristo.
É um fato da história que o cetro e o legislador permaneceram
com Judá até ao ano 70 d.C., e então, com a destruição de
Jerusalém, e a dispersão da nação judaica entre as nações, esse
não foi mais o caso. O cetro do legislador permaneceu aí até que
Ele veio, e então se foi, nesse sentido externo. E do mesmo modo
esta afirmação: “e a ele se congregarão os povos”, obviamente
se cumpriu, e se cumpriu tão-somente no Senhor Jesus Cristo.
Embora “nasceu da descendência de Davi segundo a carne” (Rom.
1:3), todas as nações vieram a Ele. Ele é o Salvador do mundo.
Focalizem em seguida a profecia de Daniel 9:24-26:

“Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo,


e sobre a tua santa cidade, para extinguir a transgressão, e
dar fim aos pecados, epara expiara iniquidade, e trazer a
justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o
Santo dos santos. Sabe e entende: desde a saída da ordem
para restaurar epara edificar Jerusalém, até ao Messias, o
Príncipe, sete semanas, e sessenta e duas semanas: as ruas

318
e as tranqueiras se reedificarão, mas em tempos angustiosos.
E depois das sessenta e duas semanas será tirado o Messias,
e não será mais: e o povo do príncipe, que há de vir, destruirá
a cidade e o santuário, e o seu fim será com uma inundação;
e até ao fim haverá guerra: estão determinadas assolações. ”

Ora, eis uma profecia muitíssimo vital. É sempre consensual


que “semanas”, aqui, significam semanas de anos; portanto, é-
-nos mister que haveria essas setenta semanas de anos,
significando um total de quatrocentos e noventa anos. Antes de
tudo, é nos dito que haverá sete semanas de anos, quarenta e
nove anos antes de ser reconstruída a cidade, o que aconteceu
com exatidão. Em seguida, que haverá sessenta e duas semanas,
que representam aos quatrocentos e trinta e quatro anos, depois
da reconstrução da cidade, e então o Messias aparecerá. Façam
seus cálculos, e vocês descobrirão que tudo isso coincide com a
vinda do Senhor Jesus Cristo. E em seguida é nos dito que haverá
um período de uma semana, sete anos, e que na metade do mesmo
Ele será eliminado, três anos e meio. Ora, vejam aí, novamente,
outra grande profecia, não só apontando para Ele, mas
obviamente cumprindo-se claramente nEle.
A seguir, tomem certo número de profecias acerca do Seu
nascimento. Primeiramente, somos informados sobre algo em
relação ao tempo de Seu aparecimento. O versículo que já citei
de Gênesis, capítulo 49, demonstra isso, como o fazem também
os versículos de Daniel, capítulo 9. E vocês descobrirão a seguinte
profecia do profeta Ageu: “A glória desta última casa será maior
do que a da primeira, diz o Senhor” (Ageu 2:9), referindo-se ao
fato de que Ele não apareceu na primeira casa, entretanto
apareceria nesta última. E em seguida temos uma afirmação
muitíssimo vital em Malaquias 3:1, onde o profeta diz: “Eis que
eu envio o meu anjo, que preparará o caminho diante de mim: e
de repente virá ao seu templo o Senhor, a quem vós buscais, o
anjo do concerto, a quem vós desejais; eis que vem, diz o Senhor
dos Exércitos.” Isso é muito importante, e farei a ele nova
referência mais adiante. Além do mais, vocês devem estar

319
lembrados de que em Miquéias 5:2 temos uma profecia exata em
referência ao lugar de Seu nascimento - que seria em Belém.
Somos informados também que Ele seria da tribo de Judá, e da
casa e família de Davi - leiam Jeremias 23:5,6, e encontrarão aí
tal afirmação.
Então, em Isaías 7:14 somos informados que Ele nascería
de uma virgem. Ora, sinto-me fortemente tentado a deter-me
aqui e tratar deste caso. Há considerável discussão sobre isto
por que a Revised Standard Version rejeitou a palavra “virgem” e
se reporta a uma “jovem”. Não obstante, temos de prosseguir, e
creio que não é conveniente parar e buscar evidência para esse
caso agora. Contudo posso assegurar-lhes que a erudição está
plenamente certa de que tal mudança é injustificável, e que
realmente significa “virgem”. A essência do argumento é isto: o
profeta está prometendo um sinal, e um sinal é obviamente algo
incomum. Ora, não é nada incomum que uma jovem casada
tenha um filho. Tal coisa não seria um sinal. Se uma virgem,
porém, tem um filho, isso sim, seria incomum e um sinal.
Portanto, independentemente do significado de palavras, o
contexto como um todo faz perfeitamente claro que a referência
deve ser a uma virgem. Além do mais, se vocês crêem que as
Escrituras são inspiradas - e já concordamos nisso desde o
princípio - então não temos nenhum problema, porque somos
informados, especificamente, em Mateus 1:22,23, que esse
versículo de Isaías na verdade era uma profecia que nosso Senhor
nasceria de uma virgem. Retornaremos a esse fato numa preleção
subseqüente.
Mais uma vez, Malaquias 3:1 afirma que Ele seria precedido
por um precursor, e sabemos que nosso Senhor foi precedido
por João Batista. E assim todas essas profecias, e ainda outras,
se cumprem no Senhor Jesus Cristo, e, o que é ainda mais
interessante, não só se cumpriram nEle, mas também jamais
poderiam ser cumpridas em mais ninguém. Ora, isso é
muitíssimo importante, no caso de vocês terem de discutir este
tema com um judeu; porque o fato é que as genealogias das tribos
e das famílias se perderam. Isso significa que no futuro não será

320
possível estabelecer que a reivindicação de alguém ser o Messias
realmente o seja. Nenhuma genealogia pode mais ser delineada
na forma como foi delineada no caso de nosso Senhor e Salvador
Jesus Cristo.
Agora, porém, focalizemos uma série de profecias que iriam
salientar as características do Messias quando Ele viesse. Somos
informados que Ele será um rei e o conquistador de um império
universal. O Salmo 2:6, Salmo 45 e Isaías 9:6,7, todos, fazem tal
alusão. E, todavia, o mais extraordinário é que Ele não só será
rei e conquistador, mas será também “desprezado e rejeitado
dos homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos”
(Is. 53:3). E foi em razão de não compreenderem essas duas coisas
que seus compatriotas não O reconheceram quando Ele veio.
Estavam aguardando apenas um rei; haviam olvidado esses outros
aspectos. A profecia, porém, faz uma conjunção de ambas essas
coisas, e nosso Senhor também o faz.
A profecia também nos informa que Ele seria “luz para os
gentios”, algo assustador para ser dito aos judeus. Mas isso foi
dito muitas vezes na profecia de Isaías, nos capítulos 42:6 e 60:3,
bem como em outros lugares. Somos igualmente informados,
em Isaías, capítulo 53, de que Sua morte seria vicária; e quando
chegarmos à abordagem da doutrina da expiação, veremos que
ela foi vicária e substitutiva. Somos informados que Ele entraria
na cidade de Jerusalém montando um jumentinho (Zac. 9:9), e
vocês se lembram de como isso se cumpriu. Somos informados
que Ele seria vendido por trinta moedas de prata, e que com o
valor adquirir-se-ia um campo de oleiro (Zac. 11:12,13). Somos
informados que sobre Suas vestes lançar-se-ia sorte (Sal. 22:18).
Somos informados que em Seu sofrimento seria Lhe dado vinagre
para beber (Sal. 69:21). Somos ainda informados que Ele
pronunciaria certas palavras na cruz: “Deus meu, Deus meu,
porque me desamparaste?” (Sal. 22:1). O Salmo 22:6 afirma que
Suas mãos e pés seriam traspassados, e Zacarias 12:10 adiciona:
"... olharão para mim, a quem traspassaram; e (o) prantearão...”
E somos informados em Isaías 53:9 que Ele teria Sua sepultura
com os perversos e com o rico, em Sua morte, e sabemos que Ele

321
foi sepultado no túmulo de José de Arimatéia.
Em seguida temos toda uma série de profecias concernentes
à Sua obra - por exemplo, Sua obra como profeta^ Deuteronômio
18:18 nos informa: “Eis lhes suscitarei um profeta do meio de
seus irmãos, como tu” - isso foi dito a Moisés. E desde então os
filhos de Israel esperaram por esse Profeta, e os judeus muitas
vezes inquiriam se porventura Cristo era ele. Somos informados
que Ele seria também sacerdote. Vocês encontrarão isso em Isaías
53:10 e em Daniel 9:24. E somos informados que Ele seria rei.
Leiam a grande profecia de Daniel 2:44,45. A rocha “cortada da
montanha, sem o auxílio de mãos”, que esmaga todos os demais
reinos, e que conquista e enche o mundo inteiro, é uma profecia
sobre nosso Senhor que um dia viria como Rei. E assim Sua
obra é profetizada - Profeta, Sacerdote e Rei.
E dessa forma, a primeira grande afirmação da Bíblia
concernente a Ele consiste em que as profecias apontam para
Ele, e que Ele é o seu cumprimento. Mas, em segundo lugar, a
Bíblia também nos exorta a considerá-10, porque Ele é o único
por meio de quem podemos ser reconciliados com Deus, e por
meio de quem podemos conhecer a Deus. Lemos em Hebreus
12:24 que Ele é o “mediador da nova aliança”. Ele disse de Si
mesmo: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida. Ninguém vem
ao Pai, senão por mim” (João 14:6). Alguém que diz uma coisa
dessa natureza deve ser contemplado e considerado. Se
valorizamos nossa salvação e queremos conhecer a Deus, então
temos de atentar para tal Pessoa. Depois da Sua ressurreição,
Ele disse: “Assim está escrito, e assim convinha que o Cristo
padecesse, e ao terceiro dia ressuscitasse dos mortos, e em seu
nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados,
em todas as nações...” (Luc. 24:46,47). Nada pode ser mais claro
do que isso. E então Pedro, quando era julgado, reivindicou para
Ele: “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo
do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual
devamos ser salvos” (Atos 4:12). E temos a afirmação feita por
Paulo, em 1 Timóteo 2:5: “Porque há um só Deus, e um só
Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem.” Eis aí,

322
pois, a reivindicação que é feita por Ele alhures: que nEle, e
somente nEle, conhecemos a Deus e somos reconciliados com
Deus, e é tão-somente nEle, pois, que podemos ser salvos.
A terceira grande razão que a Bíblia nos dá para o
considerarmos é que Ele sustenta todas as coisas em Suas mãos.
Todo poder Lhe foi dado no céu e na terra (Mat. 28:18). Ele é
detentor de todo poder, domínio e autoridade. No Apocalipse,
capítulo 5, somos informados de que Ele é o único que pode
controlar e abrir os selos. Não houve ninguém suficientemente
forte para quebrar os selos do livro da história, exceto o Leão da
tribo de Judá, o Cordeiro que uma vez foi morto. Contudo, Ele
pode fazer isso, e Ele o faz. Em 1 Coríntios 15:25, somos
informados que Ele reinará até que Deus ponha todos os Seus
inimigos debaixo de Seus pés. Também, em Efésios 1:22,23,
somos informados especificamente que Deus “sujeitou todas as
coisas a seus pés, e sobre todas as coisas o constituiu como cabeça
da igreja, que é o seu corpo, a plenitude daquele que cumpre
tudo em todos.” É algo realmente notável e tremendo imaginar
que toda a história está nas mãos desta Pessoa. Tudo o que
acontece neste mundo se acha sob o Seu controle - tudo, sem
exceção. Ele é o Senhor da glória e o Senhor da história, e Ele Se
assenta à mão direita de Deus, na autoridade e na glória de Deus.
E então a razão final que a Bíblia nos dá para O
considerarmos é que Ele é Aquele por meio de quem o mundo
será julgado, e esse é o ponto no qual todos nós estamos vitalmente
envolvidos. Ele reivindicou isso para Si mesmo. Em João 5:27,
Ele diz: “E (o Pai) deu-lhe o poder de exercer o juízo, porque é o
Filho do homem.” Paulo, ao pregar aos sábios atenienses, diz:
“Porquanto tem determinado um dia em que com justiça há de
julgar o mundo, por meio do varão que destinou; e disso deu
certeza a todos, ressuscitando-o dos mortos” (Atos 17:31). O Pai
confiou a Ele todo o julgamento. Leiam o livro do Apocalipse.
Vocês notam a mesma coisa novamente retratada em seus
símbolos e na riqueza de suas figuras. O Senhor da história será
o Juiz do mundo inteiro.
Essas são, pois, as razões gerais apresentadas pela Bíblia,

323
pelas quais todas as pessoas devem considerá-lO. Considerem a
Jesus! Olhem para esta pessoa! Portanto, aceitemos o convite. O
que mais a Bíblia nos diz sobre Ele? Ora, aqui chegamos à
primeira subdivisão da doutrina bíblica concernente ao Senhor
Jesus Cristo: ela é o que comumente se chama a doutrina da
encarnação. Aqui, obviamente, está um tema grandioso.
Estabeleçamos, primeiramente, alguns dos princípios gerais.
Aqui chegamos ao maior mistério de todos os tempos, o
mistério pelo qual somos informados que “o Verbo se fez carne,
e habitou (tabernaculou) entre nós” (João 1:14).
O apóstolo Paulo declara a mesma verdade em 1 Timóteo
3:16, nestas grandes palavras: “E sem dúvida alguma grande é o
mistério da piedade: Aquele que se manifestou em carne, foi
justificado em espírito, visto dos anjos, pregado aos gentios, crido
no mundo, e recebido acima na glória.” Ora, na doutrina da
encarnação nos preocupamos, naturalmente, com a primeira
parte dessa afirmação: “grande é o mistério da piedade: Aquele
(Deus) que se manifestou em carne...” Portanto, o que significa
isso? Deixem-me apenas apresentar-lhes uma definição neste
ponto, e então, em nosso próximo estudo, o consideraremos bem
detalhadamente. Sejamos, porém, bem claros sobre a afirmação
compreensiva, ou seja, que o eterno Filho de Deus tomou sobre
Si, ou tomou para Si mesmo, a natureza humana.
Notem bem o que estou dizendo. Não estou dizendo que
quando Jesus de Nazaré nasceu em Belém um novo personagem
veio à existência. Tal coisa não é verdadeira. Essa é pura heresia.
A doutrina da encarnação afirma que a eterna segunda Pessoa
da bendita Trindade entrou no tempo e no mundo, tomou para
Si a natureza humana, nasceu como um bebê, viveu a vida como
homem, e apareceu em “semelhança de carne pecaminosa (Rom.
8:3). Ora, aqui estou fazendo a mais vital afirmação de todas.
Espero continuar dividindo-a para mostrar-lhes a importância
de fazer tal afirmação, e salvaguardá-la contra vários erros. Mas
a essência da afirmação é que Aquele que nasceu não veio à
existência, não começou Sua existência como pessoa. Não! Foi
esta eterna Pessoa, o Filho de Deus, que agora assumiu essa forma

324
e entrou na vida dos homens no mundo.
Há numerosas e grandes afirmações nas Escrituras que a
colocam assim e a enfatizam. A mais notável, evidentemente,
que teremos de considerar mais detalhadamente, mais adiante,
é aquela grande passagem de Filipenses 2:6-8; mas há muitas
profecias no Velho Testamento que a colocam na mesma forma.
Diz Malaquias: “Mas para vós, que temeis o meu nome, nascerá
o sol da justiça, e salvação trará debaixo das suas asas” (Mal.
4:2). E já temos considerado todas essas outras afirmações que
falam de Sua vinda e aparecimento. Não começou em Belém.
Ele veio da eternidade, do seio do próprio bem-aventurado Deus,
e entrou na vida, no tempo e na história, dessa forma particular.
Temos que deixá-la nesse ponto agora. Mas acaso vocês
notaram a progressão de idéias, a progressão de nossos
pensamentos? Algo tem que ser feito por Deus antes que o
homem possa ser salvo. Temos a garantia no pacto de que será
feito, e o pacto aponta para esta Pessoa, Jesus. Ele está no centro
da Bíblia. Ela exige que O consideremos pelas razões que já lhe
apresentei. E quando visualizarmos mais detidamente, veremos
quão gloriosa e espantosa verdade é esta, e por que ela ocorreu
na forma como ocorreu. Em seguida continuaremos a considerar
os detalhes, os quais envolverão a consideração da doutrina do
nascimento virginal. Depois disso, precisamos considerar a
informação que temos de Sua deidade e humanidade, e como
estas duas se conciliam, ou coexistem, numa só Pessoa. E assim
nos veremos mergulhados diretamente no meio desta muitíssimo
maravilhosa e gloriosa doutrina concernente ao mistério e à
maravilha da Pessoa do Senhor Jesus Cristo.

325
23
A ENCARNAÇÃO
Começamos a considerar juntos a doutrina bíblica da Pessoa
de Cristo. Eu a coloco, como vocês já notaram, sob o tópico
geral da doutrina da redenção, e creio que deve ser assim. Temos
visualizado a Pessoa de nosso Senhor ao tratarmos da doutrina
da Trindade; especifícamente, porém, quando considerarmos a
doutrina da redenção, deveremos concentrar-nos na Pessoa e
obra de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
Temos observado que quando ponderamos sobre Ele, nos
vemos imediatamente diante da primeira doutrina específica
em relação à Sua Pessoa, ou seja, a doutrina da encarnação.
Fizemos aquela afirmação geral de que o eterno Filho de Deus,
a segunda Pessoa da bem-aventurada santíssima Trindade, tomou
para Si a natureza humana. Dissemos que isso não significava
que um novo personagem veio à existência, porém que Deus, o
eterno Filho, encarnou-Se. Vimos, também, que era necessário
tomar essa afirmação, essa afirmação geral, e dividi-la, em virtude
de ser ela algo que tem sido tão freqüentemente mal-entendido.
E visto que nossa salvação e nosso destino eterno dependem de
nossa relação com o Senhor Jesus Cristo, o que poderia ser mais
importante do que sermos esclarecidos e estarmos certos em
nossas idéias e nossos pensamentos acerca dEle?
Além do mais, evidentemente, a história da Igreja revela
muito claramente - aliás, antes de chegarmos à história da Igreja,
o próprio Novo Testamento no-lo demonstra - que o diabo se
preocupa exclusivamente em levar as pessoas a desviarem-se da
consideração tanto da Pessoa quanto da obra de nosso bendito
Senhor e Salvador Jesus Cristo. Eis a razão por que não podemos
correr quaisquer riscos, e não podemos contentar-nos com uma
mera afirmação geral da doutrina da encarnação. Temos de
dividi-la e analisá-la; temos de mostrar o que ela diz e o que ela

326
não diz, a fim de que nenhum de nós, inadvertidamente, venha
a cair em erro.
Proponho-me, portanto, fazer a seguinte série de afirmações.
A primeira é: a doutrina da Pessoa de nosso Senhor e a doutrina
da encarnação, em particular, nos revelam novamente a extrema
importância da doutrina da Trindade. Ora, consideramos essa
doutrina anteriormente, e ao chegarmos para ponderar sobre
ela agora, veremos por que nos foi tão importante tê-la
considerado então. Toda a posição cristã, em certo sentido,
depende da doutrina da bendita santíssima Trindade. Se não
cremos nela, então não podemos ser de fato cristãos; seria
impossível. Quem não crê na Trindade não pode ser cristão,
visto que não pode crer na doutrina da redenção. Portanto, quando
falamos sobre a Pessoa do Filho, vemos quão importante é
compreender sempre que Deus existe em três Pessoas - Pai,
Filho e Espírito Santo.
A segunda afirmação é que a doutrina da encarnação
assevera não que o eterno Deus triúno Se.fez carne, mas que a
segunda Pessoa da Trindade Se fez carne. As Escrituras o colocam
assim: “O Verbo se fez carne” (João 1:14). Ora, isso é certamente
algo que devemos enfatizar. Às vezes falamos um tanto
vagamente, lamento muito, ao falarmos sobre a encarnação; e
muitos de nossos hinos tendem a fazer a mesma coisa. Ao meu
ver, porém, é sempre sábio não afirmar que Deus Se fez homem.
Essa é uma afirmação indefinida, que seria melhor não usar. Às
vezes nos expressamos assim, mas crendo, como cremos, nas
Pessoas da Trindade, o que deveríamos afirmar é que a segunda
Pessoa da Trindade foi feito carne e apareceu como homem. Se
dizemos simplesmente: “Deus Se fez homem”, então podemos
estar afirmando algo que é completamente errôneo; e se alguém
crê em algo erroneamente, em conseqüência de nossa afirmação,
não podemos de fato culpá-lo. Devemos ser definidos; devemos
ser específicos; devemos ser sempre criteriosos no que
afirmamos.
A terceira afirmação é que a doutrina da encarnação não
diz que foi uma mera aparência ou uma forma que foi assumida

327
pela segunda Pessoa da Trindade, mas que foi deveras uma
genuína encarnação: Ele realmente veio em carne. Enfatizo esse
fato porque nos primeiros anos da Igreja Cristã houve pessoas
que caíram em erro e em heresia sobre isso. Os assim chamados
gnósticos afirmavam que nosso Senhor tinha uma mera
aparência de carne. Ele possuía um corpo fantasmagórico, uma
aparência de corpo. Mas a doutrina da encarnação não diz isso.
Diz que ela não era uma aparência, e sim, real; era uma
encarnação genuína. O Verbo foi feito carne e habitou entre nós.
O ponto número quatro é novamente uma negativa. A
doutrina da encarnação não diz que foi simplesmente a natureza
divina que de algum modo se tornou unida com a natureza
humana, formando assim uma pessoa. Não foi esse o caso. Foi a
segunda Pessoa mesma, a Pessoa que Se fez carne. Ora, houve
muitos na era inicial da Igreja que não entenderam isso, e ainda
outros através dos séculos não entenderam. Seu conceito de Jesus
Cristo consiste na natureza divina e natureza humana formando
uma nova pessoa. Isso não é verdade. Foi a segunda e eterna
Pessoa da Trindade que tomou a natureza humana. Percebem a
importância disso? Já vimos, vocês se lembram, que a doutrina
da encarnação não ensina a criação de uma nova pessoa. Ela
ensina que Ele tomou carne para Si mesmo e apareceu neste
mundo na semelhança de homem - não uma nova pessoa, mas
essa Pessoa eterna.
Desse modo, o próximo ponto é que a doutrina da
encarnação não ensina, tampouco envolve a idéia, de que certa
mudança ocorreu na personalidade do Filho de Deus. Houve
certa mudança no estado e na forma em que Ele apareceu; houve
certa mudança no estado em que Ele Se manifestou, porém não
houve qualquer mudança em Sua personalidade. Ele é sempre a
mesma Pessoa. No ventre da virgem, Maria, e deitado como uma
indefesa criancinha na manjedora, Ele continua sendo a segunda
Pessoa da santíssima Trindade.
Coloco a próxima definição nestes termos: nunca devemos
declarar a doutrina da encarnação como para dar a impressão de
que declaramos que o Filho de Deus Se transformou num homem.

328
Eis a razão por que essa frase sobre Deus tornando-Se homem é
equivocada. Já vimos o que João diz em 1:14: “O Verbo Se fez
carne e habitou entre nós”, e a própria frase “Se fez” tem às
vezes levado pessoas a concluírem que o Filho de Deus foi
transformado num homem. Isso, em parte, se deve ao fato de
que ela realmente não constitui a melhor tradução. Em vez de
dizer: “O Verbo foi feito carne”, o que realmente deveria ser
dito é que Ele Se fez carne, ou que Ele revestiu-Se de carne. A
idéia de “fazer” dá a impressão de “converter-se em”, o que é
errôneo.
Noutras palavras, a forma em que as Escrituras geralmente
o colocam é esta: em Romanos 8:3, somos informados que Ele
veio “na semelhança de carne pecaminosa”. Isso é melhor. Ou
tomem-no como posto em 1 João 4:2: “Todo espírito que confessa
que Jesus Cristo veio em carne é de Deus.” Jesus Cristo não foi
transformado em homem; é esta eterna Pessoa que veio na carne.
Eis a forma correta de colocá-lo.
O próximo princípio é que nosso Senhor não assumiu
meramente a aparência de natureza humana; ela era genuína
natureza humana. Deixem-me explicá-lo. Temos relatos no Velho
Testamento de anjos aparecendo a diversas pessoas, e somos
informados que apareciam na forma humana. Ora, quando
dizemos que os anjos apareciam nessa forma, não estamos
falando de encarnação, mas de aparência. Os anjos não mudavam
sua natureza; não lhe adicionavam nada, eles apenas assumiam
essa forma. Aliás, vimos anteriormente, vocês se lembram, que
o nosso próprio Senhor apareceu dessa maneira; falamos sobre
o Anjo do Concerto. O Anjo do Concerto, no Velho Testamento,
é indubitavelmente o próprio Senhor Jesus Cristo; e Ele apareceu
z
mais de uma vez a diversas pessoas na forma de homem. E a
isso que chamamos teofania. Ora, teofania é inteiramente distinta
de encarnação. Teofania significa que um anjo ou uma pessoa
divina aparece nessa forma por algum tempo, mas a doutrina da
encarnação assevera que o Senhor Jesus Cristo Se revestiu da
própria natureza humana - não sua aparência, e sim a natureza
humana real.

329
Há muitas afirmações que dizem isso; deixem-me
apresentar-lhes duas. Hebreus 2:14: “E visto como os filhos
participam da carne e do sangue, também ele participou das
mesmas coisas.” Ele de fato tomou para Si mesmo a natureza
humana. “Porque, na verdade, ele não tomou os anjos”, diz o
versículo 16 desse mesmo capítulo, “mas tomou a descendência
de Abraão”. Isso é que Ele tomou. Considerem também 2 João,
versículo 7, onde lemos que “Porque já muitos enganadores
entraram no mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo
veio em carne”. Não há absolutamente dúvida alguma de que
João escreveu suas três Epístolas a fim de conter a perigosa heresia
que surgira, a saber, aquela que negava que Ele realmente viera
em carne, asseverando que ela não passava de mera aparência.
Alguns diziam que o Messias entrara nesse homem Jesus em
Seu batismo, e que o deixara na cruz. Enquanto que outros diziam
que tudo não passava de um espectro. Ora, o Novo Testamento
- especialmente João em suas Epístolas - não só nega tal coisa,
mas a denuncia como sendo o mais perigoso erro, a própria
mentira do anticristo, e portanto devemos estar certos de que
somos esclarecidos acerca dessas coisas.
Isso me conduz à próxima afirmação. A doutrina da
encarnação assevera que nosso Senhor tomou para Si uma plena
natureza humana. Ela não era meramente parcial, era completa.
Ele não tomou simplesmente um corpo para Si mesmo. Sempre
houve pessoas ao longo dos séculos que ensinaram isso. Dizem
que o Filho de Deus apenas tomou um corpo humano. Tal
conceito é errôneo. Há ainda outros que dizem que Ele tomou
um corpo e uma espécie de alma animal, porém que a parte
espiritual da alma foi provida pela Pessoa eterna. Isso é
igualmente errôneo. A doutrina da encarnação ensina que Ele
Se revestiu de uma natureza humana completa, corpo e alma,
inclusive de espírito, que Ele era verdadeiramente homem.
Enfatizarei isso novamente, mas é preciso que seja enfatizado
neste ponto.
E meu último enfoque sob este ponto geral é que Ele tomou
essa natureza humana completa da virgem, Maria. Isso significa

330
que não devemos dizer que uma nova natureza humana foi criada
para Ele. Certas pessoas têm ensinado que Deus criou uma nova
natureza humana para Seu Filho, e que essa natureza humana
simplesmente fluiu, por assim dizer, através de Maria. Isso é
errôneo. Essa doutrina declara que Ele recebeu a Sua natureza
humana de Sua mãe, a virgem, Maria. Não foi uma nova criação.
Ele não trouxe conSigo Sua natureza humana. Ele a recebeu dela
(Maria). E, assim, como as Escrituras amiúde enfatizam, Ele é
verdadeiramente da descendência de Abraão e da descendência
de Davi. Eis o que está em Mateus 1:1: “Livro da geração de
Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.” Ora, se uma natureza
humana especial houvesse sido criada para Ele, não teria sido o
filho de Davi nem o filho de Abraão. Mas Ele foi filho de ambos,
porque Sua natureza humana era oriunda de Sua mãe, a virgem,
Maria. Deixem-me enfatizar novamente que o que Ele tinha
não era uma natureza humana simplesmente semelhante à nossa,
uma que não era realmente parte da nossa, uma não
organicamente relacionada conosco. Ele realmente recebeu nossa
natureza. Voltem novamente àqueles versículos de Hebreus 2:14-
-18. Ele realmente pertence, portanto, à raça humana, ele é um
conosco.
Não devo, porém, parar por aqui, ainda que esteja tentado a
fazê-lo. Estou preocupado com este ponto, porque a doutrina de
nossa redenção afinal depende dele. Se Ele não tivesse tomado
nossa natureza humana, Ele não poderia salvar-nos. Como
Hebreus, capítulo 2, argumento muito claramente, visto que
somos participantes dessa carne e sangue, foi preciso que Ele
participasse da mesma. Era a única maneira pela qual Ele poderia
nos salvar. Portanto, não podemos correr nenhum risco no
tocante a esta doutrina. Não podemos dar-nos ao luxo de dizer:
“Não importa qual seja sua afirmação exata.” Tal coisa seria
completamente antibíblica. Temos de ser precisos, claros, certos
e definidos em todas as nossas afirmações. De outra forma, sem
sabermos, podemos tornar a doutrina de nossa própria redenção
totalmente impossível.
Portanto, tendo estabelecido isso, voltamos agora ao mistério

331
da encarnação, e uma pergunta surge repentinamente: como se
deu tudo isso? Como este algo extraordinário se fez real? E isso,
evidentemente, nos leva imediatamente à doutrina do
nascimento virginal. Espero que todos nós estejamos observando
a ordem na qual estamos considerando estas verdades. Entendo
que seja minha principal função nestas mensagens mostrar-lhes
essa ordem como se acha elaborada nas Escrituras; os detalhes,
os fatos, vocês os podem extrair das próprias Escrituras.
E assim, pela lógica, inevitavelmente chegamos à doutrina
do nascimento virginal. O que é isso? Bem, o Credo dos
Apóstolos, o primeiro de todos os credos, a primeira grande
confissão, colocou-o nestes termos: “Foi concebido do Espírito
Santo e nascido da virgem, Maria.” Ora, eis aqui novamente um
dos grandes temas que se acham cheios de mistério; é uma
doutrina que tem sido muitíssimo debatida, discutida, mal-enten­
dida e constantemente negada; e muitos parecem encontrar nela
grande dificuldade.
Por conseguinte, quando a abordamos, não há nada, ao meu
ver, mais importante do que termos em mente tudo o que
consideramos em todas as nossas preleções anteriores. Se vocês
têm concordado comigo quanto ao que afirmei nelas, então vocês
não terão qualquer dificuldade no tocante à doutrina do
nascimento virginal. Se realmente vocês têm concordado sobre
a doutrina de Deus e acerca da doutrina da Trindade; se
realmente creram no que eu disse sobre a doutrina das Escrituras
como sendo a infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito
Santo e não meramente idéias humanas; se concordaram com
tudo o que eu tenho dito sobre os milagres e o sobrenatural, e
como tudo isso é inevitável quando Deus age e trata com este
mundo, então, reitero, não deve haver nenhuma dificuldade a
respeito da doutrina do nascimento virginal.
E evidentemente é um fato comprovado que aqueles que
têm dificuldades com esta doutrina são os mesmos que têm
dificuldades com a doutrina das Escrituras e com a doutrina sobre
milagres. Eles têm problemas com a doutrina da encarnação
porque tomam suas débeis mentes como prova final de toda

332
verdade, e quando não conseguem entender algo, então se
recusam a crer nele.
Certamente, porém, devemos ter a mesma opinião de que,
em todas essas questões, estamos aquém do domínio da razão e
do entendimento naturais humanos. Partimos do mesmo
princípio em relação a todo conceito e toda categoria de
revelação. Não sabemos nada fora disso. Não proponho teorias
e filosofias; parto da seguinte premissa: o que estou anunciando
é o que Deus fez, o que Deus revelou. Não sei nada além do que
encontro na Bíblia. Estou inteiramente preso a ela; sou
completamente dependente dela. Por isso é meu dever aproximar-
-me dela como uma criancinha. “Visto como na sabedoria de
Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua própria sabedoria”
(1 Cor. 1:21). Portanto, se isso foi verdadeiro e continua sendo
verdadeiro, então devo depender deste livro; devo aceitar sua
autoridade; devo aceitar suas afirmações; mesmo quando minha
pequena mente talvez não consiga entendê-las. Essa é a
disposição de espírito e a atitude apropriada a adotar quando
chegamos a considerar esta extraordinária e espantosa, todavia
gloriosa, doutrina do nascimento virginal.
O que, pois, ensinam as Escrituras? O que somos
informados? Há duas porções bíblicas que são a base da doutrina
do nascimento virginal. Sempre sinto que devo começar com a
afirmação de Lucas 1:26-38, porque ela nos apresenta o anúncio
feito a Maria do próprio fato. Observem os detalhes em relação
a esse anúncio; observem os fatos, e como o anjo chegou. Se
vocês não concordaram com a minha formulação da doutrina
sobre os anjos, então já se vêem em dificuldade; mas se a
aceitaram, então não haverá qualquer dificuldade a respeito disto,
é o que devemos esperar.
Notem igualmente o que somos informados sobre a surpresa
de Maria, que evidentemente foi muito natural. Não seria óbvio,
à luz de sua própria surpresa, que ela entendera a significação do
que o anjo lhe dissera? Aqui estava uma mulher solteira, uma
virgem, a quem esse anúncio era feito, e imediatamente viu a
dificuldade, e não hesitou em expressá-la. Como seria ela mãe

333
de um filho, quando jamais conhecera um homem? E o anjo lhe
apresentou a explicação. Então anunciou-lhe que tal coisa era
algo a ser realizado pelo próprio Espírito Santo. O anjo informou-
-lhe que ela seria “coberta” pelo Todo-poderoso: “Descerá sobre
ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua
sombra; pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será
chamado Filho de Deus” (v. 35). “Concebido pelo Espírito Santo,
nascido da virgem, Maria”, diz o Credo Apostólico.
Também o relato que se acha no primeiro capítulo de Mateus,
dos versículos 18 a 25, é igualmente importante, e com certeza
igualmente interessante, porque nos é dito o que aconteceu a
José. Ele descobrira que a virgem a quem desposara estava
grávida. Ficou confuso e infeliz. Ele era um bom homem, um
homem justo e afetuoso. Decidiu que não infamaria Maria
publicamente, mas deveria necessariamente renunciá-la, ou não
seria ele um cumpridor da lei. Enquanto ponderava sobre tudo
isso, e sobre como deveria agir, o anjo lhe apareceu em sonho. E
o que o anjo fez, naturalmente, foi explicar a José o que estava
acontecendo: “José, filho de Davi, não temas receber a Maria
tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo”
(v. 20). Foi-lhe dada a mesma explicação. E quando lemos a
história, receio que às vezes nos esquecemos de observar a
extraordinária fé de José. Ele creu na mensagem do anjo; aceitou-
-a sem qualquer objeção, sem qualquer hesitação, e decidiu agir
de acordo com ela.
É essa a informação que recebemos do registro, e ele nos
ensina que o nascimento do Senhor Jesus Cristo como homem
é inteiramente obra de Deus. A doutrina do nascimento virginal
deve ser sempre considerada, primeiro e acima de tudo, de uma
forma negativa, e o que ele diz negativamente é que o Senhor
Jesus Cristo não teve pai terreno. Não nasceu da vontade do
homem, nem da vontade ou da energia da carne. Deixem-me
formulá-la ainda mais fortemente. O ser humano macho não
participou da questão de Sua concepção.
Ora, eis aqui algo muitíssimo notável, visto que, como já
vimos na elaboração das grandes doutrinas no início do livro de

334
Gênesis, a glória de Deus, por assim dizer, está no homem, e a
mulher é sujeita ao homem, Vocês se lembram de como realçamos
esso fato. Mas aqui o homem é descartado; ele não tem nada a
fazer. Observem que a mesma palavra, a promessa feita por Deus
ao homem e à mulher no Jardim do Éden, foi esta: “E porei
inimizade entre ti en mulher, e entre a tua semente e &sua semente-.
esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gên. 3:15). E
foi comprovado. O homem não teve nada a fazer - aquele mesmo
a quem Deus designara senhor da criação, e a quem dera poder
sobre a mulher, e a quem a mulher está sujeita pela própria
vontade e ordenação de Deus, como resultado da criação e
especialmente como resultado da Queda. A despeito de tudo isso,
quando chegou a questão da encarnação, o macho foi descartado,
e Deus utilizou-Se unicamente da mulher.
Indubitavelmente, pois, a significação e a importância desse
fato devem ser óbvias a todos - ele enfatiza novamente a total
inabilidade do homem. O homem, na pessoa de José, é
contemplado em seu total fracasso e incapacidade. Deus
apoderou-Se da natureza humana em sua parte mais frágil, por
assim dizer, a fim de produzir dela a natureza humana para Seu
próprio Filho. Tenho me deparado com uma frase muitíssimo
bela, a qual, creio eu, poderá ajudá-los a lembrar isso: “Quanto à
natureza divina, o Senhor não teve mãe; quanto à Sua natureza
humana, não teve pai.” Creio ser essa uma boa colocação. Foi
inteiramente obra de Deus. Ele tomou para Si a natureza humana
de Maria, todavia isso foi feito através da instrumentalidade do
Espírito Santo.
“O que aconteceu?”, pergunta alguém. Não posso responder;
ninguém pode. Esse é o grande mistério. O que sabemos, porém,
é que o poder do Espírito Santo desceu sobre Maria; e de Maria,
de uma célula de seu corpo, foi feita a natureza humana de nosso
Senhor. Não podemos ir além disso. É um grande mistério.
Temos, porém, que prosseguir até aí. Foi pela operação do
Espírito Santo, e obviamente foi feito de tal maneira, que esta
natureza humana que o Filho tomou para Si era impecável -
notem bem que o anjo falou a Maria: “pelo que também o Santo,

335
que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” (Luc. 1:35).
Tal coisa não significa que a própria Maria foi feita impecável e
santa. Nem tampouco implica que necessariamente alguma parte
de Maria o era. Tudo o que sabemos é que algo foi tomado, foi
purificado e tornou-se isento de toda e qualquer corrupção, para
que Sua natureza humana fosse impecável e inteiramente livre
de todos os efeitos e resultados da Queda. Tal foi o efeito da
operação do Espírito Santo nela.
O que dizer, pois, desta doutrina? O que temos a dizer sobre
ela em geral, especialmente tendo em mente aqueles que a acham
difícil? Sugeriria uma vez mais que ela é uma doutrina totalmente
inevitável, caso vocês realmente creiam na doutrina da
encarnação. Caso vocês realmente crêem que aquele bebê na
manjedoura de Belém seja a segunda Pessoa da Trindade - e essa
é a verdade - então não posso ver como é possível haver alguma
dificuldade sobre esta doutrina do nascimento virginal. Aliás,
eu mesmo me veria em muito maior dificuldade se não tivesse a
doutrina do nascimento virginal para crer. Vejam vocês, o fato
da encarnação é tão incomum, tão excepcional, tão miraculoso
e misterioso, que devo esperar que tudo a respeito dele seja
semelhante, e de fato assim aconteceu. Colocando-o de outra
forma: o nascimento virginal era o sinal do mistério da
encarnação. Era um tipo de símbolo desse mistério; ali estava
de forma tangível - este nascimento virginal.
Tudo em torno de nosso Senhor é misterioso. Sua vinda ao
mundo foi misteriosa. Sua saída dele foi misteriosa. Ele não
entrou na vida como qualquer outro; Ele não saiu dela como
qualquer outro. A ressurreição foi tão singular quanto o
nascimento virginal. Ela nunca aconteceu a alguém antes. Ele é
o “primogênito dos mortos” (Apoc. 1:5); “o primogênito entre
muitos irmãos” (Rom. 8:29). A ressurreição foi igualmente algo
assustador. Por isso, devo dizer àquele que vacila diante do
nascimento virginal: acaso você tropeça da mesma forma diante
da ressurreição? Vejam bem, se partimos da doutrina da
encarnação e compreendemos o que estamos afirmando, se
compreendemos que estamos realmente falando da segunda

336
Pessoa da Trindade, porventura não esperariam que Seu
nascimento devesse ser inteiramente incomum e excepcional?
E assim o foi. Ele foi excepcional do princípio ao fim.
Deixem-me, porém, tentar ajudá-los, colocando-o assim: se
vocês não crêem na doutrina do nascimento virginal, como então
resolveriam Sua impecabilidade? Não teríamos o direito de
colocá-lo nestes termos: se Ele tivesse nascido da maneira usual,
de um pai e de uma mãe, então seguramente Ele teria sido como
todas as demais pessoas, Ele estaria em seqüência direta, em
linhagem direta com Adão, e portanto seria procedente dizer
dEle também “como em Adão todos morrem” (1 Cor. 15:22)? Ele
teria morrido em Adão, e teria sido culpado do pecado original e
da culpa original.
Mas a doutrina da encarnação imediatamente nos fala que
não foi isso o que aconteceu. Uma pessoa, repito, não veio à
existência ali. Essa pessoa foi a eterna Pessoa, a segunda Pessoa
da Trindade. Quando um esposo e uma esposa se unem, e um
filho nasce, uma nova pessoa, uma nova personalidade, vem
à existência. Isso não aconteceu na encarnação. Admitido,
porém, um pai e uma mãe, vocês teriam uma pessoa na linhagem
direta de Adão, e portanto pecaminosa e caída. A única maneira
de o evitar seria dizer que alguma espécie de operação realizada
pelo Espírito Santo em Maria deve ter-se realizado também em
José.
Mas seguramente isso não nos ajuda. Se vocês já se vêem
em dificuldades sobre essa operação miraculosa em Maria, então
vocês a estão duvidando e ela se lhes torna ainda mais impossível.
Não, se realmente retemos firme a própria doutrina da
encarnação, de que essa bendita Pessoa tomou para Si a natureza
humana que teria de ser impecável, visto que não poderia unir-
-Se a alguma coisa que fosse pecaminosa, então só havia uma
forma para isso, ou seja, Ele teve de nascer não de uma maneira
comum de geração, mas de uma forma especial.
Vocês perceberão que esta doutrina está inteiramente
cercada de imprevistos e dificuldades, porque quando a coloco
em tais termos, estou certo de que muitos pensarão: “Ah, agora

337
compreendo! Deus criou uma natureza humana especial para
Ele, não é isso?” Não, não foi assim! Já denunciei tal conceito
como heresia. Ele obteve Sua natureza humana de Maria, mas
foi influenciado pelo Espírito Santo de tal maneira que essa
natureza ficou totalmente livre de pecado e de toda e qualquer
corrupção.
E assim nos achamos diante dEle. Achamo-nos diante deste
mistério da piedade, Deus na carne! O fato mais estranho e mais
surpreendente que jamais aconteceu - aliás, não hesito em dizer,
o supremo ato de Deus. E tão supremo que espero ser ele
incomum em muitos aspectos, e vejo as Escrituras falando-me
que de fato o era. Ele foi concebido do Espírito Santo, Ele nasceu
de uma virgem chamada Maria. O homem foi inteiramente
excluído; o macho não tomou parte. José está sempre presente
para lembrar-nos desse fato. Foi inteiramente obra de Deus. E
compreendamos e lembremo-nos de que tudo aconteceu para
que pudéssemos ser salvos, para que nossos pecados fossem
perdoados. O Filho de Deus Se fez homem para que os filhos
dos homens pudessem tornar-se filhos de Deus.

338
24
EVIDENCIA EM FAVOR
DA DEIDADE E HUMANIDADE
DE CRISTO
Em nossa abordagem da doutrina do nascimento virginal,
estivemos olhando para essa criancinha de Belém, acerca de
quem asseveramos ser Ele Deus, o eterno Filho. Isso,
obviamente, significa que devemos observar um pouco mais de
perto o que a Bíblia nos afirma acerca dessa pessoa que veio ao
mundo como um nenê, cresceu como um garoto, desenvolveu-
-Se em maturidade e estabeleceu Seu ministério público. É de
vital importância que estejamos bem esclarecidos com respeito
à doutrina concernente a Ele; já temos apresentado evidências
para demonstrar a importância desse fato. Portanto, antes de
fazermos alguma tentativa para compreender o que a Bíblia nos
ensina acerca deste grande mistério, é indispensável que
busquemos as evidências com que ele se nos apresenta a fim de
chegarmos a uma adequada doutrina de Sua Pessoa.
Ora, descobrimos uma vez mais que a Bíblia nos afirma
duas coisas primordiais. A primeira é que ela faz muitas alegações
sobre o fato de ser Ele divino; ela assevera e ensina Sua divindade
ou, ainda mais acuradamente, Sua deidade. A evidência para
esse fato é volumosa e poderia ocupar muito do nosso tempo.
Por isso, focalizemos apenas alguns aspectos breves deste ponto.
Vocês podem focalizar as evidências e conferi-las para si mesmos
quando quiserem. Desejo simplesmente classificá-las para que
vocês possam tornar o seu estudo um pouco mais fácil.
A primeira evidência é que alguns nomes divinos são-Lhe
atribuídos. Aliás, ao todo, uns dezesseis nomes Lhe são
atribuídos, cada um dos quais subentende claramente Sua
deidade. Eis aqui alguns deles. Ele é descrito como “Filho de

339
Deus”, quarenta vezes; Ele é referido como “seu Filho” (Filho
de Deus); Deus refere a Ele audivelmente como “meu Filho”.
Portanto, temos aí, de várias formas, o título “Filho”, “Filho de
Deus”.
Em seguida, por cinco vezes é Ele também referido como o
“unigénito Filho de Deus”. Em João 1:18, vocês o encontram -
“Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigénito, que está
no seio do Pai, esse o fez conhecer” - e há muitos outros. Um
que é notável é a parábola dos lavradores maus, quando Deus
diz: “Terão respeito a meu filho” (Mat. 21:37). O ensino aí é
perfeitamente claro, as palavras são pronunciadas por nosso
próprio Senhor.
Ele é descrito em Apocalipse 1:17 como sendo “o primeiro
e o último”, e no versículo 11 do mesmo capítulo como sendo “o
Alfa e o Omega”, o princípio e o fim. Esses são obviamente termos
próprios da deidade; não existe nada antes do começo e depois
do fim. E Pedro, pregando em Jerusalém - vocês o encontrarão
registrado em Atos 3:14- refere a Ele como o “Santo”: “Mas vós
negastes o Santo e o Justo.” Novamente, esses são os termos
próprios da deidade.
Tomem também aquele grande termo, “o Senhor”, o qual é
usado a respeito dEle algumas centenas de vezes no Novo
Testamento. Essa palavra é equivalente ao termo “Jeová”, no
Velho Testamento, o qual já consideramos juntos, um dos mais
sublimes títulos atribuídos a Deus. Outro termo usado para Ele
é “o Senhor da glória”. Vocês o poderão encontrar em 1 Coríntios
2:8: “porque, se o conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor
da glória”, diz Paulo. Esse é um termo muitíssimo exaltado.
Também, Ele é de fato referido como “Deus”. Diz Tomé:
“Senhor meu, e Deus meu” (João 20:28). Ele é descrito também
como “Emanuel...Deus conosco”, em Mateus 1:23; e temos uma
afirmação muitíssimo notável em Tito 2:13, onde é Ele referido
como nosso “grande Deus e Salvador Jesus Cristo”. Ademais,
outra atribuição igualmente notável se encontra em Romanos
9:5: “Dos quais são os pais, e dos quais é Cristo segundo a carne,

340
o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém.” *
E assim vocês têm uma série de nomes que Lhe são
atribuídos, todos os quais são nomes divinos.
Em segundo lugar, a Bíblia também Lhe confere uma série
de atributos divinos. Vocês se lembram que quando estivemos
tratando da doutrina de Deus abordamos os atributos divinos.
Pois bem, descobrirão que aqueles mesmos atributos são
igualmente conferidos ao nosso Senhor. Por exemplo, onipotência.
Hebreus 1:3 afirma que Ele sustenta “todas as coisas pela palavra
de seu poder” - não é possível haver uma afirmação mais forte
do que essa - e que “todas as coisas sujeitou debaixo de seus pés”
(1 Cor. 15:27). Há ainda outros que vocês mesmos poderão
descobrir.
Atribui-se-Lhe também onisciência. Em Mateus 11:27,
lemos: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai: e
ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o
Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar.”
Em João 2:24,25, encontramos a mesma reivindicação: “porque
ele bem sabia o que havia no homem.” Não havia necessidade
de que alguém Lhe informasse.
Em seguida, de uma maneira muito extraordinária, é-Lhe
também atribuídaonipresença. Em Mateus 18:20, Ele diz: “Porque
onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu
no meio deles.” Em Mateus 28:20, Ele diz: “e eis que eu estou
convosco todos os dias, até à consumação dos séculos. Amém.”
E em João 3:13 temos uma extraordinária afirmação: “Ora,
ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do
homem, que está no céu.” Ele disse essas palavras enquanto estava
ainda na terra - “o Filho do homem, que está no céu”. E, deveras,
o apóstolo Paulo escreve: Ele “enche tudo em todos” (Ef. 1:23).
Novamente temos uma afirmação muitíssimo abrangente.
Outro atributo divino é Sua eternidade. “No princípio era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João
1:1). Temos também afirmações sobre Suaimutabilidade'. Ele não
‘ Ver God’s Sovereign Purpose, Banner of Truth Trust, 1991, ondeDr. Lloyd-
-Jones expõe esse texto detalhadamente.

341
pode sofrer mudança. Hebreus 13:8 nos afirma: “Jesus Cristo é o
mesmo ontem, e hoje, e eternamente.” Em seguida,
naturalmente, a Bíblia assevera Sua preexistência. Colossenses 1:17
nos afirma: “E ele é antes de todas as coisas...” Em João 17:5,
Ele ora: “E agora glorifica-me tu, 6 Pai, junto de ti mesmo, com
aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse.” E
novamente, na grande passagem de Filipenses 2:6, Paulo assevera
que Ele existiu na “forma” de Deus antes de Sua encarnação.
Finalmente, sumariando tudo, temos outra afirmação
abrangente sobre Sua deidade em Colossenses 2:9, onde Paulo
diz: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da
divindade.”
Então, em terceiro lugar, prosseguimos considerando certas
funções divinas, as quais afirma-se que Ele as detém e
desempenha. A primeira de todas é a Criação: “Todas as coisas
foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (João
1:3). Vocês encontram a mesma coisa reiterada em Colossenses
1:16, e novamente em Hebreus 1:10. Mas somos igualmente
informados que Ele preserva todas as coisas. Hebreus 1:3 refere
a Ele “sustentando todas as coisas, pela palavra de seu poder”. E
outra vez em Colossenses 1:17, encontrarão que “todas as coisas
subsistem por ele”.
Observem também que Ele não hesitou em reivindicar a
autoridade de perdoar pecados. Ele disse ao paralítico: “Filho,
perdoados estão os teus pecados” (Mar. 2:5). Ele também
reivindicou a autoridade de ressuscitar os mortos. Encontrarão
isso mencionado repetidas vezes em João 6:39-44: “Eu o
ressuscitarei”, diz Ele, “no último dia.” O apóstolo Paulo alega
que Ele tem também o poder de transformar nossos corpos: “Que
transformará o nosso corpo abatido, para ser conforme o seu
corpo glorioso, segundo o seu eficaz poder de sujeitar também a
si todas as coisas” (Fil. 3:21).
Também o juízo Lhe foi confiado. Leiam João 5:22,23: “E
também o Pai a ninguém julga, mas deu ao Filho todo o juízo.”
Além disso, Paulo faz a mesma alegação em Atos 17:31, e vocês
também a encontram em 2 Timóteo 4:1: “Conjuro-te, pois, diante

342
de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, que há de julgar os vivos e os
mortos, na sua vinda e no seu reino.” E assim o poder de julgar
Lhe foi dado, bem como o poder de conceder vida eterna: “E
dou-lhes a vida eterna” (João 10:28). João 17:2 diz a mesma coisa:
"... assim como lhe deste poder sobre toda carne, para que dê a
vida eterna a todos quantos lhe deste.”
O quarto elemento evidenciai de Sua deidade é este: fazem-
-se afirmações no Velho Testamento, as quais são distintamente
atribuídas a Jeová, e que no Novo Testamento são atribuídas ao
Senhor Jesus Cristo, e que constituem definições dEle. Não lhes
apresentarei as palavras por extenso, porém lhes darei os textos
para que vocês possam averiguar pessoalmente: Salmo 102:24-27
(compare com Heb. 1:10-12); Isaías 40:3,4 (compare com Mat.
3:3; Luc. 1:76); Isaías 6:1,3,10 (compare com João 12:37,38); Isaías
8:13,14 (compare com 1 Ped. 2:7,8).
Ora, podemos sumariar tudo isso, colocando-o assim: no
Velho Testamento, o termo “Senhor” é sempre usado para Deus,
exceto quando o contexto faz perfeitamente claro que o mesmo
se refere a um homem no sentido de “senhor”. Exatamente, da
mesma forma, quando o termo “Senhor” é usado no Novo
Testamento, é sempre usado para o senhorio de Jesus Cristo -
ou seja, Sua deidade - exceto quando o contexto faz plenamente
claro de que “senhor” está subentendido. Por conseguinte, temos
este fato tremendo, de que esses termos específicos, os quais são
usados diretamente para Jeová, são também usados para o Senhor
Jesus Cristo.
O quinto elemento evidenciai consiste na maneira como os
nomes de Deus, o Pai, e Jesus Cristo, o Filho, são conjugados.
Há diversos exemplos disso. Cristo mesmo disse: “Portanto, ide,
ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho,
e do Espírito Santo” (Mat. 28:19). Romanos 1:7 fala de “Graça e
paz de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo.” Em 2 Coríntios
13:13, na assim chamada “bênção apostólica”, lemos: “A graça
do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do
Espírito Santo sejam com vós todos. Amém.” 1 Tessalonicenses
3:11 diz: “Ora, o mesmo nosso Deus e Pai, e nosso Senhor Jesus

343
Cristo, encaminhe a nossa viagem para vós.” E, deveras, vocês
o encontrarão em Tiago 1:1: “Tiago, servo de Deus, e do Senhor
Jesus Cristo...”
Isso nos conduz ao sexto elemento evidenciai: adoração
divina é atribuída ao Senhor Jesus Cristo. Ele aceitou tal culto
de homens e mulheres quando esteve na terra. Temos
comprovação disso em Mateus 28:9 e Lucas 24:52. No entanto,
também a achamos na forma de exortação em ICoríntios 1:2,
onde Paulo refere a “todos os que em todo lugar invocam o nome
de nosso Senhor Jesus Cristo”. Isso é adoração. Em 2 Coríntios
12:8,9, Paulo nos diz: “Acerca do qual três vezes orei ao Senhor
para que se desviasse de mim...” - a referência é ao Senhor Jesus
Cristo, que é plenamente evidente à luz do contexto. Em Atos
7:59, lemos de Estêvão, ao ser apedrejado: “E apedrejaram a
Estêvão, que em invocação dizia: Senhor Jesus, recebe o meu
espírito.” Aliás, nosso Senhor já havia nos preparado para tudo
isso, quando disse: “Para que todos honrem o Filho, como
honram o Pai. Quem não honra o Filho não honra o Pai que o
enviou.” (João 5:23). Há ainda outros exemplos de adoração
atribuídos a Ele, e a reivindicação de Filipenses 2:10 é que
chegará o tempo quando “ao nome de Jesus se dobre todo joelho
dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra”.
E isso nos traz ao sétimo ponto, o qual salienta a
autoconsciência do nosso Senhor e destaca Suas próprias
reivindicações de Sua deidade. Simplesmente lhes apresentarei
algumas das referências que considero como as mais
importantes, embora haja muitas outras. A primeira encontra-
-se em Lucas, capítulo 2, no incidente descrito nos versículos
41-52, quando Ele disse que deveria estar ocupado com os
negócios de Seu Pai, ou: “das coisas de meu Pai” - reivindicação
muitíssimo notável, feita quando era um jovem de apenas doze
anos de idade. Temos exatamente a mesma coisa em Seu batismo.
Quando Ele foi a João para ser batizado, João argumentou com
Ele, e Lhe disse: “Eu careço de ser batizado por ti, e vens tu a
mim?” Ora, nosso Senhor não recusou essa afirmação, mas
simplesmente replicou: “Deixa por agora” (Mat. 3:14,15). Noutras

344
palavras, Ele aceitou as palavras de João, e desse modo reconheceu
Sua superioridade a João. E nessa mesma conexão, observamos
novamente a voz celestial que atestava Sua deidade (v. 17).
Em seguida vocês encontram muito dessa espécie de
elementos no relato de Sua tentação. O diabo O tentou dessa
forma por três vezes - “se tu és o Filho de Deus...” - e Ele nunca
disse que não o era. Aceitou a afirmação do diabo e demonstrou
ser Ele o Filho de Deus. Conseqüentemente, ao aceitar a
afirmação, Ele asseverou e reivindicou Sua própria deidade. E
Ele fez isso, evidentemente, de muitas outras formas. Na vocação
dos doze, por exemplo, Ele estava claramente asseverando-a; e
ao transmitir-lhes poder, ao comunicar-lhes a mensagem e a
autoridade de expulsar demônios, Ele estava, novamente,
reivindicando essa exclusividade. E vocês podem também
constatá-lo no fato de que Ele disse especificamente aos crentes
nEle que “Em meu nome expulsarão demônios” (Mar. 16:17).
Descobrimos também que Ele fez para Si mesmo essa
reivindicação exclusiva de deidade, no Sermão do Monte. Ele o
fez ao contrastar o que haviam ouvido desde “os tempos antigos”
com o que Ele mesmo dizia (Mat. 5:21,27,33). E em seguida temos
uma reivindicação específica em João 8:58: “Antes que Abraão
existisse eu sou.” Uma vez mais devo lembrá-los da afirmação
de Mateus 11:27, onde Ele reivindicou exclusivo conhecimento
do Pai. De muitas maneiras, porém, a seção mais importante
das Escrituras sob este ponto pode ser encontrado em João,
capítulos 14 a 17. Enquanto vocês os estudam comodamente,
observem Sua reivindicação e consciência de Sua exclusiva
deidade.
Então, o oitavo elemento evidenciai é o nascimento virginal.
Este, evidentemente, bem como tudo o que as Escrituras nos
ensinam sobre ele, é reiteradamente uma prova de Sua deidade.
E com o fim de levá-lo fínalmente ao seu clímax, o apóstolo
Paulo nos ensina em Romanos 1:4 que, afinal, o que prova e
declara o Senhor Jesus Cristo como sendo o Filho de Deus é Sua
ressurreição: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o
Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos - Jesus

345
Cristo, nosso Senhor.”
Temos aí, pois, focalizado em termos gerais a grande
evidência escriturística a favor de Sua deidade. Como já disse,
ela é volumosa, mas fizemos uma espécie de visão sinóptica dela,
e esses são os pontos principais nos quais ela pode ser
classificada.
Entretanto, naturalmente temos também que avançar para
a segunda grande reivindicação, e verificar que as Escrituras, de
forma definida, igualmente ensinam Sua humanidade. Não
podemos atingir uma doutrina adequada da Pessoa (de nosso
Senhor Jesus Cristo) sem novamente focalizar cuidadosamente
a evidência que é fornecida nas Escrituras a favor de Sua
humanidade. Ora, já consideramos o primeiro elemento
evidenciai aqui; reitero, esse enfatiza o nascimento virginal, bem
como todos os argumentos em relação a ele. Todos esses
elementos também estabelecem o fato de Sua humanidade - todos
os argumentos sobre a exata natureza da doutrina da encarnação,
de que ela não era um corpo fantasmagórico, e assim por diante,
mas que Ele realmente Se revestiu da natureza humana, que Ele
foi verdadeiramente o filho de Maria, a virgem, e que esse corpo
não era mera aparência, mas real; todas essas particularidades
constituem nossa primeira prova.
A segunda, também, é fornecida pelos nomes. Considerem,
por exemplo, o que vocês lêem em 1 Timóteo 2:5: “Porque há
um só Deus, e um só Mediador entre Deus e o homem, Jesus
Cristo homem.” Ele é descrito como “homem”. Notem bem - e
vocês não podem ler os Evangelhos sem o notarem - a freqüência
com que o termo “o Filho do homem” é usado em relação a Ele.
Ele é usado mais de oitenta vezes! Ora, o Filho do homem,
evidentemente, é um termo muitíssimo especial, e tem um
significado muitíssimo especial. Estou, neste ponto,
simplesmente preocupado em rememorar-lhes, e enfatizar-lhes,
que Ele é descrito dessa forma. Essa é uma clara indicação de
Sua humanidade.
Em seguida, o terceiro elemento que as Escrituras fazem
profusamente patente e claro é que Ele possuía uma típica

346
natureza humana e física. Atentem bem para essa afirmação em
João 1:14: “E o Verbo foi feito carne”, ou “se fez carne”.
Considerem também as afirmações em Hebreus, capítulo 2, as
quais já consideramos em nossa última preleção, particularmente
o versículo 14, onde somos informados que, devido os filhos
serem participantes de carne e sangue, “ele participou das mesmas
coisas”. Então, outra particularidade evidenciai muito notável
sob este ponto é que Ele, obviamente, Se assemelhava a um
homem. Não só isso, temos também evidência para comprovar
que toda a Sua aparência era a de um judeu típico. Certamente
vocês se lembram do que somos informados acerca do incidente
com a mulher de Samaria, ao encontrar nosso Senhor junto ao
poço, e como expressou sua perplexidade por Ele lhe haver
dirigido a palavra: “Como, sendo tu judeu, me pedes de beber a
mim, que sou mulher samaritana?” (João 4:9). Ela não fazia a
menor idéia sobre quem era Ele, mas quando Lhe dirigiu a
palavra, prontamente reconheceu que Ele era um judeu.
Então, sob este mesmo ponto de Sua estrutura física, as
Escrituras nos ensinam que Ele continuou com esse corpo
humano mesmo depois de Sua ressurreição. Quando apareceu a
Seus discípulos, quando Tomé se achava presente na sala, e Ele
Se apressou a provar a Tomé que Ele era a mesma pessoa, disse:
“Põe aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; e chega a tua mão, e
mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente” (João
20:27). Todavia encontramos uma afirmação ainda mais
específica em Lucas 24:39, onde Ele afirmou aos discípulos que
Ele não era um espírito: “pois um espírito não tem carne nem
ossos, como vedes que eu tenho”, disse Ele. Portanto, Ele
continuava tendo um genuíno corpo humano, mesmo depois da
ressurreição.
Aliás, eu posso ir além disso: há evidência nas Escrituras a
ensinar-nos que Ele ainda mantém Seu corpo humano na glória.
Em Atos 7:55,56, somos informados que Estêvão viu o Filho do
homem na glória, e ele O viu como o Filho do homem. Ele
continua sendo o Filho do homem e reconhecível como tal. Ou,
também, Paulo diz em Filipenses 3:21: “Que transformará o

347
nosso corpo abatido, para ser conforme o seu corpo glorioso...”
Seu corpo glorioso é ainda o mesmo corpo, glorificado. Eis aí
uma afirmação muitíssimo notável e um extraordinário elemento
evidenciai.
Isso nos leva ao ponto número quatro, o qual é que, como
todos nós, Ele foi sujeito ao crescimento e desenvolvimento: “E
o menino crescia, e se fortalecia em espírito, cheio de sabedoria;
e a graça de Deus estava sobre ele” (Luc. 2:40). No mesmo
capítulo, lemos: “E crescia Jesus em sabedoria, e em estatura, e
em graça para com Deus e os homens” (v. 52). Hebreus 2:10 diz:
“Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas, e
mediante quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória,
consagrasse pelas aflições o príncipe da salvação deles.” Uma
alusão a crescimento e desenvolvimento. E, ainda mais
especificamente, em Hebreus 5:8, lemos: “Ainda que era Filho,
aprendeu a obediência, por aquilo que padeceu.”
A quinta evidência de Sua humanidade é que, aqui na terra,
Ele esteve sujeito a certas limitações em Seu conhecimento. Há
um exemplo disso em Marcos 11:13 - o incidente da figueira
estéril. Somos informados que nosso Senhor chegou perto dela
esperando encontrar fruto. Ele não sabia que não havia nenhum.
Também, em Marcos 13:32, lemos essas muito importantes e
memoráveis palavras: “Mas daquele dia e hora ninguém sabe,
nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai.” Ele
afirmou especificamente que não conhecia com precisão a época
em que esse dia viria; não só os anjos, mas até mesmo Ele não o
conhecia, e sim somente o Pai. Ora, em nosso próximo estudo,
quando chegarmos à doutrina propriamente dita, nos
esforçaremos para considerar a significância dessas afirmações
sobre a humanidade e deidade de nosso Senhor. Estou
simplesmente fornecendo-lhes evidências, o material do qual a
doutrina é formada.
E assim somos conduzidos à prova de número seis, a qual é
que Ele esteve sujeito a limitação física. Novamente em João,
capítulo 4, no caso da mulher de Samaria, somos informados
que Ele sentiu cansaço. Sentou-Se ao lado do poço, e não foi

348
com os discípulos para comprar provisões, porque estava
fisicamente cansado. Lemos que Ele caiu em profundo sono no
barco sobre o mar, na popa da embarcação (Mar. 4:36-41). Somos
informados que, indo certa manhã a Jerusalém, teve fome -
novamente o incidente da figueira estéril. Ele teve sede. Somos
informados que, na cruz, disse: “Tenho sede.” (João 19:28).
Suportou agonia física. Enfrentou agonia no Jardim de Getsêmani.
Ali, suou grandes gotas de sangue. E, finalmente, com certeza e
conclusivamente, e o que é ainda mais importante, Ele realmente,
literalmente morreu. E Sua morte - essa limitação física - é a
prova máxima de Sua humanidade.
A sétima evidência é que Ele foi tentado. Encontramos isso
em Hebreus 2:18, além dos relatos dos Evangelhos sobre a
tentação no deserto. E em Hebreus 4:15 é posta especificamente
dessa forma: Ele “em tudo foi tentado, mas sem pecado”.
A prova de número oito é que Ele necessitava de orar. Ora,
eis aqui um grande tema. Observem a freqüência com que nosso
Senhor orava, e perguntem a si mesmos por quê. Por que Ele
orou toda a noite antes de escolher Seus discípulos? Ele Se viu
constantemente ocupado em oração. E quando encarou o fim,
foi para o Jardim orar, e solicitou a três de Seus discípulos que
orassem com Ele e por Ele. A necessidade de oração é uma prova
absoluta de Sua genuína humanidade.
E então podemos focalizá-la da seguinte forma, como a nona
prova: Ele foi revestido de poder pelo Espírito Santo. Ainda que
sendo o eterno Filho de Deus, Ele carecia de poder, o qual recebeu.
Ouçam a Pedro em Atos 10:38; “Como Deus ungiu a Jesus de
Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo
o bem, e curando a todos os oprimidos do diabo, porque Deus
era com ele.” Deus O ungiu com o Espírito Santo e com poder.
Essa, evidentemente, é a significação, em parte, de Seu batismo
e da descida do Espírito Santo sobre Ele naquela ocasião. Notem
também a afirmação de João Batista, em João 3:34, de que “Deus
não lhe dá o Espírito por medida” - Ele possuía o Espírito em
toda a Sua plenitude.
A evidência de número dez é que Ele Se referiu a Deus como

349
o Seu Deus. Em João 20:17, lemos: “Não me detenhas, porque
ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-
-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso
Deus.”
Mas o que vocês também percebem aí consiste novamente
numa grande reivindicação compreensível - e esse é o décimo
primeiro ponto - de que Ele era realmente humano em todos os
aspectos. Hebreus 2:17 diz: “Pelo que convinha que em tudo fosse
semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo
sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo.”
Essa é uma afirmação crucial, e teremos de voltar a ela
novamente. No momento estou apenas asseverando que ela alega
que Ele foi feito semelhante a Seus irmãos em todas as coisas,
ainda que, lembrem-se sempre, sem pecado. No corpo, na alma
e no espírito, porém, Ele era humano. Disse Ele: “A minha alma
está cheia de tristeza até à morte” (Mat 26:38). Ele era verdadeira­
mente humano em todos os aspectos.
E, finalmente, é preciso ainda enfatizar o fato de que as
Escrituras também nos lembram em muitos lugares que, embora
fosse verdadeiramente humano, Ele era também impecável.
Ora, já vimos que o anjo informara a Maria sobre esse fato. Disse
ele: “pelo que também o Santo, que de ti há de nascer, será
chamado Filho de Deus” (Luc. 1:35). Essa é a primeira asseve­
ração de Sua impecabilidade. Entretanto, nosso Senhor também
desafiou o povo a convencê-10 de pecado: “Quem dentre vós
me convence de pecado?” (João 8:46). Em seguida, consideremos
algumas das grandes reivindicações que são formuladas nas
Epístolas. Por exemplo, a afirmação clássica de Paulo em 2
Coríntios 5:21: “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado
por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus.” E temos
novamente a afirmação de Hebreus 4:15, a qual já citei - “em
tudo foi (Ele) tentado, mas sem pecado”. Em Hebreus 9:14, somos
informados que Ele “ofereceu a si mesmo imaculado a Deus”.
Sem mancha; sem pecado; uma perfeita oferta pelo pecado,
cumprindo os tipos do Velho Testamento. Em 1 Pedro 2:22,
encontramos Pedro falando dEle: “O qual não cometeu pecado,

350
nem na sua boca se achou engano.” E1 João 3:5 alega exatamente
o mesmo: “e nele não há pecado”.
Há ainda outras afirmações que nos são feitas
criteriosamente (e vocês podem notar a importância de se crer
na plena inspiração das Escrituras e na importância de cada
palavra), de que Ele veio na “semelhança da carne do pecado”
(Rom. 8:3). Ele não veio em carne pecaminosa. Paulo se empenha
para dizer isso. Daí, talvez possamos expressá-lo melhor dessa
maneira: as Escrituras alegam que Ele era verdadeiramente
humano, porém jamais dizem que Ele era carnal. E este é um
ponto muitíssimo importante, porquanto a carnalidade não é
uma parte essencial de humanidade. Adão, quando foi criado
perfeito no princípio, era verdadeiramente humano, mas não
era carnal. Carnalidade é conseqüência do pecado, e as Escrituras,
portanto, nunca dizem que Cristo era carnal. E assim, aqui vemos
novamente a importância de considerar nossas doutrinas em
sua seqüência cronológica e lógica, porque descobrimos que Ele
tomou para Si a natureza humana de Maria, em conseqüência
da operação do Espírito Santo sobre ela. Ele era verdadeiramente
humano, porém isento de pecado.
Ora, espero que ninguém se encontre em alguma dificuldade
ante o fato de que Ele foi sujeito a tentação, visto que tal fato
não implica de forma alguma a existência de algum defeito nEle.
Evidentemente, Ele não poderia sujeitar-Se a tentação se não Se
tornasse humano: “Porque Deus não pode ser tentado pelo mal,
e a ninguém tenta.” (Tiago 1:13). Por isso, o fato de ter sido
tentado prova que Sua natureza era verdadeiramente natureza
humana. Portanto, asseveramos que Ele estava sujeito à tentação,
mas era ao mesmo tempo impecável.
Aliás, podemos avançar mais e dizer que Ele nem mesmo
era sujeito à Queda. Vocês se lembram da famosa afirmação que
citei quando estávamos tratando de todo esse tema do pecado:
que não era simplesmente o caso de que não era possível que Ele
não pecasse, mas, antes, não era possível que Ele pecasse. E essa
é a diferença essencial entre Cristo e Adão; essa é a diferença
entre o primeiro Adão e o segundo Adão. O primeiro Adão era

351
perfeito. Ele não havia cometido pecado, mas era possível. Era
possível que Adão não pecasse, porém vocês não poderiam dizer
dele, que era impossível que pecasse, porque ele pecou. Mas do
Filho de Deus dizemos não só que era possível que Ele não pecasse
- posse non peccare; era também impossível que pecasse - non
posse peccare - porque Ele é o Filho de Deus. Ele é Deus-homem.
Não só humano, mas também divino. Todavia era ainda, por ser
humano, sujeito a tentação, e o diabo O tentou. E assim vemos
a importância de asseverarmos a um e ao mesmo tempo a
doutrina de Sua genuína humanidade e, no entanto, também a
doutrina de Sua plena impecabilidade. Noutras palavras, não é
essencial à tentação que deva haver algo pecaminoso naquele
que é tentado. A tentação pode ser puramente de caráter externo,
e o fato de o ser em nenhum sentido significa que deixa de ser
tentação. O diabo O tentou com todo o seu poder, de uma maneira
que ninguém jamais havia sido tentado. Foi uma tentação real,
porém Ele ao mesmo tempo estava inteiramente isento de
pecado, e era impossível que Ele pudesse cair ou viesse a cair.
Deus O enviou para ser o Salvador, e em virtude disso não poderia
haver, e não houve, fracasso.
E assim focalizamos, em termos gerais, a evidência a favor
de Sua deidade e de Sua humanidade. Começaremos nosso
próximo estudo demonstrando que essa Pessoa, acerca de quem
acha-se declarado que é tanto divina quanto humana, e que Ele
é o Filho de Deus, não obstante subordinou-Se ao Pai. E então
consideraremos o que as Escrituras nos afirmam sobre Seu
caráter, a natureza dessa Pessoa que é divina e humana, e
tentaremos, à luz do ensino das Escrituras, manter essas duas
afirmações juntas.

352
25
DEUS-HOMEM: A DOUTRINA
Na última preleção abordamos uma série de textos
concernentes à Pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo, alguns deles
asseverando claramente Sua deidade, outros igualmente
asseverando claramente Sua humanidade. Antes de pros­
seguirmos, porém, abordando a doutrina propriamente dita, há
apenas um outro elemento evidenciai que devemos apresentar,
ou seja, o fato de as Escrituras muito claramente ensinarem Sua
subordinação a Seu Pai. Não consideraremos essa evidência
detalhadamente, por isso lhes apresentarei apenas alguns pontos,
mas vocês poderão facilmente descobrir para si mesmos as
referências escriturísticas.
O primeiro é este: Ele disse explicitamente que Seu Pai (ou
“o Pai”) era maior do que Ele: “Meu Pai é maior do que eu”
(João 14:28).
Eis o segundo: Ele é descrito como “primogênito do Pai”:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho
primogênito (unigénito)” (João 3:16). “Tu és meu Filho, hoje te
gerei” - quão amiúde é isso reiterado nas Escrituras (Sal. 2:7;
Atos 13:33; Heb. 1:5; 5:5)!
Eis o terceiro: Ele nos disse que vivia por causa do Pai, ou
“pelo Pai”: “Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo
pelo (ou por causa do) Pai, assim, quem de mim se alimenta,
também viverá por mim” (João 6:57). Isso é muitíssimo
importante.
Em quarto lugar, Ele disse que havia sido enviado pelo Pai.
Há inumeráveis exemplos disso. Disse nosso Senhor em João
6:39: “E a vontade do Pai que me enviou é esta: que nenhum de
todos aqueles que me deu se perca.” Ou ainda em João 8:29, Ele
disse: “E aquele que me enviou está comigo.” E Ele
constantemente afirmou isso.
Em quinto lugar, Ele disse que havia recebido mandamento

353
do Pai sobre o que Ele deveria fazer. João 14:31, nos relata esse
fato, bem como João 10:18 - “Este mandamento recebi de meu
Pai.”
Em sexto lugar, da mesma forma, Ele disse que recebera
toda a Sua autoridade do Pai. “Porque, como o Pai tem a vida em
si mesmo, assim deu também ao Filho ter a vida em si mesmo.
E deu-lhe o poder de exercer o juízo, porque é o Filho do homem”
(João 5:26,27). Tudo isso é indicativo, é claro, de Sua subordinação
ao Pai.
Em sétimo lugar, Ele disse que nada podia fazer
independentemente do Pai. Ele nada podia fazer por Si mesmo.
Em João 5:19, por exemplo, lemos: “Na verdade, na verdade vos
digo que o Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma, se o
não vir fazer o Pai; porque tudo quanto ele faz, o Filho o faz
igualmente.” Essa, igualmente, é uma afirmação muitíssimo
notável de Sua dependência, de Sua subordinação ao Pai.
Aliás, em oitavo lugar, Ele realmente disse que recebera Sua
mensagem do Pai. Disse Ele: “Muito tenho que dizer e julgar de
vós, mas aquele que me enviou é verdadeiro, e o que dele tenho
ouvido isso falo ao mundo” (João 8:26); e prossegue: “nada faço
por mim mesmo; mas falo como o Pai me ensinou” (João 8:28).
E disse a Seus discípulos: “As palavras que eu vos digo não as
digo de mim mesmo” (João 14:10). Suas palavras foram-Lhe
dadas por Seu Pai.
Em nono lugar, Ele disse o mesmo sobre as obras que fazia.
Novamente João 14:10: “O Pai, que está em mim, é quem faz as
obras.” Suas palavras e Suas obras foram-Lhe todas dadas pelo
Pai, e o que Ele fazia, o fazia porque o Pai Lhe dera essa obra
para fazer. Vocês o encontrarão novamente em João 17:4: “Eu
glorifiquei-te na terra, tendo consumado a obra que me deste a
fazer.”
Em décimo, Ele disse que um reino, o Seu reino, Lhe fora
destinado pelo Pai: “E eu vos destino o reino, como o Pai mo
destinou” (Luc. 22:29).
O décimo primeiro argumento é que somos informados
explicitamente pelo apóstolo Paulo, em 1 Coríntios 15:24, que

354
no fim Ele entregará o reino ao Pai, e então Ele mesmo se
sujeitará ao Pai, “para que Deus seja tudo em todos” (v. 28).
E o décimo segundo, em 1 Coríntios 11:3 há uma afirmação
muitíssimo importante sobre o fato de Deus o Pai ser a cabeça
de Cristo: “Mas quero que saibais que Cristo é a cabeça de todo
varão, e o varão, a cabeça da mulher, e Deus, a cabeça de Cristo”,
diz Paulo. Notem bem a seqüência e o argumento. O homem é a
cabeça da mulher, Cristo é a cabeça do homem e Deus é a cabeça
de Cristo.
Então, o décimo terceiro e último argumento é que Ele disse
constantemente que levar-nos e trazer-nos a Deus era obra Sua,
função Sua. E há inumeráveis afirmações ao mesmo fato nas
várias Epístolas do Novo Testamento - “trazendo muitos filhos
à glória” (Heb. 2:10). Escreve Judas: “Ora, àquele que époderoso
para vos guardar de tropeçar, e apresentar-vos irrepreensíveis,
com alegria, perante sua glória” (v. 24). Portanto, a obra não se
limitou apenas ao nosso Senhor; Ele nos toma e nos leva a Deus.
Ora, todos esses argumentos, naturalmente, são indicações
da subordinação do Senhor Jesus Cristo ao Pai. Deixem-me,
porém, enfatizar o seguinte: vocês devem notar que cada um
deles tem referência somente ao Senhor encarnado. Nenhum
deles diz qualquer dessas coisas sobre Ele antes de Seu nasci­
mento, antes de Sua encarnação. Não são descrições do Verbo
preexistente de Deus. Eis aí uma distinção muitíssimo
importante.
Assim, pois, tendo coletado nossas evidências, colocaríamos
a doutrina como segue. A Bíblia afirma que Cristo era verdadeira­
mente Deus, mas que Ele era também verdadeiramente homem,
e devemos asseverar ambas essas coisas, e fazê-lo corretamente.
Ora, quando consideramos esta grande doutrina, precisamos
sempre ter o cuidado de guardar-nos contra certos perigos.
Aqueles que estão familiarizados com a história da Igreja sabem
muito bem que os cristãos dos primeiros três a quatro séculos
empregaram muito tempo debatendo a doutrina da Pessoa do
Senhor Jesus Cristo. Suscitaram-se toda espécie de heresias.
Muitas pessoas sinceras e autênticas, numa tentativa de entender

355
esta sublime verdade, começaram a ensinar o que era claramente
um equívoco, e vários concílios da Igreja foram sustentados a
fím de corrigi-lo e para definir a doutrina.
Portanto, eu diria uma vez mais que qualquer cristão que
diga que ele ou ela não tem tempo para esse tipo de coisa, não
está simplesmente ostentando terrível ignorância, mas está
fazendo algo que é excessivamente perigoso. Os hereges eram
geralmente pessoas muito sinceras, e algumas delas eram
muitíssimo devotas. Não apenas isso. O Novo Testamento, ele
próprio, nos exorta contra a heresia, e contra os vários anticristos
e seus ensinamentos, portanto devemos prestar atenção a essas
coisas. Deixem-me, pois, tentar classificar os perigos específicos
que devemos evitar.
O primeiro perigo é aquele de negar a realidade da natureza
divina de Cristo. Esse é um de toda uma série de perigos
propagados por aqueles que ensinam que Ele era simplesmente
homem. Houve muitos desses grupos na Igreja Primitiva, assim
como hoje há os unitarianos. Ora, as pessoas que caíram nesse
erro, assim o fizeram porque desejaram salvaguardar a doutrina
que se chama monoteísmo - a crença de que há somente um Deus.
Como já vimos, sentiam que, se asseverássemos que Jesus Cristo
é Deus, então estaríamos afirmando que há dois Deuses; e se
disséssemos que o Espírito Santo é Deus, então estaríamos
asseverando que há três. Por isso, numa tentativa de evitar dizer
isso, chegaram ao extremo de negar a deidade do Senhor Jesus
Cristo, o que constitui uma heresia. E todo o propósito, em certo
sentido, do Evangelho de João consiste em negar esse erro
específico. O próprio João afirma isso de forma muitíssimo clara.
Seu objetivo ao escrever seu Evangelho foi para que pudéssemos
saber que “Jesus Cristo é o Filho de Deus” (João 20:31). Essa é
uma insofismável asseveração de Sua deidade.
Mas o segundo grupo de erros, evidentemente, vai para o
extremo oposto; eles negam a realidade de Sua natureza humana.
Muitas pessoas, por exemplo, ensinavam, e ainda ensinam, que
Jesus era apenas um homem, mas que o Cristo eterno veio sobre
Ele em Seu batismo, continuou nEle e operou através dEle até

356
pouco antes de O levarem à cruz, e então O deixou, de modo que
foi só o Jesus humano quem morreu. Há todo tipo de refinamento
desse ensino, com o qual não precisamos nos preocupar, todavia
devemos enfatizar os princípios. Todos eles são uma negação de
Sua genuína natureza humana - ensinando que Ele tinha um
corpo fantasmasgórico, delineando uma distinção entre o Cristo
eterno e o Jesus humano, e idéias afins. A primeira Epístola de
João foi especificamente escrita para neutralizar esse erro. João
diz que o teste do Espírito Santo é o seguinte: “...todo espírito
que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo
espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é
de Deus; mas este é o espírito do anticristo...” (1 João 4:2,3). E
assim devemos asseverar a realidade tanto da natureza humana
quanto da natureza divina.
Em seguida, o terceiro grupo era constituído de erros e
heresias que negavam a integridade das naturezas, a divina e a
humana. E provável que vocês tenham ouvido do arianismo, o
qual era uma causa de grande perplexidade para a Igreja Primitiva.
O erro dos arianos era que eles negavam a realidade da natureza
divina. Diziam que esse Logos, esse Cristo, foi o primeiro e o
mais excelente de todos os seres criados. Ele não era Deus, nem
era homem. Ele era algo intermediário, o primeiro ser criado, o
mais excelente de todos os seres que Deus já criara.
Então, em contrapartida, houve uma vez mais a negação da
integridade da natureza humana; certas pessoas ensinavam que
Cristo possuía um corpo e uma alma animal, entretanto Sua
ipente e Seu espírito não eram humanos. Ele só era humano até
certo ponto, diziam. E assim não Lhe atribuíam uma plena e
real natureza humana.
E o último grupo de falsos ensinamentos em relação à Sua
Pessoa consistiu na negação da unidade de Sua Pessoa. Isso é
geralmente conhecido como heresia nestoriana. Os nestorianos
diziam que Ele não era uma pessoa com duas naturezas, e sim,
que Ele era duas pessoas. Diziam: “Ele é Deus e homem, um
Deus pessoal e um homem pessoal.” Estavam tão desejosos de
enfatizar os dois lados, que foram longe demais e disseram que

357
Ele era duas pessoas, Deus e homem, em vez de dizer que Ele
era uma pessoa com uma natureza divina e outra humana.
E, como parte desse erro particular, precisamos mencionar
o caso daqueles que negavam a existência de distinção nas duas
naturezas. É extraordinário como esses conceitos sempre
contradizem uns aos outros; as pessoas sempre oscilam de um
extremo para outro. Parece muito difícil para a maioria das
pessoas conservar-se no centro do curso e manter ambas em
equilíbrio. Os nestorianos dizem: “Sim, devemos enfatizar a
divina e a humana, e foram até o ponto de dizer que Ele era
completamente Deus e completamente homem - duas pessoas.
Então, no outro extremo se achava a heresia que ensinava que
as duas naturezas se fundiram numa só natureza. Em vez de
conservarem a divina e a humana separadas, fundiram-nas, e
ensinavam que uma nova espécie de natureza passou a existir,
em parte divina e em parte humana. Mas tal coisa é igualmente
herética.
Desse modo, diante de todos esses erros, alegamos que a
Bíblia ensina que Ele é uma pessoa que possui duas naturezas.
Não posso fazer nada melhor neste ponto do que apresentar-
-lhes a famosa declaração do Concílio de Calcedônia, de 451 d.C.
Esta doutrina havia sido discutida, permitam-me lembrar-lhes,
ao longo dos séculos. Muitos reuniram seus concílios e
conferências, e, finalmente, elaboraram esta grande e abrangente
declaração, a qual não é tanto uma definição, quanto uma
afirmação de certas coisas que são verdadeiras e de outras que
não são verdadeiras. Achavam impossível, como ainda achamos,
apresentar uma adequada declaração da doutrina, mas, em
virtude de todos esses erros, estabeleceram certas afirmações para
salvaguardarem a genuína posição, e a puseram nestes termos:

Nosso Senhor é verdadeiramente Deus e


verdadeiramente homem, de uma alma e de um corpo
racionais, consubstanciai com o Pai segundo a Deidade,
e consubstanciai conosco segundo a humanidade. Em
tudo Ele foi semelhante a nós, mas sem pecado. Foi gerado

358
do Pai, antes de todas as eras, segundo a Deidade, e nestes
últimos dias, por nós e para nossa salvação, nasceu da
virgem, Maria, a mãe de Deus segundo a humanidade.
Um e o mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, a ser
reconhecido em duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis,
indivisíveis, inseparáveis, a distinção das naturezas não
sendo de forma alguma destruída pela união, mas, ao
contrário, sendo preservada a propriedade de cada natureza
e coexistindo numa só pessoa e uma só subsistência; não
partida nem dividida em duas pessoas, porém ume o mesmo
Filho e unigénito, Deus, o Verbo, o Senhor Jesus Cristo.

Que gloriosa declaração! Que declaração magnificente!


Nossa tendência, ao contrário, é imaginar - não é verdade? -
pelo menos algumas pessoas o fazem hoje - que temos progredido
acentuadamente desde o quinto século. Somos pessoas
maravilhosas do século vinte! No entanto, eis aí o tipo de coisa
que foi ensinada aos cristãos do quinto século. Espero que todos
nós a apreciemos! A cristãos carentes de todas as facilidades e
progressos educacionais foi ensinado a verdade dessa forma. E
vocês mesmos podem verificar quão abrangente é ela. Ela trata
de quase todos os erros e heresias que lhes mencionei, e ainda
elabora essas grandes proposições. Isso então é a declaração do
Concílio de Calcedônia, de 451 d.C. Obtenham-na e leiam-na
para si mesmos. Notem que sua ênfase é esta: uma pessoa, duas
naturezas, as duas sem mistura, unidas, porém não confundidas,
não fundidas, não misturadas, permanecendo separadas, Deus e
homem.
Mas, por que é tão essencial que asseveremos estas duas
naturezas? Por que a Igreja Primitiva contendeu por esta doutrina
dessa maneira, e por que devemos fazer o mesmo? Ora, é preciso
asseverar a humanidade porque desde que o homem pecou, a
pena tem que ser sofrida na natureza do homem. Ninguém pode
sofrer a pena do pecado do homem, exceto alguém que também
seja homem. É a única maneira do homem ser redimido. Então,
a quitação da pena envolve sofrimentos do corpo e da alma, tais

359
como só um homem pode sofrer; sofrimentos esses que Deus
não poderia sofrer. “A minha alma está profundamente triste
até à morte”, disse nosso Senhor no Getsêmane (Mar. 14:34). O
sofrimento envolvido tem que incluir o corpo e a alma, portanto
Ele tinha que ser homem.
E então Ele tinha que ser um compassivo sumo sacerdote,
argumenta o autor da Epístola aos Hebreus, e Ele só poderia ser
um compassivo sumo sacerdote, possuindo uma natureza
humana, sendo “em tudo tentado, mas sem pecado” (Heb. 4:15).
E é precisamente porque Ele é como nós que é capaz de sofrer
conosco. Ele nos entende; Ele conhece nossos sentimentos e
nossas fragilidades. Temos um sumo sacerdote que pode
“compadecer-se das nossas fraquezas” (Heb. 4:15). Ele nos
conhece nesse sentido porque possui uma natureza humana.
E da mesma forma as Escrituras nos afirmam
constantemente que Ele é um exemplo para os crentes. Ele não
é um exemplo para qualquer um, mas é um exemplo para os
crentes, pois devemos seguir os Seus passos, “O qual não cometeu
pecado, nem na sua boca se achou engano. O qual, quando o
inujriavam, não injuriava; e quando padecia, não ameaçava, mas
entregava-se àquele que julga justamente” (1 Ped. 2:22,23). É nosso
dever segui-10. Ele é nosso exemplo no viver cristão. Eis aí,
pois, os argumentos principais para a necessidade absoluta da
natureza humana.
Mas é igualmente necessário que asseveremos a deidade ou
a natureza divina, e por esta grande razão: a fim de que Seu
sacrifício tivesse valor infinito, Ele tinha que ser tanto Deus
quanto homem. Ou, colocando-o nestes termos: a fím de que
Ele pudesse prestar perfeita obediência a Deus, sem fracassar e
sem possibilidade de fracassar, Ele tinha que ser Deus. Adão era
perfeito, mas caiu. Deus o fez perfeito, à Sua própria imagem e
semelhança, porém ele caiu. Então, a fim de assegurar um perfeito
cumprimento da lei, a fim de que Ele pudesse suportar a ira de
Deus redentivamente, e livrar-nos da maldição da lei, sem o
receio de fracassar, era essencial que a deidade fosse sincronizada
com a humanidade.

360
Portanto, tendo dito tudo isso, esforçar-nos-emos para trazê-
-la a um enfoque pela tentativa de considerar o mistério de Sua
Pessoa? Estivemos afirmando coisas extraordinárias, e isso é
imprescindível se somos bíblicos. Estivemos fazendo essas
grandes asseverações sobre Sua deidade, sobre Sua humanidade,
sobre Suas duas naturezas numa só pessoa; e as pessoas sempre
têm perguntado: como é possível tudo isso? Ora, deixem-me
esclarecer bem que não quero dar a impressão que posso
apresentar uma explicação adequada e satisfatória. Ninguém
pode. Somos confrontados por “o mistério da piedade” (1 Tim.
3:16). Está além de nós; ultrapassa a razão; está além de nosso
entendimento. Como já dissemos em conexão com a doutrina
da Trindade, bem como com muitas outras doutrinas, não é para
entendermos; nosso dever é submeter-nos à Bíblia.
Vocês vêem que constantemente voltamos a esse ponto. Em
certo sentido, esse é o significado de fé - que aceitamos esse
fato, que somos guiados por ele. Não sabemos nada senão o que
a revelação nos diz, e não desejamos saber nada além disso. E
existe, portanto, um ponto no qual devemos cessar sempre de
tentar compreender. É mister que cessemos de tentar medir o
infinito com nossa razão finita, de fato com nossa razão
pecaminosa, e deveríamos receber a verdade como ela nos é dada,
sabendo que se fizermos isso, entenderemos progressivamente,
e que quando chegarmos à glória, entenderemos plena e
finalmente. Mas, enquanto estivermos aqui, devemos aceitá-la
pela fé. Portanto, aproximemo-nos desta doutrina dessa maneira
e com essas observações preliminares bem firmadas em nossas
mentes.
Ora, tem sido sugerido amiúde que certas analogias podem
ajudar-nos a entender isso, e se lembrarmos de que não passam
de analogias, elas nos ajudarão, porém não são o quadro completo,
e nunca devemos enfatizá-las demasiadamente. Tem sido
sugerido freqüentemente, por exemplo, que há, no próprio
homem, uma analogia com respeito às duas naturezas na Pessoa
de nosso Senhor. O homem, afinal, é corpo e alma. O corpo e a
alma são distintos e sem fusão; são separados e todavia são unidos

361
simultaneamente numa só pessoa. Posso afirmar, portanto, que
tenho um corpo e tenho uma alma. Tudo o que acontece no corpo
e na alma é essencial à pessoa. Por exemplo, se sinto uma dor em
meu corpo, digo queew sinto uma dor. Na realidade é só em meu
corpo, mas eu digo que eu sinto uma dor. E, da mesma forma, se
algo acontece na esfera de minha alma e meu espírito, ainda o
coloco em termos de mim mesmo. As coisas, notem bem, que
acontecem em meu corpo e em minha alma, eu o atribuo a mim
mesmo. Das duas naturezas, por assim dizer, eu atribuo coisas a
uma só pessoa.
Da mesma forma, notem bem que a doutrina bíblica faz
isso com nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Diz Paulo aos
coríntios: “porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao
Senhor da glória” (1 Cor. 2:8). O Senhor da glória! Ora, em certo
sentido, vocês não podem crucificar a Deus, mas era preciso
que Ele tivesse um corpo humano antes que pudesse ser
crucificado. Não obstante, Paulo não diz que Seu corpo foi
crucificado; ele diz que “o Senhor da glória” foi crucificado.
Noutras palavras, o que acontece numa natureza ou noutra é
atribuído à pessoa como um todo.
Sempre me parece, também, que há outra analogia. Não
consigo lembrar-me de ter lido a respeito, mas lhes faço uma
exposição dela para sua consideração. Sinto-me ajudado bastante
pela reflexão sobre o “velho homem” e o “novo homem” no
cristão (Ef. 4:22-24). Eis-me aqui como cristão, e sinto-me
cônscio da velha natureza e da nova. As duas não são misturadas
nem fundidas; continuo cônscio de sua existência como entidades
distintas, todavia ambas se acham unidas em mim. Eu, como
pessoa, possuo ambas, ou ambas são partes e expressões do meu
ser, da minha pessoa, da minha personalidade. Ora, faço uso
dessa analogia apenas para poder alcançar um vislumbre no
tocante à possibilidade de nosso Senhor possuir duas naturezas
distintas em Seu ser interior, sendo, todavia, uma só pessoa, e
não duas pessoas.
Entretanto, deixem-me fazer-lhes uma apresentação em
termos escriturísticos. Não há dúvida de que o melhor auxílio

362
bíblico com respeito a esta questão é Filipenses 2:5-8:

“De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que


houve também em Cristo Jesus. Que, sendo em forma de
Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas
aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de
homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à
morte, e morte de cruz. ”

Ora, essa passagem tem sido com freqüência mal-entendida.


Se fosse há quarenta ou cinqüenta anos atrás que estivesse
prelecionando estas mensagens, no período da nova teologia, a
assim chamada teoria “kenosis”, então teria que despender de
muito tempo com esses versículos. A Revised Version infelizmente
traduz “tornou-se sem nenhuma reputação” por “esvaziou-se”;
e essa palavra “esvaziou-se” tem levado a todo tipo de problema.
Conseqüentemente, essa é uma péssima tradução. A Authorised
Version é totalmente superior nesse ponto, como espero mostrar-
-lhes.
Ora, sinto que muitas vezes as pessoas se metem em
dificuldades com esta passagem porque olvidam o contexto. A
passagem começa: “De sorte que haja em vós o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus”, e o contexto
diz: “Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas
cada qual também para o que é dos outros.” Paulo não está
pretendendo aqui apresentar uma doutrina, por assim dizer, da
Pessoa de Cristo; ele está fazendo um apelo prático sobre conduta.
Então, o que é que ele diz? Ora, tomem esta palavra forma -
“Que sendo em forma de Deus”. O que é isso? Forma é a soma
total das qualidades que fazem uma coisa ser o que ela é. Tomem,
por exemplo, uma peça de metal. Essa peça de metal pode ser
uma espada ou uma relha (de arado), embora seja o mesmo metal.
E ao falar de “a forma” de uma espada, eu quero dizer a coisa que
faz que essa peça de metal seja uma espada e não uma relha.
Portanto, se eu tomar uma espada e a fundir, tornando-a numa

363
relha, então mudei sua forma. Esse é um ponto muitíssimo
importante.
Então temos esta palavra “sendo” - “Que, sendo em forma
de Deus” - isso significa que Ele já existia na forma de Deus
antes de vir a este mundo. Ele sempre foi Deus. E essa a
asseveração. Então tomem a frase, “não teve por usurpação ser
igual a Deus”. Ora, a Authorised Version não é tão boa aqui; as
outras traduções são melhores. Ele “não o considerou como um
privilégio a que se apegar”; Ele “não o considerou como algo a
que agarrar-se a todo custo”. Não, Ele não fez isso. Ele não Se
agarrou a essa forma de deidade, a essa igualdade com Deus que
era Sua. Então, o que Ele fez? Ora, em vez disso, Ele “se fez de
nenhuma reputação”. Ele não “esvaziou-Se” de nada. Ele assumiu
outra forma.
E assim o apóstolo diz, com efeito: “Ora, vocês, filipenses,
deviam estar procedendo como Ele procedeu. Todos vocês estão
buscando suas próprias coisas e não as coisas de outros. Deviam
estar muito gratos porque o Filho de Deus não procedeu assim.
Ele não Se apegou à Sua igualdade com Deus; Ele abriu mão de
Sua reputação. Ele não buscou Seus próprios interesses; Ele Se
compadeceu de vocês em suas necessidades, e veio à terra a fim
de socorrê-los. Vocês precisam fazer o mesmo.” Notem a ênfase.
Paulo não está ordenando os filipenses a tornar suas naturezas
em alguma outra coisa. Não, absolutamente. Ele diz: “Devem
agora humilhar-se, embora ainda permaneçam o que são. Assim
nosso Senhor não esvaziou-Se de nada. Ele não esvaziou-Se da
Sua deidade. Não apegou-Se, porém, às manifestações dessa
deidade. Ele não apegou-Se ao poder da deidade, por assim dizer,
ao exercício dela. Não, o que houve é o que Paulo diz novamente
no versículo 8: “humilhou-se a si mesmo”. Ele permaneceu o
mesmo, mas veio nessa forma humilde. Ele veio, Paulo no-lo
diz, “na forma de um servo”. Ora, como já vimos, a forma é a
consumação daquelas qualidades que tornam uma coisa o que
ela é. Assim, Ele foi um autêntico servo. Ele veio e viveu como
um servo real, embora continuasse sendo Deus. Ele não esvaziou
Sua deidade nem cessou de ser Deus. O que houve foi que Ele

364
não continuou asseverando essa qualidade, mas veio “na forma
de um servo”.
Ora, o apóstolo está obviamente enfatizando esse mesmo
ponto que enfatizo, pois, por que então ele diria: “fazendo-se
semelhante aos homens”? Se nosso Senhor deixara a deidade
atrás e Se fizera homem, Paulo jamais teria usado essa frase; ele
teria dito que Ele fora “feito homem”. Mas ele não diz isso; ele
diz que Ele foi feito “semelhante aos homens”. E em seguida,
diz novamente: “E, achado na forma de homem.” Por que essas
expressões? Se Ele Se esvaziara da deidade, Se Ele tivesse cessado
de ser Deus, Paulo não estaria falando de “semelhança”, de
“forma”; ele apenas diria que Aquele que fora Deus também se
tornou homem. Reitero, ele não se expressa assim, mas o que
diz é que, embora nosso Senhor existisse ainda na forma de Deus,
Ele Se fez homem também. Longe de esvaziar-Se, Ele tomou
algo mais.
Essa é a doutrina das Escrituras, ou seja, que Aquele que
continuou sendo Deus, tomou a forma de servo, “fazendo-se
semelhante aos homens” “e foi achado na forma de homem”.
Ele assumiu algo mais. Aquele que era eternamente Deus Se fez
homem também. E viveu e realizou Sua obra neste mundo como
um servo. Isso é o que Paulo ensina. Deixem-me fazer-lhes uma
citação do grande Dr. Warfield que, acredito, os ajudará: “O
Senhor do mundo Se fez servo no mundo. Aquele cujo direito
era o de governar, assumiu a posição de obediência como sendo
a característica da Sua vida.” Que declaração grandiosa!
Então, o que significa tudo isso? Significa que não houve
qualquer mudança em Sua deidade, contudo Ele tomou para Si a
natureza humana, e escolheu viver neste mundo como homem.
Dessa forma humilhou-Se. Deliberadamente Ele impôs limites
a Si próprio. Ora, daqui não podemos avançar mais. Não sabemos
como Ele o fez. Em certo sentido, não o podemos entender. No
entanto, cremos nisto: a fim de poder viver esta vida como
homem, enquanto Se achou aqui na terra, Ele não exerceu certos
atributos de Sua deidade. Isso foi porque, como já vimos na
última preleção, Ele precisava do dom do Espírito Santo sem

365
medida. Isso foi porque Ele tinha necessidade de orar. Ele não
cessou de ser Deus. Disse, com efeito, a Nicodemos: “Ora,
ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do
homem, que está no céu” (João 3:13). É verdade, mas Ele escolheu
viver como homem. Ele não cessou de ser Deus, nem desistiu
de qualquer parte da Sua deidade, mas passou a viver nessa forma
de servo e como homem.
E quando o focalizamos dessa forma, percebemos como foi
possível que Ele crescesse “em sabedoria, em estatura e em graça
diante de Deus e dos homens” (Luc. 2:52). Percebemos,
igualmente, como era possível que Ele aparentasse não saber
certas coisas em certas épocas, e contudo, em outras épocas, como
podia ter declarado Sua deidade e Sua unidade com o Pai, e
pudesse afirmar: “Antes que Abraão existisse eu sou”, e assim
por diante. Tudo isso era verídico, e tudo isso acontecia a um e
ao mesmo tempo. Este era o eterno Filho de Deus, que
continuava sendo ainda o eterno Filho de Deus, havendo tomado
para Si essa natureza humana. Esta Pessoa indivisível, que
possuía duas naturezas em vez de uma só, escolheu viver, e de
fato viveu como homem, tomando a forma de servo e
humilhando-Se, tornando-Se obediente até à morte, e morte de
cruz.
Com efeito, focalizamos até aqui um grandioso, maravilhoso
e glorioso mistério! Não conheço nada, tenho afirmado
reiteradamente, mais maravilhoso que pudéssemos contemplar
e considerar. Porventura vocês não sentem suas mentes abrirem-
-se e expandirem-se? Acaso não sentem que é um grande
privilégio ser-lhes permitido penetrar tão espantosos mistérios
e tão gloriosas verdades? Deus nos deu Sua Palavra para que
pudéssemos fazer isso, não para que pudéssemos passar
rapidamente por cima, mas para que pudéssemos aprofundar-
-nos nela e tentar captar aquilo que aconteceu. Devemos fazer
isso, pois a mensagem é que Deus amou tanto a vocês e amou
tanto a mim, que enviou Seu Filho para fazer tudo isso. O Filho
o fez, embora Ele fosse o Deus eterno. Ele entrou no ventre de
Maria, nasceu como um nenê e foi deitado na manjedora, ainda

366
que sendo o Deus eterno, o Filho por meio de quem todas as
coisas foram feitas. Sim, e ainda suportou “tais contradições dos
pecadores” (Heb. 12:3) e foi tratado com desprezo e crucificado,
morto e sepultado. E tudo isso Ele fez porque era a única forma
pela qual vocês e eu poderíamos ser salvos. A única forma pela
qual nossos pecados poderiam ser perdoados seria que Ele
suportasse o castigo deles. A única forma pela qual vocês e eu
nos tornaríamos participantes da natureza divina era que Ele
tomasse a natureza humana. E tendo feito isso, Ele agora é capaz
de dar-nos essa nova natureza e preparar-nos para o ceú e para a
glória.
Estivemos contemplando a maravilha e o mistério dos
séculos, aquilo que torna os anjos celestiais atônitos, aquilo que
eles perscrutam - Deus vindo em carne e para os pecadores, vis
e desprezíveis pecadores, rebeldes contra Deus, convertê-los em
filhos de Deus. Queridos amigos, continuemos a vislumbrá-10,
a considerá-10, a confiar nEle. Examinemos e avaliemos nossas
vidas, não pelo prisma de sentimentos e experiências, mas pelo
prisma de nosso conhecimento dEle e de nosso amor por Ele.
Ele é o centro de tudo. “E a vida eterna é esta: que te conheçam
a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem
enviaste” (João 17:3). E que Deus nos dê graça para fazermos
assim.

367
26
CRISTO O PROFETA
Antes de prosseguirmos com nossa consideração da doutrina
do Senhor Jesus Cristo, talvez seja de bom alvitre que nos
lembremos de toda a nossa introdução às doutrinas bíblicas. Em
nossos estudos até aqui, chegamos a compreender a importância
do fato de que cada doutrina nos conduz à próxima. Vocês verão
o valor desse fato quando conversarem com alguém que ainda
não é cristão e que deseja conhecer o que é o cristianismo. Se
porventura, segundo Pedro o coloca, vocês desejam estar “sempre
preparados para responder com mansidão e temor a qualquer
que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (1 Ped. 3:15),
e viver sempre dispostos a fazer isso, então devem conhecer
estas doutrinas bíblicas e ser capazes de discuti-las, a fim de serem
úteis a cada pessoa. Portanto, torna-se mais fácil para nós quando
conhecemos a seqüência lógica na qual podemos afirmá-las e
apresentá-las.
Se não gostamos dessa abordagem do assunto, muito bem,
aqui estão pessoas do mundo, de viver modesto, cheias de
problemas e distúrbios - e há uma profusão de tais homens e
mulheres - que se diligenciam em resolver seus problemas de
várias maneiras, através de filosofia e de meditações, e outros
diversos recursos. Mas, se somos honestos, então é preciso
admitir que não podemos chegar a um entendimento e solução
dos problemas da vida através de tais meios. Estou de acordo
com o grande matemático e pensador francês, Blaise Pascal, que
disse: “A suprema realização da razão é indicar-nos o limite da
razão.” Se não começamos a partir da posição de Pascal, somos
entregues a nós mesmos, tateando nas trevas, e o mundo moderno
não sabe para onde está indo. Os filósofos e os pedagogos o
admitem, caso sejam honestos. Que resposta daremos?
Nossa resposta é que precisamos de luz de outrem, e alegamos
que possuímos essa luz. “O mundo não conheceu a Deus pela

368
sua sabedoria”, diz Paulo em 1 Coríntios 1:21. O povo sempre
teve consciência de que há um Deus, mas pensamento e razão
não podem chegar até Ele. Por isso aprouve a Deus conceder-
-nos uma revelação de Si mesmo. Vemo-la na história, na
natureza, na criação; Ele, porém, não Se expressou claramente
dessa forma, embora, em certo sentido, seja ela nítida a todos os
cristãos. Os homens e as mulheres, porém, precisam de muito
mais que isso, e Deus em Sua infinita benevolência, tem
concedido algo mais. Toda a nossa argumentação é que a Bíblia
é a Palavra de Deus; conseqüentemente, é uma questão de
autoridade. Toda a nossa causa depende deste Livro, e ele é a
Palavra de Deus. Não afirmamos que ele contém a Palavra de
Deus, e sim, que ele é a Palavra de Deus, infalível em todas as
questões de fé e de prática. Não há nada fora do que somos
informados
z na Bíblia. Portanto, esse foi o nosso ponto de partida,
E deste Livro que extraímos todo o nosso conhecimento da
doutrina. O que importa não é o que pensamos, mas o que a
Bíblia ensina.
Tendo nos lembrado disso, retornemos agora, uma vez mais,
ao grande ponto central de toda a revelação, isto é, o Senhor
Jesus Cristo. Temos focalizado Sua Pessoa, e agora continuamos
com o que a Bíblia nos afirma sobre Sua obra. Era necessário
que tratássemos primeiramente da Pessoa, porquanto jamais
entenderíamos a obra até que estejamos bem informados sobre
quem Ele é.
Deixem-me colocá-lo da seguinte forma: quando vocês vêm
para os Evangelhos, notam com freqüência a curiosa
incapacidade dos discípulos de entender o ensino do Senhor
concernente à Sua morte. Não O entendiam, e viviam confusos
e ofendidos com aquilo que Ele dizia sobre Sua ressurreição;
não conseguiam compreendê-lo. Por quê? Nosso Senhor disse
justamente antes de Sua morte: “Ainda tenho muito que vos dizer,
mas vós não o podeis suportar agora. Mas, quando vier o Espírito
da verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará
de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anun­
ciará o que há de vir” (João 16:12,13). Por que não dizer-lhes

369
imediatamente? A resposta é que é completamente impossível
entender a obra do Senhor Jesus Cristo até que sejamos
esclarecidos sobre a Pessoa; realmente, os discípulos só
entenderam a obra do Senhor Jesus Cristo à luz da ressurreição.
É minha compreensão da Pessoa que me capacita a compreender
a doutrina de Sua morte e expiação, da qual estamos agora
começando a aproximar-nos.
Assim chegamos agora à obra de Cristo, a qual é definida
em tantos lugares nas Escrituras. Ele veio ao mundo para
reconciliar-nos com Deus. Realçamos na doutrina da Queda e
suas conseqüências que duas coisas primordiais são necessárias:
reconciliação com Deus e restauração àquela condição da qual
caímos com Adão. Portanto, a obra do Senhor Jesus Cristo é a
obra de reconciliação e restauração. Ele veio específica e
deliberadamente ao mundo para isso. Paulo nos diz em 1 Timóteo
2:5: “Porque há um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os
homens, Jesus Cristo homem.” E assim vamos agora focalizá-
-10 como o Mediador, o que exatamente Ele fez e como o fez, a
maneira em que Ele é, por assim dizer, Aquele que Se coloca
entre Deus e o homem e os mantém unidos.
Há três funções para o Seu ofício, e elas têm sido sempre
reconhecidas e ensinadas. Ele é Profeta, Sacerdote e Rei, e está
predito que devemos considerá-10 em todas essas formas. Ora,
é evidente que em cada um desses ofícios, o outro
concomitantemente se acha também presente. Ele é um Profeta
sacerdotal e um Profeta real; um Sacerdote profético e um
Sacerdote real; um Rei profético e um Rei sacerdotal. Ele é uma
Pessoa, e não podemos dividi-10; mas devemos reconhecer que,
na natureza de Sua obra como Mediador e Redentor, Ele assume
estas três funções, e elas são muito definidamente apresentadas
no ensino bíblico.
Vemos de imediato por que é indispensável que Ele assuma
as três funções. Precisamos de um profeta, porque precisamos
ser libertados e salvos da ignorância advinda do pecado. Ao
considerarmos a doutrina da Queda e suas conseqüências, vimos
que os homens e as mulheres foram deixados num estado de

370
ignorância. O apóstolo Paulo, em particular, descreve o perdido
estado do homem em pecado, quando diz: “E digo isto, e testifico
no Senhor, para que não andeis mais como andam também os
outros gentios, na vaidade do seu sentido. Entenebrecidos no
entendimento, separados da vida de Deus pela ignorância que
há neles, pela dureza do seu coração” (Ef. 4:17,18). “O povo que
andava em trevas viu uma grande luz”, diz Isaías 9:2. Os quadros
são infindáveis, como veremos. Cristo como Profeta, porque
precisamos ser libertados da ignorância advinda do pecado.
Mas também precisamos ser libertados da culpa do pecado.
Portanto, precisamos de um sacerdote. Em razão da culpa do
pecado, necessitamos de alguém que possa comparecer em nossa
defesa à presença de Deus. Portanto, Cristo teve que assumir a
função de Sacerdote.
E então, evidentemente, temos que ser libertados do domínio
do pecado - e as Escrituras dizem que fomos libertados. Fomos
tirados do reino das trevas e transportados para “o reino do Filho
do seu amor” (Col. 1:13). Ele só faz isso quando assume a função
de rei, com poder e autoridade. Somente como Rei Ele pode
libertar-nos e introduzir-nos no reino sobre o qual Ele governa
e do qual nos tornamos cidadãos.
Deixem-me, porém, focalizá-lo também da seguinte forma:
Cristo, como Profeta, representa Deus conosco. Ele nos fala de
Deus e em lugar de Deus. Mas como Sacerdote, Ele fala a Deus
em nosso lugar. Ele nos representa diante de Deus; e isso é
igualmente indispensável. Em seguida, como Rei, Ele é a cabeça
representativa da nova humanidade.
Ao meu ver, é sempre de maior benefício e valor espirituais
considerar nosso Senhor e Sua obra nessa tríplice forma, e nada
talvez seja tão proveitoso como entender Sua obra e Sua glória.
Vejam bem, no Velho Testamento temos profetas, temos
sacerdotes e temos reis, e essas três funções foram divididas e
designadas a pessoas individualmente. Entretanto a glória do
Senhor Jesus Cristo é que Ele em Si só combina todos .esses
ofícios - três funções numa só pessoa, e isso é algo que nos leva
a compreender a grandeza, a sublimidade e a majestade da Pessoa

371
de nosso bendito Senhor.
Portanto, examinemos por um momento as Escrituras e
vejamos o que elas nos têm a dizer sobre nosso Senhor Jesus
Cristo como Profeta. O que é um profeta? No Velho Testamento
ele é constantemente referido como “um homem de Deus”, um
mensageiro de Deus, a quem foi dada uma palavra por Deus para
ser transmitida. Não devemos entrar nesse ponto agora, porque
já o consideramos, em certo sentido, quando tratamos de toda a
questão da inspiração. O profeta apresentava sua mensagem
divina de várias formas, às vezes numa espécie de transe. Ele
não estava certo sobre o mecanismo, mas a mensagem era
completamente clara. Lemos as palavras: “o Senhor me falou e
disse”, ou: “a palavra de Deus me veio subitamente em sonho”.
Portanto, o profeta é um homem a quem foi confiada uma
mensagem da parte de Deus, a qual tinha de ser transmitida a
homens e mulheres para sua instrução e esclarecimento.
Outra coisa que devemos ter sempre em mente, ao
considerarmos a função profética, é que ela não se restringe tão-
-somente ao prenúncio e predição. A nossa tendência é usar
“profecia” somente nesse sentido, e ela é uma parte do ofício
profético, mas não é a única parte. Em acréscimo à predição, há
o ofício de mestre e instrutor - fazer conhecido publicamente. Os
profetas do Velho Testamento não estavam limitados só à
predição; uma boa parte de seus escritos demonstra censura e
inculpação de Israel. Em aditamento à predição, foram enviados
por Deus para advertir o povo, para puni-lo e reprová-lo, para
lembrá-lo do caráter da lei e das promessas de Deus. Por
conseguinte, lembremo-nos de que esses aspectos são tão vitais
quanto a predição, e em nosso Senhor eles foram proeminentes.
Examinem por um instante algumas provas apresentadas
nas Escrituras do fato de que nosso Senhor Jesus Cristo é o
Profeta. Examinem Deuteronômio 18:15: “O Senhor teu Deus
te despertará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, como eu;
a ele ouvireis.” Esse é um dos mais básicos textos das Escrituras
com respeito à Pessoa de nosso Senhor, e nos Evangelhos de
repente deparamos com referências a esse “profeta”, em conexão

372
com o Senhor Jesus Cristo. Aqueles que ouviam Suas palavras e
viam Seus milagres, diziam: “Este é verdadeiramente o profeta
que devia vir ao mundo” (João 6:14). Toda a nação estava
aguardando a vinda desse Profeta, desse Mestre que falaria da
parte de Deus. Pedro, ao pregar sobre Cristo, em Atos 3:19-26,
refere-se às palavras de Moisés em Deuteronômio, capítulo 18, e
prossegue: “E todos os profetas, desde Samuel, todos quantos
depois falaram, também anunciaram estes dias” (v. 24). Portanto,
existia essa grande profecia de que o Filho de Deus, o Salvador
do mundo, seria um profeta.
Mas avancemos um pouco mais: nosso Senhor reivindicou
ser profeta. Em Lucas 13:33, nosso Senhor, respondendo a alguns
de Seus seguidores que O aconselhavam a que não fosse a
Jerusalém, disse: “Importa, porém, caminhar hoje, amanhã, e
no dia seguinte, para que não suceda que morra um profeta fora
de Jerusalém.” Ele profetizou aí que ia morrer nas cercanias de
Jerusalém, e esse foi o caso de todos os profetas, pois todos foram
apedrejados e mortos em Jerusalém. No Evangelho de João vocês
também encontram reiteradas afirmações feitas por nosso
Senhor de que tudo quanto Ele ensinava Lhe fora dado por Deus.
“As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo” (João
14:10). Ou, ainda em João 8:26, lemos: “mas aquele que me enviou
é verdadeiro; e o que dele tenho ouvido isso falo ao mundo.”
Essas afirmações são muitíssimo explícitas. Ele estava falando
ali, na qualidade de profeta, a mensagem que Lhe fora entregue.
Temos a mesma coisa em João 12:49,50: “Porque eu não tenho
falado de mim mesmo; mas o Pai, que me enviou, ele me deu
mandamento sobre o que hei de dizer e sobre o que hei de falar.
E sei que o seu mandamento é a vida eterna. Portanto, o que eu
falo, falo-o como o Pai mo tem dito.” E as próprias pessoas
reconheciam que Ele era profeta: “Porquanto os ensinava como
tendo autoridade; e não como os escribas” (Mat. 7:29). Eis aí,
pois, uma evidência segura de que nosso Senhor era na verdade
o Profeta anunciado e profetizado por Moisés.
Em segundo lugar: por quais maneiras nosso Senhor
exerceu essa função profética? Primeiramente, Ele a exerceu

373
ainda antes da encarnação, ainda antes de vir a este mundo.
João 1:9 diz: “Ali estava a luz verdadeira, que alumia a todo
homem que vem ao mundo.” Isso é tremendamente importante.
E a doutrina de Cristo como o Logos, como o Verbo de Deus,
transmitindo conhecimento e luz.
Ora, há uma luz no mundo à parte do evangelho. Tomem
todo vislumbre humano de iluminação moral inteligente, tomem
tudo o que há no mundo que limita as trevas de satanás, de onde
vieram? A Bíblia diz que a luz que há em toda pessoa, quer seja
não-regenerada, quer seja regenerada, vem de Deus, de Cristo.
Qualquer luz que exista tem vindo dEle. Ora, se estivéssemos
prelecionando sobre teologia, continuaríamos a falar desta
doutrina como a doutrina da graça comum. Pessoas como
Shakespeare, bem como os grandes cientistas que nos
comunicam conhecimento e compreensão, todos recebem sua
habilidade através de Cristo, que é o Verbo que ilumina a todo
homem. Nenhuma luz, nenhum conhecimento, nenhuma
compreensão, seja qual for, vem independentemente dEle. E
como já vimos, Aquele que foi descrito no Velho Testamento
como sendo o Anjo do Concerto era indubitavelmente o Senhor
Jesus Cristo. Uma das razões por que Ele veio como o Anjo do
Concerto foi para ensinar, instruir e advertir. Cristo exercia uma
função profética ainda antes da encarnação. Em Isaías 9:6, Ele é
chamado “Conselheiro”, mestre, instrutor, alguém que transmite
sabedoria.
Ainda mais explicitamente, todo conhecimento, toda luz e
instrução, cada habilidade conferida aos profetas veio de Cristo.
O apóstolo Pedro expressa esse fato quando fala dos profetas antes
de Cristo, “Indagando que tempo ou que ocasião de tempo o
Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente,
testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a glória
que se lhes havia de seguir” (1 Ped. 1:11). Cristo era o Espírito
iluminando os profetas, a respeito dEle mesmo. Enquanto
enunciavam Suas profecias e as expressavam, Ele era o Profeta
ensinando os profetas; Ele lhes comunicava sua mensagem.
Em seguida, em segundo lugar Ele também exerceu a função

374
que Lhe fora designada como um profeta aqui na terra depois da
encarnação. Disse Ele: “Eu sou a luz do mundo; quem me segue
não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (João 8:12). Qual é
a luz? Ele é a luz, o Profeta, Aquele que veio para ensinar.
Novamente, em João vemos isto: “Deus nunca foi visto por
alguém. O Filho unigénito, que está no seio do Pai, este o fez
conhecer” (João 1:18), Ele manifestou a luz, Ele comunicou
conhecimento e instrução concernente Àquele a quem nenhum
homem jamais viu. O Filho O declarou e O revelou.
Como Ele agiu na qualidade de Profeta na terra? Ele agiu
assim em todo o Seu ensino: Seu ensino concernente a Deus, o
Pai; Sua exposição da lei no Sermão do Monte; em tudo o que
Ele nos informou sobre o amor de Deus, do propósito gracioso
de Deus, de Sua natureza e Sua Pessoa. Tudo isso era uma parte
do exercício de Sua função profética e, supremamente, Ele nos
falou de Si próprio. Tudo isso é vital, e enfatizo-o porque às vezes
nos esquecemos de que uma parte de nossa salvação consiste em
nossa recepção desse conhecimento que nosso Senhor nos tem
comunicado. Essa é a razão por que devemos compreender que
esse evangelho se aplica a nós.Tudo o que Ele ensinou se aplica
a nós; o evangelho é vital para o cristão e para o viver cristão.
Cristo é nosso Profeta tanto quanto nosso Sacerdote.
E então Ele nos ensinou por meio de Sua vida e exemplo.
"... quem me vê a mim vê o Pai” (João 14:9). “Olhem para mim”,
disse Ele, com efeito. “Se não faço as obras de meu Pai, não me
acrediteis. Mas, se as faço e não credes em mim, crede nas
obras...” (João 10:37,38). “Estou há tanto tempo convosco, e não
me tendes conhecido, Filipe?” (João 14:9). Se vocês apenas
olharem para mim, aprenderão acerca de Deus.
Devemos viver como Ele viveu, caminhar em Seus passos,
tal como Pedro nos diz em 1 Pedro 2:21,22: “Porque para isto
sois chamados; pois também Cristo padeceu por nós, deixando-
-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas. O que não cometeu
pecado, nem na sua boca se achou engano.” Ele nos deixou um
exemplo, demonstrando Seu amor e tolerância, bem como todos
os Seus demais atributos, e devemos viver como Ele viveu. Foi

375
assim que Ele exerceu Sua função profética enquanto viveu aqui
na terra.
Em seguida, deixem-me continuar mostrando-lhes como Ele
prosseguiu no exercício de Sua função profética desde Sua
ascensão, depois que Ele deixou a terra e voltou para o céu. Ele
disse que falaria através do Espírito Santo. O Espírito Santo não
falaria de Si mesmo, ou sobre Si mesmo, mas seria Lhe dito o
que tinha de dizer. Ele enviaria o Espírito Santo para instruir.
Como o Filho não falou de Si mesmo, mas falou da parte do Pai,
assim o Espírito fala segundo fora instruído por nosso Senhor.
Então nos foi dada revelação direta por meio do Espírito.
Paulo, escrevendo aos Coríntios, diz: “Mas nós não recebemos
o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus” (1
Cor. 2:12). A Igreja recebeu essa revelação da mesma forma;
cada um desses livros do Novo Testamento foi guiado pelo
Espírito e controlado por Ele; não há erro algum. E Cristo ainda
exerceu Sua função profética quando Ele guiou a Igreja por meio
do Espírito. Ele guiou a Igreja quando o cânon do Novo
Testamento estava sendo formado. Ele a guiou quanto ao que
devia constar no cânon - Ele a guiou a toda a verdade como lhe
prometera. Nosso Senhor exerce Sua função profética mesmo
em nós. Ele está ainda nos ensinando através do Espírito concer­
nente às coisas espirituais, como Paulo escreve em 1 Coríntios,
capítulo 2.
Finalmente, Ele continuará neste ofício profético até que,
enfim, nos apresente imaculados diante de Deus. Ele nos tem
dado esta verdade final de que continuará Seu ofício profético
até que O vejamos, até que participemos de Sua glória, a glória
que Ele teve com Seu Pai antes da fundação do mundo (Vejam
João 17:24). Ele nos guiará, Ele nos instruirá até que vejamos a
Deus, até que, finalmente, tenhamos aquela visão beatífica na
glória.
Entrei neste assunto detalhadamente porque parece-me ser
extremamente importante. João 3:19 diz: “E a condenação é esta:
que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do
que a luz...” Ou, também em João 15:22, lemos: “Se eu não viera,

376
nem lhes houvera falado, não teriam pecado, mas agora não têm
desculpa do seu pecado.” Diz Ele, noutras palavras: “Eu vim e
trouxe a luz; antes vocês jaziam em trevas, mas agora não têm
qualquer desculpa para o seu pecado.” Então, finalmente, em
João 12:47,48, lemos: “E, se alguém ouvir as minhas palavras, e
não crer, eu não o julgo: porque eu vim, não para julgar o mundo,
mas para salvar o mundo. Quem me rejeitar a mim, e não receber
as minhas palavras, já tem quem o julgue; a palavra que tenho
pregado, essa o há de julgar no último dia.”
Não podemos, e nem devemos, esquecer que nosso bendito
Senhor e Salvador é profeta. Como o Profeta, Ele trouxe a luz e
o conhecimento a este mundo que deles carecia. Tão-somente
Ele pode guiar-nos a Deus e comunicar-nos o conhecimento de
Deus que desejamos. É Ele que finalmente traz todo
conhecimento e instrução aos perdidos na ignorância e trevas
do pecado.

377
27
CRISTO O SACERDOTE
Em nossa consideração da obra do Senhor Jesus Cristo,
descobrimos que, essencialmente, Ele é descrito nas Escrituras
como o Mediador, Aquele que Se posiciona entre Deus e nós. E,
além disso, vimos que Ele exerce três funções primordiais como
Mediador: Ele é Profeta, Sacerdote e Rei, e dependemos dEle
nessas três formas. Em razão da terrível ignorância que resulta
do pecado, necessitamos de alguém para ensinar-nos. Visto que
o pecado é constantemente descrito nas Escrituras como
ignorância - pecadores são aqueles que jazem nas trevas, suas
mentes são obscurecidas, carecem de ser iluminados - Ele veio
como a Luz do mundo, o Mestre, o Profeta, e já consideramos as
formas nas quais Ele profetiza.
Agora prosseguiremos, considerando o que as Escrituras nos
relatam sobre Ele como Sacerdote. Enquanto que sacerdote é
aquele que nos representava diante de Deus, o profeta é aquele
que representava Deus diante de nós. Profeta é alguém que veio
com uma mensagem da parte de Deus ao homem; sacerdote é
alguém que vai a Deus da parte do homem, alguém que se
aproxima de Deus a favor do homem. E, como já dissemos,
estaremos constantemente reiterando e enfatizando a nossa
suprema necessidade, que é, evidentemente, a necessidade de
um sacerdote. Precisamos não só de ser libertados das trevas do
pecado e de sua ignorância; precisamos ainda mais de ser
libertados de sua culpa e da pobreza vinculada à culpa conseqüente
do pecado.
Ora, a Bíblia nos ensina em toda parte que o Senhor Jesus
Cristo é o nosso grande Sumo Sacerdote - o que significa isso
exatamente? Há um maravilhoso relato disso em Hebreus 5:1-5.
O objetivo do autor ao escrever sua Epístola, em certo sentido,
foi mostrar a preeminência do Senhor Jesus Cristo.
Especificamente, ele queria mostrar Sua preeminência sobre

378
Arão, e especialmente que Ele é o grande Sumo Sacerdote que
realizou essa obra perfeita. Mas o autor diz que se encontra em
meio a dificuldades. Sua dificuldade consiste em que ele deseja
explicar o fato de que o Senhor Jesus Cristo é o nosso grande
Sumo Sacerdote “segundo a ordem de Melquisedeque”; porém,
diz ele, “muito temos que dizer, de difícil interpretação;
porquanto vos fizestes negligentes para ouvir” (Heb. 5:11). Então
ele prossegue explicando-o um pouco, e afirma que sua dificuldade
se deve ao fato de que os cristãos hebreus são ainda vacilantes
sobre os “princípios rudimentares” da doutrina de Cristo. São
ainda “bebês”, porque estão ainda vivendo com leite espiritual
e religioso, e não são capazes de digerir carne, nunca exercitando
realmente as faculdades e os poderes que Deus mesmo lhes dera
a fim de discernirem as coisas boas e as ruins.
E, infelizmente, há ainda grande número de cristãos que se
acham nessa posição e que dizem: “Não posso suportar doutrina;
é pesada demais para mim. Acho-a uma coisa difícil e enfadonha.
Apresente-me um tipo de preleção da Bíblia que fará Hebreus
completamente compreensível em apenas uma noite e ficarei
feliz, mas essa doutrina é por demais difícil de se seguir.” Ora,
se esse for o caso, a única coisa verídica sobre tais pessoas é que
são crianças em Cristo, e em virtude de tantos dentre elas serem
ainda crianças é que perdem muito da fé cristã, e além disso se
vêem tantas vezes em dificuldades e perplexidades, não sabendo
o que fazer nem o que pensar.
Ao mesmo tempo, porém, não devemos concluir que isso
signifique que essas doutrinas sejam simples. E é devido elas
não serem simples que com tanta freqüência se tornaram a causa
de dificuldade ao longo da história da Igreja Cristã. Presumo
que não há outro tema sobre o qual tem havido mais confusão
do que esta doutrina que agora estamos considerando. O diabo
obviamente tem estado preocupado em atacar a fé mais neste
ponto do que em qualquer outro. Esta doutrina é algo crucial,
tanto que ele tem concentrado sua energia nela, de uma forma
excepcional, e o resultado é que, através dos séculos, encontramos
erros e heresias em relação a esta questão, e ainda os encontramos

379
neste mundo moderno. Mas isso mostra o quanto é realmente
importante estudá-la, por mais difícil que possa ser, para que
saibamos o que a verdade é, e então estaremos em condição de
refutar os falsos ensinos que nos cercam.
É por isso que as seitas se encontram tão ativas neste
presente tempo. Falsos mestres alegam que são os únicos que
possuem a fé cristã real, e que todos aqueles dentre nós que
pregamos a fé evangélica não enfatizamos o que eles enfatizam.
Ora, a única coisa a fazer com todos esses ensinos é examinar o
que eles têm a dizer sobre a expiação, sobre o meio de
reconciliação. E se fizermos isso, descobriremos que é
precisamente nesse ponto que eles são defeituosos. De modo
que isso se torna da máxima importância para nós. É sempre
importante que saibamos o que fazer e no que crer, mas é de
uma importância tremenda se desejamos salvaguardar, tanto a
nós mesmos quanto aos outros que porventura sejam mais fracos
que nós, de sermos desviados por essas fortes ilusões e sutilezas
do pecado que tão constantemente se disfarçam hoje como anjos
de luz.
Daí parecer-me que a melhor maneira de encarar esta questão
é começar, antes de tudo, por uma abordagem do que a Bíblia
nos ensina sobre um sacerdote ou o sacerdócio em geral. Essa é
uma forma muito positiva de nos aproximarmos desta doutrina,
e existe um grande volume de ensino bíblico sobre este tema.
Noutras palavras, a maneira de descobrir o que a Bíblia diz sobre
o próprio Senhor como o grande Sumo Sacerdote é tomá-lo num
nível mais baixo e começar daí, visto que todo ele é uma única
peça - o Velho Testamento aponta para o Novo. Ele é uma espécie
de tipo do qual Cristo mesmo é o antítipo.
Portanto, o que sabemos sobre a natureza e a função de um
sacerdote? Bem, a melhor definição que encontramos em
qualquer parte da Bíblia é naqueles cinco primeiros versículos
de Hebreus, capítulo 5. Deixem-me apresentar-lhes alguns pontos
do que somos informados sobre um sacerdote.
A primeira informação que temos é que ele deve ser tomado
dentre os homens a fím de ser seu representante (v. 1).

380
A segunda é que ele é escolhido e designado por Deus -
“Ninguém toma para si esta honra, senão o que é chamado por
Deus, como Arão” (v. 4).
A terceira é que ele age no interesse dos homens nas coisas
pertencentes a Deus. Isso é realçado claramente: “Porque todo
sumo sacerdote tomado dentre os homens é constituído a favor
dos homens nas coisas pertencentes a Deus” (v. 1).
A quarta característica é que ele tem de oferecer dons e
sacrifícios pelos pecados (v. 1).
Esses são os quatros elementos que são enfatizados nesses
versículos. Mas é também ensinado alhures nas Escrituras que
um sacerdote deve ser santo, que deve ser moralmente puro, que
deve ser consagrado ao Senhor. Lemos em Levítito 21:6-8:

“Santos serão a seu Deus, e não profanarão o nome


do seu Deus, porque oferecem as ofertas queimadas do
Senhor, o pão do seu Deus: portanto serão santos. Não
tomarão mulher prostituta ou infame, nem tomarão mulher
repudiada de seu marido; pois santo é a seu Deus. Portanto
o santificarás, porquanto oferece o pão do teu Deus: santo
será para ti, pois eu, o Senhor que vos santifica, sou santo. ”

Os sacerdotes eram separados; não tinham a obrigação de


fazer certas coisas que as demais pessoas tiveram que fazer; eram
consagrados ao Senhor. Por conseguinte, podemos sumariar a
função de um sacerdote da seguinte maneira: o sacerdote é
essencialmente um mediador que faz duas coisas principais. Em
primeiro lugar, ele faz propiciação por meio de sacrifícios; e em
segundo, ele intercede a favor do povo. Vamos fazer uma
avaliação desta palavra “propiciação”. E um termo usado no
terceiro capítulo de Romanos, naquela grande seção que começa
com o versículo 24: “Sendo justificados gratuitamente pela sua
graça, pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual Deus propôs
para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua
justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a
paciência de Deus.” E João a empregou também em sua Primeira

381
Epístola: “E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo”
(1 João 2:2). O que, pois, é propiciação? Ela é aquilo que satisfaz
as exigências da santidade violada; significa uma satisfação que
é feita à santidade violada de Deus.
Até aqui tenho sumariado as funções de um sacerdote através
da exposição desses dois pontos principais. O seu primeiro dever
era propiciar a Deus, e então ele tinha que interceder a favor do
povo, e isso nos traz imediatamente a um aspecto muitíssimo
vital de todo este tema. O sacerdote propicia, oferecendo ofertas
e sacrifícios; não podemos ler o Velho Testamento sem cruzar
constantemente com esse fato. Entretanto, tenho visto muitos
cristãos que nunca leram essas partes das Escrituras; dizem que
não conseguem entendê-las. Concordo que são difíceis, mas são
mencionadas no Novo Testamento, e especialmente na Epístola
aos Hebreus. Portanto, focalizemos o ensino principal das
Escrituras sobre ofertas e sacrifícios.
Ora, eles foram oferecidos tanto antes do tempo de Moisés
quanto depois dele. Ofertas e sacrifícios foram, contudo,
definidos de uma forma especial na lei que Deus deu a Moisés -
vocês os encontrarão no livro de Levítico. Eles se encontram
organizados e definidos de uma forma muito detalhada ali, porém
houve ofertas e sacrifícios antes disso. Portanto, que significado
devemos atribuir-lhes? Não é necessário gastarmos tempo em
tratar extensamente dos falsos conceitos, embora me sinta
fortemente tentado a fazer isso, porquanto há tantos hoje que
lêem livros sobre o que se chama “Religiões Comparadas”, onde
muitas falsas idéias são ensinadas sobre esses assuntos. Não só
isso, porém todos os que conhecem algo sobre a obra missionária
nos diferentes países sabem muito bem que o povo pagão tem
noções totalmente errôneas quanto ao propósito e função de
ofertas e sacrifícios.
Assim, mencionemos apenas de passagem, rapidamente,
alguns desses falsos conceitos. Existem aqueles que crêem e
ensinam que a principal função dessas ofertas e sacrifícios
consiste em servir como uma espécie de dom que é destinado a

382
assegurar favor. Esse, dizem, é o seu objetivo. As pessoas fazem
oferendas a fim de angariar o favor de seu deus. E há aqueles que
ensinam que tal é o significado dessas coisas na Bíblia. Dizem
que não devemos crer no que a Bíblia nos diz, porque ela nos
afirma que Deus fez o homem perfeito, e que o homem começou
em boas relações com Deus e em seguida se transviou. Eles,
porém, ensinam que os homens começaram como os animistas
que pensavam que cada objeto natural tinha seu próprio deus.
Eles subiram a escala até que eventualmente chegaram a crer
num só Deus, mas retiveram, por assim dizer, suas idéias
primitivas de sacrifícios, as quais foram incorporadas
erroneamente no cristianismo.
Ou diz-se que um sacrifício é uma espécie de símbolo que
representa uma comunhão de vida com um deus. Os homens
matam um animal e tomam o sangue desse animal e o derramam
no altar. Crêem que o espírito de seu deus está no animal.
Portanto, ao derramarem o sangue do animal no altar, acreditam
que passam a ter comunhão com o deus através desse símbolo
do sangue.
Há ainda outros que crêem que os sacrifícios são uma espécie
de comunhão sacramental. Dizem que Deus está realmente no
animal. Portanto, quando matam o animal e o comem, estão se
alimentando de seu deus, e estão recebendo sua vida e dessa forma
estão sendo edificados nele.
Outros ensinam que os sacrifícios e ofertas são apenas uma
forma de prestar homenagem ou tributo a um deus.
Essas, pois, são as falsas idéias acerca de ofertas e sacrifícios.
Mas, o que é ensinado nas Escrituras? Para que possa responder-
-lhes, preciso apresentar-lhes um novo termo. O que é ensinado
nas Escrituras é que as ofertas e sacrifícios, especialmente as
ofertas pelo pecado e transgressões - e esse foi o caso antes que
o sistema mosaico fosse introduzido - erampiaculares. Ora, qual
é o significado disso? Bem, dei-me o trabalho de consultar dois
volumes do Dicionário Oxford para ver o que ele teria a dizer
sobre esse termo, e ele disse que o mesmo quer dizer expiatório.
Pensei: “Isso é muito interessante; próprio de um dicionário -

383
ele nos mantém à busca de palavras! Vocês se vêem em
dificuldade com o termo piacular, então se vêem confrontados
com o termo expiaçãol" Entretanto, focalizemos alguns desses
termos juntos, porque são de vital importância, e devemos ter o
seu significado bem nítido em nossas mentes.
O primeiro é propiciação, que significa, como já vimos,
satisfação das exigências pela santidade violada.
O segundo é expiação. Expiar significa extinguir a culpa,
quitar a pena, fazer reparação por algo. Quando o pecado é
expiado, ele é descartado, é apagado, é eliminado, é abolido.
O terceiro é reconciliação. Reconciliar significa estabelecer
acordo. Na verdade, significa da mesma opinião. Significa que
duas pessoas que anteriormente estavam desunidas são re-unidas
e procedem como se fossem uma só. Portanto, todo o propósito
da reconciliação consiste na restauração de relações amigáveis
entre duas partes que anteriormente estavam separadas. E a
grande doutrina bíblica da reconciliação nos informa como Deus
e os pecadores foram re-conciliados, como a mesma opinião foi
produzida.
E assim, sumariando, há três coisas principais que são os
elementos essenciais para nosso Senhor agir como nosso
Sacerdote, a fim de assegurar esta reconciliação de pessoas
pecaminosas com Deus. Primeiramente, satisfação precisa ser
oferecida ao Deus ofendido (propiciação). Em segundo lugar,
deve haver uma substituição de sofrimento e morte por parte de
alguém que é inocente para a merecida punição da culpa
(expiação). E em terceiro lugar, uma sociedade de vida precisa
ser efetuada entre aquele que tem sido ofendido e o ofensor
(reconciliação). Ora, a alegação das Escrituras é que o Senhor
Jesus Cristo já fez tudo isso.
Se vocês olharem para tudo isso em termos dos sacrifícios
do Velho Testamento, e o que era reivindicado para eles, então
verão que eles faziam essas três coisas. Por exemplo, somos
informados muito definida e explicitamente em Levítico 1:4:
“E porá a sua mão sobre a cabeça do holocausto, para que seja
aceito por ele, para a sua expiação.” E em 4:20: “E fará a este

384
novilho como fez ao novilho da expiação; assim lhe fará, e o
sacerdote por eles fará propiciação, e lhes será perdoado o pecado.”
Então, lemos novamente em Levítico como o povo, ou o
sacerdote o representando, tinha que pôr suas mãos sobre a
cabeça do animal que estava para ser sacrificado - qual era o
objetivo de se fazer isso? Era o sinal da transferência de seus
pecados e sua culpa para o animal que seria morto em seu lugar.
E assim podem ver que o sacrifício era definitivamente
expiatório - a culpa era transferida a fim de que o pecado e a
culpa pudessem ser removidos.
Da mesma forma, lemos sobre a aspersão do sangue sobre o
altar e sobre o propiciatório. Essas gotas de sangue eiam outra
memória do pecado, demonstrando que a vida está no sangue, e
que essa vida tinha sido tirada e derramada no propiciatório, a
fim de que o povo pecaminoso pudesse ser reconciliado com
Deus. A ofensa que fora cometida era desse modo tratada. E
além do mais, evidentemente, somos constantemente informados
no Velho Testamento que o resultado de se fazer tudo isso era
que os pecados do povo foram desse modo perdoados e cobertos
(Lev. 4:26).
Esse parece ter sido o grande ensino dos sacrifícios do Velho
Testamento. Eles eram oferecidos a favor do povo eleito de Deus,
os filhos de Israel que, embora fossem filhos de Deus, ainda caíam
em pecado e dessa forma entravam numa relação errônea com
Deus. E o propósito das ofertas queimadas e dos sacrifícios era
para que o povo de Deus pudesse ser restaurado novamente à
sua comunhão e seu pacto com Ele, ao seu lugar e privilégio
como Seu povo, para que pudesse desfrutar de Suas bênçãos que
haviam sido perdidas, ou por negligência ou por transgressão.
E, evidentemente, outra grande função era que os sacrifícios
e as ofertas queimadas eram tipos do Senhor Jesus Cristo e a
maneira de Deus reconciliar o homem conSigo. Apontavam para
Ele de várias formas. Voltaremos, porém, a esse ponto mais
adiante.
Aí, pois, está o principal ensino escriturístico com respeito
à função de um sacerdote. Temos visto o que era próprio dele.

385
Ele era um homem, e vimos que sua obra consistia em fazer
sacrifícios, e sacrifícios por essas razões, e ao mesmo tempo ele
continua a interceder pelo povo.
Ora, o grande testemunho das Escrituras, em todo lugar, é
que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é o nosso grande Sumo
Sacerdote. Antes de apresentar-lhes as evidências bíblicas,
deixem-me realçar que há uma grande diferença entre Ele e tudo
o que lemos sobre os sacerdotes do Velho Testamento. No Velho
Testamento, o sacerdote tinha que suprir-se de seus sacrifícios
- o cordeiro, etc. - mas no caso do Senhor Jesus Cristo, o
sacerdote e o sacrifício eram uma e a mesma coisa. Ele é o
Sacerdote. O que Ele ofereceu? Ele ofereceu a Si mesmo, ofereceu
Sua própria vida, Seu corpo, como sacrifício. E assim uma vez
mais descobrimos que Ele combina em Sua Pessoa as coisas que
eram separadas no Velho Testamento. Já vimos que sob a antiga
dispensação o profeta, o sacerdote e o rei eram pessoas distintas;
Cristo, porém, é todas as três ao mesmo tempo.
Portanto, quais são as evidências para afirmarmos que Ele é
o Sumo Sacerdote designado por Deus? Bem, é interessante
observar que só há um único livro na Bíblia que O descreve
direta e explicitamente como Sacerdote, e esse é, evidentemente,
a Epístola aos Hebreus. Hebreus O descreve como tal numa série
de versículos - Heb. 3:1; 4:14; 5:5; 6:20; 7:26: 8:1. Confiram-nos
para si mesmos, é um estudo muito compensador delinear isso e
segui-lo do princípio ao fim.
Mas é evidente que em muitas outras partes o ensino se
acha implícito - por implicação, ele está aí. Por exemplo,
prestem atenção ao nosso próprio Senhor. Ele disse: “Porque o
Filho do homem também não veio para ser servido, mas para
servir e dar sua vida em resgate de muitos” (Mar. 10:45). Isso é
também algo que é constantemente ensinado pelo apóstolo Paulo.
Em Romanos 3:24,25, ele diz: “Sendo justificados gratuitamente
pela sua graça pela redenção que há em Cristo Jesus, ao qual
Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para
demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes
cometidos, sob a paciência de Deus”. Ele diz a mesma coisa em

386
Romanos 5:6-8 e em 1 Coríntios 5:7: “Porque Cristo, nossa páscoa,
foi sacrificado por nós.” 1 Coríntios 15:3 é igualmente uma
grande afirmação desta doutrina, e poderia citar muitas outras.
Encontramos o mesmo ensino nos escritos do apóstolo João.
João Batista disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo” (João 1:29). Também lemos em João 3:14,15: “E, como
Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho
do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não
pereça, mas tenha a vida eterna.” Esses versículos contêm o
mesmo ensino, assim como em 1 João 2:2 lemos: “E ele é a
propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos,
mas também pelos de todo o mundo.” Pedro ensina isso mesmo
em sua Epístola: “Mas com o precioso sangue de Cristo, como
de um cordeiro imaculado e incontaminado” (1 Ped. 1:19).
“Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o
madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver
para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados” (1 Ped. 2:24).
“Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo
pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade,
na carne, mas vivificado pelo Espírito” (1 Ped. 3:18).
E agora a alegação é que Ele é o nosso grande Sumo
Sacerdote, e se examinarem o ensino concernente a Ele à luz
dos desideratos que se acham delineados em Hebreus, capítulo
5, vocês descobrirão que Ele satisfez a cada um deles: Ele é
tomado dentre os homens; Ele não tomou isso para Si mesmo;
Ele é chamado e designado por Deus. Além do mais, Ele faz
representação pelo povo nas coisas pertencentes a Deus e oferece
dons e sacrifícios. Assim Ele cumpre tudo perfeita e
completamente.
E não só isso, mas tendo assim como o Sacerdote oferecido
os sacrifícios, Ele, então, intercede a favor de Seu povo. Aqui
tocaremos apenas de leve neste ponto agora, porque, para
focalizar nosso Senhor como aquele que intercede a nosso favor,
seria antecipar o estudo posterior, mas talvez seria viável
considerar as obras de nosso Senhor como Sacerdote como um
todo. Ele orou por Seus seguidores pouco antes de Sua morte -

387
vocês o encontram em João, capítulo 17, em Sua oração sacerdotal
- e somos informados que Ele “vive sempre para interceder por
eles”, no céu, com Deus (Heb. 7:25). Ele é nosso Advogado, e
faz-se plenamente claro que quando Ele roga em nosso favor,
Sua própria presença é em si mesma uma intercessão, porque
ela é uma recordação da expiação que foi feita, a propiciação
que foi oferecida. Em João, capítulo 17, vemo-10 orando para
que pudéssemos ser guardados do diabo, para que pudéssemos
ser santificados pela verdade, e para que pudéssemos estar onde
Ele está, para observarmos e contemplarmos a glória que Ele
tinha com o Pai desde antes do mundo ser criado.
Sua intercessão é infindável, e nós, como crentes e como
filhos de Deus caminhando pelas vias deste mundo, cairíamos
em pecado - ora, é um bendito conhecimento que temos, que
possuímos um Advogado junto ao Pai, um Advogado que ainda
é a propiciação e que nos reconciliou uma vez para sempre (1
João, capítulo 2). Essa é a única coisa que pode dar-nos segurança
de que nosso pecado é perdoado, que não devemos permanecer
no pecado. Ela nos diz que não devemos atentar para o diabo
quando ele quer que creiamos que por causa desse pecado
perdemos nossa relação com Deus, e que nunca poderemos ser
novamente restaurados. Respondemos a tudo isso, dizendo: o
Advogado está aí e Ele é a propiciação, e sabemos que somos
perdoados, pois “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e
justo, para nos perdoar os pecados, e nos purificar de toda
injustiça” (1 João 1:9).
Assim vocês podem ver que nosso Senhor satisfez todas as
exigências que foram estabelecidas. Ele o fez em Sua Pessoa
através do fato de ter nascido como homem. Ele nunca poderia
ser nosso Sumo Sacerdote se não tivera tomado a natureza
humana para Si. Ele tinha de ser Aquele que é “tomado dentre
os homens”, porquanto a encarnação era essencial. Ele, pois,
tornou-Se homem, o Verbo Se fez carne. Ele tomou para Si a
natureza humana, a fim de poder representar-nos como um
tomado de nosso meio, e conhecer-nos e compreender nossa
condição. Tendo experimentado as fraquezas, embora sem

388
pecado, tendo sido tentado em todos os pontos como somos,
todavia sem pecado, Ele é o Sumo Sacerdote que pode
representar-nos e falar a nosso favor. E vimos que Ele tem uma
oferenda a oferecer, um sacrifício a apresentar que já foi aceito
por Deus. E assim Ele intercede e vive sempre a fazer intercessão
por todos aqueles que se chegam para Deus por intermédio dEle.

389
28
A EXPIAÇÃO
Em nossa consideração destas doutrinas bíblicas, temos
chegado ao ponto em que nos encontramos face a face com a
doutrina acerca da expiação. Já vimos que só há uma maneira
pela qual os homens e as mulheres podem ser reconciliados com
Deus, ou seja, em e através de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo; e temos começado nossa consideração de Sua obra,
partindo, antes de tudo, de Sua Pessoa. A obra é dividida, como
já vimos, segundo as próprias Escrituras: Cristo é Profeta,
Sacerdote e Rei. Já consideramos o ensino concernente a Cristo
como Profeta, e agora estamos considerando Sua obra como
Sacerdote. Já vimos que Ele satisfaz os desideratos que se acham
delineados claramente em Hebreus 5:1-5; Ele cumpre todas
aquelas exigências. E vimos que as duas funções primordiais do
Sacerdote são as de apresentar oferendas e sacrifícios, bem como
fazer intercessão. Encerrei a preleção anterior dizendo que Ele
tem uma oferenda a oferecer e um sacrifício a apresentar, os
quais Deus já aceitou. Isso nos conduz inevitavelmente à
consideração daquilo que nosso Senhor oferece, e ofereceu a
Deus, como nosso grande Sumo Sacerdote. E imediatamente nos
deparamos face a face com a doutrina sobre a expiação. Esta se
preocupa primariamente, mas não exclusivamente, como nos
esforçaremos para enfatizar, com a morte do Senhor Jesus Cristo,
e assim o nosso principal assunto agora será a consideração do
ensino bíblico a esse respeito.
Ora, a grande pergunta é: o que exatamente aconteceu
quando nosso Senhor morreu na cruz? Obviamente, essa é uma
pergunta muitíssimo vital; aliás, a mais vital das perguntas que
poderíamos enfrentar juntos. Ela seria vital mesmo se
focalizássemos essas coisas meramente pelo prisma da
proeminência que é dada a esta verdade no próprio Novo
Testamento. É um fato real que a morte de nosso Senhor na cruz

390
é mencionada diretamente 175 vezes no Novo Testamento, e
indiretamente muito mais vezes. Isso por si mesmo é notável e
impressionante, e mostra a importância que é dada a ela nas
Escrituras do Novo Testamento.
Focalizemo-la, por outro lado, desta forma: tomemos os
quatro Evangelhos; tenhamos em mente que eles são apenas
quatro perfis de nosso Senhor; não nos contam tudo sobre Ele.
João, lembrem-se, concluiu seu Evangelho, dizendo: “Há, porém,
ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais
fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter
os livros que se escrevessem” (João 21:25). Mas esses são escritos;
são simples, se vocês o preferirem, são livros, são perfis. E,
naturalmente, são breves. Cada um dos Evangelhos é um livro
comparativamente curto, e no entanto o que é mais
extraordinário é que em cada um deles quase um terço do espaço
é devotado à morte de nosso Senhor. É exatamente um terço de
Mateus; é quase um quarto de Lucas; e, no caso de Marcos e de
João, é mais de um terço.
Assim podemos dizer que, em média, do espaço que é dado
à vinda do Filho de Deus a este mundo e tudo o que fez e falou,
um terço é dedicado à Sua morte e aos eventos que imediatamente
a precedem. Portanto, obviamente, a implicação é que os
Evangelhos, conseqüentemente, nos levam a descobrir que
enquanto Sua encarnação, Sua vida e ensinos são de vital
importância, o evento que excede a todos os demais em
importância é Sua morte na cruz. Eis aí outra razão por que
devemos considerar este ponto com muita prudência,
especialmente, permitam-me lembrar-lhes, quando temos em
mente que as pessoas que escreveram os Evangelhos, sob a
direção e orientação do Espírito Santo, sabiam muito bem que
essa coisa particular que estavam enfatizando era, como Paulo
lembra aos coríntios, uma “pedra de tropeço” para os judeus, e
“loucura” para os gregos (vejam 1 Cor. 1:23). Ainda que soubessem
tudo isso, puseram-no em primeiro plano.
Então, quando olhamos para o livro de Atos, descobrimos
que à Sua morte é dada a mesma proeminência. O método do

391
apóstolo Paulo, por onde quer que fosse, era entrar nas sinagogas
e fazer duas coisas. Ele provou e estabeleceu que “convinha que
o Cristo padecesse”, e, segunda, ele dizia que “esse Jesus, que
vos anuncio, é o Cristo” (Atos 17:3). E quando lemos as Epístolas,
a mesma coisa se torna fartamente clara. O apóstolo diz: “Porque
nada me propus saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este
crucificado” (1 Cor. 2:2). E prossegue reiterando-o: “vos entreguei
o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados,
segundo as Escrituras” (1 Cor. 15:3). E ainda há outros versículos
similares.
Além disso, quando vocês olham para as Epístolas dos outros
escritores, deparam-se com a mesma coisa. Pedro escreve:
“Sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou
ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver... mas
com o precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro imaculado
e incontaminado” (1 Ped. 1:18,19). “E ele é a propiciação pelos
nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos
de todo o mundo” (1 João 2:2). E o mesmo ocorre no Apocalipse.
"... e lavaram os seus vestidos e os branquearam no sangue do
Cordeiro” (Apoc. 7:14), e dessa forma por diante. E dessa forma,
qualquer um que leia o Novo Testamento, mesmo
superficialmente, a não ser que seja vítima de sério preconceito,
inevitavelmente terá a impressão de que, segundo os escritores
deste Livro, pelo menos, a morte do Senhor Jesus Cristo é de
suprema importância. Essa é a razão por que somos obrigados a
considerar tudo isso, e as inevitáveis perguntas que nos
confrontam são: o que exatamente aconteceu lá? O que
realmente aconteceu quando nosso Senhor morreu na cruz? Qual
é o sentido, a explicação, dessa morte?
Ora, eu sei que muitos não se preocupam realmente em saber
dessas coisas. Dizem: “Não, eu não sou teólogo nem me preocupo
com doutrina. Tudo o que eu sei é que a cruz é grandiosa e
maravilhosa, e que o Senhor morreu lá.” E há muitos que
parecem concluir que essa é a atitude correta. Acreditam que
isso é por demais sagrado para alguém examinar, e que nunca
devemos chegar à cruz com nossa mente, mas só com nosso

392
coração; que a doutrina acerca da cruz é algo para ser sentido,
não para ser entendido. Não há, porém, perigo mais terrível que
esse. Se eu entendo corretamente o Novo Testamento, não há
lugar aonde devemos ir mais prudentemente com nossas mentes
em plena atividade do que à cruz do Calvário. E lhes direi por
que: porque esse é o elemento central; não há verdade sobre a
qual o adversário e inimigo de nossas almas esteja mais disposto
a transtornar-nos e a confundir-nos do que esta verdade
particular.
A história da Igreja, como lhes mostrarei abreviadamente,
é algo que contém interminável registro desse fato. Coloquemo-
-lo na seguinte forma: as pessoas que não se interessam por
doutrina dizem que tudo de que necessitam é cair de joelhos
diante da cruz; dizem que não estão interessadas no significado.
Minha resposta, porém, é que tal coisa é impossível. Todo mundo
tem algum vislumbre da cruz. E quando vocês dizem que crêem
em Cristo e olham para a cruz, é preciso perguntar a si mesmos
sobre aquilo no que vocês acreditam. Vocês têm sua própria
interpretação, e em razão do terrível perigo de se ter uma
interpretação errônea, devemos examinar a verdade e estarmos
certos de que somos bíblicos em nosso entendimento quanto ao
que aconteceu na cruz.
Enfatizo isso porque percebo que tantas pessoas - perdoem -
-me por dizê-lo mais uma vez, porém esse fato é algo sobre a
posição evangélica que realmente me alarma - tantas pessoas
têm a tendência de afirmar que não importa muito o que a pessoa
crê, que as definições doutrinárias não contam se as pessoas
apenas falarem da cruz. Lembro-me do que certo homem me
disse há poucos anos atrás: “Ouvi dizer que fulano - epronunciou
o nome de um notório pregador - recentemente tem mudado.”
“Oh!”, respondi, “sobre que bases?”
“Bem”, disse o homem, “ele acaba de produzir um livro de
sermões sobre a cruz.” E em razão desse pregador ter feito isso,
meu amigo presumira que ele se tornara um evangélico. Mas
quando ele leu o livro, então descobriu que o conceito do homem
não havia mudado; era um conceito que tornava a cruz de

393
nenhum proveito. Ele impusera aos registros suas próprias
fantasias e idéias filosóficas. É bastante perigoso presumir que,
só porque alguém está sempre falando da cruz - ele pode até
mesmo ter uma cruz suspensa sobre o púlpito ou em algum outro
lugar em sua igreja - que ele tem autêntica doutrina da cruz.
Não, a pergunta é: o que cremos sobre a cruz? E o apóstolo
Paulo quem nos fala que podemos esvaziá-la de todo e qualquer
efeito - “por meio de filosofias e vãs sutilezas” (Col. 2:8). A cruz
de Jesus Cristo, a morte de Cristo, continua sendo uma ofensa
ao homem ou à mulher natural, e às vezes percebo que revelam
isso muito mais claramente quando falam dela de uma forma
equivocada e falsa. E assim não peço desculpas por considerar
com vocês algumas das idéias errôneas acerca do que aconteceu
quando o Filho de Deus morreu na cruz.
Alguns a consideram como uma tragédia, ou como um
acidente. Dizem que ela foi uma dessas coisas que jamais
deveriam ter acontecido; foi inteiramente por conta da estupidez
do povo. Dizem ainda que em parte foi por motivo político. Os
sumos sacerdotes, os fariseus e os escribas criam que o povo
estava sendo enganado, e que existia o perigo de sua própria
autoridade lhes ser tirada, daí planejarem um partido de oposição.
Tais pessoas vão mais longe, dizendo que ela foi algo que tomou
nosso Senhor completamente de surpresa; que Ele nunca a
esperava, e que quando Ele disse: “Está consumado”, na realidade
Ele estava dizendo (esta citação faço-a de um livro): “Está
acabado!” Sua vida tinha terminado em fracasso. Ele podia, dizem
eles, ter persuadido o povo a segui-10 e a viver uma vida piedosa,
mas o povo não O ouviu. O Senhor Jesus tinha apenas trinta e
três anos. Que tragédia para um mestre tão jovem ser entregue à
morte tão inesperadamente, tão surpreendentemente, em especial
para Ele próprio.
Ora, estou absolutamente certo de que não me é necessário
refutar algo que se acha tão longe do ensino bíblico. Nosso Senhor
falou sobre a cruz, e Ele preparou Seus próprios seguidores para
ela, especialmente depois da confissão de Pedro em Cesaréia de
Filipe, quando nosso Senhor imediatamente começou a ensinar

394
aos discípulos sobre a cruz, sobre Sua morte e ressurreição. Pedro
objetou em razão de não haver entendido, mas, observem bem,
o Senhor estava começando a instruí-los (Mat. 16:13-23). Noutra
ocasião, Ele disse: “Bem como o Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de
muitos” (Mat. 20:28) - essa era uma afirmação explícita da razão
por que Ele veio a esta terra e morreu. Leiam especialmente o
Evangelho de João, e mantenham seus olhos postos na frase “a
hora”. Nosso Senhor reiteradamente falou sobre certa hora que
estava por vir, a hora para a qual Ele viera ao mundo; ela estava
para chegar; era a hora de Sua morte, conduzindo finalmente à
Sua glorificação (João 12:23; 17:1). Então somos informados que
no Monte da Transfiguração, Moisés e Elias falavam sobre “sua
morte, a qual havia de cumprir-se em Jerusalém” (Luc. 9:31).
Acaso não somos também informados que Ele “manifestou o
firme propósito de ir a Jerusalém”? (Luc. 9:51), e quando Seus
discípulos O advertiram contra Sua ida, Ele disse: “para que não
suceda que morra um profeta fora de Jerusalém” (Luc. 13:33).
Ele sabia que estava indo para morrer.
Essa outra idéia é monstruosa demais, visto que há toda
essa abundante evidência para mostrar que Ele veio ao mundo a
fim de morrer. Como o autor da Epístola aos Hebreus o coloca,
Ele veio para que “provasse a morte por todos” (Heb. 2:9). Ele
nos diz depois sobre isso: “E, visto como os filhos participam
da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas,
para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte,
isto é, o diabo” (Heb. 2:14). Em seguida somos informados que,
após Sua ressurreição, Ele falou a Seus discípulos, que se achavam
um tanto confusos, e exortou-os a que lessem as Escrituras,
realçando que veriam nas Escrituras que tudo quanto Lhe havia
acontecido fora anunciado, e que Ele viera para cumprir as coisas
que Deus havia realmente prometido (Luc. 24:13-35).
Então, quando chegamos às explanações dos próprios
apóstolos em seus escritos, os encontramos afirmando
exatamente a mesma coisa. Em seu sermão no dia de Pentecoste,
Pedro não disse que a morte de Cristo havia sido um acidente.

395
Ele disse: “A este que vos foi entregue pelo determinado conselho
e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes
pelas mãos de injustos” (Atos 2:23). E ele reitera essa mensagem
em sua Primeira Epístola. Ele nos diz que este fato foi planejado
na eternidade; que agora tinha literalmente acontecido, e estava
sendo anunciado e declarado (1 Ped. 1:20).
Permitam-me, porém, realçar algo que é de fascinante
interesse nesta conexão. Há uma passagem muitíssimo impor­
tante no Evangelho de Mateus. Mateus 26:1-5, especialmente o
versículo 5, o qual soluciona esta questão uma vez para sempre.
No versículo 5, a palavra “dia” não deveria estar lá; o que as
autoridades disseram foi: “Não durante a festa, para que não
haja alvoroço entre o povo.” Ora, o que tudo isso significa é o
seguinte: lá estava nosso Senhor na terça-feira daquela semana,
que hoje é às vezes chamada Semana Santa. Ele estava
anunciando que seria traído e seria crucificado na sexta-feira:
“Bem sabeis que daqui a dois dias é a páscoa” - eis a primeira
coisa - “e o Filho do homem será entregue para ser crucificado”
- Ele estava fixando o tempo. Observem que as autoridades que
tramavam Sua morte, disseram: “Não durante a festa.” Noutras
palavras, eles concordaram que Ele não deveria ser crucificado
na “sexta-feira santa”, mas Ele foi crucificado naquele dia, como
vocês o sabem. Ora, o costume era que os judeus não deviam
entregar ninguém à morte durante a festa - se quiserem
confirmação disso, a acharão em Atos, capítulo 12, onde somos
informados que Pedro fora preso pelo rei Herodes, porém lhe
disseram que o mantivessem na prisão porque “eram os dias dos
pães asmos” (Atos 12:3,4). Entretanto, nosso Senhor não só sabia
que estava para morrer, mas Ele sabia o exato momento em que
morreria, e advertiu-os sobre Sua morte durante os três dias
antecedentes. Todavia, pessoas nos dizem com entusiasmo que
ela O tomou de surpresa, que ela foi acidente!
Outra idéia errônea - e aqueles que a sustentam sentem que
estão um pouquinho mais avançados que aqueles citados
anteriormente - é que Sua morte foi a de um mártir. O que
querem dizer é isto: aqui está esse Mestre magnífico. O povo

396
tentava levá-lO a retratar-Se, Mas Ele Se recusou. Estava pronto
para morrer, e assim morreu a morte de um mártir. Ao meu ver,
uma afirmação simples pode ser formulada sobre isso, e o digo
com reverência. Se a morte do Senhor Jesus Cristo foi a morte
de um mártir, e nada mais, então Ele era inferior a muitos
mártires que morreram neste mundo. Provo-o da seguinte forma:
toda a glória dos mártires consiste em que eram levados à estaca,
ou a qualquer outro instrumento de martírio, com triunfo e
regozijo. Agradeciam a Deus porque afinal foram achados dignos
de sofrer por amor do Seu nome - aliás, regozijavam-se enquanto
as chamas lambiam sua própria carne.
Assim era a morte de um mártir. O que vocês descobrem,
porém, quando se aproximam de nosso Senhor? Vocês percebem
que toda vez que Ele refletia sobre ela Ele gemeu no espírito.
Quando soube que Sua hora havia chegado, disse: “Agora a
minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta
hora? mas para isto vim a esta hora” (João 12:27). Contudo o
pensamento estava lá: podería Ele ser poupado desta hora? Ele
Se retraía dela. Qual é o significado da agonia no Jardim do
Getsêmani? Ele implorou a Seu Pai: “Meu Pai, se é possível,
passe de mim este cálice” (Mat. 26:39). Os mártires nunca oravam
assim. Não, a resposta é muitíssimo simples: aquela não era a
morte de um mártir. Essa é a única explicação: ela era de uma
categoria propriamente sua, ela era maior em todo sentido que a
morte de qualquer mártir que já houve ou possa haver. Foi uma
morte única, a qual só pode ser adequadamente explicada de uma
única forma.
Muito bem, Sua morte não foi um acidente. Não foi uma
tragédia. Não foi a morte de um mártir. Nem foi algo que pudesse
ter acontecido ou não, e tudo estaria muito bem. Não, o Novo
Testamento deixa suficientemente claro que ela foi algo que era
essencial à salvação do homem. No entanto, mesmo quando o
tiverem expresso dessa forma, vocês ainda não terão dito o
suficiente. De que maneira ela foi essencial? Ora, é nesse ponto
que uma variada gama de explicações tem-se promovido ao longo
de toda a história da Igreja, e continua sendo promovido. Há

397
aqueles, por exemplo, que ensinam que a morte de Cristo é para
nossa salvação, porém é apenas uma parte de nossa salvação. A
explicação que apresentam para este ponto de vista é
completamente antibíblica. Portanto, uma vez mais peço-lhes
que considerem algumas dessas falsas explicações antes que
passemos à genuína explicação. Permitam-me ser bem explícito
sobre isso. Eu não seria tolo o bastante para insinuar que posso
entender exaustivamente o significado da morte de meu Senhor
na cruz. Não posso. Mas posso afirmar que uma explicação é
apresentada nas próprias Escrituras, a qual devo defender. E devo
testar qualquer ponto de vista que alguém venha a promover
com respeito à morte de nosso Senhor mediante aquilo que as
Escrituras dizem que eu devo conhecer. Como já vimos, é nosso
dever sempre ir até onde as Escrituras nos levam. E nosso dever
jamais tentar ir além disso, e creio que serei capaz de mostrar-
-lhes que em tudo que demonstrarei não estou indo além da
revelação. Mas certamente que estou indo, e devo ir, até onde a
revelação me levar.
Portanto, consideremos algumas das falsas teorias que se
têm promovido ao longo dos séculos, e continuam sendo
promovidas em relação à morte de nosso Senhor. Eis a primeira
- estou considerando-as historicamente - é a assim chamada
teoria do resgate, não a genuína doutrina do resgate, e sim uma
teoria falsa. Até mesmo alguns dos cristãos antigos ensinaram
que quando nosso Senhor morreu na cruz, Ele estava
homenageando o diabo; Ele estava pagando um preço de resgate
ao diabo, a fim de que pudesse libertar os que eram mantidos
cativos. Ora, nossa resposta é que não há qualquer afirmação
escriturística sobre isso. As Escrituras apresentam ensinamento
acerca do diabo e seus poderes em relação à cruz, e voltarei a
esse ponto, mas de forma alguma eles sugerem que ele tenha
algum direito ou autoridade. Ele não passa de usurpador; ele não
possui qualquer direito, e nosso Senhor não o reconheceu em
hipótese alguma. Portanto, devemos rejeitar essa teoria in toto.
O próximo falso ensino foi promovido perto do fim do
undécimo século, por um arcebispo de Cantuária chamado

398
Anselmo. Indubitavelmente foi a primeira tentativa feita para
formular uma falsa doutrina da expiação ou da morte de nosso
Senhor. Qual é a teoria de Anselmo? Às vezes era chamada teoria
da satisfação ou comercial. Ela diz que quando o homem pecou, a
honra de Deus - não a justiça, notem bem - foi ferida. O pecado
foi um insulto a Deus e, portanto, diz Anselmo, antes que os
homens e as mulheres pudessem ser libertados e perdoados, a
honra de Deus teve que ser vindicada, de algum modo. Mas os
homens e as mulheres por si mesmos não poderiam fazer isso,
visto que haviam pecado contra Deus. Deus poderia responder-
-lhes de uma maneira, entre duas: poderia castigá-los ou perdoá-
-los. Entretanto, afirmava Anselmo, Deus não pôde perdoar até
que Sua honra fosse satisfeita. Assim, o ensino era que nosso
Senhor teria que vir pagar tributo à honra de Deus.
Anselmo disse que, por Sua morte, Cristo pagara esse tributo
à honra de Deus. Ele era impecável, e não precisava morrer,
porém morreu, e assim trouxe infinita glória a Deus. Em servindo
a Deus, Ele foi até à morte da cruz, e desse modo Ele fez algo
além do que era necessário. Ele havia cumprido a lei, porque
estava “debaixo da lei” (Gál. 4:4), e a honra de Deus foi satisfeita.
E assim Deus ficou feliz e quis recompensar a Seu Filho por
morrer, mas o Filho não necessitava de nenhuma recompensa
para Si mesmo, e disse: “Dá a recompensa ao povo.” Essa teoria
nos levaria a crer que nossa salvação é uma obra de supererroga-
ção, uma espécie de obra extra que o Senhor fizera e nos dera
como uma recompensa gratuita. Ora, suscitam-se muitas objeções
a essa teoria, as quais espero mostrar-lhes quando viermos a
considerar o ensino da substituição e a explicação da morte de
Cristo. A objeção vital, porém, a essa idéia particular de Anselmo
é que ela não menciona a justiça de Deus, e sim, meramente um
tipo de honra ferida. A morte de Cristo não é, pois, essencial,
enquanto que o ensino bíblico demonstra que é a justiça de Deus
que faz a morte de Cristo absolutamente essencial.
Outra teoria é comumente chamada a teoria da influência
moral. Hoje ela é a mais popular das teorias. Deixem-me sumariá-
-la desta forma: ela diz que Deus não tinha dificuldade em

399
perdoar-nos. No tocante a Deus, não havia necessidade de fazer
coisa alguma. Seu amor é tão imenso, que sempre, em todo
sentido, é cheio de perdão. Mas a dificuldade era fazer a espécie
humana crer nisso. Portanto, dizem eles, o que realmente
aconteceu na cruz foi uma maravilhosa exibição do amor de
Deus. Lembro-me ainda de certa vez ouvir o sermão de um
homem que ridicularizava a expiação substitutiva. “Vocês não
devem dizer”, afirmava ele, “que Deus estava oferecendo perdão
por causa da cruz. Deus perdoa mesmo sem a cruz. A cruz, porém,
era a prova do amor de Deus. Deus está nos falando na cruz:
“Embora vocês tenham matado a meu próprio Filho unigénito,
eu ainda os perdoarei.” A morte de Cristo foi uma manifestação
do amor de Deus. Na cruz, vemo-10 sofrendo em e com Suas
criaturas pecadoras, bem como tomando sobre Si as dores e
tristezas da vida humana. Por conseguinte, a cruz é destinada a
arrasar-nos; quando olhamos para ela nossos corações
empedernidos devem sentir-se enternecidos. A morte de Cristo
é destinada unicamente a fazer alguma coisa para nós.
Ora, essa teoria, igualmente, segundo creio que veremos
quando chegarmos à teoria positiva, é inteiramente errônea,
porque não faz nenhuma menção da justiça de Deus. Ela diz que
nada era necessário do lado de Deus - não havia obstáculo algum
aí - mas o problema era tão-somente com o homem. Portanto,
Cristo não é um mediador, porque Ele estava tratando do homem,
e não de Deus, de maneira nenhuma. A teoria ignora totalmente
algumas das mais gloriosas afirmações bíblicas, as quais
consideraremos juntos.
Outra idéia é que a morte de Cristo não passa de um
exemplo. Ele veio ao mundo para viver uma vida perfeita. Ele
guardou a lei, sim, e quis deixar um bom exemplo de obediência
a Deus e à Sua vontade, por isso Ele foi até à morte. Ele estava
disposto a fazer até mesmo isso, a fim de fazer a vontade de
Deus e desse modo prover-nos de um exemplo. A resposta a isso
é que ainda temos de salvar a nós mesmos, e fazemos isso
imitando o Seu exemplo. Não somos salvos por Ele; não é
Seu sangue que nos redime. Além do mais, o que dizer daqueles

400
que viveram antes de Cristo?
Outra teoria leva o nome de teoria governamental. Menciono-
-a em parte porque foi o ponto de vista sobre a cruz que foi
advogado pelo grande pregador do último século, o Dr. Dale de
Birmingham. Originalmente proposta por Grotius, um holandês
do século dezessete, ela afirma que a morte de nosso Senhor não
ocorreu porque a justiça de Deus a exigisse, visto que a lei de
Deus não é algo absolutamente final. Caso desejasse, Ele poderia
mudá-la. Daí Ele poderia ter perdoado os homens e as mulheres
de outra maneira, caso decidisse fazê-lo, todavia escolheu fazê-
-lo dessa forma porque, a fim de preservar a vida moral no mundo,
Deus teve que fazer algo drástico acerca do pecado. Se tivesse
perdoado o pecado sem a morte de Cristo, teríamos dito que não
importa muito se pecamos ou não. Mas se disséssemos isso, onde
estaria o carater moral do universo? Assim, para preservar Seu
próprio governo moral do universo, e visto que Ele leva a sério
o pecado, declara tal teoria, Deus enviou Seu Filho à cruz, e o
Filho foi à cruz a fim de que a espécie humana compreendesse
que o pecado é sério e proibido.
Evidentemente, uma vez mais surgem objeções
fundamentais. A justiça de Deus é ignorada e, ainda mais sério,
os defensores de tal conceito não entendem que Deus, por ser
Deus, não pode revogar Sua própria lei. Como pretendo mostrar-
-lhes quando chegarmos à doutrina positiva, há um ensino sobre
a morte na cruz que é totalmente mais grandioso que esse
conceito. Consiste em que Cristo morreu na cruz por nenhuma
outra razão exceto esta: tinha que acontecer; era uma absoluta
necessidade; não havia outro meio pelo qual o homem pudesse
ser perdoado.
Devo mencionar ainda outra teoria, ou seja, a teoria mística.
Ela foi popularizada em Londres nos primórdios do século
dezenove, por Edward Irving, que havia vindo de Glasgow, onde
fora assistente do grande Dr. Chalmers, um dos mais eloqüentes
pregadores daquela época. Edward Irving cativou Londres; a
sociedade afluiu após ele, atraída por sua oratória. Foi ele quem
introduziu a idéia moderna de falar em línguas. Ele fundou o

401
que se chama A Igreja Católica Apostólica de Gordon Square, e
ali desenvolveu idéias estranhas. Infelizmente, ele se desviou
em vários aspectos, não só em seu ponto de vista da morte de
Cristo na cruz. Todavia o nosso interesse é seu ponto de vista da
expiação de Cristo. Ela não era propriamente uma idéia
originalmente sua. Ele disse que Cristo, o Filho de Deus, veio
do céu, e assumiu a forma de natureza humana. Mas Irving não
cria que a natureza humana de Cristo fosse perfeita; ele disse
que a natureza humana que Cristo possuía era pecaminosa, mas
que Ele a conservou sem pecado pelo poder do Espírito. Não só
isso, mas, ao morrer na cruz, Ele expurgou o pecado dela, e assim
o que realmente aconteceu foi que nosso Senhor, ao viver e ao
morrer, purificou a natureza humana do pecado. Ele removeu a
depravação original e uniu a natureza humana a Deus. Outra
vez vemos que não há nada aqui sobre satisfazer a justiça de
Deus, nada sobre honrar a lei; a própria essência da genuína
idéia ensinada nas Escrituras não se acha aí, de modo algum;
simplesmente achamos essa concepção estranha e mística, a qual
nunca é ensinada em parte alguma das Escrituras.
E, finalmente, e esta idéia é a mais moderna de todos os
conceitos, temos a idéia da expiação que se chama arrependimento
vicário. Ela foi muito popular no início do século vinte, e ainda
conta com muitos que a ensinam. Ela afirma que, o que nosso
Senhor estava realmente fazendo na cruz era oferecer
arrependimento a favor da humanidade. O homem não tem uma
genuína concepção de pecado, e portanto não pode arrepender-
-se genuinamente. Deus não pode perdoar até que o homem se
arrependa. Portanto, o que nosso Senhor estava fazendo era
apresentar uma confissão a favor da humanidade. Ele estava
dizendo: “O pecado é algo terrível; vou mostrar à humanidade
que ela merece a morte, e estou oferecendo arrependimento a
seu favor, morrendo na cruz, submetendo-Me à mesma como
um ato de arrependimento.”
Existe uma objeção vital a essa teoria, ou seja, nosso Senhor,
como veremos, certamente tomou sobre Si os nossos pecados,
mas há uma coisa que nosso Senhor necessariamente não poderia

402
fazer: Ele não teve qualquer experiência do que seja pecar. Ele
não teve experiência do que seja sentir culpa. Ele não teve
qualquer senso de remorso. Uma vez que Ele é Deus e homem,
visto que é perfeito, Ele não poderia saber o que vocês e eu
sabemos quando pecamos. Sem dúvida nenhuma, é totalmente
impossível para alguém arrepender-se, ou fazer penitência, sem
o senso de culpa, sem aquela sensação de que o pecado, numa
criatura, é contra Deus. Sem experimentar nossa sensação,
sentimento e experiência de estar em pecado, nosso Senhor não
poderia arrepender-Se a nosso favor.
Ora, já temos gasto algum tempo considerando essas falsas
idéias do que aconteceu quando nosso Senhor morreu na cruz
do Calvário. Tendo-as examinado, viremos em seguida ao ensino
bíblico positivo. Apresentar-lhes-ei evidências e argumentos;
focalizaremo-lo juntos, e veremos que a idéia substitutiva da
expiação, que é o ensino bíblico, não só esclarece totalmente o
assunto onde nada mais pode, mas também magnifica a cruz e o
amor de Deus de uma maneira que todas essas outras teorias, as
quais foram elaboradas a fim de salvaguardar o amor de Deus,
falham completamente em fazer.

403
29
SUBSTITUIÇÃO
Tendo considerado algumas das falsas teorias com respeito
à doutrina do que exatamente aconteceu quando o Filho de Deus
morreu na cruz, nos deparamos agora com uma exposição
positiva do que reivindico ser o ensino bíblico. E certamente o
ponto de vista sobre a expiação que foi ensinado por todos os
pais protestantes. Foi ensinado por Martinho Lutero e João
Calvino, bem como pelos reformadores da Grã Bretanha.
Então, qual é ele? O ensino bíblico enfatiza a supremacia
do elemento substitutivo na expiação. Ele assevera que o Senhor
Jesus Cristo sofreu vicariamente a penalidade da lei quebrada,
como o substituto de Seu povo. Essa é, em breves pinceladas,
uma afirmação do que tem sido conhecido como o conceito
reformado da doutrina bíblica da expiação. Ora, vocês notarão de
imediato que há diferença entre esta e aquelas falsas teorias que
já consideramos. Este conceito tem duas características
principais. A primeira é a ênfase sobre o fato de que Jesus Cristo
fez algo como nosso substituto; e a segunda é o aspecto penal -
ele declara que a lei pronunciou uma penalidade que Ele, como
nosso substituto, suportou em nosso lugar.
Notem que nenhuma dessas duas características foi
realmente mencionada em qualquer das teorias falsas que já
mencionamos previamente. A objeção feita a esse conceito tem
sido principalmente com respeito ao aspecto penal, mas não me
demorarei nesta objeção, porquanto desejo fortemente
apresentar-lhes uma afirmação positiva da doutrina. Focalizemos,
pois, o ensino bíblico sobre o qual este conceito se acha baseado.
Há muitas diferentes maneiras pelas quais alguém pode abordar
este tema, mas a maneira mais satisfatória, parece-me, consiste
em salientar os aspectos a seguir.
Eis o primeiro: o Novo Testamento ensina claramente que
a obra de nosso Senhor está em plena harmonia com o ensino

404
do Velho Testamento sobre os sacrifícios. Nosso Senhor fez essa
reivindicação, vocês certamente se lembram, e a fez mais de
uma vez. Como já vimos, Ele era o Sacerdote que ofereceu o
sacrifício. O ensino do Novo Testamento sobre a obra de Cristo
paralela a tudo que somos informados sobre a obra do sacerdote
que fazia as oferendas e os sacrifícios sob a dispensação do Velho
Testamento. Nosso Senhor disse: “Não cuideis que vim destruir
a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir” (Mat. 5:17).
Essa foi Sua reivindicação específica, e ela se refere a todas as
normas levíticas sobre os sacrifícios. Inclui toda a lei em toda a
sua plenitude, não apenas o aspecto moral, porém, de maneira
muito especial, também o aspecto ritual que diz respeito às
oferendas e aos sacrifícios. E não foi só ali que Ele fez tal
reivindicação, porquanto a repetiu após Sua ressurreição: “São
estas as palavras que vos disse estando ainda convosco: que
convinha que se cumprisse tudo o que de mim estava escrito na
lei de Moisés, e nos profetas, e nos salmos” (Luc. 24:44).
Por outro lado, é evidente que em certo sentido toda a
Epístola aos Hebreus foi escrita para estabelecer esse fato. O
argumento de Hebreus é que o Velho Testamento não foi outra
coisa senão uma espécie de sombra, por toda parte apontando
para a substância; ele nos revela os tipos apontando para o
protótipo. Diz o escritor com efeito: “Vocês não precisam voltar
à sombra; agora vocês têm a substância.” Já que os tipos do Velho
Testamento apontavam para Ele, temos base para argumentar
que eles eram da mesma espécie e da mesma qualidade essencial.
Se vocês lerem particularmente os capítulos 7 e 9 da Epístola aos
Hebreus, então descobrirão esse argumento elaborado em
consideráveis detalhes.
O que, pois, o Velho Testamento ensina com respeito à
função dos sacrifícios que eram oferecidos pelo sacerdote? A
primeira coisa de que somos informados é que o propósito das
ofertas queimadas e das ofertas pelo pecado visava propiciar a
Deus. Destinavam-se a fazer Deus olhar com favor e com prazer
para o povo que havia pecado contra Ele. Já focalizamos esse
termo, mas consideremo-lo novamente como o encontramos na

405
bem conhecida parábola do fariseu e o publicano que foram ao
templo orar. Na Authorised Version somos informados que o
publicano “nem mesmo queria erguer seus olhos”, mas dizia: “ó
Deus, sê misericordioso para comigo, pecador” (Luc. 18:13). O
objetivo dos sacrifícios era que Deus olhasse para o povo pecador
de uma maneira benigna, de uma maneira que revelasse
prontidão em recebê-lo.
Dou ênfase a isso para lembrar-lhes que muitas dessas falsas
teorias nos fariam crer que o único propósito da morte de nosso
Senhor na cruz consistia em fazer algo cm nós. Mas desde o início
são erradas. O objetivo das ofertas queimadas e dos sacrifícios -
se posso colocá-lo reverentemente - era influenciar Deus, não
influenciar o homem; eles eram destinados a propiciar a Deus.
Eis um ponto muitíssimo importante.
A segunda coisa que vemos claramente nas Escrituras do
Velho Testamento é que essa propiciação foi assegurada pela
expiação da culpa, e a definição de expiação, permitam-me
lembrar-lhes, é para apagar a culpa dos pecados. Esses sacrifícios
eram destinados a propiciar a Deus, e o resultado disso foi que
Deus expiava os pecados do povo.
E a terceira coisa que os sacrifícios e as ofertas queimadas
ensinam é que essa expiação era efetuada pelo castigo vicário de
uma vítima. Acaso vocês se lembram do que acontecia? Uma
vítima era escolhida, um animal substituía o pecador, e esse
animal se transformava, então, naquele que levava o castigo do
pecador. Desse modo temos base para ensinar que esses sacrifícios
do Velho Testamento revelam, muito patente e nitidamente, que
devido o animal substituir o ofensor e seu pecado ser tratado
através do animal, é que sua culpa era expiada, e Deus era
propiciado em relação a ele.
Assim, a última coisa que os sacrifícios ensinam é que o
efeito de tais ofertas pelo pecado e as ofertas queimadas era o
perdão do ofensor e sua restauração à comunhão com Deus.
Se estudarmos o livro de Levítico, descobriremos que essa
era a grande função e propósito dessas ofertas pelo pecado e dessas
ofertas queimadas em particular. O pecado era tratado mediante

406
um substituto, e o resultado disso era que os pecados do povo
eram cobertos e o povo era restaurado a uma posição em que
podia ser abençoado por Deus. Há uma frase em Hebreus 9:22
que sumaria tudo isso: “Sem derramamento de sangue não há
remissão.” Essa é a grande mensagem do Velho Testamento. Essa
é a razão por que Deus, através de Moisés, ordenara aos filhos
de Israel a tomar todos esses animais, a matá-los e a oferecer o
seu sangue. E todo o cerimonial, que as pessoas tão amiúde
omitem em sua leitura da Bíblia, porque, dizem, “não tem nada
a ver comigo”, tem tudo a ver conosco! Deus estava ensinando
ao povo que “sem derramamento de sangue não há remissão” de
pecado. Os sacrifícios do Velho Testamento estavam apontando
para a perfeita oferta pelo pecado que estava por vir; eram tipos
do Senhor Jesus Cristo em Sua morte.
Esse é o primeiro grande princípio. Agora atentemos para
o segundo. O Novo Testamento ensina especificamente que
Cristo nos salva por meio de Sua morte - esse é seu ensino
essencial. Há muitas Escrituras que poderiam ser citadas neste
ponto. Permitam-me apenas apresentar-lhes as referências mais
importantes. Em João 1:29, lemos: “Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo.” Aqui, João Batista O descreve como
“o Cordeiro de Deus”, reportanto-se àqueles cordeiros do Velho
Testamento que eram oferecidos. Tomem também as palavras
de Paulo dirigidas aos Coríntios: “Porque Cristo, nossa páscoa,
foi sacrificado por nós” (1 Cor. 5:7). Ou, também, Romanos 3:25:
“Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue...
pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de
Deus.”
Além disso, temos Romanos 5:6: “Porque Cristo, estando
nós ainda fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios”; e a mesma
coisa é reiterada no décimo versículo deste quinto capítulo:
“Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus
pela morte de seu Filho, muito mais, estando já reconciliados,
seremos salvos pela sua vida.” Também em Gálatas 1:4, lemos:
“O qual se deu a si mesmo por nossos pecados, para nos livrar do
presente século mau, segundo a vontade de Deus nosso Pai.” E

407
Paulo diz em Efésios 1:7: “Em quem temos a redenção pelo seu
sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça.”
Efésios 2:13 diz: “Mas agora em Cristo Jesus, vós, que antes
estáveis longe, já pelo sangue de Cristo chegastes perto.” O “sangue
de Cristo” significa vida sacrificada; e na Epístola aos Hebreus,
encontramos isso afirmado em toda parte, especialmente em
Hebreus 9:22: “E quase todas as coisas, segundo alei, se purificam
com sangue; e sem derramamento de sangue não há remissão.”
Ele obteve eterna redenção para nós por meio do sacrifício de
Sua vida a nosso favor. O décimo quarto versículo do mesmo
capítulo é de igual significância: “Quanto mais o sangue de
Cristo, que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado
a Deus, purificará as vossas consciências das obras mortas, para
servirdes ao Deus vivo.”
O décimo capítulo da Epístola aos Hebreus tem também
uma afirmação muitíssimo importante aqui: “Na qual vontade
temos sido santificados pela oblação do corpo de Jesus Cristo,
feita uma vez” (v. 10). E mais: “Mas este, havendo oferecido um
único sacrifício pelos pecados, está assentado para sempre à
destra de Deus” (v. 12). Ainda: “Porque com uma só oblação
aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (v. 14). (Notem
a repetição das expressões “uma vez”, “uma só”, “único”.) Pedro,
também, diz a mesma coisa: “Sabendo que não foi com coisas
corruptíveis... mas com o precioso sangue de Cristo, como de
um cordeiro imaculado e incontaminado” (1 Ped. 1:18,19). Vejam
bem, não podemos entender esses termos se não estivermos
familiarizados com o Velho Testamento.
Então vejam 1 Pedro 3:18: “Também Cristo padeceu uma
vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus;
mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito.”
E 2 Pedro 2:1 diz: “E também houve entre o povo falsos profetas,
como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão
encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os
resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição.”
O apóstolo João escreve: “Mas, se andarmos na luz, como
ele na luz está, temos comunhão uns com os outros, e o sangue

408
de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1 João
1:7). E no livro do Apocalipse, lemos: “Àquele que nos ama, e
em seu sangue nos lavou dos nossos pecados” (1:5).
Ora, eis aí uma pequena seleção das afirmações
neotestamentárias, e que seleção! São algumas das passagens pivôs
que prontamente lançam diante de nossos olhos a idéia da oferta
substitutiva e penal, o levar a culpa, e a culpa sendo punida no
substituto. E notem bem a repetição de o sangue. Tenho
conhecido pessoas que se denominam de cristãs, as quais têm
afirmado que lhes desagrada essa idéia acerca do sangue. À parte
do sangue, porém, não temos redenção ✓nenhuma! “Em quem
temos a redenção através de seu sangue.” E pelo precioso sangue
de Cristo, o sacrifício da vida, a vida derramada, que nossa
redenção é assegurada.
Avancemos, porém, para a terceira proposição. Os termos
do Novo Testamento que são aplicados a Ele e à Sua obra para
nós e em nosso favor provam a veracidade desta doutrina. Tomem
primeiramente a palavra resgate. Vocês a encontrarão mencionada
em Mateus 20:28: “Bem como o Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida em resgate de
muitos.” E em 1 Timóteo 2:5,6: “Porque há um só Deus, e um só
Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem. O qual
se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir
de testemunho a seu tempo.” E o que é um resgate? É um preço
pago pela libertação ou de uma pessoa ou de uma coisa que fora
tomada ou possuída por outro. E o ensino, aqui, é que Cristo,
através de Sua morte, afrouxou nossas cadeias e pôs-nos em
liberdade, a nós que éramos prisioneiros. E isso Ele o fez pagando
o preço; e o preço que Ele pagou foi Seu próprio sangue precioso.
“Não sois de vós mesmos”, diz Paulo. “Fostes comprados por
preço” (1 Cor. 6:19,20). Pedro, novamente, o coloca assim:
“Sabendo que não foi com coisas corruptíveis... que fostes
resgatados da vossa vã maneira de viver... mas com o precioso
sangue de Cristo” (1 Ped. 1:18,19) - o valor do resgate foi pago e
os cativos postos em liberdade.
A palavra redenção contém a mesma idéia. Vocês redimem

409
algo pagando certo preço para obtê-lo de volta, e o mesmo lhes é
devolvido.
A próxima palavra é propiciação. Ela está mencionada em
Romanos 3:25: “Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé
no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos
pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus.” E em 1
João 2:2: “E ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não
somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo.”
Ora, uma propiciação é um apaziguamento, ou os meios de
apaziguar. A oferta era tomada por Deus, e ela era o meio para
apaziguar a ira de Deus. Alguns afirmam que o significado do
termo é derivado do “propiciatório”, ou a tampa da arca do
concerto que ficava no Santo dos Santos do Templo. Uma vez
ao ano, no dia da Expiação, o sumo sacerdote aspergia sangue
sacrificial sobre ela para cobrir os pecados do povo. A morte de
nosso Senhor é aquela por meio da qual Deus cobre, deixa passar
e perdoa nossos pecados. Aliás, o ensino vai além na dispensação
do Novo Testamento: nossos pecados são apagados, de modo
que um pecador penitente e crente é novamente reconciliado
com Deus.
E esse é o nosso próximo termo -reconciliação. Encontrá-
-lo-ão em Romanos 5:10: “Porque se nós, sendo inimigos, fomos
reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito
mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida.”
E é encontrada diversas vezes em 2 Coríntios 5:18,19. Esses,
portanto, são alguns termos que temos de considerar - resgate,
redenção, propiciação e reconciliação, e cada vez se referem
à Sua morte.
Mas permitam-me trazer a lume a quarta proposição. Há
certos termos cruciais no Novo Testamento que ensinam a
substituição, e especificamente enfatizam o elemento vicário
em Sua morte. Ele é Aquele que age por nós. Antes de tudo,
consideremos novamente os tipos do Velho Testamento. Aqueles
animais do Velho Testamento, oferecidos, eram vicários, e a
forma de provarmos isso é a seguinte: o sacerdote recebia a ordem
de colocar suas mãos sobre a cabeça do animal. Por que era feito

410
assim? Era para transferir a culpa do povo para o animal, e o
animal era então morto. Sim, mas antes que ele fosse morto, os
pecados do povo tinham sido transferidos para ele - ele era o
substituto.
Portanto, nossos pecados foram postos sobre o Senhor Jesus
Cristo, e Ele os levou. Isaías, capítulo 53, é uma passagem crucial
aqui. "... mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós
todos” (v. 6). Este versículo especifícamente afirma que nossos
pecados foram postos sobre Ele; e o mesmo se repete no versículo
12: “Pelo que lhe darei a parte de muitos, e com os poderosos
repartirá ele o despojo; porquanto derramou a sua alma na morte,
e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre si o
pecado de muitos, e pelos transgressores intercede.” Novamente
devo lembrar-lhes de João 1:29: “Eis o Cordeiro de Deus, que
tira o pecado do mundo.” 2 Coríntios 5:21: “Àquele que não
conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos
feitos justiça de Deus.” E Gálatas 3:13: “Cristo nos resgatou da
maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito:
maldito todo aquele que for pendurado no madeiro.” Somos
informados que fomos libertados da maldição da lei porque
Cristo Se fez maldito por nós. Vocês também a encontrarão em
Hebreus 9:28: “Assim também Cristo, oferecendo-se uma vez,
para tirar os pecados de muitos.” E 1 Pedro 2:24: “Levando ele
mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para,
mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas
suas feridas fostes sarados.” O ensino é plenamente claro: a culpa
de nosso pecado é agora transferida para Ele; Ele Se torna o
responsável pelo castigo que devíamos receber; nossos pecados
Lhe são imputados.
Então, a próxima evidência em relação à quarta proposição
será encontrada em palavras particulares que são traduzidas pela
preposição por. Há três diferentes palavras no grego que são
traduzidas em nossa Bíblia em inglês (e em português) para “por”.
Uma significa “por causa de”. Vocês a encontram, por exemplo,
em Romanos 8:3: “pelo (por causa do) pecado”; e em Gálatas 1:4:
“O qual se deu a si mesmo por nossos pecados”; e outra vez

411
em 1 Pedro 3:18, onde somos informados: “Porque também
Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos,
para levar-nos a Deus” - sofrendo por nós, vocês o podem notar
em cada instância. Então temos a afirmação em 1 Coríntios 15:3:
“Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que
Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras.” Ele
cumpriu os requisitos dos sacrifícios do Velho Testamento, e
novamente o descobrimos em 1 João 2:2: “E ele é a propiciação
pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também
pelos de todo o mundo.”
Outra palavra que é traduzida pelo termo “por” significa “a
favor de” ou “em benefício de”. Noutras palavras, a idéia de
substituição surge aqui de uma forma muito forte. Vemo-la em 2
Coríntios 5:14: “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando
nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram.”
Os versículos 20 e 21 continuam: “De sorte que somos
embaixadores da parte de Cristo, como se Deus por nós rogasse.
Rogamo-vos, pois, da parte de Deus que vos reconcilieis com
Deus. Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós;
para que nele fôssemos feitos justiça de Deus.” Isso é
constantemente repetido. Por exemplo, vemo-lo novamente em
1 Timóteo 2:5,6, e em 1 Pedro 3:18.
A mais forte, porém, das palavras traduzidas pelo termo “por”
é aquela que se encontra em Mateus 20:28 e Marcos 10:45:
“Porque o Filho do homem também não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” Em seu
sentido mais pleno o termo significa: “como um substituto por”
muitos. Portanto, aí está a evidência que especificamente ensina
Sua substituição, e todas essas passagens enfatizam o elemento
vicário.
A quinta evidência é que há uma série de afirmações que
enfatizam nossa união com o Senhor Jesus Cristo. O principal
lugar em que as encontramos, evidentemente, é na Epístola aos
Romanos, no grande argumento no quinto capítulo, partindo do
versículo 11, e especialmente no versículo 12. O argumento é
este: assim como todos nós nos tornamos responsáveis pelo

412
pecado de Adão, e morremos à semelhança da transgressão de
Adão, também somos salvos por Cristo. Tomem aquela frase:
“Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos
foram feitos pecadores, assim pela obediência de um muitos serão
feitos justos” (v. 19). O ensino é que toda a raça humana está em
Adão; portanto, quando Adão caiu, todos nós caímos. Então, o
outro lado é que todos os que estão em Cristo desfrutam do pleno
benefício de tudo quanto Ele fez; noutras palavras, quando Ele
morreu, eles morreram.
E esse fato é ainda mais claro em Romanos 6:3-8:

“Ou não sabeis que todos quantos fomos batizados


em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? De sorte
que fomos sepultados com ele pelo batismo na morte; para
que, como Cristo ressuscitou dos mortos, pela glória do
Pai, assim andemos nós também em novidade de vida.
Porque, se fomos plantados juntamente com ele na
semelhança da sua morte, também o seremos na da sua
ressurreição; sabendo isto, que o nosso velho homem foi
com ele crucificado, para que o corpo do pecado seja
desfeito, para que não sirvamos mais ao pecado. Porque
aquele que está morto está justificado do pecado. Ora, se
já morremos com Cristo, cremos que também com ele
viveremos. ”

Vocês percebem o argumento? Estamos em Cristo; somos


uma parte dEle; somos um com Ele; somos identificados com
Ele; como fomos em Adão, assim somos em Cristo.
Esse também é o grande argumento de 1 Coríntios, capítulo
15, a grande passagem sobre a ressurreição: “Porque, assim como
todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados
em Cristo” (v. 22). Ele age a nosso favor, morremos com Ele,
ressuscitamos com Ele, estamos nEle e Lhe pertencemos - um
argumento muitíssimo importante e vital.
Mas não podemos demorar aqui, porque temos de apressar-
-nos para a sexta proposição ou argumento. Todas as afirmações

413
que nos dizem que Sua morte nos liberta da lei são de importância
crucial. Todas as afirmações que mostram que Ele nos fez livres
da lei ensinam essa mesma substituição e idéia penal da expiação.
“Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais
debaixo da lei, mas debaixo da graça” (Rom. 6:14). Noutras
palavras, Ele nos libertou da lei. E há outros argumentos que
mostram a mesma coisa. Considerem aquele de Romanos,
capítulo 7, particularmente a primeira parte, em que nossa
posição, antes de sermos salvos, é comparada a uma mulher
casada. Ela está comprometida enquanto vive o marido, porém,
se ele morrer, ela fica livre. Assim estivemos comprometidos
pela lei, mas fomos libertados pela morte de Cristo.
Lemos em 2 Coríntios 5:19: “Isto é, Deus estava em Cristo
reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus
pecados; e pôs em nós a palavra da reconciliação.” Essa é
igualmente uma importante afirmação. Somos informados que
nossas transgressões nos foram imputadas porque elas nos
pertenciam, entretanto esse não é mais o caso. Por quê? Porque
Ele Se fez pecado por nós. Deus imputou nossos pecados a Cristo.
Ele os puniu em Cristo, e agora não nos imputa mais nossos
pecados, antes nos imputa a justiça de Seu próprio Filho. Além
disso, vejam Gaiatas 2:19,20: “Porque eu pela lei estou morto
para a lei”, diz Paulo, “para viver para Deus” - devido ao que
Cristo fez, ele morreu com Cristo - “Já estou crucificado com
Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida
que agora vivo na carne vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual
me amou, e se entregou por mim.” Ele me fez livre da lei. “Cristo
nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós;
porque está escrito: maldito todo aquele que for pendurado no
madeiro” (Gál. 3:13). O que pode ser mais forte que isso?
Ora, todas essas passagens mostram que Ele nos libertou da
lei, da penalidade da lei, da penalidade de nossa culpa, da
maldição. Não há como ser mais específico, mas ainda quero
prosseguir para uma afirmação ou proposição final - a sétima -
e de muitas maneiras creio que esta é a mais importante de todas.
Há uma série de afirmações que enfatizam o aspecto religioso e

414
a atividade de Deus na morte de nosso Senhor. Acaso vocês
percebem a importância disso? Todas aquelas falsas teorias se
mantinham focalizadas em nós, e se não mais nos focalizavam,
então começaram a focalizar o próprio Senhor. Mas lhes
apresentarei afirmações que mostram que Deus o Pai estava
nisso.
Antes de tudo, certas passagens nos ensinam que a morte
de Cristo estava na mente e no plano de Deus antes da fundação
do mundo - há um aspecto eterno para o que aconteceu na cruz
do Calvário. Vejam Atos 2:23: “A este que vos foi entregue pelo
determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o
crucificastes e matastes pelas mãos de injustos.” Ou 1 Pedro 1:20,
que diz: “o qual, na verdade, foi conhecido, ainda antes da
fundação do mundo, mas manifestado nestes últimos tempos
por amor de vós” - foi planejado antes da fundação do mundo. E
outra vez lemos no Apocalipse 13:8: “E adoraram-na todos os
que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos
no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do
mundo.” Há aqueles que dizem que deveria ser traduzido: “...cujos
nomes não são escritos desde a fundação do mundo no livro da
vida do Cordeiro morto”. Seja o que for, o fato é que nomes
foram escritos no livro da vida antes da fundação do mundo, e
quando Ele fez isso, Ele o fez porque sabia que tal pessoa estava
para ser coberta pela morte do Seu unigénito Filho.
Permitam-me finalizar, porém, apresentando-lhes esta
afirmação específica, a qual literalmente nos informa que foi
Deus que estava realizando tudo no Calvário. Isaías 53:6: “Todos
nós andamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava
pelo seu caminho: mas o Senhor fez cair sobre ele a iniqüidade
de nós todos.” Mas, será que vocês já compreenderam que João
3:16 afirma isso? “Porque Deus amou o mundo de tal maneira
que deu o seu Filho unigénito” - à morte de cruz - foi Deus
quem no-10 deu. Tomem novamente Romanos 3:25: “Ao qual
Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para
demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes
cometidos, sob a paciência de Deus” - eis a mesma idéia. Ou

415
Romanos 8:32: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho
poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará
também com ele todas as coisas?” Ele, Deus, “nem a seu próprio
Filho poupou, antes o entregou por todos nós” - foi Deus quem
o fez.
Então nos deparamos com a grande afirmação de 2 Coríntios
5:18,19: “E tudo isso provém de Deus que nos reconciliou consigo
mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação;
isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo...”
Era Deus quem estava operando, Deus o eterno Pai. Deus é quem
agia assim por meio da cruz, através de Cristo.
E então, como a mais importante de todas, temos o último
versículo de 2 Coríntios, capítulo 5: “Àquele que não conheceu
pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça
de Deus” (v. 21). Vocês jamais encontrarão nada mais forte que
isso, e qualquer ponto de vista que porventura tenham da
expiação, tem de atentar para isso. Aliás, sinto que esse único
versículo bastaria. Eis aí uma afirmação específica do Pai eterno:
Ele O fez pecado; Ele Lhe imputou a culpa de nossos pecados;
Ele os pôs sobre o Filho; e então nos afirma que Ele os puniu
nEle. Qualquer idéia oü teoria da expiação tem de sempre dar
todo peso e significância à atividade de Deus o Pai.
Na minha próxima preleção darei continuidade a uma parte
da evidência bíblica que, creio eu, lhes será conclusiva quanto a
este debate.

416
30
A NECESSIDADE DA EXPIAÇÃO
Permitam-me lembrar-lhes de que estamos considerando
agora o que foi sempre tido como a doutrina essencial protestante
concernente à expiação. Não que ela seja de alguma forma
restringida ao período da Igreja subseqüente à Reforma Protes­
tante, porquanto pode-se demonstrar claramente que essa, em
certo sentido, sempre foi a exposição principal da doutrina da
expiação desde o início, porém que é amiúde denominada a ênfase
protestante. A melhor designação é, evidentemente, o ensino
substitucionário referente à expiação, porque ela é a doutrina que
enfatiza os elementos substitutivo e penal na expiação, e a temos
sumariado através de sete tópicos principais.
Concluí a última preleção dizendo que tinha um outro e
último argumento e, falando por mim mesmo, este é um dos
mais concludentes, se não for o mais concludente dos
argumentos. Colocaria este oitavo ponto desta forma: vamos
considerar afirmações nas Escrituras que enfatizam o fato de
que a morte de nosso Senhor na cruz foi uma absoluta
necessidade. Obviamente, essas são questões muito cruciais, de
forma que eu subdividiria essas afirmações desta maneira: antes
de tudo, as afirmações que descrevem a própria conduta de nosso
Senhor; em segundo lugar, as afirmações que Ele mesmo fez sobre
Sua morte; em terceiro lugar, afirmações que outros fizeram sobre
ela. Todas elas, ao meu ver, provam conclusivamente que Sua
morte foi uma absoluta necessidade.
A primeira, evidentemente, consiste na informação que
recebemos sobre os eventos no Jardim de Getsêmane. Por que
nosso Senhor suportou essa agonia? Por que Ele suou aquelas
grandes gotas de sangue? Qual é o significado de tudo isso? O
conceito de que a morte de nosso Senhor foi a morte de um
mártir, como já vimos, é uma explicação completamente
inadequada - os mártires não se portaram como Cristo Se portou

417
face a face com a morte. Nosso Senhor, no Jardim, estava
enfrentando o fato de que havia um elemento em Sua morte que
era totalmente horrendo para Ele, algo que Lhe provocou tal
agonia que O fez derramar suor de sangue. Precisamos explicar
esse fato, ele tem que ser avaliado, e garanto-lhes que todas essas
outras idéias e teorias acerca da expiação fracassam
completamente em fazer isso.
Lembrem-se, porém, que nos resta não só a necessidade de
explicar o que aconteceu no Jardim, mas também o que nosso
Senhor disse ali. Porventura se lembram de Sua oração: “Meu
Pai, se é possível., passe de mim este cálice” (Mat. 26:39)? Ele
prosseguiu, dizendo: “todavia, não seja como eu quero, mas como
tu queres”. Contudo a petição estava lá. Ora, ela não pode referir-
-se meramente ao fato da morte física, porque, reiterando, isso
O faria inferior aos mártires, Seus próprios seguidores. Não, algo
que Ele previa estava para acontecer em Sua morte, o qual Ele
desejava ardentemente evitar, se Lhe fosse possível.
Ora, é preciso que enfatizemos isso. Essa foi a única vez,
durante Sua vida terrena, que nosso Senhor fez a Seu Pai uma
petição desse gênero; e é óbvio, pois, que era algo extremamente
excepcional. E isso aponta para o fato de que houve algo em Sua
morte que era absolutamente necessário. A pergunta que Ele fez
foi: isso é absolutamente necessário? É-me possível realizar esta
obra de alguma outra forma? Se é possível, não deixes que isso
aconteça. Mas, disse Ele, se porventura isso não é possível, Eu
me submeto a ela. Ora, aí certamente é um argumento final e
conclusivo de que a morte de nosso Senhor na cruz, na forma
como aconteceu, era uma total necessidade.
Nada pode ser mais forte que isso, mas agora podemos
adicionar algo que o confirma e, em certo sentido, o reitera. É o
clamor de abandono na cruz: “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mar. 15:34). Ora, qualquer doutrina da expiação
que deixa de explicar isso é inadequada. Reiterando, é
obviamente inadequado pressupor que um mero sofrimento físico
produziria tal clamor, porquanto todo o argumento sobre os
mártires novamente se aplica. Não, e não! Algo estava

418
acontecendo ali que pertencia a uma categoria única. Nosso
Senhor estava consciente de estar desamparado por Deus. Sua
comunhão com o Pai eterno estava temporariamente
interrompida. Ele, que veio do seio eterno e tinha estado com
Deus desde o princípio, por uma única vez, em toda a eternidade,
não era capaz de ver o semblante de Deus. Certamente temos
aqui mais uma vez outro desses argumentos importantíssimos e
conclusivos que demonstram, além de toda e qualquer queixa,
que quando algo como esse acontecia, só poderia ser por uma
única razão - tinha que acontecer. Nenhuma das outras teorias
pode explicar esse clamor de abandono.
Então, o segundo grupo de afirmações eu o descreveria como
sendo afirmações que declaram diretamente a absoluta
necessidade de Sua morte na cruz. Aquelas outras a têm declarado
mais ou menos indiretamente, mas agora, aqui está algo direto.
É aquela afirmação específica que será encontrada em Romanos
3:25,26, e a qual é indubitavelmente o locus classicus em conexão
com este tema como um todo: “Ao qual Deus propôs para
propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça
pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de
Deus; para demonstração da sua justiça neste tempo presente,
para que ele seja justo e justificador daquele que tem fé em Jesus.”
Ora, essa é uma afirmação tremenda. Vejam bem, Paulo está
afirmando que o problema que surge é este: como poderia Deus
passar por cima ou cobrir os pecados dos filhos de Israel sob a
antiga dispensação? Como podemos explicar a remissão dos
pecados cometidos outrora sob a paciência de Deus? E a resposta
de Paulo é que a morte de nosso Senhor na cruz faz isso; essa é
uma das coisas a que se destina. Todavia, diz Paulo, ela vai além
disso. Sua morte não só explica como Deus pôde cobrir os pecados
de outrora, ela explica como Deus pode perdoar o pecado em
qualquer tempo, e ela é a única explicação. Eis o problema: como
é possível que Deus, a um só e ao mesmo tempo, seja justo e
ainda o justificador daquele que crê em Jesus? Como é possível
que esse eterno e santo Deus, que é imparcial, justo e imutável,
“o Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de

419
variação” (Tiago 1:17), o “Deus que é luz, e não há nele trevas
nenhumas” (1 João 1:5), o Deus que é de um semblante tal que
não pode olhar para o mal e o pecado, como é possível que Ele
perdoe o pecado e ainda permaneça o que etemamente foi?
E a resposta que o apóstolo dá é esta: a única forma em que
Deus pode fazer isso é através do que Ele fez a Seu Filho na cruz
- Ele O propôs para propiciação dos pecados, e Ele fez isso dessa
forma, “para demonstração da sua justiça neste tempo presente,
para ele ser justo e justificador daquele que tem fé em Jesus”. E,
vocês vêem, há só uma explicação para isso. Deus, que é justo,
pode perdoar pecado porque Ele já puniu o pecado na Pessoa de
Seu unigénito Filho. Assim, Ele permanece justo; Ele permanece
reto. Ele fez para com o pecado o que disse que faria, e no entanto,
devido o ter feito no substituto, Ele pode nos perdoar, Ele pode
nos justificar - nós que cremos em Jesus.
Ora, o argumento do apóstolo é que essa era a única forma
na qual Deus poderia perdoar os pecados. E deveras, quanto a
mim, particularmente, digo-o novamente, se não existisse outro
texto, esse me bastaria. Nenhuma das outras teorias pode explicar
esse texto, e na verdade não o faz. A única explicação para a
morte de Cristo é que ela era uma necessidade absoluta. Era a
única maneira pela qual, se posso assim expressar-me, o eterno
caráter de Deus poderia reconciliar-se consigo mesmo e poderia
ser vindicado, não apenas diante de todo o mundo dos homens,
mas diante dos principados e potestades nos lugares celestiais,
de fato, até mesmo diante do diabo e de todos os habitantes do
inferno. Deus proclama Sua eterna justiça e ainda pode perdoar
os pecados daqueles que crêem em Jesus - eis uma terribilíssima,
uma profundíssima declaração.
E então, meu terceiro e último grupo de textos referente a
este ponto, coloco-o nestes termos: há algumas outras afirmações
nas Escrituras que pressupõem que houve uma necessidade
absoluta. Vejam, por exemplo, Hebreus 2:9, onde o autor diz:
“Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que
fora feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão
da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por

420
todos.” Ele tinha de sofrer; Ele tinha de “provar a morte”. Agora
tomem a palavra “provar”. Que palavra! Quão forte ela é. Acaso
compreendemos o conteúdo total dessa “prova”? Há um sentido
em que se pode dizer que o Senhor Jesus Cristo é o único que já
provou a morte em toda a sua amargura e horror. Eis a razão por
que O vemos ali no Jardim suando sangue. Eis a razão por que O
ouvimos clamando na cruz. Eis a razão por que Ele morreu tão
depressa, a ponto de surpreender as autoridades, vendo que já
estava morto. Eis a razão por que Seu coração literalmente se
partiu, realmente se rompeu. Foi porque ele provou. E o meu
argumento é este: poderia Deus, o eterno Pai, permitir que Seu
unigénito e amado Filho suportasse tudo isso caso não fosse
absolutamente essencial?
Tomem ainda outra afirmação que diz a mesma coisa -
Romanos 8:32: “Aquele que nem mesmo a seu próprio Filho
poupou, antes o entregou por todos nós, como nos não dará
também com ele todas as coisas?” Notem especialmente a
primeira parte: “aquele que não poupou”. O que significa isso?
Não poupou-0 do quê? Não poupou-0 daquela agonia, daquela
ignomínia. Ele O entregou. Ele, Deus o Pai, O entregou àquela
agonia. Era a única forma. O Filho Se ofereceu; o Filho agiu
voluntariamente, mas foi o Pai quem O enviou. Ele não O
poupou. E quando o Filho levou os nossos pecados, o Pai não O
poupou em nada. A plenitude da ira de Deus contra o pecado, a
plenitude de Sua rajada abateu sobre Ele. “Aquele que nem mesmo
a seu próprio Filho poupou, antes o entregou por todos nós.”
Aliás, João 3:16 diz exatamente a mesma coisa: “Porque Deus
amou o mundo de tal maneira, que deu...”, e esse dar inclui a
ignomínia, o sofrimento e a agonia da morte na cruz. E o meu
argumento novamente é este: seria concebível que Deus tivesse
entregue Seu próprio Filho para isso, mesmo ao ponto de haver
interrupção na eterna comunhão que havia entre Eles? Seria
concebível, pergunto, que Deus fizesse isso a não ser que fosse
absolutamente necessário? Bem, esta doutrina, este conceito
substitutivo e penal da doutrina da expiação assevera tudo isso,
e essa é a razão por que digo novamente que ela é a única

421
explicação adequada e satisfatória do ensino bíblico.
Mas se vocês requerem outros argumentos subsidiários,
considerem estes: primeiramente, a doutrina da ira de Deus. Se
vocês crêem, afinal, na doutrina da ira de Deus contra o pecado,
então obviamente o pecado tem que ser punido. O elemento
penal entra e nos conduz à necessidade de substituição. Ou
considerem este argumento - a majestade e a imutabilidade da
lei divina. “Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a
terra passem, nem um jota ou um til se omitirá” (Mat. 5:18). “O
céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar”,
disse Jesus (Mat. 24:35).
Ainda outro argumento é que, se concordamos que o pecado
é culpa e não meramente algo negativo, não meramente algumas
fraquezas, não meramente alguma teoria para ser desenvolvida;
se concordamos, quando estivemos considerando a doutrina do
pecado, que o pecado é transgressão e ilegalidade, que o pecado,
portanto, envolve culpa, então obviamente teremos que
concordar que é necessário tratar com a culpa, e que de uma
forma ou outra o pecado deve ser punido. E esse é o único
conceito da expiação que realmente faz isso.
Finalmente, não há nenhuma outra teoria que nos comprove
por que é essencial crer em Cristo, e por que crendo nEle e sobre
Ele é que somos salvos. Tomem qualquer um desses outros
conceitos. O ponto de vista da influência moral, que afirma que
o amor de Deus é exibido pela morte de Cristo na cruz, diz que
a cruz se destina a enternecer nossos corações empedernidos e
para abolir nossa inimizade contra Deus. Bem, digo eu, se essa é
sua função, o que ela faz é levar-me a crer em Deus. Não tenho
que crer em Cristo. O que Ele fez foi simplesmente mostrar-me
Deus. Devo crer no Deus que Cristo me mostrou, não em Cristo
mesmo. E se Ele é um exemplo, é a mesma coisa, e assim ocorre
com todas as demais teorias. Este é o único conceito da expiação
que nos mostra por que devemos crer em Cristo; que não
podemos conhecer a Deus sem crer em Cristo, e que confiar em
Cristo é o que nos salva.
Muito bem, isso, então, nos permite considerar, embora

422
ligeiramente, algumas das objeções que vêm a lume sobre este
particular ensino. Evidentemente, todos os que negam que o
pecado é algo que nos faz culpados discordam desta doutrina.
Não posso deter-me para discutir isso. Já demonstramos que o
pecado é culpa; portanto, se é assim que vocês crêem, então
deverão aceitar imediatamente esta doutrina.
Em seguida temos o argumento que diz que seguramente o
amor de Deus é suficiente. O argumento é posto nestes termos:
“Perdoamos uns aos outros sem qualquer substituição e sem
qualquer punição; e se em nosso amor uns pelos outros podemos
fazer isso, certamente Deus, cujo amor é bastante maior, seria
capaz de fazê-lo ainda com muito mais facilidade.” A isso,
naturalmente, respondo assim: se Deus fosse só amor, poderia
haver algum fundamento para esse argumento. Mas Deus é luz,
e Deus é santo, e Deus é íntegro, e Deus é justo. Não só isso: não
há maior falácia do que o argumento que parte dos homens para
Deus. Esse é um erro muito comum hoje. As pessoas estão
constantemente argumentando nestes termos: se isso é
verdadeiro quanto a nós, perguntam elas, quanto mais a respeito
de Deus? Como se Deus estivesse no mesmo nivel que nós! A
verdade, evidentemente, é que vivemos num contexto de pecado,
e todas as nossas idéias são errôneas. Nossa concepção de amor
é mais errônea do que tudo mais, e se começamos a pensar no
amor de Deus em termos do que fazemos e do que pensamos,
então - digo-o com reverência - que Deus nos ajude! Se formos
atribuir nossas noções sentimentais, devassas, parciais e injustas,
de amor à Deidade eterna, então nos colocamos na mais precária
posição.
Outra forma dessa última objeção é que este conceito
substitutivo da expiação rebaixa o caráter de Deus, de Sua justiça.
Há pessoas que dizem que Deus seria injusto em punir alguém
que é inocente. A isso respondo que quando a pessoa inocente
se oferece voluntariamente e toma sobre si os pecados de outros
e pede a Deus que os coloque sobre ela, que os puna nela, não há
obviamente injustiça alguma. Essa foi a grande decisão do
Conselho eterno, entre Pai, Filho e Espírito Santo. O Filho disse:

423
“Aqui estou, envia-me”, e Deus providenciou-Lhe um corpo.
Houve perfeito acordo, e portanto não houve injustiça.
Já tratei do argumento que diz que o conceito substitutivo
da expiação avilta o amor de Deus. Há aqueles que dizem:
“Imagine Deus exigir sangue como um apaziguamento antes que
Ele possa perdoar!” E a réplica a isso é justamente o que venho
dizendo. Em seguida temos aqueles que sentem que detraímos a
graça perdoadora de Deus, quando insistimos que Ele exige um
pagamento antes de perdoar. Outra vez, porém, a resposta é ainda
a mesma - que Deus é um só. Ele é um Deus de santidade e
justiça. Não podemos dissociar todos os grandes e eternos
atributos de Deus. Portanto, esse argumento desmorona.
Ainda há outro argumento que de praxe é muito popular.
Ele não é tão popular hoje, mas ainda se pode encontrá-lo. Certas
pessoas dizem que o ponto de vista da substituição penal da
expiação foi uma invenção do apóstolo Paulo. Dizem que se ela
fosse verídica, evidentemente nosso Senhor a teria ensinado,
mas vocês não a encontram nos Evangelhos; vocês só a
encontram nas Epístolas. Isso, porém, não é correto. Vimos na
última preleção que nosso Senhor afirmou isso. Disse Ele: “Bem
como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para
servir, e para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mat. 20:28).
Está tudo aí nesta palavra “resgate”, como vimos, porém esse
não é o fim do argumento. Há muitas boas razões por que nosso
Senhor não podia fazer uma exposição completa da doutrina da
expiação antes que a consumasse na cruz.
Vocês se lembram do que aconteceu? Permitam-me sugerir-
-lhes isto como uma pequena pesquisa para vocês. Leiam os
Evangelhos e observem o que acontecia toda vez que nosso
Senhor falava sobre Sua morte. Vocês descobrirão que em cada
ocasião os discípulos a entendiam mal, não a apreenderam,
ficaram desanimados por ela e levantaram objeções a ela e nosso
Senhor mesmo explicava por que isso era assim. Ele lhes falava
próximo ao fim de Sua vida - vocês encontrarão isso em João
16:12 - e disse Ele: “Ainda tenho muito que vos dizer, mas vós
não o podeis suportar agora.” E eles não podiam suportá-lo. Suas

424
mentes estavam entenebrecidas, seus corações pareciam parados.
É muitíssimo interessante observar esse fato nos Evangelhos, e
ele não é difícil de entender.
Aliás, toda a sua idéia acerca dEle não era ainda clara. Pedro
fizera sua confissão em Cesaréia de Filipe, mas os discípulos
não a haviam entendido. Foi a ressurreição que os convenceu
da verdade básica concernente ao fato de que Ele era o unigénito
Filho de Deus, e à luz desse fato começaram a entender a expiação.
Após Sua ressurreição, vocês se lembram, vimos que Ele os levou
do princípio ao fim do Velho Testamento, e então foram capazes
de recebê-la. Portanto, esse argumento que pessoas apresentam
sobre nosso Senhor não ensinar o conceito substitutivo também
não tem real substância e nenhum fundamento.
Permitam-me sumariá-lo da seguinte forma: a dificuldade
real que as pessoas têm com esta doutrina é geralmente devido
ao fato de que todo o seu conceito de Deus é inadequado.
Ignoram alguns aspectos do Seu caráter. Enfatizam só um lado,
com a exclusão dos outros. Se elas tomassem a Deus tal como
Ele é e compreendessem a verdade acerca dEle, suas dificuldades
se desvaneceriam.
Há um argumento que estou particularmente desejoso de
demolir, ou seja, há os que afirmam: “Não gosto desse conceito
substitutivo penal, porque o que ele diz é que Deus estava
relutante em perdoar-nos, e que nosso Senhor teve que morrer e
ir a Deus e pleitear Sua morte e pleitear o mérito de Seu sangue
antes que Deus perdoasse.” Infelizmente, às vezes pregadores
evangélicos têm exposto a doutrina nesses termos, e há hinos
que fazem o mesmo, como se nosso Senhor tivesse pleiteado
junto a Deus a fim de persuadi-10 a perdoar! Essa é uma
caricatura da verdade bíblica!
Já formulei uma resposta a esse argumento. Tratei dele
quando demonstrei que é Deus mesmo quem fez tudo isso. Por
que o Filho de Deus veio à terra? Por que o Filho morreu? E a
resposta é: “Deus amou o mundo de tal maneira.” Foi o amor de
Deus que cogitou esse meio de salvação para que Deus pudesse
ser “justo e justificador daquele que crê em Jesus”. Foi o Seu

425
amor que o levou a cabo. A cruz não é algo que influencia o
amor de Deus; não, o amor de Deus a produziu. Essa é a ordem.
Não fosse por Seu amor, Deus teria punido o pecado em nós, e
todos nós teríamos que sofrer a morte eterna. Aliás, não hesito
em ir até o ponto de dizer isto: não existe nada, em parte alguma
das Escrituras, que de alguma maneira introduza a doutrina da
expiação substitutiva e penal como uma exposição e uma
explicação do amor de Deus. Existiria algo maior do que isso,
que Deus tomasse os seus e os meus pecados e os pusesse sobre
Seu próprio Filho, e punisse Seu próprio Filho, não O poupando
em nada, levando-0 a sofrer tudo isso, para que vocês e eu
pudéssemos ser perdoados? Poderiam me dizer se existe maior
exibição do amor de Deus do que essa? A teoria da influência
moral, bem como todas essas outras teorias que pessoas
formulam, porque, elas alegam, crêem no amor de Deus, na
verdade fracassam em compreendê-lo. É ali que vemos o amor
de Deus, quando Seu próprio Filho sofreu, como nosso substituto,
a penalidade da lei que vocês e eu incorremos e tão
abundantemente merecíamos.
Como já vimos, devemos ser perdoados e reconciliados com
Deus plenamente antes de podermos ser justificados. A lei deve
ser honrada, ela deve ser satisfeita, e isso é algo que precisa
suceder em dois aspectos. Antes de tudo, a lei se chega a nós e
nos diz que, a menos que a observemos e a honremos, a menos
que a vivamos, seremos condenados. “Ora, Moisés descreve a
justiça que é pela lei, dizendo: o homem que fizer estas coisas
viverá por elas” (Rom. 10:5). Fracassamos em guardar a lei de
Deus, mas nosso Senhor tratou dessa culpa, como já vimos, na
cruz. Ele estava lá; Ele Se ofereceu. Ele Se apresentou - Seu corpo,
Sua vida. E Deus pôs nossos pecados sobre Ele. Ele foi passivo;
Deus estava agindo. A ação era de Deus; a obediência passiva
era de Cristo.
Ah, sim, mas em Sua vida Ele ofereceu uma obediência ativa.
Paulo diz: “Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu
Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que
estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos”

426
(Gál. 4:4,5). E foi assim que Ele o fez: prestou uma perfeita
obediência à lei. Ele a guardou plenamente. Ele a cumpriu em
cada jota e em cada til. Ele disse que ia fazê-lo: “Não cuideis que
vim destruir a lei ou os profetas: não vim abrogar, mas cumprir”
(Mat. 5:17). E, como já vimos: “nem um jota ou um til se omitirá
da lei, sem que tudo seja cumprido” (Mat. 5:18). E Ele fez assim.
Ele guardou a lei perfeitamente.
z

E assim, pois, que Ele nos salva. Estamos nEle, como Paulo
diz em Romanos, capítulo 5. Estamos todos em Adão. Adão foi
o nosso representante, nossa cabeça federal. Quando ele caiu,
todos nós caímos com ele. Nós, que somos salvos, argumenta
Paulo, o somos em Cristo. Como estávamos em Adão, assim
estamos em Cristo. Tudo quanto era verdadeiro a respeito de
Adão, é verdadeiro a respeito de nós. Tudo quanto Adão fez se
tornou verdadeiro quanto a nós. Tudo quanto é verdadeiro sobre
Cristo é verdadeiro sobre nós. Tudo quanto Cristo fez se tornou
verdadeiro sobre nós. Quando Cristo honrou e guardou a lei por
meio de Seu ato de obediência, Ele estava fazendo-o não a favor
de Si próprio; Ele estava fazendo-o por mim, e assim posso dizer
com o apóstolo Paulo: “pois não estais debaixo da lei, mas debaixo
da graça” (Rom. 6:14). Os cristãos não estão mais debaixo da lei
no sentido em que é a observação da lei que os salvará. No que
lhes diz respeito, a lei tem sido guardada, tem sido honrada, e-
-lhes imputada para justiça. Deus “o fez pecado por nós; para
que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Cor. 5:21). Ou tomem
a poderosa declaração de Romanos, capítulo 8: “Porquanto o que
era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus,
enviando o seu Filho em semelhança da carne, pelo pecado
condenou o pecado na carne” (Rom. 8:3). Por quê? “Para que a
justiça da lei se cumprisse em nós” (v. 4).
Noutras palavras, isso nos fala desta grande doutrina de
sermos um só com Cristo, em Cristo. A expiação opera dessa
maneira. O que Ele fez ativamente nos é imputado. O que Ele
fez passivamente nos é imputado. Assim em Cristo, crendo em
Cristo, encorporados nEle, podemos encarar a lei sem qualquer
temor, sem qualquer tremor ou assombro. Aliás, eu iria ao ponto

427
de dizer que, a não ser que sejamos capazes de dizer isso, há algo
de errôneo com nossa fé. Não estamos mais debaixo da lei,
estamos debaixo da graça, e todos nós devemos estar prontos a
dizer com Augustus Toplady:

Os terrores da lei e de Deus


Não têm nada a ver comigo,
A obediência e o sangue de meu Salvador
Ocultam todas as minhas transgressões de vista.

Que gloriosa afirmação! Mas quão inadequados são muitos de


nossos hinos sobre a morte de Cristo. Quão poucos deles
declaram essas magnificentes doutrinas como se acham
declaradas nas Escrituras. Toplady o declarou ali - é o hino que
começa:
Um devedor à misericórdia somente,
Do pacto de misericórdia eu canto,
Nem temo quando vestido de lua justiça
A minha pessoa e oferenda trazer.

“Os terrores da lei e de Deus”, diz um homem que é pecador,


contudo tem de dizê-lo, e também o devemos nós: “não têm
nada a ver comigo”. Por quê? “A obediência” - ativa - “e o sangue
de meu Salvador” - passivo; “A obediência e o sangue de meu
Salvador ocultam todas as minhas transgressões de vista.”
Assim, pois, quando viermos eventualmente a considerar a
doutrina da justificação, teremos que voltar a este ponto, e
veremos mais plenamente o que ela significa. Mas com respeito
à expiação, significa que estou plenamente remido, e portanto
coberto, porque meus pecados são apagados, e porque tenho a
justiça de Cristo. Continuaremos a considerar alguns dos
resultados e conseqüências dessa obra perfeita de nosso Senhor
a nosso favor, e ela é um tema maior do que às vezes pensamos.

428
31
CRISTO O VITORIOSO
Já apresentamos uma exposição do que sempre foi a
interpretação tradicional protestante da doutrina da expiação,
ou seja, que ela é substitutiva e penal, e que os nossos pecados
foram realmente punidos em nosso Senhor, em Seu corpo na
cruz. Consideramos também algumas objeções a esse conceito
da expiação e respondemos a tais objeções. E agora, neste ponto,
devemos voltar à consideração de certos resultados desta obra
de nosso Senhor.
É bastante difícil saber como expor esta questão dos
resultados, e parece-me, depois de muita consideração, que talvez
a melhor forma de expô-la seja esta: há certos resultados da obra
de nosso Senhor que podem, provavelmente, ser mais
convenientemente considerados como uma parte de Sua obra.
Noutras palavras, há os que diriam que, como uma parte de nossa
doutrina da expiação, devemos considerar certas questões
adicionais além daquelas que já temos enfatizado. A obra
principal de nosso Senhor em Sua morte na cruz foi, além de
qualquer dúvida, à luz do ensino escriturístico, a obra que era
essencial para propiciar a Deus - a parte substitutiva e penal da
obra. Mas há muitas afirmações nas Escrituras que mostram
muito claramente que, ao mesmo tempo em que Ele estava
fazendo isso, nosso Senhor estava também fazendo algumas
outras coisas. E eu, pessoalmente, não discordaria daqueles que
argumentariam que essas outras coisas são, em certo sentido,
portanto, uma parte da expiação.
Há, pois, mais este acréscimo a ser feito. Como já vimos,
nosso Senhor na cruz estava prestando obediência passiva. Deus
estava pondo nossos pecados sobre Ele e tratando com eles.
Indicamos que, em Sua vida anterior a isso, Ele havia prestado
obediência ativa, a qual é igualmente parte da expiação, mas
além disso houve uma atividade adicional, e essa enfatiza o

429
elemento ativo na obra de nosso Senhor a nosso favor. Este é
um conceito que se tem ensinado freqüentemente na Igreja.
Alguns dos pais da Igreja Primitiva dos primeiros séculos se
mostraram muito preocupados em enfatizar esse aspecto. Vocês
se lembrarão de que, ao considerarmos algumas das falsas teorias
da expiação, mencionamos, entre outros, o ponto de vista que
ensinava que nosso Senhor pagara um resgate ao diabo. Ora,
nós o rejeitamos, porém há algo nele que é perfeitamente correto.
Nosso Senhor, ao realizar essa obra, tratou com o diabo, e é esse
aspecto de Sua obra positiva que realmente quero enfatizar aqui.
Ora, este conceito da expiação tem às vezes sido chamado o
conceito clássico. Clássico, porque ensinado nos primeiros séculos,
e fora reiterado com muita freqüência desde então. Um homem
que o reiterou em sua maneira vigorosa costumeira foi Martinho
Lutero. Ele geralmente o colocava nestes termos: ele dizia que o
homem, nesta vida e nascido em pecado, possui cinco inimigos
primordiais: satanás, o pecado, a morte, a lei e a ira de Deus. E,
segundo Lutero, antes que o homem possa ser salvo, é preciso
tratar com esses cinco inimigos. Ora, sem entregar-nos a isso
inteiramente, focalizemo-lo desta forma. Não há dúvida alguma,
como lhes mostrarei, que as Escrituras ensinam muito definida
e claramente que nosso Senhor, em Sua obra, trata com esses
cinco fatores. Já tratamos da lei ao expor a interpretação
substitutiva da expiação e, da mesma forma, evidentemente, já
tratamos da doutrina da ira de Deus; mas resta-nos tratar dos
outros três - satanás, o pecado e a morte.
Ora, chamo sua atenção para tudo isto, não só porque ele é
ensinado nas Escrituras, mas porque este aspecto da expiação
tende a receber muita atenção na atualidade. Tem havido um
reavivamento moderno deste conceito. Ele está sendo ensinado
de uma forma notável por alguns mestres luteranos na Suécia, e
eles, por sua vez, estão influenciando o pensamento britânico.
Em 1931 foi publicado um livro que tem tornado este conceito
muito popular. Tem por título Christus Victor, e foi escrito por
um escritor sueco chamado Gustav Aulen. Os que estão interes­
sados neste assunto lucrariam muito lendo esse pequeno livro.

430
Permitam-me esclarecer este ponto. Não afirmo que
concordo, basicamente, com os pontos de vista expostos por
Aulen, mas creio que vale a pena ler sua descrição deste conceito.
Infelizmente, como tantos outros, ele tende a minimizar a
importância do conceito substitutivo e penal, e enfatiza o outro
conceito ativo. Minha posição pessoal seria, primária e mais
essencialmente, como já vimos, que nosso Senhor veio a este
mundo a fim de sofrer a punição de nossos pecados em Seu
próprio corpo no madeiro, para ser nosso substituto. Essa é a
primeira coisa.
Ao prosseguirmos agora para estas outras coisas, agimos
assim, não para subtrair algo do que já dissemos, mas para
corroborá-lo. E, ao meu ver, um dos aspectos mais lamentáveis
nessa atual tendência é que estão promovendo este elemento
ativo para rebaixar o outro conceito, em vez de confirmá-lo.
Portanto, uma vez feita essa advertência, permitam-me colocá-
-lo assim: não há dúvida alguma de que nosso Senhor, ao realizar
Sua obra, estava travando uma batalha. Se vocês examinarem
seus livros de hinos, verificarão que muitos dos hinos referem a
Ele como “o Poderoso Vencedor”. Não só veio Ele suportar a
punição devida aos nossos pecados, devido à solicitação do Seu
Pai; não só estava acontecendo algo entre o Pai e o Filho na
cruz; mas, ao mesmo tempo, o Filho estava travando uma
poderosa batalha.
Portanto, quando vocês olham para a ressurreição, estão
olhando para um vencedor. O poderoso Vencedor ressuscitou.
Eis a razão por que devemos estar sempre cheios daquele senso
de triunfo quando ponderamos sobre Sua ressurreição. E um
dos inimigos com quem Ele tratou foi, evidentemente, o próprio
satanás - satanás e todas as suas hostes. Ora, em primeiro lugar,
peímitam-me abrir-lhes as Escrituras que afirmam isso. Em
1 João 3:8 assim lemos: “Para isto o Filho de Deus se manifestou:
para desfazer as obras do diabo.” Eis aí uma afirmação geral de
um dos propósitos de Sua vinda a este mundo. Em seguida,
tomem João 12:31. Nosso Senhor afirma: “Agora é o juízo deste
mundo: agora será expulso o príncipe deste mundo.” Aí é Ele

431
mesmo quem o diz. Então atentem bem para o apóstolo Paulo
em Colossenses 2:15: “E, despojando os principados epotestades,
os expôs publicaínente e deles triunfou em si mesmo.” Essa é
uma referência à cruz - uma afirmação muitíssimo importante.
E então, outra passagem importante é Hebreus 2:14,15, onde
somos informados que Ele Se revestiu de carne e sangue por
esta razão: “E, visto como os filhos participam da carne e do
sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela
morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo;
e livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a
vida sujeitos à servidão.” Ora, obviamente, precisamos levar em
conta imediatamente essas Escrituras, e vejam a razão por que
há aqueles que muito corretamente dizem que quando estamos
considerando a obra de nosso Senhor e o que nosso Senhor tem
feito para reconciliar-nos com Deus e pôr-nos em contato direto
com o Pai, precisamos, além de falar da Sua obra substitucionária,
fazer menção dessa obra ativa que Ele fez contra o diabo. E assim,
a questão é: como interpretar esses versículos?
Somos informados que nosso Senhor veio para destruir as
obras do diabo, para expulsar o diabo. Somos informados que
Ele expôs satanás e suas hostes a uma exibição pública,
especialmente ao morrer na cruz. Contudo, como interpretar
isso? Bem, certamente da seguinte forma: em virtude de Sua
vida de perfeita obediência à lei de Deus, e em virtude de haver
honrado a Deus em tudo o que Ele fez, Ele estava,
conseqüentemente, atacando e finalmente derrotando o diabo.
Ele fez isso muito especificamente ao vencer a tentação. O diabo
O tentou. Tentou matá-10 pela instrumentalidade de Herodes e
outros no início e, como os registros revelam, ele O atacou e O
tentou no deserto. E quando nosso Senhor O derrotou ali, somos
informados que o diabo somente O deixou por algum tempo.
Ele voltou e atacou nosso Senhor no Jardim de Getsêmane. Ele
O atacou na cruz. Ele o atacava por toda parte. Todavia nosso
Senhor o derrotou e desse modo destruiu suas obras.
Ora, sem dúvida isso foi particularmente o caso na cruz.
Nossa autoridade para o afirmar é o apóstolo Paulo, novamente,

432
naquela afirmação em Colossenses, capítulo 2. Como foi
exatamente que nosso Senhor, na cruz, expôs a uma exibição
pública o diabo e seus poderes? Ora, é evidente que foi algo
mais ou menos assim: o diabo, indubitavelmente, pensava que
nosso Senhor Se esquivaria da morte por causa do sofrimento
físico envolvido. Sua esperança era que quando chegasse o
momento extremo, a nosso Senhor de repente faltariam
elementos físicos. Em acréscimo a isso, ele provavelmente
também concluiu que a obediência de nosso Senhor falharia.
Seu argumento é que era fácil para nosso Senhor obedecer a Seu
Pai enquanto era uma questão de viver e não cometer pecado,
bem como honrar a lei. Entretanto, quando se tornasse uma
questão de morte, Sua obediência talvez falhasse.
Além do mais, provavelmente imaginou também que a fé
de nosso Senhor talvez vacilasse. Existe certo fundamento para
isso. Foi algo tremendo, como já vimos, que nosso próprio
Senhor, lembrem-se, na oração sacerdotal, orou a Seu Pai,
dizendo: “glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te
glorifique a ti” (João 17:1). Indubitavelmente, Ele estava rogando
a Deus que O fortalecesse para que pudesse glorificar plenamente
o Seu nome. O autor da Epístola aos Hebreus nos relata que
“nos dias da sua carne, oferecendo, com grande clamor e
lágrimas”, Ele foi ouvido por causa de Sua piedade, por causa de
Seu santo temor (Heb. 5:7). O teste foi muitíssimo severo, e o
diabo concluiu que a fé de nosso Senhor em Seu Pai talvez
falhasse nesse ponto. E especialmente, sem dúvida, ele presumiu
que isso aconteceria quando chegasse aquele ponto máximo,
quando nossos pecados fossem postos sobre Ele, quando ocorresse
a separação entre nosso Senhor e o Pai.
Portanto, há pouquíssima dúvida de que o diabo e suas hostes
imaginaram que na cruz o supremo momento de vitória deles
estava para chegar, que nosso Senhor fracassaria por uma dessas
razões, ou talvez todas elas simultaneamente. Mas o que
realmente aconteceu foi que nosso Senhor triunfou. Ele triunfou
ao provar que realmente era o Filho de Deus. Ele o fez durante
toda a Sua vida, porém o fez especialmente na cruz. Ao ladrão

433
que Lhe disse: “Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no
teu reino”, Sua resposta foi: “hoje estarás comigo no Paraíso”
(Luc. 23:42,43). Sua própria declaração “está consumado” (João
19:30) prova que Ele consumou a obra que o Pai Lhe havia dado
para fazer. Ele já havia orado sobre isso em João, capítulo 17,
mas ali na cruz Ele disse: “Está consumado”. Noutras palavras,
Ele disse: “Eu terminei; tenho realizado tudo, enfrentei tudo
até ao fim.” E então, tendo cumprido tudo, confiou Seu espírito
ao Pai.
Então, finalmente tudo isso ficou provado pelo fato da
ressurreição: “Declarado Filho de Deus em poder, segundo o
Espírito de santificação, pela ressurreição dos mortos” (Rom.
1:4). Por Sua obediência implícita e por Sua fé, bem como por
ter levado tudo a bom termo, nosso Senhor finalmente demoliu
todo o plano do inimigo, a mentira do inimigo. Somos
informados que o diabo é um mentiroso. Ele tem apresentado
Deus falsamente aos olhos dos homens; ele o fez no Jardim do
Éden: “É assim que Deus disse?” (Gên. 3:1). Pelo que ele quis
dizer: “É justo o que Deus disse?” “Deus é contra vocês”, disse
ele a Adão e Eva. Desde o princípio, satanás tem sido um
mentiroso, e sua suprema mentira é contra Deus e
particularmente contra o amor de Deus. No entanto, como já
vimos, mais claramente do que em qualquer outro lugar, o amor
de Deus foi demonstrado na cruz. Sabemos que ali o amor de
Deus foi tão imenso que Ele não poupou a “Seu próprio Filho,
mas O entregou por todos nós” (Rom. 8:32). Ele deu Seu único
Filho, até mesmo para a cruel morte de cruz. “Àquele que não
conheceu pecado, o fez pecado por nós” (2 Cor. 5:21). E Ele tudo
fez por rebeldes, por pecadores, por aqueles que nada merecem
senão o inferno. Eis a suprema manifestação do amor de Deus,
e portanto é o ponto acima de todos os demais, onde a vida do
inimigo foi destruída, onde as obras do diabo foram reduzidas a
nada e onde ele foi finalmente exposto publicamente à ignomínia
e foi total e completamente destroçado.
Assim, pois, devemos enfatizar que na cruz nosso Senhor
estava fazendo tudo isso. Mas ainda, notem bem, não mencionei

434
o que nos informa Hebreus 2:14, e não o mencionei sob esse
tópico porque decidi abordá-lo dentro do meu próximo tópico,
o qual é: nosso Senhor não só venceu o diabo, mas Ele também
aboliu a morte. Ora, a morte é um dos inimigos que homens e
mulheres pecaminosos sempre tiveram que enfrentar. Essa é a
afirmação, evidentemente, que é feita em Hebreus 2:14,15: “E,
visto como os filhos participam da carne e do sangue, também
ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse
o que tinha o império da morte, isto é, o diabo; e livrasse todos
os que, com medo da morte, estavam por toda a vida sujeitos à
servidão”.
Ora, obviamente essa é uma afirmação muitíssimo
importante, e muitas vezes ela tem levado pessoas a grande
perplexidade. Perguntam: “O que significa quando é dito que o
diabo tem o império da morte? Pensávamos que o diabo era um
usurpador e não tem absolutamente nenhum poder. Então, com
que direito você afirma que é ele que controla o poder da morte?”
Conseqüentemente, vocês percebem onde a idéia granjeou
aceitação - que foi ao diabo que o resgate foi pago. Foi em virtude
de encararem esse versículo em Hebreus 2:14 que alguns pais da
Igreja Primitiva diziam que nosso Senhor pagou o preço do
resgate a fim de libertar-nos do poder da morte. Eles o basearam
nesse versículo, mas evidentemente deram-lhe uma falsa
interpretação.
Então, o que significa? Bem, com certeza significa o
seguinte: o diabo, como vemos claramente, não só no livro de
Jó, mas em todas as demais partes das Escrituras, só possui poder
quando Deus lhe permite tê-lo. Ele não possui nenhum poder
absoluto. Ele não possui nenhuma autoridade em si e por si
mesmo, mas Deus lhe permite exercer certos poderes, e
indubitavelmente um deles é esse poder sobre o domínio da
morte. Eis a razão por que noutros lugares o diabo é descrito
como “o deus deste mundo” (2 Cor. 4:4); e “o príncipe da potestade
do ar, o espírito que agora atua nos filhos da desobediência”
(Ef. 2:2).
Vocês podem avaliá-lo da seguinte forma. O homem, quando

435
pecou, quando deu ouvidos à insinuação do diabo, afastou-se de
Deus, caiu da genuína relação com Deus e daquela vida que gozara
com Deus, e então caiu no domínio do diabo, na esfera em que
o diabo já vivia. O próprio diabo devido ter caído, caíra num
estado de morte. Há uma referência em 2 Pedro 2:4 à queda dos
espíritos que são mantidos cativos em prisões. Essa é a mesma
sugestão. O diabo, ao cair, tornou-se a cabeça daquela esfera que
se acha fora da vida de Deus, e assim podemos descrevê-lo como
o império da morte. Portanto, segue-se que quando Adão caiu,
ele passou para o império da morte; ele entrou para o domino de
satanás, o qual é o domínio da morte. Satanás é aquele que reina
sobre tudo que se acha coberto por essa morte final, e isso, penso
eu, é o que quer dizer aqui pela expressão que o diabo tem o
poder da morte.
Permitam-me expô-lo ainda mais explicitamente. Cristo nos
liberta desse poder da morte neste sentido. Paulo diz em 1
Coríntios 15:56,57: “Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a
força do pecado é a lei. Mas graças a Deus que nos dá a vitória
por nosso Senhor Jesus Cristo.” Isso significa que o elemento
que realmente torna a morte terrível e o seu aguilhão tão poderoso
é o pecado. Não é a morte em si mesma, porém o fato de que ela
é a conseqüência do pecado.
Noutras palavras, vocês e eu somos culpados sob a lei,
e é esse o fato que torna a morte terrível, porque, para os não-
-regenerados, a morte apenas significa que eles seguem em
direção a essa condição infindável de morte espiritual fora da
vida de Deus. E essa é a razão por que homens e mulheres fora
de Cristo, ao longo de toda a sua existência, vivem sujeitos à
escravidão mediante esse temor da morte. As pessoas que não
crêem em Deus, e que não çrêem na realidade do pecado e do
diabo, todavia odeiam a expectativa da morte. Por quê? Bem,
apesar de suas mentes, elas possuem temor; ele foi transmitido a
toda a raça humana desde o princípio. Acreditam - e estão certos
- que a morte é um inimigo; que a morte é algo terrível; que ela
é um império que nos mantém agrilhoados à miséria e à
infelicidade. E é o diabo que reivindica esse direito. Visto que

436
nascemos em pecado, estamos debaixo da autoridade do diabo e
debaixo do seu poder.
E o que nosso Senhor fez foi isto: Ele satisfez a lei; a lei não
mais nos condena, por isso não somos mais condenados pela
morte, e portanto saímos do território da morte, do território de
satanás e do pecado. Estamos livres desse outro inimigo que se
chama morte. O autor da Epístola aos Hebreus ensina muito
claramente que, ao morrer na cruz, nosso Senhor estava não
somente vencendo satanás, Ele estava vencendo (abolindo) a
morte. Graças a Deus, diz Paulo, temos a vitória em Cristo. A
morte perdeu seu terror. “Onde está, ó morte, o teu aguilhão?
Onde está, ó inferno, a tua vitória?” (1 Cor. 15:55). Esse é o
conceito cristão da morte. Podemos encará-la e falar nesses
termos em virtude do que Cristo fez. A morte já perdeu seu terror
em relação a nós. O diabo não pode mais aterrorizar-nos com
ela, porque estamos fora do domínio da morte, também estamos
fora do domínio de satanás. E assim vocês podem ver que, além
do diabo, o segundo inimigo, que é a morte, se acha igualmente
vencido.
O terceiro inimigo - o pecado - é vencido exatamente da
mesma forma. Paulo diz em Romanos 6:2: “Nós, que estamos
mortos para o pecado, como viveremos ainda nele?” Ora, essa é
uma afirmação muito forte. Nós, que somos cristãos, diz ele,
estamos mortos para o pecado. E no versículo 11 ele o coloca
nestes termos: “Assim também vós, considerai-vos como mortos
para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus nosso
Senhor.” No versículo 12, diz ele: “Não reine, portanto, o pecado
em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em suas
concupiscências.” E no versículo 14: “Porque o pecado não terá
domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo
da graça.”
Então podemos novamente pô-lo nestes termos: o homem,
em conseqüência de sua queda, sua desobediência a Deus, não
só caiu sob o domínio do diabo, ele também caiu, como já vimos
quando tratamos da doutrina da Queda, sob o domínio do pecado;
e todos nós sabemos disso por experiência. O pecado reina na

437
pessoa natural, na luxúria, no desejo, na tendência para o mal.
Além do que o diabo lhe faz do lado de fora, por assim dizer, o
pecado está reinando dentro, no próprio homem; ele está sob o
seu domínio. Entretanto, diz o apóstolo Paulo, aí nessas palavras
de Romanos, capítulo 6, mediante a morte de nosso Senhor na
cruz, somos libertados do domínio do pecado, já “morremos para
o pecado” (v. 10). “O pecado não terá domínio” sobre nós (v. 14).
Ou, tomando as palavras do apóstolo João: “Qualquer que é
nascido de Deus não comete pecado” (1 João 3:9). Por esse termo
João quer dizer que ele não permanece no pecado; ele não
continua num estado de pecado. Há ainda resíduos do pecado
em sua velha natureza, mas ele não mais está sob o domínio do
pecado. Ele pode cair, mas ele não pertence ao território do
pecado. Ele pode ser bastante insensato em dar ouvidos ao
inimigo, porém isso não significa que ele pertença ao domínio
do inimigo.
Portanto, vejam bem que nosso Senhor, mediante Sua obra,
e especialmente Sua obra na cruz, além de levar sobre Si a
penalidade e a punição de nossos pecados, como nosso substituto,
estava também destruindo as obras do diabo. Ele estava nos
libertando da escravidão e do domínio do diabo, e estava também
nos libertando da esfera da morte. Não estamos mais mortos em
delitos e pecados; não pertencemos mais à esfera da morte, somos
vivos para Deus. E igualmente Ele nos libertou do cativeiro,
tirania e poder do pecado.
Tendo, pois, o colocado nessa forma, posso seguir para o
que chamaria os resultados propriamente ditos, porque, como já
expliquei, ainda que tenhamos considerado todas essas coisas
como resultados, creio que é melhor expô-los como uma parte
da obra. Ora, aqui novamente a classificação é importante, porém
um pouco difícil. Por isso sugiro-lhes que a melhor classificação
é a seguinte: o primeiro resultado da obra de nosso Senhor, que
devemos necessariamente
✓ considerar, é aquele em relação ao
próprio Deus. E claro que como resultado da obra de nosso
Senhor, Deus é propiciado, Ele é satisfeito, Ele é “justo e
justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rom. 3:26). Como

438
resultado da obra de nosso Senhor, é Deus mesmo quem justifica.
Vocês se lembram da famosa pergunta de Paulo no capítulo 8 de
Romanos? “Quem os condenará?”, pergunta ele. “Quem
intentará acusação contra os eleitos de Deus?” E a resposta é:
“E Deus quem os justifica” (Rom. 8:34,33). E Ele assim procede
por causa da obra de Cristo. Que tremenda afirmação!
Deixem-me apenas advirti-los novamente, de passagem, a
que sejamos prudentes em afirmar tudo isso, caso alguém pense
que estamos ensinando que há alguma mudança essencial no
íntimo ser de Deus resultante da obra de nosso Senhor. Isso seria
completamente errôneo. A única mudança que é efetuada por
meio da obra de nosso Senhor é na relação de Deus conosco. Ela
não muda o caráter de Deus. Ela não afeta Seu amor, porque,
como vimos, foi Seu amor que enviou a Cristo. Não há mudança
na natureza e no íntimo de Deus. Mas há uma mudança muito
definida - e graças a Deus por ela! - em Sua relação conosco,
porque agora Ele nos considera como filhos, enquanto que
anteriormente estávamos sob Sua ira.
O segundo resultado é este - e ele se constitui numa
extraordinária afirmação: gostaria de saber se vocês já
compreenderam que nosso Senhor, ao concretizar Sua obra na
cruz, tem até efetuado alguma mudança no céu. Permitam-me
apresentar-lhes minha base autoritativa. Lemos em Hebreus
9:23: “De sorte que era bem necessário que as figuras das coisas
que estão no céu assim se purificassem; mas as próprias coisas
celestiais com sacrifícios melhores do que estes.” Deus convocou
Moisés a comparecer no Monte e ali lhe deu instruções acerca
da construção do tabernáculo, acerca das medidas e como devia
mobiliá-lo e exatamente o que ele tinha que fazer. E, como nos
lembra o autor de Hebreus, quando Deus mostrou tudo a Moisés,
Ele pronunciou estas palavras de instrução: “Olha, faze tudo
conforme o modelo que no monte se te mostrou” (Heb. 8:5).
Então Moisés desceu e executou as instruções. E, como nos
lembra ainda a Epístola aos Hebreus, tudo o que Moisés fez teve
que ser purificado, e foi purificado tomando o sangue de novilhos
e de bodes, água, lã escarlate e hissopo, aspergindo o livro da lei,

439
o povo e os vários vasos utilizados no ministério, e tudo em
conexão com o tabernáculo.
Ora, este o argumento do autor: “era bem necessário”, diz
ele, “que as figuras” - noutras palavras, essas coisas terrenas; o
tabernáculo no deserto não era “as próprias coisas celestiais”,
era apenas algo feito segundo a figura daquelas coisas - “as figuras
das coisas que estão no céu assim se purificassem” por meio
dessas - o sangue de touros e de bodes, água e assim por diante -
“mas as próprias coisas celestiais (fossem purificadas) com
sacrifícios melhores do que estes”. E então prossegue: “Porque
Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do
verdadeiro, porém no mesmo céu, para agora comparecer por
nós perante a face de Deus” (Heb. 9:23,24).
E assim o seu argumento pode ser posto nesta forma: a figura
foi purificada pelo sangue de touros e bodes, porém isso não é
suficiente para purificar a coisa em si, o tabernáculo celestial;
isso precisa ser purificado por algo superior. E ele tem sido
purificado por algo superior. Ele tem sido purificado pelo sangue
do próprio Filho de Deus. Ele ofereceu Seu próprio sangue. Peço-
-lhes que leiam novamente este capítulo 9 de Hebreus; aliás, que
leiam também o capítulo 8! Avancem mais e leiam a Epístola
inteira, a fim de que possam apreender este argumento. Ele é
uma afirmação muitíssimo gloriosa, e uma das afirmações mais
misteriosas da Bíblia inteira. Somos ensinados aqui de uma forma
perfeitamente clara que era necessário que o lugar celestial mesmo
fosse purificado, e que ele foi purificado pelo sangue de Jesus
Cristo.
Agora, a pergunta é: o que significa isso? Permitam-me ser
bem franco e responder que há um sentido em que ninguém
pode ser dogmático demais sobre a resposta a essa pergunta. Ao
meu ver, porém, devemos dizer o seguinte: de alguma forma
misteriosa há um tabernáculo nos lugares celestiais. Há
afirmações sobre nosso Senhor adentrando esse tabernáculo
celestial, esse Santo dos Santos. Não digo que eu o entendo, mas
as afirmações são feitas, e por isso devemos crer que o que foi
feito na terra, foi feito segundo a figura daquilo que está no céu.

440
E, além do mais, podemos dizer isto: satanás caiu do céu.
Nosso Senhor diz: “Eu via Satanás como um raio, cair do céu”
(Luc. 10:18). Satanás, segundo vimos quando estivemos
considerando o ensino bíblico concernente a ele, era
indubitavelmente o mais radiante dos anjos na presença de Deus.
E quando ele caiu, quando ele insurgiu com orgulho e rebelou-
-se contra Deus, ele assim procedeu no próprio céu. E assim,
parece-me, chegamos a um tipo de entendimento do que
significa, aqui, a necessidade de purificar até mesmo o próprio
tabernáculo celestial. De uma maneira que não podemos
entender, e que parece ser inescrutável, o mal afetou o próprio
céu. Essa coisa vil, essa coisa infame que primeiro causou a queda
de satanás, e então causou a queda do homem, introduziu - se se
permite o uso de tal linguagem - um gênero de impureza
inclusive no céu - no tabernáculo celestial, de alguma maneira.
E à luz desse ensino, como o entendo, era necessário que nosso
Senhor purificasse e expurgasse dessa mácula o tabernáculo
celestial. E a afirmação, aqui, é que realmente Ele assim o fez.
Isso, penso eu, nos ajuda a entender diversas afirmações
com que nos deparamos nas Escrituras, tais como Colossenses
1:20, onde lemos: “E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue
da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as
coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus.”
Através de Cristo Deus vai reconciliar conSigo mesmo todas as
coisas, tanto as do céu como as da terra. Não estou insinuando
que essa é a única explicação, todavia estou sugerindo que essa é
uma parte da explicação. E assim somos confrontados por esta
afirmação realmente espantosa e extraordinária, de que nosso
Senhor, por assim dizer, tomou Seu próprio sangue, entrou no
próprio céu e o purificou dessa mácula, dessa infamante sujeira
que foi deixada pela queda de satanás. E dessa forma, finalmente,
o céu, para usar a linguagem do autor de Hebreus, é inteiramente
purificado; e todo o mal e todos os seus efeitos em todo lugar,
tanto no céu como na terra, foram removidos.
Insistiria novamente com vocês sobre a importância de
conservar em mente este elemento adicional na obra de nosso

441
Senhor. Não devemos limitar nossa doutrina e nosso ensino
concernente à obra de Cristo unicamente à Sua ação como nosso
substituto e portador do pecado. Lembremo-nos de que Ele fez
simultaneamente o que estivemos considerando com respeito
ao diabo, o pecado e a morte. E se vocês concordam com Lutero
de que a lei e a ira de Deus devem ser consideradas como inimigas
contra nós, Ele também tratou delas, e assim tudo quanto
permanece entre nós e Deus já foi tratado e já foi removido.
Pessoalmente, sempre me deleita pensar que nosso Senhor
tinha tudo isso em Sua mente quando pronunciou aquelas belas
e confortantes palavras que se encontram no início de João,
capítulo 14: “Não se turbe o vosso coração.” Ele esteve justamente
falando a Seus discípulos sobre Sua partida, isto: “Não se turbe o
vosso coração”, diz Ele, “credes em Deus, crede também em
mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas: se não fosse assim,
eu vo-lo teria dito”. Então, prossegue: “vou preparar-vos lugar”
(João 14:1,2). E creio que Ele quis dizer que ia remover todo
obstáculo que permanecia entre nós e o céu, e estar com Deus e
desfrutar de Sua gloriosa presença. Ele não poderia preparar uma
mansão para nós no céu sem antes destruir as obras do diabo,
destruir o pecado e seu domínio, destruir a morte e o túmulo.
Além de satisfazer a justiça de Deus e a santa lei de Deus, e
oferecer essa propiciação que removeu a ira de Deus, Ele tinha
que fazer tudo isso antes de poder preparar um lugar para nós no
céu e então voltar e receber-nos para Si mesmo, para que onde
Ele está, estejamos nós também.

442
32
AS BÊNÇÃOS DO NOVO PACTO
Alcançamos agora o estágio, em nossa consideração da
doutrina bíblica da expiação, em que estamos focalizando os
resultados da obra de nosso Senhor na cruz. Já consideramos
duas das conseqüências imediatas. A primeira foi o efeito na
relação de Deus com a humanidade pecadora; e a segunda foi o
efeito no próprio céu. Agora é preciso considerarmos outras
conseqüências e seqüelas dessa grande obra.
Outra coisa que aconteceu quando nosso Senhor morreu,
segundo o ensino das Escrituras, foi que o novo pacto recebeu
ratificação. Deus fez um novo pacto com o homem, e esse pacto
foi ratificado pelo sangue de Jesus Cristo derramado na cruz.
Ora, há uma série de versículos, especialmente na Epístola aos
Hebreus, que afirmam isso com muita clareza. Permitam-me
lembrar-lhes de alguns deles. Em Hebreus 7:22, lemos isto: “De
tanto melhor concerto Jesus foi feito fiador” - “testamento”, na
Authorised Version-, é melhor, porém, traduzi-lo pelo termo “pacto”,
isto é, o novo pacto. E então, em Hebreus 8:6, lemos: “Mas agora
alcançou ele (Cristo) ministério tanto mais excelente, quanto é
mediador dum melhor concerto, que está confirmado em
melhores promessas.”
Em seguida, ainda mais importante são aquelas afirmações
feitas no nono capítulo, o qual já consideramos, especialmente
os versículos 15-22, os quais, como se lembrarão, começam desta
forma: “E por isso é Mediador dum novo testamento (pacto),
para que, intervindo a morte para remissão das transgressões
que havia debaixo do primeiro testamento, os chamados recebam
a promessa da herança eterna. Porque onde há testamento (pacto)
necessário é que intervenha a morte do testador (ou do
contratante).” E o escritor prossegue dizendo que a morte é
essencial nessa ratificação do pacto. Em seguida temos o mesmo
ensino no décimo capítulo, particularmente versículos 15-18, e

443
há também uma notável afirmação no versículo 29: “De quanto
maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar
o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue do testamento,
com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?”
Essa é uma das advertências mais terríveis que se encontram na
Epístola aos Hebreus. E em seguida temos também afirmado no
capítulo 13, nas belas palavras dos versículos 20 e 21: “Ora, o
Deus de paz, que pelo sangue do concerto eterno tornou a trazer
dos mortos a nosso Senhor Jesus Cristo, grande pastor das
ovelhas, vos aperfeiçoe em toda boa obra, para fazerdes a sua
vontade, operando em vós o que perante ele é agradável por Cristo
Jesus.”
Pois bem, há uma série de afirmações que são indicativas
do fato de que esse novo pacto entre Deus e o homem foi
ratificado pelo derramamento do sangue de Jesus Cristo. Nosso
Senhor mesmo havia predito isso. Em Lucas 22:20, lemos:
“Semelhantemente tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: este
cálice é o novo testamento (novo pacto) no meu sangue, que é
derramado por vós.” E o mesmo será encontrado também nas
passagens correspondentes em Mateus e Marcos. Além do mais,
o apóstolo Paulo a cita em sua afirmação sobre o culto da Ceia
do Senhor em 1 Coríntios 11:23-25: “o Senhor Jesus, na noite
em que foi traído... Semelhantemente também, depois de cear,
tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no
meu sangue.” Portanto, essa é uma afirmação específica feita
por nosso Senhor, Ele mesmo, na qual disse que o novo pacto
fora ratificado pelo derramamento de Seu sangue.
Ora, obviamente esse é um tema muitíssimo importante, e
é em razão de sua importância que os lembraria do modo como
este ensino nos é apresentado antes de tudo no Velho Testamento.
Todos os pactos de Deus com a humanidade foram ratificados
com sangue. O primeiro relato disso, e em muitos aspectos um
dos mais completos, encontra-se em Gênesis, capítulo 15, onde
somos informados sobre o pacto que Deus fez com Abraão.
Lemos nos versículos 9 e 10, que Deus disse a Abraão: “Toma
um bezerro de três anos, e uma cabra de três anos, e um carneiro

444
de três anos, uma rola e um pombinho. E trouxe-lhe todos estes,
e partiu-os pelo meio, e pôs cada parte deles em frente da outra;
mas as aves não partiu.” Em seguida, nos versículos 17 e 18,
lemos: “E sucedeu que, posto o sol, houve escuridão; e eis um
forno de fumo, e uma tocha de fogo, que passou por aquelas
metades. Naquele mesmo dia fez o Senhor um concerto com
Abrão, dizendo: à tua semente tenho dado esta terra, desde o rio
Egito até ao grande rio Eufrates.”
Além disso, se vocês lêem os outros versículos que vêm entre
esses dois grandes grupos de versículos, descobrirão que Deus
fez promessas adicionais, algumas das mais graciosas e
maravilhosas promessas que Ele fez a Abraão. Mas o ponto que
estou enfatizando é que o pacto foi ratificado pelo derramamento
do sangue desses animais, e mediante esse extraordinário sinal
que Deus ali deu a Abraão.
Aconteceu exatamente a mesma coisa quando Deus renovou
esse pacto com Moisés e adicionou alguns pactos subsidiários.
Talvez vocês se lembrem que quando estivemos tratando da
doutrina bíblica do pacto, realçamos que o pacto fundamental
foi feito com Abraão. Ele foi mencionado ainda no Jardim do
Éden, contudo foi feito especialmente com Abraão, e em seguida
houve outro, por algum tempo, feito com Moisés. Ele é descritó
em Êxodo 24:5-8, mas devemos enfatizar especialmente o
versículo 8: “Eis aqui o sangue do concerto que o Senhor tem
feito convosco sobre todas estas palavras.” E vocês descobrirão
que uma descrição é feita de como o sangue era aspergido, até
mesmo sobre o próprio livro do concerto, sobre o altar e sobre
alguns outros utensílios (cf. Heb. 9:19-21).
Percebemos, pois, que esse é um grande princípio bíblico.
Deus nunca faz um pacto com o homem sem ratificá-lo mediante
o derramamento de sangue. E aquilo que nos preocupa agora é
que quando nosso Senhor morreu na cruz, Seu sangue foi
derramado. Além de tudo o que já consideramos, este novo pacto
entre Deus e o homem foi desse modo ratificado e fielmente
introduzido. E ele é, portanto, algo que deveríamos ter sempre
em mente quando estamos considerando o pacto. Deus prometeu

445
este novo pacto, vocês se lembram, através de Abraão. Mediante
Jeremias Ele havia prometido que faria um novo pacto com o
povo (Jer. 31:31), não à semelhança do pacto que Ele havia feito
com eles quando os tirou do Egito, e vocês descobrirão que esse
novo pacto é descrito no oitavo capítulo de Hebreus: “Porque,
repreendendo-os, lhes diz: Eis que virão dias, diz o Senhor, em
que com a casa de Israel e com a casa de Judá estabelecerei um
novo concerto. Não segundo o concerto que fiz com seus pais
no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito;
como não permaneceram naquele meu concerto, eu para eles
não atentei, diz o Senhor. Porque este é o concerto que depois
daqueles dias farei com a casa de Israel...” (vv. 8-10). E então Ele
prossegue a descrever esse novo pacto.
Eis aí, pois, um grande princípio e uma verdade maravilhosa.
E ele nos conduz ao próximo resultado, o qual é, pelo nosso
prisma, um dos mais gloriosos de todos, porque estamos agora
chegando à consideração dos resultados que cabem a nós que
somos crentes, o que a cruz de Jesus Cristo fez por nós.
Consideraremos isso detalhadamente quando chegarmos a
abordar a aplicação da salvação à humanidade, a qual foi efetuada
na cruz. Mas neste ponto devemos, no mínimo, fazer um sumário,
e podemos dispô-lo nesta forma: todas as bênçãos que desfrutamos
como cristãos nos vêm em virtude do que aconteceu na cruz. A
cruz é o evento mais crucial da história. E da cruz que todo
benefício finalmente vem. Quais, pois, são esses benefícios que
podemos descrever como as bênçãos do novo pacto? Bem,
prossigamos com a leitura deste oitavo capítulo de Hebreus,
começando pelo versículo 10:

“Porque este é o concerto que depois daqueles dias


farei com a casa de Israel, diz o Senhor; porei as minhas
leis no seu entendimento, e em seu coração as escreverei: e
eu lhes serei por Deus, e eles me serão por povo; e não
ensinará cada um ao seu próximo, nem cada um ao seu
irmão, dizendo: conhece o Senhor; porque todos me
conhecerão, desde o menor deles até ao maior. Porque serei

446
misericordioso para com suas iniquidades, e de seus pecados
e de suas prevaricações não me lembrarei mais. ”

Esse é o novo pacto. Então o autor da Epístola aos Hebreus o


sintetiza, dizendo: “Dizendo Novo Concerto, envelheceu o
primeiro” (v. 13).
Mas a nossa preocupação agora é com as bênçãos deste novo
pacto. Quais são elas? Bem, devemos estabelecer antes de tudo o
perdão de nossos pecados. E devemos enfatizar que os nossos pecados
são perdoados uma vez por todas. Isso é o que o escritor de
Hebreus quer enfatizar no capítulo 10. Ele começa, dizendo:
“Porque, tendo a lei a sombra dos bens futuros, e não a imagem
exata das coisas, nunca, pelos mesmos sacrifícios que
continuamente se oferecem cada ano, pode aperfeiçoar os que a
eles se chegam. Doutra maneira, teriam deixado de se oferecer,
porque, purificados uma vez os ministrantes, nunca mais teriam
consciência de pecado” (vv. 1,2). Mas, diz ele, esse não foi o
caso. Nesses sacrifícios fazia-se um memorial dos pecados todo
ano. Eram simplesmente cobertos; não eram negociados; não
eram destruídos. Entretanto a glória de nossa posição é que o
que nosso Senhor fez, e o que foi feito nEle, na cruz, foi de uma
vez por todas. Se lerem esse grande capítulo 10 de Hebreus
novamente, mantendo seus olhos nisso, descobrirão que ele é o
elemento que o escritor enfatiza, e ele se constitui numa das
verdades mais gloriosas que vocês e eu poderíamos apreender.
“Porque com uma só oblação aperfeiçoou para sempre os que
são santificados” (v. 14) - vocês e eu. Nesse único ato Deus tratou
com o pecado e o perdoou de uma vez para sempre.
Acaso vocês consideram isso como sendo exagero, como
uma afirmação demasiadamente ousada? Segundo entendo as
Escrituras, porém, este é o ensino: como cristãos, como filhos
de Deus, devemos dizer que todos os nossos pecados - os do
passado, os do presente e os do futuro - foram tratados uma vez
por todas, perfeitamente, na cruz. Não há necessidade de qualquer
nova ação por parte de Deus para tratar do pecado que qualquer
crente venha a cometer. Ele já foi tratado. “O sangue de Jesus

447
Cristo, seu Filho”, diz João em 1 João, capítulo 1, significando a
mesma coisa, “nos purifica” - ainda purifica e sempre purificará
- “de todo pecado” (v. 7).
Sinto-me tentado a demorar-me aqui, mas tenho que
continuar. Se vocês, são crentes, se vocês são cristãos, então Deus,
digo-o com reverência, não mais se lembra de seus pecados. Deus
pode fazer algo que vocês e eu não podemos fazer. Nós não
podemos esquecer nossos pecados, achamos dificílimo esquecer
os pecados de outras pessoas, contudo Deus pode lançar os
pecados “no mar de Seu esquecimento”. Não há mais lembrança
dos pecados. Ele já tratou deles, terminante e absolutamente,
perfeita e completamente, na obra realizada na cruz.
Então, a próxima coisa que enfatizamos é que, à luz desse
fato, temos uma nova maneira de aproximação de Deus, um novo
acesso a Ele. Nossas consciências estão agora purificadas.
“Cheguemo-nos”, lemos no versículo 22 deste mesmo capítulo
10, “Cheguemo-nos com verdadeiro coração, em inteira certeza
de fé, tendo os corações purificados de má consciência, e o corpo
lavado com água limpa.” Noutras palavras, como já vimos no
sumário desse novo pacto no capítulo 8, não há nada mais
maravilhoso acerca dele do que isto, que ele nos capacita a entrar
na presença de Deus com santa ousadia. Sob a antiga dispensação,
o sumo sacerdote, sozinho, entrava no Santo dos santos, uma
vez por ano, sozinho e em temor e tremor, e o povo ficava sempre
apreensivo imaginando se ele iria sair. E quando ouviam o
movimento, o tilintar de pequenas campainhas presas à orla de
sua vestimenta, como se deleitavam por ele ter podido entrar na
presença de Deus e ainda sair. Mas vocês e eu, pelo sangue de
Jesus...!
Haveria algo, pergunto a mim mesmo, em todas as Escrituras
que seja mais glorioso do que esse versículo 19? - “Tendo, pois,
irmãos, ousadia para entrar no santuário” - o Santo dos santos -
“pelo sangue de Jesus.” Essa é a forma de aproximarmo-nos de
Deus. Esse é o novo pacto. Ele abriu o caminho. Ele mesmo o
preparou; e onde o sumo sacerdote ia apenas uma vez por ano,
nós podemos ir sempre que o desejarmos, “pelo sangue de Jesus”.

448
Oh, sim, é uma santa ousadia, porém é uma ousadia, lembrem-
-se. Enfatizem ambas as palavras. Tem que ser santo, pois o nosso
Deus é fogo consumidor. Aproximamo-nos dEle com reverência
e santo temor (Heb. 12:28) - sim; mas aproximamo-nos dEle
com santa ousadia; com segurança e confiança no sangue de
Jesus; com plena segurança de fé.
Portanto, sejamos bem claros sobre isso. Entrar na presença
de Deus duvidando que Ele os está perdoando não é um sinal de
humildade, nem uma característica de santidade. Isso é
incredulidade, é falta de fé. Isso é um fracasso em entender a
verdade. Portanto, meu amigo, nunca tente novamente dar a
impressão de que você é um cristão tão sensível que não gosta
de demonstrar certeza que seus pecados são perdoados!
Desacreditamos a graça e a glória de Deus e a grandeza do
evangelho se estamos inseguros sobre isso: “Tendo, pois, irmãos,
ousadia para entrar no santuário.” Não em meu mérito, não em
minha justiça, não em termos de meu entendimento, mas pelo
sangue de Jesus. Ele já abriu o caminho. E, portanto, vamos
sabendo que Deus já disse neste novo pacto: “e eu lhes serei por
Deus, e eles me serão por povo” (Heb. 8:10). É a coisa mais
gloriosa já dita a homens e mulheres: somos povo de Deus. E aí
vocês podem colocar, se preferirem, a grande doutrina da adoção,
a qual consideraremos mais adiante. Não apenas nos é dado o
novo nascimento, mas também somos adotados na família de
Deus. Todas essas bênçãos se acham inclusas nessa única grande
afirmação. A regeneração e a adoção estão lá, e naturalmente a
justificação e a santificação, e todas as demais doutrinas.
Estou desejoso, porém, de enfatizar o seguinte aspecto: que
como resultado desse novo pacto não estamos mais debaixo da
lei, e, sim, debaixo da graça. Naturalmente, vamos a Paulo para
isso, a Romanos, capítulo 6, onde ele nos apresenta sua maior
exposição dela. “Porque o pecado”, diz ele no versículo 14, “não
terá domínio sobre vós.” Por quê? Bem, eis a resposta: “Pois
não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça.” Eles haviam
estado debaixo da lei - a subseção do antigo pacto tinha sido a
introdução da lei. Essa é a razão porque nosso Senhor teve que

449
ser “nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os que
estavam debaixo da lei, a fím de recebermos a adoção de filhos”
(Gál. 4:4,5). Como cristãos, porém, não estamos debaixo da lei, e
sim, debaixo da graça. Paulo diz a mesma coisa em Romanos
7:4: “Assim, meus irmãos”, diz ele, “também vós estais mortos
para a lei pelo corpo de Cristo, para que sejais doutro, daquele
que ressuscitou dentre os mortos, a fim de que demos fruto para
Deus.” Quando Cristo morreu para a lei, vocês e eu, em Cristo,
também morremos para a lei. Vocês o encontrarão novamente
nessas palavras que já citei de Gálatas 4:4,5.
Espero que todos nós estejamos esclarecidos sobre isso.
Naturalmente, teremos que reiterá-lo quando chegarmos aos
outros aspectos da doutrina. Não significa que não temos que
guardar os Dez Mandamentos. Eles ainda se aplicam a nós. Mas
não estamos debaixo da lei neste sentido: quando Deus deu essa
lei através de Moisés, Ele disse ao povo: se vocês guardarem esta
lei, serão salvos, e Eu lhes perdoarei. Se. Foram responsabilizados
de levá-la a cabo. Estavam debaixo da lei no sentido de que essa
era a forma na qual encaravam a questão da salvação. E era
impossível. No entanto não estamos debaixo da lei nesse sentido.
Cristo cumpriu a lei por nós; Ele a honrou, como já vimos.
Portanto, estamos agora nesta nova relação. Ele nos libertou da
lei e da maldição da lei, a fim de que pudéssemos viver a lei e
guardá-la. Paulo o expõe perfeitamente em Romanos, capítulo
8: “Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava
enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança
da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne;
para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos
segundo a carne, mas segundo o espírito” (Rom. 8:3,4). E assim,
num sentido judicial, forense, não estamos debaixo da lei, todavia
que Deus tenha misericórdia do homem que diga: desde que
não estou debaixo da lei, posso fazer o que eu quero. O que
Paulo lhe diz é o seguinte: “Que diremos, pois? Permaneceremos
no pecado, para que a graça abunde?” (Rom. 6:1). Visto que não
estamos debaixo da lei, podemos fazer o que bem quisermos?
Não nos enganemos, diz o apóstolo: “De modo nenhum.” Nosso

450
Senhor morreu por nós a fim de nos capacitar a vivermos a lei e
a guardá-la, não para nos dar liberdade para pecarmos. Esse é o
terrível pecado do antinomianismo, uma das heresias mais
danosas que já afligiram o povo de Deus. É a idéia de que,
contanto que você creia nas coisas certas, dizem eles, não importa
o que você faça. “A fé sem obras é morta”, diz Tiago (Tiago 2:20).
Não há qualquer valor numa profissão de fé, a menos que leve a
resultados em nossa vida.
Ora, posso provar isso ainda mais conclusivamente desta
forma: vocês notarão que no novo pacto Deus então faz algo
com a lei, algo que não fizera antes. Antes, a escrevera em tábuas
de pedra; ela nos era externa; no entanto, eis o que Ele fará:
“porei as minhas leis no seu entendimento, e em seu coração as
escreverei” (Heb. 8:10). Eis aí a razão por que denuncio o terrível
pecado de antinomianismo. O homem que diz: “não mais estou
debaixo da lei, e sim, da graça”, e que considera isso como licença
para pecar, está revelando sua ignorância do novo pacto. O que
o novo pacto faz é o seguinte: em vez de dar-me uma lei de
caráter externo, e exigir que a guarde, Deus põe essa mesma lei
em minha mente; Ele a escreve em meu coração; Ele a põe dentro
de mim, para que eu a queira obedecer, “...os seus mandamentos
não são pesados” para o cristão (1 João 5:3), porquanto foram
impressos nas próprias tábuas de nossa mente e de nosso coração.
Todavia, podemos avançar ainda mais, e esta é a medida
final que nos tirará de uma vez para sempre dessa falsa idéia
antinomiana, considerando o que realmente se diz nestes nobres
versículos de Hebreus 13:20,21: “Ora, o Deus de paz, que pelo
sangue do concerto eterno tornou a trazer dos mortos a nosso
Senhor Jesus Cristo, grande pastor das ovelhas, vos aperfeiçoe
em toda boa obra, para fazerdes a sua vontade” - notem bem -
“operando em vós o que perante ele é agradável por Cristo Jesus.”
Aqui está a coisa mais gloriosa de todas. No novo pacto, Deus,
em Cristo, mediante o Espírito Santo, não só pôs a lei em nossas
mentes e em nossos corações, Ele está ainda operando em nós
uma predisposição a favor dela, um desejo de guardá-la, e Ele
nos confere poder para fazer isso.

451
Pergunto se já compreenderam que aí nesses dois versículos
vocês têm exatamente a mesma afirmação que o apóstolo Paulo
faz em Filipenses 2:12,13? Estas palavras são mais familiares,
não é verdade? “Operai a vossa salvação com temor e tremor;
porque Deus é quem opera em vós tanto o querer como o efetuar,
segundo a sua boa vontade.” Ele nos confere os desejos - “tanto
o querer como o efetuar” - tanto o poder como a capacidade
para efetuá-lo. Deus está operando tudo isso em nós. Essa é uma
parte essencial desse espantoso novo pacto que foi ratificado
pelo sangue derramado do Filho de Deus na cruz do Calvário.
Contudo, há ainda algo mais. Esse novo pacto também
garante nossa continuidade nesta vida. Uma maravilhosa
afirmação disso é feita em Hebreus 7:25. O autor está
contrastando os antigos sacerdotes com este perfeito Sumo
Sacerdote, este único Sacerdote “segundo a ordem de
Melquisedeque”, e não há nada mais maravilhoso acerca dEle
do que isto: “E, na verdade, aqueles foram feitos sacerdotes em
grande número, porque pela morte foram impedidos de
permanecer, mas este, porque permanece eternamente, tem um
sacerdócio perpétuo” (Heb.7:23,24). Oh, sim, mas como isso me
afeta? Assim: “Portanto” - em virtude de Seu sacerdócio imutável
- “pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a
Deus, vivendo sempre para interceder por eles.” Ele está sempre
ali; Ele nunca falhará.
E esse é o tipo de Sumo Sacerdote de que carecemos, pois
caímos muitas vezes em pecado e precisamos voltar atrás;
precisamos confessar e precisamos de mais purificação, e temos
essa bendita certeza de que Ele jamais falhará. Ele assentou-Se
para sempre, e permanecerá ali. Ele está sempre fazendo
intercessão. Portanto, Ele nos salva ao máximo, ao extremo.
Lembro-me de certa vez ouvir um homem pregar sobre esse
versículo, e então disse que o mesmo pode ser parafraseado assim:
“Por conseguinte, Ele salva da extrema miséria”, como se fosse
uma descrição do alcance ou do âmbito desse poder de salvação.
Não é isso. Ele salva da extrema miséria, graças a Deus, porque
Ele salva de todo pecado e de todas as formas de pecado, mas

452
isso não é o que está sendo enfatizado aqui.
Ao contrário, consiste em que Ele não começa simplesmente
o processo e então o esquece. Vejam bem, esses outros sacerdotes
eram homens com o ofício sacerdotal, sim, porém se tornavam
envelhecidos, fracos e morriam, e assim outros tinham que ser
designados. E corria-se o risco, talvez, de que uma interrupção
viesse a ocorrer e o povo ficasse desamparado, entretanto esse
risco não era o caso do Senhor Jesus Cristo. Ele jamais desiste;
portanto Ele é capaz de “salvar ao extremo”. Ele não só começa
nossa salvação, Ele a leva avante. Ele a leva avante até que nos
apresente irrepreensíveis, inculpáveis e imaculados na presença
de Seu Santo Pai. Ele garante a perpetuidade, a continuidade da
obra.
E o resultado de tudo isso é que vocês e eu desfrutamos das
bênçãos da certeza da salvação. Nossa salvação é certa. Permitam-
-me apresentar-lhes um versículo para estabelecer esse fato,
novamente no décimo capítulo de Hebreus: “Porque com uma
só oblação aperfeiçoou para sempre os que são santificados” (v.
14). Ora, não existe nada mais forte que isso, e vocês jamais
encontrarão algo que possa lhes transmitir maior segurança. Eis
a razão por que o escritor continua a fazer este apelo: “Tendo,
pois, irmãos, ousadia para entrar... E tendo um grande sacerdote
sobre a casa de Deus, cheguemo-nos com verdadeiro coração,
em inteira certeza de fé; tendo os corações purificados de má
consciência, e o corpo lavado com água limpa,” (vv. 19,21,22), e
assim por diante. O escritor o reitera continuamente, e ele assim
procede, naturalmente, para que tenhamos certeza do seguinte:
nosso Senhor está assentado à destra de Deus; Ele já completou
a obra que era indispensável, e estará assentado lá até à
consumação final.
Um pouco antes, o escritor afirma: “E assim todo sacerdote
aparece cada dia, ministrando e oferecendo muitas vezes os
mesmos sacrifícios, que nunca podem tirar os pecados; mas este,
havendo oferecido um único sacrifício pelos pecados, está
assentado para sempre à destra de Deus, daqui em diante
esperando até que os seus inimigos sejam postos por escabelo de

453
seus pés” (vv. 11-13). Ora, eis o que isso significa: Ele é o
Libertador, o Messias. Ele venceu tudo; Ele está aguardando;
Ele está assentado, até que todos os Seus inimigos sejam feitos
estrado de Seus pés, e então finalmente nos introduzirá em Seu
reino. E visto que isso é certo a Seu respeito, então é certo a meu
respeito. Eu estou nEle. Eu Lhe pertenço. E, portanto, segundo
penso dEle assentado ali, aguardando até que Seus inimigos sejam
feitos estrados de Seus pés, sei que meu futuro está garantido.
NEle essa glória é absolutamente certa. O fato de que Ele está
assentado é uma prova disso. Ele assentou-Se. Por quê? Porque
Ele consumou a obra. Ele está simplesmente aguardando agora
- assentar é uma atitude de espera - até que Seus inimigos sejam
feitos estrados de Seus pés. E em virtude de nossa relação com
Ele, significa que o nosso futuro e glória estão garantidos. Nada
e ninguém serão capazes de separar-nos dEle. Ele disse: “e
ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai” (João 10:29).
Pertencemos a este Pastor, e nenhum ladrão, nenhum inimigo
jamais nos arrebatará dEle.
Portanto, temos aí uma espécie de sumário das bênçãos que
cabem a nós que cremos na obra que foi consumada na cruz.
Uma vez mais me acho na posição de não conseguir fazer o que
pretendia. E não me desculpo. Não posso estar neste púlpito,
passivamente, falando dessas coisas sem me comover. Eu tenho
estado pregando para vocês. Estas reuniões são anunciadas como
preleções e como discursos, mas graças a Deus que não posso
prelecionar sobre tal tema. Quando penso o que ele significa, e
significa a mim, e significa para mim, minhas paixões vêm à
tona, meus sentimentos se perturbam, todo o meu ego é
envolvido, embora tenha pretendido, talvez, apenas ler uma lista
dos resultados e dos benefícios e das bênçãos que cabem a nós
daquilo que aconteceu na cruz. Oh, enquanto as focalizamos
juntos, porventura não temos sentido os nossos corações
comovidos e aquecidos? Você compreende, meu amigo, que isso
se relaciona com você? Você percebe que se encontra nesse novo
pacto, que ele foi ratificado pelo sangue do Filho de Deus? Ele
está selado, rubricado, estabelecido. Você conhece seu documento

454
de propriedade? Você o possue? Está consciente de que seus
pecados foram perdoados? Você se chega a Deus com essa santa
ousadia, sabendo que é aceito; sabendo que Ele é o seu Deus e
que você é Seu filho? E se porventura até agora não o sabe, então
deve ir e confessá-lo a Deus, humilhado. Confesse sua
incredulidade, confesse sua ignorância, porém, crendo e
aceitando a verdade, aja em favor dela, vá a Ele com fé. Não
espere por algum sentimento. Creia na palavra e aja à luz dela, e
você receberá o sentimento. Não permita que o diabo lhe roube
a alegria e a segurança. Permaneça na posição que lhe é oferecida
por essa fé. Vá a Deus e agradeça a Ele tudo isso, e o seu coração
começará a aquecer-se. Suas emoções começarão a agitar-se.
Quanto mais você for grato a Deus por isso, por fé, tanto mais
você se alegrará e se regozijará, e mais sentirá o amor envolvendo
tudo isso.

455
33
CRISTO O REI
Estamos considerando os resultados e as consequências da
obra de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, especialmente Sua
obra na cruz - os resultados e as consequências da expiação. E a
fím de podermos manter a seqüência - a seqüência lógica - em
nossas mentes, talvez lhes lembrarei ligeiramente o que já
consideramos.
Antes de tudo, vimos que houve certas conseqüências na
relação de Deus com o homem. Não houve qualquer mudança
no caráter de Deus, no ser de Deus, mas evidentemente houve
uma mudança na relação de Deus com a humanidade.
Em segundo lugar, pois, vimos que houve uma mudança no
próprio céu. Segundo a Epístola aos Hebreus nos ensina, o
santuário celestial tinha de ser purificado - e foi purificado -
pelo sangue de Jesus Cristo. Noutras palavras, todos os efeitos
do pecado e da queda de satanás - inclusive no próprio céu -
foram tratados.
Em terceiro lugar, ao morrer na cruz, e ao derramar o Seu
sangue, o novo pacto entre Deus e o homem foi ratificado.
Também consideramos alguns dos resultados que cabem àqueles
dentre nós que somos crentes no Senhor Jesus Cristo. Tornamo-
-nos herdeiros desse novo pacto, e vimos alguns dos gloriosos
privilégios dos quais desfrutamos como resultado disso.
A próxima conseqüência, a qual temos agora que considerar,
é que, em acréscimo a essas bênçãos especiais e particulares que
são recebidas e experimentadas pelo Seu povo, há certas bênçãos
comuns que resultam da obra de nosso Senhor na cruz. Ora, isso
é algo que tantas vezes é esquecido, ignorado ou não
compreendido como se deveria, porém não há a menor dúvida
de que, se não fosse pela obra de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo, o mundo provavelmente teria chegado ao fim e teria sido
destruído no momento em que Adão pecou e caiu. E certamente

456
à luz da cruz e da obra que Seu Filho iria executar que Deus
poupou o mundo.
Já vimos que há ensino muito claro a esse respeito. Já vimos
que todos os pecados cometidos pelo povo durante a dispensação
do Velho Testamento foram apenas cobertos por causa do que
estava para acontecer na cruz. Deus pôde perdoar os pecados do
Seu próprio povo sob a velha dispensação só porque essa obra
estava para ser realizada. Esse é o argumento de Romanos 3:25,26
- não é verdade? Foi aí, nos diz Paulo, que Deus justificou o
passar por cima dos pecados da antiga dispensação. Bem, da
mesma forma pode dizer-se com confiança que a única coisa
que fez com que Deus continuasse a ter algum trato ou alguma
relação com este mundo, era essa obra que nosso Senhor estava
para realizar. Portanto, foi a cruz, por assim dizer, que poupou o
mundo e lhe permitiu continuar.
E da mesma forma é a cruz, e tão-somente a cruz, que poupa
a vida de qualquer indivíduo que peca. E tão-somente por causa
da obra da cruz que Deus pode até tolerar o pecado em qualquer
aspecto ou em qualquer sentido. Assim sendo, pois, eu o coloco
sob o título de bênção comum. E é preciso que sejamos prudentes
em enfatizar que até mesmo o incrédulo recebe essa bênção da
cruz. O fato de que ele não é imediatamente eliminado se deve
inteiramente a isso. E à luz da cruz que Deus pode exercer Sua
paciência para com aqueles que se Lhe opõem e permanecem
finalmente impenitentes.
E da mesma forma, as bênçãos do que é geralmente chamado
graça comum são derivadas da cruz. Já consideramos a graça
comum numa preleção anterior. Ela é diferenciada da graça
especial, que é a graça da redenção, a graça de Deus para com
aqueles dentre nós que somos salvos no Senhor Jesus Cristo.
Mas existe tal coisa chamada graça comum. Significa qualquer
tipo de bênção que é recebida por qualquer pessoa neste mundo.
Por exemplo, vocês se lembrarão como nosso Senhor disse no
Sermão do Monte, que Deus “faz que o seu sol se levante sobre
maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos” (Mat. 5:45).
Ora, isso é graça comum. O injusto e o ímpio recebem os

457
benefícios que vêm do sol e da chuva.
Não só isso, mas também recebem muitos outros benefícios.
Há muitos benefícios gerais provindos da salvação cristã que
são usufruídos por pessoas que não são salvas. Tomem, por
exemplo, qualquer dos grandes avivamentos que já aconteceram.
Ora, um avivamento não somente significa a salvação de um
grande número de pessoas, mas é sempre acompanhado de
bênçãos comuns e gerais. Não há dúvida nenhuma de que o
grande despertamento evangélico de dois séculos atrás foi o meio
de trazer bênçãos incontáveis a milhões de pessoas que
posteriormente morreram impenitentes e incrédulas. Como
resultado desse despertamento do décimo-oitavo século, não só
foram convertidas milhares de pessoas, mas elevou-se todo o
nível de vida neste país. Como resultado desse avivamento, as
leis sobre a segurança dos operários foram aprovadas e muitas
outras coisas benéficas vieram à existência.
Ora, esses são exemplos da graça comum, e é importante
que imprimamos isso nas mentes daqueles que são incrédulos.
Apesar de não crerem no Senhor Jesus Cristo e em Sua expiação
consumada na cruz, eles desfrutaram dos benefícios dessa obra
incontáveis benefícios gerais e comuns. E assim, vejam vocês,
quando vierem a ponderar sobre isso, que este mundo, no qual
vivemos, tem recebido grande benefício da obra do Filho de
Deus.
Eis o próximo tópico: é evidente, do ensino das Escrituras,
que até mesmo os anjos têm-se beneficiado dessa obra. Ora, há
duas passagens-chaves que ensinam isso. Efésios 1:10 é a primeira
em que lemos: “De tornar a congregar em Cristo todas as coisas,
na dispensação da plenitude dos tempos, tanto as que estão nos
céus como as que estão na terra.” A afirmação paralela está em
Colossenses 1:20: “E que, havendo por ele feito a paz, pelo sangue
da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as
coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos céus.”
Ora, ambas essas afirmações são muito notáveis e muito
misteriosas. Por certo não há unanimidade de opinião quanto
ao que exatamente significam. Mas é geralmente consensual

458
entre a maioria dos comentaristas que não se referem
simplesmente às bênçãos no âmbito dos céus físicos, e sim que é
mais do que isso, e que não há dúvida de que significam que os
anjos, de alguma forma extraordinária, recebem algum benefício.
Não recebem o benefício da salvação, como nós recebemos, mas
certas pessoas têm sugerido - e devo confessar que a sugestão
por si só me atrai - que quando satanás caiu, os anjos perderam
seu líder, sua cabeça. Quero dizer, mesmo os anjos bons. Parece
evidente que o diabo - aquele que se tornou o diabo - era o líder
de todas as hostes angelicais. Vocês se lembram que uma multidão
de anjos caiu com ele, os anjos apóstatas que pertenciam a satanás.
Sim, mas tudo indica, pois, que os anjos bons que não caíram
com ele foram deixados, por assim dizer, sem uma cabeça. E a
sugestão é (ela tem surgido muitas vezes na história da Igreja)
que nosso Senhor, quando voltou para o céu e na plenitude dessa
redenção, Se fez a cabeça de toda a hoste angelical. Ele é a cabeça
de toda a Criação, não meramente essa que vemos aqui na terra,
porém de todas as coisas criadas, tanto as da terra como as do
céu. E assim vemos que até mesmo os anjos receberam esse
benefício como resultado de Sua obra durante Sua vida neste
mundo. E isso é algo que deve fazer com que fiquemos cheios de
pasmo e admiração.
Ora, com isso eu junto o seguinte: certos resultados cósmicos
se deduzem do que nosso Senhor fez. Todo o universo se
beneficia da obra de nosso Senhor na cruz. Esse,
indubitavelmente, é um significado que simplesmente não pode
ser excluído de Efésios 1:10 e de Colossenses 1:20, que já
focalizamos. Vocês se lembram como Paulo argumenta em
Romanos, capítulo 8: “Pois a criação está sujeita à vaidade, não
voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou” (v. 20).
A Criação toda, diz ele, geme e sofre aguardando pela
“manifestação dos filhos de Deus” (v. 19). Vejam bem, quando o
homem caiu, até a própria Criação sofreu. Consideramos isso
quando tratamos da doutrina da Queda. A terra foi amaldiçoada,
cresceram-se sarças, espinheiros começaram a surgir e chegou a
doença - todas essas consequências no âmbito da natureza. Bem,

459
a morte de nosso Senhor na cruz tratou de tudo isso também.
Não é simplesmente que vocês e eu, como indivíduos, fomos
reconciliados'com Deus, mas, em última análise, que todo o
cosmo será reconciliado com Ele. Somos informados que haverá
eventualmente “novos céus e nova terra”, nos quais habita justiça
(2 Ped. 3:13). Esse é o resultado final, num sentido cósmico,
da obra do Senhor na cruz, e ele não poderia ter sido produzido
sem esta obra. Ele é Aquele que intermedia em cada aspecto,
não só entre os homens e Deus, porém entre todo o cosmo e
Deus. E maravilhoso saber que, eventualmente, como Paulo
argumenta, todas as coisas - “sejam as coisas da terra, sejam as
coisas do céu” - todas as coisas finalmente serão reconciliadas
novamente com Deus. Observem que Paulo o coloca desta
maneira: “E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue
da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo
todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão
nos céus” (Col. 1:20).
Assim, pois, estivemos focalizando os resultados da obra de
nosso Senhor como ela tem sido vista em seus efeitos sobre todos
aqueles que têm sofrido, e sobre todas as coisas que têm sofrido
em conseqüência do pecado. Agora, em seqüência chegamos a
algo que, em certo sentido, é ainda mais maravilhoso. É preciso
prosseguirmos considerando os resultados em relação ao próprio
Senhor Jesus Cristo, visto que há muito ensino patente e explícito
nas Escrituras para sustentar que nosso Senhor tem sido afetado
pela Sua própria obra na cruz. Ora, a passagem crucial, aqui, se
acha evidentemente em Filipenses 2:5-11, e devemos lê-la toda,
visto que a mesma é uma afirmação por demais grandiosa.

“De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que


houve também em Cristo Jesus, que, sendo em forma de
Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas
aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de
homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à
morte, e morte de cruz. Pelo que (por causa disso, como

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resultado disso) também Deus o exaltou soberanamente, e
lhe deu um nome que é sobre todo nome; para que ao
nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus,
e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai ”

Ora, há outras afirmações que dizem a mesma coisa. Nosso


Senhor mesmo o diz: “É chegada a hora em que o Filho do
homem há de ser glorificado” (João 17:23). E então vocês se
lembram de que na oração sacerdotal em João, capítulo 17, lemos
isto: “glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te
glorifique a ti” (v. 1). Ele compreendeu que, como resultado de
Sua morte na cruz, Ele seria glorificado e que Deus ia glorificá-
-10 nela, através dela e como resultado dela. Muitos têm
tropeçado neste ponto, porquanto dizem que certamente Ele
sempre participara da glória eterna do Pai e que jamais cessara
de participar dela. Isso, naturalmente, é perfeitamente correto.
Portanto, essa glória à que Ele Se refere aqui, e à qual Paulo se
refere no segundo capítulo de Filipenses, deve ser uma glória
especial e, em certo sentido, uma nova glória.
E com certeza se refere ao seguinte: há uma glória especial
vinculado com o Senhor Jesus Cristo como o glorificado Deus-
-homem. Ela é uma glória distinta. Ele possuía a glória do Pai
antes da fundação do mundo, antes de Sua encarnação. Sim, na
encarnação, porém, algo singular aconteceu. Ele tomou a natureza
humana para Si. Ele Se fez, pois, Deus-homem. E Ele Se fez o
Deus-homem que seria glorificado. Não mais estaria Ele no
estado de humilhação, e sim, estaria Ele no estado de exaltação.
Eis uma distinção muitíssimo importante e vital. E foi-Lhe dado
esta glória especial, esta glória messiânica, como o Deus-homem,
por causa de, como resultado de, Sua humilhação e obediência à
morte, até à cruz. E isso é importante para nós, pois sabemos
que, participando da glória do Pai eterno, neste sentido único,
no momento temos alguém que nos representa. A natureza
humana foi assumida por Ele e com Ele, e agora é glorificada
nEle. Isso é algo que não existia antes de Sua encarnação. A

461
natureza humana não existira na glória anterior; ela existe agora.
Existe uma nova glória, uma glória especial, Sua glória
messiânica.
No entanto, também lemos algo mais. Lemos que, como
resultado de Sua obra na cruz, a plenitude do Espírito Santo Lhe
foi concedida para a formação da Igreja, da qual Ele é a Cabeça.
Ora, isso é evidentemente de óbvia e de vital importância.
Permitam-me apresentar-lhes dois exemplos evidenciais. Vejam
a afirmação em João 7:39: “porque o Espírito Santo ainda não
fora dado, por ainda Jesus não ter sido glorificado.” Essa é uma
profecia, uma predição, acerca do dia que estava por vir quando
aqueles que viessem a Ele receberiam o Espírito Santo e de seu
interior fluiriam rios de água viva - um quadro pitoresco da
obra da Igreja e dos membros da Igreja através dos séculos. Mas,
diz João, isso é futuro.
Em seguida tomem o sermão de Pedro em Jerusalém no dia
de Pentecoste. Ele estava apresentando-lhes uma explicação da
descida do Espírito Santo, e eis o que disse: “De sorte que,
exaltado” - ele se referia a nosso Senhor - “pela destra de Deus,
e tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou
isto que vós agora vedes e ouvis” (Atos 2:33). Ora, a explicação
de tudo isso, diz Pedro, é que este Jesus, que é o Filho de Deus,
que fora entregue à morte pelo determinado conselho e
presciência de Deus, tem sido ressuscitado dentre os mortos pela
ação de Deus. E agora Deus O exaltou e Lhe deu este dom que
Lhe havia prometido antes, este dom do Espírito, que Ele agora
derramava, e assim constituía a Igreja. Esta é uma conseqüência
direta de Sua morte expiatória: Deus o Pai deu ao Filho esta
plenitude do dom do Espírito, para que, com ela, por meio dela
e através dela, Ele pudesse formar este corpo propriamente Seu
ao qual Ele denomina de Igreja, da qual Ele pessoalmente é a
Cabeça.
A mesma coisa é declarada em Efésios, capítulo 1, onde Paulo
ora:
“Tendo iluminados os olhos do vosso entendimento,
para que saibais qual seja a esperança da sua vocação, e

462
quais as riquezas da glória da sua herança nos
santos; e qual a sobreexcelente grandeza do seu poder sobre
nós, os que cremos, segundo a operação da força do seu
poder, que manifestou em Cristo, ressuscitando-o dos
mortos, e pondo-o à sua direita nos céus. Acima de todo
principado, e poder, e potestade, e domínio, e de todo nome
que se nomeia, não só neste século, mas também no
vindouro; e sujeitou todas as coisas a seus pés, e sobre
todas as coisas o constituiu como cabeça da igreja, que é o
seu corpo, a plenitude daquele que cumpre tudo em todos”
(Ef. 1:18-23).
Há ainda outras passagens que ensinam precisamente a mesma
coisa. Mas não podemos permanecer neste ponto, tendo apenas
que observar que aqui está uma conseqüência direta da obra da
expiação.
E assim avancemos para outra conseqüência que é também
tratada nesta Epístola aos Efésios: “Pelo que diz: subindo ao alto,
levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens” (Ef. 4:8).
Noutras palavras, eis aqui novamente mais uma conseqüência
de Sua humilhação e de Sua obra na cruz. Nosso Senhor
ascendeu, e por Deus Lhe são concedidos esses dons destinados
aos homens, e Ele concede esses vários dons àqueles membros
de Seu corpo que constituíam a Igreja. Há uma lista dos dons em
1 Coríntios, capítulo 12, e uma breve lista em Efésios, capítulo 4.
Mas a questão é que Ele só foi capaz de conferir-nos esses dons
por causa de Sua obra e Sua exaltação. Ora, não consideramos os
dons na última preleção porque, deliberadamente, os retive até
este ponto. Examinamos ali as bênçãos gerais da salvação e nossa
relação com Deus - mas a faculdade mesma, o próprio dom
espiritual geral que temos - e a todos nós nos é dado algum dom
- todo dom que usamos nos é dado como resultado da obra
expiatória de Cristo.
Portanto, aproximemo-nos de algo que é transcendente
em sua glória. Quero agora considerar com vocês os
resultados da obra de nosso Senhor enquanto aqui na terra, e
especialmente na cruz, como também considerar Sua realeza.

463
Ora, permitam-me novamente tentar encadear a sequência do
pensamento. Já vimos que nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
é Profeta, Sacerdote e Rei. Agora, aqui estamos fazendo uma
transição de Sua obra como Sacerdote para Sua obra como Rei, e
esta Sua obra como Rei é - de acordo com este ensino - uma
conquista direta de Sua obra na cruz. Daí uma levar à outra.
Dissemos que dividimos a obra nas três seções, não porque são
divisões absolutas, nem com o fim de separá-las, visto que Ele é
sempre a mesma Pessoa, mas para que haja clareza de
pensamento.
E assim agora podemos visualizar Sua realeza à luz de Sua
obra na cruz. Como a segunda Pessoa na bem-aventurada
Trindade, nosso Senhor tem sempre tido participação no
domínio de Deus sobre tudo desde os primórdios da Criação.
Todavia, como Deus-homem, Ele tem uma realeza especial que
é geralmente referida e descrita como Sua realeza mediatória -
Sua realeza como Mediador. Ora, permitam-me apresentar-lhes
uma definição disso: Sua realeza mediatória consiste em Seu
poder oficial de governar todas as coisas no céu e na terra para a
glória de Deus e para a execução do propósito divino da salvação.
Este é um grande tema das Escrituras. Ora, não pode haver
dúvida alguma, de que nosso Senhor foi designado para essa
realeza mediatória na eternidade, antes de existir o tempo. Há
muitas referências na Bíblia a eventos que ocorream antes de
existir o tempo, “antes da fundação do mundo” (Ef. 1:4): nossos
nomes foram “escritos no livro da vida do Cordeiro” (Apoc.
21: 27), e assim por diante. Como temos visto, houve um conselho
eterno no céu entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, quando
todo este plano de salvação foi amplamente discutido e e
elaborado, e não resta dúvida de que esta obra particular foi
confiada ao Filho. Toda a obra de salvação foi colocada em Suas
mãos. Ele seria Aquele que viria e a realizaria. Quando Ele tomou
sobre Si a responsabilidade de salvar o mundo das consequências
da Queda e do pecado - tudo antes que o homem fosse criado -
desse momento em diante este aspecto da obra Lhe foi confiado.
O reino Lhe foi confiado; Ele tornou-Se o Rei Mediador.

464
Isso foi quando a designação foi feita. No entanto, quando
foi que Ele começou a função na qualidade de Rei? E aqui a
resposta seria que Ele começou a governar neste aspecto
imediatamente após a Queda. Oh, não, não após o Seu
nascimento, mas imediatamente após a queda de Adão, visto
que, como já vimos, é plenamente evidente que, se não fosse
esse o caso, Adão teria sido destruído ali mesmo. Deus, lembrem-
-se, lhe deu a promessa a respeito da semente da mulher. Essa é
uma indicação de que Ele já havia sido designado como Rei
Mediador. A Queda foi conhecida de antemão, e Ele foi designado
de antemão. O anúncio foi feito no Éden, porém o fato já era
estabelecido e, por assim dizer, nosso Senhor já havia vindo. Se
me é lícito usar uma ilustração, Ele sempre esteve ali entre Adão
e Deus, e foi aí que Ele salvou Adão da destruição.
Vocês se lembrarão do que vimos quando estivemos
considerando o Anjo de Jeová, como concordamos que Ele não
era outro senão o próprio Senhor Jesus Cristo. Toda vez que
aparecia, Ele era sempre uma parte dessa obra de salvação e de
redenção. Aliás, não há dúvida de que Ele esteve operando dessa
maneira através dos juízes e dos reis. Toda a história dos filhos
de Israel é uma parte do plano de salvação. Jamais nos esqueçamos
desse fato. E assim, os juízes e os reis eram uma parte do processo.
Deus estava preparando o povo do qual o Messias viria segundo
a carne. Portanto, Ele já estava funcionando como o Rei
Mediador, desde então.
Contudo, é evidente que Ele foi clara, pública e formalmente
declarado como o Rei Mediador quando da Sua ascensão. Ele já
era o Rei quando esteve aqui na terra entre os homens, mas
ainda não tinha assumido o trono; não havia ainda sido publica­
mente declarado rei ou formalmente colocado no trono. Isso
aconteceu evidentemente quando da Sua elevação e exaltação.
Temos agora, novamente, uma série de afirmações que
indicam isto muito claramente. Por exemplo, em Atos 2:29,30
lemos; “Varões irmãos, seja-me lícito dizer-vos livremente acerca
do patriarca Davi, que ele morreu e foi sepultado, e entre nós
está até hoje a sua sepultura. Sendo, pois, ele profeta, e sabendo

465
que Deus lhe havia prometido com juramento que do fruto de
seus lombos, segundo a carne, levantaria o Cristo, para o assentar
sobre o seu trono.” Ele O levantaria. E Ele o fez, na ascensão e
na exaltação. E também no versículo 36: “Saiba, pois, com certeza
toda a casa de Israel que a esse Jesus, a quem vós crucificastes,
Deus o fez Senhor e Cristo.” Ele fez isso; e essa é a declaração
oficial. Ele assumiu o trono mediatório num sentido formal. E
ainda devo lembrar-lhes daquela grande passagem no segundo
capítulo de Filipenses.
Quais, pois, são os aspectos dessa realeza? Como Ele a
exerce? Antes de tudo, talvez seja aconselhável estarmos de
acordo quanto ao significado dessa realeza e quanto ao que
significa o Seu reino. O que é o reino de Deus, o reino de Cristo?
Bem, ele é o Seu reinado, o Seu governo. Onde quer que o governo
de Cristo é reconhecido e desfrutado, aí está o reino de Cristo, e
aí Cristo é o Rei. Assim, pois, se vocês aceitam essa definição,
então podemos focalizar Seu reino da maneira que em seguida
vou expor.
Antes de tudo, o aspecto espiritual do reino. Cristo reina
como Rei sobre Seu povo, sobre a Igreja. Ele é a Cabeça da Igreja;
Ele é o Rei da Igreja. Ele reina nos corações de todos nós que
somos crentes nEle. Ele administra Seu reino por meio de Sua
Palavra e por meio do Espírito Santo. Cada afirmação sobre Sua
liderança da Igreja é uma indicação de Sua realeza. E ela é
exercida de uma forma espiritual. Certas pessoas ficam às vezes
confusas quanto à relação existente entre o reino de Deus e a
Igreja. A forma de visualizá-lo é a seguinte: o reino de Deus e a
Igreja não são co-iguais; não são co-extensivos; não são a mesma
coisa (ainda que o reino de Deus e o reino do céu o sejam). O
reino de Deus é o governo de Deus; onde quer que Ele reine, aí
está o Seu reino, e a Igreja é uma das manifestações externas
dele. Ele governa; Ele reina na Igreja, nos corações de Seu povo,
neste sentido espiritual. E assim devemos diferenciar entre o
reino e a Igreja. No momento, Seu reinado na Igreja é invisível,
porém um dia ele se fará visível.
Em segundo lugar, há o aspecto geral da realeza. Lemos no

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Salmo 2: “Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e os fins
da terra por tua possessão” (v. 8). Nosso próprio Senhor disse:
“É-me dado todo o poder no céu e na terra” (Mat. 28:18); e:
“Assim como lhe deste poder sobre toda carne” (João 17:2).
Hebreus 2:8,9 e Efésios 1:20-23 nos dizem a mesma coisa. Então,
evidentemente temos a grande passagem de Filipenses, capítulo
2, onde lemos: “Pelo que também Deus o exaltou soberanamente,
e lhe deu um nome que é sobre todo nome; para que ao nome de
Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e e na terra, e
debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o
Senhor, para glória de Deus Pai” (vv. 9-11).
Ele possui todo o poder. Ele é coroado porque sofreu e
venceu, e tem o controle sobre todas as coisas por amor de Seu
povo, para sua proteção e para sua salvação final. Eis a razão por
que lemos em Romanos 8:28: “E sabemos que todas as coisas
contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus,
daqueles que são chamados por seu decreto.”
Essa realeza mediatória durará até que os novos céus e a
nova terra sejam trazidos à existência - até que “a mesma criatura
(seja) será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade
da glória dos filhos de Deus” (Rom 8:21). Durará até que se
cumpra a grande passagem de 1 Coríntios, capítulo 15:

“Depois virá o fim, quando tiver entregue o reino a


Deus, ao Pai, e quando houver aniquilado todo império,
e toda potestade e força. Porque convém que reine até
que haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés.
Ora, o último inimigo que há de ser aniquilado é a morte.
Porque todas as coisas sujeitou debaixo de seus pés.
Mas, quando diz que todas as coisas lhe estão sujeitas,
claro está que se excetua aquele que sujeitou todas as coisas.
E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então
também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas
as coisas lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em todos”
(1 Cor. 15:24-28).

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GRANDES DOUTRINAS BÍBLICAS

Deus o Pai, Deus o Filho


Martyn Lloyd-Jones - magistral!

No primeiro volume de uma nova e


importante série de grandes obras, escritas por
Martyn Lloyd-Jones, o destacado pregador
explora a Bíblia a fim de encontrar as essências
da fé cristã. O próprio caráter de Deus e a vida e
obra de Seu Filho são o centro de tudo.
Com clareza, fervor e aplicação prática, aqui
está um atraente convite para descobrir as
riquezas da graça de Deus e discernir mais
profundamente a transformação que se fez
possível pela cruz de Cristo.
Dr. Lloyd-Jones foi um eficiente médico
cirurgião que em 1927 deixou a prática da
medicina e tornou-se ministro duma igreja no sul
de Gales. Posteriormente, por trinta anos, até à
sua aposentadoria em 1968, ele ministrou na
Capela de Westminster, em Londres.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


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