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Comentário Exegético
Olavo J. A. Ribeiro
As citações bíblicas são da Nova Versão Internacional (NVI), da Bíblica,
Inc., a menos que seja especificada outra versão da Bíblia Sagrada
Publicado pelo Kindle Direct Publishing
Dino Gonçalves
Por isso 1 Coríntios nos soa tão relevante hoje como no dia em
que foi escrita. Sempre que perdemos nosso foco em Cristo Jesus e
Seu Reino, sempre que diluímos a mensagem da cruz, ou
promovemos divisões e partidarismo na igreja, sempre que
defendemos nossos interesses acima dos interesses dEle, ou
desviamos a atenção do culto para nós, e não para Ele, sempre que
exaltamos a nós mesmos e não a Ele pelo uso dos nossos dons,
repetimos os erros dos coríntios.
Olavo J. A. Ribeiro
Setembro de 2019
Abreviaturas
c. – cerca de
ss – seguintes
tb – também
AT – Antigo Testamento
NT – Novo Testamento
LXX – Septuaginta
TM – Texto Massorético
1:8 – O texto grego inicia com ὃς καὶ (“o qual também” ou “ele
também”), o que permite entendermos que tanto Deus quanto Jesus
Cristo podem ser o sujeito da frase, já que Deus é o sujeito do
parágrafo desde o v.4 e que o v.7 termina com uma referência a
“nosso Senhor Jesus Cristo”. Contudo, faz melhor sentido
entendermos o sujeito como sendo Deus (Pai): na realidade, os vv.4
e 9 reforçam Deus como o sujeito do parágrafo inteiro. [198]
Um dos fatores que teria contribuído para esta divisão seriam suas
personalidades e estilos de ministério bastante diferentes: sabemos
que Apolo era um judeu com forte influência do helenismo,
conhecedor das Escrituras (cf. At 18:24, 28) e considerado
“eloquente” [248], portanto, possuidor de uma capacidade retórica
extraordinária; Apolo deve ter sido um grande orador, uma pessoa
admirável na cultura greco-romana. Por outro lado, o próprio Paulo
admitia suas limitações como comunicador (cf. 2Co 10:10; 11:6).
Paulo, no entanto, era um apóstolo, possuidor de autoridade e de
um conhecimento único e particular de Cristo (cf. Gl 1:1-24), era o
fundador da igreja e pai espiritual deles (cf. 4:15-16). É provável que
grupos com interesses opostos tenham se apegado a estas e a
outras diferenças entre estes dois líderes para digladiarem entre si.
Em momento algum Paulo atribui a Apolo qualquer culpa pela
existência de um grupo simpatizante a ele como seu adversário.
Quanto ao grupo que Paulo define como sendo “de Cristo” (ou
“do Messias”) a indefinição é ainda maior. Há várias sugestões
sobre quem pertenceria a este grupo, por qual motivo e qual seria
sua identidade. Entretanto, nenhuma delas é conclusiva, pelo
contrário. Não seria o caso de todos quererem pertencer ao grupo
“de Cristo”? Não seria ele evidentemente superior aos demais
líderes humanos? Não há na carta nenhuma outra indicação de que
tal grupo existisse, o que nos leva a concluir que Paulo
provavelmente estivesse sendo irônico ao citar o grupo dos que
pertenciam “a Cristo”. Paulo talvez pretendesse dizer: “a ideia de
pertencer ao grupo ‘de Paulo’ ou ‘de Apolo’ é tão absurda que só
faltava agora vocês quererem criar um grupo dos que pertencem a
Cristo!” Ou, ainda, “todos vocês se dizem parte de um grupo, mas
eu pertenço a Cristo!”. A ironia era parte da retórica de Paulo (cf.4:8)
e não temos motivo para duvidar de que ele não a tenha usado aqui.
[251] Além disso, a declaração “e eu, de Cristo” parece preparar o
terreno para a pergunta que ele fará no verso seguinte, “acaso
Cristo está dividido?” [252]
Paulo inicia esta seção dizendo que havia sido enviado por
Cristo “para pregar o evangelho, não, porém, com palavras de
sabedoria humana, para que a cruz de Cristo não seja esvaziada”
(v.17). A abordagem de Paulo nesta passagem, seus argumentos
para defender a “mensagem da cruz”, nos sugere que os coríntios
estavam transformando o evangelho em uma espécie de filosofia
humana que parecesse mais “razoável”, mais atraente aos ouvidos
greco-romanos e menos rigorosa em termos morais. Os coríntios
agiam como se fossem “reis” (cf. 4:8), talvez devido à sua riqueza
de dons e de manifestações espirituais (cf. 1:5); apegavam-se a
seus líderes com uma paixão que levava ao partidarismo, como
faziam os discípulos dos sofistas (cf. 1:10-17; 3:1-4:7);
comportavam-se de modo questionável fazendo vistas grossas à
imoralidade (cf. 5:1-13; 6:12-20); exigiam seus “direitos”, mesmo
prejudicando outros e correndo o risco de cair na idolatria e em
outros pecados (cf. 6:1-8; 8:1-10:33; 15:32-34); eram egoístas e
queriam se autopromover por meio dos dons espirituais (cf. 11:1-
14:40); finalmente, alguns negavam a ressurreição do corpo,
influenciados provavelmente pela ideia, comum entre os gregos, de
que o corpo e o mundo material são intrinsecamente maus (cf.
15:12). Para eles, um Messias crucificado e um apóstolo sofredor
(neste caso, Paulo) não refletiam o ideal greco-romano de glória e
de força do qual poderiam se orgulhar. Na igreja de Corinto,
portanto, o evangelho corria o sério risco de se transformar em um
sincretismo entre a fé cristã e algumas formas de filosofia e de
religião pagã.
1:17 – Paulo possuía uma visão clara de seu chamado: ele era
um “apóstolo” [277], chamado e enviado por Cristo para a missão de
evangelizar, especialmente os gentios (cf. At 9:3-5; 22:1-21; 1Co
15:7-10; Rm 11:13; Gl 1:15, 16; 2:7; Ef 3:1, 2). Ele deixa claro,
portanto, que sua missão não era batizar, mas evangelizar. Ao dizer
isso, Paulo pretendia relativizar o valor exagerado que os coríntios
davam aos que batizavam e introduz um novo tema: a defesa da
mensagem da cruz em contraste com a sabedoria humana.
1:19 – Paulo cita Isaías 29:14 (LXX). Ele substitui o verbo κρύψω
(“esconderei”) por ἀθετήσω (“descartarei”, “rejeitarei”,
“desconsiderarei”, “anularei”, “repudiarei”) [297]. Paulo pode ter
alterado propositalmente os verbos para enfatizar seu argumento,
citado outra versão ou simplesmente ter citado o verso de memória,
tomando certa liberdade com o texto; seja como for, “rejeitar” e seus
sinônimos podem ser entendidos também como uma forma de
“esconder”. [298]
Ao citar Isaías, Paulo afirma que aquilo que Deus fez no passado
com os “sábios” de Israel ele está novamente fazendo entre os
judeus e os gregos que se consideravam sábios em seus dias: Deus
está destruindo a sabedoria humana por meio da loucura da
mensagem da cruz. Hays comenta que “o texto de Isaías associa
diretamente σοφία com a ‘adoração da boca pra fora’, uma
demonstração de piedade puramente verbal – exatamente o que
Paulo criticará nos coríntios, não apenas em 1:18-31 mas ao longo
de toda a carta. Além disso, Is 29:14a sugere que Deus destruirá ‘a
sabedoria dos sábios’ ao realizar coisas que ‘deixará atônito esse
povo... com maravilha e mais maravilha’, precisamente como Paulo
agora declara que Deus fez ao usar a morte vergonhosa de Jesus
em uma cruz para anular a sabedoria humana”. [301]
1:31 – A conjunção final ἵνα (“para que”, “de modo que”) conclui
o parágrafo iniciado no v.26. O propósito de Deus ao nos escolher
para estarmos “em Cristo Jesus” é o de que, se iremos nos
“vangloriar” (καυχάομαι) em alguém, devemos nos vangloriar “no
Senhor”. Em outras palavras, nenhum ser humano pode se orgulhar
de ter conquistado a própria salvação. Nossa suposta sabedoria,
força, ascendência ou nobreza não impressionam a Deus e são
incapazes de nos trazer qualquer privilégio diante dele. Nossa
salvação é puramente iniciativa de Deus realizada por Cristo na
cruz.
“Pois decidi nada saber entre vocês” (οὐ γὰρ ἔκρινά τι εἰδέναι ἐν
ὑμῖν): a frase no texto grego é um desafio para o tradutor. A questão
seria se o advérbio “não” (οὐ) deve ser relacionado com (a) “decidi”
(“pois não decidi”), (b) “saber” (“não saber”) ou (c) “alguma coisa” (τι,
que combinado com o advérbio “não” seria traduzido como “nada”).
A NVI, Barrett e Wright [406] optaram por (b), enquanto Thiselton
prefere (a). Para Fee, Paulo queria que o advérbio servisse como
negação para a frase inteira, portanto, uma combinação de (b) e (c).
[407] Seja como for, o sentido da frase como um todo é claro o
suficiente: a determinação do apóstolo era proclamar Cristo
crucificado e nada que pudesse obscurecê-lo. “Paulo resolve prover
uma janela transparente para a cruz, e não atrair a atenção para si
próprio”. [408]
“As coisas que Deus nos tem dado gratuitamente” (τὰ ὑπὸ τοῦ
θεοῦ χαρισθέντα ἡμῖν): de acordo com o contexto, o Espírito nos foi
dado para que possamos compreender as coisas que nos foram
dadas gratuitamente, isto é, nossa salvação por meio do Messias
crucificado (cf. 1:18-31). Tanto o perdão dos pecados quanto a
capacidade de entender esse perdão, por meio do Espírito, não são
conquistas humanas, mas fruto da mais generosa graça. O verbo
χαρισθέντα (particípio aoristo de χαρίζομαι, “dar como uma dádiva
da graça”, “dar graciosamente como um favor”) [483] enfatiza mais
uma vez a gratuidade da salvação que esvazia qualquer orgulho
humano (cf. 1:26-31; 2:5; 4:6-7).
2:15 - O sentido deste verso é difícil, bem como sua relação com
o v.16. A princípio, Paulo parece querer dizer que a pessoa
espiritual (isto é, o cristão, aquele que possui o Espírito) [498] é
capaz de entender as coisas de Deus, enquanto o homem natural
não pode compreendê-lo, nem compreender a sua fé (“e ele mesmo
por ninguém é discernido”): “[Há] Aspectos da vida cristã [que]
permanecem um enigma, a menos que outros compartilhem da
mesma iluminação do Espírito de Deus”. [499] O descrente não tem
como aceitar e entender a mensagem da cruz e é, portanto, incapaz
de avaliar se o cristão está certo ou não. Por outro lado, o cristão é
capaz de avaliar o descrente, sua incredulidade e maldade: “a
pessoa não espiritual, que julga equivocadamente a cruz como
loucura, também julga mal os crentes considerando-os tolos”. [500]
Por outro lado, “aqueles cujas vidas são invadidas pelo Espírito de
Deus podem discernir todas as coisas, incluindo aqueles que não
possuem o Espírito; mas o contrário é impossível”. [501]
3:1 - Paulo inicia com o enfático “e eu” (κἀγώ, καὶ ἐγώ) [512],
como em 2:1, 3. “Não lhes pude falar como a espirituais” (ὡς
πνευματικοῖς): Paulo concluiu o capítulo 2 da carta afirmando que o
verdadeiro cristão é “espiritual” (πνευματικὸς, a mesma palavra)
porque possui o Espírito de Deus (cf. 2:12-16). O homem “espiritual”
em 2:13 e 15 é o cristão autêntico, que crê no evangelho por meio
da revelação do Espírito. Sendo assim, Paulo estaria se
contradizendo ou negando a realidade da fé dos coríntios? Nem
uma coisa, nem outra. Já vimos em 1:4-9 que ele acreditava na
autenticidade da fé dos coríntios. Ao chamá-los de “irmãos”
(ἀδελφοί), um termo que caracteriza o pertencimento à família de
Deus, o apóstolo também demonstra que os considerava cristãos
verdadeiros. Seu argumento, portanto, é de que os coríntios, apesar
de possuírem o Espírito, agiam como pessoas carnais, dirigidas pela
carne. Como pessoas “espirituais” [513] eles deveriam se comportar
de forma madura, mas não era isso o que acontecia, eles eram
“como crianças em Cristo”. Como diz Fee, “Paulo, naturalmente, não
está dizendo que eles não possuem o Espírito. Eles o possuem; e
esse é o problema, porque eles pensam e se comportam de
maneira diferente” [514], isto é, como se não possuíssem.
Paulo se diz “sábio” não por vanglória, mas para dizer que o
único alicerce para a verdadeira obra de Deus é Jesus Cristo, a
“sabedoria de Deus” (cf. v.11; cf. tb 1:30). O tema da carta até então
tem sido a sabedoria de Deus em oposição à sabedoria humana (cf.
1:18-2:16). Qualquer pessoa que estabelecer uma comunidade
sobre Jesus Cristo será, portanto, um “sábio construtor”.[585] Porém,
os coríntios corriam o sério risco de substituir o alicerce que é Jesus
Cristo pelo enganoso alicerce da sabedoria humana (cf. 3:18-20).
Se isto acontecesse, o edifício ficaria comprometido e acabaria
destruído (cf. 3:16,17). Paulo lançou o alicerce “conforme a graça de
Deus que me foi concedida”. O que seria essa “graça” (χάρις)?
“Graça” é uma dádiva, um presente. É provável que Paulo fale sobre
a graça do chamado para ser apóstolo e do privilégio de ter iniciado
a igreja de Corinto (cf. 1:1; 15:9-11), “especialmente sua tarefa
apostólica de iniciar igrejas”.[586]
Até que ponto podemos usar este texto como argumento para
defendermos que o verdadeiro cristão não perde jamais a sua
salvação? Nenhuma doutrina pode se basear em apenas um único
texto, e certamente falar sobre a segurança da salvação exigiria um
estudo abrangente a aprofundado de toda a Bíblia. No entanto,
penso que o v.15 nos aponta na direção da segurança da salvação
para o cristão verdadeiro. De acordo com o contexto - tudo o que
vimos na carta até este ponto - mesmo que um cristão verdadeiro
incorra no pecado de valorizar a sabedoria e o reconhecimento
humanos, colocando material inflamável e de má qualidade no
edifício, este “será salvo como alguém que escapa do fogo”. Para
isso, precisamos entender a advertência do v.17 como um juízo
temporal, e não eterno, pelo menos para o crente (veja o comentário
sobre o v.17). Outros textos na carta parecem apontar na mesma
direção: o verdadeiro cristão pode ser severamente disciplinado por
Deus, a ponto de em algumas circunstâncias adoecer ou morrer
como consequência do juízo divino; contudo, ele será salvo no final
(cf. 5:5; 10:1-13; 11:27-32).
Paulo apela aos coríntios para que levem a sério o que ele diz,
ao lembrá-los de que havia se tornado pai espiritual deles por meio
do evangelho (vv.15, 16). Os coríntios podiam ter “dez mil tutores”,
mas apenas um pai. Os tutores eram escravos de confiança do
dono da casa, responsáveis por acompanhar os filhos do senhor até
o local de suas aulas. De acordo com esta analogia, os tutores
seriam os líderes da igreja de Corinto. Paulo deseja, portanto,
chamar novamente a atenção da igreja para seu ensino e
especialmente para a sua “maneira de viver (literalmente, seus
‘caminhos’) em Cristo Jesus” (v.17), conforme ele os havia ensinado
quando viveu com eles.
Por fim, Paulo lida com o problema dos membros que insistiam
em se relacionar com prostitutas, provavelmente nos jantares em
que eles comiam comida sacrificada aos ídolos (problema que Paulo
abordará nos capítulos 8-10). Os coríntios devem “fugir” da
imoralidade sexual (6:18). Nossos corpos não devem ser usados
para a imoralidade por duas razões: eles pertencem ao Senhor, que
os ressuscitará (6:13-15) e eles são templo do Espírito Santo (6:19).
Em uma passagem trinitária, Paulo afirma que o cristão deve
glorificar a Deus, por ter sido comprado pelo preço do sangue do
Messias e por ser agora santuário do Espírito (6:19, 20).
1. A Visita de Timóteo e a Confrontação dos
Arrogantes (4:17-21)
Concordo com Bailey que faz uma vigorosa defesa de que 4:17
inicia uma nova seção na carta. Assim, 4:17-21 seriam a introdução
ao tema da disciplina na igreja, que será desenvolvido no capítulo 5,
e não a conclusão de 4:1-16. Num sentido mais amplo, podemos
considerar 4:17-21 não apenas a introdução ao tema do capítulo 5,
mas também aos temas que serão abordados em sequência, no
capítulo 6 (os litígios e a imoralidade) e que igualmente exigiam a
correção dos coríntios.
(4) “Até onde sei”, diz Bailey, “nenhum sistema antigo de divisão
de parágrafos do Oriente Médio divide o texto em 1 Coríntios 5:1”.
[854] Bailey cita como exemplos o Codex Vaticanus, as tradições
copta e armênia, a Igreja Ortodoxa Síria e outras referências. [855]
Segundo ele, “há uma ampla evidência antiga para uma divisão em
4:15”, sendo que há versões que concluem com o v.16 e
consideram os vv.17-21 como um bloco até 5:5. [856]
(8) “Um exame do uso que Paulo faz de dia touto (por esta
razão) nos leva a concluir que esta frase sempre se refere ao que
será dito adiante, em certo sentido”. [859] Ela pode introduzir um
novo tema fazendo pouca ou nenhuma referência ao que foi dito
anteriormente (cf. Rm 15:9; 1Co 11:30; 12:10; Ef 1:15; Cl 1:9; 2Ts
2:11), ou basear-se em uma argumentação anterior, para então
iniciar um novo argumento (cf. Rm 1:26; 4:16; 5:12; 13:6; 1Co 11:10;
2Co 4:1; 7:13; Ef 5:17; 6:13; 1 Ts 3:5, 7). Em 4:17, διά τοῦτο se
encaixaria na segunda série de versículos citados por Bailey:
“basear-se em uma argumentação anterior, para então iniciar um
novo argumento”.
O texto grego não possui verbo na frase que foi traduzida como
“imoralidade que não ocorre nem entre os pagãos" (καὶ τοιαύτη
πορνεία ἥτις οὐδὲ ἐν τοῖς ἔθνεσιν), o que tem feito alguns intérpretes
questionarem as traduções “ocorre” (NVI) ou “se vê” (RA, A21). Este
tipo de imoralidade era punida pela lei romana. Isso não significa
que os gentios jamais incorressem neste erro, mas que eles
condenavam de forma severa os que assim agiam. [899] Portanto, o
verbo a ser suprido na tradução deveria ser “tolerado”, em vez de
“ocorre”: “imoralidade que não é tolerada nem entre os pagãos”.
[900] A frase não deve ser tomada como hipérbole, mas em seu
sentido literal.
O uso de ἵνα (ἵνα ἀρθῇ ἐκ μέσου ὑμῶν) pode dar à frase dois
sentidos: (1) sugerir a ideia de que a tristeza deles se daria não
apenas pelo pecado em si, mas pela necessidade de expulsar este
homem da comunhão: “não deveriam estar tristes pelo fato de terem
de expulsar do meio de vocês...”. [919] (2) Outra possibilidade é a de
que estejamos diante de um “ἵνα imperativo”, conforme traduz a
NVI: “não deviam, porém, estar cheios de tristeza e expulsar da
comunhão aquele que fez isso?”. O ἵνα imperativo daria à frase “e
expulsar da comunhão...” o peso de uma ordem. [920] Desse modo,
Barrett sugere que entendamos o texto como “uma elipse
caracteristicamente paulina: ‘em vez disso não deveriam vocês se
entristecer, e demonstrar a sinceridade de seu lamento tomando a
ação necessária para expulsar aquele que fez isto...?’” [921]
A questão mais difícil neste verso é definir o que Paulo quis dizer
com a expressão “em espírito” (τῷ πνεύματι). Uma parte dos
intérpretes (Barrett, por exemplo) entende a frase como significando
“estar espiritualmente presente”: ele não estava fisicamente
presente, mas estava com eles em pensamento. Este ponto de vista
é bastante razoável se considerarmos o que Paulo diz em
Colossenses 2:5. [924] Se esta interpretação estiver correta, Paulo
usa a palavra “espirito” (πνεῦμα) num sentido “popular”, ou seja,
“psicologicamente, em vez de teologicamente”. [925] Outros (como
Fee e Thiselton) sugerem que Paulo se refere aqui tanto ao seu
espírito humano quanto ao Espírito de Deus, “estou presente no
espírito/Espírito”, significando “uma dupla alusão ao espírito
humano... bem como ao Espírito de Deus como a base para a
possibilidade da presença efetiva de Paulo”. [926] A justificativa para
dizer que Paulo se considerava presente “em espírito” se baseia no
que ele dirá no v.4, “estando eu com vocês em espírito”. Por outro
lado, Thiselton afirma que “é no poder do Espírito Santo que Paulo
está presente, como alguém que faz parte integralmente do templo
santo [de Deus] em Corinto que está sendo ameaçado de
profanação e destruição, mas é santificado pelos laços comuns do
Espírito que habita no corpo [de Cristo]”. [927] Quando os coríntios
estiverem reunidos, o Espírito estará reunido com eles e ele, Paulo,
“estará presente entre eles pelo mesmo Espírito”. [928]
(2) “Já condenei aquele que fez isso em nome de nosso Senhor
Jesus”: neste caso, a frase “em nome de nosso Senhor
Jesus” estaria vinculada à última frase do v.3. Paulo teria
condenado este homem com a autoridade de Cristo. Fee
defende esta interpretação argumentando que “parte do
problema, afinal de contas, é uma crise de autoridade na
igreja. Paulo, portanto, pronuncia um julgamento profético
sobre o homem que fez isto... como em 2Ts 3:6 ele fala ‘em
nome do nosso Senhor Jesus Cristo’”. [933]
(5) Uma quinta opção seria entendermos que Paulo quis dizer
“aquele que fez isso em nome de nosso Senhor” (τὸν οὕτως
τοῦτο κατεργασάμενον ἐν τῷ ὀνόματι τοῦ κυρίου [ἡμῶν]
Ἰησοῦ ). Ou seja, o homem que passou a viver com sua
madrasta o teria feito “em nome do Senhor”. Sua decisão
teria sido motivada por uma nova compreensão de sua
liberdade em Cristo. São dois os argumentos em favor desta
posição: (a) sintaticamente esta seria a compreensão mais
natural do texto, pois uma frase sucede a outra; além disso,
em outras passagens, a frase “em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo” (ou alguma variação dela) está conectada ao
verbo que a precede (cf. 1Co 6:11; Cl 3:17; 2Ts 3:6); [934] (b)
teologicamente, Horsley sugere que “é possível que, no novo
status espiritual obtido por meio da Sophia, que fez com que
‘tudo me é possível/permitido’ (6:12; 10:23), o irmão
[supostamente] esclarecido atingiu uma liberdade das
normas patriarcais tradicionais restritivas, de modo que uma
aliança de amor tornou-se agora possível”. [935] Contrário a
esta interpretação temos o fato de que, por mais que esta
possa ser a interpretação mais natural do texto grego, não há
nada no contexto que indique ter sido esta a motivação deste
homem. O homem não parece ter sido motivado por sua
liberdade “em nome de Jesus” (isto é, por uma motivação
teológica), mas “por lascívia ou ganância, ou ambas”. [936]
Por que Paulo teria usado uma ilustração judaica para falar
sobre santificação a uma igreja predominantemente gentia?
Podemos considerar pelo menos duas possibilidades (não
mutuamente excludentes, ou seja, ambas podem ser verdadeiras):
Paulo esclarece que não quis dizer que eles deveriam se afastar
de todo tipo de pessoa imoral, em sua carta anterior, e acrescenta
outros pecados: o “avarento” (πλεονέκτης) é o indivíduo
“ganancioso”, “a pessoa cobiçosa, aquela que busca cumprir seus
desejos insaciáveis a todo custo e às expensas de outros”, aquela
que sempre deseja mais do que já possui; são pessoas que estão
“obcecadas com a ambição de conquistar, isto é, de ganhar maior
status social, poder ou riqueza”. A palavra é reprovada, inclusive,
em listas de vícios escritas por pagãos. [996] Em Colossenses 3:5
“ganância” (πλεονεξία, “ganância egoísta insaciável”) [997] é
qualificada pela observação “que é idolatria” (ἥτις ἐστὶν
εἰδωλολατρία). O “ganancioso” faz do seu objeto de ambição um
ídolo que toma o lugar de Deus. Infelizmente nossas versões mais
recentes em português (como a NVI, NVT e A21) optaram por
“avareza” que comunica mais a ideia de ser “pão duro”, “sovina”,
enquanto πλεονέκτης reflete mais o sentido de pessoa cobiçosa,
gananciosa, que se dedica ativamente a acumular cada vez mais.
O tema do julgamento dos “de dentro” e dos “de fora” (cf. 5:12,
13) leva Paulo a introduzir a questão de forma abrupta, com a
pergunta: “como ousa [algum de vocês] apresentar a causa para ser
julgada pelos ímpios, em vez de levá-la aos santos?” A palavra
traduzida por “ímpios” (ἄδικοι) significa, literalmente, “injustos”.
Talvez Paulo estivesse sendo irônico: como vocês vão querer que
os injustos façam justiça? Como eles queriam que pessoas que não
conhecem nem fazem parte do Reino de Deus julgassem questões
de súditos do Reino?
Paulo inicia um novo tema no v.12, tendo por base o que ele
disse nos vv.9-11. Entre os pecados mencionados, estão a
“imoralidade” e o “adultério” (v.9). O apóstolo inicia o parágrafo
citando um aforismo dos próprios coríntios: “tudo me é permitido”.
Bruce Winter argumenta que a convenção no mundo antigo era a de
que pessoas de condição social privilegiada, os ricos e poderosos,
comportavam-se com base na ideia de que “todas as coisas [lhes]
são permitidas”. [1130] Os governantes, por exemplo, faziam o que
desejavam. Xenofonte (428-354 a.C.) escreveu acerca do
governante que exercitava o autocontrole ou domínio-próprio, como
um exemplo para outros: “ao fazer de seu próprio autocontrole um
exemplo, ele dispõe todos a praticar esta virtude mais
diligentemente. Pois quando um membro mais fraco da sociedade
vê aquele a quem é permitido indulgenciar em excesso continuar se
controlando, eles naturalmente lutam ainda mais para não serem
encontrados culpados de nenhuma indulgência excessiva”. [1131]
Ao dizer que “os seus corpos são membros de Cristo” Paulo não
afirma que o corpo do cristão equivale ao corpo físico de Cristo, mas
que o corpo do cristão é propriedade de Cristo ou pertence a Cristo.
Desse modo, o genitivo μέλη Χριστοῦ deve ser entendido como um
genitivo de posse. Esta interpretação é coerente com o contexto: no
v.19 Paulo lhes dirá “vocês não são de si mesmos” e, no v.20,
“vocês foram comprados por alto preço”. O corpo do cristão é
propriedade de Jesus Cristo e deve ser usado unicamente para os
fins que o glorificam (v.20). Daí a pergunta, “tomarei eu os membros
de Cristo e os unirei a uma prostituta?” Literalmente, “tomarei eu os
membros de Cristo e os tornarei membros de uma prostituta?”;
“pegarei eu o que pertence ao Messias e darei a uma prostituta?” A
resposta de Paulo é o enfático μὴ γένοιτο (optativo de γίνομαι), “de
maneira nenhuma!”, “impensável!”. De acordo com Bruce, ao usar
esta expressão, “ele repudia uma sugestão intolerável” [1165] (cf. Rm
3:4; 6:2, 15). O verbo traduzido como “tomarei” (ἄρας, particípio
aoristo ativo de αἰρω) significa não apenas “tomar”, mas “tirar”,
“subtrair”, isto é, tomar sem o consentimento do proprietário. [1166]
Por fim, Paulo cita Gênesis 2:24 (LXX), “pois, como está escrito
[1171]: ‘os dois serão uma só carne’". Não há qualquer indício no
texto que sugira que aquele que se une sexualmente a uma
prostituta casa-se automaticamente com ela por “tornarem-se uma
só carne”. Contudo, Garland está certo ao observar que “todo ato
sexual entre um homem e uma mulher, seja lícito ou não, funde os
parceiros juntos em uma só carne”. [1172] O problema, portanto, é
que, ao manterem relações sexuais com prostitutas, os cristãos de
Corinto “tornavam-se um corpo com elas” e, ao fazerem isso, eles
cometiam o pecado inaceitável já mencionado no v.15, o de “tomar
os membros de Cristo e os unir a uma prostituta”.
7:1 – A expressão “quanto aos” (περὶ δὲ) inicia uma nova seção
da carta e sugere que Paulo começa, a partir de agora, a responder
às questões enviadas pelos coríntios em uma carta dirigida a ele.
[1196]
“Se assim não fosse [1303], seus filhos seriam impuros, mas
agora são santos”: como já mencionamos no comentário sobre os
vv.12 e 13 acima, a dúvida provável dos coríntios, que Paulo
responde neste verso, era se a convivência com cônjuges
descrentes prejudicaria espiritualmente os cristão ou seus filhos.
Além de não serem cristãos, podemos imaginar que a maioria
destes cônjuges fosse idólatra, cultivando sua devoção por meio de
imagens, rituais e participação em cultos em templos pagãos.
Estes dois pontos de vista são plausíveis. Seja qual for nossa
interpretação preferida, o mesmo princípio da primeira parte do
verso se aplica em relação aos filhos. O sentido do texto é também
obscuro: “se assim não fosse, seus filhos seriam impuros, mas
agora são santos”. O que é claro no texto é que a presença do
cônjuge crente torna os filhos santos em vez de impuros. [1310] Se
seguirmos a mesma linha de raciocínio empregada em relação aos
cônjuges, o pai ou mãe crente abençoa seus filhos por meio de sua
influência, para levá-los à salvação (Paulo não diz que os filhos de
crentes tornam-se automaticamente crentes também). [1311] Do
mesmo modo, se havia algum receio de que alguma influência
maligna pudesse ser trazida pelo descrente para os filhos (por ele
ser idólatra, por exemplo), Paulo afirma que a influência benéfica do
crente é mais poderosa do que a do descrente. “Em ambos os
casos Paulo estabelece uma visão elevada da graça de Deus
operando por meio do crente para com os membros de sua família
(cf. 1Pe 3:1), o que para ele é razão suficiente para manter o
casamento”. [1312]
Este verso tem aplicação para tudo o que Paulo disse até agora
e para o que ele dirá em seguida neste capítulo. No entanto, ele se
aplica de modo especial aos casados: “cada continue vivendo na
condição que o Senhor lhes designou” significa na prática que os
casados não devem se divorciar, ainda que existam situações
especiais (cf. vv.10-16).
Por outro lado, a “opção positiva” entende que Paulo não apenas
quis dizer que o escravo pode servir plenamente ao Senhor como
escravo, mas que ele também pode vir a “fazer uso” de sua nova
condição de liberto para servir a Cristo, caso venha a ser alforriado.
Fee é defensor desta interpretação: “apesar destes argumentos e do
número significativo de estudiosos que optam por ela [a opção
‘negativa’], a assim chamada opção ‘positiva’, que supre [a palavra]
‘liberdade’ como o objeto do verbo, nos parece de longe a melhor
opção”. [1378]
O v.24 repete pela terceira vez o princípio dos vv.17 e 20. O v.24
é quase uma repetição do v.20, mas com um acréscimo importante:
cada um deve permanecer, na condição em que foi chamado,
“diante de Deus” (ou “na presença de Deus”, παρὰ θεῷ): é a
consciência de sua nova identidade perante Deus (e não perante
pessoas, cf. Lc 16:15) que liberta o crente, seja ele escravo ou livre,
para viver plenamente a vida cristã, independentemente de sua
etnia, condição social, estado civil, etc.
5. Orientações aos Solteiros e Noivos (7:25-38)
8:1 – A expressão “com respeito aos” (περὶ δὲ) inicia uma nova
seção da carta e sugere que Paulo continua a responder às
questões enviadas pelos coríntios, na correspondência deles. [1542]
A questão agora envolve os “alimentos sacrificados aos ídolos”
(εἰδωλόθυτος). A palavra significa literalmente “algo sacrificado a
imagens” e se refere à carne dos animais que eram sacrificados em
templos pagãos, em honra ou em adoração aos deuses. Não
sabemos ao certo a origem da palavra, talvez ela tenha origem
judaica ou talvez seja um neologismo de Paulo (ou dos primeiros
cristãos). A palavra não aparece em outros textos antes de
1Coríntios (cf. 8:1, 4, 7, 10; 10:19) e é usada também apenas em
Atos 15:29, 21:25 e em Apocalipse 2:14, 20. [1543] Os pagãos
usavam o termo ἱερόθυτος (cf. 1Co 10:28), “o que é oferecido a uma
divindade”. [1544] A diferença entre ἱερόθυτος e εἰδωλόθυτος é
importante. A palavra εἴδωλα está geralmente associada à idolatria e
ao que é, em última instância, “demoníaco” (cf. Dt 29:17 [1545]; Ap
9:20). Paulo provavelmente escolheu esta palavra com sentido
pejorativo, para deixar claro que ele não falava de qualquer
sacrifício, mas de um sacrifício idólatra, demoníaco, maligno. [1546]
Gálatas 4:8-11 é outro texto que lança luz sobre esta questão.
Neste texto, o apóstolo afirma que os cristãos da Galácia, antes de
se converterem, “eram escravos daqueles que, por natureza, não
são deuses” (v.8). Ele chama estes deuses de “princípios
elementares fracos e sem poder” (v.9a). No entanto, ele os
repreende ao perguntar “[vocês] querem ser escravizados por eles
outra vez?” (v.9b). E acrescenta ainda no v.11: “temo que os meus
esforços por vocês tenham sido inúteis”. Ou seja, mesmo não sendo
deuses de verdade, e mesmo sendo “fracos e sem poder”, estes
“deuses” poderiam influenciar mesmo os membros convertidos das
igrejas da Galácia. Tais deuses não existem na realidade, nem suas
representações (imagens, pinturas, esculturas) retratam uma ser
real. Porém, o fenômeno da idolatria pode escravizar, influenciar
moralmente, fazer “tropeçar” e se constituir em “comunhão com os
demônios” (cf. 1Co 10:18-22).
Thiselton sugere que o v.8 ou parte dele pode ser uma citação
que Paulo faz dos coríntios. Para ele, a primeira parte do verso (8a)
pode ser uma citação do pensamento dos “esclarecidos” e, se este
ponto de vista for correto, ela deve ser lida entre aspas. A segunda
parte (8b) pode também ser uma citação deles ou uma réplica de
Paulo, qualificando o que eles dizem. Thiselton propõe que o v.8a
reflete a “pressão” por parte dos “esclarecidos” para que os fracos
se sintam livres para comer dos alimentos sacrificados aos ídolos.
Essa pressão poderia ter um caráter neutro (“aproveitem sua
liberdade: comam carne”) ou um tom mais provocativo (“mostrem
que vocês também possuem este dom de conhecimento...”). Se
Thiselton estiver correto, então 8b seria um comentário do apóstolo,
qualificando a frase deles e esclarecendo que comer ou não comer
não nos torna melhores perante Deus, como eles teriam sugerido.
[1611]
Se este verso (ou parte dele) for uma citação dos “esclarecidos”,
ele é um argumento em favor das refeições nos templos, com o qual
Paulo concorda em tese, mas precisará qualificar nos versos
seguintes. Se este verso é a opinião do próprio apóstolo, ele
argumenta em favor da neutralidade da comida em nosso
relacionamento com Deus, porém, dentro do contexto em que
defende sua preocupação com os “fracos”. Minha preferência é por
entender este verso como proveniente de Paulo e como parte de
sua argumentação. Ele seria uma ressalva para deixar claro que
aquilo que comemos é irrelevante em termos de nosso
relacionamento com Deus. O apóstolo, portanto, esclarece que o
problema não era a comida, mas a consciência fraca daqueles que
eram influenciáveis e que poderiam voltar à idolatria (vv.7 e 9).
8:9 – Neste verso Paulo inicia seu principal argumento, neste
capítulo, contra a participação dos “esclarecidos” em refeições nos
templos. Se por um lado eles reivindicavam seu “direito de escolher”
(ἐξουσία, “autoridade” ou “direito”, [1613] traduzido como “exercício
da liberdade” pela NVI), ou seja, sua liberdade de comer carne nos
templos pagãos, por outro lado, eles deveriam tomar cuidado [1614]
para que “esse direito” não se transformasse em motivo de “tropeço”
[1615] para os fracos. Aquilo que para eles era um direito poderia se
tornar a causa do retorno dos “fracos” à idolatria. No capítulo 10
Paulo argumentará que, na realidade, este “direito” não existe para
o cristão, pois para ele comer nos templos se constitui idolatria (cf.
10:14-22).
9:19 – Paulo retoma a ideia do v.1 (“não sou livre?”). Ele é livre, mas
decidiu abrir mão de sua liberdade, de seus “direitos”, em favor do
“maior número possível de pessoas”: judeus, gentios e “fracos”. Em
vez de afirmar sua liberdade para comportar-se de acordo com suas
preferências, ele se limitou e se adaptou às preferências de “todos”.
A conjunção γὰρ com o particípio presente de εἰμι, “sendo” (ὢν),
podem ter sentido concessivo (“porque embora sendo livre”) ou
causal (“porque sendo livre”, “por ser livre”). O fato de não depender
financeiramente dos coríntios lhe dava a condição de se dizer “livre
de todos”, por ter autonomia para realizar seu ministério. O adjetivo
“livre” (ἐλεύθερος) aparece primeiro na frase, o que indica ênfase.
Thiselton traduz o texto como “livre é o que eu sou”. [1732] Ao abrir
mão de seus direitos e se fazer “servo”, Paulo imitava o exemplo do
próprio Messias (cf. Fp 2:5-8). O apóstolo esperava que seu
exemplo fosse seguido também pelos “esclarecidos”: que eles se
dispusessem a se tornar “escravos” dos “fracos” em Corinto a fim de
“ganhá-los” para o evangelho. Ao exporem os fracos a tropeçar na
fé, os “esclarecidos” faziam exatamente o contrário (cf. 8:9-13). A
postura de Paulo era claramente contracultural: “... assumir uma
condição ou lugar inferior na sociedade não era visto como uma
virtude. Isto era considerado uma atitude... servil, não o tipo de coisa
que a elite aspiraria para si”. [1733] Mesmo assim, Paulo insiste
neste modelo. Essa é a atitude cristã que ele esperava que os
coríntios imitassem (cf. 10:32-11:1).
(1) A “coroa que dura para sempre” como sendo a vida eterna ou
a salvação (cf. 1Pe 5:4; Tg 1:12; 2Tm 4:8; Ap 2:10; etc). Fee afirma
que “Paulo apela aos coríntios para que ‘corram’ a vida cristã de tal
maneira, neste caso, exercitando o devido autocontrole (a ênfase
dos vv.25-27), que venham a obter a recompensa escatológica”.
[1761] Witherington é da opinião que “sua ênfase nesta metáfora é
no exercício do autocontrole de modo a não ser desqualificado. Seu
objetivo é o de motivar os coríntios, em particular os gentios que
frequentavam as festas idólatras, a exercitarem o autocontrole para
não levarem outros a tropeçar e para não desqualificá-los para a
salvação final”. [1762] Sobre a relação entre a necessidade de
perseverança e a possibilidade da perda da salvação, Barrett é
ainda mais explícito ao dizer que, neste texto, Paulo dá a entender
que “sua [própria] conversão, seu batismo, seu chamado ao
apostolado, seu serviço no evangelho, não garantem sua salvação
eterna”. [1763] Wright afirma que “o objetivo que Paulo tem em vista
é claramente a ressurreição... seu objetivo é a nova vida no corpo
prometida pela ressurreição. Ter disciplina corporal no presente –
dizendo ‘Não’, até para algumas coisas que alguém poderia ter de
direito – é uma parte necessária do caminho para [atingir] aquele
objetivo”. [1764]
De acordo com este ponto de vista, outro texto que pode iluminar
nossa compreensão de 9:24-27 é 1Coríntios 4:1-5. Nesta passagem
Paulo fala sobre o julgamento futuro em que Deus revelará as
intenções do coração de cada um. Enquanto este julgamento não
acontece, devemos “não julgar ninguém antes da hora devida”.
Como encarregados dos mistérios de Deus devemos ser fiéis (4:2).
Nem o apóstolo julgava a si mesmo, mas ele esperava pela
avaliação imparcial do Senhor (4:3, 4). É importante notarmos que,
neste texto, Paulo manifesta uma total confiança em sua salvação.
O julgamento aguardado por ele não era uma incógnita: ele estava
justificado de uma vez por todas (cf. 1Co 1:30; Rm 5:1; 8:30, 33).
Sua fidelidade será avaliada, como sugere a frase “nesta ocasião,
cada um receberá de Deus a sua aprovação” ou o seu “louvor” (v.5).
[1767]
(3) Hays defende que τύποs deve ser traduzido não como
“advertência”, mas como “tipo” no sentido de “prefigurações da
igreja”. De acordo com ele, “a Escritura para Paulo, corretamente
entendida, prefigura a formação da comunidade escatológica da
igreja”. [1821] Paulo lê o AT como narrativa e não como textos-prova.
Assim, a história bíblica seria “a saga de Deus elegendo, julgando e
redimindo um povo através do tempo” e “Paulo vê a igreja que veio
a existir em seus próprios dias como a herdeira desta vasta história
antiga e como o notável cumprimento da promessa feita a Israel”.
[1822] Paulo cita o AT a partir de uma “hermenêutica eclesiocêntrica”
e escatológica: em linguagem simples, Paulo cita o AT tendo em
mente que a narrativa da história de Israel atinge seu cumprimento
final na igreja que viveria “nos fins das eras” (cf. 10:11). Assim,
“todas as narrativas e promessas das Escrituras devem ser
entendidas como apontando para o futuro, para o momento
escatológico crucial no qual ele e suas igrejas se encontram agora”.
[1823] O que traz tanta certeza a Hays de que a narrativa da história
de Israel aponta para a igreja e tem seu “notável cumprimento”
nela? Para ele, “o cumprimento destas promessas sofre uma
reviravolta totalmente inesperada devido ao evento apocalíptico
cosmicamente devastador da crucificação e ressurreição do
Messias, Jesus. Quando ele relê a Escritura de Israel
retrospectivamente, Paulo encontra numerosas prefigurações deste
evento revelador – que, no entanto, surge como uma completa
surpresa para Israel e continua a funcionar como uma pedra de
tropeço para aqueles que não creem”. [1824]
As dificuldades deste texto são: (1) quem seria a pessoa que faz
o comentário sobre a origem da carne, (2) por qual razão ela faria
isso e (3) por qual motivo Paulo proíbe comê-la?
Paulo parece ter em mente a presença de pelo menos mais duas
pessoas além do cristão que foi convidado: a que menciona a
procedência da carne e “o outro”. O pronome τις é indefinido e pode
se referir tanto ao hospedeiro quanto a qualquer pessoa presente.
Se Paulo quisesse se referir ao hospedeiro, ele teria usado o
pronome αὐτός. Por se tratar de uma situação hipotética, é possível
que Paulo considerasse a possibilidade de, numa refeição em
grupo, uma das pessoas mencionar a questão perante outra (s).
Neste caso, a recusa em comer levaria em consideração ambos – a
que fala e “o outro” também presente.
Garland, por outro lado, defende a posição (1) acima. Para ele,
Paulo proíbe comer carne neste contexto por considerar que saber a
origem da carne tornaria a refeição um ato idólatra. O cristão não
deveria comer para não pecar e para deixar claro para os
descrentes seu posicionamento. Para ele, o “outro” não seria um
cristão “fraco”, mas o descrente. [1929] Essa posição, contudo,
possui dificuldades: primeiro, concede a uma mera declaração o
poder de transformar uma refeição normal em um encontro idólatra;
em segundo lugar, é difícil explicar a preocupação com a
“consciência” do descrente, já que este não possuía problema
nenhum em comer comida sacrificada a ídolos.
(5) Paulo estaria argumentando que uma pessoa não perde sua
liberdade por deixar de comer algo em respeito à consciência de
outra pessoa. Seria uma versão mais “suave” da explicação (4): o
apóstolo não estaria defendendo a liberdade dos “esclarecidos”,
mas a liberdade cristã de um modo geral.
(6) As perguntas retóricas seriam uma reafirmação da ordem
dada no v.28 para não comer da carne, caso alguém diga que esta
foi sacrificada, pelo seguinte motivo: mesmo não sendo idolatria
comer carne em uma refeição particular, por que insistir em comer
diante de alguém que condenará o meu comportamento? Este
“fraco” naturalmente julgará a minha liberdade, de acordo com os
critérios da sua consciência, e me condenará por comer, mesmo
que eu tenha dado “graças” por ela, reconhecendo-a como boa
dádiva de Deus (cf. v.26). A consciência do outro, neste caso, seria
ou uma consciência escrupulosa, ou a consciência frágil de alguém
que poderia usar de minha liberdade como desculpa para depois
visitar os templos. Seria como se Paulo dissesse: “Por que comer se
alguém poderá se ofender e julgar seu comportamento, difamando-
o?” [1936]
Paulo inicia sua conclusão (ele usa a conjunção οὖν que poderia
ser traduzida como “portanto”) dizendo que o cristão deve fazer tudo
“para a glória de Deus”, inclusive os atos mais simples como
“comer” e “beber”. O verso explica o porquê do rigor do apóstolo em
proibir a participação dos coríntios nas festas nos templos pagãos:
esse “comer” e esse “beber” roubavam a glória devida
exclusivamente a Deus, por se tratarem de atos idólatras. Caso
comessem e bebessem em templos pagãos, a glória desta refeição
seria dada aos ídolos (cf. Is 42:8). Glorificar a Deus significa
reconhecê-lo na qualidade de Criador e Redentor, conferindo-lhe a
adoração, o louvor e a autoridade das quais somente ele é digno (cf.
Sl 29:1, 2; Is 42:2; Rm 1:21; Ef 1:6, 12, 14; Ap 1:6; 4:9, 11; 5:12 etc).
Por que “todo homem que ora com a cabeça coberta desonra a
sua cabeça” (v.4)? Minha sugestão é que Paulo usa o exemplo do
marido apenas como ilustração, ou analogia, para lidar com a
questão das esposas: um marido com a cabeça coberta seria
vergonhoso porque, culturalmente, homens casados não usam véu.
Um marido de véu desonraria a si mesmo (sua própria cabeça) e
desonraria a Cristo (seu cabeça, v.4). Seria como se em Corinto
fosse costume que as mulheres casadas usassem sempre saia em
público. Paulo teria dito que “todo homem que ora ou profetiza
usando saia desonra a sua cabeça” (evidentemente, este exemplo
não se aplicaria aos escoceses!). A mesma comparação é usada
também no v.7.
A frase “por esta razão e por causa dos anjos, a mulher deve ter
sobre a cabeça um sinal de autoridade” tem sido fonte de muita
especulação (veja o comentário sobre o v.10). Geralmente os
intérpretes discutem, sem muito sucesso, qual seria o sentido deste
verso a partir da ideia de que os anjos estão presentes nas reuniões
de adoração da igreja. Winter propõe uma interpretação bastante
razoável de ἄγγελος, um substantivo que pode ser traduzido tanto
por “anjo” como por “mensageiro” ou “enviado”. [1968] Os cultos
pagãos não eram realizados com frequência, mas apenas em certas
ocasiões, como nas festas em honra aos deuses nacionais e em
homenagens aos mortos. As autoridades romanas permitiam que
associações (religiosas ou não) se reunissem apenas uma vez por
mês, para evitar o risco de revoltas. Os judeus eram a exceção, pois
podiam se reunir uma vez por semana, aos sábados. Vistos pelos
romanos como uma seita do judaísmo, os cristãos possuíam o
mesmo privilégio judaico de poderem se reunir semanalmente.
Mesmo tendo este privilégio, as autoridades romanas enviavam
seus “olheiros” para observar o que acontecia nas reuniões destes
tais “cristãos”. Este “olheiro” era o “mensageiro” (ἄγγελος). Era
comum que este tipo de mensageiro fosse enviado pelas
autoridades para observar reuniões e evitar possíveis excessos.
[1969] Por esta razão, Paulo diz que as esposas deveriam usar o véu
“por causa dos olheiros” ou “por causa dos mensageiros” à serviço
das autoridades, a fim de evitar que a atitude delas levantasse
suspeitas (por exemplo, de que as esposas cristãs não respeitavam
os seus maridos, de que os cristãos não respeitavam as autoridades
nem os costumes locais, etc) trazendo problemas desnecessários à
comunidade cristã. O “sinal de autoridade” era o véu que
caracterizava a mulher casada. Assim, poderíamos parafrasear o
texto da seguinte maneira: “por causa dos mensageiros enviados
pelas autoridades a mulher deve usar o véu como sinal de ser
casada”.
Algumas igrejas hoje adotam o uso do véu por causa deste texto.
No entanto, a grande maioria das igrejas entende este texto como
adiáfora, ou seja, como questão secundária para a fé e não
normativa. As razões para pensarmos assim são duas:
Por que este verso traz “Deus” em vez de “Cristo”, como no v.3?
A resposta mais provável é que Paulo não está preocupado com os
detalhes, mas em enfatizar que marido e mulher devem honrar suas
respectivas “cabeças”. Podemos considerar que, para o apóstolo,
Cristo é Deus, o que torna estes termos intercambiáveis aqui (cf.
1Co 8:6; Rm 9:5; Tt 2:13). “Imagem” (εἰκὼν) é eco de Gênesis 1:26,
27. Gênesis afirma que tanto o homem quanto a mulher foram
criados à imagem de Deus. Paulo não diz que a mulher é “imagem
do homem” [2021], mas apenas sua “glória”. Concordo com Fee
quando ele diz que “ele [Paulo] não está tentando interpretar este
texto [isto é, Gn 1:26-28)” neste verso. [2022] O ponto principal deste
verso à luz de toda a passagem é que marido e esposa devem
trazer glória em vez de vergonha para suas “cabeças”. Ao usar um
véu, o homem traria vergonha para Deus e, ao não usar o véu, a
mulher traria vergonha para seu marido.
Os dois enigmas deste verso são: o que Paulo quis dizer com “a
mulher deve ter sobre a cabeça um sinal de autoridade”? E qual o
sentido de “por causa dos anjos”?
A NVI traduz ἐξουσίαν ἔχειν ἐπὶ τῆς κεφαλῆς como “ter sobre a
cabeça um sinal de autoridade”. A palavra “sinal” não aparece no
texto grego e foi uma opção dos tradutores para conferir maior
clareza à versão em português. Outro sentido, defendido por
Thiselton, é o de que o verbo ἔχω pode também significar “reter”,
“manter”, “preservar”. Por isso, ele propõe a tradução de que elas
devem “manter o controle de (como as pessoas percebem) suas
cabeças”: ao usarem o véu, elas preservariam sua respeitabilidade
perante todos. [2031]
A frase “por causa dos anjos” (διὰ τοὺς ἀγγέλους) tem sido
objeto de interpretações complexas e especulativas:
Paulo poder ter sido informado sobre este problema por três
fontes: pela carta que os próprios coríntios escreveram a ele, pelos
visitantes da casa de Cloe (cf. 1:11) e pela visita de Estéfanas,
Fortunato e Acaico (cf. 16:17). O uso do verbo “ouvir” (ἀκούω, cf.
v.18) sugere que o relato foi feito por aqueles que estiveram com ele
pessoalmente.
(3) Uma terceira opinião entende que Paulo fala sobre a falha
dos coríntios em reconhecer no pão a presença sacramental do
corpo de Cristo. Entre os que defendem este ponto de vista estão
Justino e Agostinho, [2173] Tomás de Aquino e Teodoro de Beza,
entre outros. [2174]
11:30 – “Por isso” ou “por esta razão” (διὰ τοῦτο) indica que este
verso explica o v.29, o que Paulo quer dizer por “comer e beber para
sua própria condenação”. O julgamento que o apóstolo tem em
mente não é a condenação eterna, mas uma disciplina pontual,
embora severa (v.32). Ele entendia que essa disciplina se
manifestava na igreja de Corinto por meio de enfermidades e da
morte de alguns membros. [2176] A disciplina divina se manifestava
de três maneiras: entre eles havia os “fracos e doentes” e os que
“dormiam” (ἀσθενεῖς καὶ ἄρρωστοι [2177] καὶ κοιμῶνται). [2178]
Garland sugere, embora ele mesmo considere pouco provável, que
a palavra descreveria os membros da igreja que estavam
fisicamente fracos por não terem o que comer. Neste sentido, Paulo
citaria os fracos não como aqueles que recebiam a disciplina de
Deus, mas como os que sofriam as consequências do egoísmo dos
que possuíam o que comer e não tinham consideração por eles.
[2179] No entanto, há suficiente base lexicográfica para entendermos
“fracos” no sentido de “doentes”. [2180] “Dormiram” (κοιμῶνται) é
eufemismo para “morreram”. Paulo não ensina que, ao morrer, os
cristãos “dormem” (ficam inconscientes) enquanto aguardam a
ressurreição. Em outro texto ele diz que preferia morrer e estar com
Cristo, o que seria “muito melhor” (cf. Fp 1:23), indicando que a
morte introduz o cristão imediatamente na presença de Cristo. [2181]
A morte física pode ser uma disciplina de Deus, como no caso de
Ananias e Safira (cf. At 5:1-11). [2182] Nossa aplicação pastoral do
texto deve ser cuidadosa. Nem toda morte ou enfermidade na igreja
significa que Deus disciplinou alguém. O que Paulo fez foi discernir,
na situação específica de Corinto, que Deus disciplinou alguns
membros daquela igreja, desta maneira. [2183] “Vários” é a tradução
de ἱκανοί, “um número suficiente”, “uma grande quantidade”,
“muitos”. [2184] Aparentemente, o número de pessoas que sofreram
o julgamento divino em Corinto não era pequeno.
(4) Mostrar que todos os cristãos são membros deste Corpo, que
é a igreja, que todos sem exceção são importantes e devem ser
valorizados; que as diferenças devem ser reconhecidas sem
prejuízo da unidade (12:14-31).
Paulo menciona o Espírito Santo duas vezes neste verso. Ele faz
duas afirmações: ninguém pode falar “Jesus seja amaldiçoado” (ou
“Jesus, amaldiçoa!”) pelo Espírito de Deus e ninguém pode afirmar
“Jesus é o Senhor” a não ser por meio do Espírito Santo. A primeira
frase, surpreendente até certo ponto, pode ser considerada real ou
hipotética, sendo que a segunda frase deve ser entendida como
verdadeira, pois trata-se da confissão de fé comum dos primeiros
cristãos (cf. Rm 10:9).
O propósito de Paulo nestes versos iniciais é demonstrar que
toda experiência genuína de conversão se dá unicamente por
intermédio do Espírito Santo e que todos os cristãos, sem exceção,
possuem o Espírito ou foram batizados nele (cf.12:13). Não há
cristãos que possuam o Espírito ou “mais” do Espírito que outros –
todos estão no mesmo nível e pertencem à mesma categoria.
(9) Paulo pode ter citado aqui, como ilustração do que ele
pretendia ensinar, qual era a sua opinião sobre Jesus antes de sua
conversão. Como fariseu, Paulo poderia ter declarado, mais de uma
vez, “Jesus seja amaldiçoado”. É possível que os coríntios
soubessem disso pelo testemunho do próprio apóstolo, quando
Paulo viveu entre eles (cf. At 18): ele pode ter citado aqui seu
exemplo como judeu não convertido, após mencionar o passado
pagão da maioria dos coríntios, no v.2. Tal “blasfêmia” não teria
chocado os coríntios e teria feito sentido para eles, caso soubessem
do passado blasfemo de Paulo. [2238] Em 1Timóteo 1:13 o apóstolo
afirma que foi “blasfemo, perseguidor e insolente” antes de sua
conversão.
Esse texto não pode ser usado como argumento para alguém
reivindicar para si um “ministério de cura”, definindo dias e horários
pré-determinados para a realização de milagres (penso aqui em
“missionários” que criam “igrejas” para realizar supostas curas em
horários específicos e assim atrair fiéis). [2285] Ninguém pode
reivindicar ter um “ministério de cura”. [2286] No caso de Paulo, por
exemplo, nem sempre orar por cura significava ser curado ou curar
alguém: ele próprio teve a cura de seu “espinho na carne” negada
(cf. 2Co 12:8) [2287], evangelizou os Gálatas quando estava doente
e debilitado (cf. Gl 4:13,14;), orientou Timóteo a misturar a água que
bebia com vinho devido às suas “frequentes enfermidades” (1Tm
5:23), e certa vez deixou Trófimo doente em Mileto (2Tm 4:20).
Paulo fala de Epafrodito que havia ficado muito doente a ponto de
quase morrer em sua companhia (cf. Fp 2:25-27). Estes exemplos
demostram que, apesar de “Deus fazer milagres extraordinários por
meio de Paulo” em momentos especiais (cf. At 19:11,12), o apóstolo
não curava quem ele queria, nem quando queria. Em última
instância, quem concede a cura como uma dádiva é Deus. Até
mesmo o processo da cura pode levar certo tempo, ela não precisa
ser imediata (cf. Mc 8:23-25).
O v.28 inicia com a conjunção καὶ, o que faz dele uma sequência
natural do v.27. Por isso a tradução da NVI “assim, na igreja, etc”
está correta, pois expressa continuidade. “Na igreja, Deus
estabeleceu primeiramente apóstolos”: Paulo usa o mesmo verbo do
v.18, τίθημι, que significa “colocar”, “arranjar”. O verso enfatiza, mais
uma vez, a ideia de que Deus soberanamente estabelece os dons
na igreja (cf. 12:6-11,18, 24). “Deus é o responsável pela
diversidade que cria o único Corpo”. [2368]
(2) Paulo estaria usando uma frase dos coríntios, como em 7:1,
por exemplo. O problema é que nada no contexto nos sugere isso.
“Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos” (ἐὰν ταῖς
γλώσσαις τῶν ἀνθρώπων λαλῶ καὶ τῶν ἀγγέλων): o fato de Paulo
ter posicionado καὶ τῶν ἀγγέλων separadamente nos permite
deduzir que ele tenha usado esta frase hiperbolicamente. Desse
modo, poderíamos traduzi-la: “se eu falar não somente línguas
humanas, mas até mesmo línguas de anjos”. Wright traduz “se eu
falar em línguas humanas ou mesmo nas [línguas] de anjos”. [2403]
No v.1 Paulo diz que o falar em línguas sem amor seria apenas
ruído. No v.2, que o dom de profecia e o conhecimento completo
sem amor fariam de mim um “nada”. Finalmente, o v.3 afirma que a
generosidade e o martírio seriam sem proveito. A retórica do
apóstolo é clara: ele vai da manifestação do dom menos importante
(falar em línguas) ao mais radical sacrifício (dar todos os bens e o
próprio corpo) para concluir que, sem amor, nenhuma destas coisas
possui qualquer valor diante de Deus.
6. A Essência do Amor (13:4-7)
O texto grego traz a conjunção γὰρ, omitida pela NVI, que pode
ser entendida aqui como explicativa ou conclusiva (“pois”, “porque”,
“portanto”) e também o termo μὲν que, segundo Fee, em conjunto
com ἀλλὰ, pode ser traduzido “com certeza”, “certamente” [2620].
Assim, o texto poderia ser traduzido “[portanto,] pode ser que você
[com certeza] esteja dando graças muito bem, mas o outro não é
edificado” (σὺ μὲν γὰρ καλῶς εὐχαριστεῖς ἀλλ᾽ ὁ ἕτερος οὐκ
οἰκοδομεῖται). Paulo se dirige a um interlocutor na segunda pessoa,
“tu” ou “você” (σὺ). A conjunção adversativa ἀλλὰ dá maior força
[2621] ao contraste entre aquele que dá graças “muito bem” ou
“bem” (καλῶς), porém, não edifica “o outro” (ὁ ἕτερος). A frase é,
portanto, enfática, e mostra sua desaprovação em relação àqueles
que se preocupavam com sua edificação pessoal mais do que com
a edificação da igreja toda. A adoração na igreja não é uma questão
entre “mim e Deus”, mas entre “Deus e nós”. [2622] Este verso não
deve ser interpretado como ironia. O dom de línguas é de fato um
dom de oração e louvor, mas não edifica a igreja se não houver
quem o interprete. Sem interpretação, diz Garland, “a congregação
fica apenas desconcertada, desorientada e distraída em sua
adoração a Deus”. [2623]
Paulo cita Isaías 28:11, 12. “Lei” (νόμος) se refere aqui a todo o
AT e não apenas ao Pentateuco (cf. Rm 3:19; Jo 10:34; 12:34 etc).
[2641] Paulo provavelmente cita o texto de Isaías de memória, com
elementos tanto do TM como da LXX, ou, talvez ainda, citando uma
antiga tradução perdida. [2642] O apóstolo faz pelo menos quatro
alterações significativas no texto: (1) ele inverte a ordem de “língua”
e “lábios”, colocando “línguas” em evidência; (2) ele altera “lábios
trôpegos” para “lábios de estrangeiros”; (3) de acordo om o TM, mas
diferentemente da LXX, ele altera “Deus falará” para “falarei” e
acrescenta “diz o Senhor” e (4) ele pula boa parte do v.12, citando
apenas seu final, “mas não me ouvirão”. [2643]
14:36 – O texto grego inicia o verso com a conjunção “ou” (ἢ), “ou
acaso”, “ou por acaso”. A interpretação deste verso depende em
grande parte de qual será nossa posição sobre os vv.34 e 35. Na
hipótese de que os versos anteriores tenham sido uma interpolação,
o v.36 sucederia ao v.33a. Neste caso, as duas perguntas retóricas
deste verso seriam uma resposta de Paulo à tendência dos coríntios
em fazer as coisas do jeito deles e não conforme o ensino do
apóstolo em todas as igrejas. Com estas perguntas, Paulo estava
antecipando qualquer questionamento sobre suas diretrizes para o
exercício dos dons de línguas e de profecia (cf. vv.27-33a). Caso
entendamos que os vv.34 e 35 sejam paulinos, e que o
posicionamento correto destes versos é o mesmo de nossas Bíblias,
as mesmas perguntas retóricas também se aplicariam a eles. As
diretrizes de Paulo, assim, incluiriam línguas, profecia e o
comportamento das mulheres.
O texto grego diz, literalmente, “ou a partir de vocês a palavra de
Deus se originou?” “A partir de” (ἀφ᾽ ὑμῶν, contração de ἀπό ὑμῶν)
enfatiza a ideia, questionada por Paulo, de que os coríntios teriam
sido a fonte inicial da palavra de Deus. Se fosse assim, a opinião
deles deveria ter a primazia no comportamento das demais igrejas,
o que não é o caso. “São [2790] vocês o único povo [2791] que ela
alcançou [2792]?” Ou seja, somente vocês foram alcançados pela
palavra de Deus? Ou vocês deveriam também seguir o que é
ensinado “em todas as congregações dos santos”? Os coríntios não
eram nem a origem da palavra de Deus nem os seus únicos
destinatários. Com este questionamento, o objetivo de Paulo era
que eles se submetessem ao ensino apostólico em todas as igrejas.
14:37 [2793] - Com este verso Paulo antecipa a rejeição ou a
resistência de alguns em Corinto ao seu ensino sobre a ordem na
igreja. Como apóstolo, Paulo possuía autoridade dada por Cristo
para instruir e organizar as igrejas. A palavra de um apóstolo
equivalia a um mandamento do Senhor (cf. 7:25, 40). Paulo não cita
uma frase de Jesus aqui (cf. 7:12), mas afirma que sua palavra,
como apóstolo, equivale ao mandamento do próprio Senhor. O
termo “mandamento” (ἐντολή), no singular, se refere, provavelmente,
a todas as suas orientações sobre a ordem na igreja, nos capítulos
12 a 14, ou pelo menos no capítulo 14.
“Se alguém pensa que é profeta ou espiritual”: talvez algumas
pessoas em Corinto dissessem ter recebido uma mensagem
diferente, ou outro mandamento, da parte do Senhor, com o objetivo
de desqualificar o ensino de Paulo. Esta é a terceira vez que ele usa
a expressão “se alguém pensa que” na carta (cf. 3:18; 8:2). Nas
outras duas vezes, os coríntios se achavam “sábios” (cf. 3:18) e
“conhecedores” (cf. 8:2); agora eles se consideram “espirituais”.
[2794] “Sem dúvida”, afirma Barrett, “havia (como indicam estes
Por que Paulo teria escrito o capítulo 15? Por que, depois de ter
escrito uma carta repleta de referências à ressurreição e ao
julgamento futuro, o apóstolo sentiu a necessidade de fazer uma
exposição tão detalhada deste tema?
“E sua graça para comigo [2872] não foi em vão [2873]; antes,
[2874] trabalhei mais [2875] do que todos eles; contudo, não eu, mas
a graça de Deus comigo”: a graça de Deus atuando em Paulo não
foi “vazia” ou “em vão”, pois ela pode ser claramente vista em seu
trabalho apostólico incansável. [2876] “Trabalhei [2877] mais do que
todos eles”: não sabemos qual critério Paulo usou para comparar-se
com os demais apóstolos e testemunhas da ressurreição. É
provável que suas viagens, seu trabalho como fazedor de tendas
para se sustentar, seus sofrimentos (cf. 4:9-13; 2Co 6:4-10; 11:23-
28), seu zelo missionário (seu empenho por iniciar novas igrejas em
lugares ainda não alcançados, cf. 2Co 10:12-16; Rm 15:15-20),
tivessem sido, naturalmente, maiores do que os dos demais. Mas
seu objetivo não é o de gabar-se ou de promover-se como “o
melhor” (caso contrário ele cairia em contradição, cf.1:26-31, 3:21-
23 e 4:1-7) e sim mostrar a eficácia do poder transformador da
graça de Deus: “não eu, mas a graça de Deus comigo”. Tampouco
Paulo precisava “compensar” Deus por ele ter agido com graça para
com alguém que havia sido um perseguidor. [2878] O pronome ἐγὼ é
enfático: “e não eu mesmo” (οὐκ ἐγὼ δὲ), seguido de ἀλλὰ, uma
conjunção adversativa igualmente enfática (“porém”, “entretanto”), a
graça de Deus comigo”. [2879] “Desse modo, sua grande obra era
evidência da ressurreição, pois ela jamais teria acontecido se o
Senhor Ressurreto não houvesse aparecido a ele, nem ela teria
atingido estes resultados sem o Seu auxílio”. [2880]
Muitos gregos sequer criam em vida após a morte, mas não era
esse o problema dos coríntios. Paulo não procura corrigir neste
capítulo a negação da vida após a morte, mas a negação da
ressurreição física dos mortos. Os coríntios não pareciam duvidar da
ressurreição física de Jesus, mas dos demais mortos. Além disso,
conforme vimos na introdução a este capítulo, toda a orientação
pastoral de Paulo em 1Coríntios pressupõe a vida após a morte e
que os coríntios acreditavam nela. O problema, diz Paulo aqui, é
que negar a ressurreição dos mortos significa também negar a
ressurreição de Cristo. Ou seja, “negar a ressurreição futura”
significava “cortar o galho no qual eles estavam sentados”. [2893]
“Os que lhe pertencem” ou “os que são de Cristo” (οἱ τοῦ
Χριστοῦ) serão ressuscitados “quando ele vier”, em sua Parousia
(παρουσίᾳ). [2936] Wright traduz παρουσίᾳ como “o momento de sua
visita real [“real” no sentido de régia, isto é, como rei]”. [2937] Outras
traduções possíveis são “presença”, “chegada”, “vinda”: “a palavra
era usada como termo técnico para a chegada ou visita do rei ou
imperador”, de um governador da província, uma “presença física”
(cf. 2Co 10:10) ou como “a epifania de uma divindade”. [2938] Em
resumo: o Messias ressuscitou primeiro e se manifestará, ou voltará,
para vencer a morte e consumar o domínio do Reino de Deus de
modo pleno. Nesta ocasião, quando ele vier, os demais mortos
serão ressuscitados (cf. vv.24-28, 50-57).
“Pois é necessário que ele reine [2957] até que todos os seus
inimigos sejam postos debaixo de seus pés” (v.25) é uma alusão
[2958] ao Salmo 110:1. [2959] Paulo afirma que o Messias reina hoje
e que seu reinado se estenderá até a destruição de todos os seus
inimigos, sendo a morte “o último” deles (v.26). Este verso explica o
v.24, por que “é necessário” [2960] que Cristo reine hoje: para que
ele possa destruir todos os inimigos por meio da ressurreição. Paulo
adapta e parafraseia o Salmo 110:1 (109:1, na LXX): no salmo é
YHWH quem destrói os inimigos enquanto o “Senhor” (o Messias,
na interpretação de Jesus e dos primeiros cristãos, cf. Lc 20:41-44;
At 2:34-36) assenta-se “à direita”. O “assentar-se” sugere uma
posição de descanso, de quem apenas observa YHWH agindo.
Paulo, no entanto, descreve o Messias como sendo o agente que
destrói seus inimigos. O apóstolo substitui o “eu” do salmo por “ele”,
na terceira pessoa. [2961]
Os intérpretes discutem quem seria o sujeito do v.25, se Cristo
ou Deus Pai. Os vv.23-26 sugerem fortemente que o sujeito do v.25
é Cristo. Ao mesmo tempo, Paulo também afirma que Deus é quem
submeteu ou sujeitou tudo a Cristo (vv.27, 28); no Salmo 110:1 é “o
Senhor” Deus, o Pai, quem vence os inimigos, e não o Messias.
Como resolver a questão? A melhor resposta parece ser que ambos
- o Messias e Deus Pai - agem para destruir todos os inimigos.
Porém, a ênfase de Paulo nos vv.24-26 é no papel do Messias em
trazer a vitória final por meio da ressurreição dos mortos. Barrett
observa que “Cristo parece reinar durante o período em que este
despojar [de ‘todo domínio, autoridade e poder’] acontece... Quando
o reino tiver sido completamente reestabelecido, o Filho o entrega
ao Pai, e o reino de Cristo dá lugar ao reino de Deus”. [2962] A
ressurreição será o golpe final, a vitória que possibilitará que Cristo
entregue o Reino ao Pai.
Paulo faz duas perguntas retóricas (1) “também nós [3002], por que
estamos nos expondo a perigos [3003] o tempo todo?” [3004] e (2) “se
foi por meras razões humanas [3005] que lutei com feras [3006] em
Éfeso, que ganhei com isso?”. Entre estas perguntas, ele comenta:
“todos os dias enfrento a morte” (literalmente, “todos os dias morro”,
καθ᾽ ἡμέραν ἀποθνῄσκω).
A frase “isso digo pelo orgulho que tenho de vocês em Cristo Jesus,
nosso Senhor” é a maneira de Paulo reiterar a veracidade de que
“todos os dias enfrento a morte”. [3008] A partícula νή, empregada
aqui, era usada em juramentos solenes com o sentido de
“verdadeiramente, juro por...” (cf. Gn 42:15-16, LXX). [3009] Paulo
faz, portanto, uma espécie de juramento. Seria como se ele
dissesse “juro pelo orgulho que tenho de vocês” ou “juro pelo que
me é mais caro”. [3010] Gramaticalmente a frase também poderia
significar que ele jurava pelo orgulho que os coríntios sentiam por
ele [3011], mas o contexto sugere o contrário (cf. 1Ts 2:19; Fp 2:16).
[3012]
(2) “Lutar com feras” pode ser uma metáfora para enfrentar
oposição ou o risco do martírio (cf.1Co 16:8, 9; 2Tm 4:17). É
possível que Paulo se refira ao tumulto em Éfeso, provocado pelos
artífices que fabricavam imagens de Diana, narrado em Atos 19. Ali
o apóstolo experimentou o que poderia ser facilmente descrito como
“lutar com feras”, ao enfrentar a fúria dos adoradores da deusa
Diana.
“Pois alguns há que não têm conhecimento de Deus; digo isso para
vergonha de vocês”: o texto grego traz ἀγνωσία (“falta de
conhecimento”, “ignorância”) em primeiro lugar na frase, o que
expressa ênfase: “pois é falta de conhecimento de Deus que alguns
têm”. Quem seria estes “alguns” (τινες)? Barrett comenta que “já
temos razão para concluir que algum tipo de gnosticismo primitivo
existia na igreja de Corinto... pelo menos, se o termo gnosticismo
parece muito exagerado, havia cristãos coríntios que alegavam ter
conhecimento, por meio do qual podiam regular sua conduta, por
exemplo, com respeito ao alimento sacrificado aos ídolos (8:1-13)”.
A ideia de um “protognosticismo” influenciando a igreja de Corinto
tem sido questionada e debatida. Na verdade, é impossível
sabermos. Por esta razão, prefiro a alternativa, muito mais provável,
também mencionada por Barrett: o problema da igreja era que
alguns se consideravam “esclarecidos” (cf.8:1-3). Provavelmente
estes “esclarecidos” eram influenciados pela crença grega da
imortalidade da alma, que negava a ressurreição dos mortos. O que
Paulo afirma neste verso é, portanto, o contrário do que este grupo
pensava (sobre Deus e sobre eles mesmos), e deve ter soado como
uma declaração bastante dura. Estes “esclarecidos” estavam, na
realidade, enganados (cf. v.33a; Mc 12:24), e enganando aqueles
que se deixavam influenciar por eles. “Alguns, percebam, possuem
uma completa falta de ‘conhecimento’ de Deus”, traduz Thiselton.
[3042] Assim, tudo sugere que os “alguns” do v.34 são os mesmos
do v.12, e possivelmente os mesmos de 8:1, que afirmavam “temos
conhecimento”. A repreensão de Paulo “parece mais
especificamente uma acusação de que estas pessoas não
conhecem o poder deste Deus para ressuscitar os mortos”. [3043]
Fee está correto ao afirmar que, nestes versos, Paulo não está
falando da obrigatoriedade da morte (porque alguns não morrerão,
cf. vv.50-53), mas da possibilidade real da ressurreição: “é [de fato]
possível que os mortos ressuscitem, como a própria experiência
deles ao semear grãos evidencia”. [3063] Deus é quem “lhe dá um
corpo”: Deus é quem realiza a transformação da semente em árvore
e do corpo mortal em corpo ressurreto. “Paulo não tem a intenção
de explicar como a ressurreição acontece, mas quer apenas
defender que a ressurreição é possível”. [3064] Ele também não
nega que alguns não passarão pela morte, apenas ilustra o que
acontecerá com a grande maioria dos cristãos que terão que
experimentá-la (cf. vv.51-54).
No v.45 Paulo cita Gênesis 2:7: “assim está escrito: ‘o primeiro [3099]
homem, Adão, tornou-se um ser vivente”. [3100] “Ser vivente” (ψυχὴν
ζῶσαν) seria, literalmente, “alma vivente”. No entanto, “ser” é uma
boa tradução, pois “alma” poderia comunicar (erroneamente) um ser
imaterial. Paulo está contrastando corpos físicos, portanto, “ser
vivente” (um ser com um corpo) comunica a intenção de Paulo neste
verso e reflete o sentido original de Gênesis 2:7.
Outro contraste que Paulo faz entre Adão e Cristo é que Adão foi
receptor da vida dada por Deus em sua criação: “o primeiro homem,
Adão, tornou-se um ser vivente”; Cristo, por sua vez, é o doador da
vida ressurreta, o “espírito vivificante” ou “Espírito doador de vida”
(πνεῦμα ζῳοποιοῦν [3104]). Ao ressuscitar, Cristo se torna o primeiro
a receber um corpo ressurreto e também a fonte da ressurreição
futura. [3105] “Em sua ressurreição, quando ele assume seu ‘corpo
sobrenatural’, ele também se torna o doador da vida para todos os
que vierem a sucedê-lo depois”. [3106] Por causa da sua
ressurreição, o próprio Cristo se torna o doador do corpo da
ressurreição para a nova humanidade redimida. Por esta razão ele é
chamado de “o princípio e o primogênito dentre os mortos” (cf. Cl
1:18; Ap 1:5): “o novo corpo será criado e sustentado incorruptível
pelo Espírito do Deus criador, como um resultado da obra
vivificadora do último Adão”. [3107]
Ao citar Isaías, Paulo segue em parte a LXX (ao afirmar que a morte
será “engolida”) e em parte o texto hebraico (ao afirmar que Deus
destruirá a morte “para sempre”). A grande dúvida sobre este verso
seria a origem da expressão εἰς νῖκος (“pela vitória”), que não está
presente nem no texto hebraico, nem na LXX. Algumas
possibilidades:
(3) O próprio Paulo teria empregado εἰς νῖκος como sua tradução
para a expressão “para sempre” do texto hebraico ( )לָ ֶ֔נצַ חtendo em
mente a ideia de “vitória” que ele atribuirá a Cristo no v.57.
(4) A alternativa mais provável, no entanto, me parece a sugerida
por Thiselton que propõe que a versão de Paulo emprega elementos
do texto hebraico, da LXX e da versão de Teodócio, “mas
especialmente o texto de Teodócio” que usa o verbo na mesma
forma que Paulo (κατεπόθη) e que também utiliza εἰς νῖκος. [3161]
cristã (cf. 3Jo 6). [3242] Fee observa que “à luz das tensões devido à
sua recusa em aceitar sustento financeiro quando vivia entre eles
(veja o capítulo 9), isto possui todos os sinais de uma oferta de paz
nesta questão”. Ao pedir a ajuda dos coríntios para suas viagens, o
apóstolo lhes oferece uma oportunidade de participarem
financeiramente de seu ministério. [3243] Paulo não desejava ser
sustentado pelos coríntios enquanto vivia entre eles, mas não tinha
restrições neste caso, em que os coríntios poderiam contribuir com
ele de forma pontual.
“[Porque] [3244] Desta vez não quero apenas vê-los e fazer uma
visita de passagem; espero ficar algum tempo com vocês, se o
Senhor permitir” (v.7). Paulo deixa clara sua intenção de passar
maior tempo com eles. “Se o Senhor permitir” [3245] reforça o que
Paulo disse no v.6, “aonde quer que eu vá”: no mundo antigo havia
muitos outros fatores que poderiam atrasar, impedir ou obrigar o
viajante a reprogramar seu itinerário e seu cronograma. Paulo deixa
seus planos nas mãos do Senhor (uma atitude que reflete Tiago
4:13-16; cf. At 18:21; Hb 6:3). [3246] O realismo de Paulo quanto às
incertezas de viagem e sua dependência do Senhor foram mais
tarde interpretados pelos coríntios como leviandade e inconstância
(cf. 2Co 1:17). Paulo normalmente expressa incerteza quando fala
de seus planos de viagem: ele usa expressões como “eu espero”
(Rm 15:24; Fp 2:19, 23; 1Tm 3:14; Fm 22), “se o Senhor permitir”
(1Co 4:19; 16:7), “confiando no Senhor que” (Fp 2:24). [3247]
“Saúdem-se uns aos outros com beijo santo”: o beijo tem sido
descrito como um sinal de respeito, afeição e reconciliação, não
apenas no judaísmo e no cristianismo, mas no mundo antigo em
geral. [3331] O “beijo santo” (φιλήματι ἁγίῳ) é também mencionado
em Romanos 16:16, 2Coríntios 13:12, 1Tessalonicenses 5:26 e
1Pedro 5:14 (φιλήματι ἀγάπης, literalmente, “beijo de amor”). O
adjetivo “santo” traz a ideia de afeição, fraternidade, respeito e
honra (cf. At 20:37). [3332]
O fato de Paulo ordenar aos coríntios que saúdem “uns aos
outros com beijo santo” provavelmente expressa a ideia do beijo
cristão como sendo “a celebração da unidade, solidariedade e
mutualidade em Cristo que transcende todas os limites de classe,
gênero, ou raça”. [3333] Paulo não apenas lhes envia saudações,
mas os encoraja a manifestar carinho e apreço uns pelos outros em
Corinto.
Outras Referências
Rogers Jr, Cleon e Rogers III, Cleon. The New Linguistic and
Exegetical Key to the Greek New Testament. Grand Rapids:
Zondervan, 1998.
Wright, Tom (N. T.). How God Became King. London: SPCK,
2012.
Email: olavojaribeiro@gmail.com