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Finalmente – uma declaração coerente do atual pensamento dispensacionalista,
que deixa os erros zelosos de Scofield e as guerras Allis-Ladd-Walvoord para trás.
A obra apresenta uma hermenêutica fundada na intenção autoral em vez de um
literalismo ingênuo, unidade e diversidade nas alianças bíblicas, aliança davídica
assim como a nova aliança inauguradas por Jesus, e uma estrutura baseada no
reino para entender o dispensacionalismo progressivo. É uma cuidadosa
apresentação de um sistema verdadeiramente bíblico-teológico, uma referência
para futuras discussões.
Gerry Breshears, Professor de Teologia, Western Seminary

Este excelente trabalho escrito por Blaising e Bock apresenta um forte caso para
refinamentos significativos que existem no dispensacionalismo progressivo.
Também provê uma esplêndida sequência para Dispensationalism, Israel and the
Church, editado pelos mesmos autores. Recomendo fortemente.
Kenneth J. Barker, Diretor Executivo, NIV Translation Center

Com seu último trabalho, Blaising e Bock produziram um tour de force, uma
declaração clara e sem ambiguidade do pensamento de um grande segmento em
crescimento no dispensacionalismo contemporâneo. Independentemente de
cristãos de outras tradições (até mesmo companheiros dispensacionalistas)
aceitarem ou não as premissas e conclusões teológicas desta obra em cada um de
seus aspectos, já não há mais qualquer dúvida quanto ao que é o
dispensacionalismo progressivo e como os dois de seus principais proponentes
argumentam seu caso.
Eugene H. Merrill, Professor de Estudos no Antigo Testamento,
Dallas Theological Studies

Qualquer um que aprendeu o dispensacionalismo nos anos 50 e 60 e pensa que


ele não mudou deveria ler um livro como esse. Blaising e Bock dão um excelente
panorama do que é o chamado dispensacionalismo progressivo.
Paul D. Feinberg, Professor de Teologia Sistemática e Bíblica,
Trinity Evangelical Divinity School
Esse é o trabalho mais erudito e perspicaz já impresso sobre teologia
dispensacionalista. Tenho esperança que aqueles que abraçarem esse sistema
estarão aptos para mudar, crescer e progredir em seu pensamento acerca do
dispensacionalismo.
James C. McHann, Presidente do William Tyndale College

Blaising e Bock deram à comunidade cristã de forma cuidadosa e bíblica um


trabalho esperado por muito tempo. Sua apresentação do governo de Cristo
sobre o reino de Deus nesta era e na era porvir, além da habilidosa revelação da
conexão entre as Alianças, torna este livro obrigatório na leitura profética.
James O. Rose, Pastor Sênior, Calvary Baptist Church (Nova
York)
Copyright © 1993 por Craig A. Blaising e Darrell L. Bock
Traduzido do original em inglês: Progressive Dispensationalism
Publicado por Baker Academic,
a division of Baker Publishing Group,
Grand Rapids, Michigan, 49516, U.S.A.

As citações bíblicas foram retiradas da Almeida Revista e Atualizada (ARA), da Sociedade Bíblica do Brasil,
salvo indicação contrária.
Citações bíblicas com a indicação (BKJ) foram retiradas da Bíblia King James Fiel 1611.
Citações bíblicas com a indicação (NVI) foram retiradas da Nova Versão Internacional
Todas as ênfases nas citações bíblicas foram adicionadas pelos autores.

É proibida a reprodução deste livro sem prévia autorização da editora, salvo em breve citação.

1a edição eletrônica: fevereiro de 2021

TRADUÇÃO
Matheus Fernandes / SIBIMA
Carlos Augusto Pires Dias (Apêndice)
REVISÃO
Yago Martins / SIBIMA
Carlos Augusto Pires Dias
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Vinicius Lima
Beatriz Reder
CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Argemiro Neto
Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477
B635d Blaising, Craig A.
Dispensacionalismo progressivo / Craig A. Blaising,
Darrell L. Bock ; [tradução: Matheus Fernandes, Carlos
Augusto Pires Dias]. – Niterói, RJ: Concílio, 2020

Tradução de: Progressive dispensationalism.


Inclui referências bibliográficas.
ISBN 9786587263021 (brochura)
9786587263038 (epub)

1. Dispensacionalismo. I. Bock, Darrell L.. II. Título.

CDD: 230.046

Publicado no Brasil por EDITORA CONCÍLIO


Copyright © 2021 Editora Concílio
www.editoraconcilio.com.br
contato@editoraconcilio.com.br
SUMÁRIO

Prefácio à edição brasileira

Prefácio à segunda edição americana


Parte um: História
por Craig A. Blaising

1. A extensão e as variedades do dispensacionalismo

Parte dois: Hermenêutica


por Darrell L. Bock

2. Interpretando a Bíblia: como lemos os textos


3. Interpretando a Bíblia: como os textos falam conosco

Parte três: Exposição


por Craig A. Blaising

4. Dispensação na teologia bíblica


5. A estrutura das alianças bíblicas: as alianças antes de Cristo
6. O cumprimento das alianças bíblicas através de Jesus Cristo
7. O reino de Deus no Antigo Testamento
8. O reino de Deus no Novo Testamento
Parte quatro: Teologia e Ministério
por Craig A. Blaising

9. Questões teológicas e ministeriais no dispensacionalismo progressivo


Apêndice
por Darrell L. Bock

O Filho de Davi e o serviço dos santos: a hermenêutica do cumprimento inicial


Por que eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Um dos elementos mais importantes na formulação de um sistema teológico é a


chave hermenêutica adotada pelo intérprete da Bíblia. A chave hermenêutica
pode ser identificada pela maneira como o intérprete relaciona os testamentos da
Bíblia (o Antigo e o Novo) e qual testamento deve estabelecer o contexto para a
interpretação. A tendência geral daqueles que dão prioridade ao Novo
Testamento é de ver mais continuidade entre os testamentos. Normalmente eles
adotarão a prioridade do Novo Testamento sobre o Antigo Testamento, mesmo
quando buscando o significado de um texto no Antigo Testamento. Quando o
pressuposto hermenêutico prioriza o Antigo sobre o Novo Testamento, a chave
interpretativa tenderá a adotar mais descontinuidade entre os testamentos. Por
exemplo, o dispensacionalismo tradicional, o qual não há continuidade alguma
entre Israel e Igreja. Por conseguinte, a Nova Aliança não tem relação com a
Igreja, mas somente com Israel, o reino foi adiado para o futuro, porque as
características do reino encontradas no Antigo Testamento não estão todas
presentes no Novo Testamento, Cristo não está assentado no trono de Davi em
nenhum aspecto. Esse sistema de descontinuidade pode ser escrito com “d”
maiúsculo.
O sistema de continuidade lê o Antigo Testamento à luz do Novo e tenderá a
priorizar este último para estabelecer o contexto para a interpretação. Por
exemplo, a teologia reformada vê Israel substituído pela igreja, o batismo no
lugar da circuncisão, vê continuidade da Lei Mosaica para os crentes do Novo
Testamento. Esse sistema de continuidade pode ser escrito com “c” maiúsculo.
Certamente temos sistemas de continuidade com “c” minúsculo como o sistema
do epangelismo de Walter Kaiser Jr. ou a teologia da nova aliança de George
Ladd. Da mesma forma, dentro do dispensacionalismo tradicional tem algumas
revisões com algumas continuidade, ou melhor dizendo, descontinuidade com
“d” maiúsculo. Pode-se com certa ressalva dizer que Kaiser e Ladd são
reformados na direção dispensacionalista. O dispensacionalismo progressivo em
termos de hermenêutica é dispensacionalista na direção reformada.
A chave hermenêutica dispensacionalista progressivo é marcada por uma
tentativa de evitar priorizar um testamento sobre outro. A maneira de fazê-lo é
colocar cada testamento em seu lugar próprio e priorizar cada testamento na sua
relação consigo e com o progresso da revelação. Noutras palavras, neste livro,
Blaising e Bock propõem uma abordagem intermediária entre aqueles que
enfatizam continuidade (teologias reformadas) entre os testamentos dando
prioridade ao Novo Testamento e aqueles que enfatizam descontinuidade
(teologias dispensacionalistas tradicional/essencialista). Por vezes, os
dispensacionalistas progressivos são taxados pelos dispensacionalistas tradicionais
de reformados, e encontramos teólogos reformados nos taxando de
dispensacionalistas tradicionais. O dispensacionalismo progressivo é uma posição
intermediária que em vez de priorizar um testamento sobre o outro, prioriza o
contexto de cada passagem e depois estabelece sua relação dentro do progresso da
revelação.
O nome dispensacionalismo progressivo derivou-se a partir da predisposição de
seus aderentes em ver o movimento na linhagem da teologia dispensacionalista e
do entendimento das dispensações não como sendo arranjos diferentes entre
Deus e a raça humana, mas como arranjos sucessivos na revelação progressiva e
no cumprimento da redenção, que se move da Descontinuidade para a
continuidade. Por exemplo, você leitor, crê que a igreja é parte da Nova Aliança?
Crê que a aliança davídica já está presente? Crê que o reino de Deus já está
presente em forma incipiente? Você crê que o futuro “ainda não” invadiu a era
presente “já” na primeira vinda de Cristo? Você crê que Israel será salva ou será
restaurada no milênio? Essa e outras perguntas são respondidas em três partes
deste maravilhoso livro. A última parte traz implicações práticas para o
ministério pastoral. Depois de quase 30 anos, posso dizer com satisfação: temos
o primeiro livro sobre a chave hermenêutica chamada dispensacionalismo
progressivo.

Roque N. Albuquerque, Ph.D.


Reitor da Universidade Federal (UNILAB)
Pastor da Igreja Batista do Calvário de Fortaleza
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO AMERICANA

Sete anos se passaram desde a publicação inicial de Progressive Dispensationalism,


e um novo milênio está começando!1 A convergência desses dois eventos é
puramente coincidência, mas a coincidência fornece a ocasião de perguntar qual
contribuição este livro fez ao avanço do entendimento da igreja quanto ao plano
de Deus e qual propósito haveria para a republicação do livro. Ao longo dos
últimos sete anos, o interesse do leitor permaneceu estável. Se fosse simplesmente
por essa única razão, os autores são gratos que a editora Baker tenha escolhido
manter este livro disponível em edição impressa.
Descobrimos que muitos usam esta obra como um livro texto, focando
especialmente na parte 3. Das quatro partes do livro (três partes na edição
anterior), a parte 3, a mais longa, oferece uma exposição das alianças bíblicas e
do Reino de Deus em relação à estrutura paulina da oikonomia (dispensação).
Entretanto, o interesse nos outros ensaios também permanece elevado. Os
leitores comentaram que cada parte do livro é valiosa tanto em sua contribuição
exclusiva a um assunto particular quanto no desenvolvimento panorâmico do
livro. Leitores interessados no método hermenêutico continuam a considerar a
parte 2 como um ensaio legível que relaciona as questões-chave da hermenêutica
canônica. Outros estão interessados na parte 1 por sua definição útil do
dispensacionalismo e seu panorama do desenvolvimento e da história do
movimento. Nesta edição, o capítulo 9 tem sido designado como parte 4,
Teologia e ministério, para chamar atenção a seu conteúdo, que vai além do
propósito dos capítulos na parte 3. Quando reunidas, as diferentes partes do
livro ainda fornecem uma pesquisa completa das questões e dos interesses que
caracterizam o que se tornou conhecido como Dispensacionalismo Progressivo.
Livros e artigos têm sido escritos em resposta ao Dispensacionalismo
Progressivo. Lamentavelmente, muitos desses não ajudaram a promover um
verdadeiro entendimento das continuidades e diferenças entre o
dispensacionalismo tradicional e o progressivo. Uma exceção notável, entretanto,
é o “Three Central Issues in Contemporary Dispensationalism: A Comparison of
Traditional and Progressive Views”, editado por Hebert W. Bateman IV. O leitor
que deseja buscar uma discussão dispensacional dos assuntos levantados por
Dispensacionalismo Progressivo faria bem em consultar essa obra. Além disso,
deve-se notar os seguintes artigos escritos por Darrell Bock que aprofundam a
discussão para além do que foi escrito neste livro: “The Son of David and the
Saints’ Task: The Hermeneutics of Initial Fulfillment”,2 Bibliotheca Sacra 150
(1993): pp. 440-57; “Current Messianic Activity and Old Testament Promise:
Dispensationalism, Hermeneutics, and New Testament Fulfillment”, Trinity
Journal 15 n.s. (1994): pp. 55-87; e “Why I Am a Dispensationalist with a Small
‘d’”,3 Journal of the Evangelical Theological Society 41 (1998): pp. 383-96.
Darrell Bock e eu desejamos expressar nossa apreciação aos editores por
tornarem este livro disponível, e a você, leitor, por escolhê-lo. Oramos para que
este livro traga honra ao Senhor Jesus Cristo e sirva de alguma forma para
promover o conhecimento da sua Palavra.

Craig A. Blaising

1. A primeira edição da obra original foi lançada em 1993. (N. do E.)


2. Disponível no Apêndice A desta edição. (N. do E.)
3. Disponível no Apêndice B desta edição. (N. do E.)
PARTE UM
HISTÓRIA
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 1

A EXTENSÃO E AS VARIEDADES DO
DISPENSACIONALISMO

Dispensacionalismo pode não ser um termo familiar, mas ele designa uma das
tradições mais difundidas e influentes na teologia evangélica de hoje. Se você é
um cristão evangélico, é muito provável que conheça alguns dos que se chamam
dispensacionalistas. E é igualmente provável que você tenha crenças e
interpretações das Escrituras que foram moldadas de alguma forma pelo
dispensacionalismo.
Este livro explica uma mudança significativa que atualmente ocorre nas
interpretações dispensacionalistas das Escrituras. Essa mudança afeta a maneira
como os dispensacionalistas entendem termos bíblicos essenciais, tais como: o
reino de Deus, a igreja no plano redentivo de Deus, a relação entre as alianças
bíblicas, o cumprimento profético e histórico dessas alianças e o ofício de Cristo
nesse cumprimento.
Como veremos, mudanças desse tipo não são inteiramente novas ao
dispensacionalismo. No entanto, certas crenças e ênfases permaneceram
praticamente as mesmas ou variaram apenas levemente ao longo da história
dessas mudanças. Tais crenças constituem a identidade duradoura do
dispensacionalismo, ao mesmo tempo que o processo de repensar e reinterpretar
revela sua vitalidade.
De onde veio o dispensacionalismo? O quão difundido ele é? Quais são suas
características comuns e quais mudanças ocorreram? Este capítulo procura
responder a essas questões. A importância da presente forma do
dispensacionalismo pode ser melhor entendida sob esta ótica, pois somente à
medida que conhecemos de onde viemos e como chegamos até aqui é que
teremos então uma melhor apreciação de onde estamos.
A ASCENSÃO E A PROPAGAÇÃO DO DISPENSACIONALISMO
O dispensacionalismo tomou forma inicialmente no Movimento dos Irmãos no
início do século XIX na Grã Bretanha. O Movimento dos Irmãos enfatizava a
unidade de todos os crentes em Cristo e a liberdade dos cristãos de se reunirem
em seu nome sem levar em consideração as divisões sectárias ou
denominacionais. Eles rejeitaram o papel especial de um clero ordenado, que
perpetuou tais divisões eclesiásticas, e enfatizaram, em vez disso, os dons
espirituais de crentes comuns e sua liberdade, sob a orientação do Espírito, para
ensinarem e admoestarem uns aos outros a partir das Escrituras.
Ao reforçar a integridade e a responsabilidade dos leigos, o movimento
testemunhou uma onda de interesse no estudo bíblico e nas devoções pessoais. O
movimento gerou um grande volume de literatura devocional e expositiva,
levando alguns autores a se tornaram bem conhecidos, incluindo John Nelson
Darby, Benjamim Wills Newton, George Müller, Samuel P. Tregelles, William
Kelly, William Trotter e Charles Henry Mackintosh.
Os escritos dos Irmãos tiveram um enorme impacto no protestantismo
evangélico. Isso é especialmente verdade nos Estados Unidos, onde
influenciaram ministros proeminentes como: D. L. Moody, James Inglis, James
Hall Brookes, A. J. Gordon, J. R. Graves, e C. I. Scofield. Ainda que não
seguissem os Irmãos no que se refere a uma rejeição radical do clero e do
ministério denominacional, eles fundaram um novo fórum ao lado de ministérios
estabelecidos que promoveram a experiência dos Irmãos de se reunir livremente
em Cristo para cultuar e estudar as Escrituras: a Conferência Bíblica.
Começando em 1870 com a popular Conferência Bíblica de Niágara, essas
conferências bíblicas começaram a surgir em várias partes do país, tornando-se o
que foi chamado de Movimento de Conferência Bíblica no início do século XX.
C. I. Scofield, um participante desse movimento, formou um conselho de
professores das Conferências Bíblicas e produziu, através da Oxford Press em
1909, uma Bíblia de referência (segunda edição em 1917) que ficou famosa por
todo os Estados Unidos e ao redor do mundo. A Bíblia de Estudo Scofield estava
repleta de anotações expositivas e teológicas que colocaram uma “Conferência
Bíblica” nas mãos de milhares de cristãos evangélicos. As interpretações
apresentadas nas notas formaram um sistema reconhecível de interpretação
bíblica. Esse sistema logo foi chamado de “dispensacionalismo”, um rótulo que
veio a marcar a tradição que tanto se originou quanto se desenvolveu a partir da
Bíblia de Estudo Scofield.
O termo dispensacionalismo vem da palavra dispensação, que refere-se à forma
distintiva na qual Deus gere ou organiza a relação dos seres humanos consigo.
Tem sido bem comum na história da interpretação bíblica reconhecer diferentes
dispensações nas Escrituras, tais como a de Israel com suas regulações e
cerimônias distintas e próprias, bem como a dispensação da igreja hoje em dia.
Distinguir entre essas diferentes dispensações pode ser útil no entendimento da
complexidade e da diversidade da Bíblia. Entretanto, os dispensacionalistas
tiveram algumas posições distintas acerca dessas dispensações que diferiram da
maioria dos outros intérpretes das Escrituras. Por causa disso, eles eram
especialmente marcados com o rótulo do dispensacionalismo, ao passo que outros
que se referiam a diferentes dispensações nas Escrituras não foram. Trataremos
sobre essas distinções nas seções seguintes deste capítulo.
Através das conferências bíblicas e da Bíblia de Estudo Scofield, o
dispensacionalismo veio a caracterizar os pontos de vistas e as crenças de um
grande círculo do evangelicalismo americano, espalhado por todo protestantismo
popular. Entretanto, foi especialmente concentrado nos círculos presbiterianos,
batistas e congregacionais. Quando veio à tona a luta entre fundamentalistas e
modernistas, os dispensacionalistas ficaram do lado fundamentalista, e sua ênfase
ecumênica contribuiu para que houvesse coesão no movimento fundamentalista.
Conforme os fundamentalistas passaram a estabelecer novas igrejas e novas
denominações em reação ao controle modernista sobre as igrejas tradicionais, o
dispensacionalismo tornou-se uma característica predominante em alguns desses
grupos. Esses incluíam, por exemplo: a General Association of Regular Baptist
Churches [Associação Geral das Igrejas Batistas Regulares], a Conservative Baptist
Association [Associação Batista Conservadora], a Fellowship of Grace Brethren
Churches [Irmandade das Igrejas dos Irmãos] e as Independent Fundamentalist
Churches of America [Igrejas Fundamentalistas Independentes da América].
Algumas das escolas associadas com essas igrejas se tornaram bem conhecidas
por ensinar o dispensacionalismo. Entre elas estão o Grace College e o Grace
Theological Seminary, o Northwestern College, o Grand Rapids Baptist Seminary e
o Western Conservative Baptist Seminary (agora Western Seminary). O
dispensacionalismo também foi ensinado (ainda que não exclusivamente) no
Denver Seminary (antigamente Denver Conservative Baptist Seminary). Ao longo
dos anos, algumas dessas escolas se tornaram mais conscientemente “evangélicas”
do que fundamentalistas, e o dispensacionalismo que ensinavam também sofreu
mudanças.
O dispensacionalismo também foi bem representado em outras
denominações, tais como a Evangelical Free Church of America [Igreja Evangélica
Livre da América]. Teólogos dispensacionalistas ensinaram em Trinity College e
Trinity Evangelical Divinity School. A Christian and Missionary Alliance [Aliança
Cristã e Missionária], do movimento de santidade, defendeu as posições
dispensacionalistas. Da mesma forma, o dispensacionalismo também impactou
igrejas pentecostais e carismáticas.
Várias escolas bíblicas, institutos, faculdades e seminários ensinaram o
dispensacionalismo. O Moody Bible Institute, fundado através do ministério
reavivalista de D. L. Moody é um exemplo bem conhecido. O Bible Institute of
Los Angeles, fundado nos moldes de Moody, é agora Biola University e inclui a
Talbot School of Theology. O Philadelphia College of Bible e Dallas Theological
Seminary foram produtos diretos do movimento de conferências bíblicas. Os
alunos formados no Dallas Seminary têm composto muitas das escolas
dispensacionalistas citadas acima e também fundaram outras, incluindo, por
exemplo, o Multnomah Bible College/Biblical Seminary e o William Tyndale
(antigo Detroit Bible College).
Não somente os formados por essas escolas ministraram nas associações e
denominações já mencionadas (incluindo algumas igrejas principais), mas
também estabeleceram e pastorearam um bom número de igrejas bíblicas
independentes, de forma que o Movimento Bible Church reflete principalmente
uma exposição dispensacional das Escrituras na maioria das vezes.
Nesse século, a mídia de transmissão ajudou a destacar os ministérios de
pastores proeminentes, alguns dos quais ensinavam as visões dispensacionalistas.
Dentre eles, para nomear somente alguns, o falecido Donald Grey Barhouse
(presbiteriano), W. A. Criswell, Adrian Rogers, Charles Stanley (Batista do Sul)
e Chuck Swindoll (Igreja Evangélica Livre). Os ministérios populares no rádio
com uma visão dispensacionalista das Escrituras incluíram o falecido Charles
Fuller e a “Old Fashioned Gospel Hour” [“A hora do evangelho à moda antiga”]
(que levou à fundação do Fuller Theological Seminary – apesar de hoje em dia ser
amplamente evangelical, o corpo docente inicial do Fuller incluía os bem
conhecidos dispensacionalistas Wilber Smith e Everett Harrison), o falecido
M. R. DeHaan e Richard DeHaan no “Radio Bible Class” [“Classe bíblica do
rádio”], o falecido Theodore Epp e Warren Wiersbe no “Back to the Bible” [“De
volta à Bíblia”], o falecido J. Vernon McGee com “Through the Bible” [“Através
da Bíblia”], o “Old Time Gospel Hour” [“A hora do evangelho dos tempos
antigos”] de Jerry Falwell e o “Insight for Living” [“Insights para viver”] de Chuck
Swindoll.
Os dispensacionalistas participaram e encorajaram a fundação de
organizações missionárias (como a Central American Mission, fundada por C. I.
Scofield) e ministérios paraeclesiásticos (como o Young Life [Alvo da Mocidade],
fundado por Jim Rayburn). Os dispensacionalistas ministraram com a Campus
Crusade for Christ [Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo], os Navigators,
a Youth for Christ [Mocidade para Cristo] e a InterVarsity Christian Fellowship.
Temas dispensacionalistas surgiram em alguns dos materiais de ensino desses
ministérios. Além disso, alguns dos mais famosos evangelistas, incluindo Billy
Graham, afirmaram e ensinaram pontos de vistas dispensacionalistas.1
Em resumo, é possível encontrar tanto ministros quanto leigos que
compartilham de visões dispensacionalistas das Escrituras na maioria das
denominações protestantes, agências missionárias e ministérios paraeclesiásticos
em graus variados. Desde sua apresentação nas conferências bíblicas até os dias
de hoje, o dispensacionalismo se expandiu para se tornar uma das expressões
mais comuns do cristianismo evangélico.
O dispensacionalismo não é um movimento monolítico; hoje em dia há uma
diversidade em suas várias questões de interpretação. Entretanto, existem
algumas características amplas que unem esses diversos elementos em uma
tradição comum. Juntas, essas características fornecem uma definição descritiva
do dispensacionalismo.
CARACTERÍSTICAS COMUNS DA TRADIÇÃO DISPENSACIONALISTA
Autoridade das Escrituras. Desde o início do Movimento dos Irmãos, passando
pelas Conferências Bíblicas Americanas, a Bíblia de Estudo Scofield, os institutos
bíblicos, as faculdades e seminários, até os ministérios populares de exposição nas
igrejas e movimentos paraeclesiásticos, o dispensacionalismo tem sido conhecido
como um movimento de exposição bíblica. Ele tem produzido vários expositores
populares das Escrituras que não somente ajudaram a difundir o
dispensacionalismo, mas têm impactado grandes porções do evangelicalismo.
Os dispensacionalistas têm sustentado a crença de que a Bíblia é a única
revelação verbal e inerrante de Deus disponível para a igreja hoje, e que provê
uma fundação firme para a vida e a fé cristã. Eles acreditam que as ideias e
interpretações dispensacionalistas ajudam as pessoas a entender a Bíblia e a
torná-la mais inteligível, permitindo que se apropriem das Escrituras em suas
vidas cotidianas com um melhor conhecimento. Além do mais, o sistema
dispensacionalista com a sua forma de relacionar as diversas partes da Bíblia
ofereceu às pessoas um senso de respostas aos ataques feitos à integridade das
Escrituras pelo liberalismo teológico.
O movimento de conferências bíblicas foi um esforço para tornar a Bíblia
uma base segura para o ecumenismo evangélico – um ecumenismo que não era
visto como estrutural, administrativo ou denominacional, mas um ecumenismo
de fé, esperança e amor. Escolas e ministérios interdenominacionais têm tentado
manter essa visão em variados graus, visão que ajudou a contribuir com uma
noção de identidade evangélica em alguns setores do evangelicalismo.
Os dispensacionalistas, é claro, não eram os únicos evangélicos a enfatizar a
autoridade da Bíblia. Porém, sua visão transdenominacional e sua orientação
prática de ministério expositivo fez da ênfase nas Escrituras um selo do
movimento, que continua até os dias de hoje.

Dispensações. A palavra dispensação refere-se ao arranjo particular pelo qual


Deus regula a forma como os seres humanos se relacionam com ele. 2 O
dispensacionalismo acredita que Deus planejou uma sucessão de diferentes
dispensações ao longo da história – passada, presente e futura. Além do mais, os
dispensacionalistas acreditam que essas dispensações são reveladas nas Escrituras,
tanto na história quanto nas profecias bíblicas. Entender essas dispensações, essas
diferentes relações que Deus teve e terá com a humanidade, é crucial para a
compreensão do ensino e da mensagem da Bíblia.
Naturalmente, uma preocupação principal para nós hoje é o nosso próprio
relacionamento com Deus. Como resultado, uma exposição dispensacional das
Escrituras enfatizará especialmente a presente dispensação e a forma que as
Escrituras lidam explicitamente com ela. Então, procuramos interpretar outras
porções das Escrituras à luz das dispensações as quais elas pertencem ou das quais
elas falam. Compreendemos melhor como esses textos das Escrituras se
relacionam conosco quando sabemos como tais dispensações se relacionam ou
diferem da nossa própria. Consequentemente, entender as dispensações é crucial
para entender como o todo das Escrituras se relaciona com a prática e a fé
cristãs.3
Por exemplo, suponha que falemos da antiga dispensação que cobriu o
relacionamento de Israel com Deus sob a aliança mosaica. Então, falemos da
presente dispensação que se refere à igreja, o corpo de Cristo, primeiramente
constituída como tal pelo próprio Cristo no dia de Pentecostes logo após sua
ascensão aos céus. Falemos, só então, da dispensação futura como o arranjo da
relação de Deus com a humanidade depois do retorno de Cristo à terra.
Praticamente todo o Antigo Testamento foi escrito sob a antiga dispensação – e
a maior parte dele se refere a ela – como já definimos. Boa parte do Novo
Testamento refere-se à presente dispensação. Porém, encontramos profecias
tanto no Antigo quanto no Novo Testamento que falam da futura dispensação.

Além disso, quando um cristão de hoje lê o Antigo Testamento, o ajuda muito


saber que ele está lendo uma literatura que fala diretamente sobre Israel e seu
relacionamento com Deus sob a antiga dispensação. Deus ordenou certas formas
de culto. Ele instruiu especificamente Israel sobre a política nacional relacionada
aos eventos no primeiro e no segundo milênio a.C.
Deus, é claro, é o Deus eterno. Estamos lidando com o mesmo Deus
atualmente. Portanto, há muitas lições a serem aprendidas a partir do modo
como Deus se relacionou com seu povo na antiga dispensação. O Novo
Testamento nos guia aqui. Ele também revela o fato que o relacionamento de
Deus com a igreja difere em alguns aspectos significativos da dispensação com
Israel. Na presente dispensação, Deus está abençoando igualmente judeus e
gentios com certas bênçãos do Espírito Santo em uma medida que ele só
prometera na antiga dispensação. Isso inclui, por exemplo, a habitação
permanente do Espírito Santo. Existem também novas formas de adoração
(como Jesus revelou à mulher samaritana em Jo 4.21, 23). Consequentemente,
embora existam semelhanças, também existem diferenças importantes entre a
igreja e o Israel do Antigo Testamento. Compreender as diferentes dispensações
ajuda o leitor das Escrituras a saber como lidar com a leitura do Antigo
Testamento.
As dispensações são estruturadas por várias alianças que Deus fez ou
prometeu. Uma vez que a Bíblia tem muito a dizer acerca dessas alianças, um
entendimento dispensacional das Escrituras terá ênfase especial sobre elas. Neste
livro, examinaremos tanto as dispensações quanto as alianças nos capítulos 4-6.

Singularidade da Igreja. Tradicionalmente, o dispensacionalismo sempre viu a


igreja como uma dispensação distintamente nova na história bíblica. A igreja
encontra as suas origens históricas no “evento Cristo” – que é a morte, a
ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo – e particularmente no “batismo do
Espírito”, o qual Cristo concedeu igualmente aos crentes judeus e gentios desde a
festa do Dia de Pentecostes, logo após sua ascensão.
O que torna a igreja uma nova dispensação são essas bênçãos do Espírito Santo
que são qualitativamente diferentes das bênçãos do Espírito Santo no Antigo
Testamento. Também contribui para a singularidade da igreja o fato de que essas
bênçãos são dadas igualmente aos judeus e aos gentios. Além do mais, nesta
dispensação, Deus não está concedendo certas bênçãos políticas e materiais na
mesma medida que prometeu na aliança com Israel (com implicações para as
nações). A profecia bíblica prediz essas bênçãos para uma futura dispensação a
ser estabelecida quando Cristo retornar à terra.
Entender a singularidade da igreja ajuda os cristãos a interpretar de forma
inteligível tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. Saber, por exemplo, que
crentes em Cristo são selados com o Espírito Santo, assegura-lhes de sua
habitação permanente e ajuda-os a não se assustar com a oração de Davi
(Sl 51.11), onde ele suplica para que o Espírito Santo não seja retirado dele. Eles
podem entender a oração de Davi no contexto histórico da dispensação na qual
Davi se relacionou com Deus.
Ao mesmo tempo, as Escrituras falam das bênçãos do Espírito Santo nesta
dispensação como um penhor, uma entrada, em direção a nossa redenção
completa no futuro (Ef 1.13-14). Essa progressão qualitativa da experiência de
Davi com o Espírito Santo para a nossa própria dispensação, e então para a
futura dispensação, mostra como as dispensações simplesmente não seguem ou
substituem umas às outras, mas, na verdade, progridem para um objetivo
escatológico futuro.

Significado Prático da Igreja Universal. Os dispensacionalistas sempre


sustentaram a crença de que a realidade da igreja deve ser encontrada em Cristo,
e que essa realidade transcende as divisões denominacionais que separam os
cristãos uns dos outros.
O Movimento dos Irmãos começou como reuniões abertas de cristãos que
tinham comunhão uns com outros somente no nome de Cristo, sem referência
às autoridades denominacionais ou membresias. Entretanto, uma parte do
movimento, conhecido como Exclusive Brethren [Irmãos Exclusivos], passou a
considerar suas reuniões locais como o verdadeiro cristianismo em contraste às
outras igrejas e denominações. Essa exclusividade se estendeu até mesmo ao
ponto de excomungar outras assembleias de Irmãos por conta de assuntos
triviais. Como resultado, o ecumenismo inicial do movimento foi grandemente
diminuído, ou perdido quase que inteiramente.
O que foi perdido no Movimento dos Irmãos foi buscado no Movimento das
Conferências Bíblicas Americanas. Porém, era necessário uma visão diferente da
igreja. Enquanto os Irmãos focavam sua atenção na igreja local, os líderes das
conferências bíblicas buscavam delinear um significado prático da igreja
universal – o corpo de Cristo que transcende igrejas locais e denominações. As
conferências bíblicas tinham uma comunhão cristã visível e tangível baseada
somente na realidade da igreja universal. Não poderiam e nem tentaram
substituir a comunhão e o ministério da igreja local.
O dispensacionalismo americano tem sido uma força vigorosa na busca e no
encorajamento de ministérios que destacam um significado prático à igreja
universal e, portanto, dão uma expressão tangível à verdadeira unidade cristã, a
qual transcende ministérios denominacionais e igrejas locais. Esse movimento
inclui muitas organizações missionárias e ministérios evangelísticos e de
discipulado paraeclesiásticos. Também estão incluídos institutos bíblicos
interdenominacionais, faculdades e seminários que continuam com os ideais das
Conferências Bíblicas no treinamento ministerial e de leigos.
O verdadeiro espírito do dispensacionalismo americano não veria esses
ministérios como concorrentes e nem como parte do ministério da igreja local,
mas sim como um complemento à igreja local. Evidentemente, a prática às vezes
difere do ideal, mas o ideal continua sendo um objetivo, cuja visão precisa ser
renovada.
O fundamentalismo inicial também afirmou uma identidade evangélica
ecumênica, embora afirmasse essa identidade em oposição consciente ao
modernismo. Entretanto, eventualmente, o fundamentalismo se voltou contra si
mesmo, praticando graus de separação, fraturando e dividindo a unidade inicial.
O dispensacionalismo sofreu dos mesmos efeitos; alguns dispensacionalistas
perderam de vista os valores práticos de um diálogo bíblico intra-evangélico.
Como alguns outros evangélicos, eles recorreram ao isolamento e à separação,
traindo uma convicção inicial no Espírito de Cristo que guia o corpo de Cristo
no conhecimento das Escrituras.
Nos últimos anos, no entanto, tem havido sinais positivos dentro do
evangelicalismo de apreciação e afirmação mútuas, contribuindo para curar
algumas das feridas e divisões decorrentes das eras fundamentalista e pós-
fundamentalista. Há sinais de que os dispensacionalistas de hoje em dia também
estão começando a reafirmar o valor positivo do diálogo evangélico e bíblico.
Significado da Profecia Bíblica. O dispensacionalismo entende que o
significado histórico das profecias bíblicas são relevantes para entender o
propósito de Deus na terra e para seus habitantes humanos. Há outras tradições
teológicas que interpretam as profecias bíblicas quase que exclusivamente em
relação ao atual ministério de Cristo na igreja ou à experiência pessoal de
salvação do crente. O dispensacionalismo, entretanto, interpretando essas
profecias de uma forma mais “literal”, sempre esperou que as bênçãos futuras de
Deus incluíssem aspectos políticos, nacionais e terrenos da vida. Muitas dessas
bênçãos pertencem a uma futura dispensação que será marcada pelo retorno de
Cristo à terra.
Como resultado, a tradição dispensacionalista ofereceu um conceito mais
amplo de redenção do que os encontrados em outras teologias. A redenção se
estende tanto a níveis políticos e nacionais, quanto à renovação espiritual.
Entretanto, ao mesmo tempo, o dispensacionalismo inicial também adotou um
dualismo forte que dissociou essas características proféticas amplas de redenção
das bênçãos da igreja. Consequentemente, os aspectos mais amplos de redenção
eram efetivamente irrelevantes à igreja. Como resultado, para alguns
dispensacionalistas, muitas das profecias da Bíblia tendem a ser mais um objeto
de curiosidade do que um aspecto vital da esperança cristã. Esse tipo de
dispensacionalismo pouco restringiu (e até mesmo contribuiu para) as tendências
sensacionalistas do apocalipticismo popular.
Houve uma gradual revisão do dualismo do dispensacionalismo inicial, como
veremos na próxima seção. Também houve uma reação ao excesso de
sensacionalismo apocalíptico. Isso não significa que a profecia possua uma
importância menor. Pelo contrário, tornou-se muito mais relevante para a atual
fé e a esperança da igreja.

Pré-milenismo Futurista. O dispensacionalismo é uma forma de pré-


milenismo, isto é, ele defende a crença de que Cristo retornará para esta terra e
reinará por mil anos. Como a maioria dos pré-milenistas, os dispensacionalistas
interpretam a profecia bíblica dizendo que Cristo retornará durante um período
problemático, tradicionalmente chamado de “a tribulação”. Entretanto,
diferentemente da maioria dos pré-milenistas, a maioria dos dispensacionalistas
tem defendido a doutrina do arrebatamento pré-tribulacionista – a doutrina de
que Cristo virá para a igreja antes da tribulação, ressuscitando os mortos em
Cristo, transladando os crentes vivos para a vida imortal e então levando a igreja
com ele ao céu antes de seu retorno milenar, onde reinará de modo visível as
nações da terra.
Devido ao fato de crerem que a igreja não estará na terra durante a
tribulação, os dispensacionalistas têm tradicionalmente rejeitado as tentativas de
identificar os eventos presentes como os cumprimentos das profecias da
tribulação. Dessa forma, o dispensacionalismo deve ser classificado como uma
forma de pré-milenismo “futurista”. Eles acreditam que os eventos da tribulação
se cumprirão em algum tempo no futuro (isto é, depois do arrebatamento), se
opondo à visão “historicista” que acredita que tais eventos estão sendo
cumpridos nos dias de hoje.
Ao mesmo tempo, no entanto, alguns dispensacionalistas foram atraídos e
levaram adiante as interpretações historicistas do apocalipticismo popular
religioso. Os eventos no mundo pós-guerra pareciam seguir algumas
interpretações dispensacionalistas acerca dos movimentos políticos e militares
vislumbrados em Daniel e Apocalipse. Como resultado, na segunda metade do
século XX, as linhas entre o futurismo e o historicismo enfraqueceram. Os
escritos de Hal Lindsay (Late Great Planet Earth [1970], There’s a New World
Coming [1973] e The 1980’s: Countdown do Armagedom [1980]) são típicos da
forma dispensacionalista de historicismo. Porém, teólogos ainda mais respeitados
se aventuraram nessa direção, tais como John Walvoord (Armageddon, Oil and
the Middle East Crisis; [1974, rev. ed. 1990]) e Charles Ryrie (The Living End,
[1976]).
Um dos resultados do pré-milenismo futurista é a abstenção do
estabelecimento de datas para a segunda vinda de Cristo. Um fator importante
na difusão do dispensacionalismo nos Estados Unidos na segunda metade do
século XIX foi o fato de que ele ofereceu um pré-milenismo que evitou a
hermenêutica de data estabelecida do movimento adventista milerita. William
Miller se distinguiu ao alegar ter discernido a data do retorno de Cristo. Quando
Cristo falhou em aparecer pelos cálculos de Miller, os pré-milenistas, de modo
geral, sofreram desgraça. O dispensacionalismo se salvou ao rejeitar a
hermenêutica milerita. Entretanto, as linhas ofuscadas entre o historicismo e o
futurismo em alguns setores do dispensacionalismo do final do século XX
levaram a uma aproximação perigosa do mesmo erro.4

O retorno iminente de Cristo. Nas conferências bíblicas e proféticas do final do


século XIX, o retorno iminente de Cristo significava a crença no pré-milenismo.
O pós-milenismo ensinava que o retorno de Cristo estava a pelo menos mil anos
além, depois da igreja ter terminado a tarefa de cristianizar o mundo. Já os pré-
milenistas criam que Cristo retornaria antes do milênio, que ele retornaria em
um tempo de angústia e que o tempo presente evidenciava problemas suficientes
para ele voltar a qualquer momento.
Historicistas e dispensacionalistas pré-milenistas também tiveram grande
interesse nas descrições apocalípticas da tribulação antes da volta de Cristo à
terra. Os dispensacionalistas interpretavam as cronologias apocalípticas em
Daniel e Apocalipse como significando que Cristo retornará à terra para
governar as nações após uma tribulação de sete anos.5
Uma vez que os dispensacionalistas eram futuristas, acreditando que a
tribulação se daria completamente no futuro, eles acreditavam,
consequentemente, que a volta do Senhor à terra estava pelo menos a sete anos
de diferença. Porém, os dispensacionalistas também acreditavam que Cristo viria
para a igreja antes da tribulação e que essa vinda ocorreria literalmente a
qualquer momento. Consequentemente, quando os dispensacionalistas falavam
de iminência, falavam primariamente do arrebatamento pré-tribulacionista. Pela
insistência de Arno Gaebelein, C. I. Scofield e outros contemporâneos à virada
do século, a iminência veio a ser definida exclusivamente pela doutrina do
arrebatamento pré-tribulacionista.
A maioria dos dispensacionalistas atuais se apegaram a esse arrebatamento.
Em seu livro de 1976, Blessed Hope and the Tribulation, John Walvoord
reconheceu a existência do dispensacionalismo pós-tribulacionista. Apesar de não
ser uma doutrina de iminência para os padrões posteriores, ainda assim manteve
a proximidade da vinda de Cristo e foi reconhecida como uma variante dentro da
tradição dispensacional.
Um Futuro Nacional Para Israel. Uma das características mais bem conhecidas
da tradição dispensacionalista é a crença em um futuro para o Israel nacional.
Esse futuro inclui pelo menos o reino milenar de Cristo e, para alguns
dispensacionalistas, se estende também até o estado eterno. Por causa dessa forte
crença, alguns dos primeiros dispensacionalistas, como W. E. Blackstone,
tiveram um importante papel em obter apoio para o movimento sionista. Isso
acabou desembocando, nos dias de hoje, nas atividades políticas pró-Israel de
Jerry Falwell e Pat Roberson.
Embora nem todos os dispensacionalistas tenham apoiado fortemente o
movimento sionista moderno, eles tradicionalmente sustentam que as profecias a
respeito da restauração política, nacional e das bênçãos de Israel serão cumpridas
na próxima dispensação. E embora outras teologias também chegaram ao ponto
de considerar seriamente o futuro de Israel, isso se deve geralmente à insistência
dos dispensacionalistas que sempre fizeram do Israel nacional uma característica
proeminente da sua interpretação bíblica.
FORMAS DO DISPENSACIONALISMO
As oito características anteriores constituem as preocupações existentes e ênfases
que caracterizam a tradição dispensacionalista, entretanto, o dispensacionalismo
não tem sido uma tradição estática. Não houve nenhum credo padrão
congelando seu desenvolvimento teológico em algum ponto arbitrário na
história.6 À medida que o dispensacionalismo se desenvolveu, as características
mencionadas anteriormente têm sido confirmadas através das dinâmicas de
renovação da interpretação bíblica. A evidência dessa continuidade testifica em
favor da força da tradição dispensacionalista.
Entretanto, essa mesma continuidade nas dinâmicas de estudo bíblico
modificaram as formas nas quais algumas das características acima têm sido
entendidas. Embora não seja fácil classificar todas as diferenças entre os vários
teólogos dispensacionalistas, três formas amplas do pensamento
dispensacionalista podem ser identificadas. Elas precisam ser entendidas para que
apreendamos a história da tradição.7
Usaremos a designação dispensacionalismo clássico para nos referirmos às ideias
dos dispensacionalistas americanos e britânicos a partir dos escritos de John
Nelson Darby, o primeiro teólogo do Movimento dos Irmãos inicial, e também
aos oito volumes da Teologia Sistemática de Lewis Sperry Chafer, o fundador e
primeiro presidente do Dallas Theological Seminary. Os comentários da Bíblia de
Estudo Scofield podem ser consideradas uma chave representativa do
dispensacionalismo clássico, apesar de existirem vários pontos que diferentes
dispensacionalistas desse período iriam diferir. A designação dispensacionalismo
foi primeiramente aplicada às interpretações oferecidas na Bíblia de Estudo
Scofield, funcionado como um ponto de referência para o desenvolvimento
futuro da tradição.
O dispensacionalismo revisado designa as ideias dos escritos dos teólogos
dispensacionalistas entre o final dos anos 50 e o final dos anos 70, embora
também se aplique a algumas publicações dos anos 90. A designação revisado é
extraída da revisão da Bíblia Scofield, concluída em 1967, oferecendo visões
muito mais compatíveis com os escritores desse segundo período. Alguns dos
mais bem conhecidos dispensacionalistas revisados incluem Alva J. McClain, John
Walvoord, Charles Ryrie, J. Dwight Pentecost e Stanley Toussaint.
O dispensacionalismo progressivo, tema deste livro, é uma forma mais
contemporânea do pensamento dispensacionalista que se desenvolveu através do
estudo bíblico contínuo das considerações e ênfases da tradição dispensacional.
O dispensacionalismo progressivo oferece várias modificações ao clássico e ao
revisado, deixando o dispensacionalismo mais próximo da interpretação bíblica
evangélica contemporânea. Apesar do nome ser relativamente recente, as
interpretações particulares que perfazem essa forma de dispensacionalismo tem
sido desenvolvida nos últimos quinze anos. Revisões suficientes haviam ocorrido
em 1991 para apresentar o nome dispensacionalismo progressivo na reunião
nacional da Evangelical Theological Society daquele ano. Este presente livro, ao
lado das publicações: Dispensationalism, Israel and the Church: The Search for
Definition e The Case for Progressive Dispensationalism são os principais
representantes desse ponto de vista.8
Ao avaliarmos as diferentes formas de dispensacionalismo, veremos que
algumas das questões que os distinguem são de natureza técnica. Essas questões
só podem ser abordadas resumidamente aqui. Mas o leitor encontrará uma
discussão mais extensa sobre a interpretação bíblica, as diferentes dispensações, as
alianças bíblicas e o reino de Deus nos capítulos seguintes. As páginas seguintes
devem ser lidas em conjunto com esses capítulos.
DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO
O Dualismo Central. Talvez a característica mais importante do
dispensacionalismo clássico é sua ideia dualística da redenção. Para entender a
Bíblia, é preciso reconhecer que Deus está buscando dois propósitos diferentes, um
relacionado ao céu e um relacionado à terra. Esses dois propósitos afetam a forma
como Deus lida com a humanidade. De fato, eles resultam em um dualismo
antropológico: uma humanidade celestial e uma humanidade terrena.
Em outras palavras, um dos propósitos de Deus na redenção era libertar a
terra da maldição da corrupção e da queda, e restaurar sobre ela uma
humanidade livre da morte e do pecado. Esse era o propósito terreno de Deus.
Deus restaurará permanentemente o paraíso perdido na Queda, conferindo
imortalidade à humanidade terrena. Alguns escritores previram essas bênçãos em
termos físicos, incluindo a reprodução para aumentar a plenitude da raça
humana.
É importante entender que no dispensacionalismo clássico essa humanidade
terrena é eterna. Ela primeiramente aparece no milênio (o reinado futuro de
Cristo por mil anos), mas não terá alcançado sua glória eterna até o fim desse
tempo. E então, continuará na nova terra, habitando-a para sempre.
Mas Deus tem um segundo propósito, um propósito celestial que prevê uma
humanidade celestial. Essa humanidade celestial deveria ser composta de todos
os remidos de todas as dispensações que seriam ressuscitados dos mortos.
Enquanto a humanidade terrena diz respeito às pessoas que não haviam morrido,
mas foram preservadas da morte por Deus, a humanidade celestial era composta
de todos os salvos que haviam morrido, os quais Deus ressuscitaria dos mortos.
Pela natureza do caso, a humanidade celestial seria uma comunidade
“transdispensacional”. Todos os salvos das dispensações anteriores estão mortos,
e todos os da presente dispensação anterior a esta geração também estão mortos.
Eles estão, é claro, com o Senhor agora. Porém, sua esperança futura reside na
ressurreição, pela qual receberão plenamente sua salvação celestial em uma
herança celestial.
A humanidade terrena começará com essa geração dos salvos que estão
presentes na terra no retorno do Senhor. Eles serão preservados da morte, como
todos os descendentes que são da fé. Eles não serão ressuscitados dos mortos,
pois nunca estiveram mortos, nem serão transformados em um modo de vida de
ressurreição. Eles são pessoas terrenas e experimentam a salvação terrena que
Deus projetou de acordo com seus propósitos para a terra.
Em resumo, o dualismo central do dispensacionalismo clássico afirma que
Deus está buscando dois propósitos na redenção, um relacionado ao céu com
uma humanidade celestial, e outro relacionado à terra, concernente a uma
humanidade terrena. Ambos os propósitos serão cumpridos e confirmados para
sempre.

As Dispensações. O dispensacionalismo clássico entendia as dispensações como


arranjos diferentes sob os quais seres humanos são testados. Deus planejou o
relacionamento da humanidade consigo mesmo para testar sua obediência a ele.
Nas dispensações passadas, Deus deu promessas com respeito à vida terrena,
mas, a humanidade pecou repetidamente e falharam em obter as promessas em
qualquer sentido duradouro. A presente dispensação da igreja é a primeira
dispensação que claramente apresenta o propósito celestial de Deus. Quando
Cristo for revelado no final desta dispensação, ele confirmará os dois propósitos,
primeiro no milênio, que testa a humanidade uma última vez antes do
julgamento, e então na eternidade.
Uma das diferenças entre a igreja nesta dispensação e o povo de Deus nas
dispensações passadas é que a igreja deve saber que é um povo celestial destinado
a uma herança eterna no céu. Pessoas das dispensações passadas buscaram obter
as promessas terrenas. Elas morreram, no entanto, sem obtê-las. Elas sequer
sabiam de um destino celestial ou estavam vagamente cientes disso. Apesar de
terem falhado em alcançar as promessas terrenas, Deus em sua graça incluirá
aqueles que confiaram nele (isto é, os eleitos) na salvação celestial.
Porém, a igreja deve saber que ela tem um futuro celestial e é chamada para
uma forma celestial de vida. A falha desta dispensação vem quando a igreja pensa
que tem um propósito terreno, quando ela começa a pensar em si mesma como
um povo terreno e torna-se preocupada com coisas terrenas. Tais preocupações
trouxeram o que é chamado de “cristandade” – um fenômeno político-cultural
das nações cristãs ocidentais. O dispensacionalismo clássico via a cristandade
como uma perversão da humanidade pecadora que tenta substituir a si mesma
pela real igreja de Deus. A cristandade, o fracasso humana desta dispensação, será
julgada no retorno de Cristo.9
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO

1. As pessoas terrenas das dispensações passadas falharam em compreender os propósitos terrenos de


Deus. Em vez disso, os salvos serão incluídos nos propósitos celestiais de Deus quando esse propósito
for cumprido.
2. Muitos dispensacionalistas clássicos (tais como Scofield) não consideravam o estado eterno como
uma dispensação.

Com esse dualismo central em mente, podemos visualizar as dispensações do


dispensacionalismo clássico da maneira ilustrada acima.10

A Natureza da Igreja. A natureza celestial da salvação da igreja foi interpretada


pelos dispensacionalistas clássicos de uma maneira individualista. As questões
sociais e políticas eram problemas terrenos que não diziam respeito à igreja. A
igreja era uma unidade espiritual encontrada em Cristo, e essa unidade
manifestou-se não somente na união de Cristo, mas na união da salvação pessoal
– a natureza individual da salvação. Os problemas na igreja eram individuais,
privados e espirituais, não políticos, sociais e terrenos.11
Podemos ilustrar isso da seguinte maneira.
A IGREJA COMO UM PARÊNTESES NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO
A natureza celestial, individualista e espiritual da igreja não poderia mais ser
distinta da natureza terrena, social e política de Israel e das nações gentílicas. A
diferença ajudou a ressaltar a conhecida crença dispensacional clássica de que a
igreja é um parênteses na história da redenção, ou seja, a história da redenção
terrena. A igreja não está relacionada a esse propósito terreno e, assim, é como
um parênteses inserido na história. Lewis Sperry Chafer sentiu que o termo
“parênteses” não era o suficiente, então chamou a igreja de intercalação.

De fato, o novo, até agora não revelado propósito de Deus no chamamento


externo de um povo celestial a partir dos judeus e gentios é tão divergente
com respeito ao propósito divino em direção a Israel, cujo propósito o
precedeu e ainda o virá depois, que o termo “parênteses”, comumente
aplicado para descrever uma era-propósito, é impreciso. Uma porção
parentética sustenta alguma direta ou indireta relação a algo que a precede ou
que a segue; mas a presente era-propósito é mais propriamente denominada
como uma intercalação. A adequação dessa palavra será vista pelo fato de que,
assim como uma interpolação é formada ao inserir uma palavra ou frase em
um contexto, assim uma intercalação é formada ao introduzir um dia ou um
período de tempo no calendário. A presente era da igreja é uma intercalação
dentro do calendário revelado ou programa de Deus como esse programa foi
previsto pelos profetas de antes. Tal, de fato, é o caráter preciso da presente
era.12

Interpretação Bíblica. Os dispensacionalistas clássicos interpretaram a Bíblia de


acordo com seu dualismo central. Eles acreditavam que se o Antigo Testamento
fosse interpretado literalmente, então ele revelaria o propósito terreno de Deus
para a humanidade terrena. Entretanto, se fosse interpretado espiritualmente
(eles geralmente usavam o termo “tipologicamente”), então revelaria o propósito
espiritual de Deus para um povo espiritual. O propósito espiritual e o povo
espiritual eram encontrados literalmente revelados no Novo Testamento.
No que diz respeito à interpretação “literal”, os dispensacionalistas clássicos às
vezes falavam de interpretação gramatical e histórica. Alguns deles eram
especialmente habilidosos na gramática e ofereceram comentários úteis sobre o
sentido gramatical das Escrituras. Por interpretação histórica, eles referiam-se às
referências históricas em um texto (isto é, reis, áreas geográficas, cronologia etc.)
ou o arranjo dispensacional do texto.
Nas conferências bíblicas americanas, os dispensacionalistas clássicos
promoveram o que chamaram de “Leituras da Bíblia”, que era uma prática de
juntar textos que lidavam com uma palavra, frase ou tema em comum. Esses
textos eram então lidos um após o outro, e algumas vezes sem muita
consideração pelo contexto. Implicações eram então extraídas a partir desse
exercício.

As Alianças Bíblicas. Os dispensacionalistas clássicos viam a aliança de Deus


com Abraão (em Gn 12 e capítulos seguintes) como a aliança fundamental nas
Escrituras. Uma das promessas que Deus fez a Abraão foi: “Farei dos teus
descendentes como a areia da terra” (Gn 13.16). Os dispensacionalistas clássicos
acreditavam que essa promessa revelava o propósito terreno de Deus para a
humanidade terrena. Antes de tudo, ela prometeu descendentes físicos a Abraão
que se tornariam uma grande nação em um território que Deus especificou. Eles
seriam abençoados acima de todas as nações e mediariam as bênçãos e maldições
de Deus aos povos gentios na terra.
Essa aliança também poderia ser interpretada espiritualmente, entretanto,
para revelar o propósito celestial e o povo celestial de Deus. Deus prometeu a
Abraão, “multiplicarei grandemente sua semente como as estrelas dos céus”
(Gn 22.17). A interpretação espiritual dessa promessa conduziria aos
descendentes espirituais de Abraão – a humanidade celestial. Acreditava-se que o
Novo Testamento segue essa interpretação espiritual quando entende a igreja
como os descendentes de Abraão.
As alianças mosaica, palestina e davídica13 foram todas interpretadas como
alianças terrenas. Elas lidavam com o propósito terreno de Deus, não com o
propósito espiritual/celestial.
A nova aliança (uma aliança profetizada em Isaías, Jeremias e Ezequiel) foi
interpretada primariamente ou somente como uma aliança terrena, embora
tenha prometido que Deus colocaria o seu Espírito no seu povo. Darby
acreditava que, quando apareceu na Bíblia, a nova aliança sempre se referia a
Israel e, consequentemente, não tinha nada a ver com a humanidade celestial de
Deus. Chafer chegou o mais próximo possível de Darby, mas teve que
reconhecer que o Novo Testamento falava de uma “nova aliança” que estava em
vigor para a igreja nesta dispensação. Ele argumentou que essa era uma “nova
aliança” completamente diferente daquela que será feita com Israel. (Da mesma
maneira, argumentou que as bênçãos espirituais que seriam dadas a Israel sob a
nova aliança de Jeremias e Ezequiel seriam distintamente diferentes daquelas
dadas à igreja hoje). Scofield, por outro lado, interpretou a nova aliança da
mesma maneira que ele fez com a aliança abraâmica: literalmente tinha a ver
com o plano terreno de Deus para Israel; espiritualmente ela revelou o plano
espiritual de Deus para a igreja (a bênção do Espírito para Israel em Ezequiel 36
tipificava a bênção do Espírito da igreja). Assim, mesmo que houvesse uma
concordância geral acerca das alianças no dispensacionalismo clássico, sempre
havia diferenças em como os detalhes funcionavam juntos para apoiar a posição
geral.
Os dispensacionalistas clássicos acreditavam que as alianças bíblicas se
cumpririam para a humanidade terrena no milênio e no estado eterno. Uma vez
que as alianças não diziam respeito à humanidade celestial (exceto em um
sentido espiritual ou tipológico), não era apropriado dizer que elas estavam
sendo cumpridas na presente dispensação (exceto de um modo espiritual ou
tipológica).
O DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO E AS ALIANÇAS BÍBLICAS NO CUMPRIMENTO LITERAL
E ESPIRITUAL

O Reino de Deus e o Reino dos Céus. O reino de Deus é um dos temas mais
importantes da Bíblia e ocupa um lugar importante para a interpretação
dispensacional. A visão dispensacionalista clássica mais conhecida sobre o reino é
a de C. I. Scofield. Sua visão depende de uma distinção substancial entre os
termos reino de Deus e reino dos céus. Ele acreditava que o termo reino de Deus,
encontrado nos quatro evangelhos, se referia ao governo moral de Deus no
coração daqueles que se sujeitavam a ele. Este reino é eterno em sua extensão. O
reino dos céus, encontrado no Novo Testamento apenas em Mateus, era tido
como o cumprimento da aliança feita com Davi, na qual Deus prometeu
estabelecer o reino de seu Filho. O reino dos céus começa a aparecer com Jesus
Cristo, um descendente de Davi, culmina no milênio, e se une ao reino de Deus
no estado eterno. (Antes do reino dos céus, encontramos o reino davídico que
fora interrompido pelo tempo dos gentios – o reino dos céus é o cumprimento
escatológico [isto é, “os últimos dias”] do reino davídico.)
Scofield ensinou que o reino dos céus tinha três formas. A primeira se
encontra na pregação de Jesus. O reino dos céus estava presente – ou “próximo”
– na pregação de Jesus. Ele ofereceu o reino a Israel. Porém, Israel o rejeitou,
então foi adiado para um tempo futuro.
O reino dos céus está agora presente na forma misteriosa. Essa forma
misteriosa é a cristandade, a realidade terrena, política e litúrgica, que nomeia
Cristo como seu rei. Duas coisas devem ser observadas aqui: para Scofield, a
forma misteriosa do reino não é a igreja, mas sim a cristandade. Além do mais,
quando Scofield fala da forma misteriosa do reino, ele quer dizer uma forma
misteriosa do reino, isto é, do reino dos céus, o reino da aliança davídica. 14
Assim, a aliança davídica encontra uma forma de cumprimento hoje. Porém,
não é a igreja. Por outro lado, a presença da igreja dá à cristandade qualquer
legitimidade que ela tenha. Consequentemente, a igreja tem alguma ligação com
a atual realidade do reino dos céus.
O reino dos céus será cumprido no milênio. Lembre-se que para Scofield,
como também para os outros dispensacionalistas clássicos, a aliança davídica é
meramente uma aliança política. Ela será cumprida de acordo com seu propósito
terreno, para a humanidade terrena do milênio, isto é, Israel. É claro que, assim
como as promessas são eternas, o cumprimento continua para sempre, mas a
graça glorificadora e preservadora de Deus eliminará a possibilidade de pecado e
rebelião na eternidade. Já que Deus governará moralmente em cada coração no
reino eterno (os não-salvos tendo sido destinados ao inferno), diz-se que o reino
dos céus se unirá ao reino de Deus.
O REINO NO DISPENSACIONALISMO CLÁSSICO (SCOFIELD)
DISPENSACIONALISMO REVISADO
Revisão do Dualismo Central. A revisão mais importante introduzida pelos
dispensacionalistas dos anos 50 e 60 foi o abandono do eterno dualismo da
humanidade celestial e da terrena. Eles não acreditavam que haveria uma
distinção eterna entre uma humanidade no céu e outra na nova terra.
Consequentemente, abandonaram os termos humanidade celestial e terrena. Em
vez disso, reformularam o dualismo em um sentido mais organizacional (mais
próximo do significado do termo dispensação). Havia simplesmente dois grupos
de pessoas. Não mais celestial versus terreno, mas aqueles representados por Israel
e pela igreja. Esses dois grupos incluem diferentes pessoas (uma pessoa poderia
estar somente em um grupo, não em ambos ao mesmo tempo). Eles são
estruturados de formas distintas, com diferentes prerrogativas e responsabilidades
dispensacionais. Mas a salvação que eles receberam – a vida eterna – é a mesma
para ambos, com uma única exceção de que alguns pertencem a um grupo e
outros pertencem a outro. Haverá uma distinção eterna entre Israel e a igreja,
não em tipos metafisicamente distintos de salvação, mas em um tipo nominal – a
igreja sempre é a igreja, Israel sempre é Israel.15

O Estado Eterno. No estado eterno, todos serão ressuscitados dos mortos ou


transformados em um modo de vida ressurreto. Não haverá diferença no tipo de
vida eterna experimentada pela humanidade salva, quer seja Israel ou a igreja. Os
dispensacionalistas revisados diferiram entre si, no entanto, sobre a natureza e a
esfera da vida eterna. Enquanto os dispensacionalistas clássicos colocavam a
humanidade celestial no céu e a humanidade terrena na terra, os
dispensacionalistas revisados colocavam todos os remidos no “céu” ou todos na
nova terra.
Como resultado, há duas concepções diferentes de eternidade no
dispensacionalismo revisado. McClain, Pentecost e Hoyt conceberam a
eternidade como uma vida ressuscitada na nova terra onde a cidade de Deus está
localizada. Para eles, as promessas de um reino eterno na terra são literalmente
cumpridas na terra renovada.
Walvoord e Ryrie, apesar de usarem a terminologia de “nova terra”, na
verdade trabalham com um conceito mais platônico de “céu”, que se aproxima
do conceito de “céu” dos dispensacionalistas clássicos. Eles afirmam que as
promessas acerca de um reino terreno eterno não significam realmente eterno.
Ou, eles dizem que se aplicam apenas ao tempo e à história de tal forma que,
quando o tempo e a história chegarem ao fim, dando lugar à uma eternidade
atemporal, as promessas eternas, que somente se aplicam ao tempo e à história,
serão consideradas como tendo sido cumpridas. O ponto chave em suas mentes é
que as promessas devem estar em um estado de cumprimento no momento em
que o tempo e a história acabarem. Isso leva à um ponto de vista curioso de que
pouco mais de mil anos de posse da terra, mais dois mil anos de desapropriação,
mais uma posse futura de mil anos de toda terra logo antes do tempo e da
história acabarem, seriam iguais a uma posse eterna da terra!
Ryrie fala de Israel sendo levado aos céus no final do milênio no mesmo livro
em que alegou interpretar as Escrituras de uma maneira consistentemente literal.
Os dispensacionalistas clássicos, no entanto, argumentaram que somente uma
interpretação espiritual colocaria o futuro eterno de Israel no céu.

As Dispensações. Os dispensacionalistas revisados preservaram a maior parte da


estrutura do dispensacionalismo clássico sobre este lado da eternidade. Eles
geralmente mantinham a divisão das dispensações de Scofield. Eles distinguiram
entre os propósitos de Deus nas dispensações anteriores à Graça (as dispensações
anteriores à igreja), o propósito de Deus na dispensação da Graça (a igreja) e o
propósito de Deus na dispensação do reino (o milênio). Antes da presente
dispensação, Deus estava buscando seu propósito para Israel e as nações. Esse
propósito é político, nacional e territorial. Mas também era espiritual. Deus
concedeu vida eterna aos que eram da fé. Na presente dispensação, Deus está
buscando somente um propósito individual e espiritual. O propósito espiritual é
o mesmo que foi dado a Israel no passado e no futuro, exceto por alguns
ministérios do Espírito, tais como o batismo, o selo e a habitação permanente.
Além disso, a estrutura da igreja é única nesta dispensação (por exemplo, ofícios
e ministérios), e ela tem um relacionamento dispensacional singular com Cristo.
Ela se relaciona com o Cristo que está nos céus, não com o Cristo que virá ou
com o Cristo na terra. Ele é o Cabeça dela, não seu rei, visto que a igreja não é
uma entidade política e nacional.
Juntando as características acima, podemos visualizar as posições revisadas do
dispensacionalismo como indicadas nas tabelas das páginas 43 e 44.

A Natureza da Igreja. Assim como os dispensacionalistas clássicos, os revisados


viam a igreja como uma entidade espiritual. A salvação e a santificação eram
vistas primariamente de uma maneira individualista. Pouco pensamento foi dado
à natureza social da igreja. Entretanto, no começo dos anos 70, o movimento
Body Life começou com a forte liderança do dispensacionalista Ray Stedman.16
Os dispensacionalistas começaram a considerar a natureza comunitária da igreja.
Gene Getz também contribuiu para essa mudança de perspectiva ao enfatizar os
mandamentos “uns aos outros” do Novo Testamento.17 O resultado foi uma
modificação gradual da visão altamente privada do cristianismo no
dispensacionalismo primitivo.18
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO REVISADO
1. VISÃO DO CUMPRIMENTO CELESTIAL

AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO REVISADO


2. VISÃO DO CUMPRIMENTO DA NOVA TERRA
Interpretação Bíblica. Os dispensacionalistas revisados continuaram com a
ênfase dos dispensacionalistas clássicos acerca da interpretação literal da profecia.
Eles falaram da interpretação gramatical e histórica das Escrituras e continuaram
com a hermenêutica da “Leitura da Bíblia” na maneira como ensinavam e
apresentavam temas teológicos.
Entretanto, eles diferiram dos dispensacionalistas clássicos no seu abandono
gradual da “tipologia”, a hermenêutica espiritual dos primeiros
dispensacionalistas. Os dispensacionalistas revisados alegavam seguir somente a
interpretação literal das Escrituras, e afirmavam que os resultados de tal
interpretação produziriam o dispensacionalismo (isto é, o dispensacionalismo
revisado). Em Dispensationalism Today, Charles Ryrie insistiu que uma
interpretação literal consistente pertencia à essência do dispensacionalismo.19
Somente os dispensacionalistas, afirmou Ryrie, eram consistentemente literais
em sua interpretação. Embora, como notamos, isso não fosse verdade para o
dispensacionalismo clássico, não obstante, os dispensacionalistas revisados
passaram a se enxergar dessa forma.
Nas décadas de 50 e 60, outros evangélicos também estavam esquivando-se
da “hermenêutica espiritual” a favor da interpretação histórico-gramatical. No
entanto, a interpretação histórico-gramatical evangélica foi ampliada em meados
do século XX para incluir a teologia bíblica que estava se desenvolvendo. A
análise gramatical se expandiu para incluir os desenvolvimentos no estudo
literário, particularmente no estudo do gênero, ou forma literária e estrutura
retórica. A interpretação histórica passou a incluir uma referência ao contexto
histórico e cultural dos fragmentos literárias individuais para sua interpretação
geral. E no final da década de 80, os evangélicos se tornaram mais cientes do
problema do contexto histórico do intérprete e o pré-entendimento tradicional
do texto que estava sendo interpretado. Esses desenvolvimentos são agora
compartilhados por eruditos bíblicos evangélicos de diferentes tradições,
incluindo muitos dispensacionalistas. Eles abriram novas perspectivas de
discussão que não foram consideradas pelos primeiros intérpretes, incluindo os
dispensacionalistas clássicos e muitos dos revisados. Esses são desenvolvimentos
que levaram ao que é agora conhecido como “dispensacionalismo progressivo”.
A hermenêutica tornou-se muito mais complexa hoje em dia do que quando
Charles Ryrie afirmou a interpretação literal como o método “claro, natural e
normal” de interpretação. Talvez possamos explicar isso da seguinte forma. Ryrie
preparou uma equação: dispensacionalismo = interpretação literal =
hermenêutica clara-natural-normal = interpretação histórico-gramatical. Ele
alegou, então, que somente os dispensacionalistas praticavam de modo
consistente a interpretação literal. Se uma pessoa praticava uma interpretação
literal consistente (como definido pela equação), ela seria um dispensacionalista.
Na época desta publicação, os eruditos evangélicos bíblicos estavam
começando a avançar em direção a uma interpretação histórico-gramatical mais
consistente, mas era uma interpretação histórico-gramatical que se desenvolvia
em sofisticação para além daquela praticada pelos dispensacionalistas clássicos ou
até mesmo pelos primeiros dispensacionalistas revisados. Nas últimas três
décadas, a prática da interpretação histórico-gramatical consistente (onde
“histórico-gramatical” se desenvolveu para uma forma mais avançada de estudo
literário) não levou os evangélicos a adotarem o dispensacionalismo clássico ou
revisado. Além do mais, vários dispensacionalistas que hoje praticam uma
interpretação histórico-gramatical consistente (no seu sentido desenvolvido)
revisaram algumas das interpretações distintivas do dispensacionalismo inicial. A
interpretação literária desenvolveu-se de tal forma que coisas que antes eram
vistas “claramente” nas Escrituras, agora já não são mais vistas tão “claramente”
assim.
Isso levanta uma questão sobre o significado de interpretação “literal” e a
alegação de que sua prática consistente é a essência do dispensacionalismo.
Parece que “literal” é frequentemente usado para significar o sistema e a tradição
do dispensacionalismo revisado. Porém, a interpretação tradicional deve sempre
ser testada pela interpretação histórico-literária vigente, à medida que essa
interpretação se desenvolve em seu entendimento, métodos e procedimentos. Ela
deve ser testada, isto é, se o intérprete permanecer comprometido com as
Escrituras como a autoridade primária na teologia.
Quando lemos a afirmação de Ryrie de que uma hermenêutica
consistentemente “clara, natural e normal” é a essência do dispensacionalismo,
temos que interpretar essa observação historicamente. Pode ter sido verdade
como um ideal ou objetivo para o dispensacionalismo revisado, mas a declaração
não é verdadeira como um princípio abrangente, incluindo o dispensacionalismo
clássico. Quando substituímos a frase histórico-gramatical por literal ou clara-
natural-normal, temos essas observações: (1) mais uma vez, a observação não se
aplica ao dispensacionalismo clássico, uma vez que eles não procuraram praticar
tal hermenêutica de forma consistente ou exclusiva. Consequentemente, se a
palavra “dispensacionalismo” na frase “essência do dispensacionalismo” pretende
identificar a tradição dispensacional, então a observação é, na melhor das
hipóteses, simplista demais, na pior das hipóteses, falsa. (2) A observação não se
aplica à prática atual do dispensacionalismo revisado (como vimos com as
promessas “eternas” de Israel e como veremos com as alianças bíblicas), embora
tenha funcionado como um objetivo declarado. (3) A observação não se aplica se
alguém voltar a ler o termo “histórico-gramatical” como ele é considerado na
hermenêutica de hoje em dia. Dessa forma, cairá no risco de anacronismo.
Finalmente, (4) como um objetivo, a interpretação histórico-gramatical
consistente, no sentido em que histórico-gramatical significa hoje, está muito
próxima de ser percebida na hermenêutica do dispensacionalismo progressivo.
Consequentemente, a observação de Ryrie, mesmo que tenha falhado como
uma descrição da essência imutável do dispensacionalismo, ainda assim apontou
uma direção na qual a hermenêutica dispensacionalista deveria se desenvolver. O
antigo princípio da espiritualização foi deixado para trás, e os dispensacionalistas
– primeiramente os revisados e posteriormente os progressivos – buscaram o
objetivo da hermenêutica histórico-gramatical consistente, mesmo quando o
desenvolveram em significado e método e em diálogo com outros evangélicos.
As Alianças Bíblicas. Os dispensacionalistas revisados geralmente aceitavam a
forma pela qual os dispensacionalistas clássicos viam as alianças. A aliança
abraâmica era vista como fundamental. As alianças mosaica, palestina e davídica
eram vistas como terrenas, políticas e nacionais. Apesar da insistência do
dispensacionalismo revisado na interpretação literal consistente, eles acreditavam
que a igreja era a semente “espiritual” de Abraão, isto é, a aliança abraâmica se
cumpriu “espiritualmente” na igreja. De modo literal, entretanto, eles
acreditaram que isso seria cumprido em termos nacionais e políticos para Israel
no futuro.
Os dispensacionalistas revisados que eram discípulos de Lewis Chafer,
especialmente Ryrie e Walvoord, originalmente defenderam a opinião de Chafer
de que a nova aliança que o Novo Testamento cumpriu na igreja não era a nova
aliança predita por Jeremias e Ezequiel. Charles Ryrie escreveu em 1953 que se a
doutrina das duas novas alianças fosse abandonada, o dispensacionalismo seria
enfraquecido.20 Logo depois disso, contudo, tanto ele quanto Walvoord
abandonaram a visão, pela simples razão de que não era biblicamente defensável.
Além do mais, a visão oposta, de que a mesma nova aliança predita pelos
profetas do Antigo Testamento de fato regulava o relacionamento de Deus com
a igreja hoje em dia, era inegavelmente ensinada nas Escrituras! Isso foi
argumentado de forma convincente por John F. McGahey em 1957 numa
dissertação no Dallas Theological Seminary. (McGahey se tornou por muitos anos
um membro docente e presidente do departamento de Bíblia e Teologia no
Philadelphia College of Bible até sua morte em 1986).
Reconhecer que o Novo Testamento ensinava “literalmente” que as bênçãos
espirituais da nova aliança de Israel estavam sendo cumpridas pela igreja hoje
exigia uma explicação. E a interpretação “literal” do Antigo Testamento?
Geralmente, os dispensacionalistas revisados recorriam à hermenêutica espiritual
do dispensacionalismo clássico para interpretar a relação do Antigo Testamento
com a igreja: a nova aliança estava sendo cumprida espiritualmente na igreja hoje,
mas Israel experimentaria os aspectos nacionais e políticos (as características
terrenas) da aliança no futuro. Esse foi o modo encontrado para lidar com a
aliança abraâmica e o modo como Scofield também tratou a nova aliança. Não
obstante, eles tiveram que reconhecer que havia um elo de aliança entre Israel e a
igreja no ensino “literal” do Novo Testamento.
Mais uma vez, podemos ver a tensão entre o método hermenêutico do
dispensacionalismo revisado e sua atual prática hermenêutica. Contudo, o
reconhecimento de que o Novo Testamento realmente ensinava um elo de
aliança entre Israel e a igreja era importante, especialmente à luz do quão
vigorosamente o ponto de vista oposto (duas novas alianças) havia sido
defendido como sistematicamente importante para o dispensacionalismo.
Entretanto, esse elo não pôde ser explicado por muito tempo por uma
interpretação “espiritual”, uma vez que os dispensacionalistas começaram a
seguir por um caminho de interpretação histórico-literário das Escrituras, onde
quer que isso possa levar. Eventualmente, a igreja teria de ser vista como
permanecendo na linha de um cumprimento histórico da promessa da nova
aliança a Israel. Seria uma dispensação no progresso histórico da redenção, não
um parênteses (ou intercalação) não relacionada a ela. Consequentemente, a
visão revisada da nova aliança provou ser um avanço significativo para repensar a
relação entre Israel e a igreja nas Escrituras, levando a desenvolvimentos
posteriores no dispensacionalismo.

O Reino. A distinção do reino de Deus versus o reino dos céus no


dispensacionalismo clássico foi importante para expressar o dualismo central do
dispensacionalismo. O espiritual (reino de Deus) era visto como sendo distinto
do terreno (reino dos céus), mesmo quando os propósitos terrenos e celestiais
eram mantidos distintos.
Em 1952, George E. Ladd, trabalhando com os métodos da teologia bíblica,
criticou fortemente a distinção dispensacionalista clássica desses termos.21 Duas
críticas eram particularmente importantes: (1) uma distinção substantiva (ou
metafísica) desses termos é exegeticamente indefensável e (2) a separação das
características do reino espiritual e terreno em dois diferentes reinos é imprecisa.
Os dispensacionalistas revisados criticaram fortemente Ladd por falhar em
considerar adequadamente os propósitos nacionais e políticos do ensino de Jesus
sobre o reino. Entretanto, ele foi criticado principalmente por defender uma
visão que “poderia levar” ao amilenismo (ainda que o próprio Ladd fosse um dos
maiores defensores do pré-milenismo).22 Contudo, ainda que eles se recusassem
a reconhecê-lo, os dispensacionalistas revisados aparentemente levaram a sério a
crítica de Ladd. Eles largaram a distinção clássica dos termos reino dos céus
versus reino de Deus. Além disso, muitos dispensacionalistas revisados
começaram a encontrar uma forma de falar de um reino espiritual na
dispensação presente. Várias visões alternativas do reino foram propostas.
Nos parágrafos seguintes, examinaremos quatro teologias do reino abordadas
pelos dispensacionalistas revisados. O ponto principal desse exame é demonstrar
que não há uma visão dispensacionalista revisada sobre o reino. Muitas visões
alternativas foram propostas. Entretanto, para o leitor que tem alguma
familiaridade com o dispensacionalismo revisado, cremos que um exame das
diferenças pode ser útil, visto que essas diferenças raramente foram analisadas
lado a lado.

Alva J. McClain: McClain introduziu a terminologia do reino universal e do reino


mediatário no seu livro The Greatness of the Kingdom.23 O reino universal foi
definido como a soberania de Deus sobre todas as coisas. O reino universal tem
sido constante em todas as dispensações. O reino mediatário se referiu ao
governo de Deus sobre a terra através de um mediador divinamente escolhido.
McClain acreditava que Abraão foi o primeiro mediador. Uma sucessão de
mediadores continuou através dos reis de Israel. Jesus Cristo é o legítimo
herdeiro davídico e o mediador do reino mediatário messiânico. Entretanto, uma
vez que Jesus não está atualmente na terra, McClain acreditava que não havia
um reino mediatário presente na terra durante esta dispensação.
Consequentemente, ele intitulou a presente dispensação de Interregno, o período
entre os reinos. O reino mediatário aparecerá novamente no retorno de Cristo.
No fim do milênio, o reino mediatário se fundirá e se tornará simplesmente o
reino universal de Deus.
Stanley Toussaint concordou com McClain que não há nenhum reino
mediatário presente hoje. Ele argumentou que todas as passagens no Novo
Testamento que falam da presença do reino devem ser entendidas
prolepticamente. Elas se referem ao reino futuro.24
A TEOLOGIA DO REINO DE ALVA J. McCLAIN

Charles Ryrie: Ryrie concordou com McClain sobre a ideia e a terminologia do


reino universal. Deve-se reconhecer que Deus é, sempre foi e sempre será
soberano sobre todas as coisas. Parte do que a Bíblia tem a dizer sobre o reino de
Deus se refere a esse atributo da soberania divina. Em relação ao reino político
na terra, ele preferiu seguir a essência da doutrina de Scofield sobre o reino dos
céus, mas sem assumir a sua terminologia. Em vez disso, ele simplesmente o se
referiu ao reino davídico. O reino davídico apareceu na antiga dispensação, mas
foi suspenso a partir do exílio e não foi restaurado nem mesmo com a vinda de
Jesus. Com Jesus, um programa triplo de reino tem o seu começo. O primeiro é
o reino davídico, oferecido por Jesus a Israel, mas foi rejeitado por eles (esse é
essencialmente o mesmo reino dos céus presente na pregação de Jesus segundo
Scofield). O seguinte é a forma misteriosa do reino que Ryrie define como
cristandade (idêntico ao reino dos céus segundo Scofield na forma misteriosa).
Depois, é o reino davídico milenar, que é o cumprimento final do reino davídico
(novamente igual a Scofield). No fim do milênio, entretanto, Israel e a igreja
estarão no céu sob o reino universal de Deus.25
Ryrie também complementa o esquema de Scofield ao adicionar outro reino
na dispensação presente: o reino espiritual. Este reino espiritual é o atual governo
de Cristo sobre os crentes. Ele é exatamente “a verdadeira igreja, o corpo de
Cristo”. Essa é uma importante revisão, pois define o relacionamento de Cristo
com a igreja como um reino. Seu governo é espiritual, o poder da regeneração.26
O reino espiritual de Ryrie parece ser equivalente ao reino de Deus de
Scofield, no entanto, Ryrie o limita somente a esta dispensação. A esse respeito,
essa visão é similar a de Ladd, exceto que Ryrie a distingue completamente do
cumprimento do reino davídico.
A singularidade dispensacional e o isolamento do reino espiritual produzem
várias inconsistências na teologia de Ryrie. Por um lado, ele diz que o reino
espiritual é a esfera do novo nascimento. Visto que o reino espiritual é limitado a
esta dispensação, logicamente parece que a regeneração é igualmente limitada.
Entretanto, em outro lugar, Ryrie ensina que a regeneração é
transdispensacional. Além do mais, a existência de um reino espiritual, que é a
igreja, indicaria que Cristo se relaciona com a igreja como um Rei. Por um lado,
Ryrie reconhece que Cristo governa a igreja como seu reino e que ele é um Rei
hoje. Entretanto, na mesma obra, ele se contradiz ao negar que Cristo é o Rei da
igreja ou ao afirmar que, mesmo se ele for o Rei, ele não governa!27 O que temos
aqui é um exemplo de uma tradição que tenta lidar com os criticismos bíblicos
apresentados contra ela. Contudo, os problemas permanecem.
A TEOLOGIA DO REINO DE CHARLES RYRIE

John Walvoord: Walvoord distingue entre um reino universal e um reino


espiritual. O reino universal é a soberania de Deus sobre tudo que ele fez. Esse
conceito é essencialmente o mesmo que a doutrina de McClain do reino
universal. O reino espiritual é o governo de Deus sobre os salvos de todas as eras,
incluindo a presente dispensação. Ele também o define como a esfera de
submissão voluntária a Deus, que é essencialmente o mesmo conceito do reino
de Deus de Scofield. Um terceiro reino, o reino davídico, é definido como uma
subdivisão do reino universal. Ele entende o reino davídico apenas como um
reino político. É o governo teocrático de Deus através de Davi ou de um
descendente de Davi agindo como mediador de Deus. Dessa forma, o reino
davídico de Walvoord é praticamente o mesmo que o reino mediatário de
McClain, exceto que para Walvoord esse reino começa com Davi, enquanto que
para McClain começa com Abraão.
Walvoord então introduz dois termos relacionados ao reino davídico: O
reino adiado, que é o reino davídico que Jesus ofereceu a Israel, mas que foi
adiado quando o rejeitaram; e o reino milenar, que é o cumprimento do reino
adiado, o reino davídico que é realizado no governo de mil anos de Cristo na
terra.
Walvoord nos dá ainda outra categoria de reino na forma misteriosa do reino.
É o governo espiritual de Cristo na igreja hoje. Nesse esquema, esse é realmente
o reino espiritual. Contudo, ele acredita que as parábolas de Mateus 13 predizem
esse reino em um sentido especial para esta dispensação quando falam dos
mistérios do reino dos céus. Ele também conecta a forma misteriosa do reino ao
ensino do Novo Testamento sobre a presença do reino para a igreja. Ele acredita
que é um mistério, pois o Antigo Testamento não antecipou a presença do reino
espiritual à parte do reino davídico, o reino meramente político (de acordo com
ele). Perceba que Walvoord usa a linguagem de Scofield (também usada por
Ryrie): a forma misteriosa do reino. Porém, ele a define de uma forma
completamente diferente de Scofield (e de Ryrie). Enquanto Scofield entendia a
presente forma misteriosa do reino (predita em Mateus 13) como a cristandade,
um aspecto do reino davídico, e enfatizou que não era a igreja, Walvoord
argumenta (a partir da mesma passagem bíblica) que não tem nada a ver com o
reino davídico, mas ela é precisamente a igreja.
Walvoord ainda defende uma distinção entre o reino dos céus e o reino de
Deus. Como observado anteriormente, sua categoria do reino espiritual é
essencialmente a mesma de Scofield quanto ao reino de Deus. Assim como
Scofield, ele acreditava que o reino dos céus é uma esfera de ofício diferente, mas
inclusiva, do reino de Deus (ou reino espiritual). E ele continua a acreditar que o
uso dos termos no Evangelho de Mateus apoia essa distinção.28
No fim do milênio, Walvoord vê o reino terreno (davídico) chegando ao fim.
Os reinos espiritual e universal serão unidos. Embora algumas vezes ele use a
linguagem da nova terra de Apocalipse 21, Walvoord faz uma distinção radical
entre os estados milenar e eterno. Ele não relaciona as promessas eternas da
esperança do Antigo Testamento a esse estado eterno, mas as vê cumpridas no
milênio. De fato, Walvoord insiste que elas não podem ser cumpridas na nova
terra. Isso se deve à diferença radical entre os dois estados, de modo que o último
não possui as condições para o cumprimento dessas promessas. Parece que
Walvoord está trabalhando com uma visão de nova terra que difere pouco da
visão clássica não-terrena e não-temporal dos céus.29
O TEOLOGIA DO REINO DE JOHN WALVOORD

A doutrina do reino de Walvoord ilustra um problema persistente do


dispensacionalismo revisado. Enquanto Jesus pregava a vinda do reino de Deus,
Walvoord transforma essa mensagem na proclamação de vários reinos. Ele não é
capaz de ver como esses diferentes “reinos” são na verdade diferentes aspectos de
um reino escatológico. Jesus anunciou esse reino, revelou alguns aspectos dele em
si próprio e começou a trazê-lo para o cumprimento progressivo, inaugurando
alguns aspectos hoje e ao mesmo tempo prometendo cumpri-los completamente
no futuro.
J. Dwight Pentecost: Como os outros dispensacionalistas revisados, Pentecost usa
a terminologia do reino para distinguir entre os atributos absolutos e relativos de
Deus. Ele usa o termo reino eterno para se referir à onipotência de Deus sobre
tudo o que ele fez. O termo eterno tem o sentido de atemporalidade. Ele até
mesmo postula a ordem da própria Trindade como o reino divino. Assim como
McClain, ele vê o reino eterno mediado de maneira temporal e possível através
de um mediador escolhido divinamente. McClain chama isso de reino
mediatário; Pentecost o chama de reino teocrático. Diferente de McClain, no
entanto, Pentescost vê esse reino mediado revelado em dez estágios sucessivos
desde a criação até o milênio. Os quatro primeiros e os dois últimos estágios são
equivalentes a seis das sete dispensações de Scofield. Pentecost divide a
dispensação da Lei de Scofield em quatro reinos teocráticos sucessivos: Juízes,
Reis, Profetas e Cristo.30
É importante notar que Pentecost acredita que o reino teocrático está
presente hoje em dia nesta dispensação. Além do mais, ele acredita que a própria
igreja é um aspecto do reino teocrático. Nessa crença, ele é notavelmente
diferente de McClain e Toussaint. Sua visão é similar a de Walvoord, exceto que
ele usa uma terminologia que conecta o reino nesta dispensação às manifestações
terrenas do reino nas dispensações passadas e futuras. Essa conexão aponta a
direção na qual o dispensacionalismo modificou e desenvolveu sua compreensão
sobre o reino.
Pentecost também vê o reino continuando numa forma terrena no estado
eterno. Ele acredita que tanto Israel quanto a igreja estarão juntas com Cristo na
nova terra após o milênio. Pentecost também prevê que as identidades nacionais
continuam no estado eterno, com distinções delineadas entre as nações de Israel
e gentílicas. Aqui as promessas do reino eterno de Cristo serão cumpridas em
uma nova terra para sempre.31
A TEOLOGIA DO REINO DE J. DWIGHT PENTECOST
Parece que Pentecost vê uma inter-relação mais próxima entre suas categorias
eternas e teocráticas do que Walvoord viu entre suas diferentes formas do reino.
Porém, essa relação parece estar confinada dentro de cada estágio do reino
teocrático. Embora a terminologia seja a mesma, os vários reinos teocráticos
parecem relativamente independentes uns dos outros, como as dispensações do
dispensacionalismo clássico. O que falta é um verdadeiro senso de continuidade
e progressão históricas interligando-os. Em outras palavras, a unidade dos reinos
teocráticos é encontrada verticalmente no reino eterno atemporal. Ela não é
encontrada em uma obra de Deus escatologicamente convergente na história.
Como um exemplo disso, embora Pentecost reconheça uma manifestação das
bênçãos espirituais no presente reino teocrático, assim como uma manifestação
das bênçãos espirituais no futuro reino teocrático do retorno de Cristo, ele não as
compreende relacionadas a uma revelação manifesta do reino de Jesus, filho de
Davi. Ele não as compreende como parte de uma revelação progressiva unida na
própria pessoa de Cristo.

Conclusão. No final das décadas de 50 e 60, alguns dispensacionalistas


introduziram importantes revisões ao dispensacionalismo clássico. Essas revisões
tornaram-se amplamente aceitas de tal modo que muitos graduados de escolas
dispensacionalistas nos anos de 60 e 70 dificilmente sabiam o que era o
dispensacionalismo clássico. Muitos nem sequer sabiam da diversidade de pontos
de vista dentro do dispensacionalismo revisado. No entanto, o
dispensacionalismo revisado é uma forma distinta da tradição dispensacionalista,
que através de suas modificações e dos problemas com os quais estava lidando,
preparou o caminho para o eventual desenvolvimento do dispensacionalismo
progressivo.32
DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO
Redenção Holística na Revelação Progressiva. O dispensacionalismo é
conhecido por seu reconhecimento dos múltiplos propósitos da redenção divina.
Isso inclui propósitos terrenos, nacionais, políticos, sociais e espirituais. Os
dispensacionalistas geralmente reconhecem que esses propósitos serão cumpridos
na salvação eterna (exceto para alguns dispensacionalistas revisados que
acreditam que os propósitos terrenos e políticos terminarão no milênio). Os
dispensacionalistas também reconhecem que alguns desses propósitos foram
enfatizados mais fortemente em algumas dispensações do que em outras. No
entanto, entender a relação entre esses diferentes propósitos sempre foi um
problema.
O dispensacionalismo clássico defendia um eterno dualismo celestial/terreno
para explicar os diferentes propósitos de redenção. Os dispensacionalistas
revisados rejeitaram esse dualismo eterno, o que os forçou a escolher entre uma
visão da eternidade mais celestial ou mais terrena. Alguns escolheram uma,
alguns escolheram outra. O colapso do dualismo celestial/terreno uniu o Israel
crente do Antigo Testamento com o Israel do milênio. Os gentios crentes
também foram reunidos em uma redenção eterna. Entretanto, pensava-se que os
judeus e gentios da dispensação da igreja eram um grupo de pessoas
completamente separado.33 Muitos dispensacionalistas revisados não conseguiam
entender como a igreja estaria relacionada ao plano de redenção sem sacrificar o
cumprimento futuro das promessas étnicas, nacionais e políticas que distinguem
judeus e gentios. Muitos dos seus oponentes interpretaram que essas promessas
foram “transformadas” na igreja, não deixando nenhum cumprimento “literal”
das promessas nacionais para Israel no futuro.
Os dispensacionalistas progressivos concordam com os dispensacionalistas
revisados (e clássicos) que a obra de Deus com Israel e as nações gentílicas na
dispensação passada aguarda a redenção da humanidade em seus aspectos
políticos e culturais. Consequentemente, há um lugar para Israel e para as outras
nações no plano eterno de Deus.
Por outro lado, os dispensacionalistas progressivos acreditam que a igreja é
uma parte vital desse mesmo plano de redenção. O surgimento da igreja não
sinaliza um plano redentivo secundário, seja para ser cumprido no céu à parte da
nova terra, ou em uma elite de judeus e gentios que são para sempre distintos do
resto da humanidade redimida. Em vez disso, a igreja hoje é uma revelação das
bênçãos espirituais em que todos os redimidos compartilharão a despeito de suas
diferenças nacionais e étnicas.
Consequentemente, o dispensacionalismo progressivo defende uma visão
holística e unificada da salvação eterna. Deus salvará a humanidade em sua
pluralidade nacional e étnica. Porém, irá abençoá-la com a mesma salvação dada
a todos sem distinção; a mesma, não somente em justificação e regeneração, mas
também em santificação pela habitação do Espírito Santo. Essas bênçãos virão a
todos sem distinção através de Jesus, o Rei de Israel, e de todas as nações da
humanidade redimida.

As Dispensações. Os dispensacionalistas progressivos entendem as dispensações


não apenas como arranjos diferentes entre Deus e a humanidade, mas como
arranjos sucessivos na revelação progressiva e na realização da redenção. O plano
de redenção tem diferentes aspectos. Uma dispensação pode enfatizar um
aspecto mais do que outro; por exemplo, a ênfase nos assuntos políticos
divinamente dirigidos na dispensação passada, e a ênfase na identidade espiritual
multiétnica em Cristo na presente dispensação. Porém, todas as dispensações
apontam para uma futura culminação na qual Deus administrará politicamente
Israel e as nações gentílicas e habitará nelas igualmente (sem distinções étnicas)
por meio do Espírito Santo. Consequentemente, as dispensações progridem ao
revelarem os diferentes aspectos da redenção unificada final.
As dispensações também revelam uma progressão qualitativa na manifestação
da graça. Por exemplo, houve manifestações da graça na dispensação do Israel do
Antigo Testamento que eram qualitativamente melhores do que as reveladas aos
patriarcas antes do Êxodo. Da mesma forma, as Escrituras ensinam que há
manifestações da graça na presente dispensação que são qualitativamente
melhores do que as reveladas aos judeus e gentios na dispensação passada. E
também haverá um avanço qualitativo da graça na dispensação futura (nossa
futura glorificação). Consequentemente, as dispensações não são simplesmente
diferentes expressões históricas da mesma experiência de redenção (como em
alguns modelos do aliancismo), embora elas conduzam e culminem em um
plano de redenção.
No dispensacionalismo progressivo, os propósitos sociopolíticos e espirituais
de Deus se complementam. O espiritual não substitui o político e nem os dois
acontecem de forma independente. Eles são aspectos relacionados em um plano
holístico de redenção. A dispensação final revelará todos esses aspectos em
relações complementares entre si. Antes disso, diferentes dispensações podem
revelar mais de um aspecto ou mais de outro, mas cada dispensação está
relacionada à dispensação final na qual o plano culmina. Uma vez que todas elas
têm o mesmo objetivo, há uma relação real progressiva entre elas. À medida que
cada uma leva ao objetivo da redenção final, as Escrituras estabelecem várias
conexões entre elas que as relacionam de uma forma verdadeiramente
progressiva. É desse relacionamento progressivo entre as dispensações que surge
então o nome dispensacionalismo progressivo.

A Natureza da Igreja. Assim como os primeiros dispensacionalistas, os


dispensacionalistas progressivos veem a igreja como uma nova manifestação da
graça, uma nova dispensação na história da redenção. Os primeiros
dispensacionalistas viam a igreja como um tipo de redenção completamente
diferente da que havia sido revelada anteriormente ou da que seria revelada no
futuro. A igreja então teve seu próprio futuro separado da redenção prometida a
judeus e gentios nas dispensações do passado e do futuro. Os dispensacionalistas
progressivos, no entanto, ao verem a igreja como uma nova manifestação da
graça, acreditam que essa graça está precisamente de acordo com as promessas do
Antigo Testamento, particularmente as promessas da Nova Aliança em Isaías,
Jeremias e Ezequiel. O fato de essas bênçãos terem sido inauguradas na igreja
distingue-a dos judeus e dos gentios da dispensação passada. Porém, apenas
algumas dessas bênçãos foram inauguradas. Consequentemente, a igreja deve ser
distinguida da próxima dispensação, na qual todas as bênçãos não serão
simplesmente inauguradas, mas plenamente cumpridas (cujo cumprimento será
concedido aos santos de todas as dispensações através da ressurreição dos
mortos).
Uma das maiores diferenças entre os dispensacionalistas progressivos e os
dispensacionalistas anteriores é que os progressivos não veem a igreja como uma
categoria antropológica do mesmo tipo que termos como Israel, nações
gentílicas, judeus e gentios. A igreja não é uma raça separada da humanidade
(em contraste com judeus e gentios), nem uma nação concorrente (ao lado de
Israel e das nações gentílicas), nem é um grupo de humanos angelicais destinados
aos céus em contraste com o restante da humanidade redimida na terra. A igreja
é precisamente a humanidade redimida em si (judeus e gentios) conforme existe
nesta dispensação antes da vinda de Cristo. Quando Paulo fala da igreja como
“um novo homem” em Cristo (Ef 2.15), ele quer dizer precisamente a
humanidade redimida em oposição aos não salvos. Judeus e gentios fora de
Cristo são “o mundo”, o “velho homem”. Quando Paulo diz que não poder
haver judeu nem grego em Cristo, ele não está falando de algum tipo de
homogeneização étnica, assim como também não está falando de um tipo de
gênero andrógino quando diz que não pode haver nem homem nem mulher na
igreja. As diferenças étnicas, políticas, nacionais e culturais permanecem na igreja.
Mas o argumento de Paulo é que as bênçãos do Espírito que constituem a igreja
como a nova dispensação são dadas igualmente sem distinção étnica, de gênero
ou de classe.
As promessas proféticas predizem que Cristo governará para sempre sobre as
nações dos remidos. A igreja não é outro “grupo de pessoas” nesse quadro. Os
judeus e gentios que compõem a igreja antes da volta de Cristo se unem aos
judeus e gentios redimidos das dispensações anteriores para compartilharem
igualmente da glória da ressurreição. Aqueles que durante a dispensação em que
viveram tiveram certas bênçãos somente como promessa ou de uma forma
inaugurada, serão todos levados ao mesmo nível de cumprimento completo
quando ressuscitarem dos mortos. Judeus e gentios redimidos compartilharão
igualmente das bênçãos completas do Espírito. A igreja nesta dispensação
testifica esse aspecto da redenção. Os mesmos judeus e gentios redimidos serão
direcionados e governados por Jesus Cristo de acordo com suas diferentes
nacionalidades. As identidades nacionais e as promessas políticas de Israel e dos
gentios na dispensação passada testificam, por sua vez, esse aspecto da redenção.
Podemos ilustrar essa visão dispensacional progressiva da igreja no caso dos
judeus cristãos. Um judeu que hoje torna-se um cristão não perde seu
relacionamento com as promessas futuras de Israel. Os judeus cristãos se unirão
ao remanescente da fé do Antigo Testamento na herança de Israel. Os gentios
cristãos serão unidos aos gentios salvos das dispensações passadas. Todos juntos,
judeus e gentios, compartilharão as mesmas bênçãos do Espírito, como
testificam o relacionamento dos judeus e gentios na igreja desta dispensação. O
resultado será que todas as pessoas serão reconciliadas em paz, com suas
diferenças étnicas e nacionais não sendo causa de hostilidade. As formas
anteriores de dispensacionalismo, apesar de toda a ênfase em um futuro para
Israel, excluíram os judeus cristãos desse futuro, postulando a igreja como um
grupo de pessoas diferente de Israel e dos gentios.
Ao pensar na igreja como um grupo distinto de pessoas, uma raça humana
diferente dos judeus e gentios, alguns dos primeiros dispensacionalistas não
foram tão sensíveis como deveriam em relação às diferenças étnicas e culturais
existentes no corpo de Cristo no dias de hoje. Essa falta de sensibilidade leva à
dominação cultural de um grupo sobre o outro dentro da igreja (tal como a
gentilização de judeus cristãos, ou a anglicização ou americanização de cristãos
do terceiro mundo). Isso, por sua vez, se torna um obstáculo para a unidade do
corpo. O problema, que não é exclusivo dos dispensacionalistas, manifesta-se
especialmente em missões, na questão da contextualização. A obra do Espírito
não é a dominação cultural, mas sim a reconciliação; não é a eliminação das
diferenças humanas, étnicas, culturais e nacionais, mas sim a redenção delas da
inimizade contra o verdadeiro Deus para a santidade e de um estado de
hostilidade entre si para um estado de paz.
AS DISPENSAÇÕES E OS PROPÓSITOS DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO
1. Remanescente da fé = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios).
2. A Igreja = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios).
3. Os remidos = judeus e gentios crentes (um remanescente das nações de Israel e dos gentios) incluindo
a Igreja da presente dispensação e o remanescente crente das dispensações passadas, unidos na vida
ressurreta.
4. Os remidos = judeus e gentios crentes de todas as dispensações anteriores ressuscitados dos mortos.

Interpretação bíblica. Já observamos em nossa discussão sobre o


dispensacionalismo revisado como a interpretação bíblica se desenvolveu da
metade para o fim do século XX. Os dispensacionalistas mudaram de uma defesa
de uma dupla hermenêutica de interpretação espiritual e literal para uma ênfase
numa interpretação literal consistente. Essa interpretação “literal” desenvolveu-se
de um método “claro, natural” de agregar às palavras qualquer significado que
“parecesse claro” ao intérprete para uma conscientização mais crítica de como o
preconceito (ou o pré-entendimento) condiciona as nossas intuições, as nossas
impressões de certeza e clareza de interpretação. A interpretação literal também
se desenvolveu para uma interpretação histórico-gramatical. A partir de uma
ênfase inicial na análise gramatical das palavras, a interpretação foi ampliada para
incluir um estudo sintático, retórico e literário. A interpretação histórica se
expandiu para além das datas e cronologia para incluir o cenário histórico e o
desenvolvimento de temas, palavras e ideias. Também veio a suportar parte da
história da interpretação, da questão da tradição e do contexto histórico do
intérprete.
Esses desenvolvimentos na interpretação bíblica têm sido um fator
importante na ascensão do dispensacionalismo progressivo. Os
dispensacionalistas progressivos são na verdade os dispensacionalistas revisados
que, através de uma interpretação histórico-literária mais desenvolvida, chegaram
ao que acreditam ser um entendimento mais preciso de certos temas bíblicos.
Deve-se perceber que o dispensacionalismo progressivo não consiste em um
abandono da interpretação “literal” para dar lugar a uma interpretação
“espiritual”. O dispensacionalismo progressivo é um desenvolvimento da
interpretação literal em uma interpretação histórico-literária mais consistente.
É dessa maneira que o interesse do dispensacionalismo progressivo em
tipologia deveria ser entendido. Os dispensacionalistas progressivos veem a
tipologia como um aspecto da interpretação histórico-literária. Esse não é o
mesmo modelo de tipologia praticado no dispensacionalismo clássico, o qual era
muitas vezes uma forma de interpretação “espiritual” em que objetos materiais,
pessoas ou outros fenômenos representavam algo no mundo espiritual. Por
exemplo, o óleo era considerado um “tipo” do Espírito Santo, e o fermento um
“tipo” de mal.
Em contraste a isso, a tipologia na hermenêutica histórico-literária refere-se a
padrões de semelhança de pessoas e eventos da história anterior à pessoas e
eventos da história posterior. Por exemplo, o reino davídico-salomônico é um
tipo de reino escatológico, assim como o julgamento do Dia do Senhor no
século VI a.C é um tipo de Dia do Senhor futuro e escatológico.
Consequentemente, a tipologia para o dispensacionalismo progressivo é
primariamente uma relação “horizontal” (histórica) em vez de uma “vertical”
(espiritual).34
Uma discussão mais extensa dessas questões hermenêuticas acontece nos
capítulos 2 e 3 deste livro.

As Alianças Bíblicas. O dispensacionalismo progressivo oferece uma visão mais


unificada das alianças bíblicas do que o dispensacionalismo passado. A aliança
abraâmica é vista como o fundamento de todas as alianças. As bênçãos das
alianças posteriores explicam a promessa feita a Abraão: “Eu abençoarei você”. A
nova aliança é a forma pela qual a aliança abraâmica foi inaugurada nesta
dispensação e será cumprida integralmente no futuro. A aliança davídica é um
aspecto da bênção abraâmica e o meio pelo qual as bênçãos são agora inauguradas
e serão integralmente concedidas.
Os dispensacionalistas progressivos não acreditam que as alianças abraâmica e
davídica e a nova aliança estão sendo cumpridas hoje “em um sentido espiritual”.
As bênçãos espirituais que são dadas atualmente são bênçãos que na verdade
foram preditas pela nova aliança. Essas bênçãos são dadas de uma forma parcial e
inaugurada, que espera concluir o cumprimento no retorno de Cristo.
O fato de que as bênçãos da nova aliança estão sendo dadas a gentios e judeus
atualmente é consistente com a promessa abraâmica de abençoar não somente os
judeus, mas também aos gentios. O escopo das bênçãos abraâmicas de toda a
humanidade direciona a forma como a nova aliança está sendo cumprida hoje.
A inauguração presente e a plenitude futura do cumprimento da nova aliança
revelam outro aspecto no qual as alianças abraâmica e davídica estão sendo
cumpridas hoje. Todas essas alianças serão cumpridas numa dispensação futura,
consistente com o sentido histórico-gramatical de suas promessas. Entretanto, a
natureza progressiva das dispensações e a interconexão entre as alianças é tal que
as bênçãos presentes são um cumprimento parcial, não “alegórico”, dessas
promessas. Elas esperam concluir cumprimento no retorno de Cristo.
Uma apresentação completa de uma visão dispensacionalista progressiva das
alianças pode ser encontrada nos capítulos 5 e 6.

O Reino de Deus. O tema do reino de Deus é muito mais unificado e central ao


dispensacionalismo progressivo do que ao dispensacionalismo revisado. Em vez
de dividir as diferentes características da redenção em “reinos” independentes, os
dispensacionalistas progressivos veem um reino escatológico prometido que tem
dimensões políticas e espirituais. O reino está sempre centrado em Cristo. A
revelação progressiva de um ou outro aspecto do reino escatológico (espiritual ou
político) antes do reino eterno de Cristo, segue a história de Jesus Cristo e
depende dele conforme age de acordo com a vontade do Pai. Se certas
características do reino escatológico (espiritual ou político) serão ou não
realizadas ou reveladas antes do completo estabelecimento desse reino, não é algo
a ser determinado pelo raciocínio sobre as amplas descrições dos profetas do
Antigo Testamento. Pelo contrário, é uma questão da vontade do Pai para essa
ou qualquer dispensação intermediária, uma questão que é discernida através da
revelação do Novo Testamento. O Novo Testamento esclarece como o reino
predito pelos profetas do Antigo Testamento está sendo revelado hoje, como
aparecerá de fato numa forma milenar e como isso contribui para o reino eterno
no qual todas as profecias serão cumpridas.
Os dispensacionalistas progressivos dão uma ênfase primordial ao reino
eterno para entenderem todas as formas anteriores do reino, incluindo o milênio.
Eles não fazem uma distinção substancial entre os termos reino dos céus e reino
de Deus. E eles veem o presente relacionamento de Cristo com a igreja de hoje
como uma forma de reino escatológico que afirma e garante a revelação futura
do reino em toda a sua plenitude. Veja o quadro mais a frente para uma
visualização dessa visão.
O capítulo 7 oferecerá uma discussão mais completa do reino de Deus no
dispensacionalismo progressivo.
CONCLUSÃO
Nesse capítulo, vimos que o dispensacionalismo tem sido uma tradição do
pensamento evangélico americano muito significativa e difundida. Porém, o
dispensacionalismo não tem sido estático. Além da dinâmica da nuances e
inflexões de professores e teólogos individuais, a tradição dispensacionalista
sofreu uma modificação significativa no terceiro quarto desse século. Isso não
significa que todos os dispensacionalistas clássicos se tornaram revisados de uma
vez. Na verdade, alguns dispensacionalistas mais clássicos ainda podem ser
encontrados hoje. Porém, uma mudança ocorreu e se estabeleceu de tal forma
que o dispensacionalismo revisado se tornou o dispensacionalismo que a maioria
das pessoas conhece.
O REINO DE DEUS NO DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO

Atualmente, há uma mudança significativa acontecendo no dispensacionalismo


que modifica ainda mais as visões do dispensacionalismo revisado. Isso é o que
chamamos de dispensacionalismo progressivo. Nesse capítulo, tentamos delinear
sua continuidade com ênfases dispensacionais anteriores e explicar brevemente
suas diferenças. Sua principal distinção é encontrada na concepção de um
cumprimento e uma revelação progressivos de uma redenção holística e
unificada. Essa redenção cobre os aspectos pessoais, comunitários, sociais,
políticos e nacionais da vida humana. Ela é revelada em uma sucessão de
dispensações que variam na maneira como enfatizam os aspectos da redenção,
mas todas apontam para uma culminação final na qual todos os aspectos serão
juntamente redimidos.
Os capítulos seguintes discutem em mais detalhes algumas das distinções
mencionadas aqui. São apresentados em duas partes: (1) princípios para
interpretação da Bíblia e (2) uma exposição das estruturas bíblicas que sustentam
o dispensacionalismo progressivo. Nessa última parte, procuraremos interpretar
o ensino da Bíblia sobre as dispensações, as alianças e o reino de Deus. O último
capítulo listará algumas implicações ministeriais e teológicas para uma reflexão
mais aprofundada.
O dispensacionalismo progressivo é um fenômeno de mudança e
continuidade dentro da tradição dispensacional. Os dispensacionalistas
progressivos diferem entre si em vários pontos. Há, sem dúvida, interpretações e
pontos de vista oferecidos aqui que serão corrigidos pelas ideias e contribuições
de outros. Contudo, acreditamos que o apresentado aqui é suficiente para
mostrar uma direção geral, bem como apresentar questões e problemas nos quais
um amplo número de teólogos dispensacionalistas e eruditos bíblicos estão
trabalhando atualmente.

1. Algumas das visões dispensacionalistas se tornaram bem comuns no evangelicalismo. Nem todos que
ensinavam visões dispensacionalistas se chamavam dispensacionalistas. Além do mais, como veremos neste
capítulo, nem todos que são chamados dispensacionalistas concordam em cada detalhe ou então com as
“bem-conhecidas” interpretações dispensacionalistas.
2. Veja o capítulo 4.
3. As dispensações por si mesmas são discutidas nas Escrituras. Consequentemente, interpretar um texto à
luz de sua dispensação é outro exemplo de interpretar as Escrituras à luz das Escrituras, ou interpretar uma
passagem das Escrituras à luz da interpretação mais ampla das Escrituras. A interpretação das dispensações e
de textos e passagens individuais é aperfeiçoada no estudo contínuo das Escrituras. Isso leva tanto ao
desenvolvimento do dispensacionalismo quanto a um melhor entendimento de porções individuais das
Escrituras.
4. Assim como as especulações de Lindsay, de que Cristo viria dentro de uma geração (40 anos?) de 1948 e
que os anos 80 seriam provavelmente a última década da história. Os teólogos dispensacionalistas mais
cuidadosos, como John Walvoord e Charles Ryrie, negam deliberadamente que alguém poderia prever a
vinda de Cristo por eventos vigentes.
5. Há certa variedade na exata extensão da tribulação. Isso é parcialmente dependente de como o termo
tribulação é usado com respeito à septuagésima semana de Daniel, em Daniel 9.27. Por conta do que foi
dito por Jesus em Mateus 24.21, alguns dispensacionalistas usaram o termo tribulação para se referir à
segunda metade do período de sete anos de Daniel ou a um período de três anos e meio.
6. Várias instituições dispensacionalistas produziram declarações doutrinárias que variaram em sua ênfase,
algumas delas refletindo interpretações dispensacionalistas antigas de forma mais explícita que outras.
7. Ainda hoje há críticos do dispensacionalismo que não conseguem entender esse ponto, e por isso,
frequentemente, suas críticas se aplicam apenas à uma forma (geralmente passada) da tradição
dispensacionalista, a qual não é mais defendida pela maioria dos dispensacionalistas atuais.
8. Robert L. Saucy, The Case for Progressive Dispensationalism (Grand Rapids: Zondervan, 1993) e Craig A.
Blaising and Darrell L. Bock, eds., Dispensationalism, Israel and the Church: The Search for Definition
(Grand Rapids: Zondervan, 1992). Para uma pesquisa em alguns desenvolvimentos no dispensacionalismo
a partir do período clássico até o começo dos anos 80 e os problemas de definição do termo
dispensacionalismo veja Craig A. Blaising, “Doctrinal Development in Orthodoxy” e “Development of
Dispensationalism by Contemporary Dispensationalists”, Bibliotheca Sacra 145 (1988): 133-40, 254-80; e
“Dispensationalism: The Search for Definition” em Dispensationalism, Israel and the Church. Por volta do
começo dos anos 80, vários artigos levantaram questões acerca da proposta de Charles Ryrie a respeito da
condição sine qua non do dispensacionalismo (composta por três elementos, a distinção entre Israel e igreja,
uma hermenêutica literal consistente e a unidade doxológica das dispensações; Charles Ryrie,
Dispensationalism Today [Chicago: Moody, 1965], pp. 43-47). Ao focar na característica central dessa
proposta, Israel e a igreja, o trabalho de 1992, Dispensationalism, Israel and the Church, revelou que o
dispensacionalismo estava atualmente passando por uma importante revisão no nível do que havia sido
anteriormente considerado essencial para o sistema. Essa revisão foi demonstrada como sendo amplamente
embasada no que as Escrituras dizem tanto sobre a relação quanto sobre a distinção entre Israel e a igreja. O
capítulo final deste livro propõe uma base ampla para definir a tradição dispensacionalista e dá um
panorama do dispensacionalismo progressivo. Ele deve ser lido em conjunto com o presente trabalho. O
leitor deve observar, no entanto, que alguns rótulos diferentes são usados para fazer uma periodização da
história do dispensacionalismo. Esses rótulos foram escolhidos em relação à forma como os
dispensacionalistas dos diferentes períodos podem definir o dispensacionalismo (o assunto desse livro é
sobre a definição de dispensacionalismo). Os rótulos no presente livro estão melhor adequados como
designações gerais das diferentes fases da tradição dispensacionalista. Consequentemente, deve-se notar que
o dispensacionalismo clássico neste livro abrange as categorias que no trabalho anterior foram chamadas de
Brethrenismo, Pré-milenismo de Niágara e o Scofieldismo. O dispensacionalismo revisado neste trabalho
refere-se ao que anteriormente foi chamado de dispensacionalismo essencialista.
9. Essa distinção levou a um espírito de separatismo da parte dos Irmãos exclusivistas em relação às outras
formas de cristianismo organizado. No dispensacionalismo americano, a distinção ajudou a suportar o
separatismo do fundamentalismo, porém, assim como no Movimento dos Irmãos, ela poderia ser facilmente
invocada para outros graus de separação. Consequentemente, essa separação pode ser facilmente aplicada
contra o ideal ecumênico do dispensacionalismo primitivo.
10. Para uma lista das dispensações ensinadas na Bíblia de Estudo Scofield, veja o quadro no capítulo 4.
11. O dispensacionalismo clássico acreditava que o Espírito seria dado à humanidade terrena no milênio e
no estado eterno; não obstante, o dom do Espírito a humanidade terrena era grandemente distinguido do
dado ao povo celestial.
12. Lewis Sperry Chafer, Systematic Theology, 8 vols. (Dallas: Dallas Seminary Press, 1948), 4:40.
13. Veja o capítulo 5.
14. Bíblia de Estudo Scofield, nota em Mateus 3.2.
15. É dito que o batismo do Espírito é o que diferencia a igreja de Israel. Entretanto, o batismo do Espírito
é em si definido como o relacionamento com Cristo que faz a igreja ser igreja. Consequentemente, ficamos
apenas com uma distinção nominal, mas que foi vigorosamente defendida, pelo menos por alguns. Alguns
dispensacionalistas revisados, entretanto, começaram a questionar a importância dessa distinção na
eternidade (veja Robert W. Cook, The Theology of John [Chicago: Moody, 1979], pp. 226-227n.27). Esse
processo contínuo de avaliação e revisão acabou eventualmente levando ao dispensacionalismo progressivo.
16. Ray C. Stedman, Body Life (Glendale, Calif.: Regal, 1972).
17. Veja Gene A. Getz, Sharpening the Focus of the Church (Chicago: Moody, 1974); e The Measure of a
Church (Glendale, Calif.: Regal, 1975).
18. Para uma resposta dispensacionalista revisada ao assunto mais abrangente da responsabilidade social,
veja Charles Ryrie, What You Should Know About Social Responsibility (Chicago: Moody, 1982).
19. Charles C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1965), pp. 45-46.
20. Charles C. Ryrie, The Basis of the Premillennial Faith (Neptune, NJ: Loizeaux Bros., 1953), pp. 106,
115, 118.
21. George E. Ladd, Crucial Questions About the Kingdom of God (Grand Rapids: Eerdmans, 1952).
22. O uso polêmico desse tipo vago de declive argumentativo geralmente aparece quando um crítico carece
de substância. Ainda que Ladd defendesse o pré-milenismo, por causa de Apocalipse 20, dispensacionalistas
revisados tentaram tratá-lo como um amilenista “fechado”. A tática, ainda que polemicamente efetiva
dentro dos círculos dispensacionalistas, foi uma representação injusta da posição de Ladd.
23. Alva J. McClain, The Greatness of the Kingdom (Winona Lake, Ind.: BMH Books, 1959). Essa visão
também é compartilhada por Herman Hoyt em The End Times (Chicago: Moody, 1969); e em
“Dispensational Premillennialism”, em The Meaning of the Millennium, ed. Robert G. Clouse (Downers
Grove, Ill.: InterVarsity, 1977), pp. 63-92.
24. A discussão de Tossaint do reino pode ser encontrada em seu comentário sobre Mateus, Behold the King
(Portland: Mulnimah, 1980).
25. Charles C. Ryrie, Basic Theology (Wheaton: Victor Books, 1986) [edição em português: Teologia Básica
(São Paulo: Mundo Cristão, 2004)], pp. 397-99.
26. Ibid., pp. 398-99.
27. Ibid., compare p. 259 com pp. 398-99.
28. As distinções de Walvoord dos diferentes reinos pode ser encontrada em Major Bible Prophecies (Grand
Rapids: Zondervan, 1991) [edição em português: Todas as Profecias da Bíblia (São Paulo: Editora Vida,
2000)], pp. 212-13, 218, 361-62.
29. Para declarações recentes de Walvoord sobre esse assunto veja Major Bible Prophecies (Grand Rapids:
Zondervan, 1991), pp. 413-14; e Prophecy: 14 Essential Keys to Understanding the Final Drama (Nashville:
Thomas Nelson, 1993), pp. 167-75, cf. pp. 74-79. É curioso que Walvoord use uma leitura literalista de
alguns dos elementos da visão de João em Apocalipse 21-22 (que ele acredita que evidencia a
descontinuidade com a criação presente) para negar uma visão “literal” da eternidade nas profecias do
Antigo Testamento de um reino eterno (relegando aquelas promessas para um milênio cuja duração e
qualidade são radicalmente diferentes do estado “eterno”).
30. A visão de Pentescost pode ser encontrada no seu livro Things to Come; A Study in Biblical Eschatology
(Grand Rapids: Zondervan, 1958) [edição em português Manual de Escatologia (São Paulo: Editora Vida,
1998)], esp. pp. 427-583. Um resumo mais recente apareceu em Thy Kingdom Come (Wheaton: Victor
Books, 1990).
31. Pentecost, Things to Come, p. 562.
32. Deve-se notar o papel do dispensacionalista Erich Sauer, que levantou várias críticas contra a visão
clássica (de Scofield) do reino. Os dispensacionalistas revisados não responderam às críticas de Sauer, mas
suas visões tiveram um efeito no desenvolvimento do dispensacionalismo progressivo. Veja Erich Sauer,
From Eternity to Eternity: An Outline of the Divine Purposes, trad. G.H. Lang (Grand Rapids: Eerdmans,
1954), ver esp. pp. 175-77, 185-94.
33. Em outras palavras, os dispensacionalistas clássicos tinham os santos do Antigo Testamento, judeus e
gentios, dentro da classe das pessoas celestiais, juntamente com a igreja desta dispensação. Os santos do
milênio, judeus e gentios, deveriam habitar na terra. Os dispensacionalistas revisados colocaram os santos
do Antigo Testamento e os santos do milênio juntos na eternidade. Consequentemente, no
dispensacionalismo revisado, os santos judeus do Antigo Testamento e o Israel milenar se uniram para
produzir uma categoria: os remidos de Israel. O mesmo era esperado dos gentios do Antigo Testamento e
do milênio. Entretanto, judeus e gentios da igreja foram mantidos distintos desses outros judeus e gentios
por toda a eternidade.
34. O Novo Testamento às vezes traça tipos verticais e correspondências baseadas na ascensão de Cristo ao
céu. Hebreus fala de um tipo de tabernáculo entre os terrenos e os celestiais (Hb 8.5; 9.23). Porém,
Hebreus também nos lembra que a cidade acima é a cidade que está vindo no futuro escatológico
(Hb 13.14; cf. 12.22-24). Consequentemente, mesmo na tipologia de Hebreus, há uma relação
“horizontal” histórica do presente e do futuro que é a culminação e o cumprimento das relações verticais
vistas no presente.
PARTE DOIS
HERMENÊUTICA
por Darrell L. Bock
CAPÍTULO 2

INTERPRETANDO A BÍBLIA: COMO LEMOS OS TEXTOS

“Prática sem teoria é cega, mas teoria sem prática é burra”, observa N.T. Wright,
notável erudito do Novo Testamento, em The New Testament and the People of
God.1 Essa citação nos adverte em nossa abordagem de interpretação da Bíblia.
Ela nos avisa que a interpretação precisa casar a teoria com a prática. Podemos
criar expectativas sobre como desejamos que a interpretação da Bíblia funcione
ou signifique, mas, no fim, devemos testar essas teorias dentro do texto. Como
intérpretes, devemos perguntar por que vemos o texto como vemos. Isso é
especialmente importante em um mundo onde muitas posições concorrentes
existem acerca do que a Bíblia diz. O que cria tal diversidade e como nos
engajamos na discussão acerca de tais diferenças? Como alguém resolve as
opiniões? É através da disciplina conhecida como hermenêutica, ou o estudo de
“como determinamos o que uma passagem significa”.
Para alguns, interpretação é como o popular comercial da Nike: assim como
alguém meramente amarra um tênis novo de basquete e toca o chão para “Just do
it” [“apenas faça”], então o intérprete deveria meramente abrir o texto e “apenas
leia”. Infelizmente, não é tão simples assim. Teólogos e estudantes de literatura
têm debatido há muito tempo sobre como ler textos; especificamente nas
discussões do século XX ocorreram muitas idas e vindas. O debate se focou em
quatro elementos interligados que influenciam nosso entendimento dos textos:
(1) o autor, (2) o texto, (3) nós mesmos como leitores e (4) as cosmovisões que
nós e o texto trazem para a leitura. Diferentes abordagens hermenêuticas
argumentam por uma amplitude diferente de prioridades e relacionamento entre
esses quatro elementos, mas todos concordam que cada um tem um impacto
sobre como percebemos os textos. Na interpretação bíblica, trabalhamos com
todos os quatro elementos. Procuramos entender as perspectivas do autor e a
maneira na qual ele expressa suas ideias no texto. Ao mesmo tempo, devemos
também estar cientes do fato de que nosso entendimento pode ser perspicaz, ou
limitado, ou influenciado por nossas próprias perspectivas como leitores. De
fato, o que surge é que todos têm uma “hermenêutica” (uma rede de
entendimento com a qual alguém se aproxima de um texto) que impacta a
“Hermenêutica” (os princípios interpretativos usados para encontrar significado
no texto). Esses dois termos intimamente relacionados resumem dois lados
intrinsecamente ligados de uma mesma moeda da interpretação. A falha em
prestar atenção ao outro lado da moeda resulta numa confusão acerca de como
alguém entende o texto da Bíblia.
Neste capítulo, discutiremos a interação dinâmica entre autor(es), texto,
leitores e cosmovisões, concentrando-nos em pares. Esse foco pode parecer de
alguma forma mecânico e tedioso, como um arremesso sendo analisado por um
computador, mas é nossa esperança que essa análise capacite o leitor não para
“simplesmente fazer”, mas fazer bem. Como intérpretes, devemos ser sensíveis a
(1) como nos aproximamos dos textos (ou falamos a eles) e (2) como deixamos o
texto falar a nós. Iremos trabalhar de trás para frente, a partir de como um texto
é lido, em vez de como o texto é criado.
COMO NOS APROXIMAMOS DO TEXTO: OLHANDO POR UM PRISMA
Leitores e Cosmovisões, Parte 1. De acordo com Charles Ryrie: “Hermenêutica
é a ciência que fornece os princípios de interpretação. Esses princípios guiam e
governam o sistema de teologia de qualquer um. Eles devem ser determinados
antes da teologia de alguém ser sistematizada, mas na prática, o contrário é
geralmente verdade”.2
Reconhecendo que há diferentes formas pelas quais todos interpretam a
Bíblia, Ryrie nos adverte que nós devemos saber como chegamos ao texto antes
de construir uma teologia acerca dele. Os céticos geralmente afirmam: “podemos
fazer a Bíblia dizer qualquer coisa”. Isso não é correto, mas é verdade que lemos
nossas próprias ideias dentro do texto ou o interpretamos mal devido às nossas
próprias limitações de conhecimento e entendimento. De fato, cada um de nós
tem sua própria forma de ver, uma rede de entendimento, que impacta o que
esperamos ver no texto, as questões que perguntamos, e consequentemente, as
respostas que obtemos.
Tanto nossas limitações quanto nossa rede de entendimentos se combinam
para formar um prisma através do qual interpretamos a realidade e através do
qual lemos os textos. Essa é nossa cosmovisão. Não importa quão bom seja o
texto que lemos, ele sempre chega até nós através do prisma que construímos da
realidade.
Agora, muitas pessoas diriam que esse prisma é meramente uma questão de
“pressupostos”. Se alguém tem boas pressuposições, fica mais próximo da
verdade do que alguém que tem más pressuposições. Porém, as cosmovisões não
são tão simples. Elas são o resultado tanto de pressupostos como o que podemos
chamar de “pré-entendimentos”.
Qualquer pressuposição é um elemento no pensamento de alguém que não
está aberto para negociações, a menos que venha sob extrema coação. É uma
convicção bem fixada na qual percepções ou visões são edificadas, podendo ser
conscientes ou inconscientes. Imagine-se um leitor medieval da Bíblia e chegue a
Salmos 19.4b-6, “Nos céus, ele estendeu uma tenda para o sol, que é como um
noivo que sai do seu aposento e se lança em sua carreira com a alegria de um
herói. Sai de uma extremidade dos céus e faz o seu trajeto até a outra; nada lhe
escapa ao seu calor”. O leitor medieval teria dito para você que isso descreve
como o sol se move ao redor da terra. Sua pressuposição acerca do universo,
compartilhada uniformemente com outros naquela época, era que a terra estava
no centro e tudo girava em volta desse centro da criação de Deus. Esse era o
prisma através do qual o mundo era entendido. Enquanto essa suposição fosse
defendida, isso seria um aspecto da interpretação do verso. O assunto que
estamos preocupados aqui não é se essa pressuposição estava certa ou errada, mas
que ela existia e influenciou a forma que o texto era compreendido.
Poucos séculos depois, os astrônomos, usando telescópios, começaram a
argumentar que a terra não está no centro do universo. Aqueles com a
pressuposição original da terra no centro, e que não consideravam suas
pressuposições negociáveis, chegaram a considerar essa posição de forma bem
negativa, provavelmente porque era um desafio direto a como eles viam a
realidade e o retrato de Deus disso. Eles não podiam ver a realidade de forma
diferente. As lentes estavam fixas nesse ponto, por causa de uma pressuposição
essencial.
Por outro lado, os pré-entendimentos são crenças ou percepções fluídas, pois
estão abertas para ajustes, refinamentos ou desenvolvimentos através de
interações e reflexões adicionais. Alguém com uma pressuposição acerca da terra
no centro do universo poderia olhar para a evidência astronômica e
consequentemente afirmar: “isso é uma nova consideração; observarei a questão
de perto”. No momento em que essa abordagem é adotada, uma pressuposição
dentro do prisma se torna um pré-entendimento. A investigação então continua
em um nível diferente daqueles que mantém a pressuposição que a terra está no
centro. A seguir, é feita uma sugestão de que tal linguagem no salmo é
“fenomenológica”, isto é, ela descreve a realidade como a percebemos como
fenômeno e não como ela é cientificamente. Se alguém com um pré-
entendimento acerca da terra no centro adota essa sugestão literária acerca da
interpretação do texto e vem a acreditar que a terra não está mais no centro do
universo, então tanto os seus pré-entendimentos nesse ponto quanto a sua
cosmovisão, até certo nível, mudaram. A visão dos detalhes da cosmologia e da
Bíblia mudam, embora a pessoa permaneça teísta no nível mais básico.
Este é senão um exemplo de uma área crucial que impacta nossa percepção
em muitos níveis, apesar de não a examinarmos cuidadosamente. Então, que
diferença faz a cosmovisão, o pressuposto e o pré-entendimento?
Primeiro, todos nós vemos o mundo com pressuposições; isso é uma coisa
que não podemos negar. Uma questão importante é quais pressuposições temos
que são úteis e quais não são. Pode-se afirmar que as pressuposições que são úteis
são aquelas da Bíblia, mas já vimos o potencial de ler algo como “bíblico” que
pode não ser. Logo, devemos averiguar cuidadosamente o que faz com que uma
perspectiva seja de fato bíblica.
Segundo, todos nós possuímos pré-entendimentos, apesar de não estarmos
conscientes de todos eles. Ao examinarmos uma questão ou o texto, é útil
considerar como e por qual motivo estamos nos aproximando deles. Algumas
vezes, é o diálogo com alguém que pensa diferente de nós que nos ajuda a
compreender por que vemos as coisas da forma que vemos.
Terceiro, algumas mudanças no pré-entendimento não alteram a cosmovisão.
Elas simplesmente abrem a mente de alguém para examinar alternativas ou criar
a possibilidade de novas categorias para o entendimento ao olhar para a questão
de uma forma nova. Porém, outras mudanças no pré-entendimento impactam a
cosmovisão. Estar aberto à questão do que está no centro do universo abriu a
possibilidade de uma resposta literária ao dilema, ainda que alguém nunca tenha
respondido à questão original de onde está o centro do universo! De fato, se
tornou uma questão teológica menos importante como um resultado da
mudança na cosmovisão.
Quarto, nem toda pressuposição ou pré-entendimento é boa, assim como
nem toda pressuposição ou pré-entendimento é má. Na verdade, algumas
pressuposições deveriam operar mais como pré-entendimentos. Por outro lado,
algumas pressuposições e pré-entendimentos já são o produto de reflexão e
podem ser mantidas com boas razões. Nem toda mudança no entendimento é
boa, já que fazemos boas e más decisões, mas nunca poderemos aprender sem
estarmos abertos para mudanças em nosso pensamento.
Quinto, alguns pressupostos e pré-entendimentos são o produto de um
tempo ou cultura em que alguém vive. A visão medieval da realidade foi definida
pelos limites da cosmovisão de seu tempo. Somente à medida que novas
informações abriram novas possibilidades, o elemento textual pôde ser
considerado a partir de novos ângulos.
Mais importante, a cosmovisão é uma combinação de pressupostos e pré-
entendimentos que existem em diferentes combinações em diferentes pessoas.
Eles influenciam perspectivas e impactam a interpretação; eles também podem
criar diferenças na leitura. Porém, se o papel deles for apreciado, eles podem se
tornar o assunto de uma discussão frutífera, mesmo havendo discordância. Ainda
assim, os impasses existem onde as pressuposições diferem. Aqueles que têm uma
cosmovisão que acredita em milagres lerão a Bíblia de forma diferente daqueles
que insistem que milagres não podem ocorrer. É impossível que eles concordem
com o papel dos milagres na Bíblia. Porém, mal-entendidos também podem
existir onde pré-entendimentos diferem. Saber as diferenças é importante, pois
só é possível discutir pré-entendimentos quando eles são conhecidos. Várias
pessoas muito rapidamente confinam toda discordância ao nível da
pressuposição e assim dizem, com efeito, que não podemos discutir as nossas
diferenças. Porém, pode haver oportunidade de engajamento em discussões
mutuamente frutíferas acerca do texto, desde que seja possível fazer uma
distinção entre pressuposição e pré-entendimento.
Então, reconhecemos que nós como leitores contribuímos (correta ou
incorretamente) para nossas interpretações do texto. Veremos agora dois outros
elementos envolvidos na abordagem do processo interpretativo, o(s) autor(es) e o
texto.

Autor(es) e o Texto. O surgimento da Bíblia começou com comunicadores cuja


mensagem eventualmente acabou em textos. Isso é uma forma indireta de dizer
que a Bíblia tem autores, mas é importante reconhecer que geralmente a Bíblia
contém uma mensagem mediada. Essa mediação ocorre de várias formas:
autoridade, mensagem e história.
Mediação da autoridade significa a comunicação da vontade divina através dos
autores humanos. Mediação da mensagem diz respeito à questão do orador da
mensagem, bem como o autor do texto. Essas não são as mesmas coisas. Por
exemplo, Jesus, a figura central do Novo Testamento, não escreveu um único
livro. Em vez disso, está presente através dos olhos e das palavras dos quatro
evangelistas. Esse primeiro tipo de mediação de mensagem é notório nos
evangelhos, onde geralmente é contada a mesma história acerca de Jesus, mas
com palavras diferentes. Em segundo lugar, alguns salmos individuais são
atribuídos aos “filhos de Corá” (Sl 84-85), fazendo com que sejam o produto de
uma múltipla autoridade humana. A produção de outros textos, como as
epístolas, é mais simples, já que apenas um autor humano produz sua mensagem.
E indo mais além, podemos dizer que a Bíblia não é sobre meras ideias abstratas,
mas sim sobre eventos, experiências e ideias que se relacionam à atividade ou
presença entre pessoas. Esses relatos sobre eventos direcionados divinamente
apresentam a mediação de Deus na história. É importante também perceber que
esse relato em si é uma parte inseparável do terceiro tipo de mediação, a
mediação da história. Em outras palavras, há a atividade de Deus na história e
então, há a apresentação daquela história através de autores humanos. Esses
níveis múltiplos de mediação tornam a discussão acerca do significado algo
complexo, porque as várias considerações descritas acima são em si mesmas
complexas e inter-relacionadas.
Tal complexidade não deveria ser perturbadora, pois ela serve como base para
a profundidade, beleza e complexidade da mensagem bíblica. A Bíblia se torna
uma bela tapeçaria com vários fios de considerações tecidos através dela. Parte
dessa diversidade surge dos vários gêneros ou formas literárias que os autores
usam para transmitir sua mensagem, um ponto para ser examinado
posteriormente.
Além das complexidades de uma mensagem mediada, é necessário também
considerar o conceito teológico de inspiração. A realidade da inspiração requer
que qualquer discussão do significado do texto bíblico tenha em vista múltiplos
autores (o humano e o divino), assim como o orador ou o evento histórico
associado com sua mensagem. A intenção de quem deve ser procurada? Elas são
sempre as mesmas?
Esse é um debate acalorado. Alguns argumentam que não podemos obter
acesso ao autor humano, então somos deixados com o texto que Deus nos deu. É
a Escritura que é soprada por Deus e é a Escritura que estudamos, então é o
significado das Escrituras que devemos buscar. Porém, aqueles que são contrários
respondem: pode um texto por si mesmo – destituído de seu contexto social,
histórico e literal – gerar significado? O significado do texto, se não estiver unido
à comunicação original do autor, não poderá ficar à deriva de uma audiência de
leitores?
Essas questões profundas têm produzido muita discussão e não podem ser
reduzidas a uma escolha ou outra. Os autor(es) e o texto caminham juntos. Essa
ligação é importante, porque ela afirma que estamos interessados não no estado
de espírito do autor durante a produção textual – nem em uma intenção que
pode ser reduzida a um propósito singular – mas na mensagem que ele buscou
apresentar no texto. É essa mensagem que o povo de Deus recebeu em última
instância e passou para gerações subsequentes. Mesmo em um livro como
Hebreus ou certos salmos, casos onde a autoria é incerta, temos acesso ao autor
em sua mensagem que nos foi deixada no texto. Foi o desejo de comunicar que
produziu esses textos e, portanto, o ponto de largada para a interpretação é a
busca dessa mensagem.
Para lidar adequadamente com a interpretação de um corpus mediado
envolvendo múltiplos autores humanos e um autor divino, três assuntos
precisam de atenção: (1) autoria inspirada, (2) texto e significado e (3)
reutilização dos textos por autores humanos posteriores.
Em certo sentido, esse capítulo inteiro e o próximo lidam com a questão da
autoria inspirada, isto é, a escolha de Deus de falar de modo verdadeiro e
autoritativo em várias épocas dentro da história através de agentes humanos.
Porém, é importante considerar o que inspiração significa na prática. Isso pode
ser resumido em três pontos.

1. Como a Palavra de Deus, o texto bíblico funciona em uma posição


privilegiada e única. Ele se dirige a nós como um texto exclusivamente
autoritativo. Deus fala verdadeiramente nessa mensagem.
2. Há uma concepção e uma unidade no todo. A Bíblia não é meramente uma
antologia, uma coleção conflitante de várias opiniões acerca de experiências
religiosas. Através dos textos dos vários autores, vem a mensagem do Deus
vivo e os relatos de como o povo o conheceu e pode vir a conhecê-lo.
3. Esses textos têm uma mensagem que se estende para além das definições
originais nas quais eles são dados. Algo acerca do que eles dizem permanece.
Seu valor intrínseco os fez serem preservados e passados adiante. Como isso
funciona exatamente é muito discutido e não podemos resolver todos esses
debates aqui. Porém, a interpretação da Bíblia é uma tarefa importante
porque Deus fala através das Escrituras, e sua autoridade surge a partir da
conexão dela com ele.

Isso nos leva ao assunto do texto e do significado. Alguns preferem trabalhar


com uma distinção entre significado e significância. Significado é o que o autor
pretendeu dizer na definição original no qual o texto foi produzido; significância
se refere a todos os usos subsequentes do texto, ou o que E. D. Hirsch chamou de
“significado anacrônico”. Nessa visão, toda interpretação legítima deve estar
unida ao significado do autor, enquanto toda significância será uma implicação
do significado. Há uma interpretação daquele sentido original e muitas
aplicações (significâncias).Em certo nível, isso é uma distinção útil, mas sua
simplicidade envolve toda uma série de assuntos quando alguém está lidando
com a descrição dos eventos que são parte de uma cadeia mediada. É correto
distinguir entre o que o texto diz à sua audiência original e como ele continua a
falar para nós. Porém, o significado textual não é realmente limitado a
reproduzir o que o leitor pensa que o autor pode ter pretendido. Em um sentido,
a determinação do significado envolve essa tarefa descritiva; mas em outro
sentido, há uma diferença entre descrição e compreensão. A compreensão
geralmente surge dos eventos e suas sequências, em vez de serem inerentes aos
eventos em si. Uma vez que as Escrituras tratam de eventos interligados e não
simplesmente sobre ideias abstratas, o significado dos eventos nos textos tem
uma qualidade dinâmica, não estática.
A seguinte ilustração revela a distinção crucial entre descrição e
entendimento, enquanto revela o caráter dinâmico e multidimensional de cada.
Imagine um caipira australiano visitando os Estados Unidos no dia de eleição em
3 de novembro de 1992. O que ele observa em uma escola local são muitos
adultos colocando pedaços de papel em uma caixa. Ele é capaz de descrever
precisamente quais ações estão acontecendo, mas não sabe o significado do que
está acontecendo. Agora, os cidadãos americanos entendem que o que está
acontecendo não é algum tipo de ritual social estranho, mas uma eleição. Eles
têm um entendimento básico do evento, mas isso não é tudo.
Mais tarde fica claro que Bill Clinton ganhou e que os Estados Unidos têm
um novo presidente. Esse resultado reflete uma compreensão mais profunda
sobre o evento do que a compreensão que se poderia ter no momento em que ele
acontecia. O resultado também é, eu concordaria, parte do significado do evento
de votar na eleição geral de 1992 dos Estados Unidos. O significado surge a
partir de uma relação de eventos para eventos subsequentes (a contagem de votos
do público).
Agora, o impacto imediato desse resultado fala de forma diferente
dependendo do ponto de vista de alguém. O resultado foi motivo de alegria
entre os apoiadores de Clinton, mas motivo de tristeza entre os seguidores de
George Bush, pelo menos inicialmente. Posteriormente, alguns apoiadores do
Bush argumentaram que talvez o resultado foi bom, porque impediria que os
republicanos fossem complacentes, e se a revolução de Clinton falhasse, isso
abriria a porta para mais quatro anos republicanos em 1996. Isso mostra como o
mesmo evento pode falar de forma diferente; e de igual forma isso acontece com
os textos. Esses efeitos adicionais mostram como um evento pode render uma
variedade de respostas significativas, até mesmo complementares.
Até mesmo nesse ponto, não terminamos ainda. Qual foi o significado da
eleição de Clinton em termos da história dos Estados Unidos? Podemos
argumentar corretamente que ele terminou um reinado de 12 anos do governo
executivo republicano. Porém, isso é somente o seu significado a curto prazo.
Levará anos para avaliar seu real sentido (significância) historicamente. Com
um espaço de tempo amplo, podemos responder melhor à questão do significado
a longo prazo dessa eleição. Novamente, uma variedade de opiniões pode surgir.
Algumas certamente estarão certas, outras erradas, outras parcialmente corretas.
Tal sempre foi o caso em interpretar os eventos e os fatores que contribuem para
nosso entendimento deles.
Agora, alguém pode contestar que nossa ilustração é sobre eventos e não
sobre um texto de um autor, e portanto o argumento não se aplica. Porém,
imaginemos um comentário sobre a eleição escrito em 4 de novembro de 1992.
Nele o autor diz: “O voto de ontem foi um ponto de virada na política
americana”. O comentarista pode até mesmo elaborar as razões porque isso é
assim a partir da perspectiva do dia seguinte em uma reflexão sobre a eleição.
Essas razões refletem o que o comentarista quis dizer. Porém, o significado do
comentário e as razões para ele podem assumir mais profundidade e valor
conforme os eventos subsequentes revelam a precisão dos destaques do
comentarista. Um historiador citando o comentário anos depois poderá notar
como a frase “ponto de virada” foi perspicaz, mesmo que por razões além
daquelas que o comentarista notou. Ao ter a perspectiva do avanço da história
em uma sequência de eventos, o historiador pode comentar acerca tanto do
significado dos eventos quanto do sentido mais adequado cujas palavras do
comentarista eram verdadeiras.
Tal potencial para o desenvolvimento do significado dos eventos e
comentários acerca deles é especialmente grandioso quando os eventos discutidos
estão vinculados às promessas. Já que a Bíblia é fundamentalmente acerca de
promessas, a ligação dos eventos e o significado que se desenvolve a partir da
promessa é uma parte herdada da sua mensagem geral. Traçar essa ligação e seu
desenvolvimento é uma das principais tarefas do intérprete da Bíblia. O texto
bíblico deve ser estudado no contexto do desenvolvimento da sua história e não
simplesmente extraído de declarações isoladas a partir de eventos que as
retratam.
O ponto de nossa ilustração é que o significado dos eventos, como aqueles
relatados nas Escrituras, é parte de uma sequência dinâmica: o significado é
influenciado pela sequência de eventos expandidos a partir do evento original,
assim como pelo ponto de vista trazido a ele. Pode-se apreciar melhor o
significado dos eventos à medida que se obtém mais tempo para avaliar o
impacto desses eventos. Porém – e isso é um ponto crucial – o evento pode ser
examinado a partir de uma variedade de pontos de vista temporais ou ângulos de
perspectiva, cada um dos quais pode contribuir para uma apreciação de seu
sentindo geral. Em outras palavras, um significado de um evento não é
unidimensional, mas, em vez disso, multidimensional.
A realidade do texto mediado acerca dos eventos e a presença do autor divino
carregam implicações importantes para o significado no texto bíblico. Esses
fatores permitem que um texto fale além do seu autor humano, então, uma vez
que o texto é produzido, comentários sobre ele podem seguir em textos
subsequentes. A conexão à passagem original existe, mas não de uma forma que é
limitada ao entendimento do autor humano original, o texto subsequente pode
desenvolver o significado do texto original. Agora, é a natureza dos eventos em
sequência que dá a possibilidade do comentário. Mas é a presença de um autor
divino que dá a tal comentário a possibilidade de desenvolvimento, porque é
construído sobre o padrão da atividade de Deus e a presença da natureza do
autor divino. Esse comentário tem uma posição privilegiada devido a natureza
do autor divino. Por conta de um único autor se manter atrás dos vários textos e
autores humanos nas Escrituras, uma unidade autoral que transcende os autores
humanos permanece. De fato, é essa dinâmica única que permite a revelação
progredir e o plano de Deus ser revelado de tal forma que os textos posteriores
relembrem as promessas dos anteriores.
Isso levanta uma questão sobre a reutilização de textos. Olharemos esse
fenômeno mais de perto no próximo capítulo. Aqui, lidamos somente com o
assunto do significado e a reutilização de textos. Argumentamos na base da
qualidade dinâmica dos eventos. Reutilizar um texto para discutir um evento
subsequente é trazer esse texto a um novo contexto, e assim, aumentar seu
significado, ao associar novos níveis de referência e contexto ao texto anterior.
Isso adiciona um novo ângulo ao nosso prisma de entendimento através do qual
o texto foi previamente visto. Pode não ser tanto uma questão de mudar o
significado, alterando a mensagem, quanto adicionar referências ou contexto
para desenvolver o alcance do texto. Adicionar referências é adicionar ou
desenvolver significado. A mudança pode acontecer pela adição sem subtração
(ou distorção do significado). De fato, a falha em reutilizar textos dessa maneira
os relegam somente para sua configuração original e os tornam somente uma
curiosidade histórica.
Geralmente, tal reutilização de um texto gera uma ambiguidade no sentido
original, permitindo que ele represente uma gama de sentidos possíveis. Por
exemplo, o uso do termo “descendente de Abraão” na Bíblia tem uma
ambiguidade que permite que o mesmo se refira a Isaque, Jacó ou Israel em
Gênesis, mas especificamente e unicamente a Jesus em Gálatas. Ainda assim, até
mesmo em Gálatas 3, Paulo dá uma volta depois de argumentar pelo ofício
único de Jesus como o “descendente de Abraão” e chama todos aqueles que
creem em Jesus, tanto judeus e gentios, de “descendentes”. Cada um desses usos
é ditado pelo contexto e dependente dele. Cada uso também considera o uso de
certa perspectiva, período de tempo e cosmovisão.
Autores bíblicos podem geralmente reusar textos de uma segunda maneira.
Um sentido original se torna a base e padrão para um evento subsequente. Deus
age de formas similares em diferentes tempos, então aquele evento pode ilustrar e
explicar outro. Os dois eventos espelham um ao outro em abordagem e assim
podem estar ligados, até mesmo quando alguns de seus aspectos diferirem um do
outro. O que é compartilhado é o ponto essencial ou paralelo que é espelhado.
Isso envolve o que é geralmente chamado de tipologia da Bíblia, embora
talvez seja melhor chamá-lo de padrão de cumprimento. Exemplos incluem a
reutilização de imagens do Êxodo do Antigo Testamento para descrever um
segundo Êxodo nos profetas do Antigo Testamento e o uso de Melquisedeque, o
líder-rei-sacerdote, como um tipo de Jesus. A habitação de Deus no templo no
Antigo Testamento pode ser paralela ao Espírito Santo habitando em nós. Uma
tipologia pode não estar limitada a um evento original e um único paralelo
posterior, mas pode envolver múltiplos pontos de cumprimento. Novas imagens
da criação no Novo Testamento remetem para os motivos encontrados em
Gênesis e tem realização tanto no novo nascimento da salvação (2Co 5.17),
como na criação dos novos céus e nova terra (Ap 21.1).
A variedade de formas em que o significado atua, bem como as diferentes
formas de reutilizações dos textos, são fatores que revelam um ponto importante.
Interpretação não é uma questão de ver uma regra ou abordagem aplicada a cada
texto; envolve apreciar a variedade de formas nas quais Deus tece sua mensagem.
A Bíblia é como uma paisagem de um continente diverso. Assim como há praias,
desertos, colinas, planícies, vales, montanhas, ilhas, cânions, rios, golfos, lagos e
oceanos, também há uma miríade de formas nas quais Deus une o texto, a
mensagem, a verdade e o evento, para revelar quem Ele é. Para apreciar o que se
está vendo no texto bíblico, é importante entender o tipo de terreno em que se
está, e apreciar a possível variedade de terrenos que se pode encontrar.
Levantar essa questão sobre as diversas perspectivas e o desenvolvimento do
sentido não significa que existe um número infinito de entendimentos do texto
bíblico. Existe um significado legítimo e ilegítimo. Mas há também aspectos
complementares de significado, onde um ângulo adicional no texto revela um
elemento adicional da sua mensagem ou uma nova forma de relacionar as partes
de uma mensagem de um texto.
Então, como lidamos com a autoridade da Bíblia? Como lidamos com sua
variedade e profundidade?

O Texto e os Leitores, Parte 1. Uma premissa crucial de interpretação é que a


Bíblia é projetada para desafiar a nós e a nossa cosmovisão. Essa premissa
manifesta-se em cinco formas diferentes.
Primeiro, a Bíblia possui uma posição privilegiada, pois ela nos direciona. Sua
qualidade divina significa que ela fala com autoridade ao povo de Deus através
das eras. Sua habilidade de dirigir as eras não significa que podemos
simplesmente trazer textos diretamente ao nosso mundo, porque alguns ensinos
são limitados contextualmente. Essa limitação contextual pode indicar que uma
dada passagem, escrita e pretendida somente para um período fixo de tempo, se
aplica somente em certos contextos. Por exemplo, as leis do Antigo Testamento
relacionadas ao sacrifício, à comida impura ou ao mofo ilustram que nem tudo
nas Escrituras tem a intenção de ser praticado por todo o tempo. Porém, até
mesmo quando a lei não mais se aplica, ela ainda pode nos instruir. A discussão
de Paulo sobre a carne e os ídolos em 1 Coríntios 8-10 ou as lições do Êxodo
revelam como as leis ou eventos de muito tempo atrás podem continuar a nos
iluminar. Determinar quando tais limitações se aplicam e como elas são
sinalizadas é parte de um estudo mais avançado das Escrituras. Tais discussões
são geralmente difíceis para nós, mas elas devem ser buscadas para evitarmos
fazer a Bíblia dizer mais do que Deus quis.
Outras qualidades do texto surgem da sua posição privilegiada. Ele não
somente nos informa; ele nos chama. As Escrituras desejam a nossa resposta, e
não somente o nosso entendimento. À medida que nos desafia, nos leva à
reflexão. Se as Escrituras não nos fazem reexaminar a nós mesmos e o nosso
relacionamento com o mundo, ela provavelmente não está sendo lida
corretamente. Porém, a qualidade divina do texto, bem como sua complexidade,
dá às Escrituras um ar de mistério. Deveríamos ser tardios em acreditar que
descobrimos tudo até o último pingo no “i”.
Um segundo assunto que a realidade de um texto privilegiado levanta é o
papel do Espírito. Alguns desafiaram o chamado à humildade na leitura das
Escrituras, argumentando que o Espírito nos mostra o que o texto significa. Ele é
nosso professor. Porém, quando dois “intérpretes instruídos pelo Espírito”
argumentam posições mutuamente excludentes, um problema surge. Quem traz
a mensagem correta ensinada pelo Espírito? Como decidimos? Argumentaríamos
que essa questão enfatiza a obra de ensino do Espírito no lugar errado,
enfatizando a compreensão do conteúdo. João 14-16 descreve a obra do
Paracleto como um ministério de convencimento do mundo e instrução aos
santos por meio de encorajamento. Em outras palavras, o Espírito opera em
nossos corações para nos convencer da verdade do que lemos nas Escrituras e
para nos encorajar com respeito a como aplicamos o que é dito. Há uma
diferença entre entender o que o evangelho diz e aceitá-lo. Aqueles que
crucificaram Jesus entendiam suas alegações, mas as rejeitaram como não vindas
de Deus. Nossa argumentação seria que o Espírito está primariamente
preocupado com nossa capacidade de resposta. A vantagem de ver o Espírito
dessa forma é que ele amplia o escopo da leitura ao enfatizar a questão da
resposta.
Em terceiro lugar, há a questão da certeza e da clareza no entendimento da
Bíblia à medida que ela nos desafia. Por conta da profunda complexidade das
Escrituras, os numerosos pontos de julgamento que se aplicam à sua
interpretação e as limitações que trazemos à tarefa, é sábio reconhecer níveis de
certeza em nosso entendimento. Ao pedir tal atitude, a questão não é um
problema com o texto ou sua veracidade, já que é um texto divinamente
inspirado. Tampouco há uma negação de que existe um significado legítimo
para o texto. O problema é perceber honestamente nossas limitações em buscar
essa verdade. Em reconhecimento às nossas limitações, deveríamos classificar
nossas percepções acerca do texto. A famosa doutrina da “clareza das Escrituras”
foi aplicada pelos reformadores às porções centrais da sua mensagem, não aos
detalhes de cada doutrina. O credo apostólico menciona somente as doutrinas
mais fundamentais da fé. Não é preciso ser um leitor muito cuidadoso para
entender que Deus é o Criador a quem todas as pessoas devem prestar contas, e
que a Bíblia condena o pecado e chama todas as pessoas de pecadoras, e que
apresenta Jesus, o Filho de Deus, como a solução para o problema do pecado.
Porém, muitos outros assuntos são muito discutidos. Há valor em classificar
nosso nível de certeza acerca do que as Escrituras ensinam.
Na prática, uma escala de quatro categorias é útil. Primeiro, há aquelas coisas
acerca das quais não há dúvida: os fundamentos mais básicos da fé. Essas são
questões de convicção absoluta. Segundo, há aquelas questões onde estamos
cientes de que há diferenças de opinião, mas acerca das quais alguém está
bastante certo da visão preferida. Descreveríamos a visão de alguém aqui como
firme convicção. Uma terceira categoria é o caso onde há diferença de opinião,
mas agora o sentimento é que quando Deus nos levar ao céu, há a possibilidade
de descobrir que a outra pessoa estava certa. Essa categoria chamaríamos de
convicção leve. Por último, há aquelas áreas onde podemos jogar uma moeda,
porque nenhum de nós realmente sabe. Essa seria a incerteza genuína. O valor
dessa leitura do texto é que ela nos ajuda a focar nas questões principais das
Escrituras, ao mesmo tempo em que é sensível aos nossos próprios limites
conforme examinamos o texto. Tais categorias também podem facilitar a
discussão quando consideramos nossas diferenças uns com os outros.
O quarto ponto diz respeito à habilidade que o texto possui de nos desafiar e
desenvolver a categoria anterior. Podemos sempre saber melhor. A Bíblia é tão
profunda que pode nos fazer refletir mais acerca da nossa cosmovisão e nosso
relacionamento com Deus. Se sentir de outra forma é argumentar que possuímos
toda verdade e que não há nada mais que Deus tenha para nos ensinar. É nos
trazer para dentro do cânon.
Quinto e último, são dois perigos associados às interpretações – fazer a Bíblia
dizer muito ou pouco. Ambos os erros são perigosos. Imagine uma escala, de um
lado, onde a Bíblia diz muito pouco, resulta um pluralismo de pontas soltas que
trata toda verdade como relativa; no outro lado, há um tipo de farisaísmo que
regula e doutrina cada situação com pouco espaço para discussão acerca de
qualquer aspecto da vida. Deve-se ter cuidado para não se mover demais para
qualquer um desses extremos.
Em suma, a Bíblia possui a verdade, tem uma posição privilegiada e é capaz
de falar por si mesma ao nos desafiar a ver o mundo e a nós mesmos de maneira
diferente. Colocar-se diante das Escrituras em sujeição significa que tanto a
humildade quanto a transformação são atitudes às quais estamos
comprometidos, conforme Deus procura nos chamar para aprofundarmos nosso
relacionamento com ele. É o trabalho do Espírito nos convencer; o nosso
chamado é instruir, repreender e encorajar uns aos outros na tarefa, mas devemos
fazer isso com humildade e amor enquanto discutimos o que a Bíblia significa.
Essa responsabilidade coletiva mútua levanta as questões da tradição e
comunidade.

Leitores e Cosmovisões, Parte 2. Outro aspecto de como abordamos o texto é o


modo como nossa tradição – ou melhor, nossa subtradição – funciona para nossa
compreensão. A interpretação nunca é realmente um assunto individual, tendo
em vista que todos nós somos chamados para funcionar no contexto da
comunidade. Cada um de nós entra na comunidade unindo diferentes corpos,
cada um vindo de tradições teológicas distintas. Tais tradições enquadram como
fazemos perguntas ao texto. A tradição, nesse sentido, é valiosa, porque ajuda a
prover perspectiva e uma grade para a compreensão. Servindo como um guia, e
muitas vezes refletindo o julgamento coletivo de muitos crentes ao longo do
tempo ou dentro de uma localidade, uma tradição dá identidade e pode prover
uma base adicional para a unidade. Ela pode também operar como uma
verificação potencial contra idiossincrasias individuais, porém, ela não deve ser
uma tirana que manda em tudo.
Há um limite para o valor e autoridade de uma tradição. Uma tradição não
deve ser igualada com a autoridade das Escrituras. Ela não é o cânon. Isso
significa que ela também deve estar sujeita às Escrituras. Alguns aspectos da
tradição são realmente questões de preferência coletiva, em vez de algo exigido
pela Bíblia. E estar confortável em nossa comunidade geralmente inclui questões
de preferências e gostos pessoais.
A primeira igreja que um de nós estagiou tinha acabado de construir um
novo prédio. Durante um tempo, os membros lutaram sobre qual deveria ser a
cor do carpete no novo santuário. Aqueles que preferiam simbolismo,
pressionavam por um carpete vermelho, enquanto aqueles que se inclinavam à
estética optaram por azul. Era um debate sobre preferência, não sobre as
Escrituras. Muitas áreas que discutimos operam nesse nível. Não sabemos de um
texto claro que nos diga claramente qual ritmo musical ou que tipo de
instrumento deveria ser usado na igreja, ainda assim, sabemos de muitas
comunidades que lutam por causa da música no culto e com as percepções
associadas às escolhas musicais. Esses são geralmente debates sobre tradição,
associações e/ou gostos. Diferenças doutrinárias geralmente não são tão claras,
mas o mesmo princípio permanece. A tradição, apesar de nos impactar
significativamente, deveria ser autoritativa (versus meramente preferida) somente
quando a mesma refletir as Escrituras. Isso levanta a questão do teste quanto ao
entendimento e tradição, já que subtradições diferem entre si acerca de como o
texto é entendido.
Existem três elementos para testarmos qualquer visão ou tradição. Primeiro,
ela precisa refletir os detalhes do texto. Tal leitura também envolve o
julgamento, já que a interpretação é geralmente uma questão de decidir qual
significado é mais possível. Estabelecer que uma leitura do texto é possível não é
o mesmo que mostrar que é a forma mais provável de ler um texto. Segundo,
dentro de um escopo, ela deve ser abrangente. Isso significa que ela é apta para
explicar de uma forma mais satisfatória, se comparada às outras opiniões sobre
todos os textos relacionados ao tópico. Geralmente, se leio um texto e tenho o
sentimento “queria que esse texto não estivesse aqui”, isso significa que pode
haver algo acerca da maneira como eu uno uma doutrina que precisa de atenção.
Terceiro, deve haver consistência em como as partes se encaixam. Retornaremos
posteriormente ao tópico das várias formas que os textos se relacionam um com
outro. Às vezes, a discussão existe porque diferentes julgamentos são feitos sobre
a consistência.
Dois assuntos geralmente aplicados para tais disputas precisam de atenção.
Uma regra frequentemente usada para julgar disputas é chamada de “analogia
das Escrituras”. Ela argumenta que textos claros devem interpretar textos
obscuros. Embora seja uma boa regra, sua aplicação pode ser problemática, já
que a clareza é geralmente vista através dos olhos do observador. Tal regra,
quando mal aplicada, pode nivelar textos de tal forma que os façam significar a
mesma coisa quando talvez o relacionamento deles seja algo mais complexo.
Por exemplo, alguém pode argumentar que, porque Jesus é claramente o
“Filho de Deus” em termos de ser Deus encarnado no Evangelho de João, todo
texto que menciona “Filho de Deus” nos outros Evangelhos deveria ser lido
plenamente nesse sentido. O texto mais claro e completo interpreta o texto mais
incerto. Porém, muitas passagens nos sinóticos usam “Filho de Deus” como um
título de realeza para se referir ao ofício de Jesus, em vez de destacar o que sua
pessoa é. O resultado dessa má aplicação é a redução do escopo do ensino bíblico
acerca do Filho.
Outro problema ocorre quando se correlaciona um texto que declara uma
ideia de forma absoluta com outro texto que parece oferecer uma ressalva. Duas
abordagens para essa situação são possíveis. Alguém pode argumentar que a
declaração absoluta é aquela que controla, afim de que alguém encontre um
significado para o texto que oferece uma ressalva, mostrando que ele não é
realmente uma exceção de forma alguma. Ou pode-se tratar essa ressalva como
exatamente isso, uma limitação acerca de quando a declaração absoluta se aplica.
Um exemplo desse problema é o debate em torno das cláusulas de “exceção”
sobre o divórcio em Mateus, bem como a disputa sobre o que o termo
“imoralidade” significa nesses versos (5.32; 19.9). Alguns, enfatizando a
declaração absoluta, argumentam que a exceção não é realmente uma exceção,
mas em vez disso, é uma referência histórica ao casamento incestuoso de
Herodes, algo ilegal perante as Escrituras, concluindo então que nunca houve
um casamento de fato. Geralmente, apelos à consistência com textos sem
ressalvas, como Marcos 10.11-12 e Lucas 16.18, são feitos em favor dessa visão,
assim como também à simplicidade prática de manter uma visão contrária ao
divórcio. Outros, usando outra abordagem, argumentam que Jesus proíbe o
divórcio, exceto onde imoralidade sexual de vários tipos tenha ocorrido. Em tais
casos, o divórcio é permitido. Em outras palavras, a exceção em Mateus é uma
limitação da aplicação das passagens em Marcos e Lucas, onde nenhuma exceção
é notada. Essa posição apela ao sentido comum de “imoralidade” em outros
contextos e também menciona como Paulo parece permitir outra exceção no
caso de deserção por um descrente em 1 Coríntios 7. Essa abordagem também
argumenta: se Jesus realmente não detém quaisquer exceções em outro lugar,
então como Paulo poderia adicionar uma aqui? Jesus deve ter permitido uma
exceção para que Paulo também tenha adicionado uma.
Nosso objetivo não é resolver essa disputa particular, mas simplesmente
apontar duas formas distintas nas quais esses textos podem estar relacionados
entre si quando se discute a consistência. A resolução se torna uma discussão
acerca de qual abordagem faz um trabalho melhor de relacionar com precisão os
detalhes, que melhor lida com todos os textos e que possui mais coerência.
Julgamentos avaliativos são feitos ao longo do caminho. Isso nos ajudará como
comunidade a reconhecer que tais julgamentos estão sendo feitos em disputas
como essa.
Tais diferenças entre tradições geralmente giram em torno de como várias
partes do texto são ajuntadas. Tais diferenças requerem nossa atenção e
discussão, ao mesmo tempo em que levantamos a questão de como prestamos
atenção aos textos como parte de várias comunidades.

O Texto e os Leitores, Parte 2. A comunidade é saudável porque ela pode fazer


com que cada indivíduo venha a examinar suas próprias visões e corrigir suas
perspectivas. Além disso, muitas dessas diferenças de perspectivas são uma
questão sobre qual o ângulo está sendo tomado no trato do assunto. Algumas
disputas são uma questão de genuína diferença, mas outras, sugerimos, são uma
questão de ênfases diferentes acerca do ângulo usado para avaliar a questão. Às
vezes, discussões abertas entre comunidades podem ajudar cada uma a apreciar
aspectos de ênfases das Escrituras que não poderiam ter sido consideradas de
outra forma. Os envolvidos em tais discussões ainda podem acabar com alguma
discordância acerca da ênfase relativa entre como as partes estão relacionadas,
porém, como resultado do diálogo, podem deixar claro onde concordam, podem
se aproximar um do outro, ou podem determinar mais precisamente onde e
porque suas diferenças existem.
A interpretação de textos difíceis geralmente tem uma característica
multidimensional. Às vezes, uma dada tradição olha para a questão a partir de
um ângulo somente. Um olhar no texto de outra perspectiva pode abrir
possibilidades ou permitir uma correlação nova dos textos. Assim como a
efetividade do replay instantâneo em jogos de futebol é uma questão de olhar
para a jogada a partir do lado certo ou da combinação de ângulos, assim também
é na leitura do texto. Podemos melhorar nosso entendimento do texto ao
examiná-lo de vários ângulos. Por vezes, os diálogos entre tradições ou entre
comunidades podem nos ajudar a olhar para textos diferentes a partir de ângulos
diferentes.
Temos gastado um longo tempo discutindo como nos aproximamos do texto
e o que influencia essa abordagem. A interação entre autor(es), texto e leitor(es),
paralela à questão do texto e a cosmovisão do(s) leitor(es), impactam nosso
entendimento do texto. Temos observado como chegamos ao entendimento, e
os vários fatores que contribuem para a forma como vemos o texto. No fim,
nossa abordagem do texto deve estar embasada no texto; devemos nos esforçar
para permitir que ele fale. Sermos membros da comunidade de Deus, a qual
possui um texto-base, significa que haverá diálogo entre nós mesmos e o texto, e
também entre nós mesmos e os outros. Nenhum intérprete deveria ser uma ilha
em si mesmo. Devemos abordar o texto em humildade, a fim de que ele nos
desafie. Às vezes, esse desafio ao nosso entendimento vem a partir dos insigths
dos outros sobre o texto, ou a partir do questionamento de nossa própria
interpretação. Ao abraçarmos a mensagem do texto com humildade,
desenvolveremos uma convicção sensível sobre a verdade. Porém, devemos
sempre ter consciência sobre nossas limitações em entender essa verdade, de
modo que tenhamos um senso do nível de convicção e clareza com a qual
percebemos uma verdade em particular.

1. N.T. Wright, The New Testament and the People of God (Minneapolis: Fortress, 1992), p. 118.
2. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 86.
CAPÍTULO 3

INTERPRETANDO A BÍBLIA: COMO OS TEXTOS FALAM


CONOSCO

“Um importante aspecto do problema de definir o que é ‘literal’ é que, em


muitas instâncias, as palavras, e não as sentenças, possuem um sentido literal ou
normal. Além do mais, tanto para palavras quanto para sentenças, o contexto é
totalmente importante em determinar o sentido em qualquer determinado
ponto em um ato de comunicação. Quais contextos devem ser vistos e como eles
devem ser vistos, na determinação do sentido, é muito importante”, observa o
teólogo aliancista Vern S. Poythress.1
A teologia evangélica tem sempre discutido os princípios pelos quais
interpretamos a Bíblia. Como uma comunidade, compartilhamos uma herança
que leva a mensagem divina da Bíblia a sério. Se perguntassem aos evangélicos
acerca do método hermenêutico que usam, eles poderiam responder de variadas
formas. O crente comum pode dizer que lê a Bíblia “de uma forma simples ou
normal, como leria qualquer outro livro, mas reconhecendo que Deus é seu
autor em última instância”. Outros poderiam dizer que leem de acordo com “o
que significa para mim”. Mas para ser bem feita, o que deve envolver tal leitura?
Alguns teólogos responderiam que eles usam o “método histórico-gramatical”.
Na verdade, eruditos evangélicos têm estado confortáveis por algum tempo
descrevendo o método histórico-gramatical como sua abordagem à interpretação.
Isso significa buscar inicialmente o sentido do autor/Autor, como expresso no
texto, com uma sensibilidade à configuração textual original. Tal abordagem
demonstra que ler de acordo com “o que significa para mim” nos faz perder a
compreensão sobre o que o texto significava e significa. Porém, o que
exatamente envolve tal leitura?
Inspecionaremos essa abordagem em três categorias: (1) a histórica, (2) a
gramatical e (3) a teológico-literária. Esses são três componentes no ajuntamento
do quadro do significado das Escrituras e examinaremos em três subseções
distintas. Novamente, dividimos em pedaços o que é de fato um processo
interativo e dinâmico. Pense nessas três seções como sobreposições separadas que
juntas formam uma imagem vista do alto. Isso reflete o aspecto
multidimensional da interpretação. Primeiro, o nível histórico procura ser
sensível à mensagem da forma como ela chegou ao seu público inicial,
entendendo termos e ideias originais. Segundo, o nível gramatical, considera
como a terminologia dessa mensagem está disposta. Os termos não são
entendidos de forma isolada uns dos outros, mas em conjunto. Terceiro, o nível
literário-teológico destaca o fato de que há uma mensagem eterna e uma unidade
no texto, que é disposta literariamente de várias formas chamadas gêneros. Cada
gênero apresenta a verdade de sua própria forma e faz demandas únicas sobre
como ele deveria ser lido. Ler a Bíblia requer uma conscientização da natureza
mutável do terreno dentro do texto, assim como uma apreciação dos vários
ângulos usados para apresentar a verdade.
Uma subseção de final considerará como relacionar diferentes textos entre si,
ao discutir as várias formas que a Bíblia inter-relaciona as passagens. A categoria
da profecia e do cumprimento recebe atenção especial. O que surge é o que
chamaremos de método “histórico-gramatical-literário-teológico”. Essa descrição
quádrupla da hermenêutica é realmente o que muitos querem dizer quando
falam simplesmente do método histórico-gramatical. Apesar das diferenças
existirem em como aplicar o método aos textos individuais, há uma
concordância que essa é a abordagem mais apropriada para interpretar e
entender os textos. Então, o que está envolvido nesse método?
PINTANDO O CENÁRIO: INTERPRETAÇÃO HISTÓRICA
O primeiro contexto de interpretação é o histórico. A comunicação nunca ocorre
no vácuo. Uma mensagem utiliza categorias de entendimento que o autor
compartilha com a audiência. Mesmo que o autor esteja buscando criar novas
categorias de entendimento para sua audiência, a estrada tomada para alcançar
esse novo entendimento requer um rearranjo de antigas categorias ou fazer novas
associações que rompam antigas barreiras de entendimento. Para o leitor, o grau
de compreensão do texto depende, em parte, de compartilhar com o autor uma
rede de informações de pano de fundo. Isso inclui normas sociais antigas,
expressões culturais, fatos geográficos e históricos, assim como uma compreensão
da forma literária da comunicação.
Às vezes, a Bíblia não é clara para nós porque não temos informações de pano
de fundo suficiente para apreciarmos o texto. Podemos não compreender os
sentimentos de uma pessoa antiga diante de certos acontecimentos. Por conta do
acesso a tais informações ser algo um tanto quanto difícil certas vezes, é
geralmente esperado pelo leigo que o pregador ou o professor de Bíblia forneça
um pano de fundo importante, para que então, a compreensão do texto possa se
tornar mais clara. Esse problema da distância histórica pode ser um obstáculo
decisivo para lidar com a mensagem do texto.
Alguns tentam sobrepor esse obstáculo simplesmente relacionando o texto à
experiência presente. A falsa suposição é que atitudes, expectativas, costumes e
cosmovisões corresponderão ao longo de vinte ou mais séculos, que o mundo
bíblico é exatamente como o mundo moderno. Dizer isso não é negar a
possibilidade de laços comuns entre os dois períodos; tanto antes quanto agora,
pessoas experimentam as idas e vindas da vida. Devemos nos identificar com os
personagens bíblicos, pois tanto eles como nós somos humanos, mas devemos ser
cuidadosos para não assumir o que é verdade de nossos costumes e sentimentos
como verdade sobre os deles.
Como podemos compreender esses aspectos do mundo bíblico que nos
parecem tão estranhos quando os encontramos pela primeira vez? Como alguém
entra em uma máquina do tempo para viajar de volta por um longo período até
chegar a esses tempos e perspectivas tão antigas?
Primeiro, devemos reconhecer que temos acesso incompleto ao mundo
bíblico, pois nosso conhecimento é geralmente limitado aos artefatos e aos
escritos antigos que representam somente uma pequena porção do que uma vez
existiu. Em certo sentido, podemos dizer que nunca conseguiremos superar
inteiramente esse problema da distância. Nunca conseguiremos entender o
mundo antigo exatamente como as pessoas da sua época entendiam. Porém,
apesar de toda essa limitação, possuímos uma vasta gama de materiais que nos
mostram como a vida deles era vivida, nos ajudando então a nos aproximarmos
daquele mundo. Esses materiais nomeiam, ilustram, descrevem ou refletem os
principais eventos históricos, categorias antigas de pensamento, juntamente com
os costumes e ideias religiosas daquela época.
Na discussão a seguir, focaremos nos resquícios literários. Alguns deles estão
presentes na própria Bíblia, mas muitos deles estão contidos em textos extra-
bíblicos. Historiadores judeus como Josefo e Filo recontaram a história de
Gênesis até Malaquias de uma forma que nos permitirá ver como alguns
estudiosos judeus do primeiro século leram muitos textos escriturísticos. Josefo
até mesmo detalha o que aconteceu em Israel a partir do fim do período de 70
d.C. Textos judaicos sobre costumes religiosos e ensinos respeitados de sabedoria
e vida religiosa existem em coleções conhecidas como os apócrifos do Antigo
Testamento e pseudoepígrafos. Nos famosos Pergaminhos do Mar Morto de
Qumran, aprendemos acerca das visões e práticas de uma comunidade
separatista judaica. Esses textos nos mostram tanto a unidade quanto a variedade
de pensamento no primeiro século do judaísmo. As regras rabínicas da vida
diária do segundo século d.C. são encontradas na Mishná, mas algumas dessas
regras provavelmente retrocedem ao tempo de Jesus e dos apóstolos. Além disso,
várias obras greco-romanas revelam como aqueles fora do judaísmo viviam
naquele período. Vários documentos das várias culturas do oriente antigo
próximo nos falam acerca dos sumérios, egípcios, assírios, babilônios e outros
grupos étnicos, iluminando assim detalhes no Antigo Testamento.
Todos os documentos acima revelam como os antigos viveram e como
olharam o mundo. Eles não viam o mundo da mesma forma. De fato, a rica
diversidade da vida antiga em todos os níveis é algo evidente nesses textos. Tais
trabalhos não são verdades absolutas, mas descrevem a vida antiga e sua
perspectiva. Eles ajudam na formação de um pano de fundo para certas ideias
referidas na Bíblia. Os que se envolvem em um estudo sério da Bíblia podem se
beneficiar com o aprendizado sobre essas fontes e em como usá-las. Todos nós
podemos avaliar como tais fontes podem mostrar-nos a forma como as pessoas
viviam e pensavam no mundo antigo.
Dois exemplos podem ilustrar como esse material nos permite apreciar
melhor a mensagem da Bíblia. O primeiro é a declaração que Herodes é uma
“raposa” em Lucas 13.32. No uso coloquial do inglês, o significado normativo
figurado desse termo não tem nada a ver com um macho; ele se refere a uma
fêmea. O que quer que Herodes seja, ele não é esse tipo de “raposa”! Porém, até
mesmo a segunda opção contemporânea se refere a alguém que é astuto. Isso
também é o significado em alguns textos gregos antigos e nos pais da igreja
(Plutarco, Sólon 30.2; Dio Crisóstomo em Discursos 74.15). Entretanto, outro
sentido comum antigo é que “raposa” é alguém que é um destruidor ou um
carniceiro (Ct 2.15; Lm 5.17-18; Ez 13.4; 1Enoque 89.10, 42-49, 55). Esse
sentido de destruidor se encaixa bem com o contexto de Lucas 13, onde o
assunto é a tentativa de Herodes de destruir Jesus. Isso é um exemplo de onde o
uso figurativo histórico é bem coerente no contexto. É claro, a melhor evidência
antiga é aquela que é contemporânea ou a que certamente precede o evento que
está sendo estudado. Também é crucial que qualquer texto extra-bíblico que o
intérprete possa usar esteja próximo ao texto bíblico em termos de contato
cultural. A sensibilidade às datas e conexões pode evitar que alguém faça
associações precipitadas.
Um segundo exemplo é a Parábola do Bom Samaritano. O título ainda
subverte o efeito da passagem em seu contexto histórico original. A parábola é
bem conhecida. Um homem é dominado por ladrões e deixado para morrer.
Dos três homens que poderiam ajudar, somente um ajuda. O sacerdote e o levita
passam pelo outro lado da estrada, enquanto o samaritano para e ajuda o
homem. Por isso que a parábola é nomeada assim.
Porém, um estudo do judaísmo antigo mostra que isso é precisamente
contrário à expectativa antiga. Em seu contexto original, essa história teria sido
chocante, já que os samaritanos eram vistos com desdém como mestiços,
enquanto os sacerdotes e os levitas eram considerados piedosos e justos. Essa
visão dos samaritanos é clara tanto em um texto como João 4 quanto nas
descrições de Flávio Josefo (Antiguidades Judaicas 9.288-92; 11.340; 12.257) e
dos apócrifos.
De fato, na obra apócrifa intertestamentária judaica de Sirac lemos: “Duas
nações minha alma detesta e a terceira não é nem um povo: Aqueles que vivem
em Seir e os filisteus e o povo tolo que vive em Siquém” (50.25-26). O insulto
verbal contido nessa antiga e histórica obra não é claro se o leitor não conhecer a
geografia antiga. Siquém está localizada próximo ao Monte Gerizim, que é onde
os samaritanos adoravam e ofereciam sacrifícios a Yahweh, em vez de Jerusalém.
A localização distinta dos samaritanos para adoração e costumes diferentes
resultou em uma forte rejeição judaica. Então, a atitude de Sirac é que
samaritanos “nem sequer são um povo”. Ainda assim, um desses “inexistentes” é
que é usado como exemplo de próximo por Jesus. Dois mil anos de relações
públicas após essa parábola tiraram parte da aflição de seu sentido original. A
história de Jesus nunca nos chocará como chocou os ouvintes do primeiro
século. Porém, a reflexão sobre o pano de fundo antigo nos ajudará a não
somente ver que Jesus está exortando seus ouvintes a serem bons com o próximo,
mas perceber que algumas vezes o próximo vêm com roupas surpreendentes.
Entretanto, fazer uma leitura histórica também significa não ser anacrônico
em nossa abordagem ao texto. Devemos ser cuidadosos em não atribuir ao
entendimento dos destinatários do texto um conceito que só surge
posteriormente. Um exemplo é Gênesis 3.15, o que alguns chamam de “primeira
pista do evangelho”, o “Protoevangelho”. Esse entendimento argumenta que
Deus prediz que a semente de Eva, Jesus, esmagará a Serpente, Satanás. Agora,
no contexto do desenvolvimento do tema da semente de Adão na Bíblia, esse
significado acaba surgindo do texto, sendo uma leitura legítima da passagem.
Entretanto, é muito específico para a audiência original de Gênesis. Antes de
tudo, os primeiros leitores judeus do texto nunca souberam que o nome do
Messias seria Jesus. Além disso, no contexto do Pentateuco, a vinda de uma
figura real para a nação de Israel é, na melhor das hipóteses, somente aludida no
detalhe de uma passagem (Gn 49.10). Terceiro, a identificação específica da
serpente com Satanás não é algo claro dentro do Pentateuco. Todas essas
conexões surgem somente posteriormente nas Escrituras.
Então, o que o texto significava originalmente? Ele simplesmente apontava
para a introdução do caos dentro da criação como resultado do pecado. A
natureza estaria agora em conflito com o homem. Uma serpente, agora limitada
a rastejar pelo chão pela maldição de Deus, morderia o calcanhar do homem.
Enquanto isso, conforme o homem tentava se defender, ele buscava ferir a
cabeça da serpente. É claro, essa ênfase se encaixa com a mensagem de Gênesis,
explicando porque Deus levantou Israel – uma nação da graça e da promessa –
através da qual ele abençoaria todas as nações. Tal mensagem também prepara
para o ponto de reversão no Novo Testamento, da obra de Adão no segundo
Adão, Jesus Cristo.
O ponto é que o estudo historicamente sensível do Antigo Testamento pode
abrir um estudo adicional, para além dos assuntos destacados, no ensino do
Novo Testamento acerca do Antigo Testamento. Apesar do Novo Testamento
desenvolver os ensinos do Antigo Testamento como avanço da história divina,
não deveria ser perdido o ensino do Antigo Testamento no processo. Então,
sensibilidade histórica serve como um importante pano de fundo potencial para
a interpretação, mas as peças centrais do quadro vêm do texto – os contextos
gramaticais e literários da mensagem.
JUNTANDO AS PEÇAS: INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL
O segundo contexto para a interpretação é a combinação de expressões e palavras
juntamente tecidas através de sentenças e parágrafos. Perceba que não falamos de
palavras isoladas, pois palavras isoladas não carregam significados, somente
significados possíveis. A palavra “bruto” pode significar muitas coisas,
dependendo se sua audiência é composta de adolescentes, empresários ou outros
públicos. Alguém disse que palavras são como um jogo de xadrez. Elas adquirem
seus sentidos e importância a partir de outras palavras que estejam conectadas
com elas. Um peão é geralmente uma peça de xadrez insignificante, mas o
coloque em certas posições no tabuleiro e então ele será a peça mais importante.
Palavras são assim, e seu contexto literário-gramatical significa quase tudo. Deve-
se trabalhar nos textos dando atenção especial à relação dos termos com outros
termos na sentença e no parágrafo. Além do mais, tem de ser dada atenção ao
trabalho como um todo, seu estabelecimento histórico e o gênero da passagem.
Retornaremos depois à importância da natureza literária do texto, mas agora
focaremos nos termos.
Até mesmo as nuances das palavras podem mudar à medida que o contexto
muda. O termo “patriota” como um termo histórico, para um revolucionário
americano, é um termo positivo, mas fale de um alemão patriota que era leal a
Hitler na Alemanha nazista, a nuance muda significativamente. Finalmente,
mencione o termo “patriota” com referência à recente Guerra do Golfo e não
estará falando de uma pessoa, mas de um míssil. Então, textos se referindo a um
patriota americano, a um patriota alemão, ou a um míssil patriota terão
diferentes significados por causa dos seus contextos limitadores e identificadores.
Isso mostra o quão flexíveis são os termos e como é central o contexto para
determinar o significado, o que, na maioria das vezes, não é aleatório. Em outras
palavras, não se conta o quanto uma palavra é usada em uma forma em
particular, mas se pergunta se esse significado é o mais apropriado ao contexto
que se está sendo estudado. Olha-se para o pano de fundo e para os conceitos
com os quais os termos estudados estão associados.
É importante ressaltar que, na determinação do significado, pode haver
precisão ou distorção na percepção. Se eu disser a você “nós temos um gato”,
você imaginará um animal que não é um cachorro, morcego, rato ou macaco.
Mas você também pode concebê-lo como um gato de rua, um persa ou um
malhado. Só que agora você foi além do que queríamos comunicar, ou então
podemos ter dado pouca informação para revelar tudo o que queríamos sugerir.
Porém, para entender nosso ponto no nível mais básico, somente o primeiro
conjunto de discriminações de sentido era necessário. Um entendimento geral de
sentido de gato é bom o suficiente, apesar dos detalhes do sentido mais
específico poderem representar um tipo de distorção do nosso sentido. Alguém
que nos conhece bem saberia que temos um gato de rua cinza. Eles saberiam
imediatamente tudo que pudéssemos ter sugerido e não somente apreciariam o
sentido básico, mas também poderiam fornecer detalhes adicionais. Nosso ponto
é que geralmente podemos ter um sentido geral do ensino de um texto, mas
quanto melhor a consciência que temos sobre o pano de fundo de comunicação,
mais detalhes estaremos aptos a apreciar. À medida que incorporamos, de uma
forma sensível, mais do contexto, nosso entendimento pode ser aprofundado.
Por outro lado, uma regra geral de interpretação é que não se deve extrair um
termo técnico de uma palavra a menos que o contexto aponte para tal
necessidade. Um sentido menos específico é geralmente mais preciso do que ler
demais sobre um termo, principalmente por estarmos distanciados
historicamente do texto.
Nossa ilustração do gato revela outras características da interpretação. A
ilustração do gato tem a vantagem de nos permitir, os autores, explicar a você, o
leitor, o que estamos tentando comunicar. Entretanto, alguns níveis de distorção
de significado são inevitáveis na interpretação de textos antigos. Não podemos
perguntar aos escritores humanos o que foi pretendido. Na verdade, geralmente
um escritor não está ciente de todos os fatores que contribuem para a escrita e
escolha dos termos. Esses fatores significam que há um caráter provisório para
toda interpretação, não importa o quão cuidadosos sejamos.
Porém, esse caráter provisório não precisa resultar em relatividade. Algumas
distorções de sentido são triviais, enquanto outras são significativas. Aqueles que
entenderam que quisemos dizer “gato” e não cachorro, mas imaginaram um
malhado em sua mente, não foram realmente prejudicados pelo seu detalhe
incorreto, já que tudo o que desejamos comunicar foi a identidade básica do
animal doméstico. Por outro lado, se alguém tiver entendido que temos um rato,
e não um gato, esse alguém poderia não querer nos visitar! Nos textos, a única
forma que um intérprete pode lidar com o entendimento ou com o nível do
potencial de distorção é prestar atenção aos outros termos no contexto para
confirmar ou esclarecer melhor uma leitura. Se no contexto mencionarmos que o
animal possui pelos ou que faz “miau”, as outras evidências do contexto
confirmam uma identificação em detrimento de outra. Onde tal confirmação
adicional estiver faltando e o termo em questão for vago, deve-se ter muito
cuidado para não o entender de forma muito específica.
Duas outras características acerca das palavras são importantes. Algumas
palavras são obscuras, outras abrangentes, enquanto outras são bem precisas. A
Bíblia geralmente usa termos ou palavras abrangentes, que podem ser referidas
com mais especificidade ou podem assumir representações adicionais à medida
que o conceito é repetido depois nas Escrituras. Uma grande ilustração disso é o
conceito de servo. Em Isaías 49.3, o servo é chamado de Israel, mas em Isaías 53,
ele é descrito com os traços de um indivíduo. O Novo Testamento também
trabalha com essa ambiguidade. Em Lucas 1.54, Israel é o servo, mas em
Atos 8.32-33, o servo é associado a Jesus. Finalmente, em Atos 13.47, Paulo e
Barnabé descrevem sua missão em termos de servo ao citar Isaías 49.6. A figura
do servo descreve várias representações de Deus. Não é uma pessoa, mas muitas,
apesar de uma – Jesus – ser particularmente um aspecto chave do cumprimento
para o termo. Ele é sua realização de uma forma que outros não são. Perceba
como cada contexto revela a diversidade do uso. Um contexto não garante ou
dita como o termo é usado em outro contexto, apesar de poder ajudar a explicar
o relacionamento entre os vários usos.
De fato, há também um conceito histórico antigo em ação nesse tema
também. É a ideia de “um representando muitos” ou “muitos em um”. Jesus
como servo pode ser visto como o servo por excelência, um indivíduo fiel
representativo do que a nação de Israel tinha sido chamado para ser. Por sua vez,
Paulo e Barnabé podem ser vistos como estando “em Jesus” e assim assumem um
papel do servo como ele. Temos figuras similares hoje, como quando o
presidente fala por todos os cidadãos do país ou quando um grupo de advogados
em nome de um cliente.
Uma segunda característica dos termos é que a mesma ideia pode ser dita de
formas diferentes. Temas e conceitos bíblicos geralmente envolvem mais do que
um termo. Então, para limitar a procura de um conceito procurando a presença
de um termo específico pode, geralmente, resultar em subdesenvolver um tema
nas Escrituras. Um exemplo é que Jesus como Senhor (At 2.30-36) e Jesus como
Cabeça (1.19-23) são duas formas de retratar a autoridade regente de Jesus sobre
a igreja. Ambos os títulos estão associados com a imagem de Salmos 110.1, que é
um salmo régio (ou real). Perceba nesse exemplo, a presença da imagem sobre
estar exaltado e sentado à direita de Deus (Sl 110.1) ajuda a preencher o retrato
de “cabeça” (uma imagem régia ou real). Falar acerca do reinado de Jesus ou do
seu senhorio inclui discutir a sua liderança. De fato, Paulo pode ter escolhido
usar o termo “cabeça” para evitar confusão em contextos gregos nos quais ele
pregou acerca do tipo de regência de Jesus quando ele se assentou à direita de
Deus. Aqui, o estudo do pano de fundo histórico e o estudo de como um termo
é usado pode nos ajudar a sermos sensíveis à razão para tal uso. Ao colocar todos
os elementos juntos, a imagem sugere que Jesus transcende a regência política de
Roma. De fato, Jesus disse assim em João 18.36, quando declarou, “Meu reino
não é desse mundo”. Isso aconteceu porque o seu reino, é o reino de Deus. Ou,
como Jesus disse em outro lugar, “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o
que é de Deus” (Mt 22.21). Qual seja o tipo de regência que Jesus possuiu, ela
não representou uma ameaça vigente, direta a regência de Roma. Seu alcance nas
vidas das pessoas foi além da autoridade política, pois foi focada no coração. As
características históricas perfazem o cenário que compõe um contexto para a
interpretação, enquanto as palavras em seu contexto gramatical revelam as peças
de um quebra-cabeça. Um fator permanece a ser considerado. Deve-se colocar as
peças juntas à luz do todo, tanto à luz dos termos na variedade do gênero
literário usado para apresentar a mensagem bíblica, quanto à unidade teológica
dessa mensagem. Então, voltemos agora ao aspecto literário-teológico da leitura.
UNIFICANDO MENSAGEM E HISTÓRIA: LITERÁRIO-TEOLÓGICO
Seja Sensível ao Gênero. O estudo de gênero nos leva para a área da
interpretação que nos ajuda a unificar as peças da mensagem, mesmo que essa
unidade seja alcançada através do uso de uma ampla variedade de meios
literários. Podemos reconhecer esses gêneros porque podemos vê-los em grande
parte do mundo antigo também. Deve-se pensar sobre esse aspecto da
interpretação como sendo as Olimpíadas, uma grande ocasião feita de uma
variedade de esportes. Apesar de todos serem esportes, cada jogo é jogado por
suas próprias regras e tem suas próprias expectativas acerca de como ser jogado.
A variedade de literatura é da mesma forma. Ela tem uma mensagem, mas
transmite essa mensagem em uma variedade de formas e com uma variedade de
expectativas. Tentar jogar basquete com as regras do futebol nunca funcionará,
apesar de ambos usarem uma bola e necessitarem de agilidade nos pés. Ou pense
em instrumentos musicais, todos eles fazem música, mas em diferentes formas
com diferentes sons. Ninguém pode tocar um violino como um piano ou
bateria; nem deveria ser esperado que um violino soe como um piano ou como
uma bateria! Da mesma forma, ler a poesia dos Salmos como um livro histórico
é perder o impacto emocional e pictórico da mensagem, apesar de ambos os
gêneros transmitirem uma realidade acerca da experiência das pessoas com Deus.
Transformar a imagem e configuração do saltério em mera proposição teológica
é como tirar a paixão e força vital das suas veias.
Iremos resumidamente fornecer seis principais gêneros da Bíblia para tentar
destacar suas características dominantes. Cada um conta a história bíblica da sua
própria forma. Por história, queremos dizer a apresentação dos eventos, figuras
e/ou ideias acerca de Deus e a humanidade em uma sequência organizada. O
ponto é: seja sensível ao gênero quando estudar o texto.

1. Narrativa teológica. Aqui nos referimos aos livros históricos do Antigo e do


Novo Testamento – Gênesis a Ester e Mateus a Atos. Esses livros contam uma
história com um enredo acerca dos eventos. Eles discutem eventos que envolvem a
interação de Deus com a humanidade. Porém, eles fazem isso com temas,
personagens, um desenrolar de histórias e conflitos. Esses elementos todos
interagem uns com os outros para constituir a história e fornecer contato com a
vida. Os personagens geralmente representam não simplesmente indivíduos na
história, mas tipos de pessoas. A história em si é geralmente centrada em torno
de promessas ou esperança que pessoas têm em seu relacionamento com Deus.
Conflitos surgem porque um obstáculo fica no caminho daquela esperança. A
interação entre personagens, enredo e conflito, revelam temas e lições acerca do
caminhar com Deus. Uma narrativa teológica é mais do que uma coleção de
eventos passados e fatos. É a história de vida das pessoas expressa em termos de
esperança e desapontamento.
Por todo o triunfo do Êxodo, há uma nota trágica para o fim da vida de
Moisés, já que ele não pode entrar na terra prometida no fim do Pentateuco. A
esperança de alcançar a terra continua viva e a história segue com Josué, mas há
uma nota de dor quando a desobediência evita que Moisés compartilhe do
momento de triunfo. Tudo o que ele consegue é um deslumbre de sua realidade.
A desobediência geralmente nos defrauda da experiência completa da promessa.
Aqui está uma lição principal da narrativa em termos de vida, mas há outras
também. Embora tenhamos um sabor maravilhoso do que seria o envolvimento
com Deus agora, isso não passa de um relance se comparado ao que podemos ter
se nossa obediência fosse completa. Moisés também percebeu que no plano de
Deus, ele era somente quem preparava a mesa. Outros experimentariam da
plenitude da promessa de Deus em formas que ele não iria. Porém, ele se
contentou no maravilhoso papel de servo que Deus o chamou para ter.
Subgêneros dentro da literatura de narrativa incluem relatos de milagres,
parábolas e material discursivo. Eles também possuem suas próprias formas de
leitura específica. Os milagres têm uma qualidade representativa ao retratar
dentro do evento o poder de Deus sobre as forças que se opõem à humanidade
(Lc 5.17-26; 11.14-23). As parábolas geralmente retratam através de histórias
verdades teológicas ou formas de viver (Lc 10.25-37; 15. 1-32; 16.1-23). Os
discursos podem ser lidos mais como epístolas, com a comunicação do ensino
em sequência lógica, embora, mesmo dentro desse subgênero, pode haver o uso
intenso de figuras e imagens.
2. Literatura poética. Os livros poéticos e algumas partes dos proféticos são
canções teológicas. São histórias do coração. O material de hinos é menos
frequente no Novo Testamento, mas, existem alguns (por exemplo, Lc 1.68-79).
Isso é a história com emoções na manga. Os Salmos figuram eventos que se
tornam representativos para o leitor. Apesar da experiência de um leitor diferir
daquela do salmista em detalhes, o leitor ainda pode se identificar com a
tentativa do hino de comunicar a experiência de alguém e suas emoções diante
de Deus.
É importante reconhecer a qualidade representativa desse material. Tal
literatura muitas vezes tinha um cenário concreto na vida do salmista. O que é
interessante é que a linguagem é geralmente tão simbólica que não podemos
estar certos dos detalhes dessa experiência. Porém, o mero colocar de um salmo
no Saltério (ou na Bíblia para outros hinos) demonstra que o povo de Deus
reconheceu que o que está expresso ali é algo que todo o povo de Deus poderia
compartilhar e se identificar. Quer em louvor, dor, ou ambos, a experiência do
salmista, geralmente desconhecida para nós, ainda pode ser compartilhada e
ensinada. Através da combinação de emoções e reflexões teológicas vem o
entendimento.
A maioria dos salmos são “lamentos”, onde a dor do desapontamento na vida
fere o coração. O salmista verbaliza a dor e a raiva antes de perceber que Deus se
importa e é soberano sobre esses eventos. Outros salmos, que são “cânticos de
louvor”, são aclamações sinceras sobre Deus, um puro deleite em oitavas mais
altas. Outros ainda, os “salmos régios”, revelam promessas acerca do rei de Israel
e expressam a esperança que ele será tudo que Deus prometeu. A realização
singular desse reinado ideal vem em Jesus Cristo no contexto das suas duas
vindas. Outros salmos, como os “salmos do justo sofredor”, mostram o
sofrimento do povo de Deus ou de um indivíduo nas mãos daqueles que
rejeitaram a Deus. Aqui novamente os salmos retratam o coração de certo tipo
de pessoa. Mais uma vez também, Jesus se torna no Novo Testamento um
exemplo do “justo sofredor” por excelência, e ao fazer isso, modela nossa
caminhada no meio de um mundo hostil.
Em resumo, os salmos aparecem em vários subtipos (ou “formas”), cuja
compreensão ajuda a revelar a mensagem. Porém, uma pessoa nunca deveria
ignorar a emoção que vem dessas imagens vivas. É esse elemento, juntamente
com a possibilidade de identificar-se com o salmista, que dá aos salmos seu
poder. Interpretar sensivelmente é explicar a imagem e reter um sentido de sua
emoção.

3. Literatura de sabedoria. Esse gênero textual, como Provérbios, Eclesiastes e


Tiago, contém curtos dizeres em abordagens generalizadas da vida, história em
generalidade. Eles muitas vezes não são concebidos para serem entendidos como
verdadeiros em cada momento particular, já que alguns provérbios estão
internamente em tensão (Pv 26.4-5). Porém, eles servem para motivar alguém a
viver com um senso de responsabilidade e prestação de contas diante de Deus,
através de figuras emocionalmente dirigidas. A sabedoria chama o leitor a evitar
armadilhas que muitas vezes levam a relações e formas de viver que são
destrutivas. Pode ser útil traçar um tema específico através do livro, em vez de
focar em um provérbio de cada vez, para que se possa apreciar a amplitude e a
variedade de conselhos acerca de um tema. Assim, alguém pode examinar com
proveito o sábio, o tolo, o dinheiro, o trabalho e o preguiçoso. Ou alguém pode
examinar as seduções do pecado e suas consequências, coletando todas as
referências ao tema e considerando uma de cada vez. Geralmente, esses
provérbios não possuem um contexto. Isto é, o provérbio anterior ou posterior
não é relevante para o significado. Tais provérbios desvinculados são mais
proveitosamente estudados quando são coletados e agrupados sobre o mesmo
tema, em vez de analisados dentro de um fluxo de contexto literário.

4. Literatura profética. Os profetas do Antigo Testamento e as seções proféticas


de outros livros não são essencialmente predições, embora existam algumas. Em
vez disso, são histórias de confrontos e novas perspectivas. Elas são concebidas para
subverter a complacência espiritual e declarar a responsabilidade perante Deus,
enquanto afirmam a presença, a promessa e o julgamento de Deus. Os profetas
estabelecem uma imagem de um mundo diferente daquele que o povo de Deus
experimenta na presente situação. Ao fazerem isso, eles relembram o povo de que
Deus está no controle, que o julgamento virá para os ímpios e que Deus
considera todos responsáveis pela forma como vivem e como tratam os outros.
Nesse gênero, reprovação e exortação predominam. Os profetas dependem
fortemente de imagens simbólicas para estabelecerem seus pontos. Tal
imaginário faz com que os profetas sejam difíceis de serem lidos se o leitor não
apreciar o pano de fundo das metáforas. A mensagem deles apela para o caráter
justo e advertem das consequências por tratar os outros com injustiça. No âmago
da sua pregação, está a revelação dos valores e virtudes divinas. Assim, os profetas
também se dirigem ao coração e rejeitam a importância de regras ou rotinas,
optando por buscar em vez disso a motivação. Assim como os Salmos e a
literatura poética, as lições para o leitor moderno aqui não são necessariamente
encontradas ao emparelhar as circunstâncias particulares que os profetas se
referiram, mas sim ao considerar as atitudes que são mostradas durante tais
eventos.

5. Literatura epistolar. Esse gênero do Novo Testamento é história com


explanação, ou discurso de ensino. Comparado às seções de discurso nas
narrativas, a epístola é o mais explicitamente proposicional de todos os gêneros.
Enquanto a mensagem de seções não-discursivas nas narrativas aparece através de
personagens, situações, conflitos, diálogos e interação, no gênero epistolar o
ensino é expresso mais diretamente. Geralmente essas cartas disponibilizam uma
leitura mais natural para nós, se entendermos bem a maior parte da terminologia
teológica usada. É maravilhoso ler essas cartas e perceber que elas foram
originalmente endereçadas para pessoas comuns, e não para teólogos. É claro
que, no caso das cartas de Paulo, seus leitores geralmente tinham a vantagem de
tê-lo ouvido ensinar e pregar sobre esses temas, assim, eles sabiam a força de seus
termos, incluindo os técnicos. Ainda assim, lemos em 2 Pedro 3.16 que as cartas
de Paulo eram geralmente difíceis de entender.
Na classificação quanto ao uso dos termos nesse gênero, é geralmente
importante permanecer dentro do uso dado pelo autor humano estudado, antes
de considerar como outros autores usaram o termo. Por exemplo, o uso paulino
de justiça é limitado ao que os teólogos descrevem como a doutrina da
justificação, ou seja, Deus nos declara justos através da obra de Cristo em
resposta à fé, ou ao que muitas pessoas chamam de “ser salvo”. Porém, em
Mateus o termo justiça significa a demonstração de justiça em nossas ações, ou o
que os teólogos rotulam de “justiça ética”. Tal justiça ética não tem nada a ver
com ser salvo, mas, em vez disso, tem a ver com a resposta à graça de Deus. O
exemplo é um lembrete e a variação de um ponto feito anteriormente: os termos
são determinados por seu contexto. Nesse material, é o significado dos termos e
as relações gramático-sintáticas entre as sentenças que carregam grande parte da
responsabilidade da interpretação.

6. Literatura Apocalíptica. Encontrada em Daniel, Apocalipse, porções de


Zacarias e Isaías, juntamente com os discursos escatológicos de Jesus (Mt 24-25;
Mc 13; Lc 17.20-37; 21.5-38), esse gênero é de longe o mais enigmático na
Bíblia. Essa é a história que vê o presente através das lentes de uma perspectiva
celestial, do conflito no mundo, do futuro e do fim dos tempos. A literatura
apocalíptica olha para frente, penetrando nos corredores do tempo e eternidade
através de visões, sonhos e jornadas nos conselhos dos céus. É uma literatura
altamente simbólica, por isso que sua força é muito debatida. Essa literatura lida
com o conflito básico entre Deus e o mundo, mas também conforta aqueles no
sofrimento ao lembrar-lhes que um dia Deus restaurará a justiça e ordem na
terra. Por causa da dificuldade de suas imagens e sua relevância ao tópico mais
amplo deste livro, discutiremos esse gênero em alguns detalhes.
No livro de Apocalipse, muito das imagens ecoam conceitos presentes no
Antigo Testamento. De fato, ainda que nenhum verso em Apocalipse apareça
com uma fórmula introdutória marcando seu fraseado como sendo do Antigo
Testamento, alusões veterotestamentárias podem ser encontradas muitas vezes
em suas páginas. Tais alusões transmitem uma ligação com o ensino e a
esperança do Antigo Testamento, o que serve para destacar a percepção de que o
livro de Apocalipse detalha o capítulo culminante da história da promessa de
Deus.
Argumentar que a literatura apocalíptica é altamente simbólica não é o
mesmo que argumentar que ela é não-referencial. Há uma realidade presente nas
imagens, ainda que essas imagens possam parecer estranhas. De fato, um dos
muitos pontos dessas imagens incomuns (como a meretriz que bebe sangue
montando um monstro de sete cabeças em Apocalipse 17) é comunicar
graficamente através de figuras. A figura da meretriz e do monstro retrata o
caráter grotesco do sistema pecador do mundo que o livro de Apocalipse
condena. Revela que esse sistema se opõe a Deus de uma forma terrível, e se
manifestará em uma rebelião contra o povo de Deus. Sua presença necessita da
volta de Cristo, que trará sua queda. A figura supostamente deveria levantar uma
resposta como, “que cena feia! Quem iria querer se associar com ela?” Essa cena
retrata a morte dos crentes. Como Deus reagirá? Ele reagirá esmagando-a no
julgamento.
Comentaristas debatem sobre como entender imagens apocalípticas, o que
elas representam e como elas se relacionam exatamente com os eventos futuros.
Alguns tentam explicar o texto usando o método da “interpretação literal”.
Outros destacam sua qualidade “figurativa”. Porém, a carência de concordância
acerca do que esses rótulos realmente significam mostra a dificuldade de apelar a
eles como a chave para interpretar tais textos bíblicos. As imagens podem
legitimamente representar a realidade em vários níveis de detalhes e de várias
formas. Podem ser específicas, gerais, ou até mesmo representativas, podendo se
expandir enquanto mantém uma unidade básica de sentido. Alguns exemplos
textuais específicos podem nos ajudar a definir se tais rótulos realmente nos
ajudam a apreciar a complexidade desse gênero.
Por exemplo, deveríamos simplesmente admitir coisas como helicópteros e
armas modernas para as imagens de gafanhotos, escorpiões e outras figuras em
Apocalipse 9.3? As imagens de Apocalipse sempre são assim tão específicas?
Deveríamos assumir que o profeta viu algo como um filme do futuro em sua
visão e então tentou explicá-la de acordo com sua realidade? Ou ele viu um
quadro preciso das imagens que ele dá, imagens que pintam a realidade em vez
de descrevê-la? Qual descrição dessas opções é “mais literal”? É aquela que foca
em como poderia ser para nós, para que expliquemos o que significa em palavras
e imagens bastante diferentes dos termos e imagens do profeta? Ou deveria focar
em como pareceria ao profeta e como pareceria no texto antigo? A resposta
correta é que deveríamos buscar entender suas palavras em seu caráter literário,
examinando a imagem no contexto, as imagens do Antigo Testamento e o(s)
plano(s) de fundo que evocam.
Literal versus figurado é a melhor forma de abordar esse debate? Imagens
como a prostituta e o monstro mostram claramente que, pelo menos às vezes,
uma descrição representativa, e não um filme, está presente. As interpretações
das várias visões dentro de Daniel também indicam que as imagens do texto são
representações da realidade e evocam as imagens bíblicas primitivas, enquanto se
olha para a futura e genuína vingança do povo de Deus. A mensagem é tanto real
quanto figurada. Ela olha para o futuro não para detalhar tudo que irá acontecer
no futuro como imagens projetadas em um filme, mas, para declarar enfática e
artisticamente que tal libertação ocorrerá de uma forma abrangente. Lida com a
realidade, apesar do uso de imagens.
Por exemplo, considere os gafanhotos de Apocalipse. Imagine-se sendo um
antigo intérprete desse texto, digamos que um homem do século XVII ou até
mesmo o leitor original do primeiro século, que eram apegados à iminência –
você poderia obter uma identificação explícita dos gafanhotos como sendo
helicópteros? Será que o sentido literal desse texto estava totalmente inacessível a
seus destinatários originais? Se esse mundo permanecer até o ano 3000, o que
será que esses gafanhotos irão representar? Poderíamos saber disso agora? É
possível que tal identificação específica seja implicada por tal imagem, mas isso
não é muito provável. Se a interpretação interna desses textos nos ajudarem a
desvendá-los e se as lições da história nos ensinam algo sobre sua interpretação,
então devemos ser sensíveis ao caráter literário da sua retratação da história.
Então, por que se referir a gafanhotos? Talvez a questão dentre várias nesse
texto seja retratar a presença de forças destrutivas que se movem na terra junto a
Satanás, sem pretender comunicar nenhum detalhe a mais acerca do que tais
forças podem realmente ser. As imagens suscitam à figura de Joel 2, através desse
paralelismo com as imagens do Antigo Testamento, podemos chegar ao
entendimento de que há uma alusão à chegada do terrível Dia do Senhor, que
agora está relacionado ao retorno de Cristo que traz vindicação final dos santos e
julgamento para todos. A realidade que o texto comunica é que, assim como
passar por uma praga de gafanhotos, tal julgamento é terrível, entretanto, afinal,
isso se manifesta na história.
Relembrado nossa ilustração do gato, sabemos que alguém pode comunicar
algo em um nível geral sem precisar preencher todos os detalhes. As imagens
apocalípticas parecem geralmente operar nesse nível básico, desde que suas
imagens e interpretações internas pareçam revelar uma abordagem
representativa. A chave para a literatura apocalíptica é determinar as raízes – em
um nível geral – das imagens que são evocadas.
Por outro lado, outras imagens apocalípticas têm uma percepção específica,
até mesmo israelita: os 144 mil (Ap 7), ou a alusão aos 42 meses (Ap 13.5), que
é similar à linguagem de Daniel 12.11. Ou também as 70 semanas de
Daniel 9.24-27, onde Jerusalém e o templo são descritos. Essas promessas feitas
aqui ainda não foram realizadas em nosso tempo. Visto que Deus cumpre o que
promete, algo mais em termos de cumprimento pode ser antecipado. Tais
promessas incompletas dentro da literatura apocalíptica aguardam seu
cumprimentos. Por outro lado, em Apocalipse 20, as referências feitas à primeira
e segunda ressurreição não são simbólicas, mas específicas, distintas, sequenciais
e descritivas. Esses vários exemplos mostram que alguns detalhes na literatura
apocalíptica não são imagens simbólicas, mas descrevem realidades concretas no
mundo do escritor. Eles parecem apresentar uma cosmovisão onde Israel está
presente, uma vez que muitos deles nos apontam de volta tão vividamente ao
mundo e realidade da esperança do Antigo Testamento.
Ainda assim, outras imagens do Antigo Testamento, embora reutilizadas, têm
uma nova força explicitamente observada no novo contexto. Por exemplo,
Gogue e Magogue em Apocalipse 20 se referem explicitamente aos quatro cantos
da terra (v. 8), em vez de à entidades nacionais no Antigo Testamento (Ez 38-
39). Tal mudança da imagem é percebida não simplesmente ao citar o Antigo
Testamento e suas imagens, mas também preenchendo os detalhes explícitos no
novo contexto.
Essa mistura de imagens altamente simbólicas e diretamente descritivas, junto
à presença de novos referentes em alguns outros contextos, é algo que dificulta a
interpretação do livro de Apocalipse, embora se refira claramente à realidade
futura. A interpretação da literatura apocalíptica não é uma questão de uma
interpretação literal versus figurativa/alegórica, mas sim de como identificar e
entender a referência da figura em questão. Acontece que, muitas vezes, as
imagens mais bem definidas do Antigo Testamento foram expandidas para
cobrir um escopo mais amplo em Apocalipse, mas não à custa da ênfase original
do termo; em vez disso, tal expansão é uma adição à imagem original. Por outro
lado, outros textos simplesmente evocam o Antigo Testamento e sugerem que,
para entender a imagem, basta simplesmente ir ao texto ao qual se está fazendo
referência.
Outro exemplo dessa dificuldade simbólica/literal é o debate sobre a
identidade da Babilônia em Apocalipse 17. Esse texto mostra o quão
multifacetadas são às associações numa passagem apocalíptica e como o foco em
apenas um elemento pode limitar sua compreensão. Deve-se apelar para
Jeremias 51 e interpretar literalmente como sendo a reconstrução da Babilônia,
de modo que o centro do sistema mundial no fim dos tempos será onde agora
está o Iraque? Ou é um código para uma reconstrução de Roma como a
referência aos sete montes que Apocalipse 17.9 sugere? Qual contexto nos ajuda
a identificar o que está acontecendo – o Antigo ou o Novo Testamento? As duas
associações estão em conflito ou podem formar uma unidade? Até mesmo os
dispensacionalistas não concordaram aqui. Talvez, em última instância, uma
escolha entre os dois contextos não seja necessária. Esse é um dos poucos textos
em Apocalipse que oferece uma interpretação com sua imagem. Como tal, é a
chave para esse livro.
A besta em Apocalipse 17 é composta de sete cabeças representando vários
reinos (ou muito provavelmente dinastias nacionais). As imagens representativas
características de Apocalipse estão claramente presentes. Nenhuma nação é a
besta, especialmente uma com várias cabeças. A interpretação nos diz que cinco
cabeças caíram, uma existe e uma ainda está por vir por um breve tempo. Então
surge uma oitava figura relacionada a isso, mas distinta da sétima. Aqueles que
tentam limitar o ensino de Apocalipse nesse ponto a um período contemporâneo
a João, referindo essa passagem à história da Roma Antiga, tem um problema
terrível de explicar quem as cabeças na besta representam em termos de reis
romanos passados. Não há uma lista histórica que se ajuste com o período de
João! Simplificar a leitura de Apocalipse como uma referência a história na época
de João não parece funcionar; é um documento futurista.
Porém, que tipo de imagem futura está presente? Poderíamos sugerir que essa
imagem se refere a uma varredura da história. A besta figura cada grande dinastia
dos tempos bíblicos: Egito, Assíria, Babilônia, Medo-Pérsia e Grécia são os cinco
reis caídos. O sexto, Roma, é “o que existe”, assim honrando a alusão às sete
colinas em Apocalipse 17.9. O sétimo, o que ainda está por vir por um curto
tempo, pode também ser de uma região não identificada no texto, como
também é o oitavo rei, a besta. Se perguntarem por que o texto pula alguma das
dinastias do mundo, tais pulos de períodos e tempo não são incomuns na
profecia. A história simplesmente busca a retomada do programa de Deus em
associação com o retorno de Cristo.
O princípio de ler detalhes dessa forma é um estudo cuidadoso e contextual
das imagens dentro do texto. Assim como em outros gêneros, tal leitura honra a
interpretação no contexto, com o contexto imediato tendo prioridade. Tomando
a imagem como um todo, o intérprete pode ver que cada cabeça representa um
novo período localizado em uma capital diferente. O centro do império do
mundo está sempre mudando, ainda que cada era sucessora esteja organicamente
relacionada às anteriores.
Dentre muitos pontos da imagem, destacamos três. Primeiro, há um
relacionamento genealógico e orgânico entre os vários impérios dinásticos do
mundo que têm permanecido em oposição a Deus. De fato, a imagem da “besta
do abismo” sugere um apelo à imagem do Leviatã do Antigo Testamento, o
oponente de Deus, uma imagem do mal consumado registrado nas Escrituras.
Esse conflito não é somente no âmbito cósmico, mas tem sido contínuo em
duração! Essa conexão também levanta o ponto de que o conflito transcende os
oponentes humanos. Como Paulo diz em outro contexto, nossa luta não é
contra carne nem sangue (Ef 6.12).
Segundo, um dia a “besta” se manifestará em uma rebelião mundial horrível e
culminante contra Deus e seu povo. A morte estará em todo canto e a besta e a
meretriz assassinarão os cristãos. Tal leitura se encaixa no escopo cósmico de
outra imagem no livro também. Aqueles que associam essa imagem com a
Babilônia estão certos, por ser a grande figura do Antigo Testamento e por
possuir tal poder. Por isso que a besta é chamada de Babilônia. Aqueles que a
associam com Roma também estão certos porque Roma era a manifestação
vigente dessa besta no tempo de João, o escritor. E, ainda, a imagem da besta nos
lembra de que sua existência real é de muito tempo atrás. Então, tanto Roma
como Babilônia se aplicam, sendo a besta também mais do que qualquer
identificação nacional. Porém, é provável que nem Roma, nem a Babilônia sejam
a localização final dessa oposição mundial, dada a natureza mutável da
localização das eras representadas pelas cabeças da besta. O texto tanto é
específico quanto indefinido ao mesmo tempo. Ele descreve o que a besta é
especificamente, mas não onde residirá em última instância.
Terceiro, há uma relação orgânica entre o mal na geração de João e sua
culminação no fim. Todo aquele que se identifica com Deus é advertido a não se
identificar com o que é representado nas maldades da besta. O que é requisitado
no ínterim, à luz do que o futuro traz, é fidelidade a Deus e seu povo, já que a
vindicação última dos santos virá. A mensagem se aplica à audiência de João e ao
futuro.
Essa terceira leitura pode ser incorreta. De fato, identificar a besta com a
reconstrução da Babilônia ou Roma aqui pode estar correto, como também é
possível outra interpretação do texto. Contudo, nossa leitura exige atenção e
reflexão, pois, ela tenta lidar com a imagem a partir do contexto da própria
interpretação do livro, junto com uma sensibilidade ao gênero apocalíptico.
Admitimos que a imagem aqui é difícil, mas o objetivo da interpretação é ser tão
fiel quanto possível à imagem em seu contexto. Independentemente de quem
está certo sobre a questão da localização, deveríamos ainda argumentar os três
temas – o caráter genealógico da besta, a rebelião final mundial que ela traz e a
conexão entre a besta e o presente – estes são os pontos mais importantes na
passagem, aqueles que possuem diferentes detalhes podem também concordar
com nossa declaração dessas preocupações centrais.
Todos os gêneros literários considerados acima nos revelam a vasta variedade
de terrenos que a Bíblia possui. Devemos entender como cada gênero literário
opera para que possamos estudar os textos corretamente. Acima de tudo,
devemos nos manter sensíveis para cada contexto no qual um texto está.
Devemos estar sensíveis aos quatro níveis de contexto ao interpretar a Bíblia – o
histórico, o gramatical, o literário e o teológico. A interação desses contextos
levanta os assuntos das diferentes formas de ler o texto e como relacionar
diferentes passagens entre si.
FORMAS DE LER A BÍBLIA E RELACIONAR DIFERENTES TEXTOS
Pensar acerca do processo de leitura é considerar como alguém deveria lidar com
o texto. A partir do que foi dito, uma coisa deveria estar bastante clara: é
importante deixar cada contexto de uma passagem falar ao seu significado. Em
particular, é crucial que cada interpretação seja sensível à categoria de gênero e
temática literária, antes de integrá-la com a mensagem de outros textos em
outros contextos. Isso simplesmente permite que a história da Bíblia progrida,
permanecendo sensível a como a história é contada. Também é sensível a qual
tipo de terreno que uma determinada parte da história está usando para avançar
a jornada através da mensagem.
Se não formos cuidadosos, podemos ler um texto de uma forma que dilui a
mensagem de outro texto. Algumas vezes, o que acontece é que um texto
anterior é tomado de forma tão clara que um texto posterior simplesmente é lido
em seus termos. Porém, isso pode nivelar por baixo o significado de tal forma
que a progressão na história seja perdida. Quando o progresso ou
desenvolvimento da história ocorre, ele é indicado por outras características no
contexto posterior que mostram o desenvolvimento do tema, ainda que alguns
termos do texto se conciliam com os termos usados anteriormente nas Escrituras
(por exemplo, Gogue e Magogue em Ap 20). Porém, há outra forma de nivelar
por baixo o texto também. É argumentar que o texto posterior redesenha as
linhas do anterior de tal forma que o que o segundo texto significa é o que o
primeiro texto sempre significa. O efeito desse tipo de leitura é também uma
redução da profundidade da mensagem bíblica. Essa abordagem também faz
perder o sentido de progresso na história.
Um exemplo de como isso ocorre em ambas às direções é encontrado quando
comparamos as diferentes maneiras de lidar com o tema do reino de Deus no
Novo Testamento. Alguns, percebendo textos que claramente situam o reino de
Deus no futuro, argumentam que esse tema se refere somente ao que o Antigo
Testamento o retratou para ser, um reino terreno. Sobre esse alicerce, alguns
comentaristas alegam que ou não há forma presente do reino hoje, ou que a
presente forma celestial do reino não tem nada a ver com a promessa do reino do
Antigo Testamento. Essa posição diz que argumentar em favor de uma forma
presente do reino é contradizer os textos do Antigo Testamento sobre sua
chegada no futuro. Essa abordagem da escatologia compreende o reino como
residindo totalmente no futuro. Essa limitação é o erro de ler o Novo
Testamento exclusivamente à luz do Antigo Testamento.
Por outro lado, alguns têm argumentado que os textos sobre a presença do
reino significam que o reino já chegou. Isso tem sido chamado de escatologia
realizada. A promessa do futuro veio completamente agora; Jesus é a presença do
cumprimento, então o que ele traz deve vir em totalidade. Os textos sobre a
futuridade do reino não passam de extensões do que já está aqui. Essa realidade
presente é simplesmente projetada em direção à eternidade. Os textos do Antigo
Testamento sobre o reino são então focados em, se não limitados a, seu
significado nessa forma de reino vigente. Essa abordagem erra ao ler o Novo
Testamento voltado para o Antigo Testamento.
A característica bíblica de ver os eventos a partir de uma variedade de
perspectivas nos mostra que podemos interpretar a partir de uma perspectiva
“tanto/quanto” sem negar qualquer lado dessa relação presente-futuro. É possível
obter um cumprimento “já” em alguns textos e ao mesmo tempo perceber que o
cumprimento “ainda não” existe em outras passagens. De fato, em alguns textos,
o cumprimento pode ser inicial ou parcial, se opondo a ser final ou total. Como
resultado, podemos falar de escatologia inaugurada, sem negar o que o Antigo
Testamento indica acerca do reino terreno futuro ou o que o Novo Testamento
afirma acerca da chegada do reino como parte do cumprimento na primeira
vinda de Jesus. Chamar tal escatologia de inaugurada é somente dizer que o
progresso de cumprimento começou; há mais – ainda muito mais – por vir.
Tais tensões de “já e ainda não” não são surpreendentes. Elas residem na
nossa descrição de salvação em si. Sou salvo agora quando confio em Jesus, mas
Deus irá completar essa salvação no futuro. Em um sentido, a salvação chegou;
em outro, espero por ela. Nos casos tanto da salvação, quanto do reino de Deus,
devemos prestar atenção para qual lado do relacionamento está sendo destacado
em cada texto observado. Perceber a presença de um aspecto do relacionamento
não é negar a outra parte da sua realização. O ensino “já e ainda não” liga o
plano de Deus em um todo unificado. Ele permite ver tanto a continuidade
quanto a descontinuidade no decorrer das promessas de Deus.
Há outra dimensão de leitura que precisa de atenção: uma história pode ser
lida a partir de diferentes ângulos, traçando diferentes quantidades de contextos
para ser contada. A melhor ilustração para esse conceito é pensar quando lemos
um mistério ou assistimos um filme sobre um assassinato. Na primeira
abordagem, estamos observando os eventos sem termos conhecimento do fim,
nos vemos no drama de tentar descobrir “quem é o culpado”. A história se revela
um passo de cada vez, as perspectivas e expectativas são limitadas por um
conhecimento parcial. Somente no fim da história é que todas as peças se
juntam. Entretanto, se formos bons observadores, poderemos descobrir a solução
do crime antes da história se desenrolar completamente.
Por outro lado, ao lermos a história ou ver o filme pela segunda vez, veremos
de forma bem diferente. Agora toda a tensão da história é reduzida, mas também
perceberemos conexões que talvez não tenhamos visto na primeira vez. Perceba
que a história é exatamente a mesma, mas é percebida e avaliada em termos
diferentes por causa do melhor conhecimento ou por causa do diferente ângulo
tomado ao ver a história como um todo. Ambas as maneiras de relacionar a
história são legítimas formas de encontrá-la e considerá-la. Retornando à nossa
ilustração anterior, é um pouco como avaliar a eleição de Clinton em 3 de
novembro de 1992 versus o dia de eleição em 1996, ou qualquer outra data
posterior na história.
Agora, quando se pensa acerca do evento e do texto nas Escrituras, pode-se
pensar através do mesmo tipo de analogia. Uma diferença de abordagem pode
impactar como o texto é lido. Se observarmos o evento das Escrituras em seu
contexto imediato como evento, então o veremos sendo retratado em uma
perspectiva limitada de como foi originalmente experimentado. Muitas vezes, as
reações das personagens refletem uma perspectiva que é menos compreensível do
que a perspectiva que o leitor das Escrituras hoje em dia possui, já que o leitor
hoje sabe toda a história. As conexões, apesar de terem o potencial para existir,
não eram claras em seu período original. De fato, os eventos geralmente parecem
desarticulados e expectativas se encontram com surpresas somente ao longo do
caminho. Porém, quando alguém examina a história à luz de todos os eventos, as
conexões podem emergir mais explicitamente e podem ser estabelecidas com
maior clareza. Coisas que pareciam distintas à primeira vista têm uma relação
mais próxima do que alguém poderia ter inicialmente imaginado. Isso é como
ver o filme pela segunda vez. Independente de qual ângulo alguém tome ao ver a
história, ambos os ângulos são formas apropriadas de ver o evento.
Nossa ilustração anterior de Gênesis 3.15 com a imagem da semente de Eva e
a serpente é um exemplo dessa distinção. No contexto próximo de Gênesis, a
ênfase seria o caos que o pecado introduziu na criação, enquanto no contexto da
história canônica essa tensão é resolvida através da obra de Jesus Cristo.
Pode-se também sugerir que isso ajuda na compreensão da diferença de
perspectiva entre os evangelhos sinóticos e João. Os sinóticos contam a história
de Jesus ao destacar como os discípulos experimentaram seu ministério. A ênfase
está na falta de entendimento deles e a luta que tiveram em compreender quem
Jesus era. Contam a história de Jesus “da terra para cima”, trabalhando com
categorias que o leitor pode se identificar, mostrando então como Jesus vai além
dessas expectativas. É como ler a história da primeira vez.
João escreve a partir de outro ângulo, destacando a história à luz do seu
entendimento total acerca de Jesus. De fato, em certos pontos, ele mostra para o
leitor que no tempo dos eventos os discípulos não entendiam o significado de
certas ações (Jo 2.22; 12.16). Somente depois da ressurreição de Jesus é que eles
puderam juntar as peças de tal forma que entenderam quem Jesus realmente era.
A forma de João relatar a história é “do céu para baixo”, começando seu texto
exaltando Jesus como o Verbo Encarnado desde o início. É interessante como os
cristãos geralmente gostam mais do evangelho de João por conta de sua natureza
explícita, enquanto descrentes geralmente se relacionam melhor com Mateus,
Marcos e Lucas, por poderem se identificar mais facilmente com o retrato de
Jesus que é dada por esses livros.
Agora, o que é importante aqui é que cada ângulo em questão é legítimo e
carrega um aspecto da mensagem canônica total. As Escrituras complementam
essa mensagem, não por ter um evangelho, mas quatro, com retratos existentes a
partir de vários ângulos. Um leitor sensível irá deixar cada história e ângulo falar
por si mesmo em vez de nivelá-los todos por baixo em uma mensagem onde cada
texto diz exatamente a mesma coisa. Porém, se alguém procura tal leitura
unificada e canônica, ela é feita com sensibilidade à contribuição de cada peça ao
todo. Em vez de dispor cada relato um em cima do outro para fazê-los dizer uma
mesma coisa, eles são colocados em união e encaixados como um quebra-cabeça,
para que assim o quadro total, com todos os seus elementos, possa ser, então,
observado.

Três Níveis de Leitura. Em resumo, os textos da Bíblia podem ser lidos de três
formas. Primeiro, eles podem ser lidos em um nível histórico-exegético, onde o
assunto é o contexto do evento visto como uma unidade bastante auto-contida.
Ainda que essa perspectiva seja limitada, ela pode ter valor por destacar o
impacto imediato do evento. A sensibilidade a esse nível de leitura preservará o
senso de progresso na história e permitirá que se aprecie como a história se
constrói à medida que o tempo passa e a revelação progride.
Segundo, um texto pode ser lido no contexto do livro todo no qual está
inserido. Podemos chamar isso de leitura bíblico-teológica (não a confundamos
com a forma normal que alguém fala de teologia bíblica, que geralmente se refere
a todos os escritos de um dado escritor ou período). Para colocar de outra forma,
podemos ler Romanos tentando lidar com ele como um leitor romano poderia
ter lidado, isto é, sem assumirmos que o leitor romano tinha acesso a 1 Coríntios
(ou a qualquer outra carta de Paulo) para ajudá-lo a descobrir o significado de
Paulo. Romanos foi originalmente concebido para ser autossuficiente. Agora,
geralmente esse segundo nível de leitura estará muito perto do significado do
primeiro nível, mas em livros longos isso não será o caso. A promessa da semente
de Abraão nos primeiros capítulos de Gênesis concentra-se em Isaque. Para
Abraão, o aspecto mais importante para promessa da semente foi o seu começo.
Somente quando a história de Gênesis se move através das gerações é que Jacó e
seus filhos emergem como a semente. Somente à luz de todo o Gênesis é que
vemos a nação de Israel como a semente. A reorientação da semente unicamente
sobre Jesus não está explícita em lugar nenhum no contexto de Gênesis.
Somente o movimento da história da promessa além de Gênesis começa a
mostrar a possibilidade para tal estreitamento no conceito do rei como
representante da nação. Porém, esse movimento nos leva à terceira forma de ler o
texto bíblico; no nível canônico-sistemático. Essa leitura toma a passagem à luz do
todo, quer seja através de tudo de que um autor as escreveu, das lentes de um
dado período, ou de uma forma mais abrangente, à luz do todo do cânon.
Agora, a história da semente assume uma dimensão ampliada, conforme Jesus se
torna a semente que traz a promessa. A promessa de Abraão está ligada com a de
Davi (veja Lc 1-2 [esp. 1.31-35, 67-79]). Jesus como Cristo – o rei prometido da
linhagem de Davi – cumpre as promessas a Abraão e concede o Espírito de
Deus. Jesus traz a manifestação inicial do reino (veja o pronunciamento de João
Batista “do que está por vir”). Ao ligar o Espírito e o reino, a esperança davídica
real está entrelaçada à promessa do Espírito na Nova Aliança, assim como à
esperança de Abraão. A discussão inteira assume um contexto de promessa e
cumprimento, então é a sua concretização da promessa fundamental a Abraão
que está sendo percebida. Mesmo assim, tendo Jesus como o ponto de virada,
nós ainda não terminamos. Pois, aqueles que estão “em Cristo” também se
tornam “a semente”, como Gálatas 3.29 nos mostra. A Bíblia ama dar muitas
dimensões para um único tema. Descobrir essas dimensões é como a alegria e o
maravilhar que alguém tem ao ver um raio de luz se dividir em muitas cores ao
passar por um prisma.
Outro tema que se aproxima desse tipo de leitura dinâmica é o
desenvolvimento dos textos acerca do reino na Bíblia. A jornada se move a partir
da sua formação na promessa para Israel e Davi para sua culminante descrição
em termos do milênio e então os novos céus e nova terra. O Antigo Testamento
na maioria das vezes discute a promessa de um reino na terra (2Sm 7.8-16), com
a exceção de breves destaques em Daniel que sugerem uma origem celestial (esp.
Dn 2 e 7). O Novo Testamento desenvolve esses elementos celestiais de
esperança (Ef 2.4-7; Fp 3.20; Hb 12.22-24), culminando no milênio e nos
novos céus e nova terra (Ap 20-22). Quando Apocalipse é lido de forma
sistemático-canônica, sua mensagem é refratada de volta aos textos do reino do
Antigo Testamento para mostrar que o reino prometido é cumprido em parte
dentro do Milênio e parte nos novos céus e nova terra. As promessas do Antigo
Testamento que ainda não se cumpriram, serão cumpridas no futuro. Como o
apóstolo Pedro sugere, há muitos detalhes acerca do ministério de Jesus e a
decorrência da promessa declarada no Antigo Testamento (At 3.21). Para
apreciar como a história inteira se desdobra e quais promessas pertencem a seu
lugar, deve-se ler o texto histórica-exegeticamente, bíblica-teologicamente e
canônica-sistematicamente.
Todos os três níveis de leitura são apropriados, ainda que, em última
instância, a leitura canônica-sistemática ajunte as peças da mensagem bíblica.
Para considerar o quão cuidadosamente o plano de Deus é unificado, como o
cumprimento opera e como as partes da Bíblia se relacionam entre si, devemos
nos dirigir para nosso tópico final de interesse – a variedade de formas em que a
promessa e o cumprimento se relacionam. Quais são as várias formas que o
Novo Testamento usa o Antigo?

O Uso do Antigo Testamento no Novo. Nós já dissemos muito do que é preciso


para essa discussão. Como tem sido esclarecido, promessa e profecia nem sempre
são uma questão de textos proféticos exclusivamente diretos, onde a passagem do
Antigo Testamento se refere somente a um evento ou pessoa em um contexto. O
cumprimento em Jesus pode ser preparado ao se estabelecer o padrão da
atividade de Deus em uma era, e então reproduzi-lo posteriormente. Algumas
vezes, tais reproduções ocorrem mais de uma vez. Os conceitos como o Servo de
Deus, o Justo Sofredor dos Salmos, tanto é profético quanto tipológico. No
projeto “padronizado” do evento reside a profecia. Porém, a profecia é somente
um subconjunto no tópico mais amplo de como o Novo Testamento usa o
Antigo.
Há diferentes tipos de usos ou combinações de usos: alguns são proféticos,
outros são ilustrativos, enquanto outros são explanatórios. Alguns textos
misturam essas categorias. Alguns textos como Daniel 7.14 são diretamente
proféticos, tendo em mente somente alguns referentes. Por exemplo, há somente
um “Filho do Homem”, que retorna no julgamento.
Textos que refletem padrões podem ser chamados de tipológicos-proféticos.
Eles apresentam a realização do padrão ou o surgimento de alguém que cumpra
novamente um dado papel. Isso o faz um tipo. Porém, a progressão
normalmente associada com o cumprimento do padrão de Jesus revela seu
caráter profético. A progressão significa que Jesus o cumpre a um nível maior do
que outros antes dele, apontando para sua única e, geralmente culminante,
posição dentro do padrão. A maioria das promessas reais atreladas aos
descendentes de Davi culminam em um cumprimento progressivo em Jesus. Por
exemplo, o uso do Novo Testamento dos Salmos 45, 89, 110, 118 e 132 estão
situados aqui. O que era esperado de qualquer rei da linhagem de Davi foi
realizado (ou será realizado) em Jesus. O fato de que Jesus cumpre tais promessas
de uma forma única revela que ele é a chave e culminação do padrão. João
Batista como um profeta-Elias é outro exemplo de tal uso. De fato, um número
significativo de usos do Antigo Testamento no Novo Testamento se adequam
nessa categoria.
Entretanto, outros textos fazem meramente uma comparação ilustrativa. Eles
envolvem um uso analógico. Quando Paulo alude ao Êxodo em
1 Coríntios 10.1-13, ou quando o autor de Hebreus relembra o conceito de
descanso no Salmo 95, eles estão fazendo comparações entre os atos divinos
antigos e os atuais.
Alguns textos se relacionam com a promessa ao observar a sua realização ou o
seu término. Eles servem para explicar os relacionamentos dentro da promessa.
Alguns textos afirmam o cancelamento da realização anterior. A lei da
circuncisão é explicitamente cancelada como os textos em Atos 15 e Gálatas
indicam.
Porém, outros textos indicam substituição, pelo menos por um dado período.
A parábola dos trabalhadores indica que a vinha da promessa é dada para outros,
sendo tomada daqueles que a cultivaram, a saber, a nação de Israel. Porém, a
natureza de tal substituição precisa ser definida por textos adicionais sobre esse
tema. Romanos 11 esclarece que virá um tempo no futuro onde Israel é
enxertado novamente e Atos 3.18-21 deixa claro que quando Jesus retornar, ele
completará as promessas proféticas remanescentes do Antigo Testamento.
O tipo de qualificação significa que alguns temas e textos possuem uma
relação complementar. A inclusão adicional de alguns na promessa não significa
que os destinatários originais estão dessa forma excluídos. A expansão da promessa
não significa o cancelamento de comprometimentos anteriores que Deus fez. A
realização da esperança da Nova Aliança hoje para os gentios não significa que a
promessa feita a Israel em Jeremias 31 foi abandonada. O cancelamento da
promessa somente ocorre quando ele é explicitamente declarado. Os capítulos 5
e 6 desta obra desenvolverão esse ponto.
Dada à variedade de possíveis formas que o Antigo Testamento pode ser
citado dentro do Novo Testamento, o relacionamento entre os testamentos em
dados temas devem ser lidados caso a caso. As regras que se aplicam em todo
caso a despeito de cada texto esvaziam a discussão e ignoram a variedade de
possibilidades. Nessa área, um lado não se encaixa em todos os casos.
Os textos nem sempre estão associados por meio de uma identificação
simples, uma vez que o progresso da promessa, as questões de gênero e a
presença de temas desenvolvidos (por exemplo, semente) permitem que as ideias
se aprofundem e se desenvolvam. Nem sempre a relação é uma questão de
substituição. Por exemplo, a natureza das promessas e o programa de Deus
proíbem substituir meramente a igreja por Israel (At 3.18-21). Uma simples
analogia nem sempre funciona, porque alguns textos desenvolvem temas em
contextos onde a promessa e o cumprimento claramente residem (At 2; Hb 8-
10). Os textos frequentemente possuem uma relação complementar (geralmente
ao apelar para o padrão), para que realizações posteriores desse padrão possam
ocorrer quando Jesus retornar. O cumprimento pode ser “já e ainda não”, isto é,
parcial e então completo. Para resolver se o cumprimento é inaugurado,
realizado, ou ainda antecipado, deve-se estudar cada passagem com sensibilidade
aos vários aspectos que contribuem à mensagem textual: histórica, gramatical,
literária e teológica. Cada passagem deve ser livre para falar em seus próprios
termos e deveria ser estudada com sensibilidade aos vários ângulos a partir dos
quais ela pode ser lida. Devemos também estar cientes das várias formas que os
textos podem ser associados um com o outro.
CONCLUSÃO
Interpretação é o produto de como falamos ao texto e como ele fala conosco.
Entretanto, o texto ocupa uma posição privilegiada. Colocamo-nos em uma
posição de submissão a ele. O papel das Escrituras é nos transformar diariamente
à medida que nos dirigimos e procuramos ser desafiados por ela. Porém, nosso
diálogo não ocorre no vácuo, nem nossas deliberações deveriam ser privadas.
Outros leem o texto conosco. Apesar de nem sempre concordarmos com os
outros no que a Bíblia diz, essas diferenças refletem as nossas limitações de
entendimento. Algumas vezes, nosso diálogo com os outros nos ajuda a ver
nossos próprios pontos cegos. Como as Escrituras dizem: “o ferro com o ferro se
afia” (Pv 27.17). Essas realidades exigem humildade, mesmo que procuremos
ganhar uma perspectiva ou convicção a partir da verdade das Escrituras. De fato,
o Espírito trabalha para convencer o mundo e encorajar seus filhos.
No fim, as Escrituras contam a história da busca de Deus pela humanidade.
A Bíblia apresenta não simplesmente sua mensagem, mas sua ação em nosso
favor. Em sua mensagem, ele declara seu relacionamento e seu envolvimento
conosco. Essa mensagem contém uma promessa, revela a possibilidade de
relacionamento e garante a responsabilidade humana em relação a Deus. Os
textos das Escrituras também revelam a sua autoridade e o seu programa. A
atividade de Jesus Cristo permanece no seu centro. Ele é o possuidor final da
promessa e o mediador da bênção.
As Escrituras constroem uma cosmovisão. O mundo não é simplesmente
sobre uma série aleatória de fatos, doutrinas ou proposições. Nem é sequer uma
figura de grupos diferentes, todos com igual acesso a Deus. Não há relativismo
nas Escrituras acerca de como alguém entra em um relacionamento com Deus.
Em vez disso, a Bíblia fala de relacionamentos, quer saudáveis ou deficientes, e
chama o leitor a entrar na bênção nos termos de Deus através de Jesus, ou será
deixado de fora, sujeito à ação de Deus na história. Em última instância, as
Escrituras são sobre a promessa de Deus realizada em Jesus. Todos são
responsáveis diante daquele que é nosso Criador. Na mensagem das Escrituras,
encontramos como Deus criou e entrou no mundo da humanidade. Deus nos
diz como ele o fez, faz e planeja fazer. Ele nos convida para nos juntar a ele nessa
jornada. A tarefa da hermenêutica é ouvir cuidadosa e humildemente sua voz,
para que possamos caminhar com ele.

1. Vern S. Poythress, Understanding Dispensationalists (Grand Rapids: Zondervan, 1987), p. 79.


PARTE TRÊS
EXPOSIÇÃO
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 4

DISPENSAÇÃO NA TEOLOGIA BÍBLICA

A ideia de que a história da Bíblia é dividida em diferentes dispensações não foi


inventada pelos dispensacionalistas. Na verdade isso tem sido reconhecido a
muito tempo na teologia cristã. A própria Bíblia em si usa a palavra dispensação
ao falar sobre diferentes arranjos que Deus instituiu na história no processo de
trazer a salvação ao mundo.
A PALAVRA DISPENSAÇÃO
Estamos usando a palavra dispensação para traduzir a palavra grega oikonomia.
Tertuliano, um cristão norte-africano do terceiro século que definiu muito do
vocabulário para a igreja de língua latina, foi quem usou a palavra latina
dispensatio para traduzir oikonomia. A partir deste termo latino que é derivada a
nossa palavra.

Sentido Geral. Na cultura grega antiga, um oikonomos era um servo encarregado


de uma casa. Oikonomia se referia a seu trabalho ou atividade de gerenciar a casa.
Entretanto, essas palavras logo foram usadas mais amplamente para qualquer
tipo de gerenciamento ou administração. Não somente um gerente de
propriedade, mas um cozinheiro poderia ser designado como um oikonomos.
Cargos públicos e políticos, dos procuradores romanos aos tesoureiros da cidade,
até mesmo gerentes de casas de banho eram tratados por esse título.1
A atividade de gerenciamento de um oikonomos geralmente envolvia
transações financeiras que exigiam uma responsabilidade cuidadosa dos fundos
recebidos e desembolsados. Essa referência ao dinheiro e às finanças resulta na
nossa palavra economia que translitera a palavra grega oikonomia. As palavras
mordomo e mordomia, que também traduzem oikonomos e oikonomia, carregam
essa noção de responsabilidade financeira, enquanto expandem o sentido de
responsabilidade para questões não financeiras também.
Na tradução grega do Antigo Testamento (a Septuaginta), o indivíduo que
era encarregado do palácio do rei de Judá era chamado de oikonomos (veja
1Rs 4.6; 16.9; 18.3; 2Rs 18.18, 37). E sua oikonomia, sua responsabilidade
gerencial, se estendia sobre tudo que estava relacionado ao palácio, da
manutenção e do mobiliário, até a acomodação de convidados e a coordenação
de atividades diárias. Sua obrigação principal era para com o rei, ele deveria ter
certeza que o palácio estava adequado às necessidades do rei e da sua família. Se
seu serviço fosse inaceitável, uma mudança na oikonomia ocorria com a
nomeação de um novo oikonomos (Is 22.15-25).
No Novo Testamento, encontramos evidência do uso geral de oikonomos e
oikonomia. Em Romanos 16.23, Paulo transmite as saudações de Erasto, o
oikonomos da cidade de Corinto. Isso provavelmente significa que ele era o
tesoureiro ou o oficial financeiro chefe da cidade. (O fato de que ele era de
Corinto testifica o quão rapidamente o cristianismo estava penetrando na
sociedade romana.)
Jesus usou esses termos em algumas de suas parábolas. Em Lucas 12.42, ele
introduz uma parábola acerca de um mordomo (oikonomos) que era responsável
por supervisionar todos os outros servos que estavam no campo. O desempenho
do mordomo estava sujeito a uma revisão a qualquer momento por seu mestre,
com a possibilidade de promoção por um trabalho bem feito, ou punição e até
mesmo demissão por negligência de dever. Em Lucas 16.1-13, Jesus conta a
história de um administrador (oikonomos) infiel que é chamado para uma
avaliação pelo dono dos negócios. A avaliação dizia respeito à oikonomia do
gerente, isto é, a forma pela qual ele conduziu o negócio, incluindo uma
auditoria dos livros. O resultado foi uma mudança na oikonomia com a demissão
desse gerente em particular e provavelmente a nomeação de um novo.
A partir dessas várias fontes, podemos resumir o uso geral de oikonomos como
qualquer tipo de gerente ou administrador. O termo oikonomia, que é traduzido
para dispensação, geralmente, se refere à atividade de um gerente e o acordo
organizacional global no qual essa atividade foi realizada. Seu sentido pode
adequadamente ser transmitido por palavras como administração, arranjo, ordem,
plano e gerenciamento.

Sentido Teológico. As parábolas de Jesus acerca dos mordomos e suas


responsabilidades não são somente histórias acerca da dificuldade de encontrar
boa ajuda. Jesus contou parábolas para ensinar acerca do reino de Deus que
estava porvir. Elas falavam de um relacionamento entre Deus e Israel
(especialmente os líderes de Israel) que será cobrado nos julgamentos precedentes
do reino porvir. Através desse ensino, a palavra oikonomia, que transmite a noção
de um arranjo de gerenciamento, adquiriu um sentido teológico – isto é, ela
passou a designar a relação entre Deus e o mundo.
O apóstolo Paulo usa tanto oikonomia quanto oikonomos para descrever a
relação de Deus com o mundo. A maioria desses usos se refere ao próprio ofício
de Paulo como apóstolo de Jesus Cristo. Deus, o Mestre do mundo, confiou a
Paulo, juntamente com os outros, a responsabilidade apostólica de proclamar
uma nova revelação. Paulo se referiu a essa revelação como o mistério (ou
mistérios) de Deus e Cristo (1Co 4.1-2; Ef 3.2-6; Cl 1.25-29). Os oficiais da
igreja também poderiam ser vistos como parte desse arranjo ministerial (um
bispo deveria ser pensado como um “mordomo do Deus” [Tt 1.7]). E Pedro
estende o conceito para incluir todos os cristãos (todos eles eram mordomos,
oikonomoi, da graça de Deus [1Pe 4.10]).
Em Efésios 3.9, Paulo fala da dispensação (oikonomia) do mistério de Cristo.
Lendo isso à luz dos versos 4-6, vemos que esse uso da palavra dispensação se
refere a uma nova ordem, um novo arranjo no relacionamento geral entre Deus e
a humanidade. Aqui está o sentido teológico de dispensação que é mais
importante. É mais amplo que outros sentidos teológicos (a noção das
responsabilidades do ministério individual), enquanto os inclui nesse escopo. O
relacionamento entre Deus e os seres humanos deveria ser pensado como uma
dispensação, uma gerência de relacionamento a qual Deus instituiu. Também é a
dispensação que é nova no tempo, tendo sido preparada através da morte,
ressurreição e ascensão de Jesus Cristo, substituindo o arranjo que estava
previamente em efeito. Isso, é claro, implica que o arranjo anterior deveria
também ser pensado como uma dispensação, uma implicação que Paulo torna
explícita em Gálatas 3.23-4.7.
Como Paulo discute essa nova dispensação em suas cartas, três coisas se
destacam acerca dela: (1) ela é estruturada por certas características de uma nova
aliança que Deus inaugurou para cumprir e substituir a aliança que fez com
Israel no Sinai; (2) nenhuma distinção de raça, gênero ou classe é traçada na
concessão das bênçãos a partir dessa nova aliança – elas são dadas a todos os que
creem em Jesus Cristo; e (3) a nova dispensação está sendo revelada na
comunidade que se reúne no nome de Jesus Cristo, a igreja.
Teremos mais a dizer acerca das especificidades dessa dispensação
posteriormente nesse capítulo e nos capítulos que se seguem. Porém, precisamos
perguntar qual é o significado de chamar o relacionamento de Deus com seres
humanos de dispensação? Como o sentido geral de oikonomia transmite seu
sentido teológico? Ou para perguntar de outra forma, o que uma dispensação
implica acerca do relacionamento de Deus ao mundo?
Antes de tudo, falar dessa forma – como Paulo faz – enfatiza a soberania de
Deus sobre os assuntos humanos. Assim como o senhor de um campo, o dono de
um negócio, ou o CEO de uma corporação exercita a autoridade fundamental de
projetar e estruturar seu negócio, e contratar e apontar pessoas para os níveis
delegados e posições de autoridade, assim Deus é soberano na concepção e
organização de assuntos da terra. “Deus está dispensando ou administrando os
assuntos [do mundo] de acordo com sua própria vontade.”2
Em segundo lugar, enxergar a relação entre Deus e o mundo como uma
dispensação enfatiza o propósito e planejamento geral. A atividade gerencial tem
alguma visão ou plano, algum propósito em vista. Da mesma forma, qualquer
dispensação que Deus institui com seres humanos tem um propósito ou projeto
interno. Assim como uma gestão comunica sua visão para transmitir seu
propósito, nós vemos que Deus revela a estrutura e o projeto da dispensação que
ele institui. Porém, há mais. Negócios e outras organizações podem de tempos
em tempos passar por reestruturações e reorganizações. Há muitas razões porque
isso pode acontecer, porém, não acontece acidentalmente. Alguns propósitos
gerais guiam o processo de reestruturação para levar o negócio adiante. Da
mesma forma, a Bíblia fala de Deus reorganizando o relacionamento dos seres
humanos para si mesmo, mudando de dispensação para dispensação. Há um
propósito divino que guia esse processo da mudança dispensacional, apontando
para um objetivo final que Deus tem em vista.
Terceiro, uma dispensação é um conjunto ordenado de relacionamentos. Ao
estudar qualquer dispensação particular, é necessário conhecer quais são os
relacionamentos fundamentais que formam sua estrutura distintiva. Em uma
modelo de negócios, isso significa saber qual é a estrutura de gerenciamento,
como é o plano organizacional, o que os vários departamentos fazem e como a
própria descrição de um trabalho se encaixa nesse arranjo geral. Da mesma
forma, ver o relacionamento de Deus com a humanidade como dispensação
implica ordem e estrutura na forma como as pessoas se relacionam com ele e
umas com as outras. Quando Paulo expõe a presente dispensação, a posição de
gerenciamento principal é ocupada por Jesus Cristo. Há mordomos que ele
designou (apóstolos e outros ministros) e dons que ele concedeu pelo Espírito
Santo (de tal modo que todos os crentes são mordomos da graça de Deus).
Porém, a ênfase é primariamente colocada sobre o fato que, em contraste à
dispensação anterior, o arranjo presente coloca todos os crentes, a despeito de
contextos culturais e políticos, no mesmo nível como membros da família de
Deus.
Quarto, juntamente com a estrutura de relacionamentos vêm as
responsabilidades e os requisitos. Quando essas responsabilidades são realizadas e os
requisitos cumpridos, o plano para essa dispensação é cumprido. Em
compensação, isso contribui para a proposta geral que guia a história das
dispensações. Em relação à presente dispensação, o Novo Testamento ensina que
todos nós em Cristo temos responsabilidades de mordomia que nos foram
confiadas por Deus. Os ofícios da igreja tais como aqueles do apóstolo ou bispo
(pastor) são mordomias especialmente mencionadas nas Escrituras. Porém, isso
poderia ser estendido a várias formas de ministério também. Para cada um de
nós, entretanto, é dada a mordomia (oikonomia) da graça de Deus. Somos
instruídos na administração dessa graça de acordo com a lei de Cristo, ou lei do
Espírito, que faz referência aos mandamentos que Cristo passou para nós através
dos seus apóstolos. Isso nos leva à questão prática do ensino bíblico da vida
cristã.
Finalmente, conforme observado acima, ver a relação de Deus no mundo de
uma forma dispensacional é levantar a perspectiva de mudança dispensacional.
Tal reestruturação está enraizada no propósito geral de Deus. É um fator atual
na forma que ele cumpre seu propósito mais importante. Falar de mudança
dispensacional, entretanto, é falar de história, ou da história das dispensações. O
propósito de Deus é cumprido historicamente. Ele opera sua vontade através da
história em sucessivos arranjos administrativos onde todos progridem em direção
ao cumprimento final do seu propósito.
Em resumo, ao usar a palavra dispensação (oikonomia), a Bíblia apresenta
uma forma de entender o relacionamento de Deus com os seres humanos em
termos de arranjos (dispensações) que ele instruiu no curso da história. Ele
administra a forma na qual seres humanos estão relacionados a ele e entre si
através desses arranjos que ele preparou. A igreja é a nova dispensação que Deus
organizou através da morte, ressurreição e ascensão de Jesus Cristo. Ela difere em
importantes domínios da dispensação que estava em vigor antes de Cristo. E, no
entanto, não é totalmente diferente. Esta dispensação é o cumprimento da antiga
e, como veremos, olha em direção ao arranjo futuro na qual todas as promessas e
alianças de Deus serão completa e eternamente cumpridas.
A relação dispensacional entre Deus e o mundo é uma característica
importante da teologia bíblica. A terminologia dispensacional é central ao
entendimento do Novo Testamento e da igreja. E é particularmente usada ao
explicar a relação da igreja com o Antigo Testamento, com os eventos centrais
do ministério de Jesus e com todo o plano geral e propósito de Deus que ainda
serão cumpridos no retorno de Cristo.
Para entender melhor a noção das dispensações, iremos examiná-las em
relação a outras noções estruturais da teologia bíblica, tais como a história da
salvação, as alianças divinas com os homens e o reino de Deus. O que vem a
seguir é o começo desse estudo. Os capítulos a seguir explorarão a natureza
dispensacional das alianças bíblicas e o reino de Deus em mais detalhes.
DISPENSAÇÕES NA HISTÓRIA BÍBLICA
O Dispensacionalismo do Novo Testamento e a História da Salvação. A
história da salvação ou história da redenção são termos usados por teólogos hoje
para se referir à história das intervenções de Deus em favor do seu povo para
livrá-los ou salvá-los: tais como, sua proteção a Noé; suas promessas e cuidados
pessoais aos patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó); e suas muitas intervenções em
favor do povo de Israel, incluindo o Êxodo. A história da salvação se refere à
história dos relacionamentos de Deus com seres humanos como está descrito na
Bíblia. É uma das categorias principais da teologia bíblica. Quando se lê a Bíblia
de uma forma cronológica, nota-se que os escritos posteriores se referem às
narrativas anteriores. Assim, declarações posteriores das ações de Deus em favor
do seu povo indicam ao leitor um padrão de relacionamentos – relacionamentos
baseados nas promessas feitas na história. Para entender a teologia da Bíblia, a
pessoa precisa reconhecer e se ater a essa estrutura da história da salvação.3
O Novo Testamento apresenta Jesus Cristo como o clímax da história da
salvação tanto em sua primeira quanto em sua segunda vinda. Seu ministério
cumpre o padrão de relações humano-divinas e se torna a base para assegurar
essas relações eternamente. Sua morte, ressurreição e ascensão marcam o ponto
de virada no progresso da história na era escatológica. Seu retorno futuro traz o
processo à sua consumação.
Nas epístolas neotestamentárias de Efésios, Colossenses e Gálatas, as palavras
oikonomia e oikonomos são usadas em referência a um novo arranjo entre Deus e
os seres humanos que vieram à existência na história da salvação. A sensação de
novidade histórica ou mudança histórica é enfatizada nesses textos por palavras
temporais e frases que marcam um contraste entre o presente e o passado. Em
Efésios 3, onde Paulo fala da dispensação do mistério, ele diz que “nas outras
gerações [o mistério, e assim sua dispensação] não foi dado a conhecer [...] como
agora foi revelado”. Ele então acrescenta que a dispensação em si foi “durante
épocas [...] escondidas por Deus”, mas que “agora” é revelada “através da igreja”.
Esses destaques prosseguem o argumento dado nos capítulos anteriores de
Efésios no qual Paulo explica a significância histórica da morte, ressurreição e
ascensão de Jesus Cristo. No capítulo 2, ele nota que “anteriormente”, “naquela
época”, os gentios estavam “separados de Cristo, excluídos da comunidade de
Israel e estranhos às alianças da promessa”. Então, no verso 13, ele declara “mas
agora em Cristo Jesus vocês que antes estavam longe, foram aproximados
mediante o sangue de Cristo”.
Isso não é simplesmente uma declaração sobre descrentes vindo à fé. Ela diz
respeito à própria natureza da estrutura dispensacional identificada no terceiro
capítulo. Além do mais, é uma declaração acerca das mudanças que Deus
introduziu na história através do envio do seu Filho. Ele alia a noção de
mudança de dispensação diretamente ao conceito de história da salvação, a
história da redenção que Deus faz se cumprir por meio do seu Filho Jesus Cristo.
Um arranjo passado (dispensação), entre Deus e os seres humanos que manteve
uma divisão entre as raças na experiência das bênçãos divinas foi agora
substituído por uma nova dispensação na qual não há distinção racial na
concessão e experiência de certas bênçãos prometidas que agora são dadas. A
subordinação racial dos gentios foi uma característica estrutural da aliança
mosaica. Mas Paulo argumenta em Efésios 2.14-15 que através da morte de Jesus
Cristo, a subordinação estrutural foi removida. Na nova humanidade, todas as
raças têm acesso direto a Deus, o Pai, através do Filho por meio do Espírito
Santo. Deus está habitando em seu templo – essa assembleia de todas as raças –
trazendo paz entre os povos com a paz que eles agora têm com Deus.
Essas observações em Efésios 2 estão por sua vez relacionados à oração de
Paulo em Efésios 1.18-23. Aqui ele fala do poder de Deus presente na igreja.
Esse poder foi manifestado na ressurreição de Jesus Cristo dos mortos (observe a
frase temporal, “quando o ressuscitou dos mortos”, v. 20, BKJ). Depois da sua
ascensão aos céus, esse poder foi dado à igreja (“[quando Ele] o colocou à sua
própria destra nos lugares celestiais [...] E colocou todas as coisas sob seus pés, e
o fez ser cabeça da igreja sobre todas as coisas, que é o seu corpo, a plenitude
daquele que cumpre tudo em todos”). Paulo ora para que a igreja possa
compreender o que Deus fez. Porém, nosso ponto aqui é reconhecer que essa
bênção, que é historicamente relacionada à morte, ressurreição e ascensão de
Jesus Cristo, é parte de um novo arranjo (dispensação).
Esses pensamentos são repetidos de maneira um tanto abreviada em
Colossenses 1.24-29, onde Paulo fala da oikonomia dada a ele por Deus para
pregar “o mistério que esteve oculto durante épocas e gerações, mas que agora foi
manifestado a seus santos”. Ele, então, fala das “gloriosas riquezas deste mistério,
que é Cristo em vocês, a esperança da glória”. Novamente, ele está falando da
mudança das relações de Deus com os seres humanos que tomou lugar através de
Jesus Cristo, das quais a característica mais óbvia é a bênção do habitar de Cristo
nos gentios crentes.
Paulo esboça em Gálatas as relações históricas entre a revelação das promessas
a Abraão, a dispensação da Lei (aliança mosaica), Jesus Cristo e a presente
relação da igreja com Deus através de Jesus Cristo. Marcadores históricos estão
presentes em todo o argumento. A Lei veio 430 anos depois da promessa ter sido
dada (3.17). Ela não invalidou ou substituiu a promessa; ela foi dada “até que
viesse a semente ao qual a promessa foi feita” (v. 18). Essa “semente” é Jesus
Cristo (v. 16), que apareceu apenas recentemente na história. Paulo então fala da
“fé em Jesus Cristo” – essa fé cujo conteúdo é especialmente o Jesus histórico de
Nazaré – que veio a existir na história: “antes que a fé viesse, estávamos sob
custódia da lei, sendo encerrados até que a fé que foi posteriormente revelada [...]
a Lei se tornou nosso tutor para nos levar a Cristo [...] mas agora que essa fé veio,
não mais estamos sob um tutor” (vv. 23-25).
Esse conceito de estar “sob a Lei” por um tempo é repetido na analogia da
supervisão da criança. A criança está sob “administradores” (administrador aqui é
a palavra oikonomos) “até a data determinada pelo pai” (Gl 4.2). Essa situação de
estar sob o oikonomos é comparada a nossa situação de estar “debaixo da Lei”
(v. 5). E a data na qual a criança é liberada do seu oikonomos (isto é, libertada da
dispensação do guardião para receber seu completo estado de filiação) é
comparado àquela “plenitude dos tempos” na qual o Filho de Deus veio “para
que nós possamos receber a adoção de filhos.”
É inconfundível que na teologia de Paulo houve pelo menos duas
dispensações (arranjos) entre Deus e os seres humanos na história. Elas não são
arranjos simultâneos existindo lado a lado através do curso da história, mas,
arranjos sucessivos, um sendo substituído pelo outro no tempo. E o tempo da
mudança dispensacional ocorreu em conjunção com o grande evento da história
da salvação: a encarnação, morte, ressurreição e ascensão de Jesus de Nazaré, o
Cristo.
Outro uso de oikonomia por Paulo também deve ser considerado. Em
Efésios 1.9-10, ele diz que o propósito divino para a “plenitude dos tempos” diz
respeito a uma dispensação, um arranjo, estruturado pela “reunião de todas as
coisas em Cristo, coisas nos céus e na terra”. É plausível que essa dispensação seja
a mesma da qual ele fala em Efésios 3.9. Como já notamos, essa dispensação (a
que tem existido desde a ascensão de Cristo) tem sido o conteúdo da oração de
Paulo em 1.15-23 e seus destaques acerca dos judeus e gentios em 2.11-22. Com
a presente dispensação recebendo tanta atenção no resto da carta, seria razoável
interpretar Efésios 1.10 como uma referência introdutória a ela. Também, a
união de todas as coisas em Cristo, mencionada em 1.10, pode ser relacionada ao
que Paulo diz em Efésios 2.11-22 e 3.6-9 acerca da presente dispensação. Em
Colossenses 1.19-20, falando novamente da dispensação presente, Paulo diz que
“foi do agrado de Deus [...] através dele reconciliar todas as coisas a si mesmo
[...] coisas nos céus e coisas na terra.” E em Gálatas 4.4, ele diz que Cristo nasceu
na “plenitude dos tempos”.
Apesar de que a linguagem de Efésios 1.10 possa estar relacionada ao que
Paulo diz em outro lugar acerca da presente dispensação, a possibilidade de que
Efésios 1.10 se refira a uma ainda futura dispensação não pode ser descartada. O
tema da bênção presente e da herança futura são apresentados nos versos 13-14.
E é claro que o presente arranjo (dispensação) é um pagamento inicial de
bênçãos que serão completamente realizadas no futuro. Apesar de existirem
bênçãos que irão diferir daquelas no futuro, a diferença é de grau, não de tipo.
É bem possível que Paulo tenha essa futura herança em mente quando fala da
dispensação que Deus planejou para a plenitude dos tempos. A presente
dispensação é um arranjo no qual as bênçãos da herança têm sido inauguradas.
O presente arranjo não é a culminação do plano divino, mas é tanto a revelação
quanto a garantia que o plano será ainda realizado.
Na teologia de Paulo, esse arranjo futuro – a futura recepção de nossa
herança – coincide com o retorno de Jesus Cristo, o evento futuro culminante da
história da salvação. Ele escreve em Colossenses 3.4, “Quando Cristo, que é
nossa vida, for revelado, então vocês também serão revelados com ele na glória.”
(cf. Fp 3.20-21; 1Ts 1.10; 4.13-5.11; 2Ts 1.6-2.14; 2Tm 4.1). A herança de
Israel também é incluída como uma característica dessa história da salvação que
culmina na vinda de Cristo (Rm 11.26). Como resultado, a próxima mudança
dispensacional – a mudança para o arranjo da futura herança – coincide com a
próxima grande característica da história da salvação. Para Paulo, a teologia
dispensacional e a história da salvação estão inter-relacionadas.

As Dispensações na História Bíblica. Vimos que Paulo usa a terminologia de


oikonomos e oikonomia para distinguir pelo menos duas e até possivelmente três
dispensações sucessivas. O ensino de Jesus de que a vinda do reino envolveria
mudanças na mordomia também mostra como é apropriado usar a terminologia
dispensacional para caracterizar sua visão do presente e do futuro. Poderíamos
usar a palavra dispensação para outros períodos da história também? Ela poderia
ser utilizada através de todo o período da história da redenção para caracterizar a
relação de Deus com os seres humanos a partir da criação até a eternidade?
Certamente parece apropriado usar a palavra dispensação nessa forma
estendida. E de fato ela tem sido usada dessa forma por muitos na história da
teologia cristã. Irineu, bispo de Lião no fim do segundo século, usou o termo
dispensação repetidamente para se referir aos arranjos que Deus preparara na
história. No terceiro de cinco livros de seu volume Contra Heresias, ele segue
Paulo em distinguir entre a dispensação da lei estabelecida por Moisés e a nova
dispensação da liberdade, a aliança instruída através de Cristo.4 Então, ele divide
a história bíblica em períodos de acordo com as alianças instruídas através de
Adão, Noé, Moisés e a nova aliança por meio de Cristo.5 As últimas duas se
correlacionam com o uso do termo dispensação. Isso mostra a forma natural na
qual dispensação pode ser estendida na periodização da história bíblica.
Agostinho falou dos períodos da história do mundo como sendo distinguidos
pelas diferentes dispensações.6 Em outro lugar, ele favorece a divisão da história
em milênios sucessivos, uma noção popular na igreja primitiva. Ainda que, como
os teólogos primitivos, a divisão poderia variar de uma pessoa para outra.
Agostinho dividiu os milênios de Adão a Noé, de Noé a Abraão, de Abraão a
Davi, de Davi ao Exílio, do Exílio a Cristo, de Cristo em diante, incluindo sua
própria época.7 O esquema de periodização dupla de Agostinho não se encaixa
inteiramente, mas eles mostram o escopo abrangente que ele deve ter tido em
mente quando falou das várias dispensações da história mundial.
Prosseguindo para tempos mais recentes, podemos ver que muitos teólogos e
eruditos bíblicos da época da Reforma até o século XIX usaram a ideia de uma
história de dispensações para estabelecer a estrutura da história bíblica. A teologia
da aliança, que começou a ser formalizada no fim do século XVI, prontamente
adotou essa noção para explicar as diferentes manifestações históricas da aliança
da graça. A Confissão de Westminster falou de “várias dispensações” que
administraram a aliança da graça.8 Depois desse período, divisões
dispensacionais da história bíblica se tornaram muito comuns nos estudos
bíblicos britânicos. Os quadros a seguir, mostram uma comparação de alguns
desses esquemas oferecidos naquela época. O primeiro quadro abaixo, fornece
uma comparação de escritores a partir do século XVII até o começo do século
XX, enquanto o segundo quadro compara os esquemas de escritores pertencentes
especificamente à tradição dispensacionalista.
Alguém poderia dizer que, através da história da igreja, certas divisões da
história bíblica têm sido comumente reconhecidas: Criação à Queda; Queda ao
Dilúvio de Noé; do Dilúvio a Abraão; de Abraão a Moisés; de Moisés a Cristo;
da primeira vinda de Cristo à Segunda Vinda. Cada um desses períodos da
história bíblica tem sido e podem ser caracterizados por alguns intérpretes como
uma dispensação. Ao mesmo tempo, reconhecemos que a história bíblica é mais
complexa do que uma simples periodização permite. O tempo entre Moisés e
Cristo (a história de Israel do Antigo Testamento) pode certamente ser
subdividido de várias formas: o Êxodo, a permanência no deserto, a conquista
por Josué, o tempo dos Juízes, Saul, Davi, Salomão, os reinos divididos, o Exílio
e o retorno. A palavra dispensação é flexível o suficiente em seu significado que
poderia ser adequadamente aplicada para cada um desses diferentes arranjos
históricos. Subdivisões posteriores poderiam também aplicar a posse de cada um
dos patriarcas, cada um dos juízes ou o reinado de cada um dos reis. Na verdade,
como vimos anteriormente, as diferentes mordomias sob o Rei Ezequias
subscrevem a distinção como diferentes dispensações.

REPRESENTAÇÃO DOS ESQUEMAS1 DISPENSACIONAIS (século XVII ao XIX)


1. Com exceção dos quatros primeiros, esses contornos gerais podem ser encontrados em “A
bibliography of dispensatilism”, de Arnold Ehlert, Bibliotheca Sacra 101-03 (1944-46). Compilado numa
época quando “dispensacionalismo” e “teologia da aliança” estavam polarizados através de um
criticismo mútuo. Ehlert propositalmente omitiu os esquemas dispensacionalistas dos teólogos
aliancistas anteriores. Ele não omitiu todos os aliancistas, como pode ser visto a partir de alguns
registros (por exemplo, Charles Hodge). Entretanto, as distinções dispensacionais feitas por teólogos da
tradição aliancista devem ser incluídas como parte da prática geral de dividir as Escrituras em uma série
de dispensações.
2. Veja Hermos Witsius, The economy of the covenants, trad. Wm. Crooksbank (Londres:1822), pp.
307-24.
3. Charles Sherwood McCoy, “The convenant theology of Johannes Cocceivs” (Ph.D. diss. Yale Univ.,
1956), p. 177.
4. Francis Turretin, Institutio theologiae elenctiae 12.7. Esse esboço foi adotado por Charles Hodge. Veja
sua Teologia Sistemática, 3 vols. (Nova York: 1874), 2:373-77

DISPENSAÇÕES NA TRADIÇÃO DISPENSACIONALISTA


1. Darby ensinou que essas situações não eram “dispensações”. Veja Larry Crutchfield, The origins of
dispensationalism (Lanham, Md.: Univ. Press of America, 1992), pp. 67-75.
2. A partir de Hall Brookes, I am coming, 7a ed (Glasgow: Pickerring and Inglis, n.d). O esboço dado
por Arnold Ehlert, “A Bibliography of Dispensationalism”, Bibliotheca Sacra (1945), 327, e reproduzido
em Charles Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1965), p. 84, é o mesmo na estrutura,
mas diferente em nomenclatura. Brookes atribuiu esse esboço a W.C Bayne de McGill University.
Brookes concorda com a estrutura, mas mudou a nomenclatura. O esboço final está muito próximo do
eventualmente adotado por Scofield.
3. Os esquemas dispensacionais de Bullinger a Scroggie podem ser encontrados em Ehlert, “A
Bibliography of Dispensationalism”.
4. O Dia do Senhor
5. Esse esboço foi adotado e seguido por muitos, incluindo Arno C. Gaebelein, H.A. Ironside e Lewis
Sperry Chafer.

Essa flexibilidade importa para a variação vista nos quadros acima onde
diferentes teólogos tentaram dividir a história bíblica. Até mesmo
dispensacionalistas não concordaram acerca do número de dispensações na
história bíblica e em nossa amostra (segundo quadro) somente três transições
históricas foram uniformemente reconhecidas como mudanças dispensacionais
significativas.
Entretanto, podemos propor uma forma de dividir as dispensações da história
bíblica ao seguir três princípios básicos: (1) começar com a estrutura do
dispensacionalismo do Novo Testamento; (2) manter o esquema
dispensacionalista básico o mais simples possível; e (3) ser flexível com a noção
de uma dispensação, de modo a ser capaz de ver uma maior simplicidade ou
maior diferenciação do que o esquema dispensacional em ação permite. Deixe-
me explicar esse último ponto. A Bíblia em si traça continuidades e distinções
através da história da revelação. É preciso ser flexível o bastante para falar tanto
da continuidade dispensacional quanto das diferenças, dependendo de qual
aspecto da história bíblica esteja sendo visto. Por exemplo, a partir de uma
perspectiva, a dispensação da aliança mosaica pode ser vista como um todo; e
ainda assim, de outra perspectiva, o mesmo período da história é examinado ao
notar-se a diferença entre a dispensação da monarquia e a dispensação dos Juízes.
A flexibilidade em traçar distinções dispensacionais possibilitará que diferentes
intérpretes das Escrituras trabalhem juntos de uma forma construtiva, à medida
que buscam entender e explicar a revelação bíblica.
Com esses princípios em mente, vamos construir as dispensações que
distinguem a história bíblica. Começamos, primeiramente, com o
dispensacionalismo paulino, que explicitamente utiliza uma terminologia e uma
estrutura fundamental para o pensamento dispensacional. Conforme observado
acima, isso nos rende pelo menos dispensações do passado e presente, e
possivelmente uma terceira do futuro também. Se nos ativermos à terminologia
paulina, elencaríamos essas: (1) a dispensação da lei, (2) a dispensação da
plenitude dos tempos e (3) a dispensação do mistério.
A primeira, “dispensação da lei”, vem a partir da ilustração de Paulo da lei
como um oikonomos (Gl 4). Entretanto, o termo lei é usado em diferentes
sentidos por Paulo, sendo um dos quais uma referência à aliança mosaica como
tal. É preferível intitular essa dispensação como “a dispensação da aliança
mosaica” para evitar a confusão que surgiu com o uso inadequado de Scofield do
termo lei em seu título da mesma dispensação (veja o segundo quadro). Apesar
da designação de Scofield ter se tornado muito popular, pode ser visto a partir
do quadro que outros dispensacionalistas se referiram a essa dispensação como
Mosaica. Isso evita a implicação que Paulo estava ensinando antinomianismo
(ausência de lei) ao declarar o fim da dispensação da lei. Alguns podem também
desejar uma terminologia para essa dispensação chamando-a de “dispensação
teocrática”, já que a aliança mosaica primariamente dizia a respeito da
constituição de Israel como uma teocracia, um estado político governado por
Deus.
Quer seja apropriado ou não entender a “dispensação da plenitude dos
tempos” em Efésios 1.10 como futura (um ponto que conforme observado
acima é discutível), não há dúvida que Paulo espera futuras mudanças no
relacionamento entre Deus e os seres humanos no retorno de Cristo.
Romanos 8.18-25 olha em direção ao futuro quando os filhos de Deus habitarão
na terra renovada e redimida na ressurreição dos corpos. Em 1 Coríntios 15,
Paulo antecipa aquele tempo depois da ressurreição quando o Filho “entrega o
reino a Deus, o Pai” e Deus será “tudo em todos”. Logo antes desse tempo existe
a situação na qual o Cristo reinante coloca “todos seus inimigos sob seus pés”,
incluindo a morte. Isso pode ser aquela ordem milenar que João prevê em
Apocalipse 20. Dessa forma, antecipamos na teologia bíblica uma dispensação
futura que pode ser subdividida em dois arranjos reconhecíveis: o reino milenar
do Jesus Cristo que retornou e a ordem eterna da vida ressurreta na terra
redimida. Alguns podem desejar simplesmente designar essas como duas
dispensações futuras como: o Milênio e a nova terra. Ou, seguindo Efésios 1.10,
poderíamos prever ambas as fases, milenar e eterna, como as dispensações Finais
ou Siônicas.9 Os princípios de simplicidade e flexibilidade deve nos guiar aqui.
O mistério referido na “dispensação do mistério” (Ef 3.9) é o relacionamento
de judeus e gentios com Cristo e entre si. Esse relacionamento é a característica
distinta da igreja. Consequentemente, pode-se chamar esta dispensação de a
“dispensação da igreja”, ou “dispensação eclesiástica”. Também poderia ser
chamada de “dispensação do Espírito”, já que Paulo contrasta a vinda do
Espírito com a mordomia da Lei em Gálatas 4. Qualquer título desses (ou algum
outro) servirá. Para propósitos de consistência, entretanto, iremos nos referir a
ela como a “dispensação eclesiástica”.
A partir dessa análise do dispensacionalismo paulino, pode ser sugerido que
vejamos três dispensações: A mosaica ou dispensação teocrática, a dispensação
eclesiástica, e a siônica ou dispensação final que inclui os reinos milenar e eterno.
Com respeito às dispensações antes da dispensação teocrática, deveríamos
seguir os princípios de simplicidade e flexibilidade. Em Gálatas 3, Paulo fala do
tempo antes da Lei (antes da aliança mosaica), neste tempo é que a Promessa
(abraâmica) foi dada. Porém, ele nunca fala da dispensação da promessa como
Scofield faz. Em Romanos 5.13, Paulo fala do tempo antes da Lei a partir do
ponto da existência do pecado no mundo. O pecado estava no mundo antes da
Lei, mas foi contado como transgressão depois da Lei ser dada. Nessa discussão,
do pecado como transgressão, a dispensação mosaica é comparada com a
situação de Adão a Moisés, implicando que vemos todo o período sob um
arranjo comum ou dispensação. Paulo, então, prossegue para falar da nova
situação desde a vinda do Espírito (Rm 7-8). O contraste da Lei e Espírito é
essencialmente o mesmo que foi dado em Gálatas 3-5, onde Paulo distingue
essas situações como duas dispensações diferentes: a mosaica e a eclesiástica. Isso
nos leva a ver a estrutura com respeito ao pecado em Romanos em harmonia
mais próxima das divisões dispensacionais de Paulo do que sua introdução da
noção da promessa em Gálatas 3.
Como resultado, poderíamos sugerir ver a situação antes do tempo da aliança
mosaica como uma dispensação patriarcal unificada. “Patriarcas” parece estar
mais adequado com o título. Essa dispensação patriarcal inclui as relações de
bênçãos de Deus, julgamento e aliança com as várias famílias da terra incluindo
notáveis indivíduos, tais como: Abel, Caim, Sete, Enoque, filhos de Noé e
Abraão, Sara e seus descendentes: Isaque, Jacó e seus doze filhos. Uma próxima
dispensação importante começa quando Deus faz a aliança no Sinai com as doze
tribos de Israel.
Seguindo o princípio da flexibilidade, podemos certamente permitir que
outras divisões dispensacionais sejam traçadas durante esse período da história.
Alguns destacarão as condições anteriores à queda do Éden como um arranjo
particular. Outros distinguirão as condições antes e depois do dilúvio de
Gênesis 6-9. Ainda assim, ao mesmo tempo, há uma consistência às ações de
Deus com a humanidade que reúne essas condições como as relações
fundamentais para as dispensações posteriores que apresentam a aliança mosaica
e a nova aliança.
Concluindo, temos quatro dispensações primárias na história bíblica:
Patriarcal, Mosaica, Eclesiástica e Siônica.

As Dispensações e as Alianças. Conforme Paulo explica em Efésios 3.4-10, a


presente dispensação (que ele chama de dispensação do mistério) relaciona os
gentios com os judeus como “co-herdeiros e membros do corpo, coparticipantes
da promessa em Jesus Cristo através do Evangelho” (Ef 3.6).A palavra promessa
tinha sido usada anteriormente em Efésios 2.12 em um contexto no qual Paulo
desenvolveu o mesmo pensamento acerca da correlação com os judeus e os
gentios em Cristo. Nessa passagem, ele fala das alianças da promessa a qual os
gentios não mais eram estranhos (2.12, 19). Essas alianças pertencem a Israel
como as frases paralelas em 2.11-12 tornam claro. Isso significa que no
dispensacionalismo paulino, as dispensações passadas e o presente devem ser
entendidas como formas de relacionar as alianças.
A conexão entre aliança e promessa foi traçada em Gálatas 3.17, onde a
referência é feita à aliança que precedeu a Lei (aliança mosaica) na qual Deus
garantiu a promessa a Abraão. Paulo vê o evangelho de Jesus como enraizado
nessa promessa pactual feita ao patriarca (Gl 3.8, 16). Ele também vê essa aliança
como englobando os gentios nesse escopo profético (3.8). Gentios que agora
acreditam em Jesus Cristo são herdeiros dessa promessa da aliança (3.28-29).
A nova dispensação é então um novo arranjo no qual as bênçãos prometidas
através da aliança abraâmica estão sendo concedidas. Entretanto, para que a
concessão aconteça em sua forma presente (sendo garantida igualmente aos
gentios como aos judeus), mudanças em outras alianças tiveram que acontecer.
Em Efésios 2.14-15, Paulo argumenta que para os gentios serem trazidos a
um lugar igual de bênçãos com os judeus, Cristo “destruiu a barreira, o muro de
inimizade, anulando em seu corpo a lei dos mandamentos expressa em
ordenanças”. O muro que dividia era aquela porção do templo que separava os
judeus dos gentios. Sua presença era uma característica estrutural da aliança
mosaica. Nessa passagem, ele simboliza que a aliança como um todo, se referia à
“lei dos mandamentos expressa nas ordenanças”.
Na teologia bíblica, o fim da aliança mosaica está correlacionado com o
estabelecimento da nova aliança. Paulo apresenta a si mesmo como um ministro
da nova aliança (2Co 3.6). E é através das bênçãos recentemente inauguradas da
nova aliança que a mudança dispensacional em Efésios 2-3 aconteceu.
Paulo escreve que aqueles que acreditaram na mensagem do evangelho foram
“selados em [Cristo] com o Espírito Santo da promessa” (Ef 1.13). A palavra
promessa aqui é tomada novamente em 2.12 como “alianças de promessa”. O
plural, alianças, indica que mais do que uma aliança está em vista. Já vimos que a
aliança abraâmica é para Paulo uma aliança de promessa. Quando nos
lembramos que a habitação do Espírito Santo foi uma promessa específica da
nova aliança (Is 59.21; Ez 36.27), parece que a ligação de 1.13 e 2.12 através da
palavra promessa indica que a nova aliança é corretamente incluída entre as
alianças pelas quais os gentios têm sido trazidos para perto. Ainda mais do que
isso, entretanto, a bênção da nova aliança inaugurada com a ascensão de Cristo é
a bênção que caracteriza o arranjo da nova dispensação. Efésios 2.22 descreve os
judeus e os gentios sendo edificados em Cristo como “uma habitação de Deus
no Espírito”. A paz pela qual a nova dispensação é caracterizada (Ef 2.15) é o
fruto do habitar do Espírito Santo (Gl 5.22) – o cumprimento da promessa da
nova aliança.
As alianças de promessa corretamente incluem a aliança feita com Davi.
Perceba que a nova aliança não é mencionada por nome em Efésios, mas é
evidente pela referência a seus elementos característicos (perceba o perdão dos
pecados em Ef 1.7 e o conhecimento de Deus em Ef 3.19 e 4.13 [cf. Jr 31.34]).
Da mesma forma, os elementos da aliança davídica estão presentes em Efésios,
indicando que ela se destina da mesma forma dentro das alianças da promessa
mencionadas em 2.12.
Deus prometeu a Davi a respeito do seu descendente, “Serei um pai para ele e
ele será um filho para mim”. Ele prometeu estabelecer o reino do seu filho e
manter sua benignidade para sempre com ele. Ele também predisse que esse filho
construiria uma casa (um templo) para o Senhor (2Sm 7.12-15). Jesus é
apresentado em Efésios 4.13 (assim como em outros escritos de Paulo e nos
escritos do Novo Testamento em geral) como o Filho de Deus. Ele é o amado
(Ef 1.6), um título que está ligado ao Filho nas descrições que Ele tem do Pai em
Seu batismo e transfiguração (Mt 3.17; 17.5; Mc 1.11; 9.7) e que relembra as
promessas associadas à filiação e benignidade eterna na aliança com Davi.
Efésios 1.20-22 o mostra sentado à destra de Deus com “todas as coisas em
sujeição sob seus pés”. Isso relembra a promessa de um reino estabelecido na
linguagem de Salmos 2 e 110. E finalmente, Efésios 2.14-22 retrata esse como
construindo “um santo templo no Senhor”, uma atividade da aliança davídica. E
além do mais, essa mesma estrutura é o elemento estrutural da nova dispensação
– a edificação de judeus e gentios como parceiros das bênçãos patriarcais e da
nova aliança.
Conforme vimos, a transição a partir da dispensação passada até a presente
envolve uma mudança no aspecto da aliança. A dispensação passada era
caracterizada pela aliança mosaica; a aliança presente é caracterizada por certas
bênçãos da nova aliança que aparecem na forma inaugurada. Ambas as
dispensações são formas de se relacionar com as promessas das alianças patriarcal
e davídica (dadas ainda na dispensação passada). Iremos elaborar sobre esse
assunto da melhor forma no próximo capítulo. Porém, a partir desse mesmo fato
da continuidade de aspecto da aliança e mudança, a natureza progressiva da
transição dispensacional pode ser vista.

As Dispensações e o Reino de Deus. Em Colossenses 1.26, Paulo fala do


mistério de Deus que “tem sido agora manifestado aos seus santos”. É evidente a
partir do contexto de Colossenses 1 que essa é a dispensação que Paulo fala em
Efésios 3. É válido ressaltar que esse arranjo também é referido em
Colossenses 1.13 como “o reino do seu amado”. As palavras amado e Filho são
usadas para Jesus em Efésios, conforme vimos, relembrando as designações do
Pai no batismo e na transfiguração do seu filho e também olhando para trás para
as promessas na aliança davídica. (De fato, a designação Este é meu Filho amado
no relato de Lucas do batismo de Jesus [Lc 3.22] é sem dúvida uma referência à
aliança da promessa davídica citada em Lucas 1.32-33: “Ele [...] será chamado
Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono do seu pai Davi”.) Isso, é
claro, se encaixa com o que já temos dito acerca do cumprimento da aliança
davídica em Efésios 1 e 2 (cf. Sl 110.1). Jesus está sentado à destra de Deus,
“acima de toda autoridade, poder e domínio”, com “todas as coisas sujeitas sob
seus pés”.
Essa noção do reino de Deus está relacionada diretamente à pessoa e obra de
Jesus, especialmente sua ascensão aos céus. Como vimos, isso é exatamente o
ponto de mudança dispensacional na teologia de Efésios. Iremos trabalhar isso
de forma mais completa em um capítulo posterior. Porém, é importante notar
que a teologia dispensacional e a teologia do reino estão integralmente
conectadas. A mudança da passada à presente dispensação é coordenada com um
aspecto do reino escatológico de Deus. Certos elementos preditos no reino
escatológico estão presentes nessa nova dispensação, incluindo um Messias
reinante e o fenômeno de paz entre seus membros judeus e gentios (Ef 2.15, 17).
Na teologia bíblica, o reino escatológico é o arranjo no qual as promessas
pactuais são cumpridas. A presente dispensação, entretanto, é somente uma
inauguração, uma parcela de entrada (Ef 1.13) sobre aquelas bênçãos
prometidas. Consequentemente, assim como as bênçãos da aliança ainda estão
para serem cumpridas em sua plenitude (v. 14), então, da mesma forma, o reino
do Filho de Deus ainda tem que receber sua revelação completa.
Enquanto é dito na dispensação de Colossenses 1.13 que já fomos
transferidos ao reino, em Colossenses 3.4, esperamos que “quando Cristo [...] for
revelado, então [nós] também seremos revelados com ele em glória”. Há um
aspecto do reino que ainda é futuro, ligado ao retorno de Cristo (1Co 15.23-28;
2Tm 4.1). Isto constitui a dispensação que ainda está por vir.
CONCLUSÃO
Uma dispensação é um arranjo administrativo ou gerencial. A Bíblia usa esse
termo para descrever o relacionamento de Deus com o mundo. Não é somente o
atual relacionamento de Deus com o mundo descrito como uma dispensação,
mas a Bíblia também compara e contrasta esse presente relacionamento com as
dispensações passadas e futura. A partir disso, entendemos que o relacionamento
de Deus com seres humanos consiste em uma história de sucessivas dispensações.
Essas dispensações podem ser descritas como formas de relacionar as alianças
bíblicas. Elas também podem ser vistas como estágios progressivos da história da
salvação que encontra seu cumprimento na revelação do reino escatológico de
Deus. Como resultado, entender essas dispensações bíblicas é algo crucial para
entender a história e teologia da Bíblia.
Entender a Bíblia dispensacionalmente é especialmente importante para
entender o relacionamento de Deus com os seres humanos hoje em dia. Ajuda-
nos a enfatizarmos nos relacionamentos distintos que ele institui hoje e nas
explícitas responsabilidades que ele nos dá. Em outras palavras, interpretar a
Bíblia dispensacionalmente enfatizando em especial nesta presente dispensação
clarifica o que é a igreja, quais são os princípios da vida cristã e qual a natureza
da responsabilidade cristã. A interpretação dispensacional ajuda o leitor das
Escrituras a entender as comparações e contrastes que o Novo Testamento faz
com a história anterior e com o tempo do retorno do Senhor, quando este
descreve nossa presente situação como a igreja de Jesus Cristo.

1. Veja James Moulton e George Milligan, The Vocabulary of the Greek Testament Illustarated from the
Papyri and Other Non-literary Sources (1930; Grand Rapids: Eerdmans, 1972), s.w. “oikonomia, oikonomos”;
Colin Brown, ed., The New International Dictionary of New Testament Theology, vol. 2 (Grand Rapids:
Zondervan, 1976), s.v. “house/oikonomia” por Jürgen Goetzmann; Gerhard Friedrich, Theological
Dictionary of the New Testament, vol. 5, trad. Geoffrey Bromiley (Grand Rapids: Eerdmans, 1967), s.w.
“oikonomos, oiknomia” por Otto Michel.
2. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 31.
3. Deve-se fazer aqui referência ao capítulo anterior sobre hermenêutica.
4. Irineu de Lião, Contra as Heresias 3:10.2, 4.
5. Ibid., 3.118
6. Agostinho, Cartas a Marcelino 5-8.
7. Agostinho, Sermões 125.4
8. Confissão de Fé de Westminster 8.6.
9. O termo, siônico, de Sião, é escolhido em vista do grande cumprimento das promessas do reino para
Israel e para as nações, geralmente retratadas como a glória do Sião escatológico, a cidade do reino de Deus
e seu Messias (Is 2; 60; Hb 13.10; Ap 21-22).
CAPÍTULO 5

A ESTRUTURA DAS ALIANÇAS BÍBLICAS: AS ALIANÇAS


ANTES DE CRISTO

A palavra aliança, berit em hebraico e diatheke em grego, é usada na Bíblia para


se referir a uma variedade de arranjos formais e legais. Esses arranjos, que podem
ser desde vontades individuais, contratos de negócios, escrituras territoriais, até
constituições nacionais, definem as relações entre pessoas. Uma vez que o termo
dispensação também fala de um arranjo relacional entre pessoas, é fácil ver como
esses termos se sobrepõem conceitualmente. Quando se fala de relações
teológicas – isto é, relações entre Deus e seres humanos – as noções de
dispensação e aliança estão definitivamente inter-relacionadas. Conforme
observado no capítulo anterior, a percepção de Paulo da mudança dispensacional
trazida por Jesus Cristo estava ligada, e explicada, pelas mudanças de aliança que
Jesus instituiu. Consequentemente, um estudo das alianças que Deus instituiu
com os seres humanos e a história do seu desenvolvimento informará nosso
entendimento das dispensações e a natureza progressiva da mudança
dispensacional.
A ALIANÇA NOÉTICA
A palavra aliança aparece primeiramente no livro de Gênesis, onde ela é usada
para formalizar as promessas divinas da bênção. Essas alianças permanecem em
contraste com os julgamentos divinos contra a rebelião humana e o pecado,
trazendo destruição e morte. O maior desses julgamentos é encontrado em
Gênesis 3, onde Deus amaldiçoou a terra, expulsou Adão e Eva de uma terra de
bênção e decretou a morte. O dilúvio de Gênesis 6-8 também é um julgamento
dramático sobre a pecaminosidade humana, introduzido pelo lamento em 6.5-7:

E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que


toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.
Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-
lhe em seu coração. E disse o Senhor: “Destruirei o homem que criei de sobre
a face da terra, desde o homem até ao animal, até ao réptil, e até à ave dos
céus; porque me arrependo de os haver feito.”

Esses julgamentos questionam o plano da criação. À medida que Deus fez os


céus e a terra, encheu-a com vida. Repetidamente lemos que “e viu que era bom”
(Gn 1.4, 10, 12, 21, 25, 31). A Bíblia diz que quando ele criou a humanidade,
“Deus os abençoou, e Deus lhes disse: ‘Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a
terra, e sujeitai-a; e dominai [...] sobre todo o animal que se move sobre a terra’”
(v. 28). A rebelião humana prejudicou essa bênção ao ponto de trazer a raça
humana e a maioria da vida da terra ao ponto da extinção. Individualmente,
todas as pessoas encarariam a morte. Coletivamente, famílias, tribos e culturas
inteiras, juntamente com a própria vida terrestre, poderiam ser perdidas.
Entretanto, contra a certa e ameaçadora tempestade do julgamento divino,
ouvimos as palavras, “mas Noé encontrou favor aos olhos do Senhor” (Gn 6.8).
Mais adiante, em Gênesis 6.18, o Senhor formaliza uma aliança com Noé,
prometendo preservar sua vida e a vida de todo tipo de criatura levada para a
arca. A palavra aliança é usada novamente em Gênesis 9.9-17 na promessa de
Deus de nunca mais destruir a vida na terra através de um dilúvio.
Quer seja vista como uma aliança apenas ou duas alianças separadas, essas
promessas confirmam a intenção divina expressa na criação (Gn 1-2), de que
haverá uma terra habitada com vida, preenchida por uma humanidade em
comunhão com Deus. Além do mais, a natureza formal da aliança enfatiza essa
intenção, apontando a forma para um plano de redenção no qual ela será
cumprida.
A ALIANÇA ABRAÂMICA
O Conteúdo da Aliança. As narrativas de Gênesis a respeito de Abraão
começam com uma promessa da parte de Deus de abençoá-lo e de abençoar
todos os povos da terra através dele. Essa promessa é posteriormente expandida
em uma coleção de promessas, todas contribuindo para a noção da bênção.
Incluídas, estão as seguintes:

1. Deus abençoará Abraão (Gn 12.2; 22.17)


2. Abraão mediará às bênçãos de Deus a outros (para todas as nações)
(Gn 12.2-3; 18.18; 22.18)
3. Ele também mediará à maldição de Deus (Gn 12.3)
4. O nome de Abraão será grande (Gn 12.2)
5. Ele se tornará uma grande nação (Gn 12.2; 18.18)
6. Deus dará para ele e para seus descendentes a terra de Canaã (Gn 12.7;
13.14-17; 15.7-21; 17.8)
7. Abraão terá inúmeros descendentes (Gn 13.16; 15.4-7; 17.4-7, 15-21;
22.17)
8. Essa aliança será estabelecida com os descendentes de Abraão (Gn 17.7, 19,
21)
9. Deus será o Deus de Abraão e de seus descendentes e eles serão seu povo
(Gn 17.7-8)

Assim como a aliança noética, a aliança abraâmica permanece em contraste aos


julgamentos de Deus sobre o pecado humano e apresenta novamente um novo
plano da criação. Isso pode ser visto através de elementos importantes na criação
da humanidade que são repetidos na bênção a Abraão: A multiplicação de seres
humanos, a provisão de uma habitação especial na terra (uma terra de bênçãos) e
uma relação pacífica entre Deus e a humanidade.
A bênção abraâmica também atinge as dimensões étnicas e nacionais da
existência humana. Gênesis 10-11 mostra como a vida humana se desenvolve em
várias nações. Gênesis 11 revela como o pecado se espalhou ao nível nacional e
como o julgamento divino agravou as tensões entre as nações. A promessa a
Abraão em Gênesis 12, entretanto, oferece abençoar as nações. As bênçãos virão
a uma nação, descendente de Abraão, e então serão mediadas para todas as
outras nações.
Consequentemente, Deus afirmou a pluralidade étnica e nacional da
humanidade. Ao prometer abençoar todos os povos através de Abraão, ele não
seguiu o caminho que tomou com Noé. Não propôs destruir tudo, preservando
apenas Abraão e sua família, o fazendo como novo progenitor da raça. Por outro
lado, a promessa de abençoar todas as nações não identifica qualquer nação
particular, exceto uma que descenderá de Abraão. Essa nação, é claro, será Israel,
aquela que leva o nome do neto de Abraão, Jacó, que foi renomeado como Israel
por Deus. Com a exceção de Israel, nada previne o desaparecimento de certas
nações no curso da história e nada invalida que Deus opere novamente ou
recombine as estruturas políticas e étnicas da humanidade através do curso da
sua história. Não obstante, as bênçãos previstas nesta aliança contemplam uma
pluralidade de nações.
A natureza da bênção que vem sobre as nações iria presumidamente ser
similar à bênção que é prometida à nação dos descendentes de Abraão:
numerosos povos, possessões territoriais e um relacionamento pacífico com
Deus. Esses elementos apresentam, em uma forma nacional, as bênçãos que
Deus anunciou sobre toda humanidade quando ele a criou. Porém, agora, elas
são prometidas primeiro a Abraão e então através dele às outras nações na terra.
As bênçãos prometidas a Abraão são holísticas, isto é, elas cobrem toda a vida
e experiência humana: física, material, social, pessoal (incluindo mental e
emocional), política, cultural e religiosa. Mais uma vez isso mostra que essa
aliança afirma o plano da criação, pois ela oferece as bênçãos que se estendem
através de todo o escopo da vida conforme Deus a criou.
A bênção religiosa (vista na promessa de Deus de ser seu Deus e eles serem
seu povo) é a chave para as outras, pois, foi a separação entre Deus e a
humanidade que causou a perda das outras bênçãos em primeiro lugar. A
restauração de um relacionamento pacífico com Deus requer um ato de
reconciliação, de redenção, de perdão. Tal ato está implícito no próprio fato de
que Deus se aproximou de Abraão para abençoá-lo. Porém, é revelada mais
diretamente na promessa uma relação permanente entre Deus como o Deus do
seu povo e seu povo como o povo de Deus. Sobre o que exatamente seria esse ato
de redenção, se faz necessário uma revelação maior. Depois, perceberíamos que
isso não é nada mais que a morte expiatória de Jesus Cristo.

A Natureza da Aliança. Desde o começo, em Gênesis 12.1-3, a bênção a


Abraão é apresentada como uma coleção de promessas. Não há uma única
passagem que contenha todos os diversos elementos. Conforme a narrativa
progride, um ou dois aspectos podem receber foco especial e uma elaboração
mais específica, e novas promessas podem ser adicionadas. É claro, entretanto,
que elas devem ser tomadas como uma promessa coletiva.
Em duas passagens, o termo aliança é usado para formalizar a promessa (isto
é, a coleção de promessas) como um acordo legal entre Deus e Abraão
(Gn 15.18; 17.2; 7-21). Estudos sobre a forma da aliança abraâmica indicam
que ela é uma promessa outorgada em vez de um contrato bilateral (como em
um contrato de negócios ou tratado). Isto é, ela segue a forma legal usada no
antigo Oriente Médio de assegurar a integridade de um presente de uma pessoa
para outra, geralmente de um mestre para o servo (ou de um rei para um súdito).
De tal forma, a promessa outorgada é incondicional, pois ela garante a dádiva ao
servo do mestre e seus herdeiros.1
A forma pela qual Abraão recebeu a aliança também apoia a
incondicionalidade da aliança. Em Gênesis 15, o Senhor repete sua promessa a
Abraão, e as Escrituras nos dizem que, a despeito das circunstâncias que fizeram
a promessa parecer impossível, “Abraão creu no Senhor; e isso lhe foi creditado
como justiça” (15.6). Uma revelação posterior é dada a Abraão acerca de como a
promessa seria cumprida, e então numa cerimônia formal completa e com
sacrifícios associados, “o Senhor fez uma aliança com Abrão” (15.18).
Em Romanos 4 e Gálatas 3, Paulo argumenta que Gênesis 15 é fundamental
para o entendimento da natureza promissória da aliança abraâmica. A bênção
não foi dada a Abraão porque ele fez certas obras. Em vez disso, ele a recebeu
pela fé. Deus deu a Abraão uma promessa. Abraão creu em Deus. Deus o
considerou justo e formalizou a promessa com ele como uma aliança outorgada.
Uma aliança outorgada, entretanto, não exclui a obrigação do
relacionamento geral de um beneficiário a seu mestre. A desobediência ou
deslealdade são ofensas puníveis. A punição pode tomar o deleite da outorga
temporariamente (como no caso do aprisionamento) ou permanentemente
(através da punição capital). Ainda assim a natureza incondicional da aliança
outorgada garante a possessão legal da dádiva mesmo durante o período de tal
punição. No caso da punição capital, a aliança outorgada garante a herança da
dádiva pelos herdeiros beneficiários.
Certamente, Abraão foi obrigado a servir a Deus fiel e lealmente. Em
Gênesis 17.1, o Senhor ordenou a ele: “ande segundo a minha vontade e seja
íntegro”. Em Gênesis 18.19, o Senhor declara que ele escolheu Abraão “para que
ordene aos seus filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do
Senhor, fazendo o que é justo e direito, para que o Senhor faça vir a Abraão o
que lhe havia prometido”.
Há algumas ocasiões quando Abraão falhou em ser “irrepreensível”. Ele
deixou, por um tempo, a terra na qual ele foi dito para habitar. E em duas
ocasiões, ele não foi completamente honesto acerca da sua relação com Sara, de
tal forma que quase causou que ela cometesse adultério, sem mencionar a
possibilidade de perdê-la completamente para o harém de outro homem. Não
obstante, Abraão é geralmente descrito em Gênesis 26.5 como alguém que
“obedeceu-me e guardou meus preceitos, meus mandamentos, meus estatutos e
minhas leis”. Sua obediência ao oferecer Isaque ao mandamento do Senhor é
recompensada por um juramento que o Senhor certamente irá cumprir sua
promessa a Abraão e aos seus descendentes (Gn 22.16-18).
O fato de que Deus dá mandamentos a Abraão não torna sua aliança com ele
um contrato bilateral, onde as bênçãos de Deus seriam completamente
dependentes da obediência de Abraão (ou dos seus descendentes). Como Paulo
observa em Romanos 4.1-5, o relacionamento de Deus com Abraão não é
contratual de tal forma que a bênção é oferecida a ele como uma recompensa. O
relacionamento da aliança outorgada é mais como um legado, com a bênção
tomando a forma de uma dádiva.
Outros têm observado que mesmo na estrutura dos mandamentos do Senhor
a Abraão, o destaque está na intenção de abençoar.2 Muitas passagens repetem a
promessa sem acompanharem uma obrigação (veja Gn 12.7; 13.14-17; 15.1-7,
18-21) e até mesmo falam da dádiva como duradoura (veja Gn 13.15; 17.7, 13,
19).
Por outro lado, a obediência de Abraão aos mandamentos de Deus funciona
como o meio pelo qual ele experimenta as bênçãos de Deus em uma situação
cotidiana. Esses mandamentos funcionam como condições para a experiência
histórica de Abraão da bênção divina, pois, conforme ele obedece a Deus, Deus o
abençoa mais e mais. Porém, essas obrigações não condicionam a intenção
fundamental de abençoar Abraão. Elas condicionam o como e o quando da
bênção.
Isso é melhor visto talvez na passagem de Gênesis 18.18-19 onde na
linguagem mais forte possível, o Senhor declara que “Abraão certamente se
tornará uma grande e poderosa nação e nele todas as nações da terra serão
abençoadas”. Então, ele acrescenta, “pois eu o escolhi para que ordene aos seus
filhos e aos seus descendentes que se conservem no caminho do Senhor, fazendo
o que é justo e direito; para que o Senhor faça vir a Abraão o que lhe prometeu”.
Se a aliança abraâmica era uma aliança bilateral, o verso 18 não poderia ser
dito dessa forma. Atos de desobediência da parte de Abraão ou de seus
descendentes seriam o suficiente para a recusa da bênção prometida. Porém, na
verdade, Deus promete cumprir a bênção a despeito da desobediência humana.
Até mesmo depois de uma longa história na qual os descendentes de Abraão
falharam “em manter-se no caminho do Senhor fazendo o que é justo e direito”,
o Novo Testamento apresenta Jesus Cristo como o presente e futuro
cumprimento na aliança abraâmica.
Isso não significa que os mandamentos do Senhor são inconsequentes ou
irrelevantes à promessa. Eles funcionam como um meio para experimentar a
bênção, que mostra que Deus está preocupado com a santidade, com “a justiça e
a retidão”. Ele está tão preocupado com a obediência humana como estava na
criação ou no tempo do dilúvio. Porém, há uma intenção incondicional de
abençoar, que resolverá o problema da desobediência humana de uma maneira
que ainda será revelada. O fato de que isso vai acontecer é visto na promessa
incondicional de que ele será o seu Deus e eles serão o seu povo. Também é visto
no fato de que ele aceita os herdeiros como base da fé e promete ser com eles e
ajudá-los. A resolução final será revelada posteriormente na promessa da nova
aliança. Enquanto isso, ele aceita Abraão e seus descendentes crentes nessa
aliança de bênçãos, treinando-os e disciplinando-os através de mandamentos e
ordenanças.3

A Aliança Abraâmica e a Bíblia. Em Gênesis 17.7, Deus prometeu estabelecer


a aliança com os descendentes de Abraão (definida como a linhagem de Isaque
em 17.21 e então a linhagem de Jacó em 27.27-40) através de suas gerações por
uma aliança perpétua. A natureza duradoura da aliança de Abraão provê a
revelação última de sua incondicionalidade. Enquanto Deus impõe várias
obrigações sobre os descendentes de Abraão, a história bíblica relembra várias
falhas da parte deles ao obedecê-las. Não obstante, a relação dessa aliança
permanece em vigor durante as gerações, guiando a história da redenção para
uma conclusão abençoada.
A declaração de Gênesis 17.7 estendendo a aliança para todas as gerações
subsequentes é significante. Ela significa que a história dos descendentes de
Abraão (através de Isaque e Jacó) deve ser entendida teologicamente a partir do
ponto de partida dessa aliança. Já que o resto da humanidade também está
previsto nas promessas para abençoar ou amaldiçoar todos os povos, a aliança
abraâmica estabelece por conseguinte o relacionamento fundamental entre Deus
e toda humanidade, de Abraão em diante. Isso significa que, para entender a
Bíblia, deve-se lê-la em vista da aliança Abraâmica, pois essa aliança com Abraão
é o pano de fundo fundamental para interpretar as Escrituras e a história da
redenção que ela revela.

A Aliança Abraâmica e as Narrativas de Isaque e Jacó. A natureza


fundamental da promessa certamente governa as narrativas de Isaque e Jacó que,
no livro de Gênesis, seguem a narrativa de Abraão. Duas vezes para Isaque
(Gn 26.1-6, 19-26) e três vezes para Jacó (Gn 27.18-29; 29-10-16; 35.6-15) a
promessa é oficialmente confirmada. É dito para Isaque que a promessa está
sendo dada a ele por causa da, ou com base na, promessa dada a Abraão
(Gn 26.3, 5, 24). Da mesma forma, quando a promessa é transferida para Jacó,
Deus identifica a si mesmo a Jacó como o Deus de Abraão e de Isaque
(Gn 28.13). Os seguintes elementos da promessa aparecem nesses textos:
1. Deus os abençoará (Gn 26.3, 24; 27.27-29)
2. Eles mediarão a bênção de Deus para os outros (Gn 26.4; 27.29; 28.14)
3. Eles mediarão a maldição de Deus (Gn 27.29);
4. Deus dará para eles e para seus descendentes a terra prometida a Abraão
(Gn 26.4, 24; 28.14; 35.11)
5. Deus dará a eles inúmeros descendentes (Gn 26.4,24; 28.14; 35.11)
6. Deus será o Deus deles (visto em suas promessas de estar com eles)
(Gn 26.3, 24; 28.15)

Essa última afirmação – que Deus estará com eles – é marcante, especialmente
no caso de Jacó, onde isso é vinculado à promessa do retorno à terra (Gn 28.15).
Também deveríamos notar que quando a promessa é transferida para Jacó, sua
mediação da bênção para outros povos e nações é interpretada como seu reinado
sobre eles (Gn 27.29). Quando a bênção é então transferida para os filhos de
Jacó, esse elemento específico do reinado é dado a Judá (Gn 49.8-10),4 onde
antecipa o Messias, mostrando que seu reinado tem origem na promessa
abraâmica de abençoar todos os povos.
As narrativas de Isaque e Jacó revelam um tema importante acerca da
transferência da aliança abraâmica. Os descendentes físicos a partir de Abraão
não garantem em si a herança da aliança. Ismael, como um legítimo filho de
Abraão com os direitos de primogênito, é ignorado em favor de Isaque. O
processo de seleção também se estende para os descendentes de Isaque, com Esaú
sendo ignorado em favor de Jacó. Tanto Ismael quanto Esaú são abençoados por
Deus, porém eles são abençoados como estrangeiros à aliança. Eles são
abençoados por causa de Abraão, Isaque e Jacó. Eles são incluídos entre as
famílias da terra, não dentro do “você” em quem as famílias da terra são
abençoadas.
O tema da seletividade na herança da aliança é importante na história da
redenção bíblica. A escolha de Isaque em detrimento de Ismael revela o processo
da eleição divina. Não é necessariamente uma escolha aqui entre condenação e
bênção, mas em vez disso entre mediar a bênção e recebê-la através da mediação.
A escolha entre Jacó e Esaú, entretanto, é especialmente instrutiva para os
descendentes de Jacó – as gerações de Israel. Jacó, é escolhido para receber e
mediar a aliança, pois ele é um homem de fé que verdadeiramente deseja a
aliança abraâmica (a pesar de sua pecaminosidade). Esaú desprezou seu direito de
primogenitura e é retratado como um descrente (Hb 12.16-17).
Consequentemente, a herança da aliança passou por ele. No seu
arrependimento, a bênção é garantida a ele, mas não é a de um herdeiro da
aliança. Ele é abençoado por causa dos herdeiros da aliança, Isaque e Jacó, e não
como ele mesmo sendo um dos herdeiros.
Em resumo, os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó foram escolhidos por
Deus para receber a aliança. Todos os outros, incluindo outros descendentes de
Abraão e Isaque, têm a oportunidade de receber a bênção através da mediação da
linha eleita. Além do mais, a eleição sucessiva dos patriarcas e sua resposta a
Deus em fé revelam dois importantes princípios para a história de Israel: (1) é
possível uma maior seletividade na linha fisicamente eleita; e (2) os verdadeiros
herdeiros são aqueles que creem em Deus, aqueles que receberam a aliança dele
pela fé.

A Aliança Abraâmica na História de Israel e das Nações. Observamos aqui


que ao estabelecer a história de Israel e das nações, as Escrituras testificam sobre a
natureza duradoura da aliança abraâmica. Reservaremos comentários sobre como
as bênçãos da aliança foram recebidas para a discussão da aliança mosaica nas
páginas a seguir, pois a aliança mosaica proveu a estrutura dispensacional na qual
Israel experimentou a bênção abraâmica.
Várias referências à aliança abraâmica no restante das Escrituras destacam sua
natureza fundamental para as gerações que seguem os patriarcas. No começo do
livro de Êxodo, a declaração é feita, “Deus lembrou-se de sua aliança com
Abraão, Isaque e Jacó. E Deus viu os filhos de Israel, e Deus viu a situação deles”
(Êx 2.24-25). Ainda que a palavra aliança não tenha sido usada quando a
promessa foi transferida para Isaque e Jacó, essa passagem ensina que a promessa
dada a eles deve ser entendida precisamente dessa maneira legal. Além do mais,
essa declaração em Êxodo 2 é posicionada como um destaque interpretativo para
todos os eventos do Êxodo. A aliança com os patriarcas (Abraão, Isaque e Jacó) é
o relacionamento fundamental e formal que explica as ações de Deus para com
Israel e para com o Egito durante esse tempo.
Nossa observação é confirmada pelo destaque do Senhor em Êxodo 6.3-9 que
se refere explicitamente à sua aliança com os patriarcas e destaca duas das
promessas subsidiárias: a terra da herança e a promessa de ser seu Deus. A
promessa feita aos patriarcas de estabelecer essa aliança com seus descendentes
sustenta toda essa passagem. A frase “Lembrei-me de minha aliança” é explicada
posteriormente: “Eu sou o Senhor. Eu os livrarei do trabalho imposto pelos
egípcios. Eu os libertarei da escravidão e os resgatarei com braço forte e com
poderosos atos de juízo.”
Por todo Êxodo e Deuteronômio, e em menor proporção em Levítico e
Números, há várias referências explícitas ao relacionamento da aliança patriarcal,
quer seja usando o termo aliança como tal, ou por referência ao juramento
declarado a Abraão, Isaque e Jacó. Também é visto em repetidas referências a
Deus como o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Adicionado a isso, há o fato que
essa literatura apresenta uma discussão estendida de duas das promessas
subsidiárias da aliança patriarcal: a Terra Prometida e o relacionamento de Deus
com Israel como o seu Deus e eles como o seu povo. Repetidamente, esses
assuntos são mencionados como as promessas feitas aos patriarcas.5
A natureza fundamental e duradoura da aliança abraâmica como o
relacionamento constitutivo entre Deus e Israel é reafirmada através de
declarações explícitas nas narrativas da história do Israel posterior e na literatura
profética e sapiencial. Em 1 Crônicas 16, porções de dois salmos são
historicamente situados nas celebrações de Davi sobre a chegada da arca do
Senhor em Jerusalém. Nos louvores que estão sendo oferecidos estão as palavras:

Lembra-se perpetuamente da sua aliança,


da palavra que empenhou para mil gerações;
da aliança que fez com Abraão
e do juramente que fez a Isaque;
o qual confirmou a Jacó por decreto
e a Israel, por aliança perpétua,
dizendo: Dar-vos-ei a terra de Canaã
como quinhão da vossa esperança.
Então, eram eles em pequeno número,
Pouquíssimos e forasteiros nela (1 Crônicas 16.15-19).

O salmo prossegue para recontar o Êxodo do Egito. Assim como os livros de


Êxodo e Deuteronômio, essa passagem vê a corrente inteira dos eventos
compondo o Êxodo a partir da perspectiva da aliança com Abraão. (O
Salmo 105 é a versão estendida desse salmo; ele conclui com a frase: “Pois ele se
lembrou da santa promessa que fizera ao seu servo Abraão. Fez sair cheio de
júbilo o seu povo, e os seus escolhidos, com cânticos alegres.”) Porém, o cronista
coloca esse salmo no contexto da conquista de Jerusalém por Davi de seus
habitantes cananeus rebeldes (os jebuseus), expressando louvor a Deus com a
frase “Lembra-se perpetuamente da sua aliança [...] que empenhou para mil
gerações”. Assim, o cronista vê esses eventos em Jerusalém no tempo de Davi
como fundamentalmente baseados na aliança abraâmica (e especialmente
relacionados à promessa da aliança da terra de Canaã).
Em 2 Reis 13.22-23, o escritor interpreta a graça de Deus para com Israel
durante o reino de Jeoacaz como fundamentalmente baseada na aliança com
Abraão. Esses eram dias da monarquia dividida. As tribos do Norte, retendo o
nome de Israel, foram lideradas por uma série de reis idólatras. Jeocaz não foi
diferente, exceto que ele pediu a Deus por libertação de Israel da pesada opressão
dos Sírios. As Escrituras dizem: “Mas o Senhor foi gracioso com eles e teve
compaixão deles e se voltou a eles por causa da sua aliança com Abraão, Isaque e
Jacó, e não os destruiria ou tiraria de sua presença até agora.” A última frase
estende essa lealdade da aliança ao período do escritor (por volta do tempo do
exílio de Israel). Consequentemente, a aliança abraâmica é vista como a relação
fundamental entre Deus, Israel e Judá através da história das duas monarquias.
À medida que o tempo do exílio se aproximava, as interpretações dos profetas
do juízo vindouro fizeram frequente referência à aliança abraâmica. Por um lado,
as advertências acerca do julgamento iminente estão condicionadas às ofertas
para abençoar com promessas da aliança.6 Por outro lado, com a certeza do
julgamento, as bênçãos da aliança são preditas para um dia ainda futuro. 7 O
ponto importante é que a aliança da promessa feita com os patriarcas continua
como o relacionamento fundamental entre Deus e Israel, ainda que os
julgamentos extremos eliminem por um tempo a experiência presente da bênção
(ou pelo menos os aspectos mais visíveis dessa bênção).
RESUMO
A aliança abraâmica esclarece a maneira pela qual Deus cumprirá para a
humanidade a bênção prometida a Noé para toda carne. Um princípio de
mediação foi introduzido, começando com Abraão e transferindo para seus
descendentes que eram selecionados e aceitos por Deus. A partir do(s)
mediador(es), as bênçãos passaram para outros (ambos para mediadores
subsequentes e beneficiários externos que a procuram pela fé – ou na linguagem
da aliança, que abençoaram Deus e Abraão ou os mediadores descendentes dele).
Essa bênção não é completamente detalhada na narrativa de Gênesis, mas
sujeita a uma revelação posterior. Entretanto, a bênção é estabelecida contra o
pano de fundo das maldições anteriores, de morte e destruição, maldições que
ameaçavam o plano divino da criação. Consequentemente, a bênção prometida
aparece para oferecer a esperança da redenção a partir daquelas maldições e a
restauração do favor mostrado na criação. A bênção é um renovo de vida como
revelada na criação em si e vista na repetição de certos temas pronunciados na
criação da humanidade.
A revelação desses e alguns outros aspectos da bênção a revela como sendo
holística, isto é, ela cobre todos os aspectos da experiência humana. Incluída
dentro da bênção e fundamental para todos os outros aspectos está a relação
entre a humanidade e Deus. A bênção abraâmica oferece a esperança de
relacionamento com Deus, a restauração da devida adoração e a comunhão
divina-humana. Na revelação posterior, vemos que essa bênção inclui a expiação
de Cristo, a retificação da pecaminosidade humana que leva à plena comunhão
com Deus e a ressurreição para imortalidade e vida eterna.
As alianças noética e abraâmica revelam aspectos do plano geral de redenção e
estabelecem uma estrutura fundamental para o relacionamento subsequente
entre Deus, a humanidade e a vida na terra. Esse fundamento é estabelecido em
uma determinação divina incondicional com intenção de abençoar. Ele é
revelado tanto nas próprias narrativas patriarcais, quanto na reafirmação
repetitiva da aliança através do progresso da revelação. Ao continuarmos nosso
estudo das alianças, veremos esse fundamento confirmado, esclarecido e
expandido. Veremos também que a confirmação e expansão progressiva se
manifestam numa sucessão de novas dispensações que surgem quando as alianças
subsequentes são reveladas, inauguradas e cumpridas na experiência humana.
A ALIANÇA MOSAICA
O Conteúdo da Aliança Mosaica. À medida que Israel é preparado para entrar
na terra prometida na aliança patriarcal, Moisés relembra uma relação especial
que Deus estabeleceu com eles no Sinai (Horebe). Ele declara:

O Senhor, nosso Deus, fez aliança conosco em Horebe. Não foi com nossos
pais que fez o Senhor esta aliança, e sim conosco, todos os que, hoje, aqui
estamos vivos. Face a face falou o Senhor conosco, no monte, do meio do
fogo (Nesse tempo, eu estava em pé entre o Senhor e vós, para vos notificar a
palavra do Senhor, porque temestes o fogo e não subistes ao monte.)
(Deuteronômio 5.2-5).

Devido ao papel mediador de Moisés nessa ocasião, essa aliança é geralmente


chamada de aliança mosaica. Como observado na passagem acima, foi uma
aliança especial que não foi feita com os patriarcas. Ainda assim, foi dada a Israel
por causa do relacionamento com Deus garantido a eles pela aliança patriarcal.
Relembrando os eventos do Êxodo e a aliança do Sinai, Moisés declara:

Dos céus te fez ouvir a voz, para te ensinar, e sobre a terra te mostrou o seu
grande fogo, e do meio do fogo ouviste as suas palavras. Porquanto amou teus
pais, e escolheu a sua descendência depois deles, e te tirou do Egito, ele mesmo
presente e com sua grande força, para lançar de diante de ti nações maiores e
mais poderosas do que tu, para te introduzir na sua terra e ta dar por herança,
como hoje se vê” (Deuteronômio 4.36-38).

Já temos visto que os livros do Êxodo e Deuteronômio contêm muitas


referências à aliança abraâmica. Essas referências estabelecem o fato que não
somente o evento do Êxodo e da peregrinação no deserto como um todo, mas
também o estabelecimento específico da aliança no Sinai, são todos baseados na
aliança fundamental com Abraão. Reafirmando o caráter gracioso da garantia
patriarcal, o Senhor primeiramente uniu essa geração de Israel a ele mesmo pela
fé (Êx 14.31), e então estabeleceu uma aliança com eles para trazer à sua história
do dia-a-dia uma experiência de bênçãos prometidas aos patriarcas.
A dependência da aliança mosaica sobre a aliança abraâmica é vista numa
comparação das suas respectivas bênçãos. As bênçãos da aliança mosaica (veja
Lv 26; Dt 6-11; 28) declaram novamente as promessas da aliança abraâmica.

1. Deus irá abençoá-los (Lv 26.4-12; Dt 7.13-15; 28.3-12)


2. Deus irá multiplicá-los (Lv 26.9; Dt 6.3; 8.1; 28.11)
3. Deus lhes dará esta terra (Lv 26.5; Dt 6.3; 8.1; 9.4; 28.11)
4. Deus os fará uma grande nação (Dt 7.14; 28.1, 3)
5. Deus será seu Deus e eles serão seu povo (Lv 26.11-12; Dt 7.6-10; 28.9-
10)
6. Deus confirmará sua aliança com esses descendentes particulares dos
patriarcas (Lv 26.9)

A única diferença na forma como as bênçãos são estabelecidas é que a promessa


geral “Eu os abençoarei”, recebe um conteúdo mais específico no âmbito físico,
material e de prosperidade nacional.
Com Israel preparado para entrar em Canaã na guerra santa, pouco é dito
nesses textos acerca da promessa de mediar bênçãos às nações. A mediação da
maldição divina, entretanto, é prontamente aparente. Deus está usando Israel
para julgar as nações de Canaã. Porém, a promessa de mediar a bênção não é
esquecida. Balaão profetiza em Números 24.9: “Sejam abençoados os que os
abençoarem e amaldiçoados os que os amaldiçoarem”. Em Jeremias 4.1-2, Israel
é admoestado que se eles retornassem ao Senhor (em concordância com a aliança
mosaica), “então as nações serão abençoadas nele e nele se gloriarão”.

A Natureza da Aliança Mosaica. Já que essas bênçãos já estão prometidas na


aliança com Abraão, qual o propósito de declará-las na forma de uma aliança no
Sinai? A aliança mosaica é mais do que uma nova declaração da aliança com os
patriarcas?
A diferença entre as duas alianças é vista primeiramente na declaração de
Moisés, que a aliança feita em Horebe (Sinai) não foi feita com os patriarcas
(Dt 5.3). Segundo, as duas alianças possuem formas distintas. Enquanto a
aliança com Abraão foi uma aliança outorgada, a aliança mosaica segue a forma
de um tratado de suserania-vassalagem, isto é, um tratado entre um rei
(suserano) e aqueles que lhes estão sujeitos (vassalos). Esse tipo de aliança não é
uma outorga para um sujeito em particular, mas um acordo bilateral entre o rei e
a nação sujeita a ele, na qual o rei promete permitir os que lhe estão sujeitos a
desfrutar da vida sob seu reino beneficente em retorno do seu serviço leal a ele.
Por outro lado, ele ameaça punir aqueles que desobedecerem a suas leis. A
aliança mosaica segue essa forma de tratado. De fato, a estrutura do tratado
típico suserano-vassalo pode ser detectada nas estruturas literárias do Êxodo e
Deuteronômio (praticamente todo Deuteronômio segue essa estrutura):

Elementos de um tratado de suserania-vassalagem


1. Identidade do rei (Êx 20.2; Dt 1.1-6)
2. Relacionamento histórico entre o rei e o povo (Êx 20.2; Dt 1.6-4.49)
3. Estipulações, as leis do rei (Êx 20-31; Dt 5-26)
4. Bênçãos e maldições (Lv 26; Dt 27-30)
5. Testemunho (Dt 4.26; 30.19; 31.28)
6. Refeições cerimoniais (Êx 24.9-11)
7. Preservação do tratado (Êx 25.16; 40.21; Dt 31.25-26)

É importante observar que as bênçãos de um tratado de suserania-vassalagem são


condicionadas ao cumprimento das estipulações. A maldição também é uma
possibilidade real caso as leis sejam transgredidas. Isso, por sua vez, ajuda a
esclarecer a significância da aliança mosaica.
A aliança abraâmica prometeu uma bênção em um futuro indefinido. Deus
simplesmente disse: “Eu lhe abençoarei”. Além do mais, a bênção em si foi
parcialmente indefinida, permitindo uma especulação futura. A aliança mosaica
ofereceu a uma geração específica dos descendentes de Abraão a oportunidade de
experimentar aspectos bem específicos dessa bênção (veja Dt 28), no futuro
definido, o aqui e agora. Porém, essa bênção era dependente da obediência de
Israel à lei da aliança. A desobediência à lei não somente removeria a experiência
da bênção, mas traria a maldição de Deus sobre eles – o oposto radical de uma
vida abençoada (veja as maldições listadas em Dt 28).
A aliança mosaica, então, tinha uma função similar aos mandamentos dados
aos patriarcas. Sua obediência era similar aos meios de experimentar a bênção da
aliança em suas vidas pessoais. A aliança mosaica funcionou dessa forma em
favor da nação dos descendentes de Abraão.
Entretanto, devemos também observar que os primeiros três mandamentos
dizem respeito à fé e confiança exclusiva do povo no Senhor. Eles são ordenados
a ser um povo de fé no Senhor, e então são ordenados a viver uma vida de
obediência à sua vontade. Como Abraão e os patriarcas, agora a nação como um
todo receberia a outorga da aliança pela fé e experimentaria, em sua própria
situação histórica, as bênçãos que Deus concederia a eles.
É importante, nesse ponto, lembrar que a aliança abraâmica é o
relacionamento fundamental. A aliança mosaica depende dela. Isso significa que,
ainda que certa geração (ou gerações) falhe nos termos da aliança mosaica e
experimente a maldição ao invés da bênção, a oportunidade ainda existe para
uma oferta renovada de bênçãos para aquela geração ou dos descendentes
posteriores de Abraão.
As declarações dentro da estrutura literária da aliança mosaica confirmam esse
ponto. Em Deuteronômio 4, a porção da aliança imediatamente precedente aos
Dez Mandamentos e às leis adicionais, Moisés adverte Israel das consequências
de não seguir os mandamentos de Deus.

Hoje, tomo por testemunhas contra vós outros o céu e a terra, que, com
efeito, perecereis, imediatamente, da terra a qual, passado o Jordão, ides
possuir; não prolongareis os vossos dias nela; antes, sereis de todo destruídos.
O SENHOR vos espalhará entre os povos, e restareis poucos em número entre
as gentes aonde o SENHOR vos conduzirá (vv. 26-27).

Ainda assim, ele prevê que a bênção do Senhor irá eventualmente ser restaurada.

De lá, buscarás ao Senhor, teu Deus, e o acharás, quando o buscares de todo


o teu coração e de toda a tua alma. Quando estiveres em angústia, e todas
estas coisas te sobrevierem nos últimos dias, e te voltares para o Senhor, teu
Deus, e lhe atenderes a voz, então, o Senhor, teu Deus, não te desamparará,
porquanto é Deus misericordioso, nem te destruirá, nem se esquecerá da
aliança que jurou a teus pais (vv. 29-31).

Perceba a referência à aliança que Deus jurou aos patriarcas. Por causa dessa
aliança fundamental, o fracasso total de uma geração pode ser substituído pela
bênção de uma futura.8
Essa relação entre as alianças mosaica e abraâmica ajuda a explicar a
combinação de advertências e promessas dadas pelos profetas, especialmente à
medida que a destruição de Jerusalém e o exílio da nação se aproximava.
Jeremias 11.1-5 declara uma maldição contra aqueles que não obedecerem às leis
da aliança mosaica, a aliança que foi dada “para confirmar o juramento que
[Deus] fez aos [seus] antepassados [Abraão, Isaque e Jacó]” que eles seriam o seu
povo e habitariam na terra. Jeremias resume a mensagem de todos os profetas
como uma mensagem de arrependimento para que possam desfrutar da bênção
patriarcal (25.5ss). Porém, como resultado da contínua desobediência [à lei
mosaica], Jeremias prediz a destruição iminente e o exílio. E ainda assim, ele
profetiza posteriormente, “‘Porque eis que vêm dias’, diz o Senhor, ‘em que farei
voltar do cativeiro o meu povo Israel, e de Judá,’ diz o Senhor; ‘e tornarei a
trazê-los à terra que dei a seus pais, e a possuirão.’” Ezequiel também explica a
destruição e o exílio da nação como um julgamento por manter os termos da
aliança mosaica, porém, como Jeremias, ele prediz uma futura restauração às
bênçãos prometidas aos patriarcas (Ez 20.1-44; 36.17-38).
Os patriarcas que receberam a aliança abraâmica receberam-na pela fé.
Certamente, eles foram escolhidos por Deus. Abraão foi escolhido e recebeu a
promessa que a bênção e a mediação da bênção seriam dadas a seus
descendentes. Entretanto, Deus reservou o privilégio de selecionar alguns dentre
todos os descendentes físicos para receber a promessa. Aqueles que a receberam
fizeram pela fé.
Uma vez que a aliança mosaica é uma forma da aliança abraâmica, devemos
esperar que a concessão da bênção exija que os favorecidos sejam crentes.
Entretanto, a aliança mosaica foi dada a Israel como uma nação, o que gera um
problema: e se a nação for mista, incluindo crentes e descrentes – aqueles que
adoram e confiam em Deus e aqueles que confiam em si mesmos ou em falsos
deuses? E se alguns deles desprezassem a aliança como fez Esaú?
As histórias de Israel e Judá e as advertências e admoestações dos profetas
revelam dois princípios relacionados que falam a esse respeito. Um é que a
resposta da aliança de Deus à nação varia dependendo do caráter geral dela.
Quando Israel como um todo é caracterizado como uma nação de fé e confiança
no Senhor, Deus os abençoa com as bênçãos da aliança mosaica. Por exemplo,
no Mar Vermelho ele os livrou da morte, preservou suas vidas e os direcionou a
herança da terra prometida aos patriarcas. Da parte deles, “o povo temeu o
Senhor e acreditaram no Senhor e no seu servo Moisés” (Êx 14.31).
O povo que cruzou o Jordão temeu o Senhor; eles confiaram nele e agiram
em obediência aos mandamentos com base na sua fé. E ele deu-lhes a terra
prometida aos seus antepassados. No fim da conquista, eles afirmaram juntos:

Então, respondeu o povo e disse: Longe de nós o abandonarmos o Senhor


para servirmos a outros deuses; porque o Senhor é o nosso Deus; ele é quem
nos fez subir, a nós e a nossos pais, da terra do Egito, da casa de servidão,
quem fez estes grandes sinais aos nossos olhos e nos guardou por todo o
caminho em que andamos e entre todos os povos pelo meio dos quais
passamos. O Senhor expulsou de diante de nós estas gentes, até o amorreu,
morador da terra; portanto, nós também serviremos ao Senhor, pois ele é o
nosso Deus. Disse o povo a Josué: Ao Senhor, nosso Deus, serviremos e
obedeceremos à sua voz (Josué 24.16-18, 24).

Para essa geração, as Escrituras dizem: “o Senhor concedeu a Israel descanso de


todos os inimigos ao redor” (Js 1.1). Josué também testificou: “nenhuma das
boas promessas que o Senhor, o seu Deus, lhes fez deixou de cumprir-se. Todas
se cumpriram; nenhuma delas falhou” (Js 23.14).
Em 1 Samuel 7, no fim do tempo dos Juízes, “os israelitas se livraram dos
baalins e dos postes sagrados, e começaram a prestar culto somente ao Senhor” (v
4). Eles confessaram, “temos pecado contra o Senhor”, e clamaram ao Senhor
para salvá-los (6-8). E o Senhor os livrou e garantiu paz na terra (vv. 9-14).
Os reinos de Davi e Salomão estabeleceram o culto ao Senhor em Israel, de
tal forma que no reino de Salomão foi dito:

Eram, pois, os de Judá e Israel muitos, numerosos como a areia que está ao pé
do mar; comiam, bebiam e se alegravam. Dominava Salomão sobre todos os
reinos desde o Eufrates até à terra dos filisteus e até à fronteira do Egito; os
quais pagavam tributo e serviram a Salomão todos os dias da sua vida [...]
Porque dominava sobre toda a região e sobre todos os reis aquém do Eufrates,
desde Tifsa até Gaza, e tinha paz por todo o derredor. Judá e Israel habitavam
confiados, cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, desde Dã
até Berseba, todos os dias de Salomão (1 Reis 4.20-21, 24-25).

Entretanto, quando Israel como um todo foi caracterizado como uma nação sem
fé, eles experimentaram as maldições ao invés das bênçãos da aliança. No Sinai,
enquanto Moisés estava no monte, o povo fez um ídolo dizendo: “Eis aí os seus
deuses, ó Israel, que tiraram vocês do Egito” (Êx 32.4). Em resposta, o Senhor
disse a Moisés: “Deixe-me agora, para que a minha ira se acenda contra eles, e eu
os destrua. Depois farei de você uma grande nação” (Êx 32.10). Esse julgamento
proposto foi similar àquele que o Senhor realizou sobre toda humanidade nos
dias de Noé e está diretamente relacionado com a falta de fé de Israel no Senhor.
A decisão posterior de Deus de não realizar essas ameaças leva a uma revelação
do seu caráter como “compassivo e gracioso, tardio em se irar e abundante em
benignidade”. Entretanto, para que não haja dúvida, ele rapidamente adiciona
que, “de modo algum ele deixa o culpado impune” (Êx 34.6-7).
O livro de Juízes conta a história da luta de Israel com a fé e as bênçãos
divinas provisórias. Em Juízes 2.10, lemos que depois da morte da geração que
entrou na terra sob Josué, “surgiu uma nova geração que não conhecia o Senhor
e o que ele havia feito por Israel.” Eles eram uma geração incrédula que:

Deixaram o SENHOR, Deus de seus pais, que os tirara da terra do Egito, e


foram-se após outros deuses, dentre os deuses das gentes que havia ao redor
deles, e os adoraram, e provocaram o SENHOR à ira. Porquanto deixaram o
SENHOR e serviram a Baal e a Astarote. Pelo que a ira do SENHOR se acendeu
contra Israel e os deu na mão dos espoliadores, que os pilharam; e os entregou
na mão dos seus inimigos ao redor; e não mais puderam resistir a eles. Por
onde quer que saíam, a mão do SENHOR era contra eles para seu mal, como o
SENHOR lhes dissera e jurara; e estavam em grande aperto (Juízes 2.12-15).

A partir do fim do reinado de Salomão até a história dos reis de Israel e Judá, o
povo lutou com a fé no Senhor. A despeito de notáveis exceções, ambas as
nações vieram a ser caracterizadas como um povo descrente, nações que se
esqueceram do Senhor ao colocar sua confiança em outros deuses.
Eventualmente, isso trouxe a maldição final da morte, destruição e expulsão da
terra da bênção. Em 2 Crônicas 36.11-21, lemos como Zedequias, o último rei
de Judá, seguindo o padrão daqueles que vieram antes dele:

Fez o que era mau perante o SENHOR, seu Deus, e não se humilhou perante o
profeta Jeremias, que falava da parte do SENHOR. [...] mas endureceu a sua
cerviz e tanto se obstinou no seu coração, que não voltou ao SENHOR, Deus de
Israel. Também todos os chefes dos sacerdotes e o povo aumentavam mais e
mais as transgressões, segundo todas as abominações dos gentios; e
contaminaram a casa que o SENHOR tinha santificado em Jerusalém. O
SENHOR, Deus de seus pais, começando de madrugada, falou-lhes por
intermédio dos seus mensageiros, porque se compadecera do seu povo e da
sua própria morada. Eles, porém, zombavam dos mensageiros, desprezavam as
palavras de Deus e mofavam dos seus profetas, até que subiu a ira do SENHOR
contra o seu povo, e não houve remédio algum.

Porque a nação como um todo foi caracterizada como um povo descrente e sem
fé, a ira de Deus veio sobre eles. Eles foram cortados das bênçãos prometidas a
Abraão e seus descendentes, pois essas bênçãos eram para serem recebidas pela fé
no Senhor. Sob os termos da aliança mosaica, quando a nação era uma nação de
fé, confiando no Senhor e andando em seus caminhos, eles eram abençoados
com a forma dispensacional da bênção abraâmica oferecida na aliança mosaica.
Quando eles eram uma nação que rejeitava o Senhor, caracterizada pela
descrença, colocando sua fé em e andando nos caminhos dos outros deuses em
vez do Senhor, eles não recebiam a bênção de Deus. Eles eram vistos por Deus
como “não meu povo e eu não seu Deus” (Os 1.9).
Consequentemente, vemos que na dispensação mosaica Deus se relacionou
com Israel como uma nação, um grupo coletivo de pessoas que poderia ser
caracterizado no todo, quer como um grupo coletivo de pessoas de fé, ou um
povo descrente. Porém, havia outro princípio, o princípio do remanescente da
fé. O tratamento de Deus da nação como um todo leva em consideração esses
indivíduos que verdadeiramente colocaram sua fé, segurança e confiança no
Senhor. Eles são os verdadeiros beneficiários da outorga abraâmica, significando
que não somente eles recebem a bênção do Senhor, mas eles fazem mediação
dela para o restante.
A presença de uma grande maioria de crentes dentro de Israel leva à
caracterização da nação como de uma única fé. Entretanto, o fato de que a nação
como um todo é tratada como um povo crente e fiel não significa que todo
membro dela é dessa forma um crente e consequentemente justificado como foi
Abraão. Em vez disso, a presença de uma grande maioria de indivíduos que são
crentes, e consequentemente justificados, cria uma situação na qual o Senhor
concede bênçãos nacionais sobre o todo coletivo.
Quando a nação como um todo é caracterizada pela descrença, não obstante
o Senhor mantém um remanescente de fé dentro dela. Nos dias em que Acabe e
Jezabel governaram Israel e levaram a nação ao culto a Baal, as maldições da
aliança de fome e tribulação caíram sobre a nação. Elias sentiu que ele era o
único adorador de Deus deixado entre o povo. Porém, o Senhor revelou a ele
que havia deixado sete mil que ainda o adoravam (1Rs 19.14-18).
Conforme o julgamento de Deus vem sobre a nação, que de modo geral é
caracterizada pela incredulidade, o remanescente mantém sua confiança no
Senhor. Suas vidas estão fundamentadas sobre a Rocha de Israel, encontrando
segurança nele, mesmo que uma destruição surgisse ao redor deles (Is 28.16). A
bênção feita na aliança com eles é uma esperança escatológica de que a ira de
Deus caindo sobre a nação servirá como purificação, um fogo refinador que os
conduzirá – o remanescente de fé – à bênção da aliança.
Mas quem poderá suportar o dia da sua vinda? E quem poderá subsistir
quando ele aparecer? Porque ele é como o fogo do ourives e como a potassa
dos lavandeiros. Assentar-se-á como derretedor e purificador de prata;
purificará os filhos de Levi e os refinará como ouro e como prata; eles trarão
ao SENHOR justas ofertas. Então, a oferta de Judá e de Jerusalém será agradável
ao SENHOR, como nos dias antigos e como nos primeiros anos. [...] Pois eis
que vem o dia e arde como fornalha; todos os soberbos e todos os que
cometem perversidade serão como o restolho; o dia que vem os abrasará, diz o
SENHOR dos Exércitos, de sorte que não lhes deixará nem raiz nem ramo. Mas
para vós outros que temeis o meu nome nascerá o sol da justiça, trazendo
salvação nas suas asas; saireis e saltareis como bezerros soltos da estrebaria
(Malaquias 3.2-4; 4.1-2; cf. Is 1.24-26).

Esse tema é repetido geralmente nos profetas. O Senhor deixará um


remanescente daqueles que se refugiam nele (Sf 3.12-13), que verdadeiramente
confiam no Senhor (Is 10.20-23). Eles serão suas ovelhas e ele governará sobre
eles (Mq 2.12; 4.6-8). Eles serão santos e abençoados com a bênção prometida
aos patriarcas (Is 4; Mq 7.18-20; Sf 8.11-13). Nesse tempo, eles constituirão
totalmente a nação de Israel, para que essa seja de fato uma nação totalmente
constituída pela fé e confiança no Senhor, e por consequência, totalmente
abençoada por ele.
O remanescente da fé, que através dos julgamentos da ira de Deus surge para
se tornar a nação escatológica, é também o objeto das profecias de uma nova
aliança que olha para além da dispensação mosaica para o cumprimento da
garantia feita aos patriarcas, um tema que nos leva adiante em nosso estudo das
alianças. Eles são também o povo a quem um reino eterno é dado nas visões
apocalípticas de Daniel – os santos do Altíssimo. Esse tema, por sua vez, nos
levará a um capítulo posterior onde traçaremos o ensino bíblico acerca do reino
escatológico de Deus.
O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA MOSAICA
Como um tratado bilateral, pode-se dizer que a aliança mosaica é cumprida
sucessivamente na história de cada geração dos descendentes dos patriarcas. É
uma aliança que diz respeito ao relacionamento concreto e presente de Israel e
Judá com Deus. Em cada geração, Deus manifesta a bênção ou a maldição (os
aspectos de ambos) em resposta à fé e obediência (ou descrença e desobediência)
do povo. Entretanto, predições começam a surgir nos profetas posteriores,
dizendo que a aliança mosaica será substituída por outra aliança que cumprirá a
intenção que Deus revelou na promessa abraâmica. Consequentemente, além
desse cumprimento histórico vigente, falaremos de um cumprimento da aliança
mosaica que o Novo Testamento vê como se manifestando em Jesus Cristo.
A DISPENSAÇÃO MOSAICA
Antes de deixar essa discussão da aliança mosaica, precisamos observar o que ela
tem a dizer acerca da história das dispensações. O arranjo relacional da aliança
mosaica é identificado pelo apóstolo Paulo como a dispensação que precede
aquela na qual agora nos encontramos. Nosso estudo nesse ponto indica que
quando foi instituída, a dispensação mosaica marcou uma mudança na forma
como Deus se relacionara com os patriarcas. Uma aliança que não existia na
época dos patriarcas, agora foi feita. Ela preparou um arranjo pelo qual Deus se
relacionaria com os descendentes dos patriarcas como uma nação, distinguindo-
os de outras nações na terra. Não era, entretanto, totalmente diferente da
dispensação patriarcal que a precedeu. Na verdade, a dispensação mosaica foi
uma dispensação da bênção prometida aos patriarcas. As promessas feitas na
aliança com Noé e com Abraão (que também assumem os planos e intenção para
humanidade revelada nas narrativas da criação) formam a continuidade
estrutural entre essas dispensações. Porém, a mudança dispensacional ocorre
quando Deus institui um novo arranjo para realizar essas bênçãos.
Ao mesmo tempo, a dispensação mosaica é uma progressão na história
dispensacional. Ela prepara um culto religioso nacional para o relacionamento
entre Deus e seu povo. A aliança mosaica também ofereceu uma revelação
extensiva da vontade de Deus ao dar a Lei e ela proveu os meios para abençoar
uma nação inteira e, através dessa nação, todas as pessoas na terra.
A NOVA ALIANÇA
O Conteúdo da Nova Aliança. Entre as profecias de Isaías, Jeremias e Ezequiel,
com respeito à futura restauração das bênçãos da aliança patriarcal, depois do
exílio de Israel e Judá, estão predições de uma nova aliança que substituirá a
aliança feita no Sinai. Essa nova aliança terá um propósito similar à aliança
mosaica – isto é, trazer a bênção da aliança abraâmica de volta à experiência
presente de uma geração ou gerações de Israel. Entretanto, enquanto a aliança
mosaica foi estabelecida com austeras advertências da falha nacional e
responsabilidade em relação à maldição do julgamento de Deus, os profetas
falaram de forma mais otimista acerca da nova aliança.

Um Novo Coração Habitado Pelo Espírito de Deus. Uma razão para o


otimismo é que a nova aliança será constituída por uma ação divina no coração
humano. Esse será um ato unilateral de Deus que tornará o favorecido fielmente
dedicado a Deus e obediente à sua lei.
Jeremias fala desse gracioso ato de Deus como a escrita da lei no coração.
“‘Porém [em contraste com a lei de Moisés], esta é a aliança que farei com a casa
de Israel depois daqueles dias,’ diz o Senhor, ‘Porei a minha lei no seu interior, e
a escreverei no seu coração.’”(Jr 31.33). O ato de escrever a lei nos seus corações
é um ato de tornar a lei de Deus um princípio interno de vida e conduta do seu
povo. Deus está dizendo que pela ação divina ele irá sobrepor a distância entre os
mandamentos divinos externos e a rebelião interna humana. Ele os fará ser o tipo
de povo que ele quer que sejam. Como resultado da escrita da sua lei
diretamente em seus corações, ele diz: “e eu serei o seu Deus e eles serão o meu
povo” (Jr 31.33); e “todos eles me conhecerão, desde o menor até o maior”
(v. 34).
Essa ação é antecipada na promessa ao final de Deuteronômio, que na
restauração – depois da consumação das maldições da aliança mosaica – Deus
faria a circuncisão nos corações do seu povo. Ele já ordenou que eles
circundassem seus corações (Dt 10.16; cf. Jr 4.4; 9.25), uma metáfora que fala
de fazê-los santos, separados para Deus (a circuncisão física foi um sinal que,
como um povo, eles eram santos, separados para Deus). Ainda assim,
advertências foram dadas de que eles falhariam, invocando as maldições da
aliança até mesmo ao ponto da expulsão da terra da herança. Ao contemplar seu
retorno a um estado de bênção (de acordo com a aliança patriarcal),
Deuteronômio 30.6 prediz: “O Senhor, teu Deus, circuncidará o teu coração e o
coração de tua descendência, para amares o Senhor, teu Deus, de todo o coração
e de toda a tua alma, para que vivas”.
Em Jeremias 32, a ação divina no coração humano é descrita como incutindo
o temor do Senhor: “e farei com que me temam de coração, para que jamais se
desviem de mim” (v. 40). Isso também é descrito como dando a eles um coração
diferente em direção a Deus: “Darei a eles um só pensamento e uma só conduta,
para que me temam durante toda a sua vida, para o seu próprio bem e o de seus
filhos e descendentes” (v. 39).
O tema de um novo coração é tomado em Ezequiel: “Dar-lhes-ei um só
coração, espírito novo porei dentro deles; tirarei da sua carne o coração de pedra
e lhes darei coração de carne; para que andem nos meus estatutos, e guardem os
meus juízos, e os executem; eles serão meu povo, e eu serei o seu Deus”
(Ez 11.19,20). Isso é repetido em Ezequiel 36.26: “Darei a vocês um coração
novo”, com a promessa associada da habitação do Espírito. A habitação do
Espírito Santo será o agente pelo qual a escrita da lei no coração é cumprida e o
novo coração é assim formado. “Porei o meu Espírito em vocês e os levarei a
agirem segundo os meus decretos e a obedecerem fielmente às minhas leis”
(Ez 36.27). Isaías combina ambos os conceitos da Palavra e Espírito ao preceder
a aliança que o Senhor fará quando ele vier como redentor de Sião: “‘Quanto a
mim, esta é a minha aliança com eles,’ diz o Senhor: ‘o meu Espírito, que está
sobre ti, e as minhas palavras, que pus na tua boca, não se apartarão dela, nem da
de teus filhos, nem da dos filhos de teus filhos, não se apartarão desde agora e
para todo o sempre,’ diz o Senhor” (Is 59.21).

O Perdão e a Purificação do Pecado. Uma segunda razão para o otimismo dos


profetas acerca da nova aliança contrastar com a antiga, é que, Deus garantirá a
seu povo o perdão e a purificação de todo pecado. Em Jeremias, o Senhor
declara, “eu lhes perdoarei a maldade e não me lembrarei mais dos seus pecados”
(Jr 31.34; cf. Ez 16.62-63). No livro de Ezequiel, ele declara: “Então, aspergirei
água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de
todos os vossos ídolos vos purificarei” (Ez 36.25). Tendo sido purificado da
idolatria, o povo será confirmado na fidelidade do Senhor. Deus será seu Deus e
ele abençoará o povo com as bênçãos prometidas a Abraão.

Ressurreição e Vida Eterna. Finalmente, a nova aliança oferece a bênção mais


importante, prometendo ressurreição dos mortos (Ez 37.1-23). É a bênção mais
importante porque sobrepõe a maldição da morte pronunciada sobre toda a
humanidade em Gênesis 3. É a promessa da vida imortal, que é a verdadeira
vida, a redenção do plano da criação. Em Ezequiel 37.12, a promessa do Senhor
de “abrir os seus túmulos e fazê-los sair” está ligada à promessa “trarei vocês de
volta à terra de Israel”. A ressurreição com uma visão em direção à herança da
Terra Prometida é cumprida pelo Espírito Santo, conforme Deus diz em 37.14:
“porei meu Espírito em vocês e vocês viverão, e eu os estabelecerei em sua
própria terra” (veja também a visão dos vv. 1-10, em o Espírito vem aos mortos).
Por um lado, a habitação do Espírito Santo e a herança da terra da promessa
olham de volta para 36.22-28. Por outro lado, entretanto, também olha em
direção a 37.15-28, quando Deus habitando em seu povo e seu povo habitando
na terra são chamados de “uma aliança de paz” e “uma aliança eterna” (37.26).
A promessa da ressurreição dos mortos e imortalidade foi revelada nas
profecias de Isaías como uma bênção que seguiria o grande dia do julgamento do
Senhor. Ele escreve:

O SENHOR dos Exércitos dará neste monte a todos os povos um banquete de


coisas gordurosas, uma festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com
tutanos e vinhos velhos bem-clarificados. Destruirá neste monte a coberta que
envolve todos os povos e o véu que está posto sobre as nações. Tragará a
morte para sempre, e, assim, enxugará o SENHOR Deus as lágrimas de todos os
rostos, e tirará de toda a terra o opróbrio do seu povo, porque o S ENHOR
falou. Naquele dia, se dirá: “Eis que este é o nosso Deus, em quem
esperávamos, e ele nos salvará; este é o SENHOR, a quem aguardávamos; na sua
salvação exultaremos e nos alegraremos” (Isaías 25.6-9).
Visto que a aliança abraâmica prometera que todos os povos seriam abençoados
em Abraão e seu(s) descendente(s), assim, a bênção da ressurreição dos mortos é
concedida a todos os povos.
Em outro lugar, a ressurreição é prometida especialmente ao remanescente de
Israel. Isaías promete que depois do grande dia do julgamento:

Os vossos mortos e também o meu cadáver viverão e ressuscitarão; despertai e


exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus, será como o
orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos (Isaías 26.19).

Daniel também, em uma visão paralela àquela na qual os santos do Altíssimo


herdam um reino eterno, profetiza que “muitos daqueles que dormem no pó da
terra acordarão, esses para a vida eterna, mas outros para desgraça e desprezo
eterno” (12.2).
Ezequiel, entretanto, identifica essa bênção como um aspecto da nova aliança
que Deus fará com seu povo. É uma bênção que correlaciona com a forma
especial na qual Deus habitará em e com seu povo, santificando-os e outorgando
sobre eles suas bênçãos para sempre.9

A Natureza da Nova Aliança. As bênçãos da nova aliança se mostram como


uma aliança outorgada, em vez de um contrato bilateral ou tratado.
Consequentemente, sua superioridade sobre a aliança mosaica, a qual ela
substitui, é imediatamente aparente. Como a aliança mosaica, ela oferece trazer
as bênçãos da outorga abraâmica para a experiência cotidiana do povo de Deus.
Porém, a nova aliança cumpre a intenção da outorga abraâmica ao outorgar a
experiência dessas bênçãos a Israel. Ela irá substituir tanto a dispensação mosaica
quanto a patriarcal, até mesmo ao garantir um coração fiel, leal e obediente ao
povo de Deus, eliminando a separação entre a promessa da bênção futura e a
experiência diária dela. Na nova aliança, Deus confirmará seu povo na fé e
obediência. Será a suprema manifestação de graça. Pois ele dará ao seu povo
aquilo que exige deles e ele exigirá aquilo que dá.10
Assim como a aliança abraâmica, da qual é o cumprimento, a concessão da
nova aliança será recebida pela fé. As promessas da nova aliança aparecem em
Jeremias e Ezequiel como a esperança expandida ao remanescente de Israel e
Judá, aqueles que esperam no Senhor o cumprimento das bênçãos da aliança
enquanto vivem em um tempo quando julgamento e maldição caíram sobre a
nação como um todo.

A Nova Aliança e a Aliança Abraâmica. A ação divina sobre os corações


humanos – perdão completo dos pecados – e ressurreição dos mortos são
bênçãos que expandem a noção de bênção na aliança abraâmica. Agora devemos
entender que o cumprimento da promessa “abençoarei vocês” (Gn 12.2) incluirá
a habitação do Espírito Santo em seus corações e a internalização da vontade
divina na volição humana. A bênção, também incluirá o perdão e a purificação
do pecado, com a implicação de que a maldição do juízo divino, tanto atual
quanto possível, será removida da experiência do povo de Deus. E o fato que
essas maldições são completamente removidas é visto na promessa da vida
imortal.
Enquanto a ressurreição dos mortos é, sem dúvidas, nova, não deveríamos
assumir que Deus nunca condicionou os corações do seu povo, que seu Espírito
nunca habitou neles, ou que ele nunca antes perdoou os seus pecados.
Entretanto, a nova aliança faz dessas bênçãos um elemento constitutivo eterno do
relacionamento de Deus com seu povo. Eles serão dados a todas as nações (“do
menor ao maior deles,” Jr 31.34) para sempre (“de agora e para sempre,”
Is 59.21).
Além do mais, há um avanço qualitativo na experiência dessas bênçãos sob a
nova aliança. O perdão é abrangente e eterno. E a habitação do Espírito de Deus
produz santificação completa. O ponto, é que a nova aliança promete uma
completa eliminação do pecado para sempre. Será o cumprimento do decreto
celestial visto na visão de Daniel: “para cessar a transgressão, e para dar fim aos
pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna” (Dn 9.24).
O relacionamento da nova aliança com a aliança de Abraão também é visto
na forma como as promessas da nova aliança reafirmam as bênçãos já reveladas
na aliança abraâmica. As promessas que pertencem à aliança patriarcal e que são
citadas nas predições da nova aliança são:
1. Deus os abençoará (referência feita às bênçãos de paz e prosperidade
especificadas pela aliança mosaica, uma especificação da promessa geral de
abençoar na aliança patriarcal) (Is 49.9-10; Jr 32.42-44; Ez 34.26-29; 36.8-
9, 29-36)
2. Deus lhes dará a terra prometida aos seus antepassados (Is 49.8; 54.3;
Jr 32.37, 41; Ez 11.17; 34.27; 36.24, 28; 37.12, 14, 21, 25-26)
3. Deus multiplicará os seus descendentes (Jr 31.27; Ez 36.10-12, 37-38;
37.26)
4. Deus fará deles uma grande nação (Jr 31.36)
5. Deus os fará seu povo e ele será seu Deus (Jr 31.33; 32.38; Ez 11.20;
34.24, 30-31; 36.28; 37.23, 27)

A promessa específica feita aos patriarcas de abençoar todos os povos através


deles não é explicitamente declarada nesses textos. Entretanto, já temos visto que
certas promessas, tais como a ressurreição dos mortos, são direcionadas para
todos os povos em outras profecias. A extensão universal da bênção é implicada
nos textos de Jeremias e Ezequiel na promessa para conceder paz com as nações
(Jr 32.37; 33.16; Ez 34.25, 28). Isso também está implícito no termo aliança de
paz, que é algumas vezes usada para se referir a essa nova aliança (Is 54.10;
Ez 34.25; 37.26). Nessa paz, todas as nações conhecerão o Senhor e temerão o
Senhor (Is 59.19; Ez 37.28).
Paz com as nações foi um elemento da aliança davídica, uma aliança que
ainda temos que examinar. Consequentemente, não deveria ser uma surpresa
que à medida que a nova aliança incorpora a promessa de paz com as nações, o
faz em conjunto com o cumprimento da aliança davídica. Em Isaías 55.3-5, a
promessa de uma aliança eterna (também chamada de aliança de paz, 54.10, que
manifestará a “benignidade eterna” de Deus, 54.8) está de acordo com “as
misericórdias fiéis reveladas a Davi” na qual ele liderará as nações e fará uma
reconciliação entre elas e Israel no culto ao Senhor.
Em Isaías 49, o Servo do Senhor será dado “para uma aliança do povo”
(v. 8). Esse servo é identificado como Israel no verso 3. Entretanto, no verso 5,
ele é um israelita que trará o resto de Israel de volta ao Senhor. A restauração à
terra (v. 8), prosperidade e multiplicação dos descendentes (vv. 10-21), estão
entre as promessas patriarcais a serem cumpridas através do ministério desse
servo. A maioria dos intérpretes reconhece um ministério messiânico em
perspectiva aqui. O fato de o servo ser dado como “uma aliança do povo”
vincula a promessa de uma nova aliança (que é dada precisamente para cumprir
essas promessas abraâmicas) com o cumprimento da aliança davídica. (Teremos
mais a dizer acerca disso depois.) Deveríamos também observar que nessa
passagem temos alguma informação sobre como a nova aliança cumprirá a
promessa de abençoar as nações. No verso 6 lemos: “Sim, diz ele: Pouco é o seres
meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e tornares a trazer os remanescentes
de Israel; também te deu como luz para os gentios, para seres a minha salvação
até à extremidade da terra.” A promessa da aliança nessa passagem se conecta
com outras profecias que predizem uma bênção gentílica.
A promessa de uma nova aliança mostra a natureza duradoura da aliança
abraâmica, uma vez que a nova aliança será dada precisamente para trazer a
promessa da aliança abraâmica ao seu cumprimento. Ao mesmo tempo, o
significado de “bênção” prometida aos patriarcas é expandido para incluir a
habitação do Espírito Santo no povo e uma ação divina no coração humano para
fazê-los santos. A bênção é também encarada agora ao incluir a vida imortal e
duradoura através da ressurreição dos mortos. O fato que a promessa da
renovação espiritual é posta lado a lado com as promessas de prosperidade física
e material (incluindo uma ressurreição corporal dos mortos), mostra que, na
teologia bíblica, as bênçãos físicas e espirituais não deveriam ser pensadas como
contraditórias ou mutuamente exclusivas.
Ainda que essas promessas sejam dadas em um tempo de grande conflito com
as nações gentílicas – de tal forma que o tema da restauração é geralmente dado
em conjunto com declarações de retribuição sobre os poderes gentílicos – o tema
da bênção mediadora a todas as nações não está ausente. É notável, entretanto,
que esse tema da bênção para as nações é discutido em textos que vinculam a
nova aliança à aliança davídica. Não seria surpreendente que a maioria do que o
Antigo Testamento tem a dizer sobre a bênção das nações será encontrado nas
profecias que falam do reino de Deus escatológico.
A Dispensação da Nova Aliança. A nova aliança é profetizada como um novo
arranjo para a experiência da bênção patriarcal. Conforme vimos no último
capítulo, Paulo fala de uma nova dispensação do Espírito que segue a
dispensação da aliança mosaica. Quando examinarmos o ensino paulino da nova
aliança no próximo capítulo, veremos que essa nova dispensação do Espírito é
precisamente uma inauguração da nova aliança.
Do ponto de vista do Antigo Testamento, esperava-se que a nova aliança
trouxesse as bênçãos patriarcais ao cumprimento eterno. Não obstante, a
dispensação da nova aliança não poderia ser completamente diferente da
dispensação a qual a precedeu. Seu propósito, e sua continuidade com as
dispensações precedentes, residem nas alianças patriarcais. A dispensação da nova
aliança será um avanço progressivo sobre a dispensação mosaica. Trará uma
maior revelação de Deus e expandirá (não substituirá) o sentido de “eu
abençoarei vocês”. Essa expansão ocorrerá através de uma reversão decisiva da
maldição divina sobre a humanidade ao ressuscitar os mortos – um povo
renovado e santificado, voluntário e obediente – em comunhão com Deus,
inumeráveis, habitando na terra e na sua presença para sempre.
A ALIANÇA DAVÍDICA
Davi, o segundo rei de Israel, é apresentado nas Escrituras como um homem de
fé no Senhor. Ele é descrito como o homem segundo o coração de Deus
(1Sm 13.14); alguém que “fizera o que o Senhor aprova e não deixara de
obedecer a nenhum dos mandamentos do Senhor durante todos os dias da sua
vida, exceto no caso de Urias, o hitita” (1Rs 15.5). Com a exceção observada, ele
é apresentado nas Escrituras como alguém que exemplificou a relação com Deus
esperada na aliança mosaica.11
No ponto mais alto do reinado de Davi – depois dele ter conquistado
Jerusalém e tê-la renovado como a Cidade de Davi, depois de trazer a arca do
Senhor para a cidade (porém antes do “caso de Urias, o Hitita”) – Davi propôs
construir uma “casa” (templo) para o Senhor. O Senhor abençoou Davi ao lhe
dar uma promessa. O Senhor construiria uma casa (uma dinastia) e um de seus
filhos construiria o templo do Senhor.

Conteúdos da Aliança Davídica. Essa promessa é desenvolvida como um


aglomerado das promessas encontradas principalmente em 2 Samuel 7 e
1 Crônicas 17, mas reiterada e suplementada nos Salmos 89, 110 e 132. Há duas
partes principais: as promessas concernentes ao estabelecimento da casa de Davi
e das promessas concernentes ao relacionamento íntimo entre Deus e o
descendente de Davi.

A Promessa de Construir a Casa Davídica. A promessa central, e primária, é a


da construção da casa de Davi. Isso é explicado pela promessa do Senhor de
estabelecer o reino do descendente de Davi, uma promessa que é repetida quatro
vezes em 2 Samuel 7, assim como em 1 Crônicas 17, alternando os termos reino
e trono para ênfase literária (2Sm 7.12, 13, 16; 1Cr 17.11-12, 14). Três vezes em
cada passagem, é dito que o reino prometido é para sempre. 2 Samuel 7 enfatiza
a continuidade do governo davídico ao usar as frases “sua casa”, “seu trono” e “seu
reino”. 1 Crônicas 17 destaca o estabelecimento do reinado do descendente dentro
do governo real sobre Israel e as nações, ao estabelecer em paralelo as frases “seu
trono será estabelecido para sempre” e “o confirmarei na minha casa e no meu
reino para sempre” (1Cr 17.14).
A promessa de Deus de construir a casa de Davi é repetida em outra
passagem também. Salmos 132.11 declara:

O SENHOR jurou a Davi com firme juramento e dele não se apartará:


“Um rebento da tua carne farei subir para o teu trono.”

O salmo 89, escrito mais provavelmente durante o exílio de Judá, repetidamente


relembra a promessa da aliança de Deus para (1) estabelecer os descendentes de
Davi e (2) estabelecer o trono de Davi (v. 4, 29, 36-37). Como o salmo 132.11,
a promessa é vista como estando fundamentada na própria veracidade do próprio
Deus (Sl 89.1-3, 14, 24, 28, 33, 35).

A Promessa do Relacionamento Especial com o Filho de Davi. A segunda


maior parte da promessa davídica diz respeito ao relacionamento entre Deus e o
rei davídico. “Eu serei seu pai e ele será meu filho” (1Cr 17.13; cf. 2Sm 7.14).
Da mesma forma, em Salmos 89.26-27 lemos:

Ele me invocará, dizendo: “Tu és meu pai,


meu Deus e a rocha da minha salvação.”
Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito,
o mais elevado entre os reis da terra.

Essa linguagem revela a intimidade que existirá entre o rei da aliança e o Senhor,
bem como a segurança desse relacionamento. O Senhor declara que sua
benignidade habitará com esse rei, o filho adotado do Senhor (2Sm 7.15;
1Cr 17.13; Sl 89.24, 28, 33). Da sua parte, o rei confia no Senhor e pela fé ele
recebe as promessas da sua aliança. No vínculo do amor de Deus por ele e
através da sua confiança mútua no Senhor, o reino do Filho é estabelecido sobre
tudo e para sempre.
A promessa que “ele construirá uma casa para mim” (1Cr 17.12; 2Cr 17.12;
2Sm 7.13) também mostra a resposta amorosa do Filho ao Pai. A casa falada
aqui é o templo do Senhor, o novo modo da presença de Deus entre o seu povo.
De tal forma, o templo funcionaria como um cumprimento histórico da bênção
abraâmica declarada a Jacó, que Deus estaria com seu povo, assim constituindo-
os como seu povo e revelando a si mesmo como seu Deus.
A promessa para Davi foi que seu filho estabeleceria o modo pelo qual Deus
seria apresentado entre seu povo e pelo qual o povo, por sua vez, adoraria a
Deus. Vemos isso primeiramente em Salomão, quando ele constrói o templo de
Deus.12 O Senhor o aceitou como o modo da sua presença entre seu povo ao
enchê-lo com sua glória (1Rs 6.12-13; 2Cr 7.1-4). Salomão apresentou o templo
ao povo como o lugar central para o culto em Israel. Dessa forma, o rei apoiou e
afirmou o culto a Deus. E 1 Crônicas 17.12 e 2 Samuel 7.13, a frase “e
estabelecerei seu trono para sempre” está ligada à frase “ele construirá uma casa
para mim”. Isso mostra que o estabelecimento do trono do rei anda lado a lado
com o estabelecimento do rei do culto a Deus.
Construir e manter um templo são atos sacerdotais. Sacerdotes pagãos
mantiveram altares para o culto a seus deuses. Sacerdotes levíticos também foram
conhecidos por manter altares (em violação à lei mosaica, veja Jz 18). Já que o rei
davídico constrói e mantém a casa de Deus, não é surpreendente que ele seja
descrito nas Escrituras como um tipo de sacerdote. Em Salmos 110.4 lemos:

O SENHOR jurou e não se arrependerá:


Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque.

Melquisedeque foi o rei de Salém e “sacerdote do Deus Altíssimo” que abençoou


Abraão (Gn 14.18). A conquista de Jerusalém por Davi, a antiga cidade de
Salém, deram-lhe o antigo trono de Melquisedeque. Apesar de a cidade ter caído
em idolatria desde o tempo de Melquisedeque, Davi – o novo Melquisedeque –
restaurou o culto ao único verdadeiro Deus. Além do mais, como rei não
somente de Jerusalém, mas de todo Israel, ele fez de Jerusalém o centro religioso
para toda a nação. Ao trazer a arca do Senhor para a cidade, as Escrituras
descrevem Davi estando vestido de trajes sacerdotais liderando os sacerdotes em
uma jubilosa celebração (2Sm 6.14-15, 18-19). Como o rei-sacerdote (da ordem
de Melquisedeque) ele fez planos para a construção do templo e exercitou sua
autoridade sobre os sacerdotes sujeitos, os levitas, ao organizá-los para o serviço
na casa de Deus quando essa casa fosse construída (2Cr 23.18; 29.25-30; 35.2-6,
Ed 3.10; Ne 12.24).
Não deveria haver dúvida de que o sacerdócio de Melquisedeque é parte da
aliança davídica. Assim como a aliança abraâmica, a aliança davídica é uma
coleção de promessas. O termo aliança aparece pela primeira vez no final da
narrativa de Samuel (2Sm 23.5), olhando de volta para as promessas que Deus
deu a Davi e seu(s) descendente(s). Em Salmos 110.4, a posição é prometida sob
juramento divino. O juramento de Deus primariamente funciona nas Escrituras
para garantir um relacionamento de aliança.13 Finalmente, não há dúvida a
partir de uma perspectiva do Novo Testamento que o sacerdócio de
Melquisedeque é um ofício dado ao filho de Davi como parte de sua herança.
Conforme veremos no próximo capítulo, Hebreus une os papéis da filiação da
aliança e o sacerdócio de Melquisedeque no ministério de Cristo.
O ofício sacerdotal do rei davídico está de acordo não somente com sua
função de mediar o relacionamento entre Deus e o povo, mas também com sua
intimidade com o Senhor. Deus promete que a sua benignidade irá sempre
habitar com ele. Mesmo as advertências de punição pelo pecado, punição “com
vara e [...] com açoites” (Sl 89.30-32; 2Sm 7.14) carregam a expectativa de um
relacionamento duradouro.

A Natureza da Aliança Davídica. Apesar de 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17 não


usar o termo aliança, a encontramos em passagens posteriores. Davi testifica em
2 Samuel 23.5: “Ele [o Senhor] estabeleceu uma aliança eterna comigo, firmada
e garantida em todos os aspectos”. Salomão também fala da promessa como uma
aliança (1Rs 8.23), e ela é interpretada como tal por escritores posteriores. O
salmista cita o Senhor ao dizer:

Fiz aliança com o meu escolhido


e jurei a Davi, meu servo: [...]
Conservar-lhe-ei para sempre a minha graça
e, firme com ele, a minha aliança (Salmos 89.3, 28).

Nas narrativas dos reis posteriores, de Israel e Judá, lemos:

Não vos convém saber que o SENHOR, Deus de Israel, deu para sempre a Davi
a soberania de Israel, a ele e a seus filhos, por uma aliança de sal?
(2 Crônicas 13.5)

Porém o SENHOR não quis destruir a casa de Davi por causa da aliança que
com ele fizera, segundo a promessa que lhe havia feito de dar a ele, sempre,
uma lâmpada e a seus filhos (2 Crônicas 21.7).

Assim como a aliança com Abraão, a aliança com Davi é uma aliança outorgada.
É o estabelecimento formal de uma concessão ou dádiva a Davi, o servo do
Senhor. Ela consiste em promessas a Davi e é frequentemente referenciada dessa
maneira, como a promessa do Senhor a Davi (2Sm 7.28; 1Rs 2.4, 24; 5.12;
8.20, 24-25, 56; 9.5; 2Rs 8.19; 1Cr 17.26; 2Cr 1.9; 6.10, 15-16; 21.7). Como
uma aliança outorgada, a aliança davídica é incondicional. Davi, um homem de
fé, recebe essas promessas acreditando que Deus irá cumpri-las. Deus declara sua
intenção de realizar essas bênçãos a Davi como um ato de sua graça. Em
concordância com isso, as condições estão ausentes quando a promessa é revelada
a Davi (2Sm 7; 1Cr 17). E a intenção de Deus de cumprir a promessa é repetida
na história subsequente dos reis davídicos, a despeito dos muitos atos de
deslealdade da parte deles (veja 1Rs 11.11-13. 34-36; 15-4-5; 2Rs 8.19;
2Cr 21.7; 23.3).
Entretanto, quando a aliança é transferida a Salomão, ela é colocada em uma
forma condicional. Davi anuncia:

E, de todos os meus filhos, porque muitos filhos me deu o Senhor, escolheu


ele a Salomão para se assentar no trono do reino do Senhor, sobre Israel. E
me disse: “Teu filho Salomão é quem edificará a minha casa e os meus átrios,
porque o escolhi para filho e eu lhe serei por pai. Estabelecerei o seu reino
para sempre, se perseverar ele em cumprir os meus mandamentos e os meus juízos,
como até o dia de hoje” (1 Crônicas 28.5-7).

No seu subsequente encargo a Salomão, Davi revela uma nova promessa que é
condicional em natureza, e que não tinha aparecido na lista de promessas em
2 Samuel 7 ou 1 Crônicas 17:

Eu vou pelo caminho de todos os mortais. Coragem, pois, e sê homem!


Guarda os preceitos do Senhor, teu Deus, para andares nos seus caminhos,
para guardares os seus estatutos, e os seus mandamentos, e os seus juízos, e os
seus testemunhos, como está escrito na Lei de Moisés, para que prosperes em
tudo quanto fizeres e por onde quer que fores; e para que o Senhor confirme
a palavra que falou a mim, dizendo: “Se teus filhos guardarem o seu caminho,
para andarem perante a minha face fielmente, de todo o seu coração e de toda a
sua alma, nunca te faltará sucessor ao trono de Israel.” (1 Reis 2.2-4)

A promessa condicional de que nunca te faltará sucessor ao trono de Israel é


repetida mais duas vezes por Salomão (1Rs 6.12; 8.25; cf. 2Cr 6.16) e
reafirmada pelo Senhor (1Rs 9.4-9; cf. 2Cr 7.17-22). Também aparece em
Salmos 132.12, onde é justaposta com a promessa incondicional de colocar um
descendente sobre o trono (v. 11). A promessa de Deus de levantar um
descendente é incondicional. Porém, um reino contínuo e ininterrupto não é.
Isso é condicionado pela fidelidade dos reis davídicos.
A forma condicional da aliança davídica dada a Salomão faz paralelo com a
forma condicional da promessa abraâmica dada a Israel como a aliança mosaica.
Como vimos, a aliança mosaica não comprometeu a intenção original expressa
na aliança abraâmica. Em vez disso, tornou possível uma experiência histórica da
bênção de Abraão na forma específica da bênção da aliança mosaica. A intenção
de Deus de abençoar os descendentes de Abraão é firme, porém se ele dará ou
não certas bênçãos a uma geração particular desses descendentes em um tempo
específico na história foi condicionada pelos termos da aliança mosaica. Ainda
assim, Israel experimentou muitas bênçãos de Deus através da história da aliança
mosaica a despeito dos exemplos de infidelidade para com a aliança. E como
vimos, a intenção incondicional de Deus de abençoar foi geralmente confirmada
através dessa história como uma promessa a ser realizada no futuro.
O mesmo é verdade em relação à aliança davídica. Deus prometeu a Davi
que ele estabeleceria o reino do seu(s) filho(s). Porém, quando um filho
específico foi escolhido, de tal forma que a possibilidade de herança da promessa
foi estreitada aos descendentes desse filho de Davi, a promessa foi condicionada
na fidelidade à aliança. A intenção de Deus de cumprir a promessa davídica
permaneceu firme, como pode ser visto nas narrativas de sucessão dos reis
davídicos. Mas, a desobediência à lei mosaica trouxe vários tipos de punições.
Ainda assim, o Senhor manteve o trono davídico por causa da aliança outorgada
feita a Davi (veja 1Rs 11.11-13, 34-36; 15.4-5; 2Rs 8.19; 2Cr 21.7; 23.3).
Eventualmente, quando o Senhor julgou a casa davídica, deixando vago o trono
de Davi (veja as maldições em Jr 22.28-30; 36.30-32), a condicionalidade de
uma linha ininterrupta foi claramente demonstrada.
Por muito tempo, na verdade, não houve um descendente de Davi sentado
no trono de Israel. Entretanto, as profecias acerca de um futuro rei davídico e a
reconstrução da casa de Davi reafirmaram a intenção última da aliança de Deus a
Davi. Repetindo a linguagem da aliança davídica, os profetas declararam que o
Senhor levantaria um descendente de Davi (Is 9.6; Jr 23.5) e estabeleceria seu
reino (Is 9.7; 16.5; 28.16). Ele será um renovo ou ramo do tronco cortado
(Is 11.1; Jr 23.5; 33.15) da casa caída de Davi (Am 9.11-12). Muito da profecia
diz respeito ao caráter desse rei davídico: ele será justo e governará com justiça e
retidão (Is 9.7; 11.3-4; 16.5; 28.17; Jr 23.5; 33.15) e será sábio, cheio com o
Espírito de sabedoria, piedade e conhecimento de Deus (Is 9.6; 11.2; Jr 23.5).
Como um resultado dessa sabedoria e retidão, ele cumprirá completamente a
condição colocada sobre os filhos de Davi, tanto é, que Jeremias fala da promessa
de não faltar um homem para sentar no trono, tão certo quanto é o
cumprimento eterno da aliança noética (Jr 33.14-26).
O RELACIONAMENTO DA ALIANÇA DE DAVI COM AS OUTRAS ALIANÇAS DO SENHOR
A aliança davídica estabeleceu o reinado davídico como crucial ao cumprimento
das bênçãos de Abraão. Isso requer um exame mais próximo e nos levará a
investigar o relacionamento entre a aliança davídica e mosaica e a nova aliança, já
que, conforme vimos, elas são as formas nas quais a aliança abraâmica tem sido e
será cumprida.

A Aliança Davídica e a Aliança Abraâmica. No começo do grupo das


promessas dadas a Davi em 2 Samuel 7 e 1 Crônicas 17 estão duas promessas
que são parte da aliança abraâmica. Primeiro, o Senhor diz: “Farei de você um
grande nome” (2Sm 7.9; cf. 1Cr 17.8). Para Abraão, o Senhor disse: “Farei de ti
uma grande nação [...] e farei seu nome grande” (Gn 12.2). A promessa do
grande nome agora passou especificamente ao rei davídico. Seu nome será
grande. E já que ele é o rei, o governador da nação, a grandeza do seu nome se
traduz na grandeza da nação. Consequentemente vemos, como sob seu governo,
a promessa abraâmica da grande nação e grande nome vem juntas.14
Essa conexão entre a bênção sobre o rei e a bênção sobre a nação parece guiar
a estrutura literária do texto também, pois, seguir a promessa do grande nome é
uma referência à promessa Abraâmica de estabelecer Israel “em seu próprio
lugar” em paz e segurança (2Sm 7.10-11; 1Cr 17.9-10). A promessa que eles
“não perturbarão novamente, nem o perverso os afligirá mais”, olha para um
tempo além das maldições da aliança mosaica, para o tempo no qual a bênção
abraâmica será cumprida em última instância. É importante notar que nessas
promessas o cumprimento último da aliança abraâmica coincide com o
cumprimento da aliança davídica. Em outras palavras, o cumprimento final da
promessa abraâmica da bênção na Terra Prometida acontecerá sob o governo de
um rei davídico.
Aqui está o relacionamento entre as alianças davídica e abraâmica. Por um
lado, a aliança é parte da bênção da aliança abraâmica. Um rei abençoado da
linhagem de Davi é uma forma na qual a promessa de abençoar os descendentes
de Abraão se manifestará. Por outro lado, a aliança davídica provê os meios pelo
quais a bênção será cumprida por todos os descendentes. A bênção para muitos
serão mediadas pelo governo desse, o rei. Através de sua ação, os inimigos da
bênção serão subjugados, as nações serão pacificadas e Israel será estabelecido no
culto a Deus.
Podemos ver esses reinos de Davi e Salomão. Davi estabeleceu paz e
segurança para Israel ao lutar as guerras do Senhor, dirigindo os inimigos do
povo de Deus a partir da terra da promessa. Salomão governou sobre as nações
ao redor em uma hegemonia que manteve a paz e trouxe prosperidade a Israel.
1 Reis 4.20-21 descreve a situação na linguagem da aliança patriarcal.

Eram, pois, os de Judá e Israel muitos, numeroso como a areia que está ao pé
do mar; comiam, bebiam e se alegravam. Dominava Salomão sobre todos os
reinos desde o Eufrates até a terra dos filisteus e até à fronteira do Egito; os
quais pagavam tributo e serviram a Salomão todos os dias da sua vida.

A segurança dessa paz estava enraizada no culto apropriado de Israel a Deus. A


monarquia contribuiu aqui ao supervisionar a construção e manutenção do
templo. Como sumo sacerdote (da ordem de Melquisedeque), o rei deveria
liderar Israel no culto a Deus. O bem-estar da monarquia e da nação está
vinculado ao culto a Deus. O rei estabeleceu o exemplo e a direção para a nação.
Conforme o rei cultuava ao Senhor e mantinha o templo como o centro de culto
de Israel, assim a nação geralmente respondia à sua liderança. O zelo pelo Senhor
levaria o rei a destruir os altares, os santuários concorrentes de idolatria
espalhados pela terra. Ao purificar a terra, ele reforçou o culto somente a Deus.
Isso, por sua vez, levaria às bênçãos de paz continuada, prosperidade e segurança
da terra.15
Porém, o que dizer sobre o resto das nações? A aliança abraâmica prevê
bênçãos sobre todos os povos mediadas por Abraão e seus descendentes. Aqui
também a aliança davídica posiciona o rei davídico como o mediador dessa
bênção para todos. Isso já é implicado em 2 Samuel 7.10-11 (cf. 1Cr 17.9-10)
na promessa de pacificar os inimigos de Israel, que poderia vir na forma de
julgamento punitivo (como as campanhas militares esmagadoras de Davi) ou sob
uma hegemonia pacífica (como o reinado de Salomão). Em última instância, é o
último no qual a promessa prevalecerá.
A função do rei como o mediador da bênção da aliança para todas as nações é
estabelecida no Salmo 72.16 O rei é justo, reto e sábio, e Israel desfruta das
bênçãos da aliança. Há paz, prosperidade, justiça e possessão total da Terra
Prometida. O rei também é visto para governar toda a terra, sobre todos os
povos da terra (vv. 8-11), com o resultado de que as bênçãos de paz e
prosperidade se estendem por toda a terra. A bênção sobre Israel vem à medida
que o povo abençoa o rei (v. 15). Da mesma forma, as nações são abençoadas à
medida que “abençoam a si mesmas nele”.
Essa é a linguagem da aliança abraâmica. Os descendentes de Abraão têm
sido reestruturados politicamente de tal forma que a função de mediar à bênção
repousa principalmente com o rei. Ao passo que Deus disse “eu abençoarei
vocês”, o vocês deve agora ser visto em uma estrutura política com o rei no topo,
recebendo a bênção e a mediando para o resto do povo. E ao passo que Deus diz
que abençoaria todas as nações “em você” (Gn 12.3) e “em seus descendentes”
(Gn 22.18), o “você” e o “descendentes” devem, da mesma forma, não mais
serem tomados em um sentido uniforme de todos os descendentes em geral, mas
em um sentido monárquico, significando em primeiro lugar o rei e depois a
nação em submissão a ele. É através dele e seu reinado que a promessa da aliança
abraâmica, que promete abençoar todas as nações, será cumprida.

A Aliança Davídica e a Aliança Mosaica. A aliança davídica foi dada sob a


dispensação da aliança mosaica. Como uma aliança outorgada, atrelada ao
cumprimento futuro da aliança de concessão que foi dada aos patriarcas, seu
cumprimento final aponta para além da dispensação mosaica. Entretanto, a
experiência das bênçãos da aliança davídica durante o tempo da dispensação
mosaica foi condicionada pela aliança mosaica. Havia até mesmo uma forma da
aliança davídica que era condicional e que correlaciona com a natureza
condicional da aliança mosaica em si.17
Conforme observamos, a bênção davídica é tanto uma forma da bênção
abraâmica como da mediação da bênção abraâmica. Sob a dispensação mosaica,
a bênção abraâmica é oferecida em termos de bênçãos específicas da aliança
mosaica. Consequentemente, durante tal dispensação, o rei davídico é
abençoado e traz bênçãos aos outros precisamente nos termos das bênçãos
mosaica escritas em Deuteronômio 28.
A aliança mosaica, entretanto, também pode trazer a maldição de Deus para a
experiência do povo. Sob tal dispensação, a mediação do rei davídico pode
também trazer a maldição de Deus. Isso pode acontecer de duas formas.
Primeiro, pela sua própria deslealdade e falta de fé, o rei pode provocar a
maldição de Deus sobre a nação. Perceba a advertência do Senhor para Salomão.

Porém, se vós e vossos filhos, de qualquer maneira, vos apartardes de mim e


não guardardes os meus mandamentos e os meus estatutos, que vos prescrevi,
mas fordes, e servirdes a outros deuses, e os adorardes, então, eliminarei Israel
da terra que lhe dei, e a esta casa, que santifiquei a meu nome, lançarei longe
da minha presença; e Israel virá a ser provérbio e motejo entre todos os povos.
E desta casa, agora tão exaltada, todo aquele que por ela passar pasmará, e
assobiará, e dirá: “Por que procedeu o SENHOR assim para com esta terra e esta
casa?” Responder-se-lhe-á: “Porque deixaram o SENHOR, seu Deus, que tirou
da terra do Egito os seus pais, e se apegaram a outros deuses, e os adoraram, e
os serviram. Por isso, trouxe o Senhor sobre eles todo este mal” (1 Reis 9.6-9).

Vemos aqui que a idolatria e a desobediência da parte do rei trariam a maldição


última da aliança mosaica – a expulsão da terra. Também vemos a implicação
sobre as pessoas seguirem o exemplo do rei em uma aliança infiel, mostrando
assim, o poder do rei de influenciar a adoração religiosa da nação como um todo.
A outra forma pela qual o rei medeia a maldição da aliança mosaica seria
como um instrumento do Senhor para castigar e punir aqueles em Israel que
quebraram a aliança. Reinar justa e retamente significava realizar os requisitos da
lei incluindo suas punições para transgressões.

A Aliança Davídica e a Nova Aliança. Uma nova aliança foi profetizada para
substituir a aliança mosaica, para trazer a bênção abraâmica completa e
permanentemente à existência dos descendentes de Abraão. A nova aliança faria
isso por meio da outorga de outra bênção, a renovação e santificação do coração
humano por meio da habitação do Espírito Santo, juntamente com a
ressurreição dos mortos e vida eterna. A esse povo renovado, santificado e
ressuscitado, a promessa da bênção seria cumprida para sempre.
A aliança davídica também foi dada para trazer a aliança abraâmica ao
cumprimento eterno. Consequentemente, as alianças davídica e a nova devem
estar juntas nessa tarefa. Na aliança davídica, a bênção que vem sobre o rei é a
bênção abraâmica. Na aliança mosaica, ela vem sobre ele como a bênção da
aliança mosaica. Numa futura dispensação, a bênção viria sobre o rei como a
bênção da nova aliança. Essa bênção da nova aliança seria o cumprimento da
bênção prometida a Abraão. Isso incluía muitas das coisas previstas pela aliança
mosaica – paz, prosperidade e segurança na terra da promessa. Porém, ela
também incluía a promessa da ressurreição de vida com um novo coração.
Consequentemente, o cumprimento da aliança davídica aconteceria no rei que
incorporaria a promessa da nova aliança de um novo coração e uma vida imortal
mediada pela habitação do Espírito de Deus.
Os profetas que predisseram a nova aliança geralmente falaram do
cumprimento da aliança a Davi no reino de um rei futuro. Esse rei é
repetidamente caracterizado pela retidão, justiça e fidelidade. Ele é
completamente habitado pelo Espírito de Deus, governando para sempre com
sabedoria piedosa e poder (veja Is 9.6-7; 11.1-10; Jr 23.5-6; 33.14-26). Ao passo
que, sob a dispensação mosaica o rei de Israel estava certamente habitado pelo
Espírito de Deus (1Sm 16.13), essa bênção não era necessariamente permanente
(1Sm 16.14; cf Sl 51.11), não resultou na renovação completa do coração
levando a completa obediência conforme prevista nas promessas da nova aliança,
nem o tornaria imortal. O rei que foi profetizado pelos profetas da nova aliança
supera grandemente em caráter, poder e dimensão do reino, tanto de Davi
quanto de Salomão, a grandeza dos antigos reis de Israel.
Também vimos que a aliança davídica constituiu o rei como um mediador da
bênção da aliança ao resto de Israel, assim como um mediador da bênção para
todas as nações. Visto que a nova aliança é a forma pela qual a bênção da aliança
abraâmica será cumprida, nesse caso concordando com a estrutura da aliança
davídica, a bênção da nova aliança será mediada pelo rei davídico. Isso
significaria que até mesmo as bênçãos de ressurreição, renovo e santificação pelo
habitar do Espírito Santo irão de alguma forma serem mediadas através do rei.
Podemos ver isso implícito no cenário da nova aliança de Ezequiel 37, onde
as promessas são cumpridas com Davi (isto é, o rei davídico) governando sobre o
povo e Deus habitando no meio deles para sempre. Também observamos como
nas predições do governo desse rei, as Escrituras geralmente se movem do caráter
do rei de retidão para a retidão que caracteriza o reino (Is 11.1-10; Jr 23.5-6).
Porém, a evidência é mais forte nos textos como Isaías 49.5-8 e 55.3. O servo,
predito nos oráculos de Isaías 41-53, às vezes é o próprio Israel, mas às vezes é
uma pessoa de Israel, que representa e atua em favor da nação. Essa pessoa, em
Isaías 52.13, é um rei futuro de Israel, o Messias de Deus.18 Em Isaías 49.8, esse
servo será dado “para o povo, para restaurar a terra e distribuir suas propriedades
abandonadas”. Em outras palavras, esse servo funcionaria como aliança de Deus,
trazendo as promessas ao cumprimento. Como ele faz isso parece estar implícito
em 49.5 – ele irá “trazer de volta Jacó e reunir Israel a ele mesmo”. Ele traz Israel
a Deus para o cumprimento da bênção da aliança. A nova aliança é a obra de
graça de Deus trazendo Israel de volta a si mesmo para a completa recepção das
bênçãos da aliança. Esse rei futuro, que será dado em um ato de expiação pelos
pecados da nação (Is 53), será usado por Deus para mediar a bênção que renova
e restaura seu povo.
Porém, como as promessas da aliança preveem uma bênção sobre todos os
povos, o futuro rei davídico, da mesma forma, mediará a bênção da nova aliança
para todas as nações. Em Isaías 49.6, lemos:

Sim, diz ele: Pouco é o seres meu servo, para restaurares as tribos de Jacó e
tornares a trazer os remanescentes de Israel, também te dei como luz para os
gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra.

Isso está de acordo com outras profecias, que através do futuro rei davídico a
bênção viria aos gentios (Is 11.10; 55.3-4). Uma vez que o rei é aquele em quem
todos serão abençoados, ele é aquele por quem a paz virá sobre todos os povos.
Consequentemente, é por meio dele que o renovo, a ressurreição e a santificação
pela habitação do Espírito de Deus serão dados não somente para Israel, mas
para todos os povos.
RESUMO
A história das alianças antes de Jesus Cristo é a história da promessa divina de
abençoar toda vida na terra – todas as nações e povos que a compõe. É a história
do plano divino de redenção, de reconciliação, que expressa a esperança do
cumprimento desse propósito que foi revelado na criação: uma terra repleta de
vida, repleta especialmente com seres humanos vivendo em paz, prosperidade e
completa comunhão com Deus.
É necessariamente uma história de redenção porque, as bênçãos de Deus
apresentadas nas alianças estão em contraste aos julgamentos fundamentais
contra o pecado – advertências e pronunciamentos de miséria, insegurança,
destruição e morte.
A aliança com Abraão é fundamental, pois ela coleta a promessa da aliança
noética (feita com toda vida) e dirige diretamente à existência humana. Ela
oferece a bênção de Deus sobre a vida humana tanto individualmente, quanto na
sua identidade coletiva nacional. A história da Bíblia, de Abraão em diante, é a
história do relacionamento de Deus com os seres humanos como estabelecido na
sua aliança e desenvolvido a partir dela à medida que seus elementos são
expandidos e detalhados em uma revelação subsequente.
A bênção (em contraste aos julgamentos merecidos de miséria, morte e
destruição) foi decretada pela iniciativa divina como uma concessão a Abraão,
que por sua vez a recebeu pela fé e experimentou muitos de seus aspectos em sua
vida pessoal e familiar enquanto andou com o Senhor em obediência a seus
mandamentos. A aliança designou Abraão como mediador da bênção de Deus
para todos os povos e nações na terra. Todos que abençoassem Abraão,
acreditando na promessa que Deus concedeu a ele, seriam da mesma forma
abençoados por Deus.
A bênção e a mediação da bênção passaram para os descendentes de Abraão à
medida que eles eram escolhidos por Deus para herdar a aliança. Uma nova
dispensação para as bênçãos foi instituída pela aliança mosaica, que constituiu os
descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, como uma nação, tomando o nome
divino para Jacó – Israel. A lei da aliança mosaica desafiou as gerações de Israel
para confiarem somente em Deus e obedecerem a seus mandamentos. Aqueles
que eram da fé dos patriarcas buscaram adorar a Deus de acordo com seus
mandamentos. Eles eram os verdadeiros herdeiros da outorga patriarcal e
mediaram sua bênção (na forma da dispensação específica da bênção mosaica) ao
resto da nação e outros povos também. Quando o Israel da fé constituiu somente
um pequeno remanescente do Israel físico, as maldições da aliança mosaica, o
julgamento da miséria, a destruição, o exílio e a morte ameaçaram a nação.
Porém, o remanescente da fé herdou a esperança de herdar a bênção divina em
uma era escatológica.
Durante a dispensação mosaica, o papel da mediação da bênção foi
politicamente reestruturado como uma função do rei davídico. Uma aliança foi
feita com Davi para abençoar a ele e ao(s) seu(s) filho(s) com o governo sobre
Israel e o resto das nações; um relacionamento íntimo e abençoado com Deus e a
mediação (até mesmo mediação sacerdotal) da bênção para Israel para todos os
povos e nações. Na dispensação mosaica, essa outorga manifestou-se em vários
níveis nos reinos daqueles reis davídicos que confiaram no Senhor de acordo
com a aliança mosaica.
Porém, conforme a história da infidelidade e apostasia de Israel finalmente
levaram à destruição nacional e exílio, os profetas olharam para uma nova
dispensação, na qual uma nova aliança substituiria a aliança mosaica e traria a
outorga abraâmica em cumprimento eterno. Nessa nova aliança, Deus garantiria
a bênção de corações reconstruídos, cheios do Espírito, completamente
confiantes e obedientes a ele, tendo a vontade de Deus escrita diretamente em
suas próprias vidas. Ele eliminaria o problema do pecado de tal forma que a
bênção seria recebida completa e eternamente. Ele concederia total perdão dos
pecados e ressurreição dos mortos para uma vida imortal. Todas as promessas de
bênçãos para uma vida pessoal e nacional de comunhão com Deus, com paz e
prosperidade, seriam cumpridas para sempre.
A bênção da nova aliança seria exemplificada na vida de um rei davídico,cujo
governo e sua mediação levariam as bênçãos ao Israel da fé – esse remanescente
do Israel físico que confia em Deus – e também à todas as nações que confiassem
em Deus através desse rei, para que, desta forma, venham a constituir aquelas
nações que são abençoadas para sempre “nele”
1. Moshe Weinfeld, “The Covenant of Grant in the Old Testament and in the Ancient Near East,” Journal of
the American Oriental Society 90 (1970): pp. 184-203.
2. Cleon Rogers, Jr., “The Covenant with Abraham and Its Historical Setting,” Bibliotheca Sacra 127 (1970):
252; Walter Kaiser, Jr., Toward an Old Testament Theology (Grand Rapids: Zondervan, 1978), pp. 92-94.
3. O argumento de Robert Chisholm merece atenção. Ele argumenta que a promessa era condicional até o
momento do sacrifício de Isaque por Abraão. Nesse momento, a aliança foi efetivamente feita através da
terra de Deus como uma garantia aos descendentes de Abraão. Assim como uma aliança outorgada, a
promessa condicional anterior se torna de agora em diante incondicional. O artigo de Chisholm foi
publicado um pouco antes da escrita desse capítulo. Não houve tempo suficiente para analisar e incorporar
seus argumentos aqui. Veja: Robert Chisholm, “Evidence from Genesis,” em A Case for Premillennialism: A
New Consensus, ed. Donald Campbell and Jeffrey Townsend (Chicago: Moody, 1992), pp. 35-54.
4. Comparando os dois textos em Gênesis 27.29 e 49.8-10, a frase “que os povos o sirvam” é transferida
para Judá como “e a ele todos os povos obedecerão”. A frase “e que os filhos de sua mãe se prostrem a você”
é transferida como “os filhos de seu pai se prostrarão a você”. Para Jacó, essa última frase é distinguida entre
aqueles da promessa e aqueles de fora. À medida que a bênção do reinado é dada especialmente para Judá,
ela também distingue um regente de outros dentro da promessa.
5. Compare os seguintes textos: Êxodo 2.24; 3.6; 15-17; 4.5; 6.3-8; 19.5-6; 20.2-4; 32.13; 33.1, 12-16;
Levítico 26.42; Números 24.9; 32.11; Deuteronômio 1.8; 4.29-31, 37-40; 5.6-11; 6.3, 10; 7.8-13; 8.1;
9.5; 29.13; 30.20; 34.4.
6. Deve-se lembrar que a controvérsia entre Deus e Israel (ou Judá) acerca da possibilidade do exílio é no
todo uma controvérsia acerca de um elemento chave na aliança patriarcal – a terra e uma vida abençoada
nela. Ocasionalmente, uma menção é feita aos patriarcas por nome (veja Jr 4.2; 11.1-5; 24.10; 25.5; 35.15).
7. Veja Isaías 51.2-3; Jeremias 30.3; 31.33; 32.21-44; Ezequiel 20.42; 36 28; 47.14; e Miquéias 7.20. Essas
referências servem para interpretar o tema inteiro da restauração por entre os profetas como baseada
fundamentalmente na aliança patriarcal.
8. Essa predição é repetida em Deuteronômio 30, uma passagem que tem sido chamada algumas vezes
como aliança palestina. Parece melhor, entretanto, não a ver como uma aliança distinta da aliança mosaica,
mas como parte da nova declaração dessa aliança no tempo da entrada de Israel na terra.
9. Pode ser argumentado que a visão de Ezequiel da ressurreição é uma metáfora para o retorno de uma
geração posterior à terra prometida. Isso é plausível à luz do gênero literário de Ezequiel e o contexto
histórico. O Novo Testamento, entretanto, incorpora a linguagem de Ezequiel em seu próprio ensino
acerca da ressurreição futura dos mortos. Veja Romanos 8.11.
10. Agostinho, Confissões 10.29.40.
11. Isso é visto não somente nas narrativas históricas de Samuel e Crônicas, mas também nos Salmos. Veja
especialmente sua atitude em relação à aliança mosaica no Salmo 119.
12. Salomão declarou que a construção do templo seria um cumprimento da promessa da aliança de Deus a
Davi (1Rs 8.15-21).
13. Colocamos acima que a aliança abraâmica é geralmente referida como o juramento que Deus fez aos
antepassados. Encontramos a aliança davídica referida como o juramento divino em Salmos 89.3, 35, 49 e
132.11. A estrutura é a mesma que em Salmos 110.4.
14. Não deveria ser pensado que essa promessa é concernente a Davi somente, mesmo que tenha sido falada
para ele. A aliança se transfere à linhagem de Davi conforme a casa davídica é estabelecida.
1 Crônicas 29.25 diz: “O Senhor engrandeceu sobremaneira a Salomão perante todo o Israel; deu-lhe
majestade real, qual antes dele não teve nenhum rei em Israel”. A promessa do grande nome passou para
Salomão juntamente com o resto das promessas da aliança (cf. 2Cr 1.1)
15. Veja as ações de Ezequias e Josias em 2 Reis 18.1-7 e 2 Reis 22.11-23.27. No caso de Josias, sua
reforma não foi suficiente para afastar da ira de Deus em forma de julgamentos dos pecados desses que
foram diante dele.
16. A epígrafe, “um Salmo de Salomão” elenca esse salmo real como uma adoração descritiva para o reino
do filho de Davi.
17. Veja novamente 1 Reis 2.3-4, quando a promessa condicional do trono no verso 4 repousa sobre o
cumprimento dos requisitos da aliança mosaica no verso 3.
18. A promessa que o servo seria “exaltado e elevado e mui sublime” se compara com a promessa da aliança
davídica nos Salmos 89.19, 24, 27: “do meio do povo, exaltei um escolhido [...] e em meu nome crescerá o
seu poder [...] Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito, o mais elevado entre os reis da terra”. Também compare
a descrição de Salomão em 1 Crônicas 29.25 e 2 Crônicas 1.1.
CAPÍTULO 6

O CUMPRIMENTO DAS ALIANÇAS BÍBLICAS ATRAVÉS


DE JESUS CRISTO

No Novo Testamento, o nome Jesus é mais frequentemente acompanhado pelo


título Cristo. Na pregação da igreja primitiva, este título era geralmente usado
em conjunção com Jesus ou como um substituto para o nome Jesus, tanto que
muitos gentios confundiam como parte do seu nome.1 Essa confusão continua
muitas vezes até hoje.
Na verdade, a palavra Cristo é uma transliteração em português do
substantivo grego christos, que significa o Ungido. Ela está relacionada ao verbo
chrio, que significa ungir. Tanto sacerdotes quanto reis eram ungidos no Antigo
Testamento, então, qualquer um poderia ser chamado de christos, um ungido.
Mais frequentemente, entretanto, o título era reservado para o rei. Na
Septuaginta (a tradução grega do Antigo Testamento que era mais popular na
igreja primitiva), christos traduz o aramaico meshicha e o hebraico mashiach de
onde tiramos a palavra em português Messias. Assim, vemos que tanto as palavras
em português Messias quanto Cristo são em última instância derivadas da
mesma fonte. Elas deveriam ser vistas como sinônimos, significando o ungido, o
rei.2
O título “Cristo” claramente significa rei nos Evangelhos. Em Mateus 2.2-4,
o título Rei dos Judeus e Cristo são usados em paralelo. Em Marcos 15.32, o
título Cristo é definido para significar, “o rei de Israel”. A genealogia de Jesus em
Mateus 1 é introduzida como “a genealogia de Jesus Cristo, o filho de Davi, o
filho de Abraão”. A genealogia então cuidadosamente traça não somente sua
descendência de Abraão, mas também de Davi, através de Salomão e a linha dos
reis davídicos.
Tudo isso nos traz essa observação, que o fato mais conhecido da
proclamação de Jesus do Novo Testamento, a saber, que ele é o Cristo, é a
proclamação que ele é o rei davídico, o Rei de Israel. Isso significa que o modo
primário para entender Jesus e seu ministério encontra-se na aliança outorgada
feita com Davi. E já que, como vimos, o cumprimento da aliança davídica é o
meio de trazer ao cumprimento todas as grandes promessas da aliança de Deus, a
consideração do reinado davídico de Jesus revelará que ele é o cumprimento das
alianças bíblicas.
JESUS E O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA DAVÍDICA
A Apresentação do Novo Testamento de Jesus, o Rei da Aliança. Em
Lucas 1.32-35, o anjo Gabriel faz essa predição à Maria acerca da criança que ela
carregaria:

Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará
o trono de Davi, seu pai; ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu
reinado não terá fim. Então, disse Maria ao anjo: Como será isto, pois não
tenho relação com homem algum? Respondeu-lhe o anjo: Descerá sobre ti o
Espírito Santo, e o poder do Altíssimo te envolverá com a sua sombra; por
isso, também o ente santo que há de nascer chamado Filho de Deus.

A predição diz respeito à transferência da outorga davídica a Jesus. Ambos os


aspectos da promessa davídica são apresentados aqui, o estabelecimento da casa
davídica através do estabelecimento do reino e trono desse descendente de Davi
para sempre e o relacionamento íntimo entre Deus e esse descendente de tal
forma que ele seria Filho de Deus.
Zacarias, o pai de João Batista, profetizou que Jesus é o “chifre da salvação”
que Deus “levantou [...] na casa de Davi seu servo”. Isso relembra as promessas
da aliança davídica em Salmos 89.17, 24 e Salmos 132.17 com respeito ao chifre
de Davi assim como as promessas sobre “levantar” um descendente em
2 Samuel 7.12. A unção de Jesus, pela qual ele é revelado como o Cristo, o rei
davídico, se dá no batismo pelo profeta João no Rio Jordão.3 O Espírito Santo
veio sobre ele4 e o testemunho divino declarado do céu: “Esse é Meu Filho
Amado em quem me comprazo” (cf. Mt 3.17; Mc 1.11; Lc 3.22). Através da
linguagem de Salmos 2.7, a voz celestial afirmou Jesus no relacionamento com
Deus que pertencia ao rei davídico – filiação (cf. 2Sm 7.14; 1Cr 17.13 e Hb 1.5,
que associa Salmos 2 a 2Sm 7 e 1Cr 17) e benignidade eterna (2Sm 7.15; Sl 89.2,
24, 28).
Após ser ungido pelo Espírito Santo, Jesus prossegue para um ministério que,
essencialmente, cumpre o papel do Servo predito por Isaías. Sua atividade
demonstra o seu poder de conceder bênçãos de paz, prosperidade e bem-estar,
bênçãos do reino predito para o filho de Davi. O povo o reconhece como o filho
de Davi (veja Mt 12.23; 21.9) e ele é declarado como sendo maior que Davi ou
Salomão (Mt 12.42; 22.42-45).
Como o Servo de Deus, ele cumpre o castigo predito da casa de Davi (uma
predição que também foi parte da aliança davídica): “castigá-lo-ei com varas de
homens e com açoites de filhos de homens” (2Sm 7.14). (Isso, obviamente, não
foi por causa do seu próprio pecado, mas, ele mesmo foi o substituto para o
julgamento dos pecados da casa de Davi.) Vemos isso na linguagem usada na
crucificação em Mateus 27.29-30, onde os soldados gentios o saudaram como
“Rei dos judeus” e “tomaram uma vara e começaram a bater nele”. Sua
crucificação deve-se à sua reivindicação como o Cristo, o Filho de Deus
(Mt 26.63-65), e os termos da promessa davídica são lançados como insultos
enquanto ele morre:

É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha
livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque disse: “Sou Filho de Deus”
(Mateus 27.42-43).

A maioria das reivindicações messiânicas terminou com a morte do requerente.


Jesus, entretanto, levantou dos mortos. O fato de sua ressurreição, juntamente
com sua ascensão aos céus e sua atividade pós-ascensão, renovaram e afirmaram a
fé de muitos de que ele era e é de fato o rei profetizado, o cumprimento último
das promessas de Davi.
Começando em Atos 2, os apóstolos de Jesus começaram a pregar que sua
ressurreição foi o cumprimento da promessa da aliança de “levantar” o
descendente de Davi. A promessa de levantar um descendente em 2 Samuel 7.12
está associada à promessa de estabelecer o seu reino; colocando de outra forma,
de estabelecer o seu trono. Pedro argumenta em Atos 2.22-36 que Davi predisse
no Salmo 16 que seu descendente seria ressuscitado dos mortos, incorruptível, e
dessa forma, ele estaria assentado no seu trono (At 2.30-31). Ele então argumenta
que essa entronização se deu na entrada de Jesus nos céus, ao manter a
linguagem de Salmos 110.1 que descreve o assentar do filho de Davi à direita de
Deus. Pedro declara (At 2.36) que Jesus foi feito Senhor sobre Israel (Sl 110.1
usa o título de Senhor do rei entronizado) e Cristo (o rei ungido) por virtude do
fato que ele agiu (ou foi permitido agir) a partir da posição celestial em favor do
seu povo para abençoá-los com o dom do Espírito Santo.
Paulo oferece um argumento similar em Atos 13. Ele observa, “Da
descendência deste [Davi] conforme a promessa, trouxe Deus a Israel o Salvador,
que é Jesus” (v. 23). A promessa a qual ele se refere é 2 Samuel 7.12, “farei
levantar de ti o teu descendente,5 que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino”.
Ele então prossegue para proclamar as boas novas de que Deus cumpriu “a
promessa feita aos seus pais” (v. 32), em que ele “levantou Jesus” (v. 33). O
verbo “levantar” é o mesmo em 2 Samuel 7.12, “farei levantar de ti o teu
descendente”, indicando que a ressurreição de Jesus foi precisamente o
cumprimento dessa promessa aos antepassados, à qual Paulo também fez alusão
no verso 23. Porém, esse levantar, no caso de Jesus, não foi somente um
descendente humano, mas também uma ressurreição dos mortos (v. 30: “Mas
Deus o ressuscitou dos mortos”). Ele então argumenta (vv. 34-37) que esse tipo
de levantar foi predito pelo Salmo 16 e Isaías 55.3. Ao ser levantado, nesse
sentido, as bênçãos de Davi são estabelecidas nele (At 2.33-34), uma posição que
também está em sincronia com o recebimento do título de Filho de Deus
(v. 33).6
A ressurreição de Jesus, filho de Davi, dos mortos, seu título Filho de Deus,
sua entronização à destra do Pai e sua atividade de abençoar os judeus e todos os
outros povos que o abençoaram, que confiaram nele, são todos aspectos da
promessa davídica. O Novo Testamento repetidamente proclama esses como
cumpridos no presente. Paulo até mesmo fala disso como o Evangelho.

O evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora, prometido por


intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu
Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado
Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade pela ressurreição
dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso Senhor (Romanos 1.1-4).

Lembra-te de Jesus Cristo, ressuscitado de entre os mortos, descendente de


Davi, segundo o meu evangelho (2 Timóteo 2.8).
A entronização à destra de Deus, a posição prometida para o rei davídico em
Salmos 110.1, é atribuída a Jesus em muitos textos do Novo Testamento. Isso é
evidentemente proclamado em Atos 2.33-36. Atos 5.31 declara que “Deus,
porém, com a sua destra, o exaltou a Príncipe e Salvador”. Estevão testificou em
seu martírio que viu Jesus “de pé à direita de Deus” (7.55-56). Paulo escreve que
“Jesus Cristo [...] aquele que está à direita de Deus [...] intercede por nós”
(Rm 8.34). Efésios 1.20-22 e Colossenses 3.1 também veem Cristo sentado à
direita de Deus, com a última passagem destacando o fato de que todas as coisas
estão atualmente em sujeição a ele.7 A posição de Cristo à direita de Deus é
referida repetidamente em Hebreus (Hb 1.3, 13; 8.1; 10.12; 12.2) e uma vez em
1 Pedro 3.22, quando Pedro se junta a Paulo ao destacar a presente sujeição das
autoridades e poderes a ele.
A descrição de Cristo como “sentado à direita de Deus” em Colossenses 3.1
aparece no contexto com a frase “reino do seu [de Deus] filho amado” (1.13),
uma frase que combina três características da promessa davídica – reino, eterna
benignidade e filiação – e aplica todas elas à presente posição de Jesus e sua
atividade. Também achamos no contexto descrições de Jesus como “primogênito
de toda criação” e “primogênito dentre os mortos” (1.15, 18). O título
“primogênito” relembra sua posição na aliança como “Filho” de Deus e também
a preeminência de seu reino sobre todo governo e autoridade na terra conforme
visto na linguagem em Salmos 89.27: “Fá-lo-ei, por isso, meu primogênito, o
mais elevado entre os reis da terra”. Conforme vimos, a teologia do Novo
Testamento retrata o “levantar” do reinado de Jesus tomando lugar na sua
ressurreição dos mortos. Consequentemente, Colossenses 1.18 o declara sendo o
governador,8 “o primogênito de entre os mortos” [unindo a filiação com a maneira
na qual ele foi “levantado”], “para que em tudo tenha a supremacia”. Ter
“supremacia” corresponde a ser o “mais exaltado dos reis da terra” em
Salmos 89.27. Apocalipse 1.5 é ainda mais explícito na aplicação de
Salmos 89.27 à posição presente ao descrevê-lo como “o primogênito dos mortos
e mais exaltado dos reis da terra”.
A descrição do rei davídico como tendo o grande nome e a maior autoridade é
aplicada a Jesus em muitos textos também. Filipenses 2.9-10 diz que “Deus o
exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que
ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra”.
Tanto Atos 2.33 e 5.31 falam de sua exaltação, a sua presente posição, e Paulo
em Efésios 1.21 descreve sua posição como “acima de todo principado, e
potestade, e poder, e domínio, e de todo nome que se possa referir não só no
presente século, mas também no vindouro”. A linguagem de exaltação aqui é a
mesma que é usada em Salmos 89.27, “o mais exaltado dos reis”. E está
conceitualmente relacionada à descrição de Salomão encontrada em
1 Crônicas 29.25: “O Senhor engrandeceu sobremaneira a Salomão perante todo
o Israel; deu-lhe majestade real, qual antes dele não teve nenhum rei em Israel”.
Ao manter o relacionamento da aliança entre o filho de Davi e a casa do
Senhor, Jesus predisse que ele edificaria o templo de Deus. No entanto, essa
predição também está vinculada à sua profecia de que o templo até então
existente seria destruído. Paulo apresenta Jesus em Efésios 2 como o Senhor
entronizado e exaltado que está edificando a casa de Deus ao unir judeus e
gentios para a habitação de Deus pelo Espírito.
Traçamos em alguns detalhes o fato que o Novo Testamento apresenta a
posição presente de Jesus e sua atividade como o cumprimento das promessas da
aliança davídica. Isso tem sido necessário porque formas anteriores do
dispensacionalismo tenderam a negar isso. Eles estavam preocupados em destacar
o cumprimento futuro dos aspectos políticos e terrenos das promessa davídica à
medida que essa promessa interage com as promessas políticas e terrenas das
demais alianças. Precisamos notar que o Novo Testamento indica que os
aspectos do reinado davídico de Jesus serão cumpridos no futuro. Porém, os
primeiros dispensacionalistas tenderam a esquecer o fato que na teologia bíblica,
a natureza davídica da presente atividade de Cristo garante o cumprimento de toda
a promessa davídica no futuro, incluindo as dimensões nacionais e políticas dessa
promessa.
Podemos ver em Atos 1-3. Quando os discípulos perguntam a Jesus:
“Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?”, eles mostram que
esperavam que ele cumprisse os papeis nacionais e políticos preditos para o filho
de Davi. Eles dificilmente poderiam ter interpretado mal seus ensinos já que
perguntaram depois de receber 40 dias de instrução pelo próprio Jesus ressurreto
nas “coisas concernentes ao reino de Deus” (At 1.3, 6). Sua resposta, “Não vos
compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou pela sua exclusiva
autoridade (v. 7)”, assegura a expectativa deles enquanto adverte que o tempo
não é revelado.
Pedro argumenta em Atos 3.21 que “ao qual é necessário que o céu receba até
aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos
seus santos profetas desde a antiguidade”. Nesse tempo, Deus enviará “Jesus, o
Cristo, o qual lhes [Israel] foi designado” (cf. 12, 20). Apesar de o rei estar no
céu agora, a revelação de Jesus na sua vinda trará com ela a revelação do reino na
terra (2Tm 4.1). Paulo fala de todo Israel sendo salvo (Rm 11.26). Hebreus 2.5
fala da sujeição do mundo porvir. Jesus prediz que “quando o Filho do Homem
vier em glória [uma referência a sua vinda apocalíptica descrita em Mateus 24]
[...] então ele se assentará em seu trono glorioso. E todas as nações serão reunidas
diante dele; e ele irá separá-los uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas
das cabras”. Para alguns, ele dirá: “Vinde benditos do meu Pai, recebam como
herança o Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo”.9
No livro de Apocalipse, a atividade davídica presente-futura de Jesus é bem
aparente. Jesus é agora “o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da
terra” (1.5; cf Sl 89.27); ele já recebeu autoridade sobre as nações (2.26-27); ele
tem as “chaves de Davi” (3.7); ele está “assentado com o Pai no seu trono”; e ele
escreve às igrejas como “a Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da
manhã” (22.16). Esse é aquele que “vem com as nuvens” (1.7); aquele que
“regerá [as nações] com cetro de ferro” (19.15); aquele que “vem depressa”
(22.12, 20), que é chamado pela a igreja para “vir” (22.17, 20).
RESPONDENDO ALGUMAS OBJEÇÕES
O Novo Testamento apresenta Jesus como o herdeiro da aliança davídica. Além
do mais, ensina que certas bênçãos da aliança davídica já foram outorgadas a
Jesus, enquanto outras bênçãos ainda esperam sua volta.
Nas controvérsias entre aliancistas e dispensacionalistas, entretanto, objeções
foram levantadas contra o cumprimento presente e futuro da promessa davídica.
Alguns dispensacionalistas contestam interpretar a relação passada e presente de
Cristo com o Pai, assim como seu momento atual, em termos da aliança
davídica. Eles acreditam que as bênçãos da aliança davídica serão estrita e
completamente cumpridas no retorno de Cristo quando ele governar sobre Israel
e todas as nações.10
Alguns aliancistas contestam a crença de que haverá um cumprimento futuro
de aspectos nacionais-políticos da aliança davídica quando Cristo retornar à
terra. Eles acreditam que a promessa davídica é completamente cumprida no
presente momento de Jesus.
O apoio a essas visões parecem vir da confiança em parte da evidência bíblica,
excluindo o todo. Várias falsas dicotomias são criadas dessa forma: a realização
deve ser presente ou futura, completa ou incompleta, material ou espiritual,
terrena ou celestial.
Quando toda a Escritura do Antigo e do Novo Testamento é levada em
conta, as antíteses presumidas tornam-se estágios no progresso da revelação –
não polos opostos, mas relatos parciais no desenvolvimento da história da
redenção.
Esse capítulo já demonstrou a exatidão de uma progressão presente-futura no
cumprimento da aliança davídica. O próximo capítulo adicionará mais apoio a
essa visão pelo estudo dos estágios progressivos do reino de Deus. Entretanto,
pode ser útil responder algumas objeções típicas levantadas contra a noção da
presente posição e da atividade davídica de Jesus. Isso adicionará mais coisas à
resposta geral apresentada acima e servirá para resumir as informações talvez de
forma mais conveniente.
Objeção 1. O trono que Jesus recebeu na sua ascensão não foi o trono prometido a
Davi. Essa objeção assume que o trono de Davi e seu descendente na aliança
davídica deveria ser entendido somente como um ofício nacional-político
localizado geograficamente em Israel, ou mais especificamente, em Jerusalém. A
localização geográfica é particularmente crucial para essa interpretação. A
localização presente de Cristo no céu parece ser uma contradição óbvia a
qualquer alegação que ele ocupe um trono davídico. Davi governou na terra, em
Jerusalém, como fez a linha de reis descendentes dele. Como alguém pode dizer
que o trono presente de Cristo é um cumprimento da promessa davídica?
Primeiro de tudo, a objeção falha em observar o fato que toda descrição
neotestamentária do presente trono de Jesus é traçada a partir das promessas da
aliança davídica. Repetidamente, o Novo Testamento declara que ele está
entronizado à destra de Deus em cumprimento da promessa dada em
Salmos 110.1. Isso é uma promessa davídica; é o filho de Davi que a cumpre.
Em Atos 2.30-36, a ressurreição, a ascensão e o assentar de Cristo no céu à destra
de Deus (Sl 110.1) são apresentados à luz da predição “que Deus lhe prometera
sob juramento que colocaria um dos seus descendentes em seu trono”. Nenhum
outro trono é discutido nesse texto exceto o trono davídico.
As descrições neotestamentárias dessa entronização à destra de Deus são
geralmente cumpridas com outras características tais como ser exaltado acima de
todos os reis, todo governo e toda autoridade. Ter todos os inimigos sujeitos a
ele, ou em alguns textos, esperando para ter todas as coisas sujeitas a ele. Ambas
as descrições são traçadas a partir das promessas davídicas. O título Filho de
Deus aparece várias vezes nesses textos e está explicitamente ligado à promessa
davídica da filiação divina.
Hebreus 1 é um bom exemplo do que está sendo falado. O título Filho,
introduzido em 1.2, e atribuído à entronização, “à direita da Majestade nas
alturas” em 1.3 é, subsequentemente, identificada em 1.5 pela promessa feita em
2 Samuel 7.14, “Eu serei seu pai, e ele será meu filho”. Sobretudo, Sua exaltação
é vista em seu apontamento como herdeiro de todas as coisas (Hb 1.2), sua
sustentação de todas as coisas (v. 3), sua superioridade aos anjos (v. 4) e seu
nome mais excelente (v. 4). Seu título de “primogênito” (v. 6) adiciona outra
designação davídica. A descrição desse trono do Filho em 1.8 (“Teu trono, ó
Deus, subsiste para todo sempre”) é traçada a partir de um salmo davídico que
fala de um rei davídico.
Seu reinado presente é posteriormente elaborado em Hebreus em termos de
seu ofício e função de sacerdócio melquisedequiano, outra promessa da aliança
davídica (o juramento feito a Davi e revelado em Salmos 110.4). Esse ofício
sacerdotal é trazido com a filiação davídica já definida para descrever novamente
o trono presente – “o trono da graça” (Hb 4.16), ocupado por nosso “grande
sumo sacerdote [...] Jesus o Filho de Deus” (4.14, cf. 5.5-6).
Um verso que é algumas vezes citado como uma exceção às descrições
davídicas do presente trono de Jesus é Apocalipse 3.21, “Ao vencedor, dar-lhe-ei
sentar-se comigo no meu trono, assim como também eu venci e me sentei com
meu Pai no seu trono”. É alegado que esse verso ensina que Jesus não está
assentado no trono davídico, mas no trono divino. Essa interpretação falha em
notar a frequente referência à posição davídica de Jesus e sua atividade no
contexto imediato. Apocalipse 1.5 descreve a presente posição de Jesus na
linguagem da aliança davídica traçada a partir de Salmos 89.27. Além do mais,
Jesus identifica a si mesmo como o Filho de Deus (Ap 2.18) que recebeu
autoridade do seu pai para governar as nações (2.26-27). Ele tem a chave de Davi
(3.7) e edificará a casa de Deus (3.12). A declaração em 5.5 que “a raiz de Davi
venceu” provê uma referência de identidade para “eu” em 3.21 que “venci e me
sentei com meu Pai no seu trono”. É a “raiz de Davi” que está sentada no trono
do Pai. Porém, o fato que é dito como sendo o trono do Pai, longe de apresentar
um problema para nossa interpretação, na verdade, confirma. Pois é uma das
formas nas quais o Antigo Testamento fala do trono herdado pelo rei davídico;
é, de fato, o trono do Senhor.11 Até mesmo sua referência ao trono como
pertencendo a “Meu Pai” é uma expressão da aliança (1Cr 17.13-14; Sl 89.26).
Até mesmo o fato de que o presente assentar de Cristo no céu estando à destra
de Deus está de acordo com o padrão davídico do reinado. Através dos Salmos,
Davi é apresentado como alguém que está à destra de Deus.12 Em Salmos 139.8,
10, ele contempla como seria recebido se subisse aos céus. Ele diz: “mesmo ali a
tua mão direita me guiará e me susterá”. Esse é Davi falando do relacionamento
com o Senhor que foi estabelecido pela aliança. A recepção no céu à direita de
Deus é uma bênção davídica. E isso é o que o Novo Testamento declara ter sido
concedido a Jesus, Filho de Davi.
O segundo problema com a objeção é que ela falha em abranger o
relacionamento entre o governo celestial de Deus sobre Israel e governo do seu rei
escolhido. Ela perde o fato que na teologia do Antigo Testamento, o trono de
Deus, que é o reinado de Deus, é orientado dentro da aliança para Israel. Com
certeza, é dito que Deus é soberano sobre todas as coisas. Ele sempre foi e sempre
será. Nesse sentido, podemos falar do trono celestial de Deus como sua soberania
eterna sobre todas as coisas. Porém, devemos também observar que na teologia
do Antigo Testamento, Deus se estabelece de uma maneira especial como Rei
sobre Israel. Ao manter sua promessa da aliança a Abraão, ele cria uma nação dos
seus descendentes, com ele mesmo como seu rei, formalizada na aliança mosaica.
Quando o reinado humano foi instituído, ele não substituiu o reinado especial
de Deus sobre Israel, mas funcionou sob ele. Esse é o motivo por que Crônicas
fala do trono que Salomão herda como o trono do Senhor. O trono humano
terreno é uma manifestação do trono celestial e do governo sobre Israel.13
Em Atos 2, Pedro declara a entronização de Jesus no céu como tendo grandes
implicações para Israel. Ele não está primariamente falando da deidade de Jesus,
apesar que em si mesma tenha grandes implicações. Ele não está falando da
soberania divina eterna de Jesus. Em vez disso, o ponto que ele está trabalhando
é que esse filho de Davi ressurreto e imortal foi feito o Cristo e Senhor no trono
divino sobre Israel. Por causa da orientação da aliança do trono celestial para
Israel, a entronização de Jesus faz dele o Cristo, o rei ungido de Israel. E porque
Deus, o rei de Israel, fez uma aliança com Davi que seu descendente governaria
Israel e todas as nações, essa colocação de Jesus (o filho de Davi a quem Deus
levantou dos mortos) no céu pelo divino rei de Israel prevê um descendente
iminente para o trono de Jerusalém.

Objeção 2. A presente atividade de Jesus é melhor entendida como soberania divina,


não reinado davídico. Mais uma vez, essa objeção limita o reinado davídico a
funções meramente políticas. Já que Cristo não está na terra agindo como seu
governante político, é assumido que ele não está operando como rei davídico.
Toda sua obra presente é caracterizada como atividade divina, incluindo todas as
referências a seu governo e reinado.
Primeiro de tudo, observamos que a Bíblia explica a presente atividade de Jesus
tanto em termos davídicos como em termos divinos. As descrições da atividade de
Jesus não precisam ser revisadas aqui, já que não estão em disputa. Porém,
perceba algumas caracterizações davídicas da sua obra atual. Repetidamente,
através do livro de Atos e das epístolas, é desta forma que ele está ativo hoje:
descrito como o Cristo (isto é, o Messias, o rei davídico ungido de Israel), sentado
à direita de Deus (posição davídica). Os milagres que acontecem em Atos são
atribuídos a Jesus Cristo (cf. At 3.6, “Jesus Cristo, o Nazareno”). O evangelho
que recebemos e que traz salvação é a boa nova acerca do Messias davídico
(Rm 1.1-4; 2Tm 2.8). Quando o recebemos, somos transferidos para dentro do
reino do Filho amado de Deus, uma descrição na linguagem da aliança. Em
Efésios, Cristo age a partir de sua posição à direita do Pai, com todos seus
inimigos sujeitos a ele, para construir a casa de Deus. Ele faz isso ao dar o
Espírito Santo – uma atividade que João Batista predisse e que os apóstolos
confirmaram que seria feita por Cristo. Em Hebreus, Jesus medeia para nós
como nosso sacerdote melquisedequiano, o ofício sacerdotal e função
prometidos a Davi (e ao descendente de Davi). No livro de Apocalipse, ele
instrui as igrejas como o rei davídico:

Eu, Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas às igrejas. Eu sou a
Raiz e a Geração de Davi, a brilhante Estrela da manhã (Apocalipse 22.16).

Em segundo lugar, a objeção falha em entender a unidade divino-humana da


pessoa de Cristo, bem como a maneira que essa unidade cumpre as profecias
convergentes do governo divino e messiânico no reino escatológico de Deus. Sem
dúvida, a razão por que Cristo é apto para perdoar pecados e dar o Espírito
Santo é porque ele é Deus por natureza. Porém, é a pessoa de Cristo, o Deus-
Homem, que age. Sua volição humana está ativa juntamente com o divino na
unidade da sua decisão pessoal. Somado a isso está o fato que sua humanidade
não é genérica; ele é um descendente de Davi que foi ungido, entronizado e a
quem foi dada “toda autoridade no céu e na terra” (Mt 28.18). Quando ele age,
ele age como o rei divino e davídico.
No próximo capítulo, veremos que alguns profetas predisseram um reino
escatológico em que Deus governaria na terra, enquanto outros predisseram o
governo eterno de um descendente futuro de Davi. A regra em ambas as linhas
da profecia é a mesma: mesmas atividades, mesmos resultados. Agora vemos,
entretanto, que essas profecias se juntam em uma pessoa, que conhecemos como
Jesus, que é tanto Deus quanto descendente de Davi. As profecias com respeito
ao governo de Deus e o rei davídico são simultaneamente cumpridas pela
conjunção das volições divina e humana na unidade singular da ação pessoal de
Jesus. Não se pode excluir sua volição humana dessa atividade. Esse é o motivo
por que na linguagem das Escrituras, ações que somente podem acontecer pelo
divino poder são atribuídas a Jesus de Nazaré, o Cristo.

Objeção 3. Falar do cumprimento presente da promessa davídica por Cristo no céu é


uma interpretação espiritual das promessas terrenas e políticas. Essa objeção
somente tem apelo se as promessas davídicas são reduzidas simplesmente às
atividades políticas do Filho de Davi na terra. É então assumido que a alegação
do presente cumprimento davídico transforma hermeneuticamente essas
atividades futuras terrenas em realidades transcendentes espirituais.
Nada poderia se distanciar mais da verdade. Primeiro de tudo, a Bíblia em si
descreve a presente posição e atividade de Cristo em termos das promessas feitas
na aliança com Davi. Essas verdades são discernidas através de uma interpretação
histórico-literária das Escrituras. Não estamos seguindo uma “interpretação
espiritual” quando lemos e entendemos o título de Cristo como significando o rei
davídico e interpretamos as Escrituras como dizendo que Jesus atualmente é e
atua como o Cristo. Não estamos seguindo uma “interpretação espiritual”
quando vemos a promessa feita na aliança de uma relação Pai-Filho cumpridas
presentemente na pessoa de Jesus. Nem estamos seguindo uma “interpretação
espiritual” quando lemos a proclamação de Pedro que Jesus foi ressuscitado de
acordo com a promessa de estabelecer um dos descendentes de Davi sobre seu
trono e então ouvi-lo dizer que Jesus está assentado à direita de Deus e foi feito
Senhor e Cristo. Nenhuma “interpretação espiritual” está em ação quando
entendemos a carta aos Hebreus dizer que Jesus recebeu o ofício do sacerdócio
de Melquisedeque, o ofício que Deus fez uma aliança pelo juramento a Davi.
Nenhuma “interpretação espiritual” está em ação quando interpretamos as
Escrituras como dizendo que Jesus é agora o mais exaltado dos reis da terra, que
ele foi estabelecido para sempre no reino de Deus, que a benignidade do Pai
perdura com ele para sempre e que ele está de fato construindo uma casa para a
habitação do Senhor. Esses e muitos outros aspectos do presente ministério
davídico de Cristo, conforme visto nas páginas anteriores, vem de um estudo
literário, histórico e gramatical do ensino do Novo Testamento.
Isso levanta questões, entretanto, acerca da hermenêutica daqueles que
alegam que a Bíblia não ensina essas coisas. Conforme observado nos capítulos
sobre hermenêutica, inevitavelmente chegamos às Escrituras com um pré-
entendimento formado por nossa tradição. O verdadeiro teste para determinar se
a Escritura ou a tradição é a nossa autoridade fundamental encontra-se em nossa
disposição para testar nossos pré-entendimentos através de um estudo mais
aprofundado das Escrituras, examinando seus ensinos novamente de um modo
histórico-literário. Se as interpretações posteriores nesse capítulo estão corretas,
elas serão verificadas e mais profundamente desenvolvidas, se necessário, deste
modo. Aqueles que adotam uma visão contrária precisam entrar no mesmo
processo de estudo. Temos a esperança de que isso contribuirá para um melhor
entendimento das Escrituras por todos nós.
JESUS E O CUMPRIMENTO DA ALIANÇA ABRAÂMICA
Em Lucas 1.46-55, encontramos o cântico de louvor de Maria em resposta às
notícias que seu filho cumpriria a aliança prometida a Davi. Ela conclui com esse
louvor:

Amparou a Israel, seu servo,


a fim de lembrar-se da sua misericórdia
a favor de Abraão e de sua descendência, para sempre,
Como prometera aos nossos pais (v. 54-55).

Essa linguagem relembra o primeiro oráculo da série encontrada no livro de


Isaías (41.8-10).

“Mas tu, ó Israel, servo meu, tu, Jacó, a quem elegi, descendente [semente] de
Abraão, meu amigo, tu, a quem tomei das extremidades da terra, e chamei
dos seus cantos mais remotos, e a quem disse: Tu és o meu servo, eu te escolhi
e não te rejeitei, não temas, porque eu sou contigo; não te assombres, porque
eu sou o teu Deus; eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a minha destra
fiel”.14

O cântico de Maria revela sua crença de que aquele a quem ela carregaria para
cumprir as promessas a Davi também cumpriria as promessas feitas a Abraão. Na
mente dela, o cumprimento da aliança davídica foi o meio pelo qual a promessa
abraâmica seria cumprida. E não parece ser uma coincidência que ela declare a
promessa abraâmica na linguagem do primeiro oráculo de Isaías, pois como uma
série de oráculos em progresso, o Servo é eventualmente identificado como um
indivíduo dentro de Israel que serve Israel e através de quem o serviço de Israel a
Deus é alcançado (Is 49.5-6).
A profecia de Zacarias em Lucas 1.68-79 continua esse tema ao proclamar
“Deus de Israel [...] nos suscitou plena e poderosa salvação na casa de Davi, seu
servo [...] e lembrar-se da sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão, o
nosso pai”. Isso levará, ele diz, a Israel servir a Deus “em santidade e retidão por
todos os nossos dias”, uma descrição que relembra a promessa da aliança de que
eles seriam seu povo e ele seria seu Deus.
O segundo sermão de Pedro, Atos 3.12-26, proclama Jesus como o Servo do
Deus de Abraão, Isaque e Jacó que foi enviado a Israel para fazê-los voltar para
Deus (vv. 13, 26). A referência a Isaías 49.5-6 (quando o Servo traz Israel de
volta para Deus) é inconfundível. Além do mais, ele declara que Deus é o
mediador da bênção prometida na aliança abraâmica.

Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com vossos
pais, dizendo a Abraão: “Na tua descendência, serão abençoadas todas as
nações da terra.” Tendo Deus ressuscitado o seu Servo, enviou-o
primeiramente a vós outros para vos abençoar, no sentido de que cada um se
aparte das suas perversidades (Atos 3.25-26).

Aqui, o arrependimento que o Servo do Senhor causaria em Israel é visto como


sendo um aspecto da bênção que Deus prometeu a Abraão. Isso está de fato
atrelado à promessa da nova aliança que examinaremos subsequentemente.
Porém, observe os versos 20-21 desse sermão. Pedro olha em direção à futura
vinda de Cristo a qual todos os elementos da bênção prometida serão
confirmados. Ele declara que “é necessário que o céu receba até aos tempos da
restauração de todas as coisas, de que Deus falou por boca dos seus santos
profetas desde a antiguidade”. Isso deve incluir aspectos nacionais e territoriais
da aliança abraâmica, já que os profetas falaram da restauração dessas bênçãos.
O sermão de Pedro confirma que as bênçãos da aliança abraâmica são
mediadas pelo Cristo.15 Conforme a aliança davídica é cumprida com ele, assim
as bênçãos da aliança abraâmica são cumpridas com respeito a seus vários
destinatários. Entretanto, o cumprimento ocorrerá em estágios que estão
atrelados à história do Cristo. Certas bênçãos estão agora disponíveis. Outras
bênçãos esperam o tempo do seu retorno.
O ensino em Lucas e em Atos de que o Cristo, o rei ungido, é aquele que
medeia as bênçãos da aliança abraâmica concorda completamente com nosso
estudo da aliança davídica no Antigo Testamento, especialmente o Salmo 72.
Além do mais, esse pano de fundo do Antigo Testamento ajuda a interpretar os
destaques de Paulo em Gálatas 3 acerca de Cristo cumprindo as promessas a
Abraão. Ele diz em Gálatas 3.16: “Ora, as promessas foram feitas a Abraão e ao
seu descendente. Não diz: E aos descendentes, como se falando de muitos,
porém como de um só: E ao teu descendente, que é Cristo”. Paulo não está
dizendo que Cristo é o único indivíduo que será abençoado, pois no verso 14,
ele diz: “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Jesus Cristo”. E
no verso 29, ele fala dos judeus e gentios que “sois de Cristo” e são
consequentemente “descendentes de Abraão e herdeiros segundo a promessa”.
Semente é um nome coletivo tanto no grego quanto no português. Enquanto
sua forma singular pode se referir a uma única semente, geralmente significa
muitas sementes do mesmo tipo. Por exemplo, podemos dizer que um
fazendeiro compra um saco de semente (significando sementes do mesmo tipo) e
então que ele semeia sua semente em seu campo (significando novamente que ele
plantou todas as sementes). Também notamos a natureza orgânica e reprodutiva
da semente. De uma semente semeada no solo podem vir muitas sementes.
Consequentemente vemos a relação entre a forma singular e o significado plural
de semente.
Paulo parece estar argumentando que a aliança davídica estruturou a semente
de Abraão de tal forma que a bênção da aliança primeiramente tem vistas ao Rei,
um único indivíduo, e então através dele todos os outros beneficiários da aliança.
Assim, ele diz que as promessas se referem a “um que é, Cristo.” Cristo, o rei
ungido, recebe as bênçãos e faz sua mediação a quem lhe é sujeito. Esses se
“vestiram com Cristo” pela virtude do batismo (v. 27) para que assim sejam
“todos um em Cristo” (v. 28). Dessa forma, todos eles são “descendentes
[semente] de Abraão, herdeiros segundo a promessa” (v. 29).
A partir do ponto de partida do Novo Testamento, as promessas de Abraão
estão sendo e serão cumpridas através de Cristo, que é proclamado como Jesus. A
linguagem da promessa da aliança “Eu te abençoarei [...] e em ti [ou “em tua
semente”, cf Gn 22.18] todas as famílias da terra serão abençoadas” (Gn 12.2-3),
veio a significar que Deus abençoa Cristo, a semente de Abraão, a semente de
Davi, e todos aqueles de Abraão e das nações da terra que estão nele.
É a esse respeito que devemos entender a doutrina paulina da bênção em
Cristo. É um termo da aliança combinando as alianças abraâmica e davídica, nas
quais a última funciona como o meio para o cumprimento da primeira. Veremos
que a frase também faz referência à nova aliança, já que como revelado no
Antigo Testamento, a nova aliança é a forma na qual a aliança abraâmica será
desfrutada para sempre.
Antes de deixar a aliança abraâmica, entretanto, precisamos observar dois
importantes aspectos desse cumprimento que o Novo Testamento nos apresenta:
(1) que a bênção inclui gentios assim como judeus; e (2) que tanto judeus
quanto gentios devem receber a bênção pela fé em Cristo.
BÊNÇÃO SOBRE OS GENTIOS
O ensino de Paulo sobre a aliança abraâmica concentra-se particularmente na
promessa de abençoar “todas as nações”. Em Gálatas 3.8, ele diz: “Ora, tendo a
Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o
evangelho a Abraão: ‘Em ti, serão abençoados todos os povos’”. Paulo entende
essa promessa da bênção aos gentios como sendo atualmente cumprida através
Cristo. Ele escreve no verso 14: “para que a bênção de Abraão chegasse aos
gentios”.
É importante notar que a bênção que Paulo tem em mente em Gálatas é o
recebimento do Espírito Santo (veja 3.2, 5; 4.6) e o dom de justiça (3.21-22).
Essas são, de fato, bênçãos da nova aliança, mas Paulo as apresenta como
bênçãos da aliança abraâmica. Novamente, isso mostra que a nova aliança é a
forma na qual a aliança abraâmica será cumprida. Também é importante notar
que tanto Paulo quanto Pedro veem a bênção abraâmica mediada em estágios
que estão atreladas à história de Cristo. Os estágios distinguem não somente
entre os graus de bênção, mas também entre os diferentes tipos de bênção.
Assim, Pedro fala da restauração de todas as coisas preditas pelos profetas na
futura vinda de Cristo. Isso certamente inclui as promessas nacionais a Israel, já
que aquelas promessas estão incluídas em “todas as coisas preditas pelos
profetas”. Da mesma forma, Paulo fala da salvação de todo Israel na vinda de
Cristo (Rm 11.26), baseado no fato que “quanto, porém, à eleição, amados por
causa dos patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis”
(vv. 28-29). Sua linguagem aqui relembra as palavras de Moisés em
Deuteronômio de que depois de todas as maldições da aliança mosaica, o Senhor
iria restaurar as bênçãos nacionais e territoriais para Israel porque ele “não se
esquecerá da aliança que jurou a teus pais”; e “porquanto amou teus pais, e
escolheu a descendência depois deles [...] para te dar [...] [essa] terra como
herança” (Dt 4.31, 37-38).
Com a bênção nacional futura atrelada ao retorno de Cristo, há no tempo
presente certas bênçãos sendo dadas aos judeus e gentios igualmente. Essas
bênçãos são dadas no cumprimento da promessa de abençoar “você” (judeus) e
abençoar “todas as nações” (At 3.25-26; Gl 3.8, 14). Em conjunto com a
promessa de abençoar todas as nações “em você”, gentios que eram “estranhos às
alianças da promessa” (Ef 2.12) foram reconciliados “em Cristo” e abençoados
juntamente com os judeus. A bênção está sendo dada igualmente sem qualquer
distinção de raça, classe ou gênero (Gl 3.28).
A RECEPÇÃO DA BÊNÇÃO PELA FÉ
Muito do que o Novo Testamento tem a dizer da aliança abraâmica tem a ver
com como e a quem suas bênçãos são dadas. João Batista advertiu os judeus que
somente essa origem física não seria suficiente para as bênçãos da aliança. Em vez
disso, ele predisse um julgamento futuro sobre todos que não se arrependeram
(Mt 3.9; Lc 3.8). Jesus também advertiu seus ouvintes que nem todos os
descendentes de Abraão, Isaque e Jacó herdariam o reino de Deus (Mt 8.11;
Lc 13.28), o que quer dizer que nem todos os descendentes físicos de Abraão
compartilham o futuro cumprimento das promessas da aliança.
Em João 8.39-58, Jesus repreendeu seus ouvintes, os descendentes físicos de
Abraão, por não serem verdadeiros filhos de Abraão, isto é, por não replicarem
em suas vidas a fé e as obras de Abraão. Ele diz que eles eram filhos do diabo,
pois buscavam fazer as obras do diabo.
Paulo argumenta que “os da fé é que são filhos de Abraão” (Gl 3.7). Ele
observa que em Gênesis 15.6, Abraão recebeu a promessa pela fé: “Ele creu no
Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça”. Paulo vê a fé como o meio de
receber a aliança outorgada a Abraão. Tal recepção é apropriada à natureza
graciosa e intenção da promessa.

Não foi por intermédio da lei que a Abraão ou a sua descendência coube a
promessa de ser herdeiro do mundo, e sim mediante a justiça da fé. [...] Essa é
a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja
firme a promessa pra toda a descendência, não somente ao que está no regime
da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de
todos nós [...] (Romanos 4.13,16).

Novamente, ele diz (em Gl 3.9), “os da fé são abençoados com o crente Abraão”.
Isso necessariamente pressupõe uma distinção dentro de Israel: aqueles que são
da fé de Abraão e consequentemente recebem as bênçãos da aliança abraâmica, e
aqueles que não são da fé de Abraão e que consequentemente perdem a
possibilidade de herdar essa bênção. Em Romanos 9.6-8, ele argumenta:
Porque nem todos os de Israel são, de fato, israelitas; nem por serem
descendentes [semente] de Abraão são todos seus filhos; mas: Em Isaque será
chamada a tua descendência [semente]. Isto é, estes filhos de Deus não são
propriamente os da carne, mas devem ser considerados como descendência os
filhos da promessa.

Aqui, os filhos da promessa são aqueles descendentes físicos que Deus escolheu
(veja Rm 9.11, 16, 18; 11.5). Eles também são vistos como aqueles que creem.
Aqueles que são rejeitados são rejeitados “por sua incredulidade” (11.20). Porém,
“se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados” (v. 23). Aqueles
judeus que falharam em obter a bênção da aliança falharam porque “não
decorreu da fé, e sim como que das obras. Tropeçaram na pedra de tropeço,
como está escrito: Eis que ponho em Sião uma pedra de tropeço e rocha de
escândalo, e aquele que nela crê não será confundido”. (Rm 9.32.33).
Os gentios que acreditam em Jesus Cristo recebem as bênçãos de Abraão
consistente com a promessa de abençoar todas as nações nele. Paulo argumenta
em Romanos 4.9-12 que Abraão recebeu a promessa pela fé antes de ser
circuncidado. Isso é um sinal que os gentios iriam ser abençoados através dessa
aliança pela fé. Em Gálatas 3.8, Paulo chama a promessa para abençoar as nações
do Evangelho, que é para ser recebido pela fé. “Assim, os que são da fé são
abençoados juntamente com Abraão, homem de fé”. É “em Cristo Jesus” que “a
bênção de Abraão” vem “aos gentios [...] através da fé”.
A bênção que os judeus e os gentios receberam através da fé é compartilhada
igualmente por ambos os grupos sem distinção de raça, gênero ou classe social
(Gl 3.28; Ef 2.14-16; 3.6). Quanto ao conteúdo específico dessa bênção,
devemos voltar à nova aliança.
RESUMO
No seu ministério davídico presente e futuro, Jesus recebeu e mediou as bênçãos
da aliança abraâmica. Nele, e através dele, essa aliança é e será cumprida. Sua
mediação da bênção se estende a todas as pessoas, aos judeus e gentios que
confiam nele. Porém, ele a medeia em estágios, com as bênçãos nacionais e
políticas aguardando a dispensação do seu retorno.
JESUS E A ALIANÇA MOSAICA
Temos visto que a aliança mosaica foi um arranjo no qual Israel e Judá poderiam
experimentar a bênção da aliança abraâmica (ou por outro lado, a maldição do
Senhor) em sua vida nacional diária. Como resposta de Deus ao povo, as
bênçãos ou maldições eram o cumprimento da aliança. Consequentemente, a
aliança mosaica foi sendo continuamente cumprida no dia-a-dia da história de
Israel, pois eles estavam sempre sob a bênção ou maldição de Deus.
As promessas da nova aliança, entretanto, olharam para um tempo quando a
aliança mosaica seria substituída. Ela viria a um fim e seria substituída por uma
nova aliança.
O Novo Testamento ensina que Jesus Cristo trouxe a aliança mosaica a seu
cumprimento final. Em Mateus 5.17-18, Jesus ensinou:

Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim
para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem,
nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra.

O termo Lei é usado aqui como uma referência às Escrituras em si. Quando é
usado juntamente com Profetas ele se refere ao Pentateuco, os primeiros cinco
livros do Antigo Testamento, comumente referenciados como a Torá, ou Lei. O
segundo uso de lei, no verso 18, se refere às Escrituras do Antigo Testamento
como um todo. É importante notar que Jesus não está se referindo aos
mandamentos divinos sozinhos quando ele fala da lei aqui. O uso mais amplo
abrange esses mandamentos conforme eles aparecem dentro das alianças as quais
eles pertencem. Esse uso mais amplo também abrange os padrões de como Deus
lida com Israel apresentados nas narrativas das Escrituras do Antigo Testamento.
Jesus inclui tudo isso quando ele diz que ele não veio para abolir a lei, mas para
cumprir.
A palavra em ação é cumprir. Alguns sugeriram que isso significa que ele veio
para defender, e proclamar, a Lei assim como outros mestres das Escrituras. O
uso da palavra cumprir no evangelho de Mateus, entretanto, parece levar a um
entendimento diferente. Jesus cumpre as Escrituras ao replicar em sua própria
vida os padrões das relações históricas de Deus com Israel e ao cumprir em sua
própria história os eventos preditos da profecia.16
Quando é o caso das alianças apresentadas ou preditas no Antigo
Testamento, Deus as cumpre também. Já vimos como ele é apresentado como o
cumprimento das alianças davídica e abraâmica, um cumprimento que se dá na
sua obra vigente. Quando é o caso da aliança mosaica, entretanto, o Novo
Testamento apresenta essa aliança como completamente cumprida na morte de
Jesus Cristo. Os termos específicos dessa aliança não foram arbitrariamente
postos de lado (abolidos). A aliança estava legalmente vinculada à menor letra ou
traço até que os céus e terra (o testemunho da aliança em Dt 4.30) tiverem
passado.17 Porém, Jesus introduz outro até: “até que tudo seja cumprido”. O
cumprimento das alianças, das profecias e dos padrões das Escrituras se dão na
história do seu ministério – alguns durante o tempo do seu nascimento, infância
e pré-ascensão adulta ao ministério, alguns em sua morte e ascensão, alguns
ainda na sua atuação presente, e o restante em seu retorno futuro e reino eterno.
É nesse “cumprimento” das alianças, das profecias e dos padrões das Escrituras,
que a aliança mosaica tal como é dita é cumprida e substituída por uma nova
aliança que dura para sempre.
Hebreus 8-10 fala dessa mudança da aliança. Muito do que ela tem a dizer
diz respeito à fundamentação, a base, e às implicações do estabelecimento da
nova aliança. A aliança mosaica é referenciada como “obsoleta”, “envelhecendo”
e “pronta para desaparecer”. Certas características cerimoniais dessa aliança são
especialmente salientadas como tendo sido substituídas.
Usando a linguagem de Deuteronômio 30, Paulo diz em Romanos 10.1-10,
que “Cristo é o fim da lei” (v. 4). A palavra lei aqui se refere às estipulações da
aliança mosaica, pois foram essas estipulações da aliança como um todo que
estavam em vista em Deuteronômio 30. O mesmo é verdade para sua declaração
em Efésios 2.14-15, que Cristo “tendo derribado a parede da separação [uma
característica estrutural do templo que separava gentios dos judeus] aboliu, na
sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças”. A palavra Lei aqui se
refere à seção da aliança mosaica das estipulações que foi geralmente referenciada
como “os mandamentos, os estatutos e os julgamentos [ordenanças]” (Dt 6.1-2,
17; 7.11; 8.11; 11.1; 12.1; 28.1, 15; 30.10, 16). As estipulações foram talvez a
característica mais marcante e vital da aliança mosaica, tal que uma referência a
essa porção da aliança foi uma referência à aliança como um todo.
Essa observação se torna até mesmo mais clara em Romanos 7.1-6 quando
Paulo compara a lei a uma aliança de casamento. Certamente, nessa passagem, a
lei significa a aliança mosaica em si. Paulo fala de nosso relacionamento com a lei
(aliança mosaica) terminando na morte de Jesus Cristo, assim como a obrigação
de casamento de um parceiro à aliança do casamento termina na morte do outro
parceiro (vv. 3-4). É possível para esse parceiro do casamento entrar em uma
nova aliança de casamento e da mesma forma que Paulo usa a linguagem das
profecias da nova aliança, ele fala de sermos “libertos da lei” (libertados da
aliança mosaica) e “servindo na novidade do Espírito” (trazida para a nova
aliança).
O fim da aliança Mosaica é também proclamado em Gálatas 3-4, quando
Paulo fala do presente recebimento do Espírito Santo na igreja (3.2, 5; 4.6), uma
provisão da nova aliança. Nesta passagem, ele se refere à aliança mosaica pelo
termo lei e à aliança abraâmica pelo termo promessa. A aparição do termo aliança
em 3.15,17 ajuda a esclarecer que as alianças estão de fato em perspectiva, como
faz também a referência histórica à lei, ao ser formalmente instituída (v. 19) 430
anos depois da promessa (v. 17). Finalmente, em Gálatas 4.24, Paulo
explicitamente declara que ele está falando de duas alianças, uma das quais foi
feita no Monte Sinai. Ele faz importantes observações acerca dessas alianças:

1. A aliança abraâmica tem precedência sobre a aliança mosaica.


2. A aliança mosaica não pôs de lado a aliança abraâmica (3.17).
3. A aliança abraâmica é recebida pela fé.
4. As bênçãos da aliança mosaica são recebidas pela obediência a essas
estipulações (v. 12).
5. A aliança mosaica foi instituída por causa do pecado (v. 19).
6. A aliança mosaica foi temporária, estando em efeito “até que viesse o
descendente a quem se fez a promessa” (v. 19).

O último ponto recebe atenção estendida de 3.19 a 4.31. Jesus Cristo é a


“semente” (3.16) cuja vinda marca o fim da aliança mosaica. Paulo repete esse
ponto de três formas.
Primeiro, ele diz que não estamos mais sob a aliança mosaica (a lei) agora que
a fé em Jesus Cristo veio (vv. 22-25). A fé já existia antes da encarnação, já que,
como Paulo argumenta, Abraão foi um crente, e que a promessa abraâmica
sempre foi recebida pela fé (3.6-9,14). Porém, quando Deus, o Filho, o redentor,
se encarnou como Jesus de Nazaré, a fé em Deus concentrou-se especialmente
sobre Jesus. A lei (aliança mosaica) funcionou como um “tutor até Cristo” (3.24,
NVI), “Agora, porém, tendo chegado a fé [isto é, fé em Jesus Cristo, já que Jesus
Cristo veio agora], já não estamos mais sob o controle do tutor” (3.25, NVI). Já
que o “tutor” é a aliança mosaica, Paulo está dizendo que não estamos mais sob
essa aliança.
Em segundo lugar, ele fala da aliança mosaica como um mordomo
encarregado de cuidar das crianças “até a data estabelecida pelo pai”, até que eles
alcancem a idade da herança (4.1-2). A implicação é que quando a idade da
maturidade é alcançada, a função do mordomo chega ao fim. A vinda de Cristo
fez isso por nós com respeito à aliança mosaica. Agora que Jesus veio, nos
redimiu e nos deu a bênção da nova aliança (v. 6, o Espírito Santo prometido),
não estamos mais sob a mordomia da aliança mosaica (v. 7, cf. vv. 1-3).
Finalmente, Paulo argumenta com uma alegoria em 4.21. Usando a história
da Sara e Hagar, sua escrava, Paulo ensina que os cristãos da nova aliança são
filhos da promessa abraâmica. Como Hagar foi “expulsa” juntamente com seu
filho, assim a aliança mosaica foi posta de lado. Aqueles que tentam se relacionar
com Deus através dos termos dessa aliança perdem o relacionamento da nova
aliança que Deus estabeleceu através da fé em Jesus Cristo, uma relação que
concede a bênção de Abraão à parte da aliança mosaica.
Em Gálatas 3.10-13, Paulo explica como a morte de Cristo cumpriu e assim
encerrou a aliança mosaica. “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se
ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele
que for pendurado em madeiro)”. Cristo tomou a maldição da aliança mosaica
sobre si mesmo para satisfazer as exigências de Deus. Isso não teria acontecido,
entretanto, se ele mesmo fosse um pecador, precisando de expiação para seus
pecados. Porém, como Paulo diz em 2 Coríntios 5.21, Deus “o fez pecado por
nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus”. Ele estava completamente
obediente às estipulações da aliança mosaica. Esse é o motivo pelo qual aqueles
que estão em Cristo são vistos como justos (cf. Dt 6.25; 1Co 1.30) e
encontramos a maldição de Deus completamente satisfeita para eles.
A mediação sem pecado de Cristo, que cumpriu e encerrou a aliança mosaica
e inaugurou a nova dispensação da nova aliança é um ensino principal na carta
aos Hebreus. Hebreus declara que Jesus é um sumo sacerdote sem pecado.
Consequentemente, ele é apto para interceder completamente em favor do seu
povo.

Com efeito, nos convinha um sumo sacerdote como este, santo, inculpável,
sem mácula, separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus, que não
tem necessidade, como os sumos sacerdotes, de oferecer todos os dias
sacrifícios, primeiro, por seus próprios pecados, depois, pelos do povo; porque
fez isto de uma vez por todas, quando a si mesmo se ofereceu (7.26-27).

Hebreus argumenta que o ato sacerdotal foi uma função de mediação do seu
sacerdócio melquisedequiano, que pertence a ele como Cristo, o Filho de Davi.
Ele ofereceu o sacrifício de si mesmo, que cumpriu o sistema sacrificial da aliança
mosaica e “sentou à direita de Deus”, como Senhor (Sl 110.1) de Israel e das
nações (Hb 10.1-18; veja especialmente o verso 12). Tendo cumprido a aliança
mosaica, ele tornou possível o estabelecimento de uma nova aliança em seu
lugar.
Romanos 7.1-6 vê a morte de Cristo como a morte de um parceiro da aliança
que, portanto, marca o fim de uma aliança bilateral. Paulo não explica como
Cristo deve ser visto como um parceiro da aliança. O fato de que ele é o Cristo,
o rei de Israel, sugere que sua morte é representativa da nação. Esse pensamento
está relacionado ao seu papel como o Servo de Deus, que é tanto Israel quanto
um representante de Israel ministrando em favor de Israel e das nações. Ele
também é Deus (Rm 9.5), aquele que faz a aliança, assim sua morte é mais
significativa do que qualquer rei davídico anterior. E quando adicionamos o fato
que sua morte foi satisfatória à aliança para a transgressão do povo de Deus, ao
cumprir a maldição da aliança, o encerramento da aliança mosaica é tido como
completo.
Antes de deixarmos a questão do cumprimento da aliança mosaica por Jesus,
devemos destacar que o término dessa aliança não significa que o povo de Deus é
deixado em um estado de ausência de lei. Certamente, Abraão não estava em
uma condição de ausência de lei 430 anos antes da lei (aliança mosaica) ser dada.
O próprio Senhor o ordenou, “anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17.1)
e depois ele disse acerca dele “porque eu o escolhi para que ordene a seus filhos e
a sua casa depois dele, a fim de que guardem o caminho do Senhor e pratiquem
a justiça e o juízo” (Gn 18.19). O término da aliança mosaica estava em vista do
estabelecimento de uma nova aliança em que Deus escreveria sua lei nos corações
do seu povo (Jr 31.33) e faria com que eles andassem em seus caminhos
(Ez 36.27). Então, apesar de Paulo ensinar que Cristo é o fim da lei (Rm 10.4;
isto é, a lei na forma da aliança mosaica), ele também diz que os crentes não
estão “sem a lei de Deus, mas sob a lei de Cristo” (1Co 9.21; cf. Gl 6.2; isto é, a
lei em forma da nova aliança). Ele também fala dessa lei da nova aliança como a
“lei do Espírito” (Rm 8.2), visto que o Espírito é o elemento característico da
nova aliança. Tiago se refere a ela como a “lei régia” (Tg 2.8,12), associando-a
novamente a Cristo, o rei ungido.
A teologia do Novo Testamento do dispensacionalismo progressivo não é
antinomista.18 Pois enquanto ensina que a lei da aliança mosaica terminou
dispensacionalmente, também ensina que foi substituída pela lei da nova aliança,
e apresenta essa mudança dispensacional como parte integrante do plano de
redenção de Deus que afirma e cumpre a demanda divina de justiça e santidade,
assim como ele salva e abençoa eternamente os redimidos.
JESUS E A NOVA ALIANÇA
Nosso estudo da história das alianças mostra que elas são a estrutura na qual a
história da redenção é realizada. Essa história é revelada em uma progressão de
dispensações divinas. As alianças outorgadas aos patriarcas, que prometeram
bênçãos para todos, foram dadas em expressões dispensacionais na aliança
mosaica. A outorga davídica previu um mediador em quem e através de quem as
concessões patriarcais seriam finalmente cumpridas. Esse mediador
supervisionaria a transição dispensacional da aliança mosaica para uma nova
aliança, para o cumprimento das promessas da bênção. Esse mediador é Jesus, o
Cristo, que trouxe a dispensação da aliança mosaica para uma conclusão e que,
em sua própria história de cumprimento da promessa davídica, inaugurou a nova
aliança e dirige a história do seu cumprimento para sua consumação eterna.
JESUS, O MEDIADOR DA NOVA ALIANÇA
Na noite antes de ser crucificado, Jesus se juntou com seus discípulos no
cenáculo de uma casa em Jerusalém para celebrar a Páscoa. É relatado em
Lucas 22.20, que ele tomou a taça antes de compartilhá-la com seus discípulos e
deu sua significância: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado
em favor de vós”. Mateus 26.28, relatando o mesmo episódio: “porque isto é o
meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para
remissão de pecados”.À luz das várias citações e alusões às Escrituras do Antigo
Testamento, tanto no relato de Lucas quanto de Mateus desse evento, é somente
adequado traçar os destaques de Jesus acerca da nova aliança para o perdão dos
pecados àquela promessa em Jeremias 31.31-34, que começa com: “firmarei
nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá”; e termina com as
palavras: “pois perdoarei as suas iniquidades e dos seus pecados jamais me
lembrarei”.
Paulo coloca a igreja do Novo Testamento sob esse mesmo arranjo da nova
aliança quando ele identifica a prática da igreja da Ceia do Senhor como um
compartilhar do pão e do cálice que Jesus instituiu naquela noite antes da
crucificação. Ele repete as palavras de Cristo como encontradas em Lucas 22.20:
“Este cálice é a nova aliança do meu sangue” (1Co 11.25). Ele fala da igreja
como bebendo esse cálice (vv. 26-29) em obediência aos mandamentos de Jesus
dados naquela noite (vv. 23, 25), e explica essa atividade como sua proclamação
da morte de Cristo (v. 26) e como a própria participação deles em seu sangue
(10.16).
Em 2 Coríntios 3.6, Paulo identifica a si mesmo e seus companheiros de
ministério como “servos da nova aliança”. Essa não é uma nova aliança
indefinida, mas uma que foi predita por Jeremias e Ezequiel. Sabemos disso
porque Paulo identifica os elementos chave dessa nova aliança como aquela que
Jeremias e Ezequiel predisseram quando profetizaram a nova aliança futura.

Jeremias: “‘Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois
daqueles dias,’ diz o Senhor: ‘Na mente, lhes imprimirei as minhas leis,
também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu
povo’” (Jeremias 31.33).

Paulo: “Estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso


ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em
tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações”
(2 Coríntios 3.3).

Ezequiel: “Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus
estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis”. (Ezequiel 36.27). “Porei em
vós o meu Espírito, e vivereis” (Ezequiel 37.14).

Paulo: “[Somos] ministros de uma nova aliança [...] do Espírito; para [...] o
Espírito que dá vida” (2 Coríntios 3.6).

Além do mais, Paulo continua a contrastar esse ministério da nova aliança com o
ministério da “antiga aliança” (2Co 3.14), que foi associada a Moisés (2Co 3.7,
13, 15), a mesma “antiga aliança” contra a qual Jeremias e Ezequiel profetizaram
uma nova aliança futura (Jr 31.32). A carta aos Hebreus culmina esse
testemunho ao citar Jeremias 31.31-34 por completo (Hb 8.6-13) e
proclamando Cristo como “o mediador de uma nova aliança [...] para a redenção
das transgressões que foram cometidas sob a primeira aliança” (Hb 9.15). E
prossegue dizendo que a morte de Cristo é a expiação por todos os pecados de
acordo com a promessa revelada em Jeremias 31.33-34.

Jesus, porém, tendo oferecido, para sempre, um único sacrifício pelos


pecados, assentou-se à destra de Deus [...] Porque, com uma única oferta,
aperfeiçoou para sempre quantos estão sendo santificados. E disto nos dá
testemunho também o Espírito Santo; porquanto, após ter dito:
“Esta é a aliança que farei com eles, depois daqueles dias, diz o Senhor:
Porei no seu coração as minhas leis e sobre a sua mente as inscreverei,”
acrescenta:
“Também de nenhum modo me lembrarei dos seus pecados e das suas
iniquidades, para sempre” (Hebreus 10.12-17).

A carta prossegue para traçar a linha da fé a partir dos santos do Antigo


Testamento aos crentes em Jesus hoje em dia, concluindo com uma figura da
Cidade de Deus na qual a “igreja do primogênito” e “os espíritos dos justos
aperfeiçoados” [uma referência aos santos do Antigo Testamento, veja
Hebreus 11.40 onde “eles” se refere à lista precedente dos santos]” são unidos a
“Jesus o mediador de uma nova aliança” (Hb 12.22-24).
É indiscutível que o Novo Testamento vê a nova aliança predita por Jeremias
e Ezequiel como estabelecida na morte de Jesus Cristo, com algumas das suas
bênçãos prometidas sendo agora concedidas a judeus e gentios que são crentes
em Jesus. Essas não são bênçãos semelhantes aquelas preditas por Jeremias e
Ezequiel. Elas são as mesmas bênçãos que aqueles profetas predisseram. Pois a
nova aliança que está presentemente em efeito através de Jesus Cristo não é uma
que é como aquela predita por Jeremias e Ezequiel, mas é a mesma aliança que
eles profetizaram que está em efeito hoje. Há elementos prometidos naquela
aliança cujo cumprimento foi postergado até o retorno de Cristo (como as
promessas nacionais e territoriais em Jeremias 31.31, 36 e Ezequiel 36.28 e
37.14). Porém, esses são elementos que retrocedem à aliança abraâmica em si e
ainda assim o Novo Testamento fala das bênçãos presentes da aliança abraâmica.
A atual forma inaugurada da nova aliança é de fato a forma dispensacional, na
qual bênçãos abraâmicas estão presentes hoje.
O PERDÃO DOS PECADOS
Temos visto que o Novo Testamento interpreta a morte de Jesus como o
sacrifício fundamental que inaugurou a nova aliança. O próprio Jesus explanou o
perdão dos pecados que vem através da sua morte como uma bênção da nova
aliança. Ele ordenou aos seus discípulos “que em seu nome se pregasse
arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de
Jerusalém” (Lc 24.47). Depois da ascensão de Jesus, no dia de Pentecoste, Pedro
começou a pregar em Jerusalém, “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado
em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados” (At 2.38). Paulo
também pregou na sinagoga, “Tomai, pois, irmãos, conhecimento de que se vos
anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e, por meio dele, todo o que
crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser justificados pela
lei de Moisés” (At 13.38,39).
A doutrina do Novo Testamento do perdão dos pecados, exposta nas
epístolas paulinas e nas epístolas gerais, tem sua base aqui. A partir das palavras
de Jesus na noite antes da crucificação, podemos ver todo o ensino
neotestamentário sobre o perdão como uma exposição estendida da bênção da
nova aliança, que por sua vez é uma revelação do significado específico da
promessa abraâmica declarada de forma geral: “Eu abençoarei você.” Quando
Paulo reconta as bênçãos que Deus concedeu sobre nós em Cristo (Ef 1.1-14), ele
declara que “nele temos redenção através do seu sangue, o perdão de nossas
transgressões, segundo as riquezas da sua graça, as quais derramou sobre nós.”
Isso é uma bênção que não é somente dada aos judeus segundo a promessa
patriarcal, “eu abençoarei você”, mas também aos gentios segundo a promessa
patriarcal “abençoarei todas as nações em você”. Consequentemente, Paulo diz
que os gentios que estavam “mortos em suas transgressões e pecados”, que eram
“estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus no mundo”,
agora “foram aproximados pelo sangue de Cristo” (Ef 2.1, 12-13). O evangelho
em si, que é “primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16), é uma
proclamação de “que Cristo morreu por nossos pecados de acordo com as
Escrituras” (1Co 15.3), uma proclamação que a igreja, judeus e gentios unidos
em Cristo (12.13), também faz quando ela participa do cálice da lembrança
(11.26), o cálice que Jesus disse “esse é o cálice da nova aliança em meu sangue;
façam isso em memória de mim” (11.24).
A PROMESSA DO ESPÍRITO SANTO, DO NOVO CORAÇÃO E DA RESSURREIÇÃO DOS
MORTOS
Talvez o elemento mais marcante da nova aliança como foi profetizada no
Antigo Testamento tenha sido a promessa da habitação do Espírito Santo e a
renovação do coração humano. Quando Paulo identifica a si mesmo e seus
associados como ministros de uma nova aliança em 2 Coríntios 3.6, é essa
atividade do Espírito Santo que ele identifica especialmente. À medida que ele
continua em sua carta, ele contrasta esse ministério da nova aliança que ele
chama “o ministério do Espírito” (3.8) com o ministério da aliança mosaica, que
ele chama “o ministério da morte, em cartas gravadas em pedras” (3.7) ou “o
ministério da condenação” (3.9). Ele fala de como o ministério da antiga aliança
foi confrontado por um véu de dureza sobre os corações e mentes do povo (3.14-
15). Mas o Espírito do Senhor remove o véu de dureza e efetivamente
transforma as pessoas na imagem do Senhor (3.16-18). A linguagem de Paulo é
praticamente a mesma de Ezequiel, que falou do Senhor renovando através do
Espírito Santo corações endurecidos.
O tema dos corações velados é levado até o capítulo 4 onde o problema é
diagnosticado como uma cegueira satânica (4.3-4). Mais significativamente, a
mensagem da bênção da nova aliança é chamada de Evangelho nesses versos. No
ministério da nova aliança (perceba a continuação “desse ministério” em 4.1,
olhando de volta ao ministério da nova aliança de 3.6ss), Deus está removendo a
cegueira dos corações e mentes humanas ao fazer a luz do Evangelho brilhar “em
nossos corações para dar à luz do conhecimento da glória de Deus na face de
Cristo”. O conhecimento de Deus foi também uma das promessas da nova
aliança (Jr 31.34). A luz da glória “na face de Cristo” é posta em contraste com a
glória que desvanece de Moisés (2Co 3.13), mais uma vez, enfatizando a
diferença nesses contextos. Paulo continua a falar da renovação interna sob o
ministério da nova aliança (4.16) que levará à ressurreição dos mortos (5.1-5).
Novamente o tema é consistente com Ezequiel 36-37 quando temos o renovo do
coração e a ressurreição dos mortos, ambos cumpridos pela habitação do Espírito
Santo. Os temas seguem além quando Paulo fala em 2 Coríntios daqueles em
Cristo como novas criaturas (5.17), unidos como “templo de Deus” assim como
está escrito em Ezequiel 37.27: “O meu tabernáculo estará com eles; eu serei o
seu Deus, e eles serão o meu povo”.
Paulo usa o termo “nova aliança” somente uma vez em 2 Coríntios e ainda
assim ele sem dúvida carrega a linguagem e conceitos das bênçãos da nova
aliança através do argumento dessa carta. Quando lemos no fim (13.14), “e a
comunhão [koinonia] do Espírito Santo esteja com todos vocês”, devemos
entender essa frase na forma que Paulo fez em sua carta – um compartilhamento
do ministério da nova aliança do Espírito Santo. Tão importante é esse conceito
da pneumatologia da nova aliança que estamos inclinados a olhar para ele em
outros lugares nos escritos de Paulo, mesmo na ausência de referência específica à
nova aliança.
A carta de Paulo aos Romanos é um caso em questão. Em nenhum outro
lugar, o termo nova aliança aparece. Ainda assim, a linguagem da bênção da
nova aliança acompanhada por contrastes traçados entre essas bênçãos e as
condições sob a aliança mosaica nos levam a ver a própria concepção de Paulo
como um ministro da nova aliança (assim definido em 2Co 3.6) conforme nos
embasamos e interpretamos suas observações nessa carta. Seria impossível tratar
esse tema em detalhes, mas alguns itens podem ser mencionados. Em
Romanos 2, Paulo contrasta os judeus que são circuncidados na carne, e que
possuem e ensinam “a Lei” com “um judeu que é um internamente; e a
circuncisão [...] a que é do coração, no Espírito, não segundo a letra” (2.29). A
linguagem do Espírito e letra é a mesma que em 2 Coríntios 3.6, onde Paulo
identifica tal ministério do Espírito como uma bênção da nova aliança. Paulo
também expõe, “os gentios, que não têm a lei, [...] mostram que as exigências da
lei estão gravadas em seus corações.” (Rm 2.14-15). Romanos 7.1-6 fala de uma
mudança da aliança na qual fomos “libertados da lei, estamos mortos para aquilo
a que estávamos sujeitos, de modo que servimos em novidade de espírito e não
na caducidade da letra” (v. 6). A condição sob “a Lei” é contrastada com “agora”
(8.1), quando Deus através “da lei do Espírito da vida em Cristo Jesus os
libertou da lei do pecado e morte”, fazendo “o que a lei [aliança mosaica] não
poderia fazer” (8.2-3). Esse ministério do Espírito Santo eventualmente levará à
ressurreição dos seus corpos, uma bênção que também é parte da promessa da
nova aliança (relembre novamente Ez 36-37).
Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos,
esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentro os mortos vivificará também
o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita
(Romanos 8.11, cf. 18-25).

Romanos 11.26-27 cita Isaías 59.20-21, uma predição da nova aliança, com
uma visão em direção à salvação futura de todo Israel, uma referência à nação
como um todo. Romanos 12.2 ordena ao leitor a “renovação da sua mente”; e
15.13 dá a bênção da alegria e paz, abundante “em esperança pelo poder do
Espírito Santo”.
Dois temas posteriores associados com o ensino de Paulo sobre a renovação
da nova aliança e habitação do Espírito Santo requerem uma atenção mais
próxima. Um é o ensino de que esse ministério acontece em Cristo, e o outro é o
fato que ainda há uma plenitude futura para a bênção da nova aliança. Enquanto
a nova aliança foi, sem dúvida, inaugurada, ela é somente um começo. Nem
tudo que foi predito acerca da renovação pelo Espírito Santo (incluindo a
ressurreição dos mortos) já aconteceu. A nova aliança foi inaugurada, porém o
cumprimento completo aguarda o retorno de Cristo.
BÊNÇÃO DA NOVA ALIANÇA EM CRISTO
Percebemos anteriormente neste capítulo que o rei davídico funciona como um
mediador da bênção da aliança. Também vimos que o dom do Espírito Santo é
proeminente entre as bênçãos da nova aliança. Porém, é possível que um rei
davídico pudesse mediar esse dom do Espírito Santo? Através da história do
Antigo Testamento, foi Deus que deu o Espírito. Dar o Espírito relembra a
criação. O Deus que “soprou” do pó para formar Adão é quem promete colocar
o seu Espírito nas pessoas, levantando-os do pó e recriando seus corações, mentes
e vontades.
A autoridade divina e a mediação davídica vêm juntas quando Deus se torna
encarnado como Jesus. Como o rei davídico humano, ele é o receptor primário
da bênção da nova aliança. Isso significa que não somente ele receberia o
Espírito, segundo sua realeza, mas que o Espírito habitaria com ele e o
preservaria em santidade e imortalidade para sempre. Assim, as Escrituras
testificam que, no seu batismo, o Espírito veio e permaneceu sobre ele (Jo 1.32;
Mt 3.16; Lc 3.22). Ele foi “cheio” do Espírito Santo e guiado por ele (Lc 4.1;
Mt 4.1). Ele ministrou no poder do Espírito (Lc 4.14, 18-19; Mt 12.18-21, 28)
e foi ressuscitado dos mortos, imortal, pelo Espírito (Rm 1.4; 2Tm 1.10;
Hb 7.16; 1Pe 3.18).
Como o rei davídico divino, ele é quem dá o Espírito ao seu povo, recriando
seus corações e unindo-os em submissão a ele mesmo. Foi dito sobre ele que ele
batizaria o povo com o Espírito Santo (Mt 3.11; Mc 1.8; Lc 3.16; Jo 1.33), um
testemunho que começou a se cumprir no Pentecostes seguindo sua ascensão
(At 1.5, 8; 2.2-4, 33, 38-39).
Essa função de dar o Espírito é especialmente tratada no evangelho de João
onde Jesus convida os sedentos a virem a ele, beberem e se tornarem uma fonte
de água viva (Jo 7.37). A linguagem é parcialmente aquela de Isaías 55.1-3, um
texto da nova aliança, onde aqueles que estão sedentos são convidados às águas e
recebem “uma aliança eterna [...] segundo a fidelidade prometida a Davi”. João
explica que Jesus “falou do Espírito, que aqueles que acreditaram nele deveriam
receber”. Em outras palavras, Jesus convida o povo a vir a ele para receber a
bênção da nova aliança da habitação do Espírito Santo.
O convite de João 7.37-39 para receber o Espírito Santo remonta à revelação
divina dada a João Batista em João 1.33, “Aquele sobre quem vires descer e
pousar o Espírito, esse é o que batiza com o Espírito Santo” (Jo 1.33). Também
está associado ao discurso de Nicodemos, quando Jesus destacou a necessidade
de ser “nascido do Espírito” para ver o reino de Deus. A linguagem da água,
Espírito e vento soprando sobre a carne (3.5-8) relembra Ezequiel 36.25-27 e
37.1-14. O tema de Jesus dar o Espírito é transportado também para os
capítulos conclusivos do evangelho. Por um lado, Jesus explica que ele pedirá ao
Pai para enviar o Espírito Santo (Jo 14.16), e ele promete que o Pai de fato o
enviará no nome de Jesus (v. 26).Por outro lado, Jesus diz, “eu o enviarei para
vocês” (15.26), uma predição que ele simboliza depois da ressurreição ao soprar
sobre eles, dizendo, “recebam o Espírito Santo” (20.22). Quando dado, o
Espírito habitará neles para sempre (14.16) e lhes concederá o conhecimento de
Deus (14.26; 16.13; cf. o título, “Espírito da verdade” em 14.16-17; 15.26),
ambos os quais são promessas da nova aliança.
O ensino de João acerca do Espírito Santo não nega que o Espírito estava
ativo antes da vinda de Jesus. Entretanto, ele é bem claro acerca de uma dádiva
qualitativamente nova do Espírito que foi vinculada historicamente (ou
dispensacionalmente) ao ministério de Jesus. Podemos ver isso especialmente na
interpretação de João acerca de Jesus dizendo sobre a fonte interior de água viva:
“Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele
cressem; pois o Espírito até aquele momento não fora dado, porque Jesus não
havia sido ainda glorificado” (Jo 7.39).
Atos dos Apóstolos começa com a reafirmação de Jesus aos seus discípulos
para conceder-lhes o Espírito sobre eles (At 1.5, 8). Atos 2.1-4 relata o evento no
qual o Espírito veio (cf, 10.47; 11.15-17). Pedro a interpreta como a ação de
Cristo: “Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do
Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis” (2.33). Ele convida o povo em
Jerusalém “para receber o dom do Espírito Santo” (v. 38), dizendo “para vós é a
promessa, para vossos filhos e para todos os que ainda estão longe, isto é, para
quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (v. 39). O quão abrangente o dom seria
se tornaria claro em Atos 10.44-47 (cf. 11.15-18), quando o Espírito Santo
“desceu” sobre os gentios que creram em Jesus. No concílio de Jerusalém, Pedro
explicou que “Deus [...] concedeu o Espírito Santo a eles, como também a nós
nos concedera, e não estabeleceu distinção alguma entre nós e eles, purificando-
lhes pela fé o coração” (At 15.8-9). O dom do Espírito Santo e a purificação do
coração são novamente a linguagem da promessa da nova aliança. O ponto
importante aqui é que a bênção é dada tanto para judeus como para gentios.
Além do mais, é uma bênção mediada por Cristo, como Pedro prossegue ao
explicar: “Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também
aqueles o foram” (15.11).
BÊNÇÃO FUTURA DA NOVA ALIANÇA
Embora o Novo Testamento seja claro sobre o fato de a nova aliança agora ter
sido inaugurada, isto é, que as bênçãos pertencentes à nova aliança estão agora
sendo dispensadas a todos que creem em Jesus (sejam judeus ou gentios), é
igualmente claro que as promessas da nova aliança não foram completamente
realizadas. As promessas em Jeremias, Isaías e Ezequiel descrevem um povo que
tem a lei escrita em seus corações, que andam no caminho do Senhor,
totalmente sob o controle do Espírito Santo. Essas mesmas promessas olham em
direção a um povo que é ressuscitado dos mortos, desfrutando as bênçãos de
uma herança eterna com Deus habitando com eles e neles para sempre.
O Novo Testamento vê as bênçãos da perfeição moral e espiritual,
juntamente com a imortalidade, como bênçãos a serem recebidas no futuro, na
vinda de Jesus. Entretanto, em 2 Coríntios 3.18, Paulo descreve o ministério
presente da nova aliança (3.6) como um processo de transformação naquela
glória que já está completamente realizada em Cristo.

E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a


glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria
imagem, como pelo Senhor, o Espírito (2 Coríntios 3.18).

Considerando que Deus tem colocado o conhecimento de si mesmo em nossos


corações (4.6) e pensamos sobre nós mesmos e nos outros em Cristo como novas
criaturas (5.17), não obstante “temos esse tesouro em vasos de barro” (4.7).
Experimentamos os princípios tanto da morte quanto da ressurreição em um
processo de renovação diária, olhando para o futuro de nossa glória eterna (4.10-
18), quando seremos ressuscitados imortais (4.14; 5.1-5). O presente dom do
Espírito, que Paulo identifica como a bênção da nova aliança (3.3, 6), é o penhor
da plenitude da nova aliança futura (5.5; cf. Ef 1.13-14).
Da mesma forma, em Romanos 8, quando Paulo diz que “a lei do Espírito da
vida, em Cristo Jesus, te livrou da lei do pecado e da morte” (v. 2), ele, não
obstante, ensina que a plena liberdade encontra-se no futuro. O que temos agora
são “as primícias do Espírito” (8.23). E considerando por um ponto de vista, o
presente recebimento do Espírito nos levou ao status de herdeiros
completamente adultos (Gl 4.5-7); de outra perspectiva, “igualmente gememos
em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo”
(Rm 8.23; cf. v. 11).
A nova aliança prometeu remover o coração de rebelião contra Deus e nos
dar corações completamente conforme sua direção. Entretanto, em nossa
experiência presente, não estamos completamente livres da experiência de
resistência à vontade de Deus. Gálatas 5.17 descreve o presente conflito.

Porque a carne milita contra o Espírito, e o Espírito, contra a carne, porque


são opostos entre si; para que não façais o que, porventura, seja do vosso
querer (Gálatas 5.17).

Somos chamados para andar pelo Espírito, para viver pelo Espírito, para
mortificar (diariamente) as obras da carne, para nos apresentarmos a Deus para a
obra de justiça (Gl 5.16, 25; Rm 8.13-14; 6.12-13). Essa é a condição de viver
sob as bênçãos inauguradas da nova aliança. Somente no futuro essas bênçãos
serão completamente concedidas e a completa transformação prometida pela
nova aliança será realizada.
Esse futuro chegará quando Jesus retornar à terra. Paulo diz em
Colossenses 3.4, “Quando Cristo [...] for manifestado [do céu], então vocês
também serão manifestados com ele em glória”. No “dia do Senhor”, isto é,
quando ele voltar, seremos aperfeiçoados (Fp 1.6), sem mácula (1Co 1.8; Jd 24),
purificados completamente assim como ele próprio (1Jo 3.2-3), ressurretos e
transformados corporalmente em gloriosa imortalidade assim como ele próprio
(Fp 3.20-21).
O fato que a plenitude da bênção da nova aliança espera o retorno de Cristo
não é surpreendente, já que as profecias da nova aliança previram o Messias
reinando na terra sobre um povo transformado. Incluída nessa visão estava à
restauração política de Israel em paz com todas as nações. Assim, Paulo, o
apóstolo da nova aliança que prevê a plenitude da bênção da nova aliança no
retorno do Messias à terra, antevê a salvação nacional de Israel no momento
também.
E, assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: “Virá de Sião o Libertador e
ele apartará de Jacó as impiedades. Esta é a minha aliança com eles, quando eu
tirar os seus pecados.” Quanto ao evangelho, são eles inimigos por vossa causa;
quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas; porque os dons e a
vocação de Deus são irrevogáveis” (Romanos 11.26-29).
CONCLUSÃO
O Novo Testamento dá as boas novas com respeito a Jesus de Nazaré, um
descendente de Davi, a quem a aliança outorgada de Davi foi confirmada. Ele foi
ungido pelo Espírito Santo, ressuscitado dos mortos, declarado Filho de Deus,
feito Senhor e Cristo na medida em que foi entronizado à direita de Deus,
tornando-se o mais exaltado dos reis da terra.
Ao receber as bênçãos davídicas, ele se tornou o herdeiro das bênçãos
prometidas a Abraão, e medeia essas bênçãos aos outros, tanto a Israel quanto às
nações, uma vez que nele são abençoadas.
Nele, a aliança mosaica foi cumprida. A antiga dispensação chegou ao fim e
uma nova dispensação começou no momento em que a nova aliança foi
inaugurada. Jesus Cristo realizou um serviço para Israel e para as nações ao
propiciar a maldição da aliança mosaica (que se estende à maldição fundamental
de Deus contra o pecado) em sua própria morte e ao mesmo tempo provendo a
base sacrificial para a nova aliança que outorga redenção, renovo e ressurreição.
A bênção feita pela aliança a Abraão vem até nós nesta dispensação como a
bênção inaugurada da nova aliança mediada através de Jesus, o Cristo, a quem a
aliança davídica tem sido e será confirmada. Um remanescente de Israel e
remanescentes das nações gentílicas recebem essa bênção inaugurada igualmente,
sem distinção, pela fé em Deus encarnado como Jesus.
A atual dispensação não é o fim. Ela olha para frente para uma dispensação
futura na qual a nova aliança será completamente cumprida e suas bênçãos
completamente recebidas. Tudo sobre as alianças outorgadas será cumprido
naquele tempo. A mudança da dispensação ocorrerá na descida de Jesus dos céus.
A bênção da nova aliança (e, assim, a bênção abraâmica) será estendida às
dimensões políticas e nacionais da existência humana à medida que ele realiza
sua prerrogativa davídica para governar pessoalmente as nações. As bênçãos da
habitação do Espírito Santo e do novo coração serão cumpridas com a
ressurreição dos mortos e perfeição em santidade. A bênção sobre ele e nele sobre
nós será eterna, confirmando através da redenção o plano de Deus da criação.
Porém, foi revelado mais sobre como isso tudo acontecerá do que é possível
descobrir através de um estudo das alianças. No próximo capítulo, voltaremos ao
tema do reino de Deus, que oferecerá uma revelação mais profunda da natureza
das dispensações que virão (incluindo seus aspectos milenar e eterno), assim
como outro olhar sobre como as dispensações passadas e presentes conduzem
progressivamente para isso.

1. A palavra grega christos (Cristo) era pronunciada da mesma forma que o nome próprio Chrestos, levando
alguns gentios a pensar que a mensagem do evangelho era na verdade acerca de alguém chamado Iesous
Chrestos em vez de “Jesus, que é chamado Cristo” (Mt 1.16).
2. Estes termos são usados tanto em Saul quanto em Davi nas narrativas de 1 e 2 Samuel (1Sm 12.3, 5;
24.6, 10; 26.16; 2Sm 1.14-21; 19.21; 22.51; 23.1) e são usadas para o rei frequentemente nos Salmos (2.2;
18.50; 20.6; 28.8; 84.9; 89.20, 38; 132.10, 17).
3. Apesar dos Evangelhos não usarem as palavras ungir e unção na descrição do evento, os discípulos viram a
recepção de Jesus do Espírito Santo no seu batismo dessa forma. Veja Atos 10.38, “como Deus ungiu a Jesus
de Nazaré com o Espírito Santo e poder”. O próprio Jesus interpreta isso como uma unção quando ele cita
Isaías 61.1 na sinagoga em Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar
boas novas aos pobres” (Lc 4.18).
4. Compare 1 Samuel 16.13 onde o Espírito Santo vem sobre Davi quando ele foi ungido pelo profeta
Samuel.
5. A mesma palavra (sperma) é usada em Atos 13.23 e em 2 Samuel 7.12.
6. Paulo se refere a Salmos 2.7 que em troca relembra a promessa em 2 Samuel 7.14 e 1 Crônicas 17.13 que
Deus será seu Pai e ele será filho de Deus. Paulo não está discutindo a questão da filiação divina pré-
encarnada aqui.
7. Alguns dispensacionalistas argumentaram que a entronização do Salmo 110.1 se deu na ascensão, mas
que o governo de 110.2 não se dará até um tempo futuro (o reino milenar) já que entre a entronização e o
governo encontramos a frase:“até que eu faça dos teus inimigos um estrado para os teus pés” (NVI). Essa
interpretação ignora tanto o contexto literário de destaque nos Salmos e a forma na qual o texto todo é
aplicado a Jesus no Novo Testamento. Em outros lugares nos Salmos, é dito que Davi espera no Senhor
pela subjugação de seus inimigos. Isso não implica uma carência de uma função real da sua parte.
Entretanto, no Novo Testamento, o Salmo 110 é geralmente aplicado a Jesus com a assertiva de que seus
inimigos já foram subjugados a ele (Ef 1.22; 1Pe 3.22). Seguindo o pensamento desses primeiros
dispensacionalistas, deve-se dizer que ele está governando agora também.
8. A palavra “começando” em muitas traduções de Colossenses 1.18 é a palavra arché que poderia também
ser traduzida como governador. Já que o verso apresenta a linguagem da aliança, descrevendo o rei davídico,
ela talvez deva ser melhor tomada no último sentido.
9. Perceba a linguagem da aliança davídica aqui – um pastor de ovelhas (veja 2Sm 7.8), Pai-Filho
(2Sm 7.14), trono (2Sm 7.13, 16).
10. Muitos dispensacionalistas revisados limitam o cumprimento desta aliança ao Milênio, interpretando a
palavra “para sempre” (2Sm 7.13, 16) como significando mil anos.
11. Note as seguintes descrições: “Escolheu ele a Salomão para se assentar no trono do reino do Senhor, sobre
Israel” (1Cr 28.5); “Salomão assentou-se no trono do Senhor, rei, em lugar de Davi, seu pai” (1Cr 29.23);
“Bendito seja o Senhor, teu Deus, que se agradou de ti para te colocar no seu trono como rei para o Senhor,
teu Deus” (2Cr 9.8).
12. Veja Salmos 16.11; 17.7; 18.35; 20.6; 63.8; 80.15, 17; 108.6; 110.1; 138.7; 139.10.
13. Showers perde esse ponto quando argumenta em favor de uma distinção entre o trono de Deus e o
trono de Davi. Em lugar nenhum ele considera o fato que o trono celestial é fundamentalmente orientado a
Israel. Ronald Showers, There Really Is a Difference! A Comparison of Covenant and Dispensational Theology
(Bellmawr, NJ: Friends of Israel, 1990), pp. 89-90.
14. E como vimos anteriormente nesse capítulo, a linguagem remete ainda mais a afirmação da promessa de
Abraão a Jacó em Betel em Gênesis 28.15.
15. Cf. Romanos 15.8, “Digo, pois, que Cristo foi constituído ministro da circuncisão, em prol da verdade
de Deus, para confirmar as promessas feitas aos nossos pais”.
16. Veja Mateus 1.22-23; 2.5-6, 15, 17-18, 23; 4.13-17.
17. Tecnicamente, alguém não poderia ser julgado por violar a aliança se não houvesse testemunhas. Em
Isaías 1, temos um exemplo de Deus “julgando” Israel diante do testemunho dos céus e da terra, por terem
quebrado a aliança Mosaica. A punição, é claro, são as maldições da aliança.
18. Antinomismo é o ensino que a obediência à lei de Deus não é um componente necessário da vida cristã.
CAPÍTULO 7

O REINO DE DEUS NO ANTIGO TESTAMENTO

Quando Deus tirou os descendentes de Abraão do Egito e fez uma aliança da sua
lei com eles no Sinai, ele os tornou uma nação. Ele mesmo se tornou seu rei e
eles se tornaram seu reino. Muito do que o Antigo Testamento tem a dizer
acerca de Deus ser um rei fala desse relacionamento da aliança a Israel e através
de Israel ao resto das nações.
Vimos que a aliança mosaica marcou uma nova dispensação no
relacionamento de Deus com a raça humana. Como resultado, o reino de Deus
se refere a algo novo que veio a acontecer na história. Ainda assim, ao mesmo
tempo, essa nova dispensação estava diretamente enraizada a uma aliança
anterior que Deus tinha feito com Abraão. E essa aliança, por sua vez, relembrou
as relações anteriores de Deus com a humanidade tocando até mesmo a criação.
O reino de Deus, então, pertence ao plano de revelação de Deus da redenção.
Em certo sentido, pode ser dito que Deus sempre se comportou como um
rei. Depois de trazer Adão e Eva à existência, deu-lhes uma terra que ele tinha
preparado e delegou autoridade a eles. Deus detinha o poder da vida e da morte,
do julgamento e da bênção. Ele ordenou e esperava obediência. Conforme eles
consentiram, desfrutaram sua presença e ele a deles. Depois da queda do pecado,
eles estavam sob seu julgamento, mas mantiveram a esperança de uma redenção
futura.
Depois que o Senhor salvou Noé do julgamento que veio sobre toda
humanidade, Deus deu a ele a terra e aos seus descendentes, fez promessas de
aliança de vida e fecundidade e ordenou sua vontade. Depois ele fez uma
concessão a Abraão de abençoá-lo e todos os povos da terra. Ele concedeu terra,
prometeu bênçãos e ordenou os passos da vida patriarcal.
Em todas essas ações, ele foi como ele é, Deus. Ele cria e sustenta a existência
de todas as coisas. Ainda assim, escolhe interagir pessoalmente e historicamente
com os seres humanos. Como o superior nesse relacionamento, o Senhor
ordenou, concedeu bênção e puniu o insubordinado. A aliança que ele fez com
Abraão foi modelada na forma de outorgas reais do antigo Oriente Próximo.
Através de toda dispensação patriarcal, Deus lidou com a humanidade de uma
forma divina, mas ainda como um rei.
Entretanto, em sua aliança com Abraão, Deus estabeleceu um princípio de
mediação pelo qual ele se associaria ao resto da humanidade através dos
descendentes de Abraão.1 A história do reino de Deus nas Escrituras é
primariamente a história do desenvolvimento dessa aliança. Deus revelará a si
mesmo como rei de Israel. E através de Israel, ele manifestará seu governo real
sobre as outras nações. É esse estabelecimento de relações que irá dizer a direção
para a reconciliação divino-humana.
DEUS, O REI DE ISRAEL
O Senhor é Rei. Três cânticos ou salmos atribuídos a Moisés proclamam o
relacionamento especial do Senhor com Israel como o seu rei. Quando as nações
receberam suas várias fronteiras e heranças, o Senhor escolheu Israel:

Porque a porção do Senhor é o seu povo;


Jacó é a parte da sua herança (Deuteronômio 32.9).

Ele escolheu ser o rei deles. Ele os redimiu ao lutar por eles contra Faraó e seu
exército, e ele prevaleceu. O cântico em Êxodo 15 celebra sua vitória: “O Senhor
é homem de guerra; Senhor é o seu nome” (Êx 15.3). O Senhor é “exaltado”
(15.2). Sua destra (sua mão de governo) é “majestosa em poder” (15.6). Ele
estendeu sua mão (de governo) em decreto e a terra responde em obediência
(15.12). Em “triunfo glorioso” ele resistiu a seus adversários (15.7). Os reis das
outras nações consequentemente ficaram consternados e aterrorizados diante
dele (15.15-16). Porém, ele levará seu povo para sua terra escolhida onde sobre
eles “o Senhor reinará para sempre e sempre” (15.18).
A partir da sua decisiva vitória sobre o Egito, o Senhor levou seu povo para o
Sinai. Deuteronômio 33.2-5 descreve como Deus veio sobre eles em majestade e
glória e entrou em aliança com eles:

E o Senhor se tornou rei ao seu povo amado, quando se congregaram os


cabeças do povo com as tribos de Israel (v. 5).2

Esse cântico prossegue para falar da bênção de Deus sobre as tribos de Israel.
Porém, Deuteronômio 32 adverte da punição caso o povo se rebelasse. Também
adverte da vingança contra os adversários do povo de Deus. Tudo isso concorda
com o tratado que o Senhor tinha com eles como seu rei. Pois eles são seu povo e
esta é sua terra (32.43).
Depois, na história de Israel, quando Deus advertiu seu povo da punição
iminente, foi como seu rei que ele apelou a eles. Quando Isaías foi chamado
como profeta, ele lamentou sua dor declarando: “Meus olhos viram o Rei, o
Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). Deus advertiu que ele traria a Babilônia sobre seu
povo. Ele faria isso como “o Senhor, o Santo, o Criador de Israel, seu Rei”
(Is 43.15). Ele é o único verdadeiro Deus, ainda assim ele é ao mesmo tempo, “o
rei de Israel” (Is 44.6).

O Reino do Senhor. O reinado de Deus sobre Israel é especialmente


caracterizado em um grupo de salmos conhecido como salmos de entronização.
Esses salmos carregam tipicamente a expressão “O Senhor reina”. 3 Eles designam
Deus como o rei de Israel e também falam da extensão do seu reinado sobre as
nações. Eles estão unidos por vários outros salmos que falam do reino de Deus e
descrevem suas várias características.4 Essas descrições preveem um tempo da
bênção da aliança de Deus sobre seu povo. Eles nos apresentam a concepção
mais ideal do reino de Deus durante a dispensação mosaica.
Deus, o rei, é o Altíssimo; ele é grande e glorioso, governa em esplendor,
beleza, majestade e poder. Ele faz das trevas o seu manto e do fogo seu auxílio.
Ele é justo e reto em todos os seus caminhos. Ele está entronizado nos céus sobre
todas as suas obras, sobre toda a terra e sobre todas as nações, incluindo as coisas
que idólatras adoram. Ainda assim, ele também está entronizado em Sião. É seu
lugar de habitação; ele governa de lá; ele brilha de lá. Os céus e Sião estão assim
ligados. Sua conexão é algumas vezes descrita como trono e estrado dos pés. O
governo de Deus procede de ambos.
Deus julga com justiça; ele vindica o justo, pune e destrói o ímpio. Ele faz
cessar a guerra e a violência e estabelece a paz. Ele dá vida e força ao seu povo,
ajuda o necessitado e faz um lar para o desabrigado. Seu povo, que constitui seu
reino, responde com louvor, alegria, canções e ações de graças. A sua confiança
está no Senhor com obediência e reverência, mas também com grande alegria.
O reino é ainda descrito em termos de um povo que foi salvo e liberto, justo,
próspero, sábio, seguro e cheio de contentamento e conhecimento do Senhor. A
terra de Israel também é descrita como regozijando-se com louvor e canções,
abençoada com paz, justiça e fecundidade.
Israel, o povo abençoado por Deus, proclama o Senhor a todas as nações.
Através deles, as bênçãos de Deus alcança todas as nações. Ele as governa com
justiça e retidão,para que as nações e a terra sejam cheias do conhecimento de
Deus. As nações são descritas como louvando a Deus com alegria e temor,
vivendo em paz e cheias do conhecimento de Deus. A própria terra, humilhada,
derretendo perante a sua ira, é descrita como regozijando-se no Senhor que a
estabelece e a sustém para sempre.
MESSIAS, REI DE ISRAEL
O reino de Deus na dispensação mosaica foi estendido para incluir um papel
para o reinado humano. Na aliança que Deus fez com Israel, a provisão foi feita
para tal rei. A pedido do povo, o Senhor escolheria um rei dentre eles (Dt 17.14-
15). O rei deveria exemplificar a resposta da aliança da nação a Deus, amando o
Senhor com todo seu coração, confiando somente nele e andando em seus
caminhos. Ele seria um instrumento pelo qual o reino de Deus sobre Israel e
sobre todas as nações seria estabelecido.

Antecipação do Messias. Na teologia bíblica, o rei humano de Israel tem um


papel importante no plano divino para dominação humana. Na criação da
humanidade Deus disse: “Tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as
aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os
répteis que rasteja pela terra” (Gn 1.26). Isso também foi estabelecido como um
mandamento para a humanidade: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra
e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo
animal que rasteja pela terra” (Gn 1.28).
Depois do pecado deles, esse domínio seria exercido sob condições caídas.
Entretanto, o domínio em última instância, até mesmo sob sua situação de
queda, é de forma enigmática predito na maldição sobre a serpente, o tentador e
enganador: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu
descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Gn 3.15).
Sob essas condições, o governo humano foi reestruturado hierarquicamente.
Encontramos isso primeiro nas observações do Senhor para Adão e Eva, quando
ele diz: “O teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (Gn 3.16).
Quando as nações da humanidade se espalharam pela terra, o domínio humano
tomou estruturas coletivas, hierarquizadas sob patriarcas e reis. Eventualmente,
isso se estendeu ao relacionamento de nações entre si.
A bênção para Abraão previu uma autoridade sobre outras nações que seria
herdada pela nação descendente dele. Isaque esclarece esse ponto ao transferir a
aliança patriarcal para Jacó (Gn 27.29).
Sirvam-te os povos, e nações te reverenciem; sê senhor de teus irmãos, e os
filhos de tua mãe se encurvem a ti; maldito seja o que te amaldiçoar, e
abençoado o que te abençoar

A bênção de Deus sobre as nações seria revelada através do governo de Jacó sobre
eles. Esse governo foi, então, especificamente transferido de Jacó para Judá
(Gn 49.8-10).

Judá, teus irmãos te louvarão; a tua mão estará sobre a cerviz de teus inimigos;
os filhos de teu pai se inclinarão a ti. Judá é leãozinho; da presa subiste, filho
meu. Encurva-se e deita-se como leão e como leoa; quem o despertará? O
cetro não se arredará de Judá, nem o bastão de entre seus pés, até que venha
Siló; e a ele obedecerão os povos.

A linguagem da bênção de Jacó sobre Judá é repetida nos oráculos de Balaão. Já


vimos que Balaão fala de Deus como o rei de Israel (Nm 23.21), mas ele
também vê um rei humano descrito na linguagem da bênção de Jacó sobre Judá,
aquele que cumpre a promessa da aliança de mediação de bênção ou maldição
(Nm 24.9, cf. v. 7).

Este abaixou-se, deitou-se como leão e como leoa; quem o despertará?


Benditos os que te abençoarem, e malditos os que te amaldiçoarem.

Ele é descrito mais adiante (Nm 24.17, 19):

Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela
procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro [...] De Jacó sairá o dominador.

Finalmente, o reinado humano faz sua primeira aparição legítima quando Saul é
ungido rei de todo Israel. Porém, Saul foi logo rejeitado por Deus por causa de
sua desobediência. Davi, um descendente de Judá, um “homem segundo o
coração de Deus”, foi escolhido para substituí-lo. Davi foi considerado fiel a
Deus e Deus fez uma aliança com Davi para estabelecer sua casa como a casa real
de Israel, para levantar seu descendente segundo ele e estabelecer seu reino para
sempre.

O Reino Messiânico. Os reinos de Davi e Salomão tipificam o ideal do reino


terreno de Deus durante a dispensação mosaica. Muitos dos seus elementos são
apresentados através dos salmos, mas uma figura adequada pode ser construída
ao examinar os salmos reais, salmos que falam diretamente acerca do rei
davídico, seu reinado e seu reino.5
Os títulos de Rei e do Filho são usados alternadamente para o governador
davídico (veja Sl 2.2, 6-7, 12; 18.50). Ele é caracterizado como santo e piedoso.
Ele odeia a impiedade (Sl 101; 45.7). Ele governa com verdade, retidão e justiça
(Sl 45.4, 6-7; 72.2). Ele ajuda o aflito, o necessitado e o pobre (Sl 72.4, 12-14),
salvando-os e libertando-os ao esmagar seus opressores (Sl 72.4). Ele é um
sacerdote da ordem de Melquisedeque (Sl 110.4), mediando prosperidade e paz
a Israel e a todas as nações (Sl 72.6-7, 16).
O reino é caracterizado pela justiça, paz e prosperidade (Sl 72.3, 6-7, 16).
Tanto Deus quanto o rei davídico são abençoados (Sl 72.15, 18-19); Deus é
adorado e o rei davídico é honrado (Sl 2.11-12).
Todas as nações são previstas em sujeição a Deus e seu rei davídico (Sl 2;
72.8-11). O Senhor deu ao seu Messias todas as nações, de fato, toda terra como
herança (Sl 2.8). Elas se refugiam nele e são abençoadas (Sl 2.12; 72.17).
O relacionamento entre Deus e seu rei humano é o assunto primário nesses
salmos e é nessa caracterização desse relacionamento que obtemos a descrição
mais detalhada do reino. O rei davídico confia em Deus (Sl 19.1-3; 21.7; 28.7;
61.1-4). Ele proclama o Senhor (Sl 18.30-31), permanece nos seus caminhos
(Sl 18.21-24) e regozija-se nele (Sl 21.1).
Deus ungiu o seu rei (Sl 45.7) e o instalou em Sião, o lugar do próprio
governo de Deus (Sl 2.6; 110.2; 132.13-14). Ele governa à destra de Deus
(Sl 18.35; 110.1),6 e tem os seus inimigos destruídos por ele (Sl 20.6; 21.8-13;
89.23). O Senhor o fortalece para a batalha (Sl 18.31-42), subjuga povos sob ele
(Sl 18.47; 110.1-2, 5-6) e o estabelece sobre todas as nações (Sl 89.27). Deus lhe
dá vida (Sl 18.28; 21.4; 61.6), força, glória, majestade e esplendor (Sl 21.5).
Deus concede benignidade a ele (Sl 18.50; 21.7; 61.7; 89.1-2), abençoa-o com
contentamento (Sl 21.3-6) e o inclui dentro de sua própria magnitude
(Sl 18.35), confirmando a ele todas as promessas da aliança de Davi (Sl 89.3-4;
132.10-18).
REINADO DIVINO E HUMANO; A UNIDADE DO REINO DE DEUS
Quando comparamos as descrições do reino de Deus nos salmos de entronização
com as descrições do reino do seu Messias nos salmos reais, vemos uma
similaridade acentuada. Os dois reinos convergem em direção a um padrão
descritivo que é o modelo ideal do reino de Deus na dispensação mosaica. Até
mesmo a grande extensão do governo providencial de Deus sobre a criação é
trazida a esse padrão, para que Sião apareça como o centro do governo universal
de Deus.
A harmonia dos dois reinos – divino e humano, unidos pela aliança – e a
revelação do governo providencial de Deus são importantes características da
teologia do reino do Antigo Testamento. Todos esses elementos estão
profundamente interligados, revelando a unidade do reino. Antes de tudo, o
próprio Deus é ao mesmo tempo Deus sobre todos e rei da nação de Israel. Essas
relações não são totalmente distintas. Elas se sobrepõem intencionalmente. A
autoridade e o poder de Deus sobre a terra e os céus são empregados em seu
reino sobre Israel (desde a divisão das águas do Mar Vermelho até as bênçãos
periódicas na terra). Seu governo sobre Israel medeia seu governo sobre outros
povos (tanto nas bênçãos quanto nas maldições). Israel, então, torna-se o ponto
central para as relações de Deus com a humanidade e sua providência sobre o
resto da criação.
A partir disso, podemos ver a inter-relação entre os céus e Sião no reino de
Deus. Os Salmos se referem ao governo de Deus para ambos. Ele é dito estar
entronizado tanto nos céus quanto em Sião, e exercendo em ambos, o mesmo
governo real. Algumas vezes, a união entre céus e Sião é ilustrada como o
relacionamento entre um trono e um estrado para os pés. Juntos, eles apoiam o
rei e constituem o seu trono. Mesmo quando são identificados separadamente
como tronos de Deus, eles não podem ser vistos como independentes entre si, já
que os mesmos elementos do governo são atribuídos a ambos. Deus governa
Israel de Sião e governa Israel do céu, com o governo (suas bênçãos e
julgamentos segundo sua aliança) sendo o mesmo para ambos. Deus governa o
cosmos do céu, mas também é dito que ele governa de Sião. E de Sião, ele
governa todos os povos na terra.
Em Sião, também achamos o Messias, o rei davídico. É dito que ele governa
de Sião sobre Israel e todas as nações com as mesmas frases descritivas que são
aplicadas a Deus. Apesar de suas pessoas serem mantidas distintas, suas
atividades são, não obstante, vistas convergindo em um reino unificado. As
decisões do Messias são decisões de Deus e vice-versa, já que o Messias tem a
palavra de Deus escondida em seu coração e Deus estabelece e transmite seus
desejos e sua vontade. O Messias julga e governa com a sabedoria e retidão dada
a ele por Deus. A justiça de Deus é transmitida em suas decisões. Ele também
transmite a ira de Deus, punindo a impiedade e o mal. A obediência ao Messias
se harmoniza com a obediência do povo a Deus e o favor de Deus (a bênção da
aliança) e o favor do Messias (pessoalmente e politicamente) vem juntos na
experiência das pessoas.
As bênçãos que caracterizam o reino revelam outro aspecto da sua unidade. O
reino de Deus é material e espiritual, sagrado e secular ao mesmo tempo. Na
gramática bíblica, essas características descrevem coletivamente o mesmo reino,
com características espirituais suportando as materiais. Elas não são distintas,
como se pertencessem a reinos separados (um celestial e um terreno), não
relacionados entre si. Esse é o motivo por que nos Salmos, o reino de Deus e do
seu Messias exibem justiça espiritual e prosperidade material. É abençoado com a
paz de Deus assim como paz e segurança nacional e internacional. O povo
desfruta o perdão de Deus dos pecados juntamente com a cura física e nacional.
Eles crescem em conhecimento e sabedoria, mas especialmente no conhecimento
de Deus. Religião e sociedade, templo e palácio, Deus e humanidade se inter-
relacionam em uma experiência unificada do reino de Deus.
Alguns dispensacionalistas têm negligenciado o caráter unificado do reino de
Deus no Antigo Testamento, argumentando, em vez disso, a favor de reinos
diferentes operando em conjunto uns com os outros. Eles argumentariam que o
governo providencial de Deus sobre o cosmos deveria ser distinguido da
realidade política de Israel. Certamente, pode-se diferenciar entre esses dois
“reinos” no que diz respeito ao tempo (o primeiro preexiste o segundo) e
duração (o primeiro é imutável, o segundo varia historicamente). O fato que os
Salmos falam de Deus reinando nos céus sobre os cosmos é levado a significar
que o reino celestial existe em distinção dos reinos na terra.
Distinções dessa natureza podem ser úteis no processo de analisar as
complexidades das Escrituras. É preciso ter em mente o fato que Deus é como
sempre foi, soberano sobre tudo que fez. Entretanto, a linguagem bíblica do
reinado não é primariamente utilizada dessa forma. Mesmo nas Escrituras que
falam de Deus reinando nos céus, implicações estão à disposição, por causa de
sua relação com Israel e as nações. A providência e a política, humanidade e
deidade, estão proximamente inter-relacionadas nas descrições bíblicas dos
reinados de Deus e do seu Messias.
Essa unidade e harmonia extraordinárias do governo divino e humano são
cruciais para a apresentação do reino de Deus encontrado nos Salmos e em
outros lugares das Escrituras. Esse é o fenômeno que deve ser compreendido para
que se entenda os profetas, Jesus e seus apóstolos. Eles se baseiam nesse modelo
do reino idealizado nos reinados de Davi e Salomão quando, por sua vez,
descrevem e retratam um reino que ainda está por vir.
No entanto, há uma importante distinção que precisa ser esclarecida no
processo de identificação desse reino. O reino de Deus apresentado a nós nos
Salmos é um modelo ideal baseado nas bênçãos da aliança mosaica. Isso pode ser
confuso, porque a aliança mosaica é a estrutura básica do reino que permanece
constante ao longo da dispensação mosaica. Sob a estrutura da aliança mosaica, o
governo real de Deus sobre Israel pode ser revelado em juízo e maldição, assim
como em bênção. Mas a forma ideal do reino, descrita nos Salmos, não é obtida
dessas maldições. São as bênçãos da aliança mosaica (que são uma revelação
dispensacional da bênção incondicionalmente concedida a Abraão) que se
tornam, na gramática profética, a linguagem do reino de Deus.
Levando isso em conta, o reino de Deus se torna um padrão ideal de bênção,
uma esperança e expectativa, que é aproximada em vários níveis na história de
Israel. É o padrão ideal de bênção que Deus estabeleceu na aliança de Israel. Na
experiência histórica de Israel, eles se revelam mais plenamente como sendo o
reino de Deus nos reinados de Davi e Salomão, e em um nível menor naqueles
reinos que seguem o seu exemplo de fé e obediência. Nos reinados desses reis,
Israel se torna, em níveis variados, uma revelação não apenas do reinado benéfico
de Deus com respeito a ela, mas do seu reinado bondoso e abençoado sobre
todas as coisas. Israel é abençoado na forma da aliança e medeia essa bênção para
outras nações na terra. Deus, o rei de Israel, demonstra o seu governo sobre céus
e terra através do seu reinado em Sião. Seu rei vassalo é seu instrumento,
governando sobre as obras de Deus. Através dessa bênção da aliança e mediação,
Deus revela a redenção da sua criação e a glória da sua providência divina.
A infidelidade à aliança, entretanto, enfraquece essa revelação de um reino
abençoado. As circunstâncias podem se tornar tão ruins que Israel nem sequer
conhece o Senhor, muito menos o proclama como rei e nem se regozija em seu
reinado. O tempo que levou ao estabelecimento do reinado humano foi um
tempo de apostasia. Os pedidos por um rei como os reis das outras nações foram
interpretados como rejeições do reinado de Deus (Jz 8.22-23; 1Sm 8.5-7).
Abimeleque, filho de Gideão, fez uma tentativa frustada de estabelecer uma
monarquia (Jz 9). Ele nunca foi reconhecido por Deus como seu Messias; seu
“reino” nunca foi chamado de reino de Deus. No fim, Deus julgou tanto
Abimeleque quanto o povo que o investiu em seu ofício.
Os elementos que vêm juntos sob a bênção de Deus nos reinados de Davi e
Salomão (e que oferecem a revelação mais completa do reino de Deus na
dispensação mosaica), se tornam conflitantes e discordantes nos reinos dos reis
posteriores que são infiéis e desleais a Deus. A infidelidade de Salomão na última
parte do seu reino, juntamente com a tolice de seu filho Roboão, levaram à
divisão do reino. O rei davídico não mais governava sobre todo Israel, muito
menos sobre as outras nações. A tensão e o conflito entre Israel, Judá e as nações
em volta ameaçaram a paz e a prosperidade. Com as duas nações divididas em
direção a uma idolatria crescente, as maldições da aliança mosaica trouxeram
sofrimentos nacional e individual ao povo. Quando Sião se tornou um centro de
idolatria, o reino beneficente de Deus não foi mais revelado aqui, somente os
decretos de sua ira. Eventualmente, Deus queimou a cidade, arrasou o templo e
cortou o reino da casa de Davi.
O REINO DE DEUS DURANTE O EXÍLIO
O julgamento de Deus sobre Israel e Judá – o encerramento dos reinos
experimentais no norte e no reino davídico no sul – não significou o fim do
reino de Deus. Entretanto, significou o fim temporário da mediação desse reino
em Jerusalém (e o fim permanente da sua forma dual em Samaria). Nesse
contexto, o livro de Daniel apresenta uma nova maneira de falar do reino de
Deus. Descrevendo as condições no exílio, Daniel vê o reino de Deus como a
inter-relação entre o céu e o trono imperial do poder gentílico; a união do reino
de Deus com o reino do principal rei gentílico.
Em Daniel 2, Deus revela ao rei da Babilônia seu lugar numa sucessão de
impérios terrenos. Em resposta, o rei da Babilônia reconhece: “Certamente, o
vosso Deus é o Deus dos deuses, e Senhor dos reis” (2.47). O julgamento
subsequente desse rei da Babilônia em Daniel 4 o faz confessar que “o Altíssimo
tem domínio sobre o reino dos homens; e o dá a quem quer e até ao mais
humilde dos homens constitui sobre eles” (Dn 4.17). Ele reconhece que o reino
de Deus é um “reino sempiterno, e o seu domínio, de geração em geração”
(Dn 4.3). O capítulo termina (Dn 4.37) com a confissão: “Agora, pois, eu,
Nabucodonosor, louvo, exalto e glorifico ao Rei do céu, porque todas as suas
obras são verdadeiras, e os seus caminhos, justos, e pode humilhar aos que
andam em soberba”.
A forma de Deus lidar com Nabucodonosor não é simplesmente uma
manifestação da sua soberania divina sobre todas as coisas. É muito parecido
com seu tratamento dos reis de Israel. Juntamente com isso, o filho de
Nabucodonosor, Belsazar, é julgado, porque, ainda que soubesse do pai “que
Deus, o Altíssimo, tem domínio sobre o reino dos homens e a quem quer
constitui sobre ele”, não obstante, ele não se humilhou e nem glorificou a Deus
(Dn 5.21-23). Como resultado, em uma revelação do reinado superior, Deus
estendeu uma mão e escreveu um decreto na parede do palácio do rei da
Babilônia anunciando o fim de sua autoridade, a reestruturação do seu ofício e a
concessão a outros (5.5-6, 24-28).
Em Daniel 6, Dário, rei dos Medos, é forçado a reconhecer que o Deus de
Daniel é “o Deus vivo e que permanece para sempre; o seu reino não será
destruído, e o seu domínio não terá fim” (6.26).
A ironia nessa linguagem do reino, obviamente, é evidente. Com Israel em
juízo, Deus estabelece sua ligação real com o rei gentílico vigente. Ainda assim,
em tudo isso, Israel não é esquecido. O remanescente fiel de Israel (representado
na pessoa de Daniel e seus amigos) medeia a revelação de Deus aos governantes
gentios. O tempo da dominação gentílica é revelada a esse remanescente, e o
tempo é medido de acordo com os propósitos de Deus para a terra de Israel,
depois dos quais Deus renovará seu plano para Jerusalém (Dn 9). Ainda que
Israel esteja disperso, o Rei de Israel revela lealdade da aliança a seu remanescente
fiel. Sua soberana direção das nações tem seu remanescente fiel em mente e
antevê as promessas com respeito a sua restauração, juntamente com a
restauração do reinado a eles, e através deles, sobre as nações.
O REINO ESCATOLÓGICO DE DEUS NA PROFECIA DO ANTIGO TESTAMENTO
A dissolução da harmonia do reinado divino e humano em Israel durante a
dispensação mosaica é um sintoma da discordância que o pecado trouxe de
forma geral para dentro das relações divino/humanas. Assim como Deus
estabeleceu um plano de redenção para reconciliar a humanidade a ele mesmo,
da mesma forma os profetas do Antigo Testamento predisseram que Deus
salvará seu plano de reino que estabeleceu pela aliança. Além do mais, a
restituição desse reino seria o meio pelo qual o plano de redenção seria
cumprido. O governo divino e humano convergiria em uma unidade nunca
antes vista.

O Reino Escatológico em Daniel. O livro apocalíptico de Daniel destaca a


natureza temporária e irônica da experiência de exílio de Israel ao predizer que
um reino de Deus que está vindo no futuro.7 Nesse tempo, “o Deus do céu
suscitará um reino que não será jamais destruído; este reino não passará a outro
povo; esmiuçará e consumirá todos estes reinos, mas ele mesmo subsistirá para
sempre” (Dn 2.44). No sonho dado a Nabucodonosor, esse reino vindouro é
descrito como uma pedra que cai do céu, esmagando os reinos sobre os quais ela
cai e se tornando uma grande montanha que enche o mundo inteiro (Dn 2.34-
35). A montanha é uma referência a Sião, que aparece repetidamente no
imaginário bíblico como a maior montanha, especialmente nas profecias acerca
do reino escatológico vindouro.
Em Daniel 7, Daniel antevê um tempo depois da sucessão dos reinos
gentílicos quando “Um como o Filho do Homem” virá sobre as nuvens antes do
Ancião de Dias para receber “domínio, e glória, e o reino, para que os povos,
nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno,
que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (Dn 7.14). Essa descrição do
reino vindouro é similar às descrições do reino de Deus presente que
encontramos em Daniel 4-6. Entretanto, a vinda do reino será especialmente
manifesta na terra na substituição de, não simplesmente conjunção com,
estruturas gentílicas políticas existentes. Um rei humano exercerá sua autoridade
em substituição da soberania dada aos reis gentílicos.
A descrição do reino vindouro novamente em Daniel 7.27: “O reino, e o
domínio, e a majestade dos reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo
dos santos Altíssimo; o seu reino será reino eterno, e todos os domínios o
servirão e lhe obedecerão”. O reino que está vindo é uma mediação do governo e
autoridade que Deus já estava manifestando sobre as nações, mas seria exercido
política e socialmente pelo “povo dos santos do altíssimo” (o que estava sendo
perseguido pelas nações) através de um rei que Deus escolheria dentre eles.
Os sonhos e visões relatados em Daniel preveem esse reino vindo em um
tempo de julgamento catastrófico sobre os reinos gentílicos. O julgamento
antevisto faz paralelo com o julgamento que já recaiu sobre Judá e seu rei,
trazendo morte, destruição e exílio. Em contraste ao relutante reconhecimento
de Deus forçado de Nabucodonosor nos capítulos anteriores do livro, as visões
posteriores de Daniel preveem um futuro governo imperial que arrogantemente
blasfema contra Deus, persegue os santos e perpetra guerra e sofrimento sobre a
terra. Sua retratação reaparece em visões sucessivas de Daniel 7-12. É dito para
Daniel que “Haverá tempo de angústia, qual nunca houve desde que houve
nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o teu povo, todo aquele
que for achado inscrito no livro da vida” (Dn 12.1). Daniel 7.9-11, 26, prevê
um Ancião de Dias pronunciando um julgamento e destruindo esse governador
poderoso (cf. Dn 2.34-35, 45), dando soberania ao Filho do Homem e aos
santos do Altíssimo. Eles “receberão o reino e o possuirão para todo o sempre, de
eternidade em eternidade” (Dn 7.18). O pecado será expiado. A transgressão será
encerrada. Será um tempo de justiça eterna (Dn 9.24).

O Reino Escatológico nos Profetas do Antigo Testamento. Os profetas do


Antigo Testamento também predisseram o reino escatológico vindouro. Suas
características gerais são notavelmente consistentes através das predições, um
profeta enfatiza um aspecto, outro profeta fala de outro detalhe, mas todos
juntos convergem em um padrão harmonioso. As características do reinado
divino e davídico serão mais uma vez trazidas a uma relação próxima. O mesmo
reino futuro é algumas vezes descrito a partir do ponto de partida do governo
real de Deus na passagem e a partir da perspectiva do reino do seu Messias em
outra.
O Reino Vindouro de Deus. Muitas passagens falam de um reino futuro na
terra no qual Deus governará as nações. Isso não é simplesmente a afirmação de
sua soberania eterna, mas a revelação do seu reinado no reino mundial futuro
dirigido por Deus a partir de Sião.
Tanto em Isaías 2.2-4 quanto em Miquéias 4.1-8 nos são dadas descrições de
um reino mundial que Deus estabelecerá “nos últimos dias”. O mundo do
Senhor prosseguirá a partir de Jerusalém. As nações se submeterão a ele e à sua
lei. “O Senhor reinará sobre eles no Monte Sião [...] para sempre” (Mq 4.7). As
nações conhecerão o Senhor. A guerra estará terminada e haverá uma paz
mundial e prosperidade.
E Isaías 43.15 e 44.6, o Senhor identifica a si mesmo, a Israel, como seu rei, e
apela para que retornem a ele para que ele lhes conceda as bênçãos prometidas
aos pais. Como parte desse contexto geral, Isaías 40.10 proclama:

Eis que o Senhor Deus virá com poder, e o seu braço dominará; eis que o seu
galardão está com ele, e diante dele, a sua recompensa. Como pastor
apascentará o seu rebanho; entre os seus braços recolherá os cordeirinhos e os
levará no seio; as que amamentam ele guiará mansamente.

Da mesma forma, em Malaquias 1.11-14, o Senhor declara que ele é um


grande rei e que em todo lugar ele será adorado.
A vinda do Senhor para governar como Rei é descrita como o Dia do Senhor.
O Dia do Senhor é um tema repetitivo nos profetas. Foi um termo invocado
para descrever o julgamento de Deus da destruição sobre Israel e Judá nas mãos
da Assíria e Babilônia (Am 5.18-20; 8.8-9; Is 13.1-22; Ez 7.1-27). Entretanto,
também é usado por profetas pós-exílicos para se referir ao julgamento que ainda
estava por vir (Ml 3.1-6; 4.1-6).8 Seria um dia quando o Senhor viria em
julgamento e puniria o pecado, um dia de ira, lamento, escuridão, desespero e
morte. Ele punirá o ímpio, expurgando o mal da terra. Porém, aqueles que
confiam nele serão libertos. Tanto Israel quanto as nações serão tentadas,
testadas e julgadas no Dia do Senhor.
O Dia do Senhor é a transição para o reino escatológico do Senhor na terra.
Em Zacarias 14.9, Deus vem no Dia do Senhor para assumir o seu governo
como rei. Em Zacarias 14.16-17, vemos que ele reinará como rei em Jerusalém.
Aqueles das nações que sobreviverem ao Dia do Senhor devem vir para adorá-lo
em Sião. A possibilidade de rebelião existe, mas o Senhor subjugará as nações.
Isaías 24-25 também nos dá uma predição do Dia do Senhor vindouro, o dia
do julgamento e ira. Como consequência desse julgamento “o S ENHOR dos
Exércitos reinará no monte Sião e em Jerusalém, glorioso da na presença dos seus
líderes” (Is 24.23, NVI). Uma outra descrição do seu reino é dada em
Isaías 25.6-9. Diferentemente de Zacarias 14, no entanto, a descrição é de paz,
bênção e regozijo tanto para Israel como para todas as nações, semelhante a
descrição dada em Isaías 2. Porém, há esse elemento a mais. Deus dará
imortalidade à humanidade redimida:

Destruirá neste monte a coberta que envolve todos os povos e o véu que está
posto sobre todas as nações. Tragará a morte para sempre, e, assim, enxugará
o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos, e tirará de toda a terra o
opróbrio do seu povo, porque o Senhor falou. Naquele dia, se dirá: “Eis que
este é o nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos salvará; este é o Senhor,
a quem aguardávamos; na sua salvação exultaremos e nos alegraremos”
(Isaías 25.7-9).

As predições em Isaías 65 e 66 de uma nova criação, os novos céus e nova terra,


são também parte desse tema do reino vindouro. Muitos dos elementos do reino
escatológico são repetidos nessas profecias (perceba especialmente a repetição
literária entre Isaías 65.25 e 11.6-9). É um tempo de regozijo, paz, prosperidade,
vida longa (apesar de não exatamente a imortalidade de Isaías 25; cf 65.20 e
25.7-8), o cumprimento da bênção de Israel da sua herança na terra.
O Governo Vindouro do Messias. Assim como o reino de Deus manifestado
nos dias de Davi e Salomão, o reino escatológico vindouro será governado por
um rei davídico. Em Amós 9.11, o Senhor prediz um tempo quando ele
levantará a “o tabernáculo caído de Davi, repararei as suas brechas; e,
levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade”.
Isaías 11.1 descreve a casa de Davi como uma árvore que foi cortada. Ainda
assim, o profeta prediz um tempo quando “Do tronco de Jessé sairá um rebento,
e das suas raízes, um renovo.” Isaías 9.7 profetiza a reocupação do trono de Davi.
Miquéias 5 fala de um futuro rei nascendo em Belém. E Ezequiel 37.24-28
prediz o futuro reino de Davi (isto é, um rei davídico), correspondendo ao
cumprimento de todas as bênçãos da aliança.
O reino sobre o qual esse futuro rei davídico reina é descrito da mesma forma
que o reino escatológico sobre o qual é esperado que Deus governe. É um reino
de retidão e justiça (Is 9.7, 11.4; Jr 23.5, 33.15). A paz será eternamente
assegurada tanto para Israel quanto para as nações (Am 9.13-15; Is 9.6-7; 11.6-
9; Mq 5.5; Jr 23.6, 33.16; Ez 34.25-29; 37.26; Zc 9.10), à medida que o
domínio do rei se estender sobre todas as nações (Am 9.12; Is 11.11-12, Mq 5.4;
Zc 9.10). Não haverá mais guerra (Zc 9.10). A terra será frutífera e próspera
(Am 9.13-15; Is 11.6.-9; Ez 34.25-29).
Como a vinda de Deus no Dia do Senhor, mas consistente com sua função
de mediar à bênção e maldição, esse rei davídico é descrito como decretando
julgamento e punição ao ímpio: “ferirá a terra com a vara de sua boca e com o
sopro dos seus lábios matará o perverso” (Is 11.4). Através do seu julgamento
sobre os ímpios, a paz e a prosperidade do reino virão (Is 11.6-10).
Ezequiel 37.24-28 traz ambas as noções de reinado em um arranjo. O rei
davídico reinará sobre Israel e o santuário do Senhor será estabelecido no meio
deles. Deus habitará com eles, santificando-os e o seu Messias governará.

Resumo. Os profetas do Antigo Testamento, incluindo as visões apocalípticas de


Daniel, predizem que Deus irá estabelecer um reino mundial na terra centrado
em Jerusalém na qual ele e seu Messias, um descendente de Davi, governarão
Israel e todas as nações. Esse reino é previsto como acontecendo em um tempo
que permanece futuro aos profetas, um tempo que é algumas vezes referido
como “os últimos dias”. (A palavra escatologia vem da palavra grega eschatos que
quer dizer último; nossa frase reino escatológico significa esse reino que é esperado
vir “nos últimos dias”.)
Os elementos estruturais desse reino escatológico carregam uma semelhança
intencional ao reino de Deus idealizado nos Salmos, os reinados altamente
abençoados de Davi e Salomão. As descrições desse reino formam um tipo ou
modelo que são transmitidos e cumpridos em um grau ainda maior no reino
profético que está por vir. Essa tipologia se concentra em um rei davídico que
incorpora ambas as características de Davi e Salomão, mas que excede ambos em
poder, autoridade e caráter. Através do seu governo, o governo de Deus sobre
Israel e sobre todas as nações será revelado, apesar de em um nível mais amplo
do que era o caso do modelo davídico-salomônico. Entretanto, nesse reino
escatológico, o relacionamento entre Deus e o reino davídico será estável
eternamente. Porém, ainda mais do que isso, assim como os Salmos celebram o
governo pessoal de Deus sobre Sião, assim os profetas descrevem o reino
escatológico como uma revelação pessoal de Deus. Ele é antevisto como vindo
pessoalmente, se estabelecendo em Sião, e governando a terra, Israel e todas as
nações.
A vinda do Senhor para estabelecer esse reino escatológico é uma visitação do
julgamento sobre as nações da humanidade. Os profetas se referem a esse
julgamento como o Dia do Senhor. É um julgamento sobre o pecado humano,
tanto individual quanto corporativo (social e político) e se estende tanto para
Israel quanto para as nações gentílicas. As visões de Daniel da entrada do reino
apocalíptico são similares. As visões na última metade de Daniel preveem uma
grande angústia e aflição sob um governador poderoso do mal. A destruição de
Deus desse rei e do seu reino é decisiva e certa (a ilustração chave sendo o
julgamento de Belsazar, dado em Daniel 5). Ele os substituirá com o reino
escatológico do “Filho do Homem” e “os santos do Altíssimo”.
A partir das profecias e da tipologia que es profecias formam com os Salmos,
podemos identificar várias características do reino escatológico. O governador
davídico é manifestado como um governador mundial, governando não somente
sobre Israel, mas todas as nações. Nele, a casa de Davi é restaurada e estabelecida
para sempre. Ele é poderoso, cheio com o Espírito de Deus, benevolente e sábio.
Mas o traço mencionado mais vezes sobre seu caráter é a justiça. Ele governa
com justiça.
O REINO DE DEUS NA PROFECIA E TIPOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO
O reino em si é uma estrutura política e religiosa. Será constituído na terra,
centrado em Jerusalém e estendido (e restabelecido) não somente sobre Israel,
mas também sobre todas as nações. É geralmente descrito em termos da sua
justiça e retidão. É um reino de paz e segurança, marcado pela ausência da
guerra. É um tempo de prosperidade. Algumas descrições o veem em termos de
uma vida longa; outras como um tempo de imortalidade, a eliminação da morte
e da aflição. Consequentemente, é marcado pela alegria e felicidade. O pecado e
o mal são erradicados em algumas descrições; em outras são suprimidos. Isso está
em coordenação com as diferentes visões das pessoas na terra. Alguns textos
anteveem a subjugação de sujeitos insubmissos, outros veem todos os povos
regozijando no conhecimento e na adoração ao Senhor.

1. Lembre-se que a aliança prevê descendentes que, assim como Abraão, confiam em Deus. Esses são
descendentes físicos que são constituídos herdeiros da bênção pela sua fé.
2. Compare a profecia de Balaão em Números 23.21, “O Senhor, seu Deus, está com ele [Israel], no meio
dele se ouvem aclamações ao seu Rei”.
3. Veja os Salmos 47; 93; 95-100.
4. Veja os Salmos 8; 15; 29; 33; 46; 48; 50; 66; 68; 75; 76; 81-82; 84; 87; 114; 118; 132; 145; 149
5. Veja Salmos 2; 18; 20-21; 28; 45; 61; 72; 89; 101; 110; 132.
6. Essa é a posição que pertence ao rei davídico através dos Salmos. O Salmo 110.1 deve ser lido no sentido
histórico. Enquanto tipifica uma honra eventualmente concedida a Jesus, filho de Davi, posteriormente, na
sua entrada nos céus (Atos 2), o sentido histórico do salmo em seu contexto do Antigo Testamento não
deveria ser perdido. Ele fala da posição de favor que pertence à casa real davídica pela aliança. Seja qual for a
experiência particular que o rei davídico encontre em, quer em Davi no campo de batalha, Salomão em
Jerusalém, ou Jesus nos céus, ele é o que está à direita de Deus. Veja capítulo 6, n.12.
7. Perceba a natureza do “já e ainda não” do reino no livro de Daniel.
8. Uma tipologia existe entre esse passado e o futuro “Dia do Senhor”. Elementos descritivos são
compartilhados entre eles. Um exemplo dessa tipologia aparecendo em um escrito pode ser achada em Joel.
Capítulos 1-2 falam a respeito da praga de gafanhotos enviada por Deus como um julgamento. É chamada
de “o Dia do Senhor”. O capítulo 3, entretanto, apresenta o dia do Senhor como um grande conflito
militar no qual a existência do povo de Deus está em jogo. Elementos descritivos comuns são
compartilhados entre esses capítulos. Podem também ser comparadas às descrições do Dia do Senhor em
Isaías 13 com as dadas em Isaías 24.
CAPÍTULO 8

O REINO DE DEUS NO NOVO TESTAMENTO

Os escritos neotestamentários levam adiante o tema do reino escatológico. O que


os faz diferentes dos escritos veterotestamentários é que eles apresentam a nós a
história do cumprimento do reino. A história se concentra em Jesus de Nazaré.
As páginas de abertura de cada um dos quatro evangelhos declaram que ele é o
Cristo, o rei ungido. Ele é aquele filho de Davi de quem os profetas estavam
falando quando predisseram o rei escatológico. Sua atual aparição na história
marca o cumprimento iminente do reino escatológico. Sem o rei, o reino está
completamente no futuro. Uma vez que o rei aparece, o futuro está próximo.
O REINO ESCATOLÓGICO NA PESSOA E NA MENSAGEM DE JESUS
O Testemunho Inicial de Jesus, o Rei. Os evangelhos relatam vários
testemunhos iniciais de Jesus como o Cristo. Que tipo de reino eles visualizaram
para esse Cristo? Como a concepção da messianidade dos evangelhos estava
relacionada à profecia do Antigo Testamento?
Lucas nos diz que antes de Maria conceber, ela recebeu uma revelação do
anjo Gabriel acerca da criança que ela portaria: “Este será grande e será chamado
Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará
para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.32.33). O
reino predito nesse anúncio é inteiramente consistente com o esperado pelos
profetas.
Lucas também apresenta uma série de salmos e profecias ocasionadas pelos
nascimentos de João Batista e Jesus, que falam das promessas da aliança sendo
cumpridas com respeito a Israel e todas as nações. Mateus introduz a
messianidade de Jesus ao dar sua genealogia através da casa real de Davi, o
anúncio de Gabriel a José e o testemunho da estrela.
A estrela é significativa não somente por causa de sua conexão literária com a
profecia de Balaão (“Uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro
que ferirá as têmporas de Moabe e destruirá todos os filhos de Sete”; Nm 24.17),
mas, porque ela é interpretada pelos magos como indicadora do nascimento do
“rei dos judeus” (Mt 2.2) em um sentido bem real e político. Mateus coloca
significância no fato que esses gentios “se prostrando, o adoraram” (Mt 2.11).
Os profetas tinham predito que o Messias governaria os gentios, e Daniel havia
dito que todos os povos serviriam (ou adorariam) o Filho do Homem (Dn 7.14).
Herodes interpretou as novidades à luz da profecia messiânica e se sentiu
politicamente ameaçado por Jesus. Cada indicação aponta para o fato de que o
reinado discutido em Mateus 2, em referência a Jesus, é precisamente aquele que
foi estabelecido, descrito e predito pelos profetas do Antigo Testamento.
Um ponto alto na identificação inicial de Jesus como o Cristo, e que aparece
em cada um dos evangelhos, é o batismo de Jesus no rio Jordão. Aqui temos o
testemunho do profeta João, a voz de Deus, o Pai, vinda do céu e a descida do
Espírito Santo. A pregação de João Batista enfatizou um chamado ao
arrependimento devido à proximidade de Jesus e à iminência do reino (Mt 3.1-
12; Mc 1.2-8; Lc 3.1-8; Jo 1.6-28). João negou que ele mesmo fosse o Cristo, e
falou daquele que estava vindo. Esse, então, é apresentado como Jesus. Quando
Jesus foi batizado por João, Deus falou do céu afirmando Jesus na linguagem da
aliança davídica: “Meu filho amado em quem me comprazo” (Mt 3.17;
Mc 1.11; Lc 3.22). O Espírito de Deus também veio sobre ele (Mt 3.16;
Mc 1.10; Lc 3.22). João, que testificou que todo o evento, constatou a ele que
Jesus era verdadeiramente o Cristo (Jo 1.29-34).
O entendimento de João acerca do reino, que ele pregou que estava próximo
(Mt 3.2), era consistente com o ensino da profecia veterotestamentária. Como os
profetas anteriores, ele esperava que o reino viesse em uma revelação de
julgamento e ira. Consequentemente, ele pregou o arrependimento, alertando
seus ouvintes que “Já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois,
que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo” (Mt 3.10). Ele advertiu
que o Cristo (que viria após ele) “batizará [...]com fogo. A sua pá, ele a tem na
mão e limpará completamente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas
queimará a palha em fogo inextinguível” (Mt 3.11-12).
Nessa profecia, João estava empregando características literárias da predição
de Malaquias da vinda do Dia do Senhor: “Pois eis que vem o dia e arde como
fornalha; todo os soberbos e todos os que cometem perversidade serão como o
restolho; o dia que vem os abrasará, diz o Senhor dos Exércitos, de sorte que não
lhes deixará nem raiz nem ramo” (Ml 4.1). Relembramos que os profetas
acreditavam que a vinda do Messias abalaria a terra e puniria o ímpio. De forma
semelhante, João prevê o Cristo como aquele que executará o julgamento do Dia
do Senhor.1
Em resumo, os testemunhos iniciais acerca de Jesus identificam-no como o
Cristo do reino escatológico. O reino em si é entendido em termos das profecias
do Antigo Testamento. Sua vinda seria marcada pelo julgamento, um Dia do
Senhor. Sua extensão seria mundial, com os gentios submetendo-se ao Cristo.
Seria um reino vivificado política e espiritualmente, no qual as promessas de
bênçãos a todos os povos, incluindo as promessas nacionais de Israel, são
asseguradas. E tudo isso aconteceria através de um rei, que cumpriria as
promessas feitas a Davi, tanto em poder político quanto em intimidade com
Deus – Jesus de Nazaré.

A Proclamação do Reino Escatológico Vindouro. Como os profetas do Antigo


Testamento e João Batista, Jesus também predisse a vinda do reino de Deus.
Como João, mas não como os profetas, Jesus proclamou que o reino estava
próximo (Mt 4.17; Mc 1.15; Lc 10.9). Essas eram “as boas novas”. Porém, elas
chamavam ao arrependimento, à luz do julgamento que precederia à chegada do
reino. (A proximidade do reino fez o julgamento iminente.) Jesus ensinou seus
discípulos a orar pela vinda do reino (Mt 6.10; Lc 11.2). Eles deveriam buscá-lo
mais que comida, roupa e abrigo (Mt 6.33; Lc 12.31). Esse sentido futuro do
reino também é visto em Mateus 13.47-50; 16.28; 20.21; 26.29 e Lucas 13.29.
A Centralidade do Tema do Reino. O reino de Deus não era meramente um
dos temas de Jesus. Era o tópico geral de todas as suas pregações, como pode ser
visto na forma que Mateus e Marcos resumiram seu ministério de pregação: “O
tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no
evangelho” (Mc 1.15; cf. Mt 4.17). Ambos os escritores colocam essas palavras
no começo dos seus relatos funcionando como uma declaração resumida de toda
a sua pregação e ensino.2
O reino de Deus foi o tema guia de todo seu ministério, como podemos ver
em outro comentário resumido por Mateus:

Percorria Jesus toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, pregando o


evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o
povo. E a sua fama correu por toda a Síria; trouxeram-lhe, então, todos os
doentes, acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados,
lunáticos e paralíticos. E ele os curou. E da Galileia, Decápolis, Jerusalém,
Judeia e dalém do Jordão numerosas multidões o seguiam (Mateus 4.23-25).

As obras que Jesus fez, especialmente nesses versos, como curas e exorcismos,
eram parte de seu ministério proclamando as boas novas do reino vindouro. Por
sua vez, elas contribuem para uma compreensão de como seria esse reino, uma
compreensão que concorda muito bem com as expectativas das profecias do
Antigo Testamento.
A centralidade do tema do reino para Jesus também é vista em sua constante
referência a si mesmo como o Filho do Homem. Nós já observamos que “Filho
do Homem” era um título aplicado por Daniel para aquele que governaria o
reino escatológico (Dn 7.13). Jesus claramente o usa nesse sentido.
Em Mateus 16.13, Jesus perguntou a seus discípulos: “Quem as pessoas
dizem que o Filho do Homem é?” Ele estava falando de si mesmo, conforme
indicam as passagens paralelas (“Quem as pessoas dizem que sou?” Mc 8.27;
Lc 9.18) e sua pergunta subsequente em Mateus 16.15 (“mas quem vocês dizem
que sou?”). Pedro responde pelos discípulos: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus
vivo” (Mt 16.16). Em outras palavras, Pedro entende que esse título se refere ao
Messias, em vez de simplesmente a um ser humano (veja Sl 8.4), ou até mesmo
um profeta (cf. Mt 16.14 com Dn 8.17 e Ez 2.1-3.27). Jesus assevera a
interpretação de Pedro como uma revelação do Pai (Mt 16.17) e então elabora o
significado messiânico do Filho do Homem com o seguinte destaque: “Porque o
Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então,
retribuirá a cada um conforme as suas obras” (Mt 16.27). Essa vinda em glória é
reformulada no versículo seguinte como “a vinda em seu reino”. A linguagem
afirma a visão apocalíptica de Daniel do reino escatológico vindouro do Filho do
Homem, com o ponto adicional que o julgamento que Daniel concebeu como
vindo do Ancião de Dias é na verdade administrado pelo Cristo, o Filho do
Homem (consistente com a mediação do Messias acerca das bênçãos e
maldições).3
Outros dizeres do “Filho do Homem” por Jesus afirmam sua crença em um
reino vindouro consistente com as profecias de Daniel, e eles demonstram que
ele pensou de si mesmo como a figura central. Eles também reafirmam a
expectativa do Antigo Testamento que o julgamento marcará a vinda do reino
(veja Mt 13.41-43; 19.28; 24.1-25.46 [Mc 13.1-37; Lc 21.5-36]).
Um Reino Político Mundial. Jesus acreditava que como o Messias, ele mesmo
viria em glória, julgaria as nações da humanidade e estabeleceria seu próprio
governo político sobre eles (Mt 25.31-46).
Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele,
então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em
sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos
as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos, à esquerda; então,
dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde, benditos de meu Pai!
Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo.”
[...] Então, o Rei dirá também aos que estiverem a sua esquerda: “Apartai-vos
de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos.”
[...] E irão estes para o castigo eterno, porém os justos, para a vida eterna.

No seu julgamento, em resposta à pergunta do sumo sacerdote sobre ser ele “o


Cristo, o Filho de Deus”, Jesus disse que era e afirmou que Daniel 7.13 e
Salmos 110.1 seriam cumpridos por ele (Mt 26.63-64; Mc 14.62; Lc 22.67-70).
Ele ensinou que iria embora para receber o reino, mas, que retornaria para reinar
sobre ele (Lc 19.11-15). Seu reino seria o cumprimento do que foi prometido a
Davi (e consequentemente, o cumprimento das profecias de que a casa de Davi
seria restabelecida). Ele governaria sobre Israel e todas as nações para sempre
(Mt 25.31, 34, 46; Lc 1.33). Ele seria entronizado com todos os seus inimigos
em sujeição a ele (Mt 26.44).
A ênfase nas promessas nacionais de Israel é vista também em seu envio dos
discípulos especialmente “aos perdidos da casa de Israel”, dizendo para eles
pregarem que “o reino dos céus está próximo” (Mt 10.6-7). Em Atos 1.6, depois
de quarenta dias de instrução por Jesus ressurreto sobre o reino de Deus (At 1.3),
os discípulos perguntaram se ele iria “restaurar o reino a Israel” naquele
momento. A esperança nacional de Israel aparece na pergunta deles como um
pressuposto. A questão tinha a ver somente com o tempo do cumprimento.
Essa passagem em Atos, situada no encerramento do ministério pré-ascensão
de Jesus, é um testemunho bem significativo da continuidade do ensino de Jesus
com o dos profetas do Antigo Testamento. A noção de um reino político e
terreno não foi abandonada ou ressignificada.4
Parece que a maioria dos ensinos de Jesus toma a natureza política do reino
como certa. Ele está mais preocupado em advertir seus ouvintes do julgamento
que precede este reino vindouro. No entanto, até mesmo os seus
pronunciamentos de julgamento destacam a natureza política do reino.
Na parábola da vinha (Mt 21.33-46), Jesus reprovou os líderes judeus de seus
dias por se oporem a ele. Ele apresentou a si mesmo como o verdadeiro herdeiro
do trono de Israel. Eles são somente servos, fazendo o trabalho para seu mestre.
Sua oposição a ele é como a oposição que Davi recebeu no Sl 118.22. A despeito
da resistência, Davi se torna “a pedra angular fundamental” do reino. Usando a
metáfora da pedra, Jesus então associa Isaías 8.14 com Daniel 2.44 para predizer
a destruição dos líderes judeus dos seus dias. A referência de Daniel é
particularmente importante porque fala do estabelecimento do reino
escatológico. Jesus colocou os líderes judeus dos seus dias na parte daqueles
governadores gentios que seriam esmagados pelo estabelecimento do reino de
Deus.
Nesse contexto, Jesus diz: “Portanto, vos digo que o reino de Deus vos será
tirado e será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos”
(Mt 21.43). Seu julgamento se aplica a eles mesmos a resposta anterior à sua
parábola, que a vinha deveria ser arrendada para “outros lavradores, que lhe
deem a sua parte no tempo da colheita”. No contexto da profecia do Antigo
Testamento, essa “nação”, os “outros lavradores”, seriam os remanescentes da fé,
a nação escatológica feita daqueles que suportam o fogo refinador do Dia do
Senhor – aqueles de Israel que são libertos em vez de expurgados (cf. Mq 2.12-
23; 4.6-8, Sf 3.12-20; Ml 3.16-17).
De fato, Jesus já havia designado seus próprios apóstolos para cargos de
autoridade no reino vindouro. Eles ocupariam os lugares daqueles que estavam
governando naquele momento.

Jesus lhes respondeu: Em verdade vos digo que vós, os que me seguistes,
quando, na regeneração, o Filho do Homem se assentar no trono da sua
glória, também vos assentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de
Israel (Mateus 19.28).

Em resumo, vemos que Jesus afirmou a tradição da profecia e do apocalipticismo


do Antigo Testamento e proclamou um reino político mundial vindouro no
qual, ele como Messias, da casa de Davi, governaria Israel e todas as nações. Nós
o vemos fazendo as preparações para a administração desse reino ao prometer a
seus discípulos cargos de autoridade juntamente com ele, enquanto anuncia a
exclusão das autoridades presentes no momento.
Vindo em Julgamento. No sermão do Monte das Oliveiras, o sermão
escatológico estendido de Mateus 24.1-25.46 (cf. Mc 13.1-37; Lc 21.5-36),
Jesus respondeu às questões dos seus discípulos sobre sua “vinda no fim da era”
(24.3). Ele explicou que a sua vinda se daria num tempo de aflição e angústia, de
grande mal e perseguição. Ao descrever esse tempo, ele usa os temas,
características e citações literárias das profecias do Antigo Testamento do futuro
Dia do Senhor. Porém, ele também fez referências explícitas às visões de Daniel,
de um tempo vindouro de grande aflição marcado pela atividade de alguém que
perpetra uma abominação da desolação (Mt 24.15; Mc 13.14; cf Lc 21.20). 5
Dessa forma, Jesus integrou a noção dos profetas de um Dia do Senhor vindouro
com a visão de Daniel de um tempo de aflição. O resultado foi uma predição
sintética do mal e do julgamento que forma o contexto da sua vinda. 6 A vinda
em si é apresentada em Mateus 24.30 (cf. Mc 13.26; Lc 21.27) pela citação de
Daniel 7.13 e é completada em Mateus 25.31, quando o Filho do Homem reina
como rei no reino de Deus na terra.
No evangelho de Mateus, diversas ilustrações e parábolas associadas ao
sermão do Monte da Oliveira (Mt 24.37-25.30) repetem a advertência para estar
pronto para o julgamento que ocorrerá na vinda do Filho do Homem. Muitas
das outras parábolas de Jesus, registradas em outros lugares nos Evangelhos,
reiteram a mesma advertência – a repetição frequente mostra o quão
predominante era no ensino de Jesus. E isso é captado no resumo da mensagem
registrada no início de Mateus e Marcos no chamado de Jesus ao
arrependimento à luz da vinda do reino de Deus.
Em um Tempo Desconhecido. Devemos observar os destaques de Jesus acerca
do tempo do seu reino vindouro. Ele disse a seus ouvintes que o reino estava
próximo: “O tempo é chegado”, dizia ele. “O tempo está cumprido, e o reino de
Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). O fato que
o Cristo estava lá, tendo nascido em Belém e vivendo naquele tempo na história,
tornou o reino próximo. Sem o rei, o reino permanecia uma esperança distante;
mas com o rei presente, com a história se tornando sua própria história pessoal,
então, pela primeira vez, o reino escatológico se tornou uma possibilidade
presente.
Quanto ao tempo preciso quando ele viria, Jesus alegou que não sabia. No
sermão do Monte das Oliveiras, Jesus respondeu à questão, “Quando essas coisas
acontecerão?” – “coisas”, sendo os julgamentos destrutivos que sinalizariam sua
vinda e a vinda do reino (Mt 24.3). Jesus respondeu essa questão dizendo: “Mas,
a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos dos céus, nem o Filho,
senão o Pai” (Mt 24.36). Isso, então, foi seguido por vários dizeres e parábolas,
no sentido que as pessoas devem estar prontas, já que ninguém, exceto o Pai,
sabe quando o reino fará sua entrada apocalíptica.
Em Lucas 19.11, lemos que, em uma ocasião, conforme Jesus se aproximava
de Jerusalém, muitas pessoas “pensaram que o reino de Deus iria aparecer
imediatamente”. Na mente deles, a combinação de Cristo e Jerusalém significava
o reino. Eles não entendiam que ele veio fazer o ministério do Servo (Is 49; 53)
primeiro, e que depois da sua ressurreição dos mortos, ascenderia à posição onde
Daniel o visualizou – nos céus, pronto para descer na glória e julgamento do
reino vindouro. No presente momento, entretanto, ele estava fazendo o
ministério do Servo, chamando Israel de volta para Deus (Is 49.5) assim como é
testemunhado em Lucas 19.9-10 pelo seu ministério a Zaqueu: “Hoje, houve
salvação nesta casa, pois que também este é filho de Abraão. Porque o Filho do
Homem veio buscar e salvar o perdido”.
Então, “Jesus propôs uma parábola” para corrigir a má interpretação deles
acerca do tempo da vinda do reino. A parábola é sobre “certo homem nobre”
que “partiu para uma terra distante, com o fim de tomar posse do reino e voltar”
(Lc 19.12). A parábola ensina que Jesus não iria até Jerusalém para estabelecer o
reino escatológico. Em vez disso, ele iria embora primeiro. Ele receberia o reino
em “um país distante”. E então retornaria em julgamento para executar seu
reino. Nada, entretanto, é dito sobre quanto tempo sua partida duraria ou
quanto tempo depois dela ele voltaria.
Jesus confirmou seu ensino em Atos 1.6-7. Nesse momento ele já tinha
ressuscitado dos mortos e estava preparando para ascender aos céus. Os
discípulos perguntaram:“Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a
Israel?” ele respondeu: “Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai
reservou pela sua exclusiva autoridade”. Isso então se tornou a visão oficial da
igreja, como visto na pregação de Pedro em Atos 3.21: “Ao qual é necessário que
o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de que Deus falou
por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade”. Somente Deus sabe
quando será esse tempo, ele permanece no futuro da própria escolha de Deus.
Aspectos Físicos e Materiais do Reino. Na teologia do Antigo Testamento, não
há a ideia de um reino futuro separado metafisicamente da terra, e, não há nada
no ensino de Jesus para indicar um rompimento radical da tradição que o
precedeu. O fato que ele esperava um reino político na terra revela
suficientemente a natureza física do reino que ele ensinou. Suas atividades
ministeriais confirmam isso. Elas demonstram o tipo de reino que ele esperou
conforme pregava “o reino está próximo”, ou em alguns momentos, “veio sobre
vós”.
Jesus, o rei, verdadeiramente era, e é, fisicamente humano. Muitos dos
testemunhos do evangelho sobre seu reinado davídico aparecem nas narrativas
acerca do seu nascimento. Conforme ele pregava as boas novas acerca do reino, ele
curava pessoas das enfermidades físicas, curando “toda sorte de doenças e
enfermidades entre o povo [...] trouxeram-lhe, então, todos os doentes,
acometidos de várias enfermidades e tormentos: endemoninhados, lunáticos e
paralíticos. E ele os curou” (Mt 4.23-24).7
Os evangelhos estão repletos com histórias acerca de curas físicas, muito além
do que podemos evocar aqui. A cura física era uma bênção, listada entre as
bênçãos da aliança mosaica, uma manifestação da promessa feita a Abraão para
abençoar a humanidade. Também era um sinal da vida abençoada do reino, em
conformidade com a expectativa do Antigo Testamento. Além disso, o fato que
Jesus curou pessoas era um sinal do seu reinado, pois como vimos, a aliança
davídica fez do rei o mediador das bênçãos de Deus. Quando os discípulos de
João perguntaram a Jesus se ele era o que viria, isto é, se ele era o rei, ele
respondeu: “os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os
surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o
evangelho” (Mt 11.5).
A cura física mais importante foi a ressurreição corporal dos mortos. Jesus é
relatado como ressuscitando três indivíduos que tinham morrido (Lc 7.14-15;
8.49-56; Jo 11.43-44; mas veja também Mt 27.52-53), mas em sua própria
ressurreição ele revelou a futura vida imortal (2Tm 1.10). Consequentemente, o
Novo Testamento se refere a ele como “o primeiro fruto” dos mortos.
A natureza corporal da sua vida ressurreta é enfatizada nos evangelhos com o
relato dos seus discípulos tocando-o e até mesmo o abraçando (Mt 28.9;
Lc 24.39; Jo 20.17), falando com ele (Mt 28.10; Lc 24.13-35; Jo 20.14-17; 26-
29), sendo ensinados e comissionados por ele (Mt 28.16-20; Lc 24.13-35, 44-
53; Jo 21.15-23; At 1.1-11), comendo com ele (Lc 24.41-43; Jo 21.1-14;
At 10.40-41), e andando na estrada com ele (Lc 24.13-35).
O que aconteceu a ele em sua forma corporal é uma revelação da vida
humana na vinda do reino de Deus, uma vida livre da maldição do pecado e da
morte. Em uma imagem que relembra Isaías 25.6-9, ele predisse que muitos
viriam do leste, oeste, norte e sul e se juntariam a Abraão, Isaque e Jacó e todos
os profetas num grande banquete no reino de Deus (Lc 13.28-29). Logo antes
da cruz, Jesus prometeu a seus discípulos que ele comeria e beberia a refeição da
Páscoa novamente com eles no reino (Lc 22.16, 18).
Correspondendo à ressurreição, está o renovo da terra. Muitas profecias falam
da fertilidade da terra, juntamente com a paz e harmonia no mundo animal. Eles
antecipam uma “nova criação” de deleite e alegria. Jesus afirmou essas
expectativas. À medida que pregava o reino de Deus, fazia milagres sobre a
natureza. Ele “repreendeu os ventos e o mar” para que eles se tornassem
“perfeitamente calmos” (Mt 8.26; Mc 4.39; Lc 8.22-24). Duas vezes ele
“abençoou” uma pequena quantidade de comida e fez uma multiplicação para
alimentar uma grande multidão (Mt 14.19-21; 15.34-38; Mc 6.41-44; 8.5-9;
Lc 9.16-17; Jo 6.9-14). Ele encheu as redes dos pescadores (Jo 21.5-6) e
“andou” sobre o mar durante uma tempestade sem que nada acontecesse com ele
(Mt 14.24-33).
Essas atividades funcionam como ilustrações da sua mensagem acerca do
reino vindouro. Juntamente com curas físicas, ambos retratam a natureza da vida
do reino e afirmam a autoridade messiânica do governo de Jesus.
Um Reino Espiritual. O reino que Jesus proclamou era tão espiritual quanto
físico. Isso não é uma contradição, pois o adjetivo espiritual não implica numa
mudança no estado metafísico dos tópicos de Jesus. Refere-se à presença de Deus
com sua criação na qual ele a renova e abençoa.
A espiritualidade do reino é primeiramente vista no fato que é o reino de
Deus. Assim como o reino é um reino político, é um reino no qual Deus governa
e reina sobre as nações. É um governo vindouro de Deus descrito da mesma
forma que os profetas do Antigo Testamento falaram do reino vindouro de
Deus. De acordo com isso, Jesus ensinou seus discípulos a buscarem “o reino
dele [do seu Pai]” (Mt 6.33; Lc 12.31) e orarem “Pai nosso [...] venha a nós o
teu reino” (Mt 6.9-10; Lc 11.2).
Porém, sem dúvida, a revelação mais chocante acerca da presença de Deus no
reino foi a própria pessoa de Jesus, o Messias.
Enquanto vimos que na profecia do Antigo Testamento, os reinos de Deus e
do Messias deveriam se unir em um reino perfeitamente harmonioso, o Novo
Testamento proclama diretamente o Messias como o Deus encarnado! Paulo
escreve: “Deles são os patriarcas, e a partir deles se traça a linhagem humana de
Cristo, que é Deus acima de todos, bendito para sempre!” (Rm 9.5, NVI). João
proclama Jesus como a Palavra, que era Deus e que se tornou carne (Jo 1.1, 14).
Tomé o adorou como “Senhor meu e Deus meu” (Jo 20.28). Paulo escreveu que
“toda a plenitude da divindade” habitava nele (Cl 2.9) e se referiu a ele como
“nosso grande Deus e salvador, Cristo Jesus” (Tt 2.13; cf 2Pe 1.1).
O próprio Jesus falou continuamente de Deus como seu pai,e Deus Pai
designou Jesus publicamente como seu filho. Já discutimos a natureza da aliança
dessa terminologia, a mais importante para entender a messianidade de Jesus.
Porém, a intimidade do Pai e do Filho, revelada em Jesus, transcendeu o
relacionamento divino-davídico, ainda que o inclua. Ele aponta a forma de
entender como a verdade da divindade de Jesus se relaciona com a divindade do
Pai.
Em João 5.20-26, Jesus revelou um relacionamento Pai-Filho muito maior
que o revelado em Davi ou Salomão.
Porque o Pai ama ao Filho, e lhe mostra tudo o que faz, e maiores obras do
que estas lhe mostrará, para que vos maravilheis. Pois assim como o Pai
ressuscita e vivifica os mortos, assim também o Filho vivifica aqueles a quem
quer. [...] [O Pai] ao Filho confiou todo o julgamento, a fim de que todos
honrem o Filho do modo por que honram o Pai [...] Porque assim como o
Pai tem a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter vida em si
mesmo.

O escritor de Hebreus declara que o Filho “é o resplendor da glória e a expressão


exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder”
(Hb 1.3). Pai e Filho conhecem um ao outro de forma única (Mt 11.27;
Lc 10.22); suas pessoas se entrelaçam, de modo que todo aquele que vê o Filho,
vê o Pai (Jo 14.9-11).
Consequentemente, neste Messias, neste filho de Davi que se torna o Filho
de Deus pela aliança, é revelado uma eterna, pré-existente e sempre contínua
filiação divina – o Verbo que “estava no princípio com Deus” que “era Deus”
que é “o Deus unigênito” (Jo 1.1-2, 18). A filiação divina e a filiação da aliança
davídica são reunidas na pessoa de Jesus. Como consequência, o termo Filho de
Deus vem a ser usado em um sentido expandido no Novo Testamento. O
significado tradicional se refere ao rei davídico, mas, o significado recentemente
revelado (apesar de eternamente pré-existente) da filiação divina vem em seu
referente. O termo se expande em seu significado em uma maneira
complementar (encarnacional).8
Isso também acontece com o termo Senhor. Já vimos como Pedro em
Atos 2.36 declara que Jesus é o Senhor e Cristo, usando o termo Senhor para
designar Jesus como o destinatário da autoridade davídica.9 Porém, o título
Senhor, atribuído a Jesus, também adquire uma referência a Deus através da
citação de Pedro de Joel 2.32 (At 2.21) – “Todo aquele que invocar o nome do
Senhor será salvo” – e apela que as pessoas sejam batizadas no nome de Jesus
(At 2.38) para que sejam salvas (At 2.40). Mais tarde, Paulo descreve o seu
batismo como “um chamado em seu [Jesus] nome” (At 22.16). Aquele que foi
entronizado com a autoridade da aliança davídica como Senhor é na verdade o
Senhor que salva. O senhorio agora é unificado em uma só ação. A salvação vem
para aqueles que “invocam o nome do nosso Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.2; cf.
Rm 10.13; 2Tm 2.22). Pois aquele que estava “na forma de Deus” (o senhor
divino) tomou a “forma de servo” (o Servo messias) e fez expiação por nossos
pecados, depois do qual foi “altamente exaltado” com “o nome que está acima de
todo nome”, assim todos irão “confessar que Jesus Cristo é Senhor para glória de
Deus o Pai” (Fp 2.6-11).10
Com o Messias como Deus encarnado, o reino dificilmente poderia ser
chamado de um reino puramente político. Em vez disso, esse seria um reino no
qual ele concederia bênçãos da nova aliança, incluindo o perdão dos pecados e a
dádiva do Espírito Santo para habitar e renovar os corações humanos. Jesus já
estava agindo, perdoando pecados e curando doenças (Mt 9.2-6; Mc 2.5-10;
Lc 5.20-24; 7.47-49). Ele deu a sua vida para inaugurar uma nova aliança,
provendo a base sacrificial para a expiação e a redenção que ele proclamou. Ele
revisou e reinterpretou a Páscoa como uma refeição da nova aliança centrada em
sua morte sacrificial, predizendo que ele participaria dela novamente com seus
discípulos no reino de Deus (Mt 26.26-29; Mc 14.22-25; Lc 22.15-20). Ele
venceu Satanás e o pecado (Mt 4.1-11; 16-23; Mc 1.12-13; 8.33; Lc 4.1-13).
Ele expulsou demônios, anunciando que esses exorcismos são o poder do reino
(Mt 12.22-28).
Jesus ensinou que o reino seria habitado pelo povo “nascido do Espírito”,
dizendo a Nicodemos que “a menos que alguém seja nascido de novo, não
poderá ver o reino de Deus” (Jo 3.3, 5-8). Essa é a bênção da nova aliança do
Espírito de Deus nos corações humanos, como em Ezequiel 36-37 e Isaías 59.21,
quando o remanescente que se torna a nação é habitado, renovado e ressuscitado
pelo Espírito Santo. Jesus ensinou que o Espírito de Deus, dado por Deus Pai,
seria mediado através dele, Deus Filho – Filho de Deus, Messias (Jo 7.37-39;
14.16-17; 16.7).
O reino que Jesus pregou era, portanto, um reino de santidade e justiça,
assim como era um reino político mundial. Não há contradição ou tensão entre
essas noções. Elas são tão compatíveis no ensino de Jesus quanto nas predições
dos profetas do Antigo Testamento.
O Sermão do Monte e a Justiça do Reino. A justiça do reino é o tema do
sermão do monte em Mateus 5-7. Ao passo que não podemos prover uma
exposição detalhada nessas páginas, podemos observar algumas características
estruturais que enfatizam o tema. As bem-aventuranças proclamam o reino dos
céus como um tempo de conforto, misericórdia, gentileza, paz e pureza de
coração. Será o reino na terra (5.5). Os cidadãos desse reino serão “filhos de
Deus” e eles verão a Deus. A razão para isso é o dom da justiça de Deus.
A justiça recebe ênfase especial nessas bem-aventuranças. Estruturalmente, é
o tema da quarta e da oitava bênçãos, concluindo dois ciclos de quatro bênçãos
cada. Na quarta bênção (5.6), a justiça é um dom vindo de Deus: “Bem-
aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão fartos”.Nesse
sermão sobre o reino escatológico, a justiça antecipada parece ser a justiça da
bênção da nova aliança, na qual Deus escreveria sua lei diretamente nos corações
do seu povo.
Na oitava bênção (5.10), Jesus promete o reino para aqueles “que tem sido
perseguidos por causa da justiça”. A repetição do tema da justiça destaca sua
importância para o sermão que se segue. A nona e última bem-aventurança é
poeticamente paralela à oitava, repetindo o mesmo pensamento sobre a bênção
para aqueles que são perseguidos. Entretanto, a palavra justiça é substituída pela
pessoa de Jesus, enfatizando uma conexão entre ele mesmo e a justiça que seria
dada. Essa conexão é posteriormente destacada em Romanos 5.17 quando Jesus
alega que ele veio cumprir a lei e os profetas. A justiça do reino já está presente
nele próprio.
A justiça escatológica excede a justiça da antiga dispensação.
Consequentemente, ela supera aquela exibida pelos escribas, fariseus, mestres e
praticantes da lei mosaica (5.20). A partir de 5.20 até o 5.48, Jesus expõe a
superlativa qualidade da justiça escatológica ao fazer comparações com a forma
que a lei da antiga aliança seria aplicada em específicas situações em seus próprios
dias. Em 6.1-34, Jesus descreve a justiça escatológica como a qualidade da vida
privada de alguém com Deus. Essa qualidade elimina a hipocrisia, o fingimento
de justiça diante dos outros.
Finalmente, o sermão se encerra ao admoestar os ouvintes “a buscarem em
primeiro lugar o seu reino e a sua justiça” (6.33). Ele promete que “todo o que
pede recebe; o que busca encontra; e, a quem bate, abrir-se-lhe-á” (Mt 7.8). O
Pai dará “coisas boas aos que lhe pedirem” (7.11). Na versão de Lucas desse
discurso, a boa dádiva é o Espírito Santo (Lc 11.13), o agente da justiça da nova
aliança.
Entretanto, deve-se buscar a justiça entrando pela porta certa (Mt 7.13-14),
ao ir ao mestre que verdadeiramente exibe sua justiça (7.15-23), e mais
explicitamente, ao acreditar e agir com base no ensino de Jesus. Ele é a rocha que
preserva a vida de alguém durante o julgamento (7.24-27). O apelo de conclusão
é similar ao convite que encontramos em Mateus 11.28-30.

Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos


aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso
e humilde de coração; e achareis descanso para a vossa alma. Porque o meu
jugo é suave, e o meu fardo é leve.

Resumo. O reino de Deus foi o tema constante do ministério de Jesus. Ele


reiterou os elementos básicos desse reino vindouro como comumente
proclamado pelos profetas do Antigo Testamento e ele fez uso especial de temas
e imagens das visões apocalípticas de Daniel. O reino virá numa crise de
julgamento no Dia do Senhor, um tempo de grande angústia para todos os
povos. Porém, o reino será estabelecido como um governo mundial sobre todas
as nações. Israel será abençoado nacionalmente e através do seu rei, o Cristo
davídico, as bênçãos fluirão para todos os povos.
A vida no reino será abençoada – sem doença, sem possessão demoníaca. A
própria morte será eliminada – os mortos serão levantados e vida eterna lhes será
dada. A terra será abençoada com paz e fertilidade. Será uma vida de alegria e
felicidade, marcada pela eliminação do pecado e da impiedade. Os povos serão
perdoados, com seus pecados tendo sido expiados. Eles serão nascidos do
Espírito e serão cheios da justiça. A misericórdia, o consolo e a paz de Deus
habitarão com eles. Eles verão o Senhor e habitarão com ele para sempre.
A diferença entre Jesus e os profetas com respeito ao futuro reino não reside
no entendimento básico da sua natureza e realidade, mas na revelação do
Messias. Jesus proclamou a si mesmo, e foi proclamado por outros, como sendo
o Messias. Além disso, o testemunho sobre ele aponta para o fato surpreendente:
Ele, o Messias, o herdeiro escolhido de Davi, também é o Deus encarnado. A
harmonia do governo davídico e divino, na visão profética do reino, agora é vista
como sendo a ação singular e pessoal do Deus encarnado como Filho de Davi.
Agora, uma harmonia mais profunda veio a ser revelada – a harmonia do trino
Deus – Pai, Filho e Espírito Santo.
A crise do julgamento através da qual o reino virá ao seu domínio político
mundial é revelada como sendo a vinda apocalíptica de Jesus. Ele é o Senhor do
Dia do Senhor e ele é quem julgará e governará as nações. O tempo da entrada
apocalíptica do reino é conhecido apenas pelo Pai. O Filho agirá de acordo com
a vontade do Pai para trazer o reino. Toda autoridade é dada ao Filho. Ele
estabelecerá o reino e concederá as suas bênçãos.
As bênçãos, políticas e espirituais, são dadas por Jesus. Ele faz a expiação e
perdoa os pecados. Ele dará o Espírito e ressuscitará os mortos. Trará paz à terra
e a fará frutífera. Dará alegria e felicidade. Ele, como Deus e rei davídico,
pastoreará o seu povo com paz, segurança e alegria para sempre.

O Reino Presente em Jesus. Enquanto Jesus avança a tradição dos profetas do


Antigo Testamento ao predizer a vinda do reino escatológico, com ele próprio
como o Messias, há algumas ocasiões nos evangelhos em que ele fala do reino
como estando presente em seu próprio dia. Nesses dizeres, o reino está presente
no sentido que ele próprio, o rei do reino, está presente entre eles, mostrando em
si mesmo e em sua atividade as características do reino escatológico.
Três passagens abordam esse assunto em especial. A primeira, em Mateus 11,
Jesus identifica a si mesmo aos discípulos de João Batista como aquele que viria
ao recontar as atividades do seu ministério. Essas atividades são fenômenos
pertencentes ao reino escatológico do Messias. Elas já estavam presentes no
ministério de Jesus naquele tempo, provendo uma base para falar da presença do
reino. Depois de falar com os discípulos de João, Jesus se dirigiu a multidão
acerca da importância de João e a vinda do reino. Ele diz “aquele que é menor
no reino dos céus é maior que ele [João]” (Mt 11.11; Lc 7.28). Nessa declaração,
o reino dos céus é uma realidade futura. Entretanto, no verso seguinte (Mt 11.12
cf. Lc 16.16, NAA), Jesus diz: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino
dos Céus sofre violência, e os que usam de força se apoderam dele”. Embora seja
um verso de difícil tradução, ele parece fazer do reino um objeto de oposição
presente. Essa oposição passou a se concentrar em Jesus, o referente central do
reino tanto para João quanto para Jesus.
Em Mateus 12.22-30 (cf. Lc 11.14-23), alguns fariseus acusaram Jesus de
exorcizar um demônio pela autoridade de Belzebu. Jesus repreende as suas
acusações apontando a falta de lógica de Satanás estar dividido contra si mesmo.
Então ele diz: “Se, porém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus,
certamente é chegado o reino de Deus sobre vós” (Mt 12.28). O reino de Deus está
presente (é chegado) em virtude do fato que ele está exorcizando demônios pelo
poder do Espírito Santo. Essa atividade faz com que a multidão suponha a sua
identidade como filho de Davi (Mt 11.23). O fato que o próprio rei está aqui,
agindo no poder do Espírito, forma uma base para falar da presença do reino
escatológico.
Em Lucas 17.20-21, Jesus é questionado por alguns fariseus “sobre quando
viria o reino de Deus”. A resposta de Jesus começa com a alegação: “Não vem
reino de Deus com visível aparência”. Esse comentário parece estranho à luz do
seu ensino posterior no mesmo evangelho acerca dos sinais que precedem a vinda
do reino de Deus (Lc 21.7-31). Até mesmo em Lucas 17, Jesus falou sobre como
a vinda do filho do homem se daria (17.24,30). Entretanto, sua resposta aos
fariseus fica clara no verso 21. Ele disse aos fariseus, “Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou:
Lá está! Porque o reino de Deus está no meio de vós”. Ele direciona a atenção
deles de alguma coisa “aqui” ou “ali” para si mesmo.11 Ele está no meio deles, o
próprio rei do reino. Não há maior sinal do reino que ele próprio, pois de fato
todos os outros sinais apontam para ele. Já que eles o rejeitaram, nenhum outro
sinal os ajudaria. Porém, para nossos propósitos, observamos que sua presença
nesse tempo era a ocasião para falar do reino estando presente.
Em resumo, os Evangelhos apresentam Jesus falando sobre a presença do
reino em seus próprios dias em virtude do fato de que ele mesmo, o Cristo, está
presente ministrando pelo poder do Espírito Santo, manifestando em suas obras
as características pertencentes ao reino escatológico de Deus. Ele perdoa pecados,
afasta doenças, demônios e morte. Pacifica o clima e multiplica os alimentos. Ele
traz seus ouvintes ao arrependimento e os leva ao conhecimento e à adoração a
Deus.
Uma teologia que pretende ser bíblica deve incorporar essa presença do reino
no ministério antes da cruz de Jesus ao seu entendimento do reino escatológico.
Pela primeira vez, na história das profecias acerca do reino escatológico, esse
reino foi falado como algo presente, uma afirmação que foi justificada sobre a
base da presença do rei e sua atividade. Não há a menor indicação que essa
afirmação seria contra o ensino de Jesus acerca da vinda futura do reino. Na
verdade, ela provê uma base mais forte para esse ensino. Pois, se o reino pudesse
ser visto em Jesus, se ele de fato demonstrasse o poder e autoridade desse reino,
então haveria ainda mais razões para acreditar que uma futura vinda de Jesus em
glória, de fato, traria o reino em toda sua glória.
O REINO ESCATOLÓGICO PRESENTE E FUTURO ENSINADOS POR JESUS

A diferença entre a presença do reino em Jesus no tempo de seu ministério antes


da cruz e a futura presença do reino não é somente uma diferença entre seu
serviço de sofrimento e sua glória futura, mas também a diferença entre o reino
estando em Jesus e o reino universalmente estabelecido. O reino foi revelado em e
através da atividade de Jesus. Foi bastante dinâmico, sendo visto em
demonstrações do seu poder. Entretanto, ele não instituiu naquele tempo o reino
como uma estrutura duradoura para o mundo. Foi somente após a cruz que ele
inaugurou certos aspectos do reino em um sentido institucional. As Escrituras
falam desses elementos como um depósito (Ef 1.13-14), uma estrutura inicial
que espera uma conclusão na sua vinda gloriosa no Dia do Senhor. Seus ensinos
sobre uma futura vinda do reino olham em direção ao seu estabelecimento
completo.

A Presença do Reino Antes do Retorno de Cristo. Muitos dos ensinos de Jesus


foram transmitidos em forma de parábolas. Já que o reino de Deus era um
tópico principal em seu discurso, não é surpreendente que muitas das parábolas
tenham a ver com esse assunto e seus temas relacionados. Não podemos realizar
um estudo maior das parábolas nessas páginas, mas, em vez disso, queremos
observar os ensinos de Jesus acerca dos mistérios do reino que aparentam dar uma
nova revelação acerca do reino além daquela que já tínhamos visto. Incluída na
nova revelação estava a predição de uma forma, ou estágio da presença do reino
antes do seu estabelecimento completo e apocalíptico. Esse novo estágio não
aparenta ser a presença do reino na própria pessoa de Jesus, como foi discutido
anteriormente (ainda que as epístolas relacionem esses conceitos). Embora não
seja totalmente claro nas parábolas que essa presença recém revelada do reino
seguirá a cruz, é evidente que ela é um estágio que precede a vinda apocalíptica do
reino.
Uma coleção útil das parábolas sobre esse assunto é vista em Mateus 13. Jesus
explica porque ele ensina em parábolas.

Ao que respondeu: Porque a vós outros é dado conhecer os mistérios do reino


dos céus, mas àqueles não lhes é isso concedido [...] Bem-aventurados, porém,
os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque ouvem. Pois em
verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes e não
viram; e ouvir o que ouvis e não ouviram (Mateus 13.11, 16-17).

Marcos nos diz que apesar de Jesus ensinar em parábolas “porém, explicava em
particular aos seus próprios discípulos” (Mc 4.34). A parábola do semeador
(Mt 13.3-9, 18-23) fala sobre esse assunto também. Somente alguns (isto é, os
seus discípulos) recebem “a palavra do reino” (13.19) e frutificam.
Uma das parábolas mais importantes, é a que está no começo da coleção de
Mateus 13 (depois da parábola introdutória do Semeador), a parábola do joio e
do trigo (13.24-30). Jesus explica a parábola a seus discípulos (13.36-43): o
Filho do Homem irá plantar “os filhos do reino” no mundo, onde eles
coexistirão com “os filhos do maligno” até “o fim das eras”.

O Filho do homem enviará os seus anjos, e eles tirarão do seu Reino tudo o
que faz tropeçar e todos os que praticam o mal. Eles os lançarão na fornalha
ardente, onde haverá choro e ranger de dentes. Então os justos brilharão
como o sol no Reino do seu Pai. Aquele que tem ouvidos, ouça
(Mateus 13.41-43, NVI).

A vinda do Filho do Homem na conclusão dessa passagem é consistente com o


ensino de Jesus, em outro lugar, acerca da vinda do Filho do Homem de uma
maneira apocalíptica, executando o julgamento e instituindo o reino de Deus. O
que difere, entretanto, é a frase: “eles tirarão do seu reino tudo o que faz
tropeçar”. Isso parece identificar uma situação antes da vinda do Filho do
Homem com o seu reino. Tanto aqueles que pertencem a ele quanto aqueles que
serão condenados estão presentes nessa forma do reino. Depois da sua vinda,
somente os salvos estarão presentes no reino. Ambas as condições, antes e depois
de sua vinda, são chamadas “reino”. Já que a fase do reino antes dessa vinda é o
único ensino nessa parábola, parece ser o “mistério do reino dos céus” que a
parábola nos dá. Não é um reino separado daquele que se segue, mas sim uma
fase, uma forma misteriosa do mesmo.
A parábola da semente de mostarda (13.31-32) e do fermento (13.33), falam
de um desenvolvimento orgânico do reino, de um pequeno começo para a
completa realidade do reino. A parábola da semente de mostarda usa até mesmo
uma ilustração de Daniel 4.12, onde ela descreve um reino imperial. Essas
parábolas não deveriam levar a implicações acerca da taxa de crescimento do
reino. Elas não implicam em uma progressão matemática uniforme. Elas não
descartam aparentes “atrasos”. Tampouco contradizem o ensino do joio e do
trigo. O mal estará presente antes da vinda do Filho do Homem. Mas essas
parábolas adicionam isso ao ensino da parábola posterior: o começo da fase do
reino que precede o apocalipse será pequeno, mas está organicamente
relacionado a esse reino que está por vir. É o reino escatológico em uma forma
inicial. Ele crescerá e se desenvolverá durante a dispensação antes da vinda do
Filho do Homem. Na consumação, o reino escatológico será revelado em toda
sua plenitude, como predito pelos profetas e desenvolvido por Jesus.
A parábola do tesouro no campo (13.44) e a do mercador e da pérola (13.45-
46) possuem similaridades literárias que as unem. Elas parecem falar de dois
tipos de pessoas que passam a possuir o reino durante a dispensação que precede
o apocalipse. Algumas pessoas, como a do campo, são ignorantes quanto ao
reino. Mas, quando o encontram, elas reconhecem que ele é digno de tudo que
elas têm para possuí-lo. Outras, como o mercador, estão de fato à procura do
reino. Quando elas o encontram, reconhecem da mesma forma que ele é digno
de tudo que elas possuem. Esses dois seriam contados como “filhos do reino” na
parábola do trigo e do joio.
A parábola do dono da casa (13.51-52) forma uma importante conclusão
para essa coleção. Assim como a parábola introdutória do semeador, ela fala da
revelação sobre o reino. Acerca do entendimento deles do seu ensino, Jesus diz:

Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de
família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas (Mateus 13.52).

O novo tesouro corresponde ao novo conhecimento que Jesus lhe deu a respeito
“do reino dos céus”. Esses são “mistérios do reino dos céus”. O tesouro antigo
seriam as profecias já reveladas acerca do reino. Tanto as novas quanto as antigas
estão em possessão do dono da casa. As novas não substituem as antigas e as
antigas não excluem as novas. Elas não são dois tesouros separados. As novas
verdades complementam as antigas verdades para produzir um “tesouro”, o reino
dos céus.
Para resumir, nessas parábolas, Jesus parece predizer uma forma do reino que
precederá sua esperada chegada apocalíptica. Essa é uma forma do reino
diferente daquela sobre a própria presença de Jesus no mundo (que ele
identificou como uma presença do reino). Em vez disso, consiste na presença dos
“filhos do reino” (isto é, pessoas que verdadeiramente pertencem ao reino
escatológico) no mundo antes da vinda do Filho do Homem. O próprio Filho
do Homem irá colocá-las no mundo em uma “semeadura” inicial que parecerá
pequena. Mas na sua realidade é aquela do reino escatológico, e ela crescerá e se
desenvolverá no mundo, mesmo com a presença do mal, até o tempo da vinda
do Filho do Homem.
O REINO ESCATOLÓGICO DE DEUS ENSINADO POR JESUS
O REINO ESCATOLÓGICO NA VIDA E ESPERANÇA DA IGREJA
O testemunho da igreja, desde os seus primeiros dias até o presente, é que Jesus é
o Cristo. Ele foi investido com a autoridade real do reino escatológico de Deus
na sua ascensão aos céus. Ele está assentado à direita de Deus, a posição
apropriada para o Rei davídico. Ele espera no Pai pelo dia do seu retorno,
quando ele governará pessoalmente e eternamente os povos da terra, cumprindo
as bênçãos das alianças da promessa.
O testemunho da igreja sobre Jesus é baseado no relacionamento que Jesus
estabeleceu com ela a partir da sua posição de ascensão nos céus. Ele já proveu a
expiação que torna possível uma nova aliança em todas as suas bênçãos. Sua
ressurreição dos mortos revelou e confirmou essas bênçãos nele mesmo – as
primícias dos mortos. Entretanto, poucos dias depois da sua ascensão aos céus,
no dia de Pentecostes de Israel, Jesus (agindo dos céus) deu a seus discípulos um
“adiantamento” das bênçãos da nova aliança do reino, a dádiva do Espírito
Santo. Essa ação fez dos seus discípulos uma comunidade do reino escatológico
de Deus, sob a bênção de Jesus, o Messias. Todos aqueles que vêm à fé em Jesus
são da mesma forma abençoados pela dádiva do Espírito Santo e se juntam a essa
comunidade do reino, que veio a ser conhecida como a igreja.
Jesus havia predito que seus discípulos seriam “batizados pelo Espírito”;
predisse que ele próprio enviaria o Espírito a eles depois do seu retorno ao Pai.
Ele predisse que qualquer um que cresse nele seria nascido do Espírito, uma
condição necessária para ver o reino de Deus (Jo 3.3). Depois de 40 dias de
instruções finais acerca do reino de Deus (At 1.3), incluindo a restauração
política e nacional de Israel (o tempo que ainda não foi revelado; At 1.6), os
discípulos foram ordenados a esperar em Jerusalém “pelo o que o Pai tinha
prometido” e aquilo que ele tinha ensinado para eles esperarem.

Porque João, na verdade, batizou com água, mas vós sereis batizados com o
Espírito Santo [...], mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito
Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda Judeia
e Samaria e até aos confins da terra (Atos 1.5,8).
Quando o Espírito veio sobre os discípulos, eles viram isso como um ato
messiânico de Jesus, indicando que ele tinha sido de fato recebido pelo Pai nos
céus, e tinha sido concedida a ele autoridade messiânica (do reino) e que
começava a agir com essa autoridade:

Exaltado, pois, à destra de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do


Espírito Santo, derramou isto que vedes e ouvis [...] Esteja absolutamente
certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus, que vós crucificastes, Deus
o fez Senhor e Cristo [...] Respondeu-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um
de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos
pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo(Atos 2.33, 36, 38).

A comunidade primitiva dos crentes era formada apenas de judeus. Eles viam a si
mesmos como o remanescente da fé quer herdaria o reino quando Jesus descesse
dos céus como o apocalíptico Filho do Homem. À medida que cumpriam seu
mandamento de proclamar a todos os povos – incluindo samaritanos e gentios –
as boas novas do reino de Deus (At 8.12; 28.23; 28-31), eles viram muitas dessas
pessoas crerem em Jesus. Eles também testemunharam o fato de que Jesus
concedeu sobre esses samaritanos e gentios crentes a mesma bênção do Espírito
Santo que ele os deu (At 8.14-17; 10.44-48; 11.15-18). Eles interpretaram essa
ação como Deus “reunindo dentre as nações um povo para o seu nome”
(At 15.14). Tal atividade foi vista como uma parte e parcela do plano do reino
escatológico, como predito nas passagens de Isaías 49.6 e Amós 9.11-12 (veja
At 13.46-48; 15.14-18). Juntos, os crentes constituíram o microcosmo do reino
vindouro. Todos os povos, judeus e gentios, estariam sujeitos ao governo do
Cristo e seriam abençoados por ele.
A natureza da bênção de Cristo durante esse tempo de ascensão, e a equidade
da concessão sobre judeus e gentios (assim como para ambos os gêneros e classes
sociais), trouxe para a história a realidade conhecida como a igreja. Na medida
em que viviam na esperança da vinda de Jesus, judeus e gentios crentes se
reuniam regularmente para adorar ao Senhor e encorajar uns aos outros na fé. A
sua assembleia unida pela sua única fé em um Deus e um Senhor messiânico e
na comunhão de um Espírito.
Porque, assim como o corpo é um e tem muitos membros, e todos os
membros, sendo muitos, constituem um só corpo, assim também com
respeito a Cristo. Pois, em um só Espírito, todos nós fomos batizados em um
corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos, quer livres. E a todos nós foi
dado beber de um só Espírito (1 Coríntios 12.12-13).

Porque todos quantos fostes batizados em Cristo de Cristo vos revestistes.


Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem
homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus
(Gálatas 3.27-28).

E pôs todas as coisas debaixo dos pés e, para ser o cabeça sobre todas as coisas,
o deu à igreja, a qual é o seu corpo, a plenitude daquele que a tudo enche em
toda as coisas [...] Há somente um corpo e um Espírito, como também fostes
chamados numa só esperança da vossa vocação; há um só Senhor, uma só fé,
um só batismo; um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por
meio de todos e está em todos (Efésios 1.22-23; 4.4-6).

A Igreja Como a Presente Revelação do Reino. Muito já foi dito acerca do


testemunho do Novo Testamento para a presente autoridade Messiânica de
Jesus. Repetidamente, ele é retratado estando à direita de Deus no cumprimento
das promessas que pertencem à aliança davídica. Sua entronização e autoridade
presente são messiânicas. É como o Cristo que ele está presentemente ativo.
Temos visto que o Novo Testamento proclama esse Cristo sendo Deus. Porém,
ele é Deus encarnado, e encarnado não como uma humanidade genérica, mas
como o filho de Davi. Nesse tempo da sua ascensão, ele não se tornou, nem age
como Deus desencarnado. Na linguagem do Novo Testamento, todas as suas
atividades, incluindo todas as suas relações com a igreja, são atribuídas a Jesus
(seu nome humano) Cristo (seu título real do reinado davídico).
Na carta de Paulo para a igreja de Colosso, isto é, “aos santos e fiéis irmãos
em Cristo em Colosso”, ele descreve os crentes como tendo sido libertos “do
domínio das trevas e transferidos para o reino do seu (do pai) amado filho”
(Cl 1.13). Já percebemos que essa linguagem do reino pertence à aliança
davídica. Esse é o reino messiânico para onde os membros da igreja de Colossos
foram transferidos. Além do mais, o contexto indica que Paulo está falando da
presente relação deles com o reino. Ele não está falando de maneira proléptica
quanto à futura transferência deles para esse reino, como se a presente identidade
deles em Cristo pudesse ser descrita como estando debaixo do “domínio das
trevas”.12
A oração de Paulo em Colossenses 1.9-12 assume o presente estado dos
santos como membros do reino escatológico, pois, ele ora para que Deus dê
atualmente a eles as bênçãos pertencentes a esse reino: o conhecimento de Deus,
o fruto da justiça e a obediência a Cristo (1.9-10). Em Colossenses 3, Paulo fala
da presente identificação da igreja com a morte, a ressurreição e a ascensão de
Cristo. Eles devem se identificar em seu presente comportamento com o Messias
ressurreto à direita de Deus (3.1-2). O que se segue é uma lista de exortações
guiando-os à justiça. A santificação para qual a igreja é chamada é o presente
governo, ou reino, do Messias na igreja (3.15). Ela antecipa a futura vinda de
Cristo em cujo tempo ele será “revelado com ele em glória” (3.4).
A identidade da igreja como uma realidade presente do reino escatológico
vindouro recebe uma explicação posterior em Efésios. A igreja espera uma
herança na vinda do “reino de Cristo e de Deus” (5.5). Sua esperança está fixa
nas “riquezas da glória da sua herança nos santos” (1.18). Mas a presente
realidade da igreja é devida ao fato que “tendo nele também crido, fostes selados
com o Santo Espírito da promessa”(Ef 1.13). O Espírito Santo foi dado como
um “penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da
sua glória” (1.14).
Um penhor ou adiantamento é um pagamento parcial que antecede um
pagamento futuro por completo. O adiantamento garante o futuro, assim como
ele próprio é uma parte da realidade futura. De acordo com isso, a obra a qual o
Espírito Santo faz na igreja e pela qual a igreja é constituída nessa realidade como
a igreja, é uma revelação parcial no presente daquele reino que está por vir no
futuro. Visto que sua realidade pertence ao reino e que ele existe no presente,
consequentemente a igreja deve ser entendida como uma forma presente do
reino escatológico, uma presença que garante a futura vinda desse reino em sua
total plenitude.
Essa visão da igreja é posteriormente desenvolvida em Efésios 1.15-2.22.
Paulo ora para que a igreja possa conhecer a sua esperança, “as coisas da glória da
sua herança (isto é, o reino, cf. Ef 5.5) nos santos” e a “incomparável grandeza
do seu poder para conosco” (1.18-19).Esse poder é, então, explicado em 1.20-
2.22 numa descrição da presente atividade do Messias edificando a igreja. Já
observamos como toda essa passagem é descrita na linguagem da promessa da
aliança davídica. O Messias foi ressurreto, assentado (entronizado) à direita de
Deus, todas as coisas, especialmente todo governo e autoridade, foram sujeitos a
ele e ele está edificando a casa de Deus.
A casa de Deus que o Messias está edificando supera em muito aquela que foi
construída por Salomão, pois Jesus está edificando uma casa “viva” (cf. 1Pe 2.5).
A humanidade redimida será o lugar de habitação de Deus. Isso foi, é claro,
previsto na promessa da nova aliança, que o Espírito de Deus habitaria em seu
povo. Paulo vê essa promessa cumprida no templo vivo, a igreja (2Co 6.16
citando Ez 37.27). Efésios 2 oferece uma explicação expandida dessas ideias.
Deus, trabalhando em e através do Messias, torna o povo vivo (2.1-5).13 Nós
compartilhamos do poder que foi revelado no e através do próprio Messias. Nós
fomos “vivificados [...] juntamente com Cristo [...] e ressuscitados com ele e
assentados [...] com ele [...] em Cristo Jesus” (2.5-6). O próprio Messias está
reconciliando judeus e gentios que assim são vivificados nele. Ele estabelece a paz
entre esses povos outrora hostis ao se unirem a ele em sua expiação (2.15-17; cf.
Cl 3.15). O estabelecimento de paz é exatamente o que os profetas esperavam
que o Messias fizesse; é um dos elementos mais proeminentes do reino
escatológico junto à justiça. Essa paz é estabelecida através de uma nova aliança
(Ef 2.14-15, 22). Ao manter a promessa abraâmica de abençoar todos os povos,
gentios crentes juntamente com os judeus crentes são abençoados com as
bênçãos da nova aliança de renovo espiritual. Essa é a ação chave que traz à
existência os povos redimidos do reino escatológico, todos vivendo em paz,
cheios com o conhecimento do Senhor.14 Esse “novo homem” é a humanidade
escatológica.
O “tornar” de “dois (judeus e gentios em Cristo) em um novo homem” (2.
15) é então elaborado em 2.18-22 com uma mudança de metáfora. A nova
humanidade é o templo de Deus que Jesus está construindo. O messias não é
somente o construtor do templo, mas também o sumo sacerdote, a pedra angular
e o próprio templo (2.18-22), uma conjunção de imagens devido à convergência
de várias linhas da profecia usando diferentes metáforas, mas todas relacionadas
ao templo. O próprio “templo” é constituído como um templo ao ser “uma
habitação de Deus no espírito” (2.22). Tanto judeus quanto gentios em Cristo
têm “acesso em um Espírito ao Pai” (2.18).
Isso nos leva de volta a Efésios 1.13-14. O espírito é o “penhor”, o
pagamento adiantado de nossa futura herança, que é “o reino de Cristo e de
Deus” (Ef 5.5). Ele cria em nós na presente era uma realidade que pertence ao
reino futuro, assim trazendo o reino escatológico em existência presente. Tudo
isso é elaborado em 1.15-22 na linguagem que retrata o Messias entronizado e
engajado na atividade do reino. Essa atividade é a realidade presente de unir
judeus e gentios através do adiantamento do reino em uma presente realidade do
reino!
As mudanças introduzidas por Jesus na relação dos judeus e gentios com
Deus são tão suficientemente significativas que Paulo as identifica como uma
nova dispensação (Ef 3.4-9). A dispensação anterior revelou o reino de Deus
debaixo da aliança mosaica. A inauguração da nova aliança, do Messias
escatológico, trouxe realidades que pertencem ao reino escatológico à existência
presente. Aqui é onde a igreja encontra sua identidade. Toda a linguagem
descrevendo a igreja no Novo Testamento é diretamente extraída ou é compatível
com os gêneros da promessa da aliança e do reino messiânico.
A atual dispensação não é a total e completa revelação do reino escatológico.
Ela é um estágio progressivo na revelação desse reino. As mudanças que
acompanham a revelação final do reino escatológico são suficientemente
significativas para constituir outra mudança dispensacional final na relação de
Deus com a humanidade (Ef 1.10). As bênçãos presentes do reino são nada mais
que um “adiantamento”. Na dispensação futura, o “pagamento” será recebido
por completo. A bênção do espírito é dada no presente em condições mortais,
depois em imortalidade de ressurreição (Rm 8.10-11; 2Co 4.7-5.9). Não somos
ainda glorificados, não somos ainda perfeitos. As bênçãos presentes do renovo
espiritual são dadas progressivamente (2Co 3.18), em condições dispersas com a
ausência de Cristo. No futuro, quando Cristo for revelado, as bênçãos do reino
serão dadas completamente.
O REINO ESCATOLÓGICO PRESENTE NA IGREJA

Sendo uma dispensação do reino, a igreja corresponde àquela forma misteriosa


do reino que Jesus revelou nas parábolas de Mateus 13. Ela é uma comunidade
de cidadãos do reino antes da vinda do Filho do Homem. Ela é uma nova
revelação de Deus, um mistério do reino. Mas é um mistério do reino. Apesar de
nova no progresso da revelação, não é totalmente diferente, nem é um plano
secundário e paralelo de Deus. Conforme ilustrado na parábola do dono da casa
(Mt 13.52), essa nova revelação complementa a revelação que foi dada
anteriormente, adicionando novos tesouros a casa, os novos e os velhos estando
lado a lado de forma complementar.

A Esperança da Igreja, o Reino Escatológico Futuro. A esperança da igreja está


centrada no retorno de Cristo Jesus. Em 1 Tessalonicenses 1.10, Paulo descreveu
a igreja como esperando “por seu filho dos céus, a quem ressuscitou dos mortos,
Jesus, que nos livra da ira vindoura”. Escreve que a graça nos instrui a estar
“aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande
Deus e Salvador Cristo Jesus” (Tt 2.13). Novamente ele diz: “aguardamos o
Salvador, o Senhor Jesus Cristo” (Fp 3.20). Pedro escreve: “esperai inteiramente
na graça que vos está sendo trazida na revelação de Jesus Cristo” (1Pe 1.13). O
último livro no nosso Novo Testamento, “a revelação de Jesus Cristo”, é uma
obra que antevê e proclama a sua vinda, com anúncios agrupados no começo
(“eis que ele vem com as nuvens”; 1.7) e no fim (“eis que venho em breve [...]
venho em breve” 22.12, 20 – no meio de um coral que se ergue em “vem,
Senhor Jesus”, cf. 1Co 16.22).
O Dia do Senhor. O que a igreja espera que aconteça na vinda de Jesus está
correlacionado de forma geral com as predições do Antigo Testamento com
respeito à vinda do reino. Será o Dia do Senhor, um tempo de ira e julgamento
contra o pecado e o mal (1Ts 5.1-9; 2Pe 2.9; 3.7-12; Ap 6.17; 16.14). É o “dia
do nosso senhor Jesus Cristo” (1Co 1.8); que acontece na sua “revelação” dos
céus (1Co 1.7). As descrições literárias do Antigo Testamento da vinda de Deus
vindo em ira no Dia do Senhor estão combinadas com o novo entendimento do
Messias, como foi ensinado por Jesus. A noção de que o julgamento foi confiado
e será executado pelo Filho de Deus (Messias) que virá nas nuvens do céu, como
o Filho do Homem, é transmitida nos ensinos dos apóstolos. Vemos isso na
forma como certas coisas ditas por Jesus marcam as descrições do Novo
Testamento do Dia do Senhor – tal como a ilustração de que o dia está vindo
como um ladrão (1Ts 5.2; 2Pe 3.10; Ap 16.14-15). Porém, primariamente,
vimos isso na forma como a vinda de Deus no Dia do Senhor é apresentada
como a vinda de Jesus.

E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do


céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de
fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que
não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade
de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder,
quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado em todos os
que creram, naquele dia (porquanto foi crido entre vós o nosso testemunho
(2 Tessalonicenses 1.7-10).

O julgamento que Jesus traz começa primeiro com “a casa de Deus” (1Pe 4.17;
cf. 1Co 4.5; Tg 5.7-9; 1Jo 2.28) para revelar o que é verdadeiro e duradouro. De
acordo com isso, Paulo diz que o Dia do Senhor revelará as obras de cada um.
Alguns sofrerão perda ainda que sejam salvos (1Co 3.13-15). O julgamento
então procede para os descrentes.
Entretanto, as passagens que relacionam os crentes ao Dia do Senhor falam
majoritariamente de libertação, um tema que também é consistente com o
Antigo Testamento. A habitação de Deus e seu amor em nós nos dá confiança
para o dia do julgamento (1Jo 4.17). Paulo, da mesma forma, fala da confiança
que “aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até o Dia de Cristo
Jesus” (Fp 1.6). Aos Coríntios ele escreve: “nosso Senhor Jesus Cristo, o qual
também vos confirmará até o fim, para serdes irrepreensíveis no Dia de nosso
Senhor Jesus Cristo” (1Co 1.7-8). Os crentes se regozijarão no culminar do
crescimento e progresso espiritual uns dos outros, à medida que o Senhor
concluir sua salvação no dia de sua vinda (Fp 1.10; 2.16; 2Co 1.14).
A libertação no Dia do Senhor é um tema especial em 1 Tessalonicenses. Na
sua volta, Jesus “nos livra da ira vindoura” (1.10). Paulo ensina para a igreja que
o Dia do Senhor não irá “surpreendê-los como um ladrão” (5.4). Isso é explicado
posteriormente em 5.9, “porque Deus não nos destinou para a ira, mas para
alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo”. No contexto, essa
libertação parece ser a bênção da ressurreição e a translação para a imortalidade
que Cristo concederá aos seus na sua vinda (1Ts 4.13-18), um evento que é
chamado de arrebatamento (do verbo harpazo,“arrebatar”, em 1Ts 4.17). Essa
libertação, ou arrebatamento, parece coincidir com o começo, ou vinda, do Dia
do Senhor, já que esse é o foco em 1 Tessalonicenses 5.2-4.15
O tema da libertação no retorno de Cristo é dito em outro lugar no Novo
Testamento. Os crentes esperam ser salvos, ressurretos, recompensados com uma
coroa da vida, transformados segundo a imagem de Cristo e glorificados em sua
glória (Jo 14.1-3; Cl 3.4; Fp 3.20-21; 2Tm 4.8; 1Pe 1.7; 4.13; 1Jo 3.2).
Um Reino Futuro. Com a vinda de Cristo, vem o reino escatológico em sua
manifestação futura. Em Apocalipse 19.11-16, a vinda de Jesus é vista em uma
fusão de múltiplas imagens tiradas, em sua maioria, do Antigo Testamento,
incluído várias descrições messiânicas. Entre elas está: “ele governará [as nações]
com cetro de ferro” (19.15)
Repetidamente, na gramática do Novo Testamento, o reino é mencionado
no tempo futuro, como algo que virá e será herdado no futuro. Crentes
“entrarão” nele em tempo futuro (At 14.22; 2Pe 1.11). Tiago fala daqueles que
são “herdeiros do reino que ele prometeu aos que o amam” (Tg 2.5). Paulo fala
daqueles que “não herdarão” o reino (1Co 6.9-10; Gl 5.21; Ef 5.5). A igreja de
Tessalônica é descrita como sofrendo pelo reino de Deus (2Ts 1.5), “esperando
alívio [...] Quando o Senhor Jesus foi revelado lá do céu [...] Para ser glorificado
em seus santos naquele dia” (1.7, 10). Paulo admoesta Timóteo por meio de
“Cristo Jesus, que há de julgar vivos e mortos, pela sua manifestação e pelo seu
reino” (2Tm 4.1).
O reino que virá é o reino de Deus e do seu Messias (Ef 5.5).
Frequentemente, o reino é chamado de reino de Deus, assim como também é o
reino de Cristo (2Tm 4.1; 2Pe 1.11; Ap 11.15). Esse reino messiânico é eterno
(2Pe 1.11; Ap 11.15), “uma herança incorruptível, sem mácula, imarcescível”
(1Pe 1.4).
O Reino na Terra. Na presente era, esse reino, essa “herança”, é dito que está
“reservada nos céus” (1Pe 1.4). Tal linguagem corresponde à forte ênfase que
vimos na presente entronização do Messias nos céus, e de lá, Cristo governa
presentemente a igreja pelo Espírito Santo. Paulo também ensinou que antes da
vinda de Cristo, as almas dos cristãos mortos se juntariam a Cristo nos céus
(2Co 5.6-8). Ele acreditava que na sua própria morte, ele estaria com Cristo
(Fp 1.21-23) e isso parece ser seu pensamento quando ele escreve que “o Senhor
[...] me levará salvo para o seu reino celestial” (2Tm 4.18). Na era presente, os
crentes devem pensar em si mesmos em relação com Cristo, entronizados nos
céus. Deus “nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo
Jesus” (Ef 2.6). Devemos “buscar as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado
à direita de Deus [...] porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente
com Cristo, em Deus” (Cl 3.1, 3).
É dito que o reino está nos céus porque o Messias está presentemente nos
céus, e as almas de todos os mortos que herdarão o reino estão com ele
aguardando a ressurreição (cf. Ap 6.10-11). A igreja que está “em Cristo” tem,
assim, uma identidade celestial nesta dispensação. Porém, conforme vimos,
Cristo retornará para a terra. “Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar,
então, vós também sereis manifestados com ele, em glória” (Cl 3.4). Essa
“revelação” será a conclusão da nossa salvação (1Pe 1.7-9, 13), nossa ressurreição
dos mortos (1Pe 1.3), que nos leva à herança naquela forma futura do reino
escatológico (1Co 15.50-57). Correspondendo a nossa ressurreição dos mortos
estará à renovação da terra, o local do reino futuro.

Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não
podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós.16 A ardente
expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação
está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a
sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da
corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que
toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora. E não
somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito,
igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a
redenção do nosso corpo (Romanos 8.18-23).

O local terreno (embora renovado) do reino escatológico é reforçado em


2 Pedro 3.13 onde lemos: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos
novos céus e nova terra, nos quais habita justiça”. Da mesma forma João antevê
“um novo céu e uma nova terra” onde Deus “estará” com a humanidade
redimida e “eles serão seu povo e o próprio Deus estará com eles” (Ap 21.1, 3).
Na visão de João, o “povo” que constitui o reino escatológico da nova terra
está agrupados em “nações” (Ap 21.24, 26; 22.2). Esse é o mesmo termo que é
usado em Apocalipse 2.26-27, citando Salmos 2.8-9 em referência ao Messias
que governa as nações, e em Apocalipse 19.15, que conflui a linguagem de
Salmos 2.8-9 com a de Isaías 11.4. A visão de João em Apocalipse 21-22 é
moldada nas imagens das profecias do Antigo Testamento, nas quais, o Messias
governará politicamente todas as nações. Alguns escritos do Novo Testamento
antecipam o fato de que os crentes reinarão com Cristo (2Tm 2.12); com ele,
eles julgarão o mundo (1Co 6.2). As cartas das igrejas em Apocalipse 2-3
também repetem essa expectativa.
O local estabelecido é Sião, a Cidade de Deus, a nova (renovada) Jerusalém
(Ap 21.2ss) descrita em grande resplendor. As nações “andarão mediante a sua
luz, e os reis da terra lhe trazem a sua glória” (Ap 21.24). Essa imagem reafirma
as profecias do Antigo Testamento acerca da exaltação escatológica de Sião como
encontrada, por exemplo, em Isaías 60 e em Isaías 2.2-4 (cf. Mq 4.1-4). É dito
que a Sião escatológica está nos céus na presente era (Gl 4; Fp 3.20; Hb 12.22-
24), porque o rei está presente nos céus. O rei preparando a cidade (Jo 14.1-3),
ainda que esteja preparando nossa herança do reino (1Pe 1.4). Os crentes são
cidadãos da cidade agora, ainda que estejam presentemente no reino (Fp 3.20;
Cl 1.13), em virtude das bênçãos da nova aliança inauguradas presentemente.
Entretanto, assim como é dito que o reino virá no futuro, assim a cidade é, da
mesma forma, a cidade que está por vir (Hb 13.14).17
O governo político sobre as nações coincide com a dádiva de justiça da nova
aliança. O Novo Testamento reafirma essa característica geralmente repetida da
esperança do Antigo Testamento de um reino vindouro: Será marcado pela
justiça, santidade e piedade.
O Cumprimento das Promessas de Israel. O reino escatológico retratado nessas
passagens é bem compatível com a esperança do Antigo Testamento. E isso
inclui uma esperança específica para Israel. Muitos dos escritos do Novo
Testamento dizem respeito à extensão das presentes bênçãos do reino para
gentios crentes, assim como é consistente com as promessas do Antigo
Testamento acerca dos gentios. Entretanto, o Novo Testamento nunca apresenta
esses eventos como uma substituição das esperanças específicas de Israel. Em vez
disso, eles são argumentados como compatíveis ou complementares às esperanças
de Israel. Alguns têm perguntado por que o Novo Testamento não destaca um
retorno para a terra como as profecias do Antigo Testamento fazem. Devemos
lembrar que, no tempo em que as epístolas do Novo Testamento foram escritas,
os judeus estavam vivendo na terra. Apesar de ainda existirem muitos em
dispersão, não obstante, um retorno suficiente aconteceu para constituir uma
presença política judaica na terra da promessa da aliança. A questão nos escritos
do Novo Testamento não era um retorno para terra (já que eles já estavam na
terra), mas o retorno do Messias e um relacionamento apropriado com ele que
garantiria uma herança eterna no reino da glória que ele estabeleceria aqui, nessa
terra.
A expectativa que o Messias governará todas as nações em uma terra renovada
certamente não excluiu a nação de Israel! Um império mundial de nações
gentílicas com o Messias de Israel no topo, mas com Israel faltando não é uma
explanação crível da escatologia do primeiro século, particularmente de uma
igreja que é primariamente judaica. O concílio de Jerusalém em Atos 15 não
aprovou a missão gentílica porque eles esperavam que o cristianismo fosse uma
religião gentílica. Eles viram, através de Amós 9, que o reino escatológico
estenderia bênçãos aos gentios assim como para Israel, não que ele seria um reino
gentílico. A reação em Jerusalém à missão de Pedro para Cornélio foi “Logo,
também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimento para a vida”
(At 11.18).
A questão nos escritos do Novo Testamento era a inclusão gentílica e não a
exclusão de Israel. Mas também era acerca da salvação do remanescente no Dia do
Senhor, que precederia a revelação total do reino. O Novo Testamento fala do
julgamento que vem sobre judeus e gentios. Somente aqueles que são achados na
Rocha, cuja fé está em Cristo, serão salvos. A mensagem em Atos chama a casa
de Israel ao arrependimento, para salvação, assim como chamam os gentios para
salvação. Em lugar nenhum eles acrescentam uma nova ideia de que as bênçãos
nacionais de Israel seriam abandonadas.
Em duas passagens, o futuro nacional de Israel é definitivamente garantido.
Já observamos o segundo discurso de Pedro em Jerusalém. Ele teria sido incluído
com o resto dos discípulos na questão relatada em Atos 1.6: “Senhor, este é o
tempo que restaurarás o reino a Israel?” Jesus respondeu diretamente à questão
deles acerca do tempo. Ele certamente não ressignificou o entendimento deles
acerca da “restauração do reino a Israel”. Alguns dias depois, vemos Pedro
pregando para as multidões em Jerusalém, “Arrependei-vos, pois, e convertei-
vos” com uma visão da volta do “Cristo, que já vos foi designado, Jesus, ao qual
é necessário que o céu receba até aos tempos da restauração de todas as coisas, de
que Deus falou por boca dos seus santos profetas desde a antiguidade” (At 3.19-
21). Não pode haver dúvida de que essa “restauração” acerca da qual os profetas
do Antigo Testamento falaram tinham como foco o Israel nacional.
Paulo dirige a questão da salvação nacional de Israel em sua carta aos
Romanos. O evangelho que ele pregou (Rm 1.1-4) diz respeito à promessa que
Deus “outrora, prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas
Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da
descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o
espírito de santidade pela ressurreição dos mortos, a saber, Jesus Cristo, nosso
Senhor”.
Essa boa nova acerca do Messias é “primeiro do judeu e também do grego”
(Rm 1.16).
Em talvez a mais famosa de todas as suas cartas, Paulo explica as bênçãos da
salvação que vêm através de Jesus Cristo para todos os que creem. Ele argumenta
ao longo dela o fato de que os gentios, assim como os judeus, são justificados e
santificados pela graça de Cristo.
Porém, ele também levanta a questão acerca da “vantagem” dos judeus, o
“benefício” da circuncisão (3.1). A vantagem não está em ter Deus todo para eles
mesmos, pois há um Deus sobre todos os povos (3.29). Nem o benefício é de
serem mais justos que os gentios. O problema do pecado afeta tanto judeus
quanto gentios da mesma forma (3.9). A justificação para ambos vem pela fé
(3.30).
Os benefícios para os judeus, os circuncidados, em Romanos 3.1-2, devem
ser lidos à luz de 2.17-29. Esses são os benefícios para os verdadeiros judeus – que
não é um nome para os gentios crentes, mas se refere aos judeus étnicos cujos
corações são circuncidados pelo Espírito de Deus. É para eles (o remanescente da
fé, como declarado pelo Antigo Testamento) que os oráculos de Deus pertencem
verdadeiramente. A descrença de alguns judeus não anulará a fidelidade de Deus
ao seu remanescente! (3.3-4) Os oráculos de Deus, que contém suas promessas
para o Israel crente, serão cumpridos a despeito da pecaminosidade radical que
atinge todas as pessoas (3.4-9).
Paulo argumenta que pela graça da justificação e a justiça da nova aliança, a
salvação de Deus levará à revelação de uma humanidade imortal em uma terra
renovada (8.11, 18-23). Entretanto, quando ele volta à questão de Israel, ele
lamenta em Romanos 9-11 que muitos judeus tenham perdido a salvação que
vem pela fé em Cristo. Ele relembra as bênçãos que distinguem judeus dos
gentios na antiga dispensação: “a adoção de filhos, a glória divina, as alianças,
concessão da lei, o culto e as promessas”. A eles pertencem “os patriarcas” e deles
descende a linhagem humana de Cristo (9.4-5).
Ainda assim, Paulo afirma que a palavra de Deus não falhou (9.6). A palavra
de Deus certamente inclui a Lei e as ordenanças do templo, mas tem uma
referência especial às “promessas” como é visto na repetição da palavra promessa
em 9.8-9. O argumento de Paulo se concentra novamente no “remanescente” da
fé (9.27) como foi predito pelos profetas. Apesar da maioria de Israel cair sob a
ira de Deus contra a injustiça (9.30-32; cf. 1.18), um remanescente existe pela
eleição de Deus (11.5). Eles encontram as riquezas da salvação de Deus em Jesus,
o Messias (10.11-13), bênçãos que vêm até eles pela graça e não por obras (11.5-
6).
O remanescente de Israel encontrou as bênçãos de Deus enquanto o resto foi
endurecido, levando à salvação dos gentios (11.7, 11-12). Deus não rejeitou seu
povo (11.2). O endurecimento de Israel é parcial e temporário.
A figura da videira (Rm 11.16-24) fala dos “dons e do chamado de Deus”
(11.29), o favor da bênção de Deus “por causa dos patriarcas” (11.28). Essas
bênçãos vêm aos descendentes naturais dos patriarcas (ramos naturais na
ilustração) pela fé (como visto no fato de que os descrentes são “cortados devido
à sua incredulidade” [11.20], ainda assim podem ser “enxertados” novamente ao
vir à fé [11.23]). A bênção também vem aos gentios na videira (isto é, em
Abraão, ou mais especificamente, em seu descendente, o Messias). Não sendo
descendentes naturais, são “enxertados”. Porém eles também vêm a um estado
permanente de bênção somente pela fé (11.20).
Paulo então olha para a salvação de “todo o Israel” na vinda do Salvador.18 O
Messias cumprirá a nova aliança para Israel como um todo, conforme predito
pelos profetas do Antigo Testamento (11.26-27). É importante notar que a
aliança à qual se refere a citação em Romanos 11.26-27 (Is 59.20-21)
definitivamente inclui todas as bênçãos da salvação nacional, incluindo a herança
na terra da promessa. Os próximos versos em Isaías predizem a exaltação de
Jerusalém como a capital do reino escatológico (Is 60), a mesma passagem que
influencia a visão de João em Apocalipse 21-22. A nova aliança reafirmou a
mesma esperança nacional expressa nas outras alianças. E Paulo declara que “os
dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (11.29).
Nenhuma alegação já feita por Paulo diz que Deus tenha descartado,
reformulado, ou ressignificado as promessas. Ele está convencido que Deus
cumprirá sua palavra, a despeito da pecaminosidade que traz sua ira. Isso
acontecerá através de Jesus, o Messias, o Cristo. Na sua vinda, o dom da justiça,
que é manifestado em um remanescente, agora será revelado em uma nação que
emergirá no Dia do Senhor, redimida e purificada, para herdar as bênçãos
“irrevogáveis” da promessa da aliança “pois [...] Cristo foi constituído ministro
da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas
aos nossos pais” (15.8).
Entretanto, a preocupação dominante de Paulo é explicar que as bênçãos
antevistas escatologicamente para os gentios (“abençoados nele”) são
presentemente inauguradas e recebidas por eles através do evangelho (1.5; 15.9-
19; 16.25-26). Para ele, não é a herança futura de Israel que está em jogo, mas é
a verdade da presente bênção gentílica através da fé em Cristo.
UM REINO MILENAR INTERMEDIÁRIO
O pré-milenismo é a crença de um futuro reino messiânico, com mil anos de
duração, que irá intervir entre o retorno de Cristo à terra e o reino escatológico
eterno. O reino milenar constitui outro estágio na revelação do reino
escatológico. Ele segue a revelação do reino na pessoa de Cristo e a revelação do
reino na comunidade da igreja (essa forma do reino presente hoje). Temos visto
acima que a esperança da igreja está fixada no retorno de Cristo, é o tempo ao
qual a herança “do reino eterno do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” é
esperada. Não obstante, na revelação dada a João, existe a visão de um reino
intermediário de mil anos durante o qual Cristo governa a terra antes e como um
passo em direção ao cumprimento final das promessas eternas. Nesse breve
capítulo, podemos somente esboçar o ensino da Bíblia acerca desse assunto.
Discussões mais extensas podem ser encontradas em vários livros e comentários.
Observamos acima que Apocalipse enfatiza o retorno de Cristo. O tema da
sua vinda está presente no começo e no fim do livro; as cartas para as 7 igrejas
estão repletas com a expectativa juntamente com as recompensas e julgamentos
que Cristo trará. As visões que constituem a maior parte dos escritos encontram
seu clímax no capítulo 19, quando o retorno de Cristo é retratado em uma
imagem vívida.
Nesse ponto não é necessário discutir se Apocalipse deve ser interpretado de
uma maneira preterista (passado, ou seja, primeiro século) ou futurista. Mesmo
se o livro como um todo fosse uma descrição visionária das provações da igreja
do primeiro século, este único evento – o retorno de Cristo, que é o foco do livro
– era antes de mais nada uma esperança futura. O livro termina com um apelo
para que ele venha. A vinda ainda não aconteceu; ela é futura.
Isso significa que a visão em Apocalipse 19 deve ser vista como uma
esperança futura. E não há dúvida que o julgamento em 20.11-15, a nova terra e
a Sião escatológica em 21-22 também são expectativas futuras. No meio desses
eventos futuros encontramos 20.1-10, a revelação do reino milenar.
Apocalipse 20.1-3 descreve Satanás sendo amarrado e preso por mil anos para
que não engane as nações. Apocalipse 20.4 descreve os mártires cristãos (que
morreram durante a tribulação) sendo ressuscitados dos mortos para reinar com
Cristo. Apocalipse 20.5 declara: “os restantes dos mortos não reviveram até que
se completasse os mil anos”.Os versos 7-15 descrevem o que acontece ao fim dos
mil anos, quando Satanás é solto. Deus e Cristo respondem em julgamento,
descrito na imagem do Dia do Senhor, mas também com finalidade eterna.
Os versos cruciais são primeiro 4-5a e então 5b-15. Em 4-5a um padrão é
estabelecido envolvendo duas ressurreições divididas por um reino de mil anos
de Cristo e os santos que pertencem a ele. Nessa visão, João vê as almas dos
mortos que foram fiéis a Cristo durante a tribulação. Isso relembra as visões
anteriores de 6.9-11 e 7.9-14. Esses mortos “vieram à vida e reinaram com
Cristo por mil anos”. Versos 5b-6 reformulam o mesmo ponto.

Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte


na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridades;
pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil
anos.

No início deste capítulo, observamos que a expectativa do Novo Testamento é


que a ressurreição dos mortos ocorrerá na vinda de Cristo. Quando Cristo
estender a vida ressurreta para aqueles que acreditam nele, as promessas da
aliança avançam o cumprimento e o reino entra em uma nova fase de revelação.
Entretanto, nem todos aqueles do reino milenar participam da ressurreição, a
vida imortal. No fim dos mil anos, Satanás é libertado e engana as nações em
uma rebelião contra Cristo e seus santos. Apocalipse 20.9 nos diz que esses
rebeldes serão destruídos, revelando sua mortalidade.
Além do mais, nem todos os mortos são ressuscitados durante o reino
milenar. Apocalipse 20.5a explica que “os restantes dos mortos não reviveram até
que se completasse os mil anos”. Isso é posteriormente elaborado nos versos 12-
15 quando depois dos mil anos (v. 7), “os mortos, grandes e os pequenos”
libertados “do mar [...] da morte e do Hades” (vv. 12-13, libertos do estado
intermediário da morte). A libertação dos mortos da morte é a ressurreição, a
ressurreição prevista como “segunda”, pela identificação do verso 5b, da
ressurreição pré-milenar como “primeira”. Nesse momento, o Julgamento Final
acontece (vv. 13-15) tornando possível a revelação da nova terra e do reino
eterno de uma humanidade imortal e exclusivamente ressurreta (21.1-5).
O reino milenar, então, é uma fase do reino escatológico, o retorno do Cristo
ressurreto, juntamente com todos os santos ressurretos, para governar as nações
da terra. É um tempo no qual a mortalidade ainda condiciona as vidas de um
segmento da humanidade e muitos dos mortos ainda aguardam ressurreição.
Além disso, já que não há dúvida de que muitas bênçãos que derivam do reino
pessoal de Cristo (como seria esperado a partir de outras passagens que predizem
as bênçãos do seu reino), o reino milenar abriga a possibilidade de rebelião e de
julgamento, uma possibilidade que se torna real diante da libertação de Satanás.
Apocalipse 20 é a única Escritura que prediz (ou antevê) explicitamente um
reino milenar intermediário. Nenhuma outra passagem explícita ou
implicitamente fala acerca de um reino milenar, isto é, um reino que dura mil
anos. Um reino intermediário pode estar implícito a partir da delineação de
Paulo dos estágios históricos da ressurreição em 1 Coríntios 15.20-28.
Nos versos 23-24, Paulo destaca três estágios da ressurreição:

Cristo, as primícias;
Depois, os que são de Cristo, na sua vinda
E, então, virá o fim [...]

Nessa sequência, o fim é um estágio distinguível da ressurreição paralela à


ressurreição do próprio Cristo, e depois daqueles que pertencem a ele, que são
ressuscitados no seu retorno. O fim também é descrito no verso 24 como o
tempo “que ele entregará o reino” a Deus, o Pai. É a culminação de uma
atividade na qual ele abole “todo governo, toda autoridade e poder”. Essa
atividade é posteriormente explicada nos versos 25-28 como um reino durante o
qual todos os inimigos estão sendo sujeitos a ele. O último inimigo a ser
subjugado é a morte. A morte foi parcialmente subjugada através dos estágios
anteriores de ressurreição, porém, ela está completamente subjugada na
ressurreição final, a terceira na ordem no verso 24.
O reino de Cristo que precede a revelação final e eterna do reino escatológico
cobre qualquer tempo que se passa entre o segundo e terceiro estágios da
ressurreição. Esse reino pode de fato ser estendido de volta ao primeiro estágio,
aquele da ressurreição de Cristo, já que vimos que Paulo repetidamente fala do
presente reino de Cristo usando a linguagem de Salmos 110.1 (cuja linguagem
também é usada aqui em 1Co 15.25). Paulo não indica o tanto de tempo que
pode se passar entre a ressurreição que acontecerá na vinda de Cristo e a
ressurreição final de todos os mortos. Entretanto, a natureza intermediária desse
período faz paralelo com aquele reino intermediário milenar de Apocalipse 20. É
o reino na terra (depois da vinda de Jesus Cristo) que inclui crentes ressuscitados,
só que antes da ressurreição final. Além do mais, existem certas tensões durante
esse reino – Cristo está presente subjugando inimigos – uma condição que
também faz paralelo com as condições vistas em Apocalipse 20.
A descrição do reino intermediário de Apocalipse 20, e possivelmente
1 Coríntios 15, está relacionada a um tipo distintivo da descrição do reino do
Antigo Testamento. Por um lado, o reino escatológico de Deus e do seu Messias
é caracterizado pela paz, justiça, bênção eterna e imortalidade. Por outro lado,
algumas passagens descrevem o reino sob condições de mortalidade humana
(Is 65.17-25) e com certa quantidade de tensão entre o rei e as nações, uma
tensão que é facilmente suprimida (Zc 14.9, 16-21; Is 11.4; cf Sl 2). De um
ponto de partida do Antigo Testamento, é certamente possível que essas
condições possam ser cumpridas em uma fase histórica do reino antes do
cumprimento final que reúne as descrições de paz e alegria eternas (como em
Is 2.2-4; Mq 4.1-4; Is 60).
A possibilidade de um reino intermediário é bem forte em Isaías 24-25, um
oráculo que às vezes é chamado como o pequeno apocalipse de Isaías. Isaías 24 é
uma predição típica da vinda do Dia do Senhor, com muitas das características
que marcam esse evento como um julgamento divino. Isaías 25.6-9 vê o reino
escatológico duradouro de Deus. Deus reina de Sião como rei sobre todos os
povos. Há um banquete jubiloso em sua presença. Porém, de forma mais
importante, Deus concede imortalidade à humanidade redimida. A morte é
eliminada. A comunhão entre Deus e a humanidade é realizada em paz eterna.
Entre essas duas passagens está 24.21-23.
Naquele dia, o Senhor castigará, no céu, as hostes celestes, e os reis da terra,
na terra. Serão ajuntados como presos em masmorras, e encerrados num
cárcere, e castigados depois de muitos dias. A lua se envergonhará, e o sol se
confundirá quando o Senhor dos Exércitos reinar no monte Sião e em
Jerusalém; perante os seus anciãos haverá glória.

O período de “muitos dias” intervindo entre o Dia do Senhor e o reino imortal


eterno é o reino intermediário. De fato, Apocalipse 20 pode ser entendido como
uma interpretação dessa mesma passagem em Isaías. O Dia do Senhor em
Isaías 24 tem um tratamento expandido em Apocalipse 6-19. Em Apocalipse 19,
Cristo retorna para “punir [...] os reis da terra” (Is 24.21) (seguindo o padrão
revelado em Daniel, Apocalipse antevê os reis da terra como consolidando sua
autoridade em um governante; Ap 13; 17.12-13,17). Quando Cristo retorna, ele
“pune” os reis da terra que se opõem a ele e captura e atira o governante imperial
no lago de fogo (Ap 17.14; 19.17-21).
Cristo também pune “os poderes em cima nos céus” (Is 24.21). Em
Apocalipse, as hostes rebeldes dos céus são Satanás e seus anjos, que são expulsos
do céu (12.7-9). A linguagem de Isaías do aprisionamento em uma masmorra
por muitos dias (24.22) é aplicada em Apocalipse 20.1-3 a Satanás: um anjo
“lançou-o no abismo, fechou-o e pôs selo sobre ele, para que não mais enganasse
as nações até se completarem os mil anos”. Isaías diz que “depois de muitos dias
eles serão punidos”. João escreve que depois de mil anos, Satanás será “lançado
para dentro do lago de fogo e enxofre, onde já se encontram não só a besta como
também o falso profeta; e serão atormentados de dia e de noite, pelos séculos dos
séculos” (20.10). Além disso, “se alguém não foi achado inscrito no Livro da
Vida, esse foi lançado para dentro do lago de fogo” (20.15).
Seguindo essa punição, o profeta Isaías escreve que “a lua se envergonhará, e
o sol se confundirá quando o Senhor dos Exércitos reinar no monte Sião e em
Jerusalém” (24.23) e ele descreve esse reino em 25.6-9. João descreve os céus e a
terra abrindo o caminho para novo céu e nova terra e a Sião escatológica
(Ap 20.11; 21.1, 10) que brilha mais intensamente que o sol ou a lua (21.23). As
ideias, as imagens e até algumas das palavras em Apocalipse 21.3-4 são traçadas
diretamente de Isaías 25.6-9.
Então, ouvi grande voz vinda do trono, O Senhor dos Exércitos dará neste monte a
dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os todos os povos um banquete [...] Destruirá
homens. Deus habitará com eles. Eles serão neste monte a coberta que envolve todos os
povos de Deus, e Deus mesmo estará com povos e o véu que está posto sobre todas as
eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, nações. Tragará a morte para sempre, e
e a morte já não existirá, já não haverá luto, assim, enxugará o Senhor Deus as lágrimas
nem pranto, nem dor, porque as primeiras de todos os rostos, e tirará de toda a terra o
coisas passaram (Apocalipse 21.3-4). opróbrio do seu povo, porque o Senhor
falou. Naquele dia, se dirá: Eis que este é o
nosso Deus, em quem esperávamos, e ele nos
salvará; este é o Senhor, a quem
aguardávamos; na sua salvação exultaremos e
nos alegraremos (Isaías 25.6-9).

Em resumo, as predições do Antigo Testamento sobre o reino escatológico


deram duas perspectivas sobre a relação entre o rei escatológico e seus
subalternos: uma em que a tensão e a tentativa de rebelião eram possíveis e outra
em que paz, regozijo e justiça governam. Essas perspectivas não são inteiramente
incompatíveis. É, no mínimo, possível que sejam cumpridas em estágios
sucessivos que revelam progressivamente o reino, a revelação final coincidindo
com as descrições de glória e imortalidade. Um período entre o Dia do Senhor e
o reino de imortalidade em Isaías 24-25 parece ter sido interpretado em
Apocalipse 20 exatamente como um estágio na história do reino. É uma forma
do reino escatológico na qual Cristo está na terra, governando sobre as nações,
mas na qual ele está progressivamente subjugando todos os inimigos a si mesmo.
É um tempo em que a mortalidade ainda condiciona uma porção da
humanidade e alguns se opõem ao seu governo. Esse reino é revelado tendo mil
anos de duração. O tradicionalmente chamado reino milenar.
O REINO ESCATOLÓGICO FUTURO NA ESPERANÇA DA IGREJA
CONCLUSÃO
Na dispensação patriarcal, Deus agiu de uma maneira real no julgamento e na
bênção. Ele fez a aliança de certas outorgas aos patriarcas de forma semelhante às
alianças outorgadas dos reis antigos. A mais importante foi a feita com Abraão
para o abençoar, e também aos seus descendentes e nele abençoar todos os povos
da terra.
A aliança mosaica trouxe uma nova dispensação quando Deus constituiu os
descendentes de Abraão em uma nação, o próprio Deus assumindo o papel
como seu rei. Seu relacionamento com outros povos foi mediado através da sua
aliança com Israel. Uma provisão foi feita para um rei humano sujeito ao
Senhor. Uma aliança concedida foi feita com a casa de Davi para ser a casa real
de Israel. Uma tipologia de reinado foi moldada nos reinos de Davi e Salomão,
iluminando o reino ideal de Deus e do seu rei davídico ungido. Nesse reino
ideal, a intimidade divino-humana mais próxima possível existe entre Deus e o
rei davídico. Também, as bênçãos das alianças são concretizadas para os
descendentes de Abraão e para todos os povos conforme a hegemonia política do
Reino de Deus é estendida pela atividade do reino davídico sobre as outras
nações.
Os pecados de Israel, que trazem em perspectiva uma idolatria contínua,
incorreram em juízo divino, ambos sobre a nação e a casa de Davi. Os profetas
que predisseram esse julgamento também predisseram um reino escatológico – o
Reino que seria estabelecido nos últimos dias em conjunção a uma nova aliança
na qual Deus habitaria em seu povo e escreveria sua lei em seus corações, um
reino no qual o Messias davídico mediaria as bênçãos para todos os povos, o
plano divino para domínio humano, um reino de vida imortal e eterna alegria, o
reino que tanto cumpriria e superaria a tipologia ideal dos reinos davídico e
salomônico.
No Dia do Senhor, Deus trouxe destruição e morte, pessoal e politicamente
sobre Israel. O governo da casa davídica foi interrompido, os povos foram
exilados da terra prometida, Jerusalém foi arrasada. Durante o exílio, entretanto,
operando através de um remanescente fiel de judeus (de acordo com a aliança
abraâmica), Deus revelou seu reinado para e através de certos reis babilônicos,
medos e persas. Novamente, uma tipologia é estabelecida para o reinado de
domínio mundial, mas também para julgamento. As visões apocalípticas de
Daniel preveem um tempo de grande angústia, perseguição e blasfêmia sob o
reinado de um rei gentílico. O julgamento divino destruirá a soberania desse
reino maligno e estabelecerá o reino do Filho do Homem e dos santos do
altíssimo, o qual será o reino eterno de Deus. Os profetas pós exílicos também
falam da vinda do julgamento do Dia do Senhor contra os poderes opressivos
gentílicos e como um purificador de Israel, levando a revelação de Deus como rei
na terra, suprimindo a rebelião e a injustiça em alguns textos, e concedendo
bênçãos de paz e alegria sobre um povo redimido em outros.
As Escrituras do Novo Testamento revelam o reino escatológico de Deus
vindo à existência através de sucessivos estágios históricos. Esse reino escatológico
de Deus será o cumprimento, através da tipologia e da profecia, do reino de
Deus revelado na antiga dispensação. É o objetivo das ações reais de Deus nas
dispensações patriarcal e mosaica. É a estrutura pela qual o plano de Deus para a
humanidade e para o resto da criação, e especialmente seu relacionamento com
ambos será cumprido.
O reino escatológico começa sua aparição na pessoa do rei escatológico, Jesus,
o Cristo. Ele é um descendente de Davi ungido pelo Espírito Santo, agindo com
poder e autoridade para conceder as bênçãos do reino. Ele também é Deus, o rei,
encarnado como um descendente de Davi, unindo ambos os reinados em uma
pessoa. [Essa aparição de Deus como Jesus traz uma nova revelação de Deus –
uma trindade de pessoas como uma realidade divina.]. O próprio Jesus identifica
suas ações realizadas através do Espírito Santo como o reino de Deus. O reino
está presente porque ele é o rei escatológico e está presente na terra. As obras de
Jesus dão vislumbres dinâmicos do reino: pecados são perdoados, doenças são
curadas, deficiências são saradas, demônios são exorcizados e os mortos são
ressuscitados. Ele acalma o vento e o mar e multiplica comida ao abençoá-la. Ele
leva pessoas ao conhecimento de Deus e promete a bênção da nova aliança de
justiça pela renovação interna através do Espírito Santo. Ele então dá sua própria
vida em um ato sacerdotal messiânico para expiar o pecado humano e então
ressuscita dos mortos, revelando em si mesmo a vida imortal e ressurreta que foi
predita para o reino escatológico.
Jesus não somente identifica a si mesmo e suas ações como uma presença do
reino escatológico, mas ele também proclama o estabelecimento futuro desse
reino de forma consistente com o padrão geral predito pelos profetas, mas, com a
nova revelação de que ele próprio virá como o Senhor no Dia do Senhor e
reinará como o rei do reino eterno. Ele continuamente faz referência a si mesmo
como o Filho do Homem que virá em glória apocalíptica em um tempo de
angústia e julgamento, descrito através de uma síntese de elementos a partir das
visões de Daniel e das profecias do Dia do Senhor. Porém, ele também predisse
que retornaria para Deus, o Pai, antes dessa vinda apocalíptica. Em suas
parábolas, ele explicou que receberia o reino nesse tempo, que batizaria seus
discípulos pelo Espírito Santo (a inauguração da bênção da nova aliança), que
colocaria “filhos” ou cidadãos do reino (constituído como tal pelo Espírito) no
mundo onde através da proclamação do evangelho eles cresceriam em número e
que retornaria com julgamento sobre o mal e conduziria os herdeiros para o
reino eterno de Deus.
Essa fase do reino escatológico do qual Jesus falou em parábolas é revelado
em Atos e outras epístolas do Novo Testamento como a nova dispensação,
estabelecida através das bênçãos inauguradas da nova aliança baseadas na morte
sacrificial de Jesus. Essa próxima fase do reino escatológico coincide com a
glorificação de Cristo no céu, onde ele foi entronizado como Messias. Ele recebeu
autoridade sobre todo governo e domínio na terra. De fato, toda autoridade nos
céus e na terra foi dada a ele. Porém, ele espera do Pai pelo tempo do seu retorno
quando ele revelará essa autoridade no padrão completo predito para o reino
escatológico (e revelará aspectos de autoridade ainda maiores também).
Enquanto isso, ele já começou a agir institucionalmente como Rei, ao garantir
para aqueles que acreditam nele as bênçãos da nova aliança de perdão dos
pecados, habitação e presença renovadora do Espírito Santo (o batismo do
Espírito Santo o qual ele falou). Essas são, de fato, bênçãos do reino escatológico
(características do reino que está por vir). Elas servem como adiantamento, uma
garantia, do cumprimento futuro de todas as bênçãos da nova aliança.
Nessa fase presente do reino, Jesus atraiu para si mesmo um remanescente de
Israel e das muitas nações gentílicas. Ele concedeu igualmente as bênçãos da
nova aliança para crentes judeus e crentes gentios, sem distinção de gênero ou
classe. A dádiva das bênçãos da nova aliança, dessa mesma maneira, constituem
uma nova dispensação no relacionamento de Deus com a humanidade. É
também a primeira aparição institucional do reino escatológico. De forma
consistente com sua autoridade messiânica, Jesus está formando esse
remanescente de judeus e gentios em um “templo” ou “casa” para ser o lugar de
habitação de Deus na terra. Como a aparição anterior do reino escatológico
ocorreu quando Deus se encarnou como Jesus, o descendente de Davi, o Rei dos
reis, assim a presente forma do reino aparece quando o Espírito de Deus habita
os judeus e os gentios, cidadãos do reino. Eles formam uma nova sociedade, a
qual a paz e justiça do reino devem ser manifestadas. Sua identidade, assim como
suas bênçãos, são encontradas em Cristo (consistente no padrão de aliança da
bênção “nele”). Eles são o corpo de Cristo, a igreja – no sentido universal desse
termo.
Enquanto o Novo Testamento proclama o relacionamento entre Cristo e a
igreja (o rei messiânico e judeus e gentios que confiam nele), uma revelação do
reino escatológico, ele também prediz a vinda futura daquele reino em toda sua
plenitude. Essa vinda coincidirá com a vinda de Jesus para julgar o pecado na
terra, concedendo todas as bênçãos das alianças e trazendo os remanescentes de
todas as nações (Israel e gentios) sob sua hegemonia real. Isso é o que Paulo
parece se referir por “a dispensação da plenitude dos tempos”, quando todas as
coisas no céu e na terra são recapituladas em Cristo (Ef 1.10). Entretanto, João
recebe uma revelação de que isso aconteceria em dois estágios, o primeiro
durando mil anos (o reino milenar) e o segundo no cumprimento final do reino
escatológico.
O império milenar do Messias é a próxima fase do reino escatológico depois
dessa fase que agora está presente – a comunidade do Rei, a igreja. E, como
observamos, sua aparição marca uma mudança de dispensação, de uma
dispensação eclesiástica para o primeiro estágio da dispensação final, ou Siônica.
A mudança da primeira para a segunda aparição do reino escatológico foi
marcada pela ressurreição e glorificação do Rei. A mudança da segunda para a
terceira fase do reino é marcada pela ressurreição e glorificação da igreja.
Entretanto, a mortalidade é presente para um segmento significativo da
humanidade. O Cristo ressurreto e os santos ressurretos (cf. Dn 7.14, 27; 12.2)
irão administrar a vida humana na terra em suas dimensões nacionais e políticas.
Como o Messias de Israel, Jesus irá cumprir para essa nação as promessas quem
foram feitas em alianças com ela e ele governará sobre todas as nações, para que
através dele todas elas possam ser abençoadas. Ele governará com “cetro de
ferro”, aprisionando a impiedade espiritual e subjugando toda autoridade
humana para ele mesmo. As bênçãos espirituais que foram realizadas na
dispensação anterior na vida da comunidade escatológica, a igreja, serão
estendidas nesse estágio do reino através de dimensões políticas e nacionais da
vida humana também. As bênçãos terrenas que foram vislumbradas nas obras
messiânicas individuais durante o primeiro advento serão estendidas ao redor do
mundo. No fim desse estágio do reino, o próprio mal será destruído em uma
demonstração do julgamento de Cristo contra as rebeliões satânica e humana, e a
morte juntamente com o pecado serão eliminados.
AS DISPENSAÇÕES E O PROGRESSO DO REINO

Quando Jesus tiver sujeitado todas as coisas a ele mesmo e tiver destruído o
pecado e a morte, o reino escatológico de Deus se manifestará eterno e imortal
em toda sua plenitude numa terra renovada. Esse reino é o objetivo da redenção,
a conclusão de todas as revelações anteriores do reino de Deus. É o governo do
Deus Pai, Deus o Filho encarnado como Messias, filho de Davi, Filho do
Homem e Deus Espírito Santo sobre a terra com todos os seus habitantes e sobre
os céus e tudo que nele há para sempre. Esse reino é terreno. A maldição que veio
através do pecado será substituída pela bênção da vida e a fertilidade sobre a
terra. Morte, doença e a ação demoníaca serão eliminadas e a Cidade de Deus
será estabelecida na terra. O reino também é espiritual, como uma redenção é
estendido por completo em ambos os aspectos individuais e sociais da existência
humana. Será caracterizado pela vida eterna e imortal, pela retidão e justiça. A
impiedade terá sido julgada e removida. Graça, misericórdia, compaixão, paz,
santidade, piedade, pela regeneração e habitação do Espírito Santo, tendo
conhecimento de adoração, de obediência desejosa a Deus, em alegria, felicidade
e bênção para sempre. O reino também é nacional e político naquilo que envolve
o estabelecimento e a administração de todas as nações através do Messias de
Israel, Jesus, filho de Davi. Deus reinará sobre as nações em glória, poder e
majestade, abençoado, honrado e adorado para todo o sempre.

1. No quarto evangelho, quando essa advertência por João é ausente, o próprio Jesus testifica que o Pai “deu
todo julgamento para o Filho” (Jo 5.22).
2. O fato de que Mateus usa a expressão “reino dos céus” e Marcos “reino de Deus” sobre as declarações
resumidas do ensino de Jesus, demonstra que essas são expressões alternativas para a mesma coisa. Muitos
dizem que “reino dos céus” se refere a algo diferente de “reino de Deus” por causa da presença de certas
parábolas em Mateus. Entretanto, isso é uma falha, pois não leva em consideração esse dispositivo literário.
Consequentemente, perdem o ponto em que naquelas parábolas, Jesus revela frases progressivas e históricas
desse reino, não a vinda de algum reino novo e completamente diferente.
3. Em Mateus 16.28, Jesus diz, “Garanto-lhes que alguns dos que aqui se acham não experimentarão a
morte antes de verem o Filho do homem vindo em seu Reino”. Essa declaração é melhor interpretada no
contexto da transfiguração que em Mateus segue imediatamente o destaque. Três dos discípulos são
escolhidos para testemunhar esse evento no qual Jesus aparece em sua glória vindoura.
4. No quarto evangelho temos o relato da conversa de Jesus com Pilatos na qual ele destaca: “O meu reino
não é deste mundo. Se o meu reino fosse desse mundo, os meus ministros se empenhariam por mim, para
que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36). Jesus afirma que ele é
um rei, que nasceu para ser rei (18.37), mas seu reino não é “desse mundo”. Isso não significa que seu reino
é imaterial. A declaração deveria ser interpretada à luz da repreensão de Jesus a Pedro no Jardim (18.10-11).
No relato de Mateus, Jesus diz a Pedro: “Acaso, pensas que não posso rogar a meu Pai, e ele me mandaria
neste momento mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26.53). O destaque a Pilatos no evangelho de João
funciona como o destaque a Pedro em Mateus. A questão é a fonte do poder não a localização do reino. O
auxílio dos anjos, na verdade, afirma a tradição do Antigo Testamento do Filho do Homem vindo governar
o reino, como Jesus o descreve em Mateus 25.31 (cf 16.27). Nessa passagem, a localização do reino futuro
certamente é na terra.
5. Perceba a personificação da abominação da desolação.
6. A profecia resultante é estruturada por dois dispositivos literários: (1) abominação da desolação de Daniel
que divide ao meio aquela porção do discurso relacionado ao sinal da Sua vinda (Mt 24.4-31; Mc 13.5-27;
Lc 21.8-28). A divisão é similar à forma como a “abominação” divide o período de “sete” (anos) em
Daniel 9.27, de tal forma que a segunda parte da divisão em ambos os discursos – o tempo da abominação
da desolação – é um tempo de grande angústia (cf. Dn 12.1, 7-11) e (2) a metáfora do nascimento do Dia
do Senhor (Is 13.8) que é usada em Mateus 24.8 (Mc 13.8) para cobrir por inteiro a mesma porção do
discurso (referente ao sinal da Sua vinda, Mt 24.4-31 e paralelos). No uso dessa metáfora por Jesus, todo o
tempo de aflição e julgamento se torna Sua vinda, com sua aparição em Mateus 24.30 correspondendo ao
fim do processo de trabalho de parto, ou seja, o “nascimento”.
7. Compare Mateus 9.35: “E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas,
pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades”.
8. Não é ressignificada. Se assim o fosse, o significado tradicional desapareceria e seria substituído
unicamente pelo filho divino. O resultado seria uma cristologia docética (Cristo somente aparentaria ser
humano; ele não seria verdadeiramente humano) em vez de encarnacional.
9. Veja o capítulo 6.
10. Outros termos messiânicos e descrições passam pelo mesmo tipo de integração. O Messias deveria ser o
Pastor de Israel, um termo derivado do chamado de Davi para se tornar uma designação para o governador
de Israel. Porém, Davi declarou que o Senhor Deus é seu Pastor e os profetas predisseram o reino vindouro
de Deus como um tempo quando ele pastorearia seu povo. Em Jesus, tanto divino quanto davídico,
“pastorear” vem em união. Ele é o Bom Pastor que verdadeiramente não é um herdeiro. Ele é o dono das
ovelhas (divino), que doa vida pelos seus (o Messias Servo) e então conduz suas “ovelhas” ao reino eterno
onde ele reinará sobre elas (o Messias reinando na terra para sempre).
11. A frase “no meio de vós” é algumas vezes traduzida “dentro de vós” com uma perspectiva do
pensamento que o reino é uma realidade espiritual no coração dos ouvintes de Jesus. Esse não pode ser o
caso da passagem, já que os seus ouvintes são fariseus que o rejeitam. Em Mateus 23.27, Jesus pronuncia
um “ai” sobre os fariseus, a quem ele compara a “sepulcros caiados, que, por fora, se mostram belos, mas
interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda imundícia”. O reino de Deus deve se apresentar
como uma realidade espiritual no coração deles.
12. A luz de Cristo é um tema frequente para Paulo, descrevendo um relacionamento presente do crente
com Jesus (2Co 4.6).No ministério de Paulo, ele vê pessoas se voltando “das trevas à luz e do domínio de
Satanás para Deus” (At 26.18). Isso dá a eles uma herança entre os santos, uma herança na qual eles
começaram a compartilhar, mesmo que já sejam “santos”. (At 26.18; Cl 1.12, cf. v. 2).
13. A nova aliança promete prover uma ressurreição tanto espiritual quanto corpórea. Na teologia Paulina,
a vivificação é primeiramente espiritual (isto é, o renovo Espiritual do coração) e então física, na vinda de
Cristo (Rm 8. 10-11).
14. Como em Isaías 2 e Miquéias 4.
15. Os dispensacionalistas tradicionalmente têm defendido o pré-tribulacionismo, a crença que o
arrebatamento acontecerá antes da tribulação. A tribulação é um termo que se refere ao período de sete anos
visto em Daniel 9.27, incluindo os eventos associados com ele – eventos que recebem uma elaboração
posterior na visão de Daniel. No sermão do Monte das Oliveiras, Jesus sintetiza, ou combina, as visões dos
problemas de Daniel com o tema Profético do Dia do Senhor (veja acima). Tanto Paulo (em 1Ts 5.1-12)
quanto João (em Apocalipse) seguem Jesus nessa combinação (confirmando sua dependência pelo uso
literário das palavras de Jesus). Com isso em mente, a libertação no começo do Dia do Senhor em
1 Tessalonicenses 5 (perceba o início surpreendente, uma comparação com o início do trabalho
1 Tessalonicenses 5.2-3, e o verbo “apanhar” em 5.4) parece ser pré-tribulacional.
16. Compare com 2 Tessalonicenses 1.5, onde Paulo diz à igreja que seus sofrimentos são pelo reino de
Deus, cuja herança é então descrita como uma participação na glória de Cristo (2Ts 1.9-10; cf. Cl 3.4). A
descrição de Paulo da glória futura que ofusca os sofrimentos da igreja romana seria entendida de forma
similar ao reino de Deus. O fato de os ressuscitados herdarem essa glória também confirma esta interpretação
(cf. 1Co 15.50).
17. A orientação futura de Hebreus 13.14 é significativa à luz do destaque, nessa epístola, das bênçãos da
nova aliança presentemente realizadas. Ela é colocada em paralelo, pelo comentário do escritor, no começo
da epístola sobre “o mundo que há de vir, a respeito do qual estamos falando” (Hb 2.5). O escritor se volta
dessa expectativa futura para as presentes bênçãos de Jesus (Hb 2.9) e permanece nesse tema até o fim da
epístola. As referências futuras no começo e no fim, entretanto, advertem contra ler a teologia da epístola de
uma maneira totalmente realizada. Na verdade, a teologia de Hebreus é bastante consistente com o
cumprimento progressivo, presente-futuro, que temos observado em outros escritos do Novo Testamento.
18. Para estudos recentes sobre Romanos 11.26 e seu contexto veja J. Lanier Burns, “The Future of Ethnic
Israel in Romans 11” em “Dispensationalism, Israel and the Church: The Search for Definition”, pp. 188-229;
e S. Lewis Johnson, Jr. “Evidence from Romans 9-11”, em “A Case for Premillennialism, A New Consensus”,
ed. Donald K. Campbell e Jeffrey L. Townsend (Chicago: Moody, 1992), pp. 199-223. Em
Romanos 11.26, o termo “assim” é melhor interpretado com a ideia de “assim como”, indicando que a
salvação de “todo Israel” (definitivamente uma referência nacional à luz do uso contextual do termo Israel)
acontecerá como predito pelos profetas; Johnson, pp. 214-216; Burns, pp. 211-216.
PARTE QUATRO
TEOLOGIA E MINISTÉRIO
por Craig A. Blaising
CAPÍTULO 9

QUESTÕES TEOLÓGICAS E MINISTERIAIS NO


DISPENSACIONALISMO PROGRESSIVO

O trabalho do dispensacionalismo progressivo até este ponto tem sido


principalmente no nível da teologia bíblica, exegese e exposição. Estas questões
têm sido primordiais: como o Novo Testamento interpreta as alianças e as
profecias com respeito ao Messias e o reino escatológico? O que é a igreja e como
ela se relaciona com plano de Deus revelado na história do Antigo Testamento,
na vinda do Messias e na profecia bíblica? Como as sucessivas dispensações nessa
história de redenção se relacionam uma com a outra e com o plano geral de
Deus? É assim que deveria ser. O dispensacionalismo progressivo pertence a uma
tradição evangélica que tem seu interesse principal no entendimento das
Escrituras. Pois são as Escrituras que tem sido a reivindicação absoluta da nossa
fé e prática.
Não temos a pretensão de ter solucionado todos os problemas interpretativos
em nossos esforços para compreender as Escrituras. O trabalho da interpretação
bíblica é contínuo, e devemos estar sempre preparados para nos beneficiarmos
dele. Entretanto, uma direção parece evidente dos estudos realizados até agora,
de modo que é possível destacar uma posição geral acerca das questões levantadas
acima. Isso foi feito brevemente no primeiro capítulo deste livro e no último
capítulo de Dispensationalism, Israel and the Church: The search for a definition.
Os estudos exegéticos dessa obra e a exposição oferecida neste livro
proporcionam os detalhes que reforçam e sustentam esta posição interpretativa
geral.
Ainda há muito trabalho a se fazer para trazer as interpretações do
dispensacionalismo progressivo para discussões mais amplas da teologia e prática
do ministério. Neste capítulo, gostaríamos de apresentar algumas sugestões sobre
como isso deve ser feito. Não tentaremos fazer um trabalho completo da teologia
sistemática nem comentar todos os tópicos teológicos a partir de um ponto de
vista dispensacional. Em vez disso, limitaremos nossos comentários em algumas
áreas, levantando questões e sugestões que pensamos que seriam frutíferas para
discussões posteriores. Uma dessas áreas tem a ver com o relacionamento da
igreja e do reino. Uma teologia da igreja tem como retorno uma teologia do
ministério, e é nessa conexão que faremos sugestões com respeito a alguns
aspectos do ministério que são presentes em muitas discussões no
evangelicalismo.
Essas sugestões são oferecidas com a esperança de que os dispensacionalistas e
outros teólogos evangélicos possam ter colaboração conosco, desenvolvendo o
que pode ser uma contribuição digna, e corrigindo onde for necessário, para o
benefício de todos.
IGREJA E MINISTÉRIO
Temos visto que o dispensacionalismo progressivo vê a igreja como uma fase do
reino escatológico. A igreja é uma nova manifestação de graça na qual ela é um
remanescente reunido de todas as nações, abençoada por Jesus, o Messias, com a
bênção da nova aliança do Espírito Santo. A igreja é uma obra do próprio
Messias. Ele é seu cabeça, Senhor e Rei. A igreja o reconhece de tal forma em fé.
A igreja é o(s) povo(s) do Messias, seu reino especial. A igreja se estende a todas
as nações ao redor da terra, porque tal é a extensão do reino do Messias. Ela é
uma parte do reino futuro do Messias, pois quando ele prepara esse reino, todos
os que pertencem à igreja serão incluídos juntamente com os judeus e os gentios
do passado e do futuro que têm sua fé e esperança firmadas no Redentor. Porém,
a igreja em sua dispensação difere dos santos do Antigo Testamento em suas
dispensações porque a igreja é uma criação do Messias (o Redentor encarnado
agora como o Messias). A igreja assim pertence ao reino do Messias, que faz parte
do reino escatológico.
A igreja difere da fase futura do reino, o Messias está presentemente “longe”
(ainda que ele esteja conosco sempre, não obstante, está corporalmente presente
com o Pai). A igreja espera pelo seu retorno. Consequentemente, a igreja é uma
constituição do reino futuro, presente na terra antes do reino vir em toda sua
plenitude no retorno do Messias. A igreja também difere do reino futuro naquilo
que ela é, por ser somente uma parte desse reino, já que o reino futuro incluirá
todos os indivíduos de todas as dispensações através da ressurreição dos mortos.
A igreja difere do reino futuro quanto a bênção do reino que tem sido
recebida, a saber, a bênção da nova aliança da habitação do Espírito Santo, pois
tem sido dada somente na forma inaugural. A bênção será dada por completo
somente no retorno do Messias, em cujo tempo a santificação será completa em
nossa experiência até mesmo na ressurreição e vida imortal.
Com essas diferenças em mente, dizemos que a igreja é uma forma
inaugurada do reino futuro de Deus.
Agora, a continuidade da igreja com o reino futuro, bem como suas
diferenças, ajudam a definir o seu ministério nesta dispensação. Não falaremos
aqui do ministério da igreja de chamar indivíduos à fé em Cristo e os discipular
na sua caminhada pessoal com o Senhor, levando-os a uma adoração, serviço e
testemunho de vida. Esses aspectos do ministério são bem conhecidos por
muitos. Os dispensacionalistas anteriores destacaram os aspectos pessoal e
individual do cristianismo exclusivamente. Seu argumento de que alguém só
pode nascer de novo pessoalmente, pela fé em Cristo, não pelas ações dos outros
à parte da fé pessoal é saudável e praticamente todos os evangélicos
concordariam com isso. Existem muitos aspectos construídos ao redor dessa
verdade, porém não os exploraremos aqui.
Em vez disso, exploraremos os outros aspectos do ministério que fluem a
partir, ou são destacados, pelo fato de que a igreja é uma manifestação do reino
futuro em uma forma especial nesta dispensação. Isso se relaciona ao ministério
social da igreja.

O Ministério Social Interno da Igreja. O reino de Deus tem a ver com retidão,
justiça e paz nas relações dos povos entre si e com os outros. A igreja é uma
manifestação escatológica do reino porque ela é uma assembleia de povos que o
Messias, agindo com autoridade real, colocou em relacionamento uns com os
outros, vinculados pelas bênçãos de paz, retidão e justiça inauguradas através do
Espírito Santo. Essas bênçãos são experimentadas em uma forma inaugurada. A
igreja desse lado da glória ainda luta com os problemas do pecado: iniquidade,
discórdia e injustiça. Porém, a igreja é chamada para uma vida de santidade, para
crescer em graça andando pelo Espírito.
Assim como os dispensacionalistas revisados começaram a explorar a natureza
comunitária da igreja na vida corporal, parece que os dispensacionalistas
progressivos precisam explorar o significado de santidade na vida social da igreja.
Isso requer reconhecer que a igreja é uma sociedade. Seus relacionamentos
podem ser analisados sociologicamente. A natureza plural e comunitária da igreja
constitui a sua realidade social. A questão aqui é que Cristo pretende redimir a
humanidade tanto socialmente quanto individualmente. A redenção social da
humanidade começa na igreja. A justa sociedade de pessoas profetizada sob o
Messias de Israel começou a aparecer. É o que chamamos de corpo do Messias,
judeus e todos os tipos de gentios unidos pelo dom do Espírito Santo pelo
Messias. É o organismo que ele enche e o qual manifesta sua presença na terra
em sua ausência física – a igreja.
Buscar socialmente a santidade na comunidade do Messias significa a busca
de justiça, retidão e paz nas estruturas sociais da igreja como uma extensão
pessoal e interpessoal. Os dispensacionalistas progressivos precisam encarar a
questão do pecado estrutural. Ele precisa ser encarado, antes de mais nada, na
igreja. Como pode a santidade ser manifestada nas estruturas políticas do corpo
de Cristo? E o que dizer das estruturas governamentais e de gestão da igreja? O
dispensacionalismo clássico ofereceu uma crítica à forma como a estrutura de
poder de ordenação foi usada para inibir ministérios de pessoas não ordenadas
que foram dotadas pelo Espírito. O que dizer acerca das estruturas de poder nas
igrejas evangélicas e nos ministérios para-eclesiásticos hoje em dia? O que dizer
das supostas questões de rotina de emprego no ministério cristão? Quais padrões
governam a distribuição de fundos e determinam os salários? Nossos ministérios
são orientados para se adequar às necessidades sociais dos irmãos e das irmãs em
Cristo?
Porque o corpo de Cristo é um, transcendendo as divisões da igreja local, a
exploração do ministério social interno da igreja deve ir além das paredes da
igreja local. Os dispensacionalistas têm reconhecido o relacionamento que existe
entre os crentes em Cristo que transcende a membresia da igreja local.
Entretanto, os dispensacionalistas progressivos deveriam reconhecer
especialmente a relação que existe entre igrejas, comunidades e ministérios, não
somente indivíduos. Não estamos falando aqui da ecumenicidade administrativa,
aquele medo que evangélicos possuem acerca do movimento ecumênico. Em vez
disso, estamos falando da ecumenicidade espiritual compartilhada não apenas
por crentes, mas pelas comunidades de adoração que se reúnem no nome de
Jesus Cristo. Isso é o que vemos na coleta que Paulo fazia nas igrejas entre os
gentios em favor da igreja em Jerusalém. Esse esforço foi um exemplo de igrejas
cuidando de outra igreja porque era uma reunião de igreja em nome de Jesus
Cristo.
Como as igrejas se adequam às necessidades de outras igrejas em Cristo? É
possível que um ministério social possa crescer entre as igrejas?
O Ministério Social Externo e Político da Igreja. Muitas propostas evangélicas
relativas ao ministério social da igreja se concentram exclusivamente no
ministério externo da igreja, ou de cristãos individuais, para as necessidades
sociais da sociedade mundana. Isso não é outra forma de um cristianismo
altamente individualizado? Enquanto isso pode parecer uma acusação estranha,
considere o que isso significa em alguns desses cenários. O ministério para as
necessidades da sociedade é um meio de atrair indivíduos ao evangelho. Após a
conversão, esses são rapidamente postos para trabalhar chamando outros
indivíduos ao evangelho através de ações direcionadas às necessidades sociais.
Porém, eles não experimentam a redenção social com outros crentes em Cristo.
Qual é o significado do trabalho social deles? Outra forma de evangelicalismo
que contribui para a construção de melhores estruturas sociais na sociedade em
geral, juntamente com a mensagem evangélica da salvação individual. Ambas
parecem ignorar o chamado da igreja para ser a sociedade redimida que somente
ela pode ser.
Os dispensacionalistas progressivos fariam bem em explorar a santidade social
interna da igreja como uma forma de testemunho para sociedade externa. Em
outras palavras, se nós como a comunidade de Cristo trabalhássemos em criar
nossa comunidade como um modelo de justiça social e paz, então nós realmente
teríamos algumas sugestões a fazer para uma reforma social em nossas cidades e
nações. E poderíamos fazer isso com o evangelho, porque a mensagem, as
sugestões e até mesmo a obra social externa estariam baseadas no chamado a
Cristo, em quem a conversão social e individual estão de mãos dadas.
O que significaria, por exemplo, se uma igreja constituída primariamente de
pessoas com empregos bem remunerados, em sua maioria em cargos executivos e
liderança empresarial, uma igreja forte financeiramente, ministrasse a uma igreja
constituída essencialmente de operários e sofrendo desemprego, e isso tudo por
serem crentes em Cristo? E se uma igreja com um grupo étnico dominante
ministrasse a uma igreja cuja maioria de seus membros são de outro grupo
étnico, ajudando a criar oportunidades para aqueles irmãos e irmãs em Cristo
que são justos e honestos, transformando as injustiças raciais que assolam um
mundo que não conhece Cristo – fazendo tudo isso simplesmente porque juntos
confessam o nome de Jesus e são chamados para manifestar, mesmo em uma
forma inaugural, a justiça do reino de Deus? E se eles ministrassem uns aos
outros desta forma especificamente com o propósito de explorar e revelar uma
santidade social?
Se a igreja se tornar uma oficina na qual a justiça do reino é buscada em
nome de Cristo, o ministério social externo se torna um chamado a Cristo.
O trabalho político da igreja está de mãos dadas com isso. Com o passar de
dois mil anos, a igreja existiu sob inúmeras políticas nacionais diferentes. Hoje,
muito da igreja é encontrado em estruturas políticas participativas, democracias
de vários tipos. Reconhecendo que Deus superintende as políticas nacionais da
humanidade e que estruturas políticas existentes pedem uma participação dos
cidadãos, a igreja deveria exercitar sua responsabilidade juntamente com os
cidadãos do mundo na legislação, execução e adjudicação da lei. Entretanto, a
partir de que base a igreja falaria acerca de justiça e paz nacional? A partir de uma
perspectiva do dispensacionalismo progressivo, essa base deveria ser o reino
escatológico futuro, que é conhecido através da profecia direta, através do
testemunho de dispensações passadas (incluindo a manifestação da justiça na
teocracia de Israel), e a manifestação da justiça do reino na vida da igreja em si. A
igreja deve compartilhar de uma base revelacional na qual ela busca justiça
dentro de sua própria sociedade; e testemunha, a partir dessa base, seu trabalho
pela justiça na sociedade em geral.
Reconhecer a conexão dispensacional com o reino vindouro dá à igreja uma
base para uma participação evangelística nos assuntos políticos e sociais deste
mundo. Reconhecer a diferença dispensacional entre nossa presente situação e
aquela que será estabelecida somente na vinda de Cristo mantém essa atividade
evangelística. O cabeça da igreja, o rei de todas as nações, ainda virá em
julgamento. A igreja não porta a espada sobre a descrença. Esse tem sido o erro
de algumas experiências da igreja e do Estado no passado, e resulta de uma má
compreensão da dispensação na qual vivemos. Não deve haver nenhuma
execução da lei contra a descrença até que o próprio Cristo venha. A igreja deve
chamar os descrentes às boas novas de Cristo, nunca legislá-la. Porém, a justiça
nas relações humanas é uma preocupação apropriada do governo. A igreja
deveria trabalhar por leis justas como um testemunho para a justiça que busca
dentro de si mesma, sob o poder do seu Senhor presente e futuro.
Devemos sempre reconhecer que carregamos nosso tesouro em vasos de barro
(2Co 4.7). Até mesmo toda a revelação que temos nas Escrituras e com a obra do
Espírito Santo na igreja, há muito que ainda não sabemos acerca do reino.
Vemos como em espelho escurecido, como Paulo disse (1Co 13.12). Nossa
revelação é parcial, somos tentados a pecar (injustiça e discórdia) e estamos
propensos a erros de conhecimento e julgamento. Os cristãos não podem afirmar
que tudo o que vem às suas mentes sobre questões políticas e sociais é
necessariamente santificado, correto ou até mesmo prático. Não temos
justificativa para a arrogância.
Mas talvez a chave para aceitar humildemente nosso papel na sociedade em
geral resida no fato de que somos chamados primeiramente para nossa própria
conversão, não simplesmente à individual, mas social e politicamente. A
revelação que recebemos e a obra do Espírito em nós são dirigidas primeiramente
para nós. A igreja é a comunidade teste para a justiça social e política. Se não
pudermos ou não a buscarmos aqui, nós realmente não temos nada para dizer
aqui. Se buscarmos entre nós mesmos, ainda que falhemos, temos algo a dizer, e
nossas imperfeições ajudam a nos manter humildes.

O Corpo Multicultural de Cristo. Quando falamos da igreja como uma


sociedade, devemos reconhecer que a forma singular dessa palavra, sociedade,
não implica em uma cultura homogênea. A sociedade da igreja é na verdade uma
pluralidade de muitas sociedades, grandes e pequenas, em um nível em que
encontramos as diferenças de etnia e culturas compartilhadas. Entender a igreja
como uma forma presente do futuro reino escatológico deveria nos levar a ver
que esse fenômeno multicultural é exatamente o que Deus pretende. O reino
futuro abrangerá todas as nações. A igreja de hoje é uma comunhão unida pelo
Espírito, feita de judeus e de todos os tipos de gentios.
Isso significa que os dispensacionalistas progressivos devem participar
plenamente das discussões evangélicas de ministério e cultura. Encaramos os
desafios de ministérios multiculturais, mistérios uniculturais chamados às
responsabilidades em um mundo multicultural e ministérios transculturais. Essas
não são preocupações secundárias, mas enraizadas na própria realidade do corpo
de Cristo.
Os dispensacionalistas progressivos deveriam estar especialmente preocupados
em realçar e encorajar a realidade multicultural do corpo de Cristo, não vê-la
como um prejuízo, ou algo a ser eliminado em busca de uma homogeneidade
humana idealizada (que não é realmente humana). Reconhecemos que o Espírito
é dado (e pretende ser dado) através das fronteiras étnicas e culturais. Assim
como os cristãos judeus aceitaram os cristãos gentios, da mesma forma
encaramos o desafio de ver e encorajar o cristianismo em uma expressão
multicultural. Temos que nos guardar contra a dominação cultural e a repressão
que é feita em nome de Cristo. Isso é algo realmente oposto a Cristo, pois Cristo
está destinado a governar (e já governa) uma humanidade multicultural. Porém,
um cristianismo multicultural não é sincretismo. É a conversão do paganismo
multicultural em um cristianismo multicultural. As questões, preocupações e
desafios são reais, como é real no próprio Novo Testamento. Porém, o
dispensacionalismo progressivo deve encarar essas questões diretamente.
TEOLOGIA E HISTÓRIA
Jesus Cristo está atualmente nos céus, sentado à destra de Deus até o tempo
estabelecido pelo Pai para seu retorno. Quando ele voltar, ele revelará a união do
governo humano e divino sobre a terra e todos os seus habitantes. Atualmente,
toda autoridade nos céus e na terra tem sido dada a ele (Mt 28.18). Ele sustém
todas as coisas pela palavra de poder (Hb 1.3) e nele todas as coisas subsistem
(Cl 1.17). Ele é o cabeça de todo governo e autoridade. Quando ele vier, sua
administração de assuntos humanos será evidente para todos. Mas, como
relacionamos sua autoridade sobre todas as coisas e o curso dos eventos históricos
presentes?
O dispensacionalismo observa uma distinção entre o relacionamento de
Cristo com as nações agora e seu relacionamento com elas em seu retorno. As
profecias de Cristo governando sobre as nações ainda serão cumpridas. O Novo
Testamento espera que Cristo venha e governe as nações de maneira direta, uma
forma que não está sendo revelada agora. O próprio Cristo falou da “restauração
do reino” a Israel como uma questão de tempo, com Pedro interpretando esses
destaques como diferenças entre o Cristo que ascendeu e o que voltará. E ainda
assim ele exercita uma autoridade sobre todas as coisas agora.
O dispensacionalismo progressivo não vê o relacionamento de Cristo com as
nações agora como o cumprimento da sua herança política, contudo, ele se
relaciona com elas agora com uma visão em direção ao seu futuro governo sobre
elas. O dispensacionalismo progressivo vê a atividade principal de Cristo como a
formação de um remanescente de pessoas a partir de todas as nações que são suas
para manifestar, de uma forma inaugural, a justiça que ele dará a todas as pessoas
nesse reino futuro. Elas são uma comunidade evangelística, testificando o poder
salvífico de Jesus, que está sendo revelado pessoalmente e comunitariamente
(socialmente) na igreja.
O relacionamento de Cristo com as nações agora é primariamente com a
visão do seu propósito de formar sua própria comunidade. Mas o que isso
significa para o entendimento da maldição e dos eventos históricos nesta
dispensação? Podemos ler os desenvolvimentos políticos e sociais os relacionando
com a atividade de Jesus, o Rei dos reis? Sua autoridade, poder e posição
explicam a história política e nacional de hoje?

Profecia e os Eventos Atuais. Os dispensacionalistas clássicos e revisados têm


em comum com o pré-milenismo histórico uma crença de que as visões
apocalípticas e as descrições no Antigo e no Novo Testamento oferecem uma
plano detalhado de eventos interconectados, parcialmente codificados, que
descrevem especificamente o cenário do retorno de Cristo. Uma vez
decodificada, essa porção da história, a tribulação, pode ser conhecida em termos
surpreendentemente concretos. Dispensacionalistas e historicistas diferem entre
si apenas na questão relativa aos eventos da tribulação ocorrendo no presente. A
doutrina do arrebatamento pré-tribulacional permitiu aos dispensacionalistas
manter a tribulação inteiramente no futuro, e assim eliminar o constrangimento
de repetidos fracassos em tentativas de relacionar eventos atuais com a profecia.
A pressão popular da interpretação historicista sempre esteve presente na
formação do dispensacionalismo americano. Historicistas participaram lado a
lado com futuristas nas conferências bíblicas e proféticas do último século. A. J.
Gordon, por exemplo, historicista destacado, exerceu uma grande influência na
forma e no tom do pré-milenismo nos Estados Unidos, até mesmo no
desenvolvimento do dispensacionalismo. Um público evangélico clamou por
uma explicação religiosa acerca das convulsões políticas, militares e religiosas no
começo do século XX. Os dispensacionalistas responderam com a sua própria
solução ao historicismo. Embora ninguém possa interpretar os tempos como a
revelação atual da história da tribulação, pode ser observada a formação das
características da história da tribulação antes do início de fato dessa história. Eles
concordam com os historicistas que um intérprete da Bíblia pode identificar
nações, pessoas e movimentos da tribulação com especificidade, se os códigos
apocalípticos forem devidamente entendidos. Porém, porque eles alegaram estar
aptos para identificar esses eventos enquanto estavam se formando, antes que a
própria tribulação começasse de fato, eles efetivamente convertem a interpretação
bíblica numa forma de profecia em si.
Os dispensacionalistas clássicos e revisados diferiram em níveis na
especificidade pela qual eles identificavam os eventos atuais como a formação do
cenário da tribulação. Eles também pareceram capazes de se dobrar e se curvar
com as mudanças na história, para que as identificações que fizeram
anteriormente acerca dos poderes e movimentos militares propensos à tribulação
pudessem ser reformuladas de acordo com o que parecia mais ou menos provável
com o passar do tempo.1
Embora, conforme observamos, a literatura apocalíptica bíblica e as profecias
continuem sendo uma característica importante da teologia dispensacional, os
desenvolvimentos atuais na interpretação histórica e literária põem em questão
esses elementos historicistas do dispensacionalismo inicial. Até esse ponto, os
dispensacionalistas não buscaram ativamente o estudo do gênero apocalíptico
como um gênero literário. Além do mais, muito da literatura apocalíptica bíblica
tem sido lido à parte das considerações do seu contexto histórico (ler as profecias
e a literatura apocalíptica à luz do seu contexto histórico não exclui um referente
futuro). Os dispensacionalistas, assim como os historicistas, tenderam a lê-lo
diretamente à luz dos seus próprios contextos. O próprio fato de que esses
contextos modernos estão em mudança, foram produzindo muitas mudanças na
leitura dispensacional correspondentes à profecia; deve-se dar uma pausa.
À medida que os dispensacionalistas começaram a estudar os elementos
literários da profecia e do apocalíptico, eles precisam levar em conta a forma
como as descrições literárias são levadas a um padrão recorrente de profecia e
cumprimento dentro da própria história bíblica. Isso inclui, por exemplo, a
interconexão literária das palavras e dos temas descritivos nos dois Dias do
Senhor em Joel e o uso recorrente da linguagem dos primeiros profetas pelos
profetas que vieram depois e até mesmo pelo Novo Testamento (por Jesus e seus
apóstolos), para descrever eventos históricos diferentes (a conquista assíria de
Israel, a conquista babilônica de Judá, a destruição romana de Jerusalém, um
“Dia do Senhor” ainda por vir). O reemprego de descrições literárias na profecia
posterior e no apocalíptico põe em questão a suposição de que essa linguagem
fornece um cenário histórico concreto de forma parcialmente codificada.
Certamente, os dispensacionalistas progressivos acreditam que haverá uma
tribulação futura formando o cenário para o retorno de Jesus. Os eventos atuais
que acontecem nesse tempo na história seguirão o padrão geral delineado nas
Escrituras (o mesmo padrão que tem sido aplicado pelas próprias Escrituras em
eventos passados.). Entretanto, os dispensacionalistas progressivos questionariam
a alegação de qualquer intérprete bíblico que tenha identificado eventos atuais
específicos como um cumprimento tribulacional futuro das descrições repetidas
historicamente do Dia do Senhor ou das visões misteriosas do apocalíptico
bíblico. Deveria ser observado o fato de que na história bíblica, o cumprimento
profético sempre foi identificado e proclamado pela autoridade profética. É
necessária a autoridade profética ou a aparição do próprio Jesus Cristo para
identificar qualquer padrão de angústia e conflito no mundo com a tribulação.
Ninguém pode, por uma alegação de interpretação “científica”, divinizar esse
tipo de autoridade para si hoje em dia.
Os dispensacionalistas devem proteger a si mesmos e suas igrejas de
especulações e do sentimentalismo que não edificam o corpo de Cristo, levando
à ilusões, ressentimentos e falta de fé, quando profecias que deveriam acontecer
sob o pretexto de interpretação falham.

Teologia e a Esperança de Israel. O caso de Israel e do povo judeu é um


aspecto especial de nossa questão geral acerca do relacionamento das Escrituras
com a história contemporânea. A preservação contínua da raça judaica está
certamente de acordo com as promessas e profecias de Deus com respeito à
existência do povo e a salvação de um remanescente na vinda do Messias. Os
eventos destacáveis dos últimos dois séculos, nos quais judeus têm gradualmente
retornado à Palestina é certamente consistente com o fato de que o Filho de
Davi é Senhor da história. Vimos em nossos tempos o restabelecimento de um
estado judeu e sua preservação através de várias circunstâncias difíceis.
Porém, também observamos que a obra primária do Filho de Davi, que
também é o Deus de Israel encarnado, nos últimos dois milênios, tem sido o
cultivo de um remanescente a partir de todos os povos que confiam nele. Tal
atividade está diretamente ligada em conservar as profecias que ele governará
sobre todos os povos, que os gentios, assim como os judeus, colocarão sua
confiança nele. Agora precisamos perceber que dentre esses redimidos das
nações, ele manteve um remanescente de judeus que confiam nele. Isso é verdade
para o tempo presente, na medida em que temos várias comunidades
messiânicas, assembleias de judeus que têm colocado sua fé no Filho de Davi,
antecipando seu retorno.
Precisamos notar que os judeus crentes no Messias são o remanescente crente
de Israel. Eles estão crescendo em número, o que é inteiramente consistente com
o senhorio do Messias nesta dispensação. Eles, juntamente com o remanescente
de gentios, devem manifestar a justiça do Messias, e devem ser um testemunho
da justiça para todas as nações, incluindo Israel.
Qual atitude a igreja, a comunidade internacional messiânica e multicultural,
deveria tomar em relação ao presente Estado de Israel? Por um lado, o Senhor
instruiu a igreja, sua assembleia de todas as nações, a orar pelas autoridades
governamentais. Isso significa que a igreja, as comunidades messiânicas e as
igrejas predominantemente gentílicas devem orar pelo Estado de Israel assim
como por outras nações do mundo hoje.
A igreja deve obedecer às leis dadas pelas autoridades governamentais. Ela
tem um mandato para testificar o senhorio e messianidade de Jesus que pode
conflitar com as leis de alguns estados. Nesse caso, deve estar preparada para
sofrer as penalidades daquelas autoridades, como foi o caso dos primeiros judeus
cristãos que foram perseguidos por autoridades de judeus descrentes, e também o
caso de gentios cristãos perseguidos por autoridades locais imperiais, e como
continua em muitos outros lugares ao redor do mundo ainda hoje.
A igreja, a comunidade messiânica internacional, deveria ser um testemunho
e uma revelação da justiça e da paz entre povos, especialmente entre judeus e
gentios. Agora, em uma comunidade de nações que detém a forma de governo
participativo, a igreja tem uma tremenda oportunidade de testemunhar a paz e a
justiça. A igreja deve se opor ao ódio étnico, seja pessoal ou político. No nível
político e governamental, ela deve se opor à hostilidade étnica aos judeus da
parte de governos gentios. Deve se opor, também, à hostilidade étnica contra um
povo gentio em particular por parte de outro governo gentio. Também deve se
opor à hostilidade do governo de Israel contra um povo gentio em particular.
Em vez disso, a igreja deve ser um modelo em si mesma de relacionamentos de
paz e reconciliação.
A cumplicidade do cristianismo na hostilidade de alguns poderes gentios
contra os judeus nos últimos dois mil anos é uma das falhas mais claras da igreja
nesta dispensação, se posicionando ao lado das divisões faccionais, perseguição e
guerras entre grupos que proclamam o nome de Cristo. O dispensacionalismo
começou como um movimento de protesto contra a identificação do estado
moderno com a igreja (especialmente o caso da Igreja da Inglaterra do século
XIX). Ele buscou a união pacífica de todos os crentes em Cristo dentre as
divisões denominacionais. Assim, ele buscou e promoveu a reconciliação de
todas as partes (isto é, todos os grupos evangélicos protestantes) em Cristo. Ele
também reconheceu um futuro para o Israel étnico e nacional (apesar de ter feito
à parte das bênçãos da igreja). Assim, o dispensacionalismo ajudou a trazer uma
atitude favorável em relação aos judeus e o movimento sionista desde o último
século.
Entretanto, no seu entusiasmo para a ressurreição política de Israel, alguns
dispensacionalistas parecem ter perdido de vista a atividade particular do Filho
de Davi nesta dispensação – que é trazer reconciliação e paz entre povos. Alguns
têm defendido publicamente um suporte de carta branca para qualquer política
promulgada pelo Estado de Israel.2 Porém, e quanto à medidas políticas que
sustentam a injustiça, como cristãos podem defendê-las? Como podem judeus
ou cristãos gentios de hoje em dia apoiarem as injustiças israelenses quando
profetas judeus no Antigo Testamento condenaram as autoridades em Jerusalém
por injustiças similares, geralmente pondo em risco os próprios profetas? Não
houve maiores apoiadores do povo judeu, e do futuro de Israel debaixo de Deus,
do que Moisés, Samuel, Amós, Elias, Habacuque, Isaías e Jeremias. E ainda
assim, nenhum deles confundiu seu compromisso e desejo de abençoar Israel
com o apoio ou tolerância à injustiça!
Por favor, perceba que esses mesmos profetas condenaram as nações gentílicas
ao mesmo tempo pelas mesmas, ou piores injustiças. A igreja nesta dispensação
precisa prover um testemunho para a justiça que faz paralelo com o dos santos
do Antigo Testamento.
Com base na profecia política, esperamos um tempo quando muitos judeus
se voltarão para o Filho de Davi, como um remanescente de judeus tem feito
através dos séculos. As profecias com respeito à glória futura de Israel
encontrarão seu cumprimento nesse remanescente de fé constituído como uma
nação santa sob o reino do Messias, o Filho de Davi. A reunião progressiva dos
judeus à Palestina nos tempos modernos e sua reconstrução política é certamente
consistente com essa explicação. Porém, não é ainda o cumprimento do reino
prometido de glória. Esse reino vem com o retorno do Messias e é antecipado
pelas bênçãos presentes sobre judeus e gentios que confiam nele.
CRISTOLOGIA
O dispensacionalismo clássico buscou organizar as Escrituras ao redor de uma
soteriologia dualista: uma redenção celestial produzindo um povo celestial e uma
redenção terrena produzindo um povo terreno. Apesar de unirem o dualismo
clássico em uma salvação comum (quer no “céu” ou na “nova terra”),
dispensacionalistas revisados permaneceram estritamente antropocêntricos na sua
leitura das Escrituras e na sua organização da teologia. O dispensacionalismo
progressivo vê Cristo como a chave para entender as Escrituras e o foco
adequado para o pensamento teológico.
É claro que outras teologias, até mesmo formas anteriores do
dispensacionalismo, podem também dizer que Cristo é a chave para as
Escrituras. Os dispensacionalistas progressivos, entretanto, buscam entender a
apresentação do Novo Testamento de Cristo em uma forma literária-histórica.
O que surge é uma figura do Cristo que é complementar às promessas históricas
das alianças bíblicas e ao acompanhar a revelação progressiva na profundidade e
extensão da redenção. Isso é o que nos leva a uma redenção holística – uma que
cobre todos os aspectos da vida humana.
Seguindo a tradicional crença na unidade da pessoa de Cristo e à integridade
das naturezas divina e humana (porque cremos que essa interpretação é
confirmada pela leitura repetitiva da igreja das Escrituras), nós, não obstante,
buscamos entender a revelação de sua deidade e o significado da sua humanidade
de uma maneira histórica. Ele deve ser entendido à luz de uma história de
redenção revelada no Antigo Testamento e propagada no Novo Testamento.
Nosso estudo das alianças e do reino confirma isso. Em outras palavras, ele é esse
Messias, esse Rei ungido do eschaton, que cumprirá as promessas da aliança.
Como Deus, ele também deve ser interpretado à luz da história da redenção,
como tem sido revelado no Antigo Testamento. O Novo Testamento transmite
esse entendimento de Deus, como vimos também nos capítulos anteriores. Isso
significa que ele é esse Deus que fez as promessas da aliança, que é esperado para
vir na era escatológica e governar a terra e todos seus povos – removendo sua
culpa e trazendo-os em comunhão próxima e eterna consigo mesmo,
abençoando-os com vida, conforme ele pretendeu para eles para que vivam, para
sempre.
Em Jesus Cristo, os governos humanos e divinos estão juntos em uma pessoa.
Essa é a revelação da reconciliação última. A tensão entre o governo davídico e
divino é eliminada na unidade da pessoa e ação de Cristo. Assim, a encarnação é
crucial para garantir a salvação dos seres humanos, pois pelo menos esses seres
humanos têm uma vida humana duradoura e eterna. Sua expiação é crucial para
trazer perdão e justificação para todos. Sua ressurreição dos mortos revela a
imortalidade humana assim como o poder divino.
Muito disso é teologicamente familiar, entretanto, a teologia tendeu a tratar a
humanidade de Cristo de forma genérica. Isso pode ser visto, por exemplo, na
análise tradicional cristológica da sua natureza humana. Praticamente, isso
significou a “gentilização” de Cristo. Pois sua judaicidade, e especialmente
aquele papel do judeu Filho de Davi, é perdida nessa análise típica. O que está
faltando é uma reflexão séria sobre aquele outro princípio cristológico da
inominização, que declara que Cristo não carece de personalidade humana
(tendo portado natureza humana, mas não uma identidade humana real).
Entretanto, para nos guardar do nestorianismo (a heresia de que Cristo é na
verdade duas pessoas, uma divina e uma humana), a cristologia ortodoxa
afirmou que o Cristo tem real personalidade humana na pessoa do Filho Eterno
de Deus, Segunda pessoa da Trindade. O ponto aqui, entretanto, é que a
ortodoxia afirma que Cristo é verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem.
Porém, que homem? Um homem genérico?
Concordaríamos que, nas Escrituras, ele é aquele homem predito pelas
alianças e pelas profecias, um homem com o destino esboçado naquelas
promessas da aliança e profecias. Esse destino deveria ser entendido histórica e
revelacionalmente através do Novo Testamento. Em outras palavras, ele é a
pessoa que o Antigo Testamento esperava que ele fosse. Porém, ele é mais, visto
bem diretamente na revelação dele como Deus. Isso não é mera deidade
ontológica. Esse é o Deus que não somente é o poder eterno e último, a vida e a
morte últimas para nós, mas é o Deus que disse que viria e teria comunhão
conosco no reino eterno. Esse extra que o Novo Testamento revela em Cristo
não elimina ou erradica o Cristo que foi esperado, mas aumenta seu retrato e
papel. Um aumento que mantém o que já estava lá anteriormente enquanto
adiciona a ele. A teologia tradicional tem lutado com a tentação de deixar o extra
em Cristo eliminar aquilo que foi esperado. Porém, esse é o caminho para o
docetismo (a heresia acerca de Cristo somente parecer ser um homem). Pois, é
precisamente na expectativa bíblica de Cristo, o Filho de Davi, que governa
todas as nações, que essa sua humanidade deve ser encontrada. Ele é esse homem,
o homem das profecias, o Filho de Davi-Filho de Deus (no sentido da aliança do
Filho de Deus – isto é, o Rei) que governará as nações do mundo.
Já que na teologia do Antigo Testamento, o Filho de Davi é esperado que
seja o Filho do Homem (Sl 8), que é esse homem, no qual a imagem de Deus
para o homem é realizada ultimamente, consequentemente, vemos em Jesus
Cristo o cumprimento da vida humana e o domínio da criação de Deus.
Conectado a ele está o futuro da raça humana. Porém, é uma raça humana em
sua pluralidade concreta. Isso é o que vemos nas profecias que Cristo governaria
todas as nações da terra. É uma reconciliação, não somente da humanidade com
Deus, mas da humanidade consigo mesma em toda sua multiplicidade. É a
reconciliação do Filho de Davi com outros judeus e com gentios, levando à
reconciliação desses povos entre si.
Consequentemente, vemos Cristo de forma concreta, e não de forma abstrata
ou genérica. Vemos Cristo de forma concreta como o Deus de Israel e de todas
as nações, encarnado em Jesus, filho de Davi. Esse é o Deus que revelou sua
intenção de habitar na e com a humanidade. A habitação é primeiramente
revelada no próprio Cristo e estendida a nós nesta dispensação – judeus e gentios
que confiam nele, numa forma inaugural e depositária, aguardando a revelação
completa de Deus em nós na próxima geração (nossa glorificação).3 A habitação
com a humanidade confirma os aspectos coletivos e corporativos da vida
humana, seus elementos nacionais, políticos e sociais. Deus pretende ter
comunhão com uma humanidade corporativa (é por isso que ele ordenou que os
seres humanos enchessem a terra, levando não apenas à diferenciação individual,
mas também à diferenciação coletiva nas famílias, tribos e nações). Deus
revelado em Cristo é Deus que veio para ter comunhão conosco dessa maneira.
Jesus Cristo é Deus encarnado como o Filho de Davi, o governador político da
humanidade redimida em todos os seus aspectos, tanto individuais quanto
nacionais.
Porque as Escrituras revelam Jesus sendo esse Deus e Homem, não podemos
inventar para nós mesmos qualquer outra relação com ele que aquela a qual ele
próprio revelou para todos os povos.
Ao ser verdadeiramente humano e ser o homem específico que ele é, sua
relação com outros seres humanos é histórica, isto é, ele é um homem que
experimenta a história em relação à terra e a humanidade nela. Ele não fez isso
antes da sua morte. Sua ressurreição dos mortos confirmou para ele um
relacionamento futuro que ele mesmo falou em termos tanto políticos quanto
espirituais. Quando nos relacionamos com ele hoje, estamos nos relacionando
com aquele Filho de Davi que é imortal, que tem um destino, que está vindo
para governar as nações. Toda sua obra presente deveria ser interpretada à luz
disso. Ele está reconciliando um povo para si – judeus e gentios, que serão essa
humanidade escatológica das profecias. O caráter e a qualidade de sua obra entre
judeus e gentios hoje não separam mais esses judeus e gentios das promessas de
domínio mundial, senão, não seria Ele quem está fazendo a obra. As Escrituras
revelam essa obra como estando alinhada com sua completa intenção de voltar,
renovar a criação e ter comunhão com os redimidos para sempre – Deus
habitando com, e na, humanidade que ele criou.
Cristo, então, é a revelação do plano e do propósito do Deus-Cristo em Sua
concretude, como interpretado historicamente e nos padrões literários das
Escrituras. Ele é a chave para as dispensações. O mistério dessa dispensação é
devido a determinação dele e do Pai como um estágio, ou caminho, livremente
escolhido em direção ao cumprimento da intenção divina. Ele dá às dispensações
sua unidade – uma unidade no desenvolvimento histórico, não uma unidade
transcendental não-histórica – e ele dá aos redimidos a identidade deles como
o(s) povo(s) de Deus.

1. Para uma história sobre esse tipo de interpretação profética veja: Paul Boyer, When Time Shall Be No
More: Prophecy Belief in Modern American Culture (Cambridge, Mass.: Belknap, 1992).
2. Isso é geralmente justificado com base na provisão mediadora da aliança abraâmica (“abençoarei os que te
abençoarem e amaldiçoarei os que te amaldiçoarem”). Essa interpretação falha em notar como a mediação
da aliança tem sido herdada pelo Rei, o Filho de Davi, para ser exercitada por ele em favor de Israel e de
todas as nações (veja os capítulos 5 e 6 acima). A bênção e a maldição da Aliança abraâmica hoje é
direcionada para todo aquele que abençoa ou amaldiçoa o Messias de Israel, Jesus, o filho de Davi. Gentios
deveriam tratar judeus com respeito por causa da exaltação do rei de Israel. Judeus deveriam tratar gentios
com respeito por causa do favor que o rei de Israel tem mostrado aos gentios. Porém, é um uso indevido das
Escrituras dizer, com base na aliança abraâmica, que os gentios receberão uma bênção por aplaudir
acriticamente todas as ações tomadas pelo Estado moderno de Israel. Um olhar cego em direção à injustiça
foi o erro dos falsos profetas e não são testemunho para santidade na igreja.
3. Reconhecemos, é claro, a diferença entre Deus em Cristo e Deus em nós. Não nos tornamos Deus como
Jesus é Deus. Porém, Deus habitando em Jesus é o fundamento, a base para Deus habitar em nós. Os pais
da igreja falaram sobre sermos filhos de Deus pela participação em Cristo, enquanto Cristo era o Filho de
Deus por geração eterna.
APÊNDICE
por Darrell L. Bock
APÊNDICE A

O FILHO DE DAVI E O SERVIÇO DOS SANTOS: A


HERMENÊUTICA DO CUMPRIMENTO INICIAL

O plano de Deus, a obra de Cristo e a obra da igreja são temas complexos.


Como alguém poderia resumir o vasto serviço da igreja? Como alguém poderia
unir a diversidade de vertentes de ensino da Bíblia – vertentes que refletem a
esperança futura para Israel e ao mesmo tempo descrevem o que o povo de Deus
na igreja deve fazer hoje? Como alguém pode encorajar os santos em um mundo
que parece tão caótico? Como ministrar num mundo que é tão cruel e confuso?
Ao final das contas, quando tentam reunir grandes porções do Novo
Testamento, recomenda-se um retorno à cristologia. Jesus Cristo é o centro do
plano de Deus. Ao seu redor, os crentes se unem e ganham sua identidade.
Portanto, é importante considerar o ministério de Jesus, especialmente em
seu papel como o Filho de Davi. Esta função é significativa pois se relaciona com
a questão do reino prometido sobre o qual o Filho de Davi preside.
Os dispensacionalistas concordam amplamente sobre como este reino
funcionará na era futura, mas têm opiniões distintas sobre como ele funciona na
era presente.1 Os dispensacionalistas da escola de Scofield viam o reino de Davi
como o reino dos céus manifesto tanto no presente (em forma misteriosa) e no
futuro (no milênio). Entretanto, para eles o reino dos céus não é o mesmo que o
reino de Deus e a presente era; a forma misteriosa do reino dos céus descreve
somente a cristandade professa.2
Os dispensacionalistas “essencialistas”, representados por Pentecost, Ryrie e
Walvoord, aceitam o conceito da atual forma misteriosa do reino, embora
insistam que não é de forma alguma um cumprimento do reino davídico.3 Além
disso, eles negam ou pelo menos minimizam a distinção entre o reino do céu e o
reino de Deus, uma distinção que os primeiros dispensacionalistas mantiveram
vigorosamente. Eles também diferem no modo como veem o relacionamento da
igreja na presente forma de reino. Mas eles concordam que, seja qualquer que for
o relacionamento, os elementos davídicos não estão presentes na atual forma de
reino.4 Embora a promessa davídica fora desenvolvida no Novo Testamento, ela
foi separada da promessa do Antigo Testamento a Israel.
Entretanto, esta mudança levanta algumas questões. Como poderia o Filho
de Davi, nascido em Belém e reconhecido desde aquela época como o Messias,
trazer um forma misteriosa ou espiritual do reino de Deus agora e um futuro – o
reino de Deus prometido para Israel – e ao mesmo tempo exercer o papel como
o Filho de Davi somente em um reino futuro, considerando que textos das
profecias messiânicas, como Salmos 110.1 e Isaías 53, foram aplicados às suas
atividades atuais? Além disso, como alguns benefícios da salvação (por exemplo,
o Espírito Santo e a Nova Aliança) podem estar associados com os mistérios do
reino e/ou sua forma espiritual – a igreja – e também estar ligados à esperança do
Antigo Testamento, especialmente aos conceitos da esperança davídica nos
evangelhos e em Atos? Como o reino de Deus poderia ser limitado agora para a
cristandade professa? Os dispensacionalistas da linha de Scofield reconhecem as
conexões temáticas entre Davi e as formas presentes e misteriosas do reino. A
maioria dos dispensacionalistas essencialistas reconhecem a igreja como sendo
equivalente, ao menos em parte, à presente forma do reino. Os
dispensacionalistas progressivos unem estas duas posições.
Tais questões textuais, teológicas e hermenêuticas levaram muitos
dispensacionalistas a reexaminar a questão a respeito do reino de Davi,
procurando defini-la de forma mais precisa. Eles perguntam se a filiação davídica
de Cristo e seu governo são de fato distintos e se há conexões bíblicas entre a
filiação e o governo que sugerem tanto a continuidade quanto a descontinuidade
entre o Antigo e o Novo Testamento. Qual é o papel do Filho de Davi e como
ele se relaciona com os santos da era presente?
Este artigo começa com a discussão de uma passagem chave que oferece um
panorama do ministério de Jesus (Lc 1.68-79). Esta passagem é considerada
tanto historicamente quanto de uma perspectiva literária com o propósito de
aumentar o conhecimento de quem ele é, o que ele fez e o que ele está fazendo.
Em segundo lugar, dois temas nesta passagem são aqui delineados. Em terceiro
lugar, são abordados o tema do reino nos dias de hoje e a capacitação de Deus ao
seu povo pelo Espírito. E em quarto lugar, são consideradas as implicações deste
ponto de vista para o papel da igreja.
O MINISTÉRIO DE JESUS APRESENTADO EM LUCAS 1.68-79
Lucas 1.68-79 é um cântico de louvor dos lábios do pai de João Batista. Neste
hino, Zacarias agradeceu a Deus por redimir a nação por meio do Filho de Davi.
O serviço do filho tem duas características: o livramento terreno (vv. 68-75) e a
redenção espiritual, que virá após a ministério do precursor (vv.76-79).

LUCAS 1.68-70
Os cânticos de louvor incluem uma introdução ao tema, as razões para louvar e
então uma elaboração deste tema (veja também as razões para louvar nos
cânticos de Maria e Simeão em Lucas 1.47-48 e 2.29-30). E é exatamente isso
que está incluído no cântico de Zacarias. Ele louvou a Deus (1.68) por ter
visitado o seu povo através da obra do prometido “chifre da salvação”
proveniente da “casa” de Davi (v. 69-70). Em outras palavras devemos ser gratos
a Deus pelo envio do tão esperado Messias. O termo “chifre” (Κέρας) é uma
figura para força (Dt 33.17), simbolizando a presença do grande poder real
(1Sm 2.10; Sl 132.17). Os versículos subsequentes de Lucas 1 detalham como
este poder é usado. O versículo 70 relaciona essa esperança da libertação às
profecias do Antigo Testamento, e o versículo 71 detalha esta promessa ao
afirmar que a libertação é dos “nossos inimigos e das mãos de todos os que nos
odeiam”. É ampla a referência aos inimigos, embora não haja dúvida que
Zacarias tinha em mente a oposição política e social.

LUCAS 1.71-75
Além da libertação política, os versículos 71-75 abordam outros dois assuntos.
Um deles é que a ação divina reflete a misericórdia de Deus (v. 72), baseando-se
nas promessas feitas há muito tempo a Abraão (v. 73) bem como a Davi (v. 69).
Um terceiro ponto declara que o objetivo desta libertação é que os santos possam
servir a Deus “sem temor, em santidade e justiça” (vv. 74-75).5 Portanto,
Zacarias claramente antecipou a libertação nacional para seu povo Israel,
provavelmente de Roma. Seu cântico é repleto com a esperança do Antigo
Testamento, como mostram as inúmeras alusões ao Antigo Testamento neste
hino.6 A questão crucial é que a libertação messiânica finalmente tem qualidades
espirituais e terrenas. Esta profecia da libertação política-espiritual, da mesma
forma que as profecias do Antigo Testamento, foram inspiradas pelo Espírito
Santo (v. 67; cf. 2Pe 1.21). Desta forma, Israel tem um futuro na terra. Deus se
comprometeu pessoalmente com a nação e seu povo fiel por meio das promessas
feitas a Abraão e a Davi. Agora há um remanescente fiel, e há posteriormente
uma esperança nacional, uma verdade defendida também por Paulo (Rm 11.25-
27).

LUCAS 1.76-79
Nos versículos 76-77 João Batista é visto como aquele que vai preparar o
caminho. Ele pregava sobre a salvação por meio do perdão dos pecados.
Novamente aqui é declarado o tema espiritual, agora de forma mais explícita.
Jesus também pregou sobre o perdão dos pecados, comissionou seus discípulos
para pregá-lo (Lc 24.47), e também esta era a mensagem dos apóstolos (At 5.31,
20.21).
Em Lucas 1.78-79 fica clara a dimensão espiritual da obra do Filho de Davi.
Jesus, como o Filho de Davi (v. 69), é visto como o “sol nascente” (v. 78, cf.
Nm 24.17; Is 58.6-8; 60.1-3). Como Luz (Is 9.2; 42.6-7; 49.6), ele brilha sobre
aqueles que estão em trevas e os conduz ao caminho da luz e da paz. Jesus
conduz os indivíduos a um relacionamento com Deus por meio do perdão dos
pecados, o qual João Batista preparou as pessoas para o receberem. O que é
crucial aqui é que, de acordo com o cântico de Zacarias, toda esta atividade é
parte do ministério de Jesus como o “chifre da salvação [...] na casa de Davi”
(v. 69). Essas atividades representam os primeiros passos no cumprimento por
parte de Jesus de sua promessa real.7 O cumprimento da promessa é visto
conforme a revelação progride de uma dispensação para a próxima. O
argumento de Zacarias é que Deus traria uma libertação física e espiritual para
Israel de todos os seus inimigos. Esta é uma promessa básica no evangelho de
Lucas. Mas essa passagem funciona também como uma parte literária da
introdução de Lucas-Atos. Como Lucas lidou com os temas apresentados aqui
no decorrer de sua obra? Lucas viu mais nos inimigos e beneficiários do que
Zacarias?
Quem são os oponentes a quem se refere Zacarias (v. 71)? E o que é sugerido
através do tema das trevas (v. 78-79)? O evangelho de Lucas e o livro de Atos
respondem a essas perguntas e revelam o argumento teológico e literário de
Lucas. Os oponentes são Roma, que se opunha ao povo de Deus, bem como os
inimigos também são os líderes religiosos da nação israelita (Lc 11.37-54) e o
povo judeu (At 4.24-29). Por de trás deles há a oposição do próprio Satanás e o
cativeiro em que ele mantém as pessoas por causa do pecado (Lc 4.16-30, 31-44;
8.26-39; 11.14-23). Na cena da tentação, Satanás se opôs a Jesus ao tentar
desviá-lo de sua fidelidade a Deus como Seu Filho (4.1-13). Desta forma, Lucas
desenvolveu o argumento da oposição espiritual mais extensamente do que
Zacarias havia feito. Zacarias estava correto quando afirmou sobre a esperança e
como ela impacta a nação de Israel, porém Lucas, tendo a perspectiva completa
do ministério de Jesus, escreveu um desenvolvimento profundo sobre a promessa
que a expandiu, embora mantivesse sua base original. Em Atos 3.19-21 mostra
que o cumprimento da promessa por meio do Antigo Testamento nunca se
perde naquilo que é desenvolvido a partir dessa promessa.

DA LEITURA HISTÓRICA PARA A LEITURA LITERÁRIA


Um texto bíblico pode ser lido em vários níveis. É mais ou menos como ter uma
câmera e aproximá-la para ter um plano mais fechado ou afastá-la para ter um
plano mais aberto. É possível ler uma passagem de duas formas complementares.
Um evento pode ver visto em si mesmo e/ou lê-lo à luz dos eventos
subsequentes. As duas formas de leitura são legítimas e impactam
apropriadamente o sentido da passagem. Tal tipo de leitura feita em várias
camadas não é uma espiritualização ou alegorização do texto; ela simplesmente
reflete a profundidade e a diversidade da mensagem bíblica conforme o seu
contexto é examinado.8 Além disso, esta leitura que surge não é à custa da leitura
original, mas sim uma leitura complementar.9 Em outras palavras Deus pode
prometer mais do que originalmente prometeu, mas nunca menos.
Existem dois erros na teoria hermenêutica sobre como esses textos
relacionados devem ser lidos. (1) É um erro ler o segundo texto como se ele
apresentasse tudo o que o texto anterior significava. Alguns intérpretes fazem isso
quando argumentam que o Novo Testamento declara o que o Antigo
Testamento realmente significa e então afirmam que isso é tudo o que o Antigo
Testamento queria dizer (e assim os profetas do Antigo Testamento são vistos
como se originalmente estivessem fazendo um grande esforço para expressarem o
que realmente pretendiam ou que se expressaram por meio do “simbolismo
inconsciente”).10 Também é um erro argumentar que a passagem do Novo
Testamento pode significar somente o significado do texto anterior do Antigo
Testamento.11 Ambas as abordagens, quando elevadas a cânones invioláveis,
impedem uma leitura sensível do progresso da revelação e correm o risco de
impedir que cada passagem fale por si mesma. Cada texto deve ser examinado
em seus próprios termos em seu contexto.
O conceito da leitura multicamada não deve ser algo surpreendente. Ele é
usado constantemente na leitura das verdades cristológicas ou do reino no
Antigo Testamento. A revelação subsequente sempre pode expandir a revelação
anterior. Tal abordagem hermenêutica tem o “controle” no significado de uma
passagem, pois os textos subsequentes aos quais o texto anterior está relacionado
fornecem detalhes adicionais ao conceito sem substituir os conceitos já
apresentados, a menos que um cancelamento seja observado explicitamente (por
exemplo, no caso da circuncisão ou dos sacrifícios levíticos). Isso impede que a
leitura de um texto posterior seja uma “leitura direcionada” ao significado de um
texto anterior. Essas são leituras relacionadas, que são possíveis por causa dos
temas levantados implicitamente no texto anterior, temas que permitem que
uma promessa se desenvolva à medida que a revelação progride.
Isto pode ser chamado de hermenêutica complementar, uma abordagem que
funciona naturalmente como o resultado do progresso da revelação dentro de
uma leitura do texto histórico-gramatical-literária. Essa hermenêutica produz
camadas de sentido e especificidade para um texto, à medida que o intérprete
deixa de considerar o contexto próximo e passa a considerar o mais distante. A
base para esta leitura complementar da esperança de Deus está em Mt 13.52.
Jesus comparou o escriba do reino a um pai de família que traz do seu tesouro
coisas antigas e novas. Paulo argumentou da mesma forma quando uniu os
conteúdos do mistério do evangelho às Escrituras do Antigo Testamento
(Rm 11.25-27). Isso significa que o ensino sobre o plano de Deus e a obra de
Jesus tem uma continuidade com a esperança e a promessa do Antigo
Testamento, mas também pode conter uma nova verdade. O antigo e o novo são
colocados lado a lado e complementam um ao outro. Não há uma escolha entre
duas opções, mas sim uma abordagem ambos/e. Essa leitura complementar se
enquadra no texto de Lucas 1.68-79 no contexto de Lucas-Atos.
O DESENVOLVIMENTO DOS TEMAS DO CÂNTICO DE ZACARIAS
Dois temas (a visita de Deus e a luz) apresentadas no evangelho de Lucas e em
Atos ilustram o desenvolvimento da promessa proferida por Zacarias.

A VISITA DE DEUS
A ideia da visita de Deus (Lc 1.68) é desenvolvida nos versículos 78 e 79. “A
estrela ascendente vinda do céu nos visitará para brilhar sobre os que vivem nas
trevas.”12 Deus visita o seu povo através do Messias, que adentrou nas trevas
espirituais. Mais adiante, quando Simeão pegou o bebê Jesus, ele disse que tinha
visto a “salvação” de Deus, a qual é a “luz da revelação para os gentios” (Lc 2.28-
32). Simeão sabia que o Messias chegara tanto para Israel quanto para os gentios.
O texto de Lucas 7.16 declara que o povo de Naim reconheceu que Deus visitara
seu povo por meio de Jesus como “um grande profeta”. Em Lucas 19.44 é dito
que Israel perdeu o tempo da visitação. Entretanto, a “visita” continua, a
despeito do atual fracasso de Israel. No concílio de Jerusalém, Tiago afirmou que
quando Pedro pregou a Cornélio, Deus havia visitado os gentios (At 15.14).
Portanto, o desenvolvimento de Lucas a respeito do tema da “visita” de Deus
expande a promessa para incluir muito mais daquilo que Zacarias dissera.

A LUZ
Um segundo tema no cântico de Zacarias é a luz (Lc 1.78-79). Em Lucas 2.32.
Simeão afirmou que Jesus é a “luz para revelação aos gentios”. Esta imagem está
relacionada à salvação (v. 30). De fato, estas imagens mostram a continuidade
com as promessas do Antigo Testamento, como visto nas passagens do servo no
livro de Isaías (Is 46.6; 49.6, 9). Em Atos 13.47, o tema da luz continua.
Entretanto, Paulo e Barnabé referiram-se a si mesmos, e não a Jesus, como luz
para os gentios. Eles assumiram a tarefa do servo de Isaías por causa de seu
relacionamento com Jesus. Este versículo mostra não somente uma expansão do
tema da luz, mas também o uso complementar desses temas no Antigo
Testamento de servo e da luz.
Atos 26.16-23 mostra que Paulo estava ciente deste tema da luz. Ao dirigir a
sua mensagem ao povo (Israel) e aos gentios (vv. 20, 23), Paulo disse que o
Senhor o chamou para “abrir os seus olhos e trazê-los das trevas para a luz e do
poder de Satanás para Deus, e desta forma eles podem receber o perdão dos
pecados e serem colocados entre aqueles que são santificados pela fé em [Cristo]”
(v. 18). Ele declarou o que o Antigo Testamento havia predito (v. 22),
mostrando assim que a sua mensagem de “luz para o seu próprio povo e para os
gentios” (v. 23; cf. Lc 2.30) tinha raízes no Antigo Testamento. Portanto, o
tema da luz está relacionado ao Antigo Testamento e é expandido. Este é o
último discurso de defesa detalhado de Paulo. Ao resumir a sua missão, ele
mencionou as trevas e a luz, da mesma forma que ocorre em Lucas 1.78-79. Ele
se referiu a Satanás como o inimigo, concordando com Lucas 1.68-79 e com o
restante de Lucas e Atos. Assim como o cântico de Zacarias era parte da ária de
abertura em Lucas, o discurso de Paulo é uma ária de encerramento em Lucas-
Atos, ao detalhar a sua comissão.
O tema da luz confirma a leitura multicamada argumentada em Lucas 1.
Cada passagem deve ser lida naturalmente em seus próprios termos, mas
também deve ser lida à luz dos temas desenvolvidos a partir dela em passagens
posteriores. Essa leitura nunca elimina o que foi originalmente prometido, mas
também não exclui o que é adicionado a ela

RESUMO
Como visto em Lucas e Atos, Jesus é o Rei que cumpre as promessas feitas a
Abraão e a Davi, e quem serve como Luz para Israel e para os gentios. Israel tem
uma esperança futura de libertação pelo Rei que governará sobre eles (cf.
Lc 1.31-35). Mas em seus dois volumes, o interesse de Lucas foi além de Israel.
As pessoas enfrentam uma batalha contra Satanás e o pecado, uma batalha que
Jesus está vencendo ao trazer as pessoas das trevas para a luz. Todos esses
elementos descrevem o papel de Jesus como o “chifre da salvação” da casa de
Davi (v. 69), como visto à luz da teologia bíblica e por meio de uma leitura
sensível de Lucas-Atos. Mas e o seu reino? Há uma concordância de que Jesus é
o Rei, mas sobre o que ele governa e está governando agora?
O REINO EM SEU ESTÁGIO INICIAL
Um estágio inicial do reino prometido de Cristo está vigente atualmente? A
resposta a esta pergunta ajuda a determinar como o povo de Deus deve ver a si
mesmo e qual é o seu papel nos dias de hoje. Qual é a sua identidade em Cristo e
qual a sua tarefa atual? Várias linhas de argumentação indicam que o reino está
presente com Cristo, isto é, o Ungindo prometido por Davi.

OS DOIS PERÍODOS
O texto de Lucas 7.28 afirma que, embora João Batista fosse o homem mais
importante nascido de mulher até aquela época, ele é o menor dos que estão no
reino de Deus. Assim, são delineados dois períodos de tempo: o período até João
e o período após João (como o tempo do reino). João havia se perguntado se
Jesus era “aquele que havia de vir”, ou seja, o Cristo (vv. 18-20. cf. 3.15-17). Ao
responder sobre isso, Jesus citou a linguagem do Antigo Testamento (7.22-23)
para registrar o começo do fim, chamando a atenção para o seu ministério de
cura (Is 29.18; 35.5-6; 42.18. 26.19, 61.1). Ele respondeu à pergunta messiânica
feita por João ao apontar para as evidências de seu governo, já que a derrota de
Satanás envolve o exercício do seu poder como o “Santo de Deus” (Lc 4.31-37,
esp. v. 36; 11.14-23).
Lucas 7.22-23 e Lucas 3.15-17 revelam os seguintes pontos: (1) o Messias
traz o Espírito (como parte de seu ministério messiânico), (2) o Espírito como
um indicador-chave da vinda e do governo do Messias, (3) a esperança do
Espírito (como promessa) é derivada da Nova Aliança,13 e (4) a esperança de
Davi está agora unida à promessa da vinda do Espírito de Deus junto com ele.
Desta forma, a esperança davídica e a Nova Aliança estão unidas. O Rei, a
bênção escatológica e o seu governo estão unidos. E com um vem o outro. Assim
como “Elias”, João Batista proclamou e resumiu a esperança do Antigo
Testamento. Portanto, Lucas 3.15-17 deve ser adicionado a Lucas 1.67-79 como
um texto chave sobre o ministério de Jesus.
Em Lucas 16.16 encontra-se o mesmo conceito dos dois períodos de tempo.
A Lei e os Profetas foram pregados até João, mas então “são pregadas as boas
novas do reino”. Os dois períodos retratam a “promessa” e o “cumprimento”.
Com a primeira vinda de Jesus, inaugurou-se o processo e o tempo do
cumprimento, embora ainda tenha mais para ser cumprido. É por isso que o
tempo atual faz parte dos “últimos dias” no Novo Testamento (At 2.16-17;
Hb 1.1-2; 1Pe 1.10-12). O plano tem estágios complementares, de modo que
Paulo se referiu a “esta era” e a “era porvir” (Ef 1.21). E em 1 Coríntios 10.11
Paulo afirmou que na igreja chegou o “cumprimento das eras”.

AS DUAS DECLARAÇÕES
Jesus fez duas declarações que refletem a chegada do reino. Uma delas é
Lucas 11.20: “Se eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, então é chegado o
reino de Deus sobre vós.” Na versão de Teodócio da Septuaginta o verbo
φθάωω (“chegar”) mais a preposição έπί (“sobre”) aparecem em Daniel 4.24, 28,
que fala dos eventos que “chegaram” na vida de Nabucodonosor. Em
Lucas 11.21-22, Jesus falou de um homem forte que toma a casa de outro em
uma batalha na qual uma antiga fortaleza é invadida. Em Efésios 4.7-10, Paulo
escreveu sobre a vitória de Cristo, citando Salmos 68.18 no versículo 8. Para
Paulo, a vitória é descrita não em relação aos milagres, mas em termos do fator
decisivo da vitória – a ressurreição-ascensão de Jesus. Novamente, um
relacionamento complementar ao tema da vitória é visto no Novo Testamento
como uma relação temática do ministério de Jesus e de sua exaltação (semelhante
a At 10.34-43). Porém, o conceito de uma série de eventos em etapas também
está presente, especialmente quando outras passagens do Novo Testamento
mostram que o sua obra ainda não está concluída (Hb 2; Ap 19-22). O
argumento de Jesus é que o processo está em andamento.
A segunda declaração de Jesus está registrada em Lucas 17.20-21. Jesus disse
aos fariseus que o reino estava “entre vocês”, isso é, no meio deles (ou ao alcance
deles). O ponto aqui é que o reino havia chegado (ao menos em parte) e estava
disponível quando Jesus veio. E mesmo que alguém prefira chamá-lo de “forma
misteriosa” do reino, é preciso reconhecer que Jesus estava falando a respeito do
reino prometido. Isso faz parte do plano do reino prometido no Antigo
Testamento, que foi desenvolvido em uma revelação adicional no Novo
Testamento.
AS DUAS PARÁBOLAS
Duas parábolas de Jesus – a parábola do grão de mostarda e a parábola do
fermento – ressaltam que o reino tem início de forma pequena (como fermento
ou grão), mas termina grande (como um pão inteiro ou uma grande árvore onde
os passarinhos descansam). Qualquer que seja este reino, ele faz referência a era
presente por causa de seu processo de crescimento. Ele não pode se referir ao
futuro, porque quando chegar a forma futura do reino, ela será imediatamente
estabelecida sobre toda a terra.
O pano de fundo do Antigo Testamento para a imagem da árvore na
parábola do grão de mostarda provém dos textos de Daniel 4 e Ezequiel 17.22-
24. Em Daniel 4, o governo de Nabucodonosor é comparado a uma árvore na
qual os pássaros viviam, mas que será cortada. Seu reino passará de uma árvore
abundante e segura a um mero toco de árvore. Já a imagem de Ezequiel 17 é
totalmente oposta. Uma árvore que fora cortada crescerá a partir de um toco
para uma abundante e segura árvore de descanso. As parábolas de Jesus incluem
um elemento de surpresa. Já que os grãos de mostarda normalmente não crescem
em árvores grandes, a parábola enfatiza a natureza incomum e sobrenatural deste
crescimento. Portanto, o reino tem um início pequeno, mas no devido tempo se
tornará um lugar de descanso para todos aqueles que pertencem ao Senhor. O
toco que é restaurado em Ezequiel 17 é o toco do governo de Davi (cf. Is 11.1;
Ap 5.5; 22.16). Esta reconstrução se inicia com a “semente” da era presente.

O ASSENTO, O ESPÍRITO, O GOVERNO E O MESSIAS


Ao citar Salmos 110.1 em Lucas 20.41-44,14 Jesus trouxe à tona um dilema
messiânico (portanto, uma promessa davídica) para a sua audiência judaica
quando lhes perguntou a respeito do Messias e do Salmo 110.1 (não 110.4 15).
Jesus enfatizou que o Salmo 110.1 descreve o Filho de Davi (isto é, o Messias) e
lhe concede o seu título mais importante – Senhor.
Para responder se ele é o Messias (Lc 22.67-69), Jesus usou a imagem do
Salmo 110.1. Ele disse: “A partir de agora o Filho do homem estará assentado à
direita do poder de Deus”. O foco central é que o governo de Jesus deveria
começar em breve (“a partir de agora”). Se há qualquer dúvida de que “estar
assentado” significa governar, então o que mais pode significar o fato que Jesus
atua como Mediador de Suas bênçãos ao lado de Deus (At 2.30-36)? Em Atos,
Jesus governa quando exerce controle sobre a salvação e quando os rituais
religiosos, como o batismo, são realizados em “seu nome”.
Lucas 24.49 e Atos 1.8 referem-se à vinda do Espírito Santo como a próxima
atividade a ser executada por Deus para o seu povo. Ambos os versículos
ocorrem em contextos que se referem às atividades que Jesus realizou como
Messias (Lc 24.44-48; At 1.2-7). Em Atos 2, Deus trouxe o Espírito Santo por
meio do Filho de Davi ressurreto, o Messias, como parte de sua atual atividade
como governante entre o seu povo.(cf. a citação de Pedro do Salmo 16).
Este ponto é explicado em At 2.30-36, onde a palavra “assentar” ocorre nos
versículos 30 e 34. Esta repetição do termo serve para associar certas ideias. Esse
estilo, no qual passagens interligadas se explicam, é comum no uso do Antigo no
Novo Testamento (Mc 1.2-4; Ef 4.7-11; 1Pe 2.4-10). Em Atos 2.30 e 2.34, a
expressão “assentar” une a alusão do Salmo 132.11 e do Salmo 110.1. O
Salmo 132.11 registra a promessa de Deus a Davi de que alguém se assentaria no
trono de Davi, um texto que faz alusão a 2 Samuel 7.
As referências do Novo Testamento às promessas feitas a Davi mostram que
alguns elementos dessas promessas se cumprem agora, enquanto outros
elementos serão cumpridos posteriormente. Esse é o relacionamento
complementar apresentado anteriormente. A promessa davídica no Antigo
Testamento não está limitada ao texto de 2 Samuel 7, nem possui apenas um
elemento definidor.16 Outros textos chave que se referem a essa promessa
davídica são Salmos 89 e 132; Isaías 9 e 11; Ezequiel 17, 34 e 36 e Amós 9.11-
12.17 Os Salmos 89.17 e 132.17 falam do chifre de Davi da mesma forma que
Lucas 1.69. O Salmo 132.11 afirma que a prometida semente de Davi se
assentará no trono, assim como afirma Atos 2.30. O Salmo 132.17 observa que
Deus preparará uma lâmpada para o seu Ungido e Isaías 9.2 faz referência ao
filho de Davi como a grande luz que o povo veria (cf. Mt 4.14-17). Novamente
aqui está o tema da luz, que já foi observado em Lucas-Atos. O Rei exercerá seu
governo com justiça e retidão (Is 9.7; cf. Sl 45.6 citado em Hb 1.8, “cetro de
justiça é o cetro do seu reino”).18 Isaías 11.2 comenta que o Espírito de Deus
repousará sobre esse Rei (cf. Lc 3.21-22) e que Ele trará sabedoria e
entendimento (cf. Lc 11.29-32). O texto de Isaías 11.2 é o provável elo com
Jesus como o portador régio do Espírito (Lc 3.15-17; 24.49). Ezequiel 34.22-24
fala de um rebanho, usando imagens régias, enquanto o texto de Ezequiel 36.25
fala dessa era futura ao incluir a obra de purificação do Espírito. Estes são os
temas que aparecem respectivamente em João 10.1-18 e 3.3-10. Amós 9.11-12
declara que o “tabernáculo” de Davi será reedificado, um assunto que também é
mencionado em Atos 15.15-18 como a base para a solução no concílio de
Jerusalém. A aliança davídica inclui inúmeros elementos e possui pontos de
associação com outras promessas como as da Nova Aliança. A promessa do
governo davídico vai além de Cristo estar assentado sobre o Israel nacional,
embora isto também será cumprido um dia (Lc 22.28-30).19
Alguns podem se opor ao uso de passagens que foram originalmente
destinadas a Israel para aplicá-las à igreja. Entretanto, o tipo de expansão
complementar visto na Nova Aliança fornece um precedente bíblico para essa
abordagem hermenêutica.20 De fato, Lucas e Atos argumentam
consistentemente que o que Jesus fez e está fazendo corresponde à esperança e à
promessa do Antigo Testamento (veja Lucas 22.43-47, e a pregação de Paulo em
Atos 13, 22 e 26). Não se deve definir o significado desses textos usando
somente o sentido do Antigo Testamento ou somente o sentido do Novo
Testamento. Uma leitura canônica permite que ambos os contextos falem de
modo complementar um ao outro.
Uma vez que muitos elementos estão inclusos na promessa davídica, quando
a aliança davídica se cumpriu? Seria no momento em que todos os seus
elementos são cumpridos? Ou é somente quando alguns deles são cumpridos?
Não seria melhor falar de um cumprimento inicial e parcial, bem como de um
cumprimento final? Do ponto de vista deste escritor, é possível falar de um
cumprimento inicial quando qualquer um destes aspectos se realizam. Isto
significa que todas as principais alianças – abraâmica, davídica e nova – têm a
mesma estrutura de cumprimento do já e ainda não. Há uma consistência no
modo como Deus cumpre as suas promessas. Alguns aspectos dessas promessas
são cumpridos agora e outros ainda precisam ser cumpridos.21 A aliança
abraâmica tem a sua realização inicial como está expresso em Gálatas 3, mas no
futuro, quando Cristo governar sobre Israel, as bênçãos que as nações receberam
por meio de seu governo “progredirão” a um nível mais elevado (Is 2.2-4). A
Nova Aliança tem alguma realização agora, como argumentam os textos de
Hebreus 8-10 e 2 Coríntios 3-4, mas as promessas feitas sobre a presença do
Espírito em Israel acontecerão no futuro (Jr 31.31-34; Ez 36.24-32). Da mesma
forma, a esperança davídica tem algum cumprimento agora, principalmente no
envio do Espírito de Deus e na vitória já conquistada sobre Satanás e o pecado
(Lc 1.78-79; 3.15-17; 11.14-23, 22.69; Atos 2.30-36). Entretanto, no futuro,
Cristo reinará em Sião como o descendente de Davi (Zc 14.1-11; Is 2.2-4).
No dia de Pentecostes, Pedro falou do governo de Jesus ao unir o
Salmo 132.11 (mencionado em Atos 2.30) e o Salmo 110.1 (citado em
Atos 2.34). Pedro afirmou que Jesus não está sentado passivamente ao lado de
Deus, aguardando apenas o dia em que ele retornará. Pelo contrário, Jesus exerce
um elemento chave no governo prometido ao derramar o Espírito de Deus sobre
o seu povo para capacitá-los a realizar suas tarefas atuais. Ele está ativo ao lado de
Deus, ao derramar o seu Espírito Santo, assim como João Batista prometera que
Cristo faria quando o reino se aproxima (Mt 3.2; 11-12; Lc 3.15-17). Este é o
âmago do governo de Cristo na era presente. Ele derrama os benefícios de sua
vitória, os despojos de seu governo. Por meio de seu Espírito, ele transforma as
pessoas que fazem parte de sua comunidade recém-formada – a igreja. Jesus
distribui o dom do Espírito como parte da promessa “daquele que haveria de
vir”, o Cristo (Lc 3.15-17), e como parte de sua responsabilidade estando à
destra de Deus (Sl 110.1). Seu governo e sua transformação começam com a
distribuição do Espírito. A presença do Espírito é uma evidência de que Jesus é o
Senhor e o Messias, aquele que governa a partir do céu, dispensando os
benefícios da salvação (At 2.34-36). A graça transformadora de Jesus Cristo
permanece no centro da atual atividade dispensacional de Deus.22
O Salmo 110.1 fala a respeito do governo de Deus através da linhagem de
Davi. Os céus e a terra se unem em sua forma inicial através do Filho e seu
governo. Mas o trono do Senhor pode também ser o trono de Davi? O texto de
1 Crônicas 29.23 responde a essa questão. Quando Salomão se sentou no trono
que Davi anteriormente ocupara, ele se sentou no trono do Senhor. Isso significa
que Cristo não terá um governo terrestre futuro proveniente do trono de Davi
em Israel no futuro? Não, esse governo futuro não é negado, pois Jesus retornará
para governar a partir de Israel conforme prometido no Antigo Testamento
(Sl 2.6-9; Zc 14.4, 9; cf. At 3.18-21; Ap 19.11-16). As promessas do Antigo e
do Novo Testamento se complementam; não se anulam, exceto onde o
cancelamento é indicado de modo explícito.

DESCRITO POR PAULO


Diversas passagens sugerem que Paulo também escreveu a respeito do governo de
Cristo atual e futuro. Por exemplo, Colossenses 1.12-13 aborda os mesmos
temas de luz, trevas, Satanás, reino e vencedor, como pode ser visto nas frases:
“herança dos santos na luz”, “nos libertou do império das trevas” e “o reino do
Filho do seu amor”. Tendo sido regatados das trevas satânicas, os crentes estão
no reino de Deus.
Um texto mais importante é 1 Coríntios 15.25: “Porque convém que ele
reine até que haja posto todos os inimigos debaixo de seus pés”. O verbo “reinar”
é βασιλευειν, um infinitivo presente, indicando portanto um governo atual, mas
em andamento, de Cristo.23 Este governo foi iniciado, mas não está concluído.
Alguns querem tornar o versículo 25 dependente do versículo 24, fazendo do
reino de Jesus no versículo 25 um reino futuro. Entretanto, é melhor ver o
versículo 25 como uma explicação (γάρ) dos versículos 23 e 24, com o reinado
de Jesus começando com a sua ressurreição como “as primícias” e continuando
até que o último inimigo – a morte – seja abolido (v. 26).24 Dessa forma, Paulo
também apontou para os estágios no plano de Deus com os cumprimentos
iniciais.
Efésios 1.19-23 refere-se ao poder divino disponível aos crentes (v. 19), visto
que Deus Pai fez Jesus “assentar-se à sua direita” (v. 20) acima de todas as
autoridades, “não apenas na presente era, mas também na vindoura” (v. 21),
e“pôs todas as coisas debaixo de seus pés” (v. 22). Este “assentar-se” deve ocorrer
no passado, já que todos os outros eventos descritos pelo tempo aoristo dos
versículos 19-23 são passados. O exercício da autoridade real é realizado “em
Cristo” (v. 20), isto é, no Messias (Rm 1.2-4; 16.25-27).25 Se acaso este evento
fosse proléptico, o detalhe de onde Cristo está assentado teria sido mencionado
por último. O versículo 23 indica que o seu corpo, a igreja, é o local onde Deus
opera a transformação e a partir do qual ele mostra o seu cuidado e compaixão.
A igreja é o que Deus preenche por meio de Cristo (3.14-19). A igreja é onde o
poder de Deus se manifesta em justiça e santidade. Assim como Jesus é luz
(Lc 1.79), e assim como Paulo e Barnabé também foram luz (At 13.47), agora os
crentes são luz e participam do reino da luz (Mt 5.14-16; Cl 1.12-14; EF 4.17-
19; 5.8-14). Esse é o atual reino do Filho amado de Deus.
Portanto, Cristo trinfou sobre o inimigo Satanás e as suas forças, embora
elementos da batalha e aspectos da promessa ainda irão se realizar. O povo de
Cristo foi capacitado para brilhar. Ele enche o mundo com a Sua presença por
meio da igreja. Mas o que significa ser luz no mundo? Qual é a relação dos
crentes com as diversas culturas e estruturas do mundo à medida que, a partir da
igreja, procuram viver o significado de refletir e representar Cristo, aquele que
triunfou sobre Satanás?
IMPLICAÇÕES E CONCLUSÕES
Niebuhr sugeriu cinco possibilidades para o relacionamento entre Cristo e a
cultura: Cristo contra a cultura, o Cristo da cultura (acomodação), Cristo acima
da Cultura, Cristo e a cultura num paradoxo e Cristo o transformador da
cultura.26 Outra relação pode ser adicionada, a saber, Cristo como o
transformador de sua comunidade como modelo para outras culturas.
A igreja deve ser uma ilustração – um audiovisual – da presença e obra do
amor e da compaixão de Deus (Ef 3.14-19). Isso deve ser manifesto
especialmente no modo como os crentes interagem entre si, bem como no modo
como demonstram concretamente o seu amor por aqueles que estão próximos,
não importa quem sejam (Gl 5.1-6.10; Lc 10.25-37; Jo 13-17). O amor é
exigido, mas não se manifestará da mesma forma em todos os lugares.
Ministérios em regiões ricas de Londres ou Paris diferem dos ministérios nas
regiões mais pobres das cidades interioranas do terceiro mundo. Cristo é
necessário em todas as culturas por causa da mesma necessidade básica da
humanidade. Entretanto, pode variar como a sua relevância torna-se manifesta
para os povos, dependendo das questões que confrontam essas diversas culturas.
É na igreja e por meio dela o local onde Deus manifesta o seu caráter de
forma mais visível. Ele faz isso através dos relacionamentos individuais em seu
corpo, bem como no modo como os cristãos se relacionam com aqueles que
estão fora da comunidade dos crentes. Como resultado, os crentes devem ser
sensíveis às inúmeras maneiras e formas que podem manifestar o amor de Deus
concretamente, dependendo de onde servem a Deus e como Ele os chama. Nem
todos devem ou podem ministrar da mesma maneira. Os crentes devem ser
maduros o suficiente para reconhecerem a diversidade de ministérios que podem
ter ao servir ao Senhor. Uma pessoa pode revelar a Jesus Cristo ou mesmo a
necessidade dele, proclamando-o, refletindo-o, amando-o e amando os outros. É
isso que significa servir a Deus “em santidade e justiça”, como Zacarias desejava
fazer (Lc 1.74-75).
Alguns cristãos estão envolvidos em ministérios focados individualmente,
impactando diretamente algumas pessoas com a mensagem do evangelho.
Outros podem proclamar os padrões do amor e da justiça de Deus ao desafiar a
consciência, os padrões e o estilo de vida das pessoas (e desta forma revelando o
pecado e a necessidade de Jesus Cristo). Outros podem procurar alcançar aqueles
que estão sofrendo ou passam fome. Ao fazer isso, precisam chamar a atenção
para as estruturas pecaminosas pelas quais homens pecadores demonstram o seu
ódio pelos outros e impõem abusos aos outros.27 E, ao fazer isso, eles também
criam oportunidades para que alguns busquem refúgio em Cristo, visto que o
ministério é motivado pelo amor de Cristo aos pecadores, pelo reconhecimento
da atual autoridade de Cristo sobre o pecado e pelo desejo da igreja de ser luz no
mundo.
Os crentes devem encorajar uns aos outros ao amor e às boas obras
(Hb 10.24). As palavras e ações dos crentes devem refletir a verdade e a
compaixão ao servirem o Cristo triunfante. Seu governo de Cristo capacita os
crentes para amarem uns aos outros e se compadecerem de seus vizinhos
necessitados e espiritualmente mortos. Seu poder dá esperança de que os crentes
possam contribuir com algo frutífero ao compartilharem do amor de Cristo,
refletindo-o em palavras e ações. Que aqueles que estão em Seu reino de luz
brilhem intensamente, e por Sua graça eles conduzam muitos das trevas para a
verdadeira luz.

1. A história recente do dispensacionalismo pode ser dívida em três grupos. O “dispensacionalismo de


Scofield” reflete a abordagem das edições de 1909 e 1917 da Bíblia de Estudo Scofield. O
“dispensacionalismo essencialista” consiste na abordagem retratada no livro de Charles C. Ryrie
Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1965), com a sua definição de dispensacionalismo em termos
sine qua non, cujo os três elementos são: um propósito doxológico, uma hermenêutica literal e uma
distinção entre Israel e a igreja. Já o “dispensacionalismo progressivo” tem seu foco no progresso da
revelação, de tal modo que a dispensação subsequente representa um “progresso” no plano unificado de
Deus. Essa abordagem defende uma maior continuidade no plano de Deus que as outras posições. Para
uma exposição mais detalhada destas três posições veja o livro Dispensationalism, Israel and Church: The
search for definition, ed. Craig A. Blaising e Darrell L. Bock (Grand Rapids, Zondervan, 1992).
2. Veja a Bíblia de Estudo Scofield no comentário de Mateus 3.2. Veja ainda o comentário em Mateus 3.15
onde Jesus é visto por Scofield como o Rei-Sacerdote, com seus ofícios não separados. O que é importante a
respeito destes comentários é a consciência dos elementos da promessa davídica que aparecem nos textos do
Novo Testamento e o seu vínculo com as promessas davídicas na forma misteriosa do reino.
No comentário de Mateus 3.2, lemos: “(1) a expressão reino do céu (lit. dos céus) é peculiar no livro de
Mateus, e significa o governo terreno messiânico de Jesus Cristo, o Filho de Davi. É chamado de reino dos
céus pois é o governo dos céus sobre a terra (Mt 6.10). A frase é derivada do livro de Daniel (Dn 2.34-36,
44, 7.23-27), onde é definida como o reino no qual o ‘Deus do céu’ estabelecerá após a destruição feita por
uma ‘pedra cortada sem auxílio de mãos’ do sistema mundial dos gentios. Este é o reino pactuado com a
semente de Davi (2Sm 7.7-10), descrito pelos profetas (Zc 12.8, nota) e confirmado por Jesus Cristo, o
filho de Maria, através do anjo Gabriel (Lc 1.32-33). (2) O reino do céu tem três aspectos no livro de
Mateus: (a) ‘está próximo’ no começo do ministério de João Batista (Mt 3.2), pela virtual rejeição do rei e o
anúncio de uma nova irmandade (Mt 12.46-50); (b) nos sete ‘mistérios do reino do céu’, a serem
cumpridos na era atual (Mt 13.1-52), aos quais foram acrescentadas as parábolas do reino dos céus, que
foram ensinadas após as de Mateus 13, e que se relaciona com a esfera da fé cristã durante a presente era; (c)
o aspecto profético – o reino a ser estabelecido após o retorno do rei em glória (Mt 24.29-25.46, Lc 19.12-
19, At 15.14-17).”
Para os seguidores de Scofield, os elementos davídicos oferecidos a Israel foram rejeitados por eles e
colocados em espera até que o seu cumprimento venha com a resposta em fé por parte de Israel no futuro.
As únicas exceções para a presença de alguns destes elementos davídicos na presente era estão associadas
com a forma misteriosa do reino, que se relaciona com a esfera da profissão de fé cristã. Para maior detalhes,
veja a nota em Mateus 4.17.
3. Aqui o termo “reino” tem um significado ambíguo, pois os escritores veem os detalhes de forma distinta.
Alva J. McClain e Stanley D. Toussaint foram em uma direção distinta, ao verem o reino prometido
somente no futuro, sem nenhuma existência na atual era. (Alva J. McClain, The Greatness of the Kingdom
[Wionna Lake, IN: BMH Books, 1959], Stanley D. Toussaint, Behold the King [Portland, OR:
Multnomah, 1980]). Desta forma, os dispensacionalistas essencialistas lidaram com esta questão de diversas
maneiras. O argumento apresentado por Pentecost, Ryrie e Walvoord estão presentes em cada uma de suas
grandes obras de escatologia: J. Dwight Pentecost, Things to Come (Grand Rapids: Zondervan, 1958);
Charles C. Ryrie, Basic Theology (Wheaton: Victor Books, 1986); John F. Walvoord, Major Bible Prophecies
(Grand Rapids: Zondervan, 1991).
4. Novamente os detalhes da apresentação diferem. Ryrie distingue entre a forma espiritual e a forma
misteriosa de reino (Basic Theology, p. 398). Jesus Cristo governa no reino espiritual, mas ele não é o rei da
igreja. Ryrie não fornece nenhuma explicação para esta distinção. Por outro lado, Walvoord iguala a forma
misteriosa à forma espiritual (Major Bible Prophecies, p. 218). Walvoord também distingue o reino de Deus
(esfera da realidade) do reino do céu (esfera do ofício), mas não de uma maneira que negue a presente forma
misteriosa de reino (ibid., p. 213). Pentecost afirma simplesmente que as duas expressões do reino são
distintas e intercambiáveis mas não são sinônimas (Things to Come, pp. 143-44). Portanto, os essencialistas
não concordam na forma como estas relações funcionam. O que eles concordam é que qualquer que seja o
governo na era atual, este não é o reino davídico. Entretanto, ao fazer esta distinção entre o reino e a
esperança davídica, eles assumem uma posição distinta da edição de 1917 da Bíblia de Estudo Scofield. A
revisão feita em 1963 da Bíblia de Estudo Scofield exclui a conexão davídica misteriosa. Outra diferença é
que Ryrie e Walvoord associam a presente forma de reino com a igreja, algo que Scofield não fez.
5. Paulo compartilhou esta posição sobre a relação entre o exercício da misericórdia de Deus em favor do
seu povo e o serviço a Deus como consequência (Ef 2.1-10, esp. vv. 4-6, 10).
6. Veja Eberhard Nestle e Kurt Aland, Novum Testamentum Graece, 26a edição (Stuttgart:
Wurttembergische Bibelanstalt, 1983).
7. O fato de que este cumprimento pode envolver não somente um evento único, mas sim uma série de
eventos significa que quando alguém usa o termo “cumprido” ou “cumprimento”, deve ficar claro como
eles está usando o termo (e como as Escrituras o usam). É possível falar de um cumprimento “inicial”,
“parcial”, “final”, “padrão” ou “abrangente”. As Escrituras falam de “cumprimento” sem especificar qual o
subtipo de cumprimento. Este subtipo é determinado através do estudo de como é usado o termo
“cumprimento” em seu contexto. A distinção é crucial, desde que a existe a possibilidade do cumprimento
de “ambos/e”, como mostra o uso que o Novo Testamento faz do tema do Servo (At 8.33-35; 13.46-47), e
como é visto no uso que Pedro faz do texto de Joel 2.28-32 em At 2.17-21.
8. Três camadas de leitura são legítimas: (a) a leitura do cenário histórico original; (b) a leitura a partir de
uma apresentação literária mais ampla de um determinado livro bíblico como um todo; e (c) a leitura de
uma passagem à luz de todo o cânon bíblico. Este artigo se concentra nas duas primeiras camadas, mas os
três níveis de leitura são legítimos – são formas complementares de leitura do texto dentro dos limites da
hermenêutica histórico-gramatical-literária seguida pelos evangélicos.
9. A ideia da progressividade nas dispensações não é nova. E nem a ideia de que os relacionamentos no
plano de Deus são revelados de modo complementar. Embora existam algumas diferenças nos detalhes
sobre como alguém defende isso no dispensacionalismo, esses conceitos foram corretamente observados
pelos essencialistas. Observe o seguinte comentário de Ryrie: “Unidade e distinção não são necessariamente
conceitos incompatíveis. Eles podem ser bastante complementares, como de fato são no
dispensacionalismo” (Dispensationalism Today, p. 101). Ele também observa: “Além disse, o
dispensacionalismo não vê as várias dispensações apenas como manifestações sucessivas do propósito de
Deus, mas também como manifestações progressivas do propósito de Deus” (ibid., p. 104). Ambas as
observações estão em seu capítulo que trata da hermenêutica do dispensacionalismo.
10. Bruce K. Waltke, “A Response”, em Dispensationalism, Israel and the Church, p. 358.
11. Em alguns momentos, uma aplicação excessiva da interpretação literal afeta a leitura dos textos do Novo
Testamento dentro das formas mais tradicionais do dispensacionalismo. Talvez o maior exemplo deste tipo
de leitura é a alusão às duas Novas Alianças como uma explicação do texto de Hebreus 8-10. Mas essa
leitura também afeta as opiniões sobre o reino, seu cumprimento e as alianças bíblicas. O resultado é que o
Novo Testamento não tem a permissão para desenvolver o progresso da promessa, mas é limitado somente
às categorias do Antigo Testamento. (Veja Dispensationalism, Israel and the Church, pp. 392-393, onde esta
questão é levantada e opções atuais são discutidas. Este artigo é uma tentativa de discutir as opções
levantadas lá com alguns exemplos concretos e oferecer uma explicação detalhada de como funciona esse
relacionamento complementar). Essa abordagem complementar para relacionar textos não é a leitura
“simples” como acusa Vern Poythress de terem feito os dispensacionalistas (Understanting Dispensationalists
[Grand Rapids: Zondervan, 1987], pp. 78-110). Essa abordagem complementar tenta lidar como algumas
questões levantadas por Poythress e a faz sem subestimar a contribuição dos textos do Antigo Testamento
para a promessa. Walter C. Kaiser Jr. compartilha também desta preocupação sobre este tema em sua
avaliação das abordagens do aliancismo e do dispensacionalismo (Dispensationalism, Israel and the Church,
pp. 369-370, 375).
12. As citações bíblicas são traduções do próprio autor.
13. É por isso que Lucas 24.49 refere-se à vinda do Espírito como a “promessa do Pai”. Ele a prometeu por
meio de Ezequiel (Ez 36.27) e Jeremias (Jr 31.31-33).
14. A posição do autor foi detalhada em outro lugar (Darrell L. Bock, The Reign of the Lord Jesus Christ, no
livro Dispensationalism, Israel and the Church, pp. 37-67), de modo que aqui encontra-se resumida.
15. Esta distinção é importante à luz das recentes tentativas de reconhecer que Jesus cumpre atualmente o
Salmo 110.4 somente na esfera do sacerdócio de Melquisedeque, mas não como uma figura davídica real
(Elliot E. Johnson, “Hermeneutical Principles and the Interpretation of Psalm 110”, Bibliotheca Sacra, 149
[outubro-dezembro, 1992], pp. 428-437). Contudo, contra este ponto de vista está o fato de que
Lucas 20.41-44 refere-se aos aspectos reais do Messias no Salmo 110.1 e não aos aspectos sacerdotais do
versículo 4. Além disso, o ponto central deste Salmo é que o Messias é um Rei-Sacerdote. É isto que faz dele
uma pessoa incomum. Portanto, seus ofícios como Rei e Sacerdote não podem ser divididos, especialmente
quando Lucas-Atos cita o Salmo 110.1 e não o versículo 4. A citação do Salmo 110.1 em Hebreus 1.13
pertence a uma série de textos que enfatizam a filiação de Jesus e seu governo davídico, uma vez que
também é citado ali o texto de 2 Samuel 7.14 (Hb 1.5) Desta forma, este autor concorda com Johnson que,
de acordo com Hebreus, Jesus atua (governa) como um Sumo Sacerdote da ordem de Melquisedeque, mas
deve-se notar que para Lucas e Hebreus esse é um cumprimento messiânico (davídico).
A associação de Johnson da abordagem hermenêutica deste autor com a de George Ladd deturpa a relação
hermenêutica entre esta abordagem e a de Ladd. Uma hermenêutica complementar não anula os elementos
judaicos do futuro como Ladd faz. Para este autor, não há uma “ressignificação radical” em Atos 2 como é
apresentada por Ladd.
16. Esse ponto foi defendido detalhadamente em “The Kingdom of God in Progressive Dispensationalism”,
uma apresentação feita pelo presente autor e por Craig L Blaising no encontro da Evangelical Theological
Society, em novembro de 1991.
17. Para o uso de Amós 9 em Atos 15, veja Darrell L. Bock, “The Case for Premillennialism in Acts”, em A
Case for Premillennialism, ed. Donald K. Campbell e Jeffrey L. Townsend (Chicago: Moody, 1992), pp.
185-202.
18. O Salmo 45 fala de Salomão, o filho de Davi, pois retrata um casamento. Ele é aplicado
tipologicamente a Cristo como uma promessa real em referência ao filho de Davi.
19. Aqueles para quem o termo “governar” significa somente um “governo coercivo e completo”
argumentam que Jesus não governa agora desta forma e portanto não governa de forma alguma. Este autor
concorda com a ideia de que o governo coercivo total ainda não está presente, mas nega que Jesus não
governe de forma alguma neste momento. Jesus governa ativamente ao manifestar “assentado” sua
autoridade, poder e presença de forma dinâmica na comunidade dos crentes. Ele faz isso como o Messias
exaltado. E é por isso que ele se chama Jesus Cristo. Este não é o governo final e coercitivo de
Apocalipse 19-20, mas é o exercício das prerrogativas divinas e, portanto, um aspecto do governo, como o
texto de Atos 2.22-36 torna isso claro. É necessário fazer uma distinção dispensacional das descrições do
governo de Jesus, sem romper os pontos de conexão dentro programa prometido por Deus. Além de tudo
isso, não há uma “espiritualização” do texto nessas interpretações, nem há uma contradição, como alguns
erroneamente sugeriram, ao ver algum cumprimento agora e posteriormente um cumprimento maior. Para
esta acusação infeliz e leitura equivocada do Dispensationalism, Israel and Church, veja Thomas Ice, “A
Critical Examination of Progressive Dispensationalism”, Biblical Perspectives 5 (novembro-dezembro, 1992),
p. 4. Essa relação complementar também é a razão pelo qual não um “declive escorregadio” quando se trata
das legitimas distinções bíblicas entre Israel e a Igreja. As promessas de terra a Israel não estão perdidas, nem
estão em risco, no cumprimento do Novo Testamento, pois o que o Antigo Testamento prometeu a Israel
como nação governada por seu Messias permanece como promessas ainda a serem cumpridas. Os textos
bíblicos como um todo estabelecem os limites da continuidade ou descontinuidade. Quaisquer
reivindicações a priori sobre hermenêutica e a descontinuidade devem ser confrontadas com o texto, como
este estudo faz.
20. Aqui os primeiros dispensacionalistas “essencialistas” deveriam ser elogiados. Eles reconheceram que
existe uma Nova Aliança e que, ao menos, havia uma “forma misteriosa” do reino. Eles descartaram o
conceito de um dualismo celestial e terreno que fazia parte do dispensacionalismo e, desta forma,
reconheceram os elementos de continuidade no plano de Deus. Além disso, alguns enxergavam a
possibilidade de tanto um cumprimento quanto um cumprimento inicial em passagens como Joel 2 em
Atos 2. Eles também evitavam limitar o reino apenas ao futuro e não insistiam que o cumprimento sempre
significa tudo ou nada. Essas foram mudanças hermenêuticas e conceituais extremamente significativas na
tradição dispensacional. O atual trabalho no dispensacionalismo “progressivo” está simplesmente
perguntando se esses conceitos podem ser usados em outros textos, de modo que uma estrutura mais
consistente surja à luz das numerosas associações bíblicas feitas nesses temas e estruturas.
21. Nesta abordagem, não há uma dialética teológica. Simplesmente o primeiro estágio é seguido pelo
segundo. A questão dialética acontece quando a posição A e a posição B são unidas para produzir a posição
C. Numa abordagem complementar, as informações bíblicas não são unidas, substituídas ou subordinadas,
antes, as partes são relacionadas lado a lado para formar um todo. As discussões a respeito dos pontos de
discordância sobre esses assuntos não podem ser reduzidas usando rótulos ou meramente citando versículos
bíblicos entre parêntesis. Passagens como Lucas 1.67-79, 3.15-17, Atos 2.16-40, 1 Corintios 15.25,
Colossenses 1.13-14 e Hebreus 1.5-13 devem ser discutidas detalhadamente, especialmente ao levar em
consideração o que elas acrescentam para a compreensão sobre o progresso do plano de Deus.
22. Essa atividade explica por que comparar a unção de Jesus com a de Davi – onde Davi era o rei, mas
ainda não governava – falha em convencer que Jesus governa com a sua autoridade real enquanto está
assentado ao lado de Deus. O governo por vir é uma extensão da autoridade já existente (Mt 28.19-20).
23. O infinitivo presente enfatiza gramaticalmente o aspecto, isto é, o caráter contínuo do governo, mas
também inclui uma referência à sua presença na época em que Paulo escreveu.
24. A palavra γάρ no versículo 25 é melhor entendida como uma explanação de toda sentença anterior. Em
outras palavras, o governo prossegue até que a submissão esteja completa.
25. Essas duas passagens em Romanos deixam claro que o mistério está ligado à (e não separada da)
esperança do Antigo Testamento. A mensagem do Antigo Testamento descreveu a atual atividade de Jesus
como Filho de Deus e Filho de Davi para alcançar a obediência da fé entre todas as nações. Não é possível
separar a sua Pessoa de sua obra ou mesmo das promessas do plano de Deus.
26. Richard Niebuhr, Christ and Culture (Nova York: Harper, 1951).
27. Para aqueles que argumentam que tais tentativas fracassarão e, portanto, devem ser abandonadas pois
são inúteis, é importante notar que Cristo ofereceu a sua mensagem de esperança até mesmo para aqueles
que ele sabia que a rejeitariam. O serviço não requer que a igreja seja sempre bem-sucedida nessas tentativas.
Em vez disso, a fidelidade exige que a igreja se envolva nessa obra com a esperança de que alguns
responderão a ela e com o conhecimento de que a obra da justiça é devida a Deus, ainda que ninguém
responda.
APÊNDICE B

POR QUE EU SOU UM DISPENSACIONALISTA COM “d”


MINÚSCULO

POR QUE PERGUNTA POR QUÊ?


Há mais de uma década atrás, no encontro anual da Evangelical Theological
Society, o Grupo de Estudo Dispensacionalistas da ETS teve o seu encontro
inaugural.1 O objetivo de nossos encontros era discutir as diversas questões
relacionadas ao dispensacionalismo, pois aqueles que iniciaram tais esforços
perceberam que essa discussão seria proveitosa não apenas para os
dispensacionalistas, mas também para outros membros da Sociedade interessados
em escatologia. O esforço começou com auxílio mútuo de alguns que hoje
podem ser identificados como dispensacionalistas progressivos ou tradicionais. O
grupo estava conscientemente comprometido em não somente discutir o tema
entre si, mas também ter outros palestrantes que não necessariamente se
identificavam com o dispensacionalismo e sim com outras tradições teológicas.
Um dos nossos maiores objetivos nessas reuniões era conversar mutuamente e
não falar uns dos outros.
O objetivo deste ensaio é semelhante. Por que não nos empenhamos em
ponderar a respeito do que é o dispensacionalismo como um movimento? Por
que não deixar clara a razão pela qual os dispensacionalistas consideram o
dispensacionalismo uma contribuição relevante para a teologia evangélica? O que
o dispensacionalismo contribui para a teologia evangélica? Por que não ponderar
a respeito de seus pontos fortes, desenvolvimentos e potenciais pontos fracos?
Este será o meu objetivo. Isso é ainda mais importante, pois alguns dentro da
nossa tradição têm perguntado, mesmo publicamente, se o dispensacionalismo
progressivo é de fato dispensacionalismo. Alguns desses críticos consideram isso
como um híbrido preocupante e uma tentativa de ser uma teologia da aliança em
pele de cordeiro.2 Acho que é importante e apropriado responder a esta
importante questão da forma mais clara possível. Espero ratificar os pontos fortes
desta tradição e por que eu me identifico com ela.
Também gostaria que todos nós, independentemente da nossa tradição,
ponderássemos sobre o significado e as limitações de tais rótulos tradicionais. O
que significa identificar-se com uma tradição para um grupo orientado
biblicamente e que está ciente da repreensão de Paulo em 1 Coríntios 1 a
respeito de ser de Paulo, ou de Apolo ou até mesmo de Cristo? Esta é a razão de
um “d” minúsculo. Em minha opinião, todos nós, independente de qual seja as
nossas origens tradicionais, necessitamos manter nossa tradição com um senso de
que ela tem uma dimensão de uma letra minúscula, reconhecendo o fato que
muitos pontos de vista que discutimos, são pontos de vista debatidos entre
evangélicos comprometidos com a Bíblia. Uma vez que lidamos com boa parte
do mundo que não conhece a Jesus, o que temos em comum é muito mais
importante do que as nossas diferenças. Como fazer esta distinção de prioridade
é a proposta e o teor deste ensaio, mesmo que este afirme sua identificação com
uma importante tradição evangélica.
INTRODUÇÃO: PENSANDO A RESPEITO DE UMA IDENTIDADE TEOLÓGICA TRADICIONAL
Diferentemente da vocação, a identidade nem sempre é algo simples de explicar.
O impacto do contexto, dos eventos e do meu ambiente cultural influenciam a
identidade de uma forma que provavelmente subestimo. Somos pessoas feitas à
imagem de Deus, e ainda assim somos tocados pela obra divina de Deus em uma
infinidade de detalhes desta vida. No meu caso, eu cresci no Texas e escolhi
estudar na Southern Methodist University em meu primeiro ano de faculdade pois
era próximo a minha casa em Houston e parecia ser um lugar bem agradável.
Mas Deus também estava agindo. Por um “acaso” o meu companheiro de
quarto, era um batista do sul, que vivenciava a grande comissão muito antes de
eu realmente saber o que era isso. Esses pequenos detalhes da nossa fidelidade são
geralmente esquecidos ou nem mesmo mencionados, mas também, e estou certo
disso, ocupam um lugar de destaque na determinação da nossa identidade. Há
uma dimensão humana e pessoal positiva (e às vezes negativa) em nossa
identidade teológica e na maneira como fazemos teologia. Nós a ignoramos por
nossa conta e risco, se não reconhecermos que ela está lá causando impacto.
A identificação com uma tradição teológica é um exercício semelhante.
Muitos de nós somos o que somos pois pertencemos a uma igreja de uma
determinada tradição quando chegamos a Cristo e ficamos satisfeitos com esta
associação. Para outros, as nossas identidades tradicionais são um produto de
uma reação, às vezes bastante intensa, que se chocam contra os alicerces de
nossos novos começos. Ainda para outros, a transição é muito menos chocante e
talvez nem seja vista em termos de estar nela ou sair dela.
A exposição ao corpo de Cristo conduz a uma ponderação e ao
desenvolvimento de um senso das áreas fortes e fracas sobre a tradição ou as
tradições com as quais nos identificamos. Em outras palavras, alguns de nós são
o que são porque temos sido assim desde o nosso segundo nascimento, enquanto
outros se tornaram quem são em uma comparação consciente com outras
tradições. Para sermos bons teólogos e independentemente do caminho que
seguimos, justificamos as associações que assumimos com as afirmações e
convicções de que somos bíblicos ao permanecermos naquilo que cremos.
Isso não sugere que aqueles que permaneceram dentro de uma tradição
durante toda a sua vida cristã não tenham sido reflexivos. A menos que uma
pessoa viva em uma igreja hermeticamente fechada, é impossível em nossa época
não ser exposto a uma diversidade de tradições, bíblicas ou não. A resposta mais
simples e menos exigente à nossa exposição a esta variedade é simplesmente
afirmar que a nossa tradição é bíblica e com isso, nos convencemos de que o
modo como lemos a Bíblia é a forma como ela deveria ser lida. Defendemos essa
associação usando quaisquer razões plausíveis que pudermos promover, sem
nenhum interesse em como ou por que outros a enxergam de modo distinto.
Todos sabemos em nosso coração que esta abordagem não é somente
inadequada, mas também não-bíblica. Se o exercício teológico tem alguma
serventia, ele é chamado a fazer uma reflexão a respeito das Escrituras e do
mundo com reverência na busca pela verdade, onde quer que ela esteja. Isto
significa ser justo não apenas sobre o que creio mas também sobre o que os
outros creem. Isto pode significar ver a verdade para além da minha própria
tradição.
Assim, no que estou prestes a falar sobre ser um dispensacionalista, estou
sendo o mais autorreflexivo possível. Eu sei que o que vejo não é tudo o que
pode ser visto. Estou no meio teológico há mais de vinte anos. Estudei, ouvi, li e
discuti o que outras tradições sustentam. Vejo coisas em outras tradições que
ressoam com a verdade bíblica, mas também estou associado com a tradição
dispensacionalista durante toda a minha vida cristã. Estou consciente que o
dispensacionalismo parece extraordinariamente hábil em provocar fortes reações
a favor e contra. Em parte, eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo
pois acredito que o dispensacionalismo possui inúmeras ênfases bíblicas. Mas
também sei que nenhuma tradição vê isso completamente, e por isso a minha
busca pela verdade na comunidade da fé deve permanecer interativa com as
outras tradições, tanto positivamente quanto negativamente. Ao dizer o que faço
em relação ao dispensacionalismo, farei algumas comparações com outras
tradições, as quais também podem ter muito a nos dizer biblicamente. Entendo
que o dispensacionalismo é benéfico para entender sobre o que Deus significa
para mim e para o mundo.
Entretanto, antes de explicar por que sou um dispensacionalista, preciso
gastar um tempo para discutir a questão levantada por alguns de que a minha
colocação sobre o dispensacionalismo é na verdade um pré-milenismo aliancista.
Esta é um questionamento importante que merece uma resposta detalhada e que
explica por que sou dispensacionalista, por que é com um “d” minúsculo e por
que devemos ser cuidadosos na forma como classificamos os pontos de vista uns
dos outros.
VISÃO GERAL
Eu abordo a minha pesquisa a respeito do dispensacionalismo em quatro etapas.
Na primeira parte, trato da questão pré-milenista e a hermenêutica aliancista.
Aqueles que hesitam em aceitar uma reivindicação de que alguém pode ser
progressivo e dispensacionalista sugeriu que a leitura progressiva do texto é uma
hermenêutica aliancista ou reflete um aliancismo pré-milenista.3 Também quero
fazer algumas observações importantes a respeito de como rotulamos as pessoas
no processo.
A segunda parte deste artigo trata dos pontos fortes e as contribuições para a
teologia que chegaram à igreja por meio do dispensacionalismo.
Na terceira, considero novos temas e ênfases emergentes na tradição que
também beneficiam a associação com o diálogo dispensacionalista. Aqui falo
com as lentes de um dispensacionalista progressivo, mas entendo que estas
questões levantadas são de interesse e importância para todos nós.
Por último, considero as potenciais fraquezas e perigos da nossa tradição,
onde os pontos fortes podem causar problemas ao dispensacionalismo se não
formos equilibrados no modo como nos vemos.
PRÉ-MILENISMO ALIANCISTA?
Afinal de contas, por que um dispensacionalista progressivo afirma ser um
dispensacionalista? Por que não se tornar um pré-milenista aliancista? Neste
tema, há duas críticas ao dispensacionalismo progressivo que necessitam ser
tratadas: (1) a sugestão de que a hermenêutica complementar é Laddiana e (2) a
maneira como os dispensacionalistas progressivos tem desafiado a expressão
“hermenêutica literal”.
Muitos sugeriram que a hermenêutica usada no dispensacionalismo
progressivo é Laddiana, ou um reflexo do que passou a ser conhecido como pré-
milenismo aliancista. Elliot Johnson foi a primeira pessoa falou sobre esta
conexão com George Ladd.4 Desde então, isto foi repetido inúmeras vezes.
Dois fatores contribuem para esta comparação: (1) a conclusão do
dispensacionalismo progressivo de que o presente reino já tem uma forma e que
é uma expressão inicial do cumprimento da promessa davídica é de fato
superficialmente semelhante à de Ladd. Se a conclusão é a mesma, então,
logicamente, pode-se concluir que o método interpretativo usado para chegar lá
deve ser ipso facto. (2) Na época desta proposta, as duas principais vertentes com
as quais as pessoas tinham que lidar eram o dispensacionalismo e o aliancismo
pré-milenista. Assim, se uma conclusão se parece mais com o aliancismo pré-
milenista, então essa deve ser a posição.
É importante compreender que esta comparação também tem um contexto
histórico e sociológico mais cínico. George Eldon Ladd e John Walvoord
tiveram um famoso debate sobre escatologia percorreu os anos 50 e 60.
Relacionou-se, em parte, a uma batalha significativa maior que estava ocorrendo
dentro do evangelicalismo sobre o futuro do fundamentalismo/evangelicalismo,
o papel da escatologia e as visões concorrentes das Escrituras que surgiram mais
tarde, na década de 1970, na controvérsia sobre a inerrância/infalibilidade.
Para Walvoord, a sua discordância com Ladd não era somente a relacionada à
questão escatológica, mas também era uma questão hermenêutica que conduziria
a uma negação das Escrituras caso o literalismo fosse abandonado. Eu desconfio
que a razão pela qual as instituições dispensacionalistas ficam desconfortáveis em
considerar os progressivos pra o seu corpo docente sejam as questões
hermenêuticas e bíblicas, que são tão importantes quanto as posições
escatológicas. As raízes desse sentimento são frequentemente subestimadas por
quem olha essa história de uma perspectiva de fora. Ao fazer esta observação não
estou afirmando que concordo com a análise de que a abordagem de Ladd reflete
uma leitura liberal das Escrituras, embora reflita, em minha visão, uma perda de
significado do texto.5 Vejo problemas na forma como ele permite que o Novo
Testamento defina as promessas do Antigo Testamento de maneiras que acredito
que acabam negando parte daquilo que o Antigo Testamento está afirmando.
Mas uma coisa é notar que uma abordagem interpretativa tem problemas ao
apresentar um significado bíblico possível e outra é vê-la como biblicamente
perigosa por se tratar de uma reflexão inerente ao liberalismo. De qualquer
forma, a comparação entre o método adotado por Ladd e seu aliancismo pré-
milenista com a hermenêutica complementar e progressiva era muito mais que
descritivo; era uma tentativa de sugerir preocupações prescritivas.6
Também é curioso o fato de que muitas das críticas específicas de Ladd feitas
a pontos de vista específicos do dispensacionalismo – por exemplo, as duas novas
alianças, ou sua perspectiva sobre o sermão do monte – representam posições
que até mesmo muitos dispensacionalistas tradicionais aceitariam hoje em dia,
mesmo que não adotassem as diretrizes hermenêuticas de Ladd para chegarem lá.
De alguma forma, essas sugestões eram aceitáveis porque tratavam de
soteriologia e ética, enquanto as propostas em torno da promessa e do reino
davídicos não eram. A razão provável para a resposta diferente é que ao se
discutir o reinado davídico, falava-se de Israel como uma instituição. O Antigo
Testamento parece ensinar que Israel tem um futuro que se estende até a
resolução da história. O dispensacionalismo sempre teve em seu coração um
ponto sensível por Israel, de modo que afirmar a realização inicial da promessa
davídica sem um papel relevante para o Israel nacional (como Ladd fizera),
parecia separar o que não deveria ser separado. Se Davi ou as suas promessas
pudessem fazer parte da igreja, que necessidade se tinha para Israel? Os teólogos
reformados, incluindo os aliancistas pré-milenistas, fazem-me a mesma pergunta
que os dispensacionalistas tradicionais, mas argumentam que Israel e a igreja são
um e são os mesmos – um ponto de vista que rejeito como uma simplificação
excessiva do texto, embora eu aprecie o que está no ensino do Novo Testamento
que leva os teólogos aliancistas a afirmarem isso. Os dispensacionalistas
tradicionais preferem que Davi fique onde ele pertencia: em um Israel nacional
que tem um papel central no futuro. Os dispensacionalistas progressivos
defendem que há uma nuance nessa discussão que se situa entre esses dois
opostos.
Um dos incômodos que o dispensacionalismo progressivo parecia causar era a
bagunça nas claras linhas de distinção que os teólogos aliancistas e
dispensacionalistas haviam feito em seus debates (às vezes acalorados) entre as
décadas de 1950 e 1970. A confusão resultante deixou as pessoas que desejavam
categorias bem definidas desconfortáveis. Eu estava bem ciente dessa tensão em
1987, pois tive de enfrentá-la hermeneuticamente ao considerar a proposta.
Penso que parte dessa reação é perfeitamente compreensível, visto que a teologia
é marcada pela história de suas lutas, pela localização temporal dos eventos e pelo
desejo de saber de que lado se está. Quando os dispensacionalistas progressivos
desafiaram a viabilidade da expressão “literal” no recente debate e se o literalismo
era uma condição histórica sine qua non do dispensacionalismo, foi confirmado
para muitos que nosso desejo era que o dispensacionalismo perdesse seu aspecto
distintivo e então juntar-se ou desertar para o outro lado.7
Lamentavelmente, a reivindicação de uma conexão perdeu o sentido. Foram
feitas associações que a princípio eram compreensíveis, mas eram incorretas e
gravemente enganosas. A avaliação teológica necessita não somente considerar
qual é a conclusão, mas como ela foi alcançada e o que está sendo abordado.
Craig Blaising formulou três argumentos convincentes a respeito da
interpretação “literal”.

1. É um termo pobre para ser usado em uma definição, pois ainda é necessário
definir como se encontra o termo “literal” no texto.8 Charles Ryrie também
reconheceu esta dificuldade ao manifestar a sua preferência pelo termo “normal”
ou “simples”.9
Esta abordagem era mais conhecida como interpretação histórico-gramatical,
uma descrição que os evangélicos adotaram e também era aceita por Ryrie. 10
Este último conceito é a melhor frase para definir sobre o que a interpretação
deve envolver. A afirmação adicional feita por Blaising era que todos os
evangélicos buscam fazer isso, de modo que as conclusões diferentes não são o
reflexo de um método diferente, mas sim de uma diferença na integração dos
textos.

2. Uma reivindicação de interpretação literal consistente não era uma condição


sine qua non claramente e historicamente definida para o dispensacionalismo até os
debates polêmicos em meados do século XX. O argumento de Blaising sobre a
interpretação literal consistente era que essa reivindicação não refletia o
pensamento dos primeiros escritores do dispensacionalismo, que estavam
claramente mais confortáveis com leituras mais espiritualizadas do texto. 11
Frequentemente eles se envolviam com leituras tipológica do texto, que eram
menos significativas do que se tornou o termo "literal" quando definido por
Ryrie. As palavras de Blaising resumem muito bem esta situação histórica:

Consequentemente, a observação de Ryrie [sobre a interpretação literal


consistente como uma condição sine qua non], mesmo que tenha falhado
como uma descrição da essência imutável do dispensacionalismo, ainda assim
apontou uma direção na qual a hermenêutica dispensacionalista deveria se
desenvolver. O antigo princípio da espiritualização foi deixado para trás, e os
dispensacionalistas – primeiramente os revisados e posteriormente os
progressivos – buscaram o objetivo da hermenêutica histórico-gramatical
consistente, mesmo quando o desenvolveram em significado e método e em
diálogo com outros evangélicos.12

3. As questões interpretativas na última parte do século XX mostram que todos os


evangélicos estão lutando para entender de que modo o texto está integrado a um todo
teológico. Entre os reformados havia uma reivindicação de uma hermenêutica
“especial” onde muitos teólogos reformados aceitavam a descrição de sua
interpretação como “espiritual” porque acreditavam que esse tipo de leitura tinha
uma base bíblica.13 Porém, hoje em dia a discussão está mudando em ambos os
lados. Hoje, muitos teólogos aliancistas não tentam interpretar mais o texto de
forma alegórica ou não natural ao argumentarem que o livro de Hebreus
apresenta um dualismo celestial-terrestre no qual a forma celestial transcende a
terrestre. Do ponto de vista deles, a acusação de uma interpretação alegórica é
moralmente injusta. O debate diz respeito à ênfase e ao relacionamento das
partes, e não à interpretação literal versus alegórica. Quando eles pegam o
exemplo apresentado no livro de Hebreus com referência ao céu e ao templo e o
aplicam de modo geral em diversas outras partes da Bíblia, eu paro e quero
perguntar por que, da mesma forma que fiz ao criticar a análise de Vern
Poythress.14 O esforço feito pelos dispensacionalistas progressivos para deixar de
lado o “literal” da discussão não significa que concordamos com a abordagem
aliancista ou que desejamos uma integração como eles fazem. Ao entender as
verdadeiras questões, e não apenas as conclusões distintas, talvez possamos
efetivamente aprender algo sobre como progredir nas discussões de tais
diferenças.
A crítica de Ladd também perdeu o sentido, por mais compreensível que ela
seja. Nosso objetivo não era argumentar que os cumprimentos iniciais no Novo
Testamento redefiniram os termos de tal modo que eles não significavam mais o
que eles pareciam significar no Antigo Testamento. Também não defendemos
um refinamento de seu significado que consequentemente muda o sentido do
que originalmente parecia ser. Não estávamos recorrendo ao Sensus Plenior, da
mesma forma como George Ladd e Daniel Fuller pareciam usar o termo. A
hermenêutica “complementar” do dispensacionalismo progressivo significava
que aquilo que o Novo Testamento nos oferece está de acordo com o que Deus
já revelou no Antigo Testamento. Deus pode dizer mais sobre o
desenvolvimento das promessas do Antigo Testamento no Novo Testamento,
mas não menos que isso. Ele também pode trazer novas conexões no
desenvolvimento da promessa, à medida que mais revelações são acrescentadas. É
essa dinâmica da dimensão multitemporal da promessa que alguns
dispensacionalista têm subestimado, enquanto os teólogos aliancistas têm
exagerado no elemento do Novo Testamento. Os textos que evocam um
comentário sobre o cumprimento definem o alcance de sua realização e o seu
tempo. A integração aliancista argumenta que a esperança do Antigo Testamento
foi transcendida e/ou mais claramente expressa no Novo Testamento. Os
dispensacionalistas progressivos argumentam que o Novo Testamento indica que
há um complemento das promessas do Antigo Testamento, também tendo um
cumprimento completo dentro das estruturas étnicas já indicadas no Antigo
Testamento. Isso significa que, em ambos os pontos de vista, a igreja pode existir
como uma instituição distinta no plano de Deus e ainda partilhar das promessas
que foram dadas originalmente a Israel, pois Deus as aplica por meio de sua
promessa através de seu plano envolvendo a Cristo, a semente de Abraão, que foi
também o instrumento prometido através do qual o mundo seria abençoado
(Gl 3-4).
A visão de Ladd permaneceu obscura a respeito do programa futuro
envolvendo o Israel nacional, exceto por articular que o plano incluía um
programa redentivo e o povo de Deus.15 Acertadamente ele recorreu ao texto de
Romanos 11 e a sua ênfase na unidade. Uma planta mencionada começa com os
israelitas, enxerta os gentios, e aguarda com expectativa o dia do retorno de
Israel. Ladd acreditava que Israel se voltaria para Deus no final, porém, no
processo, não falou da instituição nacional de Israel. Para ele, por exemplo, as
144 mil pessoas citadas em Apocalipse 7 retratam a igreja do fim dos tempos.16
A presença da bênção em Cristo através de Israel e para as nações é um aspecto
fundamental da esperança do Antigo Testamento que é evocada aqui. Há uma
unidade na bênção, e ao mesmo tempo há evidências de uma reconciliação
nacional por meio de Cristo. Entretanto, os dispensacionalistas progressivos
veem os 144 mil como um reflexo das testemunhas judaicas de Jesus em um
Israel reconstituído que será estabelecido na era final.17 Portanto, os
dispensacionalistas progressivos afirmam claramente que (1) há um futuro para o
Israel étnico e (2) há uma distinção entre Israel e a igreja como instituições em
atividade ao longo do plano de Deus. Há aqui distinções que permanecem no
meio da articulação da continuidade soteriológica e do reino sobre o progresso
da promessa e a realização da esperança da aliança. Estes desenvolvimentos
matizam a nossa discussão teológica tanto dentro do dispensacionalismo quanto
nas diversas linhas de tradição dentro do evangelicalismo. São novas propostas de
síntese, que especificam onde existem continuidades e descontinuidades no
plano de Deus.
Nosso argumento tem sido que o cumprimento inicial na igreja no presente
não implica no fim de um papel central para a crença de um Israel nacional no
futuro. Isso também não deve ser lido como uma proposta do “separado mas
igual”, mas sim como uma estrutura “distinta porém reconciliada” que apresenta
como Deus reconciliou aquilo que era anteriormente dividido.18 Todavia, todos
que compartilham das bênçãos da salvação também compartilham da unidade da
bênção advinda de Cristo. Recentemente os teólogos aliancistas debateram textos
como o de Romanos 11 e se há um futuro para o Israel nacional, expressando
vergonha por não terem entendido isso anteriormente na tradição.19 Alguns são
decididamente pré-milenistas, ou pelo menos expressaram algum agnosticismo
sobre o tema à luz de Apocalipse 20. Outros, como Anthony Hoekma, falam de
um cumprimento físico e literal na terra.20
O que é necessário não é ver quão rapidamente podemos encaixar uma visão
no esquema antigo, mas sim refletir sobre como a nova associação é biblicamente
e textualmente organizada. Portanto, eu não me identifico com o aliancismo pré-
milenista, embora tenha algumas conclusões semelhantes e aprecie algumas de
suas críticas a expressões mais antigas do dispensacionalismo. As minhas
conclusões refletem uma estrutura dispensacionalista, razão pela qual sou um
dispensacionalista com “d” minúsculo.
A IMPORTÂNCIA DO DISPENSACIONALISMO21
O dispensacionalismo é muito importante para a igreja como um todo. O que
estou prestes a dizer não é uma afirmação de que o dispensacionalismo seja
distinto nas áreas que eu debato. Esta tradição lida com as preocupações bíblicas
e tem a sua ênfase que beneficiam todos os evangélicos. Outras tradições
também poderiam fazer uma lista semelhante. Aqui eu gostaria de destacar seis
áreas importantes.

1. Literatura Apocalíptica. O dispensacionalismo sempre procurou lidar com a


literatura apocalíptica sem tentar desmistificá-la ou domesticá-la. Conheço
teólogos que se afastaram do livro de Apocalipse pois julgavam um livro muito
difícil ou até mesmo esotérico. Mas a razão pela qual a literatura apocalíptica é
tão importante é que ela ratifica muito dos temas básicos que são centrais para o
envolvimento de Deus conosco.
Em primeiro lugar, desde Adão até o fim, Deus está elaborando um plano
que chegará a uma resolução triunfante dentro do atual progresso da história.
Em segundo lugar, a literatura apocalíptica afirma de forma evidente que
uma batalha cósmica está de fato acontecendo em nosso mundo. Embora alguns
façam com que se pareça muito com um dualismo, o fato é que na maior parte
do mundo moderno há um certo desprezo das forças invisíveis que atuam em
nosso mundo e em nós. A literatura apocalíptica desafia tudo isso, lembrando-
nos de que estamos de um lado ou de outro de uma vasta batalha cósmica em
uma história de responsabilidade cujo fim é indiscutível.
Em terceiro lugar, a literatura apocalíptica é descaradamente antinaturalista.
Parte da razão pela qual muitos hesitam em considerar sobre temas apocalípticos
é que esses temas são muito antiquados. Constatar que há um Deus que invade o
nosso mundo de forma tão radical, está fora de moda desde a época do
iluminismo. Muitos de nós sentem-se desconfortáveis com as imagens
perturbadoras do julgamento cósmico da literatura apocalíptica. Preferimos uma
vitória limpa na qual os perdedores são mais esquecidos do que tratados. Em sua
essência, a literatura apocalíptica desafia essa cosmovisão de um mundo
falsamente higienizado.
2. A graça de Deus. A descrição da salvação apresentada no dispensacionalismo
e a fatídica jornada de Israel é manifestação da graça de Deus e sua fidelidade às
suas promessas. O relatado é de um Deus que não abandona os seus planos nem
desiste do pecador. A graça de Deus torna a história de Israel até o fim muito
importante, como mostra o texto de Romanos 9-11. Uma ênfase na graça de
Deus nos relembra de que Deus é “paciente com vocês, não querendo que
ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9, NVI).
Ponderar sobre a graça de Deus significa que devemos levar a sério os nossos
pecados como algo que Deus pagou com um grande custo. Ela também nos traz
à memória que pertencemos a Deus por causa da obra de Cristo e não por causa
de alguma obra feita por nós mesmos.
A história de Israel, um objeto indigno da promessa, é também um retrato
significativo da fidelidade de Deus. Aquilo que um dia ele reconquistará é o
retrato da constância de Deus que jamais devemos esquecer.

3. Leitura holística das Escrituras. O dispensacionalismo adota a história das


Escrituras como um todo e procura integrá-la. Nossa tradição, assim como as
outras, tem também os seus debates a respeito de como a integração funciona em
seus detalhes. Embora a tradição permaneça comprometida em ler o progresso
da história bíblica como algo em que deve haver uma atenção especial. É
importante perceber onde uma era é igual e onde é distinta de outras eras. Ao
afirmar que o dia de hoje não era como foi ontem, o dispensacionalismo desafia
a igreja a ler as Escrituras com os olhos da singularidade do que Deus está
fazendo em um determinado período.

4. A igreja e o mundo. O dispensacionalismo sempre fez uma distinção entre a


igreja e o mundo. Alguns veem isso como uma fraqueza que conduz ao
escapismo. Mas eu não vejo assim. Muitas das grandes organizações missionárias
surgiram com os dispensacionalistas, pois estes criam que a igreja era o meio
onde Deus estava trabalhando de modo especial. O ativismo social do
dispensacionalismo tem o seu foco em uma outra direção por causa da percepção
dessa prioridade. Esta distinção promoveu o evangelismo e demonstrou que a
obra de Deus através da igreja é o local onde são encontradas as verdadeiras
reformas e a verdadeira redenção. Isso não significa que o engajamento neste
mundo é desnecessário. Entretanto, precisamos lembrar, como mostra a história
de Israel, sem uma transformação do coração, uma nova lei corre o risco de se
tornar uma letra morta.

5. As Distinções culturais dentro do corpo. Outro assunto que não é muito


reconhecido sobre o dispensacionalismo é a sua sensibilidade com as distinções
culturais na igreja. Somos todos um em Cristo, e ao mesmo tempo somos de
judeus e gentios. Uma parte do evangelho inclui a poderosa imagem da
reconciliação horizontal. O evangelho não faz com que esqueçamos que no
momento em que Deus nos uniu, ele fez isso apesar de sermos distintos e com
uma diversidade de origens. A igreja necessita modelar a reconciliação cultural,
uma unidade em meio da maravilhosa diversidade criativa de Deus.

6. Todos os crentes são ministros. O surgimento das organizações


paraeclesiásticas é um dos desenvolvimentos mais desconcertantes do século XX.
É uma inovação, assim como foi a escola bíblica dominical, que veio para ficar.
Na base deste movimento está a crença de que a igreja não é um prédio e nem
está restrita há uma localidade específica. Ela é formada pelo povo da fé que
busca ministrar pelo Deus vivo a quem servem e amam. O dispensacionalismo
ajudou e contribuiu para a origem de muitas organizações paraeclesiásticas. Esta
ênfase beneficia a todos nós.
Um segundo exemplo desse fenômeno é o estudo bíblico nos lares, outra
manifestação do fato de que Deus chama todos nós a levarmos a sério o
aprendizado como seus discípulos.
Por fim, ao observar essas categorias, não desejo ser mal interpretado. Não
estou dizendo que todos esses ensinos estejam necessariamente ausentes em
outras tradições, ou que muitos desses temas não aparecem lá. Não reivindico
que essas ênfases sejam exclusivas da minha tradição, mas simplesmente que a
minha tradição é bastante útil na maneira como aborda essas questões. O que eu
apresentei aqui são ênfases que ressoam com importantes temas bíblicos de
modo que ofereça algo valioso para o restante da comunidade evangélica.
A IMPORTÂNCIA DAS NOVAS ÊNFASES DISPENSACIONAIS E COMO ELAS SURGIRAM
Há outras razões mais recentes pelas quais eu sou um dispensacionalista. Um dos
maiores compromissos da minha tradição é ir até aonde as Escrituras vão, uma
perspectiva que implica uma disposição em fazer um minucioso exame próprio.
Uma autorreflexão crítica é sempre um exercício difícil. Às vezes essa reflexão
precisa da contribuição daqueles que estão fora da nossa tradição para nos ajudar
a considerar onde nossos pontos cegos podem existir. Em outros momentos, é
necessário que alguns de dentro desta tradição levantem questionamentos e
ofereçam as soluções. Em princípio, uma tradição que não ofereça algum espaço
para a reflexão será fossilizada.
O comprometimento com uma tradição é um compromisso que não
somente preserva, protege e a defende mas também considera a necessidade de
reformar e remodelar quando tal é mais bíblica. O fato de podermos nos
envolver em uma ponderação dentro da nossa tradição e entre as outras tradições
é um sinal de nossa saúde. Alguns de nossos temas mais recentes surgiram de
nossas reflexões internas e são saudáveis por si só. Gostaria de ressaltar duas
ponderações que apontam para as ênfases que tornam atraente ser um
dispensacionalista.

1. Considerações sobre o tema da unidade. Uma nova ênfase é avaliar a


unidade da mensagem bíblica em meio à conhecida busca pelas distinções no
dispensacionalismo. Em parte, isso provavelmente aconteceu em resposta aos
questionamentos feitos por aqueles que estavam fora da nossa tradição. De
qualquer modo, o resultado foi um novo diálogo, biblicamente centrado, com
muitas outras tradições.
Alguns céticos a esses desenvolvimentos acham que esse sempre foi o objetivo
– a saber, reformular o dispensacionalismo de uma maneira que o tornasse mais
aceitável para os de fora e que nesse processo já não o tornasse mais
dispensacionalismo. Eles também se sentem desconfortáveis com a nova
aproximação com aqueles que pertencem a outras posições, por entenderem que
a verdade estava sendo comprometida em nome de uma falsa unidade. Mas
aqueles que reagem a esses desenvolvimentos apenas com um desejo de exclusão
e rejeição, correm o risco de serem prejudicados porque se afastam de uma
discussão potencialmente frutífera.

2. O amplo alcance da salvação. Os recentes desenvolvimentos no


dispensacionalismo têm o seu foco no chamado de Deus para reformar a
humanidade em todos os seus relacionamentos através da salvação em Cristo. A
verdadeira reforma fora de Jesus Cristo é uma impossibilidade. No
dispensacionalismo, isso se tornou possível pela reintrodução do estudo dos
evangelhos e dos profetas com o seu ímpeto ético. Este novo foco vai além de
um apelo às exigências de ser feito à imagem de Deus. Ele enfatiza a
consideração de como Deus chama as pessoas a se relacionarem umas com os
outras e como isto agora é possível, mas somente em Cristo. Ele insiste que a
salvação e a santificação não são apenas questões de um relacionamento pessoal e
direto com Deus, mas também envolvem uma reconciliação corporativa em uma
diversidade dos contextos da vida. O envolvimento nessas esferas corporativas
nos protege de duas ênfases falsas.
Uma falsa abordagem basicamente se afasta do mundo e de seus problemas,
deixando-os em grande parte sem uma solução. Com efeito, a escolha é deixar a
pessoa secular afundar-se em sua própria lama à medida que a sociedade se
degrada ao nosso redor, buscando, em vez disso, uma mudança de coração. Mas
como podemos ver onde está o coração, a menos que as questões das escolhas da
vida sejam submetidas ao escrutínio bíblico? Deus corre o risco de ser irrelevante
em todas as extensões do esforço humano.
A segunda falsa ênfase também corre o risco de um perigoso dualismo ao
sugerir de modo sutil que a mera aprovação de certas leis ou até mesmo que a
prática de boas políticas e sua influência irão melhorar a sociedade. Israel tinha a
melhor lei que o céu poderia oferecer, e mesmo assim, em alguns momentos,
também a sua sociedade foi completamente corrupta. Entrar neste ambiente do
discurso público sem oferecer a graça de Deus corre o risco de apresentar
somente um lado de Deus e consequentemente se torna uma distorção de sua
Pessoa. Além de tentar apontar para a transgressão e para o pecado e procurar
elevar os padrões de nossa sociedade, precisamos também estender a esperança
do perdão e da graça de Deus.
O que o alvo da salvação traz é uma ênfase no fato de que o lugar onde a ação
de Deus deve ser mais evidente na transformação está na igreja. Se uma reforma
genuína é possível apenas em Cristo, então ela deve ser vista nos cristãos e entre
os cristãos. A recente ênfase do dispensacionalismo na atual autoridade de Cristo
nesta era e o reconhecimento que Ele está se derramando na igreja significa que
todas essas implicações de nosso envolvimento no mundo necessitam ser tratadas
com sensibilidade.
OS PERIGOS PARA O DISPENSACIONALISMO
Em tudo isso existem várias armadilhas. É preciso ter cuidado para que os pontos
fortes não sejam exagerados e que as suas fraquezas decepcionem e sejam
prejudiciais. Portanto, quero apontar para três perigos potenciais de nossa
tradição.

1. Lidar com a verdade e os outros. Um comprometimento elevado com as


Escrituras é tanto uma dádiva quanto uma responsabilidade. A dádiva é
resultante de ter acesso à verdade e a uma preciosa revelação de Deus, da qual a
igreja é a guardiã. É grande a pressão que existe sobre os teólogos de todos os
credos para que permaneçam fiéis a verdade e a reflitam naquilo que ensinamos.
Por ser comprometido com a verdade da Palavra, o dispensacionalismo sempre
teve um forte anseio de ser cauteloso na forma como a doutrina é articulada.
Mas o comprometimento com as Escrituras traz também uma
responsabilidade. Ter acesso à verdade em um texto inspirado e conhecer a
verdade são duas coisas diferentes. Elas podem ser facilmente confundidas. É
importante a fidelidade a verdade, mas também em como interagimos com os
outros. Nossa responsabilidade é sermos fiéis à Palavra e justos a respeito do que
realmente conhecemos.

2. Lidar com futuro. Um importante elemento de nossa tradição é o


compromisso do dispensacionalismo com o que Deus fará por meio de sua graça
no futuro. Entretanto, se formos honestos, sabemos de muitas instâncias dentro
de nossa tradição onde o desejo de conhecer o futuro foi longe demais. Em nosso
zelo e convicção sobre o que as Escrituras ensinam a respeito do arrebatamento e
da segunda vinda, pintamos cenários ao longo dos últimos séculos que se
mostraram errados. É possível que Jesus Cristo volte hoje. Mas devemos ser
cautelosos e nesse momento lembrarmos da história da igreja. Vários dentro de
nossa tradição tentaram argumentar que a sua geração era a última geração. No
entanto, esta geração tem agora se estendido por muitas gerações. A perigosa
tentativa de marcar uma determinada data, bem como a tentação de detalhar
tudo, é o perigo de fazermos identificações que não tem nada a ver com o plano
final determinado por Deus. Ao fazer isso, corremos o risco de construir uma
falsa cosmovisão pois ela é feita através de uma identificação errada.
Um último assunto que precisa ser tratado diz respeito à volta de Jesus. Para
mim, a “bendita esperança” implica em um arrebatamento pré-tribulacional.
Porém isso é uma dedução e eu a trato como tal. E eu acredito desta forma pois
creio que esta é a ênfase apropriada à luz da totalidade do ensino das Escrituras a
respeito do futuro.
Para mim, a bendita esperança não está vinculada ao momento do evento que
dá início a ele, mas sim sobre o que ela representa. Aguardo ansiosamente a
vinda e a plenitude de nossa transformação e redenção quando nosso glorioso
Deus manifestará completamente o seu poder e executará o seu julgamento. Não
é por acaso que o texto de Tito 2.13, um texto que é muito apreciado e citado
pelos dispensacionalistas, ocorre em um contexto ético onde somos exortados a
ponderar um caráter ético de nossa fé até a vinda de Cristo.

3. Lidar com a promessa na Palavra. Minha preocupação final é que em nossa


busca pelas distinções corremos o risco de separar demais nosso Senhor Jesus da
teologia de seu servo Paulo. Não é por acaso que dois dos livros bíblicos que
abordam a relação entre o evangelho e a promessa do Antigo Testamento
começam afirmando, nos termos mais claros e contundentes, a continuidade da
mensagem que a igreja traz com essa esperança de outrora. Os textos de
Romanos 1.1-4 e Hebreus 1.1-2 afirmam que Jesus Cristo é o cumprimento da
esperança do Antigo Testamento. O texto de Romanos aborda o tema no
contexto da promessa, da lei, da soteriologia e o relacionamento entre os judeus e
gentios. Romanos 9-11 não é um parêntesis no livro, mas sim uma parte
essencial do seu argumento. O livro de Hebreus considera o tema a partir da
perspectiva da superioridade de Cristo baseado em sua atividade atual. Ele
considera também o fim da necessidade dos sacrifícios contínuos, ao retratar esta
substituição como uma expressão da inauguração da Nova Aliança, algo que
também é celebrado na ceia do Senhor. Eu acredito que uma grande separação
entre Paulo e Jesus não é saudável para a teologia.
CONCLUSÃO
Eu sou um dispensacionalista com “d” minúsculo por uma série de razões.
Alguns deles se relacionam com os eventos da minha conversão. Outros se
relacionam com uma correspondência que vejo entre as ênfases da tradição e o
que creio ver nas Escrituras. Há ainda outros que se relacionam com os
benefícios que enxergo que o dispensacionalismo oferece para as tarefas
teológicas de nossos dias. Isso não significa que esteja fora do alcance a discussão
destes temas com outras tradições, nem significa que eu ache que esta tradição
não tenha potenciais armadilhas na maneira como elas expressam essas ênfases.
Porém continuo sendo um dispensacionalista pois creio realmente que muito do
que ele ensina reflete de modo suficiente o que as Escrituras ensinam e que eu
aceito e adoto. De fato, eu recomendo o dispensacionalismo para os outros, não
tendo alguma esperança de vencer uma batalha teológica com eles, mas na
esperança de que este ponto de vista teológico ajude a todos a enxergar mais
claramente o nosso mundo, a nós mesmos e nosso Deus. Entretanto, a minha
identidade será sempre com um “d” minúsculo, pois afinal de contas, o meu
compromisso não é com um sistema teológico ou com a tradição, mas sim com
meu Deus e com o seu ensino, de quem a redenção é retratada de modo
maravilhoso por meio das verdades que ele ensina. Isso significa que, ao falar a
respeito do que acredito, estou aberto para ouvir mais dele. Afinal de contas, é a
sua voz que eu quero seguir, pois sei que ainda não ouvi a sua voz final.

1. Este artigo é uma versão resumida de meu discurso para o grupo de estudos dispensacionalistas proferida
no encontro nacional em Jackson, Mississipi, em novembro de 1996. Ele explica seu caráter autobiográfico.
2. Por exemplo, S. J. Nichols, “The Dispensational View of the Davidic Kingdom: A Response to Progressive
Dispensationalism” publicado no The Master’s Seminary Journal, 7, 1996, p. 213-239, que se esforça em
argumentar que a afirmação dos dispensacionalistas progressivos a respeito de uma realização inicial da
promessa davídica não é realmente uma posição dispensacionalista, simplesmente pelo fato de que ela não
foi feita anteriormente na história do movimento. Ela faz esta afirmação ao examinar a história e não os
textos, e de modo conveniente ignora o trabalho de E. Sauer no processo. A defesa de Nichols de um reino
espiritual no Novo Testamento como não estando relacionado à promessa davídica ignora o fato de que as
imagens usadas nesses textos que descrevem o reino espiritual são provenientes do Antigo Testamento e das
categorias davídicas (veja Rm 1.2-4; Cl 1.13 em comparação com Lc 1.69-79 com os seus riquíssimos temas
da esperança no Antigo Testamento). Isto mostra por que a criação desta categoria é motivada pelas
preocupações teológicas e sistemáticas e não pelo texto em si. Para uma série completa de artigos que
refletem este pano de fundo veja D. L. Bock o artigo: “Current Messianic Activity and OT Davidic Promise:
Dispensationalism, Hermeneutics, and NT Fulfillment” Trinity Journal, 15, 1994) pp. 55-87.
3. Não existe uma regra hermenêutica que afirme que uma unidade de significado não possa ser
desenvolvida ou se torne mais complexa com uma relação subsequente. De fato, aqui há uma certa ironia
no desafio de uma leitura complementar. Os dispensacionalistas que falam que os textos do Antigo
Testamento são milenaristas, devem fazer isso por alguma leitura complementar, pois esta categoria não
existe para o escritor do Antigo Testamento, mas vem do livro de Apocalipse. Assim, mesmo os
dispensacionalistas revisados se empenham em uma leitura complementar do Antigo Testamento. Desta
forma, o tempo e seus detalhes são preenchidos por eventos da história divina. Se tivéssemos apagado o
sentido que estava originalmente presente, então sua cobrança terá o seu mérito. Mas isto é exatamente o
que não fizemos.
4. Esta associação foi feita em resposta ao meu artigo para o encontro de 1987 do Dispensational Study
Group. Este artigo foi publicado posteriormente como: “The Reign of the Lord Christ”, Dispensationalism,
Israel and the Church: A search for definition. (ed. C. A. Blaising e Darrell L. Bock: Grand Rapids,
Zondervan, 1992). Minha resposta inicial a esta associação aparece na página 54.
5. É a recusa dos dispensacionalistas progressivos em redefinir Israel, por exemplo, que suscita críticas
injustas como a oferecida por R. Thomas sobre a hermenêutica de múltiplos significados. Não se pode
comparar as reivindicações de textos evangélicos mais antigos sobre hermenêutica com uma discussão da
teoria progressiva. A maioria desses textos não trata em detalhes como lidar com o progresso da revelação
entre textos da esperança no Antigo Testamento e a realização no Novo Testamento. Em última análise, os
textos bíblicos da promessa da aliança devem ser estudados e examinados em seu contexto para ver como
eles se cumprem no presente. O artigo de Thomas pouco ajuda pois procura ser teórico e prescritivo, sem
analisar claramente a exegese dos textos mais importantes do Novo Testamento onde as passagens do
Antigo Testamento são usadas com notas de seu cumprimento. A recusa dos dispensacionalistas
progressivos em redefinir Israel também significa que o padrão hermenêutico proposto por C. Ryrie para os
dispensacionalistas foi alcançado, a despeito de suas críticas; veja Dispensationalism (Chicago: Moody, 1995)
p. 43 para a avaliação adequada de Ryrie sobre a hermenêutica de Ladd. Curiosamente, Ryrie elogia
corretamente a obra de Sauer enquanto reclama das opiniões dos dispensacionalistas progressivos – um
surpreendente paradoxo, dado que Sauer fez observações semelhantes sobre a promessa davídica.
6. Tais esforços podem ser vistos nos títulos que alguns tentaram trazer para a discussão, os quais foram
além dos títulos descritivos “tradicional”, “revisado” e “progressivo” que utilizamos com fundamentos
históricos. A infeliz escolha recente de usar o termo dispensacionalismo “normativo” por alguns que
defendem o que chamamos de dispensacionalismo “revisado” é uma tentativa de ser prescritivo de formas
que citam seletivamente a evidência histórica da história do dispensacionalismo, ignorando a posição de um
dispensacionalista reconhecido como Sauer, com o fraco argumento de que ele é um dispensacionalista
continental, e não lidando com comentários como o de Mateus 3.2 na Bíblia de Estudo Scofield.
7. Deve-se observar a linguagem de batalha que está sendo usada e a tentativa mal direcionada de ler o
motivo aqui.
8. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, pp. 44-52.
9. C. C. Ryrie, Dispensationalism Today (Chicago: Moody, 1966) p. 45; veja também Ryrie,
Dispensationalism p. 40.
10. C. C. Ryrie, Dispensationalism Today, p. 86-87.
11. Dispensationalism, Israel and the Church (ed. Blaising e Bock), p. 26.
12. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, p. 47.
13. W. E. Cox, Amillennialism Today (Philadelphia: Presbyterian and Reformed, 1966), pp. 14, 24-25.
14. D. L. Bock, resenha de V. Poythress, Undestanding Dispensationalism, JETS 32 (1989), pp. 542-544.
Numa atualização de sua obra, Poythress argumenta que os dispensacionalistas progressivos foram pegos em
um dilema hermenêutico por causa da afirmação deles de uma unidade soteriológica em textos como o de
Gl 3 e Rm 11. Mas isso ignora uma consideração do tipo de nuance apresentada pela minha pergunta sobre
o livro de Hebreus. A teologia bíblica só avançará quando as continuidades e as descontinuidades forem
apreciadas e devidamente definidas em categorias apropriadas. A busca de tais nuances no debate sobre a lei
entre os reformados e os teonomistas, um movimento exigido pela crítica reformada à teonomia, também
precisa ser trazida para a discussão da soteriologia e da escatologia. Se isto pode auxiliar na discussão da lei,
pode também nos auxiliar a delinear as estruturas no plano de Deus, conforme as diversas dispensações vão
e vêm.
15. G. E. Ladd, O Evangelho do Reino (São Paulo: Shedd Publicações, 2008), pp. 131-147.
16. G. E. Ladd, Apocalipse, Introdução e Comentário (São Paulo: Vida Nova, 1980), pp. 83-88.
17. Blaising e Bock, Dispensacionalismo Progressivo, p. 333.
18. Aqui eu respondo a distinção que R. Mouw ofereceu à minha proposta em resposta à apresentação
original deste ensaio.
19. C. E. B. Cranfield, The Epistle to the Romans (Edinburgh: T. & T. Clark, 1979) 2.448 n. 2.
20. A. A. Hoekema, The Bible and the Future (Grand Rapids: Eerdmans, 1979) [edição em português: A
Bíblia e o Futuro (São Paulo: Cultura Cristã, 2013)] 205, 274-287; cf. também V. S. Poythress,
Understanding Dispensationalists 38, pp. 47-51.
21. Por uma questão de espaço eu resumi bastante as próximas três partes. Para um estudo mais detalhado
destes temas, você pode buscar a versão original deste meu ensaio no Dispensational Study Group.
O Sibima é uma instituição evangélica, sem fins lucrativos, de ensino teológico
fundamentada nas Escrituras Sagradas e que tem como objetivo treinar obreiros
visando a expansão e edificação do Reino de Deus. Dessa forma, há mais de 70
anos estamos promovendo a divulgação e implementação da cosmovisão cristã
em nossa sociedade, a fim de que a Glória de Deus alcance os confins da terra.
A excelência acadêmica e a maturidade espiritual são o nosso lema. Mas não
temos aqui apenas uma frase de efeito, e sim a realidade da dedicação dos nossos
professores que buscam cada vez mais uma qualificação maior no estudo das
Escrituras, e que também são pastores dedicados aos seus rebanhos. São homens
de Deus servindo ao povo de Deus liderando a igreja do Senhor Jesus Cristo.
Atualmente temos o curso de Teologia Ministerial, com duração de 4 anos,
onde nossos alunos recebem uma profunda base teológica, exegética e
missiológica. Além disso, também temos o curso de Teologia Avançada (Sacrae
Theologiae Magister) com foco em Teologia Sistemática e em Aconselhamento
Bíblico. E em 2021 estaremos iniciando um Ph.D. em Teologia em parceria
com a Clark Summit University (Baptist Bible Seminary). Um curso de alto
nível acadêmico e todo voltado para o estudo sério da Palavra de Deus. Tudo
isso tem um único objetivo: servir a Igreja de Cristo e promover sua glória entre
as nações.

Valberth Veras,
Deão Acadêmico
www.sibima.com.br

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