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os

SALMOS
COMO LOUVOR
CRISTÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Waltke, Bruce K.

Os Salmos como louvor cristão : um comentário histórico / Bruce K.


Waltke, James M. Houston ; tradução de Angelino Junior do Carmo. — São
Paulo : Shedd Publicações, 2020.

352 p.

ISBN: 978-85-8038-083-5
Título original: The Psalms as Christian Praise: a historical commentary

1. Bíblia A. T. Salmos - Comentários 2. Louvor - Bíblia I. Título II. Houston,


James Μ. III. Carmo, Angelino Junior do

20-2392 CDD-223.207

Indices para catálogo sistemático:


1. Bíblia A. T. Salmos —Comentários
os

SALMOS
COMO LOUVOR
CRISTÃO
: í ·; \ . . : M ‫״‬ i ■
' k u i i I i.S ! ■> R i V

Tradução
Angelino Junior do Carmo

B ruce K. W altke
J ames M. H ouston

SHEDD
© 2019 by Bruce K. Waltke and James M. Houston
Originally published in English under the tide
The Psalms as Christian Praise: A H istorical Commentary
by Wm. B. Eerdmans Publishing Co.
4035 Park East Court SE, Grand Rapids, Michigan 49546, USA
All rights reserved.

I aEdição - Julho de 2020

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ISBN 978-85-8038-083-5

Printed in B ra zil / Impresso no Brasil

T radução - Angelino Junior do Carmo


R e v i s ã o - Rogério Portella
D i a g r a m a ç ã o & C a p a - Edmilson Frazão Bizerra
Sumário

P refácio ......................................................................................................... 11
1. Os SALMOS COMO LOUVOR C R ISTÃ O ............................................................................... 15
I. O quê: O objeto do louvor, o Eu S o u ................................................... 15
II. Por que louvar.........................................................................................20
III. Quem, onde e quando.......................................................................... 27
IV. Como louvar...........................................................................................37
2. Salmo 90: A voz da sabedoria moderada .............................................43
P arte I. A vosç do salm ista: T radução ................................................................ 43
P arte I I . C om en tário ........................................................................................48
I. Introdução.......................................................................................... 48
II. Exegese.............................................................................................. 53
P arte I II. A vo% da igreja em resp osta .................................................................. 73
I. Atanásio de Alexandria (c. 295-373).................................................74
II. Agostinho de Hipona (354-430)..................................................... 75
III. Gregário de Nissa (c. 332-395)......................................................76
IV. Martinho Lutero (1483-1546).........................................................76
P arte I V . C onclusão .............................................................................................. 79
I. Contexto canônico.............................................................................79
II. M ensagem ......................................................................................... 79
3. Salmo 91: A invulnerabilidade e invencibilidade do M essias .....81
P arte I. A vosç do salm ista: T radução .....................................................................81

P arte II. C o m entá rio ........................................................................................ 85


I. Introdução.......................................................................................... 85
II. Exegese..............................................................................................91
Parte III. A vo%da igreja em resposta............................................................. 107
I. O caráter apotropaico do salmo 9 1 ............................................... 107
II. O salmo 91 como confissão na tentação..................................... 108
III. Jerónimo (342-420)....................................................................... 108
IV. Agostinho de Hipona (354-430)...................................................109
V. Bernardo de Claraval (c. 1090-1145).............................................110
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 116

4. Salmo 92: T u , E u Sou, És o altíssimo eternamente ! ................... 117

Parte I. A vo1.ζ do salmista: Tradução............................................................ 117

Parte II. Comentário..................................................................................... 120


I. Introdução........................................................................................ 120
II. Exegese............................................................................................ 124
Parte III. A vosç da igreja em resposta............................................................. 140
I. A origem do salmo 92 para o sábado..............................................140
II. A criação e o sábado e tern o ........................................................... 140
III. A recepção da igreja de um salmo de sábado............................143
IV. Agostinho de Hipona (354-430)................................................. 144
V. Poetas medievais e contem porâneos............................................146
VI. Vivendo uma vida piedosa de acordo com os reformadores ... 148
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 150

5. Salmo 93: O trono do E u Sou e o mundo permanecem firmes ... 153


Parte I. A vo \ do salmista: Tradução...............................................................153

Parte II. Comentário...................................................................................... 154


I. Introdução........................................................................................ 154
II. Exegese............................................................................................ 158
Parte III. A vo%da igreja em resposta .............................................................. 164
I. Agostinho de Hipona (354-430).....................................................164
II. Ernst W Hengstenberg (1802-1869).............................................165
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 165
6. Salmo 95: V e n it e ......................................................................................167
Parte I. A vo%do salmista: Tradução.............................................................. 167

Parte II. Comentário........................................ ............................................167


I. Introdução........................................................................................ 167
II. Exegese............................................................................................ 170
Parte III A vo%da igreja em resposta............................................................. 177
I. Agostinho de Hipona (354-430)................................................... 178
II. João Calvino (1509-1564)............................................................. 180
III. Roberto Belarmino (1542-1621)..................................................181
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 184
I. Contexto canônico........................................................................... 184
II. M ensagem ....................................................................................... 184
7. Salmo 96: O rei vem para estabelecer a justiça ...............................187

Parte I. A vo^ do salmista: Tradução............................................................. 187

Parte II. Comentário...................................................................................... 189


I. Introdução...................... 189
II. Exegese............................................................................................ 192
Parte III. A vo^ da igreja em resposta............................................................. 201
I. O uso antigo do salmo na liturgia do tem plo................................201
II. Uso cristão antigo do salm o.......................................................... 202
III. A salmodia musical entre os pais antigos....................................202
IV. O segundo grande período da hinódia da igreja......................... 204
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 206
I. Contexto canônico........................................................................... 206
II. M ensagem ....................................................................................... 206
8. Salmo 97: Suas carruagens de ira formam tempestades .................211

Parte I. A vo%do salmista: Tradução............................................................... 211

Parte II. Comentário......................................................................................213


I. Introdução........................................................................................ 213
II. Exegese............................................................................................217
P arte I I I . A votada igreja em resposta .............................................................. 228
I. Roberto Belarmino (1542-1621).....................................................228
II. Jonathan Edwards (1703-1758).....................................................229
III. Andrew A. Bonar (1758-1821).................................................... 229
IV. John N. Darby (1758-1821).......................................................... 230
V. Os modernos existencialistas franceses........................................231
P arte I V . C onclusão ...................................................................................... 232
I. Contexto literário............................................................................. 232
II. M ensagem ....................................................................................... 232
III. Contexto canônico....................................................................... 233
9. Salmo 98: U m cântico de vitoriado guerreiro d iv in o ..................235
P a rte I. A vo ^d o salm ista: Tradução ............................................................... 235

P arte II. C om en tário ...................................................................................... 236


I. Introdução........................................................................................ 236
II. Exegese............................................................................................241
P arte I I I . A vo ^d a igreja em resposta .............................................................. 246
I. Novo Testam ento............................................................................ 246
II. Agostinho de Hipona (354-430)....................................................247
III. João Calvino (1509-1564).............................................................247
P arte I V . C onclusão ...................................................................................... 250
I. Contexto canônico........................................................................... 250
II. M ensagem ....................................................................................... 250
10. Salmo 99: Santo é E l e .......................................................................... 253
P a rteI. A vosçdo salm ista: T radução ............................................................... 253

P arte I I. C o m entá rio ...................................................................................... 256


I. Introdução........................................................................................ 256
II. Exegese............................................................................................259
P arte I I I . A vocç da igreja em resposta .............................................................. 268
I. Agostinho de Hipona (354-430).....................................................269
II. Boaventura (1217-1274)................................................................ 271
III. William Romaine (1714-1795)......................................................271
P arte I V . C onclusão ...................................................................................... 274
I. Alterando contextos canônicos.......................................................274
II. M ensagem ....................................................................................... 274
11. S almo 100: J u b il a t e D e o ......................................................... 277
P arte I. A vo% do salm ista: T radução ............................................. 277
P arte I I . C om en tário ..................................................................... 277
I. Introdução................................................................... 277
II. Exegese....................................................................... 279
P arte I I I A vo%da igreja em respo sta ............................................ 286
I. Agostinho de Hipona (354-430)................................ 286
II. Roberto Belarmino (1542-1621).............................. 287
III. William Romaine (1714-1795)................................ 288
P arte I V TC o nclusão ..................................................................... 289
I. Contexto literário........................................................ 289
II. M ensagem .................................................................. 289
12. S almo 103: L o u v e , m in h a alma , o r e i d o c é u ................ 291
Parte I. A vo% do salm ista: Tradução ............................................. 291
P arte II. C o m entá rio ..................................................................... 293
I. Introdução................................................................... 293
II. Exegese....................................................................... 296
P arte I II. A vosç da igreja em resposta ............................................ 304
I. Introdução................................................................... 304
II. Agostinho de Hipona (354-430)............................... 305
III. João Calvino (1509-1564)....................................... 310
IV. Wniiam S. Plumer (1802-1880)............................... 312
P arte I V . C onclusão ..................................................................... 314
I. Contexto literário........................................................ 314
II. M ensagem .................................................................. 314
13. S almo 104: U m D e u s tão g r a n d io s o ................................... 317
P arte I. A vosç do salm ista: T radução .............................. 317
P arte II. C o m en tá rio ...................................................... 320
I. In tro d u ç ã o ......................................................... 320
II. E x eg ese............................................................. 323
Parte III. Λ νο:ζ da igreja em resposta.............................................................. 341
I. Matthew Henry (1662-1714).......................................................... 342
II. William S. Plumer (1802-1880)..................................................... 344
III. André Chouraqui (1917-2007).................................................... 345
Parte IV . Conclusão...................................................................................... 345

G lossário ...................................................................................................... 349


Prefácio

O s salmos são parte do hinário do Senhor Jesus Cristo. Q uando crian-


ça, educado em um lar judaico, ele recitou e conheceu o Livro de Salmos.
Mas quando adulto, ele incomparavelmente faz a afirmação séptupla “E u
S ou ” registrada no Evangelho de João. O seu uso de “E u S ou ”, aplicado a
si mesmo, torna-o objeto do louvor nos salmos para os cristãos. Portanto,
com referência a Cristo, os cristãos leem os salmos de duas formas. Eles o
associam com o Filho de Davi na súplica e no louvor a Deus, e suplicam-lhe
e o louvam com o Filho de Deus.
N o prim eiro comentário, focamos a adoração cristã, em seguida, no
segundo comentário, o lamento cristão e, agora, no terceiro, exploramos as
profundezas do louvor cristão. O nível mais profundo do louvor consiste
no fato de a criação, em si mesma, ter sido trazida à existência para louvar
o Criador. Alguém que conheça arte e engenharia se maravilha com o céu
e a terra do Criador. Mais que isso, o Criador trouxe o globo terrestre à
existência ao triunfar sobre o inexplicável abismo caótico e o concedeu à
humanidade com o dádiva magnífica, um lugar para viver e existir. A criação
do globo terrestre foi o prim eiro de muitos atos redentores do E u Sou.
Ele criou a humanidade para refletir seu triunfo e seu dom e para louvá-lo.
C om o um tem plo construído para adorar e louvar, o globo terrestre
é um anfiteatro para o louvor. E o globo terrestre é o estágio no espaço
insondável onde Deus, por meio de Cristo e de sua igreja, triunfa sobre
Satanás, o pecado e a m orte e assim confere sentido à existência humana.
Deus concedeu a seu povo a voz do salmista com o veículo para expressar
o louvor a ele com o Criador e Senhor da história.
12

A essência do saltério é o louvor, mas considerando que muitos sal-


mos são inteiram ente cânticos de louvor, delimitamos principalm ente o
foco em subespécies dos salmos de louvor: os que proclamam o “E u S o u
reina”. Esta proclamação é ouvida em Salmos 47.8[9] (“Deus reina”), 93.1,
96.10,97.1 e 99.1. Excetuando-se o salmo 47, a proclamação é ouvida no
contexto do Livro IV do saltério (SI 90-106). O tem a da adoração a Deus
é claramente ouvido tam bém em outros salmos do Livro IV. O centro e
núcleo do salmo 92: “Pois tu, E u Sou, és exaltado para sem pre” (v. 8[9])
entoa a primeira nota do tema. O texto de Salmos 95.3 denom ina o E u
S o u o “grande Rei” e o salmo 98 o celebra com o o “G uerreiro D ivino” .
0 salmo 100, que, de acordo com D avid M. H oward Jr., serve com o
incorporação do salmo 95, conclama toda a terra a louvá-lo.1 O tem a é
captado no ponto culminante de Salmos 103.19: “O E u S o u estabeleceu o
seu trono nos céus e com o rei dom ina sobre tudo [que existe]” . O salmo
mais fam oso que o aclama com o Criador é o prim oroso salmo 104, e o
salmo 103 é um dos salmos mais apreciados que o louva com o Salvador.
Portanto, nosso foco é no Livro IV do saltério (Salmos 90-106); a saber, os
Salmos 90— 100 (exceto o Salmo 94 de lamento) e os Salmos 103— 104.
Antes de ouvir a voz inspirada do salmista e a voz de fé da igreja em
resposta, introduzim os a coletânea de escritos ao refletir sobre o louvor,
tentando responder a essas questões com o “p o r que louvar a D eus?” e
“com o louvá-lo?” . À luz de sua santidade imaculada, estam os profunda-
m ente conscientes de nossos lábios impuros; no entanto, estamos de todo
persuadidos de que a m orte de Cristo e o Espírito de purificação são a
cura dupla para salvar-nos da ira e nos tornar puros.
N ossa m eta nos três com entários sobre o livro de Salmos é edificar
a igreja pela audição da voz do salmista m ediante a exegese cuidadosa da
coletânea de escritos e pela audição da voz da igreja em resposta. Com o
term o “edificar” desejamos acrescentar substância à fé, fervor à virtude,
convicção à confissão; e que a igreja seja fortalecida na fidelidade, em
especial neste tem po de perseguição em muitas regiões do m undo e da
apostasia no Ocidente.
Introduzim os a nós mesm os no Prólogo de O s Salmos como adoração
cristã. Bruce Waltke, professor emérito de Estudos Bíblicos no Regent

1 The Structure o f Psalms 93 — 100, BJSUCSD 5 (Winona Lake: Eisenbrauns, 1997),


p. 176.
13

College, contribui com “A voz do salmista” e as “Conclusões” . James


H ouston, professor em érito de Teologia no Regent College, contribui
com “A voz da igreja em resposta”. N os dois primeiros volumes primei-
ram ente apresentamos a “voz da igreja” e em seguida a “voz do salmista”.
Procedem os assim porque na história da interpretação a exegese de Bruce
é atualizada pelos mais recentes aprim oramentos da hermenêutica bíblica.
Aqui, invertem os a ordem para a sequência cronológica mais natural, ao
ouvir em prim eiro lugar a “voz inspirada do salmista” e então a “voz de fé
da igreja” em resposta. Para a com preensão mais plena dessas duas vozes,
veja o Prólogo aos Salmos como adoração crista.
Agradecemos a Eerdm ans Publishing por nos dar voz e somos espe-
cialmente gratos a Samuel Kelly e a Andrew K napp pela excelente edição,
que nos ajuda a falar com mais clareza.
1

Os salmos como louvor cristão

N o prefácio explicamos porque selecionamos os salmos do Livro IV


do saltério para ouvir as vozes do salmista inspirado e da igreja em respos-
ta. Para ajudar-nos a introduzir esse corpus, somos um tanto desinibidos
para em pregar os seis hom ens úteis e honestos de Rudyard Kipling: “E u
tenho seis hom ens úteis e honestos. Eles me ensinaram tudo que sei. Os
nom es deles são O quê?, P or quê?, Quando?, Como?, Onde? e Quem ?” .

O QUê: O OBJETO DO LOUVOR: O EU SOU


As súplicas e louvores do saltério do D eus vivo de Israel, I a v é , tradi-
cionalmente vertido com o “o S e n h o r ” , neste volume é designado “E u
S ou ”. O salmo 99 tem o E u S o u com o primeira e última palavras, o alfa
e o ômega. O nom e de D eus ocorre sete vezes nesse salmo e pronom es
independentes (não requeridos em hebraico) para o E u S o u tam bém
ocorrem sete vezes. N a Escritura, o núm ero sete simboliza os atributos
e obras divinas (cf. Js 6.4).
A. Reflexões progressivas sobre a revelação de Deus
D eus progressivamente se revela a Israel, sua família adotada, hoje
identificada com o a igreja. Q uando D eus cham ou Moisés para liderar seu
povo e sair do Egito rum o à terra prom etida aos patriarcas, ele paciente-
mente revelou seu nome. O s nomes na Bíblia costum am envolver um jogo
de palavras (associação de um nom e próprio à palavra de som similar). O
jogo de palavras no Pentateuco, de acordo com Austin Suris, tem quatro
funções possíveis: com em oração (e.g. Caim, G n 4.1), antecipação (e.g.,
N oé, G n 5.29), descrição (e.g. Eva, G n 3.20) e reminiscência (e.g., Abraão,
16

G n 17.5).1O paralelismo entre Ê xodo 3.14 e 3.15 indica que D eus explica
seu nom e I a v é (Ê x 3.15) por m eio do nom e da sentença: “E u Sou o q u e
Sou” ou “E u S e r e i o q u e S e r e i ” (Ê x 3.13,14). Presumivelmente, portanto,
seu nom e é descritivo (“Ele é”) ou antecipatório (“Ele será”). Janet Martin
Soskice ressaltou que a Septuaginta traduziu o nom e da sentença por “E u
sou o Ser”, com preendendo “a transcendência metafísica do tetragrama
divino com o ‘Ser em si m esm o’ ”.2 A interpretação dela apoia em parte o
sentido tradicional “E u Sou o q u e S o u ” . Assim, o nom e dele menciona
seu Ser eterno, imutável. O Deus de Israel é autoexistente; ele não se deriva
de alguém ou de alguma coisa.
Pouco tem po atrás, Austin Suris argum entou com base na sintaxe
hebraica que o nom e da sentença significa “E u S e r e i o q u e E u S e r e i ” ,
significando antecipação: a revelação progressiva de si mesmo, não a
descrição do seu ser.3 Portanto, Israel aprendeu pela primeira vez, por
meio das pragas do E u S o u sobre Faraó, que o nom e significou seu poder
im pressionante (v. Êx 6.1-4); e Israel aprendeu com o incidente do be-
zerro de ouro a respeito de sua graça maravilhosa (Êx 34.6; v. SI 103.6,7).
A interpretação mais tradicional, entretanto, além de com unicar seu Ser
imutável, tam bém induz a noção que ele progressivamente revelará quem
é. O ápice é que o E u S o u se revelou no Filho, o Senhor Jesus Cristo, e
que o Espírito Santo convence o m undo da Verdade 0o 4.24).
N o N ovo Testam ento (NT), o E u S o u se revela plenam ente com o
Trindade: a Trindade ontológica: o Pai, o Filho e o Espírito Santo e uma
organização trinitária, com cada Pessoa tendo um a função única.4 Hoje,
0 Pai deseja ser conhecido pelo nom e do Filho, o Senhor Jesus Cristo. E

1 M aking Sense o f the D ivine N am e in E xodus, BBRSup 17 (Winona Lake: Eisenbrauns,


2017), p. 28. “O jogo de palavras com o nome próprio no Pentateuco significa
a expressão de um caráter (ou um comentário pelo narrador) que designa uma
pessoa ou lugar e explica imediata e explícitamente porque ele ou ela escolheu esse
nome”.
2 “The gift o f the Name: Moses and the burning bush”, em: Silence and the Word:
Negative Theology and Theamation, Oliver Davies; Denys Turner, orgs. Cambridge:
Cambridge University Press, 2007, p. 70ss.
3 M aking Sense o f the D ivine N am e in E xo du s, p. 53, 57, 61.
4 A Trindade é como um acorde da tríade Dó maior: ele consiste em três notas da
mesma substância, que funcionam diferentemente e unidas são uma; a unidade
necessária para existir. Alguns dos atributos de Deus, como o amor, exigem mais
de uma pessoa para serem significativos.
17

assim a igreja ora em nom e do Filho para glorificar o Pai 0 o 14.13) e os


apóstolos pregaram em seu nom e (At 16.31). Paulo ensinou: “Todo aquele
que invocar o nom e do Senhor [Jesus] será salvo” (Rm 10.13, cf. v. 9),
um a citação de Joel 2.32[3.5]: “E todo aquele que invocar o nom e do
“E u Sou” será salvo” . O apóstolo aconselhou a igreja: “Habite ricamente
em vocês a palavra de Cristo-, ensinem e aconselhem -se uns aos outros
com toda a sabedoria, e cantem salmos, hinos e cânticos espirituais com
gratidão a D eus em seus corações” (Cl 3.16, grifos acrescidos).
Providencialm ente, os rabinos no período do segundo tem plo con-
sideraram o tetragram a sagrado demais para ser pronunciado e usaram
sinônim os para ele, com o A d o n a i (“Senhor”) e HaShem (“ O N o m e”).
C om o resultado, a pronúncia original de I a v é se perdeu. D izem os “pro-
videncialm ente” porque a m udança da adoração com o nom e pessoal
de I a v é para a adoração com o nom e pessoal de Jesus Cristo seria de
outro m odo bastante abrupta. O título: “o Senhor”, contudo, podería
prontam ente ser aplicado a am bos ao Pai e ao Filho.
N a história acadêmica sobre o tetragram a, R obert J. W illiamson de-
m onstrou com o a com preensão de Jesus com o o “E u S o u ”, é expressa
pela prim eira vez p o r Justino M ártir, e seguida pelos alexandrinos e p o r
A gostinho de H ipona.5A gostinho, ex-retórico profano, havia distorcido
profundam ente o nom e de Deus. Mas depois de sua conversão radical,
com o ele narra nas Confissões e mais tarde form ula nos com entários sobre
os salmos, o louvor ao nom e de D eus continuou a m udá-lo pelo resto
da vida. As linhas introdutórias das Confissões vocalizam toda a nossa
necessidade de louvor ao E u Sou : “O hom em , uma pequena parte de
tuas criações, deseja louvar-te, um ser hum ano ‘experim entando sua
m ortalidade com ele’ (2Co 4.10), trazendo consigo o testem unho de seu
pecado e o testem unho de tu ‘resistes ao orgulho’ (lP e 5.5). N o entanto,
louvar-te é o desejo do hom em , um a pequena parte de tua criação. [...]
Tem misericórdia, de m odo que eu possa encontrar palavras” .6
“Encontrar palavras” não foi problem a para o retórico, mas encontrar
“as palavras corretas do louvor divino foi o dilema epistemológico de

5 Tetragrammaton: Western C hristians and the H ebrew N am e o f G od (Leiden: Brill, 2015)


p. 136-8.
6 Confessions 1.1, 5, trad, por Henry Chadwick. Oxford: Oxford University Press,
1992, p. 1, 5 [edição em português: Confissões (São Paulo: Paulus, 1984)].
18

Agostinho. Com o ele poderia procurar por D eus se ele nem sequer sabia
quem ou o que ele procurava? Com o louvaria a D eus se ele não sabia
invocá-lo? C om o ele poderia louvar a D eus se D eus está além de todo o
conhecimento, ou nom eá-lo sem lhe distorcer o nome? Com o Moisés,
A gostinho percebeu que D eus deveria chamá-lo em prim eiro lugar, em-
bora lhe fosse ordenado invocar a Deus: “Fala a mim, de m odo que eu
possa ouvir”.7 Mas essa oração já é uma dádiva divina, um a dádiva da fé,
uma dádiva da fala. N ós tam bém , ao assumirm os a tarefa privilegiada
de louvar, participamos da oração de Agostinho: “M inha fé, Senhor, te
invoca. E tua dádiva para mim. Tu a sopraste em mim pela humanidade
de teu Filho, pelo ministério de teus pregadores” .8 Com o Janet M artin
Soskice conclui com tanta beleza: “Essa fala a D eus se tornou possível
porque D eus fala a nós em prim eiro lugar, e nos proporciona não só a
possibilidade do louvor, mas a verdadeira sociabilidade, o verdadeiro e
verídico uso da posse com partilhada que é a fala” .910
B. Reflexos sobre a realeza
E apropriado que o com entário focado no tema o “E u Sou é Rei”
elucide a noção de realeza.
O rei é o soberano do sexo masculino, geralmente entre rivais, de uma
extensa unidade territorial com o um a cidade ou nação. N o m undo bíblico,
os reis foram investidos de autoridade suprema p o r causa das habilidades
para liderar, em especial em períodos d e. guerra e para a aplicação dajustiça™
Além disso, o rei é o edificador de tem plos (lR s 6— 8),11 palácios (7.1-8) e
mesm o cidades (12.25).12 O salmo 93 louva o Rei divino com o guerreiro,
juiz e edificador, mas ele converge e aum enta essas qualidades. D e fato,
com o guerreiro ele é mais poderoso que a furia dos mares im petuosos
(v. 3,4); com o juiz, até decreta leis (v. 5); e com o edificador, estabeleceu
o globo terrestre com tanta firmeza que não pode ser abalado (v. 1). N a

7 Ibid., 1.5.
8 Ibid., 1.1.
9 “The Gift o f the Name”, p. 75.
10Marc Zvi Bretder, G od Is King: Understanding an Israelite M etaphor, JSOTSup 76
(Sheffield: JSOT, 1989), p. 31,109-16.
11 Arvid Kapelrud, “Temple Building: A Task of Gods and Kings”, 0 1963) 32‫)־‬:
56-62.
12 Bretder, G od Is King, p. 117-22.
19

realidade, com o argumentaremos no capítulo sobre o salmo 98, os salmos


que proclam am que “E u S o u é rei” ou o louvam assim são os “cânticos
de vitória do G uerreiro D ivino” (v. p. 239-40).
A habilidade do rei para liderar depende de suas nobres qualidades:
força, justiça, majestade e longevidade (cf. Is 11.2-5; SI 45.3[4]).13 O E u
S o u possui essas virtudes de form a inigualável. Ele pode ser com parado
a um rei hum ano, mas nenhum rei hum ano se com para a ele (cf. Jr 10.6).
O salmo 93 louva sua majestade, redefinida com o força (v. 1,3,4), e sua
justiça (v. 5). Q uanto à longevidade, ele existe da antiguidade “eterna”
(v. 2) até à “perpetuidade” (v. 5).
C. Louvor geral e louvor de gratidão
O louvor é atributo essencial da adoração. Daniel I. Block declara: “A
verdadeira adoração envolve atos reverentes de submissão e hom enagem
ao Soberano divino em resposta à sua graciosa revelação de si m esm o e
de acordo com sua vontade”.14 O louvor envolve aclamação entusiástica
e alegre a D eus por suas características sublimes e obras redentoras.
O cronista fala em term os de dois tipos de louvor: “louvar” (hallêl)
e “dar graças” (hôdôi) (lC r 16.4). O primeiro, cujo derivativo nominal é
fh illâ (“louvor”), consiste na resposta alegre à essência sublime de Deus
e /o u à magnalia D e i (seus atos poderosos), com o a Criação e o Êxodo. Ele
sempre é denom inado “hino” . O último, cujo derivativo nom inal é tôdâ
(“ação de graças”), representa a resposta alegre ao ato redentor de Deus
em particular, com o resposta à súplica. Claus W esterm ann nota: “O uso
profano dos dois verbos indica [...] que hallêl (“louvor”) é a reação à essên-
cia, hôdôt, (“dar graças”) a resposta a uma ação ou a um com portam ento”.15
“Gratidão” é a tradução arcaica tradicional do hebraico boda. D e fato, todas
as palavras são “tijolos desajustados”. O derivativo tôdâ, ao contrário de
“gratidão”, sem pre ocorre em grupo, nunca em particular, e se aplica a
expressar o que Deus fez, não ao dizer “agradeço a você” .16 Porém, os
dois term os para designar o louvor são convergentes, pois a natureza de
Deus se expressa em atos salvadores. Além disso: a “ação de graças” pode

13 Ibid., p. 51-75.
14For the Glory o f G od Recovering a Biblical Theology o f Worship. Grand Rapids: Baker
Academic, 2014, p. 23-4.
15 T L O T , 2:503,y ¿ Hiphil.
16 Ibid., 2:506,y d h Hiphil.
20

tam bém se referir ao sacrifício/oferta pacífica relacionado às palavras.


Das 32 ocorrências do substantivo, ele se refere ao sacrifico 13 vezes (cf.
^bah tôdâ, “o sacrifício de ação de graças”, SI 107.22; 116.17; ou apenas
tôdâ, SI 56.12[13]; 2Cr 29.31).17 Assim, os salmos de ação de graças servem
com o um libreto para acom panhar o sacrifício de ação de graças. Essa in-
terpretação encontra apoio em Jeremias 33.11, que menciona as “vozes de
júbilo do que trazem ofertas de ação de graças para o templo do E u Sou ”.

II. Por que Louvar ?


N ão esperam os a resposta “porque ele é bom ”. Trataremos disso
mais tarde. E m seu lugar, perguntamos: “Por que razão louvar a D eus?” .
Diversas respostas vêm à m ente e são apresentadas aqui sem considerar
sua im portância relativa.
A. Louvar é justo e apropriado
A liturgia cristã historicam ente se prepara para a celebração da euca-
ristia com esse prefácio (ou um a variação disso):
Oficiante: “Demos graças ao E u Sou, nosso Deus.”
Congregação: “É justo dar graças e louvar.”
Oficiante: “É justo e algo bom e jubiloso.”

O salmista está de acordo: “Com o é agradável e próprio louvá-lo!” .


C. S. Lewis confessa que p o r alguns anos, com o jovem cristão, o
m andam ento para louvar a D eus o fez hesitar. “Todos nós desprezamos
o hom em que exige continuada certeza da própria virtude”, ele observa.
Lewis perm aneceu confuso até perguntar o que se quer expressar quando
dizemos que um objeto inanimado, com o uma pintura, é admirável. Ele
respondeu: “A admiração é a reação correta, adequada ou apropriada a ela
[...] e que se não a adm irarmos seremos estúpidos, insensíveis e notáveis
fracassados, desvalorizaríamos algo”. Ele compara a pessoa que não admira
a Deus “à vida deform ada dos mudos, jamais amaram, nunca conheceram
a amizade verdadeira, jamais valorizaram um bom livro, nunca desfrutaram
o ar da m anhã na face”.18

17 F. Delitzsch, Psalms, trad. Francis Bolton, KmlandDelit^sch Commentary on the O ld Testament


5 (London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody: Hendrickson, 1996), p. 635.
18 Reflections on the Psalms. Glasgow: Fount, 1967, p. 77-9 [edição em português: Lendo
os Salmos (Viçosa: Ultimato, 2015)].
21

B. O louvor é intuitivo à humanidade


Louvar é o que psicologicamente seres hum anos saudáveis fazem, da
mesm a form a que o cão se com porta com o os demais cães. C. S. Lewis
tam bém observou: “O m undo está repleto de louvor. Os nam orados
louvam as namoradas, os leitores o poeta favorito, os caminhantes o lugar
bucólico. [...] Justam ente com o as pessoas espontaneam ente louvam o que
valorizam, assim de m odo natural nos convencemos a nos juntarm os a
elas para louvar isso” .19 Os seres hum anos são animais políticos e querem
persuadir outros de que seu objeto de louvor é admirável e digno; quan-
do outros se juntam a eles, isso lhes aum enta a alegria. Lewis continuou:
“Penso que temos prazer em louvar o que amamos porque o louvor não
expressa apenas nossa satisfação, ele a completa. N ão se deve à formali-
dade o fato de os nam orados dizerem sempre uns aos outros quão belos
eles são; o prazer é incom pleto até ser expresso” .20
Lewis tam bém nota que as pessoas diferem no que valorizam, e o
que elas louvam nos diz muito a seu respeito. Os músicos, não os surdos,
louvam os com positores; leitores, não os analfabetos, celebram os escrito-
res; e os fãs de esporte, dentre os quais não se encontram muitas esposas,
desmancham-se em louvores aos heróis. Tam bém os vivos espiritualmente,
não os m ortos nesse sentido, louvam a Deus. Com o a pessoa sem pulsa-
ção está clínicamente m orta, da mesma form a a pessoa que não louva a
Deus está espiritualmente m orta. William Romaine (1714-1795), pastor
e erudito anglicano, corretam ente afirmou: “N ossa dignidade com o cria-
turas humanas consiste em glorificar a D eus”. Se não louvarm os o Único
verdadeiramente digno de louvor, somos, nas palavras de Lewis: “Uma
imagem embaçada” do que significa ser hum ano.21
E m bora vivos, tendem os a dorm itar. Por isso, o salmista constan-
tem ente nos estimula e nos convoca a louvar. O s hinos norm alm ente
consistem em convocações para louvar e m otivam louvar, com o em: “Anun-
ciem a sua glória entre as nações, [...] Porque o E u S o u é grande e digno
de todo louvor” (SI 96.3,4). H erm an G unkel (1864-1932), o fundador da
crítica da form a, define de form a questionável a convocação para louvar

19Ibid., p. 80.
20 Ibid., p. 81.
21 Ibid., p. 78-9,
22

com o “a introdução”22 e a razão para louvar com o “a parte principal”.23


Todavia, enquanto cerca de 70% do salmo 96 é dedicado à convocação
para louvar e 30% às razões para fazê-lo, essas definições parecem ina-
propriadas. O Livro de Salmos (seu título na Bíblia hebraica é Tehillim
(“Louvores”) alcança o ponto culminante conclusivo no salmo 150 com
10 versetos (i.e., versículos parciais) introduzidos pelo imperativo “louvem
a D eus”. A eles eu acrescento: “Tudo o que tem vida louve o E u Sou‫״‬
(v. 6). A totalidade do salmo é com posta por halelüyâh (“Louvem o E u
Sou ”). Apenas o versículo 2 apresenta razões: “seus feitos poderosos” e
“sua grandeza”. A convocação para louvar é mais que um aperitivo; ela é
parte do antepasto. A convocação imperativa repetida para louvar pode
sugerir que nosso louvor é deficiente ou insuficiente e deve ser estimulado.
C. O louvor nos toma vivos de forma mais plena
Q uando louvamos ao E u Sou, tornam o-nos vivos de form a mais ple-
na. Assim o salmista nos desperta a estarmos vivos plenamente. C. S. Lewis
disse: “Ao nos ordenar a glorificá-lo, Deus nos convida a desfrutá-lo”.24 O
louvor verte o óleo de alegria sobre nossa cabeça, e a felicidade nos eleva
ao nível mais alto da vida. Reclamações e preocupações nos humilham.
“A alegria do E u S o u é a vossa força”, declarou Neemias, o reform ador
do pós-exílio (Ne 8.10). Charles H. Spurgeon o afirm ou desta forma:
“Dançar, com o Davi, diante do S e n h o r , significa acelerar o sangue nas
veias e fazer com que os batim entos cardíacos estejam em um a frequência
mais saudável”.25
D. A existência de Deus depende do louvor
Podem os inferir a im portância do louvor ao refletir que se todos
cessassem de louvar a Deus, D eus morrería. Se um a árvore grande cai em
um a floresta e ninguém sabe disso, até que a hum anidade se preocupe, a
árvore não existe. Para expressar essa ideia em sentido filosófico, a árvore
existe ontologicam ente (i.e., com o Deus sabe, em caráter absoluto), mas

22 H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres o f the Religious Lyric o f
Israel, trad. James D. Nogalski. Macon: Mercer University Press, 1998, p. 23.
23 Ibid., p. 29.
24 Reflections on the Psalms, p. 82.
25 “The Power and Pleasure of Praise”, em: The Power o f Prayer in a Believer’s L ife,
Robert Hall, org. Lynwood: Emerald Books, 1993, p. 99.
23

não epistemológicam ente (i.e., com o seres hum anos sabem, de m odo
relativo). Se um a geração sabia da árvore, sem jamais louvá-la ou falou a
esse respeito dela, de m odo que seus filhos crescessem ignorantes dela,
seria possível dizer, em sentido figurado e verdadeiro, que a árvore morreu.
O mesm o é verdade a respeito de Deus. E qual é o valor de alguma coisa
para as pessoas se elas não a conhecem? E a existência epistemológica de
D eus depende do louvor dos mortais? Bem, obviamente, a resposta é sim
no sentido teorético argumentado, mas em sentido prático a resposta é não.
Deus não perm itirá que isso aconteça. D eus escolhe Israel com o seu filho
para cantar seus louvores e Jesus irresistivelmente convoca sua igreja para louvar
a Trindade. Pedro explica: “Vocês são geração eleita [‫ ״‬.] para anunciar as
grandezas daquele que os cham ou das trevas para a sua maravilhosa luz”
(lPe 2.9). Se os discípulos de Jesus ficassem em silêncio, Jesus diña que “as
pedras clamariam” seus louvores (Lc 19.40). A Trindade não m orrerá em
sentido epistemológico, com o o E terno não pode m orrer ontologicamente.
E. O louvor beneficia outros
Q uando D eus libertou Davi de Abimeleque, Davi cantou: “M inha
alma se gloriará no E u Sou·, ouçam os oprim idos e se alegrem.../Busquei
o E u Sou, e ele me respondeu; livrou-me de todos os meus tem ores.../
Provem , e vejam com o o E u S o u é bom . C om o é feliz o hom em que nele
se refugia!” (SI 34.2-9). Realmente, pelo poder do Espírito Santo, Deus
pode usar nosso louvor para despertar os mortos. N a presente dispen-
sação ninguém foi vivificado em D eus por Jesus Cristo sem a agência de
cristãos de um a form a ou de outra, e o louvor deles é um induzim ento
eficiente à convicção.
F. O louvor impõe o reino eterno de Deus no mundo
O louvor, a expressão verbal da aprovação e admiração sinceras e
profundas do Deus de Israel, “destrona e anula qualquer pretendente”,
nota Walter Brueggem ann.26 A o exaltar a glória divina, os adoradores se
ajustam aos procedim entos de Deus, com o seu caráter e propósito de es-
tabelecer seu reino. Brueggem ann reflete: “Q uando a com unidade louva,
ela se subm ete e reordena a vida. N ão é apenas o m om ento de adoração,
mas ela tam bém abraça a vida doxológica, organizada de m odo diferente

26 “Psalm 100”, In t 39 (1985): 66.


24

[da vida autônom a]”. Por “autônom a” Brueggem ann expressam a “vida
de autonom ia e de criação autônom a, que imagina a pessoa criada para si
mesma, que não precisa dar satisfação a ninguém e não depende de ne-
nhum outro” .27 O louvor a D eus separa a igreja do m undo — ele consiste
em urna polémica contra o m undo — , e a confissão de que só a Trindade
merece louvor não é algo politicamente correto.
O templo de Deus hoje é a igreja coletivamente (1 Co 3.16) e os cristãos
individualmente (IC o 6.19) é, para usar a figura de N. T. W right sobre o
N ovo Testamento, “um a cabeça de ponte da própria presença divina no
m undo que, de maneira m uito determ inada, vive apenas com o deseja”.
Por meio desse templo, o Criador pretende “recriar o m undo interior,
para estabelecer um lugar na criação onde sua gloria será revelada e seus
poderosos juízos anunciados”.28 Cantar os salmos cria urna alternativa, a
realidade eterna que transform a o m undo conturbado que a humanidade
criou para si mesma.
G. O louvor agrada a Deus
O louvor é um doce sabor para Deus: “Por meio de Jesus, portanto,
ofereçamos continuam ente a D eus um sacrificio de louvor, que é fruto de
lábios que confessam o seu nom e (Hb 13.15). N o prim eiro ato de N oé
registrado depois do dilúvio: “Ele construiu um altar dedicado ao Ε υ Ξ ου
e [...] queim ando-os sobre o altar. O Senhor sentiu o aroma agradável e
disse a si mesmo: “N unca mais amaldiçoarei a terra” (Gn 8.20,21). N osso
louvor, com o o sacrifício de N oé, é agradável a D eus (SI 69.30,31 [31,32]).
H. O louvor honra o Eu Sou
“Q uem me oferece sua gratidão com o sacrificio, honra-m e” (SI 50.23).
H á uma crescente consciência entre os sociólogos da importância da honra
e da desonra em todas as sociedades, não im porta quão sutilmente elas
sejam exteriorizadas. Por honra com preende-se “a afirmação da dignidade
e o reconhecim ento da reivindicação pessoal da dignidade” .29 “H onra”,
afirma Daniel Y. Wu: “Constitui um tipo de sistema de classificação social

27 “Psalm 100”, p. 65.


28 The Case fo r the Psalms: W hy They A r e E ssential. New York: HarperCollins, 2013,
p. 91.
29 Bruce J. Malina, The N ew Testament World· Insightsfro m C ulturalAnthropology. Louis-
ville: Westminster John Knox, 1993, p. 12.
25

que orienta nas reações às outras pessoas com base no status relativo da
pessoa nos grupos sociais”.30 Para as virtudes e obras incomparáveis de
Deus, ele merece o status mais em inente de honra na sociedade. “Ele é o
grande Rei acima de todos os deuses” (SI 95.3).
I. O louvor nos torna mais semelhantes a Deus
Q uando um anfitrião me pediu (Bruce) para proferir um a palestra em
um campus não cristão, ele me orientou que a primeira palestra seria “Por
que eu sou assim” . Q uando refleti sobre quem eu era, percebi que, além
dos dados físicos da m inha certidão de nascim ento e m inha disposição
genética, em grande parte sou assim por causa das pessoas que admirava
e louvava, pelo menos no diálogo comigo mesmo. N ós, humanos, somos
seres imagéticos; isso significa que todos nós imitamos alguém. As crianças
e os jovens admiram e imitam modelos aos quais desejam se igualar. E m
meu caso, eu admirava e louvava m eu professor de grego; ele m oldou a
form a que eu lia a Bíblia e me inspirou a me tornar professor. Gregory
K. Beale defende em We Become W hat We Worship: Λ Biblical Theology o f
Idolatry [Tornam o-nos o que adoramos: um a teologia bíblica da idolatria]
que o Israel descrito em Isaías 6.9-13 se tornou incapaz de ouvir, ver ou
com preender o que foi falado a ele p o r Deus ou pelos profetas porque
se tornou com o seus ídolos, que igualmente não ouvem, veem ou com-
preendem a própria adoração cúltica. Beale talvez esteja interpretando
esse texto com extremismo, mas ele corretam ente afirma: “N ós nos pare-
cemos com o que reverenciamos, seja para ruína ou restauração”.31 Paulo
expressa isso com perfeição: “E todos nós, que com a face descoberta
contem plam os a glória do Senhor, segundo a sua imagem estam os sendo
transform ados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é
o Espírito” (2Co 3.18).
J. O louvor fortifica a cosmovisão do cristão
O louvor tam bém realça as manifestações pelas quais os cristãos en-
xergam o mundo. As lentes dessas manifestações estão baseadas no que
eles creem a respeito das origens, propósito e destino. Muitas pessoas

30 “Honor, Shame, and Guilt: Social-Scientific Approaches to the Book of Ezekiel”,


BBRSup 14. Winona Lake: Eisenbrauns, 2016, p. 9.
31 Downers Grove: InterVarsity, 2008, p. 16, 22 [edição em português: Você se torna
aquilo que adora: uma teologia bíblica da idolatria. São Paulo: Vida Nova, 2014].
26

“m odernas” (i.e., secularistas) pensam que a cosmovisão deles é nova.


N ão é. Ela é tão antiga quanto os epicureus (c. 300 a.C). Eles tam bém não
temiam a Deus. O s profanos creem que o cosm o evoluiu por acaso; que
não há verdades ou valores absolutos, só análises relativas; que o sumo
bem é o prazer; e que a pá de terra do coveiro na face deles ou a tocha
crematória tem a última palavra, sem o juízo final após a morte. O sécula-
rismo acredita mais no estúpido acaso do que os cristãos podem averiguar.
Por contraste, a prescrição para as manifestações do povo da aliança
divina sem pre foi: “O tem or do E u S o u é o seu dever”. O povo de Deus
crê que Deus criou e sustenta o cosmo; que ele revelou com o a humanidade
deveria viver e considera cada pessoa responsável; e que depois da m orte
clínica há o juízo final, quando D eus sentencia o culpado à condenação
eterna e recom pensa os justos, por causa de sua fé em Jesus Cristo, com
a felicidade eterna consigo. A o cantar os salmos, os cristãos acrescentam
substância à fé, fervor à virtude, convicção à confissão; eles são fortalecidos
na fidelidade a D eus na provação e Deus recom pensará essa fé.
K. A presença e o louvor de Deus desfrutam uma relação recíproca
Tam bém louvamos a D eus porque a presença de D eus e o louvor
de seu povo desfrutam um a relação recíproca. Grabriele G. Braun docu-
m enta isso no Antigo Testam ento (AT) e no N T.32 Por um lado, ela nota,
o louvor do povo aconteceu após a manifestação da presença de Deus,
quando Salomão construiu o primeiro tem plo (lR s 8.6-12) e quando o
Espírito Santo se m anifestou nos novos cristãos em Jesus Cristo. Primeiro
os judeus (At 2.1-4) e então nos gentios (10.44-46). Por outro lado, o lou-
vor de Israel impelia a presença de Deus no cam po de batalha (2Cr 20) e
estimulava o novo revestimento dos novos cristãos em Jesus Cristo com
o Espírito Santo e outras manifestações da presença divina (At 4.23-32).
N a narrativa de Crônicas da dedicação e da consagração salomónica do
tem plo ao E u Sou, o louvor dos levitas fomentava as manifestações da
presença divina, e sua presença inspirava o louvor do povo (2Cr 5— 7).
O texto de Salmos 22.3 [4] tam bém correlaciona a presença de Deus com
o louvor do povo. Davi canta, se bem que em um lamento: “Tu, porém ,

32 “The Connection Between God’s Praise and God’s Presence” (Dissertação de


doutorado, A North-West University em cooperação com a Greenwich School
o f Theology, 2017).
27

és o Santo, és rei, és o louvor de Israel” (SI 22.3). Delitzsch explica: “Os


cânticos de louvor, que ressoavam em Israel com o memoriais de suas
obras de libertação, são com o as asas do querubim , sobre as quais sua
presença pairava em Israel”.33
L O louvor é uma questão de vida e morte
Por último, o louvor a D eus não é apenas justo e apropriado, é uma
questão de vida e m orte. O salmo 95 adverte que Deus odiou tanto a
geração do deserto pela m urm uração contra si e por não o louvar pela
fé que ele a silenciou na m orte nesse panoram a hostil e a barrou da terra
prom etida, o símbolo da paz e descanso eternos. O escritor de H ebreus
(4.12) enfatiza essa advertência à igreja.

III. Q uem , onde e quando


As questões sobre quem cantava os salmos, e onde e quando eles os
cantavam estão inter-relacionadas. Assim, elas são mais bem respondidas
juntas. O saltério convoca as três assembléias para louvar ao E u Sou:
Israel (i.e., o povo a quem D eus adotou com o sua família), as nações e a
criação inteira.
A. Israel
O antecedente padrão de “n ó s /n o s s o /n o s ” no saltério é o povo de
D eus que canta os salmos. Mas eles se encontram em quatro templos
cronológicos: Davi e sua tenda, o prim eiro templo, o segundo templo
e a igreja, um tem plo espiritual. Esses contextos variados enriquecem o
sentido do salmo.
1. A questão da autoria davídica
O s sobrescritos da Septuaginta (LXX) — a tradução grega do AT por
eruditos judeus no Egito cerca de 200 anos antes de Jesus Cristo — , usada
e possivelmente reeditada pelos primeiros cristãos,34atribui as composições
de muitos salmos do Livro IV (91; 93— 99; 101; 103; 104) ao rei Davi
(c. 1040-970 a.C). Mas o venerável Texto M assorético (TM), subjacente
à maioria das versões e rem ontante ao tem po do Exílio Babilónico, não
contém nos sobrescritos desses salmos nada além de “um salmo” no sal-

33 Psalms, p. 196.
34 Melvin K. H. Peters, “Septuagint”, ABD 5:1094,1098-1100.
28

m o 98 e “de Davi” no 103. Portanto, nessa tradição, esses salmos são de


maioria anônima. Considerando que os sobrescritos na LX X diferem uns
dos outros,35 eles não parecem apenas adições padronizadas. Suas origens
são incertas. A maioria dos eruditos não confere credibilidade histórica
até mesm o aos sobrescritos no TM (um erro em nossa opinião),36 muito
menos aos sobrescritos da LXX. Mas há boa evidência textual interna e
externa para pensar o contrário.37A evidência coletiva de que os sobrescri-
tos na LX X são historicamente precisos é mais consistente que a evidência
isolada do sobrescrito. Entretanto, a nota litúrgica no sobrescrito da LXX
do salmo 96: “Q uando o tem plo foi construído depois do cativeiro”, é
obviamente um a adição posterior a “um cântico de Davi”; o salmo pode
ter sido usado para a dedicação ao segundo tem plo (516 a.C.).
O cronista (c. 400 a.C.) atribui o salmo 96 a Davi (lC r 16.7-36) e
esse salmo tem similaridades tão notáveis com o salmo 98, que David
H oward sugere: “Eles talvez até tenham surgido da mesm a m ão” .38 N o
entanto, muitos comentaristas datam esses dois salmos no período do
segundo tem plo devido às intertextualidades com o Segundo Isaías (c.
550 a.C.).39 Mas com o A. A. A nderson com enta com acerto: “Essa simi-
laridade podería ser explicada de muitas maneiras”.40 Por exemplo, não é
provável a dependência do Isaías exílico da tradição do prim eiro templo?
John H. E aton com enta com acerto: “A questão de prioridade foi mal

35 “O louvor de um cântico, de Davi” (91; 93; 95); “um salmo de Davi” (94; 95; 98;
99; 101;); “um cântico de Davi” (96); e “de Davi” (97; 103; 104).
36 Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erika Moore, The Psalms as Christian Worship:
A n H istorical Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 2010), p. 100-11 [edição em
português: O s Salmos como adoração cristã: um comentário histórico (São Paulo: Shedd,
2015)].
37 Evidência textual externa se refere ao testemunho de fontes encontradas fora do
texto; evidência interna se refere às indicações no texto em si mesmo.
38 The Structure o f Psalms 93 — 100, p. 178.
39 H. C. Leupold (E xposition o f the Psalm s [Columbus: Wartburg, 1959], p. 691),
compara: 98.1b com Is 59.16 e 63.5, mas “braço do E u S o u ” não é exclusivo para
esses textos; v. 2 com Is 52.10, mas a diretriz de dependência não é clara; v. 3
com Is 63.7, mas a conjunção de “lembrar” e “bondade” não é única (cf. SI 25.6;
2Cr 24.22); v. 6 com Is 6.5, que não é o Segundo Isaías; e o v. 8 com Is 55.12, mas
no v. 8 os rios, não as árvores, batem palmas e a questão da dependência advêm.
40 The B ook o f Psalm s 73-15 0 , New Century Bible Commentary. Grand Rapids:
Eerdmans, 1972, p. 691.
29

concebida. O s salmos e as profecias líricas [do Segundo Isaías] devem


ser considerados testemunhas para funções diferentes no uso da tradição
poética de adoração”.41 O escritor de H ebreus recorre à LX X e assim
atribui ao salmo 95 a Davi (Hb 4.7). G. H enton Davies e outros pensam
que o salmo 95 é pré-exílico (v. p. 168).42 Davies não oferece razão para
desacreditar da autoria de Davi. A m etáfora do salmo 93 depende de um
m ito cananeu (c. 1400 a.C.). O texto de Salmos 99.1 declara: “O trono
do E u S o u está sobre os querubins”. Admitindo-se, com o a maioria dos
eruditos, que os querubins são esfinges aladas (v. p. 260-61, nota 38), as
imagens de querubins são confirmadas em Canaã e com o partes de tronos
no tem po de Davi. N o AT, essas figuras com postas são encontradas pela
última vez em Ezequiel (9.3; 10.1-22; 11.22).43 Deles não se ouve de novo
nem na Bíblia (Jr 3.16; cf. J r 52.17-23 [= 2Rs 24.13-17]) nem nos registros
babilónicos. Sigmund Mowinckel pensa que o orador no salmo 97 muito
provavelmente seja o rei.44 Israel não teve rei depois de 586 a.C.; p o r isso,
se Mowinckel estiver certo, o salmo foi cantado no tem plo designado
por Davi, o laureado poeta de Israel. Além disso, o presum ido cenário
do salmo corresponde de m odo preciso ao conflito de Davi contra Saul.
Se a evidência externa ou interna sustenta a credibilidade histórica
da LXX em relação à autoria dos salmos 93; 94; 95; 96; 98 e 99, então os
outros sobrescritos tam bém parecem críveis.
2. A tenda de Davi e os levitas
O rei Davi ergueu um a tenda para a arca de Deus, o trono do E u Sou,
ao sul das muralhas da antiga cidade de Jerusalém .45 Esse poeta e músico
régio e talentoso (ISm 16.18) cedeu seus salmos aos levitas para acom ­

41 Psalms o f the Way and the Kingdom: A Conference w ith the Commentators, J SOTSup 199.
Sheffield: Sheffield Academic, 1995, p. 119.
42 “Psalm 95”, Z 4 1^85 (1973): 195.
43 O querubim e a glória de Deus abandonaram o templo, confirmando a destruição
de Jerusalém e pairaram sobre a montanha, no leste da cidade. A partida deles
prefigura o glorioso Filho de Deus abandonando o templo e indo para o monte
das Oliveiras, à leste de Jerusalém, onde ele lamenta a inevitável destruição de
Jerusalém (Mt 24.1-22).
44 The Psalms in Israel’s Worship, trad. D. R. Αρ-Thomas (Nashville: Abingdon, 1967),
vol. 1, p. 227.
45 Apenas três salmos fazem referência à tenda (15.1,27.5,6,61.4) e eles são atribu-
idos a Davi.
30

panham ento musical (lC r 15.16). C om o os levitas receberam educação


especial para apresentar ofertas sacrificiais, eles detinham conhecim ento
musical para executar os salmos com o um libreto para os sacrifícios. Eles
tam bém cantavam hinos e com punham música diariamente para a con-
gregação inteira; o povo louvava ao E u S o u por meio dos levitas (lC r 16).
3. O primeiro templo
Salomão edificou o prim eiro templo no m onte Sião, ao sul das mura-
lhas da antiga cidade de Jerusalém, de acordo com a inspiração de Davi para
sua construção: “Tudo isso”, ele disse a Salomão, referindo-se aos planos
para o templo, “foi m e dado p o r escrito pela m ão do E u Sou‫( ״‬lC r 28.19;
cf. v. 10-18). Aqui, os levitas louvavam ao E u S o u dia e noite (lC r 9.33).
4. Exílio e segundo templo: louvor no Livro IV do saltério.
O primeiro templo foi destruído em 587/6 a.C. e o segundo templo foi
edificado em 516 a.C. As circunstâncias históricas diferiam radicalmente
entre o período do primeiro templo, quando os salmos foram com postos e
o período do segundo templo, quando foram compilados no Livro IV do
saltério (SI 90— 106). E ste livro, de acordo com a tese am plamente aceita
de Gerald E. W ilson, trata da queda da Casa de Davi e o exílio, lamentado
no salmo 89.46 O(s) editor(es) do Livro IV repetiram o salmo 90 com o
seu salmo introdutório apropriado: “A oração de M oisés”, que o com pôs
com o um salmo de esperança para o futuro abençoado depois das pere-
grinações terríveis no deserto (v. p. 71-2). A m udança dos contextos do
tem plo de quando a Casa de Davi governava no período em que a Pérsia
dominava Israel sem rei radicalmente altera a com preensão de que o “E u
S o u reina” . N o período de Davi, a proclamação celebrava o que se via
(v. lC r 14.17; SI 96.3); no Livro IV do saltério, a proclamação o “E u S o u
reina” celebra o que não se via. N o contexto do Livro IV, o E u S o u não
reina nem no próprio m onte. E m meio ao mal descontrolado, com o o
exílio na Babilônia e os sofrim entos sob o Im pério Persa (v. N e 9.32), o
povo de D eus de form a inequívoca e entusiástica confessa por meio dos
salmos a confiança que Deus, que hoje deseja ser conhecido através de
D eus o Filho, Jesus Cristo (v. p. 16), o Pantokrator, “Rei de todos” . Louvar
ao E u S ou com o Pantokrator quando os persas dom inam Judá exige fé “em

46 The E diting o f the Hebrew Psalter (Chico: Scholars, 1985).


31

meio às circunstâncias que indicariam o contrário”.47 O saltério existente


é o hinário para o segundo templo, para as sinagogas da diáspora e para
outras circunstâncias, com o a Ultima Ceia (Mt 26.30).48 Q uando Jesus
cantou esses hinos, Roma dominava Jerusalém em sentido político.
5. Novo Testamento: uma interpretação prosopológica, messiânica e
proléptica.

a) Uma interpretação prosopológica


O advento de Jesus Cristo ocasionou a reinterpretação até mais radi-
cal do saltério, a herm enêutica prosopológica, isto é, a interpretação dos
salmos com o a voz de Cristo e de sua igreja ao Pai e com o as palavras do
Senhor e Salvador, Jesus Cristo, para a igreja. N a primeira perspectiva,
Davi e Israel são tipos de Cristo e de sua igreja.
b) Jesus como Messias
Os salmistas criam que o E u Sou, no fim da história da salvação, res-
taurará todas as coisas. Eles tam bém antecipavam o Messias (“ungido”)
que realizaria isso. Aos discípulos confusos e desanimados no caminho
de Emaús, que esperavam que Jesus redimiría Israel, ele disse: “E ra ne-
cessário que se cumprisse tudo o que a m eu respeito estava escrito na Lei
de Moisés, nos Profetas e nos Salmos” . E ntão lhes abriu o entendimento,
para que pudessem com preender as Escrituras. E lhes disse: “Está escrito
que o Cristo haveria de sofrer e ressuscitar dos m ortos no terceiro dia”
(Lc 24.44-46). O s cristãos leem os Salmos com o coração revelado e veem
Jesus. Eles com preendem que seu reino com eçou no Pentecostés e será
plenam ente instaurado na parúsia (a form a de os apóstolos se referirem
à segunda vinda).

47Jerome F. D. Creach, “The Righteous and the Wicked”, em: The O xford H andbook
o f the Psalms, William P. Brown, org. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 535.
48 De acordo com a Mishná, o coral levítico cantava um salmo cada dia da semana;
eram sucessivamente os Salmo 24; 48; 82; 94; 81; 93 e 92.0 Salmo 92 era cantado
na libação da oferta de vinho que acompanhava o sacrifício do primeiro cordeiro
da oferta queimada de sábado (Nm 28.9). A origem desse costume não pode ser
datada com certeza. O sobrescrito do Salmo 96 (“Quando o templo foi edificado
após o cativeiro, um cântico de Davi”) sugere que “um cântico de Davi” pode ser
original ou acrescentado durante o período do Primeiro Templo e isso “quando
o templo [...] cativeiro” é uma adição posterior do período do Segundo Templo.
32

O s editores do Livro IV posicionaram os salmos 91 e 92 antes dos


salmos que proclamam D eus com o Rei (93; 95— 99), provavelmente para
inferir que o Messias confere ao Ε υ S o u a face humana, através de quem
ele julga o mundo.
c) Uma interpretação proléptica
Urna vez que os salmos que proclamam “E u S o u é Rei” representam
seu reino com o atualmente universal, sobre toda a terra (cf. 96.7; 97.7-9;
98.4-9; 99.2; 100.1), eles são um a prolepse (i.e., com o já cum prido).49Mes-
m o no apogeu dos reinados de Davi e Salomão, a realeza do E u S o u não
foi reconhecida em caráter universal. Q uanto menos quando o Livro IV
foi compilado?
A luz da escatologia inaugurada do N ovo Testamento, as representações
do reino do E u S o u não são mais um a prolepse. Jesus com eçou a ajuntar
as peças do quebra-cabeça para seus confusos discípulos no cam inho
de Emaús: o sofrim ento do Messias precede sua glória. Essa sequência
é um camafeu da história da igreja. O Messias, Deus o Filho, tem dois
adventos. N o primeiro, ele veio com o Cordeiro sacrificial; no segundo,
ele virá com o um Leão rugidor. N o prim eiro advento, ele se recusou a
vingar-se ou à sua igreja; na parúsia, ele se vingará dos malfeitores. Essa
distinção pode ser vista com clareza na interpretação de nosso Senhor
(Lc 4.17-21) de Isaías 61.1,2, que declara: “O Espírito do Soberano E u
S o u está sobre mim porque o E u S o u ungiu-me [...] para proclam ar o
ano da bondade do E u S o u e o dia da vingança do nosso D eus” . N osso
Senhor se identificou com o o ungido “para proclam ar o ano da bondade
do E u Sou, mas omitiu “o dia da vingança” (Lc 4.19). O N T projeta seu
dia de vingança para a parúsia.
Mas não se deve pensar que o Cordeiro não regendo hoje as nações.
O s teólogos se referem ao reino de Cristo com o “escatologia inaugurada”.
Por “inaugurada” eles aludem ao reino atual, expansivo entre as nações;
por “escatologia” eles propõem a consumação do reino universal, quando
ele eliminará todo o mal.

49 Aqui há um exemplo de prolepse: “Ele era um homem morto quando entrou no


local”.
33

B. As nações: por que elas louvam ao Eu Sou?


N os salmos, a família de Deus convoca todas as nações para se unirem
a ela em louvor a seu D eus (e.g., 100.1,2). Mas por que as nações devem
louvar ao E u S o u por salvar Israel, o adversário delas? A libertação do Deus
de Israel é um a espada de dois gumes: ela contem pla o Israel vitorioso e
as nações derrotadas (98.1,2). Sugerem-se três razões. Primeira, sua vitória
para Israel dem onstra que ele é justo e fiel. Ele faz o que é justo por meio
de seus adoradores e lhes dem onstra am or infalível (98.3). Aqui está o
Deus em quem as nações podem confiar. Segunda, a vitória do E u S ou
para Israel dem onstra que ele é m aior que os deuses das nações; assim, só
o E u S o u é digno do louvor delas (96.3,4). Terceira, a salvação de Israel
cum pre o propósito divino. O E u S o u escolheu e abençoou o verdadeiro
Israel, que preserva a fé no E u Sou, para trazer suas bênçãos sobre as
nações, não para excluí-las de suas bênçãos. As nações proporcionam bên-
çãos sobre si mesmas ao abençoarem Israel (G n 12.1-3). A bençoar Israel
acarreta desprezo aos deuses inúteis e louvor ao Deus vivo, que abençoa
Israel. Portanto, quando as nações louvam ao Senhor Jesus Cristo, elas
abençoam a si mesmas.
C. A criação inteira
J. Clinton M cCann Jr., ao com entar sobre o salmo 96, afirma: “D ado
que D eus rege o mundo, não é suficiente reunir uma congregação m enor
que ‘a terra inteira’ ” .5° O salmo 98 convoca para o louvor a Deus ao
ampliar as perspectivas: de Israel (v. 1-3) para as nações (v. 4-6), então,
para a criação inteira (v. 7-9). Mas com o a terra, os animais, o m ar e tudo
que nele há aclamam os louvores de Deus? E m bora os animais tenham
laringe, sua boca é incapaz de form ar palavras; pássaros têm siringe;
plantas e minerais são mudos. Além disso, apenas a humanidade, não
os animais, com porta a imagem de Deus e só os seres hum anos têm o
intelecto, a sensibilidade e a vontade para louvar a Deus. Assim, o poeta
personifica o restante da criação com o se o louvasse. A criação inteira,
cada parte em seu ser particular e peculiar, declara sua glória: a borboleta
na margarida, o peixe-porco no recife de coral, a esmeralda na caverna,
o relâmpago flamejante, o trovão tonitruante e as imensas galáxias no
espaço incompreensível. Tudo depende do Criador para sua existência e50

50J. Clinton McCann, Jr., Psalms, NIB 4. Nashville: Abingdon, 1996, p. 1065.
34

sustentação. Ele os preenche, satura e encharca com sua gloria. O santo


e o poeta contem plam tudo isso e ouvem a glória de D eus declarada por
meio deles com o aclamação de louvor a Deus.
D. A questão de um festival de entronização
N ão se pode ler a erudição sobre literatura hínica depois de 1925 sem
encontrar a noção que os cánticos que proclam am que o “E u S o u é Rei”
eram cantados em festivais de outono, pois neles D eus era entronizado
todos os anos.51 H erm an G unkel identificou com o urna form a distinta
“cánticos sobre a entronização de I a v é ” (47; 93; 96; 97 e 99). Ele assim
o fez porque essa pequena coleção de salmos é caracterizada pelas pa-
lavras yhwh mãlãk, que de acordo com ele significa, “ I a v é se tornou rei” .52
(Não precisam os perder tem po com críticas à tese de G unkel de que
esses salmos originalmente régios, do período do prim eiro templo, foram
reprisados com o salmos escatológicos de I a v é no período do segundo
templo, porque a esse respeito ele não tem continuação significativa.)
Sigmund Mowinckel, aluno de G unkel, concordou com a tradução de
seu m entor, mas identificou o contexto deles com o parte de um festival
de outono dramático, cúltico-criativo que preparava o acesso anual de
lavé a seu trono (a arca) no prim eiro templo. Ele escreveu:
“O festival é um ‘drama santo’ em que os conteúdos dos mitos festivos
são apresentados e assim são personificados e revividos como algo que
está de fato criando o que vem à existência [...] E possível que a maioria
das coisas que ‘acontecem’ eram apresentadas por meio de símbolos su-
gestivos [...] A ideia fundamental em si mesma, a epifanía de I avé como
o rei vitorioso, foi sugerida pela arca carregada na procissão festiva”.53

Com esse cenário imaginado, Mowinckel, em oposição às objeções


de G unkel, presum iu que m uitos outros salmos (quase um terço do
saltério) poderíam ser aplicados ao ritual de entronização do E u S o u
em um festival de ano novo.54 O festival de entronização de Mowinckel
ainda exige um a continuação significativa.

51 Marvin E. Tate, Psalms 51— 100, WBC 20 (Dallas: Word, 1990), p. 482.
52 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 66. Bretder (G od Is King, p. 144) propõe:
“A forma pausada de mãlãk [mãlãk, não mãlak] [...] podería ter servido como uma
exclamação cúltica autossuficiente”.
53 The Psalms in Israels Worship, 1:169-70.
54 Ibid, 1:106-92.
35

E ntretanto, quase todas as versões portuguesas traduzem yhw h m ãlãk


por o “E u S o u reina” ou “E u S o u é rei”, não p o r o E u S o u se tornou
rei”. A fé, para os cristãos, é viva na imaginação expressada pela Escri-
tura. Faz diferença na leitura do saltério se o cristão imagina D eus com o
alguém renovado com o Rei em um ritual de entronização ou com o o
D eus que reinava desde o com eço, é agora e será para sem pre, à parte de
qualquer ritual. Assim, vam os exam inar criticamente o alegado contexto
de M owinckel para instruir de form a certa nossa imaginação.
Primeiro, se yhw h m ã lã k significa o “E u S o u se tornou rei” ou o “E u
S o u é rei/reina” não pode ser decidido filológicamente. U m verbo como
m ãlãk pode ser aplicado a uma pessoa (cf. ISm 12.14; 2Sm 15.10; 2Rs 9.13)55
ou a “um estado geral ou um novo fato”.56
Segundo, alega-se que “digam entre as nações, yhw h m ãlãk (SI 96.10)
corresponde às proclam ações m ãlãk ’absãlom (Absalão se to rn o u [ou é]
rei”, 2Sm 15.10) e m ã lã k y ê h u ’(“Jeú se to rn o u [ou é] rei”, 2Rs 9.13). Mas
B retder nota: “N ão se pode determ inar se 2Samuel 15.10 descreve de-
finitivamente um ritual de coroação” .57 Mais im portante, é no mínim o
arriscado reconstruir o ritual anual da coroação do D eus eterno de
acordo com a coroação de um m ortal. E ainda mais im portante, a pro-
clamação ocorre apenas com Absalão e Jeú: eles foram usurpadores do
trono, isso parece tornar a proclam ação forjada, e não parte do ritual de
entronização. Além da questão interpretativa questionável desses textos,
nenhum outro texto que descreve uma coroação menciona a proclamação
(ISm 9.20-23; 10.1-9,24,25; 11.16; 16.13; 2Sm 2.4; 5.1-3; lR s 1.9-25,33-
45; 2Rs 11.11-20; 23.30,34; 24.17).58

55IB H S , §§30.2.3a; 30.5.3.


56Brettler, G od Is King, p. 144. Hans-Joachim Kraus ( Theology o f the Psalms, trad.
Keith Crim [Minneapolis: Augsburg, 1979], p. 87) argumentou subjetivamente
que a posição do sujeito distinguía as duas opções, citando lRs 1.11 e 18 como
um exemplo de manual. NRSV e a NYI, contudo, traduzem m ãlãk ‫־‬adõniyyãhu
(lRs 1.11) e ‫נ‬adõniyya m ãlãk (lRs 1.18) como “Adonias tornou-se rei”. Muito
provavelmente, a posição primeira do sujeito significa que o E u S o u , e não outro
rei, é rei; desta forma, W. H. Schmidt, “Kõnigtum Gottes in Ugarit und Israel”,
2. ed, BZAW 80 (1966), p. 76.
57 G od Is King, p. 128.
58V. o gráfico em Bretder, G od Is King, p. 131.
36

Terceiro, Mowinckel afirma: “Tudo nos salmos de entronização [...]


confere a mais forte im pressão de pertencer à atualidade”.59 Ele cita que
“ I a v é ‘vem ’ (98.9), ‘revela sua justiça’ (98.2), ‘sobe’ (47.5) em procissão
solene para o seu palácio, se senta em seu trono (93.2; 97.2; 99.1) e recebe
a aclamação de seu povo com o rei (47.2)”.60 Mas suas representações um
tanto exageradas talvez sejam ficções literárias, baseadas no evento his-
tórico do transporte da arca para o tem plo em Jerusalém (2Sm 6; lR s 8;
lC r 16).61 Os cânticos de natal representam o nascim ento de Cristo com o
uma experiência presente: “O h vinde, fiéis, triunfantes [...] a Belém”;
“Três reis magos do oriente a sós”; “Pequena vila de Belém /R epousa em
teu dorm ir”. Todos sabem que esses cânticos são ficções poéticas, não
parte do ritual de reencenação do nascim ento de Cristo. O mesm o pode
ser verdadeiro sobre as representações do transporte da arca a Jerusalém.
Quarto, Mowinckel reconstruiu seu festival imaginado de várias fontes:
“O Festival Akitu da Babilônia, o complexo Osíris-Hórus no Egito, fontes
judaicas antigas e vários materiais dispersos no AT (mais de 40 salmos;
2Sm 6; lR s 8; lC r 16; N e 8.10-12; Zc 14[.16]; O s 7.5)”.62 Contudo, o fato
complexo permanece, conform e D erek K idner nota, que a literatura não
figurada do AT “não olha em retrospecto nenhum evento que investiu
I avé , com o o babilônio Marduque, com soberania e não criou no calendário
de festas (Lv 23) um festival de entronização”.63 N ão se faz menção a um
festival de entronização anual em Samuel, Reis, Crônicas, Esdras-Neemias
ou Ester, nem em Êxodo, Levítico, N úm eros e D euteronôm io. O s textos
de 2Samuel 6, IReis 8 e 1Crônicas 16 registram acontecim entos históri-
cos, não um ritual anual. Neemias 8 e Zacarias 14 tam bém se referem a
eventos históricos, não a práticas cúltdcas anuais. Osetas alude ao “festival
do nosso rei”, mas não faz referência à entronização do E u Sou. N o que
concerne à literatura poética, mesm o Mowinckel reconhece: “O s poetas

59 The Psalms in Israel’s Worship, 1:111.


60Ibid., 1:107.
61 A maioria dos eruditos pressupõe uma procissão festival em que Iavé, entroni-
zado sobre a arca da aliança, é levado ao santuário. Mas P. Sumpter ( The Substance
o f Psalm 24: A n A ttem p t to R ead Scripture after Brevard Childs [London: Bloomsbury
T&T Clark, 2015], p. 133), seguindo Kraus, argumenta que o ritual se baseia no
evento histórico de transporte da arca a Jerusalém, não sobre o mito.
62 Leo Perdue, “Yahweh Is King over All the Earth”, R esQ 17 (1974): 87.
63 Psalms 73 — 150, TOTC. Downers Grove: IVP Academic, 2009, p. 170.
jamais descrevem [grifo do original] o alegado ritual” .64 Por não haver evi-
dência substancial da existência desse rito no antigo Israel, R obert Alter
se refere à grande literatura a esse respeito com o um “exercício acadêmico
de ficção histórica”.65Além disso, é metodológica e teologicamente errado
im portar o que tem vestígios da magia vodu dos mitos e rituais pagãos
para o m onoteísm o ético do AT.
Quinto, e último, no salmo 97 yhwh mãlãk é proclam ado em conexão
com a descida do E u Sou nas asas de uma nuvem obscura, cintilante. Esse
cenário não pode ser atrelado à inventividade acadêmica de um ritual anual
da entronização de Deus, em bora alguns o tentem inutilmente.66 Con-
cluímos que os cristãos não deveríam im aginar D eus sendo anualm ente
entronizado com o rei. Contudo, contrapor “o Eu Sou se to rn o u rei” a
“Eu Sou é rei” cria falsas alternativas. O E tern o é imutável, portanto,
sem pre tem as qualidades nobres de um rei e nunca é m enos que o Se-
n hor de todos. Mas ele prim eiro reivindicou sua soberania régia quando
ao estabelecer com firmeza a esfera terrestre no prim evo abism o aquoso
(ifhom , G n 1.2). Goldingay com enta com acerto: “A criação envolveu a
reivindicação de autoridade soberana sobre quaisquer outros poderes”.67
O reino dele é “perm anente, ininterrupto e jamais é duvidoso” .68 D o
mesm o m odo, D eus já se chamava I a v é antes do Êxodo, mas ele dem ons-
trou seu sentido quando destruiu o Egito (Êx 6.2-4; 15.1,21), ao compelir
o poder político mais poderoso, no m undo de Israel, a reconhecê-lo com o
Senhor. A proclamação “E u Sou é Rei” destrona todos os pretendentes
à soberania transcendente.

IV. Como louvar

A. Disposição: entusiasmo e alegria


D epois do estudo detalhado dos salmos, Gunkel descobriu que sua
“ disposição básica éadmiração e entusiasmo” (grifos do original). Entretanto, ele
confessa: “Essa disposição, em particular o entusiasmo para com Deus,

64 The Psalms in Israel’s Worship, 1:111.


65 The B ook o f Psalms:Λ Translation with Commentary. New York: Norton, 2007, p. 328.
66 Tate, Psalms 51— 100, p. 520-1.
67 Psalms, BCOTWP. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, vol. 3, p. 67.
68 Frank-Lothar Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, trad. Linda
M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 449.
38

é estranho à percepção dos tem pos posteriores, incluindo o nosso”. Isso


acontece, ele pensa, porque “todos os predicados magníficos da divindade,
que parecem patentes a nós [...] eram algo relativamente novo em Israel”.69
M uito provavelmente, é devido ao seu desapaixonado m étodo científico.
Tam bém confessamos que nosso entusiasmo em louvar empalidece em
com paração com o dos salmistas, mas nossa falta de entusiasmo se deve
ao que os monges chamam de “acidia” (i.e., apatia espiritual). Tomás de
Aquino (seguindo Gregorio, o Grande) classifica nossa letargia ou torpor
com o um dos sete pecados capitais: uma fonte de muitos outros.
Baseado no estudo de Salmos 97.4, Claus W esterm ann considera a
alegria um elemento essencial do louvor.70 O entusiasmo e a alegria se
beijam no verbo “aclamem” Q i ã r i v. 100.1; 95.1,2; 98.4-6; 100.1).
B. Poesia
O salmista concentra o entusiasmo, a alegria e os pensam entos na
poesia criativa: “O ritmo contínuo [...] formalmente estruturado de acordo
com o princípio de organização a operar de form a contínua” .71 A poesia
hebraica tem três padrões: concisão, metáforas concretas e imaginativas,
e paralelismo.
C om o toda poesia, a poesia hebraica é concisa. Sua concisão se torna
visível quando um poem a é escrito em um a página. As linhas “precisa-
m ente esculpidas”72 deixam m uito mais espaço em uma linha que a prosa
contínua. A prosa é com o a figura em movim ento; a poesia é com o o
estalo; o estilo é mais parecido com o do telégrafo que com a reportagem
de notícias.
E m acréscimo, com o toda poesia, os salmos são repletos de metáforas
vividas e evocativas. Para contrastar a fugacidade do ím pio com a conser-
vação do justo, o salmo 92 afirma: “os ímpios brotam com o a erva” (v. 7)
e “os justos florescerão com o a palmeira” (v. 12). Poemas transform am
a tinta na página em sangue, reduzem a prolixidade, substituem o tédio
pelo encantam ento e nos transportam para a eternidade.
Hilário de Poitiers (c. 315-367) descreve esses poemas hebraicos:

69 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 49.


70 T L O T , 1:372, s.v. MPiel.
71 Barbara Herrnstein Smith, Poetic Closure: A Study o f H ow Poems E n d . Chicago:
University o f Chicago Press, 1968, p. 23.
72 Leupold, E xposition o f the Psalms, p. 665.
39

Preservados na alma.
Inscritos no coração.
Gravados na memoria.
Tesouros de brevidade a serem comprados por nós dia e noite.

N o entanto, a poesia bíblica se distingue da poesia portuguesa pelo


paralelismo. Além do sobrescrito prosaico opcional, que fixa o salmo nos
dados históricos, todo versículo do saltério tem essa característica essen-
ciai. A poesia portuguesa é desenvolvida a partir da poesia grega e latina,
baseada prim ariam ente no som. Contudo, a poesia hebraica é derivada
da antiga poesia canaanita, baseada na semântica e filologia. U m verso é
dividido em dois versetos simétricos73 de pensam ento e gramática, e essa
simetria é chamada “paralelismo”.74 (Diferente do com ponente semántico,
o com ponente filológico não pode ser traduzido.) N osso entendim ento
da relação desses versetos paralelos/sim étricos m udou na última metade
do século XX. A partir do livro inovador do bispo Robert Lowth: Lectures
on the Sacred Poetry o f the Hebrew [Palestras sobre a poesia sagrada hebrai-
ca] (1753) até a obra de James Kugel: The Idea o f Biblical Hebrew Poetry [O
conceito da poesia bíblico-hebraica] (1981) e o livro de R obert Alter: The
A r t o f B iblical Poetry [A arte da poesia bíblica] (1985), a ênfase recaía na
correspondência dos dois versetos; criava-se que o segundo verseto refor-
mulava o primeiro. T. H. Robinson escreveu: “Portanto, o poeta retorna
ao principio e diz o mesm o um a vez mais, em bora possa, em parte ou
totalm ente, alterar as palavras reais para evitar a m onotonia”. Essa ênfase
pode ser com parada a de W ordsworth: O cisne ainda flutua no lago St.
M ary/D uplo flutuar, cisne e sombra.
Contudo, desde as obras de James Kugel e Alter, a ênfase tem sido
em com o a segunda linha intensifica a primeira; ela a sustenta, a apoia,
transm ite mais, a com pleta e /o u vai além disso.75 A nova ênfase pode

73 Surpreendentemente, não se chegou a nenhum consenso em relação à nomen-


datura para as partes da linha ou traço. Eles são comumente referidos como um
hemistiquio, cólon (pl., cola) — com os dois formando um bicólon — ou verseto.
74 Os dois versetos de bicólon são simbolizados por “a” e “b”. Às vezes, o verseto
“a” ou “b” tem um verseto paralelo nele, formando um tricólon, simbolizado por
“a ” ou “β” (e.g., v. 7a0t ,7αβ e 7b; ou v. 7a,7ba e 7bβ). Ocasionalmente, ambos
“a” e “b” contêm paralelos neles, formando uma quadra.
75James Kugel, The Idea o f B iblical Poetry (New Haven: Yale University Press, 1981),
p. 51-2.
40

ser com parada a: O cisne ainda flutua no lago St. M ary / D uplo flutuar,
gansa e ganso.
O contraste entre prosa e poesia pode ser prontam ente percebido na
prosa e ñas narrativas poéticas no assassinato de Sisera por Jael. A narra-
tiva prosaica registra: “E stou com sede”, disse ele. “Por favor, dê-me um
pouco de água” . “Ela abriu um a vasilha de leite feita de couro, deu-lhe
de beber, e tornou a cobri-lo” (Jz 4.19). A narrativa poética registra: “Ele
pediu água, / e ela lhe deu leite; /n u m a tigela digna de príncipes trouxe-lhe
coalhada (Jz 5.25).
N ote a concisão da poesia: “Estou [...] sede” (12 palavras, 7 em he-
braico) versus “dê-me um pouco de água” (5 palavras, 2 em hebraico). N ote
o foco e intensificação de “água” passando por “leite” até “coalhada” . E
note a m etáfora vivida e evocativa: “tigela digna de príncipes”.
C. Música
A raiz verbal da palavra hebraica mi^môr, traduzido tradicionalmente
por “salmo” é (Piei) “com por música” . D esta form a, um “salmo” é
um cântico com acom panham ento musical. O s salmos se referem a uma
variedade de instrum entos musicais.76 Gunkel afirma que os imperativos
para alegrar-se e cantar ocorrem umas 200 vezes no saltério.77
Davi era o M ozart do antigo Israel. Ele transform ou o ritual mosaico
em ópera. Ele designou o magnífico tem plo de Salomão para seu cená-
rio; escreveu os cânticos do saltério de ações de graças com o um libreto
para acom panhar os sacrifícios e seus hinos para encher o tem plo com
música dia e noite. A música influencia as em oções (e.g., alegria), ela nos
faz sentir em patia com o com positor e nos inspira à ação. O s salmos de
louvor conciliam fervor com dignidade, alegria com seriedade, exultação
com humildade, convicção com confissão e ardor com virtude. Eles são
esteticam ente agradáveis, em ocionalm ente despertadores e eficientes

76 De acordo com Dermis McCorkle ( The D avidic Cipher: Unlocking the H idden M usic o f
the Psalms [Denver: Outskirts, 2010], xvn2), os doze instrumentos mencionados nos
textos bíblicos são “lira, harpa, [alaúde], címbalos melódicos, shofar, (tipicamente
feito do chifre de carneiro), duas trombetas de prata, pífaro, flauta, instrumentos
de pinho e ossos, címbalos, címbalos de dedo e chocalhos.
77 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 23.
41

com o estímulo: “A ciência basicamente confirm a que os seres hum anos


são geneticam ente program ados para reagir à música” .78
N o TM , cada palavra tem, acima e ou abaixo dela, um “acento” que
acrescenta dignidade, solenidade, beleza e clareza às leituras. Esses acentos
podem ter sinais manuais simbolizados ou notas musicais.7980O cronista
afirma que vários grupos musicais levíticos foram liderados “sob a super-
visão” de diretores, talvez significando quironom ia (lC r 25.2, KJV, ASV).
D e acordo com a descrição da iconografia egípcia desde o início do terceiro
milênio a.C., os diretores ficam em frente dos músicos fazendo sinais com
as mãos para as notas. D ennis M cCorkle pensa que o que tem os no TM
sao as partituras para o maestro.
Vamos agora ouvir a voz do salmista e da igreja em sua resposta.

78 “ ‘The Power o f Music’ to Affect the Brain”, NPR, disponível em: http://www.
npr.org/2011/06/01/136859090/the-power-of-music-to-affect-the-brain, acesso
em: 1 de junho de 2011.
79 Suzanne Hai'k-Vantoura, The M usic o f the Bible Revealed, trad. Dennis Weber, John
Wheeler, org. (North Richland Hills: Bibal, 1991); J. Wheeler, “Music of the
Temple”, em: Archaeology and B iblical Research, 2 (1989).
80 The D avidic Cipher, p. 47.
2

Salmo 90: A voz da sabedoria


moderadora

Parte 1. A voz do salm ista : tradução


Oração de Moisés, hom em de Deus.
1 Senhor, tu és o nosso refugio,1 sempre, de geração em geração.
2 Antes de nascerem os m ontes e de criares a terra e o mundo, de eterni-
dade a eternidade tu és Deus.2
3 Fazes os hom ens voltarem3 ao pó, dizendo: “Retornem ao pó, seres
humanos!”.
4 D e fato, mil anos para ti são com o o dia de ontem que passou, com o
as horas da noite.
5 Com o uma correnteza, tu arrastas os homens;4 são breves com o o sono;5
são com o a relva que brota6 ao amanhecer;

1 A LXX e uns poucos manuscritos hebraicos traduzem m ‘w z (“lugar seguro”/


“refugio”).
2 A LXX registra ’a/ ao contrário de / / no v. 2 em combinação com tãsèb no v. 3,
compreendido como um jussivo = “De eternidade a eternidade tu és. Não degenere”.
3 A conjugação do prefixo breve (I B H S §31 .lh) pode ser devido ao fato de estar
tão longe quanto possível de athnah (GKC, 109K).
4 Ou, “Tu os varres como em uma inundação”. Z rm pode ser um homônimo.
Conforme G. R. Driver (“Some Hebrew Medical Expressions”, Z A W 65 [1953],
p. 259), zrm é cognato de uma raiz árabe que significa “interromper, parar”. O
H A l^ O T o traduz como “dar um fim à vida”. No versículo, entretanto, ele é
tradicionalmente interpretado como zrm II Polel “descarregar nuvens de água
acompanhadas por trovão” (cf. SI 77.17[18]).
5 Literalmente, “eles estão dormindo”. A predicação do substantivo abstrato para a
pessoa significa que o sujeito é totalmente caracterizado pela abstração: e.g, “Eu
sou paz” = “Eu sou totalmente propenso à paz” (SI 120.7); “Eu sou oração” =
“Eu sou totalmente propenso à oração” (SI 109.4).
6 O H A L O T traduz ya hã lõp por “voar, passar, expirar”, mas o BDB o traduz por
“brotar novamente”. O sentido de “mudança” indica todos os usos do lexema
44

6 germ ina e brota pela manhã, mas, à tarde, m urcha e seca.


7 Somos consumidos pela tua ira e aterrorizados pelo teu furor.
8 Conheces as nossas iniquidades; não escapam os nossos pecados secretos
à luz da tua presença.
9 Todos os nossos dias passam debaixo do teu furor; vão-se com o um
murmúrio.
10 Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm
mais vigor;7 entretanto, são anos8 difíceis e cheios de sofrimento,9pois
a vida passa10 depressa,11 e nós voamos!
11 Q uem conhece o poder da tua ira? Pois o teu furor é tão grande com o
o tem or que te é devido.12

hãlap. A LXX e a Vulgata traduzem com o sentido de “expirar”. Mas considerando


que a relva da manhã é contrastada com a relva murcha da noite, o sentido mais
apropriado é o do começo do movimento, e assim, em relação à relva significa
“surgir novamente, ser renovada”.
7 A GKC (124e) classifica g a b ü rô t em Jó 41.4 e presumivelmente também gabü rôt
em SI 90.10, como plural intensivo — “vigor (excepcional)” — , mas podería ser
o plural abstrato (IB H S,, §7.4.2a).
8 O texto e o sentido de rohbãm são incertos. Muitos alteram o texto para fh ã b ã m
(“seus períodos”, também a NRSV e a NIV 1984) ou o interpretam com a ajuda
de versões rubbãm (“multidão deles”). A LXX registra “a maior parte deles” (v. a
NAB: “a maioria deles”); a Vulgata “e o que mais eles são”; Tg., “a maioria deles”.
Mas o TM não pode ser justificado, ao passo que r^hãbãm ou rubbãm pode ser
prontamente explicado por facilitar as interpretações. O substantivo rõhab ocor-
re apenas aqui e seu equivalente verbal ocorre duas vezes em Qal, significando
“bramir”/ “comportar-se violentamente”/ “agir insolentemente”: do jovem contra
o idoso (Is 3.5); do devedor contra o credor (Pv 6.3). (O substantivo rahab se
refere ao monstro mítico que surge da ondulação marítima e “se aplica ao mar
revoltoso e estrondoso”). O singular rõhab é coletivo.
9 K. H. Bernhardt ÇTDOT, 1:145, s.v. ’ãw en) comenta: “Salmos 90.10 percebe em
'ãw en o sofrimento absolutamente fútil da vida, determinado por Deus para o
homem em geral”. Isso é coerente com a seguinte proposição: “Pois a vida passa
depressa”.
10 O sujeito do sg. m. g ã z é rõhab.
11 A tradução do raro hi,s] como “depressa” é baseado na raiz hus: “apressar, se
apressar”.
12 Y ir'ã ta kã é geralmente traduzido como genitivo objetivo (“o temor de ti”), a
afirmação de um fato; mas a questão retórica sugere que o termo seria mais bem
traduzido como genitivo de vantagem (“o temor devido a ti”, IB H S , §9.5.2e).
45

12 Ensina-nos a contar os nossos dias13para que14o nosso coração alcance


sabedoria.

13 O BDB (p. 485, s.v. kên) traduz kên por “para que (geralmente, como é descrito
ou ordenado, com referência ao que precedeu), principalmente de maneira”.
Como consequência, o sentido é ao “contar nossos dias, desta forma nos ensine a
saber”. Além disso, de acordo com a sintaxe dos acentos massoréticos, kên (“para
que, assim”) altera hôda (“ensina-nos”), não lim n ôt (“contar”). Em síntese, o
texto hebraico rejeita a tradução “para que contemos nossos dias [nos] ensine”
(da mesma forma, KJV, ASV, JPS, NRSV, ESV). Igualmente, kên não significa
propósito, desqualificando a tradução “ensina-nos para que saibamos” (assim
também, NAB, NIV, NJB, CSB, NET). O H A L O T (1:482, s.v. kên I) interpreta
kên como adjetivo (= “saber [o que é] correto/justo/exato?”), mas nos paralelos
citados, kên está de acordo com o verbo que ele modifica e não é intermediário
(v. Jz 12.6; 21.14; ISm ISm 23.17; cf. Am 5.14). Nenhuma tradução inglesa, que
eu saiba, representa precisamente o texto hebraico. O objeto de “saber” deve ser
suprido do v. 11, a saber: “a ira do E u S o il ’ (v. comentário).
14Em sentido semântico, uma consequência lógica (desta forma também, o BDB,
p. 99, s.v. Hifil, b ô >, §lg).
46

13 Volta-te,15 E u SoiÁ Até quando será assim? Tem com paixão16 dos17
teus servos!
14 Satisfaze-nos pela m anhã com o teu am or leal, e18 todos os nossos
dias cantaremos felizes.
15 D á-nos alegria pelo tem po que nos afligiste, pelos anos em que tanto
sofremos.

15“Volta-te do julgamento” (v. o BDB, p. 997, s.v. süb, §6f). Tradicionalmente, “re-
tornar” sugere que o E u S o u abandonou seu povo, mas essa noção não comporta
bem a confissão de que o E u S o u é o refúgio do penitente para sempre. Essa
diferença na interpretação é tão antiga quanto os rabinos. Avrohom Chaim Feuer
(Tehillim: A N ew Translation with a Commentary A nthologizedfrom Talmudic, M idrashic
and Rabbinic Sources, trad. Avrohom Chaim Feuer em colaboração com Nosson
Scherman [Brooklyn: Mesorah, 1982], vol. 1, p. 129) nota a diferença na literatura
rabínica: “Volta-te de tua ira (Rashi) [...] A té quando tu nos abandonarás? (Radak)”.
16 Em outro contexto, o Nifal nhm com o 7 determinando um substantivo pessoal
significa “ser consolado/confortado” (v. 2Sm 13.39; Jr 31.15; Ez 32.31), mas
esse sentido é inapropriado em SI 90.13. A maioria das versões inglesas concorda
com o BDB (p. 637, s.v. nhm , §1: “ser comovido à pena, ter compaixão”) e verte a
expressão “tem compaixão dos” ou a semelhante (v. “Exegese”). Marvin E. Tate
{Psalms 5 1 — 100, WBC 20 [Dallas: Word, 1990], p. 436, n. 13b) rejeita “ter pena/
compaixão” porque, de acordo com Dale Patrick (“A tradução de Jó 42.6”, V T
26 [1976]: 324-27), “quando o verbo é usado com 7, ele regularmente significa
‘mudar a mente de alguém sobre algo planejado’ ” (i.e., “compadecer-se/lamen-
tar por; cf. Jr 18.8; 26.3,13,19; J12.13;Jn 3.10; 4.2; D t 32.36). Mas, como notado
por H. J. Sotebe (TLOT, 2:738, s.v. o Piel nhm ) isto é verdadeiro só quando a
preposição 7 determina um objeto impessoal, comumente r a á (“lavé lamentou/
compadeceu-se do devido ao desastre ameaçador”). Isso pode também ser verda-
deiro em Ez 14.22, mas a maioria das versões inglesas traduz o termo como “ser
consolado/confortado”. Se o objeto é pessoal, uma distinção adicional, não notada
por Sotebe, deve ser feita, a saber, “sentir dor por si mesmo ou por outros”.
17A tradução “dos” ofusca o sentido do hebraico, pois parece ser uma adição ne-
cessária para introduzir o objeto de “ter compaixão/compaixão de alguém”. O
H A L O T aplica ζαΙ com o sentido de “porque”, porém, mais provavelmente, que
signifique “por causa de” (BDB, p. 754, s.v. 7, §l.f.[c]; cf. SI 44.22[23]).
18 O vav com o coortativo depois do imperativo significa propósito (v. GKC, 108d;
IB H S , §34.5.2b).
47

16 Sejam m anifestos19 os teus feitos20 aos teus servos, e aos21 filhos


deles o teu esplendor!22
17 Esteja sobre nós23 a bondade do nosso D eus Soberano. Consolida,
para nós, a obra de nossas mãos; consolida24 a obra de nossas mãos!

19Na estança de petição e na conjunção com o jussivo inicial w íhl (“e esteja”, v. 17),
yera eh é mais bem traduzido como um jussivo não apocopado (cf. Gn Gn 1.9).
20 P õ ‘a l é traduzido como um singular coletivo.
21 'A l pode ter o mesmo sentido dativo como 'e l (BDB, p. 758, s.v. 7, §8), embora
o uso seja encontrado principalmente no hebraico pós-exílico.
22 A LXX erra ao reconstituir o texto como “direto” hadrêk, uma leitura facilitadora
para a figura de linguagem. O sentido “visão/revelação/aparição para hãdãr em
vários exemplos na Bíblia Hebraica consistentemente significa “esplendor” e aqui
constitui um paralelo excelente para “feitos” (v. SI 96.9; p. 188, nota 2).
23J. D. Levenson (“A Technical Meaning for N ‘M in the Hebrew Bible”, VT 35 [1985]:
61-7) admite a hipótese de que a palavra aqui traduzida por “bondade”, n õ ‘am , no
Salmo 4.6,7; 16.5,6,11 e 90.16,17 assume a conexão com “a resposta afirmativa ao
ato de presságio”. Os argumentos dele incluem: a) “bondade” [no Salmo 27.4] [...]
parece excessivamente abstrata”; b) hãdãr significa “uma revelação” de algum tipo
de feito; c) “a luz do rosto de Deus” no Salmo 4.6 se refere ao “fogo teofânico
empregado como um presságio positivo”; d) um paralelo acadiano em um texto de
adivinhação da Babilônia antiga significa “dar uma resposta clara”; e) “Consolida”
no paralelo do Salmo 90.17 deve ser traduzido como “afirme, aprove, diga ‘sim’ a”;
f) a raiz n m no Salmo 16.5,6 ocorre explícitamente em associação com presságio;
g) seguindo uma preposição, “eterno prazer” no Salmo 16.11 não faz sentido: “A
tradução tradicional \ne1m ôt\ ‘prazer [à ma direita]’ é ‘uma imagem estranhamente
abstrata’ ”; h) em 2Samuel 23.1; Números 24.3,15 e Provérbios 30.1, “parece [...] a
palavra [rf'um haggeber\ significa [...] ‘uma pessoa a quem se concedeu um pressá-
gio positivo”. Esses argumentos não são convincentes: a) Uma metonimia como
“bondade” para a coisa em si mesma é comum na poesia hebraica; b) “esplendor”,
o sentido exato de hãdãr, é semánticamente pertinente; c) “a luz do rosto de Deus”
comumente se refere ao favor de Deus, não ao fogo teofânico; d) o paralelo acadiano
é uma palavra diferente; e) o polel kün normalmente significa “consolidar” e faz
sentido perfeitamente, de forma especial depois que as realizações deles são füteis;
f) no Salmo 16.5, Davi usa a linguagem figurativa e uma metonimia após uma pre-
posição não é insensato; g) uma metonimia para a quantidade de prazeres na honra
exaltada à direita de Deus não é estranha; h) ne’um haggeber muito provavelmente se
refira simplesmente ao anúncio profético. Em síntese, os argumentos de Levenson
para empregar “bondade” com um sentido técnico são ilusórios. Ele compreende
erroneamente ou minimiza a figura de linguagem na poesia hebraica e introduz na
teologia do AT a noção de presságios por outros sinais diferentes do Urim e Tumim,
fixados próximo ao coração do sumo sacerdote.
Admitindo-se o sentido normal de ‘a/ (“sobre”), a preposição fértil, como sem-
pre ocorre na poesia hebraica, implica um verbo de movimento omitido, como
“estabelecer-se”/ ”descansar” (v. IB H S , §11.4d).
24 Bruce Vawter (“Postexilic Prayer and Hope”, C B Q 37 [1975]: 460-70, esp. n. 5)
afirma com erro que o “v. 17 [é] uma ditografia óbvia”. O v. 17a e b declaram
coisas diferentes (v. a exposição).
48

Parte II. Com entário

I. Introdução

Forma
O salmo 90 é poesia, caracterizada por paralelismo, concisão (os poetas
não escrevem exceções em notas de rodapé) e linguagem figurada (v. p. 38).
A form a específica declarada é “um a oração” . Essa oração “m oderada e
sóbria”25 contém os cinco temas típicos do salmo de lam ento/petição:
I. Diálogo direto: “Senhor”, v. 1.
II. Confiança: “tu és nosso refúgio”, v. 1.
III. Lamento: pela severa disciplina de D eus à humanidade e à Israel
pecadora, v. 3-10.
IV. Petições p o r salvação, v. 13-17.
V. Louvor, v. 14b, 15.
Mais precisamente, é, com o Robert Alter diz: “uma súplica penitencial
coletiva”.26 Portanto, M arvin Tate presum e com razoabilidade com o seu
contexto apropriado “um culto de adoração das orações comunitárias de
lam ento” similar à de Joel 2.12-17 (note o uso de sw b e nhm em J1 2.14 e
SI 90.13).27 Mas o salmo tam bém tem as características da literatura de
sabedoria. O eixo no qual o salmo gira do lam ento (11) para petições (12)
associa o gênero de oração ao gênero de literatura de sabedoria. “Alcançar
sabedoria” provê a motivação para “contar os dias” (v. 12). O lam ento

25 Derek Kidner, Psalms 73 — 150, TOTC. Downers Grove: IVP Academic, 2009,
p. 359.
26 The Book o f Psalms: A Translation and Commentary. New York: Norton, 2007, p. 318.
27 Marvin E. Tate {Psalms 51— 100, WBC 20 [Dallas: Word, 1990], p. 439) concor-
da com Von Rad que o escriba, ou sábio, compôs o salmo para comunidades
piedosas e pós-exílicas por ser um lamento comunitário atípico (cf. SI 44; 60;
74; 79; 80; 83; 106; 137), a saber, Deus não se oculta; não há reclamação sobre
os inimigos nacionais nem lamentos de desolação imediata e súplica para Deus
libertar. Entretanto, os profetas, dos quais Moisés foi um, muitas vezes retrata-
ram Deus como inimigo. Amos pediu a Deus para mudar sua mente, desistir da
condenação ameaçadora (Am 7.2). Assim, há boa razão para pensar que Moisés
descrevería Deus como inimigo (v. D t 32.20-35) e lhe pediría para ceder à com-
paixão (v. D t 32.36-43). Como todas as orações na Bíblia, essa deve ser assimilada
e estudada pelo piedoso.
49

sobre os anos difíceis e cheios de sofrim ento (v. 10) surpreendentem ente
se assemelha ao livro de sabedoria, o Eclesiastes.28 E m resumo, a “marca
inconfundível” do salmo de ser um cântico nacional de queixa associado
à marca inconfundível do gênero sapiencial o torna, conform e G erhard
von Rad o disse: “um estranho no Antigo Testam ento” .29
Retórica e estrutura
Phyllis Trible define com habilidade as críticas da form a e retórica:
“Enquanto a crítica da form a estuda a literatura típica e assim agrupa a
literatura de acordo com seus gêneros, a crítica retórica estuda o parti-
cular no típico. Sua regra orientadora declara que a articulação ‘própria’
[ou apropriada] do conteúdo da form a produz articulação própria [ou
apropriada] de sentido” .30
O salmo é estruturado por dois títulos do E u Sou·. “Senhor” e “D eus”
e pelas notas cronológicas de “geração a geração” e “filhos deles” (v. 1,16).
O anagrama mã‘ôn (“refúgio”, v. 1) e nõcam (“bondade”, v. 17) pode ser
uma estrutura intencional. Aqui está um esboço das estanças e estrofes
do salmo:31

Sobrescrito la
Estança I: Invocação doxológica, lb,2
Estança II (Lamento): M orte e pecado, 3-10
Estrofe A: A certeza da m orte e a brevidade da vida, 3-6
1. E m contraste com a eternidade do Soberano, 3,4
2. E m com paração com a relva, 5,6

28 Contudo, Eclesiastes é diferente do salmo 90, não atribui o sofrimento e a difi-


culdade da vida ao pecado nem pede a Deus para ser liberto deles.
29 God’s W ork in Israel, trad. John H. Marks. Nashville: Abingdon, 1980, ρ. 218.
30 “Wrestling with Words, Limping to Light”, em: W hy I (Still) Believe, John Byron;
Joel N. Lohr, orgs. Grand Rapids: Zondervan, 2015, p. 233.
31 Por crítica da forma, retórica e semântica, um salmo é analisado em estanças, es-
trofes e unidades. O salmo é a casa; as estanças são suas partes principais, como
o andar de cima e o térreo; as estrofes são os cômodos; e as unidades são partes
do cômodo, como tetos e pisos. Como é comum, no Salmo 90 essas divisões
são quadras, dísticos (i.e., dois versos ou versetos), além do v. 13. A invocação
unificada, lamento e eixo consistem em sete dísticos (v. lb-2, 3-4, 5-6, 7-8,9-10,
10a-10b, 11-12) e as petições por salvação consistem em três estrofes com dois
dísticos (v. 13,14-15,16-17).
50

Estrofe B: A punição de Israel pelo pecado


1. M orte pelo pecado, 7,8
2. A punição dura 70 ou 80 anos, 9,10
Estança III: (Eixo): Lam ento e petição para alcançar sabedoria, 11,12
Estrofe A (Lamento): Poucos conhecem a ira de Deus
contra o pecado e o tem or devido a ele, 11
Estrofe B (Petição): Conhecer por contar os dias, 12
Estança (IV) (Petições): Desistir da punição e abençoar Israel, 13-17
Estrofe A: Desistir da punição, 13
Estrofe B: Conferir bênçãos, 1417‫־‬
1. Regozijar-se com o am or infalível de Deus
e suas obras salvadoras, 14,15
2. Ver as obras salvadoras de D eus e consolidar
a obra dos israelitas, 16,17

As máximas temporais unificam as estanças, as estrofes e os dísticos do


salmo: “geração a geração”, “eternidade a eternidade”, e “antes” (v. 1,2);
“ontem ” e “horas da noite” (v. 4); “m anhã/am anhecer” (v. 5,6,14) e “noite”
(v. 6); “anos” (v. 9,10,15) e “dias” (v. 9,10,12,14,15); e “até quando” (v. 13).
K onrad Schaefer nota a catábase na invocação e lamento: de “eternidade a
eternidade” a “mil anos”, “ontem ”, “horas da noite”, e “m anhã/am anhe-
cer” e “noite” (v. 1-6). Ele tam bém nota a anábase nas petições de bênçãos:
de “m anhã/am anhecer” para “dias” e “anos” (v. 14,15).32 Os term os para a
ira de D eus unificam a segunda e terceira estanças: “ira” (v. 7a,11), “furor”
(v. 7b), “furor” (v. 9,11). As estanças e estrofes são tam bém ligadas pela
lógica das alianças de Israel: pecado e m orte (v. 3 1 0 ‫)־‬, tem or do E u S o u e
sabedoria (v. 11,12), arrependim ento e restauração (v. 13-17).
Autor
A evidência intertextual apoia a credibilidade histórica da alegação
de que Moisés com pôs o salmo. O salmo com partilha certo vocabulário
com D euteronôm io 32— 3333e, com o oração de intercessão, se ajusta bem

32 Psalms, Berit Olam. Collegeville: Liturgical, 2001, p. 226s.


33 Moisés é chamado de “o homem de Deus” (SI 90.1) na introdução à sua bênção
no tempo de sua morte (Dt 33.1). O salmo começa “tu és o meu refugio”, onde a
bênção de Moisés terminava (Dt 33.27 [m ã‘ôn e m a õ n á são parelhas de gênero]).
51

aos lábios de Moisés, o grande intercessor de Israel (v. Êx 32.11-13,31,32;


N m 14.13-19; D t 9.25-29; SI 106.23; J r 15.1; v. tb. SI 99.6). Franz Delitzsch
comenta: “H á escasso memorial escrito da antiguidade que tão brilhan-
tem ente justifique o testem unho da tradição concernente à sua origem
com o ocorre com este salmo”.34 Mas o consenso acadêmico p o r mais de
um século data o salmo à era exílica ou pós-exílica.35 Perniciosamente, “o
consenso” subverte a evidência que sustenta a credibilidade histórica do
sobrescrito ao alegar que a evidência explica a origem da falsa autoria (i.e.,
um a falsificação).36Tate defende que o term o “teus servos” situa o salmo
nas com unidades pós-exílicas,37 porém ele curiosam ente ignora o uso
desse term o por Moisés (Êx 32.13), Salomão (lR s 8.32) e Asafe (SI 79.2).
Mas agora se manifestam fissuras no consenso acadêmico, em bora
ninguém ainda ouse afirm ar a tradição. Hans-Joachim Kraus caracteriza
o salmo com o pré-exílico (séc. 9) devido à semelhança com D euteronô-
mio 32 e à narrativa “J ” em Gênesis 2— 3.38Mitchell D ahood data o salmo
com o uma composição antiga (séc. 9?) devido à linguagem arcaica.39Walter
Brueggem ann sugere que ele seja ouvido com o se Moisés estivesse em
Pisga (D t 34).40 David N oel Freedm an nota que no episodio do bezerro
de ouro, Moisés orou usando os mesm os dois imperativos com o no ver-
sículo 13: “Torna-te (süb) do furor da tua ira e arrepende-te (w’‘hinnãhém )
deste mal contra o teu povo” (Êx 32.12, ARA). Ele comenta: “Além de

O Polel yã la d e h ü l ocorrem juntos no v. 2 e D t 32.18; yam ôt ocorre somente no


v. 15 e D t 32.7, onde também ocorre dôrw adôr (cf. v. 1).
34 Psalms, trad. Francis Bolton, K eil and Delit^sch Commentary on the O ld Testament 5.
London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody: Hendrickson, 1996, p. 593.
35 Gerhard von Rad, God’s W ork in Israel (Nashville: Abingdon, 1980), p. 212.
36 Desse modo, Zondervan T N IV S tu d y Bible, ed. Barker, Stek, Youngblood (Grand
Rapids: Zondervan, 2006), p. 943.
37 Psalms 5 1 — 100, p. 437s.
38 Psalmen II, BKAT 15 (Neukirchen: Erziehungsverein, 1960), p. 627-33. (É muito
provável que aqui o autor faça referência à Teoria das Fontes ou Hipótese Do-
cumental javista da autoria do Pentateuco, formulada pelo erudito alemão Julius
Welhaussen. Conforme essa teoria o Pentateuco é obra originária de quatro fontes:
Javista (J), Eloísta (E), Sacerdotal (S) e Deuteronômica (D). Elas são perspectivas
diferentes que formaram um texto harmônico e canônico. [N. do T.])
39 Psalms II, AB 17 (New York: Doubleday, 1968), p. 322.
40 The Message o f the Psalms, Augsburg Old Testament Studies (Minneapolis: Augsburg,
1984), p. 110.
52

Amós, só Moisés intercede com êxito a I a v é e obtém seu arrependim ento”


(v. Êx 32.14). Portanto, Freedm an sugere que quem com pôs o salmo 90
o baseou no episódio de Ê xodo 32 e imaginou em form a poética com o
Moisés teria falado na circunstância.41 Beth L. Tanner explora o sobrescrito
do salmo à luz de Êxodo 32— 34 e D euteronôm io 32— 33 e argumenta que
o sobrescrito foi acrescentado, de m odo que o salmo seria lido de form a
“intertextual com a narrativa do deserto e a oração e bênçãos finais de
Moisés”.42 Gerald T. Sheppard nota sua posição após o salmo 89: “Moisés
intercede em favor de Israel, a quem foi transm itida uma prom essa divina
que agora parece estar em risco”.43
O sobrescrito para o Targum identifica o cenário histórico com o
“quando o povo, a casa de Israel, pecou no deserto” . O contexto histórico
da geração em extinção nos anos finais da vida de Moisés adequa com
propriedade a perspectiva sombria do salmo e o nexo auxiliar. A geração
do êxodo-deserto passou os últimos 40 anos peregrinando em torno de
um cemitério, um deserto hostil, um a terra de escorpiões e serpentes
venenosas. D evido à incredulidade em Cades Barneia, ela m orreu de
m orte natural e jamais alcançou a terra prom etida (v. SI 95). A geração do
deserto desperdiçou tem po em peregrinações fúteis (Nm 14.33). E assim
se com portam os contem porâneos sem nenhum a metanarrativa pela qual
interpretam o sentido de sua vida.
N o entanto, é imperioso justificar que a restrição do salmo da vida
humana, na melhor das hipóteses, a 80 anos (v. 10) não corresponde à dura-
ção da vida de Moisés e Arão de 120 e 123 anos respectivamente (D t 34.7;
N m 33.39) ou com os 110 anos de Josué (Js 24.29) e o vigor de Calebe
nos 85 anos de idade (Js 14.10). Mas esses quatro são exceções. D eutero-
nôm io 34.7 infere que Moisés era excepcional por sua nota: “quando ele
[Moisés] m orreu, nem os seus olhos nem o seu vigor se enfraqueceram ”.
Se isso fosse norm al, por que mencioná-lo? Calebe explicou seu extraor-
dinário vigor aos 80 anos de idade (45 anos após o Êxodo) com o algo
devido à prom essa exclusiva do E u S o u a ele (Js 14.10). A longevidade
desses quatro hom ens da geração êxodo-deserto, que merece menções

41 “Who Asks (or Tells) God to Repent?” BRev 1, n. 4 (1985): 56-9.


42 The B ook o f Psalms through the L ens o f Intertextuality, StBibLit 26. New York: Peter
Lang, 2001, p. 85-107, esp. 98.
43 “Theology and the Book of Psalms”, In t 46 (1992): 143-55, esp. 151.
53

bíblicas, na realidade, prova o salmo ser regra para a maioria de Israel. O


epíteto “hom em de D eus” de Moisés ordena a audiência de sua oração a
retirar os sapatos; ela está pisando em terra santa.
Os falantes
Moisés pode ser o autor, mas ele ora com a dinâmica do “vocês-nós”,
não “você-eu”, confiante que o Deus eterno adotou unicam ente Israel,
“teus servos” (v. 13,16), com o sua família (cf. SI 100.3). O s falantes são
penitentes disciplinados e firmes na fé. Eles pertencem à geração de Josué
que entrou na terra prometida, a descendência da geração do deserto, a qual
Deus im pediu de entrar naquela terra. Pela fé eles invocam D eus com o
eterno refúgio (v. 1,2). Pela fé, com o Daniel (9.4-20) e Esdras (9.5-15),
eles confessam o pecado com o parte do Israel nacional (v. 3-10). Pela fé,
eles pedem ao E u S o u para ilumina-los (v. 11,12) e salvá-los no alvorecer
de uma nova era (v. 13-17). O “nós” é nacional e pessoal. Com o indiví-
duos eles vivem 70 ou 80 anos (v. 10a); com o povo eles prolongam -se
por gerações e vivenciam a ira da aliança de D eus com a esperança das
promessas da aliança. A relação do indivíduo com o grupo é com o folhas
em um a árvore. Cada um tem os próprios dias e anos, mas esses dias e
anos são inseparáveis da totalidade da nação. Hoje, o “nós” é a igreja sendo
edificada p o r Jesus Cristo. A igreja é a sem ente de A braão (G1 3.29). A
liderança judaica disse não ao Filho de D eus e Deus disse: “Eles não são
meu povo”. Mas no fim da história, com o a conhecemos, o Israel étnico
se arrependerá e se identificará com Jesus Cristo e sua igreja.44
II. Exegese

Sobrescrito la
Um a oração aqui significa “um a intercessão” .45 H. P. Stãhil nota que a
oração tem quatro características: a) dirigida a Deus; b) por Israel; c) “geral-
m ente diante da ira e punição de Deus pelo pecado”; e d) os intercessores
“nos textos mais antigos são em especial os hom ens poderosos (de Deus):

44 Bruce K. Waltke; Charles Yu, A n O ld Testament Theology: A n Exegetical, Canonical,


and Thematic Approach (Grand Rapids: Zondervan, 2007) [edição em português:
Teologia do A n tig o Testamento (São Paulo: Vida Nova, 2015)].
45 O contexto jurídico de p ll, a raiz de fp illa , pode ser observado nos substantivos
p a ñ i (“julgamento”, “uma avaliação que requer julgamento”; v. Ex 21.22; D t 32.31;
Jó 31.11) e p eã lâ (“decisão).
54

Abraão (G n 20.7,17), Moisés (N m 11.12; 21.7; D t 9.26), Samuel (ISm 7.5;


12.19,23; cf. J r 15.1)”.46 D e M oisés (v. ”A utor”). O homem de D eus se refere
a um verdadeiro profeta (cf. H b 3.1); um a pessoa muito respeitada pelos
fiéis e é piedoso, devotado, justo e carismático.47 A esposa de M anoá cha-
m ou o anjo im pressionante do E u S o u que apareceu a ela de “o hom em
de D eus” (Jz 13.6,8). O epíteto garante ao fiel que Deus responderá essa
oração, pois “a oração de um justo é poderosa e eficaz” (Tg 5.16).
Estança I: Invocação doxológica, lb,2
Pierre Auffret nota a estrutura artística dos versículos 1,2.48 A refe-
rência a Senhor/Refúgio e D eus, seguida e precedida respectivamente por
um enfático tu, com põe a invocação em torno de referências quiásticas ao
tem po universal (“de geração a geração” e “de eternidade a eternidade” e
o espaço global (“m ontes” e “terra /m u n d o ”) que “nasceram /tu criaste”.
O versículo 1 contempla o auxílio de Deus nas gerações passadas de Israel.
O versículo 2 analisa a situação deles no contexto da eternidade de Deus,
antes que a terra existisse. O Soberano transcendente sobre o tem po e o
espaço humilhou-se e se inseriu em ambas as esferas para ser eternam ente
o lar de Israel, o antegozo cum prido na encarnação de Jesus Cristo. Craig
C. Boyle observa: “O salmo 90 usa o louvor a D eus com o plataform a em
que pode expressar um apelo persuasivo”.49 O s suplicantes jamais serão
sem-teto, pois o Deus deles, hoje conhecido em seu Filho (v. p. 16-7), é
eterno e ele se fez refúgio deles. N ão im porta o quão profundo seja nosso
pecado e desesperada nossa situação, o E u S o u perm anece com o o lar
da família escolhida.

46 T L O T , 2:992, s.v. p ll Hithpael.


47 A declaração Ts h ã ‘Hohim ocorre 76 vezes e sempre se refere a um profeta: Sa-
muel (ISm 9.6-10); Elias (2Rs 1.9-13); Eliseu (2Rs 4.7,9,16ss.); e, mais frequente,
Moisés (Dt 33.1 ;Js 14.6; lC r 23.14; 2Cr 30.16; Ed 3.2). No Pentateuco, Moisés é
chamado “o homem de Deus” só no tempo de sua morte (Dt 33.1). Em Jr 35.4,
referindo-se a Hanã, “o Targum traduz o ‘homem de Deus’ por ‘o profeta do
S e n h o r ’ para representar um verdadeiro profeta de I a v é ” Jack R. Lundbom,
Jeremiah 21 — 36: Λ N ew Translation with Introduction and Commentary, AB. New York:
Doubleday, 2004, p. 575, citando Hayward e P. Churgin).
48 “Essai sur la structure littéraire du Psaume 90”, B ib 61 (1980): 262-76, esp. 63.
Mas Auffret une ra'vvn, não 'd n y, com 7.
49 Psalms, NIBCOT. Peabody: Hendrickson, 1999, p. 359.
55

1 O enunciado excepcional do saltério, Senhor Çadõnãy) significa “Se-


nhor de todos”.50 O título é apropriado porque os suplicantes se concei-
tuam com o seus servos (v. 13 e 16). Tu é tautológico e, portanto, enfático.
E s representa totalm ente uma situação que abrange o passado e o presente
(cf. SI 10.14).51 N osso (i.e., Israel, v. p. 27). O Soberano se tornou o refugio
de Israel quando excepcionalmente adotou os patriarcas com o seus filhos
e mais tarde constituiu seus descendentes um a nação por meio de Moi-
sés (v. SI 100.3). Hoje o “nosso” é a igreja: judeus e gentios (v. Rm 4.17;
G 13.26-29; IP e 2.9,10).52A eleição eterna de nômades e pessoas insignifi-
cantes, tolos e fracassados, é o escándalo da historia. E m outro contexto,
refugio é aplicado ao céu (D t 26.15), alcançado pela oração (2Cr 30.27) e
ao tem plo terreno de D eus (ISm 2.29; 2Cr 36.15; SI 26.8). Aqui, o term o
é usado em sentido m etafórico pela com paração de Deus, que é Espirito,
com a habitação física; o lugar de provisão, confiança, lealdade, comunhão,
conforto, estabilidade e segurança. Ele próprio provê o que o templo
providenciava. O tem plo de Israel talvez tenha sido destruído quando o
Livro IV foi compilado (v. p. 30-31), mas não a relação da aliança deles
com Deus. Só os fiéis encontram no E u S o u seu refúgio (SI 91.9,10). E
essa fé não pode ser separada da lei eterna. Brueggem ann comenta: “O
falante não é um sem-teto. H á um centro para im pedir a fragmentação.
H á um pertencim ento para evitar o isolam ento”.53 Sempre, de geração em
geração indica um a sucessão sem fim de gerações, desde A braão até o
presente. A geração fiel da Conquista se manteve quase tão num erosa
quanto a geração exterminada no deserto, com o estrelas no céu (D t 1.10;
cf. N m 26.51,62 com N m 1.46). O povo de D eus tem razão suficiente
para cantar: “N osso auxílio em eras passadas, nossa esperança pelos anos
que virão [...] e nosso lar eterno”.

2 Nascerem pode ser um eco figurado da ideia mítica antiga de que a


mãe terra no trabalho de parto sofreu dores ao dar à luz os montes. N a
antiga cosmología, os montes são os fundamentos da terra no meio dos abis-
m os do oceano primevo, p o r isso aqui eles são m encionados em prim eiro
lugar (cf. Jn 2.6[7]); SI 104.6-8). Com o os abismos oceânicos representam
o caos primevo, os m ontes representam as partes mais antigas da terra,
50 IB H S , §7.4.3e.
51 A tradução possível “Tu és” não representaria bem o passado.
52Waltke, Teologia do A ntigo Testamento, p. 345-89.
53Message o f the Psalms, p. 111.
56

que sustentavam a vida no princípio do tem po histórico (cf. M q 6.2). E de


criares sem dúvida identifica o Deus de Israel com o Agente. Assim, Moisés
polemiza contra o mito pagão da mãe-terra, justamente com o M ilton po-
lemizou contra os mitos gregos usando-lhes o tema. A terra provavelmente
se refere à terra que sustenta a vida e, na cosmología bíblica, existe em
contraste com os mares caóticos à sua volta, com as profundezas inson-
dáveis abaixo e com os céus inalcançáveis acima. Philip Sum pter define
a palavra hebraica para 0 mundo (têbêl) com o “a esfera terrestre” [...] o solo
[grifos do original] para a existência de seus habitantes” .54 Christopher J.
H. Wright nota: “O term o é usado muitas vezes nos dois contextos que
o associam ao ato criativo de lavé e isso, com o resultado, expressa a es-
tabilidade ou durabilidade da terra (ISm 2.8; SI 89.11[12]; 93.1; 96.10)”.55
C orrespondendo à população mundial (cf. SI 24.1; 33.8; 98.7; Is 18.3;
N a 1.5) há os term os sempre, de geração em geração e de eternidade a eternidade.
“Eternidade” Çôlãrri) não raro denota o tem po mais rem oto no passado ou
futuro. N os contextos em que o term o se refere a Deus, com o esse, seu
sentido filosófico é pleno: “Só em contextos expressamente teológicos e
doxológicos deve ser traduzido ‘eternam ente, em eternidade’ ” . 56 O Deus
de Israel é Senhor de todos e transcende a todos no tem po e espaço. A
confissão tu (v. ”Estança I: Invocação doxológica lb,2” acima) és Deus
Çel, v. 100.3) infere que o D eus de Israel “conta com poder ilimitado e
presença que supera as barreiras do tem po”.57
Estança II (Lamento): Morte e pecado, 3-10
A enorm e discrepância entre o tem po de D eus e o nosso não é ine-
rente à criação, mas historicam ente condicionado.
A intenção originária do Criador para a vida sem fim do ser hum ano
sem pecado não foi anulada, e sim tornada real por meio do hom em

54 The Substance o f Psalm 24: A n A tte m p t to R ead Scripture after Brevard Childs. London:
Bloomsbury T&T Clark, 2015, p. 97.
55 N ID O T T E , 4:273, s.v. têb êl. Os poetas representam o têb êl estabelecido sobre
fundamentos (ISm 2.8) e mencionam seus habitantes (Is 18.3; 26.9,18; SI 24.1;
33.8; Lm 4.12), seu fruto (Is 34.1), sua plenitude (SI 50.12) e tudo que há nele
(SI 90.11 [12]). Na seca, ele murcha (Is 24.4). O rei da Babilônia o transformou
em deserto inabitável (Is 14.17) e quem é banido dele, perece (Jó 18.18).
56 E. Jenni, TLOT, 2:854-62, s.v. colãm.
57 Artur Weiser, The Psalms, OTL. Philadelphia: Westminster, 1962, p. 597.
57

Cristo Jesus. N o retorno implícito dos penitentes pródigos ao lar eterno,


eles confessam que o pecado lhes cortou a vida do tear e seus dias são
com o fumaça. Ora, a natureza eterna de D eus está em nítido contraste
com a brevíssima existência do m ortal pecador (v. 4). Com o inimigo dos
pecadores, Deus delimita os breves dias do m ortal depravado a 70 ou, na
melhor hipótese, a 80 anos (v. 3-10).
Essa estança som bria sobre a mortalidade tem duas estrofes iguais de
quatro versículos: os versículos 3-6 dizem respeito aos mortais em geral e
7-10 referem-se a “nós” (i.e., Israel). As duas estrofes são ligadas por “de
fato”, o tem a da brevidade da vida do m ortal e pela lógica da teologia da
aliança: a m orte (v. 3-6) se deve à ira divina contra o pecado (v. 7-10). Q ue
todos m orrem é ciência; que D eus humilha a humanidade é teologia. A
m orte está à “disposição absoluta” de Deus.58 Esse realismo brutal relativo
à brevidade da vida é similar ao do pregador no livro de Eclesiastes. Weiser
comenta: “ [A m orte aponta] para a outra realidade eterna que transcende à
vida evanescente do hom em e que só é capaz de conferir a ela propósito e
valor duradouros. N ão há outra form a de fé genuína além da que compele
o hom em continuam ente, em sincera impenitência, a abandonar toda a
esperança na própria força e a lançar-se totalm ente a D eus”.59 E ntretan-
to, a visão sóbria da m orte deve ser m antida em tensão com a afirmação
robusta do triunfo de Israel: “N enhum a desgraça se vê em Jacó, nenhum
sofrim ento em Israel. O E u Sou, o seu Deus, está com eles; o brado de
aclamação do Rei está no meio deles” (N m 23.21).
Estrofe A: A certeza da morte e a brevidade da vida, 3-6.
O primeiro dístico (v. 3,4) está ligado pela expressão intermediária “de
fato” (v. 4) e o segundo dístico (v. 5,6) pela repetição da sentença principal
“pela m anhã”. O s dois dísticos estão temáticamente conectados aos ver-
sículos iniciais pelo agente tu, que rege a m orte (v. 3,5) e pela elaboração
deles sobre a m orte do hom em , prim eiro ao contrastar a brevidade da
vida com a eternidade divina (v. 4) e então ao compará-la com a relva que
brota pela m anhã e seca à tarde (v. 6). A comparação com a relva tam bém
revela a efemeridade do m ortal em contraste com a imutabilidade de Deus.

58 A. F. Kirkpatrick, The B ook o f Psalms (1902; reimp., Grand Rapids: Baker, 1982),
p. 549.
59 The Psalms, p. 600s.
58

Todas as pessoas conhecem a brevidade da vida, mas a quase totalidade


das pessoas se apega às coisas transitórias do mundo, vangloriando-se
de que seus retratos não aparecerão na página de obituário de amanhã.
Poucos se apegam ao Deus eterno.
1. Em contraste com a eternidade do Soberano, 3,4.
3 Fa^es os homens. O m ortal Ç‘nos) denota o hom em em sua fraqueza.
Voltarem ao p ó é uma das várias expressões idiomáticas para m orte (cf.
Jó 34.15; SI 104.29; Ec 3.20); pode-se inferir que a pessoa não deve confiar
nos m ortais (cf. SI 146.4; Pv 11.7). “Voltarem” evoca o entendim ento de
que os corpos hum anos se originaram da terra. Enquanto “pó” Çãpãr) em
Gênesis 3.19 denota “seco, instável, terra”. O term o usado aqui para p ó
(1iakkã ’) deriva do verbo “esmagar” (cf. Is 3.15) e pode conotar a derrota
total da humanidade. D izendo: “Retornem” reprisa a palavra direta de Deus
a Adão, o representante da humanidade: “A o pó voltará” (G n 3.19). Seres
humanos Qfnê ’ãdãrn, lit. “filhos da hum anidade”) representa a natureza,
qualidade, caráter ou condição de “filho” (i.e., uma pessoa) com o “ ‫־‬ãdãm6°,‫״‬
substantivo provavelmente derivado de ‘ãdãmâ (“terra”). A humanidade foi
criada mortal, mas isso se tornou “uma m ortalidade realizada” só quando
ele com eu o fruto proibido.

4 M il é o m aior núm ero arredondado que pode existir em múltiplos


para contagem e aqui serve com o símbolo de um período muito longo (cf.
D t 7.9; SI 50.10; 84.10). Se tivesse um núm ero específico intencionado,
“a respeito de” (cf. Êx 12.37; 32.28; Js 4.13), ele poderia ser prontam ente
acrescentado.6061A n os tem o sentido convencional do calendário e contrasta
com outros term os cronológicos (e.g., “dia”, “semana”, “m ês”) com o a
maior medida de tempo.62 Para ti contrasta o ponto de vista de tem po
da perspectiva do eterno com essa do temporal. Se mil anos de tem po
hum ano é com o 24 horas para Deus, então 70 ou 80 anos equivalem a
menos que 2 horas. São como dia de ontem poderia se referir ao dia inteiro
de 24 horas ou às horas do dia de um tem po prévio. “D ia” tem am bos os

60 GKC, 128s; IB H S , §9.5.3a.


61 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery (Downers Grove: IVP Academic, 1998), p. 865s.
62 A menor medida de tempo é chamada reg a l (“momento”, cf. Ex 33.5; Is 54.7;
Jr 4.20).
59

sentidos em Gênesis 1 5 .0 paralelo “noite” (v. 4b) favorece o sentido de


“luz do dia” (cf. N e 4.16; Jó 3.3; O s 4.5). Q ue passou acrescenta noções da
natureza fútil, efêmera, transitória da vida. Para parafrasear o pregador:
“Tudo é vaidade” (lit. “um sopro de ar”, com o um soltar a fumaça de um
cigarro, Ec 1.2,5, ARA). O dia se passa e não pode ser recuperado. Mesmo
a símile “ontem ” é m uito longa; os mil anos são com o as horas da noite, as
4 horas em que o guarda noturno fica no posto para proteger as pessoas
que dorm em .63 Por conseguinte, os 70 ou 80 anos do m ortal são com o
um pouco mais de um quarto de hora no escopo do dia para Deus. Com o
“horas” intensifica “dia”, assim, da noite intensifica “que passou”; isto é,
a expressão intensifica a natureza efêmera da vida. Delitzsch comenta:
“N ão é sem desígnio que o poeta afirma ‫נ‬àsmõrethallãylâ [‘horas da noite ‫ ך‬.
O tem po noturno é o tem po para dorm ir”.64 Kirkpatrick comenta: “O
tem po não mais existe para D eus da mesm a form a que não existe para o
adorm ecido inconsciente” .65
2. Em comparação com a relva, 5,6.
A noção do adorm ecido inconsciente na noite persiste na noção do
sono da morte. A símile que compara a brevidade da vida com a relva exige
que o brotar da relva ao am anhecer (v. 5b) seja contrastado com sua seca
à tarde (v. 6b). Para uni-los, o poeta repete a primeira e a última palavras
de 5b em 6a: “brota ao am anhecer”.

5 Tu arrastas os homens (v. nota 4) m antém o foco na soberania de Deus


e na brevidade dos seres humanos. A metáfora: breves como 0 sono conota
m orte (v. Jó 14.12; SI 76.5,6; J r 51.39,57; N a 3.18). São como a relva (kehãsír)
se refere ao “crescimento silvestre que acontece regular e abundantem ente

63Juizes 7.19 se refere à “vigília média” da noite (aparentemente de três); Lamenta-


ções 2.19 se refere ao começo das vigílias noturnas; e Êxodo 14.24 e 1Samuel 11.11
mencionam “a vigília da manhã”, ARA, que a NVI traduz como “o fim da
madrugada/o outro dia”. Muitos versículos da Bíblia comparam dia e noite para
significar o período de 24 horas do dia, tornando a noite metade do ciclo diário
ou 12 horas. Portanto, uma vigília é 1/3 de 12 horas. “Na divisão dos tempos no
NT, a divisão romana em quatro vigílias parece que foi usada (cf. Mc 6.48)” 0.
D. Douglas et al., orgs., N ew Bible D ictionary, 2. ed. [Leicester: IVP, 1982], vol. 1,
p. 242).
64 Psalms, p. 52.
65 The B ook o f Psalms, p. 550.
60

após as chuvas de inverno (SI 147.8). Tão rapidamente quanto hã sir brota
na chuva, ela murcha na seca (Is 15.6) ou é encontrada ao longo das fontes
na m elhor das hipóteses (lR s 18.5)”.66^40 amanhecer denota o alvorecer.67

6 Dois grupos de verbos descrevem os estados de renovação e morte:


“germina” e “brota” versus “murcha” e “seca”. O s símiles reforçam a noção
da brevidade e futilidade dos seres humanos. Q ue a relva germine significa
que por um breve m om ento a humanidade experimenta saúde e vigor.
O vav narrativo com “e brota” pode ser lógico (“e assim brota”). A tarde
(v. SI 30.5[6]) se refere ao nascer do sol.68 D e acordo com Salmos 37.2, o
capim seca rapidamente e murcha (cf. Is 15.6;Jó 18.16).
Estrofe B: A punição de Israel pelo pecado, 7-10
A segunda estrofe adiciona três verdades: a) a m orte de Israel se deve
à ira divina contra iniquidades (v. 7-9); b) a duração da vida de uma pessoa
é 70 ou, na m elhor hipótese, 80 anos (v. 10a);69 e c) as realizações vaido-
sas dos seres hum anos são futeis (v. 10b). Seu prim eiro dístico (v. 7,8) é
ligado pela lógica da aliança: a ira divina (v. 7) é provocada pelo pecado
(v. 8) (cf. J r 4.4).70 O segundo dístico (v. 9,10) é conectado pelas palavras
principais “dias’ e “anos”, pela expressão intermediária “de fato” pelos
sinônimos intensificadores “tua ira e teu furor” (v. 7) e “teu furor” (v. 9)
e pelo lexema kã lâ (Qal, “consum ir”, v. 7; Piei, “passar”, v. 9). E m suma,
das cinco palavras no versículo 7, duas são repetidas p o r um sinônim o
no versículo 9. Com essas suturas bem justas, o poeta dem onstra: por
conta da ira de Deus, a vida hum ana se restringe a 70 ou, quando muito,
80 anos (v. 10a). A situação de m orte universal (v. 3-6) e a experiência
hum ana antes da medicina m oderna sugerem que Moisés tem em m ente
todas as gerações de Israel, não apenas a sua. Com o resultado, os verbos
66 M. D. Futato, N ID O T T E , 2:247, s.v. hãsir.
67 O nascer do sol, desde o tempo quando as estrelas que pressagiam o novo dia ainda
são visíveis (Jó 38.7) e as pessoas e coisas são restritamente visíveis (Gn 29.25;
Rt 3.14; lRs 3.21) com o surgimento do sol no horizonte (Jz 9.33; 2Sm 23.4;
2Rs 3.22).
68 O fim do dia (Gn 1.5), o tempo quando as pessoas param de trabalhar (Rt 2.17;
SI 104.23), os portões são trancados (Ez 46.2) e as lâmpadas são acesas (Êx 30.8),
mas as pessoas e objetos ainda são visíveis (Gn 24.63).
69 Para exceções, v. “Autor”.
70 Auffret, “Essai sur la structure”, p. 266s.
61

das estrofes são gnómicos; eles representam as situações do furor da ira


de D eus em sentido holístico.71 A volição justa de Deus desconstrói toda
volição insolente da humanidade.
1. Morte pelo pecado, 7,8.
K idner com enta devidamente sobre os versículos 7-8: “D em onstra-se
a nós o caráter duplam ente irresistível da ira divina: por seu vigor e justiça,
desam parando-nos sem recurso e nem desculpa (v. 8)” .72

7 N os paralelos quiásticos do versículo 7, a “ira” é intensificada pelo


“furor” e “consum ido” é adicionado a aterrorizado (kãlã; i.e., “chegar a
um fim completo, desaparecer, ser destruído”). Pela tua ira (lit., “em suas
narinas”) aponta para o estado fisicamente visível de inquietação do indi-
víduo percebido na respiração ofegante com o consequência da ira. A ira
divina difere da maioria dos exemplos da ira humana. Sua ira resulta no
juízo deliberado contra o pecado (cf. D t 6.15).73Por essa razão, sua ira não
é caprichosa, ao contrário consiste na resposta justa “às obras humanas
que violam seu ser e m andam entos”.74Jesus respondeu com ira à dureza
de coração (Mc 3.5) e am eaçou com a ira divina os poucos privilegiados
que desprezaram seu convite para entrar no reino do céu (Mt 22.7). A
ira de D eus agora paira sobre quem não crê em Jesus (Jo 3.36) e contra
quem suprime a verdade (Rm 1.18; lT s 2.16). As autoridades governa-
mentais servem com o instrum entos da ira divina para punir criminosos
(Rm 13.4).75 Usa-se ‘ap com muita frequência, com o aqui, em paralelo
com fúria Qiêma), um derivativo de yhm ”estar quente” . A coordenação
de “ira” e “furia” conduz ao m om ento crucial: a fúria santa do E u Sou
contra quem desonra sua pessoa e desobedece a seus mandamentos. E
aterrorizados pode significar que o esqueleto inteiro é torturado e abalado
com m edo (Ez 7.27; SI 6.2[3]) e denota o estado psicológico de extremo
m edo diante da ameaça iminente (Gn 45.3; Jz 20.41; 1Sm 28.21), incluindo

71IB H S , §§30.5.c, d; cf. GKC, 106k, m.


72 Psalms 73— 150, p. 361.
73 A ira divina se acendeu contra a geração de Moisés, quando ela se queixou das
dificuldades (Nm 11.1) e da dieta restrita do maná (Nm 11.10), além da adoração
a Baal-Peor (Nm 25.3,4).
74 G. Sauer, T L O T , 1:169, s.v. 'ap.
75 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f Biblical Imagery, p. 26.
62

a m orte (SI 104.29). A geração incrédula de Moisés, a quem o EuSou havia


devidamente advertido e ameaçado, trem eu por causa da possibilidade
da m orte prem atura, divinamente infligida, não do mal norm al que se
em brenha em silêncio pelas janelas na velhice (Ec 12.1-8).76

8 O s pródigos penitentes, diferentes da geração do deserto, não


m urm uram contra Deus pela situação difícil. O versículo 8 é a m eto-
nimia do justo e da causa justa devido às aflições físicas no versículo 7.
O antropom orfism o idiomático conheces significa “tu tornas evidente a
ti” .77 Com o um detetive em busca de justiça, D eus investiga de form a
deliberada nossas iniquidades. cA w ón é o term o mais holístico no dominio
semántico de pecado; ele abrange os delitos éticos e religiosos e a culpa
resultante. N ossos pecados secretos são literalmente “nossos segredos” , um
paralelo qualificadorpara “nossas iniquidades”. O antropom orfism o à luz
da tua presença está relacionado aos pecados que as pessoas ocultam de
si mesmas por autoilusão e escondem dos outros pela hipocrisia. O Deus
justo não os varre para debaixo do tapete, ele os expõe. Está implícito
que D eus expõe pecados para corrigir o erro (cf. Pv 20.27; IC o 2.11).
L u ^ é literalmente “lugar da luz, luminária, lâmpada”, possivelmente uma
metonim ia para o sentido mais geral de “luz”. O apóstolo Paulo adverte:
“Ele [o Senhor] trará à luz o que está oculto nas trevas e manifestará as
intenções dos corações” (IC o 4.5). C. S. Lewis notou: “N o fim essa Pre-
sença que é a alegria ou o terror do universo deve estar em cada um de
nós [...] conferindo glória inexprimível ou infligindo vergonha que jamais
pode ser curada ou disfarçada” .78 Se alguém deseja com preender a força
da ira divina contra o pecado da incredulidade, não olhe para as linhas
obscuras e imaginativas de Baxter, Bunyan ou Milton, mas olhe para a
trágica história étnica de Israel.

76 Tate (Psalms, p. 434) pensa que o Nifal bhl pode ter outro sentido: “estar com
pressa/apressado” e sendo assim significa “estar apressado, (longe para um fim
prematuro)”.
77 BDB, p. 617, s.v. neged.
78 “The Weight o f Glory”, em: The Weight o f Glory and Other Addresses. New York:
Macmillan, 1949, p. 10 [edição em português: Peso deglória (Rio de Janeiro: Thomas
Nelson, 2017)].
63

2. A punição dura 70 ou 80 anos, 9,10.


9 Todos os nossos dias (cf. v. 4) abrange a inteireza da vida nos com-
ponentes diários sequenciais, segmentados. Essa noção pavimentará o
cam inho para a nova com preensão do salmo para obter sabedoria: con-
tar nossos dias (v. 12). Passam traduz (“tornar”). Com “dias” com o seu
sujeito, isso form a a expressão idiomática “o dia se foi” (i.e., “chegou ao
fim, desapareceu”, cf. J r 6.4). O escopo total de nossos dias desvanece e
não provê esperança de mudança sem a intervenção da graça divina por
meio da sabedoria. D ebaixo do teufuror79 é um a metonim ia de causa para a
dificuldade diária que consiste em nada (cf. v. 10). Vao-se (v. 3; “passar”,
v. 4). O m urm úrio significa a respiração longa e profunda que emite um
som suave, lento que “desaparece no ar tênue” (Rashi)”.80 Esse tom de
tristeza é a resposta apropriada à m orte, à realidade da fúria divina contra
o pecado. O estoicismo não é apropriado, pois ele falseia a realidade e se
recusa a ser real, em sentido emocional, na presença da ira e morte. Estar
verdadeiramente triste faz a pessoa desejar algo m elhor (v. 2Co 5.2).

10 Moisés agora restringe os dias dos mortais, na m elhor hipótese, a


breves 80 anos — e todos eles são difíceis e cheios de sofrimento. Eles
passam rápido, e se vão para sempre.81 A expressão “os anos de nossa
vida” se refere à vida inteira (cf. G n 47.8). O s “anos” da humanidade

79J. A. Emerton, “Notes onjer. 12:9”,Z 4IT 81 (1989): 189.


80 Feuer, Tehillim, 4 vols., vol. 1, p. 126. Em suas outras duas ocorrências, o termo
é aplicado ao rugido, estrondo do trovão (Jó 37.2) e do “lamento” na sequência
das [palavras de] “lamentações e luto/gemido e angústia” (Ez 2.10).
81 Na Bíblia, a expectativa de vida da humanidade começa com a longevidade astro-
nômica dos antediluvianos (Gn 5; Bruce K. Waltke; Cathi J. Fredericks, Genesis:
Λ Commentary [Grand Rapids: Zondervan, 2001], p. 111), mas sofre uma redução
depois do Dilúvio, de 500 para 119 anos (Gn 11.10-25). No entanto, os patriarcas
viveram muito: Abraão até 175, Isaque até 180 e Jaco até 147. José viveu até os 110
anos, a idade ideal dos egípcios (J. Y e tg o te , Joseph en E gypte [Louvain: Publications
Universitaires, 1959], p. 200ss.; v. A N E T , 414n33). Hoje poucos vivem até os 100
anos. Se não fosse a medicina moderna, o mortal teria a expectativa de viver só
70 ou 80 anos. O texto da Sir. 18.9,10 se assemelha ao Salmo 90: “Seus [do ser
humano] no máximo cem anos; comparado com o tempo sem fim, seus poucos
anos são como urna gota do oceano ou um grão de areia”. Mas o Talmude afirma
que a média da expectativa de vida é 60 anos: “Portanto, o homem que atinge
setenta alcançou a plenitude da vida (Feuere, Tehillim , vol. 1, p. 126).
64

são cercados pela condição concom itante de setenta anos. Ou a se os anos


são acom panhados com vigor (v. nota T f 2, oitenta anos. A conjunção entre-
tanto une a natureza aflitiva e ilusória dos anos à brevidade deles. São anos
(v. nota 8) com preende da mesm a form a que o BDB e outros que rõhab
é uma metonim ia para “objetos de orgulho”.8283 Mais precisam ente rõhab
significa “orgulho insolente”. N o orgulho deles, os mortais se esforçam
para alcançar o que eles chamam de “sucesso” independentemente de Deus
e creditam suas realizações ao poder e força de suas próprias mãos, não a
Deus que lhes deu habilidade (cf. D t 8.17,18; T g 4.13-17). As vanglorias
de suas realizações são dificeis ou “sobrecarregadas de angústia” ('a m ã í).84
S. Schwertner, citando Salmos 90.10, nota que o sentido básico de 'am ãl
indica prim ariam ente o processo de trabalho [...] e o transtorno que ele
causa”.85 E cheios de sofrimento (cf. Tg 4.14). O M arco A ntônio de William
Shakespeare lamentou-se diante do cadáver de Júlio César: “Ó poderoso
César, por que jazes tão hum ilhado?/São tuas conquistas, glórias, triunfos
despojos/R eduzidos a tão pouco?” .86 O s seres hum anos se enganam
quando penam que suas realizações lhes trarão imortalidade e glorifica-
ção sociais. Elas dão os nom es próprios às ruas e escrevem memórias
póstumas. Podem muito bem lhes escrever o nom e na água. Edificam
arquitetura monum ental, mas a m aior parte term ina apenas com o pedras
do fundam ento descobertas pela pá do arqueólogo e o pouco que resta
acima do solo são esqueletos. As mansões são castelos de areia que a onda
inexoravelmente destrói. Pois introduz um a oração causal que explica
porque as realizações vaidosas do m ortal são fúteis: a vida passa depressa
(v. nota 11). A m etáfora e nós voamos (cf. Pv 23.5) conota velocidade e que,
uma vez que partimos, partim os para sempre. Weiser com enta: “N ão
surpreende que o hom em que busca em vida sua vontade e seu prazer

82 Heb. bigebürõt. J. Kuelewein afirma que a raiz g b r significa “ser superior” e o


sentido básico de gebúrâ, estreitamente relacionado ao verbo, é “superioridade,
força, poder”. O H A L O T o define por “em força”, mas acrescenta “a vitalidade
máxima” e cita Lutero quanto à noção de “no máximo”. Delitzsch (Psalms, p. 598)
cita com aprovação a mesma noção em Símaco e no Talmude.
83 Delitzsch (Psalms, p. 598) os identifica como “riquezas, aparência externa, luxo,
beleza, etc.”; cf. ljo 2.16; he alazo n eia tou biou (“a soberba da vida”, ARA).
84 H A L O T , 2:845, s.v. 'am ã l.
85 T L O T , 2:925, s.v. 'am ãl.
86Julius Caesar, 3 vols., vol. 1, p. 282-3.
65

está propenso a term inar nesse desapontam ento; pois todo prazer busca
perpetuidade”.87 Mas a palavra final do salmo é “consolida as obras de
nossas m ãos” (v. 17).
Estança III (Eixo): Lamento e petição para obter sabedoria, 11,12
A lógica e as palavras principais fixam a estança-eixo na estança de
lamento (v. 3-10): “tua ira” (vs.7,1 la) e “teu furor” (v. 9,1 lb); “nossos anos”
e “os anos de nossa vida” e “os nossos dias” (v. 10,12). Tendo contado a
vida do m ortal a 70 ou 80 anos (v. 10a), os penitentes estão agora aptos a
contar os próprios dias (v. 12a). do m esm o m odo, a lógica e form a fixam
o eixo na estança de petição (v. 13-17): petição e coração para alcançar
sabedoria (v. 12b) são o que Deus abençoa (v. 13-17). A estança-eixo em
si mesma é unificada pelo lexema yãda (Qal, “conhecer”, v. 11; Hifil “en-
sina”, v. 12). D e fato, os objetos de “ensina-nos” (v. 12a) são os objetos
duplos do que ninguém ou poucos sabem (v. 11). Além disso, o “coração
alcançar sabedoria” do versículo 12b é inseparável de conhecer “o tem or
que te é devido” (v. 11b; cf. Pv 1.7;Jó 28.20-28; Ec 12.13,14). O eixo gira o
salmo do desespero sóbrio do lam ento para a esperança esplendorosa das
petições. Christine Forster nota diversas palavras principais que apontam
para a reversão:
“A raiz süb em 13 pontos remonta ao v. 3, mas agora não se refere ao
‘retorno’ do mortal ao pó, mas em contraste ao retorno de I a v é aos
suplicantes ou ‘afastamento’ de sua ira. O versículo 14 adota bbqr [‘pela
m anhã’] dos versículos 5,6. O que nos primeiros versículos era parte de
uma imagem de mortalidade agora descreve a manhã como um tempo
em que I a v é novamente se provará gracioso. Os versículos 14 e 15 com
(,klym ynw ‘todos os nossos dias”) e (snw t kym w t ‘de acordo com os dias/
ano s’) remete ao v. 9. [...] Em contraste com o lamento ali sobre os anos
e dias que desvaneceram, o que ocorre aqui é uma petição por felicidade
duradoura assim como muitos dias e anos. Uma inclusão fundamental é
formulada pela correlação chave de feitos b n y 'd m /b n y h m entre os v. 3 e
16, indubitavelmente também com uma tendência antitética: a despeito
da mortalidade dos filhos da humanidade há esperança que aos servos
de I a v é e aos seus filhos será revelada a glória de I a v é ” .88
87 The Psalms, p. 600.
88 Begren^tes leben, p. 150, citado em: Frank-Lothar Hossfeld; Erich Zenger, Commentary
on Psalm 51 -10 0, trad. Linda M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005,
p. 420s.
66

Por um a questão retórica: “quem conhece?”, os penitentes confessam


que a hum anidade é tão pecam inosa que ninguém conhece a veemência
da ira divina contra o pecado (ou poucos o fazem) ou que ela é tão des-
com unal quanto o tem or devido a ele (v. 11; cf. SI 103.11). E m resposta,
os pródigos penitentes pedem a Deus para fazê-los saber contar os dias
fugazes, preciosos e, presumivelmente, devotá-los ao tem or do E u Sou.
Por conseguinte, o coração deles alcançará sabedoria. Zenger comenta:
“É im pressionante que no princípio [da seção de petição], nos versícu-
los 11,12, tem-se uma petição não para findar a crise, mas com o pedido
de conhecim ento ou discernim ento na crise”.89 A confissão do pecado e
da cegueira espiritual correlaciona o arrependim ento do suplicante.
Estrofe A (Lamento): Poucos conhecem a tua ira contra o pecado e o
temor que te é devido, 11
A pertinência semântica exige que a questão quem exige a resposta
“poucos na m elhor das hipóteses” (D t 9.2; Pv 31.10).90 Conhece denota
conhecim ento mental do fato e a experiência visceral da realidade. A
correlação entre o yôdèa indicativo (“conhece”, v. 11) e o hôda imperativo
(“ensina-nos”, v. 12) dem onstra que a graça divina pode superar a privação
hum ana de conhecimento. O poder indica “a natureza avassaladora [...] e
veemência”.91 D a tua ira (cf. v. 7; cf. a hendíadis (uzzô waappo , E d 8.22) é
a m etonim ia para a punição divina contra os inimigos que desonram sua
pessoa ou desobedecem aos mandamentos. Pois acrescenta uma compara-
ção. O teufuror (cf. v. 9). Geoffrey W G rogan explica a comparação: “Como
o tem or divino deve ser absoluto, tam bém é o furor de D eus”.92 E tão
grande com o expressa conform idade com um padrão ou regra. O temor que
te é devido (v. nota 12) significa submissão piedosa à palavra de D eus por

89 Hossfeld; Zenger, A Commentary on Psalms 51 — 100, p. 418.


90James Crenshaw (“The Expression M i Yôdeal na Bíblia Hebraica”, VT 36, n. 3
[1986]: 274-88) divide as dez ocorrências de m iyô d ea l em dois grupos. “Cinco
delas deixam a porta aberta para a possível resposta que mudará a situação para
o bem do ser humano e as outras cinco (4 em Eclesiastes mais Provérbios 24.22)
parecem presumir uma porta fechada”. Ele com hesitação inclui Salmo 90.11 no
primeiro grupo; não cita nenhum exemplo de vontade. Entretanto, a distinção
entre “aberta” e “fechada” parece arbitrária.
91 A. S. van der Woude, T L O T , 2:870, s.v. 'zz.
92 Psalms. Grand Rapids: Eerdmans, 2008, p. 159.
67

conta do tem or e da confiança nele e incorpora a metonim ia de odio ao


mal (Pv 8.13), de evitá-lo (Pv 3.7,16.16) e fazer o que é justo (D t 5.29).93
Estrofe B (Petição): Conhecer por contar os días, 12
A deficiência do conhecim ento m oral desejado é resolvida mediante
a aquisição desse conhecim ento pela contagem dos dias. Contar com o
acusativo significa “contar” para obter a soma total (cf. G n 13.16; SI 147.4;
2Rs 12.10[11]; 2Sm 24.1) os nossos dias (cf. v. 4,9,10). A soma diminuirá a cada
dia. A petição infere arrependimento pelas iniquidades e cegueira espiritual.
John Goldingay comenta: “A contagem dos dias na natureza deles, aflitiva
e atorm entada, podería atrair a com unidade para esse conhecim ento [do
poder da fúria de I a v é ] e a submissão [em reverência a Deus]. Sem ele, as
pessoas podem viver a negar a realidade e apenas continuam a desfrutar
a vida sem preocupação ou sem pensar em D eus” .94 Para (v. nota 13) in-
term edeia a referência ao que precedeu,95 a saber, “contar os nossos dias”,
não ao versículo 11. Q ue (v. nota 14) pede um acusativo duplo de pessoas
e coisas, am bos omitidos. O objeto de pessoa nosso é prontam ente suprido
por “nossos dias”. O único objeto expresso é “conhece” no versículo 11,
isto é, a fúria veem ente de D eus contra o pecado. Sua fúria se iguala ao
tem or devido. O desígnio de Moisés é: ao contar os dias evanescentes, as
pessoas ficarão bem conscientes “do imenso valor de cada dia”96 e elevarão
a m ente a D eus no céu para serem libertas do orgulho insolente associado
aos objetos terrenos (E f 5.16; Cl 4.5). Ao enfrentar a com pleta negação
da vida devido ao pecado, os penitentes atentam diariamente para outra
realidade: vida no tem or do Eterno, seu refúgio sempre presente (cf. v. 1
e a oração de Davi no SI 39.4-7[5-8]). O versículo 12, afirma M. Wilcox,
é uma lição não de aritmética elementar, mas de teologia que transform a
a vida”.97 Coração alcance sabedoria. Sabedoria significa habilidade magistral

93 Veja Bruce Waltke, “The Fear of the Lord”, em: A liv e to God: Studies in Spirituality,
J. I. Packer; Loren Wilkinson, orgs. (Downers Grove: InterVarsity, 1992), p. 17-33.
94 Psalms, BCOTWP. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, vol. 3, p. 31.
95IB H S , §39.3.4e.
96 Hossfeld; Zenger, A Commentary on Psalms 5 1 — 100, p. 423.
97 The Message o f Psalm 73 — 150: Songsfo r the People o f God, The Bible Speaks Today.
Leicester: InterVarsity Press, 2001, p. 77.
68

para viver.98 N a literatura sapiencial, a sabedoria é um assunto da dispo-


sição do coração e é inseparável da prática da justiça (cf. Pv 1.3) e de sua
recom pensa da vida. Delitzsch comenta: “O coração sábio é o fruto que
o ser hum ano colhe ou acumula da contagem dos dias, o ganho alcançado
p o r constantem ente lem brar a si mesm o do fim” .99
Estança IV (Petições): Ceda da ira e abençoe Israel, 13-17
“Teus servos” com põe as petições (v. 13,16) e liga as petições finais
com a doxologia introdutória (v. 1). Os penitentes lhes seguem a oração
mediante o conhecim ento salutar com petições para que D eus se apiede
deles (v. 13) e os abençoe (v. 14-17). Weiser comenta: “A m ão que feriu é
a única capaz de curá-las (cf. O s 6.1)” .100 C onform e a teologia da alian-
ça, o E u S o u deixa sua ira quando o povo se arrepende, com o indica a
geração que faz essa oração nas duas estanças precedentes (cf. Pv 28.13;
Jr 18.1-8; Jn 4.2). Tate expressa a opinião da maioria dos comentaristas:
“A meditação ou reflexão nos versículos 1-12 é o contexto e fundamen-
to para as petições nos versículos 13-17” .101 Kirkpatrick com enta que o
consolo do lam ento e a consagração do esforço deles está na esperança da
vida renovada da nação (Lm 5.21), não ainda na im ortalidade pessoal, ao
contrário de 1Corintios 15.58.102N o entanto, com o Isaac Taylor comenta:

98 Bruce K. Waltke, Proverbs 1— 15, NICOT (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 76-
8; F indingthe W ill o f G o à A Pagan N otion (Grand Rapids: Eerdmans, 2016), p. 75s.
99 Psalms, p. 599. Jeffrey D. Arthurs (Preaching as Reminding: Stirring M emory in an A g e
o f Forgetfulness [Downers Grove: InterVarsity Press, 2017], p. 23) fala das práticas
de sepultamento dos monges trapistas: Quando um dos frades do monastério
morre, eles colocam o corpo em uma sepultura nova e imediatamente após o
enterro, eles traçam as dimensões de uma nova sepultura, o lugar de descanso
do próximo frade que morrerá. Arthurs ensina: “Desta forma eles lembram a si
mesmos da própria mortalidade e assim obtêm sabedoria para viver”. No dia em
que eu (Bruce) preparei um sermão sobre esse salmo em 1967, o número total
de dias para o meu aniversário de 70 anos foram 12.345. Eu mal pude acreditar
na sequência. E claro que a soma muda diariamente. Quando eu disse à m i n h a
esposa que subtrairía diariamente um da soma restante até o fim da minha vida, ela
respondeu: “Isso é mórbido”. Eu fiz isso por anos para o meu benefício espiritual
e desde que passei por essa marca, continuo fazendo o acompanhamento.
100 The Psalms, p. 602.
101 Psalms 51 — 100, p. 437.
102 The B ook o f Psalms, p. 55.
69

“O pensam ento da vida eterna é em brionário aqui”.103 E m bora aludam


aos anos futuros com o “pelo tem po que nos afligiste” e a esperança deles
está nos descendentes. Eles, no entanto, pedem para ser libertos do sono
da m orte e m encionam a m anhã da nova era sem m encionar a noite. Seu
desejo em brionário nascerá em Jesus Cristo de form a m uito m aior que
poderíam pedir ou imaginar (E f 3.20; cf. 2Co 4.17).
Estrofe A: Desista de punir, 13
Sub (“voltar” a um lugar [v. 3]) é usado em sentido figurado para re-
troceder [de sua ira e julgamento] (v. 3-11; v. nota 15; cf. Ex 32.12; J12.14).
O E u S o u (jhwh, v. p. 1-3), o nom e divino da aliança com Israel é usado
pela prim eira vez e é adequado à súplica por fidelidade pactuai. A t é quando
omite “tua fúria contra o pecado se voltará contra teus servos?” (v. 3-11).104
A questão retórica expressa desesperança na situação crítica de m orte e
futilidade suportada por muito tem po e estabelece a petição tem compaixão
(v. nota 16) com urgência. Teus servos (v. “Senhor”, v. 1) sugere a conversão
de Israel, pois ser servo implica que a vida integral de Israel está em sujeição
ou em posição subordinada ao Senhor dela (cf. v. 1). Assim, ela vive em:
a) obediência responsável à orientação; b) dependência fiel de seu cuidado;
c) intimidade pessoal de confiança com ele; e d) humildade diante dele.
Estrofe B: Confere bênçãos, 14-17
As petições de bênçãos ao E u S o u consistem em dois dísticos:
a) satisfazê-los com seu am or leal e assim torná-los felizes (v. 14,15); e
b) m anifestar sua obra poderosa entre eles e assim consolidar a obra de-
les (v. 16,17). Os dois dísticos estão unidos pelo “ver” subentendido nos
v. 15b,16a, suplem entado pela assonância das duas últimas palavras do
versículo 15 (r a in ü r a â “pelos anos em que tanto sofrem os”) com a pri-
meira palavra do versículo 16 (y e ra e h “sejam m anifestos”). Os penitentes
se alegrarão (v. 14,15) quando os atos majestosos da salvação divina se
manifestarão de novo entre eles.

103 Citado em: J. J. Stewart Perowne, The Book o f Psalms. Andover: Warren F. Draper,
1898.V01. 2, p. 157.
104 Devido à inquietação e exclamação da queixa, o poeta suprime o indispensável
sujeito e predicado (GKC, 147c).
70

1. Alegrem-se com o amor leal de Deus e seus feitos redentores, 14,15


Os versículos 14 e 15 estão ligados pelas palavras principais “dias”,
“tem po”, “cantarem os”, “felizes” (v. 14b, 15a). A petição a ser saciada
com o am or leal do E u S o u (v. 14a) é apoiada pela motivação “e todos
os nossos dias cantaremos felizes” (v. 14b). O tema então é reprisado
com o imperativo no versículo 15a para ênfase e “todos os nossos dias”
a expressão é esclarecida “pelos anos em que tanto sofrem os” (v. 15b).

14 Satisfaze-nos é um pedido para prover os servos sábios com a


medida cheia e consum ada de suas expectativas, necessidades e desejos.
N ão se faz nenhum a distinção entre os apetites físicos e espirituais, pois
eles term inam a efêmera e fútil duração de dias com um murmúrio. Seu ser
inteiro anseia pelo am or leal do E u Sou. Pela manhã (cf. v. 5b) é o tem po
convencionado que Deus responde à oração. Ele descreve a felicidade
radiante da vida florescente na nova dispensação com o uma cena após
a noite de angústia na antiga (cf. Jó 11.17; SI 30.5[6], 46.5[6], 49.14[15];
59.16[17], 143.8). Ao contrário dos versículos 4,5, nenhum a menção é
feita à m orte ao p ô r do sol. A petição contém no embrião a esperança
pela m anhã do que será conhecido com o “a era messiânica”. Com 0 teu
amor leal (hasdekâ; v. SI 100.5). E todos os nossos dias (cf. v. 4,9) contem pla a
experiência diária deles, no tem po designado, do am or leal de D eus com
louvor apropriado. O rabino Avrohom Chaim Feuer comenta: “Radak
percebe esse versículo com o uma referência ao alvorecer da era messiâ-
nica, que brilhará com o o sol da manhã. N esse tempo, seremos saciados
pela bondade divina e jamais vivenciaremos qualquer sofrimento. Então
cantaremos e nos alegraremos todos os nossos dias”.105 Cantaremosfelices
(ünerannanã w*nismthâ) provavelmente presume um cenário litúrgico e assim,
a felicidade deles louva a Deus, um enriquecim ento da motivação apoia-
dora. O Piei rãnan, em contraste com Qal (“alegrar”), significa “extravasar
um a sequência inteira de gritos de júbilo, alegrar-se”.106 Ele com um ente
ocorre com sãmah (“alegrar”, v. SI 100.2).

105 Tehillim: A N ew Translaton with a Commentary A nthologized from Talmudic, M idrashk,


and Rabbinic Sources. Brooklyn: Mesorah Publications, 1985, p. 1129.
106 H A L .O T , 1:248, s.v. rãnan.
71

15 Considerando que “alegrar-se” é a resposta espontânea a essa


situação e não pode ser im posta, dá-nos alegria é uma m etonim ia para as
coisas boas que motivam essa resposta emocional. Pelo [i.e., enquanto]
tempo (cf. v. 14b) que nos afligiste}01 Pelos anos corresponde ao paralelismo do
versículo 9 e presume-se que se refira à duração de 70 e 80 anos (v. 10). O
salmo gnóm ico não m enciona os 40 anos da aflição no deserto (v. p. 50).
O paralelo em que tanto sofremosxm altera a perspectiva divina de afligi-los.
Moisés busca e deseja os dias e anos do favor de Deus e expressa essa
esperança com serenidade.10718109 Kirkpatrick parafraseia: “Q ue a felicidade
da restauração a teu favor seja proporcionada para a profundidade de nossa
humilhação”.110Amos Hakham comenta da mesma forma: “O salmista alude
ao sentimento de felicidade que compensa todo o sofrimento na vida”.111

107III. O Piei cãnâ ocorre 54 vezes e no mínimo significa o uso da força para piorar
a situação de alguém. Birkeland (TDOT, 11:237, sv. ãna II) menciona seus usos:
“Uma pessoa que ‘oprime, viola, abusa, humilha’ usa o poder contrário às exigên-
cias da justiça”. Mas isso não é verdadeiro sobre o uso quando o agente é Deus.
O salmista declara: “Bem sei, ó S e n h o r , que os teus juízos são justos e que com
fidelidade me afligiste [cinriitãrií\ (SI 119.75, ARA). Igualmente, “ele [Deus] não
está predisposto a afligir [/σ’ 'inná millibbô] ou entristecer as pessoas” (Lm 3.33,
ARA). Deus afligiu Israel no deserto com a fome não como punição, mas como
um teste de fé, pois a fome não era parte de seu desígnio pactuai (Dt 8.2,3). Já
“ele aflige” é usado comumente quanto sua punição do pecado (Is 64.12[11];
Na 1.12), embora seja utilizado para se referir às ondas que esmagam o salmista,
sem razão declarada em Salmo 88.7] 8].
108 A versão NVI usa somente o verbo “sofremos” para traduzir a expressão hebraica
formada por um verbo (Vã’a — ver, experimentar) e um substantivo Ç r a a -
mal), “experimentar o mal” = “sofrer”. O verbo sofrer de sentido abstrato raà
(“sofremos”) denota a avaliação que algo é mal, seja um estado físico concreto
(e. g. vacas “feias”, Gn 41.3; figos “ruins/intragáveis”, Jr 24), uma abstração de
comportamento moral que prejudica outros ou um “desastre, calamidade, trans-
torno” físico. O paralelo “aflige” demonstra que isso se refere à “calamidade/
desastre”.
109 Feuer ( Tehillim , p. 1130) comenta: “Muitas opiniões notáveis são propostas pelo
Talmude (Sanhedrin 99a) para determinar a duração da era messiânica. Alguns
dizem que ela durará 40 anos correspondendo aos anos da escravidão no Egito
[...] ou 7 mil anos como os dias da semana e cada dia para Deus é mil anos (cf.
v. 4)”. Muitos cristãos, como os rabinos, interpretam os textos escatológicos
com rigidez. De acordo com eles, a era messiânica durará mil anos (v. Ap 20.6).
110 The B ook o f Psalms, p. 552.
111 Psalms with the Jerusalem Commentary, trad. Israel V. Berman. Jerusalem: Mosad
Harav Kook, 2003, vol. 2, p. 357.
72

2. Ver os feitos redentores de Deus e consolidar a obra dos israelitas, 16,17


O dístico é rigorosamente tecido pela conjunção “e”, o m odo jussivo,
os sinônimos “teus feitos” (po'°lekã, v. 16a) e “nossa obra” (maaseh yãdènü,
v. 17)112 e um jogo de palavras em ‘al (“aos” e “sobre”).

16 A oração no versículo 16a pede pela presente geração (“teus ser-


vos”) para que lhes sejam manifestos os feitos divinos, e o versículo 16b
intensifica a descrição desses feitos, definindo-os com o “esplendor” e
estende o pedido para beneficiar irrestritas gerações futuras. Sejam mani-
festos (v. nota 20) se refere a ver e vivenciar os poderosos feitos redentores
do E u S o u com o a geração de Moisés (v. ”A utor” acima) havia (e.g., o
Êxodo, o maná, codornizes, a rocha e no Sinai; cf. H b 3.2). Teus servos se
refere à geração penitente (cf. v. 1,6,13), estendida até seus descendentes
na segunda parte do versículo. Teu esplendor (v. nota 21) é uma metonimia
para o paralelo, “ feitos”. A o s (v. nota 22) teus [“teus servos”] filhos podería
ter um sentido sincrónico, mas nesse salmo, realçando gerações e tempo,
é diacrônico.

17 A majestade divina é expandida na “bondade do nosso D eus”,


conferida com o a presença contínua sobre eles e presumivelmente seus
descendentes. Samuel A. Meier define bondade (nõ‘am) como realidade física:
“A amabilidade intrínseca de um objeto é identificada pela referência a
muitos dos cinco sentidos físicos”.113 Essa metonim ia dos feitos viven-
ciados do E u S o u é visualizada com o uma teofania para habitar em nós e
estar sobre nós (v. nota 23).114 Essa bondade pertence de m odo inalienável a
nosso Deus .115Correspondendo aos versículos 13-15, o salmista retrocede ao
imperativo “consolida” no enunciado direto. Com as mãos esvaziadas do
orgulho (cf. v.10), Moisés acrescenta a petição final: Consolida a obra de
nossas mãos (kôn‘rm). “A obra de nossas m ãos” é um a metonim ia para suas
criações nas artes e ofícios e um a m etáfora potencial para as realizações

112 BDB, p. 821, s.v. põ^al, §la.


113 N ID O T T E , 3:122, s.v. n 'm .
114 Feuer ( Tehillim , p. 1131) comenta: “Os filhos de Israel responderam à bênção de
Moisés (Ex 39.43) ao afirmar a bênção de Moisés, dizendo: “Que a bondade de
meu [sic] Senhor, nosso Deus, seja sobre nós [Sifri, Pinchos 28.8).
115IB H S , §9.5.lh.
73

sociais. O Polel Kün significa “consolidar uma entidade já presente”;116 ele


conota permanência, firmeza, estabilidade. A perm anência das obras re-
novadas das pessoas corresponde à vida duradoura das pessoas renovadas
(cf. v. 15), em nítido contraste com o caráter efêmero, fútil e frustrante
da obra do m ortal sob a ira divina. Hakham comenta: “O propósito do
salmista é pedir que nós mesm os sejamos privilegiados para com er os
frutos de nossa labuta e não sermos com o os descritos em Salmos 39.7,
[...] Salmos 49.11 ou em Eclesiastes 2.1” .117 M ediante um a repetição
excepcional, ainda com uma mudança de sintaxe: “Consolida a obra de
nossas m ãos” expressa o intenso desejo para que suas obras subsistam ao
teste do tem po e implicitamente sejam desfrutadas por outros de m odo
independente deles. Weiser comenta: “M anifesto à luz de D eus o que é
evanescente se torna durável, o que é trágico se torna glorioso e o que é
fútil se torna essencial, porque tudo é purificado à luz da eternidade” .118

Parte III. A voz da igreja em resposta


Durante eras, os comentaristas diferiram sobre se o Livro IV de Salmos
começa com esse salmo atribuído a Moisés ou se o Livro III term ina com
esse salmo. Os pais da igreja consideraram o fim do Livro III o SI 90[=
LXX 89], enquanto os reform adores situaram o Cântico de Moisés no co-
meço do Livro V. Goldingay, com McCann, sugere que os Salmos 90— 106
poderíam ser chamados “livro de M oisés”, porque Moisés é m encionado
várias vezes nesses salmos, mas apenas um a vez nos Livros I-III.119
O salmo 90 foi cantado na liturgia cristã antiga com o salmo matinal,
em bora na liturgia judaica ele fosse sabático.120Por refletir sobre a mortali-
dade hum ana, ele é citado sempre em ofícios fúnebres. Isaac Watts (1674-
1748) parafraseou o salmo no hino bem conhecido “Ó D eus, nossa ajuda
em épocas passadas” . Mais tarde com positores com o Vaughan Williams
e Charles Ives focaram tam bém no salmo 90: “O refúgio divino”, com o
fonte de fascínio musical e paz contemplativa.

1,6 Koch, TDOT, 7:97, s.v. kün.


117 Psalms 58— 100, p. 356.
118 The Psalms, p. 603.
119 Goldingay, Psalms, p. 23; J. Clinton McCann, Jr., Psalms, NIB 4 (Nashville: Abing-
don, 1996), p. 1040.
120 Susan Gillingham, Psalms through the Centuries (Oxford: Blackwell, 2008), vol. 1,
p. 40, 44.
74

O uso dos salmos com múltiplos propósitos é mais bem estudado em


prim eiro lugar nos escritos dos pais da igreja, preocupados não com con-
textos canónicos nem históricos, mas com a enunciação curativa e salvífica.
Atanásio e A gostinho foram pioneiros nessa preocupação interpretativa.
I. Atanásio de Alexandria (c. 295-373)
Atanásio escreveu uma carta pastoral a Marcelino, provavelmente um
diácono, ou pelo menos um cristão urbano, que precisou adotar a vida
ascética.121 É provável que ela date de c. 367. D e acordo com a carta,
Marcelino ficou doente, mas ocupou seu tem po de recuperação com o
estudo das Escrituras. Atanásio lhe escreveu que cantar os salmos é de
fato terapêutico. Seguindo Platão, Atanásio acreditava que os seres huma-
nos têm três faculdades: razão (logistikon), afeições (thymetikon) e paixões
ou desejos (epithymetikon). Cantar as palavras dos salmos expande muito
as palavras e as melodias capacitam os adoradores a “louvar a Deus com
toda a intensidade e todo o poder”.122 O cântico harm onioso dos salmos
resulta em pessoas harmoniosas. Com o Carol H arrison observa: “A des-
crição de Atanásio sobre a ressonância natural existente entre a alma e os
salmos é claramente baseada na convicção que ambos são obras de Deus
e ressoam no microcosmo, com a música sistêmica da criação toda”.123
Portanto, Atanásio fala da cura da alma por meio dos salmos. Eles
estimulam a vida interior com profundidade, com o o espelho da alma;
de fato, com o a Bíblia em miniatura, a sinopse de toda a Escritura do
AT. Com o o médico prescreve o remédio certo para cada paciente, assim
Atanásio usa os salmos: “Se você pretende tornar-se ousado e aos outros
confiantes na adoração correta, uma vez que a esperança posta em Deus
não decepciona — ao contrário, torna a alma destemida — , louve a Deus
com as expressões do salmo 90”.124

121 David M. Gwynn, Athanasius of Alexandria: Bishop, Theologian, Ascetic, Father


(Oxford: Oxford University Press, 2012), p. 149.
122 Atanásio, “Ep. Marcell. 27”, em: Athanasius: The Ufe of Antony and the Tetter to
Marcellinus, trad. Robert C. Gregg. Mahwah: Paulist, 1980, p. 124.
123 “Enchanting the Soul: The Music of the Psalms”, em: Meditations of the Heart:
The Psalms in Early Christian Thought and Practice, A. G. Andreopoulos; Augustine
Cassidy; Carol Harrison, orgs. Louvain: Brepols, 2011, p. 211.
124Ep. Marcell. 22 (Gregg, p. 120).
75

II. Agostinho de Hipona (354-430)


Agostinho tam bém reconhece a influência profunda da música. Mas
na homilía sobre o salmo 90, ele reflete a respeito de Moisés com o a figura
bíblica central: servo da Antiga Aliança e profeta da N ova Aliança. Ele
cita as palavras de Jesus: “Se vocês cressem em Moisés, creríam em m im,
pois ele escreveu a meu respeito” (Jo 5.46).125
Agostinho interpreta o versículo 1: “de geração em geração” (lit. “em
geração e geração”) com o referência “às duas gerações” das duas alian-
ças.126 D eus é o Criador “da terra”, onde os seres hum anos vivem e “dos
m ontes”, onde os anjos habitam. O tem po tam bém é um a das criações
divinas; o próprio Deus existe
não desde qualquer era, mas antes das eras. Não há “era” ou “será” em
Deus, apenas “é”. É por isso que Deus disse: E u S o u O Q U E S O U . É
isto que você dirá aos israelitas: E u Sou me enviou a vocês e porque é
dito a ele em um salmo: Eles envelhecerão e deste modo serão troca-
dos, mas tu permaneces o mesmo e teus dias jamais terão fim (Ex 3.14;
SI 10.27,28 [102.26,2η).127

Por isso, nos versículos 3-6, A gostinho contrasta a transitoriedade da


vida com o m undo porvir. E m que sentido A gostinho usa o salmo como
terapia? Tudo se relaciona com a saúde da alma do cristão com o ser es-
piritual. H um anam ente, podem os alcançar “70” anos, mas podem os ser
abençoados ao alcançar “80” por sermos “fortes” em sentido espiritual;
por já viver no estado eterno.128 D evido ao vigor espiritual, o sofrim ento
cruel dos mártires apenas intensificou a experiência do “esplendor do Se-
n hor”, brilhando sobre suas testemunhas fiéis; algo que Agostinho, talvez,
tenha testemunhado. “A fé em ação pelo am or” é a obra extraordinária
do E u Sou, que o apóstolo nos fala é “a obra que Deus quer” (Jo 6.29).
“Assim, a única obra em que todas as outras estão incluídas, é a fé que
atua mediante o am or”.129

125 E xposition o f Psalm 8 9 2, em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding (Hyde
Park: New City, 2002), vol. 4, p. 303.
126 Ibid., (Boulding, p. 303).
127 Ibid., 3 (Boulding, p. 304s.).
128 Ibid., 10 (Boulding, p. 308).
129 Ibid., 17 (Boulding, p. 313-4).
76

III. Gregorio de Nissa (c. 332-395)


Gregorio, escrevendo entre 376 e 378, com o seu irm ão mais velho,
Basilio de Cesareia, discerne a harm onia musical entre o cosm o e a pessoa
humana. Com o expressou Hans Boersma: “H arm onia e virtude, beleza
e bondade, caminham juntas com os pais capadócios”.130 G regorio inter-
preta os cinco livros dos salmos com o tendo a “bênção” ou propósito
(telos) de escalar o m onte Sinai em cinco estágios, com o a evolução da
vida virtuosa. O prim eiro estágio começa no salmo 1 com “Com o é feliz
aquele” com tudo que se segue sendo “louvor para o nosso D eus”. N o
estágio seguinte, no salmo 42[41], com o a corça, a alma anseia e tem sede
de Deus. O salmo 73[72] descreve o tipo de contem plação possível no
estágio de ascensão. O salmo 90 [89] começa o quarto estágio com Moisés
guiando a alma ao cume, escalado pelo próprio Moisés, tendo “eliminado
de si m esm o as coisas inferiores e terrenas”. N o salmo 107 [106], o ápice
ou o cume da m ontanha é alcançado; contempla-se a consumação da
salvação hum ana e alcança-se o cântico escatológico final de louvor no
salmo 150.131 Boersma conclui assim: “Composição musical, leitura da
Bíblia e vida ética eram partes de um conjunto para os pais da igreja”.132
O s salmos dem onstram essa unidade com esplendor.
IV. Martinho Lutero (1483-1546)
Q uando se lida com a Reforma, o salmo 90 é tratado de m odo muito
mais polêmico. O pronunciam ento apaixonado de Lutero afirmava que
Moisés agiu com o Moisés no salmo.
Lutero, em um a de suas preleções sobre os salmos, antes de iniciar o
volum oso com entário do livro de Gênesis, interpreta o salmo 90 com o
um lamento. Ele havia com eçado o ensino a respeito “dos sete salmos
penitenciais” em 1517, mas agora, no fim da vida, em 1535, o tem a é “os
salmos de lam ento”. Ele havia se apegado aos salmos durante toda a vida,
com eçando em 1505 quando se tornou um frade agostiniano.
Lutero argumenta que Moisés com pôs um salmo, reconhecendo que
sua autoria foi apoiada não apenas “pelo título, mas tam bém a linguagem

130 Scripture as R eal Presence: Sacramental Exegesis in the E arly Church. Grand Rapids:
Baker Academic, 2017, p. 143.
131 Ibid., p. 154-6.
132 Ibid., p. 158.
77

em si mesma, o assunto e a íntegra da teologia do salmo” .133 N a última


série de preleções sobre Salmos, em 1535, Lutero defendeu, com o Dennis
N gien resume: “Moisés nos ensinou a maneira adequada de ler as Escritu-
ras (2Tm 2.15): deve-se lidar com os pecadores arrogantes e presunçosos
de uma form a (i.e., por meio da lei), mas de form a inteiram ente distinta
de quem já se sentiu aterrorizado (i.e., por meio do evangelho)”.134 O ofí-
cio primordial de Moisés, o arquétipo, era ser o com panheiro inseparável
da Escritura sagrada, e cum prir o ofício especial de “m inistro da m orte,
do pecado e da condenação”.135 N ão há dúvida de que Lutero tam bém
o considerou seu próprio ofício no contexto da Reforma; portanto, ele
tem uma resoluta parcialidade em favor de Moisés, estendendo-se nesse
tema na m aior parte de sua preleção. O refúgio e a graça de D eus são o
mesm o para Lutero e “tanto a criação com o a condenação, ações contra-
ditórias, são feitas pelo único e mesm o Deus... Com o a vida procede do
resultado do desígnio divino, tam bém a m orte ocorre com o resultado da
ira de D eus”.136
N o pessimismo de Lutero, ele vê até mesm o a vida de Matusalén!, que
viveu mil anos, com o nada com parada a D eus (cf. 90.4). Com o pecado
na vida, vivemos com o leprosos; no entanto, a pior calamidade acontece
quando ignoramos nossa mortalidade. E m relação à sociedade secular hoje,
M artinho Lutero com preendeu que a maioria dos seres hum anos em sua
época era constituída por ateístas práticos, a realizar as atividades diárias
com o se “não houvesse m orte, e quanto a esse assunto, não houvesse
D eus”.137 Todavia, Moisés, de acordo com Lutero, encontrou consolo
em Deus: “antes de nascerem os montes e de criares a terra e o m undo”,
é D eus que cria ex nihilo.
Portanto, para Lutero o cuidado pastoral eficiente não consiste em
nada além do ministério da lei e do evangelho para levar-nos ao arrepen-
dim ento no lam ento pelos pecados. N esse sentido, Deus é “o D eus das
lamentações”. Ele desperta o lamento e cura a alma que se lamenta. Satanás

133 Dennis Ngien, Fruitfor the Soul: Luther on the lament Psalms. Minneapolis: Fortress,
2015, p. 157.
134 Ibid., p. 158.
135 Ibid., p. 159.
136Ibid., p. 169.
137 “Psalm 90”, trad. Paul M. Bretscher, Luther’s Works. Minneapolis: Fortress, 1956,
13:128-9, citado em Ngien, Fruitfor the Soul, p. 171.
78

nos faz lam entar sem arrependim ento, sem nenhum a esperança em nosso
total desespero. Cedo na vida, Lutero com eçou a form ular sua “teologia
da cruz” com o “teologia negativa”. Porém, de m odo diverso de Dionisio,
que usa negativas para fazer afirmações e para alcançar a união com Deus,
Lutero encontra Deus na fraqueza e no sofrimento, não na majestade e
glória. Assim, a petição de Moisés no versículo 16: “Sejam manifestos os
teus feitos aos teus servos, e aos filhos deles o teu esplendor!” aponta para
o advento de Cristo na carne.138 A negação, portanto, não é encontrada
em nossas conclusões lógicas baseadas no conhecim ento natural, mas na
cruz; não se trata da ascensão mística a Deus, mas no texto sagrado em si
mesmo. A experiência com Deus não é encontrada nas trevas dionisíacas,
mas na vida do cristão que tem o texto no coração. Com o G erhard Forde
observa, a questão do que D eus podería fazer ou não já está respondida
naquilo que ele de fato faz e fez.139
D epois desse detalham ento, Lutero aconselha a alma a m urm urar a
Deus por misericórdia. Essa é a prática da compunção, analisada em nossos
comentários prévios.140A murmuração se assemelha a uma emoção sentida
com profundidade (“gemidos inexprimíveis”, NVI) com autenticidade
infantil, ingenuidade, honestidade e dependência, tudo que apraz o coração
de Deus. É onde Deus encontra refúgio em nosso coração.141
A conclusão é o oposto do lugar em que o suplicante começou. Deus
não é mais “o problem a”. Ira foi transform ada em misericórdia, as trevas e
a enferm idade em luz e saúde. Ao citar o versículo 14: “Satis faze-nos pela
m anhã com o teu am or leal, e todos os nossos dias cantaremos felizes”,
Lutero conclui que podem os agora entrar na “misericórdia oceânica” de
Deus. N a vastidão dessa experiência, proclamamos a petição final: “Esteja
sobre nós a bondade do nosso E u S o u Soberano. Consolida, para nós,
a obra de nossas mãos; consolida a obra de nossas mãos!” (SI 90.17).142
138 Ngien, F ruitfo r the Soul, p. 183.
139 Gerhard O. Forde, Where G od M eets M an: Luther's Down- to- E a rth Approach to the
Gospel (Minneapolis: Augsburg, 1972), p. 26.
140 Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico (São Paulo: Shedd, 2015), p. 475.
141 Ngien, F ru itfo r the Soul, p. 190-95.
142 Ibid., p. 195-6.
79

Muitos outros comentaristas concordaram com Lutero no comentário


sobre esse salmo, mas concluímos com ele, porque sua meditação atinge
o ápice!

Parte IV. Conclusão


I. Contexto canônico
D e acordo com Gerald H. Wilson, há um m ovim ento histórico refle-
tido na organização do Saltério: Livros IV e V são a resposta ao salmo 89,
o salmo em que as questões da monarquia davídica fracassada e da crise
do exílio na Babilônia são tratadas (v. p. 30-31).143 Com o consequência, o
Livro IV (SI 90— 106) responde à crise do exílio na Babilônia ao redire-
cionar a confiança na monarquia terrena para a apreciação da monarquia
eterna de D eus,144 da confiança no tem plo terreno para a confiança no
próprio Deus. J. Clinton M cCann dem onstra: O Livro IV pode ser carac-
terizado com o um livro de Moisés e, em resposta à crise do exílio e sua
consequência, ele oferece a ‘resposta’ que perm eia o Saltério e constitui
sua essência teológica: D eus reina!”145
H á a realidade eterna alternada, o reino de D eus que converge para a
sórdida realidade política. As duas realidades não se tornaram ainda um
reino, mas algum dia, em Jesus Cristo, elas se tornarão uma. A convergência
foi reiniciada no advento de Jesus Cristo. N a primeira vinda, ele expiou a
ira de Deus devida aos pecados de seu povo (v. 3-10) e aprendeu a obe-
diência por meio de seus sofrim entos (v. 11,12); no segundo advento, ele
saciará os seus com a felicidade eterna (v. 13-17). Jerusalém e seu templo
carnal fracassaram, mas a igreja de Cristo prevalecerá. Definitivamente, o
reino de Deus, a igreja, sob o reino de Jesus Cristo, o rei ungido, encherá
o novo céu e a nova terra.
II. Mensagem
A confiança que o D eus de Israel é sempre o refugio de seu povo
confere aos penitentes a oportunidade para lamentar, pois eles murcham
tão rapidamente quanto a relva, devido à ira de Deus contra seus pecados

143 The E diting o f the Hebrew Psalter, SBLDS 76 (Chico: Scholars, 1985), p. 209-28.
144 Harry Nasuti, D efining the Sacred Songs: Genre, Tradition, and the Post- C ritical Intepre-
tation o f the Psalms, JSOTSup 218 (Sheffield: Sheffield Academic, 1999), p. 177.
145 Psalms, p. 1040.
80

e para encontrar pela fé nele o que o tem plo de Jerusalém previamente


provia: paz e proteção. Tenha pena do pródigo sem-teto. E m bora poucos
conheçam que a veracidade da ira de D eus é proporcional ao tem or que
lhe é devido, os penitentes, humilhados e esperançosos, pedem a Deus
para fazê-los conhecer isso ao contarem seus dias e, desse m odo, fazer
seu coração alcançar a sabedoria. Portanto, iluminados, eles suplicam ao
E u S o u para conferir-lhes um a nova dispensação da alegria da salvação
em dias e anos proporcionais às aflições. A obra consolidada, com o seus
feitos majestosos de salvação — nas quais eles participam, será manifesta
de novo entre eles. O Deus absolutamente misericordioso ouve a oração
dos humildes e não lhes despreza as súplicas; ao contrário, no Jesus Cris-
to ressurreto e eterno, ele responde de form a copiosa — mais do que
ousariam pensar ou imaginar. Sim, quando ele oculta sua face, ficamos
alarmados e retornamos ao pó, mas quando ele envia o Espírito vivificador,
renovamos a face do solo agora e para sempre.
3

Salmo 91: A invulnerabilidade e


invencibilidade do Messias

Parte I. A voz do salm ista : T radução


U m salmo de Davi.1
1 Aquele2 que habita3 no abrigo do Altíssimo e descansa4 à som bra do

1 Assim também, a LXX. O TM não tem um sobrescrito (v. “Autor”, abaixo).


2 Tradicionalmente, yõseb (“aquele que habita”) é compreendido como sujeito e
yitlônãn (“habita”) como predicado: “aquele que habita em [...] descansa em...”.
Essa interpretação, entretanto, é algo tautológico e o falante do v. 1 não pode ser
claramente identificado. A. E Kirkpatrick {The Book of Psalms [1902; reimp., Grand
Rapids: Baker Books, 1986], p. 554) pensa que a voz do v. 2 é a voz do poeta do
v. 1, mas Robert Alter {The Book of Psalms: A Translation and Commentary [New
York: Norton, 2007], p. 321] considera que “o poeta” fala nos (v. 1,3-13, mas não
no v. 2. Yitlônãn é mais bem interpretado como a versão Siríaca e com a sintaxe
hebraica normal como continuando a construção participial “por um verbo finito,
com ou sem o vav, (GKC, 116x; cf. Is 65.4: hayyõ.fbim baqqabãrim übannesüñm
yãünü, que se assentam entre os túmulos e passam noites em vigília secreta”). Por
isso, yõsêb é um acusativo de estado e modifica o sujeito de “pode dizer” no v. 2
(v. IBHS, §10.2.2d). Kirkpatrick (The Book of Psalms) pensa que essa construção
é “rígida e grosseira”, mas Frank-Lothar Hossfeld e Rich Zenger {Commentary on
Psalm 51— 100, trad. Linda M. Maloney, Hermeneia [Minneapolis: Fortress, 2005],
p. 429) a adotam (cf. NRS, NET, JPS, NAB).
3 Ou “aquele que está entronizado”, compreendendo-se que o falante é um rei.
Assim também compreende Mitchell Dahood {PsalmsII, AB 17 [New York: Dou-
bleday, 1968], p. 329) e Frank M. Cross Jr.; David N. Freedman (“The Song of
Miriam ” Journal of Near Eastern Studies, 14 [1955]: 237-50, esp. 248s.). No entanto,
o lyn paralelo (“permanece”) e o paralelismo das imagens concretas por proteção
(“abrigo” e “sombra”) sugerem que ysb tem seu sentido usual, “habitar”.
4 O Hitpael lün significa estar no estado de passar a noite ou de permanecer, forma
que ocorre em outro contexto só em Jó 39.28, onde é usada em paralelo com sãkan
(“habitar”), sinônimo de ysb. O paralelo sugere a tradução “permanecer” “des-
82

Todo-poderoso5
2 pode dizer6 ao7 E u Sou·. Tu és o meu refúgio e a m inha fortaleza, o meu
Deus, em quem confio.
3 Ele o livrará do laço8 do caçador e do9 veneno10 mortal.

cansar”. Assim, esse sentido desaprova a teoria da incubação — o rei permanece a


noite inteira no centro cúltico com a esperança de receber uma revelação por sua
posição privilegiada (v. 3-16; cf. Gn 28.11; Nm 22.8; lRs 19.9; v. Leo Oppenheim,
The Interpretation of Dreams in the Ancient Near East, TAPS 46 [1956], 186-8).
5 Sadday convencionalmente traduzido com base na Vulgata por “Todo-poderoso”,
mas sua etimologia e sentido são debatidos (cf. M. Weippert, TLOT, 3:1304-10,
sv. sadday [nome divino]).
6 A LXX, Vulgata e Siríaca traduzem por “ele dirá” J ycTmar ou ‫־‬òmer). NAB e NJB
adicionam “você [que habita/vive]”no v. 1, mas a NAB altera ,mr como um
imperativo (diz) e a NJB o interpreta como participio (“dito/que diz”). O texto
de Qumran, llQPsAp* registra Vwmr (“aquele que diz”), desse modo conserva
a pessoa que confia como o falante consistente dos (v. 1,2 Q. van der Ploeg, “Le
Psaume XCI dans une recension de Qumran”, RB 72 (1965): 210-7, esp. 211]); e
Otto Eissfeldt, “Eine Qumran-Textform des 91 Psalms”, em: Bibel undQumran,
H. Bardtke, org. [Berlin: Evangelische Haupt-Bibelgesellschaft, 1968], p. 83). Essas
são todas leituras facilitadoras (v. IBHS, §§1.6.3g-m). A forma imperfeita indica
uma situação habitual, repetida (i.e., “é meu costume dizer”, IBHS, §31.3e); a
forma perfectiva significa uma declaração no momento da fala {IBHS, §30.5.ld).
7 L am ed pode significar o dativo (“Eu digo ao E u S o u , ‘[Tu és] meu abrigo’”; Deste
modo também, a LXX, NRS, CSB, NAB, NJB), porém mais razoavelmente ele
significa “com respeito a” (assim também, NIV, NET, ASV, VER,JPS, KJV, NKJV,
NLT; v. IB H S , §11.2.10d). A rema separa nitidamente lyhw h de ’mr, presumivelmen-
te para negar o dativo esperado depois de um verbo de fala. Dahood (Psalms II,
AB 17 [New York: Doubleday, 1968], p. 330), seguido por Pirmin Hugger (“Jahwe
meine Zuflucht: Gestalt und Theologies des 91”. Psalms, Münsterschwarzacher
Studien 13 [Münsterschwarzacher: Vier-Turma-Verlag, 1971], p. 31) e Marvin Tate
{Psalms 51 — 100, WBC 20 [Dallas: Word, 1990], p. 447) interpretam a preposição
como um lamed vocativo (= “Ó E u S o u ”), mas as versões inglesas não aceitam
essa interpretação desnecessária e excepcional.
8 The Concise Dictionary of Classical Hebrew (David Clines, org. [Sheffield: Phoenix,
2009]) define yãqüs como “caçador”, mas em Pv 6.6 (cf. Jr 5.26,27) o termo
claramente significa “caçador”. A metáfora do caçador corresponde à metáfora
ornitológica no v. 4.
9 Diversos manuscritos hebraicos, a LXX e a Siríaca registram ou refletem ümiddeber
“e da praga destruidora”, mas 1lQPsApa omite a conjunção “e” como a maioria
dos manuscritos medievais.
10A LXX, Vulgata e possivelmente Targum registram middtbar (“do assunto de/palavra
de/obstáculo de”). O TM é uma leitura razoavelmente mais difícil e, por isso, é a
83

4 Ele o cobrirá com as suas penas,*11 e sob as suas asas você encontrará
refúgio;12 a fidelidade dele será o seu escudo protetor.13
5 Você não temerá o pavor da noite, nem a flecha que voa de dia,
6 nem a peste14 que se move sorrateira nas trevas, nem a praga que de-
vasta15 ao meio-dia.16
7 Mil poderão cair ao seu lado, dez mil à sua direita, mas nada o atingirá.

preferida (v. IBHS, §§1.6.3g-m). Joshua Blau (“Über Homonyme und Angeblich
Homonyme Wurzeln II”, VT 7 [1957]: 98) refuta a noção de Immanuel Low que
deber no Salmo 91.3 e Oseias 13.14 denota “espinho” ou “ferrão”.
11 A construção poética de ’ebrã , sempre em paralelo com o prosaico kãnap, como
coletivo singular (cf. D t 32.11).
121lQPsAp registra tskwn (“você habitará”), que provavelmente não é o texto origi-
nal (da mesma forma van der Ploeg, “Le psaume XCI”, p. 212). Eissfeldt (“Eine
Qumran-Text forme des 91 Psalms”, p. 83) conjectura que o termo substitui a
palavra mais antiga do TM.
13Sõhêrà é um hapaxlegomenon cuja forma e denotação são incertas. A. A. Macintosh
(“Psalm XCI 4 e a raiz “ΙΓΌ”, VT 23 [1973]: 56-62), depois de avaliar criticamente
suas várias interpretações, traduz a palavra como “proteção [sobrenatural]” (cf.
CSB, NAB). A noção de proteção ‘sobrenatural’ contra demônios”, ele demonstra,
“já foi detectada em Is 47.15 e [...] a evidência da filologia semítica comparativa [o
acadiano, o árabe antigo do sul e o árabe] sugere que esse sentido é amplamente
confirmado na linguagem semítica (Macintosh surpreendentemente não recorre
a Jerónimo [Psalmi Iuxta Hebr. “proteção’J). Entretanto, o sentido de “encantado-
res/feiticeiros não é convincente em Is 47.15. Macintosh não é apoiado, além de
“mago” na NAB e NJB. O H AL.OT (2:750, s.v. sõhêrã) com base nos cognatos
siríaco, mandeu e acadiano, compreende o termo como “muralha” (i.e., uma
muralha de defesa ou fortaleza). A objeção de Macintosh a isso (não há evidência
das versões antigas para indicar que a palavra tivesse esse sentido no Salmo 91.4”)
pode também ser proposta contra sua conjectura.
14A LXX (cf. Aquila, Sir.) reflete dãbãr (v. nota 10).
15A LXX registra kai daimoniou (= vfsed, “e o demônio”). Dahood (Psalms50 — 100,
p. 332) deriva a palavra ,sd com o álef (“leg”) omitido e o altera como yèsõd
(“persegue”). Ele não é apoiado. GKC (67q) sugere com hesitação que yasüd é a
forma metaplástica do imperfeito Qal de sdd (lidar violentamente com, despojar”).
Quase todas as versões inglesas seguem essa interpretação. Robert Gordis (“The
Biblical Root SD, SDY”,J T S 41 [1940]: 34-41, esp. 39s.), entretanto, seguido por
Tate, deriva swd, a raiz normal. Na Siríaca, swd significa “devastar com furor”.
Gordis explica que a imagem concreta “move” no primeiro verseto requer esse
sentido mais concreto que a interpretação tradicional. A intensificação de “mover”
para “devastar” representa com propriedade a praga disseminando-se de uma
unidade de soldados para uma miríade de soldados (v. 7).
16 No pergaminho de Qumran, 6a e 6b estão invertidos.
84

8 Você simplesmente olhará, e verá o castigo17 dos ímpios.


9 Se você fizer18 do E u S o u o seu refúgio,
10 nenhum mal o atingirá, desgraça alguma chegará à sua tenda.
11 Porque a seus anjos ele dará ordens a seu respeito, para que o protejam
em todos os seus caminhos;
12 com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma
pedra.

17 O feminino sillümã ocorre só aqui em contraste com as três ocorrências do mascu-


lino sillüm; o H A L O T (4:1540, s.v. sillüma) sugere, “talvez, como um substantivo
unitário, abstrato, distinto do significado de uma manifestação individual (uma
consequência particular) de retaliação” (cf. IBHS, §6.4.2d).
18As versões inglesas diferem significativamente na tradução do v. 9. Relativo a kl, a
NIV=NVI e NLT traduzem “se”, mais isso questiona a sinceridade da confissão
da pessoa confiante no v. 2. Na verdade, como nos v. 1,2 e 3-8, a confissão da
pessoa confiante no v. 9 serve como causa das promessas em 10-ER13. Em relação
ao enfático ‫ג‬attâ (“você”), a LXX, a Vulg., o Tg., a ASV e a ERV consideram seu
antecedente o E u S ou. Assim, o homem confiante é o falante c jh w h é o vocativo
(= “Porque tu, o E u S o u , és meu refúgio”). Mas essa compreensão não pode ser
conciliada facilmente com 9b, pois o falante mudaria da pessoa confiante em 9a
para o profeta no versículo em si mesmo. A LXX opta por refinar a dificuldade
por adicionar: “Tu, minha alma, fizeste”. A maioria das traduções interpreta o
enfático “tu” em 9a como referência à pessoa confiante. Nesse caso, o profeta
cita o que disse no v. 2. Com esse entendimento, a NRS, CSB, JPS, KJV, NAS
supõem que “fizer” em 9b omitiu e alterou mhsy (“meu refúgio”) para mhsk (“seu
refúgio”). Mas essa alteração não tem apoio textual e o TM é difícil de explicar.
(Dahood explica mhsy como retendo um jW arcaico e que o “seu” do sufixo de
ml'cônekã [“seu refúgio”] foi omitido, mas isso parece forçado). A NIV, GNV
(cf. NJB) acrescentam “dizer” da confissão no v. 2 (“Se você disser, ‘o E u S o u é
meu refúgio’ ”). Essa interpretação tem algum apoio no Tg: Salomão respondeu e
disse: “Pois tu és meu refúgio, ó S e n h o r ” . Ela também encontra apoio no texto
de Qumran. Van der Ploeg (“Le Psaume XCI”, p. 21s.) repara qr t (“tu chamas”).
Eissfeldt (“Eine Qumran-Textform des 91. Psalm”, p. 84) concorda e traduz:
“Jahweh hast du gennant: Meine Zuflucht” (“tu chamaste lavé: ‘Meu Refúgio’”).
85

13 Você pisará o leão19 e a cobra;20 pisoteará o leão forte e a serpente.21


14 “Porque ele me ama, eu o resgatarei; eu o protegerei, pois conhece o
meu nome.
15 Ele clamará a mim, e eu lhe darei resposta, e na adversidade estarei
com ele; vou livrá-lo e cobri-lo de honra.
16 Vida longa eu lhe darei, e lhe mostrarei a m inha salvação” .

Parte II. Com entário

I. Introdução
Autor
O Texto Massorético (TM) não tem um sobrescrito, mas a Septuaginta (LXX)
atribui o salmo a Davi. N ão há razão para desacreditar a LXX (v. p. 27-9
acima e “régio”, abaixo). Q uanto à evidência interna, Charles Augustus e
Emilie Grace Briggs docum entam que o salmo compartilha um número
considerável de termos com os salmos atribuídos a Davi no TM .22 O sal-
m o 91 é régio e mais específicamente uma profecia messiânica (Lc 4.9-11;
veja “messiânico”, abaixo); o N T considera Davi um profeta (At 2.30).
19A LXX, a Vulg., e a Sir. Interpretaram sa h a l como “áspide” ou interpretaram zhl
(“réptil”, v. B H S). S. Mowinckel (“‫ ״ ש ת ל‬, em Hebrew and Semitic Studies: Presented to C
R . D river, D. W. Thomas; W D. McHardy, orgs. [Oxford: Clarendon, 1963], p. 97)
demonstrou que sah a l originariamente significava um dragão-serpente, o mítico
dragão ou “monstro serpentino”, que mais tarde veio a ser usado como termo
poético para designar o leão. Scott C. Jones (“Lions, Serpents, and Lion-Serpents
in Job 28:8 and Beyond”, JBL 130 [2011]: 663-86) explica que sa ha l em Jó 28.8
evoca um leão e uma serpente e que há uma linha obscura entre o mítico e o real.
Isso também pode ser verdadeiro de tanm n (v. nota 22). O H A L O T (2:1461-62,
s.v. sahal) define sahal como “leão” no Salmo 91.13. Sahal ocorre 7 vezes nas
Escrituras hebraicas, todas na poesia. O uso em Jó 4.10; 10.16; Provérbios 26.13;
Oseias 5.14; 13.7 apoia o sentido de “leão”. O uso em Jó 28.8, entretanto, pode
conotar o dragão mítico também. Em suma, sa h a l denota a voracidade do rei dos
animais e pode conotar uma realidade sobrenatural.
20 Peten significa uma serpente venenosa (Dt 32.33; Jó 20.14,16), talvez a cobra. O
cognato ugarítico denota “serpente, dragão” (Scott C. Jones, Rum ors o f Wisdom:
Job 2 8 as Poetry [Berlin: de Gruyter, 2009], p. 157, esp. n. 305). Aqui, também, pode-
haver pressuposições do sobrenatural.
21 Ou possivelmente “monstro/dragão”. Tanm n significa “serpente” em Êxodo 7.9
e Deuterônomio 32.33, mas isso pode ter pressuposições míticas de um “monstro
marinho/dragão em Isaías 27.1 e Jeremias 51.34.
22A C ritical and E xegetical Commentary on the B ook o f Psalms, ICC (1907; reimp. Edin-
burgh: T&T Clark, 1976), vol. 2, p. 279.
86

Forma
Poesia, liturgia e confiança
O salmo 91 é um salmo poético, litúrgico de confiança que diz res-
peito à invencibilidade do Messias. Ele tem padrões da poesia hebraica:
paralelismo, concisão e linguagem figurada (v. p. 38-40). A mudança de
vozes e de direção do salmo sugerem ter sido um a antífona executada em
contexto litúrgico,23 em bora se possa argum entar que o poeta adota vozes
na ficção literária. Entretanto, “abrigo”, “som bra” (v. 1) e “asas [talvez do
' querubim ]” (v. 4) podem indicar o contexto do templo. Trem per Long-
m an III identifica o salmo 91 com o um salmo de confiança;. “M etáforas de
proteção perm eiam a estança introdutória” .24
Régio
Antes de defender a identificação do salmo 91 com o messiânico,
perm ita que seu caráter régio seja destacado em prim eiro lugar. Com o
em outros salmos régios (e.g., 2; 45; 84; 110), o poeta o apresenta à au-
diência com vozes diferentes em direções diferentes, conform e indicado
pelos pronom es. N o salmo 91, três vozes são ouvidas com direção al-
terada: a) a voz de “eu” que em diálogo direto a Deus confessa a fé no
E u S o u (v. 1,2); b) a voz de um a autoridade que confirm a o “você” (m.
sg.) da libertação de Deus e a proteção “infalível” (v. 3-13) ;25 e c) a voz
de “eu” que confirm a “ele” da segurança, exaltação e plenitude de vida
(v. 14-16). O tormento dos exegetas é: quem é o “eu” do v. 2, que tam bém é o
antecedente de “você” nos versículos 3-13 e de “ele” nos versículos 14-
16? F. Kirkpatrick considera o antecedente a nação de Israel ou qualquer
israelita piedoso.26 Contudo, a interpretação nacional se deve apenas aos
pronom es singulares, não aos plurais. A maioria dos comentaristas pensa
em um israelita piedoso.27 M arvin E. Tate comenta: “O salmo é desig-

23 S. Mowinckel, Offersang og sanmgoffer (Oslo: Aschehoug, 1951), p. 305; citado por


A. Caquot, “Le Psaume XCI”, Sem 8 (1958): 21.
24Tremper Longman III, Psalms: Λ η Introduction and Commentary, TOTC. Downers
Grove: IVP Academic, 2014, p. 329-30.
25 Robert Alter, The Book of Psalms (New York: Norton, 2007), p. 321.
26 The Book of Psalms (Cambridge: Cambridge University Press, 1902), p. 555.
27Avrohom Chaim Feuer {Tehillim: Λ New Translation with a Commentary Anthologiged
from Talmudic, Midrashic and Rabbinic Sources, trad. Avrohom Chaim Feuer em co-
laboração com Nosson Scherman [Brooklyn: Mesorah, 1982], p. 1138) escreve:
87

nado para instruir e exortar e desafiar e fortalecer a fé de quem confia


em I avé”.28 H. Schmidt o classifica com o salmo 121 (cf. 15 e 24) com o
um diálogo entre o sacerdote e o adorador antes da entrada no templo.29
O tto Eissfeldt pensa que o falante é um convertido a quem o sacerdote
concede bênçãos exuberantes.30 Walter Brueggem ann o representa como
um “viajante” que enfrenta muitas ameaças na jornada31 e Amos Hakham
aprim ora o conceito: “quem participa de festivais de peregrinação”.32
Todavia, nenhum a dessas interpretações faz justiça à linguagem marcial
que caracteriza o salmo 91. John Goldingay comenta: “Ele [o salmo] faz
sentido se dirigido ao rei, com o o salmo 20. O rei especialmente carece
do livramento e da proteção de lavé na batalha”.33 O utros argumentos
tam bém sustentam a interpretação régia. Primeiro, John E aton defendeu
de m odo convincente a interpretação régia extensiva do saltério.34 Segundo,
a interpretação régia é a mais antiga. A paráfrase do Targum do salmo 91
considerou que Davi fala a Salomão. O N T (v. abaixo) interpreta a pessoa
confiante com o o Filho de Deus, que segundo a carne foi o Filho de Davi
(Rm 1.3). Terceiro, os temas marciais do salmo 91 são próprios do rei,
não de uma pessoa comum. E aton nota: “Para o rei, a atmosfera é sempre
imprevisível com dardos mortais, tem po de praga (sempre um perigo em
combates), calamidade hostil ou armas. Mas D eus lhe confere proteção
dia e noite, apesar de exércitos caírem às dezenas de milhares a seu lado

“O Talmude relaciona que o rabino Yehoshua ben Levi recitava esse salmo antes
de ir dormir para garantir sua proteção dos perigos da noite. Por isso, a Halacá
estipula que esse salmo seja lido todas as noites antes de ir dormir (Orach Chaim,
239:1)”. Amos Hakham {Psalms with theJerusalem Commentary, trad. Israel V. Berman
[Jerusalem: Mosad Harav Kook, 2003], vol. 2, p. 91s.) repara: “Em Shevuot 15b,
cita-se urna Baraita que declara ser a primeira metade do Salmo 91 [...] Ό Cântico
dos Perigos’, ou [...] Ό Cântico das Pragas’ [...] O Talmude menciona que o rabino
Yehosua ben Levi recitava ‘O Cântico dos Perigos nas orações’ [...] quando se
retirava para cama, à noite [...] Costuma-se recitar esse salmo em funerais”.
28Psalms 51— 100, WBC 20. Dallas: Word, 1990, p. 450.
29Die Psalmen, HAT 15 (Tübingen: Mohr [Siebeck], 1934), p. 172.
30 “Eine Qumran-Textform des 91 Psalms”, p. 83.
31 The Message of the Psalms (Minneapolis: Augsburg, 1984), p. 156-7.
32Psalms with theJerusalem Commentary, p. 91.
33Psalms, BCOTWP. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, vol. 3, p. 39.
34Kingship and the Psalms, SBT Second Series 32 (Naperville: Alec R. Allenson Inc.,
1976), p. 20-6; Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erika Moore, Os Salmos como
adoração cristã (São Paulo: Shedd, 2015), p. 101-2.
88

(cf. 2Sm 18.3)” .35 A profecia em 3-13 atinge o ápice com a prom essa de
que ele pisoteará nações satânicas (v. 13).36 Por último, há a observação
que surge com a ajuda de A. Caquot e D ahood.37 E claro que o salmo
presume que o rei fiel não luta só, mas com um exército que se oferece
voluntariam ente com ele na batalha pelo reino de Deus (SI 110)38 e cujo
fôlego de vida é o rei (Lm 4.20).
Messiânico
D e form a até mais específica, o salmo 91 é messiânico. Para quem
pensa que uma pessoa com um ou um rei fiel está em vista,39 há o proverbial
bode na sala. Esse rei é indestrutível e invencível. D a perspectiva de qual-
quer rei fiel, suas promessas são excessivamente otimistas para falharem.40
O salmo 44 reencena o protesto do rei de Israel e de seu exército: Deus
35Kingship and the Psalms, p. 58.
36A noção de Alter {The Book of Psalms, ρ. 322) da “vida imaginada como um campo
de batalha cheio de perigos” é equivocada. E improvável que o poeta sustentasse
a metáfora do campo de batalha de acordo com os v. 3-16 sem oferecer uma pista
para a realidade figurada.
37 Caquot, “Le Psaume XCI”, p. 21-7; Dahood, Psalms II, p. 329-34.
38Waltke; Houston, Os Salmos como adoração crista, p. 509-43.
39 Mais recentemente, Longman (Psalms, ρ. 329-31) identifica ο exército/congregação
como o sujeito do salmo.
40A interpretação de Derek Kidner (Psalms 73— 150, TOTC [Downers Grove: IVP
Academic, 2009], p. 365) afirma que o salmo confere segurança a todo servo de
Deus, e tenta resolver a contradição entre as promessas do salmo e a realidade
vivenciada com dois clichês. Primeiro, “Romanos 8.28 (‘... Deus age em todas as
coisas para o bem daqueles que o amam’) não exclui a ‘nudez, ou o perigo, ou a
espada’ (8.35)”. Porém, a promessa de agir em todas as coisas para o bem dos
santos não equivale às promessas do salmo de invulnerabilidade e invencibilidade.
Segundo, “o que ele nos assegura é que nada pode tocar o servo de Deus, exceto
pela permissão divina”. Mas nada no salmo sugere essa ressalva. A. Maclaren
{The Psalms, Expositor’s Bible [New York: George H. Doran, n.d.], vol. 3, p. 23)
propõe outro clichê: “Eles [o mal e as aflições] não tocarão a essência da vida
verdadeira e delas Deus libertará não só ao fazê-las cessar, mas capacitando-nos
para suportar”. Mas o salmo não distingue entre o ser externo da pessoa e o inte-
rior e a libertação do conflito não é o mesmo que estar apto a suportá-lo. Calvino
propõe a observação para o v. 10: “Conflitos, é verdade, de vários tipos assaltam
o cristão, bem como os outros, mas o salmista expressa que Deus está entre ele e
a violência de cada assalto, de modo a preservá-lo da destruição” {Commentary on
the Book of Psalms, trad. Rev. James Anderson [Grand Rapids: Baker Books, 2003],
vol. 2, p. 484). Nenhuma dessas trivialidades faz justiça ao texto.
89

os havia abandonado no cam po de batalha (v. Rm 8.36). Se as promessas


do salmo de invulnerabilidade, invencibilidade (v. 11-13) e vida longa
são aplicados em caráter universal aos mártires, Deus zom ba deles. Os
fiéis foram massacrados desde “o sangue do justo Abel, até o sangue de
Zacarias, filho de Baraquias” (Mt 23.35), passando pela decapitação de
João Batista (Mt 14.1-12), até a m orte recente de cristãos nas mãos de
extremistas islâmicos e de outros religiosos e não religiosos extremistas.
Craig C. Broyles resolve o conflito entre as promessas celestiais do poe-
ta e a realidade terrena ao dem onstrar a coerência do v. 8b: “Esses não
são desastres gerais, mas julgamentos divinos que visam aos ímpios... O
salmo não prom ete que os cristãos serão isentos de alguma calamidade,
mas que eles estão livres da retribuição divina” no dia do juízo final (cf.
G n 6.9— 8.18; G n 19.29; Êx 8.22; 9.4,26; 10.23; 2Rs 19; M t 13.30,31-46;
M t 25.46).41 Contudo, a restrição às batalhas de retribuição não é natural,
com o evidencia a falta de reconhecim ento em outros comentários. A ideia
do versículo 8b parece afirm ar a justiça da guerra do rei.
O Senhor Jesus Cristo materializou a invencibilidade do rei no sal-
m o 91 em todas as situações antes de sua m orte. D e seu próprio consen-
timento, ele entregou a vida à m orte para expiar os pecados de muitos
(cf. Is 52.13— 53.12). D e sua própria vida ele disse: “Ninguém a tira de
mim, mas eu a dou por m inha espontânea vontade” (Jo 10.18). Antes de
sua m orte voluntária e sacrificial, no entanto, Jesus Cristo perm aneceu
incólume aos ataques contra sua vida (Mt 2.13-18; Mc 4.37-39; Lc 4.29,30;
Jo 10.31-39).42 Satanás admitiu a inspiração divina do salmo 91 e sua
interpretação messiânica (Lc 4.9-11; cf. 10.19, e presumivelmente o Se-
n hor Jesus Cristo concordou). E m síntese, a interpretação messiânica do
salmo 91 é o sentido claro,43 confirm ado pelo NT.
As declarações do salmo 91 sobre o rei ideal pretendiam gerar fé nos
reis de Israel, talvez na entronização, ou antes da partida para a batalha.

41 Psalms, NIBCOT. Peabody: Hendrickson, 1999, ρ. 362.


42A mãe de Aquiles tentou torná-lo imortal ao alimentá-lo com ambrosia e queimar
sua mortalidade. Devido ao calcanhar, pelo qual ela o agarrou, ter sido intocado
pela mágica, ela fracassou em torná-lo imortal. Entretanto, o E u S o u com êxito
tornou seu Messias invulnerável e invencível conjuntamente com a fé ética do
Messias nas promessas de Deus.
43 “Os judeus supõem que esse salmo se relacione ao Messias”, afirma João Calvino
(Commentary on the B ook o f Psalms, p. 477).
90

Com o tipos do Antítipo messiânico, eles prevaleceram pela fé.44 Hoje,


as promessas da invulnerabilidade e invencibilidade de Cristo estimulam
a igreja a viver pela fé, sabendo que sua esperança não será confundida.
Estar “em Cristo”, com o Paulo afirma, significa enfrentar a perseguição
e o perigo com o o Senhor dela enfrentou, ciente de que nele, o Eterno,
ela é, em um sentido verdadeiro, indestrutível.
Retórica
Q uando “você” nos versículos 3-13 e “ele” nos versículos 14-16 são
com preendidos com o o rei, a retórica dramática do salmo se torna apa-
rente. O rei da testem unho da fé em Deus (v. 1,2,9a); um profeta — seja
ele o sacerdote, um profeta vinculado ao templo, ou um poeta da corte
— garante sua proteção, segurança e salvação (v. 3-13; cf. SI 45.1); e esse
oráculo se torna o oráculo do próprio E u Sou, provavelmente proclama-
do pelo profeta (v. 14-16), ocorrência com um na literatura profética (e.g.,
M q 1.2-16). Visto que o profeta repete a confissão de fé do rei no v. 9a, o
salmo podería ser analisado em duas estanças iguais: a confissão de fé “do
rei” (1-8) e as promessas de segurança (9-16).45 Entretanto, porque Deus
reprisa a fé do rei (14a), o salmo é mais bem analisado sob a divisão em
três estanças e os oráculos do profeta divididos em duas estrofes alterna-
tivas (3-8,9-13).46 As estrofes com eçam com imagens da libertação do rei
e proteção do mal e da desgraça (3-4,10). Por sua vez, elas são seguidas
pela segurança de sua proteção na praga (6,7), intensificada no último
caso pela proteção angélica (11,12). A primeira estrofe culmina com o rei
olhando os cadáveres dos ímpios (8) e a segunda estrofe com o pisoteio
da “cobra” e do “leão” simbólicos (13). O oráculo divino intensifica a
libertação e proteção para a glorificação, a plenitude de vida e salvação.
Aqui está um esboço rudim entar do salmo:

44Veja Bruce K. Waltke, “A Canonical Process Approach to the Psalms”, em: Tradi-
tion and Testament Essays in Honor of Charles Lee Feinberg, John S. Feinberg; Paul D.
Feinberg, orgs. (Chicago: Moody, 1981), p. 3-18.
45 Kirkpatrick (The Book of Psalms, p. 554) assim analisa o salmo.
46A “estança” se refere às divisões maiores do salmo e a “estrofe” às divisões maiores
da estança. V. p. 49, nota 31.
91

Estança I (o rei fala): Confissão de fé em Deus, 1,2


Estrofe A: Introdução à confissão, 1
Estrofe B: Confissão de confiança, 2
Estança II (o profeta fala): Declarações para o rei, 3-13
Estrofe A: Primeiro ciclo, 3-8
1. Libertado e protegido do perigo, 3-4
2. N ão tem a os perigos constantes, 5,6
3. Olhe a destruição dos ímpios, 7,8
Estrofe B: Segundo ciclo, 9-13
1. Fé e proteção, 9,10
2. A capacidade angélica, 11,12
3. O pisoteio de animais selvagens, 13
Estança III (Deus fala): Declarações ao Rei, 14-16
Estrofe A: O am or por Deus e pela salvação, 14
Estrofe B: Mais do que a oração respondida, 15
Estrofe C: Longevidade e salvação, 16
II. Exegese

Estança I (o Rei fala): Confissão de fé em Deus, 1,2


Os versículos 1,2 estão conectados: a) pela gramática (v. nota 2); b) pela
voz do rei em contraste com a voz imperativa no v. 3; c) pelas quatro
referências a D eus correspondidas por quatro metáforas por segurança,
com cada versículo tendo duas; d) pelo tema da fé do rei em D eus como
protetor; e e) pelas metáforas paralelas “som bra” e “refúgio”.
92

Estrofe A: Introdução à confissão, 1


O versículo 1 ressoa o tema do salmo: a proteção do E u Sou.41 Para
conotar Deus como o refugio de Israel desde as eras passadas (cf. SI 90.1,2),
o rei se refere ao E u S o u pelos nomes patriarcais: [Εί\ E ly on, “ [Deus] Al-
tíssimo” (cf. G n 14.18); e [El\ Shaddai, “ [Deus] Todo-poderoso” (v. nota 4;
cf. G n 17.1; N m 24.16). As imagens essenciais do versículo de “abrigo” e
“som bra” afirmam a íntima conexão entre o m onarca e Deus. O s verbos
de estruturação “habitar” e “descansar” apontam para o relacionamento
contínuo. Aquele que habita significa acolhimento hospitaleiro na família,
segurança (cf. G n 19.3-8; Jz 19.16-24) e duração de residência. N o abri-
go (besêter; cf. régio, SI 61.4[5]) denota o lugar de intimidade inacessível
aos não escolhidos, com o a mensagem (sêter) secreta é acessível só ao
destinatário (v. Jz 3.19). E m sentido gramatical, o abrigo de Salmos 91.1
não é o próprio Altíssimo4748 — em bora isso seja verdadeiro em sentido
teológico (SI 3.19,20[20,21]) — mas um a m etonim ia para a casa de Deus
no m onte Sião. Se o salmo é de Davi, ele se refere à tenda m ontada por
Davi para a arca ou ao tem plo que ele visionou (v. p. 30). O epíteto A ltís-
simo (cf. salmos régios: 18.13; 21.7[8]; 92.1 [2]) “é parte da teologia de Sião
(cf. esp. 46.4[5]; 47.2[3])”.49 É um epíteto da realeza (SI 18.13[14]; 47.2[3];
Is 14.14; Lm 3.38).50 Esse título “reduz toda ameaça à insignificância”, diz
47 Brennan Breed (“Reception o f the Psalms: The Example of Psalm 91”, em: The
Oxford Handbook of the Psalms, William P. Brown, org. [Oxford: Oxford University
Press, 2014], p. 297-310, esp. p. 298), com erudição, documenta: “A maioria dos
leitores ao longo da história compreendeu o Salmo 91 como uma declaração
ou realização da proteção divina contra os demônios”. Ele falha, contudo, em
distinguir na história da recepção do salmo entre os perigos do salmista interpretados
como demoniacos e o uso apotropaico antidemoníaco do salmo. A identificação
demoníaca dos perigos é má exegese e seu o apotropaico antidemoníaco é má
teologia. O uso do salmo como mágica contradiz a natureza verdadeira da relação
pactuai do E u Sou com Israel. Ele governa a história de acordo com a ética da
Torá e odeia a mágica (com o mesmo critério, H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to
the Psalms: The Genres of the Religious Lyric of Israel, trad. James D. Nogalski [Macon:
Mercer University Press, 1998], p. 147).
48 No caso, espera-se a aposição (i.e., “no Altíssimo”), não o genitivo provavelmente
de posse (i.e., “o abrigo que pertence ao Altíssimo”).
49 Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 51— 100, p. 430.
50 Hans-Joachim Kraus, Theology of the Psalms, trad. Keith Crim (Minneapolis: Augs-
burg, 1979), p. 28; T. D. Mettinger, In Search of God: The Meaning and Message of the
Everlasting Names, trad. E H. Cryer (Philadelphia: Fortress, 1988), p. 122.
93

Kidner.51 N a sombra significa proteção (cf. G n 19.8; Jn 4.5; Is 4.6; 34.15;


SI 17.8).
Estrofe B: Confissão de confiança, 2
Com o os salmistas em 31.14[15] e 102.24[25] (cf. Jó 10.2) o rei for-
malmente apresenta a declaração a Deus ao pode di2 er (cf. “ele disse” que
inicia o régio salmo 18 [2Sm 22]). Ele costuma declarar a fé em público (cf.
Rm 10.9) concernente ao E n S o u (cf SI 100.1). Com o em Isaías 4.6, “som-
bra” (v. 1) e refugio são provavelmente as principais palavras semânticas.
N o versículo 1, o santuário onde Deus se assentou entronizado proveu
proteção, no versículo 2, o próprio E u S o u é o defensor. Deus está sempre
com ele (v. 14). A dupla repetição de “m eu” enfatiza a relação pessoal do
rei com Deus. E m e a minha fortaleza, “fortaleza” (mesüda) é um term o mi-
litar adequado ao rei (2Sm 5.9). Fortalezas são norm alm ente construídas
em alturas semelhantes a penhascos. Os pergaminhos de Q um ran usam
o term o para a agora famosa Massada, cujos penhascos íngremes no lado
leste têm 396,24 metros de altura e no lado oeste 91,44 metros. O meu Deus
(v. SI 100.3) é enfático. E m quem confio. “Confiar” significa “sentir-se seguro,
estar despreocupado ou com um a afirmação da razão para a segurança,
confiar em algo (e.g., riqueza, Pv 11.28) ou alguém (e.g., Faraó, J r 46.25)”.52
A definição pressupõe que a “confiança” é exercida em face do perigo. O
verbo indica uma situação contínua. Fora de Juizes 20.36 e Provérbios 31.11,
a Escritura condena a confiança em alguém ou em algo além de Deus (cf.
2Rs 18.21; SI 118.8,9; Is 36.5; J r 5.17; 12.6,18.10; 48.7; Ez 33.13; M q 7.5).
E. Gerstenberger observou: “Pode-se confiar com êxito só em lavé [...]
nenhum a outra entidade pode ser objeto absoluto de confiança”.53 En-
tretanto, confiar em Deus não convence alguém, a menos que Deus fale
palavras que confirm em a confiança. Portanto, o salmo prossegue com
palavras de prom essa e segurança (v. 3-16).
Estança II (o profeta fala): Declarações ao rei, 3-13
Por inferência, o falante nos versículos 3-13 é um profeta, pois ele faz
declarações que só Deus pode cumprir. O destinatário: “você” não outro
antecedente possível além do “eu” (i.e., o rei) no versículo 2.

51 Psalms 73— 150 , p. 364.


52A. Jepsen, T D O T , 2.89, s.v. bth.
53 P L O T , 1:229, s.v. bth.
94

Estrofe A: Primeiro ciclo, 3-8


A palavra principal “refúgio” conecta a confissão de fé do rei a Deus:
“Tu és m eu “refúgio” (v. 2) com a segurança do profeta que sob as asas de
Deus “encontrará refúgio” (v. 4). O prim eiro ciclo consiste em um dístico
garantindo ao rei que Deus o libertará e o protegerá (v. 3,4) e um a quadra
(dois dísticos) que diz respeito aos perigos do cam po de batalha (5-8), a
saber: as armas humanas, a praga da natureza (5,6) e o triunfo do rei sobre
a praga (7,8). Tate define a interpretação literal de Johnson dos versícu-
los 5-8 com o “um exercício de imaginação poética”.54 Para ter certeza, o
poeta usa muitas figuras de linguagem, mas elas ocorrem em uma descrição
fundam entada e holística dos perigos do cam po de batalha. Analisaremos
com o Goldingay: “Sob a suposição de que a linguagem militar reflete a
posição literal do rei com o com andante; as referências à epidemia e à sua
tenda podem ser relacionadas a isso”.55 Alguns especulam que os perigos
reais são dem ônios (v. notas 13, 15,47).56 Mas com o Goldingay comenta:
“N ão há indicação explícita dessa referência [demônios] e seria singular no
AT, que faz quase nenhum a referência a dem ônios” .57Já o N T apresenta
uma profundidade espiritual das imagens físicas do AT. N osso poeta ta-
lentoso registra os detalhes im pressionantes da batalha para representar o
todo: pavor da noite, flechas que voam ao meio-dia e o rei ileso olhando
para a tenda de milhares de soldados em torno dele, derrotados por uma
praga que acontece na batalha. Weiser comenta: “A intensidade do poder
divino para socorrer pode ser avaliada só pela magnitude da aflição”.58
1. Libertado e protegido do perigo, 3,4
Deus prom ete libertar o rei de seus inimigos (v. 3) e protegê-lo do
mal (v. 4). As duas imagens do mal: a “armadilha” hum ana e a “praga” da
natureza, das quais o rei é salvo, se sustentam, pois, com o K idner obser-
va, os dois perigos “atacam cegamente” e contra eles “os fortes são tão
im potentes quanto os fracos”.59

iA Psalms 51— 100, p. 455.


55Psalms, p. 39.
56 Cf. Artur Weiser, The Psalms, OTL (Philadelphia: Westminster, 1962), p. 608s.
57 Psalms, p. 45.
58 The Psalms, p. 607.
59 Psalms 73 — 150, p. 364.
95

3 O antecedente do enfático ele não tem candidato mais provável que o


E u S o u (“m eu D eus”, v. 2). O livrará significa “arrebatar, remover, libertar
de qualquer tipo de prisão”.60 O antecedente de você é “eu” do versículo 2
(v. “Form a”, acima). D o laço ou armadilha oculta seu perigo m ortal para
capturar a vítima repentinam ente e prendê-lo até que seu dono possa fazer
o que fará à vítima im potente (cf. E c 9.12). D o caçador (v. SI 127.7, 141.9;
2Tm 2.26) pode ser a própria m orte61 e /o u os ímpios (v. 8), a cobra e ser-
pente (v. 13). O utro perigo do cam po de batalha é o veneno. Provavelmente
a peste bubônica está em vista; um a peste associada à guerra. O anjo do
E u S o u m atou 185 mil do exército assírio em 701 a.C. — provavelmente
um surto de peste bubônica (2Rs 19.35).62A peste bubônica foi um a séria
ameaça que Deus levantou contra Israel (Lv 26.25; N m 14.12). Aqui ela
é descrita com o forças venenosas que causam ruína.63
4 K idner repara: “Q uanto ao cuidado de Deus, o versículo 4 concilia
a proteção calorosa do pai pássaro (4a) com a rigidez e a força implacável
da arm adura (4b)” .64 Com suas penas evoca a imagem da mãe pássaro que
protege os filhotes ao estender as asas sobre eles (cf. Rt 2.12; SI 17.8;
36.7[8]; 57.1 [2]; 61.4[5]; 63.7[8]). Possivelmente, a figura se refere a Deus,

60 U. Bergmann, TLOT, 2:760, s.v. nsl.


61 Desta forma também, F. Delitzsch, Psalms, trad. Francis Bolton, Keil andDelitsçsch
Commentary on the Old Testaments (London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody:
Hendrickson, 1996), p. 603.
62 O historiador grego Heródoto, ao escrever sua história no séc. 4 a.C, ouviu uma
história egípcia sobre a batalha de Senaqueribe que também atribuiu a retirada
assíria de Jerusalém a um milagre: “Depois disso, Senaqueribe, rei dos árabes e
assírios, dispôs um exército enorme contra o Egito [...] Uma quantidade de ratos
de campo, investiu contra os inimigos, devorou suas aljavas e seus arcos e, além
disso, as alças de seus escudos; de modo que no dia seguinte, quando fugiram sem
as armas, muitos deles caíram” (Heródoto, H ist, 2.141.2, 6 [trad. Henry Cary]).
A presença de ratos na narrativa sugere que a peste bubônica destruiu o exérci-
to assírio, porque as pulgas dos ratos são vetores comuns da doença. Portanto,
também, a arca da aliança do E u S o u possivelmente infligiu a peste bubônica aos
filisteus, devido aos artefatos apotropaicos dos tumores e ratos estarem relacio-
nados à peste bubônica (ISm 6.5). Ratos são o símbolo grego de pestilência; é
Apollo Smintheus (o deus rato) que envia e então termina a praga em Homero
{II. 1.39). (A peste bubônica é transmitida através da picada das pulgas dos ratos,
infectadas pelo vetor causador da doença, a bactéria Yersiniapestis. [N. do T.])
63HALOT, 1:242 s.v. hawwâ II; sua forma é sempre plural.
64Psalms 73— 150, p. 364.
96

presente acima das asas dos querubins sobre a arca (Êx 25.20; lR s 8.6,7;
v. p. 39, 260).65 As referências figuradas ao tem plo no versículo 1 apoiam
essa interpretação. H á duas perspectivas para a imagem: a perspectiva
de Deus {ele 0 cobrirá) e a perspectiva do rei {e sob suas asas você encontrará
refúgio). O verseto 4b elucida a imagem. As asas protetoras do E u S o u se
referem à sua fidelidade. O atributo abstrato da confiabilidade, segurança,
fidedignidade, fidelidade e constância de D eus tem realidade concreta
nas palavras de Deus, com o aquelas do pacto davídico e desse salmo.
Maclaren comenta: “N ão temos que voar até um Deus m udo por refú-
gio ou arriscar qualquer coisa em um a aventura” . Ele fala e sua palavra
é inviolável. Portanto, a confiança é possível.66 Seu escudo {sinnâ) denota
o escudo usado para proteger o corpo inteiro.67 O escudo defensivo do
guerreiro é integrado e desenvolvido para um a muralha de defesa, uma
fortaleza (v. nota 13)

2. Não tema os perigos contínuos, 5,6


O dístico está unido gramaticalmente por quatro sintagmas preposi-
donáis que modificam “você não tem erá” em conexão com os perigos da

65 V. tb. o Salmo 99.1 (p. 259). “A imagem [de coberturas aladas]”, afirma Caquot
(“Le Psaume XCI”, p. 28), “parece específicamente israelita, sem equivalente nas
líricas acadianas”. Ele infere a conclusão: “Provavelmente suas origens devem ser
encontradas nas realidades do templo: as ‘penas de lavé’ são as dos querubins co-
nectados com a arca”. Os querubins são criaturas angélicas aladas que protegem o
que é sagrado. Eles aparecem com asas na visão de Ezequiel (Ez 1.5-11; 10.19,20).
Davi diz sobre Deus: “Montou um querubim e voou, deslizando sobre as asas do
vento” (SI 18.10). Dois querubins envolveram a arca para protegê-la da profanação,
como o querubim protegia o caminho da árvore da vida no jardim do Éden para
impedir que os seres humanos corrompidos comessem seu fruto. No pensamento
judaico e cristão posterior eles são considerados anjos, mas não na Bíblia.
66 The Psalms, p. 19.
67 Ele era usado no cerco de cidades, em particular quando os guerreiros tentavam
destruir a muralha. Muitas vezes, o escudeiro teria a única responsabilidade de
mover o escudo para se proteger e ao arqueiro que o acompanhava (T. Longman,
N ID O T T E , e.819-20, s.v. sinnâ II; v. Y. Yadin, The A r t o f W afare in B iblical L a n-
ds [New York: McGraw- Hill, 1963], p. 406, 418, 462). Por contraste, o m ãgên
(Gn 15.1) é um escudo redondo, leve que é feito de madeira ou vime e coberto
de couro grosso revestido com óleo (cf. Is 21.5) para preservá-lo e fazê-lo brilhar.
Ele é carregado pela infantaria ligeira para repelir a espada, lança ou flechas do
inimigo.
97

batalha: a saber, do pavor e flecha (v. 5) e da subsequente peste, e praga


que devasta (v. 6). O s perigos se alternam com o vários merismas: pelos
humanos (v. 5) e por Deus através da natureza (v. 6); no versículo 5, noite e
dia, oculto e evidente; no versículo 6, trevas e meio-dia, oculto e evidente.
O rei está protegido de todos os perigos, 4-7.
a) Perigo das armas humanas, 5
Você não temerá é uma mudança de enunciado — uma form a poética de
enfatizar as promessas substanciais subjacentes ao versículo 5, não um
m andam ento real — pois o rei expressou confiança no E u S o u com o re-
fúgio e fortaleza. Ao contrário de descrever os perigos dos versículos 5,6
na linguagem trivial dos simples fatos, um poeta prefere representa-los à
form a de um mandamento. Pavor (pahad) contém a ideia essencial de “sa-
cudir, trem er” de alegria (Is 60.5; Jr 33.9) ou, em sentido predom inante,
diante de algo “am edrontador” (D t 28.66; Is 33.14).68 D a noite distingue a
metonimia. Mas o que é o “pavor da noite” ? U m adjunto? Se acordo com
a paráfrase do Targum, são dem ônios (“N ão tema o pavor dos demônios que
caminham à noite”) e assim é ouvido pelos rabinos hagadistas e alguns mais
atuais, com o Wensinck, Oesterley e Gemser. Isso ocorre porque, entre
outras coisas, eles com preendem a noite sob o dom ínio dos demônios.
Jó 24.16,17 associa a noite ao mal, mas com respeito a ladrões e adúlteros,
não a demônios. Caquot observa que a noite não encerra a atividade demo-
níaca.6869 Além disso, o paralelo (“a flecha que voa de dia”) parece apontar
para um perigo militar (cf. SI 121.6). Mais provavelmente, a metonim ia se
refere a um ataque repentino e inesperado do exército inimigo, à noite.70
Λ flecha em contraste com a maioria das outras armas atinge de longe
(Gn 21.16). Em bora seja possível defender-se de muitas armas, a flecha
atinge repentinamente (SI 64.7), e tão rápido que o tempo para (Hb 3.11).
O arqueiro pode disparar a flecha de emboscada (Jr 9.8). A flecha pode
ferir ao acaso (lRs 22.34). Essas qualidades: longo alcance, rápida como

68 Goldingay, Psalms, p. 44.


69 “Le Psaume XCI”, p. 29.
70 Cantares 3.8 apoia essa interpretação, os guerreiros de Salomão “todos eles trazem
a espada, todos são experientes na guerra, cada um com a sua espada, preparado
para enfrentar os pavores da noite”. O Salmo 11.2 se refere ao disparo de flechas
na escuridão.
98

um relâmpago, oculta, talvez até aleatória tornaram o arco e flecha uma


arma a ser temida.71

Que voa é m etonim ia de causa e sugere o efeito do ataque m ortal da flecha


sempre envenenada. D e dia constitui merisma com “da noite”. Arm as e
pragas representam um a ameaça constante.
b) O perigo da peste bubônica, 6
O versículo 6 é paralelo ao versículo 5: a conjunção aditiva introduz
de novo os dois próxim os perigos. Gramaticalmente, os perigos estão
conectados de form a direta com um a oração relativa restritiva {que). Os
versetos pertencem à “noite” e “dia” (cf. v. 5), mas se expandem para
“trevas” e “meio-dia”. O poeta personifica a “praga ‫ ״‬/peste (cf. v. 3) com o
uma pessoa que se move pelo campo a pé — m etáfora adequada para a
disseminação da peste de um soldado para outro. Trevas denota a escuri-
dão da noite, mas conota “desolação” sinistra.72 Praga {qeteb ) em três de
suas quatro ocorrências é com parada com “peste” {deber [v. 6; Os 13.14]
e resep [Dt 32.24]), a sugerir o uso aqui com o metonim ia de praga, talvez
“epidêmica” . O sentido se intensifica de “se m ove” para devasta [com viru-
lêncid\, e presum e que a praga tenha atingido proporções epidêmicas. A o
meio-dia, o período mais claro do dia (SI 37.6) contrasta com a tarde e a
m anhã no Salmos 55.17.
3. Olhe a destruição dos ímpios, 7,8
A proteção do rei (v. 5,6) dos inimigos é com plem entada pela destrui-
ção deles (7,8). Ele olha (8) para os ímpios caídos, todos à sua volta (7).
a) Miríades de ímpios caem, 7
O poeta cria na praga em vez das armas, porque ela é um ato divino,
não da habilidade militar do rei, para destruir os ímpios. O verseto 7a
consiste em paralelos sinônimos (“mil”, 7aOC; “dez mil”, 7ap) relativos ao
inimigo derrotado, antitéticos ao paralelo sobre a fuga do rei (7b). “Ao
seu lado” (7a) está em contraste com “mas nada o atingirá” (7b). Os que
caíram por conta da praga estão exatamente a seu lado, mas a praga em

71 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery (Downers Grove: IVP Academic, 1998), p. 48.
72 O termo ‫־‬õph el é aplicado às trevas em que os ímpios esperam emboscados
(SI 11.2); às trevas do caos, à terra tenebrosa (]ó 10.22); e como metonimia para
calamidade (Jó 23.17; 30.26).
99

si não está à distância de sua fala. Q uanto ao verseto 7a, a intensificação


de “mil” para “dez mil” é paradigmática no paralelismo sinonímico (cf.
ISm 18.6,7), mas nesse caso reflete, com o os paralelos “se m over” e
“devastar” no versículo 6, que a praga alcançou proporções virulentas,
epidêmicas.
O s paralelos sinoním icos do verseto 7a são estruturados com o
quiasma: “mil ao seu la do/dez mil à sua direita” . M il Çelep) é o maior
núm ero arredondado que pode existir em m últiplos para contagem .
Comum ente, ele ocorre com um substantivo (cf. SI 90.4), mas aqui ele é
usado de m odo absoluto; é provável que com o referência à unidade militar
de mil soldados. Jessé enviou Davi com queijos para o com andante de um
’elep (ISm 17.18; cf. D t 32.30). “]Milhares” e “dez milhares” são também
usados nos contextos militares de D euteronôm io 33.17; ISamuel 18.7 e
Salmos 3.6[7]. Os núm eros podem ser reais. As tropas exterminadoras de
Senaqueribe somavam 185 mil soldados. Poderão cair é em pregado “espe-
cialmente para a m orte violenta” (c. 96 vezes).73 A expressão idiomática ao
seu lado (cf. Rt 2.14; 1Sm 20.25) conota íntima proximidade. O insuperável
número 10 mil designa um número indeterminado, imenso (cf. 1Sm 18.6-9;
SI 3.6[7]; M q 6.7). “Ao seu lado” se intensifica para à sua direita, a posição
favorecida e mais forte (cf. G n 48.13, 18; IRs 2.19).74 E m síntese, o rei
virá para aniquilar um exército inteiro, em bora, na verdade, eles tenham
sido m ortos pela virulenta epidemia bubônica.
Em relação à garantia, “nada o atingirá”, o único antecedente grama-
tical de nada (advérbio) é a praga devastadora “que frequentem ente irrom -
pia durante as campanhas militares” .75 A garantia em meio às descrições
cênicas do inimigo caindo, todos ao redor do rei (v. 7) e de seu olhar para
eles (8) é muito adequada para a praga. O é enfático. Atingirá (nãgãs) denota
“chegar perto” para contato: para sexo (Ex 19.15) ou para uma conversa
(G n 43.18; 44.18). Ele pode ver o inimigo caído a seu lado, mas a praga
não pode chegar perto o suficiente para ser ouvida.

73 Sobre Sisera, Débora cantou: “Onde caiu, ali ficou, morto!” (jz 5.27).
74 Desde tempos imemoriais, a “direita” é usada figurativamente no sentido de ‘poder’
ou ‘força’ (cf. Is 63.12)” (Soggin, T D O T , 6:101, sN .ym yri).
75 Dahood, Psalms II, p. 332.
100

b) Os ímpios são castigados, 8


A destruição dos ímpios é justa, não arbitrária. Você significa “exceto”
(cf. lR s 8.9). E m bora a praga não se aproxime do rei, ele olhará para seu
efeito devastador. A imagem concreta da parte de seu corpo, os olhos, corres-
ponde à imagem comparável de “ao seu lado”, mas o mais relevante é que
a imagem tem o sentido de “com os seus próprios olhos”. Olhará (tabbit)
significa fixar os olhos em algo ou em certa direção para ver (cf. H b 1.13).
E verá (“com o Israel na noite da Páscoa”)76 0 castigo (v. nota 17), a saber, a
com pensação ou recom pensa que os ímpios devem pagar a Deus e a seu
rei pelo dano que intentaram ao arm ar a cilada para o justo. “Castigo” é
metonim ia dos “corpos putrefatos dos adversários do rei exterminados
pela praga”,77 e assim explica a razão da epidemia. Pirm in H ugger co-
menta: “O poeta vê as vítimas da praga, a m orte e putrefação e as explica
em sentido teológico com o ‘consequência’ (sillüma) da im piedade” .78 D os
ímpios denota a comunidade culpada de pecar por pensamentos, palavras e
obras, que revela hostilidade interior a D eus e a seu povo.79 N o contexto,
“os ím pios” é metonim ia do inimigo caído e observado pelo rei; em geral,
não se olha para os ímpios, em bora da perspectiva teológica isso tam bém
seja verdadeiro.80
Estrofe B: Segundo ciclo, 9-13
O versículo 9 reprisa a repetição quiástica de “o Altíssimo” (1,9b) e
“meu refúgio” (2a,9a) para introduzir a segunda estrofe. Com o se verá
nos com entários sobre o versículo 10, os perigos e a peste não atingirão
ao rei, e reprisa-se 3-8. As duas estrofes da segunda estança têm garantias
da proteção divina do rei pelas asas de D eus (4) e de seus anjos (11,12)
e atinge o ponto culminante na punição dos ímpios (8), quando o rei os
pisoteará (13).

76 Delitzsch, Psalms, p. 603.


77 Cf. Dahood, Psalms II, p. 332s.
78J a h m meine Zuflucht, p. 45.
79 K. Richards, “A Form and Traditio-Historical Study of r i ‘” (PhD diss., Claremont,
CA, 1970; cf. ZAW 83 [1971]: 402). C. van Leeuwen (TLOT, 3:1262, s.v. rs‘) afir-
ma: “Em contraste com a raiz positiva sdq rs‘ expressa comportamento negativo,
como pensamentos, palavras e obras perversas; comportamento antissocial que
ao mesmo tempo revela desajuste e distúrbio interior pessoais (Is 57. 20)”.
80Pace Weiser, The Psalms, p. 610.
101

1. Fé e proteção, 9,10
E m acréscimo à função unificada dos versículos 9,10 com o eco de
1-8, a construção de prótase (v. 9) e apódose (v. 10) os conecta.
a) Causa: Reprise da confissão do rei, 9
O polissêmico se você fi^er significa especialmente “você determina,
decide”.81 Q uanto ao Altíssimo, veja “Estrofe A: Introdução”; e a respeito
de seu refúgio, veja com entário sobre o Salmos 90.1 (v. p. 55).
b) Consequência: Nenhum mal, 10
Nenhum M a l (r a a ) expressa a avaliação de algo perverso, nada bom ,
seja um estado físico concreto (Gn 41.3; Jr 24.2) ou com portam ento moral
prejudicial aos outros (“mal” ético) ou, com o aqui, a abstração do que é
fisicamente mau (“dano/injúria/calam idade/desastre”). O (cf. Pv 12.21).
Atingirá (o ‘ãná Pual III = “ser feito para acontecer com ”). D esgraça
(nega) ecoa “peste” (deber, v. 3b, 6a). O “mal” ecoa “pavor” e “flechas”
(v. 5)? O fato de o versículo 10 ser uma reprise de 3-8 encontra apoio
adicional nos respectivos predicados dos dois substantivos sinônimos
traduzidos p o r “peste”: Chegará (yiqrab) reprisa “nada o atingirá” (nãgas,
7b). Os dois verbos ocorrem com o paralelos em Isaías 65.5. À sua tenda
é o local adequado para um rei na batalha (cf. ISm 4.10, 17.54; 2Rs 7.7);
sua interpretação frequente com o alusão à vida nôm ade não se ajusta à
cena holística do cam po de batalha.
2. Capacitação angélica, 11,12
Os versículos 11-13 são unificados de form a gramatical e semântica.
O s anjos são os sujeitos dos versículos 11,12 e o tema da progressão do
movim ento os unifica: “cam inhos” (v. 11), “tropece/pés” (12), “pisotear”
(13). Para atingir o ponto culminante, o profeta garante ao rei que os an-
jos o protegerão/cuidarão (11), preservarão seus pés de tropeçarem em
um a pedra, o que acabaria com sua missão (12), para que você pise na
cobra e no leão (13). Só agora o poeta revela porque o rei trava a batalha:
exterm inar o inimigo.

81 BDB, p. 963, s.v. sim , süm I, §3d.


102

a) O rei é protegido em todos os seus caminhos, 11


Seus anjos (maíãkãyw) são espíritos sobrenaturais e incorpóreos que po-
dem assumir aparência e função corporais com o mensageiros (cf. 103.20).82
Com o D eus declarou a Moisés: “Eis que envio um anjo à frente de vocês
para protegê-los por todo o cam inho” (Êx 23.20), portanto, agora, ele
declara ao rei: para que 0protejam em todos os seus caminhos e deste m odo conduz
a história da salvação à sua conclusão apogística.83 E le dará ordens significa
que o E u Sou, o Altíssimo, fala com o superior com autoridade e poder.
b) Os anjos impedem o rei de tropeçar, 12
A imagem da pedra de tropeço se originou da paisagem rochosa das
m ontanhas da Judeia, onde não havia estradas pavimentadas, até sua cons-
trução pelos rom anos.8485As asas protetoras de Deus (querubim?) agora
admitem as mãos dos anjos (v. 4,12a), e a pedra de tropeço substitui o
laço (3,12b). Com as mãos (calkappayinifs eles 0 segurarão conota “suportar,
sustentar”.86 Hakham com razoabilidade, mas quase sem documentação,

82M a fã k significa “mensageiro”, traduzido nas maioria das versões como “men-
sageiro” — quanto se trata de um ser humano — e como “anjo” — quando se
dirige a um ser divino. No céu, os incontáveis anjos que permaneceram leais a
Deus têm a função de louvá-lo (Ap 5.12) e serem criaturas intermediárias ligando
céu e terra, em Salmo 91.11,12. No famoso sonho de Jacó, ele viu anjos subindo
e descendo em uma escada que se estendia do céu até Betei, demonstrando que
Betel era o eixo entre céu e terra (Gn 28). Hoje esse eixo éjesus Cristo fio 1.51).
Os anjos são excelentes em sabedoria e poder. Davi é comparado com lisonja a
um anjo de Deus pelo rei filisteu Aquis, pela mulher sábia de Tecoa e pelo filho
de Saul, Mefibosete (ISm 29.9; 2Sm 14.17,19.27). O salmista descreve os anjos
como “poderosos que obedecem à palavra do E u S o u " (SI 103.20). Muitas vezes
cumprem missões particulares em nome de Deus, como tornar bem-sucedida a
procura da noiva de Isaque pelo servo de Abraão (Gn 24.7). O anjo do E u S o u
se acampa ao redor dos fiéis (SI 34.7) e caça os inimigos do rei (SI 35.5). Eles
permanecem “espíritos ministradores enviados para servir àqueles que hão de
herdar a salvação” (Hb 1.14; cf. Mt 18.10; At 5.19,20; 10.22; 12.7-11).
83Sam ar pode também ser traduzido por “cuidar” (v. SI 99.7, ARA; cf. Gn 28.20,
NVI). Nesses contextos o termo “caminhos” é empregado “de modo figurado
como curso da vida ou ação, realizações” (BDB, p. 203, s.v. derek, §5). A metáfora
pressupõe a ação adequada para realizar o propósito desejado.
84Veja Alter, The B ook o f Psalms, p. 323.
85 Cf. ISm 5.4: ka p p ô tyã d ã yw (“palmas de suas [de Dagom] mãos”).
86 BDB, P. 671, s.v. nãsa, §2c.
103

sugere: “Essa é uma imagem baseada na prática: quando a nobreza ca-


minha em um lugar difícil, os servos a carregam”.87 O s anjos se parecem
com seres humanos: têm mãos, não asas.88 Para que você não tropece em
alguma pedra podería causar a queda de um penhasco para a m orte. Sa-
tanás, possivelmente, com preendeu o texto dessa form a (Lc 4.9-12). Em
outras palavras, o rei caminha com segurança (cf. Pv 3.23). A na canta no
hino patriótico: “Ele guardará os pés dos seus santos” (ISm 2.9). Satanás
usa essa prom essa para tentar o Filho de Deus, para que ele se lançasse do
pináculo do tem plo (Lc 4.9-12) a fim de desviá-lo da missão de esmagar
a serpente (G n 3.15). Se Jesus tivesse agido assim, teria testado D eus e
desobedecido à palavra divina, im pedindo sua missão.
3. Pisotear animais selvagens, 13
O versículo 13 está ligado aos versículos 11,12 de muitas maneiras:
retórica — pelo tema da progressão do m ovim ento (v. acima), semântica
— ao responder a pergunta sobre o motivo de os anjos protegerem o rei,
e gramatical — por “você”. Vocêpisará significa subjugação (cf. D t 33.29;
Jó 9.13; M q 1.3; H b 3.15). “Pisar” é intensificado para pisotear (tirm õs )
tam bém em Isaías 63.3. R ãm as denota “bater com os pés, pisar sobre”;
conota fazê-lo de maneira muito severa, cruel, intensa e resulta em esmaga-
mento, contusão, ferimento e destruição. O rei heroico pisoteia em triunfo
o leão forte e faminto (ka p p ir , 13b) e o leão (sa h a l, 13a — um term o que
pode conotar sua associação com o sobrenatural; veja nota 20). Serpente
(tannin) pode expandir o sentido para cobra (peten), pois o term o pode
tam bém ter inferências de um m onstro m arinho sinistro. E m bora ambos
os term os, com o 'sahal, possam obscurecer a fronteira entre o natural e o
sobrenatural (v. notas 21, 22). A vara de Moisés foi prim eiro transform a-
da em um a cobra e em seguida em uma serpente (ta nn in , Ex 7.9). Essas
figuras zoom órficas simbolizam os milhares de ímpios caídos em volta
do rei; os anjos não vêm ao socorro do rei apenas para que ele possa pisar
um a cobra e um leão. Os reis pisoteiam inimigos políticos, que, como

87 Psalms, p. 366.
88 Manoá não reconheceu o anjo do E u S o u até seu retorno após a ascensão em
chamas (Jz 13.21). Marcos diz que as mulheres que entraram no túmulo de Jesus
“viram um jovem vestido de roupas brancas” (Mc 16.5) e Lucas afirma que “dois
homens com roupas que brilhavam como a luz do sol colocaram-se ao lado delas”
(Lc 24.4). Nenhuma dessas narrativas menciona asas.
104

sabemos no NT, são energizados por forças demoníacas.89 E m suma, a


c o b ra /serpente e o leão/leão forte não são animais reais, mas símbolos
dos inimigos políticos e históricos de Israel e dos poderes espirituais que
os inspiram e lhes dá poder.90
Estança III (Deus fala): Declarações ao rei, 14-16
N a liturgia de Israel, Deus concede ao fiel a segurança de que suas
orações serão respondidas (cf. SI 12.5[6]; 46.10[11]; 60.6[8]; 75.2[3];
81.7[8]; 95.8). Porém, nessa estança Deus transm ite confiança ao rei ao
falar sobre ele, não para ele; “uma form a de ouvir com eficácia própria”.91
O versículo introdutório da terceira estança, com o os versículos 9-10 da
segunda estança, reprisa os versículos 1-4: “Porque ele me ama” (14a; cf.
v. 2) e “conhece o m eu nom e” (14b; cf. v. 1,2), Deus prom ete libertar (14a;
cf. v. 3) e protegê-lo (14b; cf. v. 4). As declarações do E u S o u consistem
em dois setes divinos: sete versetos ascendentes (o v. 15 tem três) e sete
verbos de salvação para “ele” com o “eu” com o sujeito, centrado em torno
de “eu [estarei] com ele”.

89 O Ureu — a forma de uma cobra estilizada, na posição vertical — exibido com


proeminência como ornamento da cabeça na coroa do faraó. Ele simbolizava
sua soberania, realeza, deidade, autoridade divina e reforçava seu direito sobre a
terra. De igual modo, os poetas de Israel usaram a serpente/o monstro marinho
para simbolizar o Egito antigo (Is 51.9; Ez 29.3). Em Ezequiel 32.2, o faraó é
comparado a “um leão entre as nações” (kappir gôyirri) e “um monstro na água”
(tanriim bayyam níim ) e em Jeremias 51.34, Nabucodonosor é comparado a uma
serpente (tanriim ) e a um leão Ç aryèh). No princípio da história da salvação, o
E u S o u fez um pacto com a humanidade que a semente da mulher esmagará a
cabeça da serpente (Gn 3.15). Paulo ecoa essas palavras em Romanos 16.20: “Em
breve o Deus da paz esmagará Satanás debaixo dos pés de vocês”. No Testamento
de L evi 12.18, o novo sacerdote “dará poder aos seus filhos [de Deus] para pisar
os espíritos maus”. Jesus ecoa essas palavras aos discípulos em Lucas 10.19: “Eu
lhes dei autoridade para pisarem sobre cobras e escorpiões, e sobre todo o poder
do inimigo; nada lhes fará dano”. Esses textos sobre o diabo e seus maus espíritos
e a derrota deles pelo E u S o u encontram eco em Apocalipse 12.
90 Para a associação de animais a reis, v. O. Keel, Symbolism o f the B iblical W orà A n -
dent N ea r E astern Iconograply and the B ook o f Psalms, trad. T. J. Hallett (New York:
Seabury, 1978), p. 84-6.
91 Goldingay, Psalms, p. 48.
105

Estrofe A: O amor por Deus e a salvação, 14


Ki novam ente introduz a nova seção (cf. v. 3,9), mas a conjunção
subordinativa agora é causativa (porque). E le me ama fala de atração em
relação a outro (cf. G n 34.8; D t 7.7; 21.11). A pureza interior, espiritual
do rei o capacita a ver o que é verdadeiramente belo: á perfeição absoluta,
transcendente do próprio Deus. Porque o olho dos ímpios é obscurecido,
eles não podem ver a verdadeira beleza, mas escolhem o repulsivo.92E , em
resposta, eu o resgatarei (]apallatehu). O Piel pit denota com mais precisão
“conduzir a um estado de segurança” (SI 18.43[44]; [48]49; 22.4[5]; 43.1;
144.2; cf. 17.13; 37.40; 71.4). E u 0 [protegerei] descreve com o m etáfora o
E u S o u pondo seu rei com segurança no alto (SI 59.1), acima do alcance
dos inimigos (cf. SI 139.6). Provérbios 18.10 expande a imagem: “O nom e
do E u S o u é uma torre forte; os justos correm para ela e estão seguros
[inacessíveis ao perigo]”. Pois conhece 0 meu nome (v. os quatro nomes usados
para Deus nos v. 1,2) que revela seu caráter. “Conhecer” conota posse
íntima, não só conhecim ento intelectual (v. 90.11) e pressupõe confiar-se
a outro (v. SI 9.10[11]) e atendê-lo (cf. lR s 8.43).93
Estrofe B: Mais do que oração respondida, 15
“Pois ele conhece o m eu nom e” prossegue naturalmente para “ele
me invocará, e eu lhe responderei” (cf. SI 50.15; Rm 10.9). E le clamará a
mim (cf. lR s 8.52) denota “atrair a atenção de alguém com o som da voz
para estabelecer contato”, enquanto e eu lhe darei resposta descreve a reação
ou resposta do E u Sou.94 Mas ele deve clamar, pois fracassar em recorrer
à única fonte de esperança equivalería à abdicação do trono, tornando-o
cúmplice dos malfeitores (cf. D t 22.24). A promessa é enfatizada pelo para-

92 O provérbio “a beleza está nos olhos de quem a vê” é famoso por parecer genuíno
à experiência humana universal. As pessoas têm idéias diferentes sobre a beleza.
O ditado é atribuído a Platão, mas apareceu impresso pela primeira vez, de acor-
do com o O xford D ictionary o f Q uotations, na obra de Margaret Wolfe Hungerford
(1845-1897). Lew Wallace (1827-1905) disse: “A beleza está nos olhos de quem a
vê”. O exagero dele, entretanto, não é famoso porque não parece verdadeiro. As
pessoas por intuição preferem pensar que a beleza é transcendental, um atributo
de ser ela mesma, como a verdade e a bondade.
93 Caquot, “Le Psaume XCI”, p. 36.
94 C. J. Labuschange, Π ^Ο Τ , 3:1159-60, s.v. q r .
106

lelo. A expressão na adversidade deriva-se da raiz que significa “ser limitado,


restringido, im pedido”95 e é aplicada ao sofrim ento extremo físico e /o u
mental e /o u ao estado de extrema necessidade ou infortúnio (Is 8.22). E u
Çãnõkí) é enfático, pois em outro contexto da estança “eu” é prefixado ao
verbo. Considerando que a conjugação prefixada no salmo foi interpretada
principalmente como um futuro específico, por razões estilísticas suprimos
estarei na oração subordinada substantiva objetiva indireta. Com ele significa
“com unhão e com panheirism o” e de m odo mais específico “prestar so-
corro” (v. lC r 12.19; cf. G n 21.22; D t 20.1,4; Js 1.5,9; Jz 2.18; 6.12).96 Vou
livrá-lo originariamente significa “retirar, puxar” (cf. Lv 14.40). N o que se
refere a vou cobri-lo de honra/exaltá-lo, H ugger argumenta com persuasão,
de acordo com 1Samuel 2.30 (“honrarei aqueles que me honram ”), que o
sentido de “honra” é um aprim oram ento da vida (“bênção”). Ele também
com enta que a quem Deus honra é honrado diante do próximo.97
Estrofe C: Longevidade e salvação, 16
Vida longa eu lhe darei significa prover alguém com a medida completa
e consum ada de expectativa, necessidade e desejo de vida. As antigas
versões traduzem Jõrek yãmim em sentido literal por “duração de dias” .
A expressão é ambígua. Ela pode se referir à vida longa term inada pela
m orte clínica (Jó 12.12) ou a “dias sem fim” sem a m orte terminal, clínica
(SI 21.4[5]; 93.5). A KJV, NAS, JPS, NJB, RSV, NIV, ESV e N LT de maneira
incoerente traduzem a expressão com o “para sem pre” ou seu equivalente
em Salmos 23.6, mas por “vida longa” em Salmos 91.16. O desejo de
alimento pode ser satisfeito no tem po por uma refeição, mas o desejo de
vida pode ser saciado apenas pela vida longa de verdade.98 E lhe mostrarei
denota “tornar visível para ele o que antes era invisível”. Com a preposição
If (v. bisuãtí), entretanto, significa mais específicamente “induzir a olhar
atentam ente para, induzir a olhar para com prazer”.99A minha salvação (yas
uãfi) se refere à justa libertação do rei por D eus dos infortúnios externos.

95IIA L O T , 2:1053, s.v. sãrà.


96B D B , p. 767, s.v. Hm, §la.a.
97 Hugger, J a h m meine Zuflucht, p. 275s.
98 Isaías profetizou sobre Jesus Cristo: “Depois do sofrimento de sua alma, ele verá
a luz e ficará satisfeito” (Is 53.11). Por “sofrimento”, Isaías expressa “ele faz de
sua vida uma oferta pelo pecado (Is 53.10).
99 B D B , p. 909, s.v. r a â Hiphil. §2a; cf. p. 907-8, s.v. rã ‫־‬a Qal, §8a(5).
107

O lexemavãwz' denota libertação nas esferas militar (cf.Jz 12.2; ISm 11.3)
e jurídica (2Sm 14.4): Deus liberta por ser essa a prerrogativa ou direito
do rei.100A salvação do mal, incluindo sua eliminação, consum a o propó-
sito da história sagrada (cf. SI 50.23). O Senhor Jesus Cristo já venceu a
m orte e no fim da história a eliminará (IC o 15.55). Pedro descreve assim
a igreja: aqueles “que, mediante a fé, são protegidos pelo poder de Deus
até chegar a salvação prestes a ser revelada no último tem po” (lP e 1.5).

Parte III. A voz da igreja em resposta


Com a referência ao “pavor da noite”, o salmo 91 é usado como
oração noturna na liturgia judaica. A igreja cristã o usa na quarta-feira de
cinzas, no início da quaresma, com o prelúdio à reflexão sobre os testes e
tentações que todos nós vivenciamos.
I. O caráter apotropaico do salmo 91
O salmo 91 tem sido usado com o apotropism o (i.e., com o poder de
afastar as influências maléficas) em todos os períodos de temores culturais,
do período do segundo tem plo até agora.101 Ele foi usado em resposta ao
tem or cultural de dem ônios na igreja primitiva e de novo, e m uito intensa-
mente, na Idade Média. O com entário bíblico medieval mais am plamente
usado, a Glossa ordinaria, se refere ao salmo 91 com o “um hino contra os
dem ônios” . N o auge da peste de 1533, na cidade de N urem berg, o líder
reform ado da cidade, Andreas Osiander, pregou um sermão associando
ljo ã o 4.18 (“o perfeito am or expulsa o m edo”) ao salmo 91, que tam bém
exorta a confiar em D eus.102 Im ensam ente popular, o serm ão foi reim-
presso por outros líderes nas cidades tam bém afetadas pelas epidemias
urbanas. Charles H. Spurgeon, no sermão sobre o salmo 91, com enta que

100J. Sawyer, “What Was a Mõsia‘?”,VT 15 (1965): 479. Sawyer nota que outras
palavras no domínio semântico de libertação [cf. v. 14] enfatizam ação violenta,
não intervenção invariável em nome da justiça.
101 V. a excelente pesquisa de Brennan Breed, “Reception of the Psalms: The Exam-
pie of Psalm 91”, em: The O xford H andbook o f the Psalms, ed. William P. Brown
(Oxford: Oxford University Press, 2014), p. 297-312. Para uma avaliação crítica
dessa obra, v. nota 47.
102 Ronald Rittgers, “Protestants and the Plague: The Case of the 1532/3 Pestilence
in Nuremberg”, em: Piety and Plague: From B yzantium to the Baroque, F. Mormando;
T. Vorcester, orgs. (Kirksville: Truman State University Press, 2007), p. 132-55.
108

os pregadores puritanos citaram o versículo 8 durante a peste de Londres,


em 1664.103 Spurgeon, além disso, afirma que um médico alemão no final
do século 19 prescreveu o salmo com o a m elhor proteção contra a epi-
demia de cólera.104
Frases do salmo foram escritas em amuletos apotropaicos, fetiches,
tigelas mágicas, casas e assim por diante, por muitos séculos, por judeus e
cristãos também. N a superstição popular e na piedade temerosa, nenhum
versículo de um salmo foi mais recitado que Salmos 91.7.
II. O salmo 91 como confissão na tentação
Satanás, ao presumir que Salmos 91.11,12 se refere a Cristo, cita os ver-
sículos durante sua tentação a Cristo (Le 4.9). Mais tarde, em Lucas 10.19,
o salmo é ecoado na resposta de Jesus ao fascínio dos discípulos sobre
o poder deles sobre Satanás, indicando sua autoridade sobre a esfera de-
moníaca. Os país do deserto, desde o século 3 em diante, relacionaram
essa tentação com as primeiras tentações de Jesus no deserto. Esse fato
se tornou fundamental para a difusão posterior do monasticismo.
III. Jerónimo (342-420)
Jerónimo, na Homilía 2 0 sobre o salmo, associa seu contexto ao retorno
do cativeiro da Babilonia, identificando “o abrigo do Altíssimo” com o
nom e de Esdras, que significa “ajuda”. “Com as suas penas, e sob as suas
asas você encontrará refúgio” é uma m etáfora adequada para um a galinha
com seus filhotes, com o o pai com seu filho.105
Com o seus colegas monges do deserto, Jerónim o aplica o salmo aos
ataques satânicos com uns ao estilo m onástico de sua vida. Ele dedica
particular atenção à “flecha que voa de dia” (SI 91.5) ou a que os pais do
deserto costumavam se referir com o “o diabo do meio-dia” — acedia.
Jerónim o não elabora sobre acédia com o “o diabo do meio-dia”, mas
ele, com João Cassiano (nascido c. 360),106 interpreta o salmo 91 com o se

103 Psalms, Alister McGrath; J. I. Packer, orgs. (Wheaton: Crossway, 1993), vol. 2,
p. 28.
104 The Treasury o f D a vid Spurgeon’s Classic W ork on the Psalms, D. O. Fuller, org. (Grand
Rapids: Kregel, 1976), p. 383.
105 The H om ilies o f SaintJerome, trad. Sister Marie Liguori Ewald, I.H.M., FC 48 (Wa-
shington, DC: Catholic University of America Press, 1964), vol. 2, p. 156-7.
106 Veja John Cassian, The Institutes, trad. Boniface Ramsey, ACW 58 (Mahwah:
Newman, 2009), p. 217-38.
109

ele ensinasse a meta dos pais e das mães do deserto e usa o salmo com o
tratado didático para o ensino do chamado de cada pessoa. Jerónim o
com preende o salmo inteiro no contexto da tentação, notavelmente as três
tentações de Jesus no deserto.107Jerónim o afirma além: o salmo inteiro se
refere a Jesus no deserto, que agora vive e reina.
IV. Agostinho de Hipona (354-430)
A gostinho pregou um a das homílias mais longas sobre o salmo 91
por mais de dois dias consecutivos.108Semelhante a seus contemporâneos,
Jerónim o e Cassiano, ele pregou a respeito desse salmo no contexto da
tentação de Jesus no deserto. As palavras introdutórias são: “Este salmo é
o citado pelo diabo quando ousou tentar nosso Senhor Jesus Cristo. Vamos
ouvi-lo e ficarmos alertas contra o tentador” .109 O cristão é convidado a
“aprender de mim, pois sou m anso e humilde de coração” (Mt 11.29).
A ênfase dele, então, é evitar a tentação quando se imita o exemplo de
Cristo.110 Humildes, fazemos isso com a ajuda do Altíssimo (v. 1-3). Agos-
tinho repete os pensam entos para enfatizar que nenhum cristão jamais
pode conseguir ser com placente (v. 7), autossuficiente ou individualista.
Para estar em harm onia com o tema central “do corpo inteiro de Cristo”,
o segredo para todos cristãos estarem unidos umversalmente, todos os
cristãos devem ser totalmente unidos nesses preceitos básicos de Salmos.111
A gostinho provê várias interpretações da “flecha de dia”, não apenas
com o o pior dos vícios, com o a interpretação de Cassiano e Jerónim o, mas
com o “m oderado”, não insistente. N o entanto, de maneira ambígua, ele
com preende que o texto pode refletir perseguição feroz também. Ele in-
terpreta tentações “da noite” com o as do ignorante, que não pode “vê-las”
no obscurecim ento da mente. Ele conclui que as três tentações de Jesus
no deserto expressam sua solidariedade conosco, ao se tornar humano.
Pelo fato de a natureza hum ana ser suscetível à tentação, Cristo foi tenta-
do para nos capacitar quando somos tentados em nossa hum anidade.112

107 The H om ilies o f SaintJerome, p. 161-3.


108 E xposition 1 o f Psalm 9 0 , em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding (Hyde
Park: New City, 2002), vol. 4, p. 315-44.
109 E xposition 1 o f Psalm 9 0 1 (Boulding, p. 315).
110 Ibid., 3-4 (Boulding, p. 317-9).
111 Ibid., 9-10 (Boulding, p. 321s.)
112 Ibid., 7 (Boulding, p. 321).
110

A tentação tripla do Senhor: a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e


a ostentação dos bens são as que temos que vencer mediante a habitação
de Cristo. Isso se tornou a base moral dos votos triplos do monge. A
mensagem final é que Satanás será derrotado no final (v. 13) e com a li-
bertação dos santos de Cristo, “a vida longa” (v. 16) se torna a perspectiva
da vida eterna.113
E m conclusão, com muita praticidade, Agostinho nos lembra que nos-
sa segurança não reside na dispensa nem nos depósitos, não no dinheiro,
tam pouco nos cofres, mas “sob as asas de D eus” .114
V. Bernardo de Claraval (c. 1090-1145)
M encionamos no prim eiro volume com o o movim ento monástico
se propagou nas terras célticas, da N ortúm bria e mais tarde nas terras
germânicas do Im pério Carolíngio.115 A excelente história da recepção
da exegese de Susan Gillingham116 traça além da ascensão do movim ento
escolástico associado a Anselmo na N orm andia, os Vitorinos em Paris e
H erbert de Bosham na Inglaterra. Mas curiosamente, ela ignora totalmente
os cistercienses, de quem Bernardo de Claraval é o em inente porta-voz.
Ninguém reform ou com mais efetividade a vida monástica beneditina
no novo avivamento do m ovim ento cisterciense que Bernardo de Clara-
vai. Sendo ele quem nos fornece as séries mais extensas de meditações
no salmo 91 recebidas até os tem pos m odernos, o restante do estudo da
recepção é dedicado a seus escritos. Ele reflete mais sobre este salmo até
que a maioria dos eruditos modernos.
A reforma do monasticismo sob os cistercienses
Tornou-se costum e sob o feudalismo que os filhos dos aristocratas
— meninos e meninas — sem par para o casam ento devessem ser adota-
dos pelos beneditinos e perm anecessem com eles com o monges e freiras
pelo resto da vida. Sua herança era doada aos monastérios e conventos
beneditinos, concedendo aos monges grande riqueza. B ernardo e seus
com panheiros revogaram essa prática desumana. E m vez disso, Bernardo,

113 Ibid., 20 (Boulding, p. 343).


114 Ibid., 5 (Boulding, p. 319).
115 Waltke; Houston, Os Salmos como adoração crista, p. 60-2.
116 Psalm s Through the Centuries, Blackwell Bible Commentaries (Malden: Wiley-
Blackwell, 2008).
111

seus irmãos, um tio e alguns amigos estabeleceram um novo exemplo para


entrar na vida monástica com o adultos sacrificiais, deixando para trás a
riqueza a fim de viver na pobreza e praticar um a nova form a de vida. Foi
uma reform a que renunciou totalm ente à cultura feudal.117
O tem a central da salmodia cisterciense consistia em exaltar o nom e
do Jesus menino, que cresceu misteriosam ente da puberdade para o H o-
m em Jesus. Elredo de Rievaulx, discípulo de Bernardo, medita sobre ele
na obra, D e Iesupuero duodenni [Jesus aos doze anos].118
Mas a reform a cisterciense tam bém desafiou a ascensão do individua-
lismo no século 12 e com isso a ascensão do corrupto e orgulhoso esco-
lasticismo; um a aberração arraigada no individualismo. Pedro Abelardo
se tornou o grande exemplo dos dois movimentos, similares à revolução
tecnológica enaltecida na cultura contem porânea e o consequente narcisis-
mo. É óbvio que a humildade e o orgulho têm expressões imensas com o
também sutis, como sempre tiveram e terão. Mas a hubris flagrante é sempre
autodestrutiva. Ela destruiu Abelardo na época de Bernardo. N ão que o
próprio Bernardo sempre fosse tão humilde quanto ele escreve e prega
a respeito.119 Todos nós tendem os a lutar contra nossas inconsistências
pessoais e irônicas.
As homílias de Bernardo sobre o salmo 91
Exatamente como muitos dos salmos unem o mitopoeico ao histórico,
Bernardo fundiu o metafórico ao literal nas meditações sobre os salmos.
Bernardo enfatiza a alegoria, com o hoje percebem os mais que nunca que
a linguagem de D eus só pode ser metafórica. E m uma coleção extraor-
dinária de homílias para introduzir a tem porada quaresmal, Bernardo
com partilha com os monges 17 meditações sobre o sentido da conversão,
desde a conversão cristã até o chamado radical para se tornar m onge no

117James M. Houston, “Bernard of Clairvaux: Lover of God as the Lover of Jesus”,


em: Sources o f the Christian Self,)■ames M. Houston; Jens Zimmermann, orgs. (Grand
Rapids: Eerdmans, 2018), p. 294-311.
118 “Jesus at the Age of Twelve”, em: Treatises: The Pastoral Prayer, trad. Theodore
Berkeley (Kalamazoo: Cistercian Publications, 1971).
119Jane Foulcher, Reclaim ingH um ility: Four Studies in the M onastic Tradition (Collegeville:
Liturgical/Cistercian, 2015), p. 239-40.
112

século 12. É isso que Charles Taylor chamou metanoia, mudar de paradigma,
para reinterpretar o senso e sentido da realidade.120
Bernardo de Claraval havia retornado da visita à Universidade de
Paris, onde viu e ouviu a voz de Abelardo e seu grupo de alunos. E m res-
posta, B ernardo usa o salmo 91 para reunir as mesmas audiências à nova
realidade e para proporcionar conforto, segurança e coragem aos colegas
monges, já no novo estado “da conversad’. Isso significa fundamentalmente
experimentar a m orte para a form a antiga de viver, com o o apóstolo faz
em Romanos 7, buscar a nova form a de ser, com o em Romanos 8.121
A m elhor maneira de começar, Bernardo argumenta, é reconhecer
quem não habita sob a sombra do Todo-poderoso (SI 91.1) ao lhes perceber
a rebelião, a confiança na riqueza e erudição, e então perguntar para o pró-
prio bem-estar: O que isso acrescenta? Por que alguém deve viver assim,
refugiando-se nos próprios méritos, nas próprias tragédias ou nos próprios
vícios? A o m esm o tempo, isso não nos torna “seres angélicos” com o os
pais do deserto procuraram ser. Perm anecem os humanos, “refugiados”
sob o Todo-poderoso, não “habitando” ali em caráter perm anente.122 O
“refúgio” está na gratidão e louvor, de m odo que ao tropeçarm os, pode-
remos com eçar cantando de novo; de fato, com o o musical da Broadway
o expressa: “Cantando na chuva! Apenas cantando na chuva!”.
Bernardo poderia nos cansar, pois ele expõe o salmo 91 em 17 homi-
lias. N osso resum o não faz justiça à habilidade dele com o doutor da alma.
O doutor da alma não só “nos ajuda”; ele “nos examina” para nos dar
esperança quando clamamos: “M inha esperança está em D eus” (SI 91.2).
Portanto, precisamos de libertação da voz m undana — dos “caçadores”
— de suas armadilhas de sedução, riquezas, lisonjas e assim por diante
(SI 91.3). Somos então “envolvidos” nos om bros largos de Cristo, por
meio de suas promessas para este m undo e o vindouro. N isso se baseia
nossa esperança. Assim vigiamos e oram os para não cairmos em tentação
(Mt 26.41; SI 91.5). A adversidade acontecerá a nós todos (SI 91.6) na ago-
nia das “trevas”, em nosso jardim do Getsêm ani e “na flecha que voa de

120 The Skilled Pastor: Counseling as the Practice o f Theology (Minneapolis: Fortress, 1991),
p. 137ss.
121 Sermon on the Psalm “H e Who D w ellP , em: Sermons on Conversion, trad. Marie- Bernard
Said (Collegeville: Cistercian, 1981).
122 Ibid., p. 123
113

dia” das vaidades sutis. C om o outros comentaristas antes dele, Bernardo


percebe que as batalhas mais violentas — contra “dez mil” — ocorrem
onde cremos ser mais autoconfiantes. Já onde somos mais conscientes (i.e.,
praticando mais humildade), a batalha é mais moderada. Mas ele multiplica
as metáforas e alegorias em um versículo principal que associa à tentação
humana. Todas essas coisas podem os observar, não separadamente, mas
para exercer “consideração”,123que ele formula para seu discípulo, o bispo
de Roma, o papa cisterciense Eugênio III, em D e consideratione [Sobre a
consideração] em 1145.124
A segunda porção do salmo (v. 9-13) agora se insere no período de
tranquilidade, ao qual Bernardo responde de maneira diferente. Agora, ele
reflete com ternura sobre “o fim de nossa peregrinação, a recom pensa de
nossos labores, o fruto do cativeiro. [...] Com o o apóstolo declara: “Pois
assim com o os sofrim entos de Cristo transbordam sobre nós, tam bém
por meio de Cristo transborda a nossa consolação” (2Co 1.5).125126N ão
devemos falar de nossa esperança em Deus com o um cliché, mas com o
a realidade vivida em destituição, provada pela fé profunda e perm anente,
com a esperança não apenas de ser dele, mas tam bém de habitar nele
Bernardo enfatiza que o versículo 10 (“N enhum mal o atingirá, des-
graça alguma chegará à sua tenda”) só pode ser cum prido caso se refira ao
bem -estar do corpo (“a tenda”) ou ao espírito quando vivemos a realidade
de que “a verdadeira vida da alma é D eus”.127
O versículo 11, citado por Satanás na segunda tentação a Jesus, con-
fere a todos nós muita razão para sobriedade, pois podem os usá-la de
maneira dem oníaca e arrogante. Bernardo reconhece quatro formas em
que isso pode acontecer: a) ao “fechar os olhos” para a própria pecami-
nosidade ao se valer de todos os tipos de desculpas; b) pela ignorância da
própria condição traumática; c) pela presunção de se defender; e d) pelo
desprezo e im penitência.128 O s anjos ministram “não para desviá-lo de
seus caminhos, mas por orientá-lo de seus caminhos para os caminhos

123 Sermon on the Psalm “H e W ho D wells".


124 “On Consideration”, em: B ernard o f Clairvaux: Selected W orks, trad. G. R. Evans,
The Classics o f Western Spirituality (Mahwah: Paulist, 1987), p. 145-72.
125 Sermon on the Psalm “H e W ho D w ells”, p. 1823‫־‬.
126 Ibid., p.187-91.
127 Ibid., p. 196.
128 Ibid., p. 205-6.
114

D ele”.129 Aqui Bernardo fala a nós com o cristãos que já pensam viver a
vida virtuosa com benefícios sociais para outros, mas cujos motivos são
erroneam ente fundam entados na própria “natureza boa”, não no caráter
de Deus. “Porque não somos autossuficientes para pensar algo por nós
mesm os ou devido a nós m esm os” (2Co 3.5).
N a Homilía 12, Bernardo recorre ao versículo 12. “O ministério an-
gélico” consiste em elevar-se em contemplação para procurar a verdade
e então descer em misericórdia “para proteger-nos em todos os nossos
cam inhos”. Significa apenas imitar Cristo em todos os seus caminhos. O
único motivo deles é o amor, pois só o amor divino deve envolver, direcionar
e sustentar toda a nossa form a de viver e ser. Mas ao contrário dos anjos, que
ascendem e descendem do reino celestial, devemos viver com coerência na
terra, sendo mais “hum anos” que antes.130Mas na com preensão de nossa
humanidade, podem os “chutar uma rocha”, que Bernardo interpreta como
a hum anidade de Cristo (Mt 21.44), que decepcionou Pedro (Mt 16.22),
como pode decepcionar todos os pretensos discípulos. Poderiamos dizer
que isso é uma “decepção” para os unitarianos, as Testemunhas de Jeová, e
para todo o m undo muçulmano, pois Cristo é hum ano e divino.
B ernardo então analisa “os inimigos de nossa alma” : a “cobra”, a
inocular o veneno do engano; o “basilisco” com veneno no olho invejoso;
o “leão” com ódio veem ente e a ira cruel do “dragão”. Essas metáforas
vividas exigem que permaneçamos vigilantes e nos impedem de “tropeçar”
no que podem os ser enganados em considerar a vida normal. Bernardo
associa essas quatro bestas letais às “quatro” tentações no deserto: a pri-
meira é que simplesmente os seres hum anos são tentáveis, da qual outras
três procedem . Tão logo estejamos alertas contra um vício, então outro
está à espera.131
Com satisfação, chegamos às duas últimas estanças desse salmo de
libertação. “Vamos agradecer”, exorta Bernardo, “ao nosso Criador, nosso
Recompensador, nosso Benfeitor, nosso R edentor”. Porque ele nos pre-
serva: “Somos Dele, a quem ele fez, e não de nós m esm os” . N ós temos a
imago D ei , conferindo-nos todo o necessário para expressar “Sua imagem

129 Ibid., p. 211.


130 Ibid., p. 212.
131
Ibid.
115

e sem elhança” .132 Justaposto às quatro tentações hum anas, Bernardo


reconhece D eus sem seu caráter quádruplo (Criador, Recompensador,
Benfeitor e Redentor) nos três últimos versículos do salmo. Bernardo
identifica esses versículos com o o E u S ou promete com o convite definitivo:
“Venham a mim [...] e eu lhes darei descanso” (Mt 11.28). Convidando-nos,
então, a carregar o “fardo” de Cristo, “cujo jugo é suave”, B ernardo per-
gunta: “O que é então o fardo de Cristo?”. Ele responde: “É o fardo de seus
benefícios”.133Em um triplo cuidado: libertando-nos, protegendo-nos, e nos
acom panhando na aflição, Deus provê esse “descanso para nossas almas”.
Cada um vive em harm onia com o outro. Essa “proteção” é encontrada
som ente em “Seu N om e”.134
“A magnitude de nossa necessidade força um clamor intenso”.135
Bernardo vê esse clamor (v. 15) com o não menos que um a aliança de paz,
um acordo de piedade, um pacto de compaixão e misericórdia. D e fato,
seis promessas são feitas a nós nessa aliança divina: libertação, proteção,
atitude, longevidade, satisfação e dem onstração da salvação de Deus.
O apóstolo abrange todas as promessas na declaração: “A piedade tem
prom essa da vida presente e da futura” (lT m 4.8). Isso verdadeiramente
é glória magnifícente, o prazer eterno de nosso Deus.
N ão muitos psiquiatras cristãos hoje têm essa profundidade de dis-
cernim ento com o Bernard exerceu na exploração da alma no século 12.
Com o notam os, B ernardo era um hom em m uito complexo: de paz, no
entanto, foi persuadido pelo papa Eugênio III a apoiar a Segunda Cruzada
e capaz de ser muito cruel com os inimigos, com o dem onstrou a Pedro
Abelardo. Contudo, na hinódia, ele se expressou com o um a criança e foi
altamente sofisticado para ensinar suas homilías.
U m exegeta bíblico capacitado, Bernardo segurou com clareza as
Escrituras nas duas mãos. E m uma, ele lia e contemplava o salmo 91, na
outra, ele se referia constantem ente às epístolas de Paulo. Ele parecia cien-
te de que o próprio apóstolo foi beneficiado pela absorção do salmo 91.
Bernardo é de fato “o último dos pais”, com o foi louvado mais tarde pelos
reform adores do século 16.

132 Ibid.
133 Ibid., p. 239.
134 Ibid, p. 245.
135 Ibid, p. 246-7,
116

Parte IV. C onclusão


D e acordo com o destaque na introdução (v. p. 30-31), o Livro IV
do saltério (SI 90— 106) responde à crise da fracassada linhagem de Davi
(SI 89) ao redirecionar a confiança no reino eterno de D eus e o louvor a
ele. Mas o E u S o u não reina isolado da linhagem de Davi. Ele prom eteu
sob juram ento que ela governaria seu reino para sempre. As profecias
podem falhar devido às circunstâncias alteradas, mas os juram entos divi-
nos jamais falham.136 N o salmo 91, o filho ideal de Deus expressa a fé no
Deus de Abraão, Isaque e Jacó, a quem Deus igualmente fez um juramento
irrevogável. E Deus prom ete protegê-lo do perigo e da peste e revesti-lo
de poder para exterm inar o leão e a serpente, símbolos dos ímpios sobre-
naturalmente poderosos. Coligido no Livro IV no fim do exílio babilónico,
ele se tornou parte de muitas profecias sobre o Messias (v. “M essiânico”,
acima), o Senhor Jesus Cristo, o Filho de Davi, o Filho de Deus.

136 Profecias são mutáveis (v. Jr 18), mas juramentos não (v. SI 110.4; Hb 6.17,18).
Veja R. L. Pratt Jr., “Historical Contingencies and Biblical Predictions”, em: The
Way o f Wisdom, Essays in H onour o f Bruce K W altk e f . I. Packer; Sven K. Soderlund,
orgs. (Grand Rapids: Zondervan, 2000); Robert B. Chisholm, “When Prophecy
Appears to Fail, Check Your Hermeneutic”,fE T S5?> (2010): 561-77; Matthew H.
Patton, H ope fo r a Tender Sprig. Jehoiachin in B iblical Theology, BBRSup 16 (Winona
Lake: Eisenbrauns), p. 202-5.
4

Salmo 92: Tu, Eu Sou, és o altíssimo


eternamente!

Parte I. A voz do salm ista : T radução


1 Com o é bom render graças ao E u S o u e cantar louvores ao teu nom e,1
ó Altíssimo,
2 anunciar de m anhã o teu am or leal e de noite2 a tua fidelidade,
3 ao som da lira3 de dez cordas e da citara, e da melodia4 da harpa.
4 Tu me alegras, E u Sou, com os teus feitos;5 as obras das tuas mãos
levam-me a cantar de alegria.
5 Com o são grandes as tuas obras, E u Sou, com o são profundos os teus
propósitos!
6 O insensato não6 entende, o tolo não vê7

1 A mudança do salmista dos destinatários, da congregação para o E u S o u e vice-


versa é comum nos poemas litúrgicos do saltério. Isso acontece porque ele e a
congregação estão em adoração diante do Deus vivo.
2 A tradução do plural como plural de composição.
3 A tradução de “com dez cordas e com a harpa” como uma hendíade.
4 H iggãyôn deriva do lexema hãggã, que é empregado para o “arrulhar/gemer de
um pombo (Is 38.14); o “rugido” de um leão (Is 31.4); e para os seres humanos:
“ler em voz baixa” (SI 1.2), “emitir um som” (115.7); e “lamentar” (Is 16.7). O
substantivo é também traduzido como “murmúrio” (Lm 3.62), “meditação”
(SI 19.14), “uma direção musical” com selà (SI 9.16).
5 A tradução de p õ ‘a l como um coletivo singular.
6 4QPsb registra 'y sh cr wV y d ' (“uma pessoa bestial e não conhece”, cf. SI 73.22a),
tornando 92.6a uma sentença fragmentada.
7 A tradução ,e t z õ ‘t (“vê”) como prospectivo, olhando à frente para o v. 7, não
como retrospectivo, olhando para trás para o v. 6.
118

Ί que, em bora os ímpios brotem com o8 a erva9 e floresçam10 todos os


malfeitores, serão11 destruídos para sempre.
8 Pois12 tu, E u Sou, és exaltado13 para sempre.
9 Mas os teus inimigos, E u Sou, os teus inimigos perecerão; serão dispersos
todos os malfeitores!

8 Marvin E. Tate (Psalms 51— 100, WBC 20 [Dallas: Word, 1990], p. 460) com-
preende kam ô eseb como apódose (= “ [eles são] como erva”). Ele citajó 27.14
para justificar a tradução similar e observa o p a seq depois de biparõah ra sa im .
Entretanto, o athnah com ’ãven em 92.7 [8] aP sugere que os massoretas compre-
enderam 7[8]b como a apódose de 7[8]aCC e 7[8]aP, isso é assim interpretado nas
versões antigas e modernas.
9 O termo 'eseb se refere às ervas em geral, para alimentar e para alimento.
10 O vav narrativo, depois da preposição com infinitivo, aponta para uma situação
histórica passada (GKC, 114r; cf. Lv 16.1; lRs 18.18; SI 105.12; Jó 38.7,9ss).
11 O verbo de movimento é inferido da preposição la (IB H S ', §11.4.3d).
12 Quase todas as versões inglesas seguem a LXX e a Vulg. e traduzem o ambíguo
vav por “porém”. Entretanto, a transcendência do E u S o u (v. 8 [9]) não se opõe à
aniquilação dos ímpios (v.7[8]). A gramática hebraica, ao contrário da gramática
portuguesa, comumente usa a parataxe para indicar relações hierárquicas (= “pois”,
IB H S , §39.2. lc).
13Traduzido como acusativo adverbial, mesmo na oração subordinada substantiva
{IB H S, §10.2.2b).
119

10 T u14 aum entaste a m inha força com o a do boi selvagem; derram aste15
sobre mim óleo novo.16
11 Os meus olhos17 contem plaram a derrota18 dos meus inimigos;19 os
meus ouvidos escutaram a debandada20dos meus maldosos agressores.

14 Lit. “e tu”. Algumas versões inglesas o traduzem por “porém” (KJV, ASV, ERV,
NAS, NRS, ESV, NLT) e outras o omitem (NIV, NET, CSB, NAB, NJB). A tra-
dução adversativa atropela o vav narrativo. As vezes, como aqui, o vav narrativo
não tem ação antecedente e é melhor ser omitido.
15 Em relação à gramática de b a lliõ ti, Tate (Psalms 51 — 100, p. 462s.) concorda com
D. G. Pardee e entende “boi selvagem [como chifre]” como o objeto de b a llõfí
(“que eu derramei o óleo fresco”). Isso encontra apoio em um paralelo ugarítico:
“Seu chifre poderoso, garota Anat,/Baal ungirá seus chifres poderosos \ym 'sh\/
Baal os ungirá na partida/Vamos derrotar meus [de Baal] inimigos na terra” (cf.
ANET, p. 142). Quanto à lexicografía de b a llõ fí, Tate está de acordo com E. Ku-
tch (Salbung ais Rechtsakt, BZAW 87 [1963]) e demonstra que m asah basicamente
significa “tornar untuoso/tornar oleoso/esfregar óleo em”. Em acréscimo,
argumenta-se que “o emprego paralelo de b ã la l com m ãsah nesses textos como
Êxodo 29.2; Levítico 2.4; 7.12 e Números 6.15 indica que ele também pode ter
o sentido “tornar untuoso (com óleo)” e então “besuntar/esfregar em/ungir”.
Além disso, “tornar untuoso/oleoso’ pode ser uma metonimia para “esfregar/
besuntar”. A imagem de esfregar um chifre com azeite provavelmente pretendia
elevar ampliar a vitalidade, euforia e orgulho que o chifre representava por fazê-lo
brilhar e isso é parte da imagem de vitória do v. 10[1 l]a.
16 D. Winton Thomas (“Algumas observações sobre a palavra hebraica ]]Γ"Ί em
Hebràische Wortforschung. Festschrift %um 80. Geburtstag von Walter Baumgartner, VT-
Sup 16 [Leiden: Brill, 1967], p. 387-97) demonstra com erudição que quando
ra ‘ãnãn é usado em relação às árvores, ou às folhas ou galhos, o termo deve
ser traduzido por “carregado de folhas, exuberante, denso, alastrado” e não por
“verde”.
17Lit. “meu olho”.
18R a â com a preposição ba pode significar “olhar com exultação” (BDB, p. 908,
s.v. rà"à, §8a), um sentido que pode ser estendido aqui ao seu sinônimo nãbat
(SI 91.8; 92.11a).
19A tradução da raiz de Ifsü ra y como sü r II, “contemplar, olhar fixamente” significa,
com “maldosos” como o sujeito, “vigiar (insidiosamente)” (The Concise Dictionary
o f Classical Hebrew [Sheffield: Phoenix, 2009], p. 454, s.v. sür, #3). Compare “es-
preitar” (Os 13.7, NVI), “à espreita” (Jr 5.26, NVI). No Salmo 92.11 [12], a NET
o traduz por “tentaram emboscar” e a JPS por “estão à espreita para”.
20 O objeto de “ouvir” é incerto. As traduções literais da NAS “meus ouvidos
ouvem dos maldosos que se levantam contra mim” e da LXX “meus ouvidos
120

12 O s justos florescerão com o a palmeira, crescerão*21 com o o cedro do


Líbano;
13 plantados22 na casa do E u Sou, florescerão nos átrios do nosso Deus.
14 M esmo na velhice23 darão fruto, permanecerão viçosos24 e verdejantes,
15 para proclam ar25 que o E u S o u é justo. Ele é a m inha rocha; nele não
há injustiça.26

PARTE II. COMENTÁRIO

I. Introdução

Forma
À parte dos sobrescritos prosaicos, que fundam entam o livro de Sal-
mos em dados históricos, todos os salmos são poesia (v. p. 38-40).
Cântico de ações de graças
O sobrescrito [heb. v. I]27 convoca músicos para entoar o cântico com
o acom panham ento de instrum entos musicais (v. p. 40-1). O versículo 1
especifica o cântico como “cântico de ação de graças” (i.e., um testemunho,

ouvirão os maldosos que se levantam contra mim” não são, respectivamente,


convincentes e ambíguas. O BDB (p. 1033, s.v. s m \ §ld) afirma: sarna com b
determinando um substantivo próprio significa “ouvir com exultação sobre a
ruína deles (provavelmente reproduzido do h ib b it b‘ paralelo)”. Assim, qualquer
objeto que capture essa noção pode ser provido: “o som da destruição” (Tg), “os
derrotados lamentam de” (NET), “debandada” (a maioria das versões inglesas),
etc. Um texto de Qumran registra sm c (= sa rn â “ouvi”), uma leitura facilitadora
com w attabêt.
21 O denominado masculino hebraico é uma forma ignorada e pode se referir a um
desenho feminino (I B H S §6.5.3a).
22 Plural em hebraico, modificando a palmeira e o cedro do Líbano.
23 Literalmente “cabelo grisalho”, um símbolo da velhice.
24 Desta forma também o BDB, p. 206, s.v. dasen.
25 A tradução do lehaggld inf. como circunstancial, um gerundivo (e.g, “fazendo”,
GKC, 1140), identificando o E u S o u como o Agente de seu estado bendito. E
também traduzindo ki depois de um verbo de elocução, como que introduzindo
a citação.
26 Kethiv se traduz por £õ ld tã , Q uere por caw là, sem diferença de sentido.
27 A versificação hebraica no Salmo 92 é sempre um número à frente da portuguesa,
com o sobrescrito como o v. 1. Para simplificar, só os números dos versículos
portugueses serão transcritos neste capítulo (na maioria dos casos).
121

v. p. 19) é claro que para o D eus de Israel (v. p. 15-8). A primeira estança
(v. 1-4; v. p. 49, nota 31) tem duas introduções: um hino com unitário (1-3)
e um testem unho pessoal (4). U m testem unho costum a com eçar com a
resolução de testificar.28 A ação de graças da pessoa por um ato particular
de salvação (cf. v. 10,11) expande-se em um a verdade universal (cf. v. 12-
15). Com o os autores dos salmos 37, 49 e 73 — os chamados salmos de
sabedoria — , nosso salmista propõe um sério conceito para a prosperi-
dade dos ímpios. Ele é um ouvido e olho para o fato que definitivamente
o justo triunfa.
Régio e messiânico
D e m odo mais específico, é um salmo régio: o testem unho do próprio
rei, inferido por linhas como: “Tu aum entaste a minha força com o a do
boi selvagem” (v. 10) e “os meus olhos contem plaram a derrota dos meus
inimigos” e “os meus ouvidos escutaram a debandada dos meus maldosos
agressores” (11). Os judeus interpretaram o salmo de m odo tradicional e
justo com o messiânico. A vitória passada do rei, celebrada no salmo, é a
mais sincera garantia do triunfo do justo no reino futuro de Deus.
O Targum expande o versículo 8: “Mas tu és exaltado e supremo nessa era,
O S e n h o r , e tu serás exaltado e supremo na era porvir3'.2'1A Mishná {T a m id l A)
com enta sobre “Para o dia de sábado”: “U m salmo para o futuro, porque
é o dia totalm ente shabbat [tranquilo] por toda eternidade”. F. Delitzsch
nota que o Talmude contesta se o sábado se refere ao sábado da criação
(rabino Nehemiah) ou ao sábado final da história do m undo (rabino Akiba).
“O últim o”, afirma Delitzsch: “é relativamente mais correto”.30 K onrad
Schaefer tam bém associa os dois: “O sábado antecipa o descanso final,
o sábado eterno, quando a criação é concluída e os inimigos de Deus são

28 H. Gunkel;J. Begrich ,Introduction to the Psalms: The Genres o f the Religious Lyric o f Israel,
trad. James D. Nogalski (Macon: Mercer University Press, 1998), p. 201. Gunkel
pensa que o regozijo e triunfo do Salmo 92 é pessoal e genuíno e pertencente a
um grande poeta (p. 213).
29 Outro Targum registra: “E tu, tua mão é suprema para p u n ir os ímpios na era futura,
no grande dia do julgamento, O Se n h o r ‫׳‬, e tu, tua mão é suprema para conceder uma boa
recompensa para osjustos na era vindoura, O Se n h o r .
30 Psalms, trad. Francis Bolton, K eil and D elitzsch Commentary on the O ld Testament 5.
London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody: Hendrickson, 1996, p. 606.
122

derrotados, um a vitória que o salmo 92 antecipa e celebra”.31 O salmo é


messiânico no sentido que no cânon da Escritura, o rei histórico e seu
relato de vitória tipificam Jesus Cristo e sua vitória sobre satanás, o pecado
e a morte. A com unidade da aliança universal se identifica com esse Rei.
Contexto
Cânticos de ações de graças originalmente serviam com o libretos para
o sacrifício de ação de graças (v. p. 19). D eus e seu povo festejaram para
celebrar a vitória do salmista. N. H. Snaith diz: “Pode-se presum ir com
segurança [...] que os v. 2,3 [port. 1,2] são o convite à adoração ligada com
o sacrifício”.32 N. M. Sarna concorda33 e provê evidência de que a “coor-
denação do recital com a oferta regular estava arraigada no costum e do
prim eiro tem plo” .34 O conteúdo do salmo, bem com o sua form a, aponta
para o contexto no templo. O cantor direciona o louvor à congregação e
ao próprio E u Sou, com o indica a mudança de pronom es (cf. v. 1). Ambas
as formas têm eficácias singulares. As referências à música determ inam o
contexto de tem plo sem dúvida (e.g., v. 3).
Relativo ao contexto do sábado, veja “A origem do salmo 92 para o
sábado” (p. 140).
Retórica
Uma linha central concisa de meras quatro palavras (v. 8), em notável
contraste com tricólons emparelhados a envolvendo, divide o salmo em
duas partes iguais de sete versículos cada.35 O nom e do E u S o u ocorre sete
vezes (o núm ero da perfeição divina); três vezes em cada parte e uma vez
na linha central (v. 1,4,5,8,9,13,15). As duas partes são estruturais como
um quiasmo de estanças de quatro e três versículos (v. 1-4, 5-7; 9-11,12-

31 Citado por Konrad Schaefer em: Psalms, Berit Olam. Collegeville: Liturgical, 2001,
p. 230.
32 Studies in the Psalter. London: Epworth, 1934, p. 73.
33 “The Psalm for the Sabbath Day”,J B L 81 (1962): 155-68, esp. 158.
34 “The Psalm Superscriptions and the Guilds”, em: Studies in Jewish Religious and
Intellectual H istory: Presented to A lexa n d er A ltm a n n on the Occasion o f H is Seventieth
Birthday, Siegried Stein; Raphael Loewe, orgs. Tuscaloosa: University of Alabama
Press, 1979, p. 281-300.
35 Para o conceito de que o v. 8 é a linha central, veja Jonathan Magonet, “Some
Concentric Strutures in the Psalms”, Heythrop Journal 23 (1982): 365-76, esp. 369-
72.
123

15).36A segunda e terceira consistem em unidades quiásticas com estrofes


de um e dois versículos. Portanto:37
A. O rei louva ao E u Sou, 1-4
B. Louvor pela grande obra e pelos profundos
propósitos de Deus, 5-7
C. Todos os malfeitores destruídos (tricólon), 7
X. O E u S o u é exaltado para sempre, 8
C’. Todos os malfeitores perecem (tricólon), 9
B \ O rei se regozija na vitória, 10,11
A’. O s justos e o rei louvam ao E u Sou, 12-15
Q uatro versículos de louvor com põem o salmo (v. 1-4,12-15) usando
“anunciar/proclam ar” (2,15) + E u S o u (1,15). A grande obra de Deus e o
profundo propósito que permitiram aos ímpios florescer por um m om ento
e então serem destruídos (5-7) corresponde ao triunfo do rei sobre eles
(9-11). Sarna comenta: “O s acontecimentos passados, referidos no v. 8
[port. 7], são descritos no v. 10 [port. 9]”.38 Eis um esboço da estrutura
do salmo:

Sobrescrito [heb. 1]
Primeira metade, 1-7
Estança I (Introduções): Louvor incansável pela obra de Deus, 1-4
Estrofe A (Primeira introdução): Comunitária
Louvor pelas sublimidades do E u Sou, 1-3
1. Pequeno resumo: é bom louvar com música, 1
2. Elaboração das palavras de louvor, 2
3. Elaboração de música de louvor, 3
Estrofe B (Segunda introdução):
Louvor pessoal pela obra do E u Sou, 4

36J. J. Stewart Perowne (The B ook o f Psalms [Andover: Warren F. Draper, 1898], vol. 2,
p. 174) de modo independente também analisou o salmo assim.
37Tate (Psalms 51 — 100, p. 464), seguindo a sugestão de R. M. Davison (“The Sab-
batical Chiastic Structure of Psalm 92”, ensaio apresentado na reunião anual da
SBL, Chicago, 18 Nov. 1988), nota a mesma estrutura.
38 “A Psalm for the Sabbath Day”, p. 162.
124

Estança II: A grandeza das obras e propósitos de Deus, 5-7


Estrofe A: Pequeno resumo, 5
Estrofe B: Os insensatos não entendem que os
ímpios prósperos serão destruídos, 6,7
1. O s insensatos não entendem , 6
2. O s ímpios prósperos são destruídos, 7
Linha Central: O E u S o u é exaltado para sempre, 8
Segunda metade
Estança III: O s malfeitores são destruídos, 9-11
Estrofe A: Os inimigos de Deus perecem, 9
Estrofe B: O rei é vitorioso sobre os ímpios, 10,11
1. A grande força do rei, 10
2. O rei vê e ouve a debandada dos inimigos, 11
Estança IV: Os justos florescem no templo, 12-13
E proclam am que o E u S o u é justo, 12-15
Estrofe A: Os justos florescem no templo, 12-13
1. Os justos florescem com o a palmeira e o cedro, 12
2. Os justos plantados no templo, 13
Estrofe B: Os justos florescem na velhice e
Proclamam que Deus é justo, 14-15
1. O s justos florescem na velhice, 14
2. Proclamam a justiça do E u Sou, 15

As palavras principais “obras” e o vocativo E u S ou (v. 4,5) ligam as


duas primeiras estanças; “todos os malfeitores” liga a segunda e terceira
estanças (7,9); “exaltado” e “tu exaltas”, ambas derivadas da raiz hebraica
rüm (“estar exaltado”), ligam a terceira estança à linha central; e “florescem”
liga a segunda e quarta estanças (7,12,13).

II. Exegese

Sobrescrito [heb. 1]
Um salmo se refere a um cântico com acom panham ento musical; e um
cântico se refere à voz hum ana (v. p. 40-1,192). Para 0 dia de sábado (v. p. 122)
Amos H akham comenta: “Todas as comunidades de Israel estabeleceram
há longo tem po o costum e de incluir esse salmo entre os recebidos no
125

sábado e nas manhãs de festivais, nas sextas-feiras à noite e com o o salmo


especial do dia de sábado. Alguns tam bém o recitam no culto de sábado
à tarde”.39 A igreja reflete sobre a cessão de D eus de seus seis dias de
trabalho (Ex 20.9-11), sobre o descanso de Israel da escravidão no Egito
e a respeito de seu próprio descanso em Cristo (Hb 4.8-11; v. “A origem
do salmo 92 para o sábado”).
Primeira Metade, 1-7
A primeira metade do salmo 92 consiste em duas estanças: introduções
ao cântico do rei (v. 1-4) e admiração pelo desígnio oculto de D eus para
a eliminação de todos os malfeitores (5-7).
Estança I (Introduções): Louvor incansável pela obra de Deus, 1-4
A primeira introdução (v. 1-3), louvor comunitário (cf. 106.1; 107.1;
118.1; 136.1; 147.1),40 atipicamente avalia o louvor: ele é bom (cf. 95.1;
96.1; 97.1; 98.1; 100.1). A segunda introdução (v. 4), um testemunho, é
mais intensificado em sentido emocional. A primeira introdução celebra
os atributos sublimes de Deus, a segunda, suas obras redentoras. Charles
H. Spurgeon cita Aquino: “Agradecemos a D eus pelos seus benefícios e
o louvamos pelas perfeições” .41
Estrofe A (Primeira introdução): Louvor comunitário pelas sublimidades
do Eu Sou, 13‫־‬
A estrofe é desenvolvida analíticamente: “render graças” (v. Ia), é ela-
borada pela proclamação de seu am or dia e noite (2); e “cantar louvores”
(lb) pela citação dos instrum entos (3).
1. Pequeno resumo: é bom louvar com música, 1
A primeira palavra, bom (v. SI 100.5), é o predicado da primeira sen-
tença inteira (v. 1-3) e altamente enfática. O louvor a D eus é “bom ”, pois
prom ove vida e é agradável a D eus e a seu povo. “N ada proporciona o
teste mais seguro da realidade da adoração que a alegria do adorador”,

39 Psalms with theJerusalem Commentary, trad. Israel V. Berman. Jerusalem: Mosad Harav
Kook, 2003, vol. 2, p. 378.
40 Para a inclusão do elemento hínico em cânticos de ações de graças, v. Gunkel;
Begerich, Introducüon to the Psalms, p. 212.
41 The Treasury o f D avid, Roy H. Clarke, org. Nashville: Thomas Nelson, 1997, p. 820.
126

afirma A. Maclaren.42 Render graças (v. p. 19). O prim eiro culto no templo
começou: “D eem graças ao E u Sou, clamem pelo seu nome, divulguem
entre as nações o que ele tem feito” (lC r 16.8). O rei confessa em público
ao E u S o u qu e ele o salvou e assim dá testem unho aos outros de que Deus
é justo. Falar sobre Deus é a própria form a de louvor (v. SI 91.14). E cantar
louvores (ülezammêr, v. mizmôr, ‘salmo’, no sobrescrito). A o teu nome se refere
ao nom e divino, lavé (v. p. 15-8). O nom e serve com o substituto da pes-
soa, tornando-a acessível.434O título Altíssimo (v. SI 91.1) talvez antecipe
a linha central: “Tu, E u Sou, és exaltado para sem pre” (v. 8).
2. Elaboração de palavras de louvor, 2
As linhas paralelas são interligadas por “anunciar” no versículo 2a, pelo
merisma “dia e noite” (= “o dia inteiro”), e por separar a afirmação “am or
leal” e “fidelidade” . Anunciar significa com unicar uma mensagem vitalmente
importanteA D e manhã significa “ao am anhecer” (cf. SI 90.5). O teu amor leal
se refere a ajudar o desamparado devido ao cum prim ento responsável da
fé (v. SI 100.5). E de noite (v. nota 2) reflete o serviço sacerdotal 24-7 do
tem plo (cf. lT s 5.17). A tua fidelidade é adicionada porque não se pode
contar sempre com a fidelidade humana.
3. Elaboração da música de louvor, 3
Ambas, lira (nebèl) e harpa (kinnôr) são instrum entos cordófonos, que
produzem o som do dedilhar ou esticar das cordas estendidas sobre ou
em uma caixa de ressonância. A identificação de kinnôr com a lira é muito
provável. A partir da evidência arqueológica, sabemos que a harpa tinha
dois braços erguidos das extremidades da caixa de ressonância, sustentando
uma barra da qual as cordas (3 a 11 em número) desciam na ou sobre a
caixa de ressonância. A identificação de nebêl é pouco certa. Ela sempre
ocorre em conjunção com kinnôr (2Sm 6.5; ISm 10.5; SI 33.2; passim), mas
som ente nebêl está associada a (ãsôr (“dez” [cordas?]). Presume-se que ela
seria relativamente grande, em bora fosse ainda portável. O instrum ento
foi um dos quatro instrum entos usados diante de uma procissão de pro-
fetas cúlticos a descer de um m onte, assim ele podia, provavelmente, ser
carregado por uma pessoa (ISm 10.5). Tentativas de derivar um sentido

42 The Psalms, Expositor’s Bible (New York: George H. Doran, n.d.), vol. 3, p. 27s.
43J. Gordon McConville, “God’s Name and God’s Glory”, TynB ul30 (1979): 149-63.
44 C. Westermann, P L O T , 2.715, s.v. ngd Hiphil.
127

etimológicamente podem ser enganosas, mas é possível que seu nom e


proceda da similaridade de sua form a ou construção com rièbel, uma
vasilha para arm azenam ento com fundo arredondado. Assim: “a lira é o
instrum ento de corda mais apropriado que se conhece desde o trabalho
arqueológico correspondente a essa figura”.45Mas o versículo 4 nos lembra
que, com o Spurgeon o expressou: “A fina música sem devoção é um traje
esplêndido em um cadáver” .46
Estrofe B (Segunda introdução): Louvor pessoal pela obra do Eu Sou, 4
Tu me alegras, E u S o u significa que as obras heroicas do E u S o u estabe-
leceram o salmista no estado de espontaneam ente responder com alegria,
com o gritar por um ídolo do esporte em um estádio. O bras se refere ao
que é produzido pelo feito (G n 40.17). A atividade das tuas mãos denota o
suplem ento do cotovelo até as pontas dos dedos (cf. “pulseiras de ouro”,
G n 24.22) e conota poder, governo e controle, com o em “ataque dos
cães” (SI 22.20[21] e “E u os redimirei do poder da sepultura” (Os 13.14).
Cantar (cf. O s 13.14) pode se referir aos gritos de aflição (Lm 2.19) ou
de exortação (Pv 1.20), mas a maioria sempre se refere ao cantar de ale-
gria (Is 12.6; J r 31.7), confirm ado aqui pelo paralelo com “regozijo” (cf.
SI 35.27; 92.4[5]; Pv 29.6; Zc 2.10).
Estança II: A grandeza das obras e propósitos de Deus, 5-7
A segunda estança é tam bém desenvolvida analiticamente. Ela começa
pelo resum o do conteúdo no versículo 5 e então o decifra em 6-7.
Estrofe A: Pequeno resumo, 5
O canto do rei com eça com a exclamação: Como são grandes as tuas
obras (v. 4), E u Sou. Com o a primeira estança com eçou com o adjetivo
predicativo “bom ”, a segunda estança com eça com um verbo estativo, o
equivalente gramatical ao adjetivo. “G randes” significa que a magnitude
de alguém ou algo é consideravelmente acima do norm al em extensão,
im portância e eminência. Os teólogos se referem às obras de Deus como
Heilsgeschichte (“ fatos históricos interpretados com o feitos redentores”).
Seus atos redentores com eçaram com o triunfo sobre as águas caóticas
no tem po da criação (v. SI 93; cf. SI 19.1,2[2,3]; 102.25 [26]) e atingirá o

45 Ivor H. Jones, “Music and Musical Instruments”, A B D 4:937.


46 Treasury o f D avid, p. 821.
128

apogeu na vitória de Cristo sobre todos os malfeitores na parúsia. Como


são significa o que é consideravelmente acima do norm al e assim se com-
para a “com o são grandes” . Profundos significa inacessibilidade (cf. Is 7.11;
J r 49.8). Com o os ímpios, D eus vai até grandes profundezas para ocultar
seus planos dos tolos.47 “O hom em ”, afirma Delitzsch: “não pode analisar
a grandeza das obras divinas nem sondar a profundidade dos propósitos
divinos; o iluminado, entretanto, percebe a insondabilidade de um e a
impenetrabilidade de outro” .48 “Ó profundidade da riqueza da sabedoria
e do conhecim ento de Deus! Q uão insondáveis são os seus juízos, e ines-
crutáveis os seus caminhos!” (Rm 11.33).49 A noção dos planos secretos
de Deus “estabelece o fundam ento do restante do salmo”, declara Robert
Alter.50 Sem a justiça rápida, o crime parece compensar. O s tolos pensam
assim. O verseto 5b mergulha no fundo da obra de D eus para os teus
propósitos, as análises e planos criativos para atingir uma meta. Goldingay
comenta: “Elas [as obras] não foram impulsivas, reações instintivas à re-
pentina situação traiçoeira. lavé form ulou com calma algumas intenções
e as im plem entou” (cf. Is 55.8,9).51

47Avrohom Chaim Feuer (Tehillim: A N ew Translation with a Commentary Anthologi-


%edfro m Talmudic, M idrashic and Rabbinic Sources, trad. Avrohom Chaim Feuer em
colaboração com Nosson Scherman [Brooklyn: Mesorah, 1982], p. 1150, n. 1)
observa o sucesso aparente dos ímpios como Hamã em M idrash E sther Rabah 6.2:
“Atenção! Os inimigos de Deus se levantaram para encontrar a ruína! Isso pode
ser comparado ao desprezível escravo da galé que perversamente amaldiçoou o
filho amado do rei. O rei refletiu: ‘Se eu o matar, as pessoas não perceberão e nada
aprenderão com isso, pois qual é o valor da vida de um humilde escravo de galé?’
Portanto, o rei primeiro promoveu o escravo à patente de capitão, em seguida
ao posto de governador-geral. Só então, depois de lhe conceder proeminência e
renome, o rei executou o trapaceiro pelo crime”. O midrash verifica uma analogia
na forma com que Deus tratou Faraó (Ex 7.3-6; 9.16; Rm 9.15).
48 Psalms, p. 607.
49 “Meus irmãos”, diz Agostinho citado por Spurgeon (Treasury o f D avid, 822), “não
há mar tão profundo como os propósitos de Deus que fazem os ímpios floresce-
rem e os bons sofrerem; nada é tão profundo, nada é tão misterioso. Toda alma
incrédula naufraga nesse abismo, nessa profundidade. Você quer atravessar o
abismo? Não remova a cruz de Cristo e você não naufragará. Apegue-se a Cristo”.
50 The Book o f Psalms: A Translation with Commentary. New York: Norton, 2007, p. 326.
51 Psalms, BCOTWP. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, vol. 3, p. 55.
129

Estrofe B: Os insensatos não compreendem que os ímpios prósperos


serão destruídos, 6,7

1. Insensatos não compreendem, 6


O insensato Çisba ar — um congênere de b‘ ir, “besta, gado, animal”)52
falta “a racionalidade que diferencia os hom ens dos animais”.53 Agur se
reconheceu com o tolo, menos que humano, antes de adquirisse sabedoria e
conhecimento do Santo (Pv 30.2,3; cf. SI 73.21,22). N ão há meio-termo. “É
santo ou insensato”, afirma Spurgeon: “N ão há outra escolha”. A pessoa
deve ser o serafim adorador ou o porco ingrato”.54 N ão entende significa,
com o definido e, Salmos 90.11, que falta “o conhecim ento m ental de um
fato e a experiência profunda dessa realidade”. E m Provérbios, tolo se refere
a “estúpidos [...] surdos para sabedoria, devido à visão m oral distorcida,
da qual eles são pretensiosos”, que “têm prazer em distorcer valores que
beneficiam a com unidade”.55 N ã o vê significa o ato de prestar atenção e
considerar algo com o acontece o discernim ento sobre o objeto. Pode-se
ver ou ouvir algo e, entretanto, não “perceber” ou “com preender” algo
(Is 6.9). As vezes a ênfase recai em “prestar atenção a” ou “considerar
algo (Pv 7.7; 14.15; 18.5) e outras vezes no “entendim ento” derivado
(Pv 1.2,6). A percepção é uma questão da disposição do coração. O bom
coração que com preende a moralidade é um dom de Deus. A rtur Weiser
comenta: “Só pela relação com D eus o hom em é capacitado a reconhecer
a verdade e realidade absolutas; sem essa relação ele cai na ilusão astuciosa”
(cf. SI 28.5).56 E vê se refere ao conteúdo do versículo 7. A. F. Kirkpatrick
comenta: “Só os hom ens não espirituais falham em perceber que a pros-
peridade dos ímpios é apenas o prelúdio de sua ruína, enquanto lavé se
assenta entronizado no alto para sempre” .57 O estúpido pensa que pros-
perar por meio da injustiça terá a última palavra.

52 H A L O T , 1:146, s.v .b a a r .
53 Chou-Wee Pan, N ID O T T E , 1:691, s.v. ba ar.
54 Treasury o f D avid, p. 823.
55 Proverbs 1— 15, NICOT. Grand Rapids: Eerdmans, 2004, p. 112.
36 The Psalms, OTL. Philadelphia: Westminster, 1962, p. 615.
57 The B ook o f Psalms. 1902; reimp., Grand Rapids: Baker Books, 1986, p. 559.
130

2. 05 ímpios prósperos são destruídos, 7


O Governador moral do universo designa que a prosperidade decorren-
te da perversidade seja um veneno bebido. Os paralelos sinonímicos enfati-
zam o conceito. ímpios se expande para todos (i.e., sem exceção) os malfeitores,
ou todos que “fazem” (colocam em ação o meio necessário para assegurar o
sucesso da empreitada) o “mal” (distorcem o uso do poder através da astúcia
e mentiras “em relação à comunidade ou à uma pessoa com um efeito ou
intenção negativa”58). E m outras palavras, eles brotam à custa de outros; a
destruição deles é para o bem da humanidade. A metáfora favorável brotem,
auxiliada pelo símile como a erva (v. nota 9), é equivalente a florescer (v. SI 90.6).
“Os ímpios são como o verde que brota tão robustam ente na estepe, de-
pois das chuvas tardias da primavera, cobrindo tudo, mas então caem tão
rapidamente sob o vento ou o sol quente do deserto, secam e desaparecem
(cf. 37.2; 90.5,6; 103.15,16)” I 9E les serão destruídos (lehi¥sam‘dãm) e a causa será
a prosperidade deles semelhante à erva de vida curta. O Hifil smd é usado em
leis litúrgicas para expulsar alguém da comunidade cúltica e na guerra santa
para banir alguém da terra através da destruição física. Em bora o E u S o u p o s -
sa ser o Agente, afirma D. Vetter: “o sentido originário da ordem de expulsar
é preservado quando as pessoas a executam (Nm 33.52; D t 2.12,23; 7.24;
33.27; Js 9.24; 11.14,20; 2Sm 22.38; SI 106.34)”.60 N o salmo 92, o Agente
absoluto é o E u S o u e o agente imediato é o rei (v. 9-11). A destruição
deles é para sempre ('“dê ' ad , i.e., para o futuro imprevisível). Em bora, com
referência à história, o futuro imprevisível não possa ser eterno em sentido
filosófico, le<õlãm, o equivalente a cad , com referência a D eus, é eterno em
sentido filosófico (v. 8). Goldingay afirma: “Assim o reconhecim ento é
paralelo ao salmo 73, mas não porque o adorador viu algo pela fé, como
foi o caso ali, mas porque vê algo realmente acontecer”.61 O discernimento
dos propósitos e das obras do E u S o u baseado na experiência do salmis-
ta, o capacita a confessar que Deus é justo e em um m undo moralm ente
caótico. A maioria das histórias da Bíblia, incluindo a história do Êxodo,
representa o triunfo final dos justos sobre a prosperidade tem porária dos

58 K. H. Bernhart, T D O T , 1:143, s.v. ’ãw en.


59 Frank-Lothar Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, trad. Linda
M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 439.
60 TLOT, 3:1367-68, s.v. 'smd Fliphil.
61 Psalms, p. 56.
131

ímpios. Essas histórias atingem o ápice com a m orte e ressurreição — a


garantia da vitória final — de Jesus Cristo.
Linha central: O Eu Sou é exaltado para sempre, 8
N a concisa linha central de quatro palavras, referências a Deus consti-
tuem as duas palavras essenciais a predicar a transcendência sobre espaço
(exaltado, uma metonim ia para céu; v. Jó 16.19; 31.2; Is 33.5) e tem po
(para sempre, le‘õlãm, v. SI 90.2; 100.5). Pois tu aponta para D eus com o o
Agente absoluto a defender a justiça. A m etonim ia “exaltado” é usada
para significar a transcendência divina sobre a terra e a atividade humana
e sua invencibilidade contra forças hostis. “Esse é o reino onde D eus vive
e trabalha e de onde ele envia o seu poder e ajuda para quem precisa ou
contra quem ele pune (e.g., SI 18.17; 93.4; 102.20)” .62 O advérbio sempre
encerra a linha central.
Segunda Metade, 9-15
A segunda metade com eça onde a primeira metade term inou: todos
os malfeitores serão destruídos (v. 9-12). A destruição deles é o precursor
da era escatológica. A segunda metade term ina com os justos florescendo
na velhice (12-15).

Estança III: Todos os malfeitores são destruídos, 9-11


A terceira estança elabora o conceito do extermínio dos ímpios: os
inimigos de Deus perecerão (v. 9) através da vitória do rei sobre eles (10,11).
Estrofe A: Os Inimigos de Deus perecem, 9
Os paralelos sinoním icos em 7a0t e β são correspondidos pelos
paralelos sinonímicos e culminantes63 em 9aOC e β. Esses tricólons de
integração em torno da linha central são tam bém ligados pela expressão
principal “todos os malfeitores” são destruídos para sempre.64 A conjun­

62Tate, Psalms 51 — 100, 467.


63 O paralelo culminante designa o conjunto de linhas altamente repedtivas, a pro-
gredir lentamente para atingir o ápice. (P. ex., SI 29.1,2.)
64 H. L. Ginsberg, “Ugaritic Studies and the Bible” (BA 8 [1945]: 54s.) reparou que
o v. 9 deve seu estilo e linguagem a um mito de combate refletido nos textos
ugaríticos (c. 1300 AEC). Nesse mito, Baal, deus da fertilidade e Yarn, deus do
caos aquoso lutam por domínio. O deus artesão, Lothar wa-Khasis encoraja Baal:
Agora, teu inimigo, Ó Baal,/Agora, teu inimigo tu atacarás;/Agora, tu eliminarás
teu adversário” (Ά Ν Ε Τ , p. 151, text III ABA, lines 7-9).
132

ção adversativa emocional mas pede ao E u S o u exaltado para se juntar ao


salmista e observar a situação na terra.65 Os teus inimigos são identificados
no versículo 9b com o “malfeitores” e no versículo 7 com o “ím pios”. O
vocativo E u S o u K g a os versículos 8 e 9. D os muitos sinônimos hebraicos
no dominio semántico de “destruir”, perecer (yo'bedü) talvez tenha sido
escolhido pela assonância com 'oyeb (“inimigo”). O lexema "abad significa
“desaparecer, sumir e cessar de existir” (cf. N m 16.33). Serão dispersos sig-
nifica “serem divididos/separados uns dos outros”66 e ocorre com o um
paralelo de 'abad em Jó 4.11: “O leão m orre Çõbéd) por falta de presa, e
os filhotes da leoa se dispersam (yitpãrãdu)” . Q uando um a ninhada nasce,
ela não pode se reproduzir. Assim tam bém quando a com unidade de mal-
feitores é dispersa, ela não pode reproduzir seus pensam entos, palavras e
ações para a próxim a geração. Portanto, ela desaparece para sempre (v. 7).
Estrofe B: O rei é vitorioso sobre os ímpios, 10-11

1. A força excepcional do rei, 10


As linhas paralelas apontam para o E u S o u com o o A gente absoluto
da vitória do rei (“tu aum entaste a minha força com o a do boi selvagem”,
(v. 10a) e para a participação entusiástica do rei na própria exaltação
(“derram aste [sobre mim] óleo novo”, 10b). Tu aumentaste refletidamente
evita identificar Deus com o o Agente imediato. “Serão destruídos” no
versículo 7 não nom eia o agente que os destrói, mas o verbo 'sãmad pre-
sume um agente humano. Portanto, agora na primeira estrofe quiástica
correspondente à terceira estança, o agente imediato é o rei, não o E u
Sou. A minha força é um a m etáfora para dignidade, honra e força m ortal
(SI 112.9; 148.14).6768Como 0 do boi selvagenP8 simboliza ferocidade, força e
mortalidade (N m 23.22; 24.8; Jó 39.9,10). “A imagem é extraída do boi

65IB H S , §40.2.1.
66 Yitpãrãdu. é empregado para os cascos do crocodilo (Jó 41.17[9]) e os ossos
desconjuntados (SI 22.14[15]). Um n ip rãd é uma pessoa antissocial (Pv 18.1).
67 E possível que o elmo do rei de Israel tivesse chifres, como na esteia da vitória
de Naram-Sin, rei da Acádia (2254-2218 AEC), cujo elmo continha chifres (H.
Gressmann , Autorientalische Texte u ndB ilder [Tübingen: J. C. B. Mohr, 1927], vol.
2, ilust. 43).
68 O auroque (pospim igenius), um animal selvagem grande, extinto, é retratado nas
pinturas paleolíticas da caverna de Lascaux e descrito em A s guerras da Gália de
Júlio César, vol. 6, p. 28.
133

selvagem (SI 92.11) com o chifre erguido, a sentir sua força total, desafiar
o oponente, um a imagem tam bém conhecida para os babilônios” (cf.
,
D t 33.17) .69Derramaste sobre mim (v. nota 15) óleo tornando a chifrada mais
eficaz e fazendo-os “brilhar com virilidade e saúde”.70 Novo (v. nota 16)
intensifica a imagem de chifres escornadores e brilhantes.
2. O rei contempla e ouve a debandada de seus inimigos, 11
O vav narrativo continua o testem unho do rei. As linhas paralelas na
composição externa correspondem a meus olhos com meus ouvidos·, e no
núcleo interior, “dos meus inimigos” corresponde a “maldosos agresso-
res”. Visão e audição, cada um a à própria maneira, confirm am a vitória
do rei sobre os malfeitores. Ele se regozija com a derrota deles (v. nota 18)
enquanto eles estão no solo abaixo dele. D os meus inimigos significa em
essência que eles “vigiam atentam ente” e assim faz um trocadilho com
“contem plar” . O verbo no passado escutaram conota que a debandada dos
ímpios continuará a ser ouvida no futuro eterno (cf. v. 7,8). D os meus
maldosos (n fr e 'im ) no livro de Salmos é um a expressão fixada para desig-
nar quem causa dano e malefício, e que existem em contraste com quem
espera em D eus (cf. SI 22.16 [17]). Agressores não diz tanto de insurgentes
— em bora possa significar “revolta” (Jz 9.18) — , pois fala de “agressores”
(cf. D t 19.11; 22.26; SI 3.1 [2]; passim). Zenger comenta: “Essa não é uma
‘bênção’ do ditado: ‘A vingança é doce’, mas deve ser lida com o um a dra-
maturgia poética que pretende conduzir ao ‘ensino’ form ulado na seção
de encerram ento do salmo, nos v. 13-16[port. 12-15]”.71 O s cristãos oram
pelo estabelecimento do reino de Deus e a eles se diz para se regozijarem
com o juízo final sobre os inimigos do reino (Ap 18.20).
Estança IV: Os justos florescem e proclamam que o Eu Sou é justo, 12-15
A cena m uda do triunfo do rei sobre os malfeitores para o florescí-
m ento dos justos nos recintos do templo. A estança final consiste em dois
dísticos. Os justos florescem (v. 12,13) na velhice, a proclam ar a justiça
do E u S o u { 14-15).

69 H. P. Stàhli, T L O T , 3:1224, s.v. rüm , citando Gunkel.


70Tate, Psalms 5 1 — 100, p. 467.
71 Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, p. 440.
134

Estrofe A: Os justos florescem no templo, 12,13


E ste dístico é unificado em sentido gramatical por ser um a sentença
única; em sentido retórico pela expressão principal “florescer” (v. 12a,13b),
com o quiasmo estruturado e semánticamente pela imagem arbórea de ár-
vores. O versículo 12 foca na vitalidade das árvores e o 13 foca no templo
com o a fonte do crescimento deles. A figura arbórea é representada pelo
justo e a adição de “nosso” (v. 13b) prossegue a transição do justo para a
congregação adoradora dos justos.
1. Os justos florescem como a palmeira e o cedro, 12
Os justos, o oposto “dos ím pios” (v. 7), são referência a quem pro-
picia justiça e harm onia para todos ao se subm eter à Palavra (Logos) de
Deus.72A figura arbórea florescerão (yiprãh; cf. v. 7) representa a prosperidade
tem poral e universal do justo. O esplendor e a longevidade da im ponente
palmeira e o gigantesco cedro do Líbano contrastam com o florescer efê-
m ero da relva com um (cf. SI 1.3; 37.35; 57.8[10]; J r 17.8). Como a palmeira
é apropriado. Primeiro, a palmeira é im ponente e régia em aparência (cf.
Is 9.14[13]s.), alta, esguia, sem nó e tem “a folhagem com o plum a”73 só
no topo. Tamareiras crescem de 18 a 21 metros. E m Cântico dos Cânti-
cos de Salomão, o amado diz à mais bela m ulher (v. Ct 6.1): “Seu porte
é com o o da palmeira” (Ct 7.8[7]a). Segundo, a palmeira sustenta a vida
humana: “Ela provia alimento na form a de tâmara e sua seiva poderia ser
usada com o adoçante para fazer vinho” . 74 O amado adiciona à imagem da
estatura da palmeira: “E os seus seios com o cachos de frutos” (Ct 7.7[8]
b). “Q uando ela atinge a altura plena, produz de 3 a 4 quilos de frutos (e,
em alguns casos, até 6)”.75 Terceiro, ela exige água abundante (cf. v. 13) e
desfruta longevidade (14). Crescerão (yisgeh) (v. nota 21) em sua única ou­

72 A Palavra os instrui a amar a Deus de todo coração e amar o próximo como a si


mesmos e o fazem com sinceridade (SI 1.2). Eles servem ao E u S o u (Ml 3.18), são
bons e generosos (SI 37.21, 112.6), honestos e verdadeiros (Pv 13.5; Is 45.23) e
falam de modo sábio (Pv 10.31); não estão envolvidos em pecado como idolatria,
imoralidade sexual ou injustiça social (Ez 18.5). A Palavra se fez carne no Senhor
Jesus Cristo.
73Tate, Psalms 51— 100, p. 467.
74 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery. Downers Grove: IVP Academic, 1998, p. 623.
75 Delitzsch, Psalms, p. 608.
135

tra ocorrência, refere-se ao aum ento das riquezas (SI 73.12). A metáfora
infere o aum ento de justiça e vida. O aum ento da prosperidade dos justos
é tão grande que eles são como 0 cedro do Líbano. O cedro excele em beleza,
altura,76 valor, fertilidade e longevidade. Ezequiel elogia a excelência da
árvore: “Com belos galhos que faziam som bra à floresta; era alto; seu
topo ficava acima da espessa folhagem” (Ez 31.3). “Os cedros do Líbano
representam o mais fino material terreno. Salomão estudou a elegância e
força dos cedros (lR s 4.33), comercializou com Hirão, que governava a
área e criou um a força-tarefa recrutada de 30 mil trabalhadores para cortar
cedros do Líbano para o templo em Jerusalém (lR s 5)”.77 Reis terminavam
a construção de seus palácios com cedro e estavam dispostos a vender a
alma por isso (Jr 22.7,14,23).
2. Os justos plantados no templo, 13
A noção de crescimento pode ser discernida nas palavras de integração
que se intensificam: “plantados” (v. 13a) e “florescerão” (13b). O núcleo
interno do versículo elabora “na casa do E u Sou ” através de “nos átrios
do nosso D eus”. Os verbos de integração figurada, relativos às árvores,
movem-se com fluidez para a realidade dos adoradores justos nos recintos
do templo. O pronom e da primeira pessoa do plural sinaliza a mudança
do poeta de direção de falar dos justos para falar-lhes; transform a os
justos em povo justo e modifica a figura em realidade. K onrad Schaefer
diz: “Por uma habilidade ótica, o poeta dá prioridade à imagem arbórea
sobre os justos no templo e a árvore e a pessoa se extinguen! um no outro
e m udam as características” .78 Portanto, o que a figura das árvores verdes
a florescer no recinto do tem plo significa sobre os justos?79 Primeiro, as
duas árvores exigem considerável suprim ento de água. “A palmeira tem
raízes profundas que procuram pela água”. Por isso elas florescem em
oásis. “Jerico, construída em um local de oásis grande no deserto, era
bem conhecida com o a ‘Cidade das Palmeiras’ (D t 34.3; 2Cr 28.15)” .80

76 Eles podem crescer até 36,58 m.


77 Ryken, Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 499.
78 Psalms, p. 231.
79 “Plantados” e “florescerão” no v. 13 [heb. 14] são plurais, referindo-se a ambas
as árvores.
80 Ryken; Willhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 622.
136

Q uanto aos cedros do Líbano, Ezequiel enfatizou pela repetição que a


árvore im ponente devia a superioridade à fartura de água:
“As águas o nutriam, correntes profundas o faziam crescer agrande altura;
seus riachos fluíam de onde ele estava para todas as árvores do campo.
Erguia-se mais alto que todas as árvores do campo; seus ramos cresceram
e seus galhos ficaram maiores, espalhando-se, graças à fartura de água.
Era de uma beleza majestosa, com seus ramos que tanto se espalhavam,
pois as suas raízes desciam até às muitas águas” (Ez 31.4,5,7).

Segundo, o poeta alude ao templo originário de Deus na terra, o jardim


do Éden, no m onte de D eus (v. Ez 28.13,14). D o topo do m onte Éden,
um rio fluía e nutria as árvores do jardim com essa água abundante que
ele se tornou fonte de quatro rios que frutificaram os quatro cantos da
terra.81 D e m odo semelhante, o relevo de um palácio de Assurbanipal em
Nínive (c. 650 AEC) retrata um templo no topo de um m onte rodeado por
um parque com muitas águas na encosta do m onte (v. o relevo abaixo).82

Relevo do Aposento Hdo Palácio Norte de Assurbanipal


Desenho de Deborah Anderson
81Jon Levenson, Sinai and Zion: A n E n try into theJewish Bible (New York: HarperCol-
lins, 1985), p. 128-37.
82 Citado em Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, p. 441, ilustração 4.
137

E m frente ao tem plo há um pequeno pavilhão com uma estátua do rei


em oração. D a parte de trás do templo, um rio flui ao ângulo de 45 graus
pelo parque com canais de água afluindo para irrigar o jardim inteiro. Um
cam inho sagrado com um altar atravessa diretamente pelo parque até o
santuário. O relevo ensina que as árvores no jardim paradisíaco a rodear o
tem plo recebem vida e fertilidade do rio que flui do templo com a oração
do rei. E m resumo, o suprim ento de água vivificante se origina no templo.
Ora, é claro que com o as exuberantes árvores verdes encontram nutrição
física na água abundante do jardim paradisíaco, os justos encontram nu-
trição espiritual na casa do E u Sou, mais específicamente nos átrios onde
o povo adorava e ouvia a palavra de D eus (cf. SI 1.2,3; M q 4.1-4; Is 2.2,3).
O Deus verdadeiro não pode ser desassociado do tem plo (lR s 8.10,11).
Como os justos o adoram e aprendem dele no templo, derivam a vitalidade
espiritual do D eus vivo, que era, é e será para sempre. Ao derivar vida es-
piritual farta da com unhão com ele, figuradamente florescerão (cf. v. 7,12).
Provavelmente é um oxím oro não intencionado que o esplendor régio de
superioridade e fascínio se deva à dependência de Deus.
O terceiro aspecto da imagem arbórea é que a palmeira e cedro do
Líbano crescem juntos no átrio do templo. Todavia, com o o professor
W arren Gage ressaltou em um a conversa pessoal, essas árvores não eres-
cem naturalmente juntas, com o o lobo não vive com o cordeiro (Is 11.6-8).
Gage sugere que a imagem é similar à glória prom etida de Sião: “A glória
do Líbano [i.e., o cedro] virá a você, juntos virão o pinheiro, o abeto e o
cipreste, para adornarem o lugar do meu santuário; e eu glorificarei o local
em que pisam os meus pés” (Is 60.13). Essas árvores crescem em climas
diferentes. A imagem das árvores distribuídas geograficamente juntas no
átrio do tem plo representa a unidade ecumênica dos justos. Hoje, judeus
e gentios batizados em Jesus Cristo adoram juntos com o um povo no
verdadeiro tem plo (G1 3.26-29). O paralelo do E u S o u o identifica com o
nosso D eus (v. 90.1,17; 100.3). Com o o rei é implicitamente o antecedente
do pronom e na primeira pessoa nos versículos 10,11, o povo da adoração
pactuai é implicitamente o antecedente de “nosso” e é reconhecido com o
os justos (v. p. 27). O pronom e pessoal os faz com preender com o a im-
ponente palmeira e o m onum ental cedro do Líbano. Eles devem a vida
abundante à obediência e fé nele, quando lhes está disponível no templo
por meio da oração e conhecido por meio da palavra de Deus, que se
cum pre em Jesus Cristo.
138

Estrofe B: Os justos florescem na velhice e proclamam que Deus é justo,


14,15
O segundo dístico da estança final, a sentença unificada, retém os
justos com o sujeito (ver v. 12) e continua a im por a imagem arbórea dos
justos no v. 14, mas não no v. 15.
1. Os justos florescem na velhice, 14
Vamos refletir primeiro sobre a imagem arbórea com referência à
longevidade. Um a tamareira pode ter até 200 anos e os cedros do Líbano
podem ter até 3 mil anos. Zenger comenta: “O s cedros do Líbano, até
com a idade de 3 mil anos, ainda podem produzir sementeiras de cone: de
fato, um fenôm eno de fertilidade im pressionante”.83 Portanto, semelhante
à longevidade das árvores verdes, os justos mesmo na velhice (v. nota 23)
darão fruto (um sinônim o e uma expressão principal com “florescerão”
nos v. 12,13). A imagem das árvores régias e im ponentes a dar frutos por
muitos anos (v. 14a) é expandida no paralelo (14b): Permanecerão viçosos (v.
nota 24) significa a saúde interior e o bem -estar e verdejantes representa
a saúde externa e vitalidade deles, com o a de Moisés. Q uando Moisés
m orreu, aos 120 anos de idade, nem seus olhos nem seu vigor se enfra-
queceram (D t 34.7). A m etáfora de vitalidade e fertilidade na velhice é
com o o prim eiro raio de luz ao amanhecer. O propósito divino, antes do
princípio do tempo, foi conceder à sua igreja a vida eterna, mas agora
foi revelado através da manifestação de nosso Salvador, Cristo Jesus, que
destruiu a m orte e trouxe vida e imortalidade à luz por meio do evangelho
(2Tm 1.10; cf. Jo 11.24-26; IC o 15). N esse cum prim ento, a m orte clínica
é apenas um a sombra, com o ser atingido pela som bra do caminhão, não
pelo próprio caminhão.
2. Proclamar a justiça do Eu Sou, 15
N o núcleo interno dos paralelos quiásticos, o “E u Sou” é compara-
do com “m inha Rocha” e na composição externa, “justo” é com parado
com sua definição, “não há injustiça”. U sando a linguagem deduzida do
Cântico de Moisés (Dt 32.4),84 esse cântico de ações de graças atinge seu
83 Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 5 1 — 100, ρ. 449.
84 Ο Cântico de Moisés com relevantes alusões ao Salmo 92, anotado em parênteses:
“Ele [ E u S o u \ é a Rocha (v. 15), as suas obras (v. 4) são perfeitas, e todos os seus
139

ápice nesta proclam ação de louvor. Os justos, obtendo a vida do Deus


vivo, estão no átrio do tem plo em esplendor régio e repletos de vida e
fertilidade, p ara proclamar (v. nota 25; cf. v. 2) que o E u Sou (cf. v. 1) é
justo (yãsãr ). Semelhante à palavra “falso” , yãsãr tem um sentido ético,
figurado, literal e derivado. E m sentido literal significa “ser reto sem uma
curva ou dobra”, ou “nível sem um a dilatação”, com o em “um cam inho
plano (yasãr)” (Jr 31.9), “um cam inho seguro (fsãrâ )” (SI 107.7) e “perna
reta (fsãrâ)” (Ez 1.7). Com muito mais frequência, yasãr é usado com o
figura para designar algo justo, bom e sem falha, de acordo com a ética
da Torá. É o oposto de *ãwel (“transgressão”; v. D t 32.4). Integridade e
retidão estão ligadas à justiça: “Justo és, E u Sou, e retas (yãsãr) são as tuas
ordenanças” (SI 119.137; cf. SI 94.15). Yãsãr tam bém é usado em relação à
“inocência” (Jó 4.7) e a “puro” (Pv 20.11). O povo de Deus confia que o E u
Sou faz o que é justo; pela fé ele sabe que ele é bom e justo, sem mancha.
O soberano sobre espaço e tem po elimina a vida dos malfeitores (v. 7,9) e
dota os justos com vida eterna, abundante. O rei se junta à proclamação,
ao exclamar que 0 E u Sou é minha Rocha (süri). Uma sür varia em form a e
tamanho: um cume rochoso, penhasco (Nm 23.9; Is 2.10); um bloco de
pedra, rocha [como um altar] (Jz 6.21; 13.19), um a pedra m onum ental
[para inscrições] (Jó 19.24); e rochas em uma ravina (Jó 28.10). Em bora
o term o possa ocorrer em paralelo com “um a pedra” Çeben; v. Is 8.14),
ele difere de um a pedra, que é um fragmento de uma rocha. A rocha é
“uma imagem apropriada de solidez im periosa” .85 E m sentido figurado,
Deus é a rocha (D t 32.31). Sua fidelidade e justiça são tão invulneráveis
com o a rocha; portanto, jamais falham. Com o tal, ele é a defesa do povo:
uma fortaleza (mã^uzzék, Is 17.10; m aôz , SI 31.2[3]), um refúgio (mahasseh,
SI 94.22). A m etáfora da rocha desloca-se com facilidade para considerar
Deus o salvador (SI 62.2[3]; 6[8]; 95.1) e redentor (SI 78.35). Nele não há
injustiça (flõ^ aw lãta) torna explícita a noção inerente d e yãsãr: ser ju sto /
íntegro, sem falha. 'Awlãtâ ocorre com o paralelo sinônim o de “malfeito-
res” (SI 37.1; cf. 92.11 [12]), “violência” (SI 48.[2]3), “derram am ento de
sangue” (Mq 3.10) e “iniquidade” (Jó 11.14) e com o paralelo antitético de
“justiça” (Is 6.8) e “integridade” (Jó 6.29). Josafá instruiu os novos juizes

caminhos são justos. E Deus fiel, (cf. v. 2) que não comete erros (v. 15); justo
(v. 15) e reto/justo (v. 12) ele é.
85 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 732.
140

nomeados: “Julguem com cuidado, pois com o S enhor, o nosso Deus,


não há injustiça” Çawlãtâ, 2Cr 19.7).

Parte III. A voz da igreja em resposta

I. A origem do salmo 92 para o sábado


A origem do uso do salmo “para o dia de sábado” (a única referência
ao sábado no saltério) não pode ser datada com certeza. D e acordo com
a Mishná T a m id lA , o coral levítico no segundo tem plo cantava um salmo
cada dia da semana, eles eram sucessivamente os Salmos 24,48,82,94,81,
93 e 92. O sobrescrito na LX X (v. p. 124) designa cinco desses salmos para
o sábado (SI 24 [= 23, LXX]; 48[47]; 92-94[91-93]) e reflete um costum e
anterior ao Talmude, mas um posterior ao refletido na tradição recebida.86
O uso para o dia de sábado talvez rem onte ao prim eiro templo, porque a
Torá designava o dia de sábado com o o dia de descanso (Lv 23.3). Robert
Alter afirma: “É razoável supor que esse salmo foi realmente cantado
com o parte do rito do tem plo para o sábado”.87
Sarna argum enta que o “tema da criação” do salmo conecta-se com a
narrativa da criação em Gênesis 1, que atinge o ápice no descanso sabático
de Deus. Ele tam bém argumenta que o “tema sócio-ético” do salmo o
conecta com o Livro da Aliança (Êx 23.12) e o D ecálogo (D t 14— 15).88
M esmo que o tem a da criação seja retirado do salmo, esses temas não são
únicos ao salmo 92 e não explicam o uso exclusivo do salmo 92 para o dia
de sábado. Talvez ele tenha sido escolhido pela proeminência do núm ero 7
na retórica (v. abaixo), mas isso parece improvável.
II. A criação e o sábado eterno
Esse tem sido um longo debate na história da igreja, entre os judeus
e no cristianismo. E um a questão proposta antes por A gostinho de Hi-
pona e então proposta de novo durante a Reforma. Para Agostinho, o
salmo 92[91] é um “acontecim ento sabático” para ser cantado no dia de

86As primeiras partes da Septuaginta foram traduzidas no séc. 3 a.C. e as últimas na


primeira parte do séc. 1 d.C.
87 The B ook o f Psalms, ρ. 325.
88 “The Psalm for the Sabbath Day”, p. 159-67.
141

sábado. Ele pergunta: “Mas que tipo de sábado?”.89 Evidentem ente, os


judeus o celebravam com o o sábado tem poral do descanso divino após
os seis dias da criação. O s exegetas hoje ainda o interpretam com o um
evento temporal.
Igualmente, João Calvino nota: “N a prim eira narrativa da Criação,
o sábado é o dia concedido para celebrar a obra poderosa de D eus com
alegria e adoração na criação e redenção. A Bíblia declara de que o ápice
dos atos divinos não foi a criação do hom em , mas o descanso no sétimo
dia. Ele é o dia do exemplo de D eus”. João Calvino o define com o o “sinal
interior” e a “realidade exterior” .90
E m bora o ponto central do sábado vise orientar Israel, o D eus de Is-
rael é o Senhor de todos. “Isso significa que D eus se revela com o Criador,
G overnador e Preservador do mundo. Por outro lado, o sábado testifica o
fato de D eus graciosamente conceder liberdade e descanso aos homens.
O sábado é um sinal da aliança da graça em que Deus, o Pai, se adapta a
nós e se doa a nós em Cristo e no Espírito. Esse é o dom do D eus trino
conferido a toda a hum anidade”.91
Pelo fato de Deus o conceder, a guarda do sábado é um evento tem-
poral, um dia em sete. N o entanto, com o K enneth A. M athews escreve:
“O sétimo dia é extraordinariamente distinto dos seis dias anteriores da
criação”. Ele cita cinco razões pelas quais o sábado, com o “dia da con-
sagração”, difere dos seis dias da criação. Primeira, a palavra criativa de
Deus não é requerida com o fórm ula introdutória: “E Deus disse”. Según-
da, esse “dia” não é o dia da criação da “noite e m anhã”, pois a criação
foi intencionada para ter um descanso perpétuo. Terceira, só o sétimo
dia é abençoado por Deus. Q uarta, em contraste com os dias da criação,
apenas “o sétimo dia” é repetido três vezes e mais duas pelos pronom es
pessoal e dem onstrativo com a contração da preposição em. Quinta, ao
contrário dos dias pares da criação, o sétimo dia se destaca, não tendo dia
correspondente na semana da criação.92

89 E xposition o f Psalm 91 2, em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding. Hyde
Park: New City, 2002), vol. 4, p. 345s.
90 Institutas da religião crista. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, vol. 1, cap. Ill, p. 191-2.
91 Kwok Ting Cheung, “The Sabbath in C alvin’s T h e o lo g y PhD thesis, Faculty of
Theology, St. Andrews University, 1989.
92 Genesis 1— 11:26, NAC. Nashville: B&H, 1996, p. 176-7.
142

Moisés atrelou o dia de sábado aos propósitos redentores de Deus,


com o A braham J. Heschel ressalta: “É o dia em que somos convocados a
com partilhar o que é eterno no tempo, para nos moverm os dos resultados
da criação para o mistério da criação; do m undo da criação para a criação
do m undo” .93Deuteronôm io 5.15 relaciona a guarda do sábado à libertação
histórica de Israel do Egito, expressando que a provisão divina da Terra
Prom etida aconteceu para que Israel pudesse “descansar” ali em sentido
redentor (Êx 33.14), mas o povo fracassou em habitar ali “em descanso”
devido à desobediência (N m 14.28-30).
Para o apóstolo Paulo, para o Talmude e a Mishná (v. p. 140) o sábado
foi o prenúncio das realidades redentoras eternas de Deus, mas Paulo rela-
ciona esse cum prim ento à igreja, que agora incorpora todos os propósitos
redentores para a humanidade.94 A encarnação conferiu à humanidade
uma perspectiva radicalmente nova sobre o am or de Deus e a redenção
da humanidade.95A epístola aos Colossenses canta um mistério: Cristo é a
imagem de D eus e o prim ogênito da criação (Cl 1.15-18a). Com o Agente
da criação, sua agência é redenção. Por estar separada de Cristo, a criação
inteira não teria centro coerente ou propósito e talvez retornaria ao caos
de onde emergiu (1.17).96
N o sentido não temporal, Agostinho fala “do sábado do coração”,
onde ele repousa na graça de Deus, livre da culpa e consciência no tu-
multo. Ele é a esfera da tranquilidade e alegria, a esfera da habitação do
am or divino.97N ão temos a m enor ideia do que isso significa ser o Criador
do cosmo, só, a alegria de conhecer o Criador com o somos ensinados
pelo Senhor a orar a ele com o nosso “A ba”, “Pai nosso que está no céu”
(Mt 6.9; Rm 8.15; G14.6). Pois assim ele é o m eu Salvador, libertando-m e
com o pecador de mim mesmo. Contudo, com o Criador, ele faz tudo em
sentido redentor.

93 The E a rth Is the L o rd ’s and the Sabbath. New York: Harper Torchbooks, 1966, p. 10.
94 Sob o título “A voz da igreja em resposta” para o Salmo 95, discutiremos do
cumprimento do tema do descanso de sábado na Epístola aos Hebreus.
95Veja D. A. Carson, org., From Sabbath to L ord’s D ay. A Biblical, Historical, and Theological
Investigation (Grand Rapids: Zondervan, 1982) [edição em português: D o Shabbath
para 0 dia do Senhor{São Paulo: Cultura Cristã, 2006)].
96 PaulJ. Achtemeier;JoelB. Green; Marianne MeyeThompson, orgs., Introducingthe
N ew Testament: Its Literature and Theology (Grand Rapids: Eerdmans, 2001), p. 409.
97 E xposition o f Psalm 91 2 (Boulding, p. 346).
143

N o Areópago, o apóstolo Paulo declarou que o deus adorado pelos


atenienses, “o deus desconhecido”, era o D eus de Israel (At 17.23). E de
acordo com a narrativa da criação em Gênesis 2, Ele é o E u Sou, ο Deus
da aliança. E m resumo, D eus se revela com o o Criador que planejou e
realizou a eleição, a salvação e a preservação de seu povo, antes de a criação
existir. Ele é com o o m estre de obras. Q uando um prim eiro projeto ruim
de um construtor falha, ele precisa recorrer ao plano B. Deus, que é am or
(ljo 4.16), bom e justo, tem apenas o plano A. Se a redenção fosse o plano
B, então teríamos um deus falível, que não é D eus de form a alguma. Mas
nosso Criador-Redentor criou tudo com perfeição para a humanidade, sua
imago D ei, desde o princípio da raça humana. Ele criará além disso “um
novo céu e urna nova terra” (Ap 21.1) em que o mal jamais o separará de
novo do próprio povo.
A luz desse fato, a criação nada é, senão o que ela revela e fala do
am or de Deus para nós e em nós. Com o o apóstolo escreve à audiência
romana, pagã e cristã: “Pois desde a criação do m undo os atributos in-
visíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos
claramente, sendo com preendidos por meio das coisas criadas, de form a
que tais hom ens são indesculpáveis” (Rm 1.20).
A partir dessas observações extraímos a seguinte conclusão: A reden-
ção precede a criação. N o sentido mais básico, a criação na Bíblia jamais
é uma história; ela é justamente um olhar em retrospecto ao “com eço”, a
saber: Deus. E com o ljo ã o 4.8 nos lembra: “D eus é am or” . N o entanto,
Gênesis 1.1 nos diz: “N o princípio Deus criou os céus e a terra” . Esse
“princípio” é creatio continua, pois como o Criador vivo, ele continua criando,
quer chamemos isso evolução (pois a vida se forma), ou “Big Bang”, (do
qual o universo ainda está vindo a ser form ar ainda mais). Deus é o Agente
não só do passado, mas do presente e futuro, para nós com o hum anos e
para toda a criação em todo o tempo.
III. A recepção da igreja de um salmo de sábado
A igreja primitiva recebeu um a interpretação totalm ente nova do
sábado.98 Ele foi simbolizado prim eiram ente por Jesus alimentar e curar
outros no dia de sábado (Mc 1.21-34; 2.23-28; 3.1-6; Lc 13.10-17; 14.1-6;
Jo 5.1-19; 7.21-24; 9.1-41). Ele não versava mais sobre o ritual cúltico, mas

98 Robert Paul Martin, The C hristian Sabbath (Montville: Trinity Pulpit, 2015).
144

sobre receber obras de graça e misericórdia. A identificação do primeiro


dia da semana com a ressurreição de Cristo tam bém criou um a nova iden-
tidade para os cristãos, em contraste com judeus. O s últimos guardavam
o sétimo dia (o sábado) e os primeiros guardavam o prim eiro dia."
Os pais apostólicos em alto e bom som proclamam a centralidade da
celebração do prim eiro dia da Semana. O D idaquê (c. 100) instruía que
“todo [Dia] do Senhor” era o fundam ento de todas as atividades da se-
mana.99100Mais tarde, Justino M ártir (110-165) detalhou com o o dia inteiro
deveria ser guardado e ensinado.101Ao m esm o tempo, Irineu (c. 130-202)
adm oestou os cristãos a não repetir o legalismo da guarda do sábado sob
a Nova Aliança: “N ão haverá m andam ento para perm anecer ocioso, pois
o hom em , que no tem plo do Senhor, que é o corpo do hom em , presta
culto a D eus e em todo instante pratica a justiça” .102 Naquele tempo, dois
salmos foram adotados: o salmo 118 (“E ste é o dia em que o S e n h o r agiu;
alegremo-nos e exultemos neste dia”, v. 24) e o salmo 92.
IV. Agostinho de Hipona (354-430)
A gostinho pregou um serm ão sobre o salmo 92 (= 91, LXX) em um
domingo, sem dúvida com o gesto retórico contra o abuso judaico do
“sábado” . Um a vez que passavam o dia “com um tipo de descanso ocioso,
vago e dissoluto. Eles evitam o trabalho só para se dedicarem a atividades
frívolas e em bora Deus ordenasse a guarda do sábado, o ocupavam de
formas proibidas por Deus. Descansamos da transgressão; eles descansam
das boas obras”. N a realidade, o tema do salmo é “o sábado do coração”.
“N osso sábado está no interior, em nossos corações [...] Alegria tranquila,
nascida de nossa esperança, é nosso sábado. O que esse salmo tem para
ordenar a nós, o que ele tem para cantar a respeito é com o os cristãos
devem se conduzir no sábado de seus corações nessa tranquilidade e se-
renidade de consciência, onde nenhum a perturbação os toca” .103

99 Richard Bauckham, “The Lord’s Day”, em: From Sabbath to L o rd ’s D ay: A Biblical,
Historical, and TheologicalInvestigation, D. A. Carson, org. (Grand Rapids: Zondervan,
1982), p. 228.
100 Didaquê, p. 50-1.
101 F irst A pology 67 (ANF 1:186; PG 6:429-32).
102A g a in st Heresies, 4.16.5 (ANF 1:482; PG 7:1018) [edição em português: Contra as
heresias, em: Coleção Patrística, vol. 4 (6. reimpr., São Paulo: Paulus, 2019)].
103 E xposition o f Psalm 91 2 (Boulding, 346).
145

Assim , ele acrescenta: “ Com ece seu sábado [...] não atribuindo
nenhum bem a si m esm o”, porque as pessoas pervertidas, perturbadas
que não guardam o sábado atribuem suas más ações a Deus e as boas a
elas m esm as”.104
A gostinho interpretou “a m anhã” com o os tem pos em que tudo
vai bem conosco e a “noite” com o os tem pos em que estamos tristes e
angustiados (v. 2). “Q uando as coisas vão bem, louve sua misericórdia;
quando as coisas vão mal, louve sua verdade [...] Q uando você proclama
sua misericórdia na m anhã e à noite, você o louva o tem po todo, confes-
sando a D eus e o tem po inteiro.105
A gostinho explica que “o saltério de dez cordas” (= “a lira de dez
cordas”, v. 3) representa os D ez M andamentos, tocado ao cum prir os
preceitos. Ele com preende a “lira” com o o que comove.106 Portanto, es-
tamos alegres pelo que D eus realizou em nossa vida (v. 4), com o o após-
tolo nos lembra também: “Porque somos criação de Deus para fazermos
boas obras” (E f 2.10) e mais um a vez: “O que você tem que não tenha
recebido? E se o recebeu, p o r que se orgulha, com o se assim não fosse?”
(IC o 4.7). A pessoa “insensata” (i.e., “o tolo”, v. 6) não conhece essas
coisas e A gostinho julga que essa pessoa perdeu o sentido “do sábado no
íntimo e fechou a porta da paz do coração e rejeitou os bons pensamentos,
[assim], começa a imitar a pessoa que observa florescer em meio às más
obras e, desse modo, se desvia para praticar as mesmas coisas perversas”.107
Q uão alta e profunda é a sabedoria divina, que nos provê com des-
canso sabático, pois o sábado representa a contem plação da eternidade
divina (v. 5): “Todas as coisas m urcham e decaem”, com o a relva do
campo, “mas você tem algo em que se basear: a Palavra do Senhor per-
manece para sem pre’ ”.108 O que, portanto, são os adivinhos, astrólogos
e videntes além de inimigos de Deus? N ão mais que a ilusão efêmera que
perecerá. A m etáfora dos “cedros do Líbano” é repleta de longevidade,
frutificação e beleza na velhice, bem com o de tranquilidade em tempos

104 Ibid., 3 (Boulding, p. 347).


105 Ibid., 4 (Boulding, p. 349).
106 Ibid. (Boulding, p. 350-1).
107 Ibid., 7 (Boulding, p. 352).
108 Ibid., 8 (Boulding, p. 353)
146

de turbulência. Ela reflete de fato quem são “os justos”.109 “Plantados


na casa do E u S o u (v. 13), a alma desses cristãos descansa, multiplicando
seus benefícios em muitos outros, cujo com portam ento calmo irradia a
presença de Deus a todos.
V. Poetas medievais e contemporâneos

Dante Alighieri (1278-1302)


D ante, com o todos os poetas cristãos medievais, afirm ou que Davi é
o m enestrel de Deus. Os poetas medievais perceberam que o louvor é a
espinha dorsal do Saltério. Mas D ante, que adaptou o salmo 92, prevalece
em exaltá-lo com o salmo de gratidão. D ante de fato conferiu ao salmo 92
um a função especial na D ivina comédia. Ele com preendeu que o salmista
retrata uma imagem maior que a guarda do sábado, pois o salmista des-
creve o milagre puro da criação. O que se pode fazer em face disso tudo,
senão oferecer a arte mais perfeita de louvor dia e noite?
D esse m odo, D ante considerou o salmo 92 im portante o suficiente
para conferir-lhe uma função especial, contemplando-o no Jardim do Éden
no M onte do Purgatório do poeta. Esse local é a recom pensa de quem
enfrentou os sete pecados m ortais e foi purificado de suas manchas. É
nisso que eles nasceram de novo. Assim que D ante entra no Éden, ele vê
um campo repleto de flores vermelhas e amarelas. Cam inhando por essa
cena há um a bela jovem. D ante pode afirmar que ela está apaixonada. Ela
caminha com o se dançasse e com o se fizesse um buquê da profusão em
seus pés, ela canta uma música. Isso podería identificar seu amado? A jo-
vem interpreta a curiosidade de D ante com um olhar e decide satisfazê-lo
com graça. Ela se regozija na beleza do Jardim do É den com as palavras
de Salmos 92.4,5, o salmo intitulado “DelectastiM e ” — “Tu me alegras”.110
Mais de um século antes de D ante, Pedro Abelardo tam bém havia
usado o salmo 92 no tratado sobre a obra da criação, o Hexaemeron, para
descrever os prazeres que o hom em na condição corrom pida ainda podia
desfrutar, que “com o o cântico acaricia seu ouvido [e] nos inspira a amar
e louvar nosso Criador, mesm o com o o salmista exclama se dirigindo a
Ele: “Tu me alegras, Senhor, com os teusfeitos; as obras das tuas mãos levam-me a

109 Ibid., 13 (Boulding, p. 357).


110 Peter S. Hawkins, D ante: A B rief H istory (Malden: Blackwell, 2010); cf. Dante,
Purgatorio, 28.77-96.
147

cantar de alegria”. Abelardo nos diz, com o D ante, que o sábado é a oportu-
nidade para nós louvarm os e am armos o Criador.111 Para D ante, a paz do
paraíso terreno é a antecipação da paz celestial; a antecipação e o sinal da
paz eterna. C om o Virgílio prom ete a D ante, ele deve experimentar essa
paz todos os dias.112
John Milton (1608-1674)
John M ilton dem onstrou interesse ao longo da vida pelos Salmos he-
braicos, sendo um dos poucos eruditos de seu tem po a traduzi-los para o
inglês e grego.113 E m Paraíso perdido, o coral angélico canta o salmo 92 no
sétimo dia de acordo com a tradução da Bíblia de Genebra: “Q ue ensina
que o uso do sábado existe para louvar a D eus e não apenas para a ‘ces-
sação do trabalho’ ”.114Provavelmente, M ilton conhecia a tradição judaica
concernente à com posição do salmo por Adão, no prim eiro sábado da
criação. Ao traduzir o salmo completo, ele o inseriu na epopeia.
M ilton divide o salmo em quatro seções: a) o cham ado para adorar
com cântico e instrum entos musicais; b) o louvor às obras de Deus; c)
a descrição do destino dos ímpios; e d) a descrição do futuro dos justos.
Fundam ental para a teodiceia de M ilton no Paraíso perdido é que o E u S o u
é “justo” e ele conclui o hino sobre o salmo 92 com esta celebração: “Três
vezes felizes se conhecessem ,/ A felicidade deles e a justa perseverança”.
M ilton designa o hino para os anjos cantarem:
“Que entendimento compreender-te pode?
“Que língua ousa contar os teus prodígios?
“Quando co’os raios teus em pó fizeste
“Os soberbos arcanjos rebelados,
“Decerto foste imensamente grande;
“Mas, vindo agora de formar um Mundo,
“Fulguras muito mais, maior te vemos.
“Destruir pode ser ação heroica;
“Mas criar é de glória mais subida.
111 Charles S. Singleton, org., The D ivine Comedy: Purgatorio (Princeton: Princeton
University Press, 1973), vol. 2, p. 678-9; cf. Peter Abelard, E xpósito in Hexaemeron
762D.
112 Purgatorio, 27.115-17.
113 Carole S. Kessner, “Psalm 92 and Milton’s Sabbath Hymn”, M ilton Q uarterly 10,
n. 3 (1976): 75-7.
114 Veja John Milton, Paraíso perdido, Livro VII, p. 195.
148

Satanás e os anjos caídos são os ímpios que se rebelaram.


Para M ilton, o descanso de sábado é a criação de um novo mundo,
sem pecado. Ele descreve esse novo mundo:
Vasto, brilhante, de cristal num lago,
“Recamado de estrelas sem quantia,
“Das quais talvez cada uma um Mundo seja
“Que devam habitar viventes próprios.
“Dele a clara porção tu bem distingues,
“O térreo globo, habitação dos homens,
“Grato, formoso, de delícias cheio,
“Tendo em redor o subjacente oceano.
“Oh! mil vezes feliz a humana prole
“Que Deus criou à semelhança sua
“Para m orar nesse Éden e adorá-lo,
“Dominando, nas águas, no ar, na terra.11516

Milton havia identificado em Apocalipse 15.3 uma paráfrase das linhas


de Salmos 92.5: “Com o são grandes as tuas obras, E u Sou”.u6 “O cântico
de M oisés” agora se torna o cântico dos anjos, conferindo um caráter
profundam ente celestial ao salmo, um tema que D ante havia adotado an-
tes de Milton. Os dois poetas conferem um caráter angélico ao salmo e à
guarda do sábado; raramente outro comentarista se apropriou do salmo 92
com essa abordagem celestial. Poetas posteriores — com o a condessa de
Pembroke, Mary Sidney H erbert — interpretariam os salmos em sentido
“poético”, mas não com a profundidade teológica de M ilton.117
VI. Vivendo a vida piedosa de acordo com os reformadores

Martinho Lutero (1483-1546)


N a primeira coleção de preleções sobre os Salmos (1513-1515), es-
crevendo mais com o pietista que com o líder eclesiástico, Lutero jamais se
refere ao sobrescrito do salmo 92. Ele começa: “E m bora o salmo possa
ser explicado com o uma form a de lidar com as obras da criação, ele é

115 Paraíso perdido, Livro VII, p. 195.


116 Kessner, “Psalm 92 and Milton’s Sabbath Hymn”, p. 75.
117 Lawrence Wieder, org., The Poets’ B ook o f Psalms, The Complete Psalter as Rendered
by Twenty-Five Poets fro m the Sixteenth to the Twentieth Centuries (Oxford: Oxford
University Press, 1955), p. 139-40.
149

mais explicado de m odo mais adequado com o descrição da nova criação,


a igreja em Cristo. Efésios 2.10: ‘Porque somos criação de Deus [...] para
fazermos boas obras’ [...] ‘Para que sejamos com o que os primeiros frutos
de tudo o que ele criou’ (Tg 1.18)”.118
João Calvino (1509-1564)
Com o Agostinho, João Calvino começa pela afirmação de que o dia
de sábado “não deve ser santo no sentido de ser devotado à ociosidade,
com o se fosse uma adoração aceitável a Deus, mas no sentido de nos
separarm os de todas as outras ocupações para o engajamento na medi-
tação sobre as obras divinas [...] na celebração do N om e D ivino”.119 Isso
fazemos desde o alvorecer até à noite. M uito menos metaforicamente que
Agostinho, Calvino considera a adoração cristã procedente, em sentido
fundamental, das vozes vernaculares, humanas que dos instrum entos mu-
sicais, ao reconhecer Deus com o Pai e Juiz que cuida da família hum ana.120
Deus m anifestou profundidade incompreensível de poder e sabedoria na
criação do universo, mas o que o salmista tem em vista, de m odo especial,
é a supervisão da análise da disposição que nos leva a m urm urar contra
D eus” .12112E le resume o com entário sobre os versículos 6 e 7: “Parece-me
que o salmista com para a estabilidade do trono de Deus ao caráter volú-
vel e mutável desse mundo, lem brando-nos de que não devemos julgá-lo
pelo que se vê no mundo, onde não há nada de natureza estabelecida e
‫ יי‬199
perm anente .
N o versículo 10, Calvino interpreta o “chifre” como símbolo de poder
e força, possivelmente o chifre do bode selvagem. Mas em contraste com
os primeiros comentaristas, ele confere pouca atenção a isso. E nquanto
o “óleo” reflete o desfrute de todas as bênçãos divinas, são conferidos
sentidos tradicionais à “palmeira” e ao “cedro do Líbano” .123 D a mesma
form a que Lutero antes dele, Calvino nada versa acerca do sobrescrito

118 F irst Lecture on Psalm 9 2 em Luther’s Works 11, Hilton C. Oswald, org. Saint Louis:
Concordia, 1955, p. 228.
119 Commentary on the B ook o f Psalms, trad. James Anderson. Grand Rapids: Baker
Books, 1996), vol. 3, p. 493-4.
120 Ibid., p. 496-7.
121 Ibid, p. 498.
122 Ibid, p. 499-500.
123 Ibid, p. 501-4.
150

“Para o dia de sábado”. Seu com entário sobre o salmo 92 é apenas a re-
comendação à vida piedosa.

Parte IV. Conclusão


O Livro IV é a resposta de Deus e de seu povo para o exílio: o lou-
vor a Deus, que reina sobre o Universo no tem po e espaço. O salmo 92
fundamenta-se nesse louvor: “Pois tu, E u Sou, és exaltado para sem pre”.
O Deus que adotou Israel com o sua família agora reina por meio do filho
ideal de Davi, o Messias. A o contrário dos descendentes fracassados de
Davi, esse filho, o Filho de Deus, não falhará. E m Salmos 91.8, o rei, o
tipo de Jesus o Messias, foi prometido: “Você simplesmente olhará (nãbat),
e verá o castigo dos ím pios” . E m Salmos 92.11, o rei testifica: “Os meus
olhos (¡nãbat) contem plaram a derrota dos meus inimigos” . N o salmo 91
há a prom essa de que o rei fiel é invulnerável e invencível. N o salmo 92,
o rei canta seu cântico de ações de graças: sua vitória passada garante que
ele exterminará os ímpios, e os justos florescerão para sempre. Os tolos
não com preendem o desígnio de Deus: a prosperidade dos ímpios às ex-
pensas dos justos os levarão à destruição. O s reinos seculares, desde o de
Sargão da Acádia até o Terceiro Reich de Hitler term inaram, mas o reino
de Deus perm anece — ontem , hoje e para sempre. Essa é a antiga história
do evangelho. Roma triunfou m om entaneam ente na Sexta-Feira Santa;
Cristo triunfou eternam ente no dom ingo de Páscoa. O rei se identifica
com os justos. Ele fala de “meus ouvidos” e “meus olhos” testem unhando
a derrota dos ímpios (v. 11), mas retrata os justos com o a com unidade
ecumênica a florescer no templo, nas cortes de nosso Deus, pois eles bebem
dele na Palavra e no ritual.
Com o no salmo 90, em que os justos falam do futuro em term os de
anos, dem onstrando com o a vida eterna em sentido pleno ainda seria
claramente revelada, tam bém nosso poeta fala do futuro nos term os da
longevidade do cedro no templo do Eterno, não na clareza da ressurreição
de Cristo e ascensão para a realidade celestial. Mas o cedro florescente
está repleto de seiva e rico em folhagem na velhice; portanto, de form a
embrionária, aponta para a realidade verdadeira.
N o N T, o tem plo terreno tem sua realidade em Cristo (Jo 2.21).
Hoje, o m onte Sião terreno se tornou obsoleto por causa de Jesus Cristo
(Jo 4.23,24). Ele senta em um templo celestial à direita de Deus. Dali,
151

ele derram ou o Espírito Santo sobre a igreja, para ela poder adorar em
Espírito e verdade. Ela vem para “o M onte Sião, para a cidade de Deus, a
Jerusalém celestial” (Hb 12.22). Por meio da Palavra e dos sacramentos,
eles participam da vida eterna. A igreja é o tem plo terreno de Deus, em
sentido corporativo (IC o 3.16) e individual (IC o 6.19), onde o m undo
encontra a água viva do Espirito de Cristo.
Tudo isso é verdadeiro porque o Deus de Abraão, Isaque e Jaco é
exaltado para sempre.
5

Salmo 93: O trono do Eu Sou e o


mundo permanecem firmes

Parte I: A voz do salmista: Tradução


Para o dia antes do sábado, quando o m undo era inabitado. O louvor de
um cántico por Davi.1
1 O E u S o u reina! Vestiu-se de majestade; de majestade vestiu-se o E u
S ou e arm ou-se de poder! O m undo está firme e não se abalará.
2 O teu trono está firme desde a antiguidade; tu existes desde a eternidade.
3 As águas se levantaram, E u Sou, as águas levantaram a voz; as águas
levantaram seu bramido.
4 Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso
do que as ondas do mar2 é o E u S o u nas alturas.
5 Os teus m andam entos perm anecem firmes e fiéis; a santidade, E u Sou,
é o ornam ento3 perpétuo da tua casa.

1 Assim também, a LXX. O TM não contém o sobrescrito.


2 O v. 4a do TM pode ser lido de várias formas. A tradução interpreta m iqq õlo t em
4a(X como omissão em 4bP e ‫נ‬add irlm como interrupção a concatenação.
3 Os acadêmicos diferem sobre a compreensão de n a ã w à . A GKC (75x) interpreta
isso como o Nifal V/i (“inclinar, desejar”; sempre de outra forma Piei ou Hitpael),
como faz o H A L O T (1:20, s.v. ’w h). Mas o H A L O T (1:652, s. v. n h ) , embora como
uma questão, também ofereça o Qal n h . O BDB compreende como Pilei n h c
o Cortase D ictionary o f Classical H ebrew como Pael n h . A maioria concorda que a
palavra significa “belo”, “aprazível” (v. Ct 1.10). A preposição “da” ( f b è f k à “da
tua casa”) acrescenta o aspecto de ser “apropriado”, “correto para” ou “próprio/
conveniente para” (cf. SI 33.1; Pv 17.7), justificando a tradução “ornamento”.
154

Parte II. Com entário

I. Introdução

Autor
A LXX atribui o salmo 93 ao rei Davi e não há razão para negar a
atribuição (v. 27-9).
Retórica: estrutura e mensagem
N a primeira leitura, as três estanças do salmo 93 parecem desunidas.4

Estança I (o E u Sou Reina): O m undo e Seu trono permanecem firmes, 1,2


Estrofe A: O E u Sou, o guerreiro e edificador, firm emente
estabeleceu o mundo, 1
1. Proclamação: O E u Sou reina, l a a
2. O E u Sou é vestido de majestade e arm ado
de poder, laP-b(X
3. O m undo está firm em ente estabelecido, lb P
Estrofe B: O trono eterno foi firmado desde a Antiguidade, 2
Estança II: O E u Sou é mais poderoso que a elevação do mar, 3,4
Estrofe A: As águas levantaram seu bramido, 3
Estrofe B: O EuSoué mais poderoso do que as águas impetuosas, 4
Estança III: A lei e o tem plo do E u Sou perm anecem para sempre, 5

Entretanto, após um a reflexão adicional o salmo é unificado pela:


a) m etáfora de Deus com o Rei; b) adaptação do mito cananeu que retrata
o todo; e c) inclusão das palavras semánticamente relacionadas ao Nifal
kün “firm e” (v. 1,2) e o Nifal ,ãm an “fiéis” (v. 5).

A Metáfora: Deus é Rei


A proclamação introdutória do salmo (“o E u Sou reina”, v. 1) e de-
claração (“Teu trono está firme desde a antiguidade”, v. 2) estabelecem
o pivô do salmo prévio: “Pois, tu, E u Sou, és exaltado para sem pre”
(SI 92.8). A proclamação “o E u Soué R ei/reina” retrata o salmo inteiro.

4 Análise adaptada de DirkJ. Human, Dirk J. Human, “Yahweh Robed in Majesty


and Mightier than the Great Waters”, em: Psalms and Mythology, Dirk J. Human,
org., LHBOTS 462 (London: T&T Clark, 2007), p. 147-69, esp. p. 157.
155

Recorda que o rei foi investido de autoridade suprema em virtude de


sua habilidade para liderar, em especial na guerra e na administração da
justiça e que o rei é um edificador (v. p. 18). O salmo 93 louva o Rei de
Israel com o guerreiro, juiz e edificador, mas ele coaduna esses temas e os
magnifica. Com o guerreiro, ele é mais poderoso, até mais que a fúria das
águas im petuosas (v. 3,4); com o juiz, ele decreta leis (v. 5); e com o edifica-
dor, ele estabeleceu o m undo com tanta firmeza que não pode ser abalado
(v. 1; cf. SI 24.1,2). Recorda tam bém que a habilidade de rei para liderar
depende das qualidades nobres: poder, justiça, majestade e longevidade
(v. p. 18). O E u S ou possui essas virtudes de m odo ímpar. Ele pode ser
com parado a um rei humano, mas nenhum rei hum ano se com para a ele
(cf. Jr 10.6). O salmo 93 elogia a majestade do E u Sou, redefinida como
poder (v. 1,3,4) e justiça (v. 5). E m relação à longevidade, ele é desde a
Antiguidade “eterna” (v. 2) até a “perpetuidade” (v. 5).
Um mito cananita: Baal versus Yarn
O salmo 93 louva as obras superlativas e as qualidades sublimes do
E u S o u usando a metáfora, não a teologia, do m ito ugarítico “Baal versus
Yarn [‘Mafi]”. Com o M ilton e Bunyan usaram a m etáfora da mitologia
grega para destronar os deuses pagãos, o salmo 93 usa a m etáfora dos
mitos de com bate do antigo O riente Médio que envolve o conflito contra
o caos (do alemão, Chaoskampf) para destronar as deidades dos cananeus.
N os mitos do conflito contra o caos [cahoskampj\, uma deidade heroica
estabelece a realeza ao derrotar um dragão deificado ou o Mar. N o mito
acadiano E num a Elish, M arduque — a deidade protetora da Babilônia —
extermina o dragão Tiamat. N o m ito ugarítico, Baal — o deus cananeu da
fertilidade/ vida — e sua consorte Anat derrotam Yam (M ar)/N ahar (Rio)/
M ot (Morte) e a Serpente de sete cabeças, deidades opostas à vida.5Anat
se orgulha:
De fato, eu lutei contra Yam, o Amado de El,
De fato, eu eliminei o Rio, o grande deus,
De fato, eu prendí Tunan e o destruí (?).

5 O mito ugarítico/cananeu foi escrito no séc. 14 a.C, mas provavelmente se origi-


nou poucos séculos antes (cf. Michael David Coogan, Storiesfro m A n á e n t Canaan
[Philadelphia: Westminster, 1978], p. 1).
156

Eu lutei contra a Serpente Enganadora,


O Potentado com sete cabeças.6

N a luta de M arduque para exterminar Tiamat — cujo nom e é cognato


do hebraico fhõm (“profundezas oceânicas”, G n 1.2) — os outros deuses
proclamam: “Marduque é rei”.7Depois de Baal derrotar Yam, proclama-se:
‘T a m está de fato morto! Baal será rei!” .8 O m ito ugarítico continua com
o relato ampliado sobre a construção do tempo-palácio de cedro, ouro,
prata e pedras preciosas nas alturas de Zafom (cf. SI 48.2), onde ele se
assenta entronizado.9As similaridades entre o salmo 93 e o m ito ugarítico
são extraordinárias. E m ambos, com o Jon Levenson nota: “criação [?],
reinado e templo [...] form am uma tríade indissolúvel”.10N ahum M. Sarna
argumenta que o uso do m ito ugarítico de com bate em Isaías 17.12-14,
21.14, Salmos 74.13-15,89.9,10[10-11], 92.10[11], Jó 26.12,13,38.8-11 (cf.
H b 3.8,15) nos perm ite pensar que o salmo 93 se baseia nessa “tradição
exegética bem estabelecida, coerente e difundida”.11 Mas as diferenças do
m ito com o salmo 93 são tam bém extraordinárias. N ão há com bate real
no salmo, e o m ar é desmistificado. Deus não se torna rei ao derrotar o
mar; ele derrota o mar porque ele é o Rei eterno (v. 2).
A inclusão: Firmes e fiéis
H. W ildberger afirma: “E m m uitos aspectos kün [‘firm es’, v. 1] é
surpreendentem ente similar à raiz ’mn [‘provar-se firm e’, v. 5] em sentido
semântico”.12 A inclusão da estabilidade do m undo e a lei de D eus é a
síntese e substância do salmo: o E u S o u é soberano sobre a criação e a
história (cf. SI 92.8), não im porta quão rebeldes elas sejam. Isso é assim
devido ao seu poder majestático (v. 1,4). “Com Deus as coisas jamais saem
do controle”.13Além disso, a estabilidade do m undo conseguida pelo do-
minio do E u S o u sobre o m ar im petuoso gera confiança no fato de sua

6 Simon Parker, org., U gariticN arrative Poetry, trad. Mark S. Smith. Atlanta: Scholars,
1997·, p. 111. Cf. SI 74.13,14; Is 27.1.
7 E num a E lish 4.25-30, trad. Benjamin R. Foster (COS 1.111:397).
8 Human, “Yahweh Robed in Majesty”, p. 158.
9 Veja Dennis Pardee, “The Ba'lu Myth” (COS 1.86:241-86).
10Sinai and Zion: A n E n try into theJewish Bible. New York: HarperCollins, 1985, p. 108s.
11 “The Psalm for the Sabbath Day”,J B L 81 (1962): 155-68, esp. 161.
12 P L O T , 1:136 s.v. ‫־‬m n .
13 H. C. Leupold, E xposition o f the Psalms. Columbus: Wartburg, 1959, p. 665.
157

lei e tem plo não serem eliminados (cf. M t 5.17,18).14 Esse é um rei digno
de que se prom eta lealdade e de ser temido, se ofendido (cf. SI 97.12).
Q uando o O cidente perdeu a confiança no D eus da Bíblia com o Criador,
tam bém deixou de considerar os D ez M andam entos com seriedade. A
teologia da criação e a ética absoluta são inseparáveis.
Forma
A crítica da form a se preocupa com o gênero literário da composição
e com sua atuação na sociedade.
Gênero
O salmo 93 é poesia (v. p. 38-40). Mais específicamente, ele é um hino
(v. p. 19). O salmo 93, com o apenas uns poucos hinos, omite a introdução
que convoca os adoradores a louvar e a conclusão que com um ente renova
o chamado (e.g., “Aleluia!”).15 O salmo 93 não m enciona o poeta, nem os
adoradores, nem a música; ele se concentra de form a exclusiva no E u Sou.
O poeta, ao falar para o verdadeiro Israel, expressa o entusiasmo pelo E u
S o u ao repetir o nom e de D eus cinco vezes em cinco versículos. O hino
tam bém com bina proclamação para a congregação (v. 1) e diálogo direto
com o E u S o u (v. 2-5; v. 117, nota 1). “Sendo mais pessoal, a segunda
pessoa mais enfaticamente expressa a piedade direta”.16
Contexto
Hinos foram com postos para a adoração no templo. A mudança de
destinatários da congregação (v. 1) para o E u S o u (v. 2-5) sugere um con-
texto litúrgico, com o faz tam bém a referência ao tem plo no versículo 5.
O sobrescrito da LXX inform a que o salmo 93 foi “para o dia antes do
sábado, quando a terra foi prim eiram ente habitada”, isto é, o sexto dia
da semana (v. nota 1). O Talmude babilónico explica: [“N o sexto dia] Deus
com pletou sua obra e reinou sobre toda criação em plena glória” (b. Ros
Has. 31a). Esse uso é tam bém o mais apropriado, pois garante à com u­

14 Cf. John H. Eaton, Psalms: Introduction and Commentary (London: SCM, 1967),
p. 229.
151lQ Ps apresenta esse salmo de louvor com “Aleluia”, mas não tem outra caracte-
rística de uma introdução hínica (v. H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms:
The Genres o f the Religious L yric o f Israel, trad. James D. Nogalski [Macon: Mercer
University Press, 1998], p. 23-9).
16 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 33.
158

nidade da aliança que o m undo — a fonte de sua vida e o estágio de sua


historia sagrada — está firm em ente estabelecido; ele jamais será abalado.
A Mishná T a m id lA acrescenta que ele foi cantado pelos levitas. Essas notas
podem ter se originado nos períodos do prim eiro ou do segundo templo.
Para a refutação dessa teoria com a alegação de que o salmo foi usado em
um festival anual de entronização, em que lavé se tornou rei (v. p. 34-7).
II. Exegese

Estança I: (O Ευ Sou Reina): o mundo e seu trono estão firmes, 1,2

Estrofe A: O Eu Sou, o guerreiro e edificador firmemente estabeleceu o


mundo, 1
A proxim idade da com posição da proclam ação: “E u S o u reina”
(v. la a ) com a afirmação de que o m undo está firm emente estabelecido
(lbP) pressupõe a existência segura do m undo devida ao reino de Deus.
A repetição consecutiva de “vestiu-se” no bojo dos versos ( ί φ , Iba)
estabelece a conexão lógica entre o reino e a criação acima de qualquer
dúvida. E m laa-ba o Rei é descrito como guerreiro; em Ιόβ, ele é descrito
com o edificador. O contexto das duas imagens se encontra nos mitos de
batalha do caos do antigo O riente Médio, que proclamam a natureza das
deidades da terra e da vida que se tornam reis por conta das vitórias sobre
as águas caóticas primevas.
L Proclamação: O Eu Sou reina, la a
N o N T, o E u S o u se revela plenamente com o Trindade (v. p. 16).
As três Pessoas da Trindade desem penharam uma função na criação (cf.
G n 1.1,2; Jo 1.1-3; Rm 11.36; Cl 1.16; H b 1.2). O E u S o u reina (não “se
torna rei” em ritual de entronização; v. p. 34-7) não é um a declaração
didática; ela tem o eco da proclamação” 17 (cf. Is 52.7). As afirmações no
versículo 2: “O teu trono está firme desde a antiguidade” e “tu existes
desde a eternidade” são o argum ento implícito contra a noção de que
o E u S o u se tornou Rei na batalha primeva. Marc Zvi Bretder observa
que elas parecem “erodir o m ito de [combate] [...] e afirmam que Deus
sempre foi rei”.18
17 Derek Kidner, Psalms 73 — 150, TOTC (Downers Grove: IVP Academic, 2009),
p. 170.
18 G od Is King: Understanding an Israelite Metaphor, JSOTSup 76. Sheffield: JSOT, 1989,
159

2. Ο Ευ Sou é vestido de majestade e armou-se de poder, Ιαβ-ba


O E u S o u vestiu-se em sentido metafórico com o guerreiro divino para
julgar. Armou-se (hit’azzar) significa “preparar-se para a batalha” nas duas
ocorrências (Is 8.9; cf. SI 18.39 [40]). A salmodia massorética liga o segundo
term o vestiu-se {labes) com arm ou-se [para batalha]” . Portanto, vestiu-se em
la é redefinido com o “arm ou-se” [para batalha]” em Ib e “em majesta-
de” é reform ulado com o de poder. O H A L O T define hitiazzãr “vestir-se
com o cinto” . O verbo é um denominativo de ‫נ‬ezõr (tradicionalmente,
“cinto”).19 Essa vestimenta padrão do trabalhador ou soldado israelita
se estendia até o meio da coxa” .20 Isso provavelmente é uma sinédoque
da panoplia da vestimenta do guerreiro. O uniform e militar tam bém se
ajusta à hostilidade do m ar contra a criação do E u Sou, a adaptação do
salmo do m ito do conflito contra o caos e a descrição do E u S o u com o
,addirím (= “poderoso”, v. 4). Majestade (ge’üt) traduz um derivativo da raíz
g ’h (“ser/se tornar exaltado”). A repetição de “vestiu-se” une os versetos
la P e I b a e retoricam ente causa excitamento e entusiasmo. A justaposi-
ção inapropriada dos verbos concretos “vestiu-se” e “arm ou-se” com as
qualidades abstratas “majestade” e “poder” sinalizam que as qualidades
são metonimias das vestimentas do guerreiro — um emblema visual de
sua majestade e poder, duas das qualidades nobres do rei.
3. O mundo está firme, lbfi
A m etáfora prossegue do guerreiro para o edificador. O E u S o u lu-
tou contra o m ar caótico, m ortal para estabelecer o m undo que sustenta
a vida. Sua vitória garante a perm anência da terra. Philip Sum pter define
a palavra poética têbêl com o “m undo [...] que é o solo [itálico dele] para a
existência de seus habitantes”.21 Christopher J. H. W right nota: “Ele é
usado com frequência em contextos que o associam ao ato criativo de

p. 147.
19 H A L O T , 1:28, s.v. ’ã za r. O uso de linguagem similar, não idêntica, para a mulher
sábia em Pv 31.17 não desconstrói a tese, pois, como Al Wolters e Erika Moore
argumentaram, o poema também pertence ao gênero de louvor heroico; a mulher
do lar é descrita como uma guerreira valente (v. Bruce K. Waltke, Proverbs 15 — 31,
NICOT [Grand Rapids: Eerdmans, 2005], p. 516s.).
20 Mark E Rooker, NIDOTTE, 1:344, s.v. ’azar.
21 Philip Sumpter, The Substance o f Psalm 24: A n A tte m p t to R ead Scripture after Brevard
Childs. London: Bloomsbury T&T Clark, 2015, p. 97.
160

lavé e que, com o resultado, expressa a estabilidade ou durabilidade da


terra (ISm 2.8; SI 89.11 [12]; 93.1; 96.10). Ele é usado quando se refere a
toda população do m undo (SI 24.1; 33.8; 98.7; Is 18.3; 26.9; N a 1.5)”.22
Está firme (v. SI 103.19) é um ativo divino (E u S o u é o agente), revelado
por não se abalará (lit. “balançar/abalar um a base”). O edificador é um
engenheiro tão habilidoso que constrói o cenário inabalável para a vida e
para a historia da salvação nas correntes marítimas instáveis, ameaçadoras
(cf. v. 3,4). Davi presume que a cosmología fenomenal de seu tem po ensina
a teologia inalterável que até o último dia, a terra existirá para sustentar a
vida e o cenário para a historia da salvação.
Estrofe B: O trono eterno está firme desde a antiguidade, 2
A m udança para “tu / t e t l ‘ (v. 2,5) e um vocativo (E u S o u , v. 3) sinaliza
o elo pessoal de Israel com o G uerreiro Divino (v. p. 18, “q u an d o /o n d e”).
O olho da fé do poeta inspirado percebe a firmeza do trono de Deus no
céu (cf. v. 1), sugestão de que “o m undo com partilha da estabilidade e da
continuidade da existência e governo de D eus”.23 O hebraico kisse‫ נ‬significa
“cadeira” (cf. 2Rs 4.10), mas se torna trono (v. SI 103.19) quando um rei se
assenta nele com o símbolo de sua autoridade suprema (G n 41.40;Jr 1.15;
22.30; 43.10). Desde a antiguidade é relativa ao contexto (cf. 2Sm 15.34;
Is 44.8; 45.21) e aqui pode se referir a quando Deus firm ou o mundo. A
ligação do trono na com posição externa do paralelismo quiástico com tu
existes desde a eternidade (v. SI 100.5; cf. Pv 8.22,23) implica sua soberania
eterna e contesta os mitos pagãos de combate. Jenni nota: “A eternidade
está associada ao conceito de inalterabilidade, constância e continuidade
de existência”,24 e assim corresponde a “firm e”.
Estança II: O Ευ 5ου é mais poderoso que a elevação dos mares, 3,4
As palavras principais e o paralelismo similar à escada ligam os versícu-
los 3 e 4 com o um dístico. A metáfora dramática de com bate m itopoeico
agora se altera do protagonista (v. 1,2) para o antagonista (v. 3,4), mas o
m ito é desmistificado (v. p. 156). N ão há redução “do choque violento
22 NIDOTTE, 4:273, s.v. febel.
23 Frank-Lothar; Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 51— 100, trad. Linda
M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 488.
24 P L O T , 2:858, s.v. ' ôlãm .
161

da onda”25 para assegurar que D eus é maior que qualquer ameaça ao seu
trono. A arrebentação das correntes oceânicas agressivamente ameaça a
sustentação da vida do m undo do G uerreiro-Edificador, mas o E u Sou
nas alturas é mais poderoso.
Estrofe A: As águas levantaram seu bramido, 3
E m geral, o term o nãhãr se refere a um rio perene (N m 24.6; Is 41.18
[pl.]), mas aqui o plural águas se refere às correntes do oceano (cf. Is 44.17;
Jn 2.4).26 “Aguas” é redefinida no versículo 4 com o “águas im petuosas” e
“ondas do m ar” — term os gerais para designar imensas expansões de água
que ameaçam inundar e submergir o m undo; pense em um a plataform a
de petróleo durante um tsunami. Eevantaram foca no movim ento do mar
em contraste com a estabilidade do m undo sustentando a vida e conota a
ameaça violenta do m ar contra o mundo, cuja posição é precária. N a cos-
mologia fenomenal do m undo bíblico, as águas estão abaixo da terra. John
Goldingay comenta: “N a descrição do mar, os autores bíblicos perguntam
se a terra poderia ser ‘dissolvida’ ” .27 O vocativo E u Sou expressa angústia
a respeito da ameaça sentida. A ação violenta das águas é representada pela
primeira vez com o tendo com eçado no passado (“levantaram”, v. 3a(X,
3aβ) e então com o uma ameaça contínua {levantaram, v. 3b). O eco do
bram ido prim evo do mar ainda é ouvido nas águas que levantaram seu
bramido; o m ar é restringido, não eliminado (cf. Jó 38; Ap 21.1). Hoje
se sabe que essa cosmología fenomenal não concorda com a cosmología
científica, mas os cientistas da atualidade tam bém vivem angustiados com
o aquecimento global e o aum ento dos níveis do mar, com os asteroides,
superbactérias e com o conflito nuclear. O salmo, usando a linguagem
de seu tempo, garante que o D eus de Israel que cum pre a aliança é mais
poderoso que qualquer ameaça natural à existência do mundo, mas ele
não contem pla a tolice humana. Entretanto, mesm o a tolice hum ana não
desfará as promessas da aliança divina para subm eter todas as coisas sob
o império de Jesus.

25 Kidner, Psalms 73 — 150, p. 371, citando o hino de Samuel Johnson: “Cidade de


Deus, quão extensa e distante”.
26 Mitchell Dahood, Psalms II, AB 17 (New York: Doubleday, 1968), p. 340; Luis
I. J. Stadelmann, The Hebrew Conception o f the W o rlá A Philological and IJtera iy Study
(Rome: Pontifical Biblical Institute, 1970), p. 162.
27 Psalms, BCOTWP. Grand Rapids: Baker Academic, 2006, vol. 1, p. 357s.
162

Estrofe B: O Eu Sou é mais poderoso que as águas impetuosas, 4


O versículo 4 expande o versículo 3, substituindo o singular qôl (“v o z /
som ”) pelo plural q ô lô t (estrondo); e o singular d°ki (“as águas levantaram
seu bram ido”) pelo plural mistfrê yãm {ondas do mar). Concernente à sin-
taxe difícil do versículo, R obert Alter instiga: “A linha inteira é um uso
maravilhoso de uma sentença retórica: A princípio não estamos certos
sobre o que ou quem é “ ‘mais’ que o som das ondas majestáticas e no
fim — I avé é a última palavra da linha — aprendem os que é D eus”.2829
Poderoso®/ ‘‘maj es tático”30 Çaddir) conota im por respeito pela excelência do
poder. E m N aum 2.5, ’addir serve com o m etonim ia de “guerreiros”; em
Salmos 136.18, Deus mata (“reis poderosos”). Assim, o term o pertence ao
mesm o dom ínio semântico que g e 'ú t (“majestade exaltada”) e 'oz (poder)
no versículo 1. N a s alturas é uma metonimia para os céus31 e concretamente
reflete o governo supraterrestre do E u S o u (cf. v. 3; SI 928[9]). D e igual
modo, o Senhor Jesus Cristo m anifestou poder superior aos ventos e às
ondas que lhe ameaçavam virar o barco, quando eles se subm eteram à sua
ordem. “Aquiete-se! Acalme-se!” (Mc 4.39).32 N a trajetória da história da
salvação, a obediência e o sacrifício perfeitos de Cristo derrotaram e desar-
maram Satanás e todos os poderes arraigados contra D eus (Lc 10.18,19;
Rm 8.38; 10.9-11; E f 6.10-18; Cl 1.15).
Estança III: A lei e o templo do Eu Sou permanecem para sempre, 5
O superior poder cósmico de Deus confere segurança que ele sus-
tentará sua lei e preservará seu santo templo. Os teus mandamentos se refere
am plam ente às “leis” de D eus, mais precisam ente às suas “provisões
legais”;33 e, de acordo com D elbert Hillers34 e C. van Leeuwen,35 até mais

28 The B ook o f Psalms: A Translation with Commentary. New York: Norton, 2007, p. 329.
29 H A L O T , 1:13, s.v. 'addir.
30 BDB, p. 12, s.v. 'addir.
31 BDB, p. 929, s.v. m ãrôm , §2; H A L O T , 1:633, s.v. m ãrôm , #6.
32 Quando Jesus saiu do barco, ele se encontrou com um homem possuído por
uma legião de demônios. Jesus expulsou os demônios do homem e eles entraram
em uma manada de porcos, que se precipitaram no m ar (/thalassa) e se afogaram
(Mc 5.1-13).
33 H A L O T , 1:791, s.v. ‘êdü t, #2.
34 Covenant: A H istory o f a B iblical Idea (Baltimore: Johns Hopkins University Press,
1969), p. 160-8.
35 TLOT, 2:846, S.V. 'êd.
163

precisamente para a obrigação dos israelitas de cum prir os m andam entos


do pacto.36 A palavra hebraica tradu 2 ida por fiéis significa “ser perm anen-
te”, “perm anecer firme”, “durar” (ISm 25.8; 2Sm 7.16; Is 7.9; 33.6; 55.3;
Jr 15.18; SI 89.29[30]; lC r 7.23) e fala do que é certo (Os 5.9) e pode ser
confiado (D t 7.9; Is 1.21; Pv 11.13; SI 78.8,37) e do que se prova confiável
e verdadeiro e assim estabelecido (G n 42.20; IRs 8.26). Permanecem firmes
revela a perm anência e confiabilidade dos D ez M andamentos, que sus-
tenta a estrutura do Livro da Lei.37 A associação física da arca da aliança e
o tem plo leva naturalmente à associação deles no versículo 5. D e acordo
com Rudolph O tto 38 e H .-P Muller,39 a santidade qõdes (v. p. 198) indica
o conceito fundamental de num inosa qualidade sui generis. C. S. Lewis
explica que a experiência num inosa da presença do divino é o m edo do
misterioso, com o da crença em fantasmas, não só m edo do perigo, como
de um tigre; e essa experiência com o fantasma tam bém despertaria o
sentim ento de espanto e certa retração, e lidar com o senso de inadequa-
ção.40 O poder da presença divina é visto em 1Samuel 6.20: “Q uem pode
perm anecer na presença do [...] Deus santo?”. Contudo, Walther Eichrodt
e Jackie N audé inferem de outros usos de qds que ele fundamentalmente
significa “separar do profano e /o u im puro”.41 Levítico 10.10 oferece um
exemplo de manual dessa noção: o sacerdote deve distinguir “entre o santo
e o com um, entre o im puro e o puro”. As duas noções — da experiência
numinosa e da pureza — são combinadas na experiência de Isaías. N a
presença dos serafins proclam ando uns aos outros: “Santo, santo, san-
to é o E u Sou O nipotente”, Isaías gritou: “Ai de mim! E stou perdido!
Pois sou um hom em de lábios im puros e vivo no meio de um povo de
lábios im puros” (Is 6.5). A raiz de qds é associada muitas vezes à pureza

36 De acordo com D. J. Wiseman (“Vassal-Treaties of Esarhaddon”, Iraq 20, η. 1


[1958]: 3, 81), o cognato acádio adé denota “termos de uma lei ou mandamento
nos quais o soberano subjuga um vassalo ou povo na presença de testemunhas
divinas”.
37 Bruce K. Waltke, “A Janus Decalogue of Laws from Homicide to Sexuality: Deu-
teronomy 22:1-12”, For the W orld E ssays in H onor o f Richard L . P ra ttJ r., Justin S.
Holcomb; Glenn Lucke, orgs. (Phillipsburg: P&R, 2014), p. 3-19.
38 The Idea o f the H oly (Oxford: Oxford University Press, 1923).
39 P L O T , 3:1103, s.v. qds.
40 O problema do sofrimento (São Paulo: Vida, 2006), p. 21-2.
41Jackie Naudé, N ID O T T E , 3:877-886, s.v. qds; cf. Walther Eichrodt, Theology o f the
O ld Testament, I. Philadelphia: Westminster John Knox, 1967, p. 270-2.
164

ética: “Sejam santos porque eu, o S e n h o r , o D eus de vocês, sou santo”


(Lv 19.2). Sua santidade é definida pelos mandam entos, não pela reflexão
hum ana à parte deles. Tam bém, com o Jackie N audé nota: “Pelo fato de
Deus ser santo por natureza e separado da imperfeição moral, pode-se
confiar nele com o alguém fiel às suas promessas (SI 105.42)”, e, pelo
m esm o raciocínio, fiel para sustentar sua lei. A justaposição inapropriada
da imagem concreta de ornamento perpétuo da tua casa com a noção abstrata
“santidade” implica que a santidade é a metonim ia do material precioso
da edificação do tem plo e que o material do edifício reflete sua santidade.
Além disso, sendo a santidade uma qualidade espiritual, ela é apropriada
para pessoas, não para um a casa; assim, o sugerido material do edifício
simboliza o Cum pridor da aliança no interior do templo e seus cumprido-
res da aliança fora dele. N a trajetória da história da salvação, o tem plo no
M onte Sião se cum pre em Jesus Cristo (Jo 2.18-22) e sua igreja, em sentido
individual (IC o 6.19) e coletivo (IC o 3.16s.). O “material” espiritual deles:
amor, alegria, paz e pureza reflete a santidade divina. Sem im pureza para
deteriorar, o tem plo de D eus existe para sem pre (v. SI 91.16). A Torá e o
tem plo jamais acabarão. Confie nele.

Parte III. A voz da igreja em resposta


I. Agostinho de Hipona (354-430)
A inscrição da LX X instrui a homilia de A gostinho sobre o salmo 93
[= LX X 92] (v. nota 1). “Essas palavras”, ele comenta: “relembra os seis
dias em que D eus criou todas as coisas e as estabeleceu em ordem , do
primeiro dia até o sexto; porque ele santificou o sétimo e descansou nesse
dia de todo o trabalho muito bom que havia realizado” (v. G n 1.1 -24) .42Um
salmo curto, expressa o incompreensível, exceto no louvor. “Vestiu-se de
majestade”, a roupa de D eus é “fascínio e poder” de acordo com Agos-
tinho. Porém , Jesus, em sua humildade, “vestiu-se com um a toalha” para
servir com o escravo! D a mesm a forma, o trono de D eus está no coração
humilde; habitando no templo, mas tam bém “habitando em nossos co-
rações pela fé”.43 Aqui, A gostinho aplica o salmo em estilo pastoral em
lugar de apresentar a exegese do texto. Ele identifica “o sexto dia” com a

42 E xposition o f Psalm 9 2 1, em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding, O.S.B.,
Hyde Park: New City, 2002, vol. 4, p. 362.
43 Ibid., 2, 5 (Boulding, p. 362-4).
165

encarnação e considera o “m ar” com o o m undo em oposição ao reino de


Deus, enfraquecendo o sentido real do salmo com o contestação do mis-
tério de forças antagônicas à criação — “o m ar” no gênero mitopoeico.44
II. E. W. Hengstenberg (1802-1869)
E. W. Hengstenberg, um luterano alemão, foi bem preparado para
contestar, com ousadia destemida, o crescente liberalismo do iluminismo
alemão. Ele era talentoso em filologia, árabe, hebraico e filosofia. “O poder
do m undo”, ele afirma: “brame com o o mar turbulento, mas o Senhor, nas
alturas, é mais glorioso que o m ar com suas ondas enorm es” (v. 3,4). Ele
descobriu a síntese desse breve salmo no versículo 5: “É preciso depender
das promessas do Senhor. Ele sempre protegerá sua casa” .45 E continua:
“N o lugar da primeira casa destruída pelos caldeus, ali surgiu a segunda e a
segunda não foi destruída até que se tornasse um a simples carapaça sem
um núcleo, e uma construção nova, gloriosa surgiu na igreja cristã [...]
Portanto, a preservação da igreja se encontra no coração do salmista” .46

Parte IV. Conclusão


O Livro IV é a resposta inspirada de D eus para a fracassada casa
de Davi e seu exílio na Babilônia e para a destruição do tem plo sob a
tirania de M arduque, a deidade protetora da Babilônia. O reino de Deus
transcende a casa de Davi no espaço (“exaltado”, SI 92.8[9]) e no tem po
(“sem pre”, 90.1). O salmo 93 sustenta a boa confissão: “O E u Sou reina”
ao apontar para trás, para a narrativa da criação, quando Deus m anifestou
sua majestade pela primeira vez (Gn 1.2-12) ao usar a metáfora mítica do
conflito do caos”.47 Deus criou e estabeleceu o m undo com sua vida em
meio às águas primevas hostis à vida. Todos concordam que o poeta tem
em m ente mais que o mar revolto e também que as águas da inundação são
usadas com o emblema de hostilidade ao im pério divino. M uitos pensam
que elas são uma m etáfora das nações hostis, que ameaçam o reino de

44 Ibid., 1, 6 (Boulding, p. 362-4).


45 Commentary on the Psalms. London: T&T Clark, 1864; reimp. Eugene: Wipf & Stock,
2005, vol. 3, p. 148.
46Ibid., p. 153.
47 Para a exegese de Gn 1.1-3, v. Bruce K. Waltke, Genesis: Λ Commentary (Grand
Rapids: Zondervan, 2001), p. 58-60.
166

Deus (cf. SI 46.3[4],6[7]; Is 17.12s.; 51.9s.).48 Mas o salmo 93 se refere só às


realidades cósmicas. Além disso, a interpretação política é muito simplista.
O mar tempestuoso que ameaça a terra é metonimia e símbolo da realidade
profunda, empírica, alienada de Deus e com expressão histórica na derrota
do bem, a saber, no desastre, enfermidade e m orte (cf. lR s 8.30-39). A
origem da alienação é inexplicável e indeterminável. Eckhart O tto define o
mar: “A dimensão profunda de uma experiência empírica de alienação. [...]
A experiência do fracasso da vida não é uma realidade empírica superficial,
mas tem uma profunda dimensão meta-empírica”.49N a trajetória da revela-
ção, a profunda realidade alienada de D eus é desmascarada com o Satanás.
Todavia, a Trindade (cf. v. 1) é mais poderosa que essa realidade pro-
funda. O tto acrescenta: “Portanto, na [criação], os poderes do caos são
dominados, todas as experiências empíricas negativas são transcendidas
no princípio” .50 Sumpter comenta: “O que aconteceu no princípio deve
ser realizado na história”51 e isso ocorre em conexão com a fidelidade da
aliança com o E u Sou. E assim cada geração de fiéis experimenta o bra-
mido das águas enquanto Cristo continua a edificar a igreja.
O Criador do m undo tam bém criou e estabeleceu Israel com suas leis
santas em meio ao mal impetuoso. Essas leis são m uito confiáveis. Com o
o m undo não pode ser abalado, tam bém as leis de Cristo não podem ser
abolidas. Assim, tenham os coragem, pois o futuro acontecerá com o o Rei
de todos nos disse (cf. A t 27.25).

48 A. F. Kirkpatrick, The Book of Psalms (1902; reimp., Grand Rapids: Baker Books,
1986), p. 565. Robert B. Chisholm, Jr. (“Suppressing Myth: Yahweh and the Sea
in the Praise Psalms”, em: The Psalms: languageβ τ Λ ΙΙ Seasons of the Soul, Andrew
J. Schmutzer; David M. Howard,Jr., orgs. [Chicago: Moody, 2013], p. 83s.) em um
outro ensaio útil defende a interpretação política ao recorrer às “águas impetuosas”
no v. 4 e nos Salmos 18.16[17]; 29.3,77,19[20] e à posição do salmo entre 92.9-
11 [10-12] e 94.1 -3.0 primeiro argumento comete a falácia lexical “da transferência
da totalidade ilegítima” e o segundo argumento erroneamente confere prioridade
à posição secundária do salmo sobre o próprio contexto do salmo.
49 “Tiefendimension von empirischer Entfremdungserfahrung: Die Erfahrung des
Scheiterns von Leben ist nicht Oberfláche empirischer Wirklichkeit, sondern hat
metaempirische Tiefendimension” (Eckhart Otto, “Kultus und Ethos in Jerusa-
lemer Theologie: Ein Beitrag zur Begründung der Ethik im Alten Testament”,
ZAW 98 [1986]: 161-79, esp. 174s.).
50 “In [der Schõpfung] also sind die Krafte des Chaos gebándigt, all empirischen
negativerfahrungen prinzipiell transzendiert” (Otto, “Kultus and Ethos,” p. 176).
51 The Substance of Psalm 24, p. 139, η. 354.
Salmo 95: Venite

Parte I. A voz do salm ista : T radução


U m cântico de louvor de Davi.1
1 Venham! Cantemos ao E u S o u com alegria! Aclamemos a Rocha da
nossa salvação.
2 Vamos à presença dele com ações de graças; vamos aclamá-lo com
cânticos de louvor.
3 Pois o E u S o u é o grande Deus, o grande Rei acima de todos os deuses.
4 Nas suas mãos estão as profundezas da terra, os cumes dos m ontes lhe
pertencem.
5 Dele tam bém é o mar, pois ele o fez; as suas mãos form aram a terra seca.
6 Venham! A dorem os prostrados e ajoelhemos diante do E u Sou, o nosso
Criador;
7 pois ele é o nosso Deus, e nós somos o povo do seu pastoreio, o rebanho
que ele conduz. Hoje, se vocês ouvirem a sua voz,
8 não endureçam o coração, com o em M eribá (“m urm uração”), como
aquele dia em Massá (“prova”), no deserto,
9 onde2 os seus antepassados me tentaram , pondo-m e à prova, apesar de
terem visto o que eu fiz.
10 D urante quarenta anos3 fiquei irado contra aquela geração e disse: “Eles
são um povo de coração ingrato; não reconheceram os meus caminhos”.
11 Por isso jurei na minha ira: “Jamais entrarão no m eu descanso” .

1 Deste modo, a LXX; o TM omite um sobrescrito.


2 Ou “quando”.
3 Hb 3.9,10 conecta os “quarenta anos” com “terem visto o que eu fiz”, mas Hb 3.17
segue o TM.
168

Parte II. Com entário

I. Introdução
Autor
A LX X e H ebreus 4.7 atribuem o salmo a Davi (v. p. 27-9).4 G. Hen-
ton Davies argumenta em defesa da data pré-exílica do salmo baseada na
“referência politeísta no versículo 3, o valor cúltico de ‘hoje’ e o uso da
ilustração Massá-Meribá”.5 Se o salmo é pré-exílico, por que não devería-
mos atribuí-lo a Davi?
Forma, estrutura e retórica
O salmo consiste no cântico de louvor do hinista (v. l-7a) e na adver-
tência do profeta do E uSouÇ Jb-X 1). A primeira estança tem duas estrofes:
convocações para vir ao tem plo com ações de graças e cânticos de louvor
(1-5) e para entrar no tem plo com reverência, prostrado e ajoelhando-se
diante do D eus e Rei de Israel (6,7). Cada estrofe tem os temas típicos de
um hino (v. p. 21): convocações para adorar (1 2 ,6 ‫ )־‬e a causa para a ado-
ração (3-5,7a). A sentença causai (3) refere-se ao ser sublime do E u S o u
(“o grande D eus [...] acima de todos os deuses”) e a seu ofício sublime (“o
grande rei acima de todos os deuses”). As duas orações explicativas dos
versículos 4 e 5 defendem essa avaliação por citar seu grande feito de criar
a terra. N a segunda estrofe (6,7), Israel personaliza essas verdades: “ele
0 fez [o mar]” (5) se torna “ nosso Criador” (6); “o grande D eus [...] acima

de todos os deuses” (3) se torna “ nosso D eus” (7); e “suas mãos form aram
a terra seed ’ (5) se torna “nós somos [...] o rebanho que ele conduz” (7).
O s hinos às vezes contêm uma declaração profética de advertência (cf.
ISm 2.5; SI 75.4,5[5,6]; 76.12[13]). O s salmos 81 e 95 com eçam com
hinos que term inam com uma declaração de advertência na form a de
uma petição (81.8[9], 95.7b). O versículo 7b prossegue do louvor para o
discurso propositivo (cf. 50.7-23, 81.8-16[9-17]).

4 “De Davi” em Hebreus 4.7 provavelmente significa “por meio de Davi”; talvez
seja uma referência ao Livro de Salmos.
5 “Psalm 95”, ZAW?>5 (1973): 195. Um relato sobre a pesquisa do Salmo 95, v.
W S. Prinsloo, “Psalm 95: Only You Will Listen to His Voice?”, em: The Bible in
H um an Society: E ssays in H onour o f fo h n Rogerson, J. Rogerson; M. D. Carroll; David
J. A. Clines; Philip R. Davies, orgs.,JSOTSup 200 (Sheffield: JSOT, 1996), p. 393-
410, esp. p. 393-7.
169

O oráculo profético exibe a form a característica de um a declaração


de juízo. O anúncio afirma que o mensageiro transm ite a palavra de Deus,
que deve ser ouvida (v. 7b), é seguida da acusação e sentença de julga-
m ento.6 Todavia, o salmo 95 modifica a forma. A acusação é anunciada
no discurso pessoal pelo E u S o u e caracterizado com o advertência, e a
sentença judicial é caracterizada com o ameaça e baseada em “fiquei irado
contra aquela geração” (10). N os pronunciam entos de juízo nacional, a
acusação costum a ser formulada com o no versículo 9 e a fórm ula do tipo
“jurei/jurou” introduz o juízo (cf. 11a; A m 4.2).7
E m Salmos 95.8-11, D eus não acusa ou sentencia os peregrinos, mas,
ao usar a geração refratária do Êxodo com o tipo, ele os adverte contra o
endurecim ento do coração e avisa da ameaça caso falhem em entrar no
descanso divino.
Baseado em sua forma, retórica e na semântica, aqui há um esboço
rudim entar da estrutura do salmo:

Estança I (hino): O salmista fala, 1-7


Estrofe A: Convocação e causa para adorar o E u Sou,
Criador da terra, 1-5
1. Convocação para adorar o E u S o u com ações de
graças e cânticos de louvor, 1,2
2. Causa para louvar: o grande Deus e Rei, Criador da terra, 3-5
Estrofe B: Convocação e causa para louvar o E u Sou,
o Criador e Senhor de Israel, 6,7
1. Convocação para prostrar-se diante do Criador de Israel, 6
2. Causa: Ele é o Deus de Israel, 7a
Transição (advertência): O uça a Palavra de D eus hoje, 7b
Estança II (advertência profética): O E u S o u fala, 8-11
Estrofe A (advertência): O uça a Palavra de D eus hoje, 8,9
1. N ão endureça os corações, 8
2. Explicado como murmuração e teste do mérito do E u Sou, 9
Estrofe B (ameaça): Sentença judicial de não descanso, 10,11
1. O E u S o u ficou irado com a geração do deserto, 10
2 .0 E u Sou jurou que eles não entrariam em seu descanso, 11

6 Claus Westermann, Basic Forms o f Prophetic Speech, trad. H. C. White (Louisville:


Westminster John Knox, 1991), p. 93.
7 Ibid., p. 169.
170

D iferente do versículo 3, a linha central da primeira estrofe, o salmo é


com posto de dísticos. K onrad Schaefer nota que o hino (v. l-7a) consiste
em sete versículos — o núm ero que significa a totalidade divina.8 Charles
Bruce Riding9 nota a estrutura quiástica da estança:

Nosso Salvador (1-,2)


Criador de tudo (3-5)
N osso Criador (6)
N osso Salvador (7a)

Contexto
D e acordo com A rtur Weiser, a M ishná situa o salmo 95 no festival do
ano novo (Sukkoth ),10 o festival de outono que relembrava que o E u S ou
fez Israel habitar em tendas quando ele trouxe o povo do Egito. Sukkoth
ocorre no fim do ano da colheita, quando as uvas e oliveiras eram colhi-
das. N o festival, Israel era ordenado a regozijar-se para oferecer ofertas
de alimentos a I a v é e a oferecer ações de graças em cântico e sacrifício
a ele (Lv 23.33-43).11 Originariamente, “hoje” (v. 7) referia-se à realidade
cúltica (cf. Is 30.29).12Provavelmente, o salmo foi com posto por conta de
uma seca. Agora, “hoje” se refere a algum dia quando o salmo é usado,
com o em H ebreus 4.6, 7.
A primeira convocação para louvar prevê o cenário fora do templo
(v. 1,2); a segunda, o cenário no átrio do templo (6). Depois do movimento
em direção ao átrio, os peregrinos ouviram a advertência profética para
não desanimarem.
II. Exegese
Sobrescrito
A LX X registra literalmente “o louvor de um cântico por D avi”,
identificando o gênero do salmo com o hino e seu autor com o Davi
(v. “A utor”, acima).

8 Psalms, Berit Olam (Collegeville: Liturgical, 2001), p. 236.


9 “Psalm 95:1-7c as a Large Chiasm”, Z A W 8 8 (1976): 418.
10 The Psalms, OTL (Philadelphia: Westminster, 1962), p. 625.
11 Para o uso dos salmos em várias liturgias judaicas, v. Amos Hakham, Psalms with
the Jerusalem Commentary, trad. Israel V. Berman (Jerusalem: Mosad Harav Kook,
2003), vol. 2, p. 403.
12J. Finkel, “Some Problems Relating to Psalm 95”,A J S L · 50 (1933): 37.
171

Estança I (hino): O salmista fala, 1-7

Estrofe A: Convocação e causa para adorar o Eu Sou, Criador da terra, 1-5

1. Convocação para adorar o Eu Sou com ações de graças e cânticos de


louvor, 1,2
O poeta expressa o fervor de sua convocação para louvar o E u Sou
com o uso generoso de sinônimos de poesia concisa. “Louvor m orno”,
afirma H. C. Leupold, “anula seu propósito”.13 A convocação sugere que
os peregrinos não haviam endurecido o coração contra Deus; se tivessem,
ele teria ocultado a face deles e os odiado, em lugar de convidá-los para
virem até sua presença (cf. D t 31.17,18; 32.20).
a) Adoração sem restrição, 1
O s três verbos de m ovim ento estimulam os peregrinos a se moverem
da esfera profana na base do m onte do templo para a santa presença do Eu
Sou no topo do m onte Sião (cf. SI 92.13[14]): venham (lit. “cam inhem ”),
“encontrem -no” (lit. “sua face”, v. 2) e “venham ” (v. 6). A descrição cênica
corresponde ao movim ento espiritual da dúvida e desespero potenciais
para a fé e esperança em Deus. Aclamemos (rnn; v. SI 100.2) aqui significa
“gritos altos, entusiásticos e alegres”1415e pode incluir palavras articuladas
(cf. Pv 1.20,8.3) E A Rocha (v. SI 92.15[16]) com para Deus a um abrigo e
um refúgio na tribulação (SI 62.6-8[7-9]). D avid M. H oward Jr.16 pensa
que o epíteto “Rocha” ironiza o incidente em Meribá (v. 8), onde Deus
saciou a sede de Israel ao prover água da rocha (Ex 17.1-7; N m 20.2-13;
cf. 1Co 10.4,6). Salvação significa libertação porque é justo (v. SI 92.15 [16]).
b) Adorem-no com ações de graças e cânticos de louvor, 2
Com ações de graças (tôdâ, v. p. 19). O sacrifício é acom panhado por
cânticos de louvor (fnürót, v. p. 40). Hoje, o louvor em si mesm o é o sacrifício
(Hb 13.15). A disposição m uda do imperativo para o indicativo de fato:
vamos aclamá-lo (Hifil rúa ). A sonoridade e forte emoção da aclamação

13Exposition of the Psalms. Columbus: Wartburg, 1959, p. 676.


14Tremper Longman III, N ID O TTE , 3:1127, s.v. rnn.
15 R. Ficker, TEOT, 3:1240, s.v. rnn.
16 The Structure of Psalms 93 — 100, BJSUCSD 5 (Winona Lake: Eisenbrauns, 1997),
p. 54.
172

podem ser inferidas de seu uso por um grito antecipado de vitória na


batalha (c£ Js 6.10,16; ISm 17.52).
2. Causa para louvar: o grande Deus e Rei, Criador da terra, 3-5

a) Ele é o grande Deus e Rei acima de todos os deuses, 3


D eus (SI 90.2) denota a quintessência de poder. Ele é grande em
classificação e influência. R ei (v. p. 18) acima de todos os deuses (cf. Ex 18.11;
SI 29.1; 82.1) tácitamente reconhece que as pessoas depravadas adoram
outros deuses, não um a crença no henoteísm o (cf. SI 96.5; IC o 8.5).
b) Que criou cada aspecto da terra, 4,5
O s versículos 4,5 estão entrelaçados pelo pronom e inicial “quem ”,
por merismas (isto é, profundezas/cum es; m a r/terra seca) e pelo quias-
m o com posto por “suas m ãos” (v. 4a,5b). O s dois merismas expressam
a totalidade da geografia da terra. E m sentido figurado, os merismas de
opostos espaciais simbolizam os inversos espirituais. A s profundezas da
terrcP e 0 m ar simbolizam m orte e alienação em relação a D eus (cf. SI 93);
os cumes dos m ontes e a terra seca simbolizam relação íntima com Deus e
a vida (cf. SI 139.8,9). A mão se estende do cotovelo às pontas dos dedos
(cf. E z 23.42) e simboliza poder e força (Ex 3.19,20), autoridade, controle
e possessão (G n 9.6; N m 33.1; Jz 4.24).1718 Paulo expande o catálogo de
coisas que são dele para as coisas [...] no céu e na terra” (Cl 1.16) e para as
“soberanías [...] poderes [...] altura [...] profundidade” (Rm 8.38,39). Como
D erek K idner nota, as coisas “criadas pelo Filho de Deus e p or meio dele
[...] no fim devem prostrar-se diante dele [e] enquanto isso, nada podem
fazer para separar-nos de seu am or”.19 E m bora a origem do m ar seja
“inexplicável e indeterm inada”,20 no entanto, é dele (cf. v. 5; cf. SI 93.3).
Mais que isso, ele (declarado enfaticamente pelo pronom e tautológico) 0
f e z (v. SI 100.3). Formaram aponta para a arte de Deus. Seu oposto, a terra
seca, produziu todo tipo de vegetação e animal (G n 1.11,12,24) e dela Deus

17 Uma referência às profundezas inexploradas (H A L O T \ 1:571, s.v. m fhãqãr).


18 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery (Downers Grove: IVP Academic, 1998), p. 362.
19 Psalms 73 — 150, TOTC. Downers Grove: IVP Academic, 2009, p. 176.
20 DirkJ. Human, “Psalm 93: Yahweh Robed in Majesty and Mightier than the Great
Waters”, em: Psalms and Mythology, DirkJ. Human, org., LHBOTS 462. London:
T&T Clark, 2007, p. 147-69.
173

criou a hum anidade (Gn 2.7); ela é o lugar onde eles encontram provisão
(G n 1.29,30).
Estrofe B: Convocação e causa para louvar o Eu Sou, O Criador e Senhor
de Israel, 6-7
O Soberano que criou, possui e governa cada aspecto da terra, adotou
Israel com o sua família.
1. Convocação: prostrem diante do Criador de Israel, 6
“Venham ” seguido p o r três verbos para dar voz ao louvor — “can-
temos ao E u S o u com alegria”, e “aclamem os/aclam á-lo” — agora é
aprimorado por venham seguido por três sinônimos para curvar-se: adoremos
prostrados (isto é, mãos, testa, joelhos, dedos do pé no solo), e ajoelhemos.
D escrito em contraste com a concisão da poesia hebraica, o em prego
extravagante do poeta de sinônimos para prostrar em adoração significa
reverência extrema da criatura pelo Criador, do m ortal pelo imortal, do
im potente pelo Todo-Poderoso (cf. v. 1-2).
2. Causa: Ele é o Deus de Israel, 7a
O povo (“relativos”; v. SI 100.3; cf. Ct 2.16) do seu pastoreio reprisa a
fórmula da aliança: “Serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo” (Lv 26.12;
J r 31.33; cf. Êx 19.5; 2Sm 7.24; E z 14.11). N o m undo bíblico, os reis eram
conhecidos com o pastores de seus povos (cf. Jr 23.1-4; Ez 34.1-10), e desse
modo, afirma J. Clinton M cCann Jr.: “E apropriado que essa metáfora
[isto é, rebanho] apareça no salmo que celebra a majestade divina”.21 O
Senhor Jesus Cristo é o bom (Jo 10.111), grande (Hb 13.20) e suprem o
(lP e 5.4) Pastor. “O pastor que nutre, governa e lidera as ovelhas o faz
por ser 0 rebanho que ele condmζ, o qual maneja a vara e o cajado (SI 23.4)”,
afirma o eloquente Charles H. Spurgeon.22
Transição (advertência): Ouça a Palavra de Deus hoje, 7b
A essência da verdadeira religião é a adoração entusiástica, diferencia-
da e a obediência ética a Deus. O poeta para de se identificar com Israel,
usando “n ó s /n o s ” para se distanciar deles ao se dirigir a eles com o vocês.

21 Psalms, NIB 4. Nashville: Abingdon, 1996, p. 1062.


22 The Treasury o f D avid, Roy H. Clarke, org. Nashville: Thomas Nelson, 1997, p. 846.
174

Ouvirem a sua νο!ζ significa “obedecer”23 e tem conexão intertextual com


a desobediência de Israel em Cades (Nm 14.22). A lógica da confissão:
“Ele é o grande Rei acima de todos os deuses”, exige obediência a ele (cf.
Lc 6.46-49; Jo 13.13-16). H oje “exige atenção imediata”.24 O term o con-
trasta com “o dia de Massá” (v. 8). Originaria, é provável que se referia a
um contexto cúltico, talvez ao festival de ano novo (v. “Contexto”, acima).
Estança II (advertência profética): O Eu Sou fala, 8-11
A fala de julgamento é unida por sua form a e pela consonância dos
álefs iniciais em cada versículo: Ja l (8), ,ã ser (9,11) e 'a r b a im (10).
Estrofe A (advertência): Ouçam a Palavra de Deus hoje, 8,9

1. Não endureçam o coração, 8


Adam S. van der Woude afirma sobre endureçam que suas formas verbal
e nominal “sempre têm sentido figurado e se referem à severidade de um
fato que as pessoas percebem com o opressor ou à rigidez de alguém nas
interações com outros”.25 O último sentido se expressa em ser “teimoso”.26
O coração duro não responde à adm oestação do superior (cf. SI 81.8[9]).
O coração denota disposição interior; as afeições religiosas que induzem
ao com portam ento.27 Israel m urm urou por água em M eribá (“lugar da
m urm uração”) no prim eiro ano após o êxodo (Êx 17.1-7; D t 6.16; 9.22;
33.8; cf. SI 81.7[8]) e no quadragésimo ano depois do êxodo (Nm 20.1-13;
SI 106.32). G eorg Braulik observa que esses dois incidentes constituem
o confinam ento de Israel “no deserto” e retrata a história pecaminosa da
geração que põe D eus à prova e reclama dele do início ao fim. Em bora o
E u S ou começasse a longa marcha pelo deserto com o que ele “fez” (9),
os milagres relativos à água no m ar Vermelho, eles o puseram à prova para
lhes dar água.28M assá (“lugar da provação”) se refere ao primeiro incidente,

23 BDB, p. 1034, s.v. sã m a c, §lm.


24 Spurgeon, The Treasury of David, ρ. 846.
25 TLOT, 3:997-99, s.v. qsh.
26 J. I. Durham, Exodus, WBC 3. Waco: Word, 1987, p. 84.
27 Bruce K. Waltke, Proverbs 1— 15, NICOT (Grand Rapids: Eerdmans, 2005), p. 90-
2.
28 “Gottes Ruhe — Das Land oder der Tempel? Zu Psalm 95,11”, em: Freude an der
Weisung des Herrn: Beitrãge yur Theologie der Psalmen, E. Haag; F.-L. Hossfeld, orgs.
(Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1987), p. 37.
175

mas foi acrescentado para dem onstrar a nature 2 a do pecado deles, não para
especificar o lugar de Meribá. A quele dia em M assá é epítom e da obstinação
de Israel de pôr Deus à prova, mesm o com o “o dia de Jerusalém ”, em
Salmos 137.7, é epítom e da catástrofe de Jerusalém em 587 a.C.
2. Explicado como murmuração e provação do mérito do Eu Sou, 9
Seus se refere à geração de Israel “hoje” (v. 7b,8) e antepassados se refere
à geração obstinada do deserto. Os antepassados confiaram no E u S ou e
o louvaram no êxodo (Ex 14.31— 15.21; cf. SI 22.4[5]) e experimentaram
muitas bênçãos espirituais; mais tarde, porém , endureceram o coração
contra ele. A nuvem sobre os mesm os prenunciava o destino de sua sal-
vação, mas eles desejaram ardentem ente pecar e jamais com pletaram esse
destino. Tentaram com um objeto pessoal tem seu sentido básico com o
analisar alguém para determ inar seu mérito (cf. lR s 10.1-7; 2Cr 9.1-6; cf.
D n 1.12,14).29 O s antepassados queriam um milagre para provar se Deus
estava entre eles (Êx 17.2,7; N m 14.22; D t 6.16; cf. Is 7.12; SI 78.18,41,56;
106.14). A lei proíbe a incredulidade (D t 6.16; 9.22; 33.8). Jesus julga sua
geração com o má e adúltera, porque ela procurava por milagres (Mt 16.4).
Paulo declara que os “judeus pedem sinais” e adverte a igreja a não pôr
Cristo à prova (IC o 1.22; 10.9).
Estrofe B (ameaça): Sentença judicial de não descanso, 10,11
A sentença judicial tem duas partes: a resposta emocional de D eus de
irar-se e a prom essa de que os odiados não entrariam em seu descanso. H á
duas razões para sua ira: o coração ingrato de cada um deles e a ausência
de reflexão sobre os caminhos da graça.
1. O Eu Sou ficou irado contra aquela geração, 10
O numeral quarenta com anos (v. N m 14) ou dias, com o os pais da
igreja observaram , “é sempre associado a sofrimento, aflição e punição”
(v. G n 7.4; Êx 24.18; Jz 13.1; E z 4.6; Jn 3.4; Lc 4.1,2).30 O verbo31 irar-se
Ç ã q ü t ; cf. E z 6.9) significa que o Deus de Israel, cum pridor da aliança,
foi constantem ente provocado a irar-se (N m 14.22 m enciona dez vezes)
por conta de atos contínuos de rebelião. O salmo 78 reencena a trágica

29 G. Gerleman, T L O T , 2:741, s.v. nsh Piei.


30 Ryken, Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 305.
31 Um imperfeito usual (IB H S , §§31.2a, b).
176

história de Israel da repetida rebelião, a despeito dos sinais e milagres de


Deus entre eles. Os líderes judaicos disseram não a Jesus, o Messias, e se
os dias da derrota de Jerusalém para Roma no ano 70 d.C. não fossem
abreviados, ninguém teria sobrevivido (Mt 24.22). O verbo denota “sentir
desgosto, rejeitar com hostilidade”. Foi assim que Deus se sentiu diante das
práticas dos cananeus resultantes na expulsão deles da boa terra (Lv 20.23).
Geração sempre denota a vida de uma pessoa do nascimento até a m orte da
descendência (D t 23.2[3], 23.8[9]), mas tam bém denota com um ente um
grupo, em oposição a uma pessoa, inter-relacionado pela descendência
natural (Jó 42.16; Jz 2.10) e sem pre rotula a geração nos term os da avalia-
ção de suas qualidades morais (SI 12.8; 14.5; 112.2; Pv 30.11-14; Is 53.8;
J r 7.29; cf. “geração Baby B oom er” [pessoas nascidas em 1946-1964]”,
“geração X ” e “a geração do milênio”). O m onólogo de Deus (e disse) é
necessário pois só Deus podería julgar o coração deles e explicar porque
ele detestava a geração toda. Ingrato significa quem “abandona um ponto
de orientação adequada”, com o o cam inho certo (Ex 23.4) ou “cambaleia
intoxicado” e assim se desorienta (Is 28.7). E m sentido figurado, isso pode
denotar o “desvio dos preceitos” (SI 119.110; cf. Pv 21.16) e /o u , com o
aqui, do próprio Deus. N ão reconheceram denota a falta de conhecim ento
pessoal e experiência íntima com a realidade de alguém, a saber, meus
caminhos (v. SI 103.7; cf. Êx 34.6).

2. O Eu Sou jurou que eles não entrariam no seu descanso, 11


Jurei com prom essa irrevogável é a referência intertextual a D eutero-
nôm io 1.35. D eus muda suas profecias quando as circunstâncias mudam
(v.Jr 18.5-10), mas ele jamais muda as promessas (Hb 6.13-17).32N a minha
ira (lit. “nas minhas narinas”) aponta para o estado fisicamente visível de
nervosism o pessoal com a respiração ofegante com o consequência de
ira; um antropom orfism o óbvio. Meu descanso pode significar “lugar de
descanso” (G n 49.15; M q 2.10; Zc 9.1) ou “estado de estar em descanso”
(2Sm 14.17; lR s 8.56; J r 45.3). O prim eiro sentido requer o último. Aqui32

32 R. L. Pratt Jr., “Historical Contingencies and Biblical Predications”, em: The Way
of Wisdom: Essays in Honor of Bruce K. Waltke, J. I. Packer; Sven K. Soderlund,
orgs. (Grand Rapids: Zondervan, 2000), p. 180-203; Robert B. Chisholm, “When
Prophecy Appears to Fail, Check your Hermeneutic”, JETS 53 (2010): 561-77;
Matthew H. Patton, Hopefora Tender Spirit:Jehoiachin in Biblical Theology, BBRSupl 6
(Winona Lake: Eisenbrauns, 2017), p. 202-5.
177

ele serve com o metonim ia do templo.33 Alguns pensam que ele se refere
apenas a Canaã (cf. N m 14.30).34 Braulik observa que a expressão “chegar
[entrarão] ao lugar de descanso” é encontrada só em D euteronôm io 12.9
e Salmos 95.11. E m D euteronôm io 12, o “descanso” se refere à terra de
Canaã e ao tem plo e infere a prom essa de que Israel adorará ali. A oração
de Salomão em IReis 8.56 diz respeito à conclusão do tem plo com o cum-
prim ento da prom essa.35 Os textos de Salmos 132.14 e Isaías 66.1 igualam
“meu lugar de descanso” com Sião, o local do templo. Os desertores não
entram e habitam para sempre no templo do Deus vivo (cf. SI 23.6); assim,
não desfrutam o tipo eterno de descanso desfrutado por Deus ao terminar
a obra da criação e cessar o trabalho. N a trajetória da revelação, o templo
terreno se cum pre em Cristo e na nova Jerusalém, a cidade celestial onde
o Senhor D eus Todo-Poderoso e o Cordeiro são o tem plo (Ap 21— 22).
Abraham Cohen aprova a explicação de Oesterley do encerram ento
abrupto do salmo: “O encerram ento abrupto do salmo com as palavras
Jurei na minha ira: Jam ais entrarão no meu descanso coloca em relevo a séria
advertência dirigida, por implicação, contra quem se encontrava no mo-
m ento à entrada do tem plo” .36

PARTE III. A VOZ DA IGREJA EM RESPOSTA


Ao traçar a recepção do salmo 95, contrastarem os três reform adores
da igreja: Agostinho, João Calvino e R oberto Belarmino em contextos
muito diferentes. C onform e vimos na exposição, o salmo integra as vo-
zes de louvor e adoração (v. 1-7), de profecia e julgamento (v. 8-11). N o
entanto, só Calvino considera com seriedade a seção conclusiva do juízo.

33 O Targum traduz como “meu santuário”; cf. lC r 28.2.


34 A N ew English Translation torna Canaã o referente de “meu descanso”, traduzindo o
v. 11 assim: “o lugar de descanso que eu designei para eles [isto é, minhas ovelhas;
veja v. 7]”; c f A NIRV, “o descanso que planejei para eles”. Consequentemente,
o sufixo pronominal é traduzido como um genitivo de autoria (cf 2Cr 24.6). Mas
o texto omite o necessário acusativo preciso “para eles”, o qual ambas as tradu-
ções devem acrescentar por clareza. Muito provavelmente, ele é um genitivo de
possessão inalienável (IB H S , §9.5.1g).
35 “Gottes Ruhe”, p. 41.
36 The Psalms, The Soncino Books of the Bible. London: Soncino, 1992, p. 314.
178

I. Agostinho de Hipona (354-4B0)


A gostinho pregou sobre o salmo 95 [= LXX, 94] cedo em seu mi-
nistério pastoral, quando ainda era muito inocente na vida eclesiástica.
Possivelmente na ocasião singular do convite para pregar para Aurélio,
bispo de Cartago, antes de sua ordenação. Q uando A gostinho com para o
louvor com o coração alegre e o louvor com devoção, revela que ainda não
é um cristão muito profundo. Mas ele percebe que “alguém que louva a
Deus pode ser totalm ente livre da ansiedade, porque não há possibilidade
que ficaremos envergonhados de quem louvam os”.37 Fom os convidados
para um grande banquete de alegria, “excessivamente grande”, porque
ele vem do E u Sou. “Venham” (v. 1) sugere que os convidados vivem
distantes, enquanto Deus está próxim o de nós (SI 139.7,8). A distância
não é geográfica, mas moral, portanto, somos atraídos nesse sentido. Ele
nos convida a viver em harm onia com nossa semelhança com Deus com o
imago D ei, exatamente com o um a m oeda tem a imagem de César.38
“Cantemos ao E u S o u com alegria” (v. 1) se refere aos tem pos em
que nossa alegria é inexprimível em palavras, pois a alegria celestial não
pode ser expressa em palavras.39 O refrão é repetido porque D eus é o
Deus poderoso sobre todos os deuses, pois ele não rejeitará seu povo.40
Além disso, ele criou os céus, inacessíveis aos dem ônios e ele é “o grande
Rei acima de todos os deuses” (v. 3). Aqui, A gostinho ironiza o term o
“deuses”, com preendendo-o com o referência às criaturas. Deus também
criou os hom ens para serem “deuses” . Mas o próprio D eus, com o o
E terno Criador, não é criado.41
Portanto, A gostinho se desvia do curso. E com o se ele estivesse inter-
pretando um outro salmo. Sua interpretação de “m ontes” e “m ar” (v. 4,5)
não é o que o salmista desvenda. Para Agostinho, o “m ar” é a condição
caótica do mundo. Deus nos reduz ao tam anho real e ele não permitirá

37 E xposition o f Psalm 94 1, em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding, O.S.B.
Hyde Park: New City, 2002, vol. 4, p. 409.
38Augustine, E xposition o f Psalm 94 2 (Boulding, p. 410-1).
39 Ibid., 3 (Boulding, p. 411).
40 Ibid., 5 (Boulding, p. 413).
41 Ibid. (Boulding, p. 415).
179

que nós destruam os o que ele plantou, “pois suas mãos form aram a terra
seca”.42
Três vezes até esse ponto, Deus nos ordena a “vir”: cantar (v. 1), dar
graças (v. 2) e a adorar (v. 6). Agora, diz Agostinho, somos chamados à
confissão (v. 7b,8). Agora devemos chorar na presença de Deus. O choro
que A gostinho verifica no texto parece mais retórico que exegético, mas
é pregação eficaz. Tendo nos tornado “deuses”, A gostinho agora nos vê
com o ovelhas — as “ovelhas de seu pastoreio” (v. 7) — e ele descreve
nossa vida nesse estado de form a criativa.43
N a última seção, de m odo mais solene, A gostinho exorta a congre-
gação a ouvir a voz de Deus um a vez mais. “M uito tem po atrás, vocês
ouviram sua voz por meio de Moisés e endureceram o coração. Ele falou
de novo por meio do arauto e vocês endureceram o coração. Agora, por
último, quando ele fala com os próprios lábios, perm itam que o coração
de vocês seja sensível” (cf. v. δ).4445
A gostinho traduz o versículo 10: “Por quarenta anos estive próxim o dessa
geração, mas eu disse: eles são sempre ingratos em seus corações”. Ele interpreta
“quarenta” com o “sem pre”, da mesm a form a que em M ateus 28.20:
“E eu estarei sempre com vocês, até 0 fim dos tempos’’^ Entretanto, o povo de
Deus continuou a provocar a paciência divina. “Sempre ingratos em seus
corações”, eles estão irados com Deus e a consequência do julgamento é
que “eles jamais entrarão no m eu descanso”. Assim, A gostinho observa:
“Começamos o salmo com intensa alegria, contudo, ele chega ao fim com
uma nota de puro terror: a eles, jurei em m inha ira, jamais entrarão em
meu descanso”. N o entanto, a última palavra é “o S e n h o r não rejeitará
o seu povo” .46
O propósito de usar esse texto receptivo é encorajar todo pregador
novo que, fracos com o somos — mesm o com o o grande Agostino come-
çou — , Deus em sua graça nos usa a todos com eficiência para encorajar,
advertir e transform ar a vida de outras pessoas com a proclamação de
sua Palavra.

42 Ibid., 7 (Boulding, p. 418).


43 Ibid., 9 (Boulding, p. 418).
44 Ibid., 10 (Boulding, p. 419).
45 Ibid., 12 (Boulding, p. 421).
46 Ibid., 13 (Boulding, p. 422).
180

II. João Calvino (1509-1564)


João Calvino era um erudito maduro quando publicou o Comentário
sobre os Salmos em 1557 aos 48 anos de idade. Ele jamais estudou formal-
m ente teologia, mas desde 1553 ele tinha um texto hebraico e consultou
outras versões antigas; às vezes a Vulgata, mas muito frequentem ente a
LXX. Ele estava acostum ado a usar os com entários de seus dias; logo,
sua exegese era acadêmica.47 Para seu com entário sobre o salmo 95, ele
tam bém consultou as versões E tíope, A rábica e Siriaca. Baseado em He-
breus 4.7, ele atribuiu o salmo a Davi. E m contraste com Agostinho, deu
ênfase à segunda estança do juízo do salmo (v. 8-11). Calvino estava mais
preocupado com a hipocrisia dos adoradores que com os louvores a Deus,
embora, é claro, isso tenha um a função própria. E isso que o torna um
grande reform ador da igreja.
“O grito alegre” (o “cantemos ao E u S o u com alegria”, v. 1) é “o ba-
rulho misturado de vozes e de vários instrum entos no culto do tem plo”.48
Agora um instrum ento da igreja, o barulho alegre é útil para o sábado,
no culto público, não privado.49 Somos “convocados a adorar” devido à
nossa indiferença natural a dar graças a Deus. Isso é intensificado pela
convocação de adoradores “a vir diante da presença de D eus”. Temos “muitas
razões” para louvar a Deus: primeira, devido à grandeza de Deus, acima
de muitos deuses em nossa vida (IC o 8.5), que são “meras ficções do
cérebro” . Segunda, Calvino observa que se os “próprios anjos devem se
subm eter diante da majestade do único D eus”, quanto mais devem os
meros mortais? Terceira, D eus “claramente dem onstra sua glória na cria-
ção do m undo e temos que diariamente reconhece-lo no governo dele”.50
Ao com entar sobre os versículos 6 e 7, Calvino nos exorta a ter
gratidão ao favor paternal de form a interna e tam bém externa nos atos
sacrificiais de santidade e no com portam ento — com o ajoelhar em sua
presença.51 D e maneira semelhante aos filhos de Israel, a igreja deve re­

47 Wulfert de Greef, “Calvin as a Commentator of the Psalms”, em: Calvin and the Bible,
Donald K. McKim, org. (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), p. 91.
48John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, trad. James Anderson. Grand Rapids:
Baker Books, 1996, vol. 4, p. 31.
49 Calvin, Commentary on the Book of Psalms, 33.
50 Ibid, 34.
51 Ibid, 34-35.
181

lem brar que somos “o rebanho que ele conduz” (v. 7), não apenas criado,
mas tam bém conduzido por sua mão. Mas a advertencia, “hoje”, significa
a obediência contínua e diária que ele requer de nós. Com o isso ele tornou
Israel visivelmente distinto das outras nações; assim, isso deve tornar os
cristãos diferentes em todos os m om entos.52D a mesma forma, “ouvimos
a voz de D eus” de form a contínua, com o o escritor aos H ebreus nos
relembra, quando ele cita o versículo (Hb 4.7).
Em “não endureçam o coração, com o em Meribá” (v. 8), Calvino
identifica a história contida em Ê xodo 17.2-7 (cf. D t 6.16; 9.22; 33.8;
N m 20.13,24). Ele interpreta o “endurecim ento” com o desprezo à Pala-
vra divina ou mesm o negligência.53 Para Calvino “seus antepassados me
tentaram ” (v. 9) representa incredulidade habitual em Deus e a percepção
de sua irrelevância em nossa existência, apesar da farta evidência de sua
presença diária.54 A conclusão do versículo 11 é que se não cultivamos a
presença divina, não seremos capazes de descansar em Deus. O se referir
mais uma vez a H ebreus 4.1-11, Calvino identifica nossa terra prom etida
não como uma realidade geográfica, com o o movimento sionista ainda crê,
mas com o o descanso m oral de ser o “próprio povo de D eus”, habitando
nele. “Deus não cessou de falar; ele revelou seu Filho e todos os dias nos
convida a vir a ele e sem dúvida, é nosso dever, sob essa oportunidade,
obedecer à sua voz”.55
III. Roberto Belarmino (1542-1621)
Concluímos com a voz sacramental de R oberto Belarmino — algo
inovador para os cristãos evangélicos hoje. Belarmino foi arcebispo de
Cápua nos últimos vinte anos de sua vida. Era muito proem inente em seu
tem po e até foi consultado por líderes contem porâneos da Reforma. Ele
influenciou profundam ente três papas em Roma, em especial Paulo V. A
erudição de sua obra m adura In omnespsalm os dilucida expositio [Comentário
sobre os Livros dos Salmos] é tão lúcida e satisfatória quanto qualquer
comentário. Ele tam bém foi um linguista excepcional e escreveu uma
gramática hebraica. Ao mesm o tempo, ele verdadeiramente viveu a vida

52 Ibid., 36-37.
53 Ibid., 39-41.
54 Ibid., 41-44.
55 Ibid, 46-47.
182

de um santo, expressada em dois tratados ascéticos: D egem itu colombae [Os


suspiros dos pombos] e D e ascensione mentis in D eum ‘b [A elevação da mente
até Deus]. Ele é considerado um dos m em bros mais notáveis da O rdem
dos Jesuítas. John M ilton reconheceu sua erudição e ele incorporou a
exposição anterior de Belarmino do salmo 92 em sua própria versão do
salmo no Paraísoperdido. Mas hoje, Belarmino é amplamente desconhecido
e raram ente m encionado pelos acadêmicos.
A explanação de Belarmino do salmo 95 é que ele consiste apenas no
“convite a adorar e servir a Deus e a ouvir sua voz”. Ele escreve:
“A palavra ‘venham ’ contém uma exortação, estimulando-os a unir
coração e lábios no louvor a Deus; exatamente como a palavra é usada
em Gênesis, onde as pessoas estão estimuladas e encorajam umas às
outras, dizendo: *Vamos fazer tijolos’ e “Vamos construir uma cidade,
com uma torre’ e no mesmo capítulo, o E u S o u d iz : ‘Venham, desçamos
e confundamos a língua que falam’ ”. Ele os convida em primeiro lugar
a exultar no espírito e então a comprimir a alegria em cântico; pois o
cântico é de pouco valor, a menos que a mente seja elevada de antemão
a Deus em alegria interior e admiração. Por conseguinte, está escrito a
respeito do próprio Senhor: “Ele alegrou-se no Espírito Santo e disse:
‘Graças te dou, ó Pai’; e a mãe do Senhor disse: ‘Minha alma engrandece
ao Senhor e o meu espírito se alegra’ ”.5657

Igualmente, o salmista nos convoca a sermos unidos na alegria.


Belarmino interpreta o versículo 2 de duas formas: Primeira, devemos,
em prim eiro lugar conduzir a atividade diária com Deus, antes de nos
envolvermos nas reivindicações de outros. Segunda, todos devemos estar
unidos na confissão de nossa necessidade das renovadas misericórdias de
Deus a cada m anhã.58
N os versículos 3-7, o salmista cita cinco razões por que D eus deveria
ser louvado. Primeira, porque Deus está acima de todos os deuses, o Rei
acima de todos os reis. Segunda, o poder de Deus está acima do cosmo,
acima de todas as coisas criadas até “os confins da terra”, indicando seu
poder e presença sobre toda realidade imaginável e mais. Terceira, como
Senhor da terra e mar, criação e caos, ele é Senhor de todos. Quarta, com o

56A Commentary on the B ooks o f Psalms, trad. John O ’Sullivan (Dublin: Aeterna, 2015),
p. 5s.
57 Ibid, p. 447.
58 Ibid.
183

nosso Criador, em bora o ofendam os todos os dias, ele aceita nosso arre-
pendim ento e adoração diários. Quinta, com o pastor, ele nos conduz de
m odo extraordinário — tema em que Belarmino cita a homília de Agosti-
nho sobre o salmo. O assunto tema, ele nota, é descrito em Ezequiel 34.59
Davi exorta o povo, declara Belarmino,
a louvar a Deus, não só por palavra, mas também pelas obras. Ora, o
sacrifício mais agradável que podemos oferecer a Deus é a observância
desses mandamentos, de acordo com IReis 15 : “O S en h o r deseja ho-
locaustos?” [...] Pois é o próprio Deus que propõe a questão; também o
Espírito Santo na passagem diz: “Hoje, se vocês ouvirem minha voz, que
sou seu Senhor, não endureçam o coração”. A palavra “hoje” significa
no presente; e como o apóstolo explica em Hebreus 3: Façam o bem
ou perseverem “durante o tempo que se chama hoje”; isto é, no tempo
completo dessa vida, porque depois dela, o tempo não mais existirá; ele
será eternidade. A palavra “se” parece significar que Deus não fala a
nós em todo o momento, mas ele adverte no tempo e lugar oportunos,
por meio de pregadores, pela leitura das Escrituras ou de outro modo
para tornar sua vontade conhecida a nós. A expressão “não endureçam
o coração” significa que o ouvir da voz do E u S o u é de pouco valor, a
não ser que ela entre nos recônditos do coração.60

Belarmino procura no AT o tema do “endurecim ento do coração”.


Então, conectando as passagens relevantes com a descrição do que o en-
gano do pecado faz em Atos 7, ele com preende o endurecim ento como
resistir a D eus e rejeitá-lo e, assim, pecar contra o Espírito Santo.61
Os israelitas vaguearam por 40 anos no deserto, com o o versículo 10
nos lembra. D e acordo com Belarmino, o versículo 11 explica: “Por que
eles são um povo de coração ingrato, ‘porque não reconheceram os meus
cam inhos’, minhas leis, que são o caminho certo e quem quer que caminhe
nele não pode se extraviar e quando dizem que não conhecem suas leis,
ele diz que os conhece de m odo a observá-los” .62 Portanto, eles foram
condenados a não entrar no descanso de Deus, que Belarmino define “em
um sentido superior [...] essa pátria celestial, onde apenas há o descanso

59 Ibid, p. 448.
60 Ibid, p. 449.
61 Ibid.
62 Ibid, p. 449-50.
184

e paz perfeitos” .63 Semelhante a outros poucos comentaristas, Belarmino


liga o conhecim ento linguístico e os sentidos teológicos das Escrituras
à devoção e santidade pastoral. Ele é um a voz inovadora para nós hoje.

Parte IV. Conclusão


I. Contexto canônico
O salmo 95, com o os outros hinos, convoca Israel a louvar o E u Sou
com o Criador e Salvador, mas ele adverte Israel de form a extraordinária
a não m urm urar contra D eus em meio às provações. A advertência tem
argúcia no Livro IV do saltério, o livro que responde à fracassada casa
de Davi, a queda de Jerusalém e o exílio de Israel na Babilônia (v. 30-1).
Hoje, a Trindade deseja ser honrada em nom e do Filho de Deus, o Senhor
Jesus Cristo (v. p. 18).
David M. H oward Jr. argumenta que os Salmos 95 e 100 constituem
uma com posição em torno dos Salmos 96— 99, o núcleo dos salmos que
louvam a D eus com o Rei. A m bos os salmos com eçam com um a con-
vocação por “aclamações” de alegria usando rüa e rnn, as duas liturgias
prim eiram ente convocam os adoradores “a vir e então entrar” (95.1a; 6a;
100.2a, 4a). As duas m encionam que o E u Sou nos fez (95.6a-7; 100.3) e
o substantivo “ações de graças” ocorre só nesses dois salmos.64
J. Clinton M cCann nota afinidades consistentes entre os Salmos 95
e 24. Os dois celebram a “função de D eus com o criador (cf. 24.1, 2 com
95.4,5) no contexto da aclamação de Deus como Rei (cf. 24.7-10 com 95.3)
e poderiam facilmente ter se originado ou sido usados com o liturgia para a
entrada no templo (mas v. p. 36)”. M cCann tam bém observa o movimento
litúrgico do louvor para ouvir a Palavra de D eus nos Salmos 50 e 81.65
II. Mensagem
O hino do salmo 95 (v. l-7a) é uma convocação ampliada para ado-
rar. Ele é sempre chamado Venite [Venham] na liturgia cristã.66 O louvor

63 Ibid., p. 450.
64 The Structure o f Psalms 93 — 100, BJSUCSD 5 (Winona Lake: Eisenbrauns, 1997),
p. 176.
65 Psalms, p. 1061.
66 Marvin E. Tate, Psalms 5 1 — 100, WBC 20 (Dallas: Word, 1990), p. 503. O título
é apropriado para o salmo inteiro. Isso se deve à advertência “não endureçam o
coração” pressupor não recusar cantar o hino.
185

entusiástico do E u S o u pressupõe a fé inequívoca nele. O oráculo “não


endureçam o coração [na incredulidade]” auxilia a moldar essa afeição
religiosa fundam ental e bem assim as repetições da exortação entre os
cristãos (Hb 3.13). E m síntese, o hino e a advertência — um positivo
(“venham ”) e a outra negativa (“não”) — exortam os congregantes a
louvar com entusiasmo e a lhe obedecerem de form a escrupulosa dia e
noite, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza.
Todavia, a mensagem do salmo é mais que a convocação para lou-
var a D eus em todas as circunstâncias. Trata-se da advertência sóbria da
necessidade de perseverar em louvor e fé na adversidade (v. IC o 10.1-
13; H b 3.7— 4.13). Cada geração “hoje” deve confessar pela fé e com
entusiasmo, mesm o no deserto simbólico, sua fé no Criador e Redentor.
D erek K idner comenta: “O ‘hoje’ do qual o salmo fala é o seu mom ento;
o ‘vocês’ não diz respeito a nenhum a outra pessoa além de nós mesmos,
e o ‘descanso’ prom etido não é Canaã, mas a salvação”.67
O E u S o u proveu razões suficientes para confiar nele e louvá-lo com o
Salvador nas crises. A criação proporciona o testem unho universal de
seu poder e sua soberania (v. 5,6; v. SI 19.1-6[2-7]; 93.1-4; Rm 1.18-33);
quanto aos atos redentores, a geração do deserto os viu com os próprios
olhos (v.9).
Os incrédulos se recusam confiar em Deus nas crises. Eles o põem à
prova em cada crise nova, exigindo que ele os salve com um milagre com o
sinal de sua presença e mérito. E m resposta à murm uração da geração do
deserto, D eus restaura as águas de Mara com um milagre (Ex 15.22-27)
e com sinais e prodígios satisfez a fome deles com maná e codornizes no
deserto do Pecado (Ex 16). Ele o fez para que soubessem que o E u S ou o s
tirou da terra do Egito (16.6). Eles tiveram que pôr a medida de maná de
um jarro para lembrá-los, nas futuras gerações, desse pão celestial (16.33).
Entretanto, quando saíram do deserto e acamparam em Meribá (Refidim,
Massá), novam ente m urm uraram pela falta de água. Ali, exigiram um novo
sinal da presença divina com eles. Por ironia, depois de Jesus milagrosa-
m ente alimentar os cinco mil, os judeus lhe pediram para operar o sinal
do maná no deserto (Jo 6.1-14,25-34). E m outras palavras, os incrédulos
exigem sinais e milagres ininterruptos antes de crerem que D eus é digno
de confiança e adoração. Isso ocorre devido à disposição de seu coração

67 Psalms 73 — 150, p. 376.


186

extraviado para as coisas más (lC o 10.6): “Contenda e ‘prova’ [são] mais
convenientes aos (pecadores] que obediência e fé”.68 A verdade é: “Todo
o que o Pai me der virá a m im ” (Jo 6.37). Q uando os peregrinos fiéis têm
fome e sede “hoje”, eles confiam no E u S o u de todo o coração e o louvam
com pulm ões e vozes plenos, pois com em o Pão verdadeiro do céu, que
dá vida ao mundo.
Hoje, “o evangelho” se refere à morte, ao sepultamento, à ressurreição
e redenção de Cristo e ao testem unho dos apóstolos e muitos outros das
aparições do Jesus ressurreto a eles (lC o 15.2-8), não a todos (At 10.40,41).
Aqueles que D eus escolhe para ser seu povo não exigem a repetição dos
acontecim entos do evangelho. Pela fé, os eleitos recebem a mensagem
das pessoas a quem o Cristo ressuscitado apareceu. O testem unho está na
boca e coração dos eleitos (Rm 10.6). Isso é assim porque a igreja fiel, em
conjunto com o poder convincente do Espírito Santo, prega esse evangelho
de geração em geração (Rm 10.7-17; lC o 2.1-16). Com o a medida de maná
de um jarro lembrava a Israel do pão do céu dado por D eus à primeira
geração do povo, a ceia do Senhor lembra àqueles a quem o Pai deu Cristo
do verdadeiro “Pão do céu” (Lc 22.14-20; Jo 6.30-58; lC o 11.23-26).
Deus nos convida a confiar e a obedecer; ele não usa sua soberania
para coagir. “As consequências da desobediência”, afirma M cCann, “são
severas, mas D eus se recusa a ser carrasco”.69 N ossa decisão de confiar
nele encontra expressão na vinda ao tem plo para adorar e no descanso
no Senhor Jesus Cristo.

68 Tate, Psalms 5 1 — 100, p. 503.


69 Psalms, p. 1063.
7

Salmo 96: O rei vem para estabelecer


a justiça

Parte I. A voz do salm ista : T radução


Um cântico de Davi.1
1 Cantem ao E u S o u um novo cântico; cantem ao E u Sou, todos os ha-
hitantes da terra!
2 Cantem ao E u Sou, bendigam o seu nome; cada dia proclam em a sua
salvação!
3 Anunciem a sua glória entre as nações, seus feitos maravilhosos entre
todos os povos!
4 Porque o E u S o u é grande e digno de todo louvor, mais temível do que
todos os deuses!
5 Todos os deuses das nações não passam de ídolos, mas o E u S o u fez
os céus.
6 Majestade e esplendor estão diante dele, poder e dignidade, no seu
santuário.
7 D eem ao E u S o u , ó famílias das nações, deem ao E u S o u glória e força.
8 D eem ao E u S o u a glória devida ao seu nome, e entrem nos seus átrios
trazendo ofertas.

1 O TM omite um sobrescrito. A LXX tem o sobrescrito anômalo em sentido


cronológico: “Quando o templo foi edificado depois do cativeiro. Um cântico
de Davi”. O Briggs explica a anomalia: “A referência histórica à construção do
segundo templo provavelmente procedeu de um escrito posterior à referência a
Davi. Ele está entre colchetes no Saltmum gallicanum e a ordem das declarações
varia” (Charles Augustus Briggs; Emilie Grace Briggs, A Critical and Hxegetical
Commentary on the Book of Psalms, ICC. 1907; reimp. Edinburgh: T&T Clark, 1976,
vol. 2, p. 299).
188

9 Adorem ao E u Sou no esplendor da sua santidade;2 trem am diante dele


todos os habitantes da terra.
10 D igam entre as nações: “O E u Sou reina!”3 Por isso firme4 está o
mundo, e não se abalará, e ele julgará os povos com justiça.
11 Regozijem-se os céus e exulte a terra! Ressoe o mar e tudo o que nele
existe!
12 Regozijem-se os cam pos e tudo o que neles há!5 Cantem de alegria
todas as árvores da floresta,
13 cantem diante do E u Sou, porque ele vem,6 vem julgar a terra; julgará
o m undo com justiça e os povos, com a sua fidelidade!7
2 E m lugar de hadrat qõdés, a L X X (Sir.) registra aulè hagia autou (= hasrat qodsô,
“sua corte santa”). Mas em outro co n tex to hsr é sem pre o (hasrôt) plural. Q uanto
ao sentido de hãdrâ/hadrat, em: um texto ugarítico (Keretl, iii:l55, CM L [Edim-
burgo: T. & T. Clark, 1977], p. 86), hdrh corresp ond e a “so n h o ’, sugerindo que o
term o significa “visão ” (tam bém D en n is Pardee, “T h e Kirta E p ic”, em: COS 1
[Leiden: Brill, 2003], p. 335) e d esse m o d o n o d om ín io sem ântico de “teo fa n ia /
revelação” (= “P rostrem -se quando o E u Sou se revelar”; v. A . A . A n d erson, The
Book of Psalms 73— 150, New Century Bible Commentary [Grand Rapids: Eerdm ans,
1972], p. 684; e M arvin E . Tate, Psalms 51— 100, W BC 20 [Dallas: W ord, 1990],
p. 511). O recurso ao ugarítico para o sentido de hdrh é desnecessário, questionável
textual e filológicam ente não concorda co m nenhum a versão inglesa.
3 U ns p o u co s m anuscritos e lC rôn icas 16.131 transpõem “D ig a m entre as nações:
o E u Sou reina” para d ep ois d o v. 11a. O Psalterium romanum registra “ Dominus
regnavit a lingo” (“O Senhor reina de um a árvore”). M uitos pais latinos, de Ter-
tuliano em diante, se referem a ele co m o a profecia d o triunfo de Cristo sobre a
m orte (v. p. 202), mas nenhu m M S hebraico ou versão antiga fora d o latim antigo
(LA) e alguns textos gregos dep en dentes dele tem essa versão (v. A lfred Rahlfs,
Septuaginta [Stuttgart: privileg. Württ. Bibelanstalt, 1952], p. vii).
4 Outras versões antigas (L X X , Symachus, Sir, Tg., Vulgata) refletem o piei tikken, de
tkn (“regular”).
5 O hebraico adiciona ‫־‬ãz, é tradicionalm ente traduzido por “en tão”. Mas o então
p oético “enfatiza uma característica particular da descrição” (B D B , p. 23, s.v. ‘ãz,
§c). C onsiderando que o term o português “en tão” expressa um a sequência ou
sequência lógica, não um a ênfase, é m elh or deixá-lo sem tradução, c o m o fazem
a N V I e a NLT.
6 Traduzindo ¿>ã’ co m o um p erfeito gn ôm ico/característico. E le tam bém p od e ser
traduzido co m o “tem v in d o ”, significando um a situação passada que persiste até
o presente (IBHS ', §31.5.1). O u podería ser um participio, significando “ele está
v in d o ” co m o um a situação presente ou futura {IBHS, §§37.6s.). V. “M ensagem ”,
abaixo.
7 O verseto 13b é om itido em lC rôn icas 16.33.
189

Parte II. Com entário

I. Introdução

Autor
Com o em muitos salmos no Livro IV do Saltério, a LX X atribui o
salmo 96 a Davi, mas o TM omite um sobrescrito. N ão há razão para du-
vidar da atribuição da LX X (v. p. 27-9). Q uando Davi nom eou os levitas
para a ministração diante da arca da aliança, na tenda que ele ergueu, os
levitas cantaram o hiño registrado em 1Crônicas 16.8-34.8 Esse hiño, ou
uma versão anterior dele, foi mais tarde adaptado em dois hinos: lC rôni-
cas 16.8-22 (= SI 105.1-15) e lCrónicas 16.23-33 (= SI 96.1-13).9 Gunkel,
em bora rejeite a credibilidade do cronista, afirma que no período do
cronista (em sua opinião c. 300 a.C.): “Os salmos 96 e 105 já eram con-
siderados m uito antigos” .10 Além disso, em bora o salmo 96 possa conter
versículos de outros salmos,11 sua form a e retórica revelam sua unidade.

8 A variação entre o Salm o 96 e seu h ino sin ótico em 1 Crônicas 16.23-33 incluem:
1‘yôm (SI 96.2, “cada dia”) versus ’elyôm (lC r 16.23, sem n enhum a diferença de
sentido); kfbôdô (3, “sua glória) versus ’etkfbôdô (24, sem n enhum a diferença de
sentido); nôrâ (4, “ser tem id o ”) versus wenórã (25, “mais tem ível”); v f tipperet bemi
qdasô (6, “p oder e dignidade, n o seu san tu árioj”) versus wehedwâ bimqõmô (27,
“e alegria na sua habitação [term o mais geral para ‘santuário’]”); l‘hasrôtãyw (8,
“seus átrios”) versus lepãnãyw (29, “à sua presença”) mippãnãyw (9, “diante dele”)
versus millapãnãyw (30, sem nenhum a diferença de sentido); ’imrü (10, “digam ”)
versus w'yo'merü (31, “e d iga-se”); yãdin ‘amrríim bemêsar1m (10, “ele julgará os
p ovos co m justiça”), om itid o em 31; yaãlõz (12, “regozijem -se”) versus yaãlõs
(32, sem nenhum a diferença de sentido); sãdeh (12, “cam p os”) versushassadeh (32,
“os cam p os”); kol (12, “to d o s”), om itido em 33; lipne (13, “diante”) versus milliphe
(33, sem nenhum a diferença de sentido); ki bà (13, segunda vez para “porque ele
vem ”), om itido em 33; ha ares (13, “a terra”) versus ’et habares (33, sem nenhum a
diferença de sentido).
9 JõrgJeremias (DasKdnigtum Gottes in den Psalmen: IsraelsBegegnungmitdem kanaanaische
Mythos in denJabwe- Konig- Psalmen, F R L A N T [Gottingen: V andenhoeck & Ruprecht,
1987], p. 122s.] pensa que o salm o é apenas dois o u três sécu los m ais antigo que
a redação final de Crônicas.
10 H . G unkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres of the Religious lyric of
Israel, trad. Jam es D. N ogalsk i. M acon: M ercer U niversity Press, 1998, p. 64.
11 Citando o agrupam ento de M cC ullough, H . C. L eup old ( Exposition of the Psalms
[Columbus: Wartburg, 1959], p. 682) nota: “C om o v. 1, cf. Salm o 33.3; 40.3; 98.1;
com o v. 3, cf. Salm o 9.11; 105.1; co m o v. 4, cf. Salm o 48.1; 95.3; co m o s v. 7-9,
cf. Salm o 29.1,2; co m o v. 13, cf. Salm o 9.8; 98.9. A lém disso, sobre o v. 2, cf. Isa-
190

Forma e retórica

Poesia
Os salmos são poem as sagrados designados para música (v. p. 40,
126). O salmo 96 aprecia o paralelismo em form a de escada em que as
palavras iniciais são repetidas e então elaboradas (cf. v. 1,2, “cantem ao
E u S o u ” ·, v. 4,13, “porque” ; v. 7,8 “D eem ao E u S o u ”). “Essa construção
excepcional”, afirma D erek Kidner: “Confere vigor perm anente ao salmo
[...] e contribui para a atmosfera de entusiasmo quase irreprimível com a
perspectiva da vinda de D eus”.12
Retórica e estrutura
Os hinos costum am consistir em convocações para louvar, seguidas
das razões para louvar; “p o is/p o rq u e” (cf. 95.3) sempre introduz a última
(v. p. 35-7). E m sentido mais estrito, esse é o segundo salmo que proclama:
“o E u S o u reina” (v. 10, v. p. 21). A repetição alternada de convocações
para louvar (v. 1-3,7-9,11,12), seguida das razões para louvar (4-6,10,13),
divide o salmo em três estanças (1-6, 7-10,11-13).13
Os dísticos iniciais configuram o paralelismo em form a de escada,
seguidos da expansão no terceiro versículo (1-3,7-9,11-13). A primeira es-
tança exibe a mesm a estrutura nos v. 4-6 e, assim, ela é mais bem analisada
com o detentora de duas estrofes de três versículos cada: a convocação
para louvar (v. 1-3) e as razões para louvar (v. 4-6). Assim, com exceção
do versículo 10, o hino tem quatro seções de três versículos cada (1-3,
4-6, 7-9,11-13).
As duas primeiras estanças começam pelas convocações triplas para
louvar (“duas vezes “cantem ” e “anunciem” nos v. 1-3; duas vezes “deem ”
e “adorem ” nos v. 7-9). As convocações distintas form alm ente para louvar
e a razão para louvar estão interligadas na costura para form ar um hino
ias 52.7; sobre o v. 3, Isaías 60.6; 66.18,19; sobre o v. 11, Isaías 44.23,24; 46.5-7;
44.7. R etornando ao v. 5, cf. Isaías 40.19ss.; 41.23,24; 46.5-7; 4 4 .9ss.” . D e v id o à
intertextualidade co m o S egundo Isaías, m uitos com entaristas (e.g., Kirkpatrick,
Leupold, C ohen) datam o salm o n o período pós-exílico, mas co m o A . A . A nderson
(Psalms 73— 150, p. 681) nota: “A lgu ém podería argumentar que o(s) autor(es) de
Is 40— 66 depende(m ) da linguagem cúltica d o p eríodo pré-exíüco”.
12 Psalms 73— 150, T O T C . D o w n ers G rove: 1VP A cadem ic, 2009, p. 379.
13 Para estruturas internas similares, cf. Salm o 66.5,8; 95.6; 96.7; 98.4; 100.4; 139.14;
145.4,10; 147.7,12; 148.7; 149.5 (v. Gunkel; Begrich, Introducüon to the Psalms, p. 39).
191

unificado. A razão para louvar no versículo 4 com eça com “O E u Sou é


digno de todo louvor”, olhando em retrospecto para o louvor de 1-3. E a
convocação para “dar ao E u Sou glória e força” (v. 7) reprisa a razão por
que “poder e dignidade estão no seu santuário” (6). O aforismo “glória”,
um a das palavras principais do salmo, une as duas primeiras convocações
para louvar (3,7). O versículo 10 serve com o ponte e une a segunda e
terceira estanças. Ele provê a razão do louvor nos versículos 7-9, e 10b
(“ele julgará os povos com justiça”) é reprisado por 13b (“julgará [...] e os
povos, com sua fidelidade”).14
Os diversos usos do núm ero 7 e seus múltiplos tam bém unificam o
hino e representam a perfeição do E u Sou. K onrad Schaefer nota:
“São 14 o s im perativos q ue co n v id a m a a ssem b léia a adorar (v. 1-10) e
o u so d o s sin ô n im o s “p o v o s ” e “n a ç õ e s” Çammím e gôyím) totaliza 7.
D e p o is da p roclam ação “ O S e n h o r reina” (v. 10), o s efe ito s d e sse rein o
são d escrito s em 7 facetas, q u e ab rangem a estab ilid ad e d o m u n d o , o
g o v e r n o justo, o re g o zijo celestial e terren o e re sso a p e lo m ar, ca m p o
e floresta. A palavra kôl, “ tu d o ” , resso a 7 v e z e s — to d a a terra, p o v o s,
d eu ses, árvores e tu d o q u e e n c h e o m ar e c a m p o ” .15

Baseado na forma, retórica e semântica aqui está um esboço da es-


trutura do salmo:

Estança I: Toda a terra canta um novo cântico ao E u Sou porque ele


está acima de todos os deuses, 1-6
Estrofe A: Toda a terra é convocada a cantar, 1-3
1. Cantem um novo cântico de salvação, 1,2
2. Anunciem seus feitos salvadores entre as nações, 3
Estrofe B: Causa para louvar, 4-6
1. Ele é m aior que todos os outros deuses porque
fez os céus, 4,5
2. E splendor e dignidade enchem seu santuário, 6
Estança II: Todas as famílias devem adorar ao E u Sou porque ele reina, 7-10
Estrofe A: Todas as famílias devem adorar ao E u Sou, 7-9
1. Dar-lhe glória e trazer-lhe ofertas de sacrifício, 7,8
2. A dorem e trem am diante de sua majestade, 9

14 A ssim tam bém afirma D avid M. H ow ard, Jr., The Structure o f Psalms 93 — 100,
BJSU C SD 5 (W inona Lake: Eisenbrauns, 1997), p. 65.
15Psalms, Berit O lam . Collegeville: Liturgical, p. 239.
192

Estrofe B: R azão/contraste, 10
Estrofe A: Toda criação é convocada a se regozijar diante dele,
ll-1 3 a a a
1. Os elementos cósmicos que se regozijam, 11
2. Campos e florestas devem regozijar, 12,13a(XOC
Estrofe B: O E u S o u v e m para julgar a terra com justiça, 13aCtP‫־‬b
Contexto
Os levitas cantavam esse hino como parte da liturgia do tem plo de
Jerusalém. O cronista (IC r 16.7) define o salmo com o cântico de ação
de graças. Esses cânticos foram usados com o libreto para o sacrifício de
ação de graças (v. p. 19). O salmo exorta as nações a cantar esse cântico,
trazer um tributo (minhâ, “ofertas”, v. 8) e a entrar nos átrios do templo.
Mas com o toda a terra pode cantar e sacrificar no templo de Jerusalém?
O texto de Salmos 47.9 sugere a resposta: “O s soberanos das nações
se juntam [no templo] ao povo do Deus de A braão”. Esses soberanos
estrangeiros, ao retornar aos próprios países, devem propagar as boas
novas de que D eus reina “entre as nações” (v. 3,10). Pode-se com preender
Israel cantando esse cântico quando Davi fixou o em blema do E u S o u em
Jerusalém, no coração dos canaanitas, mas que fé maravilhosa da parte de
quem retornou do cativeiro babilónico (v. p. 30-1) para exortar as nações
a cantar que o E u S o u reina!
II. Exegese

Sobrescrito
U m cântico de Davi (v. “A utor”, acima).
Estança I: Toda terra deve cantar um novo cântico ao Eu Sou porque
ele está acima de todos os deuses, 1-6

Estrofe A: Toda terra é convocada a cantar, 1-3

1. Cantem um novo cântico de salvação, 1,2


1 Cantem no Saltério se refere “à execução musical para se dirigir a Deus,
formulada em linguagem estabelecida, geralmente de louvor” .16 Dennis
McCorkle nota que outros term os musicais se referem aos instrum entos,

16 R. Ficker, TLOT, 3:1320, s.v. sir.


193

mas “cântico” se refere à voz hum ana.17A o E u S o u (v. p. 15-8). N ovo se


refere a esse salmo — o próprio cântico sendo cantado.18D e acordo com
Isaías 42.10 pode-se inferir que “um novo cántico” corresponde a um novo
ato redentor de Deus. Claus W estermann afirma: “O cántico requerido
aqui não é ‘novo’ porque um novo texto deve substituir o antigo ou urna
nova melodia a antiga; essa noção é inteiram ente estranha a esses salmos.
O cântico é ‘novo’ porque D eus realizou algo novo” .19 A. F. Kirkpatrick
comenta: “Novas misericórdias exigem novas expressões de gratidão”.20
Todos os habitantes da terra (v. “M ensagem”, abaixo).

2 Bendigam 0 seu nome (v. SI 100.4). O louvor universal de “todos os


habitantes da terra” (v. 1) e “entre todos os povos” (v. 3) é com pensado
pela contínua perspectiva tem poral de cada dia. M arvin Tate acrescenta:
“Até que todos os povos e nações conheçam sua glória” .21 Hoje, a igreja
cum pre a missão de contar em todo lugar e cada dia as boas notícias que
Jesus Cristo m orreu por nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou no
terceiro dia (Rm 10.14,15; IC o 15.4). Assim, a igreja bendiz a Deus. Pro-
clamem está em aposição a “bendigam o seu nom e”, identificando Deus
com o o originador das boas-novas. A palavra hebraica traduzida por
“proclam em ” pode significar apenas “levar a notícia” (2Sm 18.19,20) ou
até mesm o “más notícias” (e.g., a perda da arca, ISm 4.17), mas geralmente
significa “levar boas notícias” que alegram o coração (Jr 20.15; ISm 18.26;
SI 68.11 [12]). O term o é usado para designar arautos de boas notícias (Na
1.15; Is 40.9; 41.27; 52.7) e do servo messiânico que leva boas notícias
aos aflitos (Is 61.1; v. “O uso cristão antigo do salmo”, abaixo). “A form a
fundamental que alguém louva a D eus”, afirma Goldingay: “é por narrar
o que Deus fez, e é isso que as nações precisam ouvir” .22 O que D eus fez
é sua salvação (cf. SI 40.9[10]).

17 The Davidic Cipher: Unlocking the Hidden Music of the Psalms (Denver: Outskirts,
2010), p. 18.
18John Goldingay, Psalms, B C O T W P (Grand Rapids: Baker A cadem ic, 2008), vol.
3, p. 103.
19 TLOT, 1:397, s.v. hadas.
20 The Book of Psalms. 1902; reimp., G rand Rapids: Baker B ook s, 1986, p. 576.
21 Psalms 51— 100, p. 512.
22 Psalms, p. 103, citando Jeremias, Konigtum, p. 125.
194

2. Anunciem seus feitos salvadores entre as nações, 3


A nunciem a sua glória — isto é, seu valor e dignidade (i.e., honra).23
Daniel Wu reconhece com acerto a existência de aspectos “substantivos”
e “responsivos” da glória. O prim eiro se refere “às propriedades reais do
objeto, independentem ente da percepção de outros” e o último à “ação
ou disposição de uma parte em reagir ao objeto” .24 Ele tam bém distingue
de form a correta o “tribunal público de reputação” do “tribunal divino
de reputação” .25 Mas não se pode anunciar uma abstração com o “honra”.
N a justaposição “honra/glória” há um a m etáfora para sua pessoa (e.g.,
seu poder) e obra (e.g., “ele fez os céus”). Concernente a seusfeitos mara-
vilhosos, R. Albertz diz: “N a categoria ampla e principal de seu uso, a raiz
pV/plh indica o acontecim ento que uma pessoa, ao avaliar o costum eiro
e o esperado, considera extraordinário, impossível, até maravilhoso. P ele ’
jamais se baseia no fenômeno, mas inclui o evento inesperado e a reação
atônita de alguém. Como consequência, a linguagem de pele ’ é a linguagem
da reação feliz (louvor)”.26Povos se refere a uma comunidade organizada de
pessoas, sempre maior que um clã, relacionada e unida por sangue, história,
memória e cultura. O term o difere de nações na menção ao subjetivo e
pessoal, ao contrário do objetivo e impessoal.27
Estrofe B: Causa para louvar, 4-6

1. Ele é maior do que todos os deuses porque ele fez os céus, 4,5
4 A composição externa de 4, “grande” corresponde a “todos os
deuses”; em seu núcleo, “digno de todo louvor” se iguala a “mais temí-
vel”. G rande se refere à categoria e influência e sugere um a comparação,
portanto, é parte da esfera conceituai de “glória/honra”. Assim, digno de
todo significa mais do que norm alm ente (v. SI 92.5[6]; 93.5). Louvor; que
significa proclamação pública para atribuir honra social a alguém ou algo
(cf. G n 12.15; 2Sm 14.24; E z 26.17). M ais temível pode enfatizar tem or
emocional, quando Israel viu a mão poderosa do E u Sou manifestada

23 D aniel Y Wu, Honor, Shame, and Guilt Social- ScientificApproaches to the Book of Ezekiel,
BBR Sup 14 (W inona Lake: Eisenbrauns, 2016), p. 58.
24 Ibid., p. 64.
25 Ibid., p. 59.
26 7LOT, 2:982, s.v. p i‘ N iphil.
27 E. A . Speiser, “ ‘P eo p le’ and ‘N a tio n ’ o f Israel”, JB L 79 (1960): 157-66.
195

contra os egípcios no m ar Vermelho (Êx 14.31); temor e reverenda cognitivos,


quando o salmista suplica para receber um coração fiel, a fim de que ele
possa “tem er/reverenciar” o nom e de D eus (SI 86.11; 112.1); ou adorar
em tem or e adoração em que as pessoas tementes ao E u Sou são com-
paradas com a congregação de Israel que honra ao E u Sou em adoração
(SI 22.22,23[23,24]).28 O s três aspectos do tem or não devem ser muito
nitidam ente distinguidos; eles são opalescentes, com o as cores misturadas
de um a pedra opala ou de um a mancha de óleo. N o desenvolvimento da
próxima estança, “trem or” sugere que o tem or está incluído aqui. Ele é a
resposta aos grandes feitos de D eus (Êx 14.31; Js 4.23,24; ISm 4.7-9) e se
expressa de m odo subjetivo em reverência e adoração, e de form a objetiva
na obediência à sua lei (D t 10.12,13; cf. SI 112.1; 119.63). Samuel pregou:
“Somente tem am o E u Sou e o sirvam fielmente de todo o coração; e
considerem as grandes coisas que ele tem feito por vocês” (ISm 12.24).

5 Para que não pensem que “todos os deuses” (v. 4; v. 95.3) resulte na
existência de outros deuses, o poeta acrescenta de imediato, todos os deuses
das nações não passam de ídolos.29 Cohen comenta: “O profeta usou a arma
da ironia para provar isso”, isto é, ele fez um trocadilho ao equiparar >eãtim
(“ídolos inúteis”) com ‫־‬elõhê haammím (“deuses dos povos”).30 O povo de
Deus não é politicamente correto. Goldingay comenta: “Com o é com um
na Bíblia, o salmo não presum e que sejamos respeitosos com a religião
de outros povos” .31 Os objetos de adoração diferentes de D eus não têm
m érito ou valor; ao contrário, são letais. Eles merecem desonra. Mas o E u
Sou fez os céus (i.e., o céu em form a de abóbada). O céu é um lugar real do
qual Cristo veio, para o qual ele retornou e onde ele está preparando um
lugar para seu povo (Jo 14.2,3). Mas quando os escritores bíblicos falam
de Deus e do céu necessariamente eles precisam usar a metáfora. Deus é

28 O term o, às vezes, se refere à adoração puram ente form al, quando o s sincretistas
d o R eino d o N o rte “tem eram o E u Sou ” co m resp eito à adoração cúltica, em -
bora não “tem essem o E u S o u ” em relação à ob ediên cia justa (cf. Is 29.13). N a
verdade, os sincretistas “n ão tem em o E u Sou” d e form a alguma (2Rs 17.23-34).
29 O term o ‫נ‬eññm é usado c o m o m etáfora idiom ática e pejorativa para designar os
“íd o lo s” (Lv 19.4, 26.1; Is 2.8; passim ).
30 O utros trocadilhos incluem ’eliñm 'illemim (“íd o lo s m u d os” ; H b 2.18) e ‫־‬eliUm
kãül (“o s íd olos [...] por co m p leto ”, Is 2.18).
3í Psalms, p. 104.
196

espírito — um mistério além da experiência e com preensão humanas — e


o céu é habitado por seres espirituais (cf. lR s 8.27).
2. Esplendor e dignidade enchem o seu santuário, 6
O foco se m antém nos céus, no santuário do E u Sou. E m Sal-
mos 68.33-35[34-36], o E u S o u é descrito cavalgando nos céus e residindo
no santuário celestial. M ajestade e esplendor 'hôd Mfhãdãr — notem a asso-
nância) conotam realeza (SI 21.5[6]; 45.3[4]; 145.5; cf. 96.10) e pertencem
ao cam po conceituai de honra. Hãdãr (“majestade”) acrescenta eminência
(v. Lv 23.40 [cf. Is 34.2]; D t 33.17; Pv 14.28 [cf. Is 5.14]). Várias vezes ele
é usado com o m etáfora relativa à exibição com magnificência que des-
taca alguém e o coloca acima dos outros (SI 104.1; Pv 31.25; E z 16.14).
Hôd (“esplendor”) designa um a magnificência suntuosa ou pom pa ma-
jestosa, im ponente.32 Poder denota ter um poder prevalente com o o do
Leviatã (Jó 41.14) ou o poder consistente, protetor com o de uma cidade
(Pv 18.19). Dignidade se refere a tudo que faz as pessoas se regozijarem e
serem orgulhosas: “adorno, esplendor, brilho, beleza” (cf. Jz 4.9; E t 1.4;
J r 13.18; Is 28.1; 62.3; E z 16.12,17); isto tam bém é um aspecto da “glória”.
A. Maclaren comenta:
“P o d er e d ign idad e” sã o sem p re separad os n o m u n d o d eso r d e n a d o e
cada u m é, p ortan to, m u tilad o, m as e m suas p e rfeiçõ e s eles são in d isso -
lu v elm en te in teg ra d o s [...] O s arq u étipos d e am bas ex celên cia s estã o n o
L ugar S an to e qualquer p o d e r se m suas raízes ali é fragilidade, e qualquer
dignid ad e q ue n ã o seja o re flex o “da d ign id ad e d o S en h o r n o s s o D e u s ”
n ã o é nada além d e u m a m áscara q ue o cu lta horror.33

A justaposição inadequada dos term os abstratos e régios com a preposi-


ção local diante dele e o paralelo no santuário im pressionam a audiência até
perceber que “majestade e esplendor”, “poder e dignidade” são atributos
divinos personificados com o relacionados ao trono (cf. SI 78.61).
Estança II: Todas as famílias devem adorar o Eu Sou porque ele reina, 7-10
As convocações para adorar nos versículos 7-9 estão integradas na
confissão que confere a razão para adorar por meio de outro imperativo
(“digam”, v. 10).

32 D. Vetter, TLOT, 1:356, s.v. hôd.


33 The Psalms, E xp ositor’s Bible. N e w York: G eorge H . D oran , n.d., vol. 3, p. 57.
197

Estrofe A: Todas as famílias devem adorar, 7-9

1. Dar-lhe glória e trazer-lhe ofertas de sacrifício, 7,8


7 E m acréscimo ao seu paralelismo em form a de escada, o dístico é
ligado pela palavra principal kãbôd (“glória/honra”). D a r tem sentido literal.
Glória (cf. v. 3) eforça são um a hendíade. D eus usa sua força de um a form a
a lhe conferir glória. A afirmação “dar glória a D eus” significa reconhecer
publicamente sua glória, isto é, sua força. D a r captura o pensam ento “re-
conhecer” (NLT), “reconhecer” (NET; cf. D t 32.3) seu valor substantivo
e assim reconhecer publicamente. Q uanto a ófam ílias das nações34 [estran-
geiras], no m undo bíblico, o rei estava acima da nação, o patriarca acima
da família e o pai acima da família. A família era a referência da pessoa;
ela designa a identidade corporativa da pessoa.

8 Seu nome (cf. v. 2; SI 100.4). E entrem nos seus átrios (v. SI 100.2, 4;
cf. Is 2.2-4; Ml 4.1-4; Ag 2.7-9). O m andam ento se cum pre quando os
gentios vêm a Jesus Cristo, o verdadeiro tem plo de D eus (Jo 2.21) e à
Jerusalém celestial (Hb 12.22,23). O utros textos dem onstram que eles
serão purificados do pecado pelo sangue de Jesus Cristo, pois no estado
im puro não seriam bem -vindos (Is 52.1). Trazendo (lit., “erguer”) significa
“presentear” com “um donativo/oferta (minha).3435 E m contextos profanos,
a minhã denota um “presente” entre pessoas (cf. G n 32.20,21 [21,22]; 33.10)
ou, com o term o especializado, o tributo a um superior (Jz 3.15,17,18).
N os contextos cúlticos, o term o se refere à oferta de sacrifício a Deus
(Gn 4.3-5) ou serve com o term o especializado para a oferta de cereal (i.e.,
uma oferta das colheitas em contraste com rebanhos/m anadas; v. Lv 2).
Robert Alter afirma: “Aqui, com certeza há a intenção de um trocadilho.
Com o rei (cf. v. 10) ele espera a ‘oferta’ (cf. SI 68.30; 72.10); com o Deus
ele designa os sacrifícios cúlticos”.36 M esmo que a oferta seja de ouro,
incenso, animais ou colheitas, ela deve ser de quantidade e qualidade que
honrem e agradem o beneficiário.

34 O Salm o 29.1,2 paralelo difere d o Salm o 96.7, 8 apenas em a quem ele se dirige:
“os seres celestiais”.
35 H A L O T ; 1:726, s.v. nãsa, # 1 6 .
36 The Book of Psalms:A Translation with Commentary. N e w York: N o rto n , 2007, p. 339.
198

2. Adorem e tremam diante de sua majestade, 9


E m relação a adorem o E u Sou, a sequência na realização do louvor
reprisa a sequência em Salmos 95.1,6. Os adoradores dobram os joelhos no
esplendor da sua santidade Qfhadratqõdes). H adrat (sempre construto) significa
esplendor magnifícente e em inente (cf. v. 6) e qõdes (v. p. 141) o caracteriza
com o o tem or do m isterioso e do sobrenatural e o associa à exigência
de com portam ento justo (v. SI 93.5).37 A presença divina perm eia a cena
dos adoradores com pavor numinoso. As noções de santidade, pavor e
com portam ento ético correspondem a “trem er [em tem or]” (v. 9b) e a
vinda de D eus para julgar a terra com justiça (10). A expressão todos os
habitantes da terra repete o versículo 1. Com trem am (hílü) alcançamos o
polo oposto do cântico alegre na adoração verdadeira. Hil está associado
aos movim entos físicos da mulher a se contorcer em trabalho de parto
(Is 13.18; 26.17s.) e com os trem ores da terra (SI 97.4; 114.7; H b 3.10).
Aqui ele é usado com o m etáfora sobre a reverência em ocionalm ente
profunda de sua presença.
Estrofe B: Razão/transição, 10
O antecedente mais próxim o do imperativo digam é “famílias das na-
ções”, os destinatários nos versículos 7-9; desse m odo, ele conecta o versí-
culo 10 às convocações para louvar, dirigidas a eles. “D igam ” em contraste
com os outros verbos de fala se refere ao conteúdo que é falado. Aqui, a
confissão pública de fé entre as nações que não dão glória a nenhuns deuses e
nenhum a glória ao Deus verdadeiro. A confissão de que o E u Sou reina/“ é
Rei” (v. p. 18) é elaborada em duas direções: ele reina com o criador e reina
com o Senhor da história. Por isso Çap, v. 93.1όβ) enfaticamente conecta
a confissão com o firm am ento perm anente do globo terrestre: firme está
0 mundo, e não se abalará (v. 93.1,2). D e acordo com o salmo 93, o E u Sou

firm ou o globo terrestre ao triunfar sobre o mar, que simboliza a profunda


realidade empírica inexplicável e indeterminada, alienada do reto e justo
Deus vivo. Seu governo perm anente e universal sobre a criação confere
segurança de que, com o Senhor da história, elejulgará ou “julga” (yãdin) os
povos (cf. v. 3) que se afastaram dele e temporariam ente triunfam sobre os
justos. Dín (“julgará”) significa “anunciar vereditos justos”. Botterweck

37Em Salmos 110.3, o plural masculino (em contraste com o singular feminino
abstrato de Salmos 96.9) é uma metáfora das vestes da tropa em adoração.
199

concorda com Liedke, que argumenta que o sentido predom inante de


d iñ é a “decisão autorizada, obrigatória em um processo legal” e que seu
sinônimo sãp a t (“julga”, cf. v. 13) denota “a ação que restaura a shalom (paz)
interrom pida de um a com unidade [...] que sofre sob a ordem conturbada;
sã pat significa ‘libertar, auxiliar para trazer justiça’ [...] para quem causa o
distúrbio, a ação- sãpat é o juízo que causa exclusão e destruição”.38Assim,
dinü m ispat em Jeremias 21.12 significa “executar a decisão legal”. Deus
julga as nações (G n 15.14; ISm 2.10; SI 7.8[9]; 96.10; 110.6; Jó 36.31) e
nunca o faz de m odo injusto. C o m ju s tiç a (bem êsãrím ) deriva-se do lexema
hebraico yã sã r (v. 92.15; p. 139).
Estança III: Toda criação deve louvar porque o Eu Sou vem para
governar, 11-13

Estrofe A: Toda criação é convocada a regozijar diante dele, ll-13aa


E m resposta ao rei que vem para julgar o m undo inteiro com justiça,
o poeta ordena que toda criação se regozije em louvor diante do E u S ou
(cf. Is 35.1-3; 65.12,13). Dois merismas (céu e terra, v. 11; cam po e floresta,
v. 12), a repetição de “tudo” e seu sinônimo “totalidade” dem onstram que
os aspectos citados da criação são sinédoques de suas partes.
1. Os elementos cósmicos que se regozijam, 11.
Rego^ijem-se os céus (cf. v. 5) (yismfhu; v. a form a nom inal no Sal-
m o 100.2). Gil, o lexema de regozijemos (ytãgêí), é muitas vezes paralelo a
“regozijar” (v. 11a), “ exultar” (12a) e “cantar de alegria (12b) e seu sinôni-
mo. Esses verbos diferem de “cantar” (v. 1) porque denotam manifestações
de alegria sem palavras ou são expressões espontâneas de alegria em lugar
de formas elaboradas.39 O s sinônimos são difíceis de distinguir uns dos
outros porque os contextos não são específicos; a LXX traduz a maioria
deles pelas mesmas palavras e o vocabulário de Israel para a celebração
litúrgica é m uito mais rico que o nosso. Estando em paralelo e, no entanto,
em contraste com “mar”, a terra se refere “ao solo/terra seca”, com o em
Gênesis 1.10. N a cosmología bíblica, 0 m ar(v. SI 93.4; p. 162) se refere às
águas que circulam o globo terrestre e que estão debaixo dele. O ressoe do
m ar im petuoso é ouvido com o o regozijo altissonante, não com o uma

38 T D O T , 3:188, s.v. din.


39 Michael A. Grisanti, N ID O T T E , 1:855, s.v. gil.
200

ameaça aterrorizante. A tradução de ú m flo 'o (LXX = to p lerõ m a autês; Vulg.


‫ ־‬etplenitude eius) por “sua plenitude” na KJV, ASV e ERV é ambígua. Essa
tradução poderia se referir às suas ondas (cf. SI 93.3) em vez de ü m a lõ P
se referir a “tudo o que nele” (NLT, N ET) ou a tudo que nele existe (NVI),
com o os peixes e o m onstro Leviatã (v. SI 8.8[9]; 74.13,14; Is 27.1).40 Se for
contestado que “ressoe” é inapropriado para peixes, deve-se notar que o
verbo tam bém é usado para “o m undo e seus habitantes” (SI 98.7). Se ele
é considerado um zeugma, “regozijar” pode ser prontam ente fornecido
do versículo 11a.
2. Campos e florestas devem regozijar, 12,13aa
O verbo traduzido regofljem-se ocorre 16 vezes, sem pre na poesia e, de
m odo geral, em conexão com as outras palavras que denotam “alegrar-se”
com o gil (v. 11; v. H b 3.18), smh (2Sm 1.20) e rnn (SI 149.5). Ele tam bém é
usado em paralelo com o hifil ma (“cantem de alegria”) e em conexão com
os que se divertem (Jr 15.17) e estão alegres ou tontos quando bêbados
(Jr 51.39). Campos denota campos abertos e não frequentados pelas pessoas
em contraste com uma cidade ou vila (cf. G n 4.8; 24.63; D t 22.25). E tudo
que neles há inclui todo tipo de vegetação (D t 32.13; Is 55.12), rebanhos
(G n 29.2; D t 11.15), animais de caça (G n 25.29; J r 14.5) e outros animais
selvagens (Êx 23.29; Lv 26.22; 2Sm 17.8; O s 2.12; 13.8). Cantem de alegria
(frarfnu , v. SI 92.4). Todas as árvores inclui as grandes e as pequenas, as
verdes e as secas (Ez 17.24) e da floresta revela a inumerabilidade delas (cf.
Js 17.15; D t 19.5). A criação personificada é descrita a celebrar no templo;
assim, o regozijo delas é louvor espontâneo diante do E u Sou.
Estrofe B: O Eu Sou vem para a julgar a terra com justiça, 13ab‫־‬p
E le vem se refere à epifanía por conta do juízo: “O E u S o u veio do
Sinai [...] ele resplandeceu desde o m onte Parã” (D t 33.2); e “D eus veio de
Temã, o Santo do m onte Parã” (Hb 3.3). Presumivelmente, o E u S o u v e m
de seu tem plo celestial e em sua parte correspondente, seu povo medita
e se regozija em seus juízos justos em toda a terra (cf. SI 48.9,10[11,12]).
A anadiplose vem conduz, com expectativa, ao ápice, a saber ,julgar (lispõt;

40 Cf. o uso de m elõ 'ô com “cidade” (Am 6.8), “terra” (Ez 30.12), “mundo” (SI 50.12);
o uso em Ezequiel 12.19 (“tudo o que existe em sua terra dela será arrancado”);
e seu paralelo “tudo que nela/neles existe” (SI 24.1; 98.7; Is 42.10).
201

cf. v. 10) a terra (cf. v. 1). D e fato, ele ju lg a rá (yisp õ t). O ato sp t (“julgar”)
transpira em um “relacionam ento triangular” . Um a parte oprim e a outra
e a terceira parte restaura o estado de paz ao eliminar o opressor e libertar
o oprimido. Para isso, G. Liedke acrescenta: “A restauração da ordem da
com unidade deve ser com preendida não só com o ato único, mas tam bém
com o atividade contínua, com o a preservação constante de sãlôm [“paz’‫ ך‬,
assim o sentido de ‘julgar, governar’ procede” .41 Ele julgará 0 m un do (tebel,
i.e., o globo terrestre”; v. 93.1) com justiça (Ifsed eq ), não com vingança. Sedeq
se refere à qualidade m oral que denota a ordem justa resultante nos atos
moralm ente qualificados (D t 33.21; SI 48.10,11 [11,12]; Is 59.9,11). “Julgar
com justiça” significa “não [demonstrar] parcialidade com os pobres ou
favoritismo com os ricos” (Lv 19.15), “atendam tanto o pequeno como
o grande” (D t 1.17) e, de form a implcita, executar seus vereditos. Deus
estabeleceu seu trono na retidão e justiça (SI 97.2) e para esse propósito ele
se assenta entronizado (SI 9.7[8]). E os povos (cf. v. 3), com sua fidelidade
(v. SI 100.5). D eus julgará o m undo com justiça. Conte com isso.

Parte III. A voz da igreja em resposta

I. O uso antigo do salmo na liturgia do templo


Esse salmo de louvor foi originariam ente cantado quando a arca
da aliança foi realocada para Jerusalém depois de ficar estocada em
Q uiriate-Jearim p o r 20 anos no reinado de Saul (lC r 15.1— 16.37). Ele
reflete um a longa história; no início de seu reinado em Judá e Israel,
Davi tentou e fracassou em realocar a arca (2Sm 6 .1 1 9 ‫ ;־‬lC r 13.1-14).
Ele foi bem -sucedido na segunda vez e a arca foi firm emente estabelecida
em uma tenda na cidade. Ali ela perm aneceu até Salomão com pletar o
prim eiro templo, de acordo com a descrição em IReis 8.1-9.
O sobrescrito do salmo na LX X — “Q uando o tem plo foi edificado
depois do cativeiro, um cântico de Davi” — dataria a redação da obra
original por Davi (c. 1000 a.C.) no Saltério depois do D ecreto de Ciro em
539 a.C. Considerando que esse salmo estava associado ao transporte da
arca para a tenda que Davi ergueu para ela, talvez tam bém ele teria sido
escolhido para o culto de dedicação do segundo templo m encionado em
Esdras 6.15-22. Nesse novo contexto, a convocação de Davi para as nações

41 T L O T , 3:1393-94, s.v. spt.


202

louvarem o D eus de Israel com o o Criador de tudo e com o aquele que


vem para julgar a terra com um sentido novo e mais profundo.
II. O uso cristão antigo do salmo
H ipólito de Roma (170-235), um teólogo relevante na diocese de
Roma, usa o salmo com o m anifesto do evangelismo missionário. Ele
com enta sobre as palavras de Salmos 96.11:
Por essas palavras expressa-se que a pregação do evangelho será propa-
gada além mares e nas ilhas do oceano e entre os povos que habitam all,
que são aqui chamados “a plenitude” . E que a palavra é boa. De fato,
as igrejas de Cristo enchem todas as ilhas e se multiplicam todo dia e o
ensino da Palavra da salvação.42

O utros apologistas o aplicaram contra a idolatria prevalente em suas


eras, incluindo Justino M ártir (110-165), que ecoa as palavras: “Cantem de
alegria todas as árvores da floresta” (6.12b) e a tradução cristã acrescenta-
da ao texto: “O Senhor reina de uma árvore”. Ele com preendeu que isso
significa a cruz (v. p. 188, nota 3).43 Esse tema “da árvore” é repetido por
Tertuliano (c. 155-240) em A n A nsw er to theJews [Uma resposta aos judeus],
onde ele escreveu: “Venha agora se você leu a declaração do profeta nos
Salmos: ‘D eus reina da árvore’. E u espero ouvir o que você com preen-
deu p o r isso; devido ao tem or você pode pensar que um rei carpinteiro é
representado e não Cristo, que reina desde esse tem po em diante quando
ele venceu a m orte em sua paixão sobre ‘a árvore’ ”.44

III. A SALMODIA MUSICAL ENTRE OS PAIS ANTIGOS


Considerando que o salmo 96 convoca para cantar “um novo cânti-
co” é apropriado relembrar de nossos com entários anteriores o quanto
universal era a função da música entre os cristãos antigos.45 Os pitagóricos
gregos usavam a música em sentido filosfico, com o “uma form a musical

42 “Fragments from Commentaries on Various Books of Scripture”, em: Fathers


o f the Third Century: Hippolytus, Cyprian, N ovatian, A. Roberts; J. Donaldson; A. C.
Coxe, orgs. (Buffalo: Christian Literature Company, 1886), vol. 5, p. 203.
43 The F irst A pology o f Justin 41 (ANF 1:176; PG 6:391).
44A n A nsw er to the Jews 10 (ANF 6:166). Tertuliano associa isso com o debate dos
judeus sobre se Jesus é “o filho do carpinteiro” (Mtl3.55; Lc 4.22).
45Veja Bruce K. Waltke; James M. Houston with Erika Moore, Os Salmos como adoração
cristã: um comentário histórico (São Paulo: Shedd, 2015), ρ. 45-6, 510-2.
203

de vida” .46 O orador, filósofo e historiador grego D io Crisóstom o (c. 40-


115 a.C.) dirigiu-se aos cidadãos de Alexandria:
Acredita-se que a música foi criada pelos seres humanos para a cura de
suas paixões e em especial para transformar almas em estado sombrío
e turbulento. Por isso alguns filósofos se ajustam à lira ao amanhecer, e
assim lutam para controlar a confusão causada pelos sonhos. E com o
cântico que sacrificamos aos ídolos, pois o propósito é garantir ordem
e estabilidade em nós mesmos.47

Q uando Orígenes (c. 185-254), um teólogo, asceta, erudito e cristão


antigo, refugiou-se de toda a calúnia acumulada sobre ele pelos inimigos
em Cesareia, deve ter sido profundam ente confortado na composição de
seu grande comentário sobre o Livro de Salmos. Infelizmente, ele existe em
forma muito fragmentária e não temos nenhum fragmento do comentário
sobre o salmo 96. Mas, com o Ronald E. Heine observou: para Orígenes
o Saltério inteiro é uma canção sobre uma lira! D e acordo com Heine, um
fragmento afirma que
Davi é o único profeta [...] que profetizou com o instrumento que os
gregos chamam saltério, e os hebreus nabla [=“alaúde”/ “harpa”]. Esse
instrumento, o fragmento continua, é único em que não há curva, mas
é reto em que o som procede da parte superior do instrumento. A harpa
é então comparada ao corpo de Cristo e a seus santos. O instrumento
apenas mantém tèn eu th u têta , que significa “retidão” em relação à harpa,
mas também “retidão” em relação às pessoas. Esse instrum ento harmo-
nioso, melodioso, sintonizado, que ser humano algum divergiu, mantém
harmonia com o Pai em todas as coisas.48

Com “a utilidade” da lira, Orígenes sugere que somos apontados para Cristo.
Em um fragmento maior, D e Orginisprologis, p. 13-4, Orígenes foca nos Sal-
mos 89— 99 [= Hb. 90-110?] para sugerir que eles eram salmos mosaicos.49

46John Dillon; Jackson Hershbell, On the Pythagorean Way o f Life: Texts, Translations,
and N otes. Adanta: Scholars, 1991, p. 89.
47 Citado por Paul R. Kolbert, “Athanasius, the Psalms, and the Reformation of the
Self”, em: The H a rp o f Prophecy, E a rly Christian Interpretation o f the Psalms, Brian
E. Daley; Paul R. Kolbert, orgs. (Notre Dame: University of Notre Dame Press,
2015), p. 96.
48 “Restringing Origen’s Broken Harp: Some Suggestions Concerning the Prologue
to the Caesarean Commentary on the Psalms”, em: The H a rp o f Prophecy, p. 60-1.
49 “Restringing Origen’s Broken Harp”, p. 64.
204

U m teólogo influente no final do século 4, o m onge e asceta Evágrio


do Ponto (345-399), escreveu sua mais longa escolia existente, ou anotação
marginal da Bíblia, sobre os Salmos.50N o fim do século 4, o Saltério estava
se tornando cada vez mais proem inente na vida e adoração cristã. Com o J.
M ckinnon declarou a respeito da tendência: “Ela foi um a onda precedida
de entusiasmo pelo cântico dos salmos que varreu do O riente até o Oci-
dente através da população cristã das décadas finais do século 4” .51 E m
outro ensaio, ele escreve: “N ada parecido com isso se percebeu antes ou
depois na história do cristianismo ou do judaísmo”.52Tendo dito isso, não
nos parece ter havido um a escolia sobre o salmo 96. Evágrio foi vítima da
mesm a condenação eclesiástica que seu m estre Orígenes, acarretando a
perda de muitos de seus textos até muito recentemente. Mas, com o Ataná-
sio de Alexandria (c. 293-373), Evágrio percebe as propriedades curativas
da recitação de um salmo particular, bem com o o benefício contemplativo
de absorvê-lo na alma. Ele tam bém com preende o valor ascético prático
dos textos do salmo com o cam po de batalha para o cultivo da virtude
sobre o vício, conform e expressado pelo Salmos 144.1: “Bendito seja o
S e n h o r , a m inha Rocha, que treina as minhas mãos para a guerra e os
meus dedos para a batalha”. Ele usa plenamente as metáforas militares dos
salmos, com o tam bém a m etáfora da fartura dos mesmos. Ele explora o
tema consistente do abandono, com seus lamentos de angústia e suplica
a presença e assistência divinas. N o entanto, ele explora as dimensões
cósmicas dos salmos: a demoníaca, angélica e a hum ana que interagem.
Mas seu com entário mais frequente na escolia é a preeminência de Cristo
no Saltério, que A gostinho mais tarde se beneficiaria tão intensam ente ao
se dedicar ao tema do toto Christi, identificando as declarações “do Senhor”
nos evangelhos com o E u S o u no AT.
IV. O segundo grande período da hinódia da igreja
O período Tudor viu um reavivamento da hinódia popular, mas ela
se desenvolveu mais seriamente com Isaac Watts (1674-1748), culminan-
do nos Wesleys e seus associados. William Law (1686-1761) escolheu o

50 Luke Dysinger, “Evagrius Ponticus: The Psalter as a Handbook for the Christian
Contemplative”, em: The H a rp o f Prophecy, p. 97.
51 “Desert Monasticism and the Later Fourth-Century Psalmodic Movement”, M usic
and Tetters l b (1994): 506.
52 “The Fourth Century Origin of the Gradual”, E a rly Church H istory 7 (1987): 98.
205

salmo 96 com o hino matinal favorito e em seu clássico A serious C all to a


Devout and H oly Life [Um cham ado sério para um a vida devota e santa],
ele dedica o capítulo mais eloquente a cham ar os cristãos à prática o que
pregam, dizendo: “Viva, mas viva de m odo que seu coração possa verda-
deiramente se regozijar em Deus, que ele possa se sentir tão comovido
com os louvores de D eus e então você perceberá que esse estado de seu
coração não desejará uma voz nem ouvido para perceber uma sintonia para
um salmo”.53 Os irmãos Wesley, John (1703-1791) e Charles (1707-1788)
estavam pregando e cantando os Salmos em seus ministérios, mas estra-
nham ente, eu (Houston) não encontrei nenhum a referência ao salmo 96.
Charles H. Spurgeon (1834-1892) reitera a mesm a mensagem de
evangelismo missionário com o os primeiros comentaristas do segundo
século (como Hipólito), que ocorria de novo nas “ilhas” no Caribe, Hawaii,
Tonga, Fiji e assim por diante.54 Spurgeon incorpora em seu ensino sobre
a obra salvadora de D eus o mistério de sua exaltação acima de todos os
deuses. A o tratar o salmo com o um texto evangelístico, Spurgeon exulta
que o evangelho é difundido na terra e purifica os cristãos a viver de for-
ma santa, pois um dia Deus encherá o m undo com santidade e alegria.55
Mais recentemente, D ietrich Bonhoeffer (1906-1945) reconheceu o
salmo 96 junto com os Salmos 97, 98, 110 e 148-150 com o “salmos da
vitória final de D eus”.56 E m um cam po de concentração, esperando a
execução e diariamente contem plando os salmos, salmos com o o 96 o
ajudaram a celebrar “o tem po quando o povo redimido de D eus reinará
com ele para sempre, quando os poderes do mal serão derrotados e só
Deus reinará”.57
O extraordinário cientista Stanley L. Jaki (1924-2009) em seu co-
mentário devocional sobre os Salmos com entou com sagacidade sobre o
salmo 96: “A profundidade da convocação do salmo para o novo cântico
deve ainda ser explorada” . Ele acrescenta: “H á um a densidade tal de sen-
tido no salmo 96 que muito mais precisa ser explorado” .58

53 Citado por Rowland E. Prothero, The Psalms in H um an L ife. New York: E. P. Dut-
ton, 1903, p. 303.
54 Psalms, Alister McGrath;J. I. Packer, orgs. (Wheaton: Crossway, 1993), vol. 2, p. 51.
55 Psalms, p. 52.
56Psalms: the Prayer B ook o f the Bible. Minneapolis: Augsburg, 1970, p. 6.
57 Psalms, p. 62.
58 P rajingthe Psalms: A Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 2001, p. 175.
206

Parte IV. Conclusão

I. Contexto canônico
O salmo 96 pertence à im pressionante coleção de sete salmos que
proclamam ou confessam que “o E u S o u é Rei” (v. p. 18, 34-7; cf. v. 10
com 93.1; v. 10-12 com 93.3,4; v. 13 com 98.9). Essa coleção está es-
trategicamente situada no Saltério com o resposta ao Exílio babilónico
(v. p. 30-1). N a essência da coleção, o “novo cântico” do salmo 96 evoca
uma realidade alternativa, eterna: “O Deus forte e justo de Israel que criou
os céus está vindo para julgar toda a terra com justiça tão certo quanto
ele estabeleceu a terra, que não pode ser abalada. Há uma quantidade de
conexões intertextuais entre as “boas novas” do salmo 96 e Isaías 40— 55,
mas com o J. Clinton M cCann Jr. nota: “N ão está claro qual texto se ori-
ginou prim eiro ou até se um texto influenciou diretamente o outro” .59
II. Mensagem
Quase 70% do salmo 96 é form alm ente dedicado à “convocação para
louvar” e 30% às razões para louvar (v. p. 21). O s dois temas atuam em
uníssono para dar glória a Deus. A mensagem unificada do salmo é resu-
mida na confissão de todos os povos: “o E u Sou é R ei/reina”60 e assim
governa toda criação, todos os deuses e todos os povos. O salmo 96 é o
segundo salmo no Livro IV que proclama: “o E u S o u é R ei/reina” (cf.
93.1; 96.10; v. p. 25-6). O s chamados “salmos de entronização” dizem
respeito a essa proclamação, a essa confissão, não sobre a entronização
anual do E u S o u (v. p. 34-7).
O salmo 96 convoca toda a terra para louvar o E u S o u e m palavra e
atitudes. O s “versículos 1-3”, afirma Hossfeld: “contêm imperativos com
verbos de fala (cantar, proclamar, anunciar), seguidos nos v. 7-9 por impe-
rativos com verbos de adoração cúltica (trazer, entrar, adorar, trem er)”.61
A repetição dos imperativos é sinal do entusiasmo irresistível.62 O louvor
deveria ser fervoroso (1-3), não desleixado; reflexivo (“dar ao E u Sou,

59 Psalms, NIB 4. Nashville: Abingdon, 1996, ρ. 1065.


60 Para o significado de ser “reí”, v. p. 18.
61 Frank-Lothar Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, trad. Linda
M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 464.
62 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 25.
207

8,9), não superficial; e perm eado com trem or e obediência santos (10),
não pervertido. Deus deseja que todos e tudo o louvem: “toda a terra”
(1,9) “todas as famílias das nações” (7) e toda criação (11,12).63
As razões para louvar são reveladas de form a gradual que prende a
audiência com suspense. O prim eiro versículo une convocação e razão
de m odo amplo. Toda a terra é chamada a louvar o E u S o u e a razão para
louvar é incluída no objeto da canção, a saber: o novo cântico que pres-
supõe o ato de salvação. O que é essa salvação tão gloriosa e maravilhosa
que suas boas novas devem ser narradas todos os dias diariamente entre as
nações (v. 2,3)? Isso inspira as pessoas a louvar a glória, dignidade, poder
e majestade de Deus (4-6); e a adorar em reverência santa e submissão
total a ele? N osso suspense não é aliviado até que a ponte (10): ele julgará
ou julga a terra com justiça. Por fim, no po nto culminante, um a linha
concisa, a salvação é revelada de form a plena; ele vem para julgar toda a
terra com justiça.
Mas o poeta não especifica quando ou onde ou com o essa epifanía e o
oxímoro de seu juízo salvador ocorre.64N a Bíblia Hebraica, as formas ver-
bais indicam o aspecto (i.e., ação completa ou incompleta), não a ação. Davi
pode ter com posto o hino para a entrada triunfal da arca em Jerusalém, a
fortaleza dos jebuseus. K idner afirma sobre essa entrada: “O simbolismo
da marcha, em que Deus coroou suas vitórias ao fixar seu trono na antiga
cidadela do inimigo, é correspondido pelo tema do salmo”.65 Mas esse
hino tam bém foi com posto para a ocasião em que o rei julga as nações

63 Cf. P. J. Botha, “The ‘Enthronement Psalms’: A Claim to the World- Wide Honour
of Yahweh”, O T E 11, η. 1 (1998): 25.
64Talvez se presuma essa ocorrência em conexão com a guerra santa. Tremper
Longman III (“Psalm 9 8 ”, J E T S 27 [1984], p. 269; “The Divine Warrior: The
New Testament Use of an Old Testament Motif,’ W T J 44 [1982], p. 290-307,
esp. p. 300-2) defende que cada uma das sete ocorrências da expressão “novo
cântico” (SI 33.3; 40.3[4]; 96.1; 98.1; 144.9; 149.1; Is 42.10; mais Ap 5.9; 14.3)
celebra uma vitória militar. Embora Longman (“The Divine Warrior”) afirme:
“Uma [...] conexão entre o novo cântico e a Guerra Santa pode ser reconhecida
com clareza em [...] 96.1”, nenhum outro comentarista, que eu saiba, fez essa
conexão. Longman pode estar certo, mas há o perigo aqui de cometer a falácia
filológica da transferência total. Isaías 2.2-4 e Miqueias 4.1-4 vislumbram o monte
Sião estabelecido como o monte mais alto e as nações indo ao templo, onde Deus
as julgará e resolverá seus conflitos.
65 Psalms 73— 150, p. 379.
208

para excluir e punir tiranos e exaltar os justos. Trem per Longm an III nota
“uma tendência que ocorre bastante no saltério: a subjugação da referência
aos eventos históricos específicos para preservar a relevância imediata do
poem a ao culto”.66 O tradutor da LXX o interpretou com o designação de
quando o segundo templo foi construído depois do cativeiro (v. nota 1).
O uso litúrgico prossegue para transform ar o salmo em profecia, como
Davi, um profeta, plenam ente intencionou. O louvor do m undo gentílico
raras vezes é audível na antiga dispensação; ela term inou com os tiranos
governando o m undo sombrio, não com a salvação. Portanto, Jesus Cristo
veio e instaurou a nova dispensação. “O povo que caminhava em trevas
viu um a grande luz; sobre os que viviam na terra da som bra da m orte
raiou uma luz” (Is 9.2). Magos do oriente adoraram a criança, Cristo Jesus,
o presenteiam com seus tesouros e assim o proclamam rei dos gentios
(Mt 2.11; cf. SI 96.9). O s gregos vieram até Filipe, pedindo para ver Jesus.
Q uando ele e A ndré falaram a Jesus, Jesus respondeu: “Chegou a hora
de ser glorificado o Filho do hom em ” (Jo 12.23). N o prim eiro dom ingo
de Ramos, toda a multidão dos discípulos com eçou a louvar a D eus com
alegria, em alta voz, por todos os milagres que tinham visto. Exclamavam:
“Bendito é o rei que vem em nom e do Senhor!” (Lc 19.37,38). Hoje, o
Deus de Israel é louvado p o r meio de seu Filho em todo continente e em
toda nação (Mt 28.16-20). Judeus e gentios diariamente cantam sua glória,
dignidade e poder. Q ue poder e dignidade Jesus Cristo dem onstrou em
sua carreira: “O s cegos veem, os mancos andam , os leprosos são purifi-
cados, os surdos ouvem, os m ortos são ressuscitados, e as boas novas são
pregadas aos pobres” (Mt 11.5). Q ue poder e dignidade resplandeceram
dele no m onte da transfiguração (Mt 17.2)! Q ue glória deve ser atribuída
ao Cristo crucificado e exaltado (Jo 12.16). Seus apóstolos viraram o
m undo de ponta cabeça; gentios queimaram seus ídolos; seus ensinos
impactaram reis.
Mas o salmo contem pla além de hoje, o tem po em que todo joelho se
dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é Senhor (Fp 2.9-11) e
quando toda a criação se regozijará. Hoje, a igreja é perseguida e a criação
ainda espera o tem po de ser “libertada da escravidão da decadência em
que se encontra para a gloriosa liberdade dos filhos de D eus” (Rm 8.19-

66 “Psalm 98”, p. 272.


209

22). O tem a do juízo com justiça do salmo tam bém se cum pre no juízo
final, quando Jesus julgará o m undo com justiça. Deus deu prova que
designou Jesus para “julgar o m undo com justiça” ao ressuscitá-lo dos
m ortos (At 17.31). N o dia estabelecido, o Senhor Jesus será revelado do
céu, com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes (2Ts 1.7-
10). João observou sua vinda em juízo na visão: “Vi o céu aberto e diante
de mim um cavalo branco, cujo cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro. Ele
julga e guerreia com justiça. Seus olhos são com o chamas de fogo, e em
sua cabeça há muitas coroas” (Ap 19.11,12). E m síntese, verbos hebraicos
ambíguos podem descrever as epifanías antigas dos justos juízos de Deus
sobre as pessoas e o juízo final, futuro, por Jesus Cristo.
8

Salmo 97: Suas carruagens de ira


formam tempestades

Parte I. A voz do salm ista : T radução


D e Davi, quando sua terra é estabelecida.1
1 O EuSoutema). Exulte a terra e alegrem-se as regiões costeiras distantes.
2 N uvens2 escuras e espessas o cercam; retidão e justiça são a base do
seu trono.
3 Fogo vai adiante dele e devora os adversários ao redor.
4 Seus relâmpagos iluminam3 o mundo; a terra os vê e estremece.
5 Os m ontes se derretem com o cera diante do E u Sou, diante do Sobe-
rano de toda a terra.
6 Os céus proclamam a sua justiça, e todos os povos contem plam 4 a sua
glória.

1 Assim também, a LXX. O TM omite o sobrescrito.


2 Nuvens e nevoeiro são uma camuflagem ampliada, opaca (E. Jenni, TLOT, 2:799,
s.v. ^ãnãrí).
3 Debate-se a interpretação da conjugação do perfeito nos v. 4-6. Zenger (Frank-Lothar
Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, trad. Linda M. Maloney,
Hermeneia [Minneapolis: Fortress, 2005], p. 469) o interpreta como profético:
“Descreve algo que ainda vai acontecer, já determinado por Deus e iniciado agora”.
Ele apoia essa interpretação pelo paralelo vf r aü (v. 6b), que argumenta futuro
(= “e assim eles verão”, v. nota 4). Em 4b, entretanto, a conjugação perfectiva é
seguida por wattãhel (“e estremece”), a forma narrativa no passado. Essa mesma
construção ocorre no v. 8.
4 Embora seja verdadeiro que nas outras 12 ocorrências, Mf r a ü seja uma constru-
ção do vav consecutivo, o equivalente à conjugação do imperfeito (i.e., futuro),
ela podería ser um vav copulativo com o passado (IB H S ', §32.3). Sem dúvida, o
verbo está no passado nos v. 8,9, que também começa com a conjugação sufixa
(i.e., o perfeito) e provavelmente também no v. 4. Nesses versículos a conjugação
do perfeito é seguida por um vav narrativo (i.e., um verbo no passado).
212

‫ ר‬Ficam5 decepcionados6 todos os que adoram imagens e se vangloriam


de ídolos. Prostram -se7 diante dele todos os deuses!8
8 Sião ouve e se alegra, e as cidades de Judá exultam, por causa das tuas
sentenças, Senhor.
9 Pois9 tu, E u Sou, és o Altíssimo sobre toda a terra! Es exaltado muito
acima de todos os deuses!
10 Odeiem o mal, vocês que amam o E u Sou, pois ele protege a vida dos
seus fiéis10 e os livra das mãos dos ímpios.
11 A luz nasce sobre o justo e a alegria sobre os retos de coração.
12 Alegrem-se no E u Sou, justos, louvem o seu santo nome.

5 Ou “que fiquem”; ou “ficarão”.


6 Ou “são envergonhados” (cf. Jr 51.17); “desapontados, desiludidos e desespera-
dos” (cf. Jr 59.33); ou “frustrados” (cf. SI 14.6).
7 Ou “prostraram-se [...] todos os deuses”; ou “todos os deuses se prostrarão”. Ela-
borando a construção do perfeito como passado (v. IB H S , §§31.1.d-h), David M.
Howard, Jr. (The Structure o f Psalms 9?)— 100,BJSUCSD 5 [Winona Lake: Eisenbrauns,
1997], p. 70) explica: “A compreensão aqui é que as declarações em 7a-b dependem
de 7c precisamente porque todos os deuses adoram (ou adoraram) I a v é (v. 7 c),
alguém que confie em ídolos ou imagens inúteis fica desapontado, arruinado (v. 7
e 7b)”. O modo indicativo corresponde à estrofe dos v. 4-9. Além disso, a inclusão
de “todos os deuses” compõe 7-9. No versículo 9 “todos os deuses” é usada com
a conjugação do perfeito (na<alètã, “és exaltado”). E melhor interpretar o ambíguo
histah“w pelo paralelo exato que pelo paralelo ambíguo yebosü. (A tradução da NLT
“pois todo deus deve se prostrar diante dele”, é gramaticalmente indefensável.
8 Os Briggs defendem a tradução da LXX: hot angeloi (“os anjos”): “Pois ele [o
salmista] não os chamaria, simultaneamente, “nada” e em seguida os chamaría
como pessoas exaltadas para adorar o Deus supremo” (Charles Augustas; Emilie
Grace Briggs,Λ C riticalandE xegetical Commentary on the B ook o f Psalms, ICC [1907;
reimp. Edinburgh: T&T Clark, 1976], vol. 2, p. 306). Mas os Briggs falham em
compreender que “nada” se refere à existência ontológica (i.e., real, como Deus
reconhece) e a “adoração” se refere à sua existência epistemológica (i.e., como os
seres humanos reconhecem (v. p. 22).
9 Ou “certamente”, introduzindo uma citação: “Certamente tu [...] estás acima de
todos os deuses” (I B H S §39.3.4d).
10 O TM é comumente alterado para registrar: “O E u S o u ama quem odeia o mal; ele
preserva a vida dos fiéis”. Além da preferência geral pelo TM, o texto recebido é a leitura
mais difícil e não pode ser justificado. O TM também encontra apoio dos paralelos
entre a primeira e a última linha da última estança (v. 10a e 12a; v. “Retórica”, abaixo):
Ambos contêm imperativos dirigidos àqueles leais ao E u S o u e o mencionam pelo
nome (também as antigas versões e a maioria das versões inglesas).
213

Parte II. Com entário

I. Introdução

Autor
O autor é um líder do templo, cujo hino exorta os justos a se “alegra-
rem ” (v. 12), e um profeta que os exorta a “odiarem o mal” (v. 10). Ele
também é um dramaturgo que encena uma teofania baseada na tempestade
verdadeira de uma batalha não identificada. Ele assim o faz para proclamar
que o E u Sou é rei no céu e na terra. Ele apresenta o drama em verso
poético e no ápice das partes de seu poem a, proclama verdades sobre o
rei (v. “M ensagem”, abaixo). A com unidade fiel reconheceu a inspiração
do hino e o preservou com o parte da Escritura sagrada.
A LXX atribui o salmo a Davi e não há razão para negá-lo (v. p. 27-9).
Hoje, os acadêmicos reconhecem que o salmo se baseia na m etáfora do
m ito de Baal que antecede Davi em séculos (v. p. 132, nota 64, p. 155-6).
A reflexão sobre os mitos antigos tam bém produz discernimentos na
m ente do poeta. O hino descreve o E u Sou com o o guerreiro que derrota
os adversários, cuja pretensão era instaurar um reino antagônico (v. 3).
Essa descrição lembra o padrão do tema do guerreiro divino nos ciclos
de Baal (c. 1400 a.C.) e outras mitologias no m undo ocidental semítico,11
incluindo “a marcha do guerreiro”, a convulsão da natureza; o retorno do
guerreiro divino ao m onte santo e o postulado da realeza”.12 D o mesmo
modo, o salmo 97 proclama que “o EuSou reina” (la) na conjunção com
a cavalgada na batalha, na tempestade e na derrota dos adversários (2,3); a
terra “trem e” e os montes se “derretem ” (i.e., erodem, v. 4,5). Ele retorna
ao m onte e tem plo santos, onde seus adoradores o louvam (8,9).
Contudo, no salmo 97 o m ito é historiado. A teofania aconteceu na
história e serve como exemplo do segundo advento do Senhor Jesus Cristo
(v. “Contexto canônico”, abaixo). O contexto histórico da composição,
de acordo com a LXX, foi “quando a terra é estabelecida” (cf. 2Sm 7.8-
11a). E m outras palavras, o rei Davi louva o EuSou pela vinda na teofania
11 Semítico ocidental é uma expressão para designar uma família de línguas, que inclui
o hebraico. As culturas em que essas línguas eram faladas estão relacionadas. O
verdadeiro Israel tomou emprestada a metáfora dessas culturas, mas não a teologia.
12Richard Hess, Israelite Religions: A n Archaeological and Biblical Survey. Grand Rapids:
Baker Academic, 2007, p. 160.
214

tempestuosa, que capacitou Davi a dar a Israel um a terra de descanso em


cum prim ento à aliança abraâmica. Assim, a batalha não é registrada nos
livros históricos, mas veja os registros da guerra de Davi em 2Samuel 8,
que descreve o cum prim ento da aliança davídica.
Forma

Poesia
Todos os salmos são poesia — e pressupõem a linguagem figurada
(v. p. 38). K. Lawson Younger Jr. argumenta que as historias de guerra no
livro de Josué se assemelham aos registros militares do O riente Médio
antigo e ele docum enta que essas historias costum am valer-se de hipér-
boles.13 Se o historiador prosaico usa hipérboles nos registros militares, é
muito mais provável que o poeta use hipérboles na narrativa poética do
G uerreiro Divino. As hipérboles da tem pestade nos fazem sentir a força
bruta; as descrições científicas nos distanciariam.
Proclamar que o Eu Sou é Rei em ações de graças
O salmo 97 é o terceiro salmo que proclama que o E u S o u reina/é
Rei” (v. 93.1; 96.10). A introdução típica convoca à alegria em conjunto
com a proclamação (v. 1), seguida pela evidência em apoio (2-9), e carac-
teriza o salmo com o hino (v. p. 21). D e form a típica, o hino term ina com
a convocação renovada para louvar (12).14 Mas enquanto a convocação
introdutória se dirige ao m undo gentílico, a convocação conclusiva se
dirige aos “que amam o E u S ou ”. A convocação final para que “louvem
o seu santo nom e”, identifica o salmo com o um hino “de ação de graças”
(v. p. 19). Assim, ele registra o ato divino redentor. A teofania não pode
ser restringida pela inventividade erudita de um ritual anual de entroni-
zação divina.
Contexto
A teofania ocorre no cam po de batalha. D epois da batalha, o salmista
proclama “o E u S o u é Rei” no tem plo de Sião, onde Deus é diretamente
tratado com o “tu” (v. 8,9; v. p. 317, nota 4, p. 320). A vitória é usada pelo
13A ncien t ConquestAccounts: A Study in A n cient N ea r E astern and B iblical Writing, JSOT-
Sup 98 (Sheffield: Sheffield Academic, 1990), p. 209.
14 H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres o f the Religious Lyric o f
Israel, trad. James D. Nogalski (Macon: Mercer University Press, 1998), p. 40.
215

povo da aliança divina p o r mais de três milênios e se cum pre na ressur-


reição de Jesus Cristo e a consumação ocorrerá n a parúsia. N ão se provê
nenhum tópico para a teofania, de m odo que o salmo pode ser usado de
m odo genérico. N o tem po da composição, as nações distantes louvaram
a Deus através de seus nobres em Jerusalém (v. SI 96). Hoje, a igreja, pela
fé, se eleva ao m onte celestial Sião, onde o cântico é ouvido (Hb 12.22-24).
Retórica
Com base na semântica, form a e retórica, o salmo 97 é geralmente
reconhecido tendo quatro partes de três versículos cada (1-3, 4-6, 7-9,
10-12). Cada um desses tercetos consiste em uma linha e um dístico: 1,
2-3; 4-5, 6; 7, 8-9; 10, 11-12. Pelo mesm o critério, os versículos podem
ser agrupados em estanças, estrofes e unidades. O s imperativos “odeiem
o mal” (10) e “alegrem-se” (12), separam os versículos 10-12 com o uma
estança de 1-9, que, escritos no indicativo, focam na teofania do E u S ou
na nuvem tem pestuosa e constituem a prim eira estança. A primeira es-
tança consiste em duas estrofes: a descrição da tem pestade (1-6) e reações
variadas a ela (7-9). A primeira estrofe (1-6) consiste em duas unidades
caracterizadas pela mudança do verbo do presente (1 -3) para o passado
(4-6) e pela inclusão de materiais introdutórios no versículo 1, além da
em inente descrição da teofania nos versículos 2,3, contrastantes com o
relato e reflexão sobre a teofania nos versículos 4-6. O salmo com o um
todo (1-12), sua primeira estança (1-9), a primeira estrofe (1-6) e a primeira
unidade (1-3) são proporcionalm ente reduzidas. O salmo de 12 versículos
consiste em quatro partes. Suas duas primeiras estanças proporcionalmen-
te são os versículos 1-9 (3 /4 dos 12) e 10-12 (1 /4 dos 12). A primeira
estança (1-9) é dividida em duas estrofes: 1-6 (2/3 dos 9) e 7-9 (1/3 dos
9). A primeira estrofe é dividida em duas unidades: 1-3 e 4-6 (1 /2 dos 6,
cada). Portanto, os dois num eradores e denom inadores das frações são
sucessivamente reduzidos, indo da estança para a estrofe e para a unidade:
os num eradores de 3 a 1; os denom inadores de 4 a 2. Assim, o salmo é
um recurso literário que exibe um desígnio e proporção primorosos. Além
disso, com o será destacado na exegese abaixo, as palavras principais e as
associações habilmente unificam as estanças, estrofes e unidades do salmo.
N esta introdução que considera o salmo holisticamente, notam os
apenas a inclusão do nom e de Deus Ç‘E u Sou” e seu santo nom e”, suas
216

primeiras e últimas palavras) e “alegrem-se” . N ote, também, a repetição


de “justiça/justos” (v. 2,12). Por último, relembre que o poeta é um dra-
m aturgo que conduz cada uma das quatro partes à conclusão culminante.
A pena inspirada do poeta escreveu um salmo digno do rei.
Aqui está um esboço da estrutura do salmo:

Estança I: A teofania 1-9


Estrofe A: A teofania e seu significado, 1-6
1. Introdução aos temas do hino, 1-3
a. O E u S o u é rei e as regiões costeiras
distantes são exortadas a se alegrarem, 1
b. Descrição da teofania, 2,3
i. O E u S o u em nuvens escuras em
um trono de retidão e justiça, 2
ii. Fogo vai adiante dele e devora
seus adversários, 3
2. Relato e significado da teofania histórica, 4-6
a. Relato da teofania e da soberania do E u Sou, 4,5
i. Relâmpagos e terrem otos, 4
ii. M ontes se derretem diante do
Senhor da terra, 6
b. Significado da teofania, 6
i. Os céus proclam am sua justiça, 6a
ii. Todos os povos viram a glória do E u Sou, 6b
Estrofe B: Reações à teofania, 7-9
1. Todos os deuses adoram o E u Sou e os adoradores
deles ficam desapontados, 7
2. Judá se alegra, 8-9
a. O s julgamentos do E u Sou, 8
b. O E u S o u é exaltado acima de todos os deuses, 9
Estança II: Exortações aos fiéis para odiarem o mal e se alegrarem, 10-12
Estrofe A: Exortação para odiar o mal; o E u S o u livra
os fiéis dos ímpios, 10
Estrofe B: Exortação aos justos para regozijarem, 11,12
1. O justo é recom pensado com luz e alegria, 11
2. Exortação para se alegrar e louvar o seu santo nome, 12.
217

II. Exegese

Sobrescrito
Veja nota 1 e “autor” acima.
Estança 1:A teofania, 1-9
Os versículos 8 e 9 são um dístico indivisível. As palavras principais estru-
turadas em quiasma “exultar” e “alegrar” compõem assim a estança (v. 1,8).
Estrofe A: A teofania e seu significado, 1-6
O s sinônimos “regiões costeiras distantes” (v. 1) e “todos os povos”
(6) e a palavra principal “justiça” (2,6) com põem a estrofe.
1. Introdução aos temas do hino, 1-3
A associação quiástica de “reina” no princípio do versículo 1 e “trono”
no fim do versículo 2 unifica os versículos 1 e 2. Os versículos 2 e 3 são
um dístico (v. abaixo).
a) O Eu Sou é rei e as regiões costeiras distantes são exortadas a se
alegrarem, 1
O E u Sou reina/“é Rei” (v. p. 35). O E u Sou, que hoje deseja ser co-
nhecido por meio de seu Filho (v. p. 16), é o Rei eterno. Ele primeiramente
m anifestou sua realeza na criação quando subjugou o mar (v. SI 93). na
sequência, m anifestou sua realeza nas guerras santas, com o nessa teofa-
nia (v. “Contexto canônico”, abaixo). O s sinais massoréticos conectam
a proclamação o “E u Sou reina” de form a estrita com “exulte a terra”,
reforçando a implicação que o governo do E u Sou é a razão pela qual a
terra se regozija. O restante da estança nos leva passo a passo ao reconhe-
cimento de sua glória. Λ terra provavelmente se refere à terra física, bem
com o a seus habitantes (cf. SI 96.1,1 V). Alegrem-se (v. 96.11; p. 199). Regiões
costeiras distantes, uma tradução literária para “muitas regiões litorâneas”, se
refere às muitas ilhas e litorais das nações que cercam o m ar Mediterrâneo,
sinédoque do m undo conhecido por Israel.
b) Descrição da teofania, 2,3
O dístico é unido pela associação de nuvens escuras (v. 2a) com fogo
(v. 3a), quando Deus apareceu no Sinai com sua lei (Êx 19.16-20; D t 4.11;
5.22; cf. Êx 24.16,18; 34.5). O Legislador divino agora im plem enta a lei.
218

i. O Eu Sou nas nuvens escuras em um trono de retidão e justiça, 2

N o m undo bíblico, as nuvens são o dom ínio da existência e atividade


divinas. Elas são o véu de D eus (Lm 3.44) e a poeira de seus pés (Na 1.3).
Assim, paradoxalmente, as nuvens tem pestuosas 0 cercam de am bos os
lados e ocultam o E u S o u e ilustram sua presença, com o na ocasião em
que ele liderou Israel na nuvem (Êx 13.21; 34.5). As vezes, com o em Sal-
mos 97.2, ele se revela com o o guerreiro na nuvem: “Vejam”, diz Isaías,
“o E u S o u cavalga num a nuvem veloz que vai para o Egito. O s ídolos
do Egito trem em diante dele, e os corações dos egípcios se derretem no
íntim o” (19.1,2). Para o poeta, as nuvens são a carruagem de guerra do
E u S o u ( SI 18.11; 68.4; 104.3; D n 7.13; N a 1.3). Escuras e espessas ilustram
sua presença com o ominosa; ele vem punir os adversários que lutam
para depô-lo (cf. Ez 34.12; J1 2.2). A associação da teofania ao juízo é
confirm ada pelo paralelo retidão ejustiça (v. 96.13). Zenger diz que essa
frequente afirmação pode ser definida com o “ação judicial salvadora”: o
juiz divino julga para salvar ou ele salva ao julgar e julga de acordo com a
retidão e a lei”.15 A base (makôn) denota um local fixo, estabelecido, com o
em “ele firm ou a terra sobre seus fundam entos” (makôn); para que jamais
se abale” (SI 104.5; cf. 93.1).
D o seu trono (v. SI 93.2) é o sím bolo do governo soberano com o
guerreiro, juiz e construtor (v. p. 4; cf. SI 89.14[15]; Pv 16.12; 20.28). O
egiptólogo H elm ut B runner notou que a representação da deidade egíp-
cia, ou trono régio, se tornou o m odelo dos caracteres hieroglíficos que
originariamente significava “base do trono” e então se tornou o term o
egípcio macat (“retidão, verdade, ordem justa”).16 Craig C. Broyles argu-
m enta que a tem pestade de nuvens escuras e espessas e o trono reprisam,
com modificação, o Lugar Santíssimo. N a dedicação do templo, Broyles
nota, depois que a arca entrou no Lugar Santíssimo, nuvens encheram
o tem plo e Salomão citou o Ε υ S o u afirm ando que “ele habitaria num a
nuvem escura” (IRs 8.6-12). Tam bém, Broyles pensa que as asas exter-
nas dos querubins proviam a mobilidade e as internas formavam o trono
do E u Sou. Ele chama a atenção para o Salmos 18.9-14: 9. Ele abriu os
céus e desceu; nuvens escuras estavam sob os seus pés. 10. M ontou um
querubim e voou, deslizando sobre as asas do vento. 11. Fez das trevas
15 Hossfeld; Zenger, A Commentary on Psalms 51 — 100, p. 474.
16 “Gerechtigkeit ais Fundament des Thrones”, VT 8 (1958): 426-8.
219

o seu esconderijo, das escuras nuvens, cheias de água, o abrigo que o


envolvia. 12. Com o fulgor da sua presença as nuvens se desfizeram em
granizo e raios, 13. quando dos céus trovejou o Senhor, e ressoou a voz
do Altíssimo. 14. Atirou suas flechas e dispersou os adversários, com seus
raios os derrotou.17
ii. Fogo vai adiante dele e devora seus adversários

Fogo tam bém representa a presença de Deus, quando ele passou por
entre as partes do animal com o uma tocha acesa (Gn 15.17). Ele se re-
velou a Moisés na sarça em chamas (Ex 3.2) e conduziu Israel em uma
coluna de fogo para lhes dar luz (13.21). Ele batiza com fogo (Mt 3.11) e
o Espírito desceu com o línguas de fogo (At 2.3). E m muitas passagens, ele
usa o fogo com o instrum ento da punição judicial dos ímpios, sempre em
associação com sua ira: fogo e enxofre caíram sobre Sodoma e G om orra
(Gn 19.24); fogo proveio de sua presença e consum iu N adabe e Abiú
(Lv 10.1,2; SI 106.18); seu fogo consumiu os murmuradores (Nm 11.1) eos
soldados de Acazias (2Rs 1.10; cf. SI 11.6; Is 30.30; Jr 21.14; Ez 20.47(21.3];
Am 7.4; M t 3.11; 18.9; H b 10.27). O Senhor Jesus será revelado “do céu
com seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes” (2Ts 1.7; cf.
2Pe 3.7; Ap 8.7,8). Vai [lit. “cam inha”] adiante dele possivelmente conota
que o fogo o serve, quando se afirma que “Davi andou contigo em fi-
delidade” (lR s 3.6, ARA). E devora (cf. D t 33.22; SI 83.14[15]; Is 42.25;
Jó 41.21 [13]; Ml 4.1 [3.19]) é metonim ia de “queimar”. Os inimigos (sãrãyw)
é geralmente a designação de “inimigo, adversário” que, com a exceção
de E ster 7.6, é usado para grupos, não indivíduos. Sua raiz (srr) lida com
o assédio e torm ento engendrado por quem se opõe ao reino do E u Sou.
seu rei ungido e seus súditos, para suplantá-lo com um reino antagônico.
Considerando que o E u S o u é justo, esses adversários são ímpios. Em
suma, o sistema justo de ética exige a eliminação dos ímpios, que, com o
grupo, procuram estabelecer o reino não baseado no caráter e na lei do
E u Sou. A derrota deles é razão para regozijo.

2. Relato e significado da teofania histórica, 4-6


Essa unidade é sutilmente unificada pela mudança para o verbo no
perfeito, em contraste com o im perfeito nos versículos 3 e 7; pela conso-

17Psalms, NIBCOT (Peabody: Hendrickson, 1999), p. 378.


220

nância de hes inicial em 4a, 5a e 6a (hé'íru, hãrím, higgídü); e pela inclusão


“a terra os vê” e “os povos contem plam ” em 4b e 6b. A unidade consiste
no dístico que descreve a teofania (4,5) e o versículo reflete sobre seu
significado (6). A mudança do tem po altera o foco da descrição com um
na teofania bélica (2,3) para a teofania histórica específica na batalha. A
segunda unidade da prim eira estrofe está ligada à primeira unidade (1-3)
por “E u Sou” (1), o antecedente de “seus [relâmpagos]” (4); os term os
principais “adiante dele” (3a) e “diante do E u Sou” (5b); e a associação de
fogo e relâmpagos na teofania tempestuosa. “Relâmpago é fogo em escala
sobrenatural com propósito sobrenatural”.18 As suturas são tão sutis que
a estrofe (1 -6) quase parece perfeita.
a) Relato da teofania e da soberania do Eu Sou, 4,5

/. Relâmpagos e terremotos, 4
Seus relâmpagos testemunham o envolvimento direto do Criador com
a criação, seu poder e controle sobre a natureza. Além disso, “em muitas
narrativas bíblicas o relâmpago é o instrum ento divino de escolha porque
é rápido, preciso [e] explícito” e causa pânico.19 E m outro contexto, o rei
Davi suplica a Deus: “Envia relâmpagos e dispersa os inimigos; atira as
tuas flechas e faze-os debandar”. (SI 144.6; cf. SI 18.14[15]; 77.17[18]). A
tem pestade é tão intensa e expansiva que os relâmpagos iluminam 0 mundo
(v. SI 93.1). A cena reprisa a travessia do m ar Vermelho: “N o redem oinho,
estrondou o teu trovão, os teus [relâmpagos] iluminaram o m undo; a terra
trem eu e sacudiu-se”. A terra em paralelo com “o m undo” provavelmente
se refere ao que chamaríamos planeta terra. A terra personificada os vê
(uma tem pestade tão intensa) que ela estremece nas convulsões de um ter-
rem oto.20 Se a terra trem eu de terror diante do G uerreiro que cavalga na
tempestade, quanto mais os m ortais tremerão?

18 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery. Downers Grove: IVP Academic, 1998, p. 512.
19 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f Biblical Imagery, p. 513.
20 Traduzido como um perfeito passado definitivo. “Contorcer-se com dor” pode
denotar angústia mental com o testemunho dos juízos divinos (Is 23.5; Ez 30.4;
J1 2.6; Mq 4.10) e/ou contorcendo-se ou tremendo de terror (SI 77.16[17]; 96.9;
114.7; Jr 5.22).
221

ii. Montes derretem diante do Senhor da terra, 5

Diante do E u S o u sinaliza a continuação da teofania. Os montes são


rem otos, acidentados, im ensos, inacessíveis e considerados antigos e
eternos. Eles são o padrão da existência antiga (D t 33.15), com os quais
a existência eterna de D eus é com parada (SI 90.2). “As imagens mais ex-
traordinárias da destruição da natureza nos Salmos são os trem ores dos
montes nos terrem otos (SI 46.2,3) ou erupções vulcânicas (SI 104.32)”.21
A figura derretem como cera provavelmente se refere à erosão das chuvas
fortes. A repetição diante do acrescenta à reflexão que ele é tão poderoso
que a terra trem e e os m ontes derretem diante dele que é de fato 0 Soberano
de toda terra.

b) Significado da teofania, 6

/'. Os céus proclamam sua justiça, 6a


Os tiranos abusam o poder soberano, mas o Soberano sobre todos
os deuses e reis hum anos usa sua onipotência para estabelecer a justiça.
N osso dram aturgo conduz a descrição da teofania à conclusão com os
céus que proclamam sua justiça e todos os povos veem sua glória. Os céus,
com o a “terra”, se referem aos céus físicos. Proclamam se refere à mensagem
vitalmente importante de sua justiça (cf. v. 2). O s céus, de onde D eus desceu
com asas das nuvens escuras e das quais ele dispara seus relâmpagos, são
arautos da revelação oculta de Deus, de sua justiça por meio da tempestade
salvadora. A próxim a estrofe do drama (v. 7-9) apresenta a resposta de
toda a terra à proclamação dos arautos.
ii. Todos os povos contemplam a glória do Eu Sou, 6b
Todos ospovos (cf. v. 10) se refere às nações estrangeiras que contemplam
(cf. v. 4) a teofania. Talvez os adversários consistissem em mercenários
de muitas nações, com o o exército imperial assírio que cercou Jerusalém
(cf. M q 4.1 \ ) . 22A sua glória (v. p. 208) é m etonim ia dos acontecimentos da
teofania (v. 2-5) e a reação de todos os povos a isso é dar glória ao E u Sou.

21 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f Biblical Imagery, p. 573, s.v. “mountain”.


22 Bruce K. Waltke,^4 Commentary onM icah (Grand Rapids: Eerdmans, 2007), p. 250,
258.
222

Estrofe B: Reações à teofania, 7-9


“Todos os deuses”, as últimas palavras dos versículos 7-9, com põem
a estrofe. A estrofe, com posta de três tricólons, descreve os diferentes
efeitos teológicos da teofania sobre os idólatras e Judá: decepção e louvor.
Os idólatras estão constrangidos devido à natureza das deidades que se
prostram diante do E u Sou, o Soberano de toda a terra. O s versículos 8 e
9 são um dístico ligado gramaticalmente pelo medial “por causa/porque”
(cf. nota 9) e retoricam ente pela única fala direta ao E u S o u nesses dois
versículos: “tuas sentenças, E u S ou ”, as últimas palavras do versículo 8 e
“tu, E u S ou ”, as primeiras palavras do versículo 9.
A segunda estrofe (v. 7-9) está ligada aos versículos 4-6 pela antítese
de “glória”, a última palavra do 6 e “decepcionados”, a primeira palavra do
7, em conexão com os súditos associados, “todos os povos” e “todos os
idólatras”. A expressão principal “toda terra” (5 e 9) tam bém as liga. “Os
céus proclam am ” (6) pode ser associado a “Sião ouve” (8). A estrofe está
ligada aos versículos 1-3 pelas palavras principais “justiça” e “sentenças” (2
e 8) em adição às palavras com postas da estança “se alegra” e “exultam”.
1. Todos os deuses adoram o Eu Sou e seus adoradores ficam
decepcionados, 7
Daniel Y. W u nota que quando todos ficam decepcionados “sempre é
difícil distinguir a decepção antropológica da psicológica” . Ele sugere: “O
constrangimento pode capturar com utilidade a amplitude de sentido além
das categorias emocional e social”. Por fim, ele observa, “decepção” —
seja social, psicológica ou ambas — pode ser verificada na dimensão mais
am piado desapontam ento” .23 Todos os que adoram são escravos (v. SI 100.2).
O poeta provavelmente escolheu a nomenclatura para condená-los por
adorarem imagens inúteis e não o verdadeiro “Soberano de toda terra”
(v. 5). Imagens eram objetos de adoração no Israel pré-exílico (2Rs 17.41;
2Cr 33.22; M q 5.13, ARA). Elas eram esculpidas ou fundidas em várias
formas (D t 4.16ss.). O s israelitas apóstatas fizeram imagens do E u Sou,
com o em D ã (cf. Jz 17— 18) e mesm o com seu consorte Aserá, verificado
no caravançará em Kuntillet A jrud.24 O s ídolos poderiam ser esculpidos

23Honor, Shame, and Guilt: Social-ScientificApproaches to the B ook o f E zekiel, BBRSup 14.
Winona Lake: Eisenbrauns, 2016, p. 103.
24 Hess, Israelite Religions, p. 284.
223

em vários materiais, com o madeira e pedra ou fundidos do metal de várias


formas (D t 4.16ss.). Eles eram, às vezes, revestidos com ouro ou prata
(D t 7.25). Entretanto, a imagem com o o bezerro de ouro de Arão, era
considerada divina no céu.25 N o Israel pré-exílico e hoje, as deidades da
natureza concedem qualquer coisa de que a pessoa dependa para a vida,
segurança ou significado (cf. SI 49.6[7]), seja saúde, autonom ia, prazer
ou renome. João Calvino observou: “Todos nós inventamos ídolos em
quantidade infinita”.26
Para intensificar o constrangim ento, os idólatras são ainda carac-
terizados com o os que se vangloriam. Eles falam com orgulho excessivo
e autossatisfação de suas posses; a saber, eles se vangloriam dos ídolos
(v. 96.5)! Prostram-se (v. nota 8; SI 96.9) diante dele. O curvar-se das deida-
des da natureza do céu e terra, que ontologicam ente não têm existência,
mas que existencialmente são adoradas pelos seres hum anos depravados,
simboliza o reconhecim ento deles e a aceitação do E u S o u com o seu So-
berano (v. 5) e Rei (v. 1), depois da revelação na tem pestade relampejante
e nas convulsões da terra e montes. Todos os deuses que são com o o dinheiro
inútil do jogo Banco Imobiliário.27
2. Judá se alegra, 8,9
O dram aturgo conduz o drama ao ápice por citar um hino de Sião
(v.9).
a) As sentenças do Eu Sou, 8
N o saltério, a cidade do E u S o u na terra, representando sua cidade
celestial, é sem pre cham ada Sião. O nom e é provavelm ente de origem
pré-israelita e de etimologia incerta. N a origem, designava o nom e do
m onte jebuseu, ou fortaleza, no sudeste dejerusalém (2Sm 5.7ss.). Depois
de Davi colocar a arca no m onte nordeste da cidade, o m onte do sul veio
a ser conhecido com o cidade de Davi, ou “O fel” e Sião veio a designar
o m onte onde a arca e o tem plo estavam localizados (SI 132.13; Is 10.12;
M q 4.2) ou, p o r sinédoque, a cidade inteira (Is 10.24; Jr 3.14; A m 6.1) e /

25 Ibid., p. 156.
26 Sermons on the Ten Commandments, Benjamin W. Farley, org. Grand Rapids: Baker,
1980, p. 66.
27 O jogo Banco Imobiliário (Monopoly game) foi criado em 1935 por Charles
Darrow durante a Grande Depressão. (N. do T.)
224

ou, por metonimia, seus habitantes (Is 1.27; 33.5). E m Salmos 97.8, ela se
refere aos adoradores no m onte do templo. O uve omissão do objeto do
relato, a saber, a teofania impressionante. Portanto, a cidade do templo se
alegra (cf. v. 1; 96.11) e isso ocorre em conexão com o ato de ela se gloriar
devido ao E u Sou, com o o versículo 9 dem onstra. Ela se alegrou por seu
Deus ser m aior do que todos os deuses, assim as portas do inferno não
podem prevalecer contra ela. Haverá o fim da tirania e injustiça. A s cidades
deJudá personificam as outras vilas e cidades da tribo régia de Judá, como
as citadas em Miqueias 1.10-16, incluindo a Láquis28 bastante fortifica-
da. Exultam (cf. v. 1; 96.11) é outro sinônim o conectado com o louvor.
Claus W estermann, ao com entar sobre o piei hll (“louvar”), afirma: “Os
muitos verbos paralelos de celebração e alegrar-se (gílrnn, smh) dem onstram
que o louvor a Deus pode acontecer só na alegria [...] Portanto, não se pode
ouvir a convocação para louvar a Deus no Antigo Testam ento sem ouvir
a convocação ampla para a alegria”.29 D e m odo contrário, não se pode
ouvir do tem plo alegria e exultação sem ouvir a convocação associada ao
louvor. A celebração alegre e exultante de Sião e Judá não é nacionalista,
mas p o r causa das tuas sentenças (v. 97.2), que o E u S o u cum priu ao derrotar
seus adversários (cf. v. 3).
b) O Eu Sou é exaltado acima de todos os deuses, 9
Sobre toda a terra reprisa “Soberano de toda a terra” (v. 5b) e seu paralelo
oposto, acima de todos os deuses, reprisa “todos os deuses o adoram ” (7b).
Pois (v. nota 9) expressa a causa mais distinta e enfática que o sinônimo
“por causa de” (v. 8). N a sentença tu, E u S o u , és 0 Altíssimo sobre toda, (elyôn
serve com o adjetivo (cf. D t 26.19), não com o nom e divino (“o Altíssimo”;
cf. SI 91.1; 92.1 [2]). O adjetivo foi escolhido para a expressão Çelyôn ‘al
kol) dentre outros sinônimos, com o mãrôm (v. SI 92.8), para o trocadilho
com o paralelo naaléta cal kol (tu és exaltado [...] acima de todos). O advérbio
escalar “m uito” (v. 92.5[6]; 93.5; 96.4), traduzido com o muito [acima] para

28 Em hebraico, todos os substantivos são flexionados, caracterizados como femini-


nos ou não. “Considerando que a palavra hebraica para cidade é flexionada como
feminina, os poetas foram influenciados a personificar cidades como femininas”
(e.g. “filhas”; IB H S , §§6.4.1c,d). (O autor assim explica, porque a versão em que
ele usa registra o termo filhas em lugar de cidades [N. do T.].)
29 T L O T , 1:372, s.v. ¿//Piei.
225

acom odar a expressão idiomática inglesa, é apropriado em referência a


“deuses” — considerados deidades celestiais acima da terra.
Estança II: Exortações aos fiéis para odiarem o mal e se regozijarem,
10-12
A estança final conduz o salmo à conclusão. A teofania (v. 1-9) acres-
centou substância à fé. O s imperativos conclusivos adicionam fervor
à virtude e estimulam quem ama o E u S o u à fidelidade. Davi adorna a
com unidade da aliança com honras: “vocês que amam o E u Sou‫ ״‬, “seus
fiéis”, “o justo”, e “os retos de coração” . E m outras palavras, são eles os
cumpridores do m andam ento básico da aliança “amar o E u Sou‫( ״‬D t 6.5),
que ao perseverar no ódio ao mal, são fiéis. Assim, eles salgam a terra com
justiça. O profeta os encoraja à fidelidade ao lhes assegurar o livramento
dos ímpios (v. 10b); o futuro brilhante (11a) e “alegria” (11b). As refe-
rências ao “am or” (10a) e “coração” (11b) dem onstram estar em jogo a
personalidade, não só o desem penho, a disposição em vez das obras, o
caráter por trás e além da conduta, o am or e não o legalismo. A palavra
principal “alegrem-se” (a primeira palavra do v. 12), seu derivativo nominal
“alegria” (a última palavra do v. 11) e a palavra principal “justo(s)” (11a,
12a) unem os versículos 11,12 em um dístico.
Estrofe A: Exortação a odiar o mal; o Eu Sou livra os fiéis dos ímpios, 10
E m bora não seja gramaticalmente ligado p o r um a partícula lógica,
o versículo 10b (“o E u S o u protege os fiéis”) serve com o a razão para
ouvir a exortação para “odiar o mal”.30 Odeiem , por contraste, expressa
um sentim ento de desgosto passional ou hostilidade a alguém ou algo, e
assim faz as pessoas que odeiam se distanciarem da pessoa ou coisa odiada.
N a superfície, o m andam ento é tautológico, pois quem ama o E u S ou por
natureza odeia o mal. Entretanto, esta é “um a exortação para estimular
à fidelidade”31 e pode pressupor a tentação de apostatar para preservar a
vida. Um hino cristão popular capta a verdade que mortais são “Propensos
a vaguear, Senhor, eu sinto isso; propensos a abandonar o D eus que eu
am o” . O m al aqui significa o com portam ento m oral que prejudica outros

30 A NVI acrescenta a partícula lógica “pois ele protege”.


31 F. Delitzsch, Psalms, trad. Francis Bolton, em: K eil and D elit^sch Commentary on the
O ld Testament 5. London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody: Hendrickson,
1996, p. 627.
226

(SI 15.3; cf. 91.10). Stoebe afirma, em conexão com o antônimo “bem ”, isso
significa basicamente “o que causa dano à vida, não o que a beneficia” .32
Vocês que amam designa pessoas com sentimentos de forte desejo pelo E u
Sou que flui das percepções deles e assim vão atrás (Jr 2.25b), procuram
(Pv 8.17), andam atrás (Is 1.23), apegam a (D t 11.22; 30.20; Pv 18.24) e
continuam a ser fiéis ao amado. Elas têm o desejo apaixonado de seguir
o E u Sou. O justo aqui não é definido por virtudes positivas, mas pelo
negativo de rejeitar as atitudes e ação destrutivas. Pois eleprotege (v. 91.11)
as vidas (nps; v. o SI 103.1) dos seus fiéis Qfsidãyw). A raiz hsd tem duas idéias
concom itantes: lealdade à pessoa ou ao grupo e am or a eles. O h‫״‬síd é
alguém que é “fiel” a Deus (2Sm 22.26; SI 89.19 [20]) e “devotado” a ele
(SI 86.2); no plural eles são com parados com “aqueles que fizeram um
pacto com igo”. E m outras palavras, o term o é um sinônimo para “aqueles
que amam o E u S01T e assim retornam para as atitudes e ações positivas
dos justos. E os livra (v. SI 91.3) das mãos (v. 95.4) dos ímpios (v. 91.8).
Estrofe B: Exortação para os justos se alegrarem, 11,12

1. O justo é recompensado com luz e alegria, 11


E u ^ aqui se refere à luz física. Ela não é um a figura da bondade em
contraste com a maldade (Jó 24.13; 2Co 4.6), mas ela simboliza bênçãos.33

32 T L O J 2:491, s.v. tôb.


33 Sem procurar ser exaustivo, a luz simboliza múltiplas bênçãos: a)presença oculta de
Deus·. Deus cria a luz (Gn 1.3; SI 74.16) e se envolve “de luz como numa veste”
(SI 104.2); b) vida·. Jó lamenta que ele nasceu e amaldiçoa seu nascimento e as es-
trelas matutinas com escuridão (Jó 3); afirma-se que “nunca mais brilhará dentro
de seus muros a luz da candeia” (Ap 18.23); e a morte é descrita como “a terra de
trevas e de caos, onde até mesmo a luz é trevas” (Jó 10.22); c) triunfo sobre 0 caos·.
Deus criou a luz e a separou das trevas primevas (Gn 1.4); d) segurança·. Jó descreve
os reis depostos que “tateiam nas trevas, sem nenhuma luz “ (Jó 12.25), e quando
um anjo liberta Pedro da prisão, uma luz brilhou na cela (At 12.7); e) orientação·. A
estrela orientou os magos para a casa onde Jesus nasceu (Mt 2.9ss.); f) conherimento
deJesus: Pois Deus que disse: “Das trevas resplandeça a luz”, ele mesmo brilhou em
nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de
Cristo” (2Co 4.6); e “Nele estava a vida, e esta era a luz dos homens. A luz brilha
nas trevas, e as trevas não a derrotaram” (Jo 1.4ss.); g) bênção: Os egípcios foram
envoltos em trevas enquanto os israelitas tinham luz onde habitavam (Ex 10.23);
h) esperança renovada: A luz brilhou quando Jacó surgiu da luta com o anjo à noite
227

Nasce é um ativo divino. R obert Alter comenta: “A imagem agrícola deli-


cada da luz que nasce, presumivelmente para produzir o fruto refulgente,
contrasta com elegância do fogo abrasador que devora os adversários de
Deus e os relâmpagos que fazem a terra trem er”.34 Além disso, o fruto
refulgente é fértil. Sobre 0justo (cf. v. 2). E a alegria (simhâ; v. SI 100.2) sobre
os retos (v. SI 92.15[16]) de coração (v. SI 95.8).

2. Exortação para se alegrar e louvar o seu santo nome, 12


Os justos devem agora entrar pela fé na alegria do destino deles (cf.
SI 95). Alegrem-se (cf. v. 1) no E u S o u é a síntese das suas obras extraordi-
nárias na criação e na história da salvação e para suas qualidades de poder
com retidão e justiça (cf. v. 2). Q uando juntos, poder e justiça são sublimes;
quando separados, a justiça é fraca e o poder é hediondo. Justos (cf. v. 2,
11). Eouvem (v. SI 92.1 [2]) o seu santo nom e (zeker, em geral “m em ória”).
Zèker parece equivaler a 'sem (“nom e”) com o em Oséias 12.5[6]: “Sim, o
próprio S e n h o r , o D eus dos Exércitos! S e n h o r é o nom e [zikrô]{” Mas
em Ê xodo 3.15, o term o é diferenciado de sêm: “Esse é o m eu nom e [ítiw]
[...] de geração em geração [z/âtí] ” . O sentido pleno parece ser “o nom e
pelo qual o E u S o u é lem brado”. E m Provérbios 10.7, os dois substantivos
são usados em paralelo: “A memória do justo é usada em bênçãos, mas
o nom e do ím pio é apagado”. A rejeição do nom e de alguém equivale à
rejeição de sua fama. O memorial do nom e santo de Deus denota a ocupa-
ção cognitiva ativa de reter e reviver im pressões de seus atributos e obras
transcendentes e sobrenaturais. A o usar o nom e de Deus, os adoradores
dem onstram identificação com o Deus de Israel. Hoje, D eus deseja ser
conhecido e lem brado pelo nom e de seu Filho, Jesus Cristo. O nom e do
Vencedor sobre o pecado e a m orte será lem brado para sempre.

(Gn 32.31) e quando Jesus surgiu dos mortos; i) alegria, bondade,prazer. O pregador
declara: “A luz é agradável, é bom ver o sol” (Ec 11.7); Eliú diz: “Viverei para
desfrutar a luz” (Jó 33.28); Salmo 97.11 designa a “luz” como paralelo de “ale-
gria”; j) salvação: “Dando graças ao Pai, que nos tornou dignos de participar da
herança dos santos no reino da luz. Pois ele nos resgatou do domínio das trevas
e nos transportou para o Reino do seu Filho amado” (Cl 1.12ss.); k)justiça: “A luz
dos justos resplandece espléndidamente, mas a lâmpada dos ímpios apaga-se”
(Pv 13.9; cf. Mt 6.22ss.).
34 The B ook o f Psalms: A Translation with Commentary. New York: Norton, 2007, p. 343.
228

PARTE III. A VOZ DA IGREJA EM RESPOSTA

I. Roberto Belarmino (1542-1621)


R oberto Belarmino expande as funções sacramental e litúrgica do
Livro de Salmos. Ele começa a explanação do salmo 97 ao ecoar seus
dois temas básicos:
“O salmo admite duas explanações literais. Alguns se referem a ele
absolutamente como o reino de Deus; outros ao reino de Cristo após
a ressurreição. Leia de acordo com os primeiros que o sentido desse
versículo: ‘O S e n h o r reina’. O Senhor Deus é o rei supremo e todos os
outros reis são apenas seus servos; portanto, ‘exulte a terra e alegrem-se
as regiões costeiras distantes’ [...] N o segundo sentido Cristo é o nosso
Senhor, que em um m om ento revelou-se com humildade diante dos reis
do mundo para ser julgado, ‘reina’, pois ‘todo poder na terra e no céu lhe
foi dado’, de modo que ele não é sujeito a ninguém, nem pode alguém
reivindicar qualquer autoridade sobre ele; ao contrário, ele governa
todos como ‘Príncipe dos reis da terra, como rei dos reis e Senhor dos
Senhores’; e, portanto, ‘exulte a terra e alegrem-se as regiões costeiras
distantes’ porque o Senhor, que toma posse de seu reino, humildemente
se permitiu ser nosso irmão, embora Ele seja nosso Deus, ao ter nos
criado; e nosso Senhor, por ter nos redimido”.35

Belarmino explicou de maneira clara e simples o prim eiro versículo do


salmo 97.
Com respeito aos seis próxim os versículos, Belarmino continua a
distinguir os dois temas básicos. A inferência dele do versículo 7 é que
todos os adoradores de ídolos devem ficar confundidos e desapontados,
pois os anjos adoram o suprem o Deus e os profetas provam porque os
ídolos devem ser proibidos. A palavra “novam ente” se aplica à segunda
vinda de Cristo. O s versículos 8 e 9 assim explicam a causa de alegrar-se
e a conclusão com eçando no versículo 10 é a exortação para que o povo
de D eus viva uma vida santa. D este m odo, Belarmino conclui com dois
textos das Escrituras: “A vontade de Deus é que vocês sejam santificados”
(lTs 4.13) e “Sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44; IP e 1.16).36

35A Com m entaiy on the B ooks o f Psalms, trad. John O ’Sullivan. Dublin: Aeterna, 2015,
p. 455.
36 Ibid., p. 458-60.
229

II. Jonathan Edwards (1703-1758)


Jonathan Edwards interpreta a metáfora do salmo 97 com o expressão
do “D eus irresistível”; sua bondade ultrapassa toda nossa imaginação.
Ele conecta o versículo 2 (“N uvens escuras e espessas o cercam; retidão
e justiça são a base do seu trono”) a Salmos 18.11: “Fez das trevas o seu
esconderijo, das escuras nuvens, cheias de água, o abrigo que o envolvia” .
Com o Jonathan Edwards explica: “D eus é tão grande que está infinita-
m ente acima de toda compreensão; e, portanto, é-nos insensato questionar
suas dispensações, pois elas são bastante misteriosas [...] é apropriado que
D eus habite nas trevas espessas ou na luz que nenhum hom em pode se
aproximar, que hom em nenhum viu ou pode ver”.37 Mas “discutir com
suas dispensações” é precisamente o que John N elson D arby e os segui-
dores do movim ento rom ântico “dispensacionalismo” fariam em meados
do século 19.
Ligar a geração de Edwards e a de D arby foi a sanidade dos teólo-
gos escoceses, com o Andrew A. Bonar, após um a tradição presbiteriana
valiosa de teólogos escoceses com o John Boston, M urray McCheyne e
M atthew Henry. Com Edwards, todos eles com partilharam um otimismo
animado a respeito da redenção cósmica associada à restauração do povo
de Deus à Terra Prometida. O tratado im ensam ente influente de Edwards
de 1774 A n Humble A ttem p t [Uma tentativa humilde] consistiu na base dos
m ovim entos posteriores do avivamento escocês, bem com o para o que
N athan O. H atch define com o “o milênio civil” nos Estados Unidos e na
G uerra Franco-Indígena.38
III. Andrew A. Bonar (1758-1821)
Andrew A. Bonar foca no tema de Cristo e da igreja em Salmos. Ele
começa ao afirmar que o Messias “ veio em glória; ele não é apenas esperado
e antecipado”. O salmo 97 é assim o cântico a respeito “dos efeitos dessa
vinda na ruína de seus adversários e ídolos”.39
37 Citado em David P. Barshinger,/0 «2‫־‬//íw»Edwards and the Psalms: A Redemptive-Historical
Vision o f Scripture. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 102.
38 “The Origins o f Civil Millennialism in America: New England Clergymen, War
with France, and the Revolution”, W illiam and M ary Q uarterly, 3rd ser., 31 (1974):
408s.; v. Barshinger,Jonathan E dw ards and the Psalms, p. 135.
39 C hrist and the Church in the B ook o f Psalms. New York: Robert Carter & Brothers,
1860, p. 290.
230

“De era em era, os céus pareceram ouvir em silêncio, como se quase


indiferentes ao clamor do pecado; mas não mais [...] Os anjos presentes,
que o adoraram em Belém, na primeira vinda, estão agora adorando
[...] Contudo, especialmente seus santos que por muito tempo oraram
e esperaram, agora percebem que não esperaram em vão; e, por isso, a
exortação no versículo 10 e a promessa no versículo 11...

Nos sulcos feitos pelo arado da aflição e tentação, Deus lança as se-
mentes da alegria posterior. Cristo, “o Justo”, é o primeiro participante
da colheita de felicidade, tão farta quanto foram as lágrimas, as aflições,
os lamentos — e alegria é sinônimo de “luz”, devido à alegria da luz e
devido ao fluxo de raios do sol, que podem ser emblemáticos dos dons
e bênçãos a serem derramados sobre o Justo e seus membros...

Toda essa bênção, quando o momento certo do juízo sobrevier a ídolos


e aos idólatras, pode bem evocar a alegria com que o salmo começa e
termina. E a “santidade do versículo 12 pode lembrar-nos que toda essa
alegria é o resultado de I a v é ter introduzido extensamente a própria san-
tidade no mundo corrompido. Este é um cântico sobre ser abençoado.

O A d ven to do M essias e seus resultados p a ra a te r r a l

Bonar é m uito talentoso para comunicar e com partilhar a exuberância que


ele dem onstra pela alegria divina.
IV. John Nelson Darby (1800-1882)
M uito nítido o contraste em relação a Bonar é a personalidade de
John N elson Darby. D arby foi o fundador de um a divisão dos Irm ãos de
Plymouth, um m ovim ento evangélico de reform a da Igreja da Inglaterra
que com eçou na década de 1830. Ele foi o expoente irlandês do dispen-
sacionalismo, fazendo exatamente o que Edwards disse que não poderia
ser feito: “questionar as dispensações de D eus” com todos os seus misté-
rios. N a obra Practical Reflections on the Psalms [Reflexões práticas sobre os
Salmos], John N elson D arby elimina todo com entário sobre os salmos 95
a 102. Ele escreve: “ [Esses] salmos [...] eu não analiso, porque eles são a
vinda real do Senhor em juízo, não a prática devocional na espera p o r ela” .
Isto é, eles fazem parte de uma “dispensação diferente” da qual estamos
vivendo e, por isso, não têm relevância para nós com o cristãos. E em uma 40

40Ibid., 291-2.
231

dispensação futura que “Ele [Deus] de fato virá nas nuvens do céu, com o
o salmo 97 prevê, mas isso não é agora!”.41 Essa abordagem da Escritura
distorce por inteiro a interpretação bíblica de Darby, talvez mais que qual-
quer outro expositor sério na recepção da hermenêutica. C om o erudito
grego contem porâneo, ele era bem culto, mas sua abordagem ilustra o
tamanha influência do rom antism o nos séculos 19 e 20, e é um exemplo
primordial de com o somos todos influenciados pela cultura prevalente,
com o “um toldo sagrado” de acordo com o sociólogo Peter Berger.42
V. Os modernos existencialistas franceses
C ontrastam com D arby os m odernos eruditos existencialistas e
cristãos franceses com o Paul Beauchamp (1924-2001), que intensifica o
contraste entre “noite e dia” no com entário sobre Salmos43 e A ndré Chou-
raqui (1917-2007), cujo alcance da Palavra Viva de Deus sobre todas as
cosmogonías é um contexto sem horizontes.44 Chouraqui declara: “Como
uma celebração da luz ao am anhecer do dia, assim o salmista celebra no
princípio da criação, a obra de seu Criador”.45Am bos traduzem o salmo 97
com o um hino escatológico que descreve um a antiga teofania com Deus
com o Juiz. A m bos os eruditos interpretam teofanias com o um gênero
prom ovido pelo período pós-exílico e associado às invasões assírias,
persas e posteriores de Israel. O s versículos 7-9 descrevem a alegria de
Israel diante da destruição de ídolos. A última seção (v. 10-12) descreve a
revelação da luz divina, que ilumina a alegria do justo.
A terra é exaltada, com o em Salmos 96.11, porque ela é vista como
uma força viva dos atos criativos de D eus (v. 12). O texto de Salmos 97.2
é uma alusão à epifanía de Moisés na coluna de nuvem (Ex 33.7-11). A
mesma “nuvem ”, que havia guiado Israel pelo deserto ainda, continua
guiar seu povo. Mas com parado a Salmos 18.7-15[8-16] e a Habacu-
que 3.2-15, a epifanía do salmo 97 é mais breve. A mensagem simples do
salmo é suficiente para declarar que Deus é Senhor de toda natureza e,
por extensão, de todos os assuntos da humanidade. O fogo que queim ou

41 London: Robert L. Allan, 1870, p. 253-4.


42 The Sacred Canopy (Garden City: Doubleday, 1967).
43 Psaumes N u it etJour (Paris: Editions du Seuil, 1980).
44 Consultei a tradução portuguesa de André Chouraqui, A Biblia: Louvores, Salmos,
trad. Paulo Neves (Rio de Janeiro: Imago, 1998), vol. 2.
45 Salmos, p. 187.
232

G ogue e Magogue ainda destrói todos os ídolos e todos os adversários de


Deus (v. 3). A luz que ilum inou o Exílio ainda continua a iluminar o cami-
nho do povo de Deus (v. 4). O s m ontes no versículo 5, um a m etáfora da
estabilidade humana, não são assim com Deus, pois eles “derretem com o
cera diante dele”. O louvor ressonante dos “Eloínas” é ecoado pela glória
dada a D eus por toda hum anidade no versículo 6. H á uma abrangência
para as “imagens” ou ídolos do versículo 7, sejam eles de ouro ou prata,
ou são sexo ou violência ou qualquer coisa que poluiría o universo. N o
versículo 8, “Sião” se refere a todas as cidades de Judá e a toda a popula-
ção de suas vilas, que tam bém se alegram. D e fato, o E u S o u reina sobre
todos. Ele é exaltado acima de todos os “Eloím s” . O ódio implacável ao
mal é básico ao am or a D eus (v. 10); Realmente, a qualificação do servo
messiânico era “odiar a iniquidade e amar a justiça”. Por certo, am or alegria
e justiça são contínuos, muito mais do que pensamos (v. 11). Finalmente,
“o louvor de seu santo nom e” é habitar no santuário do E u Sou, com o
Moisés o fez, a quem foi ordenado agir com o um de seus mensageiros
(v. 12; v. Êx 3.15).

Parte IV. Conclusão

I. Contexto literário
N o salmo 96, as nações foram ordenadas a confessar o E u S o u com o
rei e deste m odo glorificá-lo (96.7-10); no salmo 97, os ídolos das nações o
adoram. O salmo 96 term ina com “exulte a terra” e com a prom essa que
o E u Sou, o rei, vem para julgar o m undo com justiça (13); o salmo 97 co-
meça com “exulte a terra” e relata que o E u S o u v e .m em um a tempestade.
II. Mensagem
Em bora seja um hino, o salmo contém quatro imperativos: a) as nações
devem se alegrar (v. 1); b) os justos devem se alegrar (v. 12). O s últimos
devem também: c) odiar o mal (v. 10a) e d) louvar o santo nom e de Deus
(v. 12b). N a essência, há dois tipos de exortação. Três dos imperativos
fazem parte da liturgia (alegrar-se em louvar o nom e dele”) e um faz parte
da ética (“odeiem o mal”). O restante do hino*apresenta razões para essas
exortações em um núcleo: “o E u S o u é rei”, a ousada proclamação que
abre o salmo. O restante do salmo decifra a proclamação na dramaturgia
233

do poeta da teofania. A apresentação do E u S o u com o o G uerreiro Divino


segue o padrão dos mitos antigos semitas ocidentais (v. “A utor”, acima).
A dramaturgia conduz as descrições da teofania às conclusões cul-
minantes. A primeira unidade term ina no versículo 3 com o Ε υ S o u a
incinerar os adversários que suplantariam suas leis com outras, próprias,
com o a sharia do islã ou com o as leis seculares dos tribunais superiores
das nações.
A primeira estrofe term ina no versículo 6 com os céus declarando que
o G uerreiro é justo e todos os povos contem plando sua glória. O tema
de sua justiça perm eia o hino. E m sentido metafórico, entronizado na
retidão e justiça (2a), o E u S o u desce nas asas do querubim e na nuvem
escura para libertar os justos dos ímpios. Ele anula seus ídolos inúteis (7),
mas recom pensa os justos com vida (10) e luz (11). E m síntese, o Deus
de Sião é tam bém o Deus do Sinai, com o Jon D. Levenson argumenta de
m odo convincente.46 Por julgar de acordo com o Sinai, Sião se alegra (8).
A primeira estança extrai sua conclusão no versículo 9 com a con-
fissão de Sião: o E u S o u é exaltado acima de toda terra e m uito acima de
todos os deuses. O tema de sua soberania tam bém perm eia o salmo. Os
relâmpagos da nuvem escura iluminam a terra e os céus declararam sua
justiça; na terra os m ontes antigos derreteram “diante do Soberano de toda
terra” (v. 5) e todos os povos contem plam sua glória. E m síntese, o E u
S o u estende suas sentenças até os confins da terra e desse m odo estende
tam bém as fronteiras de seu reino justo.
D e maneira paradoxal, a nuvem e o fogo revelam a imanência do
transcendente na terra enquanto a escuridão da nuvem preserva seu mis-
tério. Ele age de acordo com o propósito de sua vontade.
III. Contexto canônico
Antes dessa teofania, talvez à parte dela, fogo choveu sobre Sodoma
e fogo consum iu os sacerdotes apóstatas N adabe e Abiú que ofereceram
fogo não autorizado ao E u S o u .47

46 Sinai and Zion: A n E n try into theJewish Bible (New York: HarperCollins, 1987).
47 Hess (Israelite Religions, p. 113) sugere, baseado em um texto de Emar no norte da
Síria (c. 1350 a.C), que Nadabe e Abiú cumpriram um ritual semítico ocidental
em que os sacerdotes usavam uma tocha no final do dia da instalação, quando
encontrariam Deus e viveríam no templo.
234

Essa teofania, com o as outras, descreve a manifestação repentina de


Deus e seu ato de conduzir o povo à vitória militar (cf. D t 33.2; Jz 4.5,
5; H b 3.3, 4). H á tam bém um a dimensão escatológica. O E u S o u é apre-
sentado com o o governante de toda a terra: Todos os povos contemplam
sua glória (v. 6), todos os que servem aos ídolos ficam desapontados (7a) e
todos o s deuses que o adoram (7b). Mas ainda não o vemos governar todas
as pessoas, com o o salmo tácitamente reconhece por m eio da prom essa
de libertação e pela exortação aos justos à perseverança e ao ódio ao mal
(10). O relato do governo universal do E u S o u e a reflexão sobre ele é
um a prolepse (v. p. 17-8).
Essa teofania particular da nuvem e fogo que elimina os idólatras
paradoxalmente profanos e triunfa sobre os reinos rivais é um prenúncio
da vinda de D eus em Cristo. N o prim eiro advento de Cristo, ele triunfou
sobre o reino de Satanás ao rem over o pecado com seu sangue na dura
madeira da cruz e engolir a m orte em sua ressurreição. Ele com eçou a
igreja ao descer em línguas de fogo para descrever que o testem unho dela
triunfaria sobre a idolatria pagã. A vitória final de Cristo sobre tudo que
está alienado de D eus ocorrerá no segundo advento. Então, com o Paulo
ensinou os tessalonicenses:
“É justo da parte de Deus retribuir com tribulação aos que lhes causam
tribulação, e dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós
também. Isso acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá do céu,
com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá
os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de
nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a sepa-
ração da presença do Senhor e da majestade do seu poder” (2Ts 1.6-9).

Então, todo joelho se dobrará e toda língua confessará que Jesus Cristo é
Senhor (Fp 2.10) e D eus esmagará com pletam ente Satanás debaixo dos
pés da igreja (Rm 16.20).
João viu um terceiro advento: “a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que
descia do céu, da parte de D eus” . E D eus disse a ele: “E stá feito. E u sou
o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim ” (Ap 21.2,6). O Filho do H om em
encontrará um pregador fiel do salmo 97 quando vier?
9

Salmo 98: Um cântico de vitória do


Guerreiro Divino

Parte I. A voz do salm ista : T radução


U m salmo de D avi.1
1 Cantem ao E u Sou um novo cântico, pois ele2 fez coisas maravilhosas;
a sua mão direita e o seu braço3 santo lhe deram a vitória!4
2 O E u Sou anunciou a sua vitória e revelou a sua justiça às nações.
3 Ele se lem brou do seu am or leal e da sua fidelidade para com a casa de
Israel;5 todos os confins da terra viram a vitória do nosso Deus.
4 Aclamem o E u Sou todos os habitantes da terra! Louvem -no com cân-
ticos de alegria6 e ao som de música!
5 Ofereçam música ao E u Sou com a harpa, com a harpa e ao som de
canções,
6 com cornetas e ao som da trom beta; exultem diante do E u Sou, o Rei!
7 Ressoe o m ar e tudo o que nele existe, o m undo e os seus habitantes!
8 Batam palmas os rios, e juntos, cantem de alegria os m ontes;

1 O TM tem o sobrescrito “um salmo”. A LXX acrescenta a ele “de Davi”.


2 Seguindo a LXX, o TM provavelmente omitiu esse segundo I a v é (“E u S 01 / ’)
devido ao homeoteleuton ocasionado pelo ele final no fim de 'ãíâ (escrito con-
soantemente como (sh , “fez”).
3 Braço inclui os ombros (cf. BDB, p. 285, s.v. t f r ô a ) . Por contraste, A. S. van der
Woude ( T L O T j 1:392, s.v. z e r ô a ) , M. Dreytza (N ID O T T E , 1:146, s.v. £ r ô a ) e
H A E O T (1:280, s.v. z f r ó a ) o define como “antebraço”. Entretanto, as citações
deles não são convincentes, pois o heb. yãd inclui o antebraço (v. SI 95.4).
4 A mesma palavra hebraica “vitória” aparece nos v. 2 e 3 na versão NVI.
5 A LXX, não o TM, acrescenta “ajacó”, um paralelo comum para “casa de Jacó/
Israel” (cf. Is 46.3; Jr 2.4, 5.15, 20; Mq 1.5, 3.1).
6 Tradução de p ish ü vfra n rfn ü como uma hendíadis (H A L O T , 2.953, s.v. p s h \
236

9 cantem diante do E u Sou, porque ele vem,7 vem julgar a terra; julgará8
o m undo com justiça e os povos, com retidão.

Parte II. Com entário

I. Introdução

Autor e data
A o sobescrito “um salmo” do TM , a LX X acrescenta “de Davi”. A
LXX é mais crível à luz dos outros sobrescritos no Livro IV do Saltério
(v. p. 27-9). O salmo 98 apresenta semelhanças notáveis com o salmo 96,
de form a que alguns cogitam: “talvez tenham procedido da mesm a m ão”
(v. “Contexto canônico”, abaixo).9Se o salmo 96 é de Davi (v. p. 189), assim
tam bém é provável que seja o salmo 98. Contudo, muitos comentaristas
datam os dois salmos no período pós-exílico devido às intertextuaüdades
com o Segundo Isaías (Is 40— 66), mas com o A. A. A nderson com enta
com acerto: “Essa similaridade podería ser explicada de várias formas”.10O
salmista se refere ao E u Sou com o “nosso D eus” e, portanto, reconhece a
si mesm o com o m em bro da família de D eus e fala em nom e dela (cf. v. 3).
Forma e retórica

Poesia
O título de gênero “um salmo” significa um poem a sagrado designado
para música (v. p. 40, 126). Com o no salmo 96, o poeta prom ove a per-
sonificação da natureza (v. 8) e a anadiplose (“som de m úsica/ofereçam
música” nos v. 4,5; “com a harpa” no v. 5a, b; e “julgar a terra”/ “ele julgará
o m undo” nos v. 9a, b).
Hino
O salmo 98 apresenta as características de um hino: a convocação para
louvar (v. Ia) seguida da razão para louvar (v. lb-3), a última é introduzida

7 Ou “está vindo” (v. o SI 96.13; p. 188, nota 6).


8 Ou “ele julga”.
9 David M. Howard, Jr., The Structure o f Psalms 93 — 100, BJSUCSD 5. Winona Lake:
Eisenbrauns, 1997, p. 178.
10 The B ook o f Psalms 73 — 150, New Century Bible Commentary. Grand Rapids:
Eerdmans, 1972, p. 691.
237

pela referência “pois” (v. p. 21). O hum or fundamental é a alegria, assi-


nalada pelos verbos de realização (e.g., “ofereçam música com a harpa”,
v. 5) e m ovim ento (e.g, “batam palmas”, v. 8).11 O s verbos que convocam
para louvar costum am ocorrer em série (e.g, v. 4-5), “um sinal do entu-
siasmo im pressionante do poeta hebreu” .12 O objeto do louvor, o E u S ou
(v. p. 15-8), é m encionado pelo nom e 7 vezes (la, lb [LXX], 2, 4, 5, 6, 9),
e, com o é norm al nos hinos, é louvado na terceira pessoa.13 Assim, Deus
ouve essa form a, a mais satisfatória de louvor (v. p. 124).
Retórica
A estrutura interna das estanças do hino é marcada pela repetição dos
verbos que convocam ao louvar. Os versículos 4-6, a segunda estança,
com seu grupo de imperativos plurais dirigido a todas as pessoas para
que ofereçam música, ocorre depois da primeira estança do hino (v. 1-3).
O s versículos 7-9, a terceira estança, usando jussivos, convoca os elemen-
tos cósmicos para louvar nos versículos 7,8 com causa para louvar no
versículo 9. Presumivelmente, as razões para que todas as pessoas sejam
convocadas a oferecer música são as da primeira e terceira estanças. Em
suma, o salmo 98 consiste em três estanças de três versículos. Aqui, há
um esboço de sua estrutura:

Sobrescrito
Estança I (Anúncio a Israel): Cantem um novo cântico, 1 3 ‫־‬
Estrofe A (Convocações): Cantem um novo cântico ao E u Sou, laCC
Estrofe B (Razão): Sua vitória revelou sua justiça às nações, l a P 3 ‫־‬
1. Pequeno resumo: Ele fez coisas maravilhosas, laP
2. Detalhes de sua vitória, lb-3
a. Sua força para salvar, lb
b. Sua vitória revelou sua justiça às nações, 2
b ’. Ele se lem brou de seu am or por Israel, 3a
a’. O s confins da terra testem unharam sua
salvação, 3b

11 H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres o f the Religious Lyric o f
Israel, trad. James D. Nogalski (Macon: Mercer University Press, 1998), p. 22, 25.
12 Ibid., p. 25.
13 Ibid., p. 32.
238

Estança II (Anúncio a toda terra): Ofereçam música ao rei, 4-6


Estrofe A (Convocações): Ao som de música, 4
Estrofe B: Instrum entos musicais, 5,6
1. Cordófonos, 5,6
2. A erófonos e shofar, 6
Estança III (Anúncio ao cosmos): Aplaudam a vinda do E u S o u
na vitória, 7-9
Estrofe A (Convocações): Ressoem com alegria diante
do E u Sou, 7-9aa
1. Elem entos cósmicos ressoam no eixo horizontal, 7
2. Elem entos cósmicos regozijam no eixo vertical, 8,9aOCOC
Estrofe B (Razão): Ele vem para julgar com justiça, 9 a a P ‫־‬b

Esse esboço expõe o propósito retórico do poeta: expandir o louvor no


espaço, no volum e e no tempo. Trem per Longm an III nota: “C om o cada
estança sucede a outra, a dimensão da com unidade adoradora aum enta” .14
C om o os círculos de louvor se expandem, da mesm a form a a intensidade:
das vozes humanas de Israel (v. 1-3), passando por toda a terra oferecendo
música instrum ental (4-6) até o ressoar do m ar e o cantar do m undo (7,8).
A m udança dos tem pos gramaticais em cada estança move o louvor do
passado para o presente e então para o futuro.
A retórica de cada estança será notada conform e a “Exegese”, abaixo.
N otam os aqui apenas que “todos os confins da terra” (v. 3) prossegue
naturalm ente para “todos os habitantes da terra” (4) e que o título Rei (6)
prossegue para o tema de seu governo sobre toda a criação (7; v. SI 93).
A segunda e terceira estanças estão conectadas pelas palavras principais
“diante do Ε υ Sou ” e “cantem de alegria” (6,8,9). A prim eira e última
estanças estão conectadas por “às nações” (2) e seu equivalente semântico
“os povos” (9). H ossfeld nota: “As nações estão presentes nas três [es-
tanças]; nos versículos 2 e 3 são testemunhas oculares; nos versículos 4-7
são os únicas destinatárias; no v. 7 estão incluídas entre os habitantes da
terra; e no v. 9 são alvos do juízo”.15

14 “Psalm 98: A Divine Warrior Victory S o n g ”, J E T S 27 (1984): 267-74, esp. 271.


15 Frank-Lothar Hossfeld; Erich Zenger, Commentary on Psalms 5 1 — 100, trad. Linda
M. Maloney, Hermeneia. Minneapolis: Fortress, 2005, p. 481.
239

Um cântico de vitória do guerreiro divino


O salmo 98 louva a D eus com o rei, mas em contraste com a procla-
mação, o “E u Sou é Rei” (SI 93; 96; 97; 99), o salmo 98 usa o epíteto “o
Rei” (v. 6). O Rei é um guerreiro (v. p. 18). Todos os hinos proclamam
que o “E u Sou é Rei” o louvam com o guerreiro vitorioso, em bora isso
seja menos claro no salmo 99.16 Portanto:

• 47.3 [4]: “Ele subjugou as nações ao nosso poder, os povos colocou


debaixo de nossos pés”.
• 93.1: “D e majestade vestiu-se o Senhor e arm ou-se de poder
[como um guerreiro]”.
• 95.1: “Aclamemos a Rocha da nossa salvação” .
• 96.2: “Cada dia proclam em a sua salvação!” .
• 97.3: “Fogo vai adiante dele e devora os adversários ao redor”.
• 98.1 -3: “A sua m ão direita e o seu braço santo lhe deram a vitória!”
(v. 1); “vitória” (i.e., vitória sobre seus adversários, 2); “vitória de
nosso D eus” (v. 3).
• 99.1: “O E u Sou reina [...] O seu trono está sobre os querubins!
Abala-se a terra!”.
O s salmos que proclam am que “o E u Sou é Rei” fazem parte do
gênero mais am plo de cânticos de vitória do G uerreiro Divino. A iden-
tificação de Trem per Longm an do salmo 98 com o cântico de vitória do
Guerreiro Divino provê um discernimento novo e útil à sua interpretação.17
Longm an observa que a m etáfora e linguagem do G uerreiro D ivino são
baseadas nas listas de G erhard von Rad e P. D. Miller Jr.18 N a Estança I,
“mão direita” e “braço santo” (v. lb ) significam a atividade guerreira;19

16 Com base na similaridade de conteúdo, contexto, temas e linguagem, Longman


(“Psalm 98: A Divine Warrior Victory Song”, p. 273) também classifica como
cânticos de vitória do Guerreiro Divino os Salmos 18; 21; 24; 29; 46; 47; 66; 68;
76; 93; 96; 97; 114; 118; 124; 125 e 136. A inclusão de Salmo 20 é menos certa.
17 “Psalm 98: A Divine Warrior Victory Song”, p. 269.
18 G. von Rad, Der heilige Krieg im alten Israel (Gottingen: Vandenhoeck und Rupre-
cht, 1951); P. D. Miller Jr., The Divine Warrior in Early Israel (Cambridge: Harvard
University, 1973).
19Veja J. Muilenburg, “A Liturgy on the Triumphs of Yahweh”, em: Hearing and
Speaking the Word■ Selectionsfrom the Works of James Muilenburg, Thomas F. Best, org.
(Chico: Scholars, 1984), p. 160,242.
240

“novo cântico” ocorre 7 vezes no AT (SI 33.3;20 40.3[4]; 96.1; 98.1; 144.9;
149.1; Is 42.10) e 2 vezes no N T (Ap 5.9; 14.3), cada um a delas no con-
texto de guerra santa; e “vitória” (v. 1,2,3) geralmente é considerada com o
uma referência à vitória militar. N a Estança II, “E u Sou, o Rei”, (v. 6b) é
associado à sua atividade guerreira. Louvor musical é dado ao G uerreiro
Divino:
“Simplesmente declarado, enquanto o Guerreiro Divino trava batalha, a
música silencia (Is 24.8ss.) e quando o Guerreiro Divino vence, a música
é executada de novo em um hino de louvor. Isso reflete o costume his-
tórico, pois sabemos que o líder da guerra humana e seu exército eram
saudados por instrumentos musicais e cânticos de vitória no retorno
(ISm 18.6-7; Jz 11.34). De fato, a reação musical à vitória militar era
comum no anügo Oriente M édio”.21

L. G reenspoon traçou a conexão entre a revitalização da natureza e


a vitória do G uerreiro Divino, com o na Estança III.22 Longm an escreve:
“Q uando o G uerreiro D ivino batalha, a natureza decai, murcha, definha
(Is 24.4-13), mas quando o G uerreiro D ivino vence, a natureza é reviví-
ficada e participa no louvor a lavé”.23
Contexto
H inos eram cantados no tem plo de Jerusalém , a continuação terrena
do tem plo celestial. As convocações para “cantar um novo cântico” ao
E u Sou‫( ״‬v. la) e a descrição de exultar diante do Rei (v. 6) presum em a
adoração no templo. Longm an pensa que o hino de vitória do G uerreiro
Divino foi cantado “no retorno de lavé, o comandante das hostes celestiais
que lidera o exército israelita de volta para casa depois de travar a vitoriosa
guerra santa” .24 Ele está em um a base histórica mais firme quando fala da
não historicidade do salmo”. O salmo 98 não especifica o tem po e lugar
da vitória do E u S o u “para preservar a relevância imediata do poem a

20 A identificação do Salmo 33 como um cântico de vitória é questionável.


21 Longman, “Psalm 98: A Divine Warrior Victory Song”, p. 270.
22 “The Origin o f the Idea of Resurrection”, em: Traditions in Transformation: Turning
Points in Biblical Faith, B. Halpern; J. D. Levenson, orgs. (Winona Lake: Eisenbrauns,
1981), p. 47-322.
23 “Psalm 98: A Divine Warrior Victory Song”, p. 271.
24 Ibid., p. 268, seg.
241

no culto”.25 Essa intencionalidade pode ser inferida por com parar a não
historicidade dos cânticos de vitória do G uerreiro D ivino no saltério com
os cânticos históricos de vitória em Ê xodo 15 e Juizes 5.
II. Exegese

Sobrescrito
Só o salmo 98 não descreve seu sobrescrito, um salmo; portanto, às
vezes, ele é designado o salmo órfão. O título “salmo” é mais apropriado
com o cântico que especifica os instrum entos musicais, que produzem
melodia (v. 4-6); (v. p. 21).
Estança I (Anúncio a Israel): Cantem um novo cântico, 1-3
O pronom e possessivo “nosso D eus” (v. 3) indica que um líder do
tem plo fala à casa de Israel (v. p. 27). A estança elucida “as coisas mara-
vilhosas que o E u Sou fez” em um padrão quiástico, conform e notado
por K onrad Schaefer:26

A. sua vitória (y su a )
B. ele revelou
C. às nações
D. seu amor leal e fidelidade para com a casa d
C’ todos os confins da terra
B’. viram
A’, sua vitória (y su a )

A palavra principal “vitória/salvação” ocorre em cada versículo dessa


estança integrada e o foco é no im pacto internacional.
Estrofe A (Convocações): Cantem um novo cântico ao Eu Sou, la a
Cantem um [...] cântico é anunciado específicamente aos corais levíticos,
os especialistas em música (v. p. 29).

25 Ibid., p. 272.
26 Psalms, Berit Olam (CoUegeviUe: Liturgical), p. 243.
242

Estrofe B (Razão): Sua vitória revelou sua justiça às nações, la P 3 ‫־‬

1. Pequeno resumo: Ele fez coisas maravilhosas, Ιαβ


Coisas maravilhosas é um paralelo de “glória” em 96.3. D evido à vitó-
ria ter sido tão inesperada e extraordinária, o fato im pressionou as pessoas.
2. Detalhes de sua vitória, lb-3
N a construção quiástica da estança, “vitória é anunciada às nações”
e “todos os confins da terra viram [sua] salvação” com põem a essência
que celebra sua justiça e fidelidade a Israel.
a) Sua força para salvar, lb
Os antropom orfism os mão direita (v. 91.7) e braço (v. nota 3) se referem
a poder (Ex 15.6-12; Lm 2.3) em conexão com a atividade guerreira do
E u Sou.27 O foco é nele, com o pode ser visto na repetição dos prono-
mes “su a/seu ” e “lhe” no verseto lb . E m um único ataque, o E u Sou
conquistou a vitória, portanto, toda a honra pertence a ele (cf. SI 44.3 [4]).
D erek K idner afirma sobre lhe deram a vitória, “Seu aspecto prim ordial é
‘salvação’, com o no nom e ‘Jesus’; portanto, ela contem pla o benfeitor
(com salvação) e adversário (com vitória) e é magnífica o suficiente para
com binar a difícil resolução da última com a compaixão e realização da
primeira” .28A expressão faz parte das esferas militar (cf. Jz 12.2; ISm 11.3,
9) e judicial (2Sm 14.4). Ela denota intervenção militar ou física devida
ou é direito de alguém. J. Sawyer nota que outras palavras no domínio
semântico de “libertação”, com o nsl, enfatizam a ideia de ação violenta,
mas não invariavelmente intervenção em nom e da justiça.29 O paralelo no
versículo 2 é “justiça”. Santo (v. 93.5; 96.9).
b) Sua vitória revelou sua justiça às nações, 2
Anunciou (v. SI 90.9,10,12) denota a experiência mental e intrínseca da
realidade. O sentido de revelou (i.e., “tornar descoberto”; cf. M q 1.630) é

27J. Muilenburg, “A Liturgy on the Triumphs of Yahweh”, p. 242.


28 Psalms 73 — 150, TOTC. Downers Grove: IVP Academic, 2009), p. 385.
29 “What Was a M õ sia ‘?” V T 15 (1965): 479. Para uma discussão mais plena, v. Bru-
ce K. Waltke; James M. Houston; Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um
comentário histórico (São Paulo: Shedd, 2015), p. 212-3,212, n. 62.
30 Cf. o Qal g a lã : “O E u Sou havia revelado isto a Samuel” (ISm 9.15).
243

similar a Isaías 40.5: “A gloria do S e n h o r será revelada”. Isso significa que


“ela será reconhecível, perceptível”. Percebe-se, não se vê literalmente, a
abstração justiça (v. 96.13). E m outras palavras, “A justiça/glória do E u S o u
será reconhecível no ato de libertar Israel”31 e de m odo correlato na justiça
executada contra os opressores (cf. D t 33.21; SI 48.10,11 [11,12]; 96.13;
97.2; 98.9; 99.4; Is 59.9,1 l).^4r nações (v. 96.3,10). E m síntese, a vitória do
G uerreiro D ivino foi tão maravilhosa, inesperada e surpreendente que as
nações sabiam ser esse um feito do D eus de Israel.
b‫ )׳‬Ele se lembrou do seu amor leal por Israel, 3a
E le se lembrou não denota apenas “recordar”, mas tam bém reconhecer
e tornar o passado efetivo, participar do passado no presente.323Portanto,
o E u S o u reconhece e participa de seu am or[...] e da sua fidelidade, palavras
com um ente equivalentes no saltério (v. SI 36.5[6]; 88.11 [12],24[25],33[34];
92.2[3]; 100.5; v. Êx 34.6). São metonimias das alianças estabelecidas com
a casa de Israel73 E m resumo, quando o E u S o u se lembra da aliança com
Jacó, coloca em prática a aliança com os patriarcas.
a') Os confins da terra testemunharam a sua vitória, 3b
N os tempos bíblicos, todos os confins da terra se estendiam das terras
além do Eufrates no oriente até às terras que circundavam o m ar Mediter-
râneo, no oeste, e das ilhas do Peloponeso, no norte, até à Etiópia, no sul.
Estança II (Anúncio a todos os habitantes da terra): Ofereçam música
diante do rei, 4-6
Todos os habitantes da terra (metonimia dos povos da terra, v. 100.1),
vendo a vitória de “nosso D eus”, por Israel, agora são convocados a pro-
ver o acom panham ento orquestral para o cântico de vitória de Israel ao

31 C. Westermann/R. Albertz, T L O T , 1:319, s.v. glh.


32 Brevard Childs, M emory and Tradition in Israel (Naperville: Allenson, 1962), p. 56;
H. Eising, T D O T , 4:65, s.v. zãkar.
33 Em sentido literal, “casa” se refere à área delimitada onde as pessoas vivem; feita
de qualquer material, geralmente distinta da “tenda”. Por metonimia, o sentido
se altera para os conteúdos da casa e além disso para a esfera pessoal da família
residente na casa (de sentido clássico em js 24.15: “mas eu e minha casa serviremos
ao E u S o u ‫ ) ״‬e assim significa “família” (Gn 7.1). E. Jenni (T L O T , 1:235, s.v. bayit)
afirma: “A tribo e a nação inteiras poderíam também ser descritas como b a yit de
acordo com o modelo de família e tribo”.
244

G uerreiro Divino. Com o a inclusão “vitória” com pôs a primeira estança


(v. 1,3), “aclamem” QiarVü) com põe a segunda (v. 4a,6b). A anadiplose “som
de m úsica/ofereçam música” une os versículos 4 e 5 e ressoa o tema da
estança. N om ear os instrum entos musicais a serem tocados e a repetição
de “o som d e /d a ” (v. 93.4) une os versículos 5 e 6. As referências ao E u
S o u em cada versículo unificam ainda mais essa estança estritamente in-
tegrada. “D iante do Rei, o E u S ou ” conduz a estança ao ápice. Os verbos
relacionados ao “louvor” e a amplitude de instrum entos executando o
louvor preenchem a estança com entusiasmo fervoroso.
Estrofe A (Convocações): Som de música, 4
O som da aclamação (v. 100.1; 96.1,2) ao E u S o u (v. 100.1) por todos
os habitantes da terra (v. 96.1,9; 97.5,9; 98.3) no tem plo de Deus é mais
ensurdecedor que a aclamação de um estádio de futebol lotado, quando
o time da casa faz um gol. E ao som de música (zamníérü), (v. p. 124).
Estrofe B: Instrumentos musicais, 5,6
Os poetas preferem desenvolver a form a da execução ao nom ear os
instrum entos.34 O som da harpa e a algazarra das trom betas são ouvidos
na imaginação inspirada do poeta. O tem plo imaginado é am plo o sufi-
ciente para conter “todos os confins da terra” e ele ouve o m ar ressoando
seu louvor e os montes batendo palmas diante do E u S o u no tem plo de
Jerusalém, onde Israel entoa o novo cântico.
1. Cordófonos, 5
O imperativo ofereçam música confere à ordem um vigor persistente.
O mesm o é verdadeiro da expressão repetida com a harpa (v. SI 92.3 [4]).
A adição de e ao som de canções sugere que a harpa é uma sinédoque para
cordófonos (i.e., instrum entos que produzem som do dedilhar das cordas
estendidas sobre ou em um a caixa de som).
2. Aerófonos e shofar, 6
Cornetas são mencionadas apenas aqui em Salmos. Elas provavelmente
eram feitas de prata (cf. N m 10.2) ou de ouro (2Rs 12.13) e podem ser
sinédoque dos aerófonos. “E m N úm eros e Eclesiastes, são sinais do favor

34 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 24.


245

divino”.35D estaca-se a trombeta (sôpãr ) porque, c o m o jo n e s explica: “O


sôpãr é associado ao taruâ [‘exultem5], cujas ricas associações incluem ‘ce-
lebração de vitória e bênção para a terra’ O sbofarcrz. tam bém usado ñas
coroações (1 Rs 1.34,39,41; 2Rs 9.13).36Diante do Rei (v. SI 93.1) pressupõe o
contexto de templo.37A orquestração de todas as nações é provavelmente
uma hipérbole da imaginação poética, não um a orquestra real de músicos
das nações, com o o ressoar do oceano diante do E u S o u no templo em
Jerusalém (v. 9a(X) não pode ser literal (cf. v. 9ap).
Estança III (Anúncio ao cosmos): Aplaudam a vinda do Eu Sou na
vitória, 7-9
O som agora é intensificado para o mais alto decibel: o ressoar da
criação inteira. A estança consiste em uma quadra que convoca os elemen-
tos cósmicos para exultar de alegria (v. 7-9aOt) e um tricólon explicando
que eles assim o fazem porque o E u S o u vem para julgar toda a criação e
as criaturas com justiça (9ap-b). As duas convocações e a razão para elas
estão rigorosam ente ligadas pelo encadeam ento “diante do E u Sou” em
9aCX seguido pela referência “porque” em 9a3·
Estrofe A (Convocações): Ressoe de alegria diante do Eu Sou, 7-9aa
U sando o merisma de “a [largura do] m ar” e a “ [vastidão da] terra”
(v. 7) para abranger os elementos cósmicos e seus habitantes no eixo
horizontal e o merisma de seus “rios” e “m ontes” mais específicos (v. 8)
para abranger os elementos cósmicos no eixo vertical, o poeta convoca a
criação inteira a ressoar (a primeira palavra no texto hebraico do v. 7) de
alegria (a última palavra do v. 8).
1. Elementos cósmicos ressoam no eixo horizontal, 7
O versículo 7 corresponde a dois merismas em paralelo sinonímico: “o
mar” com “o m undo” e “tudo” com “e os seus habitantes”. Ressoe 0 m are
tudo 0 que nele existe repete o Salmos 96.11. O mundo (v. SI 93.1; 96.10) e seus
habitantes (v. 91.1). O “rugido” omitido é um zeugma, pois é inapropriado
com “m undo” e assim é traduzido com o [ressoe].

35 Ivor H. Jones, “Music and Musical Instruments”, A B D 4:936


36 Ibid.
37Assim também, Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 51 — 100, p. 480.
246

2. Elementos cósmicos se alegram no eixo vertical, 8,9aa


N ‘h ã rôt pode
denotar “fontes” (cf. Is 41.18) ou ríos (v. SI 93.3; cf. 24.2).
E m Jonas 2.3[4], esses rios estão associados às profundezas oceânicas:
“Jogaste-m e nas profundezas, no coração dos mares; correntezas [nãhãr]
formavam turbilhão ao m eu redor; todas as tuas ondas e vagas passaram
sobre m im” . Rios form a um merisma com montes (v. 97.5) no eixo vertical.
Ao atingir a praia, os rios se tornam ondas que se quebram. N os ouvidos
do poeta, eles se assemelham a mãos que aplaudem. N o salmo 93, as
“águas” se rebelam contra o governo divino; no salmo 98 elas louvam
seu reino vindouro. Batam palm as ocorre som ente 3 vezes e sempre com
o uso do óbvio coletivo singular kãp {mãos·, lit. “palmas”). O movim ento
corporal expressa aplauso (v. SI 47.1) e alegria extrema, com o visto no pa-
ralelo cantem de alegria (i.e., pronunciar aclamações de júbilo; cf. v. 4; 90.14).
Q uando Joás foi coroado rei, o povo bateu palm as/m ãos (2Rs 11.12) e
o poeta provavelmente associa os aplausos ao reconhecim ento de que
o Deus de Israel é Rei. Eles devem fazê-lo em uníssono‫׳‬, “juntos, todos de
um a vez” .38 Obviam ente, o ressoar jubilante do m ar e o bater palmas dos
m ontes diante do E u S o u no tem plo são ouvidos na imaginação poética.
Estrofe B (Razão): Ele vem para julgar com justiça, 9aap-b
A razão para eles ressoarem com júbilo repete em essência Sal-
m os 96.13 e 97.2. Mas Salmos 98.9 omite a anadiplose “porque ele está
vindo” e registra com retidão (v. SI 96.10) ao contrário de “em sua fidelidade”
(i.e., confiabilidade). E m bora ela já seja repleta da glória de Deus, toda a
criação depende da humanidade para cum prir o destino determ inado de
justiça e paz políticas (Rm 8.19-21).

Parte III. A voz da igreja em resposta

I. Novo Testamento
O N T interpreta o salmo 98 com referência ao nascim ento do Senhor
Jesus Cristo. Para a oração noturna, The Book o f Common Prayer [O livro
de oração comum\ interpõe o salmo 98, conhecido com o Cantate Domino
[“Cantem ao Senhor”], no contexto do cum prim ento do NT, entre o
Magnificat, de Maria (Lc 1.46-55), e o Nuncdimittis, de Simeão (Lc 2.29-32).

38 H A L O T , 1:405, s.v. yahad, #2.


247

Maria magnifica o Senhor em parte porque ele dem onstrou força com seu
braço e dispersou os soberbos (Lc 1.51; cf. 98.1) e porque ele se lem brou
de sua misericórdia para com seu servo Israel (Lc 1.54; cf. 98.3). Simeão
está pronto para partir da terra em paz porque seus olhos viram a salvação
que Deus preparou para “as nações” (Lc 2.30ss.; cf. 98.2).
II. Agostinho de Hipona (354-430)
A gostinho interpreta o salmo 98 à luz da encarnação; à luz das coisas
maravilhosas que Cristo fez para curar corpos e almas. As coisas mara-
vilhosas em que o salmista se alegra foram realizadas pela “m ão direita e
pelo braço santo” do E u S o u (v. 1); um eco de Isaías 53.1: “Q uem creu
em nossa mensagem e a quem foi revelado o braço do S e n h o r ? ” Ele in-
terpreta “sua m ão direita” com o o próprio Cristo no ministério redentor,
revelando nossa salvação.39 Q uando o salmista afirma: “Ele se lem brou
de seu am or leal e da sua fidelidade para com a casa de Israel” (v. 3) não
falando a respeito dos judeus, mas sobre quem vê Deus. Todos os confins
da terra, por sua vez, contem plarão a salvação do E u Sou.40
N o versículo 4, o salmista torna o imperativo “aclamem”, que, Agos-
tinho com enta, que fazemos quando nos faltam palavras. N o entanto, a
terra inteira ouve isso.41 Ao inferir sobre a especialidade musical, Agostinho
interpreta os vários instrum entos musicais usados nos versículos 5,6. Ele
os identifica com o instrum entos régios; o tipo que seria usado para uma
coroação.42
Esses instrum entos são ruidosos porque outros reinos da terra ouvem
e se levantam irados. Sim, argumenta o salmo no versículo 7: “Ressoe o
m ar” com o a multidão pode ressoar, de quem podem os esperar perse-
guição. Mas “os m ontes”, com o cristãos notáveis, “saltarão de alegria”
e os “rios”, com o cristãos com uns que beberam “a água viva”, todos se
alegrarão!43 E m contraste, na vinda de Cristo, “os ím pios”, com o Sal-
m os 1.4-6 descreve, serão julgados (v. 9). “Reflitam então”, A gostinho
desafia sua audiência, “que tipo de pessoa você é. Se você se diz cristão,

39 E xposition o f Psalm 9 7 1-2, em: E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding,
O.S.B. (Hyde Park: New City, 2002), vol. 4, p. 459-60.
40Augustine, E xposition o f Psalm 9 7 3 (Boulding, p. 460-1).
41 Ibid., 4 (Boulding, p. 461).
42 Ibid., 5,6 (Boulding, p. 463-4).
43 Ibid., 7,8 (Boulding, p. 465).
248

então viva a Oração do Senhor, e suplique: *Venha o teu reino, seja feita
a tua vontade’. [...] Corrija-se, para que não orar mais contra si m esm o”.44
III. João Calvino (1509-1564)
João Calvino pertence ao m undo m uito diferente do de A gostinho e
sua formação foi diversa — com o advogado que se engajou na evolução da
disciplina da teologia. Ele talvez tenha se descrito com o um médico diag-
nosticador, pois retratou os salmos “com o a anatomia de todas as partes
da alma”. Sinclair B. Ferguson elogia Calvino da seguinte forma: “Ele tinha
um talento misterioso para perceber o sentido real; uma com binação sem
aprendizado de compreensão, lógica, sensibilidade e iluminação”.45Porém,
com o Agostinho, ele era um hom em muito humilde, e se descrevia apenas
com o “um principiante e aprendiz!”.46 Influenciado sem nenhum a dúvida
por Agostinho, que com preendeu os salmos com o expressão do “corpo de
Cristo”, Calvino era fascinado pela convicção do caráter cristocêntrico da
Bíblia inteira. Ele prega para expor a palavra de Cristo no texto da Bíblia.
João Calvino nota a similaridade desse salmo com o 96, em seu grande
escopo de propagar a glória de D eus em caráter universal. Cantar um novo
cântico ao E u S o u “denota um a extraordinária, não uma com um atribui-
ção de louvor. Pois D eus m anifestou sua salvação de maneira singular e
inacreditável. D eus realizou a salvação com a própria mão direita·, isto é, não
por meios humanos, nem de um a form a ordinária, mas por libertar sua
igreja de maneira sem precedentes”.47 Semelhante a Agostinho, Calvino
foca nos versículos 3 e 4 com o o tem a para a com posição inteira.
E m ambos: o Salmos 98.1 e em Isaías 49.16, Calvino observa, “o braço
do E u Sou‫ ״‬indica seu poder excepcional, usado em lugares inesperados
de escuridão para dem onstrar sua vitória e justiça a todos os povos da
terra. O salmo, portanto, é descrito com o “um novo cântico”, não com o
qualquer form a ordinária de celebração. N o versículo 2, a “vitória” é
mencionada prim eiro e, mas na ordem inversa, pois ela é “justiça”, que
consiste na causa. D e fato, acrescenta Calvino, “a justiça de Deus, que é a

44 Ibid., 8 (Boulding, p. 465).


45John Calvin: HeartAflame, Daily Readingsfrom Calvin on the Psalms. Phillipsburg: P&R,
1999.
46 Citado em Fergus on, John Calvin, p. vi.
47 Commentary on the Book of Psalms, trad. James Anderson. Grand Rapids: Baker
Books, 1996, vol. 4 p. 69-70.
249

fonte da vitória, não consiste em ele recom pensar os hom ens de acordo
com as obras, trata-se apenas da ilustração de sua misericórdia, graça e
fidelidade”.48
N o versículo 3, Calvino move o foco para o ato de Deus conceder
glória ao próprio povo, os filhos de Abraão, e exibi-la. “Com o Cristo dis-
se: ‘A salvação é dos judeus’ ” (Jo 4.22). O salmista, portanto, com muito
propriedade observa: “Deus ao redimir o m undo se lembrou cia verdade que
ele havia transm itido a Israel, seu povo, o que sugere que ele não estava
influenciado por nenhum outro motivo senão o de cum prir com fideli-
dade sua prom essa” .49 “Lem brou-se” é usado antitéticamente em relação
ao esquecimento hum ano de Deus, de m odo que as nações antes imersas
em ilusões e superstições agora participariam da promessa.
Calvino não se im porta em descrever os vários instrum entos musicais
nos versículos 5,6, e os interpreta à luz do versículo 4 (“Aclamem o S e n h o r
todos os habitantes da terra!”). Ele sugere que a amplitude e variedade dos
instrum entos musicais são os melhores esforços que a hum anidade pode
fazer para louvar o E u Sou·, mas eles estão aquém, com o as cerimônias
da lei tam bém , de dar a D eus o louvor adequado.50
Com o R obert D avidson nos lembra: “N enhum salmo m etódico e
sucinto revela a essência da adoração genuína. N a adoração o povo de
Deus se junta à criação inteira para celebrar os feitos maravilhosos do Rei
e Criador de tudo”.51 Mas nessa adoração, tam bém nos despertam os para
o futuro revelado pelo NT. A igreja canta para proclamar “Jesus é Senhor”
(IC o 12.3). João Calvino declara nas Institutas que cantar é a form a de
“exercitar a m ente para pensar em Deus e mantê-la atenta” . Cantar per-
mite aos cristãos glorificar a Deus juntos e perm ite que “todos os homens
m utuamente, cada um de sua irm andade, [a] recebam a confissão de fé e
a ser atraído e induzido pelo seu exemplo”.52
Chegam os à conclusão de nossa seção sobre a resposta cristã ao
salmo 98 ao notar que a maioria dos cristãos conhece mesm o de form a

48 Ibid, p. 70.
49 Ibid., p. 71.
50 Ibid, p. 73.
51 The Vitality of Worship: A Commentary on the Book of Psalms. Grand Rapids: Eerd-
mans, 1998, p. 323.
52 Institutes of the Christian Religion, John T. McNeill, org. Louisville: Westminster,
1960, vol. 1,3.20.21.
250

inconsciente esse salmo e seus temas através do hino de Isaac Watts:


“Alegria do m undo”.

Parte IV. Conclusão

I. Contexto canônico
O s Salmos 93 e 96— 99 todos se referem ao E u S o u com o Rei e são
cânticos de vitória do G uerreiro Divino (v. “Cântico de vitória do Guerrei-
ro D ivino”). O s temas dos salmos 97 e 98 são estruturados em quiasmos,
com o David H oward observa: “O salmo 97 começa com atenção para o
m undo e encerra ao focar em Israel; o salmo 98 começa com um olho para
Israel e term ina por enfatizar o m undo”.53 O s Salmos 98 e 96 ecoam um
ao outro (cf. “ressoe o mar e tudo o que nele existe” em 96.11b e 98.7a).
Am bos são chamados “um novo cântico” nos primeiros versículos; os
dois contam com um a estrutura interna de estanças múltiplas de três
versículos demarcadas pelas formas volicionais. As estanças conclusivas
(96.11-13; 98.7-9), usando jussivos, convocam a criação para se juntar à
celebração e provê a mesm a razão para celebração em versículos conclu-
sivos quase idênticos. Am bos usam os recursos poéticos não tão comuns
de anadiplose e personificação.
Para o contexto do NT, veja “N ovo Testam ento”, acima.
II. Mensagem
A mensagem do salmo 98 consiste em cantar um novo cântico; um
cântico de vitória para celebrar as nobres qualidades e a salvação impres-
sionante provida pelo E u Sou, o Deus de Israel e G uerreiro Divino. O
salmo 98 emana louvor entusiasmado por ele. E m horizontes expansivos
e volume ascendente, o salmista convoca Israel para cantar um novo cân-
tico e aclamar com alegria, as nações para acrescentar acom panham ento
musical e a criação inteira para ressoar com aplauso. Se a convocação dos
serafins uns aos outros, dizendo: “Santo, santo, santo”, fez os umbrais e
entrada do tem plo de Jerusalém trem erem (cf. Is 6.4), pode-se imaginar
que a aclamação de alegria de toda criação e tudo que nela existe sejam
tão altissonantes de m odo a abalar o palácio celestial.

53 The Structure o f P sa lm 93 — 100, ρ. 178; cf. ρ. 157.


251

Todos se alegram porque o E u S o u fez o que era justo pela casa de


Israel, a nação que ele adotou com o família. A vitória do G uerreiro Divino
em nom e dos herdeiros de Jacó foi tão magnífica e suas proezas, sem a
ajuda humana, tão extraordinárias que todas as nações reconheceram e per-
ceberam que o Guerreiro Divino de Israel fez isso. Por meio de sua vitória,
ele revelou suas qualidades nobres: força, justiça, majestade e longevidade
(v. p. 18).54 A força dele é simbolizada p o r “sua m ão direita e seu braço
santo” (v. lb); sua justiça é revelada ao salvar Israel (2); e sua majestade
pode ser inferida de sua reverência universal (4,7,8). A longevidade eterna
do Rei se estenderá na história da salvação; quando ele governará a terra
toda com retidão (9). A esses nobres atributos, o salmo 98 acrescenta o
am or leal para com a casa de Israel (3).
O salmo não é atrelado a um fato histórico, de m odo que ele pode ser
usado no hinário de Israel em qualquer ocasião de vitória divina e, de fato,
em qualquer período com o lem brete de todas as suas vitórias, quando ele
pilhou o Egito no início de Israel e a Babilônia depois do exílio de Israel,
enquanto liberta sua família da escravidão (Ex 12.17-51; Is 45; E d 1).
Contudo, todas as vitórias de D eus no A T foram apenas a prepara-
ção para a vitória real: a vitória de seu Filho, o Senhor Jesus Cristo, sobre
Satanás, o pecado e a m orte. Essa vitória é celebrada todas as semanas
pelos cristãos há mais de dois milênios. Por meio do testem unho deles,
D eus revela sua justiça em Cristo em cada continente e em quase todas
as línguas (SI 22, esp. os v. 27-31 [28-32]).
As vitórias passadas do G uerreiro D ivino são a garantia da vitória
definitiva, quando ele vier e julgar todos os povos com retidão (v. 7-9).
N esse tem po, a criação se alegrará, pois ela será libertada da escravidão da
decadência e conduzida à liberdade e glória dos filhos de Deus.
A preocupação suprema do salmista é que todos os povos cantem
juntos o cântico de vitória de Israel. Ele m enciona as nações em cada es-
tança. Pode-se com preender de pronto porque Israel cantaria esse cântico
de vitória, mas por que todas as nações? N ão é a vitória de Israel a derrota
delas? N a verdade, o salmo presum e que nem todos os gentios louvam o
D eus de Israel. D e acordo com a conclusão do salmo, o G uerreiro Divino
ainda virá e julgará todos os povos. Mas o foco do salmo 98 é nas pessoas

54Marc Zvi Brettler, God Is King: Understanding an Israelite M etaphor, JSOTSup 76


(Sheffield: JSOT, 1989), p. 51-75.
252

que o louvam em toda a terra. Elas se juntam para o cântico por saberem,
com a m ente e de form a intrínseca, que o D eus de Israel é um G uerreiro
que tem a vontade e o poder para fazer o que é justo, que ele preserva a
fé de quem confia nele e que ele deseja que todos conheçam sua salvação.
Todos os povos hoje, que adoram a Deus por ele ter ressuscitado Jesus
dos m ortos e por fazê-lo se assentar à sua m ão direita, confessam a fé nele
com o Senhor. Assim, por causa da fé, eles reorientan! a vida de acordo
com o governo justo do Filho. D e fato, o salmista retrata os gentios se
tornando um reino de sacerdotes com Israel, com o indica o fato de eles
tocarem instrum entos do templo. N o AT, apenas a tribo sacerdotal de
Levi executava música no tem plo (v. lC r 16.42; 2Cr 5.12). Mas o salmista
convoca as nações a tocar as cornetas santas e até mesmo a trombeta, usada
pelos capitães e sacerdotes de Israel, na guerra e na liturgia (cf. Lv 23.24;
25.9; 2Sm 2.28; Jz 6.34; lR s 1.41).
10

Salmo 99: Santo é ele

Parte I. A voz do salmista: Tradução


U m salmo de Davi.1
1 O E u S o u t á n a l As nações tremem!2 O seu trono3 está sobre4 os que-
rubins! Abala-se5 a terra!
2 G rande é o E u S o u e m Sião;6 ele é exaltado acima de todas as nações!7
3 Seja louvado8 o teu grande e temível nom e, que é santo.
4 Rei poderoso, amigo da justiça! Estabeleceste a equidade e fizeste em
Jacó o que é direito e justo.

1 A ssim tam bém a L X X . O T M om ite um sobrescrito.


2 E m bora o verbo p ossa ser jussivo (tremam), o indicativo é preferido porque: a) o
verbo paralelo tã n ü t é indicativo, não jussivo (v. nota 5); e b) a retórica d o salm o
o exige (v. abaixo).
3 Para esse sentido específico de ysb v. B D B , p. 442, s.v. ysb , § lc ; H A L O T , 1:444,
s.v. ysb , # 3 a .
4 V. “n o m eio dos d ois querubins” (Ê x 25.22; 37.7-9; N m 7.89).
5 N üt é um hapax legomenon, provavelm ente o cogn ato hebraico d o ugarítico n tt “osci-
lar” (Cyrus H . G ordon , Ugaritic Textbook, A n O r 38 [Rome: Pontificium Institutum
Biblicum , 1965], p. 443, # 1 9 6 1 ).
6 O s sinais d o T M proíbem a tradução “O E u Sou e m Sião é grande”.
7 A lguns m anuscritos hebraicos co m algum a p oio frágil nas antigas versões re-
gistram “deu ses” (cf. SI 95.3; 96.4; 97.9). Mas Z enger (Franz-Lothar H ossfeld;
Erich Zenger, Commentary on Psalms 51— 100, trad. Linda M. M aloney, Hermeneia
[Minneapolis: Fortress, 2005], p. 483) nota que o tem a d os d euses é ausente n o
Salm o 99, em bora a perspectiva das nações d om in e d os v. 1-3.
8 O m o d o d o verbo poderia ser o indicativo (“eles lou vam ”), m as o jussivo é prefe-
rido p elo “co n sen so quase universal” (H ossfeld and Z enger, Commentary on Psalms
51— 100, p. 482) e ajusta-se b em à retórica d o salm o (v. abaixo).
254

5 Exaltem o E u Sou, ο nosso Deus, prostrem -se diante9 do estrado dos


seus pés. Ele é santo!
6 Moisés e Arão estavam entre os seus sacerdotes, Samuel, entre os que
invocavam o seu nome; eles clamavam pelo EuSou, e ele lhes respondia.
7 Falava-lhes da coluna de nuvem, e eles obedeciam aos seus mandamentos
e aos decretos que ele lhes dava.
8 Tu lhes respondeste, E u Sou, nosso Deus; para eles, tu eras um Deus
perdoador, em bora os tenhas castigado p o r10 suas rebeliões.11

9 O u “em direção” (assim tam bém , o v. 9).


10 Para o u so de ‫־‬a/, v. o B D B , p. 754, s.v. §1 f (b).
11 A interpretação unânime das versões inglesas do sufixo pronominal de Rlôtãm com o
agente (= “p or suas rebeliões”) exige um a defesa extensa de interpretação d o sufixo
co m o genitivo objetivo. A interpretação d o genitivo tem apoio em: a) Ê x o d o 34.7;
onde, ao m esm o tem po, D eu s diz que ele perdoa a maldade e não perm ite que o
culpado fique impune; b) a ênfase d o salm o na santidade de D eu s (v. 3,5,9); e c) o
fato histórico: D eu s puniu Arão e M oisés (N m 20.24). Entretanto, essa interpretação
não é provável devido a pelo m en os três razões:
Primeira: nesta série de salm os que celebra D eu s co m o o Rei-Guerreiro de Israel
(92— 93; 95----100), sua punição a Israel seria algo desagradável. Para ser exato,
“perdão” em 8b tam bém expressa algo n o v o nesses salmos, mas perdão expressa
misericórdia e favor para co m Israel e, portanto, de maneira diferente da punição,
é coerente com o teor desses salmos. Portanto, as autoridades n os salm os régios
procuram conciliar o Salmo 99.8bp co m os outros salm os de várias formas. D avid
M. Howard (The Structure of Psalms 93— /Oti, BJSUCSD 5 [Winona Lake: Eisenbrauns,
1997], p. 86s.) traduz nqm por “vingança” e, co m base n o s dois textos (Jó 10.7; 34.6),
traduz ’al por “em bora/apesar d e” (= e A quele que o s vinga, apesar de suas más
obras”). Essa interpretação forçada é possível, mas parece m enos plausível que “erros
com etid os contra eles”. O utros revisam o texto. Sigmund M ow inckel (The Psalms in
Israel’s Worship, trad. D. R. Α ρ -T hom as [Nashville: A bingdon, 1967], vol. 1, p. 156,
n. 138) insere lô’(~ “não vin gou ”). C. F. W hitley (“Psalm 99:8”, Z A W 85 [1973]:
227-30), cuja alteração é aceita pelo H A L O T (1:720, s.v. nqh; e 1:721, s.v. nqm) refaz
nqm co m o nõqãm (part, de Q al de nqh com 3 sufixos pl. m.) e, só co m a base bíblica
de Salmo 16.2, questionavelm ente trad u z 1al co m o “de” (= “que o s purifica de seus
pecados”). Entretanto, nqh ocorre co m N ifal e Piel, não em Qal (a construção aqui)
além do u so co m o infinitivo absoluto m odificador d o verbo em Nifal.
Segunda: a n oção de que D e u s se vin g o u de quem efetivam ente o in v o co u n ão é
com patível com o paralelo “tu lhes resp ond este” . O coleWyored separa 8a de 8b
e o ‫־‬athnah separa 8b(X de 8bP:
(8a) E u Sou n o sso D eu s, tu lhes respondeste:
(8 b a ) Tu foste para eles um D e u s que perdoa,
(8bp) e u m vingador d e seus erros.
255

9 Exaltem o E u Sou nosso Deus; prostrem -se, voltados para o seu santo
monte, porque o E u Sou, o nosso Deus, é santo.

D e acordo co m a interpretação n orm al d esse padrão d e acentuação, am bos:


“Tu és um D eu s que perdoa” e “um vingador d e seus erros” expandem “tu lhes
resp ond este” . E m outras palavras “um vingador de seus erros” não é o paralelo
antitético d e 8b0C (“um D e u s que perdoa”), mas a explanação d e 8a (v. SI 90.17;
93.1; 96.13; 97.9 [= 98.3]; 100.3; v. tb. SI 1.1,3; 2.6; 5.10). Sem dúvida, o p oeta não
tem a in tenção de dizer que D eu s resp ond eu às orações de M oisés e Sam uel (cf.
Jr 15.1) p or vingar-se deles.
Terceira: nqm se refere a punir um a p essoa fora d o im pério de alguém. D e acordo
co m F. H orst (“Recht und Religion im Bereich des A T ”, E v T 6 [1956]: 49-75; citado
co m aprovação por G . Sauer, T L O T , 2:768, s.v. nqm), o co n ceito de vingança se
refere “à pena privada que p ertence propriam ente às pessoas localizadas fora [grifo
meu] da jurisdição e autoridade de alguém ” . Isso é um contraste a p q d , “a inspeção
oficial realizada fora da esfera de autoridade de alguém [...] que considera as pessoas
envolvidas responsáveis p or negligência e erro e in tervém contra elas” (W Schot-
troff, T L O T , 2:1027, s.v. p q d ,‫ ׳‬cf. Ê x 34.7). Por certo, o s perdoados cum pridores do
pacto (v. 7) e os intercessores efetivos (6b; 8a; 8 b a ) são m em bros da jurisdição de
D eu s, não estranhos. R. N . W hybray (‘“T heir W ron gd oing’ in Psalm 99:8”, Z A W
81 [1969]: 237-43, esp. 238) destaca: “A s palavras cruéis nãqãm (V ingar-se’) e seus
cognatos nãqãm e neqam ã são p oucas v ezes usadas n o A T a respeito das ações de
lavé contra Israel, [ambas] nas denúncias proféticas [v. Is 1.24; E z 24.8; esp. Jr 5.9
= 9.9, on de Israel é cham ada gôy, term o norm alm ente reservado para designar não
judeus] e em um a m aldição (Lv 26.25), o n d e a situação em fo c o é que a aliança
está n o fim e lavé se torna o in im igo de Israel. Por outro lado, elas são usadas em
muitas ocasiões em que la v é se vinga d os inimigos d os israelitas [itálico dele]; as
passagens incluem textos de d ois salmos: Salm o 94.1 e 149.7.
E m outras palavras, “castigar” (N V I) é bastante im precisa; ela n ão distingue entre
nõqém (SI 99.8) e p õ q ed (Ê x 34.7).
In depen d en tem ente de R. N . W hybray e outros, eu (Bruce) inferi a conclusão
que o gen itivo d o sufixo foi o genitivo do ob jeto m ediado (“ob jetivo”; v. IB H S ,
§9.5.2d;Jouon-M uraoka, 129e; G K C , 128h, 135m ) p or diversas razões: a) ele não
envolve alteração d o texto ou uma interpretação forçada; b) o genitivo objetivo é
bem conhecido (v. ifqõi‘ ’ê Stinô, v. 6), em especial co m o sufixo pronom inal (v. G KC,
135m); c) essa foi a interpretação de Sím aco e K im chi (citada por D elitzsch, em -
bora ele discorde); d) cA l (governar) o acusativo de nqm seria excepcional. C om
o genitivo objetivo, 7 tem o sentido norm al “d evid o a /e m retorno [pelos erros
com etid os contra eles]”.
256

Parte II. Comentário

I. Introdução

Autor
A LX X e um dos manuscritos de Q um ran (4QPsk) atribui esse salmo,
que proclam a “Deus é Rei” (cf. SI 93; 97; 98) a Davi. N ão há razão para
negar a atribuição (v. p. 27). Sua referência ao trono do querubim (v. 1)
sugere a com posição no período do prim eiro templo, não do segundo
(v. p. 30-1, 96: nota 65).
E m bora o diretor de música não seja m encionado, o hino serve para
a adoração no templo, pois ele m enciona o E u Sou com o “nosso D eus”
(v. 5,9). O líder da música convoca Israel para adorar.
Forma e retórica

Um salmo que proclama a realeza do Eu Sou


Esse poem a conciso (v. p. 38) usa, mais do que a maioria dos sal-
mos, a figura da parataxe (note os travessões relativamente num erosos
na tradução) que Hans-Joachim Kraus chama “clamores cúlticos com o
staccato”.12 O conteúdo do poem a de convocação para louvar com ra-
zões o caracterizam com o um hino, mas ele inverte a sequência norm al
(v. p. 19).13Entretanto, além de possivelmente o verseto 9b,14o salmo omite
a referência “porque” para prosseguir nas razões para louvar. Contudo,
o salmo inteiro provê razões e, assim, significado, para louvar. O poeta
convoca as nações estrangeiras (v. 3) e Israel (5,9) para louvar o E u Sou por
suas sublimidades (1,2,4,7,8). O ciclo de razões e convocações é repetido
três vezes (1-3,4-5, 6-9), mas as convocações para as nações estrangeiras
estão na form a gramatical de um desejo (1-3) e servem com o a razão
para Israel adorar (v. 5; v. “estrutura”, abaixo). Com o sempre acontece
em hinos, os versículos 3 e 6 usam “nom e” com o substituto de I avé .15
12 Theology of the Psalms, trad. K eith Crim. M inneapolis: A ugsburg, 1979, p. 268.
13 H. G unkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres of the Religious Lyric of
Israel, trad. Jam es D. N ogalsk i (Macon: M ercer U niversity Press, 1998), p. 24.
14 Ki n o v. 9 é mais bem traduzido co m o “certam ente”, não “porq ue”, em bora as
duas n o çõ es sejam coincidentes.
15 G unkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 28. Isso p o d e ser d evid o ao fator do
sogetto cavato — co m o letras de um n o m e significam notas (v. D en n is M cCorkle, The
257

Além disso, com o em muitos hinos, o poeta se dirige aos adoradores,


referindo-se a D eus na terceira pessoa (i.e., “ele”) ou se dirige ao E u S o u
diretamente, na segunda pessoa (i.e., “tu”). A última form a de tratamento,
“sendo mais pessoal” [...] expressa com mais ênfase a piedade direta”.16A
primeira form a, em que D eus escuta o louvor, pode exaltar o coração de
Deus e expandir seu reino mais que o louvor dirigido de m odo direto a
ele. A proclamação inicial especifica o hino com o um salmo que proclama
que “o E u S o u é Rei”.
Além do yhwh mãlãk gramaticalmente ambíguo (v. 1) — a convocação
para reverência, não o clamor da entronização — nada mais no salmo
sugere a investidura divina no ritual de entronização no festival de ano
novo (v. p. 34-7).17
Estrutura
Gunkel observa que com frequência conclusões para as seções de um
poem a são “expressamente acentuadas por refrãos” e cita Salmos 99.5,9
com o exemplo.18
Assim, o quase idêntico refrão longo que convoca Israel a “exaltar”
e “prostrar-se” diante do E u S o u demarca o salmo em duas estanças de
aproxim adam ente igual extensão: 6 linhas19 de 42 (v. 1-5) e 41 palavras
(v. 6-9). A primeira estança usa abstrações para celebrar a justiça, equidade
e o direito de Deus (v. 4). A segunda estança provê exemplos específicos
das sublimidades extraídas das semelhanças entre Moisés e Samuel. Ele
respondeu às orações de quem cum priu a aliança.
O refrão breve “ele é santo” (v. 3b, 5b), que se intensifica e alcança o
ápice para “porque, o E u Sou, o nosso Deus, é santo” (v. 9b), divide ainda
mais a primeira estança em duas estrofes (v. 1-3, 4-5).20 E m acréscimo a

Davidic Cipher: Unlocking the Hidden Music of the Psalms [Denver: O utskirts, 2010],
p. 2 3 -5 ,3 1 -3 ).
16 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 24.
17 Pace Richard J. Clifford, “Psalm s o f the T em p le”, em: 0>ford Handbook of the
Psalms, W illiam P. Brow n, org. (O xford: O x fo rd U niversity Press, 2014), p. 333.
18 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, 40.
19 O s v. 4,6 e 8 são tricólons que co m p õ em duas linhas (v. o form ato d o BHS).
20 F. D elitzsch (Psalms, trad. Francis B olton , Keil and Delitiçsch Commentary on the Old
Testament5 [London: T & T Clark, 1866-1891;reim p.,Peabody: H endrickson, 1996],
p. 631) ou ve três vezes “ele é san to” (v. 3,5,9 — a terceira v ez em tom mais alto”)
“o eco terreno d o triságio d os serafins” (Is 6.3). Mas Kraus ( Theology of the Psalms,
258

outras similaridades (v. “Exegese”, abaixo), as duas estrofes se alteram


de objetivar o louvor a respeito de D eus (v. 1-2, 4a) para direcionar o
tratam ento e o louvor a D eus (v. 3,4b). A mesm a alteração na segunda
estança, indicada pelo enfático yatta (“tu”, v. 4b,8), tam bém o divide em
duas estrofes (v. 6-7,8-9). Form alm ente, a ordem repetida para que Israel
louve ο “E u S ou, o nosso D eus” (v. 5a,9a) deve ser com binado com a
razão para louvar das estrofes da segunda estança (v. 4,8). As ocorrências
estruturadas com o quiasmos de “E u Sou, o nosso D eus” (v. 8aOt,9bp)
apoiam essa análise. O resultado é 4 estrofes. Cada uma consiste em três
linhas e sobre o m esm o núm ero de palavras: versículos 1-3 (22 palavras),
4,5 (20 palavras), 6,7 (20 palavras) e 8,9 (21 palavras). O utras características
retóricas unificadoras de estanças e estrofes serão observadas abaixo sob
o título “Exegese”.
A o com preender o salmo holisticamente, Iavé { E u Sod) é o alfa e
ômega do salmo: a primeira e última palavra. O nom e divino ocorre 7 vezes
e assim tam bém seus pronom es (“ele” 4 vezes e “tu” 3 vezes; v. p. 15).
Aqui está um esboço da estrutura unificada do salmo:

Sobrescrito
Estança I: Louve o E u S o u com o rei forte e poderoso, 1-5
Estrofe A: Q ue as nações louvem o E u Sou,
O Rei tem ido acima das nações, 1-3
1. O E u S o u é rei acima de todas as nações, 1,2
a Proclamação: O E u S ou reina; as nações tremem, 1
b. O E u S o u é a única majestade sobre todas
as nações, 2
Estrofe B: Exaltem o E u Sou, o rei poderoso e justo em Jacó, 4,5
1. O E u S o u é poderoso e justo, 4
2. Exaltem o E u Sou. Ele é santo, 5

p. 269) ou ve n o triságio seráfico de Isaías um ec o d o Salm o 99. o verdadeiro eco


d o triságio seráfico é ou v id o em A pocalip se 4.8. M uito p rovavelm ente, a repetição
tríplice não é um eco, m as a característica co m u m d os hinos (e.g., “cantem ”, Sal-
m o 96.1,2; “d eem ”, 96.7-9; “lo u v em ”, 103.20-22; 135.1; “que [...] d ig a /d ig a m ”;
“deem graças”, 136.1-3). Leis tam bém são organizadas em grupo d e três (Lyle
Eslinger, “D raftingT echnique in S om e D eu teron om ic Laws” V T 30 [1980]: 251-2).
259

Estança II: O louvor do E u S o u p o t responder orações dos


cumpridores da aliança, 6-9
Estrofe A: Ele respondeu as orações de seu povo fiel, 6,7
1. Ele respondeu as orações daqueles que lhe clamaram, 6
a. Moisés, Arão e Samuel entre aqueles
que oraram, 6a
b. Ele lhes respondia, 6b
2. Deus falou aos intercessores e eles obedeceram
a sua lei, 7
a. Ele falou àqueles cujas orações ele respondeu, 7a
b. Eles obedeceram a sua lei, 7b
Estrofe B: Exaltem o E u Sou, que respondeu as orações dos fiéis, 8,9
1. Ele respondeu as orações dos fiéis: os perdoou
e os castigou, 8
2. Exaltem o E u Sou, porque ele é santo, 9
II. Exegese

Sobrescrito
Veja “A utor”, acima.
Estança I: Louvor ao Eu Sou como o rei poderoso e justo, 1-5
O querubim sobre a arca (v. 1) e o estrado embaixo dela (5) são partes
essenciais do trono do rei e assim com põem a estança que proclama o
E u S o u com o Rei. As duas estanças da estrofe, com eçando pela referen-
cia ao E u S o u com o Rei (mãlãk, “reina”, v. 1; melek, “Rei”, v. 4). As duas
estrofes passam da objetivação da fala a respeito de Deus (1-2,4a) para o
direcionam ento da fala a ele (3a,4b); as duas inferem um a conclusão com
formas volitivas (v. 3,5), seguidas pela semelhança de um staccato: “ele é
santo”. As duas estrofes são ligadas de form a excepcional pela conjunção
“e” . As palavras principais “em Sião” (2a) e “em Jacó” (4b) distinguem de
m odo inequívoco Israel e seu D eus das demais nações. A prim eira estrofe
pertence a sua realeza sobre todas as nações e, assim, sugere seu poder
soberano. A conotação prossegue para o atributo estabelecido: “poder
total”. O poder do E u S o u o capacita a exercer justiça (4) em resposta à
oração (6-8). E m suma, o E u S o u & santo; isto quer dizer: o D eus justo e
reto deve ser tem ido e louvado em adoração.
260

Estrofe A: Que as nações louvem o Eu Sou, o rei temido acima delas, 1-3
A proclamação introdutória: “O E u S o u reina” será exposta no res-
tante do salmo e fixa a adoração do E u S o u no templo, onde ele se assenta
entronizado entre os querubins, acima da arca. Q ue “os povos trem em ” e
“a terra se abala” (v. 1) provê evidência visual que ele é “tem ido” e “santo”
(3). A palavra principal “grande” liga os versículos 2 e 3. Sua repetição in-
dica com coerência a superioridade sobre todos os contendores, indicação
certificada pela afirmação: “Ele é exaltado acima de todas as nações”. A
realidade de que ele reina e é exaltado acima de tudo provê o motivo para
o dever de as nações se juntarem a Israel em louvor ao H erói da história
da salvação dela (v. 3) e por que Israel deve exaltá-lo.
1. O Eu Sou é rei sobre todos os povos, 1-2
O dístico (v. 1,2) é ligado por: a) E u S o u inicial; b) a palavra principal
“nações” estruturada com o quiasmo em laCC, intensificada para “todas as
nações” em 2bP; e c) os locais correferenciais “sobre os querubins” (v. lb)
e “em Sião” (v. 2a). O E u S o u exerce o governo universal do m onte Sião,
onde ele se assenta invisivelmente em seu trono querubínico.
a) Proclamação: o Eu Sou reina; as nações tremem, 1
O governo do E u S o u não é derivado e estava em vigor antes da
criação, mas se m anifesta no trem or das nações e no abalo da terra
(v. p. 156), com o aconteceu durante o Êxodo do Egito (Êx 15.15 e a
Conquista de Canaã (Dt 2.25). A parataxe das sentenças no versículo la,
o E u S o u reina (93.1; 97.1) e as nações [das nações estrangeiras] (v. 96.3)
tremem, força a audiência a form ar uma conexão lógica de causa e efeito.
A trepidação das nações é causada pelo governo santo do E u Sou. A mes-
ma sintaxe e significado também se sustentam no versículo lb: Abala-se
(cf. Is 64.3[2]) porque “o seu trono está sobre os querubins” (v. p. 96,
nota 65). A terra *hã^ãres; (v. 96.11; 97.1). E m relação a “trem em ”, rãgaz
significa “trem er fisicamente” e conota trem er de medo. Talvez o desejo
de que as nações se alegrem seja subsequente ao trem or, porém é mais
provável que as emoções contrárias se com plem entem , não contradigam,
com o “exultem com trem or” (SI 2.11). A verdadeira adoração pressupõe
obediência aterrorizante (cf. 2Sm 6). O seu trono visualmente descreve o
governo transcendente do E u Sou. Q uanto aos querubins, D eus falou a
261

Israel de sobre os dois querubins que envolveram o trono-arca. N o Lugar


Santíssimo do tabernáculo, dois querubins de ouro, com asas estendidas
em direção um ao outro, formavam parte da tam pa da arca.21 N o templo
de Jerusalém, dois querubins enormes de madeira de oliveira, revestidos de
ouro, quase enchiam a sala interior com o um a tam pa para a arca (lRs 6.23-
28). O AT não descreve com clareza a aparência dos querubins, exceto que
eles tinham asas. A maioria dos eruditos hoje associa os querubins com
imagens antigas de esfinges aladas com cabeças humanas.22 Sendo esse
o caso, os querubins simbolizavam os poderes mais elevados da criatura
(“poder, rapidez, habilidade intelectual”23). Eles representavam a proteção
21 O s querubins eram tam bém costurados com habilidade n o tecido das cortinas que
circundavam o tabernáculo e n o véu que separava o Lugar Santíssim o d o restante
d o tabernáculo (Êx 25.18-22; 37.7-9). N as vigas internas de cedro que revestiam o
tem plo de Salom ão e nas portas que separavam as salas internas, querubins foram
esculpidos e revestidos co m ouro. O tem plo tam bém tinha querubins esculpidos
nas vigas, que form avam a base e parte d o to p o d os suportes para as pias (1 Rs 6.29;
cf. 2Cr 3.7; E z 41.18-20,25; lR s 7.29,36).
22 V igas de m arfim desenterradas em Samaria descrevem um a figura co m p o sta com
face hum ana, corp o de animal co m quatro patas e duas asas lapidadas e notáveis.
E scavações em B iblos revelaram um a representação esculpida de duas figuras
similares, que parecem ser querubins sustentan do o tron o de H irão (c. 1000
a.C ). Z enger (H ossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 5 1 — 100, p. 487; v. lâmi-
na 1) com enta: “N a iconografia d o antigo O riente M édio, elas sim bolizavam a
m ultiplicação de poderes da criatura (poder, rapidez, habilidade d o in telecto)”.
E le afirma que essas duas esfin ges tinham duas funções: “a função da sentinela ou
protetor (esfinge na árvore da vida) e afunção deportador (a esfinge co m o p ortador da
deidade)” (itálico dele). E ssas duas fun ções tam bém são encontradas n o AT. E m
relação à primeira, em G ên esis 3.24, o querubim flamejante proíbe o s pecadores
de se apropriarem da imortalidade; e em uma alusão m itológica a G ênesis, o rei de
Tiro é representado co m o um querubim guardião (E z 28.14). E m relação à última,
D avi m etaforicam ente d escreve D eu s cavalgando sobre as asas d os querubins, que
são com parados ao o v en to e a um a tem pestade de relâm pagos (SI 18.10[11]; cf.
80.1,2 [2,3]) e E zequiel con tem pla o trono de carruagem m óvel conduzida pelos
querubins. Z enger tam bém nota que na iconografia d os períodos d o final da Idade
de B ronze (1500-1200 a.C.) e n o princípio da Idade de Ferro (1200-1000 a.C.) na
Palestina/Israel e seu am biente fenício-canaanita, “esfinges tam bém são encontra-
das n o con texto das descrições de tronos [...] cada um a delas trazendo um trono
n o qual o rei ou rei deus está sentado. C o m o um sím b olo de com p etên cia régia
ilimitada [...] intencionada para transmitir soberania [...] o tron o-esfinge indica a
identificação sagrada daquele que se assenta n ele” .
23 H ossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 5 1 — 100, p. 487, plate 1.
262

da santidade divina, a santidade num inosa de seu ser e o templo, por um


lado, e a mobilidade rápida de Deus, por outro lado.
b) Ο Ευ Sou é a única majestade acima de todas as nações, 2
Zenger repara que o “versículo 2 revela a dialética do particularismo
[‘em Sião’, v. 2a] e o universalismo [‘todas as nações’, v. 2b]” .24 Grande se
refere à posição e influência de rei e presum e a com paração do v. 2b. D e
todos os m ontes da terra, D eus escolheu habitar no m onte Sião (v. 97.8),
tornando-o a capital de seu reino terreno, o lugar para sua casa régia e
para a arca da aliança com o seu trono (SI 99.2) e assim a sede do reino
universal do E u Sou. D e Sião, as leis de D eus são promulgadas e a paz
universal prevalece (Mq 4.1-4). Ele era a extensão da realidade celestial,
onde os cristãos vêm adorar a Trindade (Hb 12.22). E m referência a Deus,
exaltado descreve sua “única majestade soberana” (SI 46.10[11]; 99.2;
113.4; 138.6).25 O significado é reforçado po r “acima de todas as nações”
(v. SI 96.10; 98.9). “G rande” (cf. 95.3; 96.4) e “exaltado” (92.8; 93.4; cf.
Is 6.1) se referem a seu poder e influência e conotam a vitória sobre as
nações (SI 46-48).26
2. Que as nações louvem o Eu Sou; ele é santo, 3
Seja louvado se refere na liturgia ao louvor alegre e espontâneo do E u
S o u pelas obras redentoras em conjunto com ofertas pacíficas (v. p. 19).
O teu [...] nome (v. SI 100.4; cf. 111.9) é o meio pelo qual a realidade divina,
transcendente se torna presente e pode ser experimentada. O salmista
deseja que todos os povos tenham um a relação pessoal com o Deus de
Israel, cum pridor da aliança, ao adorar seu nome. Temível nome (cf. D t 7.21)
é o equivalente passivo da afirmação “tem am o E u Sou”.27 A afirmação
se refere ao aspecto não racional, em ocional de reagir à sua pessoa e à
revelação em temor, am or e confiança.28 D euteronôm io 10.17 associa

24 Ibid., p. 488.
25 H.-P. Stãhl, T L O T , 3:1225, s.v. m m .
26 No Salmo 76, o Deus de Jacó priva as nações de seus poderes, danifica seus
instrumentos de guerra (v. 3 [4]) e só ele deve ser temido (7 [8]); sua ira contra a
humanidade lhe acarreta louvor (10[11]).
27H A L O T (1:433, s.v. y r J Niphal, #2) classifica “nome” como equivalente a I a v é .
28 Bruce Waltke, “The Fear of the Lord”, em: J. I. Packer; I. Wilkinson, orgs., “A live
to God”: E ssays in H onour o f Jam es D . H ouston (Downers Grove: InterVarsity, 1992),
p. 17-33.
263

“grande e temível” com sua justiça. O poeta espera pelo reconhecim ento
universal do reino justo de Deus. A justaposição abrupta de ele ésanto com
a sentença precedente presume, com o no versículo 1, a conexão lógica
de efeito e causa. As nações devem louvar seu nom e porque o E u S ou
deve ser tem ido pelas obras transcendentais e sobrenaturais associadas
ao seu direito (v. SI 93.5). Com o em 96.9, as noções de santidade, tem or e
com portam ento ético são adequadas a seu nom e temível. Zenger declara:
“N ão existe a intenção apenas de enfatizar a transcendência de I avé como
o Totalm ente O utro, mas de enfatizar seu poder régio judicial, isto é, o
estabelecimento da lei e a restauração da lei” (v. o chamado Código de
Santidade em Levítico 17— 2 6).29
Estrofe B: Exaltem o Eu Sou, o rei poderoso e justo em Jacó, 4,5
E m bora os destinatários m udem do E u S o u (v. 4) para as nações (5),
a estrutura do salmo (v. “estrutura” , acima) sugere que os versículos 4,5
conectam a razão para louvar (4) com o m andam ento para adorá-lo (5;
similarmente, 8,9).
1. O Eu Sou é poderoso e justo, 4
Rei poderoso une o reino do E u S o u acima de todas as nações (v. 1-3)
com o reino em Jacó (4,5). A santidade do Rei se manifesta às nações em
seu poder temível; ele se manifesta em Israel em suas leis justas reveladas.
As leis se originam na essência de seu ser. Os seres humanos experimentam
os dois aspectos de sua santidade quando se prostram humildes diante do
estrado de seus pés. Rei é o epíteto metafórico do E u Sou, não um título
de um rei hum ano, nesse salmo que proclama o E u S o u com o Rei.30 Por
parataxe, o poeta liga o poderoso amoral (4a0c) de m odo estrito à justiça
moral (43β). Blaise Pascal escreveu: “Justiça sem poder é inútil; poder
sem justiça é tirânico [...] Ao ser incapaz de fazer o que é consistente-
m ente justo, fazemos o que é justo consistentem ente”.31Am igo (v. 97.10)
da justiça (v. 97.2) expressa o forte desejo de D eus de libertar o oprim ido
e punir o opressor (olho por olho e dente por dente) e assim, mediante a
com pensação precisa, de restaurar a ordem m oral conform ada com sua
natureza e leis. O enfático “tu” sinaliza o retorno para adorar o E u S ou

29 Hossfeld; Zenger, Commentary on Psalms 51— 100, p. 488.


30 H. C. Leupold, E xposition o f the Psalms (Columbus: Wartburg, 1959), p. 697.
31 Pensées 298. New York: Dutton, 1958, p. 85.
264

no tratam ento direto. Considerando que o rei fixou a terra inamovível no


meio do m ar revolto, assim tam bém estabeleceste (“firmar, fixou”), em meio
ao caos social depravado, a equidade (v. SI 96.10) quer em palavra (i.e., na
Torá), quer em obra (i.e., na história da salvação). A N E T combina palavra e
obra com efizeste. Talvez o poeta identifique o povo escolhido de Deus por
emJacó (“aquele que segura pelo calcanhar”, v. 98.3; D t 4.8) para denotar a
transformação radical de enganar os outros para fazer o que é direito, justo
e leal. Ao transform ar Jacó, D eus trouxe o céu à terra (Mt 6.10). O que é
direito ejusto (v. SI 97.2) são tam bém metonimias para palavras e obras. A
maioria das versões inglesas traduz ‫־‬attâ 'ãsitã por “tu executaste/fizeste”
e assim fixa a ênfase no desem penho (i.e., obras redentoras; v. 2Sm 8.15;
lC r 18.14; lR s 10.9; Is 16.5). Entretanto, a tradução pode tam bém pres-
supor a produção da lei e das decisões baseadas nela (v. SI 98.1).
2. Exaltem o Eu Sou. Ele é santo, 5
A realidade “ele é exaltado” (v. 2) estabelece o fundam ento para a
ordem exaltem 0 E u Sou. O Polel mm significa “elevar a um a altura consi-
derável, acima do nível da base”, uma m etáfora aqui para o status social e a
autoridade (cf. “D eem ao E u S o u [...] glória” no Salmo 96.7,8). O poeta e
os cantores do salmo 99 se consideram parte da com unidade que ordena
sua vida pela fé no nosso Deus (v. SI 98.3; 100.3). Por padrão, o antecedente
de “nosso” nos textos sagrados de Israel é Israel (v. p. 27). Complementa-se
a ordem para exaltar Deus em pensamento, palavra e obra com ‫־‬uma ordem
a respeito de postura: prostrem-se (v. SI 95.6) diante do estrado de seus pés. O
estrado régio, parte do trono (2Cr 9.18), simboliza poder e autoridade.32
Aqui ele serve com o sinédoque do santuário e /o u Sião (cf. v. 9; SI 132.7;
Lm 2.1). Isaías (66.1) usa “m eu estrado” com o m etáfora da terra inteira,
mas aqui a com posição com “o seu trono está sobre os querubins” (v. 1)
contesta esse sentido. E le é santo (cf. v. 3).

32 Quando o conquistador toma seus inimigos estrados, ele descreve seu poder e
autoridade absolutos sobre eles (cf. Js 10.24; lRs 5.3). No estrado de Tutancâ-
mon há representações de cativos estrangeiros, prostrados, com as mãos atrás
das costas, simbolicamente descrevendo os inimigos do faraó como presos e sob
seus pés. A figura conota o desprezo e julgamento do conquistador e a vergonha
e humilhação das vítimas.
265

Estança II: O louvor do Ευ Sou por responder orações dos


cumpridores da aliança, 6-9
A segunda estança dem onstra, a partir da história sagrada, a justiça
divina. Ele respondeu às orações dos cum pridores da aliança — como
Moisés e Samuel — que foram perdoados e vingados pelas injustiças co-
metidas contra si. (Por acaso, por meio das orações deles, D eus prom ove
seu reino na terra.) Ao poder e à justiça do Rei, a estança acrescenta Deus
perdoador e vingador. A declaração estruturada com o quiasmo “e ele lhes
respondia” (v. 6b,8a) com põe o parêntese restritivo porque as orações
deles eram respondidas (v. 7). Eles obedeceram à lei divina revelada. Na
primeira estança, as nações confessam seu nom e; na segunda estança,
Israel ora nesse nome.
Estrofe A: tie respondeu as orações de seu povo fiel, 6,7

1. Ele respondeu as orações daqueles que lhe clamaram, 6

a) Moisés, Arão e Samuel entre aqueles que oraram, 6a


Moisés eA rão foram os primeiros sacerdotes, portanto, os dois repre-
sentam a integralidade do sacerdócio e da função com o m icrocosm o de
Israel, o reino de sacerdotes. E m bora Moisés nunca tenha sido consagra-
do com o um sacerdote, ele foi, de acordo com o term o de Delitzsch, o
“protossacerdote”.33Está em vista aqui a função dos sacerdotes para mediar
e interceder entre Deus e o povo (v. a derrota de Amaleque, Ex 17.1 lss.;
o pecado do bezerro de ouro, Êx 32.11-14,30-32; cf. D t 9.18,25-29; a
cura de Miriã, N m 12.13; Arão encerrando a praga, N m 16.47[17.12]s.).
Estavam entre os seus sacerdotes estende o poder intercessor de Moisés e Arão
para seus sucessores.34Jeremias, com o o salmo 99, cita Samuel com Moisés

33 Psalms, p. 633. Moisés aspergiu o sangue no altar, que confirmava a aliança no


Sinai (Êx 24); ele consagrou Arão, estabelecendo o modelo para a consagração
do sacerdócio (Lv 8); e ele realizou os cultos do santuário antes da consagração
de Arão (Êx 40.22-27).
34 Seria difícil maximizar a função do sacerdote na religião de Israel. O oficial supremo
do templo, chamado hakkõhên (“o sacerdote”; i.e., o sumo sacerdote) torna real
a presença de Deus em Israel. Ele e outros sacerdotes protegem a santidade da
casa de Deus e realizam as atividades próprias a ela: sacrifícios de ofertas, cânti-
cos e a condução de outros atos de adoração (Lv 1— 27; Nm 1.53; 3.28,32). Ele
também aplica os oráculos (ISm 14.36ss.; 23.2; 30.7ss.; cf.Jz 18.5) e com todos os
266

com o suplicante eficaz (Jr 15.1).35 Samuel “clamou [w ayyiz'aq] ao E u S o u ,


e D eus lhe respondeu” (ISm 7.9; cf. 12.16). Em bora z q específicamente
signifique “clamar p o r ajuda”, aqui q r é seu equivalente semántico, com o
indica o paralelo “ele lhes respondia” (v. 6bP; v. D t 15.9; 24.15; Jz 14.18;
SI 28.1; 30.8).36 Para Samuel, deixar de orar p o r Israel teña sido pecado
contra o E u S o u (ISm 12.23). Mas esses três intercessores heroicos estão
apenas entre quem invocava seu nom e (cf. H b 11.30-32), de Moisés a Sa-
muel. E m resposta a Josué, o E u S o u fez o sol parar (Js 10.12-14). Sansão
orou em prim eiro lugar pela vida (Jz 15.18), então pela m orte (Jz 16.28)
e o E u S o u respondeu às duas orações.
b) Eie lhes respondia, 6b
E les clamavam pelo E u Sou, e ele lhes respondia. Esse grupo amplo não
inclui os levitas profanos com o Corá e seus rebeldes, cujos incensários o
E u S o u não respeitou; ao contrário, ele fez a terra engoli-los vivos para o
Seol (Nm 16). N em tam pouco inclui os israelitas “odiosos”, com o Deus
os cham ou, que em M eribá endureceram o coração por incredulidade,
murm uração contra o E u S o u e Moisés, não se arrependeram da incre-
dulidade, não oraram a ou louvaram o E u S o u e, portanto, foram inaptos
para a Terra Prometida, m orreram no deserto (SI 95.8-10; IC o 10.5-12;
H b 3.7-12; 4.2-5).

levitas se envolve no ensino da Torá (Dt 31.9ss.; 2Cr 17.8ss.; Ez 44.23; Ag 2.1 lss.;
Ml 2.7). Estritamente relacionado ao ensino é sua função na jurisprudência. Nas
ações judiciais, o sacerdote se juntava ao juiz para chegar a uma decisão (Dt 17.8-
13; 21.5). O sumo sacerdote, trazendo os nomes das doze tribos em seu peitoral,
representa a nação inteira diante de Deus.
35 Samuel é outro herói fundamental na história da salvação. Após a geração funda-
dora de Israel, a nação se tornou cada vez mais tenebrosa em sentido espiritual e
político na era das trevas dos invasores (Jz 2). No tempo de Sansão, uma geração
antes de Samuel, a tribo régia de Judá repreendeu Sansão por não reconhecer que
os filisteus os dominava (Jz 15.11).
36 Q ãra denota amplamente “atrair a atenção de alguém com o som da voz para
estabelecer contato” (v. SI 91.15) e a afirmação “clamar pelo E u S o u ‫ ״‬, como
Labuschagne ÇTLO T, 3:1163, s.v. q r ) nota, “louvar, agradecer, lamentar, clamar,
clamarp o r ajuda (itálico meu)tem conotações variadas”.
267

2. Deus falou aos intercessores e eles obedeceram a sua lei, 7

a) Ele falou àqueles cujas orações ele respondeu, 7a


Falava-lhes (i.e., aos intercessores, v. 6όβ,8; cf. Ex 33.9,10). D a coluna
(ou “pilar”) de nuvem que descia até à tenda do encontro, o E u S o u dra-
mancamente descrevia a origem celestial de suas palavras ao povo escolhi-
do. Paradoxalmente, a nuvem ocultava Deus dos olhares presunçosos da
humanidade e o separava deles, enquanto ao mesm o tempo, garantia-lhes
sua presença e sua com unhão com eles.37
b) Eles obedeceram a sua lei, 7b
Delitzsch diz: “O v. 7bc é na prática, pelo menos, uma oração relativa,
ao declarar o pré-requisito da oração que pode ser respondida”.38Eles obede-
ciam significa “prestar atenção cuidadosa a” .39A o s seus mandamentos (v. 93.5).
O sentido concreto de decretos é um a linha fronteiriça, um limite prescrito.
Uma noção relacionada, mas não explícita, é “ordem estabelecida”. O
singular em 99.7 pode se referir à lei prescrita com preendida em sentido
holístico. Q ue ele lhes dava (nãtan), com “estabelecer” (sim) e “fazer” Çsti), é
usado de form a característica com “decreto” e indica o estabelecimento
da autoridade. Portanto, o decreto divino não deve ser transgredido.40
Estrofe B: Exaltem o Eu Sou, que respondeu as orações dos fiéis, 8,9
E m bora o versículo 8 seja dirigido ao E u S o u &o versículo 9 ao povo,
as palavras principais o ‘,‘E u Sou, o nosso D eus” no com eço de 8a e 9a e
no fim de 9b unem os versículos com o um dístico, ligando a razão para
louvar (v. 8) com a ordem para louvar (9a).
1. Ele respondeu as orações dos fiéis: os perdoou e os castigou, 8
Tu lhes respondeste (cf. v. 6), E u Sou, nosso Deus (cf. v. 5). Tu eras um Deus
“tem um a abundância ilimitada de poder e um a presença que supera as
barreiras do tem po”, com enta Weiser.41 Perdoador significa literalmente

37 Do mesmo modo, Artur Weiser, The Psalms (Philadelphia: Westminster, 1962),


ρ. 643.
38 Psalms, ρ. 633.
39 Keith SchoviUe, N ID O TTE, 3:182-84, s.v. smr.
40 G . Liedke, TLOT, 2:472, s.v. hqq.
41 The Psalms, p. 597.
268

“remover” . Às vezes, o objeto, com o o pecado, culpa ou transgressão,


é definido (cf. G n 50.17; Êx 32.32; 34.7), mas nem sempre (Gn 18.24;
Os 1.6; Is 2.9; SI 99.8).42 O Deus perdoador do povo da aliança castiga
(rióqem) (v. nota 12).43 G. Sauer afirma que o sentido original do nqm tal-
vez tenha sido legal: “Retifica o castigo e assim cancela a injustiça” . Ele
tam bém nota: “A ação emocionalmente desagradável sempre pressupõe
o sentido evidente de nqm e determ ina em grande medida com o pode ser
considerado com especial evidência em Provérbios 6.34 (a vingança cruel
do marido enciumado; mas [v.] Levítico 19.1 δ)”.44 Porém, “castigo” é mais
que “justiça”; ele significa que “um governante assegura sua soberania e
conserva sua com unidade íntegra ao libertar seus súditos oprim idos e
eliminar os exterminadores culpados, que não respeitam seu governo”.45
G. E. M endenhall afirma: “A raiz N Q M designa o que denom inam os
‘castigo defensivo’ ”. Ele acrescenta: “E m mais de dois terços do total de
ocorrências [cinquenta e uma] a raiz designa o exercício do império divino
direto ou indireto”.46
2. Exaltem o Eu Sou porque ele é santo, 9
Exaltem 0 E u Sou nosso Deus;prostrem-se repete o versículo 5. A mudança
de “diante do estrado dos seus pés” para voltadospara 0 seu santo monte (i.e.,
o m onte Sião; v. Salmo 2.6; 99.2) sugere que a última declaração é uma
sinédoque do gênero para as espécies; o todo para um a das partes.47 A
presença do E u Sou, simbolizada pela nuvem gloriosa, tornou Sião “santo”
(cf. v. 3). O poeta, na conclusão do hino, torna o triságio magnifícente:
porque 0 E u Sou, 0 nosso Deus, é santo (v. 9a0c).

Parte III: A voz da ig reja em resposta


Este é o terceiro salmo que começa com a mesma declaração impres-
sionante: “o E u Sou é Rei” (SI 93.1; 97.1; 99.1). N ós o consideramos um

42 BDB, p. 671, s.v. nãsa, §3c.


43John Goldingay (Psalms, BCOTWP [Grand Rapids: Baker Academic, 2008], vol.
3, p. 131) sugere a mudança sutil do nkh negativo (“não ser inocentado”) em
Êxodo 34.7 para nqm (“castigar”).
44 TLOT, 2:768, s.v. nqm.
45 Bruce K . Waltke, Micah: A Commentary. Grand Rapids: Eerdmans, 2007, p. 329.
46 The Tenth Generation: The Origins of the Biblical Tradition. Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1973, p. 82s.
47 Ibid.
269

salmo de Davi e não é contem porâneo das invasões assírias posteriores,


com o muitos eruditos afirmam. N esse aspecto, estamos de acordo com
a interpretação de Lutero e não com a de Calvino; um a divisão ainda
existente entre os eruditos.
I. Agostinho de Hipona (354-430)
A gostinho pregou sobre o salmo (= LXX, SI 98) em Cartago, pos-
sivelmente no final de 411. E sta é uma de suas homílias maduras, como
evidencia a contem plação divina mais paradoxal. Ao refletir sobre a en-
carnação, A gostinho escreveu:
“O juiz de toda a terra, revelou-se como bebê. Considerando que ele é
tão augusto como um juiz, muitos arautos o precederam, mesmo antes
da primeira vinda humilde. Quando ele nascería ainda da virgem Maria,
destinado ainda a ser um juiz bebê em fase de aleitamento materno,
muitos arautos o precederam. Muitos arautos vieram antes que a Palavra
de Deus se cumprisse (a Palavra através de quem todas as coisas foram
criadas): ele seria um arauto infante (lat. infantem ]. Eles falaram de modo
a ocultar o sentido sob certos sinais figurados.48

A gostinho não convoca a congregação para cantar o salmo, mas para


ouvi-lo, para buscar a presença de Cristo nele.49 Eles devem fazê-lo “em
Sião”, que significa “local de vigilância” na cidade de Deus, a igreja santa
de Deus. A gostinho relata um “local de vigilância” com os atos de visão e
contemplação. “Toda cidade é integrada por alguma lei e a lei dessa cidade é
am or [lat. caritaj]”. Mas o próprio Deus é esse “am or” (ljo 4.8). Tornam os
Sião nosso lar, onde D eus jamais estará longe de nós. “Portanto, tu, Deus
serás o Altíssimo acima de todas as nações; acima daquelas que ainda estão
furiosas e acima daquelas que eram furiosas no princípio”.50 Agostinho
não faz, com o o texto, a distinção entre Sião e o templo, o dom ínio do
E u S ou acima de todas as nações e acima de seu próprio povo.
Mas A gostinho explora o tem or que todos deveriamos ter para con-
fessar o “G rande nom e de D eus [...] porque ele é terrível e santo” .51Todas
as religiões têm o senso profundo “do om inoso”, mas o verdadeiro tem or

48 E xpositions o f Psalm 9 8 1, trad. Maria Boulding (Hyde Park: New City, 2002), vol. 4,
p. 466.
49 Ibid.
50 Ibid., 4 (Boulding, p. 470).
51 Ibid., 6 (Boulding, p. 473).
270

bíblico tem múltiplas expressões. A gostinho elabora sobre as consequên-


cias éticas da obediência no versículo 3. Isso exige evitar a presunção, o
orgulho. Isso exige proceder com justiça e equidade:
“Mas quem procede justamente: Quem pratica a justiça? Um ser hu-
mano pecador, uma pessoa injusta, um homem pervertido ou mulher
pervertida, alguém que se afastou da luz da verdade? Vamos nos voltar
para Deus, de modo que ele possa formar essa justiça em nós, porque
por nós mesmos não podemos formá-la, mas apenas deformá-la [...] O
salmo se propõe a persuadir homens e mulheres a se dedicarem a Deus,
para que ele possa formá-los na justiça [...] admitindo que não temos
capacidade para a justiça em [nós mesmos].”52

Contudo, Agostinho falha em não com preender a declaração fundamental:


“Fizeste em Jacó o que é direito e justo” (v. 4), isto é, só no povo de Deus;
prim eiram ente em Israel e agora na igreja, a justiça é possível.
A gostinho luta com sentido de “prostrem -se diante do estrado dos
seus pés” no versículo 5. Citando Isaías 66.1: “O céu é o m eu trono, e a
terra, o estrado dos meus pés”, ele pergunta retoricam ente se devemos
adorar a terra. Ele volta seu pensam ento para Cristo, que, com o “terra”,
veio do ventre de Maria e que nos ordenou a com er m inha carne e beber
o seu sangue” (Jo 6.56). Contudo, devemos com preender isso de uma
form a espiritual (Jo 6.54,64).53
A gostinho reflete sobre “as pessoas santas” — Moisés e Arão com o
sacerdotes e Samuel com o um profeta (v. 6) — a quem D eus falou “da
coluna de nuvem ” (v. 7). “O que essa coluna de nuvem significa? Ela significa
que D eus costumava falar com eles em figuras [i.e., metáforas] [...] Ele que
na antiguidade costumava falar em uma coluna de nuvem, fala a nós agora
do estrado dos seus pés, porque ele é santo”.54Mas com o um D eus santo,
ele castigou as más obras de seu povo (v. 8b). A gostinho então elabora
que as más obras de Moisés, Arão e Samuel representam todas as más
obras do povo de Israel. Eles foram punidos, mas Deus foi “propício” a
eles, sugerindo castigo e perdão. Esse castigo propício os prepara e a nós
para a vida porvir.55

52 Ibid.
53 Ibid., 8 (Boulding, p. 474-5).
54 Ibid., 9 (Boulding, p. 477).
55 Ibid., 10 (Boulding, p. 477-81).
271

N o versículo conclusivo, Agostinho percebe com acerto que o adora-


dor, tendo adorado diante de “seu estrado”, agora o faz voltado “para o
seu santo m onte” . Ele elabora sobre a m etáfora de Daniel 2.35: “a pedra
[...] tornou-se um a m ontanha e encheu a terra toda”. A pedra é Cristo
(SI 118.22; A t 4.11).56 Talvez A gostinho celebre a derrubada de outra
“pedra”, a deusa Caelestis, que previamente fora adorada em Cartago.
Mas agora, A gostinho infere que “a adoração do Senhor em seu m onte
santo” destruiu toda idolatria pagã do im pério romano.
II. Boaventura (1217-1274)
Boaventura, o antigo franciscano conhecido com o “o professor devo-
tado”, então, mais tarde, com o “o doutor seráfico”, foi o m elhor expoente
de A gostinho na Idade Média. Lamentavelmente, não tem os nenhum
com entário de Boaventura sobre nenhum dos salmos, provavelmente
porque ele com preende os salmos com o textos para meditação e contem-
plação, não para serem comentados. E m suas várias obras, Boaventura
cita os Salmos 91.5,6; 92.5; 94.2 e 96.3, mas não o salmo 99.57 Ele foca
na “jornada da alma para D eus” (como um a de suas obras é intitulada).
Se esse salmo deve ser “ouvido” ao invés de “cantado”, então Boa-
ventura estava correto em enfatizar o uso do salmo com o contemplação.
Francisco de Assis, antes dele, teve um a visão dos serafins de seis asas.
Mais tarde, Boaventura dedicou m uito de sua vida a m editar sobre os
serafins de seis asas com o um a imagem de contemplação, com as seis
asas representando “os seis níveis de iluminação” .58 E m outras palavras,
os serafins são o arquétipo da vida contemplativa cristã. Sem comentário,
Boaventura exemplifica com o devemos contem plar o salmo 99.
III. William Romaine (1714-1795)
E significativo que R oberto Belarmino (1542-1621), o comentarista
sacramental, esteja em harm onia contemplativa com Boaventura quando
exclama: “N ada tende tanto a despertar essa devoção apropriada para a
casa de Deus que a consideração atenta da magnificência de Deus e de seus

56 Ibid., 11 (Boulding, p. 481-2).


57Veja Ewert Cousins, trad., Bonaventure, The Classics o f Western Spirituality (New
York: Paulist, 1978).
58Veja Bonaventure, The Soul’sJourney into Godprologue, 5.2,7.3 (Cousins, p. 54-5,61,
112).
272

dons” .59A voz de Belarmino é consistente com a voz posterior de William


Romaine, que defendeu que o ativismo evangélico estava perdendo a arte
da contem plação na ascensão do m ovim ento rom ântico e do sionismo
cristão. O evangelicalismo estava obscurecendo a vida contem plativa
sacramental com uma nova ênfase na hinódia.
D ado que ele era um erudito do hebraico, a nova hinódia do moví-
m ento wesleyano contrariou intensam ente Romaine. N ascido huguenote
francês, ele se tornou sacerdote anglicano no centro de Londres depois de
uma breve carreira com o astrônom o. Ele foi tam bém um dos eruditos do
hebraico de seu tem po que com preendeu os salmos com o poucos. N ão
causa surpresa ter sido ele um pregador erudito proeminente. U sando o
texto de 1Crônicas 16.8,9 (“Cantem para ele; louvem -no”) ele produziu
um ataque contundente contra o novo m ovim ento da hinódia. Ele notou
que os salmos foram proem inentes no livro de oração anglicano, assim,
por que não na adoração? Porquanto nossa dignidade com o criaturas hu-
manas consiste apenas em glorificar a D eus.60 Ele escreveu um manifesto
contra a nova tendência cultural em relação à hinódia em 1775 intitulado
A n Essay on Psalmody [Um ensaio sobre a salmodia]. Seguindo Agostinho,
ele entende que “o testem unho de Jesus é o espírito de profecia” e os
Salmos, portanto, falam com a voz de Cristo.61
N o segundo capítulo de Romaine, ele nota as três palavras hebraicas
usadas nos salmos. “H inos” (tehilini) significam raios de luz; p o r isso a
resposta é louvor. Assim são os salmos, designados para manifestar a glória
de D eus.62 A palavra hebraica %emeré “salmo” com o substantivo, mas ela
se refere ao podar da árvore na form a verbal, que Romaine relaciona a
Zacarias 6.12,13 e Cristo o D eus-hom em ; “o ram o” que reconstruirá o
templo.63 A palavra shir se refere a um cântico, significando a norm a e o
governo do Príncipe da Paz.64 Portanto: “esses três nom es incluídos no
livro com pleto [de Salmos] — os hinos contêm os louvores do Em anuel
[...] — os salmos tratam de sua assimilação de nossa natureza [...] — os

59A Commentary on the B ooks o f Psalms, trad. John O ’Sullivan. Dublin: Aeterna, 2015,
p. 468.
60A n E ssay on Psalmody (London: s.n., 1775), p. iii-iv.
61 Ibid., p. 7-8.
62 Ibid., p. 22-3.
63 Ibid., p. 24-5.
64 Ibid., p. 27.
273

cânticos celebram as glórias de seu reino, tanto na terra com o no céu, no


tem po e na eternidade.65
Para Romaine, todas as riquezas da adoração se perdem na nova “hi-
nódia”! N o terceiro e quarto capítulos, ele dem onstra com o os salmos das
Escrituras que ordenam cantar são ignorados.66 Então, em seu quinto capí-
tulo, ele m ostra como “as norm as estabelecidas na Escritura para cantá-los
corretamente” também se perderam.67Com sarcasmo, Romaine argumenta
o motivo pelo qual a nova hinódia é egoísta e desagrada a Deus: “A música
deles é odiosa para ele. [...] Eles cantam para agradar a si mesm os e agradar
a Deus não está em seus pensam entos” .68 E m seu capítulo final, Romaine
procura uma solução para a igreja contem porânea, habilmente evitando
o nom e de John Wesley, que, afinal, pregava nos campos, não nas igrejas
anglicanas. Ele se ressente com vigor de Isaac Watts por aparentem ente
haver com eçado o retrocesso da adoração bíblica, mas ele não nos diz de
form a tão direta.
Encerram os com a interpretação de Romaine do salmo 99:
Este salmo descreve o reino de Cristo e o exalta por conceder sua gra-
ciosa presença à sua igreja, sua habitação, habitando visivelmente nos
querubins para protegê-la com seu amor e opor-se aos inimigos por sua
magnificência e santidade. Portanto, seu povo é convocado a adorar dian-
te do estrado de seus pés e a exaltá-lo como seus antepassados fizeram,
cujas petições ele graciosamente ouviu e respondeu.

Os súditos desse rei absolutamente bendito podem se alegrar nele em


todos os momentos. Cada sentença do salmo lhes proporciona alegria e
louvor [...] Que o Espírito do Pai e do Filho nos ajude a receber todo o
bem do cantar esse hino, que ele designou para ser o meio de revigorar
o povo de Deus em cada era.69

65 Ibid., p. 30-1.
66 Ibid., p. 30-60.
67 Ibid., p. 60.
68 Ibid., p. 85.
69 Ibid., p. 170.
274

Romaine com põe sua própria versão métrica do salmo 99:


I.
O Senhor reina, embora os povos fiquem furiosos, ele se assenta acima
dos querubins. O mundo inteiro ruge.

II.
O Senhor que em sua igreja habita é exaltado e grandioso, ele excele
acima de todos e ele está no alto.

III.
O poder principesco de nosso grande rei ama o juízo e o direito; tu
justamente governas tudo com justiça e poder.

IV.
Louvem o nosso Deus, e honra a ele demonstrem. E aos pés dele,
adorem-no, ele que é santo e verdadeiro.70

Parte IV. Conclusão

I. Alterando contextos canônicos


Veja p. 27-31.
II. Mensagem
O salmo 99 convoca Israel a exaltar o E u Sou, o rei deles, porque ele
é santo, responde à oração e reina universalmente. Vamos refletir sobre
as quatro partes essenciais da síntese de sua mensagem.
Exaltem nosso Deus e Rei
As ordens com plementares no refrão repetido: “exaltem o E u S o u
nosso D eus‫ ״‬e “prostrem -se” (v. 5,9) declaram o propósito do salmo:
honrar o nosso D eus e Rei, Jesus Cristo. À luz do fato de que Cristo reina
acima de todas as nações e assim acima de seus deuses (cf. v. 2), é correto e
adequado exaltá-lo em pensamento, palavra e obra e prostrar-se com o ges-
to simbólico de humildade em sua presença. E m bora essas ordens façam
parte da adoração no tem plo em seus contextos sociais, elas devem ser as
práticas cotidianas do cristão. Pelo fato de Jesus Cristo ter se humilhado
na cruz, “D eus o exaltou à mais alta posição e lhe deu o nom e que está

70 Ibid., p. 170-1.
275

acima de todo nom e, para que ao nom e de Jesus se dobre todo joelho, no
céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é
o Senhor, para a gloria de Deus Pai” (Fp 2.9-11).
Nosso Deus é santo
A proclamação de abertura do salmo “o E u S o u reina” (v. 1) é desta-
cada pela repetição tríplice “ele é santo” (v. 3,5,9). “Esse salmo”, afirma
A. Maclaren: “A preende o principio eterno central dessa norm a, a saber, a
santidade. O m esm o pensam ento foi referido em outros salmos [e.g., 97.12;
98.1], mas aqui ele é o único tem a do louvor”.71 O triságio, declara Weiser:
“Afina o hino inteiro a um a nota principal uniform e, para a qual os vários
pensam entos retornam continuam ente” .72 A santidade se refere ao poder
num inoso de D eus (v. 1-3) e à sua perfeição m oral (4,5). O s discípulos
vivenciaram o terror santo quando Jesus acalmou a furiosa tem pestade
(Mc 4.39-41), o equivalente do abalo da terra na batalha (v. 1). A resposta
de Pedro, quando viu Cristo orquestrar o milagre da pesca, captura a união
do poder aterrorizante de Cristo e sua pureza: “Prostrou-se aos pés de
Jesus e disse: Afasta-te de mim, Senhor, porque sou um hom em pecador’ ”
(Lc 5.4-11). Paradoxalmente, os gentios e a criação reagem ao seu reino
santo com alegria (97.1) e com trem or (99.1). Am bos são aspectos da
adoração (SI 2.11). Cristo reina de acordo com as estipulações da aliança
(v. 7; cf. M t 5— 6), não de acordo com a “justiça social” injusta. Ele res-
ponde às orações de seu povo; ele não cria leis opressivas, que renegam
a liberdade humana.
Deus responde à oração
Deus evidencia sua justiça ao responder às orações de quem lhe cia-
mam com fé e que pela fé obedece à sua lei. “H á um a relação de desejo e
doação entre o lavé santo e nós”, afirma Maclaren.73 Os heróis veneráveis
de oração, Moisés e Samuel, clamaram o nom e de Deus, I avé (“E u S o c f ’,
v. p. 15-8). Hoje, a igreja clama o nom e do Senhor Jesus Cristo. Eles ora-
ram por perdão e para serem vingados. A igreja ora hoje por perdão para
ela e para outros, sabendo que ela será vingada no juízo final (Ap 6.9-11).

71 The Psalms, Expositor’s Bible. New York: George H. Doran, n.d., vol. 3, p. 72.
72 The Psalms, p. 641.
73 The Psalms, 75.
276

O perdão é necessário para perm anecer na presença de Deus. Sem


perdão, as pessoas se desesperariam; e sem esperança, elas não perseve-
rariam. “O perdão”, diz Maclaren: “é algo m uito m elhor que escapar das
penalidades”.74 Isto é assim porque o perdão incendeia a relação espiritual
calorosa, não só uma fria relação judicial satisfeita entre o injustiçado e o
perdoado. O salmo 99 fala de nosso Deus “suspendendo o pecado” acima
de nós; Cristo os suportou na cruz quando ele fez expiação por nós.75
O reino de Nosso Deus é universal e particular
Por fim, o salmo presum e o paradoxo do universalismo e do particu-
larismo. Sião e Israel são “os funis dos benefícios de D eus para o m undo
todo”, afirma K onrad Schaefer.76 Deus escolheu Israel não para excluir as
nações, mas para incluí-las pela identificação delas com o D eus de Israel
e com seu povo (cf. SI 100.3). O E u S o u governa todas as nações desde
o m onte Sião, não desde o Gerizim ou Meca (v. 1,2; cf. Is 48.1-3). Ele
governa todas as nações por meio de “Jacó”, não através de Ismael (v. 4).
Sião e Jacó são dois tipos da verdadeira realidade. Cristo se assenta à direita
de Deus no m onte Sião celestial e envia seu cetro poderoso da palavra
e do Espírito (Hb 12.22-24). “Jacó” encontra a verdadeira identidade e
cum pre sua missão no Senhor Jesus Cristo; e Jesus Cristo é consum ado
em sua igreja, os mem bros de seu corpo na terra. Ela é um sacerdócio
régio (lP e 2.9), a verdadeira sucessora de Moisés e Arão, cujas orações o
Senhor dela responde (Jo 14.13s.).

74 Ibid., p. 76.
75Weiser, The Psalms, p. 644.
76 Psalms, Berit Olam. Collegeville: Liturgical, 2001, p. 245.
Salmo 100: Jubilate Deo

Parte I: A voz ‫ סס‬salm ista : T radução


Um salmo para prestar ação de graças.1
1 Aclamem o E u S o u todos os habitantes da terra!
2 Prestem culto ao E u S o u com alegria; entrem na sua presença com
cânticos alegres.
3 Reconheçam que ele é o nosso Deus. Ele nos fez e somos dele: somos
o seu povo,2 e rebanho do seu pastoreio.3
4 Entrem p o r suas portas com ações de graças, e em seus átrios, com
louvor; deem-lhe graças e bendigam o seu nome.
5 Pois4 o E u S o u é bom e o seu am or leal é eterno; a sua fidelidade per-
manece por todas as gerações.

Parte II. Com entário

I. Introdução

Forma, estrutura e retórica


O salmista concentra nosso louvor no E u S o u ao mencioná-lo em
15 de quase 40 palavras.5 Para refinar o tema, ele entrelaça a estrutura

1 Ou “para o sacrifício de ação de graças”.


2 O Ketiv registra (e a LXX reflete) w‘lõ ' ’ãnahnü cammô (= “e não nós mesmos;
[somos] seu povo”), mas o Q ere (assim também Aquila, Tg., Jerónimo) registra
vV7ô (= “e somos seu, seu povo”). Muito provavelmente, Γ é enfático; v. C. F.
Whitley, “Some Remarks on lu and /0 ,” Z A W 8 7 (1975): 202-4.
3 Ou “rebanho que ele pastoreia”.
4 Ou “certamente”.
5 O E u S o u (3x), substantivo (lx), pronome (1 lx).
278

alternativa e a quiástica. As duas estanças do salmo convocam de m odo


alternativo ao louvor e expõem a causa para louvar. Portanto:

Sobrescrito
Estança I, 1-3
Estrofe A: Convocação para louvar (decisão), 1,2
Estrofe B: Causa p ara/conteúdo do louvor (razão), 3
Estança II, 4,5
Estrofe A: Convocação para louvar (decisão), 4
Estrofe B: Causa para/conteúdo do louvor (razão), 5

Além do padrão alternado, o poeta agrupa seus 7 (o núm ero da perfeição


divina) imperativos em um a estrutura quiástica. D este modo:

A. Aclamem o E u S o u
B. Prestem culto ao E u S ou
C. Entrem (bõ'u) na sua presença
X. Reconheçam
C’. Entrem (bõ'ü) em seus átrios
B’. D eem -lhe graças
A’. Bendigam o seu nom e

O “seu nom e” é referido em A.A; possivelmente, a aclamação alegre


bendigam o seu nome. “Prestem culto ao E u S o u é clarificado pelas ordens
litúrgicas: “entrem por suas portas/seus átrios” e “deem-lhe graças” em
B /B ’. Isso é reforçado por “entrem ” (bõ'ü), repetido com o quiasmo —
a última e a primeira palavra da convocação para louvar em C /C ’. E m
um a estrutura quiástica — com o jogar um a pedra no lago com reflexos
ondulados — o poeta foca a atenção no fundam ento (X): “Reconheçam
que ele é o nosso Deus. Ele nos fez [Israel]; [v. p. 27]” . Ambas as noções
são introduzidas com um enfático “ele” (hu ). Com o na poesia hebraica,
o verseto b expande ou intensifica o verseto a (v. p. 38-40). Assim, Sal-
mos 100.3a é expandido em 3b e 3b é intensificado por corresponder aos
versetos CXe β:
279

(3a) Reconheçam que ele é o nosso Deus!


(3ba) Ele nos fez;
(3ba) somos o seu povo
(Ε>ββ) e rebanho de seu pastoreio.

Beat Weber nota que o salmo começa com o espaço universal (“todos os
habitantes da terra”, v. 1) e term ina com o tem po eterno (“p o r todas as
gerações”, v. 5), form ando um tipo de inclusão.6
II. Exegese

Sobrescrito
O autor anônim o se inclui no “nós” (i.e., Israel) do versículo 3. Este
salmo tem similaridades notáveis com o salmo 95. O s dois salmos de
louvor começam com a convocação para “aclamar” de alegria, usando os
dois term os rua e rima. N as duas liturgias, os adoradores são convocados
a que “venham /entrem ” (95.6a; 100.2a,4a) e am bos dizem que o E u S ou
nos fez (95.6a-7; 100.3).7 U m salmo é um cántico sagrado designado para
música (v. 92.1; p. 40). N este salmo, as nações (“todos os habitantes da
terra”, v. 1) confessam que o E u S o u é D eus e que ele pastoreia Israel.
Provavelmente, o salmo serve com o um libreto para um sacrifício de ação
de graças (v. p. 19). Assim, os gentios, reconhecidos com o puros, tom am
parte ao com er o sacrifício de ação de graças com Israel enquanto anun-
ciam as obras maravilhosas de Deus (cf. SI 107.21,22). O sacrifício era
m uito estimado no judaísmo posterior: “N o futuro, todos os sacrifícios
cessarão, mas o sacrifício de ação de graças não cessará”.8 O sacrifício
de ações de graças continua na igreja, com posta p o r alguns judeus e pela
maioria de gentios: “Por meio de Jesus, portanto, ofereçamos continua-
m ente a Deus um sacrifício de louvor, que é fruto de lábios que confessam
o seu nom e” (Hb 13.15).

6 “Psalm 100”, E N 91 (1998): 90-7, esp. 93.


7 Para um argumento detalhado que os Salmos 95 e 100 formam uma inclusão no
grupo “o E u S o u é Rei” nos Salmos 96— 99, v. David M. Howard, Jr., The Structure
o f Psalms 93— 100, BJSUCSD 5 (Winona Lake: Eisenbrauns, 1997), p. 138-41,
175s.
8 Citado em Jack R. Lundbom ,Jerem iah 21 — 3 6 , AB. New York: Doubleday, 2004,
p. 536.
280

Estança 1,1-3

Estrofe A: Convocação para louvar (decisão), 1,2


1 A sonoridade e forte emoção de aclamem (hã nü —Hifil rúa) pode ser
inferido de outros usos de rü a\ Por exemplo, ordens de batalha se elevam
ao ápice dramático, com o m andam ento que o exército de ataque expres-
se um a aclamação antecipada de vitória (ru a \ cf. Js 6.10,16; ISm 17.52;
Am 1.14; Is 42.13; Jr 50.15). Aclamações tam bém acom panham sopros
em um a trom beta para ressoar um alarme, fazendo as pessoas trem erem
diante da desgraça iminente. Aqui o verbo ocorre com o um a inclusão com
o substantivo “aclamação alegre” (r*nãna). A adoração não deve ser com o
um funeral. O plural se refere a todos os indivíduos da terra (v. abaixo).
O E u S o u (v. p. 15-8). Analisando a convocação similar para louvar em
Salmos 98.4-9, os habitantes da terra se refere ao planeta, em bora talvez
denote em específico a “terra [de Israel]” . O s sete imperativos plurais
dem onstram que a terra é m etonim ia dos seus habitantes humanos, a
saber, “os gentios” (v. G n 12.1-3), ainda que tam bém possa consistir na
personificação de objetos terrestres (cf. SI 98.4-8). Todos, um a sinédoque
do todo para as partes, não exclui ninguém. Talvez os oficiais gentios no
tem plo de Jerusalém representem as nações.

2 Prestem culto ao E u S o u fundam entalm ente significa estar em sujei-


ção a ou em um a posição subordinada a ele com o Senhor. “Prestar culto
ao E u S o u pode ser um a noção abrangente de considerar que a vida
integral deve estar a seu serviço, com o na bem conhecida confissão de
Josué: “Mas, eu e a m inha família servirem os ao S e n h o r ” ( J s 2 4 .1 5 ; cf.
lR s 8 .2 3 ). Esse sentido a fortiori pressupõe a noção litúrgica mais estri-
ta do saltério: prestar-lhe culto no ritual do templo, quando “entrarem
por suas p o rtas/átrios” (v. 4) sugere. O s seis imperativos que convocam
para louvar (“aclamem”, “prestem ”, “entrem ”, “deem ações de graças”,
“bendigam ”) são caracterizados pela audiência: Eles adm oestam os não
adoradores (cf. SI 2 .1 1 ), mas estimulam os adoradores, com o as ordens
de um líder. As adm oestações servem para libertar as nações e os não re-
generados de seus ídolos (v. p. 23). E m outras palavras, “prestar culto ao
281

E u S o u pres supõe uma m udança de senhores”.91


0Com alegria (simhâ) denota
felicidade e alegria com toda a disposição, com o indica a associação com o
coração (cf. Êx 4.14; SI 19.8[9]; 97.11; 104.15; 105.3) cnepe'i (trad, “alma”;
i.e., desejo e apetites; v. p. 291, nota 1). Isso não é uma disposição restri-
tiva, inativa da psique, e sim a alegria se expressa com espontaneidade de
form a elementar: saltitar alegre (Jr 50.11), pisotear, bater palmas (Is 55.12),
dançar, música e aclamações alegres (ISm 18.6; 2Sm 6.12,14).10 Entrem
na sua presença com o expressão litúrgica significa “entrar no santuário”,11
onde o D eus onipresente está presente de m odo extraordinário, acima da
arca da aliança para abençoar (cf. SI 139.7-12). Ninguém pode escapar de
sua onipresença, mas ninguém pode entrar na presença sobrenatural com
leviandade ou po r uma questão de direito (cf. SI 15). O s gentios podem
entrar na presença dele porque louvam o E u S o u por sua benevolência
com Israel e assim abençoam o povo m ediador de A braão (cf. v. 3; cf.
G n 12.3). Hoje, os cristãos vêm, sem duvidar, ao trono da graça de Deus
por causado sacerdócio de Jesus Cristo (Hb 4.16). Com cânticos alegres
(birnãnâ; v. 90.14) significa em sentido prim ário uma expressão sonora e
assim com partilha o dom ínio semântico de riia' (“aclamem”; cf. v. 1; cf.
SI 47.1).
Estrofe B: Causa para/conteúdo do louvor (razão), 3
Reconheçam que ele é 0 nosso Deus (v. 90.11) presume tom ar uma decisão
para confiar no testem unho de Israel: seu D eus é o D eus vivo e que Is-
rael é seu povo, uma confissão que “expressa ao mesm o tem po orgulho
e humildade, pavor e confiança” .12 A confissão da nação “destrona e
anula qualquer outro reivindicador”.1314O E u S o u é enfático: algo com o
“o próprio E u Sou 14.‫ ״‬D eus Çlõhím ) significa a quintessência de sua na­

9 David Daube, The E xo d u s Pattern in the Bible, All Souls Studies. London: Faber and
Faber, 1963.
10Ruprecht, TLOT, 3:1274, s.v. smh. Essa “exuberância dionisíaca” é encontrada
em casamentos (Ct 3.11; Jr 7.34,25.10), na colheita das uvas (Is 9.3[2], 16.10), na
recepção dos vitoriosos (ISm 18.6), na coroação do rei (ISm 11.15; 1Rs 1.40,45)
e nos dias santos (Nm 10.10).
11 A. S. van der Woude, TLOT, 2:1012, s.v. pàmm.
12Artur Weiser, The Psalms, OTL (Philadelphia: Westminster, 1962), ρ. 647.
13Walter Brueggemann, “Psalm 100”, In t 39 (1985): 66.
14 Com a adição de h u , o tema é expressamente resumido e, portanto, enfatizado
(GKC, 141g).
282

tureza divina e seu poder eterno (Rm 1.20) em contraste com os mortais.
N a confissão ousada de Israel ao mundo, ek nosfe% O “ele” é enfático e
“nos” (como sempre no hinário de Israel) se refere aos filhos de Israel.
“Fez” se refere à produção da nação através de seu fundador, Moisés.
Somos 0 seu povo, ou seja, sua família a quem ele adotou com o seus filhos
(Ex 4.22,23; Rm 9.4). D ejure, Israel é seu povo; defacto, a nação desfruta
os benefícios dessa relação condicionada à obediência à aliança. E rebanho
do seupastoreio (v. SI 95.7a).

Estança II, 4,5

Estrofe A: Convocação para louvar (decisão), 4


Todas as nações são agora convidadas para que entrem (cf. v. 2) por
suas portas — os recintos santos do santuário. O templo, a casa de Deus,
era com preendida com o um palácio, com muralhas, portões, átrios e o
palácio em si mesmo. Seus átrios se refere aos internos e aos externos, onde
os sacerdotes ofereciam sacrifícios. Com louvor denota a expressão verbal
dos gentios de sincera e profunda aprovação e admiração pelo Deus de
Israel. D eus adotou Israel com o sua família para o povo poder anunciar
seu louvor (Is 43.20; lP e 2.10). E m sentido paradoxal, o salmista convoca
o povo a voluntariam ente louvar o E u Sou, mas para ser verdadeiro lou-
vor, deve ser espontâneo e alegre (cf. v. 1). O conteúdo do salmo provê
o combustível para o louvor e a convocação para louvar provê o fósforo
que o acende. A o exaltar a glória de Deus, os adoradores se ajustam aos
caminhos dele: seu caráter e seu propósito em estabelecer seu reino, onde
sua vontade é feita ex animo na terra com o no céu. Os gentios que entraram
nos átrios do E u S ou deem-lhegraças (v. sobrescrito) e são agora convocados
para realizar essa adoração. A vocação futura dos redimidos na glória é
cantar louvor a Deus e ao Cordeiro (Ap 4.11; 5.12-14; 7.12). Bendigam di-
fere de outras palavras no dom ínio semântico de “louvor” p o r proclamar
que D eus concede bênçãos (e.g., vida e sucesso). John N. Oswalt escreve:
“A função principal da [bênção] parece ter sido conferir vida abundante
e efetiva a algo (Gn 2.3; ISm 9.13; Is 66.3) ou a alguém (Gn 27.27ss.,
G n 49) [...] As bênçãos verbais [...] poderíam ser descritivas, um reconhe-
cimento que a pessoa a quem é dirigida estava possuída desse poder para
uma vida abundante e efetiva (Gn 14.19; ISm 26.25). Esse tratamento se
283

tom a um meio formalizado de expressar gratidão e louvor a esta pessoa


porque ela concede da fartura de sua vida”.15

C. A. Keller concorda na essência: “Bendizer a D eus” significa “declará-lo


bãrük [‘bendito’]”16 e “aquele que é designado com o bãrük é o originador
de uma situação saudável e, portanto, o objeto de louvor e gratidão”.17 O
seu nome descreve sua natureza, caráter e antecipa o sentido pleno em mais
revelação (v. p. 15-7). Além disso, com o William Sanford LaSor afirma:
“Conhecer o nom e da pessoa é m anter um relacionam ento com o seu
próprio ser” .18 Hoje, o povo de D eus tem e desfruta um relacionamen-
to com ele p o r meio do nom e do Senhor Jesus Cristo (v. “M ensagem”,
abaixo; v. tam bém p. 18).
Estrofe B: Causa para/conteúdo do louvor (razão), 5
Bom (tôb) com frequência introduz a lista litúrgica dos atributos dignos
do louvor de Deus (v.Jr 33.11; SI 106.1; 107.1; 118.1,29; E d 3 .1 1 ;lC r 16.34;
2Cr 5.13; 7.3). Isso significa ser eticamente justo (i.e., benéfico19) e ser
agradável (i.e., fascinante20) e assim conota desejo. Os equivalentes no latim
são útil (útil, benéfico, prestativo) efru i (agradável, aprazível, satisfatório).
“O sol é útil·, o pôr do sol é agradável'.21 As cerejas de um a cerejeira são
úteis-, suas flores são agradáveis. As duas noções sempre se tornam atenuadas
com o em “o coração [i.e., alegre] bem disposto” (Pv 15.15). Portanto, isso
significa o que beneficia e enriquece a vida e é tam bém atraente, com uma
ênfase mais ou menos em um ou no outro, mas nunca em contradição entre
si, ao contrário da distinção grosseira em grego entre kallos (esteticamente
bom) e agathos (moralmente bom). Weiser comenta: “Isso dem onstra em
que nível elevado estão os aspectos estético, artístico, ético e religioso da

15 T W O T , 1:132, s.v. berek. Knee. Oswalt questionavelmente pensa que o verbo


“bendigam” (bãrak) é um denominativo de berek (“ajoelhar”).
16 77.07; 1:272, s.v. brk Piei.
17 Ibid., 1:269, s.v. b rk Piei.
18William Sanford LaSor; David A. Hubbard; Frederick Bush, O ld Testament Survey:
The Message, Form and Background o f the O ld Testament. Grand Rapids: Eerdmans,
1992, p. 134.
19Aplicado a um homem justo, virtuoso (Pv 14.14) e a uma pessoa gentil e útil
(ISm 25.15).
20Aplicado a uma bela mulher (Gn 24.16; cf. Zc 9.17).
21James Bryan Smith, The Magnificent Story. Downers Grove: InterVarsity, 2017, p. 66.
284

vida de adoração [...] com preendida com o um a unidade”.22 O antônim o


de “bom ” é “m au”, o que é funesto.
Mas o que é a base da bondade? Platão, no diálogo Eutífron, propôs
um problem a m oral em sua form a clássica: “O que é m oralm ente bom é
ordenado por D eus por que é m oralm ente bom ou é moralm ente bom
porque é ordenado por D eus?”. Por um lado, se há padrões morais inde-
pendentes da vontade de Deus, então Deus não é soberano sobre o padrão,
mas ele próprio é sujeito a um padrão eterno superior independente dele.
Por outro lado, se algo é bom simplesmente porque Deus o ordenou, logo
o que ele ordena poderia ser arbitrário, caprichoso, despótico e tirânico.
N ão havería distinção significativa entre o bom e o mau e a moralidade
não mais seria baseada na razão e na consciência. A confissão que Deus é
“bom ” elimina o absurdo. A base da bondade é o próprio Deus. Deus faz
o que é para o m elhor interesse de outros porque essa é sua natureza, não
porque ele deve se conform ar a um padrão independente dele próprio. E
porque ele é “bom ”, ele não ordena o que está em detrim ento com outro;
ele deseja apenas o que é benéfico. A confissão que Deus é bom , entretanto,
é um julgamento pelo fiel. Q uem não é perturbado pelas catástrofes da
guerra e pelos excessos da humanidade? Mas os fiéis reconhecem suas
limitações. Podemos apenas decidir se algo é bom ou mau quando o vemos
holisticamente e, portanto, de m odo claro. N inguém subiu ao céu e viu
a imagem completa. O pé de fé do salmista escorregou do cam inho da
piedade quando ele viu a prosperidade dos ímpios e o estado dos justos.
A perplexidade dele durou “até que entrei no santuário de Deus, e então
com preendí o destino [dos ímpios]” (SI 73.17). O que vimos no santuário
eram símbolos para viver pela fé na benevolência de Deus; e.g, os altares e
o lugar da misericórdia, onde a expiação era realizada; a mesa dos “pães da
proposição” (KJV, lit. “pães da face/presença”) que se referiam ao sustento
para de quem vive na presença de Deus, e o candelabro que provê luz
nas trevas. Tudo isso prefigura Jesus Cristo, que é o mesm o ontem , hoje e
eternamente (Hb 13.8). Os ímpios, que não participam pela fé nesses meios
de graça, m orrem . Por fim, “bom ”, com o todos os atributos comunicáveis
de Deus, pressupõe comunidade. Amor, fidelidade, graça e bondade não
têm existência à parte da prática em relação ao outro. O próprio Deus é
Ser em comunidade. As três Pessoas da Trindade beneficiam-se m utua­

22 The Psalms, p. 615.


285

m ente sem mancha de egoísmo danoso. Assim tam bém é a comunidade


de Deus com a humanidade: seus pensamentos, palavras e obras sempre
beneficiam as pessoas.
As dez listas litúrgicas citadas acima (v. p. 283) suplementam a bondade
de Deus com seu a m or le a l (hesed ). H esed presume a relação entre duas partes,
uma das quais satisfaz as necessidades da outra de libertação e proteção.
A parte mais forte o faz devido à motivação intrínseca de sua natureza,
caracterizada pela lealdade, fidelidade, am or e bondade; não devido a uma
motivação extrínseca, egoísta. Q uando Jacó estava na iminência de morrer,
cham ou seu filho José e lhe disse: “Prom eta que dem onstrará hesed para
comigo: N ão m e sepulte no Egito. Q uando eu descansar com meus pais,
leve-me daqui do Egito e sepulte-me junto a eles” (Gn 47.29s.). Obvia-
mente, Jacó não podería se sepultar; ele teria que depender da bondade
do filho. Além disso, Jacó não ameaça José ou propõe recom pensá-lo pelo
“cum prim ento responsável da fé”.23José cum pre a prom essa feita ao pai
p o r conta da natureza piedosa, sua hesed. A h esed de D eus pressupõe a
aliança com Abraão, Isaque e Jacó e inclui perdoar o povo quando este
se arrepende e renuncia ao pecado (Pv 28.13), com o Davi fez quando
com eteu adultério com Bate-Seba (SI 51.1 [3]). E eterno Ç ôlãm ), afirma
E. Jenni, “com a exceção de poucas passagens posteriores em K oheleth
[Eclesiastes], tem o sentido do tem po mais distante’ ”24 e que está dentro
de algum contexto histórico. Com as preposições “de” e “para”, ele se re-
fere ao passado rem oto e ao tem po final, respectivamente distante. Porém,
com referência a Deus, que transcende o tempo, ele tem a noção teológica
e filosófica de eternidade (“eterno, sempre, continuam ente”; cf. SI 90.2;
92.8[9]; 102.12[13]; 103.17). A palavra hebraica traduzida com o fid elid a d e
Çem üna) deriva-se de ‘m n, cujo significado de origem é “estar firm e”. Esse
sentido fundamental de firmeza ocorre de m odo literal em Ê xodo 17.12:
“Q uando as mãos de Moisés já estavam cansadas [...] Arão e H ur manti-
nham erguidas as mãos de Moisés, de m odo que as mãos perm aneceram
Çem ünâ = firmes) até o pôr do sol”. A partir desse fato é derivado o sentido
figurativo “leal, fiel, confiável”. Mas, com o Jepsen afirma, “ ’em ünâ não é
tanto um a qualidade abstrata, ‘fidelidade’, mas um a forma de agir que se

23 K. D. Sakenfeld, The M eaning o f hesed in the H ebrew Bible, Harvard Semitic Museum
17. Missoula: Scholars, 1978, p. 233.
24 TLOT, 2:853, s.v. 'olãm.
286

origina da estabilidade interior, ‘consciensiosidade’. E nquanto ’emeth é


sempre em pregado em relação a algo (ou alguém) [como palavras] em
que (ou em quem) se pode confiar, ‫־‬,'münâ parece mais enfatizar a atitude
interior da pessoa e a conduta produzida p o r essa atitude”.25 Com p o r
todas as gerações (“até geração e geração”), o estático (ôlãm (“eterno”) se
decom põe em gerações dinâmicas, sucessivas.

Parte III. A voz da igreja em resposta

I. Agostinho de Hipona (354-430)


A gostinho pregou sobre o salmo 100 (= LXX, 99) no fim de 403 ou
princípio de 404. Seu m étodo de exegese era sempre seguir as palavras com
cuidado; portanto, os eruditos que exageram o contraste entre as escolas
antioquenas e alexandrinas deveríam notar que A gostinho usa as duas
formas de lidar com o texto — com o este requer. Form ado em retórica,
ele era cuidadoso no uso dos instrum entos adequados ao gênero. Para
Agostinho, o salmo 100 é louvor universal e confissão pessoal.
Michael Cam eron ressalta que Agostinho, na interpretação dos Sal-
mos, era
“pouco preocupado com passagens cujo sentido fosse óbvio ou, como
ele afirma, ‘precisava apenas um leitor e um ouvinte’ do que com aquelas
que exigiam um expositor porque o sentido era obscuro. [...] Seu costume
era não focar ‘na letra’ ou no sentido literal do salmo [...] mas alcançar
‘por meio’ da letra, por assim dizer, procurar os mistérios no interior. [...]
A dialética entre as partes da Bíblia que estavam reveladas ou ocultas ao
entendimento era como o constante abrir e fechar das ‘pálpebras de Deus’
(SI 10.5), encorajando ou desafiando o intérprete da Escritura (10.8).
[...] As Escrituras estavam repletas de ‘segredos’, ‘enigmas’ e ‘sombras’
simplesmente ‘místicos’ ‘seminais’ e ‘ocultos’ ”. 26

A gostinho exorta a audiência a contem plar Deus nas glórias da cria-


ção, razão para “aclamarmos com alegria” . N ós as contemplamos quando
perguntamos: “Q uem fez todas essas coisas? Q uem as criou? Q uem criou

25Jepsen, T D O T , 1:317, s.v. ’am an.


26 “Enarrationes in Psalmos”, em: A ugustine Through the A ges, Allan D. Fitzgerald, org.
O.S.A. Grand Rapids: Eerdmans, 1999, p. 291.
287

você, m inha alma, com o única dentre todas? Quais são as coisas que você
está contem plando? E quem você é, que contempla? Q uem é ele que fez
as coisas que você contem pla e você que as contempla? Q uem é ele?”.27
Assim, Agostinho nos exorta a “nos aproxim armos de D eus por re-
cuperar sua semelhança” . Ele escreve: “Pense a respeito dele, então, antes
que você fale dele e pare para pensar sobre ele, se aproxime dele [...] para
obter um a boa com preensão” .28 Isso requer de nós pureza de coração,
com o Jesus ensinou nas bem-aventuranças. “Sejam com o ele, portanto, em
terna submissão e amem-no com sua capacidade de pensamento, porque a
realidade invisível de D eus é contem plada por meio das coisas criadas”.29
Os cristãos devem “servir ao Senhor com alegria” porque há liber-
dade em servir a D eus com espontaneidade e alegria.30 “N o entanto, não
escape dos semelhantes incôm odos”, assim, precisamos da exortação de
Paulo para “suportar uns aos outros com am or” (E f 4.2).31 Com o ove-
lhas do Criador e Redentor, jamais podem os ser orgulhosos, mas sempre
repletos de gratidão. C om o “portas” são símbolos de um a nova entrada,
assim somos convidados a com eçar uma nova vida com confissão, de fato
confessando com hinos, pois “hinos são cânticos de louvor”.32A gostinho
conclui: “Jamais pense que vocês se cansarão de louvá-lo. Seus cânticos de
louvor são com o comer: quanto mais vocês louvarem, mais força vocês
adquirem e mais agradável ele se torna com quem está louvando” .33
II. Roberto Belarmino (1542-1621)
R oberto Belarmino tem sido nosso com entarista sacramental neste
volume e mais um a vez ele nos revigora com seu espírito. Ele começa o
com entário sobre o salmo 100 ao dizer:
“Cantar com alegria significa, como repetimos muitas vezes, louvar com
voz altissonante e alegre e prestar culto com alegria significa ser obedien-
te por causa do amor e não do tem or [...] Todos, vocês adoradores do

27 E xposition o f Psalm 99 5, em E xpositions on the Psalms, trad. Maria Boulding. Hyde


Park: New City, 2002, vol. 5, p. 15.
28 Ibid. (Boulding, p. 16).
29 Ibid. 6 (Boulding, p. 17).
30 Ibid. 7 (Boulding, p. 18-9).
31 Ibid. 9 (Boulding, p. 20).
32 Ibid. 16 (Boulding, p. 27).
33 Ibid. 17 (Boulding, p. 28).
288

Deus verdadeiro, em qualquer parte do mundo que vocês se encontrem,


louvem-no. Bons e maus são encontrados no mundo inteiro; no trigo
será encontrado o joio, e espinhos entre os lírios.34

D o mesm o m odo, em nossas experiências boas ou más, o apóstolo Paulo


nos lembra: “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o
am am” (Rm 8.28). Servimos ao E u S o u com alegria por “obedecer-lhe
livremente e não com o se estivéssemos sob coerção; com alegria com o
hom ens livres e não com a amargura dos escravos. Pois, com o A gostinho
afirma, a Verdade nos libertou, mas o am or nos fez escravos; e o escravo
do am or é alguém que serve com prazer”.35 N ada, ele acrescenta, não nos
estimula tanto com o a devoção a Deus e a consideração da identidade de
Deus. Com o seu povo, somos as ovelhas de seu pasto, em sua providência
divina sobre nós.36
D e acordo com Belarmino, o salmista enum era três atributos divinos:
bondade, misericórdia e veracidade. N o entanto, o poder de D eus pode
parecer contraditório a esses outros atributos. Ele é “o Pai das misericór-
dias e D eus de toda consolação” (2Co 1.3) e, contudo, “Terrível coisa é
cair nas mãos do D eus vivo” (Hb 10.31). Entretanto, essa contradição
aparente é conciliada com facilidade, pois “D eus é bom para o íntegro de
coração [...]; ele é severo e terrível para com os de coração enganoso”.37
III. William Romaine (1714-1795)
O com entário e versão métrica de William Romaine do salmo 100 é
tão valioso que eu o apresento na íntegra:
A igreja toda aqui é convocada a louvar nosso Deus por sua grandiosi-
dade, bondade e verdade e para louvá-lo com alegria, de modo especial
na grande congregação. Considerando sua relação conosco, nosso pastor
e nossa relação com ele, seu povo, devemos nos regozijar nele em toda
ordenança. O cântico dos salmos é designado para expressar nossa ale-
gria exterior. Ele o exige. Ele o aceita. Que possamos cantá-lo hoje de
maneira que lhe seja bem agradável e que possamos cantar para nossa
edificação mútua.

34A Commentary on the B ooks o f Psalms, trad. John O ’Sullivan (Dublin: Aeterna, 2015),
p. 467.
35 Ibid.
36 Ibid., p. 468.
37 Ibid.
289

I.
Todos os povos que na terra habitam,
Cantem ao Senhor com alegria,
Sirvam-no com tem or, seu louvor anuncia,
Venham diante dele e se alegrem.
II.
Sabeis que o Senhor é D eus de fato,
Sem nossa ajuda ele nos fez,
Somos seu rebanho, ele nos apascenta.
III.
E ntrem por suas portas com louvor,
Aproximem -se de seus átrios com alegria,
Louvem, agradeçam e bendigam sempre o seu nome;
Pois assim é próprio.

IV.
Porque o Senhor, o nosso Deus, é bom ,
Sua misericórdia é certo que é eterna;
Sua verdade em todos os tem pos é leal,
E perm anecerá de geração em geração.38

Parte IV. Conclusão

I. Contexto literário
O s salmos 95 e o 100 form am uma estrutura em torno dos salmos 96-
99 (v. p. 25-6, 285).
II. Mensagem
O salmista convoca toda a terra para com parecer diante do E u S o u
em seu tem plo e para lhe trazer um sacrifício: um a oferta de ação de gra-
ças, enquanto canta com entusiasmo seu louvor. Hoje, os descendentes
naturais de A braão e dos gentios são um povo, e atendem a essas convo-
cações de um m odo novo. Brueggem ann reflete com utilidade: “Q uando
a com unidade louva, ela se subm ete e reordena a vida. Isto não é apenas

38A n E ssay on Psalmody. London: s.n., 1775, p. 296-7.


290

um m om ento de adoração, mas tam bém a adoção da vida doxológica,


organizada de form a diferente [da vida baseada no egoísmo]”39 (v. p. 23).
A vida doxológica se baseia na fé; fé no testem unho de Israel que o E u
S o u é o D eus vivo, que ele criou Israel e que ele é confiável, bom e amável.
N a antiga dispensação, D eus quis ser conhecido pelo nome, I a v é
(v. p. 15-8). Hoje, ele deseja ser conhecido pelo nom e de seu Filho: o Se-
nhor Jesus Cristo. Jesus disse de si próprio: “Antes de Abraão nascer, E u
Sou ” (Jo 8.58). Tudo que a igreja fizer, seja em palavra ou em ação, faça em
nom e do Senhor Jesus (Cl 3.17). O re em nom e dele 0 o 14.13s.) e pregue
que “debaixo do céu não há nenhum outro nom e dado aos hom ens pelo
qual devamos ser salvos” (At 4.12). Hoje, os cristãos, que louvam o nom e
de Jesus Cristo, vêm de mais nações e tribos que as existentes na Orga-
nização das N ações Unidas (ONU) ou que das participantes dos Jogos
Olímpicos. A igreja testifica ao m undo há mais de 2 mil anos: “Saibam
que Jesus Cristo é o Filho de D eus e somos o rebanho do seu pastoreio”
(cf. v. 3; Jo 10).

39 “Psalm 100”, p. 65.


12

Salmo 103: Louve, minha alma,


o Rei do céu

Parte I. A voz do salmista: Tradução


D e Davi.
1 Bendiga ao E u S o u a m inha alma!1Bendiga ao E u S o u to d o o m eu ser!
2 Bendiga ao E u S o u a m inha alma! N ão esqueça de nenhum a de suas
bênçãos!
3 É ele que perdoa2 todos os seus pecados e cura todas as suas doenças,
4 que resgata a sua vida da3 sepultura e o coroa de bondade e compaixão,

1 Possivelmente, nepes tem o sentido mais original de “garganta” (Travis J. Bott,


“Praise and Metonymy in the Psalms”, em: The O xford H andbook o f the Psalms,
William P. Brown, org. [Oxford: Oxford University Press, 2014], p. 137s.). Sua
tradução tradicional “alma” pode induzir a erro uma audiência de fala do portu-
guês a pensar em nepes como um equivalente do grego psyche, a sede e o centro
da vida que transcende o terreno” (BAGD, p. 893). Entretanto, o hebraico nepes
se refere aos impulsos e apetites passionais de todas as criaturas viventes, tanto
animais quanto humanos. N o NT, a pessoa tem uma “alma”; no AT, a pessoa é
uma nepes (B. Waltke, T W O T , 2:387-91, s.v. nephesh ).
2 Os perfeitos nos v. 12,13,19b são traduzidos como gnómicos (IB H S , §30.5.1c)
de acordo com a indicação de outros predicados que pertencem à situação uni-
versai — participio (“faz”, v. 6), imperfeitos (“renova”, 5; “acusa”, 9; “floresce”,
15), os verbos de estado (“é grande”, 11; “sabe”, 14) e as orações subordinadas
substantivas predicativas (8,17) — pelos abrangentes “todos” (3) e “para sempre/
eterno” (9,17); e pelas situações gnómicas (5,11,13,15,16,19).
3 Talvez, “ [de] descer à [sepultura]” é omitido (IBHS, §11.4.3d), mas essa noção
podería ser expressada com clareza por “guardar/preservar de” (cf. Jó 33.18;
Is 38.17) ou ao usar “descer” (Jó 33.24,28; Ez 28.8; SI 30.9; 55.23[24]), “aproximar”
(Jó 33.22), “poupa-o de descer” (Jó 33.24,28), ou “recuperar” (Jó 33.30).
292

5 que enche de bens a sua existência,4 de m odo que a sua juventude se


renova com o a águia.
6 O E u Sou faz justiça e defende a causa dos oprimidos.
7 Ele m anifestou os seus caminhos a Moisés, os seus feitos aos israelitas.
8 O EuSoué compassivo e misericordioso, mui paciente e cheio de amor.
9 N ão acusa sem cessar nem fica ressentido para sempre;
10 não nos trata conform e os nossos pecados nem nos retribui conform e
as nossas iniquidades.
11 Pois com o os céus se elevam acima da terra, assim é grande o seu am or
para com os que o temem;
12 e com o o O riente está longe do Ocidente, assim ele afasta para longe
de nós as nossas transgressões.
13 Com o um pai tem compaixão de seus filhos, assim o E u Sou tem
compaixão dos que o temem;
14 pois ele sabe do que som os form ados; lembra-se de que som os pó.
15 A vida do hom em é semelhante à relva; ele floresce com o a flor do
campo,
16 que se vai quando5 sopra o vento e nem se sabe mais o lugar que
ocupava.
17 Mas o am or leal do E u Sou, o seu am or eterno está com os que o
temem, e a sua justiça com os filhos dos seus filhos,
18 com os que guardam a sua aliança e se lem bram de obedecer aos seus
preceitos.
19 0 E u Sou estabeleceu o seu trono nos céus, e com o rei dom ina sobre
tudo o que existe.
20 Bendigam ao E u Sou, vocês, seus anjos poderosos, que obedecem à
sua palavra.
21 Bendigam ao E u Sou, todos os seus exércitos, vocês, seus servos, que
cum prem a sua vontade.
22 Bendigam ao E u Sou, todas as suas obras em todos os lugares do seu
domínio. Bendiga ao Senhor a m inha alma!

4 Texto incerto. A LXX registra ten epithym ian sou , não 'edyek do TM (“tuas joias”).
Alguns revisam o hebraico para cõdèk 1 (cf. “minha condnuidade”, SI 104.33).
5 Ou “porque”.
293

Parte II. Com entário

I. Introdução

Autor
O TM e o sobrescrito da LX X identificam o rei Davi com o autor
(v. p. 27-9) e não há razão para pensar o contrário.6 O salmo apresenta
muitas intertextualidades com os profetas, mas não é claro quem está
citando qual.7
Gênero
O salmo 103 é um hino. Ele fala de “todas as bênçãos do E u Sou‫״‬
(v. 2ss.) e sua perspectiva é universal, não apenas olha em retrospecto para
uma resposta histórica à oração (v. nota 2). O salmo contém os temas
típicos do hino: convocação para louvar, causa para louvar e convocação
renovada para louvar (v. p. 237, nota 11). O contexto original é o culto
de adoração, presumivelmente na bem designada casa do E u Sou, onde a
história da salvação era relembrada. O E u S o u e scuta o salmista anunciar
a círculos expansivos (v. 1-6,7-19,20-22) no louvor do salmista a ele e o
E u S o u está satisfeito (v. p. 24).

Retórica
C om o é com um e provavelmente intencional, os 22 versículos do
salmista correspondem ao núm ero das letras do alfabeto hebraico. Uma
inclusão, “Bendiga ao E u S o u a m inha alma” (v. 1,22), com põe o salmo.
Por essas duas restrições, o poeta sente a catarse de ter expressado seu
entusiasmo sem limites e de m odo total. Ele amplia o círculo do louvor

6 Alguns depreciam o sobrescrito da LXX porque o raro sufixo sg. f. êkí (v. nota 4;
GKC, 91e) corresponde ao sufixo aramaico. Mas os aramaísmos não provam a
data antiga (IB H S.’ §§1.4.1e, 1.4.2c). Mitchell Dahood (Psalm sII, A B 17 [New York:
Doubleday, 1968], p. 24) pensa que a forma pode ser um arcaísmo cananeu (c.
1300 a.C.).
7 Herman Gunkel (H. Gunkel; J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres o f the
Religious L yric o f Israel, trad. James D. Nogalski [Macon: Mercer University Press,
1998]) se contradiz. Por um lado, ele afirma que o v. 9a se baseia em Jeremias 3.5,12;
que o v. 9b se baseia em Isaías 57.6; e que os v. 15ss. baseiam-se em Isaías 40.6ss.
(p. 290). Por outro lado, ele afirma que o Segundo Isaías cita o Salmo 103 (p. 221).
Uma ambiguidade similar de dependencia existe entre o v. 16b e Jó 7.7.
294

de si m esm o (v. 1-5) passando por Israel (6-19) até todo o resto (20-22),
form ando três estanças. A primeira estança consiste na convocação para
louvar (v. 1-2) e na causa do louvor (3-5); a segunda consiste só na causa,
e a terceira apenas na convocação. O versículo 19 é um a transição que
prossegue para a segunda estança e a terceira. Proclam ado a Israel, ele
pertence à segunda estança. Mas suas referências ao trono de Deus no
céu — correspondendo à hoste (celestial) nos versículos 20,21 e à inclusão
“dom ina” (mãsãlâ, v. 19) e “dom ínio” {memsãlâ, v. 22), am bos os term os da
raiz hebraica trisl — o conecta com a terceira estança.
Aqui está um esboço da estrutura de acordo com sua form a, semân-
tica, gramática e retórica:

Sobrescrito
Estança I: Proclamação a si mesmo, 1-5
Estrofe A: Convocação para louvar, 1,2
Estrofe B: Causa para louvar: libertação da sepultura, 3-5
1. Perdão e cura, 3
2. Resgate e honra, 4
3. Fartura de bens e rejuvenescimento, 5
Estança II: Proclamação a Israel, 6-19
Estrofe A: A justiça do E u Sou, 6
Estrofe B: O am or e a misericórdia infalíveis do E u Sou, 7-18
1. Com referência ao pecado, 7-12
a. Confissão da misericórdia e am or infalíveis
do E u Sou, 7,8
b. A ira do E u S o u tem limites, 9,10
c. O am or do E u S o u não tem limites, 11,12
2. Com referência ao tempo, 13-18
a. A compaixão do E u S o u por mortais, 13,14
b. A brevidade dos mortais, 15,16
c. O am or do E u S o u é eterno, 17,18
Estrofe C: A soberania do E u Sou, 19
Estança III: Proclamação a tudo, 20-22
Estrofe A: Aos anjos que cum prem sua vontade, 20,21
Estrofe B: A tudo, 22a
Estrofe C: A si mesm o, 22b.
295

A segunda estança é com posta p o r “justiça”, “faz” e “am or leal”


(v. 6,17ss.). O versículo 6 se destaca das 6 quadras que se seguem. Elas reve-
lam a perfeição e a essência da graça de Deus que comunica o perdão, como
as pétalas desabrochadas da rosa madura. As três primeiras pertencem ao
pecado, com eçando pela confissão clássica de Israel em conexão com o
incidente do bezerro de ouro (7,8). As três últimas quadras pertencem ao
tempo, e contrastam a brevidade dos mortais (13-14,15-16) com o am or
eterno do E u S o u com os filhos dos seus filhos (17-18). As três quadras
são com postas pela inclusão de “filhos” e “dos que o tem em /com os que
o tem em ” (v. 13,17s.). E m síntese, a segunda estança é com posta por dois
versículos transitórios únicos (6,19) em torno do centro de 6 quadras que
confessam e ampliam a misericórdia e o am or leal do E u Sou? Portanto,
a segunda estança consiste em 2 seções de 7 versículos cada: 1 (v. 6) e 6
(v. 7-12) seguidas por 6 (13-18) e 1 (v. 19).
Termos transitórios processam as alterações na estrutura: “beneficios”
(v. 2) para causas específicas (3-5); “bons feitos” (5) para a confissão dos
benefícios do E u S o u (6-18); e o jogo de palavras sobre msl (“dom ina”,
19; “dom ínio”, 22). Se a transição (v. 19) for numerada com versículos 20-
22, o tam anho da primeira e última estanças e seus quádruplos “todos”
se ajustam.
Com o um habilidoso estofador, o poeta cobre a costura de esboço
nos versículos 12,13 com o jogo de palavras quiástico sobre o participio
k: “pois”/ “com o” (v. 11,12) e “com o”/ “pois” (v. 13,14).9 O poem a brilha
com intensificações, inclusão, assonância (v. nota 10) e imagens memo-
ráveis. O adorno farto do poeta das flores (v. 15) contribui para tornar
o hino de 3 mil anos, cantado pelo próprio Filho de Deus, em um dos
salmos mais conhecidos e amados dentre todos os salmos.89

8 Note o participio (predicado) inicial que conecta o versículo 6 aos participios


(relativos) iniciais em 3-5.
9 A assonância do k palatal inicial e os palatais g e h também cobrem essa costura:
ki kigbõah (v. 11), kirhõq (12), kfrahêm (v. 13), ki (14). A assonância de kl em bãr“kl
(1,2) com a forma rara do sufixo poético feminino em ' ãwônèkl (“seus pecados”,
GKC, 911) conecta a convocação para louvar (1,2) com sua causa (3).
296

II. Exegese

Sobrescrito
D e D a v i (v. “A utor”, acima).

Estança /; Proclamação a si mesmo, 1-5


As repetições de “bendiga” na convocação (v. 1,2) e as orações rela-
tivas que substanciam a convocação (“ [é ele] que v. 3-5) unificam a
estança e suas estrofes.
Estrofe A: Convocação para louvar, 1,2
1 E m um soliloquio para o benefício da congregação no templo, o
salmista, mediante a abrupta anáfora tríplice de bendiga (v. 100.4), o E u S o u
(v. 100.1) desperta da apatia e letargia para louvar o E u S o u (cf. 42.5,6).
Minha alma (i.e., minhas forças vitais e anseios, v. nota 1) é aprim orada por
todo 0 meu ser (e.g., coração, fígado, rins; cf. Is 26.9), considerados a sede
da disposição, do pensam ento, da vontade e emoção. O entusiasmo de
uma pessoa no louvor é parte da saúde espiritual. A o E u S o u (v. p. 15-8;
100.4) é um substituto para a pessoa de Deus. Eliminar o nom e é destruir
a pessoa (cf. D t 7.24; 9.14; ISm 24.2).

2 O s litotes não esqueça de é uma form a enfática de dizer “lembre-se”.


Deus não repete seus atos salvadores, com o o Êxodo e a ressurreição de
Jesus Cristo. A salvação vem por se lem brar (i.e., participando em, não
“desm em brando”) 10 do testem unho dos ancestrais (cf. D t 4.9; Jz 2.10ss.;
SI 63.5; 77.11; Lc 24.19; Rm 10.9). Nenhuma das bênçãos de D eus “seria
tanto para ser declarada” (SI 40.5) e, assim, “nenhum a” é relativa às bên-
çãos narradas nos versículos 3-5. Bênçãos (sempre intencionais e éticas)
podem se referir às ações perniciosas e /o u danosas (Is 3.11), mas aqui se
refere aos atos benéficos (Jz 9.16; 2Cr 32.25).
Estrofe B: Causa para louvar: libertação da sepultura, 3-5
Os benefícios do perdão (v. 3a) intensificam-se para a cura total (3b),
passando pela libertação da sepultura (4a), ser coroado (4b) até à saturação
com tudo de bom (5a) e a vida eterna (5b).

10W Schottroff, T L O T , 3:1325, s.v. skh.


297

1. Perdão e cura, 3
O perdão é o único term o não figurado que significa “parar de sentir
ira em relação a um ofensor e abster-se de puni-lo”. O E u S o u é sempre
o sujeito, pois só o Legislador pode perdoar a transgressão da lei (cf.
SI 51.4[6]; Mc 2.7). Confessar o perdão divino pressupõe arrependim ento
e fé na graça de Deus. O term o pecados (v. SI 90.8), em sentido amplo, inclui
transgressões religiosas e /o u éticas e tam bém a culpa resultante.11 Cura
com o objeto direto doenças se refere aos males físicos.112 Todos abrange pe-
cados e cura do passado, presente e futuro (cf. v. 11,12). Ao estabelecer o
paralelo entre “perdoa todos os seus pecados” e “cura todas as suas doen-
ças” indica-se a existência de doenças decorrentes do pecado (v. SI 6; 38;
130; cf. 32.1-5); sua cura é indicada no perdão. Mas nem todas as doenças
se devem ao pecado (cf. Jó e os salmos de protesto; e.g., Salmos 44.22).
Além disso, em bora o perdão seja imediato, a cura pode não ser imediata.
A cura de todas as doenças contem pla além da m orte clínica no eschaton
(cf. Is 33.24). A lógica do salmo exige essa interpretação escatológica.
Todos os mortais m orrem por conta de uma form a de doença ou outra
(15,16) e, desse modo, a cura de todas as doenças deve ir além das doenças
terminais.13 Um santo ao m orrer de câncer terminal afirmou: “N ão há
enferm idade que uma boa ressurreição não possa curar!”.
2. Resgate e honra, 4
Resgata se refere à ação do protetor legal do m em bro da família afli-
to, sob o controle do oponente mais forte (cf. SI 19.14[15]; Pv 23.10ss.;
Jr 50.34): por exemplo, ao resgatar um m em bro da família da escravidão.
O Deus vivo se obriga a resgatar os m em bros de sua família do pecado
e da m orte. O N T aprofunda m uito essa doutrina (Rm 3.22-26). Vida
se refere à existência vital e funcional. D a significa separação. Sepultura
denota um buraco grande o suficiente para um a pessoa ou um animal
não poder escapar dele: um a armadilha (Ez 19.4; SI 7.15[16]; 35.7), uma

11 R. Knierim, TLOT, 2:862, s.v. cãw õn.


12Doenças (Jr 16.4), fome (Jr 14.18, NLT), destruição da terra (Dt 29.22ss.) e os
intestinos de Jeorão saíram (2Cr 21.19).
13 O próprio filho de Davi morreu (2Sm 12.13,14) e o NT contém muitos exemplos
de crentes enfermos a quem o Senhor não curou: Paulo (2Co 12.7-10), Epafrodito
(Fp 2.25-30), Timóteo (lTm 5.23) e Trófimo (2Tm 4.20).
298

m asm orra (Is 51.14) ou, com o aqui, um a m etáfora de S eol/a Sepultura
(SI 30.9; Jó 33.24,28). Se o poeta tivesse intencionado a salvação da m orte
prematura, poderia ter expressado a noção com clareza (v. nota 3). E m
sentido figurado, coroa significa colocar no honrado um a coroa tecida
com a bondade do E u S o u (v. SI 100.5) e compaixão. “Compaixão” denota
os anseios ternos do superior ao inferior indefeso, com o a mãe sente pelo
bebê (cf. G n 43.30; lR s 3.26). O sentido pode ser evocado da etimologia:
“ventre”.
3. Fartura de bens e rejuvenescimento, 5
Enche significa chegar à medida com pleta da capacidade de algo. O
salmista confiante não desejaria uma existência imoral e o D eus santo o
enche de bens (lit. “bom ”, tóí>: algo benéfico e perfeito [v. SI 100.5], não coisas
más — algo prejudicial à vida abundante). O provérbio “O s alimentos
foram feitos para o estôm ago e o estôm ago para os alimentos” (IC o 6.13)
sugere que D eus cria a fome e a satisfaz; criar a fome sem nenhum a pro-
visão para saciá-la seria diabólico. Existência (v. nota 4) presum e existência
justa. C om o Juan Ponce de León, que afirma ter procurado pela fonte da
juventude, todos desejam a juventude que se renova como a águia. 14 A águia
talvez tenha sido escolhida por ser a “mais forte das aves, a mais destemida,
a mais majestosa e a mais altaneira”1415 (cf. Is 40.31). Além disso, ela tem a
expectativa de vida mais longa que outras aves (c. de 30 anos com parados
com a média de 2 a 5 anos). Aves adultas m udam as penas urna vez por
ano, “renovando” a aparência delas.
Estança II: Proclamação a Israel, 6-19

Estrofe A: A justiça do Eu Sou, 6


O E u S o u f a \ (v. 98.1) justiça (i.e., estabelece a ordem justa, v. 98.2) e
defende (i.e., restaura a ordem justa; v. 96.13; 97.2; 98.9; 99.4) — duas me-
tonímias de “bênçãos” (v. 2). Ele faz isto pela causa dos oprimidos — não
apenas a Israel. N ote a m udança do indivíduo para o coletivo. O s opri-
midos estão na situação em que alguém mais forte retira deles, de m odo

14N eser pode significar “águia” ou “abutre” (H A L O T 1:732, s.v. neser).


15Charles Spurgeon, The Treasury o f D avid, Roy H. Clarke, org. Nashville: Thomas
Nelson, 1997, p. 910.
299

direto ou indireto, o produto e labor sem dar nada em troca.16 O Egito,


por exemplo, roubou injustamente Israel de sua riqueza e não deu nada
em retorno; mas no Êxodo, Israel saqueou o Egito (Êx 12.36).
Estrofe B: O amor leal e a misericórdia do Eu Sou, 7-18
A segunda estança continua sobre o tem a do perdão do E u Sou.
Ela começa pela confissão dos atributos benevolentes do E u Sou, que
comunicam seu perdão e, em seguida, os desenvolve com o pétalas desa-
brochadas de uma rosa.
1. Com referência ao pecado, 7-12

a) Confissão da misericórdia e do amor leal do Eu Sou, 7,8


O versículo 8 está em oposição aos “cam inhos” no versículo 7.
7 E le manifestou (v. SI 98.2) os seus caminhos a Moisés ecoa a oração de
Moisés “me faças saber neste m om ento o teu cam inho” (Êx 33.13, ARA).
E m sentido figurado, “cam inho” evoca as noções integradas de caráter
(cf. v. 8) e conduta. Os seus feitos, com referência a Deus, alude aos atos
poderosos (cf. equivalente a “maravilhas” em 78.11), com o no Êxodo e
Conquista (v. Êx 34.1 \).A o sfilh o s 17 de Israel são a descendência organizada
dos patriarcas, unida pela consanguinidade, memória e adoção do pacto
de Deus.

8 Davi agora recita as palavras do autorretrato divino em Ê xodo 34.6:


Moisés cham ou de “sua glória” e o E u S o u cham ou de “m inha bondade”
(Êx 33.18,19).18 Compassivo (cf. v. 4) e misericordioso (i.e., “concede um favor
que não pode ser reivindicado”). Muipaciente literalmente significa “longo
de face” (i.e., uma face relaxada), significando paciência. A pessoa paciente
é relaxada quando injustiçada e controla as emoções para pensar e agir
de acordo com a gentileza e ética. Com Deus, isso é um a benevolência

16 Isso pode ser por causa da balança desonesta (Os 12.7,8[8,9]), por meio do sis-
tema judicial (v. Mq 2.2; 6.9-12: 7.1) ou pela retenção do salário de um homem
contratado, pobre, que necessita dele antes do pôr do sol (Dt 24.15).
17A forma pl. pode significar filhos de ambos os sexos (Haag, T D O T , 2:150, s.v.
bêri).
18 O credo ocorre em Êxodo 34.6; Salmos 86.15; 103.8; 145.8; Joel 2.13; Jonas 4.2;
Neemias 9.17.
300

conceder aos pecadores a oportunidade do arrependim ento (Jn 4.2). Cheio


de amor dem onstra que o am or de Deus excede o das pessoas.

b) A ira do Eu Sou tem limites, 9,10


O s versículos 9,10 são unidos para ampliar o perdão e o am or do E u
S o u p o r meio de litotes.

9 Acusa (i.e., “reclamar o direito de”) contem pla a situação em que a


parte ofendida faz um a reclamação oral contra a parte considerada res-
ponsável pela ofensa. Sem cessar (nesah, v. 9a) se refere à perpetuidade sem
limites;para sempre (côlãm, v. 9b) se refere ao futuro mais remoto. A raiz ntr,
traduzida com o nem fica ressentido, ocorre só outras 4 vezes e pertence ao
domínio semântico de “ficar irado” (cf. Lv 19.18). A tradução “guardar
rancor” é questionável, pois se baseia em um provável hom ônim o que
denota “guardar, m anter” (cf. Ct 1.6; 8.11,12).19

10 Pecados (hãta) literalmente significa “errar [o alvo]” (cf. Jz 20.16). Com


respeito ao com portam ento ético, o pecado é “o erro desqualificador”,20 de
m odo específico “contra alguém com quem se está em uma relação insti-
tucionalizada na com unidade”.21 Retribui (cf. 2Sm 22.21) traduz um verbo
significando realizar um ato que influencia alguém de maneira favorável
(cf. Pv 31.30) ou desfavorável (v. Pv 3.30).
c) O amor do Eu Sou não tem limites, 11,12
Dois sorrisos espaciais conectam essa quadra. N o eixo vertical, o amor
de Deus é “grande” para com quem o teme (v. 11) e no eixo horizontal,
ele “afasta” para longe deles suas transgressões (12).

11 Pois ou “certam ente” apresenta um argum ento analógico, não


lógico. E k va m acima às vezes tem o sentido de “prevalecer sobre”, mas
esse sentido é inapropriado para pessoas que se sujeitam à vontade divi-
na. Para com os que 0 temem tem um aspecto racional: a revelação objetiva
pode ser ensinada e m em orizada (SI 34.11[12]ss.; cf. 19.7-9[8-10]). Isso

19 Em The Concise Dictionary of ClassicalHebrew, David Clines, org. (Sheffield: Phoenix,


2009), p. 271, s.v. ntr, cf. entradas #1 e #2.
20 M. Saebo, T L O T , 1:406-408, s.v. h f .
21 K. Koch, T D O T , 4:311, s.v. h ã ta .
301

tam bém tem um aspecto emocional: as pessoas respondem a D eus com


tem or e amor, confiando que ele cum prirá suas ameaças e promessas.22
Isso restringe o Israel nom inal ao verdadeiro Israel com o os beneficiários
da graça de Deus.

12 E m sentido etimológico, 0 oriente significa “o lugar em que o [sol]


nasce/resplandece” e 0 ocidente significa “o lugar do pôr do [sol]/do anoi-
tecer”. Nossas transgressões denota “a violação intencional, consciente da
lei ou padrão” .23
2. Com referência ao tempo, 13-18

a) A compaixão do Eu Sou pelos mortais, 13,14


13 Como um p a i [...] filhos se aplica a muitos, mas não a todos os pais.24

14 A razão para a misericórdia é a mesm a que fez D eus não decretar


outro dilúvio (G n 8.21)25 e a razão de Moisés para que D eus o perdoasse
(Êx 34.9): a saber, as limitações da natureza humana. Lembra-se (v. 98.3)
de que somos p ó se refere à sujeira difusa (Ez 24.7) na superfície do solo e
alude a Gênesis 2.7. O pó está associado à m orte e ignomínia (G n 3.19;
SI 22.29[30]; cf. G n 3.14; ISm 2.8; lR s 16.2; Is 47.1; SI 7.5[6]; 22.15[16];
44.25 [26]; 119.25).
b) A brevidade dos mortais, 15-16
15 Λ vida do homem traduz >enõs (i.e., a humanidade em sua fragilida-
de; v. SI 90.3). É semelhante à relva (cf. SI 90.5,6; Jó 14.2; Is 40.6; 51.12)
com preende a imagem eficiente que provoca desolação devido à breve
expectativa de vida do mortal.

16 Q ue se vai quando. Sopra rem em ora quando Deus passou pelo Egito
com a m orte (Êx 12.12-23). O vento conota a adversidade imprevisível e

22Bruce K. Waltke, Proverbs 1— 15, NICOT (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 100s.
23 Robin C. Cover, “Sin, Sinners (OT)”, A B D 6:32.
24 Davi teve pena de seus filhos devido a um erro: Amnom (2Sm 13.2-19), Absalão
(2Sm 18.5-33) e Adonias (lRs 1.6).
25 E Delitzsch, Psalms, trad. Francis Bolton, Keil and Delitsych Commentary on the Old
Testament 5 (London: T&T Clark, 1866-1891; reimp., Peabody: Hendrickson, 1996),
p. 648.
302

repentina. A personificação e nem se sabe mais 0 lugar (onde isso ocorreu)


que ocupavfb lembra as reflexões desconsoladas do pregador sobre a m orte
(v. Eclesiastes).
c) O amor do Eu Sou é eterno, 17,18
Os m ortais não podem garantir que o am or infalível do E u S o u con-
tinuará de geração em geração, mas o Deus eterno pode. Além disso, há
a reciprocidade entre a iniciativa do E u S o u e a resposta humana.

17 Eterno (eternidade passada/eternidade futura; v. os SI 90.2; 100.5).


Os filhos dos seusfilhos ecoa as palavras do E u S o u após o incidente do be-
zerro de ouro (Êx 34.7). Ali, a expressão se refere de m odo específico à
terceira e quarta geração dos culpados impenitentes, mas aqui se refere
às mais de mil gerações dos perdoados que guardam a aliança do E u Sou.

18 Com os queguardam (v. 99.7; cf. Êx 34.11). Λ sua aliança alude aos D ez
M andamentos, acom odados na arca sagrada (cf. Ê x 34.28; D t 10.1-5).2627 O
sentido preciso de preceitos (piqqüdim) é incerto devido às 3 ocorrências
partilharem o mesm o contexto.
Estrofe C: A soberania do Eu Sou, 19
Estabeleceu (v. 93.1) significa aqui “fixar em uma base firm e”.28 O seu
trono (SI 93.2) simboliza “a autoridade, poder, majestade e esplendor do
rei”29 com o guerreiro, adm inistrador da justiça e edificador (v. p. 18). N o s
céus denota “o domínio inalterável acima da elevação e queda das coisas
embaixo”.30 E como rei se refere ao reino universal do E u Sou, não ao seu
reino particular, Israel.31

26 HALOT, 1:700, s.v. nkr.


27 O fato teve formulação mais ampla no Livro da Aliança (Êx 24.70) e ampliação mais
plena no Livro da Lei (v. Bruce K. Waltke, “AJanus Decalogue of Laws from Homicide
to Sexuality [Deuteronomy 22:1-12]”, em: For the World Essays in Honor of RichardL·
PrattJr., Justin S. Holcomb; Glenn Lucke, orgs. [Phillipsburg: P&R, 2014], p. 3-19).
28Sobre o reino do E u Sou (ISm 13.13; 2Sm 7.12; lC r 17.11), sobre seu trono
(Is 9.7) e sobre o mundo (Jr 10.12).
29 Leland Ryken: James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., Dictionary of Biblical
Imagery. Downers Grove: IVP Academic, 1998, p. 868.
30 Delitzsch, Psalms, p. 648.
31 No reino universal, o E u Sou “domina sobre o [universo] todo” (isto é, exerce
sua vontade sobre tudo e em todo lugar, v. 19) sem considerar o consentimento
303

Estança III: Proclamação a tudo, 20-22


A referência ao trono do E u S o u nos céus e seu dom ínio sobre tudo
prossegue para a convocação dos anjos no céu (19a,20ss.) e de tudo em
seu dom ínio (19b,21) para louvar. A conexão, enfatizada pelo jogo de
palavras sobre “governo” e “dom ínio” (v. p. 296), sugere que o E u S ou
exerce sua soberania p o r meio da hoste angélica.
Estrofe A: Aos anjos que cumprem a sua vontade, 20,21
“Vi o E u S o u assentado em seu trono, com todo o exército dos céus ao
seu redor (lR s 22.19; 2Cr 18.18)”.32 “Exército dos céus” (v. 21) distingue
“anjos” (v. 20; cf. SI 148.2).

20 A n jo s significa “m ensageiros” . Esses seres são usados muitas


vezes com o correios (v. p. 101, nota 82). Podem os inferir bastante a res-
peito desses mensageiros do E u S o u na corte celestial de acordo com os
mensageiros hum anos na corte do rei na terra. O s mensageiros tinham
facilidade com idiomas variados e desempenhavam muitas funções: diplo-
matas, soldados, agentes régios, com andantes militares, agentes secretos,
carteiros, acom panhantes e agentes provocadores. “O correio profissional
deveria ser corajoso e ousado, seu treinam ento deve ter incluído o estudo
de estratégia e táticas militares”.33 Poderosos são soldados da elite militar.34
Q ue obedecem à sua palavra dem onstra que o rei exerce sua soberania através
desses espíritos da elite celestial (Hb 1.14).

21 Exércitos é acrescentado a hostes na tradução para distinguir os


exércitos celestiais dos exércitos hum anos (cf. ISm 17.45). O s exércitos

humano (cf. D n 4.3). Nesse reino, o Soberano até distribui às nações suas deidades
(Dt 4.19; 29.26) e estabelece todas as autoridades governamentais (Rm 13.1). Nesse
particular, o reino do E u S o u exerce sua vontade através dos seres humanos, que
se sujeitam a seu domínio. O salmo não tenta resolver o mistério da responsabi-
lidade humana incorporada em sua soberania.
32 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f Biblical Imagery, p. 869.
33A. D. Crown, “Tidings and Instructions: How News Traveled in the Ancient Near
East”, / E 5 / / 0 17 (1974): 244-71, esp. 254-66; v. A. D. Crown, “Messengers and
Scribes”, V T (1974): 366-70.
34A palavra hebraica para “poderoso” foi aplicada a Ninrode (Gn 10.8), a Golias
(ISm 17.51), aos três soldados valentes de Davi (2Sm 23.9), ao rei (SI 45.3[4]), ao
Messias (Is 9.5) e a Deus (Dt 10.17; SI 24.8; Is 20.21).
304

na imaginação do poeta podem estar conectados com as estrelas “por


causa do núm ero infinito de estrelas [cf. Is 40.26], a luz brilhante delas, a
força e a identidade delas com o rei específico”35 (cf. SI 33.6; Is 40.25,26;
N e 9.6). As estrelas tam bém cum prem a ordem do E u S o u Qó 9.7), travam
suas batalhas (Jz 5.20) e o louvam Qó 38.7; SI 148.3). Seus servos (nfsãrtãyw )
denota aqueles na corte celestial “que ministram ou servem a alguém” (cf.
H b 1.14). N enhum a distinção hierárquica é intencionada pela qualificação
“seus espíritos m inistradores”, mas deve haver um a distinção intencional
entre eles e os anjos caídos (2Pe 2.4; Jz 6; Ap 13.4). Vontade tam bém sig-
nifica “propósito” .36
Estrofe B: A Tudo, 22a
22 O soberano tam bém cum pre sua vontade e propósito por meio
de suas obras, com o o vento e os clarões reluzentes (104.4). Todas as suas
obras (v. SI 92.3) são suas porque ele de fato as fez. O poeta personifica o
louvor da humanidade evocado por suas obras (v. p. 33-4). Tudo em todo
lugar {em todos os lugares) funciona de acordo com seu bom propósito, pois
tudo pertence a seu domínio (cf. “reino”, v. 19).
Estrofe C: A si mesmo, 22b
Veja v. 1.

Parte III. A voz da igreja em resposta

I. Introdução
Semelhante aos salmos 1 e 2, este é um dos salmos fundamentais de
todo o saltério, um dos grandes hinos de louvor. A postura do salmo 103
é a postura de todos os grandes pais da igreja, de A gostinho de H ipona
a M artinho Lutero, João Calvino e Roberto Belarmino. É uma falha da
erudição liberal hoje não ter “emoções cristãs” despertadas pelo salmo 103,
pois ela descreve apenas a postura física, o “louvor da garganta” e ou-
tras descrições cognitivas. A postura criadora do salmo, ao dem onstrar
que fom os criados para ser a imago D e i — “louvor diante de D eus” — é
ignorada. Entretanto, as gerações anteriores de comentaristas viram nele,
35 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f Biblical Imagery, p. 372.
36 N. Walker, “The Renderings of R ãsôn”,J B L 81 (1962): 184.
305

com acerto, a centralidade do louvor, com o um hino talvez entoado pelo


próprio Davi.
O salmo 103 começa com o um soliloquio dirigido duas vezes a “mi-
nha alma” (v. 1,2). A expressão é repetida 7 vezes nos salmos 103 e 104,
indicando a liberdade dos adoradores de explorar o âmago do ser diante
do E u Sou. A repetição pretende explorar as 5 virtudes da alma: o âmago
do ser, o exercício dos olhos, o elã vital do corpo, a alegria do E u Sou e
os recônditos profundos do coração. Estes são reconhecidos no Talmude,
cujos eruditos tam bém distinguem as 3 virtudes da alma: física, intelec-
tual e espiritual. Isto é, “m inha alma” toda — “m eu ser” . Mas o segundo
clamor do versículo 2 reconhece que as virtudes da alma identificadas no
versículo 1 necessitam ainda do perdão divino para recuperar a inocência
originária, pois o louvor é dirigido a “seu santo nom e”. Então, o versículo 3
aplica duas descrições do estado da alma: iniquidade e doença: A primeira
precisa de retribuição, a segunda precisa de cura.
II. Agostinho de Hipona (354-430)
A gostinho de H ipona pregou sobre o salmo 103 [= LXX, 102] em
Cartago por ocasião de um festival de m ártir por volta do ano 411.37 Sua
audiência estava em estado de lam ento reverente e temor, mas A gostinho
podería confortá-los: “A voz da alma jamais precisaria ficar em silêncio,
pois ela bendiz o Senhor”. Bendizemos ao E u J b í/“p o r toda dádiva que
ele nos concede, por toda consolação que ele envia, pelo perdão que sus-
pende a punição [...] e por todas as suas obras [da criação]”.38 A gostinho
convida a audiência a expressar gratidão, a explorar a bondade de Deus,
apesar da tentação à indolência ou incredulidade. O convite é repetido para
que jamais esqueçamos “nenhum a de suas bênçãos”. Com essa seriedade,
urgência e plenitude de ser, jamais reagimos o suficiente.
O que é a alma?
Tudo está incluído no que chamamos “a alma”. Isso é mais que qual-
quer órgão do corpo, mais que a voz, os gestos corporais ou até a mente ou
o espírito. Ela abrange todas as nossas ações, com o o apóstolo nos exorta:
“Q uer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo

37 E xposition o f Psalm 102, em: E xpositions o f the Psalms, trad. Maria Boulding (Hyde
Park: New City, 1990), vol. 5, p. 78, n. 1.
38 Ibid., 1 (Boulding, p. 78).
306

para a gloria de D eus” (lC o 10.31). D espertos ou dorm indo, em silêncio


ou falando, som os chamados a ser pessoas que louvam.39
A gostinho prega para a audiência que lembra os tipos de mártires que
raras vezes temos hoje no O cidente e pouco pensam os a respeito. Seu
louvor era o de quem haviam entregado a vida pelos amigos (ljo 3.16).
Ninguém pode dem onstrar am or maior do que esse do que dar a vida pelos
seus amigos. Mas podem os retribuir a D eus de alguma form a, quando
tudo que som os — nossa existência e dons — consiste em todas as “suas
bênçãos” para nós? M esmo com respeito ao nosso ser, D eus nos fez, e ele
nos fez hum anos, não animais. Tal é a nossa necessidade de “humildade,
[...] obediência, [...] adoração religiosa”.40 “Pense então, m inha alma, sobre
todas as form as em que D eus tem lhe retribuído, mas pense a respeito
delas no contexto de todas as suas más ações” .41
Como podemos retribuir a Deus?
Consciente disso, os mártires buscaram a dádiva que poderíam ofere-
cer a D eus e quase se desesperaram quando não encontraram nenhum a.
Eles se maravilharam: “Com o posso retribuir ao Senhor toda a sua bon-
dade para comigo?”.
Eles não encontraram nenhum meio para retribuir, exceto um: “Er-
guerei o cálice da salvação” (v. SI 116.13). Eles não poderíam dar a Deus
dos próprios recursos, apenas dos dele. A gostinho afirma: “Se você olhar
para si m esm o a fim de encontrar os meios de retribuição, tudo que lhe
der será pecado. A retribuição que ele deseja não é dos seus recursos, mas
disto: [...] Torne a verdade sua retribuição e louve o Senhor em verdade”.42
N ossa resposta deveria ser meditar de verdade sobre a oração de
Jesus no Jardim do Getsêmani: “Se for possível, afasta de mim este cáli-
ce” (Mt 26.39). É isso que os mártires imitaram na identificação com os
sofrimentos de Cristo. N o entanto, Jesus desafiou os discípulos: “Podem
vocês beber o cálice que eu vou beber?” (Mt 20.22). A gostinho exorta:
“A dorem plenam ente cientes de que vocês receberam tudo que oferecem.

39 Ibid., 2 (Boulding, p. 78-9).


40 Ibid., 3 (Boulding, p. 80-1).
41 Ibid., 4 (Boulding, p. 81).
42 Ibid. (Boulding, p. 81).
307

Que sua alma bendiga o Senhor de form a sábia, que vocês não se esqueçam
de todas as formas em que ele os retribuiu” .43
Cristo, o curador onipotente
O salmo cita as formas que Deus nos retribuiu. O pecado é com o urna
doença que deteriora tudo. Ele a cura por meio do perdão. Isso parece uma
doença, mas é um complexo de doenças. Temos “carne fraca”, suscetível a
e golpeada por muitas tentações. “‘[Essas doenças] são formidáveis’, você
afirma; mas o médico é mais formidável. U m doutor onipotente nunca
é confrontado por um a doença incurável. Tudo que você deve fazer é se
perm itir ser curado”.44 O salmista nos garante, o E u S o u “resgatará sua
vida da corrupção”, depois que ele tiver “curado todas as suas doenças”.
Ele, que nos ama, não nos curará totalm ente?45
O Eu Sou coroa você para a vitória que ele conquistou em você!
Sendo compassivo, o E u S o u nos coroa com sua piedade e misericórdia
(v. 8). “Fom os derrotados em nós mesmos, mas vitoriosos nele”. Esses
são alguns dos paradoxos a respeito de Deus! O apóstolo podería admitir:
“Trabalhei mais do que todos eles; contudo, não eu, mas a graça de Deus
com igo” (IC o 15.10); “Term inei a corrida, guardei a fé” (2Tm 4.7). “N ão
há espaço para orgulho”, apenas o louvor incessante devido à bondade
excessiva de Deus. “D eus fez todas as coisas excessivamente boas na cria-
ção [...] N os faltam palavras para expressar o quanto ele é bom , portanto,
aclamamos com alegria, para expressar inarticuladamente o quanto ele é
bom ”.46
Sendo renovados como a uma águia
N o m undo de Agostinho, havia um m ito que ao envelhecer a águia,
seu bico crescia em excesso, im pedindo-a de comer. Para evitar isso, a
águia quebrava o bico para renovar a vida. A gostinho usa essa ilustração
para expressar que os cristãos m orrem em Cristo enquanto ainda vivos,
capacitando-os a viver à luz da ressurreição.47 U m jovem casal me disse

43 Ibid. (Boulding, p. 82).


44 Ibid., 5 (Boulding, p. 83).
45 Ibid., 6 (Boulding, p. 83).
46 Ibid., 8 (Boulding, p. 87).
47 Ibid., 9 (Boulding, p. 89-90).
308

pouco tem po atrás que o casam ento deles estava “m orto” . Para espanto
deles, respondí: “Q ue maravilhoso, agora vocês podem contrair um novo
casamento ‘em Cristo’ E é isso que aconteceu. O casam ento deles foi
“renovado com o a águia!” .
Agostinho comenta que apenas o Deus trino pode “satisfazer nosso
anseio por boas coisas”, pois sua paternidade não é paternidade humana que
pode ser deficiente. Ela é divina. N em ele dorme sem ouvir nossos clamores.
Expressando desejo humano, Filipe perguntou a Jesus: “Mostra-nos o Pai,
e isso nos basta” . Mas Jesus lhe disse que aqueles que o tinham visto ha-
viam visto o Pai e que o Espírito Santo tam bém comunicaria o Pai a nós
0o 14.8,9,26). Agostinho, que havia escrito um tratado profundo sobre
a santíssima Trindade, na velhice, agora confessa: “Tenho alguma noção
sobre a Trindade. Mas é com o olhar para um reflexo confuso no espelho.
[...] Mas quando ficarei satisfeito?” .48
Exija justiça apenas se nada houver em você que mereça punição
O Deus que pratica misericórdia em profusão nos ordena a am armos
nossos inimigos. Agostinho responde à reação natural da audiência: “Como
posso fazer isso?” . Primeiro, ele diz, certifique-se de não ser o ofensor por
culpá-lo. Segundo, como no incidente da mulher adúltera, certifique-se de não
ser adúltero tam bém em seus pensam entos 0 o 8.7). Terceiro, lembre-se de
que a misericórdia de D eus é para todos, até mesm o para os corvos, que
por sua vez alimentaram Elias. Quarto, com preenda que D eus concede
bênçãos a quem vive de m odo imoral, portanto, se o seu inimigo tiver
fome, dê-lhe de com er (Rm 12.20). Ele acrescenta: “N ão perm ita que
seus instintos de compaixão perm aneçam dorm entes [...] afinal temos
dois nomes: ser hum ano e pecador”.49
Portanto, quem quer que dê um copo de água em nom e de Jesus age
com o Jesus agiría (Mt 10.41,42). A vida cristã consiste em dem onstrar
misericórdia, praticar misericórdia e ser misericordioso, porque tudo que
podem os expressar a respeito de Deus é compaixão.
O propósito misterioso de Deus ao conceder a lei
“A lei”, afirma Agostinho, “foi concedida para que a enferm idade do
paciente pudesse ser diagnosticada e para que ele pudesse im plorar a ajuda

48 Ibid. (Boulding, p. 90).


49 Ibid., 12 (Boulding, p. 94).
309

do doutor”.50Pois com o o apóstolo reconheceu “havia um a guerra dentro


dele” e ansiando por paz no estado deplorável que ele estava, clamou:
“Q uem me libertará do corpo sujeito a esta m orte?” (Rm 7.23-25). Esse
mistério profundo é com partilhado conosco, argumenta Agostinho, “que
com o o pecado se multiplicou, os soberbos deveríam ser humilhados e
sendo humilhados deveríam confessar e tendo confessado, eles seriam
curados” .51
A longa paciência de Deus
E m relação ao versículo 9, A gostinho pergunta: “Jamais poderia
haver um exemplo mais formidável de paciência do que D eus teve com
seu povo?” Mas devemos ser cuidadosos para que essa ira não desça de
repente sobre nós. D eus é imutável e não deve ser zombado. Com o o
apóstolo ensina: “Com o os outros, éramos p o r natureza merecedores da
ira” (E f 2.3). Essa “ira” com eçou no jardim do Éden: “Com o suor do
seu rosto você com erá o seu pão, até que volte à terra” (G n 3.19). Mas o
salmo tam bém nos conforta que “O Senhor não acusa sem cessar nem
fica ressentido para sem pre” (v. 9).52 N ão recebemos o que merecemos.
“O Senhor consolida sua misericórdia para aqueles que o temem. E m
que medida? N a proporção da altura do céu acima da terra”. É com o se
A gostinho soubesse das descobertas da ciência da atmosfera m oderna,
que há uma camada de ozônio que torna possível que o planeta terra seja
uma habitação humana. Sim, ele argumenta, somos, às vezes, tentados a
crer que D eus nos despreza, mas isso “só seria verdadeiro se o céu fosse
removido da terra”.53
Por que Deus removeu nossos pecados de nós? D e fato, “Com o um
pai tem compaixão de seus filhos, assim o E u S o u tem compaixão dos
que o tem em ” (v. 13). O E u Souse, lembra de que somos pó. A gostinho
novam ente se refere à história de Gênesis, quando D eus soprou o pó da
terra para criar o hom em .54 N ossos dias, portanto, são com o a relva que
surge por um m om ento então m orre e seca. A glória humana é, como Isaías
diz, “com o as flores do cam po”. A relva murcha, e as flores caem, mas

50 Ibid., 15 (Boulding, p. 97).


51 Ibid. (Boulding, p. 98).
52 Ibid., 17 (Boulding, p. 99).
3‫ כ‬Ibid., 18 (Boulding, p. 100).
54 Ibid., 21 (Boulding, p. 102).
310

a palavra de nosso D eus perm anece para sem pre” (Is 40.6-8). “O vento
soprará sobre eles — na ruína e destruição — e nem se sabe mais o lugar
que ocupava”, com o de fato podem os testem unhar nos sítios arqueológi-
cos no O riente Médio hoje. Mas A gostinho admira: “Toda carne é apenas
relva, no entanto, a Palavra se fez carne” (Jo 1.14).55 Evidentem ente não
há espaço para o orgulho humano.
Na justiça absoluta de Deus, o amor cumpre a lei
A justiça redentora de D eus é para os filhos dos filhos. Aqui, Agos-
tinho interpreta “filhos” com o ações humanas e as recom pensas dessas
ações são “os filhos dos filhos”. Por “m em ória” — isto é, a observância
contínua — guardamos sua aliança, não se preocupando sobre cum prir
“todas as leis”. O fato essencial é praticar o am or constante. “O objetivo
da instrução é o am or procedente do coração puro, da boa consciência e
da fé sincera” (lT m 1.5). O versículo 19 conclui a estança ao declarar que
ele, que desceu e ascendeu agora, é o soberano Senhor de todos e será
soberano para sempre.56
Louvor angélico
O salmo 103 estende a esfera do governo de Deus ao interior do nosso
próprio coração e sobre Israel para ser sobre o cosm o inteiro, a saber, os
anjos, arcanjos e toda a habitação de Deus. O ministério angélico consiste
em obedecer à palavra de Deus, cumpri-la e cum prir totalm ente a vontade
divina. “Todas as suas obras” louvam seu D eus Criador, o Soberano de
todos. N ão há local onde não exista sua presença e onde sua vontade não
seja feita. Ele abençoa em caráter universal.57
Por fim, com o alfa e ômega, o último versículo term ina com o o pri-
meiro versículo começou: “Bendiga ao E u S o u a minha alma!”.58
III. João Calvino (1509-1564)
Jean Cadier, um biógrafo de João Calvino, chamou o reform ador suíço
de “The M an God M astered’ [O hom em preparado por Deus].59 Calvino

55 Ibid., 22 (Boulding, p. 102-3).


56 Ibid., 23ss. (Boulding, p. 103ss.).
57 Ibid., 28-29 (Boulding, p. 105).
58 Ibid., 29 (Boulding, p. 106).
59Trad. O. R. Johnson (Grand Rapids: Eerdmans, 1960).
311

tinha horror de quem pregava as próprias idéias em lugar do evangelho


das Escrituras.60 N a reflexão de Agostinho, João Calvino reconhece que
Deus é santo e nós não. E ste é o sentido p o r trás da “depravação total”
do hom em diante da santidade majestosa de Deus. Com o ele declara nas
Instituto.si “A verdadeira humildade confere som ente a D eus a glória [...]
Com o nossa humildade é sua imponência, assim a confissão de nossa hu-
mildade tem pronta uma solução em sua misericórdia”.61 Calvino concorda
com a afirmação de João Crisóstomo: “O fundam ento de nossa filosofia
é a hum ildade”. Mas ele prefere a abordagem de Agostinho: “Q uando
certo retórico foi perguntado qual era a principal regra da eloquência, ele
respondeu: “ ‘Hum ildade’ [...] a segunda regra, ‘H um ildade’ [...] a terceira
regra, ‘H um ildade’; se você me perguntar concernente aos preceitos da
religião cristã, o primeiro, o segundo, o terceiro e sempre, eu diria que é
a ‘hum ildade’ ”.62 Por “hum ildade” A gostinho quis expressar a “liber-
dade da autoconsciência”. Q uando um líder de adoração da igreja exibe
a autoconsciência, ele não conduz a verdadeira adoração. O problem a
é pior quando a congregação aplaude o coral da igreja pela boa música
ou quando a congregação se aplaude; então a adoração se torna idólatra.
Porém, lamentavelmente, esse é um acontecim ento semanal em muitas
igrejas. D e acordo com Calvino, só o humilde pode louvar a Deus por
todas as suas bênçãos. Esses o louvarão no curso inteiro de sua vida. Os
israelitas falharam sempre em fazê-lo e só quando vivemos “em Cristo”
não falhamos da mesm a forma. Cristo nos abençoa em sua humildade
em relação a nós.
Se o m istério da Trindade sustenta o fundam ento doutrinário da
exposição de A gostinho do salmo 103, para Calvino a sustentação é a
doutrina da justificação pela graça, p o r meio da fé. C ontudo, mesm o
antes de Calvino, os reform adores franciscanos na Espanha na nova uni-
versidade de Alcala, dirigida pelo cardeal Cisneros, prim ado da Espanha,
sob a rainha Isabella, estavam desenvolvendo essa doutrina básica. U m

60Burk Parsons, “The H um ility o f C alvin’s Calvinism”, em: John Calvin, A H eart fo r
Devotion, Doctrine, & Doxology (Orlando: Reformation Trust, 2008), p. 8.
61 Institutes o f the C hristian Religion, John T. McNeill, org. (Louisville: Westminster,
1960), vol. 1,2.2.11 [edição em português: A s instituías da religião cristã (São Paulo:
Unesp, 2008)].
62 Citado por Burk Parsons, “The Humility o f Calvin’s Calvinism”, p. 11-2.
312

jovem graduado de Alcala, Juan de Valdes (c. 1498-1541), escreveu sua


tese sobre a doutrina da justificação em 1529. Suspeito de heresia pelos
dominicanos, ele fugiu para a Itália a fim de conflagrar um movim ento
reformista calvinista secreto chamado IIBeneficio di Christo — “O beneficio
de Cristo” — e até persuadir mais tarde o cardeal Contarini no Vaticano
a convocar um concilio dos reform adores para chegar a um acordo sobre
a doutrina da justificação.63
IV. William Swan Plumer (1802-1880)
O clérigo e teólogo americano do século 19 William Swan Plumer
concorda com a análise de M atthew Henry: “Este salmo requer mais
devoção que exposição” .64 Ele observou com sabedoria: “Q uem , com o
coração caloroso, [...] entra em seu espírito em qualquer versão existente,
é mais enriquecido por ele e tem m elhor com preensão dele que a pessoa
que, com o coração frio, pode analisar de form a crítica cada palavra no
original e em cada das muitas traduções concedidas a nós por muitos eru-
ditos m aduros”.65 Portanto, Plumer, ao orar sobre o salmo na conclusão de
seu comentário, afirma: “ ‘N ão im porta o que os outros façam, permita-
-me servir a m eu Deus. N ão im porta o que os outros amem, permita-m e
amar m eu Redentor. N ão im porta em que os outros se gloriam, perm ita
a mim me gloriar no Senhor’. Esta é a m inha primeira e mais magnífica
atividade. Bendiz ao Senhor, minha alma” .66
Ao refletir sobre o versículo 22, Plumer conclui:
Dado que o Todo-poderoso jamais é prejudicado por meios, agentes ou
instrumentos para realizar sua santa vontade e cumprir seus propósitos
benditos, assim, ele também nunca será prejudicado por quem lhe bendiz
o nome, versículos 20-22. Há a inumerável companhia dos anjos. As
vozes deles nunca estão em silêncio. Mas se eles se tornassem mudos,
os homens redimidos o louvariam. E se toda a criação inteligente se
mantivesse em silêncio, as próprias pedras clamariam e os planetas e as

63 Veja Leon Morris, introdução de The Benefit o f Christ: h ivin g Justified Because o f
C hrist’s D eath, }a m es M. Houston, org. (Pordand: Multnomah, 1984).
64 Studies in the Book o f Psalms. Philadelphia: J. B. Lippincott & Co., 1866, p. 913.
65 Studies in the B ook o f Psalms, p. 913.
66Ibid.,p. 919.
313

estrelas fixadas se tornariam vocais e encheríam a abóbada azul acima


de nós com melodia inexprimível”.67

Plum er escreveu essas palavras no contexto da era newtoniana da


astrofísica, quando o deísmo começava a silenciar o louvor a Deus na
cultura. E m contraste com essa trajetória cultural, que só obteve impulso
em nossa época, nosso resum o histórico nos encoraja a estudar o salmo
103 com uma voz humilde e sacrificial. H enry Lyte adaptou o salmo para
a hinódia inglesa:
I. Louve, minha alma o Rei do céu;
Aos seus pés traze o teu tributo.
Resgatado, curado, restaurado, perdoado,
Q uem com o eu podería cantar ao seu louvor?...
Louve o Rei eterno.

II. Louve-o por sua graça e favor


Aos nossos pais em aflição.
Louvem-no. Ele é o mesm o para sempre,
Lento para repreender e rápido para abençoar...
G lorioso em sua fidelidade.

III. Frágeis com o a flor do verão, florescemos;


Sopra o vento e ela desaparece;
Mas em bora os m ortais surjam e pereçam,
Deus continua imutável...
Louvem o Altíssimo eterno.

IV. Com o a um pai ele cuida e nos poupa;


Bem, nossa frágil estrutura Ele conhece.
E m suas mãos Ele gentilm ente nos sustenta,
N os resgata de todos os nossos inimigos...
Am plam ente tam bém sua misericórdia flui.

V. Anjos, nos ajudem a adorá-lo;


Sim, contem plem -no face a face;
Sol e lua, curvem -se diante dele;
Povos todos no tem po e no espaço,...
Louvem conosco o D eus de graça.

67 Ibid.
314

Parte IV. Conclusão

I. Contexto canônico
Os editores do saltério anexaram esse hino ao salmo 102 de lamento
porque am bos refletem sobre a mortalidade humana, com o a relva que
seca (102.4[5]; 103.15) em contraste com o ser eterno de D eus e sua mi-
sericórdia (cf. 102.11-13[12-14],24-28[25-29]; 103.15-19). Mas de outras
formas eles são tão diferentes um do outro com o a coruja do deserto
(102.6,7) é da águia que voa (103.5). O salmo 103 introduz um grupo de
salmos associados ao louvor (SI 104— 107). Ele term ina com o tema da
soberania de D eus sobre sua criação e o salmo 104 introduz da mesma
form a e prossegue esse tema.
Talvez, a cura particular de Davi de um a doença term inal tenha pro-
vocado esse cântico de louvor, mas ele não é um cântico de ação de graças
para celebrar a libertação histórica individual (v. p. 19). Ao contrário, é um
hino de louvor a Deus por todas as suas bênçãos, incluindo a vida eterna
concedida aos santos fiéis e à nação fiel. Ele é m uito adequada ao Livro
IV do Saltério, o livro que responde ao exílio que aconteceu devido ao
pecado de Israel (v. p. 28-9). E m sua angústia, Israel encontra esperança em
seu rei eterno e celestial (cf. v. 17ss.) e encontra coragem em sua história,
a com eçar p o r Moisés (cf. v. 7). A o se lem brar e louvar o perdão, a eter-
nidade e o am or leal de D eus neste cântico de reflexão, Israel acrescenta
substância à fé, ardor à virtude e convicção à confissão e é encorajada à
fidelidade na provação.
II. Mensagem
O salmo 103 reflete sobre o perdão divino e o louva por isso (v. 3a) e
pelas bênçãos sublimes, além do que poderiamos pedir ou pensar (E f 3.20).
E m cada estança, o poeta descreve a imensidade dessas bênçãos, concluin-
do com a vida eterna do salmista (sua juventude é renovada com o a da
águia, v. 5) e de Israel (o am or leal a seu povo perm anece por gerações,
v. 17). Essas bênçãos se devem aos caminhos do E u S o u revelados a Moi-
sés: misericórdia, graça, paciência e, em especial, seu am or leal (v. 7,8). Elas
decorrem por inteiro de sua graça, não do m érito de Israel (v. 10). O foco
no perdão pode ser visto pelo fato de o poeta não ignorar a autorrevelação
315

de D eus a Moisés: “Ele não deixa de punir o culpado; castiga os filhos e


os netos [...] até a terceira e quarta gerações” (Êx 34.6,7).
O povo eleito de D eus pode contar com essas bênçãos sublimes por
várias razões. Primeira, o E u S o u as dem onstrou a Israel depois do inci-
dente do bezerro de ouro, com o pode ser inferido das muitas intertextua-
lidades do salmo com esse incidente (cf. v. 7-10; Êx 32— 34). Segunda, ele
é eterno, diferente dos m ortais (14-17). Terceira e última, ele é soberano,
age em todas as coisas de acordo com seu bom propósito, até mesm o por
interm édio de seus anjos poderosos (19-22).
E m nosso tem po, Deus, o Pai, deseja ser conhecido pelo nom e de
Deus, o Filho: o Senhor Jesus Cristo (v.Mt 18.20; Jo 14.13; A t 3.6; IC o 1.2;
Fp 2.10; H b 13.15). Assim, Jesus Cristo é o tem a do louvor do salmo 103
(v. p. 16-8). M ediante a encarnação com o hom em , ele se tornou o verda-
deiro cum pridor da aliança para quem confia nele. Sua vida de obediência
perfeita e m orte expiatória tornam o am or leal de Deus até mais certo.
Israel e a história da igreja — por meio de fadiga e tribulação ao longo de
três milênios — dem onstram que o am or de Deus a quem o teme é eterno,
para os filhos dos filhos até e além do tempo, quando Cristo vier de novo.
13

Salmo 104: Um Deus tão grandioso

Parte I. A voz do salmista: Tradução


D e Davi.1
1 Bendiga ao E u Sou a m inha alma! Ó E u Sou, m eu Deus, tu és tão gran-
dioso! Estás vestido de majestade e esplendor!
2 Envolto de luz com o num a veste, ele estende2 os céus com o um a tenda,3
3 e põe sobre as águas dos céus as vigas dos seus4*7aposentos. Faz das
nuvens a sua carruagem e cavalga nas asas do vento.
4 Faz dos ventos seus mensageiros e dos clarões reluzentes seus servos.
5 Ele firm ou a terra sobre os seus fundam entos para que jamais se abale;
6 com as torrentes do abismo a cobriste, com o se fossem um a veste; as
águas subiram acima dos montes.
7 D iante das tuas ameaças as águas fugiram, puseram-se em fuga ao som
do teu trovão;

1 Assim também, a LXX e Qumran, não o TM.


2 Note a assonância de ‫־‬õteh (“envolto”) e nóteh (“estende”).
3 Lit. “cortina”, mas sempre (c. 50x) cortina de tenda; 43x sobre as cortinas do
tabernáculo.
4 A literatura do Oriente Médio antigo, como na inscrição de Tell Fekherye, altera os
pronomes entre a primeira, segunda e terceira pessoas sem formalmente sinalizar
a alteração de perspectiva (A. Abou-Assaf; P. Bordreuil; Alan Millard, L a Statue de
Tell Fekherye et Son Inscription Bilingue Assyr-A rm enne, Recherche sur les Civilisations
7 [Paris: ADPF, 1982]). Um indicador da liberdade estilística na inscrição de Tell
Fekherye é o fato de a primeira mudança de pessoa não acontecer no mesmo
ponto nas versões acadiana e aramaica. O idioma português não permite essa
alteração pessoal sem sinalizar a alteração.
318

8 subiram pelos m ontes e escorreram pelos vales, para os lugares que tu


lhes designaste.
9 Estabeleceste um limite que não podem ultrapassar; jamais tornarão a
cobrir a terra.
10 Fazes jorrar as nascentes nos vales e correrem as águas entre os montes;
11 delas bebem todos os animais selvagens, e os jum entos5 selvagens
saciam a sua sede.
12 As aves do céu fazem ninho junto às águas e entre os galhos põem -se
a cantar.
13 D os seus aposentos6 celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com
o fruto das tuas obras!
14 E ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o hom em
cultiva, para da terra tirar o alimento:
15 0 vinho, que alegra o coração do hom em ; o azeite, que faz brilhar o
rosto, e o pão que sustenta o seu vigor.
16 As árvores do E u Sou são bem regadas,7 os cedros do Líbano que ele
plantou;
17 nelas os pássaros fazem ninho, e nos pinheiros a cegonha tem o seu lar.
18 O s m ontes elevados pertencem aos bodes5678 selvagens, e os penhascos
são um refugio para os coelhos.9
19 Ele fez a lua para marcar estações; o sol sabe quando deve se pôr.
5 “Jumento selvagem, menos provavelmente Zebra, da estepe” (The Concise Dictionary
o f Classical Hebrew. Sheffield: Phoenix, 2009, p. 364, s.v. p F ).
6 Note a assonância da consoante hebraica m em m asqeh hãrim m è cãliyotã yw m ipperi
m a asêkã.
7 Y isb e ' (lit. “são satisfeitas”), no contexto da dádiva da água, significa “saciado
[com água]” (cf. v. 13).
8 Ou “bode montanhés”. Veja John McClintock, James Strong, orgs., The Cyclope-
dia o f Biblical, Theological, and Ecclesiastical Literature (orig. New York: Harper and
Brothers, 1894), s.v. “Wild Goat”, disponível em: http://www.biblicalcyclopedia.
com/W/wild-goat.html.
9 O coelho sírio amarelo e marrom (procavia syriacus) vive entre as rochas do vale do
mar Morto até o monte Hermon. Quase do tamanho de uma lebre e com orelhas
pequenas, ele é admiravelmente apropriado para seu habitat. “Ele não tem cascos,
mas tem unhas largas. Os dedos, quatro nas patas dianteiras e três nos membros
traseiros, estão conectados à pele quase que como por uma teia. Sob suas patas
há amortecedores como discos de sucção, que o capacitam a manter-se apoiado
nas patas em rochas escorregadias” (F. S. Bodenheimer, Flora and Fauna in the Bible,
Helps for Translators 11. London: United Bible Societies, 1972, p. 69-70).
319

20 Trazes10 trevas, e cai a noite, quando os animais da floresta vagueiam.


21 Os leões11 rugem à procura da presa, buscando de D eus o alimento,
22 mas ao nascer do sol eles se vão e voltam a deitar-se em suas tocas.
23 Então o hom em sai para o seu trabalho, para o seu labor até o entardecer.
24 Q uantas são as tuas obras, E u SoiA Fizeste todas elas com sabedoria!
A terra está cheia de seres12 que criaste.
25 Eis o mar, im enso e vasto. Nele vivem inúmeras criaturas, seres vivos,
pequenos e grandes.
26 Nele passam os navios, e tam bém o Leviatã, que form aste para com
ele brincar.
27 Todos eles esperam em ti para que lhes dês o alimento no tem po certo;
28 tu lhes dás, e eles o recolhem, abres a ma mão, e saciam-se de coisas boas.
29 Q uando escondes o rosto, entram em pânico; quando lhes retiras o
fôlego, m orrem e voltam ao pó.
30 Q uando sopras o teu fôlego, eles são criados, e renovas a face da terra.
31 Perdure para sempre a glória do E u S 01Â Alegre-se o E u S o u c m seus
feitos!
32 Ele olha para a terra, e ela treme, toca os m ontes, e eles fumegam.
33 Cantarei ao E u S o u toda a m inha vida; louvarei ao m eu D eus enquanto
eu viver.
34 Seja-lhe agradável13 a m inha meditação,14pois no E u S o u ten h o alegria.
35 Sejam os pecadores eliminados da terra e deixem de existir os ímpios.
Bendiga ao E u S o u & m inha alma! Aleluia!

10 Conjugação breve do prefixo que significa uma situação presente.


11 Provavelmente leões jovens que saem sozinhos à procura de presa.
12 Ou “posses, aquisições”. W. H. Schmidt nota que qinyãn consistentemente signi-
fica “posse, propriedade” ÇFLOT, 3:1150, s.v. qnh ), mas pensa que isso signifique
“seres” no Salmo 104 (p. 1152). A mesma ambiguidade existe no verbo qnh. O
paralelo “fizeste”/ “obras” favorece a tradução grega ktisis (“seres”). Este é o
sentido do verbo em Provérbios 8.22, onde ele ocorre, como aqui, em conexão
com “sabedoria” (v. Bruce K. Waltke, Proverbs 1— 15, NICOT [Grand Rapids:
Eerdmans, 2004], p. 408-9).
13O adjetivo/substantivo é usado em relação a sacrifício/oferta (Jr 6.20; Ml 3.4), ao
sono (Jr 31.26; Pv 3.24), aos amantes (Ez 16.37) e a um anseio satisfeito (Pv 13.19).
14Os dicionaristas debatem o sentido de sia h em IReis 18.27 e 2Reis 9.11. Além
do Salmo 104.34, o termo ocorre em um contexto da angústia de uma pessoa
(ISm 1.16; Jó 7.13; 9.27; 10.1; 21.4; 23.2; Provérbios 23.29; Salmos 55.2[3]; 64.1 [2];
102: sobrescrito; 142.2[3]).
320

Parte II. Comentário

I. Introdução

Autor
O salmo 104 é anônim o no TM , mas “de Davi” nos textos da X X e
de Q um ran (v. p. 27-9). O autor adora o E u Sou. Duas vezes ele o chama
“meu D eus” (v. 1,33). A paleta do poeta é colorida com metáforas, símiles,
metonimias; todos os tipos de figura de retórica. O olho dele encontra
os detalhes convincentes. O jum ento selvagem sacia a sede no lago; os
pássaros cantam quando se aninham na folhagem; o leão ruge à noite; o
texugo da rocha se esconde no penhasco inacessível.
Alguns eruditos conectam o salmo ao Grande hino a A to n , que é atri-
buido ao faraó A quenáton (1352-1336 a.G). Mas o A ton, o disco solar,
governa som ente o dia, não a noite “quando a terra está em trevas com o
se na m orte”.15
Forma
O autor identifica seu poem a com o um hino de meditação cantado
com acom panham ento musical. A anáfora virtual “quem ” (e.g., v. 3) se-
guida pelas sublimidades do E u S o u n o s fascina no louvor entusiástico ao
Criador e Sustentador de todas as coisas. Ele usa o verbo no passado só
em relação a Deus com o o Criador, a saber: a criação da terra (v. 5,24aP),
a manipulação do Dilúvio (6-9), a criação da lua e das trevas (v. 19,20).
Mas ele prossegue com o verbo no presente em relação a D eus com o
Sustentador. E m contraste com a maioria dos hinos, ele foca quase que
de m odo exclusivo no ato divino da criação, não na história da salvação,
em bora ele conclua a meditação com a oração: “Sejam os pecadores eli-
minados da terra”. Eles só a corrom pem .
Típico dos hinos, convocações para louvar (v. la,35b) com põem as
razões para louvar (lb-30). A inclusão “Bendiga ao E u S o u a m inha alma”
ocorre apenas em 103.1,22 e 104.1,35. E m vez de com eçar o salmo com
decisões (e.g, “eu cantarei” ou “eu tocarei”) o salmista as inclui só na

15 C O S Í :44-6.
321

“fórmula de contribuição” (v. 33,34).16 A convocação final para “louvar


o E u S o u (35c) aponta para o contexto litúrgico.
O hinista mistura o pronunciam ento direto a Deus (e.g., v. 1,2,5-9)
com proclamações a respeito de Deus (3-5) sem sinalizar a mudança de
perspectiva. Essa anomalia gramatical ocorre em outro contexto na lite-
ratura semítica, nas línguas babilónica e aramaica (v. nota 4) bem como,
de acordo com Gunkel, na poesia egípcia, védica e mexicana.17
Retórica
Seguindo a cosmología tripartite do m undo antigo, o hino reflete
sobre os céus (v. 1-4), a terra (v. 5-23) e o m ar (v. 24-26). D e acordo com
a semântica e a forma, a estrutura do cântico pode ser esboçada como
se segue:

Sobrescrito
Estança I (Introdução): Convocação para a alma bendizer o E u Sou, la
Estança II (Corpo): Causa para louvar, lb-32
Estrofe A: O E u S o u ê grandioso nos céus, lb -4
1. O E u S o u é grandioso e vestido de esplendor
majestoso, lb,2
2. Ele construiu seu templo celestial nas águas celestiais
e cavalga nas nuvens, 3,4
Estrofe B: A supremacia do E u S o u sobre a terra, 5-9
1. Ele estabeleceu firm emente a terra, 5
2. Ele rem oveu o abismo e fixou o mar, 6-9
Estrofe C: O dom do E u S o u das águas que sustentam
a vida, 10-18
1. D a água embaixo, 10-12
a. O E u S o u cria as nascentes, 10
b. O s animais e pássaros que dependem das
fontes de água, 11,12

16 H. Gunkel, J. Begrich, Introduction to the Psalms: The Genres o f the Religious Lyric o f
Israel, trad. James D. Nogalski (Macon: Mercer University Press, 1998), p. 26.
Gunkel, cujas citações são geralmente exaustivas, cita o Salmo 104 como o único
exemplo dessa inversão (p. 28).
17 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 33.
322

2. D a água em cima, 13-15


a. O E u S o u provê a água do céu, 13
b. Vegetação para a hum anidade cultivar, 14,15
3. O habitat protetor para pássaros e animais
vulneráveis, 16-18
a. Arvores para os pássaros, 16,17
b. M ontes e penhascos para os bodes e coelhos, 18
Estrofe D: O E u S o u fez um tem po para tudo, 19-23
1. A lua e o sol, 19
2. Trevas da noite para os predadores, 20,21
3. O dia para o hom em trabalhar, 22,23
Estrofe E: O E u S o u fez as criaturas do mar, 24-26
1. Pequeno resumo, 24
2. O mar, navios e o Leviatã, 25,26
Estrofe F: Todas as criaturas devem a existência ao E u Sou, 27-30
1. O alimento delas, 27,28
2. O fôlego delas, 29,30
Estrofe G (transição): Uma oração para que a glória e
a alegria do E u S o u perdurem para sempre, 31,32
1. Oração pela glória e alegria do E u Sou, 31
2 .0 soberano pode desfazer a criação p o r um olhar
ou um toque, 32
Estança III (Conclusão), 33-35
Estrofe A: Fórmula de contribuição, 33,34
Estrofe B: Oração para que os pecadores sejam eliminados, 35a
Estrofe C: Convocações para louvar, 35b-c
1. A si mesmo, 35b
2. A outros, 35c

A estrutura do salmo percorre quase a sequência dos dias da criação


em Gênesis 1,18 em bora inverta a sequência das criaturas do mar e da terra
para conduzir a meditação do salmista sobre eles no ápice dramático. As

18Luz (v. 2a, dia 1); “firmamento” (v. 2b-4; dia 2); distintos terra e água (v. 5-13);
vegetação e árvores (v. 14-18; dia 3); sol e lua como conservadores do tempo
(v. 19-24; dia 4); criaturas marinhas (v. 25,26; dia 5); animais terrestres e homem
(v. 21-24; dia 6); provisão de alimento para todos (v. 27-30; Gn 1.28,29).
323

pessoas do m undo bíblico temiam o mar acima de todas as coisas e, em


especial, o mitológico Leviatã (v. 26). Todavia, nosso poeta, no ápice, des-
creve os navios a navegar com segurança em sua superfície e desmistifica
o Leviatã: a criatura que se diverte nele.
O poeta adorna o tem a do cuidado do E u S o u pela sua terra com o
núm ero divino. O “E u S o u ” — além das 3 ocorrências na composição
(v. Ia, 35b) — aparece 7 vezes (v. 1,16,24,31 [2x],33,34), com o faz a “terra”
(v. 5,9,13,14,24,32,35).
As 7 estrofes da causa para louvar (v. lb-32) mais ou menos começam
com declarações sumárias reveladas pelas quadras 9v. lb(X + 1όβ-2, 3-4;
v. 5 + 6-7, 8-9; v. 10 + 11-12; v. 13 + 14-15; v. 16 + 17-18; v. 19 + 20-21,
22-23; v. 24 + 25-26, 27-28, 29-30. D e m odo similar, as generalizações
são particularizadas pelos exemplares notáveis: “animais selvagens” (11a)
“jum entos selvagens” (11b), “pássaros” (17a), “cegonha” (17b), “animais
da floresta” (20b) e “leões” (21a). Uma oração de transição para que a
glória do E u S o u perdure para sempre e que o E u S o u se alegre em seus
feitos (31,32) prossegue a causa para louvar nas convocações conclusivas
para louvar (33-35). A arte desse hino com posto magistralmente confere
glória e alegria ao E u Sou.
II. Exegese

Sobrescrito
D e Davi (v. nota 1 e “A utor”, acima).
Estança I (Introdução): Convocação para que a alma bendiga ao
Eu Sou, la
Bendiga ao E u S ou a minha alma! (v. 103.1).

Estança II (Corpo): Causa para louvar, lb-32

Estrofe A: O Eu Sou é grandioso nos céus, lb-4

1. O Eu Sou é grandioso e vestido de esplendor majestoso, lb,2

a) O Eu Sou é grandioso, lba


Tu és [...] grandioso classifica o E u S ou acima de outros deuses (v. 95.3).
D e fato, ele é excessivamente (tão) assim — isto é muito acima do normal.
E m outras palavras, nenhum D eus se com para a ele.
324

b) Vestido em esplendor: Envolto em luz e ele estende os céus, 1όβ,2

1. Vestido em esplendor, Ib p
Sua magnífica vestidura o diferencia. E stás vestido (v. 93.1) é metáfora
da luz e da abóbada celeste, e majestade e esplendor (v. 96.6) são metonimias
de sua vestidura. Q uando os mortais falam da esfera divina, há necessa-
riamente a condição “com o se” .
//. Envolto de luz, 2a
Envolto de lu% como numa veste (salmâ, i.e., a roupa essencial de um a pes-
soa, túnica; cf. Êx 22.26; D t 24.12ss.). Intertextualidades com Gênesis 1
identificam a luz com o a luz física do prim eiro dia da criação. A luz conota
muitas bênçãos: ordem (superação do caos), vida, salvação, segurança,
alegria, bondade, prazer e justiça (SI 97.11; cf. SI 36.9). Por esta razão, no
m onte da Transfiguração, a face do Senhor Jesus brilhava com o o sol e suas
roupas se tornaram brancas ofuscantes, brilhantes com o o lampejo de um
relâmpago (Mt 17.1-8; Mc 9.2-8; Lc 9.28-36). O s apóstolos o com param
com a “luz” que vem ao m undo (Jo 1.4,5; 2Co 4.6).
iii. Ele estende os céus, 2b
A abóbada da terra é agora descrita com o uma cortina no topo da
tenda. E le estende os céus (v. G n 1.7) significa que ele estende o firm amento
(uma abóbada evidente durante o dia, cravejado de estrelas à noite) de um
horizonte a outro (cf. Is 40.22). Com o um a tenda se refere a um a cortina
de tenda (v. nota 3).
2. Ele construiu seu templo celestial nas águas celestiais e cavalga
nas nuvens, 3,4

a) Ele construiu seu templo celestial nas águas celestiais, 3a


A associação de cortinas com o tabernáculo (cf. ISm 7.2; lC r 17.1)
prossegue para a m etáfora vivida de com parar o E u S o u ao construtor
de tem plo que põe sobre as águas dos céus as vigas dos seus aposentos ou amplas
salas no andar superior no teto do seu templo, onde o rei m antinha a
residência privada (Jz 3.20; 2Rs 1.2). O tem plo celestial foi imaginado
com o o lugar de descanso sobre (i.e., os céus’) as águas. O deus sol egípcio
325

“se assenta entroni 2 ado em um barco em que cruza o oceano celestial”.19


U m ícone assírio do século 9 a.C. m ostra o deus sol Shamash sentado em
seu trono. Debaixo de um a abóbada sobre o seu trono estão os símbolos
das três deidades celestiais: Lua, Sol e Vênus. Sob o trono estão muitas
linhas ondulares, representando o oceano celestial. A inscrição registra
que as deidades estelares estão situadas “acima do oceano”. Debaixo do
oceano celestial há uma camada em pedra que divide as águas acima das de
baixo.20 Os aposentos ou depósitos acima do firm am ento (SI 33.7) foram
imaginados para deter vento (135.7), neve, granizo (Jó 38.22) e chuva,
então liberados para cair sobre a terra (v. 104.13).
b) Ele cavalga nas nuvens e faz do vento e dos clarões reluzentes
seus servos, 3b,4

/. Ele cavalga nas nuvens furiosamente, 3 b

N a imaginação do poeta, o Rei-Guerreiro transform a as velozes nu-


vens tempestuosas em sua carruagem. Fa% (ou “transform a”).21 D a s nuvens
prenuncia (lR s 18.45) nuvens tem pestuosas (SI 18.13[12]; 77.17[18]) se
movem com rapidez no plano horizontal (Is 60.8) acom panhadas com
trovoadas (Is 29.6) e relâmpagos reluzentes (Jó 37.15). E m bora as carrua-
gens fossem usadas para caçar, desfilar e viajar, devemos pensar em uma
provável carruagem aterrorizante. “N a guerra, elas eram um a plataform a
móvel para atirar rajadas de flechas a fim de abater a infantaria inimiga”.22
E cavalga nas asas do vento esclarece e intensifica a m etáfora da carruagem
para retratar a alta velocidade, eficiência e supremacia dos cocheiros régios
na aplicação do salmista das nuvens tempestuosas. Jeú foi um a lenda por
sua velocidade: “Ele dirige com o louco” (2Rs 9.20; cf. Is 19.1).

19 H. Bonnet, Reallexikon der àgyptischen Religionsgeschichte. Berlin: de Gruyter, 2000,


p. 628; J. Spieggel, “Der Sonnengott in der Barke ais Richter”, M D IA A bteilung
Kairo 8 (1939): 201-6.
20Tryggve N. D. Mettinger, “YHWH SABAOTH — the Heavenly King on the
Cherubim Throne”, em: Studies in the Period o f D a vid and Solomon, T. Ishida, org.
(Tokyo: Yamakawa-Shuppansha), p. 119 (v. a imagem na p. 120).
21 The Concise D ictionary o f Classical Hebrew (Sheffield: Phoenix, 2009), p. 436, sim ,
entry 6.
22 Leland Ryken; James C. Wilhoit; Tremper Longman III, orgs., D ictionary o f Biblical
Imagery. Downers Grove: IVP Academic, 1998, p. 138.
326

/'/'. Os ventos e relâmpagos o servem, 4

O cocheiro usa os quatro ventos (cf. E z 37.9) com o mensageiros


oficiais (v. 103.20). H ebreus 1.7 cita esse versículo da LXX, que traduz
“m ensageiros” (madãkim) com o “anjos” . Clarões reluzentes no contexto
meteorológico são metonim ia dos clarões do relâmpago — seus servos para
destruir os inimigos (v. 97.3; 103.21; J 1 1.19).
Estrofe B: A supremacia do Eu Sou sobre a terra (5-9)
Três inclusões capturam a soberania do E u S ou e a estabilidade da ter-
ra: a) um jogo de palavras sobre yãsad (“firm ou [a terra]”, v. 5; “designaste
[os mares]”, v. 8); b) “cobrir a terra” (v. 6,9); e c) o bal da negação poética
(“jamais [se abale])”, v. 5; “jamais [tornarão a cobrir]” (v. 9).
1. Ele estabeleceu firmemente a terra, 5
O C onstrutor (uma função régia; v. p. 18) firmou (ou estabeleceu) a
terra sobre os seus fundamentos (i.e., a terra seca).232
4“Firm ou” (yãsad) com o
objeto tautológico “fundam entos” (um derivativo de kün, “ser estabele-
cido”) enfatiza a estabilidade e perm anência da terra seca. E assim para
que elaja m a tC se abale, desabe ou trem a na base (v. 93.1; 96.10). O palco
da história da salvação está fixado até a parúsia, quando o Senhor Jesus
Cristo retornará — antes da ressurreição geral e da criação dos novos
céus e nova terra.
2. Ele removeu o abismo e fixou o mar, 6-9

a) O triunfo e derrota do abismo no dilúvio, 6,7

/. Sua elevação triunfante, 6


Por certo com as torrentes do abismo (fhôm ) denota o abismo primevo
inexplicável e indeterm inado (o fhôm de G n 1.2,9,10; cf. SI 93). Mas a afir-
mação no versículo 9 que as águas do fhôm jamais cobriríam a terra deve
se referir às águas que irrom peram das profundezas da terra e causaram a
grande catástrofe do Dilúvio dos dias de Noé. Isto é assim porque as águas
do abismo primevo cobriram de novo a terra durante o Dilúvio do tem po

23 Mosis, TDOT, 6:111, s.v. yãsad.


24 “Para sempre” Çolãm, v. 103.9) intensificado por “e nunca” (wa ed, “e perpetui-
dade”).
327

de N oé (G n 7.11-20), e nunca mais depois dele (v. 9; cf. G n 8.2; 9.11b).


Também, a referência às águas a cobrir os m ontes tem intertextualidade
explícita com a história do Dilúvio, não com a história da Criação. N o
Dilúvio o E u S o u cobriu a terra, quando ele derrotou os egípcios no mar
Vermelho (Êx 15.10; SI 78.53; 106.11; cf. Ez 26.19; Jó 22.11).
O triunfo do E u S ou sobre o Dilúvio prevalente é apresentado em duas
cenas de batalha, que personificam as águas fugindo am edrontadas com
sua ameaça. A primeira cena as descreve estando acima dos m ontes (v. 6)
e então sua fuga (7). A segunda reprisa a primeira (8a) e então acrescenta
que o E u S o u designou um lugar para elas e as restringe para sempre nos
limites estabelecidos.25A cobriste (a terra) altera a perspectiva de falar sobre
D eus para dirigir-se diretamente a ele (v. p. 117, nota 1, p. 157). Cobriste
poderia se referir ao abismo prim evo e, portanto, a referência aos montes
diría respeito aos montes submersos que apareceram mais tarde quando
ele criou a terra seca (cf. G n 1.10). Contudo, isso seria a única referência
ao E u S o u criando a água primeva, caótica separada da palavra criativa.
Entretanto, para o E u S o u elas não eram nada mais que um a veste (lebüs), a
palavra hebraica mais com um para aparato/ roupa (35.13; cf. 33.7). Aís águas
do abismo subiram (i.e. assumiram a posição delas26) e teriam perm anecido
“sobre ou arima dos montes (Gn 7.19,20)27 se o E u S ou não tivesse intervindo.
/'/'. Sua fuga na derrota, 7

Diante (i.e., “devido a”, “por motivo de”) das tuas ameaças. Os 15 usos
de “ameaças” sempre ocorrem na poesia e se referem a um protesto
com indignação moral.28 A s águas (lit. “elas”) fugiram para se retirarem

25 Na cosmología bíblica, as profundezas aquosas são imaginadas como sob a terra


(Gn 49.25; SI 77.16[17]; 78.15) e delimitadas como os oceanos (Jó 38.16; SI 107.26;
Pv 8.27; Jn 2.5).
26 A preposição al com ãmad possivelmente tem o sentido especializado “estar em
uma posição de autoridade” (cf. Nm 7.2; The Concise Dictionary o f Classical Hebrew
[Sheffield: Phoenix, 2009], p. 330, s.v. rnd, #2).
27 O lexema em Gn 7.19,20, embora comumente traduzido pelo neutro “subiram”,
significa de modo mais literal “prevalecer”, com a conotação de hostilidade.
28 Dez vezes o E u S o u é o agente que expressa indignação moral com efeitos de-
vastadores contra seus inimigos: o poder diabólico da natureza (2Sm 22.16 =
SI 18.15[16]; Jó 26.11; SI 104.7; Is 50.2); as nações (SI 76.7; Is 17.13; 66.15); seu
próprio povo (SI 80.16; Is 51.20). Duas vezes (Is 30.17 [2x]) os inimigos de Israel
328

rapidam ente do perigo, com o na batalha.29 A personificação sugere a


hostilidade do mar primevo relativa à criação. Puseram-se emfuga continua
a conotar a hostilidade entre o Criador e o abismo primevo. O Senhor
Jesus exerceu a mesma autoridade quando ele repreendeu o vento e con-
trolou o m ar (Mc 4.39). As ameaças do E u Sou, sua voz, foi ouvida com o
trovão. Λ 0 som (lit. “voz”, “estrondo”) do teu trovão é com o um furacão (cf.
SI 77.18; Is 29.6), não uma tempestade; o term o fala de poder e hostilidade
(Jó 26.14).
b) Seus limites estabelecidos, 8,9

/. A função divinamente designada deles, 8


O E u S o u não eliminou da terra as profundezas aquosas hostis à
criação; ao contrário, ele as restringiu para seus propósitos soberanos
e, nesse sentido, elas são “boas” (cf. G n 1.10). Elas serão inteiram ente
eliminadas no novo céu e nova terra (Ap 21.1).
//. Seus limites estabelecidos, 9

A repetição do versículo 8 é enfática.


Estrofe C: O dom do Eu Sou das águas que sustentam a vida, 10-18
A terceira estrofe, sobre as águas férteis, consiste em duas unidades
demarcadas pelas sentenças com o presente do indicativo “fazes”/ “ele
rega” (v. 10,13). Essas unidades cobrem as águas transform adas embaixo
(10-12) e a chuva acima (13-18). A segunda unidade consiste em duas
subunidades de três versículos: a água que provê a vegetação para a huma-
nidade e os animais domesticados (13-15) e o habitat de pássaros e animais
vulneráveis (16-18). Com o consequência, se o resum o (13) está incluído
nos versículos 14,15, a estrofe é uma tríade de versículos triádicos e uma
com posição a respeito de animais e pássaros (10-12,16-18) éform ada em
torno da humanidade (13-15).

são agentes que, na demonstração de seus protestos furiosos, ameaçam funda-


mentos absolutos. Três vezes os sábios ameaçam os tolos com a ruína devastadora
(Pv 13.1; 17.10; Ec 7.5).
29 S. Schwertner, T L O T , 2:725, s.v. nüs.
329

1. Da água embaixo, 10-12

a) Ο Ευ Sou cria as fontes, 10


Nascentes denota os locais onde a água, das profundezas subterrâneas,
jorra. Com o oceanos, elas destruíram a terra; com o nascentes, elas a nu-
trem (cf. Pv 8.24). Os vales são sem dúvida depressões definidas de um
vale ou leito de riacho, em geral em áreas desertas, com pletam ente secas
no verão, mas tempestades na tem porada de chuva (cf. D t 8.7; Is 35.6).
E correrem (lit. “ir”) as águas (lit. “elas”, um a m etonim ia para a água que
flui das nascentes) entre os montes. O grande Soberano governa os mares
mortais e as nascentes férteis, os riachos secos e as tempestades.
b) Os animais e pássaros que dependem das nascentes, 11,12

/'. Os animais do campo, 11


Os jumentos selvagens correm livrem ente e não podem ser laçados
(Jó 39.5), seja na terra seca (Jó 24.5; Jr 2.24), nas alturas estéreis (Jr 14.6)
ou nas terras devastadas e planícies salgadas (Jó 39.6). E m bora eles não
sirvam à humanidade, de acordo com a provisão do E u Sou eles saciam
a sua sede.

ii. Os pássaros, 12
As águas tam bém proveem o habitat para pássaros. E entre os galhos é
metonim ia de alimento e proteção. Põem-se a cantar testifica sua vida de-
senvolvida.
2. Da água em cima, 13-15
A palavra-chave sãbac (= “sacia-se”, v. 13; “bem regada” , v. 16,
v. nota 7) distingue as unidades (v. 13-15,16-18). “M ontes” (13,18) cons-
tituem uma inclusão em torno das duas unidades.
a) O Eu Sou provê a água do céu, 13
Água que produz vida — chuva, orvalho ou neve — é descrita com o
vindo dos seus aposentos celestes do tem plo celestial do E u Sou (v. 3). E le rega
(cf. v. 11) destaca uma nova unidade (cf. v. 10). N enhum a distinção pode
ser feita em hebraico entre montes e colinas. Sacia-se (v. 103.5, ARA) a terra
{ha ares, term o que aparece tam bém nos v. 5,14) com 0 fruto das tuas obras
330

(v. 90.17; 92.5; 103.22) se refere a ele pôr sobre as águas dos céus as vigas
dos seus aposentos (v. 3). “F ruto” (provavelmente um a m etáfora morta)
é com um ente em pregado para designar os resultados de um a ação.30
“M onte/colinas” e “terra” podem ser merisma de todos os solos aráveis.
b) Vegetação para a humanidade cultivar, 14,15
O s versículos 14 e 15 são um a sentença: um a oração principal (“é ele
que faz crescer [...] as plantas que o hom em cultiva”, v. 14a), seguida por
duas orações: uma oração subordinada adverbial final e outra subordinada
adjetiva explicativa (v. 14b,15). A primeira (“para tirar o alimento: o vi-
nho”, v. 14b,15a) é interrom pida pela segunda oração subordinada adjetiva
explicativa (“o azeite, que faz brilhar o rosto”) para associar vinho e óleo
com a colheita de outono. E m qualquer caso, “até o alim ento” em lb P
está em um paralelo quiástico com “para da terra tirar o alimento” em
14b e os dois exemplos de “o coração do hom em ” estão com o paralelos
em 15a(X e 15bp.

14 Pasto se refere ao crescimento selvagem que surge de form a regular


e farta após as chuvas de inverno (SI 147.8) [...] Tão logo hãsir brota na chu-
va, ele seca na estiagem (Is 15.6) ou é encontrado ao longo de riachos na
m elhor hipótese (IRs 18.5)”.31 S. Amsler afirma sobre pasto: “ [Isso] não
diz respeito específicamente ao germ e da semente [...] ou a floração [...],
mas o fenômeno dinâmico inteiro do desenvolvimento e desabrochamento
da planta [...] O autor desse crescimento é a terra Çadãmâ, G n 3.18; 19.25)
com sua rica fertilidade (Jó 8.19); todavia, o elemento decisivo é a água,
em especial a chuva, que fertiliza o solo e o faz produzir plantas (Gn 2.5;
Is 55.10; Jó 38.27).32
O gado pode se referir a animais domésticos e selvagens, mas princi-
pálmente domésticos.33 Plantas se refere às plantas em geral, para pasto e
tam bém para alimentação. O homem Çãdam ) é o term o hebraico mais amplo
para designar os seres humanos. Cultiva ( c‫״‬bõdà ) significa “trabalhar, labo-
rar” e recorda a tarefa fundamental da humanidade, vista na introdução

30H A L O T , 2:968, s.v. ¡ fn , #3.


31 M. D. Futato, N ID O T T E , 2:246, s.v. hãsir.
32 T L O T , 3:1085-86, s.v. sm h.
33 N. Kiuchi, N ID O T T E , 1:612, s.v. behèm ò.
331

à criação da humanidade (“e tam bém não havia hom em para cultivar o
solo”, G n 2.5), quanto à comissão de cultivar e cuidar da terra (2.15) e
quanto a repetição desta comissão na conclusão (3.23).34 Para da terra tirar
0 alimento (lehem) se refere a todos os tipos de alimento, animal e vegetal

(cf. lC r 12.40[41]).

15 A terra se refere ao solo (cf. v. 13). O vinho, que alegra (sãméah; v. 96.11;
97.1) 0 coração (v. SI 95.10; 97.11) do homem Çenos; v. 103.15) dem onstra que
o Criador e Sustentador deseja que a hum anidade desfrute a vida e que
não seja viciada em trabalho. O aceite, que f a £ brilhar 0 rosto expande essa
noção. “E m um clima onde a pele seca era um problem a [...] a unção com
óleo era um alívio”.35
3. O habitat protetor para pássaros e animais vulneráveis, 16-18
A unidade realça o crescimento das árvores plantadas diretamente
pelo E u Sou, não pela humanidade, provendo um lugar para pássaros
se aninharem (v. 16,17) e a noção de segurança prossegue para o monte,
cuja altura protege os bodes e cujos penhascos protegem os coelhos (18).
a) Árvores para os pássaros, 16,17
16 Considerando que o poeta em outro contexto se move das genera-
lizações para o específico (e.g., v. 11 ) ,a s árvores do E u S o u provavelmente
se referem a todas as árvores não plantadas e cultivadas pela humanidade
e os cedros do Líbano (v. 92.12) especifica a árvore mais im ponente. Assim,
ele plantou, m esm o que em sentido gramatical restrinja os “cedros”,
provavelmente infere as outras árvores também. E m síntese, elas todas
são “árvores do E u Sou ” porque ele as plantou e elas são bem regadas
(v. nota 7) por ele.

17 D o mesm o modo, nelas restringe “as árvores do E u Sou”, não ape-


nas “os cedros do Líbano”. Os pássaros (sipporim ; talvez “chilreadores”) é
o term o genérico para pássaros comensais. Fa^em ninho conota segurança
(cf. Jr 22.23; H b 2.9). A cegonha Qfsidâ — relacionada a hesed, “am or leal”;
v. 103.17) exemplifica um ninho para proteger os filhotes. A has~ida é assim

34 C. Westermann, TLOT, 2:824-5, s.v. 'ebed.


35 Ryken; Wilhoit; Longman, Dictionary of Biblical Imagery, p. 603.
332

chamada devido ao com portam ento reputado gentil e leal com o macho
e seus filhotes.36
b) Os montes e penhascos para os bodes e coelhos, 18
Os vulneráveis coelhos, ou texugos da rocha, sabem com o habitar
com segurança (v. nota 9). O habitat dos montes elevados e penhascos no
rochedo do m ar M orto pode ser um merisma para representar todos os
habitats protetores.

Estrofe D: O Eu Sou fez um tempo para tudo, 19-23


N a quarta estrofe, os predadores noturnos (v. 20,21) expande a ideia da
criação da lua (19a) e os trabalhadores diurnos (22-23) a ideia da criação do sol
(19b). O leão é senhor da noite (21); o hom em o senhor do dia (23). D e
acordo com a terceira estrofe, a creatioprima [primeira criação] inicial (19a)
é seguida pela creatio continua [criação contínua] (19b-23). Com o nas outras
estrofes, o E u S o u controla os fenôm enos que im pedem e prom ovem os
interesses da humanidade.
1. A lua e o sol, 19
Este bicólon altera os ciclos cronológicos mensais, caracterizados pela
lua (v. 19a), para os ciclos diários caracterizados pelo sol (19b). “Q uando
a lua é mencionada sozinha (e não com o parte da tríade “sol, lua e es-
trelas”), o propósito principal é dem arcar um tem po no ciclo mensal”.37
A personificação 0 sol sabe quando deve se p ô r aponta para a Causa racional
transcendente.
2. As trevas da noite para os predadores, 20,21
Esta unidade neutraliza o perigo que a noite representa.
a) Pequeno resumo, 20
Se luz provê aos seres hum anos vida, segurança, liberdade e sucesso,
então as trevas os privam dessas bênçãos (cf. SI 6.6; 30.5; 42.3; 77.2).
Entretanto, traces trevas [em conjunto com isso], e cai a noite. Isto é, o E u
S o u subordinou as trevas inexplicáveis, primevas para servir de relógio

36 G. R. Driver, “Birds in the O T”, P E Q 8 7 (1955): 5-20, esp. 17; Jack R. Lundbom,
Jeremiah 1— 2 0, AB 21A (New York: Doubleday, 1999), p. 510.
37 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 565.
333

e organizar a vida inteira.38 D a floresta se refere à grande quantidade de


árvores grandes e /o u arbustos, ervas e pequena vegetação com predado-
res vagueando nela. N os tem pos bíblicos, o panoram a de Israel era mais
densamente florestado do que é hoje (cf. Js 17.15,18; 2Sm 18.6). “D a
floresta é [...] em pregado em sentido figurado quanto a perigo (esp. ani-
mais selvagens nela am eaçando pessoas)” .39 Vagueiam (o lexema rms), em
relação a animais, norm alm ente significa “rastejar ou arrastar” (G n 7.8;
Lv 11.44; D t 4.18), mas o term o tam bém pode denotar de maneira mais
geral animais terrestres, com o aqui, que “se move” (Gn 1.28; 7.21).
b) O Eu Sou provê ao leão a presa, 21
Os leões que rugem a procura da presa tipifica o predador noturno. “A
Bíblia usa cerca de 12 palavras para designar leões de várias idades e gê-
ñeros, mas nem todos os term os são seguramente definidos [...] O leão,
no AT, evoca ferocidade, poder destrutivo e força irresistível” .40 Com o
principal predador, caçador de gado (ISm 17.34; A m 3.12) e inimigo com
força lendária, o leão era temido, em especial pelos pastores. As muitas
referências ao seu rugido sugerem que ele era mais ouvido que visto, mas
mesm o sua voz, audível por quilômetros, era algo para se preocupar. “O
leão rugiu, quem não temerá?” (Am 3.8). “Q uando o leão está caçando,
algo vai m orrer” e “não há form a de se preparar para o seu ataque. Ele
furtivamente se espreita (SI 10.9), irrom pe do esconderijo, emergindo
da mata (Jr 49.19; 50.44; 25.38; Jó 38.40) ou floresta (Jr 5;6; 12.8) [...]
Malicioso para a ação, prem editado para o dano, cruelmente eficaz para
matar, o leão — com o m etáfora — encarna o mal”41 (cf. SI 7.2). Em bora
o rugido do leão aterrorize a presa e o hom em , D eus o ouve com o uma
oração. Buscando ou procurando por algo que se perdeu pressupõe a meta
a ser cum prida ou o plano a ser realizado e conota “esforçar-se p o r algo,
estar ocupado, estar preocupado”. D e Deus que tem abundância ilimitada
de poder e presença que superam as barreiras do tem po42 (SI 90.2; 95.3;
99.8). A personificação aponta de novo para a Causa transcendente do
predador. O alimento (do lexema “com er”) pode se referir ao cereal ou

38 Ibid, p. 594.
391. Cornelius, N ID O T T E , 2.492, s.v. y a a r .
40 Ryken: Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 514.
41 Ibid, p. 30.
42 Artur Weiser, The Psalms, OTL (Philadelphia: Westminster, 1962), p. 597.
334

carne (SI 78.18,30). O term o tam bém é em pregado para designar a presa
de águias (Jó 9.26; 39.29) e corvos (Jó 38.41). Ele é utilizado apenas aqui
em relação aos animais selvagens. O salmista, não o leão, sabe que o animal
procura seu alimento de Deus.
3. O día para o homem trabalhar, 22,23

a) Ao nascer do sol, os animais voltam para suas tocas, 22


A palavra principal “sol” dem onstra que o E u S o u (v. 19) ordena o
nascer do sol e a remoção da noite perigosa (v. 22). O nascer do sol (v. 19b)
se refere ao ciclo rotineiro da vida; “uma imagem de ordem na Bíblia e
um ponto de referência em um universo previsível”.43 O pregador afirma:
“A luz é agradável, é bom ver o sol” (Ec 11.7).
b) E o homem sai para seu trabalho até o entardecer, 23
O E u S o u provê aos animais e ao hom em seus habitats, que garantem
vida para ambos.
Estrofe E: O Eu Sou fez as criaturas do mar, 24-26
Essa estrofe enfatiza tudo na obra de D eus — com o foco no mar e
suas criaturas. D epois do pequeno resum o introdutório (v. 24), a estança
consiste em duas unidades, e enfatizam o m ar e suas criaturas (25,26) e a
dependência de todas as criaturas do Deus vivo para a manutenção de sua
vida (27-30). A estrofe term ina com o desejo de que a glória e a alegria
de D eus (com referência às suas obras) perdurem para sempre (31,32).
“Tuas/suas obras” constitui um a inclusão em torno da estrofe (24,31).
1. Pequeno resumo, 24
A frase exclamatoria quantas são as tuas obras (v. 24), E u Sou! altera o
foco da atividade humana, restringida pelo tempo, para as obras irrestri-
tas do E u Sou. O s três paralelos do tricólon destacam o grande núm ero
e variedade das criaturas de Deus: “muitas”, todas elas e está cheia. Fizeste
(cf. v. 4) é a analogia ao substantivo “obras” e corresponde ao pequeno
resum o de que o E u S o u criou o habitat tem poral das criaturas (v. 19).
Com o em outras estrofes, o poeta se move da criação para o sustento.
Com sabedoria acrescenta sua excelente qualidade à quantidade. “Sabedoria”

43 Ryken; Wilhoit; Longman, D ictionary o f B iblical Imagery, p. 826.


335

em geral significa “com preensão magistral”, “talento”, “especialidade”.44


A terra, diferentem ente dos empregos anteriores, com referência ao solo,
caracteriza o que chamaríamos “planeta terra”; isto é assim porque aqui
ela é tam bém o conceito básico das criaturas marinhas. Seres que criaste
(v. nota 12).
2. O mar, navios e o Leviatã, 25,26
A unidade sobre as criaturas do m ar consiste no pequeno resum o
sobre a vastidão marítima e suas inumeráveis criaturas (v. 25). N a sequên-
cia, descreve o hom em a navegar em triunfo em navios sobre a superfície
enquanto o tem ido Leviatã se diverte (v. Jó 41) nas profundezas (v. 26).
a) A vastidão do mar e suas inumeráveis criaturas, 25
E is o m a ro remanescente do abismo originário inexplicável e indeter-
minado, hostil à vida que, no Dilúvio, destruiu a terra e ainda representa
ameaça à vida (SI 93; 104.6-9). E m bora restrito aos limites que não pode
ultrapassar, ele, entretanto, ainda é imenso e vasto. Nele vivem inúmeras criatu-
ras. Inúmeras corresponde à extensão geográfica. Seres vivos são as mesmas
palavras para animais selvagens que vivem nas planícies (v. 11) e nas fio-
restas (v. 20), e aqui é aplicado aos animais aquáticos, são domesticados,
vivendo no habitat próprio. O merisma pequenos egrandes acrescenta à noção
de inumerabilidade e variedade extensa.
b) Navios e o Leviatã, 26
C om o em outro contexto, o poeta altera das generalizações para
exemplos particulares: navios e Leviatã. Essa rara combinação estava na
esfera da sabedoria divina. N ele passam os navios (cf. v. 3,10) é metonim ia
da presença hum ana no m ar e, talvez, relativa ao domínio sobre o vasto
mar. Essa m etáfora, não teologia, é extraída de um m ito de Baal que se
refere ao L itan (Itn) destruidor, a serpente espiralada, o tirano de sete ca-
beças. L tn é provável que seja um a variante do hebraico Iwytn (Leviatã);
eles são cognatos com liwwah (“voluta”, “torção”). N o m ito ugarítico, a
serpente espiralada é tam bém descrita com o um dragão com sete cabe-
ças. As cabeças do Leviatã em Salmos 74.13 reprisam esse dragão. Com
outros m onstros, o Leviatã simboliza a ameaça da ordem cósmica divina.

44 M. Saebo, TLOT, 2:420-2, s.v. hknv, M ichael V. Fox, Proverbs 1— 9, A B 18a (N ew


York: D oubleday, 200), p. 32-4.
336

Entretanto, Salmos 104.26 reduz a imagem aterrorizante e ameaçadora à


ordem cósmica divina a nada mais do que um patinho de borracha brin-
cando em um a banheira. Q ue formaste aponta para a soberania e talento
de Deus. Para com ele transform a o temido m ar em um habitat totalm ente
sob o controle de Deus e para ser desfrutado. Brincar denota geralmente
“alegrar-se, brincar” . Aqui o term o recebe sentido positivo expressando
vitalidade alegre e ações aprováveis, envolvendo dança e divertim ento em
geral (ISm 18.7; Jr 15.17; cf. Pv 26.19).
Estrofe F: Todas as criaturas devem a existência delas ao Eu Sou, 27-30
Todas as criaturas dependem de D eus para a alimentação (v. 27,28) e
para a vida real (v. 29,30).
1. Sua alimentação, 27,28
As palavras principais “dês” e “dás” (v. 27.b, 28a) ligam 27 e 28 em
uma quadra. O versículo 27 personifica os animais e os descreve esperan-
do em D eus a fim de obter alimento. O versículo 28 em prega um antro-
pom orfism o e retrata D eus dando alimento aos animais. A perspectiva
dupla enfatiza que todos os animais dependem de Deus para receber seu
alimentação e cuidado.
a) As criaturas esperam no Eu Sou por alimento, 27
Todos eles reprisa “todas elas” no versículo 24 e deste m odo aponta para
todas as “suas obras” (i.e., criaturas) com o o antecedente, não apenas as
criaturas do m ar do versículo 26. Esperam significa esperar por algo (e.g.,
“salvação”, SI 119.166; “fidelidade”, Is 38.18) ou esperar por alguma coisa
(e.g, “até que eles crescessem”, Rt 1.13). Aqui eles esperam em ti [E u Sou\
(como um fato conhecido pelo salmista, não pelos animais) para que lhes
dês 0 alimento (cf. v. 21). N o tempo certo se refere a um ponto definido fixado
no calendário do Ε υ S o u (e.g., quando a produção amadurece, os pássaros
migram etc.; v. SI 1.3). E m outro contexto, o salmista afirma: “Abres a tua
mão e satisfazes os desejos de todos os seres vivos” (SI 145.15,16).
b) O Eu Sou afetuosamente os alimenta, 28
A sintaxe que torna a alimentação dos animais condicional sobre o E u
S o u dar-lhes alimento presum e a relação estreita entre D eus e os animais.
Isto é mais enfatizado pelo paralelismo emblemático. O prosaico tu lhes
337

dás (cf. v. 27) é descrito no paralelo abres a tua mão. Deus os alimenta com o
os seres hum anos alimentam seus animais de estimação. E eles 0 recolhem
retarda a ação, descrevendo os animais pegando o alimento pedaço por
pedaço. “Recolhem” é aplicado a um m onte de pedras para fazer uma pi-
lha (G n 31.46) e ao pão que chovia do céu (Ex 16.4). E saàam -se (y is E ü m ;
cf. v. 13,16) dem onstra que D eus os supre com mais que o necessário. A
macieira não se reproduz com uma maçã, mas com centenas (v. a “Con-
clusão”, abaixo). E m acréscimo à grande quantidade, sua qualidade é
indicada pela m etonim ia boas (v. 100.5).
2. O fôlego deles, 29,30
A palavra-chave “fôlego” conecta os versículos 29 e 30 em um a
quadra. Agora, a relação estreita entre o E u S o u e suas criaturas pode ser
vista na associação do “fôlego deles” com o “seu [de Deus] fôlego” . A
sintaxe condicional dos dois versículos ressalta ainda mais a relação estrei-
ta. O versículo 29 realça a remoção do fôlego e a m orte das criaturas; o
versículo 30 enfatiza o ato de dar-lhes fôlego e assim cria cada um, com o
havia feito no princípio da vida, nos dias quinto e sexto, da narrativa da
criação do Gênesis.
a) Retira-lhes o fôlego e eles morrem, 29
O tricólon, com o um telescópio, lentam ente revela a realidade difícil
da m orte das criaturas. C onform e “escondes o rosto” para “retiras o
fôlego” para “m orrem ” (i.e., o ato de morrer) para “voltam ao p ó ” (i.e.,
o sepultamento). Quando escondes 0 rosto significa o fim da relação. A. S.
van der Woude comenta: “Declarações em que o ‘rosto de D eus’ aparece
com o objeto da ação concerne à doação de sua graça ou doação da vida
ou olhar desastroso” . 45 “Escondes o rosto” significa a retirada de Deus de
sua presença e proteção benevolente. G. Wehmeier comenta: “Exatamente
com o virar a face em direção a alguém representa cordialidade e favor,
virar a face em sentido contrário ou ocultar o rosto expressa desprazer”.46
Ele acrescenta: “Deus esconde a face da pessoa com o expressão de ira.
Expressões que correspondem e contrastam com o verbo pãriim da raiz
str do Hifil [‘escondes a face5] torna esse conceito especialmente claro”

45 T L O T , 2:1006, pãnim .
46 T L O T , 2:815, s.v. str Hiphil.
338

(e.g., “esquecer”, “abandonar”, “punir”, “irar-se”, “desprezar”, “abomi-


nar”, “rejeitar”, “ignorar”).47 “A face ocultada ignora pedidos de ajuda
(SI 13.1; 69.17) e se recusa a responder (102.2)” .48 N ão causa surpresa
que entram empánico (v. SI 104.29). Q uando lhes retiras o fôlego significa
“causar a m orte”.49 R üah se refere ao “fôlego” com o “o sopro de D eus é
em minhas narinas” (Jó 27.3).50 R. Albertz e C. W esterm ann comentam:
“O sentido básico de rüah é duplo ‘vento’ e ‘fôlego’, mas nenhum deles é
com preendido com o essência, ao contrário disso é o poder encontrado no
fôlego e vento, cuja hipótese de onde e para onde perm anece misteriosa”.
Essas autoridades prosseguem em afirmar que a referência ao fôlego “não
é um fenóm eno constante, mas um a força expressada na respiração. [...]
R üah não indica respiração ‘norm al’, o com ponente da vida hum ana [...],
mas o processo particular de respirar que expressa a vitalidade dinâmica
do ser hum ano”.51 D e m odo similar, gãwa ‘ (“m orrem ”) significa “ofegar
para obter ar” e então “m orrer”;52 o ato de m orrer (Gn 25.8; 49.33). E
voltam (SI 90.3) aopó (SI 103.14), urna das diversas expressões para desig-
nar a m orte (cf. Jó 34.15; Ec 3.20), relembra que o corpo do hom em se
origina da terra.
b) Quando sopras o teu fôlego, eles são criados, 30
Por contraste, toda criatura viva deve a criação extraordinária à sobera-
na livre graça do E u Sou, pela qual ele lhes concede o fôlego de vida; eles
não são apenas o material do criador. Q uando sopras (i.e., “envia”) o teu
fôlego (cf. v. 29) rem em ora o diálogo de Moisés com o E u Sou com o “o
D eus que dá fôlego a todas as coisas vivas” (Nm 16.22). N o que se refere
a eles são criados, o E u Sou não um a deidade estranha, é sempre o agente
de “criar”, aqui um passivo divino. W. H. Schmidt nota:
“ Seu o b je to é sem p re n o v o e extraordinário: cé u e terra (G n 1.1); p es-
soas (1.27); p o v o d e Israel (Is 43.1); m aravilhas e n o v id a d es (Ê x 34.10;
N m 16.30; Is 48.6ss.; 65.17; Jr 31.22; cf. Is 41 .2 0 ; 45.8; SI 51.10; 104.30).
[...]O fator d eterm in a n te n ã o é q u e n ã o havia nada antes da criação, m as

47 Ibid., 2:817, s.v. str Hiphil.


48 Ryken; W ilhoit; Longm an, Dictionary of Biblical Imagery, ρ. 260.
49J. F. A. Sawyer, T L O T , 3:1100, s.v. qbs.
50H A L O T , 2:1198, s.v. rüah, # 1 .
51 T L O T , 3:1203, s.v. rüah.
52H A L O T , 1:184, s.v. g w ‘.
339

que a atividade divina traz à existência algo novo, que (como tal) não
existia antes. [...] Portanto, por si mesmo, o verbo não descreve a criação
e x nihilo, mas se refere com precisão ao que outros sistemas de pensa-
mento [...] procuram garantir por meio da discussão da criação e x nihilo·.
Deus cria de forma extraordinária, soberana, sem esforço, inteiramente
livre e sem obstáculos” .53

E renovas significa criar outra vez com o algo novo, em contraste com o que
é antigo ou anterior e /o u ainda não existente (v. SI 103.5). A face da terra se
refere à superfície54da terra produtiva m arrom avermelhada (húmus) que
produz e sustenta a vegetação, a base das criaturas com o fôlego de vida.
Estrofe G (transição): Oração para que a glória e alegria do Eu Sou
perdurem para sempre (31,32)
A estrofe final, uma quadra, term ina com petições pela glória e alegria
do E u Sou. O verbo volitivo prossegue para as orações conclusivas para
que a meditação seja aprazível a Deus e que os pecadores sejam eliminados
da terra. A quadra consiste em duas petições (v. 31) e um a caracterização
da temida soberania do E u Sou, com o verificada nos terrem otos e vulcões
(v.32).
1. Oração pela glória e alegria do Eu Sou, 31
O versículo 31a se refere à glória eterna do E u S o u e 31b à sua alegria
em suas obras. Os paralelos sugerem que a glória do E u S o u com preende
a metonimia de suas obras — isto é, suas criaturas — e que “para sem pre”
é om itido em 31b. Perdure expressa um a oração, não só o desejo. Para
sempre (93.2) pressupõe que D eus continua a renovar a terra po r meio da
recriação perpétua de inumeráveis e várias espécies (30). Λ glória do E u
S o u denota um aspecto substantivo — suas propriedades reais — e sua
ação ou disposição relativas às tuas obras (v. 24), com as quais ele renova
a terra (30). Israel deveria declarar essa glória às nações (SI 96.3). Alegre-se
0 E u S o u (v. SI 96.11; 100.2) significa “que ele possa dançar de alegria a

cada nova criação”. Ele se alegrou na criação originária, chamando tudo de


“bom ”. Naquela era, os anjos cantaram de alegria (Jó 38.7) e a Sabedoria
está repleta de alegria (Pv 8.30ss.) Ele continua a fazer todas as coisas de
acordo com sua boa vontade (103.21). Assim, com o o Leviatã brinca no

53 T L O T , 1:255, s.v. b r \
54A. S. van der Woude, T L O T , 2:1002, s.v. parnim .
340

mar (v. 26), o E u S o u dança no céu com ele. E m seusfeitos se refere a tudo
que foi produzido por suas obras criativas, incluindo o predador e a pre-
sa, os animais selvagens e as planícies e as florestas (v. 13,24) e variedade
infinita de criaturas marinhas, incluindo o dragão.
2. O soberano pode desfazer a criação por um olhar ou um toque, 32
Com o a quadra precedente associou a administração do E u S o u de
m orte (29) e vida (30), assim a oração associa a alegria do E u S o u à sua
ira. Ambas lhe conferem glória. O trem or da terra (v. 32a) e os m ontes
fumegantes (32b) ocorrem ao mesmo tempo, quando o E u S o u desceu ao
m onte Sinai em chamas: “D ele subia fumaça com o que de um a fornalha;
todo o m onte tremia violentam ente” (Êx 19.18). Mas aqui simplesmente
ele olha (direciona seus olhos em) e os toca com suas mãos (cf. v. 28), de tão
íntima a relação com eles. Mas nesse m om ento, a terra trem e diante do fu-
rioso G uerreiro em face da perspectiva do juízo divino (Jz 5.4; ISm 14.15;
SI 18.7; 29.8; 77.18; 97.4). Terrem otos e fogo simbolizam a ira do poder e
santidade de Deus; eles são armas da guerra santa (Is 13.13; 29.6). Os montes
(cf. v. 6,10), em bora antigos e firmes, agora fumegam com o consequência
de seu toque furioso (cf. SI 144.5,6).
A oração serve com o transição para a petição conclusiva. Ela olha
em retrospecto para a essência do hino — a causa para louvor — para
celebrar as obras do E u S o u (v. 31) e caracteriza sua grandiosidade com
um a oração subordinada substantiva subjetiva (“ele...”). Ela olha para
frente ao alterar o presente do indicativo para o verbo volitivo e mudar o
anúncio para a audiência imaginada, não para Deus.
Estança III. Conclusão
A conclusão do hino consiste em um a fórm ula de contribuição
(v. 33,34), um a petição para que os pecadores sejam eliminados da terra
(35a) e convocações renovadas para louvar (35b).
Estrofe A: Fórmula de contribuição, 33,34
Gunkel chama essa palavra final uma “fórmula de contribuição”, com
a qual o cantor expõe a composição diante do trono de Deus, orando
seja-lhe agradável (v. a nota 15) a minha meditação.55 Sua esperança é expressa
em suas decisões: E u (não “deverei”) cantarei (v. SI 96.1) ao E u S o u toda a

55 Gunkel; Begrich, Introduction to the Psalms, p. 40.


34 1

minha vida (v. 33a) e pois no E u S ou (v. 34b) tenho alegria (cf. v. 31). Louvarei
(enfático) [...] enquanto eu viver significa que ele tocará um instrum ento
musical para produzir a melodia que acom panha seu cântico sagrado
(SI 33.2; 98.5a; 144.9; 147.7; v. p. 40,126,193). Ele oferece seu cântico ao
meu Deus (v. 100.3).

Estrofe B: Oração para que pecadores sejam eliminados, 35a


Sejam ospecadores (103.10) eliminados da terra (cf. v. 32) e deixem de existir
os ímpios. “ím pios” denota a com unidade culpada de pecados por pensa-
mento, palavra e ação, revelando a hostilidade interior contra D eus e seu
povo.56 Eles desfiguram a criação e não têm lugar de direito nela.
Estrofe C: Convocações para louvar, 35b

1. A si mesmo, 35ba
Bendiga ao E u S o u a minha alma (cf. v. 1).

2. A outros, 35bβ
Aleluia (“louvem ao E u S o if ’) denota a interação interpessoal em que
alguém emite o julgamento favorável sobre a pessoa do E u Sou, expressa
em público a admiração deles pelo E u S o u &pede aos mem bros da audiên-
cia (a form a é plural) para se unirem a fim de prestar honra ao E u Sou.

Parte III. A voz da igreja em resposta


O significado da providência divina, com o o louvor a Deus, é muito
profundo. Deus, no am or à humanidade, tem a presciência de ver o que
os seres hum anos precisam para a preservação, crescimento, supervisão
e orientação teológica, a fim de se tornarem a imagem e semelhança de
Deus. N a amplitude total do cosmo e da história humana, D eus expressa
sua realeza por médio de atos de providência. Com o os horizontes hu-
manos se expandiram, em sentido soteriológico pela encarnação e mais
recentem ente pelos desenvolvimentos das ciências humanas, assim nosso
louvor se expande para horizontes sem pre novos.
56 K. Richards, “A Form and Traditio-Historical Study of r s ' ” (PhD diss., Clare-
mont, 1970; cf. Z A W 8 3 [1971]: 402). C. van Leeuwen {T L O T , 3:1262, s.v. rs')
afirma: “Em contraste com a raiz positiva, A‘ expressa comportamento negativo
— pensamentos, palavras e obras perversos — , comportamento antissocial que
revela ao mesmo tempo a desarmonia e inquietude interior da pessoa (Is 57.20)”.
342

Mas até o início do século 17, o Zeitgeist de Tudor ainda era influencia-
do pela astrologia. E m um excelente ensaio sobre o assunto, C. S. Lewis
observa: “Jamais devemos nos perm itir pensar da astrologia com o algo
que pertenceu ao lado rom ântico ou onírico, ou quase místico da m ente
[...] A astrologia foi um assunto obstinado, sério, anti-idealista; o credo
dos hom ens que desejavam o universo sem a admissão de incertezas”.57
Exatam ente com o hoje resistimos ao princípio do determinismo, procu-
rando pelo livre-arbítrio, tam bém o fizeram os cristãos do princípio da
era m oderna. Portanto, isso foi uma transição fácil para as descobertas da
astronom ia no século 17, que conferiram mais clareza ao determinismo,
para dar proeminência ao tema da providência divina agindo de acordo
com o livre-arbítrio. N essa época, o salmo 104 com eçou a ser interpretado
com o a celebração desse tem a teológico.
N o início dessa mudança, os puritanos na Inglaterra, com o M atthew
Henry, abordaram o tema (1662-1714), em bora fossem vozes posteriores,
com o a de William Swan Plum er (1802-1880), que tam bém abordou o
tema.
I. Matthew Henry (1662-1714)
M atthew H enry foi um com entarista influente. Ele era de opinião
que a mesm a m ão que com pôs o salmo 103 com pôs o salmo 104, como
perspectivas côncava e convexa. Ele o divide em sete temas: a) o esplendor
da majestade divina na esfera celestial superior (v. 1-4); b) a criação do
mar e da terra (v. 5-9); c) a provisão do Criador “para a manutenção de
todas as suas criaturas de acordo com a natureza delas” (v. 10-18,27,28);
d) o “curso regular do sol e da lua” (v. 19-24); e) o “equipam ento para o
mar” (v. 25,26); f) “o poder soberano de D eus sobre todas as criaturas”
(v. 29-32); e g) “uma agradável e firme resolução de continuar louvando
a D eus” (v. 33-35).58
N o com entário que se segue, H enry começa por dizer que qualquer
culto de adoração inicia com a convocação “para nos despertar para
nos apossarm os de D eus” na adoração (Is 64.7). Com todas as nossas
faculdades, clamamos: “Bendiga ao E u S o u a m inha alma! [...] Tu és tão

57 Studies in M edieval and Renaissance literature. Cambridge: Cambridge University Press,


2007, p. 55-6.
58 Commentary on the Whole Bible. Chicago: Fleming H. Revell, n.d., p. 626-7.
343

grandioso!” . O salmo usa vários símbolos para expressar a soberanía


divina: suas vestimentas; seus palácios nos céus; as nuvens espessas que
ocultam seu mistério, no entanto, atuam com o carruagens em que ele ca-
valga com força, rapidez e sem qualquer oposição; sua comitiva de anjos
— seres espirituais que são com o chamas de fogo (cf. E z 1.14; H b 1.7) e
relâmpagos. Contudo, “Ele não é tão absorto com as glórias de sua corte
para negligenciar até o mais rem oto de seus territórios; não, nem o m ar
e a terra seca” .59
“Ele fundou a terra, v. 5. Em bora ele a pendurasse sobre nada (Jó 26.7)
[...] tão inabalável quanto se a tivesse estabelecido sobre os fundam entos
mais firm es” . Deus “estabeleceu limites para o m ar” (v. 6), que tam bém é
seu. Sua voz poderosa tem efeitos estranhos de terror e m edo (SI 77.16).
Porque “ele estabelece as águas dentro de limites” (v. 9).60
“Tendo dado glória a D eus com o o protetor poderoso dessa terra
[...] [o salmista] agora vem a reconhecê-lo com o seu benfeitor generoso,
que provê bem -estar para todas as criaturas”; água fresca, das nascentes
para que bebam (v. 10,11), alimento apropriado para o hom em e animais
(12-15) e proteção. N ossa resposta deve ser “humilde e grata”, para nos
satisfazermos com essas dádivas e para que as faces brilhem de alegria.61
Deus tam bém cuida para que todas as suas criaturas tenham o habitat
adequado, sejam pássaros ou animais (v. 12-18).62
As criaturas de D eus nos ensina a louvá-lo e a magnificá-lo (v. 19-
30). N ão há contexto onde a providência divina não opere; portanto,
até o vasto m ar é provido para nós com o a esfera das rotas marítimas e
nele o m isterioso m onstro marinho, o Leviatã, “se divertindo nas águas”
e inumeráveis peixes de todos os tipos têm seu habitat (25,26). Todas as
criaturas são apropriadamente supridas com suas temporadas. Mas quando
Deus “esconde seu rosto”, todos ficam aterrorizados e quando o fôlego
divino da vida é retirado, eles perecem (28,29). Porque é seu Espírito que
cria e sustenta tudo (30).63

59 Ibid., p. 627-8.
60 Ibid., 628.
61 Ibid, 629.
62 Ibid, 630.
63 Ibid.
344

“O salmista conclui essa m editação falando” . D evem os louvar a


Deus (v. 31-35). Com o o grande Deus, sua glória perdura para sempre;
com o o D eus gracioso, ele se alegra em seus feitos. Por ser ele o Deus
todo-poderoso, a terra trem e ao seu olhar e os montes fumegam ao seu
toque (31,32). Só o hom em canta e o louva; com alegria, medita sobre
Deus (v. 33,34). Porém, os ímpios desaparecerão da terra (35). Por fim,
pela primeira vez no salmo, “Aleluia” (“louvem ao E u Sou”) é vocalizado
no louvor que atinge o ápice (cf. Ap 19.1-10).64
II. William Swan Plumer (1802-1880)
William Swan Plumer viveu em uma era muito diferente da de Matthew
Henry. Os linguistas deram um salto adiante para interpretar o hebraico,
o caldeu, o siríaco e outras línguas relevantes, antes am plamente restritas
aos puritanos, mas acessíveis à geração de Plumer. Um a nova geração
de comentaristas sobre os Salmos tam bém lhe era acessível. Seguindo as
referências bíblicas de form a estrita nos comentários, Plum er é menos
focado nos mistérios fenomenais da criação que na com preensão do texto
em sentido gramatical e na procura de conexões intertextuais.65
Plum er interpreta o salmo 104 com o o ensino e a ilustração da grande
doutrina da providência: o E u S o u proverá.
30. ... Se Deus cuida das cegonhas e coelhos e todas as miríades de seres
vivos no ar, terra e água, que é também comparativamente de pouco
valor, certamente que ele não esquecerá seu povo.

31. Se a mente humana não fosse tão inebriada pela culpa e envolvida nas
trevas, jamais havería dúvida a respeito das verdades da religião natural;
elas são declaradas e publicadas de modo mais que suficiente em todas
as obras de Deus.

32. Sem dúvida este salmo é aplicado de forma adequada ao reino me-
diatário de Cristo, não apenas pelo apóstolo em Hebreus 1, mas por
homens piedosos daí em diante. Ele fez o mundo que lhe pertence. Ele
fez os anjos e os anjos são dele. Ele fez a natureza inteira e a natureza
inteira lhe obedece. Quando na terra, os ventos e as ondas ouviram sua
voz se aquietaram. Ele é o Senhor de todos.66

64 Ibid., 632.
65 Studies in the Book o f Psalms (Philadelphia: J. B. Lippincott & Co., 1866), p. 920-1.
66 Ibid., 930.
345

III. André Chouraqui (1917-2007)


Concluím os com o com entarista francês contem porâneo A ndré
Chouraqui. U m cristão judeu, ele com bina sua erudição hebraica com a fé
cristã para explorar com profundidade o texto do salmo 104.67 Ele escreve:
“Como celebração da luz ao amanhecer do dia, assim o salmo também
celebra a obra de seu Criador no começo da criação. Igualmente, o ve-
mos celebrar o início da nova criação do Novo Testamento. Conforme
o erudito judeu Kimchi observou, ele celebra a habilidade do adorador
para cantar. Pois o poeta compara o começo do dia a uma veste de luz.
Como sabemos, segundo a história da criação, a luz é a primeira das cria-
ções de Deus, enquanto o universo é comparado na antiga cosmogonia
a um edifício, cujo teto retém as águas celestiais (Gn 1.6,7; Am 9.6).
Novamente, em alusão à antiga cosmogonia em 6,7, o poeta evoca a terra
como era antes da separação das águas originais e os dois continentes
(Gn 1.9,10), quando o mar primevo existia”.68

Com o insistimos no nosso estudo do saltério, os poetas podem ter


usado a cosmovisão de seus períodos da história cultural, que não há
forças além do controle soberano do Criador. Deus transcende todas as
mitologias em todas as eras. Isso inclui as novas hipóteses científicas a
respeito do Big-Bang ou do eletromagnetismo das estrelas ou da atração
gravitational dos planetas. Sem Deus no centro, como o salmo 104 celebra,
todos eles são formas variadas de astrologia.

Parte IV. Conclusão


O tema do salmo 104 é “o E u Sou, m eu Deus, tu és tão grandioso!”.
O salmo é um a m ontagem de imagens do D eus de Israel com o Criador
e Sustentador de todas as coisas. Ele começa com a luz radiante e o es-
plendor dos céus que vestem o Deus invisível. Hoje, ele é conhecido por
meio de seu Filho. O Senhor Jesus Cristo “é antes de todas as coisas, e
nele tudo subsiste” (Cl 1.7). Ele é o G rande Trabalhador que está sempre
trabalhando”.69

67 Eu consultei uma tradução portuguesa da obra de Chouraqui: André Chouraqui,


A Biblia Louvores, Salmos, trad. Paulo Neves (Rio de Janeiro: Imago, 1998), vol. 2,
p. 193-4.
68 Salmos, p. 193-4.
69J. J. Stewart Perowne, The B ook o f Psalms. Andover: Warren F. Draper, 1898, vol.
2, p. 225.
M6

Davi descreve a criação realizada pelo E u S o u com o se fosse observa-


da a olho nu, de uma perspectiva muito diferente da provida pelos meios
científicos. O s céus aquosos acima são separados da terra embaixo por
uma abóbada translúcida, pelo dia e cravejado da estrelas à noite. A terra
plana é dividida em terra seca e o m ar que está em volta e abaixo dela. Os
olhos da fé e razão observam além das causas imediatas da criação e das
criaturas, em direção à Causa transcendente. Q uando, em Salmos 139.13,
Davi canta ao E u Sou, a Causa transcendente: “Tu criaste o íntim o do
meu ser”, ele não nega a fisiología reprodutora, a causa imediata do desen-
volvimento de Davi. Davi não conhecia a evolução, mas se a conhecesse,
ela seria irrelevante para ele no salmo 104 com o o sexo era no salmo 139.
O hom em secular, contudo, se orgulha das descobertas das causas se-
cundárias, ao ignorar ou negar a primeira Causa — Aquele que pode ser
visto claramente (Rm 1.19, 20) — e assim tropeça em sua destruição. O
secularista é tão tolo quanto a pessoa que nega a existência do mágico por
descobrir o truque. Os fiéis não negam o criacionismo evolucionista; ao
contrário, eles se maravilham com o gênio do Criador, que form ou a célula
que poderia se adaptar em habitats diferentes, tornando-se surpreendente
e espléndidamente complexa. A evolução assim com preendida é motivo
para louvor, não para incredulidade.
A soberania do E u S o u se estende à vida inteira e há simetria majestosa
entre todas as coisas. Deus deve ser louvado porque tudo que ameaça o
hom em não deve ser exterminado de form a precipitada. “A vida selvagem
(10-12,16-18)”, nota K onrad Schaefer, “com põe o parâm etro doméstico
(13-15)” .70 “Toda vida criada é vida recebida”.71 O que o apóstolo Paulo
afirma da humanidade: “Porque ele [Deus] mesm o dá a todos a vida, o
fôlego e as demais coisas” (At 17.25), pode ser dito de todas as criatu-
ras. As pessoas cum prem apenas a função de apoio no drama cósmico
(v. 14,15,23,26). Elegy Written in a Country Churchyard [Elegia escrita em
um cemitério provinciano] de Thom as Gray expressa com eloquência a
inquietude da humanidade separada de Deus. Ele escreve:

70 Psalms, Berit Olam. Collegeville: Liturgical, 2001), p. 257.


71 Karl Lóning; Erich Zenger, To Begin with, G od Created: Biblical Theologies o f Creation,
trad. Omar Kast. Collegeville: Liturgical, 2000), p. 43.
347

“Cheias de muitas gemas do mais puro raio sereno, As cavernas escuras,


insondáveis do oceano form am ;/ Muitas flores nascem para o brilho
invisível,/ E desperdiçam sua doçura no ar do deserto”.72

Entretanto, os fiéis percebem que cada gema é vista por D eus e cada
flor é cheirada por D eus e isso faz toda diferença.
D o tem plo celestial, o Soberano cavalga nas nuvens tempestuosas
com o Guerreiro. Com o Construtor, ele lança os fundam entos da terra.
Com o Governador, ele puniu a terra um a vez com o Dilúvio, mas não
o fará de novo (v. 6-9). N a graça, ele não apenas dom inou os mares e os
forçou a se estabelecerem em um lugar, ele os transform a em nascentes
para frutificar a terra (10-12) e ele acrescenta a chuva do céu para susten-
tar a vegetação que provê alimento para a inumerável e aparentem ente
infinita variedade de criaturas. Ele assim o faz com a generosidade que
impressiona a imaginação (13-15). A grande quantidade de semente fértil
desde a criação torna a palavra “grandioso” m uito insignificante. Ao mes-
mo tempo, o Soberano provê lugares seguros de refúgio para a cegonha
típica e o bode m ontanhês (16-18).
Ele faz o tem po e lugar para tudo. A lua marca as noites, quando o
leão é senhor; e o sol provê o dia claro, no qual o hom em é senhor (v. 19-
22). Mas o E u S o u é Senhor de todos. O hom em antigo temia o mar; o
dragão simbolizava sua ira. Mas para o E u Sou, o dragão é um pato de
borracha flutuante em um a banheira.
O Soberano transcende a criação; no entanto, ele se encontra imánente
nela. Ele está intim am ente envolvido com cada criatura e com todas elas.
Ele pessoalm ente sopra seu fôlego e cria cada uma e a alimenta com o que
com as próprias mãos, da mesm a form a que as pessoas alimentam seus
bichinhos de estimação. Ele está voltado de form a dinâmica, não distante,
das criaturas. N o centro do universo há alegria de viver. O E u S o u se alegra
em seus feitos e o salmista se alegra nele. O E u S ou provê a humanidade
com mais que água e pão proveniente da colheita de primavera; ele acres-
centa o vinho e azeite da colheita de outono para sua saúde e bem-estar.
Com o o dragão brinca no vasto mar, o E u S o u dança no céu.
Contudo, não se deve presumir o domínio do conhecim ento absoluto
de Deus. O salmo começa com o estrondo do trovão e com os relâmpa­

72 Elegy W ritten in a Country Churchyard. Boston: Estes and Lauriat, 1883.


348

gos e term ina com a oração para que os pecadores sejam eliminados da
terra e que os ímpios não mais existam. A cena de encerram ento da causa
para louvar descreve o E u S o u olhando para a terra, e ela treme; ele toca
o montes e eles fumegam. O E u S o u que dá fôlego ao “p ó ” também, em
sua ira, o retira e as criaturas voltam ao pó.
Aqui há o D eus digno de que a alma o bendiga e as pessoas aclamem:
“Aleluia!”.
Glossário

Acadiano: Uma extinta língua semítica que era escrita em cuneiforme e falada na
antiga Mesopotâmia desde o terceiro milênio a.C. até sua substituição
pelo aramaico como a língua franca em meados do primeiro milênio a.C.
Anábase: Uma figura para um escrito, fala ou discurso que ascende passo a passo,
cada um com uma intensificação da ênfase ou sentido.
Anadiplose: Uma forma de repetição em que a última palavra de um período ou sen-
tença é repetida como a primeira palavra do período seguinte ou sentença.
Anáfora: Um recurso literário em que uma palavra ou frase é repetida no começo
de períodos sucessivos e/ou funções.
Antifonia: Canto alternado ou responsivo por um coral em duas divisões.
Apódose: O período principal de uma sentença condicional. Por exemplo, “eles
virão” é a apódose de “se você o construir, eles virão”.
Assonância: Estritamente falando, a repetição do som ou vogal em sílabas tônicas
sem rima próximas o bastante para ser reconhecíveis. Como usada nesta
obra, ela também inclui a repetição de consoantes próximas o bastante
para ser reconhecíveis.
Bicólon: As duas metades de um cólon.
Catábase: Uma figura de um escrito ou discurso que desce passo a passo, cada um
com uma redução de ênfase ou sentido.
Chaoskampf: Um mito do conflito cósmico entre deidades da natureza.
Cólon: Uma linha da poesia hebraica; geralmente equivalente a um verso.
Crítica da forma: Um método que busca através do verbo, gramática e temas
classificar unidades da Escritura em categorias literárias. Normalmente,
ela então tenta traçar cada tipo ao seu período de transmissão oral; mas
essa extensão não é pretendida aqui.
Crítica retórica: Um estudo de como um autor comunica sentido através de vários
recursos literários que não sejam a gramática, como a estrutura de uma
composição literária.
Dístico: Dois versos unidos filológicamente e/ou semánticamente.
350

Donatismo: Assim denominado devido ao líder Donato. Esse movimento cristão


no Norte da África rompeu com a igreja romana por causa da eleição de
Ceciliano como bispo de Cartago em 312. Os donatistas se opuseram à
interferência do estado na vida da igreja e tinham uma rigorosa disciplina
ascética de penitência e uma disposição para o martírio se necessário.
Encadeamento/encavalgamento: Um pensamento ou sentido, frase ou oração,
em uma linha de poesia que não termina na linha, mas passa para a pró-
xima linha.
Escolio: Comentários gramaticais, críticos e explanatórios inseridos nos textos
usados para ensino.
Estança: A maior unidade de um poema, unificada por gramática e/ou pensamento.
Estrofe: A maior unidade de uma estança, unificada pela gramática e/o u pensa-
mento.
Hápax legomenon (“falado uma vez”): Uma palavra que aparece somente em um
corpus definido de literatura.
Hendíadis: Duas palavras que expressam uma única coisa ou noção.
Hino: Um cântico que louva a Deus.
Inclusão: Um recurso literário usado na poesia hebraica em que palavras-chave ou
frases são repetidas no começo e no fim de um poema como um meio
de alcançar o encerramento.
Jano: Um recurso literário derivando seu nome de um deus com duas cabeças
empoleirado em uma porta e simultaneamente olhando para frente e
para trás. Na literatura, ele se refere a uma passagem de transição que
ouve de volta ao que a precede, bem como ouve à frente ao que a segue,
conectando assim as passagens.
Lamento (salmo): Um cântico dirigido a Deus que expressa o sentimento do cantor
de ser perseguido por inimigos e abandonado por Deus e confiantemente
suplica a Deus por libertação.
Libreto: O texto de uma ópera ou outra obra vocal longa.
Litotes: Uma forma de compreensão em que algo é afirmado por negar seu oposto.
LXX (Septuaginta): Numerais romanos para “setenta”, denotando a Septuaginta, a
mais antiga e conhecida versão grega da Bíblia hebraica, traduzida entre o
terceiro e quarto séculos a.C. em Alexandria. “Setenta” é uma referência
às afirmações apócrifas da Carta de A risteia s que 72 escribas dedicaram
72 dias para completar a tradução da Torá; comumente se usa o termo
“LXX” extensivamente para se referir ao A.T. inteiro.
Merisma: Do grego meúsmos, “distribuição”; um recurso literário no qual a totalidade
é expressa por se referir aos opostos ou extremos; um exemplo seria Gêne-
sis 1.1, onde “céu e terra” são usados para representar o cosmos inteiro.
351

Metonimia: Uma figura de linguagem em que alguma causa, efeito ou circunstância


pertencente ao sujeito é usada pelo sujeito em si mesmo.
Oração: Uma unidade da gramática consistindo em um sujeito e um predicado.
Ordem cisterciense: Um movimento de reforma beneditina estabelecido em 1098
por Roberto de Molesme; a ordem enfatizava isolamento, recrutamento
de monges adultos e um retorno ao trabalho manual.
Pais do deserto: Antigos cristãos eremitas que, começando no terceiro século,
viveram uma vida de ascetismo no deserto egípcio.
Paralelismo: O uso na prosa, mas especialmente em uma linha de poesia, de construções
verbais proporcionais em gramática, som e/ou sentido.
Parataxe: A colocação de orações ou frases uma depois da outra sem palavras para
indicar coordenação ou subordinação.
Período do Segundo Templo: A era da construção do Segundo Templo em 530
a.C. até sua destruição em 70 d.C.
Poesia: Uma forma literária elevada em que intensidade especial é conferida às
expressões de sentimentos por concisão, imagens concretas, figuras de
linguagem e alguma forma de verso.
Primevo: Relacionado à terra antes que ela se tornasse habitável.
Prolepse: A representação de algo como existindo antes de sua existência.
Prosopológico: Uma representação de Cristo das perspectivas de sua humanidade
e divindade.
Prótase: A oração expressando alguma forma de condição. Por exemplo, “se você
o construir, eles virão”.
Pseudógrafo: Um escrito representado por um autor diferente do autor atribuído.
Quadra: Uma peça de poesia tendo quatro partes.
Querubim: Um anjo alado representado na arte antiga do Oriente Médio como
um leão ou touro com asas de águia e uma face humana.
Quiasma/quiástico: Uma figura de retórica ou literária em que palavras, construções
gramaticais ou conceitos são repetidos em ordem inversa.
R evia : Um dos diversos acentos disjuntivos para indicar a sintaxe de um verso no
texto hebraico recebido.
Seol: O termo hebraico que denota a sepultura e conota o horror da morte.
Símile: Uma figura de retórica envolvendo a comparação de uma coisa com outra de
um tipo diferente para tornar a descrição mais enfática ou vivida.
Sinédoque: Uma figura de linguagem em que uma parte representa o todo ou
vice-versa.
Siríaco: a língua da antiga Síria, um dialeto ocidental do aramaico.
Tautología: Dizer desnecessariamente a mesma coisa duas vezes.
352

Teologia do pacto: Um sistema de interpretação da Escritura em que todos os


eleitos, judeus e gentios participam dos pactos que Deus fez com Adão e
Eva, Noé, Abraão, Israel (o antigo sendo substituído pelo novo) e Davi.
Considerando que todos esses têm seu cumprimento em Jesus Cristo, os
eleitos são unificados pela fé deles em Cristo.
Tetragrama: (do grego, “quatro letras”): Se refere ao nome de Deus no hebraico,
YHWH, geralmente traduzido em português por “ S e n h o r ” e nesse co-
mentário como “E u Sou”.
Texto Massorético (TM): O texto autorizado da Bíblia hebraica; dos séculos sétimo
ao décimo d.C., judeus tradicionalistas (massoretas) adicionaram sinais
vocálicos, marcadores textuais e anotações em uma tentativa de preservar
como o texto foi lido; o manuscrito mais antigo existente data de c. 895 d.C.
Tipo/antítipo: Um exemplar divinamente intencionado por uma pessoa, lugar ou
situação de uma pessoa, situação ou lugar mais eminente.
Tipologia: Uma espécie única de promessa e cumprimento. Enquanto a profecia
diz respeito às palavras prospectivas e seus cumprimentos, a tipologia se
preocupa com os eventos históricos, pessoas e instituições comparativos
registrados na Bíblia. Em contraste com a alegoria, que é um recurso
literário livre, a tipologia é fixada pelo cânon bíblico.
Ugarítico: Uma antiga língua semítica do noroeste de Ugarit (no norte da Síria
moderna), uma pequena, porém relevante cidade-estado que progrediu
entre 1800 e 1200 a.C. Textos foram desenterrados no local em 1928 por
uma equipe francesa de arqueólogos e publicados em 1939. A decifração
da língua desses textos diversos (administrativo, literário e mitológico)
ajudou a esclarecer palavras hebraicas difíceis e a iluminar paralelos entre
costumes israelitas e aqueles das culturas circunvizinhas.
Verseto: a menor parte de um verso, unificado pela gramática e/ou pensamento.
Vulgata (do latim editio vulgata, significando “a versão comum”): Essa versão da
Bíblia foi traduzida primariamente por Jerónimo, c. 383 d.C. Desde o
século sexto ela se tornou a versão aceita da igreja ocidental. Em 1546, o
Concilio de Trento decretou que ela era a autoridade exclusiva para a Bíblia.
Zeugma: Uma figura de linguagem em que uma palavra se aplica a duas outras
com sentidos diferentes. Por exemplo: “ele viu o relâmpago e o trovão”.

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