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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
HISTÓRIA DA ÁFRICA

ANA BEATRIZ ALHO COELHO


LEONARDO DE CASTRO MONTE
MATEUS BARBOSA DA NÓBREGA
MIGUEL ANTONIO SAMPAIO CAXIAS
NATHAN NUNES ROSA

ESCRAVIDÃO AFRICANA
PERCEPÇÕES SOBRE O TEMA (SÉCULOS XV-XIX)

NOVA IGUAÇU, RJ
2023
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 1
2. A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA ....................................................................................................... 1
2.1 Os diferentes tipos de escravidão na África .................................................................................. 1
2.2 Influências do islamismo na escravidão africana .......................................................................... 3
2.3 A escravidão na costa da Guiné..................................................................................................... 3
2.4 A chegada dos europeus ................................................................................................................ 4
3. A PROPAGAÇÃO DO CATOLICISMO NO CONGO E SUA INFLUÊNCIA NAS
RELIGIÕES TRADICIONAIS............................................................................................................ 5
3.1 A influência do catolicismo na expansão portuguesa .................................................................... 5
3.2 Os impactos da presença portuguesa no Reino do Congo ............................................................. 6
3.3 O sincretismo entre o catolicismo e as religiões tradicionais no Congo ....................................... 8
4. COMPREENDENDO A ESCRAVIDÃO EM SOCIEDADES AFRICANAS ATRAVÉS DE
BENGUELA .......................................................................................................................................... 9
4.1 A Importância do Porto de Benguela ............................................................................................ 9
4.2 Amálgama cultural ...................................................................................................................... 10
4.3 As várias conexões criadas pela escravidão ................................................................................ 11
4.4 Relação dos portugueses em Benguela........................................................................................ 12
4.5 Instabilidades presentes no comércio .......................................................................................... 13
5. O REINO DA ANGOLA NO SÉCULO XVIII E A COMERCIALIZAÇÃO DE CATIVOS . 14
5.1 Reino de Angola, Sertões e a Reforma Pombalina. ..................................................................... 14
5.2 Guerras e o Impacto sobre o Comércio de Cativos. .................................................................... 17
6. A ABOLIÇÃO DO TRÁFICO NEGREIRO E ALGUNS DOS SEUS EFEITOS NO
CONTINENTE AFRICANO.............................................................................................................. 18
6.1 O caminho abolicionista do ocidente. ......................................................................................... 18
6.2 Serra Leoa e Libéria. ................................................................................................................... 20
6.3 A proteção do comércio. ............................................................................................................. 21
7. CONCLUSÕES GERAIS. .............................................................................................................. 23
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 24
1

1. INTRODUÇÃO

A história da humanidade é marcada por diversos capítulos sombrios, e a escravidão é,


sem dúvida, um dos mais sombrios e dolorosos. Ao abordarmos esse tema, é importante
compreender que a escravidão não foi um fenômeno restrito apenas às Américas, mas teve
raízes profundas na própria África, onde a escravidão existia mesmo antes do contato com o
mundo ocidental. A escravidão na África não apenas antecedeu o tráfico transatlântico de
escravos, mas também estabeleceu as bases para sua expansão. Por séculos, diferentes
sociedades africanas estiveram envolvidas no comércio de escravos, com um sistema que
variava desde formas mais brandas de servidão até a cruel exploração em larga escala.

Portanto, nesta pesquisa exploraremos a escravidão na África, buscando entender suas


causas, motivações e impactos na história do continente. Analisaremos os fatores sociais,
econômicos e políticos que levaram à institucionalização desse sistema, bem como os
mecanismos pelos quais os africanos foram capturados, vendidos e transportados em condições
desumanas para além de suas terras natais.

Por fim, é fundamental compreender a escravidão na África como um fenômeno


multifacetado e complexo, moldado por diversos fatores históricos e culturais. Esta pesquisa
busca proporcionar uma visão abrangente desse capítulo sombrio da história africana, a fim de
promover uma compreensão mais profunda sobre o impacto duradouro que a escravidão teve
sobre o continente.

2. A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA

2.1 Os diferentes tipos de escravidão na África

É importante lembrar que a escravidão não começou com a chegada dos europeus no
continente africano, diversos povos na história do nosso planeta conceberam e utilizaram a
escravidão em suas sociedades. Por exemplo, ser escravo na Grécia era muito diferente de ser
escravo em alguma possessão viking, cada comunidade lidou de uma certa maneira com a
instituição escravista, tratando o indivíduo escravizado ora como dependente, ora como
semovente, ora como mão de obra esporádica.
2

Outro fato que traz transformações para a escravidão é o tempo, pois a escravidão na
África nem sempre foi a mesma, sofrendo constantes transformações dependendo das mudanças
sociais, econômicas e políticas.

A escravidão doméstica envolvia indivíduos que eram escravizados dentro das


comunidades africanas. Geralmente, eram prisioneiros de guerra, indivíduos endividados ou
filhos de escravos. Eles serviam como trabalhadores domésticos ou em atividades agrícolas e,
às vezes, tinham a possibilidade de ascender socialmente.

Esta forma de escravidão tinha suas próprias dinâmicas e características específicas em


diferentes regiões e culturas. Nessas sociedades o escravo era considerado como um estranho
dentro de uma rede de parentescos, sem poder se reproduzir fisicamente ou socialmente.

Uma característica que aparecerá em todas as formas de escravidão, um traço que é a sua
própria essência: a incapacidade social do escravo de se reproduzir socialmente, isto é, a
incapacidade jurídica de ser “parente”. Essa incapacidade, que é a condição orgânica virtual
da exploração do trabalho na economia doméstica, fará, portanto, da escravidão a antítese do
parentesco e o meio legal da subordinação do escravo em todas as formas de escravagismo,
mesmo quando o escravo não é explorado como trabalhador produtivo 1.

Relata-se também, em diversas sociedades africanas a existência de indivíduos


entregues por sua família como pagamento de dívida a um credor, que pode usar dos trabalhos
desta pessoa gratuitamente até a extinção dessa dívida, esse tipo de escravidão era recorrente e,
muitas vezes, as pessoas escravizadas tinham a oportunidade de recuperar sua liberdade ao
quitar suas dívidas.

Após o contato com o mundo muçulmano começou a ser incorporada também a


escravidão muçulmana. Os escravos muçulmanos desempenhavam várias funções na
sociedade. Além de trabalharem como servos domésticos, agricultores e trabalhadores em
plantações, também podiam ser utilizados como soldados ou servir em funções administrativas.
Além disso, muitos escravos eram usados como concubinas e eunucos nos haréns das elites
muçulmanas.

As rotas comerciais transaarianas, que ligavam a África subsaariana ao mundo


muçulmano, facilitaram o comércio de escravos. Essas rotas conectavam áreas produtoras de
escravos no interior do continente com os mercados de escravos do norte da África e do Oriente
Médio.

Assim, a economia escravagista se inscrevia em uma área sempre muito extensa,


mobilizando, além dos instrumentos de captura, uma estrutura complexa e organizada de

1
MEILLASSOUX, 1996, p. 28
3

deportação, comercialização, transporte, mercados, e também de condicionamento da


“mercadoria”2.

2.2 Influências do islamismo na escravidão africana

De 1400 a 1600 ao longo da estreita faixa de território ao sul do Saara, das praias do
Mar Vermelho à costa leste da África era a área geográfica onde a escravidão se tornou mais
importante, a chegada e disseminação do Islã sendo de grande influência nesse processo.
Trouxeram consigo transformações significativas nas estruturas sociais e políticas. Com a
conversão das classes políticas e mercantis ao Islã, houve uma adaptação dos modos de agir,
previamente associados a essa fé, ao contexto africano. Essa fusão cultural resultou em uma
influência mútua, em que os princípios islâmicos se entrelaçaram com as práticas e tradições
locais, moldando uma nova dinâmica sociopolítica no continente africano.

Ao fornecer escravos, os líderes africanos encontraram conveniência em justificar a


prática da escravidão a partir de uma perspectiva islâmica. Alegava-se que os prisioneiros de
guerra poderiam ser vendidos, e, uma vez que esses indivíduos capturados eram considerados
como propriedade móvel, podiam ser utilizados nas mesmas funções que eram empregadas no
mundo muçulmano. Essa justificativa permitia a exploração dos escravos africanos e facilitava
o seu comércio dentro das estruturas legais e sociais estabelecidas pelas sociedades
muçulmanas.

É importante notar que a escravidão muçulmana na África não era uniforme e variava de
acordo com as diferentes culturas e regiões. Algumas sociedades muçulmanas praticavam uma
forma de escravidão em que os escravos conseguiam obter liberdade através de meios como a
conversão ao Islã ou a compra de sua própria liberdade. No entanto, em outros contextos, a
escravidão era uma condição vitalícia e hereditária, com poucas oportunidades de emancipação.

2.3 A escravidão na costa da Guiné

Antes da chegada dos europeus à Costa da Guiné, a escravidão já era uma realidade
presente na região. As sociedades africanas locais estavam envolvidas em diversas formas de

2
MEILLASSOUX, 1996, p. 55
4

escravidão e comércio de cativos muito antes do comércio transatlântico de escravos ser


estabelecido.

Ao longo da Costa da Guiné, diferentes sistemas de escravidão existiam nas sociedades


africanas. A escravidão poderia ser resultado de capturas em conflitos, guerras entre grupos
étnicos, dívidas não pagas ou como punição por crimes cometidos. Os cativos eram
considerados propriedade e serviam como mão de obra nas comunidades locais.

É importante destacar que a escravidão na África pré-europeia não tinha a mesma escala
e natureza brutal do comércio transatlântico de escravos. No entanto, ainda havia sofrimento e
injustiça associados à instituição da escravidão.

Os europeus, ao chegarem à região, estabeleceram postos comerciais e fortalezas ao


longo da Costa da Guiné, tornando-se participantes ativos no comércio de escravos. A demanda
europeia por mão de obra escrava e sua influência no comércio transatlântico de escravos
afetaram significativamente a região, levando a um aumento no número de capturas e vendas
de africanos como escravos.

2.4 A chegada dos europeus

As primeiras caravelas portuguesas chegaram à costa da África no Oceano Atlântico nas


décadas de 1430 e 1440, alcançando a região do Rio Senegal em 1445, onde, desta forma, os
portugueses encontraram uma próspera atividade comercial de escravos na Costa do Ouro, onde
também tinham a oportunidade de adquirir esse metal precioso. Portanto é possível afirmar que
os primeiros comerciantes europeus de escravos nessa área costeira inicialmente se envolveram
no comércio de escravos como intermediários, uma vez que o seu interesse principal estava
direcionado a outros propósitos comerciais.

As relações militares e políticas entre africanos e europeus levam à conclusão de que os


africanos detinham o controle sobre a natureza de suas interações com a Europa. Os europeus
não possuíam o poder militar para impor aos africanos qualquer tipo de comércio no qual seus
líderes não desejassem se envolver. Dessa forma, todo o comércio da África com o Atlântico,
incluindo o comércio de escravos, dependia do consentimento voluntário por parte dos
africanos.
O desenvolvimento e expansão do comércio transatlântico na última metade do século
XV marcou um importante marco na história do tráfico de escravos. Esse comércio resultou em
5

transformações distintas da escravidão existente na região em comparação às regiões


islamizadas. Embora a escravidão tenha continuado, na maioria dos lugares, a ser interpretada
no contexto das estruturas de linhagem, conhecida como escravidão de linhagem, ela se
consolidou como uma instituição importante nas estruturas sociais das sociedades locais.
Portanto, a relação entre o comércio europeu de escravos e o desenvolvimento da escravidão
nas sociedades africanas ajuda a esclarecer essa mudança histórica

3. A PROPAGAÇÃO DO CATOLICISMO NO CONGO E SUA INFLUÊNCIA NAS


RELIGIÕES TRADICIONAIS

3.1 A influência do catolicismo na expansão portuguesa

Portugal foi um reino relacionado ao catolicismo desde sua fundação na Batalha de


Ourique, em 1139, após um suposto milagre. Desde que se lançou na exploração marítima, o
Reino de Portugal tomava por bases as doutrinas católicas para fundamentar suas ações.

Portugal era um reino especialmente cristão que tomou para si a missão de espalhar para o
evangelho por todo o mundo conhecido, ao mesmo tempo que ampliava os seus limites.
Primeiro lutando contra os muçulmanos no norte da África, chamados de “mouros”, depois
buscando converter os “gentios” encontrados na exploração da costa atlântica africana, suas
armas eram ladeadas pela cruz e seus navios levavam sempre sacerdotes, responsáveis tanto
pela assistência espiritual e pela oferta dos sacramentos à tripulação dos barcos, como pela
conversão das pessoas moradoras das terras até então desconhecidas dos europeus. 3

Assim sendo, Altar e o Trono, ou seja, respectivamente os poderes religioso e temporal


estavam profundamente atrelados entre si, sobretudo nos contextos de expansão. No entanto,
nos povos presentes na região centro-africana tal relação se dava de uma maneira ainda mais
intensa. A cosmovisão presente nestes povos compreendia duas dimensões diferentes da vida,
uma visível e uma outra invisível. A primeira formada pelas relações da materialidade, a
segunda, pela espiritualidade. Ambas formavam uma relação de interdependência: enquanto os
homens, incluídos aqui os governantes locais, devia zelar pelos espíritos, estes também zelavam
pelos seres humanos lhes trazendo ventura. Dentro deste contexto temporal-espiritual, havia
também aqueles que serviam como mediadores entre ambas as esferas: os sacerdotes, que,

3
SOUZA, Marina de Mello e. Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no Congo e em Angola (Séculos
XVI e XVII), pp. 11-12. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2018.
6

assim como nas sociedades europeias, caminhavam em conjunto aos governantes lhes
oferecendo orientações com base nos espíritos.

Após os portugueses levarem o Catolicismo para as regiões centro-africanas, estas não


o receberam de forma passiva simplesmente, mas se apropriaram à sua maneira da religião
trazida pelos portugueses, ao ponto de, por exemplo, no Congo ter sido criado, nas palavras do
historiador Thornton, um “catolicismo africano”, onde a simbologia católica foi como que
absorvida pela cosmovisão congolesa.4 A importância de se tratar a fé católica nestes contextos
é que foi sobretudo esta religião, vinda por meio dos lusitanos e apropriada pelos africanos, a
responsável por dar a lente ideológica que permitiu a justificação dos processos de poder e
comércio que surgiram entre Portugal e África.

A respeito da organização política e social congolesa da época, é necessário explicitar


que o agente político chamado mani Congo era aquele capaz de articular sobre si a maior
quantidade de tributos e também de alianças por meio de casamentos, naquele contexto,
poligâmicos; ao mani Congo eram subordinados muitos chefes locais. Os laços de parentesco
eram a principal forma de coesão social, até mesmo nas aldeias locais, em comunhão com o
etarismo, ou seja, o poder e influência dos mais velhos de cada localidade.

No que diz respeito à vida cotidiana, as pessoas viviam em aldeias, sendo as linhagens a
estrutura básica da organização social. Cada uma tinha um chefe, escolhido entre os seus
membros mais velhos, que distribuía a terra de cultivo entre as famílias, julgava conflitos que
eram levados a ele e conduzia os ritos de homenagem aos ancestrais e aos espíritos, que
aconselhavam sobre os vários aspectos da vida dos homens.5

3.2 Os impactos da presença portuguesa no Reino do Congo

Quando os primeiros portugueses se depararam com estes povos, a primeira impressão


que tiveram era a de que eles eram pagãos que precisavam ser evangelizados. Os lusitanos e os
povos da costa africana já comercializavam desde próximo de 1440, todavia, no contexto dos
séculos XVI e XVII, os escravos eram a principal mercadoria demandada pelos mercadores
portugueses. Nas mais diversas expedições, padres católicos estavam presentes a fim de
prestarem auxílios religiosos para os tripulantes e fazer serem católicos os nativos das regiões

4
THORNTON, John. The Development of na African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1984.
5
SOUZA, Marina de Mello e. Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no Congo e em Angola (Séculos
XVI e XVII), pp. 33-34. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2018.
7

por onde os portugueses passavam. Muito raramente as conversões eram numerosas, até que o
mani Congo adotou o catolicismo como sua religião.

O Catolicismo foi absorvido, desde então, pelos povos africanos obedecendo a lógica
de suas cosmovisões e tradições locais, mas com muitas tensões. Não era sempre que as
autoridades locais africanas acatavam de bom grado as doutrinas e comportamentos novos
ensinados pelos diversos missionários católicos. Os padres eram contrários a todo tipo de
sortilégios, aos amuletos, aos altares pagãos e também à poligamia. Mesmo que as populações
demonstrassem interesse na nova religião, após o batismo era comum que não respeitassem as
ordens vindas dos sacerdotes justamente por causa desta dificuldade.

Mas, como vimos, a adoção do catolicismo não provocou uma mudança fundamental na
religião: os ensinamentos cristãos eram interpretados a partir das velhas tradições, e os novos
ritos e objetos de culto eram chamados por nomes já conhecidos. Missionários eram vistos
como bagangas, e os objetos que utilizavam eram tidos como minkisi.6

Há um relato feito pelo missionário Fr. Raphael de Castello de Vide, que seria sagrado
bispo de S. Tomé, onde ele indica que a presença da fé católica era bem quista por ambos os
reinos, ou seja, de Portugal e Congo:

Como filho obediente, ainda que bem distante, nestas interiores terras de África, em o
dilatado Reino do Congo, pela salvação das almas, vou por esta à sua presença, desejando
muito que o Ir. Provincial possua muito feliz saúde para a Santa Província ter um tão
benemérito Prelado, e se lembrar deste súbdito, de todos o mais indigno, mas que deseja em
tudo mostrar sempre ser filho da S.ta Província da Piedade. Eu graças ao Senhor me acho
agora com perfeita saúde, depois de muitas moléstias, e trabalhos, já quase no fim da minha
prolongada viagem, junto com dois companheiros, que o quarto foi Deus servido levar para
si em princípio, ou pouco mais da jornada; ocupo neste Reino do Congo, por ordem de Sua
Ex.ª Rev.ma o Senhor Bispo de Angola, o cargo de Vigário Geral e Missionário em este
Reino; a nossa conduta é para a Coroa deste Reino aonde se acha a Sé, mas destruída, e é o
assento dos Reis, mas os grandes embaraços que há em este Reino, e os inimigos que ocupam
a Corte faz que tanto nos tenhamos demorado no caminho, que ainda não acabámos, mas
estamos já com o Rei, perto da Corte coisa de três léguas, para brevemente querendo Deus
entrarmos o mais que pertence a tantos trabalhos que tenho padecido, e os poucos serviços
que eu indigno Ministro tenho feito ao Senhor em esta Missão vão referidos na descrição que
fiz da minha viagem, que remeto ao Irmão Provincial pelas mesmas causas, que ali vão
referidas; o que peço é que o Ir. Provincial queira emprestá-la para a ver meu Pai, se ele a
pedir para ver, porque como Pai, desejará ter compridas novas de seu filho, o que lhe não
mando pela falta de tempo para escrever; o que ele vendo, poderá tornar a remeter; eu me
recomendo muito nas orações, e sacrifícios do Ir. Provincial e de todos os meus Irmãos
Religiosos, a quem desejava animar fervorosamente a vir melhor do que eu a uma empresa,
que não pode deixar de ser muito agradável ao Senhor, acudindo a estas pobres almas
desamparadas, que custaram o preciosíssimo Sangue do nosso amado Redentor, e têm
gemido há tantos anos sem um Padre, que os meta no caminho do Céu, sendo muito apegadas
à Cristandade. Além do que digo, que é o principal, a que viemos, foi esta Missão de grande
empenho da Rainha Nossa Senhora, assim para restabelecer a Cristandade, que aqui foi
plantada pelos Portugueses, como também para renovar a antiga amizade, que sempre houve
entre o Congo e Portugal, e os Reis de um e outro Reino, o que esperamos conseguir pelo
grande agrado, que temos encontrado neste Rei do Congo, e nos maiores fidalgos, anuindo a
tudo o que se propõe, e esperamos principalmente nele integrar a Cristandade que aqui

6
Ibid, p. 64.
8

achamos muito descaída: ora isto pede particulares súplicas ao Senhor, e como as minhas por
indignas não serão ouvidas diante do Divino acatamento, recorro às da minha Mãe, a Santa
Província, cujo benemérito Prelado guarde o Senhor na sua divina graça como sempre pedirei
ao Senhor, eu – do Ir. Provincial – o mais indigno, mas obediente súbdito. Fr. Raphael de
Castello de Vide.7

De toda maneira, por trás deste intento de conversão religiosa ao Catolicismo havia
interesses de dominação de ambas as partes. O reino português queria que o Congo lhe fosse
de certa forma subordinado e, por meio deste domínio ter acesso a diversas mercadorias como
escravos, cobre, e outros, enquanto o mani Congo também se valeu da fé católica para sustentar
sua influência sobre os líderes inferiores a ele. Assim sendo, o Catolicismo serviu como meio
de troca das relações de poder e comércio.

3.3 O sincretismo entre o catolicismo e as religiões tradicionais no Congo

Antes mesmo da chegada do Catolicismo às terras africanas, é possível notar elementos


das religiões tradicionais daquela localidade. É importante salientar que, na região centro-
africana, a teologia era formada por um conjunto de revelações particulares não submetidas a
um crivo universal e ortodoxo; os sacerdotes não recebiam seus poderes de uma hierarquia, mas
unicamente de sua habilidade de se comunicar com o além-vida. Fora que havia muitíssimas
variações de crença a respeito do destino da alma após a morte: uns criam que a alma do morto
passava para algum familiar próximo, com a esposa ou filhos; outros, que ela morria junto com
o corpo, etc. No entanto, havia uma espécie de consenso aceito de forma ampla sobre este
assunto: os mortos podiam influenciar os vivos a partir do além-vida.

Já na região do centro-oeste da África acreditava-se numa variedade de espíritos


residentes no outro mundo:

Documentos contemporâneos enfatizam que o culto religioso envolvia dois tipos de seres
sobrenaturais: espíritos distantes e poderosos, que podemos descrever como divindades, e as
almas dos familiares recentemente falecidos. Algumas autoridades modernas relacionam
ambas as categorias aos mortos, argumentando que as divindades são simplesmente
ancestrais que morreram há mais tempo, embora isso seja controverso tanto para os nativos
quanto para os antropólogos.
Além dessas duas forças espirituais principais, havia duas categorias de espíritos inferiores
que eram desapegados de famílias individuais ou territórios e que ou ativavam amuletos que

7
Trecho da carta que Fr. Raphael escreveu em 16 de janeiro de 1790 ao Provincial da Congregação da Terceira
Ordem da Penitência de S. Francisco, narrando a missão e morte do P.e Fr. João Gualberto de Miranda. Grifos
nossos.
9

qualquer um poderia utilizar, ou eram espíritos perigosos e furiosos fantasmas cuja malícia e
maldade poderiam trazer problemas.8

Os congoleses concebiam também a ideia de uma divindade maior e universal, associada


com a criação do universo, e seu nome é Nzambi Mpungu. Os missionários católicos logo o
identificaram com a concepção cristã e ocidental de Deus e isto foi um dos principais
argumentos da evangelização naquelas regiões.

No final das contas, o cristianismo, apesar de sua forma sincrética, segundo os modelos do
Congo, penetrou profundamente em todas as regiões, embora somente no Congo e áreas sob
a administração portuguesa ele estivesse fortemente enraizado como parte da identidade
local.9

Mesmo que houvesse algum conflito teológico por causa da ideia de divindades menores
ou ancestrais entre as religiões tradicionais e o Catolicismo, com o tempo, este último foi
absorvido e apropriado pelos habitantes africanos, concedendo-lhe uma identidade própria.

4. COMPREENDENDO A ESCRAVIDÃO EM SOCIEDADES AFRICANAS


ATRAVÉS DE BENGUELA

4.1 A Importância do Porto de Benguela

Existem diversas leituras sobre a escravidão em sociedades africanas, é sempre


importante considerar qual o ponto de partida para a análise desse conceito tão complexo, na
obra Fronteiras da Escravidão da autora Mariana Candido, podemos entender a escravidão em
sociedades africanas tendo como ponto de partida o porto de Benguela foca-se durante o período
de 1780 a 1850. Importante destacar que apesar de que a população da cidade fosse
relativamente pequena, variando entre 1500 e 3000 habitantes, Benguela desempenhou um
papel significativo no comércio de escravos ao longo da costa africana, exportando pelo menos
760.000 indivíduos, a maioria deles durante o período mencionado, portanto uma quantidade
bem significativa. A população costeira e interior de Benguela foram muito afetadas pela
deportação em massa. As demandas e mudanças causadas pelo tráfico de escravos obrigaram

8
THORNTON, John. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In: HEYWOOD,
Linda M (organizadora), p. 86. 2. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
9
THORNTON, John. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In: HEYWOOD,
Linda M (organizadora), p. 96. 2. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
10

os habitantes a reorganizarem suas instituições e suas vidas. O comércio transatlântico de


escravos levou a uma mudança na população, à criação de uma elite comercial e escravagista e
à criação de novas identidades.

Além disso, podemos perceber de maneira basilar os efeitos demográficos do comércio


transatlântico de escravos, isso inclui a quantidade de escravos capturados e vendidos, bem
como os indivíduos que tentaram escapar das guerras e da violência relacionada à escravidão.
O cenário étnico, cultural e político da região foi afetado pelos mecanismos de captura e
escravidão, incluindo sequestros, razias (incursões militares para capturar escravos) e guerras e
violência. A dinâmica da escravidão alterou profundamente diversas relações sociais e
comerciais os mercadores locais se adaptaram a um sistema de crédito e comércio exigido pelo
tráfico atlântico.

4.2 Amálgama cultural

A comunidade luso-africana em Benguela nasceu nesse contexto, mantendo conexões


com várias partes do Atlântico e expandindo a fronteira da escravidão para o interior da região.
Nesse contexto essa comunidade foi fundamental para o comércio de escravos e todas as
mudanças sociais e políticas que ocorreram como resultado desse fenômeno. A partir do
entendimento das consequências do comércio de escravos em Benguela percebe-se o papel dos
benguelas na diáspora africana, contribuindo para um melhor entendimento dos efeitos desse
fenômeno nas sociedades da África Centro-Ocidental.

É importante enfatizar a capacidade de resistência dos africanos e sua capacidade de se


reinventar em situações difíceis. As pessoas escravizadas que foram trazidas de Benguela para
o Brasil mesclaram várias tradições e experiências, criando uma identidade coletiva conhecida
como "Benguela”. A interação e a convivência forçada entre pessoas de diferentes origens
étnicas e culturais no contexto da escravidão levaram a esse processo de amálgama cultural. Os
escravos africanos trouxeram suas próprias línguas, crenças religiosas, costumes e tradições
culturais. No entanto, a situação de escravidão e a necessidade de sobreviver e se adaptar a um
novo ambiente não lhe restava muitas possibilidades a não ser estabelecer vínculos entre os
escravizados, bem como com os colonizadores portugueses e outros grupos étnicos presentes
no Brasil.
11

Uma cultura híbrida que combinava elementos africanos, indígenas e europeus foi
criada como resultado dessa interação e troca cultural. Os escravizados mudaram e adaptaram
suas tradições culturais, línguas e costumes religiosos, frequentemente misturando-os com
elementos da cultura brasileira e portuguesa. A resistência e a capacidade de agência dos
africanos na diáspora são demonstradas nessa criação cultural única e diversificada. As redes
comerciais internas que abasteciam os comerciantes de Benguela também mudaram muito. Ao
invés de se concentrarem no comércio interno e regional, essas redes se transformaram em
sociedades crioulas com conexões em todo o Atlântico. Mesmo em circunstâncias difíceis, os
escravizados estabeleceram vínculos de solidariedade, cooperação e resistência, estabelecendo
redes de comércio, troca de informações e apoio mútuo. As diversas áreas do Atlântico,
incluindo o Brasil, puderam intercambiar bens, informações e ideias por meio dessas redes.

4.3 As várias conexões criadas pela escravidão

Benguela foi um porto africano com fortes conexões transoceânicas, principalmente


com o Brasil. Houve uma rede crioulada que envolveu o comércio, a administração de escravos
e a interação entre europeus e africanos. A interação entre a cultura atlântica e as raízes culturais
e demográficas da África Central permitiu a criação de comunidades crioulas.

A preservação e a disseminação das religiões de matriz africana, como o Candomblé no


Brasil, foram facilitadas pelas redes crioulas. Os africanos escravizados mudaram suas práticas
religiosas, mantendo partes importantes de suas crenças ancestrais, mas incorporando também
influências do catolicismo e de outras religiões que estavam presentes na África colonial. Os
costumes religiosos africanos sobreviveram e foram transmitidos ao longo das gerações graças
a essa sincretização.

A organização social e os sistemas de parentesco originais da África foram preservados


e adaptados pelas sociedades crioulas. As redes crioulas preservaram e transmitiram costumes
como sistemas de liderança, solidariedade comunitária, hierarquias familiares e rituais de
passagem. Nas redes crioulas, os conhecimentos tradicionais de cura e medicina das culturas
africanas foram preservados e adaptados. Os escravos africanos trouxeram muito conhecimento
sobre o uso de plantas medicinais e tratamentos, que essas comunidades transmitiram e
compartilharam.
12

A forma como os africanos entenderam a escravidão nas Américas foi influenciada por
sua experiência de escravidão. Pessoas de várias origens interagiram durante a viagem até a
costa e na espera nos barracões, criando novas identidades e conexões. Na África, o processo
de mudança e adaptação cultural começou quando os escravos tiveram que lidar com problemas
de comunicação e compartilhar suas histórias. Isso levou à criação de novas identidades sociais
e étnicas tanto nas Américas quanto na África.

No período da escravidão, os africanos e os portugueses praticavam a violência em


Benguela e em seu interior. Ambos usavam ataques planejados para capturar e escravizar
indivíduos livres e vendê-los a comerciantes transatlânticos. A escravidão era uma característica
persistente da vida da região, assim como em outras partes do mundo mediterrâneo e nas
tradições portuguesas anteriores. Embora não se saiba se as autoridades africanas tinham
costumes semelhantes, sabe-se que as autoridades portuguesas e os sobas da região de Benguela
reconheciam as guerras como uma maneira legal de comprar escravos e que essa prática era
moralmente aceita.

4.4 Relação dos portugueses em Benguela

As autoridades portuguesas iniciaram processos legais em Benguela com o objetivo de


determinar se a escravidão era legal e proteger aqueles que foram escravizados ilegalmente.
Antes do uso de tropas e do ataque aos sobas próximos, o governador de Benguela exigia
permissão. No entanto, os escravizadores e sobas frequentemente ignoravam essas regras. O
comércio de escravos por dívida era comum entre os gentios (pessoas que não eram cristãos) e
em áreas fora do domínio português. As autoridades portuguesas tentaram impedir a escravidão
por dívidas emitindo proclamações e editais para proteger os africanos que viviam sob seu
controle. Apesar das proibições, a escravização por dívidas continuou. As comunidades
africanas que praticavam a escravização por dívidas tinham leis, crenças e costumes próprios,
sua estrutura social e econômica incluía essas práticas, e a proibição externa nem sempre era
suficiente para eliminá-las. Muitas vezes, as comunidades locais se opuseram às tentativas das
autoridades portuguesas de impor suas próprias crenças e costumes. E as autoridades
portuguesas tinham dificuldades em monitorar todas as transações ocorridas para garantir o
cumprimento das proibições.
13

As leis portuguesas permitiram a prisão de prisioneiros de guerra e a escravização legal


de não cristãos capturados durante uma "guerra justa”, a noção de "guerra justa" remonta ao
conceito teológico e filosófico desenvolvido no contexto cristão medieval, onde era considerado
legítimo e moralmente aceitável lutar em determinadas situações. No contexto das atividades
coloniais e do comércio de escravos, a ideia de "guerra justa" era utilizada para justificar a
escravização de indivíduos capturados em conflitos armados. Esses cativos podiam ser
legitimamente reduzidos à escravidão e utilizados para abastecer o comércio de escravos.

4.5 Instabilidades presentes no comércio

Os sobas enfrentavam pressões dos comerciantes transatlânticos por mais escravos para
abastecer o comércio. Para atender a essa demanda e pagar tributos aos funcionários
portugueses, eles precisavam encontrar mecanismos para obter cativos além de suas fronteiras
territoriais, sem prejudicar sua própria sobrevivência política. Isso levava a incursões militares,
ataques e invasões a outras regiões, resultando em instabilidade, reações e ataques punitivos
das tropas portuguesas. A população deslocada por esses conflitos era frequentemente
capturada e vendida como escrava, enquanto outras vezes eram incorporadas como dependentes
em outros sobados.

Havia também casos de infidelidade e crimes que levavam à escravização, seja pela
legislação dos sobados ou pela intervenção das autoridades portuguesas. O adultério, por
exemplo, podia resultar na escravização tanto do amante quanto de outros membros de sua
família. As leis africanas e portuguesas puniam crimes como assassinato com a escravidão,
embora o pagamento de multas pudesse evitar a escravização.

No geral, o comércio de escravos e a violência associada a ele eram uma parte integrante
da vida em Benguela e no interior, com constantes guerras, ataques e capturas de pessoas para
serem vendidas como escravas. As autoridades portuguesas intervinham em defesa de seus
vassalos e protegiam os sobas considerados aliados políticos, mas não tinham capacidade
suficiente para impedir todos os ataques e conflitos. A região enfrentava uma instabilidade
política crônica e uma busca incessante por escravos para atender à demanda do comércio
transatlântico.

Muitos laços transatlânticos ocorreram a partir do comércio escravagista, por exemplo


Rio de Janeiro e Benguela:
14

O vínculo entre o Rio de Janeiro e Benguela, conforme Joseph Miller e Manolo Florentino,
foi consolidado mediante a participação ativa de comerciantes escravagistas radicados no
Brasil. Ao mesmo tempo, uma comunidade brasileira consolidava-se em Benguela, que não
só participava no comércio, mas também na administração de cativos. De igual modo um
grupo mercantilista em Benguela “tornou-se” brasileiro e mantinha relações com a Bahia,
além do Rio de Janeiro e Lisboa.10

Enquanto a escravidão estava na condição legal, a maioria de escravos africanos eram


exportados para o brasil. Os comerciantes escravagistas brasileiros tinham uma constante
demanda por mão de obra escrava para trabalhar nas plantações e nas atividades urbanas, e
Angola era uma das principais fontes de suprimento de escravos para o Brasil. Os comerciantes
escravagistas desempenhavam um papel de vital consideração na relação estabelecida entre o
Rio de Janeiro e Angola, através da organização de expedições e práticas de comércio local em
Benguela, adquirindo escravos por meio de ataques, guerras e outros métodos de captura (como
raptos e sequestros) e depois eram transportados em navios para o Rio de Janeiro. O comércio
de escravos entre Rio de Janeiro e Angola foi bastante lucrativo para os comerciantes, e baseado
em bastante violência o que contribuiu para a manutenção de um sistema de escravidão brutal.

5. O REINO DA ANGOLA NO SÉCULO XVIII E A COMERCIALIZAÇÃO DE


CATIVOS

5.1 Reino de Angola, Sertões e a Reforma Pombalina.

Ao compreender as diversas formas de organização dos povos africanos, é necessário


aderir à uma ótica que aborda as sociedades africanas a partir da sua complexidade e não
familiaridade para com o modelo Ocidental tradicional. Em sua obra Poder Político e
Parentesco1995], Joseph Miller sinaliza, por meio de observações, um Estado português que
existia em Angola.11 Contudo, existem debates historiográficos sobre o conceito demográfico
quanto às imprecisões relacionadas ao que se denominava Reino de Angola. Todavia, a
utilização do termo “Reino de Angola”, segundo Ariane de Carvalho, era feita para classificar
o território, ainda que ignorando as diversidades políticas africanas.12

10
CANDIDO, 2017, p. 28
11
MILLER, Poder político e parentesco. pp. 174, 175.
12
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020. pp. 30
15

Para construção de comparações e associações para com seu próprio método político, a
influência portuguesa exerceu uma grande importância para que a historiografia inaugurasse
um debate sobre o “Reino de Angola”, chegando à conclusão que foi ignorado, pelas
autoridades portuguesas, a complexidade de diversos grupos africanos cujo a linguística,
modelo de organização civilizacional e rituais eram distintos uns dos outros.

Há, inclusive, uma importante discussão historiográfica sobre o conceito daquilo que
foi chamado de Sertão pelos súditos portugueses. Os Sertões africanos remetiam à um espaço
que, até os momentos iniciais da tentativa de penetração lusa no continente africana através de
suas expedições marítimas, tornava-se desconhecido para os aventureiros europeus. Ariane de
Carvalho abre uma ótica onde permite-nos enxergar que a cartografia portuguesa advinha de
sua expansão marítima, pelo menos até o século XVII.13 Sendo assim, os Sertões, ou seja, o
interior do continente africano, era um local considerado inacessível e não fazia parte do, até
então, denominado Reino de Angola. A necessidade pela ocupação dos Sertões foi sendo
enxergado ao decorrer das novas descobertas a respeito deste espaço ‘vazio’.

O sertão, para Carolina Perpétuo Corrêa, consistia em um espaço distante do mar e que
estava além das fronteiras judiciais, eclesiásticas e jurídicas da monarquia Lusa.14 A falta do
controle administrativo português em tal localidade tornava explícito a falta de poder do
governo português em áreas mais isoladas.
Durante os séculos XVIII e XIX houve um maior avanço para o interior e ocasionou na
criação de povoados e vilas. A colonização dos Sertões ocorreu de forma violenta e através de
caminhos que começaram a ser explorados por conta da necessidade de controle a respeito de
áreas, que na concepção eurocêntrica do termo Sertão, eram enxergadas como excêntrico,
vulgar ou selvagem. É debatido pela historiografia o dinamismo causado pelo conhecimento e
colonização dos Sertões, que viria a ocasionar, de maneira direta, a expansão de fronteiras.15
Segundo Mariana Cândido, as expansões geográficas obtiveram como resultado a ampliação
do processo de escravização, sendo decisiva a necessidade de escravos na Américas.16
A monarquia Lusa, preocupada com a variação comportamental que prevalecia nos
sertões e nas fronteiras, propôs reformas administrativas no século XVIII, visando maneiras de

13
Ibid, pp. 34
14
CORRÊA, Carolina Perpétuo. Cambambe, Angola, No Contexto do Comércio Atlântico De Escravizados
(1790-1850). 2019. 339 f. Tese (Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019, p. 79, 80.
15
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020, pp 36.
16
Ibid, pp. 37.
16

conseguir mais autonomia e controle sobre os territórios. O programa pombalino de


povoamento foi desenvolvido logo após a coroação de D. José I como Rei de Portugal e a
nomeação de Sebastião José de Carvalho e Melo como Secretário de Estado do Reino. O
programa pombalino contava com a formação de polícias que deveriam implantar uma nova
disciplina social. Os aparelhos utilizados por Pombal para um modelo de administração ativo
obtiveram efeitos positivos para a monarquia Lusa. Um dos fatores determinantes foi a questão
da não-generalização quanto às especificidades locais dos territórios que seu método buscava
unificar em um objetivo em comum. Já Ariane de Carvalho aponta que “o objetivo maior das
reformas pombalinas era a diminuição dos óbices ao comércio de escravos.”17
O convívio entre os europeus e africanos começou a ganhar ares de coparticipação
quando Portugal adquiriu uma pressão de seus adversários, França e Inglaterra, pelos territórios
angolanos. O programa pombalino planejava transformar Angola em uma colônia de
povoamento e acúmulo de riquezas. Para a monarquia Lusa, ainda que existissem outros
métodos de lucrar com a estadia em territórios africanos, a manutenção dos territórios coloniais
era diretamente ligada ao tráfico de escravos e os traficantes tinham grande participação nesse
comércio interno. Sendo assim, os portugueses eram abastecidos de escravos pelos traficantes
africanos.18

Na segunda metade do século XVIII, a situação do Sertão angolana encontrava-se


precária quanto ao comércio de cativos e à agricultura. Parte desta precariedade foi atribuída
aos capitães-mores que eram confiados diretamente pela Coroa Portuguesa com
responsabilidades de exercerem ordem. Entretanto, muitos continuaram contrabandos de
escravos de maneiras para satisfazerem os próprios prazeres pessoais, gerando conflitos por
causa de seus comportamentos opressores e após inúmeras denúncias de abuso. Os capitães-
mores comerciantes tinham como um de seus objetivos conseguirem vantagens comerciais com
a exportação e comercialização de escravos, não revertendo seus lucros para a Coroa
Portuguesa. Para D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, não havia lugar para vadios e
corruptos que ousavam ir contra as autoridades tradicionais.19
Durante as reformas, o papel militar era essencial, entretanto havia queixas quanto à
falta de homens para darem continuidade ao processo de militarização. Não apenas o processo
de militarização, como também faltavam poucos homens para gerar o povoamento branco

17
Ibid, pp. 43
18
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola
ao Rio de Janeiro (1780-1860). 1ª. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 59.
19
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola. pp. 138
17

desejado pelas autoridades portuguesas em Angola. O povoamento não só corrobora a noção


de territorialização, como abrange uma certa moralidade que era idealizada pelos portugueses
em territórios africanos.

As campanhas militares da segunda metade do século XVIII com propósito de viabilizar


a soberania portuguesa no Reino de Angola obtinha consigo a ideia de fortalecer sua presença
em relação às investidas de outras nações europeus sobre seus territórios. Essas campanhas
garantiam com que o tráfico de escravos pudesse ocorrer de forma garantida por um certo
tempo, entretanto, as guerras em territórios de Angola estremeceram as bases portuguesas
perante ao comércio de cativos.20

5.2 Guerras e o Impacto sobre o Comércio de Cativos.

É de conhecimento historiográfico que as guerras internas em territórios africanos


influenciaram diretamente no tráfico de cativos até o século XIX. Os povos africanos lutavam
entre si e os europeus souberam utilizar dessas tensões locais ao seu favor para gerar um grande
fluxo de escravizados ao serem realizadas conquistas de povos africanos sobre seus inimigos.

O tráfico de cativos tinha como finalidade principal o envio de mão de obra através do
Atlântico, em especial, para o Brasil. A elite africana se privilegiava a partir do tráfico de cativos
adquirindo, inclusive, mercadorias europeias em troca dos prisioneiros que seriam mandados
pelo Atlântico.21 Armas eram as principais demandas de povos que cobiçavam exercer poder
sobre outros territórios, ocasionando a interiorização do processo de escravização.

As guerras na África continham uma complexidade maior do que o fator bélico


proporcionado pelo contato com os europeus. De tal maneira, é errôneo destacar o papel dos
portugueses como decisivos para a guerra entre povos africanos.22 Uma grande parcela dos
escravos vendidos era capturada em guerras, emboscadas e, muitas das vezes, eram levados
para territórios naturais de seus proprietários para servirem como força de trabalho.

20
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020.
21
FLORENTINO, Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental, pp. 239, 240.
22
THORNTON, África e os Africanos na formação do Mundo Atlântico, pp. 182, 183.
18

6. A ABOLIÇÃO DO TRÁFICO NEGREIRO E ALGUNS DOS SEUS EFEITOS NO


CONTINENTE AFRICANO

6.1 O caminho abolicionista do ocidente.

O fim do tráfico de escravos, se referindo a proibição de compra de escravizados pelos


ocidentais, ocorre de maneira paulatina ao longo do século XIX. Parte do continente africano
se engendrava em uma organização social onde o comércio de escravos era uma das bases
econômicas, de forma que, havendo um vazio de mercado que era preenchido pelos ocidentais,
ocorrem diversas mudanças na organização de tais espaços. Cabe pensar como foi esse processo
e seus efeitos no continente.

Os interesses abolicionistas não eram parte do universo africano, sendo um processo


que floresce por meio das aspirações iluministas pautadas em uma realidade moral especifica
do bojo filosófico europeu. Ainda que tais aspirações não pareçam ter tanta força em um
primeiro momento, com o esticar do tempo, é notório um interesse cada vez maior em suspender
o direito de comprar escravos, resultando em um processo que escorre durante o século XIX. É
pertinente estabelecer que tais aspirações não eram apenas morais, mas também econômicas:

Segundo Eric Williams, a abolição servia poderosamente aos interesses econômicos da


Inglaterra industrial nascente. Com certeza, esta abordagem fértil não negava inteiramente o
papel da filosofia moral nem o de um humanitarismo ideal e triunfante. Mas fez aparecer
severas contradições entre o pensamento teórico e a realidade prática: entre os principais
dirigentes do movimento abolicionista figuravam numerosos banqueiros (o caso vale também
para a Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros), ou seja, a abolição do tráfico servia aos
interesses do capital23.

O processo ocorreu por meio de pressões vindas principalmente da Inglaterra. O país


impunha uma série de legislações sobre outros territórios que compravam escravos, ainda que
o processo tenha sido lento, devido ao fator estrutural e estruturante da escravidão
principalmente nas colônias, com o tempo, a escravidão passa a ser desmanchada em meio a
tais sanções:

Em três pontos, Londres propôs às nações um procedimento pretensamente radical contra o


tráfico internacional: legislações internas proibindo o tráfico negreiro aos nacionais; tratados
bilaterais conferindo às marinhas de guerra o direito recíproco de visitar e prender no mar os
navios de comércio de cada nação contratante pega no tráfico ilegal; e colaboração nas
comissões mistas habilitadas a condenar os negreiros presos e a libertar os negros

23
DAGET, 2010, p. 79
19

encontrados a bordo. Tais disposições funcionariam também no Oceano Índico,


especialmente entre Maurício e Bourbon (a atual Ilha da Reunião)24.

Nos interessa mais, no entanto, pensar como tal mudança de cenário econômico influi
sobre as algumas regiões da África. Com um forte comércio de escravos, essas regiões tinham
esse mercado como um dos fatores estruturantes de sua configuração social. Como eles agiriam
em um momento de forte alteração econômica? Assim sendo, parece coerente considerar como
foram as reações africanos em meio a um cenário onde seus principais compradores deixam de
comprar, ainda que não de maneira imediata ou total, dado os resquícios de compra ilegal e
burlamento das legislações internacionais.

Em primeiro lugar, é pertinente salientar que a abolição da escravidão não interrompeu


imediatamente o comércio de escravos ao longo da costa africana. Daget (2010) assinala que
Portugal e Brasil continuaram traficando de maneira ilegal ao sul do equador, com lucros
consideravelmente altos. Em alguns lugares, como Daomé, o tráfico era uma parte importante
do poder político, enquanto em outras regiões, como Serra Leoa e Costa do Ouro, as influências
abolicionistas europeias suprimiram postos de tráfico tradicionais. Ainda assim, o comércio de
escravos continuou a existir, controlado por líderes africanos que lucravam com ele, em certas
áreas onde a autoridade política ocidental era fraca.

Na Serra Leoa, havia feitorias negreiras inglesas e espanholas, enquanto em locais como
o delta do Níger, mecanismos sociais e religiosos locais mantinham o comércio de escravos,
juntamente com outras atividades comerciais, não se isolando apenas na escravidão. Durante o
período abolicionista de cerca de 60 anos, estima-se que cerca de 1,9 milhão de africanos
tenham sido efetivamente embarcados nos navios de exportação, com a maioria sendo
embarcada no Sul do equador, deixando claro que ainda que com imposições externas, a o
comércio de escravos ainda ocorria com uma força considerável.

As resistências africanas ao fim da exportação de escravo se deviam acima de tudo a


questões econômicas. Dito isso, importante entender que a ideologia humanitária que
condenava o comércio de escravos era ocidental, e muitos distribuidores africanos estavam
envolvidos no tráfico por motivos econômicos, buscando ganhos financeiros. A oferta contínua
de mão de obra escrava africana estava ligada ao bom funcionamento de um sistema integrado
de comércio, e a resistência africana ao fim do tráfico estava relacionada à necessidade de evitar
o colapso desse sistema:

24
DAGET, 2010, p. 80
20

A suposta cumplicidade dos distribuidores africanos não era senão uma resposta adaptada à
realidade econômica imediata. Isto explica, aliás, a tendência à queda dos preços de venda
de mão de obra exportável como defesa do mercado contra as crescentes pressões das forças
repressivas. Estas teriam, portanto, sua parte em um balanço negativo. Tal argumentação
precisa ser equilibrada quanto à deportação dos africanos para o Norte ou para o Leste. Se o
interesse econômico dos captores e distribuidores de escravos permanecia evidente, concebe-
se dificilmente que os países arruinados tenham recebido qualquer compensação
econômica25.

6.2 Serra Leoa e Libéria.

Já considerando os escravos libertos, podemos pensar no caso Serra Leoa e Libéria,


sendo eles dois países africanos que tiveram experiências coloniais e foram estabelecidos como
refúgios para africanos libertos e ex-escravos. A Serra Leoa foi estabelecida como uma colônia
britânica em 1808, enquanto a Libéria foi fundada pela American Colonization Society em
1821.

As experiências vivenciadas em Serra Leoa e Libéria evidenciam o papel dos africanos


no processo de abolição e estabelecimento de novas nações na África. Em Serra Leoa, africanos
libertos e colonos estrangeiros enfrentaram numerosos obstáculos, porém conseguiram
progressivamente construir uma sociedade crioula viável. Embora a assistência dos
abolicionistas ingleses tenha sido crucial, as soluções encontradas pelos próprios africanos
desempenharam um papel de grande relevância. A população cresceu, novos vilarejos foram
estabelecidos e a economia se desenvolveu, com a produção de alimentos e culturas de
exportação. Essa sociedade não se estabeleceu, no entanto, em um modelo puramente europeu,
havendo uma considerável participação ativa dos africanos:

Em uma palavra, em 1853, quando o governo britânico fez dos serra-‑leoneses súditos da
Coroa, reconheceu implicitamente que uma formidável mistura de culturas fundiu-‑se em
uma sociedade crioula viável. Uma nação “civilizada” construiu-‑se, não segundo um modelo
utópico europeu, mas pelo dinamismo de seu próprio gênio. A evidente contribuição dos
abolicionistas ingleses não ocultou a qualidade das soluções africanas26.

No que diz respeito à Libéria, a Sociedade de Colonização Americana estabeleceu um


empreendimento privado com o objetivo de repatriar africanos libertos e reduzir a população
negra nos Estados Unidos. Os colonos encontraram resistência das autoridades locais, mas
conseguiram estabelecer o país. Eles desenvolveram uma identidade nacional e proclamaram
sua independência em 1847, tornando-se a primeira república africana. Embora a Libéria tenha

25
DAGET, 2010, pg. 92
26
DAGET, 2010, pg 95
21

enfrentado desafios econômicos, sua criação como uma nação africana independente foi um
acontecimento significativo.

Essas experiências coloniais na Serra Leoa e na Libéria foram vistas como tentativas de
estabelecer novas nações africanas em uma região afetada pelo comércio de escravos. Embora
tenham tido importância histórica, é importante destacar que essas experiências não podem ser
consideradas como precursoras dos movimentos de libertação do século XX. As opiniões sobre
essas experiências eram divergentes entre os abolicionistas, e a ideia de colonização também
foi alvo de críticas. Ainda assim, essas experiências contribuíram para a formação de sociedades
crioulas e para o estabelecimento de governos locais autônomos.

6.3 A proteção do comércio.

Pensando no comércio nesse contexto, Daget (2010, pg 98) defende que proteção do
comércio marítimo não se baseava tanto em repressão, mas sim na missão de salvaguardar o
comércio "legítimo" dos países envolvidos. A partir do início do século XIX, a costa africana
atendia às necessidades de produtos naturais dos Estados Unidos, França e Inglaterra. Enquanto
o comércio não relacionado à escravidão crescia ao lado do tráfico de escravos, havia uma
competição entre as nações ocidentais para estabelecer uma divisão "informal" das zonas de
influência econômica, que era aceita pelos líderes africanos.

A presença francesa prevalecia no norte de Serra Leoa, em certas áreas da Costa do


Marfim e no Gabão, onde estabeleceram a cidade de Libreville, seguindo o exemplo de
Freetown. Americanos e europeus chegaram à costa e foram tolerados em uma região que, na
verdade, estava sob domínio econômico inglês. Esse foi um período de transformações, com a
modernidade emergindo das revoluções tecnológicas e industriais na Inglaterra e na França,
que estavam se espalhando para outras nações e gerando novas demandas.

Do ponto de vista da costa, a principal necessidade era a demanda por óleos vegetais,
que eram utilizados como lubrificantes para máquinas, matéria-prima para sabão e iluminação.
Os produtos oleaginosos africanos passaram a fazer parte do mercado ocidental:

A costa tinha sempre exportado o óleo de palma, mas em quantidades ínfimas. A importação
da Inglaterra passou de 982 toneladas em 1814 a 21.000 toneladas em 1844, permaneceu
estável por uma década e dobrou em seguida por volta de 1870. A França importava em
média 4.000 toneladas anuais entre 1847 e 1856; 2.000 toneladas na década seguinte.
Compensava com a importação média anual de 8.000 toneladas de amendoim do Senegal e
22

da Senegâmbia, mais 25.000 toneladas de nozes de “toloucouna”, para a fabricação do sabão


de Marselha: em 1870, tudo isso representava 35 milhões de francos- ouro27.

O comércio legítimo, que por muito tempo foi entendido como algo distante da realidade
naquele contexto, um modelo paralelo ao tráfico de escravos e uma substituição do valor
humano como moeda de troca, parecia estar se projetando. No entanto, ainda havia a
necessidade de desenvolver uma produção em nível industrial, dado o contexto de avanços
tecnológicos na escala de produção, o que foi alcançado em um período relativamente curto se
comparado às produções de café e açúcar de Cuba e Brasil. Dessa forma, duas grandes regiões
produtores de óleo vegetal se destacavam, sendo elas o Reino do Daomé e os rios do delta do
Niger e Camarões. Uma das condições fundamentais para essa transformação foi a mobilização
da mão de obra nas terras do interior colonizado. Embora o modo de produção fosse escravista,
ele parecia estar de acordo com a ordem social e econômica africana.

Na costa, na medida que tinham uma rede de conhecimentos que os permitia isso, os
agentes comerciais ocidentais pareciam ter controle sobre os meios no comércio. No entanto, o
cenário econômico se diversificava e gerava complexidades para se lidar:

Na verdade, o desenvolvimento real desta novidade econômica não interrompeu


imediatamente a economia institucionalizada: tráfico de escravos e de óleo coexistiam. Um
sistema de troca mais vasto irradiava para o interior. Na costa, aliás, os agentes habituais do
comércio ocidental sempre detiveram os meios comerciais. Sabendo comprar, repartiram o
crédito, expandiram os instrumentos de pagamento clássicos introduziram a moeda metálica.
A ampliação do número de concorrente na atividade econômica acarretou deslocamentos
forçados, solapando os equilíbrios internos. A mudança econômica foi acelerada por outros
fatores desnaturantes, religiosos e culturais, raramente muito distanciados do político, mas
que contribuíram para o desaparecimento do tráfico28.

Nesse contexto também ocorrem missões de caráter católico e protestante com o


objetivo de construir um universo cultural cristão. No entanto, a educação oferecida aos filhos
dos cristãos e a alguns africanos não cristãos foi malsucedida em relação às escolas corânicas.
O Islã se expandiu ao longo do século XIX. Outras missões, como a missão do Sagrado Coração
de Maria no Gabão, também foram estabelecidas, mas muitas vezes tiveram dificuldade em
enfrentar o islamismo africano, que estava enraizado na região. Essas missões não tinham um
caráter isoladamente religiosa, havendo interesses mais extensos, como é o caso das missões
protestantes:

Ao contrário das missões católicas, as missões protestantes buscavam a influência temporal.


A cristianização era concebida como um todo, que incluía educação e cultura, função
socioeconômica e opção política. Expandiu o inglês falado e escrito e o cálculo em meios
preparados há muito tempo. As técnicas de arquitetura, a imprensa e a medicina foram
ensinadas por especialistas vindos da Serra Leoa. O saber pertencia ao povo que frequentava

27
DAGET, 2010, pg 99
28
Daget, 2010, pg 99
23

a missão. O benefício da participação criou privilegiados. Verificaram os modelos inculcados


na experiência superior dos chefes locais, que não foram unânimes em aprová-los. Alguns,
entretanto, exibiam um ocidentalismo de fachada através da vestimenta, da habitação, do
alimento, da bebida e do modo de vida. O objetivo sociopolítico era criar uma classe média,
para destacar uma elite. Formada nos esquemas ocidentais, esta classe deveria normalizar e
estender a dupla corrente do comércio, advinda da costa ou a ela destinada. A difusão da
civilização seria um resultado anexo, que o comércio de óleo por si, limitado às transações
costeiras, foi incapaz de atingir29.

No aproximado ano de 1850, ocorreu um movimento irreversível que afetou as


atividades missionárias, comerciais e administrativas, resultando em um processo de
formalização efetiva. Nesse contexto, foram introduzidos cônsules com intenções
expansionistas, simultaneamente a bloqueios militares e estabelecimento de protetorados. A
diplomacia internacional sempre justificava tais ações com o objetivo de suprimir
completamente e de forma definitiva o tráfico de escravos. O humanismo abolicionista se
manifesta como uma casca de ferramentas de poder em dimensões militares, econômicas e
políticas.

7. CONCLUSÕES GERAIS.

Em resumo, durante o período abordado, o tráfico de escravos não desapareceu


completamente, mas houve avanços significativos em sua supressão. O comércio de escravos
havia cessado em certas regiões, como Senegal e Serra Leoa, enquanto outras áreas ainda
enfrentavam operações esporádicas.

A Libéria, por sua vez, se posicionou contra o tráfico e solicitou ajuda internacional.
Medidas diplomáticas e políticas coercitivas da França e da Inglaterra também contribuíram
para restringir o tráfico de escravos em diversas regiões.

Embora o tráfico tenha persistido em algumas áreas até o estabelecimento das


administrações coloniais, o movimento abolicionista ocidental, juntamente com o esforço dos
africanos, resultou em avanços significativos no fim do tráfico de escravos atlântico. No
entanto, a abordagem ocidental nem sempre reconhecia outros valores culturais e teve
consequências mistas, abrindo espaço para mudanças no futuro.

29
DAGET, 2010, pg 101
24

REFERÊNCIAS

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de Janeiro: Zahar, 1996.

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