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GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
HISTÓRIA DA ÁFRICA
ESCRAVIDÃO AFRICANA
PERCEPÇÕES SOBRE O TEMA (SÉCULOS XV-XIX)
NOVA IGUAÇU, RJ
2023
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 1
2. A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA ....................................................................................................... 1
2.1 Os diferentes tipos de escravidão na África .................................................................................. 1
2.2 Influências do islamismo na escravidão africana .......................................................................... 3
2.3 A escravidão na costa da Guiné..................................................................................................... 3
2.4 A chegada dos europeus ................................................................................................................ 4
3. A PROPAGAÇÃO DO CATOLICISMO NO CONGO E SUA INFLUÊNCIA NAS
RELIGIÕES TRADICIONAIS............................................................................................................ 5
3.1 A influência do catolicismo na expansão portuguesa .................................................................... 5
3.2 Os impactos da presença portuguesa no Reino do Congo ............................................................. 6
3.3 O sincretismo entre o catolicismo e as religiões tradicionais no Congo ....................................... 8
4. COMPREENDENDO A ESCRAVIDÃO EM SOCIEDADES AFRICANAS ATRAVÉS DE
BENGUELA .......................................................................................................................................... 9
4.1 A Importância do Porto de Benguela ............................................................................................ 9
4.2 Amálgama cultural ...................................................................................................................... 10
4.3 As várias conexões criadas pela escravidão ................................................................................ 11
4.4 Relação dos portugueses em Benguela........................................................................................ 12
4.5 Instabilidades presentes no comércio .......................................................................................... 13
5. O REINO DA ANGOLA NO SÉCULO XVIII E A COMERCIALIZAÇÃO DE CATIVOS . 14
5.1 Reino de Angola, Sertões e a Reforma Pombalina. ..................................................................... 14
5.2 Guerras e o Impacto sobre o Comércio de Cativos. .................................................................... 17
6. A ABOLIÇÃO DO TRÁFICO NEGREIRO E ALGUNS DOS SEUS EFEITOS NO
CONTINENTE AFRICANO.............................................................................................................. 18
6.1 O caminho abolicionista do ocidente. ......................................................................................... 18
6.2 Serra Leoa e Libéria. ................................................................................................................... 20
6.3 A proteção do comércio. ............................................................................................................. 21
7. CONCLUSÕES GERAIS. .............................................................................................................. 23
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 24
1
1. INTRODUÇÃO
2. A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA
É importante lembrar que a escravidão não começou com a chegada dos europeus no
continente africano, diversos povos na história do nosso planeta conceberam e utilizaram a
escravidão em suas sociedades. Por exemplo, ser escravo na Grécia era muito diferente de ser
escravo em alguma possessão viking, cada comunidade lidou de uma certa maneira com a
instituição escravista, tratando o indivíduo escravizado ora como dependente, ora como
semovente, ora como mão de obra esporádica.
2
Outro fato que traz transformações para a escravidão é o tempo, pois a escravidão na
África nem sempre foi a mesma, sofrendo constantes transformações dependendo das mudanças
sociais, econômicas e políticas.
Uma característica que aparecerá em todas as formas de escravidão, um traço que é a sua
própria essência: a incapacidade social do escravo de se reproduzir socialmente, isto é, a
incapacidade jurídica de ser “parente”. Essa incapacidade, que é a condição orgânica virtual
da exploração do trabalho na economia doméstica, fará, portanto, da escravidão a antítese do
parentesco e o meio legal da subordinação do escravo em todas as formas de escravagismo,
mesmo quando o escravo não é explorado como trabalhador produtivo 1.
1
MEILLASSOUX, 1996, p. 28
3
De 1400 a 1600 ao longo da estreita faixa de território ao sul do Saara, das praias do
Mar Vermelho à costa leste da África era a área geográfica onde a escravidão se tornou mais
importante, a chegada e disseminação do Islã sendo de grande influência nesse processo.
Trouxeram consigo transformações significativas nas estruturas sociais e políticas. Com a
conversão das classes políticas e mercantis ao Islã, houve uma adaptação dos modos de agir,
previamente associados a essa fé, ao contexto africano. Essa fusão cultural resultou em uma
influência mútua, em que os princípios islâmicos se entrelaçaram com as práticas e tradições
locais, moldando uma nova dinâmica sociopolítica no continente africano.
É importante notar que a escravidão muçulmana na África não era uniforme e variava de
acordo com as diferentes culturas e regiões. Algumas sociedades muçulmanas praticavam uma
forma de escravidão em que os escravos conseguiam obter liberdade através de meios como a
conversão ao Islã ou a compra de sua própria liberdade. No entanto, em outros contextos, a
escravidão era uma condição vitalícia e hereditária, com poucas oportunidades de emancipação.
Antes da chegada dos europeus à Costa da Guiné, a escravidão já era uma realidade
presente na região. As sociedades africanas locais estavam envolvidas em diversas formas de
2
MEILLASSOUX, 1996, p. 55
4
É importante destacar que a escravidão na África pré-europeia não tinha a mesma escala
e natureza brutal do comércio transatlântico de escravos. No entanto, ainda havia sofrimento e
injustiça associados à instituição da escravidão.
Portugal era um reino especialmente cristão que tomou para si a missão de espalhar para o
evangelho por todo o mundo conhecido, ao mesmo tempo que ampliava os seus limites.
Primeiro lutando contra os muçulmanos no norte da África, chamados de “mouros”, depois
buscando converter os “gentios” encontrados na exploração da costa atlântica africana, suas
armas eram ladeadas pela cruz e seus navios levavam sempre sacerdotes, responsáveis tanto
pela assistência espiritual e pela oferta dos sacramentos à tripulação dos barcos, como pela
conversão das pessoas moradoras das terras até então desconhecidas dos europeus. 3
3
SOUZA, Marina de Mello e. Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no Congo e em Angola (Séculos
XVI e XVII), pp. 11-12. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2018.
6
assim como nas sociedades europeias, caminhavam em conjunto aos governantes lhes
oferecendo orientações com base nos espíritos.
No que diz respeito à vida cotidiana, as pessoas viviam em aldeias, sendo as linhagens a
estrutura básica da organização social. Cada uma tinha um chefe, escolhido entre os seus
membros mais velhos, que distribuía a terra de cultivo entre as famílias, julgava conflitos que
eram levados a ele e conduzia os ritos de homenagem aos ancestrais e aos espíritos, que
aconselhavam sobre os vários aspectos da vida dos homens.5
4
THORNTON, John. The Development of na African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1984.
5
SOUZA, Marina de Mello e. Além do Visível: Poder, Catolicismo e Comércio no Congo e em Angola (Séculos
XVI e XVII), pp. 33-34. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2018.
7
por onde os portugueses passavam. Muito raramente as conversões eram numerosas, até que o
mani Congo adotou o catolicismo como sua religião.
O Catolicismo foi absorvido, desde então, pelos povos africanos obedecendo a lógica
de suas cosmovisões e tradições locais, mas com muitas tensões. Não era sempre que as
autoridades locais africanas acatavam de bom grado as doutrinas e comportamentos novos
ensinados pelos diversos missionários católicos. Os padres eram contrários a todo tipo de
sortilégios, aos amuletos, aos altares pagãos e também à poligamia. Mesmo que as populações
demonstrassem interesse na nova religião, após o batismo era comum que não respeitassem as
ordens vindas dos sacerdotes justamente por causa desta dificuldade.
Mas, como vimos, a adoção do catolicismo não provocou uma mudança fundamental na
religião: os ensinamentos cristãos eram interpretados a partir das velhas tradições, e os novos
ritos e objetos de culto eram chamados por nomes já conhecidos. Missionários eram vistos
como bagangas, e os objetos que utilizavam eram tidos como minkisi.6
Há um relato feito pelo missionário Fr. Raphael de Castello de Vide, que seria sagrado
bispo de S. Tomé, onde ele indica que a presença da fé católica era bem quista por ambos os
reinos, ou seja, de Portugal e Congo:
Como filho obediente, ainda que bem distante, nestas interiores terras de África, em o
dilatado Reino do Congo, pela salvação das almas, vou por esta à sua presença, desejando
muito que o Ir. Provincial possua muito feliz saúde para a Santa Província ter um tão
benemérito Prelado, e se lembrar deste súbdito, de todos o mais indigno, mas que deseja em
tudo mostrar sempre ser filho da S.ta Província da Piedade. Eu graças ao Senhor me acho
agora com perfeita saúde, depois de muitas moléstias, e trabalhos, já quase no fim da minha
prolongada viagem, junto com dois companheiros, que o quarto foi Deus servido levar para
si em princípio, ou pouco mais da jornada; ocupo neste Reino do Congo, por ordem de Sua
Ex.ª Rev.ma o Senhor Bispo de Angola, o cargo de Vigário Geral e Missionário em este
Reino; a nossa conduta é para a Coroa deste Reino aonde se acha a Sé, mas destruída, e é o
assento dos Reis, mas os grandes embaraços que há em este Reino, e os inimigos que ocupam
a Corte faz que tanto nos tenhamos demorado no caminho, que ainda não acabámos, mas
estamos já com o Rei, perto da Corte coisa de três léguas, para brevemente querendo Deus
entrarmos o mais que pertence a tantos trabalhos que tenho padecido, e os poucos serviços
que eu indigno Ministro tenho feito ao Senhor em esta Missão vão referidos na descrição que
fiz da minha viagem, que remeto ao Irmão Provincial pelas mesmas causas, que ali vão
referidas; o que peço é que o Ir. Provincial queira emprestá-la para a ver meu Pai, se ele a
pedir para ver, porque como Pai, desejará ter compridas novas de seu filho, o que lhe não
mando pela falta de tempo para escrever; o que ele vendo, poderá tornar a remeter; eu me
recomendo muito nas orações, e sacrifícios do Ir. Provincial e de todos os meus Irmãos
Religiosos, a quem desejava animar fervorosamente a vir melhor do que eu a uma empresa,
que não pode deixar de ser muito agradável ao Senhor, acudindo a estas pobres almas
desamparadas, que custaram o preciosíssimo Sangue do nosso amado Redentor, e têm
gemido há tantos anos sem um Padre, que os meta no caminho do Céu, sendo muito apegadas
à Cristandade. Além do que digo, que é o principal, a que viemos, foi esta Missão de grande
empenho da Rainha Nossa Senhora, assim para restabelecer a Cristandade, que aqui foi
plantada pelos Portugueses, como também para renovar a antiga amizade, que sempre houve
entre o Congo e Portugal, e os Reis de um e outro Reino, o que esperamos conseguir pelo
grande agrado, que temos encontrado neste Rei do Congo, e nos maiores fidalgos, anuindo a
tudo o que se propõe, e esperamos principalmente nele integrar a Cristandade que aqui
6
Ibid, p. 64.
8
achamos muito descaída: ora isto pede particulares súplicas ao Senhor, e como as minhas por
indignas não serão ouvidas diante do Divino acatamento, recorro às da minha Mãe, a Santa
Província, cujo benemérito Prelado guarde o Senhor na sua divina graça como sempre pedirei
ao Senhor, eu – do Ir. Provincial – o mais indigno, mas obediente súbdito. Fr. Raphael de
Castello de Vide.7
De toda maneira, por trás deste intento de conversão religiosa ao Catolicismo havia
interesses de dominação de ambas as partes. O reino português queria que o Congo lhe fosse
de certa forma subordinado e, por meio deste domínio ter acesso a diversas mercadorias como
escravos, cobre, e outros, enquanto o mani Congo também se valeu da fé católica para sustentar
sua influência sobre os líderes inferiores a ele. Assim sendo, o Catolicismo serviu como meio
de troca das relações de poder e comércio.
Documentos contemporâneos enfatizam que o culto religioso envolvia dois tipos de seres
sobrenaturais: espíritos distantes e poderosos, que podemos descrever como divindades, e as
almas dos familiares recentemente falecidos. Algumas autoridades modernas relacionam
ambas as categorias aos mortos, argumentando que as divindades são simplesmente
ancestrais que morreram há mais tempo, embora isso seja controverso tanto para os nativos
quanto para os antropólogos.
Além dessas duas forças espirituais principais, havia duas categorias de espíritos inferiores
que eram desapegados de famílias individuais ou territórios e que ou ativavam amuletos que
7
Trecho da carta que Fr. Raphael escreveu em 16 de janeiro de 1790 ao Provincial da Congregação da Terceira
Ordem da Penitência de S. Francisco, narrando a missão e morte do P.e Fr. João Gualberto de Miranda. Grifos
nossos.
9
qualquer um poderia utilizar, ou eram espíritos perigosos e furiosos fantasmas cuja malícia e
maldade poderiam trazer problemas.8
No final das contas, o cristianismo, apesar de sua forma sincrética, segundo os modelos do
Congo, penetrou profundamente em todas as regiões, embora somente no Congo e áreas sob
a administração portuguesa ele estivesse fortemente enraizado como parte da identidade
local.9
Mesmo que houvesse algum conflito teológico por causa da ideia de divindades menores
ou ancestrais entre as religiões tradicionais e o Catolicismo, com o tempo, este último foi
absorvido e apropriado pelos habitantes africanos, concedendo-lhe uma identidade própria.
8
THORNTON, John. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In: HEYWOOD,
Linda M (organizadora), p. 86. 2. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
9
THORNTON, John. Religião e vida cerimonial no Congo e áreas Umbundo, de 1500 a 1700. In: HEYWOOD,
Linda M (organizadora), p. 96. 2. ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013.
10
Uma cultura híbrida que combinava elementos africanos, indígenas e europeus foi
criada como resultado dessa interação e troca cultural. Os escravizados mudaram e adaptaram
suas tradições culturais, línguas e costumes religiosos, frequentemente misturando-os com
elementos da cultura brasileira e portuguesa. A resistência e a capacidade de agência dos
africanos na diáspora são demonstradas nessa criação cultural única e diversificada. As redes
comerciais internas que abasteciam os comerciantes de Benguela também mudaram muito. Ao
invés de se concentrarem no comércio interno e regional, essas redes se transformaram em
sociedades crioulas com conexões em todo o Atlântico. Mesmo em circunstâncias difíceis, os
escravizados estabeleceram vínculos de solidariedade, cooperação e resistência, estabelecendo
redes de comércio, troca de informações e apoio mútuo. As diversas áreas do Atlântico,
incluindo o Brasil, puderam intercambiar bens, informações e ideias por meio dessas redes.
A forma como os africanos entenderam a escravidão nas Américas foi influenciada por
sua experiência de escravidão. Pessoas de várias origens interagiram durante a viagem até a
costa e na espera nos barracões, criando novas identidades e conexões. Na África, o processo
de mudança e adaptação cultural começou quando os escravos tiveram que lidar com problemas
de comunicação e compartilhar suas histórias. Isso levou à criação de novas identidades sociais
e étnicas tanto nas Américas quanto na África.
Os sobas enfrentavam pressões dos comerciantes transatlânticos por mais escravos para
abastecer o comércio. Para atender a essa demanda e pagar tributos aos funcionários
portugueses, eles precisavam encontrar mecanismos para obter cativos além de suas fronteiras
territoriais, sem prejudicar sua própria sobrevivência política. Isso levava a incursões militares,
ataques e invasões a outras regiões, resultando em instabilidade, reações e ataques punitivos
das tropas portuguesas. A população deslocada por esses conflitos era frequentemente
capturada e vendida como escrava, enquanto outras vezes eram incorporadas como dependentes
em outros sobados.
Havia também casos de infidelidade e crimes que levavam à escravização, seja pela
legislação dos sobados ou pela intervenção das autoridades portuguesas. O adultério, por
exemplo, podia resultar na escravização tanto do amante quanto de outros membros de sua
família. As leis africanas e portuguesas puniam crimes como assassinato com a escravidão,
embora o pagamento de multas pudesse evitar a escravização.
No geral, o comércio de escravos e a violência associada a ele eram uma parte integrante
da vida em Benguela e no interior, com constantes guerras, ataques e capturas de pessoas para
serem vendidas como escravas. As autoridades portuguesas intervinham em defesa de seus
vassalos e protegiam os sobas considerados aliados políticos, mas não tinham capacidade
suficiente para impedir todos os ataques e conflitos. A região enfrentava uma instabilidade
política crônica e uma busca incessante por escravos para atender à demanda do comércio
transatlântico.
O vínculo entre o Rio de Janeiro e Benguela, conforme Joseph Miller e Manolo Florentino,
foi consolidado mediante a participação ativa de comerciantes escravagistas radicados no
Brasil. Ao mesmo tempo, uma comunidade brasileira consolidava-se em Benguela, que não
só participava no comércio, mas também na administração de cativos. De igual modo um
grupo mercantilista em Benguela “tornou-se” brasileiro e mantinha relações com a Bahia,
além do Rio de Janeiro e Lisboa.10
10
CANDIDO, 2017, p. 28
11
MILLER, Poder político e parentesco. pp. 174, 175.
12
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020. pp. 30
15
Para construção de comparações e associações para com seu próprio método político, a
influência portuguesa exerceu uma grande importância para que a historiografia inaugurasse
um debate sobre o “Reino de Angola”, chegando à conclusão que foi ignorado, pelas
autoridades portuguesas, a complexidade de diversos grupos africanos cujo a linguística,
modelo de organização civilizacional e rituais eram distintos uns dos outros.
Há, inclusive, uma importante discussão historiográfica sobre o conceito daquilo que
foi chamado de Sertão pelos súditos portugueses. Os Sertões africanos remetiam à um espaço
que, até os momentos iniciais da tentativa de penetração lusa no continente africana através de
suas expedições marítimas, tornava-se desconhecido para os aventureiros europeus. Ariane de
Carvalho abre uma ótica onde permite-nos enxergar que a cartografia portuguesa advinha de
sua expansão marítima, pelo menos até o século XVII.13 Sendo assim, os Sertões, ou seja, o
interior do continente africano, era um local considerado inacessível e não fazia parte do, até
então, denominado Reino de Angola. A necessidade pela ocupação dos Sertões foi sendo
enxergado ao decorrer das novas descobertas a respeito deste espaço ‘vazio’.
O sertão, para Carolina Perpétuo Corrêa, consistia em um espaço distante do mar e que
estava além das fronteiras judiciais, eclesiásticas e jurídicas da monarquia Lusa.14 A falta do
controle administrativo português em tal localidade tornava explícito a falta de poder do
governo português em áreas mais isoladas.
Durante os séculos XVIII e XIX houve um maior avanço para o interior e ocasionou na
criação de povoados e vilas. A colonização dos Sertões ocorreu de forma violenta e através de
caminhos que começaram a ser explorados por conta da necessidade de controle a respeito de
áreas, que na concepção eurocêntrica do termo Sertão, eram enxergadas como excêntrico,
vulgar ou selvagem. É debatido pela historiografia o dinamismo causado pelo conhecimento e
colonização dos Sertões, que viria a ocasionar, de maneira direta, a expansão de fronteiras.15
Segundo Mariana Cândido, as expansões geográficas obtiveram como resultado a ampliação
do processo de escravização, sendo decisiva a necessidade de escravos na Américas.16
A monarquia Lusa, preocupada com a variação comportamental que prevalecia nos
sertões e nas fronteiras, propôs reformas administrativas no século XVIII, visando maneiras de
13
Ibid, pp. 34
14
CORRÊA, Carolina Perpétuo. Cambambe, Angola, No Contexto do Comércio Atlântico De Escravizados
(1790-1850). 2019. 339 f. Tese (Doutorado do Programa de Pós-graduação em História Social) - Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019, p. 79, 80.
15
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020, pp 36.
16
Ibid, pp. 37.
16
17
Ibid, pp. 43
18
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola
ao Rio de Janeiro (1780-1860). 1ª. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 59.
19
COUTO, Os Capitães-Mores em Angola. pp. 138
17
O tráfico de cativos tinha como finalidade principal o envio de mão de obra através do
Atlântico, em especial, para o Brasil. A elite africana se privilegiava a partir do tráfico de cativos
adquirindo, inclusive, mercadorias europeias em troca dos prisioneiros que seriam mandados
pelo Atlântico.21 Armas eram as principais demandas de povos que cobiçavam exercer poder
sobre outros territórios, ocasionando a interiorização do processo de escravização.
20
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização (1749-1797). Rio de
Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020.
21
FLORENTINO, Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidental, pp. 239, 240.
22
THORNTON, África e os Africanos na formação do Mundo Atlântico, pp. 182, 183.
18
23
DAGET, 2010, p. 79
19
Nos interessa mais, no entanto, pensar como tal mudança de cenário econômico influi
sobre as algumas regiões da África. Com um forte comércio de escravos, essas regiões tinham
esse mercado como um dos fatores estruturantes de sua configuração social. Como eles agiriam
em um momento de forte alteração econômica? Assim sendo, parece coerente considerar como
foram as reações africanos em meio a um cenário onde seus principais compradores deixam de
comprar, ainda que não de maneira imediata ou total, dado os resquícios de compra ilegal e
burlamento das legislações internacionais.
Na Serra Leoa, havia feitorias negreiras inglesas e espanholas, enquanto em locais como
o delta do Níger, mecanismos sociais e religiosos locais mantinham o comércio de escravos,
juntamente com outras atividades comerciais, não se isolando apenas na escravidão. Durante o
período abolicionista de cerca de 60 anos, estima-se que cerca de 1,9 milhão de africanos
tenham sido efetivamente embarcados nos navios de exportação, com a maioria sendo
embarcada no Sul do equador, deixando claro que ainda que com imposições externas, a o
comércio de escravos ainda ocorria com uma força considerável.
24
DAGET, 2010, p. 80
20
A suposta cumplicidade dos distribuidores africanos não era senão uma resposta adaptada à
realidade econômica imediata. Isto explica, aliás, a tendência à queda dos preços de venda
de mão de obra exportável como defesa do mercado contra as crescentes pressões das forças
repressivas. Estas teriam, portanto, sua parte em um balanço negativo. Tal argumentação
precisa ser equilibrada quanto à deportação dos africanos para o Norte ou para o Leste. Se o
interesse econômico dos captores e distribuidores de escravos permanecia evidente, concebe-
se dificilmente que os países arruinados tenham recebido qualquer compensação
econômica25.
Em uma palavra, em 1853, quando o governo britânico fez dos serra-‑leoneses súditos da
Coroa, reconheceu implicitamente que uma formidável mistura de culturas fundiu-‑se em
uma sociedade crioula viável. Uma nação “civilizada” construiu-‑se, não segundo um modelo
utópico europeu, mas pelo dinamismo de seu próprio gênio. A evidente contribuição dos
abolicionistas ingleses não ocultou a qualidade das soluções africanas26.
25
DAGET, 2010, pg. 92
26
DAGET, 2010, pg 95
21
enfrentado desafios econômicos, sua criação como uma nação africana independente foi um
acontecimento significativo.
Essas experiências coloniais na Serra Leoa e na Libéria foram vistas como tentativas de
estabelecer novas nações africanas em uma região afetada pelo comércio de escravos. Embora
tenham tido importância histórica, é importante destacar que essas experiências não podem ser
consideradas como precursoras dos movimentos de libertação do século XX. As opiniões sobre
essas experiências eram divergentes entre os abolicionistas, e a ideia de colonização também
foi alvo de críticas. Ainda assim, essas experiências contribuíram para a formação de sociedades
crioulas e para o estabelecimento de governos locais autônomos.
Pensando no comércio nesse contexto, Daget (2010, pg 98) defende que proteção do
comércio marítimo não se baseava tanto em repressão, mas sim na missão de salvaguardar o
comércio "legítimo" dos países envolvidos. A partir do início do século XIX, a costa africana
atendia às necessidades de produtos naturais dos Estados Unidos, França e Inglaterra. Enquanto
o comércio não relacionado à escravidão crescia ao lado do tráfico de escravos, havia uma
competição entre as nações ocidentais para estabelecer uma divisão "informal" das zonas de
influência econômica, que era aceita pelos líderes africanos.
Do ponto de vista da costa, a principal necessidade era a demanda por óleos vegetais,
que eram utilizados como lubrificantes para máquinas, matéria-prima para sabão e iluminação.
Os produtos oleaginosos africanos passaram a fazer parte do mercado ocidental:
A costa tinha sempre exportado o óleo de palma, mas em quantidades ínfimas. A importação
da Inglaterra passou de 982 toneladas em 1814 a 21.000 toneladas em 1844, permaneceu
estável por uma década e dobrou em seguida por volta de 1870. A França importava em
média 4.000 toneladas anuais entre 1847 e 1856; 2.000 toneladas na década seguinte.
Compensava com a importação média anual de 8.000 toneladas de amendoim do Senegal e
22
O comércio legítimo, que por muito tempo foi entendido como algo distante da realidade
naquele contexto, um modelo paralelo ao tráfico de escravos e uma substituição do valor
humano como moeda de troca, parecia estar se projetando. No entanto, ainda havia a
necessidade de desenvolver uma produção em nível industrial, dado o contexto de avanços
tecnológicos na escala de produção, o que foi alcançado em um período relativamente curto se
comparado às produções de café e açúcar de Cuba e Brasil. Dessa forma, duas grandes regiões
produtores de óleo vegetal se destacavam, sendo elas o Reino do Daomé e os rios do delta do
Niger e Camarões. Uma das condições fundamentais para essa transformação foi a mobilização
da mão de obra nas terras do interior colonizado. Embora o modo de produção fosse escravista,
ele parecia estar de acordo com a ordem social e econômica africana.
Na costa, na medida que tinham uma rede de conhecimentos que os permitia isso, os
agentes comerciais ocidentais pareciam ter controle sobre os meios no comércio. No entanto, o
cenário econômico se diversificava e gerava complexidades para se lidar:
27
DAGET, 2010, pg 99
28
Daget, 2010, pg 99
23
7. CONCLUSÕES GERAIS.
A Libéria, por sua vez, se posicionou contra o tráfico e solicitou ajuda internacional.
Medidas diplomáticas e políticas coercitivas da França e da Inglaterra também contribuíram
para restringir o tráfico de escravos em diversas regiões.
29
DAGET, 2010, pg 101
24
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Ariane. Guerras nos sertões de Angola: sobas, guerra preta e escravização
(1749-1797). Rio de Janeiro: UFRJ, PPGHIS, Tese de Doutorado, 2020.
AJAYI, J.F Ade. História Geral da África VI. Brasília: UNESCO, 2010