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INTERPRETAÇÃO II

Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal


por Gilberto Freyre, 1933, p. 65-66, p. 390-391 e p. 404.

“Quando em 1532 se organizou econômica e civilmente a sociedade brasileira, já foi depois de um


século inteiro de contato dos portugueses com os trópicos; de demonstrada na Índia e na África sua
aptidão para a vida tropical. Mudado em São Vicente e em Pernambuco o rumo da colonização
portuguesa do fácil, mercantil, para o agrícola; organizada a sociedade colonial sobre base mais sólida e
em condições mais estáveis que na Índia ou nas feitorias africanas, no Brasil é que se realizaria a prova
definitiva daquela aptidão. A base, a agricultura; as condições, a estabilidade patriarcal da família, a
regularidade do trabalho por meio da escravidão, a união do português com a mulher índia, incorporada
assim à cultura econômica e social do invasor.
Formou-se na América tropical uma sociedade agrária na estrutura, escravocrata na técnica de
exploração econômica, híbrida de índios – e mais tarde de negro – na composição. [...]
A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos,
explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes, cultural, de povo indefinido entre a Europa e a
África. Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a
europeia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro
correndo por uma grande população branca quando não predominando em regiões ainda hoje de gente
escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as
durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao
cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao
próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África.
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Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e
quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de
escravos. Longe de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura,
desempenharam uma função civilizadora. Foram a mão direita da formação agrária brasileira, os índios, e
sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda. [...]
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e
os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapê. Vieram-
lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em
ferro; negros entendidos na criação de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e sabão;
mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos. Por outro lado a proximidade da Bahia e de
Pernambuco da costa da África atuou no sentido de dar às relações entre o Brasil e o continente negro um
caráter todo especial de intimidade. [...]
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O negro no Brasil, nas suas relações com a cultura e com o tipo de sociedade que aqui se vem
desenvolvendo, deve ser considerado principalmente sob o critério da história social e econômica. Da
antropologia cultural. Daí ser impossível – insistamos neste ponto – separá-lo da condição degradante de
escravos, dentro da qual abafaram-se nele muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para
acentuarem-se outras, artificias e até mórbidas. Tornou-se, assim, o africano um decidido agente
patogênico no seio da sociedade brasileira. Por ‘inferioridade de raça’, gritam então os sociólogos
arianistas. Mas contra seus gritos se levantam as evidências históricas – as circunstâncias de cultura e
principalmente econômicas – dentro das quais se deu o contato do negro com o brando no Brasil. O negro
foi patogênico, mas a serviço do branco; como parte irresponsável de um sistema articulado por outros.”
INTERPRETAÇÃO I
Formação do Brasil contemporâneo
por Caio Prado Jr., 1942, p. 27 e p. 122-123.

“Além disto, portugueses e espanhóis, particularmente estes últimos, encontram nas suas colônias
indígenas que se puderam aproveitar como trabalhadores. Finalmente, os portugueses tinham sido os
precursores, nisto também, desta feição particular do mundo moderno; a escravidão de negros africanos; e
dominavam os territórios que os forneciam. Adotaram-na por isso em sua colônia quase que de início —
possivelmente de início mesmo —, precedendo os ingleses, sempre imitadores retardatários, de quase um
século.
Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da
zona temperada. Enquanto nestas se constituirão colônias propriamente de povoamento [...], escoadouro
para excessos demográficos da Europa que reconstituem no novo mundo uma organização e uma
sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus; nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo
de sociedade inteiramente original. Não será a simples feitoria comercial, que já vimos irrealizável na
América. Mas conservará no entanto um acentuado caráter mercantil; será a empresa do colono branco,
que reúne à natureza, pródiga em recursos aproveitáveis para a produção de gêneros de grande valor
comercial, o trabalho recrutado entre raças inferiores [SIC!] que domina: indígenas ou negros africanos
importados. Há um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da
expansão ultramarina da Europa, e que são conservados, e as novas condições em que se realizará a
empresa. Aqueles objetivos, que vemos passar para o segundo plano nas colônias temperadas, se
manterão aqui, e marcarão profundamente a feição das colônias do nosso tipo, ditando-lhes o destino. No
seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma
vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela,
destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este
o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os
elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução históricas dos
trópicos americanos.
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Completam-se assim os três elementos constitutivos da organização agrária do Brasil colonial: a
grande propriedade, a monocultura e o trabalho escravo. Estes três elementos se conjugam num sistema
típico, a ‘grande exploração rural’, isto é, a reunião numa mesma unidade produtora de grande número de
indivíduos; é isto que constitui a célula fundamental da economia agrária brasileira. Como constituirá
também a base principal em que assenta toda a estrutura do país, econômica e social. Note-se aqui,
embora isto já esteja implícito no que ficou dito acima, que não se trata apenas da grande propriedade,
que pode também estar associada à exploração parcelaria; o que se realiza então pelas várias formas de
arrendamento ou aforamento, como é o caso, em maior ou menor proporção, de todos os países da
Europa. Não é isto que se dá no Brasil, mas sim a grande propriedade mais a grande exploração, o que
não só não é a mesma coisa, como traz consequências, de toda ordem, inteiramente diversas.
Mutatis mutandis, a mineração, que a partir do séc. XVIII formará a par da agricultura entre as
grandes atividades da colônia, adotará uma organização que afora as distinções de natureza técnica, é
idêntica à da agricultura; concorreram para isto, de uma forma geral, as mesmas causas, acrescidas talvez
da influência que a feição geral da economia brasileira já tomara quando a mineração se inicia. É ainda a
exploração em larga escala que predomina: grandes unidades, trabalhadas por escravos.”
INTERPRETAÇÃO III
Raízes do Brasil
por Sérgio Buarque de Holanda, 1933, p. 31, p. 49, p. 61 e p. 145-146.

“A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições


naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade
brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de
convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente, muitas vezes,
desfavorável e hostil, somos, ainda hoje, uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras
excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de
civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece
participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e outra paisagem.
Assim, antes de perguntar até que ponto poderá alcançar bom êxito a tentativa, caberia averiguar
até onde temos podido representar aquelas formas de convívio, instituições e ideias de que somos
herdeiros.
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O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não
riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que se tinha acostumado a alcançar na Índia. Com as
especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e
fabricar o açúcar para mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de
resto, com as mãos e os pés dos negros –, mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se
ao estrito necessário às diferentes operações.
Não foi, por conseguinte, uma civilização tipicamente agrícola o que instauraram os portugueses
no Brasil com a lavoura açucareira. Não o foi, em primeiro lugar, porque o tanto não conduzia o gênio
aventureiro que os trouxe à América; em seguida, por causa da escassez da população do retino, que
permitisse emigração em larga escala de trabalhadores rurais, e finalmente pela circunstância de a
atividade agrícola não ocupar então, em Portugal, posição de primeira grandeza.
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Em sociedade de origens tão nitidamente personalistas como a nossa, é compreensível que os
simples vínculos de pessoa a pessoa, independentes e até exclusivos de qualquer tendência para a
cooperação autêntica entre os indivíduos, tenham sido quase sempre os mais decisivos. As agregações e
relações pessoais, embora por vezes precárias, e, de outro lado, as lutas entre facções, entre famílias, entre
regionalismos, faziam dela um todo incoerente e amorfo. O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por
essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional e uma
estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidade ordenadoras, disciplinadoras,
racionalizadoras. [...]
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Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formadas por tal ambiente,
compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se
caracterizam justamente pelo que separa o funcionário ‘patrimonial’ do puro burocrata, conforme a
definição de Max Weber. Para o funcionário ‘patrimonial’, a própria gestão política apresenta-se como
assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-
se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado
burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias
jurídicas aos cidadãos. A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo com a
confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com suas capacidades próprias.
Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida no Estado burocrático.”

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