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A COMUNIDADE NEGRA RURAL DO POVOADO DE MATINHA DOS PRETOS

(BA): UMA PERSPECTIVA GEOGRÁFICA

Elane Bastos de Souza –


Universidade Federal da Bahia
lani-souza@hotmail.com
Guiomar Inez Germani
guiomar@ufba.br

Introdução

O presente trabalho busca compreender a partir do tripé Comunidades Negras Rurais Quilom-
bolas (CNRQ)-território-questão agrária, as experiências de resistência vivenciadas pela po-
pulação de um Povoado conhecido por Matinha dos Pretos desde o período da escravidão até
os dias atuais, analisando os elementos históricos, políticos, econômicos e culturais que con-
tribuíram historicamente para a formação desta comunidade num esforço de estabelecer um
diálogo entre a constituição histórico- espacial dos quilombos e Geografia.

Surge a partir da proposta de trabalho desenvolvida na pesquisa de mestrado em andamento


vinculado ao Projeto GeografAR ( Geografia dos Assentamentos da Área Rural) intitulada “A
Comunidade Negra Rural de Matinha dos Pretos: um território quilombola?” onde se propõe
verificar a existência dos elementos que apontam para a possibilidade da formação de um
quilombo no espaço evidenciado.

A territorialidade produzida pelas CNRQ em geral, particularmente na Comunidade Negra


Rural de Matinha dos Pretos, envolve relações internas e externas materializadas nos aspectos
históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais, este último possibilita a construção da
identidade a partir dos símbolos e significados estabelecidos pela vivência social cotidiana por
parte dos habitantes deste espaço.

1 Comunidades Negras Rurais no Brasil: Um histórico de apropriação do espaço

Considerando-se que a formação da Comunidade Negra Rural de Matinha relaciona-se, dire-


tamente, com múltiplas escalas temporais e espaciais é que torna-se necessária a compreensão
acerca do contexto histórico em que ocorre formação destas comunidades no Brasil.

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Neste País, a escravidão consolidou-se como uma experiência de longa duração a marcar di-
versos aspectos da cultura e da sociedade brasileira. Mais que uma simples relação de traba-
lho, a existência da mão-de-obra escrava africana fixou um conjunto de valores da sociedade
brasileira em relação ao trabalho, os homens e às instituições. Durante o estabelecimento da
empresa colonial portuguesa, a opção pelo trabalho escravo envolveu diversas questões que
iam desde o interesse econômico ao papel desempenhado pela Igreja na Colônia. Sob o aspec-
to econômico, o tráfico de escravos foi um grande negócio para a Coroa Portuguesa. Em rela-
ção à posição da Igreja, os portugueses foram impedidos a escravizarem os indígenas, pois
estes integrariam ao projeto de expansão do catolicismo pelas Américas.

No mundo do trabalho, a escravidão fez com o trabalho que se tornasse uma atividade inferior
dentro da sociedade da época. O trabalho braçal era visto como algo destinado ao negro.
Mesmo grande parte da mão-de-obra sendo empregadas em atividades que exigiam grande
esforço físico, outras tarefas também era desempenhada pelos escravos. Os escravos domésti-
cos trabalhavam nas casas enquanto os escravos de ganho administravam pequenos comér-
cios, praticavam artesanato ou prestavam pequenos serviços para seus senhores.

Os europeus, sobretudo os portugueses se beneficiaram do tráfico de escravos durante, apro-


ximadamente, três séculos, sendo este uma das mais rendosas atividades econômicas. Milha-
res de pessoas oriundas de diversas regiões do continente africano eram negociadas como
mercadoria. Para trabalharem nas lavouras de cana-de-açúcar, algodão, tabaco, entre outras,
atendendo aos princípios básicos do mercantilismo e da acumulação de capital. Isto a custa
do genocídio cultural, onde lutas sangrentas se desenrolaram desde a migração forçada de
África, tendo como ônus a vida de milhares de pessoas e a desestruturação de diversas etnias
que compunham o a diversidade existente no continente africano.

No Brasil, nota-se que existem particularidades substanciais em relação as demais regiões da


América, no que diz respeito ao sistema escravista,

A manutenção dessa estrutura por quase quatro séculos no território brasileiro e a quantidade
de africanos importados até 1850, não devidamente quantificados mostra como a sociedade es-
cravista conseguiu estabilizar-se e desenvolver-se. Devemos ressaltar que foram as regiões ge-
ográficas do Brasil de interesse europeu que detiveram os maiores fluxos de negros escraviza-
dos. (ANJOS, 2005, p.29)

Seguindo esta lógica, Portugal, que tinha experiência com o tráfico de escravos, desde o sécu-
lo XV, capturava negros e negras para trabalharem nas lavouras contribuindo o fato de mui-

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tos africanos possuírem conhecimento como agricultores, ferreiros e mineradores diferente-
mente dos índios, o que não impediu que estes últimos fossem também escravizados pelos
europeus.

O escravo africano foi a força de trabalho de todo o sistema implantado nas fazendas de algo-
dão e café. Tudo o que se produzia neste período teve a marca do suor e do sangue negro, obti-
dos pelo trabalho escravo. (GERMANI, 2006)

Nessa conjuntura, os africanos eram componentes fundamentais que serviam para atender aos
requisitos do rentável comércio de escravos, sendo um dos atores principais da produção de
riquezas no Brasil.

Neste momento, o Brasil era um país essencialmente agrícola e suas relações socioeconômi-
cas tinham a terra como elemento básico para a produção. Como afirma Germani (2006), dois
grandes eixos econômicos se destacavam: a produção de subsistência e a de produtos tropicais
exportáveis, porém, estes últimos eram o que subordinava a economia sendo que parte consi-
derável da produção era destinada a exportação.

Essa realidade tomará novas proporções no momento em o movimento abolicionista se dis-


semina pelo país e adquire grande expressão junto a intelectualidade. Afirma Andrelino Cam-
pos que nesse momento, “Os proprietários de escravos aderiram com maior velocidade ao
instrumento de alforria. Economicamente era vantajoso, pois o Estado se obrigava a indenizar
os proprietários pela perda, se houvesse mudança no sistema produtivo”. (CAMPOS, 2005,
41)

Considerando esse aspecto é que a Abolição da Escravatura vai se tornando uma realidade
para o Brasil e assim iniciam-se uma série de medidas foram sendo tomadas no Brasil no sen-
tido de por um fim na escravidão. Em 1831, ocorre a proibição do tráfico de escravos africa-
nos, e em 1850 a Lei das Terras, institui a compra como única forma de aquisição das terras,
sendo uma legislação específica para a questão fundiária brasileira. E em 1871 instituiu-se a
Lei do Ventre Livre toda criança filha de escrava e que nascesse a partir daquela data era con-
siderada livre. Porém esse processo não deixou a terra livre para o “negro livre”.

A criação e implantação da Lei de Terras insere-se numa conjuntura estratégica, pois prenun-
ciava o processo de abolição da escravatura e a implantação do trabalho livre. Assim, os gran-
des senhores de terras apressaram-se em adotar tal medida, pois, desta forma receberiam uma

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indenização por parte do império tendo como solução a substituição da mão de obra escrava
pela do imigrante europeu. Com a Lei de Terras, inicia se o processo de instituição da propri-
edade privada da terra sendo que a esta é atribuído um valor ou podendo, assim, gerar renda
fundiária.

Para Oliveira,

a renda da terra é um lucro extraordinário, suplementar, permanente, que ocorre tanto no


campo quanto na cidade. Ela é também denominada renda territorial ou renda fundiária.
Sendo a renda da terra um lucro extraordinário ou permanente ela é, portanto produto do
trabalho excedente, ou seja, fração de mais valia. É, mais precisamente, componente parti-
cular e especifico de mais valia. (OLIVEIRA, 1986, p.73)

Em 1888, ocorre a assinatura da Lei Áurea, que legalmente viria a “extinguir” a escravidão no
Brasil, num contexto de pressões constantes da Inglaterra, revoltas de escravos nas senzalas, a
formação constante dos quilombos e a grande influência do movimento abolicionista, que
cada vez mais ganhava expressão junto a intelectualidade. Afirma Campos que, o ex-escravo,
depois de alforriado, continuou ainda discriminado pela sociedade, não importando se fosse
africano, ingênuo ou pardo (CAMPOS, 2005, p.41). A esses povos eram negados os direitos
básicos de cidadão onde o Império e governos posteriores não lhes forneceram nenhum bene-
fício, sobretudo o acesso a terra.

Mesmo a escravidão tornando-se uma prática usual, ao longo de todo esse processo, havia
diversas estratégias de resistência contra este sistema. O conflito direto, as fugas e a formação
de quilombos eram as mais significativas formas de resistência. Além disso, a preservação de
manifestações religiosas, certos traços da culinária africana, a capoeira, o suicídio e o aborto
eram outras vias de luta contra a escravidão.

Desta forma, os quilombos se espalharam pelo território brasileiro e sua presença foi percebi-
da em diversos estados do Brasil,

Em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, Pará, Pernambuco, Alagoas, Sergipe,
Maranhão, Rio Grande do Sul, São Paulo, onde quer que o trabalho escravo se estratificasse,
surgia o quilombo ou mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência, lutando desgas-
tando em diversos níveis as forças produtivas escravistas (...). (MOURA, 1987, p.15).

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É importante frisar, que a maioria dos africanos que desembarcavam nos navios negreiros se
concentrava em regiões econômicas estratégicas para a economia colonial, e devido a isso,
estas aglutinava grande percentual desse contingente populacional.

Ao longo de todo o processo de escravidão, e também no período posterior, do século XVI ao


XIX, a formação dos quilombos representava focos de resistência a ordem imperial vigente.
O termo quilombo origina-se da língua bantu que significa ocupação e recebe outras denomi-
nações como mocambos, no Brasil, palenques e cumbes na América espanhola, marroons na
América inglesa entre outros. (DORIA, OLIVEIRA e CARVALHO, 1995).Em 1740, o Con-
selho Ultramarino utilizou-se da seguinte definição para quilombos: Toda habitação de negros
fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levanta-
dos e nem se achem pilões nele ( apud ANJOS, 2005, p.27).

Tal definição tornou-se clássica e fez com que a sociedade referenciasse os quilombos a partir
deste ponto de vista influenciando durante décadas os estudos sobre a temática atribuindo-lhe
características pouco aprofundadas, como resistência, relação com o período de escravidão,
espaços isolados, entre outros.

Flavio dos Santos Gomes vai além, desta visão e define quilombos a partir da concepção de
campo negro: Uma complexa rede social, permeada de aspectos multifacetados que envolve-
ram, em determinadas regiões do Brasil, inúmeros movimentos sociais e práticas econômicas
com interesses diversos. (GOMES, 1996, p.36)

Ao analisar os conceitos expostos, nota-se que o primeiro enfoca características importantes


dos quilombos, porém não dá conta da grande dimensão conceitual do termo e, nesse sentido,
Gomes atribui-lhe uma maior abrangência. Estes territórios negros em outros espaços das
Américas, onde a escravidão também exerceu grande influência, observam-se semelhanças e
diferenças, Desta forma, Doria, Oliveira e Carvalho (1996) afirmam que,

existem contrastes e semelhanças na experiência quilombola no Brasil e demais países


americanos sendo que no Suriname, Haiti, Venezuela, Caribe, entre outros, a presença ne-
gra é claramente identificável nos mapas nacionais, porém no caso brasileiro as comuni-
dades negras apresentam-se totalmente fragmentadas sendo que não há nenhuma região
reconhecida na representação que a nação faz de si mesma como o lugar dos quilombos.
As comunidades de ex-escravos e descendentes de quilombolas estão espalhadas por inú-
meros estados da nação e não alcançaram jamais uma visibilidade aos olhos do coletivo,
ficando relegadas a invisibilidade. (DORIA, OLIVEIRA e CARVALHO, 1995)

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Desta forma, Anjos (2005) destaca as seguintes características para as comunidades remanes-
centes de antigos quilombos do Brasil: a) a distribuição das construções se dá de forma espar-
sa no território, sem um arruamento geométrico definido, como tradicionalmente se verifica
nas outra localidades do país; b) geralmente ocupa regiões de topografia acidentada e/ou va-
les florestados e férteis com sistemas de vigilância nas áreas mais altas; c) forte cultura espa-
cial (ANJOS, 2005).

Considerando-se tais conceitos e características dos quilombos, nota-se que elementos como,
acesso a terra, tempo, espaço, relações de poder estão, historicamente, presentes no processo
de formação, construção e reconstrução dos quilombos no Brasil e Américas. Nesse sentido,
há uma evidente relação histórica que enfoca o passado e o presente dos quilombos marcado
por relações de poder, essas relações podem ser analisadas a luz da ciência geográfica especi-
ficamente a partir dos conceitos de espaço, território e territorialidade.

2 O Conceito de Território: Uma Breve Discussão

A constituição histórico-espacial das CNRQ revela experiências de resistência constantes e


relações específicas com a terra sendo esta o elemento fundamental e o meio de produção e
reprodução por parte destes grupos e que lhe confere a reivindicação de direitos enquanto
cidadãos. Por isso as relações internas e externas desenvolvidas pelos quilombolas, tanto no
passado quanto no presente, refletem contextos marcados por relações de poder presentes nos
laços ancestrais que estas comunidades desenvolvem no seu cotidiano. Estas relações podem
ser analisadas à luz da Geografia considerando dois conceitos fundamentais : o espaço e o
território.
Milton Santos (1987), considera que o espaço deve ser considerado como uma totalidade, a
exemplo da sociedade que lhe dá vida. (1987, p.5). O mesmo ressalta a importância do perío-
do histórico pra atribuir conteúdo a uma determinada variável espacial afirmando que O que
nos interessa é o fato de que a cada momento histórico cada elemento muda seu papel e sua
posição no sistema temporal e no sistema espacial e, a cada momento, o valor de cada qual
deve ser tomado na sua relação com os demais elementos e com o todo. (SANTOS, 1987,

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p.9). Desta forma, as variáveis tempo, espaço e totalidade são elementos fundamentais no
momento em que se analisa as relações espaciais.

Os estudos territoriais tiveram grande impulso com Claude Rafesttin que o define a partir do
seu caráter político, incorporando a compreensão do conceito de espaço geográfico, pois o
entende como substrato, um palco, pré - existente ao território.
Nas palavras do autor,
É essencial compreender que o espaço é anterior ao território. O território se forma a
partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator
que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta
ou abstratamente o ator territorializa o espaço. (RAFESTTIN, 1993, p.145)

Dentro da concepção enfatizada pelo autor, o território é tratado principalmente com uma
ênfase político-administrativa, isto é, como o território nacional, o espaço físico onde se inse-
re uma nação; um espaço onde se delimita uma ordem política e jurídica; um espaço medido e
marcado pelo trabalho humano, com suas linhas limites e fronteiras. Segundo o mesmo autor,
ao se apropriar de um espaço concreta ou abstratamente, o autor territorializa o espaço. Nesse
sentido, entende o território como sendo:
(...) um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por
conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. (...) o território se apóia no espa-
ço, mas não é o espaço. É uma produção a partir do espaço. Ora, a produção, por cau-
sa de todas as relações que envolvem, se inscreve num campo de poder (...) ( RA-
FESTTIN, 1993, P.144).

Na análise de Rafesttin, que recebe grande influência das concepções de Michael Foucault, a
construção do território revela relações marcadas pelo poder, sendo o território compreendido
sob uma visão político administrativa, a partir da análise do território nacional. Assim, faz-se
necessário enfatizar uma categoria essencial para a compreensão território, que é o poder e-
xercido por pessoas ou grupos sem o qual não se define território. Poder e território, apesar da
autonomia de cada um, vão ser enfocados conjuntamente para a consolidação do conceito de
território. Assim, o poder é relacional, pois está intrínseco em todas as relações sociais.
Para Foucault (1979, p.157) o “território é sem dúvida uma noção geográfica, mas é antes de
tudo uma noção jurídico-política: aquilo que é controlado por certo tipo de poder”. O autor
não anula o caráter geográfico, mas o identifica no campo político que sofre influência de um
tipo de poder e não necessariamente o poder do Estado
Contrapondo a essa visão, Marcelo Lopes Souza, compreende o território como um campo de
forças, uma qualificação do espaço, um manto de relações sociais projetadas, sua critica a
Rafestin é que o mesmo atribui uma base material ao território, reduzindo-o a compreensão do
Estado como fazem os autores clássicos.

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Souza aborda a riqueza potencial do termo território, considerando-o como substrato compre-
endido a partir do desenvolvimento e a da autonomia. Desta forma, afirma que território, “é
fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir das relações de poder”
(SOUZA, 2001 p.78).

Segundo ele, a compreensão de poder pressupõe autonomia desprezando a idéia de domina-


ção há muito associada a este conceito e indo além da compreensão de Estado, podendo ser
compreendido nas mais diversas escalas. A partir dessa afirmação, Souza historiciza o surgi-
mento do território como fator gerador da formação da identidade territorial, diretamente as-
sociado ao espaço concreto e seus atributos tanto naturais quanto os socialmente construídos a
partir de uma dimensão materializadora do espaço. Assim, enfatiza também a riqueza poten-
cial do conceito ao atribuir ao território um enfoque político, mas também cultural.

Segundo Rogério Haesbaert, o conceito de território trata-se de uma polissemia, e não se res-
tringe apenas a Geografia, sendo que cada enfoque está centralizado em determinada perspec-
tiva, tratado por diversas áreas de conhecimento como a Antropologia, a Economia, as Ciên-
cias Políticas, entre outras.

Ao definir território, o autor considera que em Geografia costuma-se definir território a partir
da sua materialidade considerando três vertentes básicas:
1) Jurídico-politica, a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e
controlado através do qual se exerce um determinado poder – mas não exclusivamente – re-
lacionado ao poder político do Estado.
2) Cultural ou Simbólico Cultural: prioriza a dimensão simbólica mais subjetiva, em que o
território é visto, sobretudo, como produto da apropriação/valorização simbólica de um gru-
po em relação ao seu espaço vivido.
3) Econômica: menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o
território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na rela-
ção capital trabalho, como produto da divisão territorial do trabalho, por exemplo. (HAES-
BAERT,2004, p.40)

Assim, considera que a compreensão do conceito de território se dá a partir das suas dimen-
sões e o entendimento destas torna-se importante a medida que fornece caminhos para uma
reflexão mais aprofundada porém, segundo ele, a abordagem dependerá do foco que cada aná-
lise envolve.

No entanto, é importante destacar que:

(...) esses três elementos não são mutuamente excludentes, mas integradas num mesmo con-
junto de relações sócio-espaciais, ou seja, compõem efetivamente uma territorialidade ou

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uma espacialidade complexa, somente apreendida através da justaposição dessas três noções
ou da construção de conceitos “híbridos” como o de território – rede (HAESBAERT,2004,
p.38).

Analisando estas três perspectivas, observa-se que na análise de Rafestin mantém a definição
clássica de território enquanto substrato material atribuindo a este com base na idéia de Es-
tado. Desta forma, na evolução da ciência geográfica, o conceito de território incorpora outras
categorias, e a relação de poder presente na sociedade age definindo e delimitando os espaços,
assim sendo, tanto Souza (2001) quanto Haesbaert (2004) avançam nesse sentido.

Ainda considerando as contribuições de Souza, nota-se que a territorialidade adquire sentido am-
plo, revestido de uma ação política do individuo. A diferença entre “nós”, membros de determina-
do grupo, e os “outros” que não pertençam a esse grupo. Dessa maneira, o autor destaca que a
temática da territorialidade, mais abrangente e critica, pressupõe não propriamente um desloca-
mento entre as dimensões política e cultural da sociedade, mas uma flexibilização da visão do que
seja território. Aqui o território será um campo de força, uma teia ou rede de relações sociais que,
a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferen-
ça entre o “nós” e os “outros” (SOUZA, 2001, p.86)

O autor enfoca que as relações tempo espaço são fundamentais na compreensão da territoria-
lidade além de atribuir um caráter particular e individual com elemento que caracteriza a terri-
torialidade. Assim, torna-se possível o entendimento da construção a territorialidade histórica
dos quilombos e das CNRQs diante da grande complexidade que caracteriza as relações exis-
tentes entre os grupos sociais e o território.

Entendemos que, a territorialidade está intrinsecamente associada à identidade étnica e socio-


cultural por parte da diversidade de grupos que compõem a sociedade conformando uma iden-
tidade política. Assim, os conflitos, em meio aos quais tais grupos têm sobrevivido, marcam a
condição quilombola dos mesmos, mais do que ser ou não originário de um quilombo; resulta,
assim, do fato de terem, cada grupo negro particular, desenvolvido práticas de resistência na
manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado espaço.

A partir desta consideração, compreende-se que os quilombos manifestam características ter-


ritoriais onde seu modo de vida é especifico, nele é possível identificar dimensões socais, po-
líticas, econômicas, culturais onde a identidade é bastante evidenciada pela dinâmica de suas
características históricas. Nesse contexto, a luta pela terra vai incorporar as necessidades eco-

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nômicas culturais, políticas, socais e geográficas com o direito de auto identificação, determi-
nação e reconhecimento dos quilombos.

A identidade política é considerada um processo de construção social, relacionada diretamen-


te à vida e baseada nas experiências dos sujeitos coletivos e individuais e na necessidade de
afirmação por parte dos grupos sociais. Ela também é construída em contextos marcados por
relações de poder.

Marco Aurélio Saquet analisa o conceito de identidade enquanto unidade material, imaterial,
processual e relacional. Ele afirma que a identidade é sempre tratada como continuidades his-
tórico-culturais inerentes a vida de certo grupo social em um determinado lugar, porém a for-
ma de vida é fundamental para a reprodução dessa identidade. E considera que a identidade é
um elemento fundamental para a abordagem territorial sendo analisada sob uma perspectiva
de unidade transescalar, histórica e relacional. (SAQUET, 2007, p.147)

Nesse sentido, a identidade é considerada como algo que singulariza os sujeitos a partir de
suas históricas relações com o território materializadas no seu cotidiano.

Essa distinção entre identidades, sobretudo com base na origem é que determina o caráter
singular dos sujeitos coletivos, considerando a diferença entre formas de identidades não as
excluem entre si, sendo que, a depender da interação entre os uma identidade pode se tornar
de projetos ou dominante, transformando-se em legitimadoras.

3 A Comunidade Negra Rural do Povoado de Matinha dos Pretos: Algumas Considera-


ções

O Povoado de Matinha, sede do Distrito de mesmo nome, localiza-se na zona rural do muni-
cípio de Feira de Santana, nas proximidades do Distrito de Maria Quitéria, anteriormente de-
nominado São José das Itapororocas.1 Até o ano de 2008, a Matinha era um povoado que per-
tencia a este último Distrito.

1
São José das Itapororocas foi a primeira paróquia de Feira de Santana(BA).

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Referências históricas apontam para o fato de que os negros que chegavam em Feira de San-
tana eram oriundos das grandes lavouras de cana-de-açúcar localizada no interior da Bahia,
especificamente das proximidade Recôncavo Baiano, da Capital e do trânsito do comércio de
escravos que acontecia na porta de entrada para o sertão. Certamente esse grande contingente
de negras e negros que chegava às terras feirenses e se fixava nas proximidades da Paróquia
de São José da Itapororocas, iam trabalhar nas fazendas próximas a este distrito, formando no
decorrer do século XIX diversos núcleos de negros, e muitos destes, possivelmente, tornaram-
se quilombos e é nesse contexto histórico que teria se formado o Povoado de Matinha dos
Pretos.

Os registros históricos testemunham também que afirmam fazenda Candeal foi o espaço que
originou o povoado de Matinha dos Pretos, propriedade pertencente a Antônio Alves, que
possuía em suas terras uma determinada quantidade de negros escravizados. A memória cole-
tiva relata que comumente os negros se revoltavam com a sua condição de escravizados e
colocavam cobras na bolsa das senhoras, na cama dos senhores e em outros lugares e se refu-
giavam numa mata cerrada, porém pequena, denominada Matinha, daí o nome, Matinha dos
Pretos. Provavelmente, a formação desta Comunidade Negra Rural ocorreu entre os séculos
XIX e meados do XX.
Atualmente, a Matinha é um Distrito pertencente ao município de Feira de Santana-BA, que
está localizada no Território de Identidade do Portal do Sertão (figura 1) sendo que este Dis-
trito abrange os povoados dos Olhos D`Água das Moças, Candeal, Santa Quitéria, Moita da
Onça, Vila Menilha, Baixão, Tupi, Alto do Tanque, Tanquinho, Alto do Canuto, Alecrim Mi-
údo, Jacu, Capoeira do Rosário, Candeia Grossa, Genipapo e Matinha, sede do Distrito.

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Figura 1
Território de Identidade Portal do Sertão

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Figura 2
O Distrito de Matinha e seus Entornos

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Nos dias atuais, a produção econômica da Matinha se organiza, sobretudo, a partir da relação
da população com a terra que se dá através da agricultura e pecuária onde o plantio de mandi-
oca se destaca enquanto cultura histórica do povoado e áreas vizinhas. Existem algumas casas
de farinha dentro das propriedades dos moradores e uma de uso comum que pertence a Asso-
ciação de Moradores da Matinha. Destaca-se, ainda, o plantio de feijão, milho, frutas, entre
outros. No entanto, cabe investigar a condição em que se pratica a agricultura e bem como as
condições de propriedade que se estabelecem.

Considerando-se os elementos expostos algumas questões orientam a investigação em anda-


mento: De que forma os elementos históricos, culturais, políticos e econômicos contribuem
atualmente para a formação do Povoado de Matinha dos Pretos e para suas experiências de
resistência desenvolvidas ao longo do tempo? Por quais motivos uma Comunidade localizada
numa área tão próxima a Feira de Santana nos dias atuais ainda não se autoidentificou en-
quanto CNRQ junto a Fundação Cultural Palmares?

As prováveis respostas a essas questões são de fundamental importância o desenvolvimento


da presente pesquisa, pois torna possível a compreensão acerca dos processos que possibilita-
ram a chegada desta população naquele espaço, os elementos históricos que se mantém no
presente, perceptíveis na relação da Comunidade com a terra, crenças, entre outros, fortale-
cendo a relação existente entre os estudos raciais, o território e a questão agrária.

3 Considerações Finais

Diante do exposto, fica evidente que uma série de aspectos envolvem o tripé CNRQ -
território-questão agrária e estes se manifestam pelas múltiplas relações que as comunidades
Negras Rurais desenvolvem nas suas relações cotidianas com o meio de produção terra sendo
esta o elemento fundamental para o desenvolvimento dos processos de resistência vivenciados
secularmente por estes grupos.

O povoado de Matinha dos Pretos constitui num grande exemplo de Comunidade Negra Rural
que possui marcas históricas que apontam para a possibilidade de formação de um quilombo,
mas que por motivos ainda a ser identificados no decorrer desta pesquisa ainda não oficializa-
ram sua auto identificação junto a Fundação Cultural Palmares.

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Nos dias atuais, as CNRQs estão buscando reivindicar direitos a seus territórios enquanto ga-
rantia da sua sobrevivência tendo como suporte legal o artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, e sua execução a partir do arti-
go 4.887, sendo que o grande desafio o grande desafio de hoje para as CNRQs é a reivindica-
ção do direito a posse efetiva da terra enquanto bem coletivo e garantia de sobrevivência para
estas comunidades.

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