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DE MACHADO DE ASSIS
Por Wilson Sousa
A velha Sinhazinha dizia que semana santa boa era a do Itambé. O padre Júlio
beijava os pés dos pobres, fazia procissão de encontro e um sermão de lágrimas que
todo mundo chorava na igreja. As negras ficavam pela cozinha, sentadas,
conversando em cochichos sobre o dia. Não se tomava banho de rio, para não se
ficar nu na frente um do outro. Não se judiava com os animais. Não se chamava
nome a ninguém. Um canário que eu tinha pegado me fizeram soltar.(REGO, 2001,
p.56)
Por outro lado, possuir uma autoridade religiosa em suas terras, ter próximo a si
qualquer representante clérigo, contribuía para o empoderamento do senhor de engenho.
Transmitia à população confiança, o fortalecia em seu símbolo de poder e prestígio. Segundo
Gilberto Freire, em Casa-Grande e Senzala, ―no Brasil, a catedral ou a igreja mais poderosa
que o próprio rei seria substituída pela casa-grande de engenho‖ (FREIRE, 1932, p.143). No
entanto, essa relação tornou-se perniciosa. O traço que Gilberto Freire consegue dá quanto à
participação e presença da igreja, inserida no cotidiano do espaço do engenho, se transmuta e
sofre influências que vão descaracterizá-la da sua função de espargir a fé e levar o
Cristianismo aos pagãos. Para Gilberto Freire, a relação igreja e senhor de engenho, não foi
sadia. Isso o leva a afirmar que em consequência, ―a igreja que age na formação brasileira,
articulando-a, não é a catedral com o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da
justiça secular; nem a igreja isolada e só, ou de mosteiro ou abadia...‖ (FREIRE, 1932, p.143).
Nesse ponto, reforçam-se as formas adquiridas pelo patriarcalismo durante o Brasil colonial.
A igreja que influencia nessa formação, segundo FREIRE (1932), ―é a capela de engenho.
Não chega a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-se o dos padres da Companhia para esvair-
se logo, vencido pelo oligarquismo e pelo nepotismo dos grandes senhores de terras e
escravos‖ (p.143). Ao abrigar padres, bispos e outros representantes da igreja católica em suas
dependências, as funções que essa instituição deveria desempenhar se converte em pleno
cumprimento dos mandos e desmandos dos senhores de engenho. Desde início, os jesuítas
sentem essa má influência de uma relação fora dos eixos da religiosidade. Alocados nas
propriedades do senhor,
Certo é, que desde a estrutura, passando até pela escolha geográfica na instalação, os
engenhos montados no Brasil trazem tradutoras da nossa realidade. No final do século XVIII
estima-se ter havido um total de 400 a 500 deles em solo brasileiro. Abrigo de um grande
número de pessoas, muitos engenhos eram considerados pequenas cidades. Martim Afonso de
Sousa foi o responsável pela montagem do primeiro engenho de açúcar no Brasil, na capitania
de São Vicente, em 1533. Sabe-se que praticamente, quase toda mão-de-obra empregada nos
engenhos, era escrava. De um lado, a casa grande; do outro, a senzala. Em meio a essa
conformação, estava o senhor de engenho: europeu, rico, empoderado, mandatário absoluto.
Como diversas eram as atividades desempenhadas nesse espaço, o engenho abrigava famílias
inteiras. Idosos, escravos e livres, patrões, senhoras e crianças desfrutavam de maneira
desigual tudo que o ambiente fornecia.
— Você está um negro — disse-me a tia Maria. — Chegou tão alvo, e nem parece
gente branca. Isto faz mal. Os meninos da Emília já estão acostumados, você não.
De manhã à noite de pés descalços, solto como um bicho. Seu avô ontem me falou
nisto. Você é um menino bonzinho, não vá atrás destes moleques para toda parte.
(REGO, 2001, p.27)
O traço distintivo social nessa passagem se amplia quando se torna perceptível que os
afazeres de Carlinhos e seu futuro em relação às demais crianças do engenho, faz encerrar o
círculo de igualdade entre eles. ―Os moleques das minhas brincadeiras da tarde estavam todos
ocupados, uns levando latas de leite, outros metidos com os pastoreadores no curral‖ (REGO,
2001, p.23). O neto do Senhor José Paulino não tinha necessidade de trabalhar, ou ocupar-se
em quaisquer de afazeres, ele era menino, os moleques, sim. Na escola, o traço separatista
entre o neto do coronel e as demais crianças prevalecia.
Depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com outros meninos, todos
de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo.
Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para ―o
neto do coronel Zé Paulino‖. Os outros meninos sentavam-se em caixotes de gás.
(REGO, 2001, p.47)
Nesse tempo, surgem as figuras dos comissários e os filhos dos mais ricos eram
enviados para os internatos onde ficavam sob a batuta dessa pessoa que seria um segundo
―pai‖ desses meninos. ―Ensinava-se aí aritmética, geografia, latim, francês, caligrafia, música.
Os alunos compareciam às aulas de paletó preto e calças pardas, sapatos de tapete ou couro e
gravata azul‖ (FREIRE, 1932, p.269). Para frequentar um internato e/ou manter um menino
estudando na cidade, cabia seguir todo um ritual da época, exigia-se gastos que nem todo pai
poderia bancar. ―Nos dias de festa e nos domingos deviam apresentar-se de sobrecasaca preta,
calça preta, chapéu preto, colete branco, gravata de seda preta, sapatos ou borzeguins pretos.
Eram obrigados a banhar os pés nas quartas e sábados e a tomar banho geral uma vez por
semana‖ (FREIRE, 1932, p.269). Entende-se que os traços dessas configurações ou
exigências da época, eram excludentes. Os meninos sem condições de frequentar escolas,
tocavam suas vidas sem sair do espaço dos engenhos. Por ali mesmo se desenhavam seus
futuros.
Entende-se que o espaço do engenho e seu entorno era composto por representantes de
diversos segmentos sociais da época, como já aludido aqui. Além do dono da propriedade – e
representantes de outras categorias sociais, havia os donos de terras que não reuniam
condições para montagem de um engenho; esses, arrendavam suas terras e moíam a cana no
engenho do senhor que lhe cobrava metade da produção. Nessas condições, esse dono de
terras, também desenvolvia o plantio de outras culturas: mandioca, milho, algodão, feijão e
outros itens de subsistência. Nesse sentido, cria-se nesse meio, outro tipo de relação social e
econômica. Esses, não possuíam nenhum vínculo de subserviência ou de escravidão em
relação ao senhor.
Porém, a divisão era quanto ao futuro de cada uma. Enquanto o filho do fazendeiro e o
filho do dono de engenho busca mais longe aprimorar-se nos estudos, os demais dariam
sequência à vida que herdou do pai, ali mesmo na zona rural. Tais dados nos fazem entender
um pouco da divisão social, elitista, futura do qual o país iria desfrutar. De um lado, filhos
que herdaram boas escolas e educação com vistas à construção de um futuro promissor; do
outro, uma leva de jovens com baixa ou quase nenhuma escolaridade que logo se
transformariam em adultos analfabetos, sem qualquer meio mais digno de sobrevivência. ―Só
negros e moleques parecem ter sido barrados das primeiras escolas jesuíticas. Negros e
moleques retintos‖ (FREIRE, 1932, p.266). Aqui, pauta-se a questão da oportunidade atrelada
à divisão da classe social pertencente. O espaço de convivência nos/dos engenhos, fez criar
essa linha demarcatória social bem nítida em todo o tempo do Brasil colonial que se
expandiria por vários séculos.
A mulher era quem me ensinava, quem tomava conta de mim. Uma vez a vi chorar,
com os olhos vermelhos e o dr. Figueiredo sair de casa batendo a porta. E doutra,
enquanto eu ficava sozinho na sala com a minha carta na mão, ouvi no interior da
casa um ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse apanhando. Compreendi
então que a minha bela Judite apanhava do marido. (REGO, 2001, p. 46/7).
O meio social dos engenhos no Brasil colônia essa questão foi muito latente. Senhores
que abusavam de suas escravas, outros homens brancos encantados pela tez da cor morena,
casados ou não, mantinham relações com negras, mulatas, índias. ―Mas independente da falta
ou escassez de mulher branca o português sempre pendeu para o contato voluptuoso com
mulher exótica‖ (FREIRE, 1932, p.140). Em outro momento, a esse respeito, Gilberto Freire
procurou razão para nossa miscigenação, esse contato e interesse do homem branco que se
rendeu à cor exótica encontrada nas terras do Brasil. ―A escassez de mulheres brancas criou
zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos‖ (FREIRE,
1932, p.16). A mestiçagem brasileira é filha da monocultura latifundiária tendo o espaço do
engenho de açúcar como locus gerador dessa socialização. ―A índia e a negra-mina a
princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras,
concubinas e até esposas legítimas dos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido de
democratização social no Brasil‖ (FREIRE, 1932, p.16). Essas eram questões bastante
comuns de ocorrências e recorrências no meio social de toda sociedade do Brasil colônia.
Bem certo, o espaço do engenho de açúcar contribuiu fortemente para a cristalização dessa
realidade.
Possivelmente, as lendas urbanas dos nossos dias tiveram origem nessas histórias. O
advento dos engenhos de açúcar no Brasil marcou uma geração grandiosa de senhores, iaiás,
escravos, jovens, meninos e mulheres. Isso levou Gilberto Freire a dizer que ―A verdade é que
em torno dos senhores de engenho criou-se o tipo de civilização mais estável na América
hispânica...(FREIRE, 1932, p. 21). Tais discussões levantadas aqui, leva-nos a pensar na
questão do mito fundador do Brasil. De certa forma, me coaduno um pouco com as ideias de
Marilena Chauí quando afirma a não ocorrência de fundação do Brasil, segundo ela, existe na
nossa trajetória histórica, caracteres de formação. Sendo assim, a casa-grande, a senzala e o
engenho de açúcar contribuem decisivamente para essa formação, tanto é, dada à sua força
afirmou Gilberto Freire que ―a história social da casa-grande é a história íntima de quase todo
brasileiro: da sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e polígamo; da
sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião de família e influenciado pelas
crendices da senzala. (FREIRE, 1932, p.22). Logo, a nossa formação se constitui numa
imensa colcha multifacetada, recortada de influências e elementos constitutivos na linha da
nossa história formativa em constante transformação.