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07.

o olhar
opositor:
mulheres negras
espectadoras
Quando penso nas espectadoras negras, eu me lembro de ser
punida na infância por encarar, por aquelas olhadas diretas
intensas que as crianças dirigem aos adultos, olhares que eram
entendidos como confrontação, como gestos de resistência,
desafios à autoridade. O “olhar” sempre foi político em minha
vida. Imagine o terror sentido por uma criança que entendeu,
por meio de repetidos castigos, que um olhar pode ser
perigoso. Uma criança que aprendeu muito bem a desviar o
olhar quando necessário. No entanto, ao ser castigada, a
criança ouve de seus pais: “Olhe para mim quando falo com
você”. Só que a criança está com medo de olhar. Medo de
olhar, mas fascinada por ver. Existe poder em olhar.
Maravilhada pela primeira vez que li nas aulas de história
que brancos donos de escravos (homens, mulheres, crianças)
puniam as pessoas negras escravizadas por olhar, eu me
perguntei o quanto esse relacionamento traumático com o
olhar influenciou a criação de filhos e a atitude das pessoas
negras enquanto espectadoras. As políticas da escravidão, das
relações de poder racializadas, eram tais que os escravizados
foram privados de seu direito de olhar. Conectando essa
estratégia de dominação com aquela usada pelos adultos nas
comunidades rurais do sul dos Estados Unidos onde cresci, me
doía pensar que não havia diferença nenhuma entre nós e os
brancos que oprimiram as pessoas negras. Anos depois, lendo
Michel Foucault, pensei novamente nessas conexões, sobre os
modos como o poder se reproduz sob a forma de dominação
usando aparatos, estratégias e mecanismos de controle
similares. Uma vez que eu sabia, quando criança, que o poder
de dominação que os adultos exerciam sobre mim e sobre o
meu olhar nunca era tão absoluto que me impedisse de ousar
olhar, espiar escondida, encarar perigosamente, eu sabia que
os escravizados olhavam. Que todas as tentativas de reprimir o
nosso direito — das pessoas negras — de olhar produziram em
nós um desejo avassalador de ver, um anseio rebelde, um olhar
opositor. Ao olhar corajosamente, declaramos em desafio: “Eu
não só vou olhar. Eu quero que meu olhar mude a realidade”.
Mesmo nas piores circunstâncias de dominação, a habilidade
de manipular o olhar de alguém diante das estruturas de poder
que o contêm abre a possibilidade de agência. Em grande parte
do seu trabalho, Michel Foucault insiste em descrever a
dominação em termos de “relações de poder”, como parte de
um esforço para desafiar a premissa de que o “poder é um
sistema de dominação que controla tudo e não deixa espaço
para a liberdade”. Declarando enfaticamente que em todas as
relações de poder “existe necessariamente a possibilidade de
resistência”, ele convida o pensador crítico a procurar essas
margens, brechas e lugares no e através do corpo em que a
agência pode ser encontrada.
Stuart Hall destaca a necessidade do reconhecimento de
nossa agência como espectadores negros em seu ensaio
“Cultural Identity and Cinematic Representation” [Identidade
cultural e representação cinemática]. Falando contra a
construção de representações de negritude pelas pessoas
brancas por serem totalizantes, Hall comenta sobre a presença
branca:
O erro não é conceituar essa “presença” em termos de poder, mas localizar esse
poder como completamente externo a nós — uma força extrínseca, cuja
influência pode ser despida como uma serpente troca de pele. O que Franz Fanon
nos lembra em Pele negra, máscaras brancas é como o poder está do lado de
dentro, assim como de fora: “o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-
me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi
explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por
um outro eu”. Esse “olhar” a partir do lugar do Outro — por assim dizer — nos
fixa, não apenas com sua violência, hostilidade e agressão, mas com a
ambivalência de seu desejo.

Existem espaços de agência para pessoas negras, onde


podemos ao mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e
também olhar de volta, um para o outro, dando nome ao que
vemos. O “olhar” tem sido e permanece, globalmente, um
lugar de resistência para o povo negro colonizado.
Subordinados nas relações de poder aprendem pela
experiência que existe um olhar crítico, aquele que “olha” para
registrar, aquele que é opositor. Na luta pela resistência, o
poder do dominado de afirmar uma agência ao reivindicar e
cultivar “consciência” politiza as relações de “olhar” — a
pessoa aprende a olhar de certo modo como forma de
resistência.
Quando a maioria das pessoas negras nos Estados Unidos
teve a primeira oportunidade de assistir a filmes e à televisão,
fez isso totalmente consciente de que a mídia de massa era um
sistema de conhecimento e poder que reproduzia e mantinha a
supremacia branca. Encarar a televisão, ou filmes comerciais,
envolver-se com suas imagens, era se envolver com sua
negação da representação negra. Foi o olhar opositor negro
que reagiu a essas relações de olhar criando o cinema negro
independente. Espectadores negros do cinema comercial e da
televisão podiam mapear o progresso de movimentos políticos
pela igualdade racial através das construções de imagens, e
assim fizeram. Na casa da minha família sulista de classe
trabalhadora, localizada numa vizinhança segregada, ver
televisão era uma forma de desenvolver um modo crítico de
ser espectadora. A menos que fosse trabalhar no mundo
branco, do outro lado da linha do trem, você aprendia a olhar
para as pessoas brancas encarando-as na tela. Olhares negros,
como foram constituídos no contexto dos movimentos sociais
pela valorização da raça, eram olhares questionadores. Ríamos
de programas de televisão como Os batutinhas e Amos ‘n’
Andy,14 e dessas representações brancas da negritude, mas
também olhávamos para elas criticamente. Antes da integração
racial, espectadores negros de cinema e televisão
experimentavam o prazer visual num contexto em que o olhar
também era associado à contestação e à confrontação.
Escrevendo sobre as relações de olhar em “Black British
Cinema: Spectatorship and Identity Formation in Territories”
[Cinema negro britânico: formação de audiência e identidade
nos territórios], Manthia Diawara identifica o poder do
espectador: “Cada narração põe o espectador em uma posição
de agência; e raça, classe e relações sexuais influenciam a
forma como essa posição de sujeito é preenchida pelo
espectador”. Uma preocupação de particular interesse para
Diawara são os momentos de “ruptura” quando o espectador
resiste a “identificar-se completamente com o discurso do
filme”. Essas rupturas definem a relação entre espectadores
negros e o cinema dominante anterior à integração racial. Na
época, divertir-se com um filme em que representações de
negritude eram estereotipadas de forma degradante e
desumanizante coexistia com uma prática crítica que
restaurava a presença onde ela era negada. A discussão crítica
do filme enquanto ele passava ou depois que terminava
mantinha a distância entre o espectador e a imagem. Filmes
negros também estavam sujeitos a questionamento crítico.
Uma vez que surgiram, em parte, como resposta ao fracasso do
cinema dominado pelos brancos em representar a negritude de
modo que não reforçasse a supremacia branca, também foram
criticados para examinar se as imagens podiam ser vistas como
cúmplices das práticas cinematográficas dominantes.
Críticos que trataram de olhares negros estavam preocupados
principalmente com questões de raça e racismo, a forma como
a dominação racial dos negros pelos brancos determinava a
representação. Eles raramente se preocupavam com gênero.
Como espectadores, homens negros podiam repudiar a
reprodução do racismo no cinema e na televisão, a ausência de
negros, enquanto podiam sentir que se rebelavam contra a
supremacia branca ao ousar olhar, ao adotar políticas
falocêntricas de observação. Dadas as circunstâncias públicas
da vida real em que os homens negros foram
linchados/assassinados por olhar para mulheres brancas, em
que o olhar do homem negro foi sempre alvo de controle ou
punição pelo Outro branco poderoso, o domínio privado da
tela da televisão ou das salas escuras podia extravasar o olhar
reprimido. Lá eles podiam “olhar” as mulheres brancas sem
uma estrutura de dominação que supervisionasse o olhar,
interpretando e punindo. Essa estrutura supremacista branca
que assassinou Emmett Till depois de interpretar o olhar dele
como uma violação, como um “estupro” de uma mulher
branca, não pode controlar as reações dos homens negros às
imagens nas telas. Em seus papéis como espectadores, homens
negros podiam adentrar num espaço imaginativo de poder
falocêntrico que mediava a negação racial. Essa relação de
olhar marcada pelo gênero tornou a experiência do homem
negro um espectador radicalmente diferente da mulher negra
espectadora. A maioria dos primeiros diretores negros
independentes representava as mulheres negras em seus filmes
como objetos do olhar masculino. Olhando através da câmera
ou como espectadores assistindo aos filmes, seja no cinema
dominante ou em filmes “raciais” como os feitos por Oscar
Micheaux, o olhar do homem negro tinha um escopo diferente
do da mulher negra.
Mulheres negras escreveram pouco sobre suas perspectivas
como espectadoras, sobre nossas práticas ao ir ao cinema. Um
corpo crescente de teoria do cinema e crítica escrito por
mulheres negras só agora começa a aparecer. O silêncio
prolongado das mulheres negras como espectadoras e críticas
era uma resposta à ausência, à negação cinematográfica. Em
“A tecnologia do gênero”, Teresa de Lauretis, baseando-se na
obra de Monique Wittig, chama a atenção para o “poder que
têm os discursos de violentar as pessoas, uma violência que é
material e física, embora produzida por discursos abstratos e
científicos, bem como pelos discursos da mídia”. Com a
possível exceção dos primeiros filmes raciais, espectadoras
negras tiveram que desenvolver relações de olhar com um
contexto cinematográfico que constrói nossa presença como
ausência, que nega o “corpo” da mulher negra assim como
perpetua a supremacia branca e, com isso, uma experiência de
espectador falocêntrica, na qual as mulheres a serem vistas e
desejadas são as “brancas”. (Filmes recentes não se encaixam
nesse paradigma, mas estou me voltando para o passado com o
intuito de mapear o desenvolvimento das mulheres negras
como espectadoras).
Conversando com mulheres negras de todas as idades e
classes, em diferentes regiões dos Estados Unidos, sobre as
relações delas com o assistir a filmes, várias vezes ouvi
respostas ambivalentes sobre o cinema. Apenas umas poucas
mulheres negras com quem falei se lembravam do prazer dos
filmes raciais, e, mesmo aquelas que se recordavam, sentiam
que aquele prazer fora interrompido e usurpado por
Hollywood. A maioria das mulheres negras com quem
conversei era irredutível ao dizer que nunca ia ao cinema
esperando ver representações convincentes de feminilidade
negra. Elas estavam conscientes do racismo cinematográfico
— o apagamento violento das mulheres negras. No ensaio “A
Denial of Difference: Theories of Cinematic Identification” [A
negação da diferença: teorias de identificação
cinematográfica], Anne Friedberg destaca que a “identificação
só pode acontecer através do reconhecimento, e todo
reconhecimento em si é uma confirmação implícita da
ideologia do status quo”. Mesmo quando a representação das
mulheres negras está presente nos filmes, nossos corpos e
seres estão lá para servir — aprimorar e manter as mulheres
brancas como objeto do olhar falocêntrico.
Comentando a caracterização que Hollywood faz das
mulheres negras em Girls on Film, Julie Burchill descreve
essa presença ausente:
Mulheres negras foram mães sem bebês (mães pretas — quem consegue esquecer
o espetáculo doentio de Hattie MacDaniels esperando aos pés da afetada Vivien
Leigh para atender suas necessidades e perguntando como uma boba “O que meu
cordeirinho vai vestir?”). […] Lena Horne, a primeira atriz negra a assinar um
contrato de longo prazo com um estúdio grande (MGM), parecia fraca, mas na
realidade era cheia de energia. Ela se enfureceu quando Tallulah Bankhead a
elogiou pela palidez de sua pele e seus traços não negroides.

Quando atrizes negras como Lena Horne apareceram no


cinema dominante, a maioria dos espectadores brancos não se
dava conta de que via mulheres negras a menos que o filme
fosse especificamente classificado como sobre negros.
Burchill é uma das poucas críticas de cinema brancas que
ousaram examinar a intersecção de raça e gênero em relação à
construção da categoria “mulher” nos filmes como um
elemento do olhar falocêntrico. Com sua perspicácia
característica, ela afirma: “O que se pode dizer da pureza
racial se as melhores loiras eram todas morenas (Harlow,
Monroe, Bardot)? Acho que isso significa que não somos tão
brancos quanto pensamos”. Burchill poderia ter dito
simplesmente “não somos tão brancos quanto queremos ser”,
pois a obsessão de transformar mulheres brancas em estrelas
de filmes ultrabrancas era claramente uma prática
cinematográfica que buscava manter uma distância, uma
separação entre aquela imagem e a Outra negra; era uma
forma de perpetuar a supremacia branca. Políticas de raça e
gênero estavam inscritas em narrativas cinematográficas desde

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