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o olhar
opositor:
mulheres negras
espectadoras
Quando penso nas espectadoras negras, eu me lembro de ser
punida na infância por encarar, por aquelas olhadas diretas
intensas que as crianças dirigem aos adultos, olhares que eram
entendidos como confrontação, como gestos de resistência,
desafios à autoridade. O “olhar” sempre foi político em minha
vida. Imagine o terror sentido por uma criança que entendeu,
por meio de repetidos castigos, que um olhar pode ser
perigoso. Uma criança que aprendeu muito bem a desviar o
olhar quando necessário. No entanto, ao ser castigada, a
criança ouve de seus pais: “Olhe para mim quando falo com
você”. Só que a criança está com medo de olhar. Medo de
olhar, mas fascinada por ver. Existe poder em olhar.
Maravilhada pela primeira vez que li nas aulas de história
que brancos donos de escravos (homens, mulheres, crianças)
puniam as pessoas negras escravizadas por olhar, eu me
perguntei o quanto esse relacionamento traumático com o
olhar influenciou a criação de filhos e a atitude das pessoas
negras enquanto espectadoras. As políticas da escravidão, das
relações de poder racializadas, eram tais que os escravizados
foram privados de seu direito de olhar. Conectando essa
estratégia de dominação com aquela usada pelos adultos nas
comunidades rurais do sul dos Estados Unidos onde cresci, me
doía pensar que não havia diferença nenhuma entre nós e os
brancos que oprimiram as pessoas negras. Anos depois, lendo
Michel Foucault, pensei novamente nessas conexões, sobre os
modos como o poder se reproduz sob a forma de dominação
usando aparatos, estratégias e mecanismos de controle
similares. Uma vez que eu sabia, quando criança, que o poder
de dominação que os adultos exerciam sobre mim e sobre o
meu olhar nunca era tão absoluto que me impedisse de ousar
olhar, espiar escondida, encarar perigosamente, eu sabia que
os escravizados olhavam. Que todas as tentativas de reprimir o
nosso direito — das pessoas negras — de olhar produziram em
nós um desejo avassalador de ver, um anseio rebelde, um olhar
opositor. Ao olhar corajosamente, declaramos em desafio: “Eu
não só vou olhar. Eu quero que meu olhar mude a realidade”.
Mesmo nas piores circunstâncias de dominação, a habilidade
de manipular o olhar de alguém diante das estruturas de poder
que o contêm abre a possibilidade de agência. Em grande parte
do seu trabalho, Michel Foucault insiste em descrever a
dominação em termos de “relações de poder”, como parte de
um esforço para desafiar a premissa de que o “poder é um
sistema de dominação que controla tudo e não deixa espaço
para a liberdade”. Declarando enfaticamente que em todas as
relações de poder “existe necessariamente a possibilidade de
resistência”, ele convida o pensador crítico a procurar essas
margens, brechas e lugares no e através do corpo em que a
agência pode ser encontrada.
Stuart Hall destaca a necessidade do reconhecimento de
nossa agência como espectadores negros em seu ensaio
“Cultural Identity and Cinematic Representation” [Identidade
cultural e representação cinemática]. Falando contra a
construção de representações de negritude pelas pessoas
brancas por serem totalizantes, Hall comenta sobre a presença
branca:
O erro não é conceituar essa “presença” em termos de poder, mas localizar esse
poder como completamente externo a nós — uma força extrínseca, cuja
influência pode ser despida como uma serpente troca de pele. O que Franz Fanon
nos lembra em Pele negra, máscaras brancas é como o poder está do lado de
dentro, assim como de fora: “o outro, através de gestos, atitudes, olhares, fixou-
me como se fixa uma solução com um estabilizador. Fiquei furioso, exigi
explicações… Não adiantou nada. Explodi. Aqui estão os farelos reunidos por
um outro eu”. Esse “olhar” a partir do lugar do Outro — por assim dizer — nos
fixa, não apenas com sua violência, hostilidade e agressão, mas com a
ambivalência de seu desejo.