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DITADURA E ESTÉTICA DO TRAUMA:

EXÍLIO E FANTASMAGORIA

Jaime Ginzburg (USP)

Dentro das reflexões históricas e culturais sobre a ditadura militar no Brasil, um

campo de estudo aberto que merece atenção é o das repercussões da experiência autoritária

nas gerações posteriores. O impacto exercido pela violência do Estado se estende para além

do período do regime, chegando à contemporaneidade. Torturas, mutilações e mortes

atingiram pessoas que tinham amigos e familiares que permaneceram, cultivando

lembranças dos que se foram.

A produção cultural referente a essas lembranças freqüentemente assume uma

configuração melancólica, indicando que as perdas afetivas não foram superadas. Com uma

concepção catastrófica da história, algumas obras de arte se dedicaram a trabalhar com as

lacunas provocadas pela ação do regime autoritário. Os livros Morangos mofados de Caio

Fernando Abreu e Metade da arte de Marcos Siscar, os discos O tempo não pára de

Cazuza e Pierrot do Brasil de Marina Lima, e a arte recente de Cildo Meireles fazem parte

do itinerário da formulação problemática do passado, em um esforço de interpretação do

Brasil em perspectiva melancólica, respeitando a dor dos que ficaram, na falta dos que se

foram. Nesses trabalhos, as imagens do país aparecem marcadas pelo esfacelamento, em

perspectiva conflitiva. A melancolia pertence ao cerne da sua concepção de história: os

espaços em vermelho de Meireles, os “homens em guerra” de Marina e os “cadáveres”

acumulados em Abreu apontam para um país de ilusões decompostas, em que as

expectativas são incertas e o horror se alastra por todo lado.


Essas obras configuram uma representação da história como trauma, para seguir o

conceito de Márcio Seligmann-Silva. Em vez de se encaminharem para o progresso, como

querem os ideais positivistas, as transformações sociais levam a uma corrosão profunda

dos laços de sociabilidade e das condições para exercício da cidadania. A produção cultural

marcada pelo trauma é freqüentemente assinalada pelo abalo das delimitações

convencionais do trabalho da memória e da percepção da realidade. A dor provoca um

estado coletivo de transtorno e instabilidade. Essa situação esteticamente é indicada por

elementos como o exílio e a fantasmagoria, que definiremos mais adiante.

O filme 15 filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, pode ser definido como um

documentário, com sustentação jornalística, mas se encontra em território híbrido, pelo seu

acabamento estético. Recursos como o emprego de luz, cor, a montagem e a trilha sonora

constituem no filme expressões de uma inteligência visual articulada. A criatividade da

abordagem é necessária diante da delicadeza do assunto tratado.

A obra apresenta depoimentos de quinze pessoas cujas estruturas familiares foram

marcadas pela perseguição política durante a ditadura militar na década de 1970. Os

entrevistados são motivados a falar sobre o passado. Em todos os casos, o passado é

abalado pelo impacto histórico da violência ditatorial.

Todos os entrevistados perderam pelo menos um dos familiares, em circunstâncias

de perseguição política. O filme se volta para as perdas afetivas, com um movimento de

busca de conhecimento e compreensão, que contempla lacunas e tensões do processo.

Logo no início, são apresentados depoimentos de pessoas que dizem não ter tido

informação sobre os nomes de familiares, indicando a relação problemática com o passado

a ser examinado. “Perdi a inocência”, diz André Herzog, um dos entrevistados, sobre sua
situação, sendo obrigado aos sete anos de idade a assumir posições perante o percurso da

História.

A obra estabelece uma dupla perspectiva. Por um lado, as entrevistas são feitas caso

a caso, deixando que os dilemas individuais se configurem com suas especificidades. Por

outro, é criado aos poucos um elo profundo, uma articulação subliminar entre as várias

entrevistas, que ultrapassa idiossincrasias específicas e chega ao ponto de definir o campo

coletivo da experiência como um trauma generalizado, que unifica os fragmentos

discursivos em uma voz plural. A composição agrupa os timbres em um gesto sinfônico,

fazendo com que as vozes individuais remetam umas às outras, e as recorrências e

afinidades permitam perceber o horizonte social colado às dicções individuais.

Poucas obras produzidas no Brasil foram tão longe na imersão no tema das perdas

não superadas, resultantes da violência política. A melancolia atravessa o filme do início ao

fim, como elemento definidor da perspectiva da direção, como presença nas vozes dos

entrevistados. A relação que os filhos estabelecem com as perdas é definida pela

impossibilidade de superação. A dor estendida no tempo não mostra sinais de conclusão ou

esgotamento; pelo contrário, em vários momentos, o filme expõe a combinação de dor

profunda com inconformidade, indignação e descentramento. Os componentes

melancólicos não são resultantes de uma opção consciente, nem artificialmente arbitrada

pelos entrevistados. Eles surgem como marcas da necessidade histórica que conduz os

transtornos descritos pelos entrevistados.

Uma categoria muito produtiva para entender o filme é a noção de trauma

seqüencial, proposta por Sven Kramer. De acordo com o autor, uma experiência histórica

de violência não atinge apenas os que estão imediatamente vinculados a ela. Na medida em

que essa experiência não seja superada, por vários caminhos mediados, suas marcas se
prolongam para as gerações seguintes. Temporalidade implacável: enquanto a sociedade

não assimilar e superar inteiramente a dor do que viveu, suas perplexidades e fragilidades

serão estendidas. Os entrevistados não foram eles próprios os perseguidos políticos. No

entanto, as perdas afetivas provocaram um grau de impacto tão intenso, que eles renovam e

atualizam, em suas vidas, limitações e perturbações da geração anterior. Os movimentos

autoconscientes são pautados pela restrição de conhecimento quanto ao passado, pelos

limites impostos às vivências, em situações tão básicas quanto conhecer o rosto de um pai

ou reconhecer a imagem de uma mãe.

Construído como painel de marcas de trauma seqüencial, o filme mostra o

sofrimento dos filhos, indicando que a dor de suas perdas não foi superada, e que o modo

como vêem a si mesmos está condicionado por esse problema. Em termos conceituais, o

que vemos é a impossibilidade de constituição plena de subjetividades. Os quinze filhos,

em suas falas, mostram ser sujeitos que nunca chegaram a se constituir, pois o cerne de suas

relações com a linguagem e a sociabilidade foi abalado. Como vítimas de trauma, o que

dizem e sentem pode ser descrito com duas categorias.

A primeira, seguindo as reflexões de Marcelo Viñar, é o exílio, entendido não no

sentido geopolítico, mas como condição de problematização do lugar de enunciação da voz.

Sabemos que os perseguidos tiveram de lidar com a alteridade como condição de

sobrevivência. Esconderijos, nomes falsos, comportamentos encenados, resistência nas

salas de tortura. Esse esforço de ser outro, constituindo uma projeção para sobreviver no

sistema resistindo a ele, estabelece uma condição dupla de existência que escapa aos

padrões identitários convencionais. Os filhos dos perseguidos, por sua vez, aprendem desde

cedo a potenciar essa duplicidade em seu próprio interior. Com isso, exilam a auto-imagem

de si mesma, aprendendo na remota infância a dizer que não são quem são, não nasceram
como nasceram. Exilam a própria consciência, a própria voz, guardando o impacto do

exílio no tecido da construção discursiva. Falam de si duplamente, como se fossem os

mesmos e outros, como se devessem ter feito coisas que não fizeram, devessem ter vivido

experiências que não conheceram.

A partir de que lugar se pode falar da perda de um pai, da destruição de uma mãe?

Na perspectiva do filme, o lugar escolhido deve estar em um ponto que não corresponde à

idealização abstrata das figuras, nem ao relato da convivência concreta, que não ocorreu. É

um lugar à margem das categorias de sociabilidade convencionais, como família,

instituição, ordem social. Nesse lugar toda a sociabilidade se mostrou falha, o tempo é

trágico, e a consciência enfrenta seus próprios limites de elaboração da interação com a

realidade externa. Cada um dos filhos se exila de si mesmo para poder falar, se refere a si

como se fosse outro, outro tempo, outro olhar, sendo que quando o mecanismo de distinção

entre sujeito e objeto do discurso falha, e a voz se reconhece diretamente, a linguagem se

contrai, o fluxo se esgarça. “Não reconheci minha mãe”, diz uma das entrevistadas, sobre

seu encontro com a mãe torturada quando criança.

O exílio, entendido como colapso da constituição do sujeito, que fala de si como se

fosse outro, é um recurso estratégico de preservação da consciência. O grau de dor é tão

intenso que, quando a voz se encontra especularmente consigo mesma, ela cede a seu

próprio limite. Em uma das falas, uma moça explica que se lembra de, em criança, ter

ficado revoltada com uma guarda do presídio, e ter “batido muito nela”, ou então “ter tido

muita vontade de fazer isso”. A lembrança suprime a distinção entre ficção e realidade,

imaginação e vivência. A supressão ocorre em razão de que a voz presente vacila ao

procurar o passado. Nessas condições traumáticas, relatar objetivamente e em ordem tudo o

que aconteceu seria superficializar os eventos e remover deles as profundas camadas de dor
individual e coletiva. O relato que se volta para seus próprios limites, o testemunho que

ultrapassa convenções semânticas e se abre para a incorporação de incertezas, desses

fundamentos aflora um discurso que precisa construir, como mecanismo defensivo da dor,

estratégias de proteção. “Será que estou imaginando?”, pergunta a si mesma uma das

entrevistadas.

Um dos aspectos mais terríveis dessa condição está na indicação, dada nas

entrevistas, de que a repressão política tratava os filhos de perseguidos como perseguidos

perigosos. Num dos depoimentos, aparece a lembrança de que, entre crianças, a

entrevistada era apontada por adultos como “terrorista”, da qual as outras crianças deveriam

ser afastadas. A elaboração da compreensão crítica dessa experiência exige o movimento de

travessia pelas camadas de dor, que permite reconhecer a distinção entre a atribuição

externa da imagem negativa, e a própria auto-estima.

Dentro de uma condição melancólica, essa proteção se desdobra como uma

dificuldade de encontrar a si mesmo, um olhar que se move procurando evitar o contato

especular, o encontro direto do olho consigo mesmo, que traz à tona, como iluminação

profana (nos termos de José Miguel Wisnik), a iminência do insuportável, daquilo que não

pode ser visto, do mais fundo abjeto. O exílio protege o sujeito da contemplação do

monstruoso, mas também o mantém afastado da sociabilidade, percebida como insegura e

potencialmente cruel. E o mantém afastado da linguagem reta. Não se pode confiar

cegamente em ninguém, depois do que aconteceu. Nem na própria memória, nem na

própria linguagem.

A segunda categoria é a fantasmagoria. Podemos entender fantasmagoria como a

irrupção de imagens no discurso, à revelia do esforço consciente do sujeito em organizar

sua fala, com propriedades negativas e impacto atormentador. As fantasmagorias, que se


comportam de acordo com a concepção benjaminiana de memória involuntária, são

lembranças agônicas, pesadelos diurnos que se entrelaçam na fala. Em 15 filhos aparecem

fantasmagorias constantemente. Marta Nehring, por exemplo, ela própria entrevistada além

de diretora, fala de seus sonhos de guerra e violência.

Os expositores deixam surgir pontos dispersivos, pequenos lapsos, palavras que

vêm com dificuldade, mesclas de sentimentos. Uma remota imagem da escola, um detalhe

de um gesto, um aspecto particular do espaço do presídio. Esses pequenos momentos, longe

de serem falhas dos expositores, são justamente os pontos em que as dores são flagradas

com maior nitidez. A fantasmagoria surge precisamente quando o sujeito não pode evitar

que o peso do passado o sufoque.

As várias partes do filme – Clandestinos, Infância, No Brasil, No Mundo, Escola,

Visitas, Desaparecidos, Tortura – alternam fragmentos de falas dos diversos entrevistados

por afinidades temáticas e propõem uma multiplicidade de enfoques para a memória. A

História aparece no filme como percurso em construção, matéria processual aberta que não

se conclui nem pode ser inteiramente delimitada. A História inclui cenas que ficaram na

obscuridade, em que a linguagem cedeu ao lapso. O filme lida com uma dialética entre

memória e esquecimento. O que deve ser lembrado toca no que deve, pela carga de dor, ser

esquecido. Dialética negativa, na concepção adorniana, em que sínteses não são alcançadas

e impasses são potenciados. As tensões mais amargas nesse movimento são pontuadas pelo

senso de exílio, pela perspectiva de que a voz não está no lugar que deveria estar, que ela

não diz tudo o que deveria dizer, e pelo movimento fantasmagórico, que descentra a

memória em vibrações da interiorização do medo e da angústia.

A constituição do sujeito como exilado de si mesmo, e a elaboração de um discurso

pautado pela fantasmagoria, são responsáveis por uma constante instabilidade dos
contextos de referência histórica. O Brasil fica se decompondo e reconstruindo

dinamicamente à nossa frente. A entrevistada Tessa Lacerda resume o problema da

dificuldade de estabelecer uma imagem do país e do que nele aconteceu, ao repetir

nervosamente a expressão “Ah, difícil falar”. Ela não consegue unificar de modo coeso o

que tem a dizer, por não conseguir atribuir sentido ao que viveu. A experiência é descrita

como “pirante”, termo preciso para indicar o teor traumático, responsável pelo abalo da

racionalidade e pelo colapso da sustentação do sujeito.

A trilha sonora inclui Aos nossos filhos, canção emblemática do entrosamento entre

afeto e dor, e Nada será como antes, conhecido trabalho de Milton Nascimento marcado

pela determinação revolucionária associada ao “alvoroço no coração”, imagem melancólica

da saudade transtornada. O filme, mantendo a consistência jornalística do documentário,

procura no acabamento estético uma configuração adequada. De fato, assim como os

entrevistados têm uma percepção fragmentária do passado, também o espectador, em razão

dos procedimentos de montagem, é levado a rever seus critérios de entendimento da

História, mergulhado nas perplexidades e incertezas deixadas pelos depoimentos.

O recurso de emprego de imagens em preto e branco acentua a sobriedade das

entrevistas e remete, pelos tons cinzentos de imagem, à atmosfera fúnebre das imagens. Por

outro lado, o uso da cor para as cenas da 36ª DP aproxima o espectador do espaço

traumático, e aponta para a permanência no presente de marcas do passado sórdido.

É instigante, no depoimento de Janaína Telles, a afirmação de que o ocorrido “não

tem ponto final”. Não apenas ela observa a continuidade de heranças do passado, como

estabelece sua própria inconformidade. É uma indicação eloqüente e enfática do fato de que

as dores expressas não foram superadas, o trabalho de luto coletivo não foi realizado, e a

melancolia constitui a condição para lidar com o universo traumático.


Referências Bibliográficas

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