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EXÍLIO E FANTASMAGORIA
campo de estudo aberto que merece atenção é o das repercussões da experiência autoritária
nas gerações posteriores. O impacto exercido pela violência do Estado se estende para além
configuração melancólica, indicando que as perdas afetivas não foram superadas. Com uma
lacunas provocadas pela ação do regime autoritário. Os livros Morangos mofados de Caio
Fernando Abreu e Metade da arte de Marcos Siscar, os discos O tempo não pára de
Cazuza e Pierrot do Brasil de Marina Lima, e a arte recente de Cildo Meireles fazem parte
Brasil em perspectiva melancólica, respeitando a dor dos que ficaram, na falta dos que se
dos laços de sociabilidade e das condições para exercício da cidadania. A produção cultural
O filme 15 filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, pode ser definido como um
documentário, com sustentação jornalística, mas se encontra em território híbrido, pelo seu
acabamento estético. Recursos como o emprego de luz, cor, a montagem e a trilha sonora
Logo no início, são apresentados depoimentos de pessoas que dizem não ter tido
a ser examinado. “Perdi a inocência”, diz André Herzog, um dos entrevistados, sobre sua
situação, sendo obrigado aos sete anos de idade a assumir posições perante o percurso da
História.
A obra estabelece uma dupla perspectiva. Por um lado, as entrevistas são feitas caso
a caso, deixando que os dilemas individuais se configurem com suas especificidades. Por
outro, é criado aos poucos um elo profundo, uma articulação subliminar entre as várias
Poucas obras produzidas no Brasil foram tão longe na imersão no tema das perdas
fim, como elemento definidor da perspectiva da direção, como presença nas vozes dos
melancólicos não são resultantes de uma opção consciente, nem artificialmente arbitrada
pelos entrevistados. Eles surgem como marcas da necessidade histórica que conduz os
seqüencial, proposta por Sven Kramer. De acordo com o autor, uma experiência histórica
de violência não atinge apenas os que estão imediatamente vinculados a ela. Na medida em
que essa experiência não seja superada, por vários caminhos mediados, suas marcas se
prolongam para as gerações seguintes. Temporalidade implacável: enquanto a sociedade
não assimilar e superar inteiramente a dor do que viveu, suas perplexidades e fragilidades
entanto, as perdas afetivas provocaram um grau de impacto tão intenso, que eles renovam e
limites impostos às vivências, em situações tão básicas quanto conhecer o rosto de um pai
sofrimento dos filhos, indicando que a dor de suas perdas não foi superada, e que o modo
como vêem a si mesmos está condicionado por esse problema. Em termos conceituais, o
em suas falas, mostram ser sujeitos que nunca chegaram a se constituir, pois o cerne de suas
relações com a linguagem e a sociabilidade foi abalado. Como vítimas de trauma, o que
salas de tortura. Esse esforço de ser outro, constituindo uma projeção para sobreviver no
sistema resistindo a ele, estabelece uma condição dupla de existência que escapa aos
padrões identitários convencionais. Os filhos dos perseguidos, por sua vez, aprendem desde
cedo a potenciar essa duplicidade em seu próprio interior. Com isso, exilam a auto-imagem
de si mesma, aprendendo na remota infância a dizer que não são quem são, não nasceram
como nasceram. Exilam a própria consciência, a própria voz, guardando o impacto do
mesmos e outros, como se devessem ter feito coisas que não fizeram, devessem ter vivido
A partir de que lugar se pode falar da perda de um pai, da destruição de uma mãe?
Na perspectiva do filme, o lugar escolhido deve estar em um ponto que não corresponde à
idealização abstrata das figuras, nem ao relato da convivência concreta, que não ocorreu. É
instituição, ordem social. Nesse lugar toda a sociabilidade se mostrou falha, o tempo é
realidade externa. Cada um dos filhos se exila de si mesmo para poder falar, se refere a si
como se fosse outro, outro tempo, outro olhar, sendo que quando o mecanismo de distinção
contrai, o fluxo se esgarça. “Não reconheci minha mãe”, diz uma das entrevistadas, sobre
intenso que, quando a voz se encontra especularmente consigo mesma, ela cede a seu
próprio limite. Em uma das falas, uma moça explica que se lembra de, em criança, ter
ficado revoltada com uma guarda do presídio, e ter “batido muito nela”, ou então “ter tido
muita vontade de fazer isso”. A lembrança suprime a distinção entre ficção e realidade,
que aconteceu seria superficializar os eventos e remover deles as profundas camadas de dor
individual e coletiva. O relato que se volta para seus próprios limites, o testemunho que
fundamentos aflora um discurso que precisa construir, como mecanismo defensivo da dor,
estratégias de proteção. “Será que estou imaginando?”, pergunta a si mesma uma das
entrevistadas.
Um dos aspectos mais terríveis dessa condição está na indicação, dada nas
entrevistada era apontada por adultos como “terrorista”, da qual as outras crianças deveriam
travessia pelas camadas de dor, que permite reconhecer a distinção entre a atribuição
especular, o encontro direto do olho consigo mesmo, que traz à tona, como iluminação
profana (nos termos de José Miguel Wisnik), a iminência do insuportável, daquilo que não
pode ser visto, do mais fundo abjeto. O exílio protege o sujeito da contemplação do
própria linguagem.
fantasmagorias constantemente. Marta Nehring, por exemplo, ela própria entrevistada além
vêm com dificuldade, mesclas de sentimentos. Uma remota imagem da escola, um detalhe
de serem falhas dos expositores, são justamente os pontos em que as dores são flagradas
com maior nitidez. A fantasmagoria surge precisamente quando o sujeito não pode evitar
História aparece no filme como percurso em construção, matéria processual aberta que não
se conclui nem pode ser inteiramente delimitada. A História inclui cenas que ficaram na
obscuridade, em que a linguagem cedeu ao lapso. O filme lida com uma dialética entre
memória e esquecimento. O que deve ser lembrado toca no que deve, pela carga de dor, ser
esquecido. Dialética negativa, na concepção adorniana, em que sínteses não são alcançadas
e impasses são potenciados. As tensões mais amargas nesse movimento são pontuadas pelo
senso de exílio, pela perspectiva de que a voz não está no lugar que deveria estar, que ela
não diz tudo o que deveria dizer, e pelo movimento fantasmagórico, que descentra a
pautado pela fantasmagoria, são responsáveis por uma constante instabilidade dos
contextos de referência histórica. O Brasil fica se decompondo e reconstruindo
nervosamente a expressão “Ah, difícil falar”. Ela não consegue unificar de modo coeso o
que tem a dizer, por não conseguir atribuir sentido ao que viveu. A experiência é descrita
como “pirante”, termo preciso para indicar o teor traumático, responsável pelo abalo da
A trilha sonora inclui Aos nossos filhos, canção emblemática do entrosamento entre
afeto e dor, e Nada será como antes, conhecido trabalho de Milton Nascimento marcado
entrevistas e remete, pelos tons cinzentos de imagem, à atmosfera fúnebre das imagens. Por
outro lado, o uso da cor para as cenas da 36ª DP aproxima o espectador do espaço
tem ponto final”. Não apenas ela observa a continuidade de heranças do passado, como
estabelece sua própria inconformidade. É uma indicação eloqüente e enfática do fato de que
as dores expressas não foram superadas, o trabalho de luto coletivo não foi realizado, e a
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