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Cinémas d’Amérique latine

22 | 2014
Femmes de cinéma

História e, também, nada. O


testemunho em Os dias com ele,
de Maria Clara Escobar
Carla Maia
p. 140-151
https://doi.org/10.4000/cinelatino.882

Traduction(s) :
C’est de l’histoire, et en même temps, ce n’est rien. Le témoignage dans Os
dias com ele de Maria Clara Escobar []

Résumés
Português Français
O texto propõe uma análise do filme Os dias com ele (Brasil, 2013), destacando seu caráter
testemunhal e situando-o no contexto de outros filmes dirigidos por mulheres sobre a ditadura
miltar no Brasil.

Le texte propose une analyse du film Os dias com ele (Brésil, 2013). Il souligne son caractère
testimonial et le compare à d’autres films sur la dictature militaire au Brésil tournés par des
femmes.

Entrées d’index
Mots-clés : témoignage, dictature, torture, mémoire, histoire, survie, père, pays, politique
Palavras chaves: testemunho, ditadura, tortura, memória, história, sobrevivência, pai, país,
política

Texte intégral
Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar
1 No cinema brasileiro recente, observa-se a recorrência de mulheres à frente da
direção de filmes que abordam a ditadura militar no Brasil. É o caso, por exemplo, de
Marighella (2012), de Isa Grispum Ferraz e Diário de uma busca (2010), de Flávia
Castro. Além do tema, esses filmes guardam em comum o fato de suas diretoras serem
parentes próximas das personagens: Isa é sobrinha de Carlos Marighella, o famoso
guerrilheiro e líder comunista, morto numa emboscada pelos militares. Flávia é filha de
Celso Castro, também guerrilheiro e comunista, mas não tão famoso assim, encontrado
morto no apartamento de um ex-oficial nazista logo após a abertura política. As
circunstâncias de sua morte nunca foram bem esclarecidas. Os filmes falam, portanto,
em nome de seus fantasmas, como num esforço de ressuscitá-los na tela, aos modos de
uma homenagem, no caso de Isa, ou de um acerto de contas com o passado, no caso de
Flávia.
2 Nos poucos filmes de ficção sobre a ditadura, os crimes cometidos pelos militares são
reconstituídos com toques de realismo espetacular. É caso de Pra frente Brasil (1982),
de Roberto Farias; O que é isso companheiro? (1997), de Bruno Barreto; Ação entre
amigos (1998), de Beto Brant; Zuzu Angel (2006), de Sérgio Rezende; ou Batismo de
Sangue (2007), de Helvécio Hatton. Os diretores reconstroem a história em detalhes
verossímeis, preenchendo-a de feitos e fatos. O mesmo não acontece nos
documentários de assinatura feminina mencionados aqui. Fundados sobre a falta (de
um tio, de um pai), eles dependem, em larga medida, do que está para sempre perdido,
irrecuperável, uma porção da história que permanece irreconstituível. O esforço não é o
de preencher, mas o de dar a ver essa falta, num exercício de rememoração que age
contra o esquecimento.
3 Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar, vem agrupar-se a esse conjunto de
filmes brasileiros de assinatura feminina que tratam da ditadura militar. Uma vez mais,
é um filme feito em família. Desta vez, porém, o pai da diretora é um sobrevivente.
Carlos Henrique Escobar, intelectual de prestígio, foi perseguido e torturado pelo
regime e, há mais de uma década, vive em exílio voluntário numa pequena cidade de
Portugal. Abandonou a filosofia e a dramaturgia, optando pelo “absoluto anonimato”. A
filha, apartada da figura paterna, decide tomar o cinema como instrumento de resgate
da memória oblíqua que guarda do pai e do país, numa busca semelhante a de Flávia
Castro. Os resultados, porém, são bem diferentes em cada um dos casos.
4 Em Diário de uma busca, a diretora dispõe apenas dos vestígios deixados pelo pai.
Na impossibilidade de trazê-lo de volta, ela segue seus rastros, refaz a rota dos lugares
em que morou, recupera notícias de jornal, gravações, fotos, filmes antigos, pede ao
irmão que leia, em voz off, as cartas escritas por ele, algumas nunca enviadas. Além
disso, coleta depoimentos daqueles que o conheceram, ex-amores, amigos,
companheiros de militância e, em momentos particularmente tensos, seus “inimigos”,
como o policial que esteve na cena do crime e o oficial que conduziu a investigação do
caso. Acrescente-se a todos esses elementos a narração, na voz da própria diretora, que
registra e ordena todo o material enquanto tece suas considerações pessoais, seu manto
de reminiscências. Se as imagens oscilam entre um caráter indicial (provas,
documentos, notícias) e um vazio constitutivo (os espaços desconectados de outrora), a
narração trabalha para que o filme possa, ainda que de modo precário e provisório,
encadear fatos e lembranças.
5 Em Os dias com ele, a diretora também busca as reminiscências da história do pai – e
de sua relação com ele, como anuncia o título – através do uso de material de arquivo,
voz off e entrevistas. Contudo, é de modo bem distinto que cada um desses recursos
exerce função narrativa. A começar pelo material de arquivo: se em Diário esse
material tem caráter de documento ou prova, sendo apresentado como reunião de
pistas que ajudam a retraçar a trajetória do pai, em Os dias o material de arquivo é
composto por imagens em Super-8 que nada atestam sobre o passado de Carlos
Henrique. São filmes de famílias desconhecidas, inseridos entre uma entrevista e outra.
Em Diário, o arquivo possui teor fortemente indicial, como pistas que apontam para o
que esteve lá, para o que fez parte da vida dos Castro. Em Os dias, por sua vez, o
arquivo é principalmente metáfora, coleção de imagens que tomam o lugar da imagem
que falta: um pai de mãos dadas à filha.
6 Flávia Castro e Maria Clara Escobar criam a partir de uma matéria rarefeita, escassa,
feita de vazios e restos. Essa espécie de vácuo, que se impõe sobre suas histórias
pessoais, ecoa também no silêncio imposto sobre os traumas históricos, tal qual o da
ditadura. Ambas buscam, a partir desse silêncio, uma imagem possível, um discurso
possível. Ainda que vago. Ainda que tardio. O ponto de partida é íntimo, familiar, a
relação com a história do país surge da relação com a figura do pai. Pais, país:
significantes estranhamente conectados. Mais que fazer uma passagem do pessoal ao
político, tais filmes permitem refletir sobre o quanto o pessoal é político, para fazer
menção ao célebre slogan feminista cunhado por Carol Hanisch. Embora nenhum dos
dois aborde temas abertamente feministas, ou mesmo se aproxime de questões
específicas do universo feminino, é possível afirmar que ambos partilham com algumas
correntes do pensamento feminista um certo modo de politizar o subjetivo,
suspeitando da noção cartesiana de sujeito universal, senhor de si e da verdade, que
caminha ao lado da História oficial. Em contracorrente, tais filmes atuam em favor de
uma particularização do olhar, sensível às diferenças e incertezas, atento às pequenas
histórias, com “agá” minúsculo: as histórias dos vencidos, em lugar da História dos
vencedores.

Maria Clara Escobar

7 Nesse sentido, o que faz de Os dias com ele um filme raro na cinematografia
brasileira é a maneira como ele dá voz a um torturado. O usual, nesse tipo de iniciativa,
é buscar no testemunho do sobrevivente alguma redenção pelo desvelamento da
verdade. É o caso de Que bom te ver viva (1989), de Lucia Murat (mais uma vez, há
uma mulher atrás da câmera, detalhe que não deve passar desapercebido). Filme
situado na fronteira da ficção com o documentário, nele alternam-se depoimentos de
mulheres torturadas com encenações da atriz Irene Ravache. “Tudo começa aqui, na
falta de resposta”, diz a personagem de Ravache logo na primeira cena, “acho que devia
trocar a pergunta: ao invés de ‘por que sobrevivemos’ seria ‘como sobrevivemos?’” A
atriz preenche de palavras e significantes a experiência da tortura, em coro com as falas
das personagens “reais”, que dão seus depoimentos em entrevistas bem convencionais.

Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar

8 No filme de Escobar tudo é bem diverso. Em primeiro lugar, porque se trata da filha,
nascida anos depois do fim da ditadura, a interrogar o pai. Se a relação cineasta-
personagem já é, em qualquer documentário, complexa e permeada de tensões e
dilemas éticos, a relação filha-pai vai acrescentar graus ainda maiores de complexidade
à obra. Como indicado no errático zoom in que abre o filme (menos que um
movimento, um ajuste de câmera), a aproximação da filha ao pai não se dá com
precisão e segurança, mas de maneira vacilante, incerta, ao modo da tentativa e erro. A
escolha de manter nas entrevistas os momentos que antecedem o bater da claquete,
como ajustar o quadro, colocar o microfone, testar o som, é expressiva. Sempre em
preparação, nem pai nem filha estão prontos para o encontro agenciado pelo filme. É
preciso, então, descobrir como “inventar um pai com o cinema”, ao mesmo tempo em
que se inventa “uma cineasta com o pai1”.

Flávia Castro
9 Em linhas gerais, são três os recursos adotados na obra, em sua notável economia
formal: as cenas de entrevista, gravadas em som direto; a observação do cotidiano (o
pai lê, faz uma refeição, vê televisão, passeia com os gatos ao redor da casa), sem
intervenções diretas; e as sequências de material de arquivo em Super-8. Nas cenas
cotidianas, há com frequência um obstáculo físico (uma cortina, uma parede, uma pilha
de livros, um muro que permite ver apenas pela fresta) que impede que se obtenha, do
pai, uma imagem inteira. Em diversas cenas, filma-se através de outra superfície,
opaca. Nas entrevistas, as obstruções não são físicas, mas colocam-se verbalmente. O
tratamento dado à filha é sempre na terceira pessoa. Ele a chama de “Maria Clara”,
nunca “filha”, nunca um apelido. A relação eu-tu está sempre por um fio. Além da
presença da câmera, que já é por si um mediador dessa relação – arma e escudo, ponte
e obstáculo – há uma dificuldade manifesta na postura desconfiada e inquisidora do
pai.

Diário de uma busca (2010), de Flávia Castro

10 Com efeito, Escobar, com sua habilidade retórica e aguda inteligência, nada facilita
para Maria Clara. É um pai exigente: mais de uma vez, demanda explicações sobre a
finalidade do filme e os propósitos da filha. Diante das respostas um tanto ambíguas ou
imprecisas que recebe (“é um filme sobre silêncios”, tenta a diretora) ele pede clareza,
precisão e, sobretudo, coragem (“seja corajosa e diga o que é esse filme, senão fica
ambíguo demais!”). A mise-en-scène vacilante de Maria Clara contrasta com a auto-
mise-en-scène paterna, dotada de uma apurada consciência de si e do que significa ser
filmado. A relação entre os dois, escassa de afeto e familiaridade, é marcada pelo
enfrentamento e o estranhamento. O filme se faz nas iminências da incompreensão e da
opacidade com, de um lado, uma diretora consciente de tudo que não sabe, e por isso
vacila, e de outro, um personagem que sabe demais, mas prefere não dizer, pois seria
impossível. Prefiro não, diria Bartleby.
11 Mais que um filme político, Os dias com ele é um filme feito politicamente, para
usarmos a conhecida fórmula de Godard2. Dando a ver partes assimétricas em relação,
o filme nada equaliza, nada pacifica, expõe o litígio e o embate. Sua poética, seus golpes
de força, aos poucos deixam de ser apenas sobre o “pequeno segredo familiar” e passam
a lançar um facho de luz, ainda que trêmulo, sobre o obscuro período da ditadura
militar brasileira, uma história que concerne a muitos, manchada por traumas,
violências, abusos. Para tanto, porém, o filme pouco informa. Prefere metaforizar.
Poetizar. Como quando ouvimos, na voz de Escobar: “A vida é tão terrível que nós dois
conversando aqui assim, é história, e também não é nada”.

Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar


12 Em suas notas sobre o conceito de história, Benjamin chama atenção para os riscos
do historicismo, que além de contar apenas a versão dos vencedores, cria um tempo
vazio e homogêneo, universalizando os acontecimentos, em nome da marcha
progressista da humanidade. Em contraste, ele apela para uma concepção de história
como construção, lugar não do tempo homogêneo e vazio, mas de um “tempo saturado
de ‘agoras’3”. Assim, o passado não se liga ao presente pelo fio do progresso, como num
continuum, mas atualiza-se no presente em relampejos, pelo exercício da
rememoração. O tempo se faz a cada agora, marcado pela heterogeneidade. É preciso,
assim, encontrar “as experiências que se transmitem ainda para além de todos os
‘espetáculos’ comprados e vendidos à nossa volta, além do exercício dos reinos e da luz
das glórias. Somos ‘pobres em experiência’? Façamos dessa mesma pobreza – dessa
semiescuridão – uma experiência4.”
13 Esta parece ser a operação central de Os dias com ele: fazer da semiescuridão, da
pobreza de experiência (a filha não viveu com o pai, tampouco viveu a ditadura), uma
experiência possível. O filme de Maria Clara não é uma homenagem ao pai brilhante,
como alguns de seus críticos gostariam, nem discorre sobre seu notório saber, seu êxito
intelectual, como o pai talvez preferisse. Antes, a diretora se posiciona ao lado dos
vencidos: quer ouvir sobre sua passagem pelos porões da ditadura, como preso político
e torturado, conhecer aquela parte de sombra que nem o pai gostaria de lembrar, que
ele afirma ser impossível lembrar. Mais que um retrato do intelectual de esquerda ou
um filme de relação entre pai e filha, Os dias com ele é um filme-testemunho no sentido
forte do termo.

Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar


14 A princípio, Carlos Henrique resiste a falar sobre a tortura que sofreu. Cita Derrida,
diz que é impossível, que é inútil, que não corresponderia a uma verdade. Maria Clara
insiste. As considerações ríspidas do pai (“essa é uma questão falsa”, “você é auto-
destrutiva”, “eu prefiro meus gatos”) não a impedem de perguntar, ainda uma vez, o
que foi que lhe aconteceu naqueles anos de chumbo. Finalmente, ele cede, e conta –
devidamente “mascarado”, usando chapéu e óculos escuros – detalhes de sua
experiência na prisão. A cena começa, novamente, pelo ajuste do quadro. Zoom out,
dessa vez. Como encontrar a distância certa, o ângulo preciso para abordar o horror? A
diretora faz uma longa pergunta, repleta de circunlóquios, fala em “responsabilidade
histórica”, indaga os motivos da recusa do pai em falar sobre sua experiência. Ele não se
explica. Surpreendendo mais uma vez, ele inicia seu relato. “Dando uma volta no
quarteirão”, ele diz, como quem começa por um desvio. Passa, então, à minuciosa
descrição da tortura que sofreu, o cheiro ruim do capuz, os diálogos, os gritos da
companheira. A personagem, contida até o momento, agora morde os lábios, agita as
pernas, faz gestos largos e abre bem os olhos, já sem os óculos escuros. Por um instante,
retira a máscara.
15 Trata-se de buscar o “dizer verdadeiro” que, desde Foucault, não corresponde ao
achado da verdade absoluta, mas a uma forma de entrar em relação consigo, de
encontrar, em si, um modo de dizer verdadeiramente o que se pode. O que se pode
dizer, por sua vez, resulta sempre do atrito e do encontro com o mundo e, portanto, é
sempre permeado pela errância e pela lacuna. “No começo, eu começo a errar, a errar”,
“eu quase que me desorganizo”, diz Escobar, antes de revelar ter sido salvo pela
Glorinha, pelo aperto de mãos dela, pela voz a dizer “fica tranquilo”. Ele segue no relato
da tortura de toda uma noite, até que, no momento em que começa a recordar as “três
grandes brutalidades” que sofreu (entre elas, a sirene alta que lhe arrebentou os
tímpanos), um de seus gatos entra em cena. Ele interrompe o relato para afagá-lo. Da
violência à carícia, um novo desvio.
16 Derrida diz que o testemunho tem como questão decisiva a sobrevivência, e não a
informação ou a neutralidade de quem busca dizer a verdade. Escobar sobrevive a sua
morte, como comprova a emblemática sequência de cenas após o relato da tortura: ele
comemora seu aniversário, caminha na esteira e fala sobre como gostaria de ser
enterrado – sem choro nem vela, num cemitério de animais (“tive uma má impressão
das pessoas”). Seu testemunho não oferece a verdade, apenas sua pobreza, vestígios de
uma experiência. O que ouvimos de Escobar certamente não dá conta de representar o
que foi a tortura na ditadura militar – pode o cinema, de fato, fazê-lo? Porém, se não há
verdade a ser revelada, há um dizer verdadeiro a ser elaborado, que é tão mais
verdadeiro quanto mais se desvia para afagar um gato, hesitar, buscar uma palavra,
deixar de lado algum detalhe, lembrar-se de outro. Sua descrição do evento, a um só
tempo minuciosa e imprecisa, não resulta numa representação estável, fixa, completa.
Este seria o paradoxo do testemunho: sua força está na sua incerteza, “que nada tem a
ver com a dúvida, nem se resume à ambiguidade, pois o que a caracteriza é ser excesso,
potência de significação que não pode ser limitada nem pelo contexto nem por
mecanismos de auto-reflexividade. A interrupção, que desvia o dizer daquilo que é
adequado, é nele índice de algo indizível5.” O que garante o testemunho (seu caráter de
prova, informação ou outro conteúdo demonstrável) é também aquilo que o
impossibilita. A impossibilidade do testemunho é a possibilidade de sua criação.

Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar


17 Só então percebemos que Escobar esteve testemunhando desde o começo do filme,
mesmo quando se negava a falar sobre a tortura. Derrida chama atenção para o fato de
que o testemunho não é apenas de ordem discursiva, inteiramente linguístico, mas
implica “qualquer coisa do corpo que não tem direito à palavra6”. Portanto, é necessário
observar o que se cala, o que se omite, o que não está no discurso, mas no modo de
aparecer de Escobar: sua surdez, suas pernas agitadas, seus olhos cansados, um certo
jeito de morder os lábios. Sua própria aparição diante da câmera, desde a primeira (os
olhos cabisbaixos, o silêncio), já dão testemunho do que ele viveu. E tudo que
acompanhamos de sua relação difícil com a filha é também um testemunho, diz do
nosso tempo, excessivo de agoras, excessivo de histórias. É na cena em que discutem
sobre a leitura do documento do DOPS, outro momento marcante do filme, que esse
mundo litigioso onde habitam Escobar e Maria Clara encontra seu ponto máximo de
expressão. Há uma cadeira em quadro, vazia, e ouvimos a discussão dos dois, no
antecampo. Maria Clara pede que o pai leia sua ordem de prisão e ele protesta com
veemência:

“Há crimes imensos e incríveis. Mas isso todo mundo sabe. É insípido ler sobre a
prisão de um cara quando foram presos 10 mil. O que se vai falar para você... uma
coisa que durou quase 20 anos... e tem várias maneiras de você estar participando.
E às vezes quando você está participando melhor, é que você tem que não falar.”

18 A filha, com impulsos de historiadora, acha importante constar um documento que


dê veracidade ao que soa absurdo demais para ter de fato ocorrido. Escobar, mais
inclinado à filosofia, quer fazer a filha entender que não é a leitura do documento, a
presença de uma prova, que irá ajudar a recuperar a história que ela tanto busca. É
antes pelo não-dito, pela impossibilidade, pela irrepresentabilidade (como a prisão de
um pode falar pela de 10 mil?) que se pode dizer algo. Para o pai, a informação
vulgariza a memória do que ocorreu, nada acrescenta. “Sua saída é fazer isso virar
uma coisa estética, não o documento”, ele diz, com lucidez desconcertante, logo após
lançar mais uma de suas provocações à filha (“acho que você não sabe o que está
filmando”) e encerrar a conversa pedindo a ela que mostre que não está ali para
“gostosuras”, que encare a dificuldade do filme.

Os dias com ele (2013), de Maria Clara Escobar


19 O que se passa, então, surpreende: o pai se retira, a filha entra em quadro e lê o
documento. O que é lido, de fato, importa muito pouco. É o ato de ler que interessa,
enquanto ato de desobediência e coragem. Coragem de se expor em sua teimosia de
filha, coragem de ir contra o desejo de seu pai e de sua personagem, desafiando a
própria ética do documentário. Ao desobedecer o pai, porém, Maria Clara demonstra
justamente ter dado ouvidos a tudo que foi dito e defendido por ele. Finalmente, cria-se
uma relação de pai e filha e Escobar pode deixar seu legado, seu
testemunho/testamento: face ao poder e a lei (do pai ou da pátria), é preciso não se
acomodar, ousar, contrariar, correr o risco. Inventado o pai, inventada a cineasta, o
filme sobrevive e pode, enfim, testemunhar não apenas sobre os dias com ele, mas
sobre os nossos dias.

Diário de uma busca (2010), de Flávia Castro

Notes
1 Comentário de Cézar Migliorin ao filme Os dias com ele, na 16˚ Mostra de Cinema de
Tiradentes (2013). Disponível em: http://www.mostratiradentes.com.br/noticiadetalhe.php?
menu=not&codNot=353. (último acesso em 31 de março de 2013).
2 Godard Jean-Luc, “What is to be done?” Disponível em:
https://fr.scribd.com/doc/114335600/Godard-What-is-to-be-done (último acesso em 31 de
agosto de 2013).
3 Benjamin, Walter, “Sobre o conceito da História”, Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política, Brasiliense, São Paulo, 1994, p. 229.
4 Didi-Huberman Georges, Sobrevivência dos vaga-lumes, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2011,
p. 126-127.
5 Rodrigues Lopes Silvina, “Pontos luminosos, obscuros”, Revista Intervalo, n° 2, maio de 2006,
p. 143.
6 Derrida Jacques apud Rodrigues Lopes Silvina, “Pontos luminosos, obscuros”, p. 144.

Table des illustrations

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Pour citer cet article


Référence papier
Carla Maia, « História e, também, nada. O testemunho em Os dias com ele, de Maria Clara
Escobar », Cinémas d’Amérique latine, 22 | 2014, 140-151.

Référence électronique
Carla Maia, « História e, também, nada. O testemunho em Os dias com ele, de Maria Clara
Escobar », Cinémas d’Amérique latine [En ligne], 22 | 2014, mis en ligne le 01 octobre 2014,
consulté le 22 mai 2022. URL : http://journals.openedition.org/cinelatino/882 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/cinelatino.882

Auteur
Carla Maia
Carla Maia é doutoranda do programa de pós graduação em comunicação social da FAFICH/
UFMG, onde desenvolve tese sobre o documentário brasileiro contemporâneo realizado por
mulheres. Ensaísta e pesquisadora de cinema, atua também como curadora, professora e
produtora. Já organizou diversas mostras de filmes e debates, entre elas, retrospectivas de
Chantal Akerman e Naomi Kawase. É diretora do documentário Roda, co-dirigido por Raquel
Junqueira. Integra o coletivo Filmes de Quintal, que realiza o forumdoc.bh: Festival do Filme
Documentário e Etnográfico de Belo Horizonte. Mais informações: www.carlamaia.com.

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