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Resumo
O presente trabalho tem como objetivo discutir e articular as relações entre o cinema e a Psica-
nálise. Para isto, utilizou-se do documentário Estamira, de Marcos Prado, 2006. O filme retrata
a história de uma mulher que sofre de transtornos mentais e trabalha, há anos, no hoje extinto
aterro sanitário na cidade do Rio de Janeiro. O Cinema, como expressão de arte, se relaciona
com a Psicanálise de diversas formas, pois também trata da subjetividade dos participantes
na produção cinematográfica. O diretor, sem ter a intenção de qualquer expressão psicanalí-
tica, assume um lugar de objeto que escuta e deseja desvendar o saber da personagem, o que
se assemelha à função de um analista. Estamira transmite aos telespectadores sua narrativa
da verdade, seu discurso contundente que, na mesma enunciação impacta, confunde e toca.
Na psicose, como é caso de Estamira, os delírios da personagem tentam responder a eventos
traumáticos inassimiláveis, são respostas a circunstâncias compostas de grande sofrimento; a
personagem elucida o mecanismo de produção delirante ao mostrar, em sua história de vida,
que a única resposta possível encontrada às violências que vivenciou, foi o delírio.
Apresentações
O que pensar destas palavras que, ao mes- cerca de seis anos no aterro sanitário de Jar-
mo tempo, dizem algo que não tem sentido, dim Gramacho, no Rio de Janeiro. Em meio
mas aparentam ter algum tipo de significa- ao ambiente fétido e imundo que o rodeava,
do? Quem tem ouvidos, que ouça! No ano de ele encontra uma senhora, com roupas e
2000, Marcos Prado, diretor e fotógrafo, rea- postura peculiares, contemplando a paisa-
lizava um trabalho fotográfico que já durava gem do lixão. Pede a ela autorização para
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 36 | p. 157–164 | Dezembro/2011 157
Ainda em cartaz, “Estamira”: A Psicanálise nas telas do Cinema
sofrimento e encontros com ‘tudo que é tão que também vivem na borda de um país e
real’. de um mundo que não quer saber, e prefere
Segundo Leite (2006) o encontro com a continuar vivendo adormecido em relação a
real falta do objeto, ou seja, qualquer evento situação da exclusão dos portadores de trans-
que apresente status traumático, faz com que tornos mentais. A partir do “Caso Estamira”
algo se estruture no psiquismo. Na neurose torna-se possível, ainda, notar o estigma e o
há o recalque e uma resposta ao trauma com preconceito que as pessoas acometidas por
uma fantasia e com o simbólico. Na psicose, transtornos mentais, inclusive os transtor-
como é o caso de Estamira, é o delírio que nos psicóticos, ainda sofrem da sociedade.
tenta responder ao traumático inassimilável. Inclusive com os próprios filhos, que, por ve-
A história de vida da personagem de- zes, falam das dificuldades de se ter uma mãe
monstra que ela foi uma mulher saudável com transtorno mental.
até o período da vida em que os sucessivos
encontros com a violência e as situações que A escuta e a transmissão:
não podiam ser elaboradas de forma neuró- tarefas distintas
tica, a levaram a não mais acreditar e sentir, Pensando o documentário como uma trans-
como ela fazia até então. Anteriormente, Es- missão de conceitos psicanalíticos, é possível
tamira era uma pessoa com valores religiosos analisar o tratamento da psicose que ele ope-
que acreditava em um deus, protetor e bon- ra em Estamira, na medida em que Marcos
doso. Era, também, uma boa mãe, contida e Prado permite que fale e a deixa delirar, de
controlada. modo a não barrar ou impor testes de rea-
É importante ressaltar que o delírio não é lidade. Marcos Prado, sem ter a intenção de
a psicose propriamente dita, e, sim, uma ten- qualquer expressão psicanalítica, assume um
tativa de tratamento desta. É o restabeleci- lugar de objeto que escuta e deseja saber do
mento das relações libidinais com os objetos saber da personagem, o que caracteriza de
anteriormente abandonados (Leite, 2006). forma bem consistente a função de um ana-
Trata-se de uma tentativa de recobrir um lista, que, tal como o fotógrafo, constrói um
buraco e da falta de operações simbólicas: o relato de caso.
fenômeno oferece contorno ao que não pode A escolha do diretor sobre o que foi mos-
ser simbolizado. A esquizofrenia constitui trado no documentário considera importan-
casos em que é difícil compreender a pessoa tes elementos da subjetividade de Estamira;
analiticamente, pois há um total retraimento o diretor oferece a sua escuta à personagem
da libido, o que dificulta o estabelecimento da que sofre e necessita dar voz ao seu mundo
transferência; contudo, o possível tratamen- mental. A construção de Marcos Prado par-
to da esquizofrenia também se dá na escuta tilha elementos em um trabalho conjunto:
analítica em que o objetivo é da reconstrução personagem e diretor.
da história do sujeito. É importante diferenciar que construção
Segundo Sousa (2007), os delírios da per- não é o mesmo que interpretação. A cons-
sonagem de Marcos Prado, se não conside- trução do documentário é direcionada para
rados como uma história individual e parti- o arranjo dos elementos do discurso de Esta-
cular, são entendidos apenas como loucura. mira, visando demonstrar a história e as con-
Aos olhos dos outros, é reconhecida como dutas da personagem. Já a interpretação visa
louca, não tem crédito, não se pode compre- um sentido – não há no filme uma interpre-
ender, não consegue compartilhar opiniões tação direta –, mas fica a cargo de quem as-
e crenças. Contudo, o diretor permitiu a fala siste interpretar Estamira: ela é louca, é sabia,
de uma realidade facilmente encontrada por é doente, é lúcida, é somente uma vítima? O
muitos, inclusive moradores de rua e pessoas que ela é mesmo?
O diretor do documentário registrou al- posição ativa do diretor, uma vez que ele sai
gumas cenas com cores vivas e iluminação ao de uma posição exclusiva de escuta, para a de
natural; em outras, aplicou o efeito de preto- amigo, companheiro e provedor econômico
e-branco quase chegando à desintegração da de Estamira, papéis que não cabem a um
imagem, formas cinematográficas que dão analista. Pensado como um “caso clínico” o
maior destaque ao lixo e a miséria. Durante filme é didático, mostrando de forma ímpar
anos seguidos visitou Estamira e seus filhos, o que é a psicose – já que nesta o inconscien-
seus companheiros os catadores de lixo que, te está a céu aberto. O diretor, na montagem
assim como ela, moram no enorme e insa- final, encontrou elementos do discurso da
lubre depósito de lixo da cidade do Rio de personagem ao pé da letra, incluiu as ações,
Janeiro. demonstrando que estas são norteadas por
Marcos permite que ela se faça ouvir e re- uma posição no discurso determinada por
gistra sua revolta contra um deus estuprador Estamira. O relato se apresenta rico em de-
e médicos copiadores de receitas. O diretor, talhes, cenas e conteúdos. O diretor jamais
como o analista, busca o singular de quem deve ter imaginado que receberia uma mis-
filma/ouve, por meio do caminho que o su- são, esta muito similar a dos analistas.
jeito percorre: não atrapalha a caminhada,
segue a direção – no caso do filme – que Es- Considerações finais
tamira lhe aponta e transmite o caminho so- Estamira e o documentário convocam o ex-
litário que ela percorreu em sua vida. pectador a se deparar com seus próprios de-
A partir da psicanálise, o analista propõe jetos. Miller (2010, p.1) discorre que os deje-
ao paciente que não deixe nada de lado em tos são os elementos rejeitados, “o que cai, é
sua fala. O paciente é levado a falar sobre to- o que tomba quando por outro lado algo se
dos os assuntos possíveis, mesmo detalhes eleva”. O filme nos convoca a olharmos que
que parecem desprezíveis: a regra fundamen- o resto, o que se joga fora, retorna. O fato é
tal é a associação livre. Em contrapartida, no que, para a psicanálise, os dejetos do mental
cinema há uma seletividade na inclusão de são as formações do inconsciente, matéria-
cenas que se impõe desde o princípio; nem prima do trabalho psicanalítico.
toda imagem é importante para o diretor e Marcos Prado precisou de mais de três
para a composição do filme. O cinema que- anos para preparar o documentário, soube
bra a regra fundamental da psicanálise, pois respeitar o tempo e as limitações de Estami-
toma algumas cenas como irrelevantes, sem ra. Segundo ele, de fato, recebeu uma missão,
importância, ou absurdas. Tanto no processo a de revelar a sua história e realidade (sua vi-
de análise, quanto no cinema, quando se in- são de mundo). A Estamira resta delirar, fa-
terrompe uma sessão ou se sai da sala após o lar de sua missão e, assim, tentar imprimir
término de um filme, os efeitos continuam a uma certa ordem ao seu mundo mental; a
repercutir para alguns sujeitos e, por vezes, nós, resta-nos lidar com todo esse resto, que,
levam dias para passar. Tal é o caso da angús- por mais esquecido e descartado, volta a nos
tia ou do “estranho” que são despertados em questionar cotidianamente – na vida, na clí-
determinado momento da análise. nica e nas telas do cinema.
Os elementos utilizados por Marcos Prato
são similares à construção de um caso clí-
nico em psicanálise. Não é igual a um caso
clínico, pois, segundo Figueiredo (2004),
diferente dos casos “psicanalíticos” que têm
como objetivo transmissão e construção da
psicanálise, o documentário conta com uma