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Ainda em cartaz, “Estamira”: A Psicanálise nas telas do Cinema

Ainda em cartaz, “Estamira”:


A Psicanálise nas telas do Cinema
Still in theaters, “Estamira”: Psychoanalysis in Cinema screens
Thiago Robles Juhas
Niraldo de Oliveira Santos

Resumo
O presente trabalho tem como objetivo discutir e articular as relações entre o cinema e a Psica-
nálise. Para isto, utilizou-se do documentário Estamira, de Marcos Prado, 2006. O filme retrata
a história de uma mulher que sofre de transtornos mentais e trabalha, há anos, no hoje extinto
aterro sanitário na cidade do Rio de Janeiro. O Cinema, como expressão de arte, se relaciona
com a Psicanálise de diversas formas, pois também trata da subjetividade dos participantes
na produção cinematográfica. O diretor, sem ter a intenção de qualquer expressão psicanalí-
tica, assume um lugar de objeto que escuta e deseja desvendar o saber da personagem, o que
se assemelha à função de um analista. Estamira transmite aos telespectadores sua narrativa
da verdade, seu discurso contundente que, na mesma enunciação impacta, confunde e toca.
Na psicose, como é caso de Estamira, os delírios da personagem tentam responder a eventos
traumáticos inassimiláveis, são respostas a circunstâncias compostas de grande sofrimento; a
personagem elucida o mecanismo de produção delirante ao mostrar, em sua história de vida,
que a única resposta possível encontrada às violências que vivenciou, foi o delírio.

Palavras-chave: Psicanálise, Cinema, Psicose, Delírio.

Apresentações

“A minha missão, além de eu ser Estamira,


é revelar a verdade, somente a verdade.
Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara,
ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes…
Não tem mais inocente, não tem.
Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem,
mas inocente não tem não”.

O que pensar destas palavras que, ao mes- cerca de seis anos no aterro sanitário de Jar-
mo tempo, dizem algo que não tem sentido, dim Gramacho, no Rio de Janeiro. Em meio
mas aparentam ter algum tipo de significa- ao ambiente fétido e imundo que o rodeava,
do? Quem tem ouvidos, que ouça! No ano de ele encontra uma senhora, com roupas e
2000, Marcos Prado, diretor e fotógrafo, rea- postura peculiares, contemplando a paisa-
lizava um trabalho fotográfico que já durava gem do lixão. Pede a ela autorização para
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fotografá-la. Esta consente, com a condição tos e as mudanças do discurso da persona-


de que, depois, ele sentasse para conversar. gem, provavelmente em consequência dos
Na prosa com Marcos, a excêntrica senho- efeitos (colaterais) dos medicamentos, que
ra conta que mora em um castelo, enfeitado toma diariamente. Os filhos de Estamira
com lixo e fala sobre o mundo, as pessoas, e também participam do filme, contam sobre
coisas que, às vezes, parecem não fazer muito seu passado trágico e mostram como é vi-
sentido aos que a ouvem. ver ao lado de alguém com esquizofrenia. Já
Marcos se encanta com o discurso daque- a personagem conta pouco de sua história e
la senhora, discurso bem diferente e, por ve- fala mais de sua “verdade” e de sua “missão”.
zes, confuso. Eles se tornam amigos e, certo O filme sensibiliza quem o assiste, pois
dia, ela lhe pergunta qual seria sua missão. as falas e os significantes contundentes dos
Antes que ele pudesse responder, ela diz que personagens chocam, sua narrativa parece
a missão dele era a de revelar a verdade dela. possuir diversos significados que, às vezes,
Desta forma, Marcos Prado decide fazer um escapam do espectador. É preciso assisti-lo e
filme sobre sua vida e nomeia a produção ouvi-lo, mais de uma vez, porque, só assim,
com o nome da senhora: Estamira. O presen- é possível supor uma compreensão acerca da
te trabalho tem como objetivo tecer algumas seqüência discursiva da personagem quando
considerações sobre Estamira, o cinema e a esta fala de coisas reais, concretas, sofridas,
psicanálise. de traumas que podem ser de difícil com-
preensão para quem nunca vivenciou tais
A personagem e a sua história sensações em sua vida. O diretor apresenta,
Estamira, filme de Marcos Prado (2006), con- através do gênero documentário, o mundo
ta a história de Estamira, uma mulher que da personagem como ele realmente é. Há
sofre de transtornos mentais, vive e trabalha, momentos em que o filme mostra apenas
há mais de 20 anos, em um aterro sanitário. lixo, podridão, miséria, coisas concretas, que
Uma pessoa de olhar e expressão de quem já rodeiam o mundo de Estamira: tentativas de
sofreu muito ao longo da vida, uma mulher metaforizar o real?
de vida árdua, que fala sozinha, ouve vozes e,
quando se refere a Deus, o faz com catarse, Aproximações possíveis
proferindo inúmeros palavrões. Trata-se de entre cinema e psicanálise
uma figura muito carismática e respeitada no O documentário pode ser caracterizado
extinto lixão da capital carioca. Sua história como uma construção da realidade huma-
é marcada por violência e rupturas, dentre na (a partir da visão do diretor), que conta
elas: os estupros, a prostituição, as traições com a subjetividade de quem o produz com
vivenciadas em seus dois casamentos, o dis- um objetivo e transmissão de valores. É arte
tanciamento de sua filha mais nova, a depen- como expressão da verdade; a vida como ela
dência alcoólica e o fato de ter sido moradora é, sendo que, por vezes, há intenções políti-
de rua. Ao assistir o documentário, pode-se co-partidárias – o desejo do diretor? De cer-
acompanhar o seu tratamento psiquiátrico ta forma, o cinema, como ficção ou irreal,
na rede pública: os médicos a diagnosticam representa a realidade transformada em arte,
como portadora de quadro psicótico de evo- que trabalha, quase sempre, retratando as
lução crônica, alucinações auditivas, idéias produções humanas, fato este que chama a
de influência e discurso mítico. As filmagens atenção de quem estuda e se utiliza da psi-
duraram quatro anos, sendo que o início da canálise. Segundo Penafria (1999, p.17) “um
produção coincide com o começo do trata- documentário pauta-se por uma estrutura
mento psiquiátrico; assim, o filme retrata e dramática e narrativa, que caracteriza o cine-
acompanha as mudanças de comportamen- ma narrativo. A estrutura dramática é cons-

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tituída por personagens, espaço da acção, problematizam a realidade. As produções


tempo da acção e conflito”. cinematográficas sempre comunicam algo,
O cinema e a psicanálise tiveram seu uma mensagem por vezes, mais ou menos
nascimento em épocas semelhantes, no fi- clara, muito ou pouco política e que pos-
nal do século XIX, quando o conhecimento sui diferentes gêneros, como por exemplo,
científico e as novas formas de tecnologia a comédia, o drama, o terror, o suspense
avançavam de modo exponencial. A psica- e o romântico. A prática e costume de ir
nálise vê e observa um mundo de represen- ao cinema ou assistir um fi lme com ou-
tação e memória, toma o homem para além tra pessoa, já está incorporada em muitas
do corpo e, sem excluí-lo, procura desven- culturas como meio de se fazer laço social,
dar os anseios e vicissitude da alma huma- como por exemplo, encontros de amigos,
na. Se a psicanálise como ciência e técnica pais separados que levam seus fi lhos ou ca-
se aprimorava, o cinema cada ano se utiliza sais que se enamoram nas salas de cinema.
de novas tecnologias ópticas para ampliar o Os gêneros cinematográficos possuem
olhar, para operar no universo do fantásti- funções distintas: a comédia para quando se
co e construir expressões de realidades de está triste ou para desfrutar o momento com
formas jamais vistas. Segundo Froemming amigos; o drama e o suspense para fazer re-
(2004), o cinema constrói, desmembra e fletir e questionar-se; o romance para cativar
fragmenta o racional e a fantasia e, de ma- um outro de quem se quer aproximar ou, até
neira similar à psicanálise, investiga, cons- mesmo para, sozinho, elaborar os desenla-
trói e desconstrói a racionalidade, aprende ces das relações. Existem, também, os gêne-
e formaliza um olhar científico ao que não ros mais explícitos como é o caso dos filmes
opera logicamente. Ambos, os fi lmes e a te- adultos que tem muitos desdobramentos psí-
oria psicanalítica acerca da construção da quicos como o fetiche e a compulsão sexual.
realidade, são frutos da união da ciência, A arte, incluindo o cinema, desperta no
razão e irracionalidade, e sem dúvida, po- homem o que nele há de mais importante e
de-se afirmar que o cinema e a psicanálise problemático: traz à tona seu particular, seu
contribuíram para a construção da subjeti- “buraco”, aquilo que o faz sujeito. A psicaná-
vidade e seu acesso a ela, ao longo de todo o lise tem sua matriz implicada com a arte, na
século XX, e até os dias de hoje. tragédia de Édipo, na dúvida de “ser ou não
Segundo Fernandes (Fernandes, 2005, ser” de Hamlet. Mesmo que Freud não tenha
p.69), ambos tratam dos sonhos e expres- escrito nada sobre o cinema, a arte foi tra-
sam, por meio de imagens e sons variados, balhada e teve importância ao longo de sua
as emoções humanas, “O homem busca no obra. Artistas como Leonardo e Michelange-
escuro do cinema o isolamento do mundo lo contribuíram com a obra psicanalítica. As-
para viver uma experiência imaginária com sim como a análise dos textos de Schereber, o
todas as emoções proibidas e perigosas; sai legado de Freud sobre a psicose e a obra Gra-
delas como se despertasse de um sonho” diva de Jansen são contribuições literárias e
Os fi lmes podem ser a expressão de uma artísticas que formalizam a psicanálise como
dimensão onde não há falhas, tudo pode ser ciência humana. Segundo Ide (2008), as ima-
bem organizado, mesmo quando se trata gens em movimento, os sons, as impressões
de temas complexos e problemáticos, onde obtidas a partir da experiência de assistir um
sempre é possível um “então viveram feli- filme, todos estes elementos absorvidos pelo
zes para sempre...” Ao lado dessa dimen- aparelho psíquico, são, sempre, recobertos
são do ideal e fantástico, do integrado e por sentimentos e afetos que, às vezes, são
alienante, há, também no cinema, imagens recalcados, simbolizados, sublimados ou so-
que propõem questões aos espectadores e matizados.

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O que é tão estranho em Estamira? da negação, o conceito de estranho em Freud


Estamira é um documentário didático ao indica o recalque, demonstra situações em
mostrar os alcances da relação entre cinema que o que deveria permanecer obscuro é tra-
e psicanálise. Talvez um dos aspectos mais zido à luz, irrompe na consciência, ou seja, o
importantes do filme seja demonstrar a fun- que se apresenta como estranho está vincula-
ção e a importância da escuta, pois ouvir o do, de alguma forma, com o que é familiar. O
outro nem sempre é fácil; escutar do outro estranho provem de que algo recalcado pode
sobre o que nos é diferente ou muito seme- retornar, não importando se o elemento em
lhante, escutar sobre a dor ou morte é, mui- questão já era originalmente assustador ou
tas vezes, insuportável. Entretanto, não é isso pertencente a qualquer outro tipo de afeto,
mesmo que faz a psicanálise? Escutar o sujei- mas, quando retorna, angustia.
to? Até que ponto se escuta os outros fora de O filme, desde o seu início, causa estra-
um dispositivo analítico, suas fantasias, seus nhamento e, quem assiste se pergunta: que
delírios ou pergunta-se: o que se escuta de realidade é essa? As imagens aparecem como
Estamira? se fossem de um mundo diferente, um mun-
Há momentos do filme em que não se do fora da realidade. As primeiras impressões
pode discordar do que a protagonista fala; são de um lugar sem forma, sem matéria,
em outros, há um estranhamento profundo, que tem um aspecto sombrio. Os primeiros
mas, estranho mesmo, é que o conteúdo de minutos de filme são formados por palavras
sua narrativa, em alguns momentos, também que, parecem não ter sentido, paisagens sem
nos é familiar. O telespectador reconhece, forma e sem contorno. Reconhece-se a mi-
tomado de angústia, o abandono da perso- séria. O retorno do recalcado dos telespecta-
nagem por parte dos pais, dos cônjuges, da dores se atualiza nas cenas do lixo, do dejeto,
sociedade e de deus. Quem assiste Estamira, do que pode ser descartado, na solidão, na
certamente, se recorda de que existem pes- fome, atributos que retornam á consciência,
soas que vivem no lixo, no refugo, que são mas, melhor seria se de lá não tivessem saído.
tratados como abutres, que vivem à borda, O que fica sob recalque, primordialmente, é
sujeitos com famílias sustentadas pelo que se o fato de que todo o lixo mostrado é familiar.
obtêm do lixo. Como não estranhar tal situ- É conhecido dos telespectadores e de todos
ação. Como não se incomodar com as narra- os homens, de maneira geral, pois todos são
tivas de Estamira? produtores de lixões. Os restos amontoados
Em seu artigo “O Estranho”, Freud (1919) mostrados por Marcos Prado, que estão em
aborda o fenômeno da estranheza, como estado de putrefação, já estiveram em nossas
aquilo que, um dia, já foi familiar, ou seja, ao mãos. Assim vemos os dejetos por nós pro-
se deparar com alguma imagem ou sensação duzidos e descartados, queremos esquecê-
qualquer, ocorre o retorno de uma percep- los, negamos sermos responsáveis pela for-
ção que, em um algum momento anterior, mação de montanhas de lixo, que, inclusive,
era conhecida, e, no estado atual, é percebida destroem o meio ambiente. Segundo Rinaldi
como estranha. Através da sobreposição do (2008, p.63) “é o resto que retorna e que in-
percebido da realidade externa e do vivido comoda”.
no mundo interno o elemento chave da situ-
ação de estranheza, foi, outrora, esquecido ou Esta que “mira” o social
reprimido. O conceito freudiano diz respeito O discurso de Estamira problematiza o lixo
à ideias que se associam ao retorno de uma como uma representação da própria condi-
cena que foi reprimida, fato que provoca, in- ção do homem, do quanto o homem se ape-
dubitavelmente, uma sensação de desamparo ga ao desnecessário, e como a sensação de
e angústia. Acompanhando a mesma lógica prazer trazida por este nos torna escravos do

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imediato, da máxima, “usou jogou fora”. O ouve. A personagem se utiliza da imaginação


filme e a personagem denunciam o desam- e busca a sua verdade. Ela se impõe com uma
paro humano; não só o biológico ou familiar, força narrativa que traduz suas experiências
mas, também, o social, o econômico e o po- violentas: explorada sexualmente quando
lítico. Estamira, essa que olha, é uma idéia, criança, traída pelo marido na fase adulta e
um estado de espírito no qual o ser huma- estuprada já idosa.
no pode ser mais autêntico. É uma resposta Estamira fala quase o tempo todo; seu
à negligência social. Sabe-se dessa realidade, discurso extravasa todos os sentimentos
pois ela é vista todos os dias, mas é esqueci- contidos em frases com palavras conhecidas
da, é recalcada. Mas, no entanto, ela retorna. se misturando com neologismos. A narrativa
A narrativa da personagem apresenta uma se une com uma trilha sonora angustiante e
série de elementos politicamente corretos, as imagens de um lixão: tudo impacta, tudo
demonstra códigos sociais estabelecidos, de- é tão real. Estamira tem “verdades” a serem
flagra e denuncia alguns comportamentos reveladas ao mundo. A verdade por ela rela-
humanos. tada, como afirma uma de suas filhas, são pa-
A denúncia alcança muitos níveis, tais lavras que abalam profundamente, mas, logo
como: o uso inadequado dos bens, o des- em seguida, se perdem quase por completo.
perdício, o questionamento da educação do Sabe-se que a oferta cria a demanda: Esta-
país conceituando os homens da atualidade mira demanda aos seus telespectadores sua
como indivíduos assujeitados, uma vez que, narrativa da verdade, seu discurso poético e
só reproduzem e não possuem autonomia. delirante, que na mesma enunciação ensina
Da mesma forma, critica o tratamento psi- e confunde, e, como bem disse sua filha, ‘ba-
quiátrico sem o cuidado de particularizar os lança’, faz com que pesemos nossas certezas e
sujeitos, generalizando e homogeneizando nossas ‘verdades ao contrário’, como ela diz.
o que deveria ser o mais particular, o sofri- De certo modo, a personagem se assemelha a
mento psíquico. todos nós, uma vez que, de acordo com Ven-
tura (2008, p.144) “muitas vezes buscamos a
O desamparo e a denuncia da “verdade” nossa própria verdade e porque não dizer a
O olhar de Estamira assusta. É possível ver nossa missão”.
em seus olhos que experimentou muito sofri-
mento ao longo de sua vida. O documentário Delírio, a borda do real
revela sua história, que vai sendo desvenda- O diretor oferta a escuta, assume a missão
da aos poucos. Demonstra seu cotidiano, a que lhe foi dada por Estamira. Por mais arro-
subjetividade, o modo de estar no mundo da gante, verbalmente agressiva e desagradável
personagem e os seus delírios. Seu discurso que a personagem possa se mostrar, Marcos
é, muitas vezes, um trocadilho, um equívoco, Prado dá voz a seus delírios, sustenta uma
bem como se utiliza de uma entidade, por ela ética de caráter psicanalítico, a ética da es-
criada, o “trocadilo”, esta criação mítica, se- cuta. O filme aborda a psicose e a escuta do
gundo Estamira, é responsável pelos equívo- seu dizer. O delírio é um dos pontos princi-
cos que viveu e os mal-entendidos que exis- pais tratados no filme, a personagem elucida
tem no mundo que a rodeia. o conceito ao mostrar em sua história que a
Às vezes, é difícil compreender a sonori- resposta encontrada para os abusos e as vio-
dade das palavras da personagem; é curiosa a lências a que foi e é submetida, foi uma res-
diferença que há entre assistir o filme com ou posta delirante, pois Estamira é convocada a
sem legenda, pois sem esta, a compreensão responder onde não pode, e assim responde
do que diz Estamira conta muito mais com com o delírio. Os delírios são respostas a cir-
a interpretação e a subjetividade de quem cunstâncias de sua vida composta de grande

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sofrimento e encontros com ‘tudo que é tão que também vivem na borda de um país e
real’. de um mundo que não quer saber, e prefere
Segundo Leite (2006) o encontro com a continuar vivendo adormecido em relação a
real falta do objeto, ou seja, qualquer evento situação da exclusão dos portadores de trans-
que apresente status traumático, faz com que tornos mentais. A partir do “Caso Estamira”
algo se estruture no psiquismo. Na neurose torna-se possível, ainda, notar o estigma e o
há o recalque e uma resposta ao trauma com preconceito que as pessoas acometidas por
uma fantasia e com o simbólico. Na psicose, transtornos mentais, inclusive os transtor-
como é o caso de Estamira, é o delírio que nos psicóticos, ainda sofrem da sociedade.
tenta responder ao traumático inassimilável. Inclusive com os próprios filhos, que, por ve-
A história de vida da personagem de- zes, falam das dificuldades de se ter uma mãe
monstra que ela foi uma mulher saudável com transtorno mental.
até o período da vida em que os sucessivos
encontros com a violência e as situações que A escuta e a transmissão:
não podiam ser elaboradas de forma neuró- tarefas distintas
tica, a levaram a não mais acreditar e sentir, Pensando o documentário como uma trans-
como ela fazia até então. Anteriormente, Es- missão de conceitos psicanalíticos, é possível
tamira era uma pessoa com valores religiosos analisar o tratamento da psicose que ele ope-
que acreditava em um deus, protetor e bon- ra em Estamira, na medida em que Marcos
doso. Era, também, uma boa mãe, contida e Prado permite que fale e a deixa delirar, de
controlada. modo a não barrar ou impor testes de rea-
É importante ressaltar que o delírio não é lidade. Marcos Prado, sem ter a intenção de
a psicose propriamente dita, e, sim, uma ten- qualquer expressão psicanalítica, assume um
tativa de tratamento desta. É o restabeleci- lugar de objeto que escuta e deseja saber do
mento das relações libidinais com os objetos saber da personagem, o que caracteriza de
anteriormente abandonados (Leite, 2006). forma bem consistente a função de um ana-
Trata-se de uma tentativa de recobrir um lista, que, tal como o fotógrafo, constrói um
buraco e da falta de operações simbólicas: o relato de caso.
fenômeno oferece contorno ao que não pode A escolha do diretor sobre o que foi mos-
ser simbolizado. A esquizofrenia constitui trado no documentário considera importan-
casos em que é difícil compreender a pessoa tes elementos da subjetividade de Estamira;
analiticamente, pois há um total retraimento o diretor oferece a sua escuta à personagem
da libido, o que dificulta o estabelecimento da que sofre e necessita dar voz ao seu mundo
transferência; contudo, o possível tratamen- mental. A construção de Marcos Prado par-
to da esquizofrenia também se dá na escuta tilha elementos em um trabalho conjunto:
analítica em que o objetivo é da reconstrução personagem e diretor.
da história do sujeito. É importante diferenciar que construção
Segundo Sousa (2007), os delírios da per- não é o mesmo que interpretação. A cons-
sonagem de Marcos Prado, se não conside- trução do documentário é direcionada para
rados como uma história individual e parti- o arranjo dos elementos do discurso de Esta-
cular, são entendidos apenas como loucura. mira, visando demonstrar a história e as con-
Aos olhos dos outros, é reconhecida como dutas da personagem. Já a interpretação visa
louca, não tem crédito, não se pode compre- um sentido – não há no filme uma interpre-
ender, não consegue compartilhar opiniões tação direta –, mas fica a cargo de quem as-
e crenças. Contudo, o diretor permitiu a fala siste interpretar Estamira: ela é louca, é sabia,
de uma realidade facilmente encontrada por é doente, é lúcida, é somente uma vítima? O
muitos, inclusive moradores de rua e pessoas que ela é mesmo?

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O diretor do documentário registrou al- posição ativa do diretor, uma vez que ele sai
gumas cenas com cores vivas e iluminação ao de uma posição exclusiva de escuta, para a de
natural; em outras, aplicou o efeito de preto- amigo, companheiro e provedor econômico
e-branco quase chegando à desintegração da de Estamira, papéis que não cabem a um
imagem, formas cinematográficas que dão analista. Pensado como um “caso clínico” o
maior destaque ao lixo e a miséria. Durante filme é didático, mostrando de forma ímpar
anos seguidos visitou Estamira e seus filhos, o que é a psicose – já que nesta o inconscien-
seus companheiros os catadores de lixo que, te está a céu aberto. O diretor, na montagem
assim como ela, moram no enorme e insa- final, encontrou elementos do discurso da
lubre depósito de lixo da cidade do Rio de personagem ao pé da letra, incluiu as ações,
Janeiro. demonstrando que estas são norteadas por
Marcos permite que ela se faça ouvir e re- uma posição no discurso determinada por
gistra sua revolta contra um deus estuprador Estamira. O relato se apresenta rico em de-
e médicos copiadores de receitas. O diretor, talhes, cenas e conteúdos. O diretor jamais
como o analista, busca o singular de quem deve ter imaginado que receberia uma mis-
filma/ouve, por meio do caminho que o su- são, esta muito similar a dos analistas.
jeito percorre: não atrapalha a caminhada,
segue a direção – no caso do filme – que Es- Considerações finais
tamira lhe aponta e transmite o caminho so- Estamira e o documentário convocam o ex-
litário que ela percorreu em sua vida. pectador a se deparar com seus próprios de-
A partir da psicanálise, o analista propõe jetos. Miller (2010, p.1) discorre que os deje-
ao paciente que não deixe nada de lado em tos são os elementos rejeitados, “o que cai, é
sua fala. O paciente é levado a falar sobre to- o que tomba quando por outro lado algo se
dos os assuntos possíveis, mesmo detalhes eleva”. O filme nos convoca a olharmos que
que parecem desprezíveis: a regra fundamen- o resto, o que se joga fora, retorna. O fato é
tal é a associação livre. Em contrapartida, no que, para a psicanálise, os dejetos do mental
cinema há uma seletividade na inclusão de são as formações do inconsciente, matéria-
cenas que se impõe desde o princípio; nem prima do trabalho psicanalítico.
toda imagem é importante para o diretor e Marcos Prado precisou de mais de três
para a composição do filme. O cinema que- anos para preparar o documentário, soube
bra a regra fundamental da psicanálise, pois respeitar o tempo e as limitações de Estami-
toma algumas cenas como irrelevantes, sem ra. Segundo ele, de fato, recebeu uma missão,
importância, ou absurdas. Tanto no processo a de revelar a sua história e realidade (sua vi-
de análise, quanto no cinema, quando se in- são de mundo). A Estamira resta delirar, fa-
terrompe uma sessão ou se sai da sala após o lar de sua missão e, assim, tentar imprimir
término de um filme, os efeitos continuam a uma certa ordem ao seu mundo mental; a
repercutir para alguns sujeitos e, por vezes, nós, resta-nos lidar com todo esse resto, que,
levam dias para passar. Tal é o caso da angús- por mais esquecido e descartado, volta a nos
tia ou do “estranho” que são despertados em questionar cotidianamente – na vida, na clí-
determinado momento da análise. nica e nas telas do cinema.
Os elementos utilizados por Marcos Prato
são similares à construção de um caso clí-
nico em psicanálise. Não é igual a um caso
clínico, pois, segundo Figueiredo (2004),
diferente dos casos “psicanalíticos” que têm
como objetivo transmissão e construção da
psicanálise, o documentário conta com uma

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Abstract IDE, D. S. Cinema, psicanálise; espectador, analista: cam-


This paper aims to discuss and articulate the po, contracampo. Ide, São Paulo, n.47, p.105-109, 2008.
relationship between cinema and psychoanaly-
LEITE, S. C. Delírio: contorno do real. Psyche, São
sis. To achieve this goal, it was analyzed the do- Paulo, n.17, p.157-67, jan-jun./2006.
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The film tells the story of a woman suffering MILLER, J.A. Le salut par les déchets. In: Mental: Clinique
from mental disorders who had worked for ye- et pragmatique de la désinsertion en psychanalyse, n.24.
Clamecy, avril 2010. Trad. Helenice Saldanha de Castro.
ars at the sanitary landfill (a dump) in the city
of Rio de Janeiro. Cinema as an expression of PENAFRIA, M. O filme documentário – história, iden-
art relates to various forms of psychoanalysis, tidade, tecnologia. Lisboa: Cosmos, 1999.
they also deals with the subjectivity of those
involved in film production. The director, des- RINALDI, D. O traço como marca do sujeito. Estudos
de Psicanálise, Salvador, n.31, p.59-63, out./2008.
pite not having a prior intention, holds a place
of psychoanalytic object and listens carefully, SOUSA, E L A. Função: Estamira. Estudos de Psicaná-
which resembles the function of an analyst. lise, Salvador, n.30, p.51-56, ago./2007.
Estamira passes her narrative of true that is
VENTURA, L S L. Estamira em três miradas. 2008.
outstanding, but in the same time confuses
191 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica e
and impacts. In psychosis, the case of Estami- Cultura) Universidade de Brasília. Brasília, 2008.
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events that could not be assimilated, they are RECEBIDO EM: 01/08/2011
responses to circumstances of great suffering. APROVADO EM: 12/09/2011
The character elucidates the mechanism of de-
lusion, showing that the only possible response SOBRE OS AU TORES
to the violence she experienced was the delu-
sions and hallucinations. Thiago Robles Juhas
Psicólogo Clínico e Psicanalista em Formação. Espe-
cialista em Psicologia Hospitalar, Curso Avançado de
Keywords: Psychoanalysis, Cinema, Psycho- Formação continuada em Psicologia Hospitalar: Saú-
sis, Delusions. de, Subjetividade e Instituição pelo Centro de Estudos
em Psicologia da Saúde (CEPSIC) Divisão de Psicolo-
gia (DIP) do Instituto Central do Hospital das Clíni-
cas da Faculdade de Medicina da Universidade de São
Referências Paulo – IC/HCFMUSP

Niraldo de Oliveira Santos


FERNANDES, A L. Cinema e psicanálise. Estud. Psi- Psicanalista. Membro da Comissão de Ensino da Clí-
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