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Festival impossível, curadoria provisória

Introdução:
De 26 de maio a 7 de junho, será possível assistir, aqui em nosso site,
filmes escolhidos por cada um de nossos 8 curadores para se estar em
companhia nesse momento de tantas inquietações; filmes para renovar um
campo de perguntas, diante das novas exigências do mundo.
Promoveremos ainda dois encontros (dias 30 e 31/05, às 17h) com os
curadores, para debatermos os atuais desafios da atividade de curadoria,
agora atravessada pela materialidade radical do contágio e da busca pela cura.
Provisório e impossível, o que lançamos agora não é um festival. Trata-se de
um experimento, para nos mantermos vivas, alertas e conectadas, numa nova
arte de tecer aproximações.
O trabalho para a realização do IX CachoeiraDoc, inclusive a seleção e
curadoria dos filmes, segue em curso, na temporalidade pandêmica.
Esperamos ainda nos encontrarmos no calor humano de Cachoeira quando o
tempo for propício.

Textos da curadoria:

Tempo de Feijão-Pedra, por Ramayana Lira

Dos filmes que vi no processo de curadoria para o CachoeiraDoc os que


mais me impressionaram foram os que pareciam querer adiar o fim do mundo.
Se, por um lado, é completamente compreensível que, no Brasil, boa parte do
pensamento e da criação artística tenha sido capturada pelo catastrófico
resultado das eleições de 2018, uma outra parcela de obras se arrimou no
presente de grupos e comunidades que insistem no ainda não!. Ora, é certo
que, por um lado, são vários os mundos que desmoronam; contudo, por outro
lado, há os mundos cuja emergência os filmes captam e constroem. Se, para
João Cabral de Melo Neto, escrever se avizinha do catar o feijão, também o
gesto curatorial enfrenta o risco de encontrar “o grão imastigável”, aquele que
“obstrui a leitura fluviante, flutual, açula a atenção” (“Catar feijão”). É esse
imastigável, essa pedra em meio ao feijão, ou antes, esse feijão-pedra, esse
disforme, esse cuja forma é um não-ainda, que me interessou. Entre imagem e
mundo, a fricção se dá por aquilo do mundo que, na imagem, ainda não se
con-figurou, ou já se des-figurou, ou seja, não é novo ainda, ou já o deixou de
ser há muito.
A provocação do nosso presente imediato é entender, na dobra da
temporalidade do “ainda não” e dos rastros e pistas do “não mais”, o tempo de
um agora simultaneamente esvaziado e intensificado. Tempo, tempo, tempo. A
curadoria tornou-se, antes de tudo, rinha com o tempo. Esse tempo esquisito
de pandemia que, como na persistência da memória de Dalí, dissolve relógios,
desregra rotinas, desmantela metrônomos. Um tempo troncho, esquisito. Um
tempo queer. Pessoas queer desde cedo ensaiam a dança em outros tempos,
outras pulsações. Há uma nossa parte queer que sofre muito com o tempo
pandêmico (muito em função da necessidade de respondermos ao que o
tempo da normatividade nos impõe). Contudo, há, também, um repertório vasto
de temporalidades experimentais que criamos, como diz J. Halberstam, através
de uma lógica que foge aos marcadores paradigmáticos da experiência:
nascimento, casamento, reprodução, morte. Inventamos através dessa lógica.
Recolocamos a necessidade do “ainda não”.
Curar, deitar a carne ao sol, esperar que o tempo cure. Uma espera, um
“ainda não” (não seria exatamente aí que acontece a imagem técnica, na
espera antes do clique, do rec?). O que “ainda não” na imagem, o feijão-pedra.
O que permite adiar o fim e sonhar o futuro (não um futuro preenchido por
alguma teleologia, mas o futuro como possibilidade ainda não configurada). Foi
isso que vi em À beira do planeta mainha chamou a gente, de Bruna Barros e
Bruna Castro.

À beira do planeta mainha soprou a gente (Bahia, 2020, 13 min.)


Direção: Bruna Barros e Bruna Castro
Sinopse: Recortes de afeto entre duas sapatonas e suas mães

O Futuro Chegou, por Rayanne Layssa

Futuro é uma palavra que me dá ansiedade, o castelo que se forma na


minha cabeça quando penso em futuro é gigante, me deixa sem dormir. Falo
de um lugar bem pessoal, do meu futuro, por exemplo; quando penso como
vou estar daqui a 10 anos, eu entro em pânico. A maneira mais eficaz que eu
tenho pra controlar toda essa crise é começar a pensar no futuro a partir do
presente. Entender que o futuro é agora, que ele já chegou, entender o que
posso fazer com as ferramentas desse agora. É muito menos um papo de viver
o presente e muito mais de observá-lo.
É pensando nesse Agora que eu quero compartilhar com vocês REBU –
A Egolombra de uma Sapatão Quase Arrependida, curta-metragem da diretora
pernambucana Mayara Santana. Diretora e personagem, Mayara compartilha
sua vida com o espectador através de um deboche de sua geração, repleto de
prints, fotos guardadas em HD, memes, conversas antigas de MSN e vídeos do
YouTube. Produzido para a Internet. Um documentário com playlist no Spotify
(que eu escutei enquanto escrevia esse texto).
As crianças dos anos 2000 cresceram e agora contam suas histórias
através de uma outra maneira de criar e compartilhar imagem.
Rebu é um filme do presente, tanto pela forma, quanto pela trajetória
“textão” de Mayara, que precisou abraçar as oportunidades no passado, no
Loteamento Riacho de Prata “que era longe de tudo, mas o sonho da casa
própria de quem sempre viveu no corre” pra no agora abrir seu coração
sapatão pra uma auto reflexão sobre sua vida afetiva através de seus erros,
amores, abusos e raivas. O futuro já está acontecendo.

Rebu – A Egolombra de uma Sapatão Quase Arrependida (Pernambuco,


2019, 21 min.)
Direção: Mayara Santana
Sinopse: Documentário em primeira pessoa que se propõe a investigar dentro
da minha vivência sapatão as diversas performances de masculinidade,
levando em conta meus três últimos relacionamentos e também com
entrevistas com o homem com o qual eu cresci, Pedro Bala, meu pai. O filme
pretende abordar com descontração, temáticas como o talento paquerador,
flexibilidade com a verdade, relacionamento abusivo, irresponsabilidade afetiva,
reprodução de machismo, impulsividade e romance. Temas que permeiam a
vida dos dois personagens, mesmo que separados por um recorte geracional,
cultural e de gênero.

Caminhando entre desmontagens e construções, por Fabio Rodrigues

Partindo de aparições da bandeira do Brasil em alguns filmes do


conjunto de inscritos no IX CachoeiraDoc, aparições por vezes
fantasmagóricas – em posições coadjuvantes ou desmontadas em primeiro
plano –, de modo, muitas vezes, a romper com o discurso de ordem e
progresso, sondaremos como alguns desses filmes têm pensado o Brasil a
partir do agora, especialmente a partir da retomada do arquivo do agora. O
movimento será duplo: ao passo que nos interessa os filmes que falam
diretamente “Brasil”, também acolheremos um movimento de filmes em que a
retomada de imagens de arquivos, muitas vezes registros familiares, é
acompanhada da construção de legibilidades que nos colocam frontalmente a
questão de desaprender/reaprender o país pela memória que se reúne ali ou
se constrói a partir dali. Portanto, indiretamente esses filmes falam “brasil”
naquilo que essa palavra, por assim dizer, não diz. Nesse caso, uma espécie
de arquivo mínimo parece precipitar, ao seu modo, a grande narrativa
identitária do país. Em ambos os casos, uma espécie de política de memória
parece emergir na relação e aproximação desses filmes tão distintos,
aproximados por um fantasma ou uma centelha. A partir desse duplo
movimento, pensaremos com o filme Fartura (2019), curta-metragem dirigido
por Yasmin Thayná, essa relação que chamamos apressadamente de o
“máximo divisor e o mínimo múltiplo comum”, no intuito de dá a ver a disputa
pelas imagens colocada em cena. Estruturado em três tempos, o filme de
Yasmin pensa a comida em sua relação ritual, na sua sabedoria e fazer
ancestral, em sua dimensão de cura e, enfim, na sua multifunção de
alimentação do corpo, da alma e dos espíritos. O filme parte de uma quase
sintomatologia das fotografias de famílias negras – atendo-se ao modo que se
dá a ver a comida na composição da imagem – para pensar como o alimento é
um ponto de partilha e conexão: o comer (e o dá de comer) como questão
fundamental e de fundamento. As entrevistas seguem, ao longo do filme, em
tom de conversa entre as personagens e a diretora, incorporando na paisagem
sonora o ambiente festivo em que são colhidos os depoimentos – note-se que
a dimensão da festa não se separa aqui do cuidado e cultivo da vida e nem se
confunde com a pura e simples comemoração. Pouco a pouco, o filme funda
um arquivo (porque reúne imagens e relatos tantos e dispersos) que diz de
uma memória de luta, de uma força ancestral e, através das fotografias, dos
corpos eles mesmos como manifestação. Se, no caso do arquivo do agora,
esboça-se a tentativa de desmontar a imagem-símbolo nacional, no segundo, é
a memória em construção que faz confronto à identidade nacional.

Fartura (Rio de Janeiro, 2019, 26 min.)


Direção: Yasmin Thayná
Sinopse: A partir de imagens domésticas, a comida revela um modo de viver
em comunidade.
Thinya e a possibilidade de reinventar memórias, por Evelyn Sacramento

Em um universo pós-colonial, Thinya (2019), curta metragem dirigido por


Lia Letícia, traça um compromisso com as novas possibilidades de imaginar, é
o sarcasmo, uma risada na cara da narrativa que se pensa oficial, porém, nada
mais é que os primeiros passos da visão eurocêntrica sobre os povos
indígenas.
Thinya é o nome indígena de Maria Pastora, aquela que dá voz ao filme,
sua narração em voz off de excertos retirados dos livros Duas Viagens ao
Brasil (1557), de Hans Staden e Viagens pelo Brasil (1823), de Spix & Martius,
traduzidos para a língua Yaathê dos povos Fulni-ô de Pernambuco, é a trilha
sonora que percorre com a câmera, antigas fotografias do cotidiano da
sociedade alemã, tiradas entre os anos 60 e 90.
A diretora Lia Letícia lança mão de um álbum de fotografia encontrado
num mercado nas ruas de Berlim, ocasião em que ela realizava uma residência
artística, juntamente com a narração em voz off, o que vemos nessa
composição sonora e visual, é a possibilidade de reinventar memórias, ou de
imaginar um novo passado e prospectar o futuro.
Cruzando o real com o imaginado, o filme aflora a imaginação sob uma
perspectiva anticolonial, ao passo em que coloca os brancos em uma posição
irônica e exotizante, subvertendo o discurso hegemônico acerca dos povos
indígenas. Através de uma investigação poética, Thynia nos convoca a
questionar a construção da sociedade, expondo sua perversidade a partir das
memórias culturais e históricas que as fotografias nos impõe, produzindo deste
modo, um cinema que se propõe descolonial, qu ando a h istória é contada
conforme o ponto de vista negro e indígena.
Num momento em que a democracia do país está em risco, e o
extermínio dos povos indígenas segue sua política genocida governamental
que cruza séculos a fio, se faz necessário questionar a história, e trazer para o
centro novas formas de pensar as sociedades indígenas através do cinema,
que se instaura aqui, enquanto ferramenta questionadora, de enfrentamento e
resistência.

Thinya (Pernambuco, 2019, 16 min.)


Direção: Lia Letícia
Sinopse: Minha primeira viagem ao Velho Mundo. Minha fantasia aventureira
pós colonial. [Um discurso muda uma imagem?]

Relatos de uma curadoria provisória, por Kênia Freitas

Como assistir aos filmes em meio a essa pandemia? A minha cabeça


parece vagar entre esse conjunto de imagens e sons muitas vezes se
perdendo em pensamentos outros – a doença, a necropolítica, as mortes, o
futuro incerto. Ansiedade e paranoia e algumas tentativas de luto. E os filmes
continuam ali, passando… – como devem.
Jota Mombaça tem um texto em que fala da “Parábola do Semeador”
(Octavia Butler) chamado “Lauren Olamina e eu nos portões do fim do mundo”
(2016). Nas parábolas (do Semeador e dos talentos), Lauren Olamina (a quem
Mombaça se junta nos portões do impossível) é uma mulher negra diante do
apocalipse (econômico, ambiental, social) buscando não apenas sobreviver ao
presente catastrófico, mas criar raízes entre as estrelas como um plano de
futuro. Penso que Butler sabe das coisas e fico procurando essas estrelas e
raízes.
Voltando à Mombaça em seu portal, nesse texto, ela lança uma
definição que tem me acompanhado cada vez mais: a de um pessimismo vivo:
“capaz de refazer indefinidamente as próprias cartografias da catástrofe, com
atenção aos deslocamentos de forças, aos reposicionamentos e coreografias
do poder. No limite, falo de um pessimismo que é nada mais que um estudo, no
sentido trazido aqui a partir de Moten e Harney: um plano de fuga” (Mombaça,
2016: 48). Um pessimismo vivo que não é desistência, mas plano de fuga.
E o que me inquieta é justamente essa necessidade de seguir, de traçar
estudos e rotas de fugas diante do cenário atual. Se é necessário acabar o
mundo como nós conhecemos para recomeçar o mundo (como a Denise
Ferreira da Silva sugere e eu acredito), como a gente passa por esse fim do
mundo? O cinema e as suas imagens e sons dão conta disso? Deveriam dar?
Nesse momento, só posso dizer que não sei. E lembrar novamente das
palavras das parábolas de Butler: “Para ressurgir das próprias cinzas uma fênix
deve primeiro queimar”.
Voltei brevemente aos filmes inscritos para o CachoeiraDoc esses dias,
a partir da provocação dessa curadoria provisória nesse festival impossível.
Voltei de forma bem errática, pescando coisas ali e aqui que pulsavam
diferente – a cabeça vagando e os filmes que passam (ainda bem!). Como
apontava as impressões coletivas, reencontrei ali de fato muitos filmes que se
dirigem a um passado próximo de golpes parlamentares-midiáticos e
resultados de uma eleição ainda inconsolável. Um passado tão recente e
também já incrivelmente distante em desejos e anseios desse agora. Isso me
parece mais culpa do tempo traiçoeiro, do que dos filmes. Os filmes passam e,
às vezes, a gente não consegue vê-los.
Consegui enxergá-los um pouco mais procurando as tais raízes entre
estrelas ou algumas cartas do futuro – talvez até melhor falar em cartas de
depois do futuro, para retomar a ideia do Franco “Bifo” Berardi para isso que
virá e a gente não consegue ainda vislumbrar diante da nossa ausência de
imaginação e perspectiva. Umas imagens e sons que me parecem
endereçados para estratégias de sobrevivência e de cura para nossos incertos
tempos vindouros.
Falo aqui de filmes como: “O arco do tempo”, do Juan Rodrigues (que
nos grita que não estamos sozinhos de algum lugar do espaço), “Lembrar
daquilo que esqueci” da Castiel Vitorino (que nos prepara para a cura) ou
mesmo o já tão viajado intergalaticamente “Negrum3”, do Diego Paulino (com
Aretha Sadick chegando na nave de Sun Ra para nos fazer mover para além).
Para essa conversa, permeada de impossibilidades e provisoriedades,
eu acabei cismando com o filme de guerrilha “Relatos Tecnopobres” de João
Batista Silva. Essa ficção especulativa em si tecnopobre que parece cada vez
mais um documentário do nosso presente. Com o filme gostaria de pensar
junto sobre como forjar – no possível e no impossível – essas estratégia de
sobrevivência e de vida, amparadas por esse pessimismo vivo que nos guia.
Buscando para agora formas de ver/rever/desver o cinema com suas imagens
e sons que passam.
Relatos Tecnopobres (Goiás, 2019, 13 min.)
Direção: João Batista Silva
Sinopse: Após o apocalipse político de 2019 graves violações aos direitos
humanos foram cometidas contra as populações tradicionais e periféricas
visando à sua extinção. Em 2035 os sobreviventes lutam pelo direito de viver e
articulam uma revolução.

Inoperante, por Otávio Conceição

É notável como o cinema pode ser atemporal em certas situações.


Como ele pode ressignificar o que já foi dito para reafirmar o presente.
Estamos em um processo de espera, de cura e de inquietação. A
sensação de que estamos vendo as coisas acontecerem sem a nossa
interferência diária é algo novo e revelador. O que acontece quando não
interferimos? Existe mudança? Acho que seria a primeira vez que não temos
um vislumbre do futuro.
A escritora Octavia Butler em uma de suas frases mais célebres diz:
“Tudo que você toca você muda,
Tudo que você muda, muda você.
A única verdade que persiste é a mudança.
Deus é mudança.”
“Tipoia”, do Paulo Silver, expressa bem a inquietação atual. A sensação
de ter que ficar em modo inoperante, ver as coisas acontecerem sem o nosso
toque, ansiando o fim do tratamento para que o processo de cura seja
finalizado (inclusive o próprio nome do filme exprime bem isso), é algo que me
fez sentir levemente otimista, mesmo que o filme não passe essa mensagem,
na verdade ele vai contra a maré e termina como a própria sinopse define o
filme: “obra inacabada, antes que seja tarde”. Porém, mesmo com o
alargamento do tempo, podemos nos agarrar ao sentimento de que tudo é
mutável, essa é atualmente “a única verdade que persiste”. Mesmo sem o
nosso toque. E isso é bom.

Tipoia (Alagoas, 2018, 16 min.)


Direção: Paulo Silver
Sinopse: Obra inacabada. Antes que seja tarde.

De limbos e saídas, por Patrícia Mourão

If there was ever a festival in limbo it would be called “Oblivion”


Robert Smithson, 1971

Há sessenta dias toda minha experiência visual do mundo externo


chega-me a partir de um movimento mínimo, de não mais de 45º, no eixo do
meu olhar: da tela do computador ou celular para a janela, atrás da qual uma
fileira de prédios, repletos de outras janelas, parecem-me, passados dois
meses, um espelho do meu lado da rua – talvez seja meu eu-felino quem eu
veja toda manhã a tomar sol sobre uma máquina de lavar, às 9h45, quando o
sol matinal bate anguloso no prédio da frente. Minha existência foi reduzida aos
gestos mínimos – do olhar, para cima e para baixo; dos dedos, digitando,
clicando, deslizando pela pele da tela. Estou no limbo.
Mas o limbo não começou dia 16 de março. Esse (ou dia 24, para
alguns) foi apenas o dia em que relógios biológicos individuais foram regulados
e passaram a viver no mesmo ritmo e pulsação do limbo. O dia em que a
minha imobilidade coincidiu com a de muitos. Mas já estávamos no limbo há
bastante tempo.
O limbo não tem saída – benza Deus a Igreja Católica o aboliu
recentemente. Ele é a fronteira tornada mundo, pedra, todo. Ele é a experiência
da fronteira ampliada até que pareça não haver mais fora. Mas é possível
inventar saídas. É um dever inventar saídas.
Uma saída não é um escape. Uma saída exige ter os pés firmes no
chão, exige “ficar com o problema”. A barra de rolagem é escape. O meu
vizinho felino e a angulação do sol sobre o concreto é saída.
Donna Haraway está aqui. Ela me diz que a tarefa é aprender a “ficar
com o problema de viver e morrer bem, com responsabilidade, em uma terra
danificada e um tempo denso”. Ela me diz que ficar com o problema é habitá-
lo, é estar ficando no presente e não se projetar no futuro. Não somos um
ponto cego entre um passado edênico ou assustador e um futuro salvacionista
ou apocalíptico – é o que entendo.
Patrícia FerreiraPará Yxapy está aqui. Ela me chega de uma das minhas
muitas janelas abertas no computador. Vejo-a andando em Nova York, na
Times Square – na minha lembrança, o ponto mais luminoso, acelerado e
demograficamente denso daquela cidade. Um lugar onde tudo é tela e tudo é
imagem: as empenas dos prédios, os celulares e câmeras dos turistas. Não
consigo imaginar alguém parado na Times Square, olhando fixamente para um
ponto. Olha-se o fluxo, a passagem das luzes, das imagens, até que se vire
imagem e parte do fluxo. Está-se ali para ser submerso pelo excesso, para se
deixar de ser.
A Times Square é o meu computador durante a quarentena: um sem
número de janelas luminosas abertas por onde circulam notícias sobre o delírio
Brasil, gráficos com a “evolução da curva do vírus”, mensagens de amigos, de
familiares, promoções do rappi, da drogaria, do mercado, do sex shop, textos
sobre cogumelos, polvos, algas marinhas, receitas, boletins informativos de
exposições virtuais. Eventualmente, músicas concorrentes e diálogos em
diferentes línguas também acontecem ao mesmo tempo, sem que eu possa
identificar sua fonte.
A Times Square é a barra e rolagem, a síndrome maníaca de produção
de opiniões, diagnósticos e prognósticos.
A Times Square é o Brasil pós 2018: um gif repetindo um trauma, um
buraco no tempo, uma ruptura com o devir.
A Times Square é a lacração, o grito impotente, o gozo na repetição.
A Times Square é o limbo.
A Patrícia me ajuda e me ensina a buscar a saída. Vejo-a na Times
Square, filmada por André Lopes e Joana Brandão. E então não a vejo mais;
ela tem a câmera dos realizadores na mão. Em questão de segundos, a
câmera encontra um pombo, desce ao nível da calçada e fica com o pombo.
Há um pássaro na Times Square, indiferente à Times Square; e a câmera da
Patrícia. Todo o resto são fantasmas, mortos-vivos presos em um espaço sem
tempo. Menos o pombo e a Patrícia.
Seu deslocamento das luzes para o pombo não me parece produto do
desespero, tampouco do desprezo. Ele não é escape, fuga. É saída.
Vejo-o como consequência de um aguçamento da atenção, um
enraizamento no presente; movimento de abertura e acolhimento mais do que
julgamento ou recusa.
A cena dura poucos minutos, um instante, uma pequena emergência no
filme. Vou em busca de outras imagens da Patrícia. Encontro-a em outro filme,
dessa vez uma co-direção. Ela filma a Sophia, enquanto esta chora. Ela a filma
de perto, muito de perto; o foco nunca estável, sempre na iminência de ser
reencontrado ou perdido. Escuto-a rindo da Sofia e de seu choro; um riso
amoroso, de desconcerto, impotência e piedade, frente à jovem cineasta
branca, a qual chora suas angústias e inseguranças éticas. É uma imagem de
intimidade entre duas mulheres, no entanto, apartadas por origens e
experiências. Patrícia fala de si, sobre ficar presa a um sentimento de raiva, de
ódio. Fala sobre estar doente, sobre a solidão e a impotência.
É como se ela falasse da Times Square. Ela conta sobre ter ficado dois
anos sem andar, imóvel. A memória da imobilidade transforma-se em ponte.
Sofia também tem essa memória. De novo, Patrícia encontra uma saída. Não
um escape, não uma fuga. Uma saída na imobilidade.
Penso em Patrícia como um paradigma curatorial em tempos densos,
em uma terra devastada. Ela me salva. Com ela aprendo a levantar o olho da
janela do computador para as janelas lá fora. Com ela aprendo a acompanhar
o sol, a encontrar o gato, a me tornar gato. Com ela quero aprender a viver
com o problema, a desacelerá-lo, a sustentar a imobilidade até que seja
possível olhar um pouco mais abaixo, um pouco mais acima.

New York, just another city (São Paulo, 2019, 18 min.)


Direção: André Lopes e Joana Brandão
Sinpose: Jovem liderança e realizadora audiovisual, Patrícia Ferreira vem
sendo reconhecida pelos documentários que realiza com o seu povo, os
Guarani Mbya. Ao ser chamada para debater seus trabalhos em um dos
maiores festivais de cinema etnográficos do mundo, o Margaret Mead Film
Festival, realizado no Museu Americano de História Natural, em Nova Iorque,
Patrícia se depara com uma série de exposições, debates e atitudes que a
fazem refletir sobre o mundo dos “juruá”, contrastando-o com os modos de
existência guarani.

Teko Haxy – ser imperfeita (Goiás, 2018, 39 min.)


Direção: Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro
Sinopse: Um encontro íntimo entre duas mulheres que se filmam. O
documentário experimental é a relação de duas artistas, uma cineasta indígena
e uma artista visual e antropóloga não-indígena. Diante da consciência da
imperfeição do ser, entram em conflitos e se criam material e espiritualmente.
Nesse processo, se descobrem iguais e diferentes na justeza de suas imagens.

Santíssima Trindade: quem filma, o que filma, por que filma?, por Álex
Antônio

“Reagir à dor é também saber recontar essas histórias. Falar da dor nos
permite começar a cura da dor (se é esse nosso projeto). Olhar a ferida nos
permite perguntar: como tratar a ferida? Como transformar a cicatriz em
tatuagem?”
SENA, Kika

No cinema negro hoje, dentro das muitas pautas, a dor tem sido um
caminho muito seguido, seja ela como ponto de partida para ressignificar nosso
futuro ou como o pivô para um tensionamento presente no filme. Em um dos
vários momentos (bem antes dessa nova pandemia mundial estar anunciada)
em que parei para refletir sobre o filme e as questões que me faziam entrar em
conflito com ele, me deparei com a publicação da capa do álbum recém
lançado do rapper mineiro Djonga intitulado, “Histórias da minha área”, em que
ele e mais quatro colegas se deparam com os próprios corpos estendidos no
chão de um beco. Nesse momento estava eu e mais dois colegas (Dani
Apenas e Danrlei Moreira) e Dani nos questionou o que tínhamos achado da
capa, se não era usar da dor do “outro” para um sucesso próspero. Eu e
Danrlei simultaneamente falamos que tudo é uma questão de perspectiva.
Quem fala dessa dor? Essa pessoa vivencia/compartilha aquilo ou só está ali
dentro de uma curta relação como espectador do/a outro/a? Trindade nos faz
abrir um leque de questionamentos e reflexões sobre as relações de quem
filma e quem é filmado e todas as questões éticas que permeiam o
documentário.
O cinema é um campo de constante mudança, está sempre se
(re)moldando e moldando quem faz o uso dele das diversas formas possíveis e
nós enquanto parte desse universo, a todo momento, temos que (re)pensar
como o fazer filme e o fazer para que haja filme são campos delicados em que
estamos diante da alteridade, do real, da “diferença”. E quando se trata de um
corpo negro(a), temos que ser o mais cuidadoso possível para não acabarmos
(re)construindo certas imagens que já se perpetuam nesses corpos.

Trindade (Minas Gerais, 2020, 28 min.)


Direção: Rodrigo R. Meireles
Sinopse: Trindade ouve os ecos da escravidão desde menina. Agora, é ela
quem canta.

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