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Patrícia Cristina de Aragão

Alcione Ferreira da Silva


(ORGANIZADORAS)

DIVERSIDADES,
CULTURAS, EDUCAÇÃO
E RE-EXISTÊNCIAS:
CONSTRUINDO O
MUNDO QUE VIRÁ
(VOLUME II)
Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.

Capa e Projeto Gráfico


Déborah Letícia Ferreira de Sousa

Conselho Editorial
Profa. Dra. Lilian Barbosa (UPE, Brasil)
Profa. María Isabel Pozzo (IRICE-Conicet-UNR, Argentina)

Comitê Científico
Profa. Dra. Eva Paulino Bueno (St. Mary´s University, Estados Unidos)
Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB, Brasil)
Profa. Dra. Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho (UNESP, Brasil)
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly (Aswan University, Egito)

Patrícia Cristina de Aragão e Alcione Ferreira da Silva [Organizadoras]

Diversidades, culturas, educação e re-existências: construindo o mundo


que virá (Volume II) - São Paulo: Mentes Abertas, 2023.

391 p.: il.;

ISBN: 978-65-80266-87-6
DOI: 10.47180/978-65-80266-87-6

1. Diversidade. 2. Cultura. 3. Educação. 4. Resistência. 5. Existência.


I. Título

CDD: 370
SUMÁRIO

Prefácio - Educação e emancipação social: caminhos


Para a decolonização do futuro .......................................................................... 7
Aluízio de Azevedo Silva Júnior

A luta e resistência das histórias invisíveis de uma terra


de mulheres chamada Conceição das Crioulas .......................................... 25
Fabiana Vencezlau
Maria das Graças da Silva

As políticas de inclusão no curso de direito da UERN:


adequações dos documentos legais ............................................................... 43
João Paulo Barbosa
Ana Lúcia Oliveira Aguiar
Stenio de Brito Fernandes
Aleksandra Nogueira de Oliveira Fernandes
Francinilda Honorato dos Santos

Batalha do Pedregal: saberes e fazeres juvenis como


patrimônio cultural imaterial da cidade de Campina Grande ............ 65
Gabriel Lopes Dantas
Patrícia Cristina de Aragão

A liberdade na aprendizagem ambiental cigana


dos mitos e ritos kalon ............................................................................................ 81
Aluízio de Azevedo Silva Júnior

O toque das águas Pankararu ......................................................................... 104


Josélia Ramos da Silva

Seria cômico, se não fosse “trágico”: análise de memes


sexistas em uma aula remota ............................................................................ 117
Josélia Ramos da Silva

A memória ao saber, do saber a liderança: ressignificando


ser mulher negra e quilombola ........................................................................ 137
Jessika Cristina Silva Santos
Patrícia Cristina de Aragão
De comunidade rural à comunidade remanescente quilombola:
a trajetória do processo de reconhecimento identitário
e territorial da comunidade Santa Rosa, Boa Vista/PB ....................... 155
Alyne Cristiane Silva Araújo
Cristiane Maria Nepomuceno

Por uma cartografia das escrituras do candomblé ................................ 172


Jackson Cícero França Barbosa

Políticas públicas e as comunidades tradicionais no estado do


Rio Grande do Norte, Brasil: etnicidade em questão ........................... 190
Geraldo Barboza de Oliveira Junior

Tentativas de silenciamentos: Plano Nacional de Educação


(2001-2024) e o avanço das políticas antigênero no Brasil ............. 214
Liliann Rose Pereira de Freitas
Fábio Ronaldo da Silva
Rosilene Dias Montenegro

Codificação Queer: a qualidade e presença da representatividade


LGBTQIA+ através do figurino em meninas superpoderosas ......... 231
Matheus Caldas Alves da Silva
Francisca Raimunda Nogueira Mendes

Ecos do terreiro na escola: a musicalidade afro-brasileira como


ferramenta didático-pedagógica .................................................................... 247
Augusto Sérgio Bezerra de Oliveira
Robéria Nádia Araújo Nascimento

Diálogos entre a educação popular e a formação crítica e humanitária


dos juristas: as experiências extensionistas do NAJUP-JE
na comunidade quilombola do Cedro em Mineiros - GO .................. 265
Marcos Vinícius Ferreira da Silva
Angélica Ferreira de Freitas
Phillipe Cupertino Salloum e Silva

A literatura surda e suas contribuições no campo


dos estudos surdos ................................................................................................. 281
Maria Aldenora dos Santos Lima
Israel Aparecido Gonçalves
As opressões de gênero e raça: um estudo onto-histórico
na sociedade de classes ....................................................................................... 298
Rosângela Ribeiro da Silva
Bárbara Zeferino
Layslândia de Souza Santos
Emanuele Cordeiro de Sousa

Anotações filosóficas sobre gênero e sexualidade ................................ 317


Flávio de Carvalho

Coisa de macho: as masculinidades reverberadas entre jovens


estudantes do Ensino Médio de uma escola pública
na cidade de Campina Grande-PB ................................................................. 331
Maria Lidiane dos Santos Mota
Jussara Natália Moreira Belens de Melo

Saberes intergeracionais da arte do barro na comunidade


tradicional de ceramistas Chã da Pia, Areia-PB ....................................... 353
Darnley Dias Campos
Márcia Adelino da Silva Dias

A relevância de Anibal Ponce para a compreensão


do complexo educativo ........................................................................................ 367
Adriana Mota de Oliveira Sidou
José Deribaldo Gomes dos Santos
Adele Cristina Braga Araújo
O LIVRO
Eu vim de lá,
Onde o estado vende a paz, para lucrar com as armas.
Nesse espaço, a esperança costuma falhar.
Nossas lagrimas regam os corpos estendidos no chão,
E eu? Eu só queria pegar no livro para ler,
Mas as balas gritam mais alto que as vozes dos meus ancestrais.
Estudar a curto prazo não é lucrativo para o capitalismo.
Na esquina há emprego, que a saída é morte ou prisão,
Na esquina da universidade, sapatos de cristais pisam em pés descalços.
Resistir é uma posição que nos deixam fartos.
Qual soldado gosta de ficar na linha de frente em uma guerra?
Na disputa entre tráfico e estado, qual nos matará primeiro?
Nesse caso; eu? Eu só queria pegar no livro para ler.
Minha mentem está cheia, mas minha barriga não.
Na ceia natalina, papai Noel da favela, é inimigo da TV.
Aqui é onde Zé do Caroço é silenciado,
Vejo Zumbi dos Palmares na esquina, isolado e com depressão,
Nossos irmãos seguem lutando tipo a Marielle,
Doando suas vidas para nessa sociedade, construírem uma transformação.
Entre a disputa da mudança do nosso espaço,
A mesmice tenta nos destruir,
E eu? Eu só queria pegar no livro para ler.
Pois a leitura é libertadora,
A educação constrói pontes,
Onde nós somos os agentes renovadores.
A educação não muda o mundo, como diria Paulo Freire,
Ela muda nossas vidas, e nós mudamos nossa realidade.
Na favela, entre o caos daqueles que nos querem mortos,
Ergui minha “arma” para o alto: MEU LIVRO!
Disparei contra todos meus amigos, “rajadas” de: INFORMAÇÃO!
Com a presença ou não do estado, construímos nossa revolução.
Então presenciei o seguinte fato:
Cortaram os dreads do meu amigo negro,
Igualmente ao caso de Sanção, para tirar suas forças,
Mas, como Rosa Parks, meu amigo gritou: “Hoje não”.
Afinal, através de mim, ele pegou o livro para ler.
(Poeta Gabriel Lopes Dantas).

Oficina do Pedrega. BATALHA DO PEDREGAL.


Campina Grande, 26 de jul. de 2019. Instagram: @batalhado
PREFÁCIO

EDUCAÇÃO E EMANCIPAÇÃO SOCIAL: CAMINHOS


PARA A DECOLONIZAÇÃO DO FUTURO

O tempo pediu ao Tempo


Que tempo o Tempo lhe desse,
Para fazer com o tempo
Tudo que o Tempo quisesse.
Cancioneiro dos Ciganos, p. 115 in Mello Morais (2018)

O verso acima está no Cancioneiro dos Ciganos, primeira pu-


blicação acerca dos povos ciganos no Brasil (1885) e ocorre em ver-
sões diferenciadas também na cultura popular brasileira. Em prin-
cípio pode parecer apenas um jogo desinteressado em torno do
sentido da palavra tempo, interpretada como substantivo e como
adjetivo. Mas a questão do tempo é central tanto para a vida e para
a sociedade, quanto para a formação e continuidade de culturas,
tradições, identidades, valores e qualquer construção social.
Os modos como sentimos e compreendemos o tempo não
possui um sentido único, fixo e acabado. A percepção temporal
tem mudado enormemente ao longo da história, possuindo dife-
renças entre as distintas culturas e povos e entre as visões acadê-
micas. Do ponto de vista da sociedade e da ciência hegemônica
ocidental, na concepção de Boaventura de Sousa Santos (Santos,
2002b, p. 247), por meio da imposição da “monocultura do tempo
linear”, trata-se de uma forma de produção da “não existência”, que
aliada à monocultura do saber, tem invisibilizado e silenciado histo-
ricamente povos e grupos sociais.
Baseando-se na concepção de história, que tem sentido e di-
reção únicos e já conhecidos, essa monocultura no modo de com-
preensão do tempo, aplicou conceitos como progresso, evolução,
desenvolvimento e globalização, entre outros, generalizados para
todo o planeta. A concepção do tempo cronológico, privilegia paí-
ses, instituições, sociabilidades ou povos do norteem oposição a
outros povos e países do sul. Essa lógica produz inexistência, ao
declarar atrasado tudo que é assimétrico em relação ao declarado
avançado.
Fundamentando-se numa ideia de não-contemporaneidade
do contemporâneo, a monocultura do tempo linear esconde uma
assimetria dos tempos históricos, a exemplo, das categorias de pri-
mitivo, tradicional, pré-moderno ou subdesenvolvido (SANTOS,
2002b). Essa visão rege o modo de organização mundial, a partir
da contagem Cristã (Antes e depois de Cristo) dos anos. Também
rege o modo de compreensão e dos sentidos em torno do tempo,
colonizando ou apagando outros modos de compreensão do tem-
po. O tempo circular ou cíclico, típico das mitologias e rituais, do
sagrado e do profano, apresentado pelos povos não europeus, foi
abolido das esferas de pensamento ocidental.
Tal configuração, impôs que a cultura e os povos europeus
estariam no ápice da civilização humana e todos os outros povos
do planeta estariam em outros estágios inferiores e menos evo-
luídos, alguns, ainda vivendo sobre o tempo das pedras lascada e
polida. Nesta concepção, indígenas brasileiros, aborígenes austra-
lianos, povos africanos e povos ciganos foram classificados como
povos primitivos pelos estudiosos europeus, uma vertente que se
efetivou sobretudo na antropologia evolucionista e na sociologia
positivista.
A colonização ocorreu não apenas do tempo, mas sobretudo
do espaço, por meio opressivo, cujo início ocorreu com a moderni-
dade ocidental. Nesta perspectiva, a ideia de progresso via modelo
de globalização capitalista, foi vendida para todo o mundo como
salvação e integração natural de todas as sociedades humanas,
independente do estágio em que estivessem. Pautada pela apro-
priação e violências físicas, esta operação também é cognitiva e
simbólica, se efetivando por meio da colonialidade, face oculta da
modernidade.
A colonialidade revela a perspectiva histórica dos marginali-
zados, compreendendo que os avanços da modernidade fora da
união europeia, dependem de uma matriz colonial de poder que
estrutura a lógica do domínio colonial, subjaz ao controle europeu
e estadounidense da economia e da política do atlântico, de onde
se estende a todo o mundo (MIGNOLO, 2005, p. 32).
Tal lógica vem produzindo e implantando tecnologias de si-
lenciamento, ocultação e morte (QUIJANO, 2005), que objetivam
não apenas moldar as sociedades latino-americanas, como tam-
bém gerar mecanismos de diferenciação e de alteridades e subje-
tividades subalternas, forjando identidades coletivas, inclusive das
sociedades europeias, por intermédio da colonização do poder, do
ser e do saber (MIGNOLO, 2005, p. 82).
Ainda que de forma oculta, a matriz colonial de poder sub-
sistiu até os dias atuais, na colonização do poder, do saber e do
ser, como da arte, da cultura e do futuro. A colonialidade do poder
indica que o atual padrão de poder mundial é o primeiro global
da história conhecida e não se limita as relações de exploração ou
dominação colonial, envolvendo diversas formas pelas quais as re-
lações intersubjetivas se articulam a partir de posições de domínio
e subalternidade.
Dois processos convergiram para que ela se instalasse: 1) a
codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na
ideia de raça; e 2) a articulação de todas as formas históricas de
controlo de trabalhos (exploração de mão-de-obra), seus recursos
(possessão de terras e riquezas naturais) e produtos em torno do
capital e do mercado mundial (QUIJANO, 2005).
O colonialismo/capitalismo requereu a construção do racis-
mo, uma categorização específica da humanidade, a partir do lo-
cus de enunciação superior e privilegiado do homem-branco-cris-
tão-hetero-europeu imposta a povos não europeus, suas línguas,
regiões, conhecimentos, países e continentes. Raça e identidade
racial foram estabelecidos como instrumentos de classificação so-
cial da população (QUIJANO, 2005). Após o fim do colonialismo
histórico, a lógica colonial continuou regendo a globalização neo-
liberal, que primeiro separou os países e nações em três estágios:
primeiro, segundo e terceiro mundos. Depois, subdividiu em ape-
nas dois: países desenvolvidos e países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento.
O processo de modernidade/colonialidade aplicou também
uma perspectiva peculiar, dualista e binária do conhecimento: o
eurocentrismo, que se tornou hegemônico no fluxo da expansão
do domínio colonial da Europa sobre o mundo (LANDER, 2005). A
colonialidade epistemológica impôs uma repressão das formas de
produção de conhecimento dos colonizados, seus universos sim-
bólicos e padrões de produção de sentidos, de expressões e subje-
tivações (MIGNOLO, 2007, p. 121).
Também impôs a ideia de que modos de vida e organização
sociocultural e conhecimentos de povos europeus – ciência mo-
derna ou a estética artística – seriam superiores aos de outros po-
vos (MIGNOLO, 2010). Isto é, levou a perspectiva eurocêntrica do
conhecimento e a ideia de raças superiores e inferiores naturaliza-
da nas relações de dominação colonial entre europeus e não-euro-
peus (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 85).
Essa última operação corresponde à colonização do ser. Pau-
tada pelo modelo ideal do ser humano adotado pela concepção
moderno/colonial, que se filtra nas seguintes categorias: homem,
branco, europeu, cristão, hetero, capitalista, a colonização do ser
exclui todas as identidades que estão fora deste padrão, conside-
radas como não ser, consequentemente, pode-se ter. O seu locus
é o ser-colonizado, que emerge quando poder e pensamento se
tornam mecanismos de exclusão.
A partir deste modelo, se instalam escalas de colorismo e ra-
cismo, sexismo e gênero, econômicas, simbólicas, políticas, religio-
sas, subjetivas, que se efetivam na intersecção de várias camadas
de opressões binárias e apagamentos das diversidades (MALDO-
NADO-TORRES, 2008, p. 96). E se exemplifica por comunidades
marcadas pela pobreza extrema, territórios e cidades ignoradas
nas diatribes filosóficas sobre o lugar do saber (idem, p. 89).
Diante deste cenário, que ainda permeia a academia forte-
mente nos dias atuais, bem como os espaços educacionais da edu-
cação escolarizada, a importância da necessidade urgente de re-
desenharmos novas perspectivas e possibilidades decoloniais do
futuro. Tendências que não estejam pautadas nesta concepção
equivocada, eurocêntrica e preconceituosa, que a partir dos cri-
térios de raça e gênero separou entre superiores e inferiores, de-
sumanizando povos e manifestações diversas da sexualidade, que
não se encaixassem no binarismo masculino-feminino, com preva-
lência e superioridade do primeiro, via machismo e heteropatriar-
cado.
Sem dúvida, o movimento-ação, teórico e prático de decolo-
nização e resistência e de re-existência, é o que propõe esta coletâ-
nea, cujo título “Diversidades, Culturas, Educação e Re-existências:
construindo o mundo que virá”, sintetiza e remete às perspectivas
de futuro que primam pela inclusão cidadã, a emancipação e a li-
bertação, por meio do viés educacional e produção de conheci-
mento anticolonial. Organizada pelas professoras doutoras da Uni-
versidade Federal da Paraíba (UFPB), Patrícia Cristina de Aragão e
Alcione Ferreira da Silva, a obra nasceu em comemoração aos 10
anos do Programa de Mestrado em Serviço Social da Universidade
Estadual da Paraíba (UEPB).
O leitor/leitora poderá conferir 19 capítulos, produzidos por
estudiosos de várias universidades e regiões do país. Bastante
densos teoricamente e metodologicamente, os trabalhos são ricos
em temáticas e abordagens. O conjunto da obra inova no diálogo
com populações em situação de vulnerabilidade, exclusão social,
minorias raciais ou de gênero, bem como povos e comunidades
tradicionais, como quilombolas, indígenas e povos ciganos e, ainda
inclui na roda de diálogos, estudos referentes às pessoas surdas e
às pessoas com problemas de visão e cegueira.
Os textos e reflexões apresentadas me levam a crer que a pes-
quisa e a educação pública pisam firme no diálogo com os movi-
mentos sociais e os povos e comunidades tradicionais, bem como
com minorias de gênero ou outras pessoas e povos em situação
de vulnerabilidade, produzindo conhecimento com os resistentes.
Aliás, pensando como Walter Mingnolo (2017), do ponto de vista
da ideia de decolonialidade, um dos principais desafios hoje é con-
cretizar um movimento, que mais do que resistência, seja pautado
pela promoção de uma educação para a vida, de existência e de
re-existência.
Passar da ideia de resistentes para re-existentes, significa sair
da situação de resistência à opressão impingida pela modernida-
de/colonialidade, jogando com as armas do colonizador, para criar
novas situações, interfaces e construções baseadas em aspectos,
saberes, filosofias, modos de organização sociocultural, cosmolo-
gias etc. Neste sentido, pensar propostas para construir o mundo
que virá, com justiça e emancipação social individual e coletiva e
a construção de uma sociedade global de paz, tem sido ao longo
do tempo um dos principais papéis da educação e da ciência da e
para a vida.
Partindo desta perspectiva emancipatória e libertadora da
educação, centrada no cuidado do outro e do mundo, experimen-
tamos a vivacidade de Paulo Freire e seus ensinamentos reverbe-
rarem fortemente neste livro, transitando os variados textos e ex-
periências. Nas palavras de Mingnolo:

A sociedade política global está constituída não por milha-


res, mas por milhões de pessoas que se agrupam em projeto
para ressurgir, reemergir e re-existir. Isto já é não só resistir,
porque resistir significa que as regras do jogo são controla-
das por alguém a quem resistimos. Os desafios do presente
e do futuro consistem em poder imaginar e construir uma
vez que nos liberamos da matriz colonial de poder e nos lan-
çamos ao vazio criador da vida plena e harmônica (MING-
NOLO, 2017, p. 31).
Alinhando a esta perspectiva trazida por Mingnolo, as pesqui-
sas que se apresentam no livro trazem olhares diversos não apenas
entre áreas das ciências e humanas e sociais, como também entre
as temáticas apresentadas e as diversidades regionais, com produ-
ções de fôlego vindas de todas as partes do Brasil. Abrimos o livro
com a leitura encantadora e potente do texto de Faibana Vence-
zlau e Maria das Graças da Silva, que trazem “A luta e resistência
das histórias invisíveis de uma terra de mulheres chamada Con-
ceição das Criolas”, comunidade quilombola localizada no sertão
pernambucano, a aproximadamente 600 quilômetros da capital
Recife.
As autoras contam e retratam por meio de fotografias e arte-
sanato local, a história de vida de mestras tradicionais quilombolas
centrais para a conformação social e de resistência de Conceição
das Crioulas. Conhecemos por um diálogo poético e lúdico com o
artesanato local, feito com matéria prima local, como barro, palha,
sementes e a fibra do caroá, não apenas as dores, os desafios e
as resistências destas mulheres e comunidade quilombola, como
também as formas de superação e de integração, de manutenção
de um estilo de vida próprio, que possui saberes ancestrais, manti-
dos de geração em geração, por meio da tradição oral.
Na sequência, temos o capítulo “As políticas de inclusão no
curso de direito da UERN: adequações dos documentos legais”,
escrito por João Paulo Barbosa, Ana Lúcia Oliveira Aguiar, Stenio
de Brito Fernandes, Aleksandra Nogueira de Oliveira Fernandes e
Francinilda Honorato dos Santos. O capítulo nos leva ao âmago da
inclusão de pessoas com deficiênvia sivual, por meio de um estudo
que objetiva compreender o que propõem os documentos legais
do Curso de Direito da Faculdade de Direito (FAD) da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN); quanto às adequações
para as políticas de inclusão de discentes com deficiências visual/
cegueira.
Os autores defendem que “com a expansão do Ensino Supe-
rior, o fenômeno da inclusão da pessoa com deficiência, no espaço
universitário, requer um exame atento sobre a efetividade da apli-
cação das garantias e políticas inclusivas”. Assim, representa um
esforço de colaboração dentro das discussões sobre as políticas e
ações inclusivas para a efetivação dos direitos de estudantes com
deficiência, no âmbito do Ensino Superior.
O diálogo com as artes e com a música também emerge no
texto “Batalha do Pedregal: os saberes e fazeres juvenis como pa-
trimônio cultural imaterial da cidade de Campina Grande”, de Ga-
briel Lopes Dantas e Patrícia Cristina de Aragão. Versando sobre o
movimento cultural “Batalha do Peregal de Campina Grande – PB,
chamam atenção para a luta e resistência das juventudes nas fave-
las, mas ao mesmo tempo apontando que “a arte musical expressa
e aponta para as desigualdades sociais e o contexto da experiência
social de moradores”.
Do rap e slam à produção acadêmica e o diálogo horizontal,
como o próprio movimento cultural que estudam, Dantas e Aragão
fazem o movimento de intersecção entre a ciência, a poesia, a mú-
sica, a dança, o que se manifesta na crítica social, como também na
crítica epistemológica, procurando compreender como os jovens
leem o mundo e como produzem resistência e novas possibilida-
des de existência.
No próximo capítulo, apresento os principais resultados e a
síntes da estrutura da minha pesquisa de Mestrado (2009), em
que abordo “A Liberdade na Aprendizagem Ambiental Cigana dos
Mitos e Ritos Kalon” (2009). Ancorado na fenomenologia do ima-
ginário de Gaston Bachelard, na Educação Ambiental Emancipa-
tória de Michèle Sato e na Antropologia Interpretativa de Clifford
Geertz, além da mitologia em Mircea Eliade e Joseph Campbell, o
trabalho passeia pela educação ambiental e mitológica cigana do
meu grupo familiar.
O trabalho aprofunda na cultura e na identidade cigana do
tronco étnico Kalon, sua relação com a natureza e o meio-ambien-
te, a partir de uma ancoragem conceitual fundamentada nos qua-
tro elementos bachelardianos, água, terra, ar e fogo, este último
como porta de entrada. Numa perspectiva êmica, a produção des-
te conhecimento científico dialogou com os saberes ciganos, suas
filosofias e valores. A educação cigana é familiar, tradicional, ocorre
nos momentos de cotidiano e outras práticas para a vida; também
em mitos, narrativas, memória oral e cosmologias, ocorrendo so-
bretudo a partir de três processos: o nascimento, o casamento e a
morte.
Josélia Ramos da Silva nos brinda com “O Toque das Águas
Panraru”, texto baseado em pesquisa realizada nas Escolas Esta-
duais Indígenas Ezequiel Pankararu e Doutor Carlos Estêvão, lo-
calizadas na Aldeia Brejo dos Padres (PE), que integrou sua disser-
tação de Mestrado. A autora aponta para o viés da sensibilidade
na pesquisa e no diálogo com professores e estudantes indígenas
Pankararu e suas experiências com águas de nascentes, tocando
suas sensibilidades escolares.
A partir de uma série de materiais e documentos, que incluí-
ram as narrativas dos professores que ministravam os componentes
curriculares de História, Geografia, Ciências e Educação Indígena;
as políticas educacionais indígenas vigentes, os Projetos Políticos
Pedagógicos das Escolas Pankararu, os Projetos Escolares e os li-
vros didáticos e paradidáticos; e imagéticas, por meio de desenhos
criados pelos estudantes do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental
sobre a água.
A polêmica envolvendo os memes sexistas circulados em uma
aula remota no contexto da pandemia da Covid-19, que acelerou o
formato online nas escolas devido às medidas de isolamento social,
tanto quanto a circulação de informações e desinformações; são
o principal tema abordado por Thatiane Oliveira do Nascimento
e Robéria Nádia Araújo Nascimento, no capítulo “Seria cômico, se
não fosse trágico: análise de memes sexistas em uma aula remota”.
Segundo elas, este novo formato, centrado nas novas tecno-
logias, exigiu dos educadores uma reinvenção de suas práticas do-
centes para manter viva a capacidade de educar. Ocorre que este
“novo normal”, como denominaram a situação, transformou as ins-
tituições escolares e exigiu novas habilidades e ainda a construção
coletiva de saberes mediados por recursos digitais. Um novo tem-
po em que professores/as e alunos/as passaram a interagir dentro
de suas casas, mas que continuam inseridos em contextos sociais
racializados ou repleto de manifestações de preconceitos de gêne-
ro.
Jéssika Cristina Silva Santos e Patrícia Cristina de Aragão tra-
zem a perspectiva quilombola pela segunda vez na obra, ao apre-
sentarem o texto “Da Memória ao saber, do saber a liderança:
ressignificando ser mulher negra e quilombola”. No capítulo, aden-
tram este universo por meio de um agrupamento de categorias
que permeiam o itinerário de vida das mulheres quilombolas, con-
siderando-as como agentes políticas e sociais.
Partindo de concepções como raça, etnicidade, gênero, me-
mória, pertença e classe social como marcadores de uma forma
singular da construção de suas identidades, o trabalho é fruto das
reflexões teóricas acerca da temática de mulheres negras e qui-
lombolas no mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual
da Paraíba. A análise apresentada situa a problemática na conjun-
tura política, social e ideológica a qual elas são submetidas a partir
do racismo e sexismo históricos na sociedade brasileira e o modo
como se relacionam nesse processo de construção e resistência.
Em continuidade à mesma temática, leitores se depararão
com o precioso texto “De comunidade rural à comunidade rema-
nescente quilombola: a trajetória do processo de reconhecimento
identitário e territorial da comunidade Santa Rosa, Boa Vista/PB”.
Escrito por Aly Cristiane Silva Araújo e Cristiane Maria Nepomu-
ceno, o capítulo, ressalta os quilombos como expressão de luta e
resistência negra, herdeiros de um valioso legado, guardiões/ãs de
uma diversidade étnica de vasta riqueza cultural.
Além disso, pontuam essa construção a partir da relação ter-
ritorial específica com presunção da ancestralidade negra, que se
relaciona com opressão e resistência sofrida e marcada historica-
mente e estruturalmente. Ao trazer a perspectiva da Comunidade
de Santa Rosa, Araújo e Nepomuceno tocam na questão central
da demarcação territorial e nos processos de reconhecimento do
território e da identidade quilombola, que, por vezes, não estão em
sintonia com os valores e demandas das populações negras.
Da questão quilombola, passamos para o texto “Por uma Car-
tografia das Escrituras do Candomblé”, de autoria de Jackson Cícero
França Barbosa, que reflete sobre a função do mapear o que está à
margem na contemporaneidade, a partir de postulados foucaul-
tianos e do estudo da linguagem como demarcadora dos lugares
sociais, o que possibilita abordagens, de foco igualitário, na verifi-
cação de sistemas linguísticos entre as sociedades. Uma questão
bastante pertinente no contexto do candomblé, enquanto cultura
ágrafa, portanto marginal, conferida pela determinação da escrita.
Lembrando que o Candomblé, no curso de sua história, tem
sofrido ações de intolerância e ignorância pelos que, comumente
estão revestidos por uma hegemonia cristã purista, o autor busca
fugir desta visão, apontando para a resistência da cultura popular.
Em síntese, “vislumbra uma cartografia de escritura, de maneira
que reflita as bordas”, “trazendo para constituição de um corpus
semiótico, elementos signatários que traduzem códigos que per-
passam pela história possibilitando aos sujeitos que praticam a reli-
gião afro-brasileira (candomblé) o estabelecimento de um sistema
linguístico baseados em símbolos e práticas conferidas ao cotidia-
no litúrgico”.
Ainda no campo dos povos tradicionais, adentramos às refle-
xões produzidas por Geraldo Barboza de Oliveira Júnior no capítu-
lo “Políticas Públicas e as Comunidades Tradicionais no Estado do
Rio Grande do Norte, Brasil: etnicidade em questão”. Partindo de
dados socioeconômicos, educacionais e de renda, o autor questio-
na a falta de operacionalidade que garanta o acesso à políticas pú-
blicas e programas de desenvolvimento regional produzidas pelo
Estado para as comunidades tradicionais, especificamente quilom-
bolas e indígenas, que vivem, em sua maioria, de renda de progra-
mas sociais e de uma agricultura pouco rentável.
No texto, Oliveira busca abranger investigações teóricas e
empíricas do pensamento político e social, das ideologias políticas,
dos conflitos políticos, sociais e de classes, dos regimes de governo,
dos partidos políticos, dos processos eleitorais, da dinâmica e fun-
cionamento das instituições políticas, dos processos de construção
da hegemonia e do consenso, mídia e relações de poder, cultura
política, poder local e formas de dominação, especialmente, o ra-
cismo e suas várias formas de manifestação.
Das temáticas vinculadas aos PCTs, passamos a discussão
sobre “Tentativas de Silenciamentos: Plano Nacional de Educação
(2001-2024) e o avanço das políticas antigênero no Brasil”, um
texto produzido por Liliann Rose Pereira de Freitas, Fábio Ronaldo
da Silva, e Rosilene Dias Montenegro. No capítulo, discutem e ana-
lisam o processo de negociação e produção de políticas educacio-
nais, articuladas pelo Estado, no tocante as questões de gênero e
diversidade sexual. Na consideração dos autores, uma força brutal
e mobilizadora das políticas antigênero, voltadas para educação,
foram penetrando nos marcos legais da educação e pulverizadas
na sociedade.
Os debates apresentados decorrem do processo de produ-
ção e aprovação de documentos legais que legitimarão diferen-
tes visões, concepções e visões de mundo acerca das questões
de gênero e diversidade sexual, especialmente no governo Dilma
Rousseff (2011-2014/2015-2016). Em contraposição, fortalece-se
no país a construção de todo um corpo discursivo que se forma
em torno das políticas antigênero endossadas na campanha do
ex presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) e fomentadas em seu
governo. A escola, passa a ser o principal alvo dessas discussões
sobre a “ideologia de gênero”.
Também abordando a temática de gênero, o próximo texto,
“Codificação Queer: a qualidade e presença da representativade
LGBTQIA+ através do figurino em meninas superpoderosas”, de
Matheus Caldas Alves da Silva e Francisca Raimundo Nogueira
Mendes, surpreende pela inovação na abordagem de gênero LGB-
QIA+ vinculada à animação. Ambos partem do princípio de que
a presença da codificação queer é um recurso bastante utilizado
para retratar personagens de desenhos animados ligados “ao mal”
e em geral desviantes dos padrões de gênero estigmatizados pela
sociedade.
Partindo da personagem “Ele”, da obra televisiva Meninas Su-
perpoderosas, de 1998, estudando sua conceitualização, vestimen-
ta, maneirismos, silhueta, cores e agir. O trabalho se fragmenta nos
objetivos buscou observar como se dá a relação entre gênero e
moda, compreender a representação de um figurino relacionado a
gênero, mais especificamente em um desenho animado, e enten-
der a codificação queer e o seu uso nesse meio de entretenimento
televisivo.
Em “Ecos do terreiro na escola: a musicalidade afro-brasileira
como ferramenta didático-pedagógica”, Augusto Sérgio Bezerra de
Oliveira e Robéria Nádia Araújo Nascimento, promovem um diá-
logo acerca da musicalidade afro-brasileira no espaço escolar, na
perspectiva de valorização dos saberes do campo sociorreligioso
e no propósito de sua apropriação pedagógica para a prática do-
cente. Os aspectos didáticos apontados por Oliveira e Nascimento
se fundamentam na necessidade de promover um ensino eman-
cipatório, em sintonia com as questões multiculturais, possibilitan-
do que os alunos tenham condições de criar uma postura crítica e
transformadora, numa perspectiva Freireana.
Nesse sentido, contextualizam o uso da música como um
elemento essencial para a religiosidade afro-brasileira na expec-
tativa de clarificar seus elementos de sonoridade e de evocação
do sagrado. Destacam pontos religiosos, os denominados “pontos
cantados”, para debate e aprendizado em sala de aula. Também
enveredam por uma abordagem histórica centrada no papel fe-
minino, atrelada ao papel da escola na formação e concepção do
posicionamento da mulher na nossa sociedade. O passeio dos au-
tores ocorre ainda relaciona os traços apresentados pela musicali-
dade, estabelecendo uma conexão com uma reflexão crítica sobre
o período histórico da escravidão, que consideram como ponto
fundamental para debate em sala de aula, aprofundados conceitos
que explicam o racismo estrutural que afeta as afro-religiosidades.
Já no capítulo apresentado por Marcos Vinicius Ferreira da
Silva, Angêlica Ferreira de Freitas e Philipe Cupertino Salloum e Sil-
va, o debate gira em torno dos “Diálogos entre a educação popu-
lar e a formação crítica e humanitária dos juristas: as experiências
extensionistas do NAPUJ-JE na comunidade Quilombola do Cedro
Mineiro – GO. O texto coloca em pauta estudo abordando a rela-
ção entre Educação em Direitos Humanos e extensão universitária
no contexto de assessoria jurídica e popular aos Povos e Comuni-
dades Tradicionais (PCTs), em especial, quando se refere as comu-
nidades quilombolas.
Neste cenário, o texto aborda de forma teórica e empírica a
experiência coletiva dos extensionistas do Núcleo de Assessoria
Jurídica Universitária Popular - Josiane Evangelista (NAJUP–JE),
que buscaram transformar em pesquisa científica as suas práticas
e vivências dialógicas com a comunidade quilombola do Cedro em
Mineiros - Goiás. Especificamente, descreveram as percepções, ex-
periências e situação da proximidade entre o NAJUP-JE e o Ce-
dro, para após refletir os pressupostos políticos-pedagógicos da
Assessoria Jurídica Popular (AJUP) enquanto prática de extensão
universitária.
O tema “A Literatura surda e suas contribuições no campo dos
estudos surdos”, foi apresentado no capítulo de autoria de Maria
Aldenora dos Santos Lima e Israel Aparecido Gonçalves. Na per-
cepção de ambos, a inclusão é um desafio que ao ser devidamente
enfrentado pelo sistema educacional provoca a melhoria da qua-
lidade da educação básica e superior. Nesta perspectiva, para que
os alunos possam exercer o direito a educação em sua plenitude,
é indispensável que a escola aprimore suas práticas pedagógicas a
fim de atender as diferenças educacionais, sociais e culturais.
As autoras lembram que no ano de 2002, a comunidade sur-
da brasileira pôde assegurar a expressão linguística da sua língua
nativa, por meio da regulamentação da Lei nº 10.436, de 24 de
abril de 2002, que reconhece como meio legal de comunicação e
expressão a Língua Brasileira de Sinais- Libras e hoje regulamenta-
da através do Decreto nº 5626 de 22 de dezembro de 2005. Esses
importantes fatos colaboram para garantia dos direitos linguísticos
das pessoas surdas como cidadãs brasileiras, inclusive respeitando
suas diversidades internas e graus de surdez ou problemas auditi-
vos.
Partindo de um viés completamente marxista, do materialis-
mo histórico-dialético, Rosângela Ribeiro da Silva, Bárbara Zefe-
rino, Layslândia de Sousa Santos e Emanuele Cordeiro de Sousa,
aprofundam o olhar para investigar as intersecções entre as opres-
sões de gênero, raça e classe social. Com o título “As opressões de
gênero e raça: um estudo onto-histórico na sociedade de classes”,
nos brindam com um olhar bastante crítico sobre a gênese, a natu-
reza e a função social da opressão de gênero.
No texto, destacam a violência masculina imposta às mulhe-
res no modo de produção capitalista, no qual presenciamos uma
naturalização dessa violência, tendo no feminicídio sua expressão
mais cruel e final. Buscando uma compreensão de como os fenô-
menos sociais afetam o cotidiano feminino, sua individualidade e
as relações sociais vigentes; mais do que uma reflexão teórica, o
trabalho tem o traço das suas autoras e remete a uma luta contra a
violência contra a mulher.
Por sua vez, Flávio de Carvalho, caminha por suas “Anotações
Filosóficas sobre gênero e sexualidade”. Mais próximo a um ensaio,
no capítulo, Carvalho parte da ideia de que a filosofia é filha de seu
tempo (chronos e kairós), possuindo uma história cronológica e
uma história cairológica. No argumento do autor, não há Filosofia
do passado tampouco do futuro, toda Filosofia é pensamento no
presente.
Partindo do princípio de que desde meados do século XX
tem-se construído um filosofar e se criado conceitos filosóficos, sob
o kairós dos problemas de Gênero; Carvalho pretende contribuir
para a divulgação de certo recorte deste movimento do pensar fi-
losoficamente Gênero e Sexualidade, provocando a leitora e o leitor
a pensar seus próprios problemas a partir das questões propostas.
Com o título “Coisa de macho: as masculinidades reverberadas
entre jovens estudantes do ensino médio de uma escola pública na
cidade de Campina Grande-PB”, Maria Lidiane dos Santos Mota e
Jussara Natália Moreira Belens de Melo trazem uma reflexão pro-
funda sobre o machismo estrutural, que permanece secularmen-
te na sociedade brasileira, a partir do binômio homem-mulher e a
opressão delas por eles, por meio de um processo heteropatriarcal.
Defendendo que essa ordem vem sendo mantida por vá-
rias instituições sociais, que trabalham a favor de sua manutenção,
como, por exemplo, a família, o trabalho, a religião, entre outras,
apresentando em seus dogmas uma moralidade patriarcal que
inferioriza o feminino, as autoras analisam que a escola tem um
papel destacado neste processo. Para elas, a escola historicamen-
te, configurou-se como espaço de reprodução da relação binária
entre homem-mulher, reforçada pela literatura, pelas correntes fi-
losóficas, médicas, jurídicas e pedagógicas engessadas por ideais
que não correspondem à atualidade, mas que se fazem presentes
nas práticas cotidianas, sendo reproduzidas, muitas vezes, de for-
ma insconciente.
Com a temática dos “Saberes intergeracionais da arte do bar-
ro na comunidade tradicional de ceramistas Chã da pia, Areia-PB”,
Darnley Dias Campos e Márcia Adelino da Silva Dias trazem o pe-
núltimo capítulo desta obra de grande fôlego intelectual. A cons-
trução do texto apresentado pelas autoras, emergiu após intensa
convivência em um ambiente que respira cultura e tradição; a co-
munidade rural tradicional de mulheres artesãs (“loiceiras”), deno-
minada Chã da Pia, localizada no Brejo paraibano.
De maneira muito interessante, os autores relacionam a ori-
gem indígena e quilombola da comunidade rural, às práticas e ati-
vidades do artesanato de barro e da agricultura de subsistência.
Desta forma, analisam como os saberes da tradição são transmiti-
dos de geração a geração entre as pessoas da comunidade tradi-
cional. Segundo eles, as comunidades rurais, possuem seu próprio
modo de nomear tudo que o cerca, seus diálogos possuem alguns
termos que, algumas vezes só eles entendem; causando estranhe-
za para outras pessoas de outras localidades.
Encerrando a coletânea, Adriana Mota de Oliveira Sidou, José
Deribaldo Gomes dos Santos e Adele Cristina Braga Araújo traba-
lham “A Relevância de Anibal Ponce para a compreensão do com-
plexo educativo”. O capítulo analisa a contribuição da obra Educa-
ção e Luta de Classes, de Ponce, para a compreensão do complexo
educativo, com base nos pressupostos da ontologia materialista,
que concebe o trabalho como ato gênese do ser social.
O texto apresenta ao leitor a relação entre o complexo da edu-
cação e o momento histórico de cada período, desenvolvida por
Ponce nesta obra, cuja primeira edição da tradução brasileira data
de fins de 1963, apresenta a história da educação desde a comuni-
dade primitiva; segue pela educação do homem antigo, passando
pelo feudalismo, até alcançar a educação do homem burguês.
Boa leitura!

Prof. Dr. Aluízio de Azevedo Silva Júnior


REFERÊNCIAS

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mitos e ritos Kalon. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação e Educação,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT, 2009, 267p.
A LUTA E RESISTÊNCIA DAS HISTÓRIAS INVISÍVEIS DE UMA
TERRA DE MULHERES CHAMADA CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Fabiana Vencezlau
Maria das Graças da Silva

INTRODUÇÃO

Contada por relatos orais presentes na memória histórica e


permanente do povo da comunidade, escrita somente a partir do
início da década de 90 do século XX, assim é a história da formação
social e de resistência de Conceição das Crioulas, comunidade qui-
lombola localizada no sertão pernambucano, a aproximadamente
600 quilômetros da capital Recife.
A comunidade originou-se em meados do século XVIII, foi
fundada por seis mulheres negras que se rebelaram contra o regi-
me escravista colonial imposto naquela época, e atualmente tem
destaque relevante por manter a força dessas mulheres que, com
a plantação, fiação e venda do algodão na cidade de Flores/PE,
compraram o território.
A atividade da agricultura é até hoje desenvolvida e é a prin-
cipal fonte de renda das pessoas que, em sua grande maioria, são
agricultores e agricultoras. Outra atividade bastante presente é o
artesanato feito com matéria prima encontrada na própria comu-
nidade, como barro, a palha, as sementes e o caroá, de onde tira
a fibra para fazer as bonecas, bolsas, colares e outros. Além disso,
as escolas, que abrangem da creche até o ensino médio, também
surgem como um espaço de geração de renda, tendo em vista
que todos os profissionais que lá trabalham são de Conceição das
Crioulas.
Todas essas atividades são extremamente importantes, assim
como a tradição oral no quilombo de Conceição das Crioulas que é
uma prática bastante forte até os dias atuais. Isso faz com que de-
poimentos, como os de lideranças que detêm vários conhecimen-
tos, possibilitem ao povo quilombola acreditar que a tradição oral
é uma prática necessária para a manutenção da história e da cultu-
ra vivenciada na comunidade. Esta vem sendo transmitida através
dos saberes das pessoas mais velhas.
Podemos, desta forma, fortalecer a ideia de que a tradição
oral e o conhecimento científico podem viver juntos, assim afirmou
Cunha (2007):

Viverem juntos não significa que devam ser considerados


idênticos. Pelo contrário, seu valor está justamente na sua
diferença. O problema, então, é achar os meios institucionais
adequados para, a um só tempo, preservar a vitalidade da
produção do conhecimento tradicional, reconhecer e valori-
zar suas contribuições para o conhecimento científico e fazer
participar as populações que o originam nos benefícios que
podem decorrer de seus conhecimentos (p. 84).

Pensando assim, é legítimo afirmar que a tradição oral con-


tinua sendo reconhecida e valorizada no Território Quilombola de
Conceição das Crioulas e nas escolas quilombolas, como um forte
elemento da história viva e de uma prática permanente, portanto
fundamental para o fortalecimento da história.
Por isso optei, neste artigo, por apresentar as leituras que fiz
e as pesquisas já realizadas dentro do território, citando lideranças
da comunidade que não foram para a academia, as quais chamarei
de mestras tradicionais, e lideranças que já foram para a academia,
as quais chamarei de mestras acadêmicas. Tenho por objetivo tra-
zer as histórias não contadas, mas existentes, de mulheres prota-
gonistas e referências para nosso povo. E de que povo falo? O povo
quilombola, o povo que não foi escrito, o povo que durante muito
tempo, a única história escrita sobre ele foi a história da escravidão,
o povo que quero contar a história através de mulheres quilombo-
las de Conceição das Crioulas, Salgueiro/PE – Brasil.
Será um grande desafio, pois somos da oralidade, contudo

26
sabemos a importância da escrita das nossas memórias, escritas
por nós, para nós e para o mundo. Convido-te a continuar comigo
e conhecer, nas linhas que escrevo, um pouco da luta e da resistên-
cia das histórias invisíveis de uma terra de mulheres.

MESTRAS TRADICIONAIS: BONECAS VIVAS

Nossas histórias são repassadas de geração em geração, por


meio da oralidade, pelas pessoas mais velhas. Contamos o que os
mais velhos nos contaram. A oralidade é o que temos de mais forte,
um elemento nosso e que está na nossa ancestralidade.
Conceição das Crioulas tem, desde seu surgimento, o prota-
gonismo das mulheres. Isso é inegável até os dias atuais, e conti-
nua de forma natural. As mulheres se destacam em vários segmen-
tos e ofícios.
Um exemplo dessa herança matriarcal são as bonecas vivas
que fazem parte do artesanato quilombola. São onze mulheres
que, por conta dos seus saberes próprios, trazem consigo a res-
ponsabilidade e a honra de representar a diversidade das mulhe-
res crioulas. Tais saberes ratificam que:

Os saberes das pessoas mais velhas e os conhecimentos


construídos em sintonia com a nossa ancestralidade é o que
mantém viva a nossa história. Esses saberes são fortalecidos
e valorizados tornando-se fundamentais para a ressignifica-
ção de outros conhecimentos repassados pela escola formal
(PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, 2014/2015).

Nossas mestras tradicionais nem sempre dominam a leitura e


a escrita, mas são detentoras de ciências que garantiram e garan-
tem a sobrevivência do nosso povo.
As bonecas vivas são onze mulheres da comunidade, algumas
ainda vivas – por isso este nome, e outras que não estão mais entre
nós fisicamente, no entanto, seus ensinamentos se eternizaram e

27
são repassados. Escolhidas de forma coletiva, elas representam os
mais diversos segmentos. São elas:

Figura 1 - Francisca Ferreira

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Contam os mais velhos que Francisca Ferreira foi uma das


seis mulheres negras que deram origem ao povo de Conceição das
Crioulas.

Figura 2 - Liosa (Emília)

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Liosa é uma das mulheres que mantém viva a história e a tra-


dição de Conceição das Crioulas.

28
Figura 3 - Lurdinha

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Lurdinha é professora e artesã, ela é conhecida na comunida-


de por valorizar a beleza da mulher negra.

Figura 4 - Ana Belo

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Ana Belo foi uma das artesãs que mantinham viva a atividade
mais antiga de Conceição: a arte de fiar o algodão.

29
Figura 5 - Mãe Magá (Margarida)

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Mãe Magá era uma mulher a serviço do seu povo. Parteira


das mais respeitadas na história de Conceição, ela ficou conhecida
como a “mãe de todos”.

Figura 6 - Júlia

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Júlia foi uma das artesãs mais importantes na arte do caroá e,


por sua persistência, garantiu a transmissão desse saber tradicio-
nal para os mais jovens da comunidade.

30
Figura 7 - Generosa

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Generosa é uma mulher de grande importância no processo


de organização do seu povo, ela é também educadora popular.

Figura 8 - Antônia

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Antônia era uma mulher de personalidade forte e habilidosa


fiandeira de algodão, tradição deixada pelas seis negras que fun-
daram a comunidade.

31
Figura 9 - Madrinha Lurdes

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Madrinha Lurdes é uma das ceramistas mais antigas da co-


munidade, muito respeitada pelo seu trabalho na confecção de
louças de barro.

Figura 10 - Josefa

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

É artesã da palha do catolé e produz principalmente esteiras,


produto muito utilizadas pelos antepassados como cama.

32
Figura 11 - Valdeci

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022).

Ela é boneca faceira


E tem bastante saber
Sua história é Crioulas
Uma homenagem a merecer
Como não dá pra dizer tudo
Venha aqui conhecer.
(POEMA DA AUTORA, 2022)

A matéria prima para a confecção das bonecas é o caroá, plan-


ta nativa da caatinga. Após retirar o caroá da natureza, bate-se, ti-
ra-se a fibra e, então, fazemos a boneca. É um processo trabalhoso
e delicado.
As bonecas não são simplesmente mais um artesanato, mas
assim como os demais produtos, são responsáveis por contar e le-
var a história da comunidade para o mundo.
Apresentamos nossas mestras dos saberes próprios, é chega-
da a hora de apresentar as mestras acadêmicas. Reconhecemos a
importância de tudo o que aprendemos com a Pedagogia Crioula,
pedagogia essa que está no Projeto Político Pedagógico (PPP) de
nossas escolas, em tudo que fazemos e em tudo que somos, e que
levamos para todos os lugares porque ela está em nós.

33
A pedagogia crioula, termo criado nas oficinas de revisitação
do PPP, se desenvolve embasada no pensamento de uma
educação escolar que se firma no fortalecimento da história
e da identidade do povo de Conceição das Crioulas. Essa
ideia de educação já vinha sendo discutida e registrada nos
momentos de sistematização do PPP, onde inclusive há um
item que versa sobre os seus fundamentos (NASCIMENTO,
2017, p.111).

Ocupar os espaços acadêmicos nos quais por muito tempo


fomos impedidos de entrar se tornou uma missão, mesmo haven-
do alguns conflitos ideológicos.
A tentativa de juntar os saberes acadêmicos e não acadê-
micos produziu um ambiente de aprendizagens mútuas e,
óbvio, em alguns momentos, tensões e desconfortos ocorre-
ram dos dois lados (comunidade acadêmica e comunidade
quilombola) (SILVA, 2017, p. 12).

Apesar disso, sabemos que devemos entrar nas universida-


des, pois até hoje há pensamentos racistas que dizem que este
espaço não foi feito para pretos, quilombolas e indígenas. Ocupar
estes locais é um marco dentro da luta do movimento quilombola.
Em nossa comunidade, a primeira pessoa a cursar o ensino supe-
rior foi uma mulher. Mas é preciso dizer que por muito tempo não
tivemos direito à educação formal.

34
ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS E OS SABERES ACADÊMI-
COS

Figura 12- Maria de Lourdes de Jesus

Fonte: Acervo de Marinalva Rita (2013).

Figura 13- Entrevista a Maria de Lourdes de Jesus

Fonte: Acervo de Marinalva Rita (2013).

Maria de Lourdes de Jesus iniciou a educação escolar entre


os anos de 1978 a 2004 como professora leiga, numa sala de aula
considerada multisseriada. A mesma lecionava em uma casa de tai-
pa onde os alunos se acomodavam em um banco de madeira e os
demais se sentavam no chão batido, sem material didático.
Considera-se que ela já era gestora daquela escola, com o
seu jeito próprio de ensinar. Foi a primeira educadora da sua co-

35
munidade. A escola não tinha sede própria e as aulas aconteciam
na residência de João Miguel Gomes, Depois, a escola passou a
funcionar na residência de Izabel Antônia Rosa, mãe da professora
Maria de Lourdes de Jesus. Então, no ano de 1998, a comunida-
de conquistou uma escola com sede própria: a Escola Municipal
Bevenuto Simão de Oliveira (Pai Nuto), localizada no Sítio Paula,
no território quilombola de Conceição das Crioulas, município de
Salgueiro – PE.
A escrita demorou a chegar para o nosso povo. Uma pergun-
ta que me faço é: a nossa oralidade é forte apenas por causa da
ancestralidade ou também por que a escrita demorou a chegar
para nós?
Consciente da resposta, o que garantiu a alfabetização de mui-
tas pessoas da comunidade foi o trabalho e a dedicação das pro-
fessoras consideradas leigas. Muitas mulheres, principalmente, que
aprenderam a ler e a escrever sozinhas, começaram a transmitir seus
conhecimentos para as pessoas que tinham interesse em apren-
der. Debaixo de árvores ou nas casas, com a estrutura que tinham à
disposição, levaram adiante o conhecimento da escrita e da leitura.
Nosso povo tinha fome de educação, mas de nada adiantava
a fome se não havia, à frente do nosso país, políticos comprometi-
dos com a causa e com a mesma fome, conforme assegurou Jesus
(2014) “[...] Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem
dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem
dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre”
(página 39).
Se as políticas públicas educacionais não chegavam até nós,
nós dávamos um jeito de chegar até elas e assim foi que Givânia,
Maria Diva e Aparecida Mendes, algumas das mestras acadêmicas
da comunidade, conseguiram chegar até onde chegaram. E onde
chegaram?

Pela voz de cada uma


Venho aqui apresentar
Três mulheres aguerridas

36
Com suas histórias a contar
São as mestras acadêmicas
Que ousaram continuar
A história do nosso povo
E as memórias registrar

A primeira a ingressar
No ensino superior
Givânia Silva abriu
O caminho inspirador
É símbolo de resistência
Aqui e em todo Brasil
É potência a sua fala
A mulher é nota mil.
(POEMA DA AUTORA, 2022)

Figura 14 - Givânia Maria da Silva

Fonte: Acervo de Givânia Maria da Silva (2021).

Givânia Maria da Silva é educadora quilombola e pesquisado-


ra da educação escolar quilombola, organização de mulheres qui-
lombolas e questões de terras em quilombos. Integra o Núcleo de
Estudos Afro-brasileiro/NEAB. Juntamente com outras lideranças.
É fundadora da Coordenação Nacional das Comunidades Quilom-

37
bolas - CONAQ. Ex-Secretária Nacional de Políticas para Comuni-
dades Tradicionais da SEPPIR. Associada da Associação Brasileira
de Pesquisadores e Pesquisadoras Negras – ABPN e coordena-
dora do Comitê Científico: Quilombos, territorialidades e saberes
emancipatórios da mesma associação. Integrante dos Coletivos de
Mulheres e de Educação da CONAQ.
Ela é integrante da Rede de Ativistas pelo Direito à Educação
de Meninas do Fundo Malala. Graduada em Letras e Pedagogia, é
especialista em Planejamento da Educação e em Desenvolvimento
Local Sustentável. Formou-se mestra em Políticas Públicas e Ges-
tão da Educação pela Universidade de Brasília - UnB (2010-2012)
e é doutora em Sociologia pela mesma Universidade.

Não é Diva só de nome


Ela é encantadora
Sabedoria em pessoa
Minha primeira professora
Quanto orgulho em trazer
Um pouco da sua história
É uma honra ter sua marca
Em minha humilde trajetória.
(POEMA DA AUTORA, 2022)

Figura 15 - Maria Diva da Silva Rodrigues

Fonte: Acervo de Maria Diva da Silva Rodrigues (2017).

38
Esta é Maria Diva da Silva Rodrigues, brasileira, nascida e cria-
da no sertão de Pernambuco, professora quilombola na comuni-
dade de Conceição das Crioulas. Teve um percurso estudantil bas-
tante fragmentado, o que fez com que somente aos 17 anos de
idade concluísse o Ensino Fundamental - Anos Iniciais e aos 27
anos o Ensino Fundamental - Anos Finais, na modalidade de en-
sino à Distância. Impulsionada por essa conquista, foi aproveitan-
do as poucas oportunidades que surgiam. Nos anos de 98 e 99,
concluiu o ensino médio, também à distância e de 2000 a 2002,
cursou Magistério (nível médio) de forma semipresencial. Atual-
mente, ela é professora quilombola na comunidade de Conceição
das Crioulas. Foi diretora da Escola Municipal Quilombola Profes-
sor José Mendes (2001-2009) e da Escola Municipal Quilombola
José Néu de Carvalho (2011-2016), ambas no quilombo de Con-
ceição das Crioulas, Salgueiro/PE. Atualmente, exerce a função de
coordenadora pedagógica na Escola Municipal Quilombola José
Néu de Carvalho.
Tem experiência na área de Educação escolar com ênfase em
Educação Específica, Diferenciada, Intercultural e Descolonizante.
É sócia fundadora da AQCC (Associação Quilombola de Conceição
das Crioulas) e faz parte da Comissão de Educação da referida as-
sociação. Fez parte da comissão executiva da AQCC. Fez parte do
Movimento Sindical e do Movimente de Mulheres Trabalhadoras
Rurais do polo do Sertão Central de PE.
Ela é militante do movimento quilombola rural desde o início
dos anos 90. Do século XX. Integrou a Comissão que elaborou as
Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, repre-
sentando a CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades
Quilombolas). Integrou também a Comissão Nacional Pedagógica
do PRONERA, também representando a CONAQ.
Maria Diva fez parte da organização do I e II Encontro Inter-
nacional com as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da Comuni-
dade Quilombola de Conceição das Crioulas e participou da I Jor-
nada Virtual da Educação Quilombola em 2020. É Graduada em
Pedagogia pela Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central

39
(FACHUSC) (2003). Especialista em Planejamento do Ensino de
Língua Portuguesa pela (FACHUSC/UPE, é também mestra em
Desenvolvimento Sustentável junto aos Povos e Terras Tradicio-
nais, pela UnB-DF.

Uma grande feminista


Aparecida Mendes é
Na luta territorial
Batalha com muita fé
Crioula de Conceição
É uma grande liderança
Faz da vida uma missão
De levar sempre esperança
(POEMA DA AUTORA, 2022).

Figura 16 - Aparecida Mendes

Fonte: Acervo do artista THE WSS (2022)

Esta é Aparecida Mendes, a sua primeira ocupação foi a par-


tir dos sete anos de idade como trabalhadora rural junto com a
sua família. Com o objetivo de concluir o ensino fundamental que
foi interrompido no período noturno na escola do Quilombo, mu-

40
dou-se para a cidade, Salgueiro, onde trabalhou como empregada
doméstica até 1998. Iniciou a militância na luta em defesa da causa
quilombola na década de 1990, participando ativamente das ativi-
dades relacionadas à organização e ao desenvolvimento sustentá-
vel do território, inclusive do processo de fundação da Associação
Quilombola de Conceição das Crioulas – AQCC, em 2000, onde foi
eleita a primeira coordenadora geral.
Esse período foi determinante para o fortalecimento do sen-
timento de pertença às raízes ancestrais e a definição da minha
postura política perante a sociedade. Em 2001, foi eleita vice-pre-
sidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro, por
um mandato de dois anos. No decorrer desse período participou
de atividades voltadas para a defesa do direito ao acesso à terra
e à previdência social dos trabalhadores rurais. Iniciou a trajetó-
ria acadêmica em 2001, na Faculdade de Ciências Humanas do
Sertão Central – FACHUSC, no curso de Pedagogia, mas, devido a
uma série de dificuldades não conseguiu concluir e parou no quin-
to semestre em 2003. Nessa mesma instituição, em 2009, iniciou
o curso de História, mas mais uma vez não conseguiu chegar até o
final, em 2011 estava no quinto semestre quando precisou trancar
a matrícula.
Ela cursou o bacharelado em Serviço Social na Universidade
de Guarulhos – SP, no período de 2012 a 2015. Em 2017 iniciou o
Mestrado em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicio-
nais-MESPT - Universidade de Brasília-UNB, e concluiu em 2019.
A sua trajetória é marcada pela participação na luta em defesa da
causa quilombola, e esta participação inspirou o tema do seu Tra-
balho de Conclusão do Curso de Serviço Social: A liderança das mu-
lheres na luta pela regularização fundiária do Território Quilombola
de Conceição das Crioulas. É mestra em Desenvolvimento Susten-
tável, área de concentração em Sustentabilidade junto a Povos e
Terras Quilombolas - MESPT e por meio do mestrado, renovou o
compromisso na defesa dos direitos humanos com o objetivo de
contribuir para a emancipação do povo quilombola por meio da
luta pela efetivação dos direitos.

41
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Identidade, resistência e tradição são elementos que nutrem


nosso imaginário de mulheres quilombolas fortes do sertão per-
nambucano. Tenho orgulho de ser e pertencer ao quilombo de
Conceição das Crioulas. Aprendo todos os dias não somente com
as que ainda estão aqui, mas também, com as que já se foram e
que deixaram muitos ensinamentos para seguirmos.
Levamos adiante nossas narrativas por meio da oralidade e da
escrita e tiramos nosso povo da invisibilidade. Movidas pela ances-
tralidade sabemos que precisamos continuar resistindo para que
nosso povo continue a existir. O exemplo de uma fortalece todas
as pessoas que acreditam e sonham com um mundo mais justo
e com mais equidade para todos. Um mundo sem desigualdade
social, sem preconceito de raça, um mundo que respeite as dife-
renças e onde todos possam ser protagonistas da própria história.
O que trago aqui são memórias que não se apagam de vivên-
cias que transcrevemos em palavras, mas jamais a essência contida
nas mentes de cada uma das mestras acadêmicas e das mestras
tradicionais, que são museus, que não são apenas bonecas, mas
também as bibliotecas vivas onde nos alimentamos em uma fonte
de inesgotável saber.

REFERÊNCIAS

ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/Comissão de Educação. Nosso


Território-Conceição das Crioulas. Salgueiro/PE, 2011.
ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/ Comissão de Educação. Projeto
Político Pedagógico das Escolas do Território Quilombola de Conceição das Crioulas. Salgueiro/
PE, 2014/2015/2016.
CUNHA, M. C. da. (2007). Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico . Re-
vista USP, São Paulo, n.75, 2007, p. 76-84. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i75p76-84.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. - São Paulo : Ática,
2014.
NASCIMENTO, Márcia Jucilene do. Por uma pedagogia crioula: memória, identidade e resistên-
cia no quilombo de Conceição das Crioulas – PE. Salgueiro (2017). Dissertação (Mestrado em
Sustentabilidade Junto a Terras e Povos Tradicionais) – Centro de Desenvolvimento Sustentável, Uni-
versidade de Brasília, Brasília, 2017.
SILVA, Givânia Maria da. Partilha de Reflexões sobre as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da
Comunidade Quilombola de Conceição das Crioulas. Portugal: Ed.Porto, 2017.

42
AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO NO CURSO DE DIREITO DA
UERN: ADEQUAÇÕES DOS DOCUMENTOS LEGAIS

João Paulo Barbosa


Ana Lúcia Oliveira Aguiar
Stenio de Brito Fernandes
Aleksandra Nogueira de Oliveira Fernandes
Francinilda Honorato dos Santos

INTRODUÇÃO

Este estudo objetiva compreender o que propõem os docu-


mentos legais do Curso de Direito da Faculdade de Direito (FAD)
da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) quan-
to às adequações para as políticas de inclusão de discentes com
deficiências visual/cegueira. Com a expansão do Ensino Superior,
o fenômeno da inclusão da pessoa com deficiência, no espaço uni-
versitário, requer um exame atento sobre a efetividade da aplica-
ção das garantias e políticas inclusivas. O estudo representa um
esforço de colaboração dentro das discussões sobre as políticas e
ações inclusivas para a efetivação dos direitos de estudantes com
deficiência, no âmbito do Ensino Superior. Considerando as ade-
quações promovidas pela universidade nos últimos cinco anos,
vislumbramos a necessidade de colaborar para a implementação,
mais ainda, de políticas e ações para o crescimento, de um am-
biente inclusivo na FAD/UERN.
A pesquisa é de abordagem qualitativa, com base nos ensina-
mentos de Minayo (1995), quando defende que é importante uma
investigação qualitativa sustentada na subjetividade e nas narrati-
vas dos sujeitos investigados. Assumimos como método de investi-
gação a pesquisa de caráter documental com base em Gil (2008),
quando explica que esse tipo de pesquisa se desvela, a partir de
materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou
que, ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos da
pesquisa. Segundo Gil (2008, p. 46, grifo do autor), as fontes são
muito mais diversificadas e dispersas. Há, de um lado, os docu-
mentos “de primeira mão”, que não receberam nenhum tratamen-
to analítico e por outro lado, há os documentos de segunda mão,
que de alguma forma já foram analisados, tais como: relatórios de
pesquisa, de empresas, tabelas estatísticas, entre outros.
Posto isso, analisamos alguns documentos legais da UERN
do Curso de Direito a partir de documentos internos, tais como:
o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), o Regulamento
dos Cursos de Graduação (RCG) e o Projeto Pedagógico do Curso
de Direito (PPC), da FAD. Debruçamo-nos em avanços e lacunas
presentes nestes referenciais. Com isso, é importante que existam
as adequações necessárias para que os graduandos realizem as
atividades acadêmicas com igualdade e nos baseamos no enten-
dimento de que pessoa com deficiência, de acordo com a Lei nº
13.146/2015 - Lei Brasileira de Inclusão - Estatuto da Pessoa com
Deficiência, em seu artigo 2º, é aquela que tem impedimento de
longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua
participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condi-
ções com as demais pessoas (BRASIL, 2015).
O trabalho está dividido em duas seções: Na primeira, aborda-
remos, as adequações constituídas no Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI) da UERN: as políticas de inclusão e atendimen-
to as pessoas com deficiência no Curso de Direito. Na segunda
seção, enfocaremos o desenvolvimento pessoal e profissional de
estudantes com deficiência visual/cegueira do Curso de Direito: O
que dizem os documentos legais sobre as políticas de inclusão da
UERN?

44
AS ADEQUAÇÕES CONSTITUÍDAS NO PLANO DE
DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL (PDI) DA UERN: AS
POLÍTICAS DE INCLUSÃO E ATENDIMENTO ÀS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA NO CURSO DE DIREITO

Nessa seção realizamos um mapeamento sobre o processo


de superação e adaptação de estudantes com deficiência visual/
cegueira, no Curso de Direito, a partir de um passeio pelos docu-
mentos legais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN) com base nas políticas de inclusão. Fazemos alusões às
lutas das pessoas com deficiência partindo da fase da invisibilidade
até chegarmos ao atual momento de reconhecimento da dignida-
de destes indivíduos por meio: da evolução das normas; da imple-
mentação das políticas de inclusão e, sobretudo, da formação de
uma nova consciência social construída em alicerces na busca pelo
respeito à condição das pessoas com deficiência.
Todo arcabouço legal, sejam as normas de hierarquia consti-
tucional, as disposições infraconstitucionais ou os projetos voltados
para a inclusão, requer um planejamento articulado com os prin-
cípios da inclusão. A partir desse ponto, seguimos a linha analítica
e investigatória do Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI),
aprovado pela Resolução nº 34/2016 do Conselho Universitário,
com vigência de 2016 a 2026, da UERN, e seus reflexos no proces-
so de inclusão. Como disposto no corpo do documento em análise:

O Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) é o mapa


do futuro da Instituição, uma vez que pretende explicitar o
que ela deseja ser nos próximos dez anos. Como o ensino, a
pesquisa e a extensão são as funções essenciais da universi-
dade, coube ao PDI traçar diretrizes, metas e ações relativas
a essas três áreas. E como essas atividades-fim não se fazem
sem o concurso de pessoas e de equipamentos, ele também
se pronuncia a respeito das políticas de gestão institucional,
assistência estudantil, intercâmbio e internacionalização,

45
de inclusão e atendimento às pessoas com deficiências
(CONSUNI, 2016, p. 15).

Partindo do objetivo da pesquisa, priorizaremos a política de


inclusão e o atendimento às pessoas com deficiência disposto no
PDI como corpus para uma breve reflexão, a partir das vivências e
experiências de estudantes com deficiência visual/cegueira inse-
ridos no processo de inclusão. O primeiro PDI da UERN, aprova-
do pela Resolução nº 10/2007 – CONSUNI/UERN, cuja vigência
foi de 2008 a 2014, de maneira tímida e genérica, abordou sobre
as ações voltadas para a inclusão da pessoa com deficiência. Em
contrapartida, o documento elaborado para vigência entre 2016
a 2026 dedicou uma atenção especial às políticas de inclusão e
atendimento a essas pessoas. Como dispõe o texto, “[...] o debate
acerca da inclusão e tratamento da diversidade ocupa posição de
Plano de Desenvolvimento Institucional na Universidade” (CON-
SUNI, 2016, p. 83).
Acerca da intenção presente no instrumento, no que re-
fere às diretrizes, metas e ações no campo da inclusão, o refle-
xo do documento se nota em sua construção quando da par-
ticipação da Diretoria de Políticas e Ações Inclusivas (DAIN)
na elaboração, reflexão, e execução do documento em análise. A
participação se deu ouvindo, sistematicamente, os principais ato-
res envolvidos neste processo: docentes, técnicos e, acima de tudo,
as pessoas com deficiência. Essa ação inicial contribuiu para a par-
ticipação nos debates e na escrita do texto abordando os anseios
da população que é atendida e do grupo de pessoas que trabalha
em função desses atendimentos.
Quanto aos primeiros resultados, os quais foram fruto dessa
conexão entre o PDI e DAIN, após três anos da vigência do do-
cumento, constata-se ganhos qualitativos, tais como: o Plano de
Atendimento Individualizado (PAI), que corresponde a um Progra-
ma que entende cada aluno dentro da sua especificidade. Ou seja,
para a política, cada pessoa com deficiência tem, de maneira parti-

46
cular, suas necessidades e desafios que, muitas vezes, vão além da
deficiência.
Assim, nesse Programa, os alunos são acompanhados e os
professores fazem as adequações voltadas para as especificidades
de cada aluno, a partir de sua condição específica. Essa ação se dá
por meio de pareceres que foram estabelecidos no PDI, os quais
levam em conta as ações que vem dos trabalhos que são feitos
pelas divisões especializadas da DAIN, tais como: Divisão de Defi-
ciência Auditiva; Divisão de Deficiência Visual; Divisão de Psicolo-
gia; Divisão de Pedagogia e Divisão de Serviço Social.
No Programa, um parecer é construído para cada aluno aten-
dido. Esses documentos vão para as faculdades a fim de darem
subsídios para o trabalho dos professores, dos chefes de departa-
mento, dos diretores e do orientador acadêmico no que se refere
às adaptações. O reflexo positivo desta ação se dá na realização,
com sucesso, de uma das diretrizes disposta no PDI em que trata
do acompanhamento do acesso, da permanência e da conclusão
de cursos dos estudantes com deficiência.
Ainda sobre os objetivos presentes no PDI, destacamos a po-
lítica de internacionalização que corresponde à inserção interna-
cional das políticas de inclusão que está dentro do plano estratégi-
co de ação da DAIN, no PDI, construído a partir do final de 2013.
A ação teve como repercussão a disponibilidade para o departa-
mento de três convênios que estão sendo articulados com a Uni-
versidade de Flores (na Argentina), a Universidade de Medelín (na
Colômbia) e a Universidade de Marcelino Champagnat (no Peru).
Nesse caso, a ação está em conformidade com a diretriz que pre-
vê o estabelecimento de parcerias interinstitucionais com vistas ao
aperfeiçoamento dos serviços e das ações que visam à inclusão
das pessoas com deficiência. Destacamos algumas metas que es-
tão previstas no PDI (CONSUNI, 2016, p. 86) e que já estão em
desenvolvimento:

47
A) promover a formação continuada de docentes, técnicos
administrativos e discentes, voltada para o atendimento es-
pecializado de pessoas com deficiência e para o fortaleci-
mento da cultura para a diversidade;
B) realizar seminários estaduais com vistas à discussão e à
socialização de estudos acerca da inclusão de pessoas com
deficiência;
C) desenvolver ações conjuntas, em especial com a PROEG,
PROEX, PROPEG e DAIN para execução de projetos e ações
de ensino, pesquisa e extensão, articulando-os a aos temas
relacionados à Educação em Direitos Humanos, promoção
da igualdade na diversidade étnico-racial, de gênero, sexual,
religiosa, de faixa geracional, à educação especial e à inclu-
são de pessoas com deficiência.

A essas diretrizes, metas e ações, somam-se: a estruturação


da universidade, a requisição de produtos e a expansão do atendi-
mento aos discentes com deficiência nos Cursos de Pós-Gradua-
ção. Referente às perspectivas para um planejamento das ações
voltadas para a inclusão, entre as metas de longo prazo a serem
perseguidas, está a consolidação da rede latino-americana das po-
líticas de inclusão para as pessoas com deficiência e diversidade e
a consolidação do Laboratório de Acessibilidade e Inclusão, além
do núcleo de atenção educativa às famílias das pessoas com defi-
ciência.
Quando o Plano prevê a política de inclusão e de atendimento
às pessoas com deficiência, sinaliza que a universidade está atenta
às demandas de inclusão. Podemos, então, avançar nas ações que
atraiam estes indivíduos para o Ensino Superior, se considerarmos
que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no cen-
so 2010, estimou que 23,9% da população brasileira tem algum
tipo de deficiência. Enquanto isso, quando analisamos a presença
desses estudantes no Ensino Superior, tomando a UERN como re-
ferência, verificamos que, entre 8.607 estudantes matriculados, em

48
2019, temos somente 178 discentes com deficiência, representan-
do 2,07% do total.
Os números revelam que ainda podemos evoluir em relação à
promoção das informações, sobre o cenário de recepção de discen-
tes com deficiência, na UERN, para que estas cheguem às pessoas
com deficiência. Sobretudo, quando verificamos que o Nordeste
possui o maior indicador, há cerca de 26,63%, de pessoas com de-
ficiência. Mas, em comparação com todo o país, os estados nordes-
tinos principalmente o Rio Grande do Norte e a Paraíba possuem o
maior número de pessoas com deficiência.
A localização geográfica da UERN exige uma atenção espe-
cial no que corresponde a inserção das pessoas com deficiência
no Ensino Superior. É exatamente deste ponto que, partindo do
exame do documento e, considerando as vivências de estudantes
com deficiência visual/cegueira, neste ambiente, nos últimos cinco
anos, no Curso de Direito, consideramos que, de maneira ampla, as
metas, diretrizes e ações contidas no PDI podem ser sentidas, no
cotidiano da instituição, pela pessoa com deficiência, em particular,
pelos discentes com cegueira.
O Regulamento dos Cursos de Graduação (RCG) da UERN,
aprovado pela Resolução nº 26/2017 do Conselho de Ensino, Pes-
quisa e Extensão, compõe um conjunto de normas para disciplinar
o funcionamento das graduações. O dispositivo tem como função
congregar as principais regras referentes à graduação dispondo,
em seu artigo I, que:

[...] este Regulamento tem por finalidade normatizar a oferta,


a organização e o funcionamento dos cursos regulares de
graduação, nas modalidades de ensino presencial e a dis-
tância, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(CONSEPE, 2017).

Com a evolução das normas que asseguram, explicitamen-


te, as condições tanto no acesso como a permanência/conclusão

49
de estudantes com deficiência no Ensino Superior, provocou nos
discentes o desejo em conhecer cada documento legal e buscar,
nestas fontes, os direitos e as garantias dessas pessoas e como o
tema da inclusão foi observado na elaboração de tal regulamento.
Em âmbito federal, a Portaria Normativa nº 20, de 21 de de-
zembro de 2017, ao dispor sobre os procedimentos e o padrão
decisório dos processos de credenciamento, recredenciamento,
autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de
cursos superiores, bem como seus aditamentos, nas modalidades
presencial e a distância. Acresce, das Instituições de Ensino Supe-
rior (IES) do sistema federal de ensino determina, em seu artigo 3º,
inciso III, que os pedidos de credenciamento e recredenciamento
terão como referencial, entre outros critérios, o plano de garan-
tia de acessibilidade, em conformidade com a legislação em vigor,
acompanhado de laudo técnico emitido por profissional ou órgão
público competentes. Tal recomendação, indica uma preocupação
com a acessibilidade e que a inclusão da pessoa com deficiência
deve ser observada, em todo ambiente na universidade, inclusive
na elaboração das normas internas.
Com base na leitura, constatamos que, de maneira direta, o
Regulamento dos Cursos de Graduação da UERN trata da pessoa
com deficiência somente no capítulo da integralização curricular
quando, no artigo 54, prescreve que:

O aluno cuja integralização curricular não ocorrer no limite


máximo estabelecido no PPC a que esteja vinculado, terá
seu programa de estudo automaticamente cancelado. § I.
é permitido ao aluno que estiver matriculado no último se-
mestre letivo correspondente ao prazo referido no caput
deste artigo, solicitar, por uma única vez, sua alteração em
até 50% (cinquenta por cento). § 2o O percentual estabele-
cido no parágrafo anterior poderá ser ampliado para o aluno
com necessidades educacionais especiais, afecção congêni-
ta ou adquirida, infecções, traumatismo ou outras condições

50
mórbidas, determinando distúrbios agudos ou agudizados
que importem em redução da capacidade de aprendizagem,
comprovado mediante avaliação da Junta Médica do Estado
do Rio Grande do Norte ou de Junta Multiprofissional insti-
tuída no âmbito da UERN (CONSEPE, 2017).

A previsão acima tem o mérito de reconhecer a especificidade


da pessoa com deficiência e a ampliação do tempo para sua forma-
ção e compreender que, por vezes, a condição atípica de estudan-
tes com deficiência no Ensino Superior afeta no processo de ensi-
no-aprendizagem. Logo, o tempo adicional supre a necessidade da
adequação temporal derivada da limitação inerente à deficiência.
Assim, verificamos que, devido ao trabalho desenvolvido na UERN,
com auxílio da DAIN, uma parcela majoritária desses estudantes,
concluem o Curso dentro do tempo estipulado no projeto pedagó-
gico.
Quando o RCG, em seu artigo 6º, trata acerca da criação de
Cursos, na relação dos requisitos presentes nos projetos de criação
destes, a norma deve determinar que, entre os critérios recomen-
dados, deve-se observar a implementação de estratégias para a
acessibilidade e determinar, integralmente, a obediência aos prin-
cípios que dizem respeito à inclusão da pessoa com deficiência.
Ainda que tal previsão esteja disposta em outras normas, é funda-
mental que todo e qualquer documento programático contemple,
expressamente, as políticas inclusivas. Precipuamente, quando se
trata no nascimento de um curso de graduação, a observação das
medidas sugeridas se mostra, extremamente relevante. Se quere-
mos reverberar a inclusão como princípio a ser perseguido, é no
nascedouro de um curso de graduação que se exige a implemen-
tação de tais políticas. Diante disto, o RCG tem que propor a obe-
diência integral a estes preceitos.
No que concerne às matrizes curriculares, o Regulamento po-
deria estabelecer uma sintonia com o Estatuto da Pessoa com De-
ficiência, conforme prevê o artigo 28, inciso XIV, em que propõe a

51
inserção, nos conteúdos programáticos que tenham relação com a
temática sobre a pessoa com deficiência nos respectivos campos
de conhecimento. Esta ideia tem como objetivo produzir e disponi-
bilizar conhecimento sobre as políticas de inclusão na perspectiva
da educação inclusiva. Seja na oferta de disciplinas correlatas ao
tema ou na inclusão do conteúdo nas disciplinas existentes.
Sobre o Programa Geral do Componente Curricular (PGCC),
o artigo 38 dispõe que o PGCC deve conter a apresentação da ati-
vidade, ementa, objetivos, conteúdo, metodologia, procedimentos
de avaliação da aprendizagem e bibliografia (UERN, 2017). Com
relação à metodologia presente no PGCC, o referido texto deve-
ria ter como acréscimo que, na elaboração e execução da meto-
dologia, as condições de acessibilidade sejam sempre respeitadas.
Adiante, no capítulo que aborda o Projeto Pedagógico de Curso,
verificamos que o artigo 46 prescreve que:

Como forma de garantir a transparência e o acesso à infor-


mação, cada curso deverá manter uma página eletrônica que
contenha no mínimo as seguintes informações, entre outras
julgadas relevantes, retiradas do respectivo PPC:
I. Objetivos; II. Perfil do egresso; III. Matriz curricular; IV.
Ementa das disciplinas; V. Decreto de Reconhecimento ou
de Renovação de Reconhecimento do Curso; Parágrafo úni-
co. Cabe ao chefe do Departamento Acadêmico/coordena-
dor do curso, auxiliado pela orientação acadêmica, o geren-
ciamento da página eletrônica (CONSEPE, 2012).

Neste ponto da norma, seria pertinente a recomendação que


tal página eletrônica atendesse ao critério de acessibilidade, con-
soante prevê o artigo 63, do Estatuto da Pessoa com Deficiência,
uma vez que:

[...] é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet man-


tidos por empresas com sede ou representação comercial

52
no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com
deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponí-
veis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibili-
dade adotadas internacionalmente (CONSEPE, 2012).

Mediante a previsão contida no dispositivo do Estatuto, consi-


deramos como salutar que, quando qualquer documento priorizar
pela transparência e acesso à informação por meio de páginas ele-
trônicas, deve prezar pelos recursos de acessibilidade. Com efeito,
a observação das lacunas indicadas nos artigos examinados não
significa a ausência das políticas de inclusão nos cursos de gradua-
ção na instituição. Reiteradamente, neste estudo, os avanços das
políticas na UERN, inclusive por meio das vivências que estudantes
com deficiência visual/cegueira conseguiram uma assistência por
um período de cinco anos, bem como do exame dos projetos, de
documentos e de ações voltadas para a aplicação, com excelência,
das políticas de inclusão da pessoa com deficiência.
Todavia, considerando que temos um documento, de 2017,
construído em uma época em que a preocupação com a inclusão
das pessoas com deficiência está positivada, em diversas normas,
a sugestão contida, neste estudo, deriva da conscientização social
e da consolidação normativa que confere proteção a estes grupos.
Ademais, se pretendermos potencializar os avanços das políticas
das pessoas com deficiência, devemos cuidar para que nenhum
espaço normativo esteja vago. Para tanto, na seção seguinte, enfo-
caremos o trabalho desenvolvido no Curso de Direito, a partir dos
documentos legais da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte (UERN) com base nas políticas de inclusão.

53
O DESENVOLVIMENTO PESSOAL E PROFISSIONAL DE
ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA VISUAL/CEGUEIRA DO
CURSO DE DIREITO: O QUE DIZEM OS DOS DOCUMENTOS
LEGAIS SOBRE AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO DA UERN?

Após a leitura e interpretação do Plano de Desenvolvimento


Institucional PDI (CONSUNI, 2016) e do Regulamento dos Cursos
de Graduação - RCG (CONSEPE, 2017), da UERN, examinamos o
Projeto Pedagógico do Curso de Direito – PPC (CONSEPE, 2012),
visando observar como este documento reflete na formação pes-
soal e profissional de estudantes com deficiência visual/cegueira
inserido neste ambiente. Antes de dar seguimento ao estudo, fare-
mos algumas observações pertinentes.
A primeira delas é de que o PPC, em análise, foi elaborado
em 2012. Sublinhamos que, no momento em que esse trabalho foi
construído, encontrava-se em fase de elaboração um novo PPC.
Contudo, optamos por seguir a análise do documento de 2012,
tendo em vista ser este o dispositivo vigente. Ademais, faremos
referência às Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de gradua-
ção em Direito, bacharelado de 2018.
Posto isso, tratamos do PPC, pontuando: missão; concepção
e objetivos do Curso; princípios que norteiam a formação profissio-
nal do bacharel em Direito; perfil do (a) docente e do (a) profissio-
nal a ser formado (a); habilidades e competências; e filosofia curri-
cular. Outrossim, seguindo a característica peculiar deste trabalho,
estabelecemos um diálogo entre o que diz o documento e as ações
que compreendemos como necessárias na formação/profissionali-
zação do discente com cegueira no Curso de Direito.
O PPC determina que a Faculdade de Direito (FAD) tem como
missão cooperar para o aperfeiçoamento do cidadão e para a for-
mação de um profissional ético, de postura reflexiva, crítica e pro-
positiva, apto a pensar e construir o Direito, pautado ainda na res-
ponsabilidade social, sendo um participante ativo do processo de
transformação para uma sociedade mais justa e igualitária.

54
A partir do momento em que a FAD recebe um discente com
algum tipo de deficiência, estabelece meios para a permanência e
formação deste, incentiva as ações de inclusão, oferece-lhe as fer-
ramentas para a autonomia e sua formação profissional e social. A
incumbência, ora apresentada, ganha significado especial quando,
no Curso de Direito, estudantes com deficiência estudam os fenô-
menos das injustiças e desigualdades.
Percebemos, então, que a tarefa inclusiva, no PPC, se apre-
senta por meio de uma postura reflexiva, crítica e propositiva. Tan-
to é assim, que esse estudo é desenvolvido a partir da vivência de
estudantes com deficiência visual/cegueira instigados a discutir a
inclusão como tema primário no corpo dos documentos que or-
bitam o Curso de Direito. Com efeito, a formação profissional com
ampla percepção humanística e visão global que habilite a com-
preender o meio social, político, econômico e cultural no qual es-
teja incluso/a o/a egresso/a, corresponde à concepção e finalidade
que perpassam o PPC da FAD.
O instrumento legal dispõe que se constituem objetivos do
Curso de Direito da FAD/UERN, entre outros, estimular os discen-
tes a desenvolverem sua formação humana e plural, propiciando-
-lhes a descoberta de suas potencialidades e afinidades, impres-
cindíveis à sua afirmação e desenvolvimento integral. O propósito
supracitado, se aplicado em obediência aos ditames da inclusão, os
estudantes com deficiência terão capacidade de desenvolver, em
sua plenitude, suas potencialidades. Acrescentamos que o intento
representa a aplicação do princípio constitucional da igualdade ra-
tificado na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), nos termos do artigo 4º,
toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportuni-
dades como as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de
discriminação (BRASIL, 2015).
A despeito do PPC, o aperfeiçoamento do documento exi-
ge, em sua atualização, a exteriorização das medidas de inclusão
a serem adotadas no Curso de Direito. A intenção coaduna com
o princípio da pluralidade que parte da concepção de que a rea-

55
lidade é complexa, logo a formação profissional deverá estar em
consonância com uma visão de abertura para novas abordagens
teóricas e metodológicas, que respeitem a convivência e a comple-
mentaridade dos paradigmas, em conformidade com a natureza
do objeto de estudo. Quando adequadas, as medidas contribuem
para o desenvolvimento das habilidades compreendidas no Proje-
to Pedagógico. Consequentemente, o profissional formado, nessas
condições, estará incluído nos ditames do que propõe a filosofia
que orienta a organização curricular do Curso de Direito.
Portanto, teremos então, um especialista que, ainda que com
algum tipo de deficiência, estará em condição de competência
técnica e comunicativa para atuar com eficiência, podendo seguir,
com qualidade e autonomia, a carreira jurídica pertinente ao ba-
charel em Direito. O PPC da Faculdade de Direito, quando da sua
atualização, deverá atentar para essa realidade em que admite uma
pluralidade de sujeitos que estão inserindo-se no Ensino Superior.
A exemplo do que citam Garcia e Beaton (2004) a educação dos
alunos com algum tipo de deficiência, só começou a se modificar
efetivamente na Idade Contemporânea, com a construção de es-
colas especializadas, cujo papel fundamental era o desenvolvimen-
to desses indivíduos. Nesta perspectiva, esses alunos eram enca-
minhados para as escolas mediante a sua especificidade.
Com isso, foi possível avançar nas pesquisas para se estudar
de onde advinham suas limitações, se de fatores neurológicos, bio-
lógicos ou fisiológicos. Os estudos nessa área permitiram que as
escolas especializadas adaptassem sua realidade de sala de aula,
oferecendo metodologia, materiais e estratégias diferenciadas,
com o objetivo de aprimorar as práticas pedagógicas. E foi só na
década de 1990, que teve início um amplo movimento nas escolas
regulares denominado de inclusão, que visa a união de todos os
alunos, com e sem deficiência, em um mesmo espaço de ensino-
-aprendizagem, com o objetivo de promover a integralização de
saberes e culturas (GARCIA; BEATON, 2004).
Assim, dedicar uma atenção especial a esse tema é aproxi-

56
mar-se às legislações modernas. A saber, o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), na Resolução de nº 230, em seu artigo 19, determi-
nou que os editais de concursos públicos para ingresso nos qua-
dros do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares deverão pre-
ver, nos objetos de avaliação, disciplina que abarque os direitos das
pessoas com deficiência (CNJ, 2019). Assim, o estudo das normas
voltadas à proteção dessas pessoas constitui obrigatoriedade. Em
que pese esta tendência, a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de
2018, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de graduação em Direito, de 2018, no artigo 2º, § 4º determina:

[...] o PPC deve prever ainda as formas de tratamento trans-


versal dos conteúdos exigidos em diretrizes nacionais es-
pecíficas, tais como as políticas de educação ambiental, de
educação em direitos humanos, de educação para a terceira
idade, de educação em políticas de gênero, de educação das
relações étnico-raciais e histórias e culturas afro-brasileira,
africana e indígena, entre outras (BRASIL, 2018).

Para tanto, observa-se a ausência da menção às políticas das


pessoas com deficiência. Possivelmente, a temática esteja incorpo-
rada nas políticas de educação em direitos humanos ou, de forma
residual, como indica o parágrafo em estudo. De certo, de maneira
clara e direta, o documento poderia ter contemplado tais políticas
no bojo do parágrafo em tela. Desse modo, diante do alcance em
que as questões que tratam das condições de acessibilidade, evi-
denciadas nos sistemas normativos, o exame do documento, aqui
exibido, primordialmente, exige uma atenção especial, no que tan-
ge às políticas de inclusão das pessoas com deficiência. Nesse ân-
gulo, na atualização do PPC, da Faculdade de Direito, esperamos
que as questões suscitadas, nesse texto, sejam acolhidas, visto que
as ideias em estudo já foram abraçadas pela Faculdade, restando
somente a positivação das mesmas.
Mediante o exposto, vislumbramos com ânimo o aprofunda-

57
mento das políticas que valorizam as ações de acessibilidade no
Curso de Direito da UERN. Assimilando as ideias, todo aquele que
ler e interpretar os documentos legais que apontam para a neces-
sária construção dos projetos pedagógicos terá, nesse documento,
um guia que orientará na elaboração e na execução dos projetos
voltado para este fim. Uma das questões centrais remete às ade-
quações curriculares, avaliativas, metodológicas e de tempo, para
que os estudantes com deficiência tenham seu desempenho com
qualidade. Ampliar a aprendizagem e conhecimento, através das
adequações, acima elencadas, significa inúmeros avanços e bene-
fícios aos discentes e elevação da qualidade no acesso, acompa-
nhamento que repercutirão no mercado de trabalho, quando da
conclusão do Curso.
Aproveitamos para assinalar a pertinência e fundamental im-
portância de uma maior aproximação da Faculdade de Direito com
a Diretoria de Políticas e Ações Inclusivas (DAIN/UERN) quanto
aos seguintes espaços que essa diretoria cultiva: 1. Laboratório de
Acessibilidade e Inclusão, com vistas à acessibilidade na perspec-
tiva da efetivação de ações e políticas direcionadas aos estudan-
tes com deficiência; 2. Oferta de cursos de formação continuada
em Educação Inclusiva, e cursos de Informática para pessoas com
deficiência, com a perspectiva de autonomia e independência na
utilização de recursos do sistema de tecnologia da informação para
atender às suas necessidades; 3. Políticas para a Internacionaliza-
ção/Inserção Internacional das Políticas de Inclusão da UERN,
com vistas à criação de uma rede interuniversitária, na América La-
tina, para a efetivação de direitos das pessoas com deficiência e
necessidades educacionais especiais; 4. Implantação do Núcleo de
Atenção Educativa à Família (NAEF) para atendimento às famílias
com vistas à inclusão de pessoas com deficiência e/ou necessida-
des educacionais especiais, na perspectiva da efetivação das ações
e políticas direcionadas aos alunos ingressantes, semestralmente,
na UERN e, os discentes com deficiência e/ou necessidades educa-
cionais especiais que estão em curso.

58
Quando nos reportamos à importância da FAD em estabele-
cer maior diálogo com a DAIN, significa que terá parceria com uma
equipe que trabalha com a legislação federal específica para pes-
soas com deficiência e com a missão de estabelecer as políticas de
inclusão voltadas para a diversidade humana. Na Convenção Inter-
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovado
pela ONU, em 2006, assinada pelo Brasil, em 2008, como Estado
Parte Signatário como um documento internacional que norteia
suas ações, temos a orientação sobre a responsabilidade da inclu-
são no Ensino Superior.
Entretanto, se efetiva por meio de ações que promovam o
acesso, a permanência e a participação dos alunos. Estes procedi-
mentos, envolvem o planejamento e a organização de recursos e
serviços para a promoção da acessibilidade arquitetônica, nas co-
municações, nos sistemas de informação, nos materiais didáticos e
pedagógicos, que devem ser disponibilizados nos processos sele-
tivos e no desenvolvimento de todas as atividades que envolvam
o ensino, a pesquisa e a extensão. No tocante à LBI, com a mesma
ressalva sobre o alinhamento das ações da DAIN com o que pres-
creve a referida lei, em seu artigo 27, temos que:

[...] a educação constitui direito da pessoa com deficiência,


assegurados sistema educacional inclusivo em todos os ní-
veis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a al-
cançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos
e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segun-
do suas características, interesses e necessidades de apren-
dizagem (BRASIL, 2015).

Em específico para os Projetos Pedagógicos, a LBI, no seu


artigo 28, incisos II e II, respectivamente, pede o aprimoramento
dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso,
permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de
serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras

59
e promovam a inclusão plena (BRASIL, 2015). Ainda, que esses
institucionalizem o atendimento educacional especializado, assim
como os demais serviços e adaptações razoáveis para atender às
características dos estudantes com deficiência e garantir o seu ple-
no acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a
conquista e o exercício de sua autonomia.
Os efeitos da execução das políticas de inclusão, no Ensino Su-
perior, vão além da qualidade no processo de ensino e aprendiza-
gem. Quando implantadas, tais medidas têm o mérito de formarem
profissionais capacitados para exercerem uma atividade compatí-
vel com sua formação permitindo, assim, a estas minorias a fruição
de direitos sociais como o do trabalho. Tomando como exemplo
os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Mi-
nistério do Trabalho, verificaremos que, em 2016, 418.521 (0,91%)
de pessoas com deficiência estavam formalmente no mercado de
trabalho. Os dados ampliam a responsabilidade das instituições na
qualificação com excelência destas pessoas.
Por mais primorosa que seja, nenhuma regra legal terá, por
si só, a força necessária para transformar a realidade. De acordo
com Nader (2014, p. 52), “[...] se o homem em sociedade não está
propenso a acatar os valores fundamentais do bem comum, de vi-
vê-los em suas ações, o Direito será inócuo, impotente para realizar
a sua missão”. É nesse ponto que sustentamos que a luta das pes-
soas com deficiência, em todos os âmbitos, incluído o do ambiente
acadêmico, só será efetivo em sua plenitude quando valorizarmos
as relações sociais. É no cotidiano e por meio das vivências que a
norma se concretiza. Já não é mais um comando disposto na so-
lidão da lei, mas, uma relação entre assistentes e assistidos, quem
ensina e quem aprende. Sobretudo, uma troca de experiências que
nenhuma norma será capaz de prever, em sua integralidade, as pe-
culiaridades desta relação humana.
Outro fator para ser levado em conta na efetivação desses
direitos, é a destinação no orçamento de recursos para as tais po-
líticas. A ampliação destas políticas passa, impreterivelmente, pela

60
dimensão dos recursos financeiros. Por intermédio da administra-
ção em todas as esferas de poder, o poder público deve ter como
prioridade o incentivo às políticas de inclusão. Aplicada nas insti-
tuições de Ensino Superior essa ideia condena qualquer retrocesso
nos investimentos destinado às instituições. Nesse nível de ensino,
a educação inclusiva demanda formação profissional, adaptações
nas estruturas nos campis, além da aquisição de equipamentos e
serviços adaptados. Por mais que disponhamos da boa vontade
dos que atuam diretamente no atendimento aos discentes com
deficiência, ainda que os documentos legais prevejam, em sua in-
tegralidade, a obediência aos preceitos da inclusão, sem o incenti-
vo financeiro necessário, a execução das políticas de inclusão ficará
comprometida.
Superado a questão dos recursos orçamentários, enfatizamos
o papel da sociedade na efetivação destes direitos. A previsão des-
ta repartição de responsabilidades, como já prescreve a LBI, no
artigo 27, parágrafo único, é dever do Estado, da família, da comu-
nidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade
à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de
violência, negligência e discriminação (BRASIL, 2015). São esses
protagonistas, nesse processo inclusivo que concretizam as reco-
mendações dispostas nos documentos que permitem a universi-
dade ser reconhecida como um ambiente inclusivo.
Portanto, é fundamental a participação das pessoas com de-
ficiência na elaboração dos documentos que dizem respeito aos
seus direitos e, na tomada de decisões sobre as políticas de in-
clusão. Foi nesta tendência que o Comitê das Nações Unidas, em
2018, publicou uma nova orientação legal como comentário geral
nº 7, na Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.
Em seu comentário geral, o Comitê destacou que, quando pessoas
com deficiência são consultadas, isto leva a leis, políticas e progra-
mas que contribuem para sociedades e ambientes mais inclusivos
. Esta orientação traduz o núcleo fundamental do lema “Nada so-
bre nós sem nós”, base central dos movimentos de direitos das

61
pessoas com deficiência. É oportuno salientar, que em 2016, por
intermédio da DAIN, a UERN participou da elaboração do PDI an-
tecipando, assim, tal recomendação.
A partir da leitura da legislação do PDI, RCG e do PPC, do
exame do ordenamento externo e, acima de tudo, das experiências
vividas pelos estudantes com cegueira do Curso de Direito, desta-
camos que, se queremos alcançar a excelência, em sua plenitude,
na execução das políticas voltadas para a inclusão da pessoa com
deficiência, precisamos reconhecer que uma série de fatores con-
corre para a realização destes objetivos. Assim, aguardemos que
toda e qualquer lacuna identificada no exame desses documentos
legais e nas atualizações, elaborações e execuções que há por vir,
tenha a marca desse estudo: propositivo, por vezes, crítico. Mas,
sobretudo, fruto de vivências exitosas no Curso de Direito desses
estudantes com cegueira.
Outros documentos que não foram objeto de exame preci-
sam ser atualizados, como a nosso ver, é a Lei Complementar nº
389, de 30 de junho de 2009, do Estado do Rio Grande do Nor-
te que cria cargos públicos de provimento efetivo vinculado ao
Quadro de Pessoal da Fundação Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN, 2009). Trata-se de um documento que
precisa ser estudado e atualizado, a partir de uma leitura contem-
porânea, pois há cargos, hoje, que são necessários para o atendi-
mento a pessoas com deficiência e que não se encontram listados
na referida Lei Complementar. Esse aspecto provoca barreiras para
a contratação de profissionais para a área da Deficiência Visual e
outras deficiências cuja atribuição não está listada na supracitada
Lei Complementar.
Consideramos um exercício urgente, a saber, da leitura e atua-
lização de documentos buscando uma revisão e adequação de car-
gos em alinhamento com as categorias das deficiências que estão
listadas no Decreto Federal nº 3.298 de 1999, e amparadas pela LBI
de 2015, uma vez que é dever concretizar ações para a quebra de
barreiras, físicas, arquitetônicas, atitudinais, procedimentais e con-
ceituais.

62
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

No exame das fontes normativas internas que compõem os


instrumentos legais da Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN), depreendemos que os documentos e políticas
desenvolvidas na UERN, encontram-se contemporâneas às evo-
luções das políticas de inclusão da pessoa com deficiência. Ainda
que haja a necessidade de algumas adequações, reconhecemos o
empenho na UERN no Curso de Direito, e dos envolvidos na exe-
cução destas ações inclusivas. Destacamos como uma conclusão
fundamental o ponto expoente do Curso de Direito: a quebra de
barreiras atitudinais.
Inferimos que, no que tange às perspectivas para o desen-
volvimento pessoal e profissional, o Projeto Pedagógico do Curso
de Direito, constitui uma ferramenta essencial na superação das
desigualdades existentes em razão da condição atípica. Em uma
época de profundas e aceleradas transformações, há um horizonte
de novas possibilidades que se apresentam no estudo da temática
que examinamos. Ainda mais, se considerarmos os reais avanços
das normas, ciência, das tecnologias e de uma nova consciência
social, quem se aventurar na pesquisa sobre a pessoa com defi-
ciência, no contexto social, legal e econômico, além de contribuir
para a visibilidade destes direitos, concorre para a valorização da
diversidade humana.
É relevante ressaltarmos que as referidas contribuições podem
ser melhor alcançadas quando todas as pessoas se debruçam sobre:
a legislação; os documentos internos da universidade; as resoluções
e normas dos Cursos dando suporte para que estudantes, docentes
e técnicos administrativos tenham oportunidade de se implicarem
na quebra de barreira para a efetivação dos direitos das pessoas
com deficiência.

63
REFERÊNCIAS

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org/acao/pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 10 de ago. de 2019.
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Deficiência. Publicado no Diário Oficial da União em 21 de dezembro de 1999. Brasil
BRASIL. Lei Nº. 13.146. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da
Pessoa com Deficiência). Publicado no Diário Oficial da União em 07 de julho de 2015. Brasil
BRASIL. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2018. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.in.gov.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
BRASIL. Lei Nº. 13.146 de 2015 Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Es-
tatuto da Pessoa com Deficiência). Publicado no Diário Oficial da União em 07 de julho de 2015.
Brasil
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Disponível em: <https://wiki.redejuntos.org.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (Consepe). Resolução nº 26, de 28 de junho de
2017. Aprova o Regulamento dos Cursos de Graduação da UERN e revoga a Resolução nº 5/2014
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ponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/direito/convencao-internacio-
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GARCIA, Maria Teresa; BEATON, Guilherme Aries. Necessidades Educativas Especiais: desde o
enfoque histórico – cultural. São Paulo: Linear B, 2004.
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PROPOSTA Pedagógica Curricular. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Disponível
em: http://www.uern.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.

64
BATALHA DO PEDREGAL: SABERES E FAZERES JUVENIS
COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA
CIDADE DE CAMPINA GRANDE

Gabriel Lopes Dantas


Patrícia Cristina de Aragão

INTRODUÇÃO

“Minha cara autoridade, eu já não sei o que fazer.


Com tanta violência eu sinto medo de viver,
Pois, moro na favela e sou muito desrespeitado
A tristeza e alegria aqui caminham lado a lado
Eu faço uma oração para uma santa protetora
Mas sou interrompido à tiros de metralhadora
Enquanto os ricos moram numa casa grande e bela
O pobre é humilhado, esculachado na favela
Já não aguento mais essa onda de violência
Só peço a autoridade um pouco mais de competência”.
Cidinho e Doca - Eu Só Quero É Ser Feliz

A epígrafe em tela chama atenção para a luta e resistência


nas favelas. Lutas versadas nos tons da poesia, em que a arte mu-
sical expressa e aponta para as desigualdades sociais e o contexto
da experiência social de moradores desta espacialidade. Escrever
a história destes lugares, através da arte musical, aponta também
como o movimento de luta nestes contextos de viver se verificam
no cotidiano. Este trecho da música dos compositores Cidinho e
Doca representa um lugar de fala, os das periferias e como nelas, a
vida consubstancia e os sujeitos sociais e históricos, criam, recriam,
novos modos e formas de viver a vida e empreender seu movimen-
to de luta, quer seja através de suas artes, quer seja através de seus
ativismos culturais, sociais, políticos e educativos.
Este texto procura versar sobre o movimento cultural Bata-
lha do Pedregal de Campina Grande - PB, oriundo das culturas
e práticas da periferia, estabelecendo conexões entre as práticas
das pessoas nele envolvidas, observando tais ações como cultu-
rais, históricas, políticas e educativas com foco no social, mas tam-
bém enfatizando que o movimento cultural Batalha do Pedregal,
enquanto patrimônio imaterial da cidade de Campina Grande-PB.
Do rap ao slam, a batalha vai fazendo o movimento de travessia,
da poesia, da música, da dança, possibilitando, a partir da crítica
social, falar a respeito da periferia como espaço de entrelaço de
conhecimentos das juventudes desta territorialidade apresentam
as diversas maneiras de ler o social.
Nesta perspectiva, advogamos a ideia que o movimento Ba-
talha do Pedregal, é um importante patrimônio histórico, cultural
e imaterial, que na contemporaneidade traduz os sentimentos de
viver, de estabelecer relação com o espaço vivido em seu potencial
de arte e cultura, unindo nas forças juvenis, na ação das juventudes
periféricas outros modos de se conectar com o espaço urbano e
suas vicissitudes.
O passinho, o slam e a batalha do conhecimento movimen-
tam e recriam juventudes e infâncias educando para novas confor-
mações sociais. Neste sentido, as práticas culturais comunitárias se
articulam neste movimento em que há uma ação dialógica, entre a
força do rap e o slam, que se conjugam nas diversas formatações
críticas de questões sociais de envergadura que se representam na
poesia vinda dos vários cânticos da alma para transformar em arte,
as palavras vividas na periferia.
A gênese deste texto tem como ponto de partida uma aula
de Metodologia do Ensino de História IV, no curso de Licenciatura
Plena em História na Universidade Estadual da Paraíba, no ano de
2020 para alunos do 5º período, foi indagado pela professora o
que os alunos e alunas compreendiam sobre o que é patrimônio.
Naquele momento, foram vários os exemplos a respeito disso,
foi citado a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, que é lo-
calizada na cidade de Campina Grande, Paraíba, fundada em 08 de

66
dezembro de 1769, por decreto do Bispo de Olinda Dom Francisco
Xavier Aranha (DIOCESE DE CAMPINA GRANDE, 2020), também
foi citado o primeiro Hospital Dom Pedro I, também localizado na
cidade de Campina Grande, que foi construído através de mem-
bros da Loja Maçônica Regeneração Campinense, por meio de
uma doação de terreno em meados da década de 1920, iniciando
a sua construção em 7 de setembro de 1936 (JESUS, 2018, p. 34).
Acredito que o exemplo dessa aula nos apontou para o que
ocorre na sociedade, pois quando se fala de patrimônio de ime-
diato ressalta-se estas ambiências, porque no imaginário coletivo
pensar patrimônio refere-se a edifícios, monumentos e igrejas an-
tigas. Entretanto, geralmente, não se pensa que no bairro, institui-
ções da comunidade como, a Sociedade de Amigos de Bairro, e a
própria escola na qual esses indivíduos estão inseridos, também
são patrimônios.
Esse fato nos aponta para a ausência/silenciamento, ou mes-
mo poucas discussões dentro/fora do cotidiano escolar, sobre
outros patrimônios, sejam eles materiais ou imateriais, que fazem
parte de uma comunidade e da trajetória das vidas quem nela vi-
vem. Outros aspectos que nos mostra a necessidade da escolar se
retratarem sobre os múltiplos lugares da cidade e seus sujeitos,
para que não se vivencie práticas reducionistas, apontando como
enfatiza Adichie (2007), para uma história única, cuja narrativa seja
construída a partir de determinados sujeitos e práticas.
Enfatizamos a importância de referenciar os saberes coletivos
elaborados nas comunidades periféricas, pautando o foco no pa-
trimônio e a sua inclusão escolar para que sejam vivenciados por
crianças, adolescentes e jovens na escola, permitindo assim outros
tratamentos acerca das possibilidades de pensar o patrimônio.
O objetivo desse trabalho é discorrer sobre a importância
desse movimento cultural para o processo de reeducação dos jo-
vens dessa comunidade, especificamente como forma de dialogar
com a juventude e elucidar a problemática do direito à cidade e,
consequentemente, aos espaços de lazer e cultura.

67
A intenção é mostrar a Batalha do Pedregal para a cidade de
Campina Grande – PB e, principalmente, para a juventude perifé-
rica da cidade e apresentar as suas atividades, ressaltando a ne-
cessidade de reconhecê-la como patrimônio cultural imaterial da
cidade. Para esse trabalho utilizamos os estudos de Nathalia Maia
Martins (2019), Natália Guerra Brayner (2007) e Anna Paula Ferraz
Dias Vieira (2018). Do ponto de vista metodológico, a nossa pes-
quisa é bibliográfica e documental.

O DEBATE SOBRE PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL

Neste tópico discutiremos sobre a noção de patrimônio ima-


terial. A noção de patrimônio surgiu a partir de uma perspectiva
histórica relacionada diretamente a cidadania. Patrimônio vem do
latim “pater”, que significa pai, logo, patrimônio seria algo passado
de pai para o filho, ou seja, uma herança. Essa noção de patrimônio
foi elaborada, inicialmente, por meio da Revolução Francesa no
século XVIII, onde os revolucionários pretendiam destruir alguns
espaços físicos e monumentos ligados ao clero para romper com
essa estrutura que era presente nesse tempo-espaço, na perspec-
tiva de erradicar com ela de vez. Porém, alguns membros “revo-
lucionários” achavam essa medida desnecessária e ressaltavam a
importância artística e econômica desses patrimônios materiais
(BRAYNER, 2007, p. 12.)
Quando é discorrido sobre o patrimônio cultural imaterial, é
necessário compreender que ele é fruto de uma escolha da socie-
dade na qual reconhece tal produção e ação como patrimônio cul-
tural, ou seja, para que objetos, lugares e práticas culturais recebam
essa nomenclatura, é necessário que os valores e significados des-
sa sociedade sejam voltados para esses exemplos citados. Afinal,
o primeiro passo para que determinada manifestação cultural seja
aderida como patrimônio cultural imaterial é a própria população
se relacionar com a manifestação, bem como identificar-se com
ela, como é discorrido abaixo:

68
Independentemente dos mais diversos significados que
possam ser atribuídos a uma manifestação ou bem cultu-
ral, considera-se patrimônio aquele que é reconhecido pelo
grupo social como referência de sua cultura, de sua história,
algo que está presente na memória das pessoas do lugar e
que faz parte do seu cotidiano (BRAYNER, 2007, p.14-15).

Nessa perspectiva, é necessário destacar a respeito do SPHAN,


que é responsável por defender e favorecer os bens culturais do
Brasil de qualquer natureza, que foi fundado em 1937, ligado ao
Ministério do Turismo.
Nesse mesmo ano, é prolongado o decreto-lei nº 25, que dis-
corre o seguinte:

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o


conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interêsse público, quer por sua vincu-
lação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico
ou artístico. (BRASIL, 1937).

Foi através deste decreto que o Brasil começou a criar me-


didas de proteção, como é o caso do próprio tombamento. Nes-
te momento histórico, era apenas o Estado o grande responsável
pelo reconhecimento dos patrimônios materiais da nação, pois o
tombamento de alguns espaços na intenção de construir uma His-
tória oficial do Brasil, algo que a elite brasileira possuía bastante
interesse.
E o patrimônio imaterial? Bom, por muito tempo o patrimô-
nio imaterial não foi levado com seriedade por meio do Estado,
afinal, a maioria dos patrimônios imateriais são pertencentes às
classes populares, que por muito tempo no século XX, algumas
dessas práticas culturais eram colocadas a margem da sociedade.
Ademais, o foco do SPHAN, no final da década de 1930, no Brasil

69
era em bens móveis, arquitetônicos, conhecidos como monumen-
tos de pedra e cal.
Outro fato é que “povos ocidentais, por outro lado, evidencia-
ram por muito tempo com mais veemência, a conservação de seus
patrimônios tangíveis”. (MARTINS, 2019, p.60). Por muito tempo,
as manifestações populares foram cada vez mais negligenciadas
como, por exemplo, o próprio Maracatu, que já era existente desde
o século XIX no Brasil, e também o Hip-Hop, não foge dessa reali-
dade.
Os avanços a respeito do patrimônio imaterial no Brasil tor-
naram-se bastante significativos na década de 1970, durante o
mandato de Emílio Garrastazu Médici. Neste momento, o Brasil,
no curso de uma ditadura, sofria uma crise econômica com a altas
taxas de inflação e aumento da dívida externa, além do chamado
arrocho salarial, o que, consequentemente, gerou uma queda nas
políticas públicas por falta de investimento estatal.
A partir de então, começou a ser pensando a respeito da mo-
dernização do conceito de preservação, ou seja, a ideia de patri-
mônio passou a ser debatida de uma forma mais ampla, o motivo
principal disso era para fomentar o turismo como uma das válvulas
de escape para a crise na qual o Brasil estava inserido (INSTITUTO
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO, 2006).
A consequência disso foi uma descentralização sobre patri-
mônio e uma grande influência da Organização das Nações Uni-
das para a Educação, a Ciência e a Cultura. Ocorreu também em
outubro de 1971 o II Encontro dos governadores para preservação
do Patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil,
que gerou o compromisso de Salvador, na Bahia, onde saíram vá-
rias propostas, entre elas o objetivo de inscrição como monumento
de valor cultural, o acervo urbano de Lençóis -(Bahia), criação do
Parque Histórico da Independência da Bahia na cidade de Pirajá
(Bahia), criação do Museu do Mate na cidade de Campo Largo (Pa-
raná), entre outras medidas.
Outra medida desenvolvida pelo governo, neste momento, foi

70
o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do
Nordeste (1973), que tinha como objetivo investir para recuperar o
patrimônio cultural urbano, na perspectiva de aumentar o turismo
para o desenvolvimento econômico local e regional. O que gerou
bastante críticas ao longo do desenvolvimento desse programa,
pois era dito que o financiamento era destinado apenas a grandes
engenhos e não as demais manifestações populares que possuíam
e possuem bastante importância na região nordestina do Brasil.
O grande fato muito importante na década de 1970 foi, prin-
cipalmente, o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), fun-
dado em 1975, que tinha como seu presidente o Aloísio Magalhães,
um grande designer gráfico, que já tinha desenvolvido uma análise
das transformações socioculturais brasileira, novos modelos alter-
nativos de cultura e um reconhecimento artístico sobre o artesa-
nato (BRAYNER, 2007, p.10). E no ano de 1979, o CNRC é fundido
a SPHAN, o que gerou um grande avanço nesse órgão, pelo olhar
inovador que o CNRC possuía.
Toda essa nova movimentação que ocorreu na década de
1970, no Brasil, foi essencial, pois trouxe novos debates a respei-
to do que era patrimônio. Outra grande conquista foi através da
Constituição Federal de 1988, especificamente em seu Art. 215, que
descreve o seguinte “O Estado garantirá a todos o pleno exercí-
cio dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais” (BRASIl, 1988) e o Art. 216 diz que:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens


de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da so-
ciedade brasileira, nos quais se incluem (BRASIL, 1988).

Estes artigos da Constituição foram de uma grande impor-


tância, pois geraram uma inclusão das culturas e manifestações

71
de povos que sempre foram colocados à margem da sociedade,
e também apresentou resultados como, por exemplo: o Decreto
3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial e a criação do Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial.
E deram a responsabilidade ao Estado de está auxiliando atra-
vés de editais, registro e acompanhamento continuo dos espaços
de patrimônio cultural imaterial, para auxiliar nas dificuldades exis-
tentes e reforçar a importância desses espaços, culturas e forma de
manifestar arte para a população.

VOZES DA PERIFERIA: BATALHA DO PEDREGAL E OS


FAZERES JUVENIS

A Batalha do Pedregal é um movimento sociocultural educati-


vo, que ocorre na Praça Evandro Barros, e realiza atividades cultu-
rais das seguintes modalidades; Batalha de Conhecimento, Batalha
de Slam e Passinho dos Maloka (passinho de Brega Funk). É uma
Batalha organizada por jovens de outras periferias e também do
próprio bairro supracitado.
“Hoje, o Pedregal é considerada a maior “favela”, nos ter-
mos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em popu-
lação, do estado da Paraíba” (PEREIRA, 2016, p.17). Consideran-
do a afirmação da cientista social, Mariana Cavalcanti Pereira, “a
cidade, fragmentada pela lógica econômica e social produtivista,
está em disputa” (VIEIRA, 2018, p.24). Ou seja, a disputa é conse-
quência de uma busca pelo crescimento econômico e social, logo,
compreendemos que essa disputa é ocasionada também na “ven-
da” da imagem de uma cidade sobre as outras. Logo, os bairros
que conseguem disputar a cidade, são preenchidos para possuir
as condições para disputar na produtividade, aos bairros que não
possuem condições de disputarem, resta apenas a marginalização
e o esquecimento.
Em diálogo com a organização da Batalha do Pedregal, che-

72
gamos à conclusão que algumas das suas ações eram modifica-
das conforme o momento, por justamente o bairro precisar des-
sa alteração, afinal o território no qual a batalha está inserida “[...]
pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações
de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas
ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente
cultural” (HAESBAERT, 2007, p.27). Compreender essas relações é
necessário para que o projeto que a batalha montou, seja efetivo,
de fato, na sociedade.
Nesse contexto, a Batalha do Pedregal seguiria uma linha em
suas modalidades como ocorrem em outras batalhas ligadas ao
Movimento hip hop, no Brasil, onde atuam com a batalha de sangue
e batalha de slam. Porém, a organização da batalha do pedregal, a
observar a realidade em seu entorno, percebeu e analisou que um
dos seus públicos, no caso eram as crianças, possuía um sentimento
muito forte pela dança, especificamente o passinho do brega funk.
Logo, a modalidade do passinho foi inserida na batalha do pedregal,
que atualmente integra em sua organização as modalidades de ba-
talha do conhecimento, batalha de slam e passinho, se diferenciando
de todas as batalhas que ocorrem na cidade de Campina Grande-
-PB.
Foi analisado pela organização da Batalha do Pedregal, que o
bairro no qual eles estão inseridos, sempre sentiram uma grande
necessidade de terem acesso às atividades culturais. Afinal, é mui-
to típico do Estado privilegiar o centro da cidade e sua população,
restando apenas aos outros territórios buscarem, por si só, uma
inovação ou saída para os seus problemas. Então, a Batalha do Pe-
dregal tornou-se um meio para solucionar alguns problemas que
a favela do Pedregal sofre em seu cotidiano, logo, a organização
da Batalha do Pedregal assume não somente um caráter cultural,
mas educacional e também de movimento para auxiliar, lutar e de-
fender o território que eles estão inseridos, inclusive, da descons-
trução da imagem negativa que o bairro possui pela construção
alheia, perante o restante da sociedade campinense.

73
Dessa maneira, a Batalha do Pedregal se popularizou o acesso
à cultura, através do RAP, Slam e Passinho, iniciando suas ativida-
des em 26 de junho de 2019. E quando é trabalhado sobre cultura,
é importante salientar o que discorre a doutora em antropologia
social, María de Lourdes Arizpe Schlosser;

Cultura se define como todo el complejo de rasgos espiri-


tuales, materiales, intelectuales y emocionales que destin-
guen a una sociedad o grupo social. No solo incluye las artes
e las letras, sino también los modos de vida, los derechos
fundamentales del ser humano, los sistemas de valores, las
tradiciones y las creencias (SCHLOSSER, 2009, p. 40).

Como exemplo da citação acima, o diferencial da cultura pro-


duzida pelas Batalhas relacionadas ao movimento Hip-Hop, Brega
Funk e Slam em relação às demais culturas, é sua criação e pro-
dução ter sido feita através dos negros e negras e periféricos e
periféricas. Algo que tem ligação com a favela do Pedregal, ou seja,
a Batalha do Pedregal popularizou o acesso à cultura, isto porque
ela nasceu e se originou nesta comunidade e traz marcas sociais e
culturais da mesma.
O rap, a poesia, através do Slam, a dança do passinho para a
população da favela do Pedregal não é algo apenas visto e ouvido
na TV, celular ou computador, faz parte da prática vivenciada na
praça Evandro Barros, no contexto da comunidade, dando a aces-
sibilidade dessa população desenvolverem suas habilidades artís-
ticas e serem sujeitos históricos, escrevendo, dançando e rimando
sobre sua própria história.
Ressaltamos a importância do trabalho desenvolvido pela Ba-
talha do Pedregal no sentido que ela, a batalha, popularizou o aces-
so ao hip-hop e slam. É importante enfatizar que as letras de rap
e as poesias através do slam possuem para a favela do Pedregal. É
notório as críticas corriqueiras nessas letras e poesias sobre a au-
sência das políticas públicas, preconceitos e abandono estatal nos

74
espaços onde os rappers e slammers habitam. Tal como o gran-
de trabalho que os rappers e slammers negros (as) brasileiros (as)
vêm desenvolvendo ao longo de suas carreiras, de descontruírem
aquela história luso-brasileira e História Única (ADICHIE, 2007),
além das suas contribuições para o empoderamento e autoestima
do povo preto.
O rap e o slam tornam-se essenciais para a construção da
memória social, coletiva e individual, das pessoas da comunidade
e dos protagonistas que fazem parte da batalha, artistas que preo-
cupados com as questões sociais, elaboram uma arte cujo alcance
social e cultural é notadamente sentido na comunidade.
É a memória dos acontecimentos e dos fatos que pode ser
analisada com os acontecimentos das batalhas e aquilo que as
letras e poesias do slam denunciam, após as informações serem
armazenadas nessa população, é criado a possibilidade da com-
preensão dos fatos sobre a vida, “desde um ponto de vista prático,
a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evo-
cação de informação adquirida através de experiências; a aquisi-
ção de memórias denomina-se aprendizado” (IZQUIERDO, 1989,
p. 89).
Não se deve esquecer a continuidade que as atividades cultu-
rais desenvolvidas pela Batalha do Pedregal possuem, o que leva a
reflexão “como pelo efeito de uma filiação contínua, o sentimento
de nossa identidade” (CANDAU, 2019 apud HALBWACHS, 1994,
p. 16-17). Ou seja, geram contribuições também para a identidade,
que é formada pela constante afirmação de significados e pelas
contribuições pertencentes as letras de Rap e Slam.

AS CONTRIBUIÇÕES QUE PERPASSAM A CULTURA

A Batalha do Pedregal analisou que o público feminino pre-


sente nas suas rodas culturais estava muito baixo. Logo, a organi-
zação buscou modificar esse cenário afinal, “a presença feminina é
muito restrita quando comparado ao número de homens que tem

75
um engajamento maior dentro do hip hop” (LIMA, 2016, p.57).
Os organizadores da Batalha, ao perceberem a recepção das
mulheres nas atividades, passaram a desenvolver ações que tives-
sem a participação feminina, a partir daí, pensaram uma nova for-
ma de incluir as meninas para ocuparem os espaços da Batalha.
Organizaram uma Oficina de autocuidado direcionado para o pú-
blico feminino, inicialmente no dia 27 de julho de 2019, dando con-
tinuidade no dia 01 de setembro de 2019, entre outras atividades,
conforme percebe-se na figura 1 abaixo.

Figura 1

A iniciativa para elaboração das oficinas de autocuidado, teve


como proposta aproximar as mulheres que queriam fazer parte
cada vez mais da cultura Hip Hop, objetivava mostrar resultados
após as oficinas, na busca por solucionar um problema que é em-
basado no machismo da sociedade. Outro fato importante, é anali-
sado na arte publicada pela Batalha do Pedregal em seu Instagram
no dia 13 de dezembro de 2019;

76
Figura 2

Duas coisas chamam atenção nessa arte: a utilização do es-


paço da Batalha para o incentivo da comunidade a fazerem sua
inscrição no curso do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
(SENAI), um movimento extremamente louvável, a final, a Batalha
está popularizando o acesso as inscrições dos cursos profissionali-
zantes, que, muitas das vezes não chegam até jovens da periferia,
como é o caso da favela do Pedregal, por justamente muito deles
(as) não possuírem acesso à internet ou até mesmo condições fi-
nanceiras de locomoção para irem de encontro com espaços que
estão disponibilizando a inscrição.
O outro fato, é a frase na qual a arte possui: “Cabelin na régua,
diploma no porte. Seja um malokeiro estudado”. O “cabelin na ré-
gua” faz parte da estética visual dos jovens da periferia, ou seja, a
frase vai de encontro com os jovens da comunidade. O incentivo do
“diploma no porte” é um referencial a educação, algo que a Batalha
do Pedregal anuncia como bastante importante e, por fim, “seja
um malokeiro estudado” dando uma nova interpretação ao este-
reótipo da palavra maloqueiro, que segundo o Jornalista Joseildo
Henriques (2009), é um termo “utilizado de forma pejorativa para
referir-se aos jovens de periferia envolvidos em criminalidade”, mas
que pode ser interpretado da seguinte forma; “seja o que você é,
independente dos estereótipos que a sociedade impõe, mas seja

77
estudado”. Vale destacar que a frase vai totalmente de encontro
com as próprias inscrições do SENAI, divulgada pela Batalha. Ade-
mais, atividade importante da batalha será relatada através de uma
imagem abaixo:

Figura 3

É notório que a Batalha do Pedregal, no ano de 2020, através


dessa arte publicada em suas redes sociais, no dia 07 de fevereiro,
do ano citado, começaram a incorporar em sua organização novas
responsabilidades, como a de atender a comunidade através das
demandas de saúde mental, assistência jurídica e social (a organi-
zação relata que há um grande número de jovens presos de forma
injusta no Bairro do Pedregal), horta comunitária e preparatório
para o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jo-
vens e Adultos (ENCEJA), cumprindo um papel social, muito além
da responsabilidade que normalmente as batalhas ligadas ao mo-
vimento Hip Hop cumprem a nível nacional. Mostra-se aqui um to-
tal sentimento de responsabilidade e luta social pera comunidade
que a batalha está inserida.
Por fim, é necessário destacar a grande luta no combate ao
racismo que a Batalha do Pedregal vem desenvolvendo no bairro.
Além das próprias Batalhas de Conhecimento e Slam, que possuem
letras repletas de combate a essa estrutura, há também algumas
atividades relacionadas a própria saúde mental, como é o caso da

78
roda de conversa intitulada “Movendo Estruturas – Ação 1, Saúde
mental e mulheres negras”, atividade realizada pela Batalha do Pe-
dregal, Projeto Enegrecida e GELEN-CG (Grupo de Estudos Literá-
rios em Escrituras Negras), que convidaram as psicólogas Inaiana
Gama e Beatriz Trajano, no dia 25 de julho de 2020.
Trabalhar a questão da saúde psicológica dentro da periferia
é essencial. É notório a grande dificuldade da existência da saúde
mental dentro desse espaço, afinal, como haver saúde mental em
espaços que há tantas famílias desempregadas? Como sorrir ao ver
seus filhos (as) presos injustamente? Ou até mesmo sem condições
para comprar alimento para dentro de casa? Principalmente, nessa
relação do desemprego que majoritariamente atravessam corpos
pretos e pretas.
“A falta de reconhecimento pode gerar o ressentimento, uma
vez que elementos como autoestima e orgulho são também for-
madores de identidades”. (ARMOND, 2016 apud ADAMEC, 2014:
p. 94). Logo, se a autoestima e o orgulho são também essências
para a construção da identidade, a Batalha do Pedregal é certeira
em organizar rodas de conversas na perspectiva de diluir os danos
causados pelo racismo na sociedade, afinal, é alimentar a busca
pelo reconhecimento da identidade preta, que diariamente ela é
roubada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Batalha do Pedregal cumpre uma função social e cultural


significativa na comunidade do Pedregal, pois possui uma respon-
sabilidade com o Bairro, que muitas vezes, os próprios órgãos res-
ponsáveis não possuem. É importante ressaltar que as ações de-
senvolvidas pela Batalha do Pedregal têm um sentido educacional.
Compreendemos que há uma importância nesse movimento, pois
eles cumprem um papel na conta corrente da chamada cultura do
silêncio (FREIRE, 1996), mostrando que o povo tem seu poder. Por
fim, a ação da Batalha do Pedregal, é o exemplo simples daquilo

79
que Cidinho e Doca discorrem em sua música “Eu só quero é ser
feliz”, ao mencionarem que “ o povo tem a força, precisa descobrir/
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”.
Na perspectiva do patrimônio cultural imaterial, a própria
Constituição Federal de 1988, em seu art. 215, inciso § 1º, discor-
rer “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988). E em seu art.
216 constituem como patrimônio as formas de expressões. Logo,
entendemos a necessidade do reconhecimento da Batalha do Pe-
dregal como Patrimônio cultural e imaterial da cidade de Campina
Grande, por cumprir com funções tão essenciais para a comuni-
dade, além de desenvolverem gigantescos trabalhos sem nenhum
suporte estatal. Já há um grande reconhecimento desse movimen-
to, não apenas para os moradores do bairro do Pedregal, mas tam-
bém para outros cidadãos da cidade cabe as autoridades cumpri-
rem com a sua reponsabilidade.

REFERÊNCIAS

ADICHIE, Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escrito-


ra nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009).
ARMOND, Víctor Ribeiro Leivas Dias Ferreira. Um Estado sem nação: o IHGB e a construção da
identidade nacional brasileira no século XIX. 2016. 54 f. Monografia (Bacharelado em Ciência Po-
lítica) - Universidade de Brasília, Brasília, 2016.
BRAYNER, Natália Guerra. Patrimônio cultural imaterial: Brasília, DF: IPHAN, 2007.
CONCEIÇÃO, Joseildo Henrique. O “passinho dos maloka” de Recife: Um grito de identidade e
visibilidade. 2019. Disponível em: https://medium.com/neworder/o- passinho-dos-maloka-de-reci-
fe-um-grito-de-identidade-evisibilidade-acfa72d77198 . Acesso em: 10 jul. 2021.
LIMA. Mércia Ferreira de. Desacordes de gênero em um movimento artístico-cultural: os lu-
gares das mulheres no hip hop em Campina Grande-PB. Dissertação (Mestrado em Ciên-
cias Sociais) - Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Humanidades, 2016.
Linha do Tempo - Iphan 80 Anos. Instituto do Patrimônio histórico e artístico, [s.d.]. Disponível
em: http://web.archive.org/web/20190127154324/http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/1211 .
Acesso em: 10 jul. 2021.
MARTINS, Nathalia Maia. Batalhas de rap e Museologia social: Uma análise sobre o papel dos mu-
seus em Florianópolis. Trabalho de Conclusos de Curso (graduação). Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Graduação em Museologia, Florianópolis, 2019.
PEREIRA, Mariana Calvalcanti. “O bom é a arriação!”: circuitos de lazer e outras interações entre
jovens de Campina Grande. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de
Campina Grande, Centro de Humanidades, 2016.
VIEIRA, Anna Paula Ferraz Dias. O direito à cidade e a cultura marginal: a narratividade como
luta por visibilidade. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade Federal do
Espírito Santo, UFES, Brasil, Vitoria, 2018.

80
A LIBERDADE NA APRENDIZAGEM AMBIENTAL CIGANA DOS
MITOS E RITOS KALON

Aluízio de Azevedo Silva Júnior1

APRESENTANDO A TRILHA

Este capítulo de livro apresenta os principais trajetos e resul-


tados da dissertação de mestrado “A Liberdade na Aprendizagem
Ambiental Cigana dos Mitos e Ritos Kalon”, defendida em 2009 no
âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), sob orientação da
Prof. Dra. Michèle Sato. Com 267 páginas, o passeio pelo universo
cigano no trabalho se construiu a partir de um grupo Kalon espe-
cífico e bem localizado espacialmente no Estado de Mato Grosso,
que reúne uma população aproximada de 300 pessoas2 (96 famí-
lias).
O diálogo estabelecido, calcado na fenomenologia do imagi-
nário, proporcionou uma viagem pela liberdade da aprendizagem
ambiental cigana, manifesta no culto à vida e na aceitação absurda
do destino humano, que oscila ora ofertando temperos e sabores
da comida farta nas festas de casamentos, nascimentos, aniversá-
rios e batizados; ora nos dissabores, problemáticas, sofrimentos,
traumas e dores trazidos pelas doenças e mortes. Os mitos e ritos
do grupo pesquisado trouxeram uma cosmologia onde o meioam-
biente ocupa um papel fundamental na construção de sua (s) iden-
tidade (s) cultural (is).
Os quatro elementos (água, terra, fogo e ar) dão o tom nas
narrativas, permeiam os imaginários e estruturam as vivências,
acontecimentos e significados das tramas das várias existências ci-

1
Pós-doutorando do Laboratório de Comunicação e Saúde (LACES) e do Programa de Pós-gradua-
ção em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Instituto de Informação e Comunicação
Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, Rio de Janeiro).
Email: luiju25@gmail.com.
2
A estimativa é de que hoje a comunidade já chegou a 400 pessoas.
ganas, sejam eles caóticos ou harmoniosos. O conto de Lena3 e o
drama da morte no fogo foram a porta de entrada da pesquisa,
ancorada em Gaston Bachelard e a “psicanálise do fogo”.
A Educação Ambiental (EA) pós-crítica proposta por Sato,
Passos e Tristão consolidou um diálogo fluídico e dialógico, além
de oferecer os métodos qualitativos, inscritos numa etnografia de
cunho participante, já que pertenço ao grupo pesquisado. Portan-
to, de cunho híbrido, a metodologia garantiu três dimensões feno-
menológicas: (a) os espaços identitários subjetivos de cada sujeito
(monoculturalismo – EU); (b) as lutas das tribos, guetos ou grupos
(multiculturalismo – OUTRO); e (c) a capacidade inventiva de per-
ceber o mundo para além de nossas próprias lutas, assumindo o
tecido emaranhado do mosaico internacional (interculturalismo –
MUNDO).
A viagem pela mitologia cigana tem início pelo capítulo 1, ao
qual denominei: “Universo Primodial – as lascas da madeira”. Nele
comecei com a história de Lena, inseri os caminhos trilhados, utili-
zando-me da primeira pessoa no singular (EU), situando cenários,
acenando dúvidas, ironias e metáforas ciganas, na identidade de
quem constrói os sentidos e significados de esperança em uma
pesquisa em Educação Ambiental. Nesta primeira parte apresentei
um retrato do fio condutor que me conduziu ao universo da pes-
quisa, pincelando objetivos e hipóteses, assinalando a metodolo-
gia e oferecendo alguns resultados. Além disso, também esbocei
como concebi a articulação da pesquisa em cinco capítulos, forne-
cendo pistas por onde projetei este caminhar.
No capítulo dois – Universo em Chamas – o oxigênio da com-
bustão apresentei os objetivos da pesquisa, uma historiografia ci-
gana, começando no geral, na origem, passando pela história do
mundo, focalizando os cenários brasileiros e a diversidade de gru-
pos ciganos existente no Brasil, anunciando pré-conceitos, exclu-
são social e esclarecendo acerca de alguns estereótipos que ron-
dam o “Universo Cigano”.
3
Recomendo fortemente que para melhor compreensão do capítulo leiam o Conto de Lena na dis-
sertação, pois tudo fará mais sentido a partir desta leitura.

82
A discussão neste capítulo, ainda se configurou como uma
oportunidade de apresentar todas as dúvidas e perguntas iniciais
da pesquisa e hipóteses orientadoras do processo de construção
teórico da dissertação. O suporte metodológico da Educação Am-
biental (EA) trazido nesta parte ajudou a traduzir a Identidade Ci-
gana de meu grupo a partir da discussão sobre o desenvolvimento
sustentável x sociedades sustentáveis e os paradigmas epistemo-
-metodológicos da EA, que evidenciaram uma importante porta
de entrada no diálogo com a mitologia.
As metodologias (híbridas) foram explanadas, conceituadas
e entrelaçadas no capítulo 3 – Universo Dançante – As Fogueiras
Ciganas. Nesta parte da pesquisa, evidenciei a dimensão do mé-
todo investigativo da Pesquisa Qualitativa, que ancorada na me-
todologia fenomenológica, ajudou na interpretação da dimensão
prática da pesquisa, que ocorreu a partir de uma etnografia junto a
um grupo Kalon. Por pertencer a este universo, o objeto tornou-se
sujeito de uma observação participante.
Na primeira parte deste capítulo fiz um esboço dos caminhos
percorridos na pesquisa a partir da questão metodológica, refor-
çando o passo a passo da coleta de dados, com a elaboração e
aplicação das entrevistas em áudio. Na segunda parte construí um
entrelaçamento entre a metodologia escolhida. Aqui a utilização da
literatura e da mitologia cigana me ajudou a justificar as escolhas
da etnografia, especialmente na questão do diálogo (observação
participante) entre a cultura cigana Kalon e a dimensão ambiental.
Considero o capítulo 4 – Universo Ígneo como o momento
em que todas as conjunções elaboradas anteriormente, culminam
na apresentação do modelo educacional familiar Kalon a partir da
interpretação do retrato mitológico de Lena e sua trágica morte no
fogo. O mito serve como valiosa fonte de ilustração de que os ele-
mentos culturais dos pesquisados estão diretamente ligados à di-
mensão ambiental, além de apontar que estão passando por uma
crise identitária que revela uma dupla face: a mestiçagem e o hi-
bridismo como uma forma de r-existência enquanto cultura; e, por

83
outro lado, uma degradação cultural promovida por uma ameaça-
dora padronização cultural. Utilizo esta forma de escrita ‘r-existên-
cia’, como um desvio poético para expressar a palavra resistência
de uma forma, como se fosse uma r-existência, de renascimento
da cultura, da própria identidade, no movimento contra o discurso
colonial.
Partindo do ponto de vista da interpretação educacional es-
bocei, sem me adentrar mais profundamente, os quatro importan-
tes eixos educacionais processuais na cultura Kalon, ligados aos
quatro elementos: o nascimento (água), o desenvolvimento (terra),
o casamento (fogo) e a morte (ar).
Pensei-os (todos) como centros-em-si. Onde pode haver um
deslocamento fluídico essencial, inversões e ambiguidades, além
de interações vertiginosas com elementos externos, isto é, àqueles
oferecidos pela cultura dominante. Uma vez que os quatro elemen-
tos são “símbolos ambivalentes da estrutura do imaginário”, como
diria Durand (2002), para quem os quatro elementos se configu-
ram como “arquétipos” que estruturam o pensamento.

Bachelard parece dominar melhor o problema ao aperceber-


-se imediatamente de que a assimilação subjetiva desempe-
nha um papel importante no encadeamento dos símbolos
e suas motivações. Supõe que é a nossa sensibilidade que
serve de medium entre o mundo dos objetos e o dos sonhos
e utiliza as diversões de uma física qualitativa e de primei-
ra instância do tipo aristotélico. Ou sobretudo detêm-se no
que uma tal física pode já conter de objetivo, e, em vez de
escrever monografias sobre a imaginação do quente, do frio,
do seco e do úmido, limita-se à teoria dos quatro elementos.
São estes quatro elementos que vão servir de axiomas clas-
sificadores para os tão sutis estudos poéticos do epistemó-
logo, porque esses ‘quatro elementos são os hormônios da
imaginação’. (DURAND, 2002, p. 35).

84
Por sua vez, Arroyo (1991), aponta que os quatro elementos
estão presentes em várias culturas, tanto é que em um tratado
zen-budista de 1004, “os elementos tradicionais são representa-
dos como as quatro qualidades que compõem a criação: luz (fogo),
ar, fluidez (água) e solidez (terra)”. A porta de entrada na cultura do
grupo estudado é o elemento fogo (capítulo 4), uma vez que sua
manifestação nos mitos e ritos é latente e calorosa, especialmente
a partir de sua conexão estabelecida com a religiosidade. Os outros
três elementos, partes intrínsecas neste universo pulsante, são fun-
damentais para melhor compreensão do mundo cigano e foram
apresentados em três anexos.
No final do capítulo quatro, trouxe outro importante aspecto
na educação holística do grupo pesquisado: o eixo transversal e
cíclico da religiosidade. Sua principal artéria é o eixo religioso. Em
não tendo uma religião original, os Kalon dançam ao som do “sin-
crético” oferecido pelo sagrado (mítico) dos povos pelas regiões
por onde vivem, mas sem abandonar completamente o passado.
Há um reconhecimento de que Deus é universal e na aceitação
plena do destino humano como limitado, porém infinito a partir da
liberdade espiritual. Como observa Geertz (1989, p. 135) “as dispo-
sições que os rituais religiosos induzem” têm, assim, “seu impacto
mais ou menos importante”, do ponto de vista humano, “fora dos
limites do próprio ritual, na medida em que refletem de volta, co-
lorindo a concepção individual do mundo estabelecido como fato
nu”.
O capítulo 5 – Universo Em-Cantado – As cinzas para o renas-
cimento – traduz uma reflexão onde aponto mais limites e desafios
do que soluções propriamente ditas. Também é um momento de
desabafo em que a superação da morte no fogo é feita juntamente
com o fim da pesquisa, que simbolicamente significa um mergulho
novamente no vazio.
Segundo Bachelard (2001, p. 6), “no reino da imaginação, o
infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação
pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa”. Para o autor

85
(IDEM), neste reino, “a toda imanência se junta uma transcendên-
cia”. Neste local, “a expressão poética ultrapassa o pensamento”.
Todavia, esta manifestação de transcendência, conforme aponta
o autor, por vezes aparece como “grosseira, factícia, truncada”, ou
“ilusória, vaporosa, dispersiva” e “para o ser que reflete é uma mi-
ragem”.
Mas essa miragem fascina. Encerra uma dinâmica especial
que é já uma realidade psicológica inegável. Pode-se então clas-
sificar os poetas pedindo-lhes para responder à pergunta: ‘dize-
-me qual é o teu infinito e eu saberei o sentido do teu universo;
é o infinito do mar ou do céu, é o infinito da terra profunda ou da
fogueira?’ (BACHELARD, 2001, p. 6). O desenho abaixo (Ciclo de
Vida kalon), que abriu a dissertação é uma tentativa de esboçar
como se apresentam e se relacionam os quatro elementos na vida
dos ciganos.

Figura 1: Ciclo de Vida Kalon (Silva Júnior, 2009, p. 15)

FOGO: A paixão e os prazeres da vida são revelados nos ex-


tremos da religiosidade, da fé, do amor e da cultura, ganchos para
aceitação, significação e compreensão do inexplicável. O agrupa-
mento social e as configurações que brotam deste estilo único de
entendimento do mundo são as fontes primordiais reveladas neste

86
capítulo, especialmente do ponto de vista da transcendência trazi-
da pelo sagrado presente no amor (fogo), (Capítulo 4).
ÁGUA: Elemento primordial de onde provém toda vida. Sig-
nifica o lado feminino, onde primeiro somos gerados – placenta e
líquido amniótico – para depois o nascimento neste mundo. Re-
presenta as origens ciganas, o seu nascimento como identidade
cultural e o seu renascimento enquanto tradição, que dialoga com
a fenomenologia e a Educação Ambiental (EA), num processo de
tradução (BHABHA, 2005), (Anexo A).
TERRA: Este elemento aparece num aspecto mais amplo do
que a simples relação homem x território geográfico (espacial). In-
dica uma liberdade na aprendizagem ambiental, de maneira que a
educação Kalon se realiza fundamentalmente por meio do grupo
familiar e as experiências acumuladas ao longo do tempo e da rela-
ção (nômade, itinerante ou viajante) com que travam com o meio-
-ambiente, especialmente a “mãe terra” e os seus ricos elementos
simbólicos, como o caminho oferecido pela estrada (Anexo B).
AR: O ciclo se fecha para o início de outro, em que a morte
e os percalços doloridos (sofrimentos, perdas, problemas, etc.) do
tempo são re-configurados e re-significados na rede do renasci-
mento cósmico. Esta nova estampagem, gerada pelos fios da ex-
periência no caos, imprime um novo formato, para que a supera-
ção (reordenação) alcance não apenas a vida individual, do Eu, mas
também do Outro e do Mundo (Anexo C).
Apesar de ter escolhido o elemento fogo como porta de en-
trada, os outros três e até um quinto elemento, o sangue – que
não foi explorado –, são igualmente importantes na construção
da identidade cultural cigana e da própria personalidade das pes-
soas ciganas. Ainda que não estejam listados na parte central da
pesquisa, por uma adaptação metodológica, não é possível com-
preender o processo integral sem levar em consideração os vários
cruzamentos entre os quatro elementos. Nesse texto, em especí-
fico, trago um aprofundamento do que realizei no Item 1.3 – Las-
cando a Madeira, pois creio que contempla um panorama geral da
dissertação.

87
LASCANDO A MADEIRA

A borboleta

Nunca tinha parado pra descrever uma


Até que o destino me colocou em um eco
Para eu falar porque aqui as ressignifico
Para ficar o bem falado e o bem re-e-dito

A borboleta é o renascer do casulo


Representa a abolição do escuro
A r-evolução que segue seu rumo
E o ciclo do existir em um mundo
Aluízio de Azevedo (Silva Júnior, 2009, p. 35)

Assim como a borboleta, que nasce lagarta, tenebrosa, com


uma aparência e aspecto medonhos e necessita para se transmutar
em bela de uma alimentação de folhas tenras e macias, muitas de-
las dos mais variados tons do eu-outro-mundo (MERLEAU-PONTY,
1971, 2000, 2005) também, na construção desta pesquisa, comi
o verde tenro oferecido pelas folhas-conceitos da fenomenologia
(BACHELARD, 1999 e 2001; ELIADE, 20003; HALL 2003); devo-
rando os cheiros, cores e aromas da Educação ambiental (CARVA-
LHO, 2004 e 2005; TRISTÃO, 2003 e 2005, SATO 2001, 2003,
2004, 2005, 2006; PASSOS, 2006), o que me proporcionou a
adoção de métodos antropológico-educacionais oferecidos pela
etnografia interpretativa (GEERTZ, 1989, 2007; BHABHA, 2005;
CAMPBELL, 2003).
Neste processo reflexivo, degluti as visões pragmatistas e uti-
litaristas oferecidas pela ciência racional, afinal “é na tentativa de
denunciar o perigo das forças hegemônicas, diversas vozes se lan-
çam para que um falso espelho não traga reflexos das forças im-
perialistas, situando cenários diferenciados em categorias padroni-
zantes e universais” (SATO et al, 2004, p. 31).

88
Depois da alimentação teórico-metodológica, mergulhei em
um casulo escuro, cheio de subjetividade, em que o invólucro pro-
porcionou uma busca no interior do meu ser, da minha identidade,
da minha própria constituição cigana e dos valores Kalon. Primeiro
com um “maravilhamento”, depois com questionamentos, ironias,
dúvidas, angústias. Após um longo estágio neste estado de “sono”,
espero que esta pesquisa simbolize o despertar de um breve re-
lâmpago da claridade de estar-no-mundo.
Como uma borboleta, que uma vez saída do casulo, tem pou-
cos minutos de vida, mas que passa em suspenso, abre as asas e
sente a primeira brisa do mundo, numa constituição singular e so-
bremaneira poética, feita para o raro instante de sua observação.
Feliz daquele observador que pode ver o seu voar galanteador,
único, auto-explicativo, no nível do sentido absoluto, do absurdo
da vida. “Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do
mundo, isto é o absurdo” (CAMUS, 2008, p. 29). Ou na constata-
ção da complexidade ambiental dos mundos. “Para compreender-
mos a complexidade da questão ambiental, faz-se necessária outra
abordagem, que leve em conta o sujeito conceptor na construção
mesma do objeto, uma vez que, nos marcos do pensamento oci-
dental sujeito e objeto, natureza e sociedade são termos que histo-
ricamente se excluem” (MORIN, 2002, p. 90).
A partir desta perspectiva, o encadeamento das ideias ocor-
reu de forma questionadora acerca dos preconceitos estabelecidos
historicamente contra os ciganos. A marca desta posição se revela
na preocupação em constituir uma discussão combativa à visão
do senso comum, que, na maioria das vezes, também permeia as
grandes mídias e a comunicação de massa, que povoa o ideário e o
imaginário popular sobre os povos agrupados sob o termo genera-
lizante “Ciganos”. Também é um contraponto à abordagem cientí-
fico-racional, no campo ideológico/legal do capital, que se ramifica
pelo controle do aparelho estatal e as políticas homogeneizantes,
que dele emanam.
Por essas posições epistemológicas, o caminho trilhado não

89
foi fácil e as escolhas nos obrigaram a tomar rumos – às vezes sur-
reais – que não são aceitos e compreendidos de forma muito tran-
quila ou coesa pela Ciência Tradicional, pois são fontes de críticas
e oportunidades de rompimentos e desafios. Equivale metaforica-
mente ao trajeto percorrido pela borboleta, que não nasce plena
para o aprisco poético ou o olhar do observador. Antes de conquis-
tar essa beleza e magia, tem de passar por um processo muito pe-
sado, enfadonho, disciplinador e doloroso. A construção da disser-
tação não ocorreu sem problemas ou sem dificuldades. “Na vida,
nada é muito fácil, e os desafios estão à espreita em cada passo do
nosso caminhar. Superar estes momentos, encontradas forças até
para se retirar, momentaneamente do cenário, é um enorme obje-
tivo de quem quer ser feliz” (SATO, 2004, p. 16).
Na busca por evidenciar limites, esta tessitura nasceu na ten-
tativa de esboçar uma visão crítica acerca da cultura cigana, funda-
mentada num embasamento fenomenológico, articulados por uma
pesquisa no âmbito do Grupo Pesquisador em Educação Ambien-
tal, Artes e Comunicação da UFMT, um espaço que permite a visão
crítica dos conceitos, aliado aos afetos. Até porque, seria impossível
tratar sobre a alma humana sem que isso cause um devaneio. Te-
meroso falar de fogo, sem que o brilho não ilumine ou ofusque os
nossos olhos. Impossível falar de condição humana - de poesia -,
que é múltipla e complexa, sem que isso não cause ambiguidade,
negação, afirmação e r-existência. Imagina então falar da minha
própria identidade cigana Kalon?
Esta tarefa tornou-se para mim um ato nevrálgico, porém fas-
cinante, que significou uma dupla consciência: em primeiro lugar
que mergulhei no mais profundo do meu ser, nas minhas raízes. Em
segundo lugar, que a responsabilidade de reapresentar ou expor
essa essência é uma tarefa extremamente dolorosa e espinhosa,
baseada numa vontade de traduzir algo, que talvez seja intraduzí-
vel, na medida em que ecoam desertos áridos, tragédias mitológi-
cas, ou os mistérios da vida. Na perspectiva de Bhabha:

90
Para assumir uma identidade ou imagem política eficaz, os
limites e condições da especularidade tem de ser ultrapas-
sados e rasurados pela inscrição da alteridade. Rever o pro-
blema do espaço global a partir da perspectiva pós-colonial
é remover o local da diferença cultural do espaço da plura-
lidade demográfica para as negociações fronteiriças de tra-
dução cultural (BHABHA, 1989, p. 306).

E, isso, é o mesmo que tentar compreender o significado do


pulsar do coração, sentir o espírito jorrar e expor o que os olhos
observam. Buscar o profundo da consolação. Ouvir os cânticos de
contemplação que os rios representam na natureza. O mesmo que
tentar compreender o fluxo do tempo que se expande, em círculos
giratórios e múltiplos infinitamente percorrendo a essência da vida,
do ser, que busca existir dentro de cada constelação universal.
Dissertar sobre a cultura cigana significou simbolicamente que
estava expondo o que há de mais sagrado, profundo e misterioso,
uma vez que “a vida humana é a essência da vontade divina”, con-
forme afirmaram muitos entrevistados e não podemos confundir
entre uma coisa e outra. A confusão deve ser clareada pela ilumi-
nação da ciência da vida, a ciência de Salomão, o sábio dos sábios,
aquele que conheceu a consciência da expansão que os mistérios
e as infinitudes da existência podem representar.
Por muitas vezes, esse exercício expôs mais limites, complexi-
dades e questionamentos, do que a busca por uma solução racio-
nal e explicativa. Compreendendo como Camus (2008, p. 33) “em
psicologia, tanto quanto em lógica, há verdades e não uma verda-
de”, pois “com exceção dos racionalistas profissionais desistimos
hoje do verdadeiro conhecimento”. “Essa razão universal, prática
ou moral, esse determinismo, essas categorias que explicam tudo
(...) não têm nada haver com o espírito. Negam sua verdade pro-
funda que é de estar acorrentado”.
Portanto, não estava preocupado em resolver problemas, mas
em esclarecer sentimentos, isto é, “nossa tarefa muda de coleta de

91
informações sobre o padrão de acontecimento no mundo exterior
per se para uma determinação do significado afetivo da importân-
cia emocional desse padrão de acontecimentos” (GEERTZ, 1989, p.
95).
Como lembra Brandão (1988), todo ponto de partida de uma
pesquisa participante, que se deseja transformadora, deve iniciar o
estudo da realidade vivida pelo grupo no qual se desenvolve a pes-
quisa, além da percepção que essa coletividade tem sobre a reali-
dade vivenciada, uma vez que esta é a “matéria-prima” do “proces-
so educativo” que produz um conhecimento coletivo.

Pensamos que a finalidade de qualquer ação educativa deva


ser a produção de novos conhecimentos que aumentem a
consciência e a capacidade de iniciativa transformadora dos
grupos com quem trabalhamos. Por isso mesmo, o estudo
da realidade vivida pelo grupo e de sua percepção desta
mesma realidade constituem o ponto de partida e a maté-
ria-prima deste processo educativo (BRANDÃO, 1988 p. 19).

Dessa forma, o ponto de partida, ou a (su) realidade que es-


tudei foi vivida e percebida pelos ciganos Kalon do meu grupo fa-
miliar, que tem ramificações por vários municípios de Mato Grosso
(MT), bem como pelos Estados de Mato Grosso do Sul (MS), Goiás
(GO), Minas Gerais (MG) e Pará (PA). Por se tratar de uma pesquisa
inserida no âmbito de um Mestrado em Educação, procurei desen-
volve-la tendo por parâmetros os pressupostos epistemológicos,
metodológicos e axiológicos da Educação Ambiental (EA).
O método fenomenológico considera o encontro entre o ho-
mem e o mundo como alteridades que são, mediados pelo fenô-
meno, como principal objeto de estudo e categoria. Faz, assim, do
cotidiano humano um ato filosófico e, tal como Sato e Passos des-
tacam (2005), busca reconhecer e incitar três posturas diferentes:
“as epistemológicas (do conhecer); as axiológicas (do modo como
comportar-se eticamente); e praxiológicas (do modo como agir)”.

92
Para ambos, existe um “lócus” onde sujeito e mundo se en-
contram e partilham da mesma realidade. O fenômeno seria o local
onde o homem encontra a mulher e vice-versa. Também seria o
fenômeno o mediador entre o Eu e o mundo.
Deste modo, adentramos em outros mundos a partir da inter-
pretação ou viagem nos fenômenos. Ancoramos em Merleau-Pon-
ty (2005, p. 204), para quem “a fórmula eu-outro é insuficiente”.
É necessário mais que isso um “corpo no mundo”. Para o autor,
(2000, p. 341), “o mundo e os outros tornam-se nossa carne. Nos-
so corpo é simbolismo e reciprocamente esclarece-se a linguagem
dizendo que ela é segundo corpo e corpo aberto”. Em outras pala-
vras, “o corpo passa no mundo e o mundo no corpo”.
Entre os múltiplos sentidos da pesquisa, consta a sua possi-
bilidade como fonte bibliográfica acerca da relação entre os povos
ciganos e natureza, uma vez que poucos estudos foram feitos nes-
sa temática. Há uma falta de interesse por parte do Estado, que
usou uma estratégia de não enxergá-los enquanto cidadãos; e, por
outro lado, a própria falta de vontade dos grupos ciganos de se 40
integrarem ou proporcionar aberturas a estudos científicos, apro-
veitando-se como tática de sobrevivência a “invisibilidade”.
Se essa nova configuração se tornou possível, foi porque o
grupo pesquisado reconhecei no diálogo científico uma importante
parceria, até porque pressentiram que sozinhos podem não conse-
guir resistir à padronização cultural. Nesta tessitura, a EA proporcio-
nou um suporte metodológico híbrido, baseado na fenomenologia
etnográfica, por meio de uma observação participante junto a um
grupo Kalon, aliada a historiografia bibliográfica dos ciganos. Essa
configuração ajudou a confirmar que a Educação cigana é familiar,
transmitida culturalmente de geração em geração nos marcos dos
saberes orais e nos contextos da religiosidade (mitologia), organi-
zação familiar, no histórico de vida, enfim na sua identidade cultu-
ral. Entendendo como Deleuze:

93
Que a diferença entre duas coisas, é somente empírica e as
determinações correspondentes, extrínsecas, Mas ao invés
de uma coisa que se distingue de outra coisa, imaginemos
algo que se distingue – e, no entanto, aquilo do que ele se
distingue, não se distingue dele. O clarão, por exemplo, se
distingue do céu negro, mas deve puxá-lo consigo, como se
ele se distinguisse daquilo que não se distingue [...] A dife-
rença é esse estado da determinação com o distinção unila-
teral. Sobre a diferença, é necessário dizer que se faz, ou que
ela se faz, como na expressão ‘fazer a diferença’ (DELEUZE,
1985, p. 43).

Para além do olhar inicial e aparente, o fenômeno se revela


sob muitos outros ângulos, sub ângulos reflexos e mirações. Além
do que, muito do que se conhece e se enxerga só nos é dado per-
cebê-los, porque fazemos um reconhecimento. Os objet(iv)os,
mensageiros, saltam-nos aos olhos, mais do que podemos perce-
bê-los. Estimulam os nervos ópticos, tocando-os de realidade físi-
catemporal-espacial.
De acordo com Merleau-Ponty (2000, p. 4) são sempre de-
tentores de significações múltiplas, algumas “numerosas na apa-
rência e outras numinosas na essência”. Assim, a “natureza é um
objeto enigmático, um objeto que não é inteiramente objeto; ela
não está inteiramente diante de nós. É o nosso solo, não aquilo que
está adiante, mas o que nos sustenta”.
Geertz (1989) observa que “é a percepção moldada pela ima-
ginação que nos fornece o mundo exterior no qual conhecemos”.
Essa imaginação somente é possível, uma vez que o mundo cultu-
ral-ambiental nos fornece o que ele chama de “códigos, chaves, ou
padrões para leitura” para interpretar as coisas que observamos, a
partir dos cinco sentidos - embora mediados pelo fenômeno. As-
sim, busquei expor com esses conceitos as suas grandes realidades
(trabalho, paixão, amor, poder, mudança, fé, autoridade, violência,
prestígio, etc.) – constâncias demasiadas humanas – que fazem

94
parte do enredo Kalon. Evidenciei contextos caseiros e cotidianos
– a essência mítico-religiosa e sua dimensão ambiental, ligada aos
quatro elementos. Sustento que a nossa identidade foi estabeleci-
da a partir de uma profunda interação com o meio-ambiente, que
se apresenta como um fator fundamental para a sua r-existência.
Isso é perceptível por meio da interpretação de seus mitos
e ritos expressos nas narrativas (memória oral) e vivenciados na
prática de suas vidas cotidianas na pesquisa de campo, que está
baseada na percepção ambiental do movimento e do fluxo contí-
nuo da natureza dos quatro elementos, com ênfase no fogo. Para
Bachelard (1999, p. 3) o fogo deixou de ser somente um objeto
científico. Poucos estudos estão sendo feito sobre este elemento
na atualidade. E além do que, mesmo os estudos já realizados, ele
critica, salientando que ao problema do fogo, são dadas respostas
vagas, dentro de uma “zona objetiva impura” e a partir de “intui-
ções pessoais” e poucas “experiências científicas.”
Bachelard (1999, p. 2) estuda a questão da subjetividade do
fogo e não a sua objetividade. Partindo desta ótica, procurei esta-
belecer esta discussão partindo da subjetividade da cultura cigana
que está ligada ao elemento fogo, estudando os observadores do
fogo e não o fogo propriamente dito, enquanto uma substância
elementar. A intenção do autor (IDEM) foi “observar essa obser-
vação hipnotizada que é sempre a observação do fogo, o homem
pensativo junto à lareira, na solidão, quando o fogo é mais brilhan-
te, como uma consciência da solidão”. Opor ao espírito poético
expansivo, o espírito científico taciturno. “Os eixos da poesia e da
ciência são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia pode esperar
é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois
contrários bem feitos” (BACHELARD, 1999, p. 2).
Os contos, “causos”, crônicas e histórias fantásticas da mito-
logia cigana têm uma profunda conexão com o meio-ambiente e
revela uma percepção menos utilitarista da natureza. Nos dirigem
para a valorização dos quatro elementos e mais um quinto (o san-
gue), assim como ocorre em outras culturas que consideram não

95
apenas quatro os elementos básicos. A partir desta poética-religio-
sa, do estar-no-mundo do olhar cigano, que me enredei por can-
ções enigmáticas criadas inicialmente durante o processo de in-
venção do fogo, que provavelmente deve ter ocorrido na escuridão
da noite. Que somente pode ser superada a partir do sonho e da
esperança de uma alma que deseja ser iluminada, após a primeira
faixa de luz. O viver em poesia dos Kalon é lúdico.
Para tanto, descrevi os símbolos (mitos e ritos) e elementos
culturais chaves que regem o seu modo de ver e viver o/no mundo,
como os três rituais (o batizado de crianças, o casamento e a mor-
te) expostos nas três figuras abaixo (2, 3 e 4), do arquivo pessoal
da cigana Alda Alves Cunha4. Mas atenção, a identidade e a cultura
cigana debatidas dizem respeito aos Kalon estudados, não poden-
do ser generalizada e aplicada como sendo aspectos de todos os
grupos que se agrupam sobre o genérico “cigano”. Todavia, muitos
podem ser encontrados junto a outros grupos, na medida em que
o genérico, de alguma forma, serviu para ligá-los por meio do es-
tabelecimento de alguns traços comuns que os permitam serem
reconhecidos enquanto sendo este “cigano” que povoa o senso
comum, o imaginário popular e até boa parte da ciência.

Figura 2: Dois batizados coletivos no


município de Tangará da Serra

4
In memorian, falecida no último dia 19 de fevereiro de 2007.

96
Figura 3: Casamento de parentes no grupo em Goiás

Figura 4: Morte do meu bisavô, Anésio Rodrigues Cunha

97
ENCERRANDO OU ACENDENDO A FOGUEIRA DAS QUESTÕES

No que toca a cultura cigana, os antropólogos clássicos con-


firmariam todas as expressões em uma identidade única. A antro-
pologia explicaria, assim, suas crenças, mitos, valores, linguagem,
simbolismos e cosmologias. Porém, pulsa a inquietude de vazar
dos cacos de vidros, cintilando novos reflexos à luz de uma antro-
pologia interpretativa e a da fenomenologia, que possibilitou olhar
vários feixes de minha identidade (cigana). Compreender o Eu in-
quieto no cosmo cigano do Outro me conduziu a várias perguntas,
em quatro eixos:
1 – históricas: O que é ser cigano? Há uma única identidade
cigana ou várias identidades ciganas? Qual é a origem? Há expres-
sões culturais que se mantêm e que se transmudam? Há diferentes
grupos ciganos, se sim quais são eles? Como os ciganos entrevista-
dos se identificam? Qual é a identidade que nós ciganos construí-
mos e professamos?
2 – Religiosidade, mito e os quatro elementos: Como perce-
bemos o meio ambiente? De que maneira os quatro elementos
estão presentes em nossa cultura? Quais lendas se associam aos
quatro elementos?Haverá algum mais central e por quê? O fogo
é o elemento predominante? Como a cultura cigana se entrelaça
com a dimensão ambiental? Quais suas crenças? De que maneira
nos organizamos enquanto cultura? Como deve ser o casamento?
Existem leis divinas? Qual é nossa religião?
3 – Educacionais: Como deve ser a educação? Há muita nar-
rativa oral? Quais os grandes eixos para sermos educados? A edu-
cação tem haver com a natureza (dimensão ambiental)? Como? A
educação cigana tem cunho religioso? É Cristã? Mas o povo cigano
não é anterior a Cristo? Como era antes? Os mitos estão presentes?
Relacionam-se com os quatro elementos? Quais são suas princi-
pais características? À luz da fenomenologia do imaginário (Bache-
lard), como a interpretação dos mitos ciganos se alia à Educação
Ambiental? Existe um momento específico onde ocorre a educa-

98
ção cigana? Como devemos ser-estar diante dos desafios da vida
(outro-mundo)?
4 – Identitárias e culturais: Como uma identidade pode ser
múltipla ou una? Isso é possível de ocorrer ao mesmo tempo?
Identidade cultural e meio-ambiente para nós ciganos são concei-
tos diferentes? Como é possível falar de ambiente na perspectiva
cigana? O que é sagrado para nós ciganos? Como nos relaciona-
mos com os nossos semelhantes, os animais, as plantas, os rios
e o planeta terra? Como deve ser a vida? Qual é o sentido ou a
essência da vida? É bom estudar? Como aprendemos as coisas da
vida? O que significa um diálogo científico (fenomenológico) com a
nossa cultura cigana? Até onde faz sentido uma pergunta da qual
o sujeito é parte intrínseca?
Para responder a estas questões, optei por percorrer um cami-
nho da aprendizagem no sagrado, em acordo com Martha Tristão
(20095) e Eliade (2000). Ambos consideram que o mito transcen-
de o campo dos rituais e adentram na rotina cotidiana da vida. Para
a primeira, o sagrado pode ser “compreendido na transdiciplinari-
dade, ou seja, algo irredutivelmente real no mundo, incontornável
por uma abordagem racional, pois o sagrado é algo que liga. Ele
une pelo sentido etimológico da palavra religião – religare”.
Assim, o sagrado necessariamente não precisa implicar “na
crença em Deus, em deuses ou espíritos. É simplesmente uma zona
de não resistência”. “Em suma, os mitos descrevem as diversas e
(dramáticas) irrupções do sagrado ou sobrenatural no mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e
o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos
Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal,
sexuado e cultural” (ELIADE, 2000, p. 11).
Por outro lado, foi necessário reconstruir a sua trajetória ciga-
na, a partir de um olhar próprio e contrário aos preconceitos que

5
TRISTÃO, Martha. A Liberdade na aprendizagem ambiental cigana dos mitos e ritos Kalon. Parecer
do Projeto de Dissertação de Aluízio de Azevedo Silva Júnior, apresentada no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Ata de qualificação ocorrida no dia
16 de fevereiro de 2009.

99
permeiam o universo “cigano”. O que se tem são “idéias” sobre nós
que “foram construídas a partir do século XV e cristalizadas sob
a forma de estereótipos” (MOONEN, 2000). Atitudes menos ne-
gativas expressam pela simpatia romântica ligada ao folclore que
povoa o imaginário popular e traz, sobretudo, cigano “sedutor”, ou
por uma curiosidade. É um traço do fogo que permeia a vida ci-
gana. Sedução das chamas, traiçoeiras que esquentam, mas, em
seguida, queimam.
Logo que a oportunidade surge são de imediato reativados
os aspectos mais negativos das imagens que se criaram sobre nós
ciganos. Evidente que não tenho interesse em reproduzir estereó-
tipos. Pelo contrário, o desejo foi recontar nossa história a partir
da Educação Ambiental emancipadora e, assim, contestar e criticar
essa visão generalizante sobre os ciganos.
A questão envolve inúmeros aspectos. Há uma dificuldade
implícita e inerente ao fato de que sou sujeito-objeto de pesquisa.
Por vezes me confundo inclusive na hora de escrever. Não sei se es-
crevia como cigano ou como acadêmico. Por isso, em algumas oca-
siões falei dos ciganos como nós. Em outras escapou um (in) certo
“eles”, ou um genérico “os ciganos”, como se eu não fizesse parte
deste cenário do outro e do próprio universo romani. Os parentes
que conversei durante a etnografia quando iam falar também se
referiam como “eles”. Talvez isso represente uma possibilidade de
pluralidade da identidade cigana que só se justifica no conjunto,
isto é, na coletividade Kalon. Por outro lado, pode ser uma fuga aos
pré-conceitos que os acusam de uma série de características que
não são bem aceitas pelo pensamento ordenado e cartesiano do
mundo capitalista e sua máquina de acumulação de dinheiro.
Nota-se que a tarefa para a tentativa de “interpretação”
(GEERTZ, 1989) ou “tradução” (BHABHA, 1998) da identidade e
cultura cigana Kalon necessitou, em primeiro lugar, de um socorro
metodológico híbrido; ou seja, uma pesquisa qualitativa com abor-
dagem fenomenológica que busca interpretar etnograficamente
um grupo pessoas que fazem parte de uma mesma família e se au-

100
todenominam ciganas, residentes em quatro municípios de Mato
Grosso: Tangará da Serra, Rondonópolis, Cuiabá e Várzea Grande.
Tentar re-construir a trajetória destas pessoas – e a minha
própria – que se autodenominam ciganos Kalon foi uma tarefa que
bastante difícil. Nesse trabalho, foi necessário trazer à tona alguns
conceitos chaves, a exemplo dos próprios termos “identidade” e
“cigano”, além de outros, como “cultura” e “diversidade cultural”.
Sem o esclarecimento destas perspectivas não seria possível esta-
belecer um diálogo coerente. A interdisciplinaridade permitiu que
todas essas perspectivas fossem tecidas e entrelaçadas a partir da
EA, porém voltada para o eixo “familiar” cigano, pois parti da hi-
pótese de que este possivelmente é o principal laço de união da
identidade cigana.

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103
O TOQUE DAS ÁGUAS PANKARARU

Josélia Ramos da Silva1

INTRODUÇÃO

Este artigo se baseia numa pesquisa feita nas Escolas Esta-


duais Indígenas Ezequiel Pankararu e Doutor Carlos Estêvão, loca-
lizadas na Aldeia Brejo dos Padres2 (PE) que resultou na disserta-
ção de Mestrado3, tendo como objeto de pesquisa a água, o viés
foi a sensibilidade, os sujeitos foram professores e estudantes indí-
genas (Pankararu) das escolas acima citadas e cujos instrumentos
foram entrevistas a professores e desenhos de alunos do Ensino
Fundamental.
Nos contatos com os Pankararu surgiram os seguintes ques-
tionamentos: Como os Pankararu se relacionam com a água? Que
práticas educativas são desenvolvidas no processo educativo de
construção e transmissão de saberes culturais do povo Pankararu?
Que representações são criadas no imaginário escolar a partir das
práticas educativas vivenciadas? Utilizamos o método da análise
documental para responder tais inquietações. Partindo do enten-
dimento que documento é “um produto da sociedade que o fabri-
cou segundo as relações de forças que aí detinham o poder. Só a
análise do documento enquanto monumento permite à memória
coletiva recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente” (LE
GOFF, 1990, p. 288). Segundo Le Goff (1990, p. 290) um documen-
to vai ter a força como monumento porque ilumina uma memória
coletiva e o transfere “do campo da memória para o da ciência his-
1
Mestra em História, pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG. Professora da Edu-
cação Básica da Rede Estadual de Ensino do Estado da Paraíba. E-mail: joseliaagua@hotmail.com.
2
A Terra Indígena (TI) Pankararu está localizada no sertão pernambucano do Submédio São Fran-
cisco, entre os municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá. Entre as 12 aldeias que compõem a TI
Pankararu, a central (geográfica e politicamente) é a aldeia Brejo dos Padres, onde estão as citadas
escolas. Com uma população de 11.366 (IBGE 2010), vivem nas serras e em seus arredores, mas tem
uma forte ligação espiritual com o Rio São Francisco, principalmente com a Cachoeira de Itaparica,
hoje submersa depois da construção da barragem e da Usina Hidrelétrica (UHE) Luiz Gonzaga.
3
SILVA, Josélia Ramos da. Água que limpa e protege: uma história cultural da água nos saberes indí-
genas Pankararu. Dissertação em História. Universidade Federal de Campina Grande - UFCG, 2020.
tórica”. Este caminho orienta os historiadores a considerar os do-
cumentos como monumento visando “reconstruir” representações
constitutivas de um grupo social. Esta escolha conduz o historiador
a privilegiar certos objetos de estudo, fontes e técnicas para desen-
volver uma pesquisa.
Trabalhamos com as narrativas dos professores das duas esco-
las pesquisadas, que ministravam os componentes curriculares de
História, Geografia, Ciências e Educação Indígena; bem como uti-
lizamos ainda fontes documentais (como as políticas educacionais
indígenas vigentes, os Projetos Políticos Pedagógicos das Escolas
Pankararu, os Projetos Escolares e os livros didáticos e paradidáti-
cos) e imagéticas, por meio de desenhos criados pelos estudantes
do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental sobre a água.
Este artigo propõe refletir a experiência dos Pankararu com
suas águas de nascentes, tocando suas sensibilidades escolares.
Como tecer um diálogo intercultural entre a experiência indígena e
as exigências “científicas” do ambiente acadêmico e seu método?
No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, Clifford Geertz
redefiniu certas noções epistemológicas das análises sociais, uma
delas foi o conceito de cultura, dando um sentido semiótico. O au-
tor defende a cultura como uma ciência interpretativa que busca
significados.
Outro autor que inspirou por trazer um olhar diferente e sen-
sível sobre a água é Gaston Bachelard. Em seu livro “A água e os
sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria” (1989) ele supera
uma abordagem puramente material para oferecer uma reflexão
na qual a água “impregna-se de todas as cores, de todos os sa-
bores, de todos os cheiros” (BACHELARD, 1989, p. 97), adquirindo
significâncias e significados.
Jorge Larrosa Bondía nos faz pensar uma educação através
do sentido, da experiência, capaz de formar e/ou transformar su-
jeitos. A experiência entendida como algo que “nos passa, ou que
nos toca, ou que nos acontece, e, ao nos passar, nos forma e nos
transforma” (BONDÍA, 2016, p. 28). É na experiência dos/as pro-

105
fessores/as e dos estudantes que as águas Pankararu me tocaram.
Sentir é se deixar tocar. O toque é um despertar das sensibilidades,
entendendo-as como tudo aquilo que é sentido e afeta a existência
humana.
Para Sandra Pesavento (1995, p. 24) o imaginário é “repre-
sentação, evocação, simulação, sentido e significado, e estudá-lo é
desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a
chave para desfazer a representação do ser e parecer”. Neste artigo
buscamos um novo olhar acadêmico que vê a água tocar os discur-
sos educativos, percebendo-a como um meio para uma educação
de sentidos.
Mais uma vez agradeço aos professores, alunos e funcionários
das escolas, pelo acolhimento que conseguem dar, permitindo um
encontro com suas águas. O toque de suas correntezas educou
sentidos e sensibilidades que criaram imaginações de águas que
cuidam, limpam e protegem. Emergindo dessas águas vejo um
povo que, ao encontrar-se com as águas, as protege e, por meio
da experiência educa seus sentidos e se reapropria de sua história.

PANKARARU

Os povos indígenas são povos resistentes. Resistentes a um


sistema que tenta homogeneizá-los, desde o período colonial bra-
sileiro até os dias atuais, assimilá-los a uma cultura que lhe é estra-
nha. Através de suas mobilizações4, seja por demarcações de Terra
seja para conseguir seu reconhecimento identitário, conquistaram
considerável visibilidade, como atores sociopolíticos na sociedade

4
Desde o período da colonização brasileira os indígenas estão em movimento de enfrentamento
às políticas indigenistas exterminacionistas e integracionistas do governo brasileiro, porém, é na
década de 1970, que o movimento indígena brasileiro surge como o entendemos hoje: um movi-
mento coletivo para afirmar a diferença e lutar pelos interesses de todos os povos indígenas. Um
movimento articulado de “lideranças, povos e organizações indígenas objetivando uma agenda co-
mum de luta, como é a agenda pela terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos. [...] Foi
também esse movimento que lutou – e continua lutando – para que a política educacional oferecida
aos povos indígenas fosse radicalmente mudada quanto aos seus princípios filosóficos, pedagógi-
cos, políticos e metodológicos, resultando na chamada educação escolar indígena diferenciada que
permite a cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios de
ensino-aprendizagem e produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos de in-
teresse coletivo do povo”. (LUCIANO, 2006, p. 59-60).

106
nacional, impondo novas formas de visão, pesquisa e reflexões. Há
quem considere os descendentes indígenas como remanescentes
e/ou ressurgidos, mas eles se consideram como povos resistentes.
É graças a esta resistência que até hoje temos uma multiplicidade
de povos e línguas indígenas com seus saberes e suas alteridades.
São povos diferentes, com identidade, organização, cultura e histó-
ria específica de cada povo.

À sua maneira, as culturas indígenas expressam os grandes


valores universais. Nas solenidades das festas, no refinamento
dos vestidos e na pintura corporal, na educação dos filhos, na
concepção sagrada do cosmos, elas manifestam a consciência
moral, estética, religiosa e social. A diversidade de visões do
mundo, do homem e dos modos de organização da vida, os
conhecimentos e os valores transmitidos de pais para filhos,
a tradição oral e a experiência empírica são a base e a for-
ça dos conhecimentos e dos valores. A territorialidade atua
como um estado de espírito e os ritos e os mitos, como refe-
rência da identidade e da consciência humana e da nature-
za. (LUCIANO, 2006, p. 50).

O povo Pankararu ao ser aldeado é misturado, é silenciado.


Uma mistura que provoca características fisiológicas diferentes da-
quela que lhe eram próprias, de sua genética primeira. Um silên-
cio que, se por um lado, foi doído por ter que esconder o seu SER
POVO, por outro lado foi necessário para resistir. Resistir ao tempo,
resistir a um domínio algoz que insistia na assimilação do povo,
para que esse se dilua numa nação estranha, endógena. Um povo
resistente. Eis o povo Pankararu! Como tantos outros povos indí-
genas do Brasil. Um povo persistente, que ressurge gritando sua
indianidade.
Pankararu é um dos povos indígenas do sertão de Pernam-
buco, municípios de Tacaratu, Petrolândia e Jatobá, com uma po-
pulação de 11.366. Destes, 9.957 vivem no Estado de Pernambuco,

107
e os demais estão espalhados em outras vinte unidades federati-
vas5. Atualmente as terras Pankararu estão divididas administrati-
vamente pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em duas Terras
Indígenas: TI Pankararu que corresponde à demarcação de 1941,
homologada em 1987 (8.100 há) e a TI Entre Serras, homologada
em 2006 (7.750 há).Vivem nas serras e em seus arredores, mas tem
uma forte ligação espiritual com o Rio São Francisco, principalmen-
te com a Cachoeira de Itaparica, hoje submersa depois da cons-
trução da barragem e da Usina Hidrelétrica (UHE) Luiz Gonzaga.
Um povo nordestino, sertanejo por localidade espacial e in-
dígena por identidade étnica, aqui entendida como algo além de
uma identidade social, embasada numa noção de si dentro de
uma consciência coletiva. Comungo com Fredrik Barth (2000, p.
37) quando diz que identidade étnica é uma “identidade imperati-
va, uma vez que não pode ser desconsiderada e temporariamente
deixada de lado em função de outras definições da situação”. Iden-
tidade étnica é plural e diversa.
“Os povos indígenas organizam seus saberes a partir da cos-
mologia ancestral que garante e sustenta a possibilidade de vida.
A base primordial é a natureza, fonte de todo conhecimento” (LU-
CIANO, 2006, p. 171). Cabe às pessoas contemplá-la e entendê-la
estabelecendo uma relação íntima com a natureza. Para a maioria
das tradições indígenas do Brasil a água é fonte da vida, elemento
de relação com a divindade. A água é algo sagrado. Os indígenas
Pankararu exercem uma ligação íntima com a água, na qual re-
vela um encontro corpo - água – espírito. O povo Pankararu tece
uma ligação mística com as águas da Nascença (uma fonte de água
sagrada), sensibilidade despertada pela experiência entre o que é
natural e o que é humano, em que as águas inundam os saberes
pela educação dos sentidos, do ver, sentir, cheirar, ouvir o que as
águas têm a dizer. Uma pedagogia da água, que limpa, cura, tece
condutas, educa.

5
IBGE, Censo demográfico 2010. Características gerais dos indígenas; Resultados do universo. Rio
de Janeiro, 2010, p. 160. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indige-
nas_universo.pdf.

108
AS ÁGUAS EDUCADORAS PANKARARU

A questão hídrica nos dias atuais é um problema de todos,


não apenas dos Pankararu ou dos sertanejos nordestinos do Bra-
sil. Os desmatamentos, principalmente das matas ciliares do Rio
Opará (nome indígena do Rio São Franciso) e do Rio Moxotó, pro-
vocam uma diminuição do período de chuvas, o que faz com que
algumas fontes de água diminuam o volume ou sequem e que ria-
chos temporários desapareçam. Isso resulta num sentimento de
perda de algo que faz parte do substrato Pankararu. A ausência
ou diminuição das águas nas fontes ou nos riachos e cachoeiras é
sentida como um vazio. Percebemos isso no tom das falas, no olhar
perdido das pessoas que entrevistei ou com quem conversei infor-
malmente sobre a escassez das chuvas. No entanto, em período de
muita chuva os riachos reaparecem e se encontram, fazendo brotar
uma cachoeira, por sinal, muito desejada pelos Pankararu do Brejo
dos Padres.
“As lideranças tradicionais e locais têm unido esforços para
amenizar a situação, principalmente os sangramentos, que são
rompimentos feitos na encanação para desvio da água, às vezes
usada para abastecer o gado” (PGTA, 2017, p. 75). Algumas ações
do governo federal como o Programa “Um Milhão de Cisternas”6 e
a construção de cisternas calçadão (Programa “Uma Terra e Duas
Águas”7) não conseguiram resolver os problemas de abastecimen-

6
Programa Um Milhão de Cisternas - P1MC, articulado pela ASA (Articulação no Semiárido brasilei-
ro): “Iniciado em julho de 2003, o P1MC vem desencadeando um movimento de articulação e de
convivência sustentável com o ecossistema do Semiárido, através do fortalecimento da sociedade
civil, da mobilização, envolvimento e capacitação das famílias, com uma proposta de educação pro-
cessual.” (https://www.senado.gov.br/comissoes/CMMC/AP/AP20090924_ASA_Vida%20Semiari-
do.pdf. Acesso em 17/02/2019).
7
“Com o intuito de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradi-
cionais para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais, a ASA criou em 2007
o Programa Uma Terra e Duas Águas, o P1+2. O nome do programa faz jus à estrutura mínima que
as famílias precisam para produzirem – o espaço para plantio e criação animal, a terra, e a água
para cultivar e manter a vida das plantas e dos animais. O P1+2 integra o Programa de Formação e
Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, da ASA. Esse programa-guarda-chuva con-
grega também o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC. Os objetivos do P1+2 são promover
a soberania e a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de
emprego e renda para as mesmas”. (Disponível em: http://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2. Acesso
17/02/2019).

109
to. O primeiro motivo porque chegou depois do período das chu-
vas. O segundo porque com as cisternas calçadão só 20% das fa-
mílias foram beneficiadas (PGTA, 2017, p. 75).
A escassez das chuvas, a canalização das águas e o lixo, são
problemas que refletem negativamente na cultura indígena Panka-
raru, especificamente em sua relação com a água, já que é da Nas-
cença (fonte de água doce) que se busca água para preparar os
banhos quando tem alguma coisa relacionada à Tradição, como
por exemplo os banhos dos noivos.
Para os Pankararu do Brejo dos Padres a água é algo sagrado.
A água favorece a vida tanto na questão física, quanto espiritual.
Com relação à vida física, a água é algo que dá vida, o existir, sem
ela nenhum ser vivente sobrevive. Quanto à questão espiritual, é
das águas que vem os Encantados8, isto é, aqueles que descobri-
ram o segredo de se encantar e alcançar a imortalidade. Sobre eles
estão a confiança e a fé do povo Pankararu, a ideia de que esses
Encantados têm uma “força”, o poder de cura.
Na Tradição Pankararu é comum banhos de purificação e/ou
de limpeza nas bicas e principalmente na Fonte Grande, na “Nas-
cença”, como costumam dizer, mas também na Bica de Camila, na
Bica de Pai Chico (hoje em desuso). Quatro momentos são por eles
ressaltados para esses banhos. Um desses é o banho dos noivos,
que é realizado na Bica da Camila no dia do casamento. Antiga-
mente, o banho do noivo era na Bica de Pai Chico e o da noiva na
Bica da Camila. Hoje em dia, devido à diminuição de água na Bica
do Pai Chico, o noivo também tem que tomar banho na Bica de
Camila, que era reservada apenas para as mulheres.
O banho dos noivos não é apenas uma questão de limpeza
corpórea, trata-se de uma preparação para um ritual religioso. Pre-
parar-se física e espiritualmente para um festejo, envolvendo todos
que participam diretamente do casamento, porém este casamento
acontece na Igreja, dentro da Tradição católica. Isso nos faz perce-

8
“Antes do segredo da aldeia estar depositado na cachoeira de Itaparica, os seus Encantados tinham
morada nas cachoeiras de Paulo Afonso, de onde já teriam-se transferido quando elas foram total-
mente esgotadas em seu potencial mágico com as sucessivas barragens”. (ARRUTI, 1996, p. 164).

110
ber que a reinvenção da tradição também proporciona uma apro-
priação, tece representações culturais, o casamento é dado a ser
reconhecido por meio de um rito “estranho”, isto é, um rito católico
que vem de fora e não é próprio da cultura e da tradição indígena.
Outro momento são os rituais como, por exemplo, a Corrida do
Imbu e o Menino do Rancho, onde quem participa diretamente
tem que tomar banho na Nascença para se purificar. A Corrida do
Imbu é um rito complexo, podendo ser denominado como rito de
calendário por que acontece em duas fases (a primeira de outu-
bro a dezembro e a segunda de fevereiro a março), é relacionado
a pagamento de promessas. O Menino do Rancho também é rito
de pagamento de promessas (quando um menino adoece, um re-
zador indica que será protegido por um determinado encantado
e deve ir para o rancho). Por envolver muitas pessoas e várias re-
feições durante o dia, “é um rito muito caro que dura o dia todo”
(MATTA, 2005, p. 169).
Essa relação íntima com a água revela um encontro corpo-á-
gua-espírito que rompe o estado físico dos sentidos alcançando
o metafísico, a sensibilidade. A prática de ir às nascentes, ouvir ou
invocar espíritos e estabelecer contatos com os Encantados não é
algo fácil de exercitar e tão pouco de ser revelado. Isso é segredo.
A água toca o ser na experiência sensível. O indivíduo sujeito da ex-
periência se disponibiliza, se abre como um espaço onde as coisas
acontecem. Um sujeito receptivo que fica “ex-posto”, favorecendo
uma relação com algo que sente e que, ao mesmo tempo, o toma,
o forma e o transforma (BONDÍA, 2016).
Essa experiência com a água se estabelece pelo aguçamen-
to das sensibilidades, que se inscreve sob o signo da alteridade, e
estão na criação imaginária do mundo (PESAVENTO, 2007), e da
capacidade de um relacionamento inclusivo entre a água e o indi-
víduo, partindo de uma perspectiva em que todas as coisas estão
interligadas e possuem uma força vital.
A educação indígena é “fazer brotar os sonhos”. Ou seja, edu-
car é o ato de religar-se, reviver a tradição do povo, fazer brotar,

111
crescer nos sujeitos os saberes ancestrais, os saberes culturais que
são vividos, sentidos, imaginados na convivência da comunidade.
É educar sentidos.
Entender que a educação inicia do que somos, vivemos e fa-
zemos, como afirma a professora Pankararu Maria Jacielma (apud,
OLIVEIRA; VIEIRA, 2019, p. 36), é aprender a educação dentro de
um processo integrador, que une indivíduo, comunidade e cultu-
ra. Para os Pankararu a educação é uma sabedoria expressada na
experiência com o povo, é um somatório do que somos. Afinal, “o
indivíduo é a soma de suas impressões singulares” (BACHELARD,
1989, p. 8).
Falar em “educação” no ambiente indígena é seguramente
pressupor ao menos quatro dimensões: a comunidade/povo, suas
memórias, sua cultura/tradição e sua espiritualidade. A educação
escolar indígena se insere neste contexto comunitário, em seu pro-
jeto educativo-cultural de preservação e continuação de uma tra-
dição ancestral, de sua cosmovisão. Através de projetos escolares,
Pankararu vivencia a cultura do povo, na qual as crianças e os jo-
vens são sujeitos de suas histórias. História específica, diferenciada,
intercultural banhada pelos rios e cachoeiras que fecundam suas
terras e povoam seu imaginário.
O ambiente escolar, como um dos espaços da convivência e
educação das crianças Pankararu, produz uma cultura que, em seu
processo, comunica-se com o exterior, “a escola inscreve-se como
fator de mudança. [...] não apenas prepara para a vida como pre-
para a própria vida. A escola [...] tem não obstante um papel na
construção das mudanças históricas e contribui para a emergência
das estruturas e dos grupos sociais” (MAGALHÃES, 1996, p. 8). É
também neste espaço escolar, que os Pankararu se apropriam e
representam a água, sendo partes integrantes de um processo de
produção de referências sociais que são também vivenciadas den-
tro da escola.
Analisando o Projeto Político Pedagógico do Povo Pankararu
(PPP Pankararu, 2012), o Currículo é estruturado em cinco eixos:

112
Terra, Organização, História, Interculturalidade e Identidade. Ele
diferencia, em um dos seus eixos, com os do Currículo Intercultural
dos Povos Indígenas de Pernambuco (2ª versão), quando substitui
o eixo bilinguismo por interculturalidade. Tais eixos definem “a for-
ma de vivenciar os conteúdos de forma interdisciplinar dentro do
Projeto gerador ‘Todo dia é Dia do Índio’”9 (PPP Pankararu, 2012,
p. 44).
Um dos espaços educativos de uma comunidade indígena é
o território, espaço onde se encontram as relações com a natureza
e com os seres que nela vivem. Para os Pankararu, o território é um
processo em que natureza e cultura se interligam. É percebido a
partir de uma ótica de coletividade, ou seja, a natureza: terra, mata,
água, animais, as pessoas. Não é entendido como um espaço de-
marcado, e sim como história, testemunha de sua existência.

A terra é nossa história. Ela é a testemunha da nossa exis-


tência, dos nossos costumes, crenças, rituais, sobrevivên-
cia, da nossa luta e da nossa vida. É da terra que tiramos e
mantemos nossa ciência; os recursos naturais são elementos
importantes que estão presentes em nossas tradições, em
rituais ocultos, como na cura de doenças, ela nos fornece as
ervas para os banhos, bem como as bebidas que usamos
nos rituais. (PPP Pankararu, 2012, p. 7).

O território/terra Pankararu faz parte da tradição cultural em


que há uma ligação filial e identitária. Filial porque esse território/
terra é visto como o ventre de uma mãe, de onde nasceram e por
quem são alimentados; identitário porque o povo pertence àque-
le local específico. Portanto, assume um espaço de elo definindo
práticas educativas, condutas e preceitos morais e relacionais, tais
como: a prática de cuidar, de defender, de sentir, de amar, de per-

9
O Projeto gerador ‘Todo dia é Dia do Índio’ é uma provocação para sair dos estereótipos de que
o dia 19 de abril é “dia do índio”. Com esta crítica as escolas Pankararu levantam a problemática de
que para Pankararu “todo dia é dia do índio”. O Projeto é gerador porque traz objetivos específicos
do currículo, perpassando os cinco eixos do PPP (Terra, Organização, História, Interculturalidade e
Identidade).

113
tencer a um território, tendo com ele um elo espiritual (sagrado).
Nas escolas EEI Dr. Carlos Estevão e EEI Pankararu Ezequiel
a água percorre as disciplinas de uma forma mais integrada e isso
é percebido no planejamento escolar em que a temática da água
é trabalhada em todas as disciplinas, em todas as séries, em um
mesmo período. Para cada bimestre letivo as escolas têm um tema
gerador: Corrida do Imbu, Calendário Agrícola, Reafirmação de va-
lores, Direitos e deveres indígenas, cabendo aos professores das
diversas disciplinas tratar esses temas nos quais a água faz presen-
ça como bem cultural, pois a água é tema que não sai de circulação
da primeira até a quarta unidade. Além disso, os projetos escolares
elaborados com a temática da água que analisei têm por objetivo
envolver toda a comunidade escolar (escola e comunidade).
A água é fonte de sabedoria, e conduz o trabalho docente in-
dígena a se direcionar para estudos que levem o alunado a perce-
ber a relação que existe entre as práticas tradicionais com cada ele-
mento oferecido pela Mãe Natureza (Planejamento Escolar 2018
e 2019). Outro momento em que a água é trabalhada em sala de
aula é nas atividades extracurriculares através de projetos. Os Pro-
jetos Escolares movimentam a comunidade escolar. Eles fazem o
diferencial para o banhar-se nas águas dos saberes pedagógicos
das escolas E.E.I. Carlos Estêvão e na E.E.I. Pankararu Ezequiel.
Esses projetos, ao sistematizar uma metodologia, definem práticas
de um fazer escolar que materializam uma cultura escolar. Proje-
tos que buscam um encontro entre o interno e o externo (o eu e
a água), um fazer sentir, tocar e ser tocado. O espaço articula-se,
movimenta-se, ultrapassa o lugar transformando-o e ressignifican-
do-o.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A água vem sendo apropriada por diversos discursos ao lon-


go da História e representada por múltiplas configurações sociais.
A água adquire formas, contornos, gostos e cores diversas, que a

114
partir de sensibilidades e experiências pode despertar sentimentos,
memórias e poesias. O povo Pankararu, por exemplo, se apropria
das águas das nascentes, principalmente da Fonte Grande, como
algo que dá vida, visto que é nessas fontes que moram os Encanta-
dos. A água é algo sagrado. Os indígenas Pankararu exercem uma
ligação íntima com a água, na qual revela-se um encontro corpo -
água - espírito.
Para os professores Pankararu a água tem uma história que
carrega a memória ancestral do povo Pankararu. Essa constatação
firma e endossa suas convicções, perceptíveis quando se referem à
história dos antepassados e à água da cachoeira do Rio São Fran-
cisco. Nesta pesquisa, e também em nossa vivência com eles, per-
cebemos esta apropriação da água ancestral como ‘água sagrada’.
Outro aspecto perceptível é que na história cultural da água e nos
saberes do povo Pankararu ela é educadora. E isso perpassa, como
vimos, o espaço escolar, seja nos discursos de estudantes e docen-
tes, como nas práticas curriculares e extracurriculares realizadas na
escola.
Os desenhos feitos pelos estudantes confirmam algumas fa-
las dos professores sobre qual entendimento os estudantes têm
com relação à água: sobrevivência, consumo e atividades huma-
nas. Percebemos nos desenhos, no entanto, uma representação
de uma água que educa corpos normatizando práticas educativas
de higiene, de lazer, de atividades domésticas (como o lavar roupa
e o cultivar de roças), também de preservação ambiental. Outro
aspecto da água e sua percepção, é sua representação sagrada.
Tecer narrativas sobre a água do Povo Pankararu foi um de-
safio que suscitou experiências, sensibilidades e aprendizagens. A
água remete a uma história social e cultural. Entendemos que as
águas são apropriadas pelos Pankararu como fonte de vida e re-
presentadas como um elemento sagrado, distanciando-se de um
entendimento da água como um bem mercadológico. Constata-
mos isso nos relatos de professores e nos desenhos dos estudan-
tes, na representação da água em forma de chuva, fontes, riachos,

115
cachoeiras que florescem a natureza, alegram pássaros e pessoas,
sendo usadas em banhos, roças e abastecimento de casas. “Água é
vida!” Uma visão que participa, partilha e dialoga com a concepção
do paradigma ecológico defendido por Fridjof Capra (1996), em
que o ser humano e o natural estão entrelaçados.

REFERÊNCIAS

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riais Pankararu. Dissertação para o grau de Mestre em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ,
1996.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1989.
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John Cunha
Comerford. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000. (Coleção Typographos).
BONDÍA, Jorge Larrosa. Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
JULIÃO, Cristiane Gomes; VASCONCELOS, George de; MODERCIN, Isabel Froes; OLIVEIRA, Luana
Bárbara Gomes (org.). Pankararu. PGTA – TI Pankararu. Plano de gestão territorial e ambiental da
terra Indígena Pankararu. Aldeia Brejo dos Padres/Tacaratu, 2017.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: UNICAMP, 1990. Disponível em: lelivros.
love/book/download-historia-e-memoria-jacques-le-goff-em-epub-mobi-e-pdf. Acesso em
04/03/2020.
LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indíge-
nas no Brasil de hoje. Brasília: MEC, 2006.
MAGALHÃES, Justino. Um contributo para a história do processo de escolarização da sociedade
portuguesa na transição do Antigo Regime. In: Educação sociedade & culturas, Porto Alegre: Edi-
ções Afrontamento, 1996, n. 5, p. 7-34. Disponível in: https://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC5/
5-1-magalhaes.pdf. Acesso em 31/12/2019.
MATTA, Priscila. Dois elos da mesma corrente: uma etnografia da Corrida do Imbu e da Penitência
entre os Pankararu. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social na Universidade de São Paulo
(USP). 2005.
OLIVEIRA, Edvânia Granja da Silva; VIEIRA, Maria do Socorro Tavares Cavalcante (org.). Memórias
e vivências: saberes e fazeres nas Escolas Indígenas Pankararu. Petrolina: Instituto Federal/Sertão
Pernambucano, 2019.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o imaginário. In: Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 15, n°. 29, 1995, p. 9-27.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO, Sandra Ja-
tahy. Sensibilidades na História: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS,
2007, p. 9-21.
POVO PANKARARU. Escolas estaduais indígenas Pankararu. Projeto Político Pedagógico. 2012.

116
SERIA CÔMICO, SE NÃO FOSSE “TRÁGICO”: ANÁLISE DE
MEMES SEXISTAS EM UMA AULA REMOTA

Thatiane Oliveira do Nascimento1


Robéria Nádia Araújo Nascimento2

INTRODUÇÃO

Educar envolve um “risco” impregnado por esperanças tal


como supõe o próprio ato de aprender. Guimarães Rosa nos ensi-
na, sabiamente, que significa viver o percurso, pois o real não está
na saída e nem na chegada; ele se dispõe ‘pra gente’ é no meio da
travessia. As práticas educativas contemporâneas espelham esse
movimento, porque nunca foram tão revistas e refeitas diante do
cenário imposto pela pandemia da Covid-19. Com o fechamento das
escolas em razão do distanciamento social, a educação enfrenta a
reinvenção de suas práticas, exigindo que os profissionais docen-
tes também se refaçam para manter viva a capacidade de educar.
Nesse contexto, o ensino passou a incorporar as novas Tecnologias
Digitais da Informação e Comunicação (TDICS) não apenas como
suportes de aprendizagens, mas estratégias promissoras de viabi-
lização dos processos pedagógicos. Deste modo, a elaboração de
atividades docentes que permitam a construção dos saberes me-
diadas por esses recursos digitais perpassam o “novo normal” das
instituições escolares requerendo dos profissionais novas habilida-
des para a construção de conhecimentos.
Kenski (2007) define tecnologia como o “conjunto de conhe-
cimentos e princípios científicos que se aplicam ao planejamento, à
construção e à utilização de um equipamento em um determinado
tipo de atividade” (KENSKY, 2007, p.24). Assim, as ferramentas
tecnológicas do ensino presencial, que já contam com todo investi-
1
Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores (PPGFP/UEPB). Desenvol-
ve pesquisa sobre a apropriação do funk nos espaços escolares.
E-mail:thatianegcopro@outlook.com
2
Doutora em Educação. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Formação de
Professores (PPGFP/UEPB). Orientadora da pesquisa. E-mail: rnadia@terra.com.br
mento dos docentes nos desafios diários da sala de aula, passaram
a focalizar novas demandas, dependendo dos aportes à distância,
num abrir e fechar de olhos que fazem a sala de aula ser acessa-
da por telas e toques sem deslocamento físico dos interlocutores.
Nesse novo tempo, professores/as e alunos/as passaram a intera-
gir dentro de suas casas.
Moran (2012) descreve a ampliação do conceito de aula
diante do uso das tecnologias, discutindo a conexão como forma
de protagonismo e autonomia dos estudantes. Para Nascimento
e Nascimento (2020) “[...] é perceptível que as novas tecnologias
sejam artefatos colocados a serviço do processo educativo encur-
tando distâncias, conectando as pessoas e possibilitando o acesso
a diversos saberes sem a necessidade presencial dos indivíduos”
(NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2020, p.91). Diante desse enten-
dimento, as práticas pedagógicas, que antes ocorriam de forma
presencial, passam por uma adaptação para atender as demandas
educacionais do Ensino Remoto, descrito por Holges et al (2020),
como emergencial e temporário diante de uma situação atípica de
crise.
Chamando a atenção para a importância das relações de gê-
nero também no contexto do ensino remoto, visto que essa temá-
tica se entrelaça com as vivências e saberes de sala de aula, busca-
mos sublinhar, neste texto, o papel da educação na desconstrução
da visão sexista que perpassa as esferas sociais, e que, por conse-
guinte, atravessa a sociabilidade educativa fomentando as relações
de gênero entre alunas/os, tal como aconteceria nas aulas presen-
ciais. Trata-se de uma temática que permanece como prerrogativa
para a promoção da equidade no espaço escolar, conforme ates-
tam vários estudiosos, cujas ideias nos guiam ao longo desta refle-
xão.
Louro (2014), por exemplo, ressalta a instituição escolar como
promotora das assimetrias de gênero, na medida em que os cor-
pos de meninas e meninos são educados de acordo com o sexo
biológico. Já Bourdieu (2020) alerta acerca da violência simbólica,

118
na qual o sujeito que a sofre, não a compreende como violência,
pois sua percepção pode ser explicada pelo “rumo natural das coi-
sas”. Ou seja: há uma banalização do sexismo como algo até pre-
visto ou esperado numa sociedade cuja hegemonia do masculino
é fortalecida pelo paradigma patriarcal. Por isso, em qualquer olhar
sobre educação, faz sentido assinalar, junto com Freire (1987), o
papel emancipatório da escola na formação de homens e mulheres
para uma sociedade igualitária. Afinal, a intencionalidade primeira
do ato de educar contempla o crivo social da emancipação dos su-
jeitos para a concepção de um mundo mais justo.
Nessa perspectiva, as ideias aqui formuladas se encaminham
para práticas educativas convergentes com a alteridade atentando
para a discussão da problemática de gênero com meninos e me-
ninas. Para tanto, apresentamos uma aula mediada pelo aplicativo
WhatsApp, na qual memes sexistas foram explorados para pro-
blematizar e descontruir os estereótipos que envolvem os papéis
de gênero de acordo com o sexo biológico. A experiência didática
foi desenvolvida em uma turma do 5º Ano de uma Escola Munici-
pal de Ensino Fundamental de João Pessoa – PB. A aprendizagem
oportunizada possibilita ampliar a compreensão de mundo dos
estudantes, contribuindo para um letramento crítico, mediante os
discursos estereotipados sobre homens e mulheres que circulam
nas redes sociais (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2020). Em sín-
tese, seja de modo remoto ou presencial, a grande pergunta que
se sobrepõe para nós, docentes, é: que ser humano desejamos for-
mar?

REINVENTANDO PRÁTICAS EDUCATIVAS NO


CONTEXTO REMOTO

O arcabouço do processo de ensino e aprendizagem se anco-


ra na intencionalidade de promover saberes que configurem mu-
dança nas pessoas, e consequentemente, na estrutura da socieda-
de a partir da formação de novas mentalidades. Por isso, Libâneo

119
(2013) nos alerta de que o fazer pedagógico deve estar alinhado
ao que vamos chamar de “bússola intencional”, para que no mar
social os interesses dominantes não prevaleçam e gerem ideias
preconceituosas de exclusão.
Zabala (1998) aborda a necessidade de se promover o en-
sino para além de conteúdos cognitivos, apresentando, assim, a
importância da prática educativa em sintonia com as questões cul-
turais, pensada para o convívio social. Podemos assim considerar
que a construção das relações igualitárias de gênero entre os su-
jeitos deve perpassar o âmbito educacional configurando uma das
metas da educação para a compreensão das diferenças. Libâneo
(2013) ressalta o preparo para a cidadania como eixo fundante da
escola. O ensino deve passar pelo crivo do compromisso social a
fim de contribuir com a ruptura de paradigmas que configurem
preconceito e discriminação, pois “não há nem jamais houve prá-
tica educativa em espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra,
comprometida apenas com ideias preponderantemente abstratas
e intocáveis” (FREIRE, 1992, p.78). Esta reflexão precisa ser desen-
volvida nos espaços educativos e no mundo vivido pelos sujeitos,
a partir do reconhecimento da heterogeneidade que constitui o
espaço social.
Em meio a esse desafio, torna-se fácil prever os embates colo-
cados à educação, que precisou agregar uma verdadeira maratona
de suportes tecnológicos que, além de manter docente e discen-
te conectados, pudessem efetivar uma aprendizagem mesmo que
à distância. Nesse intuito, as plataformas digitais e os dispositivos
móveis foram ressignificados, passando de mediadores das intera-
ções sociais corriqueiras para assumir finalidades de aprendizagem
forjando alternativas em meio ao isolamento social exigido pela
pandemia. Como advoga Assmann (2003), “aprender” pressupõe
“viver”, pois a noção de “escola” tem uma natureza ubíqua. O termo
escola alude a uma sociedade aprendente, significando a possibi-
lidade de assimilar, tratar e compreender os conhecimentos, que
se traduzem na necessidade de estimular qualidades fundamen-

120
tais nas pessoas: formação, educação e aprendizagem ao longo
da vida. Uma sociedade aprendente não trivializa o saber, porque
desenvolve um aprender renovável e renovado que se reinventa:
“Aprender, portanto, implica movimento e não apresenta relação
intrínseca com a escolaridade ou sua espacialidade” (ASSMANN,
2003, p. 198).
Dentre as possibilidades testadas durante o ensino remoto,
destacamos o Whatsapp, “um aplicativo móvel e versátil que per-
mite a escrita e a leitura de textos multimodais (com imagens, sons
e vídeos) em meio à interação em rede” (NASCIMENTO; NASCI-
MENTO, 2020, p.77). A facilidade de acessar conteúdos através da
palma da mão certamente contribuiu para o uso massivo dos apli-
cativos móveis, justificando sua aceitação nas esferas educativas
por ser algo comum no cotidiano dos jovens estudantes, em termos
de interação coletiva e práticas de sociabilidade. Como considera
Prado (2017): “[...] o WhatsApp tornou-se a principal ferramenta
de comunicação atual, com mais de 90% de seus usuários ativos
e atuantes diariamente em conversas que não têm fim” (PRADO,
2017, p. 05).
Tal multifuncionalidade certamente colaborou para sua apro-
priação com finalidades pedagógicas durante o isolamento social.
O que corrobora o pensamento de Assmann (2001), de que o novo
insight básico do campo educacional consiste na equiparação in-
teligente e simbiótica entre a vida diária e as dinâmicas cogniti-
vas: “não há verdadeiros processos de conhecimento e inteligência
sem conexão com as expectativas e a vida dos aprendentes” (AS-
SMANN, 2001, p. 27).
Para além do uso por questões emergenciais, o aplicativo re-
presenta a esfera criativa dos multiletramentos, que Rojo (2012)
caracteriza como multifacetada, marcada por: “[...] dois tipos es-
pecíficos e importantes de multiplicidade presentes em nossas
sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a
multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica
de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se

121
comunica (ROJO, 2012, p.13)”. A mudança comunicacional na con-
temporaneidade, atrelada ao contexto do ensino remoto, converge
para promover uma verdadeira reviravolta na prática educativa, que
passou a articular o campo da semiótica e da estética na comunica-
ção dos discursos e narrativas sociais. A escola é, então, chamada
para construir aprendizagens que preparem os/as alunos/as para
as possibilidades das tecnologias, exercendo seu papel social como
instituição formadora aberta a adaptações e novas performances.
Nesse sentido, os professores são instigados a incorporar alterna-
tivas as suas práticas para dar continuidade ao fazer pedagógico
para além dos muros escolares.

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO SÃO MOTIVOS DE RISOS?

A função imagética presente nas representações e simbo-


lismos sociais perpassa a vivência humana configurando relações
sociais de poder, uma vez que a intencionalidade de dominação
se reflete nas comparações e entrelinhas dos discursos3. Chartier
(1991) explica que “[...] a representação transforma-se em máquina
de fabricar respeito, num instrumento que produz uma exigência
interiorizadas, necessária exatamente onde faltar o possível recur-
so à força bruta [...]” (CHARTIER, 1991, p. 186). Nesse prisma, as di-
ferenças tornam-se marcadores de inferioridade sendo fomentada
e validada a assimetria entre os sujeitos. Hall (2016) compara as
representações a uma rede de compartilhamento dos significados
e valores produzidos por uma determinada cultura.
Nessa perspectiva, a mídia atua na disseminação global de
representações e imagens estereotípicas, visto que uma notícia ou
propaganda, que antes era disseminada em uma proporção regio-
nal ou nacional, agora adquire escala planetária com apenas um
clik de acordo com os padrões de um mundo conectado em rede.
Silverstone (2002) afirma que: “A mídia é entretenimento. E aqui,
também, significados são produzidos e transformados: tentativas
3
Ressaltamos que o referencial teórico brevemente discutido neste texto se insere na dissertação de
nossa autoria, cuja pesquisa contempla a relação gênero e educação.

122
de ganhar a atenção, de cumprimento e frustração de desejos; pra-
zeres oferecidos ou negados” (SILVERSTONE, 2002, p.43). Deste
modo, as representações presentes na esfera midiática difundem
uma realidade socialmente aceitável, porque é fundamentada nos
valores coletivos padronizados entre os grupos por suas ideias e
convenções.
Os memes são exemplos desse contexto em razão do poder
replicador de palavras ou imagens que traduzem determinados
comportamentos. Numa derivação do grego mimeme, o vocábulo
tem o sentido de “cópia”. Apesar de ter migrado para a cultura digi-
tal, sua origem decorre da Biologia, a partir da obra “O gene egoís-
ta”, do cientista britânico Richard Dawkins, que trata da evolução
das espécies. Como a sobrevivência dos genes ocorre por meio de
corpos capazes de se reproduzir, esse mesmo poder, por analogia,
inspirou o conceito de memes na ambiência da internet.
Na compreensão de Felinto (2008), a imitação e a multipli-
cação acelerada de discursos tornam o fenômeno dos memes um
exemplo da denominada cultura spoof. No domínio da internet
esse adjetivo alude à ação de satirizar, parodiar e/ou adicionar a
textos e imagens diversos recursos disponíveis, advindos de outras
instâncias de comunicação, como personagens de cinema, nove-
las, redes sociais, que se tornam alvos de adaptação e colagem
nas novas estruturas constituindo um contexto multimodal para a
transmissão de determinadas ideias.
Recuero (2017) observa a intencionalidade dos compartilha-
mentos dessas estruturas em larga escala, apontando que ocor-
rem por concordância das mensagens ou pelos aspectos lúdicos
disseminados. Seja qual for o caso, a viralização não permite a re-
flexão necessária sobre os conteúdos, daí ser oportuno à educação
explorar, em sala de aula, as questões femininas que perpassam
o espaço público, muitas vezes sutis e implicadas por valores de
cunho patriarcal, que viralizam nessas narrativas cômicas. Mostra-
-se, então, pertinente avaliar os sentidos das alegorias de gênero
produzidas nos memes nas suas imbricações com os condiciona-

123
mentos culturais de gênero a que se referem.
No que diz respeito ao sexismo, notamos que algumas mensa-
gens refletem o pensamento patriarcal que inspira a sociedade, na
qual o feminino e o masculino são entrelaçados a padrões estigma-
tizados que inferiorizam as mulheres. No que tange à padronização
Louro (2019) denuncia que os valores sexistas muitas vezes se ali-
nham à cor da pele: “Em nossa sociedade, a norma que se estabe-
lece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de
classe média, urbana e cristão[...] (LOURO, 2019, p. 18)”. Sob esse
aspecto, um simples meme pode carregar em suas representações
ideias preconceituosas ou pejorativas sobre as mulheres.
Nesse sentido, a intencionalidade de invisibilizar ou silenciar
o “outro”, para além de denominações de classe, etnia ou sexo,
perpassa um processo sobre relações de poder, vivenciadas social-
mente, e que também são reproduzidas na instância escolar. A au-
tora reforça esse posicionamento, mostrando a linguagem como
disseminadora de hierarquias e de subalternização, ao descrever
que as aprendizagens iniciais da vida escolar de uma menina se-
guem os acordos e parâmetros circundantes.
Carvalho (2013) reitera esse viés, descortinando a funcionali-
dade da instituição escolar na vida das pessoas:

É uma agência importante na constituição de quem somos e


seus discursos podem legitimar outros sentidos sobre quem
podemos ser ao apresentar outras narrativas para a vida
social menos limitadas/aprisionadoras e mais criativas para
nossas histórias e orientadas por um sentido de justiça social
(CARVALHO, 2013, p. 134).

Deste modo, a escola torna-se responsável por construir sa-


beres que exponham as propostas do “riso”, inscritas em piadas,
enunciados ou ilustrações, a fim de criar uma espécie de teia crí-
tica de saberes que forje uma sociedade igualitária, em nome de
uma educação na qual a performance discursiva dos memes seja

124
questionada para além da comicidade. Cabe aos docentes criar fer-
ramentas didático-teóricas capazes de descortinar as alusões su-
bliminares sobre o feminino que se ocultam nas ironias e sátiras
desses dispositivos midiáticos a fim de transformar o riso em estí-
mulo para a reflexividade e a construção de saberes sobre gênero.

CAMINHOS METODOLÓGICOS

O planejamento pedagógico da atividade remota ocorreu


uma semana antes da sua efetivação. Foi mantido contato com os
responsáveis dos estudantes, solicitando autorização para que as
crianças pudessem participar de um grupo específico no aplicativo
WhatsApp, sem a presença do adulto. Como o encontro não se-
ria realizado por vídeo chamada, a motivação para criar um grupo
seria garantir que a turma não teria intervenções dos parentes ou
responsáveis durante o desenvolvimento. O objetivo era promover
a reflexão das/os alunas/os acerca das relações sexistas comuns no
espaço social via memes.
A turma era composta de 31 alunas/os, entretanto apenas 8
participaram, sendo 5 meninas e 3 meninos. Esse recorte foi de-
terminado pelos seguintes critérios: (1) Falta de celulares pessoais
para as crianças, pois boa parte fazia uso dos aparelhos dos respon-
sáveis, o que impossibilitava uma aula síncrona, em razão dos seus
horários de trabalho; (2) Um aluno não participou por questões de
suas limitações (cid G 40- Epilepsia e G 80 Paralisia Cerebral).
O convite aos alunos/as e a consulta de permissão por parte
dos responsáveis foram realizados através de áudio enviado pelo
WhatsApp. Após a autorização e o aceite dos alunos/as, o grupo foi
criado. As perguntas realizadas aos alunos/as eram feitas através
de áudio, assim como as reflexões foram enviadas ao grupo com o
mesmo recurso.
A aula aconteceu no dia 26/11/2020 com data e horário mar-
cado com antecedência. No dia 24 foi solicitado que os/as alunos
selecionassem memes de suas preferências e compartilhassem

125
com o grupo. O propósito foi sondar o conhecimento prévio so-
bre esses dispositivos. A turma atendeu à solicitação e os memes
foram enviados. Antes de iniciar as orientações pedimos que os/as
alunos/as sinalizassem com um ok que estavam presentes. Após o
registro da presença, foi gravado um áudio orientando como fun-
cionariam as reflexões sobre as imagens o/ou textos. Em segui-
da, uma pergunta iria ser feita para investigar as impressões dos
conteúdos. Cada aluno/a teria que gravar um áudio para socializar
suas percepções.
Na sequência, apresentamos os memes discutidos, nomea-
dos pelas autoras, assim como as imagens das mulheres cientis-
tas que foram adotadas para o encerramento da aula. Salientamos
que incluir essas fotos foi uma sugestão do grupo, que demons-
trou sensação de frustração com a falta de conteúdos favoráveis ao
feminino, sobretudo entre as meninas participantes. Assim, foram
enviadas com legenda e áudio as conquistas de cada uma das mu-
lheres apresentadas, no intuito de buscar romper com os estereó-
tipos destacados nas mensagens, segundo observamos abaixo:

FIGURA 1: Inerente a Criação

Fonte: https://me.me/i/aew-deus-o-ngo-tava-daora-mas-quem-
-vai-lavas-7198052. Acesso em: 15/12/2020.

126
FIGURA 2: Românticos?

Fonte: https://www.bombounowa.com/imagens/quem-foi-que-
-disse-que-nao-existem-mais-romanticos. Acesso em:15/12/2020

FIGURA 3: Direção não é vocação

Fonte: https://piadas-e-videos.com/imagem/coisas-de-mu-
lher-15041. Acesso em: 15/12/2020

127
FIGURA 4: O certo limita

Fonte: https://pt.memedroid.com/memes/detail/1970812,2017.
Acesso em: 15/12/2020.

FIGURA 5: Hedy Lamarr (1914-2000)

Fonte: Hedy Lamarr – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.


org). Acesso em: 15/12/2020

128
FIGURA 6: Mary Jackson (1921-2005)

Fonte: Mary Jackson – Wikipedia, a enciclopédia livre


(wikipedia.org) Acesso em:15/12/2020

FIGURA 7: Carol Jemison (1956- )

Fonte: Ficheiro:Mae Carol Jemison.jpg – Wikipédia,


a enciclopédia livre (wikipedia.org). Acesso: 15/12/2020

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A análise dos dados coletados durante a aula remota está


ancorada na abordagem qualitativa. Minayo (2000) descreve a
profundidade com que a subjetividade é explorada diante dessa
perspectiva, perpassando o universo dos sentidos dos sujeitos e
configurando uma maior compreensão dos significados em torno
das discussões empreendidas.
O discurso dos/das alunos/as foi entendido na perspectiva da
análise de conteúdo de Bardin (2011), adotando-se a técnica di-
rigida com reforço de um quadro de análise, no qual as falas são

129
apresentadas e organizadas para compor categorias que visam
guiar a interpretação temática. Tal estratégia possibilita um apro-
fundamento discursivo na relação com a revisão de literatura sobre
gênero e educação. Assim, a ilustração permite que os leitores se
aproximem das categorias sugeridas pelo grupo estudado.
A composição do quadro de análise percorreu três etapas: no
primeiro momento realizamos a transcrição dos áudios enviados
ao grupo durante a aula remota. Para tanto, utilizamos o aplicati-
vo transcriber, que possibilita transcrever os áudios do WhatsApp,
garantindo a transposição fidedigna das falas para permitir a pré-
-análise ou análise flutuante das interlocuções. Foi realizada uma
leitura geral do material coletado, que possibilitou demarcar dois
grandes eixos temáticos, de acordo com as falas que concordavam,
e as que refutavam os discursos dos memes, atendendo a explo-
ração dos conteúdos disseminados. Em seguida, sintetizamos as
falas, identificando os/as alunos/as de acordo com o gênero, se
menino ou menina, na intencionalidade de esclarecer as opiniões
do grupo. O tratamento deste material originou as seguintes cate-
gorias temáticas: I - A compreensão patriarcal fomenta a constru-
ção das representações do estereótipo de gênero; II – O sexismo é
refutado sendo reivindicada a igualdade de gênero.
No decorrer das leituras teóricas efetivadas e que subsidiam
a necessidade desta prática educativa voltada para as questões de
gênero, interesse da nossa dissertação em curso, percebemos a
incongruência entre as falas dos/as alunos/as diante dos aponta-
mentos dos/as autores/as. Deste modo, ilustramos o percurso rea-
lizado:

Quadro 1 – Reflexo da educação patriarcal


I – A compreensão patriarcal fomenta a construção Citações de
das representações do estereótipo de gênero acordo com o
gênero
Menina Menino
Atividades domésticas correspondem às atribuições da 2 9
figura feminina

130
A figura masculina possui direito de escolha em realizar 0 2
atividades domésticas
A religião fomenta a assimetria de gênero 0 2
As mulheres possuem mais habilidade para atividades 1 3
domésticas diferente dos homens.
A mulher realiza atividade doméstica por imposição 1 0
A mulher realiza atividade doméstica de forma voluntária 1 0
Quantificação das citações 5 16
24% 76%

Nessa perspectiva, os questionamentos da turma, motivados


pelo meme, proporcionaram uma reflexão, apontando a figura fe-
minina como inerente à esfera doméstica: Menino – “Eu acho que
ele está pensando no rango. Não na louça pra ajudar a mulher.
Eu acho, né?”. A palavra “ajudar” reflete o entendimento de que o
espaço doméstico é naturalmente feminino, na medida em que a
imersão do homem é atribuída como função auxiliar, desconfigu-
rando uma divisão de atividades em sugestão a uma igualdade de
papéis. Bourdieu (2020) descreve a legitimação da divisão social
ser atribuída ao sexo biológico, fomentando o rumo “natural das
coisas”, construindo e validando um sexismo estrutural. Já Louro
(2014) relata a existência de teorias que ao defender habilidades
distintas de acordo com o gênero convergem para naturalizar os
lugares ocupados socialmente entre homens e mulheres. A turma
seguiu analisando a ilustração e o pensamento nela inscrito:

Menino - Mas em, em momento nenhum ela não falou nada.


Mas eu acho que ela pensou que o homem quer ajudar ela
também a lavar a louça. Por isso que ela que ela não falou
nada.
Menino - Deus que colocou ela lá, pra ela ser auxiliadora do
homem e ela não falou nada, quem só quem falou foi o ho-
mem.
Menino - Ela trabalha fora, em casa também, né? Porque ela
mas também, mas ela não só vai ficar trabalhando fora não,

131
mas ela também tem que trabalhar em casa, né? Vai deixar
a casa suja, com os prato, não, né? Ela vai ter que trabalhar
dentro de casa fora de casa também, entendeu?

Diante do exposto, percebemos que não é atribuída ao ho-


mem a responsabilidade da atividade doméstica, sendo defendido
nos discursos a obrigação da mulher na realização das atividades
domésticas. Ainda que ela percorra o mundo do trabalho, os cui-
dados com o lar permanecem vistos como sua “primeira obriga-
ção” social. Ressaltamos ainda que a voz masculina presente na
aula, embora em menor número, sugere 76% de ênfase a uma le-
gitimação desde a infância da divisão dos papéis sociais de acordo
com o gênero, o que reforça os estereótipos culturais de inferiori-
dade feminina.
Entretanto, percebemos um posicionamento oposto no que
compreende à esfera doméstica como espaço de atribuições femi-
ninas nas falas oriundas das meninas, conforme apresentação no
quadro abaixo, no qual sintetizamos a construção da categoria que
refuta o sexismo presente nos memes analisados pelos/as alunos/
as. Alguns trechos atestam: Menina – “Os memes tão dizendo que
só as mulheres tem que fazer os deveres de casa que não podem
trabalhar fora, mas não podem ser assim. Hoje em dia tanto o ho-
mem como as mulheres tem direitos iguais, tanto em casa como
poder trabalhar fora”. A igualdade de direitos é reivindicada, sendo
refutada a naturalização do feminino apenas no âmbito doméstico.

Quadro 2: Refutações das divisões de papéis sociais


II – O sexismo é refutado sendo reivindicada a Citações de
igualdade de gênero acordo com o
gênero
Menina Menino
A igualdade de gênero deve ser referência para realização 7 0
das tarefas domésticas
A mulher tem a liberdade de escolha para fazer o que 4 0
gosta
A capacidade feminina transpõe a esfera doméstica 3 5

132
As atribuições domésticas não podem impedir a mulher 3 1
de ter momentos de lazer
O homem tem capacidade de realizar atividades domés- 0 2
ticas
O matrimônio não torna a mulher única pessoa responsá- 1 0
vel pelas atividades domésticas
O homem que realiza atividade doméstica sofre precon- 1 0
ceito no que tange sua orientação sexual
A igualdade de gênero deve ser vivenciada nos espaços 2 1
públicos e privados
Igualdade de gênero para as mulheres independente de 1 0
cor, raça ou etnia
Quantificação das citações 22 9
71% 29%

A relação de poder fomentada pelo gênero, como explicam


Scott (1995), Bourdieu (2020) e Louro (2014), é compreendida
como essencial para manter a sociedade sob a lógica da domina-
ção patriarcal. A luta pela liberdade e equidade de gêneros expõe a
violência simbólica descrita por Bourdieu (2020) como resultante
da aceitação naturalizada de um sexo que exerce poder sobre o
outro.

Menina - E pelo que eu entendi esses memes está falan-


do só que as mulheres podem trabalhar e o homem não. E
isso é errado. Porque enquanto o homem e quanto a mulher
pode arrumar a casa sim.
Menina - Eu acho isso errado porque e quanto uma mu-
lher ou quanto um homem pode arrumar a casa, principal-
mente o homem, né? Porque as vezes tem algumas pessoas
que julgam que acha só porque o homem está arrumando
a casa, acha que ele é mulherzinha, mas isso é errado, né?
Porque a mulher e o homem pode arrumar a casa, pode la-
var os pratos.
Menina - Eu acho que o certo é ela fazer o que ela gosta, se
ela gosta de tocar, ela tocar e se ela gosta de lavar louça, ela
lavar.

133
Simone Beauvoir, com sua célebre frase: Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher, potencializa a percepção dos questio-
namentos diante da construção do feminino que se mantém viva
na esfera cultural. Podemos perceber que a identificação com as
causas femininas pode ser responsável para potencializar o lugar
de fala das mulheres ao transpor os padrões estabelecidos; uma
luta que começa na escola, nas séries iniciais, pela construção da
reflexividade. Louro (2014) afirma: “[...] homens que se afastam da
forma de masculinidade hegemônica são considerados diferentes,
são representados como os outros e, usualmente, experimentam
práticas de discriminação ou subordinação” (LOURO, 2014, p. 52).
Deste modo, homens e mulheres são direcionados para agir se-
gundo normas estabelecidas, atendendo as prerrogativas culturais
delimitadoras de seus espaços, sendo os transgressores imergidos
em uma teia de preconceitos diante dos estereótipos que preci-
sam ser desconstruídos. As imagens das cientistas mostradas na
mesma aula cumprem a função de registrar conquistas femininas e
apontar o lugar da mulher como pressuposto de igualdade.

PALAVRAS FINAIS

A necessidade de uma educação voltada para a igualdade de


gênero emerge diante dos discursos dos/as alunos/as durante aula
remota, uma vez que a comicidade proposta pelos memes sexistas
abre caminhos para a construção de saberes de gênero, uma vez
que o aprendizado da cultura está implícito e sutilmente represen-
tado nas redes interativas entre os sujeitos, entre as quais os me-
mes se colocam como instrumentos de simbologias sociais. Através
desses artefatos midiáticos, a sala de aula se conecta ao cotidiano
social, aproximando alunos e alunas dos estereótipos circulantes,
para que sejam capazes de adquirir criticidade e possam descons-
truir noções de gênero estigmatizadas. Ao trazer a discussão de
gênero para o campo educacional é possível construir repertórios,
expandindo o entendimento dos conteúdos compartilhados, para

134
questionar a compreensão patriarcal através do riso. Sabemos que
esses entendimentos distorcidos não dignificam a condição femi-
nina comprometendo as relações de gênero no contexto escolar,
assim como nos demais campos sociais nos quais os sujeitos inte-
ragem.
Deste modo, a instituição escolar que, nas palavras de Louro
(2014), é uma esfera que fomenta a divisão pautada nas questões
de gênero, precisa desarticular ações que validam a superioridade
masculina e colocam o feminino como conceito subalterno. Esta
conjuntura requisita uma expertise docente que capture e ressig-
nifique os estigmas sociais para novas condições de compreensão
das desigualdades que afetam o feminino no imaginário coletivo.
Nesse sentido, a leitura dos memes em sala de aula, com crianças e
adolescentes, dá um passo nessa direção acenando com a promo-
ção da igualdade de direitos para homens e mulheres na discussão
das assimetrias de gênero.

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Artmed, 1998.

136
A MEMÓRIA AO SABER, DO SABER A LIDERANÇA:
RESSIGNIFICANDO SER MULHER NEGRA E QUILOMBOLA

Jessika Cristina Silva Santos 1


Patrícia Cristina de Aragão2

INTRODUÇÃO

Adentrar no universo da mulher negra quilombola requer um


agrupamento de categorias que permeiam o itinerário de vida delas
enquanto sujeitos políticos e sociais. Concepções tais como: raça,
etnicidade, gênero, memória, pertença e classe social articulam-se
quando se reflete sobre a trajetória histórica delas e esses não po-
dem ser dissociados, pois, marcam de forma singular a construção
de suas identidades.
Este artigo é oriundo das reflexões teóricas acerca da temá-
tica de mulheres negras e quilombolas, objeto de estudo da pes-
quisa do mestrado em Serviço Social da Universidade Estadual
da Paraíba. o objetivo proposto por este estudo é compreender
a construção da identidade da mulher negra quilombola e como
os marcadores sociais de raça, gênero e classe social assim como
a conjuntura política, social e ideológica a qual são submetidas in-
fluencia nesse processo de construção.
A sociedade brasileira carrega em suas estruturas raízes fun-
dadas em bases racistas e sexistas, em que o movimento de mu-
lheres negras, o movimento negro e o movimento quilombola tra-
vam lutas cotidianas no enfrentamento as violações de direitos, a
invisibilidade e a discriminações sofridas por estas populações e
como individuo interseccionada por todos esses movimento a mu-
lher, negra e quilombola requer uma análise que consideres todas
essas nuances de sua vida, por tanto nosso trabalho se ancora em

1
Mestre em Serviço Social, Questão Social e Direitos Sociais pela Universidade Estadual da Paraí-
ba-UEPB. E-mail: jessika.cristin@aluno.uepb.edu.br
2
Doutora em Educação professora da Universidade Estadual da Paraíba-UEPB.
E-mail: patriciaaragao@servidor.uepb.edu.br
um estudo de bases teóricas e metodológicas reflexivas que utili-
zam a categoria da interseccionalidade para compreender a reali-
dade estudada.

MULHERES NEGRAS: TRANSITANDO ENTRE TRAJETÓRIAS


DE VIDA E A SUA CONSTRUÇÃO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

Os múltiplos entrelaçamentos que rodeiam a mulher negra in-


cidem sobre as práticas sociais que elas vivenciam, o racismo e o
sexismo presentes no plano de dominação da sociedade brasileira
delineiam o local que essa mulher deve estar posicionada, delegan-
do a ela lugares de inferioridade e opressão em que suas necessida-
des são suprimidas em virtude do modelo vigente.
No entanto, é esse viés das negações sociais que tem predomi-
nado nas discussões em torno da mulher negra, é perceptível na mí-
dia e nas pesquisas de classificação que a mulher negra se encontra
no topo das desigualdades sociais no tocante a renda, desemprego,
nível de escolaridade, violência e vários outros indicadores que ain-
da se intensificaram em dois anos de pandemia em que os níveis se
tornaram ainda mais baixo
Segundo os ensinamentos de Gonzales (2020), a mulher ne-
gra na sociedade brasileira é vista enquanto qualificação profissio-
nal, ora como a doméstica totalmente submissa aos caprichos dos
patrões, ora como a mulata que se tornou uma profissão altamente
alienável para jovens negras em nossa conjuntura econômica e so-
cial. Estas que expõem seus corpos para estrangeiros e homens da
burguesia nacional, com a dolorosa ilusão de ascensão social, são
utilizadas como objetos sexuais e reafirmam um antigo ditado po-
pular extremamente racista e sexista: “Preta para cozinhar, mulata
para fornicar e branca para casar”. (GONZALES, 2020, p.59)
Esses lugares, resguardados naturalmente a mulher negra
constituem um ideário nacional que é interiorizado por toda popula-
ção brasileira. O processo de embranquecimento do país funcionou
de maneira tão eficiente que se apagou quase que completamente

138
o negro da sociedade, os guiando para tentativas de assemelhar-se
as características físicas e consequentemente intelectuais de seus
dominadores, partindo da negação e da criminalização do que é
próprio do povo negro. A construção da mulher negra feita a par-
tir da mulata e da doméstica, instrui modos perversos sobre a vida
dessas mulheres, o desvencilhar do ideário internalizado e naturali-
zado por uma vida inteira, abre feridas que somente a construção de
um novo paradigma sobre si próprias será capaz de curar.
Dentro disso o corpo feminino negro tem desempenhado pa-
pel fundamental, o reconhecimento e a desconstrução de concep-
ções negativas sobre o ser negro tem desencadeado o aumento
significativo de pessoas que se reconhecem enquanto população
de cor, indivíduos que passam a valorizar características antes es-
condidas como o cabelo. O processo de exaltação da natureza e da
beleza feminina negra tem se tornado elemento central no enga-
jamento político de mulheres negras na luta contra o racismo e o
sexismo em nosso país.
A estruturação desse novo paradigma parte desse modo da
negação da categoria dominante que historicamente é classificada
como a ideal, esse cenário construído sob a inferiorização e objetifi-
cação do corpo negro que o coloca como outro dentro da sociabi-
lidade branca e cristã nas quais o Brasil é estruturado. Esse outro é
a antítese do sujeito branco, ele é o antagonista que quer conquis-
tar tudo aquilo que pertence ao branco e por isso é passível se ser
explorado e humilhado. Esse projeto de objetificação aponta para
uma população que aceitou sem muitas resistências o silenciamen-
to sendo que é o processo de apagamento da população negra que
a coloca nessa estrutura de impossibilidades.
Nesse sentido, percebemos que as estruturas sociais de nosso
país deslegitimam as discussões e pautas feitas por pessoas negras,
restringindo o seu alcance muitas vezes até mesmo dentro da po-
pulação negra. O número ínfimo de mulheres negras em espaços de
poder como por exemplo, no âmbito acadêmico, nos diz que esse
espaço é centrado em perspectivas e nuances que as excluem e in-

139
visibiliza nesses locais. Não é à toa que quando uma mulher negra
fala sobre as desigualdades sociais vivenciadas por ela no Brasil em
um determinado círculo de discussões não recebe a devida credibi-
lidade, mas quando uma branca o faz os holofotes se voltam para
tal acontecimento.
Nesse descrédito vemos a construção da mulher negra como
a antítese de tudo, ela não se assemelha a homens negros e nem a
mulheres brancas, aglutinando (com base na supremacia masculina
branca) todas as características de raça e de gênero negativa de
nossa sociedade. “A mulher negra ocupa uma espécie de terceiro es-
paço onde seu apagamento consiste na polarização do mundo em
negros de um lado e mulheres do outro” (KILOMBA, 2008, p.98).
A necessidades e as singularidades da mulher negra só po-
dem ser abordadas de maneira adequada havendo uma intersec-
ção entre raça e gênero, a sobreposição ou exclusão de uma dessas
categorias faz com que as percepções sobre a sua opressão seja
capturada de maneira incompleta.
O ser mulher negra em uma sociedade marcada pelo racismo
e sexismo é opor-se a uma dupla opressão que determina o lugar
social, político, cultural e econômico destes sujeitos, as mulheres
negras atuam nessas duas frentes que unidas provocam múltiplas
desigualdades sociais em suas vidas. É nesse sentindo que o femi-
nismo negro propõe em suas pautas de lutas e em suas produções
científicas o entendimento das questões concernentes ao ser mu-
lher negra sob a perspectiva da interseccionalidade.
O termo interseccionalidade surgiu a partir dos debates e re-
flexões do feminismo negro estadunidense, cunhado pela jurista
Kimberlé Crenshaw, e inaugurado por ela em artigo publicado em
1989. A categoria interseccional proposta pela jurista seria uma fer-
ramenta teórico-metodológica para tratar as opressões de forma
entrecruzada, sem, no entanto, sobrepor uma opressão a outra,
levando em consideração que é o seu entrelaçamento que causa
as desigualdades combinadas (ASSIS, 2019).
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que

140
busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da intera-
ção entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especifica-
mente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão
de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p.177).
A partir desse momento a interseccionalidade passa a pro-
mover intervenções políticas e sociais, no enfrentamento aos sis-
temas de “racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem,
discriminam e criam encargos singulares às mulheres negra” (AKO-
TIRENE, 2019, p. 35).
Tal abordagem torna-se um elemento central para analisar
as nuances relativas à vida das mulheres negras e quilombolas na
particularidade do Brasil. Mulheres quilombolas são atravessadas
por ambos marcadores sociais, gênero e raça atravessam as singu-
laridades desses sujeitos, evocando uma perspectiva social e tam-
bém teórica que considere a sua realidade.
Nessa perspectiva o feminismo negro vem tornando-se um
pressuposto que tem fornecido bases teóricas para a explicação
e enfrentamento das múltiplas opressões vivenciadas pelas mu-
lheres quilombolas, o seu recorte étnico e racial reverbera por um
movimento social e político que considere as suas múltiplas diver-
sidades, nesse sentido, ao perceber as mulheres quilombolas en-
contraremos a extensa gama de categorias explicitadas do movi-
mento de mulheres negras.
O apagamento histórico dessas mulheres, a tomada de cons-
ciência através das discriminações vivenciadas pela cor da pele, a
luta por espaço dentro das comunidades, as diversas bandeiras de
luta levantadas por esse amplo público reafirmam que estas repre-
sentam mais uma frente de luta para o referido movimento.

141
REDE DE SABERES, MEMÓRIA E COMUNIDADE: MULHERES
QUILOMBOLAS E A CONSTRUÇÃO DE SUAS IDENTIDADES

Já pontuamos, que a mulher negra quilombola é marcada


por todos os estigmas e nuances presente no espectro da mulher
negra brasileira e que a sua inserção na sociedade e na própria
comunidade, assim também como a análise de seu contexto ma-
crossocial, de identidade e reconhecimento só podem ser realiza-
dos através das categorias teórico-metodológicas propostas pelo
então feminismo negro.
Nesse sentido é interessante observar a categorização feita
por Avtar Brah (2006), sobre a heterogeneidade da categoria mu-
lher, e ouso dizer que mesmo dentro do grupo de mulheres negras
essa diversidade está presente, visto que partido do pressuposto
de organização e bandeiras de luta, mulheres negras no geral e
mulheres negras quilombolas tem objetividades diferentes, sem,
no entanto, serem desvinculadas.

Nosso gênero é constituído e representado de maneira dife-


rente segundo nossa localização dentro de relações globais
de poder. Nossa inserção nessas relações globais de poder
se realiza através de uma miríade de processos econômi-
cos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de re-
lações sociais não existimos simplesmente como mulheres,
mas como categorias diferenciadas, tais como “mulheres da
classe trabalhadora”, “mulheres camponesas” ou “mulheres
imigrantes” (BRAH, 2006, 341).

Assim, podemos empreender que a localização em que a


mulher quilombola se insere, corresponde a forma como ela se or-
ganiza em torno de suas demandas e em como a sua identidade
social, política e cultural é compreendida. E são exatamente essas
relações de poder que determinam a vida desses sujeitos, que são

142
alvo das lutas e resistências dos movimentos3 que clamam por mu-
danças sociais.
É apoiada nessas significações, enquanto uma pesquisa que
busca adentar nos universos desses sujeitos políticos e sociais que
são as mulheres quilombolas, buscando a compreensão de suas
identidades que lançamos mão das definições do que é identidade
e de como está se constrói dentro de grupos subalternizados.
É imprescindível para o alargamento das discussões aqui pro-
postas entendermos os elementos fundantes das identidades dos
múltiplos e diversos grupos de mulheres negras e quilombolas, es-
tas que com o desenvolvimento dos movimentos sociais e das lutas
contra o sistema de dominação vigente, tem conseguido ampliar o
alcance de suas demandas, assim como tem ganhado espaço em
setores antes negados.
Diante disso, sintetizamos que a construção da identidade de
um grupo perpassa as memórias de sua vida e a conjuntura de seu
presente, essa identidade não é algo fixo e imutável, se delineia a
partir das vivências do indivíduo ou do grupo e pode se modificar
ao longo dos anos. A identidade para Stuart Hall (2008), não é algo
unificado e uniforme, ela é um universo fragmentado construído
a partir de contextos, práticas e discursos que podem ser tanto
semelhantes como antagônicos. A identidade utiliza a história, a
cultura e a linguagem para produzir aquilo que iremos nos tornar.
É nesse sentido que as relações étnico-raciais se formam
mediante as representações que são construídas ao longo da nossa
história, e essas representações ganham sentidos e significados
que delineiam o posicionamento de determinado grupo em uma
sociedade. As representações são assim definidas como HALL,
1997, p.61 apud FERNANDES e SOUZA, 2016, p. 104:

A representação é o processo pelo qual membros de uma


cultura usam a linguagem para instituir significados. Essa
definição carrega uma premissa: as coisas, os objetos, os
3
Movimento quilombola, de mulheres negras, de pessoas negras, feministas, indígenas e dentre
muitos outros

143
eventos do mundo não têm, neles mesmos, qualquer sen-
tido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em sociedade, en-
tre culturas humanas, que atribuímos sentidos às coisas. Os
sentidos, consequentemente, sempre mudarão de uma cul-
tura para outra e de uma época para outra (FERNANDES E
SOUZA, 2016, p. 104).

As representações sociais procuram expressar os modos como


determinados grupos experimentam realidades sociais diferentes,
sendo construídos a partir de logicas que conferem status de supe-
rioridade a um grupo e de inferioridade a outro, determinando as
relações de poder existentes na interação entre estes.
Essa construção é feita a parir da lógica eurocêntrica domi-
nante sendo o corpo o marcador principal desse feito, em que são
atribuídas concepções “de “normalidade” e “anormalidade”, esta-
belecendo como norma padrão o homem, branco, heterossexual,
cristão. Os indivíduos que não correspondem a esse padrão são
vistos como desviantes, abjetos, e excluídos socialmente” (FER-
NANDES e SOUZA, 2016, p.104).
Esses marcadores que determinam os lugares sociais dos su-
jeitos compõem a sua identidade, essa para Stuart Hall como apon-
tado mais acima é algo em permanente construção e que pode ser
modificada mediante a realidade, os interesses e as práticas que
esses indivíduos vivenciam. A identidade é um uma construção
realizada no centro dos discursos dos grupos não é algo atribuído
a eles, mas sim um espaço constituído dentro deles, mediante a
sua relação com outros grupos e com a percepção das diferenças
inerentes a ambos. E por isso esse constructo só pode ser estabe-
lecido a partir da percepção de que “as identidades são construí-
das por meio das diferenças e não fora delas” (HALL. 2008, p. 110).
Nesse sentido, as identidades são construídas a partir das re-
lações sociais existentes em sociedade, são estruturas construídas
historicamente a partir de múltiplas vertentes e que a depender do
local em que se desenvolve irá instaurar discursos e práticas que

144
iram determinar a vida dos sujeitos.

É, então, no âmbito da cultura e da história que se definem as


identidades sociais (todas elas e não apenas as identidades
sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça,
de nacionalidade, de classe etc). Essas múltiplas e distintas
identidades constituem os sujeitos, na medida em que esses
são interpelados a partir de diferentes situações, instituições
ou agrupamentos sociais. Essas múltiplas identidades
sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes e,
depois, nos parecerem descartáveis; elas podem ser, então,
rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos de identidades
transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais
e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter
fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teó-
ricos e teóricas culturais (LOURO, 2000, p. 9).

Louro (2000), ao trazer definições sobre a construção da


identidade sexual e de gênero, nos faz refletir sobre como a identi-
dade racial ou de classe também se modificam a partir do contexto
em que são inseridas, elas são múltiplas e fragmentas, adequando-
-se a realidades ou necessidades especificas dos sujeitos. Portanto
a identidade como forma de estratégia em grupos historicamente
oprimidos como o de mulheres negras quilombolas se transfigura
para atender e combater ataques externos dos grupos socialmente
dominantes. “A identidade e o racismo não são fenômenos estáti-
cos eles se renovam, se reestruturam e mudam de fisionomia de
acordo com a evolução das sociedades, das conjunturas históricas
e dos interesses dos grupos” (MUNANGA, 2006, p.17).
Podemos identificar que os grupos socialmente oprimidos
como o de mulheres negras e quilombolas precisam estar em cons-
tante construção de sua identidade, se reformulando para respon-
der de forma ativa as novas expressões do racismo que também
se modificam com o desenvolver da sociedade. Assim o ser mulher

145
negra difere do passado e no presente, a sua identidade está con-
dicionada a sua relação com seu passado, a sua memória com suas
atividades presentes, com o meio social em que se insere, o seu
trabalho e o seu território.
Sobre o referido aspecto e alocando construções feitas a par-
tir da margem de pessoas que vivenciam a construção da identi-
dade quilombola, utilizamos o artigo de Edna Balbina dos Anjos
dos Santos (2019), quilombola que faz um percurso de reconstru-
ção identitária do Quilombo Baixa Grande. Santos (2019) enfatiza
a questão da memória ao reconstruir a identidade dos remanes-
centes, ela coloca que a memória traspassada através da oralidade
como técnica emancipatória é algo recente e advindo das conquis-
tas das comunidades e dos decretos que as regulamentam, o que
se tinha antes é uma memória que construía saberes baseados nas
opressões dos dominadores nos demostrando que o contexto em
que o sujeito está inserido é responsável em partes pelo desenvol-
vimento de certas identidades.

Antes não era importante falar sobre as experiências e for-


mas de organização destas e na comunidade de Baixa Gran-
de se dava igualmente, as histórias responsáveis por formar
os sujeitos da comunidade não se remetia aos seus ances-
trais na busca por construir uma identidade firmada nos va-
lores de um povo, inclusive por que a história do povo negro
e especificamente dos quilombos eram veladas e se alertava
para uma história de marginalidade. (SANTOS, 2019, p. 239).

A pesquisa de Santos se debruça sobre compreender a for-


mação histórica e luta da comunidade pelo reconhecimento, atra-
vés da oralidade dos mais velhos e da organização dos mais jovens.
Nessa perspectiva, acreditamos ser importante resgatar elementos
centrais que têm sido pontuados por pesquisadores da temática,
no propósito de apreendermos como tem se dado as demandas de
mulheres negras em comunidades quilombolas do Brasil e como

146
essa organização tem-se apresentando. Partindo disto, analisare-
mos as proposições de quatro dissertações de mestrado que tra-
tam de mulheres quilombolas, seu protagonismo, sua relação com
o território, seus saberes e as principais nuances que compõem
suas identidades.
Iniciamos nosso percurso de analise com a dissertação de
Leandra Ribeiro Fonseca (2020), o título de seu trabalho é “Mulhe-
res quilombolas: trajetórias de luta e identidades em construção4”
essa pesquisa resguarda traços de cotidiano, memória, vivências,
de trajetórias de vida de um conjunto de mulheres quilombolas
pertencentes a região de Pelotas no Rio Grande do Sul e como
essas mulheres marcadas por tantas desigualdades sociais, econô-
micas e políticas conseguiram organizar-se em torno da luta pelo
seu reconhecimento e sua representatividade.
A dissertação de Leandra enfatiza aspectos fundamentais e
também muito emocionantes da vida das mulheres quilombolas,
ela aborda as experiências de vida dessas mulheres, desde as difi-
culdades vivenciadas na infância, o período de adolescência, a di-
ficuldade para uma educação, as relações afetivas e fraternas, as
bases sociais e econômicas que estiveram por toda uma vida pre-
sentes nessas mulheres. Ela dialoga durante todo o texto com os
depoimentos das mulheres participantes da pesquisa, pois, assim
como estas ela também é uma mulher quilombola e traz na sua
pesquisa de dissertação a relevância de se compreender o ideário
da mulher quilombola, mas também o seu apagamento das estru-
turas sociais e políticas do Brasil.
Ao dialogar com diversas escritoras falando também do lu-
gar de sujeito subordinado, ressaltando o pouco destaque que a
mulher negra do âmbito rural e quilombola tem nos crescentes es-
tudos sobre o feminismo negro. “Atualmente está em destaque,
o tema da “mulher negra”, mas isso ainda atingiu muito pouco a

4
Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pelotas, sendo defendida no ano de 2020, e tendo como sujeitos da pesquisa mulheres das comuni-
dades Maçambique; Quilombo das Nascentes; Comunidade Coxilha Negra; Comunidade Rincão do
Couro e da Comunidade Santa Clara.

147
mulher negra rural quilombola.” (FONSECA, 2020, p.14). Podemos
verificar a partir do que problematiza Fonseca que:

Trazer pontos de vista de mulheres lideranças quilombolas


para dentro da universidade, por meio de uma pesquisa,
amplia as formas de acesso aos seus mundos, gerando tam-
bém reconhecimento a elas. [..] Um dos aspectos relevantes
da minha dissertação, é que ela foi produzida sobre mulhe-
res negras quilombolas por uma mulher negra quilombola, o
que pode contribuir para outras formas de produzir conhe-
cimento dentro da Antropologia, em que os integrantes de
grupos que foram historicamente marginalizados, sempre
foram tomados como objetos de estudo e não como produ-
tores de conhecimento. (FONSESCA, 2020, p. 15-17).

Os relatos postos na referida pesquisa nos põem a pensar so-


bre a forma que esses sujeitos são construídos, com uma vida tão
marcada por sofrimentos e dificuldades. As formas que estas resis-
tiram e se colocaram frente as demandas que lhe apresentavam,
tornando-se uma síntese de tudo que é proposto pelos movimen-
tos de emancipação social, apesar de sua pouco reconhecimento
dentro deles.
Sob a mesma perspectiva da visibilidade da trajetória de mu-
lheres negras quilombolas Geilza da Silva Santos (2018)5, também
elabora a sua dissertação no engendramento de gênero, raça,
identidade das mulheres da comunidade Senhor do Bom Fim, ela
faz um arraigado sobre o percurso metodológico de sua pesquisa
utilizando o seu contato com a comunidade. Trazendo em seu es-
tudo uma busca por compreender o papel da mulher quilombola
na construção da identidade das comunidades, visto que esse é
protagonista das lutas e organização dentro destes espaços.

5
MULHERES QUILOMBOLAS: TERRITÓRIO, GÊNERO E IDENTIDADE DA COMUNIDADE NEGRA
SENHOR DO BOM FIM, AREIA / PB (2005-2018), é uma dissertação de mestrado vinculado ao
Programa de Pós-graduação em História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Uni-
versidade Federal da Paraíba, que traz a trajetória de vida das mulheres da comunidade quilombola
Senhor do Bom fim, localizada na cidade Areia.

148
Santos (2018), faz uma caracterização das mulheres com as
quais ela propõe seu estudo, ressaltando a vida de dificuldades que
as três moradoras da comunidade negra de Senhor do Bomfim ti-
veram, trazendo uma pequena comparação sobre a instituição dos
negros nessas terras, ela demostra que os primeiros moradores
da região tinham uma mulher como sua matriarca apontado para
essa como monte central na organização da comunidade. “Uma
característica comum em comunidades quilombolas da Paraíba é
da mulher enquanto centro do grupo e que é umas das caracterís-
ticas de comunidades africanas” (SANTOS, 2018, p.89).
A mulher sobretudo negra é lida sob a imagem da subalter-
nidade, não vemos com facilidade estas em espaços de liderança,
no entanto quando se trata de comunidades quilombolas estas
mulheres são as principais constituintes das lideranças dos grupos
assim como apontado por Santos (2018), a frente das lutas e das
conquistas de comunidades sempre perpassam as mulheres do
grupo. Seria esse um ancestral de organização que era originário
dos grupos africanos ou uma resistência adquirida através da ár-
dua batalha do ser mulher quilombola? Seja como for, o fato é que
são essas quilombolas que tem ocupado um espaço diferencial em
suas trajetórias de vida.
A reconstituição das memorias das mulheres quilombolas,
elemento que é pontuada pela autora, é fundamental compreen-
der o trajeto de suas vidas e como a organização da sociedade está
arraigada em suas histórias, determinando o seu lugar no mundo.
Ela destaca a memória como central para construção da identida-
de, tanto as memórias dos mais velhos, quanto as dos mais novos
que tomam conta de sua ancestralidade através da oralidade tor-
na-se elementos fundadores de uma identidade pautada no reco-
nhecimento de sua vida passada e presente.
Partindo dos escritos de Santos (2018), pode-se observar a
preponderância das mulheres nas decisões dessas comunidades,
a busca pelo reconhecimento enquanto remanescentes, a luta pela
permanência no território visto a ameaça proeminente, a preserva-

149
ção da memória e de sua cultura são locais em que a mulher apesar
do sistema patriarcal e discriminatório que vivencia conseguiu se
sobressair. Um elemento central dos protagonismos das mulheres
quilombolas e também que é pauta de luta pelas próprias comuni-
dades é a luta pelo território, portanto o nosso próximo recorte se
dará sobre uma dissertação que traz a liderança dessas mulheres
principalmente no âmbito da sua organização quanto a conquista
do seu espaço territorial.
Em sua dissertação Alcione Ferreira da Silva (2017)6, debru-
çou sua pesquisa e estudo em torno das lideranças femininas da
comunidade Negra Nossa Senhora Aparecida ou comunidade qui-
lombola do Grilo-PB. No referido estudo a autora coloca em dis-
cussão a liderança das mulheres da referida comunidade na defesa
pela titulação das terras por eles ocupados, ainda ressaltando ele-
mentos da cultura e da ancestralidade desse povo.
Na comunidade do Grilo atualmente a liderança é feminina,
mas vale ressaltar que, durante todo seu percurso histórico as mu-
lheres também comandaram a organização e luta no entorno da
comunidade. A autora destaca a importância da ancestralidade
dentro desse protagonismo e como os saberes passados entre as
gerações foram fundamentais para constituir o modo de existência
das mulheres da comunidade. (SILVA, 2017).

Ao viver e narrar as experiências, as mulheres transmitem


umas às outras seus conhecimentos e seus modos de ser.
Na comunidade do Grilo quando se fala em características e
ações das mulheres, nos processos de conquistas comunitá-
rias, foi unanime apontá-las como proativas, participativas e
destemidas. (SILVA, 2017, p. 90).

6
NAS TRILHAS DA ANCESTRALIDADE E NA FORÇA DA COR: PROTAGONISMO SOCIALDE MU-
LHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GRILO-PB NA LUTA PELO DIREITO SOCIAL A
TERRA, é vinculado ao programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da
Paraíba, defendida em 2017 traz um apanhado histórico sobre a vida e a liderança das mulheres da
comunidade do Grilo- PB.

150
O conhecimento transmitido através das gerações pela ora-
lidade, evidenciam uma liderança feminina que não é própria da
sociedade patriarcal/sexista que vivenciamos. Esse é um modo de
existência advinda dos saberes e das heranças africanas, a resis-
tência do povo do Grilo, afirma a autora baseado nas falas das pro-
tagonistas tem sua base no legado de seus ancestrais quilombolas,
na memória das mulheres negras que vieram antes dessas e serão
passadas a que viram após elas.
Em sua dissertação Alcione ressignifica os elementos da an-
cestralidade, presentes no Grilo, pontuando o lugar da liderança
feminina principalmente no tocante a luta pelo território e os as-
pectos culturais, econômicos e políticos que transpassam justa-
mente com os entrelaçamentos de gênero e raça a vida, identidade
e trajetória de mulheres negras das comunidades quilombolas e
em particular a comunidade do Grilo.
Ainda a respeito destas questões o trabalho de Priscila da
Cunha Bastos7, diferente das demais, aborda a perspectiva das jo-
vens quilombolas e os desafios entre ficar e sair da comunidade em
busca de melhores condições de vida, que em nossa compreen-
são também se faz em um elemento pertinente na construção da
identidade tanto do grupo quilombola como das mulheres de seu
entorno. A autora diz que o ser “jovens negra quilombola” se insere
em um contexto de difícil transição, é um processo pelo qual estão
se formando e experimentando um processo de mudança em di-
versos segmentos de suas vidas.
No estudo a autora busca estruturar o percalço da trajetó-
ria de vida das jovens da comunidade quilombola de São José da
Serra, trazendo também as nuances das dificuldades existentes
no âmbito rural vivenciado por esta comunidade. Entrelaçando a
construção de suas trajetórias e a relação entre o quilombo, a ci-
dade e o ser feminino. A abordagem das questões de gênero, raça,

7
Entre o quilombo e a cidade: trajetórias de individuação de jovens mulheres negras, é um trabalho
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, ten-
do como sujeitos pesquisado mulheres da comunidade quilombola São José da Serra, localizado no
interior do Rio de Janeiro.

151
pertença, idade aparecem como meios que viabilizam a construção
de uma determinada identidade para essas jovens, ela compreen-
de a identidade como um processo histórico em que todas essas
relações sociais em confluência criam o indivíduo em determinado
contexto social.

As jovens mulheres negras e pobres pesquisadas originárias


de uma área rural experimentam os processos de tornarem-
-se negras e mulheres num campo de possibilidades no qual
estão em jogo tradições e heranças, possibilidades e limites
para configurarem seus projetos, suas escolhas e suas traje-
tórias. (BASTOS, 2007, p. 45).

Desse modo, baseado no enredo do torna-se mulher negra


são essas condições objetivas e subjetivas que guiam as trajetórias
de vida desses jovens quilombolas. As suas escolhas podem leva-
-las a caminhos que determinaram suas vidas e suas identidades,
o permanecer na comunidade apontam para uma preservação de
sua ancestralidade, mas também para uma vida de desafios no
enfrentamento dos problemas específicos da comunidade, mas ir
embora o que talvez também desponte como uma possível solu-
ção possui seus espinhos.
O intuito de trazer estudos junto a temática de mulheres
quilombolas nessa pesquisa, além de ser fundamental para com-
preendermos como estão sendo construídas as identidades des-
ses sujeitos e quais elementos são primordiais para que seja feita
esse aprofundamento é também perceber que tem se alargado as
produções por essa temática, visibilizando as demandas e também
as vozes e a resistências dessas fortes mulheres.

152
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração os aspectos analisados diante todo


o percurso teórico desde estudo, apreendemos que a construção
da identidade da mulher negra quilombola se espraia pelos cons-
tructos sociais, raciais e sexuais que estruturam as relações de ba-
ses desiguais da sociedade brasileira. O ideário de inferiorização
ainda é presente limitando o desenvolver das mulheres quilombo-
las, no entanto, estas têm se articulado cada vez mais em prol de
seu desenvolvimento e na busca por condições dignas de sobrevi-
vência.
Destarte, sinalizamos que a memória e as representações so-
ciais tem se tornado um elemento fundamental na construção des-
tas identidades, elemento esse que não é estático e nem imutável
está sempre em construção mediante o contexto histórico, social
e político que os sujeitos vivenciam, pois, estes buscam moldar os
elementos de seu passado com seu futuro na busca sempre pela
sobrevivência.

REFERÊNCIAS

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Dissertação (programa de Pós-Graduação em Serviço Social) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2017.

154
DE COMUNIDADE RURAL À COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: A TRAJETÓRIA DO PROCESSO DE
RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO E TERRITORIAL DA
COMUNIDADE SANTA ROSA, BOA VISTA/PB1

Alyne Cristiane Silva Araújo2


Cristiane Maria Nepomuceno3

INTRODUÇÃO

As comunidades remanescentes quilombola estão presentes


em todas as regiões do Brasil. Surgidos no período colonial em res-
posta a escravização de africanos/as sequestrados/as de sua terra,
os quilombos tornaram-se expressão da luta e resistência negra.
As comunidades atuais e seus/suas moradores/as, além de des-
cendentes são também herdeiros/as de um valioso legado, guar-
diões/ãs de uma diversidade étnica de vasta riqueza cultural e na
relação territorial específica com presunção da ancestralidade ne-
gra, que se relaciona com opressão e resistência sofrida e marcada
historicamente.
Os conceitos sobre quilombolas ou remanescentes de qui-
lombolas se apresentam em resposta para soluções dos proble-
mas estruturais, históricos, culturais e jurídicos dessas populações,
o mesmo articulam-se aos conceitos de patrimônio cultural e de
bens materiais e imateriais. Base para elaboração dos laudos de
reconhecimento das comunidades de quilombo, o que os relaciona
diretamente a produção de identidade e territorialidade, situando
ainda às questões fundiárias, políticas, educacionais e saúde.
Nesse sentido, torna-se necessário discutir se as políticas pú-

1
Este artigo é um fragmento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao curso de
Licenciatura em Sociologia/Departamento de Ciências Sociais-UEPB, inserido na área de concentra-
ção: Diversidade e Inclusão Social. O TCC defendido em julho de 2022, foi orientado pela Profa. Dra.
Cristiane Maria Nepomuceno – DCS/NEABI/UEPB.
2
Graduada em Sociologia – Licenciatura (2022) pela Universidade Estadual da Paraíba, Campus I –
Campina Grande-PB. E-mail: alycristiane@gmail.com.
3
Universidade Estadual da Paraíba, Campus I – Campina Grande-PB. Doutora em Ciências Sociais,
docente do Departamento de Ciências Sociais. E-mail: crisnepomuceno2016@gmail.com.
blicas realmente estão sendo pensadas levando em consideração
as demandas especificas da população negra, seja no processo de
ressignigicação das suas identidades, seja promovendo melhores
oportunidades de uso das suas terras, ocupação/emprego, me-
lhoria na renda/salários, saúde de qualidade, participação política,
acesso a atividades culturais e melhor qualidade de vida.
Este artigo traz algumas reflexões acerca do processo de re-
conhecimento do território e da identidade quilombola, tomando
como recorte a trajetória de construção dessa pertença ocorrida
com a Comunidade Quilombola de Santa Rosa, localizada no mu-
nicípio de Boa Vista, no Cariri paraibano. A ideia era conhecer o
alcance prático das leis e políticas públicas antes/após o processo
de reconhecimento. Para dar sustentação ao trabalho foi realizada
uma pesquisa bibliográfica e documental com o objetivo de buscar
as fontes para construção dos conceitos e categorias relativas à
compreensão do objeto da pesquisa. Com destaque para as con-
tribuições de pesquisadoras/pesquisadores da temática: Ilka Boa-
ventura Leite (2000), Paul E. Little (2002), Diego Nunes e Vanilda
Santos (2021), Cardoso (2002). Além do Estudo do Componente
Quilombola (ECQ) e Projeto Básico Ambiental Quilombola (PBA-
-Q) de responsabilidade da empresa NEOENERGIA e executado
pela BIODINÂMICA dentro da comunidade no ano 2019, e en-
trevista feita por Chico Abelha disponibilizada pelo seu canal no
Youtube, com o tema “Os Quilombos de Santa Rosa – PB”. Todas
essas fontes, serviram como base para a coleta de dados tendo em
vista que a Pandamia do Covid 19 inviabilzou o contato direto com
a Comunidade Quilombola.
A pesquisa caracteriza-se como Estudo de Caso à medida que
trata-se de um estudo minucioso, intensivo e sistemático sobre
uma comunidade quilombola situada na zona rural daParaíba, com
o objetivo de verificar como aconteceu o seu processo de reco-
nhecimento. A planificação da pesquisa inclui, em primeiro lugar, o
estudo das fontes literárias o levantamentodos dados secundários,
a fim de explorar o objeto de estudo. O material selecionado/cole-

156
tado foi estudado de maneira minuciosa, com o intuito de recolher
todas as informações necessárias para compreender a história da
comunidade estudada.

DESENVOLVIMENTO

A existência das comunidades quilombolas remete ao perío-


do colonial e escravocrata no Brasil, todavia as lacunas em relação
a estas comunidades são muitas, tanto no que diz respeito a sua
história quanto a dados relativos as condições de vida desse co-
letivo4. Este conhecimento da história da resistência quilombola,
ancorado em dados atualizados, é fundamental para adoção das
políticas de reparação. Desse modo, é importante ressaltar que
sem dados não há como traçar perfis e diagnosticar os problemas
enfrentados nas comunidades quilombolas, tampouco saber onde
se concentram a maior parte delas, impossibilitando a implemen-
tação e ação de políticas públicas que garantam os direitos funda-
mentais para toda a população.
Ao longo da história os quilombos sofreram modificações,
alvos de processos de exclusão, invisibilidade, tensões e disputas
que ameaçaram apagar suas histórias, tanto no nível das práticas
sociais quanto no simbólico, estes grupos sobreviveram graças às
estratégias de sobrevivência desenvolvidas que garantiram, a par-
tir da relação com a terra, a sua manutenção. Considerando as for-
mas como até então estas comunidades eram tratadas, se explica a
necessidade da atualização do termo quilombo no espaço jurídico,
fundamental na busca de eliminar leis criadas com o único objetivo
de promover o apagamento desses grupos. A palavra quilombola
é de origem africana, a saber: “Kilombo” - da língua Quimbundo e
“ochilombo” – da língua Umbundo, ambas palavras faladas por po-
vos da família Bantu. E o seu sentido original era: lugar de pouso,

4
IBGE - Notas técnicas - Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os indígenas e qui-
lombolas para enfrentamento à Covid-19 (atualizado em 20/05/2020). Disponível em: https://
www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/27480-base-de-
informacoes-sobre-os-povos-indigenas-e-quilombolas.

157
acampamento, cabana; aqui no Brasil a palavra ganha outro sig-
nificado: comunidades formadas de pessoas escravizadas fugidas,
lugar de enfrentamento, resistência e luta.5
A aprovação do Artigo 216, Constituição Federal de 1988, in-
ciso V, § 5º, foi fundamental para recuperação e ressignificação da
memória quilombola ao estabelecer que: “ficam tombados todos
os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas
dos antigos quilombos,” como forma de garantir aos reminiscentes
dos negros que aqui foram escravizados, sua existência no tempo
presente. Com reforço do expresso no Artigo 68, do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo a condição
básica do direito legal de sua própria terra, através da emissão de
títulos em seu nome.6
Entretanto, é importante ressaltar que esta conquista resulta
das mobilizações de intelectuais e dos movimentos sociais da dé-
cada de 70, a partir dos debates da constituinte para proposituras
à CF/88, que o conceito quilombo passa por um processo de re-
construção repercutindo o que é ser negro no Brasil. Na busca por
redimensionar a concepção jurídica sob o termo quilombo e/ou
quilombolas só veio a acontecer após 100 anos depois da abolição
do sistema escravista, permitindo e ampliando concepções iden-
titárias, viabilizando que os/as negros/as fossem (re)conhecendo
sua história, sem a visão cristalizada do eurocentrismo, aí inclusa
a identidade de remanescente quilombola, aceita e unida a cons-
ciência racial.
Consideramos, por fim, o conceito de “remanescente de qui-
lombo” elaborado pelo grupo de pesquisa sobre Comunidades Ne-
gras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (1994).

5
Nos últimos anos foram publicados vários dicionários de termos afro, dentre estes cito: Dicionário
Escolar Afro- Brasileiro, escrito por Nei Lopes (Selo Negro, 2015); Dicionário da Escravidão e Liber-
dade – 50 textos críticos, organizado por Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes (Companhia das Letras,
2018) e inúmeras versões digitais.
6
O processo que garante a titularidade do território quilombola está disposto nos Artigos 215 e
216 da CF de 1988 e no Artigo 68 (ADCT) que tratam desses direitos à luz da Instrução Normativa
nº 57/2009, que tem como objetivo estabelecer procedimentos do processo administrativo para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras
ocupadas pelosremanescentes de comunidades dos quilombos de responsabilidade do Incra, após
a emissão daCertidão de Autodefinição pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

158
Na busca por sanar as questões conceituais sobre a ideia estática
dos remanescentes, como grupos isolados e homogêneos, o refe-
rido grupo de pesquisa afirma ser um termo utilizado.

(...) para designar um legado, uma herança cultural e material


que lhes confereuma referência presencial no sentimento de
ser e pertencer a um lugar e a umgrupo específico. Contem-
poraneamente. Portanto o termo não se refere a resíduos
ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de
comprovação biológica. Também não se trata de grupos iso-
lados ou de uma população estritamente homogênea. Da
mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de
movimentos insurrecionais ou rebelados, mas sobretudo,
consistem em grupos que desenvolveram práticas de resis-
tência na manutenção e reprodução de seus modos de vida
característicos num determinado lugar. (ABA, 1994, p. 1- 2).

Dessa forma são essas características distintas dos demais


grupos que podemos caracterizar como diferencial dos remanes-
centes de quilombolas, especialmente suas práticas de resistência7
como forma de manutenção da vida e do vínculo com seu território.
Assim, nas últimas décadas tornou-se preponderante a ne-
cessidade de trazer o quilombo ao debate social e jurídico, como
forma de reivindicar o que na época resultou no reconhecimento
da dívida da nação brasileira para com os povos afro-brasileiros
que aqui foram escravizados, garantindo após a finalização da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239/DF, a conquista do
seu território através da auto atribuição. Este fato retirando-o des-
se sentido estático que está prestes a desaparecer, mais perten-
cente a um processo histórico, o que para Leite (2000, p. 342), evi-
denciou “seu aspecto contemporâneo, organizacional, relacional e

7
É importante ressaltar que as relações de enfrentamento entre escravizadores/as e escravizados/
as também aconteciam sem o aspecto coercitivo. Muitas vezes concessões por parte dos senhores
podiam acontecer apenas para evitar rebeliões dos/as escravizados/as em razão do medo, cediam
de forma consensual, possibilitando assim aos escravizados/as a manutenção de suas tradições,
crenças e cultura.

159
dinâmico, bem como a variabilidade das experiências capazes de
serem amplamente abarcadas pela ressemantização do quilombo
na atualidade.”
Essa forma coletiva de vida e do uso da terra historicamente
construído pelos quilombolas faz com que esse espaço, seja a pro-
va da garantia a terra e a sua “pátria”. Passando também pelas for-
mas particulares que cada grupo significou seu território, como nos
dizer de Paul E. Litlle (2002): “terras de preto”, “terras de santo” ou
de “populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas”.
Desse modo, as formas coletivas de organização, através dos
saberes ambientais e ideologias historicamente transmitidas, cons-
truíram suas identidades, nas quais expressam a manutenção com
o passado e modo de preservar a união do grupo pelas novas ge-
rações dentro deste território. Assim, a terra quilombola, ao se con-
verter em território, assume múltiplas expressões socioculturais,
seja em decorrência do vínculo afetivo com o território, a historici-
dade e o uso e defesa do mesmo. O território do quilombo passou
a ser um refúgio e o lugar de pertença a um grupo, sentir-se acolhi-
do, ser livre para exercer sua cultura e ter um lugar para chamar de
seu.é parte inseparável da identidade, sendo construído dentro da
memória coletiva, tornando-se fundamental no estabelecimento de
forças para mobilização, por estar presente na história ancestral re-
passada dentro do seio familiar, e na preservação do seu território.
Garantir esses direitos presentes na CF 88, passa por uma
verdadeira via crucies já que a escravização da população negra
no Brasil durou cerca de 350 anos impulsionado por uma diáspora
forçada que para cá trouxe milhões de pessoas, uma gigantesca
massa populacional. Ainda hoje os Movimentos Sociais resistem,
burlando um sistema que não mudou mais se reconfigurou tor-
nando tão perverso e tirano quanto no passado. É interessante
ressaltar que somente 15 anos depois da CF/88 surgiram políticas
públicas capazes de evoluir na consolidação desse direito.8 A prin-

8
O Decreto Presidencial nº 4.887/2003, regulador do artigo 68 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias (ADCT), que concedeu o direito de propriedade coletiva “aos remanescentes das
Comunidades dos Quilombos”, fez com que, a autodefinição quilombola se tornasse uma expressão

160
cípio o efeito dessas leis foram inviabilizados por falta de decretos
aplicativos que as colocassem em prática, outros motivos foram
os impedimentos e oposições colocadas por várias forças políticas
que unidos aos interesses dos grandes latifundiários, grileiros, mi-
neradoras, entre outros, dificultando a garantia na aplicação das
políticas públicas dentro destas comunidades.
Em 2004, a partir do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
consolidou-se as políticas de auxílio governamental com o Progra-
ma Brasil Quilombola (PBQ), criado com a finalidade de coordenar
as ações governamentais, que incluem articulações transversais,
setoriais e interinstitucionais voltadas para os remanescentes de
quilombos, garantindo acesso a recursos mínimos de infraestru-
tura na educação (Bolsa Família), acesso à terra, inclusão produtiva
entreoutros, assegurando a subsistência dessas comunidades.
Hoje, segundo a Fundação Palmares9, a Paraíba possui um
total de 44 (quarenta e quatro) CRQs certificada, dessas 29 (vinte
e nove) tem seu número de processo no Incra, entre elas 5 (cinco)
Comunidades com RTID, 4 (quatro) estão com Decreto no DOU e
apenas 2 (duas) com Portaria no DOU, as 15 (quinze) demais possui
apenas o certificado.
Em dados experimentais divulgados, no ano de 2020, pelo
IBGE10 estima-se que haja na Paraíba um total de 19.117 indivíduos
residentes em áreas quilombolas. Sabe-se que a falta de dados
sempre foi uma forma de invisibilizar essas populações, mais com a
contribuições de ONGs em conjunto com a FCP na Paraíba, pouco
a pouco esses grupos vem saindo do mapa da invisibilidade.
A Comunidade Remanescente Quilombola Santa Rosa, ob-

aplicada a realidade concreta, esbarrando-se em transformação de direitos, visando “a garantia da


reprodução física, social, econômica e cultural” das comunidades. O Decreto, assim, serviu de base
para outros diplomas legais que instituem políticas para as comunidades quilombolas.
9
Disponível em: https://www.palmares.gov.br/sites/mapa/crqs-estados/crqs-pb-30062022.pdf.
Acesso: 18 julho2022.
10
IBGE Estatísticas Experimentais. Dimensionamento emergencial de população residente em áreas
indígenas e quilombolas para ações de enfrentamento à pandemia provocada pelo coronavírus.
Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/investigacoes-experimentais/estatisticas-expe-
rimentais/31876- dimensionamento-emergencial-de-populacao-residente-em-areas-indigenas-e-
-quilombolas-para-acoes-de- enfrentamento-a-pandemia-provocada-pelo-coronavirus. Acesso em:
11 abr. 2022.

161
jeto desse estudo, localiza-se na zona rural a 5 km de Boa Vista,
no Agreste paraibano, atualmente ocupando uma área de aproxi-
madamente 149 hectares e perímetro de 8,15 km. De acordo com
dados retirados no Estudo do Componente Quilombola (ECQ,
2019)11 na Comunidade Santa Rosa vivem 40 famílias, o acesso a
comunidade se dá por meio de estradas vicinais, não pavimenta-
das, à partir do município de Boa Vista, distancia em torno de 5,35
quilômetros da sede do município.
De acordo com as fontes utilizadas, e na entrevista gravada
com Edilene Monteiro Fernandes liderança da comunidade, re-
centemente concedida ao youtuber Chico Abelha, para seu canal
no Youtube Cultura e Personalidades do Sertão Nordestino12, ire-
mos apresentar a história da Comunidade em estudo, a CRQ Santa
Rosa foi uma das 44 (quarenta e quatro) certificada pela Fundação
Cultural Palmares (FCP) em 2018 – emissão do certificado em de-
zembro de 2018 – sendo o processo partido do critério de auto-
definição atestada pela própria comunidade, que ainda hoje não
conseguiu a demarcação do seu território pelo INCRA. Através de
um trabalho coletivo feito pelos próprios moradores do quilombo
em resgatar a história de sua descendência através dos mais velhos
do grupo, a Comunidade Quilombola de Santa Rosa com mais de
320 anos de existência conseguiu a certificação da FCP reconheci-
da em 2018, após a comprovação da sua descendência de escravi-
zados/as e a autodefinição.
Como no dizer de Leite (2010): é através da dimensão sim-
bólica que os negros se organizam de forma coletiva para com-
partilhar histórias e trajetórias comuns, definindo suas identidades
como grupos, consolidando sua existência do mesmo modo que
impõem seu reconhecimento ao passo que dialoga com as insti-
tuições. Mas, só a autodefinição, como critério primordial para a
certificação, não é suficiente, só após longo processo de recons-

Dados com acesso restrito em: : https://we.tl/t-lrlT1q6njO Acesso em: 25 julho 2022.
11

12
ABELHA, Chico. Youtube. OS QUILOMBOLAS DE SANTA ROSA – PB. Publicado em 16 abril 2022,
com duração de 47:34. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H6GfltDHvwc&list=PLWug-
CyhRXOvIEDyGbCNcgqOEZDLZz0js8&inde x=12&t=1823s Acesso em: 19 abril 2022.

162
trução histórica e reconhecimento de sua identidade quilombola.
Para isso a afirmação da sua condição de quilombola precisa ser
comprovada, segundo Edilene Monteiro (2022):

(...) e de lá a gente pra luta da certificação, para porque não


é só dizer que équilombola e você receber uma certificação.
É através do relato dos mais velhos. Então nesse tempo em
2017, em abril 2017 eu peguei o relato de Barramina que era
Antônio Belo, conhecido como Barramina, a onde no mês
de setembro de 2017 ele morreu com 99 anos né, peguei
o relato de Josefa Esteves de Mello que é Dona Zefa e Zé
Preto né seu Zé preto que morreu agora o ano passado, aí
eu creio que no mês de junho com 99 anos. (Entrevista de
Edilene Monteiro Fernandes – cf. In: https://www.
youtube.com/watch?v=H6GfltDHvwc&list=PLWugCyhRXO-
vIEDyGbCNcgqOEZDLZz0js8&index=12&t=1823s).

De acordo com o material pesquisado, o início da história co-


meça com a fundação da Fazenda de Santa Rosa, datada da se-
gunda metade do século XVII. Foi a Fazenda “Sancta Roza” o lo-
cal onde o capitão-mor Teodósio de Oliveira Lêdo, seus familiares
e serviçais instalaram-se. Através da Fazenda Santa Rosa deu-se
origem ao desenvolvimento econômico e o povoamento local, via-
bilizando que outras fazendas fossem fundadas no Vale de Santa
Rosa, local que corresponde a cidade de Boa Vista.
A comunidade se inicia com a chegada do casal Antônio Alves
Monteiro (Seu Monteiro 1836-1933) e Maria Rosalina de Santana,
constituindo a família Alves Monteiro de Santa Rosa, com seus oito
filhos, chamados: Sebastião Alves monteiro, Antônio Alves Montei-
ro Filho, Barbara Maria da Conceição, Clara Maria da Conceição,
Francisca Maria da Conceição, Josefa Maria da Conceição, Manuel
Alves Monteiro e Joaquim Alves Monteiro. Em pesquisa recente
feita por Almeida (2022) em sua obra sobre Fazendas e Famílias
faz o resgate histórico da origem da família Alves Monteiro de San-

163
ta Rosa:

“Antônio Alves Monteiro (Seu Monteiro) foi destacado va-


queiro de Manuel Pereira Pinto (Maneco), servindo sua fa-
mília por toda a vida e, como recompensa pelos serviços
prestados na primitiva fazenda Santa Rosa, tornou-se pro-
prietário de terras do outro lado do rio.” (ALMEIDA 2022,
p.198).

A doação de terra feita ao casal fundador, prática muito co-


mum dentro da historiografia durante o período de escravidão,
movidos por interesses próprios davam permissão do uso e cul-
tivo da terra. Em entrevista concedida a Cibele Jovem Leal (2017),
Zé Preto, neto do casal fundador da comunidade Santa Rosa, seu
Monteiro e Maria, falou sobre seu avô e o tipo de mão-de-obra
praticada na Fazenda:

“O meu avô foi escravo. Ele era natural do brejo, de um lugar


chamado SãoTomé. Aí ele veio tomar conta de uma fazenda
aqui, de uma velha que tinha lá por Geraldo, uma senhora de
engenho. Aí deram uma terrinha a ele aqui em Santa Rosa
e formou família, aí ficou todo mundo aqui. Tudo é família
aqui”. (Zé Preto – cf. in: QUILOMBOS DA PARAIBA, 2018)13

A narrativa histórica da comunidade quilombola Santa Rosa,


reconstruída pelos mais velhos tem origem com a chegada de um
casal a localidade em finais do século XIX,aproximadamente, cujos
atuais moradores da comunidade quilombola são seus descen-
dentes. As atividades de subsistência giravam em torno do trabalho
alugado e familiar, os homens comovaqueiro, prestando serviços na
agricultura e na criação de gado, dividindo-se entre os períodos de
seca e de chuva; as mulheres nos serviços domésticos, e dentro

13
Entrevista concedida a Cibele Jovem Leal em 10 abril 2017, publicado no blog Quilombos
da Paraíba. Disponível em: https://quilombosdaparaiba.blogspot.com/search?q=santa+rosa. Acesso
em: 28 abril 2022.

164
dos roçados familiares e/ou de terceiros.
As questões culturais dentro da comunidade é outro ponto
forte a ser considerado, como resgate histórico na contemporanei-
dade está a fabricação de utensílios de cerâmica, prática utilizada
pelas antigas louceiras Maria Gorda, Margarida, Marina de Jaime e
Maria de Chica, que além da produção para uso doméstico, tam-
bém era fonte de renda já que as mesmas comercializavam na ci-
dade. Eram as mesmas, responsáveis por extrair e fabricar a argila
que retiravam de um barreiro próximo a cidade, já que seus mari-
dos passavam longos períodos fora trabalhando na construção de
açudes e/ou em fazenda de terceiros.
Outra prática comum era o uso de ervas medicinais já que
atendimento médico e serviço de saúde era de difícil acesso e pou-
co utilizado pelos moradores, dentro da comunidade tinha serviços
tradicionais como benzedeiras, parteiras, curandeiras e rezadeiras,
presente nos relatos dos moradores no ECQ. Conhecimentos em
propriedades terapêuticas de plantas e animais, em preparos de
lambedor, chás, infusões, banhas de animais, era cultura conhecida
e partilhada entre as famílias quilombolas que mesmo não utili-
zando tanto desses recursos hoje em dia, é comum encontrar nos
quintais na maioria das casas o cultivo de plantas para uso medici-
nal, natural da vegetação local.
Sobre a pertença, vivência e prática da religiosidade dos mais
antigos não há relatos dentro das fontes pesquisadas, mas hoje
dentro do quilombo há moradores que se autodeclaram católicos,
espíritas e evangélicos (NEOENERGIA/BIODINÂMICA, 2019a, p.
55). A primeira igreja dentro da comunidade começou a ser cons-
truída entre os anos de 2017/2018, após um padre começar a cele-
brar missas e frequentar a comunidade, e com ajuda dos moradores
através de bingos arrecadaram o suficiente para sua construção, a
padroeira da comunidade é Santa Rosa escolhida ainda em 2016,
anteriormente era celebrado apenas os festejos juninos quando fa-
ziam fogueira e festas.
Os mais antigos costumavam se reunir durante a semana

165
embaixo das arvores em frente à casa de Josefa, alguns traziam
instrumentos musicais e tocavam, hoje é o futebol e a vaquejada
uma das fontes de lazer e sociabilidade dentro da comunidade, a
mesma possui um parque de vaquejada e duas quadras de futebol,
onde os jovens brincam, tem os que gostam de futebol se reunin-
do com frequência para jogar, e os adeptos da vaquejada, alguns
se dedicam a este esporte como profissão participando de bolões
e vaquejadas da região. Todo esse conjunto de práticas, saberes e
fazeres partilhados dentro da comunidade, são para Leite (2010):

As experiências que levam em conta esta dinamicidade da


cultura estão demonstrando que os grupos humanos têm
melhor desempenho e produtividade quando não precisam
abrir mão do seu passado, quando agregam ao presente
todo o cabedal de saberes que foram construídos pelas ge-
rações que os precedeu. (LEITE, 2010, p. 26).

A valorização da cultura dos antepassados dentro da comuni-


dade foi de fundamental importância para garantir a manutenção
e existência, como forma de construir e reproduzir saberes tradi-
cionais, refazendo espaços, dando significados e valores a partir da
integração com o seu meio, construindo assim suas identidades.
Assim, a ocupação histórica desse território por parte da fa-
mília Monteiro através do casal fundador, foi o que pode garantir
através dos relatos dos mais antigos da comunidade, a sua presen-
ça ancestral, passando a fazer parte de forma legal através do re-
conhecimento enquanto remanescente de quilombolas pela FCP,
colocando de vez eles na narrativa histórica da cidade de Boa Vis-
ta/PB.
A comunidade que está localizada em Boa Vista/PB foi oficial-
mente reconhecida em 19de dezembro de 2018, processo realizado
pela Fundação Cultural Palmares, antes desse processo, a comuni-
dade não tinha acesso a nenhum benefício em termos de políticas
públicas.

166
Politicamente a comunidade começou a se organizar movidos
pelo sentimento de insatisfação de algumas porque as perspec-
tivas que tinham eram poucas. A união de 12 mulheres deu ori-
gem ao grupo “As quilombolas de Santa Rosa”. O grupo fundado
em 2013 deu início as reuniões, que aconteciam nas residências
dos moradores, com muita dificuldade devido à falta de meios de
comunicação, transporte e local especifico para os encontros.
Portanto, para concretizar a obtenção do certificado quilom-
bola algumas parcerias se fizeram necessárias, a exemplo da par-
ceria da Associação Quilombola de Santa Rosa com o Projeto de
Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (PRO-
CASE), em conjunto com o coletivo regional a Associação de Apoio
das Comunidades Afrodescendentes (AACADE) e da Coordenação
Estadual de ComunidadesNegras e Quilombolas da Paraíba (CEC-
NEQ), que a documentação que deu subsídio a certificação da co-
munidade junto a FCP foi organizada.
Parcerias como a da AACADE, CECNEQ, PROCASE e Progra-
ma de Aplicação de Tecnologias Apropriadas (PATAC) foram fun-
damentais para as mobilizações junto as comunidades negras e
quilombolas, para uma melhor articulação, promovendo a constru-
ção identitária, além de garantir benefícios como políticas públicas
voltadas para essas comunidades e garantia dos seus direitos, pois,
como no dizer de Edilene: “A gente quer o território porque é um
direito nosso. Estamos buscando o que é da gente” (NEOENER-
GIA/BIODINÂMICA, 2019a, p. 51).
Foi a partir do ano de 2016 que as mudanças começaram a
acontecer dentro da comunidade, este foi o ano do contato com
PROCASE14 algumas ações foram desenvolvidas, a saber: o primei-
ro projeto perfurou três poços artesianos em terrenos particulares.
Em 2017 a Prefeitura Municipal de Boa Vista promoveu a 1ª Confe-
14
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (PROCASE) é a organiza-
ção da parceriaentre o Governo do Estado da Paraíba e o Fundo Internacional de Desenvolvimento
Agrícola (FIDA), Organismo das Nações Unidas (ONU), perpassam desde eventos ou cursos de ca-
pacitação e formação de mulheres, jovens e quilombolas ao fortalecimento de atividades produtivas,
com a disponibilização de recursos financeiros destinadosao apoio e fomento a novos ou já consoli-
dados empreendimento rurais, agrícolas e não agrícolas, beneficiando 56 municípios do semiárido
paraibano.

167
rencia do Quilombo,logo após realizou o primeiro intercambio com
o intuito de conhecer outro quilombo em São João do Tigre. Em
seguida foi a atuação do PATAC promovendo mudanças dentro da
CRQ Santa Rosa.15
Em 2019 a Comunidade teve acesso ao “Programa Sementes
do Semiárido”, um projeto desenvolvido pela Articulação do Se-
miárido (ASA), estas instituições promovem ações que reforçam
a cultura do estoque com as sementes crioulas, na busca de for-
talecer e apoiar o patrimônio genético e práticas de organização
comunitária, garantindo a segurança alimentar e a diversidade das
espécies do semiárido. E através desse mesmo projeto receberam
12 (doze) implementações da 2ª água, com o Programa Uma Terra
e Duas Águas (P1+2) buscando promover segurança alimentar.
Baseado nas informações do site da ASA47, que atua em parce-
ria com o PATAC, para cada programa realizado dentro de uma co-
munidade, antes são realizadas capacitações com as famílias como
o intuito de promover uma melhor compreensão para convivência
no semiárido. São cursos de formação que ensinam de técnicas de
manejo ao gerenciamento de novos recursos e as ações políticas
que podem ser gerenciadas pela própria comunidade.
Em relação aos projetos que continuam em desenvolvimento
na CRQ Santa Rosa. Um dos projetos que teve início em 2019 e que
continua em atuação no quilombo até os dias atuais foi o “Fundo
Rotativo Solidário (FRS) de Animais”. É um projeto do PATAC e o
Misereor Com a finalidade de valorizar as experiências com animais
no processo de transição da agricultura familiar na realidade do
semiárido, buscando apontar e investigar a influência das políticas
públicas direcionadas para criação de animais. O projeto é focado
na juventude local e objetiva desenvolver estratégias de manuten-
ção econômica,evitando a migração.
O projeto Florestando o Semiárido promoveu na comunidade

15
Esta parceria vem fazendo grandes ganhos para a comunidade, a exemplo do Programa Cisternas
nas Escolas, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), foram construídas 23 (vinte e três)cisternas
na comunidade, com o objetivo de garantir e facilitar o acesso a água de qualidade, diminuindo a
distância a esse bem.

168
o sistema de tratamento do reuso de água, que através das tec-
nologias de reaproveitamento do uso de água do banho e louça,
unida a uma tecnologia que diminui os impactos sem colocar em
risco o solo, atendendo a uma melhor condição de saúde e higie-
ne sanitária. Outras parcerias e projetos chegaram a Comunidade
a partir da sua condição de remanescente quilombola, a exemplo
da passagem da Linha de Transmissão (LT) 500 kV Santa Luzia
II – Campina Grande III e o Projeto Básico Ambiental Quilombola
(PBA-Q)16, a saber: oficinas para captação de recursos, e forneci-
mento de equipamentos para o correto armazenamento dos re-
síduos, Instalação de horta comunitária na escola do território da
CRQ, fornecimento de tela, sementes e ferramentas.
A Comunidade Quilombola de Santa Rosa obteve ganhos
consideráveis para o coletivo após o processo de reconhecimento
do território como quilombola. O alcance prático das políticas pú-
blicas e das ações oriundas de projetos desenvolvidos por OGNs e
empresas privadas dentro Comunidade chegaram em decorrência
da pertença quilombola. E muitas das ações desenvolvidas vem
contribuindo para o fortalecimento e a construção da sua identida-
de quilombola. É certo que muito ainda precisa ser feito, até por-
que séculos de ausência, descaso e desrespeito institucional não
serão sanados com algumas poucas ações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa feita permitiu perceber como mais de 100 (anos)


após a “abolição” a população negra continue na condição de invi-
sibilizada e excluída dos benefícios oriundos das políticas públicas
que garantem vida digna, cidadã. Conhecer a história e a trajetória
de luta da Comunidade Quilombola de Santa Rosa, saber da gran-
de capacidade de mobilização do grupo em busca de reparação

16
Um dos ganhos de fundamental importância, além dos projetos que foram/são desenvolvidos, foi
a elaboração do Estudo do Componente Quilombola (ECQ) que permitiu a Comunidade sistema-
tizar sua memória/história viabilizando o processodo seu reconhecimento enquanto remanescente
de quilombo.

169
e recuperação de personagens e das suas biografias, da memória
dos seus antepassados, nos ajuda a entender que é sim possívelre-
contar a história desse país de modo valorativo, colocando o povo
negro no seu lugar de direito: protagonista, autoral. Também foi
possível compreender como o processo de construção das iden-
tidades não é tarefa fácil, requer investimento, parcerias e políticas
públicas eficazes. No caso das CRQs, a organização e as mobiliza-
ções dos movimentos sociais culminaram na inclusão desses povos
na letra da lei, possibilitando assim garantias legais de políticas pú-
blicas voltadas na reparação de anos de exclusão e vulnerabilidade.
Embora tenha acontecido ganhos no espaço jurídico, esses povos
ainda se encontram muito distantes das garantias na execução das
leis.
Ao estudar a CRQ Santa Rosa seu passado de exclusão, se
apresenta como ponto a ser pensando, mesmo fazendo parte do
quadro de moradores da cidade de Boa Vista, essa comunidade
só passou a pleitear de um maior número de benefícios em políti-
cas públicas, após sua certificação enquanto comunidade quilom-
bola agora em 2018. Assim, percebemos a importância do reco-
nhecimento institucional porque este promoveu o alcance prático
a projetos e programas até então impensáveis. Sim, em termos de
garantias, benefícios realizados, de fato atingindo o maior número
de moradores/as da comunidade só acorreram em resposta dasua
certificação.
Afirmar, que identificar como se deu o alcance prático dessas
políticas públicas dentro da comunidade, requer tempo, já que a
comunidade vem sendo beneficiada há pouco mais de 3 anos. Este
curto espaço de tempo de vivencia com os benefícios gerados após
sua certificação, com certeza ainda está processo de maturação de
resultados. Mas, afirmar que este se apresenta como rico campo
a ser estudado, analisado do ponto de vista da Sociologia, Direito,
História, Geografia e até das ciências naturais, devidos os saberes
tradicionais, que contribuindo fortemente com a diminuição dos
impactos naturais.

170
REFERÊNCIAS

ABA. DOCUMENTO DO GRUPO DE TRABALHO SOBRE COMUNIDADES NEGRAS RURAIS. Bole-


tim Informativo NUER (1):1-3. Termo Remanescente de Quilombo. Instituto Socioambiental, Cod:
03D00024. Rio de Janeiro, 17/18 outubro 1994
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Monteiro Fernandes, liderança da comunidade Quilombola de Santa Rosa, Boa Vista/PB. Publicado
em 16 abril 2022, com duração de 47:34. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H6G-
fltDHvwc&list=PLWugCyhRXOvIEDyGbCNcgqO EZDLZz0js8&index=12&t=1823s Acesso em: 19
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ALMEIDA, Isaias Vitorino Batista de. Fazendas e Famílias: história da pecuária de Boa Vista-PB.
João Pessoa: Ideia, ISBN 978-65-5608-282-0, p. 414. 2022.
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ficação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescen-
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Transitórias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.
htm. Acesso em: 07 abril 2022
BANAL, Alberto. Quilombos da Paraíba: a realidade de hoje e os desafios para o futuro/Alberto
Banal, Maria Ester Pereira Fortes (organizadores) – A Via crucis das comunidades quilombolas no
Brasil e na Paraíba. João Pessoa Imprell Gráfica e Editora, 2013. 312 p
IBGE - Notas técnicas - Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os indígenas e qui-
lombolas para enfrentamento à Covid-19 (atualizado em 20/05/2020) Disponível em: https://
www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/27480- base-de-
-informacoes-sobre-os-povos-indigenas-e-quilombolas. Acesso em 07/02/2022.
LEITE, Ilka Boaventura. “Os quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas”. Etnográ-
fica, vol. IV (2), p. 333-354, 2000. Disponível em: http://ceas.iscte.pt/etnografica/docs/vol_04/N2/
Vol_iv_N2_333-354.pdf.
LEITE, Ilka Boaventura. Humanidades Insurgentes: Conflitos E Criminalização Dos Quilombos,
Cf. NUER - Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas –UFSC - PROJETO DOSSIÊ
DOS CONFLITOS. Cadernos de debates Nova Cartografia Social: Territórios quilombolas e conflitos
Vol. 01, nº. 02. UEA Edições, p.18- 41, 2010.
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torialidade. Brasília: UNB. 2002.
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III: Estudo do Componente Quilombola das CRQs Serra do Talhado e Santa Rosa. Rio de Janeiro,
2019a. Disponível em: https://we.tl/t-lrlT1q6njO Acesso em: 25 julho 2022.
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III: Projeto Básico Ambiental Quilombola – PBA-Q. Rio de Janeiro, 2019b. Disponível: https://we.tl/
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em: 22 mar. 2022
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reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. Nas trilhas da luta pelo reconhecimento étnico
quilombola da Comunidade Rural Santa Rosa em Boa Vista-PB: Um pouco do histórico da comuni-
dade, através de relatos dos moradores e moradoras mais antigos. Cibelle Jovem Leal, Paraíba 12
dezembro 2018. Disponível em: https://quilombosdaparaiba.blogspot.com/search?q=santa+rosa
Acesso em 28 abril 2022.

171
POR UMA CARTOGRAFIA DAS ESCRITURAS DO CANDOMBLÉ

Jackson Cícero França Barbosa1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

De acordo com a definição do Dicionário Houaiss da Língua


Portuguesa (2010), cartografia tem seu significado relacionado à
produção, descrição e tratado sobre mapas. Uma atividade em que
estão empenhadas atitudes descricionais a respeito do que se en-
contra mapeado, traçado.
Encaramos a disposição referencial desse vocábulo como uma
metáfora que abarca a nossa proposta: cartografar é estudar os
mapas, territórios, searas... levando em consideração os relevos, as
bacias, as geografias, coordenadas e os percursos limítrofes do lo-
cus de onde emergem inquietações ontológicas e epistemológicas
das escrituras numa perspectiva fenomenológica da linguagem.
Quando Albuquerque Junior, Veiga-Neto e Souza Filho (2011,
p. 10), defendem que, hodiernamente, “grandes questões políti-
cas, sociais, econômicas e culturais, estão revestidas de conotações
espaciais”, evidenciam a importância dos estudos foucaltianos, no
que diz respeito à delimitação de “conceitos e noções que remetem
a uma compreensão espacial das relações de poder e das práticas
discursivas e não discursivas” na contemporaneidade. Nessa pers-
pectiva, Foucault é tratado como “um novo cartógrafo que tentou
dar conta dos diagramas de forças e saberes que constituíram e
constituem historicamente as sociedades ocidentais”.
Na contemporaneidade, a função de mapear o que está “à
margem” tem propósito próximo aos postulados foucaultianos. O
estudo da linguagem como demarcadora dos lugares sociais, pos-
sibilita abordagens, de foco igualitário, em se tratando da verifica-

1
Doutor em Linguística pelo PROLING/UFPB. Professor do Departamento de Letras, Campus III,
da UEPB. Membro-pesquisador dos grupos: TEOSSENO - Teorias do sentido: discursos e significa-
ções – CNPq/UEPB e GIF – Grupo de Investigações Funcionalistas, CNPq/UFPB.
Contato: jacksoncfb@servidor.uepb.edu.br
ção de sistemas linguísticos entre as sociedades.
As culturas ágrafas são, nesse diapasão, culturas marginais,
localizadas, demarcadas, diagramadas por “estigmas” motivados
pela ausência de sistematização – propriamente – linguística con-
ferida pela determinação da convenção e materialização escrita.
O Candomblé, no curso de sua história, tem sofrido ações de
intolerância e ignorância pelos que, comumente estão revestidos
por uma hegemonia cristã purista, o encara, de maneira que existe
a tentativa de apagamento dos valores culturais inseridos através
do culto, das tradições e vivências dessa cultura.
A escrita, como análoga à representação fonético-fonológica
da linguagem, é um dos elementos que configura o registrual mne-
mônico de uma cultura para regimentar uma escritura (BARBOSA,
2022). A escritura transcende a escrita, devendo “refletir a socie-
dade” – nos termos de Landowski (1992) – a partir de elementos
sociossemióticos que se unem para referendar status estruturais e
funcionais aos sistemas linguísticos.
A respeito do termo estrutura, nesta proposta, há um com-
prometimento com sua significação direcionada à organização e
ordenação dos sistemas línguísticos – em geral. Não assumiremos,
por completude, o caráter autônomo e homogêneo, como literatu-
ra aborda, uma vez que acreditamos que a inserção de elementos
culturais, orgânicos, pragmáticos e dinâmicos estão a serviço da
mutabilidade estrutural.
Em relação ao tratamento funcional, consideraremos que a
estrutura discursiva (pragmática) é responsável pelos eventos de
uso da linguagem (estabelecimento da escritura). O uso linguístico,
nas tradições discursivas, revela práticas e tendências das culturas.
Dessa forma, vislumbramos a possibilidade de se estabelecer
um material (corpus) possibilitador de análise a partir de elementos
pictóricos, gestuais e performáticos (BARBOSA, 2022) , uma vez
(auto)semiotizados, estão inseridos dentro de práticas linguageiras
de um povo (BENVENISTE, 2014; BRONCKART, 2006).
Esta perspectiva de investigação que se volta ao produtos da

173
cultura popular vislumbra uma cartografia de escritura, de maneira
que reflita as bordas – translinguísticas – de uma cultura ágrafa
(BHABA, 2001; FERREIRA, 2010), trazendo para constituição de
um corpus semiótico, elementos signatários que traduzem códigos
que perpassam pela história possibilitando aos sujeitos que pra-
ticam a religião afro-brasileira (candomblé) o estabelecimento de
um sistema linguístico baseados em símbolos e práticas conferidas
ao cotidiano litúrgico.
As sociedades ágrafas nos oferecem unidades para reflexão
e estabelecimento sistêmico para constituição de uma descrição
e analise da linguagem dos referentes cotidianos que se regimen-
tam como elementos que se organizam em estruturas semióticas
antropológicas (RODRIGUES,2011; BARBOSA, 2022).
O candomblé, religião de origem africana, representa, hoje,
a importação de nações desterritorializadas de uma África antiga,
que a exemplo de outras culturas, desenvolveu um código comu-
nicacional sem que a escrita, como fixação da voz, fosse desenvol-
vida. Esse aspecto é ainda presente, mesmo esta cultura estando
imersa em um ambiente (nosso país) marcado pela presença da
grafia e da escrita nos contextos de interação e produção artística,
científica e religiosa.
O sistema religioso, que servirá de objeto para nossas inves-
tigações, se organiza em torno de um da língua “Yorubá”, além de
oferecer outros elementos diversos que configuram os princípios
de funcionamento da linguagem, uma vez que em nossa investiga-
ção de doutoramento (BARBOSA, 2022), reunimos objetos de me-
mória (RODRIGUES, 2011) que se articularam a outros aspectos,
em processos simbólico-semióticos, de maneira a constituir uma
escritura multifacetada da circunscrita religião.
No empreendimento do mapeamento dos elementos trans-
linguísticos, caros à nossa pesquisa, consideramos importante, ain-
da, destacar a “voz” (ZUMTHOR, 2007) como o lugar simbólico
que não pode ser definido de outra forma que por uma relação,
uma distância, uma articulação entre o sujeito e o objeto, entre o

174
objeto e o outro.
Essa voz, que não tem a ver diretamente com vocalidade, é
responsiva pela configuração do “imaginário” (DURAND, 2012) que
reveste o signo/símbolo de uma comunidade e se desdobra na for-
mulação de universais mítico-simbólicos através da concepção de
schèmes e arquétipos. Por falar nisso, a influência da obra junguia-
na faz-se mister para a noção de “bacia semântica”, que também
utilizaremos.
Por “bacia semântica” entendemos a configuração de um
“lago de significados”, onde seus estudo fundamentos nessa pers-
pectiva indicam como as pequenas coisas vão gerar ou constituem
coisas mais importantes, num fluxo contínuo e longo.
Além de constituição escritural, a projeção territorial do nos-
so objeto de estudo é demarcada, também, com base na voz (e
seus valores, nos termos de Zumthor, 1997) /vocalidade e perfor-
mances. Dessa maneira, o mito é analisado em cadeia simbólica,
de maneira a referendar as linhas transitórias para formação dos
arquétipos, regência e a influência dos orixás a partir de uma for-
mação mitológica cuja mente humana trabalha para compreensão
do “mágico, da conclusão histórica, baseada nos fundamentos da
cultura em foco e na própria aplicação do dia a dia das tribos (...),
no caso, das casas de santo” (BARCELLOS, 1992, p. 01), principal-
mente da nação Efon2, que representa a comunidade tradicional
onde participamos, para além de pesquisador, praticante do siste-
ma religioso em relevo.
Nestes termos, apresentamos uma pesquisa participante, de
base etnográfica, intitulada Escrituras do Candomblé: articulações
entre o simbólico e o imaginário na cultura religiosa afro-brasileira

2
Efon (se pronuncia Éfan, que significa Osun) é uma nação do candomblé oriunda das terras de
Ekiti-Efon (não confundir com Ifon, a terra de Oxalufon), no Brasil usa-se o termo “Lokiti Efon” e
onde reina absoluta a rainha da nação no Brasil, ou seja, Osun, filha de Olookè, patriarca da nação,
o Leão da Montanha, o o mesmo é Orisà da Montanha. Inicialmente veio para o Brasil pelas mãos
de dois Africanos Tio Firmo, conhecido como Baba Irufà, iniciado pra Osun e Adebolui, mais tarde
chamada de Maria Violão (nome esse dado, devido às formas de seu corpo) posteriormente iniciada
para o Orisà Olookè. a Nação foi Instalada no Engenho Velho de Brotas – Brotas – Salvador – BA.
Muitos dizem que é uma nação quase extinta, o que na verdade é pura bobagem, pois enquanto
existir Osun, Olookè e todos os Orisàs, Efon permanecerá vivo em Nossos Corações. Fonte: https://
meuorixa.wordpress.com/2013/03/12/nacao-efon/

175
(BARBOSA, 2022). Nesta oportunidade, decidimos levantar um re-
gistrual mnemônico, com enfrentamento semiótico antropológico,
que se desdobraram em categorias para a formulação indiciária
das escrituras do candomblé praticado no Brasil.
Neste artigo, nos utilizamos da estratégia articulatória para
ressaltar que ainda existem aspectos a serem ressaltados nesta
seara epistemológica para que sob auxílio das lentes diversas, pos-
sam ser ressaltados mais elementos da cultura em relevo. A carto-
grafia, como recurso metodológico, nesta dimensão, auxilia, entre
outros elementos, na construção da concepção de semântica do
acontecimento (GUIMARÃES, 2017), no regate do segmento his-
tórico-enunciativo de origens das demarcações locais e territoriais.
Com isso, objetivamos ressaltar e delimitar modelos cartográ-
ficos que constituem a natureza simbólica referentes às escrituras
da cultura candomblecista, a partir de categorias simbólico-signa-
tárias registruais: (i) artesanal, (ii) pictórico e (iii) performático - as-
pectos que se consolidam como marcas linguageiras, uma vez que
encontram-se imersos nas práticas linguageiras (usos, interação,
cultura) do sistema religioso em tela.
Assim, através das seções Do percurso entre linguagem e car-
tografia e da cartografia para a escritura e A linguagem do can-
domblé, ou escritura da religião afro-brasileira, levantaremos as
reflexões que originaram a formulação do referido estudo e que
ainda serve se seta para indicar possibilidades outras – e formular
categorias outras – possibilitando que a categorização de mais ele-
mentos simbólicos do referido universo cultural se repercuta para
o aprimoramento da noção de cartografia das escrituras do can-
domblé, religião afro-brasileira praticada no Brasil, desde a diáspo-
ra negra.

176
DO PERCURSO ENTRE LINGUAGEM E CARTOGRAFIA E DA
CARTOGRAFIA PARA A ESCRITURA

Se a língua(gem) se “autossemiotiza” (BENVENISTE, 2014),


se banha e se reveste de significados (DURAND, 2012) a partir de
um imaginário construído pela coletividade de uma comunidade,
a religiosidade afro brasileira, na tradição do candomblé, tende a
desvelar esses elementos signatários na configuração de ordena-
mento de um sistema semiótico a partir de suas práticas litúrgicas
e cotidianas.
Como o processo escritural se confirma a partir do (re)conhe-
cimento de elementos concretos que se firmam no caráter mne-
mônico conferido à escrita que transcende às acepções cuneifor-
mes, no mesmo sentido, podemos verificar a voz também como
transcendente às questões de oralidade, a partir de material in-
vestigativo (mitos, arquétipos,) com debruçamento na teoria que
discute o imaginário e suas estruturas (DURAND, 1969; 1979).
Uma vez que voz e escritura se fixam como elementos simbó-
licos numa perspectiva semiológica, a formação e delimitação de
um corpus com elementos das vivências da religião afro-brasileira
possibilita uma ordenação sintagmática que vai da comunicação
com o sagrado, passa pelas oferendas (MELO,2014) e chega nas
especificidades ritualísticas das cerimônias.
Assim, a partir do preconiza Higounet (2003, p. 9), que a es-
crita seja “um procedimento do qual atualmente nos servimos para
imobilizar, para fixar a linguagem articulada, por essência fugidia”,
ou seja, o estatuto da escrita ao longo da história, traz, para o cer-
ne de suas reflexões, o aspecto registrual inerente à escrita: o de
tornar-se, à medida que se fixa e transita através da história e das
culturas, escritura.
Esse processo - e aqui assumimos a defesa de que imobiliza-
ção do escritural firma-se como patrimônio a serviço das diversas
culturas, linguagens e civilizações, através de um percurso que se
inicia desde o pictórico-signatário, ao semiótico-textual – parte da

177
relação da escritura como signo, que considera o que está no âm-
bito da inscrição pictórica e da desenvoltura gestual, tendo esses
aspectos como caminhos para a concepção de conceitos principais
que regem essas questões e estes se constituem, cotidianamente,
como práticas sociais.
As artes, pinturas, gestos e comidas sagradas dos orixás, sim-
bolizadas através de vozes e escrituras constituem um texto discur-
sivo, uma narrativa em que se performa e origina uma Gramática
Ritualística (MELO, 2014), vitalizada pela voz, como também por
demais elementos circunscritos, uma vez que se percebe na sin-
taxe cerimonial, seja litúrgica, das danças, do preparo de ebós e
oferendas, uma ordenação e uma semântica, ou um percurso fun-
cional de atribuições de sentido conferidas às práticas de vivência
no cotidiano religioso.
Considerando o exposto, vemos a elucidação nos postulados
de Locke (1952), numa de suas contribuições no ensejo de garan-
tir características consensuais – ou contratuais, sendo fidedigno à
sua posição política – assegura que o bem-estar e a vantagem da
sociedade não são realizáveis sem comunicação de pensamentos,
nesse ínterim, foi necessário ao homem desvendar certos sinais
sensíveis externos, “por meio dos quais estas ideias invisíveis, das
quais seus pensamentos são formados, pudessem ser conhecidas
dos outros ...”. Tal premissa reforça a necessidade fundatória da lin-
guagem como instrumento político e governamental, endossada
por rituais interacionais nos quais a vida social está em constante
desenvoltura.
Ainda nessa imersão ao caráter social da língua, volvemo-nos
às contribuições de cunho estruturalista, que a tem como um sis-
tema de signos sob caráter sistemático, coletivo e social (SAUS-
SURE, 2012). Os sinais comuns mencionados que são colocados
na reflexão de Locke, são envelopados por convenções sociais que
repercutem na comunidade linguística – ou sendo mais preciso, no
próprio sistema linguístico – como ideais para promulgação intera-
tiva garantindo a comunicação entre os comuns.

178
A partir de abordagens ontológicas e epistemológicas, essa
pesquisa visa a erradicação da terminologia ágrafa conferida às
culturas que não apresentam sistematização do código escrito,
uma vez que o candomblé, nosso objeto, se constitui de diversos
elementos signatários que atestam a vivacidade semiológica pro-
duzida no interior desse sistema religioso.
Nesse diapasão, consideramos, pois, que o signo/símbolo
está imerso em todas as representações cotidianas e é materia-
lizado, também, na formação e (re)figuração das tradições oral e
escrita através seus caráteres registruais e mnemônicos, através de
“objetos de memória” (RODRIGUES, 2011).
Situaremos, aqui, a escritura através das contribuições de
Barthes (1971) e Botérro (1995). Ao pensarmos em questões de na-
tureza semiológicas (SAUSSURE, 2012), levamos em consideração
que a linguagem é o ponto de partida para qualquer discussão
epistemológica sobre produção do conhecimento e, com base nis-
so, os elementos simbólicos descritos para nossas investigações
desempenham um papel importante no que diz respeito à promo-
ção, gênese e divulgação do status linguístico conferido à cultura
religiosa em questão.
Ainda, é importante esclarecermos que

Em diversas culturas, os índices pictórico, artesanal, gestual


garantem, na heurística dos símbolos-signos, certa causali-
dade para indicação dos efeitos de sentido e nas dinâmicas
ritualísticas do candomblé, não poderia ser diferente. Nes-
te campo, podemos identificar diversas forças que implicam
a formulação icônica desses objetos para a formulação de
uma escritura da religião dos orixás. Nossa intenção não se
projeta como flechas para compreensão de estruturas tera-
tológicas sem regimes referenciais no mundo. Mesmo que
as elucubrações levantadas sejam dispostas a um grupo cul-
tural, ou povo, específico, levaremos em contas as incursões
que os símbolos desta religião realizam no cotidiano geral.

179
Isso desperta, nas mais diversas vertentes, inquietações que
reservam a estas “imagens” inquietações que resultam em
tratados das mais diversas abordagens. (BARBOSA, 2022,
p. 129)

Uma das características metodológicas de orientação para o


intercruzamento de abordagens que servem a nossa pesquisa se
amalgama pela noção de rizoma, cunhada por Deleuze e Guattari
(2007) é um importante instrumento para a construção de uma
teratologia, significando de forma veemente em relação à produ-
ção de processos de subjetivação, em que geralmente os olhares
e decisões metodológicas recorrem a pontos de partida – de onde
são construídas formas de pensar os processos – estes pontos de
partida são erroneamente tratados como raízes. Destas raízes são
construídas árvores explicativas, uma lógica de bifurcação de cate-
gorias que dão origem aos galhos e assim por diante. Neste siste-
ma, a multiplicação dos conceitos se desenvolve tendo em vista o
processo linear da raiz às pontas (OLIVEIRA, 2017).
Dessa forma,

um rizoma como haste subterrânea distingue-se absoluta-


mente das raízes e radículas. Os bulbos, os tubérculos, são
rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem ser rizomórficas
num outro sentido inteiramente diferente: é uma questão de
saber se a botânica, em sua especificidade, não seria inteira-
mente rizomórfica. (DELEUZE; GUATTARI, 2007. p.14).

Nessa concepção de rizoma contém princípios caros ao que


é conhecido como relação e produção rizomática: I) e II) conexão
e heterogeneidade, III) multiplicidade, IV) a-significante, V) e VI)
cartografia e de decalcomania. Cada um destes princípios explo-
ram as convergências rizomáticas, ou seja, formas de existência em
que o rizoma atua, ou seja, os nós, pontos de intersecção, bulbos.
À nossa proposta nos importa o estabelecimento dos quin-

180
to e sexto princípios, que abordam as noções de cartografia e a
de decalcomania. Nesse contexto, Deleuze e Guatarri (2007, p.21-
22) esclarecem: “um rizoma não pode ser justificado por nenhum
modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de
eixo genético ou de estrutura profunda”. Nesta afirmação se revela,
antes de relações genéticas, a existência de princípios de decal-
que, num diapasão de reproduções que podem ser reprodutíveis,
a exemplo da “lógica” da árvore como a “lógica” da reprodução por
meio do decalque.
Para os autores existe uma estruturação que remete a um
esquema de sobrecodificação, legitimando, a partir da noção de
decalque, a produção de um eixo que suporta as relações arbo-
rescenstes. Diferentemente dessa abordagem, o rizoma é puro de-
vir, ele é mapa, em termos mais precisos, uma vez que representa
estruturas transitórias de composição de alianças, afinidades, de
encontros (occursus).
O apanhado teórico que se firma como alicerce para a refle-
xão dos elementos simbólicos mobilizados para uma abordagem
de ordem semiológica (e semântica, sendo mais específico em re-
lação ao tratamento das construções de sentidos) sob o que se
firma como objeto epistemológico em torno do construto semió-
tico antropológico analisado a partir da constituição de um corpus
oriundo do sistema religioso afro-brasileiro da tradição Efon, se
configura numa proposta rizomática.
Cartografar, ou mapear, os códices escriturais vigentes nas
práticas dessa cultura é estabelecer e referendar o status linguís-
tico condizente aos suportes que que manejam as tradições oral
e escrita numa órbita discursiva construída no panteão mítico dos
deuses da religião em tela.

181
A LINGUAGEM DO CANDOMBLÉ, OU ESCRITURA
DA RELIÃO AFROBRASILEIRA

O candomblé é composto por uma cadeia hermética, onde


muitos preceitos, estritamente tidos como “secretos”, não são pas-
sados ao indivíduo não iniciado. Isso faz com que muitos desper-
tem uma certa curiosidade para entender um pouco do universo
mágico, antes mesmos de compreender toda uma lógica litúrgi-
ca, que envolve uma tradição discursiva, uma sintaxe (mesmo que
imaginária) nos termos de Durand (2021) e Melo (2014), quando
este último, em pesquisa, defende uma gramática das comidas de
axé.
Pretendemos, a partir do exposto, buscar motivação para en-
tender o processo de para a formulação de uma escritura situada,
em se tratando de elementos que alargam a possibilidade de sua
semiotização. Esses (elementos) estão e sempre fazem parte da
história da humanidade. De acordo com Barbosa (2022), são para-
digmas que o tempo (re)constrói; são sintagmas que se ordenam e
se fazem necessários para as hipotaxes da vida cotidiana, que ora
se paratatiza, se encaixa e se gramaticaliza; linguagem manifestada
nas histórias das culturas; um caleidoscópio dos significantes que
são construídos a partir do que vivenciamos, e significados que
produzimos. A vida é uma constante semiotização.
O candomblé, por sua vez, participa dessa dinâmica semióti-
ca/semiológica. Seus elementos “estrangeiros” condizem a um sis-
tema que não se encontra nos compêndios, nas gramáticas con-
vencionalizadas, escritas...
Neste contexto e cenário cultural (FERRAREZI JUNIOR,
2018), o caráter ritualístico que envolve uma das funções primárias
da escrita, relativa à viabilização da comunicação, surge no âmbito
celebrativo, no que condiz às necessidades materiais e/ou espiri-
tuais. Essa informação de ordem diacrônica se coaduna à noção
do que o pictórico era o registro das manifestações divinas de uma
determinada época, estando ao lado, claro, de outras intenções

182
mais corriqueiras de comunicação.
Através da escritura como material paleográfico de uma socie-
dade - ou até mesmo, nos termos de Mendel (2006), que dialoga
diretamente ao que propõe Landowski (1992), sobre a sociedade
ser refletida através da escrita, em seus “ensaios sociossemióticos”
– ao categorizar o ramo da escrita e civilização, abraçamos o que
Higounet (2003, p. 08) coloca a respeito do homem primitivo, que
tinha como função forjar “engenhosos arranjos de objetos simbóli-
cos”. Nos dias atuais, o homem ainda tem a função de transfigurar
a escrita e semiotizá-la através de suas práticas de linguagem, cor-
roborando com a noção de que esta é “mais que um instrumento.
Mesmo emudecendo a palavra, ela apenas não a guarda, ela reali-
za o pensamento que até então permanece em estado de possibi-
lidade” (MANDEL, 2006, p. 09).
Consideramos, pois, algumas prerrogativas para delinearmos
aspectos correspondentes à fixação da escritura através dos tem-
pos, como sinaliza Higounet (2003):

a) a história da humanidade se divide em duas imensas eras,


antes e a partir da escrita. Talvez tenha o dia de uma terceira
era que será depois da escrita;
b) a lei escrita substituiu a lei oral;
c) contrato escrito substituiu a convenção verbal;
d) a religião escrita se seguiu à tradição lendária;
e) e, talvez, não exista história que não se funde sobre
textos3. (MANDEL,2006, p. 10)

Sobre a última colocação, que encontra-se grifada, acredita-


mos que toda escritura espelha as práticas sociais efetivadas em
uma comunidade, é estabelecida uma fixação, um aspecto linguís-
tico, que o configura, também, como escritura.
Com base em Benveniste (2014) refletimos sobre um proces-
so de semiotização que chancela à escritura (enquanto materiali-

3
Grifo nosso.

183
zação) sua característica fenomenológica quando reforça que esta
pode sozinha dar a um objeto ou a um processo qualquer o poder
de representar. Essa característica está inserida no hall das ques-
tões ontológicas onde a percepção de semiotização se encontra. O
foco dessa representação está na performance de denominar: dar
nome e sentido às coisas, aos processos. Nesses termos,

Para que um objeto seja “sagrado”, para que um ato se tor-


ne um “rito”, é preciso que a língua enuncie um “mito”, dê a
razão de sua qualidade, torne “significantes” os gestos ou
palavras. Todo comportamento social, toda relação huma-
na, toda relação econômica supõem “valores” enunciados
e ordenados pela língua. As funções inter-humanas mais
elementares, as que mantêm a existência dos indivíduos, as
funções de produção e as de geração, são funções, antes de
tudo, significantes, elas se apoiam sobre relações de paren-
tesco que consistem em sua denominação. (BENVENISTE,
2014, p. 157)

Todo esse processo tem relação íntima com a escritura en-


quanto elemento de materialização. Numa perspectiva histórica,
podemos encarar que a escritura esteve à serviço da fixação de
uma mensagem oral, como primeira premissa. Podemos pensar,
a partir do que nos oferece os estudos benvenistianos, que existe
outras fases ao estabelecimento da escrita/escritura: a sua inven-
ção, como “precedente do desejo de fixar por escrito um livro, ou
seja, uma composição escrita e não mais mensagem falada”.
Fixação, uma palavra chave nessa abordagem histórica con-
ferida à escrita e dada à verificação da permanência do objeto
gravado, convencionado e com frequência de uso, faz-nos pensar,
como nos convida Barthes (1975, p. 23), sobre a noção de escritura
e esta como sendo “um ato da solidariedade histórica, (...) é a rela-
ção entre a criação e a sociedade, (...) é a forma apreendida na sua
intenção humana e ligada, assim, às grandes crises da História.

184
Voz e performance também são analisados, em tese, como
elementos constituintes de uma escritura. O termo “voz”, muito
próximo da compreensão massiva, precisa, segundo muitos estu-
diosos, “sofrer uma operação de decantação para que o conceito
flua com limpidez” (OLIVEIRA, 2009. p. 03). O que defendemos
aqui está em consonância com o que Zumthor (1997) postula, sem
nenhum comprometimento sinonímico com oralidade, pois ultra-
passa o sentido linguístico de comunicação por meio da fala.
Os fundamentos para o estudo do fenômeno da voz estão na
história do próprio homem, desde as origens vocais da poesia (nos
temos de Zumthor, 1997), nos cantos e danças rituais, nas fórmulas
de magia e nas narrativas míticas (mote para nossa abordagem).
Voz que está lá, emergindo do silêncio primordial, cujo caminho se
espraia no tempo e perfura os espaços, expandindo-se para além
do corpo que a pronunciou. (OLIVEIRA, 2009. p. 04)
Esquematizando, termos como Voz e Imaginário são enca-
rados, numa construção sintática das relações, como elementos
paratáticos nesta proposta de pesquisa, como condutores prope-
dêuticos à reflexão de um ponto para consolidação de um sistema
linguístico. Dessa maneira, o corpus, definido como elementos para
representação conferidos às religiões de sistema linguístico ágrafo,
mesmo não obedecendo a uma sistematização de uma materiali-
zação escrita da língua, oferece, quanto à perspectiva da voz, ou-
tros aportes elucidativos para formulação de conceitos e imagens
(acústicas).
Acreditamos que a voz é o fio condutor para o imaginário.
Como matéria prima responsiva para propagação de mitos, cren-
ças, injunções religiosas, magia e, em decorrência da configuração
imagética, a formulação de arquétipos, dado de uma concepção
formal de uma coletividade. Os desdobramentos atribuídos à con-
dução mítica são aqui tratados como elementos signatários no pa-
radigma na voz. Reconhecemos o paradigma escrito e seus elemen-
tos, também. Mas sob um prisma saussureano, se considerarmos
eixos, como já ditos, paradigmáticos, estabeleceremos territórios

185
onde cada uma das perspectivas circulam. Nesse contexto, temos
a voz, a partir de seus “valores”, como bem nos elucida Zumthor
(1997, p. 15), “para uma consciência linguística, mítica e religiosa”,
não necessariamente nessa ordem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa proposta se articula a partir da reflexão de como se


processa a semiotização – articulada com elementos culturais do
candomblé, para a resolução da compreensão de escritura da refe-
rida religião. Muitas pesquisas indicam que há refutação do termo
em questão, pela ocorrência de códices escriturais que estão pre-
sentes nos processos de semiotização dessas culturas.
À guisa de contribuição– mais precisamente no que concerne
ao enfoque acerca dos estudos que envolvem cartografias e/ou
mapeamentos das escrituras, vozes e performances conferidas
à religiosidade afro-brasileira – também buscamos outras
investigações confluentes à temática. Constatamos que na grande
área de Letras, as investigações que se debruçam sobre nosso objeto
são parcas. Mesmo assim, existem levantamentos etnográficos que
apreciam questões de letramento e oralidade nos terreiros de Can-
domblé.
Iniciamos, por esse mote, citando o trabalho pioneiro de Cas-
tillo (2005), cuja abordagem, ventilada no parágrafo anterior, se
realiza em torno de uma pesquisa etnográfica de grande valia para
o estudo das religiões de matrizes africanas no Brasil. Sua tese “En-
tre a oralidade e a escrita: percepções e sons do discurso etnográ-
fico no candomblé da Bahia” examina a interface entre a oralidade
e a escrita nos candomblés da Bahia, demonstrando a importância
da relação entre saber e poder dentro da hierarquia religiosa. A
autora analisa a transmissão do saber dentro da tradição oral con-
ferida ao sistema religioso.
Nesse diapasão de estudos linguísticos, temos a tese de Melo
(2014) intitulada “Gramática do Banquete dos Orixás: memória das

186
vozes”, refletindo sobre a organização do ritual das comidas dos
orixás a partir do inventário das vozes e suas realizações perfor-
máticas que organiza uma “sintaxe” no preparo das comidas, na
sua classificação, nos gêneros e espécie Trata-se de uma pesquisa
etnográfica que coletou informações em cinco terreiros da cidade
de Campina Grande – PB. O trabalho analisa a culinária mítico-sa-
grada inserida no contexto das oralidades de tradições africanas
marcada pelo verbo-ação que remete a simbolismos míticos de
múltiplas culturas – afro-baiana, afro-pernambucana e paraibana-
-campinense – de nação queto.
Ainda consideramos certa familiaridade da nossa proposta
com o trabalho de Oliveira (2013), por também apresentar uma
proposta inserida no âmbito da descrição linguística. Sua tese “En-
tre Colofé e Mutumbá: a relação dos prováveis vestígios de línguas
africanas com o português vernacular brasileiro em terreiros de
Candomblé de Rio Branco – AC”, discute, entre outras abordagens
de cunho etnográfico, aspectos culturais e linguísticos de dois ter-
reiros de candomblé do município de Rio Branco – AC. A pesqui-
sa levanta uma importante a respeito das principais características
fonético-fonológicas que originaram os vestígios de línguas afri-
canas na Língua-de-santo dos terreiros pesquisados, enaltecendo,
também, as características lexicais do português que constituem a
Língua-do-povo-de-santo dos adeptos dos terreiros no locus da
pesquisa.
A temática que envolve a nossa perspectiva abarca outras
áreas de conhecimento, por se configurar dentro de um universo
que aborda vivências culturas orgânicas de uma sociedade dinâmi-
ca. Citamos, nesse novo conjunto de epistemes, inicialmente, apre-
sentamos o trabalho de Oliveira (2014), sob o título “A dança dos
Orixás e suas representações sociais nos Candomblés Nagô”, numa
perspectiva ligada à noção de performance preconizada na nossa
proposta, o referido estudo identifica e analisa as representações
sociais dos Orixás, a partir do compartilhamento social ocorrido em
relação às suas danças nos ritos e nas festas de candomblé.

187
Diante o exposto, ressaltamos a originalidade de nossa pes-
quisa, uma vez que em busca sistematizada sobre a confluência
linguageira que sistematiza a constituição simbólica/semiótica do
candomblé, não se observa sistematizações a respeito do reconhe-
cimento de formas relativamente estáveis a serviço da representa-
ção de linguagem do segmento cultural em destaque.
Neste texto, ainda, pusemos em destaque uma trajetória que
vislumbra um percurso translinguístico à compreensão do con-
ceito escritura, como produto das articulações entre documento
e monumentos (tidos objetos de memória) e imaginário, no em-
preendimento de uma construção simbólica a partir de categorias
(linguísticas) de análise, em corpus constituído de elementos se-
mióticos oriundos de religião afrobrasileira.
Outrossim, Além das contribuições de Zumthor (1997, 2005,
2007) sobre voz e performances, dentro da categoria de escritura,
buscamos compreender como o imaginário se constitui (DURAND,
1986; 1994; 1996) simbolicamente, através de perspectivas teóricas
que conduzem às concepções de mito e arquétipo (JUNG, 2002;
CAMPBELL, 1985), no emolduramento do sistema linguístico de
sociedades yorubás, originadas da África, trazidas ao Brasil pelo
tráfico negreiro, e fixado através das práticas religiosas, que servi-
rão, ao longo do desenvolvimento desse trabalho, como mecanis-
mos estruturais e funcionais de investigação.

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189
POLÍTICAS PÚBLICAS E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS
NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL:
ETNICIDADE EM QUESTÃO

Geraldo Barboza de Oliveira Junior1

INTRODUÇÃO

O estado do Rio Grande do Norte expressa, através de suas


políticas públicas, pouca ou quase nenhuma operacionalidade que
garanta o acesso em programas de desenvolvimento regional para
as comunidades tradicionais e, em particular, quilombolas e indí-
genas. Essa afirmação é constatada quando verificamos os dados
socioeconômicos, educacionais e de renda nessas mesmas comu-
nidades. A grande maioria das famílias destas comunidades vivem
de renda de programas sociais e de uma agricultura pouco rentá-
vel. (OLIVEIRA JUNIOR, 2019)
Assim, o percurso desenvolvido nesse artigo será no senti-
do de abranger investigações teóricas e empíricas do pensamento
político e social, das ideologias políticas, dos conflitos políticos, so-
ciais e de classes, dos regimes de governo, dos partidos políticos,
dos processos eleitorais, da dinâmica e funcionamento das insti-
tuições políticas, dos processos de construção da hegemonia e do
consenso, mídia e relações de poder, cultura política, poder local e
formas de dominação.

Assim, o tema das desigualdades raciais se afirmou no Bra-


sil no bojo de um ampliado debate sobre a questão social.
Em torno deste tema sobrepuseram-se as demandas de
enfrentamento ao racismo e à discriminação racial e as de-
mandas de Combate às desigualdades sociais. O cruzamen-

1
Bacharel em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em Antropologia (UFSC) e Doutorando em Desenvol-
vimento e Meio Ambiente (UFPI). Professor Universitário e consultor em programas e projetos de
desenvolvimento relacionados com Comunidades Tradicionais. Pesquisa desde os anos 1980 com
Comunidades quilombolas, Indígenas nas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste.
to das duas pautas foi realizado por meio do progressivo
reconhecimento do racismo como mecanismo de produção
e reprodução das hierarquias sociais e fator de restrição da
mobilidade social da população negra, opondo assim pode-
rosos obstáculos à dinâmica da igualdade de oportunidades,
e marcando fortemente a natureza da desigualdade social
brasileira. (THEODORO, 2014:207)

Ou seja, mostrar que todos esses fatores constituem faces de


uma única situação: o racismo estrutural/institucional caracteriza-
do pela ausência de política públicas que vejam essas comunida-
des além de seus aspectos “culturais” ou além de uma busca pelo
exótico. Em relação ao racismo estrutural vale ressaltar que:

Existem vários tipos de racismo no Brasil, cada um com suas


particularidades e formas distintas de atingir o sujeito. Den-
tre esses tipos, o racismo estrutural, por ser decorrente da
estrutura social estabelecida, merece destaque pela sua par-
ticularidade e perigo silencioso. Ele está relacionado às situa-
ções do cotidiano, às regras de um processo social, histórico
e político, aos costumes, e em virtude disso, acaba passando
de forma imperceptível. (HIRSC ET ALLI, 2021:4)

Como consequência dessa prática é fácil perceber que:

O racismo transforma diversidade em desigualdade. Ope-


rando a partir de uma escala de valores que torna socialmen-
te aceitável, e mesmo justificável, a distribuição desigual das
posições sociais privilegiadas, o racismo reafirma e consolida
a subalternidade da população negra. Reproduzido histórica
e estruturalmente, este mecanismo perpassa as relações so-
ciais e inscreve no país uma forma particular de convivência
entre desiguais. Sua vigência naturaliza a desigualdade e re-
força o processo de legitimação e de engessamento da hie-

191
rarquia social, contribuindo para a escassa mobilidade racial
que ainda caracteriza o país. Assim, o racismo constitui-se
em um importante obstáculo ao enfrentamento da pobreza
e da desigualdade social. (THEODORO, 2014:207)

O percurso aqui pretende dar visibilidade às populações tra-


dicionais quilombola e indígenas que -pela primeira vez – foram
incluídas em um projeto de desenvolvimento econômico – O Pro-
grama RN Cidadão - sob a tutela do Banco Mundial como público
preferencial (junto às mulheres e jovens da zona rural).O pioneiris-
mo dessa ação é um marco na relação institucional com um fim es-
pecífico: proporcionar o desenvolvimento local e reconhecer essas
identidades étnicas.
O Programa RN Cidadão (que é a continuidade do Programa
RN Sustentável (2013-2018), através de uma parceria do Governo
do Estado com o Banco Mundial foi pioneiro, pois, de forma geral,
proporcionou uma porta de acesso a um conjunto de políticas so-
ciais nunca imaginado pelas comunidades tradicionais, especifica-
mente, quilombolas e indígenas. Por outro lado, por ser pioneiro
com a temática Desenvolvimento X Etnicidade e, ao mesmo tem-
po, ignorar totalmente a contribuição da Antropologia (que tem
uma metodologia própria para estas situações) na construção de
um olhar mais inclusivo foi alvo de desconfiança pelas comunida-
des envolvidas. (OLIVEIRA JUNIOR, 2019:01).
Ressalto que em minha trajetória acadêmica, esse tema (polí-
ticas públicas, desenvolvimento e etnicidade) foi objeto de investi-
gação em meu mestrado em Antropologia Social na Universidade
Federal de Santa Catarina. Era professor na Universidade Federal
de Roraima, coordenei o Curso de Antropologia Social e atuei na
implantação de um Campus na Maloca da Raposa (Área Indígena
Raposa-Serra do Sol) e, na elaboração de relatórios antropológicos
para a Justiça Federal – em questões relativas à demarcação de
territórios indígenas.
Em minha vida como antropólogo -fora da academia- atuei

192
em Relatórios Antropológicos em comunidades quilombolas e a
implementação de programas de desenvolvimento no âmbito do
Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Atuei em diagnósti-
co socioambiental na Terra Indígena Potiguara (Paraíba) e Coorde-
nei Programas de Compensação Socioambiental em Comunidades
Indígenas em Roraima/Mato Grosso. Aqui no Rio Grande do Nor-
te venho atuando em processos de identificação (reconhecimento
oficial-certificação) de comunidades quilombolas e na elaboração
de projetos de etnodesenvolvimento nessas comunidades, com
mais ênfase a partir de 2015. Assim, ressaltamos que:

As políticas públicas e a antropologia são dois campos dis-


ciplinares diferentes, porém muito próximos, pois faz muito
tempo que a política pública deixou de ser um campo isola-
do, de exclusividade dos técnicos, analistas e cientistas polí-
ticos. Ciências como a sociologia, a antropologia e a história
têm se interessado e aproximado ao campo das políticas pú-
blicas, tomando grandes lições e fazendo grandes aportes.
Assim, as políticas públicas são reconhecidas como produto
de um processo sociocultural, que não é apenas técnico, mas
envolve não só os tecnocratas que a formulam e implemen-
tam, como, também, as pessoas que se beneficiam das polí-
ticas, os grupos de interesse e os movimentos sociais, entre
outros. Assim, as políticas refletem formas de pensar sobre o
mundo e de como nele atuar. Contêm modelos implícitos – e
algumas vezes explícitos - de uma sociedade e de visões de
como os indivíduos devem relacionar-se com a sociedade e
uns com outros. (HINCAPIÉ, 2015:158)

Em relação ao Projeto RN Cidadão, atuei por um período de


12 meses (na implantação, enquanto era denominado “RN Sus-
tentável”) como articulador no Território Agreste-Litoral Sul. Nessa
oportunidade, fui responsável pela divulgação e envolvimento dos
24 municípios dessa região no projeto. Aproveitei a oportunidade

193
e tentei, ao máximo, envolver as comunidades quilombolas e indí-
genas... o que não foi visto com bons olhos. Ouso dizer que foram
criados obstáculos (racismo estrutural/institucional?) em diversos
momentos; o que resultou em desconfiança, desistência e resulta-
dos pouco expressivos nas comunidades quilombolas e indígenas
nesse Território – como no Estado do Rio Grande do Norte, em
geral. Concordo com a máxima que cita:

É preciso refletir também sobre a natureza e historicidade


desse vínculo em cada espaço social de articulação de ações
de governo e ações de seus supostos destinatários, as formas
pelas quais estes as reconfiguram, a elas resistem ou aderem.
Neste terreno, nós nunca deixaremos de ser ‘antropólogos
aplicados’, já que nossa produção pode ser muitas vezes
imediatamente consumida. A vigilância epistemológica deixa
de ser um imperativo do método para se deslocar ao mundo
ético e moral. . (LIMA e CASTRO, 2015:40)

Este artigo então, vai procurar trazer à baila três questões


principais: Por que todas as comunidades, incialmente elencadas,
não foram envolvidas e contempladas? E, quais foram os resulta-
dos, em termos de alcance dos objetivos do projeto RN Cidadão,
para proporcionar um desenvolvimento de forma sustentável nas
comunidades que tiveram projetos aprovados? E, para que servirá
essa avaliação desse programa enquanto política pública pioneira
que possibilitou a inclusão das comunidades quilombolas e indíge-
nas em um Programa de Desenvolvimento Sustentável regional?

O credo desenvolvimentista permanece firmemente encrus-


tado na forma de pensar o presente e o futuro da nação, de
modo que os desafios atuais e futuros para o trabalho cientí-
fico dos antropólogos permanecem e se avolumam. A agen-
da dos antropólogos que trabalham com os grupos aferra-
dos por projetos de desenvolvimento, sobretudo no âmbito

194
da ABA, é invariavelmente subsumida pelas dinâmicas e
processos gerados externamente, ou seja, pelas reviravol-
tas dos planos econômicos e políticos do Estado brasileiro.
Cabe, então, entender a conjuntura político-econômica da
sociedade brasileira na atualidade como forma de acessar o
contexto e alguns dos desafios que permeiam a atuação do
antropólogo nesse campo profissional e científico. (ZHOU-
RI, 2018:147-148)

REFERENCIAL TEÓRICO

Neste texto levamos em conta três categorias de investiga-


ção: políticas públicas, desenvolvimento e etnicidade. Assim, para
políticas públicas, os autores são: josé Erivaldo Oliveira dos Santos
(2015), e os antropólogos Antônio Carlos de Souza Lima e João Ma-
cedo e Castro (2015). Em se tratando de desenvolvimento vamos
considerar Amartya Sen, que trata desenvolvimento como liber-
dade e Gustavo Lins Ribeiro, que relaciona desenvolvimento com
as estruturas de Poder local; e, enfim, sobre etnicidade recorremos
a Fredrik Barth, que define conceitualmente identidade étnica e,
também, à contribuição de Ilka Boaventura Leite, que trata sobre a
invisibilidade das populações negras (e por extensão, as indígenas)
como um mecanismo do racismo institucional.
Nosso primeiro autor, José Erivaldo Oliveira dos Santos, apon-
ta a necessidade da interdisciplinaridade nos estudos sobre as Po-
líticas Públicas. Ele cita que

As políticas públicas repercutem na economia e nas socie-


dades, daí por que qualquer teoria da política pública preci-
sa também explicar as inter-relações entre Estado, política,
economia e sociedade. Tal é também a razão pela qual pes-
quisadores de tantas disciplinas – economia, ciência política,
sociologia, antropologia, geografia, planejamento, gestão e
ciências sociais aplicadas – partilham um interesse comum

195
na área e têm contribuído para avanços teóricos e empíricos.
(SANTOS, 2015:3)

Os antropólogos Antônio Carlos de Souza LIMA e Joao Paulo


Macedo e CASTRO (2015) em “Notas para uma Abordagem An-
tropológica da(s) Política(s) Pública(s)” apontam para noção de
campo; que segundo Bourdieu (1986) é estruturado pelas relações
objetivas entre as posições ocupadas pelos agentes e instituições,
que determinam a forma de suas interações; o que configura um
campo são as posições, as lutas concorrenciais e os interesses. Para
esses autores,

os variados usos conceituais do termo campo em antropo-


logia convergem na direção de uma dimensão particular-
mente significativa desses espaços: a do conflito de interes-
ses, de significados, de retóricas, de afetos mobilizados em
torno de objetos de intervenção muitas vezes díspares, que
recobertos pela suposta homogeneidade linguística, por um
aparente horizonte comum de signos compartilhados, aca-
ba lhes conferindo a unicidade e a racionalidade que de fato
não têm. (LIMA e CASTRO, 2015:36)
Isto se torna ainda mais importante quando lidamos com
intervenções governamentais voltadas para a garantia da
diversidade sociocultural ou para a redução das desigualda-
des sociais, em que a ideia de nação transforma-se em maté-
ria de discussões futurológicas entre intelectuais e ativistas,
pretensiosamente prescritivas dos contornos da sociedade
e do Estado, pensando-se as intervenções governamentais
daí advindas como políticas públicas com capacidade de ra-
cionalmente se efetivarem. (LIMA e CASTRO, 2015:39)

Assim, chegamos à Antropologia Política, com Gustavo Lins


Ribeiro, que sugere que a relação entre comunidades tradicionais
e desenvolvimento, deve ser analisada em um campo.

196
“...constituído por atores que representam vários segmentos
de populações locais (elites locais e líderes de movimentos
sociais, por exemplo); empresários privados, funcionários e
políticos em todos os níveis de governo; pessoal de corpo-
rações nacionais, internacionais e transnacionais (diferentes
tipos de empreiteiros e consultores, por exemplo; e pessoal
de organizações internacionais de desenvolvimento (fun-
cionários de agências multilaterais e bancos regionais, por
exemplo)). As instituições são parte importante desse cam-
po: elas incluem vários tipos de organizações governamen-
tais, organizações não-governamentais, igrejas, sindicatos,
agências multilaterais, entidades industriais e corporações
financeiras.” (RIBEIRO, 2008:110)

Para esse entendimento, de campo como uma arena na qual


os diferentes atores sociais disputam entre si,

A política diz respeito aos processos da dinâmica política e


de competição pelo poder. A relação entre as forças e agen-
tes políticos que competem pelo poder e pelos recursos do
Estado sempre é tensa e dinâmica, oscilando entre conflitos
e acordos, que perpassam as relações entre o poder execu-
tivo, legislativo e judiciário, entre Estado, mercado e socieda-
de civil, entre partidos e grupos parlamentares. A policy, por
fim, é a dimensão dos resultados que derivam dessa intera-
ção entre as forças e agentes dos processos políticos sob o
pano de fundo política institucional. As policies são “o Esta-
do em ação”, os conteúdos concretos da política. (SCHMIDT,
2018:121).

Então,

que desafios essa perspectiva coloca para os antropólogos?


Ora, se o desenvolvimento pode ser compreendido como

197
um projeto de governo característico do Estado Moderno,
ou seja, na acepção de Tânia Murray Li (1999), como um es-
forço para produzir sujeitos governáveis, então as noções de
legibilidade e população se tornam centrais para essa refle-
xão. Entendendo a população com categoria nuclear para
as ordens de justificativa ao desenvolvimento, ou seja, como
seu objeto, meio e fim, torná-la legível passa a ser condição
de governabilidade. (ZHOURI, 2018:151)

Enfim chegamos a Amartya Sem que ele analisa o papel do


desenvolvimento em contraposição ao entendimento que asso-
cia o desenvolvimento somente através de fatores como o cresci-
mento do produto interno bruto, rendas pessoais, industrialização,
avanço tecnológico ou modernização social, não que estes fatores
não contribuam diretamente para a expansão das liberdades, mas
não somente eles. Para o ele, ‘o crescimento econômico não pode
ser considerado um fim em si mesmo’, tem de estar relacionado
com a melhoria de vida dos indivíduos e com o fortalecimento das
liberdades.
Ao relacionarmos políticas públicas e a capacidade de ge-
rar desenvolvimento na perspectiva acima mencionada para co-
munidades indígenas e quilombolas, se faz necessário a noção
de identidade étnica como parte importante para a concepção,
implementação, desenvolvimento e resultados exitosos em pro-
jetos nessas comunidades. Esse conceito é, até então, definido e
explicitado em Roland Barth. Para este autor, diferentes grupos
étnicos têm, compartilhando uma mesma zona, distribuições e
fronteiras superpostas, fluidas. Em outras palavras, relacionam-se
em um continuum de vínculos que vai desde a mera co-residência
até a simbiose ritual, econômica ou política.

198
PERCURSO METODOLÓGICO

Como percurso metodológico, será referência os trabalhos de


Marta Arretche “Tendências no estudo sobre avaliação de políticas
públicas” (2013) e João Pedro Schmidt “Para estudar políticas pú-
blicas: aspectos conceituais, metodológicos e abordagens teóricas”
(2018).
Marta Arretche está na base conceitual dessa catego-
ria e define o que se entende por avaliação de políticas públicas,
distinguindo três modalidades clássicas de avaliação: eficiência,
eficácia e efetividade. Defende que a avaliação é um instrumento
democrático de controle sobre os governos e justifica a necessidade
de avaliações independentes. Entretanto, ela nos remete a uma
questão de ordem ética e subjetiva ao lembra que

é certo que qualquer forma de avaliação envolve


necessariamente um julgamento, vale dizer, trata-se
precipuamente de atribuir um valor, uma medida de
aprovação ou desaprovação a uma política ou programa
público particular, de analisá-la a partir de uma certa
concepção de justiça (explícita ou implícita). Neste sentido,
não existe possibilidade de que qualquer modalidade de
avaliação ou análise de políticas públicas possa ser apenas
instrumental, técnica ou neutra. Nesta perspectiva, qualquer
linha de abordagem das políticas públicas supõe, de parte
do analista, um conjunto de princípios cuja demonstração
é, no limite, impossível, dado que corresponde a opções
valorativas pessoais. Neste sentido, o uso adequado dos
instrumentos de análise e avaliação são fundamentais para
que não se confunda opções pessoais com resultados de
pesquisa. ARRETCHE, 2013:126)

Depois nos reportamos a João Pedro Schmidt (2018) que nos


proporciona uma reflexão de maior densidade no que se refere às

199
políticas públicas. Suas reflexões sobre políticas públicas e inclusão
social são de muita valia, principalmente quando ele coloca que

Entre os critérios comumente utilizados na avaliação de po-


líticas públicas estão a efetividade (a adequação da execu-
ção prática da política ao planejamento), a eficácia (alcance
dos objetivos com base nos resultados), a eficiência (a re-
lação entre resultados e custos) e a legitimidade (aceitação
da política pela população).11 Didaticamente, as perguntas
centrais em cada caso são: a) na avaliação de efetividade: o
que foi planejado foi executado?; b) na avaliação da eficácia:
os objetivos e metas foram alcançados? c) na avaliação da
eficiência: a que custo foram alcançados os resultados?; d)
na avaliação de legitimidade: qual o grau de aceitação da
política por parte dos beneficiados? (SCHMIDT, 2018:138)

Ele nos provoca ainda, ao ressaltar que

toda avaliação revela e esconde. A atenção do avaliador não


deve estar voltada unicamente aos resultados diretos e apa-
rentes. É fundamental que ultrapasse o nível da aparência (o
que se vê e se mede mais diretamente) e rastreie aspectos
mais profundos, intangíveis por vezes, que dizem respeito à
influência da política analisada no modo de vida das pessoas,
nas organizações e instituições do entorno, no ambiente na-
tural e nas outras políticas. (SCHMIDT, 2018:138)

A premissa aqui considerada é que os resultados obtidos


(com base em uma análise do Programa em sua fase implantação
em um dos territórios) foi que a pouca participação das comunida-
des quilombolas e indígenas no projeto pode ser traduzida como
a ausência de um olhar mais inclusivo e tolerante sobre a ques-
tão do desenvolvimento de comunidades tradicionais (etnodesen-
volvimento) pela negação da contribuição da antropologia nesse

200
campo. (OLIVEIRA JUNIOR, 2019:7)
Assim este artigo será no sentido de responder algumas in-
quietações referentes ao Projeto RN Cidadão e seus efeitos nas co-
munidades indígenas e quilombolas. É nesse sentido que pretendo
fazer referência a uma antropologia da política pública, como uma
abordagem interessante para a interpretação dos processos e
dinâmicas organizativos de grupos de populacionais que conduzem
à criação de políticas públicas voltada para seu benefício. (HINCA-
PIÉ, 2015:158). Ainda consideramos que:

Uma etnografia dos sujeitos da política pública resulta muito


útil, já que nos deixa percorrer o caminho de cada sujeito
que delineia a forma como os movimentos sociais e as or-
ganizações pensam o Estado e sua participação nele, assim
como esboça a maneira como o Estado e suas instituições
e funcionários entendem a sociedade e seus problemas e a
forma como respondem a eles. (HINCAPIÉ, 2015::168)

Por que no documento intitulado Análise de Projeto RN Ci-


dadão não existe uma única referência às comunidades indígenas
e quilombolas? Será a invisibilidade reflexo do racismo estrutural/
institucional, colocado como hipótese? Se nos projetos socioam-
bientais (responsáveis pela implementação de sistemas de abas-
tecimento d’água nas residências dessas comunidades) e, no caso
da Comunidade Quilombola de Aroeira, a construção de banheiros
instalados nos quintais das casas -separados das moradias – houve
a consulta da comunidade sobre esse modelo de construção? Nos
outros projetos com finalidade produtiva (confecção de roupas e
produção de alimentos) houve uma melhoria na renda das famílias
envolvidas? Se o Projeto RN Cidadão proporcionou uma diferença
positiva em termos de qualidade de vida nas famílias beneficiadas?
Quais foram os critérios, utilizados no âmbito da equipe de avalia-
ção das Propostas elaboradas pelos articuladores em comunhão
com os moradores dessas comunidades, que excluíram outras co-

201
munidades de serem beneficiadas nos projetos? Quais foram os
motivos que implicaram na desistência de algumas comunidades
em dar continuidade ao processo de manifestação de interesse em
participar do processo de seleção dos Projetos socioambientais ou
produtivos? E enfim, qual a posição do Projeto RN Cidadão em re-
lação a esses resultados?

CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROGRAMA RN-CIDADÃO

A partir de 1980, um conjunto de ações envolvendo políticas


de promoção e/ou igualdade racial começaram a ser implementa-
das em níveis municipais e estaduais. No ano de 2004, O Governo
Federal criou um programa de Políticas Públicas específico para
as comunidades tradicionais. Este, em síntese, pretende formular,
coordenar e monitorar planos, programas e projetos que assegu-
rem o acesso de comunidades tradicionais às políticas públicas, por
meio da articulação entre órgãos federais, estaduais e municipais;
e criar e manter bancos de dados, estudos e diagnósticos sobre os
Povos e Comunidades Tradicionais.
Em 2013, no estado do Rio Grande do Norte, foi estruturado
o Projeto RN Sustentável através de uma parceria entre o Governo
do Estado e o Banco Mundial. Este projeto, com valor total de Dois
Milhões de Dólares, tem com grande novidade a definição do pú-
blico-alvo como sendo de: mulheres e jovens agricultores e comu-
nidades quilombolas e indígenas. É, de fato, o primeiro programa
na região a colocar de forma prioritária comunidades quilombolas
e indígenas. O que em si já constitui um desafio: planejar sobre-e-
-com grupos que, usualmente, são indesejados social e politica-
mente.
O Projeto RN Sustentável investiu (em 2014) R$1,5 milhão
em comunidades quilombolas que deveria ser, assim, distribuído:
Em 17 municípios com um total de 22 comunidades quilombolas
certificadas. e população total de 2.298 famílias. Entretanto, fo-
ram aprovados projetos em 07 municípios com 06 comunidades

202
quilombolas e população de total de 614 famílias. Mesmo, assim,
somente foram beneficiadas 257 famílias quilombolas nessas 06
comunidades.
O projeto levou em consideração, inicialmente, as 22 comuni-
dades que estavam certificadas. Na oportunidade que ingressei no
quadro dos consultores, disponibilizei minha pesquisa de mais de
20 anos (desde 1987) sobre o mapeamento das comunidades qui-
lombolas. Minha opção por disponibilizar minha pesquisa foi pelo
fato que, na orientação do Banco Mundial, bastava que a comu-
nidade se autodeclarasse enquanto comunidade quilombola ou
indígena. Mesmo considerando, apenas, as 22 comunidades qui-
lombolas e seu quantitativo de famílias, chegamos a um resultado
pouco satisfatório: menos de trinta por cento (30%) das famílias
foram beneficiadas. (Ver tabelas a seguir)

Nº Cidade Comunidade Quilombola Nº famílias


01 Ielmo Marinho Nova Descoberta 120
02 Portalegre Sítio Lages
03 Portalegre Arrojado/Engenho 187
04 Portalegre Sítio Pega
05 Portalegre Sítio Sobrado
06 Assu Bela Vista do Piató 184
07 Bom Jesus Sítio Grossos 136
08 Bom Jesus Sítio Pavilhão
09 Currais Novos Negros do Riacho 56
10 Lagoa Nova/Bodó Macambira 130
11 Parnamirm Moita verde 148
12 Pedro Avelino Aroeira 80
13 Touros Baixa do Quinquim 234
14 Touros Geral
15 São Tomé Gameleira 107
16 Parelhas Boa Vista dos Negros 51
17 Macaíba Capoeiras 329
18 Ipanguaçú Picadas 41
19 Tibau do Sul Sibaúma 212
20 Poço Branco Acauã 117

203
21 Patu Jatobá 45
22 Santo Antônio Cajazeiras 121
17 Municípios 22 Comunidades quilombolas 2.298 Famí-
lias

Municípios que tiveram projetos aprovados em comunida-


des quilombolas:

Nº Cidade Comunidade Quilombola Nº Famílias


01 Pedro Avelino Aroeira 80
02 Patu Jatobá 45
03 Santo Antônio Cajazeiras 121
04 Lagoa Nova/Bodó Macambira 130
05 Parelhas Boa Vista dos Negros 51
06 Portalegre Sobrado 187
07 Municípios 06 Comunidades 614 Famílias
OBS: 257 famílias beneficiadas

A problemática aqui levantada trata dos fatores que implicam


em resultados pouco satisfatórios para o Projeto RN Cidadão, em
especial, com as comunidades quilombolas e indígenas. Mas, mes-
mo assim. Observa-se que:

As políticas públicas no Brasil não avançarão se não houver


uma mudança na cultura, no pensar e aderindo à interse-
torialidade numa visão desburocrática da máquina pública,
objetivando alcançar resultados para cumprir os projetos in-
dividuais e coletivos expressos nessa nova condição estrutu-
ral. (SANTOS, 2015:14).

Evidentemente, os motivos de um insucesso ou um sucesso


pouco visível e exemplar não podem ser colocados de forma gené-
rica e simplista. Pois,

204
diante do cenário aqui exposto, fica claro que uma das prin-
cipais provocações à figura do gestor público hoje é a estru-
turação da sua atuação frente a um cenário social complexo,
que exige respostas rápidas e eficazes e contatos estrutura-
dos por toda a máquina pública, o que afronta alguns pilares
importantes da figura da burocracia, mas oferece excelentes
oportunidades de mudança de paradigma para a Adminis-
tração Pública. (SANTOS, 2015:13-14).

Assim, numa tentativa de se abarcar as motivações para um


resultado positivo na implementação das políticas públicas, surge
outro desafio: não ter foco de culpabilidade somente no Estado,
mas tentar perceber um leque mais amplo de inúmeras motiva-
ções que sejam resultados de um olhar investigativo, pois:

O senso comum tende a atribuir os fracassos das políticas


a fatores como a incompetência, a falta de vontade e a cor-
rupção dos governantes. Sem deixar de levar em conta es-
ses fatores, os estudos científicos reportam inúmeros outros
aspectos, como: a) consequências negativas derivadas de
um estilo de gestão excessivamente centralizado ou desar-
ticulado; b) a falta de uma visão sistêmica no planejamento
(de modo que os efeitos positivos de uma política são anu-
lados pelos efeitos negativos de outra); c) a supremacia de
interesses particulares poderosos (muitas vezes invisíveis)
sobre os interesses da maioria; d) o predomínio de valores
e crenças na sociedade que obstaculizam a implementação
de políticas (como o atendimento humanizado ao aborta-
mento, preconizado pelo Ministério da Saúde); e) os limites
(insuperáveis) da inteligência humana na tomada de decisão
pública; f) recursos escassos para atender demandas sociais
crescentes7 ; g) a interferência de forças macrossociais que
estão além do controle dos gestores. . (SCHMIDT, 2018:125-
126).

205
Da mesma forma que:

A problemática da adesão dos atores é outro desafio funda-


mental para a introdução da intersetorialidade na lógica da
gestão pública. Convencer atores que competem pela priori-
dade da agenda política (e por consequência, pelos recursos
disponíveis) a trabalharem em cooperação é uma questão
que só será solucionada com a admissão de uma nova lógi-
ca de gestão da Administração Pública, substituindo a con-
corrência pela colaboração entre os envolvidos. (SANTOS,
2015:14).

Sobre o pouco interesse ou mesmo o explícito desinteresse


das comunidades quilombolas, uma análise desenvolvida anterior-
mente (OLIVEIRA JUNIOR, 2019) foi enfática em sustentar que a
ausência da consideração da especificidade étnica e de conceitos
básicos do desenvolvimento sustentável foram cruciais para resul-
tados inexpressíveis em termos de melhoria de qualidade de vida
para as comunidades quilombolas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Este artigo então, vai procurar trazer à baila três questões


principais: Por que todas as comunidades, incialmente elencadas,
não foram envolvidas e contempladas? E, quais foram os resulta-
dos, em termos de alcance dos objetivos do projeto RN Cidadão,
para proporcionar um desenvolvimento de forma sustentável nas
comunidades que tiveram projetos aprovados? E, para que servirá
essa avaliação desse programa enquanto política pública pioneira
que possibilitou a inclusão das comunidades quilombolas e indíge-
nas em um Programa de Desenvolvimento Sustentável regional?
As comunidades elencadas no escopo original do Projeto
RN Sustentável tiveram como maior barreira o racismo estrutural/
institucional – que tanta caracteriza – os espaços públicos. As ins-

206
tituições são reflexo de seus servidores; e em um estado que a
discussão sobre racismo e intolerância está, basicamente, limitada
aos espaços ocupados por militantes e/ou acadêmicos que abor-
dam a situação. Em termos mais definidos, essa discussão é pró-
pria das populações e grupos atingidos. A construção de uma dis-
cussão multidisciplinar e interdisciplinar sobre o racismo não está
na agenda pública. A pauta relacionada às questões étnico-raciais
ainda está (em termos pragmáticos) no nível de abordagem que
contempla as questões culturais e/ou folclóricas.
Nesse sentido, podemos citar o exemplo das três comunida-
des indígenas do território Agreste/Litoral Sul: somente uma co-
munidade teve sua Manifestação de Interesse aprovada; as outras
duas recusaram participar do projeto. Uma situação, que agrava
mais este quadro foi a alteração da escola anteriormente negocia-
da com os indígenas. Dentro de uma ideia de sustentabilidade está
a solidariedade em relação aos “pequenos”. Neste caso, o Estado,
em forma de Projeto RN Sustentável ignorou uma demanda que
somente viria a fortalecer a identidade indígena daquela comuni-
dade.
O outro exemplo é em relação às comunidades quilombo-
las, ainda, do território Agreste-Litoral Sul. Das nove comunidades
quilombolas identificadas no Território Agreste/Litoral Sul apenas
cinco comunidades tentaram o processo de Manifestar Interesse
em participar dos editais do Projeto RN Sustentável. Deste total,
duas comunidades foram aprovadas; duas desistiram do processo;
e, uma foi sumariamente reprovada. Mesmo sendo articulador do
Território, não fui integrado nos momentos de consultas a essas
comunidades. A ausência de diálogo foi uma marca dessa etapa
do processo.

Ou seja, faltou sensibilidade nesta situação para poder


“transformar” o sonho de comunidade de ter um empreen-
dimento, que seria de uma fábrica de polpa de frutas, ser
alterado para uma fábrica de doces, como ocorreu em Caja-

207
zeiras. Isto, se fosse levado em conta a informação passada
pelo articulador sobre a presença de diversas frutíferas na
área da comunidade e em seu entorno. O contra-argumento
foi que a comunidade não exercia esta atividade rotineira-
mente. O projeto, neste caso, potencializa ações de econo-
mia solidária já existentes nas comunidades.
Se levarmos em conta que a grande maioria das famílias
destas comunidades vivem de renda de programas sociais e
de uma agricultura pouco rentável, é pensar muito alto que
estas comunidades tenham um sistema de produção ativo.
(OLIVEIRA JUNIOR, 2019:38-39)

Em relação ao alcance dos objetivos do Projeto RN Susten-


tável nessas comunidades, não se percebe (passados 10 anos)
maiores progressos. Ainda no ano de 2021 estava sendo concluí-
das etapas referentes ao Projeto de segurança hídrica (no caso, a
instalação de banheiros e sistema de abastecimento domiciliar de
água. A falta de sensibilidade é um exemplo da construção dos ba-
nheiros em uma comunidade quilombola. Estes foram construídos
separados das casas!!!

208
Figura 1. Casas construídas com banheiros separados.2020.

Nosso último questionamento a respeito da utilidade dessa


avaliação desse programa enquanto política pública de inclusão
das comunidades quilombolas e indígenas em um Programa de
Desenvolvimento Sustentável regional. A resposta está no último
relatório de avaliação do Programa. Chama a atenção o fato da
inexistência de qualquer citação sobre essas comunidades nesse
documento.
De forma resumida, sobre o que foi colocado, podemos ainda
elencar algumas hipóteses no sentido de explicitar os resultados
mostrados:

a) Ausência de aplicabilidade dos conceitos mínimos de De-


senvolvimento sustentável e, em especial, do etnodesenvol-
vimento ao se tratar de comunidades quilombolas e indí-
genas. Para isso, vale considerar na prática do projeto, os
seguintes aspectos:
a.1. Visão economicista com base no empreendedorismo;
a.2. Ausência de uma visão antropológica para tratar da es-

209
pecificidade das identidades quilombolas e indígenas;
a.3. Falta de capacitação dos técnicos em princípios do desen-
volvimento sustentável e etnodesenvolvimento.
b) A presença de atitudes que demonstram o Racismo Estru-
tural/Institucional no âmbito do Projeto pode ser mostrada
pelos fatos:
b.1. negação da etnicidade quilombola e indígena no cotidia-
no do Projeto RN Sustentável;
b.2. Não articulação com o Sistema cadastro Único2;
b.3. Não articulação com a Coordenadoria Estadual de Polí-
ticas de Promoção de Políticas de Igualdade Racial no Rio
Grande do Norte - COEPPIR-RN;
b.4. Tratamento não diferenciado na articulação com essas
comunidades.
c) Por fim, um aspecto a ser considerado é relacionado ao
olhar dos quilombolas e indígenas sobre essa política pú-
blica traduzida pela não confiabilidade de algumas comuni-
dades quilombolas e indígenas na relação institucional que
estava sendo estabelecida. A ausência de um contato mais
frequente e de uma relação mais transparente e horizontal
somado às ações (de ordem prática) que dificultaram e dis-
pensaram algumas comunidades do acesso aos objetivos de
projeto foram fatores que contribuíram a esse quadro social
nebuloso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na própria concepção do Programa RN Sustentável – que se


manteve no Programa RN Cidadão - estava pautada a categoria
etnodesenvolvimento como mecanismo de inclusão das comuni-
dades tradicionais. Entretanto, a metodologia de abordagem nes-
tas comunidades foi pautada pela ausência de informações básicas

2
Cadastro Nacional que identifica TODAS as famílias que pertencem a categoria “Comunidades Tra-
dicionais”: Indígenas, Quilombolas, Ciganos, Povos de Terreiros (religiosos de matriz africana ou afro-
-brasileira) e Pescadores Tradicionais numa relação com identidade étnica.

210
sobre estes grupos étnicos. Usou-se a metodologia comum aos
agricultores familiares. Assim,

a perspectiva da negociação de conflito, institucionalizada


pelo paradigma da adequação ambiental e disseminada
pelo Banco Mundial, repousa em princípios liberais de indi-
vidualização de sujeitos e igualdade de tratamento, os quais
são supostamente assegurados pela universalidade da lei.
Entretanto, tais princípios, que são aparentemente demo-
cráticos e justos (solução todos ganham), quando aplicados
em sociedade estruturadas por diferentes modalidades de
desigualdade – isto é, desigualdades sociais, econômicas,
culturais e ambientais – e por grupos com direitos diferen-
ciados de cidadania (indígenas, quilombolas, entre outros),
tendem a perpetuar essas condições desiguais como evi-
denciado pelas centenas de casos registrados nas diferentes
pesquisas de grupos que se reúnem no âmbito da RBA, da
REA, da RAM e demais fóruns de pesquisa do país e das
Américas, assim como pelas diferentes cartografias de con-
flitos ambientais e de comunidades tradicionais realizadas
ao longo da última década. (ZHOURI, 2018:153)

Aliado a este fato, paira a “descrença cultural” no Estado do


RN sobre a existência e a autenticidades destes grupos.

Cremos, pois, que o estudo das ações de Estado no terre-


no da ‘cultura’ em muito se beneficiaria se essa perspectiva
de cunho macro histórica e sociológica estivesse presente
ensejando um horizonte analítico para o estudo etnográfi-
co. Abandonando os modelos da ciência política de elabo-
ração de políticas públicas, pensando que governar é gestar
e gerir (Souza Lima 2003) significados compartilhados de
largo espectro e profundidade temporal, passamos a transi-
tar num registro para o qual a etnografia é essencial, como

211
instrumento de desvendamento e como passo à construção
teórica. (LIMA e CASTRO, 2015:39-40)

Por outro lado, o Projeto RN Sustentável proporcionou avan-


ços estruturais, como por exemplo, um mapeamento realizado para
identificar associações nestas comunidades; e, ter como condicio-
nante a participação de representantes das comunidades indíge-
nas e quilombolas nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento
Rural Sustentável - CMDS. Isto se traduz como uma oportunidade
única na história destas comunidades em sua relação com o Esta-
do.
Após cinco anos de sua implementação, o Projeto RN foi rees-
truturado sob uma nova rubrica: Programa RN Cidadão. Nesse
contexto, foi criado um espaço institucional: a Secretaria de Gestão
de Projetos e Metas de Governo e de Relações Institucionais e de-
signada uma Coordenação do Projeto de Desenvolvimento Sus-
tentável do RN.
O projeto RN Cidadão elaborou um diagnóstico referentes
aos resultados obtidos no período 2018-2020. O documento “Go-
verno Cidadão: 02 anos de avanços + 21 meses para avançar ainda
mais” mostra uma avaliação do Projeto (anteriormente denomina-
do RN Sustentável) nos dois primeiros anos de gestão no Governo
da professora Fátima Bezerra. Este documento, entretanto, em sua
avaliação dos resultados obtidos, não faz nenhuma citação às co-
munidades quilombolas e indígenas.
Consideramos que, alheio a um Governo Estadual que tem
uma concepção política de caráter popular que, por sua vez, garan-
tiu algumas conquistas -de forma geral- para as populações mais
vulneráveis, existe a sombra e a persistência do racismo estrutu-
ral/institucional que impede um avanço real e significativo para as
populações tradicionais, aqui sendo representadas pelas comu-
nidades quilombolas e indígenas. Um olhar que não considera a
contribuição da Antropologia às políticas públicas que envolvem
as populações tradicionais vem sendo reclamado por essa ciência

212
desde o período logo após o fim de Segunda Guerra Mundial no
século XX.... Aguardemos!

REFERÊNCIAS

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213
TENTATIVAS DE SILENCIAMENTOS: PLANO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO (2001-2024) E O AVANÇO DAS
POLÍTICAS ANTIGÊNERO NO BRASIL

Liliann Rose Pereira de Freitas1


Fábio Ronaldo da Silva2
Rosilene Dias Montenegro3

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo discutir e analisar o pro-


cesso de negociação e produção de políticas educacionais, articu-
ladas pelo Estado, no tocante as questões de gênero e diversidade
sexual. E, de como se deram as tensões e reações, no que se refere
às questões de gênero e sexualidade, geradas na aprovação do
Plano Nacional de Educação (2001-2024), face aos avanços das
políticas antigênero.
Para tanto, ancoramos nossas problematizações em Carreira
(2015), Vianna (2018), Miguel (2016), Miskolci & Campana (2017).
Por se tratar de uma pesquisa qualitativa exploratória, aliam-se às
fontes bibliográficas os documentos legais que abalizam nossas
discussões por meio dos dispositivos de poder que operam e cir-
culam na produção e implementação das políticas educacionais.
Consideramos que, com uma força brutal e mobilizadora as po-
1
Mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Especialista em História
do Brasil pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Professora da Educação básica da Rede
Estadual de Ensino da Paraíba e do Município de Pocinhos/PB. Atualmente desenvolve pesquisa na
área de História Cultural com ênfase nos estudos de Gênero e Educação.
E-mail: liliannrosepf@gmail.com.
2
Pós-doutorando em História pelo PPGH/UFCG. Doutor em História pelo PPGH/UFPE. Professor
colaborador da Pós Graduação em História da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Realiza pesquisa nas áreas de Comunicação e História, atuando principalmente nos seguintes temas:
Estudos de gênero, sexualidades, velhices, imprensa homoerótica, homossexualidades, imagem, ci-
nema, história oral, arquivo jornalístico, memória, novas tecnologias da informação.
E-mail: fabiocg@gmail.com
3
Professora Titular em História na Universidade Federal de Campina Grande. Tem Pós-Doutorado
em Dinâmicas territoriais do desenvolvimento e regionalizações pelo PPGEO/UFPE (2020). Atua no
curso de Graduação em História e na Pós-graduação em História da UFCG. Tem experiência na área
de História do Brasil República, com ênfase nos temas: memória, história oral, História da ciência e
tecnologia, estudos de gênero, políticas públicas e desenvolvimento regional.
E-mail: rosilene.dias@professor.ufcg.edu.br.
líticas antigênero, voltadas para educação, foram paulatinamente
penetrando nos marcos legais da educação sendo pulverizadas na
sociedade.
Os debates aqui apresentados decorrem do processo de pro-
dução e aprovação de documentos legais que legitimarão dife-
rentes visões, concepções e visões de mundo acerca das questões
de gênero e diversidade sexual, especialmente no governo Dilma
Rousseff (2011-2014/2015-2016). Destacamos de forma singular,
o Plano, cuja discussão inicia-se ainda no governo Lula, mas com
sua aprovação só ocorrendo posteriormente.
Esse debate traz sua complexidade explicita não só no PNE,
mas de como o contexto político e social desses dois governos re-
percutirá na apresentação de projetos de lei, nos planos estaduais
e municipais brasileiros, principalmente quando novos(as) atores/
atrizes políticos(as) com suas pautas reivindicatórias ganharem es-
paço. Mas que, por outro lado, outras aproximações marcam esse
contexto, especialmente na construção de todo um corpo discursi-
vo que se forma em torno das políticas antigênero endossadas na
campanha do ex presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) e fomen-
tadas em seu governo.
Nessa arena de conflitos, os mecanismos da biopolítica são
interpretados e analisados em suas formas regulatórias e de con-
trole. A escola, passa a ser o principal alvo dessas discussões. O que
deve ser ensinado e o que não se deve ensinar entra na centrali-
dade das preocupações, com um inimigo em comum tornando-se
motivo de combate, a chamada “ideologia de gênero”.

CONTINUIDADE OU RUPTURA?

Como primeira mulher eleita, democraticamente, em nossa


história republicana, Dilma Rousseff (PT)4 tomou posse contando
com total apoio do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT).
Com sua vitória ao governo federal, intuía-se que projetos sociais e
4
Dilma Rousseff foi eleita em 31 de outubro de 2010 com 56,05% dos votos válidos contra 43,95%
de José Serra e tomou posse na presidência da República em 1 de janeiro de 2011.

215
econômicos, que vinham sendo implementados desde a primeira
gestão de Lula, não sofreriam solução de continuidade. E era crível
assim pensar, visto que a sucessão era lastreada pela ampla po-
pularidade que Lula emprestava a Dilma5. Porém, ao assumir, ela
iniciou uma série de ajustes interministeriais, sinalizando que faria
um gradual processo de mudanças, sendo uma delas em secreta-
rias ligadas ao Ministério da Educação e Cultura.
Com a proximidade do término da vigência de mais um de-
cênio (2011-2020) do Plano Nacional de Educação, construído no
governo de Fernando Henrique Cardoso, engendrou-se uma mo-
vimentação, interna e externa, entre as representações dos movi-
mentos sociais e dos conselhos, do governo e da sociedade civil,
para compor um ciclo de discussões e para a inserção de agen-
das sociais na construção desse novo plano decenal. O objetivo
era claro, abranger ainda mais o diálogo entre as agendas sociais
com uma maior efetivação das políticas educacionais e, sobretudo,
o fortalecimento das pautas direcionadas aos Direitos Humanos6.
Mas, é tangível considerar que já havia uma política de inclusão em
curso relacionada a gênero e a diversidade sexual, assim como, se
via a presença desses temas na formulação e na implementação de
documentos legais que regiam a educação.
Diante dessas circunstâncias, se pressupunha que no gover-
no, que hora se iniciava algumas dessas políticas educacionais se-
riam ratificadas e/ou reestruturadas por se considerar, inclusive, o
necessário amadurecimento que vinha sendo trilhado, principal-
mente na temática sobre diversidade. Não obstante, o primeiro go-
verno Dilma Rousseff foi marcado, não só, mas também, por um
quadro conflituoso que se desenhou de maneira eloquente, no

5
Segundo pesquisa encomendada ao IBGE, pela Confederação Nacional da Indústria, a popularida-
de de Lula em seu segundo ano de mandado foi de 87%.
6
Conferências e Fóruns mundiais ocorridos, principalmente, no final do século XX e início do século
XXI, sinalizavam para a adoção gradativa, ou imediata, de compromissos entre países e seus pares
visando a promoção de uma sociedade mais igualitária. Seguia-se o entendimento que, para se
combater os vários tipos de desigualdade, era urgente a implementação de políticas sociais que
combatessem as diversas formas de exclusão, seja pela discriminação por raça ou gênero. Muitos
dos planos e programas criados no Brasil, a exemplo do Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e dos Direitos Humanos de LGBT (BRASIL, 2009), foram influenciados por deliberações construídas
em muitos desses espaços de debate.

216
processo de discussão, produção e aprovação de projetos sociais
e de elaboração de conteúdos voltados para os direitos humanos.
Um exemplo ilustrativo desse quadro, foi a reação dos setores
conservadores, instalados no governo, diante da distribuição do
chamado “Kit Escola sem Homofobia”. E é importante lembrar que
dentro do Programa Escola Sem Homofobia se previa a produção
de materiais didáticos e de formação continuada, para que profes-
sores(as) e técnicos(as) em educação pudessem utilizar, em todos
os estados, nas ações de enfrentamento a LGBTfobia.

O material contava com “caderno de atividades para uso dos


professores(as) em sala de aula; seis boletins para discussão
com alunos e três áudio visuais, cada um deles com um guia,
um cartaz e cartas de apresentação para gestores e educa-
dores (VIANNA, 2018, p. 92).

Administrativamente, pensava-se ser consensual a necessida-


de de se continuar com as ações voltadas para a diversidade e que
esse tema não poderia ser colocado em xeque, mas o que se viu,
na prática, foi justamente o inverso. Pressões para que o “Kit Escola
sem Homofobia” não chegasse às escolas eclodiram no Congresso
Nacional, vindas especialmente das bancadas evangélica e ruralis-
ta e dos partidos de extrema direita7, “alegando sua inadequação”
(VIANNA, 2018, p. 93).
Num contexto de tantas pressões, a presidenta Dilma vetou
parcialmente o material que seria distribuído à Rede Pública de En-
sino, talvez temendo uma repercussão ainda mais negativa de sua
gestão. Entretanto, o restante do material, que não foi vetado, tam-
bém não foi distribuído nas escolas públicas, mesmo que a elabo-
ração do “Escola Sem Homofobia”, resultante do programa “Brasil
Sem Homofobia”, tenha se amparado na necessidade do combate
as várias formas de desigualdade, violência e exclusão, especifica-

7
A reação dos setores conservadores continuou forte nas eleições presidenciais de 2018, quando
a questão de gênero voltou a ser polemizada a partir da menção, de um dos candidatos, de que o
Governo Federal distribuiria um suposto “kit gay” nas escolas.

217
mente de gênero e diversidade sexual. Também se desconsiderou
os dados estatísticos, que provam o tamanho de nossa respon-
sabilidade social, e que foram fundamentais para se fomentar os
debates e as formulações desses Programas.
Segundo Carreira (2015, p. 232), além das pressões para o
veto da presidenta, “observou-se também uma postura tímida de
outros setores de esquerda – para além das entidades e dos mo-
vimentos sociais vinculados a essas agendas – na defesa de várias
dessas questões em xeque”. De certo, não podemos afirmar, obje-
tivamente, a que se deve essa tímida postura da esquerda ao situá-
-la em contraposição à ofensiva conservadora, mas também, não
podemos descartar o fato de que essa direita conservadora foi su-
bestimada. Talvez, não se acreditasse verdadeiramente que fosse
possível um retrocesso, após os avanços nas políticas educacionais
obtidos no Governo Lula. Todavia, outros embates ainda acontece-
riam, assim como, mais adiante outros recuos seriam visualizados.

UMA NOVA ARENA DE DEBATES

O “Programa Escola Sem Homofobia” sofreu considerável


baixa quando a coleção “Kit Escola sem Homofobia”, uma de suas
ações mais importantes, deixou de ser distribuída nas escolas. Sem
contar que seus propósitos foram totalmente desvirtuados a par-
tir do momento em que o então deputado federal Jair Bolsona-
ro8 o alcunhou de “kit gay” num pronunciamento na Câmara dos
Deputados, em 2010. Não tardou para que o cognome, proposi-
tadamente equivocado e desvirtualizado de seu sentido original,
viralizasse nas mídias sociais. “Depois da polêmica pública sobre o
kit de materiais, as ações do Programa foram interrompidas, com
reações contrárias do movimento LGBT e de aliados” (CARREIRA,
2015, p. 234).
O veto desse material demonstrava, também, as crescentes
inquietudes do governo Dilma Rousseff frente a composição de
8
Nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro se elegeu, em 2º turno, presidente da República com 55,13%
dos votos válidos, vencendo seu opositor Fernando Haddad que obteve 44,87% dos votos.

218
um Congresso Nacional com forte ascendência da bancada evan-
gélica, que tinha os deputados Jair Bolsonaro e Marco Feliciano9
como seus principais expoentes. Vianna (2018, p. 93) atenta para o
fato de que no mesmo ano em que o “Kit Escola sem Homofobia”
foi vetado pela presidência da República, o “Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo
sexo”. Assim, ao vetar um conteúdo didático que não só se contra-
põe as várias formas de exclusão, como oferece outros olhares até
mais acolhedores a diversidade sexual, além de propor que seja
suprimida a ideia monolítica de família heterossexual e cristã como
único arranjo familiar possível, o governo federal terminou recuan-
do no caminho que vinha trilhando.
Ao que parece faltou um trato mais estratégico em torno do
“Programa Escola Sem Homofobia”, até porque não seria de se es-
tranhar que esse material causaria mesmo grande indignação nos
setores mais conservadores. De fato, o veto não foi apenas uma
pequena vitória desses setores frente a política educacional do go-
verno Dilma, pois ele se configurou num mecanismo que impulsio-
nou outras pautas, ainda mais radicais. Foi a partir desse momento,
que a bancada religiosa, na Câmara dos Deputados, sentiu-se en-
corajada a lançar suas ofensivas contra as pautas e projetos sobre
gênero e a diversidade sexual.
É essencial assinalar que esse contexto demarcou uma cor-
relação de forças na sociedade. Na maioria das vezes, quando se
tem ganhos no reconhecimento dos direitos civis, e que estes são
provenientes de lutas, seja do movimento de mulheres ou das cau-
sas LGBTQIAP+, podemos ver outras forças, contrarias, exercendo,
com igual potência, a indignação quanto a esses ganhos. É comum,
inclusive, termos recuos dessas conquistas, com o enfraquecimen-
to de importantes canais que possibilitam o diálogo entre o gover-
no e os movimentos. Esses caminhos reativos, que corroboraram

9
Nas eleições de 2010, quando Dilma Rousseff foi eleita presidenta para seu primeiro mandato, fo-
ram eleitos 98 deputados federais autodeclarados religiosos. Segundo levantamento realizado pelo
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), desses 98 deputados, 63 se autode-
claram evangélicos.

219
para a não distribuição do KIT escolar, causaram grande frustação
entre seus elaboradores, dentro da própria SECADI, e contribuí-
ram para que os movimentos sociais se distanciassem do gover-
no Dilma. Esse quadro conflituoso se desenhou e se tornou ainda
mais turbulento no processo de discussão, produção e aprovação
do Plano Nacional de Educação (2004-2024).

A proposta do novo PNE foi apresentada na Câmara dos


Deputados em 20 de dezembro de 2010. Após quase dois
anos de debates e tramitação, a redação final aprovada
pela Câmara dos Deputados e encaminhada para o Senado
contemplou as deliberações das Conferências Nacionais de
Educação sobre equidade de gênero e o respeito à diversi-
dade sexual de duas formas principais (REIS; EGGERT, 2017,
p. 15).

O texto do Plano, encaminhado ao plenário do Senado, teve


trechos retirados como “promoção da igualdade racial, regional, de
gênero e de Orientação sexual e na erradicação de todas as formas
de discriminação”. (BRASIL, 2013).
Diante os cortes, o texto voltou a Câmera do Deputados, em
2014, assomando, ainda mais, as discussões em torno de gêne-
ro e diversidade sexual. De um lado deputados(as), ligados a ban-
cada religiosa, defendiam, de forma veemente, os papeis sexua-
dos de gênero como lugares naturais e cristianizados. Sem contar,
os(as) congressistas, em sua maioria religiosos(as), que defendiam
posições fundamentalistas, fixando seus discursos nos riscos que
ocorreriam se a educação se tornasse plural demais, por conside-
rar outras identidades sexuais. Tínhamos, ainda, deputados(as) li-
gados(as) aos partidos de esquerda, que ancoravam suas falas no
direito constitucional e no entendimento da escola enquanto um
espaço plural e, consequentemente, democrático. Ressalta-se que,
no texto inicial do PNE (2014-2024), encaminhado à votação na
Câmara e ao Senado, se reforçava a promoção da diversidade e a

220
necessidade de se erradicar formas específicas de discriminação.
Esses princípios que tratam da superação da discriminação (inciso
III, art. 2º) e da promoção da diversidade (inciso X, art. 2º) foram
postos em questionamento pelo Senado.
Quando o texto retornou à Câmara, vemos os efeitos da po-
lítica antigênero tomando corpo na Estratégia 13 - meta 3, relacio-
nada ao Ensino Médio, ao propor “implementar políticas de pre-
venção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas
de discriminação, criando rede de proteção contra formas associa-
das de exclusão” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014).
Mesmo nesse cenário de tantos embates, o resultado é que, em
25 de junho de 2014, a Lei 13.005 que institui o Plano Nacional de
Educação foi sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff. “A versão
final sancionada como lei aprovou como meta o combate às desi-
gualdades educacionais, referindo-se de forma genérica à erradi-
cação de todas as formas de discriminação” (VIANNA, 2018, p. 94).
Interessa-nos perceber que são nessas relações de poder, e
de dominação, que a escola vai se constituindo num observatório
político que pode legitimar, ou punir, discursos não alinhados às
tendências da ideologia vigente. Posteriormente, isso se evidencia
na aprovação da Base Comum Curricular – BNCC (2017) – do En-
sino Fundamental que não menciona questões de gênero e orien-
tação sexual, apesar da perspectiva reforçada em outras leis, de
que se possa educar os jovens para o respeito a diversidade, sem
discriminação e preconceitos. Analisando a conjuntura política que
lastreia a supressão de gênero e diversidade sexual no PNE (2014-
2024), Luís Felipe Miguel nos mostra que,

a vitória conservadora no Plano Nacional de Educação, em


2015, foi constantemente evocada como sendo um veto ter-
minante a qualquer iniciativa em prol da igualdade de gêne-
ro e do respeito à diversidade sexual. A tribuna da Câmara foi
usada para denunciar livros didáticos que ‘corrompem pela
ideologia de gênero’, mas que foram recomendados pela co-

221
missão do Ministério da Educação que selecionou obras a
serem adotadas nas escolas [...] (MIGUEL, 2016, p. 616).

Atitudes e visões reativas a inserção de gênero e diversidade


no contexto escolar, contribuíram fortemente para a criação, para
posterior combate, de um inimigo em comum - o sintagma “ideo-
logia de gênero”10 nas escolas, que de maneira deturpada foi se
estruturando como justificativa discursiva para legitimar e abarcar
visões cada vez mais conservadoras presentes na sociedade. Pro-
gressivamente, foi se gerando um pânico na sociedade, pois, de
alguma forma, sob a justificativa de que a solidez da família tra-
dicional brasileira estaria ameaçada, entendia-se que o sintagma
“ideologia de gênero”, uma vez inserido no currículo comum, co-
locaria em desarmonia a naturalização dos papéis sexuais funda-
mentados na heteronormatividade e a escola seria a principal res-
ponsável por isso.

OS INIMIGOS EM COMUM

Com todo esse conjunto de mudanças na agenda governa-


mental, e as pressões políticas dos setores mais conservadores da
sociedade, contrários a diversidade de gênero e sexual, torna-se
preponderante evocar algumas reflexões sobre as circunstâncias e
conjunturas que foram propícias para que tão rapidamente se ge-
rasse não só um pânico moral, como um cerceamento do exercício
dos(as) professores(as) no cotidiano escolar, em alguns casos até
mesmo legitimados em documentos legais. Primeiramente, é im-
portante destacar a disseminação do “pânico moral”, como umas
das grandes instabilidades sociais, que teve forte repercussão e
atraiu atores/atrizes políticos(as) conservadores(as) e\ou precon-
ceituosos(as) que se sentiam representados(as) em seus temores

10
Adotamos a perspectiva de Rogério Junqueira (2017) que trata “ideologia de gênero” enquan-
to sintagma aplainada por uma falta de exatidão conceitual, principalmente quando utilizado para
justificar o pânico moral. Como melhor aprofundamento a essa questão, recomenda-se o texto do
referido autor, “A invenção da “Ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político discursivo
e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”.

222
e que diante da espetacularização do contexto ficaram alarmados
(JUNQUEIRA, 2009). Assim, os grupos mais conservadores sub-
verteram a importância de se tratar assuntos relacionados a diver-
sidade de gênero, que teria se tornado algo perigoso, e que colo-
caria em xeque a estrutura da família brasileira tradicional.
Convergindo com essa ótica, Miguel (2021, p. 06) afirma que
“o pânico moral é ferramenta para promover uma mobilização rá-
pida, apaixonada e imune ao debate”. O reforço ao sexismo, como
algo natural a sociedade, constituiu-se numa justificativa imune a
qualquer outra posição, mesmo porque segue o princípio irrefutá-
vel da criação divina, que não poderia ser questionada, onde o ho-
mem e a mulher são criações de Deus. Por consequente, se fecha a
todos os canais dialógicos que se podem voltar à um pensamento
inverso, se estabelecendo, por outro lado, os estereótipos de gêne-
ro e suas exclusões.
Um segundo ponto de conjunção, que bem representa o
avanço do discurso conservador de grupos religiosos extremistas,
é o segundo inimigo comum a ser combatido - a chamada “Ideo-
logia de gênero”. Miskolci & Campana (2017) salientam que um dos
grandes representantes desse combate foi o papa Bento XVI, ain-
da quando cardeal em 1997, que produziu textos para demonstrar
os perigos eminentes sobre as sociedades do avanço das pautas
feministas e das lutas de homossexuais pelos direitos civis. O dis-
curso de Bento XVI se irradiou pelas várias esferas da Igreja ca-
tólica que rapidamente compreendeu qual “inimigo” deveria ser
combatido e qual sua dimensão política e ideológica.
As Conferência do Cairo (1994) e a “IV Conferência Mundial
sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (em Pequim,
1995), promovida pela Organização das Nações Unidas, constituem
marco divisor desse debate (VIANNA; BORTOLINI, 2020), pois,
essa quarta Conferência apresentou um grande avanço sobre os
direitos sexuais e reprodutivos para mulheres, mas também a subs-
tituição do termo “mulher” em detrimento da categoria “gênero”.
Logo, essa conquista significou um avanço nas discussões teóricas

223
sobre o movimento feminista e proporcionou um alargamento dis-
cursivo sobre o papel social e político da mulher (MISKOLCI; CAM-
PANA, 2017). Em consequência, como uma espécie de resposta, a
essa Conferência, o Papa João Paulo II produziu a “Carta as Mu-
lheres” (1995) e, posteriormente, a “Carta aos Bispos” (2004), onde
o feminismo seria um inimigo em comum aos cristãos, visto que o
papel social delegado as mulheres, pela Igreja, não poderiam ser
questionadas.
Foi assim que a ala mais conservadora da Igreja Católica en-
dureceu seu discurso contra as teorias feministas e a agenda da
ONU, em favor da diversidade sexual e de gênero, acusando-as
de serem responsáveis diretas pela difusão do que chamaria de
“ideologia de gênero”, que passou a ser uma espécie de bandeira a
ser afrontada pelos defensores de determinados padrões normati-
vos, que rejeitam a possibilidade de novos arranjos familiares e de
identidades de gênero. Esse posicionamento unilateral permeou a
ideia de que a chamada “ideologia de gênero” colocaria em perigo
as fixidades dos papéis sociais ocupados pela família tradicional
cristã. Essa contraofensiva ganhou fortes aliados nas organizações
evangélicas, com o forte proposito de impedir a luta feminista pelo
avanço dos direitos sexuais e reprodutivos (MISKOLCI; CAMPA-
NA, 2017).
Além disso, outros setores da sociedade, não necessariamen-
te engajados em organizações religiosas, mas que se identificavam
com a luta contra o sintagma “ideologia de gênero”, endossaram as
fileiras do combate aos perigos da “doutrinação política e ideoló-
gica”, especificamente nas escolas. Miskolci & Campana (2017) de-
nominam estes grupos de “empreendedores morais”. São os que
buscam combater toda e qualquer ação que possa infringir as ba-
ses normativas do binarismo homem/mulher com forte inserção
nas escolas.

Tais empreendedores morais são religiosos, dentro da Igreja


Católica, de vertentes religiosas neopentecostais, seguidores

224
laicos dessas religiões, pessoas que se engajam na luta por
razões simplesmente éticas, morais e/ou políticas as mais di-
versas e não são necessariamente da sociedade civil, mas
podem atuar dentro de instituições e até mesmo do gover-
no. Identificá-los exige reconstituir em termos sociológicos
a gramática política que vincula atores tão diversos em uma
cruzada contra o que passaram a chamar de “ideologia de
gênero” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017. p. 730).

Observemos como a centralidade nas questões relativas ao


corpo e a sexualidade, enquanto marcadores de diferença, demos-
tram, dentre outras coisas, a dificuldade dessa prática no convívio
social. Em se tratando da escola, sabemos que os corpos são depo-
sitários de grandes tensões. Conjugados no plural, não são elemen-
tos neutros nas relações sociais. São plásticos, fluídos, absorvem e
são absorvidos conforme os diferentes contextos que se apresen-
tam. Por serem um construto social, são carregados do que Louro
(2000) nomeia de “marcas do corpo”. Inclusive, é possível ques-
tionarmos se é mesmo factível tratarmos de “ideologia de gênero”,
considerando a concepção conservadora, que não reconhece as
outras identidades de gênero e sexual como realidades existentes
em nossa sociedade. Teria, a “ideologia de gênero” alguma valida-
de conceitual? Para Bortolini (2022, p. 14) “gênero é um conceito
construído pelas ciências humanas no último século. Exato. Não é
uma ideologia, nem um movimento, nem um partido político, mas
um conceito científico”.
Tratar gênero como ideologia revela, também, uma perigosa
linguagem associativa com outros termos e temáticas que passam
a ser sequestrados e, uma vez popularizados, tornam-se criveis ao
senso comum e virais em redes sociais. Citemos, como exemplo,
a associação entre termos: petismo com “comunismo”; feminismo
com “gênero”; “Kit escola Sem Homofobia” com o chamado “Kit
gay”, e assim por diante. Diante dessa conjuntura, para mascarar
quem na verdade promovia a “doutrinação”, se procurou deslegi-

225
timar discursos que possam se tornar ameaçadores a um projeto
bem maior de poder.
Problematizando esse contexto, de acordo com Miguel (2021),
o criadouro da ideia de que a escola não pode se constituir num
espaço de “doutrinação ideológica” foi sendo gestado em doses
homeopáticas. Mas, esse processo tomou corpo com o movimento
“Escola Sem Partido”11, nascido pela iniciativa de pais e estudantes,
preocupados com o viés ideológico adotado nas escolas, que se
pautaria na “doutrinação marxista, de base comunista”, que “pro-
põe medidas para impedir que professoras e professores expres-
sem, em sala de aula, opiniões consideradas impróprias” (MIGUEL,
2016, p. 597).
Não foi à toa que, durante a apreciação da redação final do
texto do Plano Nacional de Educação (2014-2024), “era comum
ver câmaras ou assembleias tomadas por freiras, lado a lado com
pastores de igrejas neopentecostais, pressionando deputados e ve-
readores” (MIGUEL, 2016, p. 601). Isso pode ser visto, na apresen-
tação do PL 867/7015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/
DF), que tentou incluir o “Programa Escola sem Partido”, entre as
diretrizes e bases da educação nacional, em seu texto base, no ar-
tigo 2º, que prevê que:

A educação nacional atenderá aos seguintes


princípios: I - neutralidade política, ideológica e
religiosa do Estado; II - pluralismo de ideias no
ambiente acadêmico; III - liberdade de aprender,
como projeção específica, no campo da educa-
ção, da liberdade de consciência; IV - liberdade
de crença; V - reconhecimento da vulnerabilidade
do educando como parte mais fraca na relação
de aprendizado; VI - educação e informação do
estudante quanto aos direitos compreendidos
em sua liberdade de consciência e de crença;

11
Fundado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib.

226
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a
educação moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções (BRASIL, CÂMARA DOS DE-
PUTADOS, 2015).

A retirada dos termos gênero e orientação sexual do PNE


(2014-2014) deu lastro a muitas ações reagentes. Eclodiram crí-
ticas de todos os lados e discursos discriminatórios reverberaram
em todos os cantos. Curiosamente, a escola e os(as) professores(as)
foram os principais alvos das intervenções morais, impetradas pelo
discurso conservador e disciplinador, que afirmava que alunos(as)
poderiam ser cooptados(as) ideologicamente, pelo viés da sexua-
lidade ou pelo político. Como assentiu Foucault (2007, p. 191) “de
maneira geral, pode-se dizer que as disciplinas são técnicas para
assegurar a ordenação das multiplicidades humanas”.
Sob o dispositivo panóptico, evocado por Foucault (2007), os
cerceamentos sobre a liberdade de cátedra constituíram-se num
constrangimento, colocando os(as) educadores(as) como reféns
dos mecanismos de controle que iam sendo incentivados, e “pro-
movendo o deslocamento da ênfase nos dispositivos disciplinares,
para os dispositivos de controle, de modo a alterar substancialmen-
te até mesmo os processos de subjetivação” (VEIGA-NETO, 2006,
p. 18). Quando os espaços de livre expressão vão ficando cada vez
mais instáveis, o que se vê é a verticalização dos procedimentos de
controle. Nos Impressiona como, gradualmente, a linha que ligava
a família à escola foi sendo esticada, pois a primeira passou a exer-
cer um mecanismo de controle excessivo sobre a segunda.
O slogan do movimento “Escola sem Partido”, “meus filhos,
minhas regras”, reverberou não só antes no processo de aprovação
do PNE, mas sobretudo, após sua aprovação, constituindo num
verdadeiro policiamento sobre a escola e seus(as) professores(as)
na defesa de um ideário cristão, que deveria ser preservado entre
as famílias, também cristãs, sendo o Estado responsável em ofe-
recer essas garantias. Assim, o papel da escola passou a ser dura-

227
mente questionado. Preceitos constitucionais e programas volta-
dos aos direitos humanos foram sendo diluídos na defesa de uma
pseudoneutralidade como caráter formador. Com efeito controver-
so, a escola passou a ser a antagonista do processo de aprendiza-
gem, enquanto a família tornou-se protagonista, sendo ela mesma
responsável por ensinar, direcionar e ditar o que pode ou não ser
tratado no espaço escolar. O pânico de muitas famílias, ao verem a
escola abrir-se às pautas de gênero e diversidade sexual, ganhou
lastro.
Com o pânico estabelecido, os mecanismos de controle por
meio do poder-saber se dinamizaram. Os discursos antigênero fo-
ram deixando de ser uma exclusividade da Igreja (moral), passan-
do a ocupar cada vez mais espaço nas discussões do Congresso
Nacional, onde se passou a apresentar Projetos de Lei de toda a
ordem possível. Citemos, como fato ocorrido, a proposta do PLS
(Projeto de Lei - Senado) 193/201612 de autoria do senador Magno
Malta13.
Pautando-se em suas próprias convicções religiosas, o então
senador Malta queria obrigar as escolas a pedirem autorização aos
pais para poderem trabalhar as temáticas que, ao ver dos próprios
pais, tivessem conteúdos doutrinadores e que fossem, principal-
mente, voltadas para a “ideologia de gênero”. Para garantir que as
normas estabelecidas não fossem quebradas, passaria a ser dever
do Estado a criação de um sistema de comunicação que pudesse
recolher as denúncias do(as) professores(as), alunos(as) e pais. In-
teressa notar que “com o fetiche da neutralidade do discurso peda-
gógico e com a sacralização da autoridade familiar, está completa a
receita da criminalização da docência” (MIGUEL, 2016, p. 614). Na
redação do projeto ainda se recomendava que fossem afixadas nas
salas de aula essa normatização.
Mais uma vez o mecanismo panóptico entra em cena atra-
vés do documento. Os modos de disciplinamento não se apresen-

Em 21/11/2017 a PLS 193/2016 foi retirada pelo autor.


12

Magno Pereira Malta é filiado ao Partido Liberal (PL). Foi senador pelo Espírito Santo de 2003 a
13

2019.

228
tam exclusivamente pelo monitoramento da administração escolar,
pois o documento passa a ser um corpo discursivo e é por ele que
o poder perpassa. Por ele, também se opera um tipo de violência
simbólica, pois ao afixá-lo nas paredes das escolas, ele passa a ser
o “dito” e a “verdade” que deve prevalecer.
É singular entendermos que, juntamente aos vetores de vio-
lência, temos que alargar nossas análises sobre a forma com que
o Estado transmutou entre os governos de Lula para o de Dilma
Rousseff com relação às políticas educacionais. Num primeiro mo-
mento, procurou alinhar sua agenda governamental as pautas pro-
gressistas e sociais, num sistema de parceira, convergindo para a
participação dos movimentos e representações civis na produção
das políticas públicas. Mas, num segundo contexto, singularmente
no governo Dilma, diante de nova configuração do legislativo, ou-
tras frentes e pautas tomaram espaço. Num movimento inverso,
ele saiu de um sistema de parceria e passou a se apresentar como
um impedimento a concretização de projetos, mais conservadores,
na produção das políticas educacionais.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todo o jogo de narrativas e estratégias disciplinares que ope-


raram através da apresentação de Projetos de Leis e marcos le-
gais da educação, se legitimaram num processo bem articulado
da extrema direita. Sem dúvida, houve um grande esforço, em de-
mostrar a sociedade o quão perigoso seria a ascensão de grupos
historicamente subalternizados com suas agendas emancipatórias,
e como isso ocasionaria numa desordem social.
Na percepção dos setores mais conservadores, o Estado pre-
cisava proteger os valores familiares; a escola, precisa assegurar
que esses valores não seriam diluídos nas discussões sobre gênero
e diversidade sexual. Entretanto, de que lado estava o Estado no
governo de Dilma Rousseff? Sendo assim, quando as ameaças tor-
nam latentes aos interesses de alguns grupos, precisa também ser

229
retirado de cena14. Portanto, com uma força brutal e mobilizadora,
as políticas antigênero voltadas para educação, foram paulatina-
mente penetrando nos marcos legais da educação e sendo pulve-
rizadas na sociedade.
A vitória conservadora no PNE (2014-2024) contabilizou seus
ganhos. O que se pôde ver mais adiante, é que esse direcionamen-
to também foi seguido na votação de alguns Planos Estaduais e
Municipais de Educação, ora invisibilizaram ora, mascararam as
discussões sobre gênero e diversidade sexual voltados à educação
básica.

REFERÊNCIAS

CARREIRA, Denise. Igualdade e diferenças nas políticas educacionais: a agenda das diversidades
nos governos Lula e Dilma. 2015. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Univer-
sidade de São Paulo, São Paulo, 2015.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. São Paulo: Editora Vozes, 2007.
MIGUEL, Luís Felipe (2021). O mito da “ideologia de gênero” no discurso da extrema direita brasilei-
ra. Cadernos Pagu, (62), Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/
article/view/8667136. Acesso: 01 de maio de 2022.
MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de
um pânico moral contemporâneo. Soc. estado., Brasília, v. 32, n. 3, pág. 725-748, dezembro de 2017.
Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102. Acesso em 13 de out.
2021.
VEIGA-NETO, Alfredo. Dominação, violência, poder e educação escolar em tempos de Império. In:
Figuras de Foucault. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
VIANNA, Cláudia; BORTOLINI, Alexandre. Discurso antigênero e agendas feministas e LGBT nos
planos estaduais de educação: tensões e disputas. Educ. Pesquisa, São Paulo, v. 46, e221756, 2020.
Disponível em:https://www.scielo.br/j/ep/a/Tc37WjhH7ywmFCpJJ4NbBCH/?format=pdf&lang=pt.
Acesso: 10 out. 2021.

14
Em 2016, no exercício do seu segundo mandato como presidenta do Brasil, Dilma Rousseff sofreu
impeachment, assumindo o seu vice Michel Temer a Presidência da República.

230
CODIFICAÇÃO QUEER: A QUALIDADE E PRESENÇA DA
REPRESENTATIVIDADE LGBTQIA+ ATRAVÉS DO FIGURINO
EM MENINAS SUPERPODEROSAS

Matheus Caldas Alves da Silva


Francisca Raimunda Nogueira Mendes

INTRODUÇÃO

O propósito deste trabalho analisar a presença da codificação


queer1, recurso bastante utilizado para retratar personagens de
desenhos animados ligados “ao mal” e em geral desviantes dos
padrões de gênero estigmatizados2 pela sociedade. No persona-
gem “Ele” de Meninas Superpoderosas (1998), o trabalho se frag-
menta nos objetivos mais específicos que visam observar como se
dá a relação entre gênero e moda, compreender a representação
de um figurino relacionado a gênero, mais especificamente em um
desenho animado, e entender a codificação queer e o seu uso nes-
se meio de entretenimento televisivo.
Possuindo como questão medular o personagem Ele, da obra
televisiva Meninas Superpoderosas, de 1998, busca-se no trabalho
em questão perceber trejeitos, silhuetas, cores, figurino e a forma
com que esse personagem foi retratado dentro da trama. Posto
que Ele é um desvio do padrão social de comportamento e apa-
rência para o gênero a qual é representado, o estudo é vultoso por
relacionar-se à pauta de ordem social da presença de representati-
vidade LGBTQIA+ na TV, mais notadamente em um desenho ani-
mado. Além de preencher lacunas na pesquisa acadêmica acerca
do tema e fornecer conhecimento para outras áreas, a pesquisa

1
Em seu sentido literal “queer” significa estranho, ou incomum, sendo usada para se referir à comu-
nidade LGBTQIA+ de forma preconceituosa. Porém, nos anos 1980, iniciou-se um movimento da
comunidade para reivindicar o termo, abraçá-lo. Atualmente, seu significado diverge, assim como o
seu uso (MACMAHON, 2022).
2
Goffman (1981) explica estigma como sinais corporais que indicam algo defeituoso, ruim, fora do
comum, ou extraordinário, dependendo da época. A partir disso se vem as expectativas normativas
socias e se estas serão ou não atendidas.
ainda pode se aplicar, além do âmbito social, ao âmbito econômi-
co, por exemplo, tendo em vista o aumento do público consumidor
LGBTQIA+ para com produtos com os quais se identificam ou se
relacionam.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa e
a natureza científica parte da análise bibliográfica e documental,
onde o personagem “Ele” da obra Meninas Superpoderosas (1998)
estudando sua conceitualização, vestimenta, maneirismos, silhue-
ta, cores e agir.

A CODIFICAÇÃO QUEER

O indivíduo queer, então, aparece na sociedade como al-


guém excluído e estranho que não segue essas normas vigentes
desde o seu nascimento, que mesmo após ser inserido na socie-
dade opressora e repleta de regulamentos, decide, mesmo com as
consequências de reprovação social, externar quem realmente é, e
não o que a sociedade espera dele (LOURO, 1997).
Queer, ou “estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraor-
dinário” de acordo com Louro (2004, p. 38) foi uma palavra usa-
da por bastante tempo como uma ofensa homofóbica, e, de acor-
do com a teoria queer, que teve Judith Butler como uma de suas
principais cabeças, procura englobar e acolher todos os divergen-
tes sexuais e de gênero da heteronormatividade3 homofóbica in-
trínseca, passando ao termo o significado de lar e uma forma de
vida que se coloca contra as normas socialmente aceitas (BUTLER,
2004).
Ainda segundo Slagle (1995), a teoria queer propaga um pen-
samento baseado na diferença, que recusa a natureza culturalmen-
te imposta e essencialista dos símbolos e modos de classificação
dominantes, desde os usados por grupos cisheterosnormativos4,
até os difundidos pelos mais tradicionais grupos de liberdade gay e

3
Imposição social para ser e se comportar do que se é esperado de cada gênero.
4
Indivíduos que se adequam a imposição social de comportamento de gênero e normatividade da
sociedade.

232
lésbica. É um pensamento que celebra todas as diferenças, incluin-
do as de raça e classe, que se esforça para entender e defender
outras experiências sexuais ou manifestações de gênero conside-
radas digressivas por esse sistema dominante sem o objetivo de
defini-las.
O pensamento de Louro (2004; 2001) transparece o corpo
e a sexualidade humana ainda como elementos que vem-a-ser,
e não elementos dados e determinados em absoluto. Ou seja, o
gênero em um corpo em constante transformação é influenciado
pelo o que se é tido de masculino ou feminino para aquele corpo,
e as ciências sociais e o feminismo são áreas férteis que alimentam
ou igualam essas características.
A partir da forma desviante da normalidade que eram vistos
por essa civilização ocidental heteronormativa, a atuação e presen-
ça do identitário queer em produções voltadas majoritariamente
para o público infantil, como os desenhos animados, eram restri-
tas e praticamente proibidas devido ao chamado “pânico moral”.
As crianças são a maior preocupação dos adultos de consumirem
produtos em que sejam presentes personagens LGBTQIA+, pois
elas, para eles, são muito curiosas, inteligentes, e consequente-
mente “perigosas”, passando a conhecer, as vezes muito cedo, coi-
sas demais. Por isso, veem-nas como facilmente influenciadas, e a
presença desses personagens, na visão padrão de sociedade deles
como desviantes da moral, como não “suficientemente infantis” e
ameaças (WEEKS, 2000; EPSTAIN e JOHNSON, 2000).
Esse “pânico moral” também é derivado da ideia, mais preci-
samente de origem religiosa, de ideologia de gênero, que acredita
que através do abranger de assuntos relacionados a sexualidade e
gênero para crianças, se estará excluindo as diferenças entre eles
e assim desestruturando as ideias enraizadas na sociedade sobre
como cada indivíduo de determinado gênero deve se comportar,
vestir ou almejar (OLIVEIRA e NEWLAND, 2018).
Logo, surge, então, o queer coding, ou codificação queer, que
é estabelecido como um processo pelo qual os personagens são

233
definidos por possuírem traços físicos ou comportamentais que
são associados à comunidade LGBTQIA+, mesmo que suas orien-
tações sexuais ou identidades de gênero não sejam especificadas.
Essas características são, assim, derivadas do conceito de perfor-
matividade de gênero de Butler (2019), que procura mostrar que
tais traços e comportamentos, tidos como masculinos ou femini-
nos, por tanto serem repetidos, foram atreladas especificidades,
como a sensibilidade, cabelos longos e roupas mais excêntricas e
brilhosas às mulheres, e rigidez, roupas em tons neutros, e força
aos homens.

O FIGURINO MONTANDO O PERSONAGEM QUEER

O figurino, ou traje cênico, ou conjunto da indumentária e


acessórios, é a vestimenta criada e produzida pelo figurinista que
procura compor um personagem em determinada expressão ar-
tística, seja um filme de cinema, série de tv, espetáculo teatral, ou
desenho animado. Nele há a ligação entre todo o produto artístico
total, apresentando características sugestivas indispensáveis para
manter o clima da obra (ABRANTES, 2001).
Responsável por atrair o espectador ao mundo narrativo cria-
do e ao personagem ali presente, o figurino indica um gênero, pe-
ríodo histórico e social, e a identidade expressiva de um perso-
nagem que será defendido por um ator. O figurino dimensiona e
expande a caracterização de tipos e personagens, sendo capaz de
integrar e diferenciar, excluir ou acentuar comportamentos, concei-
tos e ideologias. Isso se dá através da determinação de elementos
que o compõe, sendo eles o estilo, as cores, os volumes, as texturas
e silhuetas. Essas últimas possíveis de distinguir um personagem,
antes deles serem vistos, em características femininas ou masculi-
nas (ABRANTES, 2001; JONES, 2002).
Dessa forma, no que se diz sobre a composição e à construção
identitária das personagens, uma economia particular pode ocor-
rer e ser vista no âmbito da narrativa. Essa economia está ligada

234
aos valores e estigmas socioculturais intrínsecos, e produzem uma
mensagem que pode ser determinante para a caracterização e de-
finição dos personagens ficcionais no que diz respeito a posturas e
identidade, quanto para o estabelecimento da trama e desenvolvi-
mento da narrativa (FISCHER, 2008).
Os estereótipos, ou características em comum, seja em va-
lores ou crenças, divididas por grupos de indivíduos (MCGARTY,
YZERBYT e SPEARS, 2002), são, então, usados como um recurso
para compor personagens com economia de complexidade, e se
pode alinhar um em postura e identidade com o que é a ordem do
bem ou do mal na narrativa em dependência de que grupo per-
tencente são aquelas características (FISCHER, 2008).
A partir do uso das características derivadas da performativi-
dade de gênero de Butler (2019), junto ao fato do atrelar dos indi-
víduos da comunidade LGBTQIA+ à imoralidade por desviarem do
padrão social, e consequentemente midiático, tornou-se comum,
principalmente nas animações da sociedade e cultura ocidentais, a
representação do personagem queer, não assumidos, repletos de
códigos de comportamento de vestuário contrários ao sexo que
estes representam, e estereótipos da comunidade LGBTQIA+, re-
tratados de forma vilanesca5 nas obras televisivas, ou cinemato-
gráficas. Com a visão desses desenhos, não explícita, como uma
forma de ensino e construção identitária e subjetiva (SILVA, 2013),
se viu como oportuno essa representação no produto animado in-
fantil.

A CODIFICAÇÃO QUEER EM DESENHOS ANIMADOS

Esses transgressores pertencentes à sigla LGBTQIA+, que


sofrem uso de estereótipos fáceis para compor personagens que
transgridam os códigos de vestuário e regulamentos relacionados
à performatividade de gênero da sociedade, quando não excluídos
de desenhos animados, aparecem nesses compostos como figuras
5
Do latim villanus, de vilão, vilan + esco(a). É um aspecto dado a indivíduos, principalmente em te-
ledramaturgia, cinema, livros, desenhos, e peças teatrais, ligados ao mal (LEDUR e SAMPAIO, 1994).

235
“vilanescas” ou regadas de estigmas, com silhuetas que vão contra
a figura do herói, cores escuras, e vestimentas excêntricas ou sem
muitas formas. Isso devido ao Código Hays6, que impedia que o
público tivesse qualquer simpatia pelo lado do crime, do mal, do
pecado e do erro, estabelecido nos EUA em 1930, e com efeitos
vistos até hoje em produções (ABRANTES, 2001; BUTLER, 2019;
NAZARIO, 2007).
De acordo com Goffman (1981, p. 5) “Os ambientes sociais es-
tabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de se-
rem neles encontradas”. Logo, todos aqueles fora do comum serão
englobados em estigmas devido as expectativas normativas esta-
belecidas culturalmente. Muitas das vezes, antes mesmo do con-
tato interpessoal, as expectativas normativas efetuam a criação de
uma identidade social virtual, identidade essa criada apenas com
base em pré-conceitos e percepção, ignorando atributos sociais
tal qual a honestidade e simpatia, por exemplo. Por conseguinte,
se ocasionam assim, tratamentos desrespeitosos com aqueles vis-
tos como estigmatizados, mais precisamente a comunidade LGB-
TQIA+ e outras raças (GOFFMAN, 1981), incluindo em representa-
ções midiáticas, como as representações “vilanescas” em desenhos
animados.
As produções animadas então proibidas de retratarem per-
sonagens queer devido ao Código Hays, viram em seus bastido-
res uma forma de inseri-los. Tendo em vista a visão generalizada
de que os desenhos animados possuem como público as crian-

6
O advogado presbiteriano Will Hays, presidente da Motion Picture Producers and Distributors of
America – MPPDA, amigo do Presidente Herbert Hoover, convencido da má influência de Hollywood
na sociedade americana, elaborou a lista “Dont’s and Be Carefuls”, dividida em duas partes: “Dont’s”
não permitia nudez, tráfico de drogas, escravidão branca, parto, cirurgias, primeira noite, casais na
mesma cama, genitália infantil, beijos prolongados, perversão sexual, miscigenação; “Be Carefuls”
deliberava sobre uso da bandeira americana, execuções legais, roubo de trens, vulgaridades. Sem
apoio oficial, o que feriria os princípios democráticos, Hays organizou um mutirão ecumênico de
igrejas cristãs, organizações judaicas, Legião da Decência, Liga Civil de Massachusetts e outras or-
ganizações da sociedade civil que impuseram o Código principalmente ao cinema, mas atingindo
outros meios de entretenimento. Adotado em 31 de março de 1930, sua aplicação passou a ser
supervisionada em 1934 pela PCA (Production Code Administration) e vigorou em Hollywood sem
alterações até 1956 (administrado pelo católico Joseph Breen até 1954) e com algumas mudanças
até 1963. Os filmes aprovados recebiam um selo e os recusados perdiam os canais de distribuição da
poderosa MPPDA. A desobediência custava aos produtores uma multa de 25 mil dólares (TEREZA
PIRES, 1930).

236
ças, e de que esses servem educacionalmente a elas (EPSTAIN e
JOHNSON, 2000), esses papéis foram, nesse raciocínio, compos-
tos de uma forma para que a criança os evite, repudie ou receiem
na narrativa. Como consequência, qualquer semelhança vista pes-
soalmente pelo infante os faria reagir da mesma forma, ou seja, os
estigmas e a pressão estética e moral relacionada à comunidade
LGBTQIA+ continuam a serem reforçados na sociedade, mesmo
na infância, através da mídia (NAZARIO, 2007; BUTLER, 2019; HA-
RAWAY, 2000).

Figura 1 - Úrsula de A Pequena Sereia (1989) e a drag queen7


Divine, em quem foi inspirada (Dutra, 2019)

Fonte: Vírgula (2019)8

Foucault (1996) ajuda a ressaltar, ainda, esse processo de he-


teronormatividade e binariedade como uma lógica social discursi-
va e excludente de que se supõe que todas as pessoas sejam (ou
devam ser) heterossexuais, e cisgêneros, indivíduos que se identi-
ficam com o gênero com o qual nasceram (Burigo, 2017). Lógica
essa, que gera, assim, um sistema midiático construído à imagem
e semelhança a esses indivíduos padrões e à sua sociedade (OLI-
VEIRA, 2011).

7
Geralmente homens gays, ou mulheres trans, que usam de perucas, maquiagem e vestidos estra-
nhos, excêntricos ou glamourosos. Elas costumam imitar celebridades do mundo do entretenimento
performando em shows drag, clubes, ou eventos como a Parada do Orgulho Gay (BARONI, 2006).
8
Disponível em: https://www.virgula.com.br/tvecinema/conheca-divine-a-inspiracao-para-a-vila-ur-
sula-de-a-pequena-sereia. Acesso em: dez. de 2021.

237
ELE E O MODO DE SER “DO MAU”

O personagem “Ele”, de Meninas Superpoderosas, obra ani-


mada que teve início de exibição em 1998, transmitida pelo canal
Cartoon Network, e que conta a história de três garotas que nas-
ceram com superpoderes e passam a proteger a cidade de Towns-
ville, é construída inteiramente sob a noção hegemônica do que é
ser masculino veiculado na forma padronizada/normalizada (WI-
NEMAN, 1998; BOURDIEU, 1999).
Quando se entende queer em uma obra narrativa, procura-
-se identificar, atualmente, a utilização desses personagens como
metáfora crítica a identidade heteronormativa e a favor da diversi-
dade através das diversas camadas sobre eles criados em códigos
de estereótipo. Isto é, enxergar o queer não só por seus estilos
ou maneirismos, mas também pelo seu papel na trama desses
desenhos e consequente local inserido na sociedade (HARAWAY,
2000). Porém, esse enxergar além dos preconceitos é único apenas
daqueles que se identificam com os signos em personagens apre-
sentados na obra que fora exibida em um período em que era co-
mum tal representação (LOURO, 2004).

Figura 2 - Ele na versão lançada em 2016 de Meninas


Superpoderosas do canal Cartoon Network

Fonte: Pngitems9

9
Disponível em: 135-1357365_him-devil-off-powerpuff-girl-hd-png-download.png (860×1207)
(pngitem.com). Acesso em: dez. de 2021.

238
“Ele” é composto por uma silhueta que leva o telespectador
à imagem bíblica do que seria o diabo, usa botas de cano alto, co-
lante vermelho adornado com pompons vermelhos semelhantes
a tule, possui blush e rímel como maquiagem, e altera sua voz do
agudo ao grave de acordo com o seu estado de espírito, navegan-
do entre um ser exagerado e excêntrico ao amedrontador (WINE-
MAN, 1998).

Figura 3 - Ele na versão original de Meninas Superpoderosas


estreada em 1998 no canal Cartoon Network

Fonte: Powerpuff Girls Wiki10

Vale notar que “Ele”, além de representado dessa forma, é


mostrado, entre os vários vilões de Townsville, como o único ao
qual interesse não está em destruir a cidade, mas sim nas protago-
nistas Docinho, Lindinha e Florzinho, que parecem lhe incomodar
com suas características majoritariamente femininas no decorrer
dos episódios. Em um episódio, mais especificadamente, chega a
vacinar os Meninos Desordeiros, contrapartes das garotas, para
que fiquem imunes aos beijos delas (WINEMAN, 1998; MCCRA-
CKEN, 1998).
Ele ainda mostra, mesmo com o figurino já apresentado sen-
do praticamente fixo durante todas as suas aparições durante os
episódios do desenho, um segundo conjunto de vestimentas único
durante o episódio “Teletrotes”. Visto pela primeira vez em sua resi-
dência em uma visita pelas protagonistas, que acham que este está
planejando um ataque à cidade de Townsville devido a um trote,
10
Disponível em: www.powerpuffgirls.fandom.com/wiki/HIM_(1998_TV_series). Acesso em: dez. de
2021.

239
Ele está se exercitando, pois afirma gostar de se manter em forma,
e durante o momento está trajando meias polaina, muito usada
durante a moda fitness e de cores chamativas dos anos 80, uma
saia azul, moletom de mangas longas e faixa no cabelo (MCCRA-
CKEN, 1998; PALOMINO, 2013).
“Ele” ainda foi representado de forma semelhante em uma
produção oriental das Meninas Superpoderosas, possuindo as
mesmas características em personalidade, mas diferenciando-se
em vestuário.

Figuras 5 - Ele em As Meninas Superpoderosas: Geração Z

Fonte: Powerpuff Girls Wiki11

Em As Meninas Superpoderosas: Geração Z (2006) ou ori-


ginalmente Demashita! Powerpuff Girls Z, “Ele” também usa ma-
quiagem, e um tule no pescoço, mas diferencia-se no vestuário ao
trajar um vestido vermelho com um cinto em formato de coração,
meias distintas listradas, um chapéu de “bobo da corte”12, e sapatos
de salto alto.

11
Disponível em: www.powerpuffgirls.fandom.com/wiki/HIM_(Powerpuff_Girls_Z). Acesso em: jun.
de 2022.
12
Sempre com trajes inadequados ao ambiente, o indivíduo Bobo da Corte tinha uma vestimenta
dispare e única a ele dentro e fora da corte. Se fantasiava geralmente com roupas espalhafatosas,
e chapéus com duas pontas prolongadas com guizos em seus extremos, e se fazia de ridículo para
toda a Corte (MORI, 2018).

240
A PRESENÇA DO ELE EM MENINAS SUPERPODEROSAS E O
CLICHÊ DOS VILÕES CODIFICADOS

Com isso, uma visão queer do personagem “Ele”, de Meni-


nas Superpoderosas (1998), é tomada devido aos códigos de ves-
tuário e a forma regada de clichês13 com a qual foi representado,
estando dentro de um espectro não exatamente homem, nem mu-
lher, dono de uma performatividade que não se limita ao binário.
Essa visão, mais forte e presente atualmente devido ao movimento
queer, que procura englobar e dar um lar à todas as minorias de
gênero e sexualidade, redescobre personagens que sofreram da
codificação queer, e os abraçam mesmo com a forma que foram
tratados em seu período. Pois, queer é, também, o se colocar con-
tra a normalização, seja ela de onde vier (LOURO, 1997).
Vale acrescentar, ainda, que é fato que essa representa-
tividade cheia de estereótipos em maneirismos e vestuário, e ge-
ralmente “vilanesca” em desenhos animados não contemplam,
principalmente, às crianças, que possuem suas sexualidades (MO-
DELLI, 2018), e que a partir disso não acham uma identificação na
heteronormatividade binária predominante nesse meio.

Figura 8 - Ratcliffe de Pocahontas (1995)

Fonte: Pinterest14

13
Clichê é um recurso cinematográfico, presente também na tv e em outras obras narrativas, que
repete situações, acontecimentos e representações de personagens, na mídia, e que deram certo
com o público, renovando-os ou não (MORGADO, 1999).
14
Disponível em: www.pinterest.com/pin/225672631298867295. Acesso em: Dez. de 2021.

241
Além do “Ele” presente em Meninas Superpoderosas (1998),
outros marcantes vilões se encaixam nessas características ressal-
tadas sobre a codificação queer (DUTRA, 2019). Além da Úrsula,
de A Pequena Sereia (1989), se vê os vilões Ratcliffe de Pocahontas
(1995), Hades de Hércules (1997), e outros, apresentando o mesmo
uso de estereótipos e estigmas que são socialmente estabelecidos
pela maioria padrão social sobre indivíduos LGBTQIA+.

Figura 9 - Hades de Hércules (1997)

Fonte: Pinterest15

Nos casos de Ratcliffe e Hades, eles são vistos como vilões


codificados devido a sua excentricidade, vozes aveludadas ou agu-
das, além de, mais especificadamente, no caso de Ratcliffe, se en-
caixar em figurino. O figurino do personagem é composto de cores
fortes e difíceis de se conseguir no período de colonização em que
se passa o filme, adornos e jóias (ATTITUDE, 2017; GOLDBERG &
GABRIEL, 1995).
O figurino, como uma extensão do personagem, e produto da
sociedade, também reforça essas características através da sua re-
presentação, e tematizam “o “natural” em contextos de paródia que
destacam a construção performativa de um sexo original e verda-
deiro” (BUTLER, 2016, p.9). Ou seja, a vestimenta trajada pelo “Ele”,
é comum e natural às mulheres, mas não a homens, logo, vê-se o
personagem estereotipado através dos estigmas sobre os grupos
do qual ele pertence.

15
Disponíveis em: www.pinterest.com/pin/144326363035255061. Acesso em: dez. de 2021.

242
Por que é comum esse uso continuo de estereótipos de gru-
pos sociais para a construção de personagens como Ele? Além do
que já foi anteriormente falado sobre construção social e o uso de
desenhos animados como um meio educativo para seu público-
-alvo, esse uso é comum devido ao fato do clichê, de acordo com
Areal (2011, p. 141), ser “uma imagem cuja forma se repete e se
torna reconhecível”. Ou seja, devido a simplificação desses perso-
nagens através do uso de características bases, essas imagens são
mais facilmente retidas. Logo, se torna mais fácil o reconhecer da-
queles grupos sociais nas narrativas, e os estigmas e estereótipos
que os rodeiam serem reforçados.

CONCLUSÃO

Instrumento de representação da realidade no meio televisi-


vo e cinematográfico, o figurino materializa, por meio das roupas,
espaços, tempos, culturas e subculturas, do tempo presente ou fu-
turo.
Dentre os maiores expoentes de produção animada, um dos
meios pelo qual o figurino pode ser representado, é o dos Esta-
dos Unidos, que domina o mercado internacional, principalmente
com as produções dos estúdios Disney, e exporta histórias e repre-
sentações sobre os mais variados grupos sociopolíticos, entre eles
os da comunidade LGBTQIA+ sem nenhuma concorrência que os
oponha.
Porém, devido a proibições do instalado código Hays, que ini-
cialmente atingiram o cinema, fez com que a inserção e a repre-
sentação desse grupo sociopolítico fossem feitas de forma conser-
vadora, sendo constantemente repetida em outras produções, e
tornando-se um clichê comum aos desenhos animados, produto
visto como meio educacional para crianças. Dessa forma, estigmas
sociais, que envolvem, também, o que deve ser trajado ou não por
aqueles de determinado sexo, e gênero, continuam a ser transmi-
tidos.

243
Partindo desse contexto, este trabalho estudou o persona-
gem “Ele” de Meninas Superpoderosas (1998) como um fruto des-
sas visões e acontecimentos sociais, com o intuito de verificar como
a representação da comunidade LGBTQIA+ é geralmente feita em
desenhos animados, para entender, a partir disso, o que seria a co-
dificação queer, e se esta é uma boa forma de representação para
o grupo.
No caso do personagem “Ele”, junto da silhueta que propor-
ciona, é o que vemos antes mesmo de descobrirmos mais sobre o
personagem, pois é a primeira informação acerca de sua identida-
de que nos é dada a seu respeito. Ele, porém, toma forma comple-
ta apenas quando acompanhado pela voz do dublado, nos casos
do desenho animado. Sendo assim, a vestimenta age como uma
extensão daquele corpo, auxiliando até mesmo o dublador a cor-
porificar aquele personagem.
Observa-se, ainda, que apesar de ser uma forma estereoti-
pada de representação, que, assim como fizeram e continuam fa-
zendo com palavras depreciativas, como o significado da palavra
queer, por exemplo, a comunidade LGBTQIA+ vem ressignificando
o personagem com o passar dos anos, transformando-o em uma
figura representativa oficial do grupo. Como exemplo disso, pro-
dutos estampados ou que trazem a figura do “Ele” são facilmente
encontrados.
Em síntese, este trabalho poderá servir, ainda, como referên-
cia para outras pesquisas de tema equivalente que tratem sobre a
construção social da moda e a sua relação com sexo e gênero, do
uso do figurino e a construção de um personagem para determinar
características sociais, e da representação de grupos sociopolíticos
em desenhos animados.

244
REFERÊNCIAS

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246
ECOS DO TERREIRO NA ESCOLA:
A MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA COMO FERRAMENTA
DIDÁTICO-PEDAGÓGICA

Augusto Sérgio Bezerra de Oliveira1


Robéria Nádia Araújo Nascimento2

Este capítulo busca promover um diálogo acerca da musica-


lidade afro-brasileira no espaço escolar, tanto na perspectiva de
valorização dos saberes do campo sociorreligioso, quanto para o
propósito de sua apropriação pedagógica para a prática docente.
Os aspectos didáticos aqui apontados se fundamentam na neces-
sidade de se promover um ensino emancipatório, em sintonia com
as questões multiculturais, e que possibilitem significados para que
os alunos tenham condições de criar uma postura crítica e transfor-
madora (FREIRE, 1987).
Nesse sentido, o primeiro tópico da discussão contextualiza
o uso da música como um elemento essencial para a religiosidade
afro-brasileira na expectativa de clarificar seus elementos de sono-
ridade e de evocação do sagrado. São destacados pontos religio-
sos, os denominados “pontos cantados”, para debate e aprendiza-
do em sala de aula.
O segundo momento envereda por uma abordagem histórica
centrada no papel feminino, atrelada ao papel da escola na forma-
ção e concepção do posicionamento da mulher na nossa socieda-
de.
O terceiro viés de argumentação relaciona a vivência no cam-
po com os traços apresentados pela musicalidade. O quarto enfo-
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Formação de Professores pela Universidade Esta-
dual da Paraíba (UEPB/PPGFP), onde desenvolve pesquisa no campo das relações étnico-raciais e
o espaço escolar. Vinculado aos Grupos de Pesquisa do CNPq: Comunicação Cultura e Desenvolvi-
mento, e Tecnologias, Culturas e Linguagens (TECLIN). Pós-graduando em Docência para Educação
Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal da Paraíba - IFPB. Pós-graduado em Psicopedago-
gia Institucional e Clínica pela UniAmérica.
2
Doutora em Educação (UFPB). Professora Associada da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB),
Departamento de Comunicação Social. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Formação de Professores da Universidade Estadual da Paraíba (PPGFP/UEPB). Orientadora da pes-
quisa.
que estabelece uma reflexão sobre o período histórico da escravi-
dão, que é um ponto fundamental para debate em sala de aula, a
fim de que sejam aprofundados conceitos que explicam o racismo
estrutural que afeta, diretamente, as afro religiosidades.
Uma quinta esfera de análise privilegia a importância da na-
tureza para a manutenção da vida em sociedade. O sexto tópico
destaca o uso da matemática na musicalidade afro-brasileira apon-
tando outra perspectiva de aplicabilidade para o trabalho docen-
te. E, no intuito de concluir as ideias articuladas, observamos os
aspectos regionais brasileiros e suas especificidades, uma vez que
esses reverberam critérios de exclusão e segregação social, numa
breve leitura do espaço geográfico como modo de expansão para
os saberes formativos.
De modo amplo, a premissa do texto advoga que a construção
de recursos didáticos-pedagógicos, que incluem saberes ances-
trais no cotidiano da escola, a exemplo dos rituais afro-brasileiros,
representam valiosas aprendizagens e acenam com a possibilida-
de de preservação das importantes raízes culturais do nosso povo
que foram sendo apagadas ao longo do tempo. Assim, o nosso
empenho é trazer visibilidade para essa temática nos ambientes
educativos contribuindo com o papel docente e a disseminação de
saberes ancestrais.

“BATE FORTE O TAMBOR”: A MUSICALIDADE E A SUA


RELEVÂNCIA PARA A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA

Quando falamos da religiosidade afro-brasileira, emergem ri-


tuais cujas raízes se reportam à cultura de matriz africana e ame-
ríndia, especialmente os vinculados às vertentes da Umbanda e do
Candomblé. No arcabouço cultural que envolve tais denominações,
o papel dos instrumentos musicais é essencial para a manutenção
da tradição religiosa, além de contribuírem para a emanação mís-
tica das práticas sagradas. Nessas instâncias, o tambor é um dos
principais instrumentos funcionando como elemento centralizador

248
e condutor das energias do congá3.
Além do caráter musical, o tambor também representa um
elo divino entre os participantes da gira4 e as entidades que se
manifestam nos terreiros. As expressões corporais, as danças e os
gestos característicos de cada entidade são entoados pelo som
e ritmo desse instrumento. Portanto, a sonoridade se apresenta
como uma grande, e senão a maior, força energética presente nos
rituais e atividades da casa religiosa.
A relevância do tambor é tamanha que as pessoas que inte-
ragem com o instrumento são escolhidas pelas entidades em um
ritual específico. A responsabilidade de tocar o tambor é uma das
principais atribuições do cargo de Ogã5, e, através dele, cada ter-
reiro pode desenvolver suas diretrizes litúrgicas. Muitos terreiros
até oferecem cursos gratuitos para quem deseja aprender a tocar
o tambor, porém, em dias de gira, apenas os escolhidos pelos guias
podem tocá-lo.

Imagem 01: Ritual de religião afro-brasileira com instrumentos

Fonte: http://2.bp.blogspot.com/-OfIykUAKUGU/UoM7h3WDEII/
AAAAAAAAakI/JHXa8VvGelM/s1600/terreiroMacumba.jpg
3
Altar onde ficam as imagens dos Caboclos, Pretos Velhos, Exus, Pombagiras e outros elementos
presentes nas crenças de matriz afro-brasileira.
4
Rituais em forma de rodas, constituídos por orações, danças, cânticos e pela invocação de entida-
des.
5
Cargo de suma importância e de responsabilidade dentro dos rituais de Umbanda e Candomblé,
como o conjunto de vozes e toques dos atabaques, por exemplo.

249
A musicalidade representa, para as religiões afro-brasileiras,
uma importante fonte de axé6 que viabiliza os trabalhos espiri-
tuais e fortifica os participantes das giras. Além disso, ela transmite,
a partir dos pontos cantados7, muitas das vivências dos povos an-
cestrais, suas tradições, culturas e muitos dos desafios que atraves-
saram durante suas existências terrenas. Os aspectos mencionados
reforçam a relevância de se utilizar tais ferramentas como recursos
didático-pedagógicos, pois resgatam, em sala de aula, memórias,
raízes e a história do povo brasileiro (SILVA, 2000).

ECOS DA POMBAGIRA8: QUANDO A SANTA INQUISIÇÃO SE


CONTRAPÕE AO EMPODERAMENTO FEMININO

No que diz respeito à hierarquia das entidades de axé, a fi-


gura da Pombagira significa a representatividade do poder femi-
nino. Conhecidas por apresentarem um perfil alegre, extrovertido
e cheio de energia, as Pombagiras trazem grandes ensinamentos
para os seus consulentes, sendo consideradas os arquétipos de
uma mulher sensual, independente e dominadora. Responsável
por trabalhos espirituais, que vão desde conselhos amorosos à re-
solução de problemas cotidianos, a entidade é controversa, pois,
no imaginário social e cristão, é também entendida como um Exu
feminino (mensageiro dos orixás) que pode praticar o mal.
Todavia, essa caracterização é limitada e preconceituosa, uma
vez que os conceitos de bem e de mal, assim como de céu e infer-
no, não fazem parte da cosmovisão afro-brasileira, já que são con-
ceitos oriundos da liturgia cristã e associados ao local para onde
as almas de pecadores são conduzidas após a morte. Em muitos
pontos cantados para a evocação dessa entidade, o termo inferno
não é sinônimo de maldade, mas utilizado como forma de punição

6
Significa poder, energia ou força presentes em cada ser ou em cada coisa. Nas religiões afro-brasi-
leiras, o termo representa a energia sagrada dos Orixás.
7
São como «orações cantadas», que auxiliam na ordem e na fluidez dos trabalhos espirituais. Os
pontos marcam todas as partes do ritual da casa como a defumação, abertura e fechamento de gira.
8
É vista como a personificação das forças da natureza, que equivale à força feminina de Exu — orixá
guardião do comportamento humano, das casas e das aldeias.

250
à característica que elas têm de não se submeter às regras sociais.
Ou seja, são empoderadas e livres, motivos pelos quais são sempre
castigadas aos olhos dos padrões e imposições da cosmovisão cris-
tã. O ponto cantado abaixo descrito retrata bem essa característi-
ca de repreensão acerca de uma figura feminina que desde muito
cedo teve que conviver com o preconceito e ignorância social.

O povo queria matar uma mulher


O padre não concordou e a rezou com muita fé
O povo queria matar uma mulher
O padre não concordou e a rezou com muita fé
Ele era pecador e na fogueira morreu junto
Foi parar lá no inferno aquele casal de defunto
Ela se juntou às cinzas, gargalhou à luz da Lua
A mulher virou Padilha e o padre seu Tranca-Ruas
Foi condenada pela lei da inquisição
Para ser queimada viva, sexta-feira da paixão
Foi condenada pela lei da inquisição
Para ser queimada viva, sexta-feira da paixão
O padre rezava, e o povo acompanhava
Quanto mais o fogo ardia, ela dava gargalhada
O padre rezava, e o povo acompanhava
Quanto mais o fogo ardia, ela dava gargalhada
Foi condenada pela lei da inquisição
Para ser queimada viva, sexta-feira da paixão
Foi condenada pela lei da inquisição
Para ser queimada viva, sexta-feira da paixão
O padre rezava, e o povo acompanhava
Quanto mais o fogo ardia, ela dava gargalhada
O padre rezava, e o povo acompanhava
Quanto mais o fogo ardia, ela dava gargalhada!
Autor/a e compositor/a desconhecido/a

251
Partindo da prerrogativa histórica, a Santa Inquisição foi um
movimento da Igreja Católica Apostólica Romana que visava coi-
bir e punir toda e qualquer prática de cura, ritualística ou litúrgica,
que fizesse uso de ervas, entre outros recursos naturais. O trecho
do ponto cantado “Foi condenada pela lei da inquisição / Para ser
queimada viva, sexta-feira da paixão” faz menção a essa prática
cristã. Cremos que esses versos, que integram a musicalidade reli-
giosa, trazem importantes eixos para debate em sala de aula, con-
siderando o contexto e a relevância do movimento cristão na cons-
trução de preconceitos raciais, religiosos, econômicos e políticos
que ainda persistem no atual momento da sociedade e promovem
intolerâncias.
Trata-se de uma abordagem histórica presente no ponto re-
ligioso chamando atenção à influência que a Igreja Católica teve/
tem na concepção da cultura brasileira, na orientação de práticas
e paradigmas sociais, a exemplo dos preconceitos à emancipação
feminina. Vamos ao eixo temático proposto para apropriação didá-
tica:
Sobressai, portanto, a discussão da multiculturalidade (CAN-
DAU, 2008) afro-brasileira nas raízes culturais do nosso povo, de
forma reflexiva, considerando os atuais casos de racismo estrutural
e segregação social, partindo da representatividade da figura femi-
nina nos espaços coletivos.

ECOS DE EXU9: QUANDO A VIDA NO CAMPO ABRE


CAMINHOS

Assim como a Pombagira representa liberdade, o arquétipo


de Exu comunica a ideia de que todos podemos realizar os nos-
sos sonhos quando temos determinação, foco e fé. Apesar de ser,
preconceituosamente, associado à imagem do Diabo, Exu é o orixá
guardião e protetor dos caminhos. Ele cuida para que todos os que
se esforçam consigam chegar aos seus objetivos, enfrentando os
9
Mensageiro dos Orixás, guardião e protetor dos templos e terreiros. Trabalha conduzindo energias
pesadas, desfazendo demandas e é responsável pela abertura de caminhos.

252
desafios que permeiam o caminhar.
Segundo a cosmovisão afro-brasileira, Exu exige disciplina e
determinação dos que pedem o seu auxílio, no sentido de se bus-
car o aperfeiçoamento, da necessidade de que se qualifiquem e se
dediquem aos seus projetos. Como ocorre no caso das Pombagi-
ras, muitos pontos cantados dos Exus trazem a história de vida e
da fé na ancestralidade que representam. O ponto cantado abaixo
sugere o esforço diário que os lavradores precisam ter para conti-
nuar sobrevivendo no campo.

Quando o galo canta, as Almas se levantam


e o mar recua, é quando os anjos do céu dizem amém
e o pobre do lavrador diz aleluia
diz aleluia, diz aleluia, seu Tranca-Ruas diz aleluia (2x)

Chegou na canjira de Umbanda seu Tranca-Ruas (2x)


quem está de ronda, é meu pai (2x)

Seu Tranca-Ruas me cubra com sua capa,


quem tem sua capa escapa (2x)
a sua capa é o manto da caridade,
sua capa cobre tudo, só não cobre a falsidade!

Autor/a e compositor/a desconhecido/a

Considerando a vivência do trabalhador rural, o homem do


campo, é possível enxergar na letra uma referência a este povo
sofrido que precisa levantar logo cedo para plantar e colher na luta
diária. No trecho “Quando o galo canta, as Almas se levantam / e
o mar recua, é quando os anjos do céu dizem amém / e o pobre
do lavrador diz aleluia” a referência fica evidenciada e significativa
diante do pedido de proteção, “Seu Tranca-Ruas me cubra com

253
sua capa, / quem tem sua capa escapa / a sua capa é o manto da
caridade”, que os lavradores fazem diariamente.
A temática da música, que contempla a rotina e a vivência dos
pequenos produtores rurais, pode ser objeto de discussão em sala
de aula atuando como conteúdo multidisciplinar proposto pela es-
cola na perspectiva de aproximar a realidade do campo ao espaço
de aprendizados escolares. O debate necessita ser construído para
salientar a relevância destes produtores para o mercado econômi-
co brasileiro, cujo contexto reforça e ilustra a mensagem de perse-
verança presente na musicalidade religiosa. Nesses termos, o eixo
temático proposto é assim articulado:
Emerge, desse modo, a necessidade de se analisar no con-
texto pedagógico como o sistema agropecuário brasileiro vem se
constituindo ao longo dos anos. A análise também pretende visi-
bilizar a participação do pequeno produtor rural na economia bra-
sileira, assinalando os avanços e desafios para os trabalhadores do
campo, categoria que tem perdido cada vez mais espaço em de-
corrência da expansão industrial globalizada.

ECOS DOS PRETOS VELHOS10: QUANDO A HISTÓRIA DA


ESCRAVIDÃO RECONHECE A FORÇA DO POVO NEGRO

É recorrente no estudo da História o processo de escravidão


de pessoas africanas e indígenas na economia brasileira em seu
início de formação. O processo de exploração de pessoas perdurou
por 300 anos até, em 1888, ter ocorrido a denominada abolição
da escravatura. Não temos mais escravos no Brasil. Pelo menos
não, explicitamente, como tínhamos no período colonial. Os Pretos
Velhos são entidades representativas dos espíritos dos escravos
que sucumbiram nas senzalas em condições de abandono e
encarceramento.
Falamos dos milhares de africanos que foram sequestrados
do seu país natal, cujas dignidades foram subtraídas sob o pretexto
10
São espíritos que representam generosidade, amor, humildade e se apresentam sob a imagem de
idosos africanos que foram escravizados e morreram de velhice.

254
de servir de mão de obra no desbravamento das riquezas naturais
brasileiras. Hoje, tais espíritos são conselheiros valiosos da Umban-
da e que vêm aos terreiros, como também nos centros espíritas
kardecistas, para um trabalho no bem. A musicalidade represen-
tativa deste grupo ecoa não o sofrimento vivido na terra, mas a
sua resistência, a sua sabedoria e, acima de tudo, o seu respeito
e acolhimento por todos/as que lhes pedem auxílio. O ponto can-
tado notabiliza a esperança conquistada, apesar das dores, e com
a superação das amarguras, graças à vontade de viver e ao amor
pelo próximo.

Ecoou um canto forte na senzala


Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança
Liberdade fez valer
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
Ecoou um canto forte na senzala
Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança
Liberdade fez valer
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
Povo negro, povo forte
Trabalhavam pro senhor
E sofriam as maldades praticadas pelo feitor
O sangue, o suor e a lágrima
Renovavam a força pra lida
Pois sabiam que o sofrimento purificava pra nova vida
Ecoou um canto forte na senzala
Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança
Liberdade fez valer

255
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
Do Congo ou de Angola ou de Mina
Bahia, Aruanda ou Cambinda
São os velhinhos da Umbanda
Que encaminham nossas vidas
Esqueceram o terror da senzala
Do cativeiro, as crueldades
E voltaram pra essa terra
Pra prestar a caridade
Ecoou um canto forte na senzala
Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança
Liberdade fez valer
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
(Adorei minhas Santas Almas)

Autor/a e compositor/a desconhecido/a

Através dessa musicalidade, é possível aos docentes resgatar


a memória da formação da sociedade brasileira, que deve ser uma
missão da escola. Em tempos de informações rápidas, fluídas e di-
nâmicas, as raízes culturais têm se diluído de forma cada vez mais
intensa. Não se trata de evidenciar o sofrimento dessas entidades
como um contexto trágico e proeminente, mas de se valorizar to-
dos/as aqueles que foram violentados e silenciados, de diversas
formas, no período da escravidão.
O ponto cantado dá ênfase para o fim de uma realidade per-
versa que assolou a nossa história como um fatídico e irreparável
dano aos direitos humanos. O trecho “Não existe sofrimento, não
existe mais chibata / Só existe a esperança para um novo amanhe-
cer” reforça o quanto a esperança foi um elemento constante na

256
vida das pessoas escravizadas, sentimento que precisa ser forta-
lecido para que possamos também ser livres do nosso sofrimento
espiritual.
Outro trecho, porém não o único, que faz um convite à reflexão
da relevância da narrativa, é “Do Congo ou de Angola ou de Mina
Bahia, Aruanda ou Cambinda”, quando surgem as diversas origens
dos povos africanos que foram transportados para o Brasil em
condições desumanas. As informações contidas na música sagra-
da enfatizam a todo momento a necessidade de se contemplar a
riqueza das histórias e lições de vida dos indivíduos escravizados.
Para tanto, enfatizamos a seguinte sequência:
Nesse sentido, a ação pedagógica pode aprofundar o debate
sobre os povos africanos e indígenas que sofreram com o processo
de escravização, além de ser possível evidenciar, também, a apro-
priação indevida dos recursos naturais nesse mesmo período his-
tórico. Em síntese, o ponto cantado apresenta uma diversidade de
possibilidades de enfoque, a partir das questões relacionadas à es-
cravatura, sendo essencial, no nosso entender, a análise dos traços
culturais oriundos dos povos escravizados, e que ainda podem ser
identificados na sociedade brasileira, visando, também, questionar,
em sala de aula, a invisibilidade dessas etnias, a exclusão que en-
frentam e suas resiliências cotidianas.

ECOS DOS CABOCLOS11: QUANDO A NATUREZA ENSINA PELA


CULTURA INDÍGENA

Não há menção à natureza sem sublinhar a relevância dos


povos indígenas na preservação dos nossos recursos. A Floresta
Amazônica, por exemplo, é lar de milhares de indígenas que bus-
cam reexistir, de geração em geração, valorizando seus costumes e
tradições. Os significados da cultura indígena não podem ser men-
surados, pois são superlativos. Por isso, devem ser protegidos por
todos/as e tratados na escola de formas inter e multidisciplinar.
11
São uma linha de trabalho de entidades de Umbanda, que se apresentam como indígenas.
Incorporam também no candomblé de caboclo, de onde possivelmente são originários.

257
A representação do povo indígena na Umbanda é constituída
pelos Caboclos ou Caboclos de Pena, como também são chama-
dos. São espíritos de antigos indígenas que partiram em conflitos
com outras tribos ou em disputas com o homem branco pelo di-
reito de proteger a natureza. Os pontos dessas etnias ecoam a se-
renidade e entoam a força que estes seres de luz têm para a har-
monia da existência. Nas letras e melodias são percebidos os sons
da mata e dos animais que buscam promover a cura daqueles que
buscam auxílio no terreiro. O ponto cantado abaixo sinaliza o quan-
to a natureza é contemplativa e essencial não só para as entidades
dos Caboclos, mas, também, para o debate acerca da importância
da natureza, sobretudo numa época em que a escola precisa sus-
citar o interesse pelas questões ambientais e a sustentabilidade do
planeta.

Quando o caboclo entra na mata,


não sabe o que vai encontrar
os seus passos tremem a terra,
fazem os pássaros voar
no som do guizo da terra,
espera a lua clarear
com a sua flecha pega a caça
para o seu povo alimentar
com a caça nas costas volta a caminhar
saúda Caboclo Treme Terra
que voltou para o seu congá
pedindo a Pai Guiné agô
saudando Pai Oxossi,
com a força de Pai Xangô!

Autor/a e compositor/a desconhecido/a

258
A vivência e o resgate dos hábitos de preservação dos in-
dígenas representam a tentativa de promover a conscientização
ambiental, ao mesmo tempo em que fortalecem as nossas raízes
culturais. Conforme notamos no ponto cantado, a natureza signifi-
ca a fonte de sobrevivência não só para os indígenas, conforme o
trecho “com a sua flecha pega a caça / para o seu povo alimentar /
com a caça nas costas volta a caminhar”, mas para toda a socieda-
de. O eixo temático proposto é assim articulado:
Permitindo a valorização do conhecimento e dos costumes da
cultura indígena, o eixo didático formulado visa discutir a consciên-
cia ambiental de forma diária na escola. O saber indígena é uma
fonte inestimável de informações valiosas para a prática sustentá-
vel do uso dos recursos naturais e pode ser ainda mais significativa
quando associada ao processo histórico da formação da nossa so-
ciedade. Até hoje os traços culturais indígenas estão presentes no
nosso dia a dia e eles precisam se tornar pauta frequente na gestão
do conteúdo das escolas.

ECOS DOS ERÊS12: QUANDO APRENDER A CONTAR


REPRESENTA VIVER COM SIMPLICIDADE

Os Erês representam a inocência presente na alma humana.


São espíritos que buscam trazer alívio e sorriso aos homens que,
muitas vezes, desanimados e imersos em dificuldades terrenas,
deixam de olhar o lado bom dos dias... deixam de agradecer pelo
dom da vida! A leveza e a delicadeza dos Erês precisam ser levadas
para a escola como uma forma lúdica de se aprender, descobrir o
novo e se encantar com um mundo de conhecimento que a escola
proporciona.
Aprender cantando é uma das formas mais significativas de
se construir o conhecimento no espaço escolar. Quando falamos
de crianças, no âmbito da Educação Infantil, por exemplo, estamos
falando de ludicidade, de cores, de brincadeiras, movimentos e ex-
12
São espíritos de crianças evoluídas que estão muito próximas dos orixás, transmitindo suas
sabedorias.

259
periências extra-sensoriais quanto cognitivas. O ponto cantado a
seguir expressa a aprendizagem dos números em clima de festa,
poesia e leveza.

1, 2, 3, 4, 5, 6 eu quero ver criança


Na cabeça de vocês!
Vai começar a brincadeira, é uma grande festa
O erê, O erê, onde está o erê? 2x
Onde está a Rosinha, está na cachoeira
Onde está o Trovão, mora na pedreira
Onde está o Folhinha, está na mata a caçar
Onde está o Pedrinho que eu não vejo chegar
O erê, O erê, onde está o erê? 2x
Onde está o Lazinho, com vovô a rezar
Onde está o Paulinho, foi conchinhas catar
Onde está a Aninha, no campo a passear
Onde está Mariazinha que eu não vejo chegar
O erê, O erê, onde está o erê? 2x
Onde estão os eres que eu não vejo chegar
Onde estão os eres venham logo brincar
Tira, tira o pé do chão!

Autor/a e compositor/a desconhecido/a

A aprendizagem da matemática pode ser favorecida pela ludi-


cidade. Nessa perspectiva, a música se revela um recurso eficiente
para a imersão didática. O eixo temático proposto é organizado do
seguinte modo:
A ludicidade permite uma aprendizagem mais dinâmica, mais
descontraída e interativa, podendo despertar nos alunos o dese-
jo pelo conhecimento numérico. O ponto cantado estimula, ainda,
a criatividade e imaginação das crianças através de trechos como

260
“Onde está a Rosinha, está na cachoeira / Onde está o Trovão,
mora na pedreira” beneficiando, também, a formação cognitiva e
até motora (quando a dança e os movimentos corporais são aplica-
dos em conjunto com os saberes da musicalidade afro-brasileira).

ECOS DO ZÉ PELINTRA13: QUANDO AS DIFERENÇAS


REGIONAIS RESULTAM EM SEGREGAÇÃO SOCIAL

Grande parte das entidades da Umbanda trazem em sua his-


tória as vivências de uma vida terrena permeada de contratempos.
São as mais variadas situações conflituosas que permitem aos con-
sulentes14 uma reflexão sobre a vida e suas intempéries, a partir
das dificuldades humanas, que são comuns a todos/as nós. Zé Pe-
lintra, apesar do perfil brincalhão e boêmio, representa o arquétipo
do brasileiro, que precisa sobreviver aos problemas sempre com
muita astúcia e desenvoltura, encontrando caminhos e soluções
inusitadas para as situações adversas.
As características do Zé Pelintra, postas como um carioca ma-
landro, outrora nordestino e destemido, garantem sua popularida-
de na região. A diversidade que lhe caracteriza, muitas vezes, alu-
de à segregação social que persiste na sociedade brasileira. Dessa
forma, o canto para Zé Pelintra é apropriado para discussão da xe-
nofobia15, solicitando que a escola atue no sentido de desconstruir
comportamentos preconceituosos e excludentes.

Zé Pelintra, Zé Pelintra,
boêmio da madrugada
Vem na linha das almas e
também na encruzilhada (2x)

13
Entidade de luz originária da crença sincrética denominada Catimbó, surgida na Região Nordeste
do Brasil. Comumente “incorporado” em terreiros de Umbanda, o seu culto é difundido em todo o
Brasil.
14
São as pessoas que vão aos terreiros para tomar o passe e para a consulta em busca de cura espi-
ritual, conselhos e equilíbrio emocional. O passe é uma emanação vibratória energética.
15
Refere-se à discriminação contra os indivíduos de uma região ou um Estado.

261
O amigo Zé Pelintra que
nasceu lá no sertão
Enfrentou a boemia
com seresta e violão
Hoje na Lei de Umbanda
acredito no senhor
Pois sou seu filho de fé,
pois tem fama de doutor
Com magias e mirongas
dando forças ao terreiro
Saravá, Seu Zé Pelintra,
o amigo verdadeiro! (2x)

Autor/a e compositor/a desconhecido/a

Por apresentar um perfil boêmio, a entidade também é asso-


ciada à figura do homem vagabundo, que não trabalha e que vive
de pequenos roubos, furtos e enganações. Contudo, essa carac-
terização revela, em sua essência, os efeitos do preconceito regio-
nal e da segregação social, uma vez que distorce o sentido da ale-
gria representada por esse personagem. O eixo temático proposto
pode ser assim organizado:
A perspectiva de trabalho docente com temas vinculados à
diversidade regional busca promover a identificação e a reflexão
em torno das diferenças, do quanto somos um povo miscigena-
do16 e diverso. No trecho “O amigo Zé Pelintra que / nasceu lá no
sertão / Enfrentou a boemia / com seresta e violão”, aponta uma
referência aos desafios da vida, representando as dificuldades que
muitos brasileiros precisam transpor na luta diária por sobrevivên-
cia. Estes pontos de reflexão social precisam ser inseridos no cur-
rículo escolar, no sentido de se construir uma escola em sintonia
com o mundo social e que promova a transformação efetiva de

16
É o processo gerado a partir da mistura entre diferentes etnias.

262
seus alunos (FREIRE, 1987).

PARA QUE OS ECOS NÃO SEJAM SILENCIADOS,


PRECISAMOS EVOCÁ-LOS

Até aqui, buscamos expor como os ecos dos terreiros vêm


sendo silenciados, apagados, esquecidos da nossa memória cultu-
ral. Fazemos um esforço de notabilizá-los, no intuito de demons-
trar que podem ressignificar a escola, valorizando as religiosidades
diversas e promovendo a discussão das desigualdades sociais. A
educação é lugar de diferenças e singularidades para que sejam
criados espaços onde todas as vozes sejam ouvidas. Assim, o co-
nhecimento proveniente da ancestralidade afro-brasileira pode
contribuir para a compreensão da pluralidade, embora pareça ter
perdido significado ao longo dos anos. Percebemos que o movi-
mento de repressão tem sido cada vez mais intenso em relação à
cultura africana e indígena, bem como às práticas religiosas que
lhes são originárias. Para se contrapor a esse silenciamento, a esco-
la e seus integrantes precisam resgatar os saberes étnicos, através
de sua intervenção intelectual e cognitiva, com a proposta de con-
teúdos contextualizados em nossas raízes culturais num movimen-
to de alteridade e valorização das culturas ancestrais. Este esforço
precisa ser coletivo, pautado no respeito à diversidade e ao direito
universal do conhecimento (NASCIMENTO, 2019).
Os ecos dos terreiros, através das sonoridades de tambores e
atabaques, no ressoar das vozes dos excluídos, acolhem, agregam,
abraçam; contam as nossas histórias, ensinam suas místicas de fé e
seus cânticos de esperança. Nada mais natural, portanto, que suas
melodias reencantem os espaços escolares.

263
REFERÊNCIAS

CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre
igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v.13, n. 37, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
NASCIMENTO, Robéria Nádia Araújo. Orixás são super-heróis: mediações dos quadrinhos no
contexto da educação intercultural. Revista Teias v. 20, n. 57, Abr./Jun. 2019.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico
nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo, Edusp, 2000, 194 pp.

264
DIÁLOGOS ENTRE A EDUCAÇÃO POPULAR E A FORMAÇÃO
CRÍTICA E HUMANITÁRIA DOS JURISTAS: AS EXPERIÊNCIAS
EXTENSIONISTAS DO NAJUP-JE NA COMUNIDADE
QUILOMBOLA DO CEDRO EM MINEIROS - GO

Marcos Vinícius Ferreira da Silva1*


Angélica Ferreira de Freitas2*
Phillipe Cupertino Salloum e Silva3*

INTRODUÇÃO

Esse estudo coloca em pauta a relação entre Educação em


Direitos Humanos e extensão universitária no contexto de asses-
soria jurídica e popular aos Povos e Comunidades Tradicionais
(PCTs), em especial, quando se refere as comunidades quilombo-
las. Assim, o presente trabalho aborda de forma teórica e empírica
a experiência coletiva dos extensionistas do Núcleo de Assessoria
Jurídica Universitária Popular - Josiane Evangelista (NAJUP–JE),
que buscaram transformar em pesquisa científica as suas práticas
e vivências dialógicas com a comunidade quilombola do Cedro em
Mineiros - Goiás.
O NAJUP–JE surgiu em 2017, como um projeto de extensão
do curso de Direito da Universidade Federal de Jataí (UFJ), com o
propósito de elaborar pesquisas sobre a realidade objetiva e sub-
jetiva das comunidades assessoradas a fim de encontrar ou locali-
zar temas geradores e sugerir ações (teóricas e práticas) transfor-
madora das condições materiais de existência dos assessorados
(DIEHL, 2022).
Assim, o projeto se organiza em frentes de atuação temá-
tica, de acordo com as lutas dos movimentos sociais ou grupos

1
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Jataí, Mestre em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás. E-mail: marcos_vinicius@discente.ufj.edu.b
2
Acadêmica de Direito pela Universidade Federal de Jataí. E-mail: ferreirafreitas@discente.ufj.edu.br
3
Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal de Jataí. Doutor em Direito
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
que atuam em parceria com o projeto (acampamentos de reforma
agrária do Movimento Sem Terra (MST), estudantes de escolas pú-
blicas, usuários da rede pública de saúde mental e, recentemen-
te, a comunidade quilombola do Cedro). Para além de um projeto
de extensão, trata-se de uma experiência coletiva no propósito de
contribuir e aprender com a luta dos oprimidos.
Ao longo do ano de 2022, foram realizadas diversas visitas ao
Cedro, onde estabeleceu-se uma multiplicidade de diálogos com a
comunidade e trocas diretas entre os membros da frente e a comu-
nidade. E de onde surge, as seguinte problemática para a organiza-
ção deste trabalho: quais os desafios encontrados para a prática da
extensão popular em Direito diante do processo de aproximação
da universidade com a comunidade quilombola do Cedro? Quais
os desafios e dificuldades enfrentadas pela comunidade.
Especificamente, visou-se descrever as percepções, experiên-
cias e situação da proximidade entre o NAJUP-JE e o Cedro, para
após refletir os pressupostos políticos-pedagógicos da Assessoria
Jurídica Popular (AJUP) enquanto prática de extensão universitá-
ria.
Elencou-se como hipótese de estudo a intencionalidade da
extensão popular e o compromisso ético com a transformação so-
cial, voltados para a luta pela emancipação dos povos historicamen-
te oprimidos na sociedade, elementos que são centrais na busca
das AJUPs pelo Brasil, e fundamentais para viabilizar a formação
humana e crítica dos juristas, alinhados com os objetivos afirmados
na Constituição Federal de 1988 e com os Direitos Humanos.
Ao Intercalar elementos da pesquisa empírica, uma vez que
relata, ao mesmo tempo busca compreender os sentidos das expe-
riências e vivências de campo. Essas vivências foram oportunizadas
com base nos diálogos iniciais com os representantes da comu-
nidade, buscando uma aproximação inicial e retorno de interesse
deles em compartilhar o tempo e a presença com os extensionistas
da universidade. Cada atividade e viagem para o quilombo é pre-
viamente planejada, e após o término da visita os extensionistas

266
registram suas observações, sensações e percepções no seu pró-
prio caderno de campo.
Desta forma, o caderno de campo “trata-se de registar o con-
vívio com os nossos informantes, convívio este que não está repre-
sentado apenas pela fala dos mesmos, no registro que fazemos
do próprio espaço” (LOPES, 2002, p. 135). Entende-se o diário de
campo como um instrumento metodológico e pessoal que ultra-
passa a funcionalidade de coleta de dados (quantitativos ou quali-
tativos), capaz de detalhar de modo aprofundado os olhares sobre
a realidade local e expressar as preocupações internas e externas
que guiam os pesquisadores e a comunidade (LOPES, 2002).
Trata-se de uma investigação pautada no arcabouço da an-
tropologia jurídica a fim de identificar impressões, sentidos e con-
tradições a partir dos relatos e das experiências ao longo do tem-
po. Dessa forma, “o ‘método etnográfico’ implica na frequente
reinvenção da matéria, as próprias formulações teóricas também
são constantemente lapidadas em função do confronto com no-
vas experiências, portanto, não existe antropologia sem “a empiria
– eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo
que nos afeta os sentidos –, é o material que analisamos e que,
para nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos,
fonte de renovação.” (PEIRANO, 2014, p. 380).
Em suma, esta pesquisa tenta construir uma interpretação
antropológica e educativa com a comunidade do Cedro, uma leitu-
ra que se funda sobretudo na influência teórica e ética do legado
de Paulo Freire na extensão popular em Direito.

A AJUP COMO PRÁTICA TRANSFORMADORA

Na concepção de educação de Paulo Freire, a Educação Po-


pular, pauta-se no diálogo como uma das principais ferramentas
de transformação da sociedade e aliado a radical dimensão onto-
lógica, quando o próprio quadro de um pressuposto de poder é
redefinido, é onde a relação educando e educador ganha protago-

267
nismo no processo de aprendizagem (GHIGGI, 2010).
Compreende-se que a extensão deve ser, antes de tudo, uma
atividade de emancipação, trocas de aprendizados, construção co-
letiva e uma constante tentativa de manutenção e efetivação de
direitos humanos. Por isso, é válido ressaltar que um dos pilares
da extensão popular está nos ensinamentos de Paulo Freire que,
consequentemente, inspirou as atividades da AJUP.
Desse modo, parte-se de uma perspectiva de educação liber-
tadora e transformadora, experimentada e comprovada na sua prá-
xis, onde, educadores e educandos, co-intencionados à realidade,
se encontram numa tarefa em cujo contexto ambos são sujeitos do
ato, não somente aptos a revelá-la e criticamente conhecê-la, mas
a tentar recriar esse conhecimento e a própria realidade.
Paulo Freire (2011) defendeu que o papel do educador e da
educadora popular no processo de transformação da realidade
não se resume apenas a “pensar que, a partir do curso que coor-
denam ou do seminário que lideram, podem transformar o país.
Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele
ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica”. (FREIRE,
2011, p. 127).
O NAJUP-JE, busca se distanciar das práticas mais tradicio-
nais de extensão que vislumbram os sujeitos universitários como
os únicos detentores do conhecimento, que irão iluminar os des-
tinatários do projeto nas atividades que forem realizadas. O que
se pretende na realidade, é que, a partir dos diálogos promovidos
entre educandos e educadores, se apresente possibilidade às pes-
soas, na condição atual de oprimidos, de serem protagonistas na
construção da realidade que os rodeia. Freire valorizou essa ideia,
ao afirmar “[...] que o homem, ser de relações e não só de conta-
tos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o
mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de
relações que é.” (1974, p. 47).
É com essa visão de Educação em Direitos Humanos, de
Extensão Popular e de desejo em contribuir nas práticas de lutas

268
coletivas como meio para a liberdade dos oprimidos e oprimidas,
que o projeto se aproximou da comunidade quilombola do Cedro
e desse encontro resultou (e está resultando) em experiências e
ações coletivas, cujas riquezas sociais e culturais são inspiradoras.

A COMUNIDADE QUILOMBOLA DO CEDRO E SEUS DESAFIOS

Houve duas visitas iniciais ao Quilombo Cedro para aproxi-


mação. Na primeira, apenas com os docentes do curso de Direito e
coordenadores do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Po-
pular - Josiane Evangelista (NAJUP-JE) da Universidade Federal
de Jataí (UFJ), que se reuniram com as representações quilombo-
las da Associação Cedro e buscaram fazer um contato inicial com
a comunidade. A segunda visita ocorreu após concordância da co-
munidade em recepcionar os alunos da UFJ, que foram à comuni-
dade junto com docentes, em razão do ciclo formativo de ingresso
no NAJUP-JE em 2022 (fotografia 01).

Fotografia 01 - Quilombolas do Cedro e professores e alunos da


UFJ durante a roda de conversa

Fonte: SILVA, P. C. S. (2022).

269
Nesta ocasião, a vivência ocorreu na sede da associação do
Quilombo Cedro, quando discentes, docentes e integrantes da co-
munidade quilombola se reuniram e ali foram abordados assuntos
relacionados à luta pelo território, que perpassa pela defesa contra
a especulação imobiliária aos cuidados a preservação ambiental,
pois as plantas e raízes dos cerrados são essenciais para esta co-
munidade que trabalha e tem sua cultura voltada na produção de
medicamentos fitoterápicos.
Após os dois encontros iniciais, ao longo de 2022 foram rea-
lizadas diversas visitas à comunidade com uma frequência quinze-
nal ou mensal. Onde os encontros e diálogos se mostraram mais
frutíferos que os anteriores, observou-se que a comunidade estava
mais à vontade e disposta para falar sobre os seus problemas e di-
ficuldades enfrentadas no cotidiano.
Compreende-se que houve uma abertura e confiança depo-
sitada no projeto, talvez seja em razão da habitualidade de visitas e
ações que estão sendo construídas. Ademais, se entende que con-
fiança é uma das bases das AJUP’s, sem ela os povos e movimen-
tos não irão deixar pessoas de fora da sua comunidade, adentrar
sua realidade.
Na atual situação, as pessoas da universidade ali presentes
estão decididas e focadas a contribuir especificamente com a luta
deles. Visto que nas visitas iniciais, havia vários alunos e eles ainda
não tinham decidido na época em qual frente de atuação do NA-
JUP-JE queriam ingressar, estavam apenas conhecendo as possi-
bilidades de qual causa social iriam apoiar e se dedicar.
Além disso, a comunidade luta pelo direito à cultura e iden-
tidade quilombola, tendo em vista que trata de uma comunidade
tradicional que resiste na região que hoje constitui o Município de
Mineiros antes mesmo da sua fundação oficial, desde meados do
século XIX. O presidente, a vice-presidente da associação e outras
pessoas da comunidade em diversos momentos de conversas co-
letivas e individuais, fizeram questão de contar aos extensionistas
sobre a memória e origem do Cedro.

270
Eles contaram com bastante propriedade de narrativa, a tra-
jetória de Francisco Antônio de Moraes, conhecido historicamente
como “Chico Moleque”. O saudoso Chico Moleque enfrentou o sis-
tema escravagista por meio do trabalho, escravizado pela família
mineira de João Gabriel, conseguiu comprar sua alforria e 30.161
alqueires da Fazenda das Flores do Rio Verde em 1885 (DAMA-
CESNO, 2022) no território onde formou-se a Comunidade Qui-
lombola do Cedro e, atualmente, inserido na municipalidade que
passou a se chamar Mineiros (GO), desmembrada de Jataí a partir
da lei de nº 257 de 1905.
Identifica-se que a comunidade conta com orgulho sua his-
tória e, ao mesmo tempo, consegue apontar problemas relaciona-
dos, tais como a juventude e as crianças não terem apreço e nem
interesse com a trajetória e cultura quilombola. Outro ponto que
se faz perceptível, refere-se a narrativa que aponta um desgosto
com razão sobre a redução dos territórios do Cedro nos últimos
138 anos, pois nas últimas décadas esse processo de expropriação
de suas terras foi intensificado.
Tanto o Cedro como o NAJUP, identificaram que um tema
gerador na comunidade se refere ao resgate cultural da juventude
e das crianças. Que por sua vez, realizou um evento em comemora-
ção ao Dia da Consciência Negra e convidou o NAJUP-JE para pro-
por uma atividade durante a programação deles. Foi, então, que
surgiu a ideia de produzir arte-muralismo para resgatar as origens
e a memória de “Chico Moleque”. Atividade na qual as crianças
foram protagonistas na pintura e no registro de suas identidades
como parte daquela construção social e artística, resgatando um
pouco da história através da arte (fotografia 02).

271
Fotografia 02 – Atividade de arte e muralismo
com a crianças do Cedro

Fonte: SILVA, P. C. S. (2022).

Usar um momento lúdico para reviver a história e ao mesmo


tempo se fazer participar efetivamente de uma educação crítica em
Direitos Humanos, uma atividade tão instigadora que até os adul-
tos da comunidade e os extensionistas do NAJUP-JE participaram.
Após isso, os planejamentos futuros são de promover essa ativida-
de na cidade para disputar narrativas, espaços e corações sobre a
importância e resistência da comunidade do Cedro.
Nesse momento, o direito em disputa é o direito humano à
terra, ou seja, o direito ao território e seus problemas e conflitos de-
correntes, percebe-se que é outro tema guarda-chuva gerador na
comunidade. Reis (2012), defende o direito humano à terra, apon-
tou que o reconhecimento deste se dá de quatro formas: a) pelo
vínculo relacional entre a posse da terra e usufruto de outros direi-
tos humanos (alimentação, moradia); b) com à proteção do direito
à propriedade projetado como necessidade acima dos coletivos; c)
uma ideia de território como amplificadora da relação entre a terra
e o indivíduo; e d) dos fatos concretos, no caso Brasil as relações
entre violência no campo e a concentração fundiária (REIS, 2012).

272
A comunidade relatou em vários momentos seus direitos pre-
judicados em razão da destruição das nascentes, poluição dos rios,
avanço de fronteiras agrícolas nas propriedades devastando os do-
mínios do cerrado, apropriação de terras quilombolas por outros
grupos sociais. Essa situação como um todo afeta os direitos corre-
lacionados. Por exemplo, sem acesso à água potável e de qualida-
de hídrica aceitável para o consumo, se afeta diretamente o direito
à moradia e a alimentação.
Sobre esse aspecto, em uma visita especifica a comunidade,
uma das famílias quilombolas relatou que antes retornar ao Cedro,
morava em São Paulo e teve momentos que eles passaram por
dificuldades hídricas na cidade, o que mais causa estranhamento
atualmente, é residir em uma localidade com bastante recurso hí-
drico disponível, mas a empresa de saneamento municipal negar a
instauração de registros e canalização para a família, sendo que os
vizinhos não-quilombos que apropriaram de suas terras, tiveram
concedido o direito à água tratada e canalizada. Tal questão não
é um problema exclusivo de uma família, durante as reuniões de
visita se fez claro que houve diversos relatos nesse sentido.
No tocante à aproximação, se estabeleceu diversos diálogos
interativos (desde assuntos corriqueiros até questões sérias) que
ajudaram a produzir uma afinidade e proximidade. Durante estas
conversas “informais”, ficou mais do que entendido que tais pes-
soas possuem uma notória experiência de vida e saberes tradicio-
nais e populares. Em várias ocasiões antes, durante e depois da
reunião, eles falaram de temas complexos com uma simplicidade
e bastante coerência com a realidade. Se um acadêmico, de modo
geral, fosse falar sobre o mesmo assunto, iria usar uma linguagem
robusta e pomposa e provavelmente iria se afastar um pouco da-
quela situação concreta. Essa é uma percepção antropológica es-
sencial: é necessário ouvi-los, entendê-los, pois recorrem a uma
lógica diferente da razão universitária na hora se expressar.
Os extensionistas em vários momentos, conversaram sobre
os motivos pelos quais o NAJUP-JE quer contribuir na defesa dos

273
direitos desta comunidade. Com o acúmulo de informações que
foram receber nas reuniões anteriores, foi proposto ao povo qui-
lombola do Cedro a possibilidade de aceitar ou recusar a ajudar
em propositura de uma audiência civil pública com Ministério Pú-
blico Federal (MPF), a fim de debater e questionar o poder público
municipal sobre as negativas e retiradas dos direitos essenciais aos
povos tradicionais.
Após a oitiva, eles relataram uma série de problemas, inicial-
mente com a questão da água. Muitas famílias quilombolas cultu-
ralmente constituíram o hábito de edificar suas moradias próximas
de seus familiares (diferentemente da lógica privada-individualista
de cada um “ter” a sua posse, trata-se de uma propriedade coleti-
va). No entanto, apesar de morarem próximos uns dos outros, eles
querem ter seu próprio registro de água e energia a fim de fortale-
cer vínculos e evitar conflitos internos, e estão negando o direito ao
saneamento básico referente tratamento da água.
A comunidade quilombola relatou que houve várias tentati-
vas de procurar a empresa SAAE (Serviço Autônomo de Água e
Esgoto) no propósito de obter um hidrômetro em suas casas, mas
lhe foram negados, com a justificativa de não ser possível fazer tal
procedimento. No entanto, outras propriedades de famílias não-
-quilombolas situadas ao lado ou entremeio do Quilombo Cedro
foi construída a tubulação e instalado tais equipamentos.
Cabe fazer uma relevante observação: ao longo da existência
secular do Quilombo Cedro, muitas famílias venderam suas terras
ou trocaram por lote na cidade, um processo cruel e gradual de ex-
propriação quilombola. Cada um da comunidade teve uma história
sobre isso, que nos foi contada rapidamente com uma tonalidade
triste ou de arrependimento sobre algum parente ou conhecido,
que vendeu sua terra por um valor irrisório. Fatos assim, geram a
situação de ter pessoas sem vínculo etnico-cultural em terras qui-
lombolas. Esse é o ponto chave, as famílias que receberam as tu-
bulações e equipamentos da empresa de abastecimento e sanea-
mento local estão dentro do território do Cedro e quem precisa de

274
abastecimento tem seu direito impossibilitado.
Outro aspecto sobre a temática da água que foi relatado, diz
respeito às nascentes que estão secando ou tendo a qualidade
prejudicada. Eles informaram que os empreendimentos imobiliá-
rios próximos ao seu território, tais como condomínios de luxo e a
expansão urbana do município, têm canalizado o Rio Verde, além
de represá-lo, diminuindo o acesso à água. Ao observar o fundo
da imagem 04 foi registrado a presença do avanço urbanístico. Do
lado da entrada da sede do Cedro, há um bairro em expansão (ca-
sas e estabelecimentos comerciais em construção).

Fotografia 04 - Entrada do Cedro com vista em direção ao bairro


em crescimento em sua frente.

Fonte: SILVA, P. C. S. (2022).

Ao observar a entrada do Cedro, houve a pavimentação as-


fáltica até o limite do crescimento imobiliário. A comunidade qui-
lombola desabafou que é bastante complicado a situação da sede
(e até mesmo de suas casas) em estações chuvosas, pois o local foi
construído em uma área de acentuado declínio, mas isso não uma

275
preocupação, o problema surgiu com avanço da urbanização, pois
água acumula com barro e escorre descontroladamente para as
edificações do Quilombo, além de sedimentar o canal fluvial.
Em uma visita para além da sede associação, percorreu-se, a
convite da comunidade, em várias propriedades do quilombo. Um
dos relatos mais comovente sobre a água, diz respeito aos mora-
dores as margens ou com proximidades do canal fluvial, não po-
dem utilizar a água para consumo pois cai esgoto diretamente no
rio. A família, então, busca como alternativa usar água diretamente
na nascente, mas esta encontra-se afetada e reduziu a quantidade
de água, pois foi construído uma estrada de chão, o que compro-
meteu a qualidade e quantidade hídrica (fotografia 05).

Fotografia 05 – Estrada na comunidade do Cedro, onde uma das


nascente foi comprometida.

Fonte: SILVA, M. V. F. (2022).

Diante do comprometimento dos recursos hídricos, as famí-


lias consomem água dessas nascentes, na qual possuem instru-
mentos de captação para abastecimento pessoal e para o uso na
agricultura e pecuária. Cabe reforçar, que a comunidade quilombo-

276
la não usou termos técnicos e acadêmicos, o vocábulo deste traba-
lho serve para explicar o problema hídrico de forma complementar
ao que eles informaram, sem perder o sentido e a coerência com a
realidade factual.
Além da tentativa de expropriação por fatores de especula-
ção imobiliária, observou-se empiricamente a paisagem e identi-
ficou-se que o território do Cedro e o domínio dos cerrados estão
cercados não só pelo crescimento da malha urbana, mas também
pelo avanço da pecuária e da monocultura de grãos (soja e milho).
Houve relatos, sobre os quais, pessoas que não são latifun-
diários, mas que também tentam invadir suas terras, colocam gado
sem permissão, removem e danificam cercas instaladas pelo Insti-
tuto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) com informações
sobre a área ser destinada aos quilombolas para avançar com a
“limpeza da área” (desmatamento) e, depois, efetuar o plantio na-
quele espaço tomado.
Ao analisar as situações concretamente, entende-se que o
quilombo do Cedro é composto por uma minoria étnico-tradicio-
nal que resiste ao racismo ambiental e estrutural, trata-se de pes-
soas que defendem os Cerrados, este que nitidamente conforme
os relatos vem sofrendo com aquilo que as ciências ambientais de-
nomina de efeito de borda. Além da redução da biodiversidade e
da qualidade hídrica, elementos essenciais na cultura quilombola
não apenas no quesito plantio e alimentação, o que está em jogo é
o desestímulo à tradição cultural.
Por exemplo, sem o cerrado com sadio equilíbrio ecológico
não tem como produzir medicamentos fitoterápicos. Muitas mu-
lheres quilombolas relataram que, a cada vez que elas saem à pro-
cura de plantas medicinais, a busca fica mais difícil por conta do
desgaste das matas.
Posteriormente, após cada situação narrada, verificou-se a
possibilidade de produzir provas sobre os problemas enfrentados.
A finalidade de tal procedimento probatório será de embasar o do-
cumento formal a ser submetido ao MPF no sentido de cientificá-lo

277
sobre os desrespeitos à legislação e aos direitos, que vem afetando
os povos quilombolas e intimar o Poder Executivo Municipal, em
Mineiros - Goiás. Almeja-se que a partir de tal ato jurídico ocorra
desdobramentos sociais e ambientais para implementar e garantir,
o que não está sendo feito.
Todos da comunidade concordaram, logo, a parceria foi fir-
mada, o NAJUP-JE ficou responsável em buscar apoio na elabo-
ração do relatório/dossiê técnico e interdisciplinar sobre a situação
desta comunidade quilombola. O povo do Cedro com nossa asses-
soria e orientação irá produzir e juntar registros, tais como fotos,
vídeos etc. A reunião se dissipou tranquilamente, nem parecia que
ocorreu uma, pela tranquilidade do ato e da simplicidade. Deu para
perceber a empolgação com o combinado.
Em outubro de 2022, foi protocolado uma manifestação no
Ministério Público Federal (MPF), pois há mais de 20 anos a co-
munidade busca no campo institucional o reconhecimento de seus
direitos em face do Estado Brasileiro. A morosidade e omissão do
Estado também afeta a manutenção e existência dessa comunida-
de quilombola, visto que diversos direitos coletivos são violados.
Existe também a violação pelos tratados internacionais do
qual o Brasil é signatário, a Convenção 169 da Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT), e pelas legislações infraconstitucio-
nais vigentes, como o Decreto 6040/2007 e, inclusive, a Lei nº.
117/2003, do município de Mineiros (GO), que reconhece a Comu-
nidade como Patrimônio Histórico e Cultural do Município.
A Convenção 169 da OIT determina que sempre que um ato
administrativo possa afetar a um povo ou comunidade tradicional,
a população envolvida diretamente deverá ser consultada. Entre-
tanto, o NAJUP-JE constatou a partir dos relatos, que esta orien-
tação não está sendo respeitada no município de Mineiros, que
tomou uma série de decisões administrativas que alteram a orga-
nização socioespacial local e que impactam o território e a própria
Comunidade Quilombola do Cedro sem que estes tenham sido de-
vidamente e de forma prévia consultados.

278
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização de uma cultura de Direitos Humanos, fundamen-


tada na construção de uma sociedade que valorize a cidadania ple-
na a todas as pessoas, principalmente àquelas em estado social
mais vulnerável e com menos recursos de ação na defesa de seus
direitos, tal como dispõe a Constituição Federal de 1988, é um dos
compromissos éticos e ao mesmo tempo finalidade do NAJUP-JE.
Este relato de experiências é resultado justamente da atuação
do projeto de extensão supramencionado na Comunidade Qui-
lombola do Cedro, inspirado na perspectiva da educação popular
e da educação em direitos humanos. Em cada encontro, morado-
res da comunidade e os integrantes do projeto de extensão, no
formato de rodas de diálogos, discutiram questões relacionadas à
coletividade. Sobretudo as dificuldades do grupo em permanecer
no território e o receio da presença quilombola na região ser ab-
sorvida pelo modelo de desenvolvimento vigente, que prioriza o
agronegócio e a especulação imobiliária em detrimento dos inte-
resses do grupo.
Portanto, ao se relatar e refletir sobre as vivências no Cedro,
busca-se socializar essa experiência, compreendendo a importân-
cia do método aplicado no projeto de extensão popular desenvol-
vido no Curso de Direito da UFJ, que alia organização, teoria e prá-
tica para promover a formação de juristas comprometidos com a
luta dos povos historicamente subalternizados na sociedade. Com
uma esperança sempre pulsante de que os oprimidos possam vi-
venciar seus direitos na prática e realidade de suas comunidades.
E os graduandos vivenciem a realidade da maioria das pessoas em
nossa sociedade, e não idealize um Direito distante da luta real e
corriqueira de suas pessoas.

279
REFERÊNCIAS

DIEHL, D. A. O lugar da assessoria jurídica popular como práxis de educação popular freireana: a
atuação do NAJUP Josiane Evangelista no Acampamento Leonir Orbhak (MST-GO). InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 8, n. 1, p. 147–168, 2022. Disponível em: https://
periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/40686. Acesso em: 10 jan. 2023.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 25.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1974.
GHIGGI, G. Paulo Freire e a revivificação da Educação Popular. Educação, v. 33, n. 2, 2 ago. Dispo-
nível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/7345. Acesso em: 03
set. 2022.
LIMA, Helton Solto. O diário de campo e sua relação com olhar aprofundado sobre o espaço rural.
In: Dulce Consuelo Andreatta. Sociologia rural: questões metodológicas emergentes. Presidente
Vanceslau: Ed. Letras à Margem, 2002.
PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42,
p. 377-391, 2014. Disponível em: https://doi.org/10.1590/s0104-71832014000200015. Acesso em:
19 maio 2022.
REIS, Rossana Rocha. O direito à terra como um direito humano: a luta pela reforma agrária e o mo-
vimento de direitos humanos no Brasil. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 86, p.89-
122, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n86/a04.pdf>. Acesso em: 02 Jan. 2013.

280
A LITERATURA SURDA E SUAS CONTRIBUIÇÕES NO
CAMPO DOS ESTUDOS SURDOS

Maria Aldenora dos Santos Lima1


Israel Aparecido Gonçalves2

INTRODUÇÃO

A inclusão é um desafio que ao ser devidamente enfrentado


pelo sistema educacional provoca a melhoria da qualidade da edu-
cação básica e superior, pois para que os alunos possam exercer o
direito a educação em sua plenitude é indispensável que a escola
aprimore suas práticas pedagógicas a fim de atender as diferenças
educacionais, sociais e culturais.
A surdez possui uma equivocada tradição histórica, onde os
surdos eram considerados doentes, alienados e privados de toda
e qualquer possibilidade de desenvolvimento intelectual e moral,
como acreditavam os gregos. Com o passar do tempo, os surdos
persistiram lutando até chegarem a ser considerados membros de
uma comunidade retentora de cultura e língua próprias, com uma
importância imensurável e linguística.
Os vários movimentos internacionais e nacionais têm gera-
do importantes diretrizes norteadoras das políticas educacionais, a
exemplo da Declaração de Salamanca, que nasceu da Conferência
Mundial de Educação Especial em Salamanca, na Espanha, em ju-
nho de 1994, e de outros documentos que defendem os princípios
fundamentais de uma escola para todos.
No ano de 2002, a comunidade surda brasileira pôde assegu-
rar a expressão linguística da sua língua nativa, por meio da regula-
mentação da Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que reconhece
como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira
1
Doutora em Educação pela (UFPR), Mestre em Educação (UFAM). Graduada em História (UFAC).
Professora do Centro de Educação e LETRAS-CEL-UFAC; ministra as disciplinas de Língua Brasileira
de Sinais-Libras e Fundamentos da Educação Especial; Coordenadora do Núcleo de Apoio Pedagó-
gico a Inclusão-NAI/PROAES/UFAC
2
Mestre em Ciência Política (UFSCar) e doutorando em Sociologia (UFSC).
de Sinais- Libras e hoje regulamentada através do Decreto nº 5626
de 22 de dezembro de 2005. Esses importantes fatos colaboram
para garantia dos direitos linguísticos das pessoas surdas como ci-
dadãs brasileiras.
Para tanto, “comunidade surda” é compreendida como um
espaço onde há partilhas sugestivas de línguas de sinais, experiên-
cias visuais e os artefatos culturais surdos, no convívio entre pes-
soas surdas e ouvintes que associam interesses em comum no pro-
cesso de coletividade, tornando-se um espaço de oportunidade da
vivência e experiência da diferença, isto significa, ir além das práti-
cas e dos discursos ouvintes. É nesse espaço onde a multiplicidade
das vozes e dos sinais são perceptíveis, lugar de caracterização das
identidades surdas das suas particulares narrativas, das lutas, da
cultura e dos discursos estruturados pelos grupos surdos.
No Brasil, Perlin (1998, p.52) uma pesquisadora surda ao tra-
tar sobre identidade, defende que não há uma identidade surda,
mas “identidades plurais, múltiplas, que se transformam, que não
são fixas, imóveis, estáticas ou permanentes, que podem até ser
contraditórias, que não são algo pronto”. Entretanto, a autora pro-
cura mostrar que essa mobilidade e fragmentação se configuram
em função de um elemento determinado, qual seja, o tipo de em-
bate que se estabelece entre os surdos e o poder ouvintista3. A
pesquisadora (1998, p.54) esclarece ainda que:

(...) as identidades surdas assumem formas facetadas em


vista das fragmentações a que estão sujeitas face à presença
do poder ouvintista que lhes impõem regras, inclusive en-
contrando no estereótipo surdo uma resposta para a nega-
ção da apresentação da identidade surda ao sujeito Surdo
(PERLIN, 1998, p.54).

3
O ouvintismo é um “conjunto de representações dos ouvintes, a partir o qual o surdo está obrigado
a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que
acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte, percepções que legitimam as práti-
cas terapêuticas habituais” (SKLIAR, 1998, p. 15).

282
A categorização adotada por Perlin (1998, p.64) contribui com
nosso estudo trazendo cinco tipos de identidade:

Identidade surda – é reconhecível nos surdos que adotam


as formas visuais de experienciar o mundo, nas suas diversas
manifestações. O trocar dessas experiências é uma caracte-
rística importante na construção dessa identidade (valoriza-
-se o momento de encontro entre os surdos).
Identidade surda híbrida – refere-se a surdos que tiveram
acesso à experiência ouvinte, mas agora passam a conhecer
a comunicação em sua forma visual; nascer ouvinte e poste-
riormente ser surdo é ter sempre presente duas línguas, mas
sua identidade vai ao encontro das identidades surdas.
Identidade surda de transição - refere-se aos surdos (como
filhos de pais ouvintes) que quebram uma concepção ouvin-
tista de surdez e se filiam à identidade surda já mencionada,
mas que ficam com sequelas da representação que são evi-
denciadas em sua identidade em reconstrução nas diferen-
tes etapas da vida.
Identidade surda incompleta - refere-se aos surdos que
tentam experienciar a surdez a partir do referencial ouvin-
tista, uma vez que essa cultura é dominante, por exemplo,
ridicularizam certos aspectos da identidade surda ou desen-
corajam os encontros da comunidade surda.
Identidade surda flutuante - encontra-se em surdos “cons-
cientes” da surdez, mas que não escapam à ideologia ouvin-
tista e querem ser ouvintizados a todo custo; desprezam a
cultura surda e não têm compromisso com a comunidade
surda. Outros são forçados a viverem a situação como que
conformados a ela. Muitos nem adquirem a Língua de Sinais
e nem a comunicação oralizada, retendo fragmentações de
identidades ouvintes e surdas, sem conseguir transitar em
nenhuma delas (PERLIN, 1998, p.54).

283
No meio educacional o estudante Surdo tem acesso à litera-
tura clássica a partir dos materiais disponíveis especialmente em
mídias digitais como DVD, CD/ROM dentre outros por meio das
produções que concebem a comunidade Surda. Entre eles os ma-
teriais destacamos os livros digitais bilíngues-Língua portuguesa e
Libras e materiais didáticos contemplando a literatura surda.
Estudos sobre literatura surda ainda é um tema muito recente no
ambiente acadêmico, tendo ainda poucas produções na área sen-
do ainda até ainda até difícil conceituar como um único significado,
pois há subsídios que ajudam os aspectos literários como: língua,
cultura e identidade. No campo dos Estudos Surdos a valorização
da Libras expandiu os lugares de identidade e culturas surdas,
diminuindo a aspecto da surdez como deficiência e tornando seu
entendimento para a surdez como diferença.
Com a presença das novas tecnologias no meio educacional,
entende-se um apoio valioso para a constituição cognitiva dos
alunos surdos que têm auxiliado como suporte pedagógico para
as leituras literárias em sua língua materna ou primeira língua a
Libras, ou na segunda língua, a língua portuguesa. De acordo com
Santos “Tratar da literatura surda submerge a o diálogo de três as-
pectos primordiais: a identidade surda, a cultura surda e a Língua
de Sinais como elementos constitutivos para o aparecimento de
uma literatura surda” (2016, p.17).
Diante desse contexto, este artigo objetiva analisar os resul-
tados da produção disponível sobre a literatura Surda e conceituar
os tipos de produções literárias que estão conectados as repre-
sentações da comunidade Surda. Para realizar a pesquisa adotou
uma revisão sistemática dos artigos nacionais indexados no goo-
gle acadêmico. Os descritores usados para a busca foram: Litera-
tura Surda, Língua de Sinais, Cultura Surda, publicados nos últimos
quatorze anos.
Acredito que esta pesquisa, poderá oferecer, a partir das pro-
duções encontradas, um referencial teórico capaz de auxiliar para
descortinar o universo da Literatura Surda e seus artefatos cultu-

284
rais, contribuindo para o campo dos estudos surdos em educação.
METODOLOGIA

Utilizou-se como metodologia a revisão sistemática, que


identifica, seleciona e avalia criticamente pesquisas consideradas
relevantes, para dar suporte teórico-prático para a classificação e
análise da pesquisa bibliográfica (LIBERALI, 2011).
Em termos procedimentais, propor-se uma discussão quali-
tativa a partir das buscas da literatura a respeito. Como campo
investigativo, foi delimitado o levantamento das produções científi-
cas no período de 2008 a 2021. Entendemos que pesquisas dessa
natureza fornecem um panorama da produção científica sobre o
tema e apontam as tendências e demandas de investigação. Esse
recorte temporal se fundamenta na intenção de coadunar com a
data da publicação da Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).
Para realizar a pesquisa adotamos uma revisão sistemática
dos artigos nacionais indexados no google acadêmico. Os descri-
tores usados para a busca foram: Literatura Surda, Língua de Si-
nais, Cultura Surda, publicados nos últimos quatorze anos. anos.
Os Critérios de inclusão dos estudos foram as produções que abor-
davam sobre a literatura Surda. Vale ressaltar que quando se fala
em cultura Surda, tem uma vasta produção publicada, mas poucas
retratam a literatura Surda. Os critérios de exclusão das produções
identificadas foram publicações incompletas, artigos repetidos e
que não abordavam o tema proposto pela revisão. Neste intervalo
foram localizados 11 artigos sobre a temática em foco. Após a lei-
tura selecionamos 04, mais atuais e indicadas ao tema proposto, o
qual apresentaremos a seguir no QUADRO 1, que ilustra sua cata-
logação, e em seguida apresentaremos as principais ideias aborda-
das nos artigos referentes a temática de estudo:

285
QUADRO 1 - PRODUÇÕES ENVOLVENDO
A TEMÁTICA LITERATURA SURDA.
Autor(es) Ano Título Resultados
Conclui-se que a literatura surda
Almir Barbosa dos Artigo: se constitui através de elementos
Literatura
Santos e Sandra culturais; a LIBRAS, identidade
2017. Surda: algumas
Arnaldo de Amorim surda e a cultura surda que
considerações
Lima 10º Enfope entendendo a surdez como
diferença.

Ana Carolina Coelho Contribuições da Podemos concluir que a


Fernandes Lima; Literatura Surda no Literatura Surda permite
Roberta Aparecida Artigo, 2009. desenvolvimento explorar questões relacionadas
Rodrigues Pessoa; da subjetividade em á identidade, cultura e
Monografia crianças Surdas subjetividade da criança,
E Simone permitindo um desenvolvimento,
Schemberg social e cognitivo.
O trabalho constituiu um desafio
para ser materializado, dado
que os atos de criação artística
e acadêmica, objetos de análise
Libras e Artes: nos artigos ,encontram-se em
Manifestações processo no cenário nacional.
Artigo: Revista
Verbovisuais de Esses objetos artísticos que
Sueli Fernandes e espaço.
Artefatos Culturais da aqui serão nomeados, descritos,
Jonathas Medeiros
Comunidade Surda problematizados, têm na Libras a
2020
sua principal matéria da criação
estética e produzem gêneros
textuais sinalizados que se
caracterizam pela presença de
enunciados verbovisuais em sua
discursividade.
O cumprimento dos objetivos
resultou em uma obra artística
criada pelos autores dessa
pesquisa por meio de reflexões
Mãos que expressam manifestas na arte a fim de
Artigo: explorar o pensamento crítico e
Maria Adriana e a arte que salva:
a produção da arte a reação da comunidade Surda
Domingos da Costa 2021
Uchoa; Antônio visual para a literatura diante da mudança mundial
Revista unitins. Surda” de comportamento durante a
Carlos Uchoa Sales
br pandemia que afetou o Brasil
em 2020. Assim, surge a
pintura de uma obra de artes
que representa os anseios dos
artistas surdos e ouvintes, ambos
membros da comunidade Surda.

FONTE: elaborado pela autora, 2021.

O artigo de Santos e Lima (2016), trata-se de uma pesquisa bi-


bliográfica, baseada nos autores Karnopp (2006), Strobel (2009),
Mourão (2012) Santos (2016) entre outros.
Os estudos que são abordados neste artigo trata-se da litera-

286
tura surda, na qual estão relacionados à cultura, identidade Surda
e língua, atrelada principalmente a sua língua materna. A proposta
gira em torno de um ambiente educacional inclusivo para os alunos
Surdos e geram mudanças no processo de ensino e aprendizagem,
objetivando o efetivo direito de todos, à educação.
Acerca da definição de literatura surda. Assim, de acordo com
Santos (2016, p.17), “Tratar da literatura surda envolve a discussão
de, pelo menos, três aspectos principais: a identidade surda, a cul-
tura Surda e a língua de sinais como elementos constitutivos para
o aparecimento de uma literatura surda”.
Neste contexto, o objetivo é mostrarmos, a partir de referen-
ciais teóricos, a importância da literatura na constituição da subjeti-
vidade dos sujeitos Surdos, relacionando cultura e identidades sur-
das, bem como analisar, quais as contribuições da Literatura Surda
no desenvolvimento emocional e simbólico dos surdos.
As crianças surdas desenvolvem aprendizagens através da
experiência visual, porém sozinhas não tem poder de se formar
como leitoras e como leitores visuais. A leitura de livros digitais em
língua de sinais ou a leitura observando um adulto sinalizar, o qual
a auxiliará no desenvolvimento da sua capacidade visual, na sua
formação do senso crítico e levá-lo à reflexão das coisas. Assim,
após o aprimoramento de tecnologias, da gravação de histórias
através de fitas VHS, CD, DVD ou de textos impressos que apre-
sentam imagens, fotos e/ou traduções para o português, o registro
da literatura surda começou a ser possível principalmente a par-
tir do reconhecimento da Libras e do desenvolvimento tecnológi-
co, que possibilitaram formas visuais de registro dos sinais.
De acordo com Karnopp (2010) podemos pensar literatura Surda
como: ‘a produção de textos literários em sinais, que traduz a expe-
riência visual, que entende a surdez como presença de algo e não
como falta, que possibilita outras representações de surdos e que
considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural
diferente’ Assim para autora a Literatura Surda se apresenta como
um desejo de reconhecimento, em que busca um outro lugar e

287
uma outra coisa. De outro modo “A literatura do reconhecimento
é de importância crucial para as minorias linguísticas que desejam
afirmar suas tradições culturais nativas e recuperar suas histórias
reprimidas” (KARNOPP, 2006, p.100)
Existem documentos que tematizam a surdez e a língua de
sinais. Segundo Mourão (2012), existem três tipos de materiais dis-
poníveis de obras de literatura surda: criação, adaptação e tradu-
ção. Ele ainda apontou que no meio literário em termos de criação,
embora sejam poucas as produções, à comunidade Surda não falta
narrativa.
Karnopp (2008, p.10) citou alguns trabalhos que enfatizam
essa cultura surda, como: Tibi e Joca (Bisol, 2001) A cigarra e a for-
miga (Oliveira; Boldo, 2003), Kit Libras é Legal (2003), O som do
Silêncio (Cortes, 2004) que trazem contribuições par ao campo da
literatura surda.
Algumas histórias foram recriadas para que os surdos pudes-
sem aprender de maneira igualitária aos falantes e ouvintes. Outro
tipo de literatura que sofreu adaptação, foram os contos infantis
clássicos, para a formação da comunidade surda, como Cindere-
la Surda (Hessel; Rosa; Karnopp, 2003) Rapunzel Surda (Silveira;
Rosa; Karnopp 2003) Adão e Eva (Rosa; Karnopp. 2005), Patinhos
Surdos (Rosa; Karnopp,2005).
No caso da obra Cinderela Surda, as adaptações ocorreram
na troca do sapato de cristal por luvas, que possui um significa-
do simbólico na construção do surdo, o que constitui um aspecto
ideológico que permeia a comunidade surda, assim essa mudança
semiótica se concentra nas ferramentas dos meios de realização da
comunicação das pessoas Surdas.

288
Figura 1: Imagens de materiais da literatura Surda

Fonte: bing.com/imagens

Um outro gênero que também passou por adaptações foi a


Piada: o humor surdo, que segundo Salles et al (2005, p.42) “O
Humor Surdo retrata preferencialmente, a problemática da incom-
preensão da surdez pelo ouvinte”.
Para a comunidade surda, o papel da literatura surda vai muito
além da pesquisa literária, que inclui temas que retratam narrati-
vas de experiências de vida. Rosa e Klein (apud MÜLLER, 2012, p.).
Confirmaram: “A literatura surda é uma referência, também criou
uma forma de abordar a própria cultura e aprender sua primeira
língua, que ajudará a construir sua identidade.” Então, a tríade re-
fletida neste aspecto literário: língua, identidade e cultura são bas-
tante representativas comunidade surda.
Segundo os autores do artigo todo esse acervo literário está
disponível pela editora Arara Azul em DVD e em download, que
contribuem para a literatura surda nos diferentes tempos e espa-
ços. Os autores citam algumas obras clássicas da literatura que es-
tão traduzidas para a Libras pela Editora Arara Azul, tais como:
Alice no País da Maravilhas (Lewis Carrol); Iracema (José de
Alencar); Aladim (contos de Mil e Uma Noites); Pinóquio (Carlo Lo-
renzini e Carlos Collodi); Velho da Horta(Gil Vicenti); O relógio de
Ouro; O Caso da Vara, A Missa do Galo e a Cartomante (Machado
de Assis).

289
Figura 2: Contos clássicos

Fonte: Letras.mus.br

Figura 3: Obras Clássicas em Libras

Fonte: Editora arara azul

Já o trabalho de Lima, Pessoa e Schemberg (2012) traz uma


discussão a respeito do papel da literatura no desenvolvimento de
crianças Surdas. Para esses autores a literatura desempenha um
papel muito importante nas diferentes culturas. Além disso é por
meio dela que é possível explorar a imaginação, contar histórias,
manifestar emoções e transmitir elementos culturais a gerações
futuras. :

290
Em relação a literatura para crianças ouvintes atualmente, há
uma quantidade imensurável e que as mesmas utilizam textos com
linguagem e recursos próprios da infância. Desde cedo, crianças
ouvintes convivem com histórias infantis que ouvem, que lhe são
lidas ou entra em contato auditivamente (LIMA; PESSOA; SCHEM-
BERG, 2012). Esses mesmos autores destacam que, no caso das
pessoas surdas, o acesso ao mundo literário muitas vezes é restrito.
Observa-se que durante o desenvolvimento do trabalho, os
autores destacam que a literatura surda, aquela contadas em lín-
gua de sinais que apresentam a identidade e a cultura surda na
narrativa, faz com que tanto as crianças ouvintes quanto as surdas
explorarem a fantasia e a imaginação, além de diferentes formas
de linguagem e experiências culturais.
Os autores desse artigo citado acima realizaram uma aná-
lise sobre a importância da literatura surda no desenvolvimento
emocional e simbólico de crianças Surdas. Para isto, realizou uma
pesquisa bibliográfica (a literatura explorada foi Karnopp (2006,
2010), Apolinário (2005) e Mourão (2011), a partir daí foram feitas
discussões que evidenciam como as crianças surdas aprofundam
seu conhecimento e aprendizagem a partir da fantasia, da cultura e
do lúdico, tendo como base a língua de sinais, para então percebe-
rem e compararem o mundo dos Surdos e dos ouvintes, reconhe-
cendo aspectos linguísticos, sociais e culturais
A literatura infantil consiste em textos próprios e condiciona-
dos com uma linguagem própria para que as crianças tenham fácil
entendimento, e que as façam entrar em um mundo imaginário de
forma mais lúdica. O que aborda é como lidar e como realizar de
forma mais eficaz, e os quais os métodos a serem utilizados para in-
seri-las nesse meio. É muito difícil atravessar essa ponte, segundo
o texto, pois há uma falta de tarde obras que registrem o cotidiano
de pessoas Surdas, ou que abordem a surdez.
Por existir essa falta, pesquisadores Surdos e ouvintes estão
levantando essa discussão, pois é uma prática importante para a
realidade deles. Essa literatura Surda, ainda é escassa, é encontra-

291
da principalmente que sites que abordam a surdez, e com a pes-
quisa da autora, ela viu que foi realizado uma releitura de do livro
Cinderela (Cinderela Surda), abordando toda a cultura, o cotidiano,
e a identidade Surda.
O Dossiê organizado por Fernandes e Medeiros (2020) versa
sobre a metáfora visual da língua de sinais como signo verbal mo-
bilizador das experiências de linguagem vivenciadas pelos Surdos,
atribuída do artista, pesquisador e professor Surdo Claudio Mou-
rão ou “cacau”. O Dossiê trata justamente da dialogia entre a Libras
e a Arte como ponto de encontro entre artistas Surdos, estudantes
de graduação, pesquisadores professores e tradutores intérpretes
de Libras. O “dossiê”, assim designado no texto, busca chamar a
atenção do leitor para as manifestações artísticas e estéticas que
promovem a Libras como língua de cultura, como a mesma é trans-
formadora das relações de poder que se estabelecem entre surdos
e ouvintes e mobilizadora da luta política das comunidades surdas.
Este dossiê trata justamente desse campo temático (e por
que não dizer, lúdico?) e inovador da dialogia entre a Libras e a
Arte, que se oferece como ponto de encontro entre artistas Surdos,
estudantes de graduação, pesquisadores, professores e tradutores
intérpretes de Libras. Esses sujeitos que produzem arte sinalizada
nas práticas discursivas da poesia de rua, da direção e atuação tea-
tral, da tradução artística de espetáculos, da produção de video-
guia, colaboram para a ampliação e circulação das manifestações
de artefatos culturais da comunidade Surda em sua prática profis-
sional e/ou acadêmico.
Apresentando relatos de projetos voltados para Libras e Ar-
tes, o dossiê traz propostas e trajetos inovares, mesmo estando em
processo de construção, sendo um desafio. O artigo foi analisado
para que suas contribuições pudessem ir além do espaço acadêmi-
co potencializando e transformando tudo que é tocado pela arte.
Um ponto importante é a presença significativa de tradutores de
Libras em espetáculos teatrais, na ocupação no cenário cultural.
Como resultado destaca-se o protagonismo dos acadêmicos sur-

292
dos, favorecendo sua formação interdisciplinar e a criação de arte-
fatos culturais em Libras.
Analisamos ainda o artigo de Uchoa; Grangeiro; Oliveira
(2020) que expressam o crescente acervo artístico visual presente
nos últimos tempos, mais precisamente na pandemia gerada pelo
novo COVID- 19 e a necessidade da criação da Literatura Surda.
Os objetivos dos autores para este texto foi criar uma obra ar-
tística visual, eles estabeleceram três desígnios a serem cumpridos
para que este fosse produzido:
a) Produzir um ensaio fotográfico como processo criativo para
uma obra de arte visual; b) Aplicar as habilidades do desenho ar-
tístico e explorar os aspectos visuais-espaciais-culturais da Libras
no processo de criação de uma obra de arte visual; c) Criar, sob o
contexto contemporâneo de pandemia, uma obra plástica de pin-
tura no tamanho, utilizando técnicas de pintura mista sobre papel.
(UCHOA; GRANGEIRO; OLIVEIRA, 2020)
Com isso, assim o fizeram e desempenharam uma obra de
arte com materiais encontrados em casa em decorrência ao Lock-
down, para este eles utilizaram tintas, papeis, pincéis, algodão, tela
e etc., a intenção com a pintura criada por eles é o de expressar a
reação da comunidade surda perante a pandemia.

Figura 4. Sequência de fotografias para produção da obra.

Fonte: (UCHOA; GRANGEIRO; OLIVEIRA, 2020)

Na Figura 1, a primeira imagem as mãos foram configuradas


representando as máscaras , instrumento de defesa utilizadas por
todos para a prevenção da Covid . Na figura 2 a disposição dos
sinais registrados, naturalmente seguidos de seus respectivos mo-

293
vimentos são simétricos. Na figura 3 , o sinal de COVID-19, conven-
cionado, pela comunidade Surda.

Figura 5. Esboço em lápis após ensaio fotográfico


para produção da obra

Fonte: (UCHOA; GRANGEIRO; OLIVEIRA, 2020)

Figura 6. Obra “Coronalizando”


(técnica, mista em tamanho, 21x 29,7 cm).

Fonte: (UCHOA; GRANGEIRO; OLIVEIRA, 2020)

294
A obra desenvolvida foi feita em três etapas: fotografia, esbo-
ço a lápis e o resultado final. Na pintura foram colocados sinais uti-
lizados pela Língua Brasileira de Sinais e trouxe uma ambiguidade
em muitos fatores. A esta obra eles nomearam “Coronalizando”.

Portanto, na obra também é possível refletir sobre a gravida-


de do presente aqui vivido e em relação ao restante da hu-
manidade como se não houvesse distância geográfica. Essa
obra é uma representação cultural manifesta pelo binóculo
da aguçada visão da comunidade surda sobre o evento atual
presente nos elementos visuais representados pelos ele-
mentos cores e formas extraídos da linguagem dos surdos.
Esperam-se, portanto, com essa produção, a contribuição
e valorização da cultura da através da presente obra plás-
tica como manifestação artística visual. Com isso, intentam-
-se pelo incentivo de novas expressões artísticas abranger o
acervo cultural dessa comunidade (UCHOA; GRANGEIRO;
OLIVEIRA, 2020, p. 12-13).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das análises das produções os resultados demonstra-


ram que a Literatura Surda está atrelada com Cultura Surda. Essa
Literatura expressada em Língua de Sinais pelas pessoas Surdas
representa suas histórias de vidas, que são produzidas pelos con-
tos, lendas, fábulas, piadas, anedotas, jogos de linguagens, poe-
mas sinalizados e muito mais. Esses artefatos reconta também a
experiência das pessoas Surdas, no que diz respeito, direta ou in-
diretamente, a relação entre as pessoas Surdas e ouvinte, que são
narradas como relações conflituosas. benevolente de aceitação ou
de opressão Surda.
Mediante ao exposto, percebemos que as produções Surdas,
as adaptações traduções, facilitam bastante em relação ao contex-
to inclusivo e aos acessos às mídias, facilitando o aprendizado tanto

295
no ambiente escolar como no meio social. Também possuem focos
nos processos de aprendizagem da segunda língua, A língua Por-
tuguesa. Assim quando os Surdos praticam leituras digitais, usam
a Libras, sua língua natural, para que se obtenha o aprendizado na
língua portuguesa também. Com adaptações das histórias, nenhu-
ma criança Surda ficará de fora das literaturas infantis, sentindo- se
representadas ao fato de ter protagonistas Surdos, o que levará a
encarar o mundo de forma mais igualitária aos ouvintes.
Tão importante quanto levantarmos pautas em relação ao
Surdo na sociedade é mostramos também de que forma a tecno-
logia ajudou para o método de contar histórias aos Surdos. Essas
considerações são importantes para entendermos a produção lite-
rária em língua de sinais. Pessoas surdas, convivendo com ouvin-
tes, em seu ambiente de trabalho ou com a família, se apropriam
de meios visuais para entender o mundo e se relacionar com as
pessoas ouvintes. Essa experiência visual, além do uso da língua
de sinais, implica dividir a comunicação e isto também caracteriza
a cultura Surda.
Estre trabalho possui um referencial teórico capaz de contri-
buir para descortinar o universo da educação de surdos no con-
texto educacional permitindo ampliação da produção da temática
em foco, além de servir como base de aporte téorico para outros
pesquisadores que realizam estudo sobre a constituição do acervo
na literatura surda.
Diante das análises das produções é possível sugerir que a
academia amplie as oportunidades de pesquisas a fim de favorecer
o acesso e permanência dos alunos surdos. Os resultados demons-
traram que é possível observar os avanços nas políticas e legisla-
ções que garantem o direito do surdo a educação superior, ainda
são inúmeras as dificuldades relacionadas às práticas pedagógicas
que valorize a educação bilíngue respeitando sua cultura, identida-
de e diferença.
Destaco aqui a importância de um espaço de educação bilín-
gue onde a Libras seja valorizada como primeira língua dos surdos,

296
tendo neste espaço a existência de uma prática pedagógica que
atenda às reais necessidades dos alunos, por meio de didáticas vi-
suais, pois, respeitar as diferenças linguísticas é um primeiro passo
para o desenvolvimento pleno do educando surdo. O ideal seria a
implementação de uma escola bilíngue, onde professores fossem
bilíngues e os alunos se tornassem bilíngues (Libras/Língua Por-
tuguesa), assim, a interação professor-aluno não sofreria com bar-
reiras à comunicação. Ademais, a falta de compreensão dos nortes
educacionais e da importância da cultura surda, faz com que os
surdos cheguem ao Ensino Superior como que analfabetos funcio-
nais.
É possível perceber também que uma educação de qualidade
somente existirá se a relação ensino-aprendizagem for facilitada
e estimulada por ações conjuntas entre escola, professor, famílias
e alunado surdo, mas isto não é visto de forma abrangente na
Universidade.

REFERÊNCIAS

ARARA AZUL. Projeto Coleção “Clássicos da Literatura em LIBRAS/Português em CD-ROM”. 2005


disponível em: < www.editora-araraazul.com.br/ProjetoClassicosLiteratura.php >. Acesso em: no-
vembro de 2015.
KARNOPP, Lodenir Becker. Literatura surda. ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.7, n.2, p.98-
109, jun. 2006. Disponível em: < http://www.ssoar.info/ssoar/bitstream/handle/document/10162/
ssoar-etd-2006-2-karnoppliteratura_surda.pdf?sequence=1 >. Acesso em: março de 2015.
MOURÃO, C.H.N. Adaptação e tradução em literatura surda: a produção cultural surda em língua de
sinais. IX ANPED SUL. Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, 2012.
MÜLLER, Janete Inês. Marcadores culturais na literatura surda: constituição de significa dos em
produções editoriais surdas. 2012. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Porto Alegre, 2012.
SALLES, Heloísa Maria Moreira Lima et al. Ensino de língua portuguesa para Surdos: caminhos para
a prática pedagógica. Brasília: MEC, SEESP. 2005.
SANTOS, Almir Barbosa. O suporte digital de língua portuguesa para a comunidade surda: o caso
da obra “as aventuras de Pinóquio em língua de sinais/português 2016.Dissertação de Mestrado.
Programa de Pesquisa em Letras-PPGL, Universidade Federal de Sergipe.
SANTOS, Almir Barbosa dos.; LIMA, Sandra Arnoldo de Amorim. Literatura Surda: algumas conside-
rações. 2017.Disponivel em: https://eventos.set.edu.br/enfope/article/view/5309.
STROBEL, Karin Lilian As imagens do Outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Editora UFSC, 2009

297
AS OPRESSÕES DE GÊNERO E RAÇA: UM ESTUDO
ONTO-HISTÓRICO NA SOCIEDADE DE CLASSES

Rosângela Ribeiro da Silva


Bárbara Zeferino
Layslândia de Souza Santos
Emanuele Cordeiro de Sousa

INTRODUÇÃO

O artigo em tela versa a partir de questões que nos instigam a


investigar e dialogar sobre a gênese, a natureza e a função social da
opressão de gênero. Destacamos em particular a violência masculina
imposta às mulheres no modo de produção capitalista, no qual pre-
senciamos uma naturalização dessa violência, tendo no feminicídio
sua expressão mais cruel e final.
O referencial teórico do materialismo histórico-dialético nos
oferece as bases para o entendimento de que não podemos estu-
dar os fenômenos por eles mesmos, pois é necessário compreen-
dermos os fundamentos ontológicos dos problemas e dos fenô-
menos sociais e sua relação com o desenvolvimento da produção
da existência humana, que se reflete na formação do indivíduo.
Desta forma, partimos da compreensão de como os fenôme-
nos sociais afetam o nosso cotidiano, nossa individualidade e as
relações sociais vigentes.
Pretendemos aqui refletir sobre as raízes da violência contra
a mulher, a partir da compreensão histórica dos elementos que ex-
plicitam sobre a origem e a natureza da opressão de gênero com
o surgimento da propriedade privada que determinou as relações
de exploração e opressão, tendo uma nova e ampla configuração
no sistema capitalista, que se sustenta sobre as bases de relações
mercantilistas.
Desta forma, como dito anteriormente, este artigo parte dos
estudos empreendidos sobre a relação entre a gênese das opres-
sões de gênero e raça e a exploração de classe, no processo de
produção e reprodução da existência humana, numa perspectiva
marxista onto-histórica. Pretendemos discutir as manifestações do
sexismo aliado ao racismo, na sociedade, em especial, contra as
mulheres, e os mecanismos legais, resultados dos movimentos de
luta e de resistência encetados pelos movimentos sociais e políticos
organizados, pelo feminismo negro, bem como pelos movimentos
sociais negros, a exemplo da Lei 10.639/03, a Lei 11.340/2006 e a
Lei 13.105/2015, dentre outras. Nossas inquietações visam com-
preender em que medida a luta antissexista, antirracista e antica-
pitalista no Brasil tem sabido interconectar a busca por conquistas
imediatas contra a sanha desumana do sistema vigente ao hori-
zonte da superação do capital como condição da efetiva emanci-
pação da humanidade.

EXPERIÊNCIAS DE RELAÇÕES IGUALITÁRIAS DE GÊNERO E


AS ORIGENS DAS OPRESSÕES

O processo que marca a origem da opressão do homem so-


bre a mulher, encontra-se no surgimento de uma relação de do-
mínio que se origina com a exploração do trabalho e acumulação
primitiva sob a égide da propriedade privada do excedente e dos
meios de produção.
Conforme Leacock (2019) as relações sociais de produção e
reprodução da humanidade em outras condições históricas já fo-
ram marcadas pela cooperação e coletividade, em que a divisão de
tarefas era definida de acordo com a capacidade de cada um e das
necessidades do grupo. De acordo com a autora (2019, p. 73):

[...] No passado, ambos os sexos estavam, quase de modo


contínuo, engajados na tarefa de satisfazer as necessidades
imediatas do grupo correspondente à família ampliada. Ha-
via uma rudimentar (ao mesmo tempo) expedita divisão do
trabalho, baseada na conveniência, de acordo com a qual

299
os homens, em sua maior parte iam à caça, e as mulheres,
além de cuidar das crianças pequenas, preparavam a comi-
da e confeccionavam roupas e tendas. Quando necessário,
as mulheres ajudavam na caça e, se a mulher estava ocu-
pada alhures, o homem poderia se prontificar para cuidar
das crianças. Os Mitassini Diaries, escrito há um século pelos
membros da Companhia da Baía de Hudson, registram ca-
sos de mulheres da parte ocidental do Labrador que eram
chefes de família e chegavam a cuidar inclusive de suas pró-
prias armadilhas

Leacock (2019) demonstra a existência, de fato, do igualitaris-


mo, em outras condições históricas, no qual não era livre de pro-
blemáticas, entretanto, em nome da sobrevivência os indivíduos
eram convocados à cooperação, num todo complexo e heterogê-
neo, numa organização social multifamiliar, com unidades econô-
micas básicas. Leacock apresenta registros da sociedade comunal
diferente da homogeneidade apresentada em outros estudos clás-
sicos da antropologia, e outras áreas do conhecimento sobre as
relações humanas igualitárias.
O que havia em comum, na ausência da propriedade privada,
que se sustenta no acúmulo e apropriação do excedente por um
grupo que domina, no comunismo primitivo, como dito anterior-
mente, era a relação direta entre produção e consumo, na qual a
divisão sexual do trabalho não era rígida, havia a valorização das
atividades desempenhadas pelas mulheres, “não havia qualquer
dúvida quanto à importância da mulher” na tomada de decisões
acerca das mudanças que deveriam ser tomadas pelos adultos do
grupo para escolha de planos, de atividades referentes à sobrevi-
vência do grupo.
Leacock realizou estudos sobre a comunidade Montagnais-
-Naskapi, povos originários da parte oriental da península do La-
brador, no Canadá, que sobreviviam da caça, da pesca e da captura
de aves aquáticas e da coleta de raízes, frutos e oleaginosas. Ha-

300
bitavam em cabanas construídas coletivamente e compartilhadas
por cerca de dezoito pessoas. A autora observou que as relações
sociais entre os Montagnais-Naskapi, eram não só igualitárias, mas
também divididas entre os membros do grupo. O cuidado com as
crianças, idosos e enfermos, por exemplo, eram responsabilidade
de todo o coletivo da comunidade e as decisões tomadas conside-
ravam as necessidades do grupo e o respeito ao posicionamento
individual de cada um que era ouvido com paciência.

[...]. As relações documentam a ética de solidariedade do


grupo, interligada à autonomia individual; juntas, solidarie-
dade e autonomia caracterizam os naskapi. Enfatizava-se
a generosidade, a cooperação, a paciência e o bom humor,
mas, também, a prática de jamais impor sobre os outros a
própria vontade. (LEACOCK, 2019, p. 57).

Essa autonomia ética e solidária regia também o princípio


educativo da comunidade. A educação das crianças que se realiza-
va no cotidiano, era construída sem punição ou castigo, até mes-
mo sem críticas ao erro, ou qualquer distinção entre os filhos, pelo
princípio que todos eram responsáveis pela educação das mesmas,
com a família ampliada, causava estranheza aos princípios ociden-
tais dos colonizadores. Como vemos a seguir, fato que incomodava
os jesuítas, de acordo com seus relatos:

[...] A solução de Le Jeune era propor a remoção das crian-


ças de suas comunidades, a fim de escolarizá-las. ‘A razão
pela qual eu não gostaria de receber as crianças de uma lo-
calidade naquela mesma localidade (5: 197), mas, antes, em
outro lugar, é o fato de que os bárbaros não suportam que
seus filhos sejam castigados, nem mesmo repreendidos, não
sendo capazes de recusar qualquer coisa a uma criança que
chora. Eles levam isso tão a sério que, sob o mais leve pre-
texto, retiram as crianças do nosso convívio, antes que elas

301
estejam educadas” (LEACOCK, 2019, p. 84-85).
O princípio da autonomia e da ética solidária se manifestava
em todas as relações entre os povos Naskapi. As relações de coo-
peração e igualdade vivenciadas na comunidade se faziam presen-
tes também entre os homens e as mulheres. Conforme Leacock
(2019, p. 99), havia:

[...] um elevado respeito pela autonomia individual e uma


extrema sensibilidade quanto aos sentimentos dos outros
no processo de tomada de decisões conjugavam-se a uma
ênfase continuamente posta na generosidade e na coopera-
ção, o que se aplicava às relações tanto entre os sexos como
no interior de um mesmo sexo.

Com a cisão entre produção e consumo, e, consequente-


mente, com a divisão do trabalho, num amplo, intenso e contínuo
processo de propagação ideológica dos jesuítas entre os povos
indígenas daquela região, as mulheres perdem pouco a pouco o
controle da produção, num processo violento de submissão aos
homens, que, em grande maioria, tornam-se adeptos do pensa-
mento colonizador. As mulheres passam a ser propriedade privada
dos homens, assim como o gado, que passa a ser domesticado.
Desta forma, a descendência por linhagem materna é perdi-
da para o homem, instaurando o patriarcado, com a organização
familiar nuclear, como um conjunto de escravos pertencente a um
homem, ou seja, a família monogâmica. De acordo com Engels
(2012, p. 99):

[...] A monogamia nasceu da concentração de grandes ri-


quezas nas mesmas mãos - as de um homem - e do desejo
de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos desse
homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso, era
necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem;
tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o me-
nor empecilho à poligamia, oculta ou descarada, deste.

302
Os elementos da forma de organização social da família nu-
clear baseada na monogamia fornecem base para o entendimento
da sociedade na contemporaneidade, e, nesse sentido, a partir dos
dados obtidos nas leituras, buscamos o entendimento de como ela
foi formada, reafirmando a desnaturalização das violências sofridas
pelas mulheres.
De posse de alguns breves elementos da gênese da opressão
de gênero pela perda da linhagem materna, a instauração do pa-
triarcado, e com a instauração e organização da família monogâ-
mica, e a entrada da sociedade de classes, produziu-se um duplo
efeito na história da humanidade (Tonet, 2005). Por um lado, hou-
ve um avanço muito rápido das forças produtivas e da riqueza es-
piritual, cultural, entretanto, com a sociedade dividida em classes, a
maioria da população ficou excluída, marginalizada da participação
desse avanço. No processo de acumulação capitalista o trabalho
passou a ser valorizado não como “atividade criativa”, mas trabalho
como meio de produzir a mercadoria das mercadorias, que é o di-
nheiro.
Nesse sentido, os padrões de acumulação capitalista são de-
finidos em contextos diversos a imposição da constante definição
do papel do Estado e das políticas públicas, bem como a subalter-
nidade e exploração das mulheres, especificamente, as mulheres
negras, instiga-nos a debruçar-nos sobre os históricos mitos cria-
dos para tal fim, com a função de atendimento à lógica da repro-
dução do capital, numa profunda relação com as ideias coloniais e
patriarcais.

303
O RACISMO E AS ARTIMANHAS IDEO-POLÍTICAS DE
SUBALTERNIZAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS E POBRES:
ALGUNS APONTAMENTOS

Frente ao quadro de mitos para a construção do patriarcado


e para a instauração da família monogâmica, e mais adiante com
a entrada da sociedade de classes, o contexto de reprodução do
capital produziu, outrossim, muitos preconceitos e discriminações
sofridos historicamente por toda a classe trabalhadora, e mais di-
retamente, mulheres e crianças. Tais preconceitos e discriminações
constituíram-se num racismo violento contra a população negra,
nas quais exigiram inúmeras formas de combate e enfrentamento
pelos movimentos abolicionistas, movimentos sociais negros, mo-
vimentos feministas negros contra a subalternidade que lhes foi
imposta. Foram ideias construídas historicamente para Conforme
Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019, p. 53):

[...] Sociedades capitalistas sempre instituíram uma divisão


racial do trabalho reprodutivo. Quer por meio da escravidão
e do colonialismo, que pelo Apartheid ou pelo neoimperia-
lismo, esse sistema forçou mulheres racializadas a fornecer
esse trabalho de graça - ou a um custo muito baixo - para
suas ‘irmãs’ de etnicidade majoritária ou brancas. Forçadas a
cuidar das crianças e da casa das patroas ou empregadoras,
elas tiveram de lutar ainda mais para cuidar da própria vida.
Além disso, historicamente, as sociedades capitalistas tenta-
ram alistar o trabalho de reprodução social das mulheres a
serviço do binarismo de gênero e da heteronormatividade.

Assim foi a construção do racismo que, na visão de Almeida


(2019, p. 24) tem “caráter sistêmico”, ou seja, se caracteriza como
uma forma sistemática de discriminação que tem a cor da pele como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes, culminam em desvantagens ou privilégios para

304
indivíduos, a depender do grupo social ao que pertencem. Tais ma-
nifestações se caracterizam na construção das diferenças ligadas
a valores hierárquicos, nas relações de poder, tanto do ponto de
vista histórico, quanto político, social e econômico.
As características do racismo pelos traços fenótipos e estética ne-
gra se mantém na estrutura da sociedade desde os tempos pós
absolutismo, com a expansão do modo de produção capitalista,
sob as rédeas do colonialismo europeu, e se faz prática contra a
população negra de forma institucional, ou individualizada, quer de
forma recreativa, epistêmica, científica, religiosa, ambiental.
Como afirma Silva (2012, p. 13), que mesmo ao questionar o
conceito da raça “considerada separadamente de suas determina-
ções essenciais e tão largamente utilizada ao tratamento do tema”,
aquelas e aqueles que apresentam caracteres raciais diferentes dos
brancos experimentam concretamente os efeitos provocados pe-
las justificações históricas que submetam aos não brancos a condi-
ções de desigualdades e pobreza, “com peculiaridades em tempos
e lugares históricos diferentes” (idem). Para este autor “é inegável
que tais preconceitos raciais penetraram a subjetividade dos indi-
víduos submetidos aos efeitos das condições objetivas e subjetivas
das desigualdades sociais e de classe”.
Desta forma, é possível afirmar que o racismo mantém uma
relação intrínseca com o capitalismo, é de grande interesse ao sis-
tema vigente a permanência dessa forma violenta de subjugar os
não brancos e não brancas, qual seja, a população negra e indíge-
na. Esta, tem resistido bravamente, numa luta histórica contra o
racismo e todas as formas de discriminação e preconceito contra
si, conforme veremos a seguir.
Nesse sentido, dados publicados pela professora Janaí-
na Feijó, no portal da Faculdade Getúlio Vargas indicam que as
condições de vida e saúde das mulheres negras e dos jovens ne-
gros pobres aparecem em condição de maior vulnerabilidade
, situação que agudiza as desigualdades sociais amplamente di-
vulgada, a exemplo das moradias insalubres, do não acesso aos

305
níveis mais altos de educação. A diferença salarial de uma mulher
negra que chega a receber menos da metade do salário em rela-
ção ao homem branco, é de 44%. O Documento aponta que 64%
dos desempregados eram pretos e pardos, demonstrando a desi-
gualdade racial no mercado de trabalho e na educação, e os estu-
dos revelam que tanto as ocupações formais quanto informais, os
trabalhadores brancos recebem consideravelmente a mais do que
pretos e pardos.
Com a pandemia do Coronavírus/Covid-19 iniciada em fins de
2019, a problemática das condições de vida e saúde desse grupo de
pessoas piorou e revelou, mais uma vez, que a pobreza tem gênero
e tem cor. São moradias amontoadas, com um elevado número de
pessoas coabitando num imóvel, em sua maioria, sem saneamento
básico, sem acesso à água potável, em condições insustentáveis de
trabalho. O que dizer da “uberização” dos serviços?
A luta dos movimentos sociais negro, do movimento feminis-
ta negro, dentre outros, contra o racismo, por uma sociedade an-
tirracista no âmbito educacional, pelos dispositivos legais, é a Lei
10.639/03, pela Resolução CNE/CP1/2004, que altera a Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 para o ensino
da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar,
e tem sua versão mais atualizada com a Lei 11.645/08, incluindo a
cultura indígena.
Este ano de 2023 a referida Lei completa seus 20 anos de
sanção, e, embora, os dispositivos legais apresentem avanços na
efetivação de direitos sociais no campo da educação, nos quais im-
plicam a necessidade de reconhecimento da superação de imagi-
nários, representações sociais, políticas, discursos e práticas racis-
tas em qualquer campo social e educacional.
No campo mais direcionado às lutas das mulheres, no ano de
2006 no Brasil foi criado mais um mecanismo para coibir e prevenir
violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei 11.340/2006,
a Lei Maria da Penha, que no artigo 2º estabelece que:

306
[...] Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e
religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facili-
dades para viver sem violência, preservar sua saúde física
e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social
(BRASIL, 2006).

A Lei Maria da Penha surge com a pretensão de eliminar to-


das as formas de violência contra a mulher, na qual estabelece me-
didas protetivas às mulheres em situação de vulnerabilidade social
e econômica, como um instrumento para evitar a violência e o fe-
minicídio, e dentre essas medidas estão a proibição do agressor de
se aproximar da vítima, bem como o afastamento temporário do
acusado de agressão do lar, a suspensão do porte e da posse de
armas, a proibição da venda de bens. Somente em 2015, os crimes
de homicídio de mulheres nas residências foram tipificados como
Feminicídio pela Lei 13.105/2015, “um tipo específico de homicídio
doloso, cuja motivação está relacionada aos contextos de violên-
cia doméstica ou ao desprezo pelo sexo feminino” (BRASIL, 2015,
pág. 41).
O documento adverte que embora o crime de feminicídio es-
teja tipificado na forma da Lei, depara-se com a ausência do termo
nos atestados de óbito produzidos pelo sistema de saúde, pois esta
tarefa é de responsabilidade das instituições do sistema de justiça
criminal, portanto, mesmo diante dos homicídios de mulheres e
o reconhecimento de que os crimes são cometidos por pessoas
conhecidas das vítimas, há muitos casos de subnotificação que di-
ficulta a base real dos dados.
Nesse contexto, a disparidade entre ricos e pobres, entre
brancos/brancas e pretos/pretas aprofunda os problemas sociais,
econômicos, até mesmo estrutural, visto que a colonialidade per-
manece com suas marcas ideo-políticas bem presentes, como con-
tinuidade de um pensamento ocidental eurocêntrico, que se sus-

307
tenta nas ideias da supremacia branca em relação a todos os povos
não brancos.
O racismo estrutural assim como o machismo e a misoginia
nem sempre se revelam pela agressão e violência física, muitas
vezes, apresenta-se rasteiramente, sem uma percepção imediata,
embora incomode a quem sofre, pois, no caso brasileiro, esses fe-
nômenos acontecem pelas regras estabelecidas socialmente pela
elite dominante, nas quais passam a ser naturalizadas, através do
mito da democracia racial (Freyre), levando-nos a crer que não há
racismo no Brasil, com a falsa ideia de que este não é um país ra-
cista, por exemplo.
Em se tratando de tais agressões contra as mulheres, especi-
ficamente contra as mulheres negras e pobres, as inúmeras formas
de exclusão e desumanização do corpo feminino e negro estabele-
cidas pelo patriarcado branco assume formas cada vez mais violen-
tas e cruéis contra esses corpos; mesmo diante das mais variadas
formas de denúncia e lutas engendradas pelos movimentos sociais
negros, do Movimento Feminista Negro e de outras organizações
sociais, políticas e educacionais comprometidas com a desconstru-
ção de mitos, e contra a exploração histórica das classes explora-
das pelo capital.
Traremos a seguir, alguns dados dos últimos anos das violên-
cias como o feminicídio, assim como um conjunto de opressões,
que revelam a denúncia da face tão violenta e perversa contra as
mulheres, especificamente, as mulheres negras, trabalhadoras,
quanto foi em períodos históricos como a escravização e extermí-
nio da população negra na expansão colonial.

A MULHER NEGRA COMO ALVO DAS AGRESSÕES E DOS


CRIMES DE ESTUPRO

Os dados mais atuais demonstram que todas as formas de


violência e preconceitos têm se feito presente cada vez mais nas
diversas esferas sociais contra as mulheres, e se observarmos no

308
gráfico abaixo percebemos a proporção de mulheres negras, víti-
mas de diversos tipo de agressão em todos os estados do país.

Proporção de mulheres de 10 anos ou mais de idade que


foram vítimas de agressão física, por raça/cor,
Brasil e regiões, 2009

Fonte: IBGE/Pnad – Suplemento Vitimização e Justiça –


disponíveis em Ipea/ Retrato das desigualdades de gênero e raça.

Entendemos aqui a violência, como o próprio significado da


palavra definida no dicionário admite como o “qualidade ou carac-
terística de violento”, “ato de perversidade, crueldade, de tirania:
regime de violência [...] “emprego de meios violentos”, “coação que
leva uma pessoa à sujeição de alguém”. Com base na descrição do
que seja a violência, e considerando que a violência contra a mu-
lher como uma opressão individual e/ou coletiva, indicamos que os
dados sobre a violência no Brasil contra as mulheres, demonstra-
dos no gráfico acima indicam o alarmante quadro em que estas se
encontram, e as mulheres negras, em todos os estados deste país
são as que se destacam como vítimas de tais atos.
Para além do absurdo quadro da violência de gênero, im-
pressiona-nos o alto índice da violência contra a mulher negra, não
diminuindo nossa indignação e preocupação relativa à crueldade
praticada contra as mulheres brancas, mas é preciso denunciar que
se trata de uma ação dirigida a um corpo que tem cor, tem sexo e
tem classe.

309
É preciso destacar que em 2019, de acordo com o Atlas da
Violência 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras.
Conforme os dados apresentados no documento (p. 38):

[...] Em termos relativos, enquanto a taxa de homicídios de


mulheres não negras foi de 2,5, a mesma taxa para as mu-
lheres negras foi de 4,1. Isso quer dizer que o risco relativo
de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes
maior do que o de uma mulher não negra, ou seja, para cada
mulher não negra morta, morrem 1,7 mulheres negras.

De acordo com o referido Atlas, embora em onze anos te-


nha havido uma redução da violência letal, esta não se traduziu
com uma redução da desigualdade racial. Em 2016 mais de qua-
tro mil mulheres perderam a vida no país, e informa que a “vio-
lência no Brasil é um fenômeno social articulado a partir do ra-
cismo e do patriarcado”, e que a falta de base de dados aponta
que o assassinato de mulheres negras e pobres é o mais recor-
rente. Recorrendo ao Anuário Brasileiro de Segurança Pública
, percebemos que embora o número de vítimas de feminicídio te-
nha sido reduzido em 2021, outras formas de agressão contra me-
ninas e mulheres cresceram no mesmo ano.
Este ano de 2023, em notícias amplamente veiculadas pe-
los telejornais, pela internet, dentre outros, informa-se que o es-
tado do Ceará durante o mês de janeiro deste ano já registra o
número de 21 mulheres assassinadas, e destas, seis foram femi-
nicídios, alguns cometidos no próprio lugar de moradia, con-
trariando a ideia de que o lar é um lugar seguro. Anuncia-se,
desta forma, como o mês mais violento dos últimos seis anos
, o que revela uma situação de extrema vulnerabilidade em que
passam as mulheres, fere os direitos humanos, e é uma realidade
mesmo com o aparato da legislação, resultado de lutas sociais das
mulheres.
Muitas vezes, quando não são assassinadas, as mulheres são

310
vítimas de outras formas de violência, como a agressão física, emo-
cional, psicológica, econômica e sexual, assim como a violação do
corpo feminino, qual seja o estupro.

A Cultura do Estupro trata-se, em termos gerais, do com-


partilhamento de valores, crenças e práticas sobre os papéis
de gênero e sobre as interações sexuais que não só permi-
te como também estrutura relações desiguais nas quais o
interesse sexual ativo deve conquistar e submeter o obje-
to de desejo. O que massivamente se configura na fórmula:
homens possuem desejo sexual e precisam realizá-lo, con-
quistando ou subjugando seu objeto de desejo, que são as
mulheres (ANGEL, p. 11, 2017).

É sempre urgente para mulheres formular argumentos que


comuniquem por que e como é grave viver com o medo e o perigo
de ser potencialmente violada o tempo inteiro. Davis (2016) narra
sobre a política do estupro nos Estados Unidos, quando os castigos
infligidos às mulheres negras ultrapassavam em intensidades
àqueles destinados aos homens negros durante a escravização,
nos quais além de açoitá-las e mutilá-las, o estupro servia como
“arma de dominação, uma arma de repressão, cujo objetivo era
aniquilar o desejo das escravas de resistir e, nesse processo E se-
gue afirmando que o estupro era uma política não escrita, mas cla-
ra, “socialmente aceitável”.
A construção do erótico dentro da sociedade que permeia
a naturalidade se mostra ainda mais forte quando se tratam dos
corpos negros, demostrado assim as bases do colonialismo onde
se entende os corpos negros como produto a ser dominado e ex-
plorado, inclusive no âmbito sexual. A hiper sexualização do corpo
negro segue sendo amplamente explorado, seja por aspectos da
mídia, em músicas e filmes, seja no dia-a-dia, nas vivências. Vivên-
cias essas que corroboram até a insistência como ferramenta de
conquista desse corpo tornando os limites flexíveis, “a própria re-

311
sistência do objeto de desejo é vista como parte da interação se-
xual normal. Trata-se de uma lógica que animaliza os homens que
simbolicamente ocupam esse pólo ativo (...)” (ANGEL, 2017).
Carneiro (2003) afirma que situações perversas como tal
construção, trata-se da chamada “objetificação do corpo negro”
refere-se à realidade histórica de exploração das mulheres negras,
no qual remete ao conjunto de opressões e violências a partir de
ideias e ações orquestradas na tradição ocidental de atribuições de
comportamento de doçura, fragilidade e dependência das mulhe-
res brancas, ao passo que às mulheres negras seriam atribuídos os
serviços mais pesados e insuportáveis, pois estas deveriam supor-
tar , além de todos os tipos de abuso, sobretudo de ordem sexual,
outrossim as duras jornadas de trabalho em quaisquer campos e
formas de trabalho, aptos à utilização do bruto trabalho (CARNEI-
RO apud PEREIRA, SOUSA & SILVA, 2022).
Ademais, de acordo com a professora Eliane Barbosa da Con-
ceição (2016) outras formas violentas contra a mulher negra são os
lugares que estas não chegam, pois o seu lugar está predetermina-
do pela branquitude que assume espaços de poder, e “relegam às
mulheres negras os lugares e posições menos desejados no mun-
do do trabalho” (CONCEIÇÃO, 2016, p. 280).
A referida autora (2016) ilustra o efeito da desigualdade de
raça e gênero no acesso a direitos fundamentais, como a educa-
ção, bem como ao mercado de trabalho, o tempo de investimento
de homens brancos e mulheres brancas, e estas integrarem o gru-
po que mais possui acesso ao ensino universitário. Ainda assim:

“o retorno pelo seu investimento em educação continua


sendo inferior ao dos homens brancos. O mesmo ocorrendo
com as mulheres negras, que também investem mais tempo
em educação que os homens de sua raça/cor, mesmo assim
possuem retornos inferiores no mercado formal” (CONCEI-
ÇÃO, 2016, p. 299).

312
Corroborando com as ideias da autora (2016), Paulina Chi-
siane (2013, p. 203) advoga que “nas condições atuais da socie-
dade, se a mulher pretende um reconhecimento igual ao do seu
parceiro masculino, deve trabalhar duas ou três vezes mais”, e que
são as próprias mulheres que devem gritar sobre suas amargurar,
seu pensamento e sentimentos, pois ninguém o fará melhor que a
mulher para falar de si. Chisiane (2013) afirma que quando a mu-
lher sai do lugar que lhe é pré-determinado, muitas vezes, pode
soar escandaloso para o todo social, mas é uma atitude necessária,
mesmo que isso cause “ceptismo e muito desprezo” (2013, p. 203),
além da exaustiva jornada de trabalho que isso possa causar. Nas
palavras da autora (2013):

[...] Trabalhar numa atmosfera de morte é minha forma de


resistir. Ninguém tem o direito de interromper meus sonhos.
(...) A minha maior realização virá no momento em que a
planta brotar, no momento de vê-la crescer. Mesmo antes de
vê-la florir, poderei já retirar-me da luta, repousar na sombra
mais próxima, em paz e tranquilidade.

Gomes (2005) discute sobre como o discurso de que as


oportunidades no Brasil são dadas a todos, independente de raça/
etnia, mas giram em torno do senso comum e o que é pior, carre-
gadas de um discurso racista e sexista, e, nesse sentido, as repre-
sentações do homem negro e da mulher negra aproximam-se das
teorias racistas. Há uma reprodução dos estereótipos do papel da
mulher negra em nossa sociedade, confirmando a importância que
a questão racial e de gênero assume na vida pessoal e profissio-
nal dessas mulheres e o quanto se faz necessário discuti-las numa
perspectiva antropológica e educacional, o que permitirá o reco-
nhecimento das diferenças de gênero, raça e classe.

313
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que as ações no campo da legalidade, da justiça


são importantíssimas e necessárias para a luta por uma sociedade
antirracista, antisexista, e reafirmamos, anticapitalista, para a luta
das mulheres que buscam proteção e justiça, entretanto, há muitas
situações nas quais, ainda, colocam as mulheres, vítimas de agres-
sões doméstica e familiar em contato com o agressor, até mesmo
continuar morando com o mesmo, e dessa forma, é difícil fugir das
estatísticas da mais perversa violência, que é o feminicídio.
As ideias e discursos construídos historicamente sobre a su-
balternidade das mulheres e das crianças ao poder do sexo mascu-
lino, de que há um lugar determinado ao sexo feminino vêm sendo
cada vez mais combatidas na luta do movimento feminista negro,
dentre outros movimentos e intelectuais comprometidos com uma
sociedade emancipadora, pois as racionalidades construídas para
a normalização das relações no longo processo de colonização e
do desenfreado capitalismo trouxeram grandes prejuízos à popu-
lação negra em todo o planeta, e, de forma mais cruel, às mulheres
negras, pretas da classe trabalhadora.
Urge traçar estratégias para a instauração de uma sociedade
de respeito às mulheres, às mulheres negras, empobrecidas, uma
sociedade antirracista, com igualdade de gênero, que possibilite a
inauguração uma nova forma de produção da nossa existência.
Neste sentido, como bem afirma, faz-se necessário intersec-
cionar a luta de classe, gênero e raça (DAVIS, 2016), transversalizar
as opressões porque “transversam” a mulher negra, visto que esta
vive transpassada por um conjunto de opressões (CONCEIÇÃO,
2016).
Entendemos, genuinamente, para que não caiamos na ar-
madilha de limitar tão importante luta ao campo das conquistas
políticas imediatas, as lutas contra o racismo, contra o machismo,
contra a misoginia, pela humanização de todos os corpos preci-
sam posicionar-se no campo do enfrentamento à sanha do capital,

314
ao tripé Estado, Capital e Trabalho Assalariado que assume formas
cada vez mais violentas para permanecer como sistema vigente no
seu contexto de crise estrutural, crise que se arrasta desde os fins
dos anos 1970 (MÉSZÁROS, 2000).

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livro? Falta editora, data, local).
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planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 13 de fev. de 2023.
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BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 17 março 2015.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo. Link: https://www.geledes.org.br/enegrecer o-feminis-
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CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo Santa Cruz; FERREIRA, Helder. Estupro no Brasil: vítimas,
autores, fatores situacionais e evolução das notificações no sistema de saúde entre 2011 e
2014. Rev. bras. segur. pública São Paulo v, v. 11, n. 1, p. 24-48, 2017
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desigualdades. In CARRIERI, Alexandre; TEIXEIRA, Juliana (Orgs). Gênero e trabalho: perspectivas,
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Leandro Konder. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas, Volume 3. São Paulo: Alfa-O-
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FGV. https://portal.fgv.br/artigos/negros-ainda-sao-maioria-rendimento-ate-2-salarios-minimos
Acesso em 13 de fevereiro de 2023 dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
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IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Atlas da violência. São Paulo. Ipea,
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LEACOCK, Eleanor Burke. Mitos da dominação masculina: Uma coletânea de artigos sobre as
mulheres numa perspectiva transcultural /Eleanor Burke Leacock; [Tradução de Susana Vasconce-
los Jimenez]. – São Paulo: Instituto Lukács, 2019. 416 p. Título original: Myths of Male Dominance:

315
Collected Articles on Women Cross-Culturally
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura
Afro-Brasileira’, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em 13 de fev. de 2023.
PEREIRA, Francisco Vítor Macêdo; SOUSA, Vitória Ramos de; SILVA, Rosângela Ribeiro da (Orgs.).
Feminismo negro: educação antirracista e antissexista na UNILAB [recurso papel] - Fortaleza, CE:
Editora Via Dourada, 2022.
TONET, I. Educação, cidadania e emancipação humana. Ijuí: Unijuí,. 2005

316
ANOTAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE

Flávio de Carvalho

INTRODUÇÃO

A Filosofia é filha de seu tempo (chronos e kairós). Ela pos-


sui uma história cronológica que se conta por meio de séculos da
construção de problemas e da criação de conceitos. Ela possui
uma história cairológica que se conta por meio de séculos da sua
dedicação em pensar o momento presente, em tratar as questões
da existência dos indivíduos e das suas produções individuais e
coletivas, das suas relações e instituições sociais. Não há Filosofia
do passado tampouco do futuro, toda Filosofia é pensamento no
presente.
Neste sentido, desde meados do século XX, vários homens e
mulheres têm se dedicado a pensar filosoficamente o ser humano
e as manifestações de sexualidade por ele construídas, as tensões
e as rupturas de padrões e normatizações, questionando os limites
dos saberes sobre sexo e sexualidade, provocando a ampliação das
fronteiras ontológicas, epistemológicas, éticas, políticas e estéticas
daquilo que resumidamente podemos denominar de Gênero. Por-
tanto, desde meados do século XX tem-se construído um filosofar,
tem-se criado conceitos filosóficos, sob o kairós dos problemas de
Gênero.
Este texto pretende contribuir para a divulgação de certo
recorte deste movimento de pensar filosoficamente Gênero e Se-
xualidade, provocando a leitora e o leitor a pensar seus próprios
problemas a partir das questões e dos conceitos aqui dispostos.
Para tanto, o texto inicia seu itinerário indicando algumas situações
vivenciadas efetivamente na sociedade brasileira contemporânea
e que nos levam a reconhecer o momento oportuno para filosofar,
para construir uma reflexão provocada por alguns questionamen-
tos e conceitos elaborados pelo filósofo francês Michel Foucault
(1926-1984). Trata-se, portanto, de um encontro entre o movimen-
to de pensamento conceitual e a vivência de problemas sociais,
um pensamento teorético que se quer manter ocupado com as
circunstâncias históricas com vistas a construir compreensões ou-
tras e atitudes outras, criar conceitos que colimem linhas de fuga,
entendidas aqui como o conjunto de ideias e ações com potencial
de destruir hegemonias (notadamente, aquelas vinculadas a estru-
turas de tirania ou totalitaristas) e de construir ideias e atitudes he-
terogênicas e diversas a partir da valorização radical da Diferença.

CENAS BRASILEIRAS, KAIRÓS FILOSÓFICO

Reiteramos que a Filosofia é filha de seu tempo. Não existe


uma filosofia ou um filósofo à frente de seu tempo. Cada época his-
tórica, região geográfica e agrupamento humano gera suas filoso-
fias. E cada Filosofia enfrentará seus próprios problemas e criará os
conceitos atinentes (DELEUZE, GUATTARI, 2010). Neste sentido,
oferecemos à leitora e ao leitor algumas situações ocorridas nos
últimos anos no Brasil e que denominamos de cenas, no sentido
de chamar a atenção para a intencionalidade dos discursos e das
ações realizadas pelos respectivos personagens.
CENA 1: passamos por período histórico (2019-2022), marca-
do por um governo, especificamente no âmbito do poder executivo
federal, extremamente ideológico e reacionário, que desde os seus
primeiros movimentos, atentou contra a abordagem das questões e
dos estudos de Gênero. Vale lembrar que uma das primeiras ações
do primeiro – de uma série de 5 ministros da Educação, incluindo
um que não chegou a assumir efetivamente a pasta – foi a extinção
da SECADI. Tão logo assumiu o Ministério da Educação (MEC), o
ex-ministro da educação, Ricardo Vélez Rodríguez – indicado para
o cargo pelo mentor intelectual do referido governo, Olavo de Car-
valho – extinguiu a Secretaria de Articulação com os Sistemas de
Ensino (SASE) e dissolveu a Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). O órgão era res-

318
ponsável pelos programas, ações e políticas de Educação Especial,
Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Es-
colar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as
relações Étnico-raciais e Educação em Direitos Humanos. Em seu
lugar, foram criadas duas novas secretarias: a Secretaria de Alfabe-
tização e a Secretaria de Modalidades Especializadas da Educação.
QUESTÃO: Qual o motivo para tal extinção tão célere e tão
dirigida? Como admitir tal arranjo administrativo quando a extin-
ção desta secretaria contrasta com o fato que o Brasil é o país onde
mais se mata pessoas da comunidade LGBTQIAP+ e que figura
como o 5º país com maior índice em termos de violência contra a
mulher e feminicídio.
CENA 2: o cantor brasileiro Johnny Hooker em um festival ar-
tístico na cidade de Garanhus, Pernambuco, afirma: Jesus travesti
sim, Jesus é transexual sim, Jesus é bicha sim! E completou: Viva
Renata Carvalho? (Numa alusão à artista que teve sua peça – Evan-
gelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu – proibida de ser apre-
sentada no festival do qual também participava o cantor). Jesus
Cristo, rainha dos céus! A arte é pro futuro e esses fundamentalis-
tas não vão passar!
QUESTÃO: o que aconteceria se o cantor em questão houves-
se afirmado que Jesus é heterossexual, é homem com H maiúscu-
lo? Se ele houvesse gritado, Jesus é negro, Jesus é indígena, Jesus
é refugiado, teria tido o mesmo tom dos protestos que se deram
à época (2018). Por que dar destaque para uma característica de
sexualidade costuma pesar tanto na avaliação moral das pessoas?
CENA 3: Texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
com 600 páginas de normatizações sobre a Educação Básica em
nível nacional, considerando-se a Educação Infantil, Ensino Funda-
mental e Ensino Médio, mais de uma década à instrução da apren-
dizagem das jovens e dos jovens no Brasil. Quando da discussão
da redação final do referido documento, alguns cidadãos e alguns
políticos religiosamente pressionaram e religiosamente comemo-
raram a retirada do que eles chamavam de “ideologia de gênero”

319
do texto da BNCC. Tal manobra política de fundo religioso acen-
tuadamente cristão, ainda que o Brasil seja um país declaradamen-
te laico, resultou na publicação de um documento com os seguin-
tes números quando se trata de termos relacionados às questões
de Gênero: três ocorrências para o termo sexo e igualmente três
ocorrências para o termo sexualidade; para o termo gênero foram
notificadas 64 ocorrências, todas utilizadas no âmbito dos estu-
dos de linguagem. Mesmo alguns termos, cuja vinculação com as
questões de Gênero é efetiva, são utilizados para outras situações
ou mencionados de modo genérico, a saber: preconceito, discrimi-
nação.
QUESTÃO: a quem compete e interessa a exclusão dos ter-
mos supramencionados em suas conotações específicas – que não
se trata apenas de uma questão linguística, mas que é iminente-
mente política – no documento? Qual ideologia (ideologia de gê-
nero segundo uma fé específica e hegemônica no Brasil) rendeu
glórias pela conquista da subtração do que se chamava ideologia
de gênero (desassociada de qualquer fé)? Quais sujeitos foram ex-
cluídos do documento? Que tipo de sujeito se quer com o texto do
modo como foi publicado?

DAS CENAS AOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS

Por meio das cenas apresentadas é possível traçarmos um


diagrama compreensivo constituído de três questões mais amplas:
i. qual tipo de vínculo foi construído entre a religião (pensando-nos
como sociedade ocidental, caucasiana, racional, heterossexual) e a
a condição humana da corporeidade/sexualidade/prazer? ii. como
foi e tem sido construída a postura dos sujeitos/atores das escolas
e universidades (professores e estudantes) frente às questões que
dizem respeito à corporeidade/sexualidade/prazer? iii. consideran-
do os diversos âmbitos que constituem o diagrama da existência
de uma pessoa, por que se atribui peso moral tão acentuado e
mesmo pudico quanto se trata de abordar a corporeidade/sexuali-

320
dade/prazer?
Por sua vez, tais questões nos situam em territórios episte-
mológicos e discursivos interseccionados, férteis, rizomáticos, a sa-
ber: i. o território da conceituação e da subjetivação, no qual con-
seguimos problematizar as relações que se criam entre as criações
conceituais e os modelos de sujeito intencionados; ii. o território da
linguagem e os dispositivos de sujeição, no qual problematizamos
as relações construídas em torno ao uso da linguagem (em suas
mais variadas formas) e os padrões de sujeição (ou não) que elas
comportam; iii. o território da formação dos saberes e das práticas
educativas, no qual questionamos as relações de poder vinculadas
à produção dos saberes e, também, como tais saberes são ado-
tados/transmitidos/mudados/mutilidados nas práticas educativas
escolares e nas não formais.
São muitas as questões, são muitos os territórios, reconhe-
cemos. Impossível tratar de todos dentro do escopo de um único
artigo. De modo que o leitor e a leitora devem considerar este texto
apenas como um ponto de partida para que possam construir seu
próprio itinerário de pensamento. Que este texto possa contribuir
para que o pensamento saia de seu modo de inércia, criando assim
a oportunidade para questionar a trama política da construção
dos saberes (relação poder-saber), o que se constitui já como uma
forma de resistência às hegemonias. O exercício de escrita que
aqui oferecemos não pretende falar ou fazer no lugar de outrem.
Entendemos que a(o) intelectual, a(o) professora(or) pode fornecer
os instrumentos de análise, dos quais ele mesmo faz uso, coerência
entre o agir e o falar (parresia), mas o processo deve ser feito por
cada indivíduo. A(O) intelectual também não pode falar por mera
retórica, apesar de termos aos milhares de vozes meramente retó-
ricas atualmente. Como dissemos, ela/ele não pode falar no lugar
do outro, sob pena de anulação deste outro e assim manter igual
mecanismo de sujeição, de assujeitamento.
Queremos que este texto possa igualmente provocar o leitor
e a leitora para pensar e realizar as desterritorializações e os deslo-

321
camentos conceituais e atitudinais. Entendemos que este exercício
também se mostra como forma de resistência às hegemonias, pois
se trata de recriações, de contracondutas. E que este trabalho pos-
sa acontecer no nível das micro-contracondutas, das revoluções
moleculares, das micro-revoluções, das contestações e das apren-
dizagens domésticas, dos confrontos locais e regionais, dos deba-
tes nos ambientes do cotidiano dos indivíduos (escola, trabalho,
família, templos, sindicatos, etc), dando lugar para a criação das
distopias, das surrealidades, das realidades outras.

DOS PROBLEMAS AOS CONCEITOS

O filósofo Michel Foucault é uma das principais referências


contemporâneas quando se trata de investigações e debates so-
bre sexualidade e gênero. Desde a década de setenta do século XX
seu pensamento tem sido utilizado por diversos saberes, tais como
a Psicologia, a Educação, a Filosofia, para construir análises e traçar
diagramas compreensivos sobre o fenômeno do ser-sexualidade,
isto é, sobre os diversos modos de manifestar as sexualidades, os
gêneros e os prazeres.
Em uma entrevista dada a Jean Bitoux em 1978, publicada
sob o título Le gay savoir, Foucault afirma que (2015, p. 5)

Há todo um psicologismo da sexualidade, todo um biologis-


mo da sexualidade e, consequentemente, toda uma captura
possível dessa sexualidade por médicos, por psicólogos, pe-
las instâncias da normalização. Não seria necessário, então,
fazer valer, contra essa noção médico-biológico-naturalista
da sexualidade, uma outra coisa? Os direitos do prazer, por
exemplo?

Segundo a visão do filósofo, trata-se de deslocar a abordagem


da condição da corporeidade/sexualidade/prazer dos indivíduos,
deixando de abordá-la como algo vinculado a uma natureza subs-

322
tancial ou condicionado a estruturas psicofisiológicas, passando a
tomá-la como uma experiência de realização existencial, dinâmica,
mutante e errante. Considerar esta condição a partir de uma esté-
tica do prazer coloca, portanto, em questão qualquer padronização
ou restrição aos diversos modos existir e de se relacionar como ser-
-sexualidade. Decerto que ao adotar essa postura nos colocamos
em confronto com grande número de doutrinas religiosas, cujas
normatizações morais geralmente se fundamentam em critérios
da ordem de uma Natureza ou de uma Substância divinizadas.
Note-se que além do fato que alguns saberes constroem seus
arcabouços explicativos e seus procedimentos a partir de concep-
ções naturalistas, também há aqueles que fazem suas construções
a partir de noções de presença/normalidade frente a ausência/
anormalidade, ou seja, uma vez indicado intencionalmente um ele-
mento como fundamental, a notificação de sua ausência conduz
à indicação de quebra de padrão, logo, de anormalidade. Neste
sentido, denuncia Foucault (2015, p. 7):

De modo esquemático, diria que a medicina e a psicanáli-


se se serviram muito dessa noção de desejo, precisamente
como uma espécie de instrumento de inteligibilidade, por
conseguinte, de padronização em termos de normalidade,
de um prazer sexual: dize-me qual é teu desejo e te direi
quem és, te direi se és doente ou não, te direi se és normal
ou não e, em consequência, poderei desqualificar teu prazer
ou, ao contrário, requalificá-lo.

É imprescindível, portanto, que se reconheça que tais saberes


(todos os saberes) constroem seus instrumentos de inteligibilidade
e a partir deles tecem suas teorizações, normatizações e procedi-
mentos. Resta claro que um movimento de ruptura com a noção
naturalista de corporeidade/sexualidade/prazer passa pelo reco-
nhecimento de tais instrumentos de inteligibilidade e da constru-
ção de outros, tão diversos e multifacetados quanto o são os diver-

323
sos indivíduos e seus modos de ser, de existir e de se relacionar. E
neste sentido, o texto da BNCC quando não se ocupa com a pauta
de Sexualidade e Gênero manifesta o quão limitado e limitador é
seu instrumento de inteligibilidade, pois apesar de não utilizar um
escopo explicitamente heteronormativo e patriarcal, quando se
nega a tratar tal pauta termina por prejudicar ou inviabilizar que a
escola funcione como instrumento questionador e modificador das
condições sociais vigentes no Brasil, onde o sexismo e a heteronor-
matividade estão sedimentadas em todas as relações, discursos e
instituições sociais. Silenciar é também negar e excluir.
Ainda na entrevista que Foucault concedeu encontramos
uma série de afirmações que nos mobiliza a pensar em que me-
dida o sexismo, a heteronormatividade e o machismo constroem
discursos, relações sociais e procedimentos de normatização em
nível de filigrana, isto é, no âmbito dos microdiscursos, das micror-
relações e dos microprocedimentos. A sagacidade do pensamento
foucaultiano nos provoca a construir esta compreensão a partir das
seguintes afirmações (2015, p. 14):

Quando você observa historicamente o que foram as práti-


cas homossexuais, tal como afloraram suas diversas mani-
festações, é absolutamente exato que a referência à femini-
lidade foi muito importante – a certas formas, ao menos, de
feminilidade.

Pode-se compreender, portanto, que a construção da abor-


dagem e das consequentes conjecturas, regulações e punições
acerca das pessoas homossexuais e de suas práticas adotava a no-
ção de feminino (feminilidade) como elemento constitutivo de seu
instrumento de inteligibilidade. A um só tempo, então, a estrutura
de ideias heteronormativas vetava e condenava os modos não-he-
terossexuais de ser homem e reiterava o modo heterossexual de
ser mulher, cuja concepção era igualmente heteronormativa. A um
só tempo se assujeita os homens gays, mas também as mulheres

324
(hetero ou homossexuais). Essa reflexão pode nos provocar a pen-
sar que a associação de Jesus ao ser homossexual (como narrado
na cena 2) torna-se também grave para os fundamentalistas reli-
giosos devido ao fato de associá-lo com um modo de ser feminino,
o que contrasta com certa ala da tradição cristã que vincula seu
deus à manifestação exclusiva na forma de um pai e de um filho.
Mas, é preciso que pensemos com Foucault os modos de re-
sistir, as condutas que devem se impor frente às diversas ideias,
instituições sociais e normatizações hegemônicas e totalitárias.
Condutas que ajam de modo propositivo, isto é, oferecendo mo-
dos outros de pensar e de se relacionar, fomentando a construção
de saberes e de espaços de desconstrução e de desassujeitamen-
to. Pensar e construir condutas de resistência, pensar e construir
mesmo microcondutas, que são possíveis de serem executadas
nos ambientes e nas relações do nosso cotidiano.
Neste sentido, selecionamos dois momentos desta entrevista
concedida por Foucault para nos fazer pensar sobre a necessidade
de deslocamento de ideias e de construção de espaços de desas-
sujeitamento.
Em certo momento de sua fala, convoca o filósofo (2015, p.
18):

Esse novo avanço permite afastar-se verdadeiramente des-


sa ideia, que decerto foi estrategicamente interessante, de
que a homossexualidade masculina teria uma relação fun-
damental com a feminilidade. Hoje em dia, sem dúvida, é
preciso tomar distância quanto a essa ideia. E, consequente-
mente, tentar pensar a homossexualidade como certa rela-
ção ao corpo e aos prazeres que não se torna inteligível por
referência à feminilidade.

E mais adiante, igualmente convoca (2015, p. 21):

325
É importante que haja lugares como as saunas, onde, sem
ficar preso, aprisionado na própria identidade, no próprio
estado civil, no seu passado, no seu nome, no seu rosto
etc., seja possível encontrar pessoas que estão lá e estão
para você como você está para elas, nada além de corpos
com os quais as combinações, as fabricações de prazer
mais imprevistas são possíveis. Isso faz parte, em definitivo,
de experiências eróticas importantes, e eu diria que é
politicamente importante que a sexualidade possa funcionar
desse jeito. [...] Lugares nos quais a gente se dessubjetiva;
isto é, se dessujeita de uma maneira, eu não diria a mais
radical, porém em todo caso de uma forma suficientemente
intensa para que esse momento seja importante, finalmente.

A primeira convocatória diz respeito à necessidade de proble-


matizarmos as concepções heteronormativas e patriarcais que têm
prescrito e delimitado os modos de ser, de existir e de se relacionar
enquanto seres humanos sexuados que somos. Diz respeito tam-
bém a necessidade de deslocarmos o foco da abordagem da se-
xualidade e do gênero, sem contudo estabelecer um outro centro
hegemônico para ancorar novamente o foco. Trata-se, portanto,
de abdicar de qualquer centro, de abordar a corporeidade/sexua-
lidade/prazer a partir de conexões diversas, que são tão diversas
quanto as combinações possíveis de serem construídas pelos indi-
víduos.
A segunda convocatória diz respeito à necessidade de cons-
truirmos lugares onde os processos de subjetivação não condu-
zam à sujeição, onde os indivíduos possam construir sua própria
compreensão de si, se aceitar e valorizar suas singularidades, onde
as relações possam ser construídas a partir do escopo da Diferença
e não a partir do Mesmo, onde se construam práticas de emanci-
pação de pensamento, onde se criem conceitos, teorias e procedi-
mentos de valorização, resgate e defesa dos diversos modos de ser,
de existir e de se relacionar. Pensando a partir da potência criadora

326
e libertadora que Foucault reconhecia nas saunas – este lugar ou-
tro onde livremente habitavam subjetividades outras – podemos
pensar e construir lugares outros onde conceitos outros, teorias
outras e metodologias outras são criadas em vista da valorização e
da defesa da vida de todos os seres. A escola e a universidade têm
a potência de serem estes lugares outros, elas podem se constituir
como lugares de desassujeitamento, de deslocamento de ideias e
posturas, de criação e de recriação.

DOS CONCEITOS PARA AS REVISÕES/AÇÕES

Diante do exposto, qual a condição da escola e da academia


(e aqui usamos o termo escola e academia sem restringir à ques-
tão institucional, tomando-as como lugares e como territórios nos
quais se constroem, inventam, criam-se saberes)? A escola e a aca-
demia abordam as questões de gênero e de sexualidade, corro-
borando assim com a construção de uma condição epistemoló-
gica, política e existencial favorável à liberdade e à autonomia das
pessoas e dos movimentos sociais? Ou ambas apenas sustêm e
reproduzem o padrão hegemônico, acerca do qual pode-se lançar
suspeitas quanto à sua plasticidade (abertura à diversidade e à di-
ferença) epistemológica e moral?
Constatamos com preocupação que a academia e escola
construíram (ou ainda constroem?!) uma postura que não rara-
mente “exala aromas dogmáticos, fraternários/sororetários e con-
ventuais”. Pudores posturais e linguísticos são mantidos: questiona-
mos se isto manifesta certa submissão aos padrões hegemônicos e
heteronormativos da sociedade em geral. Trata-se de professoras e
professoras, de doutoras e doutores, que se reconhecem em “mis-
são”, o magistério, de quem se espera disciplina, dedicação aos es-
tudos e ao trabalho (ora et labora, como se fossem monjas e mon-
ges), cobra-se isenção política na execução do seu ofício (reforço
à pseudoseparação entre poder e religião), moderação corporal e
no linguajar. Do que estamos falando mesmo, de intelectuais ou de

327
devotos?
É preocupante se este distanciamento que a academia pode
assumir (por que pode também não assumir) não esteriliza as re-
lações entre academia e sociedade, e seus efetivos atores sociais.
Questionamos se esta “aura de isenção” não manifesta um modelo
de academia desengajada, vivenciada por sujeitos geniais e desen-
gajados, intelectuais eunucos e assexuados.
Esta situação manifesta algumas questões consequentes que
precisam ser igualmente tratadas: a educação escolar e acadêmica
tem acessado e dado acesso às pessoas e aos problemas de gêne-
ro e sexualidade em seu fluxo real, na complexidade que constitui
a realidade? Estão os grupos e as comunidades não escolares ou
acadêmicas se sentindo representadas nas investigações, nos de-
bates e no ensino formal? Qual o lugar (local físico mesmo, nas sa-
las, nas carteiras, nas mesas de debates) das vozes marginalizadas,
violentadas e silenciadas devido às questões do ser-sexualidade
ao longo da história? Que tipo de sujeito e também de sujeição a
academia e a escola constroem? Qual sujeito e relação de poder
mantemos nos ambientes escolares e universitários?
Outra revisão/ação possível diz respeito à relação entre discur-
so religioso e sexualidade. Qual o lugar epistemológico da sexua-
lidade (e igualmente da corporalidade e do prazer) na construção
do discurso religioso e teológico? Qual a pertinência da discussão
acerca do gênero das deidades? A quem interessa construir uma
civilização cuja deidade se manifesta sobre a égide masculina (fáli-
ca, heteronormativa, patriarcal) afirmando se tratar de um processo
“natural”, normatizando assim as existências individuais e coletivas?
Qual tipo de sujeito se pretende construir quando se venera um
deus que é pai, quando se narra a história de seu herdeiro marti-
rizado mas ressuscitado, depois de viver uma vida austera e casta,
a despeito de que historicamente ele viveu numa sociedade em
que os homens por costume casavam relativamente cedo? Porque
tantas outras sociedades e civilizações inteiras falam de seus deu-
ses vivendo experiências corporais e sexuais, as quais culminam

328
sua potência divina criadora? Enquanto não conseguirmos falar da
sexualidade de deus, questões importantes que envolvem machis-
mo, controle, sujeição, permanecerão cobertos sob o véu do sa-
grado e impedindo que alguns corpos “profanos” tenham acesso
à dignidade individual de existir e de sentir a vida como se é, ou
melhor, segundo as infinitas possibilidades de ser, de existir e de
sentir a vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, resta ponderar que devemos ser coerentes e cora-


josas(os) para aplicar a desconstrução que vimos tratando em to-
dos os âmbitos da nossa vida. Aplicar na ciência e não aplicar na
fé, nas relações afetivas, na relação com o próprio corpo, resulta
em desequilíbrio e incoerência. Neste sentido, encerramos este
texto mantendo a intencionalidade de provocar o pensamento e
a metodologia de oferecer questões para se pensar, indicando al-
gumas outras questões que, como educadoras e educadores, nós
precisamos enfrentar cotidianamente: i. como valorizar e abordar a
sexualidade (questão do prazer) nas práticas educativas? ii. como
dar condições para a manifestação das sexualidades a despeito
dos padrões hegemônicos?; iii. como oportunizar que a escola e a
academia sejam locais de desassujeitamento das identidades se-
xuais? iv. como conhecer e dar visibilidade às novas masculinidades
que se insurgem contra a masculinidade hegemônica ou tóxica? v.
como construir pontos intensivos no currículo escolar pra tratar as
questões de gênero e de sexualidade?
Independentemente das diversas respostas que se sejam
oferecidas às várias perguntas que formulamos neste texto, um
ponto de reflexão deve ocupar previamente a leitora e o leitor des-
se texto, deve mobilizar sua potência de pensar: qual a sua pró-
pria relação existencial e epistemológica com a sua condição de
corporeidade/sexualidade/prazer? O exercício filosófico de pensar
as próprias questões de corporeidade/sexualidade/prazer é tarefa

329
primária às revisões/ações nos âmbitos sociais e educacionais em
que nos inserimos. Portanto, conhece-te a ti mesmo, conhece-te
ao teu próprio prazer.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.


DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é a Filosofia? Trad. Bento Prado Júnior, Alberto Alonso Muñoz.
Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. O saber gay. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/ecopolitica/arti-
cle/view/23545/16906 . Acesso em 15 fev.2023.
__________. História da sexualidade: a vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque,
J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

330
COISA DE MACHO: AS MASCULINIDADES REVERBERADAS
ENTRE JOVENS ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO DE UMA
ESCOLA PÚBLICA NA CIDADE DE CAMPINA GRANDE-PB

Maria Lidiane dos Santos Mota


Jussara Natália Moreira Belens de Melo

INTRODUÇÃO

A sociedade ocidental moderna é complexa e diversa, sendo


o resultado de processos históricos e relações antagônicas entre os
indivíduos. Algumas dessas tensões estão ligadas às questões de
poder e dominação entre o masculino e o feminino. Manifestando
características de uma estrutura patriarcal, é assim que essa socie-
dade se organiza, definindo o lugar social do homem e da mulher,
do masculinino e do feminino.
Essa ordem vem sendo mantida por várias instituições sociais,
que trabalham a favor de sua manutenção, como, por exemplo, a
família, o trabalho, a religião, entre outras, apresentando em seus
dogmas uma moralidade patriarcal que inferioriza o feminino. A
escola é, historicamente, um espaço de reprodução da relação
binária entre homem-mulher, reforçada pela literatura, pelas cor-
rentes filosóficas, médicas, jurídicas e pedagógicas engessadas por
ideais que não correspondem à atualidade, mas que se fazem pre-
sentes nas práticas cotidianas, sendo reproduzidas, muitas vezes,
de forma insconciente pelos indivíduos.
Neste sentido, torna-se necessário compreender a constru-
ção social da masculinidade e como ela subjetiva os indivíduos dos
sexos masculino e feminino, levando-os a agir e a pensar de acordo
com a estrutura que lhes é comum, ou seja, apresentar cada vez
mais características do padrão social imposto que define o que é
ser homem a partir de seu comportamento viril. Por sua vez, orien-
ta como mulheres devem se comportar e pensar exteriorizando
sua sensibilidade.
Para a realização deste artigo, que se configura em estudo de
caso, foi realizada uma investigação bibliográfica sobre o tema em
questão, à luz do conceito de masculinidade proposto por: Pier-
re Bourdieu (2020), Robert W. Connell e James W. Messerschmi-
dt (2013), Mariza Corrêa (1999) e Miguel Vale de Almeida (1996).
Para discurtirmos sobre o conceito de estruturas sociais, fizemos
uso dos estudos de Anthony Giddens (1990) citado por Carneiro
(2003). Já, para compreender o conceito de juventude, recorre-
mos às reflexões de Karl Mannheim (1927) e de Bourdieu (2010).
Para o contato direto com as/os entrevistadas/os fizemos uso da
pesquisa qualitativa de cunho analítico para, assim, tentar alcançar
suas subjetividades, as quais, acreditamos, se expressam em suas
opiniões.
Foi a partir de um processo histórico, composto de tensões
entre os sexos masculino e feminino que se constituiu a masculi-
nidade. É possível afirmar que essa construção social de mascu-
linidade dá origem a um jeito de pensar e de agir aos indivíduos,
os quais o exteriorizam através dos comportamentos. E podemos
identificá-los nas práticas cotidianas de alunas e alunos do Ensino
Médio de dada escola pública na cidade de Campina Grande – PB,
tendo em vista que a escola é um espaço de encontro das diversi-
dades presentes na sociedade.

AS PRÁTICAS DE MASCULINIDADES VIVENCIADAS


COTIDIANAMENTE POR JOVENS ESTUDANTES DO ENSINO
MÉDIO NA CONTEMPORANEIDADE

Vivemos em uma sociedade complexa, construída historica-


mente sobre bases que insistem em categorizar de forma dual e
antagônica ou opositiva tudo existente, desde elementos naturais
a elementos culturais. Essa dualidade ou oposição está presente
em todas as suas estruturas sociais, se manifestando de forma ex-
plícita ou subliminar nas relações entre os indivíduos. Dito de outra
forma, as sociedades se organizam em sistemas binários: branco/

332
preto, alto/baixo, úmido/seco, dominador/dominado, homem/mu-
lher.
Constroem-se estruturas hierarquizantes e, a partir delas, ar-
tefatos ou eventos que deveriam serem repudiados, mas são trans-
mutados para o contexto cultural, cujo apelo de uso constante e
cotidiano faz com que o “normal” – ainda que injusto ou cruel” – se
torne “norma”, portanto, socialmente aceitos, já que passam a falsa
ideia de que são eventos “naturais”, logo se perpetuando uma or-
dem social pré-estabelecida.

[...] o que é ainda mais surpreendente, que a ordem estabe-


lecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas
imunidades, seus privilégios e suas injustiças, salvo uns pou-
cos acidentes históricos, perpetue-se depois de tudo(sic) tão
facilmente(sic) que condições de existência das mais intole-
ráveis possam permanentemente ser vistas como aceitáveis
ou até mesmo como naturais. (BOURDIEU, 2020, p.11-12)

Essa relação de dominação disseminada ao longo de nossa


história perpetuou-se por toda a sociedade, favorecendo o gênero
masculino e desfavorecendo o gênero feminino, passando a (re)
produzir uma cultura em cujo bojo mulher desempenha papel in-
ferior ao do homem.
Nessa estrutura social dicotômica são permitidos e legitima-
dos apenas dois modelos de existência, o modelo heterossexual e
cisgênero. Todos os outros que fogem desse padrão são distancia-
dos dos grupos tradicionalmente majoritários e sofrem uma série
de penalidades, como é o caso das pessoas LGBTQIAP+.
Para Bourdieu (2020, p. 69), “A força simbólica atua sobre os
corpos de maneira silenciosa através das estruturas, realizando um
trabalho de inculcação e de incorporação nos indivíduos”. Processo
que o autor nomeia de “macaco mecânico”, pois age de forma pro-
funda nos corpos, um trabalho intenso e invisível, mas que dialoga
com o mundo físico, moldando os corpos para agir e pensar de

333
determinada forma, ensinando-os a desenvolver automaticamen-
te papéis designados socialmente para os gêneros e a obedecer à
ordem do “natural”, sem questionar.
Os processos de dominação social agem sutilmente sobre o
corpo, operando uma espécie de mágica, capaz de ajustar e mo-
delar os seus contornos. Isso pode significar que “a masculinida-
de não é a mera formulação cultural de um dado natural; e que a
sua definição, aquisição e manutenção constitui (sic) um processo
frágil, vigiado, auto-vigiado e disputado” (ALMEIDA, 1996, p. 163).
Desde pequenos, os meninos são educados, estimulados, prepa-
rados para a ideia de que “meninos não choram”, pois devem ser
fortes e viris. Ao longo do tempo, esses elementos simbólicos (pos-
tos em movimento através do macaco mecânico) vão se incorpo-
rando como disposições permanentes de percepção e ação e se
integram de diferentes maneiras às dimensões dos corpos (BOUR-
DIEU, 2020).
Essa relação se apresenta de diversas formas na sociedade,
uma delas é percebida na estrutura de linguagem (simbólica) que
reafirma essa oposição dos gêneros masculino e feminino, como
destacou Ferreira (1986 apud GUEDES1995, p. 5): “a espécie huma-
na se comunica e estabelece linguagens, sejam faladas, escritas ou
gestuais, constituindo-se em representações sociais”. Assim, a lin-
guagem seria uma grande aliada na produção e reprodução desse
sistema binário apontado por Bourdieu (2020).
Bourdieu (2020, p. 26) também afirma que “o mundo social
constrói o corpo como realidade sexuada e como depositório de
princípios de visão e de divisão sexualizantes”. Características bio-
lógicas diferentes entre macho e fêmea são usadas para naturalizar,
por meio de narrativas míticas, as violências simbólicas vivenciadas
por mulheres, fortalecendo essa estrutura dicotômica segundo a
qual o masculino se sobrepõe ao feminino.
Podemos comparar as duas descrições acima. Ambas são
modelos de corpos socialmente sexualizados, entretanto, pode-se
observar o que foi construído acerca de cada um deles e perce-

334
ber as diferenças existentes na relação de poder que o masculino
vai exercer. A ele cabem ações ativas, pois que deve estar sempre
atuando, produzindo, buscando, construindo, pondo em prática
sua virilidade. O feminino, ao contrário, é um agente passivo, corpo
receptor, que espera para acolher, supostamente incapaz de exer-
cer atividades que pressuponham ações relacionadas à produção,
construção etc., ou mesmo que sejam para sua própria defesa. So-
bre tal apelo de subordinação, o autor destaca, no texto, expressa
seu desacordo: (BOURDIEU, 2020, p.53) “como se a feminilidade
fosse à arte de se fazer pequena”.
Os estudos de Bourdieu sobre a dominação masculina so-
frem, no entanto, algumas críticas de outros estudiosos os quais
dizem que o sociólogo usou como objeto de análise características
da sociedade ocidental, sem levar em consideração a universalida-
de e a temporalidade. Em outras palavras, Bordieu teria generali-
zado toda a sociedade ocidental de modo uniforme, sem observar
a diversidade de grupos sociais (CORRÊA, 1999). Em resposta aos
estudos de Bourdieu, outros autores se apresentam propondo no-
vos caminhos para analisar as diversidades existentes nas realida-
des sociais quanto às masculinidades.
Segundo Almeida (1996), existe um caráter móvel na masculi-
nidade levando em consideração a variabilidade individual, crian-
do tensões entre a masculinidade hegemônica e a subordinada.
A partir do pensamento defendido pelo autor, percebe-se que a
subjetividade da masculinidade pode variar de acordo com o indi-
víduo, do lugar onde este se encontra, das suas experiências vivi-
das ao longo de sua vida, diante de determinada situação ou nas
relações com os outros homens e mulheres.
Vale chamar a atenção para um detalhe: via de regra, tem-se
tratado de “masculinidade” como algo único, sem possibilidade de
diferença entre os indivíduos que se revestem da função (ou lu-
gar imagético) de “homem”. Esse conceito de masculinidade – no
singular – passou a ser criticado por outros autores, como aponta
Connell: “[...] para Petersen Collier e Macinnes, o conceito de mas-

335
culinidade é falho porque ele essencializa o caráter dos homens ou
impõe uma unidade falsa a uma realidade fluida e contraditória”
(CONNELL, 2013, p. 249). Essa imposição falsa de unidade nega
que a masculinidade seja fluida, estando em um processo de mu-
dança, em constante transformação, trazendo à tona uma leitura
heteronormativa de gênero.
A construção social da dominação masculina não é reprodu-
zida apenas pelos indivíduos “mas também pelas instituições que
compõem as estruturas sociais como família, igreja, escola e Es-
tado” (BOURDIEU, 2020, p. 64). Essas instituições são responsá-
veis pela reprodução da ordem, pela construção dos corpos e pela
manutenção da dominação masculina, cada uma delas desempe-
nhando um papel importantíssimo para essa estabilidade social.
Almeida (1996) aponta outro fator sobre as masculinidades
que é a homossocialibilidade, elemento destacado em seus estu-
dos sobre a comunidade portuguesa. Trata-se das relações sociais
entre homens, como a admiração pela força do outro, pelo poder
político ou econômico, por posses e bens, assim como pela família
(extensa) e filhos bem abastados financeiramente. O antropólogo
também cita os “lugares masculinos”, espaços onde vários tipos de
homens se encontram para conversar, trocar ideias e experiências
– um ponto de encontro de várias masculinidades (no plural), que
vai abranger homens jovens e idosos, ricos e pobres, de raças e
religiões diferentes.
Esse lugar onde se encontram vários homens seria um recor-
te no qual se apresentariam os marcadores das interseccionalida-
des presentes nas masculinidades. Segundo Crenshaw, intersec-
cionalidade é:

[…] uma conceituação do problema que busca capturar as


consequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamen-
te da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão
de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigual-

336
dades básicas que estruturam as posições relativas de mu-
lheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p.
177)

As interseccionalidades presentes nas masculinidades aqui


apresentadas seriam o resultado de várias estruturas trabalhando
sincronizadamente sobre os homens estudados no recorte citado
acima. Embora eles apresentem algumas diferenças sociais, como
classe social, religião, raça etc., ainda assim expressam, em suas
práticas, características do “ser” masculino, as quais foram interna-
lizadas por intermédio de instituições sociais como escola, igreja e
família.
Os processos históricos deram origem, ao longo do tem-
po, a categorias de indivíduos, criando elementos que a eles são
incorporados e a partir dos quais se originam novos personagens/
atores sociais – no caso aqui em análise, a juventude. Para com-
preendermos o papel do jovem nessa sociedade, é necessário, an-
tes, entendermos que não existe apenas uma juventude ou uma
forma de ser jovem. E para isso recorremos a Bourdieu (1978), que
nos esclarece que o fenômeno da juventude vai além da faixa etá-
ria, pois existem outros elementos que compõem o “ser” jovem, ou
seja:

Esta estrutura, que é reencontrada em outros lugares (por


exemplo, na relação entre sexos), lembra que na divisão ló-
gica entre jovens e os velhos, trata-se do poder, da divisão
(no sentido de repartição) dos poderes. As classificações por
idade (mas também por sexo, ou é claro, por classe...) aca-
bam sempre por impor limites e produzir uma ordem onde
cada um deve se manter em relação a qual cada um deve se
manter em seu lugar (BOURDIEU, 1978, p.1).

Podemos observar na fala de Bourdieu (1978), a divisão exis-


tente entre jovens e velhos relacionada a questões de poder. Essa

337
separação não se dá apenas pela idade, mas também pelo sexo,
gênero e pela classe social na qual aquele indivíduo está inserido.
Um elemento que, além de seu gênero, surte grande efeito sobre
o jovem é o meio social em que ele vive.
Sabe-se que existem vários grupos de jovens, diversos inte-
resses envolvendo esses grupos, e os relacionamentos com outras
pessoas de diferentes faixas etárias se tornam desigual, pois pes-
soas da mesma idade possuem histórias, realidades, classes sociais
e interesses distintos. A idade biológica não é descartada, mas ela
não deve ser usada de forma isolada, para medir ou comparar as
juventudes, e sim junto a outros elementos presentes, como a clas-
se social, a cultura, a religião, os interesses, os ideais e as condições
materiais de existência.
Divergências de classes, gênero e cultura se apresentam junto
às juventudes, principalmente no cotidiano escolar. Umas das maio-
res diferenças existentes entre jovens burgueses e jovens operários
está relacionada ao tempo em que esses jovens permanecem na
escola. Os jovens da elite aproveitam sua juventude para dedica-
rem-se ao ensino secundário. O jovem operário não consegue viver
a fase da adolescência porque, assume o papel de adulto, abando-
na a escola prematuramente para trabalhar e ajudar nas despesas
da família ou para sua própria manutenção Bourdieu (1978).
Weller (2007) apontou alguns elementos para compreender
a problemática sociológica das juventudes, os quais se apresen-
tam nas novas gerações. “Mannheim chama a atenção para o fato
de que diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores dife-
rentes em um mesmo período cronológico” (WELLER, 2007). Para
o autor, é possível que uma geração, vivendo o mesmo período
cronológico, vivencie tempos interiores diferentes, a partir das suas
experiências cotidianas, como, por exemplo, as realidades de dois
jovens que vivem em determinadas comunidades, ou grupos com
características distintas – todos, provavelmente, realizarão e mani-
festarão práticas e interesses diferentes entre si.
Manheim acrescentou que “[...] el problema generacional se

338
transforma en el problema de la existencia de un tiempo interior
no mensurable y que solo se puede comprender como algo pura-
mente cualitativo” (MANHEIM, 1927:199/516 apud WELLER, 2007,
p. 3). Os problemas das gerações se transformam em problemas
existenciais por serem subjetivos, o tempo é interno. Para enten-
der a situação geracional de uma sociedade contemporânea em
constantes mudanças, o sociólogo das juventudes, Weller, aponta
5 características de cada geração:

[...] 1) A constante irrupção de novos portadores de cultura;


2) a saída constante dos antigos portadores de cultura; 3) a
limitação temporal da participação de uma conexão gera-
cional no processo histórico; 4) A necessidade de transmis-
são constante dos bens culturais acumulados; 5) o caráter
contínuo das mudanças geracionais. (WELLER, 2007, p. 5)

A sociedade está sempre recebendo novos participantes, jo-


vens iniciando a vida adulta, participando e realizando trabalhos
com protagonismo e colaboração. Enquanto isso, as gerações an-
teriores vão saindo de cena, e os que antes eram novos se tornam
antigos, e assim sucessivamente. É importante destacar que cada
geração tem limitações respectivas há seu tempo, e espaço onde
irá atuar dando sua contribuição (escola, familia, trabalho); já o
processo de transmissão da cultura acontece de maneira contínua:
uma geração recebe cargas de heranças culturais da anterior e
a transição de uma geração para outra é constante – não existe
pausa; esse processo é semelhante a ondas: vem a primeira onda,
uma geração; em seguida, outra onda e mais uma geração, e assim
sucessivamente. Cada geração possui características próprias da
sua temporalidade, mas herda heranças culturais da antecessora.
Como visto nos comentários acima, as estruturas se reprodu-
zem por meio das ações dos indivíduos, assim como os próprios
indivíduos produzem a estrutura, alimentando um movimento cir-
cular entre estrutura e práticas sociais que se perpetua.

339
Uma das estruturas com maior poder dentro da nossa socie-
dade é a patriarcal, formando uma relação antagônica entre o femi-
nino/masculino, preto/ branco, claro/escuro, alto/baixo e homem/
mulher. Nessa estrutura, o feminino é inferiorizado e o masculino é
superestimado. O masculino remete ao poder, e o feminino à sub-
missão:

Mesmo reconhecendo a existência de constrangimentos so-


bre os atores, para Giddens a ação possui o poder ou capa-
cidade para transformar situações, o agente tem, portanto, a
capacidade de introduzir mudanças no mundo social, e um
ator deixa de ser agente se perde a capacidade de influen-
ciar o mundo social (CARNEIRO, 2006, p. 46).

É importante entender que, para Giddens (ano), mesmo com


sua perpetuação, a estrutura, não se torna imutável, mas, sim, pas-
sível de transformações realizadas pelas ações de diversos atores.
Esses atores capazes de criar mudanças são chamados de
agentes, os quais não atuam de forma solo, mas em coletividade.
Quando perdem a capacidade de promover mudança, deixam de
ser agentes. Vale lembrar que não existem agentes/atores sem in-
fluência da estrutura, assim como não existe estrutura sem a ação
dos agentes/atores.
A instituição escolar também vem sofrendo algumas mudan-
ças ao longo do tempo, saindo de um modelo educacional fecha-
do, fixado e eurocêntrico de reprodução do conhecimento, para
um mais aberto, em constante construção, que leva em conside-
ração as demandas do tempo, dando espaço para o diálogo com
novas formas de aprendizagem/conhecimento, problematizando
sua própria estrutura, enfatizando a diversidade social existente
contemporaneamente.
As características das estruturas patriarcais são externalizadas
anas práticas sociais de masculinidades vivenciadas nas experiên-
cias diárias dos jovens no ambiente escolar, tais quais foram herda-

340
das das gerações anteriores, sendo-lhes repassadas nas relações
cotidianas (brincadeiras, comportamentos, conversas e ações)
presentes na família, na igreja e na escola. Algumas dessas práti-
cas continuam sendo reproduzidas fielmente, de acordo com as
orientações da estrutura outras, no entanto, sofreram algumas al-
terações, orientadas por elementos do tempo e do espaço em que
esses jovens vivem.
Neste breve ensaio nos interessa investigar as característi-
cas da estrutura patriarcal, exteriorizadas através das práticas de
masculinidades na contemporaneidade. Na tentativa de problema-
tizá-las, recorremos a uma pesquisa qualitativa, com o intuito de
identificar quais as práticas de masculinidades são vivenciadas por
jovens estudantes do Ensino Médio, de uma escola pública na cida-
de de Campina Grande-PB, e, em seguida, analisar essas práticas
a partir dos conceitos abordados anteriormente, de juventudes, de
masculinidades, de estrutura e de práticas sociais.
A escola é uma das principais instituições, quiçá a maior aliada
das estruturas sociais vigentes. Ela constrói e demarca seus usos.
As/os jovens vão ocupando e demarcando seu espaço dentro des-
sa realidade, dando origem a novas práticas e reproduzindo outras
que foram adquiridas durante os processos que vivenciaram ao
longo de sua vida e herdaram de outras gerações. Elas/es incor-
poram de forma inconsciente e naturalizadas as estruturas cons-
truídas historicamente sobre o masculinino e o feminino, sobre as
masculinidades e feminilidades. Alguns elementos dessas estrutu-
ras permanecem até hoje de maneira fragmentada, se apresentan-
do de modo parcial nas relações sociaiscontemporâneas.
Para tentar nos aproximar o máximo possível das subjetivida-
des dos participantes e, a partir daí, identificar, em seus relatos, as
práticas sociais de masculinidades vividas no seu dia a dia no am-
biente educacional, fizemos uma Roda de Conversa com 02 alunos
e 02 alunas do 3º ano do Ensino Médio de uma determinada es-
cola pública, na cidade de Campina Grande-PB. Como não há es-
paço neste ensaio para sua reprodução integral, vamos reproduzir

341
apenas algumas das falas dos participantes. Comecemos pela fala
de E1:

[...]. A masculinidade é dessa forma pra mim. É uma questão


justamente de força. Eu não, eu não tinha a palavra certa,
mas exatamente força. Tanto da feminilidade que é o contrá-
rio. Pra mim não é uma questão de fraqueza também. Uma
questão mais de cuidado. [...] (E1)

Pelo texto transcrito, é fácil perceber a presença de ideias e


comportamentos juvenis que reproduzem a estrutura da domi-
nação masculina, reverberados através de comentários durante a
roda de conversa. Nota-se alguns aspectos que remetem à ideia de
masculinidade ainda relacionada à virilidade e à força, e a femini-
lidade ao cuidado, isto é, o constructo se repete e se reproduz, no
discurso de nosso jovem estudante, ainda nesses novos tempo.
Uma das questões foi:
Nessa mesma ocasião, também perguntamos ao grupo: “Vo-
cês conseguem perceber a diferença entre o comportamento dos
rapazes e das moças?”. Obtivemos as seguintes respostas de jo-
vens de ambos gêneros:

Eu vejo muita coisa, por exemplo, muita brincadeira besta


quanto é em relação aos homens. E as mulheres não tem
muito essas brincadeiras, tem mais coisas de..... Que eu per-
cebo né.... muito mais conversas bestas, as conversas mais
tranquilas, mas ainda é uma coisa tipo é.... informal....então,
qualquer coisa que vem à mente elas falam pra se divertir
e tal. Mas, os homens são brincadeiras bestas que podem
machucar, magoar pessoas, são brincadeiras muito pesadas,
diferentes das meninas. É... Então é uma coisa perceptível,
de longe dá pra ver, e realmente é muito diferente as duas
coisas (E1).

342
É percebido pelo aluno que existem diferenças entre os com-
portamentos dos jovens marcadas pela diferença de gênero. Para
o E1, os rapazes reproduzem comportamentos “bestas” que estão
relacionados ao uso da força. Como relatado durante a roda de
conversa, é normal, em suas brincadeiras, o uso da força física, em-
purrões e ou xingamentos os quais deixam suas marcas de forma
mais subjetiva, que podem causar desconforto, traumas físicos e
psicológicos nos rapazes e nas moças.
Essas práticas sociais vivenciadas pelos jovens cotidianamen-
te são acompanhadas pela “violência simbólica”, se apresentando
em forma de bullying, , como descreve E2 “Sim, ás vezes aquele
tipo de homem machista, que vê um gay como um comportamen-
to diferente, vai praticar bullying ou até agreções físicas”.
Como se pode perceber no relato feito por E2, algumas expe-
riências cotidianas são compostas de “violências simbólicas”, repro-
duzidas de forma inconsciente, através de brincadeiras característi-
cas da estrutura patriarcal que se reinventa e exerce sua influência
nas relações desses jovens através dos comportamentos e práticas
machistas, violentando mulheres e homens que se distanciam do
padrão heteronormativo, ou seja, aqueles que exteriorizam mascu-
linidades diferentes da que a estrutura patriarcal exige.
Assim como os rapazes apresentam determinados comporta-
mentos, as moças também apresentam os seus, que são indicados
como “comportamentos mais delicados”, voltados mais para con-
versas informais sobre as relações cotidianas. Como é descrito no
comentário de E3:

[...] as meninas geralmente são mais conversas, são mais


brincadeiras de preferência “brincadeiras chatas”, mas eu
não posso falar muito entre os meus amigos eu só tenho
duas meninas, a maioria são meninos justamente, porque
eu não consigo é... Ficar naquela conversa monótona que
as mulheres geralmente têm que como ainda estamos mui-
to presos ao machismo, a maioria das mulheres ficam... nas

343
conversas que escuto pelos corredores é sobre maquiagem...
sobre o menino que ficaram semana passada e essas coisas,
e eu não consigo ficar nesse tipo de conversas, geralmente
eu sou mais amiga dos meninos [...] .

Percebe-se, na fala acima, que existe distinção entre o com-


portamento dos rapazes e o das moças, diferenças essas que aca-
bam sendo percebidas por eles mesmos, fortalecendo os grupos
dos indivíduos que se assemelham subjetivamente independente-
mente do gênero. Podemos afirmar, então, que, apesar de algumas
práticas serem aceitas e reproduzidas de forma natural por alguns
jovens, por outros não é bem assim. A fala traz também uma refle-
xão sobre as práticas de masculinidades subordinadas, as que são
reproduzidas de forma menos agressiva, muitas vezes por mulhe-
res.
Destacamos no relato de E3, uma aluna, que ela não se sente
à vontade no ciclo de convivência de outras moças, pois a forma
de se relacionar entre elas é considerada chata, monótona, presa
à ideia de delicadeza, cuidado, maquiagem e outras características
atreladas à feminilidade.
A partir desse comentário, achamos espaço para realização
da seguinte pergunta: “Quando ocorre o encontro entre os grupos,
os meninos e as meninas passam a se comportar de forma diferen-
te?”. Obtivemos a seguinte resposta:

Por incrível que pareça muda e muito viu! Tipo quando tá


junto, assim os meninos naquela outra intenção de ver se
arruma alguma coisa com alguma das meninas ou então é
mais sociável[...].Eles não fazem nada, com algumas meninas
assim de brincadeira pesada porque muitos entendem que
a menina não aguenta tantas coisas e realmente não tem
como aguentar uma voadora, e .... Mas dá pra ver a diferen-
ça muito gritante, tipo de quando se junta, quando há essa
junçãozinha eles ficam muito calmos, só falam mais leseiras,

344
são muito mais tranquilos. (E1)
O comportamento desses jovens muda de acordo com o lu-
gar onde eles se encontram e conforme as companhias em sua
volta naquele determinado espaço, também se levando em consi-
deração sua faixa etária e gênero. Como apontado na fala acima,
está claro que existem diferenças nas práticas sociais apresentadas
pelos alunos quando ocorre o encontro entre os grupos. Os modos
dos rapazes são afetados pela presença das moças, principalmente
quando há a intenção do flerte. Gestos e conversas que cotidiana-
mente são mais agressivas/grosseiras, brincadeiras pesadas volta-
das ao uso da força física e bullying tornam-se mais leves, atrela-
dos à paquera e à conquista.
Relatos semelhantes foram realizados durante a roda de con-
versa por outros participantes, como a narração a seguir:

“Foi isso que X (E1) falou geralmente, os homens se acal-


mam quando se aproximam de outras mulheres, pelo me-
nos os conscientes, eles se acalmam, saem mais dessas brin-
cadeiras agressivas mais pra brincadeiras de fala, piadinhas
e essas coisas” (E3).

Durante a entrevista, foi realizada a seguinte pergunta a res-


peito da realidade do jovem estudante de escola pública: “Quais
as dificuldades encontradas pelos/as jovens estudantes de uma
escola pública no que se refere aos padrões de comportamentos
atuais?”. Obteve-se a seguinte resposta de E3:

“A falta de informação e conhecimento, diálogo levam a so-


ciedade a adquirir comportamentos do seu instinto natural,
agressividade e ausência de uma boa postura, um bom com-
portamento. Diferente de algumas pessoas que têm essa
noção de comportamento diferente nos dias atuais.”

Em sua fala, E3 relaciona os comportamentos mais agressi-


vos/grossos à desinformação, apontando que a informação é uma

345
aliada na transformação das práticas e comportamentos. Essa fala
nos desperta para a influência da chegada dos meios de comuni-
cação e as novas formas de se relacionar em sociedade. Apesar de
as informações terem maior alcance hoje em dia, devido ao avanço
da tecnologia, os recursos de acessibilidade ainda são tidos como
privilégio para alguns e exclusão para outros, como relatou E2:

“Transporte recurso pra estudar e às vezes tempo, por mui-


tas das vezes tem que trabalhar e ficar sem tempo, submisso
ao trabalhar porque a renda não bate como as despesas.”

O fato de o jovem ter que trabalhar e estudar ao mesmo tem-


po ainda se faz muito presente na realidade de vários alunos de
escola pública, os quais sentem os impactos das desigualdades so-
ciais. Esse tema também foi contemplado pelos estudos de Pierre
Bourdieu (2010) que afirmou ser a escola uma reprodutora de de-
sigualdades por tratar desiguais como iguais.
As práticas de masculinidades apresentadas na escola são re-
sultado de outros processos vivenciados por esses jovens ao longo
de suas vidas, em sua comunidade, principalmente no âmbito fa-
miliar.
Com a finalidade de conhecer um pouco mais da realidade
desses jovens realizamos a seguinte pergunta: “Em sua opinião há
diferenças na educação familiar para meninas e meninos? Fale um
pouco como isso ocorre. (nas atribuições das atividades domésti-
cas, no tratamento dos pais, nas brincadeiras)”. A partir das respos-
tas obtidas, constatamos que a família ainda é uma forte aliada da
estrutura patriarcal na reprodução do machismo e das práticas de
masculinidades tóxicas em outras esferas nas vidas desses jovens.
A primeira resposta que obtivemos foi a de E3:

“Sim! De acordo com o gênero algumas atividades são dis-


tribuídas específicas para cada pessoa. Por eu ser gay, tenho
um tratamento diferenciado dos meus irmãos”.

346
Em sua compreensão, os comportamentos vivenciados pelos
jovens no cotidiano escolar reproduzem as relações educativas ad-
quiridas com sua família. Alguns desses comportamentos e ideias
são subjetivados pelas/os jovens desde a infância notadamente in-
fluenciados pelas normas/regras do meio familiar.
A família traz sua forte contribuição como primeira instituição
formadora, responsável por ajudar a reproduzir as características
da estrutura patriarcal. Na fala de E3, por exemplo, fica evidente
que sua educação familiar não se distancia da educação familiar
padrão/heteronormativa, sendo alcançada por essa forte influên-
cia da estrutura que reproduz, dita papéis os quais devem ser assu-
midos pelos homens e pelas mulheres, sendo direcionadas deter-
minadas atividades para os meninos e outras para as meninas. Na
sua outra fala E3 afirmou:

“Ser homem para minha família é ter uma postura viril na


qual a sociedade vê o homem como uma forma de ser forte,
trabalhar duro, ser responsável e pegar atividades pesadas.”

Apesar de essas práticas se reproduzirem, com base na fala


acima observa-se que a realidade do jovem apresenta um r dife-
rencial em relação ao manejo da estrutura familiar, que é a sexua-
lidade.
Conforme as falas transcritas, vê-se a conservação do tradi-
cionalismo das masculinidades ainda marcante no seio familiar.
Ainda assim, as práticas que as reforçam tendem, no entanto, a ser
problematizadas pelos novos atores sociais, como se verifica nas
palavras de E3:

“Vejo a masculinidade hoje em dia sendo cobrada pelas pes-


soas como algo fora do normal. Como se a pessoa do sexo
masculino não pudesse expressar seus reais sentimentos. Se
ele mostra é visto como uma masculinidade frágil (E3,2022)”.

347
Está claro que, no discurso acima, a noção de masculinidade
vem sendo repensada pelo jovem, pois, apesar de ter sido educado
nesse processo conservador da masculinidade padrão, ele abre es-
paço e apresenta novas reflexões. Isso provavelmente deve acon-
tecer com muitos outros sujeitos que não se identificam com teo-
rias e posturas conservadores e acabam se dando conta de que há
outras formas de perceber o masculino ou de formular novas prá-
ticas de masculinidades. Assim, embora hora ou outra reproduzam
comportamentos que vão de encontro a suas próprias crenças, dão
abertura a novos caminhos, reconhecendo outras masculinidades
que não se enquadram no modelo hegemônico transmitido pela
estrutura familiar e reproduzido pela estrutura escolar.
Assim como é defendido por Connell (2013, p. 274), “A produ-
ção e a contestação da hegemonia em ordens de gênero historica-
mente mutáveis são um processo de enorme importância para o
qual continuaremos precisando de ferramentas conceituais”. Para
Connell, essas transformações nas relações se tornam uma ques-
tão a ser problematizada dentro das estruturas sociais e no meio
científico, por ressignificarem as relações entre os indivíduos e suas
práticas de masculinidade desenvolvidas na interação com seus fa-
miliares e na escola.

PARA CONCLUIR A DISCUSSÃO, ALGUMAS REFLEXÕES

O artigo produzido como trabalho de conclusão de curso per-


mitiu observar que, mesmo após haver ocorrido vários processos
de mudanças nas formas de o sujeito se perceber e se relacionar
socialmente na sociedade moderna, algumas características da es-
trutura patriarcal se perpetuam intrinsecamente nas práticas coti-
dianas das pessoas.
No nosso caso, as práticas de masculinidades existentes se
perduram nas ações, no dia a dia dos indivíduos, as quais se reno-
vam, tomando novas formas e se apresentando de distintas manei-
ras. Algumas dessas práticas ainda carregam elementos padrões

348
da estrutura patriarcal que reforçam o ideal de virilidade, força e
separação entre o feminino e o masculino, reproduzindo violências
simbólicas instituídas historicamente pelo patriarcado.
Também é possível perceber que, conforme bem explici-
tamas teorias sociais sobre a masculinidade, esta não pode ser
compreendida como um modelo padrão ou que deve ser analisada
apenas como algo relacionado ao masculino e universal, mas sim
como masculinidades de forma plural, respeitando-se as diversas
formas de relacionamento e de pertencimento ao mundo, ten-
do-se, portanto, o entendimento de que essas práticas não são
exclusivas apenas para homens heterossexuais, mas também são
reproduzidas por homens gays, mulheres (cisgênero, transexuais,
heterossexuais e lésbicas) em seu cotidiano.
Para compreender as masculinidades existentes na contem-
poraneidade, é necessário ir além da universalização proposta por
Bourdieu, que a padroniza expondo apenas um tipo de masculini-
dade hegemônica, limitado a um recorte social de um determina-
do espaço, tempo e cultura. Na tentativa de compreender a mas-
culinidade como algo singular, o sociólogo acaba unificando-a e se
colocando como um analista, como se isento das interferências do
meio em que está inserido e da própria masculinidade subjetiva
em si.
É necessário trazer à tona novas críticas e estudos, para que
possamos romper com essa visão arcaica. Deve-se problematizar
criticar e partir em busca da superação, como foi proposto por ou-
tros autores, como Correia, Almeida e Connell. Sabe-se que o pes-
quisador traz, subjetivadas em si mesmo, características da época
e do lugar em que vive, adquiridas ao longo de suas experiências
de vida (casa, família, igreja, trabalho e comunidade). Assim, todos
os indiiiduos que vivem na sociedade sofrem interferência das es-
truturas sociais, no nosso caso, do patriarcado, e, embora se tente
descontruí-la, em algum momento seus resquícios se manifesta-
rão.
Os relatos feitos pelos/as entrevistados/as nos ajudam a per-

349
ceber que as práticas de masculinidades tóxicas ainda se fazem
presentes em suas relações diarias. Esses jovens as percebem e
passam a problematizá-las, tentando construir novas formas de se
relacionar em sociedade, atualizando suas práticas de masculinida-
des e fomentando as relações saudáveis.
Esse estudo nos ajuda a medir quanto algumas práticas de
masculinidades relacionadas à violência de gênero ainda se repro-
duzem na escola, vivenciadas por homens e mulheres no seu dia
a dia, causando seus impactos positivos e negativos nas relações
sociais.
A escola é uma das principais instituições responsáveis pela
formação dos indivíduos. Assim sendo, cabe a ela um papel fun-
damental na formação das subjetividades dos que a frequentam.
Além disso, por ser um espaço de construção de conhecimento,
a escola é uma aliada no combate às violências contra a criança,
o adolescente e a mulher, como está prescrito na Lei 9.394- 1996
para a Lei Nº 14.164, de 10 de junho de 2021:

Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de


todas as formas de violência contra a criança, o adolescen-
te e a mulher serão incluídos, como temas transversais, nos
currículos de que trata o caput deste artigo, observadas as
diretrizes da legislação correspondente e a produção e dis-
tribuição de material didático adequado a cada nível de en-
sino. (BRASIL, Lei nº 14.164, de 10 de junho de 2021– Dis-
ponível na web).

A escola é uma extensão da vida em sociedade. Sendo assim,


não há como apartá-la do mundo. Pensando nessa perspectiva,
a lei citada acima assegura que o debate sobre a diversidade e
o enfrentamento às violências sejam trabalhados nas escolas,
estando este assegurado na Constituição Federal do Brasil.
Apesar de esta pauta ter conquistado um lugar assegurado
por lei, a presente pesquisa nos permite ponderar que, embora a

350
escola hoje tenha aberto um espaço para o debate contra os tipos
de violência existentes na sociedade, sua estrutura ainda é mui-
to conservadora e fechada para novos debates, principalmente no
que diz respeito à diversidade de gênero e sexualidade.
O tema abordado no artigo traz grandes contribuições no
meio acadêmico e, consequentemente, benefícios à sociedade ao
ser trabalhado problematizando-se a realidade de jovens, já que
a escola é um espaço de encontro de diferentes pessoas que tra-
zem consigo um pouco das suas realidades, suas concepções de
mundo e subjetividades, as quais passarão por mudanças ao longo
de sua vida. Sendo assim, a escola tem um papel fundamental na
sociedade: o de formar indivíduos críticos e reflexivos, capazes de
tomar suas próprias decisões, de questionar o que lhes é imposto
pelo mundo ainda heteronormativo e patriarcal, criando um espa-
ço baseado no respeito e na empatia, sendo uma forte aliada no
combate às violências de gênero.
Este trabalho não se encerra em si mesmo, uma vez que é
apenas um recorte sobre o que vêm a ser as masculinidades na
sociedade contemporânea. Ainda assim, vemos que é passível de
contribuir para a construção do conhecimento nas áreas de debate
e estudos de gênero, sexualidade e cultura, por meio das discus-
sões interdisciplinares.

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352
SABERES INTERGERACIONAIS DA ARTE DO BARRO NA
COMUNIDADE TRADICIONAL DE CERAMISTAS
CHÃ DA PIA, AREIA-PB

Darnley Dias Campos¹


Márcia Adelino da Silva Dias²

INTRODUÇÃO

A construção deste artigo se deu após a imersão em um am-


biente que respira cultura e tradição; a comunidade rural tradicio-
nal de mulheres artesãs (“loiceiras”), denominada Chã da Pia (ou
Pia, como é conhecida entre os seus moradores). Localizada no
Brejo paraibano, é limítrofe com os municípios de Arara e Remígio;
delimitada pela rodovia estadual PB-105 a oeste e pelo Rio Araçagi
- ou Rio da Pia - ao sul; apresentando vegetação características do
bioma Caatinga. (BRASIL, c2017; ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE
AREIA, 2014).
O termo “loiceira”, vem da autodenominação das mulheres
ceramistas que se ocupam da fabricação da “loiça”, neste caso as
produzidas a partir do barro, destinadas ao serviço de mesa e co-
zinha. (ALVES, 2004).
A comunidade rural Chã da Pia, parte de origem indígena e
outra quilombola, é conhecida pelas atividades do artesanato de
barro e pela agricultura de subsistência. A produção dos artefa-
tos de barro é realizada mais frequentemente, principalmente em
época de menos precipitação chuvosa. Por outro lado, o cultivo
agrícola é realizado no período com maior precipitação das chuvas.
Segundo Córdula (2013), o coexistência das duas atividades é per-
feito, uma vez que não há tempo ocioso para eles. A matéria prima
para a fabricação das peças artesanais é conhecida na comunidade
como “barro de loiça” da Pia (ALVES, 2004; ASSOCIAÇÃO DOS
AMIGOS DE AREIA, 2014).
Os participantes desta pesquisa residem e cuidam dos “Quin-
tais Culturais de Chã da Pia”, constituídos no ano de 2021, como
desdobramento do projeto PROPESQ/UEPB (2017-2022), impli-
cando em uma nova maneira de instituir meios de subsistência
econômica local, como Arranjo Produtivo Local, a partir do arte-
sanato produzido pelas loiceiras. Além disto, em sua concepção, a
organização desses Quintais também visou fomentar o resgate a
cultura do lugar, uma vez que não havia espaços destinados à co-
mercialização dos produtos artesanais produzidos pelas artesãs da
comunidade.
O objetivo da pesquisa, que originou este artigo, consistiu de
analisar como os saberes da tradição são transmitidos de geração
a geração entre as pessoas da comunidade rural tradicional de Chã
da Pia, Areia-PB.
Partimos do pressuposto que as comunidades rurais, pos-
suem seu próprio modo de nomear tudo que o cerca, seus diálo-
gos possuem alguns termos que, algumas vezes só eles entendem;
causando estranheza para outras pessoas de outras localidades.
Os saberes da tradição são construídos e reconstruídos, em
um ciclo de renovação constante. Barros (2018), ressalta que esses
saberes são heranças imateriais de um determinado local. Os co-
nhecimentos ou saberes da tradição são aqueles transmitidos de
geração a geração, entre as pessoas que habitam as comunidades
tradicionais, por meio da tradição; cujo aprendizado é duradouro
(ALVES, 2004; ALMEIDA; DANTAS, 2020; BRASIL, 2007).
Os conceitos de Povos e de Comunidades Tradicionais são
reconhecidos pelo Decreto de nº 6.040/2007, em seu art. 3º, in-
ciso I, Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais. Nesse documento, encon-
traremos os critérios que caracterizam os grupos diferenciados na
cultura, com formas próprias de sociedade e utilizam os recursos
naturais do território para a manutenção cultural, religiosa, social,
econômica e ancestral; por meio de conhecimentos próprios, cons-
truídos e transmitidos de geração a geração, pela tradição (BRASIL,
2007). Consideramos a concepção de Cultura, a partir de Chauí

354
(2000), que a atende como uma criação coletiva de ideias, valores
e símbolos de uma comunidade.
Cremos que construção cultural de um povo não existe e nem
ocorre de maneira isolada, e sim coletiva. Neste contexto, Almei-
da (et al., 2013) inserem a perspectiva dos saberes da tradição, os
quais são transmitidos dos mais velhos para os mais novos de ida-
de, dentro de uma comunidade tradicional, por meio da oralidade
e de maneira experimental.
A tradição da técnica primitiva permanece resistindo às no-
vas tecnologias. As mulheres desta comunidade são guardiãs dos
saberes da tradição. Elas ressignificam o barro como símbolo de
sobrevivência e resistência cultural e tradicional, além da vida delas
mesmas e da comunidade como um todo.
Os saberes da tradição são singulares de uma determinada
comunidade. (SEVERO; ALMEIDA, 2011). Os saberes da tradição,
de qualquer povoado tradicional, merecem ser respeitados, dentre
vários aspectos, destacamos o fato de não existirem saberes me-
nores ou maiores; mas sim uma diversidade de saberes, igualmen-
te relevantes na representação da cultura de um povo.

ESCOLHA DO LOCAL E PARTICIPANTES DO ESTUDO

A escolha da comunidade de Chã da Pia se deu pelo fato de


ela ser um povoado de tradição ceramista no estado da Paraíba.
No que se refere à escolha dos participantes, foi feita de maneira
aleatória e espontânea dos moradores da comunidade, cujos re-
quisitos, para ser um participante da pesquisa foram: ser residente
em Chã da Pia; responder ao questionário semiestruturado, dispo-
nibilidade para ser entrevistado(a) e assinar o Termos de Consenti-
mento Livre e Esclarecido da pesquisa.
A partir da apresentação da proposta de pesquisa, 11 (onze)
moradores locais demonstraram o interesse em participar do es-
tudo. Destes, 4 (quatro) não participaram, três desistiram e um não
foi localizado. Sendo assim, 7 (sete) moradores participaram ativa-

355
mente até a conclusão da pesquisa, de modo espontâneo e volun-
tário.

PLANEJAMENTO DO ESTUDO

A priori, o planejamento de cada ida à comunidade se deu


em reuniões na sala do Grupo de Estudos da Complexidade e da
Vida (GRECOMVIDA), na Universidade Estadual da Paraíba, no
município de Campina Grande-PB.
As atividades foram organizadas em três etapas, a saber: na
primeira, foram realizadas visitas à comunidade, objetivando co-
nhecer o território e os seus moradores. Isso se deu de modo híbri-
do, presencial no ano de 2019 e virtualmente nos anos de 2020e
2021. A parte virtual foi realizada por meio de visitas às redes so-
ciais a exemplo do Facebook e do Instagram e por reuniões on-line
utilizando chamada de vídeo pelo WhatsApp e pelo Google Meet.
Nos encontros presenciais foram seguidos os protocolos de segu-
rança, com o uso de máscaras, álcool 70% e distanciamento físico
de um metro e meio a dois metros, entre todos os envolvidos neste
estudo.
Na segunda etapa, foi elaborado o instrumento de coleta
de dados e o encaminhamento do projeto ao Comitê de Ética em
Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba. Cuja aprovação foi
concedida. Na terceira etapa, procedeu-se a coleta dos dados, de
modo híbrido, em decorrência do agravamento da pandemia do
COVID-19, com idas a Chã da Pia e por meio das redes sociais on-
-line (já mencionadas anteriormente) e das plataformas digitais. A
entrevista, por meio do questionário semiestruturado, ocorreu de
maneira virtual.
A abordagem aos participantes foi realizada de maneira dire-
ta. Eles aceitaram participar na pesquisa de maneira voluntária e
espontânea. A análise qualitativa dos dados se deu por meio das
técnicas de análise de conteúdo propostas por Bardin (2016). Ini-
cialmente foi realizada a pré-análise e a leitura flutuante, com o

356
objetivo de organizar os dados. Em seguida, eles foram tabulados
na plataforma Microsoft Office Excel 2016, para realizar a análise
quantitativa.
Os participantes da pesquisa foram identificados por meio do
código alfanumérico Lxx (L de loiceira; xx se trata da ordem dos
participantes entrevistados, de 01 a 07), mantendo o anonimato.
As falas dos entrevistados foram transcritas com o auxílio de um
programa de transcrição de áudio.

COLETA DOS DADOS

A coleta dos dados se deu de forma on-line, utilizando-se o


WhatsApp e o Google Meet. Na entrevista, foi utilizado um questio-
nário semiestruturado, construído com 12 (doze) questões. Metade
delas objetivou identificar os saberes da tradição dos moradores
locais acerca do ofício de produção da loiça de barro. As entrevis-
tas foram gravadas em áudio, com permissão dos participantes. O
diário de bordo foi o instrumento de registro de dados muito im-
portante para a construção deste artigo.

CATEGORIAS DE ANÁLISE

No tocante ao foco deste artigo, as categorias de análise dos


dados que surgiram foram duas: Saber da Tradição e Cultura. A pri-
meira ocupa o patamar de categoria teórica, enquanto a segunda
se caracteriza como uma categoria empírica, uma vez que foi se
delineando ao longo das etapas da pesquisa.
A categoria teórica Saber da Tradição surgiu a partir da discus-
são com o referencial teórico. Os autores Severo e Almeida (2011),
Almeida (et al., 2013) descrevem que os saberes da tradição são
construídos e transmitidos dos que possuem mais idade aos mais
novos, pela tradição. No tocante a comunidade estudada, o saber
tradicional é o saber próprio dela, com isso, recebendo a cultura
como herança. A oralidade e a experimentação são muito impor-

357
tantes na transmissão destes saberes da tradição, porque não exis-
te nenhum tutorial escrito ou em vídeo de como produzir as peças
de barro.
A Categoria empírica Cultura surgiu da leitura da correlação
entre o referencial teórico e as falas dos entrevistados. O saber-fazer
local engloba as maneiras próprias dos nativos desta comunidade
nomearem a matéria prima (barro de loiça) e os modos de utilizar
os instrumentos de modelagem para resultarem em artefatos de
barro, a exemplo de peças figurativas e utilitárias. Esta cultura, no
tocante a comunidade de Chã da Pia, receberam como herança
(SEVERO; ALMEIDA, 2011), agregando o saber-fazer, valorizan-
do a cultura e identidade local (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE
AREIA, 2014).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A comunidade rural de Chã da Pia é composta por moradores


que trazem a tradição de produção de louça e utensílios fabricados
com barro. A produção de artefatos artesanais de barro, sejam eles
utilitários ou figurativos, é praticado pelos moradores desta comu-
nidade.
Além de produzem artesanato com o barro de loiça, também
praticam a agricultura de subsistência, cujas culturas predominan-
tes são a do milho e alguns tipos de feijão, como o macassar e a
fava. A criação de pequenos animais, a exemplo da galinha, se faz
algo comum. Isso corrobora com o que a ASSOCIAÇÃO DOS AMI-
GOS DE AREIA (2014) relatou.
A questão de gênero na divisão de tarefas na produção das
loiça de barro é visível, uma vez que os homens se encarregam de
atividades como a busca pelo barro e a lenha, além de se encarre-
gar que queimar as peças nos fornos à lenha. As mulheres loiceiras
são encarregadas de tratar o barro, produzir as peças e polir para
que sejam queimadas.
Desde a seleção do local para a coleta do barro até a etapa da

358
queima das peças identificamos elementos intimamente relaciona-
dos com os saberes da tradição, os quais se apresentam como sa-
beres intergeracionais. Alves (2004), Brasil (2007), Barros (2018),
Almeida e Dantas (2020). Observamos que, em Chã da Pia, a prá-
tica e a oralidade são fundamentais na transmissão dos saberes da
tradição; pelo fato de que não se conhece a existência de alguma
descrição do passo a passo dos saberes da arte com o barro (Fo-
tografia 1).

Fotografia 1 - Peças artesanais figurativas (A) e utilitárias (B) de


barro produzidas por artesãos na comunidade rural
Chã da Pia, Areia-PB. Ano: 2021.

Fonte: os autores.

O que deve ser levado em consideração é a temeridade de


ensinar e a recepção das informações para o aprendizado dos sa-
beres. Em Chã da Pia, manter os saberes da tradição requer muito
esforço e amor pelo que faz. Não obstante, as loiceiras ainda têm
que lidar com o preconceito cultural e mesmo o “Bullying cultural”.
Os saberes da tradição são transmitidos de maneira oral e
pela prática, utilizando mais os sentidos da visão, audição e tato.
Os conhecimentos tradicionais são transmitidos dos que possuem
mais idade aos mais novos, pela tradição, aprendizagem se dá pelo
intermédio da mãe, irmã, tia, avó. Não existe a receita escrita de
como se faz o artesanato de barro. Isso é notoriamente percebido
nas falas dos participantes desta pesquisa.
Os dados nos mostraram que a figura feminina é impres-
cindível na manutenção destes saberes. Este saber local agrega
a percepção subjetiva de cada um dos moradores artesãos. Es-

359
tes ensinamentos são transmitidos de geração a geração. As falas
de algumas das participantes relatam o que está transcrito abaixo
ipsis litters:

... assim, a mãe da gente ia fazendo e a gente ficava tam-


bém ao redor sentada no chão com a tábua na mão, e assim,
quando a gente fazia um pratinho que ficava desingual, aí
a mãe também já tava fazendo, aí ela pegava e acertava...
[Risos] [...] E só ela fazendo e ensinando ao mesmo tempo.
(ENTREVISTADA L01).

Quando a gente era criança, que tá ao redor da mãe, a mãe


tá fazendo, a gente começa a se lambuzar com o de bar-
ro, pegar no barro sabe... aí vai inventando... vai inventando
uma pecinha sabe... aí depois quando a pessoa vai ficando
maiorzinha, a mãe da pessoa vai ensinando... a pessoa deixa
toda aleijada, aí deixa no cantinho aí a mãe deixa bonita...
apruma a peça. (ENTREVISTADA L02).

[...] eu aprendi por mim mesmo, por mim mesmo que eu


digo assim... eu comecei a pensar assim, eu pensei assim...
olhando pro barro assim: eu vou ver se eu sei fazer essa peça.
Aí, comecei, tipo uma brincadeira sabe, ... aí fui fazendo. (EN-
TREVISTADO L03).

“Fugalero” aprendi a fazer com uma das minhas irmã. Por-


que... acho que eu tinha mais ou menos uns 12 pra 13 anos.
Aí ela começou a me incentivar... me incentivano pra a gente
ver se aumentava mais o trabalho. (ENTREVISTADA L04).

Aprendi com a minha vó [...] Era ela fazendo as panelas, eu


pegando barro escondido dela e tentando, consegui moldar
um pratinho. (ENTREVISTADA L05).

360
aprendi com minha mãe que tem 74 anos minha mãe apren-
deu com minha vó de geração em geração. (ENTREVISTA-
DA L06).

aprendi com a minha mãe. Ela me ensinou desde cedo com


apenas 9 anos de idade. (ENTREVISTADA L07).

O que me chamou mais atenção nestas falas foi a do entrevis-


tado L03. Ele afirmou que aprendeu sozinho. Mas sugere-se que
ele tenha lembranças de outras pessoas com mais práticas na fa-
bricação das peças de barro. O participante observava e praticava,
mesmo que não tenha alguém diretamente o ensinando, os sabe-
res da tradição foram enraizando na memória.

Gráfico 1 – Fonte de aprendizagem da arte com o barro relatados


pelos participantes da pesquisa em Chã da Pia, Areia-PB.
Ano: 2022.

Fonte: CAMPOS (2022).

A importância da mulher na transmissão dos saberes da tradi-


ção na comunidade rural de Chã da Pia é primordial para a manu-
tenção deste saber tradicional na produção manual dos artefatos
de barro, pois 100% foram realizadas por mulheres. Isso reme-
te a categoria de análise Saberes da Tradição. Estes dados tam-

361
bém me fizeram refletir sobre o papel materno nesta transmissão
(Gráfico 1), porque 57% foi predominante o termo “mãe” quando
foi perguntado aos participantes com quem aprendeu os saberes
da tradição. Na fala do participante L06 ressalta isso, mostra que
aprendeu com a mãe, e essa com a avó da participante. Ela reco-
nhece que estes saberes são transmitidos de geração a geração.
Isso corrobora com o conceito do saber da tradição que os autores
Almeida (et al., 2013) descreveram. Eles receberam a cultura do
barro como herança (SEVERO; ALMEIDA, 2011).
O processo de transmissão deste saber é primordial para a
sua existência. Foi questionado aos participantes, se eles ensina-
riam este saber tradicional (Gráfico 2). Dentre esses, 43% respon-
deram que sim, ensinariam o saber tradicional do artesanato com
o barro, 28% disseram que talvez, e 29% disseram que não. Isso
remete a categoria empírica Saber da Tradição e Cultura. O resul-
tado foi um fôlego na manutenção desta tradição, porque os que
responderam talvez tem algumas condições afirmadas por elas: “se
quiserem... se interessarem... se não souberem”. Por tanto, algo a
ser considerado ponto positivo.

Gráfico 2 – Informação prestada pelos artesãos de Chã da Pia,


Areia-PB, acerca da transmissão dos saberes tradicionais da arte
com o barro a outras pessoas da comunidade. Ano: 2022.

Fonte: CAMPOS (2022).

362
As falas dos participantes desta pesquisa mostram que todos
eles aprenderam este ofício quando eram crianças. Só dois parti-
cipantes mencionaram as idades, entre 9 e 13 anos. No tocante a
entrevista, não foi mencionado a presença masculina na transmis-
são e recepção dos saberes da tradição. O modo singular local de
nomear o barro como barro de loiça, a utilização de instrumentos
rudimentares para modelarem as peças, são próprios do saber lo-
cal.
A coleta do barro de loiça é na própria comunidade, em bar-
reiros, com auxílio de uma enxadinha (nomeada localmente por
eles). O transporte para as próprias residências é com o auxílio de
baldes e bacias de plástico, e muitas vezes carregadas na cabeça
ou até em automóveis de alguém conhecido. A matéria-prima é
acondicionada no chão, ao lado da própria casa, e coberta por lona
plástica, aguardando o próximo passo: quebrar e umedecer o bar-
ro com água.
O barro é amassado, retirando impurezas, a exemplo de frag-
mentos de rochas e raízes, até transformar em uma pasta homo-
gênea.
Posteriormente, as peças serão moldadas, partir daí o barro
vai tomando forma de uma peça artesanal única, confeccionada
sem ajuda de torno ou algum maquinário que possa auxiliar nisso.
Em seguida, ele segue para a secagem ao sol e, posteriormente,
queima no forno à lenha (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE AREIA,
2014).

363
Fotografia 3 - Processo de queima das peças de barro, na
comunidade rural tradicional de Chã da Pia,
Areia-PB. Ano: 2021

Fonte: os autores.

O processo de queima dura, em média, duas horas. Esta eta-


pa é realizada majoritariamente por homens moradores desta co-
munidade, os quais dominam a técnica de confecção dos fornos,
escolha da lenha, organização das peças no interior do forno para
que sejam queimadas e o tempo de quaima. Este processo é feito
em fornos artesanais também de barro, localizados muitas vezes
nas próprias residências. Estes possuem vários tamanhos e formas,
dependendo da condição financeira da família. A peça finalizada é
comercializada na própria comunidade, assim como em municípios
limítrofes, e até em Campina Grande-PB,

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa foi de extrema importância para a comu-


nidade como um todo, tanto para mitigar o êxodo rural, quanto a
valorização dos saberes da tradição em Chã da Pia. Porque só será
possível respeitar e valorizar os saberes de Chã da Pia se tomarmos
conhecimento desta comunidade rural.
A figura feminina se faz peça central na transmissão dos sa-
beres da tradição na comunidade rural de Chã da Pia. Esses são
transmitidos pela oralidade e experimental, de geração a geração,
pela tradição.
A questão de gênero nos saberes da tradição ainda é manti-

364
da nos dias atuais: os homens na queima das peças e as mulheres
nos processos criativos. Algumas mulheres demonstraram explici-
tamente a vontade de realizar a queima das peças de barro.. Foi vi-
sualizado, in loco, uma mulher realizando sozinha a queima destes
artefatos de barro.
A prática milenar da técnica primitiva e tradicional do artesa-
nato, assim como o da agricultura de subsistência, convivem em
equilíbrio com as tecnologias da modernidade. Até quando isso
será mantido? Ainda é difícil de afirmar.
É sugerido estudos de monitoramento, com a finalidade de
contribuir para que os saberes da tradição da comunidade rural
tradicional de Chã da Pia não sejam perdidos no tempo, caso con-
trário, só apreciaremos algo deste tipo por meio de fotos e em mu-
seus.

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365
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366
A RELEVÂNCIA DE ANIBAL PONCE PARA A COMPREENSÃO
DO COMPLEXO EDUCATIVO

Adriana Mota de Oliveira Sidou1


José Deribaldo Gomes dos Santos
Adele Cristina Braga Araújo2

INTRODUÇÃO

A permanência.
Que se torna referência e influencia
novas gerações.
Que fica inesquecível.
Aquela obra que a cada vez que se olha,
surpreende, não envelhece.
A obra que fica na memória,
que não se esquece.
(Ascânio MMM, 2008, p. 197)

A comunicação objetiva analisar a contribuição da obra Edu-


cação e Luta de Classes, de Anibal Ponce, para a compreensão do
complexo educativo, com base nos pressupostos da ontologia ma-
terialista, que concebe o trabalho como ato gênese do ser social.
A pesquisa, de caráter teórico e bibliográfico, apresenta ao lei-
tor a relação entre o complexo da educação e o momento histórico

1
Licenciada em Matemática pela Universidade Estadual do Ceará (2007). Licenciada em Pedago-
gia pela Universidade Estadual do Ceará (2000). Mestra em Educação pela Universidade Estadual
do Ceará (2014). Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade - GPTREES. Atualmente é Professora
atuando na área técnica da Prefeitura Municipal de Fortaleza.E-mail: amsidou@gmail.com.
2
Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (2010). Mestra em Educação
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (2013). Doutora
em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Ceará (2020). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade
- UECE; do Grupo de Pesquisa Ontologia Marxiana e Educação - UFC; do Grupo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas Sobre Educação, Emancipação, Sociedade e Sertão - IFCE e do Grupo de
Pesquisas e Estudos Ontológicos - IFCE. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará - IFCE, na subárea Fundamentos da Educação, Política e Gestão Educacional.
E-mail: adele.araujo@ifce.edu.br Lattes
de cada período, desenvolvida por Ponce na obra em referência.
Ponce, através da referida obra, cuja primeira edição da tradução
brasileira data de fins de 1963, apresenta a história da educação
desde a comunidade primitiva; segue pela educação do homem
antigo, passando pelo feudalismo, até alcançar a educação do ho-
mem burguês. Considerando a nova educação, Ponce discorre so-
bre a luta em torno da educação no período da Revolução France-
sa, quando surgem duas correntes que pretendem dar solução aos
problemas educacionais.
O autor, ao analisar estas duas correntes pedagógicas, alerta
que os problemas educacionais não estão relacionados às técnicas
ou à cultura, como sugerem as duas correntes, mas à relação entre
educação e luta de classes, entre os interesses da classe dominan-
te e a classe dominada. Ressalta-se, ademais, que a obra, um ano
após sua tradução para o português, foi recolhida, em decorrência
do regime militar, sendo reeditada vinte anos após o seu lança-
mento.
Para o desenvolvimento da temática, opta-se metodologica-
mente por iniciar a exposição pela tese de que a obra em tela se
constitui em um importante referencial para aqueles que preten-
dem compreender a história da educação, bem como sua relação
com o contexto histórico de cada período. Em seguida, expõe-se
sinteticamente a trajetória política e intelectual do autor.

REFERÊNCIA E INFLUÊNCIA DA OBRA EDUCAÇÃO


E LUTA DE CLASSES

A cultura da sociabilidade humana tem um papel importante


para a compreensão do ser social em um dado momento histórico.
A educação, nesse processo, enquanto ato de “(...) produzir, direta
e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que
é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”
(SAVIANI, 2010, p. 421-422), é uma atividade mediadora entre o
indivíduo e a cultura humana, realizada de maneira intencional com

368
a finalidade de garantir a universalização do conhecimento que um
dia foi produzido pelo indivíduo, mas que passou a pertencer ao
desenvolvimento do gênero humano, como um construto da his-
tória da humanidade.
O século XX, no qual se situa Ponce, foi marcado por uma
pluralidade de ideias novas para o campo educacional. De acordo
com Luzuriaga (1985), é complexo definir a especificidade princi-
pal da educação do período aqui destacado, contudo é admissível
considerar que o caráter comum desse tempo é a democratização
do ensino. Por outro lado, no debate sobre a Pedagogia da essên-
cia e a Pedagogia da existência, Suchodolski (2002, p. 69) asseve-
ra que no século XX “concretizaram-se algumas esperanças, mas
deram-se também grandes desilusões. É neste contraste, precisa-
mente, que se manifestava a antinomia fundamental da educação
no mundo moderno”.
Ponce estava inserido numa dinâmica que buscava estabe-
lecer novos fundamentos para a educação e que centrava o foco
no sujeito. Diante dessa perspectiva, do que é o complexo da edu-
cação e de como este se desenvolve no percurso histórico-social,
entende-se que a obra de Anibal Ponce busca contribuir no pro-
cesso de compreensão da educação enquanto um complexo fun-
damentado no trabalho, considerando a luta de classes. Não por
acaso, o autor apresenta o desenvolvimento histórico da educação
a perpassar o modo de produção de cada período, oferecendo ao
leitor a possibilidade de entender a educação também no contexto
atual.
Apesar de toda a contribuição dada por Ponce com a obra
supracitada, ele não recebeu da Academia o devido lugar no que
se refere à sua contribuição no estudo da história da educação,
conforme se demonstrará a seguir, em análise empreendida por
Décio Gatti Júnior (2012) acerca dos manuais estrangeiros traduzi-
dos para o português que trataram da História da Educação (entre
os anos de 2000 a 2008) e que alcançaram o maior número de
indicações de leitura entre as obras constantes nos programas da

369
disciplina de História da Educação de 55 cursos de graduação, as
quais se resumiram a quatro obras, a saber: História da Pedagogia,
de Franco Cambi; História da Educação: da Antiguidade aos nossos
dias, de Mario Alighiero Manacorda; História da Educação e da Pe-
dagogia, de Lorenzo Luzuriaga; e História Geral da Pedagogia, de
Francisco Larroyo.
Entre esses não foi citada a obra de Anibal Ponce, Educação
e Luta de Classes, apesar das inúmeras contribuições desta para
o entendimento desse tema. Veja-se, por exemplo, o que expõe
Saviani (2013, p. 42) sobre a referida obra: “(...) talvez o primeiro
texto que se empenhou em analisar as relações entre a educação e
a estrutura social de classes, de forma sistemática e em perspectiva
histórica (...), revelando grande erudição e apoiado em inúmeras e
diversificadas fontes”. Conclui que:

Foi na condição de ativo militante socialista voltado para a


formação de operários e estudantes, e não como pesquisa-
dor de gabinete, que o livro foi composto. Trata-se de uma
obra que se constitui, de ponta a ponta, como uma veemente
denúncia, amplamente documentada, dos usos que a classe
dominante vem fazendo da escola, desde a Antiguidade, em
benefício de seus interesses. (SAVIANI, 2013, p. 43).

Destarte, defende-se a tese de que esta obra se constituiu


como um importante referencial no tocante à história da educa-
ção, uma vez que de posse do entendimento do que cada época
constituiu na educação dos homens e mulheres, o indivíduo po-
derá apropriar-se do conhecimento não só da educação, mas da
história da humanidade. Um conhecimento que revela o lugar do
sujeito humano na história, ou seja, os homens e mulheres como
partícipes da história, embora em situações não escolhidas por
eles, senão em condições socialmente determinadas. Um conheci-
mento que possibilita o enriquecimento do indivíduo e, sobretudo,
do ser-precisamente-assim e, portanto, de um ser que pode dar

370
respostas, até mesmo acerca das questões concernentes ao capi-
talismo no contexto atual.
Nesse sentido, Lukács (2018, p. 219) na esteira de Marx con-
cebe o seguinte adágio:

Quanto mais rica e forte é uma individualidade, tanto mais


são suas respostas à vida multifacetadamente entrelaçadas
com o ser-precisamente-assim da sociedade em que vive,
tanto mais realmente são elas trazidas à vida pelas questões
da época – mesmo quando resultam negativamente opos-
tas às correntes da época.

Por último, cumpre apropriar-se da própria justificativa apon-


tada no prefácio da segunda edição escrita por José Severo de
Camargo Pereira, também responsável por sua tradução, o qual
elenca uma série de fatores para justificar sua tradução para o por-
tuguês e a integração desta na Coleção de Estudos Sociais e Fi-
losóficos. Um deles seria a pequena quantidade de bibliografias
disponíveis no Brasil sobre o tema; contudo, o autor vai além ao
afirmar que a obra apresenta algumas vantagens sobre outras do
mesmo período, na medida em que não se prendeu a expor as
práticas pedagógicas escolares das correntes filosófico-educacio-
nais, mas considerou

(...) a educação como um fenômeno social de superestrutura


e, portanto, defende, ao longo de toda a obra, a ideia de que
os fatos educacionais só podem ser convenientemente en-
tendidos quando expostos conjuntamente com uma análise
socioeconômica das sociedades (PEREIRA, 2010, p. 10).

Ademais, o autor apresenta uma ideia central, qual seja: a


progressiva “popularização” da cultura, na qual ele ressalta ter sido
uma constante luta entre as classes, sobretudo das classes desfa-
vorecidas pela conquista do direito de se educar.

371
Por último, destaca Pereira (2010) que esta obra é um livro
síntese e, portanto, menos cansativo e mais interessante, sem, con-
tudo, ser superficial. É uma obra que pode interessar tanto o

leitor não iniciado nos problemas de história da educação,


que deseja, apenas, uma visão geral do assunto, quanto o
leitor especialista na matéria, que deseja uma obra de coroa-
mento de estudos, que possa sintetizar, em poucas linhas, as
muitas informações, talvez um pouco desconexas, que tem a
respeito da educação das diversas sociedades e das diferen-
tes épocas. (PEREIRA, 2010, p. 15).

O livro Educação e luta de classes, não obstante sua impor-


tância para a formação de professores no Brasil, não está imune a
críticas. Como muito bem reconhece um de seus maiores críticos,
Gilberto Luiz Alves (2001, p. 25), a obra do historiador argentino é
“(...) a mais antiga, a mais difundida e a de maior influência na for-
mação de educadores no Brasil”.
O crítico, para justificar suas ressalvas à obra de Ponce, faz
uma longa exposição acerca dos problemas do livro em questão.
Para Alves (2001), a posição do autor argentino acerca dos pensa-
dores iluministas do século XVIII, bem como sobre as origens da
escola pública, não é a mais adequada. O crítico chega a dizer que
a obra de Ponce se constitui numa “(...) expressão do materialismo
vulgar”, pois passa aos leitores uma visão conspiracionista da his-
tória.
Na interpretação de Alves (2001, p. 32), Ponce trata a questão
da escola pública “(...) de forma improcedente quando resulta na
condenação de pensadores e pedagogos burgueses bem como
da própria burguesia”. Para o analista, o exame do autor argentino
revela um conteúdo moralista e a-histórico.
Opina Alves (2001, p. 32):

372
Historicamente, no caso, não há homens pérfidos, oportu-
nistas, traidores e farsantes realizando tarefas políticas com
a intenção primeira de prejudicar os trabalhadores; há ho-
mens propondo soluções para os problemas humanos de
seu tempo sob sua perspectiva de classe.

Por esse conjunto de motivos, Alves (2001, p. 32) sugere a


superação da obra de Anibal Ponce, dado que a “(...) visão [do livro
Educação e luta de classes] ao dominar qualquer produção teórica,
a retira de imediato do campo histórico, portanto científico, daí por
que urge superá-la”.
De fato, uma obra concluída nos anos de 1930, que, natu-
ralmente, não assistiu a todos os desdobramentos da Revolução
Russa, tampouco pode presenciar a decadência profunda vivida
pelos efeitos da crise estrutural do capital (MÉSZÁROS, 2009);
por isso, não pode, sozinha, dar conta da larga e complexa história
da educação. Assumir tais limites, no entanto, é bem diferente de
considerar os escritos ponceanos superados.
Resta dizer que, ao longo da história, encontram-se defenso-
res da ordem capitalista divididos, de modo geral, entre os ingê-
nuos e os convictos. Entre esses extremos existem muitas media-
ções com suas respectivas variações e inclusive a combinação da
ingenuidade convicta. Um ponto sobre essa combinação teórica
dos defensores dos valores burgueses, como registra Álvaro Vieira
Pinto (2008), assume valor de lei sociológica, haja vista “que os
serviçais em todos os tempos pensam analogamente”. Decidida-
mente, Anibal Ponce soube apresentar sua crítica longe desses ex-
tremos. Mais um motivo pelo qual sua obra não perece.
Considerar esta obra superada é o mesmo que assumir sua
efemeridade e equivale a dizer que o livro de Ponce não é um clás-
sico da história da educação. No entendimento da presente comu-
nicação, o livro Educação e luta de classes é um clássico exatamente
por ser imprescindível – não exclusivo – na compreensão dos
desdobramentos do complexo educativo em relação à estrutura

373
econômica.
Nos pontos que seguem abaixo, apresentam-se questões im-
portantes sobre a vida política e intelectual de Anibal Ponce, se-
guindo o estudo da obra aqui destacada. Intenta-se apresentar
cada período histórico de modo sintético, prezando pelos aspectos
que se referem à contextualização histórica, à essência humana e à
relação indivíduo-sociedade, bem como à finalidade social da edu-
cação.

A TRAJETÓRIA POLÍTICA E INTELECTUAL DE ANIBAL PONCE

Anibal Ponce nasceu em 1898, na Argentina. Crítico literário,


sociólogo, pedagogo, psicólogo, biólogo, trazia, segundo Wosco-
boinik (2007), em suas preocupações científicas a avaliação do hu-
mano.
No início de sua trajetória, Ponce se manteve como intelectual
e cientista, sem, contudo, ter atuado ativamente na luta:

Realiza junto a Ingenieros incursiones del tipo “Renovación”


y “La Unión Latinoamericana”. Escudrina por el microscopio;
ejerce el magisterio; hace crítica literaria; analiza las psiquis
enfermas; dicta cursos y conferencias. Participa del remezón
de la guerra y la Revolución. Pero sus pasos son medidos y
lentos. (WOSCOBOINIK 2007, p. 177).

Em 1930, a Europa vive momentos de crise, marcada pelo


nazifascismo, pela guerra e pelo holocausto, enquanto o mundo
burguês luta por um inimigo comum: o socialismo. O declínio da
produção capitalista culmina com um volume de trinta a cinquenta
milhões de desempregados no mundo. No México, vive-se o golpe
militar de 1930. Ponce encontra-se com uma nova concepção filo-
sófica: o materialismo histórico e o materialismo dialético. “Buscó
la verdad y al abrazar el marxismo, tuvo la íntima convicción de un
encuentro con los valores más auténticos y transcedentes” (WOS-

374
COBOINIK, 2007, p. 176).
Começa a interagir com estudantes e trabalhadores; viaja a
diferentes países, tais como França e União Soviética, e esta prática
se concretizará, conforme Woscoboinik (2007, p. 178),

en una producción intelectual de envergadura: la conferen-


cia “Examen de la Espanã actual”; el libro Educación y lucha
de clases; la revista “Dialéctica”; el ensayo “Humanismo bur-
guês y humanismo proletário”. De Erasmo a Romain Rolland.

Retornando de sua viagem à Europa, ajuda a fundar o Colégio


Livre de Estudos Superiores com o objetivo de “criar um ambien-
te propício de cultura desinteressada” (WOSCOBOINIK, 2004,
p. 92). Na referida instituição, ministra um curso sobre História da
Educação, recorrendo a estudos de filósofos, historiadores e políti-
cos, e que anos mais tarde seria sistematizado na obra Educação e
Luta de Classes.
Criou junto com outros intelectuais a Associação de Intelec-
tuais, Artistas e Periodistas (A.I.A.P.E). Seu primeiro artigo foi pu-
blicado quando este completara 15 anos. Cursou medicina por três
anos, e durante este período escreveu um importante ensaio so-
bre Eduardo Wilde, médico, ministro e escritor. A relevância desse
trabalho o tirou do anonimato, passando Ponce a escrever para a
revista literária mais qualificada da época na Argentina.
Ponce também se dedicava intensamente à docência. Consi-
dera Woscoboinik, autor de uma de suas biografias, que suas cá-
tedras eram famosas, ao tempo que realizava crítica literária por
meio de ensaios para revistas como El Hogar, nas quais destaca
que: “Notables por su profundidad, rotundos por su agudeza e iro-
nía, el análisis de los libros era desplegado con método y seriedad”
(2017, p. 83).
Influenciou gerações, tanto que Woscoboinik (2007) assim
intitula seu livro: Anibal Ponce en la Mochila del Che, sugerindo
que Ernesto Che Guevara de alguma maneira teria sido influencia-

375
do pelo referido autor. Para chegar a esta tese o autor cita um de
seus discursos, comparando com as palavras de Ponce pronuncia-
das trinta anos antes. Estas se referiam aos deveres do intelectual
quanto ao seu comportamento moral adequado à reforma que
pretende. Alega Woscoboinik (2017) que Guevara, três anos após
a vitória da Revolução em Cuba, publica o livro de Ponce, Humanis-
mo burgués y humanismo proletario.
Sobre Ponce, Woscoboinik (2004, p. 19-20) relata:

El pensador argentino defendió un modelo socialista que


sea emancipador en todos los terrenos de la vida y estable-
ció distancia entre el humanismo burguês y el proletario, ex-
presión del “hombre completo”. Años después, influido por
la obra de su compatriota, el “Che” Guevara enfatiza que el
humanismo revolucionario es um valor inmanente del “hom-
bre nuevo”, del “hombre integral”.

Um ano depois da primeira edição da publicação original da


obra Educação e Luta de Classes, em 1938, no México, morre Ani-
bal Ponce.
Conclui-se esta breve exposição sobre o autor com algumas
indagações feitas por ele com veemência: “La inteligencia puesta al
servicio de la revolución, qué papel podrá tener en ella? Consejera,
inspiradora, guía?” (WOSCOBOINIK, 2007, p. 263). Eis agora, no
próximo ponto, a apresentação da obra Educação e Luta de Clas-
ses e o que ela traz acerca do desenvolvimento da educação na
história.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO SOB A ANÁLISE DE PONCE

O complexo da educação em Ponce foi apresentado a partir


da comunidade primitiva, estabelecendo este que naquele dado
momento histórico os indivíduos viviam livres, unidos por laços de
sangue e assentados na propriedade comum de terras. O fruto de

376
sua produção era repartido igualmente entre todos do grupo e
imediatamente consumido, visto que eles não produziam mais que
o necessário para a sua sobrevivência.
Os indivíduos eram “escravos” da natureza e já havia um co-
meço de divisão do trabalho de acordo com as diferenças entre
os sexos; contudo, as mulheres estavam “em pé de igualdade com
os homens” (PONCE, 2010, p. 18), assim como as crianças. Neste
tipo de organização social não havia hierarquia e sua religião não
continha deuses. A consciência do indivíduo “era um fragmento da
consciência social, e se desenvolvia dentro dela” (PONCE, 2010, p.
21).
A educação não estava delegada a alguém em especial, mas
ao ambiente. A criança se educava espontaneamente assimilando
o meio em que vivia, e pouco a pouco se amoldava aos padrões do
grupo; e somente depois, quando necessário, os adultos explica-
vam às crianças o que deveriam fazer em determinadas ocasiões.
As crianças, portanto, se educavam tomando parte nas funções so-
ciais da comunidade. Como expõe Dominicis apud Ponce (2010, p.
28,) “a educação sistemática, organizada e violenta, surge no mo-
mento em que a educação perde o seu primitivo caráter homogê-
neo e integral”.
A transição da comunidade primitiva para a sociedade antiga
foi marcada pelo surgimento das classes como origem do escasso
rendimento do trabalho humano e pela substituição da proprie-
dade comum pela privada. Nesse novo período, alguns indivíduos
se libertaram do trabalho material e passaram a realizar outras ati-
vidades de interesse do grupo, as quais mais tarde resultariam no
exercício do poder. Com o passar dos tempos e o aprimoramento
das técnicas, produzia-se mais do que o necessário para a subsis-
tência do grupo, ou seja, apareceu o excedente e, por consequên-
cia, a possibilidade de intercâmbio e do ócio.
O ócio permitiu que aquele que não precisava produzir pu-
desse fabricar e aprimorar instrumentos e matérias-primas utiliza-
dos no processo de trabalho, bem como refletir sobre sua prática.

377
Ademais, concedeu-lhes a possibilidade de ter escravos para ex-
plorar seu trabalho.
Desse modo, a mesma hierarquia da estrutura econômica da
tribo aparece em seu sistema de crenças. Surgem também a pro-
priedade privada e a sociedade de classes, a religião com deuses,
a submissão da mulher e dos filhos, a educação diferenciada, a au-
toridade paterna, a separação entre trabalhadores e sábios; enfim,
todo um sistema para reforçar, referendar e, sobretudo, manter o
privilégio de uma classe sobre a outra. Mas, segundo Ponce (2010,
p. 32), faltava ainda

uma instituição que não só defendesse a nova forma priva-


da de adquirir riquezas, em oposição às tradições comunis-
tas da tribo, como também que legitimasse e perpetuasse
a nascente divisão em classes e o “direito” de a classe pro-
prietária explorar e dominar os que nada possuíam. E essa
instituição surgiu: o Estado.

A transição da comunidade primitiva para a sociedade dividi-


da em classes dá início a um projeto da classe dominante de ofer-
tar à classe dominada uma educação contrária às tradições da co-
munidade tribal, uma educação que inculque a ideia de que “(...) as
classes dominantes só pretendem assegurar a vida das dominadas,
e a vigilância atenta para extirpar e corrigir qualquer movimento de
protesto da parte dos oprimidos” (PONCE, 2010, p. 36).

O ideal pedagógico já não pode ser o mesmo para todos;


não só as classes dominantes têm ideais muito distintos da
classe dominada, como ainda tentam fazer com que a mas-
sa laboriosa aceite essa desigualdade de educação como
desigualdade imposta pela natureza das coisas, uma desi-
gualdade, portanto, contra a qual seria loucura rebelar-se.
(PONCE, 2010, p. 36).

378
Ponce intenta mostrar como a classe exploradora conseguiu
realizar o seu propósito a partir das sociedades grega e romana.
No que se refere à comunidade grega, Ponce (2010) destaca que
esta era composta inicialmente de escravos e, a princípio, de “fun-
cionários” que posteriormente passaram a fazer parte da nobre-
za. Há também o início de um comércio e de uma classe superior
desligada do trabalho manual e do intercâmbio comercial. A partir
do século V a.C., o comércio floresce e, com ele, a moeda e o aper-
feiçoamento dos aparelhos de navegação, o que redundou no en-
riquecimento de uma parte da nobreza, que passou a emprestar
dinheiro sob a forma de hipoteca e a enriquecer com tal prática,
pois aquele que não pagasse a dívida poderia tornar-se escravo.
“Outra guerra, não externa, mais interna, começa agora a produzi-
-los: a guerra do credor contra o devedor, guerra que não cessa por
um só instante durante toda a história da humanidade” (PONCE,
2010, p. 39). E assim se concebe o ser social grego da classe domi-
nante: masculino, guerreiro, proprietário, possuidor de terras.
Os espartanos recebiam uma educação unicamente voltada
para fins militares, tanto que poucos eram os nobres que sabiam
ler e escrever.

Assegurar a superioridade militar sobre as classes submeti-


das, eis o fim supremo da educação, rigidamente disciplina-
da por meio da prática da ginástica e austeramente contro-
lada pelos éforos, os cinco magistrados que exerciam, por
delegação da nobreza, um poder quase absoluto. (PONCE,
2010, p. 41).

Esta sociedade guerreira, por sua vez, vivia à base do trabalho


do hilota e do comércio do perieco, e com intuito de manter estes
escravos submissos e embrutecidos, utilizava-se do terror e da em-
briaguez.
Atenas era uma sociedade produtora de mercadorias e não
possuía uma organização tão militarizada; a divisão entre as clas-

379
ses era, entretanto, mais acentuada. O ideal da educação grega
consistia em formar o sujeito proprietário das classes dirigentes,
primeiramente formadas para a guerra e posteriormente dedica-
das ao que eles chamavam de diagogos, ou seja, o ócio elegante. E
com isso desenvolveram a música, a filosofia, a arte, a literatura. Daí
a necessidade de um local para ensinar seus filhos a ler e escrever.
O ser social romano também passou para a sociedade de
classes, baseada no trabalho escravo. Sociedade esta formada pe-
los patrícios (grandes proprietários) e pelos plebeus (indivíduos li-
vres, mas excluídos dos postos dirigentes). “A agricultura, a guerra
e a política constituíam o programa que um romano nobre devia
realizar” (PONCE, 2010, p. 62). Isto porque, para os romanos, toda
a riqueza provinha da terra.
Nesta sociedade, os jovens aprendiam sobre a guerra e a polí-
tica, como também o ofício, junto ao pai. A educação das letras era
confiada a um escravo letrado. A partir do século IV a.C. começa-
ram a surgir os professores.
Notícias da primeira escola primária de Roma datam de 449
a.C., local em que as famílias menos aquinhoadas, que não podiam
pagar por professores particulares, mandavam seus filhos para se-
rem educados. O professor primário, chamado de ludimagister, era
geralmente um antigo escravo, um velho soldado ou um proprie-
tário arruinado que, em troca de um salário, realizava este ofício.
Os retores, aqueles que ensinavam a arte superior, como a
eloquência, eram prerrogativas dos ricos. Tratava-se de homens
que possuíam conhecimentos de poesia, teatro, música, boas ma-
neiras, e ensinavam a seus “ricos alunos tudo quando poderia ser
essencial para a burocracia do Império” (PONCE, 2010, p. 73).
A transição do modo social antigo para o feudal foi marcada
por vários fatores. Destaca-se o trabalho escravo, que já não mais
produzia rendas compensadoras. Isto suscitou a necessidade da
escravidão e o desabrochar de um novo regime econômico, funda-
do no trabalho do servo e do vilão, que ao contrário dos escravos,
eram livres e procuravam os proprietários de terras a fim de culti-

380
vá-las para obter alguma compensação.

O que o servo produzia por meio de um trabalho sem des-


canso ia passando, como tributo, de mão em mão, do vilão
ao castelão, do castelão ao barão, deste ao visconde, do vis-
conde ao conde; deste ao marquês, do marquês ao duque, e
do duque ao rei. (PONCE, 2010, p. 86).

No tocante à religião, Ponce (2010) assevera que esta sofreu


no feudalismo algumas transformações. Assim, a religião cristã no
começo do feudalismo ressoava a voz dos explorados, sendo por
isso perseguida. Posteriormente essa voz se foi obscurecendo,
passando esta mesma igreja a dizer que perante Deus todos eram
iguais; até o ponto em que é adotada pelo Império. E assim, pouco
a pouco, a Igreja nas mãos de um clero disciplinador foi crescendo
em extensão de terras e riquezas, de tal modo “(...) que, em poucos
séculos, passou a controlar quase toda a economia feudal” (PON-
CE, 2010, p. 88).
A Igreja católica, no que concerne ao feudalismo, foi uma ins-
tituição de grande poder econômico, haja vista que era proprietá-
ria de “poderosas instituições bancárias de crédito rural” (PONCE,
2010, p. 89). Por conseguinte, detinha hegemonia social e, conse-
quentemente, pedagógica.
A economia do senhor feudal se constituía do trabalho dos
servos, em troca de uma parte do que era produzido, como tam-
bém pelo enriquecimento, através de guerras e saques. Já a rique-
za do monastério era organizada e “racionalizada”; enquanto o se-
nhor feudal mantinha o seu padrão de riqueza, a Igreja crescia.
Os monastérios foram as primeiras “escolas” medievais, com
dois modelos diferentes: um destinado aos futuros monges e outro
para a plebe. Nas escolas destinadas à plebe não se ensinava a ler
e escrever, mas tão só a doutrina cristã. Durante a Idade Média,
aqueles que tivessem aspirações culturais e que não eram filhos
de servos, só poderiam ver atendidas suas curiosidades em um

381
monastério. Dois séculos após a morte de Isidoro, a igreja passou a
oferecer escolas fora dos muros dos monastérios para aqueles que
não desejavam abraçar a carreira religiosa.
Ponce (2010), no entanto, afirma que os senhores feudais
desprezavam a instrução e a cultura. O autor destaca que “A no-
breza careceu de escolas no sentido estrito, mas não de educação”;
em consequência desse quadro, “o xadrez e a poesia chegaram, no
fim de contas, a constituir todos os seus adornos, da mesma forma
que a equitação, o tiro com arco, e a caça, todas as suas ocupações”
(PONCE, 2010, p. 94).
A burguesia nasceu no momento em que se dá uma trans-
formação econômica, a partir do florescimento do comércio, possi-
bilitada pelo aprimoramento das técnicas de produção. E pouco a
pouco as cidades se transformaram em centros de comércio, onde
a burguesia nascente trocava seus produtos.
A educação, e não poderia ser de outra maneira, acompanhou
as transformações econômicas. A Igreja, como centro do ensino,
passou a oferecer, além das escolas dos monastérios, as escolas
catedrais. Ponce (2010) ressalta que estas escolas já existiam, mas
no período de ascensão da burguesia, passaram a exigir outra for-
ma de instrução. Aqui se ancora o germe do que mais tarde vai se
chamar universidade. Conforme Marx, “(...) a burguesia já era uma
classe em si, mas não uma classe para si, isto é, ainda não tinha
consciência de que os seus interesses eram distintos dos do feuda-
lismo” (PONCE, 2010, p. 99).
As universidades, no início, consistiam na reunião de ho-
mens para cultivar as ciências. Pouco a pouco a burguesia foi com-
preendendo a importância desse conhecimento e passou a ocupar
o espaço universitário. O artesão que desejava trabalhar em um
determinado ofício inscrevia-se em seu grêmio respectivo e traba-
lhava como aprendiz. Posteriormente, passava a oficial, até chegar
a mestre. Já na universidade, o jovem que estudasse artes liberais
passava pelos seguintes graus: bacharel, depois licenciado e, por
último, doutor.

382
Assim, a “fundação das universidades permitiu que a burgue-
sia participasse de muitas das vantagens da nobreza e do clero,
que até então lhe tinham sido negadas” (PONCE, 2010, p. 101).
Como, por exemplo, ingressar nas ordens religiosas. O autor des-
taca que o título universitário, a exemplo do diploma de doutor
em Direito, conferia ao burguês quase um nível da nobreza. Estes
doutores, por sua vez, poderiam ser eleitos embaixadores e oficiais.
A burguesia mais rica buscava as universidades, enquanto a
pequena burguesia procurava as escolas primárias. Os magistra-
dos passaram a exigir que estas fossem custeadas e administradas
pelas cidades, pelo menos em parte, já que os estudantes também
deveriam pagar por elas. Desse modo, nem todos os burgueses
tinham recursos suficientes para frequentá-las.

Esse despertar da vida comercial, ruidosa e movediça, essa


afirmação de negócios e do cálculo, que opunha a catedral
ao monastério, e o burguês letrado aos senhores da espada
ou da cruz, solidificou-se no plano intelectual nessa outra
“catedral” impressionante que foi chamada de escolástica.
Desde o século XI até o XV, a escolástica representou no
front cultural um verdadeiro compromisso entre a menta-
lidade do feudalismo em decadência e a da burguesia em
ascensão; um compromisso entre a fé, o realismo e o des-
prezo pelos sentidos, de um lado, e a razão, o nominalismo e
a experiência, do outro. (PONCE, 2010, p. 107-108).

Em contraponto a este movimento, a Igreja surge com a


Inquisição e a burguesia com o Renascimento. Pouco a pouco o
modo social feudal sucumbiria e os burgueses comprariam suas
terras. As novas requisições fizeram com que as técnicas de produ-
ção fossem se modificando. O comércio, com as expedições maríti-
mas, ampliava-se; as exigências passam a ser outras, e os meios de
produção experimentam transformações. “A partir do século XVI, a
burguesia começou a reunir os operários, até então esparsos, para

383
conseguir um trabalho de cooperação”. Nesse processo, “foi-se
passando da cooperação simples à manufatura e, desta, à grande
indústria” (PONCE, 2010, p. 126). Toda essa mudança foi muito sig-
nificativa e alterou a estrutura dessa nova sociedade.
No que concerne ao lugar do cristianismo, havia discordân-
cias entre os humanistas, pois enquanto uns desejavam a volta ao
paganismo, outros requeriam uma reforma da Igreja.
Como bem assevera Ponce (2010, p. 119):

Desde o início da Reforma, as contradições latentes existen-


tes no movimento haviam surgido nos seus teóricos mais
ilustres: Martinho Lutero e Tomás Munzer. Enquanto Lutero,
como intérprete que era da burguesia moderada e da pe-
quena nobreza, só pretendia acabar com o poderio do clero
e instituir uma Igreja pouco dispendiosa, Munzer, como in-
térprete dos elementos campesinos e plebeus da Reforma,
acreditava que havia chegado o momento de ajustar con-
tas com os opressores. Não se contentava, portanto, com as
meias-tintas de Lutero, e reclamava nada menos do que a
igualdade civil e social.

Afirma Ponce (2010) que Lutero, ao perceber que as massas


pretendiam ir mais longe do que ele havia imaginado, recuou e as
traiu, não só diminuindo a intensidade da guerra que mantinha
contra Roma, como ainda tomando parte em todas as negocia-
ções com os príncipes que aderiram à Reforma, chegando inclu-
sive a sugerir que Munzer, representante da ala dos campesinos e
plebeus, fosse expulso do país. E assim Lutero consegue imprimir
seus ideais nesta luta.
No referente ao aspecto pedagógico, Lutero defendeu a ins-
trução elementar, não como forma de desenvolvimento do homem,
mas para que estes pudessem ler a Bíblia. Anota Ponce (2010, p.
120) que “Lutero compreendeu a estreita relação que existia entre
a difusão da rede escolar e a prosperidade econômica”. Contudo,

384
o mesmo autor adverte que Lutero, apesar de conceber que a ins-
trução era fonte de riqueza e poder para a burguesia, não preten-
dia estender esses benefícios às classes populares.
A Igreja católica, por sua vez, através dos jesuítas lutou contra
o nascente protestantismo, como também com os leigos incrédu-
los. No referente ao terreno pedagógico, buscou controlar a educa-
ção dos nobres e dos burgueses abonados, de modo que os seus
“professores, não há dúvida, eram os mais bem preparados, e o seu
ensino era o mais bem dirigido” (PONCE, 2010, p. 121).
A Reforma Protestante teve consequências mais vastas que o
Renascimento, devido ao estreito vínculo com a burguesia patrícia.
A Reforma, por sua vez, expôs as reivindicações da pequena e da
média burguesia, assim como das massas camponesas e pré-pro-
letárias.
Verifica-se nesse período uma luta interna no seio do huma-
nismo, que se divide em: “(...) a que expressa os interesses na no-
breza cortesã, a que serve à Igreja feudal, a que reflete os anelos
da burguesia protestante, e a que traduz as tímidas afirmações da
burguesia não religiosa”, representando estas “as origens das qua-
tro correntes pedagógicas que vão desde o século XVI até o século
XVIII” (PONCE, 2010, p. 118).
Uma categoria que vale destacar nesse novo contexto é o
tempo. Ponce (2010, p. 127) assevera que na Idade Antiga o tem-
po não tinha valor, pois quando se vive no ócio não há necessida-
de de competir com ninguém; porém, com o advento da socieda-
de burguesa, o tempo passa a ter valor, pois quanto mais tempo,
mais se produz e mais se pode obter lucro. O protestantismo, ao
representar os interesses da classe burguesa, “abole a infinidade
de festividades com que o catolicismo medieval se comprazia, para
aumentar, assim, o número de dias úteis”. Assim, abria-se espaço
para o novo ritmo de produção.
A educação seria uma peça-chave para administrar esse novo
contexto. O grande nome desse período, no que diz respeito à
educação, foi João Amos Comênio, com sua obra A Didática Mag-

385
na, onde afirma “que a vida terrena é apenas uma preparação para
a eterna”. Confirma o que esse novo tipo de sociedade estava a
desenvolver: “Bases para a rapidez do ensino, com economia de
tempo e de fadiga”.
Para Comênio, segundo Ponce (2010, p. 128), as escolas care-
ciam do entendimento das coisas, do conhecimento prático:

Os mecânicos – afirmava Comênio – não fazem para o apren-


diz uma conferência a respeito de seu ofício, mas o põem
diante de um profissional, para que ele observe como este
procede; colocam, depois, um instrumento em suas mãos,
ensinam-no a usá-lo, e recomendam que ele imite o mestre.
Só fazendo é que se pode aprender a fazer, escrevendo, a
escrever, pintando, a pintar. (itálico do autor).

Assim como Comênio apresentava a necessidade de uma


educação renovadora, John Locke movimenta-se no sentido de
atribuir à educação um fim prático. Indaga: “de que poderia servir
o latim para homens que vão trabalhar em oficinas?”. Ressalta a
importância do “cálculo, que é tão útil nas oficinas e escritórios, e
em todas as circunstâncias da vida” (PONCE, 2010, p. 128). Para o
autor argentino, a burguesia soube muito bem se apropriar desse
discurso.
A educação passa então a ser requisitada até mesmo pela
classe abastada, como meio de atender a essas novas demandas
sociais, relacionadas diretamente ao processo de produção, que
demanda aprendizado prático, com economia de tempo e dinhei-
ro.
Com a vitória da burguesia, a “humanidade” e a “razão” por
ela defendidas passam a ser relacionadas não a um direito de to-
dos, mas aos seus interesses. A liberdade e a propriedade são con-
cebidas como direitos “naturais e imprescritíveis”. Assim, a “revolu-
ção, que começara com um clamoroso apelo dos ‘filhos da pátria’,
terminava em beneficio exclusivo dos ‘filhos da indústria’” (PONCE,

386
2010, p. 136-137).
Depois da sociabilidade feudal, a burguesia assegurava o di-
reito individual. Para Ponce (2010, p. 131), é preciso reconhecer que
a burguesia, diante de seu papel revolucionário, promoveu a der-
rocada do feudalismo e da monarquia absoluta “com tanto brilho e
com um entusiasmo tão contagioso, que, por um momento, assu-
miu diante da nobreza o papel de defensora dos direitos gerais da
sociedade”. Para a grande massa populacional, contudo, os direitos
burgueses que primavam pela liberdade, igualdade e fraternidade
não se efetivariam na prática.
As massas exploradas da Antiguidade e do feudalismo man-
tiveram sua condição. A burguesia, por sua vez, para realizar o seu
prodigioso desenvolvimento precisava do desenvolvimento do co-
mércio e do alargamento do mercado de trabalhadores livres como
mão de obra. Destaca o autor que este trabalhador livre, diferente
dos trabalhadores livres de outros períodos, já não mais possuía
um pequeno pedaço de terra, nem alugava sua mão de obra tem-
porariamente. Este assalariado nascido a partir da revolução bur-
guesa se constituía num trabalhador expropriado dos seus meios
de produção, que possui para vender unicamente a sua força de
trabalho. Assim, ao trabalhador não caberia mais nem uma parte
do que ele produz, tão só uma pequena parcela da sua produção.
Os ideais educativos da classe burguesa são expressos, se-
gundo Ponce (2010), por alguns educadores, a exemplo de Rous-
seau (1712-1778). Para Ponce, Rousseau não legou uma pedagogia
e Emílio não passava de um romance; no entanto, sua obra e sei
pensamento influenciaram Basedow (1723-1790), pedagogo que
defendia dois tipos de escola: uma para os pobres e outra para os
mais abastados economicamente. Para este pedagogo, os filhos
das classes superiores deveriam estudar mais e começar mais cedo,
enquanto os filhos das classes desfavorecidas deveriam estudar de
acordo com a finalidade a que se destinavam, dedicando pelo menos
metade de seu tempo a trabalhos manuais. Filangieri (1752-1788)
também se posicionava de forma parecida, defendendo educação

387
diferenciada para as diferentes classes sociais.
Sobre as propostas educativas de Condorcet (1743-1794),
Ponce (2010) considera que este, ao tempo que propôs a obri-
gação do Estado de instruir, deixando a formação das crenças re-
ligiosas, morais e filosóficas a cargo dos padres, defendia ensino
primário e superior ofertado pelo Estado. Contudo, Ponce faz um
adendo acerca da conquista dessa gratuidade do ensino, uma vez
que naquela época as crianças das classes subalternas já trabalha-
vam para garantir o seu sustento. Em verdade, a escola gratuita
teria pouca importância, visto que estas crianças não teriam como
frequentá-la.
Pestalozzi (1746-1827) se interessou pela educação dos filhos
dos camponeses e chegou a acolher muitos deles em seus orfa-
natos; no entanto, “(...) nunca lhe ocorreu a possibilidade de dar a
elas a mesma educação que ministrava às crianças ricas” (PONCE,
2010, p. 146).
E assim Ponce (2010, p.149) demonstra como a burguesia
daquela época pensava na educação: diferenciada para as diferen-
tes classes. Para as classes subalternas, uma educação elementar;
uma educação superior para os técnicos; e a educação livresca, dis-
tanciada da vida real, para os nobres. Desse modo, “o capitalismo
incorporava aos seus planos de trabalho científico a livre investi-
gação, da mesma forma que o feudalismo implicava a religião e o
dogmatismo”. O saber científico era ofertado pelas escolas técnicas
e laboratórios de altos estudos, e foram vitais para o capitalismo
 não para os filhos dos burgueses, mas para aqueles que precisa-
vam de alta especialização para dominar e ampliar as técnicas.
Por volta de 1880 foi finalmente conquistada a escola laica,
depois de inúmeros e intensos embates. Ponce (2010) afirma que
anos mais tarde, parte dos burgueses defensores desta escola lai-
ca passou novamente a requerer o apoio da Igreja e do clero, com
o intuito de manter as massas longe de protestos e insubmissão,
evitando que elas interferissem em seus negócios, pois almejavam
apropriar-se de boa parte dos melhores bocados.

388
Passado século e meio desde a Revolução Francesa, os bur-
gueses não conseguiram dar às massas o mínimo da educação de
que estas necessitavam; os mais reacionários alegam que a escola
burguesa não é incapaz de dar instrução a todos, mas que esta eli-
mina apenas os incapazes. Outros argumentos que recaem sobre
a dificuldade do ensino são a rigidez dos horários e a insuficiência
dos programas. A verdade é que as crianças deixavam de estudar
para se agregar às massas produtivas do sistema capitalista.
Surgem assim por volta dos anos 1900 duas correntes que
pretendem dar solução a esses problemas educacionais: uma que
defende a reforma das técnicas de ensino e cria planos para saná-
-los, e outra que concebe a necessidade da reforma técnica, mas
confere ao aspecto cultural o cerne do problema.
E assim o núcleo dos problemas educacionais é mascarado
por problemas secundários. O insucesso da educação desvincula-
-se da questão da luta de classes. Afinal, como a classe burguesa
poderia se reconhecer como responsável pela origem e pela ma-
nutenção dos males sociais?
Conclui Ponce sobre a educação e a sua necessária relação
com o complexo fundante: “(...) a educação, em cada momento his-
tórico, não pode ser outra coisa a não ser um reflexo necessário
e fatal dos interesses e aspirações dessas classes”. E anota: “Ne-
nhuma reforma pedagógica fundamental pode impor-se antes do
triunfo da classe revolucionária que a reclama” (PONCE, 2010, p.
171, itálico do autor).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez que o livro Educação e Luta de Classes, de Anibal


Ponce, apresenta as mediações para a compreensão do papel da
educação na história, deve ser reconhecido como um clássico.
A obra, com efeito, relaciona o “desenvolvimento” do processo
educativo como um meio para que se superem as demandas so-
ciais. O autor argentino demonstra que a educação não é simples

389
método ou conjunto de técnicas, senão um complexo que mantém
com o trabalho uma relação de autonomia relativa e dependência
ontológica.
O homem é partícipe da história e demanda, a partir das ne-
cessidades postas pelo trabalho, novas atribuições para a educa-
ção. Somente um homem que faz a história é capaz de mudá-la.
Esta obra, apesar de remeter ao passado, aponta para o futu-
ro e revela o papel social da escola: transmitir o conhecimento his-
toricamente acumulado às novas gerações, para que estas possam
aperfeiçoar esse conhecimento em favor do gênero humano, sem
contudo desvincular-se de sua relação com o trabalho. É, por isso,
uma obra sempre atual, porque se pensa no futuro olhando para
o passado.
Compreender a educação como um construto da história leva
a perceber que esta não poderá jamais, como querem os pós-mo-
dernos, ser compreendida sem ser considerada um momento da
totalidade. A educação vincula-se ao processo de produção mate-
rial e é diretamente relacionada ao processo de luta de classes.
Ao ler esta obra é como se passasse um verdadeiro filme so-
bre a formação genérica do homem de nosso tempo, de como este
se constitui e de como a educação contribuiu neste processo. É
então possível entender o modelo da educação dos tempos atuais,
com seus problemas e avanços, permitindo inclusive compreender
o papel da educação e sua relação com outros complexos, como,
por exemplo, a religião. Este percurso do desenvolvimento da hu-
manidade é visto não como um momento fechado e isolado, mas
como uma processualidade tão lenta que, por vezes, pode passar
despercebida em outras obras, visto que estas não relacionam a
educação com o modo de produção de cada período.
O germe da sociedade burguesa surge com a capacidade do
homem de produzir mais do que o necessário para a sua sobre-
vivência, e com isto a possibilidade de se sair da pré-história para
adentar no começo da história. No entanto, o que de fato ocorreu
foi que ao invés de este desenvolvimento das forças produtivas de-

390
mandar bens acessíveis para todos, deu-se a apropriação daquelas
por uma minoria, tendo no capital o regente da apropriação dos
meios de produção.
Contudo, o homem é quem faz a sua história, não em situa-
ção dada por ele, mas em situação por ele encontrada. Há, portan-
to, a possibilidade de se sair de uma sociedade em que uma classe
explora a outra, na qual o capital comanda e se apropria dos meios
de produção, para outra forma de sociedade em que o homem é o
cerne da produção uma sociedade verdadeiramente emancipada,
na qual os próprios homens comandarão e se apropriarão de todo
o processo de produção.
E a que educação se chegará numa sociedade emancipada?
Decerto não se tem ainda a resposta, mas Ponce demonstra com
exemplos reais que esta se vinculará ao modo de produção. Assim,
é possível vislumbrar uma educação que realmente corresponda
aos anseios da humanidade na construção do homem integral.

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