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DIVERSIDADES,
CULTURAS, EDUCAÇÃO
E RE-EXISTÊNCIAS:
CONSTRUINDO O
MUNDO QUE VIRÁ
(VOLUME II)
Copyright © dos autores
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida,
transmitida ou arquivada, desde que levados em conta os direitos dos autores.
Conselho Editorial
Profa. Dra. Lilian Barbosa (UPE, Brasil)
Profa. María Isabel Pozzo (IRICE-Conicet-UNR, Argentina)
Comitê Científico
Profa. Dra. Eva Paulino Bueno (St. Mary´s University, Estados Unidos)
Prof. Dr. Fábio Marques de Souza (UEPB, Brasil)
Profa. Dra. Kelly Cristiane Henschel Pobbe de Carvalho (UNESP, Brasil)
Prof. Dr. Maged Talaat Mohamed Ahmed Elgebaly (Aswan University, Egito)
ISBN: 978-65-80266-87-6
DOI: 10.47180/978-65-80266-87-6
CDD: 370
SUMÁRIO
Fabiana Vencezlau
Maria das Graças da Silva
INTRODUÇÃO
26
sabemos a importância da escrita das nossas memórias, escritas
por nós, para nós e para o mundo. Convido-te a continuar comigo
e conhecer, nas linhas que escrevo, um pouco da luta e da resistên-
cia das histórias invisíveis de uma terra de mulheres.
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são repassados. Escolhidas de forma coletiva, elas representam os
mais diversos segmentos. São elas:
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Figura 3 - Lurdinha
Ana Belo foi uma das artesãs que mantinham viva a atividade
mais antiga de Conceição: a arte de fiar o algodão.
29
Figura 5 - Mãe Magá (Margarida)
Figura 6 - Júlia
30
Figura 7 - Generosa
Figura 8 - Antônia
31
Figura 9 - Madrinha Lurdes
Figura 10 - Josefa
32
Figura 11 - Valdeci
33
A pedagogia crioula, termo criado nas oficinas de revisitação
do PPP, se desenvolve embasada no pensamento de uma
educação escolar que se firma no fortalecimento da história
e da identidade do povo de Conceição das Crioulas. Essa
ideia de educação já vinha sendo discutida e registrada nos
momentos de sistematização do PPP, onde inclusive há um
item que versa sobre os seus fundamentos (NASCIMENTO,
2017, p.111).
34
ENTRE OS SABERES TRADICIONAIS E OS SABERES ACADÊMI-
COS
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munidade. A escola não tinha sede própria e as aulas aconteciam
na residência de João Miguel Gomes, Depois, a escola passou a
funcionar na residência de Izabel Antônia Rosa, mãe da professora
Maria de Lourdes de Jesus. Então, no ano de 1998, a comunida-
de conquistou uma escola com sede própria: a Escola Municipal
Bevenuto Simão de Oliveira (Pai Nuto), localizada no Sítio Paula,
no território quilombola de Conceição das Crioulas, município de
Salgueiro – PE.
A escrita demorou a chegar para o nosso povo. Uma pergun-
ta que me faço é: a nossa oralidade é forte apenas por causa da
ancestralidade ou também por que a escrita demorou a chegar
para nós?
Consciente da resposta, o que garantiu a alfabetização de mui-
tas pessoas da comunidade foi o trabalho e a dedicação das pro-
fessoras consideradas leigas. Muitas mulheres, principalmente, que
aprenderam a ler e a escrever sozinhas, começaram a transmitir seus
conhecimentos para as pessoas que tinham interesse em apren-
der. Debaixo de árvores ou nas casas, com a estrutura que tinham à
disposição, levaram adiante o conhecimento da escrita e da leitura.
Nosso povo tinha fome de educação, mas de nada adiantava
a fome se não havia, à frente do nosso país, políticos comprometi-
dos com a causa e com a mesma fome, conforme assegurou Jesus
(2014) “[...] Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem
dó e amizade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem
dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre”
(página 39).
Se as políticas públicas educacionais não chegavam até nós,
nós dávamos um jeito de chegar até elas e assim foi que Givânia,
Maria Diva e Aparecida Mendes, algumas das mestras acadêmicas
da comunidade, conseguiram chegar até onde chegaram. E onde
chegaram?
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Com suas histórias a contar
São as mestras acadêmicas
Que ousaram continuar
A história do nosso povo
E as memórias registrar
A primeira a ingressar
No ensino superior
Givânia Silva abriu
O caminho inspirador
É símbolo de resistência
Aqui e em todo Brasil
É potência a sua fala
A mulher é nota mil.
(POEMA DA AUTORA, 2022)
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bolas - CONAQ. Ex-Secretária Nacional de Políticas para Comuni-
dades Tradicionais da SEPPIR. Associada da Associação Brasileira
de Pesquisadores e Pesquisadoras Negras – ABPN e coordena-
dora do Comitê Científico: Quilombos, territorialidades e saberes
emancipatórios da mesma associação. Integrante dos Coletivos de
Mulheres e de Educação da CONAQ.
Ela é integrante da Rede de Ativistas pelo Direito à Educação
de Meninas do Fundo Malala. Graduada em Letras e Pedagogia, é
especialista em Planejamento da Educação e em Desenvolvimento
Local Sustentável. Formou-se mestra em Políticas Públicas e Ges-
tão da Educação pela Universidade de Brasília - UnB (2010-2012)
e é doutora em Sociologia pela mesma Universidade.
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Esta é Maria Diva da Silva Rodrigues, brasileira, nascida e cria-
da no sertão de Pernambuco, professora quilombola na comuni-
dade de Conceição das Crioulas. Teve um percurso estudantil bas-
tante fragmentado, o que fez com que somente aos 17 anos de
idade concluísse o Ensino Fundamental - Anos Iniciais e aos 27
anos o Ensino Fundamental - Anos Finais, na modalidade de en-
sino à Distância. Impulsionada por essa conquista, foi aproveitan-
do as poucas oportunidades que surgiam. Nos anos de 98 e 99,
concluiu o ensino médio, também à distância e de 2000 a 2002,
cursou Magistério (nível médio) de forma semipresencial. Atual-
mente, ela é professora quilombola na comunidade de Conceição
das Crioulas. Foi diretora da Escola Municipal Quilombola Profes-
sor José Mendes (2001-2009) e da Escola Municipal Quilombola
José Néu de Carvalho (2011-2016), ambas no quilombo de Con-
ceição das Crioulas, Salgueiro/PE. Atualmente, exerce a função de
coordenadora pedagógica na Escola Municipal Quilombola José
Néu de Carvalho.
Tem experiência na área de Educação escolar com ênfase em
Educação Específica, Diferenciada, Intercultural e Descolonizante.
É sócia fundadora da AQCC (Associação Quilombola de Conceição
das Crioulas) e faz parte da Comissão de Educação da referida as-
sociação. Fez parte da comissão executiva da AQCC. Fez parte do
Movimento Sindical e do Movimente de Mulheres Trabalhadoras
Rurais do polo do Sertão Central de PE.
Ela é militante do movimento quilombola rural desde o início
dos anos 90. Do século XX. Integrou a Comissão que elaborou as
Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, repre-
sentando a CONAQ (Coordenação Nacional das Comunidades
Quilombolas). Integrou também a Comissão Nacional Pedagógica
do PRONERA, também representando a CONAQ.
Maria Diva fez parte da organização do I e II Encontro Inter-
nacional com as Artes, a Luta, os Saberes e os Sabores da Comuni-
dade Quilombola de Conceição das Crioulas e participou da I Jor-
nada Virtual da Educação Quilombola em 2020. É Graduada em
Pedagogia pela Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central
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(FACHUSC) (2003). Especialista em Planejamento do Ensino de
Língua Portuguesa pela (FACHUSC/UPE, é também mestra em
Desenvolvimento Sustentável junto aos Povos e Terras Tradicio-
nais, pela UnB-DF.
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dou-se para a cidade, Salgueiro, onde trabalhou como empregada
doméstica até 1998. Iniciou a militância na luta em defesa da causa
quilombola na década de 1990, participando ativamente das ativi-
dades relacionadas à organização e ao desenvolvimento sustentá-
vel do território, inclusive do processo de fundação da Associação
Quilombola de Conceição das Crioulas – AQCC, em 2000, onde foi
eleita a primeira coordenadora geral.
Esse período foi determinante para o fortalecimento do sen-
timento de pertença às raízes ancestrais e a definição da minha
postura política perante a sociedade. Em 2001, foi eleita vice-pre-
sidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro, por
um mandato de dois anos. No decorrer desse período participou
de atividades voltadas para a defesa do direito ao acesso à terra
e à previdência social dos trabalhadores rurais. Iniciou a trajetó-
ria acadêmica em 2001, na Faculdade de Ciências Humanas do
Sertão Central – FACHUSC, no curso de Pedagogia, mas, devido a
uma série de dificuldades não conseguiu concluir e parou no quin-
to semestre em 2003. Nessa mesma instituição, em 2009, iniciou
o curso de História, mas mais uma vez não conseguiu chegar até o
final, em 2011 estava no quinto semestre quando precisou trancar
a matrícula.
Ela cursou o bacharelado em Serviço Social na Universidade
de Guarulhos – SP, no período de 2012 a 2015. Em 2017 iniciou o
Mestrado em Sustentabilidade Junto a Povos e Territórios Tradicio-
nais-MESPT - Universidade de Brasília-UNB, e concluiu em 2019.
A sua trajetória é marcada pela participação na luta em defesa da
causa quilombola, e esta participação inspirou o tema do seu Tra-
balho de Conclusão do Curso de Serviço Social: A liderança das mu-
lheres na luta pela regularização fundiária do Território Quilombola
de Conceição das Crioulas. É mestra em Desenvolvimento Susten-
tável, área de concentração em Sustentabilidade junto a Povos e
Terras Quilombolas - MESPT e por meio do mestrado, renovou o
compromisso na defesa dos direitos humanos com o objetivo de
contribuir para a emancipação do povo quilombola por meio da
luta pela efetivação dos direitos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
42
AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO NO CURSO DE DIREITO DA
UERN: ADEQUAÇÕES DOS DOCUMENTOS LEGAIS
INTRODUÇÃO
44
AS ADEQUAÇÕES CONSTITUÍDAS NO PLANO DE
DESENVOLVIMENTO INSTITUCIONAL (PDI) DA UERN: AS
POLÍTICAS DE INCLUSÃO E ATENDIMENTO ÀS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA NO CURSO DE DIREITO
45
de inclusão e atendimento às pessoas com deficiências
(CONSUNI, 2016, p. 15).
46
cular, suas necessidades e desafios que, muitas vezes, vão além da
deficiência.
Assim, nesse Programa, os alunos são acompanhados e os
professores fazem as adequações voltadas para as especificidades
de cada aluno, a partir de sua condição específica. Essa ação se dá
por meio de pareceres que foram estabelecidos no PDI, os quais
levam em conta as ações que vem dos trabalhos que são feitos
pelas divisões especializadas da DAIN, tais como: Divisão de Defi-
ciência Auditiva; Divisão de Deficiência Visual; Divisão de Psicolo-
gia; Divisão de Pedagogia e Divisão de Serviço Social.
No Programa, um parecer é construído para cada aluno aten-
dido. Esses documentos vão para as faculdades a fim de darem
subsídios para o trabalho dos professores, dos chefes de departa-
mento, dos diretores e do orientador acadêmico no que se refere
às adaptações. O reflexo positivo desta ação se dá na realização,
com sucesso, de uma das diretrizes disposta no PDI em que trata
do acompanhamento do acesso, da permanência e da conclusão
de cursos dos estudantes com deficiência.
Ainda sobre os objetivos presentes no PDI, destacamos a po-
lítica de internacionalização que corresponde à inserção interna-
cional das políticas de inclusão que está dentro do plano estratégi-
co de ação da DAIN, no PDI, construído a partir do final de 2013.
A ação teve como repercussão a disponibilidade para o departa-
mento de três convênios que estão sendo articulados com a Uni-
versidade de Flores (na Argentina), a Universidade de Medelín (na
Colômbia) e a Universidade de Marcelino Champagnat (no Peru).
Nesse caso, a ação está em conformidade com a diretriz que pre-
vê o estabelecimento de parcerias interinstitucionais com vistas ao
aperfeiçoamento dos serviços e das ações que visam à inclusão
das pessoas com deficiência. Destacamos algumas metas que es-
tão previstas no PDI (CONSUNI, 2016, p. 86) e que já estão em
desenvolvimento:
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A) promover a formação continuada de docentes, técnicos
administrativos e discentes, voltada para o atendimento es-
pecializado de pessoas com deficiência e para o fortaleci-
mento da cultura para a diversidade;
B) realizar seminários estaduais com vistas à discussão e à
socialização de estudos acerca da inclusão de pessoas com
deficiência;
C) desenvolver ações conjuntas, em especial com a PROEG,
PROEX, PROPEG e DAIN para execução de projetos e ações
de ensino, pesquisa e extensão, articulando-os a aos temas
relacionados à Educação em Direitos Humanos, promoção
da igualdade na diversidade étnico-racial, de gênero, sexual,
religiosa, de faixa geracional, à educação especial e à inclu-
são de pessoas com deficiência.
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2019, temos somente 178 discentes com deficiência, representan-
do 2,07% do total.
Os números revelam que ainda podemos evoluir em relação à
promoção das informações, sobre o cenário de recepção de discen-
tes com deficiência, na UERN, para que estas cheguem às pessoas
com deficiência. Sobretudo, quando verificamos que o Nordeste
possui o maior indicador, há cerca de 26,63%, de pessoas com de-
ficiência. Mas, em comparação com todo o país, os estados nordes-
tinos principalmente o Rio Grande do Norte e a Paraíba possuem o
maior número de pessoas com deficiência.
A localização geográfica da UERN exige uma atenção espe-
cial no que corresponde a inserção das pessoas com deficiência
no Ensino Superior. É exatamente deste ponto que, partindo do
exame do documento e, considerando as vivências de estudantes
com deficiência visual/cegueira, neste ambiente, nos últimos cinco
anos, no Curso de Direito, consideramos que, de maneira ampla, as
metas, diretrizes e ações contidas no PDI podem ser sentidas, no
cotidiano da instituição, pela pessoa com deficiência, em particular,
pelos discentes com cegueira.
O Regulamento dos Cursos de Graduação (RCG) da UERN,
aprovado pela Resolução nº 26/2017 do Conselho de Ensino, Pes-
quisa e Extensão, compõe um conjunto de normas para disciplinar
o funcionamento das graduações. O dispositivo tem como função
congregar as principais regras referentes à graduação dispondo,
em seu artigo I, que:
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de estudantes com deficiência no Ensino Superior, provocou nos
discentes o desejo em conhecer cada documento legal e buscar,
nestas fontes, os direitos e as garantias dessas pessoas e como o
tema da inclusão foi observado na elaboração de tal regulamento.
Em âmbito federal, a Portaria Normativa nº 20, de 21 de de-
zembro de 2017, ao dispor sobre os procedimentos e o padrão
decisório dos processos de credenciamento, recredenciamento,
autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de
cursos superiores, bem como seus aditamentos, nas modalidades
presencial e a distância. Acresce, das Instituições de Ensino Supe-
rior (IES) do sistema federal de ensino determina, em seu artigo 3º,
inciso III, que os pedidos de credenciamento e recredenciamento
terão como referencial, entre outros critérios, o plano de garan-
tia de acessibilidade, em conformidade com a legislação em vigor,
acompanhado de laudo técnico emitido por profissional ou órgão
público competentes. Tal recomendação, indica uma preocupação
com a acessibilidade e que a inclusão da pessoa com deficiência
deve ser observada, em todo ambiente na universidade, inclusive
na elaboração das normas internas.
Com base na leitura, constatamos que, de maneira direta, o
Regulamento dos Cursos de Graduação da UERN trata da pessoa
com deficiência somente no capítulo da integralização curricular
quando, no artigo 54, prescreve que:
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mórbidas, determinando distúrbios agudos ou agudizados
que importem em redução da capacidade de aprendizagem,
comprovado mediante avaliação da Junta Médica do Estado
do Rio Grande do Norte ou de Junta Multiprofissional insti-
tuída no âmbito da UERN (CONSEPE, 2017).
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inserção, nos conteúdos programáticos que tenham relação com a
temática sobre a pessoa com deficiência nos respectivos campos
de conhecimento. Esta ideia tem como objetivo produzir e disponi-
bilizar conhecimento sobre as políticas de inclusão na perspectiva
da educação inclusiva. Seja na oferta de disciplinas correlatas ao
tema ou na inclusão do conteúdo nas disciplinas existentes.
Sobre o Programa Geral do Componente Curricular (PGCC),
o artigo 38 dispõe que o PGCC deve conter a apresentação da ati-
vidade, ementa, objetivos, conteúdo, metodologia, procedimentos
de avaliação da aprendizagem e bibliografia (UERN, 2017). Com
relação à metodologia presente no PGCC, o referido texto deve-
ria ter como acréscimo que, na elaboração e execução da meto-
dologia, as condições de acessibilidade sejam sempre respeitadas.
Adiante, no capítulo que aborda o Projeto Pedagógico de Curso,
verificamos que o artigo 46 prescreve que:
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no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com
deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponí-
veis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibili-
dade adotadas internacionalmente (CONSEPE, 2012).
53
O DESENVOLVIMENTO PESSOAL E PROFISSIONAL DE
ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA VISUAL/CEGUEIRA DO
CURSO DE DIREITO: O QUE DIZEM OS DOS DOCUMENTOS
LEGAIS SOBRE AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO DA UERN?
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A partir do momento em que a FAD recebe um discente com
algum tipo de deficiência, estabelece meios para a permanência e
formação deste, incentiva as ações de inclusão, oferece-lhe as fer-
ramentas para a autonomia e sua formação profissional e social. A
incumbência, ora apresentada, ganha significado especial quando,
no Curso de Direito, estudantes com deficiência estudam os fenô-
menos das injustiças e desigualdades.
Percebemos, então, que a tarefa inclusiva, no PPC, se apre-
senta por meio de uma postura reflexiva, crítica e propositiva. Tan-
to é assim, que esse estudo é desenvolvido a partir da vivência de
estudantes com deficiência visual/cegueira instigados a discutir a
inclusão como tema primário no corpo dos documentos que or-
bitam o Curso de Direito. Com efeito, a formação profissional com
ampla percepção humanística e visão global que habilite a com-
preender o meio social, político, econômico e cultural no qual es-
teja incluso/a o/a egresso/a, corresponde à concepção e finalidade
que perpassam o PPC da FAD.
O instrumento legal dispõe que se constituem objetivos do
Curso de Direito da FAD/UERN, entre outros, estimular os discen-
tes a desenvolverem sua formação humana e plural, propiciando-
-lhes a descoberta de suas potencialidades e afinidades, impres-
cindíveis à sua afirmação e desenvolvimento integral. O propósito
supracitado, se aplicado em obediência aos ditames da inclusão, os
estudantes com deficiência terão capacidade de desenvolver, em
sua plenitude, suas potencialidades. Acrescentamos que o intento
representa a aplicação do princípio constitucional da igualdade ra-
tificado na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), nos termos do artigo 4º,
toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportuni-
dades como as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de
discriminação (BRASIL, 2015).
A despeito do PPC, o aperfeiçoamento do documento exi-
ge, em sua atualização, a exteriorização das medidas de inclusão
a serem adotadas no Curso de Direito. A intenção coaduna com
o princípio da pluralidade que parte da concepção de que a rea-
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lidade é complexa, logo a formação profissional deverá estar em
consonância com uma visão de abertura para novas abordagens
teóricas e metodológicas, que respeitem a convivência e a comple-
mentaridade dos paradigmas, em conformidade com a natureza
do objeto de estudo. Quando adequadas, as medidas contribuem
para o desenvolvimento das habilidades compreendidas no Proje-
to Pedagógico. Consequentemente, o profissional formado, nessas
condições, estará incluído nos ditames do que propõe a filosofia
que orienta a organização curricular do Curso de Direito.
Portanto, teremos então, um especialista que, ainda que com
algum tipo de deficiência, estará em condição de competência
técnica e comunicativa para atuar com eficiência, podendo seguir,
com qualidade e autonomia, a carreira jurídica pertinente ao ba-
charel em Direito. O PPC da Faculdade de Direito, quando da sua
atualização, deverá atentar para essa realidade em que admite uma
pluralidade de sujeitos que estão inserindo-se no Ensino Superior.
A exemplo do que citam Garcia e Beaton (2004) a educação dos
alunos com algum tipo de deficiência, só começou a se modificar
efetivamente na Idade Contemporânea, com a construção de es-
colas especializadas, cujo papel fundamental era o desenvolvimen-
to desses indivíduos. Nesta perspectiva, esses alunos eram enca-
minhados para as escolas mediante a sua especificidade.
Com isso, foi possível avançar nas pesquisas para se estudar
de onde advinham suas limitações, se de fatores neurológicos, bio-
lógicos ou fisiológicos. Os estudos nessa área permitiram que as
escolas especializadas adaptassem sua realidade de sala de aula,
oferecendo metodologia, materiais e estratégias diferenciadas,
com o objetivo de aprimorar as práticas pedagógicas. E foi só na
década de 1990, que teve início um amplo movimento nas escolas
regulares denominado de inclusão, que visa a união de todos os
alunos, com e sem deficiência, em um mesmo espaço de ensino-
-aprendizagem, com o objetivo de promover a integralização de
saberes e culturas (GARCIA; BEATON, 2004).
Assim, dedicar uma atenção especial a esse tema é aproxi-
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mar-se às legislações modernas. A saber, o Conselho Nacional de
Justiça (CNJ), na Resolução de nº 230, em seu artigo 19, determi-
nou que os editais de concursos públicos para ingresso nos qua-
dros do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares deverão pre-
ver, nos objetos de avaliação, disciplina que abarque os direitos das
pessoas com deficiência (CNJ, 2019). Assim, o estudo das normas
voltadas à proteção dessas pessoas constitui obrigatoriedade. Em
que pese esta tendência, a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de
2018, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de graduação em Direito, de 2018, no artigo 2º, § 4º determina:
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mento das políticas que valorizam as ações de acessibilidade no
Curso de Direito da UERN. Assimilando as ideias, todo aquele que
ler e interpretar os documentos legais que apontam para a neces-
sária construção dos projetos pedagógicos terá, nesse documento,
um guia que orientará na elaboração e na execução dos projetos
voltado para este fim. Uma das questões centrais remete às ade-
quações curriculares, avaliativas, metodológicas e de tempo, para
que os estudantes com deficiência tenham seu desempenho com
qualidade. Ampliar a aprendizagem e conhecimento, através das
adequações, acima elencadas, significa inúmeros avanços e bene-
fícios aos discentes e elevação da qualidade no acesso, acompa-
nhamento que repercutirão no mercado de trabalho, quando da
conclusão do Curso.
Aproveitamos para assinalar a pertinência e fundamental im-
portância de uma maior aproximação da Faculdade de Direito com
a Diretoria de Políticas e Ações Inclusivas (DAIN/UERN) quanto
aos seguintes espaços que essa diretoria cultiva: 1. Laboratório de
Acessibilidade e Inclusão, com vistas à acessibilidade na perspec-
tiva da efetivação de ações e políticas direcionadas aos estudan-
tes com deficiência; 2. Oferta de cursos de formação continuada
em Educação Inclusiva, e cursos de Informática para pessoas com
deficiência, com a perspectiva de autonomia e independência na
utilização de recursos do sistema de tecnologia da informação para
atender às suas necessidades; 3. Políticas para a Internacionaliza-
ção/Inserção Internacional das Políticas de Inclusão da UERN,
com vistas à criação de uma rede interuniversitária, na América La-
tina, para a efetivação de direitos das pessoas com deficiência e
necessidades educacionais especiais; 4. Implantação do Núcleo de
Atenção Educativa à Família (NAEF) para atendimento às famílias
com vistas à inclusão de pessoas com deficiência e/ou necessida-
des educacionais especiais, na perspectiva da efetivação das ações
e políticas direcionadas aos alunos ingressantes, semestralmente,
na UERN e, os discentes com deficiência e/ou necessidades educa-
cionais especiais que estão em curso.
58
Quando nos reportamos à importância da FAD em estabele-
cer maior diálogo com a DAIN, significa que terá parceria com uma
equipe que trabalha com a legislação federal específica para pes-
soas com deficiência e com a missão de estabelecer as políticas de
inclusão voltadas para a diversidade humana. Na Convenção Inter-
nacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovado
pela ONU, em 2006, assinada pelo Brasil, em 2008, como Estado
Parte Signatário como um documento internacional que norteia
suas ações, temos a orientação sobre a responsabilidade da inclu-
são no Ensino Superior.
Entretanto, se efetiva por meio de ações que promovam o
acesso, a permanência e a participação dos alunos. Estes procedi-
mentos, envolvem o planejamento e a organização de recursos e
serviços para a promoção da acessibilidade arquitetônica, nas co-
municações, nos sistemas de informação, nos materiais didáticos e
pedagógicos, que devem ser disponibilizados nos processos sele-
tivos e no desenvolvimento de todas as atividades que envolvam
o ensino, a pesquisa e a extensão. No tocante à LBI, com a mesma
ressalva sobre o alinhamento das ações da DAIN com o que pres-
creve a referida lei, em seu artigo 27, temos que:
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e promovam a inclusão plena (BRASIL, 2015). Ainda, que esses
institucionalizem o atendimento educacional especializado, assim
como os demais serviços e adaptações razoáveis para atender às
características dos estudantes com deficiência e garantir o seu ple-
no acesso ao currículo em condições de igualdade, promovendo a
conquista e o exercício de sua autonomia.
Os efeitos da execução das políticas de inclusão, no Ensino Su-
perior, vão além da qualidade no processo de ensino e aprendiza-
gem. Quando implantadas, tais medidas têm o mérito de formarem
profissionais capacitados para exercerem uma atividade compatí-
vel com sua formação permitindo, assim, a estas minorias a fruição
de direitos sociais como o do trabalho. Tomando como exemplo
os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Mi-
nistério do Trabalho, verificaremos que, em 2016, 418.521 (0,91%)
de pessoas com deficiência estavam formalmente no mercado de
trabalho. Os dados ampliam a responsabilidade das instituições na
qualificação com excelência destas pessoas.
Por mais primorosa que seja, nenhuma regra legal terá, por
si só, a força necessária para transformar a realidade. De acordo
com Nader (2014, p. 52), “[...] se o homem em sociedade não está
propenso a acatar os valores fundamentais do bem comum, de vi-
vê-los em suas ações, o Direito será inócuo, impotente para realizar
a sua missão”. É nesse ponto que sustentamos que a luta das pes-
soas com deficiência, em todos os âmbitos, incluído o do ambiente
acadêmico, só será efetivo em sua plenitude quando valorizarmos
as relações sociais. É no cotidiano e por meio das vivências que a
norma se concretiza. Já não é mais um comando disposto na so-
lidão da lei, mas, uma relação entre assistentes e assistidos, quem
ensina e quem aprende. Sobretudo, uma troca de experiências que
nenhuma norma será capaz de prever, em sua integralidade, as pe-
culiaridades desta relação humana.
Outro fator para ser levado em conta na efetivação desses
direitos, é a destinação no orçamento de recursos para as tais po-
líticas. A ampliação destas políticas passa, impreterivelmente, pela
60
dimensão dos recursos financeiros. Por intermédio da administra-
ção em todas as esferas de poder, o poder público deve ter como
prioridade o incentivo às políticas de inclusão. Aplicada nas insti-
tuições de Ensino Superior essa ideia condena qualquer retrocesso
nos investimentos destinado às instituições. Nesse nível de ensino,
a educação inclusiva demanda formação profissional, adaptações
nas estruturas nos campis, além da aquisição de equipamentos e
serviços adaptados. Por mais que disponhamos da boa vontade
dos que atuam diretamente no atendimento aos discentes com
deficiência, ainda que os documentos legais prevejam, em sua in-
tegralidade, a obediência aos preceitos da inclusão, sem o incenti-
vo financeiro necessário, a execução das políticas de inclusão ficará
comprometida.
Superado a questão dos recursos orçamentários, enfatizamos
o papel da sociedade na efetivação destes direitos. A previsão des-
ta repartição de responsabilidades, como já prescreve a LBI, no
artigo 27, parágrafo único, é dever do Estado, da família, da comu-
nidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade
à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de
violência, negligência e discriminação (BRASIL, 2015). São esses
protagonistas, nesse processo inclusivo que concretizam as reco-
mendações dispostas nos documentos que permitem a universi-
dade ser reconhecida como um ambiente inclusivo.
Portanto, é fundamental a participação das pessoas com de-
ficiência na elaboração dos documentos que dizem respeito aos
seus direitos e, na tomada de decisões sobre as políticas de in-
clusão. Foi nesta tendência que o Comitê das Nações Unidas, em
2018, publicou uma nova orientação legal como comentário geral
nº 7, na Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.
Em seu comentário geral, o Comitê destacou que, quando pessoas
com deficiência são consultadas, isto leva a leis, políticas e progra-
mas que contribuem para sociedades e ambientes mais inclusivos
. Esta orientação traduz o núcleo fundamental do lema “Nada so-
bre nós sem nós”, base central dos movimentos de direitos das
61
pessoas com deficiência. É oportuno salientar, que em 2016, por
intermédio da DAIN, a UERN participou da elaboração do PDI an-
tecipando, assim, tal recomendação.
A partir da leitura da legislação do PDI, RCG e do PPC, do
exame do ordenamento externo e, acima de tudo, das experiências
vividas pelos estudantes com cegueira do Curso de Direito, desta-
camos que, se queremos alcançar a excelência, em sua plenitude,
na execução das políticas voltadas para a inclusão da pessoa com
deficiência, precisamos reconhecer que uma série de fatores con-
corre para a realização destes objetivos. Assim, aguardemos que
toda e qualquer lacuna identificada no exame desses documentos
legais e nas atualizações, elaborações e execuções que há por vir,
tenha a marca desse estudo: propositivo, por vezes, crítico. Mas,
sobretudo, fruto de vivências exitosas no Curso de Direito desses
estudantes com cegueira.
Outros documentos que não foram objeto de exame preci-
sam ser atualizados, como a nosso ver, é a Lei Complementar nº
389, de 30 de junho de 2009, do Estado do Rio Grande do Nor-
te que cria cargos públicos de provimento efetivo vinculado ao
Quadro de Pessoal da Fundação Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte (UERN, 2009). Trata-se de um documento que
precisa ser estudado e atualizado, a partir de uma leitura contem-
porânea, pois há cargos, hoje, que são necessários para o atendi-
mento a pessoas com deficiência e que não se encontram listados
na referida Lei Complementar. Esse aspecto provoca barreiras para
a contratação de profissionais para a área da Deficiência Visual e
outras deficiências cuja atribuição não está listada na supracitada
Lei Complementar.
Consideramos um exercício urgente, a saber, da leitura e atua-
lização de documentos buscando uma revisão e adequação de car-
gos em alinhamento com as categorias das deficiências que estão
listadas no Decreto Federal nº 3.298 de 1999, e amparadas pela LBI
de 2015, uma vez que é dever concretizar ações para a quebra de
barreiras, físicas, arquitetônicas, atitudinais, procedimentais e con-
ceituais.
62
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
63
REFERÊNCIAS
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org/acao/pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 10 de ago. de 2019.
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Deficiência. Publicado no Diário Oficial da União em 21 de dezembro de 1999. Brasil
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Pessoa com Deficiência). Publicado no Diário Oficial da União em 07 de julho de 2015. Brasil
BRASIL. Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2018. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais
do Curso de Graduação em Direito e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em:
<http://www.in.gov.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
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tatuto da Pessoa com Deficiência). Publicado no Diário Oficial da União em 07 de julho de 2015.
Brasil
CENSO IBGE: quem são as pessoas com deficiência no Brasil? Rede juntos – plataforma digital.
Disponível em: <https://wiki.redejuntos.org.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
CONSELHO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (Consepe). Resolução nº 26, de 28 de junho de
2017. Aprova o Regulamento dos Cursos de Graduação da UERN e revoga a Resolução nº 5/2014
–CONSEPE. Disponível em: <http://www.uern.br/>. Acesso em: 17 de set. De 2019.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Resolução nº 230, de 22 de junho de 2016. Disponível
em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n230-22-06-2016-presidncia.pdf>.
Acesso em: 17 de set. de 2019.
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ponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/direito/convencao-internacio-
nal-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia/61226>. Acesso em: 12 de ago. de 2019.
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2019. Disponível em: <http://www.uern.br/uernemnumeros/default.asp?item=uern-numeros-ensi-
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GARCIA, Maria Teresa; BEATON, Guilherme Aries. Necessidades Educativas Especiais: desde o
enfoque histórico – cultural. São Paulo: Linear B, 2004.
MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira; NETO, Otávio Cruz. Pesquisa Social:
Teoria, método e criatividade. 21.ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
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NÚCLEO de Prática Jurídica. Faculdade de Direito. Disponível em: <http://fad.uern.br/>. Acesso em:
10 de ago. de 2019.
PLANO de Desenvolvimento Institucional. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Pro-
jetando o futuro da universidade: 2016/2026. Aldo Gondim Fernandes (organizador). – Mossoró/
RN, 2016. Disponível em: <http://www.uern.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
PROJETO Político Pedagógico do Curso de Direito. Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte. Disponível em: <http://www.uern.br/>. Acesso em: 18 de set. de 2019.
PROPOSTA Pedagógica Curricular. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Disponível
em: http://www.uern.br/>. Acesso em: 17 de set. de 2019.
64
BATALHA DO PEDREGAL: SABERES E FAZERES JUVENIS
COMO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DA
CIDADE DE CAMPINA GRANDE
INTRODUÇÃO
66
dezembro de 1769, por decreto do Bispo de Olinda Dom Francisco
Xavier Aranha (DIOCESE DE CAMPINA GRANDE, 2020), também
foi citado o primeiro Hospital Dom Pedro I, também localizado na
cidade de Campina Grande, que foi construído através de mem-
bros da Loja Maçônica Regeneração Campinense, por meio de
uma doação de terreno em meados da década de 1920, iniciando
a sua construção em 7 de setembro de 1936 (JESUS, 2018, p. 34).
Acredito que o exemplo dessa aula nos apontou para o que
ocorre na sociedade, pois quando se fala de patrimônio de ime-
diato ressalta-se estas ambiências, porque no imaginário coletivo
pensar patrimônio refere-se a edifícios, monumentos e igrejas an-
tigas. Entretanto, geralmente, não se pensa que no bairro, institui-
ções da comunidade como, a Sociedade de Amigos de Bairro, e a
própria escola na qual esses indivíduos estão inseridos, também
são patrimônios.
Esse fato nos aponta para a ausência/silenciamento, ou mes-
mo poucas discussões dentro/fora do cotidiano escolar, sobre
outros patrimônios, sejam eles materiais ou imateriais, que fazem
parte de uma comunidade e da trajetória das vidas quem nela vi-
vem. Outros aspectos que nos mostra a necessidade da escolar se
retratarem sobre os múltiplos lugares da cidade e seus sujeitos,
para que não se vivencie práticas reducionistas, apontando como
enfatiza Adichie (2007), para uma história única, cuja narrativa seja
construída a partir de determinados sujeitos e práticas.
Enfatizamos a importância de referenciar os saberes coletivos
elaborados nas comunidades periféricas, pautando o foco no pa-
trimônio e a sua inclusão escolar para que sejam vivenciados por
crianças, adolescentes e jovens na escola, permitindo assim outros
tratamentos acerca das possibilidades de pensar o patrimônio.
O objetivo desse trabalho é discorrer sobre a importância
desse movimento cultural para o processo de reeducação dos jo-
vens dessa comunidade, especificamente como forma de dialogar
com a juventude e elucidar a problemática do direito à cidade e,
consequentemente, aos espaços de lazer e cultura.
67
A intenção é mostrar a Batalha do Pedregal para a cidade de
Campina Grande – PB e, principalmente, para a juventude perifé-
rica da cidade e apresentar as suas atividades, ressaltando a ne-
cessidade de reconhecê-la como patrimônio cultural imaterial da
cidade. Para esse trabalho utilizamos os estudos de Nathalia Maia
Martins (2019), Natália Guerra Brayner (2007) e Anna Paula Ferraz
Dias Vieira (2018). Do ponto de vista metodológico, a nossa pes-
quisa é bibliográfica e documental.
68
Independentemente dos mais diversos significados que
possam ser atribuídos a uma manifestação ou bem cultu-
ral, considera-se patrimônio aquele que é reconhecido pelo
grupo social como referência de sua cultura, de sua história,
algo que está presente na memória das pessoas do lugar e
que faz parte do seu cotidiano (BRAYNER, 2007, p.14-15).
69
era em bens móveis, arquitetônicos, conhecidos como monumen-
tos de pedra e cal.
Outro fato é que “povos ocidentais, por outro lado, evidencia-
ram por muito tempo com mais veemência, a conservação de seus
patrimônios tangíveis”. (MARTINS, 2019, p.60). Por muito tempo,
as manifestações populares foram cada vez mais negligenciadas
como, por exemplo, o próprio Maracatu, que já era existente desde
o século XIX no Brasil, e também o Hip-Hop, não foge dessa reali-
dade.
Os avanços a respeito do patrimônio imaterial no Brasil tor-
naram-se bastante significativos na década de 1970, durante o
mandato de Emílio Garrastazu Médici. Neste momento, o Brasil,
no curso de uma ditadura, sofria uma crise econômica com a altas
taxas de inflação e aumento da dívida externa, além do chamado
arrocho salarial, o que, consequentemente, gerou uma queda nas
políticas públicas por falta de investimento estatal.
A partir de então, começou a ser pensando a respeito da mo-
dernização do conceito de preservação, ou seja, a ideia de patri-
mônio passou a ser debatida de uma forma mais ampla, o motivo
principal disso era para fomentar o turismo como uma das válvulas
de escape para a crise na qual o Brasil estava inserido (INSTITUTO
DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO, 2006).
A consequência disso foi uma descentralização sobre patri-
mônio e uma grande influência da Organização das Nações Uni-
das para a Educação, a Ciência e a Cultura. Ocorreu também em
outubro de 1971 o II Encontro dos governadores para preservação
do Patrimônio histórico, artístico, arqueológico e natural do Brasil,
que gerou o compromisso de Salvador, na Bahia, onde saíram vá-
rias propostas, entre elas o objetivo de inscrição como monumento
de valor cultural, o acervo urbano de Lençóis -(Bahia), criação do
Parque Histórico da Independência da Bahia na cidade de Pirajá
(Bahia), criação do Museu do Mate na cidade de Campo Largo (Pa-
raná), entre outras medidas.
Outra medida desenvolvida pelo governo, neste momento, foi
70
o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do
Nordeste (1973), que tinha como objetivo investir para recuperar o
patrimônio cultural urbano, na perspectiva de aumentar o turismo
para o desenvolvimento econômico local e regional. O que gerou
bastante críticas ao longo do desenvolvimento desse programa,
pois era dito que o financiamento era destinado apenas a grandes
engenhos e não as demais manifestações populares que possuíam
e possuem bastante importância na região nordestina do Brasil.
O grande fato muito importante na década de 1970 foi, prin-
cipalmente, o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), fun-
dado em 1975, que tinha como seu presidente o Aloísio Magalhães,
um grande designer gráfico, que já tinha desenvolvido uma análise
das transformações socioculturais brasileira, novos modelos alter-
nativos de cultura e um reconhecimento artístico sobre o artesa-
nato (BRAYNER, 2007, p.10). E no ano de 1979, o CNRC é fundido
a SPHAN, o que gerou um grande avanço nesse órgão, pelo olhar
inovador que o CNRC possuía.
Toda essa nova movimentação que ocorreu na década de
1970, no Brasil, foi essencial, pois trouxe novos debates a respei-
to do que era patrimônio. Outra grande conquista foi através da
Constituição Federal de 1988, especificamente em seu Art. 215, que
descreve o seguinte “O Estado garantirá a todos o pleno exercí-
cio dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais” (BRASIl, 1988) e o Art. 216 diz que:
71
de povos que sempre foram colocados à margem da sociedade,
e também apresentou resultados como, por exemplo: o Decreto
3.551, de 04 de agosto de 2000, que institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial e a criação do Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial.
E deram a responsabilidade ao Estado de está auxiliando atra-
vés de editais, registro e acompanhamento continuo dos espaços
de patrimônio cultural imaterial, para auxiliar nas dificuldades exis-
tentes e reforçar a importância desses espaços, culturas e forma de
manifestar arte para a população.
72
gamos à conclusão que algumas das suas ações eram modifica-
das conforme o momento, por justamente o bairro precisar des-
sa alteração, afinal o território no qual a batalha está inserida “[...]
pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações
de poder, do poder mais material das relações econômico-políticas
ao poder mais simbólico das relações de ordem mais estritamente
cultural” (HAESBAERT, 2007, p.27). Compreender essas relações é
necessário para que o projeto que a batalha montou, seja efetivo,
de fato, na sociedade.
Nesse contexto, a Batalha do Pedregal seguiria uma linha em
suas modalidades como ocorrem em outras batalhas ligadas ao
Movimento hip hop, no Brasil, onde atuam com a batalha de sangue
e batalha de slam. Porém, a organização da batalha do pedregal, a
observar a realidade em seu entorno, percebeu e analisou que um
dos seus públicos, no caso eram as crianças, possuía um sentimento
muito forte pela dança, especificamente o passinho do brega funk.
Logo, a modalidade do passinho foi inserida na batalha do pedregal,
que atualmente integra em sua organização as modalidades de ba-
talha do conhecimento, batalha de slam e passinho, se diferenciando
de todas as batalhas que ocorrem na cidade de Campina Grande-
-PB.
Foi analisado pela organização da Batalha do Pedregal, que o
bairro no qual eles estão inseridos, sempre sentiram uma grande
necessidade de terem acesso às atividades culturais. Afinal, é mui-
to típico do Estado privilegiar o centro da cidade e sua população,
restando apenas aos outros territórios buscarem, por si só, uma
inovação ou saída para os seus problemas. Então, a Batalha do Pe-
dregal tornou-se um meio para solucionar alguns problemas que
a favela do Pedregal sofre em seu cotidiano, logo, a organização
da Batalha do Pedregal assume não somente um caráter cultural,
mas educacional e também de movimento para auxiliar, lutar e de-
fender o território que eles estão inseridos, inclusive, da descons-
trução da imagem negativa que o bairro possui pela construção
alheia, perante o restante da sociedade campinense.
73
Dessa maneira, a Batalha do Pedregal se popularizou o acesso
à cultura, através do RAP, Slam e Passinho, iniciando suas ativida-
des em 26 de junho de 2019. E quando é trabalhado sobre cultura,
é importante salientar o que discorre a doutora em antropologia
social, María de Lourdes Arizpe Schlosser;
74
espaços onde os rappers e slammers habitam. Tal como o gran-
de trabalho que os rappers e slammers negros (as) brasileiros (as)
vêm desenvolvendo ao longo de suas carreiras, de descontruírem
aquela história luso-brasileira e História Única (ADICHIE, 2007),
além das suas contribuições para o empoderamento e autoestima
do povo preto.
O rap e o slam tornam-se essenciais para a construção da
memória social, coletiva e individual, das pessoas da comunidade
e dos protagonistas que fazem parte da batalha, artistas que preo-
cupados com as questões sociais, elaboram uma arte cujo alcance
social e cultural é notadamente sentido na comunidade.
É a memória dos acontecimentos e dos fatos que pode ser
analisada com os acontecimentos das batalhas e aquilo que as
letras e poesias do slam denunciam, após as informações serem
armazenadas nessa população, é criado a possibilidade da com-
preensão dos fatos sobre a vida, “desde um ponto de vista prático,
a memória dos homens e dos animais é o armazenamento e evo-
cação de informação adquirida através de experiências; a aquisi-
ção de memórias denomina-se aprendizado” (IZQUIERDO, 1989,
p. 89).
Não se deve esquecer a continuidade que as atividades cultu-
rais desenvolvidas pela Batalha do Pedregal possuem, o que leva a
reflexão “como pelo efeito de uma filiação contínua, o sentimento
de nossa identidade” (CANDAU, 2019 apud HALBWACHS, 1994,
p. 16-17). Ou seja, geram contribuições também para a identidade,
que é formada pela constante afirmação de significados e pelas
contribuições pertencentes as letras de Rap e Slam.
75
um engajamento maior dentro do hip hop” (LIMA, 2016, p.57).
Os organizadores da Batalha, ao perceberem a recepção das
mulheres nas atividades, passaram a desenvolver ações que tives-
sem a participação feminina, a partir daí, pensaram uma nova for-
ma de incluir as meninas para ocuparem os espaços da Batalha.
Organizaram uma Oficina de autocuidado direcionado para o pú-
blico feminino, inicialmente no dia 27 de julho de 2019, dando con-
tinuidade no dia 01 de setembro de 2019, entre outras atividades,
conforme percebe-se na figura 1 abaixo.
Figura 1
76
Figura 2
77
estudado”. Vale destacar que a frase vai totalmente de encontro
com as próprias inscrições do SENAI, divulgada pela Batalha. Ade-
mais, atividade importante da batalha será relatada através de uma
imagem abaixo:
Figura 3
78
roda de conversa intitulada “Movendo Estruturas – Ação 1, Saúde
mental e mulheres negras”, atividade realizada pela Batalha do Pe-
dregal, Projeto Enegrecida e GELEN-CG (Grupo de Estudos Literá-
rios em Escrituras Negras), que convidaram as psicólogas Inaiana
Gama e Beatriz Trajano, no dia 25 de julho de 2020.
Trabalhar a questão da saúde psicológica dentro da periferia
é essencial. É notório a grande dificuldade da existência da saúde
mental dentro desse espaço, afinal, como haver saúde mental em
espaços que há tantas famílias desempregadas? Como sorrir ao ver
seus filhos (as) presos injustamente? Ou até mesmo sem condições
para comprar alimento para dentro de casa? Principalmente, nessa
relação do desemprego que majoritariamente atravessam corpos
pretos e pretas.
“A falta de reconhecimento pode gerar o ressentimento, uma
vez que elementos como autoestima e orgulho são também for-
madores de identidades”. (ARMOND, 2016 apud ADAMEC, 2014:
p. 94). Logo, se a autoestima e o orgulho são também essências
para a construção da identidade, a Batalha do Pedregal é certeira
em organizar rodas de conversas na perspectiva de diluir os danos
causados pelo racismo na sociedade, afinal, é alimentar a busca
pelo reconhecimento da identidade preta, que diariamente ela é
roubada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
79
que Cidinho e Doca discorrem em sua música “Eu só quero é ser
feliz”, ao mencionarem que “ o povo tem a força, precisa descobrir/
Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”.
Na perspectiva do patrimônio cultural imaterial, a própria
Constituição Federal de 1988, em seu art. 215, inciso § 1º, discor-
rer “O Estado protegerá as manifestações das culturas populares,
indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório nacional” (BRASIL, 1988). E em seu art.
216 constituem como patrimônio as formas de expressões. Logo,
entendemos a necessidade do reconhecimento da Batalha do Pe-
dregal como Patrimônio cultural e imaterial da cidade de Campina
Grande, por cumprir com funções tão essenciais para a comuni-
dade, além de desenvolverem gigantescos trabalhos sem nenhum
suporte estatal. Já há um grande reconhecimento desse movimen-
to, não apenas para os moradores do bairro do Pedregal, mas tam-
bém para outros cidadãos da cidade cabe as autoridades cumpri-
rem com a sua reponsabilidade.
REFERÊNCIAS
80
A LIBERDADE NA APRENDIZAGEM AMBIENTAL CIGANA DOS
MITOS E RITOS KALON
APRESENTANDO A TRILHA
1
Pós-doutorando do Laboratório de Comunicação e Saúde (LACES) e do Programa de Pós-gradua-
ção em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS), do Instituto de Informação e Comunicação
Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, Rio de Janeiro).
Email: luiju25@gmail.com.
2
A estimativa é de que hoje a comunidade já chegou a 400 pessoas.
ganas, sejam eles caóticos ou harmoniosos. O conto de Lena3 e o
drama da morte no fogo foram a porta de entrada da pesquisa,
ancorada em Gaston Bachelard e a “psicanálise do fogo”.
A Educação Ambiental (EA) pós-crítica proposta por Sato,
Passos e Tristão consolidou um diálogo fluídico e dialógico, além
de oferecer os métodos qualitativos, inscritos numa etnografia de
cunho participante, já que pertenço ao grupo pesquisado. Portan-
to, de cunho híbrido, a metodologia garantiu três dimensões feno-
menológicas: (a) os espaços identitários subjetivos de cada sujeito
(monoculturalismo – EU); (b) as lutas das tribos, guetos ou grupos
(multiculturalismo – OUTRO); e (c) a capacidade inventiva de per-
ceber o mundo para além de nossas próprias lutas, assumindo o
tecido emaranhado do mosaico internacional (interculturalismo –
MUNDO).
A viagem pela mitologia cigana tem início pelo capítulo 1, ao
qual denominei: “Universo Primodial – as lascas da madeira”. Nele
comecei com a história de Lena, inseri os caminhos trilhados, utili-
zando-me da primeira pessoa no singular (EU), situando cenários,
acenando dúvidas, ironias e metáforas ciganas, na identidade de
quem constrói os sentidos e significados de esperança em uma
pesquisa em Educação Ambiental. Nesta primeira parte apresentei
um retrato do fio condutor que me conduziu ao universo da pes-
quisa, pincelando objetivos e hipóteses, assinalando a metodolo-
gia e oferecendo alguns resultados. Além disso, também esbocei
como concebi a articulação da pesquisa em cinco capítulos, forne-
cendo pistas por onde projetei este caminhar.
No capítulo dois – Universo em Chamas – o oxigênio da com-
bustão apresentei os objetivos da pesquisa, uma historiografia ci-
gana, começando no geral, na origem, passando pela história do
mundo, focalizando os cenários brasileiros e a diversidade de gru-
pos ciganos existente no Brasil, anunciando pré-conceitos, exclu-
são social e esclarecendo acerca de alguns estereótipos que ron-
dam o “Universo Cigano”.
3
Recomendo fortemente que para melhor compreensão do capítulo leiam o Conto de Lena na dis-
sertação, pois tudo fará mais sentido a partir desta leitura.
82
A discussão neste capítulo, ainda se configurou como uma
oportunidade de apresentar todas as dúvidas e perguntas iniciais
da pesquisa e hipóteses orientadoras do processo de construção
teórico da dissertação. O suporte metodológico da Educação Am-
biental (EA) trazido nesta parte ajudou a traduzir a Identidade Ci-
gana de meu grupo a partir da discussão sobre o desenvolvimento
sustentável x sociedades sustentáveis e os paradigmas epistemo-
-metodológicos da EA, que evidenciaram uma importante porta
de entrada no diálogo com a mitologia.
As metodologias (híbridas) foram explanadas, conceituadas
e entrelaçadas no capítulo 3 – Universo Dançante – As Fogueiras
Ciganas. Nesta parte da pesquisa, evidenciei a dimensão do mé-
todo investigativo da Pesquisa Qualitativa, que ancorada na me-
todologia fenomenológica, ajudou na interpretação da dimensão
prática da pesquisa, que ocorreu a partir de uma etnografia junto a
um grupo Kalon. Por pertencer a este universo, o objeto tornou-se
sujeito de uma observação participante.
Na primeira parte deste capítulo fiz um esboço dos caminhos
percorridos na pesquisa a partir da questão metodológica, refor-
çando o passo a passo da coleta de dados, com a elaboração e
aplicação das entrevistas em áudio. Na segunda parte construí um
entrelaçamento entre a metodologia escolhida. Aqui a utilização da
literatura e da mitologia cigana me ajudou a justificar as escolhas
da etnografia, especialmente na questão do diálogo (observação
participante) entre a cultura cigana Kalon e a dimensão ambiental.
Considero o capítulo 4 – Universo Ígneo como o momento
em que todas as conjunções elaboradas anteriormente, culminam
na apresentação do modelo educacional familiar Kalon a partir da
interpretação do retrato mitológico de Lena e sua trágica morte no
fogo. O mito serve como valiosa fonte de ilustração de que os ele-
mentos culturais dos pesquisados estão diretamente ligados à di-
mensão ambiental, além de apontar que estão passando por uma
crise identitária que revela uma dupla face: a mestiçagem e o hi-
bridismo como uma forma de r-existência enquanto cultura; e, por
83
outro lado, uma degradação cultural promovida por uma ameaça-
dora padronização cultural. Utilizo esta forma de escrita ‘r-existên-
cia’, como um desvio poético para expressar a palavra resistência
de uma forma, como se fosse uma r-existência, de renascimento
da cultura, da própria identidade, no movimento contra o discurso
colonial.
Partindo do ponto de vista da interpretação educacional es-
bocei, sem me adentrar mais profundamente, os quatro importan-
tes eixos educacionais processuais na cultura Kalon, ligados aos
quatro elementos: o nascimento (água), o desenvolvimento (terra),
o casamento (fogo) e a morte (ar).
Pensei-os (todos) como centros-em-si. Onde pode haver um
deslocamento fluídico essencial, inversões e ambiguidades, além
de interações vertiginosas com elementos externos, isto é, àqueles
oferecidos pela cultura dominante. Uma vez que os quatro elemen-
tos são “símbolos ambivalentes da estrutura do imaginário”, como
diria Durand (2002), para quem os quatro elementos se configu-
ram como “arquétipos” que estruturam o pensamento.
84
Por sua vez, Arroyo (1991), aponta que os quatro elementos
estão presentes em várias culturas, tanto é que em um tratado
zen-budista de 1004, “os elementos tradicionais são representa-
dos como as quatro qualidades que compõem a criação: luz (fogo),
ar, fluidez (água) e solidez (terra)”. A porta de entrada na cultura do
grupo estudado é o elemento fogo (capítulo 4), uma vez que sua
manifestação nos mitos e ritos é latente e calorosa, especialmente
a partir de sua conexão estabelecida com a religiosidade. Os outros
três elementos, partes intrínsecas neste universo pulsante, são fun-
damentais para melhor compreensão do mundo cigano e foram
apresentados em três anexos.
No final do capítulo quatro, trouxe outro importante aspecto
na educação holística do grupo pesquisado: o eixo transversal e
cíclico da religiosidade. Sua principal artéria é o eixo religioso. Em
não tendo uma religião original, os Kalon dançam ao som do “sin-
crético” oferecido pelo sagrado (mítico) dos povos pelas regiões
por onde vivem, mas sem abandonar completamente o passado.
Há um reconhecimento de que Deus é universal e na aceitação
plena do destino humano como limitado, porém infinito a partir da
liberdade espiritual. Como observa Geertz (1989, p. 135) “as dispo-
sições que os rituais religiosos induzem” têm, assim, “seu impacto
mais ou menos importante”, do ponto de vista humano, “fora dos
limites do próprio ritual, na medida em que refletem de volta, co-
lorindo a concepção individual do mundo estabelecido como fato
nu”.
O capítulo 5 – Universo Em-Cantado – As cinzas para o renas-
cimento – traduz uma reflexão onde aponto mais limites e desafios
do que soluções propriamente ditas. Também é um momento de
desabafo em que a superação da morte no fogo é feita juntamente
com o fim da pesquisa, que simbolicamente significa um mergulho
novamente no vazio.
Segundo Bachelard (2001, p. 6), “no reino da imaginação, o
infinito é a região em que a imaginação se afirma como imaginação
pura, em que ela está livre e só, vencida e vitoriosa”. Para o autor
85
(IDEM), neste reino, “a toda imanência se junta uma transcendên-
cia”. Neste local, “a expressão poética ultrapassa o pensamento”.
Todavia, esta manifestação de transcendência, conforme aponta
o autor, por vezes aparece como “grosseira, factícia, truncada”, ou
“ilusória, vaporosa, dispersiva” e “para o ser que reflete é uma mi-
ragem”.
Mas essa miragem fascina. Encerra uma dinâmica especial
que é já uma realidade psicológica inegável. Pode-se então clas-
sificar os poetas pedindo-lhes para responder à pergunta: ‘dize-
-me qual é o teu infinito e eu saberei o sentido do teu universo;
é o infinito do mar ou do céu, é o infinito da terra profunda ou da
fogueira?’ (BACHELARD, 2001, p. 6). O desenho abaixo (Ciclo de
Vida kalon), que abriu a dissertação é uma tentativa de esboçar
como se apresentam e se relacionam os quatro elementos na vida
dos ciganos.
86
capítulo, especialmente do ponto de vista da transcendência trazi-
da pelo sagrado presente no amor (fogo), (Capítulo 4).
ÁGUA: Elemento primordial de onde provém toda vida. Sig-
nifica o lado feminino, onde primeiro somos gerados – placenta e
líquido amniótico – para depois o nascimento neste mundo. Re-
presenta as origens ciganas, o seu nascimento como identidade
cultural e o seu renascimento enquanto tradição, que dialoga com
a fenomenologia e a Educação Ambiental (EA), num processo de
tradução (BHABHA, 2005), (Anexo A).
TERRA: Este elemento aparece num aspecto mais amplo do
que a simples relação homem x território geográfico (espacial). In-
dica uma liberdade na aprendizagem ambiental, de maneira que a
educação Kalon se realiza fundamentalmente por meio do grupo
familiar e as experiências acumuladas ao longo do tempo e da rela-
ção (nômade, itinerante ou viajante) com que travam com o meio-
-ambiente, especialmente a “mãe terra” e os seus ricos elementos
simbólicos, como o caminho oferecido pela estrada (Anexo B).
AR: O ciclo se fecha para o início de outro, em que a morte
e os percalços doloridos (sofrimentos, perdas, problemas, etc.) do
tempo são re-configurados e re-significados na rede do renasci-
mento cósmico. Esta nova estampagem, gerada pelos fios da ex-
periência no caos, imprime um novo formato, para que a supera-
ção (reordenação) alcance não apenas a vida individual, do Eu, mas
também do Outro e do Mundo (Anexo C).
Apesar de ter escolhido o elemento fogo como porta de en-
trada, os outros três e até um quinto elemento, o sangue – que
não foi explorado –, são igualmente importantes na construção
da identidade cultural cigana e da própria personalidade das pes-
soas ciganas. Ainda que não estejam listados na parte central da
pesquisa, por uma adaptação metodológica, não é possível com-
preender o processo integral sem levar em consideração os vários
cruzamentos entre os quatro elementos. Nesse texto, em especí-
fico, trago um aprofundamento do que realizei no Item 1.3 – Las-
cando a Madeira, pois creio que contempla um panorama geral da
dissertação.
87
LASCANDO A MADEIRA
A borboleta
88
Depois da alimentação teórico-metodológica, mergulhei em
um casulo escuro, cheio de subjetividade, em que o invólucro pro-
porcionou uma busca no interior do meu ser, da minha identidade,
da minha própria constituição cigana e dos valores Kalon. Primeiro
com um “maravilhamento”, depois com questionamentos, ironias,
dúvidas, angústias. Após um longo estágio neste estado de “sono”,
espero que esta pesquisa simbolize o despertar de um breve re-
lâmpago da claridade de estar-no-mundo.
Como uma borboleta, que uma vez saída do casulo, tem pou-
cos minutos de vida, mas que passa em suspenso, abre as asas e
sente a primeira brisa do mundo, numa constituição singular e so-
bremaneira poética, feita para o raro instante de sua observação.
Feliz daquele observador que pode ver o seu voar galanteador,
único, auto-explicativo, no nível do sentido absoluto, do absurdo
da vida. “Uma coisa apenas: essa densidade e essa estranheza do
mundo, isto é o absurdo” (CAMUS, 2008, p. 29). Ou na constata-
ção da complexidade ambiental dos mundos. “Para compreender-
mos a complexidade da questão ambiental, faz-se necessária outra
abordagem, que leve em conta o sujeito conceptor na construção
mesma do objeto, uma vez que, nos marcos do pensamento oci-
dental sujeito e objeto, natureza e sociedade são termos que histo-
ricamente se excluem” (MORIN, 2002, p. 90).
A partir desta perspectiva, o encadeamento das ideias ocor-
reu de forma questionadora acerca dos preconceitos estabelecidos
historicamente contra os ciganos. A marca desta posição se revela
na preocupação em constituir uma discussão combativa à visão
do senso comum, que, na maioria das vezes, também permeia as
grandes mídias e a comunicação de massa, que povoa o ideário e o
imaginário popular sobre os povos agrupados sob o termo genera-
lizante “Ciganos”. Também é um contraponto à abordagem cientí-
fico-racional, no campo ideológico/legal do capital, que se ramifica
pelo controle do aparelho estatal e as políticas homogeneizantes,
que dele emanam.
Por essas posições epistemológicas, o caminho trilhado não
89
foi fácil e as escolhas nos obrigaram a tomar rumos – às vezes sur-
reais – que não são aceitos e compreendidos de forma muito tran-
quila ou coesa pela Ciência Tradicional, pois são fontes de críticas
e oportunidades de rompimentos e desafios. Equivale metaforica-
mente ao trajeto percorrido pela borboleta, que não nasce plena
para o aprisco poético ou o olhar do observador. Antes de conquis-
tar essa beleza e magia, tem de passar por um processo muito pe-
sado, enfadonho, disciplinador e doloroso. A construção da disser-
tação não ocorreu sem problemas ou sem dificuldades. “Na vida,
nada é muito fácil, e os desafios estão à espreita em cada passo do
nosso caminhar. Superar estes momentos, encontradas forças até
para se retirar, momentaneamente do cenário, é um enorme obje-
tivo de quem quer ser feliz” (SATO, 2004, p. 16).
Na busca por evidenciar limites, esta tessitura nasceu na ten-
tativa de esboçar uma visão crítica acerca da cultura cigana, funda-
mentada num embasamento fenomenológico, articulados por uma
pesquisa no âmbito do Grupo Pesquisador em Educação Ambien-
tal, Artes e Comunicação da UFMT, um espaço que permite a visão
crítica dos conceitos, aliado aos afetos. Até porque, seria impossível
tratar sobre a alma humana sem que isso cause um devaneio. Te-
meroso falar de fogo, sem que o brilho não ilumine ou ofusque os
nossos olhos. Impossível falar de condição humana - de poesia -,
que é múltipla e complexa, sem que isso não cause ambiguidade,
negação, afirmação e r-existência. Imagina então falar da minha
própria identidade cigana Kalon?
Esta tarefa tornou-se para mim um ato nevrálgico, porém fas-
cinante, que significou uma dupla consciência: em primeiro lugar
que mergulhei no mais profundo do meu ser, nas minhas raízes. Em
segundo lugar, que a responsabilidade de reapresentar ou expor
essa essência é uma tarefa extremamente dolorosa e espinhosa,
baseada numa vontade de traduzir algo, que talvez seja intraduzí-
vel, na medida em que ecoam desertos áridos, tragédias mitológi-
cas, ou os mistérios da vida. Na perspectiva de Bhabha:
90
Para assumir uma identidade ou imagem política eficaz, os
limites e condições da especularidade tem de ser ultrapas-
sados e rasurados pela inscrição da alteridade. Rever o pro-
blema do espaço global a partir da perspectiva pós-colonial
é remover o local da diferença cultural do espaço da plura-
lidade demográfica para as negociações fronteiriças de tra-
dução cultural (BHABHA, 1989, p. 306).
91
informações sobre o padrão de acontecimento no mundo exterior
per se para uma determinação do significado afetivo da importân-
cia emocional desse padrão de acontecimentos” (GEERTZ, 1989, p.
95).
Como lembra Brandão (1988), todo ponto de partida de uma
pesquisa participante, que se deseja transformadora, deve iniciar o
estudo da realidade vivida pelo grupo no qual se desenvolve a pes-
quisa, além da percepção que essa coletividade tem sobre a reali-
dade vivenciada, uma vez que esta é a “matéria-prima” do “proces-
so educativo” que produz um conhecimento coletivo.
92
Para ambos, existe um “lócus” onde sujeito e mundo se en-
contram e partilham da mesma realidade. O fenômeno seria o local
onde o homem encontra a mulher e vice-versa. Também seria o
fenômeno o mediador entre o Eu e o mundo.
Deste modo, adentramos em outros mundos a partir da inter-
pretação ou viagem nos fenômenos. Ancoramos em Merleau-Pon-
ty (2005, p. 204), para quem “a fórmula eu-outro é insuficiente”.
É necessário mais que isso um “corpo no mundo”. Para o autor,
(2000, p. 341), “o mundo e os outros tornam-se nossa carne. Nos-
so corpo é simbolismo e reciprocamente esclarece-se a linguagem
dizendo que ela é segundo corpo e corpo aberto”. Em outras pala-
vras, “o corpo passa no mundo e o mundo no corpo”.
Entre os múltiplos sentidos da pesquisa, consta a sua possi-
bilidade como fonte bibliográfica acerca da relação entre os povos
ciganos e natureza, uma vez que poucos estudos foram feitos nes-
sa temática. Há uma falta de interesse por parte do Estado, que
usou uma estratégia de não enxergá-los enquanto cidadãos; e, por
outro lado, a própria falta de vontade dos grupos ciganos de se 40
integrarem ou proporcionar aberturas a estudos científicos, apro-
veitando-se como tática de sobrevivência a “invisibilidade”.
Se essa nova configuração se tornou possível, foi porque o
grupo pesquisado reconhecei no diálogo científico uma importante
parceria, até porque pressentiram que sozinhos podem não conse-
guir resistir à padronização cultural. Nesta tessitura, a EA proporcio-
nou um suporte metodológico híbrido, baseado na fenomenologia
etnográfica, por meio de uma observação participante junto a um
grupo Kalon, aliada a historiografia bibliográfica dos ciganos. Essa
configuração ajudou a confirmar que a Educação cigana é familiar,
transmitida culturalmente de geração em geração nos marcos dos
saberes orais e nos contextos da religiosidade (mitologia), organi-
zação familiar, no histórico de vida, enfim na sua identidade cultu-
ral. Entendendo como Deleuze:
93
Que a diferença entre duas coisas, é somente empírica e as
determinações correspondentes, extrínsecas, Mas ao invés
de uma coisa que se distingue de outra coisa, imaginemos
algo que se distingue – e, no entanto, aquilo do que ele se
distingue, não se distingue dele. O clarão, por exemplo, se
distingue do céu negro, mas deve puxá-lo consigo, como se
ele se distinguisse daquilo que não se distingue [...] A dife-
rença é esse estado da determinação com o distinção unila-
teral. Sobre a diferença, é necessário dizer que se faz, ou que
ela se faz, como na expressão ‘fazer a diferença’ (DELEUZE,
1985, p. 43).
94
parte do enredo Kalon. Evidenciei contextos caseiros e cotidianos
– a essência mítico-religiosa e sua dimensão ambiental, ligada aos
quatro elementos. Sustento que a nossa identidade foi estabeleci-
da a partir de uma profunda interação com o meio-ambiente, que
se apresenta como um fator fundamental para a sua r-existência.
Isso é perceptível por meio da interpretação de seus mitos
e ritos expressos nas narrativas (memória oral) e vivenciados na
prática de suas vidas cotidianas na pesquisa de campo, que está
baseada na percepção ambiental do movimento e do fluxo contí-
nuo da natureza dos quatro elementos, com ênfase no fogo. Para
Bachelard (1999, p. 3) o fogo deixou de ser somente um objeto
científico. Poucos estudos estão sendo feito sobre este elemento
na atualidade. E além do que, mesmo os estudos já realizados, ele
critica, salientando que ao problema do fogo, são dadas respostas
vagas, dentro de uma “zona objetiva impura” e a partir de “intui-
ções pessoais” e poucas “experiências científicas.”
Bachelard (1999, p. 2) estuda a questão da subjetividade do
fogo e não a sua objetividade. Partindo desta ótica, procurei esta-
belecer esta discussão partindo da subjetividade da cultura cigana
que está ligada ao elemento fogo, estudando os observadores do
fogo e não o fogo propriamente dito, enquanto uma substância
elementar. A intenção do autor (IDEM) foi “observar essa obser-
vação hipnotizada que é sempre a observação do fogo, o homem
pensativo junto à lareira, na solidão, quando o fogo é mais brilhan-
te, como uma consciência da solidão”. Opor ao espírito poético
expansivo, o espírito científico taciturno. “Os eixos da poesia e da
ciência são a princípio inversos. Tudo o que a filosofia pode esperar
é tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois
contrários bem feitos” (BACHELARD, 1999, p. 2).
Os contos, “causos”, crônicas e histórias fantásticas da mito-
logia cigana têm uma profunda conexão com o meio-ambiente e
revela uma percepção menos utilitarista da natureza. Nos dirigem
para a valorização dos quatro elementos e mais um quinto (o san-
gue), assim como ocorre em outras culturas que consideram não
95
apenas quatro os elementos básicos. A partir desta poética-religio-
sa, do estar-no-mundo do olhar cigano, que me enredei por can-
ções enigmáticas criadas inicialmente durante o processo de in-
venção do fogo, que provavelmente deve ter ocorrido na escuridão
da noite. Que somente pode ser superada a partir do sonho e da
esperança de uma alma que deseja ser iluminada, após a primeira
faixa de luz. O viver em poesia dos Kalon é lúdico.
Para tanto, descrevi os símbolos (mitos e ritos) e elementos
culturais chaves que regem o seu modo de ver e viver o/no mundo,
como os três rituais (o batizado de crianças, o casamento e a mor-
te) expostos nas três figuras abaixo (2, 3 e 4), do arquivo pessoal
da cigana Alda Alves Cunha4. Mas atenção, a identidade e a cultura
cigana debatidas dizem respeito aos Kalon estudados, não poden-
do ser generalizada e aplicada como sendo aspectos de todos os
grupos que se agrupam sobre o genérico “cigano”. Todavia, muitos
podem ser encontrados junto a outros grupos, na medida em que
o genérico, de alguma forma, serviu para ligá-los por meio do es-
tabelecimento de alguns traços comuns que os permitam serem
reconhecidos enquanto sendo este “cigano” que povoa o senso
comum, o imaginário popular e até boa parte da ciência.
4
In memorian, falecida no último dia 19 de fevereiro de 2007.
96
Figura 3: Casamento de parentes no grupo em Goiás
97
ENCERRANDO OU ACENDENDO A FOGUEIRA DAS QUESTÕES
98
ção cigana? Como devemos ser-estar diante dos desafios da vida
(outro-mundo)?
4 – Identitárias e culturais: Como uma identidade pode ser
múltipla ou una? Isso é possível de ocorrer ao mesmo tempo?
Identidade cultural e meio-ambiente para nós ciganos são concei-
tos diferentes? Como é possível falar de ambiente na perspectiva
cigana? O que é sagrado para nós ciganos? Como nos relaciona-
mos com os nossos semelhantes, os animais, as plantas, os rios
e o planeta terra? Como deve ser a vida? Qual é o sentido ou a
essência da vida? É bom estudar? Como aprendemos as coisas da
vida? O que significa um diálogo científico (fenomenológico) com a
nossa cultura cigana? Até onde faz sentido uma pergunta da qual
o sujeito é parte intrínseca?
Para responder a estas questões, optei por percorrer um cami-
nho da aprendizagem no sagrado, em acordo com Martha Tristão
(20095) e Eliade (2000). Ambos consideram que o mito transcen-
de o campo dos rituais e adentram na rotina cotidiana da vida. Para
a primeira, o sagrado pode ser “compreendido na transdiciplinari-
dade, ou seja, algo irredutivelmente real no mundo, incontornável
por uma abordagem racional, pois o sagrado é algo que liga. Ele
une pelo sentido etimológico da palavra religião – religare”.
Assim, o sagrado necessariamente não precisa implicar “na
crença em Deus, em deuses ou espíritos. É simplesmente uma zona
de não resistência”. “Em suma, os mitos descrevem as diversas e
(dramáticas) irrupções do sagrado ou sobrenatural no mundo. É
essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e
o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos
Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal,
sexuado e cultural” (ELIADE, 2000, p. 11).
Por outro lado, foi necessário reconstruir a sua trajetória ciga-
na, a partir de um olhar próprio e contrário aos preconceitos que
5
TRISTÃO, Martha. A Liberdade na aprendizagem ambiental cigana dos mitos e ritos Kalon. Parecer
do Projeto de Dissertação de Aluízio de Azevedo Silva Júnior, apresentada no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, Ata de qualificação ocorrida no dia
16 de fevereiro de 2009.
99
permeiam o universo “cigano”. O que se tem são “idéias” sobre nós
que “foram construídas a partir do século XV e cristalizadas sob
a forma de estereótipos” (MOONEN, 2000). Atitudes menos ne-
gativas expressam pela simpatia romântica ligada ao folclore que
povoa o imaginário popular e traz, sobretudo, cigano “sedutor”, ou
por uma curiosidade. É um traço do fogo que permeia a vida ci-
gana. Sedução das chamas, traiçoeiras que esquentam, mas, em
seguida, queimam.
Logo que a oportunidade surge são de imediato reativados
os aspectos mais negativos das imagens que se criaram sobre nós
ciganos. Evidente que não tenho interesse em reproduzir estereó-
tipos. Pelo contrário, o desejo foi recontar nossa história a partir
da Educação Ambiental emancipadora e, assim, contestar e criticar
essa visão generalizante sobre os ciganos.
A questão envolve inúmeros aspectos. Há uma dificuldade
implícita e inerente ao fato de que sou sujeito-objeto de pesquisa.
Por vezes me confundo inclusive na hora de escrever. Não sei se es-
crevia como cigano ou como acadêmico. Por isso, em algumas oca-
siões falei dos ciganos como nós. Em outras escapou um (in) certo
“eles”, ou um genérico “os ciganos”, como se eu não fizesse parte
deste cenário do outro e do próprio universo romani. Os parentes
que conversei durante a etnografia quando iam falar também se
referiam como “eles”. Talvez isso represente uma possibilidade de
pluralidade da identidade cigana que só se justifica no conjunto,
isto é, na coletividade Kalon. Por outro lado, pode ser uma fuga aos
pré-conceitos que os acusam de uma série de características que
não são bem aceitas pelo pensamento ordenado e cartesiano do
mundo capitalista e sua máquina de acumulação de dinheiro.
Nota-se que a tarefa para a tentativa de “interpretação”
(GEERTZ, 1989) ou “tradução” (BHABHA, 1998) da identidade e
cultura cigana Kalon necessitou, em primeiro lugar, de um socorro
metodológico híbrido; ou seja, uma pesquisa qualitativa com abor-
dagem fenomenológica que busca interpretar etnograficamente
um grupo pessoas que fazem parte de uma mesma família e se au-
100
todenominam ciganas, residentes em quatro municípios de Mato
Grosso: Tangará da Serra, Rondonópolis, Cuiabá e Várzea Grande.
Tentar re-construir a trajetória destas pessoas – e a minha
própria – que se autodenominam ciganos Kalon foi uma tarefa que
bastante difícil. Nesse trabalho, foi necessário trazer à tona alguns
conceitos chaves, a exemplo dos próprios termos “identidade” e
“cigano”, além de outros, como “cultura” e “diversidade cultural”.
Sem o esclarecimento destas perspectivas não seria possível esta-
belecer um diálogo coerente. A interdisciplinaridade permitiu que
todas essas perspectivas fossem tecidas e entrelaçadas a partir da
EA, porém voltada para o eixo “familiar” cigano, pois parti da hi-
pótese de que este possivelmente é o principal laço de união da
identidade cigana.
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103
O TOQUE DAS ÁGUAS PANKARARU
INTRODUÇÃO
105
fessores/as e dos estudantes que as águas Pankararu me tocaram.
Sentir é se deixar tocar. O toque é um despertar das sensibilidades,
entendendo-as como tudo aquilo que é sentido e afeta a existência
humana.
Para Sandra Pesavento (1995, p. 24) o imaginário é “repre-
sentação, evocação, simulação, sentido e significado, e estudá-lo é
desvendar um segredo, é buscar um significado oculto, encontrar a
chave para desfazer a representação do ser e parecer”. Neste artigo
buscamos um novo olhar acadêmico que vê a água tocar os discur-
sos educativos, percebendo-a como um meio para uma educação
de sentidos.
Mais uma vez agradeço aos professores, alunos e funcionários
das escolas, pelo acolhimento que conseguem dar, permitindo um
encontro com suas águas. O toque de suas correntezas educou
sentidos e sensibilidades que criaram imaginações de águas que
cuidam, limpam e protegem. Emergindo dessas águas vejo um
povo que, ao encontrar-se com as águas, as protege e, por meio
da experiência educa seus sentidos e se reapropria de sua história.
PANKARARU
4
Desde o período da colonização brasileira os indígenas estão em movimento de enfrentamento
às políticas indigenistas exterminacionistas e integracionistas do governo brasileiro, porém, é na
década de 1970, que o movimento indígena brasileiro surge como o entendemos hoje: um movi-
mento coletivo para afirmar a diferença e lutar pelos interesses de todos os povos indígenas. Um
movimento articulado de “lideranças, povos e organizações indígenas objetivando uma agenda co-
mum de luta, como é a agenda pela terra, pela saúde, pela educação e por outros direitos. [...] Foi
também esse movimento que lutou – e continua lutando – para que a política educacional oferecida
aos povos indígenas fosse radicalmente mudada quanto aos seus princípios filosóficos, pedagógi-
cos, políticos e metodológicos, resultando na chamada educação escolar indígena diferenciada que
permite a cada povo indígena definir e exercitar, no âmbito de sua escola, os processos próprios de
ensino-aprendizagem e produção e reprodução dos conhecimentos tradicionais e científicos de in-
teresse coletivo do povo”. (LUCIANO, 2006, p. 59-60).
106
nacional, impondo novas formas de visão, pesquisa e reflexões. Há
quem considere os descendentes indígenas como remanescentes
e/ou ressurgidos, mas eles se consideram como povos resistentes.
É graças a esta resistência que até hoje temos uma multiplicidade
de povos e línguas indígenas com seus saberes e suas alteridades.
São povos diferentes, com identidade, organização, cultura e histó-
ria específica de cada povo.
107
e os demais estão espalhados em outras vinte unidades federati-
vas5. Atualmente as terras Pankararu estão divididas administrati-
vamente pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em duas Terras
Indígenas: TI Pankararu que corresponde à demarcação de 1941,
homologada em 1987 (8.100 há) e a TI Entre Serras, homologada
em 2006 (7.750 há).Vivem nas serras e em seus arredores, mas tem
uma forte ligação espiritual com o Rio São Francisco, principalmen-
te com a Cachoeira de Itaparica, hoje submersa depois da cons-
trução da barragem e da Usina Hidrelétrica (UHE) Luiz Gonzaga.
Um povo nordestino, sertanejo por localidade espacial e in-
dígena por identidade étnica, aqui entendida como algo além de
uma identidade social, embasada numa noção de si dentro de
uma consciência coletiva. Comungo com Fredrik Barth (2000, p.
37) quando diz que identidade étnica é uma “identidade imperati-
va, uma vez que não pode ser desconsiderada e temporariamente
deixada de lado em função de outras definições da situação”. Iden-
tidade étnica é plural e diversa.
“Os povos indígenas organizam seus saberes a partir da cos-
mologia ancestral que garante e sustenta a possibilidade de vida.
A base primordial é a natureza, fonte de todo conhecimento” (LU-
CIANO, 2006, p. 171). Cabe às pessoas contemplá-la e entendê-la
estabelecendo uma relação íntima com a natureza. Para a maioria
das tradições indígenas do Brasil a água é fonte da vida, elemento
de relação com a divindade. A água é algo sagrado. Os indígenas
Pankararu exercem uma ligação íntima com a água, na qual re-
vela um encontro corpo - água – espírito. O povo Pankararu tece
uma ligação mística com as águas da Nascença (uma fonte de água
sagrada), sensibilidade despertada pela experiência entre o que é
natural e o que é humano, em que as águas inundam os saberes
pela educação dos sentidos, do ver, sentir, cheirar, ouvir o que as
águas têm a dizer. Uma pedagogia da água, que limpa, cura, tece
condutas, educa.
5
IBGE, Censo demográfico 2010. Características gerais dos indígenas; Resultados do universo. Rio
de Janeiro, 2010, p. 160. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indige-
nas_universo.pdf.
108
AS ÁGUAS EDUCADORAS PANKARARU
6
Programa Um Milhão de Cisternas - P1MC, articulado pela ASA (Articulação no Semiárido brasilei-
ro): “Iniciado em julho de 2003, o P1MC vem desencadeando um movimento de articulação e de
convivência sustentável com o ecossistema do Semiárido, através do fortalecimento da sociedade
civil, da mobilização, envolvimento e capacitação das famílias, com uma proposta de educação pro-
cessual.” (https://www.senado.gov.br/comissoes/CMMC/AP/AP20090924_ASA_Vida%20Semiari-
do.pdf. Acesso em 17/02/2019).
7
“Com o intuito de ampliar o estoque de água das famílias, comunidades rurais e populações tradi-
cionais para dar conta das necessidades dos plantios e das criações animais, a ASA criou em 2007
o Programa Uma Terra e Duas Águas, o P1+2. O nome do programa faz jus à estrutura mínima que
as famílias precisam para produzirem – o espaço para plantio e criação animal, a terra, e a água
para cultivar e manter a vida das plantas e dos animais. O P1+2 integra o Programa de Formação e
Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido, da ASA. Esse programa-guarda-chuva con-
grega também o Programa Um Milhão de Cisternas, o P1MC. Os objetivos do P1+2 são promover
a soberania e a segurança alimentar e nutricional das famílias agricultoras e fomentar a geração de
emprego e renda para as mesmas”. (Disponível em: http://www.asabrasil.org.br/acoes/p1-2. Acesso
17/02/2019).
109
to. O primeiro motivo porque chegou depois do período das chu-
vas. O segundo porque com as cisternas calçadão só 20% das fa-
mílias foram beneficiadas (PGTA, 2017, p. 75).
A escassez das chuvas, a canalização das águas e o lixo, são
problemas que refletem negativamente na cultura indígena Panka-
raru, especificamente em sua relação com a água, já que é da Nas-
cença (fonte de água doce) que se busca água para preparar os
banhos quando tem alguma coisa relacionada à Tradição, como
por exemplo os banhos dos noivos.
Para os Pankararu do Brejo dos Padres a água é algo sagrado.
A água favorece a vida tanto na questão física, quanto espiritual.
Com relação à vida física, a água é algo que dá vida, o existir, sem
ela nenhum ser vivente sobrevive. Quanto à questão espiritual, é
das águas que vem os Encantados8, isto é, aqueles que descobri-
ram o segredo de se encantar e alcançar a imortalidade. Sobre eles
estão a confiança e a fé do povo Pankararu, a ideia de que esses
Encantados têm uma “força”, o poder de cura.
Na Tradição Pankararu é comum banhos de purificação e/ou
de limpeza nas bicas e principalmente na Fonte Grande, na “Nas-
cença”, como costumam dizer, mas também na Bica de Camila, na
Bica de Pai Chico (hoje em desuso). Quatro momentos são por eles
ressaltados para esses banhos. Um desses é o banho dos noivos,
que é realizado na Bica da Camila no dia do casamento. Antiga-
mente, o banho do noivo era na Bica de Pai Chico e o da noiva na
Bica da Camila. Hoje em dia, devido à diminuição de água na Bica
do Pai Chico, o noivo também tem que tomar banho na Bica de
Camila, que era reservada apenas para as mulheres.
O banho dos noivos não é apenas uma questão de limpeza
corpórea, trata-se de uma preparação para um ritual religioso. Pre-
parar-se física e espiritualmente para um festejo, envolvendo todos
que participam diretamente do casamento, porém este casamento
acontece na Igreja, dentro da Tradição católica. Isso nos faz perce-
8
“Antes do segredo da aldeia estar depositado na cachoeira de Itaparica, os seus Encantados tinham
morada nas cachoeiras de Paulo Afonso, de onde já teriam-se transferido quando elas foram total-
mente esgotadas em seu potencial mágico com as sucessivas barragens”. (ARRUTI, 1996, p. 164).
110
ber que a reinvenção da tradição também proporciona uma apro-
priação, tece representações culturais, o casamento é dado a ser
reconhecido por meio de um rito “estranho”, isto é, um rito católico
que vem de fora e não é próprio da cultura e da tradição indígena.
Outro momento são os rituais como, por exemplo, a Corrida do
Imbu e o Menino do Rancho, onde quem participa diretamente
tem que tomar banho na Nascença para se purificar. A Corrida do
Imbu é um rito complexo, podendo ser denominado como rito de
calendário por que acontece em duas fases (a primeira de outu-
bro a dezembro e a segunda de fevereiro a março), é relacionado
a pagamento de promessas. O Menino do Rancho também é rito
de pagamento de promessas (quando um menino adoece, um re-
zador indica que será protegido por um determinado encantado
e deve ir para o rancho). Por envolver muitas pessoas e várias re-
feições durante o dia, “é um rito muito caro que dura o dia todo”
(MATTA, 2005, p. 169).
Essa relação íntima com a água revela um encontro corpo-á-
gua-espírito que rompe o estado físico dos sentidos alcançando
o metafísico, a sensibilidade. A prática de ir às nascentes, ouvir ou
invocar espíritos e estabelecer contatos com os Encantados não é
algo fácil de exercitar e tão pouco de ser revelado. Isso é segredo.
A água toca o ser na experiência sensível. O indivíduo sujeito da ex-
periência se disponibiliza, se abre como um espaço onde as coisas
acontecem. Um sujeito receptivo que fica “ex-posto”, favorecendo
uma relação com algo que sente e que, ao mesmo tempo, o toma,
o forma e o transforma (BONDÍA, 2016).
Essa experiência com a água se estabelece pelo aguçamen-
to das sensibilidades, que se inscreve sob o signo da alteridade, e
estão na criação imaginária do mundo (PESAVENTO, 2007), e da
capacidade de um relacionamento inclusivo entre a água e o indi-
víduo, partindo de uma perspectiva em que todas as coisas estão
interligadas e possuem uma força vital.
A educação indígena é “fazer brotar os sonhos”. Ou seja, edu-
car é o ato de religar-se, reviver a tradição do povo, fazer brotar,
111
crescer nos sujeitos os saberes ancestrais, os saberes culturais que
são vividos, sentidos, imaginados na convivência da comunidade.
É educar sentidos.
Entender que a educação inicia do que somos, vivemos e fa-
zemos, como afirma a professora Pankararu Maria Jacielma (apud,
OLIVEIRA; VIEIRA, 2019, p. 36), é aprender a educação dentro de
um processo integrador, que une indivíduo, comunidade e cultu-
ra. Para os Pankararu a educação é uma sabedoria expressada na
experiência com o povo, é um somatório do que somos. Afinal, “o
indivíduo é a soma de suas impressões singulares” (BACHELARD,
1989, p. 8).
Falar em “educação” no ambiente indígena é seguramente
pressupor ao menos quatro dimensões: a comunidade/povo, suas
memórias, sua cultura/tradição e sua espiritualidade. A educação
escolar indígena se insere neste contexto comunitário, em seu pro-
jeto educativo-cultural de preservação e continuação de uma tra-
dição ancestral, de sua cosmovisão. Através de projetos escolares,
Pankararu vivencia a cultura do povo, na qual as crianças e os jo-
vens são sujeitos de suas histórias. História específica, diferenciada,
intercultural banhada pelos rios e cachoeiras que fecundam suas
terras e povoam seu imaginário.
O ambiente escolar, como um dos espaços da convivência e
educação das crianças Pankararu, produz uma cultura que, em seu
processo, comunica-se com o exterior, “a escola inscreve-se como
fator de mudança. [...] não apenas prepara para a vida como pre-
para a própria vida. A escola [...] tem não obstante um papel na
construção das mudanças históricas e contribui para a emergência
das estruturas e dos grupos sociais” (MAGALHÃES, 1996, p. 8). É
também neste espaço escolar, que os Pankararu se apropriam e
representam a água, sendo partes integrantes de um processo de
produção de referências sociais que são também vivenciadas den-
tro da escola.
Analisando o Projeto Político Pedagógico do Povo Pankararu
(PPP Pankararu, 2012), o Currículo é estruturado em cinco eixos:
112
Terra, Organização, História, Interculturalidade e Identidade. Ele
diferencia, em um dos seus eixos, com os do Currículo Intercultural
dos Povos Indígenas de Pernambuco (2ª versão), quando substitui
o eixo bilinguismo por interculturalidade. Tais eixos definem “a for-
ma de vivenciar os conteúdos de forma interdisciplinar dentro do
Projeto gerador ‘Todo dia é Dia do Índio’”9 (PPP Pankararu, 2012,
p. 44).
Um dos espaços educativos de uma comunidade indígena é
o território, espaço onde se encontram as relações com a natureza
e com os seres que nela vivem. Para os Pankararu, o território é um
processo em que natureza e cultura se interligam. É percebido a
partir de uma ótica de coletividade, ou seja, a natureza: terra, mata,
água, animais, as pessoas. Não é entendido como um espaço de-
marcado, e sim como história, testemunha de sua existência.
9
O Projeto gerador ‘Todo dia é Dia do Índio’ é uma provocação para sair dos estereótipos de que
o dia 19 de abril é “dia do índio”. Com esta crítica as escolas Pankararu levantam a problemática de
que para Pankararu “todo dia é dia do índio”. O Projeto é gerador porque traz objetivos específicos
do currículo, perpassando os cinco eixos do PPP (Terra, Organização, História, Interculturalidade e
Identidade).
113
tencer a um território, tendo com ele um elo espiritual (sagrado).
Nas escolas EEI Dr. Carlos Estevão e EEI Pankararu Ezequiel
a água percorre as disciplinas de uma forma mais integrada e isso
é percebido no planejamento escolar em que a temática da água
é trabalhada em todas as disciplinas, em todas as séries, em um
mesmo período. Para cada bimestre letivo as escolas têm um tema
gerador: Corrida do Imbu, Calendário Agrícola, Reafirmação de va-
lores, Direitos e deveres indígenas, cabendo aos professores das
diversas disciplinas tratar esses temas nos quais a água faz presen-
ça como bem cultural, pois a água é tema que não sai de circulação
da primeira até a quarta unidade. Além disso, os projetos escolares
elaborados com a temática da água que analisei têm por objetivo
envolver toda a comunidade escolar (escola e comunidade).
A água é fonte de sabedoria, e conduz o trabalho docente in-
dígena a se direcionar para estudos que levem o alunado a perce-
ber a relação que existe entre as práticas tradicionais com cada ele-
mento oferecido pela Mãe Natureza (Planejamento Escolar 2018
e 2019). Outro momento em que a água é trabalhada em sala de
aula é nas atividades extracurriculares através de projetos. Os Pro-
jetos Escolares movimentam a comunidade escolar. Eles fazem o
diferencial para o banhar-se nas águas dos saberes pedagógicos
das escolas E.E.I. Carlos Estêvão e na E.E.I. Pankararu Ezequiel.
Esses projetos, ao sistematizar uma metodologia, definem práticas
de um fazer escolar que materializam uma cultura escolar. Proje-
tos que buscam um encontro entre o interno e o externo (o eu e
a água), um fazer sentir, tocar e ser tocado. O espaço articula-se,
movimenta-se, ultrapassa o lugar transformando-o e ressignifican-
do-o.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
114
partir de sensibilidades e experiências pode despertar sentimentos,
memórias e poesias. O povo Pankararu, por exemplo, se apropria
das águas das nascentes, principalmente da Fonte Grande, como
algo que dá vida, visto que é nessas fontes que moram os Encanta-
dos. A água é algo sagrado. Os indígenas Pankararu exercem uma
ligação íntima com a água, na qual revela-se um encontro corpo -
água - espírito.
Para os professores Pankararu a água tem uma história que
carrega a memória ancestral do povo Pankararu. Essa constatação
firma e endossa suas convicções, perceptíveis quando se referem à
história dos antepassados e à água da cachoeira do Rio São Fran-
cisco. Nesta pesquisa, e também em nossa vivência com eles, per-
cebemos esta apropriação da água ancestral como ‘água sagrada’.
Outro aspecto perceptível é que na história cultural da água e nos
saberes do povo Pankararu ela é educadora. E isso perpassa, como
vimos, o espaço escolar, seja nos discursos de estudantes e docen-
tes, como nas práticas curriculares e extracurriculares realizadas na
escola.
Os desenhos feitos pelos estudantes confirmam algumas fa-
las dos professores sobre qual entendimento os estudantes têm
com relação à água: sobrevivência, consumo e atividades huma-
nas. Percebemos nos desenhos, no entanto, uma representação
de uma água que educa corpos normatizando práticas educativas
de higiene, de lazer, de atividades domésticas (como o lavar roupa
e o cultivar de roças), também de preservação ambiental. Outro
aspecto da água e sua percepção, é sua representação sagrada.
Tecer narrativas sobre a água do Povo Pankararu foi um de-
safio que suscitou experiências, sensibilidades e aprendizagens. A
água remete a uma história social e cultural. Entendemos que as
águas são apropriadas pelos Pankararu como fonte de vida e re-
presentadas como um elemento sagrado, distanciando-se de um
entendimento da água como um bem mercadológico. Constata-
mos isso nos relatos de professores e nos desenhos dos estudan-
tes, na representação da água em forma de chuva, fontes, riachos,
115
cachoeiras que florescem a natureza, alegram pássaros e pessoas,
sendo usadas em banhos, roças e abastecimento de casas. “Água é
vida!” Uma visão que participa, partilha e dialoga com a concepção
do paradigma ecológico defendido por Fridjof Capra (1996), em
que o ser humano e o natural estão entrelaçados.
REFERÊNCIAS
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riais Pankararu. Dissertação para o grau de Mestre em Antropologia Social. Rio de Janeiro: UFRJ,
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BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Mar-
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BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução de John Cunha
Comerford. Rio de Janeiro: Contracapa, 2000. (Coleção Typographos).
BONDÍA, Jorge Larrosa. Tremores: escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
JULIÃO, Cristiane Gomes; VASCONCELOS, George de; MODERCIN, Isabel Froes; OLIVEIRA, Luana
Bárbara Gomes (org.). Pankararu. PGTA – TI Pankararu. Plano de gestão territorial e ambiental da
terra Indígena Pankararu. Aldeia Brejo dos Padres/Tacaratu, 2017.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas/SP: UNICAMP, 1990. Disponível em: lelivros.
love/book/download-historia-e-memoria-jacques-le-goff-em-epub-mobi-e-pdf. Acesso em
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LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indíge-
nas no Brasil de hoje. Brasília: MEC, 2006.
MAGALHÃES, Justino. Um contributo para a história do processo de escolarização da sociedade
portuguesa na transição do Antigo Regime. In: Educação sociedade & culturas, Porto Alegre: Edi-
ções Afrontamento, 1996, n. 5, p. 7-34. Disponível in: https://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC5/
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MATTA, Priscila. Dois elos da mesma corrente: uma etnografia da Corrida do Imbu e da Penitência
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OLIVEIRA, Edvânia Granja da Silva; VIEIRA, Maria do Socorro Tavares Cavalcante (org.). Memórias
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra História: imaginando o imaginário. In: Revista
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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In: PESAVENTO, Sandra Ja-
tahy. Sensibilidades na História: memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: UFRGS,
2007, p. 9-21.
POVO PANKARARU. Escolas estaduais indígenas Pankararu. Projeto Político Pedagógico. 2012.
116
SERIA CÔMICO, SE NÃO FOSSE “TRÁGICO”: ANÁLISE DE
MEMES SEXISTAS EM UMA AULA REMOTA
INTRODUÇÃO
118
na qual o sujeito que a sofre, não a compreende como violência,
pois sua percepção pode ser explicada pelo “rumo natural das coi-
sas”. Ou seja: há uma banalização do sexismo como algo até pre-
visto ou esperado numa sociedade cuja hegemonia do masculino
é fortalecida pelo paradigma patriarcal. Por isso, em qualquer olhar
sobre educação, faz sentido assinalar, junto com Freire (1987), o
papel emancipatório da escola na formação de homens e mulheres
para uma sociedade igualitária. Afinal, a intencionalidade primeira
do ato de educar contempla o crivo social da emancipação dos su-
jeitos para a concepção de um mundo mais justo.
Nessa perspectiva, as ideias aqui formuladas se encaminham
para práticas educativas convergentes com a alteridade atentando
para a discussão da problemática de gênero com meninos e me-
ninas. Para tanto, apresentamos uma aula mediada pelo aplicativo
WhatsApp, na qual memes sexistas foram explorados para pro-
blematizar e descontruir os estereótipos que envolvem os papéis
de gênero de acordo com o sexo biológico. A experiência didática
foi desenvolvida em uma turma do 5º Ano de uma Escola Munici-
pal de Ensino Fundamental de João Pessoa – PB. A aprendizagem
oportunizada possibilita ampliar a compreensão de mundo dos
estudantes, contribuindo para um letramento crítico, mediante os
discursos estereotipados sobre homens e mulheres que circulam
nas redes sociais (NASCIMENTO; NASCIMENTO, 2020). Em sín-
tese, seja de modo remoto ou presencial, a grande pergunta que
se sobrepõe para nós, docentes, é: que ser humano desejamos for-
mar?
119
(2013) nos alerta de que o fazer pedagógico deve estar alinhado
ao que vamos chamar de “bússola intencional”, para que no mar
social os interesses dominantes não prevaleçam e gerem ideias
preconceituosas de exclusão.
Zabala (1998) aborda a necessidade de se promover o en-
sino para além de conteúdos cognitivos, apresentando, assim, a
importância da prática educativa em sintonia com as questões cul-
turais, pensada para o convívio social. Podemos assim considerar
que a construção das relações igualitárias de gênero entre os su-
jeitos deve perpassar o âmbito educacional configurando uma das
metas da educação para a compreensão das diferenças. Libâneo
(2013) ressalta o preparo para a cidadania como eixo fundante da
escola. O ensino deve passar pelo crivo do compromisso social a
fim de contribuir com a ruptura de paradigmas que configurem
preconceito e discriminação, pois “não há nem jamais houve prá-
tica educativa em espaço-tempo nenhum de tal maneira neutra,
comprometida apenas com ideias preponderantemente abstratas
e intocáveis” (FREIRE, 1992, p.78). Esta reflexão precisa ser desen-
volvida nos espaços educativos e no mundo vivido pelos sujeitos,
a partir do reconhecimento da heterogeneidade que constitui o
espaço social.
Em meio a esse desafio, torna-se fácil prever os embates colo-
cados à educação, que precisou agregar uma verdadeira maratona
de suportes tecnológicos que, além de manter docente e discen-
te conectados, pudessem efetivar uma aprendizagem mesmo que
à distância. Nesse intuito, as plataformas digitais e os dispositivos
móveis foram ressignificados, passando de mediadores das intera-
ções sociais corriqueiras para assumir finalidades de aprendizagem
forjando alternativas em meio ao isolamento social exigido pela
pandemia. Como advoga Assmann (2003), “aprender” pressupõe
“viver”, pois a noção de “escola” tem uma natureza ubíqua. O termo
escola alude a uma sociedade aprendente, significando a possibi-
lidade de assimilar, tratar e compreender os conhecimentos, que
se traduzem na necessidade de estimular qualidades fundamen-
120
tais nas pessoas: formação, educação e aprendizagem ao longo
da vida. Uma sociedade aprendente não trivializa o saber, porque
desenvolve um aprender renovável e renovado que se reinventa:
“Aprender, portanto, implica movimento e não apresenta relação
intrínseca com a escolaridade ou sua espacialidade” (ASSMANN,
2003, p. 198).
Dentre as possibilidades testadas durante o ensino remoto,
destacamos o Whatsapp, “um aplicativo móvel e versátil que per-
mite a escrita e a leitura de textos multimodais (com imagens, sons
e vídeos) em meio à interação em rede” (NASCIMENTO; NASCI-
MENTO, 2020, p.77). A facilidade de acessar conteúdos através da
palma da mão certamente contribuiu para o uso massivo dos apli-
cativos móveis, justificando sua aceitação nas esferas educativas
por ser algo comum no cotidiano dos jovens estudantes, em termos
de interação coletiva e práticas de sociabilidade. Como considera
Prado (2017): “[...] o WhatsApp tornou-se a principal ferramenta
de comunicação atual, com mais de 90% de seus usuários ativos
e atuantes diariamente em conversas que não têm fim” (PRADO,
2017, p. 05).
Tal multifuncionalidade certamente colaborou para sua apro-
priação com finalidades pedagógicas durante o isolamento social.
O que corrobora o pensamento de Assmann (2001), de que o novo
insight básico do campo educacional consiste na equiparação in-
teligente e simbiótica entre a vida diária e as dinâmicas cogniti-
vas: “não há verdadeiros processos de conhecimento e inteligência
sem conexão com as expectativas e a vida dos aprendentes” (AS-
SMANN, 2001, p. 27).
Para além do uso por questões emergenciais, o aplicativo re-
presenta a esfera criativa dos multiletramentos, que Rojo (2012)
caracteriza como multifacetada, marcada por: “[...] dois tipos es-
pecíficos e importantes de multiplicidade presentes em nossas
sociedades, principalmente urbanas, na contemporaneidade: a
multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica
de constituição dos textos por meio dos quais ela se informa e se
121
comunica (ROJO, 2012, p.13)”. A mudança comunicacional na con-
temporaneidade, atrelada ao contexto do ensino remoto, converge
para promover uma verdadeira reviravolta na prática educativa, que
passou a articular o campo da semiótica e da estética na comunica-
ção dos discursos e narrativas sociais. A escola é, então, chamada
para construir aprendizagens que preparem os/as alunos/as para
as possibilidades das tecnologias, exercendo seu papel social como
instituição formadora aberta a adaptações e novas performances.
Nesse sentido, os professores são instigados a incorporar alterna-
tivas as suas práticas para dar continuidade ao fazer pedagógico
para além dos muros escolares.
122
de ganhar a atenção, de cumprimento e frustração de desejos; pra-
zeres oferecidos ou negados” (SILVERSTONE, 2002, p.43). Deste
modo, as representações presentes na esfera midiática difundem
uma realidade socialmente aceitável, porque é fundamentada nos
valores coletivos padronizados entre os grupos por suas ideias e
convenções.
Os memes são exemplos desse contexto em razão do poder
replicador de palavras ou imagens que traduzem determinados
comportamentos. Numa derivação do grego mimeme, o vocábulo
tem o sentido de “cópia”. Apesar de ter migrado para a cultura digi-
tal, sua origem decorre da Biologia, a partir da obra “O gene egoís-
ta”, do cientista britânico Richard Dawkins, que trata da evolução
das espécies. Como a sobrevivência dos genes ocorre por meio de
corpos capazes de se reproduzir, esse mesmo poder, por analogia,
inspirou o conceito de memes na ambiência da internet.
Na compreensão de Felinto (2008), a imitação e a multipli-
cação acelerada de discursos tornam o fenômeno dos memes um
exemplo da denominada cultura spoof. No domínio da internet
esse adjetivo alude à ação de satirizar, parodiar e/ou adicionar a
textos e imagens diversos recursos disponíveis, advindos de outras
instâncias de comunicação, como personagens de cinema, nove-
las, redes sociais, que se tornam alvos de adaptação e colagem
nas novas estruturas constituindo um contexto multimodal para a
transmissão de determinadas ideias.
Recuero (2017) observa a intencionalidade dos compartilha-
mentos dessas estruturas em larga escala, apontando que ocor-
rem por concordância das mensagens ou pelos aspectos lúdicos
disseminados. Seja qual for o caso, a viralização não permite a re-
flexão necessária sobre os conteúdos, daí ser oportuno à educação
explorar, em sala de aula, as questões femininas que perpassam
o espaço público, muitas vezes sutis e implicadas por valores de
cunho patriarcal, que viralizam nessas narrativas cômicas. Mostra-
-se, então, pertinente avaliar os sentidos das alegorias de gênero
produzidas nos memes nas suas imbricações com os condiciona-
123
mentos culturais de gênero a que se referem.
No que diz respeito ao sexismo, notamos que algumas mensa-
gens refletem o pensamento patriarcal que inspira a sociedade, na
qual o feminino e o masculino são entrelaçados a padrões estigma-
tizados que inferiorizam as mulheres. No que tange à padronização
Louro (2019) denuncia que os valores sexistas muitas vezes se ali-
nham à cor da pele: “Em nossa sociedade, a norma que se estabe-
lece, historicamente, remete ao homem branco, heterossexual, de
classe média, urbana e cristão[...] (LOURO, 2019, p. 18)”. Sob esse
aspecto, um simples meme pode carregar em suas representações
ideias preconceituosas ou pejorativas sobre as mulheres.
Nesse sentido, a intencionalidade de invisibilizar ou silenciar
o “outro”, para além de denominações de classe, etnia ou sexo,
perpassa um processo sobre relações de poder, vivenciadas social-
mente, e que também são reproduzidas na instância escolar. A au-
tora reforça esse posicionamento, mostrando a linguagem como
disseminadora de hierarquias e de subalternização, ao descrever
que as aprendizagens iniciais da vida escolar de uma menina se-
guem os acordos e parâmetros circundantes.
Carvalho (2013) reitera esse viés, descortinando a funcionali-
dade da instituição escolar na vida das pessoas:
124
questionada para além da comicidade. Cabe aos docentes criar fer-
ramentas didático-teóricas capazes de descortinar as alusões su-
bliminares sobre o feminino que se ocultam nas ironias e sátiras
desses dispositivos midiáticos a fim de transformar o riso em estí-
mulo para a reflexividade e a construção de saberes sobre gênero.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
125
com o grupo. O propósito foi sondar o conhecimento prévio so-
bre esses dispositivos. A turma atendeu à solicitação e os memes
foram enviados. Antes de iniciar as orientações pedimos que os/as
alunos/as sinalizassem com um ok que estavam presentes. Após o
registro da presença, foi gravado um áudio orientando como fun-
cionariam as reflexões sobre as imagens o/ou textos. Em segui-
da, uma pergunta iria ser feita para investigar as impressões dos
conteúdos. Cada aluno/a teria que gravar um áudio para socializar
suas percepções.
Na sequência, apresentamos os memes discutidos, nomea-
dos pelas autoras, assim como as imagens das mulheres cientis-
tas que foram adotadas para o encerramento da aula. Salientamos
que incluir essas fotos foi uma sugestão do grupo, que demons-
trou sensação de frustração com a falta de conteúdos favoráveis ao
feminino, sobretudo entre as meninas participantes. Assim, foram
enviadas com legenda e áudio as conquistas de cada uma das mu-
lheres apresentadas, no intuito de buscar romper com os estereó-
tipos destacados nas mensagens, segundo observamos abaixo:
Fonte: https://me.me/i/aew-deus-o-ngo-tava-daora-mas-quem-
-vai-lavas-7198052. Acesso em: 15/12/2020.
126
FIGURA 2: Românticos?
Fonte: https://www.bombounowa.com/imagens/quem-foi-que-
-disse-que-nao-existem-mais-romanticos. Acesso em:15/12/2020
Fonte: https://piadas-e-videos.com/imagem/coisas-de-mu-
lher-15041. Acesso em: 15/12/2020
127
FIGURA 4: O certo limita
Fonte: https://pt.memedroid.com/memes/detail/1970812,2017.
Acesso em: 15/12/2020.
128
FIGURA 6: Mary Jackson (1921-2005)
RESULTADOS E DISCUSSÕES
129
apresentadas e organizadas para compor categorias que visam
guiar a interpretação temática. Tal estratégia possibilita um apro-
fundamento discursivo na relação com a revisão de literatura sobre
gênero e educação. Assim, a ilustração permite que os leitores se
aproximem das categorias sugeridas pelo grupo estudado.
A composição do quadro de análise percorreu três etapas: no
primeiro momento realizamos a transcrição dos áudios enviados
ao grupo durante a aula remota. Para tanto, utilizamos o aplicati-
vo transcriber, que possibilita transcrever os áudios do WhatsApp,
garantindo a transposição fidedigna das falas para permitir a pré-
-análise ou análise flutuante das interlocuções. Foi realizada uma
leitura geral do material coletado, que possibilitou demarcar dois
grandes eixos temáticos, de acordo com as falas que concordavam,
e as que refutavam os discursos dos memes, atendendo a explo-
ração dos conteúdos disseminados. Em seguida, sintetizamos as
falas, identificando os/as alunos/as de acordo com o gênero, se
menino ou menina, na intencionalidade de esclarecer as opiniões
do grupo. O tratamento deste material originou as seguintes cate-
gorias temáticas: I - A compreensão patriarcal fomenta a constru-
ção das representações do estereótipo de gênero; II – O sexismo é
refutado sendo reivindicada a igualdade de gênero.
No decorrer das leituras teóricas efetivadas e que subsidiam
a necessidade desta prática educativa voltada para as questões de
gênero, interesse da nossa dissertação em curso, percebemos a
incongruência entre as falas dos/as alunos/as diante dos aponta-
mentos dos/as autores/as. Deste modo, ilustramos o percurso rea-
lizado:
130
A figura masculina possui direito de escolha em realizar 0 2
atividades domésticas
A religião fomenta a assimetria de gênero 0 2
As mulheres possuem mais habilidade para atividades 1 3
domésticas diferente dos homens.
A mulher realiza atividade doméstica por imposição 1 0
A mulher realiza atividade doméstica de forma voluntária 1 0
Quantificação das citações 5 16
24% 76%
131
mas ela também tem que trabalhar em casa, né? Vai deixar
a casa suja, com os prato, não, né? Ela vai ter que trabalhar
dentro de casa fora de casa também, entendeu?
132
As atribuições domésticas não podem impedir a mulher 3 1
de ter momentos de lazer
O homem tem capacidade de realizar atividades domés- 0 2
ticas
O matrimônio não torna a mulher única pessoa responsá- 1 0
vel pelas atividades domésticas
O homem que realiza atividade doméstica sofre precon- 1 0
ceito no que tange sua orientação sexual
A igualdade de gênero deve ser vivenciada nos espaços 2 1
públicos e privados
Igualdade de gênero para as mulheres independente de 1 0
cor, raça ou etnia
Quantificação das citações 22 9
71% 29%
133
Simone Beauvoir, com sua célebre frase: Ninguém nasce
mulher: torna-se mulher, potencializa a percepção dos questio-
namentos diante da construção do feminino que se mantém viva
na esfera cultural. Podemos perceber que a identificação com as
causas femininas pode ser responsável para potencializar o lugar
de fala das mulheres ao transpor os padrões estabelecidos; uma
luta que começa na escola, nas séries iniciais, pela construção da
reflexividade. Louro (2014) afirma: “[...] homens que se afastam da
forma de masculinidade hegemônica são considerados diferentes,
são representados como os outros e, usualmente, experimentam
práticas de discriminação ou subordinação” (LOURO, 2014, p. 52).
Deste modo, homens e mulheres são direcionados para agir se-
gundo normas estabelecidas, atendendo as prerrogativas culturais
delimitadoras de seus espaços, sendo os transgressores imergidos
em uma teia de preconceitos diante dos estereótipos que preci-
sam ser desconstruídos. As imagens das cientistas mostradas na
mesma aula cumprem a função de registrar conquistas femininas e
apontar o lugar da mulher como pressuposto de igualdade.
PALAVRAS FINAIS
134
questionar a compreensão patriarcal através do riso. Sabemos que
esses entendimentos distorcidos não dignificam a condição femi-
nina comprometendo as relações de gênero no contexto escolar,
assim como nos demais campos sociais nos quais os sujeitos inte-
ragem.
Deste modo, a instituição escolar que, nas palavras de Louro
(2014), é uma esfera que fomenta a divisão pautada nas questões
de gênero, precisa desarticular ações que validam a superioridade
masculina e colocam o feminino como conceito subalterno. Esta
conjuntura requisita uma expertise docente que capture e ressig-
nifique os estigmas sociais para novas condições de compreensão
das desigualdades que afetam o feminino no imaginário coletivo.
Nesse sentido, a leitura dos memes em sala de aula, com crianças e
adolescentes, dá um passo nessa direção acenando com a promo-
ção da igualdade de direitos para homens e mulheres na discussão
das assimetrias de gênero.
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136
A MEMÓRIA AO SABER, DO SABER A LIDERANÇA:
RESSIGNIFICANDO SER MULHER NEGRA E QUILOMBOLA
INTRODUÇÃO
1
Mestre em Serviço Social, Questão Social e Direitos Sociais pela Universidade Estadual da Paraí-
ba-UEPB. E-mail: jessika.cristin@aluno.uepb.edu.br
2
Doutora em Educação professora da Universidade Estadual da Paraíba-UEPB.
E-mail: patriciaaragao@servidor.uepb.edu.br
um estudo de bases teóricas e metodológicas reflexivas que utili-
zam a categoria da interseccionalidade para compreender a reali-
dade estudada.
138
o negro da sociedade, os guiando para tentativas de assemelhar-se
as características físicas e consequentemente intelectuais de seus
dominadores, partindo da negação e da criminalização do que é
próprio do povo negro. A construção da mulher negra feita a par-
tir da mulata e da doméstica, instrui modos perversos sobre a vida
dessas mulheres, o desvencilhar do ideário internalizado e naturali-
zado por uma vida inteira, abre feridas que somente a construção de
um novo paradigma sobre si próprias será capaz de curar.
Dentro disso o corpo feminino negro tem desempenhado pa-
pel fundamental, o reconhecimento e a desconstrução de concep-
ções negativas sobre o ser negro tem desencadeado o aumento
significativo de pessoas que se reconhecem enquanto população
de cor, indivíduos que passam a valorizar características antes es-
condidas como o cabelo. O processo de exaltação da natureza e da
beleza feminina negra tem se tornado elemento central no enga-
jamento político de mulheres negras na luta contra o racismo e o
sexismo em nosso país.
A estruturação desse novo paradigma parte desse modo da
negação da categoria dominante que historicamente é classificada
como a ideal, esse cenário construído sob a inferiorização e objetifi-
cação do corpo negro que o coloca como outro dentro da sociabi-
lidade branca e cristã nas quais o Brasil é estruturado. Esse outro é
a antítese do sujeito branco, ele é o antagonista que quer conquis-
tar tudo aquilo que pertence ao branco e por isso é passível se ser
explorado e humilhado. Esse projeto de objetificação aponta para
uma população que aceitou sem muitas resistências o silenciamen-
to sendo que é o processo de apagamento da população negra que
a coloca nessa estrutura de impossibilidades.
Nesse sentido, percebemos que as estruturas sociais de nosso
país deslegitimam as discussões e pautas feitas por pessoas negras,
restringindo o seu alcance muitas vezes até mesmo dentro da po-
pulação negra. O número ínfimo de mulheres negras em espaços de
poder como por exemplo, no âmbito acadêmico, nos diz que esse
espaço é centrado em perspectivas e nuances que as excluem e in-
139
visibiliza nesses locais. Não é à toa que quando uma mulher negra
fala sobre as desigualdades sociais vivenciadas por ela no Brasil em
um determinado círculo de discussões não recebe a devida credibi-
lidade, mas quando uma branca o faz os holofotes se voltam para
tal acontecimento.
Nesse descrédito vemos a construção da mulher negra como
a antítese de tudo, ela não se assemelha a homens negros e nem a
mulheres brancas, aglutinando (com base na supremacia masculina
branca) todas as características de raça e de gênero negativa de
nossa sociedade. “A mulher negra ocupa uma espécie de terceiro es-
paço onde seu apagamento consiste na polarização do mundo em
negros de um lado e mulheres do outro” (KILOMBA, 2008, p.98).
A necessidades e as singularidades da mulher negra só po-
dem ser abordadas de maneira adequada havendo uma intersec-
ção entre raça e gênero, a sobreposição ou exclusão de uma dessas
categorias faz com que as percepções sobre a sua opressão seja
capturada de maneira incompleta.
O ser mulher negra em uma sociedade marcada pelo racismo
e sexismo é opor-se a uma dupla opressão que determina o lugar
social, político, cultural e econômico destes sujeitos, as mulheres
negras atuam nessas duas frentes que unidas provocam múltiplas
desigualdades sociais em suas vidas. É nesse sentindo que o femi-
nismo negro propõe em suas pautas de lutas e em suas produções
científicas o entendimento das questões concernentes ao ser mu-
lher negra sob a perspectiva da interseccionalidade.
O termo interseccionalidade surgiu a partir dos debates e re-
flexões do feminismo negro estadunidense, cunhado pela jurista
Kimberlé Crenshaw, e inaugurado por ela em artigo publicado em
1989. A categoria interseccional proposta pela jurista seria uma fer-
ramenta teórico-metodológica para tratar as opressões de forma
entrecruzada, sem, no entanto, sobrepor uma opressão a outra,
levando em consideração que é o seu entrelaçamento que causa
as desigualdades combinadas (ASSIS, 2019).
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que
140
busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da intera-
ção entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especifica-
mente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão
de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades
básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças,
etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p.177).
A partir desse momento a interseccionalidade passa a pro-
mover intervenções políticas e sociais, no enfrentamento aos sis-
temas de “racismo, sexismo e violências correlatas se sobrepõem,
discriminam e criam encargos singulares às mulheres negra” (AKO-
TIRENE, 2019, p. 35).
Tal abordagem torna-se um elemento central para analisar
as nuances relativas à vida das mulheres negras e quilombolas na
particularidade do Brasil. Mulheres quilombolas são atravessadas
por ambos marcadores sociais, gênero e raça atravessam as singu-
laridades desses sujeitos, evocando uma perspectiva social e tam-
bém teórica que considere a sua realidade.
Nessa perspectiva o feminismo negro vem tornando-se um
pressuposto que tem fornecido bases teóricas para a explicação
e enfrentamento das múltiplas opressões vivenciadas pelas mu-
lheres quilombolas, o seu recorte étnico e racial reverbera por um
movimento social e político que considere as suas múltiplas diver-
sidades, nesse sentido, ao perceber as mulheres quilombolas en-
contraremos a extensa gama de categorias explicitadas do movi-
mento de mulheres negras.
O apagamento histórico dessas mulheres, a tomada de cons-
ciência através das discriminações vivenciadas pela cor da pele, a
luta por espaço dentro das comunidades, as diversas bandeiras de
luta levantadas por esse amplo público reafirmam que estas repre-
sentam mais uma frente de luta para o referido movimento.
141
REDE DE SABERES, MEMÓRIA E COMUNIDADE: MULHERES
QUILOMBOLAS E A CONSTRUÇÃO DE SUAS IDENTIDADES
142
alvo das lutas e resistências dos movimentos3 que clamam por mu-
danças sociais.
É apoiada nessas significações, enquanto uma pesquisa que
busca adentar nos universos desses sujeitos políticos e sociais que
são as mulheres quilombolas, buscando a compreensão de suas
identidades que lançamos mão das definições do que é identidade
e de como está se constrói dentro de grupos subalternizados.
É imprescindível para o alargamento das discussões aqui pro-
postas entendermos os elementos fundantes das identidades dos
múltiplos e diversos grupos de mulheres negras e quilombolas, es-
tas que com o desenvolvimento dos movimentos sociais e das lutas
contra o sistema de dominação vigente, tem conseguido ampliar o
alcance de suas demandas, assim como tem ganhado espaço em
setores antes negados.
Diante disso, sintetizamos que a construção da identidade de
um grupo perpassa as memórias de sua vida e a conjuntura de seu
presente, essa identidade não é algo fixo e imutável, se delineia a
partir das vivências do indivíduo ou do grupo e pode se modificar
ao longo dos anos. A identidade para Stuart Hall (2008), não é algo
unificado e uniforme, ela é um universo fragmentado construído
a partir de contextos, práticas e discursos que podem ser tanto
semelhantes como antagônicos. A identidade utiliza a história, a
cultura e a linguagem para produzir aquilo que iremos nos tornar.
É nesse sentido que as relações étnico-raciais se formam
mediante as representações que são construídas ao longo da nossa
história, e essas representações ganham sentidos e significados
que delineiam o posicionamento de determinado grupo em uma
sociedade. As representações são assim definidas como HALL,
1997, p.61 apud FERNANDES e SOUZA, 2016, p. 104:
143
eventos do mundo não têm, neles mesmos, qualquer sen-
tido fixo, final ou verdadeiro. Somos nós, em sociedade, en-
tre culturas humanas, que atribuímos sentidos às coisas. Os
sentidos, consequentemente, sempre mudarão de uma cul-
tura para outra e de uma época para outra (FERNANDES E
SOUZA, 2016, p. 104).
144
iram determinar a vida dos sujeitos.
145
negra difere do passado e no presente, a sua identidade está con-
dicionada a sua relação com seu passado, a sua memória com suas
atividades presentes, com o meio social em que se insere, o seu
trabalho e o seu território.
Sobre o referido aspecto e alocando construções feitas a par-
tir da margem de pessoas que vivenciam a construção da identi-
dade quilombola, utilizamos o artigo de Edna Balbina dos Anjos
dos Santos (2019), quilombola que faz um percurso de reconstru-
ção identitária do Quilombo Baixa Grande. Santos (2019) enfatiza
a questão da memória ao reconstruir a identidade dos remanes-
centes, ela coloca que a memória traspassada através da oralidade
como técnica emancipatória é algo recente e advindo das conquis-
tas das comunidades e dos decretos que as regulamentam, o que
se tinha antes é uma memória que construía saberes baseados nas
opressões dos dominadores nos demostrando que o contexto em
que o sujeito está inserido é responsável em partes pelo desenvol-
vimento de certas identidades.
146
essa organização tem-se apresentando. Partindo disto, analisare-
mos as proposições de quatro dissertações de mestrado que tra-
tam de mulheres quilombolas, seu protagonismo, sua relação com
o território, seus saberes e as principais nuances que compõem
suas identidades.
Iniciamos nosso percurso de analise com a dissertação de
Leandra Ribeiro Fonseca (2020), o título de seu trabalho é “Mulhe-
res quilombolas: trajetórias de luta e identidades em construção4”
essa pesquisa resguarda traços de cotidiano, memória, vivências,
de trajetórias de vida de um conjunto de mulheres quilombolas
pertencentes a região de Pelotas no Rio Grande do Sul e como
essas mulheres marcadas por tantas desigualdades sociais, econô-
micas e políticas conseguiram organizar-se em torno da luta pelo
seu reconhecimento e sua representatividade.
A dissertação de Leandra enfatiza aspectos fundamentais e
também muito emocionantes da vida das mulheres quilombolas,
ela aborda as experiências de vida dessas mulheres, desde as difi-
culdades vivenciadas na infância, o período de adolescência, a di-
ficuldade para uma educação, as relações afetivas e fraternas, as
bases sociais e econômicas que estiveram por toda uma vida pre-
sentes nessas mulheres. Ela dialoga durante todo o texto com os
depoimentos das mulheres participantes da pesquisa, pois, assim
como estas ela também é uma mulher quilombola e traz na sua
pesquisa de dissertação a relevância de se compreender o ideário
da mulher quilombola, mas também o seu apagamento das estru-
turas sociais e políticas do Brasil.
Ao dialogar com diversas escritoras falando também do lu-
gar de sujeito subordinado, ressaltando o pouco destaque que a
mulher negra do âmbito rural e quilombola tem nos crescentes es-
tudos sobre o feminismo negro. “Atualmente está em destaque,
o tema da “mulher negra”, mas isso ainda atingiu muito pouco a
4
Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pelotas, sendo defendida no ano de 2020, e tendo como sujeitos da pesquisa mulheres das comuni-
dades Maçambique; Quilombo das Nascentes; Comunidade Coxilha Negra; Comunidade Rincão do
Couro e da Comunidade Santa Clara.
147
mulher negra rural quilombola.” (FONSECA, 2020, p.14). Podemos
verificar a partir do que problematiza Fonseca que:
5
MULHERES QUILOMBOLAS: TERRITÓRIO, GÊNERO E IDENTIDADE DA COMUNIDADE NEGRA
SENHOR DO BOM FIM, AREIA / PB (2005-2018), é uma dissertação de mestrado vinculado ao
Programa de Pós-graduação em História do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Uni-
versidade Federal da Paraíba, que traz a trajetória de vida das mulheres da comunidade quilombola
Senhor do Bom fim, localizada na cidade Areia.
148
Santos (2018), faz uma caracterização das mulheres com as
quais ela propõe seu estudo, ressaltando a vida de dificuldades que
as três moradoras da comunidade negra de Senhor do Bomfim ti-
veram, trazendo uma pequena comparação sobre a instituição dos
negros nessas terras, ela demostra que os primeiros moradores
da região tinham uma mulher como sua matriarca apontado para
essa como monte central na organização da comunidade. “Uma
característica comum em comunidades quilombolas da Paraíba é
da mulher enquanto centro do grupo e que é umas das caracterís-
ticas de comunidades africanas” (SANTOS, 2018, p.89).
A mulher sobretudo negra é lida sob a imagem da subalter-
nidade, não vemos com facilidade estas em espaços de liderança,
no entanto quando se trata de comunidades quilombolas estas
mulheres são as principais constituintes das lideranças dos grupos
assim como apontado por Santos (2018), a frente das lutas e das
conquistas de comunidades sempre perpassam as mulheres do
grupo. Seria esse um ancestral de organização que era originário
dos grupos africanos ou uma resistência adquirida através da ár-
dua batalha do ser mulher quilombola? Seja como for, o fato é que
são essas quilombolas que tem ocupado um espaço diferencial em
suas trajetórias de vida.
A reconstituição das memorias das mulheres quilombolas,
elemento que é pontuada pela autora, é fundamental compreen-
der o trajeto de suas vidas e como a organização da sociedade está
arraigada em suas histórias, determinando o seu lugar no mundo.
Ela destaca a memória como central para construção da identida-
de, tanto as memórias dos mais velhos, quanto as dos mais novos
que tomam conta de sua ancestralidade através da oralidade tor-
na-se elementos fundadores de uma identidade pautada no reco-
nhecimento de sua vida passada e presente.
Partindo dos escritos de Santos (2018), pode-se observar a
preponderância das mulheres nas decisões dessas comunidades,
a busca pelo reconhecimento enquanto remanescentes, a luta pela
permanência no território visto a ameaça proeminente, a preserva-
149
ção da memória e de sua cultura são locais em que a mulher apesar
do sistema patriarcal e discriminatório que vivencia conseguiu se
sobressair. Um elemento central dos protagonismos das mulheres
quilombolas e também que é pauta de luta pelas próprias comuni-
dades é a luta pelo território, portanto o nosso próximo recorte se
dará sobre uma dissertação que traz a liderança dessas mulheres
principalmente no âmbito da sua organização quanto a conquista
do seu espaço territorial.
Em sua dissertação Alcione Ferreira da Silva (2017)6, debru-
çou sua pesquisa e estudo em torno das lideranças femininas da
comunidade Negra Nossa Senhora Aparecida ou comunidade qui-
lombola do Grilo-PB. No referido estudo a autora coloca em dis-
cussão a liderança das mulheres da referida comunidade na defesa
pela titulação das terras por eles ocupados, ainda ressaltando ele-
mentos da cultura e da ancestralidade desse povo.
Na comunidade do Grilo atualmente a liderança é feminina,
mas vale ressaltar que, durante todo seu percurso histórico as mu-
lheres também comandaram a organização e luta no entorno da
comunidade. A autora destaca a importância da ancestralidade
dentro desse protagonismo e como os saberes passados entre as
gerações foram fundamentais para constituir o modo de existência
das mulheres da comunidade. (SILVA, 2017).
6
NAS TRILHAS DA ANCESTRALIDADE E NA FORÇA DA COR: PROTAGONISMO SOCIALDE MU-
LHERES DA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO GRILO-PB NA LUTA PELO DIREITO SOCIAL A
TERRA, é vinculado ao programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual da
Paraíba, defendida em 2017 traz um apanhado histórico sobre a vida e a liderança das mulheres da
comunidade do Grilo- PB.
150
O conhecimento transmitido através das gerações pela ora-
lidade, evidenciam uma liderança feminina que não é própria da
sociedade patriarcal/sexista que vivenciamos. Esse é um modo de
existência advinda dos saberes e das heranças africanas, a resis-
tência do povo do Grilo, afirma a autora baseado nas falas das pro-
tagonistas tem sua base no legado de seus ancestrais quilombolas,
na memória das mulheres negras que vieram antes dessas e serão
passadas a que viram após elas.
Em sua dissertação Alcione ressignifica os elementos da an-
cestralidade, presentes no Grilo, pontuando o lugar da liderança
feminina principalmente no tocante a luta pelo território e os as-
pectos culturais, econômicos e políticos que transpassam justa-
mente com os entrelaçamentos de gênero e raça a vida, identidade
e trajetória de mulheres negras das comunidades quilombolas e
em particular a comunidade do Grilo.
Ainda a respeito destas questões o trabalho de Priscila da
Cunha Bastos7, diferente das demais, aborda a perspectiva das jo-
vens quilombolas e os desafios entre ficar e sair da comunidade em
busca de melhores condições de vida, que em nossa compreen-
são também se faz em um elemento pertinente na construção da
identidade tanto do grupo quilombola como das mulheres de seu
entorno. A autora diz que o ser “jovens negra quilombola” se insere
em um contexto de difícil transição, é um processo pelo qual estão
se formando e experimentando um processo de mudança em di-
versos segmentos de suas vidas.
No estudo a autora busca estruturar o percalço da trajetó-
ria de vida das jovens da comunidade quilombola de São José da
Serra, trazendo também as nuances das dificuldades existentes
no âmbito rural vivenciado por esta comunidade. Entrelaçando a
construção de suas trajetórias e a relação entre o quilombo, a ci-
dade e o ser feminino. A abordagem das questões de gênero, raça,
7
Entre o quilombo e a cidade: trajetórias de individuação de jovens mulheres negras, é um trabalho
vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, ten-
do como sujeitos pesquisado mulheres da comunidade quilombola São José da Serra, localizado no
interior do Rio de Janeiro.
151
pertença, idade aparecem como meios que viabilizam a construção
de uma determinada identidade para essas jovens, ela compreen-
de a identidade como um processo histórico em que todas essas
relações sociais em confluência criam o indivíduo em determinado
contexto social.
152
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
153
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oli-
veira. Rio de Janeiro, Cobogó, 2019.
LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: Guacira Lopes Louro (Org.). O CORPO
EDUCADO: Pedagogias da sexualidade, 2º edição, Belo Horizonte, Autêntica, 2018.
MUNANGA, K. Identidade, Cidadania e Democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racis-
tas no Brasil. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, Campinas, SP, v. 5, n. 1, p. 17–24, 2006.
Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/article/view/8645505.
Acesso em: 24/09/2022.
SANTOS, Edna Balbina dos Anjos dos. Memórias que Reinscrevem: o Uso da Memória na Recons-
trução Identitária do Quilombo Baixa Grande. Revista Docência e Cibercultura, Rio de Janeiro, v. 3,
n. 3, p. 235-245, Set/Dez 2019. Disponível em: MEMÓRIAS QUE REINSCRECEM: O USO DA MEMÓ-
RIA NA RECONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO QUILOMBO BAIXA GRANDE | dos Santos | Revista
Docência e Cibercultura (uerj.br). Acesso em: 27/09/2022.
SANTOS, Geiza da Silva. MULHERES QUILOMBOLAS: território, gênero e identidade da comuni-
dade negra senhor do bom fim, areia / PB (2005-2018). Dissertação (Programa de Pós-graduação
em História) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João
Pessoa, 2019.
SILVA, Alcione Ferreira da. NAS TRILHAS DA ANCESTRALIDADE E NA FORÇA DA COR: protago-
nismo social de mulheres da comunidade quilombola do Grilo-PB na luta pelo direito social a terra.
Dissertação (programa de Pós-Graduação em Serviço Social) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, 2017.
154
DE COMUNIDADE RURAL À COMUNIDADE REMANESCENTE
QUILOMBOLA: A TRAJETÓRIA DO PROCESSO DE
RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO E TERRITORIAL DA
COMUNIDADE SANTA ROSA, BOA VISTA/PB1
INTRODUÇÃO
1
Este artigo é um fragmento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado ao curso de
Licenciatura em Sociologia/Departamento de Ciências Sociais-UEPB, inserido na área de concentra-
ção: Diversidade e Inclusão Social. O TCC defendido em julho de 2022, foi orientado pela Profa. Dra.
Cristiane Maria Nepomuceno – DCS/NEABI/UEPB.
2
Graduada em Sociologia – Licenciatura (2022) pela Universidade Estadual da Paraíba, Campus I –
Campina Grande-PB. E-mail: alycristiane@gmail.com.
3
Universidade Estadual da Paraíba, Campus I – Campina Grande-PB. Doutora em Ciências Sociais,
docente do Departamento de Ciências Sociais. E-mail: crisnepomuceno2016@gmail.com.
blicas realmente estão sendo pensadas levando em consideração
as demandas especificas da população negra, seja no processo de
ressignigicação das suas identidades, seja promovendo melhores
oportunidades de uso das suas terras, ocupação/emprego, me-
lhoria na renda/salários, saúde de qualidade, participação política,
acesso a atividades culturais e melhor qualidade de vida.
Este artigo traz algumas reflexões acerca do processo de re-
conhecimento do território e da identidade quilombola, tomando
como recorte a trajetória de construção dessa pertença ocorrida
com a Comunidade Quilombola de Santa Rosa, localizada no mu-
nicípio de Boa Vista, no Cariri paraibano. A ideia era conhecer o
alcance prático das leis e políticas públicas antes/após o processo
de reconhecimento. Para dar sustentação ao trabalho foi realizada
uma pesquisa bibliográfica e documental com o objetivo de buscar
as fontes para construção dos conceitos e categorias relativas à
compreensão do objeto da pesquisa. Com destaque para as con-
tribuições de pesquisadoras/pesquisadores da temática: Ilka Boa-
ventura Leite (2000), Paul E. Little (2002), Diego Nunes e Vanilda
Santos (2021), Cardoso (2002). Além do Estudo do Componente
Quilombola (ECQ) e Projeto Básico Ambiental Quilombola (PBA-
-Q) de responsabilidade da empresa NEOENERGIA e executado
pela BIODINÂMICA dentro da comunidade no ano 2019, e en-
trevista feita por Chico Abelha disponibilizada pelo seu canal no
Youtube, com o tema “Os Quilombos de Santa Rosa – PB”. Todas
essas fontes, serviram como base para a coleta de dados tendo em
vista que a Pandamia do Covid 19 inviabilzou o contato direto com
a Comunidade Quilombola.
A pesquisa caracteriza-se como Estudo de Caso à medida que
trata-se de um estudo minucioso, intensivo e sistemático sobre
uma comunidade quilombola situada na zona rural daParaíba, com
o objetivo de verificar como aconteceu o seu processo de reco-
nhecimento. A planificação da pesquisa inclui, em primeiro lugar, o
estudo das fontes literárias o levantamentodos dados secundários,
a fim de explorar o objeto de estudo. O material selecionado/cole-
156
tado foi estudado de maneira minuciosa, com o intuito de recolher
todas as informações necessárias para compreender a história da
comunidade estudada.
DESENVOLVIMENTO
4
IBGE - Notas técnicas - Base de Informações Geográficas e Estatísticas sobre os indígenas e qui-
lombolas para enfrentamento à Covid-19 (atualizado em 20/05/2020). Disponível em: https://
www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/27480-base-de-
informacoes-sobre-os-povos-indigenas-e-quilombolas.
157
acampamento, cabana; aqui no Brasil a palavra ganha outro sig-
nificado: comunidades formadas de pessoas escravizadas fugidas,
lugar de enfrentamento, resistência e luta.5
A aprovação do Artigo 216, Constituição Federal de 1988, in-
ciso V, § 5º, foi fundamental para recuperação e ressignificação da
memória quilombola ao estabelecer que: “ficam tombados todos
os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas
dos antigos quilombos,” como forma de garantir aos reminiscentes
dos negros que aqui foram escravizados, sua existência no tempo
presente. Com reforço do expresso no Artigo 68, do Ato das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo a condição
básica do direito legal de sua própria terra, através da emissão de
títulos em seu nome.6
Entretanto, é importante ressaltar que esta conquista resulta
das mobilizações de intelectuais e dos movimentos sociais da dé-
cada de 70, a partir dos debates da constituinte para proposituras
à CF/88, que o conceito quilombo passa por um processo de re-
construção repercutindo o que é ser negro no Brasil. Na busca por
redimensionar a concepção jurídica sob o termo quilombo e/ou
quilombolas só veio a acontecer após 100 anos depois da abolição
do sistema escravista, permitindo e ampliando concepções iden-
titárias, viabilizando que os/as negros/as fossem (re)conhecendo
sua história, sem a visão cristalizada do eurocentrismo, aí inclusa
a identidade de remanescente quilombola, aceita e unida a cons-
ciência racial.
Consideramos, por fim, o conceito de “remanescente de qui-
lombo” elaborado pelo grupo de pesquisa sobre Comunidades Ne-
gras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia – ABA (1994).
5
Nos últimos anos foram publicados vários dicionários de termos afro, dentre estes cito: Dicionário
Escolar Afro- Brasileiro, escrito por Nei Lopes (Selo Negro, 2015); Dicionário da Escravidão e Liber-
dade – 50 textos críticos, organizado por Lilia M. Schwarcz e Flávio Gomes (Companhia das Letras,
2018) e inúmeras versões digitais.
6
O processo que garante a titularidade do território quilombola está disposto nos Artigos 215 e
216 da CF de 1988 e no Artigo 68 (ADCT) que tratam desses direitos à luz da Instrução Normativa
nº 57/2009, que tem como objetivo estabelecer procedimentos do processo administrativo para
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras
ocupadas pelosremanescentes de comunidades dos quilombos de responsabilidade do Incra, após
a emissão daCertidão de Autodefinição pela Fundação Cultural Palmares (FCP).
158
Na busca por sanar as questões conceituais sobre a ideia estática
dos remanescentes, como grupos isolados e homogêneos, o refe-
rido grupo de pesquisa afirma ser um termo utilizado.
7
É importante ressaltar que as relações de enfrentamento entre escravizadores/as e escravizados/
as também aconteciam sem o aspecto coercitivo. Muitas vezes concessões por parte dos senhores
podiam acontecer apenas para evitar rebeliões dos/as escravizados/as em razão do medo, cediam
de forma consensual, possibilitando assim aos escravizados/as a manutenção de suas tradições,
crenças e cultura.
159
dinâmico, bem como a variabilidade das experiências capazes de
serem amplamente abarcadas pela ressemantização do quilombo
na atualidade.”
Essa forma coletiva de vida e do uso da terra historicamente
construído pelos quilombolas faz com que esse espaço, seja a pro-
va da garantia a terra e a sua “pátria”. Passando também pelas for-
mas particulares que cada grupo significou seu território, como nos
dizer de Paul E. Litlle (2002): “terras de preto”, “terras de santo” ou
de “populações”, “comunidades”, “povos”, “sociedades”, “culturas”.
Desse modo, as formas coletivas de organização, através dos
saberes ambientais e ideologias historicamente transmitidas, cons-
truíram suas identidades, nas quais expressam a manutenção com
o passado e modo de preservar a união do grupo pelas novas ge-
rações dentro deste território. Assim, a terra quilombola, ao se con-
verter em território, assume múltiplas expressões socioculturais,
seja em decorrência do vínculo afetivo com o território, a historici-
dade e o uso e defesa do mesmo. O território do quilombo passou
a ser um refúgio e o lugar de pertença a um grupo, sentir-se acolhi-
do, ser livre para exercer sua cultura e ter um lugar para chamar de
seu.é parte inseparável da identidade, sendo construído dentro da
memória coletiva, tornando-se fundamental no estabelecimento de
forças para mobilização, por estar presente na história ancestral re-
passada dentro do seio familiar, e na preservação do seu território.
Garantir esses direitos presentes na CF 88, passa por uma
verdadeira via crucies já que a escravização da população negra
no Brasil durou cerca de 350 anos impulsionado por uma diáspora
forçada que para cá trouxe milhões de pessoas, uma gigantesca
massa populacional. Ainda hoje os Movimentos Sociais resistem,
burlando um sistema que não mudou mais se reconfigurou tor-
nando tão perverso e tirano quanto no passado. É interessante
ressaltar que somente 15 anos depois da CF/88 surgiram políticas
públicas capazes de evoluir na consolidação desse direito.8 A prin-
8
O Decreto Presidencial nº 4.887/2003, regulador do artigo 68 do Ato das Disposições Constitu-
cionais Transitórias (ADCT), que concedeu o direito de propriedade coletiva “aos remanescentes das
Comunidades dos Quilombos”, fez com que, a autodefinição quilombola se tornasse uma expressão
160
cípio o efeito dessas leis foram inviabilizados por falta de decretos
aplicativos que as colocassem em prática, outros motivos foram
os impedimentos e oposições colocadas por várias forças políticas
que unidos aos interesses dos grandes latifundiários, grileiros, mi-
neradoras, entre outros, dificultando a garantia na aplicação das
políticas públicas dentro destas comunidades.
Em 2004, a partir do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
consolidou-se as políticas de auxílio governamental com o Progra-
ma Brasil Quilombola (PBQ), criado com a finalidade de coordenar
as ações governamentais, que incluem articulações transversais,
setoriais e interinstitucionais voltadas para os remanescentes de
quilombos, garantindo acesso a recursos mínimos de infraestru-
tura na educação (Bolsa Família), acesso à terra, inclusão produtiva
entreoutros, assegurando a subsistência dessas comunidades.
Hoje, segundo a Fundação Palmares9, a Paraíba possui um
total de 44 (quarenta e quatro) CRQs certificada, dessas 29 (vinte
e nove) tem seu número de processo no Incra, entre elas 5 (cinco)
Comunidades com RTID, 4 (quatro) estão com Decreto no DOU e
apenas 2 (duas) com Portaria no DOU, as 15 (quinze) demais possui
apenas o certificado.
Em dados experimentais divulgados, no ano de 2020, pelo
IBGE10 estima-se que haja na Paraíba um total de 19.117 indivíduos
residentes em áreas quilombolas. Sabe-se que a falta de dados
sempre foi uma forma de invisibilizar essas populações, mais com a
contribuições de ONGs em conjunto com a FCP na Paraíba, pouco
a pouco esses grupos vem saindo do mapa da invisibilidade.
A Comunidade Remanescente Quilombola Santa Rosa, ob-
161
jeto desse estudo, localiza-se na zona rural a 5 km de Boa Vista,
no Agreste paraibano, atualmente ocupando uma área de aproxi-
madamente 149 hectares e perímetro de 8,15 km. De acordo com
dados retirados no Estudo do Componente Quilombola (ECQ,
2019)11 na Comunidade Santa Rosa vivem 40 famílias, o acesso a
comunidade se dá por meio de estradas vicinais, não pavimenta-
das, à partir do município de Boa Vista, distancia em torno de 5,35
quilômetros da sede do município.
De acordo com as fontes utilizadas, e na entrevista gravada
com Edilene Monteiro Fernandes liderança da comunidade, re-
centemente concedida ao youtuber Chico Abelha, para seu canal
no Youtube Cultura e Personalidades do Sertão Nordestino12, ire-
mos apresentar a história da Comunidade em estudo, a CRQ Santa
Rosa foi uma das 44 (quarenta e quatro) certificada pela Fundação
Cultural Palmares (FCP) em 2018 – emissão do certificado em de-
zembro de 2018 – sendo o processo partido do critério de auto-
definição atestada pela própria comunidade, que ainda hoje não
conseguiu a demarcação do seu território pelo INCRA. Através de
um trabalho coletivo feito pelos próprios moradores do quilombo
em resgatar a história de sua descendência através dos mais velhos
do grupo, a Comunidade Quilombola de Santa Rosa com mais de
320 anos de existência conseguiu a certificação da FCP reconheci-
da em 2018, após a comprovação da sua descendência de escravi-
zados/as e a autodefinição.
Como no dizer de Leite (2010): é através da dimensão sim-
bólica que os negros se organizam de forma coletiva para com-
partilhar histórias e trajetórias comuns, definindo suas identidades
como grupos, consolidando sua existência do mesmo modo que
impõem seu reconhecimento ao passo que dialoga com as insti-
tuições. Mas, só a autodefinição, como critério primordial para a
certificação, não é suficiente, só após longo processo de recons-
Dados com acesso restrito em: : https://we.tl/t-lrlT1q6njO Acesso em: 25 julho 2022.
11
12
ABELHA, Chico. Youtube. OS QUILOMBOLAS DE SANTA ROSA – PB. Publicado em 16 abril 2022,
com duração de 47:34. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=H6GfltDHvwc&list=PLWug-
CyhRXOvIEDyGbCNcgqOEZDLZz0js8&inde x=12&t=1823s Acesso em: 19 abril 2022.
162
trução histórica e reconhecimento de sua identidade quilombola.
Para isso a afirmação da sua condição de quilombola precisa ser
comprovada, segundo Edilene Monteiro (2022):
163
ta Rosa:
13
Entrevista concedida a Cibele Jovem Leal em 10 abril 2017, publicado no blog Quilombos
da Paraíba. Disponível em: https://quilombosdaparaiba.blogspot.com/search?q=santa+rosa. Acesso
em: 28 abril 2022.
164
dos roçados familiares e/ou de terceiros.
As questões culturais dentro da comunidade é outro ponto
forte a ser considerado, como resgate histórico na contemporanei-
dade está a fabricação de utensílios de cerâmica, prática utilizada
pelas antigas louceiras Maria Gorda, Margarida, Marina de Jaime e
Maria de Chica, que além da produção para uso doméstico, tam-
bém era fonte de renda já que as mesmas comercializavam na ci-
dade. Eram as mesmas, responsáveis por extrair e fabricar a argila
que retiravam de um barreiro próximo a cidade, já que seus mari-
dos passavam longos períodos fora trabalhando na construção de
açudes e/ou em fazenda de terceiros.
Outra prática comum era o uso de ervas medicinais já que
atendimento médico e serviço de saúde era de difícil acesso e pou-
co utilizado pelos moradores, dentro da comunidade tinha serviços
tradicionais como benzedeiras, parteiras, curandeiras e rezadeiras,
presente nos relatos dos moradores no ECQ. Conhecimentos em
propriedades terapêuticas de plantas e animais, em preparos de
lambedor, chás, infusões, banhas de animais, era cultura conhecida
e partilhada entre as famílias quilombolas que mesmo não utili-
zando tanto desses recursos hoje em dia, é comum encontrar nos
quintais na maioria das casas o cultivo de plantas para uso medici-
nal, natural da vegetação local.
Sobre a pertença, vivência e prática da religiosidade dos mais
antigos não há relatos dentro das fontes pesquisadas, mas hoje
dentro do quilombo há moradores que se autodeclaram católicos,
espíritas e evangélicos (NEOENERGIA/BIODINÂMICA, 2019a, p.
55). A primeira igreja dentro da comunidade começou a ser cons-
truída entre os anos de 2017/2018, após um padre começar a cele-
brar missas e frequentar a comunidade, e com ajuda dos moradores
através de bingos arrecadaram o suficiente para sua construção, a
padroeira da comunidade é Santa Rosa escolhida ainda em 2016,
anteriormente era celebrado apenas os festejos juninos quando fa-
ziam fogueira e festas.
Os mais antigos costumavam se reunir durante a semana
165
embaixo das arvores em frente à casa de Josefa, alguns traziam
instrumentos musicais e tocavam, hoje é o futebol e a vaquejada
uma das fontes de lazer e sociabilidade dentro da comunidade, a
mesma possui um parque de vaquejada e duas quadras de futebol,
onde os jovens brincam, tem os que gostam de futebol se reunin-
do com frequência para jogar, e os adeptos da vaquejada, alguns
se dedicam a este esporte como profissão participando de bolões
e vaquejadas da região. Todo esse conjunto de práticas, saberes e
fazeres partilhados dentro da comunidade, são para Leite (2010):
166
Politicamente a comunidade começou a se organizar movidos
pelo sentimento de insatisfação de algumas porque as perspec-
tivas que tinham eram poucas. A união de 12 mulheres deu ori-
gem ao grupo “As quilombolas de Santa Rosa”. O grupo fundado
em 2013 deu início as reuniões, que aconteciam nas residências
dos moradores, com muita dificuldade devido à falta de meios de
comunicação, transporte e local especifico para os encontros.
Portanto, para concretizar a obtenção do certificado quilom-
bola algumas parcerias se fizeram necessárias, a exemplo da par-
ceria da Associação Quilombola de Santa Rosa com o Projeto de
Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (PRO-
CASE), em conjunto com o coletivo regional a Associação de Apoio
das Comunidades Afrodescendentes (AACADE) e da Coordenação
Estadual de ComunidadesNegras e Quilombolas da Paraíba (CEC-
NEQ), que a documentação que deu subsídio a certificação da co-
munidade junto a FCP foi organizada.
Parcerias como a da AACADE, CECNEQ, PROCASE e Progra-
ma de Aplicação de Tecnologias Apropriadas (PATAC) foram fun-
damentais para as mobilizações junto as comunidades negras e
quilombolas, para uma melhor articulação, promovendo a constru-
ção identitária, além de garantir benefícios como políticas públicas
voltadas para essas comunidades e garantia dos seus direitos, pois,
como no dizer de Edilene: “A gente quer o território porque é um
direito nosso. Estamos buscando o que é da gente” (NEOENER-
GIA/BIODINÂMICA, 2019a, p. 51).
Foi a partir do ano de 2016 que as mudanças começaram a
acontecer dentro da comunidade, este foi o ano do contato com
PROCASE14 algumas ações foram desenvolvidas, a saber: o primei-
ro projeto perfurou três poços artesianos em terrenos particulares.
Em 2017 a Prefeitura Municipal de Boa Vista promoveu a 1ª Confe-
14
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (PROCASE) é a organiza-
ção da parceriaentre o Governo do Estado da Paraíba e o Fundo Internacional de Desenvolvimento
Agrícola (FIDA), Organismo das Nações Unidas (ONU), perpassam desde eventos ou cursos de ca-
pacitação e formação de mulheres, jovens e quilombolas ao fortalecimento de atividades produtivas,
com a disponibilização de recursos financeiros destinadosao apoio e fomento a novos ou já consoli-
dados empreendimento rurais, agrícolas e não agrícolas, beneficiando 56 municípios do semiárido
paraibano.
167
rencia do Quilombo,logo após realizou o primeiro intercambio com
o intuito de conhecer outro quilombo em São João do Tigre. Em
seguida foi a atuação do PATAC promovendo mudanças dentro da
CRQ Santa Rosa.15
Em 2019 a Comunidade teve acesso ao “Programa Sementes
do Semiárido”, um projeto desenvolvido pela Articulação do Se-
miárido (ASA), estas instituições promovem ações que reforçam
a cultura do estoque com as sementes crioulas, na busca de for-
talecer e apoiar o patrimônio genético e práticas de organização
comunitária, garantindo a segurança alimentar e a diversidade das
espécies do semiárido. E através desse mesmo projeto receberam
12 (doze) implementações da 2ª água, com o Programa Uma Terra
e Duas Águas (P1+2) buscando promover segurança alimentar.
Baseado nas informações do site da ASA47, que atua em parce-
ria com o PATAC, para cada programa realizado dentro de uma co-
munidade, antes são realizadas capacitações com as famílias como
o intuito de promover uma melhor compreensão para convivência
no semiárido. São cursos de formação que ensinam de técnicas de
manejo ao gerenciamento de novos recursos e as ações políticas
que podem ser gerenciadas pela própria comunidade.
Em relação aos projetos que continuam em desenvolvimento
na CRQ Santa Rosa. Um dos projetos que teve início em 2019 e que
continua em atuação no quilombo até os dias atuais foi o “Fundo
Rotativo Solidário (FRS) de Animais”. É um projeto do PATAC e o
Misereor Com a finalidade de valorizar as experiências com animais
no processo de transição da agricultura familiar na realidade do
semiárido, buscando apontar e investigar a influência das políticas
públicas direcionadas para criação de animais. O projeto é focado
na juventude local e objetiva desenvolver estratégias de manuten-
ção econômica,evitando a migração.
O projeto Florestando o Semiárido promoveu na comunidade
15
Esta parceria vem fazendo grandes ganhos para a comunidade, a exemplo do Programa Cisternas
nas Escolas, o Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), foram construídas 23 (vinte e três)cisternas
na comunidade, com o objetivo de garantir e facilitar o acesso a água de qualidade, diminuindo a
distância a esse bem.
168
o sistema de tratamento do reuso de água, que através das tec-
nologias de reaproveitamento do uso de água do banho e louça,
unida a uma tecnologia que diminui os impactos sem colocar em
risco o solo, atendendo a uma melhor condição de saúde e higie-
ne sanitária. Outras parcerias e projetos chegaram a Comunidade
a partir da sua condição de remanescente quilombola, a exemplo
da passagem da Linha de Transmissão (LT) 500 kV Santa Luzia
II – Campina Grande III e o Projeto Básico Ambiental Quilombola
(PBA-Q)16, a saber: oficinas para captação de recursos, e forneci-
mento de equipamentos para o correto armazenamento dos re-
síduos, Instalação de horta comunitária na escola do território da
CRQ, fornecimento de tela, sementes e ferramentas.
A Comunidade Quilombola de Santa Rosa obteve ganhos
consideráveis para o coletivo após o processo de reconhecimento
do território como quilombola. O alcance prático das políticas pú-
blicas e das ações oriundas de projetos desenvolvidos por OGNs e
empresas privadas dentro Comunidade chegaram em decorrência
da pertença quilombola. E muitas das ações desenvolvidas vem
contribuindo para o fortalecimento e a construção da sua identida-
de quilombola. É certo que muito ainda precisa ser feito, até por-
que séculos de ausência, descaso e desrespeito institucional não
serão sanados com algumas poucas ações.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
16
Um dos ganhos de fundamental importância, além dos projetos que foram/são desenvolvidos, foi
a elaboração do Estudo do Componente Quilombola (ECQ) que permitiu a Comunidade sistema-
tizar sua memória/história viabilizando o processodo seu reconhecimento enquanto remanescente
de quilombo.
169
e recuperação de personagens e das suas biografias, da memória
dos seus antepassados, nos ajuda a entender que é sim possívelre-
contar a história desse país de modo valorativo, colocando o povo
negro no seu lugar de direito: protagonista, autoral. Também foi
possível compreender como o processo de construção das iden-
tidades não é tarefa fácil, requer investimento, parcerias e políticas
públicas eficazes. No caso das CRQs, a organização e as mobiliza-
ções dos movimentos sociais culminaram na inclusão desses povos
na letra da lei, possibilitando assim garantias legais de políticas pú-
blicas voltadas na reparação de anos de exclusão e vulnerabilidade.
Embora tenha acontecido ganhos no espaço jurídico, esses povos
ainda se encontram muito distantes das garantias na execução das
leis.
Ao estudar a CRQ Santa Rosa seu passado de exclusão, se
apresenta como ponto a ser pensando, mesmo fazendo parte do
quadro de moradores da cidade de Boa Vista, essa comunidade
só passou a pleitear de um maior número de benefícios em políti-
cas públicas, após sua certificação enquanto comunidade quilom-
bola agora em 2018. Assim, percebemos a importância do reco-
nhecimento institucional porque este promoveu o alcance prático
a projetos e programas até então impensáveis. Sim, em termos de
garantias, benefícios realizados, de fato atingindo o maior número
de moradores/as da comunidade só acorreram em resposta dasua
certificação.
Afirmar, que identificar como se deu o alcance prático dessas
políticas públicas dentro da comunidade, requer tempo, já que a
comunidade vem sendo beneficiada há pouco mais de 3 anos. Este
curto espaço de tempo de vivencia com os benefícios gerados após
sua certificação, com certeza ainda está processo de maturação de
resultados. Mas, afirmar que este se apresenta como rico campo
a ser estudado, analisado do ponto de vista da Sociologia, Direito,
História, Geografia e até das ciências naturais, devidos os saberes
tradicionais, que contribuindo fortemente com a diminuição dos
impactos naturais.
170
REFERÊNCIAS
171
POR UMA CARTOGRAFIA DAS ESCRITURAS DO CANDOMBLÉ
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
1
Doutor em Linguística pelo PROLING/UFPB. Professor do Departamento de Letras, Campus III,
da UEPB. Membro-pesquisador dos grupos: TEOSSENO - Teorias do sentido: discursos e significa-
ções – CNPq/UEPB e GIF – Grupo de Investigações Funcionalistas, CNPq/UFPB.
Contato: jacksoncfb@servidor.uepb.edu.br
ção de sistemas linguísticos entre as sociedades.
As culturas ágrafas são, nesse diapasão, culturas marginais,
localizadas, demarcadas, diagramadas por “estigmas” motivados
pela ausência de sistematização – propriamente – linguística con-
ferida pela determinação da convenção e materialização escrita.
O Candomblé, no curso de sua história, tem sofrido ações de
intolerância e ignorância pelos que, comumente estão revestidos
por uma hegemonia cristã purista, o encara, de maneira que existe
a tentativa de apagamento dos valores culturais inseridos através
do culto, das tradições e vivências dessa cultura.
A escrita, como análoga à representação fonético-fonológica
da linguagem, é um dos elementos que configura o registrual mne-
mônico de uma cultura para regimentar uma escritura (BARBOSA,
2022). A escritura transcende a escrita, devendo “refletir a socie-
dade” – nos termos de Landowski (1992) – a partir de elementos
sociossemióticos que se unem para referendar status estruturais e
funcionais aos sistemas linguísticos.
A respeito do termo estrutura, nesta proposta, há um com-
prometimento com sua significação direcionada à organização e
ordenação dos sistemas línguísticos – em geral. Não assumiremos,
por completude, o caráter autônomo e homogêneo, como literatu-
ra aborda, uma vez que acreditamos que a inserção de elementos
culturais, orgânicos, pragmáticos e dinâmicos estão a serviço da
mutabilidade estrutural.
Em relação ao tratamento funcional, consideraremos que a
estrutura discursiva (pragmática) é responsável pelos eventos de
uso da linguagem (estabelecimento da escritura). O uso linguístico,
nas tradições discursivas, revela práticas e tendências das culturas.
Dessa forma, vislumbramos a possibilidade de se estabelecer
um material (corpus) possibilitador de análise a partir de elementos
pictóricos, gestuais e performáticos (BARBOSA, 2022) , uma vez
(auto)semiotizados, estão inseridos dentro de práticas linguageiras
de um povo (BENVENISTE, 2014; BRONCKART, 2006).
Esta perspectiva de investigação que se volta ao produtos da
173
cultura popular vislumbra uma cartografia de escritura, de maneira
que reflita as bordas – translinguísticas – de uma cultura ágrafa
(BHABA, 2001; FERREIRA, 2010), trazendo para constituição de
um corpus semiótico, elementos signatários que traduzem códigos
que perpassam pela história possibilitando aos sujeitos que pra-
ticam a religião afro-brasileira (candomblé) o estabelecimento de
um sistema linguístico baseados em símbolos e práticas conferidas
ao cotidiano litúrgico.
As sociedades ágrafas nos oferecem unidades para reflexão
e estabelecimento sistêmico para constituição de uma descrição
e analise da linguagem dos referentes cotidianos que se regimen-
tam como elementos que se organizam em estruturas semióticas
antropológicas (RODRIGUES,2011; BARBOSA, 2022).
O candomblé, religião de origem africana, representa, hoje,
a importação de nações desterritorializadas de uma África antiga,
que a exemplo de outras culturas, desenvolveu um código comu-
nicacional sem que a escrita, como fixação da voz, fosse desenvol-
vida. Esse aspecto é ainda presente, mesmo esta cultura estando
imersa em um ambiente (nosso país) marcado pela presença da
grafia e da escrita nos contextos de interação e produção artística,
científica e religiosa.
O sistema religioso, que servirá de objeto para nossas inves-
tigações, se organiza em torno de um da língua “Yorubá”, além de
oferecer outros elementos diversos que configuram os princípios
de funcionamento da linguagem, uma vez que em nossa investiga-
ção de doutoramento (BARBOSA, 2022), reunimos objetos de me-
mória (RODRIGUES, 2011) que se articularam a outros aspectos,
em processos simbólico-semióticos, de maneira a constituir uma
escritura multifacetada da circunscrita religião.
No empreendimento do mapeamento dos elementos trans-
linguísticos, caros à nossa pesquisa, consideramos importante, ain-
da, destacar a “voz” (ZUMTHOR, 2007) como o lugar simbólico
que não pode ser definido de outra forma que por uma relação,
uma distância, uma articulação entre o sujeito e o objeto, entre o
174
objeto e o outro.
Essa voz, que não tem a ver diretamente com vocalidade, é
responsiva pela configuração do “imaginário” (DURAND, 2012) que
reveste o signo/símbolo de uma comunidade e se desdobra na for-
mulação de universais mítico-simbólicos através da concepção de
schèmes e arquétipos. Por falar nisso, a influência da obra junguia-
na faz-se mister para a noção de “bacia semântica”, que também
utilizaremos.
Por “bacia semântica” entendemos a configuração de um
“lago de significados”, onde seus estudo fundamentos nessa pers-
pectiva indicam como as pequenas coisas vão gerar ou constituem
coisas mais importantes, num fluxo contínuo e longo.
Além de constituição escritural, a projeção territorial do nos-
so objeto de estudo é demarcada, também, com base na voz (e
seus valores, nos termos de Zumthor, 1997) /vocalidade e perfor-
mances. Dessa maneira, o mito é analisado em cadeia simbólica,
de maneira a referendar as linhas transitórias para formação dos
arquétipos, regência e a influência dos orixás a partir de uma for-
mação mitológica cuja mente humana trabalha para compreensão
do “mágico, da conclusão histórica, baseada nos fundamentos da
cultura em foco e na própria aplicação do dia a dia das tribos (...),
no caso, das casas de santo” (BARCELLOS, 1992, p. 01), principal-
mente da nação Efon2, que representa a comunidade tradicional
onde participamos, para além de pesquisador, praticante do siste-
ma religioso em relevo.
Nestes termos, apresentamos uma pesquisa participante, de
base etnográfica, intitulada Escrituras do Candomblé: articulações
entre o simbólico e o imaginário na cultura religiosa afro-brasileira
2
Efon (se pronuncia Éfan, que significa Osun) é uma nação do candomblé oriunda das terras de
Ekiti-Efon (não confundir com Ifon, a terra de Oxalufon), no Brasil usa-se o termo “Lokiti Efon” e
onde reina absoluta a rainha da nação no Brasil, ou seja, Osun, filha de Olookè, patriarca da nação,
o Leão da Montanha, o o mesmo é Orisà da Montanha. Inicialmente veio para o Brasil pelas mãos
de dois Africanos Tio Firmo, conhecido como Baba Irufà, iniciado pra Osun e Adebolui, mais tarde
chamada de Maria Violão (nome esse dado, devido às formas de seu corpo) posteriormente iniciada
para o Orisà Olookè. a Nação foi Instalada no Engenho Velho de Brotas – Brotas – Salvador – BA.
Muitos dizem que é uma nação quase extinta, o que na verdade é pura bobagem, pois enquanto
existir Osun, Olookè e todos os Orisàs, Efon permanecerá vivo em Nossos Corações. Fonte: https://
meuorixa.wordpress.com/2013/03/12/nacao-efon/
175
(BARBOSA, 2022). Nesta oportunidade, decidimos levantar um re-
gistrual mnemônico, com enfrentamento semiótico antropológico,
que se desdobraram em categorias para a formulação indiciária
das escrituras do candomblé praticado no Brasil.
Neste artigo, nos utilizamos da estratégia articulatória para
ressaltar que ainda existem aspectos a serem ressaltados nesta
seara epistemológica para que sob auxílio das lentes diversas, pos-
sam ser ressaltados mais elementos da cultura em relevo. A carto-
grafia, como recurso metodológico, nesta dimensão, auxilia, entre
outros elementos, na construção da concepção de semântica do
acontecimento (GUIMARÃES, 2017), no regate do segmento his-
tórico-enunciativo de origens das demarcações locais e territoriais.
Com isso, objetivamos ressaltar e delimitar modelos cartográ-
ficos que constituem a natureza simbólica referentes às escrituras
da cultura candomblecista, a partir de categorias simbólico-signa-
tárias registruais: (i) artesanal, (ii) pictórico e (iii) performático - as-
pectos que se consolidam como marcas linguageiras, uma vez que
encontram-se imersos nas práticas linguageiras (usos, interação,
cultura) do sistema religioso em tela.
Assim, através das seções Do percurso entre linguagem e car-
tografia e da cartografia para a escritura e A linguagem do can-
domblé, ou escritura da religião afro-brasileira, levantaremos as
reflexões que originaram a formulação do referido estudo e que
ainda serve se seta para indicar possibilidades outras – e formular
categorias outras – possibilitando que a categorização de mais ele-
mentos simbólicos do referido universo cultural se repercuta para
o aprimoramento da noção de cartografia das escrituras do can-
domblé, religião afro-brasileira praticada no Brasil, desde a diáspo-
ra negra.
176
DO PERCURSO ENTRE LINGUAGEM E CARTOGRAFIA E DA
CARTOGRAFIA PARA A ESCRITURA
177
relação da escritura como signo, que considera o que está no âm-
bito da inscrição pictórica e da desenvoltura gestual, tendo esses
aspectos como caminhos para a concepção de conceitos principais
que regem essas questões e estes se constituem, cotidianamente,
como práticas sociais.
As artes, pinturas, gestos e comidas sagradas dos orixás, sim-
bolizadas através de vozes e escrituras constituem um texto discur-
sivo, uma narrativa em que se performa e origina uma Gramática
Ritualística (MELO, 2014), vitalizada pela voz, como também por
demais elementos circunscritos, uma vez que se percebe na sin-
taxe cerimonial, seja litúrgica, das danças, do preparo de ebós e
oferendas, uma ordenação e uma semântica, ou um percurso fun-
cional de atribuições de sentido conferidas às práticas de vivência
no cotidiano religioso.
Considerando o exposto, vemos a elucidação nos postulados
de Locke (1952), numa de suas contribuições no ensejo de garan-
tir características consensuais – ou contratuais, sendo fidedigno à
sua posição política – assegura que o bem-estar e a vantagem da
sociedade não são realizáveis sem comunicação de pensamentos,
nesse ínterim, foi necessário ao homem desvendar certos sinais
sensíveis externos, “por meio dos quais estas ideias invisíveis, das
quais seus pensamentos são formados, pudessem ser conhecidas
dos outros ...”. Tal premissa reforça a necessidade fundatória da lin-
guagem como instrumento político e governamental, endossada
por rituais interacionais nos quais a vida social está em constante
desenvoltura.
Ainda nessa imersão ao caráter social da língua, volvemo-nos
às contribuições de cunho estruturalista, que a tem como um sis-
tema de signos sob caráter sistemático, coletivo e social (SAUS-
SURE, 2012). Os sinais comuns mencionados que são colocados
na reflexão de Locke, são envelopados por convenções sociais que
repercutem na comunidade linguística – ou sendo mais preciso, no
próprio sistema linguístico – como ideais para promulgação intera-
tiva garantindo a comunicação entre os comuns.
178
A partir de abordagens ontológicas e epistemológicas, essa
pesquisa visa a erradicação da terminologia ágrafa conferida às
culturas que não apresentam sistematização do código escrito,
uma vez que o candomblé, nosso objeto, se constitui de diversos
elementos signatários que atestam a vivacidade semiológica pro-
duzida no interior desse sistema religioso.
Nesse diapasão, consideramos, pois, que o signo/símbolo
está imerso em todas as representações cotidianas e é materia-
lizado, também, na formação e (re)figuração das tradições oral e
escrita através seus caráteres registruais e mnemônicos, através de
“objetos de memória” (RODRIGUES, 2011).
Situaremos, aqui, a escritura através das contribuições de
Barthes (1971) e Botérro (1995). Ao pensarmos em questões de na-
tureza semiológicas (SAUSSURE, 2012), levamos em consideração
que a linguagem é o ponto de partida para qualquer discussão
epistemológica sobre produção do conhecimento e, com base nis-
so, os elementos simbólicos descritos para nossas investigações
desempenham um papel importante no que diz respeito à promo-
ção, gênese e divulgação do status linguístico conferido à cultura
religiosa em questão.
Ainda, é importante esclarecermos que
179
Isso desperta, nas mais diversas vertentes, inquietações que
reservam a estas “imagens” inquietações que resultam em
tratados das mais diversas abordagens. (BARBOSA, 2022,
p. 129)
180
to e sexto princípios, que abordam as noções de cartografia e a
de decalcomania. Nesse contexto, Deleuze e Guatarri (2007, p.21-
22) esclarecem: “um rizoma não pode ser justificado por nenhum
modelo estrutural ou gerativo. Ele é estranho a qualquer ideia de
eixo genético ou de estrutura profunda”. Nesta afirmação se revela,
antes de relações genéticas, a existência de princípios de decal-
que, num diapasão de reproduções que podem ser reprodutíveis,
a exemplo da “lógica” da árvore como a “lógica” da reprodução por
meio do decalque.
Para os autores existe uma estruturação que remete a um
esquema de sobrecodificação, legitimando, a partir da noção de
decalque, a produção de um eixo que suporta as relações arbo-
rescenstes. Diferentemente dessa abordagem, o rizoma é puro de-
vir, ele é mapa, em termos mais precisos, uma vez que representa
estruturas transitórias de composição de alianças, afinidades, de
encontros (occursus).
O apanhado teórico que se firma como alicerce para a refle-
xão dos elementos simbólicos mobilizados para uma abordagem
de ordem semiológica (e semântica, sendo mais específico em re-
lação ao tratamento das construções de sentidos) sob o que se
firma como objeto epistemológico em torno do construto semió-
tico antropológico analisado a partir da constituição de um corpus
oriundo do sistema religioso afro-brasileiro da tradição Efon, se
configura numa proposta rizomática.
Cartografar, ou mapear, os códices escriturais vigentes nas
práticas dessa cultura é estabelecer e referendar o status linguís-
tico condizente aos suportes que que manejam as tradições oral
e escrita numa órbita discursiva construída no panteão mítico dos
deuses da religião em tela.
181
A LINGUAGEM DO CANDOMBLÉ, OU ESCRITURA
DA RELIÃO AFROBRASILEIRA
182
mais corriqueiras de comunicação.
Através da escritura como material paleográfico de uma socie-
dade - ou até mesmo, nos termos de Mendel (2006), que dialoga
diretamente ao que propõe Landowski (1992), sobre a sociedade
ser refletida através da escrita, em seus “ensaios sociossemióticos”
– ao categorizar o ramo da escrita e civilização, abraçamos o que
Higounet (2003, p. 08) coloca a respeito do homem primitivo, que
tinha como função forjar “engenhosos arranjos de objetos simbóli-
cos”. Nos dias atuais, o homem ainda tem a função de transfigurar
a escrita e semiotizá-la através de suas práticas de linguagem, cor-
roborando com a noção de que esta é “mais que um instrumento.
Mesmo emudecendo a palavra, ela apenas não a guarda, ela reali-
za o pensamento que até então permanece em estado de possibi-
lidade” (MANDEL, 2006, p. 09).
Consideramos, pois, algumas prerrogativas para delinearmos
aspectos correspondentes à fixação da escritura através dos tem-
pos, como sinaliza Higounet (2003):
3
Grifo nosso.
183
zação) sua característica fenomenológica quando reforça que esta
pode sozinha dar a um objeto ou a um processo qualquer o poder
de representar. Essa característica está inserida no hall das ques-
tões ontológicas onde a percepção de semiotização se encontra. O
foco dessa representação está na performance de denominar: dar
nome e sentido às coisas, aos processos. Nesses termos,
184
Voz e performance também são analisados, em tese, como
elementos constituintes de uma escritura. O termo “voz”, muito
próximo da compreensão massiva, precisa, segundo muitos estu-
diosos, “sofrer uma operação de decantação para que o conceito
flua com limpidez” (OLIVEIRA, 2009. p. 03). O que defendemos
aqui está em consonância com o que Zumthor (1997) postula, sem
nenhum comprometimento sinonímico com oralidade, pois ultra-
passa o sentido linguístico de comunicação por meio da fala.
Os fundamentos para o estudo do fenômeno da voz estão na
história do próprio homem, desde as origens vocais da poesia (nos
temos de Zumthor, 1997), nos cantos e danças rituais, nas fórmulas
de magia e nas narrativas míticas (mote para nossa abordagem).
Voz que está lá, emergindo do silêncio primordial, cujo caminho se
espraia no tempo e perfura os espaços, expandindo-se para além
do corpo que a pronunciou. (OLIVEIRA, 2009. p. 04)
Esquematizando, termos como Voz e Imaginário são enca-
rados, numa construção sintática das relações, como elementos
paratáticos nesta proposta de pesquisa, como condutores prope-
dêuticos à reflexão de um ponto para consolidação de um sistema
linguístico. Dessa maneira, o corpus, definido como elementos para
representação conferidos às religiões de sistema linguístico ágrafo,
mesmo não obedecendo a uma sistematização de uma materiali-
zação escrita da língua, oferece, quanto à perspectiva da voz, ou-
tros aportes elucidativos para formulação de conceitos e imagens
(acústicas).
Acreditamos que a voz é o fio condutor para o imaginário.
Como matéria prima responsiva para propagação de mitos, cren-
ças, injunções religiosas, magia e, em decorrência da configuração
imagética, a formulação de arquétipos, dado de uma concepção
formal de uma coletividade. Os desdobramentos atribuídos à con-
dução mítica são aqui tratados como elementos signatários no pa-
radigma na voz. Reconhecemos o paradigma escrito e seus elemen-
tos, também. Mas sob um prisma saussureano, se considerarmos
eixos, como já ditos, paradigmáticos, estabeleceremos territórios
185
onde cada uma das perspectivas circulam. Nesse contexto, temos
a voz, a partir de seus “valores”, como bem nos elucida Zumthor
(1997, p. 15), “para uma consciência linguística, mítica e religiosa”,
não necessariamente nessa ordem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
186
vozes”, refletindo sobre a organização do ritual das comidas dos
orixás a partir do inventário das vozes e suas realizações perfor-
máticas que organiza uma “sintaxe” no preparo das comidas, na
sua classificação, nos gêneros e espécie Trata-se de uma pesquisa
etnográfica que coletou informações em cinco terreiros da cidade
de Campina Grande – PB. O trabalho analisa a culinária mítico-sa-
grada inserida no contexto das oralidades de tradições africanas
marcada pelo verbo-ação que remete a simbolismos míticos de
múltiplas culturas – afro-baiana, afro-pernambucana e paraibana-
-campinense – de nação queto.
Ainda consideramos certa familiaridade da nossa proposta
com o trabalho de Oliveira (2013), por também apresentar uma
proposta inserida no âmbito da descrição linguística. Sua tese “En-
tre Colofé e Mutumbá: a relação dos prováveis vestígios de línguas
africanas com o português vernacular brasileiro em terreiros de
Candomblé de Rio Branco – AC”, discute, entre outras abordagens
de cunho etnográfico, aspectos culturais e linguísticos de dois ter-
reiros de candomblé do município de Rio Branco – AC. A pesqui-
sa levanta uma importante a respeito das principais características
fonético-fonológicas que originaram os vestígios de línguas afri-
canas na Língua-de-santo dos terreiros pesquisados, enaltecendo,
também, as características lexicais do português que constituem a
Língua-do-povo-de-santo dos adeptos dos terreiros no locus da
pesquisa.
A temática que envolve a nossa perspectiva abarca outras
áreas de conhecimento, por se configurar dentro de um universo
que aborda vivências culturas orgânicas de uma sociedade dinâmi-
ca. Citamos, nesse novo conjunto de epistemes, inicialmente, apre-
sentamos o trabalho de Oliveira (2014), sob o título “A dança dos
Orixás e suas representações sociais nos Candomblés Nagô”, numa
perspectiva ligada à noção de performance preconizada na nossa
proposta, o referido estudo identifica e analisa as representações
sociais dos Orixás, a partir do compartilhamento social ocorrido em
relação às suas danças nos ritos e nas festas de candomblé.
187
Diante o exposto, ressaltamos a originalidade de nossa pes-
quisa, uma vez que em busca sistematizada sobre a confluência
linguageira que sistematiza a constituição simbólica/semiótica do
candomblé, não se observa sistematizações a respeito do reconhe-
cimento de formas relativamente estáveis a serviço da representa-
ção de linguagem do segmento cultural em destaque.
Neste texto, ainda, pusemos em destaque uma trajetória que
vislumbra um percurso translinguístico à compreensão do con-
ceito escritura, como produto das articulações entre documento
e monumentos (tidos objetos de memória) e imaginário, no em-
preendimento de uma construção simbólica a partir de categorias
(linguísticas) de análise, em corpus constituído de elementos se-
mióticos oriundos de religião afrobrasileira.
Outrossim, Além das contribuições de Zumthor (1997, 2005,
2007) sobre voz e performances, dentro da categoria de escritura,
buscamos compreender como o imaginário se constitui (DURAND,
1986; 1994; 1996) simbolicamente, através de perspectivas teóricas
que conduzem às concepções de mito e arquétipo (JUNG, 2002;
CAMPBELL, 1985), no emolduramento do sistema linguístico de
sociedades yorubás, originadas da África, trazidas ao Brasil pelo
tráfico negreiro, e fixado através das práticas religiosas, que servi-
rão, ao longo do desenvolvimento desse trabalho, como mecanis-
mos estruturais e funcionais de investigação.
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189
POLÍTICAS PÚBLICAS E AS COMUNIDADES TRADICIONAIS
NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, BRASIL:
ETNICIDADE EM QUESTÃO
INTRODUÇÃO
1
Bacharel em Ciências Sociais (UFRN), Mestre em Antropologia (UFSC) e Doutorando em Desenvol-
vimento e Meio Ambiente (UFPI). Professor Universitário e consultor em programas e projetos de
desenvolvimento relacionados com Comunidades Tradicionais. Pesquisa desde os anos 1980 com
Comunidades quilombolas, Indígenas nas regiões Norte, Nordeste, Sul e Centro-Oeste.
to das duas pautas foi realizado por meio do progressivo
reconhecimento do racismo como mecanismo de produção
e reprodução das hierarquias sociais e fator de restrição da
mobilidade social da população negra, opondo assim pode-
rosos obstáculos à dinâmica da igualdade de oportunidades,
e marcando fortemente a natureza da desigualdade social
brasileira. (THEODORO, 2014:207)
191
rarquia social, contribuindo para a escassa mobilidade racial
que ainda caracteriza o país. Assim, o racismo constitui-se
em um importante obstáculo ao enfrentamento da pobreza
e da desigualdade social. (THEODORO, 2014:207)
192
em Relatórios Antropológicos em comunidades quilombolas e a
implementação de programas de desenvolvimento no âmbito do
Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Atuei em diagnósti-
co socioambiental na Terra Indígena Potiguara (Paraíba) e Coorde-
nei Programas de Compensação Socioambiental em Comunidades
Indígenas em Roraima/Mato Grosso. Aqui no Rio Grande do Nor-
te venho atuando em processos de identificação (reconhecimento
oficial-certificação) de comunidades quilombolas e na elaboração
de projetos de etnodesenvolvimento nessas comunidades, com
mais ênfase a partir de 2015. Assim, ressaltamos que:
193
e tentei, ao máximo, envolver as comunidades quilombolas e indí-
genas... o que não foi visto com bons olhos. Ouso dizer que foram
criados obstáculos (racismo estrutural/institucional?) em diversos
momentos; o que resultou em desconfiança, desistência e resulta-
dos pouco expressivos nas comunidades quilombolas e indígenas
nesse Território – como no Estado do Rio Grande do Norte, em
geral. Concordo com a máxima que cita:
194
da ABA, é invariavelmente subsumida pelas dinâmicas e
processos gerados externamente, ou seja, pelas reviravol-
tas dos planos econômicos e políticos do Estado brasileiro.
Cabe, então, entender a conjuntura político-econômica da
sociedade brasileira na atualidade como forma de acessar o
contexto e alguns dos desafios que permeiam a atuação do
antropólogo nesse campo profissional e científico. (ZHOU-
RI, 2018:147-148)
REFERENCIAL TEÓRICO
195
na área e têm contribuído para avanços teóricos e empíricos.
(SANTOS, 2015:3)
196
“...constituído por atores que representam vários segmentos
de populações locais (elites locais e líderes de movimentos
sociais, por exemplo); empresários privados, funcionários e
políticos em todos os níveis de governo; pessoal de corpo-
rações nacionais, internacionais e transnacionais (diferentes
tipos de empreiteiros e consultores, por exemplo; e pessoal
de organizações internacionais de desenvolvimento (fun-
cionários de agências multilaterais e bancos regionais, por
exemplo)). As instituições são parte importante desse cam-
po: elas incluem vários tipos de organizações governamen-
tais, organizações não-governamentais, igrejas, sindicatos,
agências multilaterais, entidades industriais e corporações
financeiras.” (RIBEIRO, 2008:110)
Então,
197
um projeto de governo característico do Estado Moderno,
ou seja, na acepção de Tânia Murray Li (1999), como um es-
forço para produzir sujeitos governáveis, então as noções de
legibilidade e população se tornam centrais para essa refle-
xão. Entendendo a população com categoria nuclear para
as ordens de justificativa ao desenvolvimento, ou seja, como
seu objeto, meio e fim, torná-la legível passa a ser condição
de governabilidade. (ZHOURI, 2018:151)
198
PERCURSO METODOLÓGICO
199
políticas públicas. Suas reflexões sobre políticas públicas e inclusão
social são de muita valia, principalmente quando ele coloca que
200
campo. (OLIVEIRA JUNIOR, 2019:7)
Assim este artigo será no sentido de responder algumas in-
quietações referentes ao Projeto RN Cidadão e seus efeitos nas co-
munidades indígenas e quilombolas. É nesse sentido que pretendo
fazer referência a uma antropologia da política pública, como uma
abordagem interessante para a interpretação dos processos e
dinâmicas organizativos de grupos de populacionais que conduzem
à criação de políticas públicas voltada para seu benefício. (HINCA-
PIÉ, 2015:158). Ainda consideramos que:
201
munidades de serem beneficiadas nos projetos? Quais foram os
motivos que implicaram na desistência de algumas comunidades
em dar continuidade ao processo de manifestação de interesse em
participar do processo de seleção dos Projetos socioambientais ou
produtivos? E enfim, qual a posição do Projeto RN Cidadão em re-
lação a esses resultados?
202
quilombolas e população de total de 614 famílias. Mesmo, assim,
somente foram beneficiadas 257 famílias quilombolas nessas 06
comunidades.
O projeto levou em consideração, inicialmente, as 22 comuni-
dades que estavam certificadas. Na oportunidade que ingressei no
quadro dos consultores, disponibilizei minha pesquisa de mais de
20 anos (desde 1987) sobre o mapeamento das comunidades qui-
lombolas. Minha opção por disponibilizar minha pesquisa foi pelo
fato que, na orientação do Banco Mundial, bastava que a comu-
nidade se autodeclarasse enquanto comunidade quilombola ou
indígena. Mesmo considerando, apenas, as 22 comunidades qui-
lombolas e seu quantitativo de famílias, chegamos a um resultado
pouco satisfatório: menos de trinta por cento (30%) das famílias
foram beneficiadas. (Ver tabelas a seguir)
203
21 Patu Jatobá 45
22 Santo Antônio Cajazeiras 121
17 Municípios 22 Comunidades quilombolas 2.298 Famí-
lias
204
diante do cenário aqui exposto, fica claro que uma das prin-
cipais provocações à figura do gestor público hoje é a estru-
turação da sua atuação frente a um cenário social complexo,
que exige respostas rápidas e eficazes e contatos estrutura-
dos por toda a máquina pública, o que afronta alguns pilares
importantes da figura da burocracia, mas oferece excelentes
oportunidades de mudança de paradigma para a Adminis-
tração Pública. (SANTOS, 2015:13-14).
205
Da mesma forma que:
RESULTADOS E DISCUSSÃO
206
tituições são reflexo de seus servidores; e em um estado que a
discussão sobre racismo e intolerância está, basicamente, limitada
aos espaços ocupados por militantes e/ou acadêmicos que abor-
dam a situação. Em termos mais definidos, essa discussão é pró-
pria das populações e grupos atingidos. A construção de uma dis-
cussão multidisciplinar e interdisciplinar sobre o racismo não está
na agenda pública. A pauta relacionada às questões étnico-raciais
ainda está (em termos pragmáticos) no nível de abordagem que
contempla as questões culturais e/ou folclóricas.
Nesse sentido, podemos citar o exemplo das três comunida-
des indígenas do território Agreste/Litoral Sul: somente uma co-
munidade teve sua Manifestação de Interesse aprovada; as outras
duas recusaram participar do projeto. Uma situação, que agrava
mais este quadro foi a alteração da escola anteriormente negocia-
da com os indígenas. Dentro de uma ideia de sustentabilidade está
a solidariedade em relação aos “pequenos”. Neste caso, o Estado,
em forma de Projeto RN Sustentável ignorou uma demanda que
somente viria a fortalecer a identidade indígena daquela comuni-
dade.
O outro exemplo é em relação às comunidades quilombo-
las, ainda, do território Agreste-Litoral Sul. Das nove comunidades
quilombolas identificadas no Território Agreste/Litoral Sul apenas
cinco comunidades tentaram o processo de Manifestar Interesse
em participar dos editais do Projeto RN Sustentável. Deste total,
duas comunidades foram aprovadas; duas desistiram do processo;
e, uma foi sumariamente reprovada. Mesmo sendo articulador do
Território, não fui integrado nos momentos de consultas a essas
comunidades. A ausência de diálogo foi uma marca dessa etapa
do processo.
207
zeiras. Isto, se fosse levado em conta a informação passada
pelo articulador sobre a presença de diversas frutíferas na
área da comunidade e em seu entorno. O contra-argumento
foi que a comunidade não exercia esta atividade rotineira-
mente. O projeto, neste caso, potencializa ações de econo-
mia solidária já existentes nas comunidades.
Se levarmos em conta que a grande maioria das famílias
destas comunidades vivem de renda de programas sociais e
de uma agricultura pouco rentável, é pensar muito alto que
estas comunidades tenham um sistema de produção ativo.
(OLIVEIRA JUNIOR, 2019:38-39)
208
Figura 1. Casas construídas com banheiros separados.2020.
209
pecificidade das identidades quilombolas e indígenas;
a.3. Falta de capacitação dos técnicos em princípios do desen-
volvimento sustentável e etnodesenvolvimento.
b) A presença de atitudes que demonstram o Racismo Estru-
tural/Institucional no âmbito do Projeto pode ser mostrada
pelos fatos:
b.1. negação da etnicidade quilombola e indígena no cotidia-
no do Projeto RN Sustentável;
b.2. Não articulação com o Sistema cadastro Único2;
b.3. Não articulação com a Coordenadoria Estadual de Polí-
ticas de Promoção de Políticas de Igualdade Racial no Rio
Grande do Norte - COEPPIR-RN;
b.4. Tratamento não diferenciado na articulação com essas
comunidades.
c) Por fim, um aspecto a ser considerado é relacionado ao
olhar dos quilombolas e indígenas sobre essa política pú-
blica traduzida pela não confiabilidade de algumas comuni-
dades quilombolas e indígenas na relação institucional que
estava sendo estabelecida. A ausência de um contato mais
frequente e de uma relação mais transparente e horizontal
somado às ações (de ordem prática) que dificultaram e dis-
pensaram algumas comunidades do acesso aos objetivos de
projeto foram fatores que contribuíram a esse quadro social
nebuloso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
2
Cadastro Nacional que identifica TODAS as famílias que pertencem a categoria “Comunidades Tra-
dicionais”: Indígenas, Quilombolas, Ciganos, Povos de Terreiros (religiosos de matriz africana ou afro-
-brasileira) e Pescadores Tradicionais numa relação com identidade étnica.
210
sobre estes grupos étnicos. Usou-se a metodologia comum aos
agricultores familiares. Assim,
211
instrumento de desvendamento e como passo à construção
teórica. (LIMA e CASTRO, 2015:39-40)
212
desde o período logo após o fim de Segunda Guerra Mundial no
século XX.... Aguardemos!
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213
TENTATIVAS DE SILENCIAMENTOS: PLANO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO (2001-2024) E O AVANÇO DAS
POLÍTICAS ANTIGÊNERO NO BRASIL
INTRODUÇÃO
CONTINUIDADE OU RUPTURA?
215
econômicos, que vinham sendo implementados desde a primeira
gestão de Lula, não sofreriam solução de continuidade. E era crível
assim pensar, visto que a sucessão era lastreada pela ampla po-
pularidade que Lula emprestava a Dilma5. Porém, ao assumir, ela
iniciou uma série de ajustes interministeriais, sinalizando que faria
um gradual processo de mudanças, sendo uma delas em secreta-
rias ligadas ao Ministério da Educação e Cultura.
Com a proximidade do término da vigência de mais um de-
cênio (2011-2020) do Plano Nacional de Educação, construído no
governo de Fernando Henrique Cardoso, engendrou-se uma mo-
vimentação, interna e externa, entre as representações dos movi-
mentos sociais e dos conselhos, do governo e da sociedade civil,
para compor um ciclo de discussões e para a inserção de agen-
das sociais na construção desse novo plano decenal. O objetivo
era claro, abranger ainda mais o diálogo entre as agendas sociais
com uma maior efetivação das políticas educacionais e, sobretudo,
o fortalecimento das pautas direcionadas aos Direitos Humanos6.
Mas, é tangível considerar que já havia uma política de inclusão em
curso relacionada a gênero e a diversidade sexual, assim como, se
via a presença desses temas na formulação e na implementação de
documentos legais que regiam a educação.
Diante dessas circunstâncias, se pressupunha que no gover-
no, que hora se iniciava algumas dessas políticas educacionais se-
riam ratificadas e/ou reestruturadas por se considerar, inclusive, o
necessário amadurecimento que vinha sendo trilhado, principal-
mente na temática sobre diversidade. Não obstante, o primeiro go-
verno Dilma Rousseff foi marcado, não só, mas também, por um
quadro conflituoso que se desenhou de maneira eloquente, no
5
Segundo pesquisa encomendada ao IBGE, pela Confederação Nacional da Indústria, a popularida-
de de Lula em seu segundo ano de mandado foi de 87%.
6
Conferências e Fóruns mundiais ocorridos, principalmente, no final do século XX e início do século
XXI, sinalizavam para a adoção gradativa, ou imediata, de compromissos entre países e seus pares
visando a promoção de uma sociedade mais igualitária. Seguia-se o entendimento que, para se
combater os vários tipos de desigualdade, era urgente a implementação de políticas sociais que
combatessem as diversas formas de exclusão, seja pela discriminação por raça ou gênero. Muitos
dos planos e programas criados no Brasil, a exemplo do Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e dos Direitos Humanos de LGBT (BRASIL, 2009), foram influenciados por deliberações construídas
em muitos desses espaços de debate.
216
processo de discussão, produção e aprovação de projetos sociais
e de elaboração de conteúdos voltados para os direitos humanos.
Um exemplo ilustrativo desse quadro, foi a reação dos setores
conservadores, instalados no governo, diante da distribuição do
chamado “Kit Escola sem Homofobia”. E é importante lembrar que
dentro do Programa Escola Sem Homofobia se previa a produção
de materiais didáticos e de formação continuada, para que profes-
sores(as) e técnicos(as) em educação pudessem utilizar, em todos
os estados, nas ações de enfrentamento a LGBTfobia.
7
A reação dos setores conservadores continuou forte nas eleições presidenciais de 2018, quando
a questão de gênero voltou a ser polemizada a partir da menção, de um dos candidatos, de que o
Governo Federal distribuiria um suposto “kit gay” nas escolas.
217
mente de gênero e diversidade sexual. Também se desconsiderou
os dados estatísticos, que provam o tamanho de nossa respon-
sabilidade social, e que foram fundamentais para se fomentar os
debates e as formulações desses Programas.
Segundo Carreira (2015, p. 232), além das pressões para o
veto da presidenta, “observou-se também uma postura tímida de
outros setores de esquerda – para além das entidades e dos mo-
vimentos sociais vinculados a essas agendas – na defesa de várias
dessas questões em xeque”. De certo, não podemos afirmar, obje-
tivamente, a que se deve essa tímida postura da esquerda ao situá-
-la em contraposição à ofensiva conservadora, mas também, não
podemos descartar o fato de que essa direita conservadora foi su-
bestimada. Talvez, não se acreditasse verdadeiramente que fosse
possível um retrocesso, após os avanços nas políticas educacionais
obtidos no Governo Lula. Todavia, outros embates ainda acontece-
riam, assim como, mais adiante outros recuos seriam visualizados.
218
um Congresso Nacional com forte ascendência da bancada evan-
gélica, que tinha os deputados Jair Bolsonaro e Marco Feliciano9
como seus principais expoentes. Vianna (2018, p. 93) atenta para o
fato de que no mesmo ano em que o “Kit Escola sem Homofobia”
foi vetado pela presidência da República, o “Supremo Tribunal Fe-
deral (STF), reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo
sexo”. Assim, ao vetar um conteúdo didático que não só se contra-
põe as várias formas de exclusão, como oferece outros olhares até
mais acolhedores a diversidade sexual, além de propor que seja
suprimida a ideia monolítica de família heterossexual e cristã como
único arranjo familiar possível, o governo federal terminou recuan-
do no caminho que vinha trilhando.
Ao que parece faltou um trato mais estratégico em torno do
“Programa Escola Sem Homofobia”, até porque não seria de se es-
tranhar que esse material causaria mesmo grande indignação nos
setores mais conservadores. De fato, o veto não foi apenas uma
pequena vitória desses setores frente a política educacional do go-
verno Dilma, pois ele se configurou num mecanismo que impulsio-
nou outras pautas, ainda mais radicais. Foi a partir desse momento,
que a bancada religiosa, na Câmara dos Deputados, sentiu-se en-
corajada a lançar suas ofensivas contra as pautas e projetos sobre
gênero e a diversidade sexual.
É essencial assinalar que esse contexto demarcou uma cor-
relação de forças na sociedade. Na maioria das vezes, quando se
tem ganhos no reconhecimento dos direitos civis, e que estes são
provenientes de lutas, seja do movimento de mulheres ou das cau-
sas LGBTQIAP+, podemos ver outras forças, contrarias, exercendo,
com igual potência, a indignação quanto a esses ganhos. É comum,
inclusive, termos recuos dessas conquistas, com o enfraquecimen-
to de importantes canais que possibilitam o diálogo entre o gover-
no e os movimentos. Esses caminhos reativos, que corroboraram
9
Nas eleições de 2010, quando Dilma Rousseff foi eleita presidenta para seu primeiro mandato, fo-
ram eleitos 98 deputados federais autodeclarados religiosos. Segundo levantamento realizado pelo
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), desses 98 deputados, 63 se autode-
claram evangélicos.
219
para a não distribuição do KIT escolar, causaram grande frustação
entre seus elaboradores, dentro da própria SECADI, e contribuí-
ram para que os movimentos sociais se distanciassem do gover-
no Dilma. Esse quadro conflituoso se desenhou e se tornou ainda
mais turbulento no processo de discussão, produção e aprovação
do Plano Nacional de Educação (2004-2024).
220
necessidade de se erradicar formas específicas de discriminação.
Esses princípios que tratam da superação da discriminação (inciso
III, art. 2º) e da promoção da diversidade (inciso X, art. 2º) foram
postos em questionamento pelo Senado.
Quando o texto retornou à Câmara, vemos os efeitos da po-
lítica antigênero tomando corpo na Estratégia 13 - meta 3, relacio-
nada ao Ensino Médio, ao propor “implementar políticas de pre-
venção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas
de discriminação, criando rede de proteção contra formas associa-
das de exclusão” (BRASIL, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014).
Mesmo nesse cenário de tantos embates, o resultado é que, em
25 de junho de 2014, a Lei 13.005 que institui o Plano Nacional de
Educação foi sancionada pela Presidenta Dilma Rousseff. “A versão
final sancionada como lei aprovou como meta o combate às desi-
gualdades educacionais, referindo-se de forma genérica à erradi-
cação de todas as formas de discriminação” (VIANNA, 2018, p. 94).
Interessa-nos perceber que são nessas relações de poder, e
de dominação, que a escola vai se constituindo num observatório
político que pode legitimar, ou punir, discursos não alinhados às
tendências da ideologia vigente. Posteriormente, isso se evidencia
na aprovação da Base Comum Curricular – BNCC (2017) – do En-
sino Fundamental que não menciona questões de gênero e orien-
tação sexual, apesar da perspectiva reforçada em outras leis, de
que se possa educar os jovens para o respeito a diversidade, sem
discriminação e preconceitos. Analisando a conjuntura política que
lastreia a supressão de gênero e diversidade sexual no PNE (2014-
2024), Luís Felipe Miguel nos mostra que,
221
missão do Ministério da Educação que selecionou obras a
serem adotadas nas escolas [...] (MIGUEL, 2016, p. 616).
OS INIMIGOS EM COMUM
10
Adotamos a perspectiva de Rogério Junqueira (2017) que trata “ideologia de gênero” enquan-
to sintagma aplainada por uma falta de exatidão conceitual, principalmente quando utilizado para
justificar o pânico moral. Como melhor aprofundamento a essa questão, recomenda-se o texto do
referido autor, “A invenção da “Ideologia de gênero”: a emergência de um cenário político discursivo
e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”.
222
e que diante da espetacularização do contexto ficaram alarmados
(JUNQUEIRA, 2009). Assim, os grupos mais conservadores sub-
verteram a importância de se tratar assuntos relacionados a diver-
sidade de gênero, que teria se tornado algo perigoso, e que colo-
caria em xeque a estrutura da família brasileira tradicional.
Convergindo com essa ótica, Miguel (2021, p. 06) afirma que
“o pânico moral é ferramenta para promover uma mobilização rá-
pida, apaixonada e imune ao debate”. O reforço ao sexismo, como
algo natural a sociedade, constituiu-se numa justificativa imune a
qualquer outra posição, mesmo porque segue o princípio irrefutá-
vel da criação divina, que não poderia ser questionada, onde o ho-
mem e a mulher são criações de Deus. Por consequente, se fecha a
todos os canais dialógicos que se podem voltar à um pensamento
inverso, se estabelecendo, por outro lado, os estereótipos de gêne-
ro e suas exclusões.
Um segundo ponto de conjunção, que bem representa o
avanço do discurso conservador de grupos religiosos extremistas,
é o segundo inimigo comum a ser combatido - a chamada “Ideo-
logia de gênero”. Miskolci & Campana (2017) salientam que um dos
grandes representantes desse combate foi o papa Bento XVI, ain-
da quando cardeal em 1997, que produziu textos para demonstrar
os perigos eminentes sobre as sociedades do avanço das pautas
feministas e das lutas de homossexuais pelos direitos civis. O dis-
curso de Bento XVI se irradiou pelas várias esferas da Igreja ca-
tólica que rapidamente compreendeu qual “inimigo” deveria ser
combatido e qual sua dimensão política e ideológica.
As Conferência do Cairo (1994) e a “IV Conferência Mundial
sobre a Mulher: Igualdade, Desenvolvimento e Paz” (em Pequim,
1995), promovida pela Organização das Nações Unidas, constituem
marco divisor desse debate (VIANNA; BORTOLINI, 2020), pois,
essa quarta Conferência apresentou um grande avanço sobre os
direitos sexuais e reprodutivos para mulheres, mas também a subs-
tituição do termo “mulher” em detrimento da categoria “gênero”.
Logo, essa conquista significou um avanço nas discussões teóricas
223
sobre o movimento feminista e proporcionou um alargamento dis-
cursivo sobre o papel social e político da mulher (MISKOLCI; CAM-
PANA, 2017). Em consequência, como uma espécie de resposta, a
essa Conferência, o Papa João Paulo II produziu a “Carta as Mu-
lheres” (1995) e, posteriormente, a “Carta aos Bispos” (2004), onde
o feminismo seria um inimigo em comum aos cristãos, visto que o
papel social delegado as mulheres, pela Igreja, não poderiam ser
questionadas.
Foi assim que a ala mais conservadora da Igreja Católica en-
dureceu seu discurso contra as teorias feministas e a agenda da
ONU, em favor da diversidade sexual e de gênero, acusando-as
de serem responsáveis diretas pela difusão do que chamaria de
“ideologia de gênero”, que passou a ser uma espécie de bandeira a
ser afrontada pelos defensores de determinados padrões normati-
vos, que rejeitam a possibilidade de novos arranjos familiares e de
identidades de gênero. Esse posicionamento unilateral permeou a
ideia de que a chamada “ideologia de gênero” colocaria em perigo
as fixidades dos papéis sociais ocupados pela família tradicional
cristã. Essa contraofensiva ganhou fortes aliados nas organizações
evangélicas, com o forte proposito de impedir a luta feminista pelo
avanço dos direitos sexuais e reprodutivos (MISKOLCI; CAMPA-
NA, 2017).
Além disso, outros setores da sociedade, não necessariamen-
te engajados em organizações religiosas, mas que se identificavam
com a luta contra o sintagma “ideologia de gênero”, endossaram as
fileiras do combate aos perigos da “doutrinação política e ideoló-
gica”, especificamente nas escolas. Miskolci & Campana (2017) de-
nominam estes grupos de “empreendedores morais”. São os que
buscam combater toda e qualquer ação que possa infringir as ba-
ses normativas do binarismo homem/mulher com forte inserção
nas escolas.
224
laicos dessas religiões, pessoas que se engajam na luta por
razões simplesmente éticas, morais e/ou políticas as mais di-
versas e não são necessariamente da sociedade civil, mas
podem atuar dentro de instituições e até mesmo do gover-
no. Identificá-los exige reconstituir em termos sociológicos
a gramática política que vincula atores tão diversos em uma
cruzada contra o que passaram a chamar de “ideologia de
gênero” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017. p. 730).
225
timar discursos que possam se tornar ameaçadores a um projeto
bem maior de poder.
Problematizando esse contexto, de acordo com Miguel (2021),
o criadouro da ideia de que a escola não pode se constituir num
espaço de “doutrinação ideológica” foi sendo gestado em doses
homeopáticas. Mas, esse processo tomou corpo com o movimento
“Escola Sem Partido”11, nascido pela iniciativa de pais e estudantes,
preocupados com o viés ideológico adotado nas escolas, que se
pautaria na “doutrinação marxista, de base comunista”, que “pro-
põe medidas para impedir que professoras e professores expres-
sem, em sala de aula, opiniões consideradas impróprias” (MIGUEL,
2016, p. 597).
Não foi à toa que, durante a apreciação da redação final do
texto do Plano Nacional de Educação (2014-2024), “era comum
ver câmaras ou assembleias tomadas por freiras, lado a lado com
pastores de igrejas neopentecostais, pressionando deputados e ve-
readores” (MIGUEL, 2016, p. 601). Isso pode ser visto, na apresen-
tação do PL 867/7015, de autoria do deputado Izalci Lucas (PSDB/
DF), que tentou incluir o “Programa Escola sem Partido”, entre as
diretrizes e bases da educação nacional, em seu texto base, no ar-
tigo 2º, que prevê que:
11
Fundado em 2004 pelo advogado Miguel Nagib.
226
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a
educação moral que esteja de acordo com suas
próprias convicções (BRASIL, CÂMARA DOS DE-
PUTADOS, 2015).
227
mente questionado. Preceitos constitucionais e programas volta-
dos aos direitos humanos foram sendo diluídos na defesa de uma
pseudoneutralidade como caráter formador. Com efeito controver-
so, a escola passou a ser a antagonista do processo de aprendiza-
gem, enquanto a família tornou-se protagonista, sendo ela mesma
responsável por ensinar, direcionar e ditar o que pode ou não ser
tratado no espaço escolar. O pânico de muitas famílias, ao verem a
escola abrir-se às pautas de gênero e diversidade sexual, ganhou
lastro.
Com o pânico estabelecido, os mecanismos de controle por
meio do poder-saber se dinamizaram. Os discursos antigênero fo-
ram deixando de ser uma exclusividade da Igreja (moral), passan-
do a ocupar cada vez mais espaço nas discussões do Congresso
Nacional, onde se passou a apresentar Projetos de Lei de toda a
ordem possível. Citemos, como fato ocorrido, a proposta do PLS
(Projeto de Lei - Senado) 193/201612 de autoria do senador Magno
Malta13.
Pautando-se em suas próprias convicções religiosas, o então
senador Malta queria obrigar as escolas a pedirem autorização aos
pais para poderem trabalhar as temáticas que, ao ver dos próprios
pais, tivessem conteúdos doutrinadores e que fossem, principal-
mente, voltadas para a “ideologia de gênero”. Para garantir que as
normas estabelecidas não fossem quebradas, passaria a ser dever
do Estado a criação de um sistema de comunicação que pudesse
recolher as denúncias do(as) professores(as), alunos(as) e pais. In-
teressa notar que “com o fetiche da neutralidade do discurso peda-
gógico e com a sacralização da autoridade familiar, está completa a
receita da criminalização da docência” (MIGUEL, 2016, p. 614). Na
redação do projeto ainda se recomendava que fossem afixadas nas
salas de aula essa normatização.
Mais uma vez o mecanismo panóptico entra em cena atra-
vés do documento. Os modos de disciplinamento não se apresen-
Magno Pereira Malta é filiado ao Partido Liberal (PL). Foi senador pelo Espírito Santo de 2003 a
13
2019.
228
tam exclusivamente pelo monitoramento da administração escolar,
pois o documento passa a ser um corpo discursivo e é por ele que
o poder perpassa. Por ele, também se opera um tipo de violência
simbólica, pois ao afixá-lo nas paredes das escolas, ele passa a ser
o “dito” e a “verdade” que deve prevalecer.
É singular entendermos que, juntamente aos vetores de vio-
lência, temos que alargar nossas análises sobre a forma com que
o Estado transmutou entre os governos de Lula para o de Dilma
Rousseff com relação às políticas educacionais. Num primeiro mo-
mento, procurou alinhar sua agenda governamental as pautas pro-
gressistas e sociais, num sistema de parceira, convergindo para a
participação dos movimentos e representações civis na produção
das políticas públicas. Mas, num segundo contexto, singularmente
no governo Dilma, diante de nova configuração do legislativo, ou-
tras frentes e pautas tomaram espaço. Num movimento inverso,
ele saiu de um sistema de parceria e passou a se apresentar como
um impedimento a concretização de projetos, mais conservadores,
na produção das políticas educacionais.
229
retirado de cena14. Portanto, com uma força brutal e mobilizadora,
as políticas antigênero voltadas para educação, foram paulatina-
mente penetrando nos marcos legais da educação e sendo pulve-
rizadas na sociedade.
A vitória conservadora no PNE (2014-2024) contabilizou seus
ganhos. O que se pôde ver mais adiante, é que esse direcionamen-
to também foi seguido na votação de alguns Planos Estaduais e
Municipais de Educação, ora invisibilizaram ora, mascararam as
discussões sobre gênero e diversidade sexual voltados à educação
básica.
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Acesso: 10 out. 2021.
14
Em 2016, no exercício do seu segundo mandato como presidenta do Brasil, Dilma Rousseff sofreu
impeachment, assumindo o seu vice Michel Temer a Presidência da República.
230
CODIFICAÇÃO QUEER: A QUALIDADE E PRESENÇA DA
REPRESENTATIVIDADE LGBTQIA+ ATRAVÉS DO FIGURINO
EM MENINAS SUPERPODEROSAS
INTRODUÇÃO
1
Em seu sentido literal “queer” significa estranho, ou incomum, sendo usada para se referir à comu-
nidade LGBTQIA+ de forma preconceituosa. Porém, nos anos 1980, iniciou-se um movimento da
comunidade para reivindicar o termo, abraçá-lo. Atualmente, seu significado diverge, assim como o
seu uso (MACMAHON, 2022).
2
Goffman (1981) explica estigma como sinais corporais que indicam algo defeituoso, ruim, fora do
comum, ou extraordinário, dependendo da época. A partir disso se vem as expectativas normativas
socias e se estas serão ou não atendidas.
ainda pode se aplicar, além do âmbito social, ao âmbito econômi-
co, por exemplo, tendo em vista o aumento do público consumidor
LGBTQIA+ para com produtos com os quais se identificam ou se
relacionam.
Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa qualitativa e
a natureza científica parte da análise bibliográfica e documental,
onde o personagem “Ele” da obra Meninas Superpoderosas (1998)
estudando sua conceitualização, vestimenta, maneirismos, silhue-
ta, cores e agir.
A CODIFICAÇÃO QUEER
3
Imposição social para ser e se comportar do que se é esperado de cada gênero.
4
Indivíduos que se adequam a imposição social de comportamento de gênero e normatividade da
sociedade.
232
lésbica. É um pensamento que celebra todas as diferenças, incluin-
do as de raça e classe, que se esforça para entender e defender
outras experiências sexuais ou manifestações de gênero conside-
radas digressivas por esse sistema dominante sem o objetivo de
defini-las.
O pensamento de Louro (2004; 2001) transparece o corpo
e a sexualidade humana ainda como elementos que vem-a-ser,
e não elementos dados e determinados em absoluto. Ou seja, o
gênero em um corpo em constante transformação é influenciado
pelo o que se é tido de masculino ou feminino para aquele corpo,
e as ciências sociais e o feminismo são áreas férteis que alimentam
ou igualam essas características.
A partir da forma desviante da normalidade que eram vistos
por essa civilização ocidental heteronormativa, a atuação e presen-
ça do identitário queer em produções voltadas majoritariamente
para o público infantil, como os desenhos animados, eram restri-
tas e praticamente proibidas devido ao chamado “pânico moral”.
As crianças são a maior preocupação dos adultos de consumirem
produtos em que sejam presentes personagens LGBTQIA+, pois
elas, para eles, são muito curiosas, inteligentes, e consequente-
mente “perigosas”, passando a conhecer, as vezes muito cedo, coi-
sas demais. Por isso, veem-nas como facilmente influenciadas, e a
presença desses personagens, na visão padrão de sociedade deles
como desviantes da moral, como não “suficientemente infantis” e
ameaças (WEEKS, 2000; EPSTAIN e JOHNSON, 2000).
Esse “pânico moral” também é derivado da ideia, mais preci-
samente de origem religiosa, de ideologia de gênero, que acredita
que através do abranger de assuntos relacionados a sexualidade e
gênero para crianças, se estará excluindo as diferenças entre eles
e assim desestruturando as ideias enraizadas na sociedade sobre
como cada indivíduo de determinado gênero deve se comportar,
vestir ou almejar (OLIVEIRA e NEWLAND, 2018).
Logo, surge, então, o queer coding, ou codificação queer, que
é estabelecido como um processo pelo qual os personagens são
233
definidos por possuírem traços físicos ou comportamentais que
são associados à comunidade LGBTQIA+, mesmo que suas orien-
tações sexuais ou identidades de gênero não sejam especificadas.
Essas características são, assim, derivadas do conceito de perfor-
matividade de gênero de Butler (2019), que procura mostrar que
tais traços e comportamentos, tidos como masculinos ou femini-
nos, por tanto serem repetidos, foram atreladas especificidades,
como a sensibilidade, cabelos longos e roupas mais excêntricas e
brilhosas às mulheres, e rigidez, roupas em tons neutros, e força
aos homens.
234
aos valores e estigmas socioculturais intrínsecos, e produzem uma
mensagem que pode ser determinante para a caracterização e de-
finição dos personagens ficcionais no que diz respeito a posturas e
identidade, quanto para o estabelecimento da trama e desenvolvi-
mento da narrativa (FISCHER, 2008).
Os estereótipos, ou características em comum, seja em va-
lores ou crenças, divididas por grupos de indivíduos (MCGARTY,
YZERBYT e SPEARS, 2002), são, então, usados como um recurso
para compor personagens com economia de complexidade, e se
pode alinhar um em postura e identidade com o que é a ordem do
bem ou do mal na narrativa em dependência de que grupo per-
tencente são aquelas características (FISCHER, 2008).
A partir do uso das características derivadas da performativi-
dade de gênero de Butler (2019), junto ao fato do atrelar dos indi-
víduos da comunidade LGBTQIA+ à imoralidade por desviarem do
padrão social, e consequentemente midiático, tornou-se comum,
principalmente nas animações da sociedade e cultura ocidentais, a
representação do personagem queer, não assumidos, repletos de
códigos de comportamento de vestuário contrários ao sexo que
estes representam, e estereótipos da comunidade LGBTQIA+, re-
tratados de forma vilanesca5 nas obras televisivas, ou cinemato-
gráficas. Com a visão desses desenhos, não explícita, como uma
forma de ensino e construção identitária e subjetiva (SILVA, 2013),
se viu como oportuno essa representação no produto animado in-
fantil.
235
“vilanescas” ou regadas de estigmas, com silhuetas que vão contra
a figura do herói, cores escuras, e vestimentas excêntricas ou sem
muitas formas. Isso devido ao Código Hays6, que impedia que o
público tivesse qualquer simpatia pelo lado do crime, do mal, do
pecado e do erro, estabelecido nos EUA em 1930, e com efeitos
vistos até hoje em produções (ABRANTES, 2001; BUTLER, 2019;
NAZARIO, 2007).
De acordo com Goffman (1981, p. 5) “Os ambientes sociais es-
tabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de se-
rem neles encontradas”. Logo, todos aqueles fora do comum serão
englobados em estigmas devido as expectativas normativas esta-
belecidas culturalmente. Muitas das vezes, antes mesmo do con-
tato interpessoal, as expectativas normativas efetuam a criação de
uma identidade social virtual, identidade essa criada apenas com
base em pré-conceitos e percepção, ignorando atributos sociais
tal qual a honestidade e simpatia, por exemplo. Por conseguinte,
se ocasionam assim, tratamentos desrespeitosos com aqueles vis-
tos como estigmatizados, mais precisamente a comunidade LGB-
TQIA+ e outras raças (GOFFMAN, 1981), incluindo em representa-
ções midiáticas, como as representações “vilanescas” em desenhos
animados.
As produções animadas então proibidas de retratarem per-
sonagens queer devido ao Código Hays, viram em seus bastido-
res uma forma de inseri-los. Tendo em vista a visão generalizada
de que os desenhos animados possuem como público as crian-
6
O advogado presbiteriano Will Hays, presidente da Motion Picture Producers and Distributors of
America – MPPDA, amigo do Presidente Herbert Hoover, convencido da má influência de Hollywood
na sociedade americana, elaborou a lista “Dont’s and Be Carefuls”, dividida em duas partes: “Dont’s”
não permitia nudez, tráfico de drogas, escravidão branca, parto, cirurgias, primeira noite, casais na
mesma cama, genitália infantil, beijos prolongados, perversão sexual, miscigenação; “Be Carefuls”
deliberava sobre uso da bandeira americana, execuções legais, roubo de trens, vulgaridades. Sem
apoio oficial, o que feriria os princípios democráticos, Hays organizou um mutirão ecumênico de
igrejas cristãs, organizações judaicas, Legião da Decência, Liga Civil de Massachusetts e outras or-
ganizações da sociedade civil que impuseram o Código principalmente ao cinema, mas atingindo
outros meios de entretenimento. Adotado em 31 de março de 1930, sua aplicação passou a ser
supervisionada em 1934 pela PCA (Production Code Administration) e vigorou em Hollywood sem
alterações até 1956 (administrado pelo católico Joseph Breen até 1954) e com algumas mudanças
até 1963. Os filmes aprovados recebiam um selo e os recusados perdiam os canais de distribuição da
poderosa MPPDA. A desobediência custava aos produtores uma multa de 25 mil dólares (TEREZA
PIRES, 1930).
236
ças, e de que esses servem educacionalmente a elas (EPSTAIN e
JOHNSON, 2000), esses papéis foram, nesse raciocínio, compos-
tos de uma forma para que a criança os evite, repudie ou receiem
na narrativa. Como consequência, qualquer semelhança vista pes-
soalmente pelo infante os faria reagir da mesma forma, ou seja, os
estigmas e a pressão estética e moral relacionada à comunidade
LGBTQIA+ continuam a serem reforçados na sociedade, mesmo
na infância, através da mídia (NAZARIO, 2007; BUTLER, 2019; HA-
RAWAY, 2000).
7
Geralmente homens gays, ou mulheres trans, que usam de perucas, maquiagem e vestidos estra-
nhos, excêntricos ou glamourosos. Elas costumam imitar celebridades do mundo do entretenimento
performando em shows drag, clubes, ou eventos como a Parada do Orgulho Gay (BARONI, 2006).
8
Disponível em: https://www.virgula.com.br/tvecinema/conheca-divine-a-inspiracao-para-a-vila-ur-
sula-de-a-pequena-sereia. Acesso em: dez. de 2021.
237
ELE E O MODO DE SER “DO MAU”
Fonte: Pngitems9
9
Disponível em: 135-1357365_him-devil-off-powerpuff-girl-hd-png-download.png (860×1207)
(pngitem.com). Acesso em: dez. de 2021.
238
“Ele” é composto por uma silhueta que leva o telespectador
à imagem bíblica do que seria o diabo, usa botas de cano alto, co-
lante vermelho adornado com pompons vermelhos semelhantes
a tule, possui blush e rímel como maquiagem, e altera sua voz do
agudo ao grave de acordo com o seu estado de espírito, navegan-
do entre um ser exagerado e excêntrico ao amedrontador (WINE-
MAN, 1998).
239
Ele está se exercitando, pois afirma gostar de se manter em forma,
e durante o momento está trajando meias polaina, muito usada
durante a moda fitness e de cores chamativas dos anos 80, uma
saia azul, moletom de mangas longas e faixa no cabelo (MCCRA-
CKEN, 1998; PALOMINO, 2013).
“Ele” ainda foi representado de forma semelhante em uma
produção oriental das Meninas Superpoderosas, possuindo as
mesmas características em personalidade, mas diferenciando-se
em vestuário.
11
Disponível em: www.powerpuffgirls.fandom.com/wiki/HIM_(Powerpuff_Girls_Z). Acesso em: jun.
de 2022.
12
Sempre com trajes inadequados ao ambiente, o indivíduo Bobo da Corte tinha uma vestimenta
dispare e única a ele dentro e fora da corte. Se fantasiava geralmente com roupas espalhafatosas,
e chapéus com duas pontas prolongadas com guizos em seus extremos, e se fazia de ridículo para
toda a Corte (MORI, 2018).
240
A PRESENÇA DO ELE EM MENINAS SUPERPODEROSAS E O
CLICHÊ DOS VILÕES CODIFICADOS
Fonte: Pinterest14
13
Clichê é um recurso cinematográfico, presente também na tv e em outras obras narrativas, que
repete situações, acontecimentos e representações de personagens, na mídia, e que deram certo
com o público, renovando-os ou não (MORGADO, 1999).
14
Disponível em: www.pinterest.com/pin/225672631298867295. Acesso em: Dez. de 2021.
241
Além do “Ele” presente em Meninas Superpoderosas (1998),
outros marcantes vilões se encaixam nessas características ressal-
tadas sobre a codificação queer (DUTRA, 2019). Além da Úrsula,
de A Pequena Sereia (1989), se vê os vilões Ratcliffe de Pocahontas
(1995), Hades de Hércules (1997), e outros, apresentando o mesmo
uso de estereótipos e estigmas que são socialmente estabelecidos
pela maioria padrão social sobre indivíduos LGBTQIA+.
Fonte: Pinterest15
15
Disponíveis em: www.pinterest.com/pin/144326363035255061. Acesso em: dez. de 2021.
242
Por que é comum esse uso continuo de estereótipos de gru-
pos sociais para a construção de personagens como Ele? Além do
que já foi anteriormente falado sobre construção social e o uso de
desenhos animados como um meio educativo para seu público-
-alvo, esse uso é comum devido ao fato do clichê, de acordo com
Areal (2011, p. 141), ser “uma imagem cuja forma se repete e se
torna reconhecível”. Ou seja, devido a simplificação desses perso-
nagens através do uso de características bases, essas imagens são
mais facilmente retidas. Logo, se torna mais fácil o reconhecer da-
queles grupos sociais nas narrativas, e os estigmas e estereótipos
que os rodeiam serem reforçados.
CONCLUSÃO
243
Partindo desse contexto, este trabalho estudou o persona-
gem “Ele” de Meninas Superpoderosas (1998) como um fruto des-
sas visões e acontecimentos sociais, com o intuito de verificar como
a representação da comunidade LGBTQIA+ é geralmente feita em
desenhos animados, para entender, a partir disso, o que seria a co-
dificação queer, e se esta é uma boa forma de representação para
o grupo.
No caso do personagem “Ele”, junto da silhueta que propor-
ciona, é o que vemos antes mesmo de descobrirmos mais sobre o
personagem, pois é a primeira informação acerca de sua identida-
de que nos é dada a seu respeito. Ele, porém, toma forma comple-
ta apenas quando acompanhado pela voz do dublado, nos casos
do desenho animado. Sendo assim, a vestimenta age como uma
extensão daquele corpo, auxiliando até mesmo o dublador a cor-
porificar aquele personagem.
Observa-se, ainda, que apesar de ser uma forma estereoti-
pada de representação, que, assim como fizeram e continuam fa-
zendo com palavras depreciativas, como o significado da palavra
queer, por exemplo, a comunidade LGBTQIA+ vem ressignificando
o personagem com o passar dos anos, transformando-o em uma
figura representativa oficial do grupo. Como exemplo disso, pro-
dutos estampados ou que trazem a figura do “Ele” são facilmente
encontrados.
Em síntese, este trabalho poderá servir, ainda, como referên-
cia para outras pesquisas de tema equivalente que tratem sobre a
construção social da moda e a sua relação com sexo e gênero, do
uso do figurino e a construção de um personagem para determinar
características sociais, e da representação de grupos sociopolíticos
em desenhos animados.
244
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246
ECOS DO TERREIRO NA ESCOLA:
A MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA COMO FERRAMENTA
DIDÁTICO-PEDAGÓGICA
248
e condutor das energias do congá3.
Além do caráter musical, o tambor também representa um
elo divino entre os participantes da gira4 e as entidades que se
manifestam nos terreiros. As expressões corporais, as danças e os
gestos característicos de cada entidade são entoados pelo som
e ritmo desse instrumento. Portanto, a sonoridade se apresenta
como uma grande, e senão a maior, força energética presente nos
rituais e atividades da casa religiosa.
A relevância do tambor é tamanha que as pessoas que inte-
ragem com o instrumento são escolhidas pelas entidades em um
ritual específico. A responsabilidade de tocar o tambor é uma das
principais atribuições do cargo de Ogã5, e, através dele, cada ter-
reiro pode desenvolver suas diretrizes litúrgicas. Muitos terreiros
até oferecem cursos gratuitos para quem deseja aprender a tocar
o tambor, porém, em dias de gira, apenas os escolhidos pelos guias
podem tocá-lo.
Fonte: http://2.bp.blogspot.com/-OfIykUAKUGU/UoM7h3WDEII/
AAAAAAAAakI/JHXa8VvGelM/s1600/terreiroMacumba.jpg
3
Altar onde ficam as imagens dos Caboclos, Pretos Velhos, Exus, Pombagiras e outros elementos
presentes nas crenças de matriz afro-brasileira.
4
Rituais em forma de rodas, constituídos por orações, danças, cânticos e pela invocação de entida-
des.
5
Cargo de suma importância e de responsabilidade dentro dos rituais de Umbanda e Candomblé,
como o conjunto de vozes e toques dos atabaques, por exemplo.
249
A musicalidade representa, para as religiões afro-brasileiras,
uma importante fonte de axé6 que viabiliza os trabalhos espiri-
tuais e fortifica os participantes das giras. Além disso, ela transmite,
a partir dos pontos cantados7, muitas das vivências dos povos an-
cestrais, suas tradições, culturas e muitos dos desafios que atraves-
saram durante suas existências terrenas. Os aspectos mencionados
reforçam a relevância de se utilizar tais ferramentas como recursos
didático-pedagógicos, pois resgatam, em sala de aula, memórias,
raízes e a história do povo brasileiro (SILVA, 2000).
6
Significa poder, energia ou força presentes em cada ser ou em cada coisa. Nas religiões afro-brasi-
leiras, o termo representa a energia sagrada dos Orixás.
7
São como «orações cantadas», que auxiliam na ordem e na fluidez dos trabalhos espirituais. Os
pontos marcam todas as partes do ritual da casa como a defumação, abertura e fechamento de gira.
8
É vista como a personificação das forças da natureza, que equivale à força feminina de Exu — orixá
guardião do comportamento humano, das casas e das aldeias.
250
à característica que elas têm de não se submeter às regras sociais.
Ou seja, são empoderadas e livres, motivos pelos quais são sempre
castigadas aos olhos dos padrões e imposições da cosmovisão cris-
tã. O ponto cantado abaixo descrito retrata bem essa característi-
ca de repreensão acerca de uma figura feminina que desde muito
cedo teve que conviver com o preconceito e ignorância social.
251
Partindo da prerrogativa histórica, a Santa Inquisição foi um
movimento da Igreja Católica Apostólica Romana que visava coi-
bir e punir toda e qualquer prática de cura, ritualística ou litúrgica,
que fizesse uso de ervas, entre outros recursos naturais. O trecho
do ponto cantado “Foi condenada pela lei da inquisição / Para ser
queimada viva, sexta-feira da paixão” faz menção a essa prática
cristã. Cremos que esses versos, que integram a musicalidade reli-
giosa, trazem importantes eixos para debate em sala de aula, con-
siderando o contexto e a relevância do movimento cristão na cons-
trução de preconceitos raciais, religiosos, econômicos e políticos
que ainda persistem no atual momento da sociedade e promovem
intolerâncias.
Trata-se de uma abordagem histórica presente no ponto re-
ligioso chamando atenção à influência que a Igreja Católica teve/
tem na concepção da cultura brasileira, na orientação de práticas
e paradigmas sociais, a exemplo dos preconceitos à emancipação
feminina. Vamos ao eixo temático proposto para apropriação didá-
tica:
Sobressai, portanto, a discussão da multiculturalidade (CAN-
DAU, 2008) afro-brasileira nas raízes culturais do nosso povo, de
forma reflexiva, considerando os atuais casos de racismo estrutural
e segregação social, partindo da representatividade da figura femi-
nina nos espaços coletivos.
252
desafios que permeiam o caminhar.
Segundo a cosmovisão afro-brasileira, Exu exige disciplina e
determinação dos que pedem o seu auxílio, no sentido de se bus-
car o aperfeiçoamento, da necessidade de que se qualifiquem e se
dediquem aos seus projetos. Como ocorre no caso das Pombagi-
ras, muitos pontos cantados dos Exus trazem a história de vida e
da fé na ancestralidade que representam. O ponto cantado abaixo
sugere o esforço diário que os lavradores precisam ter para conti-
nuar sobrevivendo no campo.
253
sua capa, / quem tem sua capa escapa / a sua capa é o manto da
caridade”, que os lavradores fazem diariamente.
A temática da música, que contempla a rotina e a vivência dos
pequenos produtores rurais, pode ser objeto de discussão em sala
de aula atuando como conteúdo multidisciplinar proposto pela es-
cola na perspectiva de aproximar a realidade do campo ao espaço
de aprendizados escolares. O debate necessita ser construído para
salientar a relevância destes produtores para o mercado econômi-
co brasileiro, cujo contexto reforça e ilustra a mensagem de perse-
verança presente na musicalidade religiosa. Nesses termos, o eixo
temático proposto é assim articulado:
Emerge, desse modo, a necessidade de se analisar no con-
texto pedagógico como o sistema agropecuário brasileiro vem se
constituindo ao longo dos anos. A análise também pretende visi-
bilizar a participação do pequeno produtor rural na economia bra-
sileira, assinalando os avanços e desafios para os trabalhadores do
campo, categoria que tem perdido cada vez mais espaço em de-
corrência da expansão industrial globalizada.
254
de servir de mão de obra no desbravamento das riquezas naturais
brasileiras. Hoje, tais espíritos são conselheiros valiosos da Umban-
da e que vêm aos terreiros, como também nos centros espíritas
kardecistas, para um trabalho no bem. A musicalidade represen-
tativa deste grupo ecoa não o sofrimento vivido na terra, mas a
sua resistência, a sua sabedoria e, acima de tudo, o seu respeito
e acolhimento por todos/as que lhes pedem auxílio. O ponto can-
tado notabiliza a esperança conquistada, apesar das dores, e com
a superação das amarguras, graças à vontade de viver e ao amor
pelo próximo.
255
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
Do Congo ou de Angola ou de Mina
Bahia, Aruanda ou Cambinda
São os velhinhos da Umbanda
Que encaminham nossas vidas
Esqueceram o terror da senzala
Do cativeiro, as crueldades
E voltaram pra essa terra
Pra prestar a caridade
Ecoou um canto forte na senzala
Ecoou um canto forte na senzala
Negro canta, negro dança
Liberdade fez valer
Não existe sofrimento, não existe mais chibata
Só existe a esperança para um novo amanhecer
(Adorei minhas Santas Almas)
256
vida das pessoas escravizadas, sentimento que precisa ser forta-
lecido para que possamos também ser livres do nosso sofrimento
espiritual.
Outro trecho, porém não o único, que faz um convite à reflexão
da relevância da narrativa, é “Do Congo ou de Angola ou de Mina
Bahia, Aruanda ou Cambinda”, quando surgem as diversas origens
dos povos africanos que foram transportados para o Brasil em
condições desumanas. As informações contidas na música sagra-
da enfatizam a todo momento a necessidade de se contemplar a
riqueza das histórias e lições de vida dos indivíduos escravizados.
Para tanto, enfatizamos a seguinte sequência:
Nesse sentido, a ação pedagógica pode aprofundar o debate
sobre os povos africanos e indígenas que sofreram com o processo
de escravização, além de ser possível evidenciar, também, a apro-
priação indevida dos recursos naturais nesse mesmo período his-
tórico. Em síntese, o ponto cantado apresenta uma diversidade de
possibilidades de enfoque, a partir das questões relacionadas à es-
cravatura, sendo essencial, no nosso entender, a análise dos traços
culturais oriundos dos povos escravizados, e que ainda podem ser
identificados na sociedade brasileira, visando, também, questionar,
em sala de aula, a invisibilidade dessas etnias, a exclusão que en-
frentam e suas resiliências cotidianas.
257
A representação do povo indígena na Umbanda é constituída
pelos Caboclos ou Caboclos de Pena, como também são chama-
dos. São espíritos de antigos indígenas que partiram em conflitos
com outras tribos ou em disputas com o homem branco pelo di-
reito de proteger a natureza. Os pontos dessas etnias ecoam a se-
renidade e entoam a força que estes seres de luz têm para a har-
monia da existência. Nas letras e melodias são percebidos os sons
da mata e dos animais que buscam promover a cura daqueles que
buscam auxílio no terreiro. O ponto cantado abaixo sinaliza o quan-
to a natureza é contemplativa e essencial não só para as entidades
dos Caboclos, mas, também, para o debate acerca da importância
da natureza, sobretudo numa época em que a escola precisa sus-
citar o interesse pelas questões ambientais e a sustentabilidade do
planeta.
258
A vivência e o resgate dos hábitos de preservação dos in-
dígenas representam a tentativa de promover a conscientização
ambiental, ao mesmo tempo em que fortalecem as nossas raízes
culturais. Conforme notamos no ponto cantado, a natureza signifi-
ca a fonte de sobrevivência não só para os indígenas, conforme o
trecho “com a sua flecha pega a caça / para o seu povo alimentar /
com a caça nas costas volta a caminhar”, mas para toda a socieda-
de. O eixo temático proposto é assim articulado:
Permitindo a valorização do conhecimento e dos costumes da
cultura indígena, o eixo didático formulado visa discutir a consciên-
cia ambiental de forma diária na escola. O saber indígena é uma
fonte inestimável de informações valiosas para a prática sustentá-
vel do uso dos recursos naturais e pode ser ainda mais significativa
quando associada ao processo histórico da formação da nossa so-
ciedade. Até hoje os traços culturais indígenas estão presentes no
nosso dia a dia e eles precisam se tornar pauta frequente na gestão
do conteúdo das escolas.
259
periências extra-sensoriais quanto cognitivas. O ponto cantado a
seguir expressa a aprendizagem dos números em clima de festa,
poesia e leveza.
260
“Onde está a Rosinha, está na cachoeira / Onde está o Trovão,
mora na pedreira” beneficiando, também, a formação cognitiva e
até motora (quando a dança e os movimentos corporais são aplica-
dos em conjunto com os saberes da musicalidade afro-brasileira).
Zé Pelintra, Zé Pelintra,
boêmio da madrugada
Vem na linha das almas e
também na encruzilhada (2x)
13
Entidade de luz originária da crença sincrética denominada Catimbó, surgida na Região Nordeste
do Brasil. Comumente “incorporado” em terreiros de Umbanda, o seu culto é difundido em todo o
Brasil.
14
São as pessoas que vão aos terreiros para tomar o passe e para a consulta em busca de cura espi-
ritual, conselhos e equilíbrio emocional. O passe é uma emanação vibratória energética.
15
Refere-se à discriminação contra os indivíduos de uma região ou um Estado.
261
O amigo Zé Pelintra que
nasceu lá no sertão
Enfrentou a boemia
com seresta e violão
Hoje na Lei de Umbanda
acredito no senhor
Pois sou seu filho de fé,
pois tem fama de doutor
Com magias e mirongas
dando forças ao terreiro
Saravá, Seu Zé Pelintra,
o amigo verdadeiro! (2x)
16
É o processo gerado a partir da mistura entre diferentes etnias.
262
seus alunos (FREIRE, 1987).
263
REFERÊNCIAS
CANDAU, Vera Maria Ferrão. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre
igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v.13, n. 37, 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
NASCIMENTO, Robéria Nádia Araújo. Orixás são super-heróis: mediações dos quadrinhos no
contexto da educação intercultural. Revista Teias v. 20, n. 57, Abr./Jun. 2019.
SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia: trabalho de campo e texto etnográfico
nas pesquisas antropológicas sobre as religiões afro-brasileiras. São Paulo, Edusp, 2000, 194 pp.
264
DIÁLOGOS ENTRE A EDUCAÇÃO POPULAR E A FORMAÇÃO
CRÍTICA E HUMANITÁRIA DOS JURISTAS: AS EXPERIÊNCIAS
EXTENSIONISTAS DO NAJUP-JE NA COMUNIDADE
QUILOMBOLA DO CEDRO EM MINEIROS - GO
INTRODUÇÃO
1
Acadêmico de Direito pela Universidade Federal de Jataí, Mestre em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás. E-mail: marcos_vinicius@discente.ufj.edu.b
2
Acadêmica de Direito pela Universidade Federal de Jataí. E-mail: ferreirafreitas@discente.ufj.edu.br
3
Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Universidade Federal de Jataí. Doutor em Direito
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
que atuam em parceria com o projeto (acampamentos de reforma
agrária do Movimento Sem Terra (MST), estudantes de escolas pú-
blicas, usuários da rede pública de saúde mental e, recentemen-
te, a comunidade quilombola do Cedro). Para além de um projeto
de extensão, trata-se de uma experiência coletiva no propósito de
contribuir e aprender com a luta dos oprimidos.
Ao longo do ano de 2022, foram realizadas diversas visitas ao
Cedro, onde estabeleceu-se uma multiplicidade de diálogos com a
comunidade e trocas diretas entre os membros da frente e a comu-
nidade. E de onde surge, as seguinte problemática para a organiza-
ção deste trabalho: quais os desafios encontrados para a prática da
extensão popular em Direito diante do processo de aproximação
da universidade com a comunidade quilombola do Cedro? Quais
os desafios e dificuldades enfrentadas pela comunidade.
Especificamente, visou-se descrever as percepções, experiên-
cias e situação da proximidade entre o NAJUP-JE e o Cedro, para
após refletir os pressupostos políticos-pedagógicos da Assessoria
Jurídica Popular (AJUP) enquanto prática de extensão universitá-
ria.
Elencou-se como hipótese de estudo a intencionalidade da
extensão popular e o compromisso ético com a transformação so-
cial, voltados para a luta pela emancipação dos povos historicamen-
te oprimidos na sociedade, elementos que são centrais na busca
das AJUPs pelo Brasil, e fundamentais para viabilizar a formação
humana e crítica dos juristas, alinhados com os objetivos afirmados
na Constituição Federal de 1988 e com os Direitos Humanos.
Ao Intercalar elementos da pesquisa empírica, uma vez que
relata, ao mesmo tempo busca compreender os sentidos das expe-
riências e vivências de campo. Essas vivências foram oportunizadas
com base nos diálogos iniciais com os representantes da comu-
nidade, buscando uma aproximação inicial e retorno de interesse
deles em compartilhar o tempo e a presença com os extensionistas
da universidade. Cada atividade e viagem para o quilombo é pre-
viamente planejada, e após o término da visita os extensionistas
266
registram suas observações, sensações e percepções no seu pró-
prio caderno de campo.
Desta forma, o caderno de campo “trata-se de registar o con-
vívio com os nossos informantes, convívio este que não está repre-
sentado apenas pela fala dos mesmos, no registro que fazemos
do próprio espaço” (LOPES, 2002, p. 135). Entende-se o diário de
campo como um instrumento metodológico e pessoal que ultra-
passa a funcionalidade de coleta de dados (quantitativos ou quali-
tativos), capaz de detalhar de modo aprofundado os olhares sobre
a realidade local e expressar as preocupações internas e externas
que guiam os pesquisadores e a comunidade (LOPES, 2002).
Trata-se de uma investigação pautada no arcabouço da an-
tropologia jurídica a fim de identificar impressões, sentidos e con-
tradições a partir dos relatos e das experiências ao longo do tem-
po. Dessa forma, “o ‘método etnográfico’ implica na frequente
reinvenção da matéria, as próprias formulações teóricas também
são constantemente lapidadas em função do confronto com no-
vas experiências, portanto, não existe antropologia sem “a empiria
– eventos, acontecimentos, palavras, textos, cheiros, sabores, tudo
que nos afeta os sentidos –, é o material que analisamos e que,
para nós, não são apenas dados coletados, mas questionamentos,
fonte de renovação.” (PEIRANO, 2014, p. 380).
Em suma, esta pesquisa tenta construir uma interpretação
antropológica e educativa com a comunidade do Cedro, uma leitu-
ra que se funda sobretudo na influência teórica e ética do legado
de Paulo Freire na extensão popular em Direito.
267
nismo no processo de aprendizagem (GHIGGI, 2010).
Compreende-se que a extensão deve ser, antes de tudo, uma
atividade de emancipação, trocas de aprendizados, construção co-
letiva e uma constante tentativa de manutenção e efetivação de
direitos humanos. Por isso, é válido ressaltar que um dos pilares
da extensão popular está nos ensinamentos de Paulo Freire que,
consequentemente, inspirou as atividades da AJUP.
Desse modo, parte-se de uma perspectiva de educação liber-
tadora e transformadora, experimentada e comprovada na sua prá-
xis, onde, educadores e educandos, co-intencionados à realidade,
se encontram numa tarefa em cujo contexto ambos são sujeitos do
ato, não somente aptos a revelá-la e criticamente conhecê-la, mas
a tentar recriar esse conhecimento e a própria realidade.
Paulo Freire (2011) defendeu que o papel do educador e da
educadora popular no processo de transformação da realidade
não se resume apenas a “pensar que, a partir do curso que coor-
denam ou do seminário que lideram, podem transformar o país.
Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele
ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica”. (FREIRE,
2011, p. 127).
O NAJUP-JE, busca se distanciar das práticas mais tradicio-
nais de extensão que vislumbram os sujeitos universitários como
os únicos detentores do conhecimento, que irão iluminar os des-
tinatários do projeto nas atividades que forem realizadas. O que
se pretende na realidade, é que, a partir dos diálogos promovidos
entre educandos e educadores, se apresente possibilidade às pes-
soas, na condição atual de oprimidos, de serem protagonistas na
construção da realidade que os rodeia. Freire valorizou essa ideia,
ao afirmar “[...] que o homem, ser de relações e não só de conta-
tos, não apenas está no mundo, mas com o mundo. Estar com o
mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de
relações que é.” (1974, p. 47).
É com essa visão de Educação em Direitos Humanos, de
Extensão Popular e de desejo em contribuir nas práticas de lutas
268
coletivas como meio para a liberdade dos oprimidos e oprimidas,
que o projeto se aproximou da comunidade quilombola do Cedro
e desse encontro resultou (e está resultando) em experiências e
ações coletivas, cujas riquezas sociais e culturais são inspiradoras.
269
Nesta ocasião, a vivência ocorreu na sede da associação do
Quilombo Cedro, quando discentes, docentes e integrantes da co-
munidade quilombola se reuniram e ali foram abordados assuntos
relacionados à luta pelo território, que perpassa pela defesa contra
a especulação imobiliária aos cuidados a preservação ambiental,
pois as plantas e raízes dos cerrados são essenciais para esta co-
munidade que trabalha e tem sua cultura voltada na produção de
medicamentos fitoterápicos.
Após os dois encontros iniciais, ao longo de 2022 foram rea-
lizadas diversas visitas à comunidade com uma frequência quinze-
nal ou mensal. Onde os encontros e diálogos se mostraram mais
frutíferos que os anteriores, observou-se que a comunidade estava
mais à vontade e disposta para falar sobre os seus problemas e di-
ficuldades enfrentadas no cotidiano.
Compreende-se que houve uma abertura e confiança depo-
sitada no projeto, talvez seja em razão da habitualidade de visitas e
ações que estão sendo construídas. Ademais, se entende que con-
fiança é uma das bases das AJUP’s, sem ela os povos e movimen-
tos não irão deixar pessoas de fora da sua comunidade, adentrar
sua realidade.
Na atual situação, as pessoas da universidade ali presentes
estão decididas e focadas a contribuir especificamente com a luta
deles. Visto que nas visitas iniciais, havia vários alunos e eles ainda
não tinham decidido na época em qual frente de atuação do NA-
JUP-JE queriam ingressar, estavam apenas conhecendo as possi-
bilidades de qual causa social iriam apoiar e se dedicar.
Além disso, a comunidade luta pelo direito à cultura e iden-
tidade quilombola, tendo em vista que trata de uma comunidade
tradicional que resiste na região que hoje constitui o Município de
Mineiros antes mesmo da sua fundação oficial, desde meados do
século XIX. O presidente, a vice-presidente da associação e outras
pessoas da comunidade em diversos momentos de conversas co-
letivas e individuais, fizeram questão de contar aos extensionistas
sobre a memória e origem do Cedro.
270
Eles contaram com bastante propriedade de narrativa, a tra-
jetória de Francisco Antônio de Moraes, conhecido historicamente
como “Chico Moleque”. O saudoso Chico Moleque enfrentou o sis-
tema escravagista por meio do trabalho, escravizado pela família
mineira de João Gabriel, conseguiu comprar sua alforria e 30.161
alqueires da Fazenda das Flores do Rio Verde em 1885 (DAMA-
CESNO, 2022) no território onde formou-se a Comunidade Qui-
lombola do Cedro e, atualmente, inserido na municipalidade que
passou a se chamar Mineiros (GO), desmembrada de Jataí a partir
da lei de nº 257 de 1905.
Identifica-se que a comunidade conta com orgulho sua his-
tória e, ao mesmo tempo, consegue apontar problemas relaciona-
dos, tais como a juventude e as crianças não terem apreço e nem
interesse com a trajetória e cultura quilombola. Outro ponto que
se faz perceptível, refere-se a narrativa que aponta um desgosto
com razão sobre a redução dos territórios do Cedro nos últimos
138 anos, pois nas últimas décadas esse processo de expropriação
de suas terras foi intensificado.
Tanto o Cedro como o NAJUP, identificaram que um tema
gerador na comunidade se refere ao resgate cultural da juventude
e das crianças. Que por sua vez, realizou um evento em comemora-
ção ao Dia da Consciência Negra e convidou o NAJUP-JE para pro-
por uma atividade durante a programação deles. Foi, então, que
surgiu a ideia de produzir arte-muralismo para resgatar as origens
e a memória de “Chico Moleque”. Atividade na qual as crianças
foram protagonistas na pintura e no registro de suas identidades
como parte daquela construção social e artística, resgatando um
pouco da história através da arte (fotografia 02).
271
Fotografia 02 – Atividade de arte e muralismo
com a crianças do Cedro
272
A comunidade relatou em vários momentos seus direitos pre-
judicados em razão da destruição das nascentes, poluição dos rios,
avanço de fronteiras agrícolas nas propriedades devastando os do-
mínios do cerrado, apropriação de terras quilombolas por outros
grupos sociais. Essa situação como um todo afeta os direitos corre-
lacionados. Por exemplo, sem acesso à água potável e de qualida-
de hídrica aceitável para o consumo, se afeta diretamente o direito
à moradia e a alimentação.
Sobre esse aspecto, em uma visita especifica a comunidade,
uma das famílias quilombolas relatou que antes retornar ao Cedro,
morava em São Paulo e teve momentos que eles passaram por
dificuldades hídricas na cidade, o que mais causa estranhamento
atualmente, é residir em uma localidade com bastante recurso hí-
drico disponível, mas a empresa de saneamento municipal negar a
instauração de registros e canalização para a família, sendo que os
vizinhos não-quilombos que apropriaram de suas terras, tiveram
concedido o direito à água tratada e canalizada. Tal questão não
é um problema exclusivo de uma família, durante as reuniões de
visita se fez claro que houve diversos relatos nesse sentido.
No tocante à aproximação, se estabeleceu diversos diálogos
interativos (desde assuntos corriqueiros até questões sérias) que
ajudaram a produzir uma afinidade e proximidade. Durante estas
conversas “informais”, ficou mais do que entendido que tais pes-
soas possuem uma notória experiência de vida e saberes tradicio-
nais e populares. Em várias ocasiões antes, durante e depois da
reunião, eles falaram de temas complexos com uma simplicidade
e bastante coerência com a realidade. Se um acadêmico, de modo
geral, fosse falar sobre o mesmo assunto, iria usar uma linguagem
robusta e pomposa e provavelmente iria se afastar um pouco da-
quela situação concreta. Essa é uma percepção antropológica es-
sencial: é necessário ouvi-los, entendê-los, pois recorrem a uma
lógica diferente da razão universitária na hora se expressar.
Os extensionistas em vários momentos, conversaram sobre
os motivos pelos quais o NAJUP-JE quer contribuir na defesa dos
273
direitos desta comunidade. Com o acúmulo de informações que
foram receber nas reuniões anteriores, foi proposto ao povo qui-
lombola do Cedro a possibilidade de aceitar ou recusar a ajudar
em propositura de uma audiência civil pública com Ministério Pú-
blico Federal (MPF), a fim de debater e questionar o poder público
municipal sobre as negativas e retiradas dos direitos essenciais aos
povos tradicionais.
Após a oitiva, eles relataram uma série de problemas, inicial-
mente com a questão da água. Muitas famílias quilombolas cultu-
ralmente constituíram o hábito de edificar suas moradias próximas
de seus familiares (diferentemente da lógica privada-individualista
de cada um “ter” a sua posse, trata-se de uma propriedade coleti-
va). No entanto, apesar de morarem próximos uns dos outros, eles
querem ter seu próprio registro de água e energia a fim de fortale-
cer vínculos e evitar conflitos internos, e estão negando o direito ao
saneamento básico referente tratamento da água.
A comunidade quilombola relatou que houve várias tentati-
vas de procurar a empresa SAAE (Serviço Autônomo de Água e
Esgoto) no propósito de obter um hidrômetro em suas casas, mas
lhe foram negados, com a justificativa de não ser possível fazer tal
procedimento. No entanto, outras propriedades de famílias não-
-quilombolas situadas ao lado ou entremeio do Quilombo Cedro
foi construída a tubulação e instalado tais equipamentos.
Cabe fazer uma relevante observação: ao longo da existência
secular do Quilombo Cedro, muitas famílias venderam suas terras
ou trocaram por lote na cidade, um processo cruel e gradual de ex-
propriação quilombola. Cada um da comunidade teve uma história
sobre isso, que nos foi contada rapidamente com uma tonalidade
triste ou de arrependimento sobre algum parente ou conhecido,
que vendeu sua terra por um valor irrisório. Fatos assim, geram a
situação de ter pessoas sem vínculo etnico-cultural em terras qui-
lombolas. Esse é o ponto chave, as famílias que receberam as tu-
bulações e equipamentos da empresa de abastecimento e sanea-
mento local estão dentro do território do Cedro e quem precisa de
274
abastecimento tem seu direito impossibilitado.
Outro aspecto sobre a temática da água que foi relatado, diz
respeito às nascentes que estão secando ou tendo a qualidade
prejudicada. Eles informaram que os empreendimentos imobiliá-
rios próximos ao seu território, tais como condomínios de luxo e a
expansão urbana do município, têm canalizado o Rio Verde, além
de represá-lo, diminuindo o acesso à água. Ao observar o fundo
da imagem 04 foi registrado a presença do avanço urbanístico. Do
lado da entrada da sede do Cedro, há um bairro em expansão (ca-
sas e estabelecimentos comerciais em construção).
275
preocupação, o problema surgiu com avanço da urbanização, pois
água acumula com barro e escorre descontroladamente para as
edificações do Quilombo, além de sedimentar o canal fluvial.
Em uma visita para além da sede associação, percorreu-se, a
convite da comunidade, em várias propriedades do quilombo. Um
dos relatos mais comovente sobre a água, diz respeito aos mora-
dores as margens ou com proximidades do canal fluvial, não po-
dem utilizar a água para consumo pois cai esgoto diretamente no
rio. A família, então, busca como alternativa usar água diretamente
na nascente, mas esta encontra-se afetada e reduziu a quantidade
de água, pois foi construído uma estrada de chão, o que compro-
meteu a qualidade e quantidade hídrica (fotografia 05).
276
la não usou termos técnicos e acadêmicos, o vocábulo deste traba-
lho serve para explicar o problema hídrico de forma complementar
ao que eles informaram, sem perder o sentido e a coerência com a
realidade factual.
Além da tentativa de expropriação por fatores de especula-
ção imobiliária, observou-se empiricamente a paisagem e identi-
ficou-se que o território do Cedro e o domínio dos cerrados estão
cercados não só pelo crescimento da malha urbana, mas também
pelo avanço da pecuária e da monocultura de grãos (soja e milho).
Houve relatos, sobre os quais, pessoas que não são latifun-
diários, mas que também tentam invadir suas terras, colocam gado
sem permissão, removem e danificam cercas instaladas pelo Insti-
tuto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) com informações
sobre a área ser destinada aos quilombolas para avançar com a
“limpeza da área” (desmatamento) e, depois, efetuar o plantio na-
quele espaço tomado.
Ao analisar as situações concretamente, entende-se que o
quilombo do Cedro é composto por uma minoria étnico-tradicio-
nal que resiste ao racismo ambiental e estrutural, trata-se de pes-
soas que defendem os Cerrados, este que nitidamente conforme
os relatos vem sofrendo com aquilo que as ciências ambientais de-
nomina de efeito de borda. Além da redução da biodiversidade e
da qualidade hídrica, elementos essenciais na cultura quilombola
não apenas no quesito plantio e alimentação, o que está em jogo é
o desestímulo à tradição cultural.
Por exemplo, sem o cerrado com sadio equilíbrio ecológico
não tem como produzir medicamentos fitoterápicos. Muitas mu-
lheres quilombolas relataram que, a cada vez que elas saem à pro-
cura de plantas medicinais, a busca fica mais difícil por conta do
desgaste das matas.
Posteriormente, após cada situação narrada, verificou-se a
possibilidade de produzir provas sobre os problemas enfrentados.
A finalidade de tal procedimento probatório será de embasar o do-
cumento formal a ser submetido ao MPF no sentido de cientificá-lo
277
sobre os desrespeitos à legislação e aos direitos, que vem afetando
os povos quilombolas e intimar o Poder Executivo Municipal, em
Mineiros - Goiás. Almeja-se que a partir de tal ato jurídico ocorra
desdobramentos sociais e ambientais para implementar e garantir,
o que não está sendo feito.
Todos da comunidade concordaram, logo, a parceria foi fir-
mada, o NAJUP-JE ficou responsável em buscar apoio na elabo-
ração do relatório/dossiê técnico e interdisciplinar sobre a situação
desta comunidade quilombola. O povo do Cedro com nossa asses-
soria e orientação irá produzir e juntar registros, tais como fotos,
vídeos etc. A reunião se dissipou tranquilamente, nem parecia que
ocorreu uma, pela tranquilidade do ato e da simplicidade. Deu para
perceber a empolgação com o combinado.
Em outubro de 2022, foi protocolado uma manifestação no
Ministério Público Federal (MPF), pois há mais de 20 anos a co-
munidade busca no campo institucional o reconhecimento de seus
direitos em face do Estado Brasileiro. A morosidade e omissão do
Estado também afeta a manutenção e existência dessa comunida-
de quilombola, visto que diversos direitos coletivos são violados.
Existe também a violação pelos tratados internacionais do
qual o Brasil é signatário, a Convenção 169 da Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT), e pelas legislações infraconstitucio-
nais vigentes, como o Decreto 6040/2007 e, inclusive, a Lei nº.
117/2003, do município de Mineiros (GO), que reconhece a Comu-
nidade como Patrimônio Histórico e Cultural do Município.
A Convenção 169 da OIT determina que sempre que um ato
administrativo possa afetar a um povo ou comunidade tradicional,
a população envolvida diretamente deverá ser consultada. Entre-
tanto, o NAJUP-JE constatou a partir dos relatos, que esta orien-
tação não está sendo respeitada no município de Mineiros, que
tomou uma série de decisões administrativas que alteram a orga-
nização socioespacial local e que impactam o território e a própria
Comunidade Quilombola do Cedro sem que estes tenham sido de-
vidamente e de forma prévia consultados.
278
CONSIDERAÇÕES FINAIS
279
REFERÊNCIAS
DIEHL, D. A. O lugar da assessoria jurídica popular como práxis de educação popular freireana: a
atuação do NAJUP Josiane Evangelista no Acampamento Leonir Orbhak (MST-GO). InSURgência:
revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 8, n. 1, p. 147–168, 2022. Disponível em: https://
periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/40686. Acesso em: 10 jan. 2023.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 25.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
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GHIGGI, G. Paulo Freire e a revivificação da Educação Popular. Educação, v. 33, n. 2, 2 ago. Dispo-
nível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/7345. Acesso em: 03
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LIMA, Helton Solto. O diário de campo e sua relação com olhar aprofundado sobre o espaço rural.
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280
A LITERATURA SURDA E SUAS CONTRIBUIÇÕES NO
CAMPO DOS ESTUDOS SURDOS
INTRODUÇÃO
3
O ouvintismo é um “conjunto de representações dos ouvintes, a partir o qual o surdo está obrigado
a olhar-se e narrar-se como se fosse ouvinte. Além disso, é nesse olhar-se, e nesse narrar-se que
acontecem as percepções do ser deficiente, do não ser ouvinte, percepções que legitimam as práti-
cas terapêuticas habituais” (SKLIAR, 1998, p. 15).
282
A categorização adotada por Perlin (1998, p.64) contribui com
nosso estudo trazendo cinco tipos de identidade:
283
No meio educacional o estudante Surdo tem acesso à litera-
tura clássica a partir dos materiais disponíveis especialmente em
mídias digitais como DVD, CD/ROM dentre outros por meio das
produções que concebem a comunidade Surda. Entre eles os ma-
teriais destacamos os livros digitais bilíngues-Língua portuguesa e
Libras e materiais didáticos contemplando a literatura surda.
Estudos sobre literatura surda ainda é um tema muito recente no
ambiente acadêmico, tendo ainda poucas produções na área sen-
do ainda até ainda até difícil conceituar como um único significado,
pois há subsídios que ajudam os aspectos literários como: língua,
cultura e identidade. No campo dos Estudos Surdos a valorização
da Libras expandiu os lugares de identidade e culturas surdas,
diminuindo a aspecto da surdez como deficiência e tornando seu
entendimento para a surdez como diferença.
Com a presença das novas tecnologias no meio educacional,
entende-se um apoio valioso para a constituição cognitiva dos
alunos surdos que têm auxiliado como suporte pedagógico para
as leituras literárias em sua língua materna ou primeira língua a
Libras, ou na segunda língua, a língua portuguesa. De acordo com
Santos “Tratar da literatura surda submerge a o diálogo de três as-
pectos primordiais: a identidade surda, a cultura surda e a Língua
de Sinais como elementos constitutivos para o aparecimento de
uma literatura surda” (2016, p.17).
Diante desse contexto, este artigo objetiva analisar os resul-
tados da produção disponível sobre a literatura Surda e conceituar
os tipos de produções literárias que estão conectados as repre-
sentações da comunidade Surda. Para realizar a pesquisa adotou
uma revisão sistemática dos artigos nacionais indexados no goo-
gle acadêmico. Os descritores usados para a busca foram: Litera-
tura Surda, Língua de Sinais, Cultura Surda, publicados nos últimos
quatorze anos.
Acredito que esta pesquisa, poderá oferecer, a partir das pro-
duções encontradas, um referencial teórico capaz de auxiliar para
descortinar o universo da Literatura Surda e seus artefatos cultu-
284
rais, contribuindo para o campo dos estudos surdos em educação.
METODOLOGIA
285
QUADRO 1 - PRODUÇÕES ENVOLVENDO
A TEMÁTICA LITERATURA SURDA.
Autor(es) Ano Título Resultados
Conclui-se que a literatura surda
Almir Barbosa dos Artigo: se constitui através de elementos
Literatura
Santos e Sandra culturais; a LIBRAS, identidade
2017. Surda: algumas
Arnaldo de Amorim surda e a cultura surda que
considerações
Lima 10º Enfope entendendo a surdez como
diferença.
286
tura surda, na qual estão relacionados à cultura, identidade Surda
e língua, atrelada principalmente a sua língua materna. A proposta
gira em torno de um ambiente educacional inclusivo para os alunos
Surdos e geram mudanças no processo de ensino e aprendizagem,
objetivando o efetivo direito de todos, à educação.
Acerca da definição de literatura surda. Assim, de acordo com
Santos (2016, p.17), “Tratar da literatura surda envolve a discussão
de, pelo menos, três aspectos principais: a identidade surda, a cul-
tura Surda e a língua de sinais como elementos constitutivos para
o aparecimento de uma literatura surda”.
Neste contexto, o objetivo é mostrarmos, a partir de referen-
ciais teóricos, a importância da literatura na constituição da subjeti-
vidade dos sujeitos Surdos, relacionando cultura e identidades sur-
das, bem como analisar, quais as contribuições da Literatura Surda
no desenvolvimento emocional e simbólico dos surdos.
As crianças surdas desenvolvem aprendizagens através da
experiência visual, porém sozinhas não tem poder de se formar
como leitoras e como leitores visuais. A leitura de livros digitais em
língua de sinais ou a leitura observando um adulto sinalizar, o qual
a auxiliará no desenvolvimento da sua capacidade visual, na sua
formação do senso crítico e levá-lo à reflexão das coisas. Assim,
após o aprimoramento de tecnologias, da gravação de histórias
através de fitas VHS, CD, DVD ou de textos impressos que apre-
sentam imagens, fotos e/ou traduções para o português, o registro
da literatura surda começou a ser possível principalmente a par-
tir do reconhecimento da Libras e do desenvolvimento tecnológi-
co, que possibilitaram formas visuais de registro dos sinais.
De acordo com Karnopp (2010) podemos pensar literatura Surda
como: ‘a produção de textos literários em sinais, que traduz a expe-
riência visual, que entende a surdez como presença de algo e não
como falta, que possibilita outras representações de surdos e que
considera as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural
diferente’ Assim para autora a Literatura Surda se apresenta como
um desejo de reconhecimento, em que busca um outro lugar e
287
uma outra coisa. De outro modo “A literatura do reconhecimento
é de importância crucial para as minorias linguísticas que desejam
afirmar suas tradições culturais nativas e recuperar suas histórias
reprimidas” (KARNOPP, 2006, p.100)
Existem documentos que tematizam a surdez e a língua de
sinais. Segundo Mourão (2012), existem três tipos de materiais dis-
poníveis de obras de literatura surda: criação, adaptação e tradu-
ção. Ele ainda apontou que no meio literário em termos de criação,
embora sejam poucas as produções, à comunidade Surda não falta
narrativa.
Karnopp (2008, p.10) citou alguns trabalhos que enfatizam
essa cultura surda, como: Tibi e Joca (Bisol, 2001) A cigarra e a for-
miga (Oliveira; Boldo, 2003), Kit Libras é Legal (2003), O som do
Silêncio (Cortes, 2004) que trazem contribuições par ao campo da
literatura surda.
Algumas histórias foram recriadas para que os surdos pudes-
sem aprender de maneira igualitária aos falantes e ouvintes. Outro
tipo de literatura que sofreu adaptação, foram os contos infantis
clássicos, para a formação da comunidade surda, como Cindere-
la Surda (Hessel; Rosa; Karnopp, 2003) Rapunzel Surda (Silveira;
Rosa; Karnopp 2003) Adão e Eva (Rosa; Karnopp. 2005), Patinhos
Surdos (Rosa; Karnopp,2005).
No caso da obra Cinderela Surda, as adaptações ocorreram
na troca do sapato de cristal por luvas, que possui um significa-
do simbólico na construção do surdo, o que constitui um aspecto
ideológico que permeia a comunidade surda, assim essa mudança
semiótica se concentra nas ferramentas dos meios de realização da
comunicação das pessoas Surdas.
288
Figura 1: Imagens de materiais da literatura Surda
Fonte: bing.com/imagens
289
Figura 2: Contos clássicos
Fonte: Letras.mus.br
290
Em relação a literatura para crianças ouvintes atualmente, há
uma quantidade imensurável e que as mesmas utilizam textos com
linguagem e recursos próprios da infância. Desde cedo, crianças
ouvintes convivem com histórias infantis que ouvem, que lhe são
lidas ou entra em contato auditivamente (LIMA; PESSOA; SCHEM-
BERG, 2012). Esses mesmos autores destacam que, no caso das
pessoas surdas, o acesso ao mundo literário muitas vezes é restrito.
Observa-se que durante o desenvolvimento do trabalho, os
autores destacam que a literatura surda, aquela contadas em lín-
gua de sinais que apresentam a identidade e a cultura surda na
narrativa, faz com que tanto as crianças ouvintes quanto as surdas
explorarem a fantasia e a imaginação, além de diferentes formas
de linguagem e experiências culturais.
Os autores desse artigo citado acima realizaram uma aná-
lise sobre a importância da literatura surda no desenvolvimento
emocional e simbólico de crianças Surdas. Para isto, realizou uma
pesquisa bibliográfica (a literatura explorada foi Karnopp (2006,
2010), Apolinário (2005) e Mourão (2011), a partir daí foram feitas
discussões que evidenciam como as crianças surdas aprofundam
seu conhecimento e aprendizagem a partir da fantasia, da cultura e
do lúdico, tendo como base a língua de sinais, para então percebe-
rem e compararem o mundo dos Surdos e dos ouvintes, reconhe-
cendo aspectos linguísticos, sociais e culturais
A literatura infantil consiste em textos próprios e condiciona-
dos com uma linguagem própria para que as crianças tenham fácil
entendimento, e que as façam entrar em um mundo imaginário de
forma mais lúdica. O que aborda é como lidar e como realizar de
forma mais eficaz, e os quais os métodos a serem utilizados para in-
seri-las nesse meio. É muito difícil atravessar essa ponte, segundo
o texto, pois há uma falta de tarde obras que registrem o cotidiano
de pessoas Surdas, ou que abordem a surdez.
Por existir essa falta, pesquisadores Surdos e ouvintes estão
levantando essa discussão, pois é uma prática importante para a
realidade deles. Essa literatura Surda, ainda é escassa, é encontra-
291
da principalmente que sites que abordam a surdez, e com a pes-
quisa da autora, ela viu que foi realizado uma releitura de do livro
Cinderela (Cinderela Surda), abordando toda a cultura, o cotidiano,
e a identidade Surda.
O Dossiê organizado por Fernandes e Medeiros (2020) versa
sobre a metáfora visual da língua de sinais como signo verbal mo-
bilizador das experiências de linguagem vivenciadas pelos Surdos,
atribuída do artista, pesquisador e professor Surdo Claudio Mou-
rão ou “cacau”. O Dossiê trata justamente da dialogia entre a Libras
e a Arte como ponto de encontro entre artistas Surdos, estudantes
de graduação, pesquisadores professores e tradutores intérpretes
de Libras. O “dossiê”, assim designado no texto, busca chamar a
atenção do leitor para as manifestações artísticas e estéticas que
promovem a Libras como língua de cultura, como a mesma é trans-
formadora das relações de poder que se estabelecem entre surdos
e ouvintes e mobilizadora da luta política das comunidades surdas.
Este dossiê trata justamente desse campo temático (e por
que não dizer, lúdico?) e inovador da dialogia entre a Libras e a
Arte, que se oferece como ponto de encontro entre artistas Surdos,
estudantes de graduação, pesquisadores, professores e tradutores
intérpretes de Libras. Esses sujeitos que produzem arte sinalizada
nas práticas discursivas da poesia de rua, da direção e atuação tea-
tral, da tradução artística de espetáculos, da produção de video-
guia, colaboram para a ampliação e circulação das manifestações
de artefatos culturais da comunidade Surda em sua prática profis-
sional e/ou acadêmico.
Apresentando relatos de projetos voltados para Libras e Ar-
tes, o dossiê traz propostas e trajetos inovares, mesmo estando em
processo de construção, sendo um desafio. O artigo foi analisado
para que suas contribuições pudessem ir além do espaço acadêmi-
co potencializando e transformando tudo que é tocado pela arte.
Um ponto importante é a presença significativa de tradutores de
Libras em espetáculos teatrais, na ocupação no cenário cultural.
Como resultado destaca-se o protagonismo dos acadêmicos sur-
292
dos, favorecendo sua formação interdisciplinar e a criação de arte-
fatos culturais em Libras.
Analisamos ainda o artigo de Uchoa; Grangeiro; Oliveira
(2020) que expressam o crescente acervo artístico visual presente
nos últimos tempos, mais precisamente na pandemia gerada pelo
novo COVID- 19 e a necessidade da criação da Literatura Surda.
Os objetivos dos autores para este texto foi criar uma obra ar-
tística visual, eles estabeleceram três desígnios a serem cumpridos
para que este fosse produzido:
a) Produzir um ensaio fotográfico como processo criativo para
uma obra de arte visual; b) Aplicar as habilidades do desenho ar-
tístico e explorar os aspectos visuais-espaciais-culturais da Libras
no processo de criação de uma obra de arte visual; c) Criar, sob o
contexto contemporâneo de pandemia, uma obra plástica de pin-
tura no tamanho, utilizando técnicas de pintura mista sobre papel.
(UCHOA; GRANGEIRO; OLIVEIRA, 2020)
Com isso, assim o fizeram e desempenharam uma obra de
arte com materiais encontrados em casa em decorrência ao Lock-
down, para este eles utilizaram tintas, papeis, pincéis, algodão, tela
e etc., a intenção com a pintura criada por eles é o de expressar a
reação da comunidade surda perante a pandemia.
293
vimentos são simétricos. Na figura 3 , o sinal de COVID-19, conven-
cionado, pela comunidade Surda.
294
A obra desenvolvida foi feita em três etapas: fotografia, esbo-
ço a lápis e o resultado final. Na pintura foram colocados sinais uti-
lizados pela Língua Brasileira de Sinais e trouxe uma ambiguidade
em muitos fatores. A esta obra eles nomearam “Coronalizando”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
295
no ambiente escolar como no meio social. Também possuem focos
nos processos de aprendizagem da segunda língua, A língua Por-
tuguesa. Assim quando os Surdos praticam leituras digitais, usam
a Libras, sua língua natural, para que se obtenha o aprendizado na
língua portuguesa também. Com adaptações das histórias, nenhu-
ma criança Surda ficará de fora das literaturas infantis, sentindo- se
representadas ao fato de ter protagonistas Surdos, o que levará a
encarar o mundo de forma mais igualitária aos ouvintes.
Tão importante quanto levantarmos pautas em relação ao
Surdo na sociedade é mostramos também de que forma a tecno-
logia ajudou para o método de contar histórias aos Surdos. Essas
considerações são importantes para entendermos a produção lite-
rária em língua de sinais. Pessoas surdas, convivendo com ouvin-
tes, em seu ambiente de trabalho ou com a família, se apropriam
de meios visuais para entender o mundo e se relacionar com as
pessoas ouvintes. Essa experiência visual, além do uso da língua
de sinais, implica dividir a comunicação e isto também caracteriza
a cultura Surda.
Estre trabalho possui um referencial teórico capaz de contri-
buir para descortinar o universo da educação de surdos no con-
texto educacional permitindo ampliação da produção da temática
em foco, além de servir como base de aporte téorico para outros
pesquisadores que realizam estudo sobre a constituição do acervo
na literatura surda.
Diante das análises das produções é possível sugerir que a
academia amplie as oportunidades de pesquisas a fim de favorecer
o acesso e permanência dos alunos surdos. Os resultados demons-
traram que é possível observar os avanços nas políticas e legisla-
ções que garantem o direito do surdo a educação superior, ainda
são inúmeras as dificuldades relacionadas às práticas pedagógicas
que valorize a educação bilíngue respeitando sua cultura, identida-
de e diferença.
Destaco aqui a importância de um espaço de educação bilín-
gue onde a Libras seja valorizada como primeira língua dos surdos,
296
tendo neste espaço a existência de uma prática pedagógica que
atenda às reais necessidades dos alunos, por meio de didáticas vi-
suais, pois, respeitar as diferenças linguísticas é um primeiro passo
para o desenvolvimento pleno do educando surdo. O ideal seria a
implementação de uma escola bilíngue, onde professores fossem
bilíngues e os alunos se tornassem bilíngues (Libras/Língua Por-
tuguesa), assim, a interação professor-aluno não sofreria com bar-
reiras à comunicação. Ademais, a falta de compreensão dos nortes
educacionais e da importância da cultura surda, faz com que os
surdos cheguem ao Ensino Superior como que analfabetos funcio-
nais.
É possível perceber também que uma educação de qualidade
somente existirá se a relação ensino-aprendizagem for facilitada
e estimulada por ações conjuntas entre escola, professor, famílias
e alunado surdo, mas isto não é visto de forma abrangente na
Universidade.
REFERÊNCIAS
297
AS OPRESSÕES DE GÊNERO E RAÇA: UM ESTUDO
ONTO-HISTÓRICO NA SOCIEDADE DE CLASSES
INTRODUÇÃO
299
os homens, em sua maior parte iam à caça, e as mulheres,
além de cuidar das crianças pequenas, preparavam a comi-
da e confeccionavam roupas e tendas. Quando necessário,
as mulheres ajudavam na caça e, se a mulher estava ocu-
pada alhures, o homem poderia se prontificar para cuidar
das crianças. Os Mitassini Diaries, escrito há um século pelos
membros da Companhia da Baía de Hudson, registram ca-
sos de mulheres da parte ocidental do Labrador que eram
chefes de família e chegavam a cuidar inclusive de suas pró-
prias armadilhas
300
bitavam em cabanas construídas coletivamente e compartilhadas
por cerca de dezoito pessoas. A autora observou que as relações
sociais entre os Montagnais-Naskapi, eram não só igualitárias, mas
também divididas entre os membros do grupo. O cuidado com as
crianças, idosos e enfermos, por exemplo, eram responsabilidade
de todo o coletivo da comunidade e as decisões tomadas conside-
ravam as necessidades do grupo e o respeito ao posicionamento
individual de cada um que era ouvido com paciência.
301
estejam educadas” (LEACOCK, 2019, p. 84-85).
O princípio da autonomia e da ética solidária se manifestava
em todas as relações entre os povos Naskapi. As relações de coo-
peração e igualdade vivenciadas na comunidade se faziam presen-
tes também entre os homens e as mulheres. Conforme Leacock
(2019, p. 99), havia:
302
Os elementos da forma de organização social da família nu-
clear baseada na monogamia fornecem base para o entendimento
da sociedade na contemporaneidade, e, nesse sentido, a partir dos
dados obtidos nas leituras, buscamos o entendimento de como ela
foi formada, reafirmando a desnaturalização das violências sofridas
pelas mulheres.
De posse de alguns breves elementos da gênese da opressão
de gênero pela perda da linhagem materna, a instauração do pa-
triarcado, e com a instauração e organização da família monogâ-
mica, e a entrada da sociedade de classes, produziu-se um duplo
efeito na história da humanidade (Tonet, 2005). Por um lado, hou-
ve um avanço muito rápido das forças produtivas e da riqueza es-
piritual, cultural, entretanto, com a sociedade dividida em classes, a
maioria da população ficou excluída, marginalizada da participação
desse avanço. No processo de acumulação capitalista o trabalho
passou a ser valorizado não como “atividade criativa”, mas trabalho
como meio de produzir a mercadoria das mercadorias, que é o di-
nheiro.
Nesse sentido, os padrões de acumulação capitalista são de-
finidos em contextos diversos a imposição da constante definição
do papel do Estado e das políticas públicas, bem como a subalter-
nidade e exploração das mulheres, especificamente, as mulheres
negras, instiga-nos a debruçar-nos sobre os históricos mitos cria-
dos para tal fim, com a função de atendimento à lógica da repro-
dução do capital, numa profunda relação com as ideias coloniais e
patriarcais.
303
O RACISMO E AS ARTIMANHAS IDEO-POLÍTICAS DE
SUBALTERNIZAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS E POBRES:
ALGUNS APONTAMENTOS
304
indivíduos, a depender do grupo social ao que pertencem. Tais ma-
nifestações se caracterizam na construção das diferenças ligadas
a valores hierárquicos, nas relações de poder, tanto do ponto de
vista histórico, quanto político, social e econômico.
As características do racismo pelos traços fenótipos e estética ne-
gra se mantém na estrutura da sociedade desde os tempos pós
absolutismo, com a expansão do modo de produção capitalista,
sob as rédeas do colonialismo europeu, e se faz prática contra a
população negra de forma institucional, ou individualizada, quer de
forma recreativa, epistêmica, científica, religiosa, ambiental.
Como afirma Silva (2012, p. 13), que mesmo ao questionar o
conceito da raça “considerada separadamente de suas determina-
ções essenciais e tão largamente utilizada ao tratamento do tema”,
aquelas e aqueles que apresentam caracteres raciais diferentes dos
brancos experimentam concretamente os efeitos provocados pe-
las justificações históricas que submetam aos não brancos a condi-
ções de desigualdades e pobreza, “com peculiaridades em tempos
e lugares históricos diferentes” (idem). Para este autor “é inegável
que tais preconceitos raciais penetraram a subjetividade dos indi-
víduos submetidos aos efeitos das condições objetivas e subjetivas
das desigualdades sociais e de classe”.
Desta forma, é possível afirmar que o racismo mantém uma
relação intrínseca com o capitalismo, é de grande interesse ao sis-
tema vigente a permanência dessa forma violenta de subjugar os
não brancos e não brancas, qual seja, a população negra e indíge-
na. Esta, tem resistido bravamente, numa luta histórica contra o
racismo e todas as formas de discriminação e preconceito contra
si, conforme veremos a seguir.
Nesse sentido, dados publicados pela professora Janaí-
na Feijó, no portal da Faculdade Getúlio Vargas indicam que as
condições de vida e saúde das mulheres negras e dos jovens ne-
gros pobres aparecem em condição de maior vulnerabilidade
, situação que agudiza as desigualdades sociais amplamente di-
vulgada, a exemplo das moradias insalubres, do não acesso aos
305
níveis mais altos de educação. A diferença salarial de uma mulher
negra que chega a receber menos da metade do salário em rela-
ção ao homem branco, é de 44%. O Documento aponta que 64%
dos desempregados eram pretos e pardos, demonstrando a desi-
gualdade racial no mercado de trabalho e na educação, e os estu-
dos revelam que tanto as ocupações formais quanto informais, os
trabalhadores brancos recebem consideravelmente a mais do que
pretos e pardos.
Com a pandemia do Coronavírus/Covid-19 iniciada em fins de
2019, a problemática das condições de vida e saúde desse grupo de
pessoas piorou e revelou, mais uma vez, que a pobreza tem gênero
e tem cor. São moradias amontoadas, com um elevado número de
pessoas coabitando num imóvel, em sua maioria, sem saneamento
básico, sem acesso à água potável, em condições insustentáveis de
trabalho. O que dizer da “uberização” dos serviços?
A luta dos movimentos sociais negro, do movimento feminis-
ta negro, dentre outros, contra o racismo, por uma sociedade an-
tirracista no âmbito educacional, pelos dispositivos legais, é a Lei
10.639/03, pela Resolução CNE/CP1/2004, que altera a Lei de Di-
retrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 para o ensino
da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar,
e tem sua versão mais atualizada com a Lei 11.645/08, incluindo a
cultura indígena.
Este ano de 2023 a referida Lei completa seus 20 anos de
sanção, e, embora, os dispositivos legais apresentem avanços na
efetivação de direitos sociais no campo da educação, nos quais im-
plicam a necessidade de reconhecimento da superação de imagi-
nários, representações sociais, políticas, discursos e práticas racis-
tas em qualquer campo social e educacional.
No campo mais direcionado às lutas das mulheres, no ano de
2006 no Brasil foi criado mais um mecanismo para coibir e prevenir
violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei 11.340/2006,
a Lei Maria da Penha, que no artigo 2º estabelece que:
306
[...] Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e
religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa
humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facili-
dades para viver sem violência, preservar sua saúde física
e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social
(BRASIL, 2006).
307
tenta nas ideias da supremacia branca em relação a todos os povos
não brancos.
O racismo estrutural assim como o machismo e a misoginia
nem sempre se revelam pela agressão e violência física, muitas
vezes, apresenta-se rasteiramente, sem uma percepção imediata,
embora incomode a quem sofre, pois, no caso brasileiro, esses fe-
nômenos acontecem pelas regras estabelecidas socialmente pela
elite dominante, nas quais passam a ser naturalizadas, através do
mito da democracia racial (Freyre), levando-nos a crer que não há
racismo no Brasil, com a falsa ideia de que este não é um país ra-
cista, por exemplo.
Em se tratando de tais agressões contra as mulheres, especi-
ficamente contra as mulheres negras e pobres, as inúmeras formas
de exclusão e desumanização do corpo feminino e negro estabele-
cidas pelo patriarcado branco assume formas cada vez mais violen-
tas e cruéis contra esses corpos; mesmo diante das mais variadas
formas de denúncia e lutas engendradas pelos movimentos sociais
negros, do Movimento Feminista Negro e de outras organizações
sociais, políticas e educacionais comprometidas com a desconstru-
ção de mitos, e contra a exploração histórica das classes explora-
das pelo capital.
Traremos a seguir, alguns dados dos últimos anos das violên-
cias como o feminicídio, assim como um conjunto de opressões,
que revelam a denúncia da face tão violenta e perversa contra as
mulheres, especificamente, as mulheres negras, trabalhadoras,
quanto foi em períodos históricos como a escravização e extermí-
nio da população negra na expansão colonial.
308
gráfico abaixo percebemos a proporção de mulheres negras, víti-
mas de diversos tipo de agressão em todos os estados do país.
309
É preciso destacar que em 2019, de acordo com o Atlas da
Violência 66% das mulheres assassinadas no Brasil eram negras.
Conforme os dados apresentados no documento (p. 38):
310
vítimas de outras formas de violência, como a agressão física, emo-
cional, psicológica, econômica e sexual, assim como a violação do
corpo feminino, qual seja o estupro.
311
sistência do objeto de desejo é vista como parte da interação se-
xual normal. Trata-se de uma lógica que animaliza os homens que
simbolicamente ocupam esse pólo ativo (...)” (ANGEL, 2017).
Carneiro (2003) afirma que situações perversas como tal
construção, trata-se da chamada “objetificação do corpo negro”
refere-se à realidade histórica de exploração das mulheres negras,
no qual remete ao conjunto de opressões e violências a partir de
ideias e ações orquestradas na tradição ocidental de atribuições de
comportamento de doçura, fragilidade e dependência das mulhe-
res brancas, ao passo que às mulheres negras seriam atribuídos os
serviços mais pesados e insuportáveis, pois estas deveriam supor-
tar , além de todos os tipos de abuso, sobretudo de ordem sexual,
outrossim as duras jornadas de trabalho em quaisquer campos e
formas de trabalho, aptos à utilização do bruto trabalho (CARNEI-
RO apud PEREIRA, SOUSA & SILVA, 2022).
Ademais, de acordo com a professora Eliane Barbosa da Con-
ceição (2016) outras formas violentas contra a mulher negra são os
lugares que estas não chegam, pois o seu lugar está predetermina-
do pela branquitude que assume espaços de poder, e “relegam às
mulheres negras os lugares e posições menos desejados no mun-
do do trabalho” (CONCEIÇÃO, 2016, p. 280).
A referida autora (2016) ilustra o efeito da desigualdade de
raça e gênero no acesso a direitos fundamentais, como a educa-
ção, bem como ao mercado de trabalho, o tempo de investimento
de homens brancos e mulheres brancas, e estas integrarem o gru-
po que mais possui acesso ao ensino universitário. Ainda assim:
312
Corroborando com as ideias da autora (2016), Paulina Chi-
siane (2013, p. 203) advoga que “nas condições atuais da socie-
dade, se a mulher pretende um reconhecimento igual ao do seu
parceiro masculino, deve trabalhar duas ou três vezes mais”, e que
são as próprias mulheres que devem gritar sobre suas amargurar,
seu pensamento e sentimentos, pois ninguém o fará melhor que a
mulher para falar de si. Chisiane (2013) afirma que quando a mu-
lher sai do lugar que lhe é pré-determinado, muitas vezes, pode
soar escandaloso para o todo social, mas é uma atitude necessária,
mesmo que isso cause “ceptismo e muito desprezo” (2013, p. 203),
além da exaustiva jornada de trabalho que isso possa causar. Nas
palavras da autora (2013):
313
CONSIDERAÇÕES FINAIS
314
ao tripé Estado, Capital e Trabalho Assalariado que assume formas
cada vez mais violentas para permanecer como sistema vigente no
seu contexto de crise estrutural, crise que se arrasta desde os fins
dos anos 1970 (MÉSZÁROS, 2000).
REFERÊNCIAS
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316
ANOTAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE
Flávio de Carvalho
INTRODUÇÃO
318
ponsável pelos programas, ações e políticas de Educação Especial,
Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Es-
colar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação para as
relações Étnico-raciais e Educação em Direitos Humanos. Em seu
lugar, foram criadas duas novas secretarias: a Secretaria de Alfabe-
tização e a Secretaria de Modalidades Especializadas da Educação.
QUESTÃO: Qual o motivo para tal extinção tão célere e tão
dirigida? Como admitir tal arranjo administrativo quando a extin-
ção desta secretaria contrasta com o fato que o Brasil é o país onde
mais se mata pessoas da comunidade LGBTQIAP+ e que figura
como o 5º país com maior índice em termos de violência contra a
mulher e feminicídio.
CENA 2: o cantor brasileiro Johnny Hooker em um festival ar-
tístico na cidade de Garanhus, Pernambuco, afirma: Jesus travesti
sim, Jesus é transexual sim, Jesus é bicha sim! E completou: Viva
Renata Carvalho? (Numa alusão à artista que teve sua peça – Evan-
gelho segundo Jesus Cristo, Rainha do Céu – proibida de ser apre-
sentada no festival do qual também participava o cantor). Jesus
Cristo, rainha dos céus! A arte é pro futuro e esses fundamentalis-
tas não vão passar!
QUESTÃO: o que aconteceria se o cantor em questão houves-
se afirmado que Jesus é heterossexual, é homem com H maiúscu-
lo? Se ele houvesse gritado, Jesus é negro, Jesus é indígena, Jesus
é refugiado, teria tido o mesmo tom dos protestos que se deram
à época (2018). Por que dar destaque para uma característica de
sexualidade costuma pesar tanto na avaliação moral das pessoas?
CENA 3: Texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
com 600 páginas de normatizações sobre a Educação Básica em
nível nacional, considerando-se a Educação Infantil, Ensino Funda-
mental e Ensino Médio, mais de uma década à instrução da apren-
dizagem das jovens e dos jovens no Brasil. Quando da discussão
da redação final do referido documento, alguns cidadãos e alguns
políticos religiosamente pressionaram e religiosamente comemo-
raram a retirada do que eles chamavam de “ideologia de gênero”
319
do texto da BNCC. Tal manobra política de fundo religioso acen-
tuadamente cristão, ainda que o Brasil seja um país declaradamen-
te laico, resultou na publicação de um documento com os seguin-
tes números quando se trata de termos relacionados às questões
de Gênero: três ocorrências para o termo sexo e igualmente três
ocorrências para o termo sexualidade; para o termo gênero foram
notificadas 64 ocorrências, todas utilizadas no âmbito dos estu-
dos de linguagem. Mesmo alguns termos, cuja vinculação com as
questões de Gênero é efetiva, são utilizados para outras situações
ou mencionados de modo genérico, a saber: preconceito, discrimi-
nação.
QUESTÃO: a quem compete e interessa a exclusão dos ter-
mos supramencionados em suas conotações específicas – que não
se trata apenas de uma questão linguística, mas que é iminente-
mente política – no documento? Qual ideologia (ideologia de gê-
nero segundo uma fé específica e hegemônica no Brasil) rendeu
glórias pela conquista da subtração do que se chamava ideologia
de gênero (desassociada de qualquer fé)? Quais sujeitos foram ex-
cluídos do documento? Que tipo de sujeito se quer com o texto do
modo como foi publicado?
320
dade/prazer?
Por sua vez, tais questões nos situam em territórios episte-
mológicos e discursivos interseccionados, férteis, rizomáticos, a sa-
ber: i. o território da conceituação e da subjetivação, no qual con-
seguimos problematizar as relações que se criam entre as criações
conceituais e os modelos de sujeito intencionados; ii. o território da
linguagem e os dispositivos de sujeição, no qual problematizamos
as relações construídas em torno ao uso da linguagem (em suas
mais variadas formas) e os padrões de sujeição (ou não) que elas
comportam; iii. o território da formação dos saberes e das práticas
educativas, no qual questionamos as relações de poder vinculadas
à produção dos saberes e, também, como tais saberes são ado-
tados/transmitidos/mudados/mutilidados nas práticas educativas
escolares e nas não formais.
São muitas as questões, são muitos os territórios, reconhe-
cemos. Impossível tratar de todos dentro do escopo de um único
artigo. De modo que o leitor e a leitora devem considerar este texto
apenas como um ponto de partida para que possam construir seu
próprio itinerário de pensamento. Que este texto possa contribuir
para que o pensamento saia de seu modo de inércia, criando assim
a oportunidade para questionar a trama política da construção
dos saberes (relação poder-saber), o que se constitui já como uma
forma de resistência às hegemonias. O exercício de escrita que
aqui oferecemos não pretende falar ou fazer no lugar de outrem.
Entendemos que a(o) intelectual, a(o) professora(or) pode fornecer
os instrumentos de análise, dos quais ele mesmo faz uso, coerência
entre o agir e o falar (parresia), mas o processo deve ser feito por
cada indivíduo. A(O) intelectual também não pode falar por mera
retórica, apesar de termos aos milhares de vozes meramente retó-
ricas atualmente. Como dissemos, ela/ele não pode falar no lugar
do outro, sob pena de anulação deste outro e assim manter igual
mecanismo de sujeição, de assujeitamento.
Queremos que este texto possa igualmente provocar o leitor
e a leitora para pensar e realizar as desterritorializações e os deslo-
321
camentos conceituais e atitudinais. Entendemos que este exercício
também se mostra como forma de resistência às hegemonias, pois
se trata de recriações, de contracondutas. E que este trabalho pos-
sa acontecer no nível das micro-contracondutas, das revoluções
moleculares, das micro-revoluções, das contestações e das apren-
dizagens domésticas, dos confrontos locais e regionais, dos deba-
tes nos ambientes do cotidiano dos indivíduos (escola, trabalho,
família, templos, sindicatos, etc), dando lugar para a criação das
distopias, das surrealidades, das realidades outras.
322
tancial ou condicionado a estruturas psicofisiológicas, passando a
tomá-la como uma experiência de realização existencial, dinâmica,
mutante e errante. Considerar esta condição a partir de uma esté-
tica do prazer coloca, portanto, em questão qualquer padronização
ou restrição aos diversos modos existir e de se relacionar como ser-
-sexualidade. Decerto que ao adotar essa postura nos colocamos
em confronto com grande número de doutrinas religiosas, cujas
normatizações morais geralmente se fundamentam em critérios
da ordem de uma Natureza ou de uma Substância divinizadas.
Note-se que além do fato que alguns saberes constroem seus
arcabouços explicativos e seus procedimentos a partir de concep-
ções naturalistas, também há aqueles que fazem suas construções
a partir de noções de presença/normalidade frente a ausência/
anormalidade, ou seja, uma vez indicado intencionalmente um ele-
mento como fundamental, a notificação de sua ausência conduz
à indicação de quebra de padrão, logo, de anormalidade. Neste
sentido, denuncia Foucault (2015, p. 7):
323
sos indivíduos e seus modos de ser, de existir e de se relacionar. E
neste sentido, o texto da BNCC quando não se ocupa com a pauta
de Sexualidade e Gênero manifesta o quão limitado e limitador é
seu instrumento de inteligibilidade, pois apesar de não utilizar um
escopo explicitamente heteronormativo e patriarcal, quando se
nega a tratar tal pauta termina por prejudicar ou inviabilizar que a
escola funcione como instrumento questionador e modificador das
condições sociais vigentes no Brasil, onde o sexismo e a heteronor-
matividade estão sedimentadas em todas as relações, discursos e
instituições sociais. Silenciar é também negar e excluir.
Ainda na entrevista que Foucault concedeu encontramos
uma série de afirmações que nos mobiliza a pensar em que me-
dida o sexismo, a heteronormatividade e o machismo constroem
discursos, relações sociais e procedimentos de normatização em
nível de filigrana, isto é, no âmbito dos microdiscursos, das micror-
relações e dos microprocedimentos. A sagacidade do pensamento
foucaultiano nos provoca a construir esta compreensão a partir das
seguintes afirmações (2015, p. 14):
324
(hetero ou homossexuais). Essa reflexão pode nos provocar a pen-
sar que a associação de Jesus ao ser homossexual (como narrado
na cena 2) torna-se também grave para os fundamentalistas reli-
giosos devido ao fato de associá-lo com um modo de ser feminino,
o que contrasta com certa ala da tradição cristã que vincula seu
deus à manifestação exclusiva na forma de um pai e de um filho.
Mas, é preciso que pensemos com Foucault os modos de re-
sistir, as condutas que devem se impor frente às diversas ideias,
instituições sociais e normatizações hegemônicas e totalitárias.
Condutas que ajam de modo propositivo, isto é, oferecendo mo-
dos outros de pensar e de se relacionar, fomentando a construção
de saberes e de espaços de desconstrução e de desassujeitamen-
to. Pensar e construir condutas de resistência, pensar e construir
mesmo microcondutas, que são possíveis de serem executadas
nos ambientes e nas relações do nosso cotidiano.
Neste sentido, selecionamos dois momentos desta entrevista
concedida por Foucault para nos fazer pensar sobre a necessidade
de deslocamento de ideias e de construção de espaços de desas-
sujeitamento.
Em certo momento de sua fala, convoca o filósofo (2015, p.
18):
325
É importante que haja lugares como as saunas, onde, sem
ficar preso, aprisionado na própria identidade, no próprio
estado civil, no seu passado, no seu nome, no seu rosto
etc., seja possível encontrar pessoas que estão lá e estão
para você como você está para elas, nada além de corpos
com os quais as combinações, as fabricações de prazer
mais imprevistas são possíveis. Isso faz parte, em definitivo,
de experiências eróticas importantes, e eu diria que é
politicamente importante que a sexualidade possa funcionar
desse jeito. [...] Lugares nos quais a gente se dessubjetiva;
isto é, se dessujeita de uma maneira, eu não diria a mais
radical, porém em todo caso de uma forma suficientemente
intensa para que esse momento seja importante, finalmente.
326
e libertadora que Foucault reconhecia nas saunas – este lugar ou-
tro onde livremente habitavam subjetividades outras – podemos
pensar e construir lugares outros onde conceitos outros, teorias
outras e metodologias outras são criadas em vista da valorização e
da defesa da vida de todos os seres. A escola e a universidade têm
a potência de serem estes lugares outros, elas podem se constituir
como lugares de desassujeitamento, de deslocamento de ideias e
posturas, de criação e de recriação.
327
devotos?
É preocupante se este distanciamento que a academia pode
assumir (por que pode também não assumir) não esteriliza as re-
lações entre academia e sociedade, e seus efetivos atores sociais.
Questionamos se esta “aura de isenção” não manifesta um modelo
de academia desengajada, vivenciada por sujeitos geniais e desen-
gajados, intelectuais eunucos e assexuados.
Esta situação manifesta algumas questões consequentes que
precisam ser igualmente tratadas: a educação escolar e acadêmica
tem acessado e dado acesso às pessoas e aos problemas de gêne-
ro e sexualidade em seu fluxo real, na complexidade que constitui
a realidade? Estão os grupos e as comunidades não escolares ou
acadêmicas se sentindo representadas nas investigações, nos de-
bates e no ensino formal? Qual o lugar (local físico mesmo, nas sa-
las, nas carteiras, nas mesas de debates) das vozes marginalizadas,
violentadas e silenciadas devido às questões do ser-sexualidade
ao longo da história? Que tipo de sujeito e também de sujeição a
academia e a escola constroem? Qual sujeito e relação de poder
mantemos nos ambientes escolares e universitários?
Outra revisão/ação possível diz respeito à relação entre discur-
so religioso e sexualidade. Qual o lugar epistemológico da sexua-
lidade (e igualmente da corporalidade e do prazer) na construção
do discurso religioso e teológico? Qual a pertinência da discussão
acerca do gênero das deidades? A quem interessa construir uma
civilização cuja deidade se manifesta sobre a égide masculina (fáli-
ca, heteronormativa, patriarcal) afirmando se tratar de um processo
“natural”, normatizando assim as existências individuais e coletivas?
Qual tipo de sujeito se pretende construir quando se venera um
deus que é pai, quando se narra a história de seu herdeiro marti-
rizado mas ressuscitado, depois de viver uma vida austera e casta,
a despeito de que historicamente ele viveu numa sociedade em
que os homens por costume casavam relativamente cedo? Porque
tantas outras sociedades e civilizações inteiras falam de seus deu-
ses vivendo experiências corporais e sexuais, as quais culminam
328
sua potência divina criadora? Enquanto não conseguirmos falar da
sexualidade de deus, questões importantes que envolvem machis-
mo, controle, sujeição, permanecerão cobertos sob o véu do sa-
grado e impedindo que alguns corpos “profanos” tenham acesso
à dignidade individual de existir e de sentir a vida como se é, ou
melhor, segundo as infinitas possibilidades de ser, de existir e de
sentir a vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
329
primária às revisões/ações nos âmbitos sociais e educacionais em
que nos inserimos. Portanto, conhece-te a ti mesmo, conhece-te
ao teu próprio prazer.
REFERÊNCIAS
330
COISA DE MACHO: AS MASCULINIDADES REVERBERADAS
ENTRE JOVENS ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO DE UMA
ESCOLA PÚBLICA NA CIDADE DE CAMPINA GRANDE-PB
INTRODUÇÃO
332
preto, alto/baixo, úmido/seco, dominador/dominado, homem/mu-
lher.
Constroem-se estruturas hierarquizantes e, a partir delas, ar-
tefatos ou eventos que deveriam serem repudiados, mas são trans-
mutados para o contexto cultural, cujo apelo de uso constante e
cotidiano faz com que o “normal” – ainda que injusto ou cruel” – se
torne “norma”, portanto, socialmente aceitos, já que passam a falsa
ideia de que são eventos “naturais”, logo se perpetuando uma or-
dem social pré-estabelecida.
333
determinada forma, ensinando-os a desenvolver automaticamen-
te papéis designados socialmente para os gêneros e a obedecer à
ordem do “natural”, sem questionar.
Os processos de dominação social agem sutilmente sobre o
corpo, operando uma espécie de mágica, capaz de ajustar e mo-
delar os seus contornos. Isso pode significar que “a masculinida-
de não é a mera formulação cultural de um dado natural; e que a
sua definição, aquisição e manutenção constitui (sic) um processo
frágil, vigiado, auto-vigiado e disputado” (ALMEIDA, 1996, p. 163).
Desde pequenos, os meninos são educados, estimulados, prepa-
rados para a ideia de que “meninos não choram”, pois devem ser
fortes e viris. Ao longo do tempo, esses elementos simbólicos (pos-
tos em movimento através do macaco mecânico) vão se incorpo-
rando como disposições permanentes de percepção e ação e se
integram de diferentes maneiras às dimensões dos corpos (BOUR-
DIEU, 2020).
Essa relação se apresenta de diversas formas na sociedade,
uma delas é percebida na estrutura de linguagem (simbólica) que
reafirma essa oposição dos gêneros masculino e feminino, como
destacou Ferreira (1986 apud GUEDES1995, p. 5): “a espécie huma-
na se comunica e estabelece linguagens, sejam faladas, escritas ou
gestuais, constituindo-se em representações sociais”. Assim, a lin-
guagem seria uma grande aliada na produção e reprodução desse
sistema binário apontado por Bourdieu (2020).
Bourdieu (2020, p. 26) também afirma que “o mundo social
constrói o corpo como realidade sexuada e como depositório de
princípios de visão e de divisão sexualizantes”. Características bio-
lógicas diferentes entre macho e fêmea são usadas para naturalizar,
por meio de narrativas míticas, as violências simbólicas vivenciadas
por mulheres, fortalecendo essa estrutura dicotômica segundo a
qual o masculino se sobrepõe ao feminino.
Podemos comparar as duas descrições acima. Ambas são
modelos de corpos socialmente sexualizados, entretanto, pode-se
observar o que foi construído acerca de cada um deles e perce-
334
ber as diferenças existentes na relação de poder que o masculino
vai exercer. A ele cabem ações ativas, pois que deve estar sempre
atuando, produzindo, buscando, construindo, pondo em prática
sua virilidade. O feminino, ao contrário, é um agente passivo, corpo
receptor, que espera para acolher, supostamente incapaz de exer-
cer atividades que pressuponham ações relacionadas à produção,
construção etc., ou mesmo que sejam para sua própria defesa. So-
bre tal apelo de subordinação, o autor destaca, no texto, expressa
seu desacordo: (BOURDIEU, 2020, p.53) “como se a feminilidade
fosse à arte de se fazer pequena”.
Os estudos de Bourdieu sobre a dominação masculina so-
frem, no entanto, algumas críticas de outros estudiosos os quais
dizem que o sociólogo usou como objeto de análise características
da sociedade ocidental, sem levar em consideração a universalida-
de e a temporalidade. Em outras palavras, Bordieu teria generali-
zado toda a sociedade ocidental de modo uniforme, sem observar
a diversidade de grupos sociais (CORRÊA, 1999). Em resposta aos
estudos de Bourdieu, outros autores se apresentam propondo no-
vos caminhos para analisar as diversidades existentes nas realida-
des sociais quanto às masculinidades.
Segundo Almeida (1996), existe um caráter móvel na masculi-
nidade levando em consideração a variabilidade individual, crian-
do tensões entre a masculinidade hegemônica e a subordinada.
A partir do pensamento defendido pelo autor, percebe-se que a
subjetividade da masculinidade pode variar de acordo com o indi-
víduo, do lugar onde este se encontra, das suas experiências vivi-
das ao longo de sua vida, diante de determinada situação ou nas
relações com os outros homens e mulheres.
Vale chamar a atenção para um detalhe: via de regra, tem-se
tratado de “masculinidade” como algo único, sem possibilidade de
diferença entre os indivíduos que se revestem da função (ou lu-
gar imagético) de “homem”. Esse conceito de masculinidade – no
singular – passou a ser criticado por outros autores, como aponta
Connell: “[...] para Petersen Collier e Macinnes, o conceito de mas-
335
culinidade é falho porque ele essencializa o caráter dos homens ou
impõe uma unidade falsa a uma realidade fluida e contraditória”
(CONNELL, 2013, p. 249). Essa imposição falsa de unidade nega
que a masculinidade seja fluida, estando em um processo de mu-
dança, em constante transformação, trazendo à tona uma leitura
heteronormativa de gênero.
A construção social da dominação masculina não é reprodu-
zida apenas pelos indivíduos “mas também pelas instituições que
compõem as estruturas sociais como família, igreja, escola e Es-
tado” (BOURDIEU, 2020, p. 64). Essas instituições são responsá-
veis pela reprodução da ordem, pela construção dos corpos e pela
manutenção da dominação masculina, cada uma delas desempe-
nhando um papel importantíssimo para essa estabilidade social.
Almeida (1996) aponta outro fator sobre as masculinidades
que é a homossocialibilidade, elemento destacado em seus estu-
dos sobre a comunidade portuguesa. Trata-se das relações sociais
entre homens, como a admiração pela força do outro, pelo poder
político ou econômico, por posses e bens, assim como pela família
(extensa) e filhos bem abastados financeiramente. O antropólogo
também cita os “lugares masculinos”, espaços onde vários tipos de
homens se encontram para conversar, trocar ideias e experiências
– um ponto de encontro de várias masculinidades (no plural), que
vai abranger homens jovens e idosos, ricos e pobres, de raças e
religiões diferentes.
Esse lugar onde se encontram vários homens seria um recor-
te no qual se apresentariam os marcadores das interseccionalida-
des presentes nas masculinidades. Segundo Crenshaw, intersec-
cionalidade é:
336
dades básicas que estruturam as posições relativas de mu-
lheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, 2002, p.
177)
337
separação não se dá apenas pela idade, mas também pelo sexo,
gênero e pela classe social na qual aquele indivíduo está inserido.
Um elemento que, além de seu gênero, surte grande efeito sobre
o jovem é o meio social em que ele vive.
Sabe-se que existem vários grupos de jovens, diversos inte-
resses envolvendo esses grupos, e os relacionamentos com outras
pessoas de diferentes faixas etárias se tornam desigual, pois pes-
soas da mesma idade possuem histórias, realidades, classes sociais
e interesses distintos. A idade biológica não é descartada, mas ela
não deve ser usada de forma isolada, para medir ou comparar as
juventudes, e sim junto a outros elementos presentes, como a clas-
se social, a cultura, a religião, os interesses, os ideais e as condições
materiais de existência.
Divergências de classes, gênero e cultura se apresentam junto
às juventudes, principalmente no cotidiano escolar. Umas das maio-
res diferenças existentes entre jovens burgueses e jovens operários
está relacionada ao tempo em que esses jovens permanecem na
escola. Os jovens da elite aproveitam sua juventude para dedica-
rem-se ao ensino secundário. O jovem operário não consegue viver
a fase da adolescência porque, assume o papel de adulto, abando-
na a escola prematuramente para trabalhar e ajudar nas despesas
da família ou para sua própria manutenção Bourdieu (1978).
Weller (2007) apontou alguns elementos para compreender
a problemática sociológica das juventudes, os quais se apresen-
tam nas novas gerações. “Mannheim chama a atenção para o fato
de que diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores dife-
rentes em um mesmo período cronológico” (WELLER, 2007). Para
o autor, é possível que uma geração, vivendo o mesmo período
cronológico, vivencie tempos interiores diferentes, a partir das suas
experiências cotidianas, como, por exemplo, as realidades de dois
jovens que vivem em determinadas comunidades, ou grupos com
características distintas – todos, provavelmente, realizarão e mani-
festarão práticas e interesses diferentes entre si.
Manheim acrescentou que “[...] el problema generacional se
338
transforma en el problema de la existencia de un tiempo interior
no mensurable y que solo se puede comprender como algo pura-
mente cualitativo” (MANHEIM, 1927:199/516 apud WELLER, 2007,
p. 3). Os problemas das gerações se transformam em problemas
existenciais por serem subjetivos, o tempo é interno. Para enten-
der a situação geracional de uma sociedade contemporânea em
constantes mudanças, o sociólogo das juventudes, Weller, aponta
5 características de cada geração:
339
Uma das estruturas com maior poder dentro da nossa socie-
dade é a patriarcal, formando uma relação antagônica entre o femi-
nino/masculino, preto/ branco, claro/escuro, alto/baixo e homem/
mulher. Nessa estrutura, o feminino é inferiorizado e o masculino é
superestimado. O masculino remete ao poder, e o feminino à sub-
missão:
340
das das gerações anteriores, sendo-lhes repassadas nas relações
cotidianas (brincadeiras, comportamentos, conversas e ações)
presentes na família, na igreja e na escola. Algumas dessas práti-
cas continuam sendo reproduzidas fielmente, de acordo com as
orientações da estrutura outras, no entanto, sofreram algumas al-
terações, orientadas por elementos do tempo e do espaço em que
esses jovens vivem.
Neste breve ensaio nos interessa investigar as característi-
cas da estrutura patriarcal, exteriorizadas através das práticas de
masculinidades na contemporaneidade. Na tentativa de problema-
tizá-las, recorremos a uma pesquisa qualitativa, com o intuito de
identificar quais as práticas de masculinidades são vivenciadas por
jovens estudantes do Ensino Médio, de uma escola pública na cida-
de de Campina Grande-PB, e, em seguida, analisar essas práticas
a partir dos conceitos abordados anteriormente, de juventudes, de
masculinidades, de estrutura e de práticas sociais.
A escola é uma das principais instituições, quiçá a maior aliada
das estruturas sociais vigentes. Ela constrói e demarca seus usos.
As/os jovens vão ocupando e demarcando seu espaço dentro des-
sa realidade, dando origem a novas práticas e reproduzindo outras
que foram adquiridas durante os processos que vivenciaram ao
longo de sua vida e herdaram de outras gerações. Elas/es incor-
poram de forma inconsciente e naturalizadas as estruturas cons-
truídas historicamente sobre o masculinino e o feminino, sobre as
masculinidades e feminilidades. Alguns elementos dessas estrutu-
ras permanecem até hoje de maneira fragmentada, se apresentan-
do de modo parcial nas relações sociaiscontemporâneas.
Para tentar nos aproximar o máximo possível das subjetivida-
des dos participantes e, a partir daí, identificar, em seus relatos, as
práticas sociais de masculinidades vividas no seu dia a dia no am-
biente educacional, fizemos uma Roda de Conversa com 02 alunos
e 02 alunas do 3º ano do Ensino Médio de uma determinada es-
cola pública, na cidade de Campina Grande-PB. Como não há es-
paço neste ensaio para sua reprodução integral, vamos reproduzir
341
apenas algumas das falas dos participantes. Comecemos pela fala
de E1:
342
É percebido pelo aluno que existem diferenças entre os com-
portamentos dos jovens marcadas pela diferença de gênero. Para
o E1, os rapazes reproduzem comportamentos “bestas” que estão
relacionados ao uso da força. Como relatado durante a roda de
conversa, é normal, em suas brincadeiras, o uso da força física, em-
purrões e ou xingamentos os quais deixam suas marcas de forma
mais subjetiva, que podem causar desconforto, traumas físicos e
psicológicos nos rapazes e nas moças.
Essas práticas sociais vivenciadas pelos jovens cotidianamen-
te são acompanhadas pela “violência simbólica”, se apresentando
em forma de bullying, , como descreve E2 “Sim, ás vezes aquele
tipo de homem machista, que vê um gay como um comportamen-
to diferente, vai praticar bullying ou até agreções físicas”.
Como se pode perceber no relato feito por E2, algumas expe-
riências cotidianas são compostas de “violências simbólicas”, repro-
duzidas de forma inconsciente, através de brincadeiras característi-
cas da estrutura patriarcal que se reinventa e exerce sua influência
nas relações desses jovens através dos comportamentos e práticas
machistas, violentando mulheres e homens que se distanciam do
padrão heteronormativo, ou seja, aqueles que exteriorizam mascu-
linidades diferentes da que a estrutura patriarcal exige.
Assim como os rapazes apresentam determinados comporta-
mentos, as moças também apresentam os seus, que são indicados
como “comportamentos mais delicados”, voltados mais para con-
versas informais sobre as relações cotidianas. Como é descrito no
comentário de E3:
343
conversas que escuto pelos corredores é sobre maquiagem...
sobre o menino que ficaram semana passada e essas coisas,
e eu não consigo ficar nesse tipo de conversas, geralmente
eu sou mais amiga dos meninos [...] .
344
são muito mais tranquilos. (E1)
O comportamento desses jovens muda de acordo com o lu-
gar onde eles se encontram e conforme as companhias em sua
volta naquele determinado espaço, também se levando em consi-
deração sua faixa etária e gênero. Como apontado na fala acima,
está claro que existem diferenças nas práticas sociais apresentadas
pelos alunos quando ocorre o encontro entre os grupos. Os modos
dos rapazes são afetados pela presença das moças, principalmente
quando há a intenção do flerte. Gestos e conversas que cotidiana-
mente são mais agressivas/grosseiras, brincadeiras pesadas volta-
das ao uso da força física e bullying tornam-se mais leves, atrela-
dos à paquera e à conquista.
Relatos semelhantes foram realizados durante a roda de con-
versa por outros participantes, como a narração a seguir:
345
aliada na transformação das práticas e comportamentos. Essa fala
nos desperta para a influência da chegada dos meios de comuni-
cação e as novas formas de se relacionar em sociedade. Apesar de
as informações terem maior alcance hoje em dia, devido ao avanço
da tecnologia, os recursos de acessibilidade ainda são tidos como
privilégio para alguns e exclusão para outros, como relatou E2:
346
Em sua compreensão, os comportamentos vivenciados pelos
jovens no cotidiano escolar reproduzem as relações educativas ad-
quiridas com sua família. Alguns desses comportamentos e ideias
são subjetivados pelas/os jovens desde a infância notadamente in-
fluenciados pelas normas/regras do meio familiar.
A família traz sua forte contribuição como primeira instituição
formadora, responsável por ajudar a reproduzir as características
da estrutura patriarcal. Na fala de E3, por exemplo, fica evidente
que sua educação familiar não se distancia da educação familiar
padrão/heteronormativa, sendo alcançada por essa forte influên-
cia da estrutura que reproduz, dita papéis os quais devem ser assu-
midos pelos homens e pelas mulheres, sendo direcionadas deter-
minadas atividades para os meninos e outras para as meninas. Na
sua outra fala E3 afirmou:
347
Está claro que, no discurso acima, a noção de masculinidade
vem sendo repensada pelo jovem, pois, apesar de ter sido educado
nesse processo conservador da masculinidade padrão, ele abre es-
paço e apresenta novas reflexões. Isso provavelmente deve acon-
tecer com muitos outros sujeitos que não se identificam com teo-
rias e posturas conservadores e acabam se dando conta de que há
outras formas de perceber o masculino ou de formular novas prá-
ticas de masculinidades. Assim, embora hora ou outra reproduzam
comportamentos que vão de encontro a suas próprias crenças, dão
abertura a novos caminhos, reconhecendo outras masculinidades
que não se enquadram no modelo hegemônico transmitido pela
estrutura familiar e reproduzido pela estrutura escolar.
Assim como é defendido por Connell (2013, p. 274), “A produ-
ção e a contestação da hegemonia em ordens de gênero historica-
mente mutáveis são um processo de enorme importância para o
qual continuaremos precisando de ferramentas conceituais”. Para
Connell, essas transformações nas relações se tornam uma ques-
tão a ser problematizada dentro das estruturas sociais e no meio
científico, por ressignificarem as relações entre os indivíduos e suas
práticas de masculinidade desenvolvidas na interação com seus fa-
miliares e na escola.
348
da estrutura patriarcal que reforçam o ideal de virilidade, força e
separação entre o feminino e o masculino, reproduzindo violências
simbólicas instituídas historicamente pelo patriarcado.
Também é possível perceber que, conforme bem explici-
tamas teorias sociais sobre a masculinidade, esta não pode ser
compreendida como um modelo padrão ou que deve ser analisada
apenas como algo relacionado ao masculino e universal, mas sim
como masculinidades de forma plural, respeitando-se as diversas
formas de relacionamento e de pertencimento ao mundo, ten-
do-se, portanto, o entendimento de que essas práticas não são
exclusivas apenas para homens heterossexuais, mas também são
reproduzidas por homens gays, mulheres (cisgênero, transexuais,
heterossexuais e lésbicas) em seu cotidiano.
Para compreender as masculinidades existentes na contem-
poraneidade, é necessário ir além da universalização proposta por
Bourdieu, que a padroniza expondo apenas um tipo de masculini-
dade hegemônica, limitado a um recorte social de um determina-
do espaço, tempo e cultura. Na tentativa de compreender a mas-
culinidade como algo singular, o sociólogo acaba unificando-a e se
colocando como um analista, como se isento das interferências do
meio em que está inserido e da própria masculinidade subjetiva
em si.
É necessário trazer à tona novas críticas e estudos, para que
possamos romper com essa visão arcaica. Deve-se problematizar
criticar e partir em busca da superação, como foi proposto por ou-
tros autores, como Correia, Almeida e Connell. Sabe-se que o pes-
quisador traz, subjetivadas em si mesmo, características da época
e do lugar em que vive, adquiridas ao longo de suas experiências
de vida (casa, família, igreja, trabalho e comunidade). Assim, todos
os indiiiduos que vivem na sociedade sofrem interferência das es-
truturas sociais, no nosso caso, do patriarcado, e, embora se tente
descontruí-la, em algum momento seus resquícios se manifesta-
rão.
Os relatos feitos pelos/as entrevistados/as nos ajudam a per-
349
ceber que as práticas de masculinidades tóxicas ainda se fazem
presentes em suas relações diarias. Esses jovens as percebem e
passam a problematizá-las, tentando construir novas formas de se
relacionar em sociedade, atualizando suas práticas de masculinida-
des e fomentando as relações saudáveis.
Esse estudo nos ajuda a medir quanto algumas práticas de
masculinidades relacionadas à violência de gênero ainda se repro-
duzem na escola, vivenciadas por homens e mulheres no seu dia
a dia, causando seus impactos positivos e negativos nas relações
sociais.
A escola é uma das principais instituições responsáveis pela
formação dos indivíduos. Assim sendo, cabe a ela um papel fun-
damental na formação das subjetividades dos que a frequentam.
Além disso, por ser um espaço de construção de conhecimento,
a escola é uma aliada no combate às violências contra a criança,
o adolescente e a mulher, como está prescrito na Lei 9.394- 1996
para a Lei Nº 14.164, de 10 de junho de 2021:
350
escola hoje tenha aberto um espaço para o debate contra os tipos
de violência existentes na sociedade, sua estrutura ainda é mui-
to conservadora e fechada para novos debates, principalmente no
que diz respeito à diversidade de gênero e sexualidade.
O tema abordado no artigo traz grandes contribuições no
meio acadêmico e, consequentemente, benefícios à sociedade ao
ser trabalhado problematizando-se a realidade de jovens, já que
a escola é um espaço de encontro de diferentes pessoas que tra-
zem consigo um pouco das suas realidades, suas concepções de
mundo e subjetividades, as quais passarão por mudanças ao longo
de sua vida. Sendo assim, a escola tem um papel fundamental na
sociedade: o de formar indivíduos críticos e reflexivos, capazes de
tomar suas próprias decisões, de questionar o que lhes é imposto
pelo mundo ainda heteronormativo e patriarcal, criando um espa-
ço baseado no respeito e na empatia, sendo uma forte aliada no
combate às violências de gênero.
Este trabalho não se encerra em si mesmo, uma vez que é
apenas um recorte sobre o que vêm a ser as masculinidades na
sociedade contemporânea. Ainda assim, vemos que é passível de
contribuir para a construção do conhecimento nas áreas de debate
e estudos de gênero, sexualidade e cultura, por meio das discus-
sões interdisciplinares.
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352
SABERES INTERGERACIONAIS DA ARTE DO BARRO NA
COMUNIDADE TRADICIONAL DE CERAMISTAS
CHÃ DA PIA, AREIA-PB
INTRODUÇÃO
354
(2000), que a atende como uma criação coletiva de ideias, valores
e símbolos de uma comunidade.
Cremos que construção cultural de um povo não existe e nem
ocorre de maneira isolada, e sim coletiva. Neste contexto, Almei-
da (et al., 2013) inserem a perspectiva dos saberes da tradição, os
quais são transmitidos dos mais velhos para os mais novos de ida-
de, dentro de uma comunidade tradicional, por meio da oralidade
e de maneira experimental.
A tradição da técnica primitiva permanece resistindo às no-
vas tecnologias. As mulheres desta comunidade são guardiãs dos
saberes da tradição. Elas ressignificam o barro como símbolo de
sobrevivência e resistência cultural e tradicional, além da vida delas
mesmas e da comunidade como um todo.
Os saberes da tradição são singulares de uma determinada
comunidade. (SEVERO; ALMEIDA, 2011). Os saberes da tradição,
de qualquer povoado tradicional, merecem ser respeitados, dentre
vários aspectos, destacamos o fato de não existirem saberes me-
nores ou maiores; mas sim uma diversidade de saberes, igualmen-
te relevantes na representação da cultura de um povo.
355
mente até a conclusão da pesquisa, de modo espontâneo e volun-
tário.
PLANEJAMENTO DO ESTUDO
356
objetivo de organizar os dados. Em seguida, eles foram tabulados
na plataforma Microsoft Office Excel 2016, para realizar a análise
quantitativa.
Os participantes da pesquisa foram identificados por meio do
código alfanumérico Lxx (L de loiceira; xx se trata da ordem dos
participantes entrevistados, de 01 a 07), mantendo o anonimato.
As falas dos entrevistados foram transcritas com o auxílio de um
programa de transcrição de áudio.
CATEGORIAS DE ANÁLISE
357
tantes na transmissão destes saberes da tradição, porque não exis-
te nenhum tutorial escrito ou em vídeo de como produzir as peças
de barro.
A Categoria empírica Cultura surgiu da leitura da correlação
entre o referencial teórico e as falas dos entrevistados. O saber-fazer
local engloba as maneiras próprias dos nativos desta comunidade
nomearem a matéria prima (barro de loiça) e os modos de utilizar
os instrumentos de modelagem para resultarem em artefatos de
barro, a exemplo de peças figurativas e utilitárias. Esta cultura, no
tocante a comunidade de Chã da Pia, receberam como herança
(SEVERO; ALMEIDA, 2011), agregando o saber-fazer, valorizan-
do a cultura e identidade local (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE
AREIA, 2014).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
358
queima das peças identificamos elementos intimamente relaciona-
dos com os saberes da tradição, os quais se apresentam como sa-
beres intergeracionais. Alves (2004), Brasil (2007), Barros (2018),
Almeida e Dantas (2020). Observamos que, em Chã da Pia, a prá-
tica e a oralidade são fundamentais na transmissão dos saberes da
tradição; pelo fato de que não se conhece a existência de alguma
descrição do passo a passo dos saberes da arte com o barro (Fo-
tografia 1).
Fonte: os autores.
359
tes ensinamentos são transmitidos de geração a geração. As falas
de algumas das participantes relatam o que está transcrito abaixo
ipsis litters:
360
aprendi com minha mãe que tem 74 anos minha mãe apren-
deu com minha vó de geração em geração. (ENTREVISTA-
DA L06).
361
bém me fizeram refletir sobre o papel materno nesta transmissão
(Gráfico 1), porque 57% foi predominante o termo “mãe” quando
foi perguntado aos participantes com quem aprendeu os saberes
da tradição. Na fala do participante L06 ressalta isso, mostra que
aprendeu com a mãe, e essa com a avó da participante. Ela reco-
nhece que estes saberes são transmitidos de geração a geração.
Isso corrobora com o conceito do saber da tradição que os autores
Almeida (et al., 2013) descreveram. Eles receberam a cultura do
barro como herança (SEVERO; ALMEIDA, 2011).
O processo de transmissão deste saber é primordial para a
sua existência. Foi questionado aos participantes, se eles ensina-
riam este saber tradicional (Gráfico 2). Dentre esses, 43% respon-
deram que sim, ensinariam o saber tradicional do artesanato com
o barro, 28% disseram que talvez, e 29% disseram que não. Isso
remete a categoria empírica Saber da Tradição e Cultura. O resul-
tado foi um fôlego na manutenção desta tradição, porque os que
responderam talvez tem algumas condições afirmadas por elas: “se
quiserem... se interessarem... se não souberem”. Por tanto, algo a
ser considerado ponto positivo.
362
As falas dos participantes desta pesquisa mostram que todos
eles aprenderam este ofício quando eram crianças. Só dois parti-
cipantes mencionaram as idades, entre 9 e 13 anos. No tocante a
entrevista, não foi mencionado a presença masculina na transmis-
são e recepção dos saberes da tradição. O modo singular local de
nomear o barro como barro de loiça, a utilização de instrumentos
rudimentares para modelarem as peças, são próprios do saber lo-
cal.
A coleta do barro de loiça é na própria comunidade, em bar-
reiros, com auxílio de uma enxadinha (nomeada localmente por
eles). O transporte para as próprias residências é com o auxílio de
baldes e bacias de plástico, e muitas vezes carregadas na cabeça
ou até em automóveis de alguém conhecido. A matéria-prima é
acondicionada no chão, ao lado da própria casa, e coberta por lona
plástica, aguardando o próximo passo: quebrar e umedecer o bar-
ro com água.
O barro é amassado, retirando impurezas, a exemplo de frag-
mentos de rochas e raízes, até transformar em uma pasta homo-
gênea.
Posteriormente, as peças serão moldadas, partir daí o barro
vai tomando forma de uma peça artesanal única, confeccionada
sem ajuda de torno ou algum maquinário que possa auxiliar nisso.
Em seguida, ele segue para a secagem ao sol e, posteriormente,
queima no forno à lenha (ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DE AREIA,
2014).
363
Fotografia 3 - Processo de queima das peças de barro, na
comunidade rural tradicional de Chã da Pia,
Areia-PB. Ano: 2021
Fonte: os autores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
364
da nos dias atuais: os homens na queima das peças e as mulheres
nos processos criativos. Algumas mulheres demonstraram explici-
tamente a vontade de realizar a queima das peças de barro.. Foi vi-
sualizado, in loco, uma mulher realizando sozinha a queima destes
artefatos de barro.
A prática milenar da técnica primitiva e tradicional do artesa-
nato, assim como o da agricultura de subsistência, convivem em
equilíbrio com as tecnologias da modernidade. Até quando isso
será mantido? Ainda é difícil de afirmar.
É sugerido estudos de monitoramento, com a finalidade de
contribuir para que os saberes da tradição da comunidade rural
tradicional de Chã da Pia não sejam perdidos no tempo, caso con-
trário, só apreciaremos algo deste tipo por meio de fotos e em mu-
seus.
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366
A RELEVÂNCIA DE ANIBAL PONCE PARA A COMPREENSÃO
DO COMPLEXO EDUCATIVO
INTRODUÇÃO
A permanência.
Que se torna referência e influencia
novas gerações.
Que fica inesquecível.
Aquela obra que a cada vez que se olha,
surpreende, não envelhece.
A obra que fica na memória,
que não se esquece.
(Ascânio MMM, 2008, p. 197)
1
Licenciada em Matemática pela Universidade Estadual do Ceará (2007). Licenciada em Pedago-
gia pela Universidade Estadual do Ceará (2000). Mestra em Educação pela Universidade Estadual
do Ceará (2014). Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual do Ceará. Pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade - GPTREES. Atualmente é Professora
atuando na área técnica da Prefeitura Municipal de Fortaleza.E-mail: amsidou@gmail.com.
2
Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará (2010). Mestra em Educação
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará (2013). Doutora
em Educação Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Ceará (2020). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação, Estética e Sociedade
- UECE; do Grupo de Pesquisa Ontologia Marxiana e Educação - UFC; do Grupo Interdisciplinar
de Estudos e Pesquisas Sobre Educação, Emancipação, Sociedade e Sertão - IFCE e do Grupo de
Pesquisas e Estudos Ontológicos - IFCE. É professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Ceará - IFCE, na subárea Fundamentos da Educação, Política e Gestão Educacional.
E-mail: adele.araujo@ifce.edu.br Lattes
de cada período, desenvolvida por Ponce na obra em referência.
Ponce, através da referida obra, cuja primeira edição da tradução
brasileira data de fins de 1963, apresenta a história da educação
desde a comunidade primitiva; segue pela educação do homem
antigo, passando pelo feudalismo, até alcançar a educação do ho-
mem burguês. Considerando a nova educação, Ponce discorre so-
bre a luta em torno da educação no período da Revolução France-
sa, quando surgem duas correntes que pretendem dar solução aos
problemas educacionais.
O autor, ao analisar estas duas correntes pedagógicas, alerta
que os problemas educacionais não estão relacionados às técnicas
ou à cultura, como sugerem as duas correntes, mas à relação entre
educação e luta de classes, entre os interesses da classe dominan-
te e a classe dominada. Ressalta-se, ademais, que a obra, um ano
após sua tradução para o português, foi recolhida, em decorrência
do regime militar, sendo reeditada vinte anos após o seu lança-
mento.
Para o desenvolvimento da temática, opta-se metodologica-
mente por iniciar a exposição pela tese de que a obra em tela se
constitui em um importante referencial para aqueles que preten-
dem compreender a história da educação, bem como sua relação
com o contexto histórico de cada período. Em seguida, expõe-se
sinteticamente a trajetória política e intelectual do autor.
368
a finalidade de garantir a universalização do conhecimento que um
dia foi produzido pelo indivíduo, mas que passou a pertencer ao
desenvolvimento do gênero humano, como um construto da his-
tória da humanidade.
O século XX, no qual se situa Ponce, foi marcado por uma
pluralidade de ideias novas para o campo educacional. De acordo
com Luzuriaga (1985), é complexo definir a especificidade princi-
pal da educação do período aqui destacado, contudo é admissível
considerar que o caráter comum desse tempo é a democratização
do ensino. Por outro lado, no debate sobre a Pedagogia da essên-
cia e a Pedagogia da existência, Suchodolski (2002, p. 69) asseve-
ra que no século XX “concretizaram-se algumas esperanças, mas
deram-se também grandes desilusões. É neste contraste, precisa-
mente, que se manifestava a antinomia fundamental da educação
no mundo moderno”.
Ponce estava inserido numa dinâmica que buscava estabe-
lecer novos fundamentos para a educação e que centrava o foco
no sujeito. Diante dessa perspectiva, do que é o complexo da edu-
cação e de como este se desenvolve no percurso histórico-social,
entende-se que a obra de Anibal Ponce busca contribuir no pro-
cesso de compreensão da educação enquanto um complexo fun-
damentado no trabalho, considerando a luta de classes. Não por
acaso, o autor apresenta o desenvolvimento histórico da educação
a perpassar o modo de produção de cada período, oferecendo ao
leitor a possibilidade de entender a educação também no contexto
atual.
Apesar de toda a contribuição dada por Ponce com a obra
supracitada, ele não recebeu da Academia o devido lugar no que
se refere à sua contribuição no estudo da história da educação,
conforme se demonstrará a seguir, em análise empreendida por
Décio Gatti Júnior (2012) acerca dos manuais estrangeiros traduzi-
dos para o português que trataram da História da Educação (entre
os anos de 2000 a 2008) e que alcançaram o maior número de
indicações de leitura entre as obras constantes nos programas da
369
disciplina de História da Educação de 55 cursos de graduação, as
quais se resumiram a quatro obras, a saber: História da Pedagogia,
de Franco Cambi; História da Educação: da Antiguidade aos nossos
dias, de Mario Alighiero Manacorda; História da Educação e da Pe-
dagogia, de Lorenzo Luzuriaga; e História Geral da Pedagogia, de
Francisco Larroyo.
Entre esses não foi citada a obra de Anibal Ponce, Educação
e Luta de Classes, apesar das inúmeras contribuições desta para
o entendimento desse tema. Veja-se, por exemplo, o que expõe
Saviani (2013, p. 42) sobre a referida obra: “(...) talvez o primeiro
texto que se empenhou em analisar as relações entre a educação e
a estrutura social de classes, de forma sistemática e em perspectiva
histórica (...), revelando grande erudição e apoiado em inúmeras e
diversificadas fontes”. Conclui que:
370
respostas, até mesmo acerca das questões concernentes ao capi-
talismo no contexto atual.
Nesse sentido, Lukács (2018, p. 219) na esteira de Marx con-
cebe o seguinte adágio:
371
Por último, destaca Pereira (2010) que esta obra é um livro
síntese e, portanto, menos cansativo e mais interessante, sem, con-
tudo, ser superficial. É uma obra que pode interessar tanto o
372
Historicamente, no caso, não há homens pérfidos, oportu-
nistas, traidores e farsantes realizando tarefas políticas com
a intenção primeira de prejudicar os trabalhadores; há ho-
mens propondo soluções para os problemas humanos de
seu tempo sob sua perspectiva de classe.
373
econômica.
Nos pontos que seguem abaixo, apresentam-se questões im-
portantes sobre a vida política e intelectual de Anibal Ponce, se-
guindo o estudo da obra aqui destacada. Intenta-se apresentar
cada período histórico de modo sintético, prezando pelos aspectos
que se referem à contextualização histórica, à essência humana e à
relação indivíduo-sociedade, bem como à finalidade social da edu-
cação.
374
COBOINIK, 2007, p. 176).
Começa a interagir com estudantes e trabalhadores; viaja a
diferentes países, tais como França e União Soviética, e esta prática
se concretizará, conforme Woscoboinik (2007, p. 178),
375
do pelo referido autor. Para chegar a esta tese o autor cita um de
seus discursos, comparando com as palavras de Ponce pronuncia-
das trinta anos antes. Estas se referiam aos deveres do intelectual
quanto ao seu comportamento moral adequado à reforma que
pretende. Alega Woscoboinik (2017) que Guevara, três anos após
a vitória da Revolução em Cuba, publica o livro de Ponce, Humanis-
mo burgués y humanismo proletario.
Sobre Ponce, Woscoboinik (2004, p. 19-20) relata:
376
sua produção era repartido igualmente entre todos do grupo e
imediatamente consumido, visto que eles não produziam mais que
o necessário para a sua sobrevivência.
Os indivíduos eram “escravos” da natureza e já havia um co-
meço de divisão do trabalho de acordo com as diferenças entre
os sexos; contudo, as mulheres estavam “em pé de igualdade com
os homens” (PONCE, 2010, p. 18), assim como as crianças. Neste
tipo de organização social não havia hierarquia e sua religião não
continha deuses. A consciência do indivíduo “era um fragmento da
consciência social, e se desenvolvia dentro dela” (PONCE, 2010, p.
21).
A educação não estava delegada a alguém em especial, mas
ao ambiente. A criança se educava espontaneamente assimilando
o meio em que vivia, e pouco a pouco se amoldava aos padrões do
grupo; e somente depois, quando necessário, os adultos explica-
vam às crianças o que deveriam fazer em determinadas ocasiões.
As crianças, portanto, se educavam tomando parte nas funções so-
ciais da comunidade. Como expõe Dominicis apud Ponce (2010, p.
28,) “a educação sistemática, organizada e violenta, surge no mo-
mento em que a educação perde o seu primitivo caráter homogê-
neo e integral”.
A transição da comunidade primitiva para a sociedade antiga
foi marcada pelo surgimento das classes como origem do escasso
rendimento do trabalho humano e pela substituição da proprie-
dade comum pela privada. Nesse novo período, alguns indivíduos
se libertaram do trabalho material e passaram a realizar outras ati-
vidades de interesse do grupo, as quais mais tarde resultariam no
exercício do poder. Com o passar dos tempos e o aprimoramento
das técnicas, produzia-se mais do que o necessário para a subsis-
tência do grupo, ou seja, apareceu o excedente e, por consequên-
cia, a possibilidade de intercâmbio e do ócio.
O ócio permitiu que aquele que não precisava produzir pu-
desse fabricar e aprimorar instrumentos e matérias-primas utiliza-
dos no processo de trabalho, bem como refletir sobre sua prática.
377
Ademais, concedeu-lhes a possibilidade de ter escravos para ex-
plorar seu trabalho.
Desse modo, a mesma hierarquia da estrutura econômica da
tribo aparece em seu sistema de crenças. Surgem também a pro-
priedade privada e a sociedade de classes, a religião com deuses,
a submissão da mulher e dos filhos, a educação diferenciada, a au-
toridade paterna, a separação entre trabalhadores e sábios; enfim,
todo um sistema para reforçar, referendar e, sobretudo, manter o
privilégio de uma classe sobre a outra. Mas, segundo Ponce (2010,
p. 32), faltava ainda
378
Ponce intenta mostrar como a classe exploradora conseguiu
realizar o seu propósito a partir das sociedades grega e romana.
No que se refere à comunidade grega, Ponce (2010) destaca que
esta era composta inicialmente de escravos e, a princípio, de “fun-
cionários” que posteriormente passaram a fazer parte da nobre-
za. Há também o início de um comércio e de uma classe superior
desligada do trabalho manual e do intercâmbio comercial. A partir
do século V a.C., o comércio floresce e, com ele, a moeda e o aper-
feiçoamento dos aparelhos de navegação, o que redundou no en-
riquecimento de uma parte da nobreza, que passou a emprestar
dinheiro sob a forma de hipoteca e a enriquecer com tal prática,
pois aquele que não pagasse a dívida poderia tornar-se escravo.
“Outra guerra, não externa, mais interna, começa agora a produzi-
-los: a guerra do credor contra o devedor, guerra que não cessa por
um só instante durante toda a história da humanidade” (PONCE,
2010, p. 39). E assim se concebe o ser social grego da classe domi-
nante: masculino, guerreiro, proprietário, possuidor de terras.
Os espartanos recebiam uma educação unicamente voltada
para fins militares, tanto que poucos eram os nobres que sabiam
ler e escrever.
379
ses era, entretanto, mais acentuada. O ideal da educação grega
consistia em formar o sujeito proprietário das classes dirigentes,
primeiramente formadas para a guerra e posteriormente dedica-
das ao que eles chamavam de diagogos, ou seja, o ócio elegante. E
com isso desenvolveram a música, a filosofia, a arte, a literatura. Daí
a necessidade de um local para ensinar seus filhos a ler e escrever.
O ser social romano também passou para a sociedade de
classes, baseada no trabalho escravo. Sociedade esta formada pe-
los patrícios (grandes proprietários) e pelos plebeus (indivíduos li-
vres, mas excluídos dos postos dirigentes). “A agricultura, a guerra
e a política constituíam o programa que um romano nobre devia
realizar” (PONCE, 2010, p. 62). Isto porque, para os romanos, toda
a riqueza provinha da terra.
Nesta sociedade, os jovens aprendiam sobre a guerra e a polí-
tica, como também o ofício, junto ao pai. A educação das letras era
confiada a um escravo letrado. A partir do século IV a.C. começa-
ram a surgir os professores.
Notícias da primeira escola primária de Roma datam de 449
a.C., local em que as famílias menos aquinhoadas, que não podiam
pagar por professores particulares, mandavam seus filhos para se-
rem educados. O professor primário, chamado de ludimagister, era
geralmente um antigo escravo, um velho soldado ou um proprie-
tário arruinado que, em troca de um salário, realizava este ofício.
Os retores, aqueles que ensinavam a arte superior, como a
eloquência, eram prerrogativas dos ricos. Tratava-se de homens
que possuíam conhecimentos de poesia, teatro, música, boas ma-
neiras, e ensinavam a seus “ricos alunos tudo quando poderia ser
essencial para a burocracia do Império” (PONCE, 2010, p. 73).
A transição do modo social antigo para o feudal foi marcada
por vários fatores. Destaca-se o trabalho escravo, que já não mais
produzia rendas compensadoras. Isto suscitou a necessidade da
escravidão e o desabrochar de um novo regime econômico, funda-
do no trabalho do servo e do vilão, que ao contrário dos escravos,
eram livres e procuravam os proprietários de terras a fim de culti-
380
vá-las para obter alguma compensação.
381
monastério. Dois séculos após a morte de Isidoro, a igreja passou a
oferecer escolas fora dos muros dos monastérios para aqueles que
não desejavam abraçar a carreira religiosa.
Ponce (2010), no entanto, afirma que os senhores feudais
desprezavam a instrução e a cultura. O autor destaca que “A no-
breza careceu de escolas no sentido estrito, mas não de educação”;
em consequência desse quadro, “o xadrez e a poesia chegaram, no
fim de contas, a constituir todos os seus adornos, da mesma forma
que a equitação, o tiro com arco, e a caça, todas as suas ocupações”
(PONCE, 2010, p. 94).
A burguesia nasceu no momento em que se dá uma trans-
formação econômica, a partir do florescimento do comércio, possi-
bilitada pelo aprimoramento das técnicas de produção. E pouco a
pouco as cidades se transformaram em centros de comércio, onde
a burguesia nascente trocava seus produtos.
A educação, e não poderia ser de outra maneira, acompanhou
as transformações econômicas. A Igreja, como centro do ensino,
passou a oferecer, além das escolas dos monastérios, as escolas
catedrais. Ponce (2010) ressalta que estas escolas já existiam, mas
no período de ascensão da burguesia, passaram a exigir outra for-
ma de instrução. Aqui se ancora o germe do que mais tarde vai se
chamar universidade. Conforme Marx, “(...) a burguesia já era uma
classe em si, mas não uma classe para si, isto é, ainda não tinha
consciência de que os seus interesses eram distintos dos do feuda-
lismo” (PONCE, 2010, p. 99).
As universidades, no início, consistiam na reunião de ho-
mens para cultivar as ciências. Pouco a pouco a burguesia foi com-
preendendo a importância desse conhecimento e passou a ocupar
o espaço universitário. O artesão que desejava trabalhar em um
determinado ofício inscrevia-se em seu grêmio respectivo e traba-
lhava como aprendiz. Posteriormente, passava a oficial, até chegar
a mestre. Já na universidade, o jovem que estudasse artes liberais
passava pelos seguintes graus: bacharel, depois licenciado e, por
último, doutor.
382
Assim, a “fundação das universidades permitiu que a burgue-
sia participasse de muitas das vantagens da nobreza e do clero,
que até então lhe tinham sido negadas” (PONCE, 2010, p. 101).
Como, por exemplo, ingressar nas ordens religiosas. O autor des-
taca que o título universitário, a exemplo do diploma de doutor
em Direito, conferia ao burguês quase um nível da nobreza. Estes
doutores, por sua vez, poderiam ser eleitos embaixadores e oficiais.
A burguesia mais rica buscava as universidades, enquanto a
pequena burguesia procurava as escolas primárias. Os magistra-
dos passaram a exigir que estas fossem custeadas e administradas
pelas cidades, pelo menos em parte, já que os estudantes também
deveriam pagar por elas. Desse modo, nem todos os burgueses
tinham recursos suficientes para frequentá-las.
383
conseguir um trabalho de cooperação”. Nesse processo, “foi-se
passando da cooperação simples à manufatura e, desta, à grande
indústria” (PONCE, 2010, p. 126). Toda essa mudança foi muito sig-
nificativa e alterou a estrutura dessa nova sociedade.
No que concerne ao lugar do cristianismo, havia discordân-
cias entre os humanistas, pois enquanto uns desejavam a volta ao
paganismo, outros requeriam uma reforma da Igreja.
Como bem assevera Ponce (2010, p. 119):
384
o mesmo autor adverte que Lutero, apesar de conceber que a ins-
trução era fonte de riqueza e poder para a burguesia, não preten-
dia estender esses benefícios às classes populares.
A Igreja católica, por sua vez, através dos jesuítas lutou contra
o nascente protestantismo, como também com os leigos incrédu-
los. No referente ao terreno pedagógico, buscou controlar a educa-
ção dos nobres e dos burgueses abonados, de modo que os seus
“professores, não há dúvida, eram os mais bem preparados, e o seu
ensino era o mais bem dirigido” (PONCE, 2010, p. 121).
A Reforma Protestante teve consequências mais vastas que o
Renascimento, devido ao estreito vínculo com a burguesia patrícia.
A Reforma, por sua vez, expôs as reivindicações da pequena e da
média burguesia, assim como das massas camponesas e pré-pro-
letárias.
Verifica-se nesse período uma luta interna no seio do huma-
nismo, que se divide em: “(...) a que expressa os interesses na no-
breza cortesã, a que serve à Igreja feudal, a que reflete os anelos
da burguesia protestante, e a que traduz as tímidas afirmações da
burguesia não religiosa”, representando estas “as origens das qua-
tro correntes pedagógicas que vão desde o século XVI até o século
XVIII” (PONCE, 2010, p. 118).
Uma categoria que vale destacar nesse novo contexto é o
tempo. Ponce (2010, p. 127) assevera que na Idade Antiga o tem-
po não tinha valor, pois quando se vive no ócio não há necessida-
de de competir com ninguém; porém, com o advento da socieda-
de burguesa, o tempo passa a ter valor, pois quanto mais tempo,
mais se produz e mais se pode obter lucro. O protestantismo, ao
representar os interesses da classe burguesa, “abole a infinidade
de festividades com que o catolicismo medieval se comprazia, para
aumentar, assim, o número de dias úteis”. Assim, abria-se espaço
para o novo ritmo de produção.
A educação seria uma peça-chave para administrar esse novo
contexto. O grande nome desse período, no que diz respeito à
educação, foi João Amos Comênio, com sua obra A Didática Mag-
385
na, onde afirma “que a vida terrena é apenas uma preparação para
a eterna”. Confirma o que esse novo tipo de sociedade estava a
desenvolver: “Bases para a rapidez do ensino, com economia de
tempo e de fadiga”.
Para Comênio, segundo Ponce (2010, p. 128), as escolas care-
ciam do entendimento das coisas, do conhecimento prático:
386
2010, p. 136-137).
Depois da sociabilidade feudal, a burguesia assegurava o di-
reito individual. Para Ponce (2010, p. 131), é preciso reconhecer que
a burguesia, diante de seu papel revolucionário, promoveu a der-
rocada do feudalismo e da monarquia absoluta “com tanto brilho e
com um entusiasmo tão contagioso, que, por um momento, assu-
miu diante da nobreza o papel de defensora dos direitos gerais da
sociedade”. Para a grande massa populacional, contudo, os direitos
burgueses que primavam pela liberdade, igualdade e fraternidade
não se efetivariam na prática.
As massas exploradas da Antiguidade e do feudalismo man-
tiveram sua condição. A burguesia, por sua vez, para realizar o seu
prodigioso desenvolvimento precisava do desenvolvimento do co-
mércio e do alargamento do mercado de trabalhadores livres como
mão de obra. Destaca o autor que este trabalhador livre, diferente
dos trabalhadores livres de outros períodos, já não mais possuía
um pequeno pedaço de terra, nem alugava sua mão de obra tem-
porariamente. Este assalariado nascido a partir da revolução bur-
guesa se constituía num trabalhador expropriado dos seus meios
de produção, que possui para vender unicamente a sua força de
trabalho. Assim, ao trabalhador não caberia mais nem uma parte
do que ele produz, tão só uma pequena parcela da sua produção.
Os ideais educativos da classe burguesa são expressos, se-
gundo Ponce (2010), por alguns educadores, a exemplo de Rous-
seau (1712-1778). Para Ponce, Rousseau não legou uma pedagogia
e Emílio não passava de um romance; no entanto, sua obra e sei
pensamento influenciaram Basedow (1723-1790), pedagogo que
defendia dois tipos de escola: uma para os pobres e outra para os
mais abastados economicamente. Para este pedagogo, os filhos
das classes superiores deveriam estudar mais e começar mais cedo,
enquanto os filhos das classes desfavorecidas deveriam estudar de
acordo com a finalidade a que se destinavam, dedicando pelo menos
metade de seu tempo a trabalhos manuais. Filangieri (1752-1788)
também se posicionava de forma parecida, defendendo educação
387
diferenciada para as diferentes classes sociais.
Sobre as propostas educativas de Condorcet (1743-1794),
Ponce (2010) considera que este, ao tempo que propôs a obri-
gação do Estado de instruir, deixando a formação das crenças re-
ligiosas, morais e filosóficas a cargo dos padres, defendia ensino
primário e superior ofertado pelo Estado. Contudo, Ponce faz um
adendo acerca da conquista dessa gratuidade do ensino, uma vez
que naquela época as crianças das classes subalternas já trabalha-
vam para garantir o seu sustento. Em verdade, a escola gratuita
teria pouca importância, visto que estas crianças não teriam como
frequentá-la.
Pestalozzi (1746-1827) se interessou pela educação dos filhos
dos camponeses e chegou a acolher muitos deles em seus orfa-
natos; no entanto, “(...) nunca lhe ocorreu a possibilidade de dar a
elas a mesma educação que ministrava às crianças ricas” (PONCE,
2010, p. 146).
E assim Ponce (2010, p.149) demonstra como a burguesia
daquela época pensava na educação: diferenciada para as diferen-
tes classes. Para as classes subalternas, uma educação elementar;
uma educação superior para os técnicos; e a educação livresca, dis-
tanciada da vida real, para os nobres. Desse modo, “o capitalismo
incorporava aos seus planos de trabalho científico a livre investi-
gação, da mesma forma que o feudalismo implicava a religião e o
dogmatismo”. O saber científico era ofertado pelas escolas técnicas
e laboratórios de altos estudos, e foram vitais para o capitalismo
não para os filhos dos burgueses, mas para aqueles que precisa-
vam de alta especialização para dominar e ampliar as técnicas.
Por volta de 1880 foi finalmente conquistada a escola laica,
depois de inúmeros e intensos embates. Ponce (2010) afirma que
anos mais tarde, parte dos burgueses defensores desta escola lai-
ca passou novamente a requerer o apoio da Igreja e do clero, com
o intuito de manter as massas longe de protestos e insubmissão,
evitando que elas interferissem em seus negócios, pois almejavam
apropriar-se de boa parte dos melhores bocados.
388
Passado século e meio desde a Revolução Francesa, os bur-
gueses não conseguiram dar às massas o mínimo da educação de
que estas necessitavam; os mais reacionários alegam que a escola
burguesa não é incapaz de dar instrução a todos, mas que esta eli-
mina apenas os incapazes. Outros argumentos que recaem sobre
a dificuldade do ensino são a rigidez dos horários e a insuficiência
dos programas. A verdade é que as crianças deixavam de estudar
para se agregar às massas produtivas do sistema capitalista.
Surgem assim por volta dos anos 1900 duas correntes que
pretendem dar solução a esses problemas educacionais: uma que
defende a reforma das técnicas de ensino e cria planos para saná-
-los, e outra que concebe a necessidade da reforma técnica, mas
confere ao aspecto cultural o cerne do problema.
E assim o núcleo dos problemas educacionais é mascarado
por problemas secundários. O insucesso da educação desvincula-
-se da questão da luta de classes. Afinal, como a classe burguesa
poderia se reconhecer como responsável pela origem e pela ma-
nutenção dos males sociais?
Conclui Ponce sobre a educação e a sua necessária relação
com o complexo fundante: “(...) a educação, em cada momento his-
tórico, não pode ser outra coisa a não ser um reflexo necessário
e fatal dos interesses e aspirações dessas classes”. E anota: “Ne-
nhuma reforma pedagógica fundamental pode impor-se antes do
triunfo da classe revolucionária que a reclama” (PONCE, 2010, p.
171, itálico do autor).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
389
método ou conjunto de técnicas, senão um complexo que mantém
com o trabalho uma relação de autonomia relativa e dependência
ontológica.
O homem é partícipe da história e demanda, a partir das ne-
cessidades postas pelo trabalho, novas atribuições para a educa-
ção. Somente um homem que faz a história é capaz de mudá-la.
Esta obra, apesar de remeter ao passado, aponta para o futu-
ro e revela o papel social da escola: transmitir o conhecimento his-
toricamente acumulado às novas gerações, para que estas possam
aperfeiçoar esse conhecimento em favor do gênero humano, sem
contudo desvincular-se de sua relação com o trabalho. É, por isso,
uma obra sempre atual, porque se pensa no futuro olhando para
o passado.
Compreender a educação como um construto da história leva
a perceber que esta não poderá jamais, como querem os pós-mo-
dernos, ser compreendida sem ser considerada um momento da
totalidade. A educação vincula-se ao processo de produção mate-
rial e é diretamente relacionada ao processo de luta de classes.
Ao ler esta obra é como se passasse um verdadeiro filme so-
bre a formação genérica do homem de nosso tempo, de como este
se constitui e de como a educação contribuiu neste processo. É
então possível entender o modelo da educação dos tempos atuais,
com seus problemas e avanços, permitindo inclusive compreender
o papel da educação e sua relação com outros complexos, como,
por exemplo, a religião. Este percurso do desenvolvimento da hu-
manidade é visto não como um momento fechado e isolado, mas
como uma processualidade tão lenta que, por vezes, pode passar
despercebida em outras obras, visto que estas não relacionam a
educação com o modo de produção de cada período.
O germe da sociedade burguesa surge com a capacidade do
homem de produzir mais do que o necessário para a sua sobre-
vivência, e com isto a possibilidade de se sair da pré-história para
adentar no começo da história. No entanto, o que de fato ocorreu
foi que ao invés de este desenvolvimento das forças produtivas de-
390
mandar bens acessíveis para todos, deu-se a apropriação daquelas
por uma minoria, tendo no capital o regente da apropriação dos
meios de produção.
Contudo, o homem é quem faz a sua história, não em situa-
ção dada por ele, mas em situação por ele encontrada. Há, portan-
to, a possibilidade de se sair de uma sociedade em que uma classe
explora a outra, na qual o capital comanda e se apropria dos meios
de produção, para outra forma de sociedade em que o homem é o
cerne da produção uma sociedade verdadeiramente emancipada,
na qual os próprios homens comandarão e se apropriarão de todo
o processo de produção.
E a que educação se chegará numa sociedade emancipada?
Decerto não se tem ainda a resposta, mas Ponce demonstra com
exemplos reais que esta se vinculará ao modo de produção. Assim,
é possível vislumbrar uma educação que realmente corresponda
aos anseios da humanidade na construção do homem integral.
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