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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

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VICE-REITOR
Prof. Dr. Rosalvo Ferreira Santos

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Leituras
Contra-Hegemônicas
e Decolonialidades

Organizadores:
Tiago Silva
Carlos Magno Gomes
Joseana Souza da Fonsêca
Tatianne Santos Dantas

São Cristóvão/SE
2022
Copyright 2022 by organizadores

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Tiago Silva
Joseana Souza da Fonsêca
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

L533 Leituras contra-hegemônicas e decolonialidades / or-


ganizadores: Tiago Silva, Carlos Magno Gomes, Jo-
seana Souza da Fonsêca, Tatianne Santos Dantas. - São
Cristóvão, SE: Editora UFS, 2022.
402 p.
ISBN 978-65-86195-81-1

1. Literatura. 2. Identidade de gênero. 3. Cultura. 4. Co-
lonização. 5. Leitura. 6. Hegemonia. I. Silva, Tiago, Go-
mes, Carlos Magno, Fonsêca, Joseana Souza da, Dantas,
Tatianne Santos. II. Título.

CDU 82-83
COLONIALIDADE E QUESTÕES DE GÊNERO
A MÁQUINA DE MATAR MULHERES: O GÊNERO FEMININO E O
CAPITALISMO GENOCIDA EM 2666, DE ROBERTO BOLAÑO............................ 209
Juliana dos Santos Santana

O OUTRO DE GÊNERO E DE COR EM O SOM E A FÚRIA, DE WILLIAM


FAULKNER................................................................................................................................ 229
Joseana Souza da Fonsêca

REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA...............................251


Luciana Novais Maciel

A DECOLONIZAÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO EM ELVIRA VIGNA...... 271


Gardênia Dias Santos, Carlos Magno Gomes

TRANSGRESSÕES EPISTÊMICO-PERFORMATIVAS N’A GLORIOSA FAMÍLIA.289


Jeferson Rodrigues dos Santos, Jeane de Cassia Nascimento Santos

BOM-CRIOULO: ROUPAS BRANCAS, ESTEREÓTIPO E ANIMALIZAÇÃO.......305


Ivanildo Araujo Nunes, Christina Ramalho

PROPOSTAS DECOLONIAS EM OUTRAS PRÁTICAS DISCURSIVAS


LÍNGUA E LITERATURA NA FORMAÇÃO EMANCIPATÓRIA DO LEITOR:
POR UMA AÇÃO DIDÁTICA DECOLONIAL.................................................................. 321
Maria de Fátima Berenice da Cruz

MULTIMODALIDADE E A (IN)VISIBILIDADE DOS POVOS INDÍGENAS.......343


Rose Hellen de Carvalho Santos

SUBJETIVIDADES TRANS: UM OLHAR SOBRE A COLONIALIDADE E A


DECOLONIALIDADE EM TERREIROS DE CANDOMBLÉ ENTRE SERGIPE E
SALVADOR.................................................................................................................................. 361
Erikson Bruno Mercenas Santos

Sobre os organizadores/sobre os autores......................................................................385

Índice remessivo...............................................................................................................395
REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO
PATRIARCA

Luciana Novais Maciel

INTRODUÇÃO

As discussões acerca da colonialidade do poder social e cultural


têm contribuído para uma nova leitura dos textos literários, possibi-
litando-nos observar e verificar a carga significativa das heranças im-
postas pelos colonizadores. Para este trabalho, optamos pelo corpus de
análise do romance A sombra do patriarca (1950), escrito por Alina Paim.
O texto trata-se de uma leitura alicerçada em costumes de uma época
em que o coronelismo era considerado componente da ordem social,
mesmo significando o esmagamento e a subjugação de muitas vidas.
No romance, há uma sucessão de denúncias acerca das atitudes
desumanas conduzidas, principalmente, pelo capitalismo, que está em
toda parte: na família, na igreja, na usina. A narradora, Raquel, traça o
perfil dessa sociedade a partir da personagem Tio Ramiro e sua relação
com a fazenda onde está localizada a Usina Fortaleza, com os trabalha-
dores subordinados às suas ordens, com os familiares que ficaram na fa-
zenda Curral Novo, com a esposa, a filha, o genro e as netas, e convivem,
permanentemente, com uma lógica de dominação sexista e racista.
O romance é de autoria de Alina Leite Paim (1919-2011). A roman-
cista nasceu no município de Estância (SE), ficou órfã de mãe aos qua-
tro anos, precisou ser cuidada pelas tias, pois o seu pai viajava muito.
Iniciou sua vida escolar em Simão Dias (SE), depois foi levada para um
internato em Salvador (BA), de onde saiu licenciada para lecionar. Ca-
sou-se com o médico sanitarista Isaías Paim e mudou-se para o Rio de
Janeiro (CARDOSO, 2009). Paim escreveu dez romances, são eles: Estra-

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

da da Liberdade (1944), Simão Dias (1949), A sombra do patriarca (1950), A


hora próxima (1955), Sol do meio-dia (1961), trilogia de Catarina O Sino e a
Rosa, A Chave do Mundo e O Círculo, datadas de 1964, A sétima vez (1975)
e A correnteza (1979), além de textos de literatura infantil. Romances re-
cheados de humanidade, denúncias, política, pouco lidos, mas muito
criticados. Seus textos foram publicados na Rússia (1957), China (1959),
Bulgária (1963) e Alemanha (1968). Apesar de toda a riqueza intelectual,
a autora ainda se encontra num lugar de desconhecimento.
Como aporte teórico nos valemos das leituras de Aníbal Quijano
(2005), quando discute a perspectiva eurocêntrica sobre a colonialidade
do poder, refletindo acerca das condições de controle da subjetividade.
Boaventura de Souza Santos e Maria Paula Meneses (2009), observando
as condições de epistemicídio, lendo aqui a configuração da cultura e
da memória de tantas vidas massacradas em vista da construção da
Usina Fortaleza. Stuart Hall (2016), ao discutir a representação como
um ato criativo e como construção do sujeito cultural e dos sentidos
a partir de uma reflexão da verdade existente. Grada Kilomba (2019) e
Franz Fanon (2008), sobre a condição do negro frente às imposições do
fazendeiro e as relações de poder impostas pela sociedade, analisando
a perspectiva do posicionamento de ambos.

PRINCIPAIS CONCEITOS TEÓRICOS

Na tematização de Quijano (2005), refletimos acerca da coloniali-


dade do poder, especialmente, sobre o eurocentrismo que se enraizou
com tanta propriedade pela América Latina e demais partes do mundo.
Destacamos as relações impostas entre conquistadores e conquistados,
invasores e invadidos, e esta perspectiva é bastante discutida por Alina
Paim no romance A sombra do patriarca; ao lermos as relações entre as
personagens, logo, identificamos as heranças deixadas pelos coloniza-
dores. Ao que afirma o autor, “[...] raça e identidade racial foram estabe-
lecidas como instrumentos de classificação social básica da população”

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Luciana Novais Maciel

(QUIJANO, 2005, p. 107). Essa ideia perpassa a possibilidade de legitimar


as dominações impostas por aqueles que detêm o poder sobre a vida
de outros, antes impostas pela raça e, posteriormente, impostas pela
dominação capitalista.
Na estrutura global de controle de trabalho há uma associação
com a ideia de raça dominada a partir da caracterização das identida-
des descritas historicamente, produzidas a partir dos papéis e lugares
na sociedade. Uma condição que perdura, até os dias atuais, na defi-
nição das profissões, do valor da remuneração, das vagas de emprego,
das funções exercidas que são, muitas vezes, definidas pela cor da pele.
Além de provocar essa mercantilização da força de trabalho, houve in-
fluência também no aspecto do desenvolvimento dos saberes, “como
parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou
sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle e subje-
tividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do
conhecimento” (QUIJANO, 2005, p. 110).
O poder colonial e eurocêntrico que tinha total domínio do capital
sofreu mudanças antes e aós as Américas. Os povos que aqui estavam,
antes denominados pelas comunidades às quais pertenciam, após o pro-
cesso de colonização tiveram suas identidades modificadas, passaram a
ser identificados, denominados como índios, sendo esta “uma nova iden-
tidade racial, colonial e negativa” (QUIJANO, 2005, p. 116). O que ocorreu
também com os povos negros trazidos como escravizados, cada grupo
com sua identidade cultural definida, mas, após o embate da coloniza-
ção, passaram a ser denominados simplesmente como negros.
Diferentes povos foram despojados de suas identidades particula-
res, com suas singularidades e historicidades violadas, ocupando assim
um lugar na história cultural da humanidade forjado a partir do ne-
gativo. A discussão de Quijano engloba também as relações sociais e
políticas da população excluída diante da condição de um processo de
modernidade enraizado na colonização. Visto que é urgente a descolo-
nização no âmbito do controle das subjetividades, do conhecimento e

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

das ideologias, Alina Paim permite essa leitura a partir das denúncias
apresentadas acerca do comportamento explorador do Tio Ramiro,
bem como através da representação da protagonista Raquel, que desa-
fia o coronelismo e o machismo estruturados na família.
Boaventura Souza Santos e Maria Paula Meneses (2009) discutem
a condição do controle da epistemologia pelos colonizadores ou deten-
tores do poder como um processo de epistemicídio frequentemente
provocado e exercido diante dos povos colonizados. Compreende-se por
epistemicídio o processo de supressão da verdade, do conhecimento,
principalmente dos saberes locais (MENESES E SANTOS, 2009). Dife-
rente do século XVI, quando as terras da América Latina eram invadi-
das por navegadores sedentos por riquezas, por territórios físicos, na
atualidade, observamos a continuidade desta conjuntura, no entanto,
sob a forma de poder e de saber. “O projeto de colonização procurou ho-
mogeneizar o mundo, obliterando as diferenças culturais” (MENESES E
SANTOS, 2009, p. 10). Há inúmeras formas de realizar o epistemicídio,
como ignorar o saber de uma determinada comunidade local, proibin-
do o indivíduo de realizar leituras livremente, sem censura, inibindo a
comunicação do conhecimento, bloqueando informações de todas as
formas. Verificamos essa continuidade das imposições coloniais nos
textos literários, representando na arte as diferentes práticas de coloni-
zação presentes na sociedade.
Hall (2016), discutindo sobre a representação cultural, traz uma
abordagem acerca do funcionamento das imagens sociais que apre-
sentam a realidade, os valores, as identidades, como efeito da mídia. O
autor apresenta ainda a condição da linguagem como o mecanismo de
representação dos sentimentos de uma comunidade, de uma determi-
nada cultura. “A cultura se relaciona a sentimentos, a emoções, a um
senso de pertencimento, bem como a conceitos e a ideias” (HALL, 2016,
p. 20). Compreende-se essa relação entre a formação/construção identi-
tária com as emoções vividas por uma sociedade, por uma comunidade,
o que vai gerar o sentimento de pertencimento àquele grupo social, seja

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Luciana Novais Maciel

ele familiar ou não. Como nas situações em que se encontram os imi-


grantes, na comunidade em que esse sujeito for acolhido, ele terá con-
dições de desenvolver a sua identidade, num processo de hibridização.
Os elementos de uma cultura com os seus significados são direcio-
nados não apenas pelos nossos pensamentos, mas regulam as práticas
sociais, influenciando a conduta dos seus integrantes, o que deve gerar
efeitos reais e práticos. No entanto, as sociedades devem rever paradig-
mas que provoquem situações preconceituosas e que geram também
violência contra a identidade do outro, pois “o sentido é constantemen-
te elaborado e compartilhado em cada interação pessoal e social do
qual fazemos parte” (HALL, 2016, p. 22).
Hall também discute sobre a representação em relação aos estudos
culturais, uma vez que há uma conectividade entre o sentido e a lingua-
gem à cultura a partir da representatividade. O teórico culturalista vin-
cula a relação de significados entre a linguagem e a cultura a partir do
processo de construção por meio da linguagem, sendo que, de um lado,
temos a semiótica, partindo de Saussure e, do outro, a variante discur-
siva, a partir de Foucault. Neste intuito, Hall pontua a relação existente
entre conceitos, coisas e signos como elementos que estão vinculados
na produção e na representação dos sentidos a partir da linguagem, o
que denominamos de representação. Sendo assim, o sujeito envolvido
neste processo passa a ser o sujeito cultural, pois, na medida em que
se envolve com um determinado grupo social começa a identificar os
sentidos significativos para aquele grupo. “O principal ponto é que o
sentido não é inerente às coisas, ao mundo. Ele é construído, produzi-
do. É o resultado de uma prática significante – uma prática que produz
sentido, que faz os objetos significarem” (HALL, 2016, p. 46).
O pensamento de Hall (2016) dialoga com o de Claude Lévi-Strauss
e com o de Barthes, na perspectiva do estudo sobre a construção dos
signos em sociedade e na formação de uma dada cultura como um tipo
de linguagem, sentidos que devem ser interpretados de acordo com o
seu conteúdo e a noção de denotação e conotação. Discorre sobre dis-

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

curso, poder e sujeito, retomando os estudos da significação e da repre-


sentação do sujeito em sociedade. “O que preocupava era a produção
de conhecimento (em vez de apenas sentido) pelo que ele (Foucault)
chamou de discurso (em vez de apenas linguagem)” (HALL, 2016, p. 78).
Questionamos onde está o sujeito desse discurso, e comparando com
as definições entre Saussure que considera o sujeito como o autor dos
atos de fala individuais, e Foucault que defende o do discurso e não o
sujeito quem produz o conhecimento (HALL, 2016). Ou seja, o sujeito é
produzido no discurso e esse sujeito produzido é também representado,
ora no que é mostrado, no que fica exposto, ora no que não se vê, no
que está intrínseco ao indivíduo. É o discurso que gera uma posição do
sujeito, que é questionado acerca do seu lugar de fala, se é um lugar de
subalternidade ou de uma posição de dominação, de poder. “Produzir
sentido depende da prática da interpretação e esta é ativamente susten-
tada por nós ao usarmos o código – codificando, colocando coisas nele
– e pela pessoa do outro lado que interpreta ou decodifica o sentido”
(HALL, 2016, p. 109). Compreendo que as construções das representa-
ções culturais ocorrem a partir de elementos concretos representativos
e que a realidade como a gente vê e como se constrói para nós está con-
dicionada aos seus discursos e artefatos culturais.
Através do processo de representação cultural apresentado por
Hall (2016), verificamos a possibilidade de leituras diferenciadas acerca
dos romances de Alina Paim, no certame desta pesquisa, A sombra do
patriarca é mais do que um romance de denúncias sociais, visto que
com profundidade e com muita maturidade, a narradora vai tecendo
a narrativa de desconstrução das ramificações impostas pelo poder eu-
rocêntrico. Há um caminho de decolonialidade nos discursos desbra-
vadores das personagens Raquel e Leonor, frente ao silenciamento de
tantas outras personagens diante das imposições do Tio Ramiro.
No processo de escrita do romance também observamos a descri-
ção do comportamento dos negros, o que coaduna com as discussões de
Kilomba (2019), que nos apresenta a relação preconceituosa existente

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Luciana Novais Maciel

entre o Eu e o Outro, fazendo-nos compreender o quão política é esta


condição em que as problemáticas das relações de poder estão condi-
cionadas a quem pode se colocar como sujeito. A autora provoca com
isso um questionamento acerca da identidade: será que o negro tem
uma identidade apenas quando ele é o outro e não quando é sujeito?
Politicamente ele só existe enquanto outro?
O ato da escrita para Kilomba é tratado como uma liberdade, a
certeza de um espaço para a sua voz, para ser ouvida, pois, no texto e
enquanto autora, ela não é objeto, mas o sujeito enquanto ato político. É
importante destacar essa relação entre sujeito e objeto. Além do proces-
so de aniquilamento da voz, da identidade, da cultura a partir do siste-
ma de escravização em diversos países, muitos foram considerados, tra-
tados não como sujeitos, mas como objeto. E essa situação perdura, até
os dias atuais, de forma velada, mas com a mesma força significativa.
É necessário compreender que “o racismo não é um problema pessoal,
mas um problema branco estruturado e institucional que pessoas ne-
gras experienciam” (KILOMBA, 2019, p. 204). De fato, todas as pessoas,
de todas as etnias devem tomar consciência dessa realidade e buscar
mudá-la, pois não podemos nos permitir ser racistas, estar nessa estru-
tura institucional, presenciando situações racistas, sem buscar mudan-
ças na estrutura social e cultural.
Outra situação apresentada por Kilomba é acerca da atempora-
lidade do racismo cotidiano, a autora apresenta inúmeras situações
racistas vivenciadas no cotidiano atual. Nessas narrativas nos depa-
ramos com pensamentos, comentários, diálogos em que estamos in-
seridos, provocamos o racismo, contudo, não nos damos conta da sua
raiz, da sua origem. Portanto, faz-se necessário essa ampla divulgação
das situações que estão impregnadas no nosso cotidiano, porém, nem
sempre temos consciência se estamos atingindo negativamente com a
pessoa que está ao nosso lado. Mesmo com o processo de descoloniza-
ção, em busca da autonomia e da independência, a sociedade como um
todo, vive ainda sob a égide da colonialidade até os tempos atuais.

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

No romance de Alina Paim não encontramos discussões


envolvendo racismo, contudo, há duas personagens que dialogam com
a temática. Uma é Lucrécia, que conta ter sido escravizada, outra é Aris-
tides, que quando está diante dos seus pares, tem as mesmas atitudes
colonizadoras e impiedosas que o eurocentrismo deixou como herança.
Diante desta personagem trazemos a discussão de Fanon (2008) sobre
esse comportamento adotado por muitos negros. O autor nos impul-
siona ao questionamento acerca do que é o homem livre, do que é o
homem negro livre. Uma liberdade que está para além das grossas cor-
rentes, da servidão ao homem branco, é uma escravidão interna, que
gera um complexo de inferioridade no homem negro, porque para ele é
impossível atingir a condição do homem branco.
Quando Fanon nos diz que “a maioria dos negros não desfruta do
benefício de realizar esta descida aos verdadeiros Infernos” (2008, p.
26), ele apresenta os calabouços que aprisionam o homem negro, o que
o impede de ser livre não está relacionado, por exemplo, ao documen-
to apresentado pela princesa Izabel, aqui no Brasil, pela libertação dos
escravos, esta liberdade a que o autor se refere é muito mais profun-
da. É contraditória a ideia de escravidão, no sentido de proibir que os
homens negros sejam acorrentados, escravizados, uma vez que para
serem aceitos na sociedade eles precisam se mascarar de homens bran-
cos, seja na linguagem, seja no modo de se portar, assumindo a cultura
do branco, numa estratégia para sobreviverem, ou seja, continuam a
ser escravizados.
O homem negro está livre, mas preso à identidade do homem
branco, provocando conflitos interiores. Não conseguindo aceitar
uma negritude inventada a partir de padrões europeus, o homem
negro introjeta uma ideia de inferioridade diante do colonizador,
como quando ele vai buscar falar, agir, ser de acordo com o branco.
Este é um problema complexo e muito grave, “o negro antilhano será
tanto mais branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro,
na medida em que adotar a língua francesa” (FANON, 2008, p. 34).

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Luciana Novais Maciel

Uma condição imposta pelo branco, em que o negro aniquila o seu


eu para ser aceito pela sociedade branca. Como “a burguesia das An-
tilhas não fala o crioulo, salvo nas suas relações com os domésticos.
Na escola, o jovem martinicano aprende a desprezar o patoá. Fala-se
do crioulismo com desdém” (FANON, 2008, p. 35). O homem negro que
precisa se travestir de homem branco para ter uma aceitação na socie-
dade, que irá considerá-lo como homem verdadeiro quanto mais ele
se aproximar da branquitude.
O aporte apresentado por Fanon está relacionado com diversas
vertentes do conhecimento, dos saberes. São utilizadas a literatura, a
economia, a sociologia, a psicologia, a política para uma discussão acer-
ca do quão escravizado continua o homem negro, de como ele está sob
o domínio do colonizador e como isso tem afetado as comunidades ne-
gras, o fato de não poder vivenciar a sua própria identidade.
Para o homem negro avançar nos estudos, nas pesquisas, bus-
car condições de vida consideráveis, precisou vestir-se como o bran-
co, abandonar a sua língua, aderir à língua do outro, festejar como os
brancos, ter fé como eles. Entretanto, mesmo diante de tantas muta-
ções, continuou se portando e se colocando diante do branco como ser-
viçal, continuou não conquistando os seus espaços devido ao complexo
de inferioridade que lhe é introjetado de forma inconsciente devido aos
movimentos dos discursos na cultura. Muitos negros adotaram a pos-
tura do branco quando se colocavam diante do seu semelhante, como a
postura de dominado e dominador, externando os complexos psicoló-
gicos do movimento de colonização impregnados nele.
Fanon apresenta uma série de experiências vividas por homens
negros frente às condições impostas pelos homens brancos, como os
momentos em que os soldados senegaleses tiveram que enfrentar uma
missão em plena guerra, onde foram rechaçados, e nestas condições eles
questionam por que o homem branco, os taobabs não eram enviados em
missão. Esse é um exemplo de racismo, da escravidão com a qual o ho-
mem negro se depara no dia a dia, assim como o legado que o próprio

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

autor nos deixou, o de lutar pela dignidade do ser humano, sendo ele
negro, branco. “Antes de se engajar na voz positiva, há de ser realizada
uma tentativa de desalienação em prol da liberdade” (FANON, 2008,
p. 191). É essa desalienação que deve ser resolvida, discutida, o homem
branco não é melhor em nada que o homem negro, este não é pior em
nada que aquele. Faz-se necessário desarticular esta ideia organizada e
racional de desumanização diante dos sujeitos.

ANÁLISE DO CORPUS

Antes de iniciarmos a análise propriamente dita, faremos uma


breve explanação acerca das personagens para a discussão das ques-
tões envolvendo a condição da decolonialidade e do epistemicídio. A
análise do romance A sombra do patriarca, empregada aqui, toma como
personagens os sujeitos da família dos Vergueiros. Temos Raquel, pro-
tagonista e narradora, que pode ser considerada como um corpo estra-
nho à realidade da fazenda Fortaleza, onde fica a Usina do tio Ramiro,
na qual ela passa uma temporada para se recuperar de um paludismo.
Nesse período, é possível observar o movimento da casa, as condições
impostas pelo patriarca da família, ela toma conhecimento da história
que envolve todo o poder, a riqueza e a ambição em torno da Usina.
Por que as mulheres da casa grande da Usina Fortaleza não podiam
falar? Por que elas precisaram de um outro espaço fora da fazenda para
sobreviverem? A partir da caracterização de Ramiro é possível fazer
uma leitura da opressão realizada por ele, apresentando características
de um coronel, de um colonizador, com o efeito de dominação sobre
as vidas de quem estivesse ao seu redor. “O poder do tio Ramiro se es-
tendia até muito longe, e sua sombra, como a sombra de um patriarca,
abrangia muitas vidas” (PAIM, 1950, p. 15); “alongando-se pelas terras,
extinguindo a felicidade em volta dele, porque seu dinheiro onde passa-
va ia semeando maldição” (PAIM, 1950, p. 16) “descia como um manto
de opressão sobre os homens” (PAIM, 1950, p. 32) “uma vítima juntava-

260
Luciana Novais Maciel

-se a outra, e o grupo silencioso marchava à sombra desse homem, [...]


o coronel Ramiro da Usina Fortaleza – o patriarca” (PAIM, 1950, p. 175).
Ramiro é o dono das terras da região, chefe da família para quem
todos devem a servidão, o silêncio. Ele é o dominador, a quem Raquel
chama de patriarca, cuja sombra vai destruindo as vidas que ficam sob
o seu domínio.
Teresa é a filha de Ramiro, ela tem as mesmas características do pai.
Apesar de ter sido rejeitada ao nascer, por não ser um homem, segue os
passos do pai, principalmente, quando se trata de silenciar o outro.
Leonor, neta de Ramiro, filha mais velha de Teresa, não se deixa
dominar pela mãe. Estuda o curso técnico em contabilidade, mas sonha
em ser médica. Esbarra na posição do avô que diz não ser profissão para
mulher. Ela, juntamente com Oliveira, seu pai, são os únicos da casa
grande que conseguem enxergar as atrocidades de Ramiro e Teresa. Ela
é leitora, e isso causa preocupação em todos, visto que os livros podem
ser perigosos. Tem planos para abandonar a fazenda, viver livremente,
fazer medicina, e libertar o pai da prisão imposta por Teresa e da condi-
ção de subalternidade na casa grande e na Usina.
Tia Celina é irmã de Ramiro, vive na fazenda Curral Novo de fa-
vor, como parte da herança do velho Vergueiro. Ela e Olavo, seu esposo,
sobrevivem numa condição quase miserável, sustentam-se do engenho
de açúcar, da fabricação de melado e de rapadura, as condições de tra-
balho são opostas às da Usina, as condições de moradia também. En-
quanto na casa grande há luxo, fartura e repressão, no curral novo há
simplicidade, aconchego e liberdade.
Lucrécia, Olegário, Aristides, Catita, Zeca, Alzira, padre Filadelfo,
padre Coutinho, engenheiro Afonso, Catarina, Hilário Carreiro, perso-
nagens que tiveram suas vidas massacradas, subordinadas, usurpadas
pela ganância de Ramiro e de Teresa.
Os espaços em que as personagens transitam são fixados, principal-
mente, em dois locais, a Usina Fortaleza juntamente com a casa grande
e o engenho do Curral Novo. Entre eles estão as vidas miseráveis explo-

261
REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

radas por Ramiro, pessoas que vivem em condições desumanas, como


escravizadas, acorrentadas à sombra do patriarca, toda a terra da região
pertence a ele, ao senhor de engenho, como costuma chamar Leonor.
O texto é narrado por Raquel, também protagonista do romance,
ela tenta romper com o processo de dominação do tio Ramiro, mas será
que de fato consegue? A menina diagnosticada com paludismo saiu da
cidade para passar as férias conhecendo a família, a qual só tinha visto
quando ainda era criança. Entretanto, não fazia ideia da jornada que
estava por trilhar nas terras do tio Ramiro.
A narradora começa a tecer a trajetória, não só da família dos Ver-
gueiros, mas a de uma sociedade desigual, em que a mão pesada de um
patriarca ambicioso esmaga e oprime os menos favorecidos, a família,
os trabalhadores marginalizados, manipula a igreja e a justiça para ser-
virem aos seus interesses. Diante deste cenário, Raquel encontra Leo-
nor, sua prima, que discorda das atitudes do avô Ramiro, torna-se uma
personagem que irá guiar a protagonista neste processo de conscienti-
zação acerca da sociedade.
Oliveira era o genro do Tio Ramiro, pai de Leonor, casado com Tere-
sa, apesar de ser homem, não conseguia voz diante de Ramiro, era impe-
dido de sentar-se na cabeceira da mesa, passava por humilhações por não
ter conseguido sustentar a família com o emprego na cidade, de acordo
com a sua formação, com seu diploma. Alia-se a Raquel, ajuda sua filha
a estudar, compra livros escondidos para que Leonor possa ter acesso a
um conhecimento mais amplo, além das limitações do colégio regional.
Após esta explanação sobre o enredo é pertinente uma leitura a
partir da temática da decolonialidade do romance A sombra do patriar-
ca? Existe a possibilidade de um lugar de fala diante da dominação da
representação do colonizador? Raquel, Leonor e Oliveira são as perso-
nagens que desafiam a ordem do patriarca Ramiro com atitudes de não
conformidade com as suas exigências. Porém, não há condições de ma-
nifestar opinião, de protestar contra esta ordem, são as atitudes que
irão falar por elas.

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Luciana Novais Maciel

Teresa, a filha mais velha do patriarca, seguia os seus passos


exercendo a dominação sobre os filhos e o marido e de quem mais
se atrevesse a tentar mudar a ordem da casa. Sobre Leonor estava
intrigada, pois a filha andava muito quieta, silenciosa, estava lendo
demais, isso era perigoso. Assim fora quando descobriu que Anita
estava lendo Ressurreição (1899), obra de Tolstói. Leitura condenada
pelo padre Coutinho e que Teresa queimou, cumprindo a penitência
que Anita recebera em confissão com o padre. A filha mais nova es-
tava sendo preparada para dar continuidade ao projeto do avô, de
submeter o outro aos seus caprichos, embora ela mesma fosse sub-
missa às ordens da mãe.
O controle do acesso à leitura marca a condição de subalternidade,
de dominação machista ao longo da narrativa. Leonor só consegue ler
outras obras mais atualizadas devido à ajuda de Oliveira, contudo, Teresa
desconfia o tempo todo dessa proteção do pai em relação à filha. Outra si-
tuação é a do padre Coutinho, que substituiu o padre Filadelfio a “pedido”
do tio Ramiro, pois foi acusado de transmitir ensinamentos exagerados
durante as homilias das celebrações, ele deveria falar menos.
No processo de erguimento da Usina, o patriarca deveria contratar
engenheiros, químicos, para garantir o pleno funcionamento da máqui-
na, porém a ganância foi maior, em pouco tempo dispensou a “ciência”.
Segundo o coronel, eles estavam enrolando o serviço, é mais uma situa-
ção de colonialidade do poder que se impõe sobre os saberes construídos
na academia, passando a ser ignorado pela ganância do coronelismo.

Diante da negativa vinda de São Paulo, Ramiro resolveu reduzir


as despesas imediatamente. Chamou Afonso, não para consultá-
-lo em alguma coisa, e sim para lhe comunicar sem mais nem
menos que ia despedir todos os técnicos e operários especializa-
dos. Era perigoso para seu trabalho ficar privado de mecânicos
que entendessem o inglês. Não falava bastante o português para
ficar sozinho com os operários brasileiros que não dominavam
com segurança máquinas até poucos meses desconhecidas para

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

eles. Ramiro, cerrando os dentes, lembrou-lhe as despesas com os


anos de estudo na Inglaterra, afirmou que já era tempo de come-
çar a agir sem auxiliares, já levara muito tempo fazendo alardes,
mirando a própria roda como pavão no terreiro. [..] baixou a ca-
beça, disposto a enfrentar o que viesse como consequência de sua
ignorância e teimosia (PAIM, 1950, p. 238-239).

Afonso era noivo de Catarina, a filha mais velha do Tio Ramiro,


estudou na Inglaterra para poder erguer a Usina Fortaleza, teve os es-
tudos pagos pelo coronel e pagou um alto preço. Após a demissão dos
mecânicos, Afonso sofreu um acidente, foi levado para o Rio de Janeiro,
teve as suas despesas pagas até quando o patriarca achou que fosse su-
ficiente. Afonso foi praticamente abandonado à própria sorte e acabou
falecendo, Catarina também morreu, de tristeza, sem conseguir lutar,
silenciada.
Tinha o filho, Abelardo, único neto do velho Ramiro, obrigado a
pensar em engenharia, viver seguindo os passos do avô, mesmo contra
vontade própria, não tinha o seu pai, Oliveira, como referência, afinal, o
pai não era nada. Com a chegada de Raquel houve uma aproximação de
Leonor e Oliveira a partir dos questionamentos e posicionamentos dela
frente à família, o que possibilitou a manifestação da fala de Teresa:

Ontem à tarde, diante de Anita, você falou em independência,


emancipação econômica, escravidão da mulher e educação erra-
da. Essa exposição foi o começo do que se deu à noite, na mesa. O
caminho que você trilhava com as idéias que nos mostrou condu-
ziria, inevitavelmente, ao desrespeito dos mais velhos, à negação
da autoridade. Podia ter silenciado, deixando que papai manifes-
tasse seu pensamento, apesar de estar em choque com os seus,
mas não, a jovem independente devia medir-se até o fim, sem
ceder uma polegada. [...] Até hoje, mãe de família, casada, nun-
ca repliquei às palavras de papai, êle sabe o que diz e tem razão
quando condena muita coisa. Todo esse sermão levava-me a esta
verdade: não tinha direito de pensar, porque era sobrinha de tio
Ramiro (PAIM, 1950, p. 64).

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Luciana Novais Maciel

O fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, promoveu transfor-


mações em toda a sociedade, maior investimento nos elementos da mo-
dernidade, nas relações humanas e políticas no mundo todo. As discus-
sões da crítica feminista estavam tomando os espaços das famílias, no
entretenimento, nas músicas, na cultura em geral. Porém, nos espaços
intrínsecos da fazenda Real, na família de Ramiro, o cotidiano era outro:

O novelo de lã escorregou dos joelhos magros e rolou no assoalho.


Tia Amélia apanhou-o e, sem fitar ninguém, começou a manejar
as agulhas repetindo dezenas e centenas de vezes o mesmo gesto.
Devia ter sofrido muito para chegar àquele extremo, apagada e
silenciosa como sombra. Tio Ramiro não teria perdoado seu erro
dando-lhe uma filha, quando era sua ambição um menino. Nada
podia substituir o sonho de ter diante dos olhos um homem a cres-
cer, de ver formando-se dia a dia o futuro substituto, seu continua-
dor em tudo: na Usina, no domínio das terras, na tirania da família
e na exploração dos homens da enxada (PAIM, 1950, p. 93).

A dominação pelo masculino, numa postura autoritária, silen-


ciando as vozes femininas, os sentimentos, numa condição desumana.
Após conhecer a realidade luxuosa e o poder de tio Ramiro, a miséria
dos trabalhadores da Usina e moradores do entorno e descobrir as con-
tradições da família a partir de tia Celina e tio Olavo, Raquel, conduzida
por Leonor, compreende para qual luta deveria estar preparada, a de
resistência da mulher, da conquista do seu espaço e do seu lugar de fala
emancipados. Ela toma “consciência”, quer conhecer dona Gertrudes,
comunista que se organiza para romper o ciclo de injustiças sociais, de
soberania dos que detém o poder e enriquecem esmagando miseravel-
mente o outro.
Na constituição do personagem Ramiro observamos que o outro
não tinha importância alguma para os seus interesses, apenas o de ex-
plorar, sugar as suas forças. Podemos analisá-lo também pela perspec-
tiva de ser como os grandes dominadores, influenciados pelas condi-
ções eurocêntricas. Para chegar a este patamar, não media esforços em

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

massacrar outras vidas. Como a da velha Lucrécia, “tinha sido escrava,


percorrido terras, vendida muitas vezes até que terminara o cativeiro”
(PAIM, 1950, p. 143). Entretanto, sobrevivia com as doações de tia Celina,
do Curral Novo, ajudava no nascimento de inúmeras crianças, tinha a
função de parteira, mas não tinha mais como se sustentar. Recebia fari-
nha, açúcar mascavo do engenho, feijão e um pedaço de carne seca que
buscava toda semana no Curral Novo, morava em um casebre de favor,
num pedaço de terra da Usina Fortaleza. Descrita assim:

Tia Celina acomodava os embrulhos, enquanto uma velha preta


de nariz achatado segurava as alças da sacola de palha trançada.
Tinha um lenço vermelho amarrado na cabeça imitando um tor-
so, o cós da saia encardida entrava-lhe pela cintura sobre o ventre
crescido, a manga da camisa escorria pelo ombro, e pelo decote vi
os peitos mirrados jogados ao léu (PAIM, 1950, p. 143).

A negra Lucrécia fora escrava do velho Vergueiro. Vendida com


os pais ainda criança, crescera no Curral Novo. [...] Sua sorte co-
meçara a virar depois que sinhô Ramiro tomara conta do enge-
nho Fortaleza. [...] Sinhô Ramiro não tinha dó de lombo de negro,
era trabalho e chicote (PAIM, 1950, p. 145).

A descrição apresentada pela narradora, caracterizando Lucrécia,


alinha-se à realidade vivenciada por inúmeros negros que passaram
pela escravidão. Mesmo com uma narrativa datada de 1950, encontra-
mos uma série de denúncias, ações que ocorriam provavelmente no in-
terior do país, longe dos grandes centros urbanos. Apesar de livre, não
tinha condições dignas para sobreviver, o único espaço dominado por
ela era o brejo, as terras ao redor da usina, lugares perigosos, esqueci-
dos e que ninguém escolhia para viver. São essas as condições da velha
Lucrécia e de tantas outras famílias que sobreviviam trabalhando na
Usina Fortaleza e na fazenda de Ramiro.
Outra personagem instigante é Aristides, trabalhador humilhado
por Ramiro, teve suas terras usurpadas para a Usina. Entretanto, quan-

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Luciana Novais Maciel

do está diante dos seus semelhantes comporta-se como o seu algoz. É


pertinente uma leitura junto a Fanon (2008), há uma relação de busca
por tornar-se semelhante àquele que se coloca como superior numa re-
lação social e econômica.

- Tange os bois, moleque safado. Não tá chegando garapa nenhuma.


Abri os olhos como se essa voz áspera me tivesse arranhado. Eu-
gênio fustigou os bois e olhou mestre Aristides com olhos maus,
cheios de rancor que vinha sendo acumulado há muito tempo.
Com um riso de entendimento, mestre Aristides disse a tio Olavo:
- Esses trabalhadores de hoje são uma cambada de ordinários e
preguiçosos.
[...]
- Em que tu é melhor que nós? – perguntou Eugênio, acrescen-
tando logo. – Trabalha do mesmo jeito, não tem onde cair morto
(PAIM, 1950, p. 186).

Parece um movimento regular, mas o que observamos é a não


aceitação das condições de miserabilidade a que muitos negros, traba-
lhadores são posicionados, implicando que o desenvolvimento cultural
o impregne de preconceitos e racismos contra o seu semelhante, o im-
pedido de se enxergar no outro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de colonialidade, de opressão do homem europeu ficou


bastante demarcado quando analisamos a conduta do fazendeiro Ra-
miro, o patriarca, dominador, preconceituoso e machista, que vai espa-
lhando como uma planta rameira a sua maldade e ideologia para quem
se aproximar das suas terras. Porém, o enfrentamento com Leonor e
Raquel representa o caminho da decolonização.
Raquel retorna para a cidade acompanhada de Oliveira, que aban-
dona tudo por sua causa, pela causa da revolução, da justiça, contra a
opressão do colonizador, do dominador desumano tio Ramiro. Raquel e

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REFLEXÕES DECOLONIAIS EM A SOMBRA DO PATRIARCA

Leonor trilham o caminho da decolonialidade, elas se opõem às ordens


e ao domínio do colonizador, representando uma identidade sociológi-
ca, capaz de enxergar as necessidades do outro, dos marginalizados, dos
oprimidos, enquanto tio Ramiro está para a identidade iluminista, com
a carga do homem eurocêntrico.

Ia regressar no dia seguinte conhecendo muito de perto o patriar-


ca não tendo dúvidas sobre sua ignorância e ambição. Voltava
sabendo que toda sua força vinha das máquinas da Usina, onde
a cana se transformava em dinheiro, o dinheiro em terra e em
poder. [...] começava a compreender que tudo isso estava errado
e um dia o mundo seria muito diferente. [..] Muito em breve eu
havia de conhecer tudo, e então começaria a lutar com eficácia
contra a sombra do patriarca (PAIM, 1950, p. 259-260).

Encontramos a condição do colonizador e do colonizado, do de-


tentor de poder e do subalterno presente no romance. A caracterização
de Ramiro é a do explorador, que não mede esforços para enriquecer e
dominar o outro, independentemente de vidas perdidas ou não. O mal
que brota do seu egoísmo se espalha e por onde passa causa destruição.
Ele manipula a família, a igreja e a justiça para que o seu poder predo-
mine sobre as vidas dos seus subordinados.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Ana Leal. Uma visão panorâmica da vida e obra de Alina Paim. In:
XIII Seminário Nacional e IV Seminário Internacional Mulher e Literatura:
memórias, representações, trajetórias, Natal, Universidade Potiguar, set. 2009.

FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Tradução Daniel Miranda e William


Oliveira. Rio de Janeiro: PUC-RIO; Apicuri, 2016.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio


de Janeiro: Cobogó, 2019.

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Luciana Novais Maciel

PAIM, Alina. A sombra do patriarca. Rio de Janeiro: Globo, 1950.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.


In: Colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires:
Clacso, 2005.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. In: Epis-


temologias do Sul. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula
(Orgs.) Coimbra: Gráfica de Coimbra, LTDA, 2009.

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