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ESTADO E DOMINAÇÃO DE
CLASSE
expressões contemporâneas

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DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank

O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas


do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e exclusiva responsabilidade
de seu autor.

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Goiânia-GO
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586
SILVA, Everton Melo da; BIZERRA, Fernando de Araújo.

Estado e dominação de classe: expressões contemporâneas. [recurso digital] /Everton


Melo da Silva, Fernando de Araújo Bizerra (Orgs). – Goiânia-GO: Editora Phillos Academy,
2023.

ISBN Digital: 978-65-6022-010-2


ISBN Físico: 978-65-6022-009-6

Disponível em: http://www.phillosacademy.com

1. Trabalho. 3. Teoria Crítica. 4. Marxismo.


5. Capitalismo. I. Título.
CDD: 360

Índices para catálogo sistemático:


Serviço Social 360

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Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra
(Orgs.)

ESTADO E DOMINAÇÃO DE
CLASSE
expressões contemporâneas

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Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento

Comitê Científico Editorial


Dr. Alberto Vivar Flores
Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Drª. María Josefina Israel Semino


Universidade Federal do Rio Grande | FURG (Brasil)

Dr. Arivaldo Sezyshta


Universidade Federal da Paraíba | UFPB (Brasil)

Dr. Dante Ramaglia


Universidad Nacional de Cuyo | UNCUYO (Argentina)

Dr. Francisco Pereira Sousa


Universidade Federal de Alagoas | UFAL (Brasil)

Dr. Sirio Lopez Velasco


Universidade Federal do Rio Grande | FURG(Brasil)

Dr. Thierno Diop


Université Cheikh Anta Diop de Dakar | (Senegal)

Dr. Pablo Díaz Estevez


Universidad De La República Uruguay | UDELAR (Uruguai)

Dr. Sebastião Hugo Brandão Lima


Instituto Federal de Alagoas | IFAL (Brasil)

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SUMÁRIO

PREFÁCIO de Erlenia Sobral do Vale.......................................... 9


APRESENTAÇÃO ......................................................................14
CAPÍTULO 1 ...............................................................................16
Para uma abordagem mészáriana sobre o Estado
Fernando de Araújo Bizerra
CAPÍTULO 2 ...............................................................................35
O papel do Estado nas expropriações e apropriações
capitalistas
Rebeca Gomes de Oliveira Silva
CAPÍTULO 3 ...............................................................................49
A relação entre Capital e Estado: contribuições ao debate
sobre o Estado latino-americano
Thays Fidelis
Georgette Ramírez Kuri
CAPÍTULO 4 ...............................................................................66
O Estado brasileiro “abre as portas” da destruição socioambiental
na região da Amazònia
Everton Melo da Silva
Artur Bispo dos Santos Neto
CAPÍTULO 5 ...............................................................................81
Estado e políticas públicas no Brasil contemporâneo:
democratização x permanência no ensino superior
Albany Mendonça Silva
Andréa Alice Rodrigues Silva
Caroline dos Santos Lima
CAPÍTULO 6 ...............................................................................97
As funções orçamentárias trabalho e previdência social no
governo Bolsonaro (2019 – 2022)
Fabrício Rodrigues da Silva
Elaine Rossetti Behring
Jordeana Davi

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CAPÍTULO 7 ............................................................................ 114
O Estado e os usineiros na zona da cana nordestina
Lucas Bezerra
CAPÍTULO 8 ............................................................................ 127
“O Estado e o mercado (des)fetichizado” e a questão das
sexualidades dissidentes
Tibério Lima Oliveira
CAPÍTULO 9 ............................................................................ 145
“Quantos mais vão ter que morrer para que essa guerra acabe?”: a
conivência do Estado brasileiro na reprodução do racismo estrutural
Tales Fornazier
CAPÍTULO 10 .......................................................................... 162
O “grande negócio” da prisão: Estado punitivo e a
mercadorização do controle penal em Sergipe
Paulo Roberto Felix dos Santos
CAPÍTULO 11 .......................................................................... 178
A violência estatal como o modus operandi do
Estado no Brasil
Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra
SOBRE OS(AS) AUTORES(AS) .............................................. 205

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PREFÁCIO

O debate sobre o tema do Estado recupera nesta coletânea de jovens


pesquisadores uma preocupação incomum na presente ambiência cultural
pós-moderna: a busca dos fundamentos histórico-ontológicos da vida so-
cial. Por si só, esta escolha já tornaria sua leitura um convite necessário e
fácil de reiterar. Seus materiais trazem ainda uma riqueza em seus dez capí-
tulos, exibindo o fôlego de seus autores para articular o tema com os aspec-
tos que tipificam o atual tempo histórico e o patamar da luta de classes.
Logo no primeiro capítulo, o Estado é reconhecido na sua condição
de existência essencial para o sociometabolismo do capital. Com arrimo na
obra de Mészáros, Fernando de Araújo Bizerra desnuda as determinações e
relações que constituem a substância histórica subalterna do Estado ao im-
perativo incontrolável do capital. Recuperando os elementos históricos
concretos, o pesquisador evidencia as condições objetivas em que o capital
se tornou a força dominante do metabolismo social, através da alienabili-
dade da terra, da eliminação dos obstáculos impostos ao desenvolvimento
das forças produtivas, da expropriação dos meios de produção, da genera-
lização da mercantilização e da exploração da força de trabalho com o pro-
pósito de extrair constantemente mais-trabalho.
O autor desvela o papel do Estado moderno nesta seara, identifi-
cando a sua função de administração da relação entre produção e controle
com suas intervenções políticas favoráveis aos interesses capitalistas e à ma-
nutenção da naturalização da desigualdade social. Mesmo em sua função
supostamente protetora, o Estado atua nas fronteiras dos interesses da
classe dominante. Nesta leitura, a pesquisa reúne o conjunto de tendências
que expressam a complementaridade exercida pelo Estado que permite ao
capital a realização das potencialidades de seu modo de controle em cada
conjuntura particular.
A coletânea segue firme no segundo capítulo com o profícuo debate do
papel do Estado nos processos de expropriação e apropriação, com o escrito
de Rebeca Gomes de Oliveira Silva. Retomando a crise estrutural do capital, ex-
pressa intensamente desde os idos de 1970, a pesquisadora busca evidenciar as
formas de atualização das expropriações, dando visibilidade aos seus severos
impactos para o trabalho e a vida social. Inicia recuperando a ruptura metabó-
lica entre trabalhador, terra e meios de trabalho com a ascensão do capitalismo,
desde a acumulação primitiva até suas expressões recentes. Para isso, marca o
papel fundamental do Estado neste processo e afirma as expropriações e apro-
priações tanto como retirada das populações de suas terras, mas também

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quanto ao “cercamento” e à captura das condições necessárias para a reprodu-
ção da classe trabalhadora. Ao fazê-lo, a autora traz estas questões sem deixar
de citar os processos de resistência envidados pela classe trabalhadora, apon-
tando as contradições vivas do tempo histórico.
Mantendo a perspectiva crítica que acompanha toda a coletânea, o
texto de Thays Fidelis e Georgette Ramírez Kuri prioriza o debate do Estado
nas particularidades e marcas da América Latina. Na linha do primeiro texto
desta obra, o escrito observa a função geral do Estado no controle dos três
defeitos estruturais do sistema do capital apontados por Mészáros, a saber:
a separação entre produção e controle, produção e consumo e produção e
circulação. No enfrentamento da terceira contradição, faz-se necessário o
crescente autoritarismo nas relações do Estado nos países centrais e perifé-
ricos para o aprofundamento da exploração do trabalho. Neste contexto, o
texto revela os caminhos da industrialização dependente na América Latina,
lembrando que o trânsito da economia agrária para a industrial não se dá
mediante um rompimento brusco e total com as formas de produção ante-
riores. Ao invés, o que se verifica é um processo lento e contínuo de supe-
ração que vai conformando o capitalismo dependente. Adensa-se ainda no
texto a caracterização da dependência com base nas reflexões de Rui Mauro
Marini, que adiciona o conceito de Estado de contrainsurgência, caracterís-
tico por agregar as tarefas militares no controle autoritário das lutas popu-
lares na América Latina, com fins de reestabelecimento das condições nor-
mais de acumulação e reprodução capitalista na região, atualizando sempre
as formas de repressão e criminalização dos movimentos sociais.
O livro não deixa de fora o caráter classista e destruidor do Estado
no atendimento aos interesses do capital quando se trata da questão ambi-
ental. É o que se pode ler no quarto capítulo, com a produção de Everton
Melo da Silva e de Artur Bispo dos Santos Neto. O levantamento histórico da
intervenção do Estado brasileiro na Amazônia para fins econômicos é ex-
posto no texto; bem como a preservação da natureza e das populações tra-
dicionais vista pelos órgãos oficiais como “obstáculos” ao desenvolvimento
econômico capitalista. Nos projetos e legislações foi preciso expulsar os
povos e as comunidades tradicionais dos seus territórios, valendo-se o Es-
tado brasileiro da violência normativo-legal e/ou das forças armadas. Não
à toa, o Brasil é o país que lidera mundialmente as mortes por questões
vinculadas à terra.
Albany Mendonça Silva, Andréa Alice Rodrigues Silva e Caroline dos Santos
Lima expressam a concretude do Estado a partir dos dilemas da democratiza-
ção do ensino superior na contemporaneidade. Situando a política educacional
no contexto da crise do capital, as autoras mostram a neoliberalização do Es-
tado, os impactos nas políticas públicas e a intensificação da mercantilização da

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educação. No decorrer da exposição, consideram, diante das contradições pre-
sentes, os avanços na democratização do ensino superior com a garantia de
vagas oriundas das políticas afirmativas, ao tempo que alertam para o caráter
regressivo da contrarreforma do Estado e para as ameaças deste processo às
conquistas realizadas.
O tema do fundo público e do financiamento da reprodução social da
força de trabalho no Brasil adentra o sexto capítulo da presente coletânea, des-
tacando a particularidade conjuntural do Estado no governo Bolsonaro e o seu
projeto que aliou ultraconservadorismo, ultraneoliberalismo e neofascismo.
Partindo da formação social do Estado brasileiro, os pesquisadores Fabrício Ro-
drigues da Silva, Elaine Rossetti Behring e Jordeana Davi desnudam a aliança entre
capitalismo clássico e relações sociais de produção assentadas na inserção es-
crava da força de trabalho negra, tornando também escravos os povos originá-
rios, com a mediação fundamental do Estado.
Com a exposição dos dados do governo Bolsonaro na Função Tra-
balho e Previdência Social, os pesquisadores desvelam as condições da
classe trabalhadora entre 2019 e 2021, denunciando a letalidade aferida no
encolhimento de 17% da Função Trabalho no período analisado, atingindo
em 2021 as ações orçamentárias seguro-desemprego e abono salarial, com
reduções, respectivamente, de 17% e 49%, comparado com o orçamento
de 2020. No campo da Previdência Social, a letalidade se expressou incial-
mente pela contrarreforma previdenciária aprovada através da Emenda
Constitucional 103/2019, com o insignificante crescimento na Função Pre-
vidência Social, na ordem de 15% no período analisado. Diante dos dados
anunciados, o escrito chama atenção para a continuidade do bolsonarismo
na cultura política, mesmo após sua derrota eleitoral, sendo necessário seu
combate, tendo em vista os interesses da classe trabalhadora.
A concretude classista do Estado é também revelada no sétimo texto da
coletânea, com Lucas Bezerra nos mostrando o Estado e os usineiros na zona
da cana nordestina. O Estado é apontado como decisivo na dinâmica da zona
da cana ao viabilizar as condições necessárias à reprodução ampliada do capital
na agricultura mediante o fornecimento de incentivos fiscais, tributários e in-
fraestruturais. Fiador do agronegócio, o Estado tem este papel histórico forta-
lecido pela presença direta do patronato rural. Este trata as instâncias estatais
como sendo suas, de suas famílias, de seus grupos empresariais; moderniza-se
assimilando o que lhe convém das novidades do desenvolvimento capitalista,
sem perder seus traços mais antigos e típicos.
Tibério Lima Oliveira contribui com uma revisão bibliográfica de con-
ceitos como Estado, mercado e sexualidades, resgatando os fundamentos
marxistas reveladores da dinâmica da vida na sociedade burguesa que

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oprime e limita as expressões da diversidade sexual. Recuperando os estu-
dos marxianos sobre o Estado, o autor considera ainda o pensamento
gramsciano e sua atualidade para o desenvolvimento do debate político so-
bre o Estado. O pesquisador situa teoricamente estes aspectos, evidenci-
ando, em seguida, a contemporaneidade da neoliberalização do Estado e de
toda a vida social. No debate da diversidade sexual, observa uma política de
acionamento do Estado e do mercado sobre a comunidade LGBTQI+, in-
corporando de forma controlada e limitante as lutas e os questionamentos.
A pauta da posição do Estado cresce no nono capítulo, desenvolvido
por Tales Fornazier em caráter de denúncia sobre a conivência com o ra-
cismo, desde os processos de colonização e escravismo aos dias atuais de
sua reprodução. Conivência exposta na ausência de respostas do Estado às
condições sociais de desigualdade social e racial, na legitimação desses pro-
cessos e na reiteração de diversas formas de violência institucionalizada
contra a população negra. O pesquisador expõe os dados de extermínio
desta população pelo Estado e, ainda, o controle subjetivo e ideológico ne-
cessário para a sedimentação do racismo que se naturaliza no cotidiano pró-
prio da formação brasileira. Uma forma de racionalidade que se torna es-
trutural, o racismo se expressa como parte do funcionamento e da dinâmica
normal das instituições, visto que elas são hegemonizadas pela ideologia ra-
cial dominante. Neste sentido, o autor nos convida ao avanço na análise
histórico-crítica sobre os seus fundamentos, haja vista que a própria reali-
dade concreta tem nos levado cada vez mais a reconhecermos não apenas
a existência do racismo e a necessidade de combatê-lo, mas a percebermos
que ele se coloca como elemento estruturante das nossas relações. Portanto,
não é possível qualquer análise séria e coerente apartada da compreensão
de como as determinações étnico-raciais conformam nossa realidade. As-
sim, reforça ser fundamental a análise sobre o racismo no bojo das relações
sociais erigidas sob o capitalismo dependente.
A qualidade densa e crítica da coletânea mostra-se também em seu último
capítulo, de autoria de Paulo Roberto Felix dos Santos. Com amparo na leitura com
princípio na totalidade social, o pesquisador analisa a ampliação da miséria, com-
preendendo a prisão na atualidade como uma espécie de “depósito de indigen-
tes”, supranumerários inúteis à subordinação direta aos ditames funcionais do
capital. Problematiza os processos de privatização do sistema prisional como um
dreno de fundo público para o abastecimento do capital. Ao analisar o perfil da
população mais afetada pela expansão prisional no estado de Sergipe, em conso-
nância com as tendências nacionais, o autor lembra que a crítica ao sistema penal
não deve passar só por uma análise do quanto este campo é produtor de uma
série de “injustiças sociais”, mas pela estreita conexão que ele guarda na manu-
tenção de um sistema de exploração/opressão a partir de uma estrutura racista-

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sexista-capitalista. Ou seja, o Estado punitivo é funcional ao capital como nicho
mercadológico, dadas as privatizações do sistema prisional, mas também pelo
horizonte de reiteração cultural e ideológica da classe dominante.
Eis a relevante composição desta coletânea que, com preocupação
científica, aduba suas assertivas sobre o Estado com reflexões, dados, pes-
quisas bibliográficas e documentais que fertilizam o reconhecimento do ca-
ráter classista do Estado. Este material nos brinda com um conjunto coe-
rente e maduro no campo da crítica marxista em diálogo com a materiali-
dade histórica desafiadora do nosso tempo. É o papel da produção de co-
nhecimento comprometida com os dilemas sociais.

Erlenia Sobral do Vale


Professora do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do
Ceará (UECE).
Presidenta da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço So-
cial (ABEPSS) na gestão 2023-2024 – “Em luta, seguimos atentas e fortes:
Luciana Cantalice, presente!”

13
APRESENTAÇÃO

A presente coletânea, intitulada “Estado e dominação de classe: expressões con-


temporâneas”, reúne análises sobre a intervenção estatal consolidadas a partir de
múltiplas mediações, dando ênfase, em particular, à conjuntura brasileira re-
cente. O propósito é oferecer subsídios analíticos que, sob o crivo da teoria
marxiana e marxista, demonstrem as implicações concretas da atuação do Es-
tado no cotidiano dos diversos segmentos da classe trabalhadora, garantindo-
se, com isso, as condições sociais, políticas, econômicas e institucionais de efe-
tivação da dominação de classe, com tudo o que ela implica.
A temática do Estado, pelo seu potencial heurístico, tem se afirmado
como um grande desafio intelectual que instiga múltiplas leituras. Ao longo
tempo, o debate teórico-conceitual sobre ela é pulsante, fértil e favorável à
revisão crítica das ideias já publicadas, bem como ao surgimento de novas
investigações e interlocuções, fecundando-se, em ambos os casos, o avanço
da produção do conhecimento acerca do Estado e sua inter-relação com a
sociedade estratificada em classes sociais antagônicas que se defrontam em
defesa dos seus interesses.
O modelo econômico brasileiro e a política estatal a ele atinente têm pro-
vocado efeitos deletérios para os trabalhadores da cidade e do campo, bem como
para as comunidades tradicionais. Frente a esta constatação, os artigos aqui coli-
gidos versam sobre as expressões contemporâneas da intervenção estatal, de-
monstrando como ela é absolutamente imprescindível para conformar o quadro
político necessário à reprodução do capital. No decorrer das páginas que seguem,
os/as leitores/as terão acesso a sínteses expositivas que abordam os fundamen-
tos teóricos e sociohistóricos do Estado; a participação ativa do Estado nas ex-
propriações alavancadas no decorrer do desenvolvimento capitalista; as particu-
laridades do Estado na América Latina; as implicações da contrarreforma do Es-
tado para a educação superior; o protagonismo do Estado na destruição socio-
ambiental; a relação entre Estado, mercado e sexualidades; a conivência do Es-
tado quanto à disseminação do racismo estrutural; o envolvimento do Estado
com as práticas de classe perpetradas pelos usineiros; a atuação do Estado voltada
às funções orçamentárias Trabalho e Previdência Social; o Estado punitivo e sua
estratégia de privatização das prisões; a violência estatal etc.

14
Diante do contexto regressivo endossado pelo neoliberalismo, neo-
conservadorismo e pela extrema direita no país, compreender o Estado e
sua atuação associada aos mecanismos de dominação de classe tem sido
demanda constante na agenda dos pesquisadores das Ciências Humanas e
Sociais. Na presente coletânea, a empreitada de refletir acerca do Estado é
encarada por um elenco de 16 estudiosos/as que socializam os resultados
de suas pesquisas, em sua maioria desenvolvidas no nível de doutoramento,
realizadas na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e em
diversas instituições federais brasileiras, quais sejam: Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Uni-
versidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Universidade Federal de
Sergipe (UFS), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade Es-
tadual da Paraíba (UEPB), Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM) e Universidade de Brasília (UnB).
Nosso intento é oferecer, com o esquadrinhamento das questões
abordadas na coletânea, um contributo à atividade formativa dos trabalha-
dores, aos pesquisadores, profissionais e militantes comprometidos com a
crítica radical do Estado e da sociedade da qual ele é produto. Compreender
os fenômenos que perpassam o mundo, indo à sua raiz e desmistificando-
os com o auxílio de reflexões densas, é um exercício urgente quando se
perspectiva a superação radical dos componentes estruturais constitutivos
do modo atual de controle sociometabólico, com sua dinâmica destrutiva
legitimada pelo Estado. Avançar na luta rumo a uma sociedade verdadeira-
mente emancipada, transcendendo, com a ofensiva de massa socialista, o
Estado, a dominação de classe, o capital e tudo a eles correlato, pressupõe
a apropriação de uma correta apreensão dos meandros da dificílima reali-
dade que nos cerca.
Esperamos que os/as leitores/as desta coletânea possam encontrar
elementos que os/as levem a refletir criticamente sobre como, por que e
por quais meios o Estado garante a dominação de classe em cada contexto his-
tórico particular. Sintam-se convidados/as a fazer parte do debate aberto
nos meios acadêmicos. Boa leitura!
Março de 2023, no agreste e no litoral alagoano.
Os organizadores

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CAPÍTULO 1
Para uma abordagem mészáriana sobre o Estado 1
Fernando de Araújo Bizerra

Introdução

Este capítulo oferece alguns elementos essenciais para o debate sobre


a particularidade do Estado no sistema do capital. Tendo em vista que este
objeto de estudo pode ser tematizado por vários prismas analíticos, opta-
mos por fazer uma intervenção teórica com base nas análises sistematizadas
pelo marxista húngaro István Mészáros, sem, obviamente, qualquer preten-
são de expor sua argumentação em toda sua complexidade. A proposta é
abordar o Estado em sua constituição objetiva materialmente fundada,
apresentando-o enquanto estrutura totalizadora de comando político do ca-
pital que, no cenário conflitivo da luta de classes, age em rigorosa confor-
midade com os parâmetros deste modo de controle sociometabólico tão
singular, complementando-o, administrando os antagonismos sociais e re-
tificando a ausência de unidade nas unidades reprodutivas particulares.

O Estado, ou a estrutura de comando político do capital

O Estado moderno não se erige ex post do capital, nem o precede. É


incorreto estabelecer uma demarcação temporal fundamentada na anterio-
ridade ou na posterioridade do aparecimento do Estado quando comparado
ao do sistema do capital. A compreensão do Estado moderno deve consi-
derar, a princípio, sua efetiva “correspondência” e “homologia”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 117) com esse modo singular de controle sociome-
tabólico. Estado e capital surgem inseparáveis e simultaneamente, estabele-
cendo-se uma correlação anteriormente inconcebível entre economia e po-
lítica. A dominação do capital no âmbito econômico é acompanhada a um

1
O presente artigo foi elaborado a partir da tese de doutorado intitulada “Estado e
expropriações: uma relação vital ao sistema do capital”, defendida em outubro de 2022
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), sob orientação da Prof.ª Dra. Reivan Marinho de Souza.
16
só tempo pela edificação do Estado a ele atinente, havendo uma reciproci-
dade dialética, uma codeterminação, um liame incindível entre ambos.
O Estado compõe a “‘base material’ do sistema tanto quanto as próprias
unidades reprodutivas socioeconômicas”. Portanto, é “perfeitamente inútil
perder tempo tentando tornar inteligível a especificidade do Estado em termos
da categoria da ‘autonomia’ (especialmente quando se expande esta ideia para
significar ‘independência’)”, bem como “de sua negação”. Dado seu inter-rela-
cionamento com as estruturas reprodutivas materiais, o Estado “não pode ser
autônomo2” ao sistema do capital, pois “há uma relação inextrincável de um
em relação ao outro3” (MÉSZÁROS, 2002, p. 119, grifo do autor), o que não
o torna redutível às determinações provindas diretamente das funções econô-
micas efetivadas pelo capital.
O Estado moderno, adquirindo formatações particulares concretas,
é uma exigência absolutamente indispensável para o funcionamento da mo-
dalidade única de metabolismo social do capital. Atua no sentido de desen-
volver práticas políticas totalizadoras que permitem aos capitalistas a extra-
ção do mais-trabalho e a expropriação crescente das abundantes riquezas
produzidas pelos trabalhadores, assegurando e protegendo a viabilidade re-
produtiva do sistema capitalista. Sua formação iniciou-se ainda na fase da
acumulação primitiva do capital, sob o comando das monarquias absolutis-
tas progressistas dos principais países da Europa Ocidental (Portugal, Ho-
landa, França, Espanha, Inglaterra), e se consolidou com as revoluções bur-
guesas sucedidas no lapso temporal que se estendeu do século XVII ao
XIX, sobretudo na Inglaterra e na França – da Revolução Puritana às sub-
levações de 1848.

2
Paniago (2019, p. 29) ressalta, quanto a esse aspecto destacado por Mészáros, que “Se
é possível pensar em algum grau de autonomia do Estado em relação à propriedade (o
capital) ou aos proprietários (os capitalistas), essa pode ocorrer apenas em seu campo
específico de atuação, na formulação das mediações mais criativas e efetivas, imple-
mentadas seja por meio da coerção, seja do consenso, o que para nossa discussão não
importa, pois visam assegurar inequivocamente a reprodução do sistema enquanto tal”.
3
Valemo-nos, aqui, da “pequena alteração” feita nesta frase por Paniago (2019, p. 30)
“com base no original em inglês, em relação à tradução da edição em português: ‘The
state as the comprhensive political command structure of capital cannot have auto-
nomy, in any sense whatsoever, from the capital system, since it happens to be inextri-
cably one with the later’”. A versão original em inglês mencionada pela autora refere-
se à que foi publicada em Nova York, no ano de 1995, pela editora Merlin Press.
17
Com as revoluções burguesas, concretiza-se uma forma de Estado que
não adveio de uma determinação econômica direta. Tampouco dimanou de
“um afloramento mecânico superestrutural, em conformidade com uma vi-
são reducionista da dominação material supostamente unilateral da sociedade”. Di-
aleticamente, o Estado moderno constituiu-se na arena conflitiva da luta de
classes “por meio de sua necessária interação recíproca com a base material
altamente complexa do capital”. Ao passo em que foi “moldado pelos funda-
mentos econômicos da sociedade”, o Estado adquiriu dinamismo e impor-
tância sempre maiores e “também moldou de forma bastante ativa a realidade mul-
tifacetada das manifestações reprodutivas do capital no decorrer de suas
transformações históricas, tanto na [sua] fase ascendente quanto na [sua] fase
descendente” (MÉSZÁROS, 2011, p.149, grifos do autor).
O Estado assume a característica de ser uma dimensão coesiva condi-
zente com a nova modalidade de reprodução econômica, facilitando a realiza-
ção irrestringível dos objetivos materiais do capital. Essa dimensão coesiva,
“sem a qual até o tipo potencialmente mais dinâmico de unidades produtivas
não poderia constituir um sistema reprodutivo sustentável”, foi alcançada “pelo
modo de controlar a reprodução societal do capital” na sua “forma historica-
mente específica e única” (MÉSZÁROS, 2011, p. 152, grifo do autor).
Atenuando os conflitos existentes, o Estado protege a propriedade
privada obtida mediante a exploração-expropriação dos produtores diretos.
Opera, assumindo uma variedade de configurações e regimes de governo,
“como constituinte de uma unidade orgânica com o sistema como um todo,
inseparavelmente de sua contínua inter-relação com o domínio reprodutivo
material em constante expansão” (MÉSZÁROS, 2011, p. 153, grifos do au-
tor). Materializa ações remediadoras apropriadas à abrangência totalizante
do sistema do capital, cuja dinamicidade se pauta pela constante extração
do mais-trabalho – sua “raison d’être histórica e seu modo real de funciona-
mento” (MÉSZÁROS, 2002, p. 103, grifos do autor).
A dimensão coesiva corporificada pelo Estado se institui como uma
estrutura4 separada de comando político totalizador do capital devido ao

4
Para fugir às interpretações comumente e infundadamente disseminadas nos debates
sobre o Estado, Mészáros (2002, p. 119) advoga: “Na qualidade de estrutura totaliza-
dora de comando político do capital [...], o Estado não pode ser reduzido ao status de
superestrutura. Ou melhor, o Estado em si, como estrutura de comando abrangente,
18
fato de que as unidades econômicas do sistema “têm um caráter incorrigi-
velmente centrífugo – caráter que, há longo tempo na história, tem sido
parte integrante do incomparável dinamismo do capital”, não obstante “em
certo estágio de desenvolvimento ele se torne extremamente problemático
e potencialmente destrutivo” (MÉSZÁROS, 2002, p. 121). Indo além das
requisições jurídico-legais, o Estado moderno se compromete com a garan-
tia das condições gerais para a extração do mais-trabalho e, outrossim, com
as próprias unidades reprodutivas econômicas diretas, oferecendo sua con-
tribuição para o funcionamento do sistema do capital.
Sem a dimensão coesiva, o modo espontâneo de controle sociome-
tabólico do capital, ao invés de ter avançado para um sistema dotado de
microcosmos socioeconômicos produtores e extratores de mais-trabalho,
seria “apenas um agregado mais ou menos acidental e insustentável de en-
tidades econômicas expostas aos riscos do desenvolvimento deformado ou
da franca repressão política” (MÉSZÁROS, 2002, p. 123). Isso porque,

Tomadas em separado, as unidades reprodutivas socioeconômicas


particulares do capital são não apenas incapazes de coordenação e to-
talização espontâneas, mas também diametralmente opostas a elas, se
lhes for permitido continuar seu rumo disruptivo, conforme a deter-
minação estrutural centrífuga de sua natureza. Paradoxalmente, é
esta completa “ausência” ou “falta” de coesão básica dos microcos-
mos socioeconômicos constitutivos do capital – devida, acima de
tudo, à separação entre o valor de uso e a necessidade humana es-
pontaneamente manifesta – que faz existir a dimensão política do
controle sociometabólico do capital na forma do Estado moderno
(MÉSZÁROS, 2002, p. 123, grifos do autor).

A estrutura separada de comando político abrangente, que é o Estado


moderno, não se confunde com a estrutura de comando do capital. Em inter-
relação recíproca com o Estado, o capital possui sua própria estrutura de co-
mando, ajustada em todos os domínios e em todos os níveis por não admitir
nada acima de si. A dimensão política é uma parte que o integra, ainda que de
modo algum subordinadamente. O Estado, aliado aos imperativos metabólicos

tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apropriadamente como ‘supe-
restrutura legal e política’ – exatamente como as estruturas reprodutivas materiais di-
retas têm suas próprias dimensões superestruturais”.
19
do capital, funciona como o “pré-requisito necessário da transformação das uni-
dades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral
para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 124, grifos do autor), exercendo uma coesão essencial
na instauração, na consolidação e no funcionamento da multiplicidade de es-
truturas reprodutivas da sociedade capitalista.
O inter-relacionamento entre Estado e capital

[...] também se mantém quando visto pelo outro lado, pois o Estado
moderno em si é totalmente inconcebível sem o capital como função
sociometabólica. Isto dá às estruturas materiais reprodutivas do sis-
tema do capital a condição necessária, não apenas para a constituição
original, mas também para a sobrevivência continuada (e para as trans-
formações históricas adequadas) do Estado moderno em todas as suas
dimensões. [...] Em razão dessa determinação recíproca, devemos falar
de uma correspondência estreita entre, por um lado, a base sociome-
tabólica do sistema do capital e, por outro, o Estado moderno como
estrutura totalizadora de comando político da ordem produtiva e re-
produtiva estabelecida (MÉSZÁROS, 2002, p. 125).

O sistema do capital, guardando com o Estado moderno essa “cor-


respondência estreita” apontada pelo autor, afirma-se como “a exceção e não
a regra, no que diz respeito ao intercâmbio produtivo dos seres humanos
com a natureza e entre si” (MÉSZÁROS, 2002, p. 96, grifos do autor). Ma-
nifestando-se de imediato numa coisa ou num conjunto de coisas palpáveis
(dinheiro, bens, mercadorias), o capital é, para além de uma “entidade ma-
terial”, uma poderosa estrutura de controle sociometabólico totalizadora
que, globalmente dominante, escapa a um significativo grau de controle hu-
mano, ajustando tudo, até mesmo os indivíduos5, à sua autorreprodução
guiada pela expansão e acumulação crescentes.
O capital, ao controlar o sóciometabolismo, sujeita a sociedade na
busca obstinada por conseguir realizar sua expansão diante das contingên-
cias históricas, sem a qual acaba derrocado mais cedo ou mais tarde. A su-
jeição é de tal monta que, atendendo aos seus critérios de viabilidade, abarca

5
Mészáros (2002, p. 98, grifos do autor) lembra que, dado o caráter totalizador do
capital, “As oportunidades de vida dos indivíduos sob tal sistema são determinadas
segundo o lugar em que os grupos sociais a que pertençam estejam realmente situados
na [sua] estrutura hierárquica de comando”.
20
“a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a
indústria manufatureira”. Desde “as menores unidades de seu ‘microcosmo’
até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas rela-
ções pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vas-
tos monopólios industriais” (MÉSZÁROS, 2002, p. 96), “desde os proces-
sos econômicos mais básicos até os domínios intelectuais e culturais mais
mediados e sofisticados” (MÉSZÁROS, 2014, p. 16) revela-se a preeminên-
cia da lógica frenética do capital nos distintos espaços da sociedade.
O capital expande-se no quadro macroscópico de suas determinações
sistêmicas e, impelido pela acumulação, funciona como um modo de con-
trole incontrolável por planejamento ou ação dos capitalistas, dos trabalha-
dores ou dos dirigentes do Estado, por mais cônscia, pré-programada e bem
elaborada que ela seja. Apesar de se deparar com problemas e antagonismos
gerados na (e pela) sua ordem socioeconômica, o capital segue, há séculos,
incontrolavelmente seu curso de desenvolvimento, sendo infrutíferas todas
as tentativas (em sua maioria levadas a feito sob a batuta da socialdemocra-
cia) de controlá-lo 6.
Incontrolável por natureza, o sistema do capital é singular na história ao
ser “um sistema de controle sem sujeito”. Seus imperativos objetivos “sempre
devem prevalecer contra os desejos subjetivos – para não mencionar as possí-
veis reservas críticas – do pessoal controlador que é chamado a traduzir esses
imperativos em diretrizes práticas” (MÉSZÁROS, 2002, p. 125, grifo do autor).
As personificações do capital, mesmo gozando de posições sociais privilegia-
das, ao invés de deterem o controle real da estrutura de comando do capital,
terminam sendo por ele controladas. Os controladores dos microcosmos re-
produtivos particulares do capital são, pois, controlados pelos ditames deste
sistema; afinal, “não se pode afirmar a existência de qualquer representante hu-
mano autodeterminante no [seu] controle” (MÉSZÁROS, 2002, p. 126). O
controle foge, em todo caso, às competências dos capitalistas.

6
Os variegados motivos que conspiraram para o malogro das experiências históricas que
visaram restringir a dinâmica expansionista do capital e, por esta via, impor gradualmente
controle a ele (e ao seu Estado) não serão abordados por nós nesta oportunidade. Eles são
sistematizados por Mészáros (2002), cabendo a sua consulta para o conhecimento desta
temática tão polêmica e permeada por controvérsias teóricas e políticas.
21
Como os capitalistas, malgrado serem personificações do capital, não
controlam o capital, eles, no desempenho de suas funções, fazem “a medi-
ação (e a imposição) de seus imperativos objetivos como ordens conscien-
temente exequíveis sobre o sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante,
do processo de produção”. Os trabalhadores, verdadeiros sujeitos produ-
tores da riqueza, na sua labuta diária sofrem com as alienações típicas do
trabalho assalariado e se veem forçados a aceitar, por imposição, “um outro
sujeito acima de si, mesmo que na realidade este seja apenas um pseudo-
sujeito” (MÉSZÁROS, 2002, p. 126); aceitação que não ocorre de modo
pacífico, daí a recalcitrância nas unidades de produção.
Nas equações do sistema do capital, os seres humanos não podem,
como tais, ocupar seu lugar legítimo; não podem ser considerados, nos seus
parâmetros, como a autêntica finalidade da produção. O capital funda uma
produção de riquezas subordinada ao imperativo autotélico de converter
tudo em fonte de lucro. A colossal produção de bens realizada sob o co-
mando do capital não se destina prioritariamente ao atendimento das ne-
cessidades sociais das populações expropriadas dos meios vitais à sua so-
brevivência, engendrando-se profundas contradições crivadas pela luta de
classes. Volta-se, isto sim, à realização do impulso do capital de valorizar-se
que deve ser preservado mais forte do que nunca a qualquer custo – e, de
fato, o é por suas formações de Estado – para sustentar sua estabilidade. A
produção da riqueza com base na exploração da força de trabalho assalari-
ada só adquire sentido ao ativar as possibilidades de valorização e cresci-
mento do capital. É a lógica impositivamente autoexpansionista do capital
que matriza a produção, a expropriação e a apropriação da riqueza engol-
fada nos seus imperativos econômicos.
A subordinação àquele imperativo não se restringe à produção, im-
pregnando as demais esferas da vida, e se impõe porque o sistema social
sob o qual vivemos é o primeiro da história a se afirmar, à sombra da in-
controlabilidade, como totalizador irrecusável e irresistível, independente-
mente do quão violenta tenha de ser a imposição da sua função totalizadora
perante as resistências irrompidas na sua trajetória. Por ser totalizador irre-
cusável e irresistível, o capital logra um dinamismo singular que o torna um
competente extrator de mais-trabalho antes inimaginável quando compa-
rado às modalidades de metabolismo social precedentes, aperfeiçoando os

22
mecanismos de expropriação da riqueza apetecida pelos capitalistas e de-
sobstruindo os óbices impostos no seu fluxo autoexpansivo.

O Estado e os defeitos estruturais de controle do capital

A despeito de o capital ter convivido com conexões metabólicas/re-


produtivas centradas em certo grau de autossuficiência no relacionamento
entre a produção e o seu controle, na sua marcha totalizante ele elimina
formas vetustas de organizar a produção sob a regência do valor de uso.
Para se tornar a força dominante do metabolismo social, o capital aboliu a
proibição absoluta da usura, venceu a batalha em torno da alienabilidade
terra, eliminou os entraves ao desenvolvimento extensivo e intensivo das
forças produtivas, superou a repulsa de ser visto até a Idade Média como
uma forma “antinatural” de controlar a produção, expropriou os trabalha-
dores dos meios de produção e generalizou a mercantilização e a exploração
da força de trabalho com o propósito de extrair mais-trabalho. O inegável
triunfo do capital veio com a ultrapassagem das restrições à cega busca da
autoexpansão, alçando seu modo de controle sociometabólico ao poder de
dominância como sistema global.
Paradoxalmente, o “preço a ser pago” pelo capital por assumir esse di-
namismo totalizador e incontrolável é a perda de controle sobre os processos
de tomada de decisão. A perda do controle sobre os processos de tomada de
decisão aplica-se aos trabalhadores, “em cujo caso a perda de controle – seja
no emprego remunerado ou fora dele – é bastante óbvia” e “até aos capitalistas
mais ricos, pois, não importa quantas ações controladoras eles possuam na
companhia ou nas companhias de que legalmente são donos como indivíduos
particulares, seu poder de controle no conjunto do sistema do capital é absolu-
tamente insignificante”. Eles “têm de obedecer aos imperativos objetivos de
todo o sistema, exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências
e perder o negócio” (MÉSZÁROS, 2002, p. 97-98).
O corolário desta perda é uma falta de unidade que caracteriza os
defeitos estruturais de controle do capital (fratura entre produção e con-
trole, produção e consumo e produção e circulação), os quais assumem a
forma de antagonismos sociais e requerem intervenções do Estado nos dis-
tintos estágios do desenvolvimento capitalista. Mas não se tratam de quais-
quer intervenções. Diante das exigências elementares do capital, elas devem

23
ser bastante precisas: o Estado, imensamente poderoso, articula sua própria
superestrutura legal e política (de tipo bonapartista, parlamentarista, sovié-
tico ou outro requisitado pelas circunstâncias históricas) para retificar de
todas as maneiras a falta de unidade, exercendo, por esta via, uma comple-
mentariedade ao capital, e não somente servindo-o.
Deveria ser desnecessário dizer, embora seja imprescindível fazê-lo,
que a retificação promovida pelo Estado, ao contornar os obstáculos dura-
douros ou efêmeros encontrados, estabelecer a coesão exigida pelo sistema
do capital como um todo e estimular seu imperativo da autoexpansão, não
suprime, em hipótese alguma, suas falhas estruturais, remediando-as com
soluções confinadas ao nível dos seus efeitos e das suas consequências –
constatação que em nada minimiza sua eficácia prática. O equilíbrio alcan-
çado através da ação retificadora desempenhada pelo Estado é rigorosa-
mente provisório e ajustado até onde os limites inerentes ao capital admi-
tem, evitando que as contradições com frequência produzidas pelo próprio
sistema coloquem em xeque a continuidade do ordenamento societal.
No que diz respeito à ruptura entre produção e controle, inseparável
dos microcosmos do sistema do capital,

[...] a unidade ausente é, por assim dizer, “contrabandeada” como


cortesia do Estado, que protege legalmente a relação de forças esta-
belecida. Graças a esta salvaguarda, as diversas “personificações do
capital” conseguem dominar (com eficácia implacável) a força de
trabalho da sociedade, impondo-lhe ao mesmo tempo a ilusão de
um relacionamento entre iguais “livremente iniciado” (e às vezes até
constitucionalmente ficcionalizado) (MÉSZÁROS, 2002, p. 107).

Para que as personificações do capital dominem a força de trabalho, per-


petuando-se a separação entre as funções de produção e controle – funções
atribuídas a classes sociais com interesses irreconciliavelmente opostos entre si,
o Estado sanciona e resguarda “o material alienado e os meios de produção (ou
seja, a propriedade radicalmente separada dos produtores) e suas personifica-
ções, os controladores individuais (rigidamente comandados pelo capital) do
processo de reprodução econômica” (MÉSZÁROS, 2002, p. 107). Numa rela-
ção social hierárquica que reduz a força de trabalho à condição de mercadoria,
a expressiva maioria da humanidade produz, pela exploração direta da sua força
de trabalho, caudalosas riquezas. Tão logo se findam as etapas da produção,

24
essa maioria vê-se privada do controle sobre o que ela mesma produziu; en-
contra-se expropriada dos bens objetivados pelo seu trabalho. Os verdadeiros
produtores, alijados dos meios de produção, não possuem o controle do pro-
cesso produtivo (matéria-prima; instrumentos de trabalho; quantidade de valo-
res produzidos; grau de intensidade, esforço e gasto de energia empregado;
destinação dos produtos), cabendo-o aos capitalistas que, dispondo da propri-
edade daqueles meios, dominam, exploram e expropriam os trabalhadores para
acumular insaciavelmente capital.
Da prevalecente divisão social do trabalho vicejam classes sociais li-
gadas às determinações materiais do próprio metabolismo social. O sistema
do capital edifica-se de maneira antagônica, já que as funções de produção
e de controle do processo de trabalho estão radicalmente separadas uma da
outra. O controle que os capitalistas exercem sobre os trabalhadores no
exercício da produção da riqueza, pressupondo a hierarquia e a dominação
que a acompanham, realiza-se graças aos métodos organizacionais despóti-
cos e persuasivos de disciplinamento da força de trabalho, de desqualifica-
ção profissional e de fragmentação dos conhecimentos dos produtores di-
retos aplicados no chão da fábrica. Os capitalistas se encarregam de contro-
lar o processo de produção em favor do capital, viabilizando a exploração
da força de trabalho e a subordinação dos trabalhadores ao seu domínio.
Sem o controle do capital sobre o trabalho, subsumindo-se este àquele, não
há extração do mais-trabalho e expropriação da riqueza. O controle da pro-
dução dentro e fora do espaço fabril é, no passado e no presente, aqui e
alhures, uma mediação decisiva para que elas aconteçam.
Quanto ao controle da desigualdade entre os que produzem e os que
controlam a produção da riqueza, expropriando-a, o Estado moderno, com seu
complexo burocrático legal e político, regula a tirania nos locais de trabalho e
reforça o controle imposto de cima para baixo mediante uma pétrea disciplina
cumprida pelos trabalhadores ao longo da jornada de trabalho. Impede-se, com
isso, que os microcosmos do sistema sejam rompidos internamente pelos de-
sacordos constantes. Caso o Estado não contenha a inevitável conflituosidade
derivada da falta de unidade entre produção e controle, a sustentabilidade da
ordem social estabelecida mostra-se inviável perante as reincidentes resistências
dos trabalhadores. O capital não é capaz de subsistir sem que o Estado conte-
nha a desigualdade emanada da dualidade disruptiva dos processos socioeco-
nômicos e políticos de tomada de decisão.
25
Evitando “as repetidas perturbações que surgiriam na ausência de
uma transmissão da propriedade compulsoriamente regulamentada – isto é:
legalmente prejulgada e santificada – de uma geração à próxima” e preser-
vando em todos os níveis a alienação do controle pelos produtores, a reti-
ficação efetivada pelo Estado concebe-se como primordial para o capital.
O Estado administra a separação entre produção e controle materializando
intervenções políticas e legais, ora diretas, ora indiretas, sobre os conflitos
relutantemente renovados entre as unidades socioeconômicas particulares,
uma vez que as inter-relações entre elas não são harmoniosas em razão das
suas estruturas antagônicas. A ação do Estado “ocorre de acordo com a
dinâmica mutante de expansão e acumulação do capital, facilitando a pre-
valência dos elementos e tendências potencialmente mais fortes até a for-
mação de corporações transnacionais gigantescas e monopólios industriais”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 108).
No segundo grupo de defeitos estruturais de controle do capital, a
correlação problemática entre produção e consumo, a ação corretiva do Es-
tado encobre as iniquidades evidenciadas na esfera do consumo. Para am-
pliar as vias de expansão do capital, reforçando a crença de que “o céu e o
limite”, o Estado atua como comprador/consumidor direto em frentes dis-
tintas, porém articuladas. O Estado ajusta “suas funções reguladoras em
sintonia com a dinâmica variável do processo de reprodução socioeconô-
mico”, “complementando politicamente e reforçando a dominação do ca-
pital contra as forças que poderiam desafiar as imensas desigualdades na
distribuição e no consumo” (MÉSZÁROS, 2002, p. 110).
Quando a produção aumenta sem encontrar escoadouro para todos
os produtos, abre-se um descompasso entre o que é produzido e a efetiva-
ção do consumo por parte dos indivíduos. Produz-se em ampla escala, mas
nem sempre os consumidores podem absorver as mercadorias disponíveis
com o máximo de brevidade. No capitalismo, a produção não cria imedia-
tamente a demanda pelo consumo da miríade de produtos expostos (em
quantidade e variedade) nas prateleiras das lojas de departamentos, nas vi-
trines dos shopping centers, no comércio ambulante, nos hipermercados,
nos catálogos, nas lojas virtuais etc.; inexiste, então, um equilíbrio automá-
tico entre produção e consumo. Como o sistema do capital por si só não
gera a procura efetiva para o pleno consumo dos bens, ele fica propenso a

26
suscetíveis momentos de instabilidade econômica. Urge encontrar alterna-
tivas para enfrentar as vicissitudes que afetam a autoexpansão do capital ao
ser interrompido o consumo.
Para contrarrestar o subconsumo, cabe ao Estado o provimento de cer-
tas necessidades reais do conjunto da sociedade, principalmente diante das lutas
dos trabalhadores que demandam educação, saúde, segurança, habitação, lazer
e seguridade social. O Estado, retificando a fratura entre produção e consumo,
direciona recursos do fundo público7 para o financiamento da estrutura de vi-
abilização destes serviços, “instituindo bens e equipamentos públicos, como
hospitais, escolas, moradias, centros de assistência social, instituições de admi-
nistração e gestão das políticas sociais”; e, para o desempenho saudável do sis-
tema do capital, em certos estágios do seu desenvolvimento sustenta o con-
sumo daqueles que não podem trabalhar devido à idade, ao desemprego ou à
doença, “por meio de prestações monetárias, ditas de substituição ou comple-
mentação de renda (aposentadorias, pensões, auxílios e programas de assistên-
cia social)” (BOSCHETTI, 2016, p. 27).
Intervindo em meio à contradição entre o consumo manipulado e des-
perdiçador em alguns locais do planeta e a negação das necessidades de incal-
culáveis milhões de pessoas, o Estado possibilita que os trabalhadores, além de
produtores, sejam, na esfera da circulação, consumidores-clientes. O investi-
mento de recursos públicos em serviços sociais, além de assegurar condições
de “bem-estar” até então inexistentes, favorece o aumento do consumo ao per-
mitir a liberação de parte dos rendimentos salarias para ativar o gasto com a
compra de mercadorias. Agindo conforme as virtualidades abertas a cada mo-
mento, o Estado incita o consumo em grande escala, aquecendo os ciclos

7
Behring (2021, p. 38) conceitua a formação do fundo público “a partir de uma punção
compulsória – na forma de impostos, contribuições e taxas – da mais-valia socialmente
produzida, ou seja, [ele] é parte do trabalho excedente que se metamorfoseou em lucro, juro
ou renda da terra e é apropriado pelo Estado para o desempenho de suas múltiplas fun-
ções”. Além disso, o “fundo público não se forma – destacadamente no capitalismo mo-
nopolizado e maduro – apenas com o trabalho excedente metamorfoseado em valor, mas
também com o trabalho necessário, na medida em que os trabalhadores pagam impostos
direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do consumo, onde estes estão embutidos nos
preços das mercadorias”. O fundo público “atua constituindo ‘causas contrariantes’ à queda
tendencial da taxa de lucros, interferindo no ritmo da circulação de mercadorias e dinheiro,
estimulando a metamorfose de um em outro, enfim, intensificando e mediando os ritmos
do metabolismo do capital” (BEHRING, 2021, p. 40, grifos da autora).
27
econômicos, e acaba por assegurar a preservação e o controle da força de tra-
balho. A ação corretiva do Estado é imprescindível para a criação de condições
objetivas de integração da força de trabalho ao consumo.
O Estado, preservando a estrutura de dominação de classe e asseve-
rando sua legitimidade política perante a sociedade, contribui para a reali-
zação do consumo quando “1) interfere na quantidade de dinheiro dispo-
nível para o consumo dos indivíduos e famílias através da regulação dos
salários, definição do sistema de impostos, e estabelecimento dos valores
dos benefícios da seguridade social”; 2) regula ou mesmo determina o mon-
tante e a natureza dos valores de uso que serão adquiridos no mercado”;
“3) subvenciona, em parte ou totalmente, o custo de muitos valores de uso
em forma de serviços como saúde (sistema público ou subsidiado) e outro
serviço sociais” (BOSCHETTI, 2016, p. 68).
Na análise da autora, o provimento de certas necessidades sociais re-
alizado pelo Estado é uma importante estratégia de sustentação do cresci-
mento econômico verificado em conjunturas específicas. Por esta via, pos-
sibilita-se o atendimento de algumas demandas da classe trabalhadora e, ao
mesmo tempo, reduzem-se as situações de precariedade das condições de
vida dos trabalhadores; no entanto, isso ocorre sem que haja a eliminação
da propriedade privada, sem que sejam geradas mudanças significativas nas
relações capitalistas de produção. O Estado oferece uma “resposta ‘ade-
quada’ ao capitalismo” (BOSCHETTI, 2016, p. 105), no sentido de não
colocar em risco a propriedade privada e garantir a reprodução da força de
trabalho. A oferta estatal de serviços sociais não desemboca num processo
de socialização da propriedade, de distribuição de renda, de desmercantili-
zação dos serviços e nem leva à emancipação humana. Ela, ao fim e ao cabo,
mantém, ou para sermos mais precisos, fortalece o capitalismo e reforça a de-
pendência dos trabalhadores ao mercado.
Mészáros (2014) nota que o Estado burguês, diante da pluralidade de
interesses identificáveis no interior da própria classe trabalhadora,

[...] encontra apoio entre vários grupos do trabalho sobretudo em


virtude da “proteção” que ele fornece, sustentando juridicamente e
garantindo a estrutura objetivamente estabelecida da divisão do tra-
balho. É suficiente lembrar a grande variedade de medidas adotas
pelo Estado com respeito a isso, desde o salário mínimo e a legisla-
ção do seguro social até a criação de tarifas protecionistas e outras

28
barreiras nacionais, e desde a administração interna da relação de
forças contra os “excessos” até a participação em empreendimentos
internacionais que assegurem maior vantagem à classe dominante
nacional, que pode conceder, portanto, alguma vantagem relativa à
força de trabalho nacional (MÉSZÁROS, 2014, p. 353-354).

O Estado realiza essa função protetora até o momento em que ela


corresponda objetivamente aos interesses da classe dominante como um
todo e contribua para a dinâmica sociometabólica do capital. O Estado res-
ponde às reivindicações dos trabalhadores sujeitando seus interesses imedi-
atos e de longo prazo no quadro da confrontação da luta de classes, conce-
dendo alguma vantagem relativa à força de trabalho. Em circunstâncias de-
terminadas, os trabalhadores usufruem de concessões feitas pelo capital,
por intermédio do Estado, que impactam na melhoria gradual das suas con-
dições de vida. Obtidas por meio das lutas das organizações do trabalho, e
não unilateralmente, as concessões são assimiladas pelo conjunto do sis-
tema e se integram a ele, resultando em benefícios para a sua autoexpansão.
Ao lado desse provimento, o Estado moderno satisfaz alguns apetites
“artificiais” para atenuar, tanto quanto possível, as complicações surgidas
da fragmentação da produção e do consumo: 1) alimenta a máquina buro-
crática que operacionaliza seu sistema administrativo e 2) estimula o com-
plexo militar-industrial, convertendo-o, através das encomendas (equipa-
mentos militares, armas de fogo, mísseis, munições, aeronaves, blindados,
explosivos) às indústrias bélicas, no setor mais importante da economia
mundial no século XX, continuando a se ampliar no século atual que é palco
da guerra civil na Síria, da guerra genocida de Israel contra Gaza e dos con-
flitos armados que fervilham mundo afora.
Da intervenção totalizadora e da ação corretiva do Estado, mesmo
atenuando as complicações e contradições, não resulta uma “unidade genu-
ína neste plano”, porque a separação e a oposição de produção e consumo,
“com a radical alienação do controle dos produtores, pertencem às deter-
minações estruturais mais internas do próprio sistema do capital”, consti-
tuindo-se “portanto requisito indispensável para sua reprodução constante”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 110, grifo do autor). A sustentação da referida fra-
gmentação pelas práticas corretivas estatais depende “da extensão em que

29
o Estado moderno pode eficazmente contribuir para a necessidade irresis-
tível de expansão e acumulação do capital, em vez de tornar-se para ele um
peso materialmente insustentável” (MÉSZÁROS, 2002, p. 111).
Há que se reconhecer que é igualmente significativa a ação comple-
mentar do Estado à procura de alguma espécie de unidade na terceira fra-
tura, diante do imperativo de criar a circulação em escala global e afirmar o
capital como um sistema ubíquo.
Mészáros (2002) salienta que o Estado moderno, articulando-se em
Estados nacionais, para atuar sobre a fratura entre produção e circulação
instituiu um sistema de “duplo padrão” com direcionamentos político-
econômicos diferenciados: nos países centrais, a classe trabalhadora desfru-
tou de um padrão de vida mais elevado, associado à democracia liberal; já
nos países situados geograficamente na “periferia subdesenvolvida” tor-
nou-se lugar comum a edificação de governos maximizadores da explora-
ção, adeptos das imposições autoritárias (e, também, ditatoriais) e pratica-
dos diretamente ou por procuração.
O “duplo padrão” não permaneceu como um aspecto permanente
do ordenamento global. Levado a cabo em conjunturas específicas, o “du-
plo padrão” não foi estático. Objetivamente, pôde experimentar mudanças
em seu interior e sua duração se limitou

[...] às condições da ascendência histórica do sistema, enquanto a


expansão e a acumulação tranquilas proporcionarem a margem de
lucro necessária que permita um índice de exploração relativamente
favorável da força de trabalho nos países “metropolitanos”, em re-
lação às condições de existência da força de trabalho no resto do
mundo (MÉSZÁROS, 2002, p. 111).

Nos últimos decênios, findada a vigência do “duplo padrão”, mani-


festaram-se duas tendências complementares ao desenvolvimento da rela-
ção entre Estados nacionais e capital global. A primeira é uma “certa equa-
lização no índice diferencial de exploração que tende a se afirmar também como
espiral para baixo do trabalho nos países ‘centrais’ no futuro previsível”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 112, grifos do autor), reverberando no rebaixa-
mento do padrão de vida dos trabalhadores de Norte a Sul do globo. Por
certo tempo, vislumbrou-se uma diferenciação no índice de exploração da
força de trabalho. A extração do mais-trabalho assumiu tons particulares

30
impulsionados pelo Estado nos países centrais e nos países periféricos, cri-
ando-se e recriando-se hierarquias entre os trabalhadores. As riquezas pro-
duzidas apoiadas numa elevadíssima taxa de exploração da classe trabalha-
dora (da indústria, da agricultura, da mineração, do extrativismo) dos países
periféricos, com salários estagnados e intensas-extensas jornadas de traba-
lho, foram expropriadas e transferidas para sustentar os ônus da melhoria
na qualidade de vida dos trabalhadores dos países centrais, subsidiando um
mercado consumidor que deu fôlego à acumulação de capital.
Enquanto o capital vivenciou sua ascendência histórica constatou-se
esta diferenciação, com fortes repercussões nas condições de existência dos
trabalhadores de cada país. A busca por remediar as dificuldades de valorização
do capital em tempos de crise estrutural requer, ao contrário, a intensificação
da exploração da força de trabalho nos diversos ramos e setores produtivos de
todos os países para incrementar a produtividade, a lucratividade e a reanimação
do desenvolvimento econômico. É exatamente a equalização no índice diferencial de
exploração que tem acontecido com a proteção legal do Estado.
Paralela a essa equalização, a segunda tendência emerge de seu neces-
sário resultado político e se traduz num “crescente autoritarismo nos Estados
‘metropolitanos’ antes liberais” e num “desencantamento geral, perfeita-
mente compreensível, com a ‘política democrática’, que está profunda-
mente implicada na virada autoritária do controle político nos países capi-
talistas avançados” (MÉSZÁROS, 2002, p. 112, grifos do autor). O recru-
descimento do autoritarismo estatal restringe a liberdade de expressão, de
pensamento e de mobilização e aplica uma dose imensa de repressão aos
movimentos de trabalhadores organizados com escopos variadíssimos. A
ascensão da extrema direita ao poder8, as intervenções virulentas de jaez
neofascista, as forças reacionárias e o neoconservadorismo orquestram o
autoritarismo nos Estados nacionais, reforçando as velhas táticas com teor

8
Como nas experiências de Augusto Pinochet no Chile (1973), Thorbjörn Fälldin na
Suécia (1976), Margaret Thatcher na Grã-Bretanha (1979), Ronald Reagan nos Estado
Unidos (1980), Poul Schlüter na Dinamarca (1971), Helmut Khol na Alemanha (1982),
Mark Rutte na Holanda (2010), Viktor Orbán na Hungria (2010), Recep Tayyip Er-
doğan na Turquia (2014), Donald Trump nos Estados Unidos (2016), Rodrigo Duterte
nas Filipinas (2016), Emmanuel Macron na França (2017), Matteo Salvini na Itália
(2018) e Jair Messias Bolsonaro no Brasil (2019).
31
nacionalista, racista, misógino, sexista e LGBTfóbico que nunca foram ba-
nidas da cena política; incitando a violência estatal, as perseguições e a mi-
litarização da vida social; fortalecendo econômica e politicamente a opres-
são de classe. Por tudo isto, o autoritarismo estatal, conjugado com a equali-
zação no índice diferencial de exploração, contribui para a continuidade do sistema
do capital sob a atmosfera da sua crise mais diuturna.
Frente a essas tendências, o Estado, na condição de agente totaliza-
dor da criação da circulação global, age variavelmente diante do que a polí-
tica interna e a política internacional solicitam. No plano internacional, o
Estado desenvolve ações corretivas que facilitam a irrestringível expansão
do capital no exterior. O Estado nacional do sistema do capital “não tem
nenhum interesse em restringir o impulso monopolista ilimitado de suas
unidades econômicas dominantes”. Na ambiência perversa da concorrên-
cia, onde a cada capitalista interessa acumular o máximo possível de capital,
“quanto mais forte e menos sujeita a restrições for a empresa econômica
que recebe o apoio político (e, se preciso, também militar), maior a proba-
bilidade de vencer seus adversários reais ou potenciais” (MÉSZÁROS,
2002, p. 113). Os recursos mobilizados pelo Estado para aquela facilitação

[...] se alteram de acordo com a modificação das relações de forças no


país e no exterior devida à mudança nas circunstâncias históricas. No
entanto, os princípios monopolistas orientadores de todos os Estados
que ocupam uma posição dominante na ordem global de poder do ca-
pital permanecem os mesmos, apesar das ideias de “livre comércio”,
“competição justa” etc., em que no início honestamente se acreditava
(gente como Adam Smith), mas que depois se transformaram apenas
numa camuflagem cínica ou objeto de adulação ritual. No sistema do
capital, o Estado deve afirmar, com todos os recursos à sua disposição,
os interesses monopolistas de seu capital nacional – se preciso, com a
imposição da “diplomacia das canhoneiras” – diante de todos os Esta-
dos rivais envolvidos na competição pelos mercados necessários à ex-
pansão e à acumulação do capital. Isto acontece em relação às mais va-
riadas práticas políticas, desde o início do colonialismo moderno (com
o papel por ele concedido às companhias comerciais monopolistas) até
o imperialismo plenamente desenvolvido, passando pelo “desmembra-
mento do império” pós-colonial, que garante novas formas de domina-
ção neocolonialistas, para não mencionar as aspirações e os métodos
neoimperialistas agressivos dos Estados Unidos e seus aliados subservi-
entes na recentemente decretada “Nova Ordem Mundial”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 113).

32
Outras ações, não menos corretivas, são postas em prática no domí-
nio da política interna. E nele o Estado vê-se impingido a estabelecer os
meios para evitar que as acentuadas concentração e centralização, tendên-
cias constitutivas do expansionismo do capital, resultem no desapareci-
mento prematuro das pequenas unidades produtivas que não passaram por
processos de fusões e incorporações; atuação essa que se esbarra em diver-
sos limites, pois não é - e nem pode ser - definitivamente resolutória. O
Estado, na dinâmica em que um punhado de capitais mais poderosos sub-
metem, combinam ou absorvem os menores, planeja um conjunto de me-
didas, diretrizes, planos e programas que largueiam as oportunidades de ne-
gócios para os grandes e pequenos capitalistas do seu território, potenciali-
zando o crescimento dos mercados locais ou regionais e fomentando a cir-
culação dos bens nacionais.

Considerações finais

Pelo que foi sinalizado até aqui, percebe-se que o “Estado na sua
composição na base material antagônica do capital não pode fazer outra
coisa senão proteger a ordem sociometabólica estabelecida”, defendendo-a
“a todo custo, independentemente dos perigos para o futuro da sobrevi-
vência da humanidade” (MÉSZÁROS, 2015, p. 28). Suas ações corretivas,
voltadas à administração dos antagonismos responsáveis pela centrifugali-
dade da multiplicidade de unidades reprodutivas materiais particulares, con-
tribuem para que as personificações do capital, a cada época, se refestelem
de riquezas acumuladas a expensas da extração do mais-trabalho gerado pe-
los produtores diretos e deles expropriado. Por meio das ações sumariadas
ao longo do capítulo, o Estado protege vigorosamente – e tem de proteger
– a ordem sociometabólica estruturada de modo antagonístico, retifica a
ausência de unidade existente na tríplice de defeitos estruturais de controle
do capital e, ao fazê-la, proporciona uma coesão compatível com a repro-
dução econômica. O que esperamos ter evidenciado com a exposição ora
finalizada é que a complementariedade exercida pelo Estado permite ao ca-
pital a realização das potencialidades de seu modo de controle singular.

33
Referências

BEHRING, Elaine Rossetti. Fundo público, valor e política social. São


Paulo: Cortez, 2021.

BIZERRA, Fernando de Araújo. Estado e expropriações: uma relação


vital ao sistema do capital. 2022. (Doutorado em Serviço Social) – Facul-
dade de Serviço Social. Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2022.

BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social e trabalho no capitalismo.


São Paulo: Cortez, 2016.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo,


2012.

MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo à teoria da transição.


Tradução de Paulo Cesar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boi-
tempo, 2002.

MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II: a di-


alética da estrutura e da história. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo:
Boitempo, 2011.

MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Tradução de Magda Lopes


e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2014.

MÉSZÁROS, István. A montanha que devemos conquistar: reflexões


acerca do Estado. Tradução de Maria Izabel Lagoa. São Paulo: Boitempo,
2015.

PANIAGO, Maria Cristina Soares. O Estado no sistema do capital –


gênese e função social. 2019. Disponível em: http://www.cristinapani-
ago.com/yahoo_site_admin/assets/docs/Estado_no_sistema_do_capi-
tal_genese_e_funcao_social.4872907.pdf Acesso em: 14 de jan. de 2023.

34
CAPÍTULO 2
O papel do Estado nas expropriações e apropriações
capitalistas
Rebeca Gomes de Oliveira Silva

Introdução

Na atualidade, há uma expansão da produção do conhecimento so-


bre o tema da continuidade, ou não, da acumulação primitiva do capital1.
No que diz respeito às produções no âmbito do Serviço Social, alastram-se
as formulações teóricas que utilizam o conceito expropriação, devido à sua
potencialidade heurística, contribuindo para explicar os mecanismos vio-
lentos de submissão da vida ao capital. Tais formulações destacam as ex-
propriações ligadas à intensificação da exploração da força de trabalho, atra-
vés da usurpação do fundo público, da mercantilização e privatização dos
bens e serviços públicos. Todavia, poucas produções destacam o papel do
Estado nos processos de expropriação e apropriação2.
Historicamente, a expropriação dos trabalhadores da terra e a conse-
quente apropriação dos elementos essenciais à vida pelos capitalistas tive-
ram grande apoio e intervenção do Estado, tanto no que diz respeito aos
aspectos estritamente violentos, quanto à intervenção através de legislações
e de estratégias ideológicas, igualmente violentas. O Estado moderno estru-
tura-se concomitantemente ao modo de ser do capital, torna-se uma “es-
trutura totalizadora de comando político do capital”. Desse modo, o Estado
protege o “material alienado e os meios de produção (ou seja, a propriedade
radicalmente separada dos produtores) e suas personificações, os controles
individuais (rigidamente comandados pelo capital) do processo de reprodu-
ção econômica” (MÉSZÁROS, 2011, p. 106-107).

1
De que é exemplo a Revista Theomai com a edição intitulada “Traços de sangue e
fogo: continuidade da acumulação em nossa época?”.
2
A utilização dos conceitos expropriação e apropriação se deve a necessidade de des-
tacar a pressão sobre os recursos naturais na contemporaneidade. Contudo, compre-
ende-se que a apropriação ocorre concomitantemente à expropriação, processo que vai
além da expulsão dos trabalhadores de suas terras, abarca a conversão dos elementos
essenciais à vida em propriedade privada.
35
Essa relação dialética entre Estado e capital se mantém com a expansão
do capitalismo, pois é essencial para a sua manutenção a disponibilidade de
trabalhadores e de recursos naturais, meios de valorização, que garantam a he-
gemonia do capital. Marx (2013, p. 690) salienta que “a acumulação do capital
é, portanto, multiplicação do proletariado”, pois com sua dinâmica expansio-
nista impulsiona a captura de espaços estratégicos para a extração de mais-va-
lor, engendrando, assim, as expropriações dos trabalhadores da terra.
Dessa forma, as expropriações permanecem na cena contemporânea.
Com o imperialismo as contradições próprias do processo de acumulação
de capital aprofundam-se, dando origem a uma nova onda de pilhagem e
de exploração que demanda cada vez mais a intervenção do Estado (SILVA,
2020). Deste modo, a atual fase do capitalismo contemporâneo, caracterís-
tica por ser a “expansão de uma forma de capitalismo já impregnada de
imperialismo” (FONTES, 2010, p. 149), é marcada pela intensificação das
expropriações dos trabalhadores e das apropriações dos meios de vida.
Neste mesmo período, desde a década de 1970, vive-se uma das mai-
ores crises do sistema do capital, caracterizada por Mészáros (2011) como
crise estrutural do capital. Devido a esta crise, o Estado intervém visando
controlar as contradições do sistema capitalista, aprofundando sua atuação
com o intuito de manter as expropriações nesse momento do capitalismo.
As reflexões presentes neste trabalho é parte dos estudos desenvolvidos
no âmbito do mestrado em Serviço Social e tem por objetivo apreender o papel
do Estado nos processos de expropriação e apropriação desde a gênese do
modo de produção capitalista até a contemporaneidade marcada pela presença
do capital financeiro. Para isso, realizamos uma pesquisa bibliográfica por meio
de fontes que fundamentaram o estudo das categorias essenciais para este tra-
balho. Assim, esta pesquisa se referenciou em Marx (2008), (2013) e (2017),
Lênin (2012), Mészáros (2011) e (2015) e Fontes (2010) e (2018).
Não é nossa pretensão dar conta de todos os elementos teóricos que
envolvem esta discussão. Porém, pretendemos indicar caminhos que fun-
damentam a compreensão do papel do Estado na perpetuação do modo de
produção capitalista, esse grande agente que nega a originalidade e a inven-
ção de outros mundos. Isto, em nossa perspectiva, é um desafio teórico,
mas também político de todos aqueles que lutam por outra sociabilidade,
uma sociabilidade para além do sistema do capital.

36
O papel do Estado nas expropriações dos trabalhadores da
terra e apropriação dos elementos essenciais à vida: “a base
de todo o processo”

O ser humano possui com a natureza uma relação metabólica, faz


parte dela e dela depende para existir, sendo ela, portanto, “uma extensão
do corpo humano” (FOSTER, 2005, p. 107). Esta relação é medida pelo
trabalho, atividade que diferencia a humanidade dos outros organismos da
natureza. É através do trabalho que o ser humano cria e reproduz as con-
dições elementares da sua vida. Segundo Marx (2013, p. 255, grifo do autor),

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natu-


reza, processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia,
regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta
com a matéria natural como uma potência natural [Naturmacht]. A
fim de se apropriar da matéria natural de uma forma útil para sua
própria vida, ele põe em movimento as forças naturais pertencentes
a sua corporeidade: seus braços e pernas, cabeças e mãos. Agindo
sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movi-
mento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Nas formações sociais anteriores ao capitalismo, o produtor direto


possuía um vínculo com os meios de trabalho, possuía as condições objeti-
vas de sua vida e a terra era essencial para sua existência. No feudalismo,
que vai do século V ao século XV, existia a propriedade comunitária asso-
ciada à propriedade individual. Cada feudo detinha seus costumes que, na-
quele momento, constituíam-se em leis; portanto, não havia um governo
centralizado, mas fragmentado, de acordo com cada feudo (SILVA, 2020).
Entretanto, ocorreu uma transformação das relações e práticas hu-
manas, um rompimento severo da unidade entre o trabalhador, a terra e os
meios de trabalho. A ruptura metabólica, causada pelo modo de produção
capitalista em ascensão, faz com que o reconhecimento do trabalhador em
relação ao trabalho e à natureza se desfizesse (FOSTER, 2005). Surge, en-
tão, um “novo modo específico de controle sociometabólico” fundado pelo
capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 98).
No livro I de O Capital, sobretudo no capítulo XXIV, Marx esclarece
os processos histórico-concretos referentes à produção e reprodução do
capital, afirmando que o capital é uma relação de classe e que a atuação do
Estado foi/é fundamental para a gênese e o desenvolvimento do modo de
37
produção capitalista. A acumulação primitiva do capital, para Marx (2013),
foi o ponto de partida para este modo de produção e o elemento funda-
mental desse processo é a separação dos trabalhadores da terra dos elemen-
tos essenciais à vida, o que o autor caracteriza como sendo expropriação.
Nas suas palavras:

O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o pro-
cesso de separação entre trabalhador e a propriedade das condições
de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma
em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por ou-
tro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados
(MARX, 2013, p. 786).

Para que a terra, os meios de produção e de subsistência se transfor-


massem em capital foi necessário que duas espécies diferentes de possuido-
res se defrontassem. De um lado, os que passaram a ser os possuidores de
tudo; de outro, trabalhadores “livres”3, vendedores de sua própria força de
trabalho. Diferentes mecanismos foram implementados, principalmente
através do Estado, para expropriar os trabalhadores de seus meios de sub-
sistência. A Inglaterra foi o grande solo das transformações, pois, diferente
da estrutura do Estado feudal, substancialmente limitado, naquele país se
consolidava o Estado centralizado (SILVA, 2020).
Para o capital funcionar como um sistema totalizador de controle so-
ciometabólico, o modo de produção capitalista necessitava de uma estrutura
de comando político adequado para suas funções. A emersão do Estado
moderno se dá juntamente com a crescente dominância do capital. Estru-
tura-se uma reciprocidade dialética entre Estado moderno e capital, uma
correlação entre economia e política. Segundo Mészáros (2011, p. 106),

A formação do Estado Moderno é uma exigência absoluta para assegu-


rar e proteger permanentemente a produtividade do sistema. O capital
chegou à dominância da produção material paralelamente ao desenvol-
vimento das práticas políticas totalizadoras que dão forma ao capital.

3
Marx utiliza o termo “livre” de forma irônica, “livres como pássaros”, livre no sentido de
não ter nenhuma posse, “trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram dire-
tamente os meios de produção [...], nem lhes pertencem os meios de produção [...], mas
estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção” (MARX, 2013, p. 786).
38
O Estado é uma exigência do sistema do capital, necessário diante
da ruptura metabólica, da transformação do caráter da propriedade com-
pulsoriamente convertida em propriedade privada, deixando os trabalhado-
res totalmente despossuídos dos elementos essenciais à vida. Portanto, o
Estado se estrutura como “pré-requisito indispensável para o funciona-
mento permanente do sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).
A expropriação da terra, antes pertencente aos trabalhadores, é “a base
de todo processo” (MARX, 2013, p. 787-788). Massas de camponeses que sub-
sistiam materialmente através do uso produtivo da terra foram despojadas de
suas terras, sendo forçadas a procurar alternativas no mercado capitalista ainda
em ascensão. As terras apropriadas tornaram-se propriedade dos arrendatários,
que passaram a utilizar o solo visando exclusivamente o lucro. As expropria-
ções na Europa tiveram início em fins do século XV e nas primeiras décadas
do século XVI, estendendo-se até o século XIX (SILVA, 2020).
Marx (2013), ao evidenciar esses processos, destaca uma diferença
importante ao afirmar que nos séculos XV e XVI as expropriações se efe-
tivaram por meio de atos individuais de violência, contra as quais a legisla-
ção do Estado monárquico lutou durante 150 anos (WOOD, 2001). Con-
tudo, com o avanço do sistema capitalista, do século XVIII em diante “a
própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo” (MARX,
2013, p. 796), ocorrendo o segundo grande processo de expropriações, mar-
cado pelo seu caráter parlamentar.
O papel das legislações na expropriação das comunidades campone-
sas foi uma nova forma de supressão das condições de vida dos campone-
ses. Marx (2017), ao tratar sobre a lei referente ao furto da madeira ,eviden-
cia este aspecto. Esta lei visava garantir a propriedade dos proprietários flo-
restais que adquiriram essas terras mediante a expropriação das comunida-
des que habitavam os territórios. Desse modo, o autor adverte que, com a
aprovação dessa lei, “o interesse privado é esperto o suficiente para extra-
polar essa consequência no sentido de fazer com que sua forma mais limi-
tada e pobre se torne o limite e a regra da ação do Estado” (MARX, 2017,
p. 98). E complementa: “todos os órgãos do Estado se convertem em ore-
lhas, olhos, braços e pernas que o interesse do proprietário florestal usa para
escutar, espiar, estimar, proteger agarrar e correr” (MARX, 2017, p. 104).
Todos os métodos expropriatórios,

39
[...] porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e
organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de
transformação do modo feudal de produção em capitalista e para
abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade
que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica
(MARX, 2013, p. 821).

A intervenção do Estado é evidente, sobretudo, no que diz respeito à


Lei dos Pobres nos reinados de Henrique VII, Eduardo VI, Elisabeth e Jaime
I. O surgimento da “legislação sanguinária contra a vagabundagem”, que im-
punha castigo para quem não se subjugava à lógica do capital que se fortalecia,
é uma violência extraeconômica conduzida pelo Estado. Marx (2013, p. 808)
assinala que “a população rural, depois de ter sua terra violentamente expropri-
ada, sendo dela expulsa e entregue à vagabundagem, viu-se obrigada a se sub-
meter, por meio de leis grotescas e terroristas, e por força de açoites, ferros e
brasa e torturas”, a “uma disciplina necessária ao sistema de trabalho assalari-
ado”. Então, “o Estado instaura a disciplina necessária ao sistema de trabalho
assalariado, explicitando sua natureza de classe desde a gênese do capitalismo”
(CASTELO; RIBEIRO; LIMA, 2018, p. 269).
O Estado, além de utilizar o arcabouço coercitivo para instituir a re-
lação-capital, utiliza as formas de consenso para garantir a dominação da
classe burguesa. Marx (2013, p. 808) evidencia como a força e o consenso
passaram a se unificar no processo da acumulação primitiva, afirmando que
“no evolver da produção capitalista desenvolveu-se uma classe de trabalha-
dores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse
modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas”.
Reitere-se, portanto, que o Estado participa ativamente como garan-
tidor do avanço do capital, seja através de meios violentos, seja por meio de
leis e mecanismos ideopolíticos. A necessidade dos mecanismos ideológicos
se deve às iniquidades que marcam esse modo de produção, pois é neces-
sário proporcionar a impressão de coesão, de unidade, de racionalidade à
dinâmica do capital (MÉSZÁROS, 2011, p. 1019). Este fato evidencia o
papel do Estado, garantindo o aprofundamento da exploração dos expro-
priados, da mercantilização da terra e, por conseguinte, da acumulação do
capital (ANGELIM; CUNHA, 2016). Em suma,

40
O Estado é produto e a manifestação do antagonismo inconciliável
das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antago-
nismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, re-
ciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de
classe são inconciliáveis (LENIN, 2012, p. 27).

Por fazer parte do modo de ser do capital, as expropriações e a trans-


formação da terra e dos meios de produção em propriedade privada per-
manecem na cena contemporânea. O Estado foi fundamental no processo
da acumulação primitiva e continua a sê-lo, atuando direta ou indiretamente
nos processos de expropriação e apropriação.

Imperialismo, crise estrutural e intensificação do papel do Estado: a


continuidade das expropriações e das apropriações

Marx (2013) destaca em suas elaborações que a expropriação e a


apropriação são elementos centrais para a gênese e a manutenção do sis-
tema capitalista. Assim, os pressupostos que deram origem ao capital pas-
sam a se apresentar enquanto resultado da sua própria realização. Na visão
do autor, “tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas con-
serva essa separação [entre trabalhador e meios de vida], mas a reproduz
em escala cada vez maior” (MARX, 2013, p. 786). Assim, não é a acumula-
ção primitiva de capital que permanece nas diferentes fases do capitalismo,
mas os processos de expropriação e apropriação (SILVA, 2020).
A expropriação e a apropriação transformam-se em um processo
contínuo, no qual é essencial manter e expandir a separação do trabalhador
da terra de seus meios de vida, ao mesmo tempo em que se libera e se con-
centra, nas mãos dos capitalistas, as condições objetivas de trabalho, como
a terra. No curso do desenvolvimento histórico, o imperialismo é uma me-
diação importante para se compreender a permanência das expropriações e
das apropriações no capitalismo. Marx e Engels (2008, p. 234) afirmam que
“A necessidade de mercados sempre crescentes para seus produtos impele
a burguesia a conquistar todo o globo terrestre. Ela precisa estabelecer-se,
explorar e criar vínculos em todos os lugares”.
Vladimir I. Lênin, no livro Imperialismo, estágio superior do capitalismo,
busca aprofundar os estudos iniciados por Karl Marx sobre as característi-
cas sociais da concentração de capitais, acrescentando novas determinações

41
históricas. Para Lênin (2012), o imperialismo tem como marca a era dos
monopólios e da exacerbação das contradições do processo de acumulação
de capital. O surgimento dos monopólios é resultado da agudização da con-
centração e centralização da produção e do capital possibilitadas pela livre
concorrência. Com os monopólios ocorre uma mudança qualitativa nessa
nova fase do capitalismo: as expropriações e as apropriações se expandem
pelo globo (SILVA, 2020).
Nela, há a fusão do monopólio industrial com o monopólio bancário, o
qual dá origem ao capital financeiro e a uma oligarquia financeira. O capital
financeiro, enquanto uma forma mais avançada de organização do capital, mo-
biliza todos os meios para possibilitar o processo de valorização do capital, se-
jam eles humanos ou não humanos. Assim, devido à formação de monopólios
nos países avançados, em meados do século XIX, os quais passam a acumular
cada vez mais capital, forma-se um excedente de capitais que transborda a pos-
sibilidade de sua valorização nos limites da economia nacional e dão lugar a um
processo de exportação de capitais. Desse modo, o capital financeiro busca
valorizar-se em fontes ainda não exploradas, daí resulta o seu caráter expansivo,
intensificando a sua propriedade de comandar a disponibilidade de trabalho e
de recursos naturais em escala mundial (LÊNIN, 2012).
No capitalismo do século XXI, a busca por novos espaços de acu-
mulação de capital tem conduzido o sistema capitalista ao aprofundamento
de suas formas de expropriação e apropriação. Por isso, os métodos preté-
ritos utilizados na acumulação primitiva de capital e expandidos no imperi-
alismo adquirem grande destaque no atual estágio do capitalismo. A histo-
riadora brasileira Virgínia Fontes, em O Brasil e o Capital-imperialismo: teoria e
história, retoma o debate das expropriações para pensar a dinâmica do capi-
talismo contemporâneo.
Para Fontes (2010), a existência de trabalhadores livres é a base social
primordial que constitui a relação capital e trabalho e que permite a acumu-
lação ampliada de capital. Desse modo, é intrínseco ao capital ampliar e
exacerbar a disponibilidade massiva desses trabalhadores, impor a ferro e
fogo a subjugação do conjunto da população aos desígnios do capital, assim
como buscar sempre apropriar-se de novas fontes de valorização, sobre-
tudo aquelas ligadas à natureza. A expropriação, assim sendo, é condição
social inicial e permanente desse sistema econômico e social; a apropriação
dos meios de produção e de subsistência pelos capitalistas torna-se cada vez
42
mais perversa, transformando os meios de vida em meios de exploração do
trabalho pelo capital.
Fontes (2010) afirma que as expropriações que ocorreram na acumu-
lação primitiva do capital não devem ser vistas enquanto um episódio ine-
rente a um momento da história da humanidade, relegado à condição “pré-
via” do capitalismo. O caráter expansionista do capital, marcado pela cres-
cente concentração e centralização, impulsiona constantes expropriações,
sendo, portanto, sua condição necessária, pois “as expropriações consti-
tuem um processo permanente, condição da constituição e expansão da
base social capitalista e que, longe de se estabilizar, aprofunda-se e genera-
liza-se com a expansão capitalista” (FONTES, 2010, p. 45).
A relação social do capital repousa sobre uma relação social marcada
pela expropriação originária dos trabalhadores da terra. Assim, a expropri-
ação primitiva ou originária, que diz respeito à expropriação dos produtores
diretos de sua base fundiária, não se limita à formação do sistema capitalista,
ela permanece e se reproduz em escala cada vez maior (SILVA, 2020). Com
as expropriações, os meios de vida são apropriados pelos capitalistas. Se
apropriar, no modo de produção capitalista, é transformar em propriedade
privada. Segundo Mattos (2019, p. 39), “a afirmação da propriedade privada
capitalista só foi possível devido à completa destituição da maioria dos pro-
dutores diretos de qualquer propriedade que pudessem ter, a não ser a da
sua força de trabalho”. Entretanto, isto só se torna possível através da atu-
ação dos Estados enquanto

[...] garantidores da reprodução da propriedade do capital contra


suas populações, contra as demais formas históricas da propriedade,
devastando – inclusive juridicamente – qualquer tipo de propriedade
(coletiva ou privada) que ameace a única que representa o capital –
a capacidade altamente concentrada de extrair mais-valor em grande
escala de trabalhadores formalmente livres (FONTES, 2018, p. 41).

Além da permanência das expropriações primárias, no capitalismo


contemporâneo, as expropriações passam a incidir sobre os trabalhadores
já urbanizados, o que a mencionada autora intitula de expropriações secun-
dárias. Estas expropriações não significam a perda da propriedade dos
meios de produção, como ocorre nas expropriações primárias, mas exa-
cerba a disponibilidade dos trabalhadores ao mercado (FONTES, 2010).

43
Na segunda metade do século XX, houve o crescimento do imperia-
lismo, o que conduziu a um salto no patamar de acumulação do capital fo-
mentado pelo aumento dos processos de expropriações e apropriações.
Fontes (2010) conceitua de capital-imperialismo essa fase do capitalismo
contemporâneo, uma totalidade em constante dilatação, resultado do pata-
mar inimaginável de concentração de capital. A expansão do capital-impe-
rialismo atingiu de modo desigual os países, afirmando a hegemonia dos
países centrais e subjugando ainda mais os países periféricos.
As corporações transnacionais, no período de grande crescimento
econômico do pós-Segunda Guerra Mundial, acumularam uma imensa
massa de capital-dinheiro que proporcionou a lógica de financeirização da
riqueza. Desde então, as finanças passaram a prevalecer, elevando as con-
tradições do capitalismo a um nível superior, principalmente na periferia do
sistema (SILVA, 2020). Há um aprofundamento das expropriações primá-
rias no capitalismo contemporâneo, de tal modo que os trabalhadores con-
tinuam a ser expropriados de suas terras e de seus meios de vida de modo
perverso. E os meios elementares à vida encontram-se cada vez mais con-
centrados nas mãos dos capitalistas. Por isto, assiste-se a uma expansão sem
precedentes das relações sociais típicas capitalistas, homogeneizando-se os
modos de vida de acordo com as necessidades do capital (FONTES, 2010).
Se este processo configura um traço permanente e contínuo do sistema
capitalista, ele se exponencia no atual contexto de crise. Segundo Mészáros
(2011), o sistema capitalista vive desde a década de 1970 uma crise sem prece-
dentes, caracterizada pelo autor como crise estrutural do capital. Não se trata
de uma crise do sistema capitalista estritamente, mas uma crise do capital, de
seus mecanismos civilizatórios. Portanto, as contradições que surgem nesse
momento histórico expressam os limites estruturais do próprio capital, mar-
cado pelo antagonismo no qual se subordina o trabalho ao capital.
Com a crise estrutural do capital, o Estado aprofunda a sua atuação.
Para Mészáros (2015, p. 27), “a crise estrutural de nossa época ativa a de-
manda por um envolvimento cada vez mais direto do Estado na sobrevi-
vência contínua do sistema”, pois o Estado moderno caracteriza-se como
única estrutura que garante os objetivos do capital, que responde às neces-
sidades que não podem ser diretamente resolvidas pelo próprio capital. De
acordo com Angelim e Cunha (2016, p. 14) o Estado se

44
[...] mantém empenhado em apreender as táticas necessárias ao ca-
pital para enfrentar a queda da taxa de lucro e o aprofundamento da
crise em curso ao subsidiá-lo na redução dos custos (infraestrutura,
matéria-prima, entre outros), na ampliação de mercados, ao favore-
cer a autonomização da esfera bancária e outras medidas de caráter
ideopolítico e de repressão e violência.

As formas estatais no sistema capitalista sempre se caracterizaram


enquanto meios de manutenção e fortalecimento dos imperativos materiais
da expansão sociometabólica do capital. Segundo Mészáros (2015), a lei no
sistema capitalista é a “lei do mais forte”, a lei da classe que detém os recur-
sos sociais de produção, a qual é legitimada pelo Estado. Contudo, este au-
tor salienta um aspecto que está para além da lei e do direito: a sua destrutiva
ilegalidade que se torna “regra recorrente em períodos de grandes crises”
(MÉSZÁROS, 2015, p. 47). A violência, portanto, é parte desse processo,
sendo uma característica do modo de ser do capital. Por isso, mais do que
nunca, o capital necessita do Estado para assegurar o arcabouço institucio-
nal e ideológico que garanta sua expansão.

Considerações finais

A partir do diálogo com o pensamento de Marx e dos marxistas sobre


as determinações que conduziram ao surgimento e a formação do capita-
lismo, buscamos apreender o papel do Estado no processo de expropriação
dos trabalhadores da terra e de apropriação dos elementos essenciais à vida.
O Estado, enquanto “estrutura totalizadora de comando político do capital”
atua com o objetivo de manter e fortalecer os imperativos materiais de ex-
pansão do capital. Dessa maneira, as expropriações e as apropriações ocor-
rem sob o julgo do Estado, o qual atua visando efetivar o modo de produção
burguês, destacando a indissociabilidade entre política e economia.
As expropriações e apropriações não se resumem apenas à retirada
das populações de suas terras, mas dizem respeito ao processo de “cerca-
mento”, de captura das condições necessárias para a reprodução da classe
trabalhadora. Esses processos permanecem e se complexificam com o
avanço do capitalismo, com o imperialismo e o capital-imperialismo, o qual
eleva as contradições do capital a um nível superior (SILVA, 2020). A crise
estrutural do capital também marca esta fase do capitalismo, demandando

45
o aprofundamento da atuação do Estado, o qual vem agindo visando ga-
rantir todos os meios para a expansão do modo de ser do capital, aprofun-
dando, com isto, a dinâmica das expropriações e apropriações.
Entretanto, o capital ao mesmo tempo em que se reproduz, reproduz
também suas contradições, pois os trabalhadores da terra vêm resistindo ao
avanço do capital sobre suas terras, sobre seis meios e modos de vida, apre-
sentando-se enquanto barreira ao capital-imperialismo que vem utilizando
diversas estratégias, sobretudo por meio do Estado, para garantir a perpe-
tuação do capital. Portanto, a luta desses segmentos da classe trabalhadora
contém uma direção anticapitalista, afinal, defendem outras formas de pro-
priedade para além da propriedade privada e confrontam com a homoge-
neização própria do capital. De acordo com Fontes (2010, p. 92),

Nas condições contemporâneas, nas quais ondas ainda mais inten-


sas, violentas e rápidas de expropriação se descortinaram, essas lu-
tas podem se traduzir em enfrentamento direto ao capital, se aba-
larem as formas generalizadas de sujeição do trabalho e de sua su-
bordinação e não apenas reivindicarem sua incorporação plena en-
quanto assalariados para o capital, ou ainda se limitarem a deman-
dar uma preservação pontual, distanciada das vicissitudes dos de-
mais trabalhadores.

A luta dos trabalhadores da terra, os quais lutam pela permanência


no território, pela posse dos bens comuns, liga-se diretamente ao núcleo
central da visão de Marx de uma sociedade humana na qual os “produtores
tenham acesso direto aos meios de produção” (ANGELIS, 2018, p. 8). Esta
mudança radical só é possível com a “total superação do poder preponde-
rante das formações estatais do sistema produtivo material estabelecido”
(MÉSZÁROS, 2015, p. 37) e isto não será fácil, pois com o avanço do ca-
pital assiste-se ao fortalecimento do Estado.
Todavia, a crise estrutural, a qual expõe cada vez mais as contradições
desse sistema destrutivo, revela que o futuro, que já começou, só pode tra-
zer com ele o “fenecimento do Estado” e este fenecimento se dará através
das lutas da classe trabalhadora. Portanto, esperamos que este artigo tenha
contribuído para a reflexão sobre o papel do Estado nos processos de ex-
propriação e apropriação; ademais, que seja como uma faísca e que incen-
deie a vontade de mudar o mundo.

46
Referências

ANGELIM, Yanne; CUNHA, D. F. Acumulação primitiva em Marx:


aproximação aos fundamentos para uma crítica dos atuais processos de
expropriação. Anais do XXIII ENGA – Encontro Nacional de Geografia
Agrária. Universidade Federal de Sergipe, São Cristovão, 2016.

ANGELIS, Massimo. Marx e acumulação primitiva: o caráter contínuo


das “vedações” do capital. O Comuneiro: Revista Eletrônica, nº 26,
março 2018.

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São Paulo: Cortez, 2018.

CASTELO, Rodrigo; RIBEIRO, Vinicius; LIMA, Ricardo de. A violência


como potência econômica: da acumulação primitiva ao novo imperia-
lismo. In: BOSCHETTI, Ivanete. (Org). Expropriação e direitos no ca-
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FONTES, Virgínia. O Brasil e o capital imperialismo: teoria e história.


Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2010.

FONTES, Virgínia. A transformação dos meios de existência em capital:


expropriações, mercado e propriedade. In: BOSCHETTI, Ivanete. (Org).
Expropriação e direitos no capitalismo. São Paulo: Cortez, 2018.

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Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

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lismo. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.


São Paulo: Expressão Popular: 2008.

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de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl. Os Despossuídos: debates sobre a Lei Referente ao Furto


da Madeira. São Paulo, Boitempo, 2017.

47
MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital: rumo a uma teoria da transi-
ção. São Paulo: Boitempo, 2011.
MÉSZÁROS, Istvan. A montanha que devemos conquistar. São Paulo:
Boitempo, 2015.

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acumulación originaria em nuestra época?. 2012. Disponível em:
http://revista-theomai.unq.edu.ar/numero%2026/contenido_26.htm.
Acesso em: 22 de dez. de 2022.

SILVA, Rebeca Gomes de Oliveira. “O Estado nunca se vê, mas apa-


rece sempre a tirar-nos as nossas coisas”: o papel do Estado no pro-
cesso de expropriação das comunidades impactadas pelo Complexo de
Suape. (Dissertação) – Programa de Pós-graduação em Serviço Social.
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2020.

48
CAPÍTULO 3
A relação entre Capital e Estado: contribuições ao debate
sobre o Estado latino-americano
Thays Fidelis
Georgette Ramírez Kuri

Introdução

Diversos estudiosos buscam construir uma teoria marxista do Estado,


negando a existência dela na própria produção de Marx e Engels. Outros,
partindo do entendimento de que há uma teoria marxista do Estado, bus-
cam as particularidades dele nas diversas formações sociais.
Nesse artigo, partimos do entendimento de uma relação de “co-de-
terminação” entre capital e Estado4 que impõe a este último o cumprimento
do seu papel vital, a saber: garantir e defender as condições necessárias para
a reprodução do capital. A partir deste entendimento, buscamos demons-
trar como o sistema de dominação e o Estado dependente latino-americano
se formam para assegurar a extração de mais-valia nas formações sociais
situadas na América Latina.
O sistema de dominação e o Estado burguês latino-americano foram
sendo forjados no processo de industrialização e, à medida que o capita-
lismo vai mudando seus processos e padrões de produção e acumulação,
tanto o sistema de dominação como o Estado latino-americano necessitam
de ajustes e adaptações – transformando-se, pois, em objeto de estudo de
diversas correntes teóricas.
Na América Latina, a questão do Estado tem sido estudada ampla-
mente, sobretudo em conjunturas onde o capital e o Estado precisam ajus-
tar as condições estruturais de exploração e dominação para salvaguardar a
lógica econômica. Assim, a crise do capital e do Estado manifesta nos anos
setenta foi a base do debate sobre o Estado latino-americano que foi se

4
Ao longo deste artigo trataremos estritamente do Estado moderno, ou seja, o Estado
que vai garantir a coesão entre as unidades reprodutivas socioeconômicas para que o
sistema do capital possa se consolidar como totalizador e global.
49
definindo a partir das experiências concretas das formações sociais e das
formulações de vários estudiosos da região.

Co-determinação entre capital e Estado na América Latina

Entendemos a relação entre capital e Estado como uma relação cons-


tituída de elementos entrelaçados, entrecruzados a ponto de não poder dis-
sociá-los, uma relação de ‘co-determinação’ entre as unidades reprodutivas
materiais e o Estado, no qual “a estrutura de comando político surge para
complementar (‘no nível de abrangência apropriado’), em vista dos defeitos
estruturais do sistema, os elementos reprodutivos materiais, sempre de
acordo com a dinâmica expansionista do sistema do capital” (PANIAGO,
2012, p. 85). Ou seja, uma relação de correspondência mútua, dialética, en-
tre capital e Estado que os fazem surgir e coexistir. Nesse sentido, Cueva
(2012, p. 144-145, tradução livre) defende que

[...] o Estado capitalista só existe, enquanto forma já concreta, como


Estado capitalista de determinada formação econômico-social, com
todas as determinações histórico-estruturais ali presentes, resultado
tanto de um específico desenvolvimento interno como do lugar que
cada formação ocupa no seio do sistema imperialista.

É necessário, portanto, caminhar do plano mais abstrato ao mais


concreto para entender como essa relação de “co-determinação” entre ca-
pital e Estado (na qual a superestrutura política e legal surge para comple-
mentar a dominação e o controle sociometabólico) é construída na América
Latina. Neste caminho, identificamos que o processo de industrialização
dependente é mister para entender a construção de um determinado sistema
de dominação no qual o Estado dependente deve atuar.
Quando se pensa em industrialização na América Latina, pensa-se,
de imediato, no processo de substituição de importações - que substitui ini-
cialmente os bens manufaturados estrangeiros pelos nacionais devido à re-
dução das importações e da geração de uma demanda interna por esses pro-
dutos. É importante estar atento ao porquê dessa redução, para não cairmos
na ilusão de que foi apenas um movimento do mercado interno nos países
latino-americanos. Como pano de fundo mundial temos, nesse momento,
dois grandes eventos que contribuem favoravelmente: a primeira guerra
50
mundial (1914-1918) e a crise econômica de 1929 – restringindo a capaci-
dade de importação de produtos manufaturados dos países centrais.
Bambirra (2019, p. 64) afirma que o processo de substituição de im-
portações se realiza em quatro momentos: “num primeiro momento, no
setor de bens de consumo leves; passa posteriormente aos setores de bens
de consumo duráveis; chega aos bens de produção intermediários; e, por
último, alcança o setor de bens de produção pesados”. Não podemos, no
entanto, afirmar que há uma rigidez nessa sequência, pois em alguns países,
como é o caso do Brasil, existia um mercado interno relativamente já con-
solidado que se expande com a primeira guerra mundial e com a crise de
1929 e, também, já existia um modo de produção e relações tipicamente
capitalistas com proprietários dos meios de produção de um lado e propri-
etários da força de trabalho do outro – além do Brasil, isso já existia na
Argentina, Uruguai, México e Chile; em menor escala, existia na Colômbia.
Para Bambirra (2019, p. 74, grifos da autora), analisar o processo de
surgimento e desenvolvimento das relações de produção tipicamente capi-
talistas e do mercado interno permite expor “como a situação de dependência
em relação aos centros hegemônicos condicionou os marcos gerais das estruturas econômicas
produtivas dos países atrasados e como, ao mesmo tempo, estas estruturas são redefinidas
em função das possibilidades de desenvolvimento do capitalismo dependente”. Esses pro-
cessos nos permitem visualizar a dialética entre o interno e o externo, pois,
apesar da estrutura geral ter sido construída a partir de demandas externas,
a “estrutura interna conquista um certo dinamismo próprio, resultante do
desenvolvimento da indústria e que funciona segundo leis específicas do
novo modelo de capitalismo dependente”.
O desenvolvimento da indústria possibilita, assim, uma revolução no
sistema produtivo social nacional, pois muda o eixo de acumulação à me-
dida que subordina os demais setores da economia à indústria. No entanto,
não se pode dizer que essa revolução muda a condição de dependência des-
ses países; afinal, ela acontece sob as condições do capitalismo dependente
que delimita suas possibilidades.
O processo de industrialização tem início nos países de tipo A,5 quando
sua função no capitalismo mundializado já está bem definida como exportadores

5
Na tipologia que Bambirra (2019) realiza, os países de tipo A são: Brasil, Argentina,
Uruguai, México, Chile e Colômbia.
51
de produtos primários. Essa localização dentro do capitalismo desigual e combi-
nado confere um ordenamento de classes sociais particular no qual a burguesia
agrário-exportadora (composta por latifundiários, proprietários das minas, co-
merciante e financistas) detém todo o poder econômico e político, valendo-se
do aparelho estatal para garantir seus interesses. Assim, o processo de surgi-
mento da burguesia vinculada à indústria e, por consequência, do proletariado
industrial só pôde se desenvolver quando o capital imperialista necessitou de
uma diversificação na produção nos países dependentes.

É o funcionamento do capitalismo mundial que, ao especializar as eco-


nomias periféricas como monoprodutoras, provoca sua modernização,
o que, por sua vez, gera os elementos para a diversificação da produção
através do desenvolvimento da indústria, uma diversificação que con-
duz à superação da especialização e da divisão internacional do trabalho
sob as formas existentes até então, afirmando assim a lei do desenvolvi-
mento desigual e combinado (BAMBIRRA, 2019, p. 77).

Essa lei de desenvolvimento desigual e combinado, que espelha a dialé-


tica entre o desenvolvimento interno e externo, permite que a indústria surja
inicialmente a partir das necessidades do setor exportador e permite, também,
que o setor industrial adquira posteriormente uma certa autonomia. É impor-
tante memorar essa relação de dependência entre as burguesias agrário-expor-
tadora e industrial, em especial desta em relação àquela: “a indústria necessita
do setor exportador como condição para a realização de seu próprio processo”
(BAMBIRRA, 2019, p. 77), sendo essa contradição o que define as leis do de-
senvolvimento capitalista dependente nesse período.
Se pensarmos na revolução burguesa clássica, em particular a Revo-
lução Francesa, veremos uma substituição da classe dominante: a burguesia
que já era economicamente dominante se torna, também, politicamente do-
minante. Na América Latina, o trânsito da economia agrária para a industrial
não ocorre com um rompimento brusco e total com as formas de produção
anteriores. Ao invés, o que ocorre é um processo lento e contínuo de supe-
ração que vai conformando o modo de produção particular dependente.
Bambirra (2019, p. 78, grifos da autora) sintetiza esse trânsito da se-
guinte forma: “o curso do desenvolvimento do capitalismo na América La-
tina passa de uma formação socioeconômica dependente colonial-exportadora para uma
formação socioeconômica dependente capitalista-exportadora, até finalmente chegar a

52
uma formação socioeconômica dependente capitalista-industrial6”. Assim, não é pos-
sível visualizar um processo revolucionário semelhante ao europeu visto
que as relações tipicamente capitalistas não surgem a partir de um rompi-
mento radical com as antigas classes dominantes, surgem dentro do setor
agrário-exportador e dependem das condições geradas por esse setor para
se consolidarem – a interdependência entre os setores exportador e indus-
trial, ou seja, a coexistência de vários modos de produção que apresentam
uma dependência mútua para sua existência, é o que define o caráter das
sociedades dependentes na América Latina.
A interdependência pode ser observada quando os capitais gerados
no setor exportador são (direta ou indiretamente) transferidos ao setor in-
dustrial e isso possibilita sua expansão. Essa transferência não é algo com-
pulsório, é praticamente algo que convém a ambas as classes. Isso não im-
plica dizer que os interesses oligárquicos e industriais sejam idênticos, ape-
nas que se mesclam e se complementam em suas contraditoriedades e an-
tagonismos, construindo o sistema oligárquico-burguês que limita a burgue-
sia industrial desde sua gênese.
Apesar de uma parcela dos estudiosos negarem a revolução burguesa
latino-americana, é possível afirmar que houve um momento histórico na
América Latina em que “a burguesia industrial, impulsionada pelo vigor que
lhe outorga o fato de controlar uma forma mais avançada de organização social
da produção, reivindicou o controle hegemônico do poder, oferecendo um projeto
próprio de desenvolvimento econômico-social” (BAMBIRRA, 2019, p. 81, grifos nossos)
– configurando uma revolução burguesa típica do capitalismo dependente.
Bambirra (2019, p. 90) afirma que “o caráter de um processo revolu-
cionário se define não apenas pelas classes que o realizam, mas também
pelas tarefas que cumprem, pelos inimigos que enfrentam e pela classe que
termina por deter hegemonicamente o poder”. Por isso, podemos afirmar
que a revolução burguesa latino-americana expressou o apogeu e a consoli-
dação dos interesses da burguesia industrial nacional, em seus distintos pa-
íses: Calles ou Cárdenas no México, Vargas no Brasil, Alessandri no Chile,
Batlle y Ordóñez no Uruguai e Perón na Argentina.

6
É mister o esclarecimento de que essas formações socioeconômicas citadas pela au-
tora são resultado de uma combinação historicamente condicionada de modos de pro-
dução vinculados à expansão e consolidação do capitalismo mundial, no qual a América
latina cumpre um papel como área periférica, subordinada e dependente.
53
O que a revolução burguesa latino-americana não foi capaz de rom-
per foi a interdependência entre as frações burguesas agrária e industrial,
resultando num sistema de dominação complexo característico desses paí-
ses: um sistema de dominação burguês-oligárquico. Esse sistema produz a chamada
hegemonia burguesa comprometida, na qual a burguesia industrial detém a hege-
monia econômica e social, mas não liquida as oligarquias (agrária, minera-
dora, financeira e comercial), mantendo seus privilégios básicos para que
elas continuem financiando o setor industrial.
É importante ater-se a essa categoria hegemonia comprometida porque ela
“define o caráter e o modo de funcionamento do capitalismo dependente
nesses países da América Latina, e define também suas possibilidades de
limites” (BAMBIRRA, 2019, p. 92). Essa categoria ressignifica o amálgama
de poder que alguns estudiosos falam, pois revela a sobreposição dos interes-
ses de uma fração de classe específica (industrial) ao conjunto da sociedade
ao mesmo tempo que há o respeito ao pacto entre os distintos interesses
contraditórios das várias classes e setores – sendo esse respeito a condição
necessária para a efetivação da hegemonia da burguesia industrial.
A revolução burguesa latino-americana, ao criar esse sistema de do-
minação burguês-oligárquico e a hegemonia comprometida, permite que a
burguesia industrial administre o compromisso com os interesses das várias
classes e setores nacionais. É importante frisar que o capital imperialista
estava incorporado no amálgama de poder da América Latina, respeitando a
dialética entre o interno e o externo, ou seja, respeitando “sua ingerência no
setor exportador, mas também mantendo o direito de decidir sobre a polí-
tica industrial do país, inclusive quando esta viesse a enfrentar os interesses
imperialistas, como no caso das tarifas protecionistas ou no caso das naci-
onalizações das fontes de energia” (BAMBIRRA, 2019, p. 99).
Foi assim que a burguesia industrial nacional conseguiu manter seu
projeto de desenvolvimento nacional, mantendo uma mescla de poder com
a dominação imperialista – mescla possível até 1945 quando há uma nova
fase de expansão imperialista e uma supressão da hegemonia das burguesias
nacionais. É importante entender que essa mescla/amálgama de poder é que
vai forjar a constituição do Estado dependente latino-americano.

54
Crise do capital e do Estado: a base do debate sobre o Estado latino-
americano

Por consequência do segundo pós-guerra, na América Latina come-


çou-se a questionar o conceito liberal do Estado, tentando-se compreender
qual era o lugar do Estado latino-americano nas relações internacionais re-
sultantes da bipolaridade mundial do momento. Para os autores inseridos
nos organismos internacionais, como a Comissão Econômica para a Amé-
rica Latina e o Caribe (CEPAL), o lugar do Estado estava subordinado às
problemáticas da modernização industrial e do desenvolvimento econô-
mico; enquanto entre os autores das ciências políticas multiplicavam-se os
esforços por defini-lo.
Em geral, esses esforços responderam à versão clássica liberal sob o
modelo europeu que colocava o “dever ser” do Estado moderno em res-
peito à organização política e burocrática estatal. Porém, o pensamento crí-
tico latino-americano tentou gerar respostas próprias sobre a questão do
Estado latino-americano: explicar qual é a natureza do Estado na região,
assim como seu devenir histórico a partir das formações sociais aqui desen-
volvidas. Nas palavras do chileno Lechner (1977, p. 18, tradução livre),

Não se pode “deduzir” o Estado na América Latina de uma teoria


geral do Estado burguês. Trata-se de superar a falsa divergência en-
tre o estudo teórico do Estado burguês como “modelo” ou “tipo
ideal” e o estudo empírico do Estado na América Latina como “caso
desviado”. Isso exige compreender o capitalismo como uma totali-
dade e a sociedade latino-americana como uma forma particular
através da qual se concretiza o desenvolvimento capitalista.

Notava-se, nos países latino-americanos, que o padrão capitalista do


pós-guerra, característico pela industrialização por substituição de importa-
ções, não se desenvolvia como era esperado, além de que as burguesias na-
cionais não conseguiam colocar seu projeto de classe como hegemônico,
tendo que se conformar como hegemonia burguesa comprometida. Como aponta
Cueva (2012, p. 149, grifos do autor, tradução livre): “a crise aparentemente
conjuntural derivada do esgotamento do modelo prévio de acumulação não
fez mais do que pôr à vista uma crise estrutural mais profunda”. Segundo
ele, como foi possível constatar ao percorrer das décadas, na América La-
tina houve uma “resposta reacionária à crise do capitalismo”.

55
Entre as décadas de 1970 e 1990 produziram-se ávidos debates sobre
o Estado como problema fundamental no momento que se passava. Neles,
formaram-se duas grandes interpretações sobre o Estado latino-americano
influenciadas por elaborações teóricas europeias: a instrumentalista, cujo
precursor foi o sociólogo britânico Ralph Miliband, e a estruturalista, fun-
dada pelas proposições do sociólogo greco-francês Nicos Poulantzas.
A versão instrumentalista do Estado discutia com o liberalismo polí-
tico, assinalando criticamente a impossibilidade da democracia sob o capi-
talismo e a parcialidade das instituições políticas estatais ao serem instru-
mentalizadas pelas diferentes classes. Já a perspectiva estruturalista debatia
com as posturas francesas vinculadas ao partido comunista e com as inter-
pretações do capitalismo monopolista que consideravam o Estado como
instrumento a serviço do capital. Ambas apostas interpretativas buscavam
se afastar das explicações economicistas e discutir a dimensão política do
Estado, porém são criticadas por desconsiderar a dimensão econômica, li-
mitando essa aposta conceitual do Estado por seu viés politicista.
Entre as formulações latino-americanas que superaram esse viés, Le-
chner (1977, p. 19, tradução livre) assumiu o Estado como um problema a
ser discutido mediante a realidade concreta, além da pretensão da teoria
geral do Estado. Segundo ele, a definição do Estado na América Latina deve
partir da compreensão da “formação capitalista latino-americana como um
momento do desenvolvimento do capital total”. Concordando com ele, o
Estado é a forma que tomam as relações sociais na totalidade social pautada
pelo modo de produção capitalista, relações que são administradas pelo Es-
tado para garantir o domínio político e a exploração econômica na qual está
baseado. O Estado é “um momento co-constitutivo das relações capitalistas
de produção” (LECHNER, 1977, p. 15, tradução livre).
Assim, o pensamento crítico latino-americano redefine o Estado na
América Latina, dilucidando sua essência a partir das contradições presentes
nas relações sociais que foram apontadas primeiramente por Karl Marx.
Dessa maneira, a concepção crítica do Estado latino-americano se afastou
marcadamente da visão liberal do Estado em geral, sobretudo pelo afasta-
mento entre essas abstrações formuladas e a realidade concreta das relações
capitalistas na América Latina.
Contribuindo com a definição do Estado propriamente latino-ameri-
cano, Cueva (2012, p. 145, grifos do autor, tradução livre) retomou a teoria do
56
imperialismo para lembrar que “a forma do Estado capitalista tende a ser mar-
cadamente distinta segundo se trate do Estado correspondente às formações im-
perialistas ou do Estado correspondente às formações dependentes”. No mesmo sen-
tido, retomando a ideia leninista do sistema capitalista imperialista como uma
cadeia composta por elos fortes e débeis, assinala que “o Estado dos elos débeis
tende a adquirir formas ditatoriais, ou no melhor dos casos, despóticas, em ra-
zão do mesmo cúmulo de contradições [capitalistas] que a sociedade civil não
está em capacidade de atenuar e que, portanto, a ele lhe corresponde regular”
(CUEVA, 2012, p. 147, grifos do autor, tradução livre).
Ruy Mauro Marini, em seu artigo intitulado Estado y crisis en Brasil,
afirma que o Estado dependente tem um considerável grau de autonomia
devido a uma lei geral da sociedade capitalista, na qual “a autonomia relativa
do Estado está em razão inversa à capacidade da burguesia levar a cabo sua
dominação de classe; em outros termos, um Estado capitalista forte é sem-
pre a contrapartida de uma burguesia débil” (MARINI, 1977, p. 2, tradução
livre). Por entender que a burguesia latino-americana é débil, o autor vai
defender que o Estado dependente forte é uma característica das sociedades
dependentes, explicando três formas em que o Estado dependente tem sua
autonomia relativa ampliada.
A primeira forma advém das estruturas pré-capitalistas que dificultam a
geração de mais-valia relativa e, por conseguinte, impedem a tendência capita-
lista de aquisição fixa de mais-valia extraordinária. Essas estruturas, apesar de
integradas e articuladas ao modo de produção capitalista global, não alcançam
níveis de produtividade equiparáveis aos dos países de capitalismo central, seja
por estarem em modos de produção diferentes, seja por estarem em fases mais
atrasadas do desenvolvimento das forças produtivas. Devido a isso, as burgue-
sias dependentes requerem do Estado uma intervenção constante, o que acaba
por reforçar a autonomia deste em relação à burguesia local.
A segunda forma, que em parte deriva da primeira, advém da relação
subalterna que as burguesias dependentes têm em relação à burguesia imperia-
lista. Apesar da ligação entre essas frações burguesas, há diferenças e, na grande
maioria das vezes, oposição entre os interesses delas – o que Marini (1977) vai
chamar de cooperação antagônica e Bambirra (2019) vai chamar de burguesia domi-
nante-dominada. O Estado dependente tem, então, sua autonomia acentuada em
relação à burguesia local para administrar esses interesses diferentes, e até opos-
tos, no sentido de agir em favor da economia dependente.
57
A terceira forma emana justamente dessa administração do Estado
entre os interesses das burguesias dependentes e imperialistas, pois nesse
processo o Estado dependente adquire também autonomia frente à burgue-
sia imperialista. Em princípio, pode-se dizer que isso é impensável, dada a
hierarquia entre capital imperialista e capital nacional; no entanto, é partindo
do entendimento de que há contradições entre as burguesias imperialistas e
que estas impactam não apenas num plano externo, mas também interno
dos países dependentes, que os Estados dependentes necessitam adminis-
trar esses conflitos e seus impactos dentro dos países dependentes. É pela
necessidade de administrar as crises internas resultantes das contradições
interimperialistas que o Estado dependente amplia sua autonomia também
em relação à burguesia imperialista – principalmente nos momentos de crise
em que o Estado se volta para projetos de superação dela.
Foi nos anos 1970, quando a crise do capital e a crise do Estado se
manifestaram de maneira mais evidente na região, que a relação de co-de-
terminação impôs, mediante a violência autoritária, a transição a um novo
padrão de reprodução e acumulação capitalista, bem como a uma nova
forma de Estado.

Incapaz de reativar o processo de acumulação através de inovações


tecnológicas ou da organização empresarial, por exemplo, a burgue-
sia no poder não tinha outro recurso do que reativá-lo mediante um
ajuste de contas com o trabalho assalariado [...] a via reformista foi
cancelada em benefício de uma política que favorecia o grande capi-
tal (CUEVA, 2012, p.150, tradução livre).

Devido à conjuntura, alguns autores latino-americanos, sob os regi-


mes ditatoriais de extrema violência estatal impostos entre as décadas 1960
e 1980, pensaram o Estado de exceção como uma possibilidade explicativa
da realidade social na região. Foram posturas que tiveram o acerto de assi-
nalar a excepcionalidade conjuntural no calor dos fatos, porém não aborda-
ram o Estado como problema estrutural, entendendo os regimes autoritá-
rios como uma modificação da estrutura política estatal.
Tanto a noção do Estado militar quanto a do Estado de segurança nacional
contribuíram para compreender o processo de interiorização efetiva nas
forças armadas (FFAA) latino-americanas da Doutrina de Segurança Naci-
onal (DSN) formulada nos Estados Unidos. Outras formulações estudaram

58
o processo de militarização do Estado latino-americano, registrando como
nesses anos a estrutura estatal e seu funcionamento foram permeadas na
região. Em termos mais precisos, o Estado latino-americano adotou a Dou-
trina de Contrainsurgência para submeter as mobilizações populares às no-
vas condições do capital, convertendo a luta de classes em uma guerra de
aniquilamento baseada em estratégias militares contrarrevolucionárias.
Marini (1978, p. 5, tradução livre) explica que

Ao privilegiar as Forças Armadas como elemento central de sua es-


tratégia, a burguesia monopólica está cedendo a esse aparelho espe-
cial do Estado a missão de solucionar o problema; está, pois, pas-
sando do terreno da política ao da guerra. Na medida em que as
Forças Armadas se encontram preparadas ideologicamente, pela
doutrina de contrainsurgência, para o cumprimento dessa tarefa e
para aplicar à luta política um enfoque militar, se resolvem em um
só processo a vontade contrarrevolucionária da burguesia e a von-
tade de poder desenvolvida nas Forças Armadas.

Assim, as FFAA aliam-se com frações da burguesia monopólica para


estabelecer um programa estrutural de continuidade no interior do Estado
capitalista latino-americano, acima dos diferentes governos que assumissem
sua administração. Nos anos 1970, os regimes ditatoriais foram a resposta
contrarrevolucionária das classes dominantes aos múltiplos movimentos
populares resultantes das contradições estruturais do capitalismo depen-
dente latino-americano. Esses regimes procuraram redirecionar as funções
de acumulação e reprodução do capital, assim como as funções de domina-
ção burguesa perante o uso monopólico da força. Em outras palavras,

A crise do capitalismo havia sacudido profundamente as sociedades


latino-americanas, cujos Estados viviam um momento também crí-
tico, de redefinição, caracterizado por uma série de processos de de-
sarticulação e rearticulação que geralmente acharam seu ponto de
equilíbrio nas fórmulas ditatoriais reacionárias (CUEVA, 2012,
p.152, tradução livre).

Esse devir histórico colocou o autoritarismo como uma caraterística


estrutural do Estado latino-americano. De acordo com Fernandes (2019, p,
85-86, grifos do autor), “o elemento central dessa lógica política vinha a ser
uma contrarrevolução que aceitava os riscos de uma guerra civil a quente e
desembocava na supressão de toda e qualquer democracia burguesa”.
59
Resolvia-se, assim, a “crise da incorporação” nos limites em que ela
surgia como uma crise do poder burguês. A burguesia dependente, de-
pois dos sonhos de guiar os Povos da América Latina pelos cami-
nhos da “grande revolução”, contentava-se com ser agente de uma
odienta e cruel ditadura de classes sem máscara (FERNANDES,
2019, p.86, grifos do autor).

Dessa maneira, a crise do capital e a crise do Estado expressadas nos anos


setenta foram a base da reestruturação do Estado na América Latina e, em cor-
respondência, foi também a base do debate sobre o Estado latino-americano.

O Estado dependente latino-americano

O Estado latino-americano tem sido ampla e rigorosamente deba-


tido, definindo suas características a partir das experiências concretas das
formações sociais da região. Desde a nossa perspectiva, o conceito de Es-
tado de contrainsurgência desenvolvido por Marini (1978) é o que melhor
dá conta do funcionamento e estrutura estatal sob o capitalismo dependente
latino-americano.
Enquanto a contrarrevolução burguesa em países centrais como os eu-
ropeus conseguiu conquistar uma força política própria superior àquela do mo-
vimento popular, na América Latina a contrarrevolução assumiu tarefas milita-
res para impor o projeto burguês, já que não conseguiu a hegemonia nem reu-
niu forças para vencer as lutas populares pela via da política institucional. As-
sim, o Estado latino-americano usou as FFAA como via de enfrentamento re-
acionário para o restabelecimento das condições normais de acumulação e re-
produção capitalista, instituindo o Estado de contrainsurgência.
Apesar da Doutrina de Contrainsurgência ter sido adotada nas FFAA
da região desde fins da década 19407, foi durante as ditaduras militares dos
anos 1960 e 1970 que ela se instalou na estrutura do Estado latino-ameri-
cano, justamente sob a direção das FFAA. Concordando com Marini
(1978), o particular do Estado de contrainsurgência é a existência de dois

7
Após o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos criaram a Escola das
Américas (1946) para a formação de militares na região segundo suas próprias doutri-
nas e interesses, assim como celebrou o Tratado Interamericano de Assistência Recí-
proca (TIAR) (1947), que envolvia principalmente a dimensão militar.
60
eixos de decisão política no poder executivo: 1) um setor militar confor-
mado pelo Estado Maior das FFAA, pelo Conselho de Segurança Nacional
e pelos órgãos do serviço de inteligência; 2) um setor econômico constitu-
ído pelas secretarias ou ministérios encarregados junto com as empresas
estatais de crédito, produção e serviços, cujos cargos públicos são ocupados
por tecnocratas civis ou militares que representam, no plano da política do
Estado, os interesses econômicos do capital.
O Conselho de Segurança Nacional funcionava como órgão estraté-
gico de decisão do Estado contrainsurgente, no qual se estrutura a aliança
entre as FFAA e o capital monopólico, centralizando assim o poder execu-
tivo acima dos poderes legislativo e judicial:

O Estado de contrainsurgência é o Estado corporativo da burguesia


monopólica e das FFAA, independentemente da forma que esse Es-
tado assuma, ou seja, independentemente do regime político vigente.
Esse Estado apresenta similitudes formais com o Estado fascista,
assim como com outros tipos de Estado capitalista, mas sua especi-
ficidade está na peculiar essência corporativa e na estrutura e funci-
onamento que daí se geram (MARINI, 1978, p. 6, tradução livre).

A diferença entre o Estado contrainsurgente e o Estado burguês “clás-


sico” é que neste a tomada de decisões divide-se entre os poderes que com-
põem o Estado (legislativo, judiciário etc.), enquanto naquele a aliança entre as
FFAA e o capital monopólico detém o poder de decisão. A partir desta estru-
tura, o funcionamento do Estado aparece de modo sobrecarregado. As funções
estatais na América Latina fazem com que aqui sejam adotadas formas “anô-
malas” para garantir a reprodução capitalista. Tais funções:

1. Tem que garantir a reprodução ampliada do capital em condições


de grande heterogeneidade estrutural […] 2. Tem que levar adiante
esse processo de reprodução no meio da constante drenagem de ex-
cedente econômico ao exterior […] 3. Tem que impor certa coerên-
cia a um desenvolvimento econômico-social inserido na lógica geral
do funcionamento do sistema capitalista-imperialista (CUEVA,
2012, p. 146, grifos do autor, tradução livre).

A fase contrarrevolucionária que se instalava no plano político nos


anos 1970 era uma exigência do plano econômico para efetuar a necessária
integração dos sistemas de produção das formações latino-americanas ao
sistema de produção imperialista “mediante as inversões diretas do capital
61
estrangeiro, a subordinação tecnológica e a penetração financeira” (MA-
RINI, 1980, p. 6, tradução livre). Essa exigência demandava a subordinação
das frações burguesas locais à burguesia monopólica, “ficando seu desen-
volvimento em estrita dependência do dinamismo que alcança o capital monopólico”
(MARINI, 1980, p. 6, grifos do autor, tradução livre).

Os tropeços na construção de uma hegemonia burguesa na periferia


não obedecem por tanto a razões meramente conjunturais […] se-
não que estão inscritos na própria configuração estrutural de nossas
formações sociais e, além delas, na estrutura mesma da cadeia impe-
rialista (CUEVA, 2012, p.147, grifos do autor, tradução livre).

Sobre essa base, nas décadas 1970 e 1980 se instalou na estrutura do


Estado um novo padrão de acumulação e reprodução de capital na América
Latina que modificou as relações de exploração econômica e dominação
política pela via autoritária.

Como resultado do próprio processo contrarrevolucionário, armado


(guerra aberta de classes), surgiu um Estado altamente militarizado,
que expressava uma forma de dominação terrorista por parte da bur-
guesia, o que equivalia a uma violenta acumulação de poder, antes-
sala de uma não menos violenta acumulação de capital (CUEVA,
2012, p. 150, tradução livre).

O novo padrão neoliberal ou neoliberalismo se instalou no Estado


dependente latino-americano além das formas de governo, ou seja, além das
ditaduras militares que nos anos 1980 começaram a se esgotar abrindo
passo às transições à democracia. Nesse marco, o aparente afastamento da
política formal por parte das FFAA foi essencialmente a interiorização da
contrainsurgência na estrutura estatal. As instituições militares da região es-
tabeleceram alianças entre elas e os Estados Unidos para continuar as fun-
ções reacionárias mediante estratégias de combate e defesa estandarizadas.
Os casos mais conhecidos são a Operação militar Cóndor nos países sul-
americanos e a Operação Charly nos países centro-americanos.
Nas décadas seguintes, o Estado latino-americano continuou fa-
zendo de suas FFAA a via de combate ao movimento popular mesmo sob
governos civis ou no chamado período democrático, realinhando-se à mili-
tarização que o capitalismo monopólico central segue promovendo nos pa-
íses da periferia. Concordando com Marini (1980, p. 5, tradução livre),

62
“sempre que acharmos certas estruturas, funcionamento e coparticipação
entre forças armadas e capital monopólico, estaremos diante um Estado de
contrainsurgência, tenha ou não a forma de uma ditadura militar”.
A partir dos anos 1990, a contrainsurgência no Estado dependente
latino-americano tem se expressado em práticas autoritárias sob governos
“democráticos” como a criminalização dos movimentos sociais, assassinato
de líderes populares e socioambientais, a existência de presos políticos, in-
clusive desaparições forçadas e tortura. Mesmo que entre as décadas de
1960 e 1980 o chamado inimigo interno a combater fosse o comunismo,
desde a década 1990 o tal inimigo foi se diversificando: o narcotráfico e a
imigração, o terrorismo nos anos dois mil, o narco-terrorismo e a corrupção
posteriormente. Enfim, a agenda contra inimigos internos e ameaças à se-
gurança nacional estão em constante reatualização e as FFAA seguem à ca-
beça da função estatal de combate e repressão.
Apesar de ser difícil a extinção das FFAA da estrutura estatal latino-
americana, dado o atual caráter bélico do capitalismo imperialista no
mundo, é necessária a substituição da contrainsurgência nas formações so-
ciais dependentes por uma função social das FFAA, fora da lógica de segu-
rança e defesa da acumulação e reprodução do capital. Dessa maneira, o
Estado latino-americano velaria pela reprodução social contribuindo à
emancipação social e à ruptura da dependência que submete a região ao
devir capitalista.

Considerações finais

Nossa preocupação neste artigo foi superar a dicotomia existente en-


tre os campos estrutural e superestrutural que, em geral, aparece nos deba-
tes sobre o Estado. Nesse sentido, iniciamos estabelecendo a conexão entre
a reprodução e acumulação do capital e o Estado burguês ou capitalista.
Partimos daí para, ao clarificar a relação de co-determinação entre eles e a
função primordial do Estado, adentrar na análise de formações sociais da
periferia do capitalismo (enquanto elo mais débil do capitalismo imperia-
lista) que requisitam e demandam formas e ações específicas do Estado bur-
guês para cumprir as exigências de reprodução e acumulação do capital em
conjunturas específicas. Esse percurso de um plano mais abstrato a um mais

63
concreto é essencial para entender as particularidades dessas formações so-
ciais, bem como das particularidades do Estado que lhe corresponde.
Na busca por entender as particularidades da formação do sistema
de dominação capitalista nos países dependentes nos deparamos com o
processo de industrialização que foi inicialmente o responsável por estrutu-
rar as classes e frações de classes sociais e, por conseguinte, a correlação de
forças entre elas e seus respectivos projetos e posicionamentos dentre os
projetos de classe existentes. A estrutura de classes que daí surge e, em es-
pecial, a burguesia débil ou burguesia dominante-dominada será a base do
sistema de dominação e do Estado dependente que irá desenvolver certas
características e certa autonomia devido à situação de dependência.
Em seguida, centramos a atenção no processo de industrialização na
região e na crise capitalista dos anos 1970, fenômenos a partir dos quais
tanto o capital como o Estado precisaram modificar as condições de explo-
ração e dominação nas diferentes formações sociais. Na América Latina, o
Estado tentou resolver tal crise pela via autoritária de contrarrevolução para
enfrentar o movimento popular já que a burguesia da região não conseguiu
impor seu projeto de classe como hegemônico, tendo que se conformar
como hegemonia burguesa comprometida.
Assim, o Estado latino-americano adotou a contrainsurgência como
doutrina militar fixando ela como elemento central na sua estrutura política
durante as ditaduras militares dos anos 1970 e 1980. Enquanto isso, o capi-
tal instalou um novo padrão de reprodução e acumulação, o neoliberalismo,
que assegura a extração de mais-valia nas formações sociais latino-america-
nas. Tanto o padrão capitalista neoliberal quanto o Estado de contrainsur-
gência continuam vigentes no capitalismo dependente latino-americano do
século XXI.

Referências

BAMBIRRA, Vania. O capitalismo dependente latino-americano. 4


edição revisada. Florianópolis: Insular, 2019.

CUEVA, Agustín. El Estado latinoamericano y las raíces estructura-


les del autoritarismo. Ensayos sociológicos y políticos. Quito: Ministerio
de Coordenação da Política e Governos Autônomos Descentralizados,
2012.
64
FERNANDES, Florestan. Apontamentos sobre a “Teoria do autorita-
rismo”. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

MARINI, Ruy Mauro. Estado y crisis en Brasil. Cuadernos Políticos,


México, Editorial Era, n. 13, p. 76-84, julio-septiembre, 1977.

MARINI, Ruy Mauro. El Estado de contrainsurgencia. Cuadernos Polí-


ticos, México, Editorial Era, n. 18, p. 21-29, octubre-diciembre, 1978.

MARINI, Ruy Mauro. La cuestión del Estado en las luchas de clases en


América Latina. Serie Avances de Investigación, México, Centro de Es-
tudios Latinoamericanos, n. 44, 1980.

LECHNER, Norbert. La crisis del Estado en América Latina. Caracas:


El Cid editor, 1977.

PANIAGO, Maria Cristina Soares. Mészáros e a incontrolabilidade do


Capital. 2 edição. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

65
CAPÍTULO 4
O Estado brasileiro “abre as portas” da destruição
socioambiental na região da Amazònia8
Everton Melo da Silva
Artur Bispo dos Santos Neto

Introdução

A Amazônia está situada em uma área que possui cerca de 7.000.000


Km² e abarca a Colômbia, Equador, Peru, Venezuela, Bolívia, Guiana, Guiana
Francesa, Suriname e Brasil, este último detendo 61% do território
(SCHWERTNER, 2021). No Brasil, a Amazônia ocupa os estados do Acre,
Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Mato Grosso e Ma-
ranhão (FERREIRA, 2017). Essa região produzia banana, cana-de-açúcar, ca-
cau, algodão, arroz, milho e mandioca no período do Brasil colonial, que segui-
ram com a criação de gado à beira dos rios amazonenses e a extração do látex
da seringueira, nos séculos XIX e XX, bem como a extração de produtos nati-
vos como cupuaçu, graviola, papaya, açaí, cacau e juta. Além dos indígenas, essa
região passou a ser povoada por fluxos migratórios atraídos por “surtos”
econômicos de produtos típicos amazônicos (MANYARI, 2007).
Devido à sua biodiversidade e riquezas naturais, a Amazônia ganhou mais
atenção do Estado brasileiro e dos países centrais após a crise estrutural do capi-
tal, na década de 1970, tendo em vista o seu potencial energético, de matéria-
prima, de força de trabalho abundante e barata, de conhecimentos das comuni-
dades tradicionais sobre o uso dos elementos da natureza etc., constituindo-se
enquanto uma região com potencial para a expansão do capital, o que exigiria a
“construção de rodovias, [...] implantação de grandes projetos agropecuários e da
mineração” (MANYARI, 2007, p. 149). Essa dinamização econômica capitalista
impôs à Amazônia um lugar na divisão internacional do trabalho: o de forneci-
mento de “mercadorias de alto valor energético, com baixos valores agregados e
degradantes do meio ambiente” (COMEGNA, 2016, p. 1).

8
Este artigo é produto da pesquisa de doutoramento desenvolvida no Programa de
Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, intitulada “Es-
tado brasileiro ‘sem ilusões’: a tendência destrutiva do aparato estatal em suas relações
com a natureza e sociedade” (SILVA, 2022).
66
Para se apropriar dos recursos naturais nessa região, o Estado brasileiro,
durante o regime militar-empresarial, realizou uma série de intervenções para
dinamizar a economia no país com projetos de infraestrutura para facilitar a
penetração do capital. Entre os projetos estatais desenvolvidos na Região Ama-
zônica, apresentaremos três devido ao seu grau de interferência na natureza e
na vida social, deixando um rastro de destruição socioambiental – a Transmazô-
nica (1970), Megaprojeto Carajás (1980) e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (1984).

A rodovia que facilitou a penetração do capital na região:


a Transamazônica

Para o desenvolvimento da economia brasileira, o Estado atraiu investi-


mentos estrangeiros para Amazônia, pois essa região, altamente cobiçada por
países estrangeiros, oferecia força de trabalho e matéria-prima em demasia. O
capital, ao penetrar nessa região, devastou parte da natureza, “sem se preocupar
com sua capacidade de renovação e com a manutenção de seus sistemas eco-
lógicos.” (ZONTA; TROCATE; COELHO, 2015, p. 56-57). A Região Ama-
zônica foi dominada pelo setor mineral, madeireiro, energético e agropecuário
com a função de “fornecer insumos para o mercado internacional”, para “am-
parar o capital internacional e nacional”, o que a faz, essencialmente, exporta-
dora de matérias-primas e “pode ser encarada como um centro de expansão
do capital” (ZONTA; TROCATE; COELHO, 2015, p. 58).
A preocupação do regime militar-empresarial era com o desenvolvi-
mento econômico capitalista, com vistas a potencializar o Brasil na dinâmica
mundial. O Estado brasileiro, sob o comando de Emílio Garrastazu Médici,
idealizou e planejou uma estrada que “cortasse” o Brasil no sentido leste-oeste,
a Transamazônica, em 1970. Os verbos utilizados nos planos, programas e pro-
jetos estatais que envolviam a Região Amazônica eram “desenvolver”, “inte-
grar”, “ocupar”, “valorizar” e “colonizar”, especialmente no projeto da Tran-
samazônica (SOUZA, 2012). O slogan ideológico utilizado para justificar a cons-
trução dessa estrada era “homens sem terras do Nordeste nas terras sem ho-
mens da Amazônia” que carregava e reproduzia dois estereótipos regionais: a
redução do Nordeste à seca, preconizando o nordestino que precisava de “ter-
ras produtivas”, como o grande problema dessa região; e a desconsideração da
população amazonense, especificamente as comunidades tradicionais que vi-
viam e ocupavam historicamente a Amazônia, como se essa região precisasse

67
ser povoada e tomada, ignorando, por exemplo, os indígenas, ribeirinhos e pes-
cadores. Nesse sentido, Souza (2012, p. 52) assevera que “[...] além de um ins-
trumento de propaganda, a Transamazônica foi um projeto de governo, ou de
imagem para o Brasil e que teve um papel ímpar na construção do consenso a
favor da ditadura”.
O Instituto Hudson (dos EUA) tinha pretensão de construir uma es-
trada dentro da Amazônia (SOUZA, 2012). O Estado brasileiro, visando
68cupa-la, normatizou por meio do Decreto-Lei n.º 1.106, de 16 de junho
de 1970 o Programa de Integração Nacional, tendo como primeira etapa a
“construção imediata das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém”
(BRASIL, 1970, art. 2º), determinando em seu primeiro parágrafo que “será
reservada, para colonização e reforma agrária, faixa de terra de até dez qui-
lômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para, com os recursos do
Programa de Integração Nacional, se executar a ocupação da terra e ade-
quada e produtiva exploração econômica.” (BRASIL, 1970, art. 2º, § 1º).
“Conquistar” a Amazônia era um dos grandes objetivos do capital
nacional e internacional. Os expropriadores desejavam

[...] concretizar a crença de que explorar as incontáveis riquezas, pre-


sentes na Amazônia, conduziria o Brasil rumo a seu destino. A
Amazônia passava então para o centro do cenário nacional pois há
muito que diferentes setores problematizavam a necessidade de con-
quistar o imenso território e explorar suas riquezas. Dessa forma, a
construção da Transamazônica poderia preencher estas expectativas
e despertar junto à população um clima de euforia com o desenvol-
vimento do país. (SOUZA, 2012, p. 45).

O principal critério para a ocupação dessa região era econômico, de-


vido às potencialidades agrárias, minerais, energéticas e florestais. A Supe-
rintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) elaborou um
estudo com a finalidade de mensurar a potencialidade da região e nesse es-
tudo “[...] em momento algum, a fauna e flora [aparecem] como um bem a
ser preservado, mas se detém em levantar os possíveis ganhos a serem ob-
tidos com a extração de madeira, fazendo uma explanação sobre os espéci-
mes que seriam encontrados.” (SOUZA, 2012, p. 158). Isso revela que o
órgão estatal tinha como objetivo central apresentar “os ganhos econômi-
cos” com a dominação desse território. A SUDAM concluiu, em 1970, “que
se poderia obter grandes lucros com exploração de madeiras de lei como

68
mogno (Swietenia macrophylla), cedro (Cedrela fissilis), freijó (Cordia goel-
diana), sucupira (Pterodon emarginatus) às margens da rodovia” (SOUZA,
2012, p. 145). Além dessas, o autor complementa: “outras espécies como
acapu (Vouacapoua americana Aubl), andiroba (Carapa guianensis Aubl),
cupiúba (Goupia glabra), maracatiara (Astronium lecointei Ducke) todas
com grande valor comercial” (SOUZA, 2012, p. 146). No estudo do Insti-
tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) aparecem peles
e carnes de animais selvagens como potencial econômico, “assim, constam
na lista gatos maracajás (Leopardus weidii), onças (Panthera onca), caititus (Ta-
yassu tajacu), ariranhas (Pteronura brasiliensis) e jacarés (Gavialidae) como ‘fonte
de recursos econômicos significativos’”. (SOUZA, 2012, p. 146). A preo-
cupação com os meios de vida das populações tradicionais ou com os danos
socioambientais que essa obra estatal causaria não versaram nos estudos da
SUDAM e do INCRA.
No processo de construção da Transamazônica, os municípios do
Maranhão, Pará e Amazonas receberam trabalhadores de várias partes do
país, principalmente do Nordeste. E dentre as empreiteiras que participa-
ram da construção estiveram: a Construtora Mendes Júnior S.A. (responsá-
vel por construir 632 km); a S.A Paulista Com. E Construção (117 km); a
Construtora Queiroz Galvão S.A. (234 km); a EIT-Empresa Industrial Téc.
S/A. (259 km); a Construtora Rabelo S.A. (374 km); a Construtora Com.
Camargo Correa S.A. (400 km); e a Paranapanema S/A – Mineração Ind. E
Construções (300 km) (SOUZA, 2012). Ao todo, a Transamazônica conta-
biliza 5.400 km de extensão, sendo 2.300 km construídos no período do
regime militar-empresarial e, posteriormente, integrada à outra rodovia já
existente que conectava Ceará, Piauí e Paraíba, resultando na ligação da
Transamazônica ao Oceano Atlântico (SOUZA, 2015). Ao todo, a Transa-
mazônica contabiliza 5.400 km de extensão, sendo 2.300 km construídos
no período do regime militar-empresarial e, posteriormente, integrada à ou-
tra rodovia já existente que conectava Ceará, Piauí e Paraíba, resultando na
ligação da Transamazônica ao Oceano Atlântico (SOUZA, 2015). Podemos
dividir a Transamazônica em quatro trechos: Trecho Nordestino (PB, CE,
PI e MA) (1.576 km); Trecho Estreito (MA) – Itaituba (PA) (1.252 km);
Trecho Itaituba (PA) – Humaitá (AM) (1.070 km); e Trecho Humaitá (AM)
– Boqueirão da Esperança (AC) (1.521 km).

69
Ao analisar os relatórios do INCRA e SUDAM sobre a Transamazô-
nica, Souza (2009) concluiu que a preservação da natureza e das populações
tradicionais era vista pelos órgãos oficiais como “obstáculos” ao desenvolvi-
mento econômico capitalista. A lógica destrutiva do capital tinha seu vetor de
espraiamento no Estado brasileiro, o qual intervia “no meio ambiente para os
grandes projetos de desenvolvimento [que] ocasion[aram] significativa degra-
dação da fauna, flora e recursos hídricos da região” (SOUZA, 2012, p. 143).
Para sua construção, foi necessário derrubar florestas com o intuito
de limpar o terreno para a consolidação da estrada. Outras estradas menores
foram construídas na Amazônia, na década de 1980, que destruíram cerca
de 25 milhões de hectares de florestas (SANTOS, 2009). A natureza, ao
mesmo tempo que era tomada pelo seu potencial econômico, era vista
como obstáculo, portanto, deveria ser “removida do caminho”. Nas pala-
vras de Souza (2009, p. 145):

[...] a Transamazônica causou grande devastação em seu próprio traçado


que compreende segundo dados de engenharia, na obra em si, de “faixa
de domínio desmatada – 70m” e “largura da pista – 8,60m”, com a de-
sapropriação de dez quilômetros de cada lado da faixa central para fins
de reforma agrária. Contudo, a degradação ambiental multiplicou-se
consideravelmente pela chegada cada vez maior de pessoas. O desdo-
bramento do projeto, a implementação das políticas de colonização, a
forma de ocupação e de plantio por parte dos migrantes, bem como os
outros tantos que para lá se dirigiram espontaneamente causaram o
maior dano que a estrada propriamente dita.

Conforme mencionado anteriormente, a Transamazônica era formal-


mente um programa de colonização de retirada de populações do Nordeste
para a Amazônia. Segundo informações do INCRA, destacadas por Souza
(2015), a capacidade de “expulsão” dos Estados nordestinos era: Maranhão
(24.270 famílias), Pernambuco (21.350), Paraíba (17.826), Ceará (13.152), Ala-
goas (8.684), Rio Grande do Norte (6.588), Piauí (6. 229), Bahia (5.144) e Ser-
gipe (705). Entretanto, a proposta de realocação de famílias nordestinas para o
Norte do Brasil “não se tornou o maior projeto de assentamento do mundo,
visto que o aumento considerável da população, se deu devido a ida de pessoas
espontaneamente para a região” (SOUZA, 2012, p. 53).

70
O Megaprojeto Carajás e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí para
extração de minérios na Amazônia

Outro projeto estatal que degrada brutalmente a natureza é o


Projeto Grande Carajás (PGC), iniciado no ano de 19809. O Estado brasi-
leiro tinha conhecimento da existência de minérios na Região Amazônica
para a produção industrial, então, o ex-presidente da república, Nilo Peça-
nha (1909-1910), “procurou estimular empresários nacionais e estrangeiros
na empreitada de extração de minério no país” (SANTOS, 2009, p. 20) e,
em 1920, a empresa inglesa Itabira Iron Ore Company assinou um acordo com
o Governo Brasileiro para a exploração de minerais. Contudo, na década de
1970, o regime militar-empresarial “aprovou um projeto que ficou conhe-
cido por Projeto Radam Brasil (Radar da Amazônia), com o objetivo de
mapear praticamente toda a Amazônia, com especial atenção, naquele mo-
mento, para a descoberta dos minérios existentes” (SANTOS, 2009, p. 21).
A Serra dos Carajás, localizada no Pará, indicava o potencial mineral da re-
gião, visto que, conforme análise de Santos (2009, p. 24),

[...] além dos 18 bilhões de toneladas de minério de boa qualidade,


indicado no início da descoberta, a jazida de Carajás apontava, ainda,
para um bilhão de toneladas de minério de cobre; 60 milhões de to-
neladas de manganês; 37 mil toneladas de estanho; 40 toneladas de
ouro como subproduto de cobre; e 4,7 bilhões de toneladas de bau-
xita. Foram realizados sólidos investimentos em algumas áreas, es-
pecialmente no setor de cobre, alumínio, ferroníquel, ferro-ligas,
manganês, gusa, semi-acabados de aço e silício metálico.

9
De acordo com Santos (2009, p. 24), o PGC abarca um total de “de 218 municípios
pertencentes aos estados do Maranhão, Pará e Goiás, com abrangência superior a
10,6% do território nacional”. Em termos geográficos, o PGC se situa “numa faixa que
envolve das caatingas do Nordeste à floresta amazônica, passando pelo planalto central
brasileiro e tem, no seu interior, vários rios importantes para o funcionamento das
atividades do programa”. (SANTOS, 2009, p. 25-26). Ele está dividido em três blocos:
“o primeiro bloco corresponde à região entre São Luís e Santa Inês, no Maranhão; o
segundo bloco está situado entre as cidades de Santa Inês a Marabá, no Pará; e no
terceiro bloco, a área corresponde às terras situadas entre as cidades de Marabá a Serra
dos Carajás” (SANTOS, 2009, p. 26). Esses blocos possuem similitudes geográficas,
como: “o primeiro bloco é constituído de manguezais, babaçuais, áreas de inundação
e área costeira. [...]. O segundo bloco é composto por florestas densas, cerrado e baba-
çuais, além de vários outros tipos de cobertura vegetal. [...] O terceiro bloco, por ser de
ocupação mais recente, vem sofrendo as maiores pressões com o desmatamento da
floresta nativa e a devastação dos recursos naturais” (SANTOS, 2009, p. 26-27).
71
A estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi quem assumiu a
direção da extração, até a sua privatização na década de 1990 – que a tornou
“Vale” em 1997. A CVRD contraiu empréstimos com as instituições es-
trangeiras e nacionais e contou com o apoio de diversas instituições inter-
nacionais de países estrangeiros, como “a União Europeia – UE, a Confe-
deração Europeia de Ferro e aço, o Banco Mundial, além de ajuda dos go-
vernos do Japão e Estados Unidos” (SANTOS, 2009, p. 22). Esse interesse
do capital internacional “desempenhou um papel fundamental no direcio-
namento dos rumos do Projeto Grande Carajás” (SANTOS, 2009, p. 32).
Na década de 1980, o PGC foi executado pelo Estado brasileiro com inter-
ferência do capital internacional (SANTOS, 2009).
Devido à crise estrutural do capital e ao aumento do endividamento
externo do Brasil, o Estado tinha altas expectativas com o PGC com vistas
à “geração de emprego e renda, bem como com a melhoria da qualidade de
vida das populações da região.” (SANTOS, 2009, p. 22). A CVRD formu-
lou o documento “Amazônia Oriental – Plano Preliminar de Desenvolvi-
mento” estipulando “gasto na ordem dos 61,7 bilhões de dólares, dos quais
seriam 22,5 bilhões somente com infra-estrutura, a prioridade em curto
prazo, e 39,2 bilhões nos outros setores” (SANTOS, 2009, p. 23). A se-
quência seria da seguinte forma: “primeiro viriam os empréstimos de insti-
tuições estrangeiras; depois, a criação de condições estruturais para a reali-
zação de negócios, com o intuito de gerar divisas e saldo positivo na balança
comercial; por fim, o pagamento dos empréstimos e o investimento social”
(SANTOS, 2009, p. 33). Entretanto, os projetos estatais de infraestrutura
para o desenvolvimento do capital geraram um maior endividamento e
aprofundamento da “subserviência política e econômica do país em relação
aos credores” (SANTOS, 2009, p. 41), reforçando o traço constitutivo da
economia política brasileira.
O Estado brasileiro assumiu a infraestrutura (75% dos custos) e ao
assumi-la curvou todo seu aparato estatal para a implementação desse com-
plexo. Conforme explicita Santos (2009, p. 34):

[...] além de uma ampla massa infra estrutural, a participação de ins-


tituições federais como o Grupo Executivo das Terras do Araguaia-
Tocantins - GETAT, posteriormente, Instituto Nacional de Coloni-
zação e Reforma Agrária - INCRA, na responsabilidade sobre as
questões fundiárias; Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial -

72
SENAC e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI,
que contribuíram com a formação de mão-de-obra; da mesma forma
inseriram-se Escolas Técnicas e Universidades.

Além desses órgãos, o Estado brasileiro instituiu, por meio do De-


creto-lei n.º 85.383, a criação do Conselho Interministerial para gerir o fun-
cionamento do PGC e concedeu mais de 400 mil hectares para a implemen-
tação desse projeto via Resolução n.º 331/86 do Senado Federal (SANTOS,
2009). Com esse arcabouço de incentivos estatais e de infraestrutura, os
objetivos traçados no documento “Amazônia Oriental – Plano Preliminar
de Desenvolvimento” consistiam em:

[...] desenvolver o crescimento industrial; a siderurgia e, especial-


mente, a exploração mineral; ocupar o que se denominou de “espa-
ços vazios”, substituindo a economia tradicional camponesa e indí-
gena por uma economia de mercado; gerar riqueza, emprego e renda
para tirar o país da crise e pagar a dívida externa; descentralizar a
economia nacional (SANTOS, 2009, 23).

Nessa direção, Santos (2009, p. 29) aborda, genericamente, em al-


gumas passagens do seu texto, sobre os “benefícios” do PGC, ao afirmar
que uma “série de benefícios econômicos e sociais que ele [o PGC] trouxe
para a Amazônia oriental e para o próprio país”; ou que “as rodovias, desde
sua implantação, tiveram intensa participação na vida de muitas pessoas que
precisavam se deslocar pelo território amazônico e nacional; a ferrovia tam-
bém contribui para o deslocamento de pessoas, além do transporte do mi-
nério; e os portos, igualmente, trazem significativas contribuições ao país”;
ou ainda que “pode-se verificar alguns benefícios financeiros que o estado
do Pará desfruta com a atuação da CVRD em seu território”. Paradoxal-
mente, o autor afirma que as “particularidades locais, sociais e ambientais,
não se constituíram entre as prioridades do programa” (SANTOS, 2009, p.
30). Mesmo com o discurso oficial de melhorias para a região com a im-
plantação do PGC, o que foi presenciado pela população no Maranhão, por
exemplo, foi a consolidação de “índices sociais e econômicos situados nas
piores colocações, comparado ao restante do país. Atualmente é uma das
unidades da federação mais pobres, com uma série de consequências sociais
negativas”. Além das expressões da “questão social”, as expressões da

73
“questão ambiental” também ficaram evidenciadas nos municípios que fo-
ram abarcados pelo PGC, como Açailândia (MA) que “sofre com a poluição
urbana provocada pela emissão de gazes na atmosfera pelas indústrias.
Como consequência, há um alto índice de doenças respiratórias, especial-
mente entre a população idosa e infantil” (SANTOS, 2009, p. 31). Foi o
próprio capital que alastrou as desigualdades sociais na Região Amazônica, onde o
desemprego é maior e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é me-
nor nos municípios do PGC (ZONTA; TROCATE; COELHO, 2015; PE-
NHA; NOGUEIRA, 2015).
Considerando as expressões da “questão ambiental”, os danos soci-
oambientais são diversos devido à magnitude da extração e processamento
de minérios, como queimadas de carvão vegetal provenientes do desmata-
mento que “alimentam” as siderurgias – na década de 1980, “80% do carvão
consumido pelas indústrias siderúrgicas no País provinham de florestas na-
tivas” (SANTOS, 2009, p. 44). Nesse sentido:

É fácil compreender essa notável velocidade de desmatamento ao


perceber que “cerca de 83% do carvão vegetal consumido pelas si-
derúrgicas brasileiras em 1984 foi produzido a partir de povoamen-
tos vegetais nativos” (CODEBAR/SUDAM, 1986, p. 9). Esses re-
sultados vêm sempre acompanhados do uso de grandes áreas, pois
mesmo com a possibilidade de extrair 27 toneladas de lenha em um
hectare de cerrado e 208 toneladas numa floresta densa, o volume
necessário é monumental. (SANTOS, 2009, p. 51).

O PGC utilizou, nos primeiros anos, “cerca de cinco bilhões de me-


tros cúbicos de madeira no Pará [...]. Na mesma época ocorreu um desma-
tamento de mais de três milhões de hectares de florestas, 2,75% de todo o
território do estado” (SANTOS, 2012, p. 51). Conforme os dados apresen-
tados por Santos (2009 p. 60), “passam de 200 as carvoarias licenciadas pelo
IBAMA e são mais de 500 o número total, incluindo as que não possuem
licença. Elas devastam 1.348 hectares de cobertura vegetal por mês só no
cerrado envolvido pelo Projeto Carajás”. Para extrair essa quantidade de
madeiras da Floresta Amazônica, esse megaempreendimento passou a ab-
sorver áreas habitadas por indígenas e camponeses, devastando reservas le-
gais e Unidades de Conservação (SANTOS, 2009).
O projeto estatal PGC construiu a Estrada de Ferro Carajás (EFC),
uma ferrovia de expressivo impacto nos meios de vida dos municípios por

74
onde passa com seus 892 km de extensão afetando 26 municípios. Penha e
Nogueira (2015, p. 221-222, grifos nossos) trazem, de forma ilustrativa, a
EFC que prejudica 152 comunidades no Pará e Maranhão:

1) Localizado no município de Marabá/PA, o assentamento de Alzira


Mutran, criado em 1997 e regularizado em 2011, é o núcleo urbano que
tem o maior número de pessoas vivendo perto da EFC. O assenta-
mento tem sido impactado pela ferrovia, primeiramente, a partir do au-
mento da quantidade de vagões, que passou de 80 para 330 e agora, com
a sua duplicação, enfrenta o problema da remoção de moradores.
2) Situado à 16 km da cidade de Marabá/PA, o assentamento Belo
Vale passa por um conflito de terra, no mínimo estranho, pois em
vista da instalação da siderúrgica Aços Laminados do Pará (ALPA),
o Estado decretou sua desapropriação. Os moradores não se conformaram
com esse decreto. Houve críticas a respeito da postura do Estado
em apoio a esse empreendimento. E também críticas a respeito da
desapropriação estadual de um projeto de assentamento federal.
3) A comunidade de Nova Vida conta com aproximadamente 175
famílias, localiza-se no município de Bom Jesus das Selvas/MA.
Esta comunidade vive cercada pela BR 222, a EFC e uma estrada
construída pela Vale S.A. As denúncias envolvem impactos desde a
construção da EFC, da sua operação e das obras da duplicação, que
vão desde a remoção do cemitério da comunidade na época da construção da
EFC; Remoção de famílias; atropelamentos, com morte, de pessoas e de animais;
aterro de igarapés; a falta de espaço para prática de agricultura; entre outros
[...]. Com as obras da duplicação, os principais impactos que afetarão
os moradores incluem o risco de remoção de famílias e a perda de renda.
4) Localizada na cidade de Açailândia/MA, Piquiá de Baixo foi um dos
primeiros bairros construídos na cidade, nos anos de 1970. Atualmente,
faz parte da zona rural do município e abrange 300 famílias. Ele também
é conhecido como “Cubatão da Amazônia”, pelo seu alto nível de poluição.

A luta de classe pelo uso e apropriação das riquezas naturais faz parte
do cotidiano da Região Amazônica. O Estado brasileiro representa o capital na
luta de classe pela apropriação e uso da natureza contra as diversas frações da classe
trabalhadora. Os povos e comunidades tradicionais têm sua forma de associa-
ção com a natureza não só pelo “valor econômico”, mas pela sua vinculação
social, cultural e relacional com a terra, a água e os diferentes recursos naturais,
diferentemente de uma empresa/empreendimento de extração de recursos na-
turais, de grileiros, de garimpeiros, de latifundiários etc.
Numa perspectiva crítica da economia política, entendemos que o
antagonismo de classe e os diferentes interesses econômico-sociais pela natureza perfazem

75
a luta de classes relacionada ao uso e apropriação coletiva ou privada do meio ambiente.
O capital para desenvolver e expandir seus domínios, precisa expulsar os
povos e comunidades tradicionais dos seus territórios utilizando, principal-
mente, o Estado brasileiro e sua violência normativo-legal e/ou as forças
armadas. Concordamos com Mazzeo (1995, p. 34) que no Brasil o Estado
foi “direcionado para subvencionar o desenvolvimento das forças produti-
vas e, a nível político, garantir a repressão ao movimento operário e popular,
representado pela legislação trabalhista autocrática e corporativista e pelo
aparelho repressivo de uma polícia política violenta e brutal”. Nas palavras
de Netto (1991, p. 19, grifos originais), ao elencar particularidades da for-
mação econômica brasileira, afirma-se que:

A característica do Estado brasileiro [...] não é que ele se sobreponha


a ou impeça o desenvolvimento da sociedade civil: antes, consiste em
que ele, sua expressão potenciada e condensada (ou, se se quiser, seu
resumo), tem conseguido atuar com sucesso como um vetor de de-
sestruturação, seja pela incorporação desfiguradora, seja pela repres-
são, das agências da sociedade que expressam os interesses das classes su-
balternas. O que é pertinente, no caso brasileiro, [é] um Estado que
historicamente serviu de eficiente instrumento contra a emersão, na
sociedade civil, de agências portadoras de vontades coletivas e pro-
jetos societários alternativos.

O Brasil é o país que lidera as mortes por questões vinculadas à terra,


pois, “segundo relatório da Global Witness, a morte de militantes ligados ao
direito a terra e ao meio ambiente aumentou entre 2002 e 2013. No mundo
todo houve 908 mortes relacionadas a disputas relativas à exploração industrial
de florestas, minas e direitos de utilização de terras”, enquanto no Brasil “foram
448 assassinatos neste período. Segundo o relatório, a pressão pela exploração
de recursos naturais é o principal motivo e a impunidade é uma das caracterís-
ticas deste processo” (ZONTA; TROCATE; COELHO, 2015, p. 69). O Mas-
sacre dos Carajás, em 1996, é o exemplo ilustrativo de como age o aparelho
repressor e violento do Estado brasileiro que resultou na morte de 21 militantes
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no processo de
disputa pelo uso e apropriação da terra.
Para atender a nova dinâmica produtiva da Região Amazônica, com
a instalação de polos de extração de minérios e siderúrgicas, o Estado bra-
sileiro construiu a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, inaugurada em 1984. Essa

76
região possui expressiva capacidade energética, “detendo 80% do potencial
hidrelétrico ainda aproveitável no Brasil” (COUTO, 2005, p. 1). Essa hidre-
létrica foi construída entre 1975 e 1984 pela Eletronorte, no rio Tocantins
(Pará), e sua construção utilizou seis milhões m³ de concreto, 85 milhões
m³ de terra e rocha e contou com mais de 30 mil trabalhadores (COUTO,
2005). Os trabalhadores da região passaram a vender a sua força de trabalho
na construção da hidrelétrica, uma vez que, seus antigos trabalhos com agri-
cultura e pesca foram extintos pela nova dinâmica econômica. Na análise
de Congilio e Silva (2019, p. 10),

[...] o fluxo migratório de trabalhadores, sob promessa de uma vida


melhor para suas famílias, um salário digno, com direito a vale ali-
mentação e transporte, aumentou a procura por emprego na cons-
trução da barragem. A empresa por sua vez, aproveitou-se da situa-
ção para selecionar uma maior quantidade de força de trabalho a
baixo custo e, ao deslocar famílias para uma localidade totalmente
diferente, obrigou grande parte dos atingidos a vender sua força de
trabalho de forma precária para as madeireiras e projetos agropecu-
ários instalados na região.

Para sua construção realizaram-se desmatamentos, aberturas de no-


vas estradas, alteração no curso de rios, migração, perda de sítios arqueoló-
gicos, deslocamento compulsório de comunidades, urbanização e faveliza-
ção (COUTO, 2005; MANYARI, 2007; CONGILIO; SILVA, 2019). Con-
forme Manyari (2007, p. 146-147), “por ocasião da implantação do reserva-
tório de Balbina, um mapa do baixo curso do rio Uatumã e seus tributários
indica não menos do que 121 sítios. Na área da hidrelétrica de Porteira, no
rio Trombetas, Pará, foram identificadas 43 localidades pré-históricas”.
O Rio Tocantins passou a ser conduzido pela dinâmica da hidrelé-
trica, perdendo sua forma de trafegar com naturalidade. Não obstante, a
construção do lago para a hidrelétrica inundou parte da floresta tropical,
diversas comunidades e áreas de agricultura. Sobre este aspecto, destaca
Couto (2005, p. 8, grifos nossos):

Para formação do lago que inundou uma área de 2.875km2, com 45.8
bilhões de m3 de água, a hidrelétrica atingiu 13 vilas e povoados rurais do
baixo Tocantins: Repartimento, Breu Branco, Remansão do Centro,
Remansão da Beira, Areião, Jatobal, Chiqueirão, Coari, Canoal, Vila
Braba, Ipixuna, Sta Tereza do Tauri. Inundou nove reservas indígenas per-

77
tencentes a cinco diferentes tribos: Assurinis, Gavião, Suruí, Para-
kanã e Xincrim. Além disso, ficaram submersos 250km de rodovia
sendo 150km da rodovia Transamazônica, e a cobertura vegetal não
retirada na quase totalidade do reservatório.

A Usina Hidrelétrica de Tucuruí, bem como os outros dois projetos


estatais apresentados anteriormente, foi desenvolvida com recursos públi-
cos, por meio da obtenção de empréstimos juntamente aos bancos estran-
geiros contraídos pelo Estado brasileiro. Ao assumir empréstimos/financi-
amentos, o Estado justificava a necessidade de alavancar a economia naci-
onal na competitividade do mercado mundial e de ser atrativo para multi-
nacionais e empresas estrangeiras, além da possibilidade de impulsionar o
aumento da taxa de exportação nacional. Esses projetos estatais deixaram
um endividamento externo com essas obras de infraestrutura e um rastro de destruição
socioambiental, onde a natureza e a população da região foram solapadas para
atender aos anseios econômicos capitalistas.
O que ocorre é a apropriação privada da natureza pelo capital, para a
dinâmica econômica capitalista, e os impactos socioambientais provenien-
tes dessa apropriação são socializados com todos, principalmente indígenas,
quilombolas, agricultores, pescadores, proletários etc. (ZONTA; TRO-
CATE; COELHO, 2015). O capital, por meio do Estado, destrói a natureza
e o meio de vida da população amazonense, remove populações de uma
área para outra, destrói e aterra rios e bacias hidrográficas.

Considerações finais

O Estado brasileiro realiza investimentos públicos e curva todo o apa-


rato estatal para o desenvolvimento de infraestrutura e progresso do capita-
lismo brasileiro provocando incomensuráveis consequências nocivas para a
Região Amazônica. Com o dinheiro arrecadado dos impostos sobre os traba-
lhadores, e, após a conclusão das obras, as privatiza entregando-as ao capital
nacional e internacional. Podemos concluir que o Estado brasileiro “abriu as
portas” da destruição socioambiental na região da Amazônia, tanto em suas
ações diretas com obras quanto nas ações conjuntas com o capital. E, ao tentar
se colocar como o “protetor da natureza” ou “guardião” dos interesses coleti-
vos sob o uso da natureza – conforme as normas legais –, o Estado brasileiro

78
se revela enquanto um dos principais agentes de sua destruição, na mesma me-
dida que legisla sobre a proteção ambiental (SILVA, 2022).

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80
CAPÍTULO 5
Estado e políticas públicas no Brasil contemporâneo: demo-
cratização x permanência no ensino superior
Albany Mendonça Silva
Andréa Alice Rodrigues Silva
Caroline dos Santos Lima

Introdução

Este capítulo se propôs a problematizar os dilemas da democratiza-


ção do ensino superior na contemporaneidade. Para tanto, na direção de
recuperar o debate referente ao Estado e as políticas públicas no capitalismo
contemporâneo, fez-se uma discussão inicial sobre o contexto do pós-1970,
nos âmbitos socioeconômico e político, para entender as principais mudan-
ças na forma de regulação do Estado e os impactos para as políticas públicas
com a emergência do neoliberalismo e situar o debate dos desafios da de-
mocratização do ensino superior.
Apresenta-se, ainda, o debate da Reforma do Estado e as orientações
do Banco Mundial para a política educacional, as quais impactam direta-
mente no processo de privatização da educação, através dos cortes orça-
mentários e redução dos investimentos nas políticas de assistência estudan-
til, contribuindo para acirrar as condições de desigualdades de acesso e per-
manência dos discentes. Com isso, busca-se analisar os desafios da demo-
cratização do ensino no cenário que tem sido agudizado diante das crises
econômicas, sociais e políticas, que afetam a sociedade, e como sua intensi-
ficação a partir da crise sanitária mundial reflete na vida estudantil e na per-
manência dos discentes no ensino superior.
Destaca-se que o presente texto é fruto das reflexões, diálogos e torças
das integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho, Formação Profis-
sional e Serviço Social da Universidade Federal Recôncavo da Bahia (UFRB).

81
Estado e políticas públicas: transformações capitalistas e a
contrarreforma do Estado

Para compreender a discussão dos desafios da democratização do


ensino superior no Brasil, faz-se necessário situar a análise acerca as trans-
formações capitalistas decorrentes da crise capitalista pós-1970 que altera-
ram significativamente os padrões de produção e o modo de regulação.
É importante sinalizar que depois de um período áureo do capita-
lismo (1945-1970), conhecido como Welfare State18, marcado pelo padrão de
acumulação que lhe caracterizava (fordista/taylorista), que oportunizou um
período favorável para incentivar a maior concentração de capitais e da in-
tervenção do Estado, o capitalismo entra em crise.
Tal crise coloca em cena uma nova configuração do padrão de acumu-
lação do capital e da regulação do Estado, a partir da adoção de uma política
neoliberal que impacta no processo de intervenção estatal e na desregulamen-
tação das relações de trabalho, com o incremento acentuado das privatizações,
tendência conectada às desregulamentações e à flexibilização do processo pro-
dutivo, dos mercados e da força de trabalho (ANTUNES, 2000).
É nesse contexto que predomina a emergência de novas formas de
produzir assentadas em tecnologias flexíveis e uma outra modalidade de
regulação político-institucional fundada no neoliberalismo. Segundo Gentili
(1998), o neoliberalismo deve ser compreendido como um projeto hege-
mônico de classe que apresentou de forma estruturada um conjunto de re-
formas radicais no plano político, econômico, jurídico e cultural.
Tais reformas contribuem para que haja a descontinuidade da inter-
venção direta do Estado na economia, enquanto socialização estatal dos
custos (riscos) e perdas sem número constantemente crescente de proces-
sos produtivos, ocasionando grandes impactos para classe trabalhadora,
quer seja nos mecanismos de transferência e incorporação de ganhos de
produtividades que contribuem para elevação dos salários. Ademais, as al-

18
O Welfare State caracterizou-se em um padrão de financiamento público de econo-
mia capitalista, mediante a estruturação da esfera pública, onde o fundo público passou
a ser o pressuposto de financiamento da acumulação do capital, de um lado, e, de outro,
do financiamento da reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a
população (OLIVEIRA, 1988, p.8).
82
terações no mercado de trabalho e as reformas sindicais intensificam o pro-
cesso de precarização do trabalho e o refluxo do movimento sindical aliado
ao processo de privatização e perdas no investimento em políticas públicas.
Segundo Mattoso (1995), há inversão nas relações de trabalho e na
contratação da força de trabalho, através da redução dos níveis de segurança
do trabalho, da relação salarial, do padrão de consumo e da desestruturação
do movimento sindical, além do desemprego estrutural.
Com isso, reafirma-se a proposta de Reforma do Estado que se pauta
na necessidade do Estado “privatizar, liberalizar, desregular, flexibilizar os mer-
cados de trabalho, mas fazê-lo de forma radical, uma vez que, para a ideologia
neoliberal, o Estado deve [...] desvencilhar-se de todas as suas funções de inter-
venção no plano econômico e social” (PERREIRA, 1998, p. 38). E, por esse
motivo, foi denominada por Behring (2003) de contrarreforma do Estado.
Nesse bojo, destaca-se que no cenário de privatização intensifica a
disputa do fundo público e, consequentemente, a definição das prioridades
dos gastos públicos tem sido tensionada e marcada com uma série de me-
didas adotadas: disciplina fiscal; redefinição das prioridades do gasto pú-
blico; manutenção de taxas de câmbio competitivas; reforma tributária; li-
beração comercial; regime cambial, privatização de empresas estatais, des-
regulação da economia; proteção dos direitos autorais, reforma do ensino
superior; reforma da Previdência e Administrativa (NETTO, 1993; TEI-
XEIRA, 1996; GENTILI, 1998; BATISTA, 1999). Tais reformas trazem
implicações diretas para o desmonte do setor público e, por conseguinte,
para o funcionalismo público
Na ótica de Bresser Pereira (2000, p. 33), as reformas neoliberais – o
ajuste fiscal, a privatização, a liberalização comercial, a desregulamentação,
a reforma da administração pública – ao contrário de enfraquecer o poder
do Estado, tem como objetivos “tornar o Estado mais governável e com
maior capacidade de governança”. Esse projeto consolida uma ampla re-
forma nas políticas e no aparelho do Estado, na perspectiva de “solucionar
a crise da economia brasileira e garantir as chamadas condições de inserção
do país na economia globalizada” (CARDOSO apud SILVA, 2003, p. 71).
As políticas sociais e a questão educacional sofrem os rebatimentos
da Reforma do Estado. Com isso, verifica-se que há uma modificação radi-
cal na estrutura da esfera pública no projeto da Reforma do Estado, por

83
meio do “processo de privatização do público que se expressa na apropria-
ção privada dos recursos públicos” (WANDERLEY, s/d, p.4).
É com a Reforma do Estado que se configura um processo privatização
e disputa do fundo público. Como alerta Oliveira (s/d, p.7), no caso brasileiro
destaca-se como um processo de regulação sem esfera pública, isto quer dizer:
“a utilização do fundo público casuisticamente, sem regras gerais, sem a cons-
tituição de alteridades que imporiam clivagens e vertedouros por onde passa-
riam as decisões sob controle dos grupos e classes sociais não apenas direta-
mente interessados: sobretudo os não diretamente interessados”.
Além dessa questão, pode-se destacar que a Reforma promoveu um
incremento significativo do desempenho estatal, mediante a introdução de
formas inovadoras de gestão e de iniciativas destinadas a quebrar “as amar-
ras do modelo burocrático”, a descentralizar os controles gerenciais, a fle-
xibilizar normas, estruturas e procedimentos. Ademais, “trabalharia em prol
de uma redução do tamanho do Estado mediante políticas de privatização,
terceirização e parceria público-privado, tendo como objetivo alcançar um
Estado mais ágil, menor e mais barato” (NOGUEIRA, 2004, p. 41).
A esse respeito, pode-se concluir que a crise capitalista impacta dire-
tamente na regulação do Estado e, consequentemente, nos mecanismos de
financiamento e de transferências de investimentos nas políticas públicas,
culminando com a oferta de políticas focalistas e privatizadas. É nesse bojo
que se coloca o debate do desmonte da democratização do ensino.

Políticas educacionais no contexto neoliberal: desafios da democra-


tização e da permanência no ensino superior

Diante das reflexões, observa-se que a reconfiguração do Estado as-


sume centralidade no projeto neoliberal. Na perspectiva de compreender
melhor a reconfiguração do Estado e as implicações para as políticas públi-
cas no bojo do neoliberalismo, pretende-se situar o debate da Reforma do
Estado com o propósito de mostrar sua relação intrínseca com o processo
de constituição das políticas públicas e as mudanças em curso na contem-
poraneidade, em especial na educação.
É importante considerar que o Estado sofreu mudanças significativas
a partir do processo de Reforma do Estado, as quais impactam diretamente

84
no processo de acumulação e de regulação do capitalismo mediante a insti-
tucionalização de políticas públicas. As demandas públicas passam a ser ge-
ridas menos em nome do interesse público e mais em nome dos interesses
particulares (COSTA, 2000).
Nesse sentido, “o bom Estado deveria ser [...] reduzido quase ao mí-
nimo, tomado pela racionalidade técnica e vazio de interesses, de paixão, de
embates políticos e a sociedade civil – lócus de cidadãos organizados” (NO-
GUEIRA, 2001, p. 42).
Evidencia-se, assim, que a nova formatação do Estado atinge direta-
mente o financiamento das políticas públicas, principalmente as sociais. A
esse respeito, pontua Henrique (1993, p. 227):

[a] utilização de recursos públicos passou a se subordinar às políticas


de incentivos, subsídios e pagamentos das dívidas pública interna e
externa, abalando progressivamente a situação das finanças públicas
e, com isso, comprometendo ainda mais o dispêndio na área social.

É nesse processo de crise orçamentária que os Estados são obrigados


a desmontar ou substituir a política social, que passa a assumir um caráter
paternalista e deixa de ser vista como direito social para ser objeto de con-
sumo acessível no mercado. Ou seja, o Estado passa a financiar, através das
subvenções, convênios e isenções, práticas e programas sociais de cunho
focalista e seletivo, tendo como premissa a lógica do favor e do clientelismo.
Nesse sentido, as medidas introduzidas com políticas neoliberais as-
seguram o Estado mínimo e a desregulamentação da economia predomi-
nantemente em relação aos gastos sociais públicos, sem limitar o fundo pú-
blico destinado para o financiamento do capital. Ao contrário, nos últimos
anos tem aumentado os gastos públicos para o pagamento de serviços e
juros da dívida externa e subsídios ao capital.
De acordo com essas medidas, as políticas sociais deixam de ser re-
conhecidas como conquista para serem concebidas como “concessões do
Estado e do capital”. Nesse sentido, o Estado reproduz “a ideologia do
favor, caracterizada por formas paternalistas e clientelistas de relação que se
combina com um tipo de atendimento, por parte do Estado, orientado pela
benevolência e a filantropia” (PASTORINI, 2004, p. 93).
Verifica-se que a política social, nas condições expostas, coloca-se
como um “arremedo de política social, a gosto dos governantes e de sua
85
tecnoburocracia, que nunca mencionaram tanto a proteção social e a edu-
cação” (VIEIRA, 2004, p. 107).
No que se refere à questão da educação, diretamente relacionada ao
nosso objeto de estudo, observa-se que tais consequências afetam a política
educacional e suas reformas introduzidas no Brasil a partir dos anos de
1990, as quais seguem a lógica de privatização do setor público. Como
afirma Oliveira (2003, p. 65), “a política de privatização da educação brasi-
leira vem se dando, sobretudo, a partir da adoção de novas estratégias de
gestão e financiamento para os diferentes níveis e etapas de ensino”.
Cumpre chamar atenção que essas estratégias têm sido conduzidas
pelo Banco Mundial, mediante a concessão de empréstimos convencionais,
com encargos e rigidez das regras e das condições financeiras e políticas
inerentes ao processo de financiamento. Dentre as principais medidas re-
comendadas pelo Banco Mundial, destacam-se:

1 - Educação básica como principal prioridade; 2- Qualidade da edu-


cação como eixo da reforma educativa; 3 - Ênfase nos aspectos re-
lativos ao financiamento e à administração da reforma educativa; 4 -
Descentralização e instituições escolares autônomas e responsáveis
pelos seus resultados; 5 - Promoção de uma maior participação dos
pais e responsáveis pelos seus resultados; 6 - Estímulo ao setor privado
e aos organismos não-governamentais (ONGs), como agentes ativos no âmbito
educativo, no nível das decisões e implementações das reformas; 7- Mobilização
e adequada distribuição de recursos adicionais para a educação fun-
damental; 8 - Redefinição do papel tradicional do estado em relação
à educação e a maior participação das famílias e das comunidades no
financiamento da educação; 9 - Enfoque setorial, centrado na edu-
cação formal; 10 - Definição de políticas e prioridades com base em análises
econômicas (CANDAU, 2002, p. 36).

Como se pode observar, as propostas acima reforçam os princípios


da transferência de poderes para a sociedade civil, o incentivo da participa-
ção da família na escola e a prioridade da educação básica como instru-
mento principal para promover o crescimento econômico e reduzir a po-
breza. A educação, de acordo com o Banco Mundial, deve adotar uma aná-
lise econômica de custo-benefício:

[...] o investimento estatal prioriza a combinação de insumos educativos


mais rentáveis e que requerem subsídios públicos mais baixos, o au-
mento do tempo de instrução escolar, mesmo que a custa do aumento
86
do número de alunos por classe, a formação dos educadores em serviço,
e não sua formação inicial, pois tem custo inferior e retorno mais rápido,
o desenvolvimento de programas complementares de nutrição e saúde
escolar, de modo a interferir na motivação e capacidade imediata de
aprendizagem das crianças (PIERRO, 2000, p. 22).

Sobre a educação, cabe lembrar que, para a materialização de tal pro-


jeto, o governo federal valeu-se basicamente de dois instrumentos: a Lei de
Diretrizes e Bases (LDB) e os Projetos de Emenda Constitucionais (PEC’s).
Tais emendas foram aprovadas com a justificativa de que reformar a Cons-
tituição, no que se refere à educação, ampliaria as obrigações do Estado
para com o setor educacional, acolhendo interesses e aspirações dos diver-
sos segmentos sociais, sem a necessária avaliação da efetiva possibilidade de
ação governamental (DEL PIÑO, 1996; OLIVEIRA, 1991).
É dentro dessa lógica que se transfere “a educação da esfera da política
para a esfera do mercado”. Isto significa que a educação deixa de ser concebida
como direito social para ser tratada na lógica do consumo individual.
Segundo Gentili (1998, p. 19),

[...] a educação deve ser pensada como um bem submetido às regras


diferenciais da competição. Longe de ser um direito do qual gozam
os indivíduos, dada sua condição de cidadãos, deve ser transparen-
temente estabelecida como uma oportunidade que se apresenta aos
indivíduos empreendedores, aos consumidores “responsáveis”, na
esfera de um mercado flexível e dinâmico (o mercado escolar) [...]
Reduzida à sua condição de mercadoria, a educação só deve ser pro-
tegida não por supostos direitos “sociais”, mas pelos direitos que
asseguram o uso e a disposição da propriedade privada por parte de
seus legítimos proprietários.

Na retórica neoliberal, o sistema educacional passa a ser regulado pelos


parâmetros do mercado. Com isso, espera-se que os espaços de ensino e apren-
dizagem adotem uma gestão eficiente para assegurar sua competição no mer-
cado. Para tanto o aluno se transforma em consumidor do ensino, e o professor
em funcionário treinado e competente para preparar seus alunos para o mer-
cado de trabalho e para fazer pesquisas práticas e utilitárias em curto prazo.
Percebe-se que ao introduzir esse mecanismo de gestão para avalia-
ção do sistema educacional são desconsideradas as realidades existentes.

87
Espera-se uma gestão eficiente das escolas públicas, mas, em contrapartida,
não há investimento financeiro para as escolas que estão sendo sucateadas.
A descentralização da educação, nas suas vertentes administrativas, fi-
nanceiras e pedagógicas, passa a introduzir o mecanismo de transferência das
responsabilidades dos órgãos centrais para os Estados e destes para os municí-
pios, bem como o repasse de certas obrigações do Estado para terceiros.
É dentro desse contexto que o processo de democratização do en-
sino passa a ser substituído por processos de privatização, com redução dos
investimentos e fortalecimentos de políticas de captação de recursos. É as-
sim que há uma simplificação da autonomia, a qual passa a ser atrelada à
capacidade das unidades escolares conseguirem, com os recursos escassos,
resolver os problemas educacionais. Nessa direção, o Estado tem incenti-
vado as escolas a buscarem como alternativa de financiamento parcerias
com empresas privadas, organismos internacionais, ONG’s, dentre outras.
Do exposto, percebe-se que em função da primazia da política eco-
nômica, a política social é relegada a segundo plano no desenvolvimento
atual do sistema capitalista. Nesse sentido, “o Estado vem abrindo mão de
seu protagonismo como provedor social, tornando cada vez mais focaliza-
das as políticas sociais públicas, enquanto o mercado ocupa-se em privile-
giar o bem-estar ocupacional que protege apenas quem tem emprego está-
vel e bem remunerado” (PEREIRA, 2002, p. 39), destacando os impactos
para a permanência dos discentes.
Diante do exposto, pode-se inferir que a educação sofre os rebati-
mentos da Reforma do Estado, o que implica o desmonte de uma luta his-
tórica para construção do processo de democratização do ensino19 e inten-
sifica o sistema de privatização. E, com isso, a partir das orientações do
Banco Mundial o país passa a adotar uma nova orientação para as políticas
de mercado, tendendo a assumir uma reorganização para a educação supe-
rior, adequando-a às necessidades emergentes daquele contexto. Através da
educação, o país deixaria de depender de mão de obra importada e ganharia
a autonomia. Dessa forma,

19
A universalização do ensino ainda é um ideal a ser perseguido pela maioria da
população, visto que o financiamento da educação, em seus vários níveis, tem sido
negligenciado pelo poder público. E, com isso, destaca-se a ampliação do sistema
de acesso ao ensino.
88
[...] o direcionamento do ensino superior brasileiro estava pautado na
atuação do mercado e teve apoio de organismos internacionais como:
Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização
Mundial do Comércio (OMC), da Organização de Cooperação e de De-
senvolvimento Econômico (OCDE), do Banco Mundial (BM), entre
outros para promover o sistema de financiamento educacional. Isto in-
tensificou a expansão do ensino superior brasileiro, como uma maneira
de atender a indústria e o comércio, seguindo um modelo mais rigoroso
de administração e controle de qualidade - utilizando de forma restrita
os recursos públicos (SILVA, 2017, p. 43-44).

Tais recomendações do Banco Mundial impactam drasticamente no


processo de construção do cenário, a partir de 1990, especialmente, nos
governos Lula, com a adoção de uma política estudantil, respalda na legis-
lação Constituição Federal de 1988, Lei nº 9.394/1996 que versa sobre as
Diretrizes e Bases da Educação LDB, “Plano Nacional de Educação
(PNE)”, os quais formulam diretrizes e ações para seja implementada a de-
mocratização e ampliação do acesso e da qualidade da educação superior.
Dentre as ações implementadas, destacam-se: Programa de Extensão Uni-
versitária (PROEXT); Programa de Reestruturação das Universidades
(REUNI20); Programa Universidade para todos (ProUni21), que oferece bol-
sas de estudos integrais e parciais (50%) em instituições particulares; e Pro-
grama de Financiamento Estudantil (FIES22), que possibilitou o financia-
mento estudantil e gerou um salto “de 76,2 mil novos contratos em 2010
para 560 mil, em 2013” (ANDRADE et al. 2015, p. 4).

20
O REUNI foi criado enquanto projeto viabilizador da expansão da educação supe-
rior a partir da Reestruturação e Expansão das Universidades Federais impactando na
ampliação do acesso e da permanência estudantil. “As ações do programa contemplam
o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos,
a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que
têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país”. (BRASIL, 2010).
21
O Programa Universidade para Todos (Prouni) do MEC oferece bolsas de estudo,
integrais e parciais (50%), em instituições particulares de educação superior. Para con-
correr às bolsas integrais, o estudante deve comprovar renda familiar bruta mensal, por
pessoa, de até 1,5 salário-mínimo. Para as bolsas parciais (50%), a renda familiar bruta
mensal deve ser de até 3 salários-mínimos por pessoa. Somente poderá se inscrever no
Prouni o estudante brasileiro que não possua diploma de curso superior e que tenha
participado do Enem mais recente e obtido, no mínimo, 450 pontos de média das
notas. Além disso, o estudante não pode ter tirado zero na redação. (BRASIL, 2022).
22
Foi instituído através da Lei nº 10.260/2001, o programa de Financiamento Estu-
dantil (FIES) com o objetivo de dispor de financiamento em cursos superiores em
89
Outro aspecto relevante, nessa construção, pode-se elencar a adoção
de políticas voltadas para a superação das disparidades na formação acadê-
mica, sobretudo as relacionadas com o distanciamento entre pretos e bran-
cos nos bancos universitários, oriundas dos movimentos e das lutas mate-
rializadas na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Ra-
cial, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, o evento promovido
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Apesar desses avanços significativos na rede de educação superior,
que possibilitaram ações de reparação social nas universidades, com o
acesso do segmento popular por meio do acesso aos benefícios, sistema de
cotas e as bolsas de estudos, há severos impactos com os cortes orçamen-
tários que intensificam os gargalos inerentes ao processo de permanência e
as dificuldades materiais e simbólicas de ocupar o papel de estudante uni-
versitário com todas as suas exigências. É importante registrar que o pro-
cesso de interiorização com o REUNI viabilizou a ampliação do acesso de
alunos das camadas populares (SANTOS, 2009).
Nessa direção, pode-se inferir que o programa de interiorização das
universidades possibilitou a retomada do crescimento da graduação pública,
viabilizou condições para que universidades federais promovessem a ex-
pansão física, acadêmica e pedagógica. Para Atche (2014), o programa com
meta de expansão da educação superior federal foi fundamental para viabi-
lizar a ampliação das vagas para a educação superior pública.
Entretanto, cabe registrar que a ampliação do acesso não implica a garantia
da permanência, o que leva à necessidade de ampliação das políticas de subsídios
para a manutenção do aluno na graduação com permanência qualificada, para
que concluam a formação de forma positiva e no tempo regular e deem conti-
nuidade aos estudos na pós-graduação ao concluir a formação superior.
Compreender essas questões é parte essencial na direção de entender
a educação brasileira enquanto política pública capaz de incidir diretamente
sobre as desigualdades sociais e a emancipação humana. Diante disso,
torna-se importante adensar as pesquisas e debates referentes às políticas
de educação, sobretudo pela necessidade emergente de ampliação dessas

instituições de ensino particulares com avaliação positiva no Sistema Nacional de Ava-


liação da Educação Superior (Sinaes) e que sejam aderentes ao programa.
90
ações enquanto medida de promoção da equidade no processo formativo
dos estudantes, viabilizando sua permanência e integralização do curso.
Com isso, ressalta-se que a permanência estudantil tornou-se uma ne-
cessidade central para repensar as problemáticas da formação superior na con-
temporaneidade, considerando as contradições que envolvem a permanência e
o papel do Estado na tentativa de sanar essas lacunas, especialmente diante dos
aspectos negativos que cerceiam a formação e são decorrentes tanto da dinâ-
mica de vida pessoal dos alunos e da realidade em que estão inseridos, quanto
da postura assumida pelo governo diante dessa realidade.
Mesmo com as ações criadas para garantir o acesso de estudantes pretos
e/ou pobres no ensino superior, tornou-se necessário pensar na qualidade do
ensino ofertado para esses alunos e, sobretudo, na sua permanência como “o
ato de continuar que permita não só a constância do indivíduo, mas também a
possibilidade de existência com seus pares” (REIS; TENÓRIO, 2009, p. 7).
A esse respeito, pode-se elucidar que a permanência implica uma série
de determinantes, os quais envolvem as condições materiais e subjetivas. Para
Santos (2002, p. 68) a permanência deve ser pensada como simbólica e material.
A “permanência traz, portanto, uma concepção de tempo que é cronológica
(horas, dias, semestres, anos) e outra que é de um espaço simbólico que permite
o diálogo, a troca de experiências e a transformação de todos e de cada um”.
Daí a necessidade de destacar a importância da materialização das
políticas para assegurar a permanência, haja vista que o ato de permanecer
implica, do lado do aluno, a efetivação das políticas sociais que marcam sua
existência na graduação e seu histórico social.
Tal debate requer problematizar a permanência como estratégia para
combater a evasão e a retenção dos discentes na graduação. E, consequen-
temente, pensar a universidade como lócus essencial para a materialidade de
ações que minimizem essas desigualdades e contribuam para o desenvolvi-
mento dos discentes. Ou seja, cabe às instituições viabilizar meios para a
permanência estudantil através da oferta de infraestrutura adequada, mora-
dia estudantil, “apoio ao transporte, biblioteca, refeitório, apoio para estu-
dantes com deficiência física, entre outros” (COSTA; DIAS, 2015, p. 56)
com vistas a garantir uma permanência qualificada.
Daí a necessidade de efetivação de políticas públicas que possibilitem
tanto o acesso como a permanência estudantil. A esse respeito, Santos

91
(2011) pontua que políticas públicas voltadas para a permanência estudantil
ampliaram o acesso e podem contribuir para sua permanência, pois:

As políticas de acesso ao Ensino Superior trouxeram a presença maciça


de estudantes pretos e pobres a cursos que historicamente não se obser-
vava esta nova presença. Os estudantes ingressos pelo sistema de re-
serva de vagas também encontraram inúmeras e agudas dificuldades
para permanecer no curso superior, tanto a nível material (recursos fi-
nanceiros) quanto ao nível simbólico (SANTOS, 2011, p. 165).

Nessa direção, pode-se inferir que a luta e efetivação das políticas


constituem estratégias importantes para combater a evasão e retenção dos
estudantes na academia. E, sem dúvidas, torna-se uma aliada para que o
estudante possa permanecer. Maciel et al. (2016, p. 761) observam que:

Permanecer na educação superior e concluí-la são ações determina-


das por vários elementos e envolvem recursos humanos e econômi-
cos, conjunto que representa, cada vez mais, esforços institucionais
e o desenvolvimento de políticas específicas para favorecer o su-
cesso dos estudantes da Educação Superior pública. Dessa forma, as
políticas de permanência são identificadas por uma perspectiva que
não se encerra nas ações de assistência estudantil, mas abarcam os
aspectos de infraestrutura, física e tecnológica, e das condições didá-
tico-pedagógicas proporcionadas aos estudantes nas IES.

Assim, pode-se compreender a necessidade de entender que a política


de permanência implica uma série de fatores que englobam desde as políti-
cas públicas do ensino superior.
Mesmo com a criação de políticas voltadas para ampliar o número de
diplomas, com a reestruturação e criação de novas universidades, a situação
geral da educação superior ainda não é a ideal. Ainda que as melhorias das
últimas duas décadas tenham possibilitado um salto significativo no sentido
da inclusão de grupos sociais mais vulneráveis, o sistema educacional tem
se deparado com inúmeros fatores que desafiam a sua efetiva democratiza-
ção. Como principais desafios para a educação superior têm-se: as desigual-
dades sociais e as condições de pobreza que afetam as famílias; a condição
de aluno trabalhador; a defasagem da educação básica.

92
Sobre a questão da defasagem, convém pontuar que tais dificuldades
estão associadas as ausências de meios materiais e simbólicos que interfe-
rem nas suas condições objetivas para conciliar o trabalho e o estudo, le-
vando os discentes à condição de trabalho devido a diversos fatores.
Daí a necessidade de entender que a pertinência da implementação
de políticas para assegurar a permanência por meio de políticas e programas
que possibilitem o acesso a bolsas e investimento em políticas estudantis,
permitindo o enfrentamento da situação de sucateamento das instituições,
de precarização e sobrecarga de trabalho docente.
Assim, observa-se que:

Entre as dificuldades desses alunos estão a necessidade de se conciliar


trabalho e estudo, a adaptação a um novo sistema de ensino, o que exige
maior autonomia, conhecimentos prévios formais e informais de maior
complexidade, aprendizados nem sempre vivenciados pelos alunos de
camadas mais populares. Sem contar os desafios advindos de uma situ-
ação financeira muitas vezes desfavorável, o que implica em dificuldades
para compra de livros, deslocamento para congressos e eventos e ativi-
dades extraclasse (COSTA; DIAS, 2015, p. 52).

Tais implicações tornam a formação superior uma tarefa desafiadora. O


desafio inicial para os discentes que acabam de ingressar no ensino superior
público é ter que se adaptar a um ambiente completamente novo e que, por
vezes, é percebido como um espaço hostil, como apontam as análises de Reis
e Tenório (2009). Portanto, os pontos a serem superados no percurso da for-
mação universitária não se resumem unicamente às questões próprias da for-
mação profissional, incluem sobremaneira os processos de adaptação instituci-
onal e intelectual à universidade (SOUZA; SANTOS, 2014).

Considerações finais

O sistema educacional brasileiro é reflexo de um longo contexto que


confronta avanços e retrocessos políticos e econômicos ocasionados por
transformações capitalistas, crises sociais e econômicas, mudanças vivenci-
adas pela contrarreforma do Estado, instauração do neoliberalismo, lutas
dos movimentos sociais que foram essenciais para a construção dos pilares
que orientam hoje as políticas estudantis e impactam diretamente no sis-
tema educacional.
93
Entende-se que a centralidade das ações da democratização do in-
gresso estudantil, a partir das políticas afirmativas, tornou possível que uma
massa de estudantes pretos, pardos, indígenas, oriundos de escola pública e
com renda per capita de até um salário mínimo e meio, tivessem acesso à
graduação por meio de uma reserva de vagas, o que representou uma mu-
dança no perfil dos alunos e da universidade brasileira que está constante-
mente ameaçada face às orientações das políticas neoliberais.
Diante destas reflexões, considera-se que a criação de condições ne-
cessárias para atender as necessidades de permanência estudantil começa
pela compreensão do contexto das políticas educacionais, seu financia-
mento e sua valorização social. Além disso, faz-se necessário refletir sobre
a vida dos alunos, de como estes estão inseridos na sociedade e as particu-
laridades que os atravessam em suas singularidades. Isso mostra a relevância
da continuidade do presente debate como ferramenta capaz de subsidiar
futuras intervenções no campo das políticas educacionais.

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96
CAPÍTULO 6
As funções orçamentárias trabalho e previdência social no
governo Bolsonaro (2019 – 2022)
Fabrício Rodrigues da Silva
Elaine Rossetti Behring
Jordeana Davi

Introdução

A classe trabalhadora brasileira viveu nos últimos anos uma das qua-
dras históricas mais difíceis no que se refere a garantia de seus direitos so-
ciais conquistados historicamente, com a chegada de Bolsonaro ao Go-
verno Federal (2019-2022). Munido de um projeto calcado no ultraconser-
vadorismo, ultraneoliberalismo e neofacismo, tocou a máquina pública no
sentido contrário de tudo que o país havia alcançado no campo progressista,
mesmo com limites decorrentes sobretudo de um ambiente de ajuste fiscal
draconiano e permanente (BEHRING, 2021).
Na proteção social, um dos seus principais alvos, a Previdência Social
pública, que completa 100 anos de existência neste ano, foi a primeira a
sofrer ataques severos através da aprovação da contrarreforma previdenci-
ária, a Emenda Constitucional N. 103/2019, aprofundando ainda mais os
critérios restritivos de acesso. O objetivo, distante de melhorar o quadro do
emprego e geração de renda na economia nacional, como prometido pelo
ex-ministro da economia Paulo Guedes, já que o desemprego se aprofun-
dou e a informalidade aumentaram no período, era de precarizar a força de
trabalho a partir da negação de benefícios, combinada ao enxugamento de
recursos nas funções orçamentárias Trabalho e Previdência Social.
Neste sentido, este artigo aponta e problematiza o comportamento
das funções orçamentarias Trabalho (N.0011) e Previdência Social
(N.0009), executadas no governo Bolsonaro (2019 – 2022). Os dados estão
deflacionados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), foram coletados através de pesquisa documental no sistema SIGA
BRASIL, no referido período, estando as análises e discussões que funda-
mentam a leitura e o exame dos dados apoiadas no método materialista-
97
histórico-dialético. O artigo está estruturado em dois itens, sendo o pri-
meiro de natureza teórica e, um segundo de natureza analítica, seguindo das
considerações finais.

Fundo público e financiamento da reprodução social da força de tra-


balho no Brasil

Compreender o financiamento da reprodução social da força de traba-


lho brasileira é um esforço teórico que requer observar aspectos relacionados
à formação social, econômica e padrão produtivo, a constituição das classes
sociais e, sobretudo, o tipo de Estado que aqui se desenvolveu e a forma como
este captura recursos da sociedade, que conformam o fundo público.
O Brasil é uma formação social econômica dependente que surge no
processo de expansão marítima das economias capitalistas clássicas no século
XV e desempenhou, durante três séculos, a função de produção de excedente
econômico para complementação do excedente da economia portuguesa, con-
tribuindo para o seu processo de acumulação primitiva. Aqui, o capitalismo
clássico interrompeu o curso do desenvolvimento das relações sociais de pro-
dução dos povos originários e implantou com a colônia relações sociais de pro-
dução que combinaram elementos do modo de produção escravista, com a
inserção escrava da força de trabalho negra, também tornando escravos os po-
vos originários aqui encontrados, além da combinação das relações de servidão,
elementos estes que marcam substancialmente a conformação da força de tra-
balho brasileira (FERNANDES, 2005).
O sistema colonial conformou um padrão produtivo na economia
brasileira baseado nos latifúndios de monocultura extensiva, cuja concen-
tração de propriedade territorial é voltada para a produção de produtos agrí-
colas para exportação, como a produção do café, por exemplo, principal
agente econômico da colônia e que se constitui posteriormente como ma-
triz social da burguesia industrial. A colonização configura-se como parte
substantiva da caracterização da economia nacional, pois sua influência se
espraia na constituição das classes sociais, das atividades econômicas e do
universo cultural do país (SANTOS, 2012), não sendo superada nem
mesmo com o fenômeno da independência.
Pelo contrário, a independência do Brasil (1821 – 1825) como processo
político e de nacionalização da economia, provocou a manutenção do padrão
98
produtivo baseado nos latifúndios. O agronegócio, fruto da modernização in-
dustrial na agricultura, é o principal agente econômico do país atualmente23,
atuando na extração do produto primário e também nos diversos níveis de seu
processamento, apesar de permanecer dependente da burguesia externa, dada
a necessidade de importação de tecnologias e outros insumos não produzidos
(FERNANDES, 2005), daí o contexto de perda de mais-valia nas relações de
troca na balança comercial, já que o Brasil exporta produtos de baixo valor
agregado e importa produtos de alto valor agregado24.
Esse padrão produtivo influenciou também na configuração do Es-
tado e forjou o jogo político das classes dominantes em busca de sua direção
(SANTOS, 2012). Divergindo dos clássicos processos revolucionários das
economias clássicas, a própria estrutura do Estado brasileiro foi utilizada
para promover as transformações econômicas, tecnológicas, sociais, psico-
culturais e políticas necessárias a transição ao capitalismo industrial, pro-
cesso longo e retardatário que vai do surgimento do mercado capitalista
moderno entre 1822 a 1860, com abertura de portos e integração da eco-
nomia agroexportadora ao mercado global; seguido da expansão e consoli-
dação das relações de produção capitalista, conformando o estágio compe-
titivo no período de 1860 a 1950, com a constituição do mercado de traba-
lho e fim da escravidão, além do processo de urbanização em virtude da
industrialização; e finalizado pela incursão do capitalismo monopolista, cujo
caráter estrutural ocorre a partir do golpe militar de 1964, com a presença
das grandes corporações monopolistas internacionais, operando em diver-
sos setores produtivos, comerciais e financeiros (FERNANDES, 2005).

23
Ao observar a balança comercial brasileira, o agronegócio tem participação importante
no superavit, exportando produtos como minério de ferro, soja, óleos brutos de petróleo,
açúcares, carne bovina, entre outros. Em janeiro de 2023, as exportações cresceram no total
de 11,7%, e somaram US$ 23,14 bilhões, cujos setores com maior crescimento foram a
indústria extrativa, com 22,3% e agropecuários, com 4,6% em comparação a 2022. Dispo-
nível em: encurtador.com.br/bhxDV. Acesso em 06 fev. 2023.
24
A perda de mais-valia para as economias centrais, dada as condições impostas pela troca
desigual implica na violação permanente do equivalente de valor da força de trabalho brasileira,
pois a perda de parcelas de mais-valia pressiona a burguesia interna a buscar formas de com-
plementação, sendo portanto, “somente a apropriação de parte do fundo de consumo, para
transferi-lo ao fundo de acumulação, constitui de modo simultâneo uma forma de aumentar
a taxa de mais-valia e, por sua vez, uma forma de superexploração” (OSÓRIO, 2013, p.63).
99
Aqui, o Estado desempenhou não só a função de proteger a propriedade
privada, mas garantiu os arranjos necessários para o desenvolvimento capita-
lista em sua fase industrial, afastando as classes subalternas deste processo.
No entanto, seria um equívoco analítico observar apenas a função da ga-
rantia das condições gerais de produção e reprodução do capital nacional e ex-
terno25 na economia brasileira, uma vez que Mandel (1982) nos ensina que, ao
lado desta, coexistem e caminham juntas outras funções necessárias à manuten-
ção do projeto de dominação capitalista, dentre elas, a função de regulação social,
verificada em nossa realidade a partir da constituição dos direitos sociais.
Os direitos sociais são expressão da luta dos trabalhadores. As rei-
vindicações dos trabalhadores a partir do século XIX e que se expandiram
no século XX a nível mundial foram suficientes para pressionarem o capi-
talismo, forjando assim a construção destes. A partir deles, foi possível que
os trabalhadores participassem minimamente da socialização da riqueza ma-
terial e espiritual produzida por ela mesma, mas apropriada pelo capital
(COUTINHO, 2000).
Quando alcançam um nível maior de expansão, constituem proces-
sos de reformas, como ocorrido no Welfare State, no pós segunda guerra
mundial em alguns países da Europa e nos demais sistemas de proteção
social espalhados pelo mundo ocidental, incluindo, apesar de tardiamente,
a Seguridade Social brasileira em 1988. Estes, dependem da correlação de
forças, o que faz dos direitos sociais um processo dialético, ainda que, como
um nível da cidadania, dependam do direito social a propriedade, que neste
sistema, continua privada, o que repõe a necessidade da superação do capi-
talismo (COUTINHO, 2000; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Ainda que de forma tardia, os primeiros direitos sociais relacionados
a Previdência Social surgiram de forma limitada no Brasil a partir dos anos

25
A respeito dessa relação entre burguesia nacional e burguesia externa e o problema
estrutural de abrigar no mesmo projeto interesses e formatos distintos, Fernandes
(2005) defende a tese de que ocorre uma fusão entre estas, cuja composição de poder
heterogênea resulta na dominação da burguesia externa em relação a base nacional,
tomando, ainda, as massas populares como principal inimigo. As mudanças promovi-
das na economia foram mais dirigidas pela burguesia externa a partir de seus interesses,
o que evidencia a inexistência de um projeto revolucionário da burguesia brasileira,
sendo mais favorável para esta última a associação com o imperialismo, cujos parcos
benefícios custaram e custam a sua subserviência.
100
de 1920 e alcançaram significativo grau de regulamentação a partir do perí-
odo populista de Getúlio Vargas (1934 – 1954), estágio de amadurecimento
do capital monopolista, que colocou a necessidade de novas formas de re-
gulação e disciplinamento da força de trabalho, reverberando naquele mo-
mento na institucionalização da previdência com os Institutos de Aposen-
tadorias e Pensões (IAPs), bem como, com a Consolidação das Leis do Tra-
balho (CLT), aprovada através da Lei Decreto N. 5.452/43, unificando to-
das as legislações relativas a área no Brasil. Posteriormente, tanto a Previ-
dência Social como o Trabalho passaram por expressivo processo de ex-
pansão e institucionalização no período da ditadura militar (1964 - 1985),
expressando o grau de desenvolvimento das forças produtivas e estágio de
amadurecimento do capitalismo industrial no país.
Embora tais avanços signifiquem também a regulação e disciplina-
mento da força de trabalho imposta pelo capital, o que expõe o caráter con-
servador da política social, principal instrumento de materialização destes,
também não eximimos o fato de que a constituição deles incidiu significa-
tivamente na reprodução social da força de trabalho, seja durante o período
laboral ou após este. Dentre as conquistas, estão a regulamentação da jor-
nada de trabalho, o período de descanso, férias, proteções especificas para
trabalhadores mulheres, direito a organização sindical, convenções coletivas
e a greve, fiscalização das condições de trabalho e criação de justiça especí-
fica para processos trabalhistas, 13º salário, seguro-desemprego, abono sa-
larial, seguro-defeso, pensão por morte, auxílio por incapacidade temporá-
ria, auxílio-reclusão e, um dos mais importante, a aposentadoria26.
A importância dos direitos se aprofunda quando observada a fonte
que financiam os mesmos, já que ao serem institucionalizados e regulamen-
tados pelo Estado, são pagos com recursos do orçamento público, que se

26
É valido ressaltar que tais conquistas no campo do trabalho já sofreram significativos
retrocessos desde a Constituição Federal de 1988, momento em que a Seguridade So-
cial organizou e ampliou o sistema de proteção social. A Previdência Social sofreu inú-
meras contrarreformas nos governos de Fernandes Henrique Cardoso (1995 – 2002),
nos períodos do Governo Lula (2003 – 2010) e Governo Dilma Rousseff (2011 –
2016), além da tentativa de contrarreforma no Governo ilegítimo de Michel Temer
(2016 – 2018), que posteriormente avançou e foi aprovada no Governo Bolsonaro
(2019- 2022). Na CLT, foram inúmeras alterações sofridas ao longo de sua existência.
101
formam a partir de tributos recolhidos da própria sociedade. Conforme
aponta Behring (2021, p. 39):

O fundo público se forma a partir de uma punção compulsória – na


forma de impostos, contribuições sociais e taxas – da mais-valia so-
cialmente produzida, ou seja, é parte do trabalho excedente que se
metamorfoseou em lucro, juro ou renda da terra e é apropriada pelo
Estado para o desempenho de suas múltiplas funções.

Nesta perspectiva analítica, o financiamento da reprodução social da


força de trabalho advém do próprio trabalho, seja quando os trabalhadores
pagam tributos que incidem sobre consumo ou pagam impostos diretos, e
o fazem com recursos provenientes do seu próprio salário, portanto, traba-
lho necessário e, ainda, quando o próprio capital paga suas obrigações fis-
cais, já que o pagamento destas obrigações ocorre com parte da mais-valia
que é produzida pelo trabalho, mas apropriada pelo capital. Considera-se
ainda que a formação do fundo público tem ocorrido cada vez mais com o
peso de parcelas de trabalho necessário, em virtude da regressividade tribu-
tária assumida pelo Estado brasileiro nos últimos anos. Como destaca
Behring (2021, p. 39):

[...] considerando que o instrumento de punção é o sistema tributá-


rio, e que parte cada vez maior do fundo público é sustentada nos e
pelos salários, ou seja, o fundo público não se forma – destacada-
mente no capitalismo monopolizado e maduro – apenas com o tra-
balho excedente metamorfoseado em valor, mas também com o tra-
balho necessário, na medida em que os trabalhadores pagam impos-
tos direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do consumo, onde
estes estão embutidos nos preços das mercadorias.

Neste sentido, a política social que materializa os direitos sociais,


além das ações estatais em forma de bens e serviços públicos para a classe
trabalhadora, possibilita o atendimento das necessidades que garantam a sua
reprodução social em meio ao contexto de superexploração, resultando na
melhoria das suas condições de vida, expressando o retorno de parte da

102
mais-valia27 e também de trabalho necessário produzido pelos trabalhado-
res no processo de produção, mas que em virtude da relação social de pro-
dução capitalista, é apropriada pelo capital. E tal alocação não ocorre por
vias mecanizadas, depende da correlação de forças que a classe trabalhadora
estabelece na arena dos conflitos sociais, incluindo os espaços públicos e as
instituições democráticas liberais representativas, através de seus movimen-
tos sociais e partidos políticos, na busca pela institucionalização e criação
de mecanismos que tornem obrigatória a alocação destes recursos.
É sob estas condições que a força de trabalho conseguiu assegurar a
vinculação de recursos obrigatórios para o financiamento da sua proteção
social, com a criação do Orçamento da Seguridade Social (OSS) na Consti-
tuição Federal de 1988. O OSS é composto por uma diversificação na sua
base, uma pluralidade de fontes, que constituem as receitas para financiar
as políticas que a compõem, portanto, sendo legalmente assegurados os re-
cursos que possibilitam a construção de um Estado de direitos democrático,
visando assegurar a execução destes direitos relacionados à proteção social,
incluindo os direitos previdenciários e trabalhistas, aqui discutidos.
Apesar dessa existência constitucional que vincula os recursos à pro-
teção social, tem se verificado nos últimos anos um intenso processo de
desfinanciamento desta, promovido pela agenda do ajuste fiscal perma-
nente que vem desde o governo de FHC e foi continuado nos governos de
Lula e Dilma Rousseff, radicalizando-se nos governos de Michel Temer e
Bolsonaro, através de instrumentos como as Desvinculações de Receitas da
União (DRU), as Renúncias Tributárias, a Emenda Constitucional N.
95/2016, entre outros, cuja finalidade é alcançar as metas fiscais. Este con-
texto é sintomático da crise estrutural do capital (MÉSZAROS, 2011), em
que a agenda neoliberal impõe políticas econômicas regressivas pautadas na
canalização dos recursos que compõem o fundo público para alimentar a
sanha das frações rentistas por meio do sistema da dívida pública, a custa
do sacrifício de toda a população. A implicação do desfinanciamento do
OSS, tem sido a redução de diversos serviços e benefícios direcionados a

27
Ainda que tal retorno também contribua no processo de aceleração da rotação de
capital, já que “o crescimento do salário indireto, nas proporções assinaladas, transfor-
mou-se em liberação do salário direto ou da renda domiciliar disponível para alimentar
o consumo de massa” (OLIVEIRA, 1998, p. 10).
103
classe trabalhadora, o que inclui os relativos à previdência social e ao traba-
lho, conforme pretendemos problematizar a seguir.

Funções Trabalho e Previdência Social no período de 2019 a 2022

A função orçamentária Trabalho, N. 11, integra uma das áreas de


atuação do governo federal, passando por ela recursos que vão financiar
diversas ações no campo do trabalho e esteve vinculada aos órgãos orça-
mentários do Ministério da Economia e Trabalho e Ministério da Cidada-
nia, durante o Governo Bolsonaro. Tais recursos são provenientes das con-
tribuições sociais destacadas anteriormente, mas sobretudo, são oriundos
das contribuições para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Pro-
grama de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP). Vejamos
a seguir, na Tabela 01, como os investimentos nesta área se comportaram
durante o período de 2019 a 2022.

Tabela 01 - Função Trabalho (autorizado, pago e diferença, 2019, 2020, 2021


e 2022) valores em milhões de reais – R$

Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.

A princípio, os dados evidenciam uma média anual de investimento na


função trabalho em torno de R$ 81,6 bilhões no período analisado, chamando-
se atenção ao fato da redução entre o valor pago efetivamente e o que havia
sido autorizado, já que a diferença nos quatro anos acumula mais de R$ 29
bilhões. Em todos os anos da série histórica, os valores pagos foram inferiores
aos valores autorizados, sendo pago em 2019, 2020, 2021 e 2022, 91,20%,
89,27%, 93,52% e 93,42% do valor autorizado, respetivamente.
Conforme os dados, podemos observar ainda a tendência expressiva de
queda no investimento da função trabalho no ano de 2021, sendo o valor pago

104
-19% em comparação ao valor pago no ano de 2020 e -18% quando compa-
rado ao valor pago em 2019. Já os anos de 2020 e 2022 não registraram queda,
no entanto, tiveram pífio crescimento de 1% em relação aos anos que os ante-
cedem, não repondo a significativa redução ocorrida em 2021. No período ana-
lisado, a variação da função trabalho foi de -17%, revelando a redução na tota-
lidade do orçamento, tornando necessário apontar em que benefícios tal redu-
ção incidiu, fato que podemos desvendar analisando as ações orçamentárias da
função, que seguem na próxima tabela.

Tabela 02 - Três maiores ações orçamentárias da Função Trabalho (pago 2019,


2020, 2021 e 2022) valores em milhões de reais – R$

Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.

As três maiores ações orçamentárias acima representam a média de


99,45% de toda a função Trabalho no período analisado. Em 1º lugar, o
seguro-desemprego é quem mais mobiliza recursos, cuja alocação alcança a
média de 53,01% da função, seguido da ação financiamento de programas
de desenvolvimento econômico a cargo do BNDES, que mobiliza a média
de 26,15% dos recursos e, por último, o abono salarial, cuja média no perí-
odo é de 20,29% de participação28.
A partir de análise minuciosa sobre os dados, podemos apontar que
a redução de 17% da função trabalho no perídio analisado recaiu exclusiva-
mente sobre as ações orçamentarias do seguro-desemprego e abono salarial,
sendo elas as que mais sofreram redução no período analisado. O seguro-
desemprego teve crescimento de 4% em 2020 em comparação ao ano de

28
Todas as médias foram calculadas por meio de aplicação de fórmula no Excel.
105
2019, no entanto, seu orçamento foi -17% em 2021 comparado ao de 2020,
crescendo apenas 1% em 2022 comparado a 2021, o que implica reconhecer
que os pífios aumentos não repõem a significativa redução em 2021. Já no
abono salarial, a redução se complexifica. Ocorre um crescimento de 8%
em 2020 em comparação a 2019, o que é insignificante quando observado
uma brutal redução de 49% no orçamento em 2021 comparado ao de 2020,
seguindo com aumento pífio de 1% em 2022 em comparação ao ano de
2021. Seguro-desemprego e abono salarial, assim, acumulam no período re-
dução de 3% e 13%, respectivamente.
Essa realidade assusta quando lembrado que tal redução ocorre no se-
gundo ano pandêmico provocado pela COVID-19, coincidindo com o pri-
meiro ano de orçamento elaborado e executado pelo Governo Bolsonaro, o
que exprime que ele não mobilizou esforços para enfrentar as consequências
que atingiam e ainda atingem o campo do trabalho, o que requisitaria mais in-
vestimentos na área, algo não verificado conforme os dados. É importante des-
tacar que naquele momento histórico, vários trabalhadores haviam perdido
seus empregos, cuja desocupação no país chegou a alcançar 11,1% (IBGE,
2021), aumentando a demanda pelo seguro-desemprego, além do aumento no
quadro da informalidade, que alcançou a marca de mais de 37 milhões de pes-
soas (IBGE, 2021), o que evidencia a necessidade da população de buscar al-
guma forma de renda diante da severa crise sanitária que aprofundava a situa-
ção de insegurança alimentar de grande parcela da população, já que o governo
optava pelo negacionismo e desprezo.
Ao nosso ver, um outro determinante implicou nesta brutal redução
no orçamento do abono salarial, qual seja, as alterações de regras sofridas
por meio da Lei N. 13.134/15, que impuseram, para cálculo do benefício
de até um salário-mínimo, a proporcionalidade do tempo de serviço cum-
prido no ano anterior ao do pagamento, o que significa que a interrupção
dos muitos vínculos de trabalho com carteira assinada em 2020 reduziu a
formação do valor do benefício pago em 2021.
Já a função orçamentária Previdência Social, N. 9, financia importan-
tes benefícios e serviços previdenciários daqueles trabalhadores que contri-
buíram e contribuem para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS),
como a aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária, auxílio-mater-

106
nidade e auxílio-reclusão. A função orçamentária esteve no Governo Bol-
sonaro diretamente vinculada ao Ministério da Economia e Trabalho, bem
como a diversos outros órgãos orçamentários, como demais ministérios,
advocacia geral da união e judiciário. Em relação às fontes que a financiam,
são provenientes das contribuições que compõem o OSS, citadas anterior-
mente, sendo a principal, a folha de pagamento, composta por contribui-
ções de empregados e empregadores. Vejamos na tabela que segue, o com-
portamento durante o período de 2019 a 2022 relativo a essa área.

Tabela 03 - Função Previdência Social (autorizado, pago e diferença, 2019,


2020, 2021 e 2022) valores em milhões de reais – R$

Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.

A média anual de investimento na Previdência Social no período ana-


lisado foi de R$ 800,7 bilhões, o que faz dela a maior do ponto de vista de
alocação de recursos entre as demais políticas que compõem a Seguridade
Social, a Saúde e Assistência Social, que vem ocupando as 2ª e 3ª posições,
respectivamente. No Orçamento Geral da União, a Previdência ocupa a 2ª
colocação no ranking dos investimentos, evidenciando sua grandiosidade e
importância para a sociedade brasileira, já que ela desempenha papel impor-
tante na distribuição de renda de milhares de trabalhadores. É justamente a
magnitude de recursos que esta mobiliza, contrariando o falacioso discurso
de déficit29 previdenciário, que a coloca sempre na mira dos processos de

29
A metodologia tendenciosa utilizada pelo governo resume o orçamento da Previ-
dência Social à contribuição folha de pagamento, aquela paga pelos trabalhadores e
107
financeirização, cujo capital financeiro tem tentado a todo custo capitalizar
os direitos previdenciários, tornando-os mercadorias rentáveis no processo
de apropriação de valor.
Não sendo diferente da função Trabalho, a Previdência Social também
registra valores pagos inferiores aos valores autorizados, cujo montante acu-
mulado no período ultrapassa a marca dos R$ 309,4 bilhões, cifra que se apro-
xima do total do orçamento da Função Trabalho nos quatros anos analisados.
Portanto, foram pagos em relação aos valores autorizados em 2019,
2020, 2021 e 2022, 91,98% 92,26%, 90,62% e 90,15%, respectivamente, ob-
tendo a média anual de pagamento de 91,25% no período. Do ponto de vista
da tendência orçamentária, os investimentos na previdência não registraram
queda no ano de 2020 em relação a 2019, com pífio crescimento de 2%. Já em
2021, o crescimento avançou para 11% em comparação ao orçamento de 2020,
despencando para 1% em 2022, em relação ao que havia sido pago em 2021, o
que faz dele o menor crescimento entre os anos analisados. Os dados nos per-
mitem inferir que, no período analisado, a variação da função em questão foi
de +15%, percentual baixo e que pode ser explicado pela involução do cresci-
mento tanto do valor dos benefícios, sendo a grande parte das aposentadorias
e pensões calculados com base no salário-mínimo, como também, pela baixa
de benefícios em virtude do crescimento nos óbitos, além de indeferimento de
novos benefícios, como discutiremos mais à frente.
A tabela a seguir, trabalha ações orçamentárias da função Previdência
Social, no intuito de contribuir na análise do comportamento dos investi-
mentos na área.

empregadores no âmbito do mercado de trabalho formal, sendo ela apenas uma con-
tribuição entre outras contribuições sociais, conforme já destacamos, além disso, “é
inescapável concluir que a narrativa do governo se mostra contraditória, há quem diz
haver um rombo na previdência, mas abre mão de receitas de contribuições sociais em
escala crescente, mesmo sem obter nenhum sucesso com essa política. Portanto, o
próprio governo, intencionalmente, provoca o surgimento do déficit que diz procurar
combater” (GENTIL, 2019, p. 182).
108
Tabela 04 - Três maiores ações orçamentárias da Função Previdência Social
(pago 2019, 2020, 2021 e 2022) valores em milhões de reais – R$

Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.

As três maiores ações orçamentárias da função Previdência Social to-


talizam a média de 99,61% de participação no período analisado. Os bene-
fícios previdenciários urbanos e rurais alocam recursos na expressiva média
de 85,46% do total da função, vindo na sequência, aposentadorias e pensões
civis da união, com média de 11,13% de participação e, pensões militares
das forças armadas com 2,89% de participação, cuja presença desta última
neste orçamento de benefícios próprios do RGPS, financiado com contri-
buições sociais do OSS é, ainda, uma incógnita, já que o pagamento de tais
pensões é de competência do Tesouro Nacional, uma vez que o pagamento
das pensões militares e da remuneração da inatividade não tem natureza
contributiva, conforme prevê o Decreto Lei N. 667/69. Isso vem aconte-
cendo ao longo dos governos, mas nos parece inconstitucional.
Dentro da função Previdência Social, a ação orçamentária benefícios
urbanos e rurais foi a única a não sofrer redução na série histórica analisada,
mas também, não registrou grandes crescimentos, considerando que no ano
de 2020 esta cresceu 3% em relação a 2021, crescendo mais 12% em 2021,
comparado ao ano de 2020 e, caindo para um crescimento de apenas 2%
em 2022, levando em consideração o ano de 2021, acumulando, logo, cres-
cimento de 4% no período estudado. Aposentadorias e pensões civis da
união, sofreu redução de 1% no orçamento de 2020 em comparação ao de
2019, recuperando-se em 2021 com crescimento de 6% em comparação ao
ano de 2020, mas voltando a sofrer redução de 7% em 2022, levando em
109
consideração o ano de 2021, acumulando, portanto, redução de 1% no pe-
ríodo analisado. Pensões militares das forças armadas também registrou re-
dução de 1% no orçamento de 2020 em comparação ao de 2019, no en-
tanto, recupera-se em 2021 com crescimento de 11% em comparação ao
ano de 2020, apesar também de voltar a redução de 4% em 2022, levando
em consideração o ano de 2021, acumulando, assim, crescimento de 1% no
período examinado.
Tanto o baixo crescimento da ação orçamentária Benefícios previ-
denciários urbanos e rurais e a redução ocorrida na ação orçamentária Apo-
sentadorias e pensões civis da podem estar relacionadas diretamente com o
aumento de óbitos provocados no contexto pandêmico, uma vez que haví-
amos alcançado a lamentável marca de mais de 692 mil mortos em dezem-
bro de 202230, dentre estes, idosos aposentados e demais beneficiários. Im-
portante destacar que muitas destas mortes poderiam ter sido evitadas se
não fosse a ação irresponsável e criminosa do governo Bolsonaro que, ao
adotar a postura negacionista do vírus e da ciência, não apoio o uso da más-
cara e das medidas de distanciamento social, além do desmonte na área da
saúde ter implicado no atraso da compra dos imunizantes. Note-se que o
programa voltado aos militares teve uma evolução positiva, o que denota a
forte presença deste setor no governo.
Por fim, o baixo crescimento da ação orçamentária Benefícios previ-
denciários urbanos e rurais está associado à involução do crescimento do
salário-mínimo no período de 2019 a 2021, outra consequência dos ataques
proferidos pelo governo Bolsonaro contra a classe trabalhadora, o que de-
corre de o governo em questão ter extinto a política de valorização do salá-
rio-mínimo em 2019 e ter vinculado a correção do mesmo ao Índice Naci-
onal de Preços ao Consumidor (INPC), que considera a inflação entre o
público cuja renda é composta por até cinco salários-mínimos, o que resul-
tou em quatros anos sem aumento real.
Em 2019, o aumento de 4,61% elevou o salário-mínimo para R$ 998,
quando o mínimo ideal deveria ser de R$ 4.342; em 2020, o acréscimo de
4,69% subiu o salário-mínimo para 1.045, sendo o mínimo necessário de
R$ 5.304; já em 2021, o salário-mínimo chegou a 1.100 após o reajuste de

30
Fonte: https://abre.ai/fMg9. Acesso em 10 fev. 2023.
110
5,26%, mas ainda assim permaneceu distante do mínimo necessário, em
torno de R$ R$ 5.800 e, por fim, em ano eleitoral, o governo federal con-
cedeu reajuste de 10,18% em 2022, aumentando o salário-mínimo para R$
1.212, quando o mínimo deveria ter sido de R$ R$ 6.64731.
Os valores acima revelam a violação da determinação constitucional
de que o salário-mínimo deve garantir a manutenção de um trabalhador e
sua família, o que inclui a aquisição de alimentos de qualidade, vestimentas,
materiais de higiene, moradia, lazer e transporte, entre outros. Revelam, so-
bretudo, em que grau vem ocorrendo a violação do equivalente de valor da
força de trabalho, já que “se o preço da força de trabalho é reduzido a esse
mínimo, ele cai abaixo de seu valor, pois, em tais circunstâncias, a força de
trabalho só pode se manter e se desenvolver de forma precária...” (MARX,
2017, p. 183), nível de precarização que assume ainda proporções maiores
quando colocado na balança a negação e o desmonte de direitos sociais
como os relativos à previdência social e ao trabalho, comprovados aqui
através da leitura orçamentária. Lembramos ainda aqui o conceito de supe-
rexploração da força de trabalho na periferia do capitalismo para compensar
os termos desiguais de troca no mercado mundial (MARINI, 1973).

Considerações finais

A letalidade do governo Bolsonaro contra a classe trabalhadora pode ser


aferida por diversos ângulos, dentre eles, no orçamento público. Ela se mani-
festa no encolhimento de 17% da Função Trabalho no período analisado, atin-
gindo grotescamente em 2021 as ações orçamentarias seguro-desemprego e
abono salarial, com reduções, respectivamente, de 17% e 49%, comparado
com o orçamento de 2020. Quando observado o período, os direitos sociais
financiados por estas duas ações orçamentárias retraíram em 3% e 13%, res-
pectivamente, contração que veio num dos piores momentos da história, dada
a difícil conjuntura do contexto pandêmico provocado pela COVID-19, em
que se aprofundaram o desemprego e a informalidade, situações que não tive-
ram coberturas significativas, conforme indicam os dados.

31
A definição de salário-mínimo necessário, realizada pelo Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIESSE), é feita por meio de estudo que
considera o valor nacional da cesta básica de alimentos para manter uma família com-
posta por quatro pessoas. Fonte: https://abre.ai/fMhn. Acesso em 10 fev. 2023.
111
Já no campo da Previdência Social, a letalidade se expressou incial-
mente pela contrarreforma previdenciária aprovada através da Emenda
Constitucional N. 103/2019, seguindo do insignificante crescimento na
Função Previdência Social, na ordem de 15% no período analisado. Os be-
nefícios urbanos e rurais foi a única ação orçamentária a não sofrer redução
na série histórica analisada, fora os benefícios militares, registrando cresci-
mento de apenas 4% no período estudado, o que está associado ao fato do
salário-mínimo não ter sofrido ganho real nos últimos anos, dada a extinção
da política de valorização do mesmo em 2019, somando ainda, o fato do
aumento de óbitos provocados pela COVID-19, que fechou o ano de 2022
na casa dos mais de 692 mil mortes, muitos destes, beneficiários do Insti-
tuto Nacional do Seguro Social (INSS).
Dito isso, os dados nos permitem concluir que o Governo Bolsonaro
aprofundou o grau de violação do equivalente de valor da força de trabalho
brasileira, que viveu durante os últimos quatro anos em condições de precari-
zação máxima, dada a retração de direitos importantes, o que coloca a necessi-
dade de conscientização dos efeitos deste e da urgente organização política da
classe trabalhadora em nível nacional para enfrentar o bolsonarismo. Apesar
de ter sido o seu principal líder derrotado democraticamente nas eleições de
2022, segue fortalecido na realidade, dentro e fora das instituições da democra-
cia liberal representativa, fato que se expressa na significativa eleição de seus
deputados e senadores, sem esquecer de mencionar os seus efeitos práticos
mais recentes, com os atos terroristas ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023,
nas sedes dos três poderes, em Brasília – Distrito Federal.

Referências

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São Paulo: Cortez Editora, 2006.

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112
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cial brasileira: uma história de desconstrução e de saques. 1 ed. Rio Ja-
neiro: Mauad X, 2019.

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nal por Amostra de Domicílios Contínua trimestral – PNAD Contí-
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MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I – o processo


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MÉSZÁROS, I. A crise estrutural do capital. 2 ed. São Paulo: Boi-


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gemonia imperfeita. Petrópolis: Vozes, 1998.

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meida Filho (Orgs). Desenvolvimento e dependência: cátedra Ruy
Mauro Marini. Brasília – Ipea, 2013.

SANTOS, J. S. “Questão Social”: particularidades no Brasil. São Paulo:


Cortez, 2012.

113
CAPÍTULO 7
O Estado e os usineiros na zona da cana nordestina
Lucas Bezerra

Introdução

O presente capítulo apresenta um excerto das reflexões contidas em


nossa tese de doutoramento sobre as práticas de classe do empresariado
vinculado à agroindústria do açúcar e do álcool no Nordeste brasileiro entre
2005 e 202032. Tais práticas compreendem as formas de dominação, explo-
ração, acumulação e expropriação, nas quais se incluem os dispositivos de
controle e gestão da força de trabalho e a intervenção nos amplos terrenos
da luta política, da cultura e da ideologia. Sob este prisma, não interessa
apenas como os usineiros movimentam-se dentro de uma determinada uni-
dade agroindustrial, mas também para fora. Ou seja, é preciso que se identi-
fique como eles exploram, mas também como acumulam e dominam. O Estado
constitui-se como peça fundamental dessa engrenagem e é em torno dele
que organizamos nosso pensamento neste texto.
Todavia, antes de adentrar ao núcleo da discussão, parece-nos pre-
ciso sinalizar ao leitor alguns pressupostos de ordem interpretativa.
Em primeiro lugar, admitimos o usineiro como burguês, portanto, como
sujeito integrado ao conjunto da classe capitalista no Brasil. Isto se deve ao fato
de que ele detém propriedade privada dos meios de produção e seu modus ope-
randi sustenta-se não só na propriedade fundiária, mas na modalidade particular
de excedente que é o lucro, possibilitado através do assalariamento da força de
trabalho e da extorsão do excedente devido ao trabalhador explorado.
Em segundo lugar, no que se refere em específico ao Estado, partilhamos da
compreensão de que este denota, antes de mais nada, um aparato das classes do-
minantes. A assertiva pode parecer óbvia ao leitor, mas sua aparição consiste,
aqui, com o propósito de contrariar uma visão monolítica a seu respeito. Por

32
Intitulada A burguesia do açúcar e do álcool no Nordeste brasileiro: um estudo sobre
suas práticas de classe (2005-2020), a tese foi orientada pelo prof. Marcelo Braz e de-
fendida em 2022 no âmbito do Programa de Pós-Graduação da ESS/UFRJ.
114
vezes, ao se enfatizar em demasia o Estado como “comitê executivo para os ne-
gócios da burguesia”, tal como nos sugerem Marx e Engels (2008) no Manifesto
do Partido Comunista, deixa-se manifestar uma concepção de que a burguesia cor-
responderia a um todo homogêneo. Nunca foi e nunca será. Embora ela se uni-
fique em torno dos interesses da acumulação e da exploração, distribui-se inter-
namente em frações de classe. A menção a este aspecto deve-se ao fato de que essas
frações (industriais, banqueiros, comerciantes, latifundiários etc.) são portadoras
de interesses particularistas, disputados na arena das políticas de Estado. A partir
desse entendimento, tentamos evitar dois equívocos na abordagem dos usinei-
ros: estes não podem ser apreendidos nem endogenamente (como se não fossem
parte de um movimento mais amplo e associado das classes dominantes) nem
com base em generalizações simplificadoras (incapaz de empreender uma leitura
amiúde da burguesia a partir da origem de seu capital, das funções que desempe-
nha, de seu porte, de sua abrangência, das relações que estabelece com outros
setores, das pautas que pleiteia junto ao Estado)33.
Em terceiro lugar, reclamamos uma dimensão regional na análise dos
usineiros. Também eles não são a mesma coisa em qualquer parte do Brasil.
O moderno usineiro nordestino é resultado de uma história cujas raízes são
muito mais longas se comparadas aos usineiros do eixo Centro-Sul. Estes
são fruto de um período em que a produção de açúcar e álcool se afirma
em bases industriais (na “fábrica fora do lugar” que é a usina, como costumava
afirmar Octavio Ianni), enquanto, no Nordeste açucareiro, assistiu-se a uma
metamorfose que figura-se entre as mais expressivas na história dos “de
cima” no Brasil: a passagem do senhor de engenho ao usineiro.
Fato é que essa dimensão regional não está circunscrita ao passado.
Nas páginas subsequentes, buscamos demonstrar que há fortes traços de
atualidade, cujo fundamento remete às contradições que compõem o de-
senvolvimento do capitalismo na formação econômico-social brasileira,
marcado, dentre outras características, pelo desenvolvimento desigual inter-regio-
nal (OLIVEIRA, 1987; PEREIRA, 2018). Em face dele, as classes sociais
acabam por adquirir particularidades relacionadas ao papel desempenhado
por uma determinada região do país na divisão inter-regional do trabalho.

33
Uma leitura aprofundada da relação entre Estado e classes dominantes pode ser
localizada em Poulantzas (2019). Sobre sistemas de fracionamento da burguesia, ver o
estudo de Farias (2009).
115
No caso ora problematizado, este prognóstico confirma-se na realidade: há,
de fato, assimetrias e conflitos que marcam a experiência histórica da burguesia do açúcar
e do álcool no Nordeste brasileiro em relação a usineiros de outras regiões. Isto pode
ser especialmente observado nas plataformas programáticas e nas linhas de
ação de suas entidades patronais, as quais destinam ao Estado o foco de
suas reivindicações (BEZERRA, 2022).
Em quarto lugar, sabemos que a cadeia produtiva da cana-de-açúcar se
particulariza em função do peso histórico e estrutural que possui no desen-
volvimento histórico nacional. Primeira atividade econômica amplamente
praticada, passa a comportar, com o desenvolvimento de relações especifica-
mente capitalistas, indústria e agricultura, capital e propriedade fundiária, lucro
e renda da terra. Sua contemporaneidade é irrefutável. Nos anos 2000, o
monocultivo da cana figurou entre principais setores do agronegócio brasi-
leiro, sendo um dos que mais produziu, exportou e avançou territorial-
mente. Interpretamos esse período como um novo ciclo restaurador34, dado que
não só supera uma grave crise como a enfrentada pelo setor nos anos 1990
como denota o mais estrondoso ciclo econômico dos derivados da cana-
de-açúcar em nossa história. Trata-se, afinal, de uma retomada que ocorre
num período qualitativamente distinto do desenvolvimento capitalista na
agricultura, marcado pela hegemonia do agronegócio, sintetizado na condi-
ção de grande empresa agrário-capitalista-financeira (FONTES, 2010).
Nestes termos, a lógica do agribusiness expressa um conjunto de relações
econômicas - mercantis, comerciais, financeiras e tecnológicas - entre os setores
agrícola, agroindustrial e agropecuário e aqueles situados em ramos diversifica-
dos da indústria, do comércio e dos serviços. O Estado, ao cumprir sua funci-
onalidade, tem sido decisivo nessa dinâmica, viabilizando as condições neces-
sárias à reprodução ampliada do capital na agricultura mediante o fornecimento
de incentivos fiscais, tributários e infraestruturais. Sensível às pressões das en-
tidades organizadas da burguesia agroindustrial, o aparato estatal torna-se, desta
feita, fiador do agronegócio, como o foi nos períodos anteriores do desenvol-
vimento capitalista na agricultura brasileira.
Feitas tais considerações, este capítulo objetiva analisar a relação hodi-
erna entre Estado e classes dominantes na agroindústria sucroalcooleira nordestina,
constituída pelos três principais estados produtores de cana-de-açúcar na

34 Esta caracterização é detalhada em nossa dissertação de mestrado. Cf. Bezerra, 2018.


116
região: Alagoas, Pernambuco e Paraíba. O desenvolvimento da problema-
tização organiza-se a partir de três eixos:
● a presença direta e/ou indireta do empresariado nos Pode-
res Executivo, Legislativo e Judiciário;
● a pauta de reivindicações das entidades político-patronais
junto ao Estado;
● o binômio financiamento/endividamento como constitu-
tivo da prática empresarial dos usineiros.
Os dados levam-nos a sustentar, analiticamente, a existência de uma
nova morfologia dos usineiros no Nordeste brasileiro, a qual tem redefinido os
métodos de acumulação, dominação, exploração e expropriação articulados
por esse segmento, ampliando-os num movimento combinado de conserva-
ção e renovação. Nisto se incluem as relações políticas e econômicas entre
usineiros e Estado. Metodologicamente, valemo-nos de triangulação entre
pesquisa bibliográfica, documental e empírica. No caso da última, no de-
curso do texto comparecem trechos de entrevistas com dirigentes de enti-
dades patronais (sindicais e associativas) na zona da cana nordestina. A ex-
posição adquire forma ensaística e distribui-se, afora esta introdução, em
dois momentos: um de desenvolvimento, outro de considerações finais.

A contemporaneidade de uma relação antiga

As relações dos usineiros nordestinos com o Estado devem ser ana-


lisadas como uma relação histórica. Afinal, a atividade econômica por eles
coordenada, no Nordeste e em todo o país, “sempre esteve vinculada ao
poder público e foi protegida por ele” (ANDRADE, 1994, p. 221). A abran-
gência temporal e espacial dessa relação serve-nos de guia para responder a
seguinte pergunta: como interagem usineiros nordestinos e instâncias do poder estatal
na história recente do Brasil? Trata-se de uma questão fundamental porque
chama atenção para o entendimento de que o Estado é um ator de relevo
na agroindústria canavieira e porque nos convoca a repensar, programati-
camente, o papel por ele assumido.
Como sinalizado, aqui trabalhamos essa relação a partir de três di-
mensões.
A primeira delas refere-se à presença direta e/ou indireta do empre-
sariado na tripartição dos poderes (executivo, legislativo, judiciário). Em
117
busca da satisfação de seus interesses particularistas, a perspectiva dos usi-
neiros é a de penetrar o máximo possível, independentemente das vias, as
mais diversas instâncias que compõem o Estado. Assim, ocupam-se em as-
segurar presença direta e/ou indireta i) no Congresso Nacional; ii) nas As-
sembleias Legislativas e Câmaras Municipais; iii) no aparato militar; iv) no
Poder Judiciário; v) em autarquias federais diversas.
No Congresso Nacional, os representantes dos usineiros nordestinos
compõem a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como
bancada ruralista. Institucionalizada e agregadora de “novos” e “velhos” pro-
prietários rurais e empresários do agribusiness, desde 2008 essa bancada de-
cide “ampliar participação na grande política institucional e fazer-se pre-
sente no maior número de comissões com vista a ampliação da área de in-
fluência política e a possibilidade de orientar e controlar os debates e nego-
ciações” (BRUNO, 2015, p. 10).
Entre 2005 e 2015, notou-se um fortalecimento do patronato rural e
agroindustrial no Parlamento (cf. Bruno, 2015), o que denota uma movi-
mentação coerente à expansão do agronegócio na economia brasileira. Na
55ª legislatura (2015-2019), chama atenção a participação de deputados e
senadores do Nordeste brasileiro na FPA, correspondendo a praticamente
⅓ da bancada (algo em torno de 40 parlamentares).
Destes, os oriundos dos estados da zona da cana têm, indiscutivel-
mente, compromisso privilegiado com os usineiros: fazem de suas interven-
ções, de seus projetos de lei, de sua participação na vida parlamentar, um
mecanismo de disputa em proveito dos que lhe apoiam e financiam suas
campanhas. Em alguns casos, a representação é direta: em legislaturas no
período analisado, famílias como a dos Vilela (da Usina Seresta), de Alagoas,
ou dos Ribeiro Coutinho, da Paraíba, tiveram assentos garantidos no Con-
gresso. Noutros casos, são aliados, empresários de outros setores, lideran-
ças ruralistas advindas dos arranjos políticos próprios de cada localidade.
Durante a realização das entrevistas para nossa tese, uma militante
do movimento popular sinalizou que há um relativo desgaste de nomes
mais tradicionais que carregam consigo a pecha do coronelismo ou do man-
donismo oligárquico35 que outrora definiu a autoimagem dos usineiros: “nas

35Em interlocução com as formulações de Leal (1978), José Murilo de Carvalho indica
que “[...] o coronelismo seria um momento particular do mandonismo, exatamente
118
eleições de 2014 e nas de 2018 eles tentaram, mas ninguém diretamente decolou. Na
Paraíba, nome forte deles é o Mário Borba, que foi presidente da Asplan (Associação
dos Plantadores de Cana da Paraíba) e hoje é vice-presidente da CNA (Confe-
deração Nacional da Agricultura). Tentou eleição, mas não deu” (Entrevistada
5, movimento popular).
Em Pernambuco, nas eleições de 2018, um herdeiro de usineiro con-
correu ao governo do estado, mas não obteve êxito. Referimo-nos a Ar-
mando Monteiro Neto36 (PSDB), ex-senador e ministro do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) no governo
Dilma Rousseff, também irmão de Eduardo Queiroz Monteiro, dono de
um dos principais grupos empresariais na zona canavieira do Nordeste
(grupo EQM), que, aliás, é um dos recordistas nas denúncias de trabalho
em condições análogas às de escravidão no Brasil37.
Na Paraíba, nessas mesmas eleições, uma herdeira de duas famílias
tradicionais de usineiros (Ribeiro Coutinho e Velloso Borges) elegeu-se senadora:
Daniela Ribeiro (PSD), irmã de Agnaldo Ribeiro (Progressistas), ex-depu-
tado e líder do governo golpista de Michel Temer (2016-2018) na Câmara
dos Deputados. Os sobrenomes que a senadora reúne38 são os mesmos in-
diciados pela ordem de assassinato da militante sindical Margarida Maria
Alves, no município de Alagoa Grande (PB), em 1983. Duas décadas antes,
o patriarca de uma dessas oligarquias, Aguinaldo Velloso Borges, usineiro
proprietário da falida Usina Tanques, foi vinculado ao assassinato de João
Pedro Teixeira, dirigente das Ligas Camponesas.

aquele em que os mandões começam a perder força e têm de recorrer ao governo.


Mandonismo, segundo ele, sempre existiu. É uma característica do coronelismo, assim
como o é o clientelismo” (Carvalho, 1997, p. 2).
36 As vias de enriquecimento de Monteiro têm sido objeto de questionamento por parte

de alguns setores. Segundo o portal De olho nos ruralistas, no ano de 2006 ele declarou à
Justiça Eleitoral ter seu patrimônio estimado em R$ 1,1 milhão. Às vésperas das elei-
ções de 2018, seu patrimônio foi declarado em R$ 16,8 milhões.
37 Segundo informa o portal De olho nos ruralistas, 1.406 trabalhadores foram resgatados

em situação análoga à escravidão na Destilaria Araguaia (antes chamada Gameleira),


pertencente a uma das empresas do grupo EQM, entre 2001 e 2009.
38 Na história da política como negócio familiar nesse estado, “os Velloso Borges e os

Ribeiro Coutinho foram se misturando” (Entrevistada 5, movimento popular). São fa-


mílias do chamado “Grupo da Várzea”, constituído por oligarquias que projetavam a
extensão de seus poderes em âmbitos local, regional e nacional.
119
A análise empírica demonstra que o estado de Alagoas é o que mais
carrega consigo o peso da tradição dos usineiros na política institucional. Por
vezes, a disputa ao governo estadual ocorreu entre diferentes oligarquias do
mesmo setor, a exemplo da concorrência entre Teotônio Vilela Filho39 (PSDB)
e João Lyra (PTB), em 2006. Nas eleições de 2014, dos nove deputados federais
eleitos, cinco eram ligados a famílias de usineiros e membros da bancada rura-
lista40. Benedito de Lira, senador por Alagoas entre 2011 e 2019, foi um dos
mais destacados defensores do empresariado sucroalcooleiro na Legislatura,
tendo excelente trânsito na FPA. Foi um dos articuladores do projeto de de-
creto legislativo que autorizava a venda de etanol das usinas diretamente para
os postos, contrariando assim os interesses da Petrobras no processo de distri-
buição. Além dessa atuação, que demonstra a relação com os interesses dos
usineiros, Benedito é pai do deputado e atual presidente da Câmara dos Depu-
tados, Arthur Lira (Progressistas), e hoje é prefeito de Barra de São Miguel,
município situado na zona da cana.
Os casos acima explanados são ilustrações que se reproduzem esta-
dual e localmente, em Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores.
Mencioná-las nos é útil para indicar a atualidade da presença direta ou indi-
reta dos usineiros nas disputas político-institucionais que envolvem os Po-
deres Executivo e Legislativo, mecanismo pelo qual esse segmento de classe
tenta fortalecer sua posição político-econômica, assim como ocorre com
outras frações da burguesia, principalmente quando falamos de setores
econômicos historicamente atuantes na política brasileira.
Além disso, possuem grande influência no Poder Judiciário, cuja par-
cela expressiva de seus quadros (juízes e procuradores, por exemplo) for-
mou-se nas tradicionais Faculdades de Direito do Recife, de João Pessoa e
de Maceió num período em que esse curso era amplamente frequentado

39
Filho de Teotônio Vilela, usineiro homenageado por Milton Nascimento e Fernando
Brant na música Menestrel das Alagoas por sua participação na luta pela redemocrati-
zação nos anos 1980. Teotônio Vilela Filho foi presidente do PSDB e em certa ocasião
declarou: “Sou usineiro, cachaceiro e, certamente, o primeiro presidente do partido que
não fala francês. Me convenceram que meu nome unia o partido. Por isso aceitei.” A
afirmação consta em verbete do portal oficial da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/te-
otonio-brandao-vilela-filho. Acesso em 04 ago. 2022.
40
Arthur Lira (Partido Progressista - PP); Givaldo Carimbão (Partido Republicano da
Ordem Social - PROS); Pedro Vilela (PSDB); Renan Calheiros (PMDB).
120
por filhos da burguesia e dos setores médios. Em vista disso, setores do
Judiciário têm sido historicamente sensíveis ao poder de barganha dos usi-
neiros ou seus representantes, além de, quando convocados, legitimarem a
força repressiva do Estado (consubstanciada no aparato militar) em contra-
riedade aos trabalhadores rurais em luta e em benefício do monopólio da
propriedade fundiária.
A relação estabelecida entre os usineiros e o Estado (seja “de fora”
ou ocupando postos do aparato estatal) explicita a manutenção do tradici-
onalismo conservador no período em tela. Imbuídos de uma nova autoima-
gem41, reatualizam antigos traços de sua intervenção classista. Quando pos-
sível, a despeito da autoafirmação de valores republicanos e/ou democráti-
cos, tratam as instâncias estatais como sendo suas, de suas famílias, de seus
grupos empresariais, dando prosseguimento a um privatismo conhecido na
história da região e do país42 por meio de características afeitas ao ordena-
mento oligárquico, como o mandonismo e o clientelismo.
Vincula-se a essa engenhosidade a segunda dimensão da relação entre
os usineiros e o Estado, concernente às pautas setoriais da burguesia sucro-
alcooleira. Se os exemplos mencionados demonstram a encarnação dos in-
teresses empresariais em instâncias como o Parlamento, esses são formula-
dos internamente pelos usineiros e institucionalmente apresentados por
suas entidades de representação.
Com o intuito de satisfazê-los, o empresariado recorre à retórica de
seu compromisso com o desenvolvimento. Local, estadual e nacionalmente,
justificam essa posição através de fatores como a geração de emprego, a
participação no PIB, as vantagens da exportação para a balança comercial

41
Defendemos que se forjou, nos anos 2000, em face do novo ciclo restaurador da
cana-de-açúcar comandado pelo agronegócio, uma nova autoimagem dos usineiros
nordestinos. Esta reclama, atualmente, a defesa do monocultivo da cana como um ne-
gócio “agro-social”. Põe-se, assim, como um segmento liberal, moderno, marcado pelo
empresariamento crescente e afeito às noções de sustentabilidade e responsabilidade
sócio-empresarial. Para acesso à sistematização pormenorizada desse argumento, ver
capítulo 4 de nossa tese, especialmente o item 4.2.
42
Não custa lembrar que “[...] o Estado brasileiro foi sempre dominado por interesses
privados. Decerto, isso caracteriza o Estado capitalista em geral, não sendo uma singu-
laridade de nossa formação estatal; mas esse privatismo assumiu aqui traços bem mais
acentuados do que em outros países capitalistas” (COUTINHO, 2018, p. 84).
121
etc. Nos termos de Renato Cunha, “[...] o conglomerado é ramificado, se consti-
tuindo em eficiente canal distribuidor de renda para inúmeros negócios e pessoas que
gravitam em seu entorno. Os empregos diretos e indiretos atingem mais de 300.000 pos-
tos”43. Na mesma linha de raciocínio, disse-nos um entrevistado que “[...]
não é que a cana seja a única solução ou salvação da Pátria, mas ela continua
sendo fundamental, tem grande importância na geração de emprego e na
fixação do homem no campo; e isso a gente precisa ressaltar” (Entrevistado
1, entidade patronal).
Os usineiros buscam relacionar-se com o Estado no sentido de coagi-
lo a ser um parceiro constante e fiel, dele exigindo auxílios diversos que
contribuam com o êxito da atividade econômica que dirigem. Isto se ex-
pressa no conjunto das instâncias estatais já mencionadas. No Legislativo,
buscam a aprovação de projetos de lei que lhes sejam benéficos e, na mesma
proporção, reúnem esforços para bloquear interesses contrários aos seus,
como qualquer medida vinculada à reforma agrária e à expansão (ou, em
conjunturas defensivas, à preservação) dos direitos dos trabalhadores. Do
Judiciário, procuram amparo e jurisprudências que não afetem as relações
por ele encaminhadas. Do Executivo, reivindicam o planejamento, a for-
mulação e a implementação de políticas favorecedoras ao desempenho pro-
dutivo e comercial do setor. A propósito, assim comentam dois represen-
tantes do patronato:

“[...] o que o segmento almeja do governo federal são regras previ-


síveis vis-à-vis mecanismo instáveis dos preços finais da gasolina
que, ora são parametrizados artificialmente, impondo-se perigosa
perda de competitividade a um gerador respeitado de empregos no
campo, que evita êxodo desordenado para as grandes cidades, hidra-
tando com renda e tributo inúmeros municípios do país” (Renato
Cunha)44.

“Precisamos de um voto de confiança do governo em parceria pú-


blico-privado, como já visto, calcado na experiência do passado e
vocação de mais de quinhentos anos de história canavieira prestando
inestimáveis serviços à Nação” (Gregório Maranhão)45.

43 Folha de Pernambuco, 18 ago. 2013.


44 Jornaldo Commercio, 22 mai. 2014.
45 Folha de Pernambuco, 27 jan. 2022.

122
Daí provém a terceira dimensão aqui analisada: o binômio financia-
mento/endividamento como prática sistemática das classes dominantes no
setor sucroalcooleiro. Binômio porque, na prática, põem-se lado a lado.
Não se trata de uma novidade no período analisado, mas da continuidade
de ação corrente na trajetória desse segmento46. A um só tempo, buscam
incentivos diretos do Estado e, nas ocasiões em que se endividam, pedem
expansão dos prazos de pagamentos ou perdão de suas dívidas em nome
da suposta relevância social que detêm.
Historicamente, o pleito dos usineiros tem sido atendido pelo aparato
estatal, o qual em diversos momentos subsidiou a agroindústria canavieira, for-
necendo-lhe créditos, isenção fiscal etc. Aqui cabe lembrar uma lição de Carlos
Nelson Coutinho (2018), para quem o Estado foi o principal ator de nosso
processo de industrialização. Como temos demonstrado, a afirmação se aplica
não só à indústria em sentido estrito, mas à agroindústria. Prova disso é que,
somente no período de instalação e auge do Programa Nacional do Álcool -
Pró-Álcool (1975-1989), o financiamento setorial a novos e tradicionais usinei-
ros atingiu o montante de US$ 500 milhões ao ano (Ramos, 2012).
Com a retomada do crescimento do setor nos anos 2000, o Estado
mais uma vez entrou em campo com o financiamento subsidiado. Apenas o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em
um parco período de três anos (2005-2008), desembolsou mais de R$ 9 bi-
lhões para a cadeia produtiva da cana-de-açúcar47. No ano de 2008, de todos
os setores da agroindústria e da agropecuária, o investimento na cana só
não foi maior que o investimento na cadeia produtiva de carnes.
Em paralelo, sobretudo em momentos de crise, o Estado dá socorro
e amparo aos usineiros mediante o perdão e a rolagem de dívidas. No con-
texto dos anos 1990, quando da crise e desregulamentação do setor, o então
Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e o Tesouro Nacional bancaram
dívidas bilionárias dos usineiros, sendo a maior parte do Nordeste48.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é, neste sentido, um
dos principais alvos. Em 2008, enquanto o setor lucrava milhões, acumulou

46 Embora não se trate de um particularismo restritivo ao setor investigado.


47Cf. https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/con-
teudo/20071203_not271_07. Acesso em 09 ago. 2022.
48 Cf. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi1401200702.htm. Acesso em 14

nov. 2020.
123
com o INSS uma dívida de R$ 2,2 bilhões. O estado de Alagoas foi, naquele
ano, o segundo maior devedor do país, numa cifra superior a R$ 767 mi-
lhões. Os usineiros de Pernambuco contraíram uma dívida de R$
367.471.832,82 e os da Paraíba de R$ 59.261.281,34 (Ramos, 2012). So-
mente o grupo João Santos (PE), em dados levantados em 2019, acumula
R$ 69,2 bilhões em dívidas com a União49. O binômio financiamento/endivida-
mento soa, pois, como elemento analítico interessante para entender mais a
fundo as relações entre usineiros e Estado. As dívidas, portanto, parecem
ser um recurso sistemático dos usineiros. Endividam-se mesmo quando re-
cebem amplos investimentos.

Considerações finais

O texto argumenta que os usineiros nordestinos têm no aparato estatal


um sustentáculo para sua reprodução. Transformam-no, continuamente, em
arena de disputa para representação e consecução de seus interesses. Destaca-
se a atuação no Poder Legislativo, em âmbitos local, estadual e nacional, através
do qual propõem leis e emendas que lhes sejam benéficas. Em relação ao Poder
Executivo, constata-se, sobremodo, o binômio financiamento/endividamento.
Por um lado, especialmente através de suas entidades, reivindicam investimen-
tos em infraestrutura e benefícios financeiros, fiscais e tributários. É o chamado
financiamento subsidiado. Por outro, é frequente não quitarem suas dívidas com o
Estado, mormente as ligadas a direitos trabalhistas e previdenciários. Daí o en-
dividamento empresarial sistemático.
Tais características referenciam uma relação não necessariamente nova
entre Estado e usineiros, mas sua reposição, sua reatualização em meio às trans-
formações provocadas pelo agronegócio no desenvolvimento do capitalismo
na agricultura. Porém, não basta afirmar que esses atores (usineiros e Estado)
interagem reciprocamente; é preciso dizer de que modo e por quais vias. Este foi
nosso exercício neste capítulo: levar a efeito uma aproximação à realidade, aos
fatos, à base empírica que dá sustentação às afirmações e hipóteses aventadas
no decurso da exposição. Limitamo-nos a três dimensões, certos de que há
outros eixos para problematização e aprofundamento.

49 Observatório De olho nos ruralistas, 11 nov. 2021.


124
Outrossim, parece-nos preciso indicar que o fio condutor de nossa argumentação, bem
como a delimitação a que corresponde, não devem ser observados endogenamente. As
relações entre usineiros e Estado somente obtêm inteligibilidade quando inscritas no
quadro mais amplo que compõe as práticas de classe do referido segmento de classe,
dentre as quais podemos elencar: o processo produtivo e os métodos de acumulação;
a violência e a criminalização da luta dos trabalhadores e do movimento popular; a
articulação setorial no âmbito regional e a competitividade inter-regional etc.
A combinação entre tais eixos informa a transversalidade da relação
entre os usineiros e o aparato estatal. Sua análise na cena contemporânea
leva-nos a crer que se processou, no período investigado, um misto entre
renovação e conservação. Observadas suas articulações internas, não há relação
de incompatibilidade ou “disfuncionalidade”, mas de complementaridade funci-
onal à reprodução capitalista. Noutros termos, os usineiros nordestinos as-
similam o que lhes convêm das novidades do desenvolvimento capitalista,
mas preservam traços mais antigos que sua própria existência.

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Brasil: uma história secular e... atual. Mimeo, edição do autor, 2012.

126
CAPÍTULO 8
“O Estado e o mercado (des)fetichizado” e a questão das
sexualidades dissidentes
Tibério Lima Oliveira

Introdução
“Ser radical é atacar o problema em suas raízes”.
Karl Marx

Este texto é parte dos resultados dos estudos alcançados durante a pes-
quisa de doutorado, realizado no Programa de Pós-graduação em Política So-
cial, na Universidade de Brasília (UnB), que resultou na tese “O homonaciona-
lismo na sociabilidade do consumo de lazer LGBTI+ - Fortaleza/CE”. Por-
tanto, a análise que se apresenta neste momento é fruto de uma revisão biblio-
gráfica de conceitos como Estado, mercado e sexualidades.
Este artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica sobre a desfe-
tichização do Estado e do mercado a partir da lógica marxista, pensando
como as categorias críticas são fundamentais para se compreender, na atu-
alidade, o debate sobre as sexualidades dissidentes. Posteriormente, apre-
senta a visão do Estado Ampliado em Gramsci e a sua relação com a soci-
edade civil, com os movimentos sociais para entender a lógica do Estado-
mercado e sexualidades dissidentes.
Incialmente, admite-se que Marx não tinha como objeto de análise a
sexualidade. Seus estudos centraram-se em examinar a dinâmica da socie-
dade burguesa e o modo de produção capitalista. No entanto, compreende-
se que a interpretação desse autor possibilita apreender os fundamentos
centrais da sociedade de classe, articulados com outros determinantes soci-
ais e como esse modelo de sociabilidade limita à diversidade sexual, anula
as potencialidades dos sujeitos na contemporaneidade. O artigo está estru-
turado em duas partes. Na primeira, fez-se se uma análise do pensamento
de Marx sobre o Estado. Na segunda parte, desdobra-se um exame sobre o
Estado Ampliado em Gramsci e suas ferramentas para entender o debate
sobre as sexualidades.

127
Marx e o debate sobre o Estado capitalista

A sociedade burguesa reproduz reiteradamente um sistema fundado na


opressão e na exploração da classe trabalhadora, com o respaldo do Estado, da
centralização de um poder político nas mãos de uma classe minoritária. Para
David Harvey (2005), pensar a teoria marxista sobre o Estado é saber que
Marx, não desenvolveu em uma única obra a análise sobre essa categoria.
Os estudos marxianos sobre o Estado, estão difundidas em suas
obras a começar com “A crítica da filosofia do direito de Hegel” de 1843,
suas análises desembocam ainda em “O manifesto comunista” de 1848,
onde se encontra a célebre menção “que o Estado é o comitê executivo dos
negócios da burguesia”. Aprofunda a questão do Estado na obra “O 18 de
Brumário” de 1851, e amadurece a concepção estatal na “Crítica do Pro-
grama de Gotha” de 1875.
Essas compilações de escritos foram fundamentais para o entendi-
mento acerca da origem e as configurações do Estado burguês na sociedade
moderna. É importante ressaltar que texto não se faz uma exaustiva análise
dessas obras, pois não é o objetivo deste artigo. Entretanto, pretende-se
extrair de modo geral, como a apreensão de Marx sobre o Estado permite
compreender a vivência da sexualidade nesse modelo de sociedade limitada,
dadas as relações de poder centradas em uma classe. Nessas coletâneas, es-
tão as bases fundantes para compreender a origem do Estado moderno
burguês, que emerge a partir do declínio do sistema feudal. Além disso, es-
sas obras apresentam também a decadência ideológica e ética da burguesia.
O fim do absolutismo na Europa Ocidental representou as bases de um
novo sistema de dominação e organização política e a configuração do con-
servadorismo que se atualiza por meio do neoconservadorismo. Mandel
afirma que o surgimento do Estado:

[...] coincide com a origem da propriedade privada e associa-se, em


certa medida, à separação das esferas privadas e públicas da socie-
dade, inerente à produção simples de mercadorias, com sua frag-
mentação da capacidade do trabalho (MANDEL, 1982, p.335).

Logo, como já mencionado anteriormente, o Estado surge antes da


sociedade capitalista. Nas palavras de Mandel, “[...] o Estado burguês é um
produto direto do Estado absolutista, gerado pela tomada de poder político
128
e de sua maquinaria institucional pela classe burguesa” (1982, p. 335). Ade-
mais, é no modo de produção capitalista que “o executivo no Estado mo-
derno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a
classe burguesa” (MARX; ENGELS, 2010, p. 42).
Essa visão dos autores sobre o Estado é fruto de análises de dois
jovens: Marx e Engels em contexto econômico e político de fortes contra-
dições entre o capital versus o mundo do trabalho. As visões desses funda-
mentos parecem apresentar um Estado “restrito” sem correlações de for-
ças, sem a possibilidade de diálogo, dado pelo fato da burguesia ter rompido
com as promessas da então revolução burguesa de 1789, sem possibilidades
de lutas e resistências. No entanto, deve-se interpretar que essas análises
foram empreendidas num tempo histórico em que a classe trabalhadora na
Europa vivia no flagelo da fome, da exploração, opressão e das amplas de-
sigualdades sociais (TRINDADE, 2011).
Os direitos de cidadania não eram evocados, estavam restritos a pe-
quena camada da sociedade. Não tinham acesso aos direitos sociais, civis e
políticos, trabalhavam extensas jornadas (homens, mulheres, crianças e ido-
sos), não tinham direito ao voto, e havia uma forte política de coerção por
parte do Estado por meio da intervenção severa e heternormativa. A reatu-
alização das leis Elisabetanas que culminou na nova Leis dos Pobres na
Inglaterra, seu objetivo era punir aqueles que não estavam inseridos no mer-
cado de trabalho, considerados “vagabundos”, bem como prostitutas e ho-
mossexuais, considerados criminosos diante da lei.
Essa era a dura realidade de uma classe que fora transformada em
trabalhadores “livres” na configuração de uma força de trabalho “assalari-
ada”, despossuídas das lavouras. Todas essas condições análogas ao traba-
lho escravizado foram analisadas na obra O capital, especificamente nos ca-
pítulos “Assim a chamada acumulação primitiva” e “Lei geral da acumula-
ção capitalista” que fazem uma ampla cartografia do que representou para
o(a)s trabalhadore(a)s a sociedade capitalista (MARX, 2017).
Esse cenário exposto de múltiplas desigualdades sociais e de contra-
dições que os jovens, Marx, juntamente, com Engels, teceram suas primei-
ras análises sobre o Estado, em que a burguesia transformou as velhas rela-
ções feudais em novas relações, “[...] fez da dignidade pessoal um simples
valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas duramente,

129
por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio” (MARX; EN-
GELS, 2010, p. 42).
Nessa compreensão materialista sobre o Estado, Marx e Engels
(2010), apresentam que essa esfera é fruto das relações com as classes soci-
ais, de domínio de uma sobre a outra. Portanto, essa organização não é uma
força que age externamente, não comanda de forma isolada as relações so-
ciais, mas trata-se de compreender o Estado como produto que se origina
a partir de relações de poder estabelecidas nas lutas entre as classes sociais,
patrões entre trabalhadores/as.
Pode-se compreender que o Estado tem certas configurações no seu
modo de existência. Desde a sua emergência até a forma que adquire o Es-
tado moderno, na sociedade burguesa. Durante o período do capitalismo
concorrencial esse tinha uma conformação “restrita” de acesso ao parla-
mento, nos quais as mulheres, as populações negras e indígenas eram ex-
cluídas desses espaços de decisão, quiçá os “homossexuais”. Ainda no sé-
culo XIX a questão dos direitos sexuais não, era tratada, pelo contrário,
tinha-se uma forte criminalização da “homossexualidade” considerada “li-
bertinagem”, como aponta os estudos de Green (2019).
Isso se dava em virtude da formação do Estado se dar pela alta aris-
tocracia, por homens em sua hegemonia das classes privilegiadas e em sua
maioria por brancos. Esse era o cenário político da época, que na atualidade
se configura por alguns desses aspectos, porém com mudanças representa-
tivas, dada às lutas e as resistências dos movimentos sociais organizados,
um processo de avanços e recuos. Ainda sobre as configurações do Estado,
de acordo com Mandel (1982), o parlamento representava uma determinada
classe social, à classe dominante, não existia um diálogo com a classe ope-
rária, com as reivindicações da classe trabalhadora, quiçá com essas ques-
tões mencionadas. Como expressa Harvey (2005):

[...] o Estado se origina da contradição entre os interesses particula-


res e os da comunidade. No entanto, como o Estado tem de assumir
uma existência “independente”, para garantir o interesse comum
torna-se o lugar de um “poder alienígena” (HARVEY, 2005, p. 78).

Por isso, ao colocar a classe trabalhadora como “livre” e assalariada,


o capitalismo por meio da ideologia e da alienação tem garantido historica-
mente a reprodução ampliada do capital. Usa-se da extração da mais-valia
130
gerando um processo historicamente constituído pela estrutura do valor de
uso e valor de troca da mercadoria. Uma rotatividade das taxas de lucro,
porém essa reprodução e manutenção do mercado capitalista só é possível
com o auxílio do Estado, do qual cumprirá algumas funções, sobretudo, em
momentos de crise do capital. Como já mencionado anteriormente, o Es-
tado passou por diversas configurações, desde o capitalismo concorrencial,
passando pelo capitalismo imperialista ao monopolista. O Estado exerceu
distintas posições, mas sempre esteve atrelado à sociedade mercantil. Dessa
maneira, para Mandel (1982, p. 340): “o capital estatal funciona, portanto,
como um esteio do capital privado”.

O Estado Ampliado e o debate da sexualidade

Parte-se da concepção da ampliação do Estado, para entender as cor-


relações de forças que ocorrem nas estruturas orgânicas da sociedade civil
na contemporaneidade em relação com as demandas da agenda da diversi-
dade sexual e de gênero no contexto atual. Oliveira (2016), corrobora ao
tratar da relação paradoxal entre o Estado e sua relação com a sociedade
civil, especialmente, com o movimento LGBTI+. Segundo o autor essas
relações sempre foram complexas, conflituosas, repletas de desafios no
campo político, “onde as pautas e demandas deste último entram em con-
flito com a direção política do Estado, que é gerido a partir da classe domi-
nante conservadora e patrimonialista, fundada no conservadorismo e no
moralismo burguês” (OLIVEIRA, 2016, p. 168-169). No entanto, mesmo
diante dessas controvérsias encontram-se algumas brechas, pode-se dizer
que o século XXI é marcado por conquistas direcionadas a esse segmento,
embora com limites, dada a essência sociometabólica do Estado burguês.
Essa sequência de contradições existentes no Estado e sua relação com
os sujeitos coletivos, em particular com a comunidade LGBTI+, que também,
é um segmento populacional extremamente diverso que possuem pautas e
agendas políticas com demandas distintas de gênero, raça/etnia, classe, nacio-
nalidade e territorialidade, vivenciam questões sobre discriminações e precon-
ceitos também diferenciados. Logo, busca-se em Gramsci (2007), os aspectos
centrais para situar de qual Estado examina-se neste estudo, como discorre
Drucker (2017), é fundamental o ativismo LGBTI+ entender a essência do

131
capitalismo e as contradições do Estado. Acrescenta-se nesta análise a necessi-
dade de apreensão do Estado e sua relação com esses sujeitos.
Assim, como Marx e Engels, Gramsci (2007) similarmente tinha uma
concepção analítica materialista sobre o Estado, ao dessacralizar a imagem
deste, apontaram seu caráter repressivo, coercitivo e dominante. No entanto,
Gramsci apresenta novos elementos. Dedica-se em examinar as dimensões
deste como um aparelho portador de hegemonia, em um tempo histórico que
passou por transformações sociais. Além disso, foi um pensador que aprofun-
dou elementos para além das questões econômicas, abordou a questão da po-
lítica, a moral, a religião, a cultura e a “questão sexual” em “Americanismo e
Fordismo” (GRAMSCI, CC 4, 2007, p. 249) ao analisar os disciplinamentos e
a regulação sexual da classe trabalhadora para o sistema fordista, uma sexuali-
dade unicamente voltada para reprodução – heteronormativa.
É preciso de antemão apontar que as análises empreendidas por
Gramsci (1891-1937), se deram em um contexto distinto das que viveram
Marx e Engels. A obra gramsciana foi construída em uma conjuntura polí-
tico-econômica nas primeiras décadas da transição dos séculos XIX e XX.
Nesse contexto, a classe trabalhadora transitou por diversas configurações,
a exemplo de uma maior organicidade. Eclodiram amplas manifestações,
revoltas e lutas por direitos na Europa, fortaleceu-se um sistema de seguri-
dade social europeu, fruto da organização coletiva. Outro aspecto impor-
tante sobre as obras gramscianas refere-se que os elementos que foram
construídos se deram no interstício entre duas guerras mundiais, sem o au-
tor vivenciar a segunda.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha saiu derrotada em
1917, e com isso fortaleceu-se no território alemão uma forte política naci-
onalista-nazista orquestrada por Hitler, como em países que foram aliados
como a Itália de Mussolini. O nazi-fascismo trouxe graves consequências
para determinadas populações, a exemplo da maior dizimação étnica já pra-
ticada na humanidade, o holocausto contra judeus, “homossexuais”, negros
e comunistas. Representou a face mais extrema de Estado coercitivo, foi
nesse cenário a prisão de Gramsci (MONASTA, 2010). Precedentemente
questiona-se como essa obra escrita há mais de oitenta anos pode contribuir
com as reflexões sobre o Estado - mercado e o movimento LGBTI+ na
contemporaneidade sem cair no risco de uma análise anacrônica?

132
O pensamento gramsciano apresenta-se fortemente atual. A sua análise
sobre o Estado ampliado é relevante para compreender os aspectos de contra-
dições, correlações de forças, embates no cenário político presente. De tal
modo como apresenta Coutinho (1988, p. 74), “Gramsci não inverte nem nega
as descobertas essenciais de Marx, mas “apenas” as enriquece, amplia e con-
cretiza, no quatro de uma aceitação plena do método do materialismo histó-
rico”. Por esse ângulo, para analisar o atual tempo histórico e político do Es-
tado e sua relação com o mercado e a sociedade civil, as análises da ampliação
estatal categoria conceituada por Gramsci (2007), mostram-se essenciais para
compreender as devidas mediações entre Estado e o Movimento LGBTI+ –
este quando se considera a referida sociedade como a portadora material da
formação de hegemonia e das correlações de forças.
Além dessas questões aludidas da ampliação do Estado e do seu diá-
logo com a sociedade civil, para John D’Emilio (2021), desde o final dos
1970, houve em várias partes do mundo amplas conquistas por parte da
população LGBTI+, de legislações atreladas aos direitos humanos desse
segmento, tais como: a descriminalização da “homossexualidade” que era
tida como crime em muitos países, a aprovação do casamento civil igualitá-
rio, a retirada do “homossexualismo” da lista de doenças mentais, são algu-
mas das vitórias desses sujeitos. No entanto, ele alerta para o cuidado dessas
conquistas, que de certa forma fazem parte do contexto de ampliação do
Estado, mas ampliação para quem?
De toda forma, é preciso ressaltar que ao tratar da categoria central
da obra de Gramsci nesse estudo o “Estado ampliado - sociedade civil”,
tem-se o cuidado em não cair em simplismos e anacronismos sobre o refe-
rido autor. Todos os elementos escritos nos “Cadernos do Cárcere”, pos-
suem um grande complexo analítico, redigido de forma assistemática, por-
tanto é uma obra de peso social, que não se pode incorrer no erro de detur-
pação do seu pensamento. As análises empreendidas fundamentam-se e ori-
entam-se através da utilização do “Dicionário Gramsciano” organizado por
Liguori e Pasquali (2014), no qual auxiliou na investigação dos conceitos e
categorias diretamente na fonte dos Cadernos do Cárcere, além das contri-
buições de Coutinho (1988).
É possível identificar nessa obra que o Estado se apresenta como
uma teia de conflitos e disputas de classes. De acordo com Prestipino, “o

133
interesse gramsciano pelo Estado se manifesta sob diversas formas. No Q
3, encontra-se um breve esboço da história do Estado: não apenas a distin-
ção entre o Estado antigo-medieval e o moderno” (GRAMSCI, 2014, p.
520). Por conseguinte, Gramsci apresenta o conceito da teoria social de
“Estado Ampliado” nas sociedades ocidentais em uma carta50 destinada à
sua cunhada, Tatiana Schucht, em setembro de 1931, esboçando os aspec-
tos centrais desse (COUTINHO, 1988).
Gramsci (2007), nessa carta apresenta e explicita a sua interpretação
do Estado, esse sendo habitualmente compreendido como apenas pela vi-
são da sociedade política, que por meio da força, da coerção, das ditaduras,
dos aparelhos coercitivos como o uso da polícia. Tem por finalidade a ade-
quação do povo ao modelo de produção econômico e político, essa é para
o autor uma argumentação de caráter unilateral e limitadora, o Estado é
para além dessa interpretação. Gramsci propõe a análise do ponto de vista
de pensá-lo como um equilíbrio entre duas unidades inseparáveis: sociedade
política e sociedade civil, sendo a sociedade civil conceituada como:

A sociedade civil, no sentido gramsciano, é a esfera da atividade po-


lítica por excelência, enquanto lugar em que aparecem em cena as
organizações assim denominadas privadas (sindicatos, partidos, or-
ganizações de todo tipo), que têm como objetivo a transformação
do modo de pensar dos homens. Quanto à sociedade civil em sen-
tido estrito, que predispõe as intervenções coercitivas da lei e do di-
reito, é também ela uma instância da transformação social (SUPPA,
2014, p. 1447).

Dessa forma, para Gramsci, o Estado Ampliado comporta duas es-


feras principais, quais sejam: 1) a “sociedade política – Estado coerção, res-

5050
“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que
se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações
do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou
ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produ-
ção e à economia e um dado momento); e não como equilíbrio entre sociedade po-
lítica e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade
nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a Igreja, os sindi-
catos, as escolas etc.)” (GRAMSCI apud COUTINHO, 1988, p. 126-127).
134
trito”; e, 2) a “sociedade civil”, onde não se pode pensar em Estado Ampli-
ado sem a participação da sociedade civil. Portanto, o Estado ampliado em
Gramsci se configura pelo seguinte aspecto:

Uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram
elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no
sentido, seria possível dizer, de que Estado= sociedade política +
sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)
(GRAMSCI, CC 3, 2007, p. 243).

Conclui-se que o Estado ampliado é a síntese de correlações de forças


entre à sociedade política e a sociedade civil, ademais para Prestipino “[...]
o Estado constitui também o terreno do conflito de classe, é, ao mesmo
tempo, instrumento (de uma classe), mas também lugar (de luta hegemô-
nica) e processo (de unificação das classes dirigentes)” (2014, p. 519). Por
esse ângulo compreende-se que houve algumas transformações e reconfi-
gurações do Estado contemporâneo. Não é mais aquela organização “res-
trita” de cunho coercitivo como foi no século XIX, onde o Estado em sua
estrutura política liberal era mínimo para os direitos sociais, civis e políticos.
Ampliação que se deu foi fruto da organização da sociedade civil, por
meio dos partidos de esquerda e das sistemáticas lutas da classe trabalhadora,
dos movimentos sociais, que se desenrolou na transformação da sua composi-
ção, “[...] mediante um intenso processo de socialização da política ancorado
no sufrágio universal, no surgimento dos partidos e sindicatos de massa, que
abriram espaço para a participação das classes trabalhadoras na defesa de seus
direitos” (SIMIONATTO, 2006, p. 3-4). E que para Mandel (1982), após a
Segunda Guerra Mundial houve uma intensa reconfiguração geopolítica do ca-
pitalismo internacional. Esse sistema vivenciou uma longa onda expansiva da
economia entre os anos 1945 a 1969. A expansão econômica se deu a partir de
mudanças na economia e na política pós-crise de 1929 e continuou após a Se-
gunda Guerra Mundial, com regulação do Estado, tanto no plano econômico
como no social, com as políticas keynesianas.
Posteriormente com a reconstrução da Europa, essa restauração capita-
lista trouxe fortes consequências do ponto de vista organizativo da classe tra-
balhadora, especialmente, com uma maior regulação do Estado, esses sujeitos
foram marcados por uma forte política de incentivo ao consumo. Desde a crise
de 1929 que a economia global ficou devastada e para retomar as taxas de lucro
135
foram necessárias várias medidas. Behring e Boschetti (2008), afirmam que a
mudança econômica se deu com as ideias do economista John Keynes que
defendia a intervenção do Estado para reanimar a produção e a circulação da
mercadoria por meio do consumo, circulação em massa de mercadorias, assim,
“o Estado, com o Keynesianismo, tornou-se produtor e regulador, o que não
significava o abandono do capitalismo ou à defesa da socialização dos meios
de produção. Keynes defendeu a liberdade individual e a economia de mer-
cado” (BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p. 84).
As autoras afirmam ainda que durante essa expansão houve uma maior
regulação do “Estado Social”51, sinteticamente com: a defesa de uma política
de pleno emprego com a fusão do Keynesianismo com o fordismo o que gerou
um aumento da renda do/as assalariado/as, ampliação dos serviços públicos
por meio das políticas sociais universalistas e um forte apelo a política de con-
sumo, importante salientar que isso se deu no contexto europeu (BEHRING;
BOSCHETTI, 2008). A América Latina, vivia nesse momento políticas de de-
senvolvimentos baseados na lógica “desenvolvimentista” amparados nos pre-
ceitos cepalinos da modernização conservadora.
No entanto, esse modelo de acumulação, denominado dos “anos de
ouro” do capitalismo, se esgota no final dos anos 1960. Segundo Mandel
(1982) um dos grandes pilares da crise estrutural do capital se deu por conta
da crise do petróleo no Oriente Médio, o aumento do preço do barril des-
truiu diversas economias no mundo inteiro. Mészáros (2010), afirma que o
caráter histórico da crise pós anos 1970 foi universal, atingiu diversas esferas
produtivas, partindo da produção até à financeirização, e, especialmente, as
relações socioculturais, reside desse contexto a formulação de novas estra-
tégias colonialistas por parte dos Estados-nações, com incentivo a guerras
e ao consumo demasiadamente.

51 Parte-se da seguinte análise: “Cabe, desde logo, um registro de fundamental importância:


designar de “Estado Social” a regulação econômica e social efetivada pelo Estado no capi-
talismo tardio não significa atribuir ao Estado uma natureza anticapitalista, a menos ainda
lhe atribuir qualquer intencionalidade de socializar a riqueza por meio de políticas sociais.
Trata-se, ao contrário, de tentar lhe atribuir uma designação ou caracterização para demons-
trar que o fato de assumir uma “feição” social por meio de direitos implementados pelas
políticas sociais não retira do Estado sua natureza capitalista e nem faz dele uma instância
neutra de produção de bem-estar” (BOSCHETTI, 2016, p. 24).
136
Nesse contexto, na América Latina houve diversos golpes civis-mili-
tares que ceifou a democracia nesse continente e as reformas em curso. Os
impactos da crise comprometeram tanto os países do hemisfério sul como
os do hemisfério norte, que experimentaram as implicações do colapso
mundial, de forma permanente e extensa, como tal característica “seu modo
de se desdobrar poderia ser chamado de rastejante, desde que acrescente-
mos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais veementes ou violen-
tas poderiam ser excluídas no que se refere ao futuro” (idem, 2010, p. 70).
Tanto Mandel (1982), Mészáros (2010), consideram que a crise do
capital contemporâneo é de cunho estrutural. Trouxe como consequências
as diversas dimensões da sociabilidade metabólica desse sistema. As defici-
ências no sistema produtivo geraram, o que é central na Lei Geral da Acu-
mulação, um esgotamento na lucratividade. Não é somente uma questão da
oferta e da demanda, mas sim de uma maior produção, o que trouxe como
consequência uma tensão na superprodução mundial, sem circulação. Esse
é o momento da crise, em que a lógica capitalista não encontra o consumo,
provocando a ocorrência de drásticas consequências na sociedade, susci-
tando contradições para superá-las. Nesse decurso o Estado novamente foi
requisitado, porém, na perspectiva de resguardar a economia por meio da
neoliberalização, com amplas medidas de austeridades fiscais, formula-
ções52 de legislações que salvaguardam o sistema.
O Estado contemporâneo foi extremamente atuante para o fortale-
cimento da restauração do capital, nessa intervenção estatal o mercado ga-
nhou centralidade no cenário político-econômico por meio da reprodução
ideológica disseminada contra as políticas estatais, em defesa das privatiza-
ções e da apropriação do fundo público como discorre Salvador (2010).
Inicialmente, fortaleceu-se o incentivo do sucateamento da máquina pública
e de todas as políticas sociais essenciais como: saúde, educação, previdência,
assistência social, habitação, cultura, em meio a tudo isso cresceu vertigino-
samente a desigualdade social mundial. Segundo Mota (2015) esse modelo

52 De acordo com Mészáros “as formulações estatais historicamente dadas pelo sistema
do capital devem afirmar como executoras eficazes das regras necessárias para a ma-
nutenção da ordem sociorreprodutora estabelecida. Naturalmente, a “lei” deve ser de-
finida e alterada em conformidade, a fim de atender às mudanças nas relações de poder
e às alterações correspondentes dos antagonismos fundamentais inseparáveis do me-
tabolismo de reprodução social do capital” (2015, p. 56).
137
de destruição da seguridade social foi incentivado com o apoio conjunto de
setores empresariais, da burocracia estatal e da mídia.
Posteriormente, iniciou o forte incentivo das privatizações desses di-
reitos sociais, transformando-os em serviços comprados no mercado. Esse
procedimento Harvey (2014) denomina de espoliações53 contemporâneas,
com a finalidade da apropriação dos recursos públicos e da financeirização
da economia. Assim, para Simionatto (2006, p. 8) “[...] o consumidor toma
o lugar do cidadão, e todos nos tornamos "cidadãos-clientes”. As empresas
privadas e o mercado transformam-se nas instituições basilares por exce-
lência no desenvolvimento das atividades sociais e coletivas”. Portanto, es-
sas reconfigurações não foram somente no âmbito da economia, mas nas
diversas dimensões da vida, dos valores, nas normas sociais e no cotidiano,
fomentou-se uma “cultura da crise” parafraseando Mota (2015).
Esse cenário de apropriação dos recursos públicos e de neoliberali-
zação da economia não se deu de forma pacífica e harmônica. Surgiram
nessa conjuntura resistências em vários espaços, a exemplo do maio de 1968
na França, que se tornou do ponto de vista político uma referência das lutas
sociais e para pensar o papel das novas esquerdas. Eclodiram movimentos
ambientalistas, estudantis, contra culturais, étnico-raciais, feministas. Foi
nessas circunstâncias que “a esquerda passou a ter um papel proeminente
no movimento lésbico/gay, através de coletivos e de publicações em cida-
des como Londres, Los Angeles, Nova Iorque, Boston, Toronto e São
Paulo” (DRUCKER, 2017, p. 202).
Nesse contexto “de lutas que se seguiram levaram a vitórias – especial-
mente leis contra discriminação – que tornaram possíveis, pela primeira vez,
comunidades lésbicas/gays massivas e abertas” (DRUCKER, 2017, p. 202) e
que o Estado neoliberal soube ideologicamente capturar essas conquistas a seu

53 Por “a acumulação por espoliação pode ser aqui interpretada como o custo necessá-
rio de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista com o forte
apoio dos poderes do Estado” (HARVEY, 2014, p. 128). Diz ainda o autor “a acumu-
lação por espoliações se tornou cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte
como compensação pelos problemas crônicos de sobreacumulação que surgiram no
âmbito da reprodução expandida.O principal veículo dessa mudança foi a financializa-
ção e a orquestração, em larga medida sob a direção dos Estados Unidos, de um sistema
financeiro internacional capaz de desencadear de vez em quando surtos de brandos e
violentos de desvalorização e de acumulação por espoliação em certos setores ou
mesmo em territórios inteiros” (Idem, p. 129).
138
favor, ou seja, mesmo esses sujeitos coletivos “terem obtido significativas vitó-
rias no âmbito social e político, e adquirido, enquanto classe, notável alteridade
em relação à burguesia e ao Estado, elas não conseguiram interferir, significati-
vamente, na ordem econômica” (MOTA, 2015, p. 115).
Diante desse cenário, a crise tornou-se um ponto fulcral como parte do
modo de existência da sociedade burguesa contemporânea, trazendo diversas
implicações para a classe trabalhadora e aos movimentos sociais organizados,
inclusive o avanço do neoconservadorismo e de pautas atravessadas pela ideo-
logia neoliberal. É preciso entender o surgimento desse colapso que se alastra
pelo mundo agudizando a miséria, as desigualdades sociais e as diversas expres-
sões das violências. Observa-se que diante dessa condição se desenvolveu no
mundo ocidental uma ampla abertura do mercado de consumo destinado aos
sujeitos LGBTI+, em particular aos gays e as lésbicas.

As décadas de privatização neoliberal e de desregulamentação foram


também as décadas do que Alan Sears chamou de “desregulamenta-
ção moral”, quando algumas restrições sexuais que atuavam como
barreiras à acumulação do capital foram removidas. Isto facilitou a
proliferação de boates, bares, saunas (para homens gays e bissexu-
ais), publicações, chats, etc. LGBTs. Novos nichos de mercado gays
e lésbicos se tornaram o centro dinâmico de espaços nos quais ho-
mens e mulheres pudessem explorar, exercer e celebrar seus desejos
pelo mesmo sexo (DRUCKER, 2017, p. 203).

A rigor, foi nesse contexto de emergência da neoliberalização da eco-


nomia e da vida social que durante os anos 1990 segundo Drucker (2017)
houve, também, entre as identidades gays/lésbicas um maior acionamento
desses sujeitos a agendas homonormativas. O referido autor aponta cinco
elementos na contemporaneidade dessa captura regimental das identidades
gays/lésbicas que é “a autodefinição da comunidade lésbica/gay como uma
minoria estável, o aumento da conformidade de gênero, a marginalização
das pessoas trans, a maior integração à nação e a formação de famílias lés-
bicas/gays normalizadas” (DRUCKER, 2017, p. 197).
Esses elementos estão circunscritos em uma política de acionamento
do Estado e do mercado sobre essa comunidade. Para Drucker (2017), o
primeiro elemento que coloca as pessoas gays e lésbicas como uma “mino-
ria estável” referem-se ao processo de incorporação desses sujeitos como

139
minoritários na sociedade heterossexual, isso influi na normatização dos es-
paços da sociedade voltados para essa população, com locais específicos
destinados a esse público.
O segundo aspecto para o autor, refere-se à incorporação do modelo
heterossexista de sociedade na conformação dos gêneros por essas identidades.
Não mais ligados a uma perspectiva de contestação às essas normas sociais,
como desenvolviam os grupos dissidentes durante a década de 196054, mas de
um enquadramento a uma política sexual e de gênero, retificadora do modelo
heterossexual após os anos 1970. Ou seja, uma padronização dessas identida-
des por meio de legislações, quanto mais próximo o sujeito estiver adequado
ao modelo heteronormativo, mais possibilidades de acesso às políticas de “ci-
dadania de consolação” este indivíduo será contemplado.
Isso culmina no terceiro elemento, segundo Drucker (2017), voltada
para uma política cisnormativa55 de controle, de subalternização da popula-
ção trans em relação às políticas estatais. Ao passo que gays e lésbicas con-
seguiram a retirada da “homossexualidade” da lista de doenças mentais, as
travestis e transexuais seguem patologizadas, controladas pela medicaliza-
ção sob o aval do Estado por meio das trans-exclusões. Porém, são essas
da comunidade LGBTI+ as que mais desafiam ao regimento de gênero e
sexualidade, contestam as narrativas de adequação a heteronormatividade.
Seguindo essa argumentação para Drucker (2017), o quarto elemento
analisado refere-se à integração da comunidade gay/lésbica as políticas em
defesa da nação por meio do homonacionalismo, da homonormatividade,
da excepcionalidade sexual imperialista. A reiteração de uma política de se-
xualidade ocidental ao passo da marginalização das identidades sexuais mu-
çulmanas. Essas políticas fazem parte desse acionamento em defesa das na-

54 “Drag queens que desempenharam um papel de liderança nos levantes dos anos
1960, descobriram a partir da década de 1970 que, enquanto em seu conjunto aumen-
tava a tolerância às lésbicas e gays, a tolerância à não conformidade de gênero em mui-
tos espaços lésbicos/gays diminuía. Com o declínio do fordismo exercendo pressão
sobre os programas estatais, uma ênfase renovada na centralidade da família colocava
um freio no afrouxamento das normas de gênero que caracterizou os anos 1960. Este
giro conservador na sociedade foi acompanhado por um afastamento de homens gays
da androginia e do casual bending gender dos anos 1970” (DRUCKER, 2017, p. 205).

140
ções imperialistas e a normalização das famílias gays/lésbicas, com a cres-
cente liberalização de legislações em defesa dos casamentos e adoções por
esses casais, cumprem a função de uma política de barganha em intervenção
da nação vigiada pelo Estado.

Considerações finais

Buscou-se nesse texto apresentar algumas análises críticas sobre a de-


sifetichização do Estado e do mercado a partir da lógica marxista, pensando
como essas categorias críticas são fundamentais para compreende-se na atu-
alidade o debate sobre as sexualidades. Como viu-se no texto, Marx não
elaborou conceitos e categorias sobre as sexualidades, porém a partir desse
autor pode-se entender como o Estado capitalista burguês é central no en-
tendimento acerca do poder, exploração, opressão contra determinadas se-
xualidades, principalmente as dissidentes. A exemplo disso, pode-se citar
como foi o Governo de Jair Messias Bolsonaro contra mulheres, negros e
LGBTI+ nos últimos quatro anos.
O Estado capitalista limita toda forma de realização e emancipação po-
lítica e humana, pois a sua essência é puramente opressora. Na sua hegemonia,
a burguesia e as classes dominantes conservadoras lutam para preservar o modus
operandi, que tem como uma das centralidades a defesa da família hétero-patri-
arcal e monogâmica. No entanto, esse Estado é parte de um processo de rela-
ções sociais e de correlações de forças, constantemente colocado em disputas
políticas. Essas disputas envolvem direitos, lutas pela visibilidade da população
LGBTI+, ampliação do conceito de família, luta contra o conservadorismo e
o fundamentalismo. Portanto, o Estado é parte de um cenário político de cons-
tantes correlações de forças. Os fundamentos críticos marxianos e marxistas
nos auxilia numa arma crítica de entender a conjuntura política e econômica,
só assim podemos entender a realidade complexa que cerca as sexualidades
dissidentes vivem nesse contexto de acirramentos.
O conceito de Estado Ampliado em Gramsci auxilia na apreensão
das possibilidades da sociedade civil e seu diálogo com o Estado. A guisa
de conclusão e exemplo, isso se materializa com o retorno do Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva no presente ano, assegurando os valores demo-
cráticos, de liberdade, justiça e cidadania, mesmo ainda que dentro de uma
lógica burguesa. Todavia, abre-se uma esperança, no sentido do diálogo
141
com os movimentos sociais e partidos políticos, esse mesmo presidente já
no presente ano aprovou o Decreto nº 11.407, de 31 de janeiro de 2023 que
institui a criação do Conselho de Participação Social, reabrindo assim o di-
álogo com os movimentos sociais no Brasil.

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144
CAPÍTULO 9
“Quantos mais vão ter que morrer para que essa guerra
acabe?”56: a conivência do Estado brasileiro na reprodução
do racismo estrutural
Tales Fornazier

Introdução

O questionamento feito por Marielle Franco, que compõe o título


deste texto, deve continuar ecoando em nossas mentes e corações cotidia-
namente e nos impulsionando para as mais diversas frentes de lutas antir-
racistas, dada as violências e desigualdades brutais que atravessam as popu-
lações socialmente racializadas no Brasil. Esta deve ser uma indagação feita
diuturnamente por todos/as aqueles/as que, de fato, se colocam na trin-
cheira de luta por uma sociabilidade radicalmente livre e humanamente
emancipada – a qual não vai se dar sem destruirmos as opressões que es-
truturam e azeitam a máquina de exploração/dominação do capital.
Numa sociedade marcada por profundas assimetrias étnico-raciais
como o Brasil, que tem sua história calcada na exploração, opressão e ex-
termínio das populações negras e indígenas e que se consolidou a partir da
desumanização e da imposição de todas as formas de violência colonial con-
tra os corpos negros que foram trazidos da África para serem escravizados,
não compreendermos essa realidade de forma crítica e coerente, e como as
heranças desse passado se recolocam até os dias de hoje na vida dessas po-
pulações, submetendo-as a condições profundamente desiguais e aviltantes,
é desconsiderarmos o essencial.
Concordamos com Moura (1983), que não nos debruçarmos sobre os
efeitos dos quase quatrocentos anos de escravismo colonial, bem como todas
suas contradições e implicações na realidade social, é descartar ou escamotear
o que de fundamental estrutura nossa formação sócio histórica brasileira.

56Frase de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro assassinada em 14 de março


de 2018.
145
[...] os quatrocentos anos de escravismo foram definitivos na plas-
mação do ethos do nosso país. Penetrando em todas as partes da so-
ciedade, injetando em todos os seus níveis os seus valores e contra-
valores, o escravismo ainda hoje é um período de nossa história so-
cial mais importante e dramaticamente necessário de se conhecer
para o estabelecimento de uma práxis social coerente. (MOURA,
1983, p. 124).

Nesse aspecto, para apreendermos o real, de fato, numa perspectiva


crítica e de totalidade histórica – o que é pressuposto para a coerência com
o projeto emancipatório construído pelo Serviço Social brasileiro, a partir
da “virada” na história profissional, o qual se assenta na ruptura e crítica ao
conservadorismo –, captar como se estabelece a dinâmica do racismo es-
trutural na conformação das relações sociais neste território, é imperioso.
É preciso compreendermos como o racismo dinamiza e ao mesmo
tempo sustenta o processo predatório do capital, na particularidade brasi-
leira de economia dependente, a partir da superexploração das populações
socialmente racializadas. Como destaca Souza (2020), é fundamental a aná-
lise sobre o racismo no bojo das relações sociais erigidas sob o capitalismo
dependente, visto que sua dinâmica neste território é atravessada por parti-
cularidades oriundas da nossa formação social, assentadas no colonialismo
e no escravismo, bem como pela subordinação e pela dependência a que
estão submetidas as economias no contexto latino-americano, o que coloca
o racismo e a superexploração da força de trabalho como totalidade indis-
sociável.
Destarte, as reflexões sucintamente arroladas neste texto, pretendem
contribuir com elementos aproximativos sobre a dinâmica do racismo na
nossa particularidade sócio histórica e sua indissociável relação com a supe-
rexploração de negros/as neste território, elucidando aspectos da nossa for-
mação social, bem como a conivência do Estado brasileiro – seja na ausên-
cia de respostas ou na legitimação desses processos –, que contribui para a
reprodução das relações profundamente assimétricas, responsáveis por
manter esta população na base da pirâmide social e, também, enquanto pú-
blico alvo das diversas formas de violências institucionalizadas.
Nos importa destacar, ainda, o racismo como constitutivo e inelimi-
nável da “questão social” no Brasil, a qual é razão de ser da profissão, como
vai evidenciar Netto (2001). Nesse ínterim, reafirmamos a necessidade de o
146
debate étnico-racial fazer parte do cotidiano da formação e do trabalho pro-
fissional de assistentes sociais, tendo como pressuposto a direção sociopo-
lítica estratégica construída pelo Serviço Social, bem como os princípios
éticos e as bandeiras de luta defendidas hegemonicamente pelas entidades
da categoria, as quais expressam compromisso ético-político com as diver-
sas lutas sociais – e aqui ressaltamos a antirracista.

Racismo à brasileira e genocídio: marcas persistentes da nossa he-


rança colonial e da violência racial do Estado antinegro

Os ossos de nossos antepassados


colhem as nossas perenes lágrimas
pelos mortos de hoje.
Os olhos de nossos antepassados,
negras estrelas tingindas de sangue,
Elevam-se das profundezas do tempo
cuidando de nossa dolorida memória.
A terra está coberta de valas
e a qualquer descuido da vida
a morte é certa.
A bala não erra o alvo,
no escuro um corpo negro bambeia e dança.
A certidão de óbito, os antigos sabem,
veio lavrada desde os negreiros.

Certidão de óbito – Conceição Evaristo

Longe de qualquer flerte com fatalismos ou determinismos, este


enérgico poema de Conceição Evaristo denuncia e revela a realidade viven-
ciada pela imensa maioria de negros/as no Brasil: a bala não erra o alvo. E não
erra porque o genocídio antinegro é, historicamente, um projeto de Estado
nesse país. Cotidianamente acompanhamos dados estarrecedores em rela-
ção ao extermínio da população negra, com destaque especial para assassi-
natos de jovens negros nas periferias cometidos pela polícia, bem como o
aumento exorbitante de feminicídios contra mulheres negras.
Não podemos nos esquecer também dos inúmeros assassinatos cri-
minosos, tampouco naturalizar esse cenário de barbárie. São dezenas de
Marielles, Amarildos, Cláudias, DGs, João Pedros, Ágathas e Evaldos que
são mortos/as diariamente nesse país. De acordo com o Atlas da Violência,
publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2018,
147
a população negra está no principal índice das pessoas que possuem maiores
chances de serem vítimas de homicídios. Tal documento afirma que “em
um período de uma década, entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de
negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve
uma redução de 6,8%”. (IPEA, 2018, p. 40).
Em números estatísticos, os/as negros/as correspondem a 78,9%
dos/as pertencentes ao grupo dos/as 10% com mais chances de serem ví-
timas fatais. De acordo com os dados, os/as negros/as possuem 23,5%
maiores chances de serem assassinados em relação a pessoas não negras.
“De cada 100 pessoas que sofrem homicídio no Brasil, 71 são negras. Jo-
vens e negros do sexo masculino continuam sendo assassinados todos os
anos como se vivessem em situação de guerra” (IPEA, 2018, p. 30). Este
documento ainda evidencia que são os jovens negros e de baixa escolaridade
as principais vítimas de mortes violentas no país.
Esses trágicos dados, dentre inúmeros outros, revelam o quão racista,
genocida e antinegro é o Estado Brasileiro. É importante compreendermos que
o assassinato desses corpos negros não são um ponto fora da curva. É um
projeto. Projeto de extermínio arquitetado/sustentado pelo Estado e legiti-
mado socialmente, desde os tempos de escravismo colonial. Nesse aspecto,
além da bala não errar o alvo, também podemos inferir que essa realidade histórica
de violência brutal e de genocídio deliberado contra a negros/as no Brasil, re-
força a afirmativa de que, desde o negreiro, as populações de origem africana já
vêm com sua certidão de óbito lavrada, como denuncia Evaristo.
Além disso, tais dados evidenciam ainda que o projeto de dominação
colonial, infelizmente não dominou apenas os corpos negros, mas também
nossas mentes, haja vista que esse projeto operou uma verdadeira coloniza-
ção cognitiva e das subjetividades, como destaca Quijano (2005, p. 121),
pois “todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma coloni-
zação de perspectivas cognitivas dos modos de produzir ou outorgar sen-
tido aos resultados da experiência material ou intersubjetiva, do imaginário,
do universo de relações intersubjetivas do mundo; em suma, da cultura”.
Essa ideologia racista e colonial cria constantemente estratégias para
garantir seu poder de dominação e, neste entorno, necessita não apenas do
controle de todas as formas de trabalho, mas também o controle da subje-
tividade, do conhecimento, da cultura. E isso fica muito evidente, quando

148
nos damos conta de que vivemos em um país em que as pessoas são capazes
de chorar por estátuas, mas não se sensibilizam com as mortes violentas de
jovens negros que acontecem a cada vinte e três minutos57. Nesse sentido,
concordamos que:

Na esteira do drama que acomete cotidianamente a população negra


no maior território diaspórico fora da África, remontar os elemen-
tos teóricos e históricos da formação social do Brasil se cons-
titui uma tarefa ainda necessária, uma vez que não irrompemos
com as amarras e mordaças que tornam essa guerra surda e que se-
gue seu curso com os rastros da desumanização, violência e banali-
zação da vida da população preta e parda deste país. Realidade que
remonta desde a escravização violenta do período da colonização,
até os dias atuais, em que a subordinação dependente ao capital-
imperialismo faz do racismo a pedra de toque das conforma-
ções para a manutenção do capitalismo, em especial, em paí-
ses de economia dependente (ELPIDIO, 2020, p. 835, grifos nos-
sos).

Assim, essa colonização cognitiva também se expressa nos processos


de naturalização e banalização dessas situações de barbárie vivenciada pela
população negra, a qual é decorrente do ideário racista de inferiorização
racial e que, historicamente, serviu para esvaziar o/a negro/a de sua huma-
nidade, concebendo-o/a como coisa. Nesse diapasão, é fundamental com-
preendermos que o racismo com todos os seus tentáculos nefastos e des-
trutivos, em especial considerando suas particularidades e como se solidifi-
cou no Brasil, cumpre uma função ideológica essencial para o capital. Não
é sem motivos, portanto, que Moura (1994) destaca que o racismo é uma
arma ideológica de dominação.
Desse modo, se a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante,
como nos lembra Marx e Engels (1999), essa ideologia não deixa de ser medi-
ada e atravessada pelo racismo. Na nossa realidade sociohistórica, este se con-
solidou, com expressivo aparato do Estado brasileiro, enquanto métrica para o
estabelecimento de relações profundamente desiguais para a população negra,
outrora escravizada. Sua dinâmica incide tanto na dimensão material – com

57Reflexão realizada com base na entrevista do professor Silvio Almeida no Programa


Roda Viva (2020). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiNm0Iw.
149
destaque especial para a superexploração de negros/as neste território e pela
ausência do Estado em termos de promoção de políticas de reparação histórica
–, mas também, a partir da naturalização dos processos de desumanização e
violências, os quais cumprem uma função ideológica indispensável para impul-
sionar o projeto de acumulação e dominação do capital, inclusive porque o
racismo à brasileira tem como um dos pilares essenciais o mito da democracia
racial – o qual possui um papel estratégico na mistificação da realidade viven-
ciada pela população negra no país.
Nessa direção, é imperiosa a compreensão de que o racismo constitui e
estrutura nossas relações na sua dinâmica mais profunda, no seu padrão de
normalidade, se apresentando como uma forma de racionalidade impregnada
em nossa realidade brasileira. Estamos falando de um país forjado pelo coloni-
alismo, de capitalismo dependente, que para se consolidar lançou mão por
quase quatro séculos da escravização de africanos/as e da exploração de toda
suas riquezas, tecnologias e expertises, além da desumanização desses sujeitos
e do estupro colonial. Por isso, urge compreendermos a dinâmica do racismo
atrelada a um contexto mais amplo,

Na sua relação com a totalidade das relações sociais. Significa, pois,


retirar o debate do campo reduzido do essencialismo identitário, da
fragmentação e individualização liberal e evidenciar as conexões di-
nâmicas e complexas com a produção e reprodução da vida social
na sociedade centrada na produção de valor (SOUZA, 2021, p. 22).

Portanto, pressupõe apreendermos os fundamentos da produção so-


cial dessa desigualdade, que assenta raízes no processo de construção social
da noção de raça e que, a partir disso, instaurou-se uma divisão racial do
trabalho que foi a estratégia utilizada para dinamizar o processo de acumu-
lação e desenvolvimento capitalista na América, com base na escravização
e na exploração racista do trabalho, com pungentes particularidades no con-
texto latino-americano (Quijano, 2005). Toda essa construção social e his-
tórica, vai fazer com que a população negra – não por acaso – esteja na base
da pirâmide social brasileira e liderando o ranking de todas as multifacetadas
formas de violação e não acesso a direitos, desigualdades e violências.
Eis a importância de compreendermos que o racismo é sempre estru-
tural, como argumenta Almeida (2018), pois não trata de uma patologia ou

150
anomalia social, pelo contrário, se coloca enquanto uma forma de raciona-
lidade, a qual determina e interfere diretamente na organização econômica
e política da sociedade – relegando as populações racializadas à própria
sorte nessa estrutura social racista e desigual.
Nesse caminho reflexivo, se faz mister o entendimento de que, exata-
mente pela sua dimensão estrutural e estruturante das relações em todos os
âmbitos da vida social, o racismo também vai se expressar como parte do
funcionamento e da dinâmica normal das instituições, visto que elas são he-
gemonizadas pela ideologia racial dominante. Por isso, as diversas formas
de violências raciais institucionalizadas, não são um fenômeno episódico ou
conjuntural, mas antes, fazem parte desta racionalidade instituída para ser a
regra – a qual é cravada de racismo e conta com a conivência e legitimação
do Estado para lograr êxito. Como nos lembra Almeida (2018):

[...] os conflitos raciais também são parte das instituições. As-


sim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não ape-
nas por causa da ação isolada de grupos ou indivíduos racistas, mas
fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas
por determinados grupos raciais que utilizam mecanismos
institucionais para impor seus interesses políticos e econômi-
cos (ALMEIDA, 2018, p. 30, grifos nossos).

Exatamente por esse motivo, para nós assistentes sociais, a constru-


ção de estratégias de enfrentamento ao racismo institucional nos diversos
espaços sócio ocupacionais, deve ser tarefa imperativa – ao menos para
aqueles/as que acreditam e apostam no acúmulo teórico e ético-político,
bem como na direção emancipatória afiançada no Projeto Ético-Político
profissional. Do contrário, seremos coniventes e contribuiremos com a re-
produção não apenas do racismo institucional, mas das assimetrias históri-
cas que atravessam medularmente as populações socialmente racializadas.
Cabe ressaltar, contudo, que se os conflitos raciais e a violência institu-
cional perpetrada e legitimada pelo Estado contra as populações racializadas,
fazem parte do seu próprio modus operandi e que, tal como mencionamos, não
se trata de um fenômeno episódico, pois diz respeito a um elemento constitu-
tivo da própria formação do país, também é importante sinalizar que há mo-
mentos históricos em que essa dinâmica pode se intensificar, a depender da
correlação de forças e dos projetos em disputa na sociedade.

151
Nessa direção, o cenário caótico que vivenciamos no país desde o
golpe de 2016 e, em especial nos últimos quatro anos com o governo de
extrema-direita, de caráter nazifascista e genocida de Bolsonaro-Mourão,
sem dúvidas intensificou não apenas a violência estatal racista, mas as ini-
quidades e violências históricas que acometem as classes trabalhadoras, mu-
lheres, negros/as, indígenas, quilombolas, populações LGBTQIA+ e todos
os grupos socialmente minorizados.

Do Golpe de 2016 para cá, em especial a partir da eleição de Jair


Bolsonaro, parece que estamos adentrando justamente uma conjun-
tura em que alguns aspectos e elementos estruturais da nossa forma-
ção social, como a violência estatal racista e antipopular, estão
se intensificando. Mais uma vez, as repressões destinadas aos se-
tores organizados e desorganizados da classe trabalhadora parecem
caminhar juntas. Assim, se em uma interpretação historiográfica e
sociológica de longa duração, na qual os fatores estruturais adquirem
preponderância analítica, os 80 tiros de fuzil disparados [...] pelo
Exército brasileiro, que assassinaram o trabalhador negro
Evaldo e feriram sua “perigosa” família (negra), não podem
ser considerados como um ponto fora da curva, ou seja, como
tiros fora do alvo no padrão da dominação de classes no Brasil mo-
derno, do ponto de vista da análise conjuntural, cujo tempo é o das
lutas de classe e da ação política, pensamos que tal ocorrido evi-
dencia a viragem conservadora e mesmo reacionária que esta-
mos vivenciando recentemente no país (DEMIER, 2019, s/n,
grifos nossos).

Deste modo, se os corpos negros historicamente são exterminados


nessa sociedade, numa conjuntura como a que vivemos durante o governo
Bolsonaro, de exacerbação do ódio, naturalização e legitimação da barbárie,
essa dinâmica se acentua na medida em que a violência estatal racista tam-
bém se intensifica, pois, de forma insolente e deliberada, esta passa a ser um
dos postos de comando e carros chefe desse governo. Até mesmo porque,
mais que nunca nesta quadra histórica, observamos de forma muito explí-
cita o papel do Estado na produção e reprodução do racismo estrutural e
institucional (ELPIDIO, 2020).
Num cenário em que a pandemia nos imputou a necessidade do uso
de máscaras como forma de minimizar a contaminação pelo vírus, a exar-
cebação das desigualdades e das violências históricas e seculares cometidas
contra as populações racializadas, fez com que a máscara do cinismo que
152
sustenta o mito da democracia racial caísse por terra – ao menos para aque-
les/as com olhar minimamente atento à realidade. A pandemia da covid-19,
portanto, escancarou a ferida do racismo estrutural, e evidenciou que nunca
estivemos no mesmo barco. Assim,

[...] nessa quadra histórica em que vivenciamos a pandemia da covid-


19 e o aprofundamento da crise do capital, articulada a uma política
negacionista, antipovo e genocida do governo Bolsonaro, também
se agravaram de forma abismal as desigualdades seculares vivencia-
das pelas populações negras e indígenas. Esse momento trágico da
humanidade explicitou que essas mesmas populações, historica-
mente desapossadas não apenas dos meios de produção, mas tam-
bém da sua própria humanidade, foram as que mais sofreram os im-
pactos decorrentes da crise social e política que, associada à crise
sanitária, escancarou a violência estrutural e as disparidades sociais,
cujas determinações estão profundamente engendradas nas particu-
laridades do nosso processo de formação social, que tem na herança
colonialista-escravocrata, bem como no racismo e no sexismo, o
sustentáculo necessário para dinamizar e aprofundar o processo de
superexploração do capital para a garantia de suas taxas de lucro
(FORNAZIER; GONÇALVES; FAVARO, 2023, 125-126).

Portanto, esse momento histórico desastroso, contraditoriamente,


também contribuiu em alguma medida para avançarmos no debate sobre a
urgência de construirmos estratégias coletivas de enfrentamento ao ra-
cismo. Além da exponenciação das profundas desigualdades sócio raciais e
de gênero durante o contexto pandêmico, houveram acontecimentos como
o assassinato de George Floyd em maio de 2020, cuja repercussão ecoou
mundialmente o movimento Black Lives Matter, e isso impulsionou discus-
sões importantes sobre a temática, inclusive ganhando espaço midiático sig-
nificativo, contribuindo para escancarar a faceta do racismo e evidenciar
que não vivenciamos uma democracia racial.

Mito da democracia racial, “questão social” e as determinações do


racismo: desafios a serem superados pelo Serviço Social brasileiro

Como tentamos explicitar nas linhas anteriores, o racismo é peça in-


dispensável para o capitalismo, pois é o elemento que azeita a máquina de
exploração e dominação do capital sobre os corpos racializados e também
o sustentáculo de profundas iniquidades históricas vivenciadas pela maioria
153
da população brasileira, que é constituída de negros e negras. É deste modo
que se torna necessária a compreensão de que “a colonização e a escravidão
são processos determinantes da formação social brasileira, e o racismo é
produto fundante desses processos” (Martins, 2017, p. 278), pois o escra-
vismo colonial foi utilizado como fator decisivo e essencial para o desen-
volvimento do capitalismo no Brasil.

Enquanto já se questionava na Europa o sistema capitalista no seu


sentido global, os traficantes brasileiros lutavam, ainda, no nosso
Parlamento para que a lei que extinguiu o tráfico de africanos não
fosse aprovada. Isto surge da incapacidade histórica de o Brasil acu-
mular capitais para entrar na senda das nações capitalistas desenvol-
vidas [...] O escravismo colonial cria, portanto, as premissas econô-
micas, sociais e culturais para o modelo do capitalismo dependente
que o substitui (MOURA, 1983, p. 23).

Como alude Elpidio (2020), o racismo não é apenas a pedra de toque


das determinações nodais que fundamentam e garantem a acumulação e
reprodução do capital, sobremaneira em países de economia dependente,
como também está enraizado na própria estrutura do Estado, o qual opera,
contraditória e ao mesmo tempo estrategicamente, tanto na manutenção do
mito da democracia racial, quanto através da sua face mais violenta, autori-
tária e racista, a qual se revela não apenas por meio da ausência na proposi-
ção de políticas de promoção da igualdade étnico-racial, mas, fundamental-
mente, pela conivência e legitimação de ações institucionalizadas que refor-
çam o racismo estrutural e as disparidades históricas que acometem ne-
gros/as e indígenas nesse país. Por isso, o racismo:

Uma vez estrutural na formação social brasileira, está enraizado na es-


trutura do Estado e na forma como este vem operando sistematica-
mente, ora sob a lógica de um mito da democracia racial, ora como Es-
tado autoritário, em que prevalece nesta relação de presente por meio
da heteronomia. Contraditoriamente, se faz ausente naquilo que repre-
sentaria o status de cidadania e direitos sociais (ELPIDIO, 2020, p. 836).

Apesar da pandemia ter escancarado as desigualdades étnico-raciais


estruturais e, em alguma medida, ter contribuído para corroer a máscara da
existência de uma suposta harmonia racial no Brasil, ainda precisamos avan-

154
çar demasiadamente nessa compreensão. Superar o falacioso mito da de-
mocracia racial, ainda hoje, se coloca como um desafio persistente e um dos
principais empecilhos na luta contra racismo, visto que tal ideário se solidi-
ficou historicamente como estratégia de mistificação da realidade vivenci-
ada pelos grupos socialmente racializados, e há, nessa alternativa, uma ten-
tativa de minimizar o racismo, negar e despolitizar sua existência
Desse modo, o mito da democracia racial foi construído estrategica-
mente como componente ideológico essencial da dominação racista no Brasil.
Trata-se de uma falácia que advoga não existir racismo no país, sob o argu-
mento de que todos/as são iguais e têm as mesmas oportunidades no interior
da ordem burguesa, reforçando a ideia de existência de uma harmonia racial e,
ao mesmo tempo, responsabilizando moralmente as populações racializadas
pelas desigualdades que vivenciam, como se estas fossem decorrentes da falta
de esforço ou de uma suposta baixa moralidade entre esses grupos.
Como lembra Domingues (2003), é importante destacar que a des-
mistificação do mito da democracia racial é uma das pautas históricas do
movimento negro, como pode ser observado no Programa de Ação do Mo-
vimento Negro Unificado (MNU) de 1982, por exemplo. Compreendemos
que somente quando superarmos esse desafio, entendendo que esta suposta
igualdade jurídico-formal no capitalismo é subordinada ao projeto colonial
de poder, e que a hierarquização racial – a partir de um grupo branco euro-
peu que se auto intitulou como superior e nomeou todos os outros como
inferiores – vai estabelecer relações profundamente assimétricas com base
na pertença étnico-racial, é que teremos a possibilidade histórica, contida
no movimento do real, de construir uma sociedade radicalmente livre e hu-
manamente emancipada.

A farsa da democracia no Brasil garante sua constante presença na


forma da reprodução ampliada do racismo institucional, que se revela
em dados empíricos sobre a situação da população negra e seu cotidi-
ano, marcada pela violência sistemática do Estado em relação aos cor-
pos negros. Lembrando que cada perda para a classe trabalhadora neste
país, pretos e pretas seguem na linha de frente do genocídio que com-
promete o presente e o futuro (ELPIDIO, 2020, p. 836).

155
Nesse diapasão, é preciso que avancemos no debate para além das
consequências e manifestações imediatas do racismo – as quais, obvia-
mente, temos que denunciar, combater e estar na linha de frente para seu
enfrentamento. Mas o que chamamos atenção é para a necessidade de avan-
çarmos na análise histórico-crítica sobre os seus fundamentos, haja vista
que a própria realidade concreta tem nos tensionado cada vez mais a reco-
nhecermos não apenas a existência do racismo e a necessidade de combatê-
lo, mas que ele se coloca enquanto elemento estruturante das nossas rela-
ções e, portanto, não é possível realizarmos qualquer análise séria e coe-
rente, descolada do entendimento de como as determinações étnico-raciais
conformam nossa realidade.
Nessa direção, corroboramos com o entendimento de que:

As manifestações do racismo revelam que ele só pode ser apreen-


dido movimento histórico da sociedade brasileira como produto das
relações sociais que envolvem relações de classe no processo de pro-
dução e reprodução social. Esse entendimento me leva a afirmar que
o seu surgimento e desenvolvimento são determinados pelo próprio
movimento do capital, e o seu aprofundamento está associado às
suas crises (MARTINS, 2021, p. 34).

Compreensão esta que tem contribuído para entendermos que para


darmos conta de construir um horizonte estratégico revolucionário e de
emancipação humana, as lutas contra o racismo e as opressões estruturais do
capital precisam ser enfrentadas coletivamente por todos/as aqueles/as que, de
fato, se colocam nessa trincheira e se comprometem a construir uma outra
sociabilidade, não sendo, portanto, uma tarefa e uma responsabilidade exclusiva
dos/as trabalhadores/as, intelectuais e militantes negros/as e indígenas como
tem sido historicamente, mas antes, deve ser parte constitutiva de qualquer
projeto teórico-político comprometido com a superação radical do capitalismo.
Urge avançarmos na análise sobre como o racismo dinamiza e ao
mesmo tempo sustenta o processo predatório do capital, na particularidade
brasileira de economia dependente, a partir da superexploração das popu-
lações socialmente racializadas. E, ainda, como essa dinâmica se põe e repõe
no cotidiano da vida de negros/as e indígenas, relegando-os/as à própria
sorte, frente a ausência do Estado, e mantendo-os/as submersos/as à franja
marginal da sociedade.

156
Sendo assim, é fundamental apreendermos a questão étnico-racial en-
quanto categoria de análise fundamental para compreensão da “questão social”
no Brasil, tendo em vista nossas particularidades histórico-sociais, assentadas
no colonialismo e no escravismo, que delinearam as bases necessárias para a
consolidação da sociedade de capitalismo dependente neste território, uma vez
que o racismo se coloca enquanto estrutural e estruturante das relações sociais,
estando diretamente vinculado ao modo como se organiza a vida e a produção
na sociedade capitalista (MOURA, 1983).

As apreensões até aqui realizadas permitem afirmar que não é pos-


sível tratar a "questão social" no Brasil distante das determinações
do racismo. É inconcebível analisar essa questão no contexto brasi-
leiro distante das marcas históricas da colonização, da escravidão e
da transição capitalista erigida sobre bases racistas. A partir destas,
foram forjadas todas as particularidades da nossa formação social,
sob as quais opera a lei geral da acumulação capitalista, concretizada na
lógica da superexploração do trabalho (MARTINS, 2021, p. 31).

Destarte, torna-se fundamental a análise sobre o racismo no bojo das


relações sociais erigidas sob o capitalismo dependente, visto que sua dinâ-
mica neste território é atravessada por particularidades oriundas da nossa
formação social, bem como pela subordinação e pela dependência a que
estão submetidas as economias no contexto latino-americano, o que coloca
o racismo e a superexploração da força de trabalho como totalidade indis-
sociável (Souza, 2020). Desse modo, é necessário termos nítido que:

A subordinação ao imperialismo, na qual nasce o capitalismo depen-


dente, define as necessidades de composição da oferta de força de
trabalho, no Brasil. No capitalismo dependente, a massa de traba-
lhadores é composta por uma população muito acima das necessi-
dades produtivas, a qual os mecanismos do capitalismo dependente
não podem incluir como partícipe qualitativa na dinâmica da valori-
zação do capital, sequer como consumidor; pois essa é a ‘franja mar-
ginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados
no processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros, ge-
rando isto uma contradição suplementar’ (Souza, 2020, p. 154).

Nessa seara, cabe destacar que se a discussão sobre o combate ao


racismo é urgente para o conjunto mais geral da sociedade, para uma profissão
como o Serviço Social, comprometida com a crítica radical dessa sociabilidade

157
e que construiu um projeto emancipatório que se coloca contra toda forma de
exploração e opressão, isto é pressuposto. Ou seja, considerando todo acúmulo
teórico, ético-político e a direção social estratégica que a profissão assume a
partir da “virada” de 1979, se não entendermos que o enfrentamento ao ra-
cismo e demais opressões estruturais do capital deve ser compromisso dos/as
assistentes sociais brasileiros/as, iremos permanentemente sustentar uma con-
tradição no interior desse projeto profissional.
Não é novidade que iremos atuar na malha contraditória entre capital e
trabalho, mas, como nos lembra Iamamoto e Carvalho (1995), numa mesma ati-
vidade, podemos fortalecer os interesses das instituições empregadoras que con-
tratam nossa força de trabalho ou das populações que atendemos que, em sua
imensa maioria, são constituídas de negros/as e oriundas dos segmentos mais
pauperizados da classe trabalhadora, que vivenciam permanentemente violên-
cias e violações de direitos. É nessa relação contraditória, mas ao mesmo tempo
estratégica que temos com a população que atendemos, que entendemos ser
fundamental avançarmos no debate sobre a dinâmica do racismo estrutural em
suas vidas e, sobretudo, na construção de estratégias profissionais de enfrenta-
mento ao racismo institucional.
Até mesmo porque, enquanto profissionais iremos atuar em institui-
ções hegemonizadas pela ideologia racial dominante, como destacamos an-
teriormente, e é necessário que consigamos fazer uma leitura atenta e crítica
da realidade, bem como construir competências teórico-metodológicas,
ético-políticas e técnico-operativas efetivamente antirracistas no contexto
dos espaços sócio ocupacionais. Não conseguirmos captar o nexo estrutu-
rante entre gênero-raça-classe na conformação das desigualdades em nosso
país, implica incorrermos em um erro teórico-político grave. Mais que isso:
significa contribuirmos para a manutenção e reprodução não apenas do ra-
cismo institucional, mas também das relações profundamente assimétricas
vivenciadas pelos grupos socialmente racializados.
Por isso, se quisermos ser coerentes, de fato, com o Projeto Ético-
Político construído pelo Serviço Social renovado, assentado na tradição
marxista, é urgente não mais secundarizarmos o debate das relações étnico-
raciais e superarmos a análise de classe como mera abstração. Dada as ca-
racterísticas da nossa formação sócio histórica, não é possível apreender-

158
mos a realidade numa perspectiva de totalidade, desconsiderando os deter-
minantes étnico-raciais e também de gênero/sexualidade na estruturação
das assimetrias deste país e nas análises de classe.
Precisamos dar concretude e materialidade para a classe trabalhadora
brasileira, que tanto reafirmamos nosso compromisso enquanto profissão,
pois ela não é abstrata: tem raça/etnia, gênero/sexualidade, território e ge-
ração muito bem demarcados. Só avançaremos, de fato, nessa direção
quando superarmos o falacioso mito da democracia racial, bem como as
leituras eurocêntricas sobre a classe que vive do trabalho, e entendermos
que o enfrentamento ao racismo e as demais opressões estruturais, não se
trata de lutas identitárias e individuais daqueles/as que sofrem diretamente
tais opressões, mas se circunscrevem no âmbito de lutas históricas que dão
materialidade e coerência à própria luta mais geral contra o capital.

Considerações finais

Como elucidado ao longo do texto, o racismo, o genocídio e a vio-


lência estatal racista continuam sendo marcas presentes na vida de negros e
negras no Brasil. A trágica realidade vivenciada cotidianamente pelas popu-
lações racializadas nesse país, revelam as nefastas heranças da nossa forma-
ção sócio histórica, assentada no colonialismo escravocrata, e que se desen-
volveu pautando as relações sociais e se constituindo como um poder que
oprime estruturalmente os grupos racialmente inferiorizados neste territó-
rio de capitalismo dependente.
O Estado brasileiro, historicamente a serviço da ideologia racial do-
minante, atua na manutenção e reprodução das mais variadas formas de
violências institucionalizadas, escancarando que não há nada de neutro em
suas ações e/ou na ausência delas. Especialmente nos últimos tempos, sua
faceta racista, autoritária e truculenta nos saltou aos olhos, reafirmando que
o genocídio antinegro sempre foi um projeto nesse país.
O Serviço Social, enquanto especialização do trabalho coletivo, que
atua no contexto contraditório das instituições – que são hegemonizadas
por grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para impor seus
interesses políticos e econômicos (Almeida, 2018) – e, considerando a cons-
trução histórica da profissão no Brasil, sua direção emancipatória, bem

159
como os valores ético-políticos e as bandeiras de lutas defendidas hegemo-
nicamente pelas entidades da categoria, possui compromisso inconteste
com o enfrentamento do racismo.

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161
CAPÍTULO 10
O “grande negócio” da prisão: Estado punitivo e a
mercadorização do controle penal em Sergipe
Paulo Roberto Felix dos Santos

Introdução

De acordo com o site UOL, em matéria publicada em 26/10/2021,


o Ministério da Justiça e Segurança Pública teria recebido, naquele mesmo
mês, um estudo encomendado há mais de 2 anos sobre o sistema prisional
brasileiro, concluindo pela necessidade de maior participação de empresas
privadas para gerir presídios no país (BRÍGIDO, 2022). Apesar da indica-
ção do estudo, é importante destacar que já há diversas unidades que incor-
poram um modelo privatizado de gestão, a exemplo do estado de Sergipe,
o que merece, além da preocupação imediata, uma análise mais detalhada
sobre seus fundamentos, algumas tendências e implicações para uma das
mais graves expressões da “questão social” no país. Nesse percurso, em
paralelo a expansão do fenômeno do “encarceramento em massa”, outra
tendência que tem se verificado é o incremento dessa expansão via partici-
pação ativa do setor privado.
O pressuposto que conduz o presente texto, ancorado na perspectiva
crítico-dialética marxista, é a de que há conexões estruturais entre as mu-
danças econômicas capitalistas recentes, a ascensão do projeto neoliberal e
a expansão da força penal do Estado, como “braço forte” do capital. Sob o
contexto da crise do capital, o aparelho estatal, condição sine qua non da ma-
nutenção das condições gerais da produção capitalista, tem operado como
um sujeito político fundamental na gestão da força de trabalho excedentá-
ria, resultante dos impactos do “desemprego crônico” (MÉSZÁROS,
2002), que torna cada vez mais difícil a (re)introdução da subordinação di-
reta de trabalhadores(as) ao circuito produtivo.
Face a constituição de exército industrial de reserva (MARX, 2013),
e da ampliação da miséria, o sentido da prisão na atualidade caracteriza-se
como uma espécie de “depósito de indigentes”, supranumerários inúteis à
subordinação direta aos ditames funcionais do capital. De outra sorte, em
162
uma sociabilidade em que a riqueza aparece como uma “imensa coleção de
mercadorias” (MARX, 2013), ao lado da gestão da miséria, por meio da
escalada do processo de “encarceramento em massa” abre-se um novo e
lucrativo nicho de valorização do valor, frente de lucratividade do capital e
aporte de fundo público. Referimo-nos à privatização dos serviços prisio-
nais58, que engloba toda uma cadeia produtiva em torno da expansão peni-
tenciária e do aumento do controle penal por parte do Estado.
O presente texto tem o objetivo de problematizar algumas das ten-
dências que vem se operando nesse processo de privatização do sistema
prisional, a partir da particularidade do estado de Sergipe. Algumas das nos-
sas pesquisas mais recentes59 tem indicado para o relativo aumento dessa
tendência no estado, o que tem nos levado a apreender algumas das cone-
xões que podem ser estabelecidas na análise desse fenômeno, considerando,
sobretudo, o impacto que tal movimento tem para os segmentos mais pau-
perizados e racializados, diante do perfil da população mais afetada pelo
aprisionamento em Sergipe.
Nos referidos estudos, constatou-se a expansão do processo de pri-
vatização da administração de unidades prisionais sob o espectro do mo-
delo denominado de co-gestão, que detalharemos melhor ao longo texto, e
que opera a partir da transferência de alguns serviços para o setor privado,
em co-participação do setor público em outras funções, e cujas caracterís-

58
Chamamos a atenção aos “serviços prisionais”, porque consideramos que a dotação
orçamentária destinada para a participação das empresas privadas refere-se muito mais
do que a construção e gestão direta das unidades prisionais, mas abrange toda uma
espécie de cadeia produtiva de serviços que giram em torno do cumprimento penal,
em suas diversas modalidades. Destacam-se serviços de monitoramento, de produção
e implementação das tornozeleiras eletrônicas, equipamentos de segurança destinados
aos serviços penais, capacitação de equipes, fornecimento de alimentação e diversos
insumos, etc.
59
Referimo-nos aqui aos desdobramentos de resultados de duas pesquisas por nós coor-
denadas, quais sejam: “‘Estado Punitivo’ e a ‘Política de Encarceramento’ como estratégia
de controle social: uma proposta de análise do sistema prisional em Sergipe a partir dos
dados de 2018”; bem como de resultados parciais da pesquisa “Das Senzalas ao Cárcere”:
“Encarceramento em Massa” e controle sociorracial da população negra pelo “Estado Pe-
nal” em Sergipe entre 2010 e 2019. Ambas decorrem de investigações em nível de iniciação
científica, realizadas, respectivamente, nos períodos 2020-2021 e 2021-2022. Alguns dos
seus principais resultados foram coligidos em Santos et al (2021).
163
ticas e implicações se sintonizam como tendências nacionais. Nessa pers-
pectiva, buscamos apreender algumas dessas tendências e como tal pro-
cesso funciona como um dreno de fundo público, robustecendo não só a
lucratividade do capital, em crise, mas de massa de valor destinada à garantia
das forças repressivas do aparelho estatal ao processo de criminalização ou
“gestão penal da pobreza”. (WACQUANT, 2011).

Crise capitalista e a expansão do Estado punitivo – novas (velhas)


formas do trato à “questão social”

Uma das características fundamentais à manutenção da dinâmica so-


ciometabólica do capital é o contínuo exercício do controle sobre a força
de trabalho. Desde o momento da chamada “acumulação primitiva”
(MARX, 2013) até os dias atuais, tal processo se mostra como condição
necessária ao processo de produção de valor. Tal controle implica na ma-
nutenção das condições de disposição dessa força de trabalho para produ-
ção de capital e extração de mais-valor. É fato que sob as condições de
vigência da lei geral da acumulação capitalista, trabalhadores(as) emprega-
dos(as) são, por contraponto, o outro lado de uma massa excedentária, e
que também são sujeitos-alvos de controle e disciplinamento, e que, em
contextos de crise, demanda maior acionamento do aparelho estatal.
No atual contexto de agravamento da crise capitalista, em seu nível
estrutural (MÉSZÁROS, 2002), temos sustentado a prevalência de três
grandes mecanismos que têm sido mobilizados como formas de gestão e
controle do capital sobre a força excedentária de trabalho, sendo elas:
1) a assistencialização das políticas sociais, a partir de estratégias de mitiga-
ção do pauperismo, com ênfase nos chamados Programas de Transferência
de Renda (PTRs); 2) o extermínio de parte desses segmentos sobrantes
ao capital, inclusive tendo no aparelho de Estado um mecanismo impor-
tante de sua efetivação; e, por fim, 3) a escalada do fenômeno do “encarce-
ramento em massa” (SANTOS, 2020).
Essas três tendências supramencionadas constituem-se como mecanis-
mos mútuos e concomitantes de gestão dos efeitos mais agudos da crise do
capital, tendo o Estado como o seu principal sujeito político na formatação e
efetivação desses processos. Sem desconsiderar os dois primeiros mecanismos,
posto estarem conectados, ressalta-se que a ênfase do presente texto se refere
164
à última tendência, o “encarceramento em massa”, e, mais especificamente, sua
sustentação via privatização do sistema prisional. Partimos, pois, da concepção
de que mais do que um “problema de justiça”, tratam-se das novas configura-
ções em que se entrelaçam o incremento penal frente às expressões da “questão
social, sob a égide do projeto neoliberal, ou das novas relações entre economia
e Estado, tendo como características

[...] a supressão de direitos sociais, a redução ou a liquidação de garantias


trabalhistas conquistadas pelos trabalhadores, o rompimento do poder
dos sindicatos, a precarização das relações e condições de trabalho, o
aumento de desemprego e a intensificação da repressão do Estado por
meio do encarceramento em massa. (SANTOS, 2016, p.20).

Com efeito, no contexto de crise estrutural, a partir do declínio dos


avanços proporcionados pela constituição do chamado Estado de Bem Es-
tar Social, seguiu-se a hipertrofia do Estado Punitivo60, sob a vigência das
mais diversas formas de controle penal, na atualidade. Wacquant (2011)
destaca, nesse deslocamento, cinco grandes tendências, que, apesar de tra-
duzirem, em maio medida, a realidade estadunidense, nos parece trazer luz
sobre a situação brasileira, sendo as seguintes: a) a expansão vertical do sistema
ou hiperinflação carcerária; b) a extensão horizontal da rede penal; c) o crescimento
excessivo do setor penitenciário no seio das administrações públicas; d) o ressurgimento e
prosperidade da indústria privada carcerária; e) a política de “ação afirmativa” carcerá-
ria. Como veremos, guardadas as devidas proporções e particularidades, são
tendências que podem ser observadas quando analisados os dados do con-
texto sergipano, em consonância com a realidade brasileira, no movimento
de intensificação do controle penal, que corresponde a uma “forma de en-
frentamento do Estado para a preservação da ordem do capital” (SANTOS,

60
Não se trata, pois, de uma mudança da funcionalidade do Estado burguês, posto
constituir-se, por natureza, nessa dupla condição em que aciona constantemente pro-
cessos de consenso e coerção. Trata-se, a nosso juízo, de uma mudança qualitativa em
relação às possibilidades históricas de manutenção das estratégias consensuais e conci-
liatórias, sob a forma de um amplo sistema de seguridade social, frente às restrições
impostas pela crise capitalista e o ideário neoliberal. Nessa esteira, em paralelo a uma
atuação focalista, pontual e emergencial nas áreas socioassistenciais, centraliza e ampli-
fica um conjunto de forças repressivas como forma de intervenção junto às expressões
da “questão social”.
165
2016, p.127), sendo este também, por outro lado, um espaço propício à
valorização do capital.
É fato que a prisão, tal qual a conhecemos, conforma uma relação
estrutural com o desenvolvimento capitalista, constituindo-se como um ele-
mento funcional ao amoldamento, disciplinamento e controle do corpo
do(a) trabalhador(a), estabelecendo uma articulação entre o cárcere e a fábrica
(MELOSSI; PAVARINI, 2006). Ademais, ao longo da trajetória do sistema
de justiça criminal brasileiro/sergipano, a seletividade mostrou-se uma
marca estruturante, recaindo o peso dessa articulação sobre os segmentos
mais pauperizados e racializados da população.
Atualmente, em tempos de “crise estrutural do capital”, e “desem-
prego crônico” (MÉSZÁROS, 2002), o processo de acionamento cada vez
mais constante de dispositivos de encarceramento guarda estreita relação
com o avanço do neoliberalismo, e a perspectiva de um “Estado Mínimo”
– para as políticas sociais –, e seus impactos destrutivos na conformação
dos sistemas de proteção social. Em um contexto de agravamento das con-
dições de vida e trabalho da população, acentua-se a díade “prisão da misé-
ria” e a “miséria da prisão”, (SANTOS, 2020), em que a estratégia encarce-
radora opera como um dos principais mecanismos de gestão da pobreza.
Como expressão da realidade brasileira, verifica-se também no cená-
rio sergipano uma hipertrofia da “agenda encarceradora” (SANTOS et al,
2021), ilustrando as tendências a uma expansão vertical e horizontal do con-
trole penal (WACQUANT, 2011). Entre 2000 e 2017, a taxa de aprisiona-
mento no Brasil aumentou mais de 150% em todo país, e no estado esse
número representou 213,63%, segundo levantamento do DEPEN (2017).
Os indicadores tornam-se ainda mais reveladores quando nos remete-
mos ao perfil étnico-racial dos(as) encarcerados(as), o que reforça um processo
de seletividade racialmente escancarado. Em 2019, tínhamos 85% dos(as) apri-
sionados(as) no estado declaradamente pretos(as) ou pardos(as), conformando,
portanto, uma população majoritariamente negra, superior à média nacional,
que foi no mesmo período de 66,7% (FBSP, 2020), evidenciando uma “des-
proporcionalidade racial” (WACQUANT, 2007). Tais dados revelam o peso
das estruturas punitivas racializadas e seus impactos no contexto sergipano.
Tais mecanismos, a nosso juízo, mais do que revelar circunstâncias tópicas ou
fenomênicas, referem-se a um conjunto de expressões do “racismo estrutural”,

166
inclusive no âmbito institucional (ALMEIDA, 2018). Por outro lado, reafirma
o lugar do aprisionamento enquanto política de “ação afirmativa carcerária”
(WACQUANT, 2011; 2007), sendo uma das principais políticas de Estado di-
recionadas para a população negra.
De acordo com os dados do Depen, em 2019, o Brasil contava com a
população prisional de 773.151, ocupando a 3ª posição no ranking de países
que mais encarceram no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e
China. Sergipe, contava, no mesmo período, com um contingente de 6.630,
distribuídos(as) em 09 unidades prisionais, à época (DEPEN, 2019). Tais dados
reforçam que essa tem sido a “política social” atual do Estado voltada à popu-
lação (negra) brasileira, em um contexto de nítida ampliação da criminalização
da pobreza, diante do aprofundamento das desigualdades sociorraciais. Mais
que uma acidentalidade, o que temos em curso é o acionamento programático
de mecanismos institucionais de ampliação do aprisionamento, nos marcos do
“projeto genocida do Estado brasileiro” (FLAUZINA, 2008).
Diante desse cenário de “encarceramento em massa”, e do perfil ét-
nico-racial dos(as) internos(as), as condições de alocação vem se deterio-
rando em escala exponencial, de tal modo que levou o Supremo Tribunal
Federal (STF) a considerar o sistema prisional brasileiro como um “estado
de coisas inconstitucional”, dada a permanente violação de direitos das mais
variadas ordens. As condições estruturais dos presídios brasileiros, revelam
a sua natureza de “depósito de indigentes” (WACQUANT, 2011), consti-
tuindo-se em um espaço de graves violações aos direitos humanos funda-
mentais. Em Sergipe, conforme atestou relatório da Ordem do Advogados
do Brasil – Seccional Sergipe, em 2018, a situação dos presídios parecia
acompanhar o cenário nacional. Ilustrativa era a situação da maior unidade
penitenciária do estado – o Complexo Penitenciário Dr. Manoel Carvalho
Neto (COPEMCAN) – cujos prédios demonstravam-se escuros, úmidos e
insalubres, com a presença de ratos e baratas; além das dificuldades de
acesso à água e à alimentação adequada. (OAB/SE, 2018).
Diante desse conjunto de situações desumanas e degradantes, tem se
suscitado no debate público a apresentação de alternativas que possam con-
tribuir para diminuir tais efeitos. Dentre as tendências, duas grandes frentes
são apontadas como possibilidades de enfrentamento dessa realidade. A

167
primeira refere-se à adoção de um conjunto de medidas que reiterem o ca-
ráter excepcional da prisão ou que contribuam para o acionamento de “al-
ternativas desencarceradoras”61. A segunda diz respeito à privatização dos
presídios, como forma de melhor gestão e com maior capacidade de “res-
socialização” das/os internos. Sendo esta última, a alternativa que mais tem
sido incentivada, nos determos um pouco mais sobre ela, inclusive bus-
cando apreender a quais interesses estão por trás dessa via.

O “grande negócio” da prisão – aproximações e tendências a partir


da realidade sergipana

Em um cenário de barbárie, de superlotação, de precárias condições


das unidades prisionais, e sob as promessas do “projeto neoliberal”, pro-
paga-se uma suposta falência do Estado em gerenciar tais estabelecimentos,
como se o núcleo do problema constituísse apenas a partir de uma “má
gestão”. O “canto da sereia” da alternativa da privatização, como toda la-
dainha (neo)liberal, então, se apresentaria como uma possibilidade capaz de
conferir melhores condições de “eficiência”, de “eficácia”, de “racionaliza-
ção dos custos” na destinação de recursos e de “humanização” na gestão e
execução dos serviços nas unidades prisionais.
O debate acerca do processo de privatização das prisões no Brasil
ainda é relativamente recente. A primeira experiência teve início em 1999,
no Paraná e, apesar da expansão, até o momento não alcançou um expres-
sivo número. Segundo dados da Pastoral Carcerária, em 2014, cerca de 30
prisões estavam privatizadas no país, incluindo em Sergipe (PASTORAL

6110 pontos são elencados no âmbito da Agenda Nacional pelo Desencarceramento,


quais sejam: 1. Suspensão de qualquer verba voltada para a construção de novas uni-
dades prisionais ou de internação; 2. Exigência de redução massiva da população pri-
sional e das violências produzidas pela prisão; 3. Alterações legislativas para a máxima
limitação da aplicação de prisões preventivas; 4. Contra a criminalização do uso e do
comércio de drogas; 5. Redução máxima do sistema penal e retomada da autonomia
comunitária para a resolução não-violenta de conflitos; 6. Ampliação das Garantias da
LEP; 7. Ainda no âmbito da LEP: abertura do cárcere e criação de mecanismos de
controle popular; 8. Proibição da privatização do sistema prisional; 9. Prevenção e
Combate à Tortura; 10. Desmilitarização das polícias e da sociedade. (https://desen-
carceramento.org.br/)

168
CARCERÁRIA, 2014). Com impedimentos legais de uma integral privati-
zação do sistema prisional no Brasil, os modelos de administração privati-
zada têm funcionado em duas frentes: parceria público-privada e cogestão.
Na Parceria Público-Privada (PPP), nota-se um contrato com poderes mais
amplos para a empresa privada, que vão desde a possibilidade da construção
da unidade até o gerenciamento. Embora seja a modalidade menos prati-
cada hoje, esse tipo de participação é mais atrativo para as empresas priva-
das, não só pelo maior número de participação, como também pela duração
do contrato, que é longa. Por outro lado, no modelo de co-gestão, que é
predominante, a administração de atividades tidas como indelegáveis são
mantidas pelo administrador público – diretor da unidade, guardas e escolta
externa, deixando ao encargo da empresa privada os serviços de saúde, ali-
mentação, limpeza, manutenção, entre outros.
Refletindo sobre a realidade estadunidense, Davis (2018) considera
que o processo de privatização de presídios integra a formação de um
“complexo industrial-prisional”, envolvendo mercados globais, e que sus-
tenta a racialização das populações carcerárias.

A noção de complexo industrial-prisional exige entendimentos do pro-


cesso de punição que levem em conta estruturas e ideologias econômi-
cas e políticas, em vez de se concentrar de forma míupe na conduta
criminal individual e nos esforços para “conter o crime”. O fato, por
exemplo, de muitas corporações com mercados globais agora contarem
com as prisões como uma importante fonte de lucro nos ajuda a enten-
der a rapidez com que as instituições prisionais começaram a proliferar
justamente no momento em que estudos oficiais indicavam que as taxas
de criminalidade estavam caindo. A ideia de um complexo industrial-
prisional também sustenta que a racialização das populações carcerárias
- e isso não é verdade apenas no que diz respeito aos Estados Unidos,
mas também na Europa, à América do Sul e à Austrália - não é inciden-
tal. (DAVIS, 2018, p. 92-93).

Em Sergipe, considerando a constituição desse complexo industrial-pri-


sional, o cenário local apresenta particularidades que merecem ser melhor ex-

169
ploradas. Dentre os atuais 10 estabelecimentos prisionais, 07 são geridos dire-
tamente pela Administração Pública62, e 03 funcionam na modalidade de co-
gestão (DEPEN, 2019), sendo eles: a Cadeia Pública de Estância (CE), a Cadeia
Pública de Areia Branca (CPAB), e o Complexo Penitenciário Advogado An-
tônio Jacinto Filho (COMPAJAF), sendo este o primeiro implementado no
estado como uma “vitrine” do “novo modelo”, e que teria cumprido “a missão
de modernizar o encarceramento em Sergipe”. (SANTANA, 2021).
Os três estabelecimentos penais que funcionam de modo terceirizado
são administrados pela empresa Reviver Administração Prisional Privada
LTDA, a qual estabelece, de acordo com seu site oficial, a ressocialização e o
trabalho como pilares de sua política interna, possuindo 10 (dez) instituições
distribuídas entre as regiões nordeste, sul e norte do Brasil (REVIVER, 2022).

[...] a Reviver disponibiliza para as pessoas custodiadas alimentação,


fardamento, material de higiene pessoal, material esportivo e recre-
ativo e assistência médica, social e jurídica. Provê todas as necessi-
dades logísticas e de manutenção, tais como a disponibilização de
veículos, combustível, energia elétrica, água, comunicação telefônica
e de internet, bem como infraestrutura de segurança eletrônica, a
exemplo de circuito fechado de televisão. É objeto da terceirização
a contratação de agentes de segurança e a atribuição de serviços de
prontuário, identificação e movimentação de presos, incluindo o re-
gistro e controle das informações e comunicações penitenciárias.
(FRANCA JR. et al., 2020, p.15).

Curiosamente, e não nos parece acidental, a mesma empresa possui


áreas de atuação em preparo e fornecimento de alimentos, desenvolvimento
de processos e software de gestão prisional e socioeducativo, projetos de
segurança, projetos para bloqueio de comunicação via celular, projetos de
sistema de proteção perimetral, projetos de sistema de alarme e sistemas de
monitoramento eletrônicos de pessoas. Ou seja, não se trata só de um “mo-
delo de gestão”, mas da estruturação de um complexo mercado em torno
da prisão, acionando um conjunto de setores que formam uma espécie de

Presídio Semiaberto de Areia Branca (PRESAB); Cadeia Territorial de Nossa Senhora


62

do Socorro – CADEIÃO; Presidio Feminino – PREFEM; Presidio Regional Juiz Ma-


noel Barbosa de Souza – PREMABAS; Presídio Regional Senador Leite Neto – PRES-
LEN; Unidade de Custódia Psiquiátrica – UCP; Complexo Penitenciário Manoel Car-
valho Neto – COPEMCAN.
170
“cadeia produtiva” na oferta de produtos e serviços, em face do processo
de privatização das unidades prisionais, que atestam para a prosperidade da
indústria privada carcerária (WACQUANT, 2011) em Sergipe.
Esse “modelo de gestão” acarreta em uma estratégia de mercantiliza-
ção do sistema prisional, tendência que já vem sendo observada em outros
estados brasileiros, deixando evidente que a expansão prisional sergipana,
articulada ao cenário nacional, também tem se constituído como um
“grande e lucrativo negócio”, e, consequentemente, um nicho de alocação
de capital, a partir de vultuosos aportes de fundo público estadual. De
acordo com Franca Jr. et al (2020), no ano de 2009, o custo pago por pessoa
presa era de R$ 2.197, 25, sendo que em julho 2014 o valor chegou a alcan-
çar R$ 3.698, 09 no COMPAJAF, e em 2017 na Cadeia Pública de Estância
esse valor chegaria à R$ 4.791,79, sendo as duas unidades terceirizadas ana-
lisadas à época. Por outro lado, o custo mensal estimado em 2017, por
preso, em unidades não terceirizadas, com despesas específicas de custeio,
perfazia a monta de R$1.784,83.
Os autores demonstram ainda que os preços mensais por preso no
COMPAJAF eram, em média, 52% maiores que os valores praticados nos
presídios não terceirizados, e na Cadeia Pública de Estância o preço seria
63% mais elevado. Por outro lado, em relação ao custo mais geral da ma-
nutenção de unidades públicas e terceirizadas, os contratos com a empresa
Reviver sinalizaram uma absorção estimada em 58% do total das despesas
de custeio contratadas da Secretaria de Estado da Justiça, do Trabalho e de
Defesa do Consumidor – SEJUC, em 2017. Restaram, portanto, 42% para
fazer frente aos demais gastos, inclusive para a maior unidade prisional, que
é autogerida pela administração pública, que é o COMPECAM, evidenci-
ando uma desproporcionalidade na destinação de recursos para as unidades
diretamente administradas pelo poder público em relação àquelas privatiza-
das. (FRANCA JR. ET AL, 2020).
A desproporcionalidade de dotação orçamentária tem sido objeto de
preocupação do Sindicato dos Policiais Penais do Estado de Sergipe (SIN-
DIPPEN). Em 2022, em comunicado63 enviado à Secretaria de Estado da

63
Via ofício nº 171/2022/SINDPPEN, em 17 de agosto de 2022, conforme pode ser
observado no seguinte link https://drive.google.com/file/d/1FXrSVgKc_1BfSoR-
Jql8a5bTIsmy4m2Ou/view.
171
Justiça, do Trabalho e de Defesa do Consumidor (SEJUC), o sindicato aler-
tou o governo do estado sobre o alto volume destinado à manutenção da
privatização dos serviços prisionais em Sergipe. No conjunto de informa-
ções reunidas, tendo como fonte o Tesouro do Estado, observa-se que dos
5 maiores contratos do governo estadual, os três primeiros estariam para a
SEJUC, sendo eles: um valor orçado para um novo contrato de cogestão,
de R$ 91.253.956,68; o segundo, o valor atualizado (2022) apresentado pela
empresa Reviver, que já administra 3 unidades prisionais no Estado, de R$
73.482.290,68; e o terceiro, valor anterior do contrato com a mesma em-
presa que havia sido estimado em R$ 61.037.902,80. A análise disposta pelo
SINDPPEN é ilustrativa, dada a disparidade orçamentária:

[...] há considerável dotação orçamentária aplicada no sistema prisi-


onal estadual. Entretanto, há gritante disparidade na aplicação do
erário destinado à manutenção e melhoria das unidades penais ser-
gipanas. Tal disparidade decorre da priorização de aplicação dos re-
cursos em somente um contrato (extremamente caro) e que abrange
somente 3 unidades penais. Tal circunstância promove, na maior
parte do sistema, a precarização das condições de custódia de presos
e do ambiente de trabalho dos policiais penais. (SINDPPEN, 2023,
p.02, grifos no original).

Ademais, quando da análise comparativa da destinação orçamentária


para outras políticas públicas, a relativa centralidade que a política criminal
assume no estado, nos parece bastante reveladora. De acordo com o SIN-
DPPEN (2023), em 2022, a SEJUC recebeu mais da metade do custeio
dentre todas as 11 Secretarias de Estado existentes (cuja fonte é o Tesouro
do Estado). Tratou-se de 56% do total do orçamento destinado, em con-
traposição a áreas como a Secretaria de Estado da Educação e Cultura –
SEDUC (1%) e a Secretaria de Estado da Inclusão e Assistência Social –
SEIAS (1%). Quando somado o investimento próprio do governo do es-
tado nas áreas de Secretaria de Justiça e Cidadania (56%) e da Secretaria de
Segurança Pública (SSP) (10%), tem-se 66% do orçamento, em que se nota
como a política criminal tem ocupado lugar destaque como resposta às ex-
pressões da “questão social”, bem como ilustra bem a centralidade do Es-
tado punitivo em detrimento do Estado social.
Não bastasse a disparidade orçamentária entre as secretarias, um
dado revelador aponta para uma discrepância dentro da própria SEJUC.
172
Em 2022, dos R$ 99.000.000,00 destinados para comprometimento de cus-
teio, 77% (R$ 73.482.290,68) foram destinados para o regime de cogestão,
enquanto que os 23% restantes (R$ 21.517.709,32) foram destinados para
os demais órgãos vinculados à secretaria, inclusive para as demais 7 unida-
des prisionais restantes, que operam sob a completa administração pública
(SINDPPEN, 2023).
Em análise à Prestação de Contas Anual Exercício 2020 da SEJUC
(SEJUC, 2021, p. 203 - 208), do total de R$ 66.461.894,71 executados no
exercício do ano 2020, foi repassado somente para a Reviver Adm. Prisional
LTDA o total de R$ 39.315.125,81, ou seja quase 60% do orçamento em-
pregado para administração penitenciária no estado foi destinado a 03 uni-
dades geridas pela iniciativa privada, deixando o restante para as demais 07
unidades, dentre estas a maior em número de internos, o COMPECAN.
Embora, como constatou a OAB/SE (2018), em relatório de inspeção, es-
tas unidades prisionais terceirizadas apresentem, em tese, melhores condi-
ções de higiene e estrutura, vale ressaltar o elevado custo pago pelo Estado,
uma média de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por interno(a) mensalmente,
sem que tal custo refletisse, segundo o mesmo relatório, no principal obje-
tivo da prisão: a ressocialização. Mais que dar conta do falacioso discurso
ressocializador da prisão, o que se verifica é o processo de privatização
como expansão das redes de empresariamento da prisão e o Estado como
parceiro na alocação de volumosos recursos ao setor.

Considerações finais

Conforme observado na discussão empreendida, na atualidade, a ex-


pansão penal também, mais do que uma resposta do Estado às expressões
da “questão social”, tem operado como um “grande negócio” ao capital.
Podemos, em uma primeira aproximação, considerar tímida a participação
do setor privado na gestão das unidades prisionais no Brasil e em Sergipe.
Entretanto, em relação ao estado, quando observados os dados de dotação
orçamentária e sua disparidade de destinação, verifica-se como parte do
fundo público tem sido uma fonte importante de lucro de determinadas
empresas do ramo industrial-prisional, com destaque para a REVIVER.
Dados os limites desse texto, não seria possível abarcar a amplitude
do complexo industrial-prisional com o que vem se tornando a expansão
173
penitenciária em Sergipe, mas já denota o lugar estratégico que a política de
“encarceramento em massa” tem na diversificação de investimentos do ca-
pital. Ademais:

Com a nova política de delegação da gestão penitenciária para a ini-


ciativa privada [...] se esconde um interesse que gira em torno do
aspecto econômico neoliberal. O Estado, ao tempo em que se deso-
nera de sua atividade típica, cria um mercado em torno da crimina-
lidade que gera milhares de empregos direta e indiretamente, e que
alimenta uma cadeia de empresas que orbitam em torno do sistema
prisional, visando sempre o lucro. (SILVA, 2016, p.139).

Tais evidencias colocam o desafio de pensar não só alternativas para


além da prisão, mas também de desmitificar o caráter da aplicabilidade penal
enquanto mecanismo capaz de produzir qualquer tipo de “ressocialização”.
Isso porque, mais do que alterações tópicas na lógica que subjaz a política cri-
minal brasileira, uma efetiva mudança paradigmática pressupõe a alteração ra-
dical das condições sociais em que a prisão e a punição se colocam como con-
dições de sustentação social. Além disso, em uma sociabilidade onde tudo pode
virar mercadoria, a mercadorização do controle penal se constitui como um
estratégico lugar de aporte de recursos públicos para o capital. Trata-se, por-
tanto, de apreendermos as conexões que articulam a política criminal aos im-
perativos econômicos de sobrevivência/expansão do próprio capital.
Como bem observado por Davis (2019), até mesmo empresas que
suporíamos não estar no circuito da punição estatal, passam a fazer parte
dessa “cadeia produtiva”, desenvolvendo importantes interesses “na perpe-
tuação de um sistema prisional cuja obsolescência histórica torna-se, por-
tanto, muito mais difícil de reconhecer” (DAVIS, 2019, p. 96). Quando ana-
lisado o perfil da população que vem sendo mais afetada pela expansão pri-
sional no estado, em consonância com as tendências nacionais, a crítica ao
sistema penal não deve passar só por uma análise do quanto este campo é
produtor de uma série de “injustiças sociais”, mas da estreita conexão que
ele guarda na conformação/manutenção de um sistema de explora-
ção/opressão a partir de uma estrutura racista-sexista-capitalista. Nos im-
pele, portanto, à crítica aos fundamentos que ele guarda na relação estrutu-
ral entre direito, política e economia, sob a égide dos ditames do capital.

174
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177
CAPÍTULO 11
A violência estatal como o modus operandi do
Estado no Brasil64
Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra

Introdução

Abordando um fenômeno persistente no mundo e também no nosso


país, o presente capítulo tem como objetivo delinear os fundamentos da
violência estatal na sociabilidade regida pelo capital, particularizando algu-
mas das suas expressões mais emblemáticas no Brasil. A hipótese nele de-
senvolvida, e que serve de fio condutor, é que o capital, na sua marcha totali-
tária de criação e expansão das relações sociais de produção e reprodução
imprescindíveis a sua existência, vale-se largamente da violência estatal para
controlar os trabalhadores, assegurar a dominação dos capitalistas e expro-
priar a riqueza. Em face das implicações do agravamento da crise estrutural
e da regência das contrarreformas neoliberais no Brasil, o Estado generaliza
seus mecanismos coercitivos, reforçando a aparelhagem repressiva e crimi-
nalizando a classe trabalhadora. A violência estatal conforma-se como o
modus operandi do Estado no controle permanente dos trabalhadores e dos
problemas societários.
A pesquisa bibliográfica e documental realizada, cujos resultados são
aqui apresentados sob a forma de artigo, pautou-se na compreensão da in-
dissociabilidade entre propriedade privada, exploração da força de trabalho
e dominação de classe, cabendo ao Estado a função de empregar a violência
irrestrita para organizar a sociedade, administrar os conflitos sociais e ga-
rantir a expropriação da riqueza.
Para alcançarmos o objetivo proposto, os escritos crítico-radicais de
Marx (1971; 1988), Engels (2010) e Mészáros (2002) auxiliaram-nos no sen-
tido de desvelar algumas especificidades do funcionamento do sistema do

64Artigo originalmente publicado no dossiê “Liberdade, democracia e cidadania – de-


safios atuais em tempos de crise do capital”, da revista Humanidades & Inovação, Pal-
mas, v. 8, n 57, 2021.
178
capital e sua inter-relação com o Estado a ele atinente. Em seguida, as obras
de Fernandes (1976), Mazzeo (1995; 2015), Santos Neto (2015), Netto
(2017) e dos demais autores referenciados ao longo do texto mostraram-se
essenciais na tarefa de compreender o Estado brasileiro e sua atuação agres-
siva e violenta voltada ao controle das massas. O mosaico de dados quali-
quantitativos do Disque 100, da Comissão Pastoral da Terra e de fontes
jornalísticas foi por nós utilizado de modo a ilustrar o caráter repressivo do
Estado brasileiro contra os trabalhadores urbanos e rurais na busca por as-
segurar a reprodução da ordem política e socioeconômica estabelecida.
A exposição está estruturada em duas partes, além desta pequena in-
trodução e das considerações finais. Na primeira, elucidamos a reciproci-
dade dialética entre Estado, propriedade privada e classes sociais, desta-
cando a violência estatal nos diferentes momentos do desenvolvimento ca-
pitalista: da acumulação primitiva do capital ao capitalismo contemporâneo
marcado pela crise estrutural que afeta drástica e perversamente os países
desenvolvidos e as periferias do globo. Nessa trajetória, elencamos os múl-
tiplos mecanismos repressivos empregados continuamente pelo Estado em
plena conformidade com as necessidades autoexpansivas do capital.
Na sequência, na segunda parte a ênfase recai sobre a tendência do
Estado brasileiro, sempre que se mostra imprescindível do ponto de vista
da ordem dominante, controlar violentamente o conjunto dos trabalhado-
res e as desigualdades sociais oriundas da dinâmica do capitalismo depen-
dente e subordinado. Propiciamos ao leitor um panorama da violência es-
tatal sistematicamente praticada durante a trajetória da formação econômica
brasileira, nos anos da ditadura empresarial-militar e no contexto neoliberal,
onde o Estado tem atuado por meio da força policial, da contenção de gre-
ves, da criminalização da pobreza, do controle penal, de medidas genocidas,
do autoritarismo exacerbado, da deflagração de conflitos no campo etc.
Em tempos de negacionismo histórico, torna-se crucial adensar as
reflexões e o debate sobre o Estado, entendendo-o na dinamicidade das
relações sociais capitalistas, enquanto parte integrante dela, e, o que é igual-
mente importante, na particularidade da formação econômica brasileira si-
tuada no movimento histórico-concreto da dependência e da subordinação.
Nossa pretensão é contribuir com este exercício intelectual e com a produ-
ção do conhecimento em torno do tema em foco.

179
Violência estatal e capitalismo

As mais distintas expressões de violência estatal são uma necessidade


historicamente construída a partir das relações sociais que repousam sob a
base da propriedade privada dos meios de produção. Desde o exato mo-
mento em que uns indivíduos, pertencentes à classe dominante, exploram
a força de trabalho de uma parcela majoritária da sociedade e expropriam a
riqueza por ela produzida, põe-se a demanda do emprego cotidiano da vio-
lência sistemática e institucionalizada. Ora, quem produz a riqueza não a
entregará espontaneamente a outrem; não aceitará ser explorado e subju-
gado como se isso fosse um obscuro desígnio de Deus, uma condição “na-
tural” da sua existência. A exploração da força de trabalho, a expropriação
da riqueza e a dominação de classe requisitam, pois, a violência.
No curso da história, o complexo social criado para organizar e apli-
car cotidianamente a violência é o Estado. O Estado, produto e manifesta-
ção das desigualdades estruturalmente arraigadas no seio da sociedade, con-
figura-se, a cada período, como um poder coercitivo posto aparentemente
acima das classes sociais em constante conflito. Engolfado nos conflitos das
sociedades de classes, o Estado – qualquer tipo de Estado – atua enquanto
estrutura hierárquica de dominação que preserva os interesses particulares
da classe dominante. Afinal de contas, ele é um Estado de classe, um órgão
de submissão de uma classe à sua antagonista.
Sem exceção, em todas as sociedades de classes, o Estado opera como
um aparato indispensável aos detentores da propriedade privada, assegurando
as condições para que haja a dominação, a exploração do trabalho e a expro-
priação da riqueza por uma parte minoritária da sociedade que não a produz,
no entanto a concentra ao dispor privadamente da posse dos meios de produ-
ção. E, em todas aquelas sociedades, novamente sem nenhuma exceção, o Es-
tado é um poder que amortece o choque dos antagonismos, recursando, não
raro, à violência, para mantê-los nos limites da ordem. As relações sociais que
repousam sob a propriedade privada, sustentando a expropriação da riqueza,
ensejam as ações do Estado, sobretudo no que diz respeito ao controle, à re-
pressão, à submissão e à vigilância da classe dominada. A violência é, portanto,
um traço medular da intervenção do Estado.
Atuando em meio aos antagonismos da ordem sociometabólica vi-
gente, o Estado assume múltiplas funções e age para assegurar a ininterrupta
180
expropriação da riqueza, estruturando-se como “uma força pública” essen-
cialmente repressiva, cuja aparelhagem é “formada não só de homens ar-
mados (polícias e exércitos permanentes) como, ainda, de acessórios mate-
riais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo gênero” (ENGELS,
2010, p. 214) que atuam sob o respaldo de mecanismos jurídico-normativos
legitimadores de suas práticas violentas. Na organização e na aplicação da
violência, o Estado é auxiliado pelo Direito (leis, juízes, torturadores, sis-
tema carcerário), pelas forças armadas (exército, comandantes, milícias) que
possuem legalidade para usar da violência em nome do Estado e pela ro-
busta burocracia que lhe corporifica, constituída por uma gama de institui-
ções e de funcionários assalariados.
A violência estatal revela-se como uma mediação decisiva para o funcio-
namento do sistema do capital. O capital, à distinção da deusa Afrodite, não
vem ao mundo pronto e definido. Cumulativamente, as “formas antidiluvianas
do capital – comercial e usurária – adquiriram novo estatuto quando dotadas
de conteúdo social original, cujo fator determinante foi a transformação de
condições sociais de trabalho em capital”. A dominação e a exploração da força
de trabalho pelo capital suscitaram um processo violento “de expropriação eco-
nômica, política e cultural comandado pela burguesia e seus aliados contra os
produtores diretos” (CASTELO; RIBEIRO; LIMA, 2018, p. 266). Tal pro-
cesso, contando com o apoio do Estado, eliminou violentamente os entraves
feudais (o vínculo do camponês com a gleba, as obrigações consuetudinárias,
os regulamentos das guildas, a servidão aos senhores).
Para que o capital pudesse se generalizar foi imprescindível a expro-
priação coercitiva dos meios de vida pertencentes aos produtores diretos.
Ocorrida na Europa de formas diferenciadas, sendo a Inglaterra o país que
vivenciou a experiência clássica, essa expropriação solapou os até então vi-
gentes laços de feudalidade e se deu no movimento histórico denominado
como acumulação primitiva do capital, onde, graças à recorrente violência
estatal, “grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de
seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como prole-
tários livres como os pássaros” (MARX, 1988, p. 253).
As expropriações requeridas pelo capital têm como saldo a existência
de seres sociais destituídos de meios de trabalho, sem o acesso a matérias-

181
primas, sem o usufruto da terra, convertidos em trabalhadores que, premi-
dos pelas necessidades de subsistência, colocam à venda a única coisa que
lhes restou, sua força de trabalho, tornando-se assalariados. Quando ocorre
a expropriação dos meios de produção, os trabalhadores apresentam-se “li-
vres”, desvencilhados das vivências típicas do servilismo, e passam a ser
regidos, ao se inserirem no mercado, por uma relação contratual capitalisti-
camente imposta e legalizada pelo Estado.
De modo a proteger a propriedade privada moderna nascente, o Es-
tado proclamou, por meio do seu aparato jurídico-legal, leis que foram já
na acumulação primitiva do capital fundamentais. Ilustrativamente, Marx
(1988) nos lembra que o Estado elaborou a legislação sanguinária entre os
séculos XIV e XVIII, disciplinando os camponeses desvinculados das gle-
bas e arrancados de seu modo de vida costumeiro; mas que, por não serem
absorvidos em sua totalidade pela nascente manufatura, foram condenados
a vagar, sozinhos ou em grupos, nas áreas urbanas mais sórdidas, conver-
tendo-se em esmoleiros, assaltantes e vagabundos.
Pela sua forma e pelo seu conteúdo, a legislação sanguinária desti-
nava-se aos expropriados e empregava um repertório de métodos violentos
contra os trabalhadores, classificando-os como criminosos “voluntários” a
serem severamente punidos65. A violência estatal materializava-se nas sur-
ras, mutilações, queimaduras, nos encarceramentos e, em situações previs-
tas em lei, na execução dos pobres transeuntes. É de salientar-se que os
métodos coercitivos utilizados pelo Estado foram introduzidos com o fito
de enquadrar os trabalhadores no sistema de trabalho assalariado e apazi-
guar as tensões sociais – dentre elas, as associadas a uma pobreza não con-
finada territorialmente – derivadas das expropriações em curso.
A violência empregada pelo Estado mostrou-se inadiável no sentido
de estabelecer o imperativo do trabalho àqueles vendedores da sua força de

65A coroa inglesa proclamou medidas disciplinatórias ensaiadas nos governos de Edu-
ardo VI, da rainha Elisabeth, de Jaime I, de Jorge II. Estes governos foram marcados,
cada um à sua maneira, por “leis grotescas e terroristas” que instituíam severos castigos
para os pobres não inseridos nos postos de trabalho. Analogamente, a violência estatal
contra os trabalhadores vigorou em outros rincões, a exemplo da França, dos Países
Baixos, da Holanda, das Províncias Unidas, etc. Pela letra da lei, o Estado aplicou pe-
nalidades para os trabalhadores aptos a trabalhar que, por não conseguir compradores
para sua força de trabalho, viviam perambulando.
182
trabalho; impor aos trabalhadores o exercício de qualquer tipo de ocupação;
fixar baixas remunerações; proibir a andança sem destino dos pobres váli-
dos e, em geral, controlar as relações trabalhistas. A referida violência am-
parou-se em legislações que estruturaram um “código coercitivo do traba-
lho”, conforme aponta Castel (2012): o Statute of Labourers (Estatuto dos
Trabalhadores) de 1349, instituído na Grã-Bretanha; o Estatuto dos Arte-
sãos de 1563; as Poor Law Act (Leis dos Pobres) elisabetanas, estendidas de
1531 a 1601; a Settlement Act (Lei de Residência) de 1662; e a Poor Law Amen-
dmente Act (Nova Lei dos Pobres) de 1834 que, concedendo suplemento
salarial, instituiu as Workhouses e as Caixas dos Pobres.
A violência estatal subsistiu nos diferentes momentos da acumulação
primitiva do capital. Os métodos atrozes do Estado desenvolveram-se
desde a expropriação que resultou na dissolução dos séquitos feudais até a
pilhagem das Índias Orientais, agigantando-se no extermínio, na escraviza-
ção, na colonização e no enfurnamento de populações nativas nas minas.
Em todo caso, o Estado, “a violência concentrada e organizada da socie-
dade”, jogou um papel essencial para ativar, em profundidade e extensão, a
“transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da
propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna” (MARX,
1988, p. 355), abreviando a transição do medievo para a sociedade burguesa.
Com a consolidação dessa sociedade, na fase subsequente à acumu-
lação primitiva, a violência estatal uma vez mais esteve indissociável da di-
nâmica autoexpansiva do capital. No capitalismo concorrencial, o Estado,
perpetuando o domínio político necessário para os capitalistas explorar, ex-
propriar e subordinar os trabalhadores, promulgou leis que obstaculizavam
a intervenção das organizações sindicais nas relações entre empregados e
empregadores. As associações de trabalhadores que tinham o objetivo de
melhorar as condições de vida desta classe foram declaradas ilegais desde o
século XIV e permaneceram assim durante o estágio concorrencial, onde o
Parlamento tomou iniciativas contrárias66 às agremiações.

66
Uma das perseguições à organização dos trabalhadores ocorreu na Inglaterra, em
que a lei considerava ilegal a reunião de trabalhadores em associações para a proteção
de seus interesses. Diante dessas condições, as associações trabalhistas passam a existir
de maneira clandestina. Para exemplificar, podemos mencionar a Sociedade Londrina
de Correspondência que, conforme Thompson (2004, p.15-8), se constituiu em uma
das primeiras associações operárias de caráter “radical popular”. Essa sociedade era
183
A lei Le Chapelier67, de 17 de junho de 1791, aprovada pelo Parla-
mento francês, julgava “toda coalizão de trabalhadores” como “‘um aten-
tado à liberdade e à declaração dos direitos humanos’, punível com multa
de 500 libras além da privação, por um ano, dos direitos de cidadão ativo”
(MARX, 1988, p. 270). Comprimindo “a luta de concorrência entre o capital
e o trabalho por meio da polícia do Estado nos limites convenientes ao
capital”, a lei ordenava, em seu escopo, que:

[...] não se deve autorizar, contudo, os trabalhadores a estabelecer


entendimentos sobre seus interesses, agir em comum e, por meio
disso, moderar sua “dependência absoluta, que é quase escravidão”,
porque assim ferem “a liberdade de seus ci-devant maîtres, dos atuais
empresários” (a liberdade de manter os trabalhadores na escravidão!)
(MARX, 1988, p. 270, grifos do autor).

A coalização de trabalhadores era execrada pelos capitalistas e decla-


rada pelo Estado como uma prática anticonstitucional, penalizada como
crime de nível grave. Tolhendo o direito de associação dos trabalhadores, o
Estado intervinha mobilizando seu arcabouço repressivo para conter as dis-
sidências ameaçadoras dos interesses imediatos da classe dominante. Por
via de ações coercitivas envolvendo a soldadesca, a polícia e o cárcere, pre-
servava-se a propriedade privada dos capitalistas e mantinha-se a ordem
societária estabelecida, trazendo à tona o caráter puramente coercitivo do
poder de Estado manifesto de modo cada vez mais aberto.
O Estado desenvolveu no capitalismo concorrencial uma atuação
compatível com a extração da mais-valia, objetivo movente dos capitalistas,
disciplinando, através da violência, os trabalhadores à rotina instituída no
chão da fábrica, regulamentando a jornada de trabalho e regularizando os
mecanismos de controle e punição adotados à época. Não é de se estranhar
que o Estado, atesta Marx (1971, p. 88-89), assumiu “cada vez mais o caráter

composta por artesãos, lojistas e artífices mecânicos. Sua luta era pela realização de
uma Reforma Parlamentar. Porém, pelo fato de as associações não serem permitidas
de acordo com a lei, o fundador dessa Sociedade, o sapateiro Thomas Hardy, foi preso
sob a acusação de alta traição.
67
Essa lei é assim intitulada porque foi escrita e defendida por Issac René Guy Le
Chapelier.
184
dum poder nacional do capital sobre o trabalho, duma força social organi-
zada com fins de escravidão social, dum aparelho de domínio de classe”.
Os capitalistas, protagonizando o poder supremo de controle das atividades
sucedidas no âmbito fabril, utilizaram-se do Estado, “sem moderação e os-
tensivamente, como a máquina de guerra nacional do capital contra o tra-
balho” (MARX, 1971, p. 90).
A atuação coercitiva do Estado valida, em cada estágio do capita-
lismo, a radical separação entre as funções de produção e de expropria-
ção/apropriação assumidas por classes antagônicas, defensoras de interes-
ses inconciliáveis. O Estado sanciona, de um lado, “o material alienado e os
meios de produção” e, do lado oposto, “suas personificações, os controla-
dores individuais (rigidamente comandados pelo capital)” (MÉSZÁROS,
2002, p. 107). Numa relação social que reduz a força de trabalho à merca-
doria, uma maioria produz, pela sua exploração, a riqueza; tão logo se com-
plete as etapas da produção, como corolário essa maioria se vê privada do
controle e expropriada do que ela mesma produz. Por isso, “a estrutura legal
do Estado moderno é uma exigência absoluta para o exercício da tirania nos
locais de trabalho”. Se não houver esta estrutura, “até os menores ‘micro-
cosmos’ do sistema do capital [...] seriam rompidos internamente pelos de-
sacordos constantes, anulando dessa maneira sua potencial eficiência eco-
nômica” (MÉSZÁROS, 2002, p. 108).
Para “evitar as repetidas perturbações que surgiriam na ausência de
uma transmissão da propriedade compulsoriamente regulamentada – isto é:
legalmente prejulgada e santificada – de uma geração à próxima”, “perpe-
tuando também a alienação do controle pelos produtores” (MÉSZÁROS,
2002, p. 108), o Estado recorre aos meios coercitivos para materializar in-
tervenções políticas e legais sobre os conflitos renovados constantemente
entre as unidades socioeconômicas particulares.
No século XX, quando o capital já havia conquistado a totalidade da
economia mundial, a violência estatal intensificou-se em face das duas guer-
ras mundiais, as quais traduziram os grandes conflitos das potências impe-
rialistas em torno da partilha do mundo (leia-se: partilha de mercados e de
territórios para extrair recursos naturais, ampliar sua dominação política e
explorar força de trabalho a um custo menor). A guerra em grande escala,

185
promovendo desenvolvimento e lucro68 no circuito do comércio universal
capitalista, bem como destruição e barbárie na vida de milhares de pessoas,
exigiu do Estado o financiamento da produção de artefatos e instrumentos
bélicos, com seu potencial altamente mortífero. O Estado aperfeiçoou, em
todos os níveis e em todas as áreas, os mecanismos de guerra, convertendo-
se no principal agente financiador69 e consumidor do complexo militar-in-
dustrial produzido pelos grandes monopólios que dispunham de tecnolo-
gias sofisticadas.
Nos “anos dourados”, o Estado, em sua versão keynesiana, alocou
significativos recursos para estimular a produção perdulária do complexo
militar-industrial, aquecendo verdadeiramente a economia na França, na In-
glaterra, nos Estados Unidos etc., e concedeu empréstimos para as nações
cobrirem as despesas derivadas da militarização da economia nacional. Ade-
mais, e em adição, observou-se

[...] o crescente envolvimento das forças policiais do Estado com o


crime organizado e com as empresas privadas de segurança – com
toda a corrupção, com a transferência de parte dos lucros do crime
organizado para as “forças da ordem” e, ainda, com o desenvolvi-
mento de um mercado clandestino (ou não) de armas que abastece
tanto o lado da “ordem”, como também o crime organizado e as
milícias (LESSA, 2013, p. 170).

Ainda naqueles anos, a violência estatal, alinhada aos interesses das


potências imperialistas, ganhou forma no emprego da tortura nos conflitos
armados travados entre os Estados Nacionais, tais como: Guerra da Coreia,

68 A título de informação, Netto e Braz (2009, p. 184) anotam que “nos anos setenta
do século passado, nos Estados Unidos, enquanto a taxa geral de lucro na indústria de
transformação era de cerca de 20%, monopólios da indústria bélica auferiam lucros
que variavam de 50 a 2.000%”.
69 O financiamento do complexo militar-industrial é feito pelo Estado diretamente com

os recursos públicos obtidos pela intermediação da expropriação da mais-valia. O Es-


tado, através de gigantescos recursos, financiou, desde a Segunda Guerra Mundial, di-
versas pesquisas (sejam na via universitária, nas instituições privadas ou por intermédio
dos institutos científicos públicos) que contribuíram para o desenvolvimento do com-
plexo militar-industrial. Não é à toa que vários centros de estudos nucleares - como o
Bell Laboratories - receberam financiamento do governo americano no tempo da
guerra e foram supervisionados por órgãos públicos como o Departamento de Pes-
quisa e Desenvolvimento Científico, dirigido por Vannevar Bush.
186
da Argélia, do Suez, do conflito Israel−Palestinos, do Vietnã, da repressão
aos negros da então Rodésia (atual Zimbabwe) e da República Sul-Africana,
da invasão do Camboja [hoje, Kampuchea] pelos EUA, do golpe militar no
Chile, Argentina, Uruguai etc. O terrorismo de Estado, a tortura e os mas-
sacres promovidos pelos militares consistiram, ao que tudo indica, em es-
tratégias de controle da sociedade pelo Estado.
A temporalidade contemporânea marca um novo capítulo da história
do desenvolvimento capitalista. O edifício estrutural do sistema do capital
defronta-se com um quadro de crise sem precedentes que vai além de uma
crise financeira ou creditícia, agudizando-se as contradições sociais nos pa-
íses centrais e periféricos. A economia capitalista mundial chegou ao limite
de uma etapa de expansão no segundo pós-guerra. Embora a permanente
tendência a crises não tenha sido suplantada neste período, seus efeitos fo-
ram amortecidos temporariamente graças à regulação sedimentada pela in-
tervenção estatal keynesiana e as taxas de lucratividade elevaram-se de
forma bastante expressiva70.
A fase áurea de ascendência do capital começou a demonstrar sinais
de exaurimento no término dos anos 1960. No contexto ulterior, enfrenta-
se uma recessão generalizada, “um continuum depressivo, que exibe as caracte-
rísticas de uma crise cumulativa, endêmica, mais ou menos permanente e crônica,
com a perspectiva última de uma crise estrutural71” (MÉSZÁROS, 2002, p.
796, grifos do autor). Está-se diante, rigorosamente, de uma crise inédita,
profunda e acentuada.

70
Netto e Braz (2009, p. 196) anotam que, “Entre 1950 e 1970, a produção industrial
dos países capitalistas desenvolvidos aumentou, no seu conjunto, 2,8 vezes [...]; a pro-
dução industrial norte-americana cresceu 5,0% entre 1940 e 1966; entre 1947 e 1966, a
do Japão cresceu 9,6% e a dos seis países então reunidos na Comunidade Econômica
Europeia cresceu 8,9%”.
71
Tendo em vista que as interpretações acerca da crise atual não são unívocas, aqui
entendemo-la como sendo uma crise estrutural, nos termos apontados por Mészáros
(2002). As crises resultam das contradições produzidas pelo próprio sistema capitalista.
Historicamente, o sóciometabolismo vigente se deparou com várias conjunturas críti-
cas que interromperam por um período seu ciclo autorreprodutivo, sendo retomado
na sequência com o apoio direto do Estado. A crise que se arrasta desde os idos dos
anos 1970 até os dias de hoje se difere de todas as demais porque não se restringe a um
país, não se concentra em um ramo específico da economia, é contínua, cumulativa,
crônica, tem um modo de ser rastejante; seu alcance é global e seu caráter universal.
187
O Estado, seguindo o receituário do neoliberalismo, tem exibido seu
autoritarismo:

O discurso sobre a ameaça do crime ou do terrorismo; as interven-


ções militares internacionais e os bombardeios com drones; a violên-
cia policial racial e economicamente seletiva; as recorrentes “ondas”
mundiais de manifestações populares e o caráter geralmente brutal
das respostas governamentais, seja no Brasil, nos EUA, ou na Tur-
quia; a normalização da violência sistemática como recurso corri-
queiro da administração pública, das Unidades de Polícia Pacifica-
dora, no Rio de Janeiro, às Zonas Urbanas Sensíveis de Paris: todos
esses fenômenos marcam uma época em que o Estado, de bom
grado, declara-se como necessariamente violento (OLIVEIRA, 2016, p. 112-
113, grifos do autor).

O Estado, necessariamente violento, adota o neoliberalismo e consuma um


rol de “contrarreformas” nos países centrais e na periferia do sistema com a
finalidade de facilitar as políticas de liberalização dos fluxos de capital; a desre-
gulamentação dos mercados financeiros nacionais e das relações de trabalho;
as privatizações. As estratégias capitaneadas pelo Estado direcionam-se, com
as devidas mediações, para promover os meios favoráveis à valorização do ca-
pital em sua fuga do setor produtivo para a esfera financeira, onde atua predo-
minantemente de forma especulativa. É evidente que “nada disso pôde acon-
tecer sem uma dose gigantesca de repressão ao movimento de trabalhadores
organizados que, quase em toda parte, foi derrotado principalmente através da
violência estatal”, “deixando o caminho aberto para as chamadas ‘contrarrefor-
mas’ neoliberais” (OLIVEIRA, 2016, p. 125).
A violência estatal, no contexto da crise estrutural do capital e do
Estado neoliberal, generalizou-se e, por conta disso, não é aplicada como
excepcionalidade. Permanentemente dirigida aos pobres e aos desemprega-
dos, a violência estatal se volta não mais ao disciplinamento dos trabalha-
dores para o trabalho assalariado, como ocorrera antes. Agora, “Práticas de
extermínio lento e contínuo da população empobrecida e formas de encar-
ceramento e controle territorial que simplesmente visam a contenção de
setores populacionais potencialmente explosivos” dominam “o cenário da
administração estatal” (OLIVEIRA, 2016, p. 126) aqui e em toda parte.
Nessa escala de tempo, a hipertrofia do aparato penal destinado à
punição da pobreza é um dado a ser considerado quando o assunto é a

188
violência estatal. O Estado neoliberal tem conjugado, no plano macroscó-
pico, a retração de coberturas sociais protetivas com uma política de encar-
ceramento da população mantida em realidades miseráveis. O enxugamento
dos gastos com programas sociais focalizados, direcionados para os com-
provadamente pobres, é acompanhado pelo investimento de vultosos re-
cursos na parafernália do sistema prisional. O Estado adota, estimula e fi-
nancia um pacote de medidas centralizado em mais leis, mais penalidades,
mais polícia, mais cárcere, mais armamentos, mais controle.
Os resultados dessa maximização da violência estatal na esteira da crise
estrutural do capital têm sido multifacetados. Provam-no o vertiginoso cresci-
mento da população carcerária; a deterioração das condições de vida dos de-
tentos nos presídios superlotados; as previsões orçamentárias para a área de
segurança e justiça; o extermínio de populações marginalizadas pela sociedade;
a terceirização e a privatização do sistema de segurança, um novo nicho de
mercado para o capital obter lucro; o aprofundamento da tortura e da prisão;
o tapa na cara do trabalhador favelado; os flagrantes forjados ou não; o choque
nos testículos; o saco de plástico na cabeça; os espancamentos e “sumiços”; a
articulação entre os setores penitenciário, judiciário e policial; a humilhação de
ser jogado no camburão; o spray de pimenta nos olhos; o toque de recolhi-
mento; a cultura do ódio a determinados segmentos sociais, devido à cor, à
orientação sexual, ao local de origem, à posição política; a apologia ao uso de
armas; a repressão às lutas sociais contestatórias; a atividade policial com base
na “tolerância zero”; os conflitos bélicos de larga duração etc.

Expressões da violência estatal no capitalismo brasileiro

No capitalismo dependente e subordinado, a inter-relação entre Es-


tado e capital assume tons particulares, pois a dependência72 modela condi-
ções estruturais para a economia, a sociedade e a intervenção estatal. Na

72
Aqui, o espaço não comporta largas considerações, mas cumpre dizer que a depen-
dência precisa ser pensada em uma perspectiva que foge à regra das leituras mecanicis-
tas. Essencial e estruturalmente, a dependência se conforma nos marcos de relações
produtivas desiguais expandidas pelo globo e é entendida como “uma relação de su-
bordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de
produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a re-
produção ampliada da dependência” (MARINI, 2011, p. 133). A consequência dessa
189
visão de Mauriel (2018, p. 251), a forma assumida pelo Estado nesse capi-
talismo, considerando-se seus processos econômicos e políticos, “possui
características presentes nos Estados capitalistas somadas a elementos par-
ticulares da formação dependente”.
Os países latino-americanos operam no marco da divisão internacio-
nal do trabalho adequados e controlados de acordo com os ritmos, as osci-
lações e as regras do capital internacional, proporcionando extraordinárias
taxas de lucro. Sob o signo da dependência, as classes dominantes locais,
embora subordinem-se a esse capital e aos grandes impérios econômicos,
não socializam todo o seu poder político. Aceitam e até incentivam a arti-
culação de interesses internos e externos, concentram seu poder político no
seu território nacional, resguardam a base estatal da sua dominação de classe
e mobilizam, para seu protetorado, os aparatos do Estado.
A violência estatal, uma vez engendrada nas economias dependentes,
compõe, explícita ou implicitamente, as ações do Estado no tocante à or-
ganização econômico-social com vistas a garantir a exploração da força de
trabalho, a produção de riquezas colossais e a integração dos países ao mer-
cado mundial. O exercício metódico da violência institucionalizada dá-se
desde que os europeus aventuraram-se pelos mares e ancoraram no nosso
continente, iniciando uma história em que tudo – a terra, seus frutos e sua
diversidade mineral; os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo
– incorporou-se à engrenagem mercantil do capitalismo.
Em se tratando do Brasil, a violência estatal não é algo apenas re-
cente. Pelo contrário, a tomada das grandiosas faixas territoriais pelos por-
tugueses, a aniquilação dos povos indígenas, o caráter agressivo do povoa-
mento do território, a submissão forçada dos negros ao trabalho escravo e
a instituição das relações escravistas e racistas ilustram a postura violenta do
Estado já na formação do país, praticada pelos representantes do Estado
português que atuavam diretamente aqui ou por meio do Estado nacional
constituído a partir do alcance da independência política em 1822.
O Estado brasileiro estruturou-se para exercer o papel de protagonista
interno do processo de acumulação de capital e de expansão econômica, reali-
zando as tarefas que a burguesia local, por si mesma, não tomou a cabo. Isto

relação é, para os países dependentes, sempre maior dependência. Não se supera esta
última sem a supressão das relações de produção nela envolvidas.
190
prova que inexiste desenvolvimento do capitalismo no Brasil sem uma atuação
forte e bem direcionada do Estado. Cá entre nós, o Estado possui “as fórmulas
políticas autocráticas [que] sempre prevalecem, amoldadas às novas situações
histórico-concretas da sociedade brasileira e às novas sínteses”, sem que, com
isso, anulem “suas raízes genéticas de economia subsumida aos centros mun-
diais do capitalismo” (MAZZEO, 2015, p. 26).
O florescimento e a ampliação das relações sociais capitalistas no
Brasil precisaram do braço repressivo estatal para impulsionar o pleno fun-
cionamento dos negócios locais e estrangeiros. De forma perversa e cruel,
o Estado brasileiro envidou esforços, no plano político e administrativo,
com o intuito de manter os níveis adequados de exploração e dominação
da força de trabalho, quer por meio do trabalho forçado realizado pelos
trabalhadores escravizados73, quer pela contenção violenta dos movimentos
populares que fervilharam na arena das lutas sociais do país.
O Estado brasileiro repreendeu, no decorrer do tempo, a classe traba-
lhadora, disciplinando-a, reprimindo e contendo, por vezes antevendo, qual-
quer agitação contestatória das massas. A violência aplicada pelo Estado, ins-
trumento imprescindível para a subordinação da força de trabalho aos impera-
tivos de comando do capital, auxiliou na tarefa de subvencionar o desenvolvi-
mento das forças produtivas em nossa latitude e, a nível político, de “garantir a
repressão ao movimento operário e popular, representad[a] pela legislação tra-
balhista autocrática e corporativista e pelo aparelho repressivo de uma polícia
política violenta e brutal” (MAZZEO, 1995, p. 34).
Os trabalhadores, ao se organizarem entre finais do XIX e início do sé-
culo XX, sempre precisaram agir com precaução para não incorrer em perse-
guições policiais e prisões. O temor da proliferação das colisões dos trabalha-
dores fez com que o Estado, “Além de colocar seu complexo militar a serviço
da repressão sindical, tratando as reivindicações salariais como caso de polícia,
[erguesse] um conjunto de leis que impedia a organização e as associações ope-
rárias” (SANTOS NETO, 2015, p. 212), a exemplo das leis Adolfo Gordo e a
Aníbal de Toledo. A repressão e a criminalização marcam a gênese da história

73
Vale lembrar: numa empreitada intercontinental, foram importados violentamente
pelo capital, com a total anuência do Estado, cerca de 3.650.000 negros africanos.
191
do movimento sindical brasileiro – eis porque numerosos trabalhadores, orga-
nizando-se politicamente e lutando em prol das suas reivindicações, foram pre-
sos, espancados, exilados e assassinados pelo Estado.
No período da ditadura empresarial-militar instalada através do golpe
de 1964 desfechado pela cúpula militar, a violência estatal regeu a condução
das medidas do Estado brasileiro e se irradiou por todos os poros da soci-
edade. Os governos militares, sacralizando o poder das multinacionais74 e
do capital monopolista no Brasil, tornaram nítido um Estado “antinacio-
nal”, “antidemocrático” e “antipopular” (FERNANDES, 1976) que atuou
com “soluções pelo alto” nada pacíficas. Para implementá-las, o Estado,
posto à serviço do capital, acionou a violência como técnica política e eco-
nômica, articulando-se com a burguesia financeira, nacional e imperialista,
e agindo cada vez mais em sintonia com as exigências monopolísticas.
Netto (2017, p.120, grifos do autor) afirma que na vigência da dita-
dura os “quarteis se enchiam de encarcerados, cadeias ficavam lotadas e
navios eram convertidos em prisão – e o denuncismo, praticado pelos dedos-
duros, entrou na vida cotidiana”. O golpe, espraiando o poder armado, já na
sua sequência imediata

[...] mostrou a que veio: instaurou o arbítrio e a violência. Governa-


dores legítima e democraticamente eleitos foram depostos manu mi-
litari (o de Pernambuco, Miguel Arraes, o de Sergipe, Seixas Dória e,
meses depois, em novembro, Mauro Borges, de Goiás) e políticos
de oposição jogados nas cadeias. Irrompeu o terrorismo: líderes sin-
dicais, estudantis e dirigentes de organizações nacionalistas e popu-
lares foram presos arbitrariamente e submetidos a tratamento vexa-
tório; o movimento sindical passou por uma “operação limpeza”: de
abril a dezembro, o novo regime interveio em 452 sindicatos, 43 fe-
derações e 3 confederações de trabalhadores urbanos; membros das
Ligas Camponesas foram perseguidos e encarcerados; assassinatos
foram cometidos (oficialmente, apenas 7 civis – nenhum militar –
foram mortos no dia 1º de abril; ao longo do ano, morreram mais
13 pessoas) (NETTO, 2017, p. 120).

À ocasião do Estado ditatorial, crescendo e diversificando-se a ma-


quinaria tecnocrática civil e militar, a violência foi operada de maneira alta-
mente aparelhada e concentrada, tendo um alvo bem definido:

74
Em especial, norte-americanas, alemãs, britânicas, francesas, belgas e suíças.
192
[...] centenas de brasileiros escaparam do terror saindo pelas frontei-
ras do sul e levas de exilados refugiaram-se em embaixadas estran-
geiras; milhares de domicílios, escritórios e consultórios viram-se in-
vadidos e varejados; expurgo rigoroso iniciou-se nas Forças Arma-
das e em organismos estatais e autarquias; bibliotecas foram objeto
de ataques e assaltos policiais; o ódio dos violadores da legalidade
destruiu espaços de organização e instituições culturais: no Rio de
Janeiros, a sede nacional da UNE foi incendiada e a do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros/ISEB, vandalizada; jornais naciona-
listas e democráticos (os poucos que existiam), editoras e livrarias
foram empastelados e fechados (NETTO, 2017, p. 120).

De acordo com a Comissão Nacional da Verdade (2014), cerca de 20


mil pessoas foram torturadas e 434 entraram na lista de desaparecidas e/ou
assassinadas pelo Estado brasileiro. Detenção e prisão ilegal, atos arbitrá-
rios, tortura, banimentos forçados, execuções, ocultação de cadáver por
agentes estatais, repressão estudantil75, violência sexual, violência de gênero
e violência contra crianças e adolescentes, violações massivas de direitos
humanos e restrições à liberdade de comunicação foram algumas atrocida-
des da violência estatal na ditadura.
Ao esquadrinhar a “ditadura do grande capital”, Ianni (2019) conclui que
a violência estatal transformou-se em poderosa força produtiva. Ao controlar
os trabalhadores, potencializando a exploração e a dominação da força de tra-
balho, a violência estatal favoreceu a produção de taxas elevadas de mais-valia.
O sistema federal de repressão operou sobre a força de trabalho e as relações
de produção, impondo hierarquia, disciplina e severas punições. Associada à
violência política, traduzida na prisão, processo, ameaça, sequestro, desapareci-
mentos etc., a violência policial e militar penetrou os locais de trabalho na fá-
brica, na fazenda, no latifúndio e no escritório. A violência estatal, afiança o
autor, constituiu, no âmbito das relações de produção, uma potência econô-
mica, reforçando a subordinação dos trabalhadores.
A natureza despótica do Estado é identificada também no chamado
“holocausto brasileiro”, o qual resultou em 60 mil mortes no maior hospício

75
O DOI (Departamento de Operações e Informações), o Codi (Centro de Operações
de Defesa Interna) e o Deops (Departamento de Ordem Política e Social) foram orga-
nizações especializadas na prática da tortura e da perseguição às principais lideranças
estudantis nos anos em que vigeu a ditadura.
193
do Brasil, conhecido por “Colônia76” e localizado na região da cidade de
Barbacena, em Minas Gerais. Perpetrado pelo Estado no interior da estru-
tura hospitalar entre 1930 e 1980, o “holocausto brasileiro”, apontam as
narrativas de Arbex (2013), significou um verdadeiro extermínio, dizimando
pelo menos duas gerações em 18.250 dias de horror, sempre com a conve-
niência de interventores federais, governadores do estado de Minas Gerais,
médicos, funcionários e setores conservadores da sociedade.
O enredo da violência estatal não findou com a redemocratização da
sociedade brasileira. Diante dos efeitos da crise estrutural no Brasil, a vio-
lência estatal multiplica-se no país, compondo o leque de ações sociopolíti-
cas mobilizadas pelo Estado a partir dos anos 1990 na tentativa de recuperar
os processos de expansão e valorização do capital, donde a incorporação
do neoliberalismo na condução das políticas econômicas e sociais dos go-
vernos sucedidos no lapso temporal das últimas três décadas. Tem-se bus-
cado, com a ofensiva edificada contra os trabalhadores, recompor as estru-
turas de dominação, estabilizar o dinamismo da economia e fortalecer a he-
gemonia burguesa na trama do capitalismo dependente e subordinado.
Os efeitos da crise no Brasil requisitam do Estado uma adaptação aos
fluxos do capitalismo mundial, implantando-se, para socorrer o capital, con-
trarreformas compostas por “mudanças estruturais regressivas sobre os tra-
balhadores e a massa da população brasileira, que [são] também antinacio-
nais e antidemocráticas” (BEHRING, 2008, p. 281). O Estado, aumen-
tando sua “governança”, responsabiliza-se por efetivar intervenções e polí-
ticas que fortalecem o mercado, atuando – com todos os meios que estão
ao seu alcance, incluindo os mais violentos – para reverter as taxas de lucro
declinantes e acirrar os patamares de extração da mais-valia.
As contrarreformas promovidas pelo Estado brasileiro assumem, no ins-
tável solo de uma economia em crise, pelo menos três traços distintos, porém,
de acordo com a autora, intrinsicamente articulados quanto à sua efetivação:

76
Nessa instituição, o resultado da falta de critério médico para a triagem das internações
foi o seguinte: mais ou menos 70% dos atendidos não apresentavam nenhum quadro de
adoecimento mental. O “Colônia” separava os pacientes por sexo, idade e características
físicas e recebia todos aqueles que “eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública”, tor-
nando-se, com isso, o “destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães sol-
teiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de
indesejados, inclusive os chamados insanos” (ARBEX, 2013, p. 23).
194
1) a flexibilização nas relações de trabalho, apontada como saída da crise
ao reduzir os custos com os contratos de trabalho, retirando o Estado da
regulação dessas relações. No meio do furacão da crise, os trabalhadores
são convocados pelo Estado neoliberal brasileiro a pagar os “custos do tra-
balho” mesmo com a contenção do aumento de salários, a retração das va-
gas de emprego e a perda de direitos trabalhistas. Além disso, ao estimular
as formas flexíveis de trabalho, o Estado amplia e intensifica a exploração
da força de trabalho, contribui para o avanço da precarização do trabalho
(informal, intermitente, temporário, terceirizado, desprotegido) e faz cres-
cer o desemprego generalizadamente, ampliando-se o contingente de indi-
víduos criminalizados, punidos e controlados pela violência estatal.
2) o programa de privatizações que aprofunda a dependência da economia
brasileira aos ditames do capital estrangeiro. Por meio dele, o Estado, des-
centralizando suas funções com base no modelo gerencial e defendendo os
interesses de grandes conglomerados financeiros, transfere para o setor pri-
vado a tarefa da produção, tendo prejuízos incalculáveis e arcando com des-
pesas ao vender as estatais. Bem pesadas as coisas, a privatização é uma
entrega77 das estatais.
3) a destruição dos direitos sociais, sobretudo daqueles integrantes da se-
guridade social, atingidos pelos programas de austeridade. Sob a retórica de
que o Estado deve intervir o mínimo na área social, desmontam-se, na fase
atual de mundialização do capital, os sistemas de proteção garantidores de
direitos sociais conquistados por meio de muitas lutas. As contrarreformas
enquadram as políticas sociais na lógica do “ajuste fiscal” e do controle do
teto dos gastos públicos. A universalização dos serviços sociais prevista pe-
las políticas sociais cede lugar à focalização na população que não pode

77
Ou, nos termos de Biondi (2003, p. 68), uma “privadoação”, tendo em vista que “o
governo diz [à época da pesquisa do autor] que arrecadou 85,2 bilhões de reais com as
privatizações. Mas contas ‘escondidas’ mostram que há um valor maior, de 87,6 bilhões
de reais, a ser descontado daquela ‘entrada de caixa’. E note-se: esse levantamento é
apenas parcial, faltando ainda calcular itens importantes [...] como gastos com demis-
sões, perdas de Imposto de Renda, perda dos lucros das estatais privatizadas etc.” Ao
seguir a trilha crítica do autor, Behring (2003, p. 202) pontua que “além de não abater
em um centavo as dívidas externa e interna, tudo indica que o processo de privatização
representou uma profunda desnacionalização do parque industrial de base do país e até
a destruição de alguns setores intermediários.”
195
consumi-los, demandando-os ao Estado. Este age, em aquiescência ao pa-
radigma neoliberal, de modo pontual, focalizado, minimalista, centralizando
majoritariamente suas ações na pobreza, incentivando as parcerias público-
privadas e transmutando as políticas sociais em serviços privados.
As medidas contrarreformistas, retraindo a oferta de serviços sociais
públicos para a população e desestruturando a rede de proteção social, são
conjugadas com a tendência de acirramento da violenta estatal contra a
classe trabalhadora, ilustrada na criminalização da pobreza, na judicialização
dos protestos sociais, na repressão política aberta e na militarização enceta-
das pelo Estado. Ao fim e ao cabo,

Exercer o controle penal sobre os socialmente descartáveis pelo ca-


pital e criminalizar as lutas e movimentos sociais é associar pobreza
à criminalidade, é transformar a “questão social” em uma questão
individual e moral, é deslegitimar as organizações e lutas das classes
subalternas, é criminalizar a visibilidade pública e política das expres-
sões da “questão social” e dos sujeitos — individuais e coletivos —
que reivindicam e/ou defendem direitos, que confrontam a ordem
hegemônica capitalista (DURIGUETTO, 2017, p. 105).

São inúmeras, numerosas, as expressões da política repressiva estatal


calcada no controle penal. O Estado tem promovido a “contenção e a adminis-
tração pelo cárcere, pela assistencialização ou pelo extermínio dos ‘pobres’, dos de-
sempregados” (DURIGUETTO, 2017, p. 108, grifos da autora); operado a
expansão da privatização do sistema prisional, em particular através de for-
mação de parcerias com o setor privado, do aumento da contratação de
agentes policiais e da constituição de uma política de cariz policial-punitivo
ancorada na “tolerância zero”; encarcerado massivamente (até 2019, o nú-
mero de pessoas em situação de privação de liberdade gravitou em torno
de 755.274 pessoas; sendo que, deste universo, 748.009 pessoas, em sua
maioria negras, com baixa escolaridade e periféricas, compuseram a popu-
lação carcerária); executado a população jovem, negra, desempregada e, por
vezes, cooptada pela economia ilegal do tráfico de drogas; motivado atitu-
des racistas, LGBTfóbicas, sexistas, xenofóbicas e autoritárias; defendido a
redução da maioridade penal, a tortura nos cárceres e na delegacias, a mili-
tarização dos territórios; criminalizado a “questão social” e os conflitos dela
inseparáveis; removido abusiva e arbitrariamente os moradores de áreas es-
tratégicas para a valorização do capital.
196
A violência policial, nesse cenário de práticas repressivas e punitivas
estatais, tem crescido. O Disque 100, conhecido como Disque Direitos Hu-
manos, é um serviço que recebe, examina e encaminha denúncias de várias
naturezas78, inclusive de violências cometidas por agentes de segurança pú-
blica. A tabela a seguir apresenta um panorama do número de casos de vi-
olência policial denunciados, gratuita e anonimamente, pela sociedade no
intervalo de 2011 a 2019 no referido serviço.

Tabela 1 - Número de denúncias de Violência policial por região no Brasil


Norte Nordeste Centro-oeste Sudeste Sul
2011 27 133 57 160 70
2012 77 202 134 310 95
2013 140 317 153 415 149
2014 148 355 183 529 140
2015 126 257 151 313 141
2016 98 249 153 423 84
2017 140 404 149 492 134
2018 125 446 176 755 134
2019 150 377 162 685 112
Fonte: Disque 100. Elaboração dos autores (2021).

A região sudeste, como se pode notar, lidera o número de casos de


denúncia de violência policial. Nos anos 2018 e 2019, foram 755 e 685 de-
núncias protocoladas, respectivamente. O nordeste também ganha visibili-
dade com 446 casos denunciados em 2018 e 377 em 2019. Na região norte,
o Pará é o estado com mais denúncias, concentrando, além disso, os assas-
sinatos por conflitos no campo.
O número de mortes em decorrência de intervenções policiais no Brasil
é assombroso. Temos a polícia que mais mata no mundo. Em 2019, 2.397 pes-
soas foram assinadas por policiais ativos. Somente no primeiro semestre de

78
Abuso financeiro e econômico, violência patrimonial, discriminação, exploração do
trabalho infantil, negligência, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, violência
física, violência institucional (incluindo-se a policial), violência psicológica, violência
sexual, dentre outras.
197
2020, em pleno pico de disseminação do novo coronavírus, esse número foi
de 3.148 pessoas79, uma média de 17 vidas ceifadas por dia e um aumento de
7% em relação ao mesmo período do ano anterior. O Rio de Janeiro foi o
estado mais atingido pelas mortes por policiais (775 vítimas) e o Amapá teve a
maior taxa de letalidade (8,1 por 100 mil habitantes) nos seis primeiros meses
de 2020. Mas, a polícia que mais mata é, ao mesmo tempo, a polícia que mais
morre mundialmente. Nesse espaço de tempo, 103 policiais da ativa morreram,
a maior parte no estado de São Paulo (28 profissionais).
Os dados reunidos pelo site Uol apontam que, em 2020, os homens
constituíram 99% das vítimas das práticas repressivas policiais. Neste per-
centual, em termos de faixa etária os jovens são maioria: 23,5% tinham en-
tre 15 e 19 anos; 31, 2% tinham entre 20 e 24 anos; 19,1% tinham entre 25
e 29 anos80. Dos 99%, 79,1% são negros que foram brutalmente assassina-
dos, denotando que a violência estrutural e racial contra a população negra
brasileira é diária, explícita e estarrecedora, consolidando-se na violência policial
e/ou na violência institucional particular, como demonstra o caso de João
Alberto Silveira Freitas, homem negro agredido e morto por seguranças de
um supermercado no Rio Grande do Sul.
A violência estatal evidencia-se, ainda, na repressão às manifestações
do funcionalismo público federal, composto por uma camada de trabalha-
dores com histórico de organização e intervenção. A pesquisa de Ponce
(2014) revela a notória frequência81 das greves por eles encabeçadas contra
a retirada de direitos, as privatizações, o desfinanciamento das políticas so-
ciais e outras arbitrariedades estatais. As estratégias movimentadas pelo Es-
tado para conter os movimentos grevistas e dispersar suas reivindicações

79 Disponível:

<https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/03/no-de-pessoas-
mortas-pela-policia-cresce-no-brasil-no-1o-semestre-em-plena-pandemia-assassina-
tos-de-policiais-tambem-sobem.ghtml>. Acesso em: 20 jan. 2021.
80 Disponível em:

<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/18/oito-a-cada-
10-mortos-pela-policia-no-brasil-sao-negros-aponta-relatorio.htm?cmpid=copiae-
cola>. Acesso em: 20 jan. 2021.
81 O referido autor aponta que, entre 1995-1998 (FHC), ocorreram 61 greves; 1999-2002

(FHC), 64 greves; 2003-2006 (Lula), 118 greves; e entre 2007-2009 (Lula), 65 greves.
198
são, além do corte do ponto, a vigilância policial, coerção, intimidação, in-
quirições, abertura de processos judiciais e administrativos, assédio moral,
perseguições e prisões.
O campo brasileiro não está incólume à força policial usada intenci-
onalmente e às demais medidas violentas do Estado. A violência estatal faz-
se presente para proteger a propriedade privada, dominar os povos tradici-
onais, manter o latifúndio, o agronegócio e a “política coronelista” impe-
rante no norte e no nordeste do nosso país. Na tabela abaixo, tem-se o
quantitativo de conflitos no campo sistematizado e divulgado nos relatórios
da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Tabela 2 - Comparação dos Conflitos no Campo Brasil (2008 - 2019)


2008 2009 2010 2011 2012 2013
Nº de conflitos 1.170 1.184 1.186 1.363 1.364 1.266
Assassinatos 28 26 34 29 36 34
Pessoas envol-
502.390 628.009 559.401 600.925 648.515 573.118
vidas
Hectares 6.568.755 15.116.590 13.312.343 14.410.626 13.181.570 6.228.667
2014 2015 2016 2017 2018 2019
Nº de conflitos 1.286 1.217 1.536 1.431 1.489 1.833
Assassinatos 36 50 61 71 28 32
Pessoas envol- 859.023
817.102 816.837 909.843 708.520 960.342
vidas
Hectares 8.134.241 21.387.160 23.697.019 37.019.114 39.425.494 53.313.244
Fonte: CPT (2017; 2019). Adaptação dos autores (2021).

Mais que algarismos, a tabela denuncia as vidas ceifadas em meio à


conflituosidade exortada no campo. O mesmo Estado que reprime nos cen-
tros urbanos utiliza sua maquinaria repressiva nas zonas rurais, inclusive
para criminalizar as lutas pela terra e trucidar líderes camponeses. O Estado
brasileiro é um dos principais agentes de deflagração de conflitos no campo,
acirrando-os sobremaneira nos últimos anos. A violência das oligarquias
coadunada com a violência estatal (através de uma ação direta ou da “omis-
são dolosa” do Estado) são realidades persistentes no campo, estendendo-
se das ameaças de expulsão à destruição de bens, à coação física e psicoló-
gica, aos espancamentos e assassinatos.
A questão da posse e propriedade da terra é essencial para o capital;
por isso, a utilização, em escala particularmente ampla, da violência policial
para “reintegrar” sua posse. A coerção tem sido, via de regra, o caminho
adotado para zelar a propriedade privada da terra, atingindo caboclos, indí-
genas, quilombolas, ribeirinhas, peões, moradores, arrendatários, sitiantes e
199
outros tantos sujeitos que, nos conflitos, enfrentam os funcionários do go-
verno, a polícia ou o pistoleiro a serviço do grileiro, latifundiário, fazendeiro
ou empresário. Assim se propaga cada vez mais o despotismo do capital
sobre os trabalhadores rurais brasileiros, rearticulando-os às necessidades
da acumulação capitalista e submetendo-os à dominação de classe.
Um último aspecto a ser destacado nesse momento final da nossa
exposição sobre a violência estatal é o fato de que as forças armadas brasi-
leiras no decorrer do tempo ocuparam, direta ou indiretamente, o comando
político do Estado. No cargo máximo, os militares foram os primeiros pre-
sidentes, estiveram na chefia direto da ditadura e, atualmente, a composição
do governo Bolsonaro é ocupada pela ala militar no legislativo e no execu-
tivo (cerca de 11 ministros – número acima do governo de Figueiredo),
conformando-se uma “ordem democrática militarizada”. O atual presidente
chegou ao poder trazendo consigo uma legião de militares que, como de-
fendido por ele mesmo nos pronunciamentos pré-eleições, teriam compe-
tência e honestidade para auxiliá-lo na administração do país e no fim da
corrupção na política.
O governo Bolsonaro, dirigido por um Capitão reformado do Exército
autoproclamado conservador, de extrema-direita, preconceituoso e adepto do
fundamentalismo religioso evangélico82, acentua, para manter a “ordem e o
progresso”, a violência estatal, declarando guerra ferrenha aos segmentos mais
pauperizados, à imprensa, aos manifestantes, à ciência, à vida, aos direitos, aos
trabalhadores, aos movimentos cívicos. Suas falas, regradas de destempero ver-
bal, possuem agressividade e são desrespeitosas, anti-institucionais e incentiva-
doras de ações violentas concretas no interior do Estado e da sociedade como
um todo. Pela força do cargo, Bolsonaro tem tomado posições extremadas
para se mostrar defensor e restaurador da “ordem perdida”, “endireitando-a”.
Ao invés de frear o recurso à repressão estatal, o governo brasileiro, admirador
da experiência ditatorial, tem exponenciado sadicamente a violência nos dias

82
Houve, nos últimos anos, o crescimento da bancada evangélica nos estados, com
destaque para o Rio de Janeiro, e no parlamento. Com esta bancada, as diversas pautas
conservadoras ganharam vozes e leis regressivas. Em termos quantitativos, hoje são 84
deputados federais e 7 senadores evangélicos. O PSL conseguiu eleger, na eleição de
2018, 52 deputados federais, configurando-se como a segunda maior bancada, 4 sena-
dores e 3 governadores.
200
atuais – este é o preço pago pela sociedade brasileira por ter elevado ele e o seu
projeto à Presidência da República.
Mais recentemente, em plena pandemia da Covid-19, a violência es-
tatal cometida sob o comando do governo Bolsonaro ficou expressa nas
legislações com contornos genocidas identificados na Portaria n. 135, do
Ministério de Minas e Energia – que reforçou a manutenção dos trabalha-
dores na atividade de mineração para atender as demandas do capital inter-
nacional em territórios de comunidades tradicionais vulneráveis à prolifera-
ção do vírus – e no veto do presidente ao acesso universal à água potável
pelas comunidades indígenas, por meio Projeto de Lei nº 1.142, de 2020,
durante o quadro pandêmico; no incentivo ao uso da cloroquina, sem ne-
nhuma comprovação científica, forçando o Ministério da Saúde a incluí-la
no tratamento de pacientes infectados; no veto à obrigação de usar másca-
ras em locais como igrejas, comércio, escolas e presídios, aumentando as
chances de contaminação; na defesa da economia em detrimento da vida;
nas falhas graves, negligentes, irresponsáveis e mortais na condução insen-
sível do enfrentamento à pandemia; no menosprezo, descaso e negacio-
nismo do presidente.

Considerações finais

A sociedade atual, em escala global e também na particularidade bra-


sileira, é um verdadeiro laboratório para se compreender a tendência de
acirramento da violência estatal em decorrência dos processos deslanchados
pela crise estrutural do capital e das respostas estatais aos problemas sociais
avolumados nesta conjuntura absolutamente adversa. Ontem e hoje, os me-
canismos repressivos de que se vale o Estado para administrar a ordem so-
cietária comandada pelo capital têm assegurado, não sem importantes resis-
tências, a exploração da força de trabalho, a expropriação da riqueza e a
dominação de classe, controlando e punindo severamente os trabalhadores
que habitam nas favelas, nos centros urbanos e no campo.
As reflexões realizadas no decorrer deste artigo permitem-nos chegar
à conclusão de que há uma explosão da violência cotidiana cometida pelo
Estado e por seus agentes autorizados, tornando-se um fenômeno persis-
tente no cenário econômico internacional e nacional. A intensificação – de-
certo preocupante – da violência estatal esboçada acima ocorre paralela ao
201
avanço desenfreado das forças conservadoras, autoritárias, militarizantes e
genocidas que encontram guarida nas instâncias político-administrativas do
Estado, sobretudo no Brasil. É no estudo e no enfrentamento delas que
devemos concentrar nossas forças na perspectiva de construção de outra
sociabilidade, emancipada do capital e do seu Estado, onde a propriedade
privada, a exploração da força de trabalho, a dominação de classe e a ex-
propriação da riqueza, realidades que perpetuam a violência estatal, jamais
poderão existir. A tarefa é árdua, mas em tudo possível e necessária.

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204
SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)

Albany Mendonça Silva


Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia (UFRB). Graduada em Serviço Social e mestre em Educação
pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), doutora em Serviço Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutora pela UFS.
Vice- líder do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho, Formação Profissi-
onal e Serviço Social, certificado pelo CNPq.
E-mail: albanyms@gmail.com

Andréa Alice Rodrigues Silva


Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia (UFRB). Graduada em Serviço Social pela Universidade Es-
tadual do Ceará (UECE). Mestre e Doutora em Serviço Social pela Univer-
sidade Federal de Pernambuco (UFPE). Membro do Grupo de Estudos e
Pesquisa Trabalho, Formação Profissional e Serviço Social, certificado pelo
CNPq. E-mail: andreaalice@ufrb.edu.br

Artur Bispo dos Santos Neto


Pós-doutorado em Filosofia. Docente do Programa de Pós-Graduação de
Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas. Participa do Instituto
Trabalho Associado e do Grupo de Pesquisa em Reprodução Social.
E-mail: arturbisponeto@gmail.com

Caroline dos Santos Lima


Graduação em Serviço Social (UFRB). Membro do grupo de Estudos e
pesquisa Trabalho, Formação Profissional e Serviço Social, certificado pelo
CNPq. E-mail: caroline.santtos.lima@gmail.com

Elaine Rossetti Behring


Professora Titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Doutora pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
E-mail: elan.rosbeh@uol.com.br
205
Everton Melo da Silva
Assistente social. Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-gradua-
ção em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas. Professor Ad-
junto do curso de Serviço Social da UFAL/Campus Arapiraca/Unidade
Educacional de Palmeira dos Índios. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa
Economia Política e Sociedade (GEPEPS) e membro do Grupo de Estudos
e Pesquisas Marxista/UFS. E-mail: evertonmsilva@outlook.com.br

Fabrício Rodrigues da Silva


Professor substituto da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB. Douto-
rando pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: fabricioico@hotmail.com

Fernando de Araújo Bizerra


Assistente social. Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-gradua-
ção em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas. Professor Ad-
junto e Coordenador do Curso de Serviço Social da UFAL/Campus Arapi-
raca/Unidade Educacional de Palmeira dos Índios. Vice-líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa Economia Política e Sociedade (GEPEPS).
E-mail: fernando.bizerra@palmeira.ufal.br

Georgette Ramírez Kuri


Licenciada, maestra y doctora en Estudios Latinoamericanos por la Univer-
sidad Nacional Autónoma de México (UNAM) y docente en la Facultad de
Filosofía y Letras de dicha institución. Realizó estancias internacionales de
posgrado en la Universidad Federal de Río de Janeiro (UFRJ) en 2016 y en
la Universidad de Buenos Aires (UBA) en 2019.
E-mail: georgette_kuri@hotmail.com

Jordeana Davi
Professora Associada da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Dou-
tora pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: jordeana.pb.010@uol.com.br

206
Lucas Bezerra
Doutor em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto da Faculdade de Ser-
viço Social da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro do
Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente. Integra o
Núcleo Realidade Brasileira da Escola Nacional Paulo Freire.
E-mail: lucas.araujo@fasso.ufal.br

Paulo Roberto Felix dos Santos


Assistente Social. Doutor em Serviço Social (PPGSS/UFRJ). Docente do
Curso de Graduação em Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social (UFS). Tutor do Programa de Educação Tutorial (PET)
Serviço Social da UFS. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas Mar-
xistas (GEPEM-UFS). E-mail: fellix.ufs@gmail.com

Rebeca Gomes de Oliveira Silva


Assistente social, mestre e doutoranda em Serviço Social pela Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: rebeca.gomess@ufpe.br

Tales Fornazier
Assistente Social. Doutorando em Serviço Social (PUC-SP). Professor do
Curso de Serviço Social da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)/Campus Mucuri. Vice-líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Fundamentos, Formação e Exercício Profissional em
Serviço Social (GEFEPSS)-UFTM. Pesquisador e militante antirracista.
E-mail: taleswf@live.com

Thays Fidelis
Assistente social, mestra e doutoranda em Serviço Social pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL) com instância de doutorado sanduíche no Pro-
grama de Posgrado en Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional
Autónoma de México (UNAM).
E-mail: thays.karoll@gmail.com

207
Tibério Lima Oliveira
Assistente social. Doutor em Política Social pela Universidade de Brasília
(UnB). Atualmente, é professor substituto no Departamento de Serviço So-
cial/SER da Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: tiberio_berin@hotmail.com

208
WWW.PHILLOSACADEMY.COM
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