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ESTADO E DOMINAÇÃO DE
CLASSE
expressões contemporâneas
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DIREÇÃO EDITORIAL: Willames Frank
Todos os livros publicados pela Editora Phillos estão sob os direitos da Creative
Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
S586
SILVA, Everton Melo da; BIZERRA, Fernando de Araújo.
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Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra
(Orgs.)
ESTADO E DOMINAÇÃO DE
CLASSE
expressões contemporâneas
5
Direção Editorial
Willames Frank da Silva Nascimento
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SUMÁRIO
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CAPÍTULO 7 ............................................................................ 114
O Estado e os usineiros na zona da cana nordestina
Lucas Bezerra
CAPÍTULO 8 ............................................................................ 127
“O Estado e o mercado (des)fetichizado” e a questão das
sexualidades dissidentes
Tibério Lima Oliveira
CAPÍTULO 9 ............................................................................ 145
“Quantos mais vão ter que morrer para que essa guerra acabe?”: a
conivência do Estado brasileiro na reprodução do racismo estrutural
Tales Fornazier
CAPÍTULO 10 .......................................................................... 162
O “grande negócio” da prisão: Estado punitivo e a
mercadorização do controle penal em Sergipe
Paulo Roberto Felix dos Santos
CAPÍTULO 11 .......................................................................... 178
A violência estatal como o modus operandi do
Estado no Brasil
Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra
SOBRE OS(AS) AUTORES(AS) .............................................. 205
8
PREFÁCIO
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quanto ao “cercamento” e à captura das condições necessárias para a reprodu-
ção da classe trabalhadora. Ao fazê-lo, a autora traz estas questões sem deixar
de citar os processos de resistência envidados pela classe trabalhadora, apon-
tando as contradições vivas do tempo histórico.
Mantendo a perspectiva crítica que acompanha toda a coletânea, o
texto de Thays Fidelis e Georgette Ramírez Kuri prioriza o debate do Estado
nas particularidades e marcas da América Latina. Na linha do primeiro texto
desta obra, o escrito observa a função geral do Estado no controle dos três
defeitos estruturais do sistema do capital apontados por Mészáros, a saber:
a separação entre produção e controle, produção e consumo e produção e
circulação. No enfrentamento da terceira contradição, faz-se necessário o
crescente autoritarismo nas relações do Estado nos países centrais e perifé-
ricos para o aprofundamento da exploração do trabalho. Neste contexto, o
texto revela os caminhos da industrialização dependente na América Latina,
lembrando que o trânsito da economia agrária para a industrial não se dá
mediante um rompimento brusco e total com as formas de produção ante-
riores. Ao invés, o que se verifica é um processo lento e contínuo de supe-
ração que vai conformando o capitalismo dependente. Adensa-se ainda no
texto a caracterização da dependência com base nas reflexões de Rui Mauro
Marini, que adiciona o conceito de Estado de contrainsurgência, caracterís-
tico por agregar as tarefas militares no controle autoritário das lutas popu-
lares na América Latina, com fins de reestabelecimento das condições nor-
mais de acumulação e reprodução capitalista na região, atualizando sempre
as formas de repressão e criminalização dos movimentos sociais.
O livro não deixa de fora o caráter classista e destruidor do Estado
no atendimento aos interesses do capital quando se trata da questão ambi-
ental. É o que se pode ler no quarto capítulo, com a produção de Everton
Melo da Silva e de Artur Bispo dos Santos Neto. O levantamento histórico da
intervenção do Estado brasileiro na Amazônia para fins econômicos é ex-
posto no texto; bem como a preservação da natureza e das populações tra-
dicionais vista pelos órgãos oficiais como “obstáculos” ao desenvolvimento
econômico capitalista. Nos projetos e legislações foi preciso expulsar os
povos e as comunidades tradicionais dos seus territórios, valendo-se o Es-
tado brasileiro da violência normativo-legal e/ou das forças armadas. Não
à toa, o Brasil é o país que lidera mundialmente as mortes por questões
vinculadas à terra.
Albany Mendonça Silva, Andréa Alice Rodrigues Silva e Caroline dos Santos
Lima expressam a concretude do Estado a partir dos dilemas da democratiza-
ção do ensino superior na contemporaneidade. Situando a política educacional
no contexto da crise do capital, as autoras mostram a neoliberalização do Es-
tado, os impactos nas políticas públicas e a intensificação da mercantilização da
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educação. No decorrer da exposição, consideram, diante das contradições pre-
sentes, os avanços na democratização do ensino superior com a garantia de
vagas oriundas das políticas afirmativas, ao tempo que alertam para o caráter
regressivo da contrarreforma do Estado e para as ameaças deste processo às
conquistas realizadas.
O tema do fundo público e do financiamento da reprodução social da
força de trabalho no Brasil adentra o sexto capítulo da presente coletânea, des-
tacando a particularidade conjuntural do Estado no governo Bolsonaro e o seu
projeto que aliou ultraconservadorismo, ultraneoliberalismo e neofascismo.
Partindo da formação social do Estado brasileiro, os pesquisadores Fabrício Ro-
drigues da Silva, Elaine Rossetti Behring e Jordeana Davi desnudam a aliança entre
capitalismo clássico e relações sociais de produção assentadas na inserção es-
crava da força de trabalho negra, tornando também escravos os povos originá-
rios, com a mediação fundamental do Estado.
Com a exposição dos dados do governo Bolsonaro na Função Tra-
balho e Previdência Social, os pesquisadores desvelam as condições da
classe trabalhadora entre 2019 e 2021, denunciando a letalidade aferida no
encolhimento de 17% da Função Trabalho no período analisado, atingindo
em 2021 as ações orçamentárias seguro-desemprego e abono salarial, com
reduções, respectivamente, de 17% e 49%, comparado com o orçamento
de 2020. No campo da Previdência Social, a letalidade se expressou incial-
mente pela contrarreforma previdenciária aprovada através da Emenda
Constitucional 103/2019, com o insignificante crescimento na Função Pre-
vidência Social, na ordem de 15% no período analisado. Diante dos dados
anunciados, o escrito chama atenção para a continuidade do bolsonarismo
na cultura política, mesmo após sua derrota eleitoral, sendo necessário seu
combate, tendo em vista os interesses da classe trabalhadora.
A concretude classista do Estado é também revelada no sétimo texto da
coletânea, com Lucas Bezerra nos mostrando o Estado e os usineiros na zona
da cana nordestina. O Estado é apontado como decisivo na dinâmica da zona
da cana ao viabilizar as condições necessárias à reprodução ampliada do capital
na agricultura mediante o fornecimento de incentivos fiscais, tributários e in-
fraestruturais. Fiador do agronegócio, o Estado tem este papel histórico forta-
lecido pela presença direta do patronato rural. Este trata as instâncias estatais
como sendo suas, de suas famílias, de seus grupos empresariais; moderniza-se
assimilando o que lhe convém das novidades do desenvolvimento capitalista,
sem perder seus traços mais antigos e típicos.
Tibério Lima Oliveira contribui com uma revisão bibliográfica de con-
ceitos como Estado, mercado e sexualidades, resgatando os fundamentos
marxistas reveladores da dinâmica da vida na sociedade burguesa que
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oprime e limita as expressões da diversidade sexual. Recuperando os estu-
dos marxianos sobre o Estado, o autor considera ainda o pensamento
gramsciano e sua atualidade para o desenvolvimento do debate político so-
bre o Estado. O pesquisador situa teoricamente estes aspectos, evidenci-
ando, em seguida, a contemporaneidade da neoliberalização do Estado e de
toda a vida social. No debate da diversidade sexual, observa uma política de
acionamento do Estado e do mercado sobre a comunidade LGBTQI+, in-
corporando de forma controlada e limitante as lutas e os questionamentos.
A pauta da posição do Estado cresce no nono capítulo, desenvolvido
por Tales Fornazier em caráter de denúncia sobre a conivência com o ra-
cismo, desde os processos de colonização e escravismo aos dias atuais de
sua reprodução. Conivência exposta na ausência de respostas do Estado às
condições sociais de desigualdade social e racial, na legitimação desses pro-
cessos e na reiteração de diversas formas de violência institucionalizada
contra a população negra. O pesquisador expõe os dados de extermínio
desta população pelo Estado e, ainda, o controle subjetivo e ideológico ne-
cessário para a sedimentação do racismo que se naturaliza no cotidiano pró-
prio da formação brasileira. Uma forma de racionalidade que se torna es-
trutural, o racismo se expressa como parte do funcionamento e da dinâmica
normal das instituições, visto que elas são hegemonizadas pela ideologia ra-
cial dominante. Neste sentido, o autor nos convida ao avanço na análise
histórico-crítica sobre os seus fundamentos, haja vista que a própria reali-
dade concreta tem nos levado cada vez mais a reconhecermos não apenas
a existência do racismo e a necessidade de combatê-lo, mas a percebermos
que ele se coloca como elemento estruturante das nossas relações. Portanto,
não é possível qualquer análise séria e coerente apartada da compreensão
de como as determinações étnico-raciais conformam nossa realidade. As-
sim, reforça ser fundamental a análise sobre o racismo no bojo das relações
sociais erigidas sob o capitalismo dependente.
A qualidade densa e crítica da coletânea mostra-se também em seu último
capítulo, de autoria de Paulo Roberto Felix dos Santos. Com amparo na leitura com
princípio na totalidade social, o pesquisador analisa a ampliação da miséria, com-
preendendo a prisão na atualidade como uma espécie de “depósito de indigen-
tes”, supranumerários inúteis à subordinação direta aos ditames funcionais do
capital. Problematiza os processos de privatização do sistema prisional como um
dreno de fundo público para o abastecimento do capital. Ao analisar o perfil da
população mais afetada pela expansão prisional no estado de Sergipe, em conso-
nância com as tendências nacionais, o autor lembra que a crítica ao sistema penal
não deve passar só por uma análise do quanto este campo é produtor de uma
série de “injustiças sociais”, mas pela estreita conexão que ele guarda na manu-
tenção de um sistema de exploração/opressão a partir de uma estrutura racista-
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sexista-capitalista. Ou seja, o Estado punitivo é funcional ao capital como nicho
mercadológico, dadas as privatizações do sistema prisional, mas também pelo
horizonte de reiteração cultural e ideológica da classe dominante.
Eis a relevante composição desta coletânea que, com preocupação
científica, aduba suas assertivas sobre o Estado com reflexões, dados, pes-
quisas bibliográficas e documentais que fertilizam o reconhecimento do ca-
ráter classista do Estado. Este material nos brinda com um conjunto coe-
rente e maduro no campo da crítica marxista em diálogo com a materiali-
dade histórica desafiadora do nosso tempo. É o papel da produção de co-
nhecimento comprometida com os dilemas sociais.
13
APRESENTAÇÃO
14
Diante do contexto regressivo endossado pelo neoliberalismo, neo-
conservadorismo e pela extrema direita no país, compreender o Estado e
sua atuação associada aos mecanismos de dominação de classe tem sido
demanda constante na agenda dos pesquisadores das Ciências Humanas e
Sociais. Na presente coletânea, a empreitada de refletir acerca do Estado é
encarada por um elenco de 16 estudiosos/as que socializam os resultados
de suas pesquisas, em sua maioria desenvolvidas no nível de doutoramento,
realizadas na Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e em
diversas instituições federais brasileiras, quais sejam: Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Uni-
versidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Universidade Federal de
Sergipe (UFS), Universidade Estadual do Ceará (UECE), Universidade Es-
tadual da Paraíba (UEPB), Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(UFVJM) e Universidade de Brasília (UnB).
Nosso intento é oferecer, com o esquadrinhamento das questões
abordadas na coletânea, um contributo à atividade formativa dos trabalha-
dores, aos pesquisadores, profissionais e militantes comprometidos com a
crítica radical do Estado e da sociedade da qual ele é produto. Compreender
os fenômenos que perpassam o mundo, indo à sua raiz e desmistificando-
os com o auxílio de reflexões densas, é um exercício urgente quando se
perspectiva a superação radical dos componentes estruturais constitutivos
do modo atual de controle sociometabólico, com sua dinâmica destrutiva
legitimada pelo Estado. Avançar na luta rumo a uma sociedade verdadeira-
mente emancipada, transcendendo, com a ofensiva de massa socialista, o
Estado, a dominação de classe, o capital e tudo a eles correlato, pressupõe
a apropriação de uma correta apreensão dos meandros da dificílima reali-
dade que nos cerca.
Esperamos que os/as leitores/as desta coletânea possam encontrar
elementos que os/as levem a refletir criticamente sobre como, por que e
por quais meios o Estado garante a dominação de classe em cada contexto his-
tórico particular. Sintam-se convidados/as a fazer parte do debate aberto
nos meios acadêmicos. Boa leitura!
Março de 2023, no agreste e no litoral alagoano.
Os organizadores
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CAPÍTULO 1
Para uma abordagem mészáriana sobre o Estado 1
Fernando de Araújo Bizerra
Introdução
1
O presente artigo foi elaborado a partir da tese de doutorado intitulada “Estado e
expropriações: uma relação vital ao sistema do capital”, defendida em outubro de 2022
no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSS) da Universidade Federal
de Alagoas (UFAL), sob orientação da Prof.ª Dra. Reivan Marinho de Souza.
16
só tempo pela edificação do Estado a ele atinente, havendo uma reciproci-
dade dialética, uma codeterminação, um liame incindível entre ambos.
O Estado compõe a “‘base material’ do sistema tanto quanto as próprias
unidades reprodutivas socioeconômicas”. Portanto, é “perfeitamente inútil
perder tempo tentando tornar inteligível a especificidade do Estado em termos
da categoria da ‘autonomia’ (especialmente quando se expande esta ideia para
significar ‘independência’)”, bem como “de sua negação”. Dado seu inter-rela-
cionamento com as estruturas reprodutivas materiais, o Estado “não pode ser
autônomo2” ao sistema do capital, pois “há uma relação inextrincável de um
em relação ao outro3” (MÉSZÁROS, 2002, p. 119, grifo do autor), o que não
o torna redutível às determinações provindas diretamente das funções econô-
micas efetivadas pelo capital.
O Estado moderno, adquirindo formatações particulares concretas,
é uma exigência absolutamente indispensável para o funcionamento da mo-
dalidade única de metabolismo social do capital. Atua no sentido de desen-
volver práticas políticas totalizadoras que permitem aos capitalistas a extra-
ção do mais-trabalho e a expropriação crescente das abundantes riquezas
produzidas pelos trabalhadores, assegurando e protegendo a viabilidade re-
produtiva do sistema capitalista. Sua formação iniciou-se ainda na fase da
acumulação primitiva do capital, sob o comando das monarquias absolutis-
tas progressistas dos principais países da Europa Ocidental (Portugal, Ho-
landa, França, Espanha, Inglaterra), e se consolidou com as revoluções bur-
guesas sucedidas no lapso temporal que se estendeu do século XVII ao
XIX, sobretudo na Inglaterra e na França – da Revolução Puritana às sub-
levações de 1848.
2
Paniago (2019, p. 29) ressalta, quanto a esse aspecto destacado por Mészáros, que “Se
é possível pensar em algum grau de autonomia do Estado em relação à propriedade (o
capital) ou aos proprietários (os capitalistas), essa pode ocorrer apenas em seu campo
específico de atuação, na formulação das mediações mais criativas e efetivas, imple-
mentadas seja por meio da coerção, seja do consenso, o que para nossa discussão não
importa, pois visam assegurar inequivocamente a reprodução do sistema enquanto tal”.
3
Valemo-nos, aqui, da “pequena alteração” feita nesta frase por Paniago (2019, p. 30)
“com base no original em inglês, em relação à tradução da edição em português: ‘The
state as the comprhensive political command structure of capital cannot have auto-
nomy, in any sense whatsoever, from the capital system, since it happens to be inextri-
cably one with the later’”. A versão original em inglês mencionada pela autora refere-
se à que foi publicada em Nova York, no ano de 1995, pela editora Merlin Press.
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Com as revoluções burguesas, concretiza-se uma forma de Estado que
não adveio de uma determinação econômica direta. Tampouco dimanou de
“um afloramento mecânico superestrutural, em conformidade com uma vi-
são reducionista da dominação material supostamente unilateral da sociedade”. Di-
aleticamente, o Estado moderno constituiu-se na arena conflitiva da luta de
classes “por meio de sua necessária interação recíproca com a base material
altamente complexa do capital”. Ao passo em que foi “moldado pelos funda-
mentos econômicos da sociedade”, o Estado adquiriu dinamismo e impor-
tância sempre maiores e “também moldou de forma bastante ativa a realidade mul-
tifacetada das manifestações reprodutivas do capital no decorrer de suas
transformações históricas, tanto na [sua] fase ascendente quanto na [sua] fase
descendente” (MÉSZÁROS, 2011, p.149, grifos do autor).
O Estado assume a característica de ser uma dimensão coesiva condi-
zente com a nova modalidade de reprodução econômica, facilitando a realiza-
ção irrestringível dos objetivos materiais do capital. Essa dimensão coesiva,
“sem a qual até o tipo potencialmente mais dinâmico de unidades produtivas
não poderia constituir um sistema reprodutivo sustentável”, foi alcançada “pelo
modo de controlar a reprodução societal do capital” na sua “forma historica-
mente específica e única” (MÉSZÁROS, 2011, p. 152, grifo do autor).
Atenuando os conflitos existentes, o Estado protege a propriedade
privada obtida mediante a exploração-expropriação dos produtores diretos.
Opera, assumindo uma variedade de configurações e regimes de governo,
“como constituinte de uma unidade orgânica com o sistema como um todo,
inseparavelmente de sua contínua inter-relação com o domínio reprodutivo
material em constante expansão” (MÉSZÁROS, 2011, p. 153, grifos do au-
tor). Materializa ações remediadoras apropriadas à abrangência totalizante
do sistema do capital, cuja dinamicidade se pauta pela constante extração
do mais-trabalho – sua “raison d’être histórica e seu modo real de funciona-
mento” (MÉSZÁROS, 2002, p. 103, grifos do autor).
A dimensão coesiva corporificada pelo Estado se institui como uma
estrutura4 separada de comando político totalizador do capital devido ao
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Para fugir às interpretações comumente e infundadamente disseminadas nos debates
sobre o Estado, Mészáros (2002, p. 119) advoga: “Na qualidade de estrutura totaliza-
dora de comando político do capital [...], o Estado não pode ser reduzido ao status de
superestrutura. Ou melhor, o Estado em si, como estrutura de comando abrangente,
18
fato de que as unidades econômicas do sistema “têm um caráter incorrigi-
velmente centrífugo – caráter que, há longo tempo na história, tem sido
parte integrante do incomparável dinamismo do capital”, não obstante “em
certo estágio de desenvolvimento ele se torne extremamente problemático
e potencialmente destrutivo” (MÉSZÁROS, 2002, p. 121). Indo além das
requisições jurídico-legais, o Estado moderno se compromete com a garan-
tia das condições gerais para a extração do mais-trabalho e, outrossim, com
as próprias unidades reprodutivas econômicas diretas, oferecendo sua con-
tribuição para o funcionamento do sistema do capital.
Sem a dimensão coesiva, o modo espontâneo de controle sociome-
tabólico do capital, ao invés de ter avançado para um sistema dotado de
microcosmos socioeconômicos produtores e extratores de mais-trabalho,
seria “apenas um agregado mais ou menos acidental e insustentável de en-
tidades econômicas expostas aos riscos do desenvolvimento deformado ou
da franca repressão política” (MÉSZÁROS, 2002, p. 123). Isso porque,
tem sua própria superestrutura – a que Marx se referiu apropriadamente como ‘supe-
restrutura legal e política’ – exatamente como as estruturas reprodutivas materiais di-
retas têm suas próprias dimensões superestruturais”.
19
do capital, funciona como o “pré-requisito necessário da transformação das uni-
dades inicialmente fragmentadas do capital em um sistema viável, e o quadro geral
para a completa articulação e manutenção deste último como sistema global”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 124, grifos do autor), exercendo uma coesão essencial
na instauração, na consolidação e no funcionamento da multiplicidade de es-
truturas reprodutivas da sociedade capitalista.
O inter-relacionamento entre Estado e capital
[...] também se mantém quando visto pelo outro lado, pois o Estado
moderno em si é totalmente inconcebível sem o capital como função
sociometabólica. Isto dá às estruturas materiais reprodutivas do sis-
tema do capital a condição necessária, não apenas para a constituição
original, mas também para a sobrevivência continuada (e para as trans-
formações históricas adequadas) do Estado moderno em todas as suas
dimensões. [...] Em razão dessa determinação recíproca, devemos falar
de uma correspondência estreita entre, por um lado, a base sociome-
tabólica do sistema do capital e, por outro, o Estado moderno como
estrutura totalizadora de comando político da ordem produtiva e re-
produtiva estabelecida (MÉSZÁROS, 2002, p. 125).
5
Mészáros (2002, p. 98, grifos do autor) lembra que, dado o caráter totalizador do
capital, “As oportunidades de vida dos indivíduos sob tal sistema são determinadas
segundo o lugar em que os grupos sociais a que pertençam estejam realmente situados
na [sua] estrutura hierárquica de comando”.
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“a questão da saúde e a do comércio, a educação e a agricultura, a arte e a
indústria manufatureira”. Desde “as menores unidades de seu ‘microcosmo’
até as mais gigantescas empresas transnacionais, desde as mais íntimas rela-
ções pessoais aos mais complexos processos de tomada de decisão dos vas-
tos monopólios industriais” (MÉSZÁROS, 2002, p. 96), “desde os proces-
sos econômicos mais básicos até os domínios intelectuais e culturais mais
mediados e sofisticados” (MÉSZÁROS, 2014, p. 16) revela-se a preeminên-
cia da lógica frenética do capital nos distintos espaços da sociedade.
O capital expande-se no quadro macroscópico de suas determinações
sistêmicas e, impelido pela acumulação, funciona como um modo de con-
trole incontrolável por planejamento ou ação dos capitalistas, dos trabalha-
dores ou dos dirigentes do Estado, por mais cônscia, pré-programada e bem
elaborada que ela seja. Apesar de se deparar com problemas e antagonismos
gerados na (e pela) sua ordem socioeconômica, o capital segue, há séculos,
incontrolavelmente seu curso de desenvolvimento, sendo infrutíferas todas
as tentativas (em sua maioria levadas a feito sob a batuta da socialdemocra-
cia) de controlá-lo 6.
Incontrolável por natureza, o sistema do capital é singular na história ao
ser “um sistema de controle sem sujeito”. Seus imperativos objetivos “sempre
devem prevalecer contra os desejos subjetivos – para não mencionar as possí-
veis reservas críticas – do pessoal controlador que é chamado a traduzir esses
imperativos em diretrizes práticas” (MÉSZÁROS, 2002, p. 125, grifo do autor).
As personificações do capital, mesmo gozando de posições sociais privilegia-
das, ao invés de deterem o controle real da estrutura de comando do capital,
terminam sendo por ele controladas. Os controladores dos microcosmos re-
produtivos particulares do capital são, pois, controlados pelos ditames deste
sistema; afinal, “não se pode afirmar a existência de qualquer representante hu-
mano autodeterminante no [seu] controle” (MÉSZÁROS, 2002, p. 126). O
controle foge, em todo caso, às competências dos capitalistas.
6
Os variegados motivos que conspiraram para o malogro das experiências históricas que
visaram restringir a dinâmica expansionista do capital e, por esta via, impor gradualmente
controle a ele (e ao seu Estado) não serão abordados por nós nesta oportunidade. Eles são
sistematizados por Mészáros (2002), cabendo a sua consulta para o conhecimento desta
temática tão polêmica e permeada por controvérsias teóricas e políticas.
21
Como os capitalistas, malgrado serem personificações do capital, não
controlam o capital, eles, no desempenho de suas funções, fazem “a medi-
ação (e a imposição) de seus imperativos objetivos como ordens conscien-
temente exequíveis sobre o sujeito real, potencialmente o mais recalcitrante,
do processo de produção”. Os trabalhadores, verdadeiros sujeitos produ-
tores da riqueza, na sua labuta diária sofrem com as alienações típicas do
trabalho assalariado e se veem forçados a aceitar, por imposição, “um outro
sujeito acima de si, mesmo que na realidade este seja apenas um pseudo-
sujeito” (MÉSZÁROS, 2002, p. 126); aceitação que não ocorre de modo
pacífico, daí a recalcitrância nas unidades de produção.
Nas equações do sistema do capital, os seres humanos não podem,
como tais, ocupar seu lugar legítimo; não podem ser considerados, nos seus
parâmetros, como a autêntica finalidade da produção. O capital funda uma
produção de riquezas subordinada ao imperativo autotélico de converter
tudo em fonte de lucro. A colossal produção de bens realizada sob o co-
mando do capital não se destina prioritariamente ao atendimento das ne-
cessidades sociais das populações expropriadas dos meios vitais à sua so-
brevivência, engendrando-se profundas contradições crivadas pela luta de
classes. Volta-se, isto sim, à realização do impulso do capital de valorizar-se
que deve ser preservado mais forte do que nunca a qualquer custo – e, de
fato, o é por suas formações de Estado – para sustentar sua estabilidade. A
produção da riqueza com base na exploração da força de trabalho assalari-
ada só adquire sentido ao ativar as possibilidades de valorização e cresci-
mento do capital. É a lógica impositivamente autoexpansionista do capital
que matriza a produção, a expropriação e a apropriação da riqueza engol-
fada nos seus imperativos econômicos.
A subordinação àquele imperativo não se restringe à produção, im-
pregnando as demais esferas da vida, e se impõe porque o sistema social
sob o qual vivemos é o primeiro da história a se afirmar, à sombra da in-
controlabilidade, como totalizador irrecusável e irresistível, independente-
mente do quão violenta tenha de ser a imposição da sua função totalizadora
perante as resistências irrompidas na sua trajetória. Por ser totalizador irre-
cusável e irresistível, o capital logra um dinamismo singular que o torna um
competente extrator de mais-trabalho antes inimaginável quando compa-
rado às modalidades de metabolismo social precedentes, aperfeiçoando os
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mecanismos de expropriação da riqueza apetecida pelos capitalistas e de-
sobstruindo os óbices impostos no seu fluxo autoexpansivo.
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ser bastante precisas: o Estado, imensamente poderoso, articula sua própria
superestrutura legal e política (de tipo bonapartista, parlamentarista, sovié-
tico ou outro requisitado pelas circunstâncias históricas) para retificar de
todas as maneiras a falta de unidade, exercendo, por esta via, uma comple-
mentariedade ao capital, e não somente servindo-o.
Deveria ser desnecessário dizer, embora seja imprescindível fazê-lo,
que a retificação promovida pelo Estado, ao contornar os obstáculos dura-
douros ou efêmeros encontrados, estabelecer a coesão exigida pelo sistema
do capital como um todo e estimular seu imperativo da autoexpansão, não
suprime, em hipótese alguma, suas falhas estruturais, remediando-as com
soluções confinadas ao nível dos seus efeitos e das suas consequências –
constatação que em nada minimiza sua eficácia prática. O equilíbrio alcan-
çado através da ação retificadora desempenhada pelo Estado é rigorosa-
mente provisório e ajustado até onde os limites inerentes ao capital admi-
tem, evitando que as contradições com frequência produzidas pelo próprio
sistema coloquem em xeque a continuidade do ordenamento societal.
No que diz respeito à ruptura entre produção e controle, inseparável
dos microcosmos do sistema do capital,
24
essa maioria vê-se privada do controle sobre o que ela mesma produziu; en-
contra-se expropriada dos bens objetivados pelo seu trabalho. Os verdadeiros
produtores, alijados dos meios de produção, não possuem o controle do pro-
cesso produtivo (matéria-prima; instrumentos de trabalho; quantidade de valo-
res produzidos; grau de intensidade, esforço e gasto de energia empregado;
destinação dos produtos), cabendo-o aos capitalistas que, dispondo da propri-
edade daqueles meios, dominam, exploram e expropriam os trabalhadores para
acumular insaciavelmente capital.
Da prevalecente divisão social do trabalho vicejam classes sociais li-
gadas às determinações materiais do próprio metabolismo social. O sistema
do capital edifica-se de maneira antagônica, já que as funções de produção
e de controle do processo de trabalho estão radicalmente separadas uma da
outra. O controle que os capitalistas exercem sobre os trabalhadores no
exercício da produção da riqueza, pressupondo a hierarquia e a dominação
que a acompanham, realiza-se graças aos métodos organizacionais despóti-
cos e persuasivos de disciplinamento da força de trabalho, de desqualifica-
ção profissional e de fragmentação dos conhecimentos dos produtores di-
retos aplicados no chão da fábrica. Os capitalistas se encarregam de contro-
lar o processo de produção em favor do capital, viabilizando a exploração
da força de trabalho e a subordinação dos trabalhadores ao seu domínio.
Sem o controle do capital sobre o trabalho, subsumindo-se este àquele, não
há extração do mais-trabalho e expropriação da riqueza. O controle da pro-
dução dentro e fora do espaço fabril é, no passado e no presente, aqui e
alhures, uma mediação decisiva para que elas aconteçam.
Quanto ao controle da desigualdade entre os que produzem e os que
controlam a produção da riqueza, expropriando-a, o Estado moderno, com seu
complexo burocrático legal e político, regula a tirania nos locais de trabalho e
reforça o controle imposto de cima para baixo mediante uma pétrea disciplina
cumprida pelos trabalhadores ao longo da jornada de trabalho. Impede-se, com
isso, que os microcosmos do sistema sejam rompidos internamente pelos de-
sacordos constantes. Caso o Estado não contenha a inevitável conflituosidade
derivada da falta de unidade entre produção e controle, a sustentabilidade da
ordem social estabelecida mostra-se inviável perante as reincidentes resistências
dos trabalhadores. O capital não é capaz de subsistir sem que o Estado conte-
nha a desigualdade emanada da dualidade disruptiva dos processos socioeco-
nômicos e políticos de tomada de decisão.
25
Evitando “as repetidas perturbações que surgiriam na ausência de
uma transmissão da propriedade compulsoriamente regulamentada – isto é:
legalmente prejulgada e santificada – de uma geração à próxima” e preser-
vando em todos os níveis a alienação do controle pelos produtores, a reti-
ficação efetivada pelo Estado concebe-se como primordial para o capital.
O Estado administra a separação entre produção e controle materializando
intervenções políticas e legais, ora diretas, ora indiretas, sobre os conflitos
relutantemente renovados entre as unidades socioeconômicas particulares,
uma vez que as inter-relações entre elas não são harmoniosas em razão das
suas estruturas antagônicas. A ação do Estado “ocorre de acordo com a
dinâmica mutante de expansão e acumulação do capital, facilitando a pre-
valência dos elementos e tendências potencialmente mais fortes até a for-
mação de corporações transnacionais gigantescas e monopólios industriais”
(MÉSZÁROS, 2002, p. 108).
No segundo grupo de defeitos estruturais de controle do capital, a
correlação problemática entre produção e consumo, a ação corretiva do Es-
tado encobre as iniquidades evidenciadas na esfera do consumo. Para am-
pliar as vias de expansão do capital, reforçando a crença de que “o céu e o
limite”, o Estado atua como comprador/consumidor direto em frentes dis-
tintas, porém articuladas. O Estado ajusta “suas funções reguladoras em
sintonia com a dinâmica variável do processo de reprodução socioeconô-
mico”, “complementando politicamente e reforçando a dominação do ca-
pital contra as forças que poderiam desafiar as imensas desigualdades na
distribuição e no consumo” (MÉSZÁROS, 2002, p. 110).
Quando a produção aumenta sem encontrar escoadouro para todos
os produtos, abre-se um descompasso entre o que é produzido e a efetiva-
ção do consumo por parte dos indivíduos. Produz-se em ampla escala, mas
nem sempre os consumidores podem absorver as mercadorias disponíveis
com o máximo de brevidade. No capitalismo, a produção não cria imedia-
tamente a demanda pelo consumo da miríade de produtos expostos (em
quantidade e variedade) nas prateleiras das lojas de departamentos, nas vi-
trines dos shopping centers, no comércio ambulante, nos hipermercados,
nos catálogos, nas lojas virtuais etc.; inexiste, então, um equilíbrio automá-
tico entre produção e consumo. Como o sistema do capital por si só não
gera a procura efetiva para o pleno consumo dos bens, ele fica propenso a
26
suscetíveis momentos de instabilidade econômica. Urge encontrar alterna-
tivas para enfrentar as vicissitudes que afetam a autoexpansão do capital ao
ser interrompido o consumo.
Para contrarrestar o subconsumo, cabe ao Estado o provimento de cer-
tas necessidades reais do conjunto da sociedade, principalmente diante das lutas
dos trabalhadores que demandam educação, saúde, segurança, habitação, lazer
e seguridade social. O Estado, retificando a fratura entre produção e consumo,
direciona recursos do fundo público7 para o financiamento da estrutura de vi-
abilização destes serviços, “instituindo bens e equipamentos públicos, como
hospitais, escolas, moradias, centros de assistência social, instituições de admi-
nistração e gestão das políticas sociais”; e, para o desempenho saudável do sis-
tema do capital, em certos estágios do seu desenvolvimento sustenta o con-
sumo daqueles que não podem trabalhar devido à idade, ao desemprego ou à
doença, “por meio de prestações monetárias, ditas de substituição ou comple-
mentação de renda (aposentadorias, pensões, auxílios e programas de assistên-
cia social)” (BOSCHETTI, 2016, p. 27).
Intervindo em meio à contradição entre o consumo manipulado e des-
perdiçador em alguns locais do planeta e a negação das necessidades de incal-
culáveis milhões de pessoas, o Estado possibilita que os trabalhadores, além de
produtores, sejam, na esfera da circulação, consumidores-clientes. O investi-
mento de recursos públicos em serviços sociais, além de assegurar condições
de “bem-estar” até então inexistentes, favorece o aumento do consumo ao per-
mitir a liberação de parte dos rendimentos salarias para ativar o gasto com a
compra de mercadorias. Agindo conforme as virtualidades abertas a cada mo-
mento, o Estado incita o consumo em grande escala, aquecendo os ciclos
7
Behring (2021, p. 38) conceitua a formação do fundo público “a partir de uma punção
compulsória – na forma de impostos, contribuições e taxas – da mais-valia socialmente
produzida, ou seja, [ele] é parte do trabalho excedente que se metamorfoseou em lucro, juro
ou renda da terra e é apropriado pelo Estado para o desempenho de suas múltiplas fun-
ções”. Além disso, o “fundo público não se forma – destacadamente no capitalismo mo-
nopolizado e maduro – apenas com o trabalho excedente metamorfoseado em valor, mas
também com o trabalho necessário, na medida em que os trabalhadores pagam impostos
direta e, sobretudo, indiretamente, por meio do consumo, onde estes estão embutidos nos
preços das mercadorias”. O fundo público “atua constituindo ‘causas contrariantes’ à queda
tendencial da taxa de lucros, interferindo no ritmo da circulação de mercadorias e dinheiro,
estimulando a metamorfose de um em outro, enfim, intensificando e mediando os ritmos
do metabolismo do capital” (BEHRING, 2021, p. 40, grifos da autora).
27
econômicos, e acaba por assegurar a preservação e o controle da força de tra-
balho. A ação corretiva do Estado é imprescindível para a criação de condições
objetivas de integração da força de trabalho ao consumo.
O Estado, preservando a estrutura de dominação de classe e asseve-
rando sua legitimidade política perante a sociedade, contribui para a reali-
zação do consumo quando “1) interfere na quantidade de dinheiro dispo-
nível para o consumo dos indivíduos e famílias através da regulação dos
salários, definição do sistema de impostos, e estabelecimento dos valores
dos benefícios da seguridade social”; 2) regula ou mesmo determina o mon-
tante e a natureza dos valores de uso que serão adquiridos no mercado”;
“3) subvenciona, em parte ou totalmente, o custo de muitos valores de uso
em forma de serviços como saúde (sistema público ou subsidiado) e outro
serviço sociais” (BOSCHETTI, 2016, p. 68).
Na análise da autora, o provimento de certas necessidades sociais re-
alizado pelo Estado é uma importante estratégia de sustentação do cresci-
mento econômico verificado em conjunturas específicas. Por esta via, pos-
sibilita-se o atendimento de algumas demandas da classe trabalhadora e, ao
mesmo tempo, reduzem-se as situações de precariedade das condições de
vida dos trabalhadores; no entanto, isso ocorre sem que haja a eliminação
da propriedade privada, sem que sejam geradas mudanças significativas nas
relações capitalistas de produção. O Estado oferece uma “resposta ‘ade-
quada’ ao capitalismo” (BOSCHETTI, 2016, p. 105), no sentido de não
colocar em risco a propriedade privada e garantir a reprodução da força de
trabalho. A oferta estatal de serviços sociais não desemboca num processo
de socialização da propriedade, de distribuição de renda, de desmercantili-
zação dos serviços e nem leva à emancipação humana. Ela, ao fim e ao cabo,
mantém, ou para sermos mais precisos, fortalece o capitalismo e reforça a de-
pendência dos trabalhadores ao mercado.
Mészáros (2014) nota que o Estado burguês, diante da pluralidade de
interesses identificáveis no interior da própria classe trabalhadora,
28
barreiras nacionais, e desde a administração interna da relação de
forças contra os “excessos” até a participação em empreendimentos
internacionais que assegurem maior vantagem à classe dominante
nacional, que pode conceder, portanto, alguma vantagem relativa à
força de trabalho nacional (MÉSZÁROS, 2014, p. 353-354).
29
o Estado moderno pode eficazmente contribuir para a necessidade irresis-
tível de expansão e acumulação do capital, em vez de tornar-se para ele um
peso materialmente insustentável” (MÉSZÁROS, 2002, p. 111).
Há que se reconhecer que é igualmente significativa a ação comple-
mentar do Estado à procura de alguma espécie de unidade na terceira fra-
tura, diante do imperativo de criar a circulação em escala global e afirmar o
capital como um sistema ubíquo.
Mészáros (2002) salienta que o Estado moderno, articulando-se em
Estados nacionais, para atuar sobre a fratura entre produção e circulação
instituiu um sistema de “duplo padrão” com direcionamentos político-
econômicos diferenciados: nos países centrais, a classe trabalhadora desfru-
tou de um padrão de vida mais elevado, associado à democracia liberal; já
nos países situados geograficamente na “periferia subdesenvolvida” tor-
nou-se lugar comum a edificação de governos maximizadores da explora-
ção, adeptos das imposições autoritárias (e, também, ditatoriais) e pratica-
dos diretamente ou por procuração.
O “duplo padrão” não permaneceu como um aspecto permanente
do ordenamento global. Levado a cabo em conjunturas específicas, o “du-
plo padrão” não foi estático. Objetivamente, pôde experimentar mudanças
em seu interior e sua duração se limitou
30
impulsionados pelo Estado nos países centrais e nos países periféricos, cri-
ando-se e recriando-se hierarquias entre os trabalhadores. As riquezas pro-
duzidas apoiadas numa elevadíssima taxa de exploração da classe trabalha-
dora (da indústria, da agricultura, da mineração, do extrativismo) dos países
periféricos, com salários estagnados e intensas-extensas jornadas de traba-
lho, foram expropriadas e transferidas para sustentar os ônus da melhoria
na qualidade de vida dos trabalhadores dos países centrais, subsidiando um
mercado consumidor que deu fôlego à acumulação de capital.
Enquanto o capital vivenciou sua ascendência histórica constatou-se
esta diferenciação, com fortes repercussões nas condições de existência dos
trabalhadores de cada país. A busca por remediar as dificuldades de valorização
do capital em tempos de crise estrutural requer, ao contrário, a intensificação
da exploração da força de trabalho nos diversos ramos e setores produtivos de
todos os países para incrementar a produtividade, a lucratividade e a reanimação
do desenvolvimento econômico. É exatamente a equalização no índice diferencial de
exploração que tem acontecido com a proteção legal do Estado.
Paralela a essa equalização, a segunda tendência emerge de seu neces-
sário resultado político e se traduz num “crescente autoritarismo nos Estados
‘metropolitanos’ antes liberais” e num “desencantamento geral, perfeita-
mente compreensível, com a ‘política democrática’, que está profunda-
mente implicada na virada autoritária do controle político nos países capi-
talistas avançados” (MÉSZÁROS, 2002, p. 112, grifos do autor). O recru-
descimento do autoritarismo estatal restringe a liberdade de expressão, de
pensamento e de mobilização e aplica uma dose imensa de repressão aos
movimentos de trabalhadores organizados com escopos variadíssimos. A
ascensão da extrema direita ao poder8, as intervenções virulentas de jaez
neofascista, as forças reacionárias e o neoconservadorismo orquestram o
autoritarismo nos Estados nacionais, reforçando as velhas táticas com teor
8
Como nas experiências de Augusto Pinochet no Chile (1973), Thorbjörn Fälldin na
Suécia (1976), Margaret Thatcher na Grã-Bretanha (1979), Ronald Reagan nos Estado
Unidos (1980), Poul Schlüter na Dinamarca (1971), Helmut Khol na Alemanha (1982),
Mark Rutte na Holanda (2010), Viktor Orbán na Hungria (2010), Recep Tayyip Er-
doğan na Turquia (2014), Donald Trump nos Estados Unidos (2016), Rodrigo Duterte
nas Filipinas (2016), Emmanuel Macron na França (2017), Matteo Salvini na Itália
(2018) e Jair Messias Bolsonaro no Brasil (2019).
31
nacionalista, racista, misógino, sexista e LGBTfóbico que nunca foram ba-
nidas da cena política; incitando a violência estatal, as perseguições e a mi-
litarização da vida social; fortalecendo econômica e politicamente a opres-
são de classe. Por tudo isto, o autoritarismo estatal, conjugado com a equali-
zação no índice diferencial de exploração, contribui para a continuidade do sistema
do capital sob a atmosfera da sua crise mais diuturna.
Frente a essas tendências, o Estado, na condição de agente totaliza-
dor da criação da circulação global, age variavelmente diante do que a polí-
tica interna e a política internacional solicitam. No plano internacional, o
Estado desenvolve ações corretivas que facilitam a irrestringível expansão
do capital no exterior. O Estado nacional do sistema do capital “não tem
nenhum interesse em restringir o impulso monopolista ilimitado de suas
unidades econômicas dominantes”. Na ambiência perversa da concorrên-
cia, onde a cada capitalista interessa acumular o máximo possível de capital,
“quanto mais forte e menos sujeita a restrições for a empresa econômica
que recebe o apoio político (e, se preciso, também militar), maior a proba-
bilidade de vencer seus adversários reais ou potenciais” (MÉSZÁROS,
2002, p. 113). Os recursos mobilizados pelo Estado para aquela facilitação
32
Outras ações, não menos corretivas, são postas em prática no domí-
nio da política interna. E nele o Estado vê-se impingido a estabelecer os
meios para evitar que as acentuadas concentração e centralização, tendên-
cias constitutivas do expansionismo do capital, resultem no desapareci-
mento prematuro das pequenas unidades produtivas que não passaram por
processos de fusões e incorporações; atuação essa que se esbarra em diver-
sos limites, pois não é - e nem pode ser - definitivamente resolutória. O
Estado, na dinâmica em que um punhado de capitais mais poderosos sub-
metem, combinam ou absorvem os menores, planeja um conjunto de me-
didas, diretrizes, planos e programas que largueiam as oportunidades de ne-
gócios para os grandes e pequenos capitalistas do seu território, potenciali-
zando o crescimento dos mercados locais ou regionais e fomentando a cir-
culação dos bens nacionais.
Considerações finais
Pelo que foi sinalizado até aqui, percebe-se que o “Estado na sua
composição na base material antagônica do capital não pode fazer outra
coisa senão proteger a ordem sociometabólica estabelecida”, defendendo-a
“a todo custo, independentemente dos perigos para o futuro da sobrevi-
vência da humanidade” (MÉSZÁROS, 2015, p. 28). Suas ações corretivas,
voltadas à administração dos antagonismos responsáveis pela centrifugali-
dade da multiplicidade de unidades reprodutivas materiais particulares, con-
tribuem para que as personificações do capital, a cada época, se refestelem
de riquezas acumuladas a expensas da extração do mais-trabalho gerado pe-
los produtores diretos e deles expropriado. Por meio das ações sumariadas
ao longo do capítulo, o Estado protege vigorosamente – e tem de proteger
– a ordem sociometabólica estruturada de modo antagonístico, retifica a
ausência de unidade existente na tríplice de defeitos estruturais de controle
do capital e, ao fazê-la, proporciona uma coesão compatível com a repro-
dução econômica. O que esperamos ter evidenciado com a exposição ora
finalizada é que a complementariedade exercida pelo Estado permite ao ca-
pital a realização das potencialidades de seu modo de controle singular.
33
Referências
34
CAPÍTULO 2
O papel do Estado nas expropriações e apropriações
capitalistas
Rebeca Gomes de Oliveira Silva
Introdução
1
De que é exemplo a Revista Theomai com a edição intitulada “Traços de sangue e
fogo: continuidade da acumulação em nossa época?”.
2
A utilização dos conceitos expropriação e apropriação se deve a necessidade de des-
tacar a pressão sobre os recursos naturais na contemporaneidade. Contudo, compre-
ende-se que a apropriação ocorre concomitantemente à expropriação, processo que vai
além da expulsão dos trabalhadores de suas terras, abarca a conversão dos elementos
essenciais à vida em propriedade privada.
35
Essa relação dialética entre Estado e capital se mantém com a expansão
do capitalismo, pois é essencial para a sua manutenção a disponibilidade de
trabalhadores e de recursos naturais, meios de valorização, que garantam a he-
gemonia do capital. Marx (2013, p. 690) salienta que “a acumulação do capital
é, portanto, multiplicação do proletariado”, pois com sua dinâmica expansio-
nista impulsiona a captura de espaços estratégicos para a extração de mais-va-
lor, engendrando, assim, as expropriações dos trabalhadores da terra.
Dessa forma, as expropriações permanecem na cena contemporânea.
Com o imperialismo as contradições próprias do processo de acumulação
de capital aprofundam-se, dando origem a uma nova onda de pilhagem e
de exploração que demanda cada vez mais a intervenção do Estado (SILVA,
2020). Deste modo, a atual fase do capitalismo contemporâneo, caracterís-
tica por ser a “expansão de uma forma de capitalismo já impregnada de
imperialismo” (FONTES, 2010, p. 149), é marcada pela intensificação das
expropriações dos trabalhadores e das apropriações dos meios de vida.
Neste mesmo período, desde a década de 1970, vive-se uma das mai-
ores crises do sistema do capital, caracterizada por Mészáros (2011) como
crise estrutural do capital. Devido a esta crise, o Estado intervém visando
controlar as contradições do sistema capitalista, aprofundando sua atuação
com o intuito de manter as expropriações nesse momento do capitalismo.
As reflexões presentes neste trabalho é parte dos estudos desenvolvidos
no âmbito do mestrado em Serviço Social e tem por objetivo apreender o papel
do Estado nos processos de expropriação e apropriação desde a gênese do
modo de produção capitalista até a contemporaneidade marcada pela presença
do capital financeiro. Para isso, realizamos uma pesquisa bibliográfica por meio
de fontes que fundamentaram o estudo das categorias essenciais para este tra-
balho. Assim, esta pesquisa se referenciou em Marx (2008), (2013) e (2017),
Lênin (2012), Mészáros (2011) e (2015) e Fontes (2010) e (2018).
Não é nossa pretensão dar conta de todos os elementos teóricos que
envolvem esta discussão. Porém, pretendemos indicar caminhos que fun-
damentam a compreensão do papel do Estado na perpetuação do modo de
produção capitalista, esse grande agente que nega a originalidade e a inven-
ção de outros mundos. Isto, em nossa perspectiva, é um desafio teórico,
mas também político de todos aqueles que lutam por outra sociabilidade,
uma sociabilidade para além do sistema do capital.
36
O papel do Estado nas expropriações dos trabalhadores da
terra e apropriação dos elementos essenciais à vida: “a base
de todo o processo”
O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o pro-
cesso de separação entre trabalhador e a propriedade das condições
de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma
em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por ou-
tro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados
(MARX, 2013, p. 786).
3
Marx utiliza o termo “livre” de forma irônica, “livres como pássaros”, livre no sentido de
não ter nenhuma posse, “trabalhadores livres no duplo sentido de que nem integram dire-
tamente os meios de produção [...], nem lhes pertencem os meios de produção [...], mas
estão, antes, livres e desvinculados desses meios de produção” (MARX, 2013, p. 786).
38
O Estado é uma exigência do sistema do capital, necessário diante
da ruptura metabólica, da transformação do caráter da propriedade com-
pulsoriamente convertida em propriedade privada, deixando os trabalhado-
res totalmente despossuídos dos elementos essenciais à vida. Portanto, o
Estado se estrutura como “pré-requisito indispensável para o funciona-
mento permanente do sistema do capital” (MÉSZÁROS, 2011, p. 109).
A expropriação da terra, antes pertencente aos trabalhadores, é “a base
de todo processo” (MARX, 2013, p. 787-788). Massas de camponeses que sub-
sistiam materialmente através do uso produtivo da terra foram despojadas de
suas terras, sendo forçadas a procurar alternativas no mercado capitalista ainda
em ascensão. As terras apropriadas tornaram-se propriedade dos arrendatários,
que passaram a utilizar o solo visando exclusivamente o lucro. As expropria-
ções na Europa tiveram início em fins do século XV e nas primeiras décadas
do século XVI, estendendo-se até o século XIX (SILVA, 2020).
Marx (2013), ao evidenciar esses processos, destaca uma diferença
importante ao afirmar que nos séculos XV e XVI as expropriações se efe-
tivaram por meio de atos individuais de violência, contra as quais a legisla-
ção do Estado monárquico lutou durante 150 anos (WOOD, 2001). Con-
tudo, com o avanço do sistema capitalista, do século XVIII em diante “a
própria lei se torna, agora, o veículo do roubo das terras do povo” (MARX,
2013, p. 796), ocorrendo o segundo grande processo de expropriações, mar-
cado pelo seu caráter parlamentar.
O papel das legislações na expropriação das comunidades campone-
sas foi uma nova forma de supressão das condições de vida dos campone-
ses. Marx (2017), ao tratar sobre a lei referente ao furto da madeira ,eviden-
cia este aspecto. Esta lei visava garantir a propriedade dos proprietários flo-
restais que adquiriram essas terras mediante a expropriação das comunida-
des que habitavam os territórios. Desse modo, o autor adverte que, com a
aprovação dessa lei, “o interesse privado é esperto o suficiente para extra-
polar essa consequência no sentido de fazer com que sua forma mais limi-
tada e pobre se torne o limite e a regra da ação do Estado” (MARX, 2017,
p. 98). E complementa: “todos os órgãos do Estado se convertem em ore-
lhas, olhos, braços e pernas que o interesse do proprietário florestal usa para
escutar, espiar, estimar, proteger agarrar e correr” (MARX, 2017, p. 104).
Todos os métodos expropriatórios,
39
[...] porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e
organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de
transformação do modo feudal de produção em capitalista e para
abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade
que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica
(MARX, 2013, p. 821).
40
O Estado é produto e a manifestação do antagonismo inconciliável
das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antago-
nismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, re-
ciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de
classe são inconciliáveis (LENIN, 2012, p. 27).
41
históricas. Para Lênin (2012), o imperialismo tem como marca a era dos
monopólios e da exacerbação das contradições do processo de acumulação
de capital. O surgimento dos monopólios é resultado da agudização da con-
centração e centralização da produção e do capital possibilitadas pela livre
concorrência. Com os monopólios ocorre uma mudança qualitativa nessa
nova fase do capitalismo: as expropriações e as apropriações se expandem
pelo globo (SILVA, 2020).
Nela, há a fusão do monopólio industrial com o monopólio bancário, o
qual dá origem ao capital financeiro e a uma oligarquia financeira. O capital
financeiro, enquanto uma forma mais avançada de organização do capital, mo-
biliza todos os meios para possibilitar o processo de valorização do capital, se-
jam eles humanos ou não humanos. Assim, devido à formação de monopólios
nos países avançados, em meados do século XIX, os quais passam a acumular
cada vez mais capital, forma-se um excedente de capitais que transborda a pos-
sibilidade de sua valorização nos limites da economia nacional e dão lugar a um
processo de exportação de capitais. Desse modo, o capital financeiro busca
valorizar-se em fontes ainda não exploradas, daí resulta o seu caráter expansivo,
intensificando a sua propriedade de comandar a disponibilidade de trabalho e
de recursos naturais em escala mundial (LÊNIN, 2012).
No capitalismo do século XXI, a busca por novos espaços de acu-
mulação de capital tem conduzido o sistema capitalista ao aprofundamento
de suas formas de expropriação e apropriação. Por isso, os métodos preté-
ritos utilizados na acumulação primitiva de capital e expandidos no imperi-
alismo adquirem grande destaque no atual estágio do capitalismo. A histo-
riadora brasileira Virgínia Fontes, em O Brasil e o Capital-imperialismo: teoria e
história, retoma o debate das expropriações para pensar a dinâmica do capi-
talismo contemporâneo.
Para Fontes (2010), a existência de trabalhadores livres é a base social
primordial que constitui a relação capital e trabalho e que permite a acumu-
lação ampliada de capital. Desse modo, é intrínseco ao capital ampliar e
exacerbar a disponibilidade massiva desses trabalhadores, impor a ferro e
fogo a subjugação do conjunto da população aos desígnios do capital, assim
como buscar sempre apropriar-se de novas fontes de valorização, sobre-
tudo aquelas ligadas à natureza. A expropriação, assim sendo, é condição
social inicial e permanente desse sistema econômico e social; a apropriação
dos meios de produção e de subsistência pelos capitalistas torna-se cada vez
42
mais perversa, transformando os meios de vida em meios de exploração do
trabalho pelo capital.
Fontes (2010) afirma que as expropriações que ocorreram na acumu-
lação primitiva do capital não devem ser vistas enquanto um episódio ine-
rente a um momento da história da humanidade, relegado à condição “pré-
via” do capitalismo. O caráter expansionista do capital, marcado pela cres-
cente concentração e centralização, impulsiona constantes expropriações,
sendo, portanto, sua condição necessária, pois “as expropriações consti-
tuem um processo permanente, condição da constituição e expansão da
base social capitalista e que, longe de se estabilizar, aprofunda-se e genera-
liza-se com a expansão capitalista” (FONTES, 2010, p. 45).
A relação social do capital repousa sobre uma relação social marcada
pela expropriação originária dos trabalhadores da terra. Assim, a expropri-
ação primitiva ou originária, que diz respeito à expropriação dos produtores
diretos de sua base fundiária, não se limita à formação do sistema capitalista,
ela permanece e se reproduz em escala cada vez maior (SILVA, 2020). Com
as expropriações, os meios de vida são apropriados pelos capitalistas. Se
apropriar, no modo de produção capitalista, é transformar em propriedade
privada. Segundo Mattos (2019, p. 39), “a afirmação da propriedade privada
capitalista só foi possível devido à completa destituição da maioria dos pro-
dutores diretos de qualquer propriedade que pudessem ter, a não ser a da
sua força de trabalho”. Entretanto, isto só se torna possível através da atu-
ação dos Estados enquanto
43
Na segunda metade do século XX, houve o crescimento do imperia-
lismo, o que conduziu a um salto no patamar de acumulação do capital fo-
mentado pelo aumento dos processos de expropriações e apropriações.
Fontes (2010) conceitua de capital-imperialismo essa fase do capitalismo
contemporâneo, uma totalidade em constante dilatação, resultado do pata-
mar inimaginável de concentração de capital. A expansão do capital-impe-
rialismo atingiu de modo desigual os países, afirmando a hegemonia dos
países centrais e subjugando ainda mais os países periféricos.
As corporações transnacionais, no período de grande crescimento
econômico do pós-Segunda Guerra Mundial, acumularam uma imensa
massa de capital-dinheiro que proporcionou a lógica de financeirização da
riqueza. Desde então, as finanças passaram a prevalecer, elevando as con-
tradições do capitalismo a um nível superior, principalmente na periferia do
sistema (SILVA, 2020). Há um aprofundamento das expropriações primá-
rias no capitalismo contemporâneo, de tal modo que os trabalhadores con-
tinuam a ser expropriados de suas terras e de seus meios de vida de modo
perverso. E os meios elementares à vida encontram-se cada vez mais con-
centrados nas mãos dos capitalistas. Por isto, assiste-se a uma expansão sem
precedentes das relações sociais típicas capitalistas, homogeneizando-se os
modos de vida de acordo com as necessidades do capital (FONTES, 2010).
Se este processo configura um traço permanente e contínuo do sistema
capitalista, ele se exponencia no atual contexto de crise. Segundo Mészáros
(2011), o sistema capitalista vive desde a década de 1970 uma crise sem prece-
dentes, caracterizada pelo autor como crise estrutural do capital. Não se trata
de uma crise do sistema capitalista estritamente, mas uma crise do capital, de
seus mecanismos civilizatórios. Portanto, as contradições que surgem nesse
momento histórico expressam os limites estruturais do próprio capital, mar-
cado pelo antagonismo no qual se subordina o trabalho ao capital.
Com a crise estrutural do capital, o Estado aprofunda a sua atuação.
Para Mészáros (2015, p. 27), “a crise estrutural de nossa época ativa a de-
manda por um envolvimento cada vez mais direto do Estado na sobrevi-
vência contínua do sistema”, pois o Estado moderno caracteriza-se como
única estrutura que garante os objetivos do capital, que responde às neces-
sidades que não podem ser diretamente resolvidas pelo próprio capital. De
acordo com Angelim e Cunha (2016, p. 14) o Estado se
44
[...] mantém empenhado em apreender as táticas necessárias ao ca-
pital para enfrentar a queda da taxa de lucro e o aprofundamento da
crise em curso ao subsidiá-lo na redução dos custos (infraestrutura,
matéria-prima, entre outros), na ampliação de mercados, ao favore-
cer a autonomização da esfera bancária e outras medidas de caráter
ideopolítico e de repressão e violência.
Considerações finais
45
o aprofundamento da atuação do Estado, o qual vem agindo visando ga-
rantir todos os meios para a expansão do modo de ser do capital, aprofun-
dando, com isto, a dinâmica das expropriações e apropriações.
Entretanto, o capital ao mesmo tempo em que se reproduz, reproduz
também suas contradições, pois os trabalhadores da terra vêm resistindo ao
avanço do capital sobre suas terras, sobre seis meios e modos de vida, apre-
sentando-se enquanto barreira ao capital-imperialismo que vem utilizando
diversas estratégias, sobretudo por meio do Estado, para garantir a perpe-
tuação do capital. Portanto, a luta desses segmentos da classe trabalhadora
contém uma direção anticapitalista, afinal, defendem outras formas de pro-
priedade para além da propriedade privada e confrontam com a homoge-
neização própria do capital. De acordo com Fontes (2010, p. 92),
46
Referências
47
MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital: rumo a uma teoria da transi-
ção. São Paulo: Boitempo, 2011.
MÉSZÁROS, Istvan. A montanha que devemos conquistar. São Paulo:
Boitempo, 2015.
48
CAPÍTULO 3
A relação entre Capital e Estado: contribuições ao debate
sobre o Estado latino-americano
Thays Fidelis
Georgette Ramírez Kuri
Introdução
4
Ao longo deste artigo trataremos estritamente do Estado moderno, ou seja, o Estado
que vai garantir a coesão entre as unidades reprodutivas socioeconômicas para que o
sistema do capital possa se consolidar como totalizador e global.
49
definindo a partir das experiências concretas das formações sociais e das
formulações de vários estudiosos da região.
5
Na tipologia que Bambirra (2019) realiza, os países de tipo A são: Brasil, Argentina,
Uruguai, México, Chile e Colômbia.
51
de produtos primários. Essa localização dentro do capitalismo desigual e combi-
nado confere um ordenamento de classes sociais particular no qual a burguesia
agrário-exportadora (composta por latifundiários, proprietários das minas, co-
merciante e financistas) detém todo o poder econômico e político, valendo-se
do aparelho estatal para garantir seus interesses. Assim, o processo de surgi-
mento da burguesia vinculada à indústria e, por consequência, do proletariado
industrial só pôde se desenvolver quando o capital imperialista necessitou de
uma diversificação na produção nos países dependentes.
52
uma formação socioeconômica dependente capitalista-industrial6”. Assim, não é pos-
sível visualizar um processo revolucionário semelhante ao europeu visto
que as relações tipicamente capitalistas não surgem a partir de um rompi-
mento radical com as antigas classes dominantes, surgem dentro do setor
agrário-exportador e dependem das condições geradas por esse setor para
se consolidarem – a interdependência entre os setores exportador e indus-
trial, ou seja, a coexistência de vários modos de produção que apresentam
uma dependência mútua para sua existência, é o que define o caráter das
sociedades dependentes na América Latina.
A interdependência pode ser observada quando os capitais gerados
no setor exportador são (direta ou indiretamente) transferidos ao setor in-
dustrial e isso possibilita sua expansão. Essa transferência não é algo com-
pulsório, é praticamente algo que convém a ambas as classes. Isso não im-
plica dizer que os interesses oligárquicos e industriais sejam idênticos, ape-
nas que se mesclam e se complementam em suas contraditoriedades e an-
tagonismos, construindo o sistema oligárquico-burguês que limita a burgue-
sia industrial desde sua gênese.
Apesar de uma parcela dos estudiosos negarem a revolução burguesa
latino-americana, é possível afirmar que houve um momento histórico na
América Latina em que “a burguesia industrial, impulsionada pelo vigor que
lhe outorga o fato de controlar uma forma mais avançada de organização social
da produção, reivindicou o controle hegemônico do poder, oferecendo um projeto
próprio de desenvolvimento econômico-social” (BAMBIRRA, 2019, p. 81, grifos nossos)
– configurando uma revolução burguesa típica do capitalismo dependente.
Bambirra (2019, p. 90) afirma que “o caráter de um processo revolu-
cionário se define não apenas pelas classes que o realizam, mas também
pelas tarefas que cumprem, pelos inimigos que enfrentam e pela classe que
termina por deter hegemonicamente o poder”. Por isso, podemos afirmar
que a revolução burguesa latino-americana expressou o apogeu e a consoli-
dação dos interesses da burguesia industrial nacional, em seus distintos pa-
íses: Calles ou Cárdenas no México, Vargas no Brasil, Alessandri no Chile,
Batlle y Ordóñez no Uruguai e Perón na Argentina.
6
É mister o esclarecimento de que essas formações socioeconômicas citadas pela au-
tora são resultado de uma combinação historicamente condicionada de modos de pro-
dução vinculados à expansão e consolidação do capitalismo mundial, no qual a América
latina cumpre um papel como área periférica, subordinada e dependente.
53
O que a revolução burguesa latino-americana não foi capaz de rom-
per foi a interdependência entre as frações burguesas agrária e industrial,
resultando num sistema de dominação complexo característico desses paí-
ses: um sistema de dominação burguês-oligárquico. Esse sistema produz a chamada
hegemonia burguesa comprometida, na qual a burguesia industrial detém a hege-
monia econômica e social, mas não liquida as oligarquias (agrária, minera-
dora, financeira e comercial), mantendo seus privilégios básicos para que
elas continuem financiando o setor industrial.
É importante ater-se a essa categoria hegemonia comprometida porque ela
“define o caráter e o modo de funcionamento do capitalismo dependente
nesses países da América Latina, e define também suas possibilidades de
limites” (BAMBIRRA, 2019, p. 92). Essa categoria ressignifica o amálgama
de poder que alguns estudiosos falam, pois revela a sobreposição dos interes-
ses de uma fração de classe específica (industrial) ao conjunto da sociedade
ao mesmo tempo que há o respeito ao pacto entre os distintos interesses
contraditórios das várias classes e setores – sendo esse respeito a condição
necessária para a efetivação da hegemonia da burguesia industrial.
A revolução burguesa latino-americana, ao criar esse sistema de do-
minação burguês-oligárquico e a hegemonia comprometida, permite que a
burguesia industrial administre o compromisso com os interesses das várias
classes e setores nacionais. É importante frisar que o capital imperialista
estava incorporado no amálgama de poder da América Latina, respeitando a
dialética entre o interno e o externo, ou seja, respeitando “sua ingerência no
setor exportador, mas também mantendo o direito de decidir sobre a polí-
tica industrial do país, inclusive quando esta viesse a enfrentar os interesses
imperialistas, como no caso das tarifas protecionistas ou no caso das naci-
onalizações das fontes de energia” (BAMBIRRA, 2019, p. 99).
Foi assim que a burguesia industrial nacional conseguiu manter seu
projeto de desenvolvimento nacional, mantendo uma mescla de poder com
a dominação imperialista – mescla possível até 1945 quando há uma nova
fase de expansão imperialista e uma supressão da hegemonia das burguesias
nacionais. É importante entender que essa mescla/amálgama de poder é que
vai forjar a constituição do Estado dependente latino-americano.
54
Crise do capital e do Estado: a base do debate sobre o Estado latino-
americano
55
Entre as décadas de 1970 e 1990 produziram-se ávidos debates sobre
o Estado como problema fundamental no momento que se passava. Neles,
formaram-se duas grandes interpretações sobre o Estado latino-americano
influenciadas por elaborações teóricas europeias: a instrumentalista, cujo
precursor foi o sociólogo britânico Ralph Miliband, e a estruturalista, fun-
dada pelas proposições do sociólogo greco-francês Nicos Poulantzas.
A versão instrumentalista do Estado discutia com o liberalismo polí-
tico, assinalando criticamente a impossibilidade da democracia sob o capi-
talismo e a parcialidade das instituições políticas estatais ao serem instru-
mentalizadas pelas diferentes classes. Já a perspectiva estruturalista debatia
com as posturas francesas vinculadas ao partido comunista e com as inter-
pretações do capitalismo monopolista que consideravam o Estado como
instrumento a serviço do capital. Ambas apostas interpretativas buscavam
se afastar das explicações economicistas e discutir a dimensão política do
Estado, porém são criticadas por desconsiderar a dimensão econômica, li-
mitando essa aposta conceitual do Estado por seu viés politicista.
Entre as formulações latino-americanas que superaram esse viés, Le-
chner (1977, p. 19, tradução livre) assumiu o Estado como um problema a
ser discutido mediante a realidade concreta, além da pretensão da teoria
geral do Estado. Segundo ele, a definição do Estado na América Latina deve
partir da compreensão da “formação capitalista latino-americana como um
momento do desenvolvimento do capital total”. Concordando com ele, o
Estado é a forma que tomam as relações sociais na totalidade social pautada
pelo modo de produção capitalista, relações que são administradas pelo Es-
tado para garantir o domínio político e a exploração econômica na qual está
baseado. O Estado é “um momento co-constitutivo das relações capitalistas
de produção” (LECHNER, 1977, p. 15, tradução livre).
Assim, o pensamento crítico latino-americano redefine o Estado na
América Latina, dilucidando sua essência a partir das contradições presentes
nas relações sociais que foram apontadas primeiramente por Karl Marx.
Dessa maneira, a concepção crítica do Estado latino-americano se afastou
marcadamente da visão liberal do Estado em geral, sobretudo pelo afasta-
mento entre essas abstrações formuladas e a realidade concreta das relações
capitalistas na América Latina.
Contribuindo com a definição do Estado propriamente latino-ameri-
cano, Cueva (2012, p. 145, grifos do autor, tradução livre) retomou a teoria do
56
imperialismo para lembrar que “a forma do Estado capitalista tende a ser mar-
cadamente distinta segundo se trate do Estado correspondente às formações im-
perialistas ou do Estado correspondente às formações dependentes”. No mesmo sen-
tido, retomando a ideia leninista do sistema capitalista imperialista como uma
cadeia composta por elos fortes e débeis, assinala que “o Estado dos elos débeis
tende a adquirir formas ditatoriais, ou no melhor dos casos, despóticas, em ra-
zão do mesmo cúmulo de contradições [capitalistas] que a sociedade civil não
está em capacidade de atenuar e que, portanto, a ele lhe corresponde regular”
(CUEVA, 2012, p. 147, grifos do autor, tradução livre).
Ruy Mauro Marini, em seu artigo intitulado Estado y crisis en Brasil,
afirma que o Estado dependente tem um considerável grau de autonomia
devido a uma lei geral da sociedade capitalista, na qual “a autonomia relativa
do Estado está em razão inversa à capacidade da burguesia levar a cabo sua
dominação de classe; em outros termos, um Estado capitalista forte é sem-
pre a contrapartida de uma burguesia débil” (MARINI, 1977, p. 2, tradução
livre). Por entender que a burguesia latino-americana é débil, o autor vai
defender que o Estado dependente forte é uma característica das sociedades
dependentes, explicando três formas em que o Estado dependente tem sua
autonomia relativa ampliada.
A primeira forma advém das estruturas pré-capitalistas que dificultam a
geração de mais-valia relativa e, por conseguinte, impedem a tendência capita-
lista de aquisição fixa de mais-valia extraordinária. Essas estruturas, apesar de
integradas e articuladas ao modo de produção capitalista global, não alcançam
níveis de produtividade equiparáveis aos dos países de capitalismo central, seja
por estarem em modos de produção diferentes, seja por estarem em fases mais
atrasadas do desenvolvimento das forças produtivas. Devido a isso, as burgue-
sias dependentes requerem do Estado uma intervenção constante, o que acaba
por reforçar a autonomia deste em relação à burguesia local.
A segunda forma, que em parte deriva da primeira, advém da relação
subalterna que as burguesias dependentes têm em relação à burguesia imperia-
lista. Apesar da ligação entre essas frações burguesas, há diferenças e, na grande
maioria das vezes, oposição entre os interesses delas – o que Marini (1977) vai
chamar de cooperação antagônica e Bambirra (2019) vai chamar de burguesia domi-
nante-dominada. O Estado dependente tem, então, sua autonomia acentuada em
relação à burguesia local para administrar esses interesses diferentes, e até opos-
tos, no sentido de agir em favor da economia dependente.
57
A terceira forma emana justamente dessa administração do Estado
entre os interesses das burguesias dependentes e imperialistas, pois nesse
processo o Estado dependente adquire também autonomia frente à burgue-
sia imperialista. Em princípio, pode-se dizer que isso é impensável, dada a
hierarquia entre capital imperialista e capital nacional; no entanto, é partindo
do entendimento de que há contradições entre as burguesias imperialistas e
que estas impactam não apenas num plano externo, mas também interno
dos países dependentes, que os Estados dependentes necessitam adminis-
trar esses conflitos e seus impactos dentro dos países dependentes. É pela
necessidade de administrar as crises internas resultantes das contradições
interimperialistas que o Estado dependente amplia sua autonomia também
em relação à burguesia imperialista – principalmente nos momentos de crise
em que o Estado se volta para projetos de superação dela.
Foi nos anos 1970, quando a crise do capital e a crise do Estado se
manifestaram de maneira mais evidente na região, que a relação de co-de-
terminação impôs, mediante a violência autoritária, a transição a um novo
padrão de reprodução e acumulação capitalista, bem como a uma nova
forma de Estado.
58
o processo de militarização do Estado latino-americano, registrando como
nesses anos a estrutura estatal e seu funcionamento foram permeadas na
região. Em termos mais precisos, o Estado latino-americano adotou a Dou-
trina de Contrainsurgência para submeter as mobilizações populares às no-
vas condições do capital, convertendo a luta de classes em uma guerra de
aniquilamento baseada em estratégias militares contrarrevolucionárias.
Marini (1978, p. 5, tradução livre) explica que
7
Após o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos criaram a Escola das
Américas (1946) para a formação de militares na região segundo suas próprias doutri-
nas e interesses, assim como celebrou o Tratado Interamericano de Assistência Recí-
proca (TIAR) (1947), que envolvia principalmente a dimensão militar.
60
eixos de decisão política no poder executivo: 1) um setor militar confor-
mado pelo Estado Maior das FFAA, pelo Conselho de Segurança Nacional
e pelos órgãos do serviço de inteligência; 2) um setor econômico constitu-
ído pelas secretarias ou ministérios encarregados junto com as empresas
estatais de crédito, produção e serviços, cujos cargos públicos são ocupados
por tecnocratas civis ou militares que representam, no plano da política do
Estado, os interesses econômicos do capital.
O Conselho de Segurança Nacional funcionava como órgão estraté-
gico de decisão do Estado contrainsurgente, no qual se estrutura a aliança
entre as FFAA e o capital monopólico, centralizando assim o poder execu-
tivo acima dos poderes legislativo e judicial:
62
“sempre que acharmos certas estruturas, funcionamento e coparticipação
entre forças armadas e capital monopólico, estaremos diante um Estado de
contrainsurgência, tenha ou não a forma de uma ditadura militar”.
A partir dos anos 1990, a contrainsurgência no Estado dependente
latino-americano tem se expressado em práticas autoritárias sob governos
“democráticos” como a criminalização dos movimentos sociais, assassinato
de líderes populares e socioambientais, a existência de presos políticos, in-
clusive desaparições forçadas e tortura. Mesmo que entre as décadas de
1960 e 1980 o chamado inimigo interno a combater fosse o comunismo,
desde a década 1990 o tal inimigo foi se diversificando: o narcotráfico e a
imigração, o terrorismo nos anos dois mil, o narco-terrorismo e a corrupção
posteriormente. Enfim, a agenda contra inimigos internos e ameaças à se-
gurança nacional estão em constante reatualização e as FFAA seguem à ca-
beça da função estatal de combate e repressão.
Apesar de ser difícil a extinção das FFAA da estrutura estatal latino-
americana, dado o atual caráter bélico do capitalismo imperialista no
mundo, é necessária a substituição da contrainsurgência nas formações so-
ciais dependentes por uma função social das FFAA, fora da lógica de segu-
rança e defesa da acumulação e reprodução do capital. Dessa maneira, o
Estado latino-americano velaria pela reprodução social contribuindo à
emancipação social e à ruptura da dependência que submete a região ao
devir capitalista.
Considerações finais
63
concreto é essencial para entender as particularidades dessas formações so-
ciais, bem como das particularidades do Estado que lhe corresponde.
Na busca por entender as particularidades da formação do sistema
de dominação capitalista nos países dependentes nos deparamos com o
processo de industrialização que foi inicialmente o responsável por estrutu-
rar as classes e frações de classes sociais e, por conseguinte, a correlação de
forças entre elas e seus respectivos projetos e posicionamentos dentre os
projetos de classe existentes. A estrutura de classes que daí surge e, em es-
pecial, a burguesia débil ou burguesia dominante-dominada será a base do
sistema de dominação e do Estado dependente que irá desenvolver certas
características e certa autonomia devido à situação de dependência.
Em seguida, centramos a atenção no processo de industrialização na
região e na crise capitalista dos anos 1970, fenômenos a partir dos quais
tanto o capital como o Estado precisaram modificar as condições de explo-
ração e dominação nas diferentes formações sociais. Na América Latina, o
Estado tentou resolver tal crise pela via autoritária de contrarrevolução para
enfrentar o movimento popular já que a burguesia da região não conseguiu
impor seu projeto de classe como hegemônico, tendo que se conformar
como hegemonia burguesa comprometida.
Assim, o Estado latino-americano adotou a contrainsurgência como
doutrina militar fixando ela como elemento central na sua estrutura política
durante as ditaduras militares dos anos 1970 e 1980. Enquanto isso, o capi-
tal instalou um novo padrão de reprodução e acumulação, o neoliberalismo,
que assegura a extração de mais-valia nas formações sociais latino-america-
nas. Tanto o padrão capitalista neoliberal quanto o Estado de contrainsur-
gência continuam vigentes no capitalismo dependente latino-americano do
século XXI.
Referências
65
CAPÍTULO 4
O Estado brasileiro “abre as portas” da destruição
socioambiental na região da Amazònia8
Everton Melo da Silva
Artur Bispo dos Santos Neto
Introdução
8
Este artigo é produto da pesquisa de doutoramento desenvolvida no Programa de
Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas, intitulada “Es-
tado brasileiro ‘sem ilusões’: a tendência destrutiva do aparato estatal em suas relações
com a natureza e sociedade” (SILVA, 2022).
66
Para se apropriar dos recursos naturais nessa região, o Estado brasileiro,
durante o regime militar-empresarial, realizou uma série de intervenções para
dinamizar a economia no país com projetos de infraestrutura para facilitar a
penetração do capital. Entre os projetos estatais desenvolvidos na Região Ama-
zônica, apresentaremos três devido ao seu grau de interferência na natureza e
na vida social, deixando um rastro de destruição socioambiental – a Transmazô-
nica (1970), Megaprojeto Carajás (1980) e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí (1984).
67
ser povoada e tomada, ignorando, por exemplo, os indígenas, ribeirinhos e pes-
cadores. Nesse sentido, Souza (2012, p. 52) assevera que “[...] além de um ins-
trumento de propaganda, a Transamazônica foi um projeto de governo, ou de
imagem para o Brasil e que teve um papel ímpar na construção do consenso a
favor da ditadura”.
O Instituto Hudson (dos EUA) tinha pretensão de construir uma es-
trada dentro da Amazônia (SOUZA, 2012). O Estado brasileiro, visando
68cupa-la, normatizou por meio do Decreto-Lei n.º 1.106, de 16 de junho
de 1970 o Programa de Integração Nacional, tendo como primeira etapa a
“construção imediata das rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém”
(BRASIL, 1970, art. 2º), determinando em seu primeiro parágrafo que “será
reservada, para colonização e reforma agrária, faixa de terra de até dez qui-
lômetros à esquerda e à direita das novas rodovias para, com os recursos do
Programa de Integração Nacional, se executar a ocupação da terra e ade-
quada e produtiva exploração econômica.” (BRASIL, 1970, art. 2º, § 1º).
“Conquistar” a Amazônia era um dos grandes objetivos do capital
nacional e internacional. Os expropriadores desejavam
68
mogno (Swietenia macrophylla), cedro (Cedrela fissilis), freijó (Cordia goel-
diana), sucupira (Pterodon emarginatus) às margens da rodovia” (SOUZA,
2012, p. 145). Além dessas, o autor complementa: “outras espécies como
acapu (Vouacapoua americana Aubl), andiroba (Carapa guianensis Aubl),
cupiúba (Goupia glabra), maracatiara (Astronium lecointei Ducke) todas
com grande valor comercial” (SOUZA, 2012, p. 146). No estudo do Insti-
tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) aparecem peles
e carnes de animais selvagens como potencial econômico, “assim, constam
na lista gatos maracajás (Leopardus weidii), onças (Panthera onca), caititus (Ta-
yassu tajacu), ariranhas (Pteronura brasiliensis) e jacarés (Gavialidae) como ‘fonte
de recursos econômicos significativos’”. (SOUZA, 2012, p. 146). A preo-
cupação com os meios de vida das populações tradicionais ou com os danos
socioambientais que essa obra estatal causaria não versaram nos estudos da
SUDAM e do INCRA.
No processo de construção da Transamazônica, os municípios do
Maranhão, Pará e Amazonas receberam trabalhadores de várias partes do
país, principalmente do Nordeste. E dentre as empreiteiras que participa-
ram da construção estiveram: a Construtora Mendes Júnior S.A. (responsá-
vel por construir 632 km); a S.A Paulista Com. E Construção (117 km); a
Construtora Queiroz Galvão S.A. (234 km); a EIT-Empresa Industrial Téc.
S/A. (259 km); a Construtora Rabelo S.A. (374 km); a Construtora Com.
Camargo Correa S.A. (400 km); e a Paranapanema S/A – Mineração Ind. E
Construções (300 km) (SOUZA, 2012). Ao todo, a Transamazônica conta-
biliza 5.400 km de extensão, sendo 2.300 km construídos no período do
regime militar-empresarial e, posteriormente, integrada à outra rodovia já
existente que conectava Ceará, Piauí e Paraíba, resultando na ligação da
Transamazônica ao Oceano Atlântico (SOUZA, 2015). Ao todo, a Transa-
mazônica contabiliza 5.400 km de extensão, sendo 2.300 km construídos
no período do regime militar-empresarial e, posteriormente, integrada à ou-
tra rodovia já existente que conectava Ceará, Piauí e Paraíba, resultando na
ligação da Transamazônica ao Oceano Atlântico (SOUZA, 2015). Podemos
dividir a Transamazônica em quatro trechos: Trecho Nordestino (PB, CE,
PI e MA) (1.576 km); Trecho Estreito (MA) – Itaituba (PA) (1.252 km);
Trecho Itaituba (PA) – Humaitá (AM) (1.070 km); e Trecho Humaitá (AM)
– Boqueirão da Esperança (AC) (1.521 km).
69
Ao analisar os relatórios do INCRA e SUDAM sobre a Transamazô-
nica, Souza (2009) concluiu que a preservação da natureza e das populações
tradicionais era vista pelos órgãos oficiais como “obstáculos” ao desenvolvi-
mento econômico capitalista. A lógica destrutiva do capital tinha seu vetor de
espraiamento no Estado brasileiro, o qual intervia “no meio ambiente para os
grandes projetos de desenvolvimento [que] ocasion[aram] significativa degra-
dação da fauna, flora e recursos hídricos da região” (SOUZA, 2012, p. 143).
Para sua construção, foi necessário derrubar florestas com o intuito
de limpar o terreno para a consolidação da estrada. Outras estradas menores
foram construídas na Amazônia, na década de 1980, que destruíram cerca
de 25 milhões de hectares de florestas (SANTOS, 2009). A natureza, ao
mesmo tempo que era tomada pelo seu potencial econômico, era vista
como obstáculo, portanto, deveria ser “removida do caminho”. Nas pala-
vras de Souza (2009, p. 145):
70
O Megaprojeto Carajás e a Usina Hidrelétrica de Tucuruí para
extração de minérios na Amazônia
9
De acordo com Santos (2009, p. 24), o PGC abarca um total de “de 218 municípios
pertencentes aos estados do Maranhão, Pará e Goiás, com abrangência superior a
10,6% do território nacional”. Em termos geográficos, o PGC se situa “numa faixa que
envolve das caatingas do Nordeste à floresta amazônica, passando pelo planalto central
brasileiro e tem, no seu interior, vários rios importantes para o funcionamento das
atividades do programa”. (SANTOS, 2009, p. 25-26). Ele está dividido em três blocos:
“o primeiro bloco corresponde à região entre São Luís e Santa Inês, no Maranhão; o
segundo bloco está situado entre as cidades de Santa Inês a Marabá, no Pará; e no
terceiro bloco, a área corresponde às terras situadas entre as cidades de Marabá a Serra
dos Carajás” (SANTOS, 2009, p. 26). Esses blocos possuem similitudes geográficas,
como: “o primeiro bloco é constituído de manguezais, babaçuais, áreas de inundação
e área costeira. [...]. O segundo bloco é composto por florestas densas, cerrado e baba-
çuais, além de vários outros tipos de cobertura vegetal. [...] O terceiro bloco, por ser de
ocupação mais recente, vem sofrendo as maiores pressões com o desmatamento da
floresta nativa e a devastação dos recursos naturais” (SANTOS, 2009, p. 26-27).
71
A estatal Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) foi quem assumiu a
direção da extração, até a sua privatização na década de 1990 – que a tornou
“Vale” em 1997. A CVRD contraiu empréstimos com as instituições es-
trangeiras e nacionais e contou com o apoio de diversas instituições inter-
nacionais de países estrangeiros, como “a União Europeia – UE, a Confe-
deração Europeia de Ferro e aço, o Banco Mundial, além de ajuda dos go-
vernos do Japão e Estados Unidos” (SANTOS, 2009, p. 22). Esse interesse
do capital internacional “desempenhou um papel fundamental no direcio-
namento dos rumos do Projeto Grande Carajás” (SANTOS, 2009, p. 32).
Na década de 1980, o PGC foi executado pelo Estado brasileiro com inter-
ferência do capital internacional (SANTOS, 2009).
Devido à crise estrutural do capital e ao aumento do endividamento
externo do Brasil, o Estado tinha altas expectativas com o PGC com vistas
à “geração de emprego e renda, bem como com a melhoria da qualidade de
vida das populações da região.” (SANTOS, 2009, p. 22). A CVRD formu-
lou o documento “Amazônia Oriental – Plano Preliminar de Desenvolvi-
mento” estipulando “gasto na ordem dos 61,7 bilhões de dólares, dos quais
seriam 22,5 bilhões somente com infra-estrutura, a prioridade em curto
prazo, e 39,2 bilhões nos outros setores” (SANTOS, 2009, p. 23). A se-
quência seria da seguinte forma: “primeiro viriam os empréstimos de insti-
tuições estrangeiras; depois, a criação de condições estruturais para a reali-
zação de negócios, com o intuito de gerar divisas e saldo positivo na balança
comercial; por fim, o pagamento dos empréstimos e o investimento social”
(SANTOS, 2009, p. 33). Entretanto, os projetos estatais de infraestrutura
para o desenvolvimento do capital geraram um maior endividamento e
aprofundamento da “subserviência política e econômica do país em relação
aos credores” (SANTOS, 2009, p. 41), reforçando o traço constitutivo da
economia política brasileira.
O Estado brasileiro assumiu a infraestrutura (75% dos custos) e ao
assumi-la curvou todo seu aparato estatal para a implementação desse com-
plexo. Conforme explicita Santos (2009, p. 34):
72
SENAC e Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - SENAI,
que contribuíram com a formação de mão-de-obra; da mesma forma
inseriram-se Escolas Técnicas e Universidades.
73
“questão ambiental” também ficaram evidenciadas nos municípios que fo-
ram abarcados pelo PGC, como Açailândia (MA) que “sofre com a poluição
urbana provocada pela emissão de gazes na atmosfera pelas indústrias.
Como consequência, há um alto índice de doenças respiratórias, especial-
mente entre a população idosa e infantil” (SANTOS, 2009, p. 31). Foi o
próprio capital que alastrou as desigualdades sociais na Região Amazônica, onde o
desemprego é maior e o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é me-
nor nos municípios do PGC (ZONTA; TROCATE; COELHO, 2015; PE-
NHA; NOGUEIRA, 2015).
Considerando as expressões da “questão ambiental”, os danos soci-
oambientais são diversos devido à magnitude da extração e processamento
de minérios, como queimadas de carvão vegetal provenientes do desmata-
mento que “alimentam” as siderurgias – na década de 1980, “80% do carvão
consumido pelas indústrias siderúrgicas no País provinham de florestas na-
tivas” (SANTOS, 2009, p. 44). Nesse sentido:
74
onde passa com seus 892 km de extensão afetando 26 municípios. Penha e
Nogueira (2015, p. 221-222, grifos nossos) trazem, de forma ilustrativa, a
EFC que prejudica 152 comunidades no Pará e Maranhão:
A luta de classe pelo uso e apropriação das riquezas naturais faz parte
do cotidiano da Região Amazônica. O Estado brasileiro representa o capital na
luta de classe pela apropriação e uso da natureza contra as diversas frações da classe
trabalhadora. Os povos e comunidades tradicionais têm sua forma de associa-
ção com a natureza não só pelo “valor econômico”, mas pela sua vinculação
social, cultural e relacional com a terra, a água e os diferentes recursos naturais,
diferentemente de uma empresa/empreendimento de extração de recursos na-
turais, de grileiros, de garimpeiros, de latifundiários etc.
Numa perspectiva crítica da economia política, entendemos que o
antagonismo de classe e os diferentes interesses econômico-sociais pela natureza perfazem
75
a luta de classes relacionada ao uso e apropriação coletiva ou privada do meio ambiente.
O capital para desenvolver e expandir seus domínios, precisa expulsar os
povos e comunidades tradicionais dos seus territórios utilizando, principal-
mente, o Estado brasileiro e sua violência normativo-legal e/ou as forças
armadas. Concordamos com Mazzeo (1995, p. 34) que no Brasil o Estado
foi “direcionado para subvencionar o desenvolvimento das forças produti-
vas e, a nível político, garantir a repressão ao movimento operário e popular,
representado pela legislação trabalhista autocrática e corporativista e pelo
aparelho repressivo de uma polícia política violenta e brutal”. Nas palavras
de Netto (1991, p. 19, grifos originais), ao elencar particularidades da for-
mação econômica brasileira, afirma-se que:
76
região possui expressiva capacidade energética, “detendo 80% do potencial
hidrelétrico ainda aproveitável no Brasil” (COUTO, 2005, p. 1). Essa hidre-
létrica foi construída entre 1975 e 1984 pela Eletronorte, no rio Tocantins
(Pará), e sua construção utilizou seis milhões m³ de concreto, 85 milhões
m³ de terra e rocha e contou com mais de 30 mil trabalhadores (COUTO,
2005). Os trabalhadores da região passaram a vender a sua força de trabalho
na construção da hidrelétrica, uma vez que, seus antigos trabalhos com agri-
cultura e pesca foram extintos pela nova dinâmica econômica. Na análise
de Congilio e Silva (2019, p. 10),
Para formação do lago que inundou uma área de 2.875km2, com 45.8
bilhões de m3 de água, a hidrelétrica atingiu 13 vilas e povoados rurais do
baixo Tocantins: Repartimento, Breu Branco, Remansão do Centro,
Remansão da Beira, Areião, Jatobal, Chiqueirão, Coari, Canoal, Vila
Braba, Ipixuna, Sta Tereza do Tauri. Inundou nove reservas indígenas per-
77
tencentes a cinco diferentes tribos: Assurinis, Gavião, Suruí, Para-
kanã e Xincrim. Além disso, ficaram submersos 250km de rodovia
sendo 150km da rodovia Transamazônica, e a cobertura vegetal não
retirada na quase totalidade do reservatório.
Considerações finais
78
se revela enquanto um dos principais agentes de sua destruição, na mesma me-
dida que legisla sobre a proteção ambiental (SILVA, 2022).
Referências
79
NETTO, José. Paulo. Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço
Social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 1991.
80
CAPÍTULO 5
Estado e políticas públicas no Brasil contemporâneo: demo-
cratização x permanência no ensino superior
Albany Mendonça Silva
Andréa Alice Rodrigues Silva
Caroline dos Santos Lima
Introdução
81
Estado e políticas públicas: transformações capitalistas e a
contrarreforma do Estado
18
O Welfare State caracterizou-se em um padrão de financiamento público de econo-
mia capitalista, mediante a estruturação da esfera pública, onde o fundo público passou
a ser o pressuposto de financiamento da acumulação do capital, de um lado, e, de outro,
do financiamento da reprodução da força de trabalho, atingindo globalmente toda a
população (OLIVEIRA, 1988, p.8).
82
terações no mercado de trabalho e as reformas sindicais intensificam o pro-
cesso de precarização do trabalho e o refluxo do movimento sindical aliado
ao processo de privatização e perdas no investimento em políticas públicas.
Segundo Mattoso (1995), há inversão nas relações de trabalho e na
contratação da força de trabalho, através da redução dos níveis de segurança
do trabalho, da relação salarial, do padrão de consumo e da desestruturação
do movimento sindical, além do desemprego estrutural.
Com isso, reafirma-se a proposta de Reforma do Estado que se pauta
na necessidade do Estado “privatizar, liberalizar, desregular, flexibilizar os mer-
cados de trabalho, mas fazê-lo de forma radical, uma vez que, para a ideologia
neoliberal, o Estado deve [...] desvencilhar-se de todas as suas funções de inter-
venção no plano econômico e social” (PERREIRA, 1998, p. 38). E, por esse
motivo, foi denominada por Behring (2003) de contrarreforma do Estado.
Nesse bojo, destaca-se que no cenário de privatização intensifica a
disputa do fundo público e, consequentemente, a definição das prioridades
dos gastos públicos tem sido tensionada e marcada com uma série de me-
didas adotadas: disciplina fiscal; redefinição das prioridades do gasto pú-
blico; manutenção de taxas de câmbio competitivas; reforma tributária; li-
beração comercial; regime cambial, privatização de empresas estatais, des-
regulação da economia; proteção dos direitos autorais, reforma do ensino
superior; reforma da Previdência e Administrativa (NETTO, 1993; TEI-
XEIRA, 1996; GENTILI, 1998; BATISTA, 1999). Tais reformas trazem
implicações diretas para o desmonte do setor público e, por conseguinte,
para o funcionalismo público
Na ótica de Bresser Pereira (2000, p. 33), as reformas neoliberais – o
ajuste fiscal, a privatização, a liberalização comercial, a desregulamentação,
a reforma da administração pública – ao contrário de enfraquecer o poder
do Estado, tem como objetivos “tornar o Estado mais governável e com
maior capacidade de governança”. Esse projeto consolida uma ampla re-
forma nas políticas e no aparelho do Estado, na perspectiva de “solucionar
a crise da economia brasileira e garantir as chamadas condições de inserção
do país na economia globalizada” (CARDOSO apud SILVA, 2003, p. 71).
As políticas sociais e a questão educacional sofrem os rebatimentos
da Reforma do Estado. Com isso, verifica-se que há uma modificação radi-
cal na estrutura da esfera pública no projeto da Reforma do Estado, por
83
meio do “processo de privatização do público que se expressa na apropria-
ção privada dos recursos públicos” (WANDERLEY, s/d, p.4).
É com a Reforma do Estado que se configura um processo privatização
e disputa do fundo público. Como alerta Oliveira (s/d, p.7), no caso brasileiro
destaca-se como um processo de regulação sem esfera pública, isto quer dizer:
“a utilização do fundo público casuisticamente, sem regras gerais, sem a cons-
tituição de alteridades que imporiam clivagens e vertedouros por onde passa-
riam as decisões sob controle dos grupos e classes sociais não apenas direta-
mente interessados: sobretudo os não diretamente interessados”.
Além dessa questão, pode-se destacar que a Reforma promoveu um
incremento significativo do desempenho estatal, mediante a introdução de
formas inovadoras de gestão e de iniciativas destinadas a quebrar “as amar-
ras do modelo burocrático”, a descentralizar os controles gerenciais, a fle-
xibilizar normas, estruturas e procedimentos. Ademais, “trabalharia em prol
de uma redução do tamanho do Estado mediante políticas de privatização,
terceirização e parceria público-privado, tendo como objetivo alcançar um
Estado mais ágil, menor e mais barato” (NOGUEIRA, 2004, p. 41).
A esse respeito, pode-se concluir que a crise capitalista impacta dire-
tamente na regulação do Estado e, consequentemente, nos mecanismos de
financiamento e de transferências de investimentos nas políticas públicas,
culminando com a oferta de políticas focalistas e privatizadas. É nesse bojo
que se coloca o debate do desmonte da democratização do ensino.
84
no processo de acumulação e de regulação do capitalismo mediante a insti-
tucionalização de políticas públicas. As demandas públicas passam a ser ge-
ridas menos em nome do interesse público e mais em nome dos interesses
particulares (COSTA, 2000).
Nesse sentido, “o bom Estado deveria ser [...] reduzido quase ao mí-
nimo, tomado pela racionalidade técnica e vazio de interesses, de paixão, de
embates políticos e a sociedade civil – lócus de cidadãos organizados” (NO-
GUEIRA, 2001, p. 42).
Evidencia-se, assim, que a nova formatação do Estado atinge direta-
mente o financiamento das políticas públicas, principalmente as sociais. A
esse respeito, pontua Henrique (1993, p. 227):
87
Espera-se uma gestão eficiente das escolas públicas, mas, em contrapartida,
não há investimento financeiro para as escolas que estão sendo sucateadas.
A descentralização da educação, nas suas vertentes administrativas, fi-
nanceiras e pedagógicas, passa a introduzir o mecanismo de transferência das
responsabilidades dos órgãos centrais para os Estados e destes para os municí-
pios, bem como o repasse de certas obrigações do Estado para terceiros.
É dentro desse contexto que o processo de democratização do en-
sino passa a ser substituído por processos de privatização, com redução dos
investimentos e fortalecimentos de políticas de captação de recursos. É as-
sim que há uma simplificação da autonomia, a qual passa a ser atrelada à
capacidade das unidades escolares conseguirem, com os recursos escassos,
resolver os problemas educacionais. Nessa direção, o Estado tem incenti-
vado as escolas a buscarem como alternativa de financiamento parcerias
com empresas privadas, organismos internacionais, ONG’s, dentre outras.
Do exposto, percebe-se que em função da primazia da política eco-
nômica, a política social é relegada a segundo plano no desenvolvimento
atual do sistema capitalista. Nesse sentido, “o Estado vem abrindo mão de
seu protagonismo como provedor social, tornando cada vez mais focaliza-
das as políticas sociais públicas, enquanto o mercado ocupa-se em privile-
giar o bem-estar ocupacional que protege apenas quem tem emprego está-
vel e bem remunerado” (PEREIRA, 2002, p. 39), destacando os impactos
para a permanência dos discentes.
Diante do exposto, pode-se inferir que a educação sofre os rebati-
mentos da Reforma do Estado, o que implica o desmonte de uma luta his-
tórica para construção do processo de democratização do ensino19 e inten-
sifica o sistema de privatização. E, com isso, a partir das orientações do
Banco Mundial o país passa a adotar uma nova orientação para as políticas
de mercado, tendendo a assumir uma reorganização para a educação supe-
rior, adequando-a às necessidades emergentes daquele contexto. Através da
educação, o país deixaria de depender de mão de obra importada e ganharia
a autonomia. Dessa forma,
19
A universalização do ensino ainda é um ideal a ser perseguido pela maioria da
população, visto que o financiamento da educação, em seus vários níveis, tem sido
negligenciado pelo poder público. E, com isso, destaca-se a ampliação do sistema
de acesso ao ensino.
88
[...] o direcionamento do ensino superior brasileiro estava pautado na
atuação do mercado e teve apoio de organismos internacionais como:
Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização
Mundial do Comércio (OMC), da Organização de Cooperação e de De-
senvolvimento Econômico (OCDE), do Banco Mundial (BM), entre
outros para promover o sistema de financiamento educacional. Isto in-
tensificou a expansão do ensino superior brasileiro, como uma maneira
de atender a indústria e o comércio, seguindo um modelo mais rigoroso
de administração e controle de qualidade - utilizando de forma restrita
os recursos públicos (SILVA, 2017, p. 43-44).
20
O REUNI foi criado enquanto projeto viabilizador da expansão da educação supe-
rior a partir da Reestruturação e Expansão das Universidades Federais impactando na
ampliação do acesso e da permanência estudantil. “As ações do programa contemplam
o aumento de vagas nos cursos de graduação, a ampliação da oferta de cursos noturnos,
a promoção de inovações pedagógicas e o combate à evasão, entre outras metas que
têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país”. (BRASIL, 2010).
21
O Programa Universidade para Todos (Prouni) do MEC oferece bolsas de estudo,
integrais e parciais (50%), em instituições particulares de educação superior. Para con-
correr às bolsas integrais, o estudante deve comprovar renda familiar bruta mensal, por
pessoa, de até 1,5 salário-mínimo. Para as bolsas parciais (50%), a renda familiar bruta
mensal deve ser de até 3 salários-mínimos por pessoa. Somente poderá se inscrever no
Prouni o estudante brasileiro que não possua diploma de curso superior e que tenha
participado do Enem mais recente e obtido, no mínimo, 450 pontos de média das
notas. Além disso, o estudante não pode ter tirado zero na redação. (BRASIL, 2022).
22
Foi instituído através da Lei nº 10.260/2001, o programa de Financiamento Estu-
dantil (FIES) com o objetivo de dispor de financiamento em cursos superiores em
89
Outro aspecto relevante, nessa construção, pode-se elencar a adoção
de políticas voltadas para a superação das disparidades na formação acadê-
mica, sobretudo as relacionadas com o distanciamento entre pretos e bran-
cos nos bancos universitários, oriundas dos movimentos e das lutas mate-
rializadas na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Ra-
cial, a Xenofobia e formas correlatas de Intolerância, o evento promovido
pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Apesar desses avanços significativos na rede de educação superior,
que possibilitaram ações de reparação social nas universidades, com o
acesso do segmento popular por meio do acesso aos benefícios, sistema de
cotas e as bolsas de estudos, há severos impactos com os cortes orçamen-
tários que intensificam os gargalos inerentes ao processo de permanência e
as dificuldades materiais e simbólicas de ocupar o papel de estudante uni-
versitário com todas as suas exigências. É importante registrar que o pro-
cesso de interiorização com o REUNI viabilizou a ampliação do acesso de
alunos das camadas populares (SANTOS, 2009).
Nessa direção, pode-se inferir que o programa de interiorização das
universidades possibilitou a retomada do crescimento da graduação pública,
viabilizou condições para que universidades federais promovessem a ex-
pansão física, acadêmica e pedagógica. Para Atche (2014), o programa com
meta de expansão da educação superior federal foi fundamental para viabi-
lizar a ampliação das vagas para a educação superior pública.
Entretanto, cabe registrar que a ampliação do acesso não implica a garantia
da permanência, o que leva à necessidade de ampliação das políticas de subsídios
para a manutenção do aluno na graduação com permanência qualificada, para
que concluam a formação de forma positiva e no tempo regular e deem conti-
nuidade aos estudos na pós-graduação ao concluir a formação superior.
Compreender essas questões é parte essencial na direção de entender
a educação brasileira enquanto política pública capaz de incidir diretamente
sobre as desigualdades sociais e a emancipação humana. Diante disso,
torna-se importante adensar as pesquisas e debates referentes às políticas
de educação, sobretudo pela necessidade emergente de ampliação dessas
91
(2011) pontua que políticas públicas voltadas para a permanência estudantil
ampliaram o acesso e podem contribuir para sua permanência, pois:
92
Sobre a questão da defasagem, convém pontuar que tais dificuldades
estão associadas as ausências de meios materiais e simbólicos que interfe-
rem nas suas condições objetivas para conciliar o trabalho e o estudo, le-
vando os discentes à condição de trabalho devido a diversos fatores.
Daí a necessidade de entender que a pertinência da implementação
de políticas para assegurar a permanência por meio de políticas e programas
que possibilitem o acesso a bolsas e investimento em políticas estudantis,
permitindo o enfrentamento da situação de sucateamento das instituições,
de precarização e sobrecarga de trabalho docente.
Assim, observa-se que:
Considerações finais
Referências
94
COSTA, J. F. da. A política de assistência estudantil para além do au-
xílio financeiro. Realidade da universidade federal do recôncavo da
Bahia – UFRB. Trabalho de Conclusão de Curso. Cachoeira – 2017.
Disponível em:<http://www.repositoriodigital.ufrb.edu.br/han-
dle/123456789/2351>. Acesso em: 15 de fev. de 2022.
95
SANTOS, G. G. dos, SILVA, L. C. A evasão na educação superior: en-
tre debate social e objeto de pesquisa. In: SAMPAIO, SMR.( Org.)
Observatório da vida estudantil: primeiros estudos [online]. Salvador:
EDUFBA, 2011, p. 249-262.
96
CAPÍTULO 6
As funções orçamentárias trabalho e previdência social no
governo Bolsonaro (2019 – 2022)
Fabrício Rodrigues da Silva
Elaine Rossetti Behring
Jordeana Davi
Introdução
A classe trabalhadora brasileira viveu nos últimos anos uma das qua-
dras históricas mais difíceis no que se refere a garantia de seus direitos so-
ciais conquistados historicamente, com a chegada de Bolsonaro ao Go-
verno Federal (2019-2022). Munido de um projeto calcado no ultraconser-
vadorismo, ultraneoliberalismo e neofacismo, tocou a máquina pública no
sentido contrário de tudo que o país havia alcançado no campo progressista,
mesmo com limites decorrentes sobretudo de um ambiente de ajuste fiscal
draconiano e permanente (BEHRING, 2021).
Na proteção social, um dos seus principais alvos, a Previdência Social
pública, que completa 100 anos de existência neste ano, foi a primeira a
sofrer ataques severos através da aprovação da contrarreforma previdenci-
ária, a Emenda Constitucional N. 103/2019, aprofundando ainda mais os
critérios restritivos de acesso. O objetivo, distante de melhorar o quadro do
emprego e geração de renda na economia nacional, como prometido pelo
ex-ministro da economia Paulo Guedes, já que o desemprego se aprofun-
dou e a informalidade aumentaram no período, era de precarizar a força de
trabalho a partir da negação de benefícios, combinada ao enxugamento de
recursos nas funções orçamentárias Trabalho e Previdência Social.
Neste sentido, este artigo aponta e problematiza o comportamento
das funções orçamentarias Trabalho (N.0011) e Previdência Social
(N.0009), executadas no governo Bolsonaro (2019 – 2022). Os dados estão
deflacionados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA), foram coletados através de pesquisa documental no sistema SIGA
BRASIL, no referido período, estando as análises e discussões que funda-
mentam a leitura e o exame dos dados apoiadas no método materialista-
97
histórico-dialético. O artigo está estruturado em dois itens, sendo o pri-
meiro de natureza teórica e, um segundo de natureza analítica, seguindo das
considerações finais.
23
Ao observar a balança comercial brasileira, o agronegócio tem participação importante
no superavit, exportando produtos como minério de ferro, soja, óleos brutos de petróleo,
açúcares, carne bovina, entre outros. Em janeiro de 2023, as exportações cresceram no total
de 11,7%, e somaram US$ 23,14 bilhões, cujos setores com maior crescimento foram a
indústria extrativa, com 22,3% e agropecuários, com 4,6% em comparação a 2022. Dispo-
nível em: encurtador.com.br/bhxDV. Acesso em 06 fev. 2023.
24
A perda de mais-valia para as economias centrais, dada as condições impostas pela troca
desigual implica na violação permanente do equivalente de valor da força de trabalho brasileira,
pois a perda de parcelas de mais-valia pressiona a burguesia interna a buscar formas de com-
plementação, sendo portanto, “somente a apropriação de parte do fundo de consumo, para
transferi-lo ao fundo de acumulação, constitui de modo simultâneo uma forma de aumentar
a taxa de mais-valia e, por sua vez, uma forma de superexploração” (OSÓRIO, 2013, p.63).
99
Aqui, o Estado desempenhou não só a função de proteger a propriedade
privada, mas garantiu os arranjos necessários para o desenvolvimento capita-
lista em sua fase industrial, afastando as classes subalternas deste processo.
No entanto, seria um equívoco analítico observar apenas a função da ga-
rantia das condições gerais de produção e reprodução do capital nacional e ex-
terno25 na economia brasileira, uma vez que Mandel (1982) nos ensina que, ao
lado desta, coexistem e caminham juntas outras funções necessárias à manuten-
ção do projeto de dominação capitalista, dentre elas, a função de regulação social,
verificada em nossa realidade a partir da constituição dos direitos sociais.
Os direitos sociais são expressão da luta dos trabalhadores. As rei-
vindicações dos trabalhadores a partir do século XIX e que se expandiram
no século XX a nível mundial foram suficientes para pressionarem o capi-
talismo, forjando assim a construção destes. A partir deles, foi possível que
os trabalhadores participassem minimamente da socialização da riqueza ma-
terial e espiritual produzida por ela mesma, mas apropriada pelo capital
(COUTINHO, 2000).
Quando alcançam um nível maior de expansão, constituem proces-
sos de reformas, como ocorrido no Welfare State, no pós segunda guerra
mundial em alguns países da Europa e nos demais sistemas de proteção
social espalhados pelo mundo ocidental, incluindo, apesar de tardiamente,
a Seguridade Social brasileira em 1988. Estes, dependem da correlação de
forças, o que faz dos direitos sociais um processo dialético, ainda que, como
um nível da cidadania, dependam do direito social a propriedade, que neste
sistema, continua privada, o que repõe a necessidade da superação do capi-
talismo (COUTINHO, 2000; BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
Ainda que de forma tardia, os primeiros direitos sociais relacionados
a Previdência Social surgiram de forma limitada no Brasil a partir dos anos
25
A respeito dessa relação entre burguesia nacional e burguesia externa e o problema
estrutural de abrigar no mesmo projeto interesses e formatos distintos, Fernandes
(2005) defende a tese de que ocorre uma fusão entre estas, cuja composição de poder
heterogênea resulta na dominação da burguesia externa em relação a base nacional,
tomando, ainda, as massas populares como principal inimigo. As mudanças promovi-
das na economia foram mais dirigidas pela burguesia externa a partir de seus interesses,
o que evidencia a inexistência de um projeto revolucionário da burguesia brasileira,
sendo mais favorável para esta última a associação com o imperialismo, cujos parcos
benefícios custaram e custam a sua subserviência.
100
de 1920 e alcançaram significativo grau de regulamentação a partir do perí-
odo populista de Getúlio Vargas (1934 – 1954), estágio de amadurecimento
do capital monopolista, que colocou a necessidade de novas formas de re-
gulação e disciplinamento da força de trabalho, reverberando naquele mo-
mento na institucionalização da previdência com os Institutos de Aposen-
tadorias e Pensões (IAPs), bem como, com a Consolidação das Leis do Tra-
balho (CLT), aprovada através da Lei Decreto N. 5.452/43, unificando to-
das as legislações relativas a área no Brasil. Posteriormente, tanto a Previ-
dência Social como o Trabalho passaram por expressivo processo de ex-
pansão e institucionalização no período da ditadura militar (1964 - 1985),
expressando o grau de desenvolvimento das forças produtivas e estágio de
amadurecimento do capitalismo industrial no país.
Embora tais avanços signifiquem também a regulação e disciplina-
mento da força de trabalho imposta pelo capital, o que expõe o caráter con-
servador da política social, principal instrumento de materialização destes,
também não eximimos o fato de que a constituição deles incidiu significa-
tivamente na reprodução social da força de trabalho, seja durante o período
laboral ou após este. Dentre as conquistas, estão a regulamentação da jor-
nada de trabalho, o período de descanso, férias, proteções especificas para
trabalhadores mulheres, direito a organização sindical, convenções coletivas
e a greve, fiscalização das condições de trabalho e criação de justiça especí-
fica para processos trabalhistas, 13º salário, seguro-desemprego, abono sa-
larial, seguro-defeso, pensão por morte, auxílio por incapacidade temporá-
ria, auxílio-reclusão e, um dos mais importante, a aposentadoria26.
A importância dos direitos se aprofunda quando observada a fonte
que financiam os mesmos, já que ao serem institucionalizados e regulamen-
tados pelo Estado, são pagos com recursos do orçamento público, que se
26
É valido ressaltar que tais conquistas no campo do trabalho já sofreram significativos
retrocessos desde a Constituição Federal de 1988, momento em que a Seguridade So-
cial organizou e ampliou o sistema de proteção social. A Previdência Social sofreu inú-
meras contrarreformas nos governos de Fernandes Henrique Cardoso (1995 – 2002),
nos períodos do Governo Lula (2003 – 2010) e Governo Dilma Rousseff (2011 –
2016), além da tentativa de contrarreforma no Governo ilegítimo de Michel Temer
(2016 – 2018), que posteriormente avançou e foi aprovada no Governo Bolsonaro
(2019- 2022). Na CLT, foram inúmeras alterações sofridas ao longo de sua existência.
101
formam a partir de tributos recolhidos da própria sociedade. Conforme
aponta Behring (2021, p. 39):
102
mais-valia27 e também de trabalho necessário produzido pelos trabalhado-
res no processo de produção, mas que em virtude da relação social de pro-
dução capitalista, é apropriada pelo capital. E tal alocação não ocorre por
vias mecanizadas, depende da correlação de forças que a classe trabalhadora
estabelece na arena dos conflitos sociais, incluindo os espaços públicos e as
instituições democráticas liberais representativas, através de seus movimen-
tos sociais e partidos políticos, na busca pela institucionalização e criação
de mecanismos que tornem obrigatória a alocação destes recursos.
É sob estas condições que a força de trabalho conseguiu assegurar a
vinculação de recursos obrigatórios para o financiamento da sua proteção
social, com a criação do Orçamento da Seguridade Social (OSS) na Consti-
tuição Federal de 1988. O OSS é composto por uma diversificação na sua
base, uma pluralidade de fontes, que constituem as receitas para financiar
as políticas que a compõem, portanto, sendo legalmente assegurados os re-
cursos que possibilitam a construção de um Estado de direitos democrático,
visando assegurar a execução destes direitos relacionados à proteção social,
incluindo os direitos previdenciários e trabalhistas, aqui discutidos.
Apesar dessa existência constitucional que vincula os recursos à pro-
teção social, tem se verificado nos últimos anos um intenso processo de
desfinanciamento desta, promovido pela agenda do ajuste fiscal perma-
nente que vem desde o governo de FHC e foi continuado nos governos de
Lula e Dilma Rousseff, radicalizando-se nos governos de Michel Temer e
Bolsonaro, através de instrumentos como as Desvinculações de Receitas da
União (DRU), as Renúncias Tributárias, a Emenda Constitucional N.
95/2016, entre outros, cuja finalidade é alcançar as metas fiscais. Este con-
texto é sintomático da crise estrutural do capital (MÉSZAROS, 2011), em
que a agenda neoliberal impõe políticas econômicas regressivas pautadas na
canalização dos recursos que compõem o fundo público para alimentar a
sanha das frações rentistas por meio do sistema da dívida pública, a custa
do sacrifício de toda a população. A implicação do desfinanciamento do
OSS, tem sido a redução de diversos serviços e benefícios direcionados a
27
Ainda que tal retorno também contribua no processo de aceleração da rotação de
capital, já que “o crescimento do salário indireto, nas proporções assinaladas, transfor-
mou-se em liberação do salário direto ou da renda domiciliar disponível para alimentar
o consumo de massa” (OLIVEIRA, 1998, p. 10).
103
classe trabalhadora, o que inclui os relativos à previdência social e ao traba-
lho, conforme pretendemos problematizar a seguir.
Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.
104
-19% em comparação ao valor pago no ano de 2020 e -18% quando compa-
rado ao valor pago em 2019. Já os anos de 2020 e 2022 não registraram queda,
no entanto, tiveram pífio crescimento de 1% em relação aos anos que os ante-
cedem, não repondo a significativa redução ocorrida em 2021. No período ana-
lisado, a variação da função trabalho foi de -17%, revelando a redução na tota-
lidade do orçamento, tornando necessário apontar em que benefícios tal redu-
ção incidiu, fato que podemos desvendar analisando as ações orçamentárias da
função, que seguem na próxima tabela.
Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.
28
Todas as médias foram calculadas por meio de aplicação de fórmula no Excel.
105
2019, no entanto, seu orçamento foi -17% em 2021 comparado ao de 2020,
crescendo apenas 1% em 2022 comparado a 2021, o que implica reconhecer
que os pífios aumentos não repõem a significativa redução em 2021. Já no
abono salarial, a redução se complexifica. Ocorre um crescimento de 8%
em 2020 em comparação a 2019, o que é insignificante quando observado
uma brutal redução de 49% no orçamento em 2021 comparado ao de 2020,
seguindo com aumento pífio de 1% em 2022 em comparação ao ano de
2021. Seguro-desemprego e abono salarial, assim, acumulam no período re-
dução de 3% e 13%, respectivamente.
Essa realidade assusta quando lembrado que tal redução ocorre no se-
gundo ano pandêmico provocado pela COVID-19, coincidindo com o pri-
meiro ano de orçamento elaborado e executado pelo Governo Bolsonaro, o
que exprime que ele não mobilizou esforços para enfrentar as consequências
que atingiam e ainda atingem o campo do trabalho, o que requisitaria mais in-
vestimentos na área, algo não verificado conforme os dados. É importante des-
tacar que naquele momento histórico, vários trabalhadores haviam perdido
seus empregos, cuja desocupação no país chegou a alcançar 11,1% (IBGE,
2021), aumentando a demanda pelo seguro-desemprego, além do aumento no
quadro da informalidade, que alcançou a marca de mais de 37 milhões de pes-
soas (IBGE, 2021), o que evidencia a necessidade da população de buscar al-
guma forma de renda diante da severa crise sanitária que aprofundava a situa-
ção de insegurança alimentar de grande parcela da população, já que o governo
optava pelo negacionismo e desprezo.
Ao nosso ver, um outro determinante implicou nesta brutal redução
no orçamento do abono salarial, qual seja, as alterações de regras sofridas
por meio da Lei N. 13.134/15, que impuseram, para cálculo do benefício
de até um salário-mínimo, a proporcionalidade do tempo de serviço cum-
prido no ano anterior ao do pagamento, o que significa que a interrupção
dos muitos vínculos de trabalho com carteira assinada em 2020 reduziu a
formação do valor do benefício pago em 2021.
Já a função orçamentária Previdência Social, N. 9, financia importan-
tes benefícios e serviços previdenciários daqueles trabalhadores que contri-
buíram e contribuem para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS),
como a aposentadoria, auxílio por incapacidade temporária, auxílio-mater-
106
nidade e auxílio-reclusão. A função orçamentária esteve no Governo Bol-
sonaro diretamente vinculada ao Ministério da Economia e Trabalho, bem
como a diversos outros órgãos orçamentários, como demais ministérios,
advocacia geral da união e judiciário. Em relação às fontes que a financiam,
são provenientes das contribuições que compõem o OSS, citadas anterior-
mente, sendo a principal, a folha de pagamento, composta por contribui-
ções de empregados e empregadores. Vejamos na tabela que segue, o com-
portamento durante o período de 2019 a 2022 relativo a essa área.
Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.
29
A metodologia tendenciosa utilizada pelo governo resume o orçamento da Previ-
dência Social à contribuição folha de pagamento, aquela paga pelos trabalhadores e
107
financeirização, cujo capital financeiro tem tentado a todo custo capitalizar
os direitos previdenciários, tornando-os mercadorias rentáveis no processo
de apropriação de valor.
Não sendo diferente da função Trabalho, a Previdência Social também
registra valores pagos inferiores aos valores autorizados, cujo montante acu-
mulado no período ultrapassa a marca dos R$ 309,4 bilhões, cifra que se apro-
xima do total do orçamento da Função Trabalho nos quatros anos analisados.
Portanto, foram pagos em relação aos valores autorizados em 2019,
2020, 2021 e 2022, 91,98% 92,26%, 90,62% e 90,15%, respectivamente, ob-
tendo a média anual de pagamento de 91,25% no período. Do ponto de vista
da tendência orçamentária, os investimentos na previdência não registraram
queda no ano de 2020 em relação a 2019, com pífio crescimento de 2%. Já em
2021, o crescimento avançou para 11% em comparação ao orçamento de 2020,
despencando para 1% em 2022, em relação ao que havia sido pago em 2021, o
que faz dele o menor crescimento entre os anos analisados. Os dados nos per-
mitem inferir que, no período analisado, a variação da função em questão foi
de +15%, percentual baixo e que pode ser explicado pela involução do cresci-
mento tanto do valor dos benefícios, sendo a grande parte das aposentadorias
e pensões calculados com base no salário-mínimo, como também, pela baixa
de benefícios em virtude do crescimento nos óbitos, além de indeferimento de
novos benefícios, como discutiremos mais à frente.
A tabela a seguir, trabalha ações orçamentárias da função Previdência
Social, no intuito de contribuir na análise do comportamento dos investi-
mentos na área.
empregadores no âmbito do mercado de trabalho formal, sendo ela apenas uma con-
tribuição entre outras contribuições sociais, conforme já destacamos, além disso, “é
inescapável concluir que a narrativa do governo se mostra contraditória, há quem diz
haver um rombo na previdência, mas abre mão de receitas de contribuições sociais em
escala crescente, mesmo sem obter nenhum sucesso com essa política. Portanto, o
próprio governo, intencionalmente, provoca o surgimento do déficit que diz procurar
combater” (GENTIL, 2019, p. 182).
108
Tabela 04 - Três maiores ações orçamentárias da Função Previdência Social
(pago 2019, 2020, 2021 e 2022) valores em milhões de reais – R$
Fonte: elaboração própria com base nos dados coletados no SIGA Brasil/Painel Es-
pecialista. Disponíveis em: https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil.
Acesso em 08/02/2023.
30
Fonte: https://abre.ai/fMg9. Acesso em 10 fev. 2023.
110
5,26%, mas ainda assim permaneceu distante do mínimo necessário, em
torno de R$ R$ 5.800 e, por fim, em ano eleitoral, o governo federal con-
cedeu reajuste de 10,18% em 2022, aumentando o salário-mínimo para R$
1.212, quando o mínimo deveria ter sido de R$ R$ 6.64731.
Os valores acima revelam a violação da determinação constitucional
de que o salário-mínimo deve garantir a manutenção de um trabalhador e
sua família, o que inclui a aquisição de alimentos de qualidade, vestimentas,
materiais de higiene, moradia, lazer e transporte, entre outros. Revelam, so-
bretudo, em que grau vem ocorrendo a violação do equivalente de valor da
força de trabalho, já que “se o preço da força de trabalho é reduzido a esse
mínimo, ele cai abaixo de seu valor, pois, em tais circunstâncias, a força de
trabalho só pode se manter e se desenvolver de forma precária...” (MARX,
2017, p. 183), nível de precarização que assume ainda proporções maiores
quando colocado na balança a negação e o desmonte de direitos sociais
como os relativos à previdência social e ao trabalho, comprovados aqui
através da leitura orçamentária. Lembramos ainda aqui o conceito de supe-
rexploração da força de trabalho na periferia do capitalismo para compensar
os termos desiguais de troca no mercado mundial (MARINI, 1973).
Considerações finais
31
A definição de salário-mínimo necessário, realizada pelo Departamento Intersindical
de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIESSE), é feita por meio de estudo que
considera o valor nacional da cesta básica de alimentos para manter uma família com-
posta por quatro pessoas. Fonte: https://abre.ai/fMhn. Acesso em 10 fev. 2023.
111
Já no campo da Previdência Social, a letalidade se expressou incial-
mente pela contrarreforma previdenciária aprovada através da Emenda
Constitucional N. 103/2019, seguindo do insignificante crescimento na
Função Previdência Social, na ordem de 15% no período analisado. Os be-
nefícios urbanos e rurais foi a única ação orçamentária a não sofrer redução
na série histórica analisada, fora os benefícios militares, registrando cresci-
mento de apenas 4% no período estudado, o que está associado ao fato do
salário-mínimo não ter sofrido ganho real nos últimos anos, dada a extinção
da política de valorização do mesmo em 2019, somando ainda, o fato do
aumento de óbitos provocados pela COVID-19, que fechou o ano de 2022
na casa dos mais de 692 mil mortes, muitos destes, beneficiários do Insti-
tuto Nacional do Seguro Social (INSS).
Dito isso, os dados nos permitem concluir que o Governo Bolsonaro
aprofundou o grau de violação do equivalente de valor da força de trabalho
brasileira, que viveu durante os últimos quatro anos em condições de precari-
zação máxima, dada a retração de direitos importantes, o que coloca a necessi-
dade de conscientização dos efeitos deste e da urgente organização política da
classe trabalhadora em nível nacional para enfrentar o bolsonarismo. Apesar
de ter sido o seu principal líder derrotado democraticamente nas eleições de
2022, segue fortalecido na realidade, dentro e fora das instituições da democra-
cia liberal representativa, fato que se expressa na significativa eleição de seus
deputados e senadores, sem esquecer de mencionar os seus efeitos práticos
mais recentes, com os atos terroristas ocorridos no dia 8 de janeiro de 2023,
nas sedes dos três poderes, em Brasília – Distrito Federal.
Referências
112
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpre-
tação sociológica. 5 ed. São Paulo: Globo, 2005.
113
CAPÍTULO 7
O Estado e os usineiros na zona da cana nordestina
Lucas Bezerra
Introdução
32
Intitulada A burguesia do açúcar e do álcool no Nordeste brasileiro: um estudo sobre
suas práticas de classe (2005-2020), a tese foi orientada pelo prof. Marcelo Braz e de-
fendida em 2022 no âmbito do Programa de Pós-Graduação da ESS/UFRJ.
114
vezes, ao se enfatizar em demasia o Estado como “comitê executivo para os ne-
gócios da burguesia”, tal como nos sugerem Marx e Engels (2008) no Manifesto
do Partido Comunista, deixa-se manifestar uma concepção de que a burguesia cor-
responderia a um todo homogêneo. Nunca foi e nunca será. Embora ela se uni-
fique em torno dos interesses da acumulação e da exploração, distribui-se inter-
namente em frações de classe. A menção a este aspecto deve-se ao fato de que essas
frações (industriais, banqueiros, comerciantes, latifundiários etc.) são portadoras
de interesses particularistas, disputados na arena das políticas de Estado. A partir
desse entendimento, tentamos evitar dois equívocos na abordagem dos usinei-
ros: estes não podem ser apreendidos nem endogenamente (como se não fossem
parte de um movimento mais amplo e associado das classes dominantes) nem
com base em generalizações simplificadoras (incapaz de empreender uma leitura
amiúde da burguesia a partir da origem de seu capital, das funções que desempe-
nha, de seu porte, de sua abrangência, das relações que estabelece com outros
setores, das pautas que pleiteia junto ao Estado)33.
Em terceiro lugar, reclamamos uma dimensão regional na análise dos
usineiros. Também eles não são a mesma coisa em qualquer parte do Brasil.
O moderno usineiro nordestino é resultado de uma história cujas raízes são
muito mais longas se comparadas aos usineiros do eixo Centro-Sul. Estes
são fruto de um período em que a produção de açúcar e álcool se afirma
em bases industriais (na “fábrica fora do lugar” que é a usina, como costumava
afirmar Octavio Ianni), enquanto, no Nordeste açucareiro, assistiu-se a uma
metamorfose que figura-se entre as mais expressivas na história dos “de
cima” no Brasil: a passagem do senhor de engenho ao usineiro.
Fato é que essa dimensão regional não está circunscrita ao passado.
Nas páginas subsequentes, buscamos demonstrar que há fortes traços de
atualidade, cujo fundamento remete às contradições que compõem o de-
senvolvimento do capitalismo na formação econômico-social brasileira,
marcado, dentre outras características, pelo desenvolvimento desigual inter-regio-
nal (OLIVEIRA, 1987; PEREIRA, 2018). Em face dele, as classes sociais
acabam por adquirir particularidades relacionadas ao papel desempenhado
por uma determinada região do país na divisão inter-regional do trabalho.
33
Uma leitura aprofundada da relação entre Estado e classes dominantes pode ser
localizada em Poulantzas (2019). Sobre sistemas de fracionamento da burguesia, ver o
estudo de Farias (2009).
115
No caso ora problematizado, este prognóstico confirma-se na realidade: há,
de fato, assimetrias e conflitos que marcam a experiência histórica da burguesia do açúcar
e do álcool no Nordeste brasileiro em relação a usineiros de outras regiões. Isto pode
ser especialmente observado nas plataformas programáticas e nas linhas de
ação de suas entidades patronais, as quais destinam ao Estado o foco de
suas reivindicações (BEZERRA, 2022).
Em quarto lugar, sabemos que a cadeia produtiva da cana-de-açúcar se
particulariza em função do peso histórico e estrutural que possui no desen-
volvimento histórico nacional. Primeira atividade econômica amplamente
praticada, passa a comportar, com o desenvolvimento de relações especifica-
mente capitalistas, indústria e agricultura, capital e propriedade fundiária, lucro
e renda da terra. Sua contemporaneidade é irrefutável. Nos anos 2000, o
monocultivo da cana figurou entre principais setores do agronegócio brasi-
leiro, sendo um dos que mais produziu, exportou e avançou territorial-
mente. Interpretamos esse período como um novo ciclo restaurador34, dado que
não só supera uma grave crise como a enfrentada pelo setor nos anos 1990
como denota o mais estrondoso ciclo econômico dos derivados da cana-
de-açúcar em nossa história. Trata-se, afinal, de uma retomada que ocorre
num período qualitativamente distinto do desenvolvimento capitalista na
agricultura, marcado pela hegemonia do agronegócio, sintetizado na condi-
ção de grande empresa agrário-capitalista-financeira (FONTES, 2010).
Nestes termos, a lógica do agribusiness expressa um conjunto de relações
econômicas - mercantis, comerciais, financeiras e tecnológicas - entre os setores
agrícola, agroindustrial e agropecuário e aqueles situados em ramos diversifica-
dos da indústria, do comércio e dos serviços. O Estado, ao cumprir sua funci-
onalidade, tem sido decisivo nessa dinâmica, viabilizando as condições neces-
sárias à reprodução ampliada do capital na agricultura mediante o fornecimento
de incentivos fiscais, tributários e infraestruturais. Sensível às pressões das en-
tidades organizadas da burguesia agroindustrial, o aparato estatal torna-se, desta
feita, fiador do agronegócio, como o foi nos períodos anteriores do desenvol-
vimento capitalista na agricultura brasileira.
Feitas tais considerações, este capítulo objetiva analisar a relação hodi-
erna entre Estado e classes dominantes na agroindústria sucroalcooleira nordestina,
constituída pelos três principais estados produtores de cana-de-açúcar na
35Em interlocução com as formulações de Leal (1978), José Murilo de Carvalho indica
que “[...] o coronelismo seria um momento particular do mandonismo, exatamente
118
eleições de 2014 e nas de 2018 eles tentaram, mas ninguém diretamente decolou. Na
Paraíba, nome forte deles é o Mário Borba, que foi presidente da Asplan (Associação
dos Plantadores de Cana da Paraíba) e hoje é vice-presidente da CNA (Confe-
deração Nacional da Agricultura). Tentou eleição, mas não deu” (Entrevistada
5, movimento popular).
Em Pernambuco, nas eleições de 2018, um herdeiro de usineiro con-
correu ao governo do estado, mas não obteve êxito. Referimo-nos a Ar-
mando Monteiro Neto36 (PSDB), ex-senador e ministro do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) no governo
Dilma Rousseff, também irmão de Eduardo Queiroz Monteiro, dono de
um dos principais grupos empresariais na zona canavieira do Nordeste
(grupo EQM), que, aliás, é um dos recordistas nas denúncias de trabalho
em condições análogas às de escravidão no Brasil37.
Na Paraíba, nessas mesmas eleições, uma herdeira de duas famílias
tradicionais de usineiros (Ribeiro Coutinho e Velloso Borges) elegeu-se senadora:
Daniela Ribeiro (PSD), irmã de Agnaldo Ribeiro (Progressistas), ex-depu-
tado e líder do governo golpista de Michel Temer (2016-2018) na Câmara
dos Deputados. Os sobrenomes que a senadora reúne38 são os mesmos in-
diciados pela ordem de assassinato da militante sindical Margarida Maria
Alves, no município de Alagoa Grande (PB), em 1983. Duas décadas antes,
o patriarca de uma dessas oligarquias, Aguinaldo Velloso Borges, usineiro
proprietário da falida Usina Tanques, foi vinculado ao assassinato de João
Pedro Teixeira, dirigente das Ligas Camponesas.
de alguns setores. Segundo o portal De olho nos ruralistas, no ano de 2006 ele declarou à
Justiça Eleitoral ter seu patrimônio estimado em R$ 1,1 milhão. Às vésperas das elei-
ções de 2018, seu patrimônio foi declarado em R$ 16,8 milhões.
37 Segundo informa o portal De olho nos ruralistas, 1.406 trabalhadores foram resgatados
39
Filho de Teotônio Vilela, usineiro homenageado por Milton Nascimento e Fernando
Brant na música Menestrel das Alagoas por sua participação na luta pela redemocrati-
zação nos anos 1980. Teotônio Vilela Filho foi presidente do PSDB e em certa ocasião
declarou: “Sou usineiro, cachaceiro e, certamente, o primeiro presidente do partido que
não fala francês. Me convenceram que meu nome unia o partido. Por isso aceitei.” A
afirmação consta em verbete do portal oficial da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/te-
otonio-brandao-vilela-filho. Acesso em 04 ago. 2022.
40
Arthur Lira (Partido Progressista - PP); Givaldo Carimbão (Partido Republicano da
Ordem Social - PROS); Pedro Vilela (PSDB); Renan Calheiros (PMDB).
120
por filhos da burguesia e dos setores médios. Em vista disso, setores do
Judiciário têm sido historicamente sensíveis ao poder de barganha dos usi-
neiros ou seus representantes, além de, quando convocados, legitimarem a
força repressiva do Estado (consubstanciada no aparato militar) em contra-
riedade aos trabalhadores rurais em luta e em benefício do monopólio da
propriedade fundiária.
A relação estabelecida entre os usineiros e o Estado (seja “de fora”
ou ocupando postos do aparato estatal) explicita a manutenção do tradici-
onalismo conservador no período em tela. Imbuídos de uma nova autoima-
gem41, reatualizam antigos traços de sua intervenção classista. Quando pos-
sível, a despeito da autoafirmação de valores republicanos e/ou democráti-
cos, tratam as instâncias estatais como sendo suas, de suas famílias, de seus
grupos empresariais, dando prosseguimento a um privatismo conhecido na
história da região e do país42 por meio de características afeitas ao ordena-
mento oligárquico, como o mandonismo e o clientelismo.
Vincula-se a essa engenhosidade a segunda dimensão da relação entre
os usineiros e o Estado, concernente às pautas setoriais da burguesia sucro-
alcooleira. Se os exemplos mencionados demonstram a encarnação dos in-
teresses empresariais em instâncias como o Parlamento, esses são formula-
dos internamente pelos usineiros e institucionalmente apresentados por
suas entidades de representação.
Com o intuito de satisfazê-los, o empresariado recorre à retórica de
seu compromisso com o desenvolvimento. Local, estadual e nacionalmente,
justificam essa posição através de fatores como a geração de emprego, a
participação no PIB, as vantagens da exportação para a balança comercial
41
Defendemos que se forjou, nos anos 2000, em face do novo ciclo restaurador da
cana-de-açúcar comandado pelo agronegócio, uma nova autoimagem dos usineiros
nordestinos. Esta reclama, atualmente, a defesa do monocultivo da cana como um ne-
gócio “agro-social”. Põe-se, assim, como um segmento liberal, moderno, marcado pelo
empresariamento crescente e afeito às noções de sustentabilidade e responsabilidade
sócio-empresarial. Para acesso à sistematização pormenorizada desse argumento, ver
capítulo 4 de nossa tese, especialmente o item 4.2.
42
Não custa lembrar que “[...] o Estado brasileiro foi sempre dominado por interesses
privados. Decerto, isso caracteriza o Estado capitalista em geral, não sendo uma singu-
laridade de nossa formação estatal; mas esse privatismo assumiu aqui traços bem mais
acentuados do que em outros países capitalistas” (COUTINHO, 2018, p. 84).
121
etc. Nos termos de Renato Cunha, “[...] o conglomerado é ramificado, se consti-
tuindo em eficiente canal distribuidor de renda para inúmeros negócios e pessoas que
gravitam em seu entorno. Os empregos diretos e indiretos atingem mais de 300.000 pos-
tos”43. Na mesma linha de raciocínio, disse-nos um entrevistado que “[...]
não é que a cana seja a única solução ou salvação da Pátria, mas ela continua
sendo fundamental, tem grande importância na geração de emprego e na
fixação do homem no campo; e isso a gente precisa ressaltar” (Entrevistado
1, entidade patronal).
Os usineiros buscam relacionar-se com o Estado no sentido de coagi-
lo a ser um parceiro constante e fiel, dele exigindo auxílios diversos que
contribuam com o êxito da atividade econômica que dirigem. Isto se ex-
pressa no conjunto das instâncias estatais já mencionadas. No Legislativo,
buscam a aprovação de projetos de lei que lhes sejam benéficos e, na mesma
proporção, reúnem esforços para bloquear interesses contrários aos seus,
como qualquer medida vinculada à reforma agrária e à expansão (ou, em
conjunturas defensivas, à preservação) dos direitos dos trabalhadores. Do
Judiciário, procuram amparo e jurisprudências que não afetem as relações
por ele encaminhadas. Do Executivo, reivindicam o planejamento, a for-
mulação e a implementação de políticas favorecedoras ao desempenho pro-
dutivo e comercial do setor. A propósito, assim comentam dois represen-
tantes do patronato:
122
Daí provém a terceira dimensão aqui analisada: o binômio financia-
mento/endividamento como prática sistemática das classes dominantes no
setor sucroalcooleiro. Binômio porque, na prática, põem-se lado a lado.
Não se trata de uma novidade no período analisado, mas da continuidade
de ação corrente na trajetória desse segmento46. A um só tempo, buscam
incentivos diretos do Estado e, nas ocasiões em que se endividam, pedem
expansão dos prazos de pagamentos ou perdão de suas dívidas em nome
da suposta relevância social que detêm.
Historicamente, o pleito dos usineiros tem sido atendido pelo aparato
estatal, o qual em diversos momentos subsidiou a agroindústria canavieira, for-
necendo-lhe créditos, isenção fiscal etc. Aqui cabe lembrar uma lição de Carlos
Nelson Coutinho (2018), para quem o Estado foi o principal ator de nosso
processo de industrialização. Como temos demonstrado, a afirmação se aplica
não só à indústria em sentido estrito, mas à agroindústria. Prova disso é que,
somente no período de instalação e auge do Programa Nacional do Álcool -
Pró-Álcool (1975-1989), o financiamento setorial a novos e tradicionais usinei-
ros atingiu o montante de US$ 500 milhões ao ano (Ramos, 2012).
Com a retomada do crescimento do setor nos anos 2000, o Estado
mais uma vez entrou em campo com o financiamento subsidiado. Apenas o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em
um parco período de três anos (2005-2008), desembolsou mais de R$ 9 bi-
lhões para a cadeia produtiva da cana-de-açúcar47. No ano de 2008, de todos
os setores da agroindústria e da agropecuária, o investimento na cana só
não foi maior que o investimento na cadeia produtiva de carnes.
Em paralelo, sobretudo em momentos de crise, o Estado dá socorro
e amparo aos usineiros mediante o perdão e a rolagem de dívidas. No con-
texto dos anos 1990, quando da crise e desregulamentação do setor, o então
Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e o Tesouro Nacional bancaram
dívidas bilionárias dos usineiros, sendo a maior parte do Nordeste48.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) é, neste sentido, um
dos principais alvos. Em 2008, enquanto o setor lucrava milhões, acumulou
nov. 2020.
123
com o INSS uma dívida de R$ 2,2 bilhões. O estado de Alagoas foi, naquele
ano, o segundo maior devedor do país, numa cifra superior a R$ 767 mi-
lhões. Os usineiros de Pernambuco contraíram uma dívida de R$
367.471.832,82 e os da Paraíba de R$ 59.261.281,34 (Ramos, 2012). So-
mente o grupo João Santos (PE), em dados levantados em 2019, acumula
R$ 69,2 bilhões em dívidas com a União49. O binômio financiamento/endivida-
mento soa, pois, como elemento analítico interessante para entender mais a
fundo as relações entre usineiros e Estado. As dívidas, portanto, parecem
ser um recurso sistemático dos usineiros. Endividam-se mesmo quando re-
cebem amplos investimentos.
Considerações finais
Referências
125
Coutinho, Carlos Nelson. O Estado brasileiro: gênese, crise, alternativas.
In: Teixeira, Andrea; Alves, Glaucia Lelis (orgs.). Carlos Nelson Couti-
nho: ensaios de crítica literária, filosofia e política. Rio de Janeiro: Editora
da UFRJ, 2018.
Ianni, Octavio. A classe operária vai ao campo. São Paulo: Paz e Terra,
1976.
Oliveira, Francisco. Elegia para uma re(li)gião. São Paulo: Paz e Terra,
1987.
126
CAPÍTULO 8
“O Estado e o mercado (des)fetichizado” e a questão das
sexualidades dissidentes
Tibério Lima Oliveira
Introdução
“Ser radical é atacar o problema em suas raízes”.
Karl Marx
Este texto é parte dos resultados dos estudos alcançados durante a pes-
quisa de doutorado, realizado no Programa de Pós-graduação em Política So-
cial, na Universidade de Brasília (UnB), que resultou na tese “O homonaciona-
lismo na sociabilidade do consumo de lazer LGBTI+ - Fortaleza/CE”. Por-
tanto, a análise que se apresenta neste momento é fruto de uma revisão biblio-
gráfica de conceitos como Estado, mercado e sexualidades.
Este artigo tem por objetivo fazer uma análise crítica sobre a desfe-
tichização do Estado e do mercado a partir da lógica marxista, pensando
como as categorias críticas são fundamentais para se compreender, na atu-
alidade, o debate sobre as sexualidades dissidentes. Posteriormente, apre-
senta a visão do Estado Ampliado em Gramsci e a sua relação com a soci-
edade civil, com os movimentos sociais para entender a lógica do Estado-
mercado e sexualidades dissidentes.
Incialmente, admite-se que Marx não tinha como objeto de análise a
sexualidade. Seus estudos centraram-se em examinar a dinâmica da socie-
dade burguesa e o modo de produção capitalista. No entanto, compreende-
se que a interpretação desse autor possibilita apreender os fundamentos
centrais da sociedade de classe, articulados com outros determinantes soci-
ais e como esse modelo de sociabilidade limita à diversidade sexual, anula
as potencialidades dos sujeitos na contemporaneidade. O artigo está estru-
turado em duas partes. Na primeira, fez-se se uma análise do pensamento
de Marx sobre o Estado. Na segunda parte, desdobra-se um exame sobre o
Estado Ampliado em Gramsci e suas ferramentas para entender o debate
sobre as sexualidades.
127
Marx e o debate sobre o Estado capitalista
129
por uma única liberdade sem escrúpulos: a do comércio” (MARX; EN-
GELS, 2010, p. 42).
Nessa compreensão materialista sobre o Estado, Marx e Engels
(2010), apresentam que essa esfera é fruto das relações com as classes soci-
ais, de domínio de uma sobre a outra. Portanto, essa organização não é uma
força que age externamente, não comanda de forma isolada as relações so-
ciais, mas trata-se de compreender o Estado como produto que se origina
a partir de relações de poder estabelecidas nas lutas entre as classes sociais,
patrões entre trabalhadores/as.
Pode-se compreender que o Estado tem certas configurações no seu
modo de existência. Desde a sua emergência até a forma que adquire o Es-
tado moderno, na sociedade burguesa. Durante o período do capitalismo
concorrencial esse tinha uma conformação “restrita” de acesso ao parla-
mento, nos quais as mulheres, as populações negras e indígenas eram ex-
cluídas desses espaços de decisão, quiçá os “homossexuais”. Ainda no sé-
culo XIX a questão dos direitos sexuais não, era tratada, pelo contrário,
tinha-se uma forte criminalização da “homossexualidade” considerada “li-
bertinagem”, como aponta os estudos de Green (2019).
Isso se dava em virtude da formação do Estado se dar pela alta aris-
tocracia, por homens em sua hegemonia das classes privilegiadas e em sua
maioria por brancos. Esse era o cenário político da época, que na atualidade
se configura por alguns desses aspectos, porém com mudanças representa-
tivas, dada às lutas e as resistências dos movimentos sociais organizados,
um processo de avanços e recuos. Ainda sobre as configurações do Estado,
de acordo com Mandel (1982), o parlamento representava uma determinada
classe social, à classe dominante, não existia um diálogo com a classe ope-
rária, com as reivindicações da classe trabalhadora, quiçá com essas ques-
tões mencionadas. Como expressa Harvey (2005):
131
capitalismo e as contradições do Estado. Acrescenta-se nesta análise a necessi-
dade de apreensão do Estado e sua relação com esses sujeitos.
Assim, como Marx e Engels, Gramsci (2007) similarmente tinha uma
concepção analítica materialista sobre o Estado, ao dessacralizar a imagem
deste, apontaram seu caráter repressivo, coercitivo e dominante. No entanto,
Gramsci apresenta novos elementos. Dedica-se em examinar as dimensões
deste como um aparelho portador de hegemonia, em um tempo histórico que
passou por transformações sociais. Além disso, foi um pensador que aprofun-
dou elementos para além das questões econômicas, abordou a questão da po-
lítica, a moral, a religião, a cultura e a “questão sexual” em “Americanismo e
Fordismo” (GRAMSCI, CC 4, 2007, p. 249) ao analisar os disciplinamentos e
a regulação sexual da classe trabalhadora para o sistema fordista, uma sexuali-
dade unicamente voltada para reprodução – heteronormativa.
É preciso de antemão apontar que as análises empreendidas por
Gramsci (1891-1937), se deram em um contexto distinto das que viveram
Marx e Engels. A obra gramsciana foi construída em uma conjuntura polí-
tico-econômica nas primeiras décadas da transição dos séculos XIX e XX.
Nesse contexto, a classe trabalhadora transitou por diversas configurações,
a exemplo de uma maior organicidade. Eclodiram amplas manifestações,
revoltas e lutas por direitos na Europa, fortaleceu-se um sistema de seguri-
dade social europeu, fruto da organização coletiva. Outro aspecto impor-
tante sobre as obras gramscianas refere-se que os elementos que foram
construídos se deram no interstício entre duas guerras mundiais, sem o au-
tor vivenciar a segunda.
Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha saiu derrotada em
1917, e com isso fortaleceu-se no território alemão uma forte política naci-
onalista-nazista orquestrada por Hitler, como em países que foram aliados
como a Itália de Mussolini. O nazi-fascismo trouxe graves consequências
para determinadas populações, a exemplo da maior dizimação étnica já pra-
ticada na humanidade, o holocausto contra judeus, “homossexuais”, negros
e comunistas. Representou a face mais extrema de Estado coercitivo, foi
nesse cenário a prisão de Gramsci (MONASTA, 2010). Precedentemente
questiona-se como essa obra escrita há mais de oitenta anos pode contribuir
com as reflexões sobre o Estado - mercado e o movimento LGBTI+ na
contemporaneidade sem cair no risco de uma análise anacrônica?
132
O pensamento gramsciano apresenta-se fortemente atual. A sua análise
sobre o Estado ampliado é relevante para compreender os aspectos de contra-
dições, correlações de forças, embates no cenário político presente. De tal
modo como apresenta Coutinho (1988, p. 74), “Gramsci não inverte nem nega
as descobertas essenciais de Marx, mas “apenas” as enriquece, amplia e con-
cretiza, no quatro de uma aceitação plena do método do materialismo histó-
rico”. Por esse ângulo, para analisar o atual tempo histórico e político do Es-
tado e sua relação com o mercado e a sociedade civil, as análises da ampliação
estatal categoria conceituada por Gramsci (2007), mostram-se essenciais para
compreender as devidas mediações entre Estado e o Movimento LGBTI+ –
este quando se considera a referida sociedade como a portadora material da
formação de hegemonia e das correlações de forças.
Além dessas questões aludidas da ampliação do Estado e do seu diá-
logo com a sociedade civil, para John D’Emilio (2021), desde o final dos
1970, houve em várias partes do mundo amplas conquistas por parte da
população LGBTI+, de legislações atreladas aos direitos humanos desse
segmento, tais como: a descriminalização da “homossexualidade” que era
tida como crime em muitos países, a aprovação do casamento civil igualitá-
rio, a retirada do “homossexualismo” da lista de doenças mentais, são algu-
mas das vitórias desses sujeitos. No entanto, ele alerta para o cuidado dessas
conquistas, que de certa forma fazem parte do contexto de ampliação do
Estado, mas ampliação para quem?
De toda forma, é preciso ressaltar que ao tratar da categoria central
da obra de Gramsci nesse estudo o “Estado ampliado - sociedade civil”,
tem-se o cuidado em não cair em simplismos e anacronismos sobre o refe-
rido autor. Todos os elementos escritos nos “Cadernos do Cárcere”, pos-
suem um grande complexo analítico, redigido de forma assistemática, por-
tanto é uma obra de peso social, que não se pode incorrer no erro de detur-
pação do seu pensamento. As análises empreendidas fundamentam-se e ori-
entam-se através da utilização do “Dicionário Gramsciano” organizado por
Liguori e Pasquali (2014), no qual auxiliou na investigação dos conceitos e
categorias diretamente na fonte dos Cadernos do Cárcere, além das contri-
buições de Coutinho (1988).
É possível identificar nessa obra que o Estado se apresenta como
uma teia de conflitos e disputas de classes. De acordo com Prestipino, “o
133
interesse gramsciano pelo Estado se manifesta sob diversas formas. No Q
3, encontra-se um breve esboço da história do Estado: não apenas a distin-
ção entre o Estado antigo-medieval e o moderno” (GRAMSCI, 2014, p.
520). Por conseguinte, Gramsci apresenta o conceito da teoria social de
“Estado Ampliado” nas sociedades ocidentais em uma carta50 destinada à
sua cunhada, Tatiana Schucht, em setembro de 1931, esboçando os aspec-
tos centrais desse (COUTINHO, 1988).
Gramsci (2007), nessa carta apresenta e explicita a sua interpretação
do Estado, esse sendo habitualmente compreendido como apenas pela vi-
são da sociedade política, que por meio da força, da coerção, das ditaduras,
dos aparelhos coercitivos como o uso da polícia. Tem por finalidade a ade-
quação do povo ao modelo de produção econômico e político, essa é para
o autor uma argumentação de caráter unilateral e limitadora, o Estado é
para além dessa interpretação. Gramsci propõe a análise do ponto de vista
de pensá-lo como um equilíbrio entre duas unidades inseparáveis: sociedade
política e sociedade civil, sendo a sociedade civil conceituada como:
5050
“Eu amplio muito a noção de intelectual e não me limito à noção corrente, que
se refere aos grandes intelectuais. Esse estudo leva também a certas determinações
do conceito de Estado, que habitualmente é entendido como sociedade política (ou
ditadura, ou aparelho coercitivo para adequar a massa popular a um tipo de produ-
ção e à economia e um dado momento); e não como equilíbrio entre sociedade po-
lítica e sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a inteira sociedade
nacional, exercida através de organizações ditas privadas, como a Igreja, os sindi-
catos, as escolas etc.)” (GRAMSCI apud COUTINHO, 1988, p. 126-127).
134
trito”; e, 2) a “sociedade civil”, onde não se pode pensar em Estado Ampli-
ado sem a participação da sociedade civil. Portanto, o Estado ampliado em
Gramsci se configura pelo seguinte aspecto:
Uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram
elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no
sentido, seria possível dizer, de que Estado= sociedade política +
sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)
(GRAMSCI, CC 3, 2007, p. 243).
52 De acordo com Mészáros “as formulações estatais historicamente dadas pelo sistema
do capital devem afirmar como executoras eficazes das regras necessárias para a ma-
nutenção da ordem sociorreprodutora estabelecida. Naturalmente, a “lei” deve ser de-
finida e alterada em conformidade, a fim de atender às mudanças nas relações de poder
e às alterações correspondentes dos antagonismos fundamentais inseparáveis do me-
tabolismo de reprodução social do capital” (2015, p. 56).
137
de destruição da seguridade social foi incentivado com o apoio conjunto de
setores empresariais, da burocracia estatal e da mídia.
Posteriormente, iniciou o forte incentivo das privatizações desses di-
reitos sociais, transformando-os em serviços comprados no mercado. Esse
procedimento Harvey (2014) denomina de espoliações53 contemporâneas,
com a finalidade da apropriação dos recursos públicos e da financeirização
da economia. Assim, para Simionatto (2006, p. 8) “[...] o consumidor toma
o lugar do cidadão, e todos nos tornamos "cidadãos-clientes”. As empresas
privadas e o mercado transformam-se nas instituições basilares por exce-
lência no desenvolvimento das atividades sociais e coletivas”. Portanto, es-
sas reconfigurações não foram somente no âmbito da economia, mas nas
diversas dimensões da vida, dos valores, nas normas sociais e no cotidiano,
fomentou-se uma “cultura da crise” parafraseando Mota (2015).
Esse cenário de apropriação dos recursos públicos e de neoliberali-
zação da economia não se deu de forma pacífica e harmônica. Surgiram
nessa conjuntura resistências em vários espaços, a exemplo do maio de 1968
na França, que se tornou do ponto de vista político uma referência das lutas
sociais e para pensar o papel das novas esquerdas. Eclodiram movimentos
ambientalistas, estudantis, contra culturais, étnico-raciais, feministas. Foi
nessas circunstâncias que “a esquerda passou a ter um papel proeminente
no movimento lésbico/gay, através de coletivos e de publicações em cida-
des como Londres, Los Angeles, Nova Iorque, Boston, Toronto e São
Paulo” (DRUCKER, 2017, p. 202).
Nesse contexto “de lutas que se seguiram levaram a vitórias – especial-
mente leis contra discriminação – que tornaram possíveis, pela primeira vez,
comunidades lésbicas/gays massivas e abertas” (DRUCKER, 2017, p. 202) e
que o Estado neoliberal soube ideologicamente capturar essas conquistas a seu
53 Por “a acumulação por espoliação pode ser aqui interpretada como o custo necessá-
rio de uma ruptura bem-sucedida rumo ao desenvolvimento capitalista com o forte
apoio dos poderes do Estado” (HARVEY, 2014, p. 128). Diz ainda o autor “a acumu-
lação por espoliações se tornou cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte
como compensação pelos problemas crônicos de sobreacumulação que surgiram no
âmbito da reprodução expandida.O principal veículo dessa mudança foi a financializa-
ção e a orquestração, em larga medida sob a direção dos Estados Unidos, de um sistema
financeiro internacional capaz de desencadear de vez em quando surtos de brandos e
violentos de desvalorização e de acumulação por espoliação em certos setores ou
mesmo em territórios inteiros” (Idem, p. 129).
138
favor, ou seja, mesmo esses sujeitos coletivos “terem obtido significativas vitó-
rias no âmbito social e político, e adquirido, enquanto classe, notável alteridade
em relação à burguesia e ao Estado, elas não conseguiram interferir, significati-
vamente, na ordem econômica” (MOTA, 2015, p. 115).
Diante desse cenário, a crise tornou-se um ponto fulcral como parte do
modo de existência da sociedade burguesa contemporânea, trazendo diversas
implicações para a classe trabalhadora e aos movimentos sociais organizados,
inclusive o avanço do neoconservadorismo e de pautas atravessadas pela ideo-
logia neoliberal. É preciso entender o surgimento desse colapso que se alastra
pelo mundo agudizando a miséria, as desigualdades sociais e as diversas expres-
sões das violências. Observa-se que diante dessa condição se desenvolveu no
mundo ocidental uma ampla abertura do mercado de consumo destinado aos
sujeitos LGBTI+, em particular aos gays e as lésbicas.
139
minoritários na sociedade heterossexual, isso influi na normatização dos es-
paços da sociedade voltados para essa população, com locais específicos
destinados a esse público.
O segundo aspecto para o autor, refere-se à incorporação do modelo
heterossexista de sociedade na conformação dos gêneros por essas identidades.
Não mais ligados a uma perspectiva de contestação às essas normas sociais,
como desenvolviam os grupos dissidentes durante a década de 196054, mas de
um enquadramento a uma política sexual e de gênero, retificadora do modelo
heterossexual após os anos 1970. Ou seja, uma padronização dessas identida-
des por meio de legislações, quanto mais próximo o sujeito estiver adequado
ao modelo heteronormativo, mais possibilidades de acesso às políticas de “ci-
dadania de consolação” este indivíduo será contemplado.
Isso culmina no terceiro elemento, segundo Drucker (2017), voltada
para uma política cisnormativa55 de controle, de subalternização da popula-
ção trans em relação às políticas estatais. Ao passo que gays e lésbicas con-
seguiram a retirada da “homossexualidade” da lista de doenças mentais, as
travestis e transexuais seguem patologizadas, controladas pela medicaliza-
ção sob o aval do Estado por meio das trans-exclusões. Porém, são essas
da comunidade LGBTI+ as que mais desafiam ao regimento de gênero e
sexualidade, contestam as narrativas de adequação a heteronormatividade.
Seguindo essa argumentação para Drucker (2017), o quarto elemento
analisado refere-se à integração da comunidade gay/lésbica as políticas em
defesa da nação por meio do homonacionalismo, da homonormatividade,
da excepcionalidade sexual imperialista. A reiteração de uma política de se-
xualidade ocidental ao passo da marginalização das identidades sexuais mu-
çulmanas. Essas políticas fazem parte desse acionamento em defesa das na-
54 “Drag queens que desempenharam um papel de liderança nos levantes dos anos
1960, descobriram a partir da década de 1970 que, enquanto em seu conjunto aumen-
tava a tolerância às lésbicas e gays, a tolerância à não conformidade de gênero em mui-
tos espaços lésbicos/gays diminuía. Com o declínio do fordismo exercendo pressão
sobre os programas estatais, uma ênfase renovada na centralidade da família colocava
um freio no afrouxamento das normas de gênero que caracterizou os anos 1960. Este
giro conservador na sociedade foi acompanhado por um afastamento de homens gays
da androginia e do casual bending gender dos anos 1970” (DRUCKER, 2017, p. 205).
140
ções imperialistas e a normalização das famílias gays/lésbicas, com a cres-
cente liberalização de legislações em defesa dos casamentos e adoções por
esses casais, cumprem a função de uma política de barganha em intervenção
da nação vigiada pelo Estado.
Considerações finais
Referências
142
MARX, Karl; ENGELS, Friedich. Manifesto Comunista. São Paulo,
Boitempo, 2010.
143
SIMIONATTO, I. Estado e sociedade civil em tempos de globaliza-
ção: reinvenção da política ou despolitização? Cadernos Especiais, n. 39,
edição: 23 de outubro a 20 de novembro de 2006.
144
CAPÍTULO 9
“Quantos mais vão ter que morrer para que essa guerra
acabe?”56: a conivência do Estado brasileiro na reprodução
do racismo estrutural
Tales Fornazier
Introdução
148
nos damos conta de que vivemos em um país em que as pessoas são capazes
de chorar por estátuas, mas não se sensibilizam com as mortes violentas de
jovens negros que acontecem a cada vinte e três minutos57. Nesse sentido,
concordamos que:
150
anomalia social, pelo contrário, se coloca enquanto uma forma de raciona-
lidade, a qual determina e interfere diretamente na organização econômica
e política da sociedade – relegando as populações racializadas à própria
sorte nessa estrutura social racista e desigual.
Nesse caminho reflexivo, se faz mister o entendimento de que, exata-
mente pela sua dimensão estrutural e estruturante das relações em todos os
âmbitos da vida social, o racismo também vai se expressar como parte do
funcionamento e da dinâmica normal das instituições, visto que elas são he-
gemonizadas pela ideologia racial dominante. Por isso, as diversas formas
de violências raciais institucionalizadas, não são um fenômeno episódico ou
conjuntural, mas antes, fazem parte desta racionalidade instituída para ser a
regra – a qual é cravada de racismo e conta com a conivência e legitimação
do Estado para lograr êxito. Como nos lembra Almeida (2018):
151
Nessa direção, o cenário caótico que vivenciamos no país desde o
golpe de 2016 e, em especial nos últimos quatro anos com o governo de
extrema-direita, de caráter nazifascista e genocida de Bolsonaro-Mourão,
sem dúvidas intensificou não apenas a violência estatal racista, mas as ini-
quidades e violências históricas que acometem as classes trabalhadoras, mu-
lheres, negros/as, indígenas, quilombolas, populações LGBTQIA+ e todos
os grupos socialmente minorizados.
154
çar demasiadamente nessa compreensão. Superar o falacioso mito da de-
mocracia racial, ainda hoje, se coloca como um desafio persistente e um dos
principais empecilhos na luta contra racismo, visto que tal ideário se solidi-
ficou historicamente como estratégia de mistificação da realidade vivenci-
ada pelos grupos socialmente racializados, e há, nessa alternativa, uma ten-
tativa de minimizar o racismo, negar e despolitizar sua existência
Desse modo, o mito da democracia racial foi construído estrategica-
mente como componente ideológico essencial da dominação racista no Brasil.
Trata-se de uma falácia que advoga não existir racismo no país, sob o argu-
mento de que todos/as são iguais e têm as mesmas oportunidades no interior
da ordem burguesa, reforçando a ideia de existência de uma harmonia racial e,
ao mesmo tempo, responsabilizando moralmente as populações racializadas
pelas desigualdades que vivenciam, como se estas fossem decorrentes da falta
de esforço ou de uma suposta baixa moralidade entre esses grupos.
Como lembra Domingues (2003), é importante destacar que a des-
mistificação do mito da democracia racial é uma das pautas históricas do
movimento negro, como pode ser observado no Programa de Ação do Mo-
vimento Negro Unificado (MNU) de 1982, por exemplo. Compreendemos
que somente quando superarmos esse desafio, entendendo que esta suposta
igualdade jurídico-formal no capitalismo é subordinada ao projeto colonial
de poder, e que a hierarquização racial – a partir de um grupo branco euro-
peu que se auto intitulou como superior e nomeou todos os outros como
inferiores – vai estabelecer relações profundamente assimétricas com base
na pertença étnico-racial, é que teremos a possibilidade histórica, contida
no movimento do real, de construir uma sociedade radicalmente livre e hu-
manamente emancipada.
155
Nesse diapasão, é preciso que avancemos no debate para além das
consequências e manifestações imediatas do racismo – as quais, obvia-
mente, temos que denunciar, combater e estar na linha de frente para seu
enfrentamento. Mas o que chamamos atenção é para a necessidade de avan-
çarmos na análise histórico-crítica sobre os seus fundamentos, haja vista
que a própria realidade concreta tem nos tensionado cada vez mais a reco-
nhecermos não apenas a existência do racismo e a necessidade de combatê-
lo, mas que ele se coloca enquanto elemento estruturante das nossas rela-
ções e, portanto, não é possível realizarmos qualquer análise séria e coe-
rente, descolada do entendimento de como as determinações étnico-raciais
conformam nossa realidade.
Nessa direção, corroboramos com o entendimento de que:
156
Sendo assim, é fundamental apreendermos a questão étnico-racial en-
quanto categoria de análise fundamental para compreensão da “questão social”
no Brasil, tendo em vista nossas particularidades histórico-sociais, assentadas
no colonialismo e no escravismo, que delinearam as bases necessárias para a
consolidação da sociedade de capitalismo dependente neste território, uma vez
que o racismo se coloca enquanto estrutural e estruturante das relações sociais,
estando diretamente vinculado ao modo como se organiza a vida e a produção
na sociedade capitalista (MOURA, 1983).
157
e que construiu um projeto emancipatório que se coloca contra toda forma de
exploração e opressão, isto é pressuposto. Ou seja, considerando todo acúmulo
teórico, ético-político e a direção social estratégica que a profissão assume a
partir da “virada” de 1979, se não entendermos que o enfrentamento ao ra-
cismo e demais opressões estruturais do capital deve ser compromisso dos/as
assistentes sociais brasileiros/as, iremos permanentemente sustentar uma con-
tradição no interior desse projeto profissional.
Não é novidade que iremos atuar na malha contraditória entre capital e
trabalho, mas, como nos lembra Iamamoto e Carvalho (1995), numa mesma ati-
vidade, podemos fortalecer os interesses das instituições empregadoras que con-
tratam nossa força de trabalho ou das populações que atendemos que, em sua
imensa maioria, são constituídas de negros/as e oriundas dos segmentos mais
pauperizados da classe trabalhadora, que vivenciam permanentemente violên-
cias e violações de direitos. É nessa relação contraditória, mas ao mesmo tempo
estratégica que temos com a população que atendemos, que entendemos ser
fundamental avançarmos no debate sobre a dinâmica do racismo estrutural em
suas vidas e, sobretudo, na construção de estratégias profissionais de enfrenta-
mento ao racismo institucional.
Até mesmo porque, enquanto profissionais iremos atuar em institui-
ções hegemonizadas pela ideologia racial dominante, como destacamos an-
teriormente, e é necessário que consigamos fazer uma leitura atenta e crítica
da realidade, bem como construir competências teórico-metodológicas,
ético-políticas e técnico-operativas efetivamente antirracistas no contexto
dos espaços sócio ocupacionais. Não conseguirmos captar o nexo estrutu-
rante entre gênero-raça-classe na conformação das desigualdades em nosso
país, implica incorrermos em um erro teórico-político grave. Mais que isso:
significa contribuirmos para a manutenção e reprodução não apenas do ra-
cismo institucional, mas também das relações profundamente assimétricas
vivenciadas pelos grupos socialmente racializados.
Por isso, se quisermos ser coerentes, de fato, com o Projeto Ético-
Político construído pelo Serviço Social renovado, assentado na tradição
marxista, é urgente não mais secundarizarmos o debate das relações étnico-
raciais e superarmos a análise de classe como mera abstração. Dada as ca-
racterísticas da nossa formação sócio histórica, não é possível apreender-
158
mos a realidade numa perspectiva de totalidade, desconsiderando os deter-
minantes étnico-raciais e também de gênero/sexualidade na estruturação
das assimetrias deste país e nas análises de classe.
Precisamos dar concretude e materialidade para a classe trabalhadora
brasileira, que tanto reafirmamos nosso compromisso enquanto profissão,
pois ela não é abstrata: tem raça/etnia, gênero/sexualidade, território e ge-
ração muito bem demarcados. Só avançaremos, de fato, nessa direção
quando superarmos o falacioso mito da democracia racial, bem como as
leituras eurocêntricas sobre a classe que vive do trabalho, e entendermos
que o enfrentamento ao racismo e as demais opressões estruturais, não se
trata de lutas identitárias e individuais daqueles/as que sofrem diretamente
tais opressões, mas se circunscrevem no âmbito de lutas históricas que dão
materialidade e coerência à própria luta mais geral contra o capital.
Considerações finais
159
como os valores ético-políticos e as bandeiras de lutas defendidas hegemo-
nicamente pelas entidades da categoria, possui compromisso inconteste
com o enfrentamento do racismo.
Referências
160
MARTINS, Tereza Cristina Santos. Crise do Capital e Pandemia: a “ques-
tão social” atravessada por determinações do racismo. In: EURICO, Már-
cia Campos, et. al. (org). Questão Racial, Serviço Social e os desafios
contemporâneos. Campinas: Papel Social, 2021.
161
CAPÍTULO 10
O “grande negócio” da prisão: Estado punitivo e a
mercadorização do controle penal em Sergipe
Paulo Roberto Felix dos Santos
Introdução
58
Chamamos a atenção aos “serviços prisionais”, porque consideramos que a dotação
orçamentária destinada para a participação das empresas privadas refere-se muito mais
do que a construção e gestão direta das unidades prisionais, mas abrange toda uma
espécie de cadeia produtiva de serviços que giram em torno do cumprimento penal,
em suas diversas modalidades. Destacam-se serviços de monitoramento, de produção
e implementação das tornozeleiras eletrônicas, equipamentos de segurança destinados
aos serviços penais, capacitação de equipes, fornecimento de alimentação e diversos
insumos, etc.
59
Referimo-nos aqui aos desdobramentos de resultados de duas pesquisas por nós coor-
denadas, quais sejam: “‘Estado Punitivo’ e a ‘Política de Encarceramento’ como estratégia
de controle social: uma proposta de análise do sistema prisional em Sergipe a partir dos
dados de 2018”; bem como de resultados parciais da pesquisa “Das Senzalas ao Cárcere”:
“Encarceramento em Massa” e controle sociorracial da população negra pelo “Estado Pe-
nal” em Sergipe entre 2010 e 2019. Ambas decorrem de investigações em nível de iniciação
científica, realizadas, respectivamente, nos períodos 2020-2021 e 2021-2022. Alguns dos
seus principais resultados foram coligidos em Santos et al (2021).
163
ticas e implicações se sintonizam como tendências nacionais. Nessa pers-
pectiva, buscamos apreender algumas dessas tendências e como tal pro-
cesso funciona como um dreno de fundo público, robustecendo não só a
lucratividade do capital, em crise, mas de massa de valor destinada à garantia
das forças repressivas do aparelho estatal ao processo de criminalização ou
“gestão penal da pobreza”. (WACQUANT, 2011).
60
Não se trata, pois, de uma mudança da funcionalidade do Estado burguês, posto
constituir-se, por natureza, nessa dupla condição em que aciona constantemente pro-
cessos de consenso e coerção. Trata-se, a nosso juízo, de uma mudança qualitativa em
relação às possibilidades históricas de manutenção das estratégias consensuais e conci-
liatórias, sob a forma de um amplo sistema de seguridade social, frente às restrições
impostas pela crise capitalista e o ideário neoliberal. Nessa esteira, em paralelo a uma
atuação focalista, pontual e emergencial nas áreas socioassistenciais, centraliza e ampli-
fica um conjunto de forças repressivas como forma de intervenção junto às expressões
da “questão social”.
165
2016, p.127), sendo este também, por outro lado, um espaço propício à
valorização do capital.
É fato que a prisão, tal qual a conhecemos, conforma uma relação
estrutural com o desenvolvimento capitalista, constituindo-se como um ele-
mento funcional ao amoldamento, disciplinamento e controle do corpo
do(a) trabalhador(a), estabelecendo uma articulação entre o cárcere e a fábrica
(MELOSSI; PAVARINI, 2006). Ademais, ao longo da trajetória do sistema
de justiça criminal brasileiro/sergipano, a seletividade mostrou-se uma
marca estruturante, recaindo o peso dessa articulação sobre os segmentos
mais pauperizados e racializados da população.
Atualmente, em tempos de “crise estrutural do capital”, e “desem-
prego crônico” (MÉSZÁROS, 2002), o processo de acionamento cada vez
mais constante de dispositivos de encarceramento guarda estreita relação
com o avanço do neoliberalismo, e a perspectiva de um “Estado Mínimo”
– para as políticas sociais –, e seus impactos destrutivos na conformação
dos sistemas de proteção social. Em um contexto de agravamento das con-
dições de vida e trabalho da população, acentua-se a díade “prisão da misé-
ria” e a “miséria da prisão”, (SANTOS, 2020), em que a estratégia encarce-
radora opera como um dos principais mecanismos de gestão da pobreza.
Como expressão da realidade brasileira, verifica-se também no cená-
rio sergipano uma hipertrofia da “agenda encarceradora” (SANTOS et al,
2021), ilustrando as tendências a uma expansão vertical e horizontal do con-
trole penal (WACQUANT, 2011). Entre 2000 e 2017, a taxa de aprisiona-
mento no Brasil aumentou mais de 150% em todo país, e no estado esse
número representou 213,63%, segundo levantamento do DEPEN (2017).
Os indicadores tornam-se ainda mais reveladores quando nos remete-
mos ao perfil étnico-racial dos(as) encarcerados(as), o que reforça um processo
de seletividade racialmente escancarado. Em 2019, tínhamos 85% dos(as) apri-
sionados(as) no estado declaradamente pretos(as) ou pardos(as), conformando,
portanto, uma população majoritariamente negra, superior à média nacional,
que foi no mesmo período de 66,7% (FBSP, 2020), evidenciando uma “des-
proporcionalidade racial” (WACQUANT, 2007). Tais dados revelam o peso
das estruturas punitivas racializadas e seus impactos no contexto sergipano.
Tais mecanismos, a nosso juízo, mais do que revelar circunstâncias tópicas ou
fenomênicas, referem-se a um conjunto de expressões do “racismo estrutural”,
166
inclusive no âmbito institucional (ALMEIDA, 2018). Por outro lado, reafirma
o lugar do aprisionamento enquanto política de “ação afirmativa carcerária”
(WACQUANT, 2011; 2007), sendo uma das principais políticas de Estado di-
recionadas para a população negra.
De acordo com os dados do Depen, em 2019, o Brasil contava com a
população prisional de 773.151, ocupando a 3ª posição no ranking de países
que mais encarceram no mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e
China. Sergipe, contava, no mesmo período, com um contingente de 6.630,
distribuídos(as) em 09 unidades prisionais, à época (DEPEN, 2019). Tais dados
reforçam que essa tem sido a “política social” atual do Estado voltada à popu-
lação (negra) brasileira, em um contexto de nítida ampliação da criminalização
da pobreza, diante do aprofundamento das desigualdades sociorraciais. Mais
que uma acidentalidade, o que temos em curso é o acionamento programático
de mecanismos institucionais de ampliação do aprisionamento, nos marcos do
“projeto genocida do Estado brasileiro” (FLAUZINA, 2008).
Diante desse cenário de “encarceramento em massa”, e do perfil ét-
nico-racial dos(as) internos(as), as condições de alocação vem se deterio-
rando em escala exponencial, de tal modo que levou o Supremo Tribunal
Federal (STF) a considerar o sistema prisional brasileiro como um “estado
de coisas inconstitucional”, dada a permanente violação de direitos das mais
variadas ordens. As condições estruturais dos presídios brasileiros, revelam
a sua natureza de “depósito de indigentes” (WACQUANT, 2011), consti-
tuindo-se em um espaço de graves violações aos direitos humanos funda-
mentais. Em Sergipe, conforme atestou relatório da Ordem do Advogados
do Brasil – Seccional Sergipe, em 2018, a situação dos presídios parecia
acompanhar o cenário nacional. Ilustrativa era a situação da maior unidade
penitenciária do estado – o Complexo Penitenciário Dr. Manoel Carvalho
Neto (COPEMCAN) – cujos prédios demonstravam-se escuros, úmidos e
insalubres, com a presença de ratos e baratas; além das dificuldades de
acesso à água e à alimentação adequada. (OAB/SE, 2018).
Diante desse conjunto de situações desumanas e degradantes, tem se
suscitado no debate público a apresentação de alternativas que possam con-
tribuir para diminuir tais efeitos. Dentre as tendências, duas grandes frentes
são apontadas como possibilidades de enfrentamento dessa realidade. A
167
primeira refere-se à adoção de um conjunto de medidas que reiterem o ca-
ráter excepcional da prisão ou que contribuam para o acionamento de “al-
ternativas desencarceradoras”61. A segunda diz respeito à privatização dos
presídios, como forma de melhor gestão e com maior capacidade de “res-
socialização” das/os internos. Sendo esta última, a alternativa que mais tem
sido incentivada, nos determos um pouco mais sobre ela, inclusive bus-
cando apreender a quais interesses estão por trás dessa via.
168
CARCERÁRIA, 2014). Com impedimentos legais de uma integral privati-
zação do sistema prisional no Brasil, os modelos de administração privati-
zada têm funcionado em duas frentes: parceria público-privada e cogestão.
Na Parceria Público-Privada (PPP), nota-se um contrato com poderes mais
amplos para a empresa privada, que vão desde a possibilidade da construção
da unidade até o gerenciamento. Embora seja a modalidade menos prati-
cada hoje, esse tipo de participação é mais atrativo para as empresas priva-
das, não só pelo maior número de participação, como também pela duração
do contrato, que é longa. Por outro lado, no modelo de co-gestão, que é
predominante, a administração de atividades tidas como indelegáveis são
mantidas pelo administrador público – diretor da unidade, guardas e escolta
externa, deixando ao encargo da empresa privada os serviços de saúde, ali-
mentação, limpeza, manutenção, entre outros.
Refletindo sobre a realidade estadunidense, Davis (2018) considera
que o processo de privatização de presídios integra a formação de um
“complexo industrial-prisional”, envolvendo mercados globais, e que sus-
tenta a racialização das populações carcerárias.
169
ploradas. Dentre os atuais 10 estabelecimentos prisionais, 07 são geridos dire-
tamente pela Administração Pública62, e 03 funcionam na modalidade de co-
gestão (DEPEN, 2019), sendo eles: a Cadeia Pública de Estância (CE), a Cadeia
Pública de Areia Branca (CPAB), e o Complexo Penitenciário Advogado An-
tônio Jacinto Filho (COMPAJAF), sendo este o primeiro implementado no
estado como uma “vitrine” do “novo modelo”, e que teria cumprido “a missão
de modernizar o encarceramento em Sergipe”. (SANTANA, 2021).
Os três estabelecimentos penais que funcionam de modo terceirizado
são administrados pela empresa Reviver Administração Prisional Privada
LTDA, a qual estabelece, de acordo com seu site oficial, a ressocialização e o
trabalho como pilares de sua política interna, possuindo 10 (dez) instituições
distribuídas entre as regiões nordeste, sul e norte do Brasil (REVIVER, 2022).
63
Via ofício nº 171/2022/SINDPPEN, em 17 de agosto de 2022, conforme pode ser
observado no seguinte link https://drive.google.com/file/d/1FXrSVgKc_1BfSoR-
Jql8a5bTIsmy4m2Ou/view.
171
Justiça, do Trabalho e de Defesa do Consumidor (SEJUC), o sindicato aler-
tou o governo do estado sobre o alto volume destinado à manutenção da
privatização dos serviços prisionais em Sergipe. No conjunto de informa-
ções reunidas, tendo como fonte o Tesouro do Estado, observa-se que dos
5 maiores contratos do governo estadual, os três primeiros estariam para a
SEJUC, sendo eles: um valor orçado para um novo contrato de cogestão,
de R$ 91.253.956,68; o segundo, o valor atualizado (2022) apresentado pela
empresa Reviver, que já administra 3 unidades prisionais no Estado, de R$
73.482.290,68; e o terceiro, valor anterior do contrato com a mesma em-
presa que havia sido estimado em R$ 61.037.902,80. A análise disposta pelo
SINDPPEN é ilustrativa, dada a disparidade orçamentária:
Considerações finais
174
Referências
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. 1ª ed, São Paulo: Sueli
Carneiro/Editora Jandaíra, 2018.
176
SINDPPEN. Sindicato dos Policiais Penais de Sergipe. Impacto finan-
ceiro e social da cogestão prisional em Sergipe. Ofício nº
171/2022/SINDPPEN, Aracaju, 17 de agosto de 2022. Acesso em 17 de
fev 2023. Disponível em https://drive.goo-
gle.com/file/d/1FXrSVgKc_1BfSoRJql8a5bTIsmy4m2Ou/view.
177
CAPÍTULO 11
A violência estatal como o modus operandi do
Estado no Brasil64
Everton Melo da Silva
Fernando de Araújo Bizerra
Introdução
179
Violência estatal e capitalismo
181
primas, sem o usufruto da terra, convertidos em trabalhadores que, premi-
dos pelas necessidades de subsistência, colocam à venda a única coisa que
lhes restou, sua força de trabalho, tornando-se assalariados. Quando ocorre
a expropriação dos meios de produção, os trabalhadores apresentam-se “li-
vres”, desvencilhados das vivências típicas do servilismo, e passam a ser
regidos, ao se inserirem no mercado, por uma relação contratual capitalisti-
camente imposta e legalizada pelo Estado.
De modo a proteger a propriedade privada moderna nascente, o Es-
tado proclamou, por meio do seu aparato jurídico-legal, leis que foram já
na acumulação primitiva do capital fundamentais. Ilustrativamente, Marx
(1988) nos lembra que o Estado elaborou a legislação sanguinária entre os
séculos XIV e XVIII, disciplinando os camponeses desvinculados das gle-
bas e arrancados de seu modo de vida costumeiro; mas que, por não serem
absorvidos em sua totalidade pela nascente manufatura, foram condenados
a vagar, sozinhos ou em grupos, nas áreas urbanas mais sórdidas, conver-
tendo-se em esmoleiros, assaltantes e vagabundos.
Pela sua forma e pelo seu conteúdo, a legislação sanguinária desti-
nava-se aos expropriados e empregava um repertório de métodos violentos
contra os trabalhadores, classificando-os como criminosos “voluntários” a
serem severamente punidos65. A violência estatal materializava-se nas sur-
ras, mutilações, queimaduras, nos encarceramentos e, em situações previs-
tas em lei, na execução dos pobres transeuntes. É de salientar-se que os
métodos coercitivos utilizados pelo Estado foram introduzidos com o fito
de enquadrar os trabalhadores no sistema de trabalho assalariado e apazi-
guar as tensões sociais – dentre elas, as associadas a uma pobreza não con-
finada territorialmente – derivadas das expropriações em curso.
A violência empregada pelo Estado mostrou-se inadiável no sentido
de estabelecer o imperativo do trabalho àqueles vendedores da sua força de
65A coroa inglesa proclamou medidas disciplinatórias ensaiadas nos governos de Edu-
ardo VI, da rainha Elisabeth, de Jaime I, de Jorge II. Estes governos foram marcados,
cada um à sua maneira, por “leis grotescas e terroristas” que instituíam severos castigos
para os pobres não inseridos nos postos de trabalho. Analogamente, a violência estatal
contra os trabalhadores vigorou em outros rincões, a exemplo da França, dos Países
Baixos, da Holanda, das Províncias Unidas, etc. Pela letra da lei, o Estado aplicou pe-
nalidades para os trabalhadores aptos a trabalhar que, por não conseguir compradores
para sua força de trabalho, viviam perambulando.
182
trabalho; impor aos trabalhadores o exercício de qualquer tipo de ocupação;
fixar baixas remunerações; proibir a andança sem destino dos pobres váli-
dos e, em geral, controlar as relações trabalhistas. A referida violência am-
parou-se em legislações que estruturaram um “código coercitivo do traba-
lho”, conforme aponta Castel (2012): o Statute of Labourers (Estatuto dos
Trabalhadores) de 1349, instituído na Grã-Bretanha; o Estatuto dos Arte-
sãos de 1563; as Poor Law Act (Leis dos Pobres) elisabetanas, estendidas de
1531 a 1601; a Settlement Act (Lei de Residência) de 1662; e a Poor Law Amen-
dmente Act (Nova Lei dos Pobres) de 1834 que, concedendo suplemento
salarial, instituiu as Workhouses e as Caixas dos Pobres.
A violência estatal subsistiu nos diferentes momentos da acumulação
primitiva do capital. Os métodos atrozes do Estado desenvolveram-se
desde a expropriação que resultou na dissolução dos séquitos feudais até a
pilhagem das Índias Orientais, agigantando-se no extermínio, na escraviza-
ção, na colonização e no enfurnamento de populações nativas nas minas.
Em todo caso, o Estado, “a violência concentrada e organizada da socie-
dade”, jogou um papel essencial para ativar, em profundidade e extensão, a
“transformação usurpatória, realizada com inescrupuloso terrorismo, da
propriedade feudal e clânica em propriedade privada moderna” (MARX,
1988, p. 355), abreviando a transição do medievo para a sociedade burguesa.
Com a consolidação dessa sociedade, na fase subsequente à acumu-
lação primitiva, a violência estatal uma vez mais esteve indissociável da di-
nâmica autoexpansiva do capital. No capitalismo concorrencial, o Estado,
perpetuando o domínio político necessário para os capitalistas explorar, ex-
propriar e subordinar os trabalhadores, promulgou leis que obstaculizavam
a intervenção das organizações sindicais nas relações entre empregados e
empregadores. As associações de trabalhadores que tinham o objetivo de
melhorar as condições de vida desta classe foram declaradas ilegais desde o
século XIV e permaneceram assim durante o estágio concorrencial, onde o
Parlamento tomou iniciativas contrárias66 às agremiações.
66
Uma das perseguições à organização dos trabalhadores ocorreu na Inglaterra, em
que a lei considerava ilegal a reunião de trabalhadores em associações para a proteção
de seus interesses. Diante dessas condições, as associações trabalhistas passam a existir
de maneira clandestina. Para exemplificar, podemos mencionar a Sociedade Londrina
de Correspondência que, conforme Thompson (2004, p.15-8), se constituiu em uma
das primeiras associações operárias de caráter “radical popular”. Essa sociedade era
183
A lei Le Chapelier67, de 17 de junho de 1791, aprovada pelo Parla-
mento francês, julgava “toda coalizão de trabalhadores” como “‘um aten-
tado à liberdade e à declaração dos direitos humanos’, punível com multa
de 500 libras além da privação, por um ano, dos direitos de cidadão ativo”
(MARX, 1988, p. 270). Comprimindo “a luta de concorrência entre o capital
e o trabalho por meio da polícia do Estado nos limites convenientes ao
capital”, a lei ordenava, em seu escopo, que:
composta por artesãos, lojistas e artífices mecânicos. Sua luta era pela realização de
uma Reforma Parlamentar. Porém, pelo fato de as associações não serem permitidas
de acordo com a lei, o fundador dessa Sociedade, o sapateiro Thomas Hardy, foi preso
sob a acusação de alta traição.
67
Essa lei é assim intitulada porque foi escrita e defendida por Issac René Guy Le
Chapelier.
184
dum poder nacional do capital sobre o trabalho, duma força social organi-
zada com fins de escravidão social, dum aparelho de domínio de classe”.
Os capitalistas, protagonizando o poder supremo de controle das atividades
sucedidas no âmbito fabril, utilizaram-se do Estado, “sem moderação e os-
tensivamente, como a máquina de guerra nacional do capital contra o tra-
balho” (MARX, 1971, p. 90).
A atuação coercitiva do Estado valida, em cada estágio do capita-
lismo, a radical separação entre as funções de produção e de expropria-
ção/apropriação assumidas por classes antagônicas, defensoras de interes-
ses inconciliáveis. O Estado sanciona, de um lado, “o material alienado e os
meios de produção” e, do lado oposto, “suas personificações, os controla-
dores individuais (rigidamente comandados pelo capital)” (MÉSZÁROS,
2002, p. 107). Numa relação social que reduz a força de trabalho à merca-
doria, uma maioria produz, pela sua exploração, a riqueza; tão logo se com-
plete as etapas da produção, como corolário essa maioria se vê privada do
controle e expropriada do que ela mesma produz. Por isso, “a estrutura legal
do Estado moderno é uma exigência absoluta para o exercício da tirania nos
locais de trabalho”. Se não houver esta estrutura, “até os menores ‘micro-
cosmos’ do sistema do capital [...] seriam rompidos internamente pelos de-
sacordos constantes, anulando dessa maneira sua potencial eficiência eco-
nômica” (MÉSZÁROS, 2002, p. 108).
Para “evitar as repetidas perturbações que surgiriam na ausência de
uma transmissão da propriedade compulsoriamente regulamentada – isto é:
legalmente prejulgada e santificada – de uma geração à próxima”, “perpe-
tuando também a alienação do controle pelos produtores” (MÉSZÁROS,
2002, p. 108), o Estado recorre aos meios coercitivos para materializar in-
tervenções políticas e legais sobre os conflitos renovados constantemente
entre as unidades socioeconômicas particulares.
No século XX, quando o capital já havia conquistado a totalidade da
economia mundial, a violência estatal intensificou-se em face das duas guer-
ras mundiais, as quais traduziram os grandes conflitos das potências impe-
rialistas em torno da partilha do mundo (leia-se: partilha de mercados e de
territórios para extrair recursos naturais, ampliar sua dominação política e
explorar força de trabalho a um custo menor). A guerra em grande escala,
185
promovendo desenvolvimento e lucro68 no circuito do comércio universal
capitalista, bem como destruição e barbárie na vida de milhares de pessoas,
exigiu do Estado o financiamento da produção de artefatos e instrumentos
bélicos, com seu potencial altamente mortífero. O Estado aperfeiçoou, em
todos os níveis e em todas as áreas, os mecanismos de guerra, convertendo-
se no principal agente financiador69 e consumidor do complexo militar-in-
dustrial produzido pelos grandes monopólios que dispunham de tecnolo-
gias sofisticadas.
Nos “anos dourados”, o Estado, em sua versão keynesiana, alocou
significativos recursos para estimular a produção perdulária do complexo
militar-industrial, aquecendo verdadeiramente a economia na França, na In-
glaterra, nos Estados Unidos etc., e concedeu empréstimos para as nações
cobrirem as despesas derivadas da militarização da economia nacional. Ade-
mais, e em adição, observou-se
68 A título de informação, Netto e Braz (2009, p. 184) anotam que “nos anos setenta
do século passado, nos Estados Unidos, enquanto a taxa geral de lucro na indústria de
transformação era de cerca de 20%, monopólios da indústria bélica auferiam lucros
que variavam de 50 a 2.000%”.
69 O financiamento do complexo militar-industrial é feito pelo Estado diretamente com
70
Netto e Braz (2009, p. 196) anotam que, “Entre 1950 e 1970, a produção industrial
dos países capitalistas desenvolvidos aumentou, no seu conjunto, 2,8 vezes [...]; a pro-
dução industrial norte-americana cresceu 5,0% entre 1940 e 1966; entre 1947 e 1966, a
do Japão cresceu 9,6% e a dos seis países então reunidos na Comunidade Econômica
Europeia cresceu 8,9%”.
71
Tendo em vista que as interpretações acerca da crise atual não são unívocas, aqui
entendemo-la como sendo uma crise estrutural, nos termos apontados por Mészáros
(2002). As crises resultam das contradições produzidas pelo próprio sistema capitalista.
Historicamente, o sóciometabolismo vigente se deparou com várias conjunturas críti-
cas que interromperam por um período seu ciclo autorreprodutivo, sendo retomado
na sequência com o apoio direto do Estado. A crise que se arrasta desde os idos dos
anos 1970 até os dias de hoje se difere de todas as demais porque não se restringe a um
país, não se concentra em um ramo específico da economia, é contínua, cumulativa,
crônica, tem um modo de ser rastejante; seu alcance é global e seu caráter universal.
187
O Estado, seguindo o receituário do neoliberalismo, tem exibido seu
autoritarismo:
188
violência estatal. O Estado neoliberal tem conjugado, no plano macroscó-
pico, a retração de coberturas sociais protetivas com uma política de encar-
ceramento da população mantida em realidades miseráveis. O enxugamento
dos gastos com programas sociais focalizados, direcionados para os com-
provadamente pobres, é acompanhado pelo investimento de vultosos re-
cursos na parafernália do sistema prisional. O Estado adota, estimula e fi-
nancia um pacote de medidas centralizado em mais leis, mais penalidades,
mais polícia, mais cárcere, mais armamentos, mais controle.
Os resultados dessa maximização da violência estatal na esteira da crise
estrutural do capital têm sido multifacetados. Provam-no o vertiginoso cresci-
mento da população carcerária; a deterioração das condições de vida dos de-
tentos nos presídios superlotados; as previsões orçamentárias para a área de
segurança e justiça; o extermínio de populações marginalizadas pela sociedade;
a terceirização e a privatização do sistema de segurança, um novo nicho de
mercado para o capital obter lucro; o aprofundamento da tortura e da prisão;
o tapa na cara do trabalhador favelado; os flagrantes forjados ou não; o choque
nos testículos; o saco de plástico na cabeça; os espancamentos e “sumiços”; a
articulação entre os setores penitenciário, judiciário e policial; a humilhação de
ser jogado no camburão; o spray de pimenta nos olhos; o toque de recolhi-
mento; a cultura do ódio a determinados segmentos sociais, devido à cor, à
orientação sexual, ao local de origem, à posição política; a apologia ao uso de
armas; a repressão às lutas sociais contestatórias; a atividade policial com base
na “tolerância zero”; os conflitos bélicos de larga duração etc.
72
Aqui, o espaço não comporta largas considerações, mas cumpre dizer que a depen-
dência precisa ser pensada em uma perspectiva que foge à regra das leituras mecanicis-
tas. Essencial e estruturalmente, a dependência se conforma nos marcos de relações
produtivas desiguais expandidas pelo globo e é entendida como “uma relação de su-
bordinação entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de
produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a re-
produção ampliada da dependência” (MARINI, 2011, p. 133). A consequência dessa
189
visão de Mauriel (2018, p. 251), a forma assumida pelo Estado nesse capi-
talismo, considerando-se seus processos econômicos e políticos, “possui
características presentes nos Estados capitalistas somadas a elementos par-
ticulares da formação dependente”.
Os países latino-americanos operam no marco da divisão internacio-
nal do trabalho adequados e controlados de acordo com os ritmos, as osci-
lações e as regras do capital internacional, proporcionando extraordinárias
taxas de lucro. Sob o signo da dependência, as classes dominantes locais,
embora subordinem-se a esse capital e aos grandes impérios econômicos,
não socializam todo o seu poder político. Aceitam e até incentivam a arti-
culação de interesses internos e externos, concentram seu poder político no
seu território nacional, resguardam a base estatal da sua dominação de classe
e mobilizam, para seu protetorado, os aparatos do Estado.
A violência estatal, uma vez engendrada nas economias dependentes,
compõe, explícita ou implicitamente, as ações do Estado no tocante à or-
ganização econômico-social com vistas a garantir a exploração da força de
trabalho, a produção de riquezas colossais e a integração dos países ao mer-
cado mundial. O exercício metódico da violência institucionalizada dá-se
desde que os europeus aventuraram-se pelos mares e ancoraram no nosso
continente, iniciando uma história em que tudo – a terra, seus frutos e sua
diversidade mineral; os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo
– incorporou-se à engrenagem mercantil do capitalismo.
Em se tratando do Brasil, a violência estatal não é algo apenas re-
cente. Pelo contrário, a tomada das grandiosas faixas territoriais pelos por-
tugueses, a aniquilação dos povos indígenas, o caráter agressivo do povoa-
mento do território, a submissão forçada dos negros ao trabalho escravo e
a instituição das relações escravistas e racistas ilustram a postura violenta do
Estado já na formação do país, praticada pelos representantes do Estado
português que atuavam diretamente aqui ou por meio do Estado nacional
constituído a partir do alcance da independência política em 1822.
O Estado brasileiro estruturou-se para exercer o papel de protagonista
interno do processo de acumulação de capital e de expansão econômica, reali-
zando as tarefas que a burguesia local, por si mesma, não tomou a cabo. Isto
relação é, para os países dependentes, sempre maior dependência. Não se supera esta
última sem a supressão das relações de produção nela envolvidas.
190
prova que inexiste desenvolvimento do capitalismo no Brasil sem uma atuação
forte e bem direcionada do Estado. Cá entre nós, o Estado possui “as fórmulas
políticas autocráticas [que] sempre prevalecem, amoldadas às novas situações
histórico-concretas da sociedade brasileira e às novas sínteses”, sem que, com
isso, anulem “suas raízes genéticas de economia subsumida aos centros mun-
diais do capitalismo” (MAZZEO, 2015, p. 26).
O florescimento e a ampliação das relações sociais capitalistas no
Brasil precisaram do braço repressivo estatal para impulsionar o pleno fun-
cionamento dos negócios locais e estrangeiros. De forma perversa e cruel,
o Estado brasileiro envidou esforços, no plano político e administrativo,
com o intuito de manter os níveis adequados de exploração e dominação
da força de trabalho, quer por meio do trabalho forçado realizado pelos
trabalhadores escravizados73, quer pela contenção violenta dos movimentos
populares que fervilharam na arena das lutas sociais do país.
O Estado brasileiro repreendeu, no decorrer do tempo, a classe traba-
lhadora, disciplinando-a, reprimindo e contendo, por vezes antevendo, qual-
quer agitação contestatória das massas. A violência aplicada pelo Estado, ins-
trumento imprescindível para a subordinação da força de trabalho aos impera-
tivos de comando do capital, auxiliou na tarefa de subvencionar o desenvolvi-
mento das forças produtivas em nossa latitude e, a nível político, de “garantir a
repressão ao movimento operário e popular, representad[a] pela legislação tra-
balhista autocrática e corporativista e pelo aparelho repressivo de uma polícia
política violenta e brutal” (MAZZEO, 1995, p. 34).
Os trabalhadores, ao se organizarem entre finais do XIX e início do sé-
culo XX, sempre precisaram agir com precaução para não incorrer em perse-
guições policiais e prisões. O temor da proliferação das colisões dos trabalha-
dores fez com que o Estado, “Além de colocar seu complexo militar a serviço
da repressão sindical, tratando as reivindicações salariais como caso de polícia,
[erguesse] um conjunto de leis que impedia a organização e as associações ope-
rárias” (SANTOS NETO, 2015, p. 212), a exemplo das leis Adolfo Gordo e a
Aníbal de Toledo. A repressão e a criminalização marcam a gênese da história
73
Vale lembrar: numa empreitada intercontinental, foram importados violentamente
pelo capital, com a total anuência do Estado, cerca de 3.650.000 negros africanos.
191
do movimento sindical brasileiro – eis porque numerosos trabalhadores, orga-
nizando-se politicamente e lutando em prol das suas reivindicações, foram pre-
sos, espancados, exilados e assassinados pelo Estado.
No período da ditadura empresarial-militar instalada através do golpe
de 1964 desfechado pela cúpula militar, a violência estatal regeu a condução
das medidas do Estado brasileiro e se irradiou por todos os poros da soci-
edade. Os governos militares, sacralizando o poder das multinacionais74 e
do capital monopolista no Brasil, tornaram nítido um Estado “antinacio-
nal”, “antidemocrático” e “antipopular” (FERNANDES, 1976) que atuou
com “soluções pelo alto” nada pacíficas. Para implementá-las, o Estado,
posto à serviço do capital, acionou a violência como técnica política e eco-
nômica, articulando-se com a burguesia financeira, nacional e imperialista,
e agindo cada vez mais em sintonia com as exigências monopolísticas.
Netto (2017, p.120, grifos do autor) afirma que na vigência da dita-
dura os “quarteis se enchiam de encarcerados, cadeias ficavam lotadas e
navios eram convertidos em prisão – e o denuncismo, praticado pelos dedos-
duros, entrou na vida cotidiana”. O golpe, espraiando o poder armado, já na
sua sequência imediata
74
Em especial, norte-americanas, alemãs, britânicas, francesas, belgas e suíças.
192
[...] centenas de brasileiros escaparam do terror saindo pelas frontei-
ras do sul e levas de exilados refugiaram-se em embaixadas estran-
geiras; milhares de domicílios, escritórios e consultórios viram-se in-
vadidos e varejados; expurgo rigoroso iniciou-se nas Forças Arma-
das e em organismos estatais e autarquias; bibliotecas foram objeto
de ataques e assaltos policiais; o ódio dos violadores da legalidade
destruiu espaços de organização e instituições culturais: no Rio de
Janeiros, a sede nacional da UNE foi incendiada e a do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros/ISEB, vandalizada; jornais naciona-
listas e democráticos (os poucos que existiam), editoras e livrarias
foram empastelados e fechados (NETTO, 2017, p. 120).
75
O DOI (Departamento de Operações e Informações), o Codi (Centro de Operações
de Defesa Interna) e o Deops (Departamento de Ordem Política e Social) foram orga-
nizações especializadas na prática da tortura e da perseguição às principais lideranças
estudantis nos anos em que vigeu a ditadura.
193
do Brasil, conhecido por “Colônia76” e localizado na região da cidade de
Barbacena, em Minas Gerais. Perpetrado pelo Estado no interior da estru-
tura hospitalar entre 1930 e 1980, o “holocausto brasileiro”, apontam as
narrativas de Arbex (2013), significou um verdadeiro extermínio, dizimando
pelo menos duas gerações em 18.250 dias de horror, sempre com a conve-
niência de interventores federais, governadores do estado de Minas Gerais,
médicos, funcionários e setores conservadores da sociedade.
O enredo da violência estatal não findou com a redemocratização da
sociedade brasileira. Diante dos efeitos da crise estrutural no Brasil, a vio-
lência estatal multiplica-se no país, compondo o leque de ações sociopolíti-
cas mobilizadas pelo Estado a partir dos anos 1990 na tentativa de recuperar
os processos de expansão e valorização do capital, donde a incorporação
do neoliberalismo na condução das políticas econômicas e sociais dos go-
vernos sucedidos no lapso temporal das últimas três décadas. Tem-se bus-
cado, com a ofensiva edificada contra os trabalhadores, recompor as estru-
turas de dominação, estabilizar o dinamismo da economia e fortalecer a he-
gemonia burguesa na trama do capitalismo dependente e subordinado.
Os efeitos da crise no Brasil requisitam do Estado uma adaptação aos
fluxos do capitalismo mundial, implantando-se, para socorrer o capital, con-
trarreformas compostas por “mudanças estruturais regressivas sobre os tra-
balhadores e a massa da população brasileira, que [são] também antinacio-
nais e antidemocráticas” (BEHRING, 2008, p. 281). O Estado, aumen-
tando sua “governança”, responsabiliza-se por efetivar intervenções e polí-
ticas que fortalecem o mercado, atuando – com todos os meios que estão
ao seu alcance, incluindo os mais violentos – para reverter as taxas de lucro
declinantes e acirrar os patamares de extração da mais-valia.
As contrarreformas promovidas pelo Estado brasileiro assumem, no ins-
tável solo de uma economia em crise, pelo menos três traços distintos, porém,
de acordo com a autora, intrinsicamente articulados quanto à sua efetivação:
76
Nessa instituição, o resultado da falta de critério médico para a triagem das internações
foi o seguinte: mais ou menos 70% dos atendidos não apresentavam nenhum quadro de
adoecimento mental. O “Colônia” separava os pacientes por sexo, idade e características
físicas e recebia todos aqueles que “eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública”, tor-
nando-se, com isso, o “destino de desafetos, homossexuais, militantes políticos, mães sol-
teiras, alcoolistas, mendigos, negros, pobres, pessoas sem documentos e todos os tipos de
indesejados, inclusive os chamados insanos” (ARBEX, 2013, p. 23).
194
1) a flexibilização nas relações de trabalho, apontada como saída da crise
ao reduzir os custos com os contratos de trabalho, retirando o Estado da
regulação dessas relações. No meio do furacão da crise, os trabalhadores
são convocados pelo Estado neoliberal brasileiro a pagar os “custos do tra-
balho” mesmo com a contenção do aumento de salários, a retração das va-
gas de emprego e a perda de direitos trabalhistas. Além disso, ao estimular
as formas flexíveis de trabalho, o Estado amplia e intensifica a exploração
da força de trabalho, contribui para o avanço da precarização do trabalho
(informal, intermitente, temporário, terceirizado, desprotegido) e faz cres-
cer o desemprego generalizadamente, ampliando-se o contingente de indi-
víduos criminalizados, punidos e controlados pela violência estatal.
2) o programa de privatizações que aprofunda a dependência da economia
brasileira aos ditames do capital estrangeiro. Por meio dele, o Estado, des-
centralizando suas funções com base no modelo gerencial e defendendo os
interesses de grandes conglomerados financeiros, transfere para o setor pri-
vado a tarefa da produção, tendo prejuízos incalculáveis e arcando com des-
pesas ao vender as estatais. Bem pesadas as coisas, a privatização é uma
entrega77 das estatais.
3) a destruição dos direitos sociais, sobretudo daqueles integrantes da se-
guridade social, atingidos pelos programas de austeridade. Sob a retórica de
que o Estado deve intervir o mínimo na área social, desmontam-se, na fase
atual de mundialização do capital, os sistemas de proteção garantidores de
direitos sociais conquistados por meio de muitas lutas. As contrarreformas
enquadram as políticas sociais na lógica do “ajuste fiscal” e do controle do
teto dos gastos públicos. A universalização dos serviços sociais prevista pe-
las políticas sociais cede lugar à focalização na população que não pode
77
Ou, nos termos de Biondi (2003, p. 68), uma “privadoação”, tendo em vista que “o
governo diz [à época da pesquisa do autor] que arrecadou 85,2 bilhões de reais com as
privatizações. Mas contas ‘escondidas’ mostram que há um valor maior, de 87,6 bilhões
de reais, a ser descontado daquela ‘entrada de caixa’. E note-se: esse levantamento é
apenas parcial, faltando ainda calcular itens importantes [...] como gastos com demis-
sões, perdas de Imposto de Renda, perda dos lucros das estatais privatizadas etc.” Ao
seguir a trilha crítica do autor, Behring (2003, p. 202) pontua que “além de não abater
em um centavo as dívidas externa e interna, tudo indica que o processo de privatização
representou uma profunda desnacionalização do parque industrial de base do país e até
a destruição de alguns setores intermediários.”
195
consumi-los, demandando-os ao Estado. Este age, em aquiescência ao pa-
radigma neoliberal, de modo pontual, focalizado, minimalista, centralizando
majoritariamente suas ações na pobreza, incentivando as parcerias público-
privadas e transmutando as políticas sociais em serviços privados.
As medidas contrarreformistas, retraindo a oferta de serviços sociais
públicos para a população e desestruturando a rede de proteção social, são
conjugadas com a tendência de acirramento da violenta estatal contra a
classe trabalhadora, ilustrada na criminalização da pobreza, na judicialização
dos protestos sociais, na repressão política aberta e na militarização enceta-
das pelo Estado. Ao fim e ao cabo,
78
Abuso financeiro e econômico, violência patrimonial, discriminação, exploração do
trabalho infantil, negligência, tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, violência
física, violência institucional (incluindo-se a policial), violência psicológica, violência
sexual, dentre outras.
197
2020, em pleno pico de disseminação do novo coronavírus, esse número foi
de 3.148 pessoas79, uma média de 17 vidas ceifadas por dia e um aumento de
7% em relação ao mesmo período do ano anterior. O Rio de Janeiro foi o
estado mais atingido pelas mortes por policiais (775 vítimas) e o Amapá teve a
maior taxa de letalidade (8,1 por 100 mil habitantes) nos seis primeiros meses
de 2020. Mas, a polícia que mais mata é, ao mesmo tempo, a polícia que mais
morre mundialmente. Nesse espaço de tempo, 103 policiais da ativa morreram,
a maior parte no estado de São Paulo (28 profissionais).
Os dados reunidos pelo site Uol apontam que, em 2020, os homens
constituíram 99% das vítimas das práticas repressivas policiais. Neste per-
centual, em termos de faixa etária os jovens são maioria: 23,5% tinham en-
tre 15 e 19 anos; 31, 2% tinham entre 20 e 24 anos; 19,1% tinham entre 25
e 29 anos80. Dos 99%, 79,1% são negros que foram brutalmente assassina-
dos, denotando que a violência estrutural e racial contra a população negra
brasileira é diária, explícita e estarrecedora, consolidando-se na violência policial
e/ou na violência institucional particular, como demonstra o caso de João
Alberto Silveira Freitas, homem negro agredido e morto por seguranças de
um supermercado no Rio Grande do Sul.
A violência estatal evidencia-se, ainda, na repressão às manifestações
do funcionalismo público federal, composto por uma camada de trabalha-
dores com histórico de organização e intervenção. A pesquisa de Ponce
(2014) revela a notória frequência81 das greves por eles encabeçadas contra
a retirada de direitos, as privatizações, o desfinanciamento das políticas so-
ciais e outras arbitrariedades estatais. As estratégias movimentadas pelo Es-
tado para conter os movimentos grevistas e dispersar suas reivindicações
79 Disponível:
<https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/03/no-de-pessoas-
mortas-pela-policia-cresce-no-brasil-no-1o-semestre-em-plena-pandemia-assassina-
tos-de-policiais-tambem-sobem.ghtml>. Acesso em: 20 jan. 2021.
80 Disponível em:
<https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/18/oito-a-cada-
10-mortos-pela-policia-no-brasil-sao-negros-aponta-relatorio.htm?cmpid=copiae-
cola>. Acesso em: 20 jan. 2021.
81 O referido autor aponta que, entre 1995-1998 (FHC), ocorreram 61 greves; 1999-2002
(FHC), 64 greves; 2003-2006 (Lula), 118 greves; e entre 2007-2009 (Lula), 65 greves.
198
são, além do corte do ponto, a vigilância policial, coerção, intimidação, in-
quirições, abertura de processos judiciais e administrativos, assédio moral,
perseguições e prisões.
O campo brasileiro não está incólume à força policial usada intenci-
onalmente e às demais medidas violentas do Estado. A violência estatal faz-
se presente para proteger a propriedade privada, dominar os povos tradici-
onais, manter o latifúndio, o agronegócio e a “política coronelista” impe-
rante no norte e no nordeste do nosso país. Na tabela abaixo, tem-se o
quantitativo de conflitos no campo sistematizado e divulgado nos relatórios
da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
82
Houve, nos últimos anos, o crescimento da bancada evangélica nos estados, com
destaque para o Rio de Janeiro, e no parlamento. Com esta bancada, as diversas pautas
conservadoras ganharam vozes e leis regressivas. Em termos quantitativos, hoje são 84
deputados federais e 7 senadores evangélicos. O PSL conseguiu eleger, na eleição de
2018, 52 deputados federais, configurando-se como a segunda maior bancada, 4 sena-
dores e 3 governadores.
200
atuais – este é o preço pago pela sociedade brasileira por ter elevado ele e o seu
projeto à Presidência da República.
Mais recentemente, em plena pandemia da Covid-19, a violência es-
tatal cometida sob o comando do governo Bolsonaro ficou expressa nas
legislações com contornos genocidas identificados na Portaria n. 135, do
Ministério de Minas e Energia – que reforçou a manutenção dos trabalha-
dores na atividade de mineração para atender as demandas do capital inter-
nacional em territórios de comunidades tradicionais vulneráveis à prolifera-
ção do vírus – e no veto do presidente ao acesso universal à água potável
pelas comunidades indígenas, por meio Projeto de Lei nº 1.142, de 2020,
durante o quadro pandêmico; no incentivo ao uso da cloroquina, sem ne-
nhuma comprovação científica, forçando o Ministério da Saúde a incluí-la
no tratamento de pacientes infectados; no veto à obrigação de usar másca-
ras em locais como igrejas, comércio, escolas e presídios, aumentando as
chances de contaminação; na defesa da economia em detrimento da vida;
nas falhas graves, negligentes, irresponsáveis e mortais na condução insen-
sível do enfrentamento à pandemia; no menosprezo, descaso e negacio-
nismo do presidente.
Considerações finais
Referências
202
<https://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/conflitos-no-
campo-brasil> Acesso em: 20 jan. 2021
203
MAZZEO, Antônio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da
autocracia burguesa. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
204
SOBRE OS(AS) AUTORES(AS)
Jordeana Davi
Professora Associada da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Dou-
tora pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: jordeana.pb.010@uol.com.br
206
Lucas Bezerra
Doutor em Serviço Social pela Escola de Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto da Faculdade de Ser-
viço Social da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro do
Grupo de Pesquisa Estado, Direito e Capitalismo Dependente. Integra o
Núcleo Realidade Brasileira da Escola Nacional Paulo Freire.
E-mail: lucas.araujo@fasso.ufal.br
Tales Fornazier
Assistente Social. Doutorando em Serviço Social (PUC-SP). Professor do
Curso de Serviço Social da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)/Campus Mucuri. Vice-líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Fundamentos, Formação e Exercício Profissional em
Serviço Social (GEFEPSS)-UFTM. Pesquisador e militante antirracista.
E-mail: taleswf@live.com
Thays Fidelis
Assistente social, mestra e doutoranda em Serviço Social pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL) com instância de doutorado sanduíche no Pro-
grama de Posgrado en Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional
Autónoma de México (UNAM).
E-mail: thays.karoll@gmail.com
207
Tibério Lima Oliveira
Assistente social. Doutor em Política Social pela Universidade de Brasília
(UnB). Atualmente, é professor substituto no Departamento de Serviço So-
cial/SER da Universidade de Brasília (UnB).
E-mail: tiberio_berin@hotmail.com
208
WWW.PHILLOSACADEMY.COM
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