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I

A brilhante narrattva de Isaiah Berlin so re a vida c


a obra do autor de O capital é hoje considerada um li ro
clássico. Trata-se de uma introdução lúcida e abrangente
à personalidade e às idéias de Marx, tais como elas foram
entendidas por aqueles que, em seu nome e gutados por
...uas doutrinas, tentaram revolucionar o mundo.
Segundo o flsófofo Leszck Kolakowski:
"A habihdade admiráve o aulor em traduzir muitas
noções obscuras e confusas do marxismo numa linguagem
clara, e seu virtuosismo em mostrar as conexões c opo-
sições entre personalidades de um lado e questões dou-
trinárias de outro, não têm paralelo em toda a litcrarura
eXIstente sobre o assunto.
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Sua vida, seu meio e sua obra

Tradução
Hélio Pólvora

Edições I Siciliano
Dados Internacionais de Calalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

&rUn, Isaiab, Sir, 1909-


Karl Marx/ Isaiah Berlin ; tradução H élio Pólvora
-São Paulo : Siciliano, 1991

ISBN 85-267-0358-7

1. Comunistas-Biografia 2. Marx, Karl, 1818 -


1983 I. 11tu lo.

91-0931 o COD-335.43092

índices para catálogo sistemático:


1. Comunistas : Biografia c obra 335.43092

ntulo original: Karl Marx


O 1978 by lsaiah Berlin
Direitos exclusivos para o Brasil cedidos à
Agência Siciliano de Livros, Jornais c Revistas Lada.
Al. Dino Bueno, 492 -CEP 01217- São Paulo- Brasil
Coordenação editorial: Ana Emília de O. Silva
Tradução: Hélio Pólvora
Rcvisio: Plisabete Abreu e Audrey Souza Aguiar
Capa: Carlos Perrone
Edições Sic:iUano, 1991
ISBN 85-267-03S8-7
A meus país
Sumário

P~fácio, 9
1. Intn)dução, 15
2 . lnfbcia e adolescência. 15
3. A filosofia do espírito, 45
4 . Os Jovens Hegelianos. 69
5. Paris, 87
6 . Materialismo histórico, 119
7. 1848, 153
8 . Exílio em Londres: a primeira fase, 171
9. A Internacional, 203
10. "O Doutor do Terror Vermelho". 217
11 . últimos anos, 24;
Prefácio

Escrevi este livro quase quarenta anos atrás. O texto origi-


nal era mais de duas vezes maior que este, mas as normas dos
editores da Home University Library, sendo rígidas, obriga·
ram-me a reduzi-lo, eliminando boa parte do debate sobre ques-
tões filosóficas, econômicas e sociológicas. e me concentrando
na biografia intelectual. Desde então, em particular após a
transformação do mundo que se seguiu à Segunda Guerra Mun-
dial, vicejaram os estudos marxistas. Muitos escritos de Marx,
até então inéditos, vieram a lume; em especial, a publicação dos
Grundriss - o primeiro esboço de O capital - afetou de
maneira decisiva a interpretação de seu pensamento. Além disso,
os acontecimentos alteraram inevitavelmente a perspectiva na
qual a obra marxista é considerada; mesmo os críticos mais
implacáveis não podem negar sua relevância para a teoria e
prática de nossa época. Questões como a relação das idéias
de Marx com a de pensadores precedentes. sobretudo Hegel
(à luz de novas interpretações das doutrinas de Hegel que se
tomaram familiares e rreqüentes); a ênfase no valor e na impor-
tância dos seus primeiros escritos .. humanísticos", estimulada
em parte pelo desejo de resgatar Marx de interpretações e "dis-
torções .. stalinistas (ou. em certos aspectos, de Plekhanov
Kautsky. Lenin e, até mesmo, Engels); as diferenças crescentes
entre as exposições •revisionistas' e 'ortodoxas', principalmente
em Paris, das doutrinas de O capital; discussões de temas como
a alienação - sua causa e sua cura - . especialmente por neo·
freudianos, ou da doutrina da unidade da teoria e prática, por
neomarxistas de muitas denominações (e a violenta reação a
desvios ideológicos oriunda de escritores soviéticos e seus alia·
dos), tudo isso tem gerado uma literatura hermenêutica e
critica que. pela mudança de curso e por seu volume em r'pida
expansão, quase anula debates anteriores. Embora algumas de
tais divergências a nada mais se assemelhem que a controvérsias
de seus antigos aliados, os Jovens Hegelianos, a quem Marx
acusou de querer explorar e adulterar o corpo inerte da dou-
trina hegeliana, esse debate ideológico muito tem acrescentado
ao conhecimento e à compreensão tanto das idéias de Marx
quanto da relação delas com os nossos tempos.
As ardorosas controvérsias, especialmente durante os últi-
mos vinte anos, quanto ao significado e validade das principais
doutrinas de Marx, não deixaram de afetar qualquer estudioso
sério do marxismo. Em conseqüência, se eu fosse escrever agora
sobre a vida e as idéias de Marx. deveria de início voltar-me
para um livro diferente, peJo menos porque minha opinião
acerca do que ele quis exprimir em seus conceitos básicos -
como a ciência da sociedade, a relação entre idéias e institui-
ções e as forças de produção, bem como a estratégia correta
para os líderes do proletariado nos vários estágios do seu desen-
volvimento- sofreu alguma mudança. Assim ocorreu, embora
eu não possa me vangloriar ainda agora de estar familiarizado
por completo com os estudos marxistas. Quando preparava este
livro, no início dos anos 30. talvez estivesse assaz influen-
ciado pelas interpretações clássicas de Engels, Plekhaoov, Meh-
ring, nas quais o marxismo como movimento se baseia, e
também pela admirável (embora jamais reimpressa) biografia
critica de E. H. Carr. Mas. quando comecei a revisar o texto,
percebi que estivera envolvido sobretudo na tarefa de escrever
uma nova obra, mais abrangente e ambiciosa, que ia além do
ptop6sito desta. Assim, julguei mais conveniente limitar-me, nas
revisões sucessivas, a corrigir enos de ênfase e de fatos, a quali·
ficar generalizações temerárias. a desenvolver um ou dois pontos

lO
tratados de forma superficial, e a adotar mudanças relativamente
pequenas de interpretação.
Marx não é o mais claro dos escritores nem foi seu
objetivo construir um sistema único e totalizante de idéias no
sentido que se poderia atribuir, por exemplo, a pensadores como
Spinoza, Hegel ou Comte. Aqueles que, como Lukács, susten·
tam com fmneza que o que Marx intentava fazer (e na opinião
deles conseguiu) era uma transformação radical da maneira de
p~nsar, de atingir a verdãd~, de prefe~nçiª-._sub~titujndo qm
ÇQnitmtQ de _doutrinas por outro, podem encontrar suficiente
comprovação disso nas próprias palavras de Marx; e já que
este insistiu em dizer, ao longo de sua vida, que tanto o signi-
ficado como a realidade de uma crença consistiam na _prática
que a ·exprimia, _talvez não cause surpresa que suas opiniões
s obre-numerosos tópicos fundamentais, incluindo os menos origi·
nais ou influenciáveis, em vez de expostas sistematicamente,
devam ser respigadas e inferidos a partir de trechos dispersos
de suas obras e, acima de tudo, a ..R.I!rtir das formas concretas
_de ação que ele advogou ou inaugurou.
2 natural que uma doutrina, ao mesmo tempo tão radical
e tão diretamente associada, ou melhor, tão idêntica à prá-
tica revolucionária, tenha provocado várias interpretações e
estratégias. Isso começou durante a própria vida de Marx e
confluiu para a sua famosa e característica observação de que
ele era tudo, menos marxista. A publicação de seus primeiros
ensaios, que düeriam em tom e em ênfase e, até certo grau,
em tema e assunto (e, diziam alguns, também em questões
centrais da doutrina) dos seus últimos trabalhos, ampliou
de forma considerável a área de divergência entre os últimos
teóricos do marxismo. E não apenas entre os teóricos: ela
provocou violentos conffitos no âmbito de partidos socialis·
tas e comunistas, entre Estados e governos em nossa época, e
tem causado realinhamentos de poder que alteraram a história
da humanidade e provavelmente continuarão alterando. Essas
grandes agitações, e as posições e doutrinas ideológicas que são
as expressões teóricas de tais batalhas, ultrapassam, no entanto,

-
o objetivo deste livro. Meu desejo é revelar unicamente a nis·
tória e as opiniões do pensador e lutador, em cujo nome os

1I
partidos marxistas vieram a ser criados em muitos países; a~
idéias em que me concentrei são historicamente as que forma-
ram o cerne do marxismo como t~oria e prática. As vicissitudes
do movimento e as idéias que Marx deflagrou, os cismas e as
heresias, bem como as mudanças de perspectiva que passaram
de noções arrojadas e paradoxais, em sua época, a verdades
aceitas, ao mesmo tempo que algumas de suas opiniões pré-co-
munistas e obiter dieta adquiriram importância e estimularam
o debate contemporâneo. não são. em sua maior parte, a fina·
lidade deste estudo, pos.to que a bibliografia existente fornece
orientação ao leitor que acaso deseje acompanhar a história
subseqüente deste que é o movimento mais transfonnador do
nossO tempo.
Gostaria de exprimir minha gratidão a dois amigos: o pro-
fessor Leszek Kolakowski pela leitura do texto e pelas suges-
tões valiosas das quais tirei bom proveito, e o sr. G. A. Cohen
por seus valiosos comentários criticas e estímulo, ambos de
grande valia. Também gostaria de agradecer aos funcionários
da Oxford University Press por sua cortesia e paciência exem-
plares.
Ox/ord. 1977
I. R.

Nota à terceira edição

Aproveito a oportunidade de uma terceira edição para


corrigir erros de julgamento e de fatos e reparar omissões na
exposiçlo das idéias de Marx, sejam sociais ou filosóficas, sobre-
tudo idéias influenciadas pela primeira geração de seus discí-
pulos e críticos e que prosperaram somente após a Revo-
lução Russa. A mais importante delas é sua concepção da
relação entre alienação e liberdade do homem. Gostaria de agra-
decer ao sr. C. Abramsky e ao sr. T. B. Bottomore a valiosa
ajuda e aconselhamento. Também devo agradecimentos ao pro-
fessor S. N. Hampshire por haver relido a primeira parte do
livro e sugerido muitas melhorias.
OxJord, 1963
I. n.

12
Nota à primeira edição

Deixo aqui meus agradecimentos aos amigos e colegas sufi-


cientemente generosos para ler este livro quando manuscrito, e
que contribukam com sugestões inestimáveis, das quais muito
me beneficiei; em particular, aos srs. A.J. Ayer, Ian Bowen,
G.E.F. Chilver, S.N. Hampshire e S. Rachmilewitch. Agradeço
também à sra. H.A.L. Fisher e ao sr. David Stephens pela
leitura das provas; aos editores Methuen pela permissão de
usar as passagens citadas nas páginas 182, 83; e, acima de
tudo, aos diretores e companheiros do Ali Souls College por
terem permitido que eu devotasse parte do tempo devido à
minha bolsa de estudos a um assunto inteiramente fora dos
objetivos de meus cursos regulares.
Oxford, maio de 1939
I. 8 .

13
1
...
Introdução

Coisas e atos são o que são, e suas conseqüências terão


de ser o que delas se espera. Por que. então. insistirmos
em ser enganados?
BISPO BuTLER

Pensador algum do século dezenove teve influência tão di~


reta, tão deliberada e poderosa sobre a humanidade quanto Kar!
Marx. Durante a sua vida e depois de morto ele exerceu uma
ascendência intelectual e moral sobre seus seguidores que se
pode considerar ímpar, mesmo naquele período de ouro do
nacionalismo democrático, uma época que viu a ascensão de
grandes heróis populares e mártires, figuras românticas e quase
lendárias, cujas vidas e universos dominaram a imaginação das
massas e criaram nova tradição revolucionária na Europa. Con·
tudo, Marx não poderia ser chamado. de forma alguma, de uma
figura popular no sentido comum. e certamente não foi, em
sentido algum, um escritor ou orador popular. Escreveu muito.
mas suas obras não chegaram a ser lidas amplamente durante
a sua vida; e quando, no final da década de 1870, começou a
se formar o imenso público que várias delas teriam depois, a
fama de Marx cresceu não tanto por causa de sua autoridade
intelectual, mas devido ao crescimento da fama e da notorie-
dade do movimento com o qual ele se identificou.
Marx não possuía as qualidades de um grande líder ou
agitador popular; não foi um publicista de talento, como o
democrata russo Alexander Herzen, nem possuiu a eloqüência
fascinante de Bakunin; passou a maior parte de sua vida
relativamente no anonimato, em Londres, à sua mesa de
trabalho e na sala de leitura do Museu Britânico. Era pouco
conhecido do público em geral, e muito embora, perto do fim
da vida, viesse a se tomar o líder reconhecido e admirado de
um poderoso movimento internacional, nada em sua vida ou
em seu caráter excitava a imaginação ou evocava a devoção
ilimitada, intensa, a quase religiosa adoração com que homens
do porte de Kossuth, Mazzini e também Lassalle, em seus der-
radeiros anos, foram contemplados por seus seguidores.
As apresentações públicas de Marx não foram freqüentes
nem se notabilizaram pelo êxito. Nas poucas ocasiões em que
falou em banquetes e comícios, seus discursos foram sobre-
carregados de argumentos e proferidos com uma mistura de
monotonia e rudeza que impunha respeito, mas não desper-
tava entusiasmo na audiência. Por temperamento um teórico
e intelectual, ele evitava instintivamente _Q contatQJlireto gun
a!. maMN~.às quais, no estudo de seus interesses, devotou a
vida inteira. Para muitos de seus adeptos, Marx assemelha-
va-se a um dogmático e sentencioso mestre-escola alemão,
pronto a repetir indefinidamente suas teses com uma veemên-
cia crescente, até que a essência se alojasse, irremovível, na
mente dos discípulos. A maior parte de sua doutrina econô-
mica adquiriu sua primeira forma através de c-nnferências para
operários; em tais circunstâncias, sua exposição constitui, em
qu&lquer ..aspecto, um modelo de lucidez e concisão. Mas Marx
escrevia devagar e penosamente, como acontece às vezes com
pensadores rápidos e férteis, aparentemente incapazes de acom-
panhar a velocidade de suas próprias idéias, impacientes por
comunicar logo uma nova doutrina e antecipar-se a possíveis
objeções 1; as versões publicadas, quando tratam de temas

1. Quem estiver intereasado no método de c:omposiçio de Marx,


faria bem em 1cr os Grundiss. _que permaneceram em forma de manut-

16
abstratos, tendem às vezes ao desequillbrio e à obscuridade
nos detalhes, conquanto a doutrina central jamais seja posta
em dúvida. Marx teve consciência disso e uma vez comparou-se
com o herói de A obra-prima desconhecida. de Balzac, que tenta
pintar o quadro por ele mentalizado, retoca infindavelmente a
tela e acaba produzindo uma massa informe de cores que, na
sua visão, parece exprimir o quadro imaginado. Marx perten-
ceu a uma era - e cultivou a ima • a -o de formã maiS
i ·berada e a de S~®swres.. e oi..educa.cJÕ
e~tre hoJ!eDS.J)Jta..Q.JJem as idéias. mais que os fatos. eram não
raro . JMis reei~. e relações pessoais significavam mais que os
acontecimentos~do. mundo exterior. homens pelos quais a vida
pública era quase sempre entendida e interpretada em função
do mundo rico e elaborado de sua própria experiência parti-
cular. No entanto, Marx não foi, por natureza, um introspec-
tivo; tinha pouco interesse por pessoas ou estados de Animo ou
de alma; o insucesso, por parte de muitos contemporâneos seus.
na avaliação da importincia da mudança revolucionária da so-
ciedade de sua época, devido ao avanço rápido da tecnologia
com o conseqüente e repentino acréscimo de riqueza e, ao mes-
mo tempo, de deslocamentos e confusão social e cultural. servia
para excitar-lhe a ira e o desprezo.
Marx era dotado de uma mente poderosa, ativa, concreta.
não sentimental, de tJ!l!8 aguda percqJção da injustiça, e pouca
sensibilidade,. e foi repelido tanto pela retórica e emocionalismo
dos intelectuais quanto pela estupidez e complacência da bur-
guesia; os primeiros pareciam·lhe cada vez mais um blablablá
inútil. distanciado da realidade e., fossem sinceros ou falsos,
igualmente irritantes; a segunda, isto é, a .burguesia, parecia-lhe
ao mesmo tempo hipócrita e capaz de iludir-se, cega aos aspectos
sociais mais salientes de sua época, por estar engajada no com-
promisso de enriquecer e adquirir status social.
Essa sensação de viver num mundo hostil e vulgar (inten-
sificada, talvez, por seu desgosto latente pelo fato de ter nascido
judeu) acentuou-lhe a natural aspereza e agressividade, produ-
zindo a formidável figura da imaginação popular. Seus maiores

crito até 1939 e contêm as principais doutrinas tanto de O capital


como dos primeiros estudos sobre alienação.

li
admiradores julgariam difícil considerá-lu sensível ou afetuoso..
ou preocupado com os sentimentos da maior parte das pessoas
com quem entrava em contato; em .sua maior parte os homens
que Marx conheceu foram, na sua opinião, tolos ou sicofantas,
de quem ele desconfiava e desprezava abertamente. Mas, se
sua atitude em público era arrogante e ofensiva, na vida parti-
cular, composta pela fam.Oia e amigos, e na qual se sentia
completamente seguro, Marx era atencioso e gentil; a vida con-
jugal não foi em absoluto infeliz, ele foi muito ligado aos filhos
e tratou Engels, amigo e colaborador pela vida inteira, com leal-
dade e devoção quase contínuas. Possuía pouco encanto pes-
soal, seu comportamento era muitas vezes rude e ele se tomava
presa fácil de ódios cegos, mas até mesmo os inimigos ficavam
fascinados pela força e veemência da personalidade de Marx,
pela coragem e abrangência de suas idéias e pela amplitude e
brilho de suas análises acerca da situação contemporânea.
Marx permaneceu a vida inteira na condição de figura sin-
gularmente isolada entre os revolucionários do seu tempo, igual-
mente inamistoso para com eles, seus métodos e finalidades.
Esse isolamento não decorria apenas do temperamento ou de
circunstAncias de tempo e lugar. Embora grande parcela, para
não dizer a maioria, dos democratas europeus diferisse de
caráter, objetivos e ambiência histórica, eles se assemelhavam
entre si num atributo fundamenta], que tomava possível a
cooperação, pelo menos em princípio. Acreditando ou não em
revolução violenta, a grande maioria apegava-se a padrões mo-
rais comuns a toda a humanidade. Criticaram e condenaram
a condiçlo existente da humanidade em função de algum ideal
preconcebido, algum sistema cuja desejabilidade não requeria,
pelo menos, qualquer demonstração, evidenciando-se por si mes-
ma a todos os homens de visão moral normal; seus esquemas
diferiam quanto ao grau de sua possível transformaçio em prá-
tica, e por consepinte podiam ser classificados mais ou menos
como tttópiCQ!, mas persistia um desacordo sensível, entre as
escolas de pensamento democrático, acerca dos objetivos supre-
mos a alcançar. Discordavam quanto à eficácia dos meios pro-
postos, sobre até que ponto o compromisso com os poderes
em exercício era moral ou praticamente aconselhável, sobre o
caráter e o valor de instituições sociais específicas, e, conse-

18
qüentemente. sobre a política a ser adotada a esse respe1to. Mas
até mesmo os mais violentos dentre eles, os jacobinos e os ter-
roristas- estes talvez mais que outros - , acreditavam haver
pouca coisa que não pudesse ser alterada pela vontade deter-
minada dos indivíduos; acreditavam também que finalidades
morais poderosamente sustentadas constituíam molas adequadas
de ação, elas próprias justificadas por um apelo a certa escala
de valores universalmente aceita. Seguia-se que. em primeiro
lugar, convinha definir o mundo que se desejav~ . instituir; em
segundo, tinha-se de considerar, à luz disso, qual parcela da
estrutura social existente seria mantida, qual seria condenada;
por fim, era-se obrigado a buscar os meios mais efetivos de
realizar a transformação necessária.
Ante essa atitude. comum à vasta maioria dos revolu-
cionários e reformadores de todas as épocas, Marx despo-
jou-se de qualquer simpatia. E&Y~va convencidQ.. de qpe a
história humana é goye~ada por leis que nªo podem~ se!_&!!.e.:
radas pela mera intervcnçã.o__de indivíduos a serviçQ deste ou
d!fquele idel!J. Acreditava, com efeito, que a experiência íntima
a que o homem recorre para justificar seus fins, longe de revelar
um tipo especial de verdade chamada moral ou religiosa, tende,
no caso de homens historicamente colocados em certas s\tuações.
a engendrar ~Q! ~ ilus_~s individuais e coletivos. C,9ndi-
~ionados pelas circunstâncias materiais que lhes dão origem, os
mito~~ incotpQram às vezes, sob a máscara da verdade objetiva,
aquilo em que... os homens, em sua penúria, desejam acreditar;
sob a traiçoeira influência deles, os homens interpretam mal a
natureza do mundo em que vivem, avaliam erroneamente sua
própria posição nele e, por conseguinte, calculam mal a extensão
do seu poder e do poder de outros, e as conseqüências tanto
dos seus atos quanto dos de seus opositores. Em oposição à
maioria dos teóricos democráticos de seu tempo, Marx ac~di­

----
tava que os valores não podiam ser encaradas dissociados
e_ isolados de fatos, Jlli!S dependiam necessariamente da maneira
P.ela qual os fatos eram vistos. O mergulho firme na natureza
e nas leis do processo histórico deixará claro por si mesmo.
sem ajuda de padrões morais independentemente conhecidos.

1Q
a um ser racional, qual passo mais justo lhe conv6m adotar.
ou seja, o caminho que mais se adequa às exigências da ordem
à qual ele pertence. Conseqüentemente, Marx não tinha um
novo ideal social ou ético para impor à humanidade; não
pleiteava uma mudança de sentimentos; uma simples mudança
de sentimentos signiftcaria apenas a substituição de um con-
junto de ilusões por outro. Ele diferiu dos outros grandes
ideólogos da sua geração ao apelar, pelo menos no seu enten-
der, para a razão e para a inteligência prática, denunciando
o vício ou a cegueira intelectual, insistindo em que tudo o que
os homens necessitam, a fim de saber como se salvar do caos
em que estio mergulhados, é buscar compreender sua condição
real, e acreditando que uma estimativa correta do preciso equilí-
brio de forças na sociedade a que Os homens pertencem indi-
cará a forma de vida que lhes convém buscar. Marx denuncia
a._ orsJrm existente com recut8Q não a ideais, mas à Nstó--
rJ!t. Ele a denuncia, em geral, não por injusta ou infeliz, ou
produto da malignidade ou loucura humanas, mas como o efeito
d11 leis de desepvolvimen e tomam · vitável _que,
em_çcrto estágio !la hi~rbt, ~ classe,_ent bti$C8 de ~usJnte·

--
resses mediante IJ1U1S variados de racionalidade, venha desp_gjar
U !Plorar outra, provocando assim a ~ressio e o enfraqueci-
111trnl0 .dQ.S homens. Os opressores são ameaçados não com deli-
berada retribuição por parte das vítimas, mas com a destruição
inevitável que a história (sob a forma de atividade enraizada
nos interesses de um grupo social antagônico) reserva para eles,
na condição de uma classe que já desempenhou sua tarefa social
e está por isso condenada a desaparecer em breve do palco dos
acontecimentos humanos.
Contudo, embora destinada a apelar ao intelecto, a língua·
gem de Marx ~ a de um arauto e um profeta, falando em nome
não tanto dos seres humanos, mas da própria lei universal, bus-
cando não o resgate. não a melhoria, mas advertir e condenar,
revelar a verdade e, acima de tudo, refutar a .fal&idade. Destruam
et aedlficabo (Eu destruirei e edificarei), que Proudhon colo-
cou como epfgrafe de uma de suas obras, · descreve de maneira
bem mais eficaz a concepção que Marx tinha de sua tarefa esta-
belecida. Por volta de 1845 ele havia completado o primeiro

20
estágio do seu programa~ familiarizara-se com a natureza. histó--
ria e leis da evolução da sociedade em que se encontrava. Con·
cluiu que uistQria da socie~ade é a história do homem empe-
n.hldo-cm -~ superar e dominpr Q mHndQ externo por meio
do s.c;u. tr!,balho cri~tivo. EwLati.vidad.e encama-se nas lutas
de_cl~ostas, uma das quais deve emergir triunfante~ ainda
que um tanto alterada na sua forma: o progresso é constituído
pela sucessão de vitórias de uma classe sobre a outra. A longo
pfãzo, ISSO exprimeo RrOgreSSO da r~~: Sã~ racionais os homens
que se identificam com o progresso, isto é, com a --classe ascen-
dente em sua sociedade, ou, se necessário, pelo abandono deli-
berado do seu passado e aliança com o progresso, ou. se a
história já os situou na classe dominante, peJo reconhecimento
consciente de sua situação e atuação à luz desse diagnóstico.
Assim, tendo identificado no proletariado a classe em ascen-
são nas lutas do seu tempo, Marx devotou o resto da vida a
planejar a vitória para aqueles em cuja dianteira decidiu colo-
car-se. Essa vitória estaria assegurada de alguma maneira peJo
processo histórico, mas a coragem, a determinação e a sinceri-
dade humanas abreviariam a expectativa. tomando a transição
menos penosa, acompanhada por menor abito e menor perda de
substância humana. A posição de Marx, a partir daí, é a de um
comandante verdadeiramente engajado em campanha e que, por
conseguinte, não insiste mais em convencer a si mesmo ou aos
outros a entrar numa guerra, ou a ficar deste lado em vez
daquele. O estado de guerra e a posição da pessoa estão lan-
çados; são fatos que não se questionam, mas se aceitam e se
examinam. O que importa é derrotar o inimigo; os demais pro-
blemas são acadêmicos, baseados em condições hipotéticas não
concretizadas. e, por conseguinte, fora de foco. Daí a quase
completa ausência, nas últimas obras de Marx. de discussões
acerca dos princípios fundamentais, de todas as tentativas para
justificar a oposição dele à burguesia. Os méritos ou defeitos
do inimigo, ou o que fossem, caso o inimigo ou a guerra hou·
vessem tomado outro rumo, não eram de interesse durante a
batalha. Introduzir tais questões irrelevantes durante o período
de luta efetiva equivale a desviar a atenção dos defensores dos
problemas cruciais com os quais, reconhecendo-os ou não, eles se
defrontam. enfraquecendo-lhes. portanto. o poder de resistência.
Tudo o que importa de fato numa guerra efetiva é o conhe-
cimento exato dos próprios recursos e dos recursos do adver-
sário; e o conhecimento da história anterior da sociedade e das
leis que a governam é indispensável a essa finalidade. O
capital constitui uma tentativa de oferecer semelhante análise.
A quase completa ausência, nele, de explícitos argumentos
morais, de apelos à consciência ou a princípios, e a omissão
igualmente notável de previsão ponnenorizada do que aconte·
cerá ou aconteceria depois da vitória decorrem da concentração
das atenções nos problemas práticos da luta. As concepções de
direitos inalteráveis, universais e naturais, e também as de cons·
ciência, como pertencentes ao homem, independentemente de
sua· posição na luta de classes, são rejeitadas como ilusões libe-
rais de autoproteção. O socialismo não pede, exige; não fala
de direitos, mas da nova fonna de vida liberta de estrutu-
ras sociais comprimidas. ante cuja aproximação inexorável a
velha ordem social começou visivelmente a se desintegrar. Con-
cepções e ideais políticos, morais e econômicos mudam confor-
me as condições sociais de que derivam; considerar qualquer
deles universal e imutável equivale a crer que a ordem a que
pertencem - no caso, a ordem burguesa - é eterna. Essa falá-
cia é brandida para sublinhar negativamente as doutrinas éticas
e psicológicas dos humanitaristas idealistas do século dezoito
em diante. Da{ o desprezo e a aversão de Marx contra a pre·
sunção comum, feita pelos liberais e utilitaristas, segundo a
qual, já que os interesses de todos os homens são e têm sido
sempre, basicamente, os mesmos. uma parcela de compreensão,
de boa vontade e de benevolência da parte de cada um abriria
caminho a uma espécie de consenso geral satisfatório para todos.
Se a luta de classes é real, então esses interesses são total-
mente incompatíveis. A negação desse fato somente se poderia
atribuir à estupidez ou menosprezo cínico da verdade, forma
peculiarmente viciosa de hipocrisia ou decepção pessoal repe-
tidas vezes exposta pela história. Essa diferença fundamen·
tal de visão, e não de mera dissimilaridade de temperamento
ou de dons naturais, é o que mais distingue Marx dos radicais
burgueses e dos socialistas utópicos que ele, com uma indig-
nação desconcertante, combateu e injuriou, de forma selvagem
e incansável. por mais de quarenta anos.

22
Marx cletestaya~o._romantismo,
DJentimentalismo, os apelos
hwnaoltaristas.~de .qualquer espécie_ e_ n.a......agsiedJ~de de evitar
e.q,.uer_ recurso a sentimentos idealistas pot parte de ~u pQ-
blico, tentou sistetQ!tticamente ~mov:er do seu movimento
tod_Qs os tntços da velha retórica democrática da literatura
pwgandista. Tampouco ofereceu ou insinuou concessões em
momento algum, e não participgu de alianças políticas duvi-
dosas. esquivando-se a todas as fonnas de compromisso. Os
manifestos, profissões de fé e programas de ação aos quais
apôs o seu nome rJram~~t«L contêm referências .a progresso
~Qra!, justjça eterna, igualdade do homem, direitos dos indi-
víduos ou nações. liberdade de- consciência, luta pela civili-
zação e outras frases semelhantes que constituíram o capital
de giro (e chegaram eventualmente a corporificar ideais) dos
movimentos democráticos de seu tempo; elç as considerava -mn
blablablá inútil, indicador de pensamento confuso .e. ineficácia
na....açio.z
A guerra deve ser travada em todas as frentes; já que a
sociedade contemporânea está organizada politicamente, um
partido político terá de ser formado a partir dos elementos que.
conforme as leis do desenvolvimento histórico, estão fada·
dos a emergir como classe conquistadora. A eles deve-se
ensinar incessantemente que qg~ que parece tão seguro
--- -- -----------
na sociedade
_.,--..
em curso está, na
... --
realidade.,
-
condenado à extinção
rápida - fato em que os homens talvez achem diffcil acre-
ditar, por causa da imensa fachada protetora de suposições e
crenças morais, religiosas, políticas e econômicas, que a classe
moribunda consciente ou inconscientemente cria, cegando-se
e cegando as outras em relação ao seu destino próximo. t pre-
ciso coragem intelectual e perspicácia a fim de penetrar
no ambiente nebuloso e distinguir a verdadeira estrutura
4Ps-aconte&f~ntos. O espetáculo dó caos e a iminência da érise
em que este está condenado a findar convencerão por si mesmos

2. Suas observações numa carta a Engels, acerca de sua atitude em


relação a tais expressões no esboço da declaração de princípios que a
Primeira Internacional lhe confiou. sio altamente instrutivas a esse r~
peito.

,..
_')
um observador atento e interessado - pois ninguém, a não ser
que esteja virtualmente morto ou agonizante, poderá ser um es-
pectador desinteressado do destino da sociedade de que depen-
de sua própria vida - de como ele deve ser e o que deve fazer
a fim de sobreviver. Não será uma escala subjetiva de valores
revelados de forma diferente a homens diferentes, e determi-
nada pela luz de uma visão interior, mas o conhecimento dos
próprios fatos que deverá, segundo Marx~ determinar o com-
portamento racional. Uma sociedade é julgada progressista, e
portanto digna de apoio, se possuir instituições capazes de
ampliar os desenvolvimentos de suas forças produtivas, sem
subverter por inteiro a sua base. Uma sociedade é reacionária
quando se move inevitavelmente dentro de um impasse, incapaz
de impedir o caos interno e o colapso definitivo, não obstante
os esforços mais desesperados para sobreviver, esforços que
acabam por criar uma fé irracional em sua própria estabilidade
búica - analgésico com o qual as ordens em declfnio escon-
dem de si mesmas os sintomas da sua verdadeira condição.
Todavia, o que a história condenou será inevitavelmente elimi-
nado; dizer que algo deve ser salvo, mesmo quando não for
possível, equivale a negar o plano racional do universo. De-
nunciar o processo - os conflitos dolorosos através dos quais
e com os quais a humanidade luta para obter a realização plena
de seus poderes - era para Marx uma forma de subjetivismo
infantil, atribufda a uma visão mórbida ou vazia da vida, a um
certo preconceito irracional em favor desta ou daquela virtude
ou instituição passageira; revelava, em suma, um vínculo com
o velho mundo e era sintoma da incompleta emancipação de
valores daquele mundo. Parecia-lhe que, sob o disfarce do
ingênuo sentimento filantrópico. floresciam, não detectadas, se-
mentes de fraqueza e traição devidas a um desejo fundamental
de chegar a um acordo com a reação,· além do horror secreto
pela revolução baseado no medo de perder confortos e privilé-
gios, e, em nível mais profundoJ na medo da própria realidade,
da crua luz do dia. Com a realidade não poderia naturalmente
haver compromisso: e o humanitarismo não passava de uma
suavizada forma de compromisso, tipo salvaguarda, por cau-
sa do desejo de cancelar os perigos de uma luta franca
e. mais ainda. os riscos e as responsabilidades da vitória.

24
Nada excitou mais a indignação de Marx que a covardia:
explica-se, por isso, o tom furioso e não raro brutal com que
a ela se refere - início do duro estilo •materialista' que gol-
peou com uma nota inusitada a literatura do socialismo revolu-
4
cionário. Essa moda de 0bjetividade nua• engendrou, particu-
larmente entre escritores russos da mais recente geração, a bus-
ca da mais violenta, despojada e chocante fonna de afirmação
para revestir o que nem sempre foram propostas significativas.
Marx começara a construir por sua própria con~a seu novo
instrumento 8 partir de origens quase casuais; isso porque. no
curso de uma controvérsia com o governo acerca de uma questão
econômica de importância puramente local, em que se viu

tomou cônscio de sua quase


~- - ....... ___
envolvido na condição de editor de um jornal radical, e~
..._ total -
ignorância
.... da história
e -~~c(pios._do desenvQlv_imento econômico. Essa contro.
vérsia ocorreu ~m_tt.43.. Já em 1848 seu pontó de vista básico
como pensador polftico e econômico estava completamente for-
mado. Com eficiência prodigiosa ele havia co.natruídQ..!'ma teoria
~pl~ta _d~ sQCiçd_~~ e ~a evolução. e essa teoria indicava,
com precisão, onde e CQIJ!O as res_postas a tais questões deviam
ser b~das e encontradas. A originalidade dessa teoria tem sido
questionada várias vezes. Mas ela é original, não, com efeito, no
sentido em que as obras de arte são originais ao corporificar
uma experiência individual até então não expressa, mas no
sentido em que teorias cientificas são ditas originais quando
fornecem umJL!olu~o ~QVa a um_problema até então não , re-
solvido ou não formulado - coisa que elas podem fazer modifi-
candÕ ec ombinando opiniões existentes para formar uma nova
hipótese. Marx jamais tentou negar seu •débito' em relação a
outros pensadores. • Estou praticando um ato de justiça históri-
ca, estou devolvendo a cada homem o que lhe é devido", decla-
rou altivamente. Mas ~4iCQ1! para si o fato de haver forne-
cido pela primeira vez uma resposta qas mais adequadas 8 ques-
tõe~~~ mQI~m_preendidas_ ou .respondidas de fonna errada,
in1atisfatória ou obscpra. A caracteristica buscada por Marx
não era a novidade, mas a verdade; quando a encontrou nos
trabalhos de outros. intentou logo. durante os primeiros anos

23
em Paris, nos quais a direção básica do seu pensamento tomou
forma, incorporá-la à sua nova síntese. A originalidade do re-
sultado não está em nenhum elemento de sua composição, mas
na hipótese central, que liga cada um aos outros, de forma
que as partes parecem derivar umas das outras e sustentar·se en-
tre si, constituindo um todo único e sistemático.
Rastrear a fonte direta de qualquer doutrina desenvolvida
por Mm é, portanto, t arefa relativamente simples, que seus
numerosos críticos empreenderam, mas com demasiada an-
siedade. Talvez não exista entre suas opiniões nenhuma cujo
embrião não possa ser detectado em algum escritor ante-
rior ou contemporâneo. Por exemplo, a doutrina da proprie-
dade comunal, fundada na abolição da propriedade privada,
provavelmente contou com adeptos, de uma ou de outra
forma, em diversos períodos ao longo dos últimos dois séculos.
Conseqüentemente, a questão, tantas vezes debatida, sobre se
Marx tirou-a diretamente de Morelly ou Mably, ou de Babeuf e
seus seguidores, ou de algum dócumento alemão acerca do co-
munismo francês, é por demais acadêmica para adquirir maior
importância. Quanto a doutrinas mais específicas, um exemplo
de materialismo histórico é encontrado plenamente descrito num
tratado de Holbach, impresso quase um século antes, o qual,
por seu turno, muito deve a SpinGza; uma fonna modificada do
mesmo foi reexposta, na própria época de Marx, por Feuer-
bach. A perspectiva da história humana como a história
de uma guerra entre classes sociais retrocede a Linguet e
Saint-Simon, tendo sido em larga parcela adotada por histo-
riadores liberais franceses contemporâneos, como Thierry e
Mignet, e igualmente pelo mais conservador Guizot, confonne
o próprio Marx admitiu. A teoria científica da inevitabilidade
da recorr!ncia regular de crises econômicas provavelmente foi
formulada em primeiro lugar por Sismondi; a teoria da ascen-
são do Quarto Estado adveio certamente dos primeiros comu-
nistas franceses e foi popularizada na Alemanha. na época de
Marx, por Stein e Hess. A ditadura do proletariado foi prefi-
gurada por Babeuf na última década do século dezoito e expli-
citamente desenvolvida no século dezenove. de düerentes manei-
ras, por Weitling e Blanqui; a posição presente e futura e a

26
importância dos trabalhadores num estado industrial está traba-
lhada de modo mais pleno em Louis Blanc e nos socialistas
franceses do que Marx estaria propenso a admitir. A teoria
do valor do trabalho deriva de Locke, Adam Smith, Ri·
cardo e outros economistas clássicos; a teoria da exploração e
mais-valia está em Fourier, e seu combate mediante o delibe-
rado controle estatal. nos escritos dos primeiros socialistas ingle-
ses, tais como Bray, Thompson e Hodgskin; a teoria da aliena-
ção dos proletários foi enunciada por Max Stimer pelo menos
um ano antes de Marx. A influência de Hegel e ~a filosofia
alemã é a mais profunda e onipresente de todas; a lista
poderia ir além.
Não houve escassez de teorias sociais no século dezoito.
Algumas morreram já no início; outras, quando o clima inte-
lectual lhes foi favorável, modificaram a opinião e influencia-
ram a ação. Marx selecionou essa i~ensa qpantidade de material
e dele des~coü o que lhe parecia original._ verdadeiro e impor-
tante; e à luz dele,wnstrütu_ u~ no~o instrumento de anlfis!)
social, cujo mérito maior jaz não na sua beleza ou consistência,
íãmpouco na sua força emocional e intelectual - os grandes
sistemas utópicos são obras mais nobres da imaginação espe-
culativa - , mas na notável combinação de simples princípios
r~mentais comaõtaftgênciã. realismo e detalhe. o meio
que ele atingia corre8pondia à experiência pessoal, em pri·
meira mão, do público a que estava endereçado; suas análi-
ses, quando apresentadas em sua forma mais simples, logo pare·
ceram. originais e penetrantes, e as novAs bipóteJe~- que repre~
sentam uma síntese peculiar do idealismo a.l.emão. racionalismo
fJlUlcês e economia pQUtica inglesa, pareciam coordenar-se com
naturalidade e descrever um(l_ lll8SII-.WL.fe.nômenos sociais. at~
então pensados isolada}!lente uns do..outros- Isso deu significado
concreto às fónnulÜ e divisas populares do novo movimento
comunista. Acima de tudo, capacitou-o a algo mais que
estimular emoções gerais de descontentamento e rebelião, ao
vincular-lhes, como o cartismo já fizera, uma série de fmali-
dades políticas e econômicas específicas. A nova teoria di-
rigiu tais sentimentos para objetivos viáveis, imediatos, sis-
tematicamente interconectados, encarados nio como fins su-
premos para todos 06 homens de- todas as épocas, mas como

21
objetivos adequados a um partido revolucionário representan-
do um estAgio especHico do desenvolvimento social.
Dar respostas claras e unificadas, em termos familiares e
empíricos, às questões teóricas que mais ocupavam o espírito
dos homens do seu tempo, e delas ter deduzido diretivas claras
e práticas sem criar obviamente laços artificiais entre elas,
eis a principal realização da teoria de Marx, dotando-a, por
isso, de uma vitalidade singular que a habilitou a derrotar as
rivais e sobreviver nos decênios seguintes. Foi composta na sua
OlliQr paat.em Paris duran~QS gnos. agitados de J843 81850,
quando, sob pressão de uma crise mundial, tendências econa.
micas e políticas normalmente ocultas sob a superfície da
viaa social cresceram em escopo e em intensidade, rompen-
do a estrutura assegurada em épocas normais pelas instituições
estabelecidas, e por um breve instante revelaram seu verdadeiro
caráter, durante o luminoso interlúdio que antecedeu o embate
final de forças, no qual todas as questões ficaram uma vez mais
obscurecidas. Marx aproveitou bem a rara oportunidade de
observação científica no campo da teoria social; para ele, com
efeito, ela parecia prover-lhe ampla confirmação de suas hipó-
teses.
O sistema marxista, tal como fmalmente surgiu, era uma e.1·
trutura maciça, não para ser tomada em assalto direto, ~ntendo
dentro de si recursos para conhecer todas as armas em poder
do inimigo. Sua influência tem sido imensa, tanto sobre aliados
como sobre adversários, em especial sobre cientistas sociais,
historiadores e críticos. T.e.m alterado a hjstória do pensamento
humano no sentido de que, após ciG, certas. coisas jmais pocJ:m
ser ditas outra vez de foxma tio plaps(yel. Nenhum assunto
deixa, pelo menos a longo prazo, de se tomar um campo de
batalhe; e.Jn(ase marxista no primado dos fatores econômicos
no Processo de determinação do comportamento humano pro-
vocou de imedjatg um estudo ipteMifi,r.ado de bjst6ria econ&nj·
ca; esta, apesar de não ter sido inteiramente negligenciada no
passado, só viria a aJgmçar sua atual J!O&içio de destaq~m
a ascensão do...~, que impulsionou estudos históricos
~fficos nesse esfera - da mesma forma que, na geração an-
terior, as doutrinas begelianas atuaram como poderoso estímulo

28
aos estudos históricos em geral. Q..trataln~J!to sociológico de pro-
blemas históricos e morais. que Com~ e ~is -Sj,encer e Taine,
tú!bam debatido e.. mapeado, s6 se tomou um estudo p~iso
~ çoncreto .quando--D...at!g_qe do marxismo militante transformou
suas próprias conclusões numa solução inflamada, tomando a
busca de evidencia mais zelosa e a atenção ao método mais
intebsa.
Em 1849 Maa foi forçado a dei~" Paris e passou a reti-
dir na Inglaterrl!:.. Para ele, Londres, e em particular a biblio-
teca do Museu Britinico, era "o ponto estratégico.,;ideal para o
estudante da sociedade burguesa", um arsenal de munição, de
cuja importância seus usuários pareciam não ter-se dado conta.
Marx continuou a não se deixar afetar muito pela ambiência,
vivendo enclausurado em seu mundo próprio, em grande parte
alemão, formado pela famOia e por um pequeno grupo de ami-
gos íntimos e companheiros políticos. Conheceu poucos ingleses
e não procurou entendê-los nem interessar-se por eles ou pelo
seu estilo de vida. Era um homem incomumente inacessível à
influência do meio; além do que estava impresso em jornais
e livros, viu muito pouco, e permaneceu até a morte relati-
vamente alheio à qualidade da vida ao seu redor e das con-
dições sociais e naturais. No que toca ao seu desenvolvimento
intelectual, ele bem poderia ter passado o exílio em Ma-
dagascar, desde que um fornecimento regular de livros, jor-
nais e relatórios governamentais lhe fosse assegurado; e se
isso acontecesse, certamente os habitantes de Londres tomariam
menos conhecimento ainda de sua presença. . . Os anos de
sua vida psicologicamente mais interessantes, mais formativos,
convergiram para 1851: a partir daí, ficou emocional e inte-
lectualmente amadurecido e em quase nada mudaria. Durante
sua permanência em Paris concebera a idéia de um- relato
eexlanação completos da ascensão e queda iminente do sistema
C!Pitalista. A obra iniciou-se na primavera de 1850 e prolon-
gou-se por cerca de vinte anos, com interrupções causadas por
necessidades práticas do dia-a-dia e do jornalismo, com as quais
tentava manter a famflia.
Seus panfletos, artigos e eartas durante os trinta anos em
Londres formam um comentário coerente acerca dos assuntos

29
políticos contemporâneos vistos à luz de seu novo método ana-
Htico. São duros, lúcidos, mordazes, .real!sticos, surpreendente-
mente modernos no tom, concentrados todos, de forma delibe-
rada, no combate ao otimismo que prevaJecia na época.
Na condição de revolucionário, Marx desaprovou métodos
conspiratórios a seu ver obsoletos e ineficazes, tendentes a irritar
a opinião pública sem alterar-lhe os fundamentos; como com-
pensação, pôs-se a criar um partido poUtico aberto, dominado
pela viaio nova da sociedade. Seus anos derradeiros foram
ocupados quase exclusivamente com a tarefa de coletar e disse-
minar provas das verdades que havia descoberto, até que elas
preencheram o horizonte completo de seus partidários e toma-
ram-se o teor do pensamento, palavras e ações deles. Durante um
quarto de século, Marx concentrou todas as suas forças na
realização desse propósito, que viria a alcançar antes de morrer.
No século dezenove encontramos muitos críticos sociais e
revolucionários notáveis não menos originais, não menos vio-
lentos, nio menos dogmáticos que Marx, mas nenhum deles
tio rigorosamente determinado, tão absorvido no empenho de
transformar cada palavra e ato da sua vida em meios voltados
para uma fmalidade única, imediata e prática, ante a qual
tudo poderia ser sacrificado. Se ele dá impressão de ter
nascido antes da sua época, fica igualmente a impressão
bem definida de que Marx corporifica uma das mais antigas
tradições européias. Seu JQiismo. seu senso de história, seus
ataques Lpdacípins...ahstratos. a ~gêocia par.a..que todas 8$
so.hlç(les .fossem testadt!_S por seu graU ...de aeligabilidad,_e
~encia em retaÇiõ aos problemas. o ~rezo j~mpnaiçãn
o_y &!adu!!!Jgo çgmo válvulas de esÇ!lpe à,..oecessidad.~ de açiu.
dfáJjia.._a çoomão de que as rnassQJ.Jg__c~ulas e devem
ec:ta
ser resgatadas f' todo custo.. se necessário fom!, dos velh{lçps
e tolos que sobre elas tripúdiam-,ftzeram dele o precursor da
geraçlo mais apurada de revolucionários ,Pr&pláticos do século
-
seguinte; no entanto, sua crença rígida na necessidade de um
rompimento total com o· passado, na necessidade de um sistema
social inteiramente novo amo único meio de salvar o indivíduo
que, desembaraçado do constrangimento social, cooperará em
harmonia com os outros, mas sempre precisando de fll'llle orien-

30
fação social, coloca Marx entre os grandes fundadores autori·
t4rios de novas crenças. subversivos e inovadores implacáveis
que interpretam o mundo segundo um princípio único, claro,
apaixonadamente defendido. denunciando e destruindo tudo o
que entra em choque com ele. Sua fé em sua própria visão
sin6ptica de uma sociedade ordeira, disciplinada e auto-susten-
tável, fadada a erguer·se a partir da autodestruição inevitável do
mundo irracional e caótico da atualidade, assumiu um aspecto
sem limites que encerra todas as questões e dissolve todas as di-
ficuldades; e essa fé traz consigo um sentimento de liberdade
idêntico ao que, nos séculos dezesseis e dezessete, os homens
encontraram na nova fé protestante, e mais tarde nas verdades
da ciência. nos ·princípios da grande Revolução, nos sistemas
dos metafísicos alemães. Se esses racionalistas pioneiros são
justamente chamados de fanáticos, então nesse sentido Marx
também foi um deles. Mas ma fé na razão não era cega; aJ!e·
II!!J.do-à.._t.azão-MlelavaJjo rp~ºs à pl"Qya empírica. As leis
da hist6ria_eram,_~~tilldade.~e'emas e_ imutáveis - e para
apreender esse fato fazia-se mister uma intuição quase meta-
física - , m_QLj9Sjem o que f95sem. só poderiam ser estabele-
c!!f!! _pela evidência de fatos empíricos. O sistema intelectual
de Marx foi um sistema fechado, tudo o que nele entrava tinha
de conformar-se a um padrão preestabelecido, no entanto fincava
raízes na observação e na experiência. Ele não foi obcecado
por idéias fixas. Não demonstra um só traço dos notórios sinto-
maS que acotnpanham o fanatismo patológico, aquela alteração
de ânimo que passa da exaltação súbita a um sentimento de
solidão e perseguição, que a vida em mundos inteiramente pri-
vados engendra muitas vezes em pessoas desligadas da realidade.
As idéias essenciais de sua principal obra parecem ter
amadurecido no seu espírito por volta de 1847. Esboços prelimi-
nares apareceram em 1849 e. outTa vez, sete anos depois, mas
Marx foi incapaz de começar a escrever antes de adquirir a
certeza de que dominava bem a literatura referente ao tema.
Esse fato, juntamente com a dificuldade de encontrar editor e
a necessidade de prover seu sustento e o da famffia, sem falar
na sobrecarga de trabalho e doença freqüente, adiava a publi·
cação ano após ano. Finalmente o primeiro volume veio à luz

31
vinte anos apÓs a sua con<:epção, em 1867. constituindo o coroa~
mento intelectual de sua vida. Trata·se da tentativa de dar um
único relato integrado do processo e .das leis de desenvolvi·
mento social, contendo uma teoria econômica completa, tratada
sob o prisma históriao, e, menos explicitamente, uma teoria da
história e da sociedade sob o determinismo de fatores econô-
micos condicionantes. A teoria é interrompida por notáveis
digressões que consistem de análises e apanhados históricos da
condição do proletariado e seus empregadores, em particular
durglc o período de transição do capitalismo .manufatureiro
ao capitalismo indÚStrial de larga escala, digressões feitas para
Üt!Strar a tese geral, mas de fato para demonstrar um novo e
revolucionário método de crítica histórica e interpretação polf-
tica. No conjunto, a teoria marxista coostitui a mais formidável
deo6ncia já elaborada e apresentada contra uma ordem social
por inteiro, contra seus dirigentes, seus partidários, seus ideó--
Jogos, seus instrumentos conscientes e inconscientes, contra todos
aqueles cujas vidas dependem da sobrevivência da ordem. Marx
aqaçou a sociedade ~ nstm-ÍPit~~JteJ:JQ__que ela hBvia
alC!!!.Ç!do o mais elevado ponto de sua pros~ridmk..matcrlal,
naquele exato ano em que Gladstone, num di&curso de apreseo-
taçio do orçamento, parabenizou os seus ~nterrAneos pelo
"inebriante crescimento de sua riqueza e do seu poder• que os
anos tecentes tinham testemunhado, durante um estado de ale-
gre otimismo e confiança universal. Nesse mundo Marx é uma
figura isolada e amargamente hostil, preparada, qual um .antigo
cristão, ou um enragé francês, para rejeitar com viol8ncia
tudo o que ele, o mundo, foi e tenderia a ser, chamando os
ideais desse mundo de imprestáveis e suas virtudes de vícios,
e condenando suas instituições porque eram burguesas, isto é,
por pertencerem a uma sociedade corrupta, tirlnica e irracional
que devia ser aniquilada totalmente e para sempre. Numa época
que costumava destruir seus adversários por métodos não menos
eficientes por serem 'dignos' e lentos, que forçou Carlyle e Scho-
penhauer a buscar refúgio em civilizações remotas ou num pas-
sado que idealizaram, e conduziu o arqniinimigo Nietzsche
à histeriJl e l loucura, somente Marx permaneceu seguro e formi-
dável. Como um antigo profeta desempenhando uma tarefa que

32
lhe (ora imposta pelos céus. com uma tranqüilidade interio1·
baseada na fé clara e certa numa harmoniosa sociedade do
futuro, ele testemunha os sinais de decadência e ruína que vê
por todos os lados. A velha ordem parecia-lhe em franca decom-
posição diante de seus olhos; ele empenhou·se mais que qual-
quer outro homem para ap,e5iar o .process~ procurando
encurtar a agonia derradeira que precede o fim.
2
Infância e adolescência

"Nimmer kann ich ruhig treiben


Was die Seele stark befasst,
Nimmer still behaglich bleiben
Uund ich stürme ohne Rast." 1
KARL MARX

Empfindungen
(de um álbum de poemas dedicado a
Jenny von Westphalen)
Karl Heinrich Marx, filho mais velho de Heinrich e Hen·
rietta Marx, nasceu a ~majo_d~tS.18, em Trier, na Renânia
alemã, onde seu pai era advogado. Antigo domicílio de um
príncipe-arcebispo, ela fora ocupada, cerca de quinze anos antes,
pelos fraqceses e incorporada por Napoleão à Confederação
do Reno. Após a derrota napoleônica, dez anos mais tarde,
"[dea:- foi transferida peJo C.QDgNsso_de Viena par{l Q reino.:et!J~·
. , .da expan~.
Sl8DO•..em rapt
-

1. Nunca pode~i perseguir com calma


o que mantém minha alma escrava;
nunca descansa~i em paz satisfelca,
vou berrar e gritar sem parar.
Os reis e príncipes dos Estados germânicos, cuja autoridade
pessoal não chegara a ser destruída pelas sucessivas invasões
francesas de seus territórios, estavam, na época, empenhados
em restaurar a estrutura abalada da monarquia hereditária
- processo que exigia a supressão de quaisquer traços das peri·
gosas idéias que tinham começado a retirar os plácidos habi#
tantes das províncias alemãs de sua tradicional letargia. A der-
rota e exflio de Napoleão acabaram por destruir as ilusões dos
radicais alemães que esperavam que o resultado da política
centralizadora de Napoleão seria, senão a liberdade, pelo menos
a unidade da Alemanha. O statu quo foi restabelecido onde
possível; a Alemanha estava uma vez mais dividida em reinos
e principados organizados de maneira semífeudal, cujos diri·
gentes restaurados resolveram compensar-se pelos anos de der-
rota e humilhação, mediante a revivescência do antigo regime
em todos os pormenores, ansiosos por exorcizar de uma vez
por todas o espectro da revolução democrática, cuja memória
era laboriosamente preservada pelos mais esclarecidos dos seus
súditos. O rei da Prússia, Frederico Guilherme 111, revelou-se
particularmente enérgico nesse sentido. Ajudado peht nobreza
rural e pela aristocracia proprietária de terras, que existiam na
Prússia, e seguindo o exemplo de Mettemich em Viena, ele
logrou deter o desenvolvimento social normal da maioria de
seus conterrâneos por muitos anos, induzindo uma abnosfera
de desesperançosa estagnação ao lado da qual a França e a
Inglaterra durante seus períodos reacionários pareciam liberais
e vivas. Isso era sentido de forma intensa pelos indivíduos
mais progressistas da sociedade alemã - não somente pelos
intelectuais, mas pelo grosso da burguesia e da aristocracia libe~
ral das cidades, sobretudo no oeste, que sempre preservara c~n~
tatos com a cultura européia em geral. A reação assumiu a forma
de legislação econômica, social e política destinada a reter, e
em certos casos restaurar, o grande número de privilégios, di-
reitos e restrições, muitos deles datando da Idade Média, torpes
sobreviventes que há muito tempo haviam perdido até mesmo
o pito~; e, por estar em conflito direto com as necessi·
dades da nova era, a reação buscou e obteve um sistema de tari·
ras elaborado, embora desastroso, para mantê·los. Isso levou a
uma política de sistemático desestímulo do comércio e da indús-

36
tria e, já que a estrutura obsoleta tinha de ser preservada conlra
a pressão popular, à criação de uma oficialidade despótica. cuja
tarefa consistia em isolat a .@Pç!edade alemã da influência conta·
minadora das idéias e instituições-· liberais.
O poder crescente da polícia, a introdução de rígida vigi~
lincia em todos os setores da vida pública e privada, prova.
caram uma literatura de protesto reprimida com todo o rigor
pelos censores governamentais. Escritores e poetas alemães
exilaram-se voluntariamente e de Paris ou da Suíça conduziram
apaixonada propaganda contra o regime. A situação geral veio
a se refletir claramente e em particular na condição daquele .
segmento da sociedade que, ao longo de todo o século deze-
nove. tendera a agir como o mais sensível barômetro no rl!_mo
da mudança social - a pequena mas dispersa ~população
r judaica,J

· - Os judeus tinham todas as razões para se sentirem agrade·


cidos a Napoleão. Onde quer que aparecesse, Napoleão punha-se
a. destruir a estrutura tradicional das classes e privilégios sociais,
de barreiras raciais, políticas e religiosas, substituinda.as por
seu código penal recém-promulgado, que proclamava como fonte
de autoridade os princípios da razão e da igualdade humana.
Essa lei, ao abrir para os judeus as portas do comércio e das
profissões que até então lhes eram rigidamente interditadas,
teve o efeito de liberar uma massa de energia e ambição apri·
sionadas,, e provocou a aceitação entusiástica - e em certos
casos superentusiástica - da cultura geral européia por uma
comunidade até ali segregada e que, a partir daquele dia, veio
a ser novo e importante fator...oa evolução da sociedade européia.
Algumas dessas liberdades foram mais tarde tJradas pelo
próprio Napoleão, e o que restou delas acabou, em sua maior
parte, revogado pelos príncipes alemães: em conseqüência.
muitos judeus qu!_ se !J!.CSSaram a rom__per com o mo4Q tradi-
~iona ãe v ida de seus p~is, rumo às perspectivas de uma vida
mais generosa, descobriram que a porta que de repente lhes
fora aberta pela metade acabara de fechar-se com igual rapidez,
deixando-os diante de uma difícil opção. Tethtm de retroce-
der e reentrar penosamente no gueto em que suas famílias.
na maior parte. ainda continuavam a viver. ou então mudar
de nome e de retig!Po, iniciar vida nova como patriotas alemães
'
e membros da Igreja cristã. O caso de Herschel Levi foi típico
de uma geração inteira. Seu pai, Marx Levi, e outros antepassa-
dos tinham sido rabinos na Renlnia e, a exemplo da grande
maioria de seus companheiros judeus, tiliham passado a vida
toda confmados numa comunidade piedosa, congênita, apaixo-
nadamente centrada em si .mesma, a qual, em face da hostili-
dade dos vizinhos cristãos, buscara refúgio atrás de uma mu-
ralha defensiva de orgulho e suspeita, e isso, durante séculos,
quase os tinha preservado por completo de contatos com a
vida em mutação Já fora. Mas o Iluminismo começara a pene-
trar até mesmo nesse enclave artificial da Idade Média, e He~
::hei, que recebera educação secular, tornou-se diaQípulo dos
·aciooalistas franmes e seus seguidores, os alemães Aufklilrerri fL . .
;onvertendo-se ainda moço à religião da razão e da hu-J..WJ•tJ"I~'.
manidade. Aceitou-a com candura e ingenuidade, os longos
anos de obscuridade e reação não co~eguiram abalar-lhe a fé
em Deus e no humanitarismo simples e otimista. Separo•s~
pqr com~leto da famflia, mudou o sobrenome para M~ e fez
novos amigos e novos interesses. Sua carreira de advogado
teve um êxito moderado e ele começou a divisar um futuro sóli-
do como chefe de respeitável famflia burguesa alemã, quando
as leis antijudaicas de 1816 cortaram-lhe, de súbito, os meios
de subsistência.
Provavelmente e1e não sentia excepcional reverência pela
Igreja estabelecida, mas estava ainda menos ligado à Sinagoga
e, sustentando vagamente opiniões deístas, não viu obstáculo
moral ou social à conformidade completa com o brando lute-
ranismo iluminista de seus vizinhos prussianos. De qualquer
modo, se hesitou não foi por muito tempo. Foi oficialmente
recebido na Igreja no infcio de 1817, um ano antes do nasci-
mento de seu fllho mais velho, Karl. A hostilidade deste último
a tudo que estivesse ligado à religião, em particular ao
judaísmo, talvez se deva em parte à peculiar e embaraçosa
situação em que os convertidos às vezes se encontravam. Alguns
escaparam por se tomarem cristãos devotos e até mesmo cristãos
fan6ticoa, outros por se rebelarem contra a religião estabele-
cida. Softeram em proporção à sua sensibilidade e inteligência.

58
Tanto Heine como Disraeli passaram a vida inteira obcecados
pelo problema pessoal de sua condj~o peculiar: não renuncia-
ram nem aceitaram completamente a religião de seus pais, mas
zombaram dela ou a defenderam, altemanda.se nessas atitudes,
incomodamente conscientes da sua posição ambígua, eterna·
mente suspeitos de desprezo latente ou condescendência ocultos
atrás da ficção de sua aceitação completa pela sociedade em
que viveram.
O Marx mais velho não sofreu com essas complicações.
Homem simples, sério. bem-educado, não era mtifto inteligente
nem anormalmente sensfvel. Discípulo ..de Leibniz e Yoltai.re,
Lessing e Kant, possuía, ademais. um temperamento gentil
e tímido, e por fim veio a se tomar um apaixonado ~ota ~
monarquista prussiano, posição que procurou justificar na
ngúm de Frederico-, o Grande - príncipe tolerante e esclare·
cido que ele favoravelmente comparou a Napoleão, frente ao
notório desprezo deste por intelectuais iluministas. Depois do

- --
batismo, adotou o nome cristão de Heinrich e educou a família
como ~rotestantes liberais, fiéis à ordem existente e ao mõnarcã
reliiãDtC,'õ rei ãã Prússia. Ansioso como estava para identi-
ficar esse governante com o príncipe ideal descrito por seus
filósofos favoritos, a figura antipática de Frederico Guilher-
me 111 acabou por derrotar-lhe a leal imaginação. Com efeito,
a única ocasião em que esse trêmulo e discreto homem se
comportou com destemor ocorreu num jantar público, quando
fez um discurso sobre_ o desejo de reformas sociais e políticas
moderadãs d ig-;ias de um dirigente sábio e benevolente. Isso
não taréioüã 8tr;Ir Pa"ni"'de-a atenção da poUcia prusslana.
Heinrich Marx retratoU?e de imer!i.@!9, convenceu todos de sua
total inocência. Não é improvável que esse leve e humilhante
contretemps, sobretudo a atitude covarde e submissa do pai,
deixassem uma impressão definitiva no filho mais velho, Karl
Heinrich, então com dezesseis anos, e criassem uma sensação
de .RSsentimento a fom lento, que acontecimentos posteriores
atiçariam, transformando-o em labareda.
O pai dele já se dera conta desde antes que, enquanto
seus outros filhos nada tinham de especial. Karl era estranho
e diffcil; a uma inteligência aguda e lúcida ele juntava um
temperamento obstinado e dominador, um amor truculento pela
independência, uma excepcional contenção emocional e, acima
d.e tudo, um ingovemável apetite intelectual. O temeroso advo.
gado, cuja vida era dispendida em transigências sociais e
pessoais, deixou-se intrigar e assustar pela intransigência do
filho que, em sua opinião, tendia a antagonizar pessoas impor-
tantes e poderia um dia causar-lhe sérias dificuldades. Apt'es-
sou-se em pedir-lhe nas suas cartas para moderar o entusiasmo,
fmpor-se alguma disciplina, não perder tempo com assuntos
que poderiam mais tarde resultar-lhe inúteis, cultivar hábitos
polidos e civilizados, não menosprezar possíveis benfeitores e,
acima de tudo, não espantar ninguém com sua violenta recusa
a se adaptar; em resumo, satisfazer as exigências elementares
da sociedade em que ia viver. Mas as cartas, apesar do tom
desaprovador às vezes forte, permaneciam suaves e afetuo-
sas, pois, a despeito da crescente preocupação com o caráter
e a carreira do filho, Heinrich Marx tratava-o com instintiva
delicadeza, jamais tentando opor-se ou oprimi-lo em qualquer
assunto sério. Conseqüentemente, suas relações continuaram
cordiais e íntimas até a morte do Marx pai, em 1838.
Parece certo que este teve influência definitiva no desen·
volvimento intelectual do filho, pois acwitaya, como Condor-
cet, que o homem é bom e racional por nabJreza .. e que s6
precisa garantir o trunfo dessas qualidades para remover obs·
táculos artificiais do seu caminho. Aliás, eles já desapareciam.
e desapareciam rapidamente, aproximando-se a época em que
12 . as últimas cidadelas da reação, a Igreja católica e a nobreza
IbJ . c~~ feudal, se dissolveriam diante da marcha irresistível da razão.
(l\\rN' ~ ~"'lBarreiras sociais, políticas, religiosas e raciais eram produto
~\..,.,.. ~ do obscurantismo deliberado de sacerdotes e governantes; com
o seu desaparecimento, raiaria um nOVil dia..pam a raça humana.
quJDdo.. então. todos os home~ seriam ..iguais, não apenas polf-
tica e legalmente, em suas relações externas formais, tna§ social
e.. pessoalmeQ.te, no seu relacionamento diário mais íntimo.
A própria história de Marx parecia corroborar isso de
maneira triunfante. Nascido judeu, cidadão de condição so-
cial e legal inferior. ohtivera a iK'U~Id~m- seu~ y.izi-

40
nhos ...nmis_esclaa:ecidos, angariara o respeito deles como ser
humano e assimilara o que lhe parecia ser o estilo de vi·
da mais racional e digno. Acreditava que um novo dia
despontava na história da emancipação humana, à luz do qual
seus filhos viveriam como cidadãos livres, num Estado justo e
liberal. SiruULck~sa_crença despontam na do~trina social de
se.u filho. Com efeito, Karl Marx não acreditaya na forca do
argumeoio racional para influenciar a acãQ. Ao contrário de
alguns pensadores do Iluminismo francês. não acreditava na
me.l" oria progressiva da condição humana; o que poderia ser
definido como progressivo, em termos de conquista da natureza
humana, fora conseguido à cust!.,A!,_ex.pJot~ção cresc.ente e ...da
degradação dos verdadeiros produtq_res, as massas trabalha·
doras. ~ão havia movimento firme na direção da felicidade ou da
lib~rdad~ crescente da maior pa_!'te dos homens; o caminho para
e
-ª re..,aliza.@9 definitiva hi[l'IJlÔniOB.Ldas potenchdidades l!lenj!~
dos homens passava pela miséria maior e ' alienação' de vastos
contingentes deles - e is o que Marx queria significar pelo
caráter 'contraditório' dQ progressa..hwnano. Existe. no entanto ,
uma idéia definida em tomo da qual ele se manteve raciona- . • \
lista e perfeccionista até o fim da vida. Marx acreditou na ~:- ~
completa <@fililid.ade do..~processo de evolução social: acre- ·
ditava que a sociedade é inevitavelmente progresstva, que seu ._ r~ ...
movimento de etapa para etapa é um movimento para a fren~·: ..
cada etapa sucessiva representava desenvolvimcnto,tiõ""sentiClo ·,
de que aproximava o ideal racional mais que as etapas pre-
cursoras. Detestou, de forma tão passional como qualquer
pensador do século dezoito, o emocionalismo, a crença em
causas sobrenaturais, a fantasia visionária de qualquer espécie,
e SlJbestimouJi_stem..-ª.tica~ente a influência de fot'ÇaS não racip·
nais como o nacionalismo e a solidariedade reli iosa e racial.
Embora seja indisfarçáve que a filosofia hegeliana foi provavel·
mente a maior influência formadora de sua vida, O§~n~fp~s
do racionalismo filosófico, nele plantados pelo pai e amigos do
paC exerceram ·grande influência, de forma que, quando mais
tarde Marx conheceu os sistemas metafísicos desenvolvidos pela
.escola romAotica, conseguiu salvar-se assim da rendição total a
um fascínio que arrastou tantos de seus contemporâneos. Esse
gosto pronunciado, adquirido cedo na vida, pelo argumento lú-

~ I
cido e método empú:ico, capacitou-o a preservar uma margem
de independencia crítica diante da filosofia prevalecente, e,
mais tarde, sob jnOuênçja de Feum:bach~ alterá-la conforme o
seu padrão mais positivista. Isso deve ter pesado na qualidade
reaUstica e concreta do pensamento de Marx, mesmo quando
influenciado por idéias rominticas, se comparado à visão de
sumidades radicais da época, como Bõme, Lassalle, ou Heine,
cujas origens e educação sãot sob muitos aspectos, idênticas às
suas.
Pouco se conhece de sua infância e primeiros anos em
..
Trier. ~e de Marx desempenhou papel singularmente redu-
zido em sul(vida; Henrietta Pressburg (ou Pressburger) per-
tencia a uma família de judeus húngaros estabelecida na Ho-
landa, onde o pai dela fora rabino; era uma mulher robusta
~--inculta, inteiramente abao.rv.id..-ª n~~ .tnefas_doga6sgcas, e que
em momento algum demonstrou o mais leve interesse pelos
dons e inclinações do filho; surpresa com o radicalismo dele,
parece ter perdido em anos posteriores qualquer interesse por
sua existência. Dos oito filhQS de Heinrlch e Henrietta Marx.
Karl foi o segundo; além de uma tema afeição, quando criança,
pela irmã mais velha, Sofia, ele demonstrou pouco interesse
pelos irmãos e irmãs, então e depois. Foi enviado ao ginásio
local, onde obteve justos louvores por seu esforço e pelo tom
sincero e generoso de seus ensaios sobre tópicos de moral e de
religião. Foi moderadamente bom em matemática e teologia,
mas seus principais interesses eram de natureza literária e artfs·
tica - uma tendência devida, principalmente, à influência de
dois homens dos quais g1uito aprendeu e sobre os quais refe·
riu·se sempre, durante toda a vida, com afeiçio e respeito. O
/\'-,. primeiro deles foi .!L2_ai; o outro, seu vizinho, o b..ari<> Lndwig
~. · ~on Westpbalen, que professava amizade ao simpático advo-
\) '-gado e sua famflia. Westphalen era um respeitável funciQnário
dn_govcmu_russiano, pertencente àquele segmento educa~ e
l~al da cla.ase alta alemã. cujos representantes se locali-
zavam na vanguarda de qualquer movimento de modernização e
de orogresso no pafs. na primeira metade do século dezenove.
R~ptivo, simpático e culto, pertencia à geração dgq~inada
pelas grandes figuras de Goetbe~ Schiller e Hõlderlin; sob
influe ia deles arriscara-se para além das fronteiras estéticas tão

42
·\ estritamente estabelecidas pelos mandarins literários de Paris,
\.\~t.J e compartilhara a crescente paixão alemã pelo gênio redes..
)} coberto de Dante. Shakespeare. Homero e os trágicos gregos.
í.\Y. <r W..estphalen, atraído pelo notável talento e ansiosa recepti-
~·--/(' . ~vidade do filho de Heinrich Marx, estimulou-o a ler.. empres- . -
: ~·\ .:(r lQY·lbe livros. levou-o a passeios pelo~~ques da vizinhai!Ça ~
:, f\ f~lo.u-lhe de J!squilo, Cervantes, Shakesp~ citando longos
; . ~~ trechos ao ouvinte entusiasmado. KarJ, oque atingiu a maturi-
~..-:- dade muito cedo, tomou-se leitor devotado da nova literatura
romântica; o gosto por ele adquirido durante esses...anos impres-
, ,\~\'sÍÕnáveis permaneceu inalterado até a sua morte. Gostava, mais
~ tarde, de recordar as tardes passadas com Westphalen durante
~ \\..1"'
' ....\}J-7 aquele período que lhe parecia o mais feliz da sua vida. fora
tratado ...como homem por outro muito .mals velho. em termos
~'k'i' · de igualdade, numa fase em que necessitava muito de simpatia
e encorajamento; numa época em que um gesto inábil ou insul-
tante poderia ter deixado marca permanente, Marx foi aceito
com rara cortesia e hospitalidade. Sua tese de doutorado contém
uma dedicatória ardorosa a Westphalen, plena de gratidão e
admiração. E.Pl 1837, Mm pediu _a mão da filha dele em casa- ..
mento e obteve-lhe o consentimento, num ato que, devido à
diferença marcante de suas condições sociais, deve ter espantado
os parentes da moça. Falando de Westphalen mais tarde. Marx.
cujo julgamento dos homens não se distingue pela generosidade,
tomava-se quase sentimental. Weuphal~n hpmanizara e for·
talecera aquela. crença DeJe,mesmo e ..em suas próprias forças
que constituiu em todos os períodos da vida de Marx a sua
çgrac~rística...mais..marcante. Assim, Marx foi um dos raros te·
volucionários jamais obstado ou perseguido no começo da vida.
Conseqüentemente, apesar da sensibilidade anormal. do amour
propre, trata-se de vaidade, agressividade e arrogância. uma per-
sonal1'd ade ·mtetnca"
·· ..:..: e aUACQn
po~va t r·aan te Q.Ue _nos encara • ·
duraJlte quarenta-anos-Ele daença. -pobreza e .luta incessante.
Deixou a escola de Trier na idade de dezessete anos e, se-
guindo o conselho do pai, entrou no outono de 1835 para a
Faculdade de Direito da Universidade de Qo.nn.. Ali parece
ter sido inteiramente feliz. Anunciou o propósito de freqüentar
pelo menos sete cursos de palestras semanais, entre as quais
palestras sobre Homero, pelo famoso August Wilhelm Schlegel.
palestras acerca de mitologia, poesia latina e arte moderna.
Viveu a vida alegre e dissipida de um estudante alemão, tomou
parte ativa em organizações universitárias, escreveu poemas
byronianos, contraiu dívidas e pelo menos em uma ocasião foi
preso pelas autoridades por conduta desenfreada. No fim do
currículo de verão de 1836 deixou Bonn e no outono li:ID.Sfe-
riu-se para a Universidade de Bwi~...
Esse acontecimento assinala umQd~tida em sua vida.
As condições em que vivera até então eram comparativamente
provincianas: Trier não passava de urna pequena e graciosa
cidade sobrevivente da velha ordem, intocada pela grande revo-
lução social e econômica que estava mudando o perfil do mundo
civilizado. O crescente desenvolvimento industrial de Colônia
e Düsseldorf parecia infinitamente remoto; nenhum problema
urgente, fosse social, intelectual ou material, perturbava a paz
do círculo cordial e culto dos amigos de seu pai - plácida
amostra do século dezoito que sobrevivia artificialmente no
século dezenove. Comparada com Trier ou Bonn, Berlim era
uma cidade imensamente grande e populosa, moderna, feia,
pretensiosa e grave, ao mesmo tempo centro da burocracia
prussiana e local de encontro dos intelectuais radicais descon-
tentes que formavam Q flúçleo__da_gesceote op_os~ b.uro-
~. Marx conservou durante toda a vida ·uma capacidade
considerável para o prazer e uma forte, embora ponderada, ten-
dência ao divertimento, mas, mesmo naquela época, não se
poderia descrevê-lo como superficial ou frívolo. Foi contido
pela abnosfera tensa e trágica em que se viu mergulhado de
súbito, e com a energia costumeira logo começou a explorar
e criticar a nova ambiêocia.

44
3
A filosofia do espírito

.. Was Ihr den Geist der Zeiten heisst


Das ist im Grund des Herren eigner Geist
In dem die Zeiten sich bespiegeln." 1
GOETHE

.. La Raison a toujours raison." 2

A influência intelectual predominante na Universidade dt:


Berlim, como, aliás, em qualquer outra universidade alemã da
época, era a filosofia hegeliana. O terreno nesse sentido fora
preparado pela reyoJtJ gradrutL®s cre~~ e do modo de exp res·
são do ,perfod_p clássiCQ, que tinha começado no século dezessete
e fora consolidado e reduzido a um sistema no século dezoito.

1 . O que se chama espírito da época/ não passa na realidade do


espírito da pessoa I em que a época se espelha.
2. A razão sempre tem razão.
A maior e mais original figura desse movimento entre os alemães
foi Gottfried Wilbelm LeibDÍJ, cujas idéias vieram a ser desen-
volvidas por seus seguidores e intérpretes num swema meta·
((§ico cxx;rente e .do.Jm!tico que, segundo proclamavam seus
divulgadores, era logicamente demonstrado por etapas dedu-
tivas, a partir de premissas simples, por sua vez auto-evidentes
para as pessoas capazes de usar a infalível intuição inte-
lectual de que foram dotados todos os seres pensantes desde
o berço. ~~lectualismo foi atacado na Jnglate~,
onde nenhuma fonna de racionalismo puro jamais encontrou
terreno favorável, pelos mais influentes escritores filosóficos
da época, .Lo.cke•.Hum~ e, para o fim do século, por U;ntham
e pelos filósofos radicais, unânimes em n~ar a existência
da faculdade chamada de intuiçijQ_ intelectual_nª.Jle..tu..R.mJCal
das coisas. NenlnamttJnttm {a.ÇUldade além dQ$.. ~ent.llJ..P$_JfucQs
.fam.ililres,.poqeria prover ~ela informação empírica inicjal na
qual se baseiam todos os outros conhecimentos do mundo. Tá
que toda informação era transmitida pelos sentidos, Ltazão não
~~den_te ~ conhecimento_.. responsabilizan-
d~se apenas pelo arranjo, classificação e disposição de tais in-
formações, mas disso tirando deduções, operando sobre um ma-
terial obtido sem a sua ajuda. Na França, a posição racionalista
foi atacada pela escola materialista no século dezoito, e embora
Voltaire e Diderot, Condillac_~d!étius admitissem livremente
o seu débito para com o livre:pçnsamento inglês. cogstrufram um
üstema independente. cuja influência na ação e J!.O~nsamept9
europeu prosseguç_ 1té os dias de hoj~~guns não chegaram ao
ponto de negar a existência do conhecimento obtido de outra
maneira que não pelos sentidos, mas afinnaram que, embora
esse conhecimento inato exista e chegue a revelar verdades úteis.
nio fornece prova das proposições cuja verdade incontestável
os racionalistas mais antigos proclamaram conhecer, fato que
a introspecção mental cuidadosa e escrupulosa demonstraria a
qualquer homem receptivo não cegado pelo dogmatismo reli-
gioso ou pelo preconceito polftico e ético. Demasiados at>uws
tinham sido preserv~dos por a~los à autot;daq~, ou !l .uma
jntuicão especial; assim, Aristóteles, conclamando a razão em
busca de confirmação. havia sustentado que os homens eram
desiguais por natureza. que al~ns eram naturalmente escravos

46
e outros, livres; da mesma forma, a Bíblia, que ensinou
que a verdade poderia ser revelada por meios sobrenaturais.
oferecia textos que podiam ser invocados para provar que o
homem era naturalmente mau e devia ser controlado -
exemplos estes usados pelos governos reacionários para apoiar
o estado existente de desigualdade política, social e até mesmo
moral. Ma~ª ~xperiê!!_cia_ e ~ razão,. bem-compreendidas, com-
binavam-se para mostrar a exata oposição a çsse ponto de vista.
Sempre se poderiam produzir argumentos para demonstrar. para
além de qualquer dúvida possível, q~ o homem,. era natural·
ment~ boJil, qu~ a razão existia igualmente em todos os seres
sensfveis,...que a causa da opressão e do sofrimento era a i_gno-
râ!lcia humaoa..gerada em parte ~la~ condições sociais e mate-
r~ais que despontavam ao longo do desenvolvimento histórico
n~tural, em parte pela supressão deliberada da verdade por tira-
nos ambiciosos e padres inescrupulosos, e mais freqüentemente
pela interação de ambos. Tai_s influêl!9as danosas poderiam, pela
ação de um governo esclarecido e benevolente, ser expostas e,
desse modo, aniquiladas. Entregues a si mesmos, sem obstáculos
a obscurecer-lhes a visão e a frustrar-lhes os esforços, os homens
buscariam a virtude e o conhecimento; justiça e igualdade
ocupariam o lugar da autoridade e dos privilégios, a compe·
tição se transformaria em cooperação, a felicidade e a sabedona
seriam então bens universais. O dogma central desse raciona-
lismo semi-empírico consistia numa fé ilimitada no poder da
razão para explicar e melhorar o mundo, atribuindo-se em últi·
ma instância os fracassos anteriores nesse sentido à ignorância
das leis que regulam o comportamento da natureza. animada e
inanimada. A miséria é o resultado complexo da ignorância,
não somente da ignorância da natureza como também das leis
de conduta social. Para aboli-la, em sua maior parte, é neces·
sário e suficiente o emprego da razão, e apenas da razão, na
administração dos negócios humanos.
Essa tarefa, logicamente, está longe de ser fácil; os homens
vivem há m_ui,to tempo num Jl!Undo de trevas_intc:kçt.pais para
serem capazes de enfrentar de olhos abertos a plena luz do dja.
Faz-se mister, por conseguinte, um processo de educação gradual
nos princípios científicos; o crescimento da razão e o progresso
da verdade, embora suficientes por si mesmos para vencer as

47
forças do preconceito e da ignorância. só poderão ocorrer quando
homens esclarecidos estiverem prontos a dPvotar suas_vidas à
tarefa de educar a va~~ massa ignorante da humanidadê.
Mas aqui novo obstáculo se impõe: considerando que
a causa original da miséria humana, do menosprezo à razão e
da indolência intelectual não foi provocada de forma deliberada,
existe, em nossa própria época, e tem existido ao longo
dos séculos, uma classe de homens que, percebendo que seu
poder depende da ignorância que cega os homens para a injus-
tiça, promove a ignorância mediante quaisquer meios e artifícios
ao seu dispor. Todos os homens são racionais por natureza, e
todos os seres racionais têm direitos iguais diante do tribunal
natural da razão. No entanto, as classes governantes, os prín·
cipes, a nobreza, os sacerdotes, os generais, percebem de ime-
diato que a disseminação da razão não tardará a abrir os olhos
dos povos do mundo para a colossal fraude pela qual, em
nome de certas ficções, como a santidade da Igreja, direito divi·
no dos reis, proclamações de orgulho nacional ou domínio do
poder ou da verdade, são forçados a renunciar aos seus natu-
rais clamores e a trabalhar sem queixas pela manutenção de uma
pequena classe que não tem sequer a sombra do direito de
exigir semelhante privilégio. Constirui, portanto,Jntere&Se~-ª.1
direto da classe superior na hierarquia social impedir. a expao-
,São natural. do conhecimento,~J!~ .. gue este ameace 4~nUD­
cjar Q catóter arbjtrátiQ.d!~!iua.@!!tQr:i.~9e;, em y~z disso,Jla im·
pj)e um ç_ódigo dogmático, vrn çonjJJnto de mistério~ jninteligí·
GiL expresso em frases sonoras com as quais confundem a fra-
ca inteligência dos súditos infelizes e os maJ:~têm_em._ estado
.de obediência cega. Ainda que algumas pessoas das classes gover-
nantes possam iludir-se de fato, acreditando em suas pró-
prias invenções, há outras sabedoras de que somente pelo
engano sistemático, escorado no uso ocasional de violência,
uma ordem corrupta e desfigurada pode ser preservada.
Portanto, é dever básico de um dirigente esclarecido destruir
o poder das classes privilegiadas e liberar a razão natural com
que todos os homens são dotados, para que esta se reafinne; le-
vando em conta que a razão jamais se oporá à razão, conflitos
privados e públicos resultam, em última instincia, de algum ele·
mento irracional, do simples fracasso em perceber a viabilida·

48
de de um ajuste harmonioso entre interesses aparentemente
opostos.
A razão sempre tem razão. Para cada indagação eJCiste so-
mente uma resposta verdadeira que~ com bastante assiduidade.
poderá ser descoberta de maneira infalível - e isso se aplic~
igualmente a questões de ética e de política, de vida pessoal e
social, mais que a problemas de física ou matemática. Uma
vez encontrada a resposta, passar da solução à prática é mera
questão de habilidade técnica. No entanto, os inimigos tradi-
cionais do progresso devem, antes de tudo. ser aféstados, e os
homens devem aprender a agir, em todas as questões~ sob conse-
lho de especialistas científicos desinteressados, cujo conheci
mento se baseia na razão e na experiência. Se esse objetivo foa
alcançado, estará aberto o caminho para a prosperidade.
Mas a influência do meio não é menos importante que
a da educação. Se desejarmos prever a trajetória da vida de
alguém, devemos considerar fatores como o tipo de Tegião em
que vive, o clima, a fertilidade do solo, sua distância do mar,
além das características físicas da pessoa e a natureza de sufi
ocupação diária. O homem é um objeto na natureza e a alma
humana, tal e qual a substância material. não é dominada por
influências sobrenaturais nem possui propriedades ocultas; seu
comportamento por inteiro pode ser adequadamente relatado
através de hipóteses físicas comuns e verificáveis. O mated a
lista francês La Mettrie desenvolveu esse empiricismo até O!!
limites extremos. e foi mais além num famoso tratado. O homem
máquiua, que provocou muito escândalo na época da sua publi-
cação. Suas opiniões constituíam um exemplo extremado das
idéias compartilhadas em vários graus pelos editores da End
clopédia, Diderot e d'Aiembert, por Holbach, Helvétius e Con-
dillac, que, não obstante outras diferenças entre si. concorda-
vam que a principal diferença do homem em relação às
plantas e aos animais inferiores reside na posse da autocons-
ciência, na sua capacidade de estar cônscio de seus próprios
processos, na capacidade de usar a razão e a imaginação. de
conceber metas, ideais, e de agregar valores morais a qualquer
atividade ou característica de acordo com sua tendência para
avançar ou retardar as finalidades que deseja realizar. Uma
séria dificuldade desse ponto de vista estava em reconciliar a
existência do livre-arbítrio, de um lado, e a completa determi-
nação pelo caráter e pelo meio ambiente, de outro; o que não
passava do velho conflito entre libre-arbítrio e presciência divi-
na, exposto sob nova forma, com a Natureza no lugar de Deus.
Spinoza observara que, se uma pedra caindo no ar pu-
desse pensar, imaginaria que havia escolhido livremente seu
caminho, mostrando-se alheia a causas externas tais como
o objetivo e a força do arremessador e os meios naturais que
lhe determinaram a queda. Da mesma forma, é somente a
ignorância relativa às causas naturais de seu comportamento que
fnz o homem supor-se, de certa maneira, diferente da pedra
caindo; a onisciência afastaria rapidamente essa vã ilusão,
ainda que a sensação de liberdade a que ela dá lugar pudesse
; persistir. porém sem o poder de enganar. No que toca ao empi·
rismo extremado, essa doutrina determinista pode se tomar
consistente com o racionalismo otimista, mas carrega impli-
cações extremamente opostas acerca da possibilidade de refor-
ma das atividades humanas. Pois, se os homens se tomam santos
ou criminosos unicamente pelo movimento da mat~ria no espa-
ço, os educadores são rigorosamente determinados a agir do mo-
do que agem, tal como ocorre também com aqueles que eles de 4

vem educar. Tudo ocorre assim em conseqüência de processos


inalteráveis da natureza; nenhuma melhoria pode ser efetuada
pelas decisões livres dos indivíduos, por mais sábios, por mais
benevolentes e poderosos que sejam, já que nio lhes é facultado
- não mais que a outra entidade - alterar a necessidade na-
tural. Esse famoso ponto critico, despido de sua velha roupa-
gem teológica. emergiu ainda mais nitidamente em sua forma
secular; ele apresentou düiculdades iguais para os dois lados,
mas ficou obscurecido pelas questões mais amplas em jogo.
Ateus, céticos. deístas. materialistas, racionalistas, democra-
tas, utilitaristas pertenciam a um campo; tefstas, metafísicos.
seguidores e apologistas da ordem existente, a outro. A diferen-
ça entre o Iluminismo e o clericalismo era tão grande, e a guerra
entre ambos tão selvagem, que as dificuldades doutrinárias
dentro de cada campo passavam relativamente despercebidas.
~ A primeira dessas duas teses tornou-se a doutrina básica
_:..----aos intelectuais radicais do séctJlo seguinte. Eles acentuavam a
~o
bondade natural ou potencial do homem não estragado por um
governo mau ou ignorante, e sublinhavam também a força
imensa da educação racional para libertar as massas da huma-
nidade de seus sofrimentos, para instituir uma distt-ibuição
mais justa e mais científica dos bens mundiais, e ass•m guiar
a humanidade aos limites da felicidade possível. A imaginação
do século dezoito foi dominada pelas passadas gigantescas das
ciências matemáticas e físicas ao longo do século anterior, sendo,
portanto, muito natural aplicar o método que obtivera tanto
êxito nas mãos de Kepler e Galileu, Descartes e Newton,
à interpretação dos f~tlÔDle.OQ_s sociais e à conduta de vida. _
Se a criacio_desse thpvim~,ntpJ pode set atribuída a um único ' 'f!\"i'\~·J..-t;
indivídu~este fo~.ba!re. ~m dúvida. Se não lhe deu origem.\J, l t\~ \\
foLs.ey_major e.....tnl!is_ ~ébre _prot~gQJ!jsta por mais de meio \ ·
século. Seus livros, seus panfletos, sua simples existência fize-
ram incomparavelmente mais para destruir a cidadela do abso-
lutismo e do catolicismo que qualquer outro fator isolado.
Sequer a sua morte conteve-lhe a influência. A liberdade de pen~
sarnento veio a ser identificada com o nome dele; as batalhas .
pela Jibetdade_ de pensamçn(o foram travadas sob a bandetra
de Voltaire~enhuma revolução popular, da sua à nossa época
deixou de--retirar algumas de suas armas mais eficazes daquele
inexaurivel arsenal que a passagem de dois séculos não tomou
obsoleto. S.e Voltaire _crioy, a. religião do jlomem. Rousseau
foi o maior dos seus nrofetas. A concepção que tinha do homem
era diferente, e em última análise subversiva. da concepção do~
radicais do seu tempo. Mas Rousseau foi um pregador e um
propagandista de talento, e imprimiu ao movimento uma elo·
qüência e ardor novos, uma Jinguagem mais rica~ ambígua
e emocionalmente carregada, que afetou de modo muito pro-
fundo os escritores e pensadores do século dezenove. Com efeito,
pode-se dizer que ele çriOI.IJ;!QV.O.L~§tilQ!,...de,.P.ensamenJo e de

----
seotiment>, um.ldiorna nQYO que .g)orific.aya a vontade à_c.usta _
da razão e do obsecyacão. um idioma que veio a ser adotado
como veículo natural de expressão pessoal pelos rebeldes artís·
ticos e sociais do século dezenove - aquela primeira geração
de românticos que buscou inspiração na história revolucionária
e na literatura da França, e em seu nome levantou a bandeira
da revolta em suas regiões interioranas.

i l
Um dos mais fervorosos e certamente mais eficazes advo-
gados dessa doutrina na Inglaterra foi o idealista galês Ro-
bert Owen. Seu credo foi sintetizado na frase inscrita no
cabeçalho de seu jornal, The New Morol World: " O ca-
ráter em geral, do melhor ao pior, do mais ignorante ao
mais esclarecido, pode ser útil à comunidade, incluindo as mais
remotas, pela aplicação de meios adequados que em sua maior
parte estão nas mãos e sob o controle. daqueles com influência
no destino dos homens". Ele demonstrou de fonna triunfante
a verdade da sua teoria ao instituir condições modelares de
trabalho em seus tnQj_nhos de __rugodão_d_e ~~w__Latw:k, redu 4

zindo as jornadas de trabalho e criando serviços de saúde e


fu.ndos de poupança. Dessa forma, aumentou a produtividade
da fábrica e elevou muito o padrão de vida dos operários e,
o que era ainda mais impressionante para o mundo exterior.
triplicou sua fortuna. New Lanark transformou-se em centro
de peregrinação de reis e estadistas e, na condição de Rrimeira
experiência_.bew:alida de.._awperaçio_pacífica entte ttabalho
e çapital. teve considerável influência na história tanto do socia-
lismo quanto da classe trabalhadora. Suas últimas tentativas de
reformas práticas obtiveram menos êxito. Owen. que faleceu
em idade avançada. na metade do século dezenove, foi o derra-
deiro sobrevivente do período clássico de racionalismo e, com
a fé intacta, apesar de repetidos fracassos, acreditou até o fim
da vida na onipotência da educação e na perfectibilidade do
homem.
O efeito que o avanço vitorioso das novas idéias teve
sobre a cultura européia não seria inferior ao da Renascença
italiana. O espírito de livre indagação de questões pessoais e
sociais. de questionamento de todas as coisas perante o tribunal
da razão, adquiriu uma disciplina formal e uma aceitação cl-es-
centemente entusiástica em amplos segmentos da sociedade. A
coragem intelectual e. mais a inda, o desinteresse intelectual
tomaram-se virtudes em moda. Voltaire e Rousseau foram uni-
versalmente festejados e admirados, Hume teve magnífica recep-
ção em Paris. F.oi..esse o clima de opinião.que.fonnou o caráter
dos revoJucinnárjns de 1789, uma geração severa e heróica que
a nada se submete na clareza e pureza de suas convicções. na
inteligência robusta e lúcida de seu humanismo: acima de tudo.

52
em sua absoluta integridade moral e intelectual seguramente
baseada na crença de que a verdade deve prevalecer em última
instincia porque é a verdade - uma crença que anos de exílio
e perseguição não enfraqueceram. Suas idéias morais e polí-
ticas e suas palavras de orgulho e de responsabilidade toma-
ram-se desde então herança comum de democratas de todos os
contornos e matizes. Socialistas e liberais, utilitaristas e adeptos
dos direitos naturais falam essa língua e professam-lhe fé, não
tão ingenuamente.. nem com aquela confiança total, mas em
compensação de forma menos eloqüente, menos simples e me-
nos convincente.

11

O contra-ataque veio com a virada do século. Ele pros-


perou em solo alemão, mas não tardou a espalhar-se por todo
o mundo civilizado, detendo o avanço do empirismo oriundo
do Ocidente e pondo no lugar uma visão menos raciona·
lista da natureza e do indivíduo, a qual, para o bem ou para
o mal, tem exercido efeito vital e transforma~r em poss{tS
visões do boQtem e da ~çiedad9. A..Alwumha. espirituaLe.
materialmen~...aíela.da...pd~rra_do.s..l'.rinta_Anos,_principiou.
no Imal,djf. WD longQ f:..~~térjJ _petio4o~ a produzir outra vez,
perto d.o_lin_itl_do_!i~Ç.qlo dezoito, uma cultura próprlJ in·
fluenciada__p_elos modelos fran~~.
. .
po~ lndependeõie ~a-
queles mo~d9Lgpe a EurQpa i.Qteira competia para imitar.
Tanto na filosofia como no criticismo, os alemães começaram
a produzi~ obras gue eram, na forma, mais canhestras, porém
sentidas com maior ardor, expressas com mais veemência e
mais inquietantes que qualquer coisas escrita na França exce-
tuando as páginas de Rousseau. Os franceses viram nesse desar·
ranjo apenas uma grotesca imitação de seu límpido estilo e bizar-
ra simetria. As gu.erras napoleônicas, que acrescentaram ao orgu·
lho intelectual ferido dos alemães a humilhação da derrota mili-
tar, ampliaram a brecha, e a forte reação patriótica, que começou
durante aquelas guerras e tomou a forma de um selvagem fluxo
de sentimento nacional ap6s a derrota. de Napoleão. veio iden-
tificar-se com a nova filosofia romlotica dos sucessores de
Kant, Fichte, Schelling e os irmãos Scblegel; a filosofia de-
les obteve, assim, significação nacional e se ampliou e popu-
larizou sob a forma de uma fé alemã quase oficial. Contra
o empirismo científico dos franceses e ingleses, os alemães
fizeram avançar o historicismo metafísico de Herder e de Hegel.
Fundamentado no criticismo de seus rivais. ele oferecia uma
$tnativa_vigoro~a. cuja influência alterou a história da civi-
lização na Europa e deixou uma indelével impressão na imagi-
nação e modos de sentir.
Os filósofos clássicos qo ~éc~ulo d~c;>ito tinham~g~~t~~o:
considerando gue o homem não .PB§S&. de U_!ll__gbjc:to na l)llU·
reza, guais as leis_gu~ lhe govemiDl 1 c_Q.Wiu.ta1 Se é possível
descobrir por meios empíricos sob que condições os corpos
tombam, os planetas.giram, as árvores crescem, o gelo se. dis-
solve em água e a água em vapor, não deve ser menos possível
descobrir sob que condições os hqmeos são levados a comer.
dormir, amar, õaiãr, lutàr-uns com os outros, constituir famílias.
tribos, nações e novamente monarquias, oligarquias, democra-
cias. Até isso vir a ser descoberto por um Newton ou um Ga-
lileu, nenhuma verdadeira ciência da sociedade pôde vir à luz.
f\()~~~. Esse empirismo rad~cal,parecia ( 'Hegel :;nilo~ar um d~-
~' matismo científico ain~ _mais _d~~e a teologia que
ele pretendia deslocar, pois envolvia a falácia seed~_a qual.so-
mente os métodos bem-!_ucedidos nas ciências na!t.Jrais_ pgdem
!er validade em qualctuer outro .. sc;!<!!- .~a -~~~riênc~a. 1:1~~1
>.?~1'1)1' mostrou..se cético a respeito. do ~o~o método, mesmo no ·caso
\):; :-·~ · oi'· do mundo material, e suspqttou, aliás sem fundamento, que os
e\ ~~!~.f cientistas sociais selecionav~ ·facultativamente os fenômenos
,~~-~··~, ,-,fl que discutiam, e não menos arbitrariamente se limitavam a cer-
U....U: .).(Ji·~~· tos tipos de raciocínio solitário. So sua atitude ~ara ~~- o
ro;J...cr' ' ~' · eJ!!pirismo nas ciencias foi hostil, l'fegel.tomou-se ca~a .!e~~s
ç,;~; ~(' ~eoçjdo de suas ruinosas çqps.c.qüências_gu~npo__a.PJiç_ adas
·'lt
;,)~· ' ~ à história humana. Se a história fosse escrita de acordo
\ · · '~~~\ com regras científicas, co_nforme a palavra era compreendida
~:,:'
~,,... , , :.~ O"' por Voltaire ou por Hume, disso resultaria monstruosa . djstor·
\ "\ ção dos fatos, -~e Q!.J!laiores historiadores, de Tucídides a
-~~.:f;~fl ..,-;~Montesquieu , em especiaC Hume e Voltaire. quando não esta·
'f'·~·
~ " ..,
:. )1.
·!r,.

:;4
- -
vam teorizando, mas escrevendo história, tinham inconsciente-
mente evitado___I!Or uma segura intuição histórica. He&el_ concebia
a'liisi6ria em duas dimensões: ~rizontal, em que os fenômenos
de diferentes esferas de atividades são considerados amplamente
i~r_!ig_!ldos em certo modelo unitário, o que imprime a cada
período seu próprio caráter individual, 'orgânico', reconhe-
civelmente único: e a vertical. em que a mesma seção trans-
versal de acontecimentos é vista como parte de uma sucessão
temporal, como um estágio necessário a um processo de desen-
volvimento, de certa forma contido e gerado por seu_ predecessor
no tempo, o qual já corporifica, ainda que num estado menos
desenvolvido, as numerosas tendências e forças cuja emergên-
cia plena produz aquela última etapa que ele enfim vem a
ter. Em conseqüência,. ~a época, para ser de fato bem.rom-
preendida, deve se~nsjde~ DiO-ªP.~~ em relação ao
passado, pois e_la contém._em.__seu __yen_tre sementes do futuro,
antecipando o contorno do que já está ppr vir; essa relação,
nenhum historiador, embora escrupuloso e ansioso por evitar
desvios além da evidência pura dos fatos, pode permitir-se
ignorar. Só assim ele consegue representar na correta pers-
pectiva os elementos que compõem o período de que está
tratando, distinguindo o significante do trivial, as caracterí~
ticas centrais determinantes de uma época daqueles elementos
acidentais e adventícios que nela podem ter ocorrido em qual-
quer lugar e momento_ sem, portanto, raízes profundas no seu
passado particular nem efeitos apreciáveis no seu futuro par-
ticular.
A concepção de crescimento pela qual se diz que a bolota
contém potencialmente o carvalho, e que só é descrita em fun-
ção de tal desenvolvimento, é uma doutrina tão velha quanto
Aristóteles e, pensando bem, ainda mais antiga. Na Renascença.
ela veio à luz uma vez mais e foi desenvolvida de fonna mais
completa por Leibniz, segundo o qual o universo era composto
de uma pluralidade de substâncias individuais independentes.
cada uma das quais deve·se considerar composta de seu passado
e futuro inteiros. Nada era acidental; objeto algum poderia ser
descrito como os empiristas queriam, isto é, como uma sucessão
de fenômenos ou estados contínuos ou descontínuos. ligados,

55
na melhor das hipóteses. apenas pela relação externa das
causas mecânicas. A única defini~o _!~dadeira de um_Qbjeto
seria em termos ue explicassem pQr _gyc; ele se dess;oyolyeu
tternsariamçot~Ld~le modo. em termos de ~ his!ória in~i­
vidual, como uma entida<!e em evolução. cada estágio da qual
estava, nas palavras de Leibniz, chargé du passé el gros de
l'avenir. Leibniz não tentou aplicar detalhadamente essa dou-
trina metafísica aos acontecimentos históricos; no entanto.
essa pareceu a Hegel a esfera à qual ela melhor se aplicava.
A não ser que alguma outra razão além da causação científica
seja postulada, a história se toma nada mais que mera
sucessão de acontecimentos externamente relacionados. Ex-
plicar é fornecer fundamentos racionais e não simples antece-
dentes. E~licar uma seqüência de episódios, nesse sentido, é
atribuf:los a wn. processo racionalm----eiite inteligível, - a ativi-
dade intencional de um ser ou seres~ Deus ou homens. Sem
isso, os acontecimentos permanecem inexJ!!icados, desen~iza­
dgs1 'sem sisnificad~'· Um modelo. mecânico talvez capacite
alguém a prever ou controlar o comportamento dos objetos.
mas não pode dar uma explanação racional: e acontecimentos
inexplicados nas vidas humanas nada acrescentam à história
humana. Da mesma forma, parece impossível avaliar ou até
mesmo exprimir o caráter individual de uma personalidade par-
ticular ou período histórico, a essência individual, ou seja. o
propósito embebido numa determinada obra de arte ou ciência,
pelos métodos da ciência natural, pois. embora suas caracterís-
ticas se assemelhem intimamente a alguma coisa que ocorreu
antes ou depois dela, sua totalidade é, em certo sentido, sin-
gular e e!i_ste apenas uma vez; por conseguinte, isso não pode
ser avaliado por uin método científico, cuja aplicação bem-su-
dida depende da ocorrência do preciso oposto, a saber.
que o mesmo fenômeno, a mesma combinação de caracterís-
ticas, deve repetir·se, recorrer regularmente, uma vez e sempre.
O novo método foi aplicado de forma satisfatória em pri-
metra mão por Herder, que. talvez sob influência do cresci-
mento da consciência ~acional e cultural na Europa, e movido
pelo 6dio ao cosmopolitismo e universalismo nivelador da filo-
sofia francesa em vigor, aplicou o conceito do desenvolvimento

56
orgamco (conforme veio a ·ser chamado depois) à história de
culturas e nações inteiras, bem como a indivíduos. Com efeito,
ele o representou como mais fundamental no caso das pri-
meiras, já que os indivídups s6 podem ser examinados adequa·
damente no cenário de uma fase particular do desenvolvimento
de uma sociedade que, no pensamento e ação de seus maiores
filhos, alcança sua mais típica expressão consciente. Ele mergu-
lhou no estudo da.cultura nacionalalell!~· sua filologia e arquea.
logia, suas origens bárbaras, sua história e instituições medie-
vais, seu· folclore e suas antiguidades tradicionais. À partir dai.
tentou traçar um r.etrato do e~írlto alemão vivo como uma força
formativa responsável pela unidade de seu próprio desenvolvi-
mento nacional peculiar; este não pode ser avaliado pela cruel
relação mecânica da simples ruptura antes e depois no tempo,
pela qual o ciclo uniforme e monótono dos acontecimentos
causados, rotação de colheitas ou tremores anuais de terra, que
não são história porque não constituem formas de expressão
humana, talvez sejam satisfatoriamente explicados.
Hegel desenvolveu !'S5e tema de forma mais ampla e ambi-
t:iosa. Ele ensinou que a explanação oferecída pelo materia
lismo francês permitia no máximo uma hipótese para explicar
fenômenos estáticos mas não dinâmicos, diferenças mas não
mudanças. Sob determinadas condições materiais, é possível
prever que os homens nelas nascidos desenvolverão cer-
tas características diretamente atribuíveis a causas físicas e
à educação que lhes foi ministrada por gerações anteriores,
elas próprias afetadas pelas mesmas condições. Mas, ainda que
seja assim, o que de fato isso significa para nós? As condições
físicas da Itália, por exemplo, eram mais ou menos as mesmas
nos séculos um, oito e quinze, e no entanto os antigos romanos
diferiam muito de seus descendentes italianos, enquanto os ho-
mens da Renascença mostravam certas características marcantes
que a Itália em declínio ia perdendo ou perdera por completo.
Não são, por conseguinte, tais condições relativamente invariá-
veis, com as quais só os cientistas naturais têm competência para
tratar, as responsáveis pelos fenômenos de mudança histórica.
pelo progresso e reação, glória e decadência. Algum fator dinâ-
mico deve ser postulado para responder tanto pela mudança
como pela forma e direção particulares e únicas que ela assume.
Semelhante mudança não é obviamente repetitiva: cada época
herda alguma coisa nova de seus predecessores, em virtude da
qual düere de cada período anterior. O princípio de descm_yol-
vjmento exclui .o principio de repetição uniforme-que é o funda·
mento sobre o qual Galileu e Newton trabalharam. Se a his-
tória ppss~i leis, ..esªas leis devem ev_iden,emente di_!eri. L ~
eap6cie do _gue ~..!'--P~IJildo até então pelo único .mtMielo pos-
sível de lei científica. E uma vez que tudo o que é persiste.
e tem alguma história, as leis da história devem, por esse
exato motivo. ser idênticas às leis de formação de tudo o que
existe.
Onde deve ser buscado então o pdoeíRio da movimentação
h1U6dca? Seria uma confissão de fracasso humano, de derrota
da razão, declarar que esse princípio dinimico é aquele notório
objeto de esCÚ'IIio dos empiristas - um poder misterioso e
oculto que não cabe ao homem detectar. Seria estranho se o
que governa nossas vidas normais não estivesse ao nosso alcan-
ce - uma experiência mais familiar que qualquer outra
por que passamos. Pois precisamos apenas considerar nossas
vidas o microcosmo e o modelo do universo. Referimo-nos
com bastante familiaridade ao caráter, temperamento, pro-
pósitos, motivos, objetivos de um homem como responsá·
veia por seus atos e pensamentos, não como algo indepen-
dente, totalmente distinto deles, mas como o padrão comum
que eles exprimem; quanto melhor conhecemos um homem.
melhor condição temos de compreender-lhe a moral e a ativi·
dade mental ·em sua relação com o mundo exterior. &gel
(\ tronsfcriu Q CQnceito dg C@rAter pessoal do_i.pdivúluo._os._gbje-
{y tivos, a lógica• ..a qualidade de seus_pens~e~pções
- toda a sua atividade e experiência desdobradas ao longo da
vida - para C11lttn'al e gaçõe&_.intciraa. Referiu~se a isso
~ ~ -j de modo variado, como ld6Ja oq Eapúito, esügios distin·
\)<UJ&'I tos na sua evolução, e conliderou-o o motivo, o fator dÍnl-
~'l to mico no desenvolvimento de povos e civiJizaçõea capeç(ficos
- \ 11 e.. portanto, do uQiverao senlfyel comg um todo. Ademais, Hegel
V ensinou que o erro de todos os pensadores anteriores foi o
J:Ao':t(!lv de admitir a relativa independência de diferentes esferas de
, w..v atividade em determinado período, düerençando as guerras de
r~~
,; ..~..~ 58 --€/ ~jY~ · .;!"..:A(.L,'Jc.ivJ . ~":".:)
C\J.a..' cllc..-~M,~ ~") 'v~/;;.. },.- t).,t>.tÍt./l
Jot S:.C........U, Jll.lt,..t.Ultl~,l.. ,., ~Ih ) · o c-t.,;io•1~0. ~ 1J ,._.' •-•"', )
uma época de sua arte, e sua filosofia de sua vida diária. Natu·
ralmente não faríamos essa separação no caso de indivíduos; no
caso daqueles com quem estamos melhor familiarizados. correia·
cionam.os meio inconscientemente todos os seus atos como dife-
rentes manifestações de um único fluxo de atividade vantajosa;
somos afetados por inumeráveis dados retirados desta ou da-
quela fase de suas carreiras, e esses dados constituem coletiva-
mente nosso retrato mental deles. Isso, segundo Hegel, se aplica
da mesma forma ao nosso conceito de cultura ou de um período
histórico em particular. Os historiadores do passado tenderam
a escrever monografias sobre a história desta ou daquela cidade
ou campanha, dos atos dçste ou daquele rei ou comandante.
como se pudessem ser representados à margem de outros
fenômenos do seu tempo. Mas, assim como os atos do indivíduo
8fo_ OB atol do indivíduo inteiro... assim também ~nos
c.ulturais de um(Lépo~,_o_modeiQ par;ticular de acontecimentos
que a constituem, são expressões do período inteiro-e de sua
..totaLpersonalidade, de uma fase particular do espírito huma-
no questionador, no intento de compreender e conttolar o que
encontra; isto é, na sua busça~de__ ~mpleto._ autodomínio - o
que constitui a idéia hegeliana d~ liberd(lde. Esse caráter unitá-
rio de uma época, como expressão de uma visão integral. é um
fato que nós, com efeito, admitimos tacitamente ao considerar
um fenômeno como típico mais do mundo antigo que do
mundo moderno, mais de um período caótico que de uma
paz estabelecida.
Isso deveria ser reconhecido de fonna explícita. Ao escre-
ver, por exemplo, a história da música do século dezessete, e
ao considerar o advento de uma forma particular de polifonia,
seria pelo menos .relevante indagar se o desenvolvimento de
um modelo similar não seria observado na história da ciência
da mesma época;· por exemplo, a descoberta do cálculo diferen-
cial simultaneamente por Newton e Leibniz foi apenas aci-
dental, ou se se deveu a certas características gerais daquele
período particular da cultura européia, que produziu um gênio
não dissimilar em Bach e Leibniz, em Milton e Poussin. A obses·
são pelo rigoroso método científico pode levar historiadores, a
exemplo dos cientistas naturais, a construir muralhas entre seus

59
campos de pesquisa e a tratar cada ramo da atividade humana
como se funcionasse em relativo isolamento, tal como tantos
córregos separados que raramente se cruzam e nunca produ·
zem efeito. Para o historiador realizar plenamente .a sua tarefa
e erguer-se acima do cronista e do antiquário, deve empenhar·
se em pintar o retrato de uma época em movimento, coletllr-
lhe as características, distinguir entre seus elementos compo-
nentes, entre o velho e o novo~ o frutífero e o estéril, os sobre-
viventes moribundos de uma época anterior e os arautos do
futuro, nascidos antes do tempo.
A ordem de procurar a mais vívida expressão do uni·
versal no particular, no concreto, no diferenciado, no indivi-
d\Jal, de imitar a arte e o realismo do biógrafo e do pintor de
preferência à do fotógrafo e do estatístico. é o legado peculiar
do historitismo alemão. Se a história é uma ciência, não deve
ser então defraudada pela falsa analogia com a física e a mate-
mática, as quais, buscando as características mais amplas possí-
veis, menos variáveis, mais comuns. ignoram o que pertence espe-
cificamente a um só perfodo e um s6 lugar, intentando ser tão
genéricas, tão abstratas, tão fonnais quanto possível. O histo-
riador, pelo contrário, deve ver e descrever fenômenos em seu
contexto mais pleno, contra o pano de fundo do passado e a
previsão do futuro, organicamente vinculados a outros fenô-
menos que derivam do mesmo impulso cultural.
O efeito dessa doutrina, ao mesmo tempo sintoma e causa
de uma mudança de visão por parte de uma geração inteira, e
agora tão familiar, é inestimavelmente grande. Nosso hábito de
vincular características particulares a perfodos e lugares deter-
minados, de ver os indivíduos ou seus atos como típicos de
países ou de épocas, de conferir uma quase personalidade, atra-
vés de propriedades ativas e causais, a certos períodos ou
povos, ou mesmo de sentir com amplitude atitudes sociais, em
virtude das quais se descrevem os atos como expressões do
espfrito da Renascença ou da Revolução Francesa, do roman·
tismo alemão ou da era vitoriana - esse hábito deriva dessa
nova visão historicista. As doutrinas especificamente lógicas de
Hegel e seu posicionamento quanto ao método das ciências na-
turais foram improdutivos~ e seus· efeitos desastrosos por com-

60
pleto. A verdadeira importâ!Jcia de Hegel está n.J! sua influç_nCJa
no campo dos estudos sociais e históricos, na criação de nova~
disciplinas que consistem na história e critica das instituições
humanas, vistas como grandes personalidades semicolerivas.
possuindo vida e caráter próprios e que não podem ser des-
critas puramente em relação aos indivíduos que as compõem.
Essa revolução no pensamento tem alimentado mitos irracio-
Q!lÍS e peri&osos - tratando do Es_tado, raça, história_, epoca.
p~xemelot,., como 'sÜperpessoas• que exercem influencia - ,
mas~eu efeito nos esl\ldQs humanos tem sido múrtQ úti'I.-Deve-
se em grande parte à sua influência o surgimento de uma nova
escola de historiadores alemães com o dom de fazer os escri-
tÔres, que expliCaram- osa coiitecimentos como resultado do ca-
ráter ou das intenções, da derrota ou do triunfo pessoal deste
ou daquele rei ou estadista, parecerem ingênuos e anticientíficos.
Se a história é o desenvolvimento do Espírito Absoluto;
que Hegel não identificou apenas com o espírito humano -
já que negou qualquer separação essencial entre espírito e ma-
téria - , é necessário reescrevê-la como sendo "--htstória da con-
qui§.ta_cJ.Q._gspíri.!.o. O horizonte parece de repente ampliar-se ao
máximo. A história legal cessou de ser uma remota e especial
reserva de arqueólogós e antiquários e se transformou em Juris-
prudência Histórica, onde instituições legais contemporâneas
f~nam interpretadas como uma evolução ordenada do direito
romano ou do direito anterior. corporüicando o Espírito da
Lei em sí mesmo, da sociedade em seu aspecto legal. entrela-
~ando aspectos políticos, religiosos e sociais da sua vida .
~OJ.'s"'ov"" A partir de então, a hJ&tória da arte e a história da filo-
,;-;.r6.osofia começam a ser tratadas como elementos complementares
~ . \r.:..~~ indisp~J!!!Y_eis_à_h..ist6na~ger:.al da culliga: fatos ãntes consi-
"'· -~c .. derados triviais ou sórdidos adquiriram súbita importância,
-1 • -;)
.,. 5'-· como sendo até ali domínios inexplorados da atividade do Espí-
. . ~~·~\'" rito - as bistó!_!~~do comércio, do vestuário. da moda, da
linguagem, do folclore, das artes aplicadas foram julgadas
elementos essenciais da história institucional completa e 'orgâ-
nica' da humanidade.
Num determinado ponto, porém, Hegel divergia enfanca-
mente da concepção leibniziana de desenvolvimento como a

6a
progressio regull\r de uma essência gradualmente desdobrando-
se de potencialida. em realidade. Ele insistiu na realidade e ne·
cessidade de conflitos. guerras e revoluções, do trágico desperdí-
cio e destruição do:mundo. Declarou (acompanhando Fichte) que
todo processo envolve uma t~nsão necessária entre fo!Ç!S inco~­
ºatfv~is, cada uma forçandó a outra e .pgr meio d~s~_coi!!JjJo
mútuo fazendo avançar seu próprio desenvolvimento. A luta às
vezes se esconde, outras vezes é franca, mas pode ser' seguida em
todas as áreas da atividade consciente sob a forma de um cho-
que entre numerosas atitudes e movimentos rivais físicos, morais
e intelectuais. cada um deles proclamando a autoria de soluções
totais. mas na verdade alimentando novas crises exatamente
p~causa de sua unilateralidade. A lut~ cre~ce em força e yio-
I&.Icia até trans(Qrmar-se em çonflit.o aberto que culmina mqna
colisão final, cuja violência destrói todos os contendores. Nesse
ponto, ro..mpe-se o até então continuo desenyolyimentQ, ocorre
ª
uma repentina lacuna de certa abgmglncia _e, partir Q.a í, a .ten-
são e~ntre.J.uD..Jt~njQntº-.de_forças inicia-se o~_.!_ez. Certas
lacunas. a saber, as que ocorrem em escala ampla e observável.
são chamadas de revoluções políticas. Mas, numa escala mais
trivial, elas O<:Orrem em todas as esferas de atividades, nas
artes e nas ciências, no crescimento de organismos físicos estu-
dados pelos biólogos e nos processos atômicos estudados pelos
químicos. e finalm~nte no choque comum entre dois oponentes.
quando, no conflito de duas falsidades parciais, a nova ver·
dade é descoberta, ela própria relativa, assaltada por uma
contraverdade. e a destruição de uma pela outra provoca uma
vez mais um novo nível em que os elementos antagônicos sã~
transfigurados num novo conjunto orgânico - um_processo
que continua sem fun.• A isso ele chamou de _processo dialético.
A ngção ,de..1•J!: :r ;S.lrn.'ão fornece precisamente o prin-
cíP-Io dinâmico___nc.çessário para responder pelo movimento na
ltistória. O pensamento é a realidade que se toma consciente
de si mesma, e seus pt'Ote6SOS são os processos da natureza em
sua forma mais clara. O principio de absorção e resolução per-
pétuas (Aufhebung) numa unidade mais elevada ocorre na
natureza da mesma maneira que no pensamento discursivo. e
derronstra que seus processos não são despropositados, como
os movimentos mecânicos postulados pelo materialismo, mas

62
pQ.ssuem uma lógica interna e avanÇ!Im na direção de umH aulo-
realizaç!~ _cada vez_m_aior. Cada transição significativa é mar-
cada por uma lacuna revolucionária em larga escala, como,
por exemplo, a ascensão do cristianismo, a destruição de Roma
pelos bárbaros ou a grande Revolução Francesa e o novo mundo
napole6nico. E_m ~ada caso. o Espírito ou idéia universal avança
um passo para a completa consciência de si mesmo, e a humani-
dade é conduzida mais adiante, mas nunca, exatamente, na dire-
ção antecipada _por qualquer dos movimentos engajados no
eonflito preliminar, sendo que o lado desapontado de"'modo mais
profundo e mais irracional é o que acreditava com maior firmeza
na sua capacidade peculiar de formular o mundo segundo seus
próprios esforços.
Os novos métodos de pesquisa e interpretação revelados
de repente vieram a produzir um efeito de espanto e até de
embriaguez na sociedade alemã esclarecida, e em menor exten-
são em instituições culturais dependentes suas- as Universida-
des de São Petersburgo e Moscou. Q.Jlegdianismo. tomou-se o
~oficial de Q.UIIs~do_bomem de pretensões intelectuais: as
novas idéias foram aplicadas em todas as esferas de pensamento
e ação com um entusiasmo incontrolável que uma época mais
cética em relação a idéias julgaria difícil de conceber. ~studos
acadêmicos foram transfigurados: lógica hegeliana. jurispru·
dência hegeliana, ética e estética hegeliana, teologia hegeliana.
filologia hegeliana, historiografia hegeliana, cercavam o estu·
dante de humanidades para onde quer que se voltasse. Jk!·
Um, onde decorreram os derradeiros anos de Hege1.s. fQi Q.•
quartel-general desse movimentÓ._Patriotismo e reação política
e social levantaram novamente as cabeças. O avanço da dou-
trina segundo a qual todos os homens são irmãos. e as di-
ferenças nacionais, raciais e sociais são produtos artificiais
de uma educação defectiva, foi detido pela contratese Idealista,
segundo a qual essas diferenças, apesar de sua aparente irra·
cionalidade, exprimem o papel histórico peculiar de determi-
nada raça ou nação e estão fundamentadas em alguma ne<.es-
sidade metafísica. Elas são necessárias ao desenvolvimento da
Idéia, de que a nação é uma encarnação parcial. e não podem
ser banidas da noite para o dia pela simples aplicação da razão

b3
por reformistas individuais. A rerorma deve brotar de... terre-
no historicamente preparado; de outra forma estaria con-
denada ao fracasso pelas forças da história que se movem de
acordo com lógica própria, em seu devido tempo e segundo seu
próprio ritmo. Exigir liberdade frente a essas forças e tentar si-
tuar--se acima delas é o mesmo que desejar escapar de uma posi-
çio histórica logicamente necessária, de cuja sOciedade a pessoa
faz parte integral, escapar ao complexo de relações públicas e
particulares segundo o qual o homem é feito para ser o que é; o
que os homens sio, ele o será; querer fugir a isso é querer perder
a própria natureza. uma exigência pessoal contraditória que só
·poderia ser feita por homens que não compreendem o que estão
exigindo, homens cujas idéias de liberdade pessoa) são infantil-
mente subjetivas.
A verdadeira liberdade consiste no autodomínio. foge ao
controle externo. Isso só poderá ser conquistado pela desco-
berta do que a pessoa é e do que poderá vir a ser, ou seja.
pela descoberta das leis às quais, no tempo e lugar específicos
em que vive, a pessoa está necessariamente sujeita, e pela
tentativa de tomar reais as potencialidades do ser racional
- o que faz o indivíduo avançar e, paralelamente, a sociedade
a que ele pertence 'organicamente' e que se exprime nele e em
seus semelhantes. Somente os indivíduos 'de percepção históri-
ca mundial'. que incorporam as leis da história à consecução de
seus objetivos, serão capazes de romper com o passado. Mas
quando um homem de menos importância, em nome de algum
ideal subjetivo, tenta destruir uma tradição em vez de modificá-
la e, no curso desse processo, opõe-se às leis da história, ele
tenta o impossível e desse modo revela sua própria irracionalida-
de. Tal conduta é condenada não só por estar necessariamente
fadada ao fracasso, mas também por sua conseqüente futilidade :
podem ocorrer situações em que parece mais nobre perecer qui-
xotescamente que sobreviver. Ela está condenada porque é irra-
cional, já que as leis da história a que se opõe são as leis do
Espírito, substância suprema da qual tudo vem a ser composto.
e, por conseguinte, são leis necessariamente racionais; com efeito.
se não o fossem. não se prestariam a explanações humanas. O

64
Espírito se aproxima da perfeição ao atingir gradualmente maior
autoconsciência dentro de cada geração; o ponto mais alto de
seu desenvolvimento é alcançado pelos que, em qualquer
ocasião, vêem a si mesmos com mais nitidez no relaciona-
mento com seu próprio universo, isto é, nos mais profun-
dos pensadores de cada época. Os pensadores, para Hegel
e discípulos, incluem os artistas e os filósofos, os cientistas c
os poelas, tod~ os que. por seu espírito sensível e inquiridor.
têm consciência mais aguda e mais profunda que o restante da
sociedade quanto ao estágio de desenvolvimento ·-que a huma·
nidade atingiu, quanto aquilo que foi obtido em seu tempo e
em parte pelo seu esforço.
A história da filosofia é a hi.stó.ti.a_do crescimento ®~a
amoconsciência na qual o E6pírito se toma consciente de sua
tt!Qpria atividade; e a história da humanidade. sqJ> -~se ponto
de vista, nada mais é que a história do progresso do Espí-
rito no processo de sua crescente autoconsciência. 'Ioda história
é, portanto, a história do pensament2, ou seja, a história da filo.
sofia, idêntica à filosofia da história, já que esta não passa
de um nome para a consciência dessa consciência. O famoso
epigrama hegeliano, "a filosofia da história é a histórta da fi1o.
sofia". é, para alguém que aceita a metafísica hegeliana, não
um paradoxo obscuro, mas um lugar-comum singularmente ex-
presso, com o importante e peculiar corolário segundo o
qual todo progr~S!O verdadeiro é o progresso do Espírito -
mais consciente nos homens, não na natureza - . já que
con~titui a substância da qual tudo o mais vem a ser composto.
Por conseguinte, o único método pelo qual os homens preo-
cupados com o bem da sociedade poderão melhorá-Ja será o
de desenvo1v~r em si mesmos e nos outros o poder de analisar
a si mesmil e o meio. atividade esta mais tarde chamada de
criticismo, cujo crescimento é idêntico ao do progresso humano.
Disso segue·se que mudanças envolvendo violência física e
derramamento de sangue são devidas unicamente à obstinação
da matéria bruta que, conforme Leibniz ensinou, não passa de
espírito, porém em nível inferior, menos consciente. As reva.
luções instituídas por Sócrates. ou por Jesus, ou por Newton
foram revoluções muito mais verdadeiras que os aconteci-
mentos comumente assim denominados, embora tivessem ocor-
rido sem batalhas; toda conquista genuína, toda história verda-
deira ~~ literal e não metaforicamente, vencida sempre no reino
do Espfrito. Assim, a Revolução Francesa acaba no momento em
que -os fdósofos transformam a consciência dos homens de seu
mundo, antes de a guilhotina começar a funcionar.
Essa doubina parecia resolver pelo menos o grande pro-
blema que atormentou o espírito dos homens no começo
do skulo dezenove: muitas respostas diferentes à questão
enfocada pelas principais teorias políticas. A Revoluçlo Fran-
cesa fora feita a fim. de assegurar liberdade, igualdade e
fratemidade entre os homens; foi a maior tentativa na his-
tória moderna de corporificar uma ideologia revolucionária intei-
ramente nova em instituições concretas. pela tomada violenta
e bem-sucedida do poder por parte dos próprios ide6logos; mas
ela falhou, e seu objetivo, o estabelecimento da liberdade e
igualdade humanas, parecia de realização tio remota como
antes. Que resposta dar aos que, amargamente desiludi-
dos, caíram na apatia cínica, proclamando a impotência do
bem sobre o mal, ou da verdade sobre a mentira, afirmando a
incapacidade total da humanidade para melhorar seu destino
por seus próprios esforços? A esse problema, com o qual o
pensamento social do período de reação polftica na Europa está
preocupado, Hegel deu uma comovente soluçio com sua dou-
trina dQ...~rãter inevitável do pn'lrn&D bjst6ricp, que envolve
o malogro predestinado de qualquer tentativa de desviá-lo ou
apreseá·lo pela violência - sinal de fanatismo, isto ~. de exage..
ro unilateral de algum aspecto da dialética-, numa visão dire·
tamente oposta ls hipóteses tecnológicas rivais então em avanço
na França, através de Saint-Simon e Fourier. O pro_blema da li- f
he.t:.d~4e ~ial, e d.B;S ~uaas_4q fracasso em obtê-l.a, constitui, J
portanto, com ~ a naturalidade, o tema central dos primeiros
escritos de Marx. Sua análise e a soluçAo que apresentou
são,· em espírito, profundamente influenciadas por Hegel. Sua
experiência inicial e .seus instintos naturais o inclinaram para
o e,mpitiSJDp; e as maneiras de pensar peculiares a essa visão
são às vezes transparentes sob a estrutura metafísica atrás
da qual elas se ocultam em sua maior parte. Isso emer~e

66
com mais nitidez da pa1xao de Marx pelo irracionalismo t!
mitos de todas as formas e aspectos. Com freqüência, ele uti-
liza em sua argumentação os métodos e exemplos do materia-
lismo do séeulo dezoito, mas a forma em que se expressa
as teses que pretende provar são inteiramente hegelianas: a
il~nsill_ dA humanidade ue_se_ lf!insrorma por seu trabalho.
e a natureza externa a que ~stá ligada otganicamente, mediante
a.submissão de hado o que tem a~_çoJJLo con.tn)k_r.acional.
Marx foi convertido à nova visão na juventude, e durante mui·
tos anos, a despeito do veemente ataque à metafísica idealista,
permaneceu um convicto, constante seguidor e admirador do
grande filósofo.

67
4
Os Jovens Hegelianos

.. Eles (os alemães j jamais se levantarão. Antes morrer


de uma vez que rebelar-se. . . talvez até mesmo um ale-
mão. quando levado ao maior desespero, cesse de ques-
tionar, mas é preciso um volume colossal de opressão
inexprimível, insulto, injustiça e sofrimento para reduzi-
lo a tal estado. "
MtKHAll. BAKlJNIN
l : '
I ~; I ~f' .r, ...

Os anos que Marx passou como estudapte na Universidade


de Berlim foram um período de depressãq profunda entre a
intelligentsia radical da Alemanha. Em 1840 um novo reLde
quem muito se esperava subiu ao trono da Prússia. Antes da
posse. ele falara mais de uma vez de uma aliança natural entre
patriotismo. princípios democráticos e monarquia; prometera
promulgar nova constituição: referências cheias de enlevo come-
çaram a aparecer na imprensa liberal acerca de Oon Carlos e
o Romântico Coroado. Tais promessas foram reduzidas a pó.
O novo monarca não era menos reacionário. mas era mais astuto
e menos constrangido pela rotina que seu pai; os métodos
de supressão empregados por sua polícia eram mais imagma·
tivos e mais eficientes que os utilizados nos dias de Frede-
..
rico Guilherme III; de maneira que sua ascensão ao trono trouxe
pouca düerença. Não havia sina.is de reforma, fossem poUticas
ou sociais; a Revolução de Julho na França, saudada com imenso
entusiasmo pelos radicais alemães, apenas levou Mettemich a
criar uma comissão central para reprimir o 'pensamento peria
goso' em todas as terras alemãs, medida muito bem recebida
peJa pequena nobreza fundiária da Prússia, cujo poder contínuo
paralisava qualquer esforço rumo à liberdade. A çlasje gover-
nQ!!te fazia tudo ao seu alcance _para obstruir - não chegou
a suprimir inteiramente - a classe ascendente de industriais
e J?angueiro!. que, mesmo na atrasada e doce Prússia, come-
çava a mostrar inequívocos sinais de im.Pacjência. A livre ma-
nifestaçio na imprensa ou em reuniões públicas era inima-
ginável: a censura oficial mostrava-se por demais eficiente e
onipresente; a Dieta era formada por adeptos do rei; o
ressentimento contra os proprietários de terras oficiais, cada vez
maior à medida que a classe média se sentia mais fortale-
cida, finalmente emergiu por meio da única válvula disponível
de auto-expressão alemã, numa torrente de palavras: uma filea
sofia de oposiçio.
Se o hegelianismo ortodoxo foi um movimento conservador
e a resposta do tradicionalismo alemão ferido à tentativa fran-
cesa de impor seu novo principio de razão universal ao mundo,
a secessão de seus membros mais jovens representa um esforç_o
P!!a descobrir_~lgu.ma interpretação gradual para as fórmulas
.de deseDYaldmnto natura], separar a filosofia hegeliana de
sua preocupação com a história do passado e identificá-la com
o futuro, adaptá~la aos novos fatores sociais e econômicos que
vinham à tona por toda parte. Os dois campos, direita e
esquerda. os velhos e, como vieram a ser chamados, os Jovens
~lianos. ~~famosa sentença de seu fundador,
pãJ;q,,,; o;;;i~t e m-vedã;~coneordaram ambos
em interpretar isso como querendo dizer que a verdadeira expla-

sidade J.,.. -
~cmOmeuo...amiYJJlia à demonstração de sua n~s­
para eles histórica ou metafísica (por serem
em certo sentido idênticas) - , vale dizer, à sua justificação
racional. Nada poderia ser ao mesmo tempo mau e necessário.
pois tudo o que é real é necessariamente real e a necessidade de

70
tudo é a sua justificação: Die Wellgeschichte ist das Weltgericht
(A história do mundo é a justiça do mundo). Dessa fonna, muita
coisa foi aceita pelos dois lados. O cisma ocorreria em tomo
da relativa ênfase a ser aplicada em ten;nos cruciais como :ra-
cional' e 'real'.
Q.s~rva4gres, proclamando que ~mente o real ,e.u
racional, declaravam que a medida da racionalidade era a reali-
dade,- ou capacidade de sobrevivência; que Q._estágio alcan-
çado. pelas instituiçQes
.....,.__
sociais
.=....... =......
L.. . . . . . . . ... ou_pc;ssoais, ..confa~c.e.xistiam
..,
num dado momento,__eta ~ &.-.J!ledida_de_sua excelancia. Assim.
por exemplo, a__çu!...tu! a .alemã (isto é, ocidental), conforme
Hegel veio de fato a declarar, erJLª--!fnt~ç_maiLalta~ e
pro.!!!_e_lmente suprema, de suas predecessoras, as culturas
adenJ!L e greCo-rom~a. Disso seguiu (para alguns discípulos
do mestre) que o último estágio, sendo necessariamente o melhor.
o mais perfeito modelo político já obtido pelo homem, con·
sistia na mais elevada encarnação, até a data, dos valores oci·
dentais- o Estado moderno, quer dizer, o Estado prussiano.
J?ese~r alterar esse Estado ou subvertê--lo era moralmente erra·
d9, porque era contra o desejo racional nele embutido, além
de ser tarefa fútil, pois indispunha contra uma decisão já to-
mada pela história. Trata-se, aqui, de uma forma de argu~
mentação adaptada a seus próprios objetivos com a qual o mar-
xismo veio a familiarizar o mundo.
Os radiC§iS, acentuando o contrário, protestaram que ..so-
mente o racional era real~. O fato. insistiram, está muitas vezes
-
cheio de inconsistências, anacronismos e irracionalidade cega;
não pode, portanto, ser considerado, no sentido verdadeiro, ou
seja, metafísico, como sendo real. Baseando-se em numerosos
textos de Hegel, assinalaram que o mestre reconhecia que a
mera ocorrência no espaço ou tempo não equivalia, de forma
alguma, a uma realidade: o existente poderia ser um tecido de
instituições caóticas, cada uma frustrando os objetivos da outra.
e assim, do ponto de vista metafísico, um tecido contraditório e
portanto, totalmente ilusório. Graus de realidade eram medidos
pelo alcance em que as entidades sob exame tendiam a formar
um todo, podendo a carretara transformação radical de de-
terminadas instituições. de acordo com os primados da razão.

7
Estes são melhor conhecidos pelos que se emanciparam da tira-
nia do meramente factual e revelaram a inadequação deste ao
seu papel histórico, conforme se deduzia de uma correta interpre-
tação do caráter e rumo do passado e do presente. Essa ativi-
dade critica dirigida contra as instituições sociais de éí:x>ca.
por parte do indivíduo que se coloca acima delas, é a mais
nobre função do homem; quanto mais iluminadora a critica,
quanto mais escrutinador o criticismo. mais rápido será o ver-
dadeiro progresso rumo ao real. Pois_ conforme Hegel dis-
sera, sem dúvida, a re..!!idade Ç um ..Proce.!so, um esforço
universaLpara chegar à autoconsciência, e viceja de forma mais
~deita no próprio crescimento da autoconsciência critica entre
os homens. Tampouco há motivo para supor que semelhante
progresso deve ser gradual e indolor. Citando mais uma vez
textos enunciados por Hegel, os radicais lembraram a seus
oponentes que Q .PJ9.&resso ~va de t-'PB.i~ntre_op.os-
Y tos, que crescia atÇ urn.~dP _de_çrise e _ e.ntio ex,P-Iodia .etn
n " revoluçjo abe~; aí, e somente aí, ocorreria Q salto para
V ~etapa ~iJlte. Estas eram as leis de desenvolvimento encon-
tradas igualmente nos mais obscuros processos da natureza bruta
e nos negócios dos homens e das sociedades.
O dever pleno do filósofo que carrega o peso da civili-
zaçio nos ombros é, por conseguinte. promover a revolução
pela habilidade técnica especial que apenas ele comanda. ou
seja, pela guerra intelectual. Sua missão consiste em agitar os
homens em sua indolência e torpor, eliminar instituições obstru-
tivas e inúteis com a ajuda de suas armas críticas, mais ou menos
como os filósofos franceses minaram o Ancien Régime somente
pela força das idéias. Não deveria haver recurso à violência
física ou à força bruta das massas; recorrer à multidão, que
representa o nível mais baixo da autoconsciência atingida pelo
Espírito entre os homens, é utilizar meios irracionais que só
poderiam produzir conseqüências irracionais: uma revolução de
i~ias levaria a uma revolução na prática: Hinter die Abstralc-
tion stellt sich dÍe Praxis von selbst (Por trás da teoria abstrata,
a prática se materializa por si mesma). Mas, como o panfle..
tarismo poHtico era proibido, a oposição foi impelida a métodos
menos diretos de ataque; as primeiras bataJhas contra a orto-

72
doxia vieram a ser travadas no campo da teologia cristã. ~ujo~
professores tinham até então tolerado, senão encorajado, uma
filosofia que demonstrara grande disposição em apoiar a or·
dem existente. Em 1835, David Friedrich Strauu publicou
uma vida..!=rf!igule lesus onde o novo método crítico foi Üsãdo
para mostrar que certas passagens dos Evangelhos não pas~
savam de pura invenção, enquanto outras não representavam
fatos, mas crenças semimitológicas entretecidas nas primeiras
comunidades cristãs - uma etapa no autoconhecimento da
humanidade. O tema inteiro foi tratado como tu:n,. exercício de
exame critico de um texto historicamente importante, mas falível.
O livro provocou tumulto imediato, não só nos círculos or·
todoxos, mas também entre os Jovens Hegelianos, cujo repre~
sentante mais destacado. Bruno Bauer, lente de teologia na
Universidade de Berlim, desfechou-lhe vários. ataques por
escrito, do ponto de vista de um ateísmo hegeliano ainda mais
extremo, negando inteiramente a existencja histórica de Jesus
e tentando explicar os Evangelhos como obras de pura ficção.
como a expressão literárJ.! c!!, ·~o~· rev~cen~a é.Poca,
como o ponto mais elevado atingido no seu período pelo desen-
volvimento da Idéia Absoluta. As autoridades prussianas em
geral não se interessavam por controvérsias sectárias entre
filósofos, mas, nessa briga, os dois lados pareciam sustemar
opiniões subversivas da ortodoxia religiosa e, com toda a proba
bilidade, da ortodoxia política. Q_ hegelianismo. am es deixa
'19 CllLPJI~ ~mp__J]lOltimento--inofensi.'IO~ até mesmo leal
e_patriQ.tiCQ .JJo_campo_da.J:ilosofia. foi subitamente acusado de
tJ:ndÇocias ,demagógicas. O maior opositor de Hegel, Schelling.
a essa altura velho romântico reacionário, pietista e amargo,
foi trazido a Berlim a fim de refutar publicamente tais doutri·
nas, mas suas conferências não surtiram o efeito desejado
A censura foi intensificada e os Jovens Hegelianos. levados
a uma posição em que ou capitulavam completamente ou se
moviam mais para a esquerda política que a maioria dese-
java. A..J!nica arena ~m que a questão ainda era levantada estava
nas universidades.
~ - - onde uma liberdade acadêmica reduzida, m&
ainda legítima. continuava a sobreviver. A Universidade de
Beditp foi o principal reduto do hegelianismo, e não demorou
muito para que Marx mergulhasse na sua política filosófica.
Ele iniciou a carreira acadêmica como estudante da fa-
culdade de Direito, freqüentando as aulas de Savigny. sobre
jurisprudência, c as de Gans, sobre direito penal. Savigny, fun-
dador e maior teórico da escola histórica de jurispruência
e convicto e fanático antiliberal, foi o mais notável de-
fensor do absolutismo prussiano no século dezenove. Não
era hegellano, mas concordava com a escola ao rejeitar igual-
mente a teoria dos direitos naturais inalteráveis e do utilita-
rismo; interpretava historicamente as leis e as estruturas insti-
tucionais, como um desenvolvimento ordenadamente contínuo e
tradicional, oriundo dos ideais e do caráter de uma determinada
nação em suas circunstâncias históricas, e por eles justificado.
Marx freqüentou regularmente as aulas de Savigny, du-
rante dois períodos; .a imensa erudição e o poder da argumen-
tação histórica densa, que o notabilizava. foi provavelmente o
primeiro contato de Marx com o novo método de pesquisa histó-
rica, que ep,gja conhecimento_,_pongenorizado de fato~ como
base para amplas teses genéricas. O principal opositor profis-
sional de Savigny foi o professor de direito penal, Eduard
Gans. cujo efeito em Marx pesou muito mais. Gans era um
dos discípulos favoritos de Hegel; judeu, amigo de Heine, e
como este um humanitarista radical que não compartilha-
va a m6 opinião de seu mestre acerca do Iluminismo francês.
Suas aulas - modelos, ao que parece, de eloqüência e
de coragem - tinham ótima freqüência; seu criticismo livre,
à luz da razão, quanto às instituições legais e aos métodos da
legislação, sem traço de misticismo sobre o passado, afetaram
Marx profundamente e o inspiraram com uma concepção do
propósito adequado e do ~Çtgdo de critici&n.lQ~ Jeóriço que ele
jamais perdeu por completo.
Sob influência de Gans~Marx viu__~J.Y!iSJ»!lldência g
9lfD.PO_gatural 2ara ap~ c veli[icaç_ão de __ç~c;t-._tipo._.de
filosofia-da história. O hegelianismo a princípio repeliu-lhe a
inteligência naturalmente positiva. Numa longa carta íntima ao
pai, descreveu seus esforços para construir um sistema rival;
após noites insones e dias tumultuados em luta renhida com
o adversário, caiu doente e deixou Berlim para se recuperar.
Voltou com uma sensação de fracasso e frustração, incapaz de

74
trabalhar ou descansar. O pai escreveu-lhe longa carta pater-
nal, suplicando-lhe que não perdesse tempo com especulações
metafísicas estéreis quando tinha uma carreira a que se dedicar.
Suas palavras caíram no vazio. Marx enfronhou-se resoluta-
mente num estudo exaustivo da obra de Hegel, leu noite e dia
e depois de três semanas anunciou sua conversão comp1eta.
}Utificou-a tomand0=se membm dg.JlgkfQrldub (Clube dos Di-
plomados}, uma associação de intelectuais universitários livres·
pensadores que se reunia em adegas de cerveja, escrevia versos
levemente sediciosos, professava ódio violento ao iêi, à Igreja e
à burguesia, e, acima de tudo, discutia infindavelmente aspectDs
da teologia hegeliana. Ali, Marx conheceu e penetrou na intimi-
dade de membros destacados desse grupo boêmio, os irmãos
B!Wlo, Edgar e Egbert Bauer, Kõppen, um dos primeiros estu-
dantes de lamaísmo tibetano e autor de uma história do Tenor
francês, Max Stimer, que pregava um ultra-individualismo de
sua própria autoria, e outros espíritos livres {como se autodeno-
minavam}.
Marx abandonou os estudos de direito e se absorveu por
completo na filosofia. Nenhuma outra matéria parecia-lhe
possuir suficiente significação contemporânea. Planejou tomar-
se lente de ftlosofia numa universidade e, junto com Bauer.
la_!!Çar violenta campanha ateísta para acabar com as tímidas
e tíbias brincadeiras com doutrinas perigosas a que se entre·
gavam os radicais mais brandos. A campanha assumiria a forma
de uma peça bem elaborada, instrumentalizada com citações
copiosas do texto original, aparecendo como uma anônima dia-
tribe contra Hegel por um piedoso luterano que o acusava
de ateísmo e subversão da ordem pública e da moralidade. Essa
obra (mais provavelmente composta apenas por Bauer) apare-
ceu de fato e causou certo rebuliço; alguns críticos deixaram-se
enganar, mas os autores foram descobertos e o episódio findou
com a demissão de Bauer do seu posto acadêmico. Quanto a
Marx, freqüentou os salões literários e sociais: conheceu a
famosa Bettina von Amim. amiga de Beethoven e Goethe. que
se sentiu atraída por sua audácia e inteligência; escreveu um
diálogo filosófico convencional e compôs um fragmento de uma
tragédia byroniana, além de vários volumes de maus versos
que dedicou a Jenny von Westphalen, de quem, nesse interim.
se tomara noivo em segredo. O pai, assustado por sua dis·
sipação intelectual, escreveu-lhe carta após carta, cheias de
conselhos aflitos e afetuosos, suplicando-lhe pensar no futuro
e preparar-se para ser um advogado ou um funcionário público.
O filho enviava-lhe respostas tranqüilizadoras e voltava ao
modo anterior de vida.
Marx tinha agora 24 anos, era fllósofo amador sem
ocupação flxa, respeitado em círculos avançados por sua erudi-
çao e por seus poderes de polemista irônico e amargo. Não
tardou a começar a se irritar com o predominante estilo literário
e .filosófico de seus amigos e a1iados, mistura extraordinária
de pedantismo e arrogância, paradoxos obscuros e epigra-
mas forçados, embebidos numa prosa artificial, aliterativa
e trocadllhesca, jamais concebida para entendimento pleno.
Marx deixou-se contaminar até certo grau por ela, sobretudo
em seus primeiros textos polêmicos; no entanto, sua prosa é
compacta e luminosa em comparação com a massa de jargão
neo-hegeliano que. àquela altura. era impingida ao público
alemão. Alguns anos depois ele fez uma descrição do es-
tado da filosofia alemã da época: "De acordo com o teste-
munho dos nossos ideólogos ", disse ele, "a Alemanha empreen-
deu. ao longo do último decênio, uma revolução de proporções
sem• paralelo. . . uma revolução que, comparada à francesa, faz
desta última uma brincadeira de criança. Com espantosa rapidez,
um império foi suplantado por outro. um herói poderoso derru-
bado por outro ainda mais violento e mais poderoso no caos
universaL Durante três anos_ de 1842 a 1845, a Alemanha
sofreu um cataclisma de cadíter mais violento que tudo o
que lhe aconteceu em qualquer século anterior. Tudo isso, se
é verdade. ocorreu apenas na região do pensamento puro. Pois
estamos tratando de um fenômeno notável - a decomposição
do Espfrito Absoluto.
"'Quando a última centelha de vida desapareceu-lhe do
corpo, seus diversos elementos se desintegraram e entraram em
novas combinações para formar substâncias novas. Negociantes
de filosofia_ que antes viviam de explorar o Esplrito Absoluto,
atiraram--se com avidez às novas combinações. E cada um come-

7b
çou a dispor com todo o afã de sua parte. Seguramente isso
não poderia ser feito sem competição. A princípio. a transação
tinha caráter comercial sólido, respeitável; depois. quando o
mercado alemão ficou abarrotado. e o mundial, apesar de todos
os esforços, mostrou.se incapaz de assimilar mais mercadorias.
o negócio- como acontece na Alemanha- ficou deteriorado
pela produção em massa, queda de quaJidade, adulteração de
matêria·prima, forjadura de rótulos, por transações fictícias, pela
tramóia financeira e por uma estrutura creditícia à qual faltava
base real. A competição tomou·se uma luta amarga que nos é
representada agora em cores vivas como uma revolução de
significado cósmico, profícua em realizações e resultados que
marcam uma época ...
Isso foi escrito em 1845 e 1846~ em 1841, Marx estaria vi·
vendo ainda nesse mundo fantástico, e tomando parte na inflação
e produção em massa de palavras e conceitos, se as suas circuns-
tâncias não tivessem sofrido repentina e catastrófica mudança:
o_pai, de quem dependia financeiramente, faleceu, deixando par-
cos recursos à viúva e aos filhos mais jovens. Ao mesmo tempo.
o ministro prussiano da Educação resolveu afinal condenar
oficialmente a esquerda hegeliana e expulsou Bauer do seu pos-
to. Isso li.quidou em_definitiyo a possibilidade de wna carreira
acadêmk.a_para_Marx, ainda por cima muito comprometido no
caso Buer, e forçou.a a buscar outra ocupação. Não teve de es-
perar muito. Entre seus mais cálidos admiradores havia um certo
Moritz Hess,1 jornalista judeu de Colônia, radical leal e entu-
siástico que, mesmo então, situava-se mais à frente da esquer-
da hegeliana. Havia visitado Paris e ali conhecido os principais
escritores socialistas e comunistas franceses do momento, a cujas
opiniões converteu-se com ardor. Hess, curiosa mistura de
ardente judaísmo tradicional com idéias humanitaristas e hege-
ª
lianas, Rre~ou primazia dos fatore& econômicos sobre os fato-
res polfticos e Q.. im)lossibilida.de ..de emancipar a humanidade
sem antes libertar_9-Jm>}etariado.-que _vivia de .salários. Essa
escravização contínua, declarou ele. inutilizava todos os esfor-
ços intelectuais para o estabelecimento de um novo mundo

J • Mais tarde voltou a Moses. seu nome original.

77
moral, já que não pode existir justiça numa sociedade que
tolera a desigualdade e a exploração econômicas. A instituição
da propriedade privada era a fonte de todo o mal; os homens
só poderiam ser livres pela abolição da propriedade privada e
da propriedade nacional, o que acarretaria a remoção de frontei-
ras nacionais e a reconstrução de nova sociedade internacional
em bases mais racionais, coletivistas e econômicas. Seu encontro
com Marx encantou-o; numa carta a um companheiro radical,
dizia Hess: "Ele é o maior, talvez o único filósofo verdadeiro
vivo e dentro em breve . . • abrirá os olhos da Alemanha intei-
ra . .. Dr. Marx - este é o nome do meu ídolo - ainda é
muito moço (cerca de 24 anos, se tanto) e dará à religião e à
po1ítica medievais seu coup de gr8ce. Ele combina a mais pro-
funda seriedade filosófica com a inteligência mais mordaz. Ima-
gine Rousseau, Voltaire, Holbach, Lessing, Heine e Hegel fun-
didos numa s6 pessoa. . • Digo fundidos, não empilhados num
montículo - e você terá o Dr. Marx".
Marx considerava o entusiasmo de Hess afetuoso mas ridí-
culo e adotou um tom condescendente de que Hess, com ex-
trema cordialidade, não se ressentiu a princípio.. Hess era um
disseminador de idéias, tendia mais para fervente missionário
que para pensador original, e converteu mais de um dos
seus contemporâneos ao comunismo, entre eles um jovem radi-
cal chamado Friedrich ~n.sel.s, que ainda não conhecia Marx.
Ambos aprenderam de sua ligação com Hess mais que qual-
quer deles estaria pronto a admitir; em anos subseqüen..
tes inclinaram« a tratar Hess, que continuava a ser um
marxista dedicado (mas acrescentara uma f~rvida crença no
sionismo e, de qualquer modo, não era homem de ação), como
um tolo inofensivo, conquanto tedioso. Antes, porém, Marx en-
controu em Hess um aliado útil, já que, este incansável agitador,
conseguira persuadir um grupo de industriais liberais da Renlnia
a financiar a publicação de um jom.l radical que deveria estam-
p.i;: artigos sobre assuntos políticos e econômicos voltados eontra
a política econômica reacionária do governo de Berlim e, em
geral, mostrando solidariedade à classe burguesa emergente. O .
jornal foi editado em Colônia e chamou-se Rheinische Zeitung. -' ··
Marx foi convidado, e aceitou ansiosamente, a colaborar
com artigos regulares; dez meses mais tarde tomou-se seu

78
e.ditor-ch;fe. Era sua primeira experiência na prática po){.
tigl. Conduziu o jornal com imenso vigor e intolerância,
sua natureza ditatorial não tardaria a se manifestar, levando
os subordinados a se contentarem com o fato de deixá-lo
à vontade para qçrev~r sozinho a mpior p_"t;t~ do jornal. De
levemente liberal o Rheinische Zeitung passou a ser veemen~
temente radical, mais hostil, na sua violência, ao governo que
qualquer outro na Alemanha. Foram publicados longos e
grosseiros ataques à censura prussiana, à Dieta Federal, à classe
fundiária em geral; a circulação cresceu, sua fama espalhou-se
por toda a Alemanha e o governo viu-se forçado, afinal, a tomar
conhecimento da surpreendente conduta da burguesia da Re-
nânia. Os acionistas, aliás, não estavam menos surpresos
que as autoridades, mas, como. o nÚJllerO..de assinantes.não pa·
rava.de aumentar,. e a~lí!ca-~1!9DJh:a.pregada pelo jomal.era
e~Çru~ulosamente liberal, IU!vosando o livre.somércio e a unifi·
ÇBÇi9~ica da Alemapha, não_ prot~~am. As autoridades
prussianas, ansiosas por não irritarem as recém-anexadas provín-
cias ocidentais, também refrearam o desejo de intervir. En~
raj~d.o pela toJ.erâqçbl, Marx intensificou os ataques e acrefr
centou à discussão de assuntos políticos e econômicos em geral
quas _questijçs rticulares sobre as uais airava amargo ressen·
timento na província: a primeira, a situaão:--z_.. ·..l..l'3---
~- de-Moselle, região vinícola; a segunda. ' lei
severa gue ,p_gnia.J.adliie_s de-madeita-.pw.he_ç_deJerloradlt
das florestas vizinhas. Marx fez desses textos uma denúncia
sobremodo violenta contra o governo dos proprietários rurais.
Este, depois de uma pesquisa de opinião no distrito, de·
cidiu aplicar seu poder de censura, e o fez com severidade
crescente. Marx usou de toda a sua engenhosidade para enganar
os censores, em sua maioria homens de inteligência limitada.
e conseguiu publicar uma quantidade de velada propaganda
democrática e republicana que, mais de uma vezp causou repri-
mendas ao censor e à sua substituição por outro mais rígido. O
ano ..de...1842 foi dedicado a esse jogo elaborado, que teria con-
tinuado indefmidamente se Marx não houvesse por inadvertên·

ct:;
cia ultrapassado os limites. Durante o século dezenove o governo
representou a maior _personifica~ão de_oh~g~rantismo_, bar-

79
blrlsmo e opressão na Europa, um reservatório inexaurível
onde os reacionários de.. outras nações iam haurir força, e con-
seqüentemente tomou-se o •bicho-papão' de liberais ocidentais
de todas as tendencias. Tratava-se, a essa altura, do parceiro do-
minante na J\lia09!_ Russo-Prussian!_, e como tal fei .atacado fe-
~.Jlt~r _Marx em sucessivos editoriais; uma guerra contra
os russos parecia-lhe então e depois o melhor golpe a ser des-
fechado em favor da liberdade européia. O próprio imperador
Nicolau I p& os olhos por acaso numa dessas ftlípicas e
expressou sua irada surpresa ao embaixador prussiano. Uma
severa nota veio a ser enviada pelo chanceler russo ad-
moestando o rei da Prússia pela ineficiência de seus cen-
sores. o governo prussiano, ansioso por apaziguar o pode-
roso vizinho, tomou imediatas providências: 9 Rheinische .Zei-
tUIJB foi fechado sem 1.:\i~a ern_@brU de 1843 e Marx Y.iu-se
tDais um~~ demcupado. Um ano bastara para transformá-lo
num brilhante jornalista político de opiniões notórias, com um
gosto bastante desenvolvido em malhar governos intolerantes,
gosto este que sua carreira lhe daria mais tarde plena oportu-
nidade de satisfazer.
Nesse ínterim trabalhou com incansável c=nergia; apren-
dera francês lendo as obras dos socialistas de Paris - Fourier,
Proudhon, Dézamy, Cabet e Leroux. Leu a recente história
francesa e alemã, além de O prlncipe, de Maquiavel. Durante um
mes de.® u-se ahsonter pela história das artes antiga e moderna
a fim de reunir provas para demonstrar o caráter basicamente
revolucionário das categorias fundamentais de Hegel; a exem~
plo dos jovens radicais russos desse período, ele as conside-
rava, conforme a expressão de Herzen, "a álgebra da revolução".
"Assustado demais para aplicá·las abertamente", escreveu Her-
zen, .. no oceano tempestuoso da política, o velho filósofo fê-las
flutuar no tranqüilo lago interior da teoria estética". A opinião
de Marx quanto à exata interpretação dessas categorias viera a
ser afetada ultimamente, porém, por um livro aparecido du-
rante o ano - Teses preliminares para a re/orma da jiloso/ia,
de Ludwig Feuerbach.
Eeuerbaçh é um desses autores interessantes, não raramente
encontrados na história do pensamento~ que. sem serem pensa·

80
dores de primeira ordem. todavia deflagram em homens dr.:
maiores dons a repentina faísca que incendeia o combustível
há muito acumulado. Ele defendia posições empfricas à altu·
ra em que Marx reagia violentamente contra as sutilezas do
idealismo decadente em que estivera mergulhado durante os
últimos cinco anos. O estilo mais simples de Feuerbach parecia
de repente abrir uma janela para o mundo real. O escolasti·
cismo neo-hegeliano dos Bauer e discípulos pareceu-lhe de sú·
bito um pesadelo recém-cessado e cujas últimas lembranças ele
estava disposto a banir.
Hegel afirmara que os pensamentos e atos dos ho·
mens pertencentes ao ·mesmo período de determinada cultura
eram determinados pela ação, neles, dº _um~frlto idêntico
qG~ mgnjfestaya em todos os fenômeOQ$ do período. F.euer·
bach rejeitava isso com veemência. "O~ é,., inquiria ele.
com efeito, "o ,..gRf_rito de -uma época ou cultura senão um
nome resumido para a totalidade dos fenômenos que o com·
põem1H Dizer, portanto, que os fenômenos eram detenninados
a ser o que eram por esse espírito. consistia em afirmar que eles
eram determinados pela totalidade de si mesmos - uma tauto-
lQgi@.... vazia. A situação não mudaria, continuava a argumentar.
com a substituição dessa totalidade ~I_Q_Ç_Onceito de um mo-
delo, pois modelos não podem provocar acontecimentos; um
modelo era uma forma, um atributo de acontecimentos que só
poderiam ser causados por outros acontecimentos. ~ giRio
grego._o caráter remeA&; -o-espídto-..dL.Renascença, o espírito
da Rev<ili!ção Frances.a , o que~seriam senão abstrações, r.ótuloti
para descrever resumida~nte um dl;termjnado_ compJexo_de
· qualidãdes ~ acontecime.ptaa históricos, termos genéricos inven-
tados ~los hoqtens_.para~a-sua _própria conveniência, mas em
-.. --· ~ --
oenhum___seQtido reaL habitantes objetivos do mundo~ capazes
~ efetugr esta ou aquela alteração nos negócios humanos? O
ponto de vista mais antigo, segundo o qual a decisão e ação dos
indivíduos é que são responsáveis por mudanças, era fundamen·
talmente menos absurdo, pois os indivíduos pelo menos existem
e agem num sentido no qual as noções gerais e as denominações

- __
comuns não agem. _HegeL acentuara com razão a improprie-
dade dessa opinião. por não conseguir explanar de oue ..___ forma

SI
o resultado tQtal brotava da interação de um colossal JlÚJJlero
de vidas eJltos individuais, e revelou seu gênio na p~· de
uma f~. comn!D capaz de <!,.ar l!Jll8 ~o definida..a._essas
~o~tades, alguma lei geral em virtude da qual a história se cons·
trua como relato sistemático do progresso de todas as socieda-
des. Mas no run não ~ser racional e mergulhou ntqn
obicuro misticismo; pois a Idéia hegeliana, se não fosse uma
taufôlõjlca re-formação do que ela pretendia explicar, não P..@S·
saya de um_n~me disf&!ÇBdO para o próprio J;>eus do Crlstla·
nismo, colocando, por conseguinte, o tema para além dos limi-
tes da discussão racional.
O próximo passo de Feuerbach foi declarar que !1 fo!Ç&
IQQtriz da história nio era_mJ.iritu.al, mas .a soma.-das...;;g!di-
cõesJDMeigjs que sempre obrigam os homens qu~ !!e._ yi-
vc:m a pensAr e .a agir mmo Q fazem. Suas angústias ma-
teriais os levam, porém, a buscar consolo num mundo ima-
terial ideal de sua própria, ainda que inconsciente, invenção,
onde, como forma de recompensa pela infelicidade de suas vidas
na terra, poderiam gozar mais adiante de eterna felicidade.
Tudo o que lhes falta na terra - justiça, harmonia, ordem, bon-
dade, permanência - transformaram em atributos transcen-
dentes de um mundo transcendente, que chamam de real e
que transmudam num objeto de adoração. Se essa ilusão tem
de ser denunciada, deve ser analisada em função dos desajustes
materiais que psicologicamente lhe dão origem. A exemplo de
Holbach e do autor de O homem máquina, o ódio de Feuer-
bach ao transcendentalismo levou-o muitas vezes a adotar as
explanações mais cruas e simples em termos puramente físicos.
Der Mensch ist was er isst (O homem é o que come) é sua
caricatura hegeliana de sua própria doutrina: a .hjstórla huJDana
La. história' ...da..iufi.\16ncia decisiva do meio fisic.o_ sobre os
homcns_na_socledade; portanto, só o conhecimento das leis
físicas pode levar o homem a dominar essas forças, capaci-
tando-o a adaptar sua vida a elas de maneira consciente.
~" ,f:\,L Seu materialismo, e sobretudo sua teoria de que todas as
~~ 1'deologias'. religiosas ou seculares, não passam muitas ve-
zes de uma tentativa de oferecer compeosação ideal pelas
misérias reais, e por isso iluminam e obscurecem ao mesmo

82
tempo a sua existência, causou profunda impressão em Marx c
em Engels, e mais tarde em Lenin, que leu Feuerbach durante
seu exflio siberiano. A obra mais conhecida de Feuerbach, a
Essência do cristianismo, de 1841 (traduzida para o inglês pela
grande romancista George EJiot), que Marx tinha lido, bem
como a anterior Critica à jilosofia de Hegel, são tratados pro-
fundamente sentidos, apaixonadamente polêmicos, às vezes sim·
plórios e demonstrando pouca percepção histórica, embora bem
estruturados e convincentes; após os absurdos do hegelianismo
desenfreado dos anos 30, a simplicidade, honestida{le e cora-
gem desses textos devem ter parecido refrescantes e saudáveis.
Marx, que era ainda um radical e um idealista, foi alertado
por eles quanto a seu próprio dogmatismo. A Idéia hegdht-
Jta-resultara numa e~ressão sem_sjgnüiçado;_parecia·lhe agora
~egel construiria~ \)m~ edifício _ilusório c:!e palavras acerca
de palavras, e um dos deveres da sua .geração, armada com o
nliDso .método hegeliano, era substituí-lo por símbolos deno-
tando..ohjetos xeais. no tempo e no espaço, em suas observáveis
rel~es empíricas mútuas. Ele ainda acreditava na eficácia do
apelo à razão e se opunha à revolução violenta. Era um idea-
lista dissidente, mas ainda um idealista: no ano anterior havia
se doutorado na Universidade de Jena, com a tese caracteristi-
camente jovem-hegeliana sobre o contraste entre as opiniões de
Demócrito e de Epicuro, na qual defende teses por ele atribui-
das a este último em termos tão nebulosos quanto muito do
que mais tarde condenaria como palavreado idealista típico.
;:u:.. t~ .....1
Em abril de 1.84~/MarX casou-se com Jenny voo Westpha-
len, CQDtra a vontade .da maior parte da famüia da moça. Essa
hostilidade serviu apenas para aumentar a apaixonada lealdade
da jovem séria e profundamente romAntica; sua existência se
transformara pela revelação que o marido lhe fizera de um
mundo novo, e ela dedicou-se de todo à vida e à obra dele.
Amava Marx, admirava~ e confiava nele, e foi, emocional
e intelectualmente, dominada por completo. Nela ele se apoiou
em todas as épocas de crise e infortúnio, e continuou pelo resto
da vida orgulhoso de sua beleza e inteligência. O poeta Heine,
que os conheceu bem em Paris, admirou-se com o encanto pes-
soal e a inteligência de Jenny. Nos anos subseqüentes, quando
se viram na penúria, ela mostrou grande heroísmo moral ao
preservar intacta a estrutura de uma famflia e de uma casa, e
isso habilitou o marido a prosseguir a sua obra.
Juntos 2 resolveram emigrar pu:a_ a Franya. Ele sabia que
tin~~ J.ll!l!L çontt.ib..uiçio importante a fazer às questões mais
polêmiçps~ e .que_ n~_Alemanha era impossível falar abertamente
sob-~·~.Y!!!.-.!!!1!!1!0 sÇrio~ Nada o retinha: o _pai falecera,
Mm_.não se importava com a f~mflia. Na Alemanha não tinha
fonte de renda fixa. Os antigos companheiros de Berlim pa·
reciam-lhe agora uma. coleção de charlatães que desejavam enco-
brir a pobreza e a confusão de seu pensamento com uma lingua·
gem violenta e vida particular escandalosa. Durante toda a vida
Marx detestou dois fenômenos em particular: a jmaralidade e
a hiRogisia. Parecia-lhe que a boemia e o deliberado escárnio
às convenções não passavam de filistinismo invertido, acen·
tuando e homenageando os mesmos falsos valores com o exage-
rado protesto contra os mesmos, e exibindo, portanto, a mesma
vulgaridade fundamental. Kõppen ele ainda respeitava, mas
abandonou a admiração para com ele. Marx fez então nova
e tépida amizade com Arnold;Rugo, talentoso jornalista saxão
que editava uma publlcaçãcl peri6dica radical onde Marx
colaborava. Ruge era pomposo e irritadiço, um hegeliano
descontente, um radical que depois de 1848 transfonnou-se
aos poucos em nacionalista reacionário. Como escritor, tinha
visão mais ampla e gosto mais seguro que muitos de seus
camaradas radicais na Alemanha, e apreciava os dons de homens
mais talentosos, como Marx e Bakunin, com q.u em entrou em
contato. Ele não via possibilidade de manter o jornal na Ale-
manha, nas garras da censura a da polícia saxônica, e decidiu
editá-lo em Paris. Con.v.id.ou_Marx_para ajudá-lo a editar um
JlQY.q_jQmaJ a .ser-chamado de Deutsch~~ Jahrbücher;
Marx aceitou o convite com toda a diligência. "A atmosfera
aqui é de fato muito intolerável e sufocante", escreveu a Ruge
no verão de 1843. "Não é fácil bajular ainda que por amor à
liberdade, annado com alfinetes em vez de espada. Estou
cansado dessa hipocrisia e estupidez, da grosseria dos funcio-
nários p6bUcos, estou cansado de ter de me curvar, paparicar e
inventar frases inofensivas. Na Alemanha nlo existe nada que

84
~u possa fazer ... na Alemanha só se pode ser fal1>o consigo
mesmo." Marx deixou a Pníssia em novembro de 1843 e dois
dias depois chegava a Paris. Sua fama o precedera até certo
ponto: àquela época era conhecido principalmente como jor·
naUsta liberal de estilo mordaz, forçado a deixar a Alemanha
por haver advogado com violência reformas democráticas. Dois
anos depois. viria a ser conhecido da polícia de muitos países
como um comunista revolucionário descompromissado. um opo-
sitor do liberalismo reformista, o líder notório de um movimento
subversivo com ramificações internacionais. Qs an..es de _ I 84 3
!1_! 845 foram os mais decisi~_na_sua vida. Em Paris_tQm·
.. Jtletou sua trans(Qrmação inrelectual. No Fim disso. Marx havia
chegado a uma posição clara, pessoal e politicamente: o resto
da sua vida seria devotado ao seu desenvolvimento e realização
práticos.
5
•.:
Paris

Tempo virá em que o Sol brilhará apenas num mundo


de homens livres que não reconhecerão nenhum se-
nhor, exceto a sua razão; um tempo em que tiranos e
escravos, sacerdotes e seus instrumentos estúpidos ou
hipócritas já não existirão. a não ser na história ou
no palco.
\ CONDORCF.T

O ápice social, político e artístico de Paris na metade do


século dezenove é um fenômeno sem paralelo na história euro-
péia. Um conjunto notável de poetas, pintores, músicos, escri-
tores, reformadores e teóricos reuniu-se na capital francesa,
que, sob a monarquia tolerante de Luís Filipe, concedeu asilo
a exilados e revolucionários de muitos pafses. Paris já se nota-
bilizara, aliás. por sua generosa hospitalidade intelectual; os
anos 30 e 40 foram de profundo reacionarismo polftico no resto
da Europa, e artistas e pensadores em número crescente emer-
giam da escuridão. atraídos para o circulo de luz, e verifica·

87
vam que em Paris já não estavam, como em Berlim, condenados
ao conformismo pela civilização nacional. nem, como em Lon-
dres, friamente relegados a si mesmos, incrustados em pequenos
grupos isolados; ali, ao contrário, eram recebidos livremente
e até com entusiasmo, permitindo-se-lhes a livre entrada nos
salons artísticos e sociais que sobreviveram aos anos da restau-
ração da monarquia. A atmosfera intelectual em que esses
homens falavam e escreviam era agitada e idealfstica. Uma
predisposição comum ao protesto apaixonado contra a velha
ordem, contra reis e tiranos, contra a Igreja e o exército, acima
de tudo contra as estúpidas massas filistinas, escravos e opres-
sores, inimigos da vida e dos direitos à livre personalidade
humana. produzia uma estimulante sensação de solidariedade
emocional, que contaminava aquela sociedade tumultuada e alta-
mente heterogênea. As emoções eram vividas com intensidade.
os sentimentos e crenças individuais expressos em frases arden-
tes, divisas revolucionárias e humanitaristas repetidas com fervor
por homens preparados a dar suas vidas por elas; uma década,
em suma, durante a qual um intercâmbio internacional mais
rico em idéias, teorias, sentimentos pessoais esteve mais ativo
que ao longo da qualquer período anterior; havia, reunidos
no mesmo lugar, atraindo-se, repelindo-se e se transformando
mutuamente, homens .com talentos mais variados, notáveis e
articulados qut.: em qualquer outra época desde a Renascença.
A cada ano chegavam novos exilados dos territórios do impe·
rador e do czar. Colônias de italianos, poloneses, húngaros,
russos e alemães prosperavam nessa atmosfera de simpatia e
admiração universal. Seus membros fonnavam comunidades in-
temacionais, redigiam panfletos, convocavam reuniões, partici-
pavam de conspirações. acima de tudo. falavam e discutiam
sem cessar nas residências particulares. nas ruas. nos cafés. em
cerimônias públicas; o ânimo era de exaltação e otimismo.
Os escritores revolucionários e políticos radicais encon-
travam-se então no auge de suas esperanças e poder; seus ideais
continuavam vivos, suas divisas revolucionárias ainda não esta·
vem ofuscadas pela derrocada de 1848. Semelhante solidarie-
dade internacional pela causa da liberdade jamais fora teste·
munhada em outro lugar: poetas e músicos, historiadores e teó-
ricos sociais achavam que não escreviam para si mesmos nem
para um mero segmento do público. mas para a humanidade. Em
1830 houvera uma vitória sobre as forças da reação. Pois bem,
eles continuavam a viver de seus frutos; a conspiração blan-
quista suprimida em 1839 fora ignorada pela maioria dos libe-
rais rominticos como uma obscura émeute; no entanto, não se
tratava de uma erupção isolada, já que essa agitada atividade
artística ocorria contra o pano de fundo de um progresso indus-
trial e financeiro dos mais febris, acompanhado de impiedosa
corrupção, onde fortunas consideráveis surgiam e perdiam-se
da noite para o dia, em bancarrotas colossais. Um governo de
realistas desiludidos veio a ser controlado pela nova classe
governante de grandes financistas e magnatas de estradas de
ferro, grandes industriais que se movimentavam numa malha
de intrigas e subornos, na qual especuladores suspeitos e aven-
tureiros sórdidos controlavam o destino da economia da França.
Os freqüentes distúrbios de operários no sul indicavam um esta-
do de inquietação turbulento. devido tanto à conduta inescru-
pulosa de detenninados empregadores como à revolução indus-
trial que ia transformando o país de maneira mais rápida e
brutal, embora em menor escala que na Inglaterra. Um des-
contentamento social agudo. juntamente com o reconhecimento
geral da fraqueza e desonestidade do governo agravavam a per-
cepção geral de crise e transição, que fazia tudo parecer aces-
sível a uma pessoa engenhosa. inescrupulosa e enérgica; esse
quadro excitava as imaginações. produzindo oportunistas vig<r
rosos e ambiciosos como os encontrados nas páginas de Balzac
e no romance inconcluso de Stendhal, Lucien Leuwen, embora
a lassidão da censura e a tolerância exercida pela Monarquia
de Julho permitissem uma enfática e violenta forma de jorna-
lismo político. às vezes revestida de nobre eloqüência que,
numa época em que a palavra impressa tinha poder mais con·
vincente. inquietava o intelecto e as paixões, servindo ainda
mais para intensificar a atmosfera já elétrica. Memórias e cartas
deixadas por escritores, pintores, músicos - Musset, Heine.
Tocqueville, Delacroix, Wagner, Berlioz. Gautier, Herzen, Tur-
gueniev, Victor Hugo, George Sand, Liszt - revelam parte
dos encantos que cercaram esses anos assinalados pela aguda
e consciente sensibilidade, pela extrema vitalidade de uma socie-
dadc onde predominava o gênio. por uma preocupação com a
auto-análise, mórbida e autodramatizada, porém orgulhosa de
sua inovação e força, por uma repentina liberdade em relação
a antigos grilhões, uma nova sensação de amplitude, de espaço
para mover-se e criar. Em 1851 esse estado de espírito estava
morto, mas uma grande lenda fora criada, uma lenda que
sobreviveu até os nossos dias e fez de Paris um slmbolo de
avanço revolucionário aos seus próprios olhos e aos olhos de
outros.
~as Ml!~ !lão fora a Paris e~ bu$ca...de novas-experiências.
Era um homem de natureza não emotiva, quem sabe insensí-
vel, sobre o qual a ambiência surtia pouco efeito e que conse-
guia impor sua própria forma invariável em qualquer situação
em que se encontrasse; Marx desconfiava de todo entusiasmo,
principalmente do que se alimentava de frases galantes. Ao
contrário de seu compatriota, o poeta Heine, ou dos revolucio-
nários russos Herz.en e Bakunin, não experimentara aquela sen·
sação de emancipação expressa por e\es quando, em cartas ple-
nas de êxtase, ptoc\amavam ha'let enconttado em 'Paris o q_ue
de m.a\s adm\tá'le\ ha'l\a na c.\'1\\\u~o euto\)ê\a . 'ESCQ\b.eu '?ar\s,
em vu de 1\ruxe\as. ou de uma c\dade'Z.\nha na Suic;a, pot que..
tão mais prática e especifica: a conveniência de ali editar o
Deutsch-FranzlJsische }ahrbücher, destinado tanto ao p6blico
alemão como ao não-alemão. Ademais, ainda desejava encontrar
resposta à questão para a qual não encontrara solução satisfa.
t6ria quer nos enciclopedistas, em Hegel, ou em Feuerbach,
quer na massa de literatura política e histórica por ele consumi-
da com grande rapidez e impaciência em 1843. Qual, em..última
in_sjigga, o fa.tor respoosáyel pelo fracasso da Revoluçio Fran·
cesa? Que falha na teoria ou na prática abriu caminho à
vÓÍta do Diretório, do Império e, finalmente, dos Bourbons?
Que erros deviam ser evitados pelos que, meio século depois.
ainda se empenhavam em descobrir os meios de fundar uma
sociedade livre e justa? Acaso não existiriam leis que governam
a mudança social. leis cujo conhecimento poderia ter salvo
a grande revolução? O mais extremado dos enciclopedistas
simplificara, sem dúvida alguma, e de forma grosseira, a natu-
reza humana. ao representá-la como sendo capaz de tomar-se
inteiramente racional e boa. da noile para o dia, por meio da

90
educação esclarecedora. Quanto à resposta hegeliana de que
o tempo certo não havia amadurecido, de que a revolução fra·
cassara porque a Idéia Absoluta não atingira o estágio apro.
priado, porque os ideais perseguidos pelos revolucionários erarn
por demais abstratos e não históricos, isso, por sua vez, pare-
cia padecer dos mesmos defeitos, visto que não eram oferecidos
os critérios de apropriabiJidade, salvo a ocorrência do estágio;
tampouco a substituição de soluções ortodoxas por novas fór-
mulas como a auto.realização humana, ou razão personificada,
ou criticismo, pareciam tomar a revolução mais concreta, ou
pelo menos acrescentar-lhe algum significado. Além disso, está·
gio algum da Idéia Absoluta estava em condições de materia·
lizar uma .,sociedade livre e justa", conforme o que Marx e os
radicais entendiam dessa frase.
Diante dessas questões, Marx agiu com a sua eficiência
característica: estudou os fatos e leu os registros históricos da
revolução; também foi a fundo na literatura polêmica escrita
na França sobre essa e outras questões análogas, ultimando
ambas as tarefas dentro de um ano. Suas horas vagas, desde os
primeiros dias de escola, eram gastas principalmente em leituras,
mas a quantidade delas aumentou em Paris, ultrapassando todos
os limites. A exemplo do que lhe aconteceu nos dias de sua
conversão ao hegetianismo, Marx lia num estado de frenesi,
enchendo cadernos com _anotações, além de longos comentários
dos quais retirou muito material para seus escritos posteriores.
No final de t 844 já havia se familiarizado com as doutrinas
políticas e econômicas dos principais pensadores franceses e
ingleses, examinados por ele à luz do seu ainda semi~rtodoxo
hegelianismo. e por fim veio firmar sua posição própria, defi-
nindo categoricamente sua atitude em relação a essas duas ten-
dências inconciliáveis. Leu princip4lro~nte os ecol19.miªtas.. _ço-
mcçando por Quemay .c-âdam...SoúJh_e terminando e!!l Sis-
mondi, Ricardo, Sa.L.....~roudlton e discípuiQs. O lúcido, frio e
lógico estilo deles contrastava favoravelmente com o emociona-
lismo confuso e retórico dos alemães; a combinação de pers-
picácia prática e ênfase na investigação empírica, com arrojadas
e engenhosas hipóteses genéricas, atraiu Marx e fortaleceu-lhe
a tendência natural a evitar todas as formas de romantismo e
aceitar somente explanações naturalfsticas dos fenômenos que
pudessem ser apoiados -pela evidência da observação crítica. A
.
influência dos escritores socialistas france§~S e dos econnmistãs
ipgleses começara a dissipar o envolvente neypeiro do hege-
Jilni&JDD.
Ele comparou as condições gerais da França com as de
sua terra natal e ficou impressionado por seu nível infinitamente
maior de inteligência e capacidade de pensamento polftico: .. Na
França, todas as classes estão tingidas de idealismo político",
escreveu em 1843. "e sentem-se representantes de necessidades
sociais em geral . . . enquanto na Alemanha, onde a vida prá-
tica está despida de inteligência, e a inteligência não é prática,
os homens são levados a protestar apenas por sua necessidade
material, a realidade os prende. . . mas energia revolucionária e
autoconfiança não bastam para habilitar uma classe a ser liber-
tadora da sociedade; é preciso identificar outra classe com o
principio de opressão . . . tal como na França a nobreza e o
clero foram identificados. Essa tensão dramática está ausente
na sociedade alemã . . . existe ape.nas uma classe cujos erros não
são específicos, mas erros de uma sociedade inteira: o proJeta·
riado". Ele afinna que o povo alemão é o mais atrasado dos
povos ocidentais. O passado da Inglaterra e da França espelhe-
se corretamente no presente alemão: a verdadeira emancipação
dos alemães, que estão para povos mais adiantados como o pro-
letariado para outras classes, requererá necessariamente a eman-
cipação de toda a sociedade européia da opressão política e
econômica.
No entanto, se Manc estava impressionado pelo realismo
político daqueles escritores, não se deixou abalar menos por sua
falta de senso histórico. Foi essa falta, parecia-lhe, que lhes tor-
nou possível o ecletismo fácil e superficial. a surpreendente des-
preocupação com que introduziam modificações e acréscimos
em seus sistemas sem aparente alteração intelectual. Semelhante
tolerância parecia-lhe demonstrar falta ou de seriedade ot.i
de integridade. As opiniões de Marx tinham sempre contorno
nítido e teor violento. deduzidas de premissas que não permi·
tiam incertezas nas conclusões: a flexibilidade intelectual dos
franceses. pensava ~le. poderia ser atribuída unicamente ao
domínio insuficiente da rigorosa estrutura do processo histó-
rico. A afinnação dos economistas clássicos, de que as catego-
rias contemporâneas de economia política continuavam boas
para todos os tempos e lugares, feriu-o profundamente. Conforme
Engels observou depois, "os economistas do dia falam como se
Ricardo Coração de Leão, caso conhecesse um pouco de eco-
nomia, pudesse ter salvo seis séculos de erros com a instituição
do livre comércio, em vez de perder seu tempo nas cruzadas••,
como se todos os sistemas econômicos anteriores fossem desa-
jeitadas aproximações do capitalismo, por cujos padrões teriam
de ser classificados e avaliados. A inabilidade em perceber o
fato de que qualquer período só pode ser analisado--em função
de conceitos e categorias que lhes são peculiares, e determinado
por sua própria estrutura socioeconômica, é responsável pelo
socialismo utópico, pelos esquemas elaborados que resultam
em tantas outras versões idealizadas da sociedade burguesa ou
feudal, com os aspectos •maus' deixados de fora; consideran-
do que a questão não é o que se deseja que aconteça, mas o
que a história permitirá acontecer. que tendências no presente
estão destinadas a desenvolvimento e quais perecerão, somente
se deve constn,.ir de4 acordo com os resultados desse método
científico de investigação.
ContUdo, Marx considerava com simpatia a inclinação moral
daqueles escritores. Eles também desconfiavam de intuições ina-
tas e apelos ao sentimento que transcendiam a lógica e a obser·
vação empírica; viam nisso a última defesa da reação e do
irracionalismo: eram também apaixonadamente anticlericais e
antiautoritários. Muitos sustentavam opiniões antiquadas acerca
da harmonia natural dos interesses humanos, ou acreditavam
na capacidade do indivíduo de libertar-se da interferência dos
Estados e monarcas para assegurar sua felicidade e a dos outros.
Tais opiniões a educação hegeliana de Marx tomava totalmente
inaceitáveis; mas, na derradeira trincheira, esses homens eram
os inimigos de seus inimigos, alinhavam-se no lado do progresso.
combatiam pelo progresso da razão.

11

Se Marx trouxe de Hegel sua v1sao da estrutura histó--


rica - ou seja. das relações fonnais entre os elementos de que

93
se conslitui a história humana - . foi buscar o conhecimento
de tais elementos em Saint-Sitn.Qn e discípulos, bem como nos
novos historiadores liberais, Guizot, Thierry e Mignet. Saint-
Simon foi um pensador de opiniões audazes e originais: foi o
primeiro escritor a assegurar que o d~yoJ~imento du..tela-
ç&s cCQDOmfras é o fator ~n,apte._na hist6pa (ter feito
isso em sua época constitui por si s6 direito suficiente à imor-
talidade), e a analisar o ~ histórico como UIJl..QOnfljto ~­
t{nuo entre classes econômicas, entre os gue. em dado períf>do,
são ~ possuidores ~o~ ~~ais recursos econômicos da comu-
nidade, e os que carecem de tal vantagem e dependem dos
primeiros para a sua subsistência. Segundo Saint-Simon. a classe
dirigente raramente mostra-se desinteressada ou capaz de fazer
uso pleno e racional dos seus recursos, ou de instituir uma
ordem na qual os mais capazes para faza-Jo apliquem e aumen-
tem os recursos da comunidade, e raramente é flexível o bas-
tante para adaptar«. a si e às instituições por ela controla-
das, às novas condições sociais que sua própria atividade faz
emergir. Por isso ela tende a implementar uma política de
visão curta e egoísta, a formar uma virtual casta, a acumular
a riqueza disponível em poucas mãos e, por meio do prestígio
e do poder assim obtido, a reduzir a maioria despossuída à
escravidio social e econômica. Os súditos naturalmente crescem
rebeldes e devotam suas vidas à derrubada da minoria tirânica,
o que fazem com êxito, quando o conjunto de circunstâncias
os favorece. Mas_eles evoluem corrompidos pelos longos anos
de servidão e tomam-se por isso incapazes de conceber ideais
mais elevados que os de seus senhores. de forma que, quando
adquirem poder, utilizam-no não menos irracional e i,njusta-
mente que seus próprios opressores antigos; por seu turno,
criam assim uma nova classe oprimida, e a luta continua em
novo nível. A história humana é a história de tais conflitQs.
devido, em primeira e última instância - conforme Adam
Smith e os filósofos franceses do século dezoito disseram - , à
cegueira de senhores e escravos quanto à coincidência dos me-
lhores interesses de ambos sob um sistema de distribuiçio racio-
nal de tecunos econômicos. Em vez disso, as classes governan-
tes tentaram deter qualquer mudança social, gerando vidas ocio-
sas e ináteis, obstruindo o progresso econômico sob forma de

94
invenção técnica, que, se adequadamente desenvolvida, assegu-
raria com rapidez, mediante sua criação em número ilimitado e
distribuição científica, a felicidade eterna e a prosperidade da
·humanidade. Saint-Simon, melhor historiador que seus prede-
cessores enciclopedistas, formou uma visão verdadeiramente evo-
lucionária da sociedade humana e avaliou épocas passadas, não
em função de sua distância da civilização atual, mas em função
da adequabilidade de suas instituições às necessidades sociais e
econômicas de sua própria época; em conseqüência, seu regis-
tro, por .exemplo, da Idade Média, é muito mais perietrante e
simpático que os da maioria de seus contemporâneos liberais.
J
Ele viu o progresso humano cc;»mo uma.-~Jivi~de cri~ti!a_e in- t J \i\JI'~'"'
ventiva do homem em sociedade, pela qual transformam e Y \ ·
ampliam sua natureza e necessicfãdés e os rotigs_de_~~ti~fazê:.l~:
tantº-!!piritu..,!is como _mat~ri_!lis; a natureza humana não é,
como presumia o século dezoito, uma entidade física, senão um
processo de crescimento, cuja direção vem a ser determinada por
seus próprios fracassos e êxitos. Daf ter ele notado que uma
ordem social responsável pelas necessidades autênticas de uma
certa época tende a obstruir os movimentos de um período pos-
terior, transformando-se em camisa-de-força que imuniza as clas-
ses protegidas por sua existência. O exército e a Igreja, ele-
mentos orgânicos e progressistas na hierarquia medieval, não
passam agora de sobreviventes obsoletos; suas funções são de-
sempenhadas na sociedade moderna pelo banqueiro, industrial,
cientista, com a conseqüência de que sacerdotes, soldados e
rentim s6 podem sobreviver como ociosos e parasitas sociais,
desperdiçando substância e detendo o avanço das novas classes;
por conseguinte, devem ser eliminados. Em seu lugar, proftssio-
nais diligentes e especializados, escolhidos por sua capacidade
gerencial, devem assumir o comando da sociedade: fmancistas,
engenheiros, administradores de grandes empresas industriais e
agrícolas, rigorosamente centralizadas. devem governar. Os saint-
simonianos ensinaram que as leis de herança, responsáveis por
imerecidas desigualdades de riqueza, deviam ser abolidas - re·
curso que não se estenderia à propriedade privada em geral:
todo homem tem direito ao fruto de seu labor pessoal. A exem·
pio dos arquitetos da Revolução, a que se seguiram Fourier e

95
Proudhon, Saint-Simon e seus discípulos acreditaram com toda
a convicção que a posse da propriedade constituis a um só
tempo incentivo ao trabalho árduo e à instituição da moralidade
privada e pública. Banqueiros. industriais, inventores, matemá-
ticos, cientistas. engenheiros, pensadores, artistas e poetas de-
vem ser recompensados de forma adequada pelo Estado, p~
porcionalmente à sua eficiência; uma vez racionalizada a vida
econômica da sociedade por especialistas, a virtude natural da
natureza humana para o progresso e a harmonia natural dos
interesses coletivos garantiriam a justiça universal, a segurança.
a satisfação e a igualdade de oportunidades para todos os
homens.
Saint..Simon viveu numa época em que as últimas relíquias
do feudalismo na Europa ocidental desapareciam, por fim, diante
do avanço do empresário burguês e de suas novas técnicas me-
cânicas. Ele depositava uma fé infindável nas imensas possibili-
dades das invenções técnicas e em seus efeitos naturalmente
bçn6ficos sobre a sociedade humana: via na classe média em
ascensão homens enérgicos e capazes, animados por um senti·
mento de justiça e altruísmo desinteressado, porém estorvados
pela hostilidade cega dos aristocratas rurais e da Igreja, que se
apegavam aos seus privilégios e propriedades. tomand~se inimi-
gos da justiça e de todo o avanço cientifico e moral.
Essa crença não era tão ingênua. então, como poderia pare-
cer hoje. Conforme o próprio Marx repetiria depois, no momento
-decisivõ de luta pela realização social a vanguarda da classe
ascende~te· numa nação identifica naturaldlente sua causa com
a massa dos oprimidos. e sente-se (coisa que~ até certo ponto,
é mesmo) a campeã desiníeressadà de um novo ideal, combaten-
do nas mais avançadas trincheiras da frente progressista. Saint-
Simon foi o mais eloqiiente pr.ofct.a-.da burguesia ,~,çendegte
em seu aspecto mais generoso e idealista -NaturaJmente.-ele
atribuiu o m ais alto vaiQr à indústria. iniciativa, inventividade
e à capacidade de planejamento em larga escala: mas também
formulmt oom agudeza a teoria da luta de clap;es pouco saben-
do como viria a ser aplicada, algum dia, essa parte da sua dou-
trina. Ble próprio foi qm_aristncrata fundiário....do.. séculn de-
zoito. arruinado pela Revolução e que preferiu identificar-se

96
com o poder em andamento. assim explicando e justificando a
supressão da sua própria classe.
Seu mais famoso rival ideológico, Charles Fourier, foi um
viajante comercial que viveu em Paris durante os primeiros de-
cênios do novo século, quando financistas e industriais. nos
quais Saint-Simon depositara suas esperanças, longe de efetivar
a reconciliação social, buscavam acentuar o antagonismo de clas-
ses, mediante a criação de monopólios fortemente centraliza-
dos. Obtido o controle do crédito, e assegurado o trabalho
assalariado numa escala até então sem precedente~ eles possi·
bilitaram a produção e distribuição em massa de bens de con-
sumo, competindo, assim, em tennos desiguais, com os nego-
ciantes e artesãos de menor porte. a .quem expulsavam siste-
maticamente do mercado livre e cujos filhos absorviam em suas
fábricas e minas. o_ efeito social da Revolução Industrial na
Franç!_ foi criar uma brecha e um estado ae pennanêfite- amaf..
gura entre a grande e l! petite bour&_eoisie. Fourier, represen-
tante típico da classe arruinada, investe com amargor contra
a ilusão de que os capitalistas eram os salvadores predestinados
da sociedade. Seu contemporâneo mais idoso. o economista suíço
Sismondi, com imensa quantidade de evidência histórica, numa
época que requeria muito talento para perceber isso, opinara
que, enquanto as prévias lutas de classe decorriam da escassez
de bens no mundo, a descoberta de novos meios mecânicos de
produção canalizava uma oferta excessiva. provocando, caso
não fosse logo reprit)lida, uma guerra de classes em compara-
ção com a qual os conflitos anteriores perderiam a importân·
cia. A necessidade de comercializar a produção crescente gera-
ria uma competição contínua entre capitalistas rivais, que se
veriam sistematicamente forçados a baixar salários e aumentar
as horas de trabalho dos empregados como fonna de garantir
vantagem. ainda que temporária. sobre o rival de menos fôlego
- e isso levaria a uma sucessão de agudas crises econômicas
que findariam em caos político e social, por causa das guerras
mortais entre grupos de capitalistas. Uma pobreza assim artifi-
cial. crescendo em proporção direta ao aumento de mercado-
rias, além do monstruoso desrespeito aos direitos htimanOs fun-
damentais, para cuja garantia a grande revolução fora feita. só
poderia ser evitada pela intervenção do Estado, ao qual cabia
restringir o direito de acumular capitul e reduzir os meios de
produçio. Mas, ao passo que Sismondi era um new dealer por
antecipação, ou profeta do weljare state, acreditando na possi-
bilidade de uma sociedade centralizada, conduzida com obje·
tivos racionais e humanos, e se limitava a recomendações gené-
ricas, Fourier desconfiava da autoridade central e afirmava que
a tirania burocrática tende a se desenvolver se os órgãos gover·
namentais se hipertrofiarem; propunha que a terra fosse divi-
dida em pequenos grupos. que chamou de falanstérios, cada
um com seu governo próprio e federados em unidades cada vez
maiores; máquinas. terra. edifícios. recursos naturais, tudo seria
propriedade comum. Sua visão, mescla de excentricidade e gê-
nio, é bastante elaborada e precisa mesmo em seus instantes
mais apocalípticos: uma grande usina elétrica central faria todo
o trabalho mecânico do falanstério; os lucros seriam divididos
entre trabalho, capital e talento e seus membros, com apenas
algumas horas de trabalho diário, ficariam mais livres para de·
senvolver as faculdades intelectuais, morais e artfsticas numa
dimensão sem precedentes.
A exposição é interrompida às vezes por lances de pura fan.
tasia, como a profecia do aparecimento no futuro imediato
de uma nova raça de bestas, não dessemelhante, em aparência.
das espécies existentes. porém mais poderosa e mais numerosa
- ' antileões', 'antiursos', 'antitigres'. tio cordiais e ligados ao
homem quanto seus ancestrais são hostis e destrutivos, e exe-
cutando a maior parte do trabalho do homem com a perfcia,
inteligência e capacidade de previsão ausentes das máquinas co.
muns. A tese tem o seu lado bom e mau. Na cruel precisão
de sua análise dos efeitos autodestrutivos. tanto da centralização
como da competição livre; no timbre intenso de sua indigna-
ção e na sua demonstração de horror à total indiferença pela
vida e liberdade do indivíduo demonstrada pelo monstruoso regi-
me de financistas e seus mercenários - os juizes. os soldados e
os administradores - . a acusação de Fourier é o protótipo de·
todos os ataques à doutrina do irreprimido laissez.faire, das
grandes denúncias de Marx e Carlyle. das caricaturas de Dau-
mier e do teatro de Büchner. e também dos protestos da esquer-
da e da direita contra a substituição de velhas por novas formas

98
de privilégio e contra a escravização do individuo pela máquina
destinada justamente a libertá·lo.
A Revolução de 1830, que expulsou Carlos X e pôs Luis
J:i,lipe no trono d~t. E!:,an~t._~U um.a_vez mais o interesse
e~lico pela~ questões socia!s. Durante a década que se seguiu.
uma sucessão infindável de livros e panfletos jorrou das im·
pressoras, atacando os males do sistema existente e sugerindo
todos os tipos de· remédio, das suaves propostas liberais de La·
martine ou de Crémieux às mais radicais reivindicações semi·so-
cialistas de Marrast ou Ledru RoUin e ao evoluído socialismo
de Estado de Louis Blanc, culminando nos drásticos programas
de Barbes e Blanqui, que, em seu jornal L'Homme Libre, pre·
garam violenta revolução e abolição da propriedade privada.
Considérant, discípulo de Fourier, proclamou o colapso iminente
· do sistema de relações de propriedade; e conhecidos escri· )ot. . · •
' '!'...

tores socialistas da época, Pecqueur, Louis Blanc, Dézamy e a


figura mais original e independente entre eles, l!roudhon, publi·
caram seus mais famosos ataques à ordem capitalista entre 1839
e 1842, nisso acompanhados por uma haste de figuras menores
que lhes diluíram e popularizaram as doutrinas. Em 1834, o
padre católico Lamennais publicou Palavras de um crente.
de cunho socialista cristão, e em 1840 surgiu a Biblia da Uber·
dade, pelo a~ade Constant, prova clara de que até na Igreja
haYia homensJncapazes de resistir ao grande apelo popular das
no.vas ..teorias revolucionárias.
O retumbante êxito dos Dez anos de Louis Blanc, brilhante
e sombria análise dos anos de 1830 a 1840, indicou a tendência
de opinião. O comunismo liter@rio e fº os6fico ~~çou _~~f!t~ar
n~_rpoda: Cabet escreveu uma utopia comunista muito popular,
intitulada Viagem a lcaria; Pierre Leroux pregou um igualitaris-
mo místico à romancista Qeorge Sand, e Heine discutiu.o com
simpatia em suas famosas vinhetas sobre a vida social e literária
de Paris, durante a Monarquia de Julho.
O destino subseqüente desses movimentos tem pouca im·
portincia. Os saint-simonianos, após alguns anos de existência
inconstante, desapareceram como movimento e alguns dentre
eles tomaram·se magnatas prósperos de ferrovias e rentierst rea·
Uzando pelo menos um aspecto da profecia do mestre. Os fou·

qq
rieristas mais idealistas rundaram comunidades comunistas nos
Estados Unidos, algumas das quais, como a de Oneida, duraram
decênios e atraíram pensadores e escritores americanos de pro-
jeção: nos anos 60. tiveram influência considerável por meio
de seu jornal, o Tribune de Nova York.
Marx familiarizou-se com essas teorias;_suas doutrinas muito
thes deve. A visão de Saint·Simon, de vastas e novaspossibi-
lidades produtivas, e seu efeito revolucionário na sociedade
falava (e fala ainda) aos que acham que somente a industriali-
zação arrojada alimenta as perspectivas de rápido avanço rumo
ao poder e à expansão e realização das capacidades humanas.
em todas as esferas, no mais pleno grau. Fourier sensibilizou os
que, ao contrário, viam a investida sem freios na produção
e distribuição imperfeita como uma ruptura das naturais rela-
ções humanas, que transfonna homens em mercadorias, zomba
da justiça, faz das faculdades humanas canais que as bloqueiam
ou se voltam contra as necessidades mais naturais, cnando uma
odiosa e destrutiva guerrilha na selva, refreada apenas pela cen-
tralização impiedosa que esmagava igualmente suas vítimas e que
a frenética expansão das empresas produtivas parecia tomar ines-
capável. Manc aceitou as duas teses: tentou mostrar que os ho-
mens progrediam - através de mares de lama e de sangue :_
para uma sociedade em que as profecias mais otimistas ~ pro-
d~tividade inco~tida congeminavam·se com o controle social ~e
salvava os homens do desperdício, opressão, frustração e atom1·
zação. Para mostrar isso e oferecer prova concreta. ele testou, o
melhor que pôde, as teorias sociais dos pensadores franceses,
ao adquirir conhecimentos pormenorizados da recente história
social em várias fontes disponíveis. de livros e de jornais, de
encontros com escritores e·jornalistas, e do convívio no final das
tardes com pequenos grupos de revolucionários e diaristas ale-
mães que, sob inOuência de agitadores comunistas, se reuniam
para discutir problemas de sua organização dispersa e, mais va-
gamente. a possibilidade de uma revolução~'em sua terra natal.
Nessas conversas, Marx descobriu um pouco das necessidades
e esperanças de uma classe, da qual um retrato abstrato fora
esboçado nas obras de Saint-Simon e seus epígonos. Marx pres·
tara pouca atenção aos papéis .exatos que a petite bourgeoisie e
o proletariado iam desempenhar no progresso da razão e na

100
melhoria da sociedade. Havia. além disso, o etemento instável,
déclassé, composto de indivíduos marginais, participantes de
estranhos negócios, boêmios. soldados desempregados, atores.
intelectuais. nem senhores, nem escravos, independentes e no
entanto precariamente situados no último nivel de subsistência,
cuja existência mal fora reconhecida pelos historiadores sociais,
e menos ainda explicadas ou analisadas. O interesse pelos estu-
dos econômicos dos socialistas que formavam a ala esquerda
do partido francês da reforma chamou a atenção de Marx para
essas questões. Ruge o havia encarregado de escrever um artigo
para o seu jornal, sobre a Filosofia do direito, de Hegel. Marx
redigiu-o juntamente com um ensaio acerca da questão judaica,
no começo de 1844. O ensaio sobre os judeus foi considerado
uma resposta aos artigos de Bruno Bauer a respeito. Bauer
havia declarado que os judeus, historicamente atrasados em rela-
ção aos cristãos, deveriam ser batizados antes de poderem reivin-
dicar plena emancipação civil. Marx.. na sua resposta. afirmou
que os judeus já não eram uma entidade religiosa ou racial,
mas uma entidade puramente _econômica. forçada à usura e a
outras atividades sem atrativos por causa do tratamento que
recebiam dos vizinhos - uma excrescência do sistema capita-
lista; só poderiam ser emancipados, portanto, com a emanci-
pação do resto da sociedade européia; batizá-los equivaleria a
substituir uma cadeia por outra: dar·lhes unicamente liberdades
políticas favoreceria os liberais que nelas vêem tudo a que o
ser humano aspira e na verdade deve possuir. A despeito de
alguns momentos brilhantes, o ensaio é uma análise superficial,
porém mostra Marx numa disposição típica: determinado a evi-
tar que os sarcasmos e insultos de que alguns dos notáveis
judeus de sua· geração, Heine, Lassalle, Disraeli, eram alvos per-
manentes, jamais o atingissem, na medida em que pudesse im·
pedi·los. Conseqüentemente, decidiu liquidar o problema judeu
de uma vez por todas, no que lhe dizia respeito. considerando-o
um tema irreal, inventado como um biombo que esconde outras
questões mais prementes; um problema, em suma, que não ofe-
recia dificuldade especial, produto que era do caos social gcné·
rico que tanto necessitava de ordem. Marx fora batizado como
luterano e casara-se com uma pagã; prestara serviços à comu-
nidade judaica de Colônia; durante a maior parle de sua vida.

IOI
porém, manteve-se alheio a qualquer coisa remotamente ligada
à sua raça, demonstrando franca hostilidade para com todas as
suas instituições.
A crítica a Hegel é mais importante: a doutrina por ela
exposta diferencia-se de tudo o que Marx publicara até então.
Nela ele começou, conforme ele próprio declarou. a acertar con-
tas com a filosofia idealista. Era o começo de um longo, labo.
rioso e radical processo que. ao atingir o ponto culminante,
quatro anos depois, lançaria os alicerces de um novo movimento
e de uma nova visão, e desenvolveria uma fé dogmática e um
plano de ação que dominam até hoje a consciência política da
Europa.

IJI

Se tudo o que Marx requeria era um plano completo de


ação, baseado no estudo da história e observação do cenário
contemporâneo, deve tê-Jo considerado altamente improvável
entre os reformadores e profetas que se reuniam nos salons e
cafés de Paris, à época da sua chegada. Eles eram, de fato, mais
inteligentes. politicamente mais influentes e mais responsáveis
que os filósofos de café de Berlim, mas para Marx pareciam
talentosos visionários. como Robert Owen, reformistas liberais,
como Ledru Rollin, ou, como Mazzini, as duas coisas ao mes-
mo tempo, porém despreparados, em última análise, para fazer
algo em beneficio da classe trabalhadora; havia ainda os pelil-
bourgeois sentimentais e i~ealistas, cordeiros disfarçados de lobo,
como Proudhon ou Louis Blanc, cujos ideais poderiam ser em
parte atingíveis. mas cujas táticas gradualistas, não revolucioná-
rias, mostravam que estavam radicalmente equivocados em
seus cálculos quanto à força do inimigo, e que, por isso, deve·
riam ser combatidos de perto~ como inimigos internos, muitas
vezes inconscientes. da revolução. No entanto, Marx aprendeu
com eles mais do que viria a reconhecer, sobretudo de Louis
Blane, cujo livro sobre a organização do trabalho influenciou-
lhe a visão da evolução e correta análise da sociedade industrial.

102
Sentiu-se mais atraído para o partido que, a fim de se dis-
tinguir dos moderados que vieram a ser chamados de socialistas,
adotou o nome de comunista. Não era um partido no sentido
moderno da palavra. Comunistas e socialistas consistiam em gru-
pos e indivíduos associados livremente. Mas enquanto os socia-
listas eram predominantemente intelectuais, os comunistas eram
quase inteiramente compostos de trabalhadores de fábricas e
pequenos artesãos, em sua maior parte homens simples e auto-
didatas, exasperados pelas injustiças e facilmente convertidos à
necessidade de uma conspiração revolucionária para' abolir os
privilégios e a propriedade privada, doutrina pregada pelo dis-
cípulo de Babeuf, Philippe Buonarroti, e herdada pelo cons-
pirador vitalício, o jacobino-comunista Blanqui, envolvido na
revolta fracassada de 1839. Marx ficou impressionado, em par-
ticular, pela capacidade de organização de Auguste Blanqui e
pela coragem e violência de suas convicções; mas achou-o
carente de idéias e excessivamente vago quanto aos passos a
serem dados ap6s o resultado feliz do coup d'état. Identificou
uma atitude também um tanto irresponsável nos outros advo-
gados da violência, dos quais os mais notáveis eram o aHaiate
itinerante alemão Weitling e o exilado russo Bakunin, que ele
conheceu bem àquele tempo. Somente um entre os comunistas
que ele conheceu em Paris pareceu:.lhe ter a compreensão autên·
tica da situação. Tratava-se de um certo Friedrich Engels, um
próspero radical alemão, filho de um processador de algodão em
Barmen. Encontraram-se em Paris a propósito da publicação de
artigos econômicos de Engels no jornal de Marx. Esse encontro
foi decisivo para ambos. Era o começo de notável amizade e
colaboração que durou o resto de suas vidas.
Engels iniciou a vida como poeta radical e jornalista, e en·
cerrou-a, ap6s a morte de Marx, como o líder reconhecido do
socialismo internacional, que, durante a sua vida, crescera a
ponto de se tomar movimento mundial. Era homem sensato,
porém pouco criativo; homem de excepcional integridade e força
de caráter, de muitos e variados dons, mas, em particular,
dotado de extraordinária capacidade de assimilação rápida de
conhecimento. Possufa um intelecto astuto e lúcido e um senso
da realidade que poucos, talvez ninguém entre seus contempo-
râneos radicais, poderiam reivindicar para si: pouco capaz de

103
descobertas originais, tinha um excepcional talento para discer·
nir, avaliar e perceber a aplicação prática das descobertas alheias.
Sua capacidade de escrever com rapidez e clareza. sua lealdade
e paciência sem limites fizeram-no o aliado e colaborador ideal
do inibido e difícil Marx. cuja escrita era muitas vezes desajei·
tada, sobrecarregada e obscura. No período de vida que se
seguiu, Engels não desejou melhor destino que viver à luz dos
ensinamentos de Marx. por haver percebido nele uma "fonte
de gênio original que dava vida e finalidade a seus talentos
peculiares: com ele e sua obra. Engels veio a identificar-se até
o ponto de compartilhar. como recompensa. a imortalidade do
mestre. Antes de se conhecerem, Engels havia começado como
discipulo de Hess. chegando por si mesmo a uma posiçio não
diferente da de Marx e, em anos posteriores, absorveu as novas
idéias, ainda semi-articuladas, de seu anúgo, dando-lhes roupa·
gem (às vezes à custa de simplificação drástica) mais atraente
e inteligível às massas que o estilo freqüentemente tortuoso ·de
Marx. E, mais importante, Engels possuía uma qualidade essen·
ciaJ para o permanente intercâmbio com um homem do tempe-
ramento de Marx: uma total falta de competição em relação a
ele, ausência de todo desejo de resistir ao impacto daquela per·
sonalidade poderosa, de preservar. reter e proteger suas próprias
posições; pelo contrário, Engels sempre estava ansioso por rece-
ber o alimento intelectual de Marx, sem questioná-lo, à seme-
lhança de um aluno devotado, e pagou-lhe com sua sensatez,
entusiasmo, vitalidade, alegria e, no sentido mais literal, forne-
cendo-lhe meios de vida em momentos de pobreza desespera-
dora. Marx, a exemplo de muitos intelectuais dedicados. era
assaltado por uma permanente sensação de insegurança. Morbi-
damente. sentia na pele e suspeitava dos menores sinais de
antagonismo à sua pessoa ou às suas doutrinas, e necessitava,
em conseqüência. de alguém que lbe compreendesse a perspec-
tiva critica, alguém em quem confiar por inteiro. alguém com
quem pudesse dialogar quando e quantas vezes quisesse. Em
Engels ele encontrou um amigo e aliado intelectual devotado.
cujo prosaísmo restaurou-lhe o sentido de perspectiva e a crença
em si mesmo e no seu trabalho. Durante a maior parte da vida
de Marx seus atos foram desempenhados com a certeza de que
aquele homem poderoso e seguro estaria ali sempre à mio para

104
suportar a carga em qualquer emergência. Marx pagou-lhe com
afeto e um sentimento de orgulho pelas qualidades de Engels
que ele não daria a mais ninguém, exceto à esposa e filhos.
Encontraram-se no outono de 1844, depois que Engels lhe
enviara para publicação em seu jornal um esboço de critica das
doutrinas dos economistas liberais. Até então Marx incluíra
Engels, de modo vago, entre os intelectuais de Berlim - uma
impressão que o encontro prévio de ambos não conseguira des-
fazer. Escreveu-lhe logo. O resultado foi um encontro em Paris,
durante o qual a similaridade de suas posições acerca de ques-
tões fundamentais ficou clara para os dois. Engels, que andara
viajando pela Inglaterra e publicara uma vívida descrição das
condições da classe operária inglesa, repudiava o humanitaris-
mo social da escola de Sismondi ainda mais enfaticamente que
Marx. Ele foi capaz de fornecer o que Marx buscava há tempo:
uma rica massa de informações concretas sobre o verdadeiro
estado dos negócios numa comunidade industrial progressista,
para servir de prova material à ampla tese histórica em crista-
lização rápida na mente de Marx. Engels, por outro lado, per-
cebeu que Marx lhe dera o que lhe faltava: uma sólida estru-
tura onde ajustar os fatos de modo a tomá-los uma arma contra
as abstrações prevalecentes nas quais, em sua opinião, nenhuma
filosofia revolucionária séria poderia basear-se. O efeito que o
encontro com Marx teve sobre ele deve ter se assemelhado ao
que tivera anterionnente sobre o mais impressionável Hess:
aumentou-lhe a vitalidade, clareou idéias políticas até aí mal
desenvolvidas, deu-lhe uma sensação de rumo definido, uma
visão ordenada da sociedade dentro da qual poderia trabalhar
com a certeza do caráter concreto e atingível do objetivo revo-
lucionário. Isso. depois de vaguear inutilmente pelo intrinca·
do labirinto do movimento dos Jovens Hegelianos, deve ter
lhe parecido o começo de uma nova vida - o que, de fato.
veio a ocorrer. A volumosa correspondência Marx-Engels. que
durou quarenta anos, foi, desde o início, de natureza familiar e
profissional ao mesmo tempo; nela não houve espaço para in·
trospecções; ambos estavam inteiramente ocupados com os mo·
vimentos que se empenhavam em criar e que se tornaram para
eles a mais sólida realidade de suas vidas. Sobre esse finne e

10')
confiável alicerce foi construída uma amizade singular, livre
de qualquer traço de possessividade, patrocínio ou inveja. Ne-
nhum dos dois a ela se referia sem certa timidez e embaraço.
Engels estava consciente de receber mais do que dava, vivendo
num mundo intelectual criado e mobiliado por Marx com seus
próprios recursos interiores. Quando Marx morreu, Engels iden-
tificou-se como seu guardião n(ltural, protegendo-lhe zelosa-
mente a obra contra quaisquer tentativas de refonna pela teme-
rária e impaciente geração mais jovem de socialistas.
Os dois anos que Marx passou em Paris foram a primeira
e última oportunidade na sua vida de conhecer e ter amigável
intercâmbio com homens que eram parecidos com ele, senão
em inteligência, ao menos na originalidade de seus pensamentos
e de suas vidas. Após a derrocada de 1848, que alquebrou o
ânimo de todos - salvo os caráteres mais fortes entre os radi-
cais - , dizimou-os pela morte, prisão e deportação, e deixou a
maioria indiferente ou desiludida, ele recolheu-se a uma atitude
de isolamento agressivo, mantendo contatos apenas com homens
que demonstraram lealdade pessoal à causa com que se identi-
ficava. Daí por diante. Engels foi seu único colaborador mais
próximo; o resto ele tratou abertamente como rivais ou subor-
dinados.
O retrato de Marx que emerge das memórias dos seus ami-
gos daquela época. Ruge, Freiligrath, Heine, Annenkov, é o de
uma personalidade corajosa e enérgica. um polemista veemente,
impetuoso e sarcástico, apelando para todas as suas incômodas e
pesadas armas hegelianas, e apesar da falta de jeito do 'meca-
nismo'. revelando um intelecto poderoso e astuto, que veio a
ser reconhecido, anos mais tarde, pelos que lhe foram mais hos-
tis - e havia poucos radicais de destaque que ele não conse-
guira ferir e humilhar de alguma maneira.
Conheceu o poeta Heine, com quem travou cálida amizade,
por quem deve ter sido influenciado e em quem, a despeito de
suas opiniões antidemocráticas, viu um poeta revolucionário
mais autêntico que Herwegh ou Freiligrath, ambos idolatra·
dos pela juventude radical da Alemanha. Também relacionou·
se com o círculo dos liberais russos, alguns deles rebeldes de
fato, outros, cultos dilettanti aristocráticos, criticas competen·
tes de situações e homens curiosos. Um destes. perspicaz e sim-

106
pâtico homem de letras, Paul Annenkov, a quem Marx demons-
trava simpatia, deixou dele breve descrição àquela época: "Marx
pertencia ao tipo de homem que é todo energia, força de von-
tade e convicção inabalável. Com uma grossa mecha de cabelo
preto na testa, mãos peludas e uma sobrecasaca abotoada de
maneira torta, tinha ar de homem acostumado a impor res-
peito aos outros. Seus movimentos eram desajeitados, porém
seguros. As maneiras desafiavam as convenções aceitas de con-
vivência social e eram altivas e quase desdenhosas. Com uma
voz desagradavelmente áspera, falava de homens e t-"nisas com o
tom de alguém que não tolera contradição e que parecia expri-
mir uma convicção pessoal firme em sua missão de mudar o
pensamento dos homens e ditar as leis do ser humano". Outro
membro desse círculo, e bem mais destacado, foi o famoso
Mikhaü Bakunin, sobre quem o encontro com Marx em Paris,
naquela época, surtiu efeito mais duradouro. Bakunin deixara
a Rússia mais ou menos na ocasião em que Marx saíra da
Alemanha e pelo mesmo motivo. Àquela altura ele era um
ardente hegeliano 'crítico' de esquerda. inimigo ardoroso do
czarismo e de qualquer governo absolutista. Tinha caráter ge-
neroso, extravagante, impetuosamente impulsivo, uma imagi-
nação rica, caótica, sem peias, uma paixão pelo violento, pelo
imenso, pelo sublime, um ódio à disciplina e ao institucionalis-
mo. total falta de senso pessoal de propriedade e, acima de
tudo, um desejo selvagem e irresistível de aniquilar a estreita
sociedade de seu tempo, na qual, como Gulliver em Lilliput.
o ser humano sufocava por falta de espaço para exercer suas
faculdades na mais plena e nobre dimensão possível. Seu amigo
e compatriota Alexander Heaen, que ao mesmo tempo o admi·
rava e por ele se deixava irritar, disse em suas memórias:
"Bakunin era capaz de tomar-se tudo- um agitador, um
tribuno, um pregador, o líder de um partido, de uma seita, de
uma heresia. Ponha-o onde quiser, no mais extremo ponto de um
movimento, e ele fascinará as massas e mudará o destino de
povos. . . mas quando na Rússia esse Colombo sem América e
sem navio, tendo servido, em grande parte contra sua vontade,
um ano ou dois na artilharia, e depois outro ano ou mais nos he·
gelianos moscovitas, ansiava por escapar de uma terra onde todas
as formas de pensamento eram tidas por malignas, e a indepen-

107
dência de julgamento ou de palavr.a era encarada como insult(l
à moralidade pública.''
Era um orador maravilhoso, dominado por um ódio feroz
à injustiça, por um sentimento ardente de sua missão de arras-
tar a humanidade para algum ato de magnffico heroísmo cole-
tivo que a libertaria para sempre; e exerceu fascfnio pes-
soal sobre os homens, abrindo-lhes os olhos para sua irres-
ponsabilidade, suas mentiras, sua frivolidade básica, impregnan-
do-os com o irresistível entusiasmo revolucionário que ele co-
municava. Não foi um pensador original; absorvia facilmente
as opiniões alheias; mas foi um professor inspirado, e conquanto
o seu credo não ultrapassasse uma ardente crença igualitária na
necessidade de destruição da autoridade e libertação dos oprimi-
dos, de envolta com um pan-eslavismo de curta duração, cons-
truiu em cima disso um movimento que perdurou até muito
depois da sua morte.
Bakunin diferia de Marx como a poesia difere da prosa; a
ligação polftica entre eles tinha fundações inadequadas e foi
efêmera. O laço principal era um ódio comum a toda fonna de
reformismo, mas esse ódio originava-se de raízes diferentes. Para
Marx o gradualismo sempre foi uma tentativa disfarçada, por
parte da classe governante, de reduzir a energia dos inimigos a
níveis ineficazes e inócuos; uma política que os mais perspi-
cazes entre eles sabiam ser um estratagema deliberado. enquanto
os demais eram eqganados por ela, tanto quanto os reformadores
radicais, cujo temor à violência era em si mesmo uma forma de
sabotagem inconsciente a seus objetivos declarados. Bakunin
detestava reformas porque, segundo ele, as fronteiras que viessem
a limitar a liberdade pessoal seriam intrinsecamente más, e a
violência destrutiva, quando dirigida contra a autoridade, era
boa em si mesma, além de ser uma fonna básica de auto-expres-
são criadora. Nesse terreno. ele se opôs ardentemente ao objetivo
aceito tanto por Marx como pelos refonnistas - a substitui-
ção do statu quo por um socialismo centralizado. já que. con-
fonne lhe parecia. tratava-se de nova fonna de tirania, mais
mesquinha e mais absoluta que o despotismo pessoal e de classe
que pretende suplantar. Essa atitude tinha por base emocio-
nal um temperamental horror a fonnas ordenadas de vida numa
sociedade normal civilizada - disciplina admitida nas idéias

JOR
du::a democratas ocidentais e que, pura um humem com a sua
imaginação luxuriante, hábitos caóticos e ódio a todas as res-
trições e barreiras, parecia incolor, miúda, opressiva e vulgar.
Uma aliança construída sobre uma quase completa ausência de
objetivos comuns não poderia durar. O disciplinado, rígido e
frio Marx considerava Bakunin meio charlatão. meio louco, e
suas opiniões absurdas e bárbaras. Ele viu na doutrina de
Bakunin um desenvolvimento do individualismo selvagem pelo
qual já condenara Stimer. Com uma diferença, porém: en·
quanto Stimer não passava de um obscuro instrutot num giná·
sio para moças. um intelectuaJ politicamente inofensivo sem
capacidade e sem ambição para levantar as massas. Bakunin
era um homem de ação resoluto, um agitador astuto e deste-
midot um orador magnífico, um perigoso megalomaníaco con·
sumido pelo desejo fanático de dominar os homens, pelo menos
intelectualmente- desejo igual ao que o próprio Marx possuía.
Bakunin deixou sua opinião acerca de Marx muitos anos
após, num de seus panfletos políticos. "O sr. Marx", escreveu,
"é judeu de origem. Reúne em si todas as qualidades e defeitos
dessa raça bem-dotada. Nervoso, dirão alguns, até o ponto da
covardia, ele é muitíssimo convencido, malicioso, briguento. tão
intolerante e autocrático quanto Jeová, o Deus de seus pais. e.
como Ele, loucamente vingativo.
••Não existe mentira nem calúnia que ele não seja capaz de
utilizar contra alguém que lhe tenha provocado inveja ou ódio:
não se deterá diante de uma intriga sem base se. na sua opinião.
ela servir para lhe aumentar posição, jnfluência e poder .
., Estes são os seus vícios, mas ele também tem muitas virtu-
e
des. muito inteligente, muito instruído. Por volta de I 840 foi
a vida e a alma de um círculo notável de hcgelianos radicais -
alemães cujo consistente cinismo deixaria para trás até os mais
hidrófobos niilistas russos. Raríssimos homens têm lido tanto
e. deve-se acrescentar. de forma tão inteligente quanto o sr.
Marx ...
··A exemplo do sr. louis Blanc, é um autoritarista faná-
tico - triplamente. eu diria. como judeu! alemão e hegeliano
- , mas enquanto aquele. em lugar da argumentação. usa uma
retórica declamatória. este. como convém a um ~lemão culto

HN
e ponderado, adornou esse principio com os lruques e as fanta-
sias da dialética hegeliana. e com toda a riqueza da sua cul·
tura multifacetada.••
O ódio mútuo tomou-se cada vez mais evidente com o pas-
sar do tempo; externamente as relações continuaram cordial·
mente incômodas por alguns anos, a salvo de uma ruptura com-
pleta pelo respeito relutante e apreensivo que cada um tinha
pelas qualidades formidáveis do outro. Quando o conflito afinal
estourou, quase destruiu a obra de ambos e causou prejuízo
incalculável à causa do socialismo europeu.
Se Marx tratava Bakunin como um igual, não ocultava o
desprezo por outro famoso agitador. Wilhelm Weitling, com
quem se encontrou na mesma época. Alfaiate de profissão, pre-
gador ambulante por vocação, esse sincero e destemido visio.
nário alemão foi o último e mais eloqüente descendente dos
homens que promoveram rebeliões de camponeses no final da
Idade Média, e cujos representantes modernos. na maioria arte-
sãos e diaristas, se reuniam em sociedades secretas dedicadas à
causa da revolução; havia ramificações em muitas cidades in-
dustriais alemãs e no exterior, centros dispersos de desconten-
tamento político ao redor dos quais se acumulavam muitas vfti·
mas do processo social, homens amargurados por seus erros e
confusos quanto à causa e remédio, porém unidos por um senso
comum de injustiça e um desejo comum de erradicar o sistema
que lhes destruíra as vidas. Em seus livros Evangelho de um
pobre pecador e Garantias de harmonia e liberdade, Weitling
pregou a guerra de classes dos pobres contra os ricos, tendo
no terrorismo franco a sua principal anna, e, em particular, a
formação de tropas de choque pelos mais ofendidos e. portanto,
os mais abandonados e destemidos elementos da sociedade - os
fora-da-lei e os criminosos - . que lutariam desesperadamente
para vingar-se da classe que os havia despossuído. em favor de
um novo mundo sem competição em que iniciariam vida nova.
A crença de Weitling na solidariedade dos trabalhadores de
todos os países, seu estoicismo pessoal, os anos que passou em
várias prisões e, acima de tudo, o fervoroso zelo evangélico de
seus escritos, atraíram para ele muitos adeptos devotados entre
seus camaradas artesãos, e fizeram dele, por breve período, uma
figura de magnitude européia. Marx. que nio apreciava a since-

110
ridade quando mal-orientada, e particularmente detestava pro-
fetas itinerantes e o emocionalismo vago com que infectavam
inevitavelmente o trabalho revolucionário sério, jamais deu im-
portância a Weitling. Sua idéia de uma aberta declaração de
guerra à classe governante por homens desesperados que nada
tinham a perder e tudo a ganhar pela destruição total da socie-
dade existente, 1 a experiência pessoal que havia por trás de
suas denúncias e emocionava os auditórios, sua ênfase nas rea-
lidades econômicas e a tentativa de penetrar na fachada engana-
dora dos partidos políticos e seus programas oficiais, e acima
de tudo a vitória prática de Weitling ao criar o núcleo de um
partido comunista internacional, impressionaram Marx profun-
damente. As doutrinas detalhadas de Weitling, no entanto, ele
tratou com desprezo, e justamente por achá-lo confuso, miste-
rioso e fonte de confusão no partido, se dispôs a exprobar-lhe
publicamente a ignorância e reduzir-lhe o prestígio de toda for-
ma possível. Segundo relatório de uma reunião em Bruxelas, em
1846, Marx exigiu de Weitling propostas concretas para a classe
trabalhadora. Quando este vacilou, murmurando algo acerca da
inutilidade do criticismo de gabinete, longe do mundo dos que
sofrem. Marx deu um murro na mesa e gritou: "Mas a igno--
rância nunca ajudou ninguém", após o que a reunião se dis-
solveu. Nunca voltaram a encontrar-se.
As relações de Marx com Proudhon foram bem mais com-
plicadas. Ainda em Colônia, leu o livro que pela primeira vez
tomara famoso o nome de Proudhon, O que é propriedade?,
e elogiou o brilho do estilo e a coragem do autor. Em 1843
ele se deixava sensibilizar por tudo que contivesse uma cen·
telha revolucionária, tudo que soasse claro e resoluto e advo-
gasse francamente a derrubada do sistema em vigor. Não tardou
muito, porém, para Marx se convencer de que o método de
Proudhon em relação aos problemas sociais, por causa de sua
declarada admiração por Hegel. não era de fonna alguma histó-

1• A tese de que só os arruinados e os marginalizados podem levar


a cabo a revolução, uma vez que os outros inevitavelmente param de
repente quando seus próprios interesses estão em jogo, influenciou Ba·
kunin decisivamente, e através dele a concepção de uma elite revolu·
cionárfa implacável em nossos dias.

111
rico, mas moral, que seu louvor e condenação ba$eavam-se dire-
tamente em seus padrões éticos absolutos, e que Proudhon
ignorava na totalidade a importância histórica das instituições
e dos sistemas. A partir daí. Marx julgou-o outro moralista
francês filistino, mero defensor consciente ou inconsciente dos
ideais sociais dos petit-bourgeois vítimas da industrialização, e
perdeu todo o respeito pela pessoa e doutrinas de Proudhon.
À altura da chegada de Marx em Paris. Proudhon estava
no auge da fama. De origem camponesa de Besançon, tipógrafo
por profissão, era um homem de caráter rfgido, obstinado, ind&-
mito e puritano, um típico representante da baixa classe média
francesa, a qual. depois de tomar parte ativa na derrubada final
dos Bourbons, verificou que apenas os senhores haviam mudado,
e que o novo governo de banqueiros e grandes industriais,
em relação aos quais Saint-Simon a ensinara a esperar tanto.
havia acelerado o ritmo de sua destruição.
As duas forças que Proudhon julgava fatais à justiça social
e à confraternização dos homens eram a tendência à acumulação
de capital, que provocava o conlfnuo aumento de desigualdades
de riqueza, e a tendência a ela diretamente vinculada, unindo
abertamente autoridade política e controle econômico. e, por con·
seguinte, destinada a a~egurar o florescimento de uma plutocra·
cia despótica sob o disfarce de instituições liberais livres. Segun·
do ele, o Estado tornou-se um instrumento empenhado em desa-
propriar a maioria em beneficio de uma pequena minoria, o que
é uma forma legaiizada de roubo que sistematicamente privou o
indivíduo de seus direitos naturais à propriedade, ao conceder
aos ricos o controle exclusivo da legislação social e crédito finan·
ceiro, enquanto a petite bourgeoisie era expropriada sem remédio.
O livro mais conhecido de Proudhon. que começa com a decla·
ração de que toda propriedade é um roubo, contém muitas
de suas idéias mais amadurecidas. Há muito tempo ele susten·
tava que toda propriedade constituía uma apropriação indé·
bita; mais tarde. contudo, admitiu que um mínimo de proprie-
dade seria necessário a todos os homens, a fim de manter-lhes
a independência pessoal. a dignidade moral e social: um sistema
que não respeitasse esse mínimo, e cujas leis permitissem, me·
diante transação comercial, sua negociação e, dessa forma, a
sua V\!nda u outros, numa escravização econômica, era um sis·

112
tema que legalizava e encorajava o roubo, roubo dos direitos
elementares do indivíduo sem os quais este não teria meios de
realizar seus objetivos. Proudhon percebeu a causa principal
desse processo na desenfreada luta econômica entre indivíduos.
grupos e ordens sociais, a qual necessariamente leva à dominação
dos mais capazes e melhor organizados, e dos menos reprimidos
por um senso de dever moral ou social, sobre a massa da comu·
nidade. Ou seja, o triunfo de uma força inescrupulosa aliada à
capacitação tática sobre a razão e a justiça; mas, para Proudhon.
que não era determinista, não havia razão histórica para que
tal situação continuasse indefinidamente. A competição, panacéia
favorita dos pensadores iluministas do século anterior, e que
aparecia aos liberais e racionalistas do sécuJo dezenove sob a
fonna de uma luz quase sagrada, como a mais plena e a mais
rica expressão da vigorosa atividade racional do indivíduo, seu
triunfo sobre as forças cegas da nature-La e sobre seus próprios
apetites indisciplinados. era para Proudhon o maior de todos
os males, a perversão das faculdades rumo à promoção desna-
turada de uma sociedade aquisitiva e, portanto, injusta, onde
a vantagem de cada um dependia, ou melhor, consistia em sua
habilidade em ludibriar, derrotar ou extenninar os outros. O mal
era idêntico àquele antes combatido por Rousseau, Fourier e
Sismondi, mas expresso de maneira diferente e justificado de
outra forma. Fourier foi o herdeiro tanto do pensamento quanto
do estilo do século dezoito. e interpretou as calamidades de seu
tempo como resultado da supressão da razão pela deliberada
conjura dos que temiam sua aplicação - os padres, os bem-
nascidos. os burocratas, os ricos. Proudhon não aceitou essa
visão simples; foi afetado até certo ponto pelo historicismo de
sua época; não sabia alemão, mas o hegelianismo lhe fora ver-
tido por Bakunin e pelos exilados alemães. A tentativa de
Proudhon de adaptar a nova teoria à sua própría doutrina. com
ênfase na justiça e nos direitos humanos. levava a resultado~
que a Marx pareciam uma crua caricatura do hegelianismo.
Com efeito, o método pelo qual tudo era descrito em forma
de duas concepções antitéticas, que faziam cada afirmação pare·
cer ao mesmo tempo rea1ística e paradoxal, ajustou-se ao talento
de Proudhon para cunhar frases afiadas e imponentes, ao s~u

tJ3
amor do epigrama, ao seu desejo de comover, sobressaltar e
provocar. Tudo é contraditório; a propriedade é um roubo; ser
cidadão é ser privado de direitos: o capitalismo é, de uma vez,
o despotismo do mais forte sobre o mais fraco e do menor sobre
o maior; acumular riqueza é roubar; aboli-la é minar os funda-
mentos da moralidade. O remédio de Proudhon contra isso está
na supressão da competição e na introdução, em seu lugar, de
um sistema 'mutualista' cooperativo em que seria permitida,
e até mesmo estimulada, uma limitada propriedade privada, mas
não a acumulação de capital. Enquanto a competição evoca as
piores e mais brutais qualidades dos homens, a cooperação, além
de promover maior eficiência, moraliza-os e civiliza-os ao reve-
lar-lhes a verdadeira finalidade da vida comuna); O Estado deve
ser dotado de certas funções centralizadoras. mas sua atividade
tem de ser severamente controlada pela associação de offcios,
profissões, ocupações, e novamente de produtores e consumido-
res, sob a qual a sociedade seria organizada. Organize-se uma
sociedade num todo econômico, único e descentralizado, em
linhas 'mutualistas' não competitivas, e as antinomias serão
resolvidas, o bem predominará e o mal desaparecerá. Pobreza,
subdesenvolvimento, frustração de homens forçados a tarefas
que não lhes são inatas em conseqüência dos desajustamentos de
classes de uma sociedade não planejada, desaparecerão e os me-
lhores aspectos da natureza humana terão possibilidade de pre-
valecer; pois não há falta de idealismo na natureza humana,
mas, sob a ordem econômica existente, ele se tomou ineficaz
ou, por causa da má direção, perigoso. Para Proudhon, é inú-
til pregar aos ricos; seus instintos generosos ficaram atrofia·
dos há muito tempo. O príncipe esclarecido sonhado pelos en-
ciclopedistas, e às vezes também por Saint-Simon e Fourier.
jamais nascerá, é uma contradição social. Somente as vítimas
reais do sistema. os pequenos fazendeiros. a pequena burguesia
e o proletariado urbano podem ser sensibilizados. Somente eles
são capazes de mudar sua condição porque. sendo ao mesmo
tempo os mais numerosos e indispensáveis membros da socie-
dade, têm o poder de transformá-la. A eles, conseqüentemente.
Proudbon se dirigia. Ele advertiu os trabalhadores a não se orga-
nizarem politicamente, já que, imitando a classe dirigente, inevi-
tavelmente se colocariam à mercê dela. O inimigo, sendo mais

114
experimentado em táticas políticas, tiranizara. ou por mdos fi.
nanceiros ou subornos sociais, os líderes revolucionários, pro.
vocando a impotência do movimento. De qualquer modo, mes-
mo vitoriosos, os rebeldes dariam. adquirindo o controle de
formas polfticas do governo autoritário e preservando-as. novo
alento à contradição da qual buscam justamente escapar. Os ope-
rários e a pequena burguesia devem, por conseguinte, impor,
pela pressão puramente econômica. seus modelos sobre o resto
da sociedade; esse processo seria gradual e pacifico. Mais uma
vez Proudhon declarou que os trabalhadores não deviam de for-
ma alguma recorrer à coerção; sequer as greves seriam permi-
tidas, pois isso equivaleria a infringir o direito do trabalhador
individual à livre cessão de seu trabalho.
Proudhon cometeu a tolice de submeter seu livro, Philo-
sophie de la misere (Filosofia da miséria) a Marx, para uma cri-
tica. Marx leu-o em dois dias e declarou-o falaz e superficial, mas
escrito de forma atraente e com bastante eloquência e sinceri-
dade para enganar as massas. "Deixar o erro sem refutação",
disse ele em situação similar, muitos anos depois, "é encorajar
a imoralidade intelectual". Para cada dez trabalhadores que de-
cidissem ir à luta, noventa ficariam parados com Proudhon, na
escuridão. Por isso resolveu demolir o livro e, com ele, a fama
de Proudhon como pensador sério, de uma vez por todas.
Em 1847, em resposta à Filosofia da miséria apareceu Mi-
sêre de la philosophie (Miséria da filosofia). contendo o mais
duro ataque de um pensador contra outro, desde as famosas po-
lêmicas da Renascença. Marx teve grande trabalho em demons-
trar que Proudhon era de todo incapaz de pensamento abstrato,
fato que ele tentara em vão esconder com o uso de uma
terminologia pseudo-hegeliana. Marx acusou Proudhon de inter-
pretar o conflito dialético como mera luta entre o bem e o
mal, o que leva à falácia de que basta remover o mal para
que o bem predomine. Isso é o cúmulo do superficialismo: cha-
mar este ou aquele aspecto do conflito dialético de bom ou mau
é um sinal de subjetivismo não histórico, fora de lugar numa
análise social séria. Ambos os aspectos são igualmente indispen-
sáveis ao desenvolvimento da sociedade humana. O progresso
verdadeiro é constituído não pelo triunfo de um lado e pela der-
rota d..: outro, e sim pelo duelo que envolve necessariamente a
destruição de ambos. Na medida em que exprime sem cessar sua
simpatia por este ou aquele elemento da luta social, Proudhon
permanece, embora possa estar sinceramente convencido da ne-
cessidade e do valor da luta, um idealista irremediável, isto é,
empenhado em avaliar a realidade objetiva em funçio de seus
desejos e preferências de petit-bourgeois, disfarçados como valo-
res eternos- já por si, um absurdo-. sem referência ao está-
gio de evolução que a luta de classes alcançou. Segue-se uma
laboriosa refutação da teoria econômica de Proudhon, que Marx
declarou presa à idéia falaz do mecanismo de troca. Proudhon
entendera Ricardo não menos mal que entendera Hegel, e con·
fundiu a proposição de que o trabalho humano determina o
valor econômico com a de que assim tinha sempre que ser. Isso,
por sua vez, leva a uma informação falsa da relaçio do dinheiro
com outTas mercadorias, o que invalida toda a análise de
Proudhon da organização econômica contemporânea da socie-
dade capitalista. O ataque mais enfurecido é dirigido conlTa o
cripto-individualismo de Proudhon, contra seu ódio óbvio a qual·
quer tendência de organização coletiva. sua fé nostálgica no ro-
busto pequeno proprietário rural e a moralidade deste, sua
crença no valor indestrutível da instituição da propriedade pri·
vada, na santidade do matrimônio e da família, na moral abso-
luta e na autoridade legal do chefe de família sobre a esposa e
os filhos; isso constituía, na realidade, a base de sua própria
vida, e era responsável por seu arraigado temor a qualquer for-
ma de revolução violenta. a qualquer coisa capaz de destruir as
formas fundamentais de vida na pequena fazenda onde seus
ancestrais haviam nascido e crescido, e aos quais. apesar de suas
corajosas frases revolucionárias, Proudhon permanecia inabala-
velmente leal. Na verdade, Marx acusou Proudhon de querer
remediar os erros imediatos do sistema existente sem destrui-lo
porque, como todos os franceses de sua classe, estava emocio-
nalmente ligado a ele. a ponto de não acreditar. a despeito do
seu arremedo de hegelianismo. que o processo histórico é tanto
inevitável como irreversivel, que avança mediante saltos revo-
lucionários, e que os males do presente são tão estritamente ne·
cessários às leis da história quanto o estágio que um dia os
substituirá. Pois é somente n~t suposição de que tais males são

116
vícios acidentais que se torna plausível apressar-lhes a remoção
por meio de uma legislação corajosa que não precisaria envol-
ver a destruição das formas sociais das quais eles são o produto
histórico. Num trecho retórico, Marx exclama: "Não basta de-
sejar o colapso dessas formas: deve-se procurar saber em sujei-
ção a que leis elas surgem, a fim de saber como agir dentro
da estrutura dessas leis, uma vez que agir contra elas, delibe-
radamente ou não, na cega ignorância das suas causas e seu
caráter, seria um ato fútil e suicida que, criando o caos, der-
rotaria e desmoralizaria a classe revolucionária, prolongando
assim a agonia atual". Esse é o criticismo que ele usava contra
todos os utópicos que proclamavam possuir uma nova (tlensa-
gem para a classe operária.
Marx estava convencido de que Proudhon era constitucio-
nalmente incapaz de apreender a verdade; que, apesar do megá-
vel dom de fazer frases, era, no fundo, um esttlpido; o fato de
ser corajoso e fanaticamente honesto, de atrair um número cres-
cente de devotados adeptos. apenas tomava Proudhon e suas
fantasias mais perigosos; daí a tentativa de Marx de aniquilar-
lhe a doutrina e sua influência, com um golpe tremendo. Mas
sua brutalidade excessiva criou uma simpatia indignada pela
vítima. O sistema de Proudhon sobreviveu a esse e a muitos ata-
ques marxistas subseqüentes. e sua influência aumentou nos
anos seguintes.
Proudhon não foi de forma alguma um pensador original.
Teve o talento de absorver e cristalizar as idéias radicais em
voga na sua época; escrevia bem, às vezes com brilho, e sua
eloqüência foi considerada autêntica pelas massas a que se diri-
gia, brotando de desejos e ambições que Proudhon tinha em
comum com elas. A tradição de não participação política, ação
industrial e federalismo descentralizado, dos quais ele foi o advo-
gado mais eloqüente, sobrevive poderosamente entre radicais e
socialistas franceses, e encontrou apoio na tendência individua-
lista mais marcante em países latinos, cujos habitantes, em sua
maioria, eram pequenos fazendeiros. artesãos, profissionais, vi-
vendo longe da vida industrial de grandes cidades. O proudho-
nismo é o ancestral direto do sindicalismo moderno. Ele foi
afetado pelo anarquismo de Bakunin e, meio século depois, pela
doutrina segundo a qual - já que as categorias econômicas

11 7
eram o fundamental - as unidades a partir das quais a forço
anticapitalista deve ser constituída deveriam conter homens liga-
dos não por convicções comuns - mera superestrutura inte-
lectual - . mas pelas ocupações que de fato buscam, uma vez
que esse é o fator essencial que lhes determina os atos. Bran-
dindo como sua mais fonnidável arma a ameaça de desorgani-
zação da vida social pela suspensão de todos os serviços vitais
durante uma greve geral, tomou-se a mais poderosa doutrina
esquerdista em muitas partes da França, Itália e Espanha, onde.
com efeito, o industrialismo não avançou muito e ainda sobre-
vive uma tradição individualista de artesãos agnirios. Marx, que
tinha uma percepção infalível da direção geral e do saber polf-
tico de um movimento ou de uma doutrina, não importando
sua aparência ostensiva. reconheceu de imediato o substrato
individualista e, conseqüentemente, para ele, reacionário da ati-
tude de Proudhon; por isso, atacou-o com não menor vio-
lência que o liberalismo declarado. A miséria da Jiloso/ia
está agora, a exemplo das idéias específicas que ela combateu,
em grande parte desatualizada. No entanto.. representa uma etapa
definida no desenvolvimento mental do autor: um dos elemen-
tos na sua tentativa de uma vida inteira para sintetizar opiniões
econômicas, sociais e políticas num corpo unificado de doutrina,
capaz de ser aplicado a todos os aspectos da situação social,
e que veio a ser conhecido como a concepção materialista da
história.

H8
6
Materialismo histórico

Alguém meteu uma vez na cabeça que as pessoas


se afogavam porque ficavam obcecadas pela idéia de
peso. Se pudessem livrar-se dessa idéia, pensou, cha·
mando-a, por exemplo, de supersticiosa ou religiosa,
seriam salvas do perigo de afogamento. Durante a vida
inteira ele lutou contra a ilusão de peso, a respeito de
cujas conseqüências deletérias as estatísticas não ces-
savam de fomecer·lhe provas recentes. Essa figura é o
protótipo dos filósofos revolucionários alemães do
nosso tempo.
KARL MARX, A ideologia alemã

Nenhuma exposição plena ou sistemática do materialismo


histórico foi publicada por Marx. Isso ocorre de forma fragmen-
tária em seus primeiros trabalhos escritos durante os anos de
1843 a 1848, brevemente exposto em 1859 e implícito em seu
pensamento posterior. Ele não o considerou um novo sistema
filosófico mas um método prático de análise social e histó-
rica e uma base para estratégia política. ~diante, quei-
xou-se do uso que dele faziam alguns de seus seguidores, que

119
pareciam jul.&.at·se salv~ do tra~a!ho_ de estudo Jlistóriçp se
fornecessem uma espécie de 'tábua• algébrica em que, haven-
do suficientes dados factuais, respostas automáticas a todas as
questões históricas seriam mecanicamente deduzidas. Numa car-
ta que, perto do final de sua vida, escreveu a um corresponden-
te russo, Marx deu como exemplo de desenvolvimento desseme-
lhante, apesar de condições sociais análogas, a história da plebe
romana e do proletariado da Europa industrial. "Quando es-
tudamos essas formas de evolução em separado", escreveu, "e
depois as comparamos, podemos descobrir com facilidade a chave
desse fenômeno; mas jamais chegaremos lá usando como chave-
mestra uma teoria geral hist6rico-füos6fica, cuja virtude supre-
ma consiste em ser super·histórica".
A teoria amadureceu aos poucos em sua mente. E possível
traçar-lhe o crescimento na 9:_ítica p.a filosofia do direito J}e
tlege/ e em A questão judaica. Em ambos. o proletariado
é pela primeira vez identificado -como agente destinado a mudar
a sociedade na direção pressagiada pela filosofia. O método está
mais desenvolvido em d_~~t!_'!)g~ip, um amálgama de ex-
plosões polêmicas contra os 'críticos-críticos', ou seja, os Jovens
Hegelianos - sobretudo os irmãos Bauer e Stimer - . entre-
meado com fragmentos sobre a filosofia da história, criticismo
social da literatura e outras extravagâncias; aparece mais plena-
mente exposto num volume de cerca de seiscentas páginas que
ele compôs com Engels em 1845 e 1846. intitulado A ideologia
alemã, mas nunca publicado. Essa obra verbosa, mal-estruturada
e notável, que trata de autores e opiniões há muito tempo mor-
tos e justamente esquecidos, contém em sua longa introdl!ÇãO a
mais firme, imaginativa e impressionante exposição da teoria de
Marx da história. A exemplo das concisas e brilhantes Teses
--
sobre Feuerbac~. que pertencem ao mesmo período, e de AJa_nu~s-
critos econômicos e filosó/icus, de 1844, com sua nova aplicação
do conceito hegeliano de alienação. a maior parte de A ideologia
ulemõ só veio a lume alguns anos após a morte do autor (Teses.
e
em 1888, o restante somente em nosso século). filosoficamente
bem mais interessante que qualquer outra obra de Marx e repre-
senta um estágio submerso. porém mats importante no seu pen·
sarnento, cuja total i~norância ou menospre1.o por seus adeptos

120
mais próximos (incluindo os arquitetos da Revolução Ru~sa)
é rctsponsável oela ênfase exclusiva nos aspectos _his~ódç.os.-e
"onômicos...lLR~ compt:e_ ensão do conteú.c:Jo _sociológico ~ fi.
IQsófico das id~i!lS de Marx. Esse fato responde pela interpre-
tação meio positivista, meio darwiniana do pensamento de Marx.
que devemos principalmente a Kautsky, Plekhanov e acima de
tudo a Engels - uma tradição que tem influenciado decisiva-
mente tanto a teoria como a prática do movimento que leva o
nome de Marx. "'~ ~J \~.. \-\,~~ \.. v
~oldura da ruwa teoria_~_ (jon~_..heggfia_na. Reco-
nhece que a história da .humanidade é um R[9.,Ç~~o_úniço. não
repetitivo, obedeçeodo a leiL que se pode descobrir. Cada ins.
tante desse processo é novo no sentido de que possui novas
características. ou novas combinações de características conhe-
cidas; embora sendo um processo singular e irrevogável, ele
dm:iva, todavia. do e~t-~.Q__~iatamente aqt~ri.oc._em. ..obediênci_a
à.!J»tamu.leis, da mesma forma que esse último estado deriva
de seu predecessor. Contudo, de acordo c Hegel, a subs-
tância única. na sucessão de cujos estados cons1s 1stória, .Ç.
o eterno, ~utodesenvolvido e universal EsJ!!.rito~ o conflito inter-
no dos elementos deste se toma concreto, por· exemplo, nos çp.n-
flitos religiosos ou nas..guerras de_as~Jias_nacionais, cada um
sendo uma CQt~tcuificação ~.!l)d,!ia auto-reaUzadora que requer
intuição snpersenmel pQ~~~r:çebida. Mace, seguindo..Feuer-
b~ denuncia-isso cnmo~ .uma peça_d~ mistificação -sm-'lue
nenhum conhecimento poderia basear-se. Pois, se -o- mundo fosse
uma substância metafísica desse tipo, seu comportamento não
poderia ser testado pelo único método confiável ao nosso dispor.
a saber, a observação empírica; e uma teoria sobre ela não pode-
ria, por conseguinte, ser confirmada pelos métodos de uma ciên-
cia. O hegeliano pode, é claro, sem medo de refutação, atribuir
tudo quanto deseja à atividade inobservável de uma substância-
mundo impalpável da mesma forma que o crente cristão ou tefsta
o atribui à atividade de Deus, mas só à custa de nada explicar.
de declarar a resposta um mistério impenetrável às faculdades
humanas normais. ~ a tradução de questões comuns em lingua-
gem menos mteligfvel que faz a obscuridade resultante parecer
uma resposta verdadeira. Expliçar ·o conhecível em função d~

121
desronheeí"'el--é o mesmo que retirar com uma das mãos o que
se finge dar com a outra. Qualquer que seja o valor resultante
desse procedimento, não pode ser considerado um equivalente
da explanação cientifica, ou seja, do ordenamento, por meio de
um número comparativamente pequeno de leis inter-relacionadas,
da grande variedade dos fenômenos distintos, prima facie des-
conectados. O mesmo se diria do hegelianismo ortodoxo.
Mas as soluções das escolas 'criticas' de Bauer, Ruge, Stir-
ner, até mesmo de Feuerbach, não são em princípio melhores.
Depois de ter desmascarado sem piedade os defeitos do mes-
tre, eles próprios, na opinião de Marx, vieram a cair em pio-
-:es ilusões: pois o 'espírito do criticismo autocriticável' de
Bauer, o •espírito humano progressista' de Ruge, o 'ser indivi-
dual' e 'suas possessões inalienáveis' apostrofadas por Stimer,
e até o ser humano de carne e osso, cuja evolução é traçada por
Feuer.bach, são apenas abstrações generalizadas não menos
vazias, não menos capazes de ser invocadas como algo além
dos fenômenos - como a causa deles - que o edifício igual-
mente insubstancial, porém· muito mais magnHico e imaginativo
-indistinto, embora rico e abrangente, não limitado a alguma
abstração desoladora - . oferecido pelo hegelianismo ortodoxo.
A única região possível onde buscar os princípios da di-
nâmica histórica deve ser uma que esteja aberta à inspeção
clentifka, isto é, normal e empírica. Segundo Marx, já que os
fcmômenos passí~eis.-de exp1icação são os da vida social, a ex-
planação deve, de certa forma, residir na natureza do_meio
sociaLque.lorma o contexto em que os homens passam a vida,
naqueta malha de relações privadas e públicas de que os indivf-
duos formam os tennos, da qual eles são, como foram, os pontos
focais, os lugares de encontro das diversas correntes, cuja tota-
lidade Hegel chamou de sociedade civil. Hegel demonstrou
seu gênio ao perceber que o crescimento dela não ocorria em
progressão suave, detido apenas por ocasionais retrocessos,
como aqueles /il6sofos recentes Saint~imon e seu discípulo
.. · n , Comte ensinaram; ele é o produto de tensão contínua entre
•. t f.•h.
• • • • .~.
f forças opostas que lhe garante o incessante movimento para a
I I . : •. . .
,, : frente ; a apatencia de ação e reação regulares é uma ilusão
causada pelo fato de que ora a primeira, ora a segunda das ten-

122
dências conflitantes se faz mais violentamente sentida. De fato,
o progresso é descontínuo, pois a tensão, quando atinge o ponto
crítico, precipita um cataclisma; o aumento do volume de intenA
sidade se transforma em mudança de qualidade; forças rivais
agindo sob a superfície crescem e se acumulam e eclodem no
vazio; o impacto de seu entrechoque transforma o meio em que
este ocorre; conforme Engels diria mais tarde, o gelo se transfor-
ma em água e a água em vapor; os escravos se tomaram servos
e os servos vieram a ser homens livres; toda a evolução na natuA
reza e na sociedade fmda, de igual maneira, em revolução cria·
dora. Na natureza, essas forças são físicas, químicas, biológicas;
na sociedade, são especificamente econômicas e sociais.
r Q.uais. sã&.!!, fprças_ent!C~~ quais o conflito social vem ;
LQ.n!? Q~gel supôs que no mundo moderno elas estivessem implí-
,gras nas nações que representavam O desenvolvimento de UID{l
culttma es~ecífiça. ou incorporação da Idéia. ou Espírito mun·
dial.. Marx, acompanhando Saint..Simon e Fourier, e não imune ..
talvez à teoria das crises de Sismondi, replicou que tais forças /1 \
eram predominantemente socioeconômicas. "Fui levado", escre- / _)
veu doze anos depois, "à conclusão de que as relações legais~ J;;. : :·
bem como as formas do Estado, não podiam ser entendidas por "' "'~ . ,.
si mesmas nem explicadas pelo suposto progress~. geral. do e~f- .
!i!Q..hurn~qo, mas que estavam enraizadas naslcondicõe§ mate·
sociedade civjl. A anatomia da
-
riais de yidâ1gue Hegel chamg
I r •

s.ociedade_cjyil deve ser. buscada na economia política". O con·


----- - .
flito é sempre um choque entre classes ~.S~.E,B~eqte.. de~~r·
llli9~1§ ~sendo definida com~.J!_J!l grupo de_.l)cuoas ~~~
gyma ~eq,de, cujas vidas são condicionadas por sua posição --
nos arranjos produtivos que determinam a estrutura de tal socie-
dade. A ccmdiçjo de um indjyfduo é determinada peJa patte qw:
e~ desempenha no pto.C:e$.~1.. produção social, e este, por
sua vez, depende. _diretamerue do....caráter das forças produti-
vas e su..muLde 4-'tsenyolvimento num dado estágio. Os homens
agem como agem em virtude do relacionamento que mantêm
com os demais membros da sociedade, tenham ou não consciên·
cia dis~'!J A mais poderosa dessas relações está baseada, confor-
me ensmou Saint-8imon, na posse dos meias de subsistêoma: a
mais premente daa_necessJdades é a de sobrevivênc\a. .
we..{l;~ .'lv\ r.:· ~r~ : ,,
123
A concepção central hegeliana pennanece na base do pen-
f'samento de Marx, ainda que transposta em tennos semi-empiri-
.r--J cos. J\....históàa não é a sucessão dos efeitos, mbru>s hommJS, da
C'~\·· ~a ou de suas próprias constituições inalteráveis,
1\.) ou ainda da interação desses fatores, como tinham suposto os
~ primeiros materialistas. Sua essência é a luta do~nmens_para
"'-... reaU7,.Bt as Plenas pgtenclaUdad_es.•hs.ttnaJ!.as; e. sendo eles mem-
bros do reino natural (pois não há nada que o transcenda),~º
~!ors~ ~2... ~o.~e~ pa!a~ realiza!_~e m~º- ~teno ~ uma luta
para escapar de ser o joguete de forças que parecem ao mesmo
tempo misteriosas, arbitrárias e irresistíveis, ou seja. ohtet-.D
dom(nio sobre el~_e_~obre si próprio, o que .siJQific..a. J_i\)e_~.
·o homem ~onsegue subjugar..seu mundo nio pelo aumento de co-
nhecimento obtido via contemplação (conforme Aristóteles supu·
_ sera), e sim ,pela atividade. pekrttãlí~ela..conscleote-mode-
. (9-1 ,.. '~/t o. Iagem de sua ambiência e de ~-mesiÍiil - a primeira e mais
~ essencial {orma. da unidade de vontJtde. peosamento ..e.açãg_. de
teoria e prática. O . trabalho transfonna o mundo do homem e
no seu transcurso o transforma também. Certas necessidades
são l!lais fundamentais_~utras --a sobrevivência pura
simples tem prioridade em relação a necessidades mais sofiS-
ticadas. Contuqo,JLI!omem difenulos...anb!lais- com os quais
compartilha necessidades físicas essenciais - !!_a me~ida em que
possui o dom da inveftção; ~essa {QrJl.lJl çJ~ _alt~r.a sa.aa..na.tureza
. . \ 'l e necessidades e escapa dos ciclos. tepetitivos...d.os animais, gue
.e_ennanecem inaltemdos e_p9.rtan1g. não..tam..hist.ória. A-história
~ ·· · ~ . ~a socledad.e é a história_ do! trab~lho$.Jn~entiv.os..que modifi·
;: .' \S · çam o .homem, alteram-lhe os desejos, hábitos, perspectivas, rela-
• ' · ~ .•n ' cionamento com outros homens e com a natureza física com
. :, a qual o homem está em perpétuo metabolismo físico e tecno-
'. ~
lógico. Entre as invenções humanas - conscientes ou incons-
cientes - está a ..diyjsão do trabalho, que surge na sociedade
primitiva e lhe aumenta enormemente a produtividade, criando
riqueza para além das necessidades imediatas. Essa acumul"ão,
por sua vez. cria a possibilidade de ócio e também de cultura,
mas igualmente do uso 4e_b!l_acumulação- dessas necessidades
de vida entesouradai~ como forma de tirar benefícios de ou-
tros e, portanto, de oprimi-los, de forçá-los a trabalhar para os
acumuladores de riqueza. de coagir, explorar e. por conseguinte,

f24
dividir os homens em classes- em contro.iadores e contratados.
Esse último talvez seja o mais abrangente de todos os resultados
involuntários da inovacio, do progresso técnico e da conseqüen-
te acumulação de bens. A história é a'.iuter.ação entre a vida dos
atores - ou seja, os homens engajados na luta para adquirir
controle próprio - e JIS conseqüência&-de suas-atividades-. Tais
conseqüências podem ser voluntárias ou involuntárias; seus efei-
tos sobre os homens ou suãiõlbiência naturãl podem ser prev!~-
t9s ou nio_; eles podem ocorrer nª-._esfera material, ou na do pen-
samento e dos sentimentos, ou em níveis inconscientes da vida
do hQI!lem; podem afetar apenas os indivíduos, ou assumir a
forma de institu~~s .El! ___!!!ovimel!tQs. so.ciais: mas a teia com-
plexa só pode ser en.Rod_idg e co.ntrolada se o fator dinâmiép f
ç_entral responsável ela direçijo_dQ_pmcesso for ... e.rttendido,. -
Hegel, o primeiro a ver isso de fonna tão iluminada e profun-
da, encontrou esse fator no Espírito buscando compreender-se
nas instituições - abstratas ou concretas - por ele próprio
criadas em vários níveis de consciênçia. Marx aceitou esse es-
quema cósmico, mas qc_!.lsou_Hegel ~ seus discípulos de darem
uma eJRlicação mítica das forças supremas em ação- um mito
que por si só é um dos resultados involuntários do processo de
extemalizar a obra da personalidade humana - , ou seja, de
darem _a_aP-arência ..de .objetos jndependent~~~- eXletnos, ou de
forças, àqnUo que não passa de prõdutildo. trab.albo ltuman'L
Hegel mencionara a marcha do Espírito objetivo. Marx iden-
tificou o principal fator com os seres humanos que buscam fina-
lidades humanas inteligíveis - não objetivos únicos, como o
prazer, ou o conhecimento, ou a segurança. ou a salvação depois
do túmulo, mas a realização harmoniosa de todos os poderes
humanos, de acordo com os princípios da razão. No curso dessa
procura, os homcros se transformam. através d€"fmgasses e ·valores
que determinam e explicam a cond•Ua de u;m~if'geracão
~...a.outms que, por sua vez, se empenham em com-
preendê-los, no curso de sua realização parcial e inevit.ável fl'U$·
t'-ªçii_Q parcial, alterando_os .impasses. .e._valore$ d~ .~ey_s .~uc~:
~res. Essa auto!!!ns[onnaçãp constagte, base de todo trabalhç
e de toda cria &., joma absurda a idéia_c;le~princí~ios fiXados
intemporalmente e de objetivos universais inalterávei~. O cará-

·125
ter da época com a qual ele tratava era~ na opinião de Marx.
ciekrrnjnado .peJo fialômeno da luta de c:lasses; a coqdJ,~ja...Jt a
pçnpectiva ® indjy(dnos e sociedade vinham a ser determinaqas
de m_!tqeit:a decisiva por eue-fator: essa era a verdadcLhOOórlca
central acerca de uma cultura que repousa na acumulação, e
acerca das batalhas pelo controle dessa acumulação travadas
pelos que lutam no sentido de concretizar seus poderes, muitas
vezes de maneiras inúteis ou autodestrutivas. Mas, grçcisgmcnte
~r ser histórico, o imRasse não era eterno. Tinha sido düerente
no passado e não duraria para sempre. De fato, os sintomas
desse destino próximo estavam bem visíveis para os que tives-
sem olhos. O único fator permaneqt~ Jll histórifl.dP hpmem ~ra
·~_próp.rio homem, ÍJ!teli@'!_~l somente em função .da...luta-que..ele
nio.Dnba.eJcolhido- a .Juta que era p.Nte .da sua.essêocia (esse
é o momento metafísico de Marx), a luta P.atlLdoiJlinar ! natu·
reza e organiur os podel'e$_prQdutivos do homem num padrão
racional no qual consistia a harmonia interna e externa. Traba:
l.hg, na visão cósmica de Marx, equivale ao que o amor cósmico
foi para Dante - aguilo que faz os homens e seus ...rclaciona-
l!!..entos serem o que são, dados os fatores relativamente invariá·
veis do mundo externo em que eles nascem; sua 4i§.t~-E._eela
diyisio do_trabalho e peJa luta d~ classes-provoca a degradação~
~,~ a desumanização, relações humanas pervertidas, falsificação cons-
~~\o.: ciente ou inconsciente da visão. para manter essa ordem e escon-
\ der o real estado de coisas. Quando isso vem a ser entendido e a
~que é a expressão conç1ç_ta de_tal enrendimentot .acorre,
o traba1ho, em vez de dividir e escravizar os homens, os..uoe e os
Rberta~ propicia expressão plena às suas capacidades criadoras na
única forma em que a natureza dos homens é inteiramente pró-
·-
pria e livre - empenho comum, cooperação social numa ativi·
dade comum, racionalmente compreendida e aceita. Contudo, .1'
t titude de Marx em rela_Çjg ao_ mais im_portante de t~ Q.~
conceitos de seu sistema permaneceu curio,amente incerta: js
vezes ele fala do(tiãbalhO)ç _acordo com aquela Uvre criaçãp
t ~~ §ue é_a mais plena expressão da desembar&Ç.t\da natu~ hu~-
l'wJll na, a essência de felicidade. emancipação, harmonia raciona_I
sem conflitos dentro dos homens e entre.eles.. Em outras ocasiões,
~ em_çontraste ttaba.lbo...Jt.ócio. ~ ,m:.Q.IIlc.t.e .gy.~ com _a
abolição da lqta de classes~ o trabalho será reduzido, a !Jm !DÍ·_

126
nimº-. m~s njio de.todo eliminado; não se tratará do trabalho de
escravos explorados, mas de homens livres construindo suas vidas
socializadas de acordo com regras livremente adotadas que eles
se impuseram; contudo, algumas formas dele ainda permanece-
rão, de modo que Marx se refere, perto do fim do terceiro volume
de O capital, ao 'reino da necessidade'; o verdadeiro 'reino da
li~erdade' começa além dessa fronteira, embora só possa flores-
cer no 'reino da necessidade que lhe forma a base'.. A necessi-
dade para esse mínimo de labuta é um inescapável fato de na-
tureza física, que seria por demais utópico tentar' conjurar.
Não existe reconciliação final entre essas duas visões. A incom-
patibilidade aparente entre essas profecias, uma provavelmente
inspirada pelo sonho de Fourier de realização total, a outra
muito mais sóbria, constitui uma das fontes de debate acerca
da relação entre o Marx 'jovem' e o Marx 'maduro'. A mes-
ma ambivalência afeta sua combinação de determinismo eyolu-
çjgp.ário e çrenca.libertária na liMte opção; ambos estão presen-
tes em seu pensam~jlto, uma contradição 'dialética' que ficou
para infernizar seus seguidores e dividi-los, em especial na Eu-
ropa oriental, onde ela afetou em cheio a prática revolucio-
nári!l· _ -.
J~ Feuerba~h pnba percebido corretamente que os homens co-
mem&nies de raciocinar. A satisfação dessa necessidade só pode
ser garantida pelo- controle dos meios de produção material,
ou seja. da força e habilidade humanas. dos recursos naturais,
da terra e da água, ferramentas, máquinas, escravos. Existe uma
escassez natural disso no princípio, razão pela qual os que asse·
guram tais meios são capazes de controlar as vidas e ações dos
que não os têm- até perderem, por sua vez. a posse deles para
os súditos. que, tomando-se poderosos e astutos a seu serviço,
os despojam e os escravizam, unicamente para ser despojados
e expropriados por outros em seguida. Instituições imensas.
sociais, políticas e culturais, têm sido criadas para conservar as
possessões em mãos de seus detentores, não mediante diretri-
zes deliberadas, mas projetando-as inconscientemente a partir da
atitude geral dos que governam determinada sociedade. Mas e~­
g~to, _p~ra ~Hegel, _o que impr_i!!lla caráter especffiCQ ,a uma
dada soclec;lqqe çra seu_ç@.ráter_nacjonal- a nação (no sentido
àmplo de uma civilização inteira) sendo para ele a corporifi·

121
cação de um dado estágio no desenvolvimento do Espírito do
.[' 'j .. , mundo-, para_Marx era _o sistema ~e relaç~s econômicas q~_ç
f
0 f 1·· · :J governava a sociedade em questão. Numa famosa passagem, es.
crita uma década após ele ter chegado a essa posição, Marx
sumarizou sua idéia como se segue:
\\1 . "Na produção social da vida que os homens conduzem, eles
\ V' · ~ entram em relações definidas, que são indispensáveis e indepen-
\
• ~i .. • • • dentes de sua vontade; tais relações de produção correspondem

ç · J. a um estágio definido de desenvolvimento de suas forças mate-


riais de. produção. A totalidade dessas relações de produção
deve-se à estrutura econômica da sociedade - o fundamento
real de que se originam as superestruturas legais e políticas e a
que correspondem formas definidas de consciência social. O
modo de produção de vida material condiciona o caráter geral
dos processos de vida social, poUtica e espiritual. Não é a cons-
ciênçja dos homens gue detennina o seu ser._ mas. ao contririo,
o ser social deles ~e lhes determina a consciência. Numa dada
etapa do desenvolvimento, as forças materiais de produção
da sociedade entram em conDito com as relações prevalecen-
tes de produção, ou - o que não passa de expressão legal
designando a mesma coisa' - com as relações de propriedade
dentro das quais estiveram antes em ação. A partir das formas.
de desenvolvimento das forças produtivas. tais relações se trans-
formam em obstáculos. Vem então a época de revoluçio sociaL
Com a mudança do fundamento econômico, toda a snperesttu-
,tum mais cedo ou mais tarde se...transfor-ma. Mas. ao levar em
consideração tais transformações, há que fazer sempre a dis..
tinçio entre a transformação material das condições econômicas
de produção, que podem ser determinadas com a precisão das
ciências naturais, e as formas legais, políticas, religiosas, estéti-
cas ou filosóficas - em suma, ideológicas - pelas quais os
homens tomam consciência do cÕnOito e o enfrentam.
. .. Da mesma forma que nossa opinião sobre uma pessoa não
se baseia no que ela pensa de si mesma, não podemos julgar
uma época revolucionária pela maneira consciente como ela
se apresenta; pelo contrário. essa consciência deve ser explicada
como produto das contradições da vida material, do conflito
entre as forças sociais de produção e as relações de produção.
Ordem social alguma desaparece antes que todas as rorças pro-

128
dutivas nela contidas tenham se desenvolvido, e nova~ e mais
altas relações de produção jamais aparecem antes que as con~
dições materiais de sua existência tenham amadurecido no
âmago da velha sociedade. Portanto, a humanidade somente ex-
põe problemas que seja capaz de resolver, já que, a um exame
mais íntimo, se verificará sempre que o problema surge apenas
quando as condições materiais necessárias à sua solução já exis-
tem ou se encontram pelo menos em processo de formação." 1
A,_s_Q..c.i~tdade burgqesa é a última forma que esses antago-
nismos a,!lgme~. Após seu desaparecimento, o canf!ito desa-
parecerá para sempre. O período pré-histórico estará completa-
do, a história do ser humano livre começará afinal.
--- -
A única causa operativa que faz uma pessoa diferir de
outra, um conjunto de instituições e crenças contrastar com
outro, é, segundo Marx veio a acreditar então, a. ambiência eco-
nômica em que se situam, pois o relacionamento da classe gover-
nante dos proprietários com aqueles a quem ela explora, brota da
qualidade específica da tensão que persiste entre eles. As molas
básicas de ação na vida dos homens, acreditava Marx. tod~s
nwito pQ..d~rosas parã ni:o- serem por eles percebidas, são os seus
compromissos com o alinhamento de classes na luta econ6miça;
o -fator cujo conhecimento habilita todos a prever com êxito
a linha básica de conduta dos homens é a sua posição social
de fato: se estão dentro ou fora da classe dirigente, se o seu
bem-estar depende do sucesso ou fracasso daquela classe, se
estão numa posição para a qual a preservação da ordem existen-
te é ou não essencial. Conhecido esse aspecto. os motivos e emo-
ções pessoais e particulares dos homens se tomam comparativa-
mente irrelevantes à investigação, podendo ser egoístas ou
altruístas, generosos ou medianos, sábios ou estúpidos. ambicio-
sos ou modestos. As qualidades naturais deles serão aproveita·
das por suas circunstâncias para operar em determinada direção,
de acordo com tendências naturais. Com efeito, é enganoso
falar de uma 'tendência natural' ou de uma 'natureza hu·

1. Prefácio a Uma conlribuição à critica da economia polltica,


1859, citado na tradução de T. B. Bottomore, levemente emendado pelo
autor. em Karl Marx. Selected writings in sociology and social phllo-
mplry, Londres. 1956, pp. 51~2.

129
mana' inalterável. Tendências devem ser classificadas ou de
acordo com o sentimento subjetivo que engendram (o que vem a
ser irrelevante para fins de previsão científica), ou de acordo
com seus óbjetivos verdadeiros, que são socialmente condicio-
nados. Os homens agem antes de começar a refletir sobre as
razões ou justificativas de sua conduta; a maioria dos membros
de uma comunidade agirá de maneira idêntica, quaisquer que
sejam os motivos pelos quais eles parecerão a si mesmos estar
ag.indo dessa forma. Isso é obscurecido pelo fato de que, na
tentativa de se convencerem de que seus atos são determinados
pela razão ou pela moral ou por crenças religiosas, os homens
tendem a construir racionalizações elaboradas de seu compor-
tamento. Tais racionalizações não são inteiramente impoten-
tes para afetar a ação, poist crescendo em grandes instituições,
como os códigos morais ou organizações religiosas, muitas vezes
sobrevivem após as pressões sociais, para explicar por que sur-
giram, por que desapareceram. Assim. essas grandes ilusões orga-
nizadas tomam-se parte da situação social objetiva, parte do
mundo externo que modifica a conduta das pessoas, funcionan-
do da mesma maneira que os fatores invariantes, clima, solo.
organismo físico, funcionam em sua ação recíproca com as insti-
tuições sociais.
Os sucessores imediatos de Marx tenderam a minimizar a
influência de Hegel sobre ele, mas a \'isão marxista do mundo
desmorona e projeta apenas raios isolados se, no esforço de re-
presentar Marx como ele próprio se considerava - o rigoroso
cientista social preso aos fatos-, o grande e necessário modelo
unificador que veio a inspirá-lo for abandonado ou reduzido.
A exemplo de Hegel, Marx trata a história como uma fenaa
menologia. Em Hegel, a fenomenologia do Espírito humano é
uma tentativa de mostrar, não raro mesclando discernimento
e ingenuidade. uma ordem objetiva no desenvolvimento da
consciência humana e na sucessão de civilizações que lhe
dão corpo concreto. Influenciado por uma noção relevante na
Renascença, mas que retroagia a uma cosmogonia mística
anterior, Hegel considerou o desenyohdmento.....daJnm.l.-I)Íqade
similar ao.. de um $_e r humano. Como, no caso de um homem,
uma capacidade particular, ou perspectiva, ou maneira de reagir
à realidade não pode vir à tona até e a menos que outras capa-

110
cidades tenham antes se desenvolvido - esta é, com efeito, u
essência da idéia de desenvolvimento ou educação, em se tratan-
do de indivíduos - , assim as raças, nações, igrejas, culturas se
sucedem numa ordem fixada, determinada pelo crescimento das
faculdades coletivas da humanidade expressas em artes, ciências
e civilização como um todo. Pascal deve ter exprimido uma par·
cela disso quando se referiu à humanidade como uma entidade
única, multissecular, evoluindo de geração em geração. Para He·
gel, as mudanças se devem ao movimento da dialética, que age
segundo um criticismo constante e lógico, ou seja,..Juta contra e
pela autodestruição final de formas de pensamento e . constru-
ções racionais e de sentimentos que, num dado tempo, incorpo-
raram o mais alto ponto atingido pelo crescimento incessante
(que, para Hegel, é a auto-realização lógica) do espfrito humano;
contud~, incorporadas em regras ou instituições, e erroneamente
consideradas como supremas e absolutas pàr determinada socie·
dade ou perspectiva, elas se transformam então em obstáculos ao
progresso, sobrevivências moribundas de uma etapa logicamente
' transcendida'. Por sua unilateralidade;-essas sobrevivências esti·
muJam antinomias e contradições lógicas pelas quais são expostas
e destruídas. M~ traduziu a \lisã~a..hiatória como um..campo
dLhatalha -de- idéias encarnadas em termos sociais, a- lu~
e.ntre as classes. Para ele, a alienação (que Hegel, nos passos deAQ.jf!Mb'lcf
Rousseau e Lutero e da tradição cristã anterior, chamou de ·
eterna auto-separação dos homens da unidade com a natureza,
com outros homens, com Deus, a que se vincula a luta da tese
contra a antítese é intrínseca ao progresso social, melhor
ainda, é a base· da histórla.rõcorre alienação guan<hl.QJ_resu)ta-
dos dos atos humanos contradjum seus reais pmpósUnL quando
se'!L_v~lores ofiçiais, ou as partes que eles desempenham, d~
virtuam os verdadeiros motivos, neçessidades e_gbjetivos. Isso
se dá, por exemplo, quando algo que os homens fazem em res-
posta a necessidades humanas - digamos, um sistema de leis,
ou regras da composição musical- admaire yma~ndição_mpe­
pendente de si mesma e é yista pelos hQJJJCDLnão como algo
criado por eles para satisfazer uma-.v.ontade...~cial comum (que
pode ter desaparecido há muito tempo), mas como UJita J~i_ ou
.mstltuJçag
. . .. ob.Jet!va,
. posamo• d o auton•d a d e e t ema, 1mpcsso
• al, em
bMeffcin próprio, como as inalteráveis leis da natureza con·
lllé:JLS complexa, seus produtos mais ricos e as necessidades
que seu progresso material alimenta, mais variadas e artificiais
- ou seja, mais 'desnaturadas'. Desnaturadas porque am-
bas as classes em guerra ficaram falienadas' pelo conflito que
substituiu a cooperação por finalidades comuns oriundas da inte-
gração da vida comum e de seus membros que, de acordo com
essa teoria, é exigida pela natureza social do homem. O monopó-
li-º-.d-º.s.JD.~i_g.§__c)e produção por um grupo particular habilita esse ;
grupo a impor a sua vontade sobre os outros e a forçá-los a desem-
penhar tarefas estranhas às suas necessidades. DessaJorma, a uni-
dade da sociedade é destruída e as vidas das duas classes são
distorcidas. A maioria, o~ _pJoletár.i.o.s__d_e..sQ.Q~_SJlÍ~os, trabalha
agora em.. benefício de outros e de acordo com as idéias
destes: os frutos e os instrumentos de seu trabalho lhes são
tirados; seu estilo,d~__yjda, S\!~§.idéia~ e ideais correspondem não
à sua real categoria - trata-se de seres humanos artificialmente
impedidos de viver conforme suas naturezas exigem (ou seja, na
qualidade de membros de uma sociedade unificada, capazes de
compreender as razões pelas quais fazem o que fazem, e de gozar
os frutos de sua atividade unida, livre e. racional) - , ma.~ aos
obje_tlvos de seus opressores. Conseqüentemente, suas vidas se
apóiam numa mentira. Por sua vez, os seus senhores, consciente-
mente ou não, não podem deixar de justificar a sua própria exis- ,
tência como seQdo ao mesf!10 tempo natural e desejável. Nesse ín- ·
terim, g~.tam.idéias, .Y.al.o.res, kis, h@jJ~_de vida, instituições (um
complexo que Marx às vezes chama de ~ideologja'), cujo propósi-
to é fortalecer, explicar, defender sua condição e poder privile-
giados, desnaturados e portanto injustificados. Semelhantes ideo-
logias- nacionais, religiosas, econômicas e assim por diante -
são formas de auto-ilusão coletiva; as vítimas da classe gover-
nante - os proletários e camponeses - absorvem-nas como
parte de sua educação normal, segundo a perspectiva geral da
sociedade desnaturada, e assim vêm a considerá-las e aceitá-las
como parte objetiva, justa e necessária da ordem natural que
pseudociências foram então criadas para explicar. Isso, conforme
ensinou Rousseau, serve para aprofundar ainda mais o erro hu-
mano, o conflito e a frustração.
O sintoma de alienação é a atribuição de autoridade supre-'
ma, seja a um pode~. impessoal - digamos, as leis de oferta e

133
forme concebidas por cientistas e homens comuns, ou como Deus
e seus mandamentos para um crente. Para Marx, o sistema
capitalista é justamente essa espécie de entidade, um vasto- ins-
trumento gerado par demandas materiais inteligíveis - um
aperfeiçoamento progressivo e abrangente da vida em sua época,
que gera suas próprias crenças intelectuais, morais e religiosas.
valores e formas de vida. Não vem ao caso que os seus apoia-
dores saibam ou ignorem: tais crenças e valores servem para
garantir o poder da classe, cujos interesses o sistema capitalista
incorpora, passando a ser vistos por todos os segmentos da so-
ciedade como objetivamente e eternamente válidos para todos .
.Assim, por exemplo, a indústria e a forma capitalista de troca
não são instituições indefinidamente válidas, e sim geradas
pela resistência crescente dos camponeses e artesãos à depen-
dência das forças cegas da natureza. Elas tiveram o seu mo-
mento, e os valores que tais instituições geraram mudarão ou
desaparecerão com elas.
A_produção é uma atividade social. Qualquer forma de tra-
balho cooperativo ou divisão -do trabalho, não importa sua ori-
gem, cria propósitos e interesses comuns, não analisáveis como
simples soma de objetivos ou interesses individuais dos seres
humanos envolvidos. Se, como ocorre na sociedade capitalista, o
produto de todo o trabalho social de uma sociedade é apropria-
do por um segmento dessa sociedade para seu benefício exclu-
sivo. em conseqüência de um inexorável desenvolvimento histó-
rico que Engels, de forma mais explícita (e muito mais meca-
nicista) que Marx, tenta descrever, isso vai contra as necessida-
des humanas 'naturais' - con tra o que os homens, cuja es-
sência como seres humanos é serem sociais, requerem a fim
de se desenvolver livre e plenamente. Segundo Marx, os __g_ye
acumulam nas mãos os mejos de produção, e dessa forma tam-
bém seus frutos na {Q.t.IDa_ d~ ~apitai, forçosamente privam a
maioria dos produtores, os trabalhadores, do que eles criaram,
e então dividem a sociedade em exploradores e explorados; os
interesses d.e~ª~····çlª.§.ses são opostos; o bem-estar de cada classe
::: depende de sua capacidade de tirar o melhor do adversário,
numa guerra contínua, uma guerra que condiciona todas as insti-
tuições de tal sociedade. Durante a luta, meios tecnológicos se
desenvolvem, a cultura da sociedade dividida em classes fica

1)2
A~ leis da história não -são ··m eeânicas; a história-tem-sido
(~~~ _ppr hor.n.~~s, senão 'fora do figurino' , pelo menos ,co.o-
çHdonados pela situação social em que §e encontravam. Qual é,
de acordo com Marx, a relação dessas leis com a liberdade hu-
mana, individual ou coletiva? Está claro que sua concepção
de progresso social, que ele identifica com a conquista gra-
dual de liberdade, consiste no controle crescente da natureza
pela atividade social orquestrada, racionalmente planejada e
portanto harmoniosa. "Darwin não sabia que amarga sátira acer-
ca da humanidade, e dos seus conterrâneos em particular, ele
escrevia ao mostrar que a livre competição, a luta pela existên-
cia que os economistas consideram a mais alta realização da
história, era a condição normal do reino animaL Somente a
organização consciente da produção social, em que a produção
e a distribuição são planejadas, pode elevar a sociedade humana
acima do resto do reino animal, como a produção, em geral. já
fez pelos homens, em certos aspectos." E mais uma vez: " ... a
socialização dos homens, que antes se lhes apresentou como um
fato imposto pela natureza e pela história, será conquistada i ' . ; .
então por sua Jivre ação. . . este será o salto da bumanidade_do
reino 4ê necessidade para o da liberdade". Que espécie de liber- .
dade? Marx fala em geral do desenvolvimento da sociedade ~ ' ·;
como um processo objetivo. Na introdução de O capital, a
sucessão de formas econômicas é descrita como "um processo
de história natural". Em 1873, Marx, no epílogo à segunda
edição de O capital, cita uma passagem do reviewer russo da
edição origina], que disse: "M~~!S.~~!l.C.a!~...o movimento social
como um pro~o ?._~_?is!§!_iª !!ª-t!:lr~.L gpyçrnado pqr , 1~~~- . ql]e
nã.o são . ':!Pell~~- .1.~1d~p~~dt?!l!e~. - ~a . yonta4~ do~ home11:s, _~~ . s~a
consdência.._e_ L~jen&&e.§-'- mas. ao cpntrário, dejerminam sua von-
ta.Qe, consciência e intenções". Marx declara ser esta a correta
interpretação do seu objetivo, isto é, a d~scoberta das leis que
governam o desenvolvimento social.
São trechos assim que inspiraram a ipterpr~t-~~-0.-._ rigo-
r.QsameQ.~determ i c i sta_.da. .c.o.nc.ep~ãa•...de....Marx_açer~c.t. 4.~ ·.l:iJs-
tória humana e sJ.as_ le~ que a_ determinam _Ç.Q~ _)._1~cessidade
f_é~~~-ª:_. No máximo, o processo pode ser reduzido ou âcéiêrád(),
mas, ''mesmo quando uma sociedade traçou as leis naturais que
lhe governam o movimento, ela n-ªo pode queimar etapas nem

135
procura., a partir das quais a racionalidade do capitalismo é repre-
sentada como sendo logicamente deduzíveJ - ou a pessoas ou
forças imaginárias - divindades, igrejas, a figura mística do
rei ou sacerdote, ou formas disfarçadas de outros mitos opressi-
vos, visto que os homens, arrancados de um modo de vida 'na-
tural' (que por si só possibilita a sociedades inteiras perceber a
verdade e viver harmoniosamente), procuram explicar a si mes-
mos a sua condição desnaturada. Se os homens desejam libertar-
se, devem ser ensinados a ver através daqueles mitos. O mais
opressim..d.e~.todos, na demonoJogia de Marx. é a ..ciência econõ:
mic.a ..b.urguesa, que representa o movimento de commoditíes ou
de dinheiro - com efeito, o processo de produção, consumo
· e distribuição - como urn.~r_gçes&o j.mpes§Oal. idêntico ao da
natureza, modelo inàlterável de forças objetivas diante do qual
aos homens só resta inclinarem-se e ao qual seria insano tentar
resistir. Determinista como era. Marx tentou, no entanto, mos-
trar que a concepção de uma dada estrutura econômica ou social
~mo parte de........!ima J.~_utáy~_orde.m._m.un.diaJ foi uma ilusão
ger~cJª--E.~l.a...alienação. do.. homem oriunda da forma de vida que
lhe era natural - uma 'm.istificação.~...típica, o efeito de ativi-
dades puramente humanas mascarando as leis da natureza; ..ela
seria removiga ('desmascarada~). ....apenas__por .QM.tra~_ atividade~
igyalmen!~_ htlli!.?t:J~S: a aplicação da razão e da ciência .~S·
r.nistificadoras'. Mas isso nãó ba_~~?_; tcüs i.Lusões__tend.em__'L.,per-
si,s.tir eno.».~_I).~2. ªS. r~.l~_ç_q~s de produção .- ou seja, a estrutu·
~:ra social e econômica que as geram. ::::::-Jorem o que são; !ill.ffi~nte

'· ·,s~E~~ -~!!~~a~as_ . P9~ _~.~.i~--~-a-~olução~ As atividades liber-


\ tadoras podem por si mesmas ser~adas por leis objeti-
vas, mas o que tais leis determinam é a atividade do pensamento
e da vontade humanos (sobretudo de homens vindos da massa),
e não meramente o movimento de corpos materiais em obediên-
cia a seus padrões inexoráveis, independentes das decisões e
ações humanas. Se, conforme Marx acreditava, opções humanas
são capazes de afetar o curso dos acontecimentos, então, ainda
que tais opções venham a ser determinadas em última instância
e cientifkamente prognosticadas, tal situação reproduz aquela
que ás hegelianos e os marxistas julgam legítima para chamar
os homens de livres, já que as opções não são, como o resto da
natureza, mecanicamente determinadas.

134
Como a função histórica do capitalismo e sua rdação
com os interesses de uma classe específica não são compreen-
didas, em vez de enriquecer, elas vêm esmagar e distorcer as
vidas de milhões de trabalhadores, e também de seus opres-
sores, como tudo, aliás, que não é apreendido racionalmente
e portanto é adorado de maneira ce&a, y..2!!lQ..~!!_~·~iSM· O
dinheiro, por exemplo, que teve papel gradual nos dias da
liberação da troca de mercadorias, tomou-se puro objeto de
busca e veneração, brutalizando e destruindo o homem que
deveria libertar, pois para isso, aliás, foi inventadd. O~..bo~~ns
e~tão_~~a!I!.QQ~ do.~q_4~.!2.~...9.~--~~!t-PI.Ó.P.ti9. . !I.B.:R.?.lJ~9- e . <;}Q.s.. in~­
trllme~.t~~~--~()~ .q~~ __produzem; produtos e instrumentos adqui-
rem então vida e status próprios, e em nome de sua sobrevi-
vência ou melhoria os seres humanos são oprimidos e tratados
como gado ou mercadorias vendáveis. Isso ocorre com todas as
instituições, igrejas, sistemas econômicos, fonnas de governo,
códigos morais, os quais, por serem sistematicamente (e, até
certo ponto da luta de classes, necessariamente) malcompreen-
didos, tornam-se mais poderosos que seus inventores, monstros
adorados pelos que os fizerem - os cegos, infelizes Frankens-
teins, cujas vidas se frustam e se deformam. Ao mesmo tempo,
ver através desse impasse, ou limitar~se a criticá-lo, impasse
que os Jovens Hegelianos consideravam satisfatório, não o des-
truirá. Par_a ser mais enfático, as arma~ __com çru~~~h!ta, _en_tre
e~u~_ __:içléias,_qeyem gr....as..Jro~~.e.lli..J:~i tué!Çj,Q __ hJ~tQ_rica__-
não devem ser nem aquelas que serviram a um período anterior,
nem aquelas para as quais o processo histórico ainda não foi
chamado. Primeiro e ant~_s__fkJu.Q.Q.._Q§_h..Q_men..§_ dey~_m__i)}_qª-&_ar.
q\.l_e.._~stágio atingiu a luta de classes - qual o teor dialético em
ação - e ·-de-~is~gir -~i~ordo com o resultado. Isso é ser
~concreto' e não intempestivo ou idealista ou 'abstrato'. A_aliena-

--
ção - a substituição de relações imaginárias ou adoração de
objetos inanimados ou idéias por relações verdadeiras entre pes-
soas e respeito pelas pessoas- só cheiará ao fim quando a classe .
d~cisjva, o proletariado, derrotar a burguesia. Então as idéias q:u.~
es~-ª..Yi.t qria irá . gerar ~utomaticame~te e)(p_ r essarão e benefici_a-
rão __ ~--- soc_i~dade s~~.--~!~~s~s!. _2.~.- .~!Ü~-~--_hufl?..~l!~QacJ~. i_rrt~Jr.~­
Nem instituições nem idéias empenhadas em falsificar o caráter

137
decretar a abolição de suas fases naturais de desenvolvimento,
pode apenas, abrandar.. . as dores do nascimento". Eis por
que ''o país mais industrialmente desenvolvido mostra ao menos
desenvolvido apenas o quadro de seu próprio futuro". Isso é
claramente o que Engels quis dizer quando, em discurso no
túmulo de Marx, afirmou que sua grande realização fora a des-
coberta da ''lei de desenvolvimento da história humana", onde
as contradições que se desenvolvem entre forças produtivas e
relações produtivas levam a uma inalterável seqüência de rela-
cionamentos econômicos que determinam aspectos sociais e polí-
ticos e, por fim, todos os demais aspectos da vida coletiva. Mas
a idéia
--.~ ... de
..
~····-
'livre desenvolvimento'
........- .... ...
·~,:,··- ·. .
dos homens - o estado de
associação humana em que o desenvolvimento de cada um é
condição para o livre desenvolvimento de todos (a que se refere
o Manifesto comunista) - não é prima jacie uma idéia clar.fl-.:
Se os homens são apenas produtos de condiçoes objetivas, não
apenas econômicas mas ambientais - geográficas, climáticas,
biológicas, fisiológicas e assim por diante - , pelo fato de que
essas forças agem 'através' deles e não meramente 'sobre' eles
(de acordo com as leis de que Marx tomara conhecimento pelo
tipo de investigação a que O capital se propunha), e se a apli-
cação desse conhecimento pode no máximo apenas "abrandar ...
as dores do nascimento" que precedem a sociedade sem classes,
mas é impotente par~.-~1!t!rªr_<?_Pr9_ç_~~§Q_~~---~i. mesmo,_ nesse ca-
so o conceito de liberdade humana, em seus aspectos sociais
ou individuais, necessita clarament~ de explanação. Uma cohia
é dizer que, a menos que os homens compreendam as leis que
lhes governam as vidas, serão atraiçoados por elas e continuarão
vítimas de forças que não entendem; outra coisa é dizer que
tudo o que eles são e fazem está sujeito a tais leis, e que a liber-
dade não passa da percepção de suas necessidades, sendo ape-
nas um fator no inalterável processo em que a opção humana,
individual ou social, está sujeita a causas que a determinam
por completo e são, em .princípio, bastante previsíveis por um
observador externo bem-informado. Afirmações de Marx podem
ser citadas em apoio a qualquer dessas alternativas. Tentativas.
de interpretar essas opiniões aparentemente contraditórias, com
o propósito de acentuá-las ou reconciliá-las, têm gerado volumo-
sa e crescente literatura específica, sobretudo em nossa época.

136
lUra ccimo ser humano. Essa doutrina, que teve grande influên-
cia em Nietzsche e provavelmente em Bakunin \talvez por haver
antecipado com bastante precisão a teoria econômica marxista
da alienação), é tratada como fenômeno patológico, o grito de
agonia de um neurótico perseguido, mais ligado ao terreno da
medicina que ao da teoria política.
Feuerbach é tratado com mais gentileza. Dele se diz que
escreveu com maior sobriedade, que fez uma honesta, embora
crua, tentativa de expor as mistificações do idealismo. Na déci-
ma primeira das Teses sobre Feuerbach que c-Ompôs durante
o mesmo período, Marx declarou que, embora pensadores mate-
rialistas precedentes houvessem percebido que os homens são
em grande parte produto das circunstâncias e da educação, não
chegaram a observar que as circunstâncias são alteradas pela
atividade dos homens, e que os educadores são as crianças de seu
tempo. Essa doutrina (Marx está pensando sobretudo em Robert
Owen) divide artificialmente a sociedade em duas partes: as
massas que, irremediavelmente expostas a todas as influências,
devem ser libertadas, e os professores que conseguem de alguma
forma permanecer imunes ao efeito do meio. Mas a relação de
espírito e matéria, de homens e natureza, é recíproca; de outro
modo, a história ficaria reduzida à física. Feuerbach é louvado
por mostrar que na religião os homens se iludem ao inventar
um mundo imaginário para redimir a miséria da vida real: é
uma forma de escape, um sonho dourado, ou, numa frase que
Marx tornou famosa, o ópio do povo. O criticismo da religião
deve, portanto, ter caráter antropológico e assumir a forma de
exposição e análise de suas origens seculares. Mas Feuerbach
é acusado de deixar intocada a tarefa maior; ele diz que a re·
ligião é um anódino inconscientemente criado pelos infelizes
para aliviar a dor causada pelas contradições do mundo mate-
rial, mas não consegue ver que tais contradições devem, nesse
caso, ser eliminadas; de outro modo continuam a consolar e
alimentar ilusões fatais. A revolução, e somente ela pode fazer
tanto, deve ocorrer não na superestrutura - o mundo do pen-
samento - , mas no seu substrato material, o mundo real dos
homens e das coisas. A filosofia vinha até então tratando idéias
e crenças como possuidoras de uma intrínseca validade peculiar;
pois bem. isso nunca foi verdade; o teor verdadeiro de uma

1:59
d~ um segmento da raça human~. exprimindo sua opostçao ou
provocando oposição contra ela, sobreviverão. O capitalismo sob
o qual a força de trabalho dos seres humanos é vendida, e os
operários tratados como simples fontes de trabalho, não passa
de UJ!l sistema que distorce a verdade a re~p_~ito do __ç).y~ho­
mens -~ão-e poderão· v~ ·· a -ser, e busca subordinar a história a
intere~se~de-êiãSSe-; -·por-conseg~inte, deve ser substituído pelo
poder reunido das vítimas indignadas que ele, com sua vitória,
veio a criar. Toda frustração para Marx é produto de alienação
- as barreiras e distorções criadas pela inevitável luta de c1as-
ses, impedindo esta ou aquela comunidade de cooperação har-
moniosa entre si, conforme os apelos de sua natureza.
Em A ideologia alemã, os posicionamentos dos neo-hegelia-
nos são examinados um a um e recebem o ' prêmio' que mere~
cem ... Os irmãos Bruno, Edgar e Egbert Bauer são tratados
de forma sucinta e violenta, tanto aqui como no pubJicado,
porém pouco lido A. sagrada família. Eles são representados como
três sórdidos vendedores ambulantes de inferiores produtos meta-
físicos, e segundo eles a mera existência de uma fastidiosa élite
crítica, elevada por seus dons intelectuais acima da plebe filisti-
na, efetivará a emancipação de tais segmentos da humanidade,
na medida de seus méritos. Essa crença no poder de uma fria
separação entre a luta social e a luta econômica para efetivar
uma transformação da sociedade é encarada como insensatez aca-
dêmica, uma atitude semelhante à do avestruz, que será e1imina-
da, como o resto do mundo a que pertence, pela verdadeira
revolução que já não podia estar muito longe. Stirner é
tratado de maneira mais extensa. Sob o título de São Max,
ele é perseguido ao longo de setecentas páginas de zombarias
e insultos escritos por mãos cruéis. Stirner acreditava que todos
os programas, idéias e teorias, bem como ordens políticas, eco-
nômicas e sociais, não passam de prisões artificia]mente cons-
truídas para a mente e o espírito, meios de refrear a vontade.
de ocultar do indivíduo a existência de seus infinitos poderes
criativos, e que todos os sistemas devem, portanto, ser destruí-
dos, não porque sejam maus, mas porque são sistemas, aos
quais a submissão constitui nova forma de idolatria; somente
quando isso for conseguido, o homem, liberto dos obstáculos.
se tornará de fato senhor de si mesmo e atingirá a plena esta-

138
considerando-os como seres humanos, ou seja, renunciando à
força e apelando para o sentimento de solidariedade humana , de
justiça igual e de generosos sentimentos humanitários, poder-
se-ia obter uma harmonia de interesses. Acima de tudo, o peso
do proletariado não devia ser transferido para os ombros de
outra classe. Marx e seu partido, afirmavam os 'verdadeiros so-
cialistas', desejavam apenas reverter os papéis das classes exis-
tentes, privar a burguesia do seu poder apenas para arruiná-la
e escravizá-la. Mas, sendo moralmente inaceitável, isso deixaria
a luta de classes sobreviver permanentemente 'sem conseguir
reconciliar a contradição existante da única maneira possível:
pela fusão de interesses conflitantes num ideal comum.
Marx considerou tudo isso imbecilidade ou hipocrisia. Toda
essa argumentação, ele assinala de forma exaustiva, repousa na
premissa de que os homens, incluindo os capitalistas, são sensí-
veis a uma alegação persuasiva, e em condições adequadas re-
nunciariam voluntariamente ao poder adquirido por nascimento
ou riqueza ou capacidade, só por amor a um princípio moral,
para criar um mundo mais justo. Para Marx, tratava-se da mais
velha, familiar e gasta de todas as falácias racionalistas. Ele a
conhecera em sua pior forma na crença de seu próprio pai e
seus contemporâneos, segundo a qual; no fim, a razão e a bon-
dade moral tenderiam a triunfar, teoria desacreditada por com-
pleto nos acontecimentos durante as sombrias conseqüências da
Revolução Francesa. Pregar isso agora, como se vivêssemos ainda
no século dezoito, seria culpar-se ou de estupidez ilimitada, ou
de uma covarde escapatória através de palavras, ou ainda de
deliberada utopia, quando se precisava apenas do exame cientí-
fico da verdadeira situação. Marx teve o cuidado de assinalar
que-ele próprio não incorria no erro oposto: não contradizia essa
tese acerca da natureza humana, só para afirmar que. enquanto
os teóricos presumiam que o homem fosse fundamentalmente ge-
neroso e justo, ele o via ganancioso, individualista e incapaz de
ação desinteressada. Esta teria sido uma hipótese tão subjetiva
e não histórica quanto a de seus oponentes. Ambas estavam vi-
9ª-º-ª~-.P~l.a_ falácia de que os atos h~ manos vinha,Ql _a ~er... d~t(!r­
minado~_em~\iltinlâ..J.iíscine~~~--~-maraL das....ho.me.ns.,
que, tomado isoladamente. poderia ser descrito a partir de sua

141
crença está na ação em que se expressa. As convicções e princí-
pios reais de um homem ou uma sociedad·e estão expressos em
seus atos, não em suas palavras. Crença e ato são a mesma coisa;
se os atos não exprimem crenças reconhecidas, estas são mentiras
- 'ideologias', conscientes ou não, que encobrem o oposto do
que. elas professam. Teoria e prática são, ou deveriam ser, uma
só e mesma coisa. "Os filósofos já ofereceram até aqui várias
interpretações do mundo. Nossa tarefa é transformá-lo."
Os cognominados 'verdadeiros socialistas', Grün e Hess,
não foram mais longe. E. verdade que escreveram acerca da
situação verdadeiraj mas, colocando ideais antes de interesses
, na ordem de importância, estão igualmente afastados de uma
vísão clara dos fatos. Acreditaram corretamente que a desigual-
dade política e o malaise emocional genérico de sua geração
eram determináveis no âmbito de contradições econômicas que
só poderiam ser eliminadas pela abolição total da propriedade
privada. Mas também acreditavam que o progresso tecnológico
que tornava isso possível não era um fim mas um meio; que a
ação seria justificada apenas pelo apelo a ideais morais; que o
uso da força, por mais nobres que fossem seus propósitos, der-
rotava a própria finalidade, já que brutalizava os dois partidos
·em luta, incapacitando-os para a verdadeira liberdade após o
término do confronto. Se os homens tinham de ser libertados,
que o fossem por meios pacíficos e civilizados, o mais rapida-
mente e menos dolorosamente possível, antes que a industria-
lização se espalhasse mais, tornando inevitável uma sangrenta
guerra de classes. De fato, a menos que se fizesse tal coisa, só a
violência restaria, e essa violência acabaria por derrotar tudo,
pois uma sociedade estabelecida pela espada, ainda que tivesse
inicialmente a justiça ao seu lado, não deixaria de cair na tirania
de uma classe vitoriosa - mesmo se fosse a dos trabalhadores
- sobre o resto, o que seria incompatível com aquela igualdade
humana que o verdadeiro socialismo procura criar. Os 'verda-
deiros socialistas' se opuseram à doutrina da necessidade de
uma franca luta de classes a pretexto de que ela cegaria os
trabalhadores para os direitos e ideais pelos quais haviam lu-
tado. Somente tratando-se os homens como iguais, desde o início.

140
r
'

simomas, nesse caso, eram estados mentais. esse aspecto é que


alimentava a falácia, de outra forma inexplicável, segundo a
qual a natureza da realidade era mental ou espiritual, ou que
a história poderia ser alterada pelas decisões isoladas de vonta-
des humanas não aprisionadas. Princípios e causas, a menos
que aliados a reais interesses causadores de ação, não passavam,
pois, de frases sem sentido; conduzir homens em nome deles
equivalia a jogá-los no vazio, a reduzi-los a um estado em que
seu fracasso na apreensão de seu verdadeiro estaqp os atiraria
no caos e na destruição. ...
Para mudar o mundo deve-se primeiro compreender o ma-
terial com que se lida. A burguesia que não deseja alterá-lo, mas
preservar o statu quo, age e pensa em função de conceitos que,
sendo produtos de um dado estágio do seu desenvolvimento,
servem - não importa o que eles pretendam ser - como ins-
trumentos da temporária preservação burguesa. O proletariado,
cujo interesse é mudar o mundo, aceita cegamente toda a para-
fernália intdectual do pensamento da classe média, nascida da
necessidade e das condições da classe média, embora exista uma
distinta divergência de interesses entre as duas classes. Frases a
respeito de justiça e liberdade representam algo mais ou menos
definido quando emitidas por um liberal de classe média, a
saber, a atitude dele, ainda que iludida, em relação ao seu estilo
de vida, sua relação verdadeira ou desejada com membros de
outras classes sociais. Mas não passam de palavras sem valor
quando repetidas pelo proletário 'alienado', já que nada des-
crevem de verdadeiro em sua vida e apenas traem-lhe o confuso
estado de espírito, resultado do poder hipnótico de frases , as
quais, por questões indistintas, não só são incapazes de promo-
ver, como também retardam e às vezes paralisam sua capacidade
de ação. Os mutualistas, os 'verdadeiros socialistas', os anar-
quistas místicos, por mais puras que pareçam suas intenções,
são, na verdade, inimigos mais perigosos do proletariado que
a burguesia, pois esta, pelo menos, é um inimigo franco, de
cujas palavras e atos os trabalhadores aprenderam a descon-
fiar. Mas aqueles outros, que proclamam sua solidariedade aos
operários e presumem a existência de interesses universais da
humanidade nesse sentido. comuns a todos os homens -

.14 )
ambiêncía. Marx, apegado ao método. senão às conclusões de
Hegel. sustentou que os propósitos de um homem vinham a ser
definidos pela situação social, isto é, econômica em que se situa-
va de fato, soubesse ou não disso. A despeito das opiniões do
homem, suas ações eram inevitavelmente guiadas por seus inte-
resses reais, pelas exigências de sua situação material; o~ e-
tivos conscientes pelo _m~nos ~!:':._ ..mª~º.L.P...ª~te_ da_h:~:~~.l2.i.~~e
~ão -~-~!~~:'!~... -~~- ch~q_qy_~-- ~2-IP. ()S..!.t:~is J~!~~~~~~-~ . . -~~J:~~~~':TI.t ..9.u
s~a. da classe .a que e)~ _..P!!!.~p_c}~.?..~~.mQ.<t_QJJ.~ -~~- ..Y~J:§lL.-9~
~· .b.9m.~.~~--_a_p~~.e.~~~s~I?.--~~sf.~~ç.~~C?s. ~m. indivíduQs. independ~~te~.
com finalidades objetivas desinteressadas, cheios de preocupações
políticas, morais, estéticas, emocionais e assim por diante. A
rnaior parte das pessoas oculta sua dependência em relação ao
meio e à situação. sobretudo à classe a que está filiada, e o faz
de forma tão eficaz que se chega a acreditar sinceramente que
uma mudança de base resultaria num modo de vida bem dife-
rente. Ess_t:..J.'?L .9_ ..~!_~52. -~~~---g!:~~~ ~~lll~~ido pelos pensadates
modernos. Re§ul~-ª.L. ~!!!.P::li!~~ do individualismo protestante qye,
impondo-se como contrapartida.. .'.fde-olog1ca'ão-crescímento da
liberdade de comércio e produção, levou os homens a acreditar
que o indivíduo tinha os meios de sua felicidade nas mãos,
que bastavam a fé e a energia para assegurá-la, que todo ho-
mem podia obter por si mesmo o bem-estar espiritual ou ma-
terial, que só poderia culpar a si mesmo por sua fraqueza e mi-
séria. CoEJ..r~.!!~~· ..M....an ...a.firmol.L._q.u~.... (}.... libs;r<l.ª4~..-g.~... ~~á.~!-o
J.~~e:. ..d~ _r~~ i.~_ pós_sibi~idades em que os hom_~.n~ (~rJ~t.n S\la es..co-
lha, era çle~rmjo..as.út. Jlí;;J_~ .~~'ª't~ª- _R.Q§.içã_o . q.u.e,_o_ª~.!!!~~.9cupay:p
n.QJIL~,P.ª-.. §.Q.~i~},.. Todas as idéias sobre certo e errado, justiça e in-
justiça, altruísmo e egoísmo estavam fora de foco, referiam-se
exclusivamente a estados mentais que, embora legítimos, não
passavam de sintomas da verdadeira condição de seu detentor.
Apenas os atos - sobretudo a conduta objetiva de um grupo,
não importando os motivos subjetivos de seus membros -
contam. Às vezes, quando o paciente estava familiarizado com
a ciência da patologia, diagnosticava com acerto a totalidade
de sua condição; isso exprime, aliás, o que se entende por visão
legítima por parte de um filósofo social. Com maior freqüên-
cia, porém, um sintoma se impõe como única realidade autên-
tica, ocupando toda a atenção do sofredor. Uma vez que os

142
wu. At~..9.\l.~..-~§.~~. ~stªçlQ_ s~j~- .de, .no.Y.O.....atingjqp_. . incorporando,
porém, todas as conquistas tecnológicas e espirituais que a hu-
manidade obteve ao longo de sua perambulação pelo deserto, nem
a paz nem a liberdade poderão ser obtidas. i\ ReyoJução Fran-
cesa foi uma tentativa de trazer isso à tona mediante uma alte-
;ação-ãpenaS"..d~-for~~§ ..E.Olíticjls - · justamente o gue.....a.llm:ID!~=
siã--p:i--eCisava_."_Iá ·g,~ possuía a realidade econômica .nas..mãQ§:
•,!·.'"<"''<'>-.,- . = . , . , . . u _ _ _ _ . ,... _ -

por conseguinte, a Revolução logrou apenas (e esta era, com


efeito, a tarefa histórica que lhe estava designada no estágio de
desenvolvimento em que a Revolução ocorreu) coi!ocar a bur-
guesia em posição dominante quando afinal destruiu os cor-
ruptos resíduos de um obsoleto regime feudal. Essa tarefa só
poderia ser continuada por Napoleão I, de quem ninguém espe-
raria, porém , que ele desejasse conscientemente libertar a huma-
nidade; não importam, pois, os motivos pessoais que o levaram
a agir da forma como agiu: as exigências do meio histórico o
fizeram inevitavelmente instrumento de mudança social; por
iniciativa sua, conforme Hegel chegou a perceber, a Europa deu
outro passo para a realização de seu destino.
A libertação gradual da humanidade havia tomado um
rumo definido, irreversível: cada novo pe.ríodo..~é ..inauguüldo
pela libertaçã() _de Uf\1a classe at( en~ã<? .. oprimida; uma vez des-
..
t~ne.nhumª.. Ç.J-ª.~-~~~egue_!~eto~!?.~.~. A_bistó.ri!!...n~c: _~.~--~-.9-
vimenta para trás nem faz movimentos cíclicos: todas as suas
- -
conquistas são finais e irrevogáveis. Muitas constituições ante-
riores aparentemente ideais perderam o valor porque ignoravam
leis legítimas do desenvolvimento histórico, que elas substituí-
ram por caprichos subjetivos ou pela imaginação dos pensa-
dores. Um conhecimento de tais leis vem a ser essencial à ação
política e fetiva. O__roun4o antigo cedeu lugar ao medieval, a
escravidão à liberdade e o feudalismo à burguesia industrial.
·T~trans.fQ.®-ªÇ.Q.?§. não foram pacíficas, mas.brota.r(lm de guer-
ras e revoluções, pois nenhuma ordem estabelecida cede a vez
à sua sucessora sem luta.
Agora somente um estrato pennanece submerso abaixo
do nível dos restantes, apenas uma classe continua escravizada:
o proletariado sem terra e sem propriedade, criado pelo avanço
da tecnologia, perpetuamente vendo classes acima da sua brandi-
rem o jugo do opressor comum: depois que a causa comum é

145
os homens têm interesses independentemente de sua filiação a
determinada classe, ou que os transcendem-, espalham o erro
e disseminam as trevas no campo do proletariado, enfraque~
cendo-0 para a batalha que se avizinha. Os trabalhadores
devem ser levados a entender que o moderno sistema industrial,
tal como o sistema feudal que o antecedeu, tal como qualquer
outro sistema social, é dominado por uma classe; enquanto a
classe governante precisar dele para se manter como classe, ele
contínua a ser um despotismo de ferro imposto pelo sistema capi-
talista de produção e distribuição, do qual indivíduo algum,
senhor ou escravo, logrará escapar. Todos os sonhos visionários
de liberdade humana, de um tempo em que os homens serão
capazes de desenvolver seus dons naturais na extensão mais
plena, vivendo e criando de modo espontâneo, já não depen-
. dentes dos outros para a liberdade de fazer ou de pensar con-
forme desejam, permanecerão uma utopia inatingível na medida
em que a luta pelo controle dos meios de produção continua. Já
não se trata de uma luta estritamente pelo meio de subsistência,
pois as invenções e descobertas modernas aboliram a escassez
natural; a escassez tornou-se agora artificial, criada pela própria
luta para assegurar novos instrumentos, um processo que leva
necessariamente à concentração de poder pela criação de mono-
pólios numa ponta da escala social, e ao aumento da penúria e
da degradação na outra. A guerra entre grupos economicamente
determinados nada mais faz que dividir os homens entre si,
cegá-los para os fatos reais de sua situação, escravizá-los a cos-
tumes e regras que não ousam questionar, porque se desagrega-
riam ao toque da explanação histórica; apenas um remédio -
o desaparecimento da luta de classes- poderá promover a abo-
lição desse abismo crescente. Mas a essência de uma classe é
competir com outras classes . .Por conseguinte, essa finalidade
pode ser alcançada não criando-se igualdade entre classes -·
concepção utópica - , mas pela total abolição delas.
Para Marx, não menos que para os primeiros racionalis-
tas, o homem é potencialmente sábio, criativo e livre. Se seu
caráter deteriorou-se além dos limites, isso se deve à longa e
brutalizante guerra que ele e seus ancestrais viveram desde
que a sociedade deixou de ser aquele primitivo comunismo a
partir do qual. segundo a antropologia corrente, ela se desenvol-

144
do, é compelido a fazer em tal situação: e deve adaptar suas
táticas a isso. A história é determinada - e a vitória será ob-
tida, por conseguinte, pela classe- ascendente, queira um deter-
minado indivíduo ou não - ; q!JâO_ rápida, efetiva ou iodolo-
rosamente isso ocorrerá, e até que ponto conforme a vontade
PQI]Ular: conscieote, depende da iniciatiya ~umana, do_ gr~-U. d~
ccun.ru:~tf.D.§"ª-º-- fl.a J.ª!e_fa pela~ tpas.s_as e da coragem e eficácia
de seus líderes.
TQ.rnar isso claro e educar as massas para o deitÍJl<?~~~~~
e~era é, QOrta~to, segundo~_M.arx. o deyg_Jle..um filósofo_fQ,_tt.~
te~p()râneo. Mas, tem-se perguntado muitas vezes, como po-
"deria um-preceito, um mandamento a este ou aquele respeito ser
deduzido da verdade de uma teoria da história? O materialismo
histórico pode avaliar o que de fato ocorre, mas não pode,
precisamente porque diz respeito unicamente ao que é, dar res-
postas a questões de valor, ou seja, dizer-nos o que deve ser.
Marx não faz explicitamente essa distinção, que foi trazida à
vanguarda da atenção filosófica por Hume e Kant, mas parece
claro que para ele (hisso Marx acompanha Hegel) os julgamen-
tos de fato não podem ser distinguidos nitidamente dos julga-
mentos de valor: todos os julgamentos de alguém são condicio-
nados pela atividade prática num dado meio social, que, por sva
vez, são funções do estágio alcançado pela classe da pessoa
na sua evolução histórica; as opiniões de alguém, isto é, aquilo
que ele acredita existir e aquilo que deseja fazer com isso, mo-
dificam as pessoas entre si. Se os julgamentos éticos exigem
validade objetiva, então devem ser definíveis em função de ati-
vidades empíricas e ser verificáveis com referência a elas.
Marx não reconhece a existência de uma intuição não empíri-
ca, puramente contemplativa ou especificamente moral, ou de
uma razão moral. O único sentido em que é possível mostrar
que alguma coisa é boa ou má, certa ou errada, é pela demons-
tração de- que ela se ajusta ou discorda do processo histórico -
a atividade progressiva coletiva dos homens - que ela auxilia
ou contraria, a que ela sobreviverá ou perecerá inevitavelmente.
Todas as causas permanentemente perdidas ou condenadas ao
malogro, na complexa mas historicamente determinada ascensão
da humanidade, são, por esse mesmo motivo, tornadas más e

147
conquistada, esse proletariado é condenado à opressão por seus
recentes aliados, a nova classe vitoriosa, formada por senhores
que não passavam de escravos. O proletariado está situado no
mais baixo grau possível da escala social; não existe classe abaixo
dele; assegurando sua própria emancipação, o proletariado eman-
cipará, por conseguinte, a humanidade. Ao contrário de out~as
classes, ele não faz reivindicações específicas, não possui inte-
resses próprios que não deseje compartilhar com todos os ho-
mens; pois ele foi despojado de tudo, salvo de sua humani-
dade simples; a destituição do proletariado faz os seres humanos
serem representados como tais: o que lhes é concedido constitui
· o mínimo permitido a todos os homens. Em conseqüência, sua
luta não é uma luta pelos direitos naturais de um segmento par-
ticular da sociedade, pois direitos naturais são, nada mais nada
menos, a formulação ideal da atitude burguesa para a santidade
da propriedade privada; os únicos direitos reais são os conferidos
pela história, o direito de des.empenhar o papel historicamente
imposto a uma classe. Nesse sentido, a burguesia tem o pleno
direito de travar sua batalha final contra as massas, mas sua
tarefa é inútil: ela será necessariamente derrotada, como a no-
breza feudal foi derrotada em sua época. Quanto às massas, elas
lutam por liberdade não porque assim optaram, mas porque
devem, ou melhor, optaram por dever; lutar é a condição
de sua sobrevivência; o futuro lhes pertence e na luta pelo
futuro elas, como qualquer classe ascendente, lutam contra um
inimigo condenado à decadência, e dessa forma lutam por toda
a humanidade. Mas, enquanto todas as outras vitórias colocam
no poder uma classe condenada ao desaparecimento final, esse
conflito não será seguido por outro, estando destinado a com-
pletar a condição de todas essas lutas pela abolição das classes.
pela dissolução do 'Estado, até aqui instrumento de uma única
classe, e sua transformação numa sociedade livre porque sem
classes. O proletariado deve ser levado a entender que nenhum
compromisso real com o inimigo é possível; que, embora possa
concluir alianças temporárias com ele, a fim de derrotar algum
adversário comum, deve no final voltar-se contra ele. Em países
atrasados, onde a burguesia continua lutando pelo poder, o pro-
letariado deve dar a sua parcela de contribuição, sem inquirir
quai's seriam os ideais da burguesia, e sim o que ele, proletaria-

t46
lhadas e do que ele afirma. do que aceita sem questionamento.
A utilização por ele de idéias como liberdade ou racionalidade
e sua tenninologia ética parecem basear-se no que se segue (citar,
nesse caso, a partir de um capítulo ou versículo é impossível,
mas os discípulos ortodoxos de Marx, como Plekhanov, Kautsky,
Lenin, Trotsky, não menos que seus seguidores independentes.
como Lukacs e Gramsci, incorporaram os conceitos em seu pen-
samento): se você sabe em que direção se movimenta o processo
mundial, poderá identificar-se com ela ou não: se não se iden-
tifica, se vem a combatê-la, você então promoverá .sua própria
e certa destruição, sendo necessariamente derrotado...pelo avanço
da história: optar por isso deliberadamente é comportar-se ir-
racionalmente . Só um ser inteiramente racional é inteiramente
livre para optar entre alternativas: se uma destas o leva à des-
truição, ele não pode escolhê-la livremente, porque dizer que tal
ato é livre, conforme Marx utiliza o termo, é negar que ele seja
contrário à razão. A burguesia como classe está condenada de
fato a desaparecer, mas os indivíduos que a compõem podem
curvar-se à razão e salvar-se (conforme Marx afirmou que fi-
zera), abandonando~a antes que afunde. A verdadeira liberdade
é inatingível até que a sociedade se torne racional, ou seja, ul-
. trapasse as contradições que alimentam ilusões e deformam o
entendimento tanto de senhores como de escravos. Mas os ho-
mens podem trabalhar por um mundo livre ao descobrir o ver-
dadeiro estado do equilíbrio de forças e agir em conseqüência;
o atalho para a liberdade requer, nesse caso, conhecimento da
necessidade histórica. O uso por Marx de palavras como 'certo',
ou 'livre' ou 'racional', sempre que ele não cai insensivelmente
no uso comum. deve seu ar estranho ao fato de derivar de suas
idéias metafísicas; por conseguinte, diverge muito do significado
do discurso comum, que pretende em grande parte registrar e
comunicar algo de pouquíssimo interesse para ele - a experiên-
cia subjetiva de indivíduos de classe pervertida. seus estados de
espírito ou orgânicos conforme revelados pelos sentidos ou pela
autoconsciência.
Esta, em resumo, é a teoria da história e da sociedade que
constitui a base metafísica muitas vezes 'implícita' do comunis-
mo. f uma doutrina ampJa e abrangente que deriva sua estru-

149
erradas, e na verdade é isso que constitui o significado de tais
termos. Mas este é um critério empírico perigoso, já que causas
aparentemente perdidas podem, de fato, ter sofrido somente um
retrocesso temporário e acabem por prevalecer.
A visão marxista da verdade em geral deriva diretamente
desse posicionamento. Marx é às vezes acusado de afirmar que,
sendo um homem determinado a pensar o que pensa por sua
ambiência social, mesmo que algumas de suas declarações sejam
objetivamente verdadeiras, ele não poderá sabê-lo, sendo condi-
cionado a julgá-las verdadeiras por causas materiais, não pela
sua verdade. As afirmações de Marx a esse respeito são de certa
forma vagas; mas em geral pode-se dizer que ele aceitou a in-
terpretação normal do que se quer significar quando se diz que
· uma teoria ou uma proposição da ciência natural ou de uma ex-
periência de senso comum é verdadeira ou falsa. Mas estava bem
pouco interessado nisso, por ser o tipo de verdade mais comum,
mais discutido pelos filósofos modernos. Preocupavam-no, isso
sim, as razões pelas quais os vereditos sociais, morais e histó-
ricos são julgados verdadeiros ou falsos, quando os argumentos
dos oponentes não podem ser estabelecidos facilmente pelo re-
curso direto a fatos a ambos acessíveis. Ele concordaria que a
simples declaração de que Napoleão I havia morrido no exílio
fora aceita como igualmente verdadeira por um historiador bur-
guês e um socialista. Mas insistiria ·e m dizer que nenhum his-
toriador autêntico se limita a uma relação de acontecimentos e
datas; que a plausibilidade do seu exame do passado, sua afir~
mação de ter feito mais que uma simples crônica depende, em
caso extremo, de sua escolha de conceitos fundamentais, de seu
poder de ênfase .e estruturação; que o próprio processo de sele-
ção de material trai uma inclinação para acentuar este ou aquele
acontecimento ou ato como importante ou trivial, adverso ou
favorável ao progresso humano, seja este bom ou ruim. E nessa
tendência a origem social, o meio e a filiação do historiador a
uma classe, além de seus interesses, falam com bastante clareza.
Essa atitude parece sublinhar sua visão hegeliana da ra-
cionalidade como impondo o conhecimento das leis de neces-
sidade. Marx raramente inicia alguma espécie de análise filosó-
fica; a linha geral de sua teoria do conhecimento, da moral
e da política tem de ser inferida a partir de observações espe-

148
interpretação. Pensadores anteriores- por exemplo, Vico. HegeL
Saint-Simon - traçaram um esboço geral, mas seus resultados
diretos, tal como incorporados nos sistemas gigantescos de
Comte ou Spencer, são ao mesmo tempo muito abstratos e muito
vagos, lembrados em nossa época apenas pelos historiadores de
idéias. O verdadeiro pai da moderna história econômica e, com
efeito, da moderna sociologia, se. algum homem viesse a reivin-
dicar esse título, é Karl Marx. Se transformar em truísmos o que
antes eram paradoxos for uma marca de gênio, Marx foi dotado
então de rica genialidade. Suas realizações nessa esfera são ne-
cessariamente ignoradas na proporção em que seus efeitos se
tomaram parte do panorama permanente do pensamento civi-
lizado.

J ') 1
tura e conceitos básicos de_ Hegel e dos jovens Hegelianos;
seus princípios dinâmicos de Saint-Simon; sua crença no pri-
mado da matéria de Feuerbach; e sua visão do proletariado; da
tradição comunista francesa. Todavia ela é original: a combi-
nação de elementos não leva nesse caso ao sincretismo, mas
forma um sistema firme e coerente, com toda a abrangência e
maciça qualidade arquitetônica que constitui ao mesmo tempo o
maior orgulho e o defeito fatal de todas as formas do pensa-
mento hegeliano. Mas isso não é culpa da atitude indiferente e
desdenhosa de Hegel para com os resultados da pesquisa cientí-
fica do seu tempo; pelo contrário, sua atitude tenta acompanhar a
-direção indicada pelas ciências empíricas e incorporar-lhes os
resultados genéricos. A prática de Marx nem sempre se ajustou
a esse ideal teórico, e a de seus seguidores às vezes menos ainda;
embora não verdadeiramente distorcidos, os fatos são feitos às
vezes para suportar transformações peculiares do processo de
sua adequação ao intrincado modelo dialético. Não chega a
ser uma teoria empírica completa, já que não se limita à des-
crição dos fenômenos e à formulação de hipóteses relativas à
estrutura e conduta deles; a doutrina marxista do movimento
nas colisões dialéticas não é uma hipótese passível de se tornar
mais ou menos provável pela evidência dos fatos, mas um mode-
lo exposto a um método histórico não empírico, cuja validade
não é questionada. Negar isso equivaleria a um retorno, de
acordo com Marx, ao materialismo fvulgar' que, ignorando as
descobertas fundamentais de Hegel e também de Kant, reco-
nhece somente as conexões reais para as quais existe a prova cor-
rigível dos sentidos físicos.
Na perspicácia e clareza com que formula suas questões,
no rigor do método pelo qual propõe a busca de respostas, na
combinação da atenção aos pormenores e da capacidade de am-
pla e abrangente generalização, em teoria não tem paralelo. Ainda
que se provasse a falsidade de todas as suas conclusões especí-
ficas, a importância dela, ao criar uma atitude inteiramente nova
ante questões sociais e históricas, e assim abrir novos caminhos
ao conhecimento humano, seria inigualável. O estudo científico
de relações econômicas historicamente desenvolvidas e do peso
destas sobre outros aspectos das vidas das comunidades e dos
indivíduos começou com a aplicação dos cânones marxistas de

150
r

7
1848

Gegen Demokraten Helfen nur Soldaten. 1


Canção prussiana
Liberdade, Igualdade. Fraternidade. . . quando o que
essa república realmente significa é Infantaria, Cava-
laria, Artilharia ...
KARL MARX, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte

Marx foi expulso de Paris no começo de 1845 pelo gover-


no Guizot, em conseqüência de representações da Prússia, pe-
dindo a supressão do socialista Vorwiirts por haver feito comen-
tários ofensivos sobre o caráter do rei prussiano então no troco.
A ordem de expulsão abrangia originalmente o grupo inteiro.
incluindo Heine, Bakunin, Ruge e vários outros exilados menos
conhecidos. Ruge, por ser cidadão saxão, não foi molestado. O
governo francês também não se aventurou a cumprir a ordem
contra Heine, figura de fama européia, então no auge dos seus
poderes e influência, Bakunin e Marx foram expulsos sumaria-

I Con1ra democratas só O!:i soldados resolvem.


principíado como expenencía isolada de indivíduos excepcio-
nais, a exemplo de Rousseau e Chateaubriand, Schiller e Jean
Paul, Byron e Shelley, tornou-se aos poucos um elemento na ati-
tude geral de boa parte da sociedade européia. Pela primeira vez,
toda uma geração deixou-se fascinar pela experiência pessoal de
homens e mulheres, em contraste com o mundo externo com-
posto da ação mútua das vidas de grupos ou sociedades inteiros.
Essa tendência obteve expressão pública nas vidas e doutrinas
de grandes revolucionários democratas e na apaixonada ado-
ração que 1hes devotavam seus adeptos: Maz.zini, Km;suth, Garí-
baldi, Bakunin, Lassalle eram admirados não somente como he-
róicos combatentes da liberdade, mas por suas características
românticas e poéticas individuais. Suas realizações eram jul-
gadas como expressão de uma experiência profunda, cuja intensi-
dade dava às suas palavras e gestos uma comovente qualidade
pessoal, bem diferente do heroísmo austeramente impessoal dos
homens de 1789, uma qualidade que constitui a característica
distinta, a marca peculiar e a perspectiva da época. Karl M.arx
pertencia em espírito a uma geração anterior ou posterior. Fal-
tava-lhe discernimento psicológico; a pobreza e o trabalho árduo
não lhe aumentaram, por sua vez, a receptividade emocional;
essa extrema cegueira à experiência e ao caráter de pessoas
fora de seu alcance imediato fazia o intercâmbio com o mundo
exterior parecer-lhe singularmente rude; ele conhecera um
breve período sentimental, quando estudante em Berlim- um
interlúdio agora encerrado. Considerava os sofrimentos morais
ou emocionais e as crises espirituais como se fossem um como~
dismo burguês, imperdoável em tempo de guerra. Como Lenin,
após ele, Marx parecia nada mais sentir que desprezo pelos que,
durante o calor da luta, e enquanto o inimigo conquistava uma
posição atrás da outra. preocupavam-se com o estado de suas
almas.
Lançou-se à obra de criação de uma organização revolucio-
nária internacional. Obteve a recepção mais calorosa em Lon-
dres, de uma sociedade chamada Associação Educacional dos
Trabalhadores Alemães, dirigida por um pequeno grupo de
artesãos exilados, cujo temperamento revolucionário estava além
de qualquer suspeita: o gráfico Schapper, o fabricante. de reló-
gios Moll e o sapateiro Bauer foram seus primeiros aliados polí-

155
mente, apesar dos vigorosos protestos da imprensa radical. Ba-
kunin foi para a Suíça: Marx, com a esposa e uma filha de um
ano de idade, Jenny, para _Bruxelas, onde dentro em pouco En-
gels, que retornara da Inglaterra com aquela intenção, foi ao seu
encontro. Em Bruxelas, Marx não perdeu tempo no estabele-
cimento de contatos com os vários trabalhadores comunistas ale-
mães, cujas organizações continham membros da dissolvida Liga
dos Justos, uma sociedade internacional de revolucionários pro-
letários com um vago, porém violento programa influenciado por
Weitling, e ramificações em várias cidades européias. Marx tra-
vou relações com socialistas e radicais belgas, manteve corres-
pondência ativa com membros de órgãos similares em outros
países e estabeleceu um mecanismo regular para troca de infor-
mações políticas, mas a esfera principal de sua atividade situou-
se mesmo entre os operários alemães da própria Bruxelas. A
estes, ele tentou, por meio de palestras e de artigos em seu órgão,
o Deutsche Brüsseler Zeitung, explicar sua adequada partici-
pação na revolução próxima e que ele~ como a maioria dos radi-
cais europeus, julgava iminente.
Tão logo concluiu que o estabelecimento do comunismo só
poderia ocorrer através de um levante do proletariado, toda a
sua existência concentrou-se na tentativa de organizá-lo e disci-
pliná-lo para essa tarefa. A história pessoal de Marx, que até esse
ponto pode ser considerada uma série de episódios na vida de
um indivíduo, agora se torna inseparável da história geral do
socialismo na Europa; a análise de uma não existe sem a análise
da outra. Tentativas de diferenciar o papel que Marx desempe~
nhou ao direcionar o movimento a partir do próprio movimento
obscurecem a história de ambos. A tarefa de preparar os operá-
rios para a revolução foi para ele científica, uma ocupação roti-
neira, algo a ser desempenhado o mais firme e eficientemente
possível, e não um meio direto de auto-expressão pessoal. As
circunstâncias externas de sua vida são, por conseguinte, tão
monótonas quanto as de qualquer outro especialista culto, como
Darwin ou Pasteur, e oferecem nítido contraste com as vidas agi-
tadas, emocionalmente envolvidas de outros revolucionários da
época.
Os meados do século dezenove formam um período em que
um enorme estímulo baseava-se na sensibilidade.· O que havia

154
principíado como expenencía isolada de indivíduos excepcio-
nais, a exemplo de Rousseau e Chateaubriand, Schiller e Jean
Paul, Byron e Shelley, tornou-se aos poucos um elemento na ati-
tude geral de boa parte da sociedade européia. Pela primeira vez,
toda uma geração deixou-se fascinar pela experiência pessoal de
homens e mulheres, em contraste com o mundo externo com-
posto da ação mútua das vidas de grupos ou sociedades inteiros.
Essa tendência obteve expressão pública nas vidas e doutrinas
de grandes revolucionários democratas e na apaixonada ado-
ração que 1hes devotavam seus adeptos: Maz.zini, Km;suth, Garí-
baldi, Bakunin, Lassalle eram admirados não somente como he-
róicos combatentes da liberdade, mas por suas características
românticas e poéticas individuais. Suas realizações eram jul-
gadas como expressão de uma experiência profunda, cuja intensi-
dade dava às suas palavras e gestos uma comovente qualidade
pessoal, bem diferente do heroísmo austeramente impessoal dos
homens de 1789, uma qualidade que constitui a característica
distinta, a marca peculiar e a perspectiva da época. Karl M.arx
pertencia em espírito a uma geração anterior ou posterior. Fal-
tava-lhe discernimento psicológico; a pobreza e o trabalho árduo
não lhe aumentaram, por sua vez, a receptividade emocional;
essa extrema cegueira à experiência e ao caráter de pessoas
fora de seu alcance imediato fazia o intercâmbio com o mundo
exterior parecer-lhe singularmente rude; ele conhecera um
breve período sentimental, quando estudante em Berlim- um
interlúdio agora encerrado. Considerava os sofrimentos morais
ou emocionais e as crises espirituais como se fossem um como~
dismo burguês, imperdoável em tempo de guerra. Como Lenin,
após ele, Marx parecia nada mais sentir que desprezo pelos que,
durante o calor da luta, e enquanto o inimigo conquistava uma
posição atrás da outra. preocupavam-se com o estado de suas
almas.
Lançou-se à obra de criação de uma organização revolucio-
nária internacional. Obteve a recepção mais calorosa em Lon-
dres, de uma sociedade chamada Associação Educacional dos
Trabalhadores Alemães, dirigida por um pequeno grupo de
artesãos exilados, cujo temperamento revolucionário estava além
de qualquer suspeita: o gráfico Schapper, o fabricante. de reló-
gios Moll e o sapateiro Bauer foram seus primeiros aliados polí-

155
mente, apesar dos vigorosos protestos da imprensa radical. Ba-
kunin foi para a Suíça: Marx, com a esposa e uma filha de um
ano de idade, Jenny, para _Bruxelas, onde dentro em pouco En-
gels, que retornara da Inglaterra com aquela intenção, foi ao seu
encontro. Em Bruxelas, Marx não perdeu tempo no estabele-
cimento de contatos com os vários trabalhadores comunistas ale-
mães, cujas organizações continham membros da dissolvida Liga
dos Justos, uma sociedade internacional de revolucionários pro-
letários com um vago, porém violento programa influenciado por
Weitling, e ramificações em várias cidades européias. Marx tra-
vou relações com socialistas e radicais belgas, manteve corres-
pondência ativa com membros de órgãos similares em outros
países e estabeleceu um mecanismo regular para troca de infor-
mações políticas, mas a esfera principal de sua atividade situou-
se mesmo entre os operários alemães da própria Bruxelas. A
estes, ele tentou, por meio de palestras e de artigos em seu órgão,
o Deutsche Brüsseler Zeitung, explicar sua adequada partici-
pação na revolução próxima e que ele~ como a maioria dos radi-
cais europeus, julgava iminente.
Tão logo concluiu que o estabelecimento do comunismo só
poderia ocorrer através de um levante do proletariado, toda a
sua existência concentrou-se na tentativa de organizá-lo e disci-
pliná-lo para essa tarefa. A história pessoal de Marx, que até esse
ponto pode ser considerada uma série de episódios na vida de
um indivíduo, agora se torna inseparável da história geral do
socialismo na Europa; a análise de uma não existe sem a análise
da outra. Tentativas de diferenciar o papel que Marx desempe~
nhou ao direcionar o movimento a partir do próprio movimento
obscurecem a história de ambos. A tarefa de preparar os operá-
rios para a revolução foi para ele científica, uma ocupação roti-
neira, algo a ser desempenhado o mais firme e eficientemente
possível, e não um meio direto de auto-expressão pessoal. As
circunstâncias externas de sua vida são, por conseguinte, tão
monótonas quanto as de qualquer outro especialista culto, como
Darwin ou Pasteur, e oferecem nítido contraste com as vidas agi-
tadas, emocionalmente envolvidas de outros revolucionários da
época.
Os meados do século dezenove formam um período em que
um enorme estímulo baseava-se na sensibilidade.· O que havia

154
métodos políticos reconhecidos. Ele empenhou-se em destrui r a
retórica e a indeterminação entre os alemães, tarefa em que não
chegou a ser malsucedido, como pode ser comprovado pela efi-
ciente e disciplinada conduta dos membros de sua organiza-
ção na Alemanha durante e após os dois anos revolucionários.
Em 1847, o centro londrino da Liga Comunista demonstrou
confiança em Marx e Engels, ao encarregá-los de compor um
documento que contivesse uma declaração definitiva de crenças
e objetivos. Marx agarrou-se ansiosamente a essa oportunidade
para um sumário explícito da nova doutrina que ·iicabara de
adquirir forma final em sua cabeça. Entregou o documento no
começo de 1848. Foi publicado algumas semanas antes que se
deflagrasse a revolução de Paris, sob o título de Manifesto do
Partido Comunista.
Engels escreveu o primeiro rascunho sob a forma de per-
guntas e respostas, mas não sendo essa fórmula julgada con-
vinceJite, Marx reescreveu-a por complet<>. Segundo Engels, o
resultado foi um trabalho original que quase nada tinha a ver
com a sua contribuição original; mas ele era muitíssimo modesto
quando se tratava de sua colaboração: o rascunho mostra a
grande parcela de sua autoria no documento. Foi o maior de
todos os panfletos socialistas. Nenhum outro movimento ou cau-
sa política moderna poderá reivindicar a produção de algo com-
parável ao Manifesto, em eloqüência ou força. É um documento
de prodigiosa força dramática; na sua forma, parece-se com
um edifício de audazes e imponentes generalizações históricas,
subindo até a denúncia da ordem existente, em nome das forças
vingadoras do futuro, em sua maior parte escrito numa prosa
que tem a qualidade lírica de um grande hino revolucionário,
cujo efeito, poderoso até hoje, foi provavelmente mais grandioso
naquela época. Começa com uma frase ameaçadora que revela o
tom e a intenção: "Um espectro vagueia pela Europa de hoje -
o espectro do comunismo. Todas as forças da Europa se uniram
para exorcizá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, radicais
franceses e policiais alemães. . . ele é reconhecido como uma
força autêntica por todas as potências européias". Continua com
uma sucessão de teses interligadas que são desenvolvidas e cos-

1.'57
ticos confiáveis. Tinham filiado sua sociedade a uma federação
chamada Liga Comunista, que sucedeu à dissolvida Liga dos
Justos. Marx conheceu-os durante uma viagem à Inglaterra com
Engels, e julgou-os homens de sua própria têmpera, determina-
dos, capazes e enérgicos. Eles o olharam com bastante suspeita,
como jornalista e intelectual; suas relações durante anos manti-
veram um caráter impessoal, como se envolvessem apenas negó-
cios. Era uma associação para finalidades práticas imediatas -
e isso Marx aprovou. Sob sua orientação, a Liga Comunista
cresceu depressa e começou a abraçar grupos de operários radi-
cais espalhados em sua maior parte nas áreas industriais da Ale-
manha, com um punhado de oficiais do exército e profissionais.
Engels escreveu relatórios ardorosos sobre o aumento de mem-
bros e o .zelo revolucionário em sua província natal. Pela pri-
meira vez, Marx encontrava-se na posição que desejara há muito
tempo, de organizador e líder de um partido revolucionário
ativo em expansão. Bakunin, que por sua vez chegara a Bruxe-
las, e desfrutava igualmente de relações cordiais com radicais
estrangeiros e membros da aristocracia local, queixou-se de que
Marx preferia a sociedade dos artesãos e operários à de pessoas
inteligentes, e estava estragando homens bons e simples, ao en-
cher-lhes as cabeças de teorias abstratas e doutrinas econômicas
obscuras que eles mal conseguiam compreender e só os tor-
navam intoleravelmente presunçosos. Bakunin não via vantagem
alguma em palestrar para eles e em organizar pequenos grupos
de artesãos alemães mal-educados e de curto entendimento, que
pouco aprendiam do que lhes era exposto; criaturas insípidas,
subalimentadas, que jamais teriam peso num conflito decisivo.
O ataque de Marx contra Proudhon contribuiu para afastá-los
mais ainda: Proudhon era amigo íntimo e, em questões hege-
lianas, um discípulo de Bakunin; o ataque era dirigido, aliás_,
ao hábito de Bakunin de entregar-se a uma vaga e exuberante
eloqüência, em vez da análise política pormenorizada.
Os acontecimentos de 1848 alteraram a visão de ambos
quanto à técnica mais adequada à revolução próxima, e em
direções exatamente opostas. Em anos posteriores Bakunin vol-
tou-se para os grupos terroristas secretos, Marx para a fundação
de um partido revolucionário aberto. oficia]. atuando segundo

1.56
Ela tem conseguido destruir o poder de todas as outras formas
rivais de organização - a aristocracia, os pequenos artesãos e
seus líderes-, mas o proletariado ela não poderá destruir, por-
que ele é necessário à sua própria existência, é parte orgânica do
sistema e constitui o grande exército dos despossuídos que, no
ato de explorá-los, ela disciplina e organiza inevitavelmente.
Quanto mais internacional se torna o capitalismo - e à medida
que se espalha, ele cresce mais - , mais ampla e mais interna-
cional é a escala em que automaticamente ele organiza os ope-
rários, cuja união e solidariedade o derrubarão ev~p.tualmente.
A internacional do capitalismo gera inevitavelmente, como seu
complemento necessário, a internacional da classe trabalhado-
ra. O processo dialético é inexorável e poder algum conseguirá
detê-lo ou controlá-lo. Daí a futilidade de tentar restaurar o
velho idílio medieval, construir esquemas utópicos sobre um
desejo nostálgico de retorno ao passado, pelos quais os ideólo-
gos de camponeses, artesãos e pequenos comerciantes ansiavam
ardentemente. O passado passou, as classes que a ele pertence-
ram foram derrotadas sem remédio pela marcha da história; sua
hostilidade em relação à burguesia, muitas vezes chamada erro-
neamente de socialismo, é uma atitude reacionária, uma tenta-
tiva fútil de reverter o avanço da evolução humana. Sua única
esperança de triunfo sobre o inimigo está no abandono de sua
vida independente e na fusão com o proletariado, cujo cresci-
mento corrói a burguesia de dentro para fora; pois o acúmulo de
crises e de desemprego força a burguesia a exaurir-se na alimen-
tação de seus servidores, em vez de alimentar-se deles, o que
seria sua função natural.
Da posição de ataque o Manifesto passa à defesa. Os inimi-
gos do socialismo declaram que a abolição da propriedade pri-
vada destruirá a liberdade e subverterá os funda-mentos da reli-
gião, moralidade e cultura. Admite-se que sim. Mas os valores
que ele destruirá são os valores acorrentados à velha ordem -
a liberdade e a cultura burguesas, cuja aparência de validade
absoluta para qualquer tempo e lugar é uma ilusão devida tão-so-
mente à sua função como arma na luta de classes. A verdadeira
liberdade pessoal é a posse do poder de ação independente, da
qual o artesão, o pequeno comerciante. o camponês foram há
muito privados pelo capitalismo. Quanto à cultura, "a cultura

159
turadas brilhantemente, e finda com uma célebre e magnífica
invocação dirigida aos trabalhadores do mundo.
A primeira daquelas teses está contida na frase de abertu-
ra da primeira seção: "A história de todas as sociedades anterio-
res é a história da luta de classes". Em todos os períodos até
onde se tem memória, a humanidade esteve dividida em explora-
dor e explorado, senhor e escravo, patrício e plebeu, e em nossa
época em proletários e capitalistas. O extraordinário desenvol-
vimento das descobertas e invenções transformou o sistema eco-
nômico da moderna sociedade humana; guildas deram lugar a
manufaturas locais, e estas, por sua vez, a grandes empresas
industriais. Cada etapa dessa expansão é acompanhada por for-
mas políticas e culturais peculiares. A estrutura do Estado mo-
derno reflete a dominação da burguesia - ele não passa, com
efeito, de uma delegação para administrar os negócios da classe
burguesa como um todo. A burguesia desempenhou papel alta-
mente revolucionário em sua época; derrubou a ordem feudal
e, ao agir assim, destruiu as velhas, pitorescas relações patriar-
cais que prendiam o homem a seus 'senhores naturais', deixan-
do apenas uma verdadeira relação entre elas: o vínculo do di-
nheiro, o egoísmo nu e cru. Transformou a dignidade pessoal
em mercadoria negociável, a ser comprada e vendida; no lugar
das antigas liberdades, asseguradas por títulos e escrituras, criou
a liberdade de comércio; a exploração disfarçada por máscaras
religiosas e políticas foi substituída por uma exploração direta,
cínica e desavergonhada. Reduziu profissões outrora conside-
radas honrosas em suas formas de serviço à comunidade em
simples trabalho de aluguel; com os seus propósitos aquisitivos,
degradou todas as formas de vida. Isso foi alcançado mediante
a criação de imensos recursos naturais novos: a estrutura feudal
não pôde conter o novo desenvolvimento e foi rompida. Agora
o processo repetia-se. As freqüentes crises econômicas devidas
à superprodução são um sintoma do fato de que o capitalismo
já não pode, por sua vez, controlar os próprios recursos. Quan-
do uma ordem social é forçada a destruir seus próprios produtos
para evitar a expansão demasiado rápida e demasiado abrangen-
te de suas facilidades, então isso é sinal certo de que ela se
aproxima da bancarrota da destruição. A ordem burguesa criou
o proletariado que é ao mesmo 'tempo seu herdeiro e executor.

158
cara de um vago e oportunista socialismo. Os comunistas não
constituem um partido ou uma seita, senão a vanguarda auto-
consciente do proletariado, já não obcecados por meras finali-
dades teóricas, mas buscando a realização de seu destino. Eles
não escondem seus objetivos. Declaram abertamente que estes
só serão alcançados quando toda a ordem social for derrubada
pela força das armas e eles se apoderarem do poder político e
econômico. O Manifesto finda com as famosas palavras: "Os
trabalhadores nada têm a perder a não ser os grilhõ~,s. Eles têm
um mundo a conquistar. Trabalhadores de todo'<> o mundo,
uni-vos!"
Analistas posteriores demonstraram de forma convincente o
uso de material conhecido, retirado de programas anteriores -
especialmente o babovista - e incorporado no Manifesto; no
entanto, a fusão resultou numa unidade indestacável. Sumário
algum poderia acentuar o conteúdo de suas páginas de abertura
ou das finais. Como instrumento de propaganda destrutiva,
ele não tem igual em lugar nenhum; seu efeito nas gerações que
se sucederam não encontra paralelo fora da história das religiões;
se seu autor nada mais tivesse escrito, o Manifesto sozinho lhe
asseguraria fama duradoura. Mas seu efeito mais imediato recaiu
nos destinos dos que o formularam. O governo belga, que até
então tratava os exilados políticos com bastante tolerância, não
pôde suportar aquela publicação formidável e, de repente, ex-
pulsou Marx e família de seu território. No dia seguinte, a re-
volução há muito tempo esperada éstourou em Paris. Flocon, um
radical do novo governo francês, em carta lisonjeira convidou
Marx a retornar à cidade revolucionária. Ele partiu logo e che-
gou um dia depois.
Encontrou Paris num estado de entusiasmo universal e fácil
de contentar. As barreiras haviam tombado uma vez mais -
dessa feita, ao que parecia, para sempre. O rei havia fugido de-
clarando-se "impulsionado por forças morais", um novo governo
fora formado, contendo representantes de todos os amigos da
humanidade e do progresso: o grande físico Arago e o poeta
Lamartine receberam pastas ministeriais, os trabalhadores foram
representados por Louis Blanc e Albert. Lamartine compôs elo~
qüente manifesto que era lido, citado, declamado por toda parte.
As ruas estavam cheias de multidões de democratas de todos os

161
cuja perda se lamenta é, para a esmagadora maioría, um simples
treinamento que a faz agir como máquina". Com a abolição total
da luta de classes, esses ideais ilusórios desaparecerão necessa-
riamente, sendo acompanhados por uma nova e mais ampla
forma de vida fundamentada numa sociedade sem classes. La-
mentar-lhes a perda é lamentar o desaparecimento de um velho
incômodo familiar.
A revolução deve diferir em circunstâncias diferentes, mas
suas primeiras medidas em qualquer lugar seriam a nacionaliza-
ção da terra, do crédito e do transporte, a abolição de direitos
de herança, o aumento da taxação, a intensificação da produção,
a destruição das barreiras entre cidade e campo, a introdução de
trabalho compulsório e livre educação para todos. Somen te
então com~ará uma séria reconstrução social. O restante do
Manifesto expõe e refuta várias formas de pseudo-socialismo -
as tentativas de vários inimigos da burguesia, a aristocracia ou
a Igreja, de engajar o proletariado na sua causa mediante o cap-
cioso pretexto de interesses comuns. Nessa categoria entra a
arruinada petite bourgeoisie, cujos escritores, adeptos que são de
expor o caos da produção capitalista, a pauperização e degrada-
ção causadas pela introdução da máquina, as monstruosas de-
sigualdades de riqueza, oferecem remédios que, concebidos em
termos obsoletos, são utópicos. O mesmo se poderia dizer dos
'verdadeiros socialistas' 2 alemães que, ao traduzirem trivialida-
des francesas para a linguagem do hegelianismo, produzem uma
coleção de frases absurdas que já não iludem o mundo. Quanto
a Proudhon, Fourier ou Owen, seus adeptos traçam esquemas
para salvar a burguesia, como se o proletariado não existisse,
ou pudesse ser elevado aos padrões capitalistas, deixando so-
mente exploradores e não explorados. A infindável variedade
de pontos de vista representa a situação desesperadora da
burguesia, incapaz ou sem querer enfrentar a morte iminente,
concentrando-se em esforços vãos para sobreviver sob a más-

2. Isto é, Hess, Grtin e os demais, cujo erro consiste em pregar o


socialismo não por ser uma imposição histórica, mas por ser justo e
requerido pela natureza humana, que eles concebem, por sua vez,
como u ma essência permanente, uma entidade não radicalmente trans-
formada pela história ou pela luta de classes.

160
upôs à formação da legião, não demonstrou inleresse por t:!a de-
pois que deixou Paris para uma derrota inevitável pelo exército
real, e foi para Colônia ver o que poderia fazer pela propaganda
em sua Renânia natal, onde se revelou de valia na tarefa de
persuadir um grupo de industriais liberais e simpatizantes comu-
nistas a fundar um novo Rheinische Zeitung, que sucedia ao
jornal do mesmo nome fechado cinco anos antes, e assumir-lhe
a editaria. Colônia era então cenário de um descontrolado equi-
líbrio de poder entre os democratas locais, que controlavam a
milícia da localidade, e uma guarnição que recebia ordens de
Berlim. Agindo em nome da Liga Comunista, Marx mandou
agentes seus agitar as massas industriais alemãs e utilizou os
relatórios como material de seus principais artigos. Não exis-
tia na época censura formal na Renânia e as palavras inflama-
das de Marx atingiam um público crescente. O Neue Rheinische
Zeitung era bem-informado e só ele na imprensa de extrema-
esquerda possuía uma clara diretriz política. Sua circulação
aumentou com rapidez e ele começou a ser lido cada vez mais
em outras províncias alemãs.
Marx chegara ali armado com um plano de ação política e
econômica completo, fund~mentado em sólida base teórica que
ele erguera cuidadosamente durante os anos precedentes. Pre-
gou uma aliança condicional entre os trabalhadores e a bur-
guesia radical, com o propósito imediato de derrubar um gover-
no reacionário, declarando que, enquanto os franceses tinham se
libertado do jugo do feudalismo em 1789, e com isso se capa-
citado a dar o passo seguinte em 1848, os alemães só tinham
feito revoluções no terreno do pensamento puro; como pensa-
dores, tinham ultrapassado qs franceses no radicalismo dos sen-
timentos, mas politicamente ainda viviam no século dezoito.
Sendo a mais atrasada das nações ocidentais, a Alemanha tinha
duas etapas a vencer antes de chegar ao nível do industrialismo
desenvolvido e daí por diante marchar passo a passo com as de-
mocracias vizinhas. O movimento dialético da história não per-
mite saltos e os representantes do proletariado faziam mal em
não tomar conhecimento dos clamores da burguesia que, traba-
lhando para sua emancipação, adiantava a causa geral e políti-
ca e estava economicamente melhor organizada e habilitada
a governar que as massas ignorantes, dispersas e desorganizadas

163
matizt:s e nacionalidades, cantando e em estado de grande exal-
tação. A oposição não mostrava sinais de vida. A Igreja divul-
gou manifesto em que assegurava que o cristianismo não era
inimigo das liberdades individuais, mas, ao cont1·ário, seu alia-
do e defensor natural; o reino do cristianismo não era deste
mundo e, conseqüentemente, o apoio que o acusaram de dar à
reação não se originava nem de seus princípios nem de sua posi-
ção histórica na sociedade européia, e poderia ser modificado
de forma radical, sem que isso violentasse a essência da prega-
ção cristã. Tais anúncios foram recebidos com entusiasmo e cre-
dulidade. Os exilados alemães imitavam os poloneses e os ita-
lianos nas predições do iminente e universal colapso da reação
e do surgimento imediato, de suas ruínas, de um novo mundo
moral. Não tardaram a chegar notícias de que Nápoles se revol-
tara; e depois de Nápoles, Milão, Roma, Veneza e outras cida-
des italianas. Berlim, Viena e Budapeste tinham ep1punhado
armas. A Europa, afinal, estava em chamas. A exaltação entre os
alemães de Paris chegou a um grau febriL Para apoiar os
republicanos insurretos, formou-se uma legião alemã que o
poeta Georg Herwegh e um ex-soldado comunista prussiano de
nome Willich iriam comandar. A legião partiria imediatamente.
O governo francês, não desejando, talvez, ver tantos agitadores
estrangeiros em seu solo, encorajou o projeto. Engels sentiu-se
atraído pelo esquema e por pouco não se alistou, sendo dissua-
dido por Marx, que encarava tais providências com desconfian-
ça e hostilidade. Marx não via sinais de revolta em larga escala
das massas alemãs; aqui e ali, governos autocráticos eram der-
rubados e os príncipes forçados a prometer constituições e for-
mar governos parcialmente liberais, mas o exército prussiano
continuava em grande parte leal ao rei, enquanto os democra-
tas dispersavam-se, malconduzidos e incapazes de alcançar con-
senso entre eles próprios acerca de pontos fundamentais. O
eleito congresso popular, que se reuniu em Frankfurt para deci-
dir o futuro governo da Alemanha, foi um fracasso desde o
início e a súbita irrupção de uma legião de intelectuais émigrés
destreinados em território alemão parecia a Marx um desper-
dício inútil de energia revolucionária, propenso a um fim ridí-
culo ou digno de lástima, acompanhado por um sentimento pa-
ralisador de vergonha e desilusão. Em conseqüência, M.a rx se

162
econômico. Agiu, portanto, com toda a consistência ao aprovar
publicamente, mais tarde, a invasão alemã a sangue-frio da pro-
víncia dinamarquesa do Schleswig-Holstein - um ato cujo apoio
franco por parte da maioria dos democratas alemães mais con-
ceituados causou notável constrangimento entre seus aliados libe·
rais e constitucionalistas de outros países.
Marx denunciou a sucessão de governos prussianos de
curta vida liberal que, de maneira fácil, segundo lhe parecia,
quase com alívio permitiam que o poder lhes esçapasse das
mãos, de retorno ao rei e ao partido do rei. Houvé""furiosas ex-
plosões de cólera contra o 'palavreado vazio' e a ' cretinice
parlamentar' em Frankfurt, que findaram numa tempestade
de indignação quase sem paralelo no próprio O capital. Ele
não perdeu a esperança, então ou mais tarde, no resultado su-
premo do conflito, mas sua idéia de táticas revolucionárias e
sua opinião quanto à inteligência e fidedignidade das massas e
seus líderes mudaram por completo. Marx viu na incurável
estupidez deles um obstáculo maior ao seu progresso que o pró-
prio capitalismo. Suas diretrizes, como ficou comprovado, resul-
taram tão impraticáveis quanto a dos radicais intransigentes que
ele denunciava. Em análises subseqüentes. Marx atribuiu o
resultado desastroso da revolução à fraqueza da burguesia, à
ineficiência dos liberais parlamentares, mas sobretudo à ceguei-
ra política das massas crédulas, obstinadamente leais aos agen-
tes do pior inimigo, que as iludia e lisonjeava. conduzindo-
as com grande facilidade à sua destruição. Se o restante da vida
de Marx foi dedicado na maior parte a problemas puramente
táticos e a consideração de qual o melhor método para os lí-
deres revolucionários adotarem nos interesses de seu rebanho
de incompreendidos, bem como na análise das verdadeiras con-
dições, isso se deveu muito à lição da revolução alemã. Em
1849, depois dos fracassos dos levantes em Viena e em Dresden,
ele escreveu· violentas diatribes contra liberais de todas as con·
vicções, chamando-os de covardes e saboteurs, ainda hipnotiza-- ,
dos pelo rei e seus sargentos adestrados, assustados pela idéia
de uma vitória definitiva, preparados a trair a revolução por
medo das forças poderosas que ela poderia desencadear, e desse
modo virtualmente derrotados antes de terem começado. Decla-
rou que, mesmo que a burguesia conseguisse fazer seu corrupto •

165
da classe trabalhadora. Por conseguinte, o passo maís adequado
dos trabalhadores seria concluir uma aliança com a classe mé~
dia e média baixa, e então, após a vitória, tentar controlar, e
se necessário obstruír, a obra de seus novos aliados {que, a essa
altura, sem dúvida estariam ansiosos para romper o compro-
misso) por via do seu maior peso numérico e poder econômico.
Ele se opôs aos extremados democratas de Colônia, Anneke e
Gottschalk, que pregavam abstenção total a semelhante opor-
tunismo e, na verdade, a qualquer ação política capaz de com-
prometer e enfraquecer a causa pura do proletariado. Isso pa-
recia a Marx uma cegueira tipicamente alemã quanto ao verda-
deiro equilíbrio de forças. Ele exigiu intervenção direta e a ida
de delegados a Frankfurt como a única providência efetiva-
mente prática. O alheamento político parecia-lhe o cúmulo da
loucura tática, já que equivalia a deixar os trabalhadores iso-
lad<:>s e à mercê da classe vitoriosa. Em questões de política es-
trangeira ele era um tanto pangermânico e um furioso russó-
fobo. A Rússia ocupara por muitos anos a mesma posição em
face das forças da democracia e do progresso e evocava a mes-
ma reação emocional das potências fascistas do século vinte.
Era odiada e temida pelos democratas de todas as convicções,
como a grande campeã da reação, capaz de esmagar todas as
tentativas de liberdade dentro e fora das suas fronteiras.
A exemplo de 1842, Marx exigiu uma guerra imediata com
a Rússia, porque nenhuma tentativa de revolução democrática
obteria êxito na Alemanha em vista da certeza de uma inter-
venção russa, e como forma de juntar os principados alemães
num conjunto democrático contra um poder, cuja influência in-
teira alinhava-se ao lado do elemento dinástico da política euro-
péia; talvez também a fim de ajudar aquelas forças revolucioná-
rias dispersas dentro da própria Rússia, a cuja existência Baku-
nin costumava fazer constantes e misteriosas referências. Marx
estava preparado para sacrificar muitas outras considerações aos
propósitos da unidade alemã, pois na sua desunião, ele, não
menos que Hegel e Bismarck, via a causa ao mesmo tempo de
sua fraqueza, ineficiência e retrocesso político. Marx não era
romântico neni nacionalista e considerava pequenas nações como
sobrevivências obsoletas que estorvavam o progresso social e

164
matizadores socíalistas que suplicavam à burguesia a concessão
de favores ao povo e recebiam permissão para fazer longos ser-
mões ... e precisavam embalar o sono do leão proletário, repu-
blicanos que queriam a totalidade do velho sistema burguês, .
menos a cabeça coroada, legitimistas que não desejavam despir
a libré, mas simplesmente mudar-lhe o modelo. . . foram estes
os aliados do povo na revolução de fevereiro! Contudo, o que
o povo odiava não era Luís Filipe, e sim o domínio coroado de
uma classe, o capital entronado. Todavia, magnânimo como
sempre, pensou que houvesse destruído seus inimigOs, quando,
na realidade, derrubara o inimigo de seus inimigos, o inimigo
comum deles todos.
"Os conflitos que espontaneamente emergem das condições
da sociedade burguesa devem ser combatidos até o amargo fim;
não podem ser esconjurados para fora da existência. A melhor
forma de Estado é aquela em que tendências sociais opostas não
são encobertas ... mas que, graças à livre expressão, vêm a ser
resolvidas. Mas poderão nos perguntar: 'Vocês não têm lágrimas,
nem suspiros, nem palavras de simpatia para com as vítimas da
fúria popular?'
"O Estado dará a devida assistência às viúvas e órfãos des-
ses homens. Eles serão homenageados em decretos, terão um
esplêndido funeral público, a imprensa oficial declarará imor-
tais as suas memórias. . . mas os plebeus, atormentados pela
fome, injuriados nos jornais, abandonados até pelos cirurgiões,
estigmatizados por todas as pessoas 'decentes' como ladrões, in-
cendiários, criminosos, suas mulheres e filhos deixados em maior
miséria que antes, os melhores entre os sobreviventes transpor~
tados - certamente a imprensa democrática reivindicará o direi-
to de coroar-lhes com lauréis a enrugada e sombria fronte?"
Esse artigo (não diferente do tributo de Marx à Comuna
de Paris mais de vinte anos depois) alarmou os assinantes e o
jornal começou a perder dinheiro. Dentro em pouco o governo
prussiano, a essa altura convencido de que pouco tinha a te~
mer do sentimento popular, ordenou a dissolução da assem~
bléia democrática. Esta replicou declarando ilegais as taxas im-
postas pelo governo. Marx apoiou com veemência essa decisão e
convocou o povo a reagir contra as tentativas de cobrança tribu-

167
acordo com o inimigo à custa de seus aliados entre a petíte
bourgeoisie e os trabalhadores, pelo menos não obteria mais do
que fora obtido pelos liberais franceses sob a Monarquia de
Julho na França, embora, no pior dos casos, a barganha viesse a
ser repudiada pelo rei e se tornasse o prelúdio de um novo terror
monarquista. Jornal algum da Alemanha ousava ir tão longe nas
denúncias contra o governo. A franqueza descompromissada de
tais análises e a audácia das conclusões que Marx tirava delas
fascinaram os leitores contra a vontade deles mesmos, ainda que
sinais inequívocos de pânico começassem a surgir entre os acio-
nistas.
Em julho de 1848 a fase heróica da revolução de Paris
havia passado e os conservadores começaram a concentrar for-
ças. Os membros socialistas radicais do governo, Louis Blanc,
Albert e Flocon, viram-se forçados a renunciar. Os trabalhado-
res rebelaram-se contra os republicanos de extrema-direita que
continuavam no poder, levantaram barricadas e após três dias
de luta corpo-a-corpo nas ruas foram dispersados e perseguidos
pela Guarda Nacional e pelas tropas leais ·ao governo. A émeute
de junho pode ser considerada o primeiro levante puramente
socialista na Europa, conscientemente dirigido contra liberais
não menos que contra legitimistas. Os adeptos de Blanqui (que
estava preso) convocaram o povo a tomar o poder e estabelecer
uma ditatura armada. O espectro do Manifesto comunista ad-
quiria substância, afinal. Pela primeira vez, o socialismo revo-
lucionário revelava-se naquele selvagem e ameaçador aspecto
que mostrou desde então aos seus oponentes de todos os países.
Marx reagiu de imediato. Contra os enérgicos protestos dos
donos do jornal, que viam todas as formas de derramamento
de sangue e violência com horror profundo, ele publicou um lon-
go e indignado editorial, cujo tema era o funeral dispensado
pelo Estado aos soldados mortos durante os distúrbios em Paris ~
"A fraternidade das duas classes opostas (uma das quais
explora a outra) que em fevereiro estava inscrita em letras gar-
rafais nas fachadas de Paris, nas prisões e nos acampamentos ...
essa fraternidade durou apenas o tempo em que os interesses da
burguesia puderam confraternizar com os interesses do proleta-
riado. Teoristas da velha tradição revolucionária de t 793, siste~

166
momento. O aparecimento de Marx, a essa altura uma persona-
lidade européia, de forma alguma era bem-vindo ao governo.
Pouco depois de sua chegada recebeu a alternativa de sair da
França ou retirar-se para Morbihan, na Bretanha. Dos países
livres, a Bélgica lhe fechara as portas; a Suíça, que havia ex-
pulsado W eitling e demonstrado pouca cordialidade para com
Bakunin, provavelmente não lhe daria residência. Somente um
país europeu era capaz de não colocar pedras no seu caminho.
Marx chegara a Paris, procedente da Renânia, em .julho. Um
mês depois uma subscrição feita por seus amigos, eriii:e os quais
o nome de Lassalle aparece pela primeira vez, permitiu-lhe pagar
a passagem para a Inglaterra. Marx chegou a Londres em 24 de
agosto de 1849; a família seguiu um mês depois, e Engels, após
se divertir na Suíça e empreender longa e agradável viagem
marítima a parth de Gênova, chegou no começo de novembro.
Engels encontrou Marx convencido de que a revolução poderia
eclodir uma vez mais a qualquer instante e engajado na redação
de um panfleto contra a república francesa conservadora.
tária. Dessa feita o governo agiu com presteza e determinou o
fechamento imediato do Neue Rheinische Zeitung. A última edi-
ção foi impressa em tipo vermelho, contendo um inflamatório
artigo de Marx e um eloqüente e faiscante poema de Freiligrath,
tendo sido comprado como curiosidade de colecionador. Marx
foi preso por incitamento à sedição e levado a julgamento pe-
rante um júri de Colônia. Aproveitou a oportunidade para pro-
nunciar um discurso de fôlego e erudição em que analisava
em pormenores a situação social e política da Alemanha e do
estrangeiro. O resultado foi inesperado: o primeiro jurado, ao
anunciar a absolvição do acusado, disse que desejava agrade-
, cer-lhe, em seu nome e em nome do júri, por uma palestra inco-
mumente instrutiva e interessante, com a qual todos tinham lu-
crado. O governo prus.siano, que cancelara sua cidadania prus-
siana quatro anos antes, incapaz de reformar o veredicto, ex-
pulsou Marx da Renânia em julho de 1849. Ele foi para Pa-
ris, onde a agitação bonapartista em favor do primeiro sobrinho
de Napoleão tornaria a situação política ainda mais confusa
que antes, dando a impressão de que algo importante pO--
deria ocorrer a qualquer momento. Os colaboradores de Marx
haviam se espalhado em várias direções: Engels, que detestava
a inatividade, e declarara que nada tinha a perder, juntou-se à
legião comandada por Willich, comunista sincero e comandante
capaz, que Marx detestava como aventureiro romântico e En-
gels admirava pela ingenuidade, frieza e coragem pessoal. A
legião foi derrotada em Baden, sem dificuldades, pelas forças
legalistas, e retirou-se em boa ordem para a fronteira da Con-
federação Helvética, onde se dispersou. A maioria dos sobre-
viventes entrou na Suíça, entre eles Engels, que guardou as
mais agradáveis lembranças de suas experiências nessa ocasião
e mais tarde usou-as para narrar em. estilo ameno a história
da campanha, que ele .considerou um episódio alegre, sem im-
portância particular. Marx, cuja capacidade para se divertir era
mais limitada, considerou Paris um lugat· melancólico. A revo-
lução fracassara. Isso era patente. Intrigas leg.itimistas, orleanis-
tas e bonapartistas destruíram aos poucos o que restara da es-
trutura democrática: socialistas e radicais que não tinham fu-
gido, ou estavam na prisão ou para lá poderiam ir a qualquer

168
8
Exílio em Londres:..:
a primeira fase

Existe somente um antídoto para o sofrimento mental: a


dor física.
KARL MARX, Herr Vogt

Marx. chegou a Londres em 1849, esperando ficar na Ingla-


terra algumas semanas, talvez meses; no entanto viveu ali
quase ininterruptamente até a sua morte em 1883. O isola-
mento da Inglaterra, intelectual e social, em relação às princi-
pais correntes da vida continental sempre tem sido grande e os
anos intermediários do século dezenove não constituíram exce-
ção. As questões que abalavam o continente levaram muitos
anos para cruzar o canal e, quando cruzaram, tenderam a assu-
mir forma nova e peculiar, transformadas e anglicizadas no pro-
cesso de .transição. Revolucionários estrangeiros não eram, em
regra, molestados, desde que se comportassem de maneira ordei-
ra e discreta; tampouco se estabelecia algum tipo de contato
com eles. Seus anfitriões os tratavam com correção e civilida-
de, envoltos em certa indiferença por seus assuntos - o que,
ao mesmo tempo. irritava e divertia. Revolucionários e homens
de letras que por muitos anos viveram às voltas com agi-
tadas atividades intelectuais e políticas consideraram a atmos-

l7l
nobres, que nomes interessantes e notáveis com quem esta-
belecer relações humanas. A maioria dos adeptos de tais perso-
nalidades eram encarados como excêntricos inofensivos, o que,
na realidade, definia muitos deles. Marx, que não tinha bas-
tante fama nem encanto pessoal para atrair semelhante atenção,
viu-se reduzido a poucos amigos e praticamente sem vintém num
país que, embora tivesse visitado menos de três anos atrás,
lhe permanecia estranho. Vivendo, como viveu, em meio a
uma sociedade bastante variada e próspera, então no auge do
fenomenal crescimento do seu poder econômico e ~blítico, ele
passou a vida inteira em permanente insulamento, tratando-a uni-
camente como objeto de observação científica. O colapso do
radicalismo militante no exterior não lhe deixou outra escolha,
pelo menos por algum tempo, senão a de uma vida de observa-
dor e erudito. A conseqüência importante disso foi que, sendo
o material sobre que se debruçava em grande parte inglês, ele
confiou na prova, para suas hipóteses e generalizações, quase
inteiramente de autores ingleses e na experiência inglesa. Os
trechos de detalhada pesquisa social e histórica que formam os
melhores e os mais originais capítulos de O capital são ocupa-
dos sobretudo com períodos para os quais a maior parte das
provas pôde ser obtida nas colunas financeiras do jornal The
Economist, nas histórias da economia, no material estatístico en-
contrado nos livros azuis * do governo (que ele foi o primeiro
erudito a utilizar cientificamente) e outras fontes de acesso
possível, sem para isso deixar os limites de Londres, ou melhor,
da sala de leitura do Museu Britânico. Isso foi feito em meio
a urna vida dispendida em agitação esporádica e atividade
prática de organização, mas com ar de extremo alheamento,
como se o escritor estivesse a muitos quilômetros de distância
da cena do debate. Esse fato causa, às vezes, uma impressão
inteiramente falsa de Marx amadurecendo, durante os anos de
exílio, sob a forma de uma sábio remoto e isolado que, aos trinta

* No original, blue books. Compilação de documentos diplo-


máticos distribuída ao Parlamento britânico, cuja capa era azul. Ado-
tou-se para tais publicações de informes diplomáticos em todo o mundo
o costume de qualificá-los com a designação de uma cor. (N. do E.)

17)
fera londrina fria, de uma frieza desumana. A sensação de
isolamento e exílio lhes era acentuada pela maneira benevolen-
te, distante, muitas vezes levemente protetora como eram tra-
tados pelos poucos ingleses com quem entravam em contato;
embora essa atitude tolerante e civilizada criasse de fato um
vácuo em que era possível recobrar-se física e moralmente
do pesadelo de 1849, a distância dos acontecimentos criada por
tal sensação de tranqüilidade, a imensa estabilidade que o regi-
me capitalista parecia possuir na Inglaterra, a completa ausência
de quaisquer sintomas de revolução, tendiam às vezes a induzir
uma impressão de estagnação desesperançada, que só não con-
seguiu desmoralizar poucos homens dedicados à causa revolu-
cionária. No caso de Marx, a pobreza desesperada e a miséria
foram fatores adicionais na dissecação de seu caráter pouco
romântico ou flexível. Embora os anos de exílio na lnglatera
o tenham beneficiado como pensador e .revolucionário, eles o
forçaram a viver quase inteiramente recolhido ao círculo estrei-
to composto por sua família, Engels e poucos amigos íntimos,
como Liebknecht, Wolff e Freiligrath. Como personalidade pú-
blica, sua natural aspereza e agressividade, seu desejo de es-
magar todos os rivais, aumentaram com _o passar dos anos;
seu desgosto pela sociedade em que vivia tornou-se cada vez
mais agudo e os contatos pessoais com pessoas a ela pertencen-
tes, cada vez mais difíce.is; era mais cordial para com 'burgue-
ses' estrangeiros que para com os socialistas fora da sua órbita;
indispunha-se com facilidade e detestava reconciliações. Tendo
Engels em quem se apoiar, não requisitou outra ajuda, e perto
do final da vida, quando o respeito e a admiração que ha-
via amealhado chegaram ao auge, ninguém mais ousava apro-
ximar-se muito dele com medo de ser repelido de uma forma
particularmente humilhante. A exemplo de outros grandes ho-
mens, Marx apreciava a lisonja e, mais ainda, a submissão total;
nos últimos anos ele as obteve em medida plena e morreu com
muito mais honra e conforto material do que desfrutara em
qualquer período anterior.
Esses foram os anos em que os patriotas românticos, como
Kossuth ou Garibaldi, eram festejados e publicamente aplaudi-
dos nas ruas de Londres; consideravam-nos mais figuras pito-
rescas das quais se devia esperar conduta heróica e palavras

172
volvímento da indústria e do comercio, além de extinguir as
últimas brasas da conflagração cartista. Líderes e agitadores con-
tinuaram a lutar contra os erros dos trabalhadores, mas os
anos exasperados de Peterloo e os mártires de Tolpuddle que,
nos tristes e comoventes panfletos de Hodgskin e Bray, e na sel-
vagem ironia de William Cobbett, tinham deixado um gosto
amargo de opressão estúpida e muita ruína social, cediam lugar
insensivelmente à época mais amena de John Stuart Mill e dos
positivistas ingleses com suas simpatias socialistas, ao socialis-
mo cristão dos anos 60 e ao sindicalismo essenciaimente não
político de oportunistas prudentes e cautelosos do tipo de Cre-
mer ou Lucraft, que desconfiavam das tentativas de doutrinários
estrangeiros de ensinar-lhes sobre seus próprios negócios.
Claro que Marx começou por estabelecer contato com os
exilados alemães, Londres, nessa época, continha uma con-
fluência de émigrés alemães, membros dos dissolvidos comitês
revolucionários, poetas e intelectuais exilados, artesãos alemães
vagamente radicais que tinham se fixado na Inglaterra muito
antes da revolução, além de comunistas militantes expulsos da
França ou da Suíça, que tentavam reconstituir a Liga Comu-
nista e renovar relações com radicais ingleses que lhes eram
simpáticos. Marx seguiu suas táticas habituais e se ateve rigi-
damente à sociedade dos alemães: acreditava com firmeza que
a revolução não estava encerrada; na verdade, continuou con-
vencido disso até o coup d'état que colocou Napoleão Ill no
trono da França. Nesse ínterim, gastou o que considerava sim-
ples calmaria durante a batalha em atividades normais de um
exilado político, comparecendo a reuniões de refugiados e bri-
gando com os que lhe despertavam suspeitas. O culto e imper-
tinente Herzen, em Londres a essa altura, nutriu profundo des-
gosto por Marx e em suas memórias deixou uma maliciosa e
brilhante descrição da po·sição ocupada por Marx e seus segui-
dores, na ocasião e mais tarde, entre os demais émigrés polí-
ticos. Em geral, os alemães eram notoriamente incapazes de
cooperar com os demais exilados italianos, russos, poloneses e
húngaros, cuja falta de método e paixão por intensas relações
pessoais. Por sua vez estes últimos achavam os alemães antipá-
ticos; detestavam-lhes a insipidez, as maneiras abrutalhadas, a
vaidade colossal; acima de tudo achavam-nos sórdidos e mutua-

175
e dois anos, deixara a vida ativa para engajar-se em ínvestiga-
ções puramente teóricas.
O momento em que Marx chegou à Inglaterra era singular-
mente desfavorável a quaisquer perspectivas de revolução. O
movimento de massas que socialistas continentais consideravam
um modelo de ação proletária organizada entre as mais indus-
trializadas e, portanto, as mais socialmente av~mçadas nações
européias - o cartismo - havia sofrido ultimamente uma
derrota esmagadora: observadores estrangeiros, incJuindo Engels,
tinham superestimado sua força. Era um amontoado de in-
teresses e pessoas heterogêneos, incluindo tóris românticos, ra-
dicais avançados influenciados por modelos continentais, re-
formadores evangélicos, radicais filosóficos, fazendeiros e arte-
sãos desapropriados e visionários apocalípticos. Estavam unidos
pelo horror comum à crescente pauperização e degradação social
da baixa classe média que marcavam cada avanço da revolução
industrial; muitos deles contrários a qualquer idéia de violência,
pertenciam à classe tão desprezivelmente referida no Manifesto
como "economistas, filantropos, humanitaristas desejosos de me-
lhorar as condições de vida da classe operária, organizadores
de atos de caridade, membros de sociedades para prevenção
da crueldade contra os animais, fanáticos da liga da temperan-
ça, reformadores clandestinos de todos os tipos imagináveis".
O movimento estava mal organizado. Seus líderes nem con-
cordavam entre si nem possuíam, individualmente e ainda me-
nos coletivamente, crenças nítidas quanto às finalidades a serem
apresentadas aos seus adeptos, ou aos meios a serem adotados
para sua realização. Os membros mais firmes do movimento
eram aqueles sindicalistas do comércio ansiosos para melho-
rar as condições de trabalho e de salário, e que só se inte-
ressavam por questões mais amp]as se relativas à sua causa
particular. Duvidava-se que um movimento revolucionário sério
pudesse surgir em qualquer circunstância de um amálgama tão
peculiar. E~ na verdade, nada aconteceu. Deve ter sido por cau-
sa do grande Reform Act, ou pelo poder da dissidência, que
r·efrearam a maré. Seja cpmo for , em 1850 a grande crise que
havia começado em 1847 estava encerrada. Ela foi sucedida
pelo primeiro impulso econômico reconhecido na história eu-
ropéia e que aumentou extraordinariamente o índice de desen-

'174
nin, mas, talvez como Babeuf a concebera em 1796, um pequeno
grupo de indivíduos dispostos e implacáveis, que assumiriam o
poder ditatorial e educariam o proletariado até este alcançar um
nível em que compreendesse sua própria . tarefa. Foi pensando
nesse recurso que Marx advogou em Colônia, em 1848 e 1849,
uma aliança temporária com os líderes da burguesia radical.
A petite bourgeoisie, lutando contra a pressão das classes ime-
diatamente acima dela, era o aliado natural dos operários nesse
estágio; mas, cada vez mais incapaz de governar por si mesma,
ela se tornaria pendente do apoio dos operários, at~o momento
em que estes, já senhores econômicos da situação, assumissem
as formas oficiais do poder político, ou mediante um violento
coup, ou mediante pressões graduais. Essa doutrina (cuja for-
mulação mais clara se deve à correspondência de Marx com a
Liga Comunista em 1850) é familiar ao mundo porque (devi-
vida pelo agitador russo Parvus) foi reclamada com urgência por
Trotsky em 1905, adotada por Lenin e posta em prática por
ambos, com fidelidade literal, na Rússia em 1917. Contudo,
Marx à luz dos acontecimentos de 1848, a tinha abandonado em
certos aspectos vitais, pelo menos na prática. Aos poucos, des-
cartou a idéia da tomada do poder por uma elite, por lhe pa-
recer tal elite incapaz de fazer alguma coisa em face de um
exército regular hostil e de um proletariado inerte e destreinado.
Não faltavam aos líderes dos operários coragem e senso prático,
no entanto foi-lhes de todo impossível permanecer no poder em
1848 contra as forças conjuntas dos realistas, do exército e da
alta classe média. A menos que o proletariado como um todo
viesse a ser conscientizado da sua parte histórica, seus lideres
permaneceriam impotentes. Poderiam provocar um levante ar~
mado, mas não alimentariam esperanças de reter~lhe os frutos
sem o apoio consciente e inteligente da maioria da classe ope-
rária. Conseqüentemente, a lição vital dos acontecimentos de
1848, segundo Marx, foi que o primeiro dever de um líder re-
volucionário consiste em disseminar entre as massas a consciên-
cia do seu destino e da sua tarefa. Trata-se de longo e laborioso
processo, sem dúvida, mas. não sendo cumprido, nada se obteria
de concreto, a não ser o desperdício de energia revolucionária
em revoltas esporádicas conduzidas por aventureiros e cabeças-

177
mente destrutivos, e não era incomum que pormenores íntimos
da vida particular deles fossem levados ao público. em carica-
turas francas e brutais da imprensa.
Os desastres de 1848 não chegaram a sacudir as crenças teó-
ricas de Marx, mas o forçaram a rever seriamente seu programa
político. Nos anos de 1847 e 1848 ele estava sob a influência de
Weitling e Blanqui o suficiente para acreditar, contra sua natu-
ral inclinação hegeliana, que uma revolução bem.sucedida po-
deria ocorrer por meio de um coup d'état promovido por um pe-
queno grupo de revolucionários treinados que, tendo tomado o
poder~ o manteriam, constituindo-se em comitê executivo das
massas em cujo nome agiam. Esse grupo funcionaria como a
ponta-de-lança do ataque do proletariado. As massas imensas
da classe operária, após anos de servidão e trevas, não poderiam
amadurecer de repente para assumir o governo ou para contro-
lar e liquidar as forças que substituíssem. Portanto, um par-
tido devia ser formado para funcionar como elite política, in-
telectual e legislativa do povo, gozando-lhe da confiança em vir-
tude de seu desinteresse, de seu treinamento superior e de sua
visão prática das necessidades exigidas pela situação imediata;
um partido, em suma, capaz de guiar os passos incertos do povo
durante o primeiro período de sua recente liberdade. Esse in-
terlúdio necessário ele chamou de estado de revolução perma-
nente, orientado pela ditadura do proletariado revolucionário
sobre o resto, "como um passo intermediário necessário à abo-
lição de todas as distinções de classe, à abolição de todas as
relações existentes de produção das quais aquelas distinções se
originavam, à abolição de todas as relações sociais que corres-
pendessem às relações de produção e a uma completa inversão
de todas as idéias que de ti vam de tais relações sociais". Mas
aqui, embora os fins estivessem claros, os meios eram deixados
vagos. A 'revolução permanente' seria dominada pela ditadura
do proletariado, mas como esse estágio seria efetuado e que
forma viria a assumir? Não restam dúvidas de que em 1848
Marx imaginava que a 'revolução permanente' fosse introduzida
por uma elite autonomeada; não simplesmente trabalhando em
segredo, conforme Blanqui insistia, ou chefiada por uma única
personalidade ditatorial, como advogava ocasionalmente Baku-

176
desse realizar·se - não veio a ser afetado: a burguesia e todas
as suas instituições estavam fatalmente condenadas à extinção.
O processo poderia durar mais do que fora previsto. Se isso
acontecesse, o proletariado deveria ter paciência; apenas quan-
do a situação se mostrasse propícia à intervenção, os líderes cla-
mariam por ação. Nesse ínterim, o partido deveria devotar-se a
poupar, organizar e disciplinar suas forças, de modo a deixá-Ias
de prontidão para a crise decisiva. A história tem oferecido um
comentário irônico acerca dessas conclusões: os artífices da re-
volução comunista na Rússia (à qual, deve-se acreséentar, Marx
não julgou sua teoria aplicável), agindo de acordo com a
primeira e descartada opinião de 1850, comandando a revol-
ta embora as massas populares estivessem manifestamente ima-
turas para a tarefa, conseguiram, de qualquer forma, impedir as
conseqüências de 1848 e 1871, enquanto os sociais-democratas
ortodoxos da Alemanha e da Áustria, fiéis à doutrina posterior
do mestre, movimentando-se com deliberada cautela e gastando
energia na educação das massas para o sentido da sua missão,
foram esmagados pelas forças reacionárias reorganizadas, cujo
vigor a marcha da história e a constante sabotagem por parte
do proletariado teriam muito antes minado fatalmente.
Nesse ínterim, sinal algum de revolução podia ser detecta-
do em nenhum lugar, e o estado de otimismo irracional foi su-
cedido por uma depressão profunda. "Não se pode recordar
aqueles dias sem sentir uma dor profunda.,, escreveu Herzen em
suas memórias. " . .. a França movia-se com a velocidade de
uma estrela cadente para o inevitável coup d'état. A Alemanha
jazia prostrada aos pés do czar Nicolau, arrastada pela desdito-
sa e traída Hungria ... Os revolucionários faziam vagas agita-
ções. Mesmo as pessoas mais sérias são às vezes dominadas pelo
fascínio de meras formas e conseguem convencer-se de que estão
de fato fazendo alguma coisa se comparecem a reuniões com
uma porção de documentos e protocolos, a conferências em que
fatos são recordados, decisões tomadas, proclamações impressas,
e assim por diante. A burocracia da revolução é capaz de se
perder nessa espécie de coisa, tanto quanto o verdadeiro funcio-
nalismo. A Inglaterra fervilha com centenas de associações desse
tipo; solenes encontros ocorrem com a presença de duques e
pares do reino, clérigos e secretários, todos cerimoniosamente

179
quentes, os quais, sem base real na vontade popular, inevita-
velmente seriam derrotados, após curto período de triunfo, pe-
las forças recompostas da reação, seguindo-se a brutal repres-
são que aleija o proletariado pelos anos vindouros. Sob esse
pretexto, recusou-se a apoiar, à véspera de sua ocorrência, a
revolução que resultou na Comuna de Paris, em 1871, ainda que
mais tarde, levado em boa parte por motivos táticos, escrevesse
tocante e eloqüente epitáfio a respeito dela.
O segundo ponto em que ele mudou de opinião foi sobre
a possibilidade de colaboração com a. burguesia. Teoricamente,
Marx ainda acreditava que a dialética da história necessitava
de um regime bourgeois como prelúdio ao comunismo completo;
mas a força dessa classe na Alemanha e na França, e sua dispo~
sição franca de se proteger contra seu aliado proletário, convence-
ram-no de que uma composição com ela prejudicaria os trabalha-
dores, por serem a parte mais fraca: o plano de governar por
trás do palco ainda não poderia efetivar-se. Este fora o princi-
pal ponto de discórdia entre ele e os comunistas de Colônia que
se opunham a uma aliança com os liberais, considerando-a um
oportunismo suicida. Marx abraçava agora o ponto de vista de-
les, embora o fizesse por outros motivos; não porque o oportu-
nismo fosse moralmente degradante ou necessariamente auto-
derrotável, mas por tender, nesse caso específico, ao insucesso. a
confundir questões num partido ainda não inteiramente orga-
nizado, provocando assim fraqueza interna e derrota. Daí a
contínua insistência de Marx. nos anos posteriores. em pre-
servar a pureza do partido e sua liberdade em relação a emba-
raços comprometedores. A política de expansão gradual e a lenta
conquista de poder político através de instituições parlamenta-
res reconhecidas, e mais a pressão sistemática em escala inter-
nacional sobre os empregadores, por intermédio de sindicatos
e organizações similares, como forma de assegurar melhores
condições econômicas aos operários - o que caracteriza as táti-
cas dos partidos socialistas no final do século dezenove e começo
do século vinte - , foram produto Jegíti.mo da anáHse de Marx
quanto às causas da catástrofe do ano revolucionário de 1848.
O principal objetivo de .M arx-· a criação de condições em
que a ditadura do proletariado, a 'revolução permanente', pu-
recem uma brilhante e polêmica descrição da revolução e da
Segunda República, analisando, com pormenores, as relações e
a interação de fatores políticos, econômicos e pessoais em função
do alinhamento de classes, cujas necessidades eles refletiam. Há
uma análise brilhante do papel do Estado francês, que funciona
menos como um comitê da classe governante (a fórmula do
Manifesto comunista) que como fonte independente de poder
apoiado, mas às vezes extrapolando seus desejos, pela burguesia,
a fim de preservar o statu quo social e político. Numa série
de sarcásticos e epigramáticos esboços, os principais represen-
tantes dos vários partidos são classificados e comprometidos com
as classes de cujo apoio dependem, A evolução da situação
política, de um vago liberalismo para a república conservadora,
e portanto para a luta de classes aberta, culminando com um
despotismo cru, é representada como uma imitação dos aconte-
cimentos de 1789. Naquela época, cada fase que se sucedia era
mais violenta e revolucionária que a anterior; em 1848 ocorreu
exatamente o oposto: em junho, o proletariado foi abandonado
e traído por seus aliados petít-bourgeois; mais tarde, estes, por
sua vez, se viram abandonados pela classe média; finalmenft
te esta também veio a ser manobrada pelos grandes proprietá-
rios de terra e financistas, e entregue nas mãos do exército e de
Napoleão III. Tampouco isso teria sido evitado por uma política
diferente conduzida por políticos individuais, já que a situação
foi determinada pela etapa de desenvolvimento histórico alcan-
çado pela sociedade francesa daquele tempo.
Outras atividades de Marx nesse período incluíram pales-
tras populares a respeito de economia política, para a Associa-
ção Educacional dos. Trabalhadores Alemães, e sobretudo uma
considerável correspondência com os revolucionários alemães
agora espalhados por toda parte, em especial com Engels, que,
de forma relutante e sentindo-se infeliz, fez as pazes com os pais,
por não ter outros meios de se sustentar, e se estabeleceu em
Manchester para trabalhar no escritório da firma de fiação de
algodão de seu pai. A segurança que ele obteve por esse meio
foi utilizada para o apoio a Marx, material e intelectual, du-
rante o resto da vida do mestre. A situação financeira de Marx
continuou crítica por muitos anos: ele não tinha fonte regu-
lar de renda, a família crescia e a fama que o precedia im-

I H1
formallzados; tesoureiros coletam fundos, jornalistas escrevem
artigos, ativamente engajados na tarefa de nada fazer. Essas
reuniões filantrópicas ou religiosas preenchem a dupla função
de servir como forma de divertimento e como paliativo das agi-
tadas consciências de cristãos um tanto mundanos . . . A coisa
toda era uma contradição em termos: uma conspiração aberta,
um enredo tramado a portas escancaradas".
Na atmosfera sufocante de intriga contínua, de suspeita e
recriminação, que predomina nos primeiros anos de uma ma-
ciça imigração política, cujos membros estão ligados entre si
mais por circunstâncias que por uma causa comum clara-
mente concebida, Marx viveu os dois primeiros anos em Lon-
dres. Recusou-se, com determinação, a quaisquer negócios com
Herzen, Mazzini e seus adeptos, mas não ficou inativo. Trans-
formou o Neue Rheinische Zeitung numa revista, organizou
comitês de ajuda a refugiados, publicou uma denúncia sobre
os métodos da polícia no julgamento de seus companheiros em
Colônia, reconstituindo e expondo as falsificações grosseiras e
o perjúrio praticados pelos agentes. Com isso, se não libertou
os camaradas, pelo menos dificultou julgamentos da mesma espé-
cie para o futuro. Marx empreendeu também uma vingança
contra Willich dentro da Liga Comunista e, por entender que
uma instituição que promove meias-verdades é mais perigosa
que a inatividade total, sendo preferível tê-la morta , provocou-
lhe a dissolução, mediante uma intriga sem remorsos. Assim,
tendo torpedeado com êxito os antigos companhehos, e nada
mais sentindo que desprezo pelo restante dos emigrados, um
grupo de falastrões ineficazes e inofensivos, ele e Engels se
constituíram num centro independente de propaganda, uma
união pessoal a cuja órbita foram ter os remanescentes dispersos
e enfraquecidos do comunismo alemão, para aos poucos se con-
gregarem numa nova força. O plano aJcançou sucesso total .
Os escritos marxistas mais importantes desse período se re-
lacionam com os recentes acontecimentos na França: o estilo,
opaco e obscuro quando trata de questões abstratas, é lumi-
noso ao abordar fatos. Os ensaios sobre As lutas de classe na
França e os artigos reimpressos sob o título de O Dezoito Bru-
mário de Luís Bonaparte são modelos de panfletarismo penétran-
te e cruel. Os dois ensaios cobrem quase o mesmo terreno e ofe-

'180
interessante e é isso que paga todas as deficiências domésticas
e torna o desconforto suportável . . . ". 1
Um 'gênio' forçado a viver num sótão, a se esconder quan-
do os credores ficam importunos, ou a permanecer na cama
porque as roupas estão empenhadas, eis aí um tema convencio-
nal de uma comédia alegre e sentimental. Marx não era boêmio,
seus infortúnios o afetaram tragicamente. Era orgulhoso, ex-
tremamente sensível e exigente em relação ao mundo. As humi-
lhações e insultos a que sua situação o expunha, a fr}Jstração do
desejo de assumir uma posição a que se julgava habnitado, are-
pressão de sua colossal vitalidade natural, fizeram-no dobrar-
se sobre si mesmo, em paroxismos de ódio e de cólera. Sua
disposição amargurada encontrava escapatória no que escrevia e
em longas e selvagens vinganças pessoais. Via conspirações,
perseguições e tramas por toda parte; quanto mais as vítimas
protestavam inocência, mais convencido ficava da duplicidade
de conduta e de culpa delas.
Seu modo de vida consistia em visitas diárias à sala de lei-
tura do Museu Britânico, onde permanecia normalmente das nove
da manhã até as sete da noite. A isso seguiam-se longas horas de
trabalho à noite, acompanhado pelo incessante hábito de fumar,
o qual, de um luxo que era, passou à condição de indispensá-
vel analgésico. Isso afetou-lhe profundamente a saúde e ele ficou
propenso a freqüentes ataques de uma doença do fígado, às
vezes acompanhada de excitação nervosa e inflamação dos olhos,
o que interferia no trabalho, deixando-o exausto e irritado,
prejudicando-lhe os incertos meios de sobrevivência. "Estou em-
pesteado que nem Jó, embora não tão temente a Deus", escre-
veu em 1858. "Tudo o que esses senhores (os médicos) dizem
leva à dedução de que se deve ser um próspero rentier e não
um pobre-diabo como eu, tão pobre quanto um rato de igreja."
Em outras disposições de espírito, jurava que a burguesia ia
pagar um dia por suas pústulas. Engels, cuja renda anual, durante
aqueles anos, não parecia. exceder cem libras, com as _quais, na
condição de representante do pai. tinha de manter um respei-

J . Retirado de Karl Marx. Man and fighter, de Nicolaievsky e O.


Maenchen-Helfen (Penguin Books. 1976), pp. 256-7.

183
pedia qualquer possibilidade de emprego numa empresa respei-
tável. A pobreza extrema em que ele e a família viveram duran-
te os vinte anos seguintes e as indescritíveis humilhações daí
resultantes já foram descritas muitas vezes. A princípio, a
família vagueou de um alojamento barato para outro, de Chelsea
a Leicester e daí aos cortiços do Soho, que eram centros de
doenças. Com freqüência não havia dinheiro para pagar os
comerciantes e a família passava fome, literalmente, até que
um empréstimo ou a chegada de uma nota de uma libra en-
viada por Engels punham fim temporário à penúria; outras vezes,
a roupa da família estava no prego e eles viam-se forçados a
ficar sentados durante horas, sem luz ou comida, interrompidos
apenas pelas visitas de credores, um atrás do outro, intercepta-
dos no pé da escada por uma ou outra criança com a invariá-
vel e automática resposta: "O sr. Marx não está".
Uma vigorosa descrição das condições em que ele viveu os
primeiros sete anos de exílio sobrevive no relatório de um espião
prussiano que conseguira insinuar-se na casa de Dean Street:
" . . . Ele mora num dos piores e mais baratos bairros de Lon-
dres. Ocupa dois cômodos. Não há um único móvel limpo ou
decente, tudo está quebrado, desconjuntado ou torto, com uma
grossa camada de pó cobrindo tudo ... manuscritos, livros e
jornais misturam-se com os brinquedos das crianças, partes e
pedaços da cesta de costura da esposa, xícaras com as bordas
quebradas, colheres sujas, facas, garfos, lâmpadas, um tinteiro,
copos com restos, cachimbos, cinza de fumo- tudo isso empi-
lhado na mesma mesa. Quando se entra, a fumaça e o odor
do fumo provocam de tal forma lágrimas nos olhos que a pes-
soa parece estar tateando numa caverna . . . até que se habi-
tua e começa a distinguir certos objetos no nevoeiro. Sentar-
se ali é um gesto perigoso. Aqui está uma cadeira com apenas
três pernas, ali outra que milagrosamente ficou inteira, mas
nela as crianças brincam de fazer comida. Alguma, afinal, é
oferecida ao visitante, mas a comida das crianças não foi remo~
vida, e se a pessoa sentar-se arrisca a limpeza das calças.
Mas essas coisas de forma alguma parecem embaraçar Marx e
sua mulher. A pessoa é recebida de maneira muito amigável e
cordialmente lhe oferecem cachimbos, fumo e o que mais possa
haver na ocasião. Daí a pouco surge uma conversa erudita e

182
perada em que Marx se encontrava com freqüência. Mas, quan-
do em 1856 seu filho Edgar, de quem gostava muito, morreu
aos seis anos, a couraça de ferro não resistiu: 1'Tenho sofrido
todos os tipos de desgraça", escreveu ao amigo, "mas só agora
acabo de conhecer a verdadeira infelicidade. . . no meio de
todo o sofrimento, somente a sua lembrança, a da sua amizade
e da esperança de que ainda possamos fazer algo de razoável
neste mundo me mantém de pé ...
"Bacon diz que as pessoas de fato importantes . têm tantos
contatos com a natureza e o mundo, tantas coisas..;:,p or que se
interessar, que sobrepujam facilmente alguma perda. Não faço
parte dessas pessoas importantes. A morte do meu filho me
afetou tanto que continuo a sentir-lhe a perda tão duramente
quanto no primeiro dia. Minha mulher também está completa-
mente arrasada."
A única forma de prazer que a família se permitia era um
piquenique ocasiona] em Hampstead Heath, durante os meses
de verão. Eles costumavam partir na manhã de domingo da casa
de Dean Street e, acompanhados por Lenchen Demuth (com
quem Marx teve um caso amoroso 2 ) e um ou dois amigos, levan-
do um cesto de comida e jornais comprados no caminho, caminha-
vam até Hampstead. Sentavam-se embaixo de árvores e enquanto
as crianças brincavam ou colhiam flores, os mais velhos conversa-
vam, liam ou dormiam. À medida que a tarde passava, o esta-
do de espírito do grupo ficava cada vez mais alegre, sobretudo
quando o jovial Engels estava presente. Brincavam, cantavam,
corriam. Marx recitava poesia, o que gostava de fazer, carregava
as crianças nas costas, divertia todo mundo e, como rodada final,
cavalgava solenemente em um burro, para cima e para baixo,
diante do grupo- um espetáculo que nunca deixou de causar
alegria geral. Retornavam ao cair da noite, muitas vezes en-
toando canções patrióticas alemãs ou canções inglesas, a cami-

2. Em 1851 ela deu-lhe um filho, conhecido como Frederick (Freddy)


Demuth, de quem Marx parecia não gostar e, pelo que se sabe até hoje,
jamais reconheceu. Ele foi criado pelo· fiel Engels e, mais tarde, por sua
meia-irmã Eleanor, a quem Engels, no leito de morte, revelou a ver-
dade. Frederick Demuth foi um operário manual e parece ter falecido
com a. idade de oitenta anos na Inglaterra.

185
tável estabelecimento em Manchester, não podia, apesar de toda
a sua generosidade, conceder uma sistemática ajuda financeira
a princípio. De vez em quando, amigos de Colônia, ou genero-
sos socialistas alemães como Liebknecht ou Freiligrath, conse-
guiam reunir pequenas somas para Marx; esse dinheiro, junto
com o pagamento de eventuais artigos e 'empréstimos' de
seu rico tio Philips, da Holanda, além de pequenos lega-
dos de parentes, o habilitavam a continuar no fio da navalha
da subsistência. Por conseguinte, não é difícil compreender que
ele odiava a pobreza, e a escravidão e degradação viciosas que
ela impõe, pelo menos de forma tão apaixonada quanto o ser-
v~lismo. As descrições espalhadas nas obras de Marx acerca da
vida nos cortiços industriais, nas aldeias mineiras ou nas plan-
tações, e acerca da atitude da opinião civilizada sobre ela, com-
binam uma indignação violenta com uma frígida, totalmente
anti-histérica amargura que, sobretudo se o relato entra em por-
menores e o tom continua estranhamente tranqüilo . e plácido,
possuem uma qualidade assustadora e induzem raiva e vergonha
em leitores que não se deixariam comover pela retórica inflamada
de Carlyle, pela súplica digna e humana · de J. S. Mill, ou pela
eloqüência impetuosa de William Morris e dos socialistas cris-
tãos. Durante aqueles anos, três de seus filhos, ns meninos Guido
e Edgar e a menina Franziska, morreram por causa, em boa
parte, das condições em que viviam. Quando Franziska faleceu,
Marx não tinha dinheiro para pagar o ataúde e foi salvo pela ge-
nerosidade de um refugiado francês. O incidente está descrito
em detalhes numa carta escrita por Frau Marx a um compa-
nheiro de exílio. Ela própria caía doente muitas vezes e as
crianças eram cuidadas pela criada da família, Helene Demuth,
que continuou com eles até o fim.
"Eu não podia e não posso ir ao médico", Marx escreveu
a Engels numa dessas ocasiões, "porque não tenho dinheiro para
consultas. Nos últimos oito ou dez dias tenho alimentado a fa-
mília a pão e batata, e hoje ainda não sei se serei capaz de
obtê-los".
Ele não era comunicativo por natureza, e menos que qual-
quer outro, inclinado à autopiedade. Com efeito, nas cartas a
Engels às vezes satirizou seus próprios inf-ortúnios, com uma
triste ironia que pode ocultar do leitor casual a situação deses-

184
Os artigos de Engels sobre a revolução alemã foram reim-
pressos em folheto, por Marx, sob o título Revolução e contra-
revolução na Alemanha, e findavam com a convicção de que
a revolução ia estourar ainda com maior violência no futuro
próximo. Mais adiante, os amigos admitiram que eles pecavam
por excesso de otimismo. Marx formulou a famosa generalização
segundo a qual somente uma recessão levaria a uma revolução
bem-sucedida; assim, a revolução de 1848 fora nutrida pelo co-
lapso econômico de 1847, e o crescimento de 1851 removeu
qualquer esperança de iminente conflagração polítiéa.
Daí por diante, a atenção de ambos se concentrou nos sin-
tomas de deterioração de uma grande crise econômica. Engels,
de seu escritório em Manchester, enchia as cartas de informa-
ções sobre o estado dos mercados mundiais. Perdas de ouro pelo
Banco da Inglaterra, a bancarrota de um banco de Hamburgo,
uma má colheita na França ou nos Estados Unidos são notadas
de forma exultante como indícios de que a grande crise se
formava. Em 1857, uma baixa significativa ocorreu, afinal, na
escala requerida. Mas ela não foi, exceto na Itália agrícola,
acompanhada por desdobramentos revolucionários. Após isso,
há pouca menção a crises inevitáveis e mais debate acerca da
organização de um partido revolucionário. Os efeitos de um
grande desapontamento se tinham feito sentir.
Enquanto Engels tratava da espionagem mílitar requerida
pelo público americano, Marx publicava uma rápida sucessão
de artigos sobre política inglesa, interna e externa, relações exte~
riores, cartismo e o caráter dos vários ministérios ingleses, que
ele se especializara em sumarizar em algumas frases maliciosas,
geralmente à custa do Times, que continuava a ser o seu bicho-
papão. Escreveu muito acerca da administração inglesa na tndia
e na Irlanda. A fndia, ele declarou, foi feliz, de certo modo, por
ter sido conquistada por uma potência mais forte:
"A questão não está em saber se os ingleses tinham direito
de conquistar a fndia, mas se teríamos preferido que ela caísse
em mãos de turcos ou persas ou russos. . . Naturalmente é im·
possível compelir a burguesia inglesa a desejar a emancipação
ou melhoria da condição social das massas indianas, a qual de-
pende não só do desenvolvimento das forças produtivas, mas

187
nho do Soho. Mas essas ocasiões agradáveis eram raras e pouco
contribuíam para iluminar o que o próprio Marx, numa de suas
cartas a Engels, chamou de noite insone do exílio.
Ligeiro alívio a essa situação chegou sob a forma de um
convite para escrever artigos regulares, na Europa, para o Tri-
bune de Nova York. A oferta partiu de Charles Augustus Dana.
editor estrangeiro do jornal, que fora apresentado a Marx por
Freiligrath, em Colônia, 1849, e ficou muito impressionado com
sua clarividência política. O Tribune de Nova York era um jor-
nal radical fundado por um grupo de adeptos americanos de
Fourier, e que na época tinha uma circulação de mais de vinte
mil exemplares, sendo provavelmente o maior jornal do mundo.
Tinha ampla visão progressista. Nas questões internas, pregava
a abolição da escravatura e a política do comércio livre, en-
quanto em assuntos europeus atacava o princípio da autocracia,
e por conseguinte fazia oposição virtual a todos os governos da
Europa. Marx, que recusara teimosamente ofertas de colabo-
ração com jornais continentais, cuja tendência considerava rea-
cionária, aceitou a oferta com presteza. O novo correspondente
recebia uma libra esterlina _por artigo. Durante quase dez anos
enviou despachos semanais acerca de uma grande variedade de
temas que até hoje têm algum interesse. O primeiro pedido que
Dana lhe fez foi para escrever uma série de artigos sobre a es-
tratégia e táticas dos dois exércitos durante a guerra civil na
Alemanha e na Áustria, juntamente com comentários gerais sobre
a arte da luta armada moderna. Ignorando tudo sobre esse úl-
timo tema, e tendo na ocasião pouco domínio do inglês, ele não
considerou fácil a tarefa; recusá-la, no entanto, significaria per-
der a magra mas contínua fonte de renda, o que era impensável.
Na sua perplexidade, recorreu a Engels, que, como em tantas
outras ocasiões posteriores, escreveu de bom grado os artigos e
assinou-os com o nome de Marx. Daí por diante, sempre que o
assunto lhe era desconhecido ou antipático, ou Marx não podia
escrever por estar ausente ou enfermo, Engels era convocado e
cumpria a tarda com tal eficiência que o correspondente lon-
drino do Tribune não tardou a adquirir grande popularidade nos
Estados Unidos como um jornalista excepcionalmente versátil e
bem-informado. já tendo um público definido.

186
lismo ascendente: o ódio dele aos separatismos, como a todas as
instituições fundamentadas em alguma base puramente tradicio-
nal ou emocional, cegou-o para a influência do nacionalismo.
Num estado de espírito idêntico, Engels, escrevendo sobre os
tchecos, observou que o nacionalismo dos eslavos ocidentais era
um fenômeno artificialmente preservado e irreal, que não po-
deria resistir ao avanço da superior cultura alemã. Tal absor-
ção era um destino inevitavelmente à espera de civilizações pe-
quenas e locais, em virtude da força de gravitação hlstórica
que leva o menor a se fundir com o maior - ten(lência que
todos os partidos progressistas deviam encorajar. Tanto Marx
como Engels acreditavam que o nacionalismo, juntamente com
a religião e o militarismo, não passavam de anacronismos, ao mes-
mo tempo subprodutos e sustentáculos da ordem capitalista; eram
forças irracionais, contra-revolucionárias que, com o passar do
seu fundamento material, desapareceriam automaticamente. A
diretriz tática de Marx a respeito delas consistia em considerar se
num dado caso elas eram a favor ou contra a causa do proleta-
riado, e decidir, de acordo apenas com esse critério, se deviam
ser apoiadas ou atacadas. Assim, Marx favoreceu-as na !ndia e
na Irlanda, por serem uma arma na luta antiimperialista, e atacou
o nacionalismo democrático de Mazzini ou Kossuth porque, em
países como a Itália, a Hungria ou a Polônia, pareceu-lhe traba-
lhar apenas pela substituição de um sistema estrangeiro de explo-
ração capitalista por um sistema nativo, e assim obstruir a revolu-
ção social. Entre os políticos ingleses, atacou Russell como
um pseudo-radical que traía sua causa a cada passo, mas sua
bête noire foi sem dúvida Palmerston, a quem acusou de ser
agente russo disfarçado, e zombou de seu apoio sentimental a
pequenas nacionalidades européias. Marx foi, no entanto, um
conhecedor da arte da política em todas as suas formas, e con-
fessou certa admiração pelo élan e desembaraço com que aquele
cínico estadista aplicava os golpes mais inescrupulosos.
Os ataques de Marx a Palmerston puseram-no em contato
com uma muito estranha e notabilíssima figura. David Urquhart
entrara para a diplomacia na juventude, e após tornar-se fileleno
em Atenas, fora transferido para Constantinopla, onde concebeu
longa e ardente paixão· pelo Islam e pelos turcos. Aplaudia a
'pureza' da constituição turca e os efeitos físicos e espirituais

189
,

da propriedade delas peJo povo. Mas o que essa burguesia pode


fazer é criar condições materiais à realização dessa dupla neces-
sidade".
E novamente: "Por mais melancólico", escreveu em 1853,
u que venhamos a considerar o espetáculo da ruína e desolação

dessas dezenas de milhares de grupos sociais diligentes, pací-


ficos e patriarcais ... de repente separados de sua antiga civili-
zação e tradicionais meios de existência, não devemos esquecer
que essas idílicas comunidades aldeãs. . . sempre forneceram
base firme ao despotismo oriental, confinando a inteligência
humana dentro dos mais estreitos limites, dela fazendo o obe-
diente instrumento tradicional da superstição, tolhendo-lhe o
crescimento, roubando-lhe . . . toda capacidade de ação histó-
rica; não nos esqueçamos do egoísmo dos bárbaros que, con-
centrados numa insignificante porção da superfície da terra, ob-
servaram friamente imensos impérios desabarem, crueldades
indescritíveis serem cometidas, populações de cidades inteiras
serem massacradas; observaram isso como se fossem aconteci-
mentos da natureza, e assim eles próprios se tornaram as vítimas
indefesas de todo invasor que para eles voltasse a aten-
ção. . . Ao causar revolução social na lndia, a Inglaterra foi,
na verdade, guiada pelos mais baixos motivos e conduziu-a
de maneira obtusa e canhestra. Mas este não é o ponto a desta-
car. A questão consiste em saber se a humanidade pode realizar
seus propósitos sem uma completa revolução na Ásia. Caso não,
então a Inglaterra, a despeito de todos os seus crimes, foi o
instrumento consciente da história ao promover aquela revo-
lução".
Da Irlanda, ele disse que a causa do trabalho inglês estava
inextricavelmente ligada à libertação da Irlanda, cuja mão-de·
obra barata era uma ameaça contínua aos sindicatos ingleses.
A sujeição econômica da Irlanda, como nos casos análogos de
servidão na Rússia e de escravidão nos Estados Unidos, devia
ser abolida antes que os senhores ingleses da Irlanda- entre os
quais a classe operária inglesa (qtie ameaçava tanto os irlan-
deses quanto os 'brancos pobres' dos estados sulinos dos Esta-
dos Unidos ameaçavam os negros) - teria de ser incluída, pudes-
sem pensar em emancipar-se e criar uma sociedade livre. Em
ambos os casos, Marx subestimou bastante a fo·r ça do naciona-

188
relação com aquele estranho patrão, de quem não tardou lJ
gostar; com efeito, Urquhart foi um dos seus raros aliados polí-
ticos com quem manteve relações inteiramente amigáveis até a
morte do parlamentar inglês.
Marx encontrou poucos simpatizantes entre os líderes sin-
dicais. Os mais capacitados ou tinham pontos de vista não
muito diferentes dos de Owen - que, pelo brilhante exemplo
de suas próprias realizações, procurava provar a maligna falta
de fundamento da doutrina da luta de classes - , ou eram
líderes trabalhistas locais muito ocupados, trabalh~ndo pelas
necessidades imediatas deste ou daquele estabelecimento ou in-
dústria, insensíveis a questões mais abrangentes, preparados para
dar as boas-vindas a todos os radicais, sem distinção, numa fe·
deração chamada Os Democratas Fraternos, que, somente pelo
nome, revoltava Marx. Ele tolerava radicais do tipo do volúvel
e enérgico George Hamey, a quem ele e Engels chamavam
'cidadão hip hip hurra'. O único inglês que permaneceu íntimo
deles durante aqueles dias foi Ernest Jones, cartista revolucio-
nário que fez uma tentativa inútil de reviver aque!e movimento.
Jones nascera e fora educado em Hanover e assemelhava-se,
mais que· qualquer outro na Inglaterra, àquele tipo de socia-
lista continental familiar a Marx; suas opiniões eram muito
idênticas, sobretudo em anos posteriores, às dos 'verdadeiros
socialistas' Hess e Grün, o que não agravada muito a Marx, mas
este precisava de aliados, a escolha era limitada e ele aceitou
Jones como o melhor e o mais avançado que a Inglaterra lhe
tinha a oferecer. Jones, que nutria grande admiração e afeto
por Marx e família, forneceu-lhe grande quantidade de in-
formações acerca das condições inglesas; coube-lhe chamar a
atenção de Marx para as cercas que ainda persistiam nas áreas
rurais da Escócia, de onde muitas centenas de pequenos rendei-
ros e arrendatários foram expulsas para abrir espaço a parques de
corças e pastagens. O resultado foi um venenoso artigo de Marx
no Tribune de Nova York, sobre negócios particulares da du-
quesa de Sutherland, que exprimira simpatia pela causa dos
escravos negros dos Estados Unidos. . . O artigo, esboço para
um trecho mais longo de O capital, é uma obra-prima de
amarga e veemente eloqüência, diretamente saída das filípicas
de Voltaire e Marat, e um modelo para muitas peças subse-

191
dos banhos turcos a vapor. para os quais atraiu seus compatrio-
tas. Admirava igualmente a Igreja de Roma, com quem manti-
nha excelentes relações, apesar de ter nascido e morrido calvi-
nista; paralelamente, nutria um ódio igualmente violento pelos
Whigs, comércio livre, Igreja da Inglaterra, industrialização e.
em particular, o império russo, cuja influência maligna e oni-
potente ele considerava responsável por todos os males da Euro-
pa. Essa personalidade excêntrica, sobrevivente pitoresca de
uma época mais ampla, ocupou no Parlamento, durante muitos
anos, uma cadeira de membro independente, publicou um jornal
e numerosos panfletos quase inteiramente devotados ao propósi-
to único de atacar Palmerston, a quem acusava de ser agente
de aluguel do czar, empenhado na tentativa permanente de
subverter a ordem moral da Europa ocidental para benefício
do seu senhor. Nem mesmo a atitude de Palmerston durante a
guerra da Criméia o sensibilizou: explicou-a como um habi-
lidoso ardil para disfarçar a natureza de suas verdadeiras ativi-
dades. Daí a deliberada sabotagem de Urquhart à campanha.
que se destinava claramente a causar o menor prejuízo possível
à Rússia. Marx, que chegara de alguma forma à mesma curiosa
conclusão, parecia não menos convencido da venalidade de
Palmerston. Os dois homens encontraram-se e firmaram uma
aliança: Urquhart publicou panfletos anti.palmerstonianos escritos
por Marx, enquanto Marx tornou-se um urquhartiano oficial, co-
laborando no jornal de Urquhart e aparecendo nos palanques
dos seus comícios, Seus artigos foram mais tarde publicados
como panfletos. Os mais peculiares são História da vida de lord'
Palmerston e A história secreta da diplomacia no século de-
zoito, ambos empenhados em expor a mão oculta da Rússia em
todos os grandes desastres da Europa. Cada um dos dois homens
tinha a impressão de que utilizava espertamente o outro para
alcançar suas finalidades. Marx julgava Urquhart um monoma-
níaco inofensivo, fácil de manobrar; Urquhart, por sua vez,
tinha em conta a alta capacidade de Marx como propagandista,
e certa feita deu-lhe os parabéns por ter uma inteligência digna
de um turco. Essa bizarra aliança continuou harmo-niosa, em-
bora de forma intermitente, por muitos anos. Após as mortes de
Palmerston e do czar Nicolau, a ali.ança dissolveu-se aos poucos.
Marx divertiu-se e tirou a maior ajuda financeira possível de sua

190
Os fundamentos da doutrina estavam enraizados em escri-
tos anteriores, em especial no Manifesto comunista. Numa carta
de 1852, ele definiu cuidadosamente o que nela considerava ori-
ginal: "O que eu fiz de original foi provar (1) que a existência
de classes somente está ligada a fases particulares e históricas
do desenvolvimento da produção; (2) que a luta de classes leva
necessariamente à ditadura do proletariado; (3) que essa dita-
dura constitui apenas a transição para a abolição de todas as
classes e para uma sociedade sem classes". O novo movimento
brotou desses alicerces. ..;::
Em um sentido, ele obteve sucesso mais rápido do que po-
deria esperar: a ascensão e o crescimento veloz, a partir das ruí~
nas de 1848, de um novo e militante partido de trabalhadores so-
cialistas na Alemanha, criaram para ele uma esfera de atividade
prática nova, a que dedicou a última metade da sua vida. Na
realidade, o partido não foi criado por Marx, mas suas idéias,
e acima de tudo a crença no programa político que havia ela-
borado, inspiraram os líderes. Ele foi consultado e abordado
em todas as crises; todos sabiam que ele, e apenas ele, havia
inspirado o movimento e criado sua base; para ele dirigiam-se,
pois, todas as questões de teoria e prática, de forma instintiva;
ele foi admirado, temido e obedecido. Contudo, os operários
alemães não o consideravam seu representante e defensor mais
destacado. O homeni que os organizara num partido e os di-
rigia com domínio absoluto era muitos anos mais moço que
Marx, nascido e educado em condições similares, mas muito
diferente de Marx em temperamento e em visão, e até mesmo
oposto a ele, embora nenhum dos dois o admitisse explícita~
mente então.
Ferdinand Lassalle, criador da Social Democracia Alemã e
seu dirigente durante os primeiros anos heróicos, foi uma das
mais ardorosas personalidades públicas do século dezenove.
Judeu silesiano de nascimento, advogado de profissão, revolu-
cionário romântico por temperamento, era um homem cujas
características mais notáveis estavam na inteligência, no talen-
to de organizador, na vaidade, na energia e autoconfiança ilimi-
tadas. Por lhe estarem barradas todas as vias normais de progres-
so pessoal, devido à sua raça e religião, atirou-se com imensa
paixão ao móvimento revolucionário, em que sua capacidade ex-

\93
qüentes da furiosa oratória socialista . O ataque tanto é pessoal
quanto dirigido ao sistema no qual uma velha caprichosa, não
mais louca, impiedosa e vingativa que a maioria das pessoas
do seu círculo, mantém em seu poder absoluto, com aprovação
da classe a que pertence e da opinião púb1ica, para humilhar,
desenraizar e arruinar, uma população inteira de homens e mu-
lheres honestos e trabalhadores, expulsos do dia para a noite de
uma terra que lhes pertencia por direito, já que tudo o que
nela havia de benfeitorias fora obra sua e de seus ancestrais.
Tais amostras de análise social e de polêmica agradavam ao
público americano, também muito sensível aos secos e irônicos
artigos de Marx sobre problemas estrangeiros. Os artigos eram
bem-informados, em estilo conciso e direto; não demonstra-
vam poder algum de presciência nem constituíam tentativas de
fazer um relato abrangente de assuntos contemporâneos como
um todo; enquanto comentários de acontecimentos, eram, aliás,
menos sinceros e interessantes que as cartas que seu autor
escreveu a Engels nesse período, mas como jornalismo esta-
vam adiante do seu tempo. O método de Marx consistia em apre-
sentar aos leitores um breve resumo de acontecimentos ou per-
sonagens. acentuando mais os interesses ocultos e as sinistras
atividades que deles poderiam derivar, que os motivos explí-
citos fornecidos pelos próprios atores, ou o valor social desta
ou daquela medida ou diretriz. Seu jornalismo exibe mais vivi-
damente que os escritos teóricos a diferença entre sua atitude
naturalista, ácida, desconfiada e eticamente cética, e a da grande
maioria dos historiadores sociais e críticos mais ou menos huma-
nitaristas e idealistas da época. Ao mesmo tempo, estava em-
penhado em recolher material para o tratado econômico que
serviria como arma contra o idealismo vago dos grupos radicais
frouxamente ligados, os quais, no seu entender, provocam pen-
samento e ação confusos, além de paralisar o esforço dos
poucos líderes lúcidos que os trabalhadores possuíam. Dedicou-
se à tarefa de estabelecer, em lugar disso, uma doutrina sem pa-
lavras ambíguas, capaz de provocar, contra a vontade ou não,
adesão imediata, transformando-se no teste, na razão de ser e
na garantia de um corpo de revolucionários sociais unidos e,
acima de tudo, ativos. A força destes resultaria de sua unidade,
e esta, da coerência das crenças práticas que partilhassem.

192
fatos políticos e soctaJ.s, que lhe parecia · frágil, superficial
e falaz, em comparação com sua própria eficácia penosa e labo-
riosa; detestava e desconfiava do controle temperamenta1 e
caprichoso exercido por Lassalle sobre os trabalhadores e, mais
ainda, seu absorto entretenimento com o inimigo. Finalmente,
sentia-se invejoso e possessivo em relação a um movimento que
lhe era devedor em diretrizes práticas e fundamentos intelec-
tuais, mas agora parecia tê-lo abandonado, apaixonado por
uma política femme fatale, e por um ilusório e brilhante aventu-
reiro, um confesso oportunista, tanto na vida parjjcular quanto
em matéria de política pública, guiado por nenhum plano fixo,
ligado a nenhum princípio, movendo-se no rumo de nenhum
objetivo claro. Todavia, existiu certa intímidade de relações
entre eles, ou, senão intimidade, pelo menos apreço mútuo. Las-
saBe nascera e fora educado sob influências .intelectuais idênti-
cas às de Marx, lutaram contra o mesmo inimigo e em questões
fundamentais falaram a mesma língua, que Proudhon , Bakunin
e os sindicalistas ingleses jamais falaram, e os primeiros Jovens
Hegelianos tinham deixado de falar há muito tempo. Ademais,
Lassalle era homem de ação, um verdadeiro revolucionário, abso-
lutamente indômito. Cada um deles reconhecia que (embora
Marx pudesse excetuar EngeJs) o outro tinha um grau mais alto
de inteligência política, perspicácia e coragem prática que
qualquer dos filiados ao partido. Compreendiam-se por instinto
e a comunicação entre ambos era fáciJ e divertida: quando Marx ·
foi a Berlim , ficou com Lassalle, é claro. Quando Lassalle foi
a Londres, ficou com Marx e enlouqueceu seu orgulhoso e sen-
sível anfitrião então no estágio mais avançado da penúria, pelo
mero fato de testemunhar-lhe a situação, e mais ainda pela
conversa alegre e extravagância fácil, gastando mais em charutos
e flores para a botoeira da lapela do que Marx e. a família
gastavam por semana com alimentação. Também houve certa
dificuldade acerca de uma quantia eni dinheiro que Marx tomou
emprestada dele. A tudo isso Lassalle, ao que parecia, mantinha-
se alheio, sendo excepcionalmente insensível às suas circunstân-
cias, como costumam ser as naturezas vigorosas e extravagantes.
Marx, porém, nunca perdoou-lhe a humilhação, e após a visita
de Lassalle a Londres, as relações se deterioraram com rapidez.

195
cepcional, o entusiasmo, mas acima de tudo o gênio de agitador
e orador popular, rapidamente o guindaram à liderança. Du-
rante a revolução alemã ele proferiu discursos inflamados contra
o governo, pelos quais foi julgado e preso. Durante os anos que
se seguiram ao período de retratações e desonras, quando Marx
e Engels estavam exilados, e Liebknecht, sozinho entre os líde-
res originais que ainda permaneciam na Alema~ha, continuava
fiel à causa do socialismo, Lassalle chamou a si a tarefa de
criar um novo partido proletário melhor organizado sobre as
ruínas de 1848. Ele se considerava seu único líder e inspirador,
seu intelectual, seu ditador moral e político. Cumpriu a tarefa
com brilhante êxito. Suas crenças eram originárias, em partes
iguais, de Hegel e de Marx: deste último, extraiu as doutrinas
do determinismo econômico, da luta de classes, da inevitabili-
dade da exploração na sociedade capitalista. Mas rejeitou a con-
denação ao Estado em nome da sociedade, recusando-se a acom-
panhar Proudhon e Marx, que consideravam o Estado mero
instrumento de coerção da classe governante, e aceitando a tese
hegeliana segundo a qual o Estado, mesmo em sua condição
presente, constitui a mais progressista e dinâmica função de um
conjunto de seres humanos reunidos para conduzir a vida em
comum. Acreditava fortemente na centralização e, até certo
ponto, na unidade nacional interna; em anos posteriores, come-
çou a acreditar na possibilidade de uma coalizão anti burguesa,
entre o rei, a aristocracia, o exército e os operários, que culmi-
naria num Estado coletivista autoritário, chefiado pelo monar-
ca e organizado segundo os interesses da única classe verda-
deiramente produtiva, isto é, a classe operária.
As relações de Lassalle com Marx e Engels nunca foram
fáceis. Ele declarou Marx seu mestre em questões teóricas e
tratou-o com muitíssimo respeito. Saudava-o em toda parte como
homem de talento, tomou providências em favor da edição
alemã de seus livros e mostrou-se útil a Marx de várias maneiras.
Marx reconhecia de má vontade o valor da energia de Lassalle
e sua capacidade de organização, mas o repelia pessoalmente. e
politicamente tinha dele profundas suspeitas. Não apreciava a
ostentação de Lassalle . sua extravagância, sua vaidade. suas
maneiras histriônicas, a confissão pública de seus gostos, opiniões
e ambições: detestava-lhe o brilho das análises impressionistas de

194
deve ter considerado o pior de todos os possíveis defeitos. A
experiência de 1848, se não ensinara outra Jição, demonstrara
de maneira conclusiva a conseqüência fatal, a um jovem e ainda
indefeso partido, de uma aliança com um partido mais velho e
bem-estabelecido, fundamentalmente hostil a suas exigências,
pois numa aliança dessas cada um tenta explorar o outro, e a
força que estiver melhor armada inevitavelmente vence. Marx.
como se tomou evidente em sua correspondência com o Comitê
Central Comunista, em 1850, confessava ter errado seriamente ao
supor que uma aliança com a burguesia radical era...possível e até
mesmo necessária antes da vitória final do proletariado. Nem
ele próprio jamais sonhara com uma aliança com a nobreza
feudal para o propósito de desfechar um ataque contra o indi-
vidualismo, simplesmente por causa do desejo de obter alguma
espécie de controle do Estado. Tal movimento ele considerou
uma típica caricatura bakuninista de sua própria política e as-
pirações.
Tanto Marx como Engels foram fundamentalmente firmes
democratas alemães em sua atitude para com as massas, e por
instinto reagiram contra as sementes do elitismo romântico que
podia agora ser claramente discernido nas crenças, atos e dis-
cursos de Lassalle. sobretudo no seu apaixonado patriotismo,
na sua encenação pessoal como líder dedicado, na sua crença
numa economia planejada pelo Estado e controlada, pelo menos
por certo tempo, pela aristocracia militar, na sua defesa de uma
intervenção armada da Alemanha, ao lado do imperador da Fran-
ça, na campanha da Itália (que ele propugnou - contra Marx
e Engels - a pretexto de que somente uma guerra precipitaria
uma revolução alemã). na sua indisfarçável simpatia para com
Mazzini e os nacionalistas poloneses; finalmente, na sua crença
- a respeito da qual as políticas econômicas dos regimes fascis-
tas do nosso século oferecem curioso comentário - de que a
máquina existente no Estado prussiano podia ser usada para
ajudar a petite bourgeoisíe, bem como o proletariado da Alema-
nha, contra a crescente invasão de comerciantes, industriais e
banqueiros. Na realidade, Lassalle chegou ao ponto de negociar
com Bismarck nesses termos, cada um imaginando que, na oca-
sião oportuna, usaria o outro como instrumento para seus pró-
prios fins; cada um deles reconhecia e admirava a audácia do

197
Lassalle criou o novo partido por um método ainda novo
em sua época e empregado apenas esporadicamente pelos cartis-
tas ingleses, conquanto bastante familiar depois: empreendeu
uma série de giros políticos bem noticiados pelas áreas indus-
triais da Alemanha, fazendo discursos inflamados e sediciosos
que espantavam as audiências proletárias e lhes despertavam en-
tusiasmQ imenso. Aqui e ali ele agrupava operários em seções do
novo movimento dos trabalhadores, organizado como partido
oficial, legalmente constituído, rompendo assim, abertamente,
com o velho método de pequenas células revolucionárias que se
reuniam em segredo e faziam propaganda clandestina. A última
jornada de Lassalle entre seus adeptos foi um giro triunfal em
território conquistado, que fortaleceu sua já singular influên-
cia sobre os operários alemães de todos os tipos, idades e pro-
fissões.
Os fundamentos teóricos do programa eram tomados de em~
préstimo, em grande parte, de Marx, e talvez em certa medida
do economista prussiano radical Rodbertus- Jagetzow, mas o par-
tido tinha muitas características fortemente não-marxistas: não
era especificamente organizado para uma revolução; estava pre-
parado para alianças com outros partidos antiburgueses; parecia
aspirar a uma espécie de capitalismo de Estado; era nacionalista
e grandemente limitado às condições e necessidades alemãs.
Uma de suas principais finalidades -era o desenvolvimento de
um sistema cooperativo de trabalhadores, não como alternativa
à ação política, mas como elemento intrínseco de ação política,
a ser organizado ou financiado pelo Estado, ainda muito simí-
Jar ao mutualismo antipolítico de Proudhon e ao politicamente
moroso sindicalismo inglês, o que merecia franca hostilidade
de Marx. Além do que ele fora criado por meio da ascendên-
cia de um indivíduo. Havia um forte e não questionado ele-
mento emocional na ditadura que Lassalle exerceu em seus derra-
deiros anos, uma forma de idolatria que Marx, detestando, como
detestava, qualquer forma de insensatez, e desconfiando de ora-
dores fascinantes em po1ítica, instintivamente abominou. Lassal-
le introduziu no socialismo alemão a teoria de que podem ocorrer
circunstâncias em que algo seme]hante a uma aliança verdadeira
viria a ser formado com o governo prussiano absolutista contra
a burguesia industriaL Era o tipo de oportunismo que Marx

196
tardavam a afundar, exaustas, na velha apatia, parecendo ainda
menores, insignificantes e medíocres.
"Ele foi, antes de mais nada, um homem de fibra" , escre-
veu Marx, "o inimigo de nossos inimigos ... é difícil de acreditar
que um homem tão turbulento, agitado e impetuoso esteja agora
morto como um rato, e calado para sempre ... é o diabo: o grupo
fica menor e nenhum sangue novo aparece".
A notícia da morte de Lassalle prostrou-o num dos seus
raros estados de melancolia pessoal, quase de des.espero, muito
diferente da nuvem de raiva e ressentimento em qu~ normalmen-
te vivia. De repente, Marx foi dominado peJa percepção do seu
próprio e total isolamento, da desesperança da conduta indivi-
dual ern face da triunfante reação européia, um sentimento que
a tranqüilidade e monotonia da vida na Inglaterra incutiam mais
cedo ou mais tarde em todos os revolucionários exilados. De
fato, o respeito e até mesmo a admiração com que muitos deles
falaram da vida inglesa e das instituições inglesas implicavam
um reconhecimento do seu fracasso pessoal e da sua perda de
fé no poder da humanidade de conquistar a emancipação. Eles
se viam mergulhar aos poucos num comodismo cauteloso, quase
cínico, que identificavam como uma admissão de derrota e do
absurdo de uma vida gasta em lutas, o colapso final do ideal
mundial em que haviam irreparavelmente i_nvestido tudo. Tal
estado de espírito, comum a Herzen, Mazzini e Kossuth, era raro
em Marx: estava verdadeiramente convencido de que o processo
da história era inevitável e, a despeito de retrocessos, progres-
sivo; sua crença intensa excluía qualquer possibilidade de dú-
vida ou desilusão s~bre questões fundamentais. Marx jamais
confiara na sagacidade ou idealismo de indivíduos ou do povo
como fatores decisivos da evolução social e, nada tendo apo~­
tado, nada perdera na grande bancarrota intelectual e moral
dos anos 60 e 70. Durante toda a sua vida ele se empenhou em
destruir ou diminuir a influência de líderes populares e dema-
gogos que acreditavam no poder do indivíduo de altérar o des-
tino das nações. Seus ataques selvagens contra Proudhon e Las-
salle e seu duelo subseqüente com Bakunin não foram meros
movimentos, na batalha pela supremacia pessoal, de um homem
ambicioso e despótico resolvido a destruir todos os possíveis

199
outru, a inteligência e a falta de pequenos escrúpulos; viam um
ao outro à luz de seu realismo político, do seu profundo desprezo
pelos correligionários medíocres e da sua admiração pelo poder
e pelo êxito. Bismarck gostava de personalidades brilhantes e
nos últimos anos costumava referir-se às suas conversas com
Lassalle com prazer, diz~ndo que jamais encontraria outro ho-
mem tão interessante. Até onde Lassalle iria. de fato, naquele
rumo, foi posteriormente revelado pela descoberta. em 1928, do
arquivo secreto de Bismarck sobre as negociações. Elas foram
interrompidas pela morte prematura de Lassalle em duelo resul-
tante de uma casual ligação amorosa. Se tivesse vivido mais,
e se Bismarck continuasse a brincar com a sua vaidade quase
megalomaníaca, Lassalle acabaria, quase com certeza. derrotado.
e o partido por ele recém-criado teria afundado muito antes. Com
efeito, como teórico da supremacia do Estado e como demagogo,
Lassalle teria de ser incluído entre os fundadores não apenas
do socialismo europeu, mas igualmente da doutrina da liderança
e do autoritarismo românticos - e deve ter sido esse traço fas-
cista que atraiu Bismarck.
No conflito que se seguiu entre os marxistas e os lassallea-
nos, Marx conquistou uma vitória formal que lhe p~eservou a
dureza da doutrina e método político, não - por mais estranho
que isso pareça - para a Alemanha, à qual eles originariamente
se destinavam, senão para aplicação em países mais primitivos,
que mal entravam em suas cogitações, como Rússia, China e,
até certo ponto, México e Cuba. A notícia da morte de Lassalle
na primavera de 1864 pouco sensibilizou Marx e Engels. Para
ambos, parecia o coroamento tolo de uma carreira de absurda
vaidade e ostentação. Lassalle, se tivesse sobrevivido ao duelo,
seria certamente um obstáculo de grande importância. Contudo.
o alívio, pelo menos no caso de Marx, não deixou de incorporar
certa tristeza sentimental pelo desaparecimento de uma figura
tão familiar, uma das raras a quem ele demonstrava, apesar dos
seus defeitos, uma certa consideração. :Lassalle era alemão
e hegeliano, inextricavelmente ligado aos acontecimentos de 1848
e com um passado revolucionário. Era um homem que, a des-
peito de toc;los os seus defeitos colossais, permanecera de cabeça
erguida diante dos ' pigmeus' com quem convivia, criaturas em
quem infundiu brevemente sua própria vitalidade, e que não

198
trabalho humano e multiplicar-lhe os frutos, enquanto nós pas-
samos fome e morremos de trabalhar. As vitórias da arte pare-
cem compradas pela perda de caráter. Até a luz mais pura da
ciência parece brilhar apenas contra os escuros bastidores da
ignorância. . . Esse antagonismo entre indústria moderna e ciên-
cia, de um lado, e miséria moderna e dissolução, de outro, esse
antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais da
nossa época é um fato palpável e surpreendente. Uns poderão
lamentá-lo, outros talvez desejem livrar-se das artes modernas a
fim de se livrarem dos conflitos modernos. . . Dé'nossa parte,
não nos enganamos acerca da forma desse espírito astuto que
continua a marcar tais contradições ... reconhecemos nosso velho
amigo, aquele duende folgazão. aquela velha mola que trabalha
na terra tão depressa ... a Revolução". Essa tese deve ter soado
singularmente inverossímil à maioria dos ouvintes. Certamente os
acontecimentos dos anos que se seguiram pouco fizeram em be-
nefício da profecia.
Em 1860, a fama e a influên~ia de Marx limitavam-se a
um circuito estreito. O interesse pelo comunismo morrera des-
de os julgamentos de Colônia, em 18 51 . Com o desenvolvi-
mento extraordinário da indústria e do comércio, a fé no libe-
ralismo, na ciência, no progresso pacífico começou a predo-
minar mais uma vez. O próprio Marx corria o risco de adquirir
um interesse meramente histórico. de ser considerado um for-
midável teórico e agitador da geração passada, agora exilado e
destituído e mantendo-se, graças ao jornalismo ocasional, numa
obscura esquina de Londres. Quinze anos depois, tudo isso
tinha mudado. Ainda um tanto desconhecido na Tnglaterra, ele
crescera no exterior em fama e notoriedade, encarado como ins-
tigador de todos os movimentos revolucionários na Europa, como
ditador fanático de um movimento mundial empenhado em sub-
verter a ordem moral, a paz, a felicidade e a prosperidade da hu-
manidade. Os que assim pensavam representavam Marx como
o gênio do mal da classe operária. conspirando sempre para
solapar e destruir a paz e a moralidade da sociedade civilizada,
explorando sistematicamente as piores paixões da turba, criando
mágoas onde não havia ressentimento, provocando ardor nas
feridas dos insatisfeitos. exacerbando as relações deles com seus

201
rivais. Sem dúvida de foi por natureza <.k uma inv~ja quase
insana; todavia. nos seus sentimentos pessoais havia também ge-
nuína indignação para com os grosseiros erros de julgamento de
que culpava muitos líderes. E, com maior ênfase, e por mais irô-
nico que pareça em face de sua própria situação, manifestava
violenta desaprovação à influência de indivíduos dominantes, ao
elemento de poder pessoal que, criando uma falsa relação entre
o líder e seus adeptos, tende mais cedo ou mais tarde a cegar
ambos para as necessidades da situação objetiva.
Ainda resta o fato de que a posição de autoridade que ele
mesmo assumiu no socialismo .i nternacional, durante a última dé-
cada de sua vida, consolidou e garantiu mais a adoção de
seu -sistema que a atenção às suas obras ou a considera-
ção da história à luz das mesmas. Alguns escritos de Marx
publicados nos ~mos finais de sua permanência et;n Londres
constituem leitura desanimadora; à parte os artigos em jornais
alemães e americanos, e o trabalho literário mercenário forçado
pela pobreza em que vivia, ele guardou-se quase inteiramente para
os tratados polêmicos, o mais longo dos quais, Herr Vogt, escrito
em 1860, destinava-se a livrar o nome de Marx da imputação de
ter levado os amigos a perigos desnecessários durante os proces-
sos de Colônia, e a contra-atacar o seu acusador, um conhecido
naturalista suíço e político radical, Karl Vogt. sob a alegação
de que este estava a serviço do imperador francês. O volume só
desperta interesse pela luz melancólica que projeta sobre dez
anos de frustração. repletos de brigas e intrigas, que se seguiram
à fase heróica. Em 1859, Marx publicou, afinal, Contribui-
ção à crítica da economia política; apesar de suas páginas in-
trodutórias trazerem a mais clara definição da sua teoria da
história, o l.ivro foi pouco lido. As teses marxistas básicas seriam
afirmadas de forma mais categórica oito anos depois, no primeiro
tomo de O capital.
A fé de Marx na vitória suprema de sua causa continuou
imune, mesmo durante os anos mais sombrios da reação. No
início dos anos 50, num jantar oferecido à equipe de The
People's Paper, em resposta ao brinde "Aos proletários da Eu-
ropa", ele falou: "Em nossos dias. tudo parece sugerir contradi-
ções. A máquina está dotada do poder maravilhoso de reduzir o

200
9
..;:,

A Internacional

A Revolução Francesa é precursora de outra revolução


mais magnífica que será a última.
GRACCHUS BABEU F, Manifeste des égaux. 1796

A Primeira Internacional veio à luz da maneira mais casual


possível. Apesar dos esforços de várias organizações e comitês
em coordenar as atividades dos trabalhadores de vários países,
não foram estabelecidos entre eles laços verdadeiros. Isso por
várias causas. Sendo o caráter de tais órgãos em geral conspi-
ratório, apenas uma pequena minoria de trabalhadores de
formação radical, destemidos e 'avançados', sentia-se atraída;
além disso, acontecia que, antes de algo concreto ser obtido,
uma guerra estrangeira, ou medidas repressivas de governos,
davam fim à existência dos comitês se.cretos. A isso deve-se
acrescentar a falta de conhecimento e de simpatia entre tra-
balhadores de nações diferentes, que exerciam o seu ofí-
cio em situações bem diversas. Por fim, a crescente pros-
peridade econômica que sucedeu aos anos de fome e de revolta,
levantando o padrão de vida em geral, contribuiu automatica-
mente para o maior individualismo, além de estimular a ambi-
ção pessoal dos trabalhadores mais corajosos e de melhor

203
~mpregadores, a fim de criar o caos universal em que todos saí-
riam perdendo e em que, por conseguinte, ficariam nivelados ·-
ricos e pobres, maus e bons, trabalhadores e preguiçosos, justos
e injustos. Outros viam nele o mais infatigável e devotado estra-
tegista e tático das classes trabalhadoras em geral, a autoridade
infalível em questões teóricas, o criador de um movimento ir-
resistível destinado a derrubar, pela persuasão ou pela violência,
à regra da injustiça e da desigualdade em vigor. Para estes,
Marx assemelhava-se a um colérico e indomável Moisés moderno .
o líder e o salvador de todos os insultados e oprimidos, tendo o
mais moderado e mais convencional Engels a seu lado, um Aarão
sempre pronto a discursar para as massas incultas e semi-igno-
rantes do proletariado. O acontecimento mais que nenhum outro
responsável por essa transformação foi a criação da Primeira In-
ternacional em 1864, que alterou radicalmente o caráter e a
história do socialismo europeu.

202
Quando a grande Exposição da Indústria Moderna foi aber-
ta em Londres, em 1863, operários franceses tiveram facilidades
para visitá-la e, com efeito, uma delegação chegou à Inglaterra,
constituída metade de turistas, metade de representantes do
proletariado francês, teoricamente enviada à exposição para estu-
dar os últimos avanços industriais. Providenciou-se um encon-
tro entre eles e representantes dos sindicatos ingleses. Nesse
encontro - que, para começar, tinha uma pauta de intenções
provavelmente tão vaga quanto a de outras reuniões do gênero,
e parecia estimulado, antes de tudo, pelo desejo de4ljudar demo-
cratas poloneses exilados em conseqüência do fracassado levante
polonês daquele ano - foram levantadas questões como horas
de trabalho e equiparação salarial na França e na Inglaterra,
e a necessidade de impedir que os empregadores importassem
mão-de-obra barata, para desarticular greves organizadas por
sindicatos locais. Programou-se outro encontro para formar uma
associação que não se limitaria apenas a promover debates e
trocar informações, mas teria o propósito de iniciar uma coo-
peração econômica e política ativa, e talvez promover uma
revolução democrática internacional. Dessa feita, a iniciativa
não par tiu de Marx, mas dos líderes sindicalistas ingleses e fran-
ceses. À sua porta agruparam-se radicais de várias espécies, de-
mocratas poloneses, mazzinistas italianos, proudhonianos, blan-
quistas e neojacobinos da França e da Bélgica; em suma, qual-
quer um que desejasse a queda da ordem existente era livre-
mente admitido.
O encontro realizou-se no St. Martin's Hall, em Londres,
presidido por Edward Beelsy, figura simpática e benevolen-
te, então professor de história antiga na Universidade de
Londres, radical e positivista, pertencente a um pequeno mas
notável grupo que incluía Frederic Harrison e Crompton, por
sua vez influenciados profundamente por Comte e pelos pri-
meiros socialistas franceses. Dos membros desse grupo espe-
rava-se apoio tácito a qualquer medida progressista; por muitos
anos, entre os homens educados da sua época, foram quase os
únicos a se alinharem com Mill na defesa da causa impopular
do sindicalismo, num período em que este era denunciado na
Câmara dos Comuns corno instrumento deliberadamente ínven-
tado para fomentar problemas entre as classes. O encontro deci-

205
formação politíca a melhores condições locai~ e à bus<.:a de
objetivos imediatos, distanciados do nebuloso ideal de uma
aliança internacional contra a burguesia. A evolução do
operariado alemão, conduzida por Lassa1le, constitui exem-
plo típico de um movimento puramente interno, rigorosa-
mente centralizado, restrito a um só país, esporeado pela
esperança otimista de forçar aos poucos o inimigo capita-
lista a um acordo, por força do seu número, sem precisar recor-
rer a um levante revolucionário ou tomada violenta do poder.
Essa esperança foi estimulada pela política antiburguesa de
Bismarck, que parecia inclinar um dos pratos da balança em
favor dos trabalhadores. Na França, a terrível derrota de 1848 e
1849 arruinou o proletariado urbano e por muitos anos deixou-o
incapaz de ação em maior escala, cicatrizando as feridas me-
diante a formação de pequenas associações de inspiração mais
ou menos proudhoniana. Nesse sentido, aliás, elas não chegaram
a ser inteiramente desestimuladas pelo governo de Napoleão IIJ.
O imperador se fizera passar na juventude por amigo dos
camponeses, artesãos e operários de fábricas, contra a buro-
cracia capitalista, e desejava representar sua monarquia como
uma nova e sutilíssima forma de governo, uma mistura original
de monarquismo, republicanismo e democracia tóri, uma espé-
cie de nova ordem em que o absolutismo poHtico fosse tempe-
rado pelo liberalismo econômico - em que o governo, mes-.
mo centralizado na pessoa do imperador e sob a responsabí~
lidade única deste, dependesse, em última instância, e pelo
menos em teoria, da confiança do povo, e devesse ser, por con-
seguinte, uma instituição inteiramente nova e moderna, sensível
a novas necessidades e a qualquer indício de mudança social.
Parte da elaborada política de conciliação social de Napo~
leão III destinava-se a preservar um delicado equilíbrio de poder
entre as classes, evitando o atrito direto entre elas. Os operá-
rios tiveram permissão para se organizar em sindicatos sujei·
tos a severa fiscalização da polícia, a fim de compensar o poder
perigosamente crescente da aristocracia financeira, com suas
suspeitosas lealdades orleanistas. Os operários, sem outra alter-
nativa. aceitaram a mão que lhes era cautelosamente estendida
e começaram a fundar sindicatos - um processo meio estimu-
lado, meio dificultado pelas autoridades.

204
do no palco da atividade internacional após quinze anos, se-
não de obscuridade, pelo menos de intermitente luz e sombra.
O discurso inaugural da Internacional é, depois do Mani-
festo comunista, o mais notável documento do movimento so-
cialista. Ocupa pouco mais de uma dúzia de páginas e
abre com a declaração: " ... Que a emancipação da classe
trabalhadora deve ser conquistada pela própria classe tra-
balhadora. . . que a submissão econômica do trabalhador
pelo monopolizador dos meios de trabalho. . . constitui a base
da escravização em todas as suas formas de niiséria social,
degradação mental e dependência política. Que a emancipação
econômica da classe operária é, portanto, a grande finalidade à
qual deve estar subordinado, como meio, qualquer movimento
político. Que os esforços dirigidos a este grande objetivo falha-
ram até então por falta de solidariedade entre as divisões múl-
tiplas do trabalho em cada país, e da ausência de um fraterno
vínculo entre as classes operárias de diferentes países. . . moti-
vos pelos quais os abaixo-assinados. . . tomaram as necessárias
medidas para fundar a Primeira Internacional ''.
O documento contém uma análise das condições econô-
micas e sociais da classe trabalhadora, a partir de 1848, e con-
trasta a prosperidade cada vez maior das classes proprietárias
com a situação de penúria dos trabalhadores. O ano de 1848
é reconhecido como uma derrota esmagadora para estes, mas
não sem deixar-lhes pelo menos um benefício: em conseqüência
da derrota, o sentimento de solidariedade internacional entre
os trabalhadores havia despertado. Esse aspecto provocou agi~
tação, não inteiramente destituída de êxito, pela limitação legal
da jornada de trabalho - a primeira vitória definida sobre
uma política de extremo laissez-faire. O movimento cooperativo
provara que uma alta eficiência industrial era compatível com
a eliminação do capataz de escravos capitalista, e até mesmo
aumentada por ela: o trabalho assalariado revelara-se, assim,
não um mal necessário, mas transitório e erradicável. Os
operários começavam afinal a perceber que nada tinham
a ganhar e tudo a perder, se continuassem a ouvir conselheiros
capitalistas que, se não podiam utilizar a força, buscavam agir
por meio de preconceitos nacionais e religiosos sobre interesses

207
diu <.:onstituir uma federação internacional de operários, empe-
nhada não em reformar~ mas em destruir o sistema de relações
econômicas em vigor, e substituí-lo por outro em que os traba-
lhadores tivessem a propriedade dos meios de produção, o que
poria fim à sua exploração econômica e faria com que o fruto
do seu trabalho viesse a ser dividido comunalmente - obje-
tivo que incluía em primeira e última instância a abolição da
propriedade privada sob todas as formas. Marx, que antes
se mantivera friamente a distância de outras reuniões de demo-
cratas, percebeu a firme intenção dessa última tentativa de
coalizão, organizada de fato por representantes de . trabalha-
dores e anunciando propósitos definidos e concretos, nos
quais sua própria influência transparecia com clareza. Por-
tanto, esse debate deveria constituir uma exceção. Os artesãos
alemães em Londres indicaram-no representante seu no comitê
executivo, e na época em que o segundo encontro preparou-se
para votar a constituição, Marx assumiu todas as rédeas. Depois
que os delegados franceses e italianos, a quem fora confiada
a tarefa de rascunhar os estatutos, mostraram-se incapazes de
produzir algo além dos habituais e desbotados lugares-comuns
democráticos, Marx encarregou-se ele próprio do esboço, acres-
centando um discurso inaugural que compôs para a ocasião. A
constituiçao que, no âmbito do Comitê Internacional, era vaga,
humanitarista e com uma tintura de liberalismo, emergiu das
· mãos de Marx sob a forma de um documento audacioso e mili-
tante, destinado a moldar um corpo doutrinário disciplinado
com rigor, cujos membros se empenhariam em promover assis-
tência mútua não somente para melhorar sua condição comum.
como também para subverter sistematicamente, e se possível der-
rubar o regime capitalista existente, mediante franca ação políti-
ca. Em particular, deveriam tentar obter uma cadeira nos parla-
mentos democráticos, conforme os adeptos de Lassalle tentavam
fazer nos países germânicos. A um pedido para que fossem in-
cluídas expressões de respeito por "direito e dever, verdade, jus-
tiça e liberdade", as palavras foram inseridas, mas num contexto
em que, segundo Marx observou em carta a Engels, '1 não deve-
riam causar prejuízo". A nova constituição foi aprovada e Marx
começou a trabalhar com sua costumeira rapidez febril. entran-

206
questões de interesse comum; assegurar ação simultânea coor-
denada em todos os países, na ocorrência de crises internacio-
nais; publicar relatos regulares sobre o trabalho das associações,
e assim por diante. Haveria um congresso anual dirigido por
um conselho geral democraticamente eleito em que todos os
países filiados se fariam representar. Marx deixou a constituição
tão elástica quanto possível, a fim de incluir o maior número
possível de organizações operárias ativas, não ]mportando seus
métodos e sua natureza. A princípio, decidiu agir com cau-
tela e moderação, juntar, unificar e eliminar dis$:identes aos
poucos, na medida em que fossem alcançados acordos. Aplicou
essa diretriz da forma precisa, como a tinha planejado. Suas
· conseqüências resultaram autodestrutivas, embora seja difícil
perceber que outras táticas Marx poderia ter adotado em conso-
nância com seus princípios.
A Internacional cresceu com rapidez. Sindicato após sindi-
cato de operários nos principais países da Europa foi conver-
tido pela perspectiva de guerra unida por salários mais eleva-
dos, jornada de trabalho mais curta e representação política. A
Internacional provou estar melhor organizada que o cartismo
ou as primeiras ligas comunistas, em parte devido às lições
táticas aprendidas. Foi suprimida a atividade independente de
indivíduos, a oratória popular desencorajada e introduzida rígi~
da disciplina em todos os departamentos, sobretudo porque a
Internacional era orientada e dominada por uma só persona-
Jidade. O único homem capaz de tentar rivalizar com Marx
nos anos recentes era Lassalle, e este estava morto; ainda assim,
o encanto da sua lenda foi bastante forte para isolar os alemães
contra o pleno apoio do centro londrino. Liebknecht, de talento
medíocre, ilimitadamente devotado a Marx, pregou o novo
credo com entusiasmo, mas o prosseguimento da política
anti-socialista de Bismarck e a tradição do nacionalismo de-
rivado de Lassalle mantiveram as atividades dos operários
alemães dentro das fronteiras do país, preocupados com pro-
blemas de organização interna. Quanto a Bakunin, o grande
agitador do entusiasmo dos homens acabara de retornar à
Europa ocidental após sua fuga da Sibéria: embora seu pres-
tígio pessoal, na Internacional e fora dela, fosse imenso, ele
não tinha uma organização a apoiá-Jo: afastara-se de Herzen

209
pc:ssoais ou loc<:J ís, sobre a profunda igno'ráncia pol í t íca das
massas. Este ou aquele poderia ganhar com as guerras nacionaís
ou dinásticas, mas uma coisa era certa: os trabalhadores dos
dois lados sempre perdiam. No entanto, a força deles era tal
que, mediante ação comum, conseguiriam evitar a exploração
em tempo de paz ou de guerra - como, aliás, demonstraram
ao intervir, na Inglaterra, contra o envio de ajuda aos estados
sulistas na guerra civil americana. Só .tinham uma arma contra
o poder formidável e, na aparência, opressivo do seu inimigo:
sua quantidade, '"mas quantidade pesa na escala somente quando
as pessoas estão unidas, organizadas e dirigidas consciente·
mente para um só objetivo". No campo político é que a escra-
vização se tornava mais manifesta. Manter-se alheio à política
em nome da organização econômica, conforme Proudhon e
Bakunin pensavam, era prova de visão curta e criminosa. Os
trabalhadores só obteriam .iustiça se a defendessem, se neces-
sário pela força, onde quer que a vissem deturpada. Ainda que
não pudessem intervir pela força armada, pelo menos lhes cabe-
ria protestar, pressionar e acossar os governantes, até que os
padrões supremos de moralidade e justiça, pelos quais são
convencionalmente julgadas as relações entre os indivíduos, se
transformassem em leis que governassem as relações entre as
nações. Mais isso não poderia ser feito sem alterar a es-
trutura econômica da sociedade que, malgrado melhorias irre-
levantes, trabalhava necessariamente para a degradação e escra-
vização da classe operária. Existia somente uma classe cujo inte-
resse real consistia em deter a tendência de queda e remover a
possibilidade de sua ocorrência: era a classe que, nada pos-
suindo, não estava ligada por laços de interesse ou sentimento
ao velho mundo de injustiça ou de miséria - a classe que fora
inventada pelos novos tempos, ta1 como fora inventada a máqui-
na. O discurso findava, como no Manifesto comunista, com as
palavras ''Trabalhadores do mundo inteiro. uni-vos!"
As tarefas da nova organização, tal como incorporadas nes-
te documento, eram: estabelecer relacões íntimas entre os tra-
balhadores dos vários países e sindicatos; reunir estatísticas rele-
vantes; informar os trabalhadores de um país sobre as condições,
necessidades e planos dos trabalhadores de outro país: discutir

208
pendentes europeus do Tribune: Dana pediu pernussao para
conservar Marx, mas em vão. Ele foi gradualmente deixan-
do o seu posto, no início de 1861; finalmente, a colabo-
ração cessou por completo um ano depois. Quanto à Interna-
cional, ela aumentou-lhe os deveres e vivificou-lhe a existência,
porém sem melhorar-lhe os rendimentos. Desesperado, Marx
candidatou-se a um lugar de auxiJiar de contabilidade num escri-
tório de estrada de ferro, mas suas roupas esfarrapadas e a apa-
rência ameaçadora não podiam produzir impressão favorável
num empregador de trabalho de escritório, e o pedi<fo de Marx
foi rejeitado a pretexto de sua letra ilegível. E difícil explicar
de que modo, sem o apoio financeiro de Engels, ele e a família
continuaram a sobreviver durante esses anos terríveis.
Nesse ínterim, agências da Internacional se estabeleceram
na Itália e na Espanha. Em meados dos anos 60, os governos
começaram a se assustar. Houve notícias de prisões ·e banimen-
tos. O imperador francês fez uma tentativa tíbia para suprimi-la.
Mas isso só serviu para acentuar a fama e o prestígio da nova
entidade no seio dos trabalhadores. Para Marx, após o escuro
túnel dos anos 50, a situação significava mais vida e atividade.
A obra da Internacional consumia-lhe as noites e os dias. Com
a costumeira e devotada ajuda de Engels, tomou posse do
escritório central e atuou não somente como um conselheiro
semiditatorial, mas na condição de chefe de um escritório cen-
tral de planejamento e 'carteira de compensação' de todo o in-
tercâ1nbio. Tudo passava por suas mãos e movia-se na direção
que ele determinava. Os franceses, uma parcela dos suíços, em
certa medida os belgas e mais tarde os italianos das seções da
Internacional, educados no antiautoritarismo de Phoudhon e
Bakunin, levantaram vagos mas inúteis protestos. Marx, que
desfrutava de ascendência total sobre o conselho, apertou o
nó ainda mais, insistindo na rígida obediência a todos os pon-
tos do programa original. Sua velha energia parecia de volta.
Escreveu cartas espirituosas e quase alegres a Engels; até os
trabalhos teóricos traziam a marca desse recém-encontrado vigor,
e como sempre acontece, o trabalho intensivo num campo esti-
mulava a atividade endormecida em outro. Um esboço da sua
teoria econômica aparecera em 1859; mas sua obra capital, que a

211
e do partido Hberal agrário entre os émigrés russos, e ninguém
sabia para que lado se inclinava, e ele menos ainda. Em comum
com a grande maioria dos proudhonianos, ele e seus adeptos
tornaram-se membros da Internacional, mas, estando ela com-
prometida abertamente com a ação política, eles agiram em des-
respeito aos seus próprios princípios anarquistas, de resto va-
gamente formulados. Dessa feita, os membros entusiasmados
eram os sindicalistas ingleses e franceses, temporariamente sob
o encanto da nova experiência com suas promessas de prospe-
ridade e poder. Não eram teóricos nem desejavam ser, deixando
todas as questões para o Conselho Geral da Internacional.
Enquanto durou essa disposição de ânimo, Marx não teve rivais
séribs na organização, sendo superior, no intelecto, experiência
revolucionária e força de vontade, ao estranho amálgama de
profissionais, operários de fábrica e ideólogos desgarrados que,
com o acréscimo de um ou dois aventureiros dúbios, compu-
nham a Associação dos Trabalhadores .da Primeira Interna-
cional.
Marx estava agora com quarenta e seis anos de idade e,
na aparência e nos hábitos. parecia mais velho. Dos sete filhos,
três tinham falecido, em grande parte por causa das condições
da vida levada pela família em seus cômodos do Soho. Tinham
planejado mudar-se para uma casa mais espaçosa em Kentish
Town, embora continuassem ainda quase privados de recursos.
A grande crise econômica, à mais grave já ocorrida na Europa,
e que principiou ein 1857, foi acolhida por ele e por Engels
como capaz de acentuar o descontentamento e a rebelião, mas
também reduziu a renda de Engels e dessa forma desferiu um
golpe no próprio Marx, e no instante em que ele estava mais
enfraquecido. O Tribune de Nova York e colaborações ocasio-
nais para jornais radicais alemães salvaram-no da fome, lite-
ralmente; mas os meios de sobrevivência da família já eram
escassos havia vinte anos. Em 1860, a fonte americana começou
a secar: o editor do Tribune de Nova York, Horace Greeley,
ardoroso defensor do nacionalismo democrático, entrou em di·
vergência crescente com as opiniões demasiado francas do seu
correspondente na Europa. A crise econômica e o efeito .adicio-
nal. da guerra civil provocaram a demissão de muitos corres-

2l0
I
) zação interna própria, empenhada em resistir à (.;entralização e
em dar apoio à autonomia federal. Tratava-se de uma heresia

l que mesmo um homem mais tolerante que Marx não pode-


ria admitir. A Internacional não se destinava a ser mera socie-
dade de intercâmbio entre associações livres de comitês radi-
cais, e sim um partido político unificado, fazendo pressão por
uma única finalidade em todos os centros de sua ação irradia-
dota. Ele acreditava com convicção que qualquer ligação com
Bakunin - ou qualquer outro russo - tendia a trair, no fim,
a classe trabalhadora, opinião que formara apos um bre-
ve e agradável relacionamento, seguido de desilusão, com
os radicais russos aristocratas dos anos 40. Quanto a Bakunin,
embora professasse sinceramente admiração pelo gênio pes-
soal de Marx, nunca ocultou sua antipatia pessoal por ele,
ou sua repugnância instintiva pela crença de Marx em métodos
autoritários, ambas expressas em suas teorias e na organização
prática de um partido revolucionário.
"Nós, anarquistas l'evolucionários", declarou Bakunin . "so-
mos inimigos de todas as formas de Estado e organização esta-
tal. . . pensamos que o governo do Estado, todos os governos,
.i ,
sendo por essência contrários à massa do povo, devem necessa-
riamente querer sujeitá-lo a costumes e propósitos que lhe são
inteiramente estranhos. Portanto, nós nos declaramos inimi-
gos. . . de quaisquer organizações estatais, e acreditamos que
o povo só pode ser feliz e livre quando, organizado a partir
de baixo, por meio de associações próprias e completamente
livres, sem a supervisão de guardiões, criar seu estilo de vida.
"Acreditamos que o poder corrompe os que o exercem,
da mesma forma que corrompe os que são forçados a obede-
cê-lo. Sob a corrosiva influência do poder, uns se tornam tira·
nos gananciosos e cheios de ambição, explorando a sociedade
em seu próprio interesse, ou no interesse da sua classe, enquanto
outros são transformados em escravos ab.ietos. Intelectuais, posi-
tivistas, doutrinadores, todos os que põem a ciência antes da
vida. . . defendem a idéia do Estado e sua autoridade como
sendo a única salvação possível da sociedade - com bastante
lógica, aliás, já que, a partir de suas falsas premissas, segundo
as quais o pensamento antecede a vida somente a teoria abstrata

213
pobreza e as más condições de saúde haviam interrompido, co-
meçava afinal a se aproximar do fim.
Marx apareceu poucas vezes em pessoa nas reuniões
da Internacional. Preferiu controlar-lhe as atividades de Lon-
dres, onde comparecia com regularidade aos encontros do
Conselho Geral e baixava instruções pormenorizadas aos seus
adeptos. Como sempre, confiava nos alemães e contava qua-
se inteiramente com eles. Encontrou um porta-voz fiel num
idoso alfaiate de nome Eccarius, há muito tempo residente na
Inglaterra, homem que não pecava por excesso de inteligência
ou de imaginação, mas que lhe pareceu fidedigno e radical.
Eccarius, a exemplo da maioria dos subordinados de Marx,
revoltava-se eventualmente, juntava-se aos secessionistas, mas
durante oito anos, como secretário do Conselho da Interna-
cional, executou à risca as instruções de Marx. Congressos
anuais eram promovidos em Londres, Genebra, Lausanne, Bru-
xelas, Basle, nos quais se discutiam problemas gerais e se vota-
vam medidas definidas; decisões comuns eram adotadas a respei-
to de horário e salário; questões como a situação das mulheres e
das crianças, o tipo de pressão política e econômica mais con-
veniente às diferentes situações em vários países europeus, a
possibilidade de colaboração com outras associações, eram con-
sideradas. A preocupação principal de Marx era chegar a uma
clara formulação de uma diretriz internacional concreta em
termos de reivindicações específicas coordenadas entre si, mais
a criação de uma disciplina rigorosa que garantisse a adesão
sem desvios a semelhante política. Por isso, resistiu com
êxito a todas as ofertas de aliança com órgãos puramente huma·
nitaristas, como a Liga da Paz e da Liberdade, recém-
fundada sob o patrocínio de Mazzini, Bakunin e John Stuart
Mill. Essa política ditatorial provocaria, mais cedo ou mais
tarde, o descontentamento e a revolta; esta veio a se cristalizar
em torno de Bakunin, cuja idéia de uma federação livre, for-
mada por associações locais semi-independentes, começou a
ganhar adesões nas seções suíça e italiana da Internacional. e
em menos quantidade na França. Afinal, resolveram constituir,
sob a liderança de Bakunin, um órgão a ser chamado de Aliança
Democrática, filiado à Internacional. porém com uma organi-

212
ao federalismo, mas unicamente para não arri~car o que já forél
construído: uma organização sem a qual ele não poderia
criar um órgão cuja existência tornaria os trabalhadores cons-
cientes de que estavam por trás de suas reivindicações, não~
como em 1848, meros simpatizantes, aqui e ali preparados
para oferecer apoio moral ou, no melhor dos casos, contribui-
ções ocasionais - , e sim uma força bem-disciplinada, empe-
nhada em resistir e, quando necessário. intimidar e coagir go-
vernos, a menos que se fizesse justiça aos seus irmãos por toda
~~- ·~
A fim de criar a possibilidade permanente de semelhante
solidariedade ativa, na teoria e na prática, um órgão central
com autoridade suprema, uma espécie de comando geral respon-
sável pela estratégia c pelas táticas pare-Cia-lhe indispensável .
Bakunin, por suas tentativas de afrouxar a estrutura da Inter-
nacional e encorajar variedades de opinião nas seções locais,
parecia-lhe conspirar deliberadamente para destruir tal possi-
bilidade. Caso obtivesse ê:d to, isso implicaria a perda do que
já fora conquistado, um retorno ao utopismo, o desaparecimento
da nova visão moderada, da certeza de que a força dos traba-
lhadores dependia de sua unidade e de que eles tinham caído
nas mãos dos seus inimigos, em 1848. por estarem empenhados
em levantes dispersos. em esporádicas e emocionais explosões
de violência, em vez de uma revolução única cuidadosamente
conduzida, organizada para começar num momento escolhido
por sua oportunidade histórica, dirigida desde uma fonte comum
para uma finalidade comum por homens que haviam estudado
minuciosamente a situação c a força de seus inimigos. O
bakuninismo significava a dissipação do impulso revolucionário,
o retorno ao velho heroísmo romântico, nobre e fútil, rico
em santos e em mártires, porém facilmente esmagado pelo
inimigo bem mais realista, e necessariamente seguido de um
período de fraqueza e desilusão capaz de fazer o movimento
retroagir por muitas décadas. Marx não subestimava a energia
e poder revolucionário de Bakunin para agitar a imaginação dos
homens. Tanto assim que, por esse motivo, considerava-o uma
força perigosamente dissidente, propensa a estabelecer o caos
para onde pendesse. A causa operária ficaria sobre solo vulcâ-

215
é capaz de formar o ponto de partida da prática social . .. eles
concluem de modo inevitável que, sendo esse conhecimento teó-
rico no momento propriedade de poucos, esses poucos devem
exercer o controle da vida social, não apenas para inspi-
rar, mas para dirigir todos os movimentos populares, e que,
tão logo a revolução se complete, nova organização social
deve ser estabelecida de imediato; não uma associação livre
de órgãos populares . . . trabalhando de acordo com as neces·
sidades e instintos do povo. mas um poder ditatorial centrali-
zado e concentrado nas mãos daquela minoria acadêmica, como
se expressassem de fato a vontade popular. . . A diferença
entre semelhante ditadura revolucionária e o Estado moderno
se concentra apenas nos adornos externos. Em substância, ambos
constituem urna tirania da minoria sobre a maioria, em nome
do povo - em nome da estupidez do homem e da sabedoria
superior daqueles poucos - , e portanto são igualmente rea·
cionários, objetivando assegurar privilégios políticos e econô-
micos à minoria governante, e a. . . escravizar as massas, a
destruir a ordem atual somente para erigir. sobre as ruínas.
sua própria rígida ditadura.'·'
Os ataques de Bakunin a Marx e a Lassalle não poderiam
passar despercebidos, ainda mais porque tinham sab~r anti-
semita, motivo por que seu amigo Herzen mais de uma vez
tivera ocasião de censurá-lo. No entanto, quando em 1869
Herzen pediu-lhe para deixar a Internacional, Bakunin escreveu,
com uma característica explosão de magnanimidade, que não
poderia juntar-se aos opositores de um homem "que tem ser-
vido (à causa' do socialismo) por vinte e cinco anos com uma
visão, energia e desinteresse que sem dúvida excede 06 de to-
dos nós" .
A antipatia de Marx por Bakunin não o deixou cego para
a necessidade de conceder uma certa medida de independência
regional, por motivos de pura conveniência. Assim, ele conse-
guiu derrubar o plano de criação de sindicatos internacionais,
por acreditar que isso era prematuro e abriria uma brecha
imediata nos atuais sindicatos nacionalmente organizados, dos
quais, pelo menos na Inglaterra, a l"nternacional tirava o seu
apoio básico. MasJ se fez essa concessão, não agiu por amor

214
10
'O Doutor do Terror,.....
Vermelho'

Nós somos o que somos por causa dele . Sem ele, ainda
estaríamos num abismo de confusão.
FRIEDRICH ENGELS, 1883

O primeiro tomo de O capital foi finalmente publicado


em 1867. O aparecimento desse livro marcou época na história
do socialismo internacional e na vida de Marx. A obra com-
pleta fora concebida como um tratado abrangente sobre as leis
e a morfologia da organização econômica na sociedade moder-
na, procurando descrever os processos de produção, troca e
distribuição como de fato ocorrem, explicar sua situação atual
como um estágio particular no desenvolvimento constituído pelo
movimento da luta de classes, ou, nas próprias palavras de
Marx, "descobrir a lei econômica do movimento na sociedade
moderna", mediante o estabelecimento das leis naturais que
governam a história das classes. O resultado1 foi um amálga~

1 . Especialmente se o primeiro volume for considerado em associa-


ção com os volumes de publicação póstuma que Engels e mais tarde
Kautsky prepararam para divulgação, à margem dos manuscritos eco-
nômicos de Marx. alguns em forma de notas.

217
nico se Bakunin e seus adeptos conseguissem entrar à forç~ tw::.
fileiras de seus verdadeiros defensores. Em conseqüência, e
após alguns anos de alguns conflitos, Marx se decidiu por um
ataque direto. Esse ataque culminou com a expulsão de Ba-
kunin e seus correligionários das fi1eiras da I nternacíonaL

216
micos de Marx. Ela se apóia em três supostçoes básicas: (a)
a economia política procura explicar quem obtém determi-
nados bens ou serviçÓs ou status, e por quê; (b) ela, por
conseguinte, não é uma ciência de objetos inanimados -
mercadorias - , mas de pessoas e suas atividades, a ser inter-
pretada nos termos das regras que governam a economia
capitalista de mercado, e não de leis pseudo-objetivas além do
controle humano, tais como a da oferta e da procura, que gover-
nam o mundo dos objetos naturais - objetos cujo comporta-
mento é exterior à vida dos homens, os quais conside-
deram esse processo parte de uma ordem eterna e natural
perante a qual devem inclinar-se, por serem impotentes pa-
ra alterá-la: essa ilusão, ou 'falsa consciência', é o que
Marx chama de 'fetichismo das mercadorias'; (c) o fator
decisivo na conduta social dos tempos modernos é o da indus-
trialização, com a certeza de que sua forma precoce e mais
plena - a revolução industrial na Inglaterra - oferece ao
estudante o melhor exemplo de um processo que ocorrerá por
toda parte, no devido momento. Marx traça a ascensão do prole-
tariado moderno em correlação com o desenvolvimento geral
dos meios técnicos de produção. Quando, no curso de sua evo-
lução gradual, esses meios já não podem ser criados por um
homem para seu uso próprio e surge a divisão do trabalho,
certos indivíduos (conforme Saint-Simon ensinara), dotados de
capacidade superior, poder e iniciativa, adquirem o controle
de tais instrumentos e ferramentas, e assim ficam em con-
dições de alugar o trabalho de outros, mediante uma com-
binação de ameaças que consistem em retirar deles as necessi-
dades de vida e oferecer-lhes mais sob a forma de remuneração
regular que o que receberiam como produtores independentes
que tentassem inutilmente obter os mesmos resultados com as
velhas e obsoletas ferramentas em seu poder. Como conseqüên-
cia da venda de seu trabalho a outros, tais homens vêm a se
tornar mercadorias no mercado econômico, e sua força de traba-
o
lho adquire um preço definido que flutua tal como de outras
mercadorias.
Uma mercadoria é qualquer objeto numa economia de
mercado envolvendo trabalho humano pelo qual existe deman-
da social. Trata-se, por conseguinte, de um conceito que, cori-

219
ma natural de teoria econômica, história, sociologia e propa-
ganda que não se ajusta a nenhuma das categorias aceitas. Cer-
tamente Marx considerou-o inicialmente um tratado de ciência
econômica. Os economistas anteriores, segundo ele, compreen-
deram mal a natureza das leis econômicas quando as compa-
raram com as leis da física e da química, e presumiram que,
embora as condições econômicas possam mudar~ as leis que as
governam não mudam; em conseqüência, seus sistemas ou se
aplicam a mundos imaginários, povoados por homens econo-
micamente idealizados, modelados pelo escritor a partir de seus
contemporâneos, e portanto habitualmente compostos de ca-
racterísticas selecionadas que só viriam a se destacar nos
séculos dezoito e dezenove; ou então descrevem sociedades
que, se fossem reais, já teriam há muito desaparecido. Assim,
ele pensou em criar um novo sistema de conceitos e de-
finições que tivessem aplicação definida ao mundo contem-
porâneo, e fosse construído de maneira a refletir a estrutura
mutável da vida e'conômica em relação não apenas ao seu pas-
sado, mas também ao seu futuro. No primeiro volume, Marx
fez uma tentativa de ao mesmo tempo oferecer uma exposição
sistemática de certos teoremas básicos da ciência econômica
e, mais espeçificamente, descrever a ascensão do novo sistema
industrial como uma conseqüência das novas relações entre
empregadores e trabalho assalariado~ criadas pelo efeito do pro-
gresso tecnológico sobre os métodos de produção.
O primeiro volume, _portanto, trata do processo produtivo,
ou seja, de um lado, as relações entre maquinaria e trabalho,
e de outro, as relações entre os produtores verdadeiros, isto é,
os trabalhadores, e aqueles que os empregam e os dirigem. Os
volumes restantes, publicados após sua morte por seus testa-
menteiros~ lidam sobretudo com o impacto, na teoria de valor, da
circulação do produto acabado, que deve existir antes de seu
valor ser formalizado, isto é, o sistema de troca e a maquinaria
financeira que ele envolve, e com as relações entre produtores e
consumidores, que determinam preços, taxa de juros e lucro .
.A tese geral que percorre a obra inteira é aquela esbo-
çada no Manifesto comunista e nos primeiros escritos econô-

218
interesses materiais dos homens na sociedade, ou como algo mais
metafísico, uma essência impalpável, introduzida na matéria
bruta pela criatividade do trabalho humano, ou, conforme têm
sustentado críticos desfavoráveis, como uma confusão de tudo
isso; e mais ainda, se a idéia de uma entidade uniforme, cha-
mada de trabalho humano não diferenciado (que, de acordo
com a teoria, constitui valor econômico), cujas diferentes ma-
nifestações só podem ser comparadas em termos de quantidade,
é ou não válida - e não é fácil defender o uso por Marx de
quaisquer desses conceitos - , a teoria da exploração baseada
neles permanece incólume. A tese central que tanto sensibilizou
os trabalhadores, que em sua maioria não compreenderam as
complexidades do argumento geral de Marx sobre a relação do
valor de troca e preços verdadeiros, é que existe apenas uma
classe social, a deles, que produz mais riqueza do que conso-
me, e que esse resíduo é apropriado por outros homens, sim-
plesmente por causa da sua posição estratégica como únicos
possuidores dos meios de produção, ou seja, recursos naturais,
maquinaria, meios de transporte, crédito financeiro e assim por
diante, sem os quais os trabalhadores não podem criar, embora
o controle deles dê aos que os possuem o poder de fazer capi-
tular o resto da humanidade segundo os termos por eles estipu-
lados.
Instituições políticas, sociais, religiosas e legais da era capi-
talista são representadas como armas morais e intelectuais
destinadas a organizar o mundo no interesse dos empregadores.
Essas armas disparam sobre os produtores de mercadorias, quer
dizer, o proletariado, todo um exército de ideólogos: propa-
gandistas, intérpretes e apologistas, que defendem o sistema
capitalista, embelezam-no e criam para ele monumentos lite-
rários e artísticos capazes de aumentar a confiança e o otimismo
dos que dele se beneficiam, e torná-lo mais digerível a suas
vítimas - na frase de Rousseau, "cobrir-lhes os grilhões com
grinaldas de flores". Mas, se o desenvolvimento da tecnologia,
conforme a acertada descoberta de Saint-Simon, tem dado, por
certo período, esse poder aos proprietários de terra, industriais
e financistas, seu avanço descontrolado inevitavelmente também
os destruirá.

221
forme Marx assinala cuidadosamente, só pode ser aplicado a
um estágio relativamente tardio do desenvolvimento social -
e não é mais eterno que qualquer outra categoria econô-
mica. Afirma-se que o valor comercial de uma mercadoria -
esta é a conclusão do seu argumento - é constituído direta-
mente pelo número de horas de trabalho humano socialmente
necessário, ou seja, quanto tempo leva um trabalhador, em mé-
dia, para criar um produto médio da espécie produzida (opinião
derivada de uma doutrina um tanto similar sustentada por Ri-
cardo e os economistas clássicos). Um dia de trabalho pode
produzir um objeto que possui valor maior que o da quantida-
de mínima de mercadorias de que o trabalhador necessita para
seu sustento; assim, ele produz algo de maior valor no mercado
do que o valor do que consome; com efeito, se não fizesse isso,
seu patrão não teria motivo econômico para empregá-lo. A
exemplo de uma mercadoria no mercado, a força de trabalho
de um homem pode ser adquirida por Ix, que representa a
soma mínima necessária para mantê-lo com boa saúde, capa-
citá-lo a executar seu trabalho com eficiência e reproduzir e
educar a família; os bens que ele produz serão vendidos por
ly; ly-x representa sua contribuição à riqueza total da socie-
dade - e é o resíduo que seu empregador embolsa. Mesmo de-
pois que uma razoável recompensa do empregador, por sua ca-
pacidade de organizar e dirigir o processo de produção e distri-
buição, é deduzida, permanece um resíduo definido de renda
social, que, sob fo"rma de rendimento, juros ou investimentos.
ou lucro comercial. é compartilhado, segundo Marx, não pela
sociedade como um todo, mas apenas pelos membros da
sociedade chamados de capitalistas ou classe burguesa, distin-
tos do resto pelo fato de que só eles, na qualidade de possui-
dores únicos dos meios de produção, obtêm e acumulam o
acréscimo imerecido.
Se o conceito de valor de Marx for interpretado como
significando uma norma média, em torno da qual oscilam os
preços verdadeiros das mercadorias, ou como limite ideal
para o qual os preços tendem, ou aquele em que estes. em certo
sentido não especificado, 'deveriam' estar, ou como um elemen-
to na explicação sociológica daquilo que constitui e satisfaz os

220
fusão de empresas rivais, ou seja, wn processo infindável de
amalgamação, até que restem apenas os grupos maiores e mais
poderosos; forçando todos os demais a uma posição de de-
pendência ou semidependência na agora centralizada hie-
rarquia industrial, reinando esta sobre uma concentração de
maquinaria produtiva e distributiva, que cresce e continuará a
crescer cada vez mais depressa. A centralização é um pro-
duto direto da racionalização da maior eficiência da produção
e transporte assegurada pela associação de recursos, da forma-
ção de grandes trustes monopolísticos, combinand~ os que
são capazes de coordenação planificada. Os trabalhadores, antes
dispersos em numerosas pequenas empresas, reforçados pelo
influxo contínuo de filhos e filhas dos pequenos comerciantes
e manufatureiros arruinados, automaticamente se vêem unidos
num único e crescente exército proletário pelos próprios pro-
cessos de integração no trabalho organizado por seus senhores.
Sua força, na condição de entidade política e econômica cada
vez mais consciente do seu papel e recursos históricos, aumenta
de forma proporcional. Os sindicatos, desenvolvendo-se à
sombra do sistema fabril, já representam uma arma muito
mais poderosa nas mãos do proletariado. O processo de
expansão industrial tenderá a organizar a .sociedade, cada
vez mais, na forma de uma pirâmide imensa, com capitalistas
em menor número e crescentemente mais poderosos no topo,
e uma grande e insatisfeita mass~ de trabalhadores explorados
e escravos coloniais formando-lhe a base. Quanto mais a ma-
quinaria substitui o trabalho humano, mais baixo a taxa de lucro
tende a cair, já que ela é determinada pelo capital fixo e
pelo índice de 'mais-valia'. A luta entre capitalistas compe~
tidores e seus países, na realidade controlados por eles, se
intensificará mortalmente, ligada de forma indissolúvel a um
sistema de competição desenfreada, no qual cada um só sobre-
viverá se ultrapassar e destruir os rivais. 2

2. Se assim fosse, por que então o capitalista não dispensaria as


máquinas e o índice de mais-valia, fazendo retornar o trabalho escravo?
Nos volumes póstumos de O capital, editados por Engels a partir de
manuscritos de Marx, afirma-se que a maquinaria não aumenta de fato ·

223
lá Fourier, e depois de1e Proudhon, tinham denunciado
o processo que leva os grandes banqueiros e manufatureiros, por
obra de seus recursos superiores, a expulsar pequenos comer-
ciantes e artesãos do mercado econômico, criando uma quanti~
dade de indivíduos descontentes, déclassés, automaticamente for-
çados a entrar nas fileiras do proletariado. Mas o capitalista é,
na sua ~poca, uma necessidade histórica. Ele extrai a mais-valia
e acumula; isso é ÍD:dispensável à industrialização e constitui
uma instância da .história para o desenvolvimento. "Fanatica-
mente debruçado sobre o valor do excedente, ele força com vio-
lência a raça humana a produzir por amor à produção.'' Ele po-
de agir de forma bruta ou por motivos puramente egoístas; mas,
no curso do processo "ele cria aquelas condições materiais que,
sozinhas, podem formar os verdadeiros alicerces de uma forma
de sociedade mais elevada, da qual o desenvolvimento pleno e
livre de cada homem constitui o princípio dominante". Marx
já havia pago tributo ao papel evolutivo da industrialização
no Manifesto comunista. "A burguesia", escreveu, "não pode
existir sem revolucionar constantemente os· instrumentos de
produção, e, por conseguinte, as relações de produção, e com
elas todas as relações da sociedade. . . Durante seu desem-
penho, que mal chegou aos cem anos, tem criado forças produ-
tivas mais maciças e colossais que todas as gerações prece-
dentes tomadas em conjunto. A dependência das forças da natu-
a
reza ao homem, aplicação da química e da indústria à agri-
cultura, a navegação a vapor, as estradas de ferro, o telégrafo
por eletricidade, a abertura de continentes inteiros ao cultivo,
a canalização de rios, populações inteiras que surgiram na super-
fície da terra num passe de mágica - qual das épocas ante-
riores pressentiu forças sociais tão gigantescas adormecidas no
regaço do trabalho socializado?" Mas o capitalista terá desem-
penhado sua parte e será então ultrapassado. Ele será 'liqui-
dado' por suas próprias características essenciais como um
acumulador. A violenta competição entre capitalistas individuais
- buscando aumentar a quantidade de mais-valia e a necessida-
de natural, daí decorrente, de baixar a custo da produção e des-
cobrir novos mercados - tende a promover de forma crescente a

222
mais assalariada, e acima de tudo a vasta população agrícola,
classes que Marx considerou naturalmente reacionárias, força-
das por su'a crescente pauperização ou a descer ao nível do
proletariado, ou a oferecer serviços mercenários ao seu prota-
gonista, a bourgeoisie industrial. A história da Europa, pelo me-
nos a ocidental, do pós-guerra teria de ser consideravelmente
deformada antes de se encaixar na sua hipótese.
Marx profetizou que as crises periódicas devidas à ausên-
cia de economias planificadas e a desenfreada guerra industrial
se tornariam com certeza mais freqüentes e maTh intensas.
Guerras, numa escala até então sem precedentes. assolariam o
mundo civilizado, até que finalmente as contradições hegelianas
de um sistema, cuja continuidade depende cada vez mais dos
conflitos destrutivos entre suas partes componentes, alcança-
riam uma solução violenta. O grupo de capitalistas detentor de
um poder sempre em crescimento seria varrido pelos trabalha-
dores, que se teriam adestrado de forma eficiente num conjunto
compacto e disciplinado. Com o desaparecimento da última clas-
se proprietária, ter-se-ia atingido o fim da luta entre classes, e
com ele se removeria o obstáculo ao advento da escassez econô·
mica e conseqüentemente da luta social, miséria humana e de-
gradação.
Numa famosa passagem do vigésimo segundo capítulo do
primeiro tomo de O capital, ele declarou: "Ao passo que há uma
diminuição progressiva no número de magnatas capitalistas,
ocorre, naturalmente, um aumento correlato de pobreza da
massa, escravização, degeneração e exploração, e ao mesmo
tempo uma firme intensificação do papel da classe operária -
uma classe que cresce sempre mais numerosa e é disciplinada,
unificada e organizada pelo próprio mecanismo do método capi-
talista de produção, que tem florescido com ela e em função dela.
A centralização dos meios de produção e a socialização do tra-
balho chegam a um ponto em que se tornam incompatíveis com
sua armadura capitalista. Esta se· rompe em pedaços. O dobre
de finados da propriedade privada se faz ouvir. Os expropriado-
res são expropriados". O Estado, instrumento pelo qual a autori-
dade da classe governante é exercida, tendo perdido sua função,
desaparecerá. No Manifesto comunista de 1847 e 1848, e
novamente em 1850 e 1852, Marx_ deixara claro que o Estado

221
O~nlro da estrutura do capitalismo e da empresa priv<Jda,
tais processos não podem ser racionalizados, já que os inte-
resses nos quais a sociedade capitalista se baseia dependem da
liberdade competitiva para sobreviver, senão entre produtores in-
dividuais, ao menos entre associações e monopólios. A ine-
xorável tendência do progresso tecnológico de aumentar formas
coletivas de produção entrará em conflito, de maneira cada vez
mais crescente e violenta, com as formas individuais de distri-
buição, isto é, o controle privado, a propriedade privada. O
big business, que Marx foi dos poucos a antecipar, junta-
mente com seus aliados militares destruirá o laissez-faire e o
individualismo. Marx, contudo, não levou em consideração as
conseqüências do crescimento do controle do Estado ou da
resistência democrática, nem o desenvolvimento do nacionalis-
mo político como força que encurta o caminho e transforma
o desenvolvimento do próprio capitalismo. tanto como um obs-
táculo à exploração desenfreada quanto como um baluarte para
a seção gradualmente empobrecida da bourgeoisie, que forma-
ria aliança com a reação em sua desesperada ansiedade para
evitar o destino marxista de cair no proletariado. Em outras
palavras, ele não prevê o fascismo nem o estado de bem-estar
social.
Sua classificação das camadas sociais conforme a obsoleta
aristocracia militar-feudal, a bourgeoisie industrial, a petite bour-
geoisie, o proletariado e aquele casual refugo à margem da
sociedade que ele chamou de Lumpenproletariat - uma classi-
ficação útil e original para a época - , supersimplifica o debate
quando aplicada de maneira muito mecânica no século vin-
te. Faz-se mister um instrumento mais elaborado, pelo menos
para tratar da conduta independente das classes, como a semi-
arruinada petite bourgeoisie, a classe média baixa cada vez

os lucros de forma relativa ou absoluta, mas, a curto prazo, aumenta-os


para o capitalista individual, e nesse caso a competição o impele a
adotá-lo na sua empresa. Além disso, ajuda a eliminar competidores ine-
ficientes; a taxa de lucro continua a cair, mas é dividida entre capita-
listas cada vez menos numerosos - os 'mais capazes', no jargão dessa
guerra selvagem. O leitor poderá concluir por si mesmo se ou até que
ponto isso tem ocorrido.

224
das. A independência das teses históricas, economtcas e po-
líticas pregadas por Marx e Engels ficou patenteada na mo-
numental compilação. Ela transformou-se em objeto central
de ataque e defesa. Todas as formas subseqüentes de socia-
lismo vieram a definir-se à luz das atitudes de Marx e Engels
assumidas no tratado, e foram compreendidas e classificadas
por sua semelhança com eJe. Após breve período de obscuri-
dade, a fama do trabalho começou a crescer e atingiu alturas
consideráveis. O livro adquiriu significado simbólico, para além
de qualquer coisa já escrita desde a idade da fé. 'Iem sido ado-
rado e odiado cegamente por miJhões que dele não leram uma
única linha, ou leram sem entender, às vezes, a prosa obscura
e tortuosa. Em seu nome revoluções foram feitas (e são feitas);
contra-revoluções se concentraram (e se concentram) na supres-
são de suas idéias como a mais poderosa e insidiosa arma
do inimigo. Uma nova ordem social estabelecida professa seus
princípios e neles vê a expressão final e inalterável de sua fé.
O livro formou um exército de intérpretes e casuístas que, em
trabalho incessante de quase um século, sepultaram-no sob uma
montanha de comentários que ultrapassam em influência o pró-
prio texto sagrado.
Na própria vida de Marx, O capital marcou um instante de-
cisivo. O autor pretendia que o livro fosse sua maior contribui-
ção à emancipação da humanidade, e por ele sacrificou quinze
anos de vida e boa parcela da sua ambição pública. O trabalho
para ele canalizado foi de fato prodigioso. Por causa dele, Marx
resistiu à pobreza, à doença e às perseguições tanto públicas
como pessoais, sofrendo-as não com alegria, é verdade, mas
com firme estoicismo, cuja força e aspereza comoveram e assus-
taram os que entraram em contato com a obra.
Ele dedicou-a à memória de Wilhelm Wolff, um comunista
silesiano, fiel seguidor desde 1848 e que falecera há pou·
co em Manchester. O volume publicado foi a primeira
parte da obra projetada; o restante ainda era uma massa
confusa de anotações, referências e esboços. Marx enviou
cópias a seus velhos companheiros, a Freiligrath, que lhe deu
os parabéns por haver produzido uma obra útil de referência,
e a Feuerbach, que disse haver encontrado nela "fatos ricos

227
não desapareceria de imediato: deveria ocorrer um per1odo Je
transformação revolucionária do capitalismo para o comunismo.
Nesse período de transição, a autoridade do Estado deve ser
preservada, na verdade fortalecida, mas agora ele será contro-
lado inteiramente peJos trabalhadores, já que estes se tornaram
a classe dominante. Com efeito (para usar a fónriula de um dos
seus escritos posteriores), nessa primeira fase da revolução o
Estado será "a ditadura revolucionária do proletariado". Nesse
período, antes que a escassez econômica possa ocorrer. o ganho
dos trabalhadores deve ser proporciona) ao trabalho que forne-
cerem. Mas, assim que o "desenvolvimento em todos os sentidos
do indivíduo" houver criado uma sociedade em que «fluxos de
riqueza cooperativa possam jorrar de forma mais copiosa". a
meta comunista será alcançada. Então, e não antes, a comuni-
dade inteira, pintada em cores ao mesmo tempo muito simples
e fantásticas pelos utópicos do passado. será finalmente com-
preendida - uma comunidade onde não haverá senhor nem
escravo, rico nem pobre, onde os bens do mundo, produ-
zidos de acordo com a demanda social (não obstruída pelo
capricho individual), serão distribuídos não igualmente - idéia
pouco convincente tomada de empréstimo pelos trabalhado-
res aos ideólogos sociais com seu conceito utilitarista de justiça
como igual_dade ari tmética - , mas racionalmente, isto é.
desigualmente. Porque, sendo as capacidades e necessidades
do homem desiguais, seu ganho, para sermos justos, deve .
segundo a fórmula posterior da Crítica do programa de Gotha de
1875, advir "de cada um conforme sua capacidade, para cada
um de acordo com a sua necessidade". O s homens, emancipados
afinal da tirania tanto da natureza quanto de suas instituições
mal-adaptadas, malcontroladas e, por conseguinte, opressivas,
estarão capacitados a realizar plenamente suas potencialidades.
A história deixará de ser a sucessão de uma classe exploradora
após outra. A subordinação à divisão do trabalho cessará. A
verdadeira liberdade, tão obscuramente pressagiada por Hegel ,
será obtida. A história humana em seu sentido legítimo somen-
te então se iniciará.
A publicação de O capital forneceu por fim um definitivo
funda mento intelectual para o socialismo internacional. em lugar
de uma dispersa massa de idéias conflitantes. vagamente defini-

226
.t\r1acaulay, Gladstone e um ou dois famosos economistas acadê-
micos da época foram afetados pela onda que inaugurou
nova época na técnica de vituperação pública e criou a escola
de estilo socialista polêmico que iria alterar o caráter geral da
controvérsia política. São rams os louvores neste livro. ·O
tributo mais caloroso vai para os inspetores ingleses de fábricas,
cujos relatórios corajosos e sem preconceitos, tanto das péssi-
mas condições de trabalho que eles testemunharam como dos
meios adotados pelos proprietários de fábrica para contornar a
lei, são considerados fenômenos honrosos na histõtia da socie-
dade burguesa. A técnica de pesquisa social foi revolucionada
pelo exemplo praticado por Marx ao utilizar os livros azuis e os
relatórios oficiais. Ele declarou ter baseado a maior parte de
sua detalhada acusação contra a industrialização moderna em
tais documentos e fontes.
Após a morte de Marx, Engels, que editou o segundo e o
terceiro tomos de O capital, encontrou o manuscrito em esta-
do mais caótico do que esperara. O ano em que o pri-
meiro tomo apareceu assinala não um ponto decisivo, mas
uma ruptura na vida de Marx. Suas idéias durante os res-
tantes dezesseis anos de vida mudaram pouco; ele acres-
centou, revisou. corrigiu, escreveu panfletos e cartas, mas nada
publicou que fosse novo; reiterou incansavelmente a velha po-
sição, mas em tom mais brando; uma ligeira nota quase de
queixosa autopiedade, totalmente ausente antes, é agora discer-
nível. Sua crença na proximidade, e até mesmo na suprema
inevitabilidade de uma revolução mundial, diminuiu~ Suas pro-
fecias haviam falhado: ele tinha previsto confiantemente uma
grande revolta em 1842, durante um levante de tecelões na
Silésia, chegando a inspirar Heine a escrever, a esse respeito, o
famoso poema que publicou -em seu jornal de Paris; novamente
em 1851, 1857 e 1872 Marx esperou focos revolucionários
que não se materializaram. Suas profecias acerca da queda das
margens de lucro, concentração de propriedade da indústria e
da terra em mãos privadas, declínio no padrão de vida do prole-
tariado, a íntima conexão de capitalismo e naciona.lismo, não
ocorreram, de um modo geral, pelo menos na forma em que ele
os antecipou, nesse século. Por outro lado, Marx viu muita coisa ·
~ inegáveis, dos mais interessantes, mas ao mesmo tempo da
mais horrível natureza ". Ruge acolheu-a com um aplauso mais
judicioso. Afinal, o livro obteve um registro crítico na Ingla-
terra, no Saturday Review, que singularmente observou: "A
apresentação do tema reveste as mais áridas questões econômicas
de um certo encanto peculiar"_ O capital foi comentado mais
amplamen te na Alemanha, onde os amigos de Marx, Liebknecht
e Kugelmann, um físico de Hanover que desenvolvera imensa
admiração por ele, fizeram do livro uma propaganda vigorosa.
Em particular, Joseph Dietzgen, sapateiro alemão, autodidata,
que veio a ser um dos mais ardentes discípulos de Marx, muito
fez para popularizar a obra entre as massas trabalhadoras
alemãs.
O apetite científico de Marx não diminuíra desde os
seus dias de Paris. 8 Comparecia a conferências sobre ciência
popular, em especial as de seu amigo Ray Lankester. Acredi-
tava no valor da erudição exata e insistiu em conduzir relu-
tantes adeptos à sala de leitura do Museu Britânico. Liebknecht,
em suas memórias, descreve como, dia após dia, a "escumalha
do comunismo internacional" podia ser vista humildemente
instalada na escrivaninha na sala de leitura, sob o olhar do
próprio mestre. Na realidade, nenhum movimento social ou
poJítico concentrou tanta ênfase na pesquisa e na erudição. A
dimensão das leituras de Marx está indicada até certo grau
pelas referências em sua obra, que explora muitíssimo os atalhos
obscuros da literatura antiga, medieval e moderna. O texto
está literalmente salpicado de notas de rodapé, longas, mor-
dazes e destruidoras, que fazem lembrar o clássico emprego
dessa arma por Gibbon. Os adversários que ela visa são, na
sua maior parte, nomes esquecidos hoje em dia, mas, ocasio-
nalmente. os dardos são lançados contra figuras bem conhecidas;

. 3. Ele se impressionou muito com as descobertas de Darwin e


enviou-lhe uma cópia do primeiro tomo de O capital. Mas a versão
(que virtualmente todos os biógrafos do século vinte, incluindo este, têm
reproduzido) de que ele ded i e<~ria o segundo tomo a Darwin parece
apócrifa e resulta . de um erro de identificação, por longo tempo sem
exame, de uma carta provavelmente enviada por Darwin ao cunhado
de Marx, Edward Aveling.

228
errado na guerra austro-prussiana. A guerra franco-prussiana
de 1870 chegou-lhes como algo inteiramente inesperado. Durante
anos, eles tinham subestimado a força prussiana; a verdadeira
aliança do cinismo e da força bruta estava, a seu ver, repre-
sentada pelo imperador dos franceses. Bismarck era um aristo-
crata prussiano capacitado, que servia ao seu rei e à sua classe;
mesmo a vitória de Bismarck sobre a Áustria não os convenceu
de suas qualidades ou verdadeiros objetivos. Marx pode ter se
deixado enganar, até certo ponto, pelo fingimento de que a guer-
ra, no que tocava a Bismarck, era puramente defensiva, pois assi-
nou o protesto que o Conselho da Internacional publicou ime-
diatamente só depois que ele fora alterado para deixar isso
claro - um passo que muitos socialistas de países latinos
jamais perdoaram, insistindo em dizer. anos depois, que ele
fora inspirado por puro patriotismo alemão, do qual tanto Marx
quanto Engels sempre se orgulharam de modo ostensivo. A
Internacional, em geral, e em particular seus filiados alemães,
comportou-se impecavelmente durante a breve campanha. O
conselho, em proclamação baixada na metade da guerra, adver-
tiu os trabalhadores alemães contra a possibilidade de apoiarem
a política de anexação que Bismarck poderia adotar; o do-
cumento explicou em termos claros que os interesses do prole-
tariado francês e alemão eram idênticos, sendo ameaçados
unicamente pelo inimigo comum - a burguesia capitalista de
ambos os países, que fizeram a guerra para atender a seus pro-
pósitos, sacrificando por amor à sua causa as vidas e a substân-
cia da classe operária, tanto na Alemanha como na França.
No devido tempo, o documento exortava os trabalhadores fran-
ceses a apoiar a formação de uma república em base amplamente
democrática. Durante a grande onda de chauvinismo bélico
que varreu a Alemanha e engolfou até mesmo a ala esquerda
dos lassallianos, somente os marxistas, Liebknecht e Bebel, man-
tiveram -a razão. Para indignação do país inteiro, eles se absti-
veram de votar a favor da guerra e falaram vigorosamente no
Reichstag contra ela e em particular contra a anexação da
Alsácia-Lorena. Motivo pelo qual foram acusados de traição e
presos. Numa famosa carta a Engels, Marx observou que a derrota
da Alemanha, que teria fortalecido o bonapartismo e mutilado

231
que outros não viram: a concentração e centralização do contra~
le dos recursos econômicos; a crescente incompatibilidade entre
os métodos de produção do big business e métodos mais antigos
de distribuição, e o impacto social e político desse fato; o efeito
da industrialização - e da ciência - sobre os métodos de
guerra; e a rápida e radical transformação dos estilos de vida
que tudo isso causaria. Além do mais, continuou a ser um dos
mais importantes observadores políticos: após a anexação da
da Alsácia-Lorena pela Prússia, Marx disse que isso atiraria a
França nos braços da Rússia e, por conseguinte, provocaria a
primeira grande guerra mundial. Em seus derradeiros anos
admitiu que a revolução poderia demorar mais do que ele e
Engels tinham calculado, e em alguns países, sobretudo na
Inglaterra, onde em sua época não havia exército real nem
burocracia verdadeira, ela não era inevitável, apenas 'possí-
vel'; poderia, na realidade, não ocorrer de forma alguma, pois
o comunismo talvez fosse atingido por meios evolucionários,
"embora u, e1e acrescentou enigmaticamente, "a história indique
o contrário". Marx não tinha cinqüenta anos quando começou
a entrar na velhice consciente. O período heróico acabara.
O capital criou nova fama para seu autor. Os livros an-
teriores de Marx haviam passado despercebidos, mesmo nos
países de língua alemã, mas a nova obra foi resenhada e de-
batida em países distantes, como a Rússia e a Espanha.
Nos dez anos seguin.tes estava traduzida em francês, inglês, russo
e italiano; o próprio Bakunin se oferecera corajosamente para
traduzi-la em russo. Esse projeto, no entanto, se é que chegou
a começar, fracassou em circunstâncias de sórdido escândalo
pessoal e financeiro, responsável, em parte, pela morte da Inter-
nacional cinco anos mais tarde. A súbita ascensão à fama dessa
organização resultara de um acontecimento maior que, dois anos
antes, havia alterado a história da Europa e mudado por com-
pleto a direção em que o movímento da classe operária se
desenvo1via até então.
Se Marx e Engels às vezes previram acontecimentos que
não se realizaram, mais de uma vez falharam também em ante-
cipar acon_tecimentos que vieram a ocorrer. Por exemplo, Marx
negou que a guerra da Criméia irrompesse e apoiou o lado

230
numa assembléia legíslativa européia: a Internacional torna-
ra-se uma força a .ser oficialmente reconhecida; o sonho de um
partido proletário unido.• com finalidades idênticas em todos os
países, começava a se concretizar. Paris foi dentro em pouco
submetida à fome, para render-se, e capitulou afinal; elegeu-se
uma assembléia nacional; fizeram Thiers presidente da nova
república e nomeou-se um governo provisório de essência con-
servadora. Em março, o governo fez uma tentativa para desar-
mar a Guarda Nacional de Paris, constituída de cidadãos volun-
tários que davam sinais de simpatias radicais ..~~ Mas ela se
recusou a depor as armas, declarou-se autônoma, demitiu os
representantes do governo provisório e elegeu um comitê revo-
lucionário do povo como legítimo governo da França. Tropas
regulares foram levadas a Versalhes e dali investiram contra a
cidade rebelde. Tratava-se da primeira campanha em que os
dois lados reconheciam de imediato uma franca guerra de
classes.
A Comuna, conforme o novo governo se definiu, não fora
criada nem inspirada pela Internacional. Tampouco era, em
sentido rigoroso, de essência doutrinária socialista, a menos que
uma ditadura de qualquer comitê popularmente eleito configuras-
se por si só um fenômeno socialista. A Comuna era constituída
de um grupo fortemente heterogêneo de indivíduos, na sua maior
parte adeptos de Blanqui, Proudhon e Bakunin, com um acrés-
cimo de retóricos neojacobinos, como Félix Pyat, em cujo enten-
der lutava-se apenas pela França, pelo povo, pela revolução, e
declarou guerra a todos os tiranos, sacerdotes e prussianos.
Operários, soldados, escritores, pintores como Courbet, eruditos
como o geógrafo ~lisée Réclus e o crítico Valles, políticos
ambivalentes como Rochefort, exilados estrangeiros de brandas
opiniões liberais 1 naturais da Boêmia e aventureiros de toda
casta foram arrastados na onda revolucionária comum. Ela
irrompeu num instante de histeria nacional, após a miséria moral
e material de um cerco e uma capitulação, num momento em
que a revolução nacional, que prometia banir finalmente os
últimos resíduos do bonapartismo e da reação orleanista, aban-
donada pelas classes médias, denunciada por Thiers e seus
ministros, incerta quanto ao apoio dos camponeses. pa•·ecia

233
os trabalhadores alemães por muitos anos, teria sido ainda mais
desastrosa que a vitória alemã. Ao transferir o centro de
gravidade de Paris para Berlim, Bismarck trabalhava em favor
deles, de maneira não intencional; pois os trabalhadores alemães,
sendo melhor organizados e disciplinados que os franceses, cons-
tituíam conseqüentemente uma cidadela mais forte da social-
democracia do que os franceses teriam sido. A derrota do bona-
partismo. ao contrário, removeria um pesadelo da Europa.
No outono, o exército francês foi derrotado em Sedan, o
imperador aprisionado e Paris cercada. O t·ei da Prússia, que
havia jurado solenemente que a guerra era defensiva e dirigida
não. contra a França mas contra Napoleão, mudou de tática e,
armado de um entusiasmado plebiscito do seu povo, exigiu
a cessão da Alsácia-Lorena e o pagamento de uma indenização
de cinco bilhões de francos. Os ventos da opinião inglesa, até
então antibonapartistas e pró-germânicos, sob a influência dos
contínuos relatos de atrocidades prussianas na França, mudaram
de rumo por completo. A Internacional lançou um segundo ma-
nifesto em que protestava com violência contra a anexação,
denunciando as ambições dinásticas do rei da Prússia e convo-
cando os operários franceses a se unirem com todos os defen-
sores da democracia contra o inimigo comum prussiano. "Se
as fronteiras passassem a ser fixadas por interesses militares" ,
escreveu Marx em t 870, "haveria uma sucessão infindável de
pleitos, porque toda linha militar é necessariamente imperfeita
e tende a ser melhorada pela anexação de mais algum território
à margem. As fronteiras jamais poderiam ser determinadas de
forma justa ou definitiva, porque o conquistador estaria sempre
a melhoráplas, o mesmo fazendo os conquistados, e conseqüen-
temente preservando-se as sementes de novas guerras. A história
se pronunciaria não pela área de quilômetros quadrados conp
quistada da França. mas pela intensidade do crime de reviver,
na segunda metade do século dezenove, a política de conquista".
Dessa feita, os créditos de guerra foram vetados não apenas por
Liebknecht e Bebel, mas também por todos os lassallianos,
envergonhados por causa do seu recente patriotismo. Jubiloso,
Marx: escreveu a Engels que, pela primeira vez, os princ1p10s
e as diretrizes da Internacional obtinham expressão pública

2.32
jacobinos que formaram a maioria da Comuna, ela se opôs ao
frouxo programa federativo communard, em particular a atos
de terrorismo. Tinha, ademais, opinado formalmente contra a
revolta, ao declarar que "qualquer tentativa de desestabilização
do novo governo na presente crise. . . seria uma toHce".
Os membros ingleses estavam sobretudo ansiosos em não
se comprometer mediante ligação franca com um grupo que,
segundo a maioria de seus conterrâneos, era pouco mais
que uma quadrilha de assassinos comuns. Mªfx resolveu
essas dúvidas por um ato bem característico. Em nome da
Internacional, publicou um comunicado proclamando que o
momento para análise e crítica havia passado. Depois de ofe-
recer rápido e vívido relato dos acontecimentos que haviam
culminado na criação da Comuna, de sua ascensão e queda,
ele aclamou-a como a primeira e desafiadora manifestação
franca, na história do poder e idealismo da classe operária -
a primeira batalha atroada travada contra os opressores perante
os olhos do mundo, num ato que forçou todos os seus falsos
amigos - a burguesia radical, os democratas e os humanita·
ristas - a mostrar-se tal como eram, como inimigos das supre-
mas finalidades pelas quais a classe operária estava preparada
para viver e morrer. Foi mais longe: reconheceu a substituição
do Estado bourgeois pela Comuna como aquela forma transi-
tória que, somente ela, garantiria aos trabalhadores a emanci-
pação definitiva. O Estado é mostrado como a encarnação da
"civilização e justiça da ordem bourgeoise". legalizando o parla-
mentarismo que, uma vez desafiado por suas vítimas, ··se impõe
com indisfarçável selvageria e vingança ilegal". Portanto, o
Estado deve ser destruído pela raiz e pelo caule. Nesse sentido,
e uma vez mais, como em 1850 e 1852, Marx renegou a dou·
trina do Manifesto comunista, que havia afirmado, em relação
aos utópicos franceses e primeiros anarquistas, ser finalidade
imediata da revolução não a de destruir, mas a de se apoderar
do Estado ("o proletariado. . . centralizará todos os instru-
mentos de produção nas mãos do Estado") e utilizá-lo então
para liquidar o inimigo.
Embora aprovasse muitas medidas da Comuna, culpou-a
por não ser bastante dura e radical. Tampouco acreditou no

235
ameaçada pelo retorno de tudo o que ela mais temia e detes-
tava - os generais, os financistas, os padres . .Após um grande
esforço, o povo livrara-se do pesadelo, primeiro do império.
depois do cerco; mal tinham aberto os olhos e. os espectros pare-
ciam de novo avançar contra. eles. Aterrorizados, revoltaram-se.
Esse sentimento comum de horror diante do ressurgimento do
pilssado era quase o único laço que unia os communards. Suas
idéias sobre organização política (além do ódio comum ao
governo centralizado, tão prezado por Marx) eram um tanto
vagas: eles anunciavam que o Estado, em sua forma antiga,
estava abolido, e incentivaram o povo a armar-se e assumir o
governo.
Dentro em pouco, na medida em que os suprimentos torna-
ram-se escassos e a situação dos sitiados ficava mais desespe-
radora, o terror aumentava: proscrições, homens e mulheres
condenados e executados, muitos deles certamente inocentes e
poucos merecendo a morte. Entre os executados, figurava o
arcebispo de Paris, mantido como refém contra o exército
em Versalhes. O resto da Europa observava os monstruosos
acontecimentos com indignação e desgosto cada vez maio-
res. Os communards pareciam, mesmo para pessoas esclare-
cidas, para velhos e experimentados amigos do povo, como
Louis Blanc e Mazzini, um bando de lunáticos criminosos,
surdos aos apelos de humanidade, incendiários sociais empe-
nhados em destruir a religião e a moralidade. homens privados
de razão por erros verdadeiros e imaginários, escassamente res-
ponsáveis por suas monstruosidades. Praticamente toda a impren-
sa européia, a reacionária e a liberal, uniu-se para transmitir a
.mesma impressão. Aqui e ali, um jornal radical condenava a Co-
muna menos enfaticamente que os outros, invocando com timidez
circunstâncias atenuantes. As atrocidades da Comuna não fica-
ram sem vingança. A represália que o exército vitorioso pra-
ticou assumiu a forma de execuções em massa; o terror branco.
como acontece comumente nesses casos, excedeu de longe, em
atos de crueldade bestial. os piores excessos do regime a cujas
desgraças ele quisera pôr termo.
A Internacional vacilou. Composta em grande parte, como
estava, de opositores aos proudhonianos. blanquistas e neo-

234
realização com que encarnar tal idéia. Mais de trinta anos depois
Lenin defendeu o · levante de Moscou. durante a fracassada re-
volução russa de 1905, contra as críticas de PJekhanov,
citando a atitude de Marx em relação à Comuna. Ele assi-
nalou que o valor emocional e simbólico da memória de
uma grande explosão heróica, embora mal-idealizada e com-
prometendo seus resultados imediatos. era um recurso infi-
nitamente maior e de maior permanência para um movimento
revolucionário que a ·compreensão ·de sua inutilidaqe, num mo·
- -<,.

mento em que o que mais importa não é escrever certo a histó-


ria, ou mesmo aprender-lhe as lições, mas fazê-la.
A publicação do comunicado embaraçou e chocou muitos
membros da Internacional e apressou-lhe a dissolução defini-
tiva. Marx tentou prevenir censuras pela revelação do seu nome
como autor único da obra 'O Doutor do Terror Vermelho',
como ele era agora popularmente conhecido, tornou-se da noite
para o dia objeto de ódio público: cartas anônimas começaram
a chegar, sua esposa foi ameaçada várias vezes. Contente, ele
escreveu a Engels: ''Está me fazendo bem, depois de vinte
longos e aborrecidos anos de isolamento idílico, qual sapo no
charco. O jornal do governo - o Observer - chega a me
ameaçar com processo. Que eles tentem. Eu estalo os dedos
para a canaille!" O rebuliço cessou, mas o dano causado à
Internacional foi permanente: ela ficou indissoluvelmente liga·
da, na cabeça da polícia e do público em gera], às atrocidades
da Comuna. Um golpe foi desfechado na aliança dos líderes sin~
clicais ingleses com a Internacional, aliança do ponto de vista
deles inteiramente oportunista, baseada na utilidade do órgão
como defensor de interesses sindicais específicos. Nessa época os
sindicatos eram fortemente cortejados pelo Partido Liberal com
promessas de apoio àquelas mesmas questões. A perspectiva de
uma conquista pacífica e respeitável de poder tornou-os, menos
que nunca, ansiosos por se associarem a uma conspiração noto-
riamente revolucionária; o único objetivo dos líderes sindicais
era levantar o padrão de vida e a condição social e política dos
operários qualificados que representavam. Eles não viam a si
mesmos como partido político e, se subscreveram o programa
da Internacional, isso se deveu, em parte, a uma certa elasti~

217
seu objetivo de criar uma igualdade social e econômica ime-
diata. "O direito jamais prevalecerá", escreveu alguns anos
depois, "além do que a estrutura da sociedade e o desenvolvi-
mento cultural vierem a determinar". E estes. por sua vez.
não mudam da noite para o dia.
O panfleto de Marx, mais tarde intitulado A guerra
civil na França_. . não fora concebido originariamente como es-
tudo histórico: era um movimento tático, típico em sua audá-
cia e intransigência. Marx foi culpado às vezes por seus próprios
seguidores de permitir que a Internacional se associasse, na
visão popular, a um bando de transgressores da lei e assassinos
- · um vínculo que lhe valeu fama desnecessariamente sinis-
tra. Não era esse o tipo de consideração que o teria influencia-
do no mais leve grau. Marx acreditou a vida inteira, com con-
vicção e sem compromisso, numa revolução violenta conduzida
pela classe operária . A Comuna foi o primeiro levante espon-
tâneo dos trabalhadores na sua condição de trabalhadores: a
émeu te de junho de 1848 foi, em sua opinião, um ataque neles
e não por eles desfechado. A Comuna não foi inspirada dire-
tamente por Marx. Ele a considerou, na reaJidade. uma asneira
política: é que seus adversários, os blanquistas e proudhonianos,
nela predominaram até o fim. E, no entanto, sua importância,
a seu ver, foi imensa. Antes dela houvera, com efeito, muitos
fJuxos dispersos de pensamento e ação socialista, mas aquele
levante, com todas as repercussões mundiais, o grande efeito
que com certeza tivera sobre os trabalhadores de outras terras,
constituía o primeiro acontecimento de uma nova era. Os
homens que haviam morrido nela e por ela eram os primeiros
mártires do socialismo internacional; o sangue deles seria a
semente da nova fé proletária. Por mais numerosos que fossem,
os defeitos e as deficiências dos communards nada signi-
ficavam em face da grandeza do papel histórico que aqueles
homens tinham desempenhado, da posição que estavam desti-
nados a ocupar na tradição da revolução proletária.
Apressando-se a prestar-lhes uma homenagem sincera, Marx
obteve o que pretendia: ajudou a criar uma legenda heróica
do socialismo. Engels, quando solicitado a definir a 'ditadura
do proletariado', apontou a Comuna como a mais próxima

236
seu paradoxo favorito: "A paixão pela destruição também é
uma paixão criadora".
Marx não compreendeu nem desejou compreender a base
emocional dos atos e declarações de Bakunin: a influência deste
'Maomé sem Corão' era uma ameaça ao movimento e devia,
portanto, ser eliminada.
"A Internacional foi fundada", ele escreveu em 1871, " a
fim de substituir as seitas socialistas e semi-socialistas numa
organização legítima da classe operária para sua luta . . . Secta-
rismo socialista e um verdadeiro movimento da classe operária
estão em relação inversa um do outro. As seitas têm direito de
existir somente enquanto a classe operária não estiver madura
para ter movimento próprio. Assim que esse momento chega, o
sectarismo se torna readonário . . . A história da I ntemacional
é uma batalha incessante do Conselho Geral contra experi-
mentos e seitas diletantistas. . . No final de 1868 a Interna-
cional recebeu a adesão de Bakunin. cujo propósito era criar
uma Internacional dentro da lnternacional e colocar-se como
seu líder. Pois M. Bakunin e sua doutrina (uma absurda colcha
de retalhos com farrapos e pedaços de opiniões tomados de
Proudhon. Saint-Simon. etc.) constituíam e ainda constituem
algo de importância secundária, servindo-lhe unicamente como
forma de adquirir influência e poder pessoal. Mas se o Bakunin
teórico nada é, o Bakunin intrigante chegou ao ápice de
sua profissão. . . Quanto à não-participação política dele: todo
movimento em que a classe operária como tal se opõe às classes
governantes e exerce pressão a partir de fora constitui eo ipso
um movimento político . . . mas quando a organização operária
não está tão desenvolvida que possa arriscar um engajamento
decisivo com o poder político dominante. então ela deve ser
preparada para isso pela agitação incessante contra os crimes
e loucuras da classe governante. De outra forma, ela se torna
um brinquedo nas mãos desta, conforme ficou demonstrado pela
revolução de setembro na França e, até certo ponto, pelos re-
centes êxitos na Inglatera de Gladstone & Cia ".
Bakunin , nesse ínterim, havia entrado na última e mais
estranha fase da sua bizarra existência. Deixara-se encantar por
um jovem terrorista russo, Nechaev,, cuja audácia e liberdade

239
ddade dos estatutos, que habilidosamente evitavam comprome-
ter seus membros em atividades abertamente revolucionárias,
e acima de tudo à nebulosidade mental dos sindicalistas ingleses
acerca de problemas políticos. Esse fato foi bem recebido pelo
governo inglês, que, em resposta a uma circular do governo
espanhol. exigindo a supressão da Internacional, declarou
através do ministro do Exterior, conde Granville, que na Ingla-
terra não havia perigo de insurreição armada: os filiados ingle-
ses eram homens pacíficos, ocupados unicamente em negocia-
ções sindicais, e não davam ao governo motivo para apreensões.
O próprio Marx estava amargamente consciente dessa verdade.
Até Harney e Jones eram, a seu ver, preferíveis aos homens
com quem agora tinha de lidar, duros representantes sindicais
como Odger ou Cremer ou Applegarth, que desconfiavam de
estrangeiros, pouco se importavam com acontecimentos fora do
seu país e demonstravam limitado interesse pelo debate de
idéias.
Como a Internacional não tivesse se reunido em 1870 e
1871, ficou acertada uma assembléia em Londres em 1872. A
mais importante proposta nascida desse congresso, segundo a
qual a classe operária dali por diante cessaria de confiar na luta
política com assistência de partidos burgueses, e formaria um
partido próprio, foi, após tormentoso debate, aprovada com
os votos dos delegados ingleses. O novo partido político não
se estabeleceu durante a vida de Marx} mas, pelo menos em
idéia, o Partido Trabalhista nasceu nessa assembléia e pode
ser considerado como a maior e única contribuição de Marx
à história interna do seu país de adoção. No mesmo congresso.
os delegados ingleses propuseram, e saíram vitoriosos, o direito
de formar uma organização local em separado, em vez de., como
antes, serem representados pelo Conselho Geral. Isso desgostou
e assustou Marx. Era um gesto de desconfiança. quase de rebe-
lião. Logo ele suspeitou de maquinações de Bakunin, a quem
os recentes acontecimentos na França tinham deixado em estado
de orgulho e de êxtase, pois achava que eles resultavam na tota·
lidade de sua influência pessoal. Grande parte de Paris fora
destruída pelo fogo durante a Comuna. Esse fogo parecia-lhe
o símbolo de sua própria vida e a magnífica comprovação de

238
verífil..:<.ir que a Internacional não cairia nas mão~ de Bakunin.
deixá-la morrer em paz.
Seus críticos afirmam que ele julgava os méritos das assem-
bléias socialistas unicamente por sua capacidade de controlá-las:
uma equação, certamente, feita tanto por ele como por Engels.
e de forma bastante automática; nenhum deles deu sinais
de compreender a espantada indignação que essa atitude sus-
citou entre numerosos segmentos de adeptos. Marx compareceu
em pessoa ao Congresso de Haia e seu prestígio.~ra tal que,
apesar de uma oposição violenta, o congresso, por pequena
minoria, votou afinal sua extinção virtual. Suas reuniões poste-
riores foram meros simulacros. Finalmente, ela veio a morrer
na Filadélfia, em 1876. A Internacional foi reconstituída treze
anos depois, mas a essa altura - um período de crescente ativi-
dade socialista em todos os países - tinha caráter muito dife-
rente. A despeito de seus objetivos revolucionários explícitos,
ela era mais parlamentar, respeitável e otimista, essencialmente
conciliatória, e também mais comprometida com a crença na
inevitabilidade da evolução gradual da sociedade capitalista
para um socialismo moderado, mediante pressão persistente,
mas pacífica, de baixo para cima.

241
de escrúpulos ele considero u irresistíveis. Nechaev. que julgavH
a chantagem e a intimidação métodos revolucionários essenciais
justificados pelos fins, tinha escrito uma carta anônima ao agen-
te do fu turo editor da tradução russa d e O capital por Bakunin,
ameaçando-o, em . termos gerais, porém violentos, se ele conti-
nuasse a impor seu miserável trabalho mercenário a homens de
gênio, ou pressionasse Bakunin a devolver o adiantamento que
lhe fora pago. O assustado e enfurecido agente literário enviou
a carta a Marx. É duvidoso se a prova das intrigas conduzida
pela mganização de Bakunin, a Aliança Democrática, seria sufi-
ciente para assegurar-lhe a expulsão, já que ele contava com
rnui~os defensores pessoais, mas o relatório da comissão encar-
regada de investigar o escândalo, mais a dramática exibição da
carta de Nechaev. foram a gota d'água. Após longas e tormen-
tosas sessões em que os proudhonianos foram finalmente persua-
didos de que partido algum preservaria a unidade com Bakunin
nas suas fileiras, ele e seus amigos mais próximos foram expul-
sos por uma pequena maioria.
A proposta seguinte de Marx também caiu como uma
bomba sobre os inexperientes membros do congresso: a trans-
ferência da sede do conselho para os Estados Unidos. Todo
mundo concluiu que isso era um indício da dissolução da Inter-
nacional. Os Estados Unidos não apenas estavam distanciados
dos problemas europeus, como também eram insignificantes em
relação à pauta da Internacional. Os delegados franceses decla-
raram que surtiria o mesmo efeito mudarem-se para a Lua. Marx
não deu razão explícita à sua proposta, formalmente encami-
nhada por Engels, mas sua intenção deve ter ficado bem clara
a todos os presentes. Ele não podia agir sem a obediência leal
e inquestionável de, pelo menos, algumas seções da associa-
ção. Ora, a Inglaterra se retirara; ele pensara em transferir
o conselho para a Bélgica, mas também ali a reação antimarxis-
ta se tornava formidável; a França, a Suíça e a Holanda não me-
reciam confiança; na Alemanha, o governo ·suprimiria a Interna-
cional; a Itália e a Espanha eram fortalezas bakuninistas. Antes
de enfrentar uma luta amarga que findaria, na melhor das hipó-
teses, com uma vitória de Pirro e destruiria as esperanças de
unidade proletária por muitos anos, Marx decidiu, depois de

240
11
~

Ultimos anos

"Observei [a Marx] que à medida que envelhecia eu ficava


mais tolerante. 'É mesmo', ele retrucou, 'é mesmo?'"
H. M. Hyndman, Record of an adventurous li/e

O duelo com Bakunin é o último episódio público na vida


de Marx. A revolução parecia apagada por toda parte, embora
suas brasas ainda ardessem entre cinzas, na Rússia e na Espanha.
A reação triunfara mais uma vez, de forma mais suave, porém.
que nos dias da juventude dele, preparada para fazer concessões
bem ç:lefinidas ao adversário, mas, por esse mesmo motivo,
parecendo ter maior estabilidade. A conquista pacífica do con-
trole político e econômico parecia aos trabalhadores 'a melhor
esperança de emancipação·'. O prestígio dos adeptos de Lassalle
na Alemanha aumentou com firmeza, e Liebknecht, que repre-
sentava a oposição marxista, com o fim da Internacional incli-
nou-se a fazer acordo com eles, a fim de formar um só par-
tido unido. Ele estava persuadido de que, situado dentro da
Alemanha, tinha melhor percepção das exigências táticas que
Marx e Engels, que continuavam a viver na Inglaterra e não da-
riam ouvidos a quaisquer sugestões de acordo. Os dois partidos
promoveram afinal uma conferência em Gotha. 1875, e forma-

241
.
se lornava cada vez mais popular entre escritores científicos e
jornalistas, ao sustentar que todos os fenômenos naturais pode-
riam ser interpretados segundo o movimento da matéria no espa~
ço; e avança contra ele o princípio da ação universal do
princípio da dialética muito além das categorias da história
humana, nos reinos da biologia, física e matemática. Engels era
homem versátil e muito instruído, e adquirira conhecimento
rudimentar desses assuntos, mas suas discussões acerca deles
não são esclarecedoras. Em particular, tentativas muito ambi~
ciosas, como a descoberta da ação da tríade da dialética bege~
liana no campo da matemática, pela qual o produto de duas
quantidades negativas é positivo, resultou em fonte de emba-
raço para marxistas posteriores, sobrecarregados com a tarefa
impossível de defender uma opinião estranha não encaixada no
pensamento de Marx, pelo menos no que este havia publicado.
A biologia e a matemática marxistas da nossa época são assun-
tos que, como a física cartesiana, formam um entrave peculiar
e isolado no desenvolvimento de um grande movimento inte-
lectual, mais de interesse arqueológico que científico. E mais
importante ainda, a versão de Engels da concepção materialista
da história, embora desenvolva com fidelidade o ataque de Marx
à historiografia liberal ou idealista, é mais mecânica e crua-
mente determinista que a maior parte dos trabalhos de Marx
a respeito, sobretudo em seus primeiros anos. Nisso, Engels,
talvez porque escrevesse com grande clareza, foi seguido pela
surpreendente maioria de escritores marxistas, com Kautsky e
Plekhanov à frente, por mais de meio século. Talvez quando
Marx, perto do fim da vida, declarou (ele pensava nos seus
discípulos franceses) que, não importa o que pudesse ser, ele
não se considerava, acima de tudo, marxista, tivesse em vista
semelhante popularidade. Os capítulos mais legíveis são aqueles
mais tarde reimpressos como panfleto sob o título Socialismo
utópico e científico. Engels apresenta-se então no seu melhor
estilo, e oferece um relato, um tanto darwiniano, do crescimento
do marxismo, de suas origens no idealismo alemão, na teoria
política francesa e na ciência econômica inglesa. É a melhor
das breves apreciações autobiográficas do marxismo por um de
seus criadores, e tem tido influência decisiva tanto no socia-
lismo russo como no socialismo alemão.

245
ram uma aliança, editando um programa comum composto pelos
líderes das duas facções. Naturalmente ele foi submetido à apro-
vação de Marx. Este não deixou dúvidas quanto à impressão que
o documento lhe causara.
Um violento ataque verbal foi despachado instantanea-
mente para Liebknecht, em Berlim, e Engels recebeu instruções
para escrever em tom idêntico. Marx acusou os discípulos de
se desviarem para o uso de uma terminologia ilusória, de signi-
ficado incompleto, herdada de Lassalle e dos 'verdadeiros socia-
listas', intercalada de vagas frases liberais que ele levara a vida
inteira a denunciar e eliminar. O programa parecia-lhe em si
mesmo permeado pelo espírito do compromisso - sobretudo
quando aceitava a permanente compatibilidade com o socialismo
de seu pior inimigo, o Estado- e repousar numa crença quanto
à possibilidade de atingir a justiça social mediante a agitação
pacífica de atividades triviais como remuneração 'justa' do tra-
balho e abolição da lei de herança - paliativos proudhonia-
nos e saint-simonianos para este ou aquele abuso, calculados
mais para fortalecer o Estado e o sistema capitalista que para
apressar-lhe o colapso. Sob a forma de iradas notas à mar-
gem, ele explanou peli última vez sua concepção de um pro-
grama de partido socialista militante. O leal Liebknecht recebeu
isso, como tudo, aliás, que lhe chegava de Londres, com humil-
dade e até mesmo reverência, mas não o aplicou. A aliança
prosseguiu e adquiriu força. Dois anos depois, Liebknecht foi
outra vez criticado duramente por Engels, que exprimiu opinião
pior que a de Marx acerca da sua capacidade política. Nessa
ocasião~ a causa foi o aparecimento, nas páginas do órgão ofi-
cial do Partido Social Democrata Alemão, de artigos escritos por
e em apoio de um certo Eugen Dühring, professor radical de
economia na Universidade de Berlim, homem de opiniões vio-
lentamente anticapitalistas, mas longe de serem socialistas, e que
adquiria crescente influência nos quadros do partido alemão.
Contra ele, Engels publicou um trabalho mais longo e abran-
gente, o último escrito em colaboração com Marx: continha
uma versão autorizada da visão materialista da história, exposta
na prosa brusca, vigorosa e lúcida que ~ngels praticava com
grande facilidade. Anti·Dühring, como veio a ser chamado, é
um ataque ao materialismo não dialético, positivista, e que então

244
estigma pessoal que Marx era .i ncapaz de evitar. apontando-o
nos outros. Sua insistência em negar a importância de movi-
mentos nacionais ou religiosos.. sua ênfase no caráter internacio-
nal do proletariado assumem um tom peculiar de aspereza. A im-
paciência e irritabilidade aumentaram com a velhice e ele tomou
cuidado para evitar a companhia de pessoas que o aborreciam
e a quem desagradava com suas opiniões. Tomou-se mais difícil
no relacionamento pessoal. Rompeu relações com um dos mais
velhos amigos, o poeta Freiligrath, após suas odes patrióticas de
1870 ; deliberadamente insultou seu devotado -~depto Kugel-
mann, físico alemão a quem dirigira algumas de suas cartas
mais importantes, porque este insistira em ir ao seu encon-
tro em Karlsbad, depois de Marx deixar bem claro que não
desejava companhia. Por outro lado, se estrategicamente abor-
dado, sua atitude podia ser cordial e até mesmo graciosa, parti-
cularmente com os jovens revolucionários e jornalistas radicais
que iam a Londres em números crescentes prestar homenagem
aos dois anciãos. Tais peregrinos eram amistosamente recebidos
na casa de Marx, e através deles Marx estabeleceu contato com
adeptos em países com que antes não tivera relações, notada-
mente a Rússia, onde um movimento revolucionário vigoroso e
bem-disciplinado havia afina] fixado suas raízes. As obras de
Marx sobre economia, em __particular O capital, alcançaram
maior êxito na Rússia que ém qualquer outro país; a censura,
por uma dessas ironias, permitiu-Jhe a publicação, sob a justi-
ficativa de que "embora o livro tenha pronunciada tendência
socialista. . . não é escrito em linguagem popular. . . e prova-
velmente não encontrará muitos leitores entre o público". As
resenhas do livro na imprensa russa foram mais favoráveis e
inteligentes que quaisquer outras - fato que surpreendeu Marx
e o deleitou, muito contribuindo para mudar-lhe a atitude de
menosprezo para com os 'caipiras russos' em admiração pela
nova geração de revolucionários austeros e intimoratos que suas
obras, em grande parte. tinham educado .
A história do marxismo na Rússia é diferente da história
do marxismo em qualquer outro pais. Enquanto na Alemanha
e na França, ao contrário de outras formas de positivismo e
materialismo, ele foi essencialmente um movimento proletário,
assinalando uma mudança violenta do sentimento contra a inefi·

24i
O ataque elO Programa de Gotha foí a última intervenção
violenta de Marx em assuntos do partido. Nenhuma crise idên-
tica voltou a ocorrer durante o resto da sua vida. Ele ficou livre
para devotar os anos que lhe restavam a estudos teóricos e inú·
teis tentativas de recobrar a saúde abalada. Mudara-se de
Kentish Town para uma casa, depois para outra, em Havers-
tock Hill, não muito distante de Engels, que vendera sua par-
ticipação nos negócios da família ao sócio e se estabelecera em
Londres, numa casa grande e cômoda de St John's Wood. Um
ou dois anos antes disso ele estabelecera uma soma anual per-
manente para Marx que, embora modesta, permitiu-lhe pros-
seguir seu trabalho em paz. Viam-se quase todos os dias e
juntos mantinham volumosa correspondência com socialistas
de todos os países, muitos dos quais os consideram com
respeito e veneração cada vez maiores. Marx tornara-se, sem
dúvida, a suprema autoridade moral e intelectual do socialismo
internacional; Lassalle e Proudhon tinham morrido nos anos 60,
Bakunin em 1876. A morte desse último grande inimigo não
provocou comentário público de Marx, talvez porque sua dura
nota fúnebre sobre Proudhon, num jornal alemão, houvesse
levantado uma onda de indignação entre os socialistas fran-
ceses, e ele julgasse mais acertada a tática de manter silêncio.
Seus sentimentos em relação aos adversários, vivos e mortos, não
haviam mudado, mas Marx sentia-se fisicamente menos capaz
das campanhas ativas de sua juventude e anos intermediários; o
excesso de trabalho - e a pobreza tinham-lhe fina] mente minado
a resistência; vivia cansado, com freqüência enfermo, e come-
çava a se preocupar com a saúde. Todos os anos, geralmente
acompanhado pela filha mais moça, Eleanor. visitava o litoral
inglês, ou uma estação de águas alemã ou da Boêmia, onde
ocasionalmente encontrava velhos amigos e adeptos, que às vezes
levavam jovens historiadores ou economistas ansiosos por conhe-
cer o famoso revolucionário.
Raramente falava de si mesmo ou de sua vida, e jamais
acerca de sua origem. O fato de ser judeu nem ele nem Engels
mencionaram diretamente; disso existem, quando muito, duas
indicações um tanto evasivas na obra de Marx. Suas referên-
cias a indivíduos judeus, sobretudo nas cartas a Engels, eram
virulentas. de certa forma. Sua origem certamente constituía um

246
rio. Esse efeito geral assemelhava-se ao sentimento induzido em
Marx após a leitura de Feuerbach, quarenta anos atrás: des-
pertou o mesmo senso de finalidade de sua solução e da
possibilídade ilimitada de ação a partir de seus princípios. A
Rússia não passara pelos horrores de 1849, seu desenvolvi-
mento estava muito atrasado em relação ao do Ocidente, seus
problemas nos anos 70 e 80 assemelhavam-se. em muitos aspec-
tos, aos que o resto da Europa enfrentara meio século antes.
Os radicais russos leram o Manifesto comunista e as passa-
gens declamatóriás de O capital com a sensação dê alívio com
que outros tinham lido Rousseau no século anterior. Encon-
traram muita coisa que se aplicava excepcionalmente bem à
sua situação. Em nenhum outro lugar que não a Rússia era
verdade que " na agricultura, como na manufatura, a transfor-
mação capitalista do processo de produção significa o martí-
rio do produtor; o instrumento de trabalho se transforma em
meio de subjugar, explorar e empobrecer o trabalhador; a com-
binação social e os processos de organização do trabalho fun-
cionam como método elaborado para esmagar a vitalidade indi-
vidual do trabalhador, sua liberdade e independência". Somente
na Rússia o método, particularmente depois que a libertação
dos servos ampliou muito o mercado de trabalho, não era ela-
borado, mas simples.
Marx verificou, para sua própria surpresa, que a nação
contra a qual escrevera e falara durante trinta anos lhe dera os
mais destemidos e inteligentes de seus discípulos. Ele recepcio-
nou os russos em sua casa de Londres e correspondeu-se regu-
larmente com Danielson. seu tradutor, e Sieber, um dos mais
capazes economistas 1·ussos acadêmicos. As análises de Marx
visavam sobretudo sociedades industriais. A Rússia era um Esta-
do agrário e qualquer tentativa de aplicação direta, em um con-
junto de circunstâncias, de uma doutrina destinada a outro ten-
. dia a provocar erros de teoria e de prática. Chegavam·lhe car-
tas de Danielson, na Rússia, e dos exilados Lavrov e Vera Zasu·
lích, suplicando-lhe que examinasse os problemas específicos
apresentados pela organização peculiar dos camponeses russos
em comunas primitivas, onde administravam terras em comum,
e sobretudo que Marx opinasse sobre propostas oriundas de
Herzen e Bakunin, e em grande parte aceitas pelos radicais

249
ciência do idealismo liberal da burguesia na primeira metade do
século, e representou uma tendência de realismo deflacionário,
na Rússia, onde o proletariado ainda era fraco e insignificante
segundo os padrões ocidentais, não apenas os apóstolos do
marxismo, mas a maioria de seus convertidos eram intelec-
tuais de classe média para quem ele veio a tornar-se uma espé-
cie de romantismo. de tardia forma de paixão democrática. O
marxista cresceu durante o ápice do movimento populista, que
pregou a necessidade de auto-identificação pessoal com o povo
e suas necessidades materiais, a fim de compreendê-lo, educá-lo
e erguer-lhe o nível intelectual e social, sendo igualmente diri-
gido contra o partido reacionário antiocidental com sua fé mís-
tica na autocracia, na Igreja ortodoxa e no talento eslavo, de
um lado, e no brando liberalismo agrário ou socialismo dos
pró-ocidentais. como Turgueniev e Herzen, de outro.
Erà a época em que jovens prósperos de Moscou e São
Petersburgo, sobretudo os 'penitentes' nobres e proprietários de
terras, tiranizados pela culpa social, sacrificavam carreira e po-
sição a fim de mergulhar no estudo da situação dos camponeses
e operários fabris, e iam viver entre eles com o mesmo fervor
nobre com que seus pais e avós tinham acompanhado Bakunin
ou os dezernbristas. O materialismo histórico e político -ênfase
no concreto, no tangível, na realidade econômica como base da
vida social e individual, a crítica das instituições e das ações
individuais no que d!z respeito à sua influência ou de sua rela-
ção com o bem-estar material das massas populares, odiando e
escarnecendo da arte ou da vida fundamentada no egoísmo, iso-
lada dos sofrimentos do mundo numa torre de marfim - eram
princípios pregados com paixão desinteressada. "Um par de
botas é mais importante que todas as peças de Shakespeare",
disse um famoso materialista radical, exprimindo um sentimento
geral. Nesses homens, o marxismo produziu uma sensação de
libertação de dúvidas e confusões, ao oferecer-lhes, pela primeira
vez, uma exposição sistemática da natureza e das leis do desen-
volvimento da sociedade em termos claros: o prosaísmo do sis-
tema parecia-lhes são e lúcido após o nacionalismo romântico
dos eslavófilos. o mistério e grandeza do idealismo hegeliano,
e, finalmente, o fracasso, na prática, do populismo revolucioná-

248
cial-Democrata Alemão Unido, BebeL Bernstein. Kautsky, VISI-
tavam Marx e consultavam-no a respeito de questões importan-
tes. As duas filhas mais velhas dele tinham casado com socialis-
tas franceses e o mantinham em contato com países latinos. O
fundador da social-democracia francesa, Tules Guesde. subme-
teu o programa de seu partido à apreciação de Marx e viu-o
drasticamente revisto. O marxismo começou a desalojar o anar-
quismo bakuninista na Itália e na Suíça. Relatórios encorajado-
res chegavam dos Estados Unidos. Mas as melhores notícias
vinham da Alemanha, onde o voto socialista, a.-: despeito das
leis anti-socialistas de Bismarck, crescia com prodigiosa rapidez.
O único grande país europeu que continuava alheio, virtual-
mente impenetrável aos ensinamentos de Marx, era exatamente
aquele em que vivia e a que se referia como sua segunda pátria.
"Na Inglaterra", escreveu, "a prosperidade prolongada tem des-
moralizado os trabalhadores. . . o objetivo supremo desta que é
a mais burguesa das terras parece ser o estabelecimento de uma
aristocracia burguesa e de um proletariado burguês lado a lado
com a burguesia_ .. a energia revo1ucionária dos trabalhadores
britânicos vazou. . . será preciso muito tempo para e]es livra-
rem-se da infecção burguesa. . . falta-lhes totalmente o vigor
dos velhos cartistas." Ele não tinha amigos íntimos ingleses;
conhecera Ernest Jones, que trabalhava com numerosos líde-
res sindicais; era visitado por radicais como Belfort Bax,
Crompton, Johnstone, pelo historiador de arte clássica, Charles
Waldstein, e pelo biólogo Ray Lankester, chegando a aceitar
convite para ir ao clube de um membro da classe governante,
sir Mountstuart Elphinstone Grant Duff, parlamentar de ati-
tudes independentes, e seu amigo o editor Leonard Montefiore.
Mas tais encontros mal tocaram a superfície da vida de Marx.
Marx permitiu-se até, nos últimos anos de vida, ser cortejado
durante breve período por H. M. Hyndman, fundador da Fe-
deração Social Democrática e que muito fez em prol da popu-
larização do marxismo na Inglaterra. Hyndman era pessoa
agradável, fácil de levar e expansiva, verdadeiro radical por
temperamento, orador divertido e eficaz e escritor vigoroso
sobre questões políticas e econômicas. Sendo um diletante des-
preocupado, gostava de encontrar-se e conversar com homens
de talento e, por ter gostos um tanto indiscriminados, não tar-

251
russos, segundo as quais era possível uma trans1çao direta de
tais comunas primitivas para o comunismo desenvolvido, sem
necessidade de passar pelo estágio intermediário da industria-
lização e da urbanização, confot·me acontecera no Ocidente.
Marx, que antes considerara essa hipótese coro desprezo, como
oriunda da idealização sentimental eslavófila dos camponeses,
disfarçada em radicalismo - e combinada à crença infantil de
que Hera possível iludir a dialética com um salto audacioso, evi-
tar as etapas naturais da evolução ou varrê-las do mundo através
de decretos" - , estava agora bastante impressionado com a
inteligência, a seriedade e, acima de tudo, o socialismo faná-
tico e devotado da nova geração de revolucionários russos, e
reexaminou a questão. Começou a aprender russo; no fim de
seis meses dominava-o a ponto de ler obras sociológicas 1 e
relatórios do governo que seus amigos conseguiam contraban-
dear para Londres. Engels viu essa nova aliança com certo des-
gosto. Tinha uma incurável aversão por tudo situado a leste do
Elba e suspeitava que Marx estivesse inventando nova ocupação
para esconder de si mesmo a relutância, devido ao forte can-
saço físico, em completar o texto de O capital. Depois de
abrir caminho através de imensa massa de material estatístico
e histórico, Marx fez numerosas concessões doutrinárias. Admi-
tiu 2 que, se uma revolução na Rússia fosse o sinal de um
levante comum de todo o proletariado europeu, seria conce-
bível, e até desejável, que o comunismo na Rússia se baseasse
diretamente na posse da propriedade comunal semifeudal da
terra pela aldeia, tal como esta existia na época. Mas isso não
poderia ocorrer se o capitalismo continuasse em vigor nos vizi-
nhos mais próximos, pois forçaria inevitavelmente a Rússia
a uma violenta autodefesa econômica ao longo do caminho já
trilhado pelos países mais avançados do Ocidente.
Contudo, os russos não eram os únicos a render homena-
gem aos exilados londrinos. Tovens líderes do novo Partido So-

1. Por exemplo, de Tchernyshevsky, por quem exprimiu admiração,


e Flerovsky.
2 . Em carta não publicada por Plekhanov, que evidentemente jul-
gou-a uma concessão perigosa ao populismo. Ela veio à luz somente
alguns anos após a Revolução de Outubro.

250
tilhava em companhia da família . Em seguida, dava um passeio
por Hampstead Heath. ou voltava ao gabinete, onde trabalhava
até as duas ou -três da manhã. Seu cunhado, Paul Lafargue,
deixou uma descrição dessa sala:
04
Ficava no primeiro pavimento, bem iluminada por uma
janela larga que dava para o parque. A lareira era em frente à
janela, flanqueada por estantes em cima das quais pilhas de jor-
nais e manuscritos chegavam até o teto. De um lado da janela
havia duas mesas, igualmente entupidas de papéis em desordem,
jornais e livros. No meio do cômodo, uma peqilena e plana
mesa de escrever e uma confortável cadeira de encosto. Entre
essa cadeira e uma das estantes, um sofá forrado de couro em
que Marx se deitava e descansava de vez em quando. Sobre o
console da lareira havia mais livros misturados com charutos,
caixas de fósforos, caixas de tabaco, pesos para papéis e foto-
grafias - de suas filhas, da esposa, de Engels, de Wilhelm
Wolff ... Nunca permitiu que ninguém arrumasse os livros e
papéis. . . e no entanto conseguia descobrir logo o livro ou o
manuscrito que desejava. Durante uma conversa, parava muitas
vezes, por um instante, para mostrar um trecho importante num
livro ou encontrar uma citação. . . Desprezava as aparências
no arranjo dos livros. Volumes e panfletos eram colocados na
maior balbúrdia quanto a tamanho e fotma. Tinha pouco res-
peito pela forma ou encadernação, beleza de página ou de im-
pressão. Dobrava os cantos das páginas, sublinhava à vontade
as margens com lápis. Não· chegava a anotar nos livros, mas
não se eximia de deixar um ponto de interrogação ou de excla-
mação se o autor ia longe demais. Todos os anos relia suas
anotações e sublinhava trechos para refrescar a memória ...
que era vigorosa e exata. Ele a treinara de acordo com o método
de Hegel para memorizar versos em língua desconhecida".
Dedicava os domingos aos filhos; e quando estes cresce-
ram e casaram, aos netos. A família inteira tinha apelidos: as
filhas eram Qui-Qui, Quo-Quo e Tussy; a esposa era Mõhme;
ele próprio era conhecido por Mouro ou Demônio, por causa
de sua tez escura e aparência sinistra. Suas relações com a famí-
lia permaneceram- mesmo com a difícil Eleanor- em nível
de grande afeto. O sociólogo russo Kovalevsky, que costumava
visitá-lo nos seus derradeiros anos. ficou agradavelmente sur-

25_3
dou a abandonar Mazzini por Marx. Ele assim o descreve em
suas memórias: "A primeira impressão que tive de Marx foi
a de ser um velho poderoso, rude e indomado, pronto, para
não dizer ansioso, a entrar numa briga, e ele próprio suspei-
toso de um ataque imediato; contudo, nos recebia cordial-
mente. . . Quando falava com furiosa indignação da política do
Partido Liberal, especialmente acerca da Irlanda, a testa do
velho guerreiro franzia-se, o nariz largo e espesso e o rosto
ficavam convulsionados pela ira, soltava um jorro de violen-
tas denúncias que demonstravam bem o seu temperamento im-
petuoso e o maravilhoso domínio que tinha da nossa língua. O
contraste entre suas maneiras e elocução, quando profunda-
mente abalado pela cólera, e sua atitude ao opinar sobre aconte-
cimentos econômicos do período, era bem marcante. Ele pas-
sava do papel de profeta e denunciador violento para o de um
calmo filósofo, sem esforço aparente; eu sentia que ainda tinha
pela frente um longo ano antes de deixar de ser estudante na
presença de um mestre".
A sinceridade de Hyndman, sua ingenuidade, suas maneiras
afáveis e desarmadas, e acima de tudo sua admiração sincera e
sem avaliação crítica de Marx, a quem, com inaptidão típica,
chamava de 'o Aristóteles do século dezenove', levaram Marx a
tratá-lo, durante alguns meses, com marcante amizade e indul-
gência. A separação inevitável ocorreu com a leitura do livro
de Hyndman, Inglaterra para todos, um dos mais legíveis, senão
exatos relatos do marxismo em inglês. O débito para com Marx
não foi registrado nominalmente, fato que Hyndman tentou
impérf~itamente explicar sob a alegação de que "os ingleses não
gostam_ -de. ser ensinados por estrangeiros •. e o nome dele é tão
detestado aqui ... " Foi o suficiente. Marx lançou violentas
acusações' de pÍágio: La~salle h~via sofrido por muito menos;
além disso, Marx não desejava de forma alguma ver-se associado
às idéias confusas de Hyndman. Rompeu relações de imediato,
e com isso seu último laço com o socialismo inglês.
Seu estilo de vida quase não mudara. Acordava às sete,
bebia várias xícaras de café preto e então se recolhia ao gabi-
nete, onde lia e escrevia ·até as duas da tarde. Depois de almo·
çar apressadamente, trabalhava novamente até a ceia, que par-

252
ostensivo de estudar a situação agrár.ia naquele país; talvez como
velho urqubartiano ele depositasse esperanças no campesinato
turco como capaz de se tornar uma força de ruptura e democra~
tizadora no Oriente Próximo. Na medida em que a bibliomania
de Marx crescia, confirmavam-se os piores receios de Engels:
escrevia cada vez menos e abandonou qualquer tentativa de
organizar a montanha de caóticas anotações manuscritas em
que o segundo e terceiro tomos de O capital, editados por
Engels, e os estudos complementares que formam o quarto volu-
me, vieram a se basear. Há neles muitos trechos em nada infe-
riores ao primeiro volume, que por si só se tornou um clássico.
Fisicamente, Marx enfraquecia com rapidez. Em 1881 Jenny
Marx morreu, após longo e doloroso câncer. "Com ela o Mouro
morreu também", disse Engels à filha favorita de Marx, Eleanor.
Marx viveu mais dois anos, ainda mantendo volumosa corres-
pondência com italianos, espanhóis e russos, mas sua energia
estava virtualmente extinta. Em 1882, após um ínverno sobre-
modo severo, o médico enviou-o a Algiers para se recuperar.
Ele chegou com uma pleurisia aguda, contraída na viagem.
Passou na África do Norte um mês excepcionalmente frio e
úmido e retornou à Eu:ropa doente e exausto. Depois de algu-
mas semanas em que mudou de uma cidade a outra, na Riviera
francesa, em busca de sol, foi para Paris onde ficou algum
tempo com a filha mais velha, Jenny Longuet. Pouco depois
da volta a Londres, correram rumores de sua morte súbita. Ele
nunca se recobrou inteiramente desse golpe: adoeceu no ano
seguinte, com um abscesso em desenvolvimento no pulmão, e
faleceu a 14 de março de 1883. enquanto dormia sentado numa
poltrona do gabinete. Foi sepu1tado no cemitério de Highgate.
perto da esposa. Havia poucas pessoas: familiares, alguns ami-
gos pessoais e representantes de trabalhadores de vários países.
Um comovente e digno discurso foi pronunciado por Engels à
beira do túmulo sobre as realizações e o caráter de Marx:
"Ele teve na vida a missão de contribuir, de uma forma ou
de outra, para a derrubada da sociedade capitalista ... contri-
buir para· a libertação do proletariado dos nossos dias, que ele
foi o primeiro a tornar consciente de sua situação e necessida-
des, das condições pelas quais poderia alcançar a liberdade. A

255
preendido ~om sua urbanidade. "'Marx é geralmente descrilo",
escreveu anos depois, "como indivíduo sombrio e arrogante,
que rejeita de todo a cultura e ciência burguesas. Na realidade,
era um cavalheiro anglo-alemão bem-educado e muitíssimo
culto, um homem cujas ligações com Heine desenvolveram uma
queda pela sátira chistosa; um homem, em suma, cheio de ale-
gria de viver, graças ao fato de sua posição pessoal ser extrema-
mente satisfatória". Essa vinheta de Marx como alegre e cor-
dial anfitrião, se não chega a convencer de todo, pelo menos
oferece um contraste com os primeiros anos no Soho. Seus pra-
zeres principais eram a leitura e andar a pé. Gostava de poesia
e sabia de cor longos trechos de Dante, Esquilo e Shakespeare.
Sua admiração por Shakespeare não tinha limites; toda a família
foi educada em Shakespeare, lido em voz alta, teatralizado,
discutido com freqüência. O que Marx fazia, fazia-o metodi-
camente. Descobrindo, ao chegar, que o seu inglês era insa-
tisfatório, tratou logo de melhorá-lo, fazendo uma lista de frases
de Shakespeare, que depois decorou. Da mesma forma, tendo
aprendido russo, leu as obras de Gogol e Pushkin, sublinhando
cuidadosamente as palavras cujo significado ignorava. Tinha um
bom gosto literário alemão, adquirido no começo da juventude
e aprimorado com leituras e releituras de suas obras favoritas.
Para distrair-se, lia Dumas pai ou Scott, ou romancinhos fran-
ceses do dia. Balzac, este ele admirava muitíssimo. Comentava
que Balzac fizera em seus romances a mais aguda análise da
sociedade burguesa de seu tempo; muitos de seus personagens,
declarou, só vieram a amadurecer plenamente após a morte do
seu criador, nos anos 60 e 70. Marx tencionara escrever um
estudo de Balzac como analista social, mas não chegou a come-
çá-lo. (Considerando-se a qualidade da única peça existente de
crítica literária saída de sua pena - um estudo sobre Eugene
Sue- a perda não deve ser lamentada.) O gosto de Marx por
literatura, apesar de todo o seu amor à leitura, não foi, em geral,
notável e invulgar. Nada há a indicar que ele gostasse de pintura
ou de música; a paixão pelos livros excluiu tudo isso.
Ele sempre lera muito, mas antes de morrer o apetite
pela leitura chegou ao ponto de interferir no trabalho criativo.
Nos últimos dez anos começou a se interessar por novas lín-
guas: tentou, por exemplo, aprender turco, com o propósito

254
bida at~;;nção a ~stados ·emocion e~ is particulares. ou pior aindu . él
exploração da agitação social para certas finalidades artísticas ou
pessoais - frivolidade e comodismo irresponsável. repreensíveis
em homens a cujos olhos travava-se a maior batalha da história
humana. Essa severidade descomprometida em relação aos senti-
mentos p essoais e a insistência quase religiosa na disciplina do
auto-sacrifício foram herdadas por seus sucessores e imitadas
por seus inimigos em todos os países. São elas que distinguem
do liberalismo toleran te os legítimos descendentes de Marx entre
seus adeptos e seus adversários. .;.·
Outros antes de Marx pregaram a luta de classes, mas
coube-lhe conceder e pôr em prática com êxito um plano des-
tinado a obter a organização política de uma classe em luta
unicamente por seus interesses como classe - e ao fazer isso
transformou o caráter dos partidos políticos e da luta política.
No entanto, aos seus olhos e perante os olhos de seus contem-
porâneos, Marx parecia, em primeiro lugar e acima de tudo,
um teórico econômico. As premissas clássicas sobre as quais
repousa sua doutrina econômica e o desenvolvimento que ele
lhes deu entraram em discussão subseqüente como uma opinião
entre muitas, descartada por uns como nula, depois revista e
defendida por outros; e difícil seria dizer que ocuparam o
centro do palco da economia em alguma ocasião. A doutrina
que tem exercido maior e mais duradoura influência na opi-
nião e na ação, mais que qualquer outro avançado sistema
de idéias nos tempos modernos, é a teoria marxista da evolu-
ção e estrutura da sociedade capi.talista, da qual em parte algu-
ma ele ofereceu exposição pormenorizada. A teoria. ao assegu~
rar que a mais importante pergunta a ser form ulada acerca de
um fenômeno tem a. ver com a relação por ela mantida com a
estrutura econômica. ou seja, as relações de poder econômico
na estrutura social da qual este é uma expressão, criou novos
instrumentos de crítica e pesquisa. cujo desenvolvimento tem
alterado a natureza e o rumo das ciências sociais de nossa gera-
ção. Todos aqueles cujo trabalho se apóia na observação social
são necessariamente afetados. Não somente as classes. grupos
e movimentos em conflito e seus líderes em todos os países,
mas historiadores e sociólogos, psicólogos e cientistas poJíticos,

257
luta foi a palavra de ordem de Marx. E ele lutou com uma pai-
xão, uma tenacidade e um êxito que poucos poderiam igualar . . . .
J
e conseqüentemente foi o mais odiado e mais caluniado homem
de sua época. . . ele morreu amado, reverenciado e pranteado
por milhões de camaradas, trabalhadores revolucionários das mi-
nas da Sibéria às costas da Califórnia, em todos os pontos da
Europa e da América. . . seu nome e sua obra perdurarão atra-
vés dos tempos" .
A morte de Marx passou em grande parte despercebida do
público. O jornal The Times, na realid~de, publicou breve e
inexata nota fúnebre; apesar do falecimento de Marx ter ocor-
rido em Londres, a nota veio do seu correspondente em Paris,
que · noticiou o que lera na imprensa socialista francesa. A
fama aumentou sem parar após a sua morte, na medida em
que os efeitos revolucionários de· sua pregação se tornavam
a cada dia mais evidentes. Como pessoa, ele nunca havia atraído
a imaginação tanto do público como de biógrafos profissionais,
ao contrário de muitos contemporâneos mais sensíveis ou mais
românticos; e no entanto~ Carlyle, Mill e Herzen são figuras
mais trágicas, atormentadas por conflitos intelectuais e morais
que Marx jamais versou nem compreendeu, longe de se deixar
afetar pelo malaise de sua get·ação. Eles deixaram um amargo e
minudente relato disso. melhor escrito e mais vívido que qual-
quer coisa a ser encontrada nos escritos, públicos ou particula-
res, de Marx ou de Engels. Marx combateu a sociedade mes-
quinha e cínica da época, que lhe parecia vulgarizar e degradar
todas as relações humanas, com um ódio não menos profundo.
Mas a sua mente era feita de textura mais forte e dura: ele era
insensível, autoconfiante, de uma vontade de ferro; as causas da
sua infelicidade estavam fora dele: pobreza, doença e o triunfo
do inimigo. Sua vida interior parece sem complicações, segura.
Ele viu o mundo de uma maneira simples, em preto e branco:
os que não formavam com ele, estavam contra ele. Ele sabia de
que lado estava, sua vida fora gasta em lutar por isso, ele não
ignorava que a vitória ia chegar afinal. Crises de fé que ocor-
riam nas vidas de amigos mais fracos - o doloroso auto-exame
de homens como Hesse ou Heine, por exemplo - não conta-
vam com sua simpatia. Ele deve tê-las considerado outros tantos
sinais de degeneração burguesa que assumiam a forma de mór-

256
I

••

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EDITORA PARMA LTDA.
Telefone: (011} 912-7822
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Guarulhos - São R:Julo - Brasil
Com filmes fornecidos pelo editor
críticos e artistas. na medida em que tentarem analisar a qua-
lidade mutável da vida de sua sociedade. devem a forma de
suas idéias, em grande parte, à obra de Karl Marx Quase um
o

século transcorreu desde a sua conclusão e durante esses anos


ela tem recebido mais que a cota que lhe é devida de louvor
e culpa. O exagero e a aplic.ação supersimplificada de seus prin-
cípios fundamentais muito contribuíram para obscurecer-lhe o
significado e muitas asneiras (para não usar palavra mais dura) .
tanto de teoria como de prática, foram cometidas em seu nome o

E no entanto seu efeito foi e continua a ser revolucionário.


A doutrina marxista se propôs refutar a proposição de
que as idéias determinam decisivamente o curso da história, mas
o próprio grau de sua influência nos negócios humanos tem
enfraquecido a força dessa tese. Pois, ao alterar a visão, até
então prevalecente, da relação do indivíduo com o meio e com
os seus semelhantes, ela mudou palpavelmente a relação em si
mesma; e, em conseqüência, permanece como a mais poderosa
das forças intelectuais que hoje transformam de modo perma-
nente as maneiras como os homens agem e pensam o

~
I

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