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O LIVRO NEGRO DO
CAPITALISMO
Organização
Gilles Perrault
O LIVRO NEGRO DO
CAPITALISMO
Tradução de
ANA MARIA DUARTE
EGITO GONÇALVES
JOANA CASPURRO
LEONOR FIGUEIREDO
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
1999
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato NBCionai dos Editores de Uvros. RJ.
O livro negro do capitalismo I organização. Gillcs Pmuult;
tnlduç.!lo de Ana Maria Duanc. .. [d ai.). - Rio de Janeiro:
R<cord. 1999.
Tradução de: Lc livre ooir du capitalisme
ISBN 85-0 Hl5656-I
COO- 330.122
99-1397 CDU - 330.342.14
ISBN 85-01-05656-1
Prólogo
Gilles Perrault 9
Introdução
Maurice Cury 15
Os mortos-vivos da globalização
Philippe Paraire 463
Capitalismo e barbárie:
quadro negro dos massacres e das guerras no século XX (1900-1997) 539
PRÓLOGO
GILLES PERRAULT
Bem-aventurado capitalismo! Não anuncia nada e jamais promete algu-
ma coisa. Nada de manifestos nem de declarações em vinte pontos progra-
mando a felicidade de "pronta entrega". Ele o esmaga, o estripa, o escraviza,
o martiriza - enfim, o decepciona? Você tem o direito de se sentir infeliz
mas não decepcionado, pois a decepção supõe um compromisso traído. Aque-
les que anunciam o amanhã cantando por mais justiça expõem-se à acusa-
ção de fraude quando a tentativa soçobra numa terrível cacofonia. O capi·
talismo conjuga-se prudentemente no presente. Ele é. O futuro? Entrega-o
de livre vontade aos sonhadores, aos ideólogos e aos ecologistas. Também os
seus crimes são quase perfeitos. Nenhum vestígio escrito comprovando a
premeditação. O Terror de 1793 - é fácil para aqueles que não gostam de
revoluções imaginar os responsáveis: as Luzes e essa irrazoável vontade de
ordenar a sociedade segundo a razão razoável. No caso do comunismo, as
bibliotecas estão abarrotadas de obras que o incriminam. Nada disso para o
capitalismo. Não é a ele que podemos censurar por fabricar infelicidade
pretendendo trazer felicidade. Não aceita ser julgado a não ser sobre o que
desde sempre o motivou: a procura do máximo lucro no mínimo de tempo.
Os outros interessam-se pelo homem, ele ocupa-se da mercadoria. Já se ou-
viu falar de mercadorias felizes ou infelizes? Os únicos balanços que valem
alguma coisa são os balanços contábeis. Falar de crimes é não ser pertinen-
te. Evoquemos antes as catástrofes naturais. Não se cansam de os inocular
com isto: o capitalismo é o estado natural da Humanidade. A Humanidade
está no capitalismo como um peixe no ar. Só mesmo a arrogância fútil dos
ideólogos para querer mudar a ordem das coisas, com as lamentáveis conse-
qüências cíclicas que já sabemos: revolução, repressão, decepção, contrição.
Eis precisamente o verdadeiro pecado original do homem: esse perpétuo
bicho-carpinteiro que o leva a sacudir o jugo, a ilusão lírica de um futuro
livre de exploração, a pretensão de mudar a ordem natural das coisas. Não
se mexa: o capitalismo mexe-se por você. Mas, é claro, a natureza tem as
suas catástrofes; o capitalismo também. Quem se lembraria de procurar res-
ponsáveis por um tremor de terra ou para um maremoto? O crime implica,
antes de mais nada, a existência de criminosos. Para o comunismo, as fichas
antropométricas são fáceis de fazer: dois barbudos, um de barbicha, um de
12 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
Gilles Perrault
O mundo dominado pelo capitalismo é o mundo livre; o capitalismo, atu-
almente chamado apenas de liberalismo, é o mundo moderno. É o único mo-
delo de sociedade. Senão o ideal, pelo menos o mais satisfatório. Não existe e
jamais existirá outro.
É este o canto unânime que entoam não só os responsáveis econômicos e
a maior parte dos responsáveis políticos, mas também os intelectuais e os jor-
nalistas que têm acesso às principais mídias: audiovisuais, a imprensa, a gran-
de edição, geralmente nas mãos de grupos industriais ou financeiros. Não que
o pensamento dissidente seja de modo algum proibido (liberalismo oblige!),
mas acaba por ser canalizado para uma quase clandestinidade. Eis a liberdade
de expressão com que se deliciam os que apóiam nosso sistema liberal.
A virtude do capitalismo reside na sua eficácia econômica. Mas em bene-
fício de quem e a que preço? Nos países ocidentais, que são a vitrine do capi-
talismo (enquanto o resto do mundo será mais ou menos os fundos do arma-
zém), examinemos os fatos.
Após o seu grande período de expansão no século XIX, devido à indus-
trialização e à feroz exploração dos trabalhadores, o movimento que se acele-
rou ao longo das últimas décadas levou à quase extinção o pequeno produtor
rural, devorado pelas grandes explorações agrícolas, trazendo consigo a polui-
ção, a destruição das paisagens e a degradação dos produtos (e tudo isto à
custa do contribuinte, uma vez que a agricultura foi sempre subsidiada); o
quase desaparecimento do pequeno comércio, particularmente de alimenta-
ção, em benefício da grande distribuição e dos hipermercados, a concentração
das indústrias em grandes empresas nacionais e depois transnacionais que
tomam tais proporções que chegam a ter tesourarias mais importantes que as
dos Estados e até fazem a lei (ou pretendem fazê-la), tomando medidas para
reforçar o seu poder sem controle, como por exemplo através do Acordo
Multinacional sobre o Investimento (AMI), acima dos Estados (a United Fruit
é patrão de vários Estados da América Latina).
Os dirigentes capitalistas podiam temer que o desaparecimento do pe-
queno produtor rural, do artesanato e da pequena burguesia industrial e co-
mercial reforçasse as fileiras do proletariado. Mas o "modernismo" veio trazer-
18 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Estados indóceis (Cuba, Líbia, Iraque), que são mortíferos para as populações
(várias centenas de milhares de mortos no Iraque).
A espoliação é a causa evidente da utilização da força. Se queremos assal-
tar uma casa habitada, é melhor levarmos uma arma.
As práticas do capitalismo são próximas das da máfia; é com certeza por
isso que esta prolifera tão bem no seu terreno.
Tal como \l máfia, o capitalismo protege os dirigentes dóceis, que desaver-
gonhadamente permitem que seus países sejam explorados pelas grandes soci-
edades americanas e transnacionais. Deste modo, ele consolida - quando
não é ele próprio que as instala - as ditaduras, mais eficazes na proteção das
empresas do que as democracias.
As suas armas são indistintamente a democracia ou a ditadura, o negócio
ou o gangsterismo, a intimidação ou o assassinato. Assim, a CIA é, sem dúvi-
da, a maior organização criminal em escala mundial.
A usura, outro procedimento mafioso. Assim como a máfia faz empréstimos
ao comerciante, que nunca consegue livrar-se da sua dívida e acaba por per-
der a sua loja (ou a vida), os países são estimulados a investir, muitas vezes
artificialmente; armas são vendidas para que possam lutar contra os países
rebeldes, e estes são obrigados a pagar eternamente os juros acumulados da
sua dívida; passa-se assim a ser dono da sua economia.
Repressão e exploração caminham juntas: repressão anti-sindical (que ou-
trora foi legal), hoje não confessada mas sempre praticada nas empresas, vigi-
lância repressiva, milícias patronais criminosas,i sindicatos criados pelos pa-
trões (CFIJ e repressão contra qualquer contestação operária radical. 5 A
possibilidade de explorar tem este preço. E nós sabemos, desde Marx, que a
exploração do trabalho é o motor do capitalismo. As economias ocidentais
tiram dividendos, no Terceiro Mundo, da pior forma de exploração: a escra-
vatura, e, nos seus países, da servidão dos imigrados clandestinos.
A corrupção. As multinacionais dispõem de uma rede de influências tal
ou de tais pressões financeiras ou políticas sobre o conjunto dos responsáveis
públicos ou privados que abafam qualquer resistência com os seus tentáculos
de polvo.
A propaganda. Para impor o seu credo e justificar a corrida armamentista,
os seus delitos e os seus crimes sangrentos, o capitalismo sempre invoca ideais
generosos: defesa da democracia, da liberdade, luta contra a ditadura "comu·
nista" e defesa dos valores do Ocidente, quando, na verdade, ele apenas de-
fende, na maioria das vezes, os interesses de uma classe poderosa, ou quer
22 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Maurice Cury é poeta, romanci5ta, roteiruta de cinema e de televisão, autor teatral. Publica·
ções mais recentes: w ~de Flandre (romance), l..a]ungle el le désert (poemas e textos).
E. C. Édirions, l...t Ubéralismt ICl41iwire.
Notas:
1. Philippe Paraire, Lt V.llagt Moruú et San Cháuau, Le Temps des Cerises, 1995.
2. Jeremy Rifjin, Ui Fin du Traoail, La Déc.ouverte, 1996
3. Noam Chorrulcy, w Dmau! de la Poliriqut de I' Onde Sam, Ecosociété, EPO, Le Temps
des Cerises, 1996.
4. Marcel Caille, Lts Truands du Pmronar, Éditions Sociales, 1977.
5. Maurice Ra~íus, La Polia Hors la Loi, Le Cherchc-Midi, 1996.
6. Scrge Hahmi, Li1 Nouv<aux Chieru de Garde, Liber-Raison d'Agir, 1977.
7. Chill, Li Dossier Noir , GaUimard, 1974.
AS ORIGENS DO CAPITALISMO
(SÉCULOS XV A XIX)
JEAN SURET-CANALE
Foi ao longo do século XIX que o capitalismo apoiado no trabalho assa-
lariado se tomou o modo de produção dominante, primeiro na Europa Oci·
dental e nos Estados Unidos, depois no resto do mundo, através de formas de
dominação diretas (a colonização) ou indiretas.
A sua gênese ocupa essencialmente os três séculos precedentes (séculos
XVI, XVII e XVIII). É, para empregar a terminologia de Adam Smith, reto·
mada por Marx, a época da "acumulação primitiva" (ou melhor, para utilizar
mais exatamente o termo empregado por Adam Smith, "previous accumulatian",
acumulação prévia).
Como se encontrarão face a face os capitalistas detentores das riquezas
suscetíveis de se converterem em meios de produção (máquinas, matérias·
primas etc.) e os "proletários", desprovidos de quaisquer meios de existência
autônoma e reduzidos, para sobreviver, à condição de assalariados• dos pri·
meiros?
A ideologia burguesa, expressa pelos "pensadores" políticos e pelos eco·
nomistas mais respeitados do século XIX, explica que, originalmente, a socie·
dade dividiu-se em duas categorias: uns, laboriosos, inteligentes, poupadores;
os outros, preguiçosos, dilapidadores. "Evidentemente que uns amontoaram
tesouros sobre tesouros, enquanto os outros se encontraram rapidamente des·
providos de tudo." Karl Marx cita, entre os autores defensores desta tese, A.
Thiers. 2 No século XX, o bom doutor Alexis Carrel, prêmio Nobel de Mediei·
na e partidário de Pétain, explicará em t Homme, cet inconnu (O Homem,
esse desconhecido)l que os primeiros eram geneticamente superiores, e os
segundos, inferiores.
E cabe a Karl Marx observar: "Nos anais da história real, foi a conquista,
a servidão, o domínio da força bruta que levaram sempre a melhor." 4 Para
estudar este período, que se abre com as grandes descobertas marítimas no
fim do século XV. recorreremos a duas fontes essenciais: uma antiga, a que é
fornecida por O capital de Karl Marx no seu desenvolvimento sobre a "acu·
mulação primitiva" (Livro I, VIII seção), 5 a outra, mais recente, certamente
mais rica de informação e mais "em dia", é fornecida pela grande obra de
Femand Braudel: Civilisation Matérielle, Économie et Capitalisme, XVe-XVIlie
si~cle (Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIIl).6
26 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
com ferro em brasa uma flor-de-lis; se reincidir, tera cortada parte de uma
perna e sera marcado com uma flor-de-lis no outro ombro; na terceira vez
será punido com a morte . O s suplícios (marcas e mutilações) só serão abolidos
em 1833.
O s donos têm o direito de mandar acorrentar e chicotear os seus escravos
"quando julgarem que os seus escravos o mereceram". Fora dos casos previs·
tos, é em princípio proibido aos donos torturar, mutilar ou matar os seus escra-
vos. Mas , na verdade, os donos, seja o que for que façam, nunca são punidos:
os tribunais, nas mãos dos col nos, têm por princípio que jamais um dono seja
condenado por queixa de um escravo, pois temem que isto ponha em perigo a
autoridade do regime escravagista.
Em seu relatório sobre Os Distúrbios de S. Domingos, o convencional Garran
nota que não há nenhum exemplo de um dono que tenha sido levado à justiça
por ter morto ou mu tilado um escravo. Um decreto de 1784, que limitava a
50 o número de chicotadas que um dono podia infligir a um escravo, "foi
estabelecido com muita dificuldade" e não foi cumprido. 15
O casamento e as relações sexuais entre colonos e escravos são em princí·
pio proibidos; mas, de fato, os colonos tomam escravas como concubinas e,
muito rapídamente, forma -se uma camada de mestiços, hierarquizados em
funç ão da sua proporção de sangue "branco''. Em 1789, contam-se na parte
francesa de S. Domingos (atualmente República do Haiti) 35.440 brancos,
509.642 escravos e 26 .666 libertos e "pessoas de cor". Libertos e homens li-
vres de cor podem ser proprietários de plantações e de escravos, mas são sub-
metidos a uma estrita disc riminação: em 1789, os colonos recusam-lhes os
direitos políticos.
Num panfleto surgido em 1814, Vastey, secretário do rei Christophe
(Henrique l, imortalizado pela peça de teatro de Aimé Cesaire), enumera os
suplícios infligidos pelos colonos aos ~cravos , particularmente quando da sua
insurreição: escravos queimados vivos ou empalados, membros serrados, lín-
gua, orelhas, dentes, lábios cortados ou arrancados, pendurados de cabeça
para baixo, afogados, crucificados em pranchas, enterrados vivos, presos em
fomügueiros, atirados vivos em caldeiras de açúcar, precipitados encosta abaixo
dentro de tonéis forrados de pregos, enfim, oferecidos vivos à fúri a de cães
criados para este fim. 16 Rochambeau filho, comandante, após a morte do ge-
neral Leclerc, do corpo expedicionário enviado por Bonaparte para recon-
quistar S. Domingos e aí restabelecer a escravatura, tinha mandado comprar
em Cuba cães especialmente criados para isso.
A5 ORIGENS DO CAPITALISMO 37
Não é preciso dizer que o exemplo dado aqui das colônias francesas sobre
o tratamento dos escravos pode ser estendido ao conjunto das outras colônias.
L _
38 O LIVRO NEGRO DO CAPITAL! MO
Notas:
O desmoronamento da África
Nem Montesquieu nem Voltaire tinham capacidade para tentar, mas esta
contagem macabra nós agora podemos fazer e transportá-Ia para o passivo de
um sistema econômico fundado na transformação em capital da mais-valia
extorquida a trabalhadores forçados, os escravos. Duzentos e cinqüenta anos
depois dos humanistas do Século das Luzes, temos tudo o que é preciso para
avaliar a barbárie do capitalismo nascente: os livros de bordo dos armadores,
as prestações de comas dos capitães, os diários dos viajantes, os relatórios de
serviço das polícias de segurança marítima, os planos e o número dos navios,
os extratos da contabilidade dos negreiros enriquecidos, os livros dos libertos,
as liquidações de heranças, o valor das moedas, os balanços contabilizados do
comércio triangular, os relatórios dos médicos de bordo, os prêmios pagos aos
caçadores de escravos fugitivos, os relatórios de linchamentos, as minutas dos
processos e as descrições das execuções.
Nenhum historiador sério contesta esta contagem. Nenhum investigador,
nos nossos dias, procura minimizar a extensão da catástrofe que foi para Áfri·
ca o seu encontro com o capitalismo balbuciante das metrópoles da Europa
que só conseguiu atingir a maturidade graças aos extraordinários lucros gera•
dos pela invasão de um continente - a América - e proporcionados por
populações arrancadas a um ourro, a África.
Em números redondos, dez milhões de deportados africanos atingiram o
Novo Mundo entre 1510 e 1860. Mais de dois milhões pereceram durante a
ECONOMIA SERVIL ECAPITALJSMO: UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL 51
trole, criando verdadeiros impérios "de economia negreira", cuja única ativi-
dade era a penetração nas zonas pacíficas, as razias, as capturas, o enca-
minhamento e a venda dos prisioneiros.
A relativa prosperidade, devida ao crescimento econômico da África Oci-
dental (sensível desde o século XII), não conseguiu sobreviver a tais choques.
Em 1800, o continente inteiro tinha regredido um milênio.
(café com leite ou cacau com açúcar de cana) tomou-se um fenômeno uni-
versal em toda a Europa a partir de 1750. Abandonaram-se subitamente as
tisanas adoçadas com mel, trocando-as pelo novo café da manhã, e isto inclu-
sive nas camadas mais baixas da população, até mesmo no campo.
A procura era tal que o Novo Mundo decuplicou a sua importação de
escravos e converteu-se às novas culturas destinadas a abastecer a Europa de
bebidas exóticas da moda: as Antilhas francesas abandonaram, por exemplo,
a cultura das especiarias e lançaram-se, por volta de 1700, à produção
açucareira, enquanto o Brasil se convertia ao café e por todo o lado se tentava
aclimatar o cacau, e mesmo o tabaco, este também transformado em moda na
corte da França. Criado este primeiro mercado, um outro o sucedeu quando,
pouco depois de 1800, um engenheiro americano descobriu um meio de cardar,
fiar e tecer o algodão. De repente, todo o Sul dos Estados Unidos se voltou
para esta cultura. A procura de escravos conheceu um aumento vertiginoso
em todas as zonas de produção: Cuba importou, entre 1800 e 1850, mais de
700.000 escravos suplementares, ligados à cultura da cana. O Sul dos Estados
Unidos mandou vir mais de 150.000 escravos por ano entre 1810 e 1830 para
o cotton belt. Longe do amadorismo inicial, nascia agora uma verdadeira "eco-
nomia capitalista servil".
A revenda da produção de café e de açúcar vinda da América repre-
sentava 50% das receitas de exportação da França em 1750.
No que se refere à circulação monetária e à transformação em capital das
mais-valias produzidas pela racionalização do transporte dos escravos, nume-
rosos indícios marcam o caráter absolutamente extraordinário dos lucros ge-
rados pelo trabalho escravo: o boom das cidades portuárias que se dedicavam
a este tráfico, o florescimento paralelo das companhias bancárias que viviam
deste comércio, a especialização de certos armadores, são um sinal claro da
capitalização na Europa dos lucros da exploração dos africanos deportados
para o Novo Mundo. Tomou-se comum dizer que Bordeaux, Nantes ou até
Lisboa devem os seus mais belos bairros, os seus mais belos monumentos, aos
capitais repatriados. Mas que dizer de Liverpool ou de Amsterdã, ou ainda de
Copenhague e Estocolmo?
Pois, se é verdade que só a Inglaterra transportou metade dos deportados
(ela interrompeu o tráfego em 1812) e os portugueses um quarto, pequenos
países como a Holanda e a Suécia devem seu crescimento econômico ao maná
negreiro (o rendimento per capita dos lucros do tráfico foi dez vezes mais ele-
vado nos países nórdicos do que na França, por exemplo). Os holandeses
56 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Philippt Parairt ~ autor de l...t.S Noin Amiricains, généalogie d'une exclusion, col. "Pluriel
intervention", Hachette, 1993.
BibliogTafia:
•JoNo Jc palavna fonético emro o nom• do gencnl e• forma verbo! chu, que significa "caCdo, tombado".
A lnvcnçãu vcrbol do V. Hugo, "trop chuir", significam assim "cair demoi>" (N. Jo T.)
62 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
Notas:
·i'
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E
13.000 FERIDOS POR DIA AO LONGO DE
TRÊS ANOS E MEIO
JEAN-PIERRE FLÉCHARD
"É o tango dos militares prazenteiros
Dos alegres triunfadores de aqui e d'além
É o tango dos célebres para a guerra
É o tango de todos os coveiros"
Boris Vian
''Armemo-nos e parri"
Anônimo
•fachoda- Localidade sudanesa, nas margens do Nilo, onde houve um Incidente enrre a Inglaterra e
a França. Em setembro de 1898, urna coluna francesa, comandada pelo capitão Marchand, encontrou•
1e com uma força anglo-egípcia, comandada por Kitchener. Após urna primeira recusa em evacuar
Fachada, os franceses tiveram de render-oe por ordem do ministro dos Negócios Estrangeiros, Théophile
Delcassé. Em 21 de março de 1899, um acordo colonial viria a conceder a totalidade da bacia do Nilo•
Orl-Bretanha. (N. cio T.)
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 71
•Tripie Ent"11W - Allanço concluído em 1907 entre a Rú'5io, a Fronça e a Grã-Bretanha, contra a
Alemanha e a Áustria-Hungria. (N. do T.)
72 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
•Pacto defensivo entre a Alcm:mho, a Áustria e a Itália contra uma agressão da França ou do R6s.1io
(1882). (N. do T.)
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 75
- Rhein-Siegener (Alemanha)
3 fábricas
- Fábrica de pólvora Kõln Hottweiler (Alemanha)
- Diversas fábricas alemãs de armas e de munições
- Société Française de la Dynamite (França)
- Société Générale pour la Fabrication de la Dynamite (França)
- Société Franco-Russe de Dynamite (França).
A indústria siderúrgica:
ALEMANHA FRANÇA
Alemanha 191 18 12
Áustria· Hungria 15 5 4
França 41 4 9
Rússia 35 4 5
Grã-Bretanha 292 9 11
Graças a estas duas organizações internacionais, que não são mais do que
o exemplo mais evidente, imitadas como foram pelos fornecedores das inten-
dências, pelos construtores de veículos, pelos fabricantes de vestuário etc., a
guerra viria a revelar-se um negócio excelente para a grande indústria inter-
nacional, que irá servir-se da sua influência para que ela dure o máximo de
tempo possível, atiçando as paixões nacionalistas graças a uma imprensa fi-
nanciada por elas, abertamente ou de forma disfarçada.
A grande carnificina
mando único ao general francês Foch (26 de março). Os Estados Unidos ace-
leraram o envio de tropas (cerca de 10.000 homens por dia em junho). Pétain
pôs a funcionar novos métodos ofensivos e defensivos (ataque sem prepara-
ção de artilharia, utilização maciça de carros de assalto ligeiros e de aviões).
Depois de junho, uma quarta ofensiva alemã sobre Compiegne foi pronta-
mente barrada.
A reviravolta na batalha operou-se entre 15 e 18 de julho: é a segunda
vitória do Mame, incidente decisivo da guerra. Completamente travados
na sua ofensiva em Champagne, depois subitamente atacados de flanco, os
alemães, tal como em 1914, foram forçados se retirar de La Mame sur l'Aisne.
A vitória do Mame marcou o início de uma grande ofensiva aliada. Foch
não deixou ao inimigo, desnorteado, tempo de se refazer e reconstituir as
suas forças. Através de um alargamento sistemático da batalha, multiplicou
os seus ataques sobre todos os pontos da frente. Os alemães foram incessan-
temente forçados a recuar, sob a ameaça de cerco. Sucessivamente, todas as
suas posições defensivas, incluindo a formidável linha Hindenburg, foram
forçadas (setembro-outubro). Os aliados regressaram a Saint-Quentin, a
Laon, a Lille.
Na mesma época, na Macedônia (15 de setembro) e na Palestina (18
de setembro), vitórias decisivas obrigavam a Bulgária (29 de setembro) e a
Turquia' (30 de outubro) a depor as armas. A Áustria-Hungria desunia-se
e, vencida pelos italianos em Vittorio-Veneto (27-30 de outubro), aban-
donava a luta (3 de novembro). Para evitar um desastre total, a Alema-
nha, em plena revolução, aceitou todas as condições impostas pelo
armistício de 11 de novembro; desde o dia 9, Guilherme II fugira para a
Holanda.
Isto não é senão a parte visível das operações; o desejo de conquista, a
sede de lucro, os objetivos de guerra secretos e as manobras de bastidores
foram a tônica. Mas, sob os grandes impulsos patrióticos, esconde-se uma
realidade mais sórdida, a da defesa encarniçada de interesses particulares.
Um exemplo apenas, entre outros, permite ilustrar a sórdida realidade: o
destino da bacia de Briey-Thionville.
84 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Mob1\uad0ti 62.110.000
Feridos 20000.000
Mobilizados Mortos
Romênia - 335.000
Bulgária 1.200.000 -
TOTAL 62.100.000 8.345.000
O p6s-guerra
Bibliografia:
Allard Paul, Les dessous de la guerre révélés parles comités secrets, Paris, 1932.
Delaisi Francis, Le Patriotisme des plaques blindées, tirado pardalmente da revista La PaU: pour
le droit, Nimes, 1913.
Ferro Marc, La Grande Guerre, Paris, 1968.
Gambiez, Suire, Histoire de la Premiere Guem Mondiale , Paris, 1968.
Girardet Raoul, La Société militaire dans la France contemporaine, Paris, 1953.
Jolly Bertrand, Les Archives de la familie De Wendel.
Mayer A., Politics and Diplomacy of Peace Making. Containment and Conterrevolution at Versailles,
Nova York, 1967.
90 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
•Alusão à guerra da Vcndeia (1793-1796), insurreição real e conrra-rcvolucionária que atingiu os de·
pattamentos de Vendeia, Loire-Inferior e Maine•et-Loire. Coblença, cidade alemã onde, em 1792, se
reuniram os emigrados franceses. (N. do T.)
94 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
1918
1919
1920
Não é certo que a crise atual ajude a compreender aquela que foi chama·
da de "crise de 1929" e que grassou no início dos anos 30. O principal ponto
comum é o desemprego. Mas hoje, as trocas internacionais não param de
crescer, ao passo que, em 1933, elas tinham caído dois terços em relação a
1929.
Os países que possuíam impérios coloniais eram escandalosamente favo-
recidos, pois podiam mais facilmente do que os outros manter os seus merca-
dos. A Alemanha e os Estados Unidos tiveram, entre as grandes potências, as
taxas de desemprego mais elevadas. Decerto, isso não se devia unicamente ao
fato de não possuírem colônias, mas de qualquer modo essa era a opinião
geral. Daí um ressentimento crescente, além-Atlântico, contra a França e a
Inglaterra. Franklin Roosevelt, eleito para tentar pôr fim à crise, não ficou
102 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Hitler toma nas suas mãos, em 30 de janeiro de 1933, um país com uma
economia enfraquecida e sem apoio externo. O seu programa, expresso em
Mein Kampf, oito anos antes, não poderia ajudá-lo a encontrar aliados, de cal
modo ele aponta inimigos poderosos e diversos: o marxismo, mas também a
caridade cristã, o comunismo, tal como o capitalismo, os franceses e os russos,
as liberdades de qualquer espécie e, acima de tudo, os judeus, culpados de
todos os males ao mesmo tempo. Mas ele vai utilizar uma receita estranhamente
eficaz, que se apóia em dois princípios: disfarçar suas próprias fraquezas e lan-
çar os inimigos uns contra os outros. Para começar, ele não coma o poder
sozinho, mas no seio de um governo numericamente dominado pela direita
conservadora. O seu chefe mais destacado, Franz von Papen, parece, durante
ano e meio, estar em corufições de eliminá-lo em qualquer momento, até
aquela "noite das facas longas• (30 de junho de 1934) , em que o Führer impu-
nemente manda matar os colaboradores mais próximos de Papen. Mas então,
com o pretexto de que também tinham sido eliminados alguns chefes das
Scunnabceilungl'Tl (SA), que se dizia ameaçarem o Exército, este passa como o
verdadeiro vencedor do episódio. Assim, até ao início da guerra, Hitler culti·
vará a aparência de um ditador em potencial, enfraquecido por oposições
internas poderosas e também pela divisão dos que o rodeavam - o que terá
provocado a felicidade dos seus colaboradores mais próximos, a quem ele dis·
tribufa os papéis a desempenhar.
Este jogo esreve longe de ser inteiramente compreendido. Ainda hoje, o
historiador Hans Mommsen, quando fala em um "ditador fraco", não con•
segue certamente unanimidade, mas consegue se fazer levar a sério. Não
obstante, a verdade ganha terreno e coloca uma questão: por que razão,
naquela época, quase ninguém levantou a hipótese de Hitler ser um estrate·
gista muito sagaz?
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 103
É estranho ler algumas vezes que, antes de 1939, Stalin esperava enten·
der-se com Hitler. É certo que, como sugerem os acontecimentos que se se·
guiram, os escrúpulos ideológicos não o dominavam mais neste caso do que
noutros. Mas para haver casamento são precisos dois, e a atitude de Hitler
não autorizava qualquer esperança. Não que se mostrasse agressivo: até final
de 1938 ele cultiva a sua imagem de homem de paz, buscando apenas a gran·
deza da Alemanha dentro das suas fronteiras, permitindo-se incorporar, de
vez em quando, algumas regiões contíguas de população germânica. Mas,
embora deixasse a Rússia tranqüila, por um lado ele não perdia uma ocasião
de vituperar contra o comunismo e, por outro lado, ia abrindo aos poucos um
caminho em direção ao Leste que teria inquietado qualquer herdeiro dos czares.
Tudo começa, pois, em janeiro de 1939 quando, ao receber os cum-
primentos do Corpo Diplomático, Hitler aperta a mão do embaixador dos
Sovietes, de uma forma ostensivamente calorosa. Seguem-se discretas nego-
ciações comerciais. Entretanto, Stalin, que na falta de alternativa cultivou
conscienciosamente a amizade dos ocidentais, não perde a oportunidade. Fi-
cou certamente ressentido com os acordos de Munique, mas, logo que estes
ficaram ultrapassados pela invasão da Tchecoslováquia, retoma a postura an-
terior e propõe aos países que rodeiam a Alemanha "uma grande aliança"
defensiva. Uma vez mais, a Inglaterra vai reagir com frieza, impedindo que a
França lhe tome a dianteira.
Um fator geográfico complica as negociações. A Alemanha não tem fron·
teira comum com a URSS e esta, para participar numa guerra contra ela, teria
de atravessar a Lituânia, a Polônia ou a Romênia e, de preferência, as três em
conjunto. Lítvinov, comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, e de·
pois Molotov, que o sucede a 3 de maio, compreendem que o tratado deve ter
disposições precisas sobre esta questão. É um jogo para a diplomacia britânica
eternizar as discussões, como o foi para a propaganda franco-inglesa dizer
mais tarde que os soviéticos apresentavam "exigências novas" depois de cada
ponto acordado - o que significa que eles tinham decidido há muito se en·
tenderem com Hitler. Chega-se assim ao mês de agosto. Molotov, para obrigar
cada um a mostrar o seu jogo, exige e finalmente consegue que se discuta uma
convenção militar, dizendo quem fará o quê, onde e com que tropas. Militares
ocidentais deslocam-se, pois, a Moscou... e, sem instruções dos respectivos
governos neste campo, são confrontados com a exigência preliminar do chefe
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 105
ºDesignação pela qual ficou conhecido o período que antecedeu a invasão alemã, entre setembro de
1939 e maio de 1940. (N. do T.)
106 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
tentativa. Que impulso não teriam elas tolll3do se a imagem da URSS não
tivesse sido ofuscada pelos expurgos!
Em suma, para saber se os primeiros mortos da Segunda Guerra Mundial,
no dia 12 de setembro de 1939, e tudo aquilo que a sua morte vai provocarem
virtude do poder que se deixou que a Alemanha adquirisse, são ou não "mor-
tos do capitalismo", é preciso ter em conta, antes de mais nada, o antico·
munismo e a forma como a Alemanha soube jogar com isso. Deixando enten-
der que todas as suas ambições tinham se voltado para a Europa oriental e que
a sua satisfação libertaria o planeta de um regime indesejável, atraiu bastante
as simpatias nos meios dirigentes das grandes potências ocidentais. Não
obstante, não teriam aberto assim tão facilmente uma via livre para a expan·
são do concorrente alemão se este não tivesse conseguido persuadi-los de que
era fraco, dividido e incapaz de tirar grande proveito de uma vitória contra o
império do mal. O caminho que estes países deixaram aberto à Alemanha e o
crescimento inaudito do seu poder entre 1939 e 1941 não são, pois, mero
resultado do ódio do empresariado ao movimento operário. São também o
resultado da ingenuidade perante uma encenação particularmente bem-su-
cedida. Os dirigentes das grandes potências capitalistas, excetuando a Ale-
manha, foram levados a acreditar naquilo que lhes segredavam os seus inte·
resses de classe, mesmo contra toda a evidência: que Hitler não era um poütico
de altos vôos, mas um aventureiro inconseqüente que podia ser jogado fora
depois de ser usado.
Mas não é isso que se diz quando a mediação falha? Nas circunstâncias, é em
Berlim que Welles é mal recebido. A razão é que Hitler fizera uma escolha:
quanto à paz ele não a quer mais, precisa desencadear a sua ofensiva a Oci-
dente, para desferir um golpe decisivo no moral dos seus adversários, assim
como no exército francês e no seu prestígio.
Assim, nesta pseudoguerra, bizarra (drô!e), sobretudo porque nela abun·
dam os gestos pacifistas de todo o tipo, toma-se particularmente criminoso
subestimar as capacidades de Hitler. Ela não deixa ver a trágica bomba que
ele prepara lentamente, calculando ao máximo os seus efeitos, e que faz ex·
plodir bruscamente em 1Ode maio.7
O jogo americano
dia 22 e nos dias seguíntes. Pragmátíco, pensa sem dúvída que encorajamentos
não mudarão de ímedíato a sorte das armas e que, se a URSS desmoronasse
como um castelo de cartas, seria lamentável ter se comprometído com ela.
Não obstante, age, e como poucos americanos e poucos soviéticos se felí-
cítaram por esta ação talvez devido aos preconceitos ideológicos recíprocos, é
hora de tomá-la pública.
Resta, além dos Estados Unidos, uma única grande potência fora da guer-
ra: o Japão. Bem astuto seria quem pudesse dizer se entraria nela... pois o
próprio não sabe. E, sobretudo, não sabe contra quem. Mais do que um fascis-
mo, o regime japonês é um ímperialismo em que o exército tem grande impor-
tâncía. Tendo iniciado a sua expansão em 1890, pouco depois dos Estados
Unidos, chegou a todos os lugares com algum atraso em relação àquele país,
seja às Filipinas ou às ílhas do Havaí. Contrariado, teve de ceder várias vezes.
No entanto, os seus dirigentes estão demasiado bem informados para supo-
rem que era chegado o momento de um confronto direto. Eles preferem ad-
versários mais fracos, particularmente as potências européias já vencidas pela
Alemanha, como a França, vulnerável na Indochina, ou a Holanda, com difi-
culdade em defender as Índías Holandesas. Encara também a possibilídade de
enfrentar a Grã-Bretanha, que desguarnece as suas defesas de Hong Kong ou
de Cíngapura a fim de concentrar as suas forças contra o Reich. Uma outra
opção é possível: estender-se pela Sibéria, à custa da URSS. Opção bem enca-
rada nos anos 30, que permitía dar suporte às íniciativas japonesas contra as
províncias orientais da China, oficialmente para barrar a progressão do comu-
nismo. O banho de água fria chegou com o pacto germano-soviético, concluí-
do no exato momento em que os exércitos japonês e soviético mediam forças
em combates fronteiriços. Desiludida com Berlim, Tóquio acaba por assinar
um pacto de não-agressão com Moscou, em abril de 1941. Hitler, que desta
vez preparava a sua agressão contra a URSS, tinha feito tudo para dissuadir os
japoneses de tomarem essa atitude: com ela, o Japão, além de se vingar do
desprezo dos nazístas pelos seus ínteresses em 1939, espera virá-los para oeste
e incitar Berlim a liquidar a sua guerra contra a Inglaterra antes de iniciar
uma nova. É provável que Matsuoka, o ministro japonês das Relações Exte-
riores, que, em março-abril de 1941 visita Moscou, Berlim e Roma, tenha
pensado que era suficientemente astuto para levar Hítler a invadír a Grã-
Bretanha, o que teria permitido ao Japão ocupar sem grandes perdas as res-
pectivas colônías asiáticas.
Restava convencer os Estados Unidos a fecharem os olhos, apostando na
118 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
sua falta de simpatia pelos impérios coloniais europeus. O êxito era incerto, e
Matsuoka sabia disso. Desde que constata, em 22 de junho de 1941, a ruína
dos seus esforços e a opção irreversível de Hitler por uma expansão à custa da
URSS, 16 muda de opinião e defende, no seu Gabinete, um ataque à Sibéria.
É aqui que Roosevelt intervém. Ele faz saber ao governo japonês, em 4 de
julho, que os Estados Unidos ficariam extremamente contrariados se o Japão
atacasse a URSS. Eles dispunham de muitos meios de pressão. Tinham,se
lançado há dois anos contra as ocupações asiáticas do Japão, numa política de
sanções econômicas graduais, que não atingiam ainda o petróleo. Teria o pri,
meiro,ministro Konoye receio de um embargo a este recurso estratégico? A
verdade é que ele sacrificou Matsuoka e qualquer idéia de agressão anti,sovié,
tica em 16 de julho. A tranqüilidade na fronteira siberiana, que as mensagens
de Sorge faziam crer durável, permitiu a Stalin convocar Jukov, o general dos
combates fronteiriços de 1939, cornos seus melhores regimentos. Estes foram
deslocados para a região de Moscou ao mesmo tempo que os alemães, para
disputar vitoriosamente o terreno, em dezembro seguinte. Roosevelt tinha
contribuído para salvar Stalin e, ao fazer isso, atraiu a ira para si. Pois, para
agradar aos linha.-dura do seu gabinete, Konoye teve de tomar uma iniciativa,
e esta foi a invasão, em final de julho, do sul da Indochina, que implicou o
embargo petrolífero e em conseqüência a obrigação, para o Japão, de agir
depressa, se queria agir. E aconteceu Pearl Harbor.
ções técnicas do capitalismo, mas também, e com igual rapidez, as suas lições
geopolíticas. Tentou construir para si um domínio colonial, primeiro à custa
da China, aproveitando a distância das potências européias e jogando com as
suas rivalidades.
A sua cúpula dirigente estava, desde o início, dividida quanto à dosagem
de modernidade e tradição. Mas a ruptura também acontece dentro das pes-
soas. Como todos os dirigentes não-europeus que não são puras criações do
Ocidente, as elites japonesas se perguntam constante e ansiosamente quando
devem ultrapassar o limite entre a importação de valores ocidentais, necessá-
ria ao desenvolvimento, assim como à simples existência, e a preservação das
características nacionais. Daí uma ruptura, de contornos pouco nítidos, entre
burgueses modernistas, preocupados em manter a paz com as grandes potên-
cias, e sobretudo com os Estados Unidos, e outros burgueses que desenvolvi-
am um nacionalismo xenófobo.
Em 1941, o primeiro-ministro Konoye, bastante agressivo em 1937, tor-
na-se mais moderado e procura manter o país fora da Guerra Mundial. Como
o Japão já se encontra envolvido numa guerra local, na China, tem que aca-
bar com ela o mais rapidamente possível, através de um compromisso com o
aval de Washington. Konoye esbarra, dentro de seu próprio gabinete, com
uma tendência belicista que defende uma solução militar que privaria a Chi-
na do seu apoio externo, dado pela Sibéria soviética e Birmânia inglesa. Daí,
pensam os belicistas, a necessidade de uma guerra contra pelo menos uma das
duas potências. Enquanto aguardam, o desejo geral é que os Estados Unidos
não se envolvam. A controvérsia política volta a dividir os chefes militares: o
Exército encara mal a evacuação de territórios chineses, enquanto a Mari-
nha, conhecendo melhor o estado de espírito e os recursos da América do
Norte, permanece cética quanto à possibilidade de uma guerra contra a Ingla-
terra ou a Rússia, sem intervenção dos Estados Unidos.
Mas tinha começado uma partida de pôquer incomum no início desse ano
de 1941. O mais prestigiado dos almirantes, Yamamoto, impôs a idéia de que
era impossível manter os Estados Unidos fora de uma guerra e que, se os
interesses do Japão exigiam uma, tal conflito tinha de começar com um ata-
que-surpresa contra a frota de Pearl Harbor, cuja destruição podia deixar o
campo livre para uma ofensiva japonesa. Provavelmente para seu espanto,
recebeu a ordem de estudar os planos desse ataque. Isso é sabido há muito
tempo. Mas Yamamoto é apresentado como um homem dividido entre suas
convicções pacifistas e sua paixão pela luta. Documentos japoneses recente·
120 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
mente publicados sugerem que ele aceitou dirigir a operação apenas para
sabotá-la. Como evidência, as últimas ordens transmitidas à frota de ataque:
esta frota, a mais poderosa de toda a história naval, devia dar meia-volta, sem
mesmo consultar o Estado-Maior, se fosse identificada durante a sua viagem
de onze dias entre as Kurilas e o Havaí, mais de 24 horas antes de atacar; e
travar batalha em caso contrário. Ora, era difícil imaginar que nenhum meio
de reconhecimento aéreo assinalasse durante dez dias uma esquadra daque-
las, para não falar dos encontros fortuitos com navios ou aviões. Os belicistas
aceitaram um mau negócio, e os pacifistas fizeram um jogo aparentemente
sem riscos. Será que os Estados Unidos têm uma parcela de responsabilidade
na surpreendente carência de meios de reconhecimento aéreo a partir do
Havaf, ou foi apenas má sorte? A resposta é menos simples do que supõem
alguns adversários de Roosevelt, que acham que o presidente vigiava os bar-
cos agressores e os deixou agir para forçar a uma mudança de posição a opi·
nião pública do seu país, ainda pacifista. A ve'rdade é mais ou menos o contrá·
rio. Ele teria dado tudo para saber o que estava sendo planejado. A detecção
de uma força de ataque, que viajava clandestinamente enquanto prosseguia
em Washington a missão de Nomura e de Kurusu, embaixadores extraordiná·
rios, teria permitido que seu país confrontasse o Japão e arrancasse a forma•
ção, em Tóquio, de um governo decididamente pacifista: o seu objetivo era,
no fundo, o mesmo de Yamamoto.
A base de Pearl Harbor, como todas as dos Estados Unidos no Pacífico, foi
efetivamente colocada em estado de alerta pelo comandante supremo das
Forças Armadas, o general Marshall, mas em duas ocasiões: em outubro, no
dia seguinte ao da demissão de Konoye e da sua substituição pelo general
Tojo, presumível belicista; depois, em 27 de novembro, depois da ruptura das
negociações com Nomura, que parecia definitiva. Ora, nessas duas ocasiões,
nada aconteceu. No primeiro caso, os japoneses voltaram à mesa de negocia·
ções com novas propostas. Portanto, Roosevelt, após ter receado um ataque
no final de novembro, volta a ter esperança no princípio de dezembro, e reata
certos contatos. O que ele ignorava era que precisamente no segundo caso, o
Japão, decidido a atacar na rota marítima do Havaf, ou melhor, a correr os
riscos que mencionamos, precisava de um prazo de onze dias para preparar as
suas forças. Por outro lado, num período de tensão internacional tão forte,
ninguém imaginava um ataque-surpresa contra um objetivo tão distante do
Japão como o Havaí, pelo menos com meios importantes. Era antes esperado
nas Filipinas. E o exército americano estava exatamente transferindo equipa·
.
' _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _. __ ·-
._....L.i
Conclusão
François Delpla é historiador, especialista em Segunda Guerra Mundial, autm; entre outros, de
Aubrac. Les fairs e! la calomnie, Le Temps des Cerises Éditeurs, 1997.
Notas:
1. Cf. Jacques Bariéty, Les rela1ions franco-allemandes apres la Premiere Guerre mondiale, Pa-
ris, Pedone, 1977.
2. Cf. F. Delpla, Churchill e1 les Français (1934-40), Paris, Plon, 1993, eh. 1.
3. lbid., pp. 141-153 (com as referências aos arquivos corrigidos de Daladier), e, do mesmo,
Les papiers secrers du général Doumenc, Paris, Orban, 1992.
4. A missão Welles é ainda mal conhecida e as memórias do viajante, publicadas em Nova
York a partir de 1944 com o t(tulo The Time far Decision, servem-se do estado de guerra
para relatar as conversações de forma seletiva. Entretanto, a partir de 1959, o Departamen-
to de Estado norte-americano publicou, de uma forma que pretende ser totalmente abran-
gente, as informações dadas por Welles ao governo: Diplomaric Papers, 1940, t. 1. Uti-
lização muito parcial destes documentos em Churchill el les Français, op. cit., pp. 337 segs.
e 339 segs. sobre as outras conversações de emissários americanos, cf. John Costello, Les
dixjours qui om sauvé l'Occident, Paris, Oliver Orban, 1991, eh. 3, Les éclaireurs de la paix.
S. Churchill el les Français, op. cit., pp. 371-373. Em Le Livre noir du communisme (Paris,
Laffont, 1997, p. 234), Nicolas Werth cita, com a mesma data de 5 de março, um outro
texto, mais detalhado, assinado por Béria, no meio de uma página muito genérica sobre
as cobranças cometidas nos territórios ocupados pela URSS em 1939-40. Continua a não
existir nenhuma reflexão sobre a data e nenhuma discussão sobre minha tentativa de
explicação de 1993. O que tende a confirmar a crítica feita freqüentemente a esta obra,
de ser mais rica em balanços do que em reflexões.
6. Na parte da Polônia que ocupava, a Alemanha tinha proibido qualquer instrução além da
primária e perseguiu as elites, especialmente religiosas, de todas as maneiras poss(veis: cf.
por exemplo o n11 40 (outubro de 1960) da Revue d' Histoire de la Deuxibne Guerre mondiale.
7. Sobre os preparativos militares alemães durante a Drôle de Guerre, cf. F. Delpla, La ruse
nazie /Dunquerque, 24 maio 1940, Paris, France-empire, 1997.
8. Período estudado por John Costello, op. cit., cap. 12. Um surpreendente black-out persis·
te oito anos após a revelação, pelo Figaro de 13 de julho de 1990, dos trabalhos de uma
pequena equipe de eruditos de Sarthe, reforçada por Philippe Cusin e Jean-Christophe
Averty, sobre as variantes do texto do apelo pronunciado pelo general de Gaulle a 18 de
junho. Elas remetem muito provavelmente à luta entre Churchill e Halifax sobre a conti·
nuação da guerra: cf. Churchill el les Français, op. cit., pp. 717-727. Do mesmo, sobre o
papel de Jean Monnet, entrevista coletiva em 16 de junho 1994, na casa do autor.
9. E não em 3, como se imprime quase sempre: cf. F. Delpla, Montoire, Paris, Albin Michel,
1996, pp. 220-225.
124 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
1O. Cf. Marc-Olivier Baruch, Sen.rir l'État {rançais, Paris, Fayard, 1997, eh. 1. - bem resumi·
dos no livro Eugen Fried de Annie Kriegel e Stéphane Courtois (Paris; Seuil, 1997), pp.
356 a 362.
11. Victor Suvorov, Le brise-glace, Paris, Orban, 1989. Esta prosa, um dos últimos rebentos
da Guerra Fria (o autor, que fugiu para o Ocidente no princípio dos anos 1980, tinha sido
apanhado pela lntelligence Service), não é no entanto desprovida de interesse. Valendo-
se de um estudo rigoroso, até então inexistente, da ordem de batalha soviética, permite
pressentir em Stalin não um desejo suicida de atacar Hitler pelo seu poder, mas determi-
nados projetos de futuro: cf. Paul Gaujac, Barbarossa: l'Armée Rouge agresseur ou agressée!,
conferência no lnstitut d'Histoire des Conflits Contemporains, 26/2/1998.
12. Sobre todos estes encontros do outono de 1940, cf. Delpla, Montoire, op. cit.
13. Com uma exceção: a 5 de maio, sem dúvida para mostrar a Hitler que pode também
reagir se o agredirem, e possivelmente para não deixar a combatividade das suas tropas ir
por água abaixo, ele diz publicamente que "convém passar da defesa ao ataque": cf. Gael
Moullec, "1941: cornment Hitler a manipulé Staline", r. Histoire, março de 1998.
14. Cf. La ruse nazie, op. cit., eh. 12.
15. Cf. Paix et guerre /La politique étrangere des États· Unis 1931-1941, Washington, Department
of State, 1943, pp. 135-136.
16. Cf. E Delpla, Les nouveau.x mysteres de Pearl Harbor, inédito. Extratos na Internet: http: /
www.amgot.org/fr.hist.htm.
17. Acrescentemos para uso exclusivo dos espíritos menos sectários que a passividade ameri-
cana nos dias que precederam o ataque, e mesmo depois do seu início, tanto nas Filipinas
como no Havaí, se assemelha à de Stalin em junho anterior e poderia ter o mesmo obje-
tivo: encorajar as tendências pacifistas no país agressor, mostrar-se passivo.
18. Cf. Philippe Burrin, Hitler etles ]uifs, Paris, Seu~l, 1989.
SOBRE A ORIGEM DAS GUERRAS E UMA
FORMA RADICAL DO CAPITALISMO
PIERRE DURAND
Citar Jean Jaures é algo que se esquece facilmente nos nossos dias. No
entanto era ele que afirmava que o capitalismo traz em si a guerra como a
nuvem traz a tempestade. E poderíamos acrescentar que esta verdade é ainda
mais flagrante quando o capitalismo toma a forma política do fascismo. Para
nos mantermos na Segunda Guerra Mundial e nos seus preâmbulos, é incon-
testável que o capitalismo fascista esteve na sua origem. Mussolini atacou a
Etiópia e a Albânia, Hitler apoderou-se da Áustria e da Tchecoslováquia, o
Japão militarista atacou a China e a União Soviética, Franco, auxiliado pela
Alemanha, instaurou o seu poder contra a República. Numa última etapa,
Hitler provocou a guerra mundial atacando a Polônia.
Nunca se saberá com precisão matemática quantos mortos teve a matan-
ça mundial. Sem dúvida, cerca de cinqüenta milhões da Ásia à Europa e à
África, entre eles, cerca de vinte milhões, civis ou militares, da União Sovié-
tica, que dificilmente poderá ser considerada, nas circunstâncias, responsável.
Foi no quadro geral desta guerra mundial que apareceu a expressão mais
crua e mais violenta da exploração capitalista: aquela de que foi vítima a mão-
de-obra concentrada nos campos nazistas. Os "KZ" de Hitler tinham como
objetivo, na origem, separar adversários políticos do resto da população ale-
mã. Aqueles eram tratados tão duramente que um grande número deles mor-
reu entre 1933 e 1940. Em seguida, as SS, que eram as guardiãs dos campos,
serviram-se dos seus prisioneiros para ganhar algum dinheiro, fazendo-os tra-
balhar nas empresas de sua propriedade, sobretudo pedreiras.
A partir de 1942, os grandes trusts alemães da indústria de guerra exigiram
que fosse compensada a mobilização forçada das forças de trabalho tradicio-
nais por meio da utilização intensiva da mão-de-obra concentrada. Assim
apareceram, dentro dos próprios campos, fábricas de armamento diversas e,
no exterior, em kommandos onde o modo de vida e de morte rivalizava - por
vezes era ainda pior - com o dos "KZ" de que dependiam empresas de todos
os ramos da grande indústria: aviação, produtos químicos, metalurgia, extra-
ção de minério etc. Os prisioneiros trabalhavam noite e dia. Eram escravos
sujeitos a tarefas, e a vida deles pertencia às SS sem restrições nem limites.
No entanto, como escreveu um historiador, "é necessário não cair na ar-
128 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Notas:
1. Dominique Deceze, C esclavage concentrationnaire, FNDIRP, 1979.
2. A atividade de Pohl e dos seus serviços veio à luz durante o processo de Nuremberg.
130 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
l. O extcnnínlo dOJ judcua e d<» dgan<» nas clm.aras de PJ d«o= de uma outra lógica.
Todavía, há que~ t~ em coma que um certo número de indivld~ pertencen tes a estas
categorias (oi igualmentc uti!Uado como mão-de-obra em Au.i.chwia e outros campos
de&tc tipo, a panir do Anal de 19~2.
r
j '
IMPERIALISMOS, SIONISMO E PALESTINA
MAURICE BUTTIN
Na história contemporânea, o destino do povo palestino representa um
verdadeiro anacronismo numa época em que quase todos os povos con-
quistaram a independência.
Para compreender esta situação, impõe-se o conhecimento de um certo
número de dados geo-histórico-políticos referentes ao Oriente Médio.
O papel dos imperialismos ocidentais e russo-soviéticos e o do sionismo
antes da criação do Estado de Israel serão analisados no essencial, no âmbito
limitado deste texto.
Mas a Inglaterra não está zmha na guerra contra a Turquia, aliada das
Potência Cem · . A França e a Rússia dos czares também estão. Estes dois
e oo o, com a França cm primeiro lugar. Não é
L'n.cia na Terra Santa? Não obteve do sultão o
reconheciment o de todos os cristãos do Império Otomano
em 1673?Não ín t:erveio em 182 para salvar de massacres os cristãos maronitas
líbaneses7
A panir de 1916, &ão duzidas em Londres conversações secretas entre
os diplomatas M. Syke e M. Piccx que conduz.em a um "protocolo de acordo"
que estabelece a panilha da região em zon.a.s de influência das duas potências
imperialista - com desprezo 10t31 pelas a..spi.raçõcs árabes e pelas promessas
feitas pelos inglese 1
Para a França, fica o território do Uhano e da Síria enfraquecida. Para a
lnglarerra, a Mesopotâmia (o Iraque) , o 6Udeste da Síria, uma parte da Pales·
tina (Saint Jean d'Acrc) . Para e ta, trata· e de c.orucrvar cm benefício próprio
a "rota das Índias", do Canal de Suez ao Golfo Pérsico.
Uma grande parte da Palestina fica reservada para uma "administração
internacional cuja fo rma deverá ser decidida apó consulta à Rússia" ...
Notemos que esta decisão, destinada a conciliar as reivindicações anglo·
franco-russas, tirando partido dos lugares santos cristãos, não tem qualquer
ligação com as aspirações dos sionistas, que avançam os seus peões por outro
lado ...
0
Dcclaraç4o que promcre um Estado judaico na Pale•tina (1917), da auroria de Arthur James Balfour,
°'
pol!tico hritAnico que ocupou carga. de primeiro-ministro da• Relações Exteriores. (N. do T .)
136 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Mas Herzl não tinha escrito, em 1896, uma obra que iria marcar a Histó·
ria, Der ]udenstaat (0 Estado judaico)? Aliás , ele mesmo tinha feito esta ob-
servação no seu jornal, no fim do Congresso de Basiléia: "Fundei aí o Estado
judaico. Se eu tivesse a audácia de o proclamar hoje, todos ririam de mim.
Daqui a cinco anos talvez, seguramente daqui a quarenta anos, isso não esca-
pará a ninguém."
Que premonição!
Herzl morre em 1905. Um judeu russo naturalizado inglês assume a causa.
Para Chaüm Weizmann, ao contrário de Herzl, não se concebe a "pátria ju-
daica" fora da Palestina. Brilhante investigador científico, dá uma ajuda pre-
ciosa ao esforço de guerra inglês ao conseguir realizar a síntese da acetona.
Isso abre para ele inúmeras portas, especialmente a de Lloyd George, futuro
primeiro-ministro. Ele é já amigo de Arthur Belfour, futuro ministro das Rela-
ções Exteriores. Propõe a eles a criação de um Estado-tampão judaico na
Palestina sob proteção britânica, a melhor maneira de assegurar a defesa do
Canal de Suez ...
Os ingleses vão comprar esta idéia, principalmente porque receiam ser
ultrapassados pelos judeus alemães favoráveis à causa da Alemanha por ódio
aos russos e porque ela também permite evitar a inremacionalização da Pales-
tina.
A entrada na guerra dos Estados Unidos, a Revolução Russa e as garantias
que é preciso dar aos judeus americanos para que participem do esforço de
guerra e aos inúmeros judeus revolucionários russos, não os deixam hesitar
mais. Balfour pede a Weizmann e a Lord Rotschild - dois raros aristocratas
judeus a seguir a via sionista - que apresentem um projeto de declaração
referente à Palestina. Este projeto alterado seria a base da carta endereçada
pelo ministro das Relações Exteriores britânico a Lord W Rotschild, em 2 de
novembro de 1917, nos termos da qual "o Governo de Sua Majestade encara
favoravelmente a fundação na Palestina de uma Pátria nacional para o povo
judeu e empregará todos os seus esforços para facilitar a realização deste obje·
tiva ..."
0 Provlnciaocidental do Anlbia Saudita sobre o mar Vermelho. Sob dominação otomana fui, de 1916 1
1926, um reino independente que se uniu ao Nadjd pora constituir a Arábia Saudita. (N. do T.)
••Marechal britdnico que, durante a guerra de 1914·18, combateu na Fronço e depois na Pulcstina.
Venceu os turcos cm Meggido (1918). (N. do T.)
138 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
1'
o Q.G. britânico no King David Hotel. lvlai.s de 90 mort.Oll, dezenas de feridos!
'!:
l l ' Em fevereiro de 194 7, face a uma situação ín,sustentável, o governo inglês
·' decide submeter o caso palestino à ONU.
As operações no terreno
A repressão interna
Sob Thieu, apoiado pela logística americana, esta repressão foi particular-
mente feroz e sanguinária. Às bombas, ao napalm, ao fósforo, é necessário
somar todo o instrumental mortífero das prisões, as torturas, as sevícias e as
medidas de coação psicológica.
É deste aparelho de repressão e seus métodos que tratamos aqui, com
mais rigor.
Em 1969, Nixon renuncia à reconquista das zonas rurais e montanhosas
libertadas. Ordena o bombardeio sistemático e ininterrupto destas regiões,
obrigando milhões de camponeses a refugiarem-se nas cidades. Sobre esta
população concentrada à força, e com o intuito especial de acelerar o recruta-
mento de mercenários, Nixon e Thieu fazem reinar um regime de terror.
Trata-se de paralisar todas as atividades patrióticas, liquidando os mili-
tantes e os suspeitos, encarcerando qualquer opositor real ou presumido; de
aterrorizar a população e de obrigá-la a aceitar a administração que Washing-
ton impõe. A coação física e psicológica pretende mesmo, como é habitual em
regime ditatorial, obrigar os nacionalistas e os resistentes a renegar as suas
convicções, para os fazer passar para o serviço do ocupante.
Com este objetivo, é montado todo um aparelho de repressão. Toda uma
rede de prisões, de trabalhos forçados, de campos de detenção, todo um siste-
ma de torturas físicas e morais é "modernizado" por especialistas e contando
com maciça ajuda financeira e técnica de Washington. A experiência coloni-
al francesa e inglesa - particularmente com Robert Thompson, promovido a
conselheiro supremo de Nixon - foi aproveitada e "melhorada" pelos servi-
ços americanos especializados.
Os instrumentos
O quadro legal
Ajustiça
Os centros de interrogat6rio
& prisões
As jaulas de tigres
*Nome d3do aos prisioneiros que tinham a função de dirigir os outros pre.sos nos campos de concentra-
ção nazistas. (N. do T.)
GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIETNAMITA 153
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de 1973). "Somente n njudn omerlcnnn cm homens e cm d61nrcs permite n
Thlcu cont'lmmr com ns prisões, 11 dcrcnçno, as torturas e o mnssncrc de prlslo·
nclros pol!tlcos" (Saigon's /irLmnners, USA, 1973). A Imprensa nmcricnna re•
conhecia n pcrmnnl!ncía de "20 mil 'conselheiros clvls' opós o rctlmda das
tropas fardadas" e o pleno funcionamento da "opcrnçõo Fl!nlx - cm breve
156 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
François Derivery é pintor (grupo DDP), autor de inúmeros arcigos de estética e de crítica e
sccrctãrio da revista Es!hétique Cahiers (1988-199i) . Atualmente é chefe de redação adjunto
da revista lntervention.
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÃ
FRANÇOIS DERIVERY
Aos meus amigos -onde estão lwje? -do Partido Tudeh, do Irã
por meio de uma ordem que lhe é entregue por Nassiri, o futuro chefe da
Savak.
Em 19 de agosto, Mossadegh foge. Será capturado, cercado na sua peque·
na casa de tijolos de Teerã, preso, julgado em 8 de novembro de 1953, conde-
nado à morte (pela comutada pelo xá, que não quer fazer dele um mártir) e
finalmente condenado a três anos de prisão.
Os recursos necessários para o golpe foram fornecidos pelos Estados Uni-
dos (400 mil dólares), e pelo Banco Melli do Irã. Além dos dois principais
protagonistas, alguns outros personagens participaram da conspiração, como
aconteceu com o general Nassiri. Mas foi Allen Dulles que supervisionou o
processo e moveu as cordas, com o seu adjunto Richard Helms, que se toma·
rá, em 1974, embaixador dos Estados Unidos em Teerã.
O golpe de Estado de 19 de agosto de 1953 não teve mais de 200 morros,
fato excepcional na história do Irã!
O retomo das companhias petrolíferas é imediato.
No dia 5 de agosto de 1954 é assinado um acordo com um consórcio
internacional do petróleo do qual fazem pane ingleses, franceses, holandeses
e americanos. Está criada a Sociedade Nacional do Petróleo iraniana. O con·
sórcio deverá restituir uma parte dos 260 mil quilômetros quadrados de cam·
pos petrolíferos que tinha sob controle.
Durante esse tempo, um indivíduo intrigante prossegue a sua rota a cami·
nho do poder: o general Teymour Bakhtiar, governador de Teerã. Inicialmen-
te partidário de Mossadegh, traiu-o para conduzir o seu próprio jogo. Orde-
nou o massacre dos partidários do Tudeh - 800 prisioneiros - no pátio da
prisão de Gharz. Com a ajuda do procurador-geral Azmoudeh, encarregado
de dar a essas operações uma cobertura legal, faz também "desaparecer" mais
de 3 mil partidários de Mossadegh por meio de execuções sumárias (Le Monde
de 13-14 de novembro de 1955).
É esse carrasco que em 1956 cria a Savak, a polícia política do xá, de
reputação sinistra, verdadeiro estado policial dentro do Estado, com apoio
técnico e financeiro dos Estados Unidos e do Mossad (o serviço secreto de
Israel) . A ambição desmedida de Bakhtiar está na origem da sua derrota. Depois
de ter tentado rivalizar com o xá, será assassinado no Iraque (1959).
A Savak2
depois, de Hosscin Fardous. Este organismo tem cerca de 200 oficiais supe·
riores. Finalmente, um gabinete especial é composto por quinze oficiais esco·
lhidos a dedo. Éa cúpula da organização e controla rigidamente as atividades
do conjunto do sistema. Só presta contas ao xá.
Esta polícia secreta, organismo de infiltração, e de vigilância e controle da
população, está em todos os lugares. Qualquer iraniano pode sentir-se espio·
nado a todo o momento, portanto deve controlar suas opiniões. Esta psicose
permanente não é fruto da imaginação. No Irã, a liberdade de expressão não
existe. Qualquer crítica ao regime, e especialmente ao xá ou à sua família, é
um crime passível de prisão imediata. O nome da organização secreta é taro·
bém um tabu. Em cada lar devem figurar, obrigatoriamente, o retrato do xá ou
do seu filho. Logo que um desconhecido aparece numa rua, o tom baixa, a
conversa é interrompida. Quantos transeuntes inocentes, ou até mesmo au·
tênticos patriotas, não foram suspeitos, sem razão, de pertencer à temida po·
!feia e quantos outros também foram mas com justiça? Estão sob constante
vigilância os lugares públicos, as mesquitas, o Bazar (que, com as universida·
des, será o principal foco da resistência popular), e também as fábricas, os
estabelecimentos comerciais e, claro, os hotéis internacionais (o Interconti-
nental, o Royal Teheran Hilron), onde os empregados são freqüentemente
agentes da informação. Microfones e filmadoras estão escondidos nos quartos
de hotel. Vigia-se tudo. A correspondência comum é aberta, sobretudo aque-
la que é endereçada ao exterior. Políticos, militantes, estudantes instalados na
Europa, nos Estados Unidos ou na URSS estão sob vigilância constante - e
há, evidentemente, agentes da Savak que tentam se infiltrar nos meios oposi-
cionistas no exterior -, e as suas famílias e amigos são fichados e por vezes
presos.
Os funcionários públicos e políticos também são suspeitos, todas as per-
sonalidades do regime são vigiadas por agentes da segurança. Os escritórios
da Savak são numerosos em Teerã; o quartel-general situa-se perto de
Chemirand, na encruzilhada de Saadabad. O "Comitê", temido com razão,
é um edifício enorme, de paredes grossas, cheio de antenas. Os indivíduos
_: suspeitos de um crime - que pode ir de um simples delito de opinião até a
acusação de pertencer a uma organização política proibida, como o Tudeh
- são presos e conduzidos a prisões ou centros de interrogatório. É o início
de uma viagem incerta, freqüentemente de horror, porque a tortura é prati-
cada regularmente. Os presos vivem em péssimas condições e, sob a orien-
tação dos conselheiros israelenses e americanos, também são praticadas chan-
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRA 167
tagem, prisão e tortura dos familiares. Além dos julgamentos a portas fecha-
das que transcorrem sob a ~gide de um tribunal militar cujas decisões nunca
são justificadas, das execuções sumárias e das mortes durante tortura, há
outras práticas abjetas, como a transmissão pela TY, quase diariamente, dt.
confissões e de autocríticas de prisioneiros, que todos sabem serem obtidas
por meio de tortura e chantagem; os "arrependidos" são maquiados para
disfarçar os ferimentos.
Numerosos intelectuais e artistas iranianos passaram pelas masmorras do
xá; muitos morreram. À margem do fausto de Persépolis, o regime pareceu
querer expurgar completamente do povo suas elites democráticas. A impren-
sa ocidental e alguns organismos internacionais acabaram por transmitir ecos
tímidos desses atentados aos direitos humanos. Mas quando um jornalista
ousa perguntar ao xá - que sempre negou a tortura - o que ele pensa disso,
ele responde: '~istia Internacional? O que é isso? Não fazemos a mínima
idéia!" (Actue! 2, 24 de junho de 1974).
Em 1971 teve lugar o processo do "Grupo dos Dezoito" em Teerã. Sob
tortura, todos confessaram ser comunistas, depois negaram. Um observador
francês, Mignon, que pôde assistir a duas audiências do tribunal (acusação e
"defesa" asseguradas por militares) relata que vários dos detidos mostravam
cicatrizes e seqüelas de torturas. Um acusado, Chokrollah Paknejad, afir-
mou: "Fui conduzido, após a minha prisão, aos porões da Savak em
Khorarnshahr onde fui despido em meio a socos. Fui surrado durante vinte
horas de interrogatório. A seguir, passei uma semana nos rnictórios da prisão
de Abadan, sem roupa. Fui depois transferido para Evine (prisão no norte
de Teerã), onde fui novamente torturado, surrado e chicoteado. Depois co-
locaram-me algemas nos pés e, suspenso, com as mãos atrás da nuca, me
prenderam pesos cada vez maiores e fui novamente espancado." Outro acu-
sado, Nasser Kakhsar, dirá corno viu morrer o engenheiro Nikadvoudi sob
tortura na prisão de Ghezel-Galeh, em conseqüência de uma lesão na me-
dula. O seu delito era o de "ler livros". O aiatolá Sa1di morreu também nessa
prisão.
Nouri Albala e Libertaris, da Federação Internacional de Juristas Demo-
cratas, assistiram também a processos de opositores iranianos detidos em Evine.
Entre 28 de janeiro e 6 de fevereiro de 1972, seis presos foram condenados à
morte. Outros eram acusados de assaltos a bancos e a postos policiais ... Ape-
sar da lei, as audiências transcorriam a portas fechadas. Os prisioneiros são
torturados durante sessões de longa duração. Alguns contam como era. Sadegh
168 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Notas:
e generais iniciaram ali sua carreira militar, ao lado dos militares japoneses.
Foi o caso de Suharto, futuro ditador fascista.
Em setembro de 1944, num momento em que os dirigentes de Tóquio
sentiam aproximar-se a sua derrota com o fim da Segunda Guerra Mundial, o
governo acaba prometendo a independência aos indonésios.
Suharto pôde intervir de modo mais eficaz, e em 111 de junho de 1945,
baseado no gotong royong, ou entendimento mútuo, formulou os Pantja Sila, os
cinco princípios: nacionalismo, internacionalismo, democracia, justiça social
e crença em Deus. Em 17 de agosto de 1945, dois dias após a queda do Japão,
pressionados pelos jovens ativistas nacionalistas indonésios, Sukamo e Hatta
'l proclamaram a independência da República da Indonésia. A soberania das
ilhas, ainda submetida a pressões ocidentais, exprimia-se sob o nome de "Es-
tados Unidos da Indonésia".
Mas isso não eliminou as dificuldades sociais do povo, e o descontenta·
mento tomava-se cada vez mais forte, quer nas cidades, quer nas aldeias.
Os comunistas tentaram uma insurreição em Madiun, e foram injusta-
mente acusados de terem tentado tomar o poder em setembro de 1948, um
ponto da história que permanece confuso. O fato é que foram perseguidos e
rapidamente esmagados pela divisão Siliwangi do coronel Nasution, chefe do
Estado-Maior do exército indonésio. Trinta mil dos seus homens foram mor-
tos, entre eles os seus principais dirigentes: Amir Sjarifuddin e Musso, que
regressara da URSS um mês antes. Este acontecimento teve um aspecto pre·
monitório em relação aos massacres muito maiores que aconteceriam dezessete
anos mais tarde.
Os colonialistas holandeses quiseram aproveitar a situação e capturaram
Sukamo e os membros de seu governo. Porém, os Estados Unidos, animados
com a vitória da ação militar anticomunista e, por outro lado, muito inquietos
pela chegada ao poder de Mao Tsé-tung na China, impuseram aos Países Bai·
xos os acordos assinados em Haia, em novembro de 1949. Para os imperialis-
tas americanos, convinha sobretudo não fazer o que quer que fosse que pu•
desse colocar os Indonésios no campo dos comunistas. Na época, falava-se
freqüentemente da teoria do dominó, ameaça concreta que pesava sobre toda
a Ásia.
Os "Estados Unidos da Indonésia" deram então lugar à "República Unida
da Indonésia", cujo presidente era Ahmed Sukamo. Foi instaurado um regi-
me parlamentar, apesar de o presidente ser o defensor do partido único. Este
regime tumultuado teve seis governos em sete anos.
GENOCfDIO ANTICOMUNISTA NA INDON~IA 179
fez-se nomear presidente em 1968. Sukarno não pôde ou não quis fazer nada
de decisivo para se opor às manobras cínicas e violentas deste general que o
afastara progressivamente de toda a atividade política. Fechado em sua casa,
o "pai da independência indonésia" morreu em junho de 1970. A "Nova Or-
dem" fascista estava instalada. O novo chefe de Estado dispunha, sem reser-
vas, de um reagrupamento político fundado por sua iniciativa - o Golkar.
Em janeiro de 1974 foram reprimidas selvagemente algumas manifestações
de estudantes e novamente feitas centenas de detenções e prisões. Foram
interditados dez jornais. O mesmo aconteceu em 1978.
As ligações entre os governantes americanos e Suharto continuaram a se
intensificar. Os presidentes americanos Nixon e Ford visitaram a Indonésia em
1969eem1975. Note-se que, doze horas depois desta visita, o exército indonésio
lançava uma violenta agressão ao Estado independente de Timor-Leste.
Por sua vez, Suharto visitou os Estados Unidos em 1970, 1975 e 1982.
A partir daquele momento, o imperialismo americano estava seguro do
seu cúmplice ou agente indonésio. Basta investigar as despesas sucessivas da
ajuda militar dos Estados Unidos à Indonésia para perceber isso. Por exemplo,
o montante de 34 milhões de dólares concedido em 1979 tinha subido, em
1983, para 53 milhões de dólares (um aumento de 64%) . Destaquemos, por
outro lado, a informação fornecida em 1975 pela publicação já citada editada
pelo Comitê Indonésia-França: " ... Presidente do IGGI (Consórcio Internaci-
onal de Ajuda à Indonésia, do qual a França fazia parte desde a sua criação
em 1967), o ministro holandês M. Pronk deslocou-se para a Indonésia em
novembro de 1973. Às autoridades indonésias com quem discutiu o montan-
te e as modalidades da ajuda do IGGI à Indonésia para o ano de 1974, ele
manifesta a inquietação do seu governo quanto à situação dos prisioneiros
políticos indonésios. Na Conferência do IGGI em Amsterdã, em maio de 1974,
a questão foi colocada na ordem do dia, para grande embaraço da delegação
de Jacarta, o que não impediu que a Indonésia obtivesse os seus 850 milhões
de dólares anuais ... "
Naturalmente, seria fácil acrescentar a todos estes dados específicos uma
verdadeira enciclopédia de crimes e outros atos bárbaros do fascismo indonésio,
cuja instauração foi apoiada pelo capitalismo ocidental. Mas é desde logo evi-
dente que o general Suharto tomou a seu cargo o genocídio dos comunistas
do seu próprio país, sem poupar aliás, todas aqueles que, progressistas ou pura
e simplesmente nacionalistas antiimperialistas, foram igualmente vítimas da
sua ferocidade.
188 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
'
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE
JACQUES JURQUET
A ilha de Timor faz parte do arquipélago das ilhas Sonda.
Sua parte oriental situa-se a 350 quilômetros da Indonésia e a 500 quilô-
metros a norte da Austrália.
A população nativa, com cerca de 600 mil habitantes em 1975 e com-
posta por 90% de camponeses, foi fortemente marcada pela colonização
portuguesa, que durou pouco mais de quatro séculos e meio. Assim, e ao
contrário das populações que habitavam a parte ocidental da ilha e prati-
cavam o islamismo, os habitantes de Timor-Leste passaram de práticas
animistas ao cristianismo. O clero católico mantém uma longa influência
sobre o povo.
Em 1975, o analfabetismo na ilha era grande e as condições sanitárias
muito ruins: uma taxa de mortalidade infantil muito elevada, perto de 40%,
tuberculose e malária endêmicas e apenas 20 médicos para todo o país, todos
residindo na capital. Os escassos 30 quilômetros de estrada asfaltada tomavam
praticamente impossível fazer chegar quaisquer cuidados ao interior.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses desembarcaram em
Timor-Leste e se impuseram pelas armas contra os portugueses. A ocupação
violenta custou a vida de cerca de 50 mil timorenses, mas estas vítimas foram
ignoradas pelo Ocidente. Em relação ao conjunto da população de Timor-
Leste, foi o mais alto percentual de mortes de todos os massacres perpetrados
contra os povos da Ásia.
Assim, em 1945 e depois da derrota dos japoneses, Timor-Leste passou a
ser um ponto estratégico cobiçado pela longínqua Grã-Bretanha e pela vizi-
nha Austrália.
Por outro lado, os governantes indonésios, livres do colonialismo holan-
dês, consideravam este pafs parte do seu e, na mesma época em que Sukamo
ainda governava sem uma oposição forte, alguns militares de extrema-direita
desenvolveram atitudes hostis aos portugueses. Em junho de 1959, na região
de Viqueque, houve uma revolta, provavelmente encabeçada por esses mili-
tares, contra os colonos portugueses que viviam e trabalhavam nas fazendas.
A repressão colonial, imediata e extremamente violenta, fez cerca de mil mortos
entre os timorenses, e outras centenas foram encarceradas em condições de-
sumanas.
192 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
tu(do e preso por outros dirigentes da Fretilin, que acentuaram o caráter radi·
cal de seu discurso e suas ações. Acusado de traição, logo caiu nas mãos do
Abri, não tendo sido executado mas enviado para um campo. O seu substitu·
to foi Nicolau Lobato.
Nestas circunstâncias, o Abri decidiu fazer tudo para destruir a resistência.
De setembro de 1977 a março de 1979, desencadeou três ofensivas, parte de
uma campanha estratégica de "cerco e aniquilação". O objetivo inicial con·
sistia em isolar os combatentes da guerrilha do seu apoio logístico, a popula·
ção. Vieram depois duas campanhas sucessivas que reduziram as populações
civis à fome, em 1979 e em 1981. Estas operações militares recorreram a ar·
mamento novo e moderno, a bombardeios e à destruição sistemática das cul·
turas sob a palavra de ordem: "busca e destruição". A resistência foi tenaz,
mas sofreu derrotas inevitáveis.
O clero católico não abandonou os patriotas. Eis o que escreveu um padre
de Díli a duas irmãs dominicanas: "Desde o final de setembro, a guerra inten·
sificou-se ainda mais. Os bombardeios duram da manhã à noite. Centenas de
seres humanos morrem diariamente, e os seus corpos são deixados de repasto
para os abutres (se não são as balas que matam, são as epidemias) . Algumas
aldeias foram completamente destruídas e algumas tribos dizimadas. A barbárie,
a crueldade, as destruições inqualificáveis, as execuções sem motivo, numa
palavra, 'o inferno organizado', ganharam raízes profundas em Timor... Nas
ruas de Díli só se vêem soldados indonésios. Os poucos timorenses que restam
estão refugiados nas florestaS, mortos ou na prisão" (Ibid., obra de O. Defert,
página 110).
Ao fim de algum tempo, e após furiosos confrontos, os combatentes da
Fretilin e 60 mil civis não armados retiraram-se para as montanhas nas
profundezas da selva. Os principais dirigentes que sobreviveram foram captu·
rados após combates de uma intensidade assustadora e, em seguida, mortos.
O presidente da Fretilin, Nicolau Lobato, foi ferido, morrendo depois no avião
que o transportava para Díli, sem dúvida assassinado. Com exceção daqueles
•
1 que pertenciam à delegação externa do governo da República Democrática
de Timor-Leste e de três membros do Comitê Central, todos os dirigentes da
Fretilin foram exterminados.
A barbárie fascista, aprovada e apoiada de maneira discreta pelos ameri·
canos e deliberadamente ignorada pelos governos ocidentais e australiano,
apresentava as mesmas características que a dos nazistas. A Anistia Interna·
cional falou abertamente da execução sistemática de civis e soldados que ti·
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 197
nham se rendido ou que haviam sido capturados pelo Abri. Soube-se também
que alguns entre eles tinham sido queimados vivos depois de torturados, e de
outros lançados de helicópteros. Em várias regiões montanhosas, milhares de
timorenses foram abatidos em operações de limpeza sistemáticas.
Aldeias com habitantes que não tinham tido tempo de fugir foram trans·
formadas em campos especiais. Estes campos, cerca de 150, mantinham deti-
das entre 250 mil e 350 mil pessoas que, cobertas apenas com andrajos, não
dispunham de nenhum alimento e eram vítimas de epidemias sem receber
qualquer tratamento.
Um jornalista ocidental que conseguiu visitar um destes campos, pro·
vavelmente em nome da Cruz Vermelha indonésia, fez este relato chocan-
te: "Homens, mulheres e crianças, todos apresentavam marcas de priva-
ções: corpos debilitados, vestidos com farrapos, rostos descamados e vazios,
já tocados pela morte. Os ventres inchados das crianças eram de tal forma
protuberantes que os menores tinham que tirar os calções" (lbid., página
118).
A tuberculose, a malária, as disenterias e outras infecções provocaram
a morte de dezenas de milhares destas pessoas que viviam mais ou menos
a mesma existência dos campos de extermínio nazistas (se descontarmos o
caráter industrial das câmaras de gás e fomos crematórios de Auschwitz).
Aqueles que se afastavam da aldeia em busca de comida eram abatidos
sem aviso.
No entanto, apesar de 80% dos seus efetivos terem sido eliminados, as
Falintil não se renderam. Um dos três membros restantes do Comitê Central,
Alexandre Gusmão, o Xanana, dotado de uma energia e de uma coragem
lendárias, conseguiu reconstituir algumas unidades e lançou operações arro·
jadas até o coração de Díli. Durante o verão de 1980, conseguiram sabotar
uma emissora da televisão indonésia que tinha acabado de ser construída na
capital timorense.
A nova direção da Fretilin decidiu mudar de estratégia. Era preciso levar
em consideração a situação criada no pafs, onde todas as cidades, bem como
muitas regiões agrícolas, estavam ocupadas. As Falintil já não eram suficien·
temente numerosas para efetuar grandes operações, semelhantes às de antes
das derrotas sofridas no final de 1978. Foi suspensa a tática de reorganizar as
forças sobreviventes em pequenas unidades capazes de realizar operações rá-
pidas, seguidas de retiradas imediatas.
O sucessor de Nicolau Lobato foi Xanana Gusmão, que tinha se empe-
\98 O LlVRO NEGRO DO CAPITALISMO
indonésios que abriram fogo sexta-feira na Universidade de Drli ... Por seu
lado, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) protestou oficial-
mente contra as ações dos policiais, que levaram à força um jovem grave-
mente ferido que a Cruz Vermelha socorria: "[este] homem, atingido no
pescoço e coberto de sangue, foi tirado do veículo da CICV e arrastado
pelos policiais que o levaram para dentro de um ônibus. Quatro a seis estu·
dantes ficaram feridos, e algumas informações não confirmadas davam con-
ta de um morto" (AFP).
Esta guerra de conquista colonialista por um Estado fascista apoiado pelo
capitalismo internacional ganhou stacus de genocídio ou emocídio quase com·
pleto. Os próprios serviços indonésios reconheciam entre 170 mil e 212 mil
mortos na população de Timor-Leste. Os representantes da Igreja Católica
fornecem avaliações mais confiáveis, avaliando o número de vítimas de 308
mil a 345 mil, numa população que no início do confronto era estimada em
600 mil habitantes.
Mas estes dados estatísticos só se referem ao período de 1975 a dezembro
de 1981. Depois disso novas matanças foram perpetradas contra a população
de Timor-Leste. Em 1998 há todos os motivos para se estimar que dois terços
do povo do país foram dizimados. Consideremos estes números com objetivi·
dade, comparando o que representa esta percentagem aplicada, por exemplo,
à França, Se os crimes tivessem sido cometidos nesse país teriam resultado em
40 milhões de mortos, o que, excetuando uma guerra atômica, é evidente·
mente inimaginável.
E é aqui que se pode medir o caráter criminoso e cúmplice do mundo
capitalista, quando se sabe que nunca foi ramada nenhuma medida con•
ereta para salvar o povo de Timor-Leste deste massacre. Logo a seguir à
proclamação da independência de Timor-Leste pela Fretilin, um determi·
nado número de países reconheceu a sua soberania, entre eles, a China
Popular, vários países da Ásia, o Vietnã e os países de África colonizados
por Portugal.
O ministro das Relações Exteriores do governo de Díli, José Ramos
Horta, tinha partido cm 4 de dezembro de 1975 numa viagem pelo mun•
do, com o objetivo de garantir apoio diplomático para o caso de os fascistas
indonésios lançarem contra o seu país uma agressão militar visando a ane·
xação.
Os acontecimentos apanharam-no de surpresa e, logo depois da invasão
do Abri e do ataque contra Díli, restou a ele aceitar um convite do Conselho
! _i
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 203
Bibliografia:
Gabriel Defert, Timor-Est: Le génocide oublié. Doit d'un peuple ec raisons d'États, C Harmattan,
novembro de 1992.
Ubéracion, diversas edições entre 1991 e 1998.
I.! Humanité-rouge, anos de 1975 e 1976, especialmente o número 509, de 15 de junho de
1976, e a nota de solidariedade do Partido Comunista da Indonésia.
Le Monde, especialmente as edições dos dias 13, 14 e 19 de novembro de 1991.
Amnesty Intemational, Londres, 1977.
Prolécariat, número 12, primeiro trimestre de 1976, página 56 e seguintes.
Mary Mac Killop, publicação do lnstitute of East Timorese Studies, Austrália.
-
para os iraquianos uma parte irrisória dos lucros. O Estado iraquiano esperava
ter o direito de interferir na exploração do seu petróleo e exigia um aumento
da produção para financiar a reconstrução do país pilhado pelo Império
Otomano e pelos britânicos, mas a IPC não queria ceder. O governo pediu
que fosse anulado o mandato inglês sobre o Kuwait, que considerava provín·
eia iraquiana (a fronteira tinha sido delimitada em 1922 pelo protetorado
britânico que confiou o poder ao xeque antes que a Kuwait Oi! Company,
anglo-americana, reservasse para si mesma e por 99 anos a concessão das
pesquisas e da exploração petrolífera). Com a recusa inglesa, o governo deci-
diu então pela nacionalização de 90% das terras, incluindo jazidas ainda não
exploradas pela IPC.
A nacionalização provocou a ira dos homens do petróleo, que em 1963
fomentaram um golpe de Estado organizado pelo partido Bath, com a aju·
da dos diversos grupos de interesses anglo-saxônicos e financiado pelos
kuwaitiano. Depois de vários dias de bombardeios à sede do governo repu·
blicano e de confrontos com a população nas ruas de Bagdá, a junta mili·
tar conseguiu executar Kassem, chefe do governo e líder da revolução, e
vários dos seus companheiros, e implantar um regime de terror que durou
nove meses, durante os quais todas as formas de repressão, de tortura e
violência foram infligidas aos patriotas antiimperialistas e aos legalistas
republicanos. Mais de 400 mil pessoas foram presas e torturadas, sendo
que 20 mil delas nunca regressaram dos campos de concentração, mortas
sob tortura ou sumariamente executadas. Um grande número de sindica-
listas, chefes do Partido Comunista, intelectuais e simples militantes
antiimperialistas foram eliminados em alguns meses. O movimento patrió·
tico foi decapitado.
Esse golpe permitiu que as empresas petrolíferas conseguissem a anulação
da lei n2 80 sobre a nacionalização do petróleo, a supressão do novo código
civil (que estabelecia a igualdade entre homens e mulheres), a abolição da
reforma agrária, restituindo as terras aos grandes proprietários, a supressão do
direito ao trabalho e o fim das negociações sobre os direitos do povo curdo.
Alguns anos mais tarde, vários líderes do golpe revelaram que estavam ligados
aos ingleses e americanos. Ali Salh al Saadi, número dois do partido e minis·
tro do Interior, declarou em 1968 à revista libanesa Estudos árabes: "O nosso
partido foi conduzido ao poder por um comboio americano."
Em julho de 1963, o ministro da Defesa iraquiano informou oficialmente
o seu governo de que o adido militar dos Estados Unidos, lotado em Bagdá,
212 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
A armadilha
Antes do embargo:
Depois do embargo:
Subhi Toma é sociólogo de origem lraquiana, exilado na França desde 1971. Foi secretário·
11cral dos estudantes de oposição ao regime de Bagdá. Co-fundador da coordenação interna·
danai contra os embargos, chefiou várias missões de observação no Iraque depois da guerra
de 1991.
Notas:
' ~
A ÁFfilCA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO
FRANCESA
JEAN SURET-CANALE
Ao longo do século XIX, o antigo sistema colonial cscravagista e mer-
cantil foi desaparecendo, pouco a pouco, para dar lugar à colonização "mo-
derna", aquela que predominou do último quarto do século XIX a meados
do século XX. Esta colonização "moderna" é marcada por um retomo ao
protecionismo no quadro "imperial": cada grande potência reserva para si
os mercados das suas colônias e zonas de influência que cobrem o mundo
inteiro.
A França, que a partir de 1830 se empenhou na conquista da Argélia,
completa as suas "velhas colônias" herdadas do Antigo Regime e restituídas
em 1815 com novas aquisições, sob a Monarquia de julho e sob o Segundo
Império.
Mas seria a Terceira República que viria a constituir, entre 1876 e 1903,
um vasto império, cujas peças principais do ponto de vista econômico foram a
África do Norte e a Indochina, mas cuja maior parcela se situa na África
tropical, com a África Ocidental Francesa, a África Equatorial Francesa, às
quais se juntaram em 1918 a maior parte das antigas colônias alemãs de Ca-
marões e Togo. Um território contínuo através do Saara, com os domínios
franceses da África do Norte, completados no oceano Índico por Madagascar
e o território de Djibuti.
Na colonização "à nova maneira", os grupos financeiros resultantes da
fusão por concentração das grandes empresas industriais e bancárias parti-
lham entre si os mercados, substituindo o monopólio pela livre concorrência,
e, nas colônias, dão primazia à exportação de capitais sobre a exportação de
mercadorias e a importação de matérias-primas. A África negra francesa, nes-
ta perspectiva, é a exceção. Ar, a exploração permanece essencialmente co-
mercial, monopolizada por um número restrito de empresas de Marselha e
Bordeaux integradas tardiamente no capital financeiro, que, tendo limitado
ao mínimo os seus investimentos, praticam a troca dos produtos agrícolas
fornecidos pela agricultura tradicional por mercadorias importadas (tecidos,
materiais de construção, pequenas ferramentas).
224 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
A conquista colonial
Os métodos de guerra
O sistema colonial
sa, a situação era ainda pior: foi preciso esperar até 1937 para que fosse criado
um serviço de ensino em Brazzaville; anteriormente as raras escolas estavam
ligadas ao serviço dos "Assuntos Políticos e Administrativos". Existia uma única
escola superior primária, em Brazzaville.
Passemos à Saúde Pública: o "Serviço de Saúde Colonial", militarizado
(iria permanecer assim até as independências) era primeiro reservado aos eu·
ropeus e aos soldados, depois aos funcionários indígenas. As missões, por seu
lado, tinham criado enfermarias e dispensários. Só em 1905 é que foi criada
na África Ocidental a "assistência médica indígena", orientada para a mediei·
nade massa, com uma rede de hospitais "indígenas" (3em1910) e dispensários.
Em 1908, as estatísticas indicam 150 mil doentes tratados, em 12 milhões de
habitantes.
Às doenças endêmicas (malária, febre amarela etc.) a colonização veio
acrescentar as doenças importadas, mais terríveis na medida em que os africa-
nos não estavam imunizados e elas se manifestavam de forma brutal (sífilis,
tuberculose). Os deslocamentos constantes da população devido às maciças
requisições de mão-de-obra e o desenvolvimento das relações comerciais con·
tribuíram para as epidemias. O diretor do Serviço de Saúde de Camarões
escreveu, em 1945:
"As doenças, se desempenham um papel muito importante na degradação
das populações indígenas, não são as únicas responsáveis, e devem ser apon·
tadas outras causas que propiciam os males e que têm uma grande importãn·
eia mas que escapam à ação do Serviço de Saúde: a subalimentação e a falta
mais ou menos generalizada de alimentos nitrogenados, uma política econô·
mica leviana que, em determinadas regiões, forçou o desenvolvimento de
culturas ricas (de exportação) em prejuízo de culturas alimentares, o
desequilíbrio que existe entre os salários dos indígenas e os preços dos artigos
essenciais." 16
Por esse motivo, as taxas de mortalidade, essencialmente infantil, são
muito elevadas. É só a partir dos anos 20 que as campanhas de vacinação
vão contribuir para reduzir a mortalidade. Entre as doenças mais temíveis,
objeto de uma profilaxia maciça, se destaca a tripanossomíase africana (do·
ença do sono).
Para enfrentar tudo isso, a Administração colonial cria serviços
especializados móveis. Mas, para reunir as populações, recenseá-las e rastrear
as doenças, as equipes móveis usavam métodos muito idênticos aos utilizados
para o recrutamento civil ou militar ou para a cobrança do imposto, que pare·
236 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
cíam uma caça ao homem. A falta de entusiasmo das populações pelos cuida-
dos prestados explica-se facilmente: as equipes móveis de enfermeiros e o seu
séquito, na boa tradição colonial, viviam à custa da região, desavergonhada.
mente exigindo víveres, mulheres etc. As punções lombares indispensáveis
aos exames bacteriológicos, efetuados por enfermeiros nem sempre aptos, e
em condições de higiene sumárias, por vezes causavam acidentes graves. Por
outro lado, a terapia usada não era isenta de riscos, podendo provocar, em
caso de erro nas dosagens, lesões graves (nefrites, cegueira).
Será necessário esperar os anos 50 para que os sistemas de tratamento e
de profilaxia se tomem verdadeiramente eficazes e que se assista a uma revi·
ravolta nas tendências demográficas, passando da redução ou estabilidade
para o crescimento, e, a partir de 1955 aproximadamente, para uma explosão.
Uma última palavra sobre os "objetivos" invocados para a colonização: a
luta contra a escravatura. Já vimos que numa primeira fase, a da conquista, a
escravatura, longe de recuar, conheceu um nítido crescimento. Mais tarde, e
apenas gradualmente, foi concretizada a proibição do comércio de escravos
(promulgada na África Ocidental Francesa apenas em 1905) e depois a aboli·
ção da escravatura.
A libertação de escravos foi geralmente adotada como recompensa na
administração de populações rebeldes ou insubmissas. Mas onde o apoio das
classes dirigentes era considerado politicamente necessário, como no Fouta·
Djalon (Guiné) ou nas regiões a sul do Saara, a escravatura manteve-se inal·
terável, e a administração ratificava (ou encobria) a prática do "direito de
sucessão" (busca, captura e restituição dos escravos fugitivos aos seus senha·
res). Na Guiné, o primeiro recenseamento por sondagem realizado em 1954·
1955 recenseou à parte, em Fouta-Djalon, os "cativos". Na Mauritânia, a con·
tinuação da escravatura, com o apoio da administração, foi denunciada em
1929 por um professor primário do Daomé, Louis Hunkanrin, condenado a
urna pena de dez anos de degredo na Mauritânia. Ele denunciou a prática em
um folheto cujo texto conseguiu fazer chegar a França e que foi publicado por
uma seção local da Liga dos Direitos do Homem. 17 Esta situação continuou
após as independências e sabe-se que, muito recentemente, militantes dos
direitos humanos foram presos e condenados na Mauritânia por terem de·
nunciado a escravidão.
A AFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 237
Os dados demográficos
Oi dados aqui utilliados foram em grande parte retirados das obras: Afrique noire occidemale:
glographie, clvilLsatlon, histoire, Paris, Éditlons sociales, 1958 (reed. 1968) e Afrique noirt -
~recolonlale (1900-1945), Paris, Éditions sociales, 1964 (reed. 1982).
l38 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Notas:
1. Citado por Vigné d'Octon: La gloire du sabre, Paris, Flammarion, 1900, pp.131 e seguintes
(Notas de uma testemunha da tomada de Sikasso) .
2. Jean Rodes: Un regard sur le Soudan, La revue blanche, novembro de 1899.
3. Câmara dos Deputados, sessão de 30 de novembro de 1900 (Annales de la Chambre des
Députés, 1900, p. 580).
4. P. Vigné d'Octon, op. cit., pp. 40-41.
5. Testemunho do sargento Tourcau, cm P. Vigné d'Onon, op. cit., pp. 142-143.
6. General Mcynicr: La MissionJoalland-MeynieT, Paris, Éditions de l'Empire français, 1947,
PP· 39-40.
7. G. Angoulvant: La pacificaiion de la Cõtt d'Iuoin, Paris, Larose, 1916.
8. Albert Londres: Tem d'ébene, Paris, Albin Michel, 1929.
9. R. Sussct: La llérité sur le Cameroun et l'AE.F., Paris, Éd. de la Nouvelle revue critique,
1934.
10. Ver Jean Cabot: La culture du cotor\ au Tchad, Annales de géographie, 1957, pp. 499-508.
11. O. Coquery-Vidrovitch: u Congo au temps des g.aricles compagnies concessionnaires (1898·
1930), Paris-La Hayc, Mouton, 1972.
12. R.P. Daigre: Oubangui-Chari, témoignagt SUT son ~ution (1900-1940). lssoudun, Dillen
etCie, 1947, pp.113-116.
13. Citado por R. Comevin: l.!évolution dcs c.hefferics dans l'Afrique noir d'expression
française, Recuei( Penant, n~ 687, junho-agosto 1961 , p. 380.
14. Oilbert Vieillard: Notes S1'T le.s Ptu/5 du Fouia-Djalon, Bullctin de l'lnstitut français d'Afrique
noire, Dakar, nQ 1, p. 171.
15. Testemunho do Colóquio do lnstitut d'Histoirc du temps présent, publicado em 1986
pelas Éditions du C.N.R.S. com o título - l...es chemins de la décolonisation de l'Empire
{rançais (1936-1956).
16. Coronel-médico Farinaud: Relatório ~ico 1945. Orado in "Afrique noire: l'ere coloni·
111'', op. cit., p. 493.
17. J. Surct-Canale: Un pionnitr miconnu du mouverneru démocratique en Afrique: Louis
Hunkanrin, Études dahomécnncs, nouvelle série, nQ 3, Porto Novo, dezembro de 1964,
pp. 5-30.
18. C. Coqucry·Vidrovltch: Afrique noire, pennanences et ruptures, Paris, Payot, 1985, p. 52.
19. Ibidem, p. 57.
20. Ver ldrissa Kimba: La forma1ion de la colonie du Niger 1880· 1920. Thesc d'État, Universi~
de Paris VII, 1983.
21. e. Coquecry.Yidrovitch, op. clt., p. 56
ARGÉLIA 1830-1998:
DOS PRIMÓRDIOS DO CAPITALISMO
COLONIAL À EMPRESA MONOPOLISTA DE
RECOLONIZAÇÃO "GLOBALIZADA''
ANDRÉ PRENANT
. ____________ - '
)•
Na Argélia, o capitalismo, mesmo tendo tido pequena responsabilidade na
decisão da conquista, intervém desde o seu início (com exceção das duas décadas
posteriores à independência), e até hoje. Antes de 1962, como mcx:lelo que foi do
capitalismo colonial, dos seus primórdios mercantilistas até suas fixações petrolí-
feras; hoje, no quadro da globalização, como um tipo de recolonização monopolista.
Écerto que, em 1830, o capital não dispunha ainda de grande autoridade
na França. Mas foi durante sua evolução que ele comandou, na Argélia, a
estruturação da legislação e da economia colonial e sua manutenção frente à
resistência, até a violência final por meio da qual tentou não ser despejado.
Depois da independência o capital tem tentado provocar crises jogando com
a fragilidade e a dependência externa da economia "não capitalista" e com o
antagonismo entre classes sociais acirrado pelas contradições dessa econo-
mia. A crise ofereceu a oportunidade de reintroduzir obrigações que agrava-
ram e agravam a crise econômica, determinando a violência imposta ao país,
utilizadas para colocá-lo em seu lugar perante "a nova ordem mundial".
Desligado da decisão da expedição de 1830 (nascida da recusa pela mo-
narquia francesa de assumir uma dívida), o sistema capitalista deternúnou os
quarenta anos de guerra e de violência necessários para controlar o país (1830-
1871), os setenta e cinco anos que se seguiram em que pôde explorá-lo sem
violência "ilegal" maciça (1871-1945) e os dezessete anos (1945-1962) que
vão dos massacres de Setif-Guelma à independência. Falta avaliar o papel que
desempenhou e ainda desempenha - já não em escala francesa, mas sim em
escala "européia", digamos "globalizada" - na desestruturação/destruição da
economia e da sociedade da Argélia independente e no recomeço da violên-
cia (islâmico), dos anos 80 até hoje.
bom preço" para a (re-)vender muito mais cara. Esses monopolistas são de-
nunciados em 20 de maio de 1835 por Desjobert, deputado de Seine-Maritime,
igualmente uma região têxtil. 4 Aos olhos dele, os monopolistas são movidos
por interesses pessoais: 5 "o único resultado" da conquista, em 1835, foi "o de
ter transportado para Marselha os negócios que antes se espalhavam por toda
aFrança". Em 1839, ele não poderá, no entanto "conceder (à guerra) nem um
homem nem um centavo". O conde de Sade, lembrando em 1835 que "as
terras não são disponíveis", 6 recusa-se a "exterminar os nativos antes de os
espoliar". Hippolyte Passy, futuro ministro de Napoleão III, defende, ainda
em 1837,7 "proibir, ou pelo menos limitar( ... ) as aquisições de terras", e pro-
põe, no mesmo sentido, "negociar com as potências interessadas nesse país" e
de "o colocar... em tal estado que possamos ter com ele relações amigáveis e
traficar sem receio ... e retirar lucros para provisão das nossas províncias meri-
dionais".
Os segundos viam, como o marechal Gérard em 12 de novembro de 1830,
na mesma linha de pensamento de Sismondi, "uma vasta saída para o exce-
dente da nossa população e (...) o escoamento dos produtos das nossas manu-
faturas".8 Em 21 de março de 1832,9 depois de em 20 o marechal Clauzel (ele
mesmo com participação, em Mitidja, em várias sociedades - duas de Paris
com capital de 2 e 3 milhões [ouro], duas de Marselha com valor de 5 e 6
milhões e várias inglesas) ter declarado que "Argel recebe agora mais barcos
do que recebia em três anos", o deputado marselhês Reynard anuncia a cria-
ção de uma companhia "para a construção de navios a vapor para a navegação".
A guerra de conquista é sem dúvida, com eles, a da "nuvem de
especuladores (...) que se abate sobre Argel para comprar a baixo preço e
revender (...) os imóveis da cidade e dos campos", 10 arrastando para o gover-
no "compromissos tácitos a respeito dos agricultores, dos industriais, dos capi-
talistas que ele permitiu que se instalassem" .11 A tendência do capitalismo em
desenvolvimento foi o de, desde a origem, assumir o risco de guerra, de mas-
sacres, risco admitido em 7 de julho de 1833 pela Comissão da África, que
propôs, após ter constatado "a contradição da marcha da ocupação", "ampliar
a colonização sob a proteção militar" para não reduzir "o fruto de tantos esfor-
ços".12 A tomada de Constantina, em 1837, congregará, descontados os últi-
mos ataques de Desjobert, os liberais num "pensamento único" do capitalis-
mo francês.
2+! O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
Os lTULlsacres
"as orelhas indígenas valeram durante muito tempo 10 francos o par; as mu·
lheres foram, como os homens, urna caça perfeita", tal corno no sul, de onde,
sem ter disparado um único tiro, ele confessava ter trazido um "barril cheio".
Pilhagens e destruições
carneiros, 800 bois e 500 camelos aos Nememcha; de 500 carneiros, 350 bois,
250 camelos aos Moui'adat (S. de Medea); de 700 e depois mil bois; de 2 mil
depois 15 mil carneiros, 300 animais de carga e 30 camelos de refugiados da
região de 11emcen, no Marrocos; em 1846, a captura "diária [de} rebanhos
importantes (... ) de alguma fração dos Ouled Na.II"; de 33 mil carneiros, 500
camelos, cavalos e tendas aos Hamyan, em 13 de janeiro de 1847.27
As contribuições de guerra podem simplesmente formalizar esses roubos,
como, em Djebel Amour, em apenas três dias de maio de 1846, de 3 mil bois
e 7 mil.28 As contribuições podem ser substituídas ou aumentadas pelo paga·
mento em dinheiro: os 58 mil francos-ouro em 10 dias de 1844 sobre Bellezma;
em 1845, perto de Tenes, uma contribuição "bastante forte" foi exigida aos
Beni Hidja e aos Beni Macdoun, estes antes de serem "fumigados", e 120 mil
francos são pedidos aos Beni Chougran; em 1846, 20 mil francos são tomados
dos Ouled 'Abdi após o incêndio da sua aldeia, e 200 a 300 francos por cabeça
aos Harrar de Chergui (ou seja, a receita média de dois anos); são ainda co·
brados nesse ano 20 mil francos aos Amoucha (Babar), 30 mil em três dias
sobre os Ouled Sidi-Yahia, perto de Tebessa, 55 mil sobre os limítrofes de
Philippeville e, em 10 de fevereiro de 1847, 50 mil francos sobre os Ouled
Jellal. No mesmo mês de 1848, os Hamyan, já privados dos seus rebanhos,
ficavam sem 100 mil francos e 10 acampamentos por não terem pago. Multas
puniam a recusa (ou a incapacidade) de pagar as contribuições de guerra ou
os impostos: exemplos destas multas são as que, em 1848, no Ovarsenis, os
Ouled Defelten, privados dos seus rebanhos dois anos antes, tiveram de pagar
por se recusarem a pagar impostos, tal como os Beni Zouqzouq, os Righa, os
Beni-Menad próximos de Miliana, e os Beni Hassan do Titteri; em 1849, a
multa devida por Bou Sacada pelas barricadas erguidas na cidade e os 10 mil
francos exigidos aos Ouled Faradj vizinhos, bem como as multas aplicadas aos
Ouled Soltan e Ouled Sylem, do Ouarsenis, e os Ouled Younes, do Dhahra;
em 1850, as que castigam os Harakta, onze anos depois do confisco dos seus
rebanhos, e os Segnia do Hodna.29
À destruição das fontes de renda que restam às populações ocupadas,
sobretudo suas plantações e gado, é somada a transferência para o ocupante
das colheitas e receitas monetárias, com a finalidade de empobrecer o mais
pobre em proveito do mais rico e de impor a ele a dependência. Essas destrui-
ções são, com efeito, a destruição do próprio ser humano, arma maior da re-
pressão. Logo no primeiro ano, Rozer30 define as tribos das cercanias de Biida
tomo "aquelas que nós saqueamos com o general Berthezene (em) maio de
248 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
o~
)
254 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
A "calma" do esgotamento
i tos de exportação, ligando Marrocos e Tunísia por Oran, Argel, Bône (~aba)
através das planícies colonizadas, levando a esses portos e a Nemours
(Ghazaouet), Bougie (Bejaia) e Philippeville (Skikda), zinco de Zellidja, alfa
Nos anos 1950 essas transferências deixam nas mãos de 20 mil proprietários
cerca de 2,7 milhões de hectares, um terço (o melhor) das terras cultiváveis
do pafs, metade pertencente a apenas 10% deles. Quase 99% dos proprietári·
os argelinos dividem os dois terços restantes, reduzidos a uma produção insu-
ficiente ou ao trabalho assalariado, eventualmente complementar. Eis o prin·
cipal fator do êxodo rural.
Nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial e nos seguintes, a
diminuição da produção e as dificuldades devidas à crise e depois à guerra
provocaram a queda das exportações francesas e, conseqüentemente, a redu-
ção ou mesmo eliminação do déficit da balança argelina. Esse déficit, acresci·
do, como se viu, de 28 a 90 milhões de francos-ouro de 1863 a 1873, cresceu,
de 1950 a 1954, em 34 a 78 bilhões de francos, com a França, mas também
cada vez mais com outros países.
De 1950 a 1953, o orçamento da metrópole atribuiu à Argélia 286 bilhões
de francos (cerca de 40 bilhões de francos atuais), dos quais, segundo a Co-
nússão Maspétiol,76 em 1953, "50%... parecem poder ser considerados como
uma ajuda à Argélia" . Assim, em 1953, de 93 bilhões de francos, 62 eram
relacionados com despesas de funcionamento, dois terços das quais militares,
servindo os créditos de investimentos (35,7 bilhões) para reembolsar emprés·
timos anteriores (6 bilhões) e 27 bilhões para subvencionar as empresas colo·
niais em 6% das despesas, ou conceder-lhes empréstimos por 27%. Estas se
beneficiavam de "vantagens já acordadas em matéria fiscal", das quais o Rela·
tório Maspétiol sublinhava a importância. A carga fiscal, de 33% na França,
baixava para 19% (16,4% na metalurgia, contra 28,4; 16,2% nos têxteis, con·
tra 26,2%); em face de impostos sobre o rendimento imobiliário e benefícios
agrícolas reduzidos de 6% do orçamento em 1949 para 1,8% em 1953, as
taxas sobre os salários duplicaram, o imposto sobre o rendimento foi mantido
a uma taxa constante e os impostos indiretos aumentaram. Isso era prolongar
a tendência permanente de "fazer os pobres pagar" aplicada um século antes,
quando os muçulmanos, de 1863 a 1872, tinham fornecido em "imposto ára·
be" e em contribuições de guerra 28% do orçamento argelino, contra 2,8%
fornecido pelos beneficiários da colonização; ou em 1890, quando os "impos·
tos árabes" forneciam três quartos das contribuições diretas (15% dos recur·
sos orçamentais), quando os colonos ainda eram isentos de imposto imobiliá·
rio. No PlB argelino de 1953, a parte dos lucros era de 47% (239 bilhões de
francos), a dos salários somente de 34% (160 bilhões), e a proporção dos capi·
tais acumulados reinvestidos localmente de 52%: o repatriamento do resto
ARG~LIA 1830-1998 263
ços do crescimento natural feitos a partir dos registros deve ser analisada ten•
do cm conta o aumento da subdcclaração, quer dos nascimentos quer dos
falecimentos. Esta é evidente no caso dos nascimentos, cuja taxa, de 1950 a
1955, se mantinha constante entre 4,2 e 4,4% e que a partir de 1962 se eleva·
rá a perto de 5%. E afeta os falecimentos, cujo nómero declarado, durante
esses oito anos, supera os 115 mil de 1954 (mesmo número de 1963), chegan·
do a um número entre 140 mil e 154 mil depois de 1956, ou seja, uma
sobremortalidade anual de 0,4 a 0,5% (já então acima dos números oficiais
franceses) . O recenseamento de 1960 encontra, além disso, 168 mil habitan·
tesa menos do que previa o crescimento natural declarado, no momento em
que a emigração para França começou a diminuir; e o recenseamento de 1966
apresenta um outro déficit de 160 mil, atribuível, no essencial, aos anos de
1960-1962, que seria apenas devido ao regresso dos refugiados em 1963-1964.
Podemos desse modo considerar verosímil a perda de 600 mil vidas humanas
argelinas, sem contar os mortos franceses, devido à obstinação do capital co-
lonial francês, sobretudo depois das descobertas dos hidrocarbonetos saarianos,
em conservar a Argélia. É muito mais do que as simples vítimas dos combates.
Aos mortos na Argélia devem ser somadas as destruições de aldeias, de
culturas e de florestas, bem mais eficazes do que as da guerra de conquista que
ignorava bombas e napalm, ou muito mais ainda do que os delitos florestais,
verdadeiros ou suspeitos, que o código específico castigava; e o deslocamento
das populações (de pelo menos 1,8 milhões de almas), 77 expulsas das zonas
proibidas, afastadas das suas culturas e "reagrupadas" (concentradas) na pla·
nkie, em zonas de apropriação colonial mecanizada sem oferta de trabalho,
ou em tomo das cidades. O êxodo rural, iniciado no final do século passado
pela proibição de posse pelos camponeses, fellahs, reforçada depois de 1918
pela supressão de empregos ligada à mecanização da agricultura, é exacerba-
do, acentuando o desequilíbrio e a distorção entre povoamento e economia
das cidades desprovidas de habitat (até o êxodo colonial de 1962), de infra-
estrutura social e industrial.
tem origem numa estratégia fascista do terror. Visou, antes de 1995, sindica-
listas e intelectuais, artistas e jornalistas, e cri tores e universitários que a com-
batiam; depois, além dos estrangeiros não-muçulmanos, a massa, homens,
mulheres, crianças, aqueles que desobedeciam trabalhando, votando, estu·
dando, em especial nas aldeias isoladas, em 1995-1996 e no inverno de 1997-
1998; depois os marginais que tinham escapado e reencontrado aqueles que
tinham fugido nos novos bairros periféricos de Argel. Esse terrorismo, de que
pouco se sabe, destruiu também unidades de prcxiução públicas, nunca priva·
das nem pertencentes ao grande capital estrangeiro, estabelecimentos púbU-
cos escolares, sanitários e sociali, em paralelo com sua desestabilização pela
especulação e o ajuste estrutural. A morte de 36 mil civis em seis anos, segun·
do as estaústicas oficiais, sem contar membros da polícia e do exército, é o
resultado mais dramático. O recomeço, por razões de segurança, do êxodo
rural maciço em direção às grandes cidades que tinha sido interrompido nos
anos 1970 e que freqGentememe implica o abandono das plantações, indica
um futura crise, assim como o aumento da mortalidade, inclusive infantil,
com a degradação dos serviços de saúde. A queda nas taxas de natalidade,
que fora interrompida entre 1990 e 1994, já não se deve ao planejamento
familiar, como depois de 1972, mas a uma ausência de ordem.90
As multinacionais, americanas, canadenses, japonesas, coreanas ou itaU·
anas, investem atualmente sobretudo em petróleo, de onde podem facilmen·
te tirar sua parte desse rendimento. Juntamente com os capitais franceses,
que estão preocupados cm vc.-stir a máscara de "europeus", as multinacionais
querem recuperar por um preço baixo as bases industriais mais importantes,
atualizá-las e reconvertê-las, deslocando unidades: a força do trabalho dos
desempregados argelinos formados no trabalho industrial sendo usada para
produzir, não para o mercado argelino, exausto, !11aJ! para o vizinho mercado
europeu, pode exercer na Europa de Schengen uma pressão mais eficaz sobre
os salários do que mantendo ali o imigrados. Com esta finalidade, o capital
pode esperar um entorpecimento da violência ao preço de um compromisso
que suponha a partilha do poder com os islâmicos: sete ministros do Hamas já
estão no governo de Argel.
A empreitada de recolonização imperialista pelo capital mundializado uti·
liza desta vez a pressão clássica das empresas coloniais do século XlX: o endl·
vidamento do país que se quer dominar, por um modelo ideológico e econô·
mico, mais do que pela coação militar. Nem por isso usa menos a violência e
as ameaças de violência fascista para enfraquecer o potencial do país, a Argé·
ARG~LIA 1830-1998 271
lia, e para, urna vez apaziguado, explorá-lo sem grandes investimentos, como
satélite "desregulador" da Europa.
Notas:
Enquanto ele impõe ao povo de Cartum, cada vez mais reticente, a sua lei
cm nome do isl11, o poder militar fornece armas e munições à guerrilha de
integristas crist5os (Exfacito de Resistl:ncia do Senhor) que devasta o norte
de Uganda, aterrorizando o povo das aldeia : demonstração implacável, caso
ainda fosse necessá ria, de que os integrismos não são movimentos religiosos, e
sim manipulações políticas do religioso. Mas será preciso aguardar a derroca-
da do regime atual do Sudão para que desapareça o apoio hipócrita de certas
organizações francesas que ainda se pensam na era de Fachada/ O dossier
realizado a esse respeito por Pax-Christi France cm junho de 1995 era assusta-
dor e mantém-se parcialmente atual.
Não há necessidade de insistir no assombroso massacre de Ruanda, cujos
autores são bem conhecidos (os "fascistas tropicais" do defunto Habyarimana)
juntamente com os seus cúmplices que os armaram. Em 4 de fevereiro de
1998, e. Josselin, ministro delegado para a cooperação, lamenta a fraca pre-
sença da França em Ruanda, "país com o qual a nossa relação diplomática
não é a melhor". Será preciso fingir admiração, quando se conhece o passa-
do da França oficial nesse país a reconstruir, quando está bem fresca a recor-
dação da "Operação Turquesa" do exfacito francês : uma operação que, ar-
mada de grandes pr e textos humanitários, evitou sobrecudo que os
lnterhamwes chacinadores do fascismo ruandês, já então vencidos em tor-
no de Kigali, fossem definitivamente impossibilitados de causar prejuízos.
Em conseqüência disso, puderam continuar a combater no Congo, ao servi·
ço de Mobutu e de Lissouba, e a encorajar ainda hojt.: uma sangrenta guer·
rilha em Ruanda. Resta desejar aos povos da região que novas ingerências
não reacendam as brasas étnicas sempre presentes, quer sejam de Estado
(EUA ou França), de organismos internacionais (Banco Mundial) ou priva·
dos (sociedades multinacionais capitalistas): as pressões externas só podem
adiar a cicatrização das feridas deixadas pela história recente; isso o passado
demonstra claramente.
3. E finalmente, como esquecer o longo martírio do povo da África do Sul
sob o regime racista do a/1archeid a partir dos anos 1960? O apariheid é em si
mesmo um crime, porque repousa sobre o racismo legalizado, a desigualdade
"genética" erigida em lei e a recusa da democracia teorizada em prindpios
políticos. Será ainda preciso lembrar que a República Sul-Africana do apariheid
era na África o exemplo perfeito do capitalismo, dirigido por uma burguesia
cujo nível de vida ultrapassava o dos seus equivalentes franceses, graças à
supcrexploração da mão-de-obra negra das minas e dos campos? Capitalismo
286 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
v[rus. São 2,4 milhões na África do Sul, 25 a 30% dos adultos em Botswana.
Em todos os países, a esperança de vida, que tinha crescido perto de 15 anos
de 1960 a 1990, recua novamente.
A constatação mais dramática é o fosso crescente em matéria de trata·
mento entre os países industrializados e os africanos. Na Europa ocidental, o
número de casos declarados de Aids é, em 1997, 30% inferior aos de 1995:
isso é devido, no essencial, à eficácia dos tratamentos atuais, especialmente o
coquetel de drogas, que custa mais de 100 mil francos por ano na Europa.
Nessas condições, os doze países africanos que sozinhos respondem por 50%
dos soropositivos do planeta não têm qualquer possibilidade de dar aos seus
povos esse tratamento existente e eficaz. No encontro internacional de
Abidjan, em dezembro de 1997, o presidente e o ministro da Saúde da França
manifestaram o seu orgulho pela criação, pelos países induStrializados, de um
"fundo internacional de solidariedade terapêutica" para os doentes de Aids
dos países do Sul. Mas os representantes do Banco Mundial nessa conferência
recusaram imediatamente essa possibilidade, contrária à saudável lógica "li-
beral".
O professor Gentilini, por seu lado, denunciou aos congressistas esse "cri·
me contra a humanidade pelo qual as gerações futuras nos censurarão tragi-
camente".
Vamos dizer claramente: este crime contra o homem, na África, chama-
se lucro capitalista. O século que vai começar seguramente responderá àquilo
que por agora são apenas interrogações e incertezas. Não se sabe em que sen·
tido. Mas uma coisa é clara, ainda que desagrade às ideologias dos "crimes do
comunismo": nesta África que se batiza de francófona porque foi colônia fran-
cesa há meio século, os sonhos e as esperanças de melhoria, de igualdade e de
liberdade não se incarnam nos tecnocratas nem nos ditadores fabricados pe·
las academias francesas ou pelo FMI: esse sonho chama-se Thomas Sankara,
imagem mítica do reformador incorruptível, lutador desordenado e generoso
pelos direitos dos mais pobres e das mulheres, assassinado em 1987, que reco-
nhecia ser inspirado pelo ideal comunista.
Bibliografia:
para uma política mais ambiciosa nesse momento, se contentarão com a ab.
sorção dos territórios adjacentes à Costa Leste. Ainda não era chegada a hora
do aruchluss* e das intervenções militares. Essa chegará em 1835, quando a
onda expansionista norte·americana absorver metade dos territórios perten·
cenres ao México (o Texas, a Califórnia, o Novo México). Os Estados Unidos
levarão a Grã-Bretanha a ceder-lhes o Oregon em 1846, e comprarão o Alasca
da Rússia em 1867.
No final do século XIX, esta política de expansão permite a formação de
um vasto território e, após a Guerra da Secessão-que desviou a atenção eos
esforços dos norte-americanos para os problemas internos-, os Estados Uni·
dos se dedicarão a estabelecer o seu domínio político e econômico na Améri·
ca Latina, substiruindo a Inglaterra e comprometendo-se num processo de
desenvolvimento e de industrialização que irá colocá-los à frente dos países
capitalistas no século XX.
Estas breves linhas têm o propósito de relatar a história das intervenções
imperialistas na América Latina, que ajudaram de forma marcante o cresci·
mento do país que viria a ser a primeira potência do planeta e ponta·de-lança
do capitalismo mundial. A política intervencionista dos Estados Unidos ma·
nifestou-se muito cedo na América Latina. Embora tivesse um adversário de
peso- a Grã-Bretanha-, os norte-americanos olharam sempre com cobiça
os territórios que durante três séculos tinham estado submetidos ao poder
colonial espanhol e que, no início do século XIX - após sua independência
-, conheceram longos períodos de anarquia, como resultado das lutas inter·
nas que se desenrolaram em quase todas as jovens repúblicas.
O processo de expansão territorial dos Estados Unidos começou no final
do século XVIII. Sendo a fronteira ocidental "elástica", adquiriram vários ter·
ritórios entre 1792 e 1821. 1O processo desenvolveu-se também para Ociden•
te e Sul, onde a voracidade da União engoliu grandes extensões do Meio·
Oeste obtidas através da cessão ou da compra dos territórios às potências
européias. Compra e cessão feitas nas costas das populações autóctones- ºos
peles-vermelhas"-, que foram reprimidas ou exterminadas. Foi assim que os
Estados Unidos conseguiram aumentar significativamente o seu território
inicial.
Apesar da posição oficial de não-intervencionismo anunciada por George
Washington ao recusar um terceiro mandaro presidencial em 1796, os Esta•
•[nlc11f1çlo econômica e pollrlc1 d1 Áw1rl1 no Ili Rcich alcmlo, cm março de 1938. (N. do T.)
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 295
Éassim que, por volta da segunda década do século XIX, quando a monar·
quia espanhola pretendeu recomeçar a guerra para reconquistar os antigos
territórios, deparou com a oposição de Sua Majestade Sereníssima, que ten-
tou uma espécie de acordo com os Estados Unidos. O ministro britânico,
George Canning, convidou os norte-americanos a abraçarem a mesma causa
e a oporem-se à pretensão espanhola.
É então que o ex-presidente Jefferson responde ao presidente Monroe,
que o consultava sobre a atitude a adotar com as potências européias: ''A
nossa atitude fundamental deve ser não nos imiscuim1os nos imbróglios euro·
peus ... (e) não aceitar que a Europa intervenha nos assuntos americanos ... A
Grã-Bretanha é a nação que mais nos pode prejudicar; tendo-a do nosso lado,
não receamos o mundo inteiro... "
Mais tarde, o ex-presidente explicava melhor o seu pensamento: "Deve·
mos colocar-nos a seguinte questão: desejamos adquirir para a nossa Confe·
deração algumas províncias hispano-americanas? ... Confesso sinceramente que
sempre fui de opinião que Cuba seria a aquisição mais interessante que pode·
ríamos fazer para juntar ao conjunto dos nossos Estados ... O domínio desta
ilha e da Flórida nos daria o controle do Golfo do México e dos países do
istmo ..."1
A Flórida caiu nas mãos dos americanos em 1819. Cuba, a obsessão da
diplomacia norte-americana, foi reduzida à situação de protetorado em 1898.
independentes, e que por conseguinte, elas "não podiam ser sujeitas a uma
futura colonização por nenhuma potência européia ... Nós consideraríamos
perigosa para a nossa paz e segurança qualquer tentativa de ocupar uma par-
cela deste hemisfério". 5
Por outro lado, Monroe, reafirmando a neutralidade norte-americana nos
assuntos europeus, entrincheirou-se na política isolacionista que iria caracte-
rizar o relacionamento dos Estados Unidos com a Europa: "Nas guerras entre
as potências européias e nos assuntos da sua alçada, nós nunca tomamos par-
tido ... A nossa política face à Europa - adotada no início das guerras que a
agitaram recentemente - permanece inalterável: não interferir nos seus as-
suntos internos e considerar os governos de fato como legítimos."6
Embora a "doutrina Monroe" tenha dissuadido as potências européias dos
seus sonhos de reconquista, não pôde impedir ingerência e intervenção diver-
sas vezes: a Inglaterra desempenhou um papel importante em La Plata e em
1828 conseguiu criar um Estado-tampão entre o Brasil e a Argentina, sepa-
rando as Províncias Unidas, a Margem Oriental e o Uruguai.
As ameaças contidas na "doutrina" permaneceram também letra-morta
quando da invasão inglesa das Malvinas em 1833 e da intervenção francesa
emSan Juan de Ulna, no México, em 1838. O mesmo aconteceu quando se
deu a agressão anglo-francesa à Argentina de Rosas e ao Uruguai de Oribe e
quando, em 1837, o porto de Buenos Aires ficou sujeito ao bloqueio da Mari-
nha francesa; da mesma forma quando franceses e britânicos organizaram, em
1845, uma expedição militar no rio Paraná, fechado à navegação estrangeira
por sucessivos governos argentinos; o mesmo silêncio quando a frota espa-
nhola bombardeou Valparaíso e os portos peruanos em 1866, e quando da
cessão da ilha de São Bartolomeu à França pela Suécia, em 1876. A "doutri-
na" também não impediu a invasão do México em 1861 pelas tropas franco-
anglo-espanholas e a tentativa de criação de um "império latino", com
Maximiliano da Áustria.
Por outro lado, nos textos surgidos durante a década de 1840, começa a
manifestar-se a idéia justificadora do expansionismo americano, que os publi-
citários da época - escritores e parlamentares - deram o nome de Destino
Manifesco . O destino teria concedido - idéia próxima da noção de
predestinação, tão cara ao protestantismo presbiteriano - à nação america-
na uma missão civilizadora, fazendo desta, além disso, o anjo da guarda da
liberdade e da democracia, ao outorgar-lhe vastos territórios para conquistar
e uma vocação de domínio sobre todo o Novo Mundo. É claro que os paladi-
298 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
nos do Destino Manifesto nada diziam sobre a sorte reservada aos milhares de
negros que viviam no território da União, para quem o destino evidente se
manifestava precisamente sob a forma de uma escravidão descarada.
Desde o infcio da independência das nações hispano-americanas, os Esta·
dos Unidos e a Grã-Bretanha não viram com bons olhos as tentativas de uni·
ficação de Bolívar. As duas nações anglo-saxônicas preferiam um continente
dividido, separado por conflitos e fronteiras, em vez de um país único e pode.
rosa que podia tomar-se num concorrente temível.
Bolfvar, em 1826, convocou o Primeiro Congresso Pan-Americano no Pa-
namá e colocou na ordem do dia a questão da libertação de Cuba e de Porto
Rico, ainda nas mãos de Espanha. Mas os esforços conjugados dos britânicos
e dos norte-americanos conseguiram boicotá-lo, e o Congresso foi um fiasco.
A Inglaterra conseguiu que os delegados argentinos e brasileiros não estives·
sem presentes. E, dos delegados dos Estados Unidos, um morreu durante a
viagem, o outro, munido das instruções redigidas pelo secretário de Estado
Henry Clay e do presidente John Quincy Adams, tinha de opor-se à guerra,
pregada por Bolívar, pela libertação das últimas colônias espanholas na Amé·
rica.
As instruções de Adams e de Clay tendiam no sentido da manutenção do
status quo. Em relação a Cuba, as diretivas para os delegados norte·america·
nos diziam: ''Nenhuma potência, nem mesmo a Espanha ... tem um interesse
tão grande no futuro desta ilha quanto os Estados Unidos ... Não desejamos
qualquer mudança em relação à sua posse ou à sua situação política ... Não
veremos com indiferença a transferência para outra potência européia que
não seja a Espanha. Também não queremos que ela seja cedida ou anexada a
um novo Estado americano." 7
Os Estados Unidos aplicavam muito escrupulosamente a idéia contida na
mensagem de Monroe: "a América para os americanos". Simplesmente eles
interpretaram-na de fato como se tivessem ouvido: "a América para os norte•
americanos". A história da espoliação do México é, nesta matéria, dramatica·
mente instrutiva.
O desmembramento do México
Uma vez engolido o Texas, o anschluss seguinte foi realizado em duas OU·
tras grandes províncias mexicanas: o Novo México e a Califórnia.
O Texas - ex-província mexicana - começou a reclamar ao Novo Mé·
xico certos territórios que sempre tinham penencido ao México, sendo apoi·
ado pelo governo dos Estados Unidos na sua pretensão. Depois, uma vez o
Texas anexado pela União (1845), foi o próprio governo norte-americano que
avançou para a guerra de conquista.
A Califórnia - cujo subsolo rico em ouro seria descoberto dentro de
pouco tempo - tinha uma população reduzida (apenas cerca de mil norte·
americanos) e sofreu várias afrontas: urna "expedição científica" armada, en·
viada pelo presidente Polk, e o desembarque, em janeiro de 1843, de tropas
sob o comando de um oficial da Marinha que ocupou "por engano" o porto
mexicano de Monterrey, na Califórnia. Perante a firmeza das autoridades me·
xicanas, foi obrigado a embarcar novamente.
O pretexto procurado pelos Estados Unidos foi fornecido por uma escara·
muça entre duas patrulhas fronteiriças dos dois exércícos em 24 de abril de
1846, em Carricitos, território mexicano. Alguns dias mais tarde, no Con·
gresso, Polk anunciou que o México tinha invadido o território dos Estados
Unidos e derramado sangue norte-americano.
A guerra foi declarada de imediato e somente algumas vozes eminentes se
elevaram para condenar o planejado anschluss. Entre elas, a de Abraham
Lincoln, representante de Illinois: "Creio que o Presidente está profunda·
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMtRICA LATINA 301
mente convencido de que se encontra numa posição errada, que ele sabe que
o sangue desta guerra - tal como o de Abel - o acusa." 1º
Em 4 de julho, quando as hostilidades já tinham começado, um bando de
aventureiros norte-americanos proclamava oportunamente na Califórnia a
República do Urso, que teve, contudo, vida curta. Os invasores desembarca-
ram em Vera Cruz e, após duros combates, ocuparam a cidade do México em
setembro de 1847. Urna longa lista de batalhas marcou esta guerra de con-
quista: Palo Alto, Monterrey, Angostura, Vera Cruz, Cerro Gordo, Padierna,
Chapultepec.
O povo da cidade de México manifestou-se então contra o ocupante.
Ocorreram motins, e as tropas norte-americanas tiveram de abandonar a ci-
dade. Tanto mais que houve as deserções entre os invasores: dezenas de irlan-
deses do batalhão Saint Patrick recusaram-se a continuar a guerra contra um
povo católico. Tratava-se de pobres e miseráveis que fugiam da fome no seu
país de origem e que tinham sido alistados para combater os "bárbaros mexi-
canos". Trinta e dois foram enforcados por deserção na capital asteca.
As hostilidades duraram até 1848, data em que o México teve de assinar
o Tratado de Guadalupe Hidalgo. Em dez anos o México fora amputado de
metade do seu território. Nos anos que se seguiram, teve início a exploração
de ouro na Califórnia e posteriom1ente de petróleo e gás no Texas, que foi
fundamental para o desenvolvimento dos Estados Unidos.
Mas uma das conseqüências mais importantes será talvez o secular res-
sentimento e rancor dos mexicanos face a esta exploração, que irá marcar, de
forma indelével, as relações entre os dois países. Por outro lado, o sentimento
antiamericano, latente nos latino-americanos, nasceu destas terras mexica-
nas usurpadas. Um presidente mexicano gostava de usar um velho ditado
impregnado de fatalismo quando queria explicar a situação geográfica parti-
cular do seu país, que era fonte de desgraça para o seu povo: "Tão longe de
Deus e tão perto dos Estados Unidos."
As preocupações dos Estados Unidos durante grande parte do século XIX
foram orientadas para a resolução dos problemas internos - ocupação eco-
lonização do Oeste, controvérsia sobre a escravatura, destruição dos enclaves
pré-capitalistas pela Guerra da Secessão, desenvolvimento da agricultura. O
país absteve-se de participar em conflitos diretos com as grandes potências.
Isso é verdadeiro nas suas relações com a Europa. Mas no que diz respeito
aos países da América Latina, os Estados Unidos praticaram, desde o início,
uma política intervencionista. Essas intervenções e ingerências não se limita-
302 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
A expedição ao Paraguai
Os piratas
Asecessão do Panamá
revolta foi proclamada, e foi constituída uma junta em Puerto Colon. Tropas
americanas desembarcaram de navios que estavam oportunamente no local e
que impediram as forças colombianas de abafar a rebelião. Em 6 de novem-
bro, os Estados Unidos reconheciam a "independência" do Panamá.
Philippe Bunau.Yarilla, cidadão francês que tinha tomado parte na rebe-
lião sem sair da suíte 1162 do Waldorf Astoria de Nova York, reconhecerá
mais tarde que a idéia de secessão fora discutida com o presidente Roosevelt. 29
Ele veio a ser nomeado pela junta, rapidamente, ministro plenipotenciário do
Panamá e assinou com o secretário de Estado Hay, em Washington, em 18 de
novembro- um dia antes dos emissários panamenhos-, um tratado leonino
que hipotecava para sempre a soberania do istmo.
Três anos mais tarde, Theodore Roosevelt recebia o prêmio Nobel da
Paz. Em 1936, Roosevelt (Franklin) deu alguns retoques no tratado. O co-
mandante da Guarda Nacional, coronel José Antonio Remon, conseguiu
obter de Eisenhower algumas alterações, em 1955. Mais tarde, Kennedy
aceitou que fosse içada a bandeira panamenha ao lado da bandeira america-
na, o que não impediu que em 1954 houvesse confrontos entre tropas ame·
ricanas e estudantes panamenhos, que causaram mais de 20 mortos e uma
centena de feridos.
O coronel Omar Torrijos negociará com Carter, em 1977, o fim da ocupa-
ção americana do canal e a recuperação da soberania deste pelo Panamá,
prevista, no Tratado Torrijos-Carter, para o ano 2000. Remon e Torrijos aca-
bam morrendo em dois misteriosos acidentes aéreos.
A intervenção no Haiti
O "guatemalato"
A Guerra Fri a fe: aumentar a paranóia dos Stados Unidos que, por detrás
de cada greve o u mam~ ta o , viam a mão dos comunistas. A política de
contenção linha ido enunciada por Truman , e a C asa Branca esforçava-se
por contrariar a expansão comunina no mundo.
Em 1944, na Gu atemala, uma revolta de escudantes, camponeses e ofi·
ciais afastava do poder o homens de Wa5hi ngton ligados à poderosa campa·
nhia Uníted Fruit (Mamila Yunai, como cha ma vam os guatemaltecos).
Os governos sucessivos de Arévalo e Arbcnz realizaram reformas: parti·
cularmcnte o primeiro, que iniciou uma tímida redistribuição da terra, que o
coronel Arbenz-eleito em 1951 - procurou alargar, decretando uma refor-
ma agrária que respondia às aspirações dos camponeses, setor majoritário da
população. Foram expropriados 85 mil hectares da Unitcd Fruir. Era não con·
tar com a reação da poderosa Mamita Y1'nai, de Foster Dulle , ecretário de
Estado, e do seu im1ão Allen, chefe da CIA.
Em plena Guerra Fria, eles agitaram o espantalho do comunismo e, na
conferência pan-americana de Caracas (março de 1954), Foster Dulles ten·
tou associar a presença dos comunistas em qualquer governo do hemisfério a
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 319
Aintervenção na Nicarágua
Em 19 de julho de 1979, as tropas da Frente Sandinista entraram em uma
Manágua libertada. Dois dias antes, Anastasio Somoza Debayle, herdeiro de
uma dinastia fundada pelo seu pai em 1936, colocara-se em fuga. O governo
sandinista se viu então diante da tarefa de reconstruir um país devastado.
Implantou uma reforma agrária, redistribuiu terras, desenvolveu uma ampla
campanha de alfabetização, lutando, ao mesmo tempo, desde os primeiros
meses, contra os ex-guardas de Somoza, que se concentravam na fronteira
hondurenha.
O governo Reagan, que durante a campanha presidencial denunciara
os sandinistas como agentes de Moscou, iniciou uma gigantesca campanha
internacional acusando o governo de Manágua de querer apoderar-se de
toda a América Central. No início dos 11nos 80, iniciava-se a invasão silen-
ciosa da Nicarágua. Reagan proíbe o crédito, encoraja os partidos da oposi-
ção, ao mesmo tempo em que financia e arma os contras, baseados em
Honduras.
Na campanha internacional, a administração Reagan dava ênfase ao
"armamentismo" sandinista, que representava um perigo evidente - dizia
Reagan - para os governos "livres" da região. O Irangate comprovou a inter-
venção americana na Nicarágua através do fornecimento de fundos e armas
aos contras, que utilizavam o território de Honduras como principal base de
operações.
A Nicarágua foi destroçada pela guerra decidida por Reagan e conduzida
por intermédio dos contras. O governo dos Estados Unidos foi condenado
pelo Tribunal Internacional de Justiça pela sua participação em atos terroris-
tas, tais como o do porto de Corinto.
Nesta "cinturinha da América Latina", como a chamou Pablo Neruda,
jogou-se, nos anos 80, um pouco da dignidade da América Latina. Carlos
Fuentes, o célebre escritor mexicano, disse-o à sua maneira no México, em
uma manifestação de apoio à Nicarágua: "A guerra desta época ... a guerra que
nos diz respeito a todos, é conduzida pelos nicaragüenses em nome de todos ...
A guerra que está sendo feita na Nicarágua é disfarçada com pretextos ideo-
lógicos ... Mas querem ser eles a restaurar ou a criar a democracia, aqueles
que, ao longo de um século e meio, nunca se preocuparam senão com os seus
próprios privilégios ... Exige-se da Nicarágua que se transforme naquilo que
nenhuma nação da América Latina pode ser: uma democracia como os Esta-
326 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
dos Unidos, coisa que jamais se exigiu de Somoza ou se pediria aos contras no
poder."
A "guerra de baixa intensidade", os atentados, a violência generalizada, a
morte de jovens soldados, abatidos pelos concras em e mboscadas, acabaram
por cansar uma parte da população. Em 1990, o governo sandinista - apesar
de desacreditado como um regime totalitário - organizou eleições. A
candidata da oposição unida, Violeta Barrios de Chamorro, conseguiu a vitó-
ria, num país devastado por anos de conflito.
A lnt1asão de Granada
Notas:
1. Vermont em 1791, Kentucky, em 1792, Tennessee, em 1796. Estes dois últimos territóri·
os, bem como Mississippi, Alabama, Illinois, Indiana e Ohio foram adquiridos pela União
na época do Tratado de Paris, em 1783. Outros, mais a oeste, serão comprados de Bonaparte
em 1803.
2, Carlos Machado, Doc11mentos, Estados Unidos y América Latina, Editorial Patria Grande,
Montevideo, 1968, p. 11.
J. Carlos Machado, Documencos , op. cit., p. 13.
4. Idem, p. 15.
5. Carlos Machado, Dorumencos, p. 18.
6. Idem, p. 19.
7. Ibidem, p. 23.
330 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
47, Conte Porras Jorge, Dei Tratado Hay-Buneau Varilla, ai Tratado Torrijos·Carter, lmpresora
Panamá, 1982, p. 144.
48. Wargny Christophe, "Maniere de voir" nº 33, fevereiro 1997, Le Monde Diplomatique, p.
68-C.
49. Éditions Austral, 1996.
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO
-A LONGA MARCHA DOS
AFRO-AMERICANOS
ROBERT PAC
)
./'
O que aconteceu ao sonho de Martin Luther King, o sonho sobre o qual
ele falava em agosto de 1963, em Washington, perante uma multidão de 250
mil pessoas negras e brancas que se acotovelavam? O sonho de uma América
multicolor, finalmente libertada do racismo, da pobreza e da exploração? Hoje,
35 anos mais tarde, o sonho dele continua irrealizado e os afro-americanos
encontram-se numa situação ainda pior do que em 1963, pior do que antes da
lei sobre os direitos civis arrancada em 1964.
As lutas dos afro-americanos por seus direitos civis duraram mais de 40
anos terminando com uma vitória, pelo menos nos textos, por volta de 1970,
graças àação, infelizmente muitas vezes desordenada, de Malcom X, de Martin
Luther King, dos Panteras Negras, dos juristas da NMCP, dos liberais bran-
cos e negros e dos radicais do Partido Democrático.
Após os assassinatos de Malcom X em 1965 e de Luther King em 1968,
sobre os quais paira a sombra do FBI, uma repressão impiedosa quase esmagou
completamente a revolta dos afro-americanos e das outras minorias nos anos
70. Foi uma verdadeira guerra secreta contra a dissidência interna conduzida
pelo FBI e pela CIA no quadro do Cointelpro (Counter Intelligence Program),
uma ofensiva dissimulada mas maciça contra as organizações e os grupos de
esquerda, o Partido Comunista, os movimentos pacifistas, os negros, os estu·
dantes e outras forças democráticas. Esse programa tinha por finalidade "des-
mascarar, desmembrar, desacreditar ou neutralizar", matando, se necessário,
os dirigentes, os membros ou simpatizantes desses grupos. A execução desse
plano, dirigido pelo diretor do FBI, Hoover, que declarou que os Panteras
Negras eram "a maior ameaça que pesava sobre a segurança nacional", foi
completado de setembro de 1968 a dezembro de 1969 com o assassinato pra-
ticado pela polícia de 14 dirigentes dos Panteras e a prisão de centenas de
militantes, dos quais alguns continuam na prisão e ameaçados de ali termina-
rem os seus dias.
Embora oficialmente abandonado há já 20 anos, esse programa continua
a ser executado, como o provam as perseguições que ainda continuam contra
Leonard Peltier, o dirigente índio do American Indian Movement, condena-
do a prisão perpétua em 1976, e contra Mumia Abu Jamal, jornalista negro,
antigo porta-voz dos Panteras Negras de Filadélfia, condenado à morte em
l36 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
"Todos os anos, a nossa economia produz cada vez mais produtos com
cada vez menos homens. Os trabalhos penosos e não-especializados - aque·
les que ninguém queria, aqueles graças aos quais eram tolerados os negros na
América, a espécie de trabalhos que nós, os niggers, sempre fizemos - estão a
desaparecer rapidamente. Mesmo no Sul - no Mississippi, por exemplo-,
mais de 95% do algodão é colhido por uma máquina. Hoje, o trabalho negro
já não é rentável, nem mesmo procurado; a economia americana já não pre·
cisa." Assim se exprimia o ator e ativista Ossie Davis no prefácio de We charge
genocide, em 1970 (lnternational Publishers Co. lnc.) .
Os novos empregos convenientemente remunerados são pouco acessfveis
aos afro-americanos porque, no conjunto, estes dispõem de pouco estudo e
poucos diplomas. Um bom número de sociólogos e militantes negros vê na
política governamental a respeito dos afro-americanos uma vontade genocida
de manter cm um certo nível financeiramente aceitável uma pequena parte
da população negra, eliminando aquilo a que os dirigentes americanos cha-
mam "excedente populacional".
O exemplo destas últimas décadas mostra que esta solução foi aceita e
iniciada: o genocídio limitado. As armas desse genocídio, além da miséria, da
fome, da dispersão das famílias e do desemprego, são o isolamento social (os
338 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Adroga
são afro-americanos, embora eles não constituam mais do que 14,6% da po-
pulação total do estado.
Os afro-americanos representam 50% dos usuários de drogas injetáveis,
estimados em 1,2 milhões, dos quais cerca de 300 mil estão infectados com o
vírus da Aids. No estado da Geórgia, os afro-americanos do sexo masculino
constituem 8 dos 10 (79%) casos atribuíveis unicamente ao uso das drogas
intravenosas. Eles representam 43% de todos os casos de Aids em Detroit e
76% de todos os casos de Aids devidos ao uso de drogas intravenosas em abril
de 1987.
Os afro-americanos constituem uma percentagem desproporcional (2 7%)
de todos os casos de Aids registados pelo CDC (Center for Disease Control)
de Atlanta. As crianças afro-americanas e hispânicas representam aproxima-
damente 80% de todas as crianças infectadas pelo vírus da Aids nos Estados
Unidos. Dois terços de todos os casos de negros infectados com vírus da Aids
estão concentrados em Nova York, Nova Jersey e Flórida. Os negros correm
três vezes mais riscos de contrair Aids que os brancos. As miseráveis condi-
ções de vida dos negros e também a falta de defesas dos atingidos pela Aids
explicam a rápida propagação da tuberculose nos guetos.
Os bebês-cocaína
Uma em cada cinco crianças negras que nascem hoje no gueto é depen-
dente de drogas. Dependente mesmo antes de nascer, adquirindo o vício ain·
da no ventre da mãe que se droga, freqüentemente consumindo crack. ''A
toxicomania tem efeitos diretos e múltiplos sobre a gravidez. A cada dez cri·
anças que nascem no Harlem, uma tem um peso inferior à média. Na mater·
nidade do Grande Hospital do Harlem, em cada 3 milhões de nascimentos, a
taxa de nascituros drogados é de 15%. Chamam-nos 'bebês-coca{na'. Prema·
turos de dois meses pesam 600 gramas menos que as outras crianças nesse
estágio e correm três vezes mais riscos de morrer nos primeiros anos. Nesse
mesmo hospital, a taxa de mães que abortam naturalmente é duas vezes mais
elevada que a média."3
"O crack afeta o feto durante seu desenvolvimento, muito mais do que a
hero{na ou outras drogas."4
O "bebê-cocaína" que escapa à mortalidade infantil sofrerá durante toda
a sua curta vida os efeitos diretos e múltiplos da toxicomania sobre a gravidez:
342 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
O genocídio
do pelo governo dos Estados Unidos para assegurar lucros controlando a fa,
bricação e a importação de drogas. Esses lucros são usados para financiar ope·
rações ilegais como o fornecimento de armas aos "contras" da Nicarágua.
"O fato de os afro-americanos terem se tornado o alvo da 'guerra contra a
droga' e de serem essencialmente condenados devido a este problema", diz
Sheehan, "faz parte de uma estratégia para culpabilizar as vítimas", a fim de
afastar suspeitas dos verdadeiros culpados: "os fornecedores e os membros do
governo que tentam desagregar as comunidades minoritárias e talvez mesmo
destruí-las."
"Eu estou assustado. Vamos comprometer o futuro de toda uma geração
de pessoas que não poderão encontrar o seu lugar na sociedade e dela se
tomarem membros produtivos", diz o doutor Sterling Williams, diretor do
Departamento de Obstetrícia no Harlem Hospital.7 O governo federal calcula
que no ano 2000 poderá haver de 1 a 4 milhões de crianças expostas ao crack
nos Estados Unidos. E que pelo menos 100 mil viverão em cinco quarteirões
da cidade de Nova York. 8
Um artigo publicado em 21 de abril de 1990 no Oakland Tribune mostra
sem ambigüidades que a guerra contra a droga se tornou uma guerra contra a
comunidade afro-americana. 9 Em agosto de 1996, o diário californiano San
]ose Mercury News publicou uma reportagem retumbante de um repórter do
jornal, Gary Webb, acusando a CIA de estar na origem, durante os anos 80,
da introdução do crack; "a cocaína dos pobres", nos guetos negros das cidades
americanas. Intitulada "Aliança sombria" e rapidamente difundida na edição
virtual do jornal, a reportagem acusava os traficantes de droga nicaragüenses
de terem colocado no mercado, em Los Angeles, grandes quantidades de crack
para financiar, de acordo com a CIA, a resistência dos "contras" ao regime
sandinista. A reportagem provocou comoção na comunidade negra e levou à
abertura de um inquérito interno da CIA.
A reação da CIA teve um efeito imediato inteiramente previsível. A dire-
ção do jornal iniciou uma investigação interna no final do qual admitiu ter
acusado a CIA sem provas. Jerry Ceppos, o responsável da redação, escrevia:
"Embora traficantes de droga tenham efetivamente tido ligações com os líde-
res dos 'contras' pagos pela CIA, e embora Webb pense que as relações com a
CIA eram estreitas, não creio que tenhamos a prova de que os altos responsá·
veis da CIA tenham estado a par dessas relações." (!)
Apesar deste uolce-face (espontâneo?) do San ]ase Mercury News, é pos·
sível ver, como pensam numerosos sociólogos e militantes afro-americanos,
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
que o comércio do crack da cocaína e da heroína, tal como a Aids, são outros
tantos elementos de uma conspiração secreta e inconfessável da parte do go·
vemo e da CIA para exterminar uma grande parte da população negra.
Brutalidade policial
pela polícia ou por indivíduos que agiram por instigação da polícia, como depois
se provou. Todos esses assassinatos que necessitavam de uma justificativa legal
foram classificados como "homicídios justificados" (inclusive o assassinato de
Fred Hampton, morto com uma bala na cabeça disparada à queima-roupa en-
quanto dormia). Numerosos estudantes negros foram mortos durante manifes-
tações, como em Orangebourg, Carolina do Sul, em 1968 (três estudantes mor-
tos), em Jackson State, Mississippi, em 1970 (dois estudantes mortos) e na
Southem University da Luisiana em 1972 (dois estudantes mortos).
Não é possível enganarmo-nos acerca dos objetivos do programa gover-
namental quando se examinam as armas usadas nos guetos e fornecidas aos
departamentos de polícia através do país. O revólver calibre 38 foi substituído
em numerosos setores pela Magnum 357, mais potente. As balas dessas pisto-
las são capazes de atravessar o bloco do motor de um automóvel, o que signi-
fica que a utilização desta arma numa zona urbana pode facilmente provocar
numerosas vítimas, podendo um só projétil atravessar o corpo de várias pes-
soas em fila.
"Os agentes da polícia da cidade de Nova York começarão a trocar seus
revólveres calibre 38 por pistolas semi-automáticas 9 mm. Esta decisão traduz
uma alteração da posição do Departamento, que até agora tinha se recusado
a empregar armas mais potentes e mais rápidas." 11
O equipamento padrão de muitas viaturas de patrulha inclui a espingarda
antimotim calibre 12 que pode disparar balas dundum e cartuchos que con-
têm uma carga de 9 chumbos da espessura de um projétil de calibre 32. 12 Essas
espingardas são chamadas "antimotim" porque o seu cano de 45 centímetros
permite cobrir um amplo ângulo de tiro, matando ou ferindo indiferente-
mente.
Com essas armas, e no contexto repressivo do sistema político americano,
não é de surpreender que, a cada ano, mais de 600 homens, mulheres e crian-
ças dos 10 aos 81 anos, sejam mortos pela polícia. De 45% a 55% das pessoas
mortas pela polfcia são afro-americanos. Em Chicago e na Filadélfia, mais de
70% das pessoas mortas pela polícia são negras.
A justiça e as prisões
representa mais do que uma fração da sua barbárie, meu tio. O senhor utilizou
a árvore e a corda para enforcá-lo. Utilizou a faca para castrá-lo enquanto ele
lutava com a corda para recuperar o alento. Utilizou o fogo para que ele se
contorces>e ainda mais, porque o enforcamento e a castração não eram diver·
timento suficiente. Depois o senhor utilizou outra coisa - urna das suas cria·
ções-essa coisa a que o senhor chama de lei. Era escrita pelo senhor, para o
senhor e os de sua espécie, e todo o homem que não era da sua espécie devia
infringi-la mais cedo ou mais tarde ... u
Fruto de uma longa história, o racismo americano não reside somente no
espírito dos brancos, está instirucionalizado em todas as engrenagens da soei·
edade americana. E especialmente no sistema da justiça criminal. O sinal
mais evidente desse racismo é a composição racial do sistema. Num país onde
20% dos cidadãos são de origem não-européia, o sistema de justiça criminal é
composto por 95% de pessoas de origem européia.
"No caso mais comum, o negro suspeito de ter cometido um crime é deti·
do por um policial branco, apresentado a um juiz branco, a um procurador
branco e a um júri branco, num tribunal cujos debates são registados por
escrivães brancos. O lugar habirual do negro nesse sistema judiciário nas mãos
dos brancos é o do acusado. Semelhante situação convence-o de que a justiça
é um instrumento de opressão nas mãos dos brancos e que esta situação influ·
encia a aplicação da justiça. Daí só podem resultar discriminações na acusa·
ção e na condenação. E mesmo quando os brancos, agindo dentro do sistema
judiciário, não têm preconceitos irutalados, as barreiras culturais e de classe
que se erguem entre eles e o acusado invariavelmente colocam este numa
situação desvantajosa."'!
O resultado desta justiça racista é que perto de metade (48%) das l.630.940
pessoas que povoam as penitenciárias, as prisões do Estado e as municipais
são afro-americanas, embora estas não rcpreiK"Tltcm mais do que 12% da po•
pulação. Há a mesma percentagem de negros entre os 3.350 condenados à
morte nos "corredores da morte". Nos Estados Unidos prendem-se os negros
muito mais do que na África do Sul nos tempos do apanheíd : 3.109 em cada
10 mil, contra 729 na África do Sul.LS
Um estudo desta situação mostra que não existe relação entre a taxa de
delinqüência dos negros (embora seja elevada) e a taxa do seu encarceramento,
como também não há com a proporção de negros que vivem em um estado da
federação. Num plano geral, descobre-se que o aumento para o dobro da taxa
de encarceramento constatado há cinco anos nos Estados Unidos não tem
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 347
O "crime Bill"
Por 314 votos contra 111, a Câmara dos Representantes derrotou a posi-
ção do Senado sobre a pena capital.
Baseball e justiça
Condição carcerária
Apesar dos discursos dos responsáveis pelo sistema carcerário dos Estados
Unidos, elogiando a humanidade das prisões americanas, os presos e as pesso-
as que os visitam afirmam que as brutalidades nas prisões nunca desaparece-
ram e até que tornaram uma forma nova, freqüentemente dissimulada.
Foi esta divergência de opiniões que levou o Prisoners Rights Union (PRU)
de Sacramento (Califórnia) a realizar em 1989 o Prison Discipline Srudy (PDS),
uma sondagem feita com os próprios presos. O resultado desse estudo foi ob-
jeto de um Relatório intitulado Mych of Humane Imprisomnent. Mais de 70%
dos presos que responderam à sondagem declararam que as brutalidades físi-
cas e psicológicas eram a norma nas prisões de segurança máxima nos Estados
Unidos. Isolamento em solitária, supressão de "privilégios" e brutalidades físi-
cas são práticas habituais na maior parte das prisões de alta segurança.
"Os abusos físicos têm um começo e um fim, ao passo que os abusos psico-
350 O LIVRO NEGRO 00 CAPITAU MO
lógicos estão sempre presentes. Até os mai5 endureci d ão afetado por cada
pequeno pormenor desses abusos: um olhar, um novo emprego do tempo,
uma mudança da alimentação, uma carta entregue com atraso, uma visita
recusada, uma observação acerca do e nteúdo do correio. Pormenores Que
podem ter múltiplas razões e provocar sérias medidas disciplinares."
Ainda que a prática do isolamento seja c ruiderada conveniente e legal
pelos tribunais e pelas autoridades carcerárias, e e é ralvez o método mais
devastador do abuso psicológico. Embora os responsáveis pelas prisões ameri·
canas afirmem que a maior pane dos presos não passa mais do que alguns dias
em isolamento, a sondagem rev a q e esta punição é freqüentemente supor·
tada durante anos. Os pre505 afumam também que o isolamento é muitas
vezes arbitrario, em ~<pedal para os detidos que sofrem de distúrbios psiquiá·
tricos.
Muitos preso5 revelaram manobru de intimidação sobre as pessoas que os
visitam, incluindo ameaças proferidas pelos guardas a respeito de membros
das farru1ias dos detid e o assédio sexual às visitantes.
Quase 40% dos pr~ interrogados viram detidos receber tratamento psi·
quiátrico ou médico contra a ua vontade. E 32 % relataram incidentes causa·
dos por agre~õe! verba.li e iru • r.os racistas, a deterioração da alimentação,
cxtonão de dinheiro, revisw corporais e ameaças de morte - incluindo as
que foram perpetradas pd05 guardas da pri5ão do condado de Los Angeles
que eram membros da Ku Klux Klan.
Noventa por cento d05 presos entrevistados confirmaram as brutalidades
físicas, e 70% deles afumaram sofrer agressões pelo menos uma vez por mês.
Os funcionãrlos usam 05 punhos, os p6, cassetetes elétricos, gás lacrimogê·
neo, mangueiras de incêndio, lanternas elétricas, cabos de vassoura, tubos de
borracha e de espingardas que disparam balas de madeira.
Cerca de cem presos afirmaram ter vi.5ro presos al gemados sendo espanca·
dos. Quarenta tinham visto guardas entrcga.rem- se ao bod'Y slam vogar um
preso contra o chão ou contra uma parede, com a cabeça para a frente), com
presos com as mãos algemadas às costas. Trinta tinham vin o goon squads em
atuação (um grupo de guardas espancando um preso, a maior parte das vem
algemado).
Trinta e cinco mulheres interrogadas testemunharam que tinham sido
espancadas, violentadas ou amarradas nuas em cima de uma cama e sujeitai
ao deboche dos guardas. Urna delas afirmou ter perdido o seu íiltimo bebê
depois de os guardas terem atirado sobre ela com as suas scun guns.
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 351
A pena de morte
Execuções de menores
soas com menos de dezoito anos e não pode ser executada contra mulheres
grávidas." Do mesmo modo, segundo o Artigo 4, alínea 5 da Convenção
Americana, relativo aos direitos do homem, ''A pena de morte não pode ser
infligida às pessoas que, no momento em que o crime tenha sido cometido,
tenham menos de dezoito ou mais de setenta anos ... ". O governo americano
assinou estes dois tratados em 1977, mas ainda não os ratificou.
"Apesar deste texto, apenas nove estados americanos que mantinham a
pena de morte interditavam a sua aplicação a pessoas com menos de dezoito
anos. (...) Em dezessete estados, a legislação autoriza a condenação à morte
de menores de dezoito anos. Este limite é fixado, quer pelos textos legislativos
relativos à pena capital, quer por leis que especificam a idade em que os me•
nores podem ser julgados pela jurisdição penal. Este limite de idade é de dez
anos em Indiana e Vermont, de doze anos em Montana, de 13 anos em
Mississippi, de 14 anos em Alabama, Idaho, Kentucky, Missouri, Carolina do
Norte e Utah, de 15 anos em Arkansas, Louisiana e Virgínia, de 16 anos em
Nevada e de 17 anos no Texas, na Geórgia e em New Hampshire. Onze ou·
tros estados não especificam qualquer limite de idade."2º
Tal como para os adultos, a raça tem uma influência na condenação à
morte em numerosos estados. No Texas, oito dos nove menores condenados à
pena de morte citados pela Anistia Internacional num relatório de janeiro de
1994 eram negros ou hispânicos, como Curtis Harris e Ruben Cantu, os dois
menores executados naquele estado no decorrer do ano de 1993. Tal corno
para os negros adultos, esses acusados são mal representados e defendidos,
com freqüência por advogados inexperientes e desmotivados. Não fazem va·
ler a influência do meio e não mencionam circunstâncias atenuantes, entre as
quais deveria, em primeiro lugar, figurar precisamente a sua juventude, que os
toma influenciáveis tanto para o bem como para o mal.
Num estudo publicado em 1991 sobre os jovens condenados à pena capi·
tal nos Estados Unidos, a Anistia Internacional constatava que estes eram
oriundos, na sua maioria, de famílias especialmente desfavorecidas. A maioria
deles tinha suportado graves violências físicas ou sexuais e possuíam uma ln·
tcligência inferior à média, ou sofriam ainda de doenças mentais ou de lesões
cerebrais. Finalmente, muitos deles não tinham se beneficiado, durante o seu
processo, de uma defesa conveniente. 21
"Foi constatado que cm certos estados os menores passíveis da pena de
morte eram automaticamente julgados pela jurisdição do direito comum na
ausência de qualquer avaliação individual da capacidade do acusado de ser
356 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
As Unidades de Controle
Os presos políticos
são perpétua. Geronimo sempre alegou ser inocente e afirmou que o caso
tinha sido montado pelo FBI no quadro da operação Cointelpro, e que no dia
do assassinato estava a 600 quilômetros do lugar do crime, numa concentra·
çáo dos Panteras Negras em Oakland. De resto, o FBI, que o vigiava constan·
temente, tinha essa pista nos seus arquivos. No entanto, quando Geronimo
pediu, em obediência à Lei de Liberdade de Informação,24 que o FBI forneces·
se esse documento, o órgão se recusou a fazê-lo.
Geronimo foi declarado culpado com base no testemunho do marido da
vítima. Este admitiu só ter visto o agressor uma única vez quatro anos antes, e
durante poucos instantes. No entanto, identificou Geronimo como sendo o
assassino, embora algumas semanas depois do crime o tenha descrito como
um homem muito grande e muito negro de pele, ao passo que Geronimo é
bastante pequeno e tinha o tom de pele mais próximo da de um índio (daí o
seu apelido).
Mas a principal testemunha de acusação foi Julius Butler, antigo membro
do partido, que declarou que Geronimo tinha dado a ele uma carta em que
admitia ser culpado do crime. Ora, foi revelado que Butler era um informante
do FBI, o que ele tinha negado durante o processo. Após a condenação de
Oeronimo, foram reveladas outras provas de irregularidades cometidas pelo
FBI durante a instrução: três informantes tinham sido colocados na equipe
encarregada da defesa de Geronimo e fornecido documentos sobre a estraté·
~a e a tática previstas, assim como sobre os depoimentos de pelo menos duas
testemunhas de defesa. Uma testemunha ocular do crime identificou outra
pessoa como podendo ser o assassino; no entanto, essa informação não foi
fornecida ao advogado de Geronimo. O FBI e a polícia de Los Angeles ti·
nham trabalhado em conjunto e trocado informações a respeito da instrução,
da detenção e do processo no caso Pratt.
A libertação de Geronimo é uma vitória. A sua vitória. A dos seus advo·
gados e de todos aqueles que, nos Estados Unidos e em todo o mundo, fizeram
campanha pela sua libertação. É também um imenso encorajamento para as
lutas pela libertação dos outros presos políticos no Estados Unidos.
Leonard Peltier
Mumia Abu Jamal foi educado na Filadélfia. Foi um dos membros fun-
dadores (aos 15 anos) do Comitê dos Panteras Negras da Filadélfia, onde
iniciou a sua carreira de jornalista. Escrevia no jornal do partido como minis·
tro da Informação do comitê local.
Prosseguiu a sua carreira de jornalista como comentarista em diversas es-
tações de rádio da cidade. Durante os anos 70, Mumia publicou vigorosas
críticas à polícia da Filadélfia e ao seu chefe, Frank Rizzo. Rejeitou a versão
apresentada por Rizzo do cerco policial de 1985 contra a organização negra
Move, em Powelton Village, no qual participaram mais de 600 agentes anna-
dos e que tenninou com a morte de onze membros do movimento (seis adul-
tos e cinco crianças). O seu engajamento na luta a favor dos pobres e dos
discriminados valeu a ele o título de a voz dos sem-voz. O seu empenho nessa
forma de jornalismo fez com que fosse despedido da sua estação de rádio. Foi
obrigado a trabalhar como motorista de táxi à noite para alimentar a sua família.
No dia 9 de dezembro de 1981, um pouco antes das quatro horas da ma·
nhã, circulando no táxi e vendo um policial espancando seu irmão, correu
para ajudá-lo. Os policiais chamados pelo agente Faulkner encontraram-no
deitado no chão, atingido por balas nas costas e no rosto. A alguns passos,
sangrando, estava Mumia Abu Jamal. O revólver calibre 38 que ele comprara
depois de ter sido assaltado duas vezes foi encontrado no local. O policial
Faulkner morreu uma hora depois do tiroteio, no mesmo hospital universitá·
rio onde Mumia foi submetido a uma intervenção cirúrgica: uma bala dispara-
da pela anna de Faulkner tinha atingido-o no peito e se alojado perto da
coluna vertebral.
Alegando inocência, Mumia Abu Jamal foi acusado do assassinato dopo·
licial, apesar do testemunho de quatro pessoas que afim1avam ter visto um
terceiro homem disparar e fugir. Foi entregue à justiça no início de 1982. O
processo foi confiado ao juiz Sabo, conhecido como "o rei do corredor da
morte", que tinha o recorde das condenações à morte nos Estados Unidos:
31, das quais 29 de negros. Era, além disso, membro do mesmo sindicato da
polícia que Faulkner: a "Fraternidade da Polícia", o que põe em dúvida a sua
imparcialidade.
O processo foi clássico, tratando-se de um negro. Mumia Abu Jamal foi
impedido de escolher advogado e privado dos meios financeiros necessários à
sua defesa. Foi proibido de exercer ele mesmo essa defesa. Foi-lhe imposto um
364 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Robnt Pac ~jornalista, empenhado há maU de 25 ano. ru luta ao lado dos negros, dos índios
e dos membros de ou1ns minorias ~miau das cru ~r!c.as. É au!Dr de As gwma.s índias hoít·
Now:
1. Handrew Hacker in Two Nadons, C/imkJ Scribner'J Son, Macmillan Publi.!híng Company,
Nova York, 1992.
2. Gcnocide USA, WorlcLn Vanguard nP 463, 21 de outobro de 1988.
3. !.'. Humani!é, 22 de fevereiro de 1990.
4. N.:w York Pasi, 9 de maio de 1990.
5. N.:w York Posi, 9 de maio de 1990.
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 365
tuição a Martinez Campos. Foi Don Valeriano Weyler,3 conhecido pela sua
imaginação repressiva. Reconhecendo que esta guerra era diferente da que a
precedera, o próprio Martinez Campos tinha proposto tirar a água do aquário
para assim capturar os peixes: um chefe tão experiente como Weyler era ca-
paz, disse, de aplicar essa medida de "reconcentração" que pessoalmente o
repugnava. O processo já tinha sido utilizado, embora em menor escala, du-
rante a "Grande guerra", mas sem ter alguma vez ultrapassado o número de 40
mil civis reagrupados depois de terem sido forçados a abandonar suas aldeias.
Este processo político-militar foi portanto aplicado com a finalidade de privar
de provisões, homens e cavalos as forças "mambises", que recebiam suprimen·
tos de todas as aldeias e dos campos, onde eles estavam como peixes na água.
Após as primeiras experiências, foi em 21 de outubro de 1896 que Weyler
publicou uma ordem de campanha em que decretou a "reconcentração" de
todos os habitantes em certos aglomerados, e tudo isso num prazo de oito
dias, proibindo a retirada de alimentos das aldeias ou o seu trânsito por mar
sem uma permissão das autoridades militares espanholas. À população, acres·
centou o gado.
"Centenas de milhares de pessoas foram reunidas. Em poucos dias, as lo-
calidades que tinham guarnições sediadas transformaram-se em imensas pri·
sões para velhos, mulheres e crianças sem meios de subsistência. Depois de
terem reunido as pessoas, as tropas espanholas tinham carta branca para arra·
sar tudo, queimar as habitações, destruir os campos e sacrificar os animais que
não podiam subtrair às necessidades de aprovisionamento do exército de li·
bertação", explica o coronel Raul lzquierdo Canoso, que acaba de publicar
um estudo intitulado A reconcentração 4•
Um verdadeiro genocídio
Esta medida foi aplicada durante os dois anos que durou a missão de Weyler
em Cuba, 1896 e 1897. Foram encontrados indícios dos acontecimentos nos
arquivos da ferrovia cubana: "É verdade que a terceira classe é aquela que
transporta o maior número de viajantes da Companhia. E, como a maioria
deles são jornaleiros que foram reconcentrados nas vilas e aldeias sem sequer
oindispensável para se alimentarem, estavam ainda mais desprovidos de mei·
os para se deslocarem. Tendo as autoridades da cidade [de Matanzas] deseja·
do que eles regressassem às antigas aldeias de onde tinham vindo aos milha-
376 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALJSMO
rocos cantos soldados como em Cuba, 30 anos antes. Weyler era demasiado
velho para lhe propor os seus serviços ... "
Notas:
OBrasil
dos fisicamente" desde 1900. Depois dessa data, 90 tribos desapareceram to·
talmente.
Cada avanço da "civilização industrial" empurrou os índios para zonas
cada vez mais inóspitas. Na segunda metade do século XIX houve o surto da
borracha industrial. Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção dos Índios
(SPI), cuja função era, a princípio, assistir os índios no exercício dos seus
"direitos" e promover melhores condições de vida. Em 1968, explode o escân·
dalo. As autoridades reconhecem que os funcionários do SPI eram facilmente
subornados pelos colonos; aventureiros e funcionários corruptos, torturavam
e vendiam os indígenas, vendiam as terras indígenas, e fechavam os olhos aos
métodos atrozes usados pelos compradores, isso quando não chegavam a ajudâ·
los: massacres usando metralhadoras, destruição de aldeias e dos seus habi·
tantes com dinamite, envenenamento por meio de arsênico e pesticidas. As·
sim desapareceram tribos inteiras, corno os Cintas Largas ou os Tapalunas,
nos quais o exército experimentou novos métodos de metralhar; e pereceram
muitos Parintintins, acusados de terem morto um mílítar, os Bocas Negras,
declarados rebeldes, e os Pacas Novos, que foram pacificados com comida
envenenada.
A Funai substituiu o SPI, mas logo se revelou impotente para realizar a
sua missão. Mais ainda, foi acusada de subordinar as necessidades do povo
índio aos objetivos da expansão nacional e do desenvolvimento capitalista.
Acordos da Funai com companhias privadas foram freqüentemente denun·
ciados por vozes respeitadas. Além do mais, o orçamento da Funai é ínsufi·
ciente.
A Funai e a legislação sobre os índios do Brasil visam sobretudo a promo·
ver "a integração dos índios na comunidade nacional". É o objetivo do Esta·
tu to do Índio que reúne as medidas legais que lhe dizem respeito. O Capítulo
II do Estatuto indica que, enquanto um índio não estiver assimilado, está sob
a tutela do Estado e não pode ser protegido pela Constituição Brasileira. Mas
um índio assimilado já não é um índio, uma vez que renunciou à sua cultura.
Para o índio, esta "assimilação" é descer ao mais baixo nível da escala social. É
a miséria, a mendicância, o álcool, a prostituição para as mulheres ... O índio
não tem existência legal na sua alteridade e na sua especificidade e não pode
levar a cabo atos jurídicos válidos sem a assistência do organismo tutelar com·
petente. Certos peritos estimam que o sistema de tutela priva os índios dos
direitos humanos fundamentais e coloca-os numa situação semelhante à de
uma escravatura legalizada.
O GENOC(DIO DOS iNDIOS 387
México e Guatemala
Estados Unidos
uma criança em cada três nos seis meses posteriores ao nascimento. Em certas
reservas lamenta-se a média de 100 falecimentos para mil nascimentos, con·
tra 8, 1 para os brancos. A esperança média de vida de um índio é de 63 anos,
contra 76 anos para os brancos, mas há reservas onde essa esperança de vida
cai para 46 anos.
Os suicídios entre os índios são o dobro do que entre os brancos: 21,8 em
100 mil contra 11 ,3 em 100 mil pessoas. Atingem principalmente os jovens.
Um índio entre os 14 e os 24 anos é quatro vezes mais suscetível ao suicídio
que uma pessoa branca. Cerca de 75% dos índios sofrem de subnutrição.
O alcoolismo atinge um homem em cada quatro e urna mulher em cada
oito. Os índios das cidades sofrem mais desse flagelo do que os das reservas,
mas 80% dos índios são vítimas, em diferentes graus, dessa forma de alienação
provocada pela inação e pela consciência da perda de identidade. A droga,
especialmente o crack, faz hoje muitas vítimas entre os índios.
Notas:
"Na Ásia hã lugar para todos nós", proclamava Lord Salisbury em 1880.
Mesmo que o "todos nós" designasse os Estados capitalistas ocidentais, era já
uma visão otimista, como demonstravam as rivalidades no Sudeste Asiático
na mesma época. Além disso, havia o expansionismo japonês, que precisaria
ser levado em conta. As noções de império e imperialismo eram divulgadas de
maneira elogiosa por autores ingleses, de Disraeli a Kipling, antes de Hobson,
Hilferding e Lenin definirem que o imperialismo era a união do capital indus-
trial e do capital bancário para formar um capital financeiro com o objetivo
de dominar o mundo.
No início da era Meiji, como a classe dominante japonesa não se sentia
preparada, renunciou a atacar a Coréia em 1873. Tinha, no entanto, assegu-
rado seu domínio nas ilhas Bonun, Kurilas e Ryukyu. Mais tarde, em 1891, o
Japão propôs à China estabelecer um condomínio sobre a Coréia, projeto que
foi abandonado. Pelo contrário, o desejo expansionista levou o Japão das gran-
des sociedades integradas, o Japão imperialista, a lançar-se sobre a China em
1894. Pelo Tratado de Shimonoseki (1895), obteve não só Taiwan e as ilhas
Pescadores, como também uma importante indenização (que serviu para de-
senvolver ainda mais rapidamente o capitalismo japonês), e o direito de criar
empresas no nordeste da China (Manchúria) . Mas teve de abandonar Port-
Arthur, por pressão da Rússia.
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Birmânia e o Ceilão em 1948. A luta armada foi o que sobrou para a Indonésia
em 1947-1948 e o Vietnã de 1946 a 1954. Os Países Baixos e a França, tendo
feito escolhas erradas, perderam todas as suas posições econômicas e deixa·
ram, por um tempo, de ter qualquer papel no Sudeste Asiático. Além disso, a
não aplicação dos acordos de Genebra de 1954 levou a guerra americana ao
Vietnã de 1959 a 1975 e a reunificação do país sob um regime socialista que
nenhum capitalismo desejava. Na Malásia, a Grã-Bretanha combateu o mo-
vimento progressista de libertação de 1948 a 1953, quando entregou o poder
aos elementos pró-ocidentais, continuando o capitalismo britânico a ter um
papel dominante na península malaia. O Japão, bem entendido, perdeu todas
as suas colônias: a Coréia independente mas dividida entre um Norte socialis-
ta e um Sul capitalista, e Taiwan, entregue à China nacionalista.
A Grã-Bretanha trabalhista tinha reconhecido desde 1945 o princípio da
independência para os habitantes da península indiana, o que desagradava
bastante a Churchíll. Mas o colonialismo inglês tinha semeado os germes da
divisão entre o Partido do Congresso, de tendência laica, e a Liga muçulma-
na. Quando a independência chegou, em agosto de 1947, foi concedida à
Índia, de um lado, e ao Paquistão do outro. Londres conseguiu fazer deles dois
domínios no seio da Comunidade Britânica, mas houve pelo menos 300 mil
mortos em massacres e execuções, 500 mil pela fome e 7 milhões de refugia-
dos que perderam tudo nas estradas.
Na China, o Kuomintang tinha saído da guerra muito enfraquecido e os
comunistas muito reforçados. As "quatro grandes famílias" do capitalismo
chinês só pensavam em apoderar-se das empresas japonesas confiscadas, en·
quanto a inflação crescia e o povo sofria fome e repressão. Depois da tentativa
de formar um governo de coalisão, a guerra civil renasceu em 1946. As tropas
do Kuomintang, inicialmente expulsas das aldeias, perderam as cidades cerca-
das: Shenyang (Mukden), Beijing (Pequim), Nanquim, Xangai, e Wuhan. Com
aproclamação da República Popular da China, no dia 12 de outubro de 1949,
e apesar da manutenção de um "capitalismo nacional", o capitalismo chinês
parecia agora ver terminar seus belos dias.
ção industrial cresceu lentamente até 1984, depois com maior rapidez (8% ao
ano) até 1990. Nos anos 80, o investimento representava perto de 25% do
produto interno bruto. O Banco Mundial tinha obrigado a Índia a desvalo-
rizar a rúpia em 50% em 1966. Nesse mesmo ano, o conflito com o Pa-
quistão acabara em Tachkent, mas fora retomado quando do levante do
Paquistão Oriental em 1971, que deu origem a Bangladesh. O capitalismo
indiano conseguiu em 1981 proibir as greves nos sNores "essenciais", o que
não impediu que uma greve geral no início de 1982 acabasse com 700 mortos.
A Índia procura investimentos estrangeiros para as suas indústrias e esforça·
se por conseguir mercados no Sudeste Asiático. Sob os governos de lndira
Gandhi, assassinada em 1984, e, depois, do seu filho Rajiv (1984· 1989) e de
Narasimha Rao (1990-1996), a Índia realizou um teste nuclear e muniu-se de
um míssil de um alcance de 2.500 km. A tensão persistente provoca o temor
de que a Índia, de agora em diante uma das grandes potências capitalistas
mundiais, venha a enfrentar, mais tarde ou mais cedo, o vizinho Paquistão.
Com efeito, o Paquistão está em conflito com a Índia, especialmente a
propósito de Caxemira. Aquele país oscilou sempre entre a adoção de uma
posição de Estado islâmico, que tomou várias vezes depois de 1956, e uma
atitude laica. Reformas progressistas (nacionalizações, reforma agrária) fo.
ram adotadas em 1971 por Zulfikar Ali Bhutto e, em 1973, por Fazal Elahi
Chaudri. Mas um golpe de Estado militar em 1978 colocou no poder o ge·
neral Mohammed Zia al-Haq, sendo a "charia" adotada como lei suprema.
O país teve papel ativo na guerra do Afeganistão e recebeu três bilhões de
dólares de auxílio americano em seis anos. Filha de Ali Bhutto, executado
em 1979, Benazir Bhutto tomou-se primeira-ministra cm 1988; foi destitu·
ída em 1990, mas voltou ao poder em 1993. Apesar das perturbações, a taxa
de crescimento oscilou durante esses últimos anos entre 4% e 6% ao ano. A
classe dirigente paquistanesa conserva muito mais traços de feudalismo que
a da Índia. Isto, sem dúvida, explica em parte as oscilações políticas do país.
A Índia reconheceu, em 1992, poder fabricar armas nucleares, e muitos
pensam que isso já começou. A península indiana pode explodir de um
momento para o outro, em conseqüência de rivalidades nacionais entre elas·
ses dirigentes adversárias, que não deixam de lembrar o que aconteceu na
Europa capitalista no século XIX e no início do século XX, mas desta vez na
era nuclear.
As economias dos países do Sudeste Asiático saíram da Segunda Guerra
Mundial extremamente enfraquecidas pela destruição (Birmânia, Filipinas) e
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 409
possa dar garantias de uma vida melhor e que, por isso, tentem encontrar um
novo caminho para chegar a ele. Porque o capitalismo não é o futuro, nem
para a Ásia nem para o resto do mundo.
., .
Os homens sempre migraram, e pode-se legitimamente questionar por
que o capitalismo teria uma responsabilidade particular nas migrações dos
séculos XIX e XX. Não será apenas um ponto de vista teórico, má vontade
com um sistema que, afinal de contas, não faz mais do que tirar partido de
um fenômeno natural - as migrações humanas - que ocorre desde a pré-
história?
Tradicionalmente, os historiadores das migrações decompõem as suas cau-
sas em dois pólos: as causas repulsivas e as causas atrativas. As causas repulsi-
vas são o conjunto das razões que podem levar os indivíduos a deixar o local
onde vivem: miséria, fome, guerras, conflitos políticos ou religiosos. As causas
atrativas são a procura de novas terras e o apelo da fortuna. Os mesmos histo-
riadores estabelecem depois distinções sutis entre as migrações "espontâneas"
e as migrações organizadas.
Tais definições evidentemente orientam a percepção que podemos ter dos
fenômenos migratórios. Primeiramente, causas repulsivas e causas atrativas
combinam-se na maior parte dos casos. É improvável que um indivíduo ex-
pulso do seu país por múltiplas razões procure um lugar para viver a mesma
miséria e as mesmas perseguições. Segundo, a própria noção de migrações
"espontâneas" é falaciosa. Migra-se espontaneamente quando se foge de si-
tuações políticas ou econômicas intoleráveis? Seria sem dúvida mais conveni-
ente falar de migrações forçadas e de itinerários individuais ou coletivos.
As migrações são, na sua essência, a conseqüência de situações extremas
nas quais o indivíduo só tem como escapatória partir para um destino desco-
nhecido. É possível então, sem dúvida, fazer-se a distinção entre itinerário de
promoção social e migrações de sobrevivência. O itinerário de promoção so-
cial é planificado pelos indivíduos que deixam o seu local de residência com
uma estratégia de ascensão social a médio e longo prazos, para eles ou para a
geração seguinte. As migrações de sobrevivência são a resposta imediata a
situações intoleráveis: as pessoas fogem para assegurar a sua sobrevivência.
Este tipo de migração assume muitas vezes um caráter de longa duração cujos
intervenientes não tinham inicialmente previsto.
Para o período que nos interessa, proporia uma classificação - com os
limites que qualquer classificação implica - distingüindo as migrações de
418 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
até os anos 1920, quando leis restritivas bloquearam sua entrada no território
americano. A partir desse momento, os fluxos migratórios orientaram-se no-
vamente para a Grã-Bretanha. Os Estados Unidos ofereciam um maior nú-
mero de possibilidades de promoção e sucesso social do que a Inglaterra. Por
outro lado, davam provas de uma maior tolerância religiosa do que a Inglater-
ra, país colonizador- a Irlanda virá a obter a sua independência em 1921-
e opressor.
Em 1890, os irlandeses eram mais numerosos no exterior do que na pró-
pria Irlanda.
Durante todo o século XIX, os irlandeses desenvolveram uma cultura
de emigração. A passagem de barco para os Estados Unidos era conseguida
com a família e os vizinhos. Podia igualmente ser enviada por membros da
família já instalados no estrangeiro. Desembarcado nos Estados Unidos, no
Canadá ou na Austrália, o migrante irlandês nunca estava isolado porque
encontrava redes de ajuda. Chegado ao país de destino, juntava-se aos
migrantes que o tinham precedido, instalando-se na mesma cidade e no
mesmo bairro. A rede de ajuda acolhia-o, alojava-o e arranjava-lhe um
emprego.
Apesar das suas características rurais, os migrantes irlandeses em países
de emigração instalaram-se majoritariamente em cidades. Pouco qualificados
mesmo para a agricultura, tinham maiores possibilidades de sobrevivência no
meio urbano. Em 1940, 90% dos irlandeses nos Estados Unidos estavam nas
cidades. A maioria deles vivia nas cinco maiores cidades americanas, Nova
York, Chicago, Filadélfia, Boston e San Francisco.
Na sua forma de migrarem e de se instalarem, privilegiando relações de
caráter comunitário, os irlandeses nos Estados Unidos não diferem dos outros
migrantes do mesmo período: italianos, russos, armênios, judeus do leste eu-
ropeu, chineses, japoneses etc. procedem da mesma forma recriando redes de
sociabilidade com seus compatriotas no país de destino. Para o migrante, tra·
ta-se de reconstituir um espaço social privilegiado. É uma questão de sobrevi·
vência num meio que se revela claramente hostil. É preciso esperar a segunda
geração para que as relações privilegiadas se dissipem. Elas resistem graças a
associações políticas, culturais, religiosas etc.
Sem extrapolar demasiado, percebemos que as solidariedades "comunitá·
rias" 11 - solidariedade na partida, solidariedade à chegada, solidariedade no
processo de inserção - continuam a funcionar do mesmo modo hoje.
As migrações de caráter econômico não são forçosamente migrações in·
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XIX E XX 423
Asituação atual
Notas:
1. Os números sobre o comércio são controversos: alguns fazem uma estimativa altamente
improvável de 100 milhões de africanos deportados. A análise desmente os números,
sobretudo se levannos em conta a densidade populacional africana e a capacidade de
transporte dos navios que faziam a travessia do Atlântico.
2. "Le barrage contre le Pacifique", Paris, 1950.
3. O último tasmaniano morreu em 1874.
4. No final do século XVIII, os aborígines eram sem dúvida entre 300 mil e 400 mil espalha-
dos sobre o conjunto do território. Em 1989, estavam recenseados 40 mil, bem como 30
mil mestiços. Recentemente, o governo australiano foi interpelado sobre a política prati-
cada desde os anos 50 que consistia em tirar as crianças aborígines de suas famílias e
entregá-las a instituições do Estado .. . Centenas de crianças foram vítimas destas práticas.
5. Desde o século XVII, os emigrantes holandeses e franceses (huguenotes expulsos pela
revogação do Édito de Nantes), instalaram-se na África do Sul, constituindo um núcleo
inicial de povoamento europeu. No início do século XIX, antes da chegada dos britâni-
cos, esta colônia de povoamento mantém-se restrita. Confinada à província do Cap, in-
cluía então 80 mil pessoas, sendo cerca de 16 mil européias.
6. Os estragos provocados nas vinhas pela filoxera (1878) levam efetivamente numerosos
viticultores do Midi a instala r-se na Argélia.
7. Os europeus eram 109 mil em 1847; 272 mil em 1872; 578 mil em 1896; 829 mil em
1921; 984 mil em 1954.
8. Destes, 80% instalaram-se nos Estados Unidos e no Canadá, 11% na Austrália, 5% na
África do Sul.
9. De 1875 a 1913, emigraram quatro milhões de pessoas do Império Austro-Húngaro. De
1900 a 1914, a Rússia conta apenas com dois milhões e meio de emigrantes, entre os
quais se registra um grande número de poloneses e judeus expulsos pela Intensificação
das perseguições religiosas.
428 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
10. Entre 1876 e 1926, 84% dos emigrantes holandeses partiram para os Estados Unidos.
11. O termo "comunitário" é, tal como o termo "etnia", de utilização delicada. Ele pressupõe
que os migrantes de um mesmo país se organizam num todo coerente com reações coleti·
vas e idênticas. Nada é mais errado. Existem redes de sociabilidade, mais ou menos bem
organizadas. No caso precedente, na falta de um tem10 mais adequado, este termo deslg·
na a rede de acolhimento à volta do migrante, da sua família, dos seus vizinhos, dos seus
amigos ...
12. Numerosos camponeses franceses, espanhóis ou italianos procuravam durante as esta·
ções baixas um emprego assalariado que depois abandonavam para voltar a cultivar e a
colher. Este caso encontra· se sempre que uma cultura agrícola não é suficiente para asse·
gurar a sobrevivência da famrlia. Por vezes são as próprias crianças que oferecem o seu
trabalho, esperando contribuir por sua vez para o rendimento familiar.
------,
seus aliados: 220 mil armas de fogo inglesas para a Espanha de 1808 a
1811, por exemplo.
A dualidade entre indústria capitalista privada e arsenais do Estado
existia no país durante esta corrida armamentista nos inícios do século
XIX, mas não sem relações entre eles. Assim, novos métodos de produção
de armas levados a cabo na Escócia pela companhia Carron são utilizados
em 1809 pela fábrica de Woolwich; a iluminação a gás utilizada por
Boulton's Soho Works em Birmingham em 1802 é adotada, a partir de
1807, para iluminar 24 horas por dia a produção de equipamentos de co·
bre para a Marinha Real inglesa nas docas de Portsmouth. Mas a superio·
ridade do capitalismo britânico sobre o capitalismo francês era sobretudo
de ordem financeira. Em 1806, o orçamento francês era o equivalente a
27,6 milhões de libras esterlinas, o orçamento britânico elevava-se a 76,5
milhões e em 1813 os dois orçamentos eram respectivamente de 46,5 mi·
lhões e de 109 milhões. A campanha de Waterloo em 1815 custou ao go·
vemo britânico 21,3 milhões de libras para o seu exército, 12,9 milhões
para serviços extraordinários e 11 milhões para empréstimos e adianta·
mentos aos seus aliados. A "cavalaria de São Jorge", de que o capitalismo
britânico sempre soube fazer bom uso, sobretudo se era acompanhada da
entrega de armas, permitiu ganhar guerras.
que alguns acreditavam poder dizer que ela tomaria a guerra impossfvel.
Infelizmente não foi assim...
Uma forma de corrida armamentista entre grandes Estados imperialis-
tas especialmente espetacular é a rivalidade naval que opõe a Grã-Bretanha
à Alemanha nos anos que precederam a guerra de 1914. Os couraçados
britânicos acabam por ser monstros de velocidade superior a 30 nós, des-
locando 60 mil toneladas e cujos 16 canhões principais são capazes de
disparar projéteis de 2 mil libras com precisão a mais de 20 milhas. É ne·
cessário acrescentar os cruzadores, os contratorpedeiros e outros tipos de
navios de superfície. A corrida toma a forma de urna competição entre a
couraça dos barcos e o poder de penetração dos obuses ou dos torpedos
modernos ajustados antes de 1914. As minas marítimas, já utilizadas du-
rante a Guerra da Secessão, foram aperfeiçoadas no início do século XX.
Nas vésperas da guerra, todas as grandes potências possuíam submarinos
munidos de torpedos.
A arma aérea é tão velha quanto o acesso ao poder do capitalismo, uma
vez que balões sobrevoavam a batalha de Fleurus e que um corpo de aerostatos
da República tinha existido de 1793 a 1798. Em seguida orientaram-se para
balões livres, depois dirigíveis como o de Henri Giffard em 1852. O russo
Tsialkowski tinha adaptado um quadro metálico a um dirigível em 1887 e o
alemão Ferdinand von Zeppelin tinha experimentado, em 1900, um outro
que ia ser desenvolvido para fins militares até 1914. Todavia, para esse fim,
algo mais pesado do que o ar mostrava-se mais promissor. O primeiro aeroplano
moderno foi aquele com que o russo Mojaiski obteve o brevê em 1881. Vie·
ram depois o alemão Otto Liliemhal, o francês Clément Ader (1897) e os
irmãos Wright (1900). Os motores foram aperfeiçoados de 1903 a 1908 e as
hélices de 1906 a 1912, de modo que estavam prontos aviões para missões de
reconhecimento, de bombardeio e de combate (oh, quão modestos ainda!)
quando a guerra explodiu.
A corrida armamentista apela aos arsenais dos Estados capitalistas, mas
o capitalismo privado tem a{ um papel preponderante. As grandes socieda-
des produtoras de armamentos desse início do imperialismo chamam-se
Krupp, na Alemanha, Vickers-Armstrong, na Grã-Bretanha (que fabrica a
metralhadora Maxim), Schneider-Le Creusot, em França, Skoda, na Boê·
mia austríaca, Putiloff, na Rússia. A especialização como fabricantes de ar·
mas é conseqüência das suas atividades indusrriais gerais, especialmente a
siderurgia. Assim, Krupp apresentou no Palácio de Cristal de Londres um
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 439
A aceleração da corrida armamentista está bem clara nesta tabela. Ela foi
lllenor para a França, que tinha começado mais cedo, do que para a Alema·
nha e para a Grã-Bretanha.
1908 9,0
1913 14,S
1925 19,3
1926 19,6
1927 21,S
1928 21,S
1929 21,7
1930 23,2
1931 21,9
1932 20,3
1933 20,l
1934 23,9
1935 32,6
1936 47,l
1937 58,8
1938 61,6
terrestre na Europa e avançou até Berlim, aparece aos olhos daqueles como
um corpo estranho que eles vão tratar de enfraquecer e eliminar. Os Estados
Unidos dispõem do monopólio atômico. Para fazer frente à "cortina de ferro",
eles reúnem os países capitalistas da Europa no Tratado do Atlântico Norte,
concluído em abril de 1949, e a organização resultante (Otan) vai dominar os
anos da "Guerra Fria". Os EUA esforçam-se por completar o seu dispositivo
com o Anzus (Austrália-Nova Zelândia-Estados Unidos), em 1951; a Seato
(South·Eas t Asian Treaty Organization), saída do pacto de Manila de 1954; e
a Cento (Central Treaty Organization), nascida do pacto de Bagdá de 1955.
A criação da República Popular da China em 1949 e a guerra da Coréia (1950·
1953) explicam esta "pactomania" com objetivos militares, que a URSS sente
como um cerco.
Inicia-se então uma nova corrida armamentista nos dois campos. As
despesas militares mundiais, desde 1948, em moeda estável, ultrapassaram
as de 1938. A guerra da Coréia faz disparar as despesas, que praticamente
dobram de 1950 a 1953 e diminuem um pouco a partir de 1954, ainda
assim mantendo-se em um nível alto. A escalada recomeça nos anos 60:
as despesas militares mundiais em cada ano aumentam 60% entre 1960 e
1970 e ainda mais 20% entre 1970 e 1980. Em 1975, o mundo destina
para fins militares receitas superiores à totalidade da produção mundial
em 1900. No final dos anos 70, um terço das despesas mundiais de pesqui·
sa e desenvolvimento tem a guerra como objetivo; 500 mil cientistas, pes·
quisadores e engenheiros trabalham nisso, cerca de 350 mil deles nos paf·
ses capitalistas.
O trabalho desses homens conduz à produção de novos armamentos em
um ritmo acelerado. No campo terrestre, os Estados Unidos pediram à sua
indústria automotiva veículos militares pesados, enquanto a Grã-Bretanha e
a França utilizaram mais veículos ligeiros off-road usados pela França na guer·
ra da Argélia (1954· 1962), pelos portugueses nas suas colônias da África até
1974 e pelos marroquinos no Saara Ocidental a partir de 1976. Para os tan·
ques, os Estados Unidos criaram versões derivadas do M4 Sherman, e a Fran·
ça o AMX 30. Canhões de calibre 120 mm montados em veículos rápidos
tomaram-se comuns. Nos anos 70, os Estados Unidos lançaram um novo de·
senho de porta-aviões de 78 mil toneladas, a classe Forrestal, transportando
76 aviões de combate; em 1970 entra em serviço o caça Grumman F 14 Tomcat,
americano, de duas turbinas. É também a época do Dassault F 1 de uma tur·
bina (1966) e do aparelho de apoio tático britânico V STOL Hawker-Siddeley
O UVRO NEGRO DO CAPITALISMO
Misseis intercontinentais
ballsticos (ICBM) 1955
Misseis intercontinentais de
combustível sólido 1962
Foram os Estados Unidos que fizeram o mundo entrar na era das armas
nucleares. Inicialmente de fissão (bomba atômica), depois de fusão (bom-
ba de hidrogênio ou termonuclear), estas encontraram rapidamente as suas
correspondentes no campo adversário (para a última desde 1953). Dentro
da corrida armamentista houve urna corrida à rnegatonelagem entre os
Estados Unidos e a URSS. A Grã-Bretanha possui a arma atômica desde
1954, e a França desde 1958. O progresso consiste em reduzir o peso e o
tamanho dos engenhos. Embora numerosos bombardeiros estratégicos como
o B47 tenham sido criados, são os mísseis que vão ter um papel prepon-
derante. A Nasa desenvolveu nos anos 60 sucessores da V2 alemã, do tipo
Minuteman ou Titan. Aos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) com
bases em terra juntaram-se os dos submarinos (SLBM) do tipo Polaris de
três ogivas ( 1960), mais tarde do tipo Poseidon de dez ogivas programadas
de maneira independente (1970). A criação dos MIRV e uma maior preci-
são dos engenhos põem fim à corrida à megatonelagem. A isso acrescen-
tam-se os mísseis de médio alcance (de 1.100 a 2.775 km) e de alcance
intermediário (de 2.275 a 5.500 km), corno o Pershing II. Os mísseis de
cruzeiro lançados de aviões ou submarinos, como o ALCM da Boeing,
tomaram-se especialmente eficazes no início dos anos 80. As armas nuclea-
res táticas multiplicaram-se, transportadas por veículos, como o Pluton
francês, utilizado em 1974.
A guerra foa entre países capitalistas e socialistas deu à corrida
armamentista um caráter cada vez mais amplo, o que traduz a evolução das
despesas militares mundiais. Os "trinta anos gloriosos", de 1945 a 1975, per-
mitem ao setor capitalista financiar a enorme massa de armamentos, cada
vez mais sofisticados, que opõe aos seus adversários, por sua vez forçados a
segui-lo nesse caminho. Para retomar a corrida armamentista, os seus parti-
dários nos Estados Unidos periodicamente alegam pretensas insuficiências
bélicas (por exemplo, o missile gap para justificar a criação de novos tipos de
mísseis).
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
1990
1 Me DonneU-Douglas (US) 9.020
1,
-
24 Dassault Aviation (Fr) 2.260
' ~ -
25 Texas lnstruments (US) 2.120
~
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 453
1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
Estados Unidos 331,2 323,9 320,4 306,2 269,0 284.1 269,1 254.0 238,2 226.4
Canadá 11,5 11,6 11,5 11,5 10.4 10,5 10.4 10,2 9,6 8,8
OtanEuropa 186,6 184,7 186,2 186,4 184.6 176.J 171,6 166.S 159,0 159,7
Otan total 529,3 520,2 518,l 504,1 464.0 470,9 451.l 430,7 406,8 394,9
Estados Unidos 12.707 11.878 10.226 8.800 10.304 12.596 10.503 11.669 8.738
França 3.472 3.460 3.853 3.970 4.096 3.011 2.300 2.577 1.799
Reino Unido 2.065 1.077 1.908 1.699 1.500 1.817 1.401 1.816 l.!20
RFA 861 1.826 2.535 1.075 1.120 676 l.270 716 963
Outros pa!scs 818 1.565 J.250 850 1.232 1.740 1.363 1.341 m
Total países
desenvolvidos 21.427 20.866 20.739 17.128 18.949 20.494 17.840 19.013 13.280
Total mundo 33.600 32.703 34.112 32.504 36.453 39.777 33.767 33.509 21.726
458 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
do comércio capitalista de armas, tal como o do seu rival nos últimos anos da
Guerra Fria.
As principai armas convencionai compreendem seis categorias de ar·
mas, as armas mais oftsricadas e mais caras: carros e veículos blindados, arti·
lharia, mísseis , aviões militares, navi de guerra e eletrônica militar. As ar·
mas nucleares, dado que não podem ser vendidas segundo o TNP, não fazem
pane deste quadro.
---
Total mundial 25.526 24.840 26.444 2 l.820 23 .189
Núr1111ro• "'!l"rulo o Sipri Ytarbook 199 7 Thi Tradt m Maior Conwnuonal W.:aporu
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 459
a justiça, as favelas dos países pobres aumentam ao mesmo tempo que os lu-
cros das empresas transnacionais que se apoderam das terras do Terceiro
Mundo, as crianças subnutridas definham e morrem na África enquanto as
classes médias dos países ricos não sabem mais o que inventar para perder
seus quilos a mais.
De longe, de muito longe mesmo, a substância mais poluente do planeta é
a desigualdade: muito mais do que as descargas tóxicas das indústrias próspe·
ras do Norte e do Sul que são fruto dela, muito mais do que os incêndios das
florestas, as guerras, as fomes que ela produz, a desigualdade destrói o planeta
impondo favelas, pilhando o capital verde dos países pobres que, à falta de
dinheiro, não podem fazer nada além de pagar a sua dívida com a natureza.
Feitas as contas, qual é o balanço de mais de meio século de abordagem
liberal da pretensa "ajuda ao desenvolvimento"? É forçoso reconhecer que é
negativo sob todos os aspectos: não só nenhuma das economias do mundo
pobre é viável ou independente, como ainda por cima a dependência econô·
mica e a destruição ecológica são duplicadas por um diferencial social agrava·
do: as "elites" colaboradoracionistas dos países do Sul esmagam brutalmente
as revoltas da fome, os funcionários mal pagos e corruptos desviam o dinheiro
público, os chefes recebem ordens nos gabinetes dos seus equivalentes oci·
dentais ou nos conselhos de administração das empresas transnacionais. Es·
magados por uma dívida externa insuportável, os países pobres literalmente
financiam os países ricos em mais de 1% da taxa de crescimento.
Assim, o êxodo rural forçado enche as favelas enquanto a miséria alimen·
ta as guerrilhas que vão do simples banditismo, como na Libéria ou na Somália,
à barbárie na Argélia. O desenvolvimento do livre mercado foi apenas a opor·
tunidade para saquear os países pobres com cobertura de assistência técnica:
as agências da ONU foram apenas o vetor de implantações parasitárias, as dos
trustes agro-alimentares que esgotam os solos do mundo pobre para exportar
para os países ricos, as dos comerciantes de armas que fabricam a política
externa de todos os países, grandes e pequenos, as dos financistas ávidos por
depósitos rentáveis, que manipulam as instituições internacionais.
Depois de cinqüenta anos de "assistência", o Sul está arruinado: mais de
metade dos seus habitantes vive abaixo da linha de pobreza estabelecida pelas
Nações Unidas. Estes países estão ecologicamente devastados, as populações
das cidades e dos campos levam existências indignas. A famosa "decolagem"
de Rostow não aconteceu: o avião do Terceiro Mundo, superlotado e fétido,
apodrece no final da pista sem piloto nem combustível. Quanto ao célebre
OS MORTOS-VNOS DA GLOBALIZAÇÃO 471
mas produzir excedentes para exportar para os países ricos, seja qual for o
custo humano e ecológico local.
Na China, anualmente depois da implantação em 1990 da nova política,
20 milhões de camponeses pobres vão para as cidades. O Estado abandona a
vigilância do sistema autocentrado das "comunas populares'', deixa o lucro
privado enraizar-se de novo nos campos, desorganizando assim o comércio
local baseado na permuta de gêneros e serviços. Ora, este processo de troca,
controlado pelas instituições de crédito público, funcionou bastante bem du-
rante mais de trinta anos, preservando a China da sua fome anual, velha
chaga do antigo regime feudal. Mas a chegada dos peritos do Banco Mundial
e do FMI e a invasão do sul pelos especuladores estrangeiros produziu os mes-
mos efeitos que na Índia. Os camponeses refugiados nas cidades trabalham
por menos de meio dólar a hora e os que não têm emprego vivem na rua: com
um milhão de sem-teto nas cidades, a China ex-comunista desliza lentamente
para uma situação "à indiana". O subcontinente, fortemente desruralizado
numa geração, viu chegar às grandes cidades mais de dez milhões de campo-
neses arruinados, em cada ano da década de 1970, e mais de vinte milhões ao
longo dos anos 80 e 90. O Brasil, que já tem apenas 35% de camponeses, e o
México, que privatiza os ejidos, essas quintas coletivas da época zapatista, es-
tão muito longe de poder administrar a massa de refugiados do desenvolvi-
mento. Desde 1950, quantos camponeses foram arruinados pelas expropria-
ções, a poluição das suas águas e o diktat dos preços impostos pelas Bolsas de
Londres e de Chicago, que fixam os preços agrícolas do mundo inteiro? Por-
tanto, o esquema colonial capitalista clássico está apenas em vias de
reinstalação.
apenas contribui para o aumento dos lucros das grandes multinacionais. Es·
tragos incalculáveis provocados pela troca desigual.
Redução da escolarização e do acesso aos cuidados mínimos em todos os
pafscs ajustados; subemprego programado, abolição dos direitos trabalhistas,
aumento mundial da delinquência e do crime organizado, generalização da
prostituição como solução para a pobreza, multiplicação dos conflitos émicos,
escalada dos nacionalismos, desenvolvimento do tráfico de armas. lmpossfvel
quantificar.
A contabilidade macabra do custo em vidas humanas da nova coloni·
zação do mundo pobre e da invasão dos países ex-comunistas talvez seja difícil
de fazer, mas é simples de avaliar: o alinhamento forçado sob as regras do
capitalismo globalizado pode matar bilhões de homens em cínqüenca anos e
devastar completamente o planeta a ponto de colocar oproblema ecológico
em termos de sobrevivência. Que importa a quantidade/
A globalização do capitalismo é antes de mais nada aglobalização de uma
falência ética que coloca a humanidade no nível dos animais selvagens devo·
rando-se em volta da sua presa, é o fracasso de construções filosóficas basea·
das na legitimação do egoísmo doentio e da sede do pode~ Tencando dissolver
a própria idéia de uma humanidade ligada por um interesse partilhado, aide-
ologia criminosa que sustenta o capitalismo coloca-se agora fora da lei natu·
ral, pondo em perigo toda a espécie humana. Por este fato, condena-se a si
própria. O capitalismo ultraliberal não cria os seus coveiros. Cava ele mesmo
a sua sepultura.
Bibliogra#a:
François Chesnais, l.a mondialisatian du capital, Syros, 1994.
Susan George, Crédiis sans fronti~m. La Découverte, 1994.
René Dumont, l.a croissance ... de la famine!, Seuil, 1975.
Elsa Assidon, 1..es théories ecanomiques du dévewpptrnrnl, La Découvcnc, 1992.
Pascal Amaud, l.a de11e du ciers monde, La Découverte, 1984.
-- -----
A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL EAS
CAUSASDASAMEAÇASDABARBÁRIE
FRANÇOIS CHESNAIS
Eis-nos na hora da globalização do capital. Nos próximos anos, os fatos a
registrar no Llvro negro do capitalismo poderiam estar entre os mais aterradores
de toda a sua história. Philippe Paraire iniciou o trabalho. Eu irei mais longe
sobre as conclusões do último livro de Claude Meillassoux. A minha tarefa
aqui é tentar definir a nova configuração do imperialismo e do regime de
acumulação especial que corresponde a ele.
Por outro lado, a atual vitória do capitalismo é tão completa que mesmo
entre aqueles que combatiam os seus efeitos há muitas pessoas que já não utili-
486 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
zam o termo. Chamam a ele de "neoliberalismo" e não têm contra ele mais do
que a espe rança, quimérica, 1 julgo, de um retom o às formas mais humanas da
sociedade capitalista. Alguns ficariam certamente surpreendidos, senão choca-
dos, se lhes d issesse m que ao recuarem perante a palavra "capitalismo" estão
dando apoio a todos aqu eles que afi m1am - confiantes no balanço desolador
do "socialismo real" que o desmoronamento da URSS acabou de revelar-que
"a vitória da democracia e do mercado" assinala "o fim da história" ou ainda "o
horizonte inultrapassável" das variantes de organização política e social funda-
das sobre a propriedade privada dos meios de produção.
O uso do tem10 "neoliberalis mo" também está muitas vezes associado à
idéia de que seria impossh·el combater os efeitos do capitalismo globalizado sem
atacar os seus fundamentos, o que não é verdade. Tenninou um período histó-
rico que não foi apenas aquele em que, em escala mundial, reinou a ilusão de
um modelo de sociedade rival do capitalismo, socialmente superior a ele, "coe-
xistindo pacificamen te" com ele, estando à altura de competir militarmente
com ele, se necessário. Foi rambém o período durante o qual, particularmente
na Europa Ocidental, o capitalismo parecia ter sido "domesticado", ladeado por
relações políticas enrre as classes mais poderosas e as instituições irreversíveis,
saídas umas e ourras dos grandes combates da revolução contida, isto é, frustra-
da, do fim da Segunda Guerra Mundial. Na França, terreno de grandes lutas de
1936 e depois de 1945, alimentara m-se durante muito tempo ilusões particular-
mente forres qu anto à capacidade de estas relações e estas instituições fornece-
rem as bases para uma melhoria contínua da situação tanto da classe operária
quanto de largas camadas da socieda de. Pierre Bourdieu, por quem tenho, aliás,
um grande respeito, não tem razão ao esvaziar a questão do capitalismo e da sua
superação e de se concentrar no neoliberalismo. Mas ele está longe de ser o
único à esquerda a chorar a morte de "urna civilização do serviço público" ca-
racterística da França e que se L>stende a outros países na Europa.
'
A GLOBALIZAÇÃO 00 CAPITAL 489
finanças, teve por função ocultar o papel desempenhado pelos próprios Estados
na gênese da "tirania dos mercados". Esta permite disfarçar os mecanismos atra·
vés dos quais a esfera financeira, antes de instalar os circuitos fechados de distri·
buição interna de ganhos e perdas puramente financeiros, se alimenta de trans·
ferências de riquezas muito concretas. Os capitais que se valorizam na esfera
financeira nasceram - e continuam a nascer-no setor produtivo. A valoriza·
ção, ou "frutificação" da maior parte dos recursos reais captados pelas institui·
ções financeiras , é feita sob a forma de aplicações em obrigações e ações, isco é,
em títulos de crédito sobre a atividade econômica futura.
Estes títulos, chamados ativos financeiros , têm uma dupla dimensão Ôctf·
eia. Têm uma existência própria nos mercados secundários de títulos, onde
conhecem processos de aumento de valor que s6 valem enquanto persistem as
avaliações ou convenções entre operadores financeiros relativos a este valor. O
seu valor na bolsa pode, portanto, despencar e não corresponder a mais do que
um pedaço de papel. Conforme demonstrou a experiência dos anos 30, os crédi·
tos sobre a atividade futura podem, de um dia para o outro, não valer mais nada.
Mas, enquanto a acumulação não for interrompida por graves crises que abalem
simultaneamente a produção, o comércio e os mercados financeiros, ou en·
quanto não surgirem acontecimentos políticos de vulto que levem a uma mora·
t6ria, até mesmo ao cancelamento das dívidas do Estado, o capital pertencente
à categoria "capital-dinheiro de empréstimo" ou capital financeiro, se beneficia
de um fluxo de recursos alimentado por altas "reais" sobre os recursos primários
constitufdos na produção de valores e de novas riquezas.
Duas características marcam o capital-dinheiro de forma inerente. A pri·
meira é a convicção de que os fundos em que investe sob a forma de ativos
negociáveis nos mercados financeiros, isto é, que coloca financeiramente, têm
a "propriedade natural" de "produzir rendimentos". É ao que Marx se referiu
um dia dizendo que, para os seus detentores, os ativos deviam produzir recursos
(dividendos e juros em primeiro lugar), "com a mesma regularidade que a perei·
ra produz peras" (0 capital, III, capftulo XXIV). A segunda característica, inti·
mamente ligada à primeira, é o de ser portador daquilo a que se chama no jargão
atual uma "abordagem patrimonial"1 que desenvolve em todo o detentor de
ativos financeiros a propensão para manter um estoque de riquezas em vez de
correr riscos para aumentá-lo. Independentemente das riquezas especulativas
às quais ele pode se entregar, a característica deste capital é a de estar situado
em locais e de ter horizontes de valorização distintos e muito afastadas do local
onde se desenvolvem as atividades de investimento, de produção e de
490 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
de que seriam eles quem, em última instância, correriam os riscos e que teriam
igualmente um direito de origem divina ao espólio em dividendos dos resultados
de empresas das sociedades do setor industrial". Falando dos mecanismos de cap·
ração dos fluxos de recursos mundiais pelos Estados rendeiros, o editorial conti·
nua a inquietar-se pelo fato de a crise econômico-financeira asiática não ser vista
como um aviso: "O Doutor Pangloss era um partidário precoce da globalização,
com a sua afirmação de que tudo ia bem, no melhor dos mundos. No entanto, a
moral do conto de Voltaire, Cândido, alude à violação permanente dos direitos
humanos e dos direitos de propriedade. É possível, evidentemente, que as refor-
mas ocidentais venham a ser pagas na base do trabalho das populações chinesas.
Mas, por agora, nem tudo vai bem no mundo do capital global. E os riscos políti·
cos da globalização estão sendo especialmente minimizados."
Para concluir
Notas:
l:
Graças ao seu sigilo bancário, às suas contas numeradas, à lei da livre
convertibilidade, ao cinismo e à extrema competência técnica dos seus ban-
queiros, a Suíça é hoje a caixa-forte do mundo. Em 1998 era o primeiro país
mais rico do mundo (rendimento per capita segundo o método de cálculo do
Banco Mundial). Cerca de 40% das fortunas privadas do mundo feitas fora do
seu país de origem são geradas na Suíça. Os fortes bancários helvéticos, as
filiais mundo afora não só acolhem o espólio dos cartéis do crime organizado
de todo o mundo, os astronômicos bens dos senhores do crime russo, mas
também o tesouro das classes dominantes e despóticas da África, Ásia e Amé·
rica Latina.
Que relação há entre o dinheiro sujo do crime organizado internacional e
o capital ilícito que escapa do Terceiro Mundo? Ambos são lavados e reciclados
pelos mesmos emires, por meio de técnicas bancárias idênticas. São muitas
vezes as mesmas organizações que reúnem estes capitais, os fazem atravessar
os continentes e entrar na Suíça. Os mesmos analistas financeiros, geradores
de fortunas, conselheiros da bolsa e agentes de câmbio reinvestem os capitais
em fuga do Terceiro Mundo e o dinheiro sujo da droga.
Os adolescentes drogados das ruas de Nova York, Milão e Londres agoni·
zam por causa das obras dos senhores do crime que reciclam e lavam seus
lucros na Suíça. Nas Filipinas, no Brasil, no Congo, crianças morrem aos mi·
lhares de subnutrição, prostituem-se, correm risco de abandono e de doença.
Grandes fortunas locais, em vez de contribuírem para criar hospitais, escolas,
empregos, refugiam-se na Suíça; são recicladas e reinvestidas na especulação
imobiliária em Paris, Roma, Tóquio ou alimentam as bolsas de Nova York,
Londres e Zurique.
O saque financeiro do Terceiro Mundo e o tráfico de droga são duas obras
de morte que provocam desastres sociais, físicos e psicológicos análogos. Ambos
se beneficiam da reconhecida competência, da assistência especializada, da
cumplicidade eficaz dos banqueiros suíços.
Eis alguns exemplos referentes a um período de análise de pouco mais de
dez anos.
502 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO
As Filipinas
ousa mesmo fazer desfilar um ataúde sob suas janelas. Alguns dias depois o
novíssimo deputado de llocos Norte será encontrado numa curva da estrada
com uma bala na cabeça.
Ferdinand, dezoito anos, é preso, considerado culpado e condenado por
assassinato. Mariano conseguirá a sua libertação três anos mais tarde: um dos
seus amigos, José Laurel, tornou-se juiz no Supremo Tribunal. Laurel é tam-
bém ele um ex-condenado.
Ferdinand é belo, ágil, inteligente. Termina brilhantemente os seus estu-
dos de Direito em Manila. Será um advogado famoso. Por volta dos vinte
anos, Ferdinand descobre o segredo do seu nascimento e contacta o seu pai
de sangue. A sua aliança com a poderosa comunidade chinesa do arquipélago
abre para ele uma fulgurante carreira política: deputado, senador, presidente
do Senado e depois, em 1965, chefe de Estado.
Dois episódios na vida de Marcos merecem atenção especial. Durante a
ocupação japonesa ele dirige um grupo de marginais chamado Maharlika. O
grupo pratica a resistência antijaponesa, o contrabando e o tráfico de armas.
Mas Marcos é demasiado inteligente para colocar todos os ovos no mesmo
cesto: agente japonês, trai numerosos dos seus camaradas resistentes. Quan-
do da libertação, é julgado pelas autoridades americanas, escapa da execu-
ção ... e torna-se o protegido da nova potência ocupante.
Segundo episódio: em 1954, o jovem deputado encontra lmelda Ro-
mualdez. lmelda é simultaneamente atriz, cantora e rainha da beleza. Neta de
um padre católico, teve uma infância e uma adolescência de humilhação e
miséria. A sua sede de vingança é considerável. Após a vitória das tropas
americanas sobre o colonizador espanhol em 1898, reina no arquipélago uma
oligarquia local de plantadores de cana-de-açúcar, de financistas e de grandes
comerciantes. Ferdinand partilha o ódio de Imelda pela oligarquia.
lmelda e Ferdinand fomrnm um casal temível: tribuno dotado, sedicioso e
demagogo, Marcos é adorado pelas multidões. Os pobres gostam de lmelda,
que distribui arroz e vestidos nas favelas. Até 1972 Marcos é reeleito sem
problemas. Depois a situação se deteriora: o ódio à oligarquia cega o casal. A
sua paixão por palácios, jóias e dinheiro ·é ilimitada, e o casal literalmente
pilha o país. Marcos, lentamente, transforma-se em um déspota asiático;
lmelda, em Lady Macbeth. Marcos gosta de mulheres; é generoso: Carmen
Ortega e os seus três filhos - uma das numerosas famílias paralelas de Marcos
- estão hoje entre os clãs mais ricos de Manila.
23 de setembro de 1973: o déspota decreta o estado de sítio (regularmen-
504 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
te renovado até 1986). O general Ver, chefe dos serviços secretos e sócio em
negócios de Marcos, instaura a tortura e faz desaparecer os opositores. Pressi-
onando os seus protetores americanos, que mantêm no arquipélago a base
aérea, marítima e terrestre mais poderosa da Ásia, Marcos mantém ao mesmo
tempo excelentes relações com a direita nacionalista japonesa que serviu du-
rante a guerra. Resumindo: o seu futuro parece assegurado. Os emires suíços
não têm dúvidas de ter apostado no cavalo certo.
Voltemos àquela manhã de 25 de fevereiro de 1986, quando o protetor
americano deixa cair o cleptocrata e se instala no palácio de Malacanang uma
mulher da oligarquia, Cory Aquino, viúva de um opositor assassinado por
Marcos em 21 de agosto de 1983. Evacuados à força de Subic Bay, Marcos, a
sua mulher e a sua família são levados no mesmo dia para o Havaí, nos Esta-
dos Unidos. Assim que descem do avião, em Honolulu, agentes do FBI avan·
çam para Marcos e para os seus familiares e confiscam-lhes as malas e os sacos
que continham os nomes de código, os números, a localização das contas
bancárias distribuídas pelo mundo. O FBI entrega estes documentos à nova
presidente das Filipinas, Cory Aquino.
O raciocínio do presidente Reagan é tão simples quanto convincente:
três exércitos de guerrilha, dos quais dois fazem progressos rapidamente, ame-
açam o frágil poder pró-americano da senhora Aquino. O sucesso desta guer-
rilha, sem ligações notáveis com qualquer potência estrangeira, alimenta-se
essencialmente da miséria abissal das farru1ias dos campos semifeudais e das
cidades proletarizadas. Se Cory Aquino quer sobreviver, tem de rapidamente
fazer investimentos sociais maciços na cidade, uma reforma agrária conse-
qüente, uma reconversão das plantações de açúcar no campo. Tudo isto cus-
tará centenas de milhões de dólares. Para o presidente Reagan, não há qual-
quer razão para que os contribuintes americanos paguem estes elevadíssimos
e despropositados créditos ... enquanto bilhões de dólares, roubados por Mar-
cos e pelos seus, repousam tranquilamente nos bancos suíços.
Mas, como já dissemos, contra os emires o governo da Confederação nada
1
pode. É mais impotente do que um recém-nascido. Os bancos são fortalezas
impenetráveis. Nenhuma lei permite ao Estado, ao seu governo, ao seu Parla-
1 mento obter sequer uma mera informação sobre a identificação do credor, o
montante do depósito, a origem dos capitais que alimentam as contas nume-
radas.
A pressão do presidente Reagan, do FBI e do secretário americano do
1 Tesouro toma-se cada vez mais forte. O Conselho Federal tenta usar subter·
1
OS BANQUEIROS SUÍÇOS MATAM SEM METRALHADORAS 505
assumir "a observância das relações internacionais" e está "em geral encarre-
gada das relações exteriores".
Obrigado a escolher entre os interesses "de fora" e os interesses "de den-
tro", o Conselho Federal, num assomo de lucidez, optou pelos primeiros.
Ferdinand Marcos reinaria 23 anos no seu palácio de Malacanang. A par-
tir de 1973, governa através da repressão de sindicatos, da Igreja, de organiza-
ções de camponeses; pelo assassinato sistemático de opositores de peso; pela
tortura metódica, pelo "desaparecimento" freqüente de homens, mulheres e
adolescentes que contestavam apenas a sua megalomania, o seu desJ?Otismo,
a sua insondável corrupção.
Eis a forma como o cleptocrata organizava a pilhagem do seu povo:
1. Todos os anos, Marcos levantava somas equivalentes a vários milhões
de dólares das caixas do Banco Central e dos fundos destinados aos serviços
secretos.
2. Em duas décadas, o Japão, antiga potência ocupante, entregou ao go-
verno de Manila centenas de milhões de dólares a título de indenizações de
guerra. Marcos retirava a sua parte por cada depósito.
3. As Filipinas são um dos trinta e cinco países mais pobres da terra. O
Banco Mundial, as organizações especializadas das Nações Unidas, as obras
de solidariedade privadas depositaram, ao longo dos anos, dezenas de milhões
de dólares e investiram outros milhões em numerosos projetos ditos de desen-
volvimento. Marcos, a sua corte, os seus cúmplices, serviram-se constante-
mente de quase todas estas transferências, de cada um destes projetos.
4. Perante a importuna insubmissão do povo esfomeado, Marcos teve que
proclamar rapidamente o estado de emergência e de renová-lo ano após ano.
Concentrando nas suas mãos quase todos os poderes civis e militares, Marcos
utilizava o exército para ocupar e depois expropriar as centenas de planta·
ções, sociedades comerciais, sociedades imobiliárias e bancos pertencentes a
seus críticos, para atribuir as propriedades aos seus próprios generais, corte-
sãos e conselheiros. Numerosas sociedades e plantações passaram assim dire-
tamente para as mãos da sua farru1ia e da de Imelda.
Mas Ferdinand Marcos, vaidoso, ávido e cruel, era também um homem
previdente. Tinha poucas ilusões sobre os sentimentos que inspirava no seu
povo. Um consórcio de emires helvéticos ajudava-o a evacuar anualmente o
seu espólio. Um deles foi mesmo especialmente destacado para junto do sátrapa
de Manil<>.. Aconselhava-o permanentemente sobre a forma mais discreta e
mais eficaz de transferir para o exterior e de aí reinvestir os seus capitais.
OS BANQUEIROS SU[ÇOS MATAM SEM METRALHADORAS 507
Os haitianos
1 zam o seu apoio logístico à Uni ta angolana. Em contrapartida (além dos depó-
OS BANQUEIROS SU(ÇOS MATAM SEM METRALHADORAS S11
·~
1
Alguns crimínosos agem de forma brutal: preferem a arma de fogo, o pu·
nhal, a bomba, a violêncía imediata, acabar com tudo num instante. Outros, ..
mais prudentes, preferem ganhar tempo: o veneno é a sua arma favorita. Dis-
creto, insidioso, invisível, lento e progressivo.
sapatos, todo o nosso universo, todo o planeta! (... ) É o Big Brother, sempre
sorridente! Acho aterrador que todo este imenso espaço de expressão, de ex-
posição e de afixação, o maior museu vivo de arte moderna, cem mil vezes
maior que Beaubourg e o Museu de Arte Contemporânea de Nova York jun-
tos, estes milhares de quilômetros quadrados de cartazes afixados pelo mundo
inteiro, estes painéis gigantescos, estes slogans pintados, estas centenas de mi-
lhares de páginas de jornais impressas, estas centenas de horas de televisão, de
mensagens radiofônicas, se mantenham reservados a esta imagética paradisíaca
imbecil, irreal e enganadora ... " E tudo isto financiado pelo consumidor, com o
seu custo integrado no preço do produto ("a publicidade é o primeiro imposto
direto").
Sob diversos nomes - patrocínio, mecenato empresarial (lembremo-nos
de que o mecenato é desinteressado, há portanto abuso de linguagem), comu-
nicação, barcering, anunciante, apadrinhamento etc., a publicidade introdu-
ziu o interesse comercial em todo o mundo. Os exemplos que se seguem mos-
tram a extensão e a coerência desta ofensiva.
O ensino
A cultura e a mídia
O modelo dos Estados Unidos, país onde 90% da cultura são financiados
por empresas privadas, ajudou os países europeus a desmantelar os seus finan-
ciamentos públicos neste campo. Progressivamente, o Estado, na França como
em toda a Europa, descompromete-se financeira e politicamente. Cerca de
30% da política francesa é patrocinada por bancos, companhias de seguros e
pela agro-indústria cujo desinteresse se adivinha. Quem pode acreditar que o
conteúdo das obras assim enquadradas não se altera?
A quase totalidade da informação escrita só se sustentava financeiramente
hã anos graças à publicidade, às bebidas alcoólicas e ao tabaco. A proibição
européia de todo esúmulo ao fumo, concretizada na França na "Lei Évin",
levou à decadência várias publicações e enfraqueceu outras, o que nos dá
uma idéia da fragilidade de nossa mídia, atada de pés e mãos por estas empre-
sas e totalmente dependentes delas: uma simples mudança de estratégia da
empresa ou de um diretor comercial e as publicações podiam acabar de um
dia para o outro, arruinadas. Quem pode pois se admirar que quem denuncia
os perigos do tabaco, urna das drogas que causa maior dependência, nunca
encontrem eco na imprensa francesa (contrariamente ao haxixe, que não
patrocina ninguém e cujos "perigos", insignificantes se comparados aos do
tabaco, são assunto de primeira página todas as semanas)?
Para a cultura, uma mudança de mentalidade vai se revelando pouco a
pouco: muitos criadores já não contam com o seu sucesso junto do público, mas
apenas com a satisfação exclusiva do financiador, de quem a existência ou não
da obra depende, com as conseqüências que se adivinham no seu conteúdo.
O patrocínio atinge agora 75% das transmissões televisivas da TV na França
(dos quais 20% são para os jogos estúpidos que preenchem os horários de
maior audiência). Ele substituiu, pouco a pouco, aos olhos dos anunciantes, a
publicidade propriamente dita: É uma resposta ao zapf1ing dos telespectadores
incomodados pela publicidade que mudam de canal quando ela chega. A par-
tir de agora, impossível escapar, a publicidade está no próprio programa! Pior
ainda, cerca de 50% do orçamento da France-Télévision vem das receitas
comerciais, quando a princípio esta percentagem deveria ser 0% ...
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS
dos nossos canais televisivos ('! empresa Nilse em primeiro lugar) . O célebre
animador Jean Pierre Coffe, largamente utilizado pda publicidade mas que a
abandonou enojado com o que viu, confessava recentemente ao Pa risien Ubéré:
"Tentem ir ao Canal F2, F3 ou a um canal comercial e e mitir uma crítica
sobre um produto do grupo Danone. É proibido, você é cortado. E eu, como
sou um homem livre, não quero me submeter. Eis a razão pela qual faço outra
coisa." Os outros animadores não tiveram estes escrúpulos.
Para os fanáticos do zapping, que mudam de canal sempre que a publicidade
interrompe o seu filme, a solução foi encontrada: a publicidade não aparece
no intervalo, mas no próprio filme. A última moda é comprar alguns segundos
de um filme de uma major company e aí infiltrar a sua propaganda. Sucessos
internacionais como O vinga.dor do futuro, De volta para o futuro 2, Dia do
trovão, todos os filmes de James Bond estão assim recheados de produtos em
primeiro plano com a marca, inserções concebidas pelas próprias empresas e
já não pelo autor, o realizador ou o produtor; os diretores devem adaptar a sua
história a esta presença que por vezes cai como uma mosca na sopa. Na Fran-
ça, os dois Vuiteu n, sucessos de público, levaram este princípio ao seu ponto
máximo utilizando a força paródica do efeito.
O esporte
O ambiente e a solidariedade
A política
A ideologia
dos", por mais que o termo desagrade os puristas) por agências de publicidade
famosas.
O paralelo com a propaganda dos regimes totalitários é evidente, por exem-
plo, no caso do ideal nazista. Os personagens estão de acordo com os modelos
dominantes, tanto hoje quanto naquela época. Os homens são bem constitu·
ídos, as jovens, louras e de seios fartos, todos sorriem e estão em harmonia,
aconteça o que acontecer. Os lugares são sempre os mesmos: cidades limpas e
bonitas, aldeias encantadoras e cheias de sol, o mar ou um outro local turísti·
co fascinante, o Terceiro Mundo é exótico e acolhedor, como no Clube
Méditerranée. O corpo é soberano, o cenário futurista, mas prevendo um
futuro agradável, ao qual se aspira; a competição parece ser o único interesse
das pessoas, o poder e a força são exaltados, o heroísmo é constantemente
evocado. Este ideal de "felicidade escoteira", que Toscani denuncia no seu
livro, evoca irresistivelmente as imagens das revistas nazistas ou os seus filmes
edificantes (Toscani mostra como Claudia Schiffer encarna o sonho da
Hitlerjugend). E também as imagens do idealismo socialista russo, chinês ou
coreano, na sua propaganda para a juventude. Sobretudo, como acontece nos
slogans sobre os campos de trabalho, a alegria é obrigatória e o "natural" tão
forçado que faria rir no cinema.
~
As escolhas dominantes são também reveladoras: álcool e tabaco, carros
velocidade, compras fúteis e caras ou produtos alimentares de baixa quali·
de apresentados como consumo de elite. A publicidade joga constante•
ente com o desejo sexual e raramente o faz com sutileza, mas com uma
asseria quase sempre igual.
Ela reforça sempre o discurso contra o ambiente, ou!ireitos soci~s, o
Te~o Mundo real~ a~ a c~, ex~to guando é necessário imitá·
los. E o reino do liberalismo absoluto que reforça a unanimidade dos editoriais
~onômicos da mídia onde é difundida. E, está claro, não faltam uma pincela·
da de rebeldia, que incita à compra, e uma dose de falsa inovação.
É o reino tantas vezes denunciado da "dona-de-casa com menos de 50
anos" que supostamente representa o consumidor médio, cuja ditadura sobre
a audiência é responsável pela diminuição generalizada da qualidade. Ela ven·
de, diz Toscani, "um modelo adulterado e hipnótico da felicidade" no qual,
com o produto proposto, o consumidor comprará supostamente a juventude
eterna, o poder ou a energia, a saúde definitiva. E acrescenta, neste triste
resumo da esmagadora maioria da publicidade exibida nas nossas telas: "Ah,
como é bom ter vinte anos, ir até o fim do mundo num 4x4 off-road e chapi·
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 527
Números
À semelhança dessas bombas modernas que matam tudo o que vive, pre·
servando os edifícios e os equipamentos, a publicidade mata toda a atividade
intelectual e cívica, preservando no indivíduo apenas reflexos de consumo,
como cães de P-avlov supercondicionados. Dúvida, pensamento, idéias, de-
sinteresse, desenvolvimento espiritual e pessoal, interesse público, senso co·
letivo e solidariedade, tudo é banido como obstáculo ao pensamento único:
comprar. A cultura mercantil já não se distingue da cultura enquanto tal,
assim como um spoc publicitário já não se distingue de um curta-metragem ou
528 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO
Y11es Frémion é escritor e jornalista, autor de mais de 80 títulos em várias áreas. Vice·presiden·
te do "Réseau Voltaire" e do conselho permanente dos escritores, dirige a série "La Plan~te
Verte" da Hachette Jeunesse. Ecologista, foi deputado europeu encarregado das Relações In-
ternacionais dos Verdes. É atualmente conselheiro regional de ile-de-France.
Últimos títulos publicados: Déluge sur Monceyrac, Accencion chien Léchanc, Le Tueur.
E :MESMO ASSIM A ABOLIÇÃO DO
CAPITALISMO NÃO SERIA SUFICIENTE...
MONIQUE E ROLAND WEYL
"O capitalismo traz em si a guerra como a nuvem traz a trovoada."
JeanJaurês
utilizados para impor a dominação aos povos : "Devemos limpar o país, mesmo
que seja preciso recorrer aos meios de que se serviu a Divina Providência em
Sodoma e Gomorra. Devemos destruir tudo o que se encontrar ao alcance
dos nossos canhões. Precisamos impor o bloqueio para que a fome e a peste
reduzam o número de civis e, finalmente, o exército."
É preciso ir ainda mais longe. A guerra responde às necessidades do capi-
talismo. Um comércio florescente de am1as gera imensos lucros, lucros ilícitos
no sentido que Fidel Castro, a propósito da corrida armamentista, denuncia-
va no seu discurso na sétima reunião de cúpula dos não-alinhados: "Este geno-
cídio por omissão que a humanidade comete diariamente, condenando à morte
milhares de seres humanos pelo simples fato de conceder tantos recursos para
o desenvolvimento de meios de matá-los de outra forma."
Para muitos defensores do capitalismo, para quem "mais vale a guerra do
que o desemprego", a guerra constitui um meio ideal de contenção do desem-
prego: sacrifica trabalhadores inúteis e, uma vez restabelecida a paz, constitui
fonte de novos lucros na sua reconstrução.
Mas a guerra está também, e talvez sobretudo, na natureza intrínseca do
capitalismo, na medida em que ela é um instrumento quase incontornável de
solução dos conflitos da concorrência no controle dos mercados, onde a dimi-
nuição constante do poder de compra que a lei do lucro origina reduz ainda
mais os canais de distribuição possíveis.
Não é tudo isto que subentende a fórmula de Jaures? Mesmo se o seu
autor, primeira vítima da guerra 1914-1918, não pôde conhecer sua abominá-
vel matança, do mesmo modo que não podia imaginar o bombardeio de popu-
lações civis, as cidades e as aldeias incendiadas (Oradour e Lidice), as depor-
tações e os campos de extermínio e a utilização da arma nuclear nas populações
de duas cidades de um Japão a ponto de capitular. É sem dúvida extrapolar a
frase de Jaures extrair dela o que ele não disse, que bastaria abolir o capitalis-
mo para pôr fim às relações de exploração e de domínio e assegurar aos indiví-
duos e aos povos a felicidade, a liberdade e a paz. Podemos dizer apenas que a
guerra é inerente ao capitalismo, o que não quer dizer que ele teria o seu
monopólio. Isto significa simplesmente que no capitalismo a guerra não pode
ser erradicada, mas que poderá ser uma vez eliminado o capitalismo.
Nestes tempos de desesperança, para conseguir que os indivíduos e os
povos se resignem à perenidade do capitalismo, classificando de utopia a cons-
trução de um mundo livre das relações de exploração sobre os homens e do
domínio sobre os povos, nada é mais fácil do que riscar um traço sobre o
E MESMO ASSIM A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO NÃO SERIA... i35
larmente dos aduladores do Estado, terá sido sem dúvida o de omitir o caráter
transitório do sistema que tinham em mãos, de perder de vista a distinção dás·
síca entre uma etapa da sociedade regida por uma competição conflituosa na
divisão dos recursos disponíveis e uma etapa já livre desta situação.
O socialismo não elimina de um dia para o outro a insatisfação com o
não-atendimento de todas as necessidades dos homens, e é forçoso deduzir
que enquanto houver competição conflituosa pela distribuição dos recursos
disponíveis, será impossível não haver a luta pelo poder, logo, pela dominação.
Então, por que não voltar à simples idéia de que a guerra é a forma última
de dominação?
É neste contexto que podemos dizer que homo homini lupus, mas só nisto,
e que portanto a guerra não é eliminada ipso facto pela abolição do capitalis·
mo, mas será assim que esta abolição tiver permitido ao homem libertar-se do
lobo para se revelar como homem.
O humanismo mais elementar exige, portanto, a rejeição do abominável
aforismo da fatalidade da guerra. Se a lucidez exige compreender que não
basta a abolição do capitalismo para eliminá-la, enquanto não forem expurgadas
a sua herança e as suas seqüelas, a verdade exige também admitir que a guerra
é intrínseca, só e apenas, ao capitalismo em virtude da sua natureza baseada
na exploração.
A guerra efetivamente é intrínseca a ele porque o capitalismo se baseia na
luta pela apropriação dos recursos humanos, porque a sua natureza e a sua
razão de ser são confiscar aqueles recursos da humanidade e assim dominá-la,
se necessário através das novas formas de dominação que conhecemos hoje.
O ataque generalizado aos povos e à sua ingerência nos assuntos internado·
nais obriga os povos a abrir mão de sua soberania a favor de instituições inter-
nacionais ou supranacionais (FMI-UE-Alena), esperando que a luta acirrada
pelos mercados termine na guerra armada, que nunca anda muito longe da
guerra econômica.
Intrínseca ao capitalismo sim, porque o seu defeito original irremissível é
que no seu próprio seio se degladiam as lutas pela dominação e o controle de
mercados, de espaços e de arrendamentos de gado humano, num processo
acirrado pela redução crescente das capacidades de consumo.
Monique e Roland Weyl são advogados e autores de obras como Des mors-muie, pou11olr du
peuple e Se libérer de Maascrichc.
li ,
- \ 11
CAPITALISMO E BARBÁRIE: QUADRO
NEGRO DOS MASSACRES E DAS GUERRAS
NO SÉCULO XX (1900.. 1997)
! ~\- ~ .- -
CAPITALISMO E BARBARIE: QUADRO NEGRO OOS MASSACRES 541
A guerra anglo-boer pelo controle da África do Sul em 1902 ........... 100 MIL MORTOS
A guerra russo-japonesa (1904-1905) (Só a batalha de Moukden fez mais de 100 mil
mortos) .................................................................................................. .300 MIL MORTOS
As guerras balcânicas (1912-1913), da Turquia, Sérvia, Bulgária ........... SOO MIL MORTOS
A guerra civil na Espanha, desencadeada por Franco, apoiada por Hitler e Mussolini
e favorecida pela "não-intervenção" .................................................. 700 MIL MORTOS
A Segunda Guerra Mundial, provocada pela Alemanha e pelo japão militaristas, que
foi também o resultado de capitulações sucessivas dos países capitalistas ocidentais
perante o nazismo na Europa e perante o japão na Ásia (1939-1945). Vítimas milita·
res e civis, incluindo deportados e o Holocausto .................. 50 MILHÕES DE MORTOS
A este quadro incompleto falta acrescentar a morte por subnutrição de seis milhões
de crianças, só no ano de 1997.
Os refugiados e exilados eram estimados em quarenta milhões em 1997.
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Este livro foi composto na àpologia Goudy Old
Sryle em corpo ! 1114 e impresso em
papel Offset 75g/ml no Sistema Cameron
da Divisão Gráfica da Distribuidora Record.
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