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O LIVRO NEGRO DO
CAPITALISMO
Organização
Gilles Perrault

O LIVRO NEGRO DO
CAPITALISMO

Tradução de
ANA MARIA DUARTE
EGITO GONÇALVES
JOANA CASPURRO
LEONOR FIGUEIREDO

EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO

1999
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato NBCionai dos Editores de Uvros. RJ.
O livro negro do capitalismo I organização. Gillcs Pmuult;
tnlduç.!lo de Ana Maria Duanc. .. [d ai.). - Rio de Janeiro:
R<cord. 1999.
Tradução de: Lc livre ooir du capitalisme
ISBN 85-0 Hl5656-I

1. Capiralismo-História. 2. lfuróriaccooômica. L Pcraul~


Oillcs. 1931- . 1. Titulo.

COO- 330.122
99-1397 CDU - 330.342.14

Titulo original em francês:


LE LIVRE NOIR OU CAPITALISME

Copyright© 1995 by Le Tcmps eles Ccriscs

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SUMÁRIO

Prólogo
Gilles Perrault 9

Introdução
Maurice Cury 15

As origens do capitalismo (séculos XV a XIX)


Jean Suret-Canale 23

Economia servil e capitalismo: um balanço quantificável


Philippe Paraire 47
1871: traição de classe e semana sangrenta
Claude Willard 59

A Grande Guerra: 11.500 mortos e 13.000 feridos por dia ao longo


de três anos e meio
Jean-Pierre Fléchard 67

Contra-revolução e intervenções estrangeiras na Rússia (1917-1921)


Pierre Durand 91

A Segunda Guerra Mundial


François Delpla 97

Sobre a origem das guerras e uma forma radical do capitalismo


Pierre Durand 125

Imperialismos, sionismo e Palestina


Maurice Buttin 131
6 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Guerra e repressão: a hecatombe vietnamita


François Derivery 141

Massacres e repressão no Irã


François Derivery 15 7

Genocídi o anticomum ta na lndoné ia


Jacques J11rquer 173

Anexaçao fascista de Timor-1..õte


Jac~pm Jurquer 189

O Iraque, vítima do petróleo


S11bh1 Toma 207

A África negra sob a colonização francesa


Jean Suret-Canale 221

Argélia 1830-1998: dos primórdios do capitalismo colonial à empresa


monopolista de recolonização wglobalizada"
André Prl!T'.aTU 239

A África das independências e o wcomunismo" (1960-1998)


Francis Arzalier 275
As intervenções norte-americanas na América Latina
Paco Pena 291

Estados Unidos: o 5onho inacabado - A longa marcha dos afro-


americanos
Robert Pac 333

Centenário de um genocídio em Cuba - A "Reconcentração" de


Weyler
Jean Larlle 361

O genocídio dos índios


Robert Pac 383
SUMÁRIO

O capitalismo assalta a Ásia


Yves Grenet 391

As migrações nos séculos XIX e XX: contribuição para a história do


capitalismo
Carolíne Andreani 415

Capitalismo, corrida armamentista e comércio de armas


Yves Grenet 429

Os mortos-vivos da globalização
Philippe Paraire 463

A globalização do capital e as causas das ameaças da barbárie


François Chesnais 483

Os banqueiros suíços matam sem metralhadoras


Jean Ziegler 499

Um anúncio vale mil bombas ... Os crimes publicitários na guerra


moderna
Yves Frémion 515

E mesmo assim a abolição do capitalismo não seria suficiente ...


Monique e Roland Weyl 531

Capitalismo e barbárie:
quadro negro dos massacres e das guerras no século XX (1900-1997) 539
PRÓLOGO
GILLES PERRAULT
Bem-aventurado capitalismo! Não anuncia nada e jamais promete algu-
ma coisa. Nada de manifestos nem de declarações em vinte pontos progra-
mando a felicidade de "pronta entrega". Ele o esmaga, o estripa, o escraviza,
o martiriza - enfim, o decepciona? Você tem o direito de se sentir infeliz
mas não decepcionado, pois a decepção supõe um compromisso traído. Aque-
les que anunciam o amanhã cantando por mais justiça expõem-se à acusa-
ção de fraude quando a tentativa soçobra numa terrível cacofonia. O capi·
talismo conjuga-se prudentemente no presente. Ele é. O futuro? Entrega-o
de livre vontade aos sonhadores, aos ideólogos e aos ecologistas. Também os
seus crimes são quase perfeitos. Nenhum vestígio escrito comprovando a
premeditação. O Terror de 1793 - é fácil para aqueles que não gostam de
revoluções imaginar os responsáveis: as Luzes e essa irrazoável vontade de
ordenar a sociedade segundo a razão razoável. No caso do comunismo, as
bibliotecas estão abarrotadas de obras que o incriminam. Nada disso para o
capitalismo. Não é a ele que podemos censurar por fabricar infelicidade
pretendendo trazer felicidade. Não aceita ser julgado a não ser sobre o que
desde sempre o motivou: a procura do máximo lucro no mínimo de tempo.
Os outros interessam-se pelo homem, ele ocupa-se da mercadoria. Já se ou-
viu falar de mercadorias felizes ou infelizes? Os únicos balanços que valem
alguma coisa são os balanços contábeis. Falar de crimes é não ser pertinen-
te. Evoquemos antes as catástrofes naturais. Não se cansam de os inocular
com isto: o capitalismo é o estado natural da Humanidade. A Humanidade
está no capitalismo como um peixe no ar. Só mesmo a arrogância fútil dos
ideólogos para querer mudar a ordem das coisas, com as lamentáveis conse-
qüências cíclicas que já sabemos: revolução, repressão, decepção, contrição.
Eis precisamente o verdadeiro pecado original do homem: esse perpétuo
bicho-carpinteiro que o leva a sacudir o jugo, a ilusão lírica de um futuro
livre de exploração, a pretensão de mudar a ordem natural das coisas. Não
se mexa: o capitalismo mexe-se por você. Mas, é claro, a natureza tem as
suas catástrofes; o capitalismo também. Quem se lembraria de procurar res-
ponsáveis por um tremor de terra ou para um maremoto? O crime implica,
antes de mais nada, a existência de criminosos. Para o comunismo, as fichas
antropométricas são fáceis de fazer: dois barbudos, um de barbicha, um de
12 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

óculos, um bigodudo, um que atravessa o Yang-Tse-Kiang a nado, um apai-


xonado por charutos etc. Podemos odiar estes rostos. São de carne e osso.
Tratando-se do capitalismo, só existem índices: Dow Jones, CAC 40, Nikkei
etc. Experimente, só para ver, detestar um índice. O Império do Mal tem
sempre uma área geográfica, capitais, é localizável. O capitalismo está por
toda a pane e não está em lugar nenhum. A quem endereçar as intimações
para a um eventual tribunal de Nuremberg?
Capitalismo? Que arcaísmo mais obsoleto! Atualize-se e use a palavra
adequada: liberalismo. O dicionário define "liberal" como "o que é digno de
um homem livre". Não soa bem? E oferece-nos uma lista convincente de
antônimos: "avaro, autocrata, ditatorial, dirigis ta, fascista, totalitário." Você
encontraria possivelmente várias desculpas para se definir como
anticapitalista, mas confesse que iria precisar de muita astúcia para se pro-
clamar antiliberal.
O que é, afinal, esta lústória de um livro negro do capitalismo? Não vêem
que um empreendimento tão desmedido é puro delírio? O pior assassino de
massas da História, estamos de acordo, mas um assassino sem rosto nem códi-
go genético e que opera impunemente há vários séculos em cinco conti-
nentes ... Desejamos a vocês muita sone. E para quê? Não ouviram o som do
gongo anunciando ao mesmo tempo o fim do jogo e o fim da História? Ele
ganhou. Incorpora à sua robusta versão mafiosa os despojos dos seus inimigos.
Que adversário imaginável no horizonte?
Que adversário? Esse imenso correjo das partes civis do processo. Os
mortos e os vivos. A multidão sem número daqueles que foram deporta·
dos da África para as Américas, esmagados nas trincheiras de uma guerra
imbecil, assados vivos pelo napalm, torturados até à morte nos calabouços
dos cães de guarda do capitalismo, fuzilados no Muro dos Federados, fuzi-
lados em Fourmies, fuzilados em Sétif, massacrados às centenas de milha-
res na Indonésia, praticamente erradicados tal corno os índios da Améri-
ca, assassinados em massa na China para assegurar a livre circulação do
ópio ... De todos estes, as mãos dos vivos receberam a chama da revolta do
homem negado na sua dignidade. Mãos em breve inertes dessas crianças
do Terceiro Mundo que a má nutrição, diariamente, mata às dezenas de
milhares; mãos descamadas dos povos condenados a reembolsar os juros
de uma dívida que os seus dirigentes-marionetes roubaram, mãos trêmulas
dos excluídos cada vez mais numerosos acampando nas margens da opu-
lência ...
PRÓLOGO 13

Mãos de uma trágica fragilidade e no momento desunidas. Mas elas não


podem deixar de voltar se a unir um dia. E, nesse dia, a chama que elas trans-
portam incendiará o mundo.

Gilles Perrault
O mundo dominado pelo capitalismo é o mundo livre; o capitalismo, atu-
almente chamado apenas de liberalismo, é o mundo moderno. É o único mo-
delo de sociedade. Senão o ideal, pelo menos o mais satisfatório. Não existe e
jamais existirá outro.
É este o canto unânime que entoam não só os responsáveis econômicos e
a maior parte dos responsáveis políticos, mas também os intelectuais e os jor-
nalistas que têm acesso às principais mídias: audiovisuais, a imprensa, a gran-
de edição, geralmente nas mãos de grupos industriais ou financeiros. Não que
o pensamento dissidente seja de modo algum proibido (liberalismo oblige!),
mas acaba por ser canalizado para uma quase clandestinidade. Eis a liberdade
de expressão com que se deliciam os que apóiam nosso sistema liberal.
A virtude do capitalismo reside na sua eficácia econômica. Mas em bene-
fício de quem e a que preço? Nos países ocidentais, que são a vitrine do capi-
talismo (enquanto o resto do mundo será mais ou menos os fundos do arma-
zém), examinemos os fatos.
Após o seu grande período de expansão no século XIX, devido à indus-
trialização e à feroz exploração dos trabalhadores, o movimento que se acele-
rou ao longo das últimas décadas levou à quase extinção o pequeno produtor
rural, devorado pelas grandes explorações agrícolas, trazendo consigo a polui-
ção, a destruição das paisagens e a degradação dos produtos (e tudo isto à
custa do contribuinte, uma vez que a agricultura foi sempre subsidiada); o
quase desaparecimento do pequeno comércio, particularmente de alimenta-
ção, em benefício da grande distribuição e dos hipermercados, a concentração
das indústrias em grandes empresas nacionais e depois transnacionais que
tomam tais proporções que chegam a ter tesourarias mais importantes que as
dos Estados e até fazem a lei (ou pretendem fazê-la), tomando medidas para
reforçar o seu poder sem controle, como por exemplo através do Acordo
Multinacional sobre o Investimento (AMI), acima dos Estados (a United Fruit
é patrão de vários Estados da América Latina).
Os dirigentes capitalistas podiam temer que o desaparecimento do pe-
queno produtor rural, do artesanato e da pequena burguesia industrial e co-
mercial reforçasse as fileiras do proletariado. Mas o "modernismo" veio trazer-
18 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

lhes o êxito total com a automação, a miniaturização e a informática. Após o


despovoamento dos campos, assistimos agora ao das fábricas e dos escritórios.
Como o capitalismo não sabe nem quer partilhar o lucro e o trabalho (vemos
isso nas reações indecentes e hi téricas do patronato à jornada de 35 horas -
medida de resto bem ómida), chegamos inelutavelmente ao desemprego e à
sua corte de desastres sociais.
Quanto mais desempregados, menos se indeniza e por menos tempo. Quan-
to menos trabalhadores houver, maiores são as previsões de diminuição de
reformas. Isro parece lógico e irrefutável. Sim, se repartirmos a solidariedade
pelos salários. Mas, se consideram1os que o produto nacional bruto aumentou
mais de 40% cm vinte anos, enquanto a massa salarial não parou de diminuir,
o história é bem diferente! Mas isto não entra na lógica capitalista.
Cerca de vinte milh~ de desempregados na Eurooa, eis o balanço posi-
tivo do capitalismo!
E o pior está por vir. As grandes empresas européias e amencanas, CUJOS
lucros nunca foram tão grandes, anunciam a demissão de centenas de milha-
t
res de trabalhadores. preciso "racionalizar" a produção, concorrência obligel
Felicitamo-nos pelo aumento dos investimentos estrangeiros na França.
Mas, além dos perigos para a independência nacional, podemos nos pergun-
tar se n:'lo é a queda dos salários que encoraja os investidores.
Os paladinos franceses do liberalismo - do "modernismo"! (ver Alain
Madclin) - não se cansam de citar os exemplos da Inglaterra e dos Estados
Unidos - os campe~ do sucesso econômico e da luta contra o desemprego.
Se a destruição das proteções sociais, a precariedade do emprego, os baixos
salários e a não indenização dos dc ·cmpregados, fazendo-os desaparecer das
estatísticas, são o ideal do Sr. Madelin, não creio que este seja o ideal dos
trabalhadores deste país.
Nos EUA, paraíso do capitalismo, 30 milhões de habitantes (mais de
10% da populaçilo) vivem no limiar da pobreza, e, entre estes, os negros são
maioria.
A supremacia dos Estados Unidos no mundo, a propagação imperialista
e uniformizadora do seu modo de vida e da sua cultura só podem satisfazer
os espíritos servis. A Europa faria bem em estar alerta e reagir, já que ainda
possui os meios econômicos para isso. Mas precisaria também de vontade
política.
Para ajudar os investimentos produtivos, na indústria ou nos serviços, o
capitalismo pretende torn:i-los competitivos cm face dos investimentos finan·
INTRODUÇÃO 19

ceiros e especulativos a curto prazo. Como? Impondo taxas a estes últimos?


De forma alguma: baixando os salários e os custos sociais!
É também uma forma de tornar o Ocidente competitivo em relação ao
Terceiro Mundo. Na Inglaterra até já se começou a fazer as crianças voltarem
ao trabalho. De resto, o vassalo dos Estados Unidos, assim como o seu suserano,
não ratificou o acordo proibindo o trabalho infantil.
Preso no círculo infernal da concorrência, o Terceiro Mundo deverá bai-
xar ainda mais os custos e mergulhar um pouco mais os seus habitantes na
miséria, depois será de novo a vez do Ocidente ...
Até que o mundo inteiro esteja nas mãos de umas poucas multinacionais,
majoritariamente americanas, e que praticamente não haja necessidade de
trabalhadores, senão de uma elite de técnicos ... o problema para o capitalismo
será então o de encontrar consumidores fora desta elite e dos seus acionistas ...
e de suportar a delinqüência nascida da miséria.
A acumulação de dinheiro - que não passa de uma abstração - impede
a produção de bens úteis a todos.

O livro negro do capitalismo está já escrito diante de nós no seu "para(so".


E quanto ao seu inferno, o Terceiro Mundo?

As devastações, no espaço de um século e meio, pelo colonialismo e o


neocolonialismo, são imaculáveis, como impossível é calcular os milhões de
mortos que lhes são imputáveis. Todos os grandes pa(ses europeus e os Estados
Unidos são culpados. Escravatura, repressões impiedosas, torturas, expropria-
ção, roubo das terras e dos recursos naturais pelas grandes companhias oci-
dentais, americanas ou transnacionais ou por potentados locais a seu soldo,
criação ou desmembramento artificial de países, imposição de ditaduras,
monoculturas substituindo as culturas tradicionais, destruição dos modos de
vida e das culturas ancestrais, desmatamento e desertificação, desastres eco-
lógicos, fome, êxodo das populações rumo às megalópoles, onde as esperam o
desemprego e a miséria.
As estruturas utilizadas pela comunidade internacional para regular o de-
senvolvimento das indústrias ou do comércio estão inteiramente nas mãos e
ao serviço do capitalismo: o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacio-
nal, a Organização de Cooperação e Desenvolvimento, a Organização Mun-
dial do Comércio e agora o Acordo Multilateral sobre o Investimento. Estes
organismos serviram apenas para endividar os pa(ses do Terceiro Mundo e
20 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

para lhes impor o credo liberal. Se por um lado permitiram o desenvolvimen-


to de acintosas fortunas locais, por outro mais não fizeram do que aumentar a
miséria das populações. 1
Dentro de algumas décadas, o capitalismo internacional nem sequer terá
necessidade da mão-de-obra do Terceiro Mundo, automatização oblige! Os
laboratórios americanos estudam as culturas in vitro, o que arruinará definiti·
vamente o terceiro mundo agrícola (e talvez a agricultura da França, segundo
exportador mundial). Em vez de partilharem os bens, será o desemprego que
os trabalhadores do mundo inteiro partilharão.2
Ao mesmo tempo, os serviços essenciais relativos à educação, à saúde, ao
ambiente, à cultura, à solidariedade, deixarão de ser assegurados porque não
são rentáveis e não interessam ao setor privado, porque só podem ser presta-
dos pelos Estados ou pela comunidade dos cidadãos, dos quais o liberalismo
quer retirar todo o poder e todos os meios.

Quais são os meios de expansão e de acumulação do capitalismo? A guer-


ra (ou a proteção, seguindo o exemplo da máfia), a repressão, a espoliação, a
exploração, a usura, a corrupção, a propaganda.

A guerra contra os países rebeldes que não respeitam os interesses ociden-


tais. Aquilo que foi outrora apanágio da Inglaterra e da França, na África e na
Ásia (os últimos sobressaltos do colonialismo nas Índias, em Madagascar, na
Indochina, na Argélia, fizeram milhões de mortos), é hoje em dia dos Estados
Unidos, nação que pretende reger o mundo. Os Estados Unidos não pararam,
para tal, de praticar uma política de acumulação de armas (que proíbem aos
outros) . Assistimos ao exercício deste imperialismo em todas as intervenções
diretas ou indiretas dos Estados Unidos na América Latina e particularmente
na América Central (Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Honduras), na Ásia,
no Vietnã, na Indonésia, em Timor (genocídio proporcionalmente mais im-
portante do que o dos Khmers Vermelhos no Camboja - cerca de dois terços
da população-, e perpetrado com a indiferença - quando não com a cum-
plicidade - do Ocidente), na guerra do Golfo etc. 3
A guerra não se faz só pelas armas, pode assumir formas inéditas: por
exemplo, os Estados Unidos não hesitaram em ajudar a seita Moon na Coréia
para lutar contra o comunismo, não hesitaram em armar ou subsidiar os
fundamentalistas islâmicos contra os irmãos muçulmanos ou os Talibãs no
Afeganistão. A guerra pode tomar também a forma de embargos contra os
INTRODUÇÃO 21

Estados indóceis (Cuba, Líbia, Iraque), que são mortíferos para as populações
(várias centenas de milhares de mortos no Iraque).
A espoliação é a causa evidente da utilização da força. Se queremos assal-
tar uma casa habitada, é melhor levarmos uma arma.
As práticas do capitalismo são próximas das da máfia; é com certeza por
isso que esta prolifera tão bem no seu terreno.
Tal como \l máfia, o capitalismo protege os dirigentes dóceis, que desaver-
gonhadamente permitem que seus países sejam explorados pelas grandes soci-
edades americanas e transnacionais. Deste modo, ele consolida - quando
não é ele próprio que as instala - as ditaduras, mais eficazes na proteção das
empresas do que as democracias.
As suas armas são indistintamente a democracia ou a ditadura, o negócio
ou o gangsterismo, a intimidação ou o assassinato. Assim, a CIA é, sem dúvi-
da, a maior organização criminal em escala mundial.
A usura, outro procedimento mafioso. Assim como a máfia faz empréstimos
ao comerciante, que nunca consegue livrar-se da sua dívida e acaba por per-
der a sua loja (ou a vida), os países são estimulados a investir, muitas vezes
artificialmente; armas são vendidas para que possam lutar contra os países
rebeldes, e estes são obrigados a pagar eternamente os juros acumulados da
sua dívida; passa-se assim a ser dono da sua economia.
Repressão e exploração caminham juntas: repressão anti-sindical (que ou-
trora foi legal), hoje não confessada mas sempre praticada nas empresas, vigi-
lância repressiva, milícias patronais criminosas,i sindicatos criados pelos pa-
trões (CFIJ e repressão contra qualquer contestação operária radical. 5 A
possibilidade de explorar tem este preço. E nós sabemos, desde Marx, que a
exploração do trabalho é o motor do capitalismo. As economias ocidentais
tiram dividendos, no Terceiro Mundo, da pior forma de exploração: a escra-
vatura, e, nos seus países, da servidão dos imigrados clandestinos.
A corrupção. As multinacionais dispõem de uma rede de influências tal
ou de tais pressões financeiras ou políticas sobre o conjunto dos responsáveis
públicos ou privados que abafam qualquer resistência com os seus tentáculos
de polvo.
A propaganda. Para impor o seu credo e justificar a corrida armamentista,
os seus delitos e os seus crimes sangrentos, o capitalismo sempre invoca ideais
generosos: defesa da democracia, da liberdade, luta contra a ditadura "comu·
nista" e defesa dos valores do Ocidente, quando, na verdade, ele apenas de-
fende, na maioria das vezes, os interesses de uma classe poderosa, ou quer
22 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

apoderar-se das matérias-primas, comandar a produção do petróleo ou con-


trolar as regiões estratégicas. Esta propaganda é difundida por autoridades
econômicas e políticas, por uma imprensa e por meios de comunicação servis.
São os "cães de guarda" já denunciados por Nizan, a Traição dos clérigos vili-
pendiada por Julien Benda.6
Partidários do liberalismo, arautos dos Estados Unidos, não ouvi a vossa
voz elevar-se contra a destruição do Viemã, o genocídio indonésio, as atroci-
dades perpetradas em nome do liberalismo na América Latina, contra a ajuda
americana ao golpe de Estado de Pinochet, um dos mais sangrentos da Histó-
ria, 7 a execução dos sindicalistas turcos; a vossa indignação era um pouco
seletiva: Soliaamosc mas não o Disk, Budapeste mas não a Argélia, Praga mas
não Santiago, o Afeganistão mas não Timor; não vos vi indignarem-se quan-
do se matavam comunisras ou simplesmente aqueles que queriam dar o poder
ao povo ou defender os pobres. Pela vossa cumplicidade ou pelo vosso silên-
cio, não vos ouço pedir perdão.

Maurice Cury é poeta, romanci5ta, roteiruta de cinema e de televisão, autor teatral. Publica·
ções mais recentes: w ~de Flandre (romance), l..a]ungle el le désert (poemas e textos).
E. C. Édirions, l...t Ubéralismt ICl41iwire.

Notas:

1. Philippe Paraire, Lt V.llagt Moruú et San Cháuau, Le Temps des Cerises, 1995.
2. Jeremy Rifjin, Ui Fin du Traoail, La Déc.ouverte, 1996
3. Noam Chorrulcy, w Dmau! de la Poliriqut de I' Onde Sam, Ecosociété, EPO, Le Temps
des Cerises, 1996.
4. Marcel Caille, Lts Truands du Pmronar, Éditions Sociales, 1977.
5. Maurice Ra~íus, La Polia Hors la Loi, Le Cherchc-Midi, 1996.
6. Scrge Hahmi, Li1 Nouv<aux Chieru de Garde, Liber-Raison d'Agir, 1977.
7. Chill, Li Dossier Noir , GaUimard, 1974.
AS ORIGENS DO CAPITALISMO
(SÉCULOS XV A XIX)
JEAN SURET-CANALE
Foi ao longo do século XIX que o capitalismo apoiado no trabalho assa-
lariado se tomou o modo de produção dominante, primeiro na Europa Oci·
dental e nos Estados Unidos, depois no resto do mundo, através de formas de
dominação diretas (a colonização) ou indiretas.
A sua gênese ocupa essencialmente os três séculos precedentes (séculos
XVI, XVII e XVIII). É, para empregar a terminologia de Adam Smith, reto·
mada por Marx, a época da "acumulação primitiva" (ou melhor, para utilizar
mais exatamente o termo empregado por Adam Smith, "previous accumulatian",
acumulação prévia).
Como se encontrarão face a face os capitalistas detentores das riquezas
suscetíveis de se converterem em meios de produção (máquinas, matérias·
primas etc.) e os "proletários", desprovidos de quaisquer meios de existência
autônoma e reduzidos, para sobreviver, à condição de assalariados• dos pri·
meiros?
A ideologia burguesa, expressa pelos "pensadores" políticos e pelos eco·
nomistas mais respeitados do século XIX, explica que, originalmente, a socie·
dade dividiu-se em duas categorias: uns, laboriosos, inteligentes, poupadores;
os outros, preguiçosos, dilapidadores. "Evidentemente que uns amontoaram
tesouros sobre tesouros, enquanto os outros se encontraram rapidamente des·
providos de tudo." Karl Marx cita, entre os autores defensores desta tese, A.
Thiers. 2 No século XX, o bom doutor Alexis Carrel, prêmio Nobel de Mediei·
na e partidário de Pétain, explicará em t Homme, cet inconnu (O Homem,
esse desconhecido)l que os primeiros eram geneticamente superiores, e os
segundos, inferiores.
E cabe a Karl Marx observar: "Nos anais da história real, foi a conquista,
a servidão, o domínio da força bruta que levaram sempre a melhor." 4 Para
estudar este período, que se abre com as grandes descobertas marítimas no
fim do século XV. recorreremos a duas fontes essenciais: uma antiga, a que é
fornecida por O capital de Karl Marx no seu desenvolvimento sobre a "acu·
mulação primitiva" (Livro I, VIII seção), 5 a outra, mais recente, certamente
mais rica de informação e mais "em dia", é fornecida pela grande obra de
Femand Braudel: Civilisation Matérielle, Économie et Capitalisme, XVe-XVIlie
si~cle (Civilização Material, Economia e Capitalismo, séculos XV-XVIIl).6
26 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Braudel, como Marx, confere uma atenção particular à infra-estrutura


socioeconômica da História, mas difere deste na medida em que nãc. dá um
lugar central à divisão da sociedade em classes opostas. A confrontação dos
dois pontos de vista haveria de ter sido fascinante: ela está infelizmente au-
sente da obra de Braudel, que, visivelmente, não tinha lido Marx (pelo menos
esta parte do Capical que tratava do mesmo assunto). 7

O mercado e as formas "antediluvianas" de O capital

As sociedades de classes que precederam o capitalismo caracterizavam-se


por uma ligação pessoal do dominador com o dominado (escravo, tributário,
servo etc.). '
O dominado era, é certo, explorado, e muitas vezes das formas mais bru-
tais, mas a exploração era "justificada", pelo menos ideologicamente, por uma
certa reciprocidade: dever de proteção por parte do dominador, até mesmo de
assistência, freqüentemente sob uma máscara patriarcal. Com o capitalismo,
as relações sociais tomam um caráter cada vez mais abstrato, anônimo. E, por
isso mesmo, desumanizado.
O capitalismo desenvolve-se com base na produção mercantil, que supõe
a generalização. Diferentemente dos modos de produção anteriores, mais ou
menos fundados sobre uma economia de subsistência, a produção capitalista
volta-se, logo de infcio, para o mercado: o capitalismo produz para vender. E
a própria relação entre o capitalista e o assalariado apresenta-se sob a forma
da troca mercantil: o capitalista apresenta-se como comprador de força de
trabalho, o assalariado como vendedor.
O mercado, a mercadoria, a produção mercantil, surgem muito cedo nas
sociedades mais diversas, sem que, por isso, sejam as formas exclusivas, menos
ainda as iniciais, de troca: as sociedades arcaicas apresentam formas "não-
mercantis" de troca, trazidas à luz desde Durkheirn e de que Karl Polanyi teve
o mérito de destacar a especificidade em comparação com a troca mercantil. 8
Na produção mercantil "simples", o produtor agrícola ou artesão, propri-
etário dos meios de produção, produz parcial ou totalmente os bens, já não
para cobrir diretamente as suas próprias necessidades, mas para vender, num·
mercado onde os produtos são trocados através do equivalente intermediário
monetário, especializando-se os produtores em função de uma divisão social
do trabalho.
AS ORIGENS 00 CAPITALISMO Z7

Com o capitalismo produtivo, o capitalista, proprietário dos meios de


produção (terra, máquinas, matérias-primas etc.), "compra" do trabalhador
o uso da sua força de trabalho por um salário que corresponde grosseira-
mente à soma necessária à reconstituição e à reprodução dessa força de
trabalho; soma que é inferior à produzida pela realização da obra dessa força
de trabalho. O suplemento assim auferido (a "mais-valia" de Marx) retoma
ao capitalista. O capital antecipado e aplicado na produção pelo capitalista
encontra-se assim, no final do ciclo, reproduzido e acrescido de um suple-
mento que o capitalista pode utilizar para fins de consumo pessoal, ou que
pode igualmente "acumular", a fim de aumentar a massa do seu capital. É a
produção "alargada".
Nas sociedades anteriores, o produto da exploração (do escravo, do tribu-
tário, do dependente feudal - servo ou vilão) era principalmente consumido
pelas classes privilegiadas e relativamente pouco "reinvestido". O ciclo pro-
dutivo repetia-se mais ou menos à mesma escala. O "crescimento", na medida
em que existia, era muito lento e quase imperceptível.
No capitalismo contemporâneo (produtivo), instaurado graças à revolu-
ção industrial, com o emprego generalizado da energia mecânica os progres-
sos da produtividade do trabalho permitirão uma "reprodução alargada" em
uma escala cada vez mais vasta, numa palavra, o "crescimento".
Este capitalismo produtivo surge a partir da Idade Média, sob uma forma
embrionária, nas cidades italianas através da "manufatura" ("fábrica" que pra·
tica num mesmo lugar a divisão manual do trabalho, ou trabalho no domicí-
lio, para o qual o capitalista fornece a matéria-prima, por exemplo o fio ao
tecelão, e compra o produto fabricado).
Mas, até ao fim do século XVIII, o capital apresenta-se essencialmente
sob formas que Marx chama "antediluvianas", capital mercantil ou capital
financeiro (usurário), formas existentes desde a Antiguidade.
Nestas formas, também há acumulação, mas não pela criação de riquezas:
o capital contenta-se neste caso em retirar seu dízimo sobre a produção exis·
tente.
A instauração do capitalismo produtivo, essencialmente industrial, para
além das condições técnicas já evocadas, supõe condições econômicas e
sociais.
28 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

A "libertação" da mão-de-obra: pauperização e


exploração do camponês

A primeira condição é a existência de uma mão-de-obra "livre", isto é,


liberta das obrigações e servidões feudais ou senhoriais; mas também despro-
vida de quaisquer meios de existência autônoma (e da terra). Esta "liberta·
ção" se dá na Inglaterra a partir do fi.nal do século XN e conclui-se durante a
primeira Revolução, a de Cromwell, no século XVII. Na França, ela se dará
com a Revolução de 1789, e, mais tarde, no resto da Europa, sob a influência
direta ou indireta das conquistas revolucionárias e napoleônicas.
Esta "libertação" é indissociável de uma pauperização maciça e da expro-
priação dos camponeses; na Inglaterra, este fenômeno começa com o reinado
dos Tudor e ganha força no século XVIII; é mais lento e limitado no continen-
te. Os camponeses assim "libertos" e expropriados constituem uma massacres-
cente de vagabundos e de miseráveis, submetidos na Inglaterra à feroz legisla-
ção sobre os pobres ("Poor laws"), uma mão-de-obra pronta, quando chegar o
momento, para o empreendimento industrial capitalista. O êxodo rural ali-
mentará, no século XIX, o crescimento urbano e industrial e a emigração para
a América ou para as economias "temperadas".
Retomemos o exemplo inglês, estudado por Karl Marx. A servidão tinha
desaparecido aqui no fim do século XIY. A maior parte da população cam-
ponesa é constituída por pequenos proprietários independentes, relativamen-
te desafogados. O fim da "Guerra das Duas Rosas" e a instauração da dinastia
dos Tudor foram acompanhados de dois fenômenos: o fim dos "séquitos" feu-
dais, que eram mantidos pelos nobres (enfraquecidos ou arruinados), jogou
nas ruas uma primeira massa de gente sem rumo; por outro lado, os novos-
ricos que tomaram o lugar da antiga nobreza arruinada ou apagada decidiram
"fazer valer" o seu poder expulsando maciçamente os camponeses proprietá·
rios das suas terras para convertê-las em pastagens para ovelhas: a expansão
da manufatura lanífera de Flandres, para a qual a Inglaterra desde longa data
fornecia a matéria-prima, e o aumento do preço da lã dela resultante incita•
vam a esta especulação.
Em vão as leis de Henrique VII (1489) e de Henrique VIII proibiram a
demolição das casas dos camponeses e tentaram limitar a extensão das pas-
tagens.
A Reforma e o confisco dos bens do clero - das ordens religiosas, supri·
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 29

roídas - , equivalente a algo entre um quarto e um terço das terras do reino,


distribuídos por Henrique VIII a seus favorecidos, provocaram urna acelera-
ção do fenômeno: todos estes novos-ricos tornados gentlemen procederam,
cada qual melhor do que o outro, à expulsão dos camponeses. Os pequenos e
médios camponeses, os yeomen, forneceram ainda o grosso das tropas da revo-
lução inglesa de Cromwell. Mas, por volta de 1750, a evolução estava conclu-
ída: o pequeno produtor rural inglês estava praticamente eliminado em pro-
veito dos landlords, os grandes proprietários rurais, agora substituídos pelas
propriedades capitalistas, ou, na Irlanda, por proprietários precários, facilmente
expulsáveis.
"A criação do proletariado sem rumo - despedido pelos grandes senhores
feudais e plantadores vítimas de expropriações violentas e repetidas - foi
necessariamente mais rápida do que a sua absorção pelas manufaturas nas-
centes ... Daqui saiu, portanto, uma massa de mendigos, de ladrões, de vaga-
bundos.'19
Daí, a partir do fim do século XV, uma legislação feroz contra os pobres.
Urna lei de Henrique VIII prevê que os vagabundos robustos sejam con-
denados ao chicote; amarrados à traseira de uma charrete, serão chicoteados
até que o sangue jorre do seu corpo. Após o que serão encarcerados. Uma lei
posterior do mesmo rei agrava as penas com cláusulas adicionais: em caso de
reincidência, o vagabundo deve ser chicoteado de novo e metade de urna
orelha deverá ser cortada; à segunda reincidência será enforcado.
Em 1572, a rainha Isabel renova esta legislação: "Sob o reinado quase
maternal de 'Queen Bess' enforcavam-se vagabundos às fornadas, dispostos
em longas fileiras. Não passava um ano em que não houvesse trezentos ou
quatrocentos condenados à forca aqui ou ali", diz Strype em seus Annales:
segundo ele, o Sonersetshire sozinho contou num ano quarenta executados,
trinta e cinco marcados com ferro em brasa, trinta e sete chicoteados e cento
e oitenta e três - "patifes incotrigíveis" - libertados... "Graças à negligência
dos juízes de paz e à tola compaixão do povo", acrescenta o cronista. 10
A "lei sobre os pobres" da mesma rainha (1597) coloca a cargo das paró-
quias os indigentes.
A "assistência" das paróquias consistiu em enclausurar os indigentes em
hospícios ou workhouses (casas de trabalho), verdadeiras prisões ... onde eram
submetidos a um trabalho extenuante e precariarnente alimentados. A lei
sobre os pobres só em 1834 será abolida ... Mas foi porque a burguesia inglesa
achava intolerável ter de pagar um imposto para manter uma "cambada de
30 O LIVRO EGRO CAPITAL! M

mandriões". Os indigentes continuam a para h pícios, onde


trabalham pelo men 18 horas dtári t: onde t ma cuidado para que não
lhe sejam fornecidos roupas e alimento a nã um nível inferior ao do
operário mais m l pa !

A colonitaçOO escratJ(lgista e nurcantil

Uma outra c içjo révia ra a in.s auração do capitalismo era a exten-


são e a generalizaçjo d re mercantis.
Esta realizam-se a partir o sé< lo XVl com a extensão ao mundo inteiro
do comércio maríomo e e o aparecimento, pela primeira vez na Histó-
ria, de um verdadel m rc.ado dia!.
A deKobcna da América r e . tóvão Colombo (1492), em benefício
da coroa da Espanha, c • à quista do continente. Os dois principais
Estado ar exi rem , o lmpmo Asreca, no México, e o Império Inca, no
Peru, são de truíd~. respec •amente, em 1519 eem 1532.
Os conqu· tadores, e i.n kto julgavam haver descoberto a Índia, pro·
curavam as pe iarias (que não encontraram) e o ouro. Encontraram-no,
mas em pequena quan ·~fade; p~sada a pilhagem das povoações locais, a la-
vagem dai pepí as de ouro renderã pouco e os seus recursos estarão esgotados
antes de \ 550.
Mas depres a os espanhoo ~obrem e começam a explorar riquíssimas
jazidas de prata, no México (Nova Espanha) e no Peru (Peru e Bolívia atuais).
O comércio com a América é um monopólio real. É concedido a uma
companhia de mercadores privilegiada. instalada em Sevilha. É fdto por uma
frota de galeões, agrupados por ra?OO de r;egurança (são freqüentemente assal-
tados e pilhados por cor5ános, especialmente ingleses nomeadamente), frota
que todos os anos parte de Sevilha, mais tarde de Cádiz, para Havana, praça·
fone que serve de primeira escala, depois para Vera Cruz (para passar pela
Nova Espanha) ou pelo istmo do Panamá, onde homens e produtos são de-
sembarcados, e tomam outros barcos para o Callao, as parageru no Peru e nas
terras dos Andes. Algumas embarcações vão ao porto de Cartagena, para
servir a Nova Granada (Colômbia e Venezuela atuais). Esta frota traz da
Espanha bens manufaturados e mantimento . Qualquer importação intcrme·
diária é considerada contrabando (comércio "fraudulento") . É através da Amé·
rica que a Espanha se comunica com a sua única possessão asiática, as llhas
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 31

Filipinas: todos os anos, um galeão parte de Acapulco, na costa do Pacífico,


para Manila; para lá leva prata e traz na volta produtos da China.
A América exporta pouco mais além da prata.
Os colonos espanhóis, preocupados em fazer fortuna rapidamente, viven-
do "nobremente" (sem trabalhar com as suas próprias mãos), submetem a
população ameríndia a uma exploração forçada, recheada de tratamentos bár-
baros (suplícios, mutilações) para fazer reinar o terror. A população das Anti·
lhas, primeiras terras atingidas pelos conquistadores, que não consegue supor-
tar a escravidão e os trabalhos forçados, é dizimada pelos maus-tratos, que por
vezes conduzem a suicídios coletivos e a doenças introduzidas pelos europeus
e para as quais não está imunizada. A população de Hispaniola (Haiti), esti·
mada em meio milhão de habitantes em 1492, é reduzida a 30.000 em 1514 e
praticamente aniquilada ao longo do século XVI. De uma maneira geral, a
população das Antilhas será objeto de um genocídio quase completo: no sé-
culo XIX, os últimos habitantes das Caraiôas (algumas dezenas) serão depor-
tados para a ilha de Dominica, onde perderão suas tradições e sua língua.
No continente, a população ameríndia não será aniquilada, mas será, pe-
las mesmas razões, terrivelmente afetada: na Nova Espanha (México), a po-
pulação, estimada em 25 milhões em 1520, é reduzida a 7 milhões em 1548 e
a menos de um milhão e meio em 1595-1605, uma redução de 95% em três
quartos de século. No Peru, o trabalho nas minas de prata de Potosi é alimen-
tado pela "mita", o trabalho forçado, instituição tomada emprestada do anti-
go Império Inca, mas que leva, a partir de então, a uma deportação longínqua,
a mais de 3.000 metros de altitude, onde se trabalha debaixo da terra. As
condições de trabalho são tais que poucos regressam: os recrutados, antes da
partida, são convidados a presenciar a missa pelos mortos ... O desastre
demográfico foi menor no Peru do que na Nova Espanha, mas atingiu 20% a
30% entre 1530 e 1660.
No total, a população da América espanhola, que era da ordem de 50
milhões no fim do século XV, passa a 9-10 milhões em 1570 e a 4 ou 5 milhões
em meados do século XVII. Será preciso esperar até o final do século XVII e
pelo século XVlll para se chegar a um lento aumento demográfico.
Na América do Norte, terra de colonização temperada, a repressão ou o
aniquilam1:nto dos índios foi desde o início uma condição para a implantação
européia: os puritanos da Nova Inglaterra aprovaram em 1703, por decreto,
um prêmio de 40 libras esterlinas por cada escalpo de índio ou por cada pele-
vermelha feito prisioneiro; em 1720, o prêmio foi elevado para 100 libras.
32 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

O tráfico dos negros 11


O bispo Bartolomeu de las Casas, indignado pelo tratamento a que eram
submetidos os ameríndios, e que ele denunciou na sua Brevissima Relaci6n de
la Destrución de las lndias, obteve em 1542 a proibição da escravização dos
índios (o que não alterou grande coisa sua sorte) e propôs substituí-los, para o
trabalho, por escravos africanos. Do que viria a se arrepender mais tarde. Na
verdade, o emprego de escravos negros importados da África já tinha come-
çado.
Ao longo do século XV, os portugueses tinham reconhecido pro-
gressivamente as costas da África a oeste do continente. Encontraram um
pouco de ouro (ouro que era anteriormente exportado, pela via saariana, em
direção ao mundo árabe). De lá trarão também escravos. Mas esta exportação
não assumirá toda a sua dimensão senão quando for dirigida para a América.
De fato, os negros só substituirão os índios nas regiões onde estes foram
praticamente exterminados, as planícies litorais do Golfo do México, as Anti·
lhas e, sobretudo, o Nordeste brasileiro, colonizado pelos portugueses. E o
desenvolvimento da escravatura africana estará estreitamente associado ao
da plantação de cana-de-açúcar.
A cultura e o tratamento da cana-de-açúcar, vindos da Índia, foram in·
troduzidos no final da Idade Média nas ilhas do Mediterrâneo colonizadas por
Veneza e Gênova (Clúo, Chipre, Creta), mais tarde na Sicília e na Andaluzia.
No final do século XV, são introduzidos nas ilhas do Atlântico: Madeira,
Canárias, São Tomé.
A produção do açúcar de cana é, desde o início, uma verdadeira agro-
indústria: plantação e corre da cana, moagem nos engenhos de açúcar, con-
centração do açúcar em caldeiras, cristalização, depois refino, deixando como
subproduto melaços, consumidos assim mesmo ou destilados para a produção
de álcool (runs e cachaças) . Ela não admite uma produção artesanal: exige
pessoal abundante e urna extrema disciplina de trabalho que só a escravidão
podia fornecer nesta época.
Eram escravos que se empregavam nas plantações mediterrâneas. No iní-
cio do século XVI, a cana é introduzida nas Antilhas espanholas, mas o seu
desenvolvimento é limitado pela falta de mão-de-obra.
É o Brasil português o primeiro a importar escravos africanos em grande
escala: tomou-se, por volta de 1580, o primeiro produtor de açúcar de cana.
Nas Pequenas Antilhas, em parte abandonadas pelos espanhóis e colo-
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 33

nizadas pelos ingleses, franceses e holandeses, a colonização é em primeiro


lugar um feito de europeus que empregam uma mão-de-obra de "contrata·
dos"; estes pagam a sua travessia com um "contrato" de trabalho de 3 a 7 anos
em benefício daqueles que os recrutaram. Este sistema funciona mal; a servi·
dão, mesmo temporária, tinha desaparecido dos hábitos europeus; recrutados
entre os marginais, os contratados tinham pouca aptidão para a agricultura, e
menos ainda para a agricultura tropical. Ao longo do século XVII, vão sendo
abandonadas por escravos negros, e as culturas praticadas (tabaco, índigo)
vão sendo marginalizadas em benefício da plantação açucareira. Durante a
ocupação temporária do Brasil pelos holandeses, estes iniciaram-se na agro·
indústria do açúcar: expulsos após a reconquista portuguesa, vão introduzir a
cana-de-açúcar nas Pequenas Antilhas. Durante a segunda metade do século
XVII, a população escrava toma-se majoritária: assim, em Barbados (britâni·
co), os brancos são ainda maioria em 1645 (três quartos da população) ; em
1667, a proporção é invertida: os brancos não constituem mais do que um
décimo da população.
A plantação do açúcar é, desde o princípio, um empreendimento capita·
lista: exige grandes investimentos no tratamento do terreno, no equipamento
industrial (engenhos, caldeiras etc.) e na compra de escravos. Devido às lon·
gas travessias, as entradas de recursos são a longo prazo. O capitalista é aqui o
comerciante (muitas vezes também o armador), quer invista diretamente nas
plantações, quer financie os plantadores através de adiantamentos.
A economia rural está na total dependência do comércio exterior: quase
tudo o que ela produz (essencialmente açúcar, mas também tabaco, índigo,
café) destina-se à exportação para a Europa; quase tudo o que consome, uten·
sílios, roupas, e até víveres, é importado. As parcelas atribuídas aos escravos
destinadas ao plantio de víveres, para o qual lhes concedem no máximo um
dia por semana, não bastam para os sustentar. Farinha e vinhos da Europa,
bacalhau seco ou salgado da América do Norte são importados.
A procura americana por escravos, ligada ao desenvolvimento da econo·
mia agrícola, dá grande impulso ao tráfico de escravos; o tráfico especializa-se
na forma de comércio "triangular"; o navio negreiro, num primeiro tempo,
leva para a costa da África "mercadorias de tráfico" (têxteis, quinquilharia,
ferragens, bebidas alcoólicas, depois pólvora e armas de fogo), produtos desti·
nados às camadas privilegiadas da sociedade africana, organizadoras e
beneficiárias do tráfico. Da costa da África, o navio negreiro parte com a sua
carga de escravos para a América e aí troca os seus escravos pelos produtos
O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

coloniais (açl'.ícar, tabaco, café etc.). Todavia, como o preço da carga de um


navio negreiro equivale ao carregamento de quatro navios de gêneros coloni·
ais, uma grande parte do comércio faz-se em "eqüidade", utensílios e merca·
dorias da Europa por gêneros coloniais. Urna exceção: o Brasil português tro·
ca diretamente os seus escravos importados por tabaco e rum.
Em rápido crescimento durante a segunda metade do século XVIII, oco-
mércio negreiro tomar-se-á, até mesmo no primeiro quarto do século XIX, a
forma dominante do comércio entre a Europa e a África.
Os europeus desistirão rapidamente de penetrar no interior da África: os
Estados litorâneos especializam-se no papel de intermediários, fornecendo·
lhes a mercadoria humana e defendendo o seu próspero monopólio simulta-
neamente contra os europeus e contra as populações africanas do interior. S6
no final do século XVIII começarão as explorações no interior do continente,
com a idéia de um acesso direto ao mercado africano.

A punção humana do tráfico e o tratamento dos escravos

Quantos africanos foram transportados pelo Atlântico, do início do sécu-


lo XVI a meados do século XIX, já que o tráfico continuou durante várias
décadas após a sua interdição, em 1815 ao norte do Equador, em 1842 no
Atlântico Sul?
As avaliações mais recentes calculam o nl'.ímero de transportados entre 10
e 15 milhões. Mas a esta sangria demográfica é preciso acrescentar todas as
v(timas humanas resultantes da caça aos escravos e do seu transporte.
A caça aos escravos tinha-se tornado, para as camadas dirigentes dos Esta·
dos africanos, a atividade mais lucrativa: por um capturado feito prisioneiro,
quantos mortos foram feitos durante os ataques às aldeias? Quantos se lhes
seguiram pelo caminho, nos cortejos que conduziam os prisioneiros para a cos-
ta, por vezes de centenas de quilômetros? Quantos mortos nos "depósitos" da
costa? Quantos mortos no mar durante o transporte (eram freqüentes e nume·
rasos, sobretudo quando uma epidemia irrompia a bordo, devido ao amontoa-
mento, às condições de higiene e de alimentação, ao longo de uma travessia de
várias semanas)? Seria ainda preciso acrescentar, ainda na África, as conse-
qüências da insegurança permanente resultante da caça aos escravos: popula-
ções reduzidas à fome pela destruição das suas aldeias e das suas colheitas, obri-
gadas a refugiarem-se em zonas de difícil acesso mas privadas de recursos.
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 35

Seria preciso, para avaliação, multiplicar o número de transportados por


um coeficiente de várias unidades, impossível de precisar: 50 milhões? 100
milhões?
Na própria América, até o final do século XVIII, a evolução demográfica
da população escrava foi negativa: na parte francesa de S. Domingos (hoje
República do Haiti), em 1789, 2,2 milhões de escravos tinham sido importa-
dos em 50 anos - deles não restavam mais do que 500 mil.
Fénelon, governador da Martinica, numa carta ao ministro datada de 11
de abril de 1764, espanta-se com esta evolução negativa e põe em evidência
as causas deste despovoamento que obriga a importar continuamente novos
escravos: má alimentação, excesso de trabalho, imposto mesmo às mulheres
grávidas, doenças muito freqüentes das crianças.
O negreiro Degrandpré, citado pelo R. P. Dieudonné Rinchon, reconhe-
ce: "É preciso confessá-lo, nós especulávamos sobre o excesso de trabalho
deles e não temíamos matá-los de cansaço se o preço que obtivéssemos pelo
seu suor igualasse o preço da sua compra." 12
Hilliard d'Auberteuil (citado por Gaston Martin), 13 que residiu 12 anos
em S. Domingos, escreve (em 1776): "Um terço dos negros da Guiné morre
geralmente durante os três primeiros anos da transplantação, e a vida labori-
osa de um negro, criado na terra, não pode avaliar-se em mais de 15 anos."
A expressão "trabalhar como um negro" ficou na nossa linguagem. Será
preciso esperar pelo fim do século XVIII para que a população servil se estabi-
lize e comece a crescer naturalmente. Diversos fatores conduziram a isso: o
aumento do custo dos escravos, a interrupção do tráfego durante as guerras
napoleônicas, o grande medo suscitado entre os escravagistas pela revolta de
S. Domingos (Haiti). Os proprietários de escravos estarão por essa época in-
teressados na manutenção e na reprodução da sua mão-de-obra.
Para manter a disciplina dos seus escravos, os proprietários necessitavam
de um regime de discriminação e terror.
O "Código Negro", promulgado em 1685, sob o reinado de Luís Xrv, um
conjunto de regulamentos referentes ao governo, à administração da justiça,
à polícia, à disciplina e ao comércio dos negros nas colônias francesas, 1" em
vigor até 1848 (à exceção das colônias onde foi aplicada, de 1794 a 1802, a
abolição da escravatura decretada pela Convenção), fixa as suas regras ofici-
ais. Pune com a morte qualquer agressão de um escravo contra o seu dono ou
contra pessoas livres, assim como os roubos de cavalos ou de bois; o escravo
fugitivo durante mais de um mês terá as orelhas cortadas e ser-lhe-á marcada
36 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

com ferro em brasa uma flor-de-lis; se reincidir, tera cortada parte de uma
perna e sera marcado com uma flor-de-lis no outro ombro; na terceira vez
será punido com a morte . O s suplícios (marcas e mutilações) só serão abolidos
em 1833.
O s donos têm o direito de mandar acorrentar e chicotear os seus escravos
"quando julgarem que os seus escravos o mereceram". Fora dos casos previs·
tos, é em princípio proibido aos donos torturar, mutilar ou matar os seus escra-
vos. Mas , na verdade, os donos, seja o que for que façam, nunca são punidos:
os tribunais, nas mãos dos col nos, têm por princípio que jamais um dono seja
condenado por queixa de um escravo, pois temem que isto ponha em perigo a
autoridade do regime escravagista.
Em seu relatório sobre Os Distúrbios de S. Domingos, o convencional Garran
nota que não há nenhum exemplo de um dono que tenha sido levado à justiça
por ter morto ou mu tilado um escravo. Um decreto de 1784, que limitava a
50 o número de chicotadas que um dono podia infligir a um escravo, "foi
estabelecido com muita dificuldade" e não foi cumprido. 15
O casamento e as relações sexuais entre colonos e escravos são em princí·
pio proibidos; mas, de fato, os colonos tomam escravas como concubinas e,
muito rapídamente, forma -se uma camada de mestiços, hierarquizados em
funç ão da sua proporção de sangue "branco''. Em 1789, contam-se na parte
francesa de S. Domingos (atualmente República do Haiti) 35.440 brancos,
509.642 escravos e 26 .666 libertos e "pessoas de cor". Libertos e homens li-
vres de cor podem ser proprietários de plantações e de escravos, mas são sub-
metidos a uma estrita disc riminação: em 1789, os colonos recusam-lhes os
direitos políticos.
Num panfleto surgido em 1814, Vastey, secretário do rei Christophe
(Henrique l, imortalizado pela peça de teatro de Aimé Cesaire), enumera os
suplícios infligidos pelos colonos aos ~cravos , particularmente quando da sua
insurreição: escravos queimados vivos ou empalados, membros serrados, lín-
gua, orelhas, dentes, lábios cortados ou arrancados, pendurados de cabeça
para baixo, afogados, crucificados em pranchas, enterrados vivos, presos em
fomügueiros, atirados vivos em caldeiras de açúcar, precipitados encosta abaixo
dentro de tonéis forrados de pregos, enfim, oferecidos vivos à fúri a de cães
criados para este fim. 16 Rochambeau filho, comandante, após a morte do ge-
neral Leclerc, do corpo expedicionário enviado por Bonaparte para recon-
quistar S. Domingos e aí restabelecer a escravatura, tinha mandado comprar
em Cuba cães especialmente criados para isso.
A5 ORIGENS DO CAPITALISMO 37

Não é preciso dizer que o exemplo dado aqui das colônias francesas sobre
o tratamento dos escravos pode ser estendido ao conjunto das outras colônias.

O tráfico e a escravatura no século XIX

A proibição do tráfico, apesar da repressão de esquadras britânicas, não


foi aplicada e só por volta de 1860 é que o tráfico terá fim.
Após um "grande medo" dos escravagistas devido à insurreição dos escra-
vos na parte francesa de S. Domingos, que levou, em 1804, à independência
da república negra do Haiti, a primeira metade do século XIX conheceu o
novo surto da agricultura escravagista americana, desta vez não no quadro do
mercantilismo, mas do mercado dominado pelo capitalismo moderno, indus-
trial: expansão, no Sul dos Estados Unidos, da plantação de algodão, para
fornecer matéria-prima às fábricas inglesas de Manchester e regiões
circundantes; expansão da escravidão em Cuba (para a produção açucareira)
e no Brasil (açúcar e cacau) para consumo europeu. A escravidão só será
abolida em 1833 nas colônias inglesas, em 1848 nas colônias francesas, em
1866 nos Estados Unidos (após a derrota dos sulistas na Guerra da Secessão),
em 1886 em Cuba (colônia espanhola) e em 1888 no Brasil.
Proibido no Atlântico, o tráfico vai conhecer um novo desenvolvimento
no século XIX na África Oriental, especialmente no Sudão (dependência do
Egito) e no sultanato de Zanzibar, criado pelos árabes de Omã, e que, a partir
das ilhas de Zanzibar e de Peroba, controlava toda a costa do oceano Índico,
da Somália a Moçambique.11
Este tráfico "árabe" foi por vezes avançado como tentativa de "descul-
pabilizar" o tráfico europeu, sob o argumento "não éramos nós os únicos". O
problema é que este tráfico "árabe" teve por motor a procura do mercado
capitalista europeu.
Com efeito, este tinha como objetivo principal a procura de marfim: atra-
vés do massacre dos elefantes, mas sobretudo pela pilhagem dos "tesouros"
em chifres de elefantes acumulados pelas chefias da África Central. Partindo
do Nilo ou de Zanzibar, as expedições de pilhagem destruíam aldeias, massa-
cravam ou reduziam à escravidão as populações, sendo os capturados destina-
dos a desempenhar o papel de carregadores, para transportar o marfim. A
escravidão constituía uma espécie de "subproduto" da pilhagem de marfim: os
escravos que sobreviviam eram vendidos no Oriente Médio, onde a escravi-

L _
38 O LIVRO NEGRO DO CAPITAL! MO

dão doméstica subsistia, ou utilizado como mão-de -obra n as plan ta ções de


cravo-da-índia de Zanzibar, principal fo rnecedor do mercado mundial desta
especiaria controlado pelos britâ nicos.
O merc ado europeu era efetivamente cliente de marfim, solicitado para o
consumo das classe ab;:madas: bolas de bilhar, teclas de piano, cabos de facas
para a cutelaria de Sheffield. Pode-se avaliar o número de escravos exporta-
dos para a Ásia, pe lo oc.eano Índico, n o século XIX, em 400.000; 16 e o dos
escravos "produzidos" pdo tráfico sudanês em 750.000 (ficando entre 10% e
30 % as "perdas" durante o transport.e , e uma proporção não calculada de
perdas no mome nto da captura) . 19

A rota das Índias e a colonização asiática

Enquanto os espanhóis, após julgarem ter atingido as Índias pelo oeste,


colonizavam a América, os portugueses exploravam e abriam, aproximada-
mente ao mesmo tempo, a rota do Oriente, contornando pelo sul o continen·
te africano. Vasco da Gama atin gi u a Índia (a verdadeira} em 1498.
A colonização oriental será inicialmente um feito dos portugueses, se ·
guindo o princípio do monopólio real, e depois dos holandeses, dos ingleses,
dos fran ceses, vindos no seu rastro.
Salvo exceções, e pelo menos até a segunda metade do século XVIII, as
possessões terri toriais dos colonizadores limitam-se a feitorias costeiras. Os
europeus vão buscar na !ndia, e também na Indonésia, na China e no Japão,
produtos de luxo: especi.arias (pime nta, canela, noz-moscada etc.) e os produ-
tos do artesanato ori ental (têxteis de luxo: musselinas, caxemíras, "indianas"
- tecidos de algodão pintados - , sedas, lacas e porcelanas da China).
Impossível propor em troca artigos man ufaturados europeus: os asiáticos
fazem melhor e mau bara to. Há que se resignar a pagar as compras em prata.
É a prata americana que paga as compras do comércio asiático. Do século XVI
ao século xvm, um terço, ou talvez mesmo metade, da prata fornecida pela
América foi absorvido pela China.w Esta controla C!i tri ta mente as suas entra·
das e só os portugueses puderam estabelecer uma feitoria, em Macau. Quanto
ao Japão, fechou-se em 1638 ao comércio europeu, com a exceção de um
acesso limitado e controlado no porto de Nagasaki, reservado unicamente aos
holandeses.
Todavia, a partir do século XVll, os holandeses, para assegurar o monopó·
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 39

lio das especiarias, tomam o controle, diretamente ou através de soberanos


locais interpostos, das Malucas, mais tarde de Java, onde estabelecem a capi·
tal do seu império comercial, Batavia {atualmente Jacarta).
Ao longo do século XVIII, franceses e ingleses empreendem a consolida-
ção dos seus entrepostos através de uma investida territorial; a tentativa fran-
cesa de Dupleix, considerada uma iniciativa pessoal e não reconhecida pela
Companhia Francesa das Índias Orientais, é abandonada em seguida à derro·
ta francesa na Guerra dos Sete Anos (1763). A Companhia Inglesa das Índias
Orientais toma seu lugar. A vitória de Plassey (1757) resulta no controle da
Companhia sobre Bengala. O estilo de colonização e de relações comerciais
mudará radicalmente a partir de então. No comércio, a Companhia acrescen-
ta como fonte de lucros a exploração fiscal dos territórios conquistados. Co-
meça então o "repatriamento" da prata e de outras riquezas acumuladas na
Índia. Na virada do século XVII1 para o século XIX, tem início o movimento
que transformará a Índia de fornecedor de produtos manufaturados e de luxo
em fornecedor de matérias-primas para a indústria britânica (algodão, juta) e
em comprador de produtos manufaturados da indústria inglesa, com canse·
qüente declínio da ruína do artesanato tradicional.
No caso da China, é ainda mais tarde, no início do século XIX, que se dá
a reviravolta: para pagar as compras de produtos chineses (sedas, chá), a prata
é progressivamente substituída pelo ópio importado para a China pela Com-
panhia das Índias. É aproximadamente por volta de 1820 que a balança se
desequilibra em desvantagem para a China. A "guerra do ópio" (1839-1842)
imporá à China a abertura de cinco portos, a entrega de Hong Kong e, sobre·
tudo, a importação de ópio que o governo chinês tentara proibir. Retomando
as palavras de Braudel: "Eis que a China paga em fumaça, e que fumaça!". 21

Que conseqüências para os povos?

No caso das Índias holandesas (a Indonésia), a história da administra·


ção colonial dos holandeses "descreve um quadro de assassinatos, de trai·
ções, de corrupção e de baixarias que jamais será igualado". 22 O autor desta
análise é o governador que os ingleses nomearam para lá quando da sua
ocupação, durante as guerras napoleônicas. Pilhagem, escravização, extor·
são, todos os meios servem para assegurar à Companhia Holandesa das Ín·
dias Orientais, que explora a Indonésia até finais do século XVIII, um lucro
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

recorde. O Estado, no século XIX, fará ainda melhor: a partir de 1830, o


governador Van den Bosch instaura o "sistema" que será designado pelo seu
nome - culturas forçadas, trabalhos forçados. Os camponeses devem for-
necer um quinto das suas melhores terras, um quinto do seu tempo de tra·
balho, para fornecer gratuitamente produtos de exportação. Culturas força·
das e trabalho forçado irão muitas vezes além dos limites oficiais: chegou-se
a exigir um terço, ou mesmo metade das terras, e, em tempo de trabalho, de
66 a 240 dias por ano.13 Paralelamente, o imposto fundiário dobra. Mais
tarde, o estabelecimento de plantações (tabaco, palmeiras etc.) conduzirá
ao recrutamento de mão-de-obra "contratual", na verdade trabalhadores
forçados tratados pior do que escravos.
Na Índia, os ingleses vão encontrar o apoio de certas camadas sociais -
particularmente comerciantes e banqueiros - que vão constituir-se em in·
termediários do comércio britânico. Em 1793, através de um simples regula·
mento, a administração da Companhia das Índias fez dos "zamindars", que no
Império Moghol eram os rendeiros do imposto, grandes proprietários rurais,
"landlords" à moda britânica, em territórios onde eram encarregados de rece·
ber o imposto, enquanto os camponeses ficavam reduzidos à condição de fa.
zendeiros precários.
Alguns monopólios do sal, do ópio, do bétele e de outros produtos foram
concedidos a altos empregados da companhia, que fizeram fortuna rápido.
Mas o pior estava por vir, com a destruição do artesanato: o equilíbrio
econômico da Índia baseava-se na associação da agricultura com o artesanato
(têxtil principalmente).
De 1814 a 1835, as importações de "indianas" para a Grã-Bretanha dimi·
nuem três quartos; em sentido inverso, as importações de artigos em algodão
da indústria britânica para a fndia são multiplicadas por 501
Os artesãos arruinados tiveram de se dedicar ao trabalho na terra, já so·
brecarregado, e um governador-geral das Índias foi capaz de dizer que as ossadas
dos tecelões tomavam mais brancas as planícies da Índia.
As. fomes periódicas tomaram-se uma característica da Índia: 18 surtos
de fome, de 1875 a 1900, fizeram 26 milhões de mortos. 21 Haveria outros no
século XX (o de Bengala, em 1943, fará 3 a 4 milhões de mortos).
No caso da China, a primeira guerra do ópio será seguida de outras inter·
venções militares européias destinadas a impor a lei das grandes potências
capitalistas, que atribuirão a si mesmas "concessões" portuárias. Desde 1842,
impõem à China o limite de 5% das taxas alfandegárias sobre as mercadorias
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 41

estrangeiras importadas. Veremos um deslocamento dos circuitos econômicos


tradicionais, a um agravamento da miséria que conduzirá a insurreições dos
camponeses, das quais a mais célebre foi a dos Tai-Pings (1851-1864).
Podemos resumir com Marx: "A descoberta das regiões do ouro e da prata
da América, a redução dos indígenas à escravidão, o seu aprisionamento nas
minas ou o seu extermínio, os começos de conquista e de pilhagem nas Índias
Orientais, a transformação da África numa espécie de reserva comercial para
a caça aos peles-negras, eis os processos idílicos de acumulação primitiva que
assinalam a era capitalista na sua aurora."25

A Europa do Leste e a "segunda servidão"

A criação de um estado de dependência e de exploração através do mer-


cado mundial da América, da Ásia e da África afetou igualmente o Oriente
Médio e a Europa Oriental. O Império Otomano é progressivamente penetra·
do pelo comércio ocidental e, a partir do século XVI, os franceses, seguidos
pelos ingleses, beneficiam-se para os seus entrepostos, as "escalas do Levan-
te", da extraterritorialidade.
Na Europa do Leste (gmsso modo, a leste do Elba), a aristocracia local,
para adquirir para si os produtos de luxo da Europa Ocidental (roupas, mobi-
liário, vinhos etc.), intensificou a exploração da classe camponesa, apoderan-
do-se da terra e generalizando a servidão.
É aquilo que os historiadores chamam a "segunda servidão", que se de-
senvolve na Europa do Leste (Rússia, Polônia, Prússia) no mesmo momento
em que a servidão desaparece da Europa Ocidental. Conhecerá o seu apo-
geu na Rússia, nos finais do século XVIII, sob o reinado de Catarina II, e
assumirá formas semelhantes à escravatura pura e simples. Tornará possível
este pequeno anúncio num jornal de São Petersburgo: "Vende-se um cabe-
leireiro e uma vaca de boa raça." Esta exploração reforçada do camponês
permite aos grandes proprietários fazer dinheiro exportando maciçamente
alimentos e matérias-primas para a Europa Ocidental: cereais, linho, ma-
deira etc. As cidades marítimas da Hansa (alemãs e bálticas), mais tarde os
holandeses, por fim os ingleses, serão os intermediários e os beneficiários
deste comércio.
42 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Capital mercantil e capital financeiro (usurário). Do


mercantilismo ao liberalismo
O sistema colonial dos séculos XVI-XVIII baseia-se no monopólio: mo-
nopólio real no início, nos casos de Espanha e Portugal, depois monopólio de
companhias privilegiadas, como as diversas companhias das Índias (holandesa,
inglesa, francesa).
A doutrina em matéria de comércio externo é o mercantilismo, pregado
por Colbert: considera-se o enriquecimento do rei (e do reino) ligado à aqui-
sição do máximo de recursos monetários; daí ser necessário importar o míni·
mo e exportar o máximo. Daí urna política alfandegária protecionista.
A concorrência entre nações comerciantes assumirá freqüentemente um
caráter violento: pirataria (guerra de "trajeto") e exações de todo o gênero.
Acabará por desembocar muitas vezes em guerras: nas guerras dos séculos
XVII e XVIII, além das rivalidades dinásticas, as motivações econômicas as-
sumem grande importância; assim é na guerra conduzida pela Holanda (as
"Províncias Unidas"), contra a Espanha, nas guerras anglo-holandesa e fran·
co-holandesa do século XVII, na guerra de sucessão de Espanha, na Guerra
dos Sete Anos, no conflito anglo-francês sob a Revolução e o Império.
O advento do capitalismo industrial faz-se acompanhar da promoção da
ideologia "liberal". O capitalismo industrial entra em conflito com as institui·
ções anteriores: crítica aos monopólios, aos regulamentos corporativos, ao
"exclusivismo" colonial (regra que vetava às colônias o comércio com nações
estrangeiras e a produção de artigos manufaturados cujo abastecimento devia
ser reservado à metrópole), crítica ao protecionismo, ao tráfico e à escravatura.
Todavia, essa ideologia liberal tem uma geometria variável: triunfa na ln·
glaterra do século XIX, com a abolição, em 1846, das leis protecionistas sobre
o trigo, que atendiam aos interesses dos "landlords" mas incomodavam os
industriais, aumentando o preço do pão e o nível dos salários. Mas, em con-
tradição com os princípios da "livre troca", a mesma Inglaterra impõe à Índia
uma política alfandegária discriminatória, penalizando as exportações india·
nas de artigos manufaturados e encorajando as importações de produtos in·
dustriais britânicos. Combate o tráfico com a sua esquadra de vigilância atlân·
tica, mas apóia os sulistas escravagistas, seus fornecedores de algodão, durante
a Guerra da Secessão ... Os Estados Unidos e a Alemanha realizarão a sua
industrialização ao abrigo de urna política protecionista, e o fim do século XIX
verá o triunfo, inclusive na Inglaterra, do protecionismo imperial.
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 43

Do século XVI ao século XVIII, o comércio colonial alimentou o capital


financeiro (usurário): com efeito, a banca nesta época não pratica os investi-
mentos produtivos, mas empresta aos Estados, aos soberanos, e quem paga
são os indivíduos, submetidos às obrigações fiscais, ou seja, em última análise,
sobretudo os camponeses.
Os centros financeiros são sucessivamente Gênova, que troca a prata do
rei de Espanha pelas moedas de ouro necessárias ao pagamento dos seus mer-
cenários, mas que acabará por ser vítima da bancarrota do Estado espanhol;
em seguida, o comércio dos produtos coloniais e centralizado em Antuérpia,
que é, até 1575, a primeira praça financeira da Europa; a insurreição dos ho-
landeses contra o rei de Espanha irá arruiná-la, fazendo passar para Amsterdã
o centro do grande comércio e das finanças; no século XVIII, esta função
passa para Londres.
No comércio colonial, os Estados monárquicos e, é claro, os Estados bur-
gueses, como os Países Baixos, estão ligados pelos seus interesses à burguesia
mercantil e financeira. A política colonial é conduzida com os instrumentos
do Estado.
Esta associação, por vezes conflituosa, manifesta-se também pelo desen-
volvimento da dívida pública e da fiscalização, que contribuem poderosamente
para a exploração e pauperização do camponês e constituem uma das alavan-
cas da acumulação primitiva.
Os soberanos, para obterem imediatamente o dinheiro de que necessitam
e evitarem encargos e demoras na cobrança dos impostos, transferem para
agentes financeiros a cobrança de certos impostos, segundo uma prática que
remonta à Antigüidade. O que farão na França os "fermíers généraux",* que
fornecem imediatamente ao rei o dinheiro de que este necessita e são remu-
nerados cobrando para si certas taxas, com uma margem de lucro que chega
por vezes a atingir os 100% e nunca é inferior a 30% (margem notoriamente
usurária). Por outro lado, os Estados fazem empréstimos, primeiro aos ban-
queiros, depois diretamente ao público.
Francisco 1 lança em 1522 o primeiro empréstimo público de Estado, pe-
dindo aos burgueses de Paris que lhe emprestem 200.000 libras, mediante
juros. São as primeiras "rendas da Câmara", garantidas pelos rendimentos
provenientes de alguns impostos municipais. ''A dívida pública opera como
um dos agentes mais enérgicos da acumulação primitiva." 26 Este método de

• Arrccadndores dos impostos régios, sob o Antigo Regime. (N. do T.)


44 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

pilhagem dos recursos do Estado em benefício dos ricos floresce atualmente


mais do que nunca (os empréstimos Pinay e Giscard servem como ilustração
contemporânea).
Sistema colonial, exações fiscais, dívida pública, pauperização e expropri·
ação dos camponeses preparam, de diversos modos, a instauração do capita·
!ismo industrial.
Todos esses meios não são, no entanto, suficientes de início para fornecer
a mão-de-obra de que o capitalismo industrial nascente precisa. Recorrer-se·
á, na Inglaterra, às crianças das "workhouses".
O Lancashire, para as suas fiações e tecelagens, tinha necessidade de "de·
dos pequenos e ágeis".
"Em breve nasceria o costume de procurar os chamados 'aprendizes' das
'workhouses', pertencentes às diversas paróquias de Londres, de Birmingham
e de outras localidades. Milhares destes pequenos condenados ao abandono,
de sete a quatorze anos, foram assim enviados para o Norte. O patrão (o
ladrão de crianças) encarregava-se de vestir, alimentar e alojar estes aprendi·
zes numa casa ad hoc situada na proximidade da fábrica. Durante o trabalho,
ficavam sob os olhos dos vigilantes. Era do interesse destes capatazes fazer
estas crianças esfalfarem-se além das suas forças, pois, de acordo a quantidade
de produtos que conseguissem extrair-lhes, o seu próprio pagamento aumen·
tava ou diminuía. Os maus-traros foram, claro, a conseqüência natural... Em
muitos distritos manufatureiros, principalmente Lancashire, estes seres ino·
centes, sem amigos nem apoio, entregues aos donos das fábricas, foram sub·
metidos às mais atrozes torturas. Esgotados pelo excesso de trabalho ... foram
chicoteados, acorrentados, atormentados com os mais elaborados refinamen-
tos. Muitas vezes, quando a fome apertava demais, o chicote mantinha-os no
trabalho. "27
Práticas que o "liberalismo" contemporâneo estendeu a dezenas de mi·
lhões de crianças, no Brasil, no Paquistão, na Tailândia e em outros lugares.
Assim veio ao mundo o capital triunfante, "suando sangue e lama por
todos os poros" .26

Jean Suret-Canale, ex-combatente voluntário da Resistência, resistente, militante clandestino


das juventudes comunistas de 1939 a 1944, ex-membro do comitê central do Partido Comu-
nista francês, é conferencista honorário na Universidade de Paris VII. Geógrafo e historiadm
é autor de uma dezena de obras sobre a África Negra e o Terceiro Mundo. '
AS ORIGENS DO CAPITALISMO 45

Notas:

!. Le Capiral : livro 1, volume III, Paris, Éditions Sociales, 1950, p. 153.


2. Ibidem, p. 153. Adolphe Thlers: De la propriété, Paris, 1848.
3. Dr. Alexis Carrel: t Homme, cet inconnu, Paris, Plon, 1935.
4. Karl Marx, L. C., p. 164.
5. Karl Mane, L. C., pp. 153-225.
6. Paris, Armand Colin, 3 volumes , 544, 600 e 608 p.
7. Cf. J.-Suret Canale: Braudel vu par Pierre Daix, La Pensée, n2 307, 32 trimestre 1996, pp.
160-161.
8. Karl Polanyi: Primitive, Arcluüc and Modem Economies (Ed. George Dalton), Boston, Beacon
Press, 1968.
9. Karl Marx, L. C., p. 175.
10. Ibidem, p. 177.
1!. Para uma visão de conjunto: Serge Daget: La traire eles Noirs, Éditions Ouest-France
Université, 1990, 300 p. Para pormenores: De la Traire à l'esclavage (Acies du colloque
intemational de Nantes, 1985), Paris, 1988, 2 volumes, XXXII-551e733 p.
12. R. P. Dieudonné Rinchon: La traite et l'esclavage des Congolais par les Européens, Paris,
Vanelsche, 1929, pp. 97-98.
13. Gaston Martin: Hisroire de l'esclavage dans les colonies françaises, Paris, P.U.F., 1949, pp.
124-125.
14. Le Code Noir... Paris , Prault, lmprimeur-libraire, 1767. Reprodução em fac-s(mile: Basse-
Terre, Société d'histoire de la Guadeloupe; Fort-de-France, Société d'hiscoire de la
Martiniq ue, 1980.
15. Rapport Garran-Coulon, Paris, lmprimerie nationale, ano V, volume!, p. 25.
16. Notes à M. le Baron Malouet, Minisrre de la Marine et eles Colonies ... Au Cap Henry, P. Roux,
imprimeur du Roi, octobre 1814, pp. 11-12.
17. V Abdul Sheriff: Slaves, Spices and lvory in Zanzibar. lntegration of an East African commercial
Empire into the World Economy (1170-1873), Ohio University Press, 1987, 320 p. et G.
Clarence-Smith (org.): The Economies of the lndian Ocean. Slave Trade in the Nineteenth
Century, London, F. Cass, 1989.
18. François Renault: "Problemes de recherche sur la traite transsaharienne et orientale en
Afrique" in De la Traite à l'esclavage, recuei! cicé, volume 1, pp. 37-53.
19. Gérard Prunier: La traite soudanaise (1820-1885); ibidem, volume 2, pp. 521-535.
20. F. Braudel, op. cit., tome 2, p. 169.
21. F. Braudel, ibidem, p. 191.
22. Thomas Stanford Raffles: The History ofJava and ics dependencies, Londres, 1818, citado
por Marx, L. C., p. 194.
23. Charles Robequain: Le monde malais, Paris, Payot, 1946, p. 351.
24. J. Chesneaux: tAsie orienta/e au X/Xe et XXe si~cles, Paris, P.U.F., 1966, p. 189. O consu-
mo médio de arroz por habitante e por dia teria diminuído para cerca de metade entre
1866 e 1936-1942, passando de 800 gramas a 400-480 gramas. Greenough: Prosperity and
Misery in Modem Bengal, Nova York, Oxford University Press, 1982, pp. 19-80.
25. Karl Marx, L. C., p. 193.
26. Karl Marx, L. C., p. 196.
27. John Fielden, Tlie Curse of the Fatory System, Londres, 1836. Citado por Karl Marx, L. C.,
p. 200.
28. Karl Marx, L. C., p. 202.

ECONOMIA SERVIL E CAPITALISMO:
UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL
PHILIPPE PARAIRE
Na sua 118ª Carta Persa, Montesquieu observa, em 1721, que as costas da
África "devem estar furiosamente desguarnecidas; há duzentos anos que os
pequenos reis ou os chefes das aldeias vendem os seus súditos aos príncipes da
Europa para os levarem para suas colônias na América". Numa obra posterior,
O espírito das leis (1748), ele ironiza a preguiça dos povos da Europa, que,
"tendo exterminado os da América, tiveram que escravizar os da África, ser·
vindo-se deles para desbravar tantas terras". Na mesma obra (XV, 5), chama
a atenção para a dimensão econômica do problema: "O açúcar seria muito
caro se não fizéssemos trabalhar a planta que o produz através de escravos."
Onze anos mais tarde, Voltaire explica em Cândido (cap. XIX), pela boca de
um escravo mutilado: "É a este preço que vocês comem açúcar na Europa" ...
Está tudo dito, em poucas palavras: a riqueza da Europa conquistadora,
berço do capitalismo, foi construída sobre a exploração e o extermínio dos
ameríndios, cuja população caiu, em três séculos, de 40 para 20 milhões de
pessoas (em certos casos com uma extinção total, como nas Bahamas e nas
Grandes Antilhas, assim como na costa Leste da América do Norte), e sobre
a dos povos costeiros da África Ocidental, que perderam 20 milhões de pesso-
as (dez milhões de mortos e dez milhões de deportados) em três séculos de
tráfico, ou seja, de 1510 a 1850, aproximadamente. As receitas da economia
servil, que representavam para as grandes potências européias mais de meta-
de dos lucros de exportação em 1800, custaram a vida de mais de trinta mi-
lhões de seres humanos.
As Américas tinham quarenta milhões de homens no momento da inva-
são européia: mais de cinco milhões na América do Norte (Canadá e Estados
Unidos), o resto, em partes iguais, na América Central (principalmente no
México) e na América do Sul, nas regiões andinas, nas florestas equatoriais e
nos pampas austrais.
Ficamos estupefatos com os recenseamentos mais recentes: os Estados
Unidos têm menos de 2 milhões de índios! Se a demografia natural tivesse
podido atuar (por exemplo, como na Europa durante os três últimos séculos),
os ameríndios dos Estados Unidos deveriam ser pelo menos uns trinta mi-
lhões. O que se passou no Peru e na Colômbia, no Chile ou na Argentina,
onde os índios, como no México, são apenas a maioria, quando na verdade
50 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

deveriam constituir, se não tivesse havido um genocídio, 90% da população


geral? E isto independentemente das mestiçagens e outras "assimilações" que
alguns crêem poder utilizar para confundir os números.
O caso dos ameríndios resume-se, pois, a uma sinistra contabilidade: pelo
menos vinte milhões de pessoas foram sacrificadas ao deus lucro de forma
direta, pelo massacre, pela miséria, pelas deportações e espoliações. Faltam os
detalhes. O quadro geral é, todavia, terrivelmente edificante: insubmissos,
obstinados, diabolicamente alérgicos ao trabalho forçado que os colonos lhes
impunham, os ameríndios, declarados estrangeiros na sua própria terra, foram
atirados para o nada pelos imigrantes europeus. Para sua infelicidade, a África
foi, por sua vez, sacrificada no altar da "missão civilizadora" do capitalismo
europeu para "desbravar tanras terras".

O desmoronamento da África

Nem Montesquieu nem Voltaire tinham capacidade para tentar, mas esta
contagem macabra nós agora podemos fazer e transportá-Ia para o passivo de
um sistema econômico fundado na transformação em capital da mais-valia
extorquida a trabalhadores forçados, os escravos. Duzentos e cinqüenta anos
depois dos humanistas do Século das Luzes, temos tudo o que é preciso para
avaliar a barbárie do capitalismo nascente: os livros de bordo dos armadores,
as prestações de comas dos capitães, os diários dos viajantes, os relatórios de
serviço das polícias de segurança marítima, os planos e o número dos navios,
os extratos da contabilidade dos negreiros enriquecidos, os livros dos libertos,
as liquidações de heranças, o valor das moedas, os balanços contabilizados do
comércio triangular, os relatórios dos médicos de bordo, os prêmios pagos aos
caçadores de escravos fugitivos, os relatórios de linchamentos, as minutas dos
processos e as descrições das execuções.
Nenhum historiador sério contesta esta contagem. Nenhum investigador,
nos nossos dias, procura minimizar a extensão da catástrofe que foi para Áfri·
ca o seu encontro com o capitalismo balbuciante das metrópoles da Europa
que só conseguiu atingir a maturidade graças aos extraordinários lucros gera•
dos pela invasão de um continente - a América - e proporcionados por
populações arrancadas a um ourro, a África.
Em números redondos, dez milhões de deportados africanos atingiram o
Novo Mundo entre 1510 e 1860. Mais de dois milhões pereceram durante a
ECONOMIA SERVIL ECAPITALJSMO: UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL 51

travessia. Oito milhões desapareceram entre o local da sua captura na África


e os entrepostos costeiros, onde os sobreviventes destes ataques foram embar-
cados. Chegamos, pois, a um mínimo de vinte milhões de pessoas retiradas da
população africana.
Na época forte do tráfico, de 1650 a 1850, a deportação atinge 100.000
africanos por ano. Antes, de 150() a 1650, o ritmo era menos acelerado: de
15.000 a 40.000 pessoas embarcadas por ano; mas o período mais terrível para
a África coincide com a expansão da cultura algodoeira nos Estados Unidos,
entre 1800 e 1850; o número eleva-se a 120.000 pessoas deslocadas anual-
mente.
É evidente que não se pode ferir assim um continente sem conseqüências
dramáticas: antes de mais nada, no plano estatístico do estrito capítulo de
"perdas e ganhos" demográfico, é preciso assinalar o declínio regular do peso
da África na população mundial: em 1600, ela representava 30% do conjunto
dos seres humanos. O número cai para 20% em 1800. A queda prossegue até
1900, data na qual só 10% da humanidade vive na África. A costa Oeste, do
Senegal a Angola, é evidentemente a mais afetada. As florestas costeiras e as
savanas são literalmente raspadas pelos reizinhos africanos que, com os seus
exércitos, capturam e conduzem os prisioneiros para as zonas de troca. Nestes
setores, a população masculina declina: entre a Mauritânia e o Senegal, 20%
da população total foi deportada em três séculos e o déficit demográfico nas
costas da Guiné, do golfo de Benim, de Camarões e de Angola é tal que, na
maioria das regiões do Sahel e até às florestas do Congo, atingem-se
desequilíbrios terríveis: cerca de 50 homens para 100 mulheres em Benim, 70
homens para 100 mulheres em Biafra, menos de 50 homens para 100 mulhe-
res no Congo, no Shaba, em Angola. Mais ao norte, entre a África Central e
o Mali, na Costa do Marfim e até na Gâmbia, existem cerca de 6 homens para
10 mulheres. O declínio contínuo da população da África Ocidental ao longo
deste período explica-se por uma retirada anual (em três séculos) de três ha-
bitantes em mil, em média. Isto pode parecer inconseqüente, mas é preciso
que se saiba que isso perfaz 3% em dez anos e 30% em cem anos! Tendo em
conta as variações regionais e as flutuações no tempo, os especialistas estão de
acordo com um mínimo de 15% da população deportada entre 1700 e 1850.
De fato, durante o mesmo período, não é possível determinar nenhuma
progressão da população geral da África (enquanto, na mesma época, a Euro-
pa exporta o seu excedente para o Novo Mundo e dispõe-se a povoar o mun-
do inteiro).
52 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

O impacto econômico é de uma violência inaudita: reinos que cunhavam


moeda são atirados para o estado tribal, federações de tribos deslocam-se em
comunidades errantes, impérios constituídos são pulverizados, as cidades são
abandonadas, os campos deixados ao abandono por falta de agricultores. A
insegurança geral bloqueia o comércio, as trocas intracontinentais retomam
ao plano regional. Urna longa estagnação econômica acompanha a queda
demográfica.
Uma economia de banditismo e de razia faz regredir o gosto pelo trabalho.
Toma-se mais fácil enriquecer, ou simplesmente sobreviver, raptando o filho
do vizinho do que cultivando o seu campo. Paralelamente, as conseqüências
ideológicas e políticas agravam a estagnação do continente: os reis negreiros
impõem pela violência ditaduras pessoais contrárias à democracia aldeã tradi-
cional. A discussão dá lugar à submissão, o pagamento de um tributo em cati-
vos substitui a diplomacia. No centro desta decadência coletiva, a situação
das mulheres (transformadas em excedente pela deportação dos homens) de-
teriora-se notavelmente: assiste-se à constituição de gigantescos haréns, for-
mados por mulheres compradas, por viúvas e jovens vendidas, que já não
podem casar e inúteis. Com cativos demasiado para serem comprados pelos
europeus e velhos em excesso, alimenta-se uma abundante reserva destinada
aos sacrifícios humanos, cuja prática conhece um sinistro crescimento acele-
rado na África a partir do século XVII.
Lentamente, o continente mergulha numa barbárie que nunca tinha co-
nhecido: o tráfico dos escravos durante a Idade Média africana nunca tinha
passado de um fato excepcional ou mesmo marginal. O islã, no Sahel, não
tinha conseguido impor a poligamia. Os sacrifícios humanos eram raros e li-
mitados a ocasiões estritamente definidas.
Na mesma época, o "mercado africano" conhece uma verdadeira inver-
são estrutural: antes da chegada dos europeus, a África Negra vivia em torno
do que era chamado o "mar saariano": o deserto central, percorrido por cara-
vanas como navios de porto em porto, servia de pólo econômico - troca
entre a costa Oeste e o Sudão oriental, comércio com as civilizações islâmicas
do Magreb. Em contrapartida, o oceano, bordejado por florestas espessas, ser-
via de limite, não oferecendo qualquer interesse econômico real.
Ora, subitamente, a construção dos entrepostos pelas potências européias
revirou a economia africana como uma meia, para o exterior. Em menos de
um século, os povos prósperos das savanas arborizadas tomaram-se um arma-
zém de escravos e os reinos belicosos das florestas costeiras tomaram o con-
ECONOMIA SERVIL ECAPITALISMO: UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL 53

trole, criando verdadeiros impérios "de economia negreira", cuja única ativi-
dade era a penetração nas zonas pacíficas, as razias, as capturas, o enca-
minhamento e a venda dos prisioneiros.
A relativa prosperidade, devida ao crescimento econômico da África Oci-
dental (sensível desde o século XII), não conseguiu sobreviver a tais choques.
Em 1800, o continente inteiro tinha regredido um milênio.

A contribuição da economia seroil para a "acumulação primitiva"

Parece inconcebível que vinte milhões de homens, mulheres e crianças


tenham sido arrancados de seu lar e sua terra para responder a um problema
de produtividade: tendo em conta os riscos do comércio transatlântico, era
preciso reduzir a massa salarial a zero para se obter um lucro satisfatório. Des-
te modo, o cálculo do custo da produção do café, do cacau, do açúcar e do
algodão só podia ser favorável anulando os salários, a fim de extorquir uma
mais-valia máxima; o trabalhador escravo, cujo custo total se limitava ao seu
preço de venda e à alimentação estritamente necessária, constituía assim uma
espécie de mina viva: produzindo entre cinco e dez vezes mais a mais-valia de
um assalariado da Europa, o escravo conrribuía para o enriquecimento dos
colonos brancos, dos negreiros e dos comerciantes da metrópole.
Em finais do século XVII, a população servil nos Estados Unidos numeri-
camente igual à dos imigrantes brancos, produzia 80% do produto nacional
bruto da colônia americana. Vemos, assim, que ela conrribuiu para a riqueza
coletiva (pois não retirava dela qualquer benefício) de uma maneira tão es-
magadora que quando atingiu, por volta de 1800, dois terços da população
geral, os brancos americanos tinham praticamente abandonado as funções
produtivas para se limitarem às tarefas bem remuneradas do comércio com a
Europa. Só no final do século é que os imigrantes brancos europeus, em ondas
sucessivas, suplantavam a população originária da África e asseguraram pela
primeira vez uma parte significativa e mais tarde majoritária da produção in-
terna bruta (sem, todavia, participar majoritariamente na partilha do rendi-
mento interno bruto, devido à exploração salarial de que eram vítimas os
recém-chegados alemães, poloneses, russos, italianos e irlandeses).
Os negreiros, simples fidalgos e aventureiros sem escrúpulos no início do
século XVI, não foram capazes de transportar mais do que uma dezena de
milhares de cativos por ano, destinada à colônia britânica do Norte, às Anti-
54 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

lhas francesas e espanholas e ao Brasil, ocupado pelos portugueses. Permane-


cendo marginal até 1650, este comércio de rapina, sem dúvida lucrativo, não
constituía ainda uma fonte de rendimentos significativa. Fáceis de comprar, a
um preço de venda bastante baixo (entre 5 e 10 libras de 1650 por um homem
com boa saúde entre 15 e 30 anos de idade), os escravos morriam depressa e
eram também rapidamente substituídos; um ano de expectativa de vida no
Brasil e nas Antilhas, cerca de dois anos na Luisiana francesa. Cinco libras
representavam, em 1650, um quarto do rendimento mensal de um artesão
americano da costa Leste. Por exemplo, um século mais tarde, o mesmo escra·
vo trocava-se por uma espingarda usada e quatro barris de pólvora. Não era
coisa com que se fizesse fortuna ...
Para que a escravatura se tomasse o pilar principal do capitalismo euro·
peu nascente, e não simplesmente oportunidade para rendimentos subsidiári·
os para as economias feudais saídas da Idade Média, era necessária a conjun·
ção de vários elementos:

1. A construção ex nihi1o de um mercado fundado sobre uma procura de


produtos considerados raros e vendidos caro apesar de um baixo custo
de produção.
2. O estabelecimento de uma verdadeira circulação monetária em tomo
do comércio negreiro transatlântico e, para isso, a racionalização do
transporte.
3. A regulação conjunta do preço dos escravos e do custo da sua manu·
tenção.
4. O estabelecimento de preços convencionados para os produtos do tra·
balho servil, a organização do envio para a Europa da maior parte dos
lucros do investimento. Sem entravar o investimento, no plano local
das economias coloniais, do mírúmo necessário, a fim de evitar acu·
mulação improdutiva.

Estes elementos necessários a uma extorsão máxima da mais-valia produ·


zida pelos trabalhadores escravos do Novo Mundo só foram reunidos por vol·
ta de 1800. O boom econômico que se seguiu foi tal que podemos dizer, sem
hesitar, que o capitalismo europeu não teria conhecido o seu crescimento no
século XIX sem a contribuição decisiva da mão-de-obra escrava do Novo
Mundo.
Surgida no reinado de Luís XlY, a moda do "café da manhã à francesa"
ECONOMIA SERVIL ECAPITALISMO: UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL 55

(café com leite ou cacau com açúcar de cana) tomou-se um fenômeno uni-
versal em toda a Europa a partir de 1750. Abandonaram-se subitamente as
tisanas adoçadas com mel, trocando-as pelo novo café da manhã, e isto inclu-
sive nas camadas mais baixas da população, até mesmo no campo.
A procura era tal que o Novo Mundo decuplicou a sua importação de
escravos e converteu-se às novas culturas destinadas a abastecer a Europa de
bebidas exóticas da moda: as Antilhas francesas abandonaram, por exemplo,
a cultura das especiarias e lançaram-se, por volta de 1700, à produção
açucareira, enquanto o Brasil se convertia ao café e por todo o lado se tentava
aclimatar o cacau, e mesmo o tabaco, este também transformado em moda na
corte da França. Criado este primeiro mercado, um outro o sucedeu quando,
pouco depois de 1800, um engenheiro americano descobriu um meio de cardar,
fiar e tecer o algodão. De repente, todo o Sul dos Estados Unidos se voltou
para esta cultura. A procura de escravos conheceu um aumento vertiginoso
em todas as zonas de produção: Cuba importou, entre 1800 e 1850, mais de
700.000 escravos suplementares, ligados à cultura da cana. O Sul dos Estados
Unidos mandou vir mais de 150.000 escravos por ano entre 1810 e 1830 para
o cotton belt. Longe do amadorismo inicial, nascia agora uma verdadeira "eco-
nomia capitalista servil".
A revenda da produção de café e de açúcar vinda da América repre-
sentava 50% das receitas de exportação da França em 1750.
No que se refere à circulação monetária e à transformação em capital das
mais-valias produzidas pela racionalização do transporte dos escravos, nume-
rosos indícios marcam o caráter absolutamente extraordinário dos lucros ge-
rados pelo trabalho escravo: o boom das cidades portuárias que se dedicavam
a este tráfico, o florescimento paralelo das companhias bancárias que viviam
deste comércio, a especialização de certos armadores, são um sinal claro da
capitalização na Europa dos lucros da exploração dos africanos deportados
para o Novo Mundo. Tomou-se comum dizer que Bordeaux, Nantes ou até
Lisboa devem os seus mais belos bairros, os seus mais belos monumentos, aos
capitais repatriados. Mas que dizer de Liverpool ou de Amsterdã, ou ainda de
Copenhague e Estocolmo?
Pois, se é verdade que só a Inglaterra transportou metade dos deportados
(ela interrompeu o tráfego em 1812) e os portugueses um quarto, pequenos
países como a Holanda e a Suécia devem seu crescimento econômico ao maná
negreiro (o rendimento per capita dos lucros do tráfico foi dez vezes mais ele-
vado nos países nórdicos do que na França, por exemplo). Os holandeses
56 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

tinham feito do transporte dos cativos, tal como os dinamarqueses e os sue-


cos, uma especialidade rentável: a adaptação de guarda-ventos, a lavagem
dos porões, o banho sistemático dos prisioneiros, melhores rações alimentares
e navios mais rápidos fizeram baixar a mortalidade para menos de 10% dos
cativos transportados, enquanto na mesma época, nos navios sórdidos dos
aventureiros franceses, portugueses e ingleses, ela podia atingir 50%, estabe-
lecendo-se geralmente em tomo de 30% de mortes.
A questão de saber se é de fato ao capitalismo nascente que se deve atri·
buir os dez milhões de mortes do tráfico transatlântico coloca-se tanto menos
que este comércio teve desde a origem a dimensão de um mercado bastante
organizado, estruturado por entidades regionais e mesmo internacionais, que
tentavam responder o melhor possível à demanda dos plantadores e dos im·
portadores europeus de bens exóticos.
Nunca houve uma "Bolsa dos Escravos", mas houve um conjunto de prá-
ticas comerciais absolutamente padronizadas, que podemos conhecer hoje em
dia através de numerosos documentos contabilizáveis. Comprados na África
por um sistema de troca pré-capitalista (um escravo por vinte litros de aguar·
dente em 1770, ou duas peças de tecido, ou dois chapéus e um colar de con·
chas), portanto pouco racional e aleatório, os cativos tinham um preço fixo ao
chegar à América, segundo a sua idade, o seu sexo, a sua saúde e de acordo
com as necessidades locais. A transformação dos lucros em investimentos, a
transferência das mais-valias para a Europa ou para as grandes cidades coloniais,
as subvenções do Estado aos armadores negreiros (Richelieu em 1635), as
taxas inglesas (desde 1661), a regulamentação das punições infligidas aos es·
cravos a fim de evitar taxas de mortalidade incompatíveis com a rentabilida·
de (Colbert em 1685), tudo isto indica que, desde o século XVII, a economia
escravagista do Novo Mundo constituía um pilar tão importante para a acu-
mulação primitiva capitalista quanto o movimento dos enclosures ou a funda·
ção dos bancos lombardos alguns séculos antes.
O rei da Espanha deu sinal verde aos barcos negreiros através de um de-
creto de 12 de janeiro de 1510. Os primeiros cativos africanos foram desem•
barcados em Hispaniola um ano mais tarde, em 1511. Ao fim de um século de
bricolage, ao longo do qual os elementos do capitalismo servil foram organiza·
dos, algumas cotas oficiais relativas aos produtos exóticos importados pela
Europa começaram a refletir o estado dos "mercados"; tendo mais de cem
entrepostos comerciais nas costas africanas chegado a um acordo sobre o pre·
ço núnimo da "madeira de ébano", como era designado o negro, o fator "aqui·
ECONOMIA SERVIL ECAPITALISMO: UM BALANÇO QUANTIFICÁVEL 57

sição" limitava-se à questão das despesas de transporte. Os cerca de quinze


portos entre o rio da Prata e a bafa de Nova York asseguravam o essencial da
recepção dos cativos; tendo eles também chegado a acordo, o preço médio de
venda de um escravo adulto em bom estado flutuava (em libra constante) de
cinco a vinte unidades de conta de 1800, ou seja, entre uma e duas vezes o
preço de um animal de tração, boi ou cavalo. Faltava regular o preço dos bens.
Tendo em conta os serviços prestados pelo escravo, foi, durante três sécu-
los, um excelente negócio para a rentabilidade dos investimentos nas Améri·
cas. Por um lado, a importância dos lucros do trabalho servil pôde medir-se na
relação particular de produtividade que a caracteriza: a massa salarial tenden·
do a zero, a relação entre a produção (seja ela qual for) e esta massa dá um
valor infinito, imagem matemática do máximo possível de extorsão da mais·
valia produzida. Por outro lado, a situação de monopólio associado a um mer·
cado cativo assegurou os lucros que permitiram à Europa fundar um sólido
capitalismo pré-industrial, que lhe permitiu passar para um estágio superior
ao longo do século XIX, o da conquista do Mundo. Após ter imposto "o café
da manhã à parisiense", a economia servil (constituída pelo sistema bancos/
armadores da Europa/reis negreiros de África/transportadores/agricultores e
exportadores da América/importadores da Europa) fez do algodão outra moda.
Constituída a necessidade (após ter conseguido tirar da moda o mel, as tisanas,
o linho e a seda), ela respondeu inicialmente de maneira simplesmente mer·
cantil, com taxas e barreiras protecionistas, depois de forma mais capitalista
no sentido moderno, por franquias, alianças, sociedades por ações e pela con-
corrência. Ao fim de um século, o equih'brio dos preços, atingido pela regu·
lação oferta/procura, levou ao desenvolvimento do capitalismo europeu.
Relembramos o custo humano extravagante desta expansão: 7 a 8 mi·
!hões de africanos mortos durante as razias ou durante o percurso para os
entrepostos negreiros da África. Dois milhões de mortos durante a travessia.
Outros dois milhões mortos de esgotamento ao longo do primeiro ano nas
plantações. Um número impossível de precisar de mortes devidas a maus·
tratos, a suicídios, a revoltas, repressões, linchamentos e massacres puros e
simples.
Para a África, tudo isto provocou uma regressão histórica e cultural sem
paralelo, bastando um colapso demográfico para fazer estagnar a população
africana, criando ódios definitivos, a desestruturação econômica, a anulação
do crescimento e um atraso que a invasão colonial só virá agravar mais.
Apesar dos historiadores tendenciosos que atribuem ao feudalismo africa·
58 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

no a iniciativa do tráfico ou acusam os reis árabes de o terem perpetuado,


apesar dos bajuladores do liberalismo que se recusam a contabilizar os lucros
da econonúa servil e a associá-los ao salvamento e depois ao crescimento das
economias européias, é preciso dizê-lo e não ter medo de repetir: um conjun·
to de fatos incontestáveis mostra que o capitalismo nascente não sangrou
somente os povos da Europa (este cálculo pode ser feito por outra via). Ele
baseou sua expansão sobre um ossário humano corno a História, apesar de já
sangrenta, jamais tinha visto: vime núlhões de ameríndios exterminados em
três séculos e doze milhões de africanos mortos de empreitada no mesmo pe·
nodo. Dois continentes inteiros sacrificados para estabelecer um sistema cri·
minoso sem moral e sem outra lei além da lei do lucro. Mais de trinta milhões
de seres humanos assassinados pelo capitalismo, de maneira direta e indíscu·
tível.

Philippt Parairt ~ autor de l...t.S Noin Amiricains, généalogie d'une exclusion, col. "Pluriel
intervention", Hachette, 1993.

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1871: TRAIÇÃO DE CLASSE E SEMANA
SANGRENTA
CLAUDE WILLARD
\
Ponto de partida: a falha das turmas dirigentes políticas e militares. Em 19
de julho de 1870, o Segundo Império, "de ânimo leve", declara guerra à Prússia,
ânimo de tal maneira leve que, segundo o ministro da Guerra, não falta ao
exército "nem um botão de polaina". Seis semanas mais tarde, Napoleão III
capitula lamentavamente em Sedan e, a 4 de setembro, a República é procla-
mada. O novo governo, dito de "Defesa Nacional", na verdade de "defecção
nacional", é composto por republicanos moderados "extremamente austeros
na questão da ordem e da propriedade". 1 Presidindo este governo e também
governador militar de Paris, o general Trochu, "particípio passado do verbo
trop choir",* como ironiza Victor Hugo.
Cercada pelos prussianos desde 19 de dezembro, Paris, apesar dos extre·
mos rigores do cerco, "tinha decidido lutar a todo o custo" (Lissagaray) . A
Paris popular armada (inclusive de canhões, comprados por subscrição popu-
lar) organiza-se.
Desde então, ressurge, com mais força do que nunca, o medo das "classes
perigosas". Em 19 de setembro de 1870, Francisque Sarcey-jornalista bas-
tante reacionário - observa com cinismo e lucidez: "A burguesia via-se, não
sem uma certa melancolia, entre os prussianos, que a deixavam com o pé na
garganta, e aqueles a quem ela chamava os vermelhos e que só conseguia ver
armados de punhais. Não sei qual destes lhe metia mais medo: odiava mais o
estrangeiro, mas temia mais os habitantes de Belleville"...
Neste mesmo 19 de setembro, Jules Favre reencontra Bismarck em Ferrieres
para saber das condições para um armísticio... Ora, confidencia Trochu ao seu
amigo, o escritor conservador Ma.xime du Camp: "A Guarda Nacior.al não
consentirá na paz a não ser que perca 10.000 homens."2 Que não seja por isso:
o ataque de Buzenval, em 19 de janeiro de 1871, salda-se pela morte de 4.000
soldados e oficiais.
Este medo e esta fobia conjugados resultam na traição. A escolha entre
prussianos e habitantes de Belleville é rápida. Gustave Flaubert escreve a
Georges Sand a 30 de abril de 1871: "'Ah! Graças a Deus, os prussianos

•JoNo Jc palavna fonético emro o nom• do gencnl e• forma verbo! chu, que significa "caCdo, tombado".
A lnvcnçãu vcrbol do V. Hugo, "trop chuir", significam assim "cair demoi>" (N. Jo T.)
62 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

estão aí!', é o grito universal dos burgueses." Palavras confirmadas por


Francisque Sarcey: "Não poderás imaginar a forma como foi pronunciado
este iá ... Parecia dizer, este iá mais profundo que uma caneca de cerveja
alemã: 'Sim, pobre francês, estamos cá, não tenhas mais medo... Nasceste
num país livre, iá, em terra amiga, iá, sob a proteção das baionetas da Bavária,
iá, iá'. Não pude deixar de repetir para mim este iá tentando captar a
entonação."3 O armistício, assinado em 28 de janeiro, entrega à Prússia a
Alsácia e uma parte da Lorena.
Em 3 de janeiro de 1871, l..e Figaro dá o toque de rendição: "Exército do
bem contra exército do mal... ordem contra anarquia, o combate não será
nem longo nem difícil! Parecerá mais com uma batida do que com uma bata·
lha ... Uma cruzada da civilização contra a barbárie." Em 18 de março, Thiers
decide mandar o exército, ao romper do dia, apoderar-se dos canhões da Guar-
da Nacional. Esta mecha provocadora faz explodir o barril de pólvora. O co-
mitê central da Guarda Nacional proclama, em 21 de março: "Os proletários
da capital, no meio das falhas e das traições das classes governantes, compre·
enderam que tinha chegado a sua hora de salvarem a situação, tornando nas
suas mãos a direção dos negócios públicos. A burguesia, sua irmã mais velha,
que concluiu a sua emancipação há mais de três quartos de século, que os
precedeu na via da revolução, não compreenderá hoje que a vez da emanei·
pação do proletariado chegou?"4
Pela forma como nasceu, pela sua breve existência (72 dias), e sobretudo
pela sua obra fecunda, a Comuna, primeira revolução operária mundial, co·
mete um crime de lesa-majestade, de lesa-capitalismo e de lesa-ordem moral:
um governo do povo, pelo povo e para o povo, com membros eleitos por
mandato imperativo e revogáveis, uma verdadeira mobilização cidadã, as pre·
missas da autogestão (posta em marcha pelos operários associados das oficinas
abandonadas pelos seus patrões), os primeiros passos para a emancipação fe·
minina, o papel dos estrangeiros (um imigrado judeu húngaro, Léo Frankel,
ministro do Trabalho) ...
Durante a Semana Sangrenta (21 a 28 de maio 1871), o exército dos
"Versalheses" diverte-se. Este exército e, sobretudo, os seus oficiais superiores
tinham se exercitado bem durante a conquista da Argélia (os massacres da
gruta de Dahra em 1845), no México ("os bianca" de Gallifet) e contra os
grevistas (27 mortos em Aubin e em La Ricamarie) . Durante muito tempo à
frente deste exército, o general Vinoy define-se como "um homem que sem·
previu a ordem como o primeiro dever de qualquer sociedade" .4 Este exército
1871: TRAIÇÃO DE CLASSE E SEMANA SANGRENTA 63

é engrossado por Bismark, que liberta os prisioneiros de guerra. Interna-


cionalismo de classe.
À medida do ódio e do medo, Paris transformou-se em matadouro. Entre
os múltiplos testemunhos, o de Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha:
"Esta repressão implacável... terminou em terríveis cenas de estrangulamento
que fizeram de Paris um depósito de caça humana. Matava-se por matar...
Uma verdadeira guerra de extermínio com todos os seus horrores, é preciso
que se diga, pois esta é a verdade; e os que a ordenaram gabam-se dela e se
elogiam: pensavam estar cumprindo um dever sagrado; todos aqueles que
pertencessem à Comuna ou que com ela simpatizassem deviam ser fuzilados."
As execuções sumárias são incalculáveis: as casernas, as prisões (1.900
fuzilamentos em La Roquette, em 28 de maio), os jardins e parques públicos
Oardim do Luxemburgo, Pare Monceau, Jardin des Plantes), os cemitérios
(Pêre-Lachaise, Montpamasse) são outros tantos depósitos monuários; os
calabouços das fortalezas, atulhados de cadáveres, servem de fornos de cre-
mação. Cúmulo da crueldade: os communards são enterrados vivos, especial-
mente no Parque Saint-Jacques. Segundo o jornal britânico Evening Standard,
"é incerto que algum dia se possa saber os números exatos da carnificina que
se prolonga. Mesmo para os autores destas execuções, deve ser completamen-
te impossível dizer quantos cadáveres fizeram." Entre 20.000 e 30.000.
Estas atrocidades suscitam aplausos entusiasmados. Le Gaulois de 31 de
maio: "Alienados desta espécie em tão elevado número e entendendo-se uns
com os outros constituem para a sociedade a que pertencem um perigo tão
terrível que não há outra pena possível senão uma supressão radical." Alguns
dias mais tarde, Le Figaro se excede: "Resta ao Sr. Thiers uma tarefa importan-
te: a de purgar Paris... Jamais outra ocasião se apresentará para curar Paris de
uma gangrena moral que a corrói há vinte anos ... Hoje, a clemência seria
demência ... O que é um republicano? Uma besta feroz ... Vamos, minha gente!
Uma ajudinha para acabar com a podridão democrática e social." Alexandre
Dumas filho, autor da Dama das camélias, desce de nível ao escrever: "Não
diremos nada sobre as suas fêmeas por respeito a todas as mulheres com as
quais elas se assemelham quando mortas."
O medo de epidemias interrompe o massacre. Um autor de peças de suces-
so, Émile de Girardin, pede que os enterros sejam feitos nos arredores: "Aí, nada
a temer das emanações cadavéricas, um sangue impuro ensopará, fecundando-
ª• a cova do trabalhador." O Terror Branco-"a carniça fria", diz Louise Michel
- se segue ao banho de sangue. São conduzidos 43.522 prisioneiros para as

lê7Ji TRAI E CU.SSE E SEMANA SANGRENTA 65

Clmuk Wdlard hislorl~clor. prnks.or cmh!to d~ Un vmídade de l':lrú VllJ e prcaíder.~ da


Associação clm Ami~ d Comuna.

Notas:

1. J. P. Azéma er M. Winock, La Communord.I, Seul!, 1970, p. 22.


2. Maxime du Camp, La ccnwl.11cns ~ Pan.1, Had1tue, 1987, t. 1, p. 11. ÚQ<Ío de up{ríro
corroborado pelo inqu~ríro parlamentar sobre in.turrciçk de 18 de março, t. I, p. 339 e
t. Ili, p. IJ.
3. No jornal intitulado - ironia da história - Lt Draptau rncolcre, 2 de maio de 1871.
4. Comunicação de Jean-Claude Freiermuth, em Mamnen éJt r0<du a pobces, C r6iphls, 1987,
pp. 41 -51.
5. Uonce Duponr, Souvenin de Vmailki pendan1 La CorTl1lUDl<!, 188 l.
6. N ada r, 1871. Enquêtesur la Commun<, Põiri.s, 1897.
7. Jean Allcmane, Mbnoire.s d'un Communard. O.,, barricada au , l':lri.s.. 1910.
. l

·i'
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E
13.000 FERIDOS POR DIA AO LONGO DE
TRÊS ANOS E MEIO
JEAN-PIERRE FLÉCHARD
"É o tango dos militares prazenteiros
Dos alegres triunfadores de aqui e d'além
É o tango dos célebres para a guerra
É o tango de todos os coveiros"
Boris Vian

''Aquela que eu desejaria fazer, meu coronel,


É a guerra de 14-18"
Georges Brassens

''Armemo-nos e parri"
Anônimo

Há duas comunas francesas que se distinguem: uma é a única que não


erigiu na sua praça principal qualquer monumento aos mortos da Guerra de
1914-1918, pois todos os seus 15 mobilizados regressaram vivos da frente; a
outra, Gentioux, na região de Creuse, possui um monumento aos mortos que
nunca foi inaugurado oficialmente; na verdade, ele representa um aluno que
aponta com o dedo a inscrição "Maldita seja a guerra!". Todas as outras possu-
em um monumento aos mortos, o que revela melhor do que a aridez dos
números a amplitude do massacre. A placa dedicada aos mortos da guerra de
1914-1918 no átrio da Câmara de Bezons tem a inscrição "guerra à guerra,
ódio ao ódio". Nenhuma comuna francesa, com uma única exceção, escapou
à gigantesca carnificina, que, de 7,8 milhões de mobilizados durante mais de
quatro anos, ou seja, 30% da população francesa ativa, deixou nos campos de
batalha 1,4 milhões de mortos e mandou para casa mais de um milhão de
inválidos.
70 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

A influência do lobby militar e industrial,


o cartel internacional da pólvora

A partir de 1904, os antagonismos revelam-se, as paixões nacionais exacer-


bam-se, as crises multiplicam-se e agravam-se, seja a propósito do Marrocos,
seja a propósito dos Bálcãs, até 1914, quando o atentado de Sarajevo desen-
cadeia a catástrofe temida, a guerra européia.
A situação geral e o equihôrio de forças alteraram-se na Europa, não ape·
nas pela aliança franco-inglesa, mas também pelas derrotas que a Rússia, nes·
sa mesma altura, sofria no Extremo Oriente. Guilherme II e o seu chanceler
Bülow procuraram tirar proveito do enfraquecimento da Rússia para quebrar
a Entente cordial.

A questão do Marrocos provoca um violento conflito


franco-alemão (1905-1906)

Apesar do crescimento contínuo da força alemã, Guilherme II, tal como


Bismarck, estava obcecado pelo medo do cerco. O acordo da França com a
Inglaterra, reforçado por uma aliança com a Rússia, por acordos com a Itália e
a Espanha, pareceu ameaçar os projetos de expansão alemã. Pressionado pe·
los seus conselheiros, Bülow e Holstein, empreende uma grande ofensiva di·
plomática, visando simultaneamente a França e a Rússia.
Sobre a França, a Alemanha exerceu uma ação brutal, de face belicista,
opondo como um veto à sua política marroquina o discurso do kaiser em Tânger
e mais tarde a demissão de Delcassé, que tiveram sobre a opinião pública
francesa o efeito de um novo Fachada,• de uma humilhação nacional. Por
outro lado, Guilherme ll prodigalizava palavras de amizade ao czar, enfraque•
cido pela derrota e pela revolução; conduziu-se assim no encontro de Bjõrkoe,
onde foi assinado um pacto secreto de aliança germano-russa, prelúdio de
uma grande coligação continental encabeçada pela Alemanha.

•fachoda- Localidade sudanesa, nas margens do Nilo, onde houve um Incidente enrre a Inglaterra e
a França. Em setembro de 1898, urna coluna francesa, comandada pelo capitão Marchand, encontrou•
1e com uma força anglo-egípcia, comandada por Kitchener. Após urna primeira recusa em evacuar
Fachada, os franceses tiveram de render-oe por ordem do ministro dos Negócios Estrangeiros, Théophile
Delcassé. Em 21 de março de 1899, um acordo colonial viria a conceder a totalidade da bacia do Nilo•
Orl-Bretanha. (N. cio T.)
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 71

Esta política não produziu os resultados esperados. O pacto de Bjõrkoe,


incompatível com a aliança francesa, permaneceu letra morta. A Conferência
de Algeciras (1906), convocada a pedido da Alemanha para regularizar a ques-
tão marroquina, rejeitou a maior parte das propostas alemãs, confiou à França e
à Espanha o policiamento dos portos marroquinos. A Entence cordial, longe de
ser rompida, toma-se mais efetiva; mais ainda, alarga-se para uma uma Tripla
entente, * depois de a Inglaterra e a Rússia terem, pelo acordo de 1907, resolvido
todos os seus litígios asiáticos. Na Alemanha, aumenta a obsessão do cerco. A
atmosfera européia toma-se tempestuosa. Uma segunda conferência de paz em
Haia (1907) não consegue impedir a corrida aos armamentos, navais e terrestres.

O antagonismo austro-russo agrava-se nos Bálcãs (1908-1909)

As questões políticas ou nacionais que se colocavam nos Bálcãs ou na


Europa Central eram ainda mais graves do que os litígios coloniais, porque
punham em jogo a existência do Império Turco, a existência da própria Áus-
tria-Hungria e, por conseqüência, as bases do equilíbrio europeu.
Destas questões, as mais graves eram a da Macedônia, província que per-
maneceu turca mas com uma população mista e que era cobiçada pela Bulgária,
pela Grécia e pela Sérvia; a questão da Sérvia, província turca governada
pelos austríacos mas povoada por sérvios, e onde começava a propagar-se o
nacionalismo sérvio; a questão dos estreitos - Bósforo e Dardanelos -que a
Rússia, fechada no mar Negro, pretendia abrir à sua frota de guerra. Após
suas falhas no Extremo Oriente, a política russa, sob o comando do ministro
lsvolsky, regressava aos seus objetivos tradicionais nos Bálcãs.
Ora, em 1908, irrompeu uma crise balcânica, provocada pela revolução
turca: o Partido Nacional Jovem turco tomou o poder e obrigou Abd-ul-Hamid
a aceitar uma Constituição (o sultão, tendo procurado retomar o poder, foi
deposto no ano seguinte). Para acabar com a agitação iugoslava, a Áustria,
dirigida por um ministro audacioso, d'Aerenthal, decretou a anexação da
Bósnia-Herzegovina. A Bulgária também aproveitou a crise para proclamar a
sua independência. Quanto a Isvolsky, apesar de todos os seus esforços, não
conseguiu obter das potências a abertura dos estreitos.

•Tripie Ent"11W - Allanço concluído em 1907 entre a Rú'5io, a Fronça e a Grã-Bretanha, contra a
Alemanha e a Áustria-Hungria. (N. do T.)
72 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

A anexação da Bósnia-violação do estatuco estabelecido em Berlim em


1878 - teve como conseqüência uma crise européia. A guerra acabaria por
eclodir entre a Áustria e a Sérvia, cujas aspirações nacionais tinham em mira
as províncias anexadas. A Rússia, descontente com o seus fracassos, apóia os
sérvios, até o dia em que a intervenção ameaçadora da Alemanha a obriga a
ceder, tal como a Sérvia, e a reconhecer o fato consumado (1909). Nada
parecia poder resistir à força alemã.

Para se fixar no Marrocos, a França tem de ceder uma parte


do Congo (1911)
Em Marrocos, depois de novos incidentes (com alemães desertores da Legião
Estrangeira), a Alemanha tinha concluído com a França um acordo econômico
(1909). Mas este acordo funcionou mal. Quando, para levantar o bloqueio ao
sultão e aos europeus sitiados por rebeldes, as tropas francesas deram entrada em
Fez (1911), a Alemanha declarou que o estatuto de Algeciras fora violado e, para
obter compensações, enviou um navio de guerra a Agadir (costa sul de Marrocos).
Desta vez, deparou com fone resistência. A Inglaterra vetou toda e qual·
quer fixação da Alemanha no Marrocos. Mas o governo francês (Caillaux)
era partidário de uma solução pacífica: as negociações franco-alemãs, embora
cercada por rumores de uma guerra, conduziram a um acordo - em troca da
liberdade de ação no Marrocos, a França cedia à Alemanha uma parte do
Congo francês (1911).
Em vez de provocar o apaziguamento, este acordo não fez senão exacer·
bar as paixões e o antagonismo franco-alemão. A Alemanha, para intimidar
os seus adversários, aumentou o seu armamento. Na França, depois de tantos
alertas, já não se queria tolerar intimações: o ministro Poincaré, partidário de
uma política de firmeza, voltou a estreitar, através de novos acordos, os laços
da França com a Rússia e a Inglaterra (1912).

Do Marrocos a crise estende-se à Trtpolitânia e em seguida


aos Bálcãs (1911-1913)

De 1911a1914, as crises sucedem-se e a Europa, como que apanhada


numa engrenagem fatal, encaminha-se cegamente para a catástrofe.
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 73

O estabelecimento da França e da Espanha no Marrocos teve como reper-


cussão imediata o estabelecimento da Itália na Tripolitânia (1911). Mas a
expedição de Trípoli provocou uma guerra ítalo-turca (1911-1912), durante a
qual os italianos ocuparam as ilhas de Rodes e do Dodecaneso.
Por sua vez, a guerra ítalo-turca deu origem a uma guerra nos Bálcãs.
Uma coligação balcânica - a Sérvia, a Bulgária, a Grécia e Montenegro -
tinha sido formada sob a égide da Rússia. A Turquia, enfraquecida, foi ata-
cada pela coligação e vencida por todos os lados; os búlgaros só foram deti·
dos a 30 quilômetros de Constantinopla, à vista das linhas de Tchataldja
(1912).
A derrocada da Turquia reacendeu, por fim, todas as rivalidades euro-
péias e balcânicas. A Áustria, senhora da Bósnia, não queria de forma algu-
ma uma Grande Sérvia, pela qual os seus súditos sérvios seriam forçosamen-
te atraídos. Para afastar a Sérvia do Adriático, criou um principado da
Albânia. Por outro lado, a partilha da Macedônia deu lugar a uma segunda
guerra balcânica (1913): os búlgaros, com um ataque inesperado, tentaram
esmagar os sérvios; fracassaram e foram eles próprios vencidos por uma co-
ligação servo-greco-romena. O Tratado de Bucareste deu Silistria aos ro-
menos, Salônica aos gregos, Monastir, juntamente com uma grande parte
da Macedônia, aos sérvios. Na Europa os turcos só conservavam Cons-
tantinopla e Andrinopla.
Esta pacificação não era duradoura. Entre a política austríaca e as reivin-
dicações nacionais sérvias não era possível qualquer acordo. As relações da
Rússia com a Áustria e a Alemanha continuavam a se agravar. Todas as po-
tências, inquietas, reforçavam os seus armamentos (leis militares de 1913 na
Alemanha e na França). Tinha-se chegado àquele ponto em que cada um dos
grupos rivais, confiando nas suas forças, estava resolvido a não recuar mais
frente ao outro.

Depois do atentado de Sarajevo, a guerra austro-sérvia conduz


à intervenção nissa e à gtterra generalizada

Em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, na Bósnia, o arquiduque herdei-


ro da Áustria e sua mulher foram assassinados. O assassino era um bósnio,
mas o atentado tinha sido preparado em Belgrado. (Soube-se mais tarde
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

que à frente da conspiração se encontrava um oficial do Estado-Maior sérvio,


o coronel Dimitrievitch, chefe de uma poderosa associação secreta, a Mão
Negra.)
Há muito impaciente por atacar a Sérvia, a Áustria tinha sido até então
contida pela Alemanha. Desta vez, consegue o seu apoio. Em conversações
secretas, em Postdam (S-6 de julho), num conselho em Viena (7 de julho), o
risco de uma guerra européia foi pesado e aceito. Guilherme II, é verdade,
julgava a guerra pouco provável (o czar não apoiará os regicidas) e contava
com a neutralidade da Inglaterra, com a qual estava em vias de concluir um
acordo colonial.
Subitamente, em 23 de julho, a Áustria apresentou à Sérvia um ultimato,
cujas exigências eram propositadamente inaceitáveis. Apesar de uma respos-
ta muito conciliadora (e de um apelo à arbitragem), aconteceu a ruptura austro·
sérvia em 25 de julho e a declaração de guerra à Sérvia no dia 28.
Mas a limitação do conflito, exigida pela Alemanha, já se mostrava im·
possível. A Rússia, decidida a não deixar esmagar a Sérvia, iniciava os seus
preparativos militares. Em vão o governo inglês, muito pacífico, multiplicava
as ofertas de mediação. A Alemanha rejeitou-as inicialmente, e não aderiu
senão quando a neutralidade inglesa começou a parecer duvidosa (29-30 de
julho) . Demasiado tarde. A intransigência austríaca fazia o jogo dos estados--
maiores, impacientes por agir. A Rússia decidiu, em 29 de julho, a mobilização
parcial e, em 30 de julho, a mobilização geral. A Alemanha retrucava em 31
de julho com um duplo ultimato, à Rússia e à França, seguido, em 1ºde agos·
to, por uma declaração de guerra à França.
Mal se instalou o conflito, a Tríplice Aliança• desuniu-se, ao mesmo tem·
po em que a Tripie Emente se afirmava. A Itália invocou o caráter puramente
defensivo da Tríplice para permanecer neutra. O governo inglês, muito divi·
dido e hesitante, inicialmente só se comprometeu a defender as costas france-
sas da Mancha (2 de agosto). A violação da neutralidade belga pelas tropas
alemãs o levou a romper com a Alemanha (4 de agosto) e a comprometer-se
profundamente: "Só por causa de um pedaço de papel!", exclamou o chanceler
alemão Bethmann-Hollweg (alusão aos tratados que garantiam a neutralida·
de belga).
Paralelamente às grandes manobras político-militares, a grande indústria

•Pacto defensivo entre a Alcm:mho, a Áustria e a Itália contra uma agressão da França ou do R6s.1io
(1882). (N. do T.)
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 75

européia não deixou de se organizar para fazer jogar sobre os governos e os


povos o peso da sua expansão. Aí, o nacionalismo e o patriotismo já não inte-
ressam, o que conta é apenas a caixa registadora. Uma verdadeira interna-
cional é assim organizada, estendendo as suas ramificações a todos os futuros
países beligerantes.
Dois exemplos serão suficientes:

A organização internacional de fabricantes de pólvora, de explosivos e de


munições:

- Trust Nobel (Grã-Bretanha)


filiais Inglaterra 7
Alemanha 5
Japão 1

- Rhein-Siegener (Alemanha)
3 fábricas
- Fábrica de pólvora Kõln Hottweiler (Alemanha)
- Diversas fábricas alemãs de armas e de munições
- Société Française de la Dynamite (França)
- Société Générale pour la Fabrication de la Dynamite (França)
- Société Franco-Russe de Dynamite (França).

A indústria siderúrgica:

United Harvey Steel Company (sociedade siderúrgica multinacional)

Vickers & Armstrong (Grã-Bretanha)


Krupp & Stumm (Alemanha)
Schneider-Le Creusot (França)
Societa degli Alti Forni Fondieri Acciane di Temi (Itália) .

Participação por intermédio da Krupp e Schneider em cooperação:


Skoda & Pilsen (Áustria)
Poutiloff (Rússia) (part. complementar da Voss) .
76 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Acordos comerciais de limitação da concorrência:


Le Creusot - Krupp
Armstrong - Krupp

É evidente que elas mantêm relações com os fabricantes de armas, em


particular:

Deutsche Waffen-und-Muniti ns Fabriken em Berlim (fábricas alemãs de


armas e munições)
Waffenfabrik (fábrica de armamento)
Oficinas de Doellingen
Filiais
l) Alemanha
Mauser: l.985.0CX) M
Dürcn (metalurgia): l.OCX).OCX) M
2) Bélb'Íca
Fabrique Nationale d'Armes de Guerre d'Herstal (Fábrica Nacional de
Armas de Guerra de Her .al): 3.000 000 ações
3) França
Société Française pour la Fabrication de Roulements à Billes (Socie·
dade Francesa para o Fabrico de Rolamentos de Esferas): totalidade do
capital.

Situação financeira dos dois principais países beligerantes em 1914

ALEMANHA FRANÇA

População 67 rnJlhõc~ 39,6 milhões

Fortuna nacional 400 bilhões 325 bilhões

Rendimcncos nacionais 52, 5 bilhões 36,5 bilhões

Fortuna nacional média 5.970 F 8.207 F

Rendimento nacional médio per capi1a 783F 946 F


A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 77

Produção (em núlhões de toneladas) em 1914

Hulha Aço Ferro fundido

Alemanha 191 18 12

Áustria· Hungria 15 5 4

França 41 4 9

Rússia 35 4 5

Grã-Bretanha 292 9 11

Graças a estas duas organizações internacionais, que não são mais do que
o exemplo mais evidente, imitadas como foram pelos fornecedores das inten-
dências, pelos construtores de veículos, pelos fabricantes de vestuário etc., a
guerra viria a revelar-se um negócio excelente para a grande indústria inter-
nacional, que irá servir-se da sua influência para que ela dure o máximo de
tempo possível, atiçando as paixões nacionalistas graças a uma imprensa fi-
nanciada por elas, abertamente ou de forma disfarçada.

A grande carnificina

A guerra européia assumiu as proporções de uma imensa catástrofe. Es-


tendeu-se ao mundo inteiro, mas foi na França que ela atingiu o seu máximo
de intensidade e provocou mais devastação, e foi também na França que a
força alemã foi finalmente obrigada a capitular.
A coligação dos impérios centrais (reforçada em outubro de 1914 com a
Turquia) parecia muito inferior à coligação que englobava a França, os impé-
rios russo e britânico, a Bélgica, a Sérvia (e até o Japão) . Mas a Inglaterra
tinha somente um pequeno exército; o exército russo, muito numeroso, esta-
va mediocremente organizado; tudo dependia da resistência que a França iria
oferecer à Alemanha, fortemente armada.
78 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

A Alemanha tenta abater a França e parece prestes a triunfar

O plano da Alemanha era lançar-se sobre a França com quase todas as


suas forças, colocá-la rapidamente fora de combate, e, em seguida, virar-se
contra a Rússia. Sem dúvida que não dispunha, como em 1870, de grande
superioridade numérica, mas contava com a superioridade da sua preparação
técnica, das suas unidades de reserva, da sua artilharia pesada de campanha,
da sua artilharia de cerco (canhões de 420), enfim com o efeito surpresa que
deveria provocar a sua manobra arravés da Bélgica. O exército francês pos-
suía material superior de artilharia ligeira, o 75; mas tinha uma falta quase
total de artilharia pesada; os seus soldados de infantaria de calças vermelhas
constituíam um bom alvo; tinham sido preparados para uma tática temerária
de ataque violento à baioneta.
A primeira grande batalha, dita "batalha das fronteiras", teve lugar de 20
a 23 de agosto. Os dois adversários tinham passado à ofensiva. O estado-
maior alemão, comandado por De Moltke, pretendia contornar as fortifica-
ções de Leste e invadir a ala esquerda do exército francês; para isso, forçou a
praça-forte de Liêge e usou cinco dos sete exércitos na Bélgica. O estado-
maior francês, comandado por Joffre, queria neutralizar a manobra inimiga
com um ataque fulminante na Lorena e nas Ardenas. Mas a ofensiva france·
sa, que se aventurara por terrenos difíceis, foi destruída em Morhange, Lorena
(20 de agosto), e Ardenas (22 de agosto). A ala esquerda franco-inglesa, ata·
cada em Charleroi e em Mons e ameaçada de cerco, conseguiu escapar e
bater em retirada (23 de agosto).
A vitória alemã teve como conseqtiência a perda da Bélgica e a invasão
da França. Os alemães, dominados pelo medo dos franco-atiradores, toma·
ram medidas de repressão terríveis (saque de Lovaina e de Dinant).

O plano alemão falha no Mame, depois no Yser

Contudo, o objetivo visado, o aniquilamento das forças francesas, não


tinha sido atingido. Através de um avanço rápido, os alemães esforçaram-se
por cercar as alas do adversário ou por o encurralar na fronteira suíça. Mas na
Lorena, a partir de 29 de agosto, foram malsucedidos; os outros exércitos fran·
ceses recuaram organizadamente até ao dia em que o avanço temerário da
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 79

direita alemã (von Kluck) proporcionou ao governador de Paris, Gallieni,


ocasião para um ataque de flanco (5 de setembro).
Ao apelo de Joffre, todos os exércitos franceses e ingleses retomaram en-
tão a ofensiva (6 de setembro). Depois de vários dias de luta, os alemães,
ameaçados de verem a sua ala direita partida e cortada em duas, bateram em
retirada até Aisne, onde se entrincheiraram. A vitória do Mame teve como
efeito não apenas o recuo forçado dos alemães, mas também o ruir do seu
plano inicial; teve ainda um grande alcance moral e devolveu à França a
confiança em si mesma.
Procurando ganhar vantagem a oeste, os dois adversários acabaram por
estender as suas linhas até ao mar. Depois da tomada de Anvers (9 de outu-
bro), os alemães tentaram de novo desferir um golpe decisivo, apoderando-se
de Calais; mas todos os seus ataques foram repelidos diante de Ypres e de Yser
pelas forças aliadas, colocadas sob o comando de Foch (outubro-novembro) .
Assim, ao contrário das previsões, a campanha de 1914 terminou a oeste sem
resultados decisivos.
Acontecia o mesmo em todas as frentes. A leste, os russos, que tinham
invadido a Prússia Oriental para aliviar a França, sofreram um desastre em
Tannenberg (29 de agosto), mas derrotaram os austríacos em Lemberg, na
Galícia (setembro). Combates sangrentos, mas sem resultados, tiveram lugar
na Polônia, em redor de Varsóvia (novembro-dezembro). No mar, os alemães
não se atreveram a arriscar grandes batalhas navais; limitaram-se a atacar
navios mercantes, depois à guerra submarina. Finalmente, se não consegui-
ram impedir os aliados de conquistar as suas colônias, a aliança turca permi-
tiu-lhes instalarem-se nos estreitos e ameaçar o Egito.

Aguerra de movimento se segue a guerra de trincheiras


Igualmente esgotados, os exércitos imobilizaram-se frente a frente, em
trincheiras improvisadas que formaram uma linha contínua - 780 quilôme-
tros do mar do Norte à fronteira suíça. Assim, a guerra transformou-se numa
guerra de trincheiras.
De um lado e do outro, trabalhou-se para reforçar sem cessar a orga-
nização defensiva - linhas de arame farpado, abrigos subterrâneos ou de
concreto, sucessão de linhas em profundidade, linhas de tiro de barragem,
flanqueamento de metralhadoras. Voltaram a usar armas para combate de
80 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

proximidade, granadas e lança-bombas, as armas defensivas abandonadas


desde a Idade Média, os capacetes de aço. Mas, de um lado e de outro,
trabalhou-se também no aperfeiçoamento dos meios ofensivos para atraves-
sar as linhas adversárias: a artilharia pesada, especialmente, e a aviação se
desenvolveram numa proporção colossal. Houve um esforço para descobrir
de novo armas capazes de produzir um efeito de surpresa fulminante: os
alemães utilizaram em 1915 líquidos incendiários e gases asfixiantes, os fran-
ceses e os ingleses construíram, a partir de 1916, carros de assalto ou tan·
ques, montados sobre lagartas de aço. Para fabricar este imenso material
bélico, foi preciso multiplicar as indústrias de guerra: a guerra assumiu cada
vez mais um caráter cientifico e industrial.
Por conseguinte, toma-se também uma guerra econômica. A Inglaterra,
senhora dos mares, bloqueou os panos alemães e dificultou o abastecimento
(sobretudo de alimentos). A Alemanha respondeu, iniciando o bloqueio com
submarinos (torpedeamento do grande paquete inglês Lusitania, em 17 de
maio de 1915, mais de 1.100 vítimas).

A guerra continua em 1915 e 1916 sem resultados decisivos

De ano para ano, a guerra prolongou-se, espalhou-se, intensificou-se,


sem chegar a resultados mais decisivos do que em 1914. Os aliados tinham a
superioridade populacional, mas, por falta de preparação, de método e so·
bretudo por falta de uma direção única, não souberam tirar proveito disso
logo de início (a Inglaterra só estabeleceu o serviço militar obrigatório em
1916).
O ano de 1915 foi marcado pela entrada na guerra da Itália contra a
Áustria, da Bulgária contra a Sérvia e os aliados. Foi principalmente o ano das
derrotas orientais: enquanto os anglo-franceses fracassavam nas suas tentati·
vas para forçar os Dardanelos por mar e por terra, os austro-alemães consegui·
ram romper a frente russa da Galfcia, fazer recuar os exércitos russos, ocupar
toda a Polônia, a Lituânia e Courlande; em seguida, reforçados pelos búlgaros,
esmagaram o exército sérvio e conquistaram a Sérvia (outubro-dezembro);
uma expedição aliada de socorro desembarcou tarde demais em Salonica, mas
permaneceu af, apesar da oposição do rei Constantino, e reuniu o que restava
do exército sérvio. Na frente ocidental, as múltiplas ofensivas francesas
(Vauquois, les Eparges, batalhas de Champagne e d'Anois) tiveram como
A GRANDE GUERRA: li.SOO MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 81

único resultado dizimar os efetivos (400.000 homens mortos ou feitos prisio-


neiros) . O exército italiano imobilizou-se nas linhas de Trisonzo, a caminho
de Trieste.
O ano de 1916 foi marcado pela entrada na guerra de Portugal e da
Romênia, ao lado dos aliados. Foi sobretudo o ano de Verdun, a maior
batalha da guerra por sua duração e violência. Retomando o seu plano de
1914, os alemães (Falkenhayn) quiseram dar um golpe decisivo no seu
principal adversário, o exército francês. Atacaram em frente a Verdun (21
de fevereiro), mas os seus esforços impetuosos, que se prolongaram duran-
te cinco meses, foram anulados pela resistência obstinada dos franceses,
comandados pelo general Pétain. A supremacia militar pareceu prestes a
passar para os aliados, que, por sua vez, tomaram a ofensiva no Somme e
na Galícia. A Alemanha, em desespero, volta a entregar o comando su-
premo aos vencedores dos russos, Hindenburg e o seu adjunto Ludendorff.
Estes conseguiram bloquar a ofensiva aliada e conquistar quase toda a
Romênia.
No mar, as frotas inglesa e alemã defrontaram-se na grande batalha da
Jutelândia, sem resultados decisivos (31 de maio de 1916).

Em 1917, a guerra submarina e a revolução russa põem em


perigo a causa dos Aliados

Apesar das suas conquistas, a Alemanha encontrava-se esgotada pelo blo-


queio. Para impor a paz aos aliados, recorreu a meios desesperados, como a
guerra submarina, sem piedade uaneiro de 1917). Esta nova guerra submari-
na, privando os países neutros do direito de livre navegação, teve um efeito
quase imediato: a entrada em guerra dos Estados Unidos contra a Alemanha,
em resposta ao apelo do presidente Wilson (6 de abril de 1917). Mas os Esta-
dos Unidos tinham apenas um pequeno exército e a sua intervenção na Euro-
pa parecia difícil, senão impossível.
Por outro lado, a Alemanha acreditou que estava salva pela Revolução
russa. A má condução da guerra tinha acabado por desacreditar o czarismo.
Subitamente, eclodiu a Revolução, em 11 de março de 1917, e Nicolau II foi
obrigado a abdicar (15 de março). Em breve, a Revolução russa assumia o
caráter de uma revolução social: apoiados nos Sovietes, comissões de delega-
dos de operários e soldados, os bolcheviques, Lenin e Trotski, tomaram o po-
82 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

der e lá se mantiveram (7 de novembro) . Toda a Europa Oriental mergulhou


na anarquia. Depois de terem proposto, em vão, um armistício geral, os
bolcheviques concluíram com a Alemanha o armistício de Brest-Litovsk (de-
zembro) e entabularam negociações de paz. A Alemanha parecia ter ganho a
partida a Leste.
A Oeste, o exército alemão, que no início se mantivera prudentemen·
te na defensiva, tinha sido conduzido de novo por Hindenburg para posi·
ções fortes, contra as quais veio despedaçar-se uma nova ofensiva france·
sa, mais temerária ainda do que as precedentes (batalha de Aisne, 16 de
abril). Com as tropas que volcaram de Leste, os austro-alemães puderam
romper a frente italiana em Caporetto (outubro) e invadir a Venécia até o
Piave.
Manifestavam-se sinais de cansaço em todos os beligerantes (manobras
secretas, motins, derrotismo). Mas, na França, a chegada ao poder de
Clemenceau reanimou as energias e pôs fim a qualquer política de compro·
misso. O novo chefe do exército, Pétain, soube inspirar confiança e evitar
massacres inúteis.

Em 1918, a grande batalha da França termina com a


derrota da Alemanha

Em março de 1918, a Alemanha impôs os tratados de Brest-Litovsk à


Rússia e de Bucareste à Romênia. Em seguida, pela terceira vez, resolveu con·
centrar todas as suas forças vivas a Oeste e desferir sobre os aliados um golpe
decisivo antes da entrada em cena dos americanos.
A ofensiva alemã, que teve in(cío em 21 de março, durou até 18 de julho.
Dirigida por Ludendorff, consegue grandes sucessos táticos, mas não uma vi·
tória decisiva. Graças a um novo método-segredo absoluto dos preparativos,
1 preparação de artilharia intensiva e breve, emprego maciço de obuses tóxicos
-, Ludendorff tinha resolvido o problema de como abrir passagem. Por três
vezes, em Picardia (2lde março), Randres (9 de abril), Aisne (27 de maio),
romperam as frentes inglesa e francesa. Os alemães aproximavam-se de Amiens,
de Calais, de Paris, que bombardearam, sem tréguas, com aviões e canhões de
grande alcance (120 km).
A situação era crltica para os aliados. Por fim, decidiram a confiar o co·
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 83

mando único ao general francês Foch (26 de março). Os Estados Unidos ace-
leraram o envio de tropas (cerca de 10.000 homens por dia em junho). Pétain
pôs a funcionar novos métodos ofensivos e defensivos (ataque sem prepara-
ção de artilharia, utilização maciça de carros de assalto ligeiros e de aviões).
Depois de junho, uma quarta ofensiva alemã sobre Compiegne foi pronta-
mente barrada.
A reviravolta na batalha operou-se entre 15 e 18 de julho: é a segunda
vitória do Mame, incidente decisivo da guerra. Completamente travados
na sua ofensiva em Champagne, depois subitamente atacados de flanco, os
alemães, tal como em 1914, foram forçados se retirar de La Mame sur l'Aisne.
A vitória do Mame marcou o início de uma grande ofensiva aliada. Foch
não deixou ao inimigo, desnorteado, tempo de se refazer e reconstituir as
suas forças. Através de um alargamento sistemático da batalha, multiplicou
os seus ataques sobre todos os pontos da frente. Os alemães foram incessan-
temente forçados a recuar, sob a ameaça de cerco. Sucessivamente, todas as
suas posições defensivas, incluindo a formidável linha Hindenburg, foram
forçadas (setembro-outubro). Os aliados regressaram a Saint-Quentin, a
Laon, a Lille.
Na mesma época, na Macedônia (15 de setembro) e na Palestina (18
de setembro), vitórias decisivas obrigavam a Bulgária (29 de setembro) e a
Turquia' (30 de outubro) a depor as armas. A Áustria-Hungria desunia-se
e, vencida pelos italianos em Vittorio-Veneto (27-30 de outubro), aban-
donava a luta (3 de novembro). Para evitar um desastre total, a Alema-
nha, em plena revolução, aceitou todas as condições impostas pelo
armistício de 11 de novembro; desde o dia 9, Guilherme II fugira para a
Holanda.
Isto não é senão a parte visível das operações; o desejo de conquista, a
sede de lucro, os objetivos de guerra secretos e as manobras de bastidores
foram a tônica. Mas, sob os grandes impulsos patrióticos, esconde-se uma
realidade mais sórdida, a da defesa encarniçada de interesses particulares.
Um exemplo apenas, entre outros, permite ilustrar a sórdida realidade: o
destino da bacia de Briey-Thionville.
84 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Um santuário do capital internacional: a bacia de Briey-Thionville


Os negociantes de canhões, os mais importantes dos quais eram Schnei·
der, na França, e Krupp, na Alemanha, estavam estreitamente unidos numa
espécie de consórcio internacional, cujo objetivo secreto era fazer crescer a
imensa fortuna dos seus membros, aumentando a produção de guerra, de
um lado e do outro da fronteira. Para esse efeito, dispunham de meios podera·
sos para espalhar o pânico entre a população dos dois países, a fim de per·
suadir cada um de que o outro só tinha um propósito: atacá-lo. Muitos
jornalistas e parlamentares eram generosamente pagos por eles para de-
sempenharem esse papel. Aliás, um importante negociante de armas fran·
cês, de Wendel, além de deputado, era primo de um outro negociante ale·
mão, von Wendel, membro do Reichstag. Um e outro estavam muito bem
colocados, em cada país, para comprarem as consciências e fazerem ouvir os
seus gritos de alarme patrióticos.
Toda esta linda gente - comerciantes de canhões, jornalistas, parla·
mentares - consegue facilmente lançar os dois povos numa corrida louca às
armas que nada mais iria deter, até a guerra.
Os respectivos chefes de Estado, longe de os impedir, encorajavam-nos. E
especialmente o nosso presidente da República, Raymond Poincaré, natural
da Lorena, criado na idéia de vingança e disposto a qualquer mentira, a qual·
quer perversidade, para reconquistar a Alsácia e a Lorena.
Era por estes vários motivos que os soldados alemães e franceses iam se
matar.
Tinham-lhes ensinado a odiarem-se, enquanto os negociantes e os esta·
dos-maiores, fraternalmente unidos, acompanhavam satisfeitos, na retaguar•
da, o desenrolar do drama que tinham desencadeado em conjunto.
Para conhecer mais a fundo esta velhacaria e mostrar que o patriotismo e
a defesa do território não passam de palavras ocas que servem para ocultar as
tramas mais abomináveis, convém contar a história da bacia de Briey, pois ela
é característica, sintomática e, por si só, devia dissuadir os povos de pegarem
em armas.
As minas de ferro de Briey-Thionville estavam encravadas nas fronteiras
de Luxemburgo, França e Alemanha. A farru1ia franco-alemã de Wendel era a
proprietária.
Esta bacia era de uma importância capital para o desenrolar da guerra. M.
Engerand, num discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, depois do
A GRANDE GUERRA: 1J.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 85

conflito, em 31 de janeiro de 1919, dirá: "Em 1914, só a região de Brieyrep:e-


sentava 90% de toda a nossa produção de minério de ferro."
O próprio Poincaré tinha escrito antes: ''.A ocupação da bacia de Briey
pelos alemães seria no mínimo um desastre, pois iria colocar nas mãos deles
incomparáveis riquezas metalúrgicas e mineiras, cuja utilidade pode ser imen-
sa para o oponente que as detiver."
Ora, aconteceu um fato extraordinário: depois de 6 de agosto de 1914, a
bacia foi ocupada pelos alemães, sem qualquer resistência.
Mais extraordinário ainda: o general da divisão encarregada da defesa
desta região, o general Verraux, revelou depois que as instruções que tinha
(dentro de um envelope para abrir em caso de mobilização) determinavam
formalmente que abandonasse Briey sem combate.
A verdade, conhecida muito tempo depois, era a seguinte: tinha havido
um entendimento entre alguns membros do Estado-Maior e os negociantes
de armas franceses para deixarem a bacia nas mãos dos alemães para que a
guerra se prolongasse (os alemães não teriam podido prosseguir sem o minério
de ferro) e os lucros dos negociantes de canhões aumentassem.
E viva a legítima defesa em nome da qual nos matamos ferozmente um
pouco por todo o lado nos campos de batalha!
Mas esta história - como é edificante! - não terminou.
Durante todo o conflito, não houve uma única ofensiva francesa contra
Briey! No entanto, não por falta de advertências.
Com efeito, em plena guerra, o diretor das minas enviava a seguinte nota
ao senador Bérenger: "Se a região de Thionville (Briey) fosse ocupada pelas
nossas tropas, a Alemanha ficaria reduzida aos poucos milhões de toneladas
de minérios pobres que retira da Prússia e de diversos outros Estados. Todas as
suas fábricas seriam obrigadas a parar. Parece, pois, poder afirmar-se que a
ocupação da região de Thionville poria imediatamente fim à guerra, porque
privaria a Alemanha da quase totalidade do metal necessário para os seus
armamentos."
O Estado-Maior francês e o presidente da República foram abundante-
mente advertidos disso. Dossiês completos sobre este assunto foram forneci-
dos a Poincaré pelo deputado Engerand.
Poincaré recusou-se a intervir. O Estado-Maior recusou qualquer ofensi-
va do lado de Briey.
Em lugar de ofensiva, de reconquista do terreno, a opção poderia ser bom-
bardear Briey para tomar as instalações inutilizáveis. Pelo contrário, foram
86 O LIVRO NEGRO DO CAPITALl MO

feitos acordos secretos entre o Estado-Maior francê e alemão, a fim de que os


comboios cheios de minério que se dírigiam para a Alemanha n ão fossem, em
caso algum, bombardeados.
Diga-se, de passage m, que é evident que e ·es mesmos estados-maiores
tinham também decidido não de.sauir respectivos quartéis-generais ... Es·
tes dois bandos de gãngsteres "tinham n nnas".
Apesar disso, aviadores franceses desobedeceram às ordens recebidas e
lançaram algumas bombas re as instalações de Briey. Foram severamente
punidos.
Por intermédio d quem nnham 'do rransmitidas as proibições de bom-
bardear? Através de um tal lugar-tenente Lejeune - todo-poderoso, apesar
de ser um simples lugar-tenen e - , que, na vida civil, antes da guerra, era um
engenheiro li gado às miruu de Joeuf e empregado de M. de Wendel.
Galtier-Boi.uieTe:
"Para não lesar interesses privado muito poderosos, e para evitar violar os
acordos secret05 firmad05 entre indústrias franceses e alemães, sacríficaram-
se, em empreendimen os mili tares ineficazes, centenas de milhares de vidas
humanas, exceto num lugar: Briey-Thonville, de onde, durante quatro anos,
a Alemanha, com toda a tranqüilidade, retirou os meios para continuar a
luta."
Mas a família franco-alemã de Wendel tinha lucros!
Este não passa de um exemplo, entre muitos, do conluio entre os negoci-
antes de armas e 05 govern os~ países em guerra.
Todavia, o saldo humano foi muito pe~ad o:

Saldo humano da guerr.i de 14/18

Mob1\uad0ti 62.110.000

Mortoi B.345 000

Feridos 20000.000

Mortos civis 10 000.000


A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 87

Mobilizados Mortos

Rússia 12.000.000 1.700.000

França 8.400.000 1.350.000

Império Britânico 8.900.000 900.000

Itália 5.600.000 650.000

EUA 4.350.000 115.000

Romênia - 335.000

Alemanha 11.000.000 1.770.000

Áustria-Hungria 7.800.000 1.200.000

Turquia 2.850.000 325.000

Bulgária 1.200.000 -
TOTAL 62.100.000 8.345.000

Estes números dispensam comentários. Isto representa mais de 5.000


mortos por dia, em todas as frentes, durante todo o tempo que a guerra
durou.

O p6s-guerra

A Alemanha vencida assina o Tratado de \{:rsalhes

O armistício de 11 de novembro equivalia a uma capitulação da Alema-


nha: obrigava-a a entregar a sua frota, uma parte do seu material de guerra e
a evacuar a margem esquerda do Reno, que os aliados ocuparam. Os franceses
tiveram uma recepção entusiasmada na Alsácia-Lorena.
88 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

A paz foi regulamentada pela Conferência lnteralíada de Paris, iniciada


em 18 de janeiro, sob a presidência de Clemenceau. Estavam lá representa·
dos 27 Estados. Na realidade, todas as decisões importantes foram tomadas
em pequena comissão pelo presidente dos Estados Unidos, Wilson, o pri·
meiro-rninistro inglês, Lloyd George, e Clemenceau. Depois de 8 de janeiro
de 1918, o presidente Wilson tinha formulado o seu programa de paz em 14
pontos. Esse programa, que serviu de base aos trabalhos da Conferência,
visava a estabelecer uma nova ordem internacional, baseada no direito dos
povos a dispor deles próprios, e a organização de uma Sociedade das Na·
ções. Mas, se as massas se entusiasmaram com tal programa, os dirigentes e
os diplomatas estavam céticos. Para Clemenceau, o problema capital era
destruir a força alemã.
Após negociações difíceis, o tratado de Versalhes, imposto à Alema-
nha, foi assinado em 28 de junho de 1919. O Tratado instituía uma Sacie·
dade das Nações, abena, primeiro, aos aliados e aos países neutros, e en·
carregada de regular os conflitos, por arbitragem. A Alemanha tinha de
restituir a Alsácia-Lorena à França, a Posnânia à Polônia (com um corre·
dor de acesso ao Báltico) e aceitar que o destino do Schleswig, da Prússia
polonesa, da Alta Silésia, fosse regulado por plebiscito. Além disso, re·
nunciava a todas as suas colônias; comprometia-se a reparar todos os da·
nos sofridos pela França e seus aliados. A França, cujo território fora de·
vastado, recebia, em compensação pelas suas minas do Norte destruídas, a
propriedade das minas do Sarre (o próprio território foi colocado sob con·
trole internacional durante quinze anos). Como garantias contra a Ale·
manha, ela obtinha: 1. a redução do exército alemão para 100.000 ho·
mens; 2. a ocupação provisória da margem esquerda do Reno pelas forças
aliadas durante um prazo de cinco a quinze anos; 3. uma promessa de
auxílio anglo-americano em caso de agressão (promessa anulada em con·
seqüência da oposição do Senado americano).
De volta aos Estados Unidos, o presidente Wilson não conseguiu obter
efetivamente a ratificação do tratado. Os Estados Unidos recusaram-se a ade·
rir à Sociedade das Nações e concluíram com a Alemanha um tratado separa•
do (1921) .
A GRANDE GUERRA: 11.500 MORTOS E 13.000 FERIDOS POR DIA 89

A Áustria-Hungria e o Império Turco são desmembrados

O Tratado de Versalhes foi completado pelos tratados de Saint-Germain,


com a Áustria; de Neuilly, com a Bulgária; de Trianon, com a Hungria; de
Sévres, com a Turquia. Estes tratados consagravam o desmembramento da
Áustria-Hungria e do Império Turco e alteravam consideravelmente o estatu-
to territorial da Europa Central e do Levante.
A Áustria e a Hungria, separadas uma da outra, transformavam-se em
pequenos Estados, um reduzido às suas províncias alemãs, o outro a territórios
de população húngara. As suas províncias eslavas encontravam-se divididas
entre a Polônia ressuscitada, o novo Estado da Tchecoslováquia e a Sérvia,
transformada em reino unido dos sérvios, croatas e eslovenos - ou Iugoslá-
via. A Transilvânia era dada à Romênia, que se tomava um grande Estado de
500.000 km2• A Itália recebia a Ístria, com Trieste e Trentino; disputava com
os iugoslavos a posse de Fiume e da costa dálmata.
A Bulgária perdia o acesso ao mar. A Grécia recebia a Trácia com
Andrinopla, e, na Ásia, o porto de Esmirna. A Turquia encontrava-se reduzi-
da ao território de Constantinopla na Europa e à Ásia Menor ou Anatólia. Os
estreitos ficavam sob controle internacional, o Egito sob protetorado inglês;
as outras províncias turcas da Ásia deviam organizar-se em Estados livres e
ficar provisoriamente sob a tutela de uma potência mandatária da Sociedade
das Nações.
Todos estes tratados eram de difícil aplicação, sobretudo o traçado das
novas fronteiras. Era previsível que a pacificação fosse longa, penosa, pontu-
ada por novas crises. Mas o mundo punha toda a sua esperança na Sociedade
das Nações. Sabe-se o que veio a acontecer.

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90 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

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CONTRA-REVOLUÇÃO E INTERVENÇÕES
ESTRANGEIRAS NA RÚSSIA (1917-1921)
PIERRE DURAND
.·.
A 31 de maio de 1920, Marcel Cachin partiu para a Rússia. Por lá perma-
necerá setenta e um dias, percorrendo milhares de quilômetros através de
cidades e campos. Obcecado pelas recordações do Ano II, escreverá: "Já há
três anos que os operários e os camponeses eram os senhores do país. No dia
seguinte à tomada do poder, haviam tido o objetivo de se entregar à obra de
reconstrução; mas foram impedidos pela contra-revolução, pelas guerras civis
e a intervenção estrangeira que as potências aliadas mantinham no solo russo
desde o final de 1917.
"A ruína de três anos de guerra civil impostos à nação revolucionária ti·
nha-se juntado à própria guerra imperialista. Era fácil imaginar em que estado
se encontrava a economia da nação, após seis anos de combate."
Marcel Cachin fala de soldados voluntários que viu e com os quais con-
versou: "Eram verdadeiramente os filhos e os irmãos dos do Ano II, de Valmy
e da Marselhesa." 1 Sem dúvida que é sempre arbitrário comparar situações
tão distantes uma da outra pela geografia e pela história, mas não há a mínima
dúvida de que os revolucionários russos conheceram também as suas Coblenças
e as suas Vendeias, * e que tiveram de defrontar, senão reis coligados, pelo
menos vános Estados organizados contra a nova ordem que eles pretendiam
estabelecer. Ao terror branco desencadeado contra eles, responderam com o
terror vermelho. E fizeram-no num país de que se dizia não existir em parte
alguma na Europa outro que se lhe comparasse em matéria de déficit cultural.
Este atraso deve, naturalmente, ser levado em conta.
A Primeira Guerra Mundial havia custado à Rússia dois milhões e meio
de mortos. A guerra civil e a intervenção estrangeira causaram mais um mi-
lhão e meio de vítimas. Nove milhões de pessoas foram mortas, feridas ou
desapareceram devido à fome e a epidemias. A produção industrial equivalia,
em 1921, a 15% da de 1913. Produzia-se menos de metade do trigo do que na
véspera da guerra.
Mas de quem era a culpa senão do capitalismo?
Lenin acreditava num evoluir pacífico da Revolução. Enganava-se. A pou-

•Alusão à guerra da Vcndeia (1793-1796), insurreição real e conrra-rcvolucionária que atingiu os de·
pattamentos de Vendeia, Loire-Inferior e Maine•et-Loire. Coblença, cidade alemã onde, em 1792, se
reuniram os emigrados franceses. (N. do T.)
94 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

cos dias da tomada do Palácio de Inverno, em 9 de outubro de 1917, declara:


"Tendo o poder nas mãos, os Sovietes poderão ainda - e é provavelmente a
sua última oportunidade - assegurar o desenrolar pacífico da revolução, a
eleição pacífica dos deputados do povo, a luta pacífica dos partidos no seio
dos Sovietes, pôr à prova, na prática, um programa dos diversos partidos, a
passagem pacífica do poder de um partido para outro. "2
A tomada do Palácio de Inverno fará apenas seis mortos e as salvas do
couraçado Aurora não farão vítimas. Depois de 26 de outubro (8 de nevem·
bro) o II Congresso dos Sovietes aboliu a pena de morte. Os kadets compro·
metidos na tomada da central telefônica de Petrogrado, que queriam recupe·
rar das mãos dos revolucionários, foram libertados com a promessa de se
manterem quietos. Estes não cumpriram, tendo ido juntar-se aos revoltosos
Brancos no sul do país. O general Krasnov jurou que não voltaria a bater-se
contra os bolcheviques. Mais tarde assumirá o comando de um exército cossaco
contra-revolucionário. No final do mês de novembro, o novo poder estava
instalado em quase toda a parte e, em geral, era aceito. Em meados de feverei·
rode 1918, a Revolução poderia passar ao que Marcel Cachin chamaria de
"tarefa da reconstrução". Mas isso era não contar com o ataque das classes
expropriadas e o apoio que estaS iam receber do exterior.
John Reed, em Os dez dias que abalaram o mundo, relata o que lhe havia
dito Rodzianko, o "Rockefeller" russo: ''A revolução é uma doença. Mais cedo
ou mais tarde, as potências estrangeiras deverão intervir, como se fosse para
salvar uma criança doente e ensiná-la a andar." Um outro milionário russo,
Riabouchinski, afirmava que a única solução era "apanhar os falsos amigos do
povo, os Sovietes e Comitês Democráticos e enforcá-los". O chefe dos Servi·
ços Secretos britânicos, Sir Samuel Hoare, que tinha regressado a Londres
ainda antes da tomada do Palácio de Inverno, preconizava a instauração de
uma ditadura militar na Rússia, chefiada pelo almirante Koltchak ou pelo
general Komilov. A escolha de Londres recaiu sobre este último e Paris fez o
mesmo. Em 8 de setembro, Komilov marchou sobre Petrogrado, mas foi der·
rotado e os bolcheviques venceram porque o povo os apoiava.
A simples cronologia dos acontecimentos mostra bem que a origem da·
quilo que os próprios bolcheviques apelidaram de terror vermelho (da mesma
forma que os revolucionários franceses do final do século XVIII falaram de
Terror) se tratou de uma seqüência de fatos cuja origem foi a contra·revolu·
ção apoiada pelo exterior.
CONTRA-REVOLUÇÃO E INTERVENÇÕES ESTRANGEIRAS NA RÚSSIA 95

1918

Em 11 de março, o governo soviético instalou-se em Moscou. A essa altu-


ra, tropas anglo-franco-americanas desembarcaram no Norte. Em 4 de abril,
tropas japonesas desembarcam em Vladivostok, ao mesmo tempo em que o
ataman Semionov dirige uma sublevação na Transbaicália. Em 29 de abril, os
alemães instalam na Ucrânia a ditadura de Skoropanski. Em maio, é o corpo
do exército tchecoslovaco que se subleva ao longo do transiberiano. No Volga,
nos Urais, na Sibéria e na região do Don, Denikine, Komilov, Alexéiev desen-
cadeiam insurreições terroristas, ao mesmo tempo em que os ingleses se pre-
param no Irã para atacar Baku com tropas de cossacos brancos. A Turquia
ameaça na mesma região. No final de maio, três quartos do território soviéti-
co estão nas mãos da contra-revolução e dos intervencionistas.
Em 3 de agosto, novas tropas britânicas, com reforços japoneses, desembar-
cam em Vladivostok. Em 30 de agosto, Lenin é gravemente ferido no atentado
perpetrado por E Kaplan. Em 2 de setembro, o Comitê executivo central dos
Sovietes proclama o Terror vermelho em oposição à contra-revolução. Em agosto
e setembro começa a contra-ofensiva soviética em todas as frentes. Em 20 de
setembro, os Brancos, sob o comando dos britânicos, executam os 26 comissári-
os de Baku. Em outubro, os revolucionários dispõem de um verdadeiro exército.

1919

2 de março: a revolucionária francesa Jeanne Labourbe é assassinada, em


Odessa, por intervencionistas franceses e guardas Brancos. Em 28 de abril,
começa a ofensiva contra o almirante Koltchak, no Ural. No mesmo dia, os
franceses terminam a sua evacuação de Odessa, mas voltam a 23 de agosto
para apoiar Denikin. No mesmo mês, Koltchak é definitivamente derrotado.
Em 24 de outubro, Denikin é vencido em Voronej e em Tsaritsyne
(Stalingrado).

1920

Entre janeiro e março, as tropas soviéticas avançam em toda parte.


Koltchak é vencido na Sibéria, foge, é preso em Irkoustk e fuzilado. Denikin é
o

dar ccrtns fatos históri cos e incon-


dc crimes nesta parte do mundo e
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
FRANÇOIS DELPLA
)1
A ch<1cina da Primeira Guerra Mundial representou, aos olhos de muita
gente, uma acusação ao capitalismo. Tanto pelo papel dos interesses financeiros
na gênese do conflito, como pela solicitude da indústria em fornecer ao morócínio
meios cada vez mais poderosos. A contestação radical do capitalismo conheci-
da pelo nome de comunismo é, aliás, um dos frutos principais desse confronto;
de início, alimentou-se largamente do horror que ele provocou.
Quanto à Segunda Grande Guerra, o quadro é, aparentemente, mais com·
plicado. Em vez de um regime econômico-político que coloca frente a frente
dois blocos de potências, encontramos, na origem do conflito, um país agressor,
a Alemanha. O regime nazista é certamente capitalista, mas de um tipo muito
particular. É parente de outros regimes, aos quais se aliou na guerra, pelo
menos durante algum tempo, como os da Itália, do Japão, da Hungria, da
Espanha: pode agrupar-se a este conjunto pela designação de fascismo. Ora,
estes países partilham uma hostilidade visceral em relação ao comunismo,
cujas sementes, por vezes importantes, conseguiram erradicar nos seus países,
e cujas forças armadas virão a enfrentar na guerra, seja na URSS ou na China.
Sem falar das resistências nacionais nos países ocupados, quase sempre ani·
madas por partidos comunistas. Mas, em teoria, o fascismo não se opõe mini·
mamente à democracia liberal, ou seja, ao capitalismo não-fascista. Este surge
como o seu principal vencedor, pela extensão e riqueza dos territórios anteri·
ormente fascistas, ocupados em 1944-45. O capitalismo parece, pois, num
sobressalto democrático, ter expiado os pecados da Primeira Guerra, e esta
parece um acidente de percurso. A Segunda Guerra Mundial seria apenas um
ato de extremistas excitados, a quem se teria dado liberdade de movimentos
durante demasiado tempo. O comunismo teria nisso uma parte de responsa-
bilidade, tendo precedido o fascismo e provocado a sua erupção, como uma
autodefesa dos países que se julgavam ameaçados pela URSS ou pelas suas
idéias. Tecem-se, assim, conjecturas sobre o "parentesco" dos dois sistemas e
sobre o conluio que os associou parócularmente no quadro do pacto germano-
soviético, que vigorou entre 23 de agosto de 1939 e 22 de junho de 1941. Não
sonhavam ambos, no fundo, conquistar o planeta pela guerra e não tinham
eles decidido, há muito tempo e de uma forma séria, unir os seus destinos
nesse esforço?
100 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

O estudo que vamos ler sintetiza considerações clássicas sobre a imperfeição


dos tratados de 1919 e investigações recentes a respeito do nazismo e as
primórdios da Segunda Guerra Mundial. Mostra que Hitler, de 1933 a 1940,
traçou inteligentemente o seu caminho, fazendo crer a todas as potências que
a Alemanha se tornaria mais forte sem ameaçar seus interesses. Estamos, pois,
longe da verdade se acusam1os as democracias liberais de candura ou de CO·
vardia e seremos bastante injustos se atribuirmos unicamente à Rússia a ten·
dência de utilizar a agressividade germânica contra os seus adversários. Ese
admitirmos que, em 1914, o capitalismo mostrou os limites da sua capacidade
civilizadora ao lançar os povos uns contra os outros, toma-se difícil acreditar
que, no período entre as duas guerras, esta forma de organização econômica
tenha contribuído única e simplesmente para a paz entre as nações.

1919-1929: a recusa de uma segurança coletiva

Segundo os usos e costumes do século XIX, duas potências deveriam ter


se beneficiado da vitória de 1918: a França e a Inglaterra. Elas tinham jogado
a sua sorte na eliminação do concorrente alemão da cena mundial e, muito
logicamente, partilhavam entre si os despojos coloniais. Mas o século XX era·
zia uma novidade: o divórcio entre poder político e poder econômico. As
boas maneiras àe ingleses e franceses não teriam bastado para vencer a Ale·
manha, e a jovem América, até então à margem da cena mundial, tinha colo·
cada toda a sua força no financiamento do esforço de guerra, tornando-se
credora das duas potências euro-ocidentais. Ela ficou, pois, muito contraria·
da com o comportamento voraz daquelas na Conferência de Paz, sabendo
bem que a ampliação dos respectivos impérios coloniais, já vastos, à custa da
Alemanha e do seu aliado turco, colocaria novos entraves ao comércio dos
Estados Unidos. De resto, a Alemanha tinha compreendido bem quem, em
11 de novembro de 1918, tinha assinado o Armistício com base nos "quatorze
pontos" do presidente Wilson: estes, invocando a liberdade de comércio e o
direito dos povos, assemelhavam-se a um manifesto dos fracos perante as exi·
gências dos ogres franco-britânicos. A Alemanha não podia senão juntar-se a
isso em desespero de causa, e, assim, desenhava-se já um acordo secreto entre
ela e os Estados Unidos. Estes limitaram as amputações territoriais do país
vencido e pennitiram-lhe particularmente conservar a Renânia, que a França
reclamava por razões de segurança.
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 101

O conluio germano-americano tomou-se ainda mais visível quando Wil-


son, orgulhoso por ter conseguido limitar o triunfo franco-inglês, foi mal rece-
bido pelos seus compatriotas e os Estados Unidos rejeitaram os tratados. Ao
desautorizarem o seu presidente e o Partido Democrata, eles negavam a pró-
pria legitimidade da participação na guerra de 1917, cuja responsabilidade
atribuíam, como exceção ao culto do capitalismo, "aos vendedores de ca-
nhões". Tendo sido a intervenção americana que fez pender a balança, que
melhor encorajamento poderia esperar o espírito de vingança alemão?
No que diz respeito à França, porém, se o receio da ameaça alemã era bem
justificado, investigações vieram confirmar a gula do empresariado, que pro-
curou aproveitar bem a ocasião para dominar os rivais alemães no mercado
europeu, especialmente na área da siderurgia. 1
A Sociedade das Nações, de que Wilson fora o principal apóstolo e que
teria tido mais eficácia na defesa da paz se tivesse podido reunir todas as na-
ções, encontrou-se reduzida a um clube franco-inglês, com a rejeição ameri-
cana do tratado de Versalhes e também com a revolução que tinha lançado a
Rússia ao ostracismo. Paris e Londres, que se encontravam longe de estar de
acordo em tudo, confrontaram-se aí vivamemente, o que levou à paralisia
total. As questões principais continuaram a ser reguladas, como nos séculos
anteriores, por encontros ad hoc, que em poucos dias tomavam decisões cuja
aplicação nenhum organismo permanente vigiava.

1929-1933: "cada um por si" face à crise

Não é certo que a crise atual ajude a compreender aquela que foi chama·
da de "crise de 1929" e que grassou no início dos anos 30. O principal ponto
comum é o desemprego. Mas hoje, as trocas internacionais não param de
crescer, ao passo que, em 1933, elas tinham caído dois terços em relação a
1929.
Os países que possuíam impérios coloniais eram escandalosamente favo-
recidos, pois podiam mais facilmente do que os outros manter os seus merca-
dos. A Alemanha e os Estados Unidos tiveram, entre as grandes potências, as
taxas de desemprego mais elevadas. Decerto, isso não se devia unicamente ao
fato de não possuírem colônias, mas de qualquer modo essa era a opinião
geral. Daí um ressentimento crescente, além-Atlântico, contra a França e a
Inglaterra. Franklin Roosevelt, eleito para tentar pôr fim à crise, não ficou
102 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

preso a essa idéia. Antigo subsecretário da Marinha durante a presidência de


Wilson, nunca fez nada para combater a idéia, martelada pelos seus antecessores
republicanos, de que a participação do país na Grande Guerra tinha sido um
erro. Os Estados Unidos, a quem Londres e P:iris pretendiam comprometer
numa política econômica e financeira comum face à crise, apresentavam uma
recusa seca na Conferência de Londres, em julho de 1933.

1933-1939: a ilusão da fraq~a de Hitler

Hitler toma nas suas mãos, em 30 de janeiro de 1933, um país com uma
economia enfraquecida e sem apoio externo. O seu programa, expresso em
Mein Kampf, oito anos antes, não poderia ajudá-lo a encontrar aliados, de cal
modo ele aponta inimigos poderosos e diversos: o marxismo, mas também a
caridade cristã, o comunismo, tal como o capitalismo, os franceses e os russos,
as liberdades de qualquer espécie e, acima de tudo, os judeus, culpados de
todos os males ao mesmo tempo. Mas ele vai utilizar uma receita estranhamente
eficaz, que se apóia em dois princípios: disfarçar suas próprias fraquezas e lan-
çar os inimigos uns contra os outros. Para começar, ele não coma o poder
sozinho, mas no seio de um governo numericamente dominado pela direita
conservadora. O seu chefe mais destacado, Franz von Papen, parece, durante
ano e meio, estar em corufições de eliminá-lo em qualquer momento, até
aquela "noite das facas longas• (30 de junho de 1934) , em que o Führer impu-
nemente manda matar os colaboradores mais próximos de Papen. Mas então,
com o pretexto de que também tinham sido eliminados alguns chefes das
Scunnabceilungl'Tl (SA), que se dizia ameaçarem o Exército, este passa como o
verdadeiro vencedor do episódio. Assim, até ao início da guerra, Hitler culti·
vará a aparência de um ditador em potencial, enfraquecido por oposições
internas poderosas e também pela divisão dos que o rodeavam - o que terá
provocado a felicidade dos seus colaboradores mais próximos, a quem ele dis·
tribufa os papéis a desempenhar.
Este jogo esreve longe de ser inteiramente compreendido. Ainda hoje, o
historiador Hans Mommsen, quando fala em um "ditador fraco", não con•
segue certamente unanimidade, mas consegue se fazer levar a sério. Não
obstante, a verdade ganha terreno e coloca uma questão: por que razão,
naquela época, quase ninguém levantou a hipótese de Hitler ser um estrate·
gista muito sagaz?
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 103

A resposta leva-nos novamente ao assunto deste texto: porque ninguém


via interesse nisso, pelo menos à luz do que Hitler apresentava como seus
objetivos. Muitos pensavam manipulá-lo (enquanto eles próprios o estavam
sendo por ele): esses tinham, pois, necessidade de acreditar que o homem era
frágil e que, uma vez que ele os tivesse ajudado a alcançar um objetivo, pode-
riam eliminá-lo, caso se tomasse incômodo.
Se aos olhos da opinião mundial, e até os nossos dias, algum país se tem
em alta conta pelo seu papel durante os anos 30, é cenamente a Inglaterra.
No entanto, o seu papel foi dos mais nefastos para a paz e para a democracia.
Aquele que foi desde 1933 um dos principais inspiradores, e que se toma a
partir de 1937 o principal responsável pela sua política de apaziguamento face
a Hitler, Neville Chamberlain, passa por um bom homem, ultrapassado pela
crueldade do universo político, quando na verdade sabia o que queria e isso
não era nada inocente. Acima de tudo, pretendia impedir a França de tomar
iniciativas inspiradas pelo seu antigermanismo atávico, e nisso foi admiravel-
mente bem-sucedido. Tinha com Hitler apenas relações formais, mas, em
contrapartida, cultivava indiretamente, através do Foreign Office, uma certa
intimidade com os conservadores alemães. Contudo, o que ele visava não era
a partilha traçada em Meín Kampf - para a Inglaterra os mares, para a Ale-
manha a Europa Oriental, incluindo a Ucrânia-, mas um fair deal (acordo
de cavalheiros) com o capital alemão, que satisfizesse as suas mais razoáveis
aspirações em relação ao Leste. Daí o seu sentimento de triunfo no momento
de Munique - sacrificando os Sudetas, ele pensa ter canalizado as ambições
orientais da Alemanha, com a ajuda dos seus generais, que não tinham escon-
dido o seu receio de uma guerra contra a Inglaterra. Daí ainda o seu desabafo
no dia seguinte ao da invasão da Tchecoslováquia pela Alemanha, em 15 de
março de 1939, que violava os acordos de Munique-o senhor Hitler não é
um gentleman - não significar que ele o tenha tomado por tal, mas antes que
ele acreditava tê-lo manietado pelo tratado da Baviera. 2
Chamberlain provavelmente nunca terá feito mal a uma mosca. O seu
crime é sobretudo intelectual: ele acreditou ter impedido os planos de Hitler
e ter limitado as ambições da Alemanha, e agiu como se isso fosse uma certe-
za, quando esse objetivo se tomava cada vez mais inverossímil. Durante esse
tempo, perderam-se oportunidades de conter o nazismo, e potenciais aliados
são anexados pelo Reích ou afastam-se.
\04 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Quem é responsável pelo pacto gennano-soviético?

É estranho ler algumas vezes que, antes de 1939, Stalin esperava enten·
der-se com Hitler. É certo que, como sugerem os acontecimentos que se se·
guiram, os escrúpulos ideológicos não o dominavam mais neste caso do que
noutros. Mas para haver casamento são precisos dois, e a atitude de Hitler
não autorizava qualquer esperança. Não que se mostrasse agressivo: até final
de 1938 ele cultiva a sua imagem de homem de paz, buscando apenas a gran·
deza da Alemanha dentro das suas fronteiras, permitindo-se incorporar, de
vez em quando, algumas regiões contíguas de população germânica. Mas,
embora deixasse a Rússia tranqüila, por um lado ele não perdia uma ocasião
de vituperar contra o comunismo e, por outro lado, ia abrindo aos poucos um
caminho em direção ao Leste que teria inquietado qualquer herdeiro dos czares.
Tudo começa, pois, em janeiro de 1939 quando, ao receber os cum-
primentos do Corpo Diplomático, Hitler aperta a mão do embaixador dos
Sovietes, de uma forma ostensivamente calorosa. Seguem-se discretas nego-
ciações comerciais. Entretanto, Stalin, que na falta de alternativa cultivou
conscienciosamente a amizade dos ocidentais, não perde a oportunidade. Fi-
cou certamente ressentido com os acordos de Munique, mas, logo que estes
ficaram ultrapassados pela invasão da Tchecoslováquia, retoma a postura an-
terior e propõe aos países que rodeiam a Alemanha "uma grande aliança"
defensiva. Uma vez mais, a Inglaterra vai reagir com frieza, impedindo que a
França lhe tome a dianteira.
Um fator geográfico complica as negociações. A Alemanha não tem fron·
teira comum com a URSS e esta, para participar numa guerra contra ela, teria
de atravessar a Lituânia, a Polônia ou a Romênia e, de preferência, as três em
conjunto. Lítvinov, comissário do povo para os Negócios Estrangeiros, e de·
pois Molotov, que o sucede a 3 de maio, compreendem que o tratado deve ter
disposições precisas sobre esta questão. É um jogo para a diplomacia britânica
eternizar as discussões, como o foi para a propaganda franco-inglesa dizer
mais tarde que os soviéticos apresentavam "exigências novas" depois de cada
ponto acordado - o que significa que eles tinham decidido há muito se en·
tenderem com Hitler. Chega-se assim ao mês de agosto. Molotov, para obrigar
cada um a mostrar o seu jogo, exige e finalmente consegue que se discuta uma
convenção militar, dizendo quem fará o quê, onde e com que tropas. Militares
ocidentais deslocam-se, pois, a Moscou... e, sem instruções dos respectivos
governos neste campo, são confrontados com a exigência preliminar do chefe
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 105

militar soviético, Vorochilov: dado que a Polônia se encontra sob ameaça de


um ataque alemão, os russos pedem para tomar posição preventivamente numa
parte da sua fronteira com a Alemanha.
Stalin dá ainda tempo às delegações militares francesas e britânicas para
contactarem os respectivos governos e a estes para se entenderem com o de
Varsóvia. Mas só a França parece aproveitar esta moratória. Nem o presiden-
te do Conselho, Daladier, nem o seu embaixador em Varsóvia, Léon Noel,
fazem o que quer que seja para levar os poloneses, que não queriam chamar o
Exército Vermelho senão depois de serem invadidos, a levarem em conta as
necessidades estratégicas. Apenas o negociador francês em Moscou, o gene-
ral Doumenc, toma iniciativas para superar o impasse: ele chega ao ponto de
enviar um membro da sua missão a Varsóvia. Daladier, por seu lado, chegará
mesmo a corrigir os seus próprios arquivos, em 1946, para fazer crer que, ao
receber em 21 de agosto o embaixador polonês, ele o ameaçara com uma
"revisão da aliança" se o seu país não aceitasse a exigência soviética: na ver-
dade a data correta era 23 e, até então, não havia sido formulada qualquer
ameaça. 3
É que na noite de 21 surgiu um telegrama dizendo que acabava de ser
assinado um tratado comercial entre a Alemanha e a URSS e, sobretudo, que
o ministro alemão Ribbentrop iria a Moscou para assinar um pacto de não-
agressão.
Os documentos hoje conhecidos parecem indicar que a Alemanha ficou
bastante preocupada com estas negociações militares de Moscou e pressionou
a parte soviética a assinar um acordo, multiplicando as concessões. A opção
de Stalin não se verificou, ou pelo menos não se tomou manifesta, senão
alguns dias antes da assinatura. Sem um acordo com a Alemanha, a URSS
teria sofrido o choque das suas divisões blindadas na seqüência da conquista
da Polônia, e a imobilidade da Drôle de Guerre* permite supor o pouco que
teriam feito os ocidentais para fixar forças alemãs do seu lado. Quem defen-
derá de boa-fé que Stalin não tinha nada a temer dos governos anti-soviéticos
de Paris e de Londres, imutáveis desde Munique, e que era pura paranóia da
sua parte desconfiar de uma paz negociada nas suas costas após um simulacro
de guerra?
Neste ponto de partida para uma guerra que irá matar cinqüenta milhões

ºDesignação pela qual ficou conhecido o período que antecedeu a invasão alemã, entre setembro de
1939 e maio de 1940. (N. do T.)
106 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

de pessoas, e na vantagem inicial de que irá beneficiar a Alemanha, essencial.


mente graças a este pacto germano-soviético, a responsabilidade de
Chamberlain é total, a de Daladier é pouco menor. Por isso, a de Stalin não é
nenhuma.
Pode colocar-se o problema à maneira de Trotski: tornando a Rússia uma
potência estimável, ao travar em todo o lado as lutas, particularmente na
França da Frente Popular, Stalin teria enfraquecido o ímpeto revolucionário
que por si teria podido fazer recuar o fascismo. Realmente! De qualquer modo
era possível conseguir isso através de um acordo clássico entre Estados, cer·
cando e desencorajando o eventual agressor. Era o que pretendia Churchill, e
não poderemos negar que estava certo nesta matéria. É patente que os comu·
nistas franceses encolheram incansavelmente as garras, até final de agosto de
1939, e reagiram o mais docemente possível, desafiando os seus próprios elei·
tores quando Daladier atacava as conquistas sociais da Frente Popular, para
não perturbar a mobilização nacional, nem os esforços diplomáticos do gran·
de irmão soviético.
A responsabilidade de Stalin situá-la-ia antes ... no stalinismo. Os gran·
des expurgos, especialmente o de 1937 contra os quadros do exército, fize·
ram duvidar no Ocidente que a URSS continuasse um parceiro militar im·
portante. No exército francês, o debate sobre a aliança soviética era vivo
desde 1933, e um grande número de quadros, reagindo de uma maneira
mais profissional do que política, inclinava-se a procurá-la. Entretanto, quan·
do em 1935 Gamelin sucedeu a Weygand, as considerações políticas tinham
atingido o auge, estando Gamelin, neste tema, muito próximo do anti-sovié·
tico Daladier (em relação ao qual é necessário lembrar que, antes de ser
presidente do Conselho em 1938, havia sido ministro da Guerra e ocupara
continuamente o cargo de junho de 1936 a maio de 1940). O assassinato de
Tukhatchevski e de várias centenas de generais em 193 7 favoreceu os oficiais
franceses partidários de Daladier, ou fascizantes, que recusavam por prind·
pio uma ação comum com a URSS e que sem dúvida ainda eram minoritários.
A opinião pública, na França como na Inglaterra, foi igualmente menos
propensa, depois do expurgo de 1937, a desejar, perante o desafio nazista, o
reforço soviético. Apesar de tudo, o relato do general Doumenc mostra que
Daladier, ao explicar-lhe a sua missão, justificava-a pela expectativa da opi·
nião pública, que não compreenderia que não se explorasse até ao fundo as
possibilidades de um entendimento com a URSS. Ele relata igualmente
manifestações que, no momento do embarque da missão, confirmavam essa
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 107

tentativa. Que impulso não teriam elas tolll3do se a imagem da URSS não
tivesse sido ofuscada pelos expurgos!
Em suma, para saber se os primeiros mortos da Segunda Guerra Mundial,
no dia 12 de setembro de 1939, e tudo aquilo que a sua morte vai provocarem
virtude do poder que se deixou que a Alemanha adquirisse, são ou não "mor-
tos do capitalismo", é preciso ter em conta, antes de mais nada, o antico·
munismo e a forma como a Alemanha soube jogar com isso. Deixando enten-
der que todas as suas ambições tinham se voltado para a Europa oriental e que
a sua satisfação libertaria o planeta de um regime indesejável, atraiu bastante
as simpatias nos meios dirigentes das grandes potências ocidentais. Não
obstante, não teriam aberto assim tão facilmente uma via livre para a expan·
são do concorrente alemão se este não tivesse conseguido persuadi-los de que
era fraco, dividido e incapaz de tirar grande proveito de uma vitória contra o
império do mal. O caminho que estes países deixaram aberto à Alemanha e o
crescimento inaudito do seu poder entre 1939 e 1941 não são, pois, mero
resultado do ódio do empresariado ao movimento operário. São também o
resultado da ingenuidade perante uma encenação particularmente bem-su-
cedida. Os dirigentes das grandes potências capitalistas, excetuando a Ale-
manha, foram levados a acreditar naquilo que lhes segredavam os seus inte·
resses de classe, mesmo contra toda a evidência: que Hitler não era um poütico
de altos vôos, mas um aventureiro inconseqüente que podia ser jogado fora
depois de ser usado.

A Drôle de Guerre, uma boa designação

Se a literatura sobre Munique é relativamente abundante e de qualidade,


a Drôle de Guerre permanece o parente pobre da História do século XX, e no
entanto não há período mais decisivo. Sobretudo quem se interessa por Mu-
nique deveria apaixonar-se pela Drôle de Guerre, quanto as grandes democra-
cias liberais abandonavam ainda mais os seus princípios do que quando ven-
deram os Sudetas à Alemanha por um prato de lentilhas. Veja-se apenas isto:
foi declarada a guerra e prefere dizer-se que foi malfeita (alimentando as ilu-
sões sobre a eficácia do bloqueio à Alemanha e a possibilidade de vencê-la
pelo desgaste) em vez de confessar que o que se fez foi o contrário da guerra,
ou seja, a paz, ou pelo menos que a procuraram com afã.
É aqui que os Estados Unidos entram em cena. Pois são eles os principais
108 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

agentes desta paz, apesar de o terem escondido posteriormente. É certo que


Roosevelt, quando no início de setembro proclama a neutralidade do seu país,
lembrava, com ares de entendido, que "as idéias não são neutras", o que equi-
vale a uma ínfima condenação do agressor alemão. Esta torna-se mais clara
em novembro, com a emenda à lei de neutralidade votada alguns anos antes
pelo Congresso com o beneplácito do presidente. Com a revogação desta lei,
que proibia a venda de material bélico aos beligerantes, será possível vendê-lo
a quem quiser pagar bem e transportá-lo, o que favorece os adversários da
Alemanha, senhores dos mares. Antinazismo? Talvez. Capitalismo, sem dúvi-
da. A indústria americana, novamente atingida pelo desemprego, não pode
na verdade privar-se de vender a quem quer comprar. Nem o imperialismo
americano pode deixar passar uma nova oportunidade de enfraquecer finan·
ceiramente os seus rivais.
Mas, ao mesmo tempo, estranhos emissários cruzam a Europa. Joseph
Kennedy, o pai de John Fiugerald que, aliás, o acompanha, é embaixador em
Londres e visita de bom grado o continente; é um admirador declarado da
eficácia nazista. Sumner Welles, subsecretário de Estado e próximo do presi-
dente, passa várias semanas num vaivém entre Paris, Roma, Londres e Berlim.
São também relatados contatos levados a cabo por empresários, particular-
mente pela General Motors.4
A missão de Welles começa quando a guerra é desencadeada, a partir de
30 de novembro de 1939, entre o agressor soviético e a sua vítima finlandesa.
A brutalidade stalinista, que de momento se exerce apenas no quadro dos
antigos limites do império czarista, e que de início visa somente a garantir as
fronteiras, passa facilmente por um apetite ilimitado de conquista, semelhan•
te ao que se atribui a Hitler. Por todo o mundo, em inúmeros jornais, é ali-
mentada a idéia de que ajudar militarmente a Finlândia equivale a fazer guer·
ra à Alemanha. Se Welles conseguisse de novo a paz e a concórdia, ou se os
resultados da sua missão permitissem uma iniciativa espetacular do presiden•
te, isso seria um mau sinal para a URSS, única potência não visitada pelo
subsecretário. É verdade que, perante a guerra soviético-finlandesa, o presi-
dente não é neutro, mesmo em palavras.
Eis quem nos conduz ao massacre, perpetrado pelos soviéticos, das elites
polonesas caídas em seu poder, a maioria das vezes designado por Kacyn, nome
do ossário onde foi encontrada, em 1943, uma parte das vítimas. A ordem de
Stalin para matar 20.000 poloneses, principalmente oficiais, revelada por Boris
leltsin em 1992, tem a data de 5 de março de 1940-quando essas pessoas
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 109

tinham sido aprisionadas em setembro do ano anterior. Não tendo ninguém


chamado a atenção para a data e tentado explicá-la, eu considerei dever fazê-
lo de passagem num livro de 1993 e, que eu saiba, nunca ninguém contrapôs
outra opinão.5 Em 5 de março, a Finlândia acaba de pedir a paz, e Stalin
apressa-se a receber os seus negociadores. Convém por isso perguntar se ele
não atribuiu a esta paz efeitos tais que os seus prisioneiros poloneses, e espe-
cialmente os oficiais, se tornassem perigosos. Podia ser esse o caso se a paz
soviético-finlandesa trouxesse consigo uma reconciliação das potências capi·
talistas, quer dizer, uma paz entre a Alemanha e os seus vizinhos. Para lhes
salvar a face, Hitler tinha de aceitar a ressurreição de uma parte do Estado
polonês, partilhado em setembro de 1939 entre ele próprio e Stalin. Um dos
primeiros gestos deste Estado seria provavelmente reclamar os seus prisionei-
ros de guerra. Seria então difícil matá-los, e perigoso libertá-los, pois a nova
Polônia, tendo recuperado terras libertadas pela Alemanha, seria tentada a
fazer o mesmo do lado soviético, e pela guerra, se fosse necessário. Acrescen-
temos que Welles está em Berlim entre 12 e 6 de março, portanto na época em
que Stalin assina a ordem fatal, e demora-se aí de uma maneira provavelmen-
te muito angustiante para o governo soviético.
Hoje, após novas investigações sobre as premissas do conflito germano·
soviético em 1941 (cf. infra), coloco uma nova questão: este massacre, supon-
do que o revelaram a Hitler ou que tencionavam fazê-lo, não estaria destina-
do a convencê-lo de que os soviéticos estavam definitivamente do seu lado e
que tinham cortado todas as pontes com os ocidentais, de modo a dissuadi-lo
de se reconciliar com eles? Nesse caso, o ato assassino visava menos a reforçar
a defesa do país face a uma eventual guerra soviético-polonesa, induzida por
uma paz polonesa alemã, do que a escapar a todo o preço desta perigosa situa-
ção, ligando definitivamente a sua sorte à do nazismo.6 Resta, mesmo que se
comprove que estas considerações são inexatas, uma dupla constatação: por
um lado, Stalin perdeu a cabeça (ele podia ter deslocado os prisioneiros para
leste, aguardando a evolução dos acontecimentos; erradamente, ele julgou
que não tinha tempo); por outro lado, trata-se sem dúvida de um crime con·
tra a humanidade. Certamente, foram poupadas as mulheres e as crianças, e
até os pobres. Mas este massacre de uma nação por meio das suas elites tem
todas as características de genoddio.
Oficialmente, os contatos realizados na Europa por emissários americanos
durante a Drôle de Guerre são exploratórios. Os Estados Unidos não exercem
qualquer mediação, apenas se informam das intenções de uns e de outros.
110 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Mas não é isso que se diz quando a mediação falha? Nas circunstâncias, é em
Berlim que Welles é mal recebido. A razão é que Hitler fizera uma escolha:
quanto à paz ele não a quer mais, precisa desencadear a sua ofensiva a Oci-
dente, para desferir um golpe decisivo no moral dos seus adversários, assim
como no exército francês e no seu prestígio.
Assim, nesta pseudoguerra, bizarra (drô!e), sobretudo porque nela abun·
dam os gestos pacifistas de todo o tipo, toma-se particularmente criminoso
subestimar as capacidades de Hitler. Ela não deixa ver a trágica bomba que
ele prepara lentamente, calculando ao máximo os seus efeitos, e que faz ex·
plodir bruscamente em 1Ode maio.7

A queda da França e a capitulação geral

No momento em que os exércitos alemães se põem em movimento para


Oeste, nessa alvorada primaveril, o primeiro-ministro inglês chama-se
Chamberlain. Quatro dias antes, Goering fizera saber a Dahlerus, diplomata
sueco oficioso que tinha contatos em Londres, que a Alemanha em breve
faria uma oferta de paz "generosa", mal as suas tropas tivessem "alcançado
Calais". Dahlerus agia então em ligação estreita com Raoul Nordling, cônsul•
geral da Suécia em Paris e bem-relacionado nos meios governamentais fran-
ceses quando foram informados da proposta de Goering Halifax e Reynaud,
ministros inglês e francês das Relações Exteriores - sendo Reynaud também
chefe do governo -, encararam-na primeiro como uma fanfarronice, ou até
como um dos inúmeros sinais de fraqueza que a Alemanha nazi parecia mos·
trar desde o início. Os alemães frente a Calais constituíam uma eventualidade
aborrecida mas não catastrófica. Isso significaria apenas que os exércitos alia·
dos, que tinham entrado na Bélgica para irem ao seu encontro, não teriam
conseguido detê-los e que recuariam em boa ordem até a fronteira francesa:
não havia por que precipitar-se assinar a paz sob as condições alemãs.
Ora, três dias depois, o eixo principal da ofensiva se revelou não nas pia·
nícies belgas, mas na França, no setor de Sedan, onde a defesa foi pulverizada
pelo grosso das divisões blindadas. Rapidamente perceberam de que o territó-
rio francês estava aberto à invasão, mais tarde consideraram que Paris seria
provisoriamente poupada e que o ataque ficaria confinado ao norte da Somme.
Chegaram finalmente à conclusão de que Calais estava bem na mira, mas
pelo sul, e não pelo norte, cercando todo o exército regular francês e britânico.
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 111

Muito rapidamente, Lord Gort, que comandava o corpo expedicionário


de Sua Majestade, optou por um recuo até aos portos, seguido de um embar-
que, e em Londres encontrou ouvidos indulgentes, especialmente os de Halifax.
Mas o primeiro-ministro tinha mudado depois do dia 10 e chamava-se
Churchill. Este teve desde logo um único pensamento: manter o estado de
guerra, por qualquer pretexto, fosse ele qual fosse. Para começar, ele fez Gort
recusar a retirada, que teria parecido demais com o prelúdio de um armistício
e que os franceses não aprovavam. Eles queriam lutar... ou assinar o armistício,
mas em caso algum embarcar. Viveu-se, pois, sob a ilusão e as ambigüidades
de um "Plano Weygand" - este tinha recuperado o comando do exército das
mãos de Gamelin, demitido-, que consistia em tentar furar a coluna blinda-
da alemã pelo Norte e pelo Sul... mas que sobretudo consistia em não decidir
coisa nenhuma.
E depois Hitler deteve-se, entre 24 e 27 de maio, às portas de Dunquerque,
o último porto disponível para um embarque. Um falso enigma. Para resolvê·
lo, basta levar a sério a previsão feita por Goering: Hitler detém-se porque
quer a sua paz "generosa", deixando à França e à Inglaterra os seus territórios
e as suas colônias, retirando-lhes somente as armas modernas confiscadas na
Bélgica, a sua combatividade e a sua reputação. É compreensível que a deci-
são demore algum tempo, por isso detém-se, para permitir que Paris e Londres
reúnam os responsáveis. Em Paris, a comissão de guerra de 25 de maio não vê
outra saída a não ser um armistício seguido de um tratado de paz. Mas Reynaud
não expôs, perante esta assembléia bastante numerosa e diversa, a oferta trans-
mitida por Nordling. A decisão mais importante desta comissão, inspirada p01
Weigand, é enviar Reynaud a Londres, a partir do dia seguinte, para, dizem
pudicamente as atas, "expor as nossas dificuldades". O que Churchill traduz,
na abertura da sessão do Gabinete de Guerra de 26 de maio de manhã, por:
"vem anunciar que a França vai capitular."
Mas não nos antecipemos. Na Inglaterra o derrotismo atinge também o
auge, desde o dia 25. De manhã, Halifax revela ao Gabinete conversas entre
diplomatas ingleses e italianos de segunda categoria, sobre concessões que
poderiam dissuadir a Itália de entrar na guerra. Obtém autorização para pros-
seguir esses contatos. À tarde, ultrapassando largamente este mandato, rece-
be ele mesmo o embaixador Bastianini, próximo de Mussolini, e pede-lhe que
o Duce interceda no sentido de favorecer uma "regulação geral européia que
conduza a uma paz durável". Tudo isso em nome do governo, quer dizer, de
Churchill, sem nunca o mencionar. Trata-se menos de uma mentira do que de
ll2 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

uma antecipação: persuadido de que Winston não passa de um bobo cujo


aventureirismo falhara, Halifax considera-o pouco importante e age já como
primeiro-ministro.
O mais espantoso é que no dia seguinte ele relata as conversações ao
Gabinete, sinceramente ou quase (atribui a Bastianini a proposta concorren·
te a uma "regulação geral"), e Churchill não contesta. Este, logo que conversa
com Reynaud a sós, fala em primeiro lugar da Itália, depois pergunta-lhe subi·
tamente se ele recebera propostas de paz. Reynaud responde que não, mas
que os franceses "sabem que podem receber uma oferta se quiserem". Mas é
então que Churchill consegue desviar a conversa, e a visita de Reynaud, ori·
entando o diálogo para a preparação de um embarque em Dunquerque. Efe-
tivamente ele tinha escolhido esta solução na véspera e, ainda que os france•
ses não estivessem sempre de acordo, isso proporcionou uma excelente ocasião
de falar de ação e de batalha, em vez de cessar-fogo e de negociações.
Não tendo a paz chegado com Dunquerque, Hitler retoma o combate,
sem muita tristeza. Ele teria gostado bastante dessa paz imediata e pouco san•
grenta, que lhe teria permitido reclamar dentro de pouco tempo a Ucrânia a
Stalin, mas tinha previsto um tropeço e inverte sem pena a ordem do progra-
ma: dado que a França, abraçando tolamente a obstinação de Churchill, se
oferece indefesa aos seus ataques, ele aproveita para esmagá-la. Não tenciona
certamente obrigá-la a assinar um simples armistício e ocupá-la durante qua-
tro anos. Faz sem dúvida o cálculo de que tal aniquilamento acabará por fazer
amadurecer o desânimo além-Mancha e precipitará a queda de Churchill. No
final de junho, princípio de julho, em todo o caso, voltará a lançar ofertas de
paz através de todo o tipo de canais, e Halifax ficará novamente muito perto
de tomar o poder.8

Os naristas se voltam contra a URSS

A loucura criminosa que consiste em subestimar Hitler não termina, infe·


lizmente, com as fulgurantes vitórias da Primavera de 1940. Deste ponto de
vista, os funcionários do capitalismo francês e o seu novo herói, Pétain, não
são apenas responsáveis por ter facilitado, com grande antecipação, o agrupa·
mento dos judeus, com o Estatuto promulgado em 18 de outubro.9 Aplican·
do-se desde a sua entrada em vigor, com uma habilidade digna de melhor
causa, a imputar a derrota aos grevistas de 1936 que pensavam mais em "go·
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 113

zar" do que em fazer filhos e que tinham levado a traição ao ponto de se


concederem duas semanas de descanso anual, esta gente perde uma vez mais
a oportunidade de analisar o nazismo como um veneno administrado em pe·
quenas doses por um louco genial. Pelo contrário, eles obedecem cegamente,
muito antes de escrever em letras gordas, no outono, a palavra "colaboração"
na fachada da sua política. A derrota é aceita como sendo a derrota da demo-
cracia e dos direitos do homem, assemelhando-se a um "deixa-andar" trapa·
lhão. 10 Pretensos defensores da ordem negam não só aquela que a República
tinha feito reinar após os sobressaltos do século XIX e que permitira que um
Pétain, filho de pequenos camponeses, chegasse a marechal, como também
ficam cegos à desordem que uma presença estrangeira e ainda por cima nazis-
ta não podia deixar de gerar. Vêem em Hitler apenas um ditador, que se aman-
sará caso se copie o seu regime. Não se interrogam de modo algum sobre os
seus objetivos. A sua política assenta não sobre uma análise, mas sobre uma
aposta perdida. Depois da agressão inglesa de Mers el-Kébir (3 de julho), eles
propõem uma colaboração militar e, se esta não se concretiza, a razão está em
Berlim, não em Vichy.
Mas infelizmente poucas pessoas disputam o terreno, a não ser De Gaulle
e um punhado de seguidores. Voltando a cair nos erros dos seus camaradas
alemães de 1933, que viam no nazismo essencialmente a destruição oportuna
de antigos poderes, os comunistas franceses tomam uma atitude de espera
que pode ir, sobretudo no início, até a busca de uma coexistência pacífica com
o ocupante - poderia falar-se mesmo de veleidades de colaboração, se a pa-
lavra não tivesse uma conotação tão forte, se não evocasse irresistivelmente a
perseguição aos judeus e a resistentes praticada mais tarde por Vichy. O PCF
não vai além de uma exigência de reaparecimento legal do!'. Humanité e do
retomo legal bastante imprudente dos eleitos nos municípios da zona ocupa-
da que levará, no outono, a detenções estúpidas.
Os comunistas opõem-se decerto, desde o início, a Pétain, o que lhes
permitirá, ao percorrerem os arquivos, exumar precoces citações combativas.
Mas, ao criticarem o escravo francês em vez do amo alemão, dão claramente
a impressão de oferecerem a este os seus serviços. Além de se baixarem assim
ao mesmo nível moral, não dão prova de qualquer superioridade intelectual.
Fazem o jogo de Hitler, que não quer nenhuma das colaborações propostas ou
sugeridas. Ele não procura senão dividir os franceses em fações rivais e manter
cada uma delas paralisada com promessas.
Convém explicar que, à luz das últimas investigações, 11 se a postura de
114 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

espera da parte dos comunistas franceses durou vários meses, as veleidades de


acordo não duraram senão algumas semanas e elas resultaram, pelo que se
pode apurar, de iniciativas de Jacques Duelos. O seu chefe, Maurice Thorez,
logo que pôde, deu a conhecer, a partir de Moscou, a sua desaprovação e a do
Komimem (Internacional Comunista). Por outro lado, os comunistas da Fran-
ça estavam longe da unanimidade e nada contesta os atos imediatos de resis-
tência praticados, em nome do partido, por um tal Charles Tillon. Mas era
mesmo Duelos quem comandava e, se ele interrompeu, a partir do mês de
agosto, qualquer negociação com o ocupante, toma-se forçoso encarar os con-
tatos precedentes como o resultado de um oportunismo stalinista, estranho a
qualquer rigor antifascista ou nacional, engendrado por um alto dirigente,
cuja biografia transborda de feitos patrióticos, por diretivas vindas de Mos-
cou, em setembro de 1939: considerar a guerra, à semelhança da anterior,
como uma "guerra imperialista" na qual os comunistas não têm de tomar par-
tido.
O grande ano de Hitler é, se refletirmos, aquele que vai de 22 de junho de
1940 - armistício com a França - a 22 de junho de 1941 - invasão da
URSS. Estragando os seus planos, a obstinação de Churchill - que faz a
aposta de manter o seu país sozinho em guerra, no meio das grandes potên·
cias, contra uma Alemanha que neutralizou todas as outras - dá ao campeão
alemão a oportunidade de manifestar todo o seu talento. Ele tinha enganado
mesquinhamente a França, fazendo crer que pretendia invadir apenas a Bél-
gica. Depois, engana magistralmente o mundo, fingindo atacar a Inglaterra,
depois de lutar com ela no Mediterrâneo e nos Bálcãs, quando isso não passa
de um movimento de cerco, que lhe permite apresentar-se armado dos pés à
cabeça nos três mil quilômetros da fronteira soviética.
Aqui, é necessário analisar a responsabilidade de Stalin, pois a defesa do
seu país vai ser completamente tomada de surpresa, provocando vários mor-
tos em combate, o que um pouco de vigilância teria evitado, e sobretudo
milhões de prisioneiros condenados à morte por subalimentação: como Hitler
era um racista, especialmente antieslavo, a mortalidade infinitamente superi-
or dos seus prisioneiros russos, sérvios ou poloneses, em relação aos franceses
ou aos ingleses, não tinha nada de imprevisível. Surgiu recentemente uma
tese curiosa: Stalin teria desguarnecido a sua defesa como um jogador, para
melhor atacar. Os seus planos eram unicamente ofensivos, e Hitler teria to-
mado a dianteira.12 Abandonemos este resgate de teses nazistas da época e
vejamos os fatos.
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 115

Em outubro de 1940, Hitler conduz a sua maior ofensiva diplomática,


provavelmente destinada, prioritariamente, aos eleitores americanos chama-
dos às umas em 5 de novembro: trata-se de lhes mostrar que o Führer tem a
situação perfeitamente sob controle e que vale mais votar em Wilkie do que
em Roosevelt, que, ao apoiar Churchill, procura uma briga perdida com o
vencedor inconteste da guerra européia. Encontra-se com Pétaín, Franco e
Mussolini. Acontece que Molotov foi convidado para ir a Berlim no mesmo
período, e, arrastando os pés, só chega em 12 de novembro, estragando em
parte o efeito do chefe alemão: quem sabe o que teria acontecido, não apenas
na disputa americana, mas no confronto pennanente entre Churchill e os
pacifistas britânicos, se Hitler tivesse podido, depois dos seus encontros de
Montoire, Hendaia e Florença, exibir também Stalin atrás do seu cortejo
triunfal?
Propõe à URSS uma aliança contra a Inglaterra e uma zona de expansão
na Índia. Molotov recusa. As conversações são cruéis para os ditadores capi-
talistas. O comissário do povo mostra-se infinitamente mais digno do que
Pétain e Franco. No entanto, a dignidade não é um seguro contra os homicí-
dios engendrados pela estupidez. Terá Molotov entendido melhor do que os
outros? Não! Provam-no as confidências feitas na vellúce a Félix Tchouev.
Ele acreditou que Hitler pretendia realmente invadir a Inglaterra e portanto,
ao recusar a sua aliança, a URSS ganhava tempo, mesmo que desse trunfos ao
seu próprio conquistador. Para justificar a agressão, poderia sempre dizer que
tinha proposto um acordo e que tinham recusado. Mas, de qualquer fonna, a
armadilha era perfeita: se tivesse aceito um tratado, Stalin teria reativado o
descrédito lançado sobre o seu país pelo pacto germano-soviético e contraria-
do alguém que quisesse ir em seu auxílio, no momento do inevitável ataque. n
No primeiro semestre de 1941, o gato continua a brincar com o rato. 1
Stalin compreendera bem que pretendiam atacá-lo. Quando ele ignora as .
advertências de Churchill a esse respeito, tal como as de Richard Sorge, não é
por estupidez. É que ele tem um objetivo muito modesto: que o ataque não
ocorra nesse ano. Vai portanto fingir que quem perde ganha e rivalizar na
falta de preparação nas fronteiras, para mostrar bem a Hitler que este não
arrisca nada em mandar os seus peões contra a Inglaterra. Vai acentuar esta
atitude de dia para dia, 14 e até depois do início do ataque. Simultaneamente,
Goebbels soltara, no início de junho, o boato de um desembarque alemão na
Inglaterra e em breve de uma viagem de Stalin a Berlim, que a Tass desmen·
tira. E eis que, no dia 21 à tardinha, Stalin informa subitamente a Berlim que
116 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

aceita ir! Ainda no dia seguinte, quando começa a invasão, dá a ordem de


não resistir, esperando sem dúvida tratar-se de iniciativas de uma parte dos
generais alemães, para forçar o seu governo: neste caso, é ele que, em deses-
pero de causa, se associa à teoria de "Hitler, ditador fraco" . 15
Em tudo isto, os comunistas podem encontrar apenas um consolo: o fato
de a URSS ter agüentado o embate e ficado de pé se deve à reação rápida das
massas e não aos seus dirigentes.

O jogo americano

Os Estados Unidos, surpreendidos pela queda da França, se prepararam


para fazer face às novas responsabilidades, simultaneamente mundiais e capi·
talistas, em tempo recorde. Está na hora de encerrar a discussão ridícula em
que uns dizem que os soviéticos fizeram o essencial do trabalho contra Hitler
e outros que eles só resistiram graças ao apois americano. Com efeito, os dois
grandes mereceram bem as respectivas denominações, por razões que se com·
pletam. Mobilização humana e econômica de um povo que luta pela sua
sobrevivência sob uma autoridade férrea, de um lado, dinamismo conquista·
dor de uma nação em formação, do outro, esmagaram Hitler que, sem ter
ficado totalmente surpreendido com isso, tinha subestimado ambos os fenô-
menos e esperava, sobretudo, poder liquidar um antes de enfrentar plena·
mente o outro.
Após ter sublinhado o peso do anticomunismo nas decisões que deixaram
durante tanto tempo o campo livre para Hitler, gostaria agora de demonstrar
que os vencedores ocidentais inverteram o rumo, pondo de lado, não sem
mérito, a sua repulsa à URSS.
É evidente e bem conhecido o caso de Churchill. Aquele a quem Lenin
tinha atribuído o título de "maior adversário da revolução russa" pôs água na
fervura a partir de 1935, começando a dizer que o perigo nazista era mais
ameaçador do que o perigo comunista e, a partir de 1938, impeliu o seu país a
procurar a aliança com Moscou - uma esperança à qual nenhum conluio
germano-soviético o fez alguma vez renunciar. É, pois, sem forçar a sua con·
vieção, que no dia 22 de junho ele redige e pronuncia à noite um discurso
extraordinário no qual, sem renegar as suas opiniões passadas, acolhe na luta
de braços abertos o aliado que Hitler lhe traz numa bandeja.
O fenômeno com Roosevelt é mais discreto. Pelo contrário, ele se cala no
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 117

dia 22 e nos dias seguíntes. Pragmátíco, pensa sem dúvída que encorajamentos
não mudarão de ímedíato a sorte das armas e que, se a URSS desmoronasse
como um castelo de cartas, seria lamentável ter se comprometído com ela.
Não obstante, age, e como poucos americanos e poucos soviéticos se felí-
cítaram por esta ação talvez devido aos preconceitos ideológicos recíprocos, é
hora de tomá-la pública.
Resta, além dos Estados Unidos, uma única grande potência fora da guer-
ra: o Japão. Bem astuto seria quem pudesse dizer se entraria nela... pois o
próprio não sabe. E, sobretudo, não sabe contra quem. Mais do que um fascis-
mo, o regime japonês é um ímperialismo em que o exército tem grande impor-
tâncía. Tendo iniciado a sua expansão em 1890, pouco depois dos Estados
Unidos, chegou a todos os lugares com algum atraso em relação àquele país,
seja às Filipinas ou às ílhas do Havaí. Contrariado, teve de ceder várias vezes.
No entanto, os seus dirigentes estão demasiado bem informados para supo-
rem que era chegado o momento de um confronto direto. Eles preferem ad-
versários mais fracos, particularmente as potências européias já vencidas pela
Alemanha, como a França, vulnerável na Indochina, ou a Holanda, com difi-
culdade em defender as Índías Holandesas. Encara também a possibilídade de
enfrentar a Grã-Bretanha, que desguarnece as suas defesas de Hong Kong ou
de Cíngapura a fim de concentrar as suas forças contra o Reich. Uma outra
opção é possível: estender-se pela Sibéria, à custa da URSS. Opção bem enca-
rada nos anos 30, que permitía dar suporte às íniciativas japonesas contra as
províncias orientais da China, oficialmente para barrar a progressão do comu-
nismo. O banho de água fria chegou com o pacto germano-soviético, concluí-
do no exato momento em que os exércitos japonês e soviético mediam forças
em combates fronteiriços. Desiludida com Berlim, Tóquio acaba por assinar
um pacto de não-agressão com Moscou, em abril de 1941. Hitler, que desta
vez preparava a sua agressão contra a URSS, tinha feito tudo para dissuadir os
japoneses de tomarem essa atitude: com ela, o Japão, além de se vingar do
desprezo dos nazístas pelos seus ínteresses em 1939, espera virá-los para oeste
e incitar Berlim a liquidar a sua guerra contra a Inglaterra antes de iniciar
uma nova. É provável que Matsuoka, o ministro japonês das Relações Exte-
riores, que, em março-abril de 1941 visita Moscou, Berlim e Roma, tenha
pensado que era suficientemente astuto para levar Hítler a invadír a Grã-
Bretanha, o que teria permitido ao Japão ocupar sem grandes perdas as res-
pectivas colônías asiáticas.
Restava convencer os Estados Unidos a fecharem os olhos, apostando na
118 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

sua falta de simpatia pelos impérios coloniais europeus. O êxito era incerto, e
Matsuoka sabia disso. Desde que constata, em 22 de junho de 1941, a ruína
dos seus esforços e a opção irreversível de Hitler por uma expansão à custa da
URSS, 16 muda de opinião e defende, no seu Gabinete, um ataque à Sibéria.
É aqui que Roosevelt intervém. Ele faz saber ao governo japonês, em 4 de
julho, que os Estados Unidos ficariam extremamente contrariados se o Japão
atacasse a URSS. Eles dispunham de muitos meios de pressão. Tinham,se
lançado há dois anos contra as ocupações asiáticas do Japão, numa política de
sanções econômicas graduais, que não atingiam ainda o petróleo. Teria o pri,
meiro,ministro Konoye receio de um embargo a este recurso estratégico? A
verdade é que ele sacrificou Matsuoka e qualquer idéia de agressão anti,sovié,
tica em 16 de julho. A tranqüilidade na fronteira siberiana, que as mensagens
de Sorge faziam crer durável, permitiu a Stalin convocar Jukov, o general dos
combates fronteiriços de 1939, cornos seus melhores regimentos. Estes foram
deslocados para a região de Moscou ao mesmo tempo que os alemães, para
disputar vitoriosamente o terreno, em dezembro seguinte. Roosevelt tinha
contribuído para salvar Stalin e, ao fazer isso, atraiu a ira para si. Pois, para
agradar aos linha.-dura do seu gabinete, Konoye teve de tomar uma iniciativa,
e esta foi a invasão, em final de julho, do sul da Indochina, que implicou o
embargo petrolífero e em conseqüência a obrigação, para o Japão, de agir
depressa, se queria agir. E aconteceu Pearl Harbor.

Pearl Harbor: como e por quê?

Uma chuva de bombas e torpedos abateu,se em 7 de dezembro de 1941


sobre uma base adormecida. Causou mais de duas mil vítimas, depois ateou
no Pacífico um incêndio que causou milhões de mortes e terminou com uma
dupla explosão nuclear.
Se quisermos nos ater a uma visão tradicional, estes mortos se devem
menos ao capitalismo do que ao feudalismo, para não dizer a uma selvageria
primitiva. Teria sido o Japão dos samurais, utilizando a indústria moderna
apenas como um instrumento a serviço de um apetite secular de domínio, que
traiçoeiramente atacaria Pearl Harbor. 17
Uma análise mais detalhada do fenômeno obriga, como destacamos ªº'
tes, a regressar à origem do imperialismo japonês, no século XIX, e à sua inser,
ção tardia no jogo das potências. O bom aluno não assimilou somente as li,
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 119

ções técnicas do capitalismo, mas também, e com igual rapidez, as suas lições
geopolíticas. Tentou construir para si um domínio colonial, primeiro à custa
da China, aproveitando a distância das potências européias e jogando com as
suas rivalidades.
A sua cúpula dirigente estava, desde o início, dividida quanto à dosagem
de modernidade e tradição. Mas a ruptura também acontece dentro das pes-
soas. Como todos os dirigentes não-europeus que não são puras criações do
Ocidente, as elites japonesas se perguntam constante e ansiosamente quando
devem ultrapassar o limite entre a importação de valores ocidentais, necessá-
ria ao desenvolvimento, assim como à simples existência, e a preservação das
características nacionais. Daí uma ruptura, de contornos pouco nítidos, entre
burgueses modernistas, preocupados em manter a paz com as grandes potên-
cias, e sobretudo com os Estados Unidos, e outros burgueses que desenvolvi-
am um nacionalismo xenófobo.
Em 1941, o primeiro-ministro Konoye, bastante agressivo em 1937, tor-
na-se mais moderado e procura manter o país fora da Guerra Mundial. Como
o Japão já se encontra envolvido numa guerra local, na China, tem que aca-
bar com ela o mais rapidamente possível, através de um compromisso com o
aval de Washington. Konoye esbarra, dentro de seu próprio gabinete, com
uma tendência belicista que defende uma solução militar que privaria a Chi-
na do seu apoio externo, dado pela Sibéria soviética e Birmânia inglesa. Daí,
pensam os belicistas, a necessidade de uma guerra contra pelo menos uma das
duas potências. Enquanto aguardam, o desejo geral é que os Estados Unidos
não se envolvam. A controvérsia política volta a dividir os chefes militares: o
Exército encara mal a evacuação de territórios chineses, enquanto a Mari-
nha, conhecendo melhor o estado de espírito e os recursos da América do
Norte, permanece cética quanto à possibilidade de uma guerra contra a Ingla-
terra ou a Rússia, sem intervenção dos Estados Unidos.
Mas tinha começado uma partida de pôquer incomum no início desse ano
de 1941. O mais prestigiado dos almirantes, Yamamoto, impôs a idéia de que
era impossível manter os Estados Unidos fora de uma guerra e que, se os
interesses do Japão exigiam uma, tal conflito tinha de começar com um ata-
que-surpresa contra a frota de Pearl Harbor, cuja destruição podia deixar o
campo livre para uma ofensiva japonesa. Provavelmente para seu espanto,
recebeu a ordem de estudar os planos desse ataque. Isso é sabido há muito
tempo. Mas Yamamoto é apresentado como um homem dividido entre suas
convicções pacifistas e sua paixão pela luta. Documentos japoneses recente·
120 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

mente publicados sugerem que ele aceitou dirigir a operação apenas para
sabotá-la. Como evidência, as últimas ordens transmitidas à frota de ataque:
esta frota, a mais poderosa de toda a história naval, devia dar meia-volta, sem
mesmo consultar o Estado-Maior, se fosse identificada durante a sua viagem
de onze dias entre as Kurilas e o Havaí, mais de 24 horas antes de atacar; e
travar batalha em caso contrário. Ora, era difícil imaginar que nenhum meio
de reconhecimento aéreo assinalasse durante dez dias uma esquadra daque-
las, para não falar dos encontros fortuitos com navios ou aviões. Os belicistas
aceitaram um mau negócio, e os pacifistas fizeram um jogo aparentemente
sem riscos. Será que os Estados Unidos têm uma parcela de responsabilidade
na surpreendente carência de meios de reconhecimento aéreo a partir do
Havaf, ou foi apenas má sorte? A resposta é menos simples do que supõem
alguns adversários de Roosevelt, que acham que o presidente vigiava os bar-
cos agressores e os deixou agir para forçar a uma mudança de posição a opi·
nião pública do seu país, ainda pacifista. A ve'rdade é mais ou menos o contrá·
rio. Ele teria dado tudo para saber o que estava sendo planejado. A detecção
de uma força de ataque, que viajava clandestinamente enquanto prosseguia
em Washington a missão de Nomura e de Kurusu, embaixadores extraordiná·
rios, teria permitido que seu país confrontasse o Japão e arrancasse a forma•
ção, em Tóquio, de um governo decididamente pacifista: o seu objetivo era,
no fundo, o mesmo de Yamamoto.
A base de Pearl Harbor, como todas as dos Estados Unidos no Pacífico, foi
efetivamente colocada em estado de alerta pelo comandante supremo das
Forças Armadas, o general Marshall, mas em duas ocasiões: em outubro, no
dia seguinte ao da demissão de Konoye e da sua substituição pelo general
Tojo, presumível belicista; depois, em 27 de novembro, depois da ruptura das
negociações com Nomura, que parecia definitiva. Ora, nessas duas ocasiões,
nada aconteceu. No primeiro caso, os japoneses voltaram à mesa de negocia·
ções com novas propostas. Portanto, Roosevelt, após ter receado um ataque
no final de novembro, volta a ter esperança no princípio de dezembro, e reata
certos contatos. O que ele ignorava era que precisamente no segundo caso, o
Japão, decidido a atacar na rota marítima do Havaf, ou melhor, a correr os
riscos que mencionamos, precisava de um prazo de onze dias para preparar as
suas forças. Por outro lado, num período de tensão internacional tão forte,
ninguém imaginava um ataque-surpresa contra um objetivo tão distante do
Japão como o Havaí, pelo menos com meios importantes. Era antes esperado
nas Filipinas. E o exército americano estava exatamente transferindo equipa·
.
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A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 121

mento de um arquipélago para o outro... o que explica a concentração, entre


os dois, de instrumentos de reconhecimento aéreo com base no Havaí.
A responsabilidade americana no caso de Pearl Harbor pode, portanto,
ser resumida em uma palavra: racismo. Na verdade, os dirigentes americanos
não o sentem em relação aos seus equivalentes japoneses como Hitler em
relação aos judeus. Trata-se de um mero sentimento de superioridade, quer
moral, quer intelectual ou técnico. A Casa Branca não imaginava que esse
país que se desenvolvera tardiamente fosse capaz de tanta audácia e sabedo-
ria. Roosevelt e Marshall supunham que o controlavam e o dominavam, tan-
to militar como diplomaticamente. A decodificação, pela máquina "Purple",
das comunicações mais secretas entre Tojo e Nomura aumentava o sentimen-
to de superioridade ... e de segurança. 18

Conclusão

A gênese da Segunda Guerra Mundial e o alinhamento de forças ao longo


dos dois primeiros anos mostram simultaneamente que o capitalismo não ti-
nha perdido miraculosamente em 1919 seu potencial belicista e que conser-
vava recursos suficientes para se corrigir e eliminar a sua hedionda variante
nazista, com a ajuda do seu adversário soviético. Rivalidades de grandes po-
tências, com intenções econômicas ocultas, arruinaram primeiro o ideal de
segurança coletiva, antes de Hitler ter manejado o comunismo, no exato
momento em que a URSS, diplomaticamente comedida e entregue a uma
terrível repressão interna, já não parecia assim tão ameaçadora. A agressividade
alemã não permite qualquer dúvida e não podia admitir o pretexto, nos anos
30, do mínimo expansionismo da União Soviética na Europa.
Portanto, Hitler soube, jogando com o ódio dos burgueses à União Sovié-
tica, depois aproximando-se temporariamente dela, impedir a união dos seus
inimigos potenciais, para atacá-los separadamente. No momento crítico de
maio-junho de 1940, tudo estava nas mãos de uma personalidade, Churchill.
Tendo chegado há pouco tempo ao poder, tirando partido das rivalidades na
direção do Partido Conservador, ele conseguiu, com um misto de força de
vontade e astúcia, contrariar a lógica do capitalismo britânico, que levava a
resignar-se com o triunfo de Hitler e a converter as atividades da City em
função deste. Churchill também soube, pouco a pouco, transmitir confiança a
Roosevelt e levá-lo a colocar a serviço do combate ao nazismo as reservas de
122 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

um continente convalescente da crise de 1929 e embriagado pelos lucros cria·


dos pelo conflito.
Percebe-se então como é arriscado atribuir as vítimas de um conflito a um
sistema, e como algumas mortes são preferíveis a vidas submissas. Sem
Churchill, teria havido muito menos mortos entre 1940 e 1945 porque Hitler
teria consolidado durante mais tempo o seu poder e, sem dúvida, destruído o
comunismo, na sua versão stalinista, muito antes de 1991 (e talvez até sem
guerra, pois Stalin poderia ter se resignado a ceder a Ucrânia em virtude da
relação de forças, como Lenin tinha feito em Brest·Litovsk). E Hitler não
teria matado tantos judeus, já que, como demonstram estudos recentes, ele
não opta por sua "solução final" senão em função da lentidão do seu avanço
na URSS em 1941, que o faz considerar a possibilidade de derrota. Uma Ale·
manha triunfante, conseguindo a submissão das outras potências perante uma
confortável extensão das suas fronteiras para Leste, teria permitido que os
eslavos vivessem, reduzidos à servidão, e acabado de expulsar os judeus do seu
"espaço" - com uma brutalidade sem dúvida fatal para muitos, mas sem
genocídio sistemático.
Os dirigentes das grandes potências capitalistas, cegados pelo anti·
comunismo, colocaram em marcha uma violência racista das mais criminosas.
Quanto ao comunismo stalinisca, ele tentou, de uma forma desastrada, pre·
servar os interesses do movimento operário identificados com os do Estado
soviético, ele mesmo por vezes bastante ingênuo no que diz respeito às inten·
ções de Hitler a seu respeito. A permanência endêmica da guerra, a partir de
1945, na periferia do mundo desenvolvido, antes ou depois da destruição da
URSS, mostra que a lição só foi aprendida em parte. Se foi possível evitar a
eclosão de conflitos entre grandes potências, só os derrotados na Segunda
Guerra Mundial se abstiveram de usar a força no seu relacionamento com os
países subdesenvolvidos. Da Indochina à Chechênia, passando por Suez,
Afeganistão, Malvinas e Iraque, os "quatro grandes" vencedores recorreram
alegremente à guerra ... ao mesmo tempo em que acusavam os dirigentes ad·
versários de fascismo, mesmo quando eles pertenciam a emias que o autor de
Mein Kampf apreciava muito pouco. Ontem Nasser, hoje Saddam, são novos
Hitler com os quais qualquer acordo seria como o de Munique ... O presidente
Clinton toca facilmente essa música, e, se os seus parceiros do Conselho de
Segurança recentemente o criticaram, foi pelo motivo invocado para a guerra
que pretendia fazer, e não pelo princípio segundo o qual todos os Estados, por
mais poderosos que sejam, têm de submeter-se a uma norma comum. Neste
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL 123

final de século, o capitalismo continua a ter dificuldades em instaurar, no


plano das relações entre as nações, a ordem pacífica que faz reinar nos seus
Estados de direito.

François Delpla é historiador, especialista em Segunda Guerra Mundial, autm; entre outros, de
Aubrac. Les fairs e! la calomnie, Le Temps des Cerises Éditeurs, 1997.

Notas:

1. Cf. Jacques Bariéty, Les rela1ions franco-allemandes apres la Premiere Guerre mondiale, Pa-
ris, Pedone, 1977.
2. Cf. F. Delpla, Churchill e1 les Français (1934-40), Paris, Plon, 1993, eh. 1.
3. lbid., pp. 141-153 (com as referências aos arquivos corrigidos de Daladier), e, do mesmo,
Les papiers secrers du général Doumenc, Paris, Orban, 1992.
4. A missão Welles é ainda mal conhecida e as memórias do viajante, publicadas em Nova
York a partir de 1944 com o t(tulo The Time far Decision, servem-se do estado de guerra
para relatar as conversações de forma seletiva. Entretanto, a partir de 1959, o Departamen-
to de Estado norte-americano publicou, de uma forma que pretende ser totalmente abran-
gente, as informações dadas por Welles ao governo: Diplomaric Papers, 1940, t. 1. Uti-
lização muito parcial destes documentos em Churchill el les Français, op. cit., pp. 337 segs.
e 339 segs. sobre as outras conversações de emissários americanos, cf. John Costello, Les
dixjours qui om sauvé l'Occident, Paris, Oliver Orban, 1991, eh. 3, Les éclaireurs de la paix.
S. Churchill el les Français, op. cit., pp. 371-373. Em Le Livre noir du communisme (Paris,
Laffont, 1997, p. 234), Nicolas Werth cita, com a mesma data de 5 de março, um outro
texto, mais detalhado, assinado por Béria, no meio de uma página muito genérica sobre
as cobranças cometidas nos territórios ocupados pela URSS em 1939-40. Continua a não
existir nenhuma reflexão sobre a data e nenhuma discussão sobre minha tentativa de
explicação de 1993. O que tende a confirmar a crítica feita freqüentemente a esta obra,
de ser mais rica em balanços do que em reflexões.
6. Na parte da Polônia que ocupava, a Alemanha tinha proibido qualquer instrução além da
primária e perseguiu as elites, especialmente religiosas, de todas as maneiras poss(veis: cf.
por exemplo o n11 40 (outubro de 1960) da Revue d' Histoire de la Deuxibne Guerre mondiale.
7. Sobre os preparativos militares alemães durante a Drôle de Guerre, cf. F. Delpla, La ruse
nazie /Dunquerque, 24 maio 1940, Paris, France-empire, 1997.
8. Período estudado por John Costello, op. cit., cap. 12. Um surpreendente black-out persis·
te oito anos após a revelação, pelo Figaro de 13 de julho de 1990, dos trabalhos de uma
pequena equipe de eruditos de Sarthe, reforçada por Philippe Cusin e Jean-Christophe
Averty, sobre as variantes do texto do apelo pronunciado pelo general de Gaulle a 18 de
junho. Elas remetem muito provavelmente à luta entre Churchill e Halifax sobre a conti·
nuação da guerra: cf. Churchill el les Français, op. cit., pp. 717-727. Do mesmo, sobre o
papel de Jean Monnet, entrevista coletiva em 16 de junho 1994, na casa do autor.
9. E não em 3, como se imprime quase sempre: cf. F. Delpla, Montoire, Paris, Albin Michel,
1996, pp. 220-225.
124 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

1O. Cf. Marc-Olivier Baruch, Sen.rir l'État {rançais, Paris, Fayard, 1997, eh. 1. - bem resumi·
dos no livro Eugen Fried de Annie Kriegel e Stéphane Courtois (Paris; Seuil, 1997), pp.
356 a 362.
11. Victor Suvorov, Le brise-glace, Paris, Orban, 1989. Esta prosa, um dos últimos rebentos
da Guerra Fria (o autor, que fugiu para o Ocidente no princípio dos anos 1980, tinha sido
apanhado pela lntelligence Service), não é no entanto desprovida de interesse. Valendo-
se de um estudo rigoroso, até então inexistente, da ordem de batalha soviética, permite
pressentir em Stalin não um desejo suicida de atacar Hitler pelo seu poder, mas determi-
nados projetos de futuro: cf. Paul Gaujac, Barbarossa: l'Armée Rouge agresseur ou agressée!,
conferência no lnstitut d'Histoire des Conflits Contemporains, 26/2/1998.
12. Sobre todos estes encontros do outono de 1940, cf. Delpla, Montoire, op. cit.
13. Com uma exceção: a 5 de maio, sem dúvida para mostrar a Hitler que pode também
reagir se o agredirem, e possivelmente para não deixar a combatividade das suas tropas ir
por água abaixo, ele diz publicamente que "convém passar da defesa ao ataque": cf. Gael
Moullec, "1941: cornment Hitler a manipulé Staline", r. Histoire, março de 1998.
14. Cf. La ruse nazie, op. cit., eh. 12.
15. Cf. Paix et guerre /La politique étrangere des États· Unis 1931-1941, Washington, Department
of State, 1943, pp. 135-136.
16. Cf. E Delpla, Les nouveau.x mysteres de Pearl Harbor, inédito. Extratos na Internet: http: /
www.amgot.org/fr.hist.htm.
17. Acrescentemos para uso exclusivo dos espíritos menos sectários que a passividade ameri-
cana nos dias que precederam o ataque, e mesmo depois do seu início, tanto nas Filipinas
como no Havaí, se assemelha à de Stalin em junho anterior e poderia ter o mesmo obje-
tivo: encorajar as tendências pacifistas no país agressor, mostrar-se passivo.
18. Cf. Philippe Burrin, Hitler etles ]uifs, Paris, Seu~l, 1989.
SOBRE A ORIGEM DAS GUERRAS E UMA
FORMA RADICAL DO CAPITALISMO
PIERRE DURAND
Citar Jean Jaures é algo que se esquece facilmente nos nossos dias. No
entanto era ele que afirmava que o capitalismo traz em si a guerra como a
nuvem traz a tempestade. E poderíamos acrescentar que esta verdade é ainda
mais flagrante quando o capitalismo toma a forma política do fascismo. Para
nos mantermos na Segunda Guerra Mundial e nos seus preâmbulos, é incon-
testável que o capitalismo fascista esteve na sua origem. Mussolini atacou a
Etiópia e a Albânia, Hitler apoderou-se da Áustria e da Tchecoslováquia, o
Japão militarista atacou a China e a União Soviética, Franco, auxiliado pela
Alemanha, instaurou o seu poder contra a República. Numa última etapa,
Hitler provocou a guerra mundial atacando a Polônia.
Nunca se saberá com precisão matemática quantos mortos teve a matan-
ça mundial. Sem dúvida, cerca de cinqüenta milhões da Ásia à Europa e à
África, entre eles, cerca de vinte milhões, civis ou militares, da União Sovié-
tica, que dificilmente poderá ser considerada, nas circunstâncias, responsável.

Foi no quadro geral desta guerra mundial que apareceu a expressão mais
crua e mais violenta da exploração capitalista: aquela de que foi vítima a mão-
de-obra concentrada nos campos nazistas. Os "KZ" de Hitler tinham como
objetivo, na origem, separar adversários políticos do resto da população ale-
mã. Aqueles eram tratados tão duramente que um grande número deles mor-
reu entre 1933 e 1940. Em seguida, as SS, que eram as guardiãs dos campos,
serviram-se dos seus prisioneiros para ganhar algum dinheiro, fazendo-os tra-
balhar nas empresas de sua propriedade, sobretudo pedreiras.
A partir de 1942, os grandes trusts alemães da indústria de guerra exigiram
que fosse compensada a mobilização forçada das forças de trabalho tradicio-
nais por meio da utilização intensiva da mão-de-obra concentrada. Assim
apareceram, dentro dos próprios campos, fábricas de armamento diversas e,
no exterior, em kommandos onde o modo de vida e de morte rivalizava - por
vezes era ainda pior - com o dos "KZ" de que dependiam empresas de todos
os ramos da grande indústria: aviação, produtos químicos, metalurgia, extra-
ção de minério etc. Os prisioneiros trabalhavam noite e dia. Eram escravos
sujeitos a tarefas, e a vida deles pertencia às SS sem restrições nem limites.
No entanto, como escreveu um historiador, "é necessário não cair na ar-
128 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

madilha". Os "KZ" nazistas e os seus kommandos não ressuscitaram a antiga


economia. Os fabricantes de VZ, de espingardas e de aviões que empregavam
os detidos às centenas de milhares, não pertenciam a um mundo estranho aos
movimentos de capitais, à bolsa de valores e aos balanços consolidados. 1

O grande mestre da exploração industrial dos detidos dos "KZ" é um au·


xiliar direto de Himmler, chefe das SS e de todas as polícias, o general Oswald
Pohl, chefe supremo da administração econômica SS, a WVHA, que ele criou
em l 2 de janeiro de 1942. É a partir das diretivas de Pohl que vai ser organiza·
da aquilo que o ministro da Justiça de Hitler, Otto Thierak, chamará de "a
exterminação pelo trabalho".
O princípio é relativamente simples. A mão-de-obra concentrada deve
fornecer uma mais-valia tal que cubra as despesas da sua manutenção pelas
SS e garanta os maiores lucros possíveis às firmas exploradoras, que vão das
maiores (Krupp, Siernens, IG-Farben Industrie, Messerschmidt etc.) às me·
nores - mesmo algumas de tipo artesanal. Para atender às necessidades da
indústria, as SS alugam-lhes detidos a um custo salarial inferior ao da mão·
de-obra livre. Para que ela própria seja beneficiária, tem necessidade de redu·
zir ao máximo as despesas de manutenção dos detidos (alimentação, vestuá·
rio, alojamento). Pohl coloca seus periros para trabalhar. Eles descobrem que
o ponto de rentabilidade corresponde à duração média da vida dos detidos de
cerca de oito meses. Bastará substituí-los, sob os mais diversos pretextos, nos
países conquistados. 2
É interessante comparar esses cálculos teóricos com a realidade. Verifica·
se então que entre 1942 e 1945 - período relativamente curto - a duração
média da vida dos detidos dos campos de concentração foi de oito a nove
meses. 3

Não nos demoraremos na questão do ouro nazista roubado dos judeus da


Europa e transferido principalmente para a Suíça, para ser lavado e utilizado
na compra de material de guerra para a Wehrmacht. Também aí se trata de
um tráfico efetuado segundo as regras capitalistas mais estritas.
Menos conhecida é a participação de firmas consideradas respeitáveis na
economia alemã durante a guerra. O jornal britânico The Guardian publicou
em dezembro de 1997 um estudo de David Cesarani, um investigador especi·
alizado no estudo do genocídio dos judeus. Pesquisando o que se passou na
Hungria durante a guerra, chegou ao nome de Wallenberg. Sabe-se que Raoul
SOBRE A ORIGEM DAS GUERRAS 129

Wallenberg conseguiu salvar numerosos judeus húngaros da morte e que


desapareceu misteriosamente na URSS, segundo parece, após a guerra.
Cesarani refere-se aos trabalhos de um grupo de pesquisadores holande-
ses que se debruçaram sobre o caso Wallenberg e fizeram descobertas interes-
santes. Os irmãos Wallenberg eram banqueiros e industriais suecos que, no
período entre as duas guerras, tinham montado "com industriais alemães" um
cartel que controlava 80% do mercado europeu de rolamentos fornecidos
pela firma SKE O banco dos irmãos Jacob e Marcos Wallenberg, o Enskilda
Bank, de Estocolmo, trabalhava em ligação estreita com a SKF. que conti-
nuou a comerciar com a Alemanha nazista durante toda a guerra. Em 1943, a
SKF tinha mesmo aumentado em 300% as suas exportações para a Alema-
nha. Em 1944 fornecia 70% de todos os rolamentos necessários à indústria de
guerra do III Reich. O general Spaatz, responsável americano pelos bombar-
deios, lamentava, afirmando que "toda a nossa ação aérea (contra as fábricas
alemãs) tomava-se inútil".
Os bancos suecos teriam, ao mesmo tempo, lavado cerca de 26 milhões de
dólares de ouro pilhado pelos nazistas. O banco Enskilda teria comprado à
Alemanha entre 5 a 10% de um total de 350 a 500 milhões de títulos rouba-
dos de judeus holandeses. Esta colaboração com a Alemanha de Hitler foi
revelada logo depois da guerra, e os Wallenberg viram os seus bens nos Esta-
dos Unidos serem congelados. A SKF, sempre ligada aos Wallenberg, voltou-
se então para a URSS, que tinha grande necessidade de rolamentos, conce-
dendo-lhe importantes créditos. Mais tarde, com a Guerra Fria, os Estados
Unidos suspenderam toda a ajuda aos soviéticos e ameaçaram tomar pública
a colaboração dos bancos e das indústrias suecas com os nazistas. Cesaraní
conclui que, sem dúvida, Raoul Wallenberg foi vítima dessas intrigas sombrias
que, ao fornecerem a Hitler material estratégico, fizeram correr sangue entre
1939 e 1945.

Pierre Durand, antigo deportado resistente em Buchenwald, é especialista em deportação,


autor, entre outros, de Resistência dos franceses em Bi1chenwald e em Dora, 21 edição, 1991.

Notas:
1. Dominique Deceze, C esclavage concentrationnaire, FNDIRP, 1979.
2. A atividade de Pohl e dos seus serviços veio à luz durante o processo de Nuremberg.
130 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

l. O extcnnínlo dOJ judcua e d<» dgan<» nas clm.aras de PJ d«o= de uma outra lógica.
Todavía, há que~ t~ em coma que um certo número de indivld~ pertencen tes a estas
categorias (oi igualmentc uti!Uado como mão-de-obra em Au.i.chwia e outros campos
de&tc tipo, a panir do Anal de 19~2.

r
j '
IMPERIALISMOS, SIONISMO E PALESTINA
MAURICE BUTTIN
Na história contemporânea, o destino do povo palestino representa um
verdadeiro anacronismo numa época em que quase todos os povos con-
quistaram a independência.
Para compreender esta situação, impõe-se o conhecimento de um certo
número de dados geo-histórico-políticos referentes ao Oriente Médio.
O papel dos imperialismos ocidentais e russo-soviéticos e o do sionismo
antes da criação do Estado de Israel serão analisados no essencial, no âmbito
limitado deste texto.

O fim do Império Otomano

Agosto de 1914. Começa a Primeira Guerra Mundial. O Império


Otomano já está bastante enfraquecido. A maior parte das suas possessões
européias já tinha sido libertada. O norte da África é colonizado pelas po-
tências ocidentais. A sua integridade só se mantém, há quatro séculos, no
Oriente Médio, por conveniência dos interesses estratégicos da Inglaterra.
Senhora do Canal do Suez e do próprio Egito desde 1882, esta nação recu-
sa-se a aceitar qualquer outra potência imperialista como concorrente nas
rotas terrestres da Índia.
Outubro de 1914. A Turquia do sultão entra em guerra ao lado dos Impé-
rios Centrais. Este será o seu último ato!
A Inglaterra receia um ataque de alemães e turcos contra o Canal de
Suez ... Por isso, muda de idéia e admite, num primeiro momento, uma solu-
ção "árabe" sob controle britânico que substituiria o domínio otomano.

As promessas feitas aos árabes

De julho de 1915 até ao início de 1916, a Inglaterra mantém, com o xerife


Hussein, governador dos Lugares Santos muçulmanos, negociações secretas
mais tarde conhecidas pelo nome de "Correspondência Hussein-Mac Mahon"
1}4 O LIVRO NEGRO DO CAPITAL! M

- o novo residente' britânico no Cairo. Em troe.a d a pr messa de um "reino


ãrabe" libertado, o xerife propõe que a tri ára es se levantem contra o
ocupante turco.
Esta esperança de independência do "Crescente Fértil",• • que então cons-
tituía apenas uma única província turca - a Síria -, não é nova.
O nacionalismo árabe urgiu na rimeira meta de do século XlX, primei·
ro com o rena imemo da língua e da cultura ãrabes, a Nahda - obra de
personalidades muçulmanas e crutãs do Egi to, da Síria, do Líbano e da Pa·
lestina, em lura contra o 1mpenal· mo cultural, depois político, do Império
Otomano.

A partilha imperialista angfo-franasa

Mas a Inglaterra não está zmha na guerra contra a Turquia, aliada das
Potência Cem · . A França e a Rússia dos czares também estão. Estes dois
e oo o, com a França cm primeiro lugar. Não é
L'n.cia na Terra Santa? Não obteve do sultão o
reconheciment o de todos os cristãos do Império Otomano
em 1673?Não ín t:erveio em 182 para salvar de massacres os cristãos maronitas
líbaneses7
A panir de 1916, &ão duzidas em Londres conversações secretas entre
os diplomatas M. Syke e M. Piccx que conduz.em a um "protocolo de acordo"
que estabelece a panilha da região em zon.a.s de influência das duas potências
imperialista - com desprezo 10t31 pelas a..spi.raçõcs árabes e pelas promessas
feitas pelos inglese 1
Para a França, fica o território do Uhano e da Síria enfraquecida. Para a
lnglarerra, a Mesopotâmia (o Iraque) , o 6Udeste da Síria, uma parte da Pales·
tina (Saint Jean d'Acrc) . Para e ta, trata· e de c.orucrvar cm benefício próprio
a "rota das Índias", do Canal de Suez ao Golfo Pérsico.
Uma grande parte da Palestina fica reservada para uma "administração
internacional cuja fo rma deverá ser decidida apó consulta à Rússia" ...
Notemos que esta decisão, destinada a conciliar as reivindicações anglo·
franco-russas, tirando partido dos lugares santos cristãos, não tem qualquer

•Representante Jo ~owmo em um protetor.ido. (N. cln T.)


.. PlarúdCli nlu\i 31' Ull MéJio Oriente on.!e •urgiram Ili grundes dviliz.açõcs pré-chi.Miou. (N. do T.)
IMPERIALISMOS, SIONISMO E PALESTINA 135

ligação com as aspirações dos sionistas, que avançam os seus peões por outro
lado ...

A aliança do imperialismo britânico e do sionismo

O ano de 1917, dramático na frente ocidental, vai alterar um pouco os


planos anglo-franceses no Oriente. É preciso destacar três acontecimentos
principais nessa virada de século:
- A entrada dos Estados Unidos na guerra, em abril, com uma influên-
cia determinante deste país daí em diante, tanto no resultado do conflito
como no desenvolvimento das doutrinas do liberalismo capitalista no mundo.
- A Revolução Russa, seguida da tomada do poder pelos bolcheviques,
em outubro, com o triunfo da ideologia marxista-leninista.
- A "Declaração Balfour", * em novembro, com o reconhecimento ofi-
cial das ambições sionistas pelo governo inglês.
Estas não nasceram na véspera. Se o sionismo religioso - o "Apelo do
Sion", nome de uma colina de Jerusalém -passou a dominar os judeus devo-
tos após a destruição do Templo por Titus em 70, o sionismo político começa-
ra a manifestar-se apenas vinte anos antes.
Efetivamente, data de agosto de 1897 a carta fundadora do movimento
sionista, proclamada no primeiro Congresso Mundial Sionista, reunido em
Basiléia. Um jornalista austríaco, judeu assimilado, Th. Herzl, é a alma deste
movimento nacionalista, nascido das idéias em voga na época em toda a Eu-
ropa, mas sobretudo da constatação da existência de pogroms contra os judeus
na Rússia e na Polônia, e do desencadear de um anti-semitismo virulento na
França, em 1894, com o caso Dreyfus.
O seu programa é formulado desta maneira: "o sionismo tem por objetivo
a criação na Palestina de uma pátria para o povo judeu, garantida pelo direito
internacional."
É preciso lembrar que do Congresso de Basiléia ao de Biltmore em Nova
York, em 1942, os sionistas e os seus amigos nunca utilizaram o termo "Esta-
do", Simples eufemismo para evitar uma oposição demasiado forte em certos
meios ocidentais, incluindo os judeus assimilados, os mais hostis então.

0
Dcclaraç4o que promcre um Estado judaico na Pale•tina (1917), da auroria de Arthur James Balfour,
°'
pol!tico hritAnico que ocupou carga. de primeiro-ministro da• Relações Exteriores. (N. do T .)
136 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Mas Herzl não tinha escrito, em 1896, uma obra que iria marcar a Histó·
ria, Der ]udenstaat (0 Estado judaico)? Aliás , ele mesmo tinha feito esta ob-
servação no seu jornal, no fim do Congresso de Basiléia: "Fundei aí o Estado
judaico. Se eu tivesse a audácia de o proclamar hoje, todos ririam de mim.
Daqui a cinco anos talvez, seguramente daqui a quarenta anos, isso não esca-
pará a ninguém."
Que premonição!
Herzl morre em 1905. Um judeu russo naturalizado inglês assume a causa.
Para Chaüm Weizmann, ao contrário de Herzl, não se concebe a "pátria ju-
daica" fora da Palestina. Brilhante investigador científico, dá uma ajuda pre-
ciosa ao esforço de guerra inglês ao conseguir realizar a síntese da acetona.
Isso abre para ele inúmeras portas, especialmente a de Lloyd George, futuro
primeiro-ministro. Ele é já amigo de Arthur Belfour, futuro ministro das Rela-
ções Exteriores. Propõe a eles a criação de um Estado-tampão judaico na
Palestina sob proteção britânica, a melhor maneira de assegurar a defesa do
Canal de Suez ...
Os ingleses vão comprar esta idéia, principalmente porque receiam ser
ultrapassados pelos judeus alemães favoráveis à causa da Alemanha por ódio
aos russos e porque ela também permite evitar a inremacionalização da Pales-
tina.
A entrada na guerra dos Estados Unidos, a Revolução Russa e as garantias
que é preciso dar aos judeus americanos para que participem do esforço de
guerra e aos inúmeros judeus revolucionários russos, não os deixam hesitar
mais. Balfour pede a Weizmann e a Lord Rotschild - dois raros aristocratas
judeus a seguir a via sionista - que apresentem um projeto de declaração
referente à Palestina. Este projeto alterado seria a base da carta endereçada
pelo ministro das Relações Exteriores britânico a Lord W Rotschild, em 2 de
novembro de 1917, nos termos da qual "o Governo de Sua Majestade encara
favoravelmente a fundação na Palestina de uma Pátria nacional para o povo
judeu e empregará todos os seus esforços para facilitar a realização deste obje·
tiva ..."

A violação das promessas feitas aos árabes

A partir do final de 1917, os dirigentes árabes tiveram conhecimento dos


·~cardos Sykes-Pirot" através do governo bolchevique. Alguns meses após a
IMPERIALISMOS, SIONISMO E PALESTINA 137

"Declaração Balfour", isto é, da ocupação do solo, eles, além das colônias


fundadas já há trinta anos, conhecem um novo imperialismo aliado ao impe-
rialismo britânico!
Para acalmá-los, os governos inglês e francês - que como o governo ame-
ricano aprovaram a "Declaração" - renovam as suas promessas. Na própria
véspera do armistício de 11 de novembro de 1918, eles reconhecem aos povos
libertados do poder otomano "o direito à autodeterminação", cara ao presi-
dente americano Wilson...
A "revolta do deserto" foi, com efeito, muito útil para os aliados. Após
terem libertado Hedjaz, * as tribos beduínas sob o comando do emir Faissal,
filho do xerife Hussein, tomaram Aqaba, chegaram a leste de Amã e todas as
tribos até o Eufrates se uniram. Se o exército britânico de Allenby** ocupou
Jerusalém em 9 de dezembro de 1917, Faisel - o amigo do famoso coronel
Lawrence - e Allenby entraram juntas em Damas em 1 de outubro de 1918.º
Em julho de 1919, acontece em Damasco um congresso geral dos nacio-
nalistas árabes. São votadas várias resoluções condenando os projetos ociden-
tais e especialmente a instalação de uma nação judaica na Palestina...
Isso não causa nenhuma inquietação na Reunião do Conselho Superior
dos Aliados realizada em 25 de abril de 1920 em San Remo: o território árabe
compreendido entre o Golfo Pérsico e o Mediterrâneo é dividido em proteto-
rados da Inglaterra e da França, que serão confirmados, sob a forma de man-
datos, pela nova "Sociedade das Nações" (SDN), em 1922.
A Grande Síria é dividida em quatro partes: para a Inglaterra vão a
Palestina e territórios a leste do Jordão - que veio a ser designada Trans-
jordânia em 1921; à França são atribuídos o Líbano e a Síria. Para os árabes,
o cúmulo foi a "Declaração Balfour" ter sido incluída nos termos do manda-
to britânico!
As promessas feitas aos árabes são totalmente "esquecidas" e os próprios
princípios da carta da SDN violados. A partir de então, o ano de 1920 ficará
para sempre registado, nos textos árabes, como "o ano da catástrofe" (Am AI
Naqba).

0 Provlnciaocidental do Anlbia Saudita sobre o mar Vermelho. Sob dominação otomana fui, de 1916 1
1926, um reino independente que se uniu ao Nadjd pora constituir a Arábia Saudita. (N. do T.)
••Marechal britdnico que, durante a guerra de 1914·18, combateu na Fronço e depois na Pulcstina.
Venceu os turcos cm Meggido (1918). (N. do T.)
138 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Reações árabes. N°"a política britdnica

A partir da primavera de 1921 , irrompem na Palestina manifestações ára·


bes sangrentru. Repetem-se cm 1929 e culminam em 1935 com a primeira
insurreição geral contra todas as forças hritinicas e os seus ali ados sionistas -
que organizam um exército secreto, Haganah. A repressão inglesa é impiedosa:
mais de 5 mil morros.
Mas a guerra aproxima- ~ e desta \ -C: os ingleses temem um acordo secre·
to entre a Alemanha e 05 paú.cs ârahõ. Publicam então, na primavera de
1939, um documento no qual negam qual. er intenção de criar um Estado
judaico. A Palc.~tina devera obrcr a ua independência no prazo de dez anos e
tomar-se um Estado binJK·onat A imigração judaica é limitada.
Os dirigenre5 sionisw il\!ta ~i.c então nos Estados Unidos e, na Con·
fer~nda de Biltmorc (194Z), já não itam em exigir a criação de um Estado
judaico na Palestina, em todo o ttmtório do mandato!
Com a oposição bn rjnica. ai organiza.çõcs sionistas mais radicais iniciam
uma grande campanha de terrorumo CDntra o que chamam de "ocupação
,.
.: 1
inglesa" .
'il
•i '
Nos Estados Unidos, o preruientt Roosevelt se inclina mais para os diri·
gentes árabes. Ma.s o seu desaparecimento bru.ral coloca em e.ena o vice Truman,
que precisa do eleitorado judeu ·para a sua eleição em 1948. Este pede ao
governo inglês que pennita a entrada í.med.1ata de 10 mil refugiados judeus
salvos da Shoah• na Palc ti na. O que foi recll5ado.
Os atos de terrorismo aumentam. e cm 22 de julho de 1946 é dinamitado
1

1'
o Q.G. britânico no King David Hotel. lvlai.s de 90 mort.Oll, dezenas de feridos!
'!:
l l ' Em fevereiro de 194 7, face a uma situação ín,sustentável, o governo inglês
·' decide submeter o caso palestino à ONU.

Dois 1\0\IOS imperialismos entram em jogo

Em março de 1947, o presidente Truman anuncia que os E.m1dos Unidos


assumem as obrigações da Inglaterra no Mediterrâneo Oriental e no Oriente
Médio. Náo as deixarão escapar...
l Por seu lado, em maio de 1947, o representante da URSS na ONU,
:!
"Palavra hcbnica usada pon ~o exrermlnio doa ju.kus peloa nazinu. (N. do T .)
IMPERIALISMOS, SIONISMO E PALESTINA 139

Gromyko, admite a necessidade da "divisão da Palestina em dois Estados in-


dependentes"! Decepção da parte dos nacionalistas árabes. Fala-se de uma
"Declaração Balfour soviética".
Uma comissão de inquérico especial é designada pela ONU. O seu relató-
rio, publicado em agosto de 194 7, recomenda a divisão do país em três unida-
des independentes: um Estado judaico, um Estado árabe e um estatuto inter-
nacional para os lugares santos cristãos, de Jerusalém a Belém - o Corpus
Separaium.
A Assembléia Geral da ONU adota esta proposta em 29 de novembro de
1947, tendo 33 países votado sim, entre os quais os países socialistas, que ajuda-
rão muito as forças judaicas na primeira guerra árabe-israelense de 1948-49.
A população judaica, que representa apenas um terço dos habitantes do
país (600 mil em 1,8 milhão), recebe 55% do território do Mandato britãnico...
O que aconteceu depois ... todos sabem!

Maurice Burtin é advogado e presideme da Associação França-Palestina.



GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE
VIETNAMITA
FRANÇOIS DERIVERY
1
Se são suficientemente conhecidos os acontecimentos marcantes e mais
espetaculares da guerra colonial do Vietnã no período entre 1965 e 1975, o
grande público ignora ainda, em grande parte, as condições de vida das popu-
lações do Sul durante esse período. Primeiro sob o poder discricionário direto
do ocupante, depois durante o chamado período de "vietnamização" iniciado
por Nixon em 1969, por intermédio do seu fantoche Thieu, que, apoiado pela
logística americana, irá revelar-se um dos mais sanguinários carcereiros desta
região do mundo que, nisso, não foi avara. Thieu que, após a demissão de
Nixon em 1974, com o avanço decisivo e vitorioso da FNL, fugiu em abril de
1975.

As operações no terreno

Em 1963, Thieu, apoiado por Eisenhower, toma o lugar de Diem à frente


do Vietnã do Sul, na seqüência de um golpe de Estado militar. A Frente Naci-
onal de Libertação (FNL), apoiada pelo Norte de Ho Chi Minh, nasce no
mesmo momento. Os Estados Unidos, com Kennedy e depois com Johnson,
envolvem fortemente o seu país na guerra. Thieu é finalmente apoiado por
Nixon, eleito para a Presidência dos Estados Unidos, em 1968. Substituirá
Johnson no início de 1969.

A progressão do envolvimento americano no conflito, tanto no plano hu-


mano como material, é significativa. Julho de 1965: 125 mil homens no terre-
no. dezembro do mesmo ano: 185 mil. Dezembro de 1966: 390 mil (mais 64
mil aliados australianos, coreanos e tailandeses). Dezembro de 1968: 580 mil.
A estas forças juntam-se os 700 mil profissionais e os 200 mil milicianos
do exército do Sul.
Os helicópteros americanos são, então, 3,5 mil. Os bombardeios além do
paralelo 17 têm início em 1965, de forma intensiva, a partir de aeroportos na
Tailândia e em Guam. Em três anos de bombardeios, de fevereiro de 1965 a
abril de 1968, os americanos despejaram 500 mil toneladas de bombas no
Norte e 200 mil toneladas no Sul. Em seis meses (1972) terá sido atingido o
144 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

total impressionante de 400 mil toneladas de bombas lançadas. No solo, as


operações de "limpeza" não são menos mortíferas, pontuadas de aconteci·
mentos particularmente sangrentos, como o massacre de 500 camponeses em
My Lai, em 1971, em que o grupo do tenente Calley, investido dos interesses
do Tio Sam, ficou tão célebre, e no mesmo gênero, que a divisão Das Reich,
em Oradour·sur-Glane, em 20 de junho de 1944.
Após o episódio da substituição de Westmoreland por Abrams, a Confe·
rência de Paris tem início em janeiro de 1969. Fortemente criticado interna·
mente, Nixon inicia sua política de "viemamização", que consiste em retirar
as forças americanas terrestres, intensificando ao mesmo tempo as operações
aéreas e reforçando as unidades sul-viemamitas com equipamento, auxílio
logístico e policial, a fim de transferir para elas as operações mais perigosas. O
exército do Sul passa assim, em 1972, para 120 mil militares, mais 600 mil
milicianos recrutados muitas vezes sob coação, como veremos. Quanto à For·
ça Aérea, passou a contar com mais de 2 mil aviões.
Com o pretexto de controlar as pistas de abastecimento da FNL, america·
nos e sul-vietnamitas intervieram no Camboja, em 1970. Os bombardeios no
Norte são retomados com intensidade a partir de 1972, especialmente sobre
Haiphong (porto de chegada dos barcos procedentes da China e da URSS).
Os acordos de Paris são finalmente assinados em janeiro de 1973. A partir da
renúncia de Nixon (1974), e em função dos protestos crescentes da opinião
pública americana contra a guerra, os Estados Unidos abandonam Thieu, car·
niceiro do seu próprio povo, que já não pode contar senão consigo. Este acaba
por fugir, em 21 de abril de 197 5, para gozar uma reforma dourada no país dos
seus protetores. Em 30 de abril, a FNL entra em Saigon.

A repressão interna

Um balanço oficial americano, subavaliado, calcula cerca de 500 mil civis


e 200 mil militares sul-vietnamitas mortos entre 1964 e 1973, e 55 mil ameri·
canos mortos. Estes números, que se referem às operações de guerra terrestre,
provavelmente diminuídos, não levam em conta um nú.mero considerável de
feridos e de mutilados nos dois campos e, evidentemente, no Vietnã do Nor·
te. O número de mortes nas fileiras do Vietcong e no Vietnã do Norte é, pelo
menos, de 725 mil, entre 1964 e 1973. Além disso, as estimativas americanas
nada dizem das vítimas da repressão interna e das execuções sumárias no Sul.
GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIE'INAMITA 145

Sob Thieu, apoiado pela logística americana, esta repressão foi particular-
mente feroz e sanguinária. Às bombas, ao napalm, ao fósforo, é necessário
somar todo o instrumental mortífero das prisões, as torturas, as sevícias e as
medidas de coação psicológica.
É deste aparelho de repressão e seus métodos que tratamos aqui, com
mais rigor.
Em 1969, Nixon renuncia à reconquista das zonas rurais e montanhosas
libertadas. Ordena o bombardeio sistemático e ininterrupto destas regiões,
obrigando milhões de camponeses a refugiarem-se nas cidades. Sobre esta
população concentrada à força, e com o intuito especial de acelerar o recruta-
mento de mercenários, Nixon e Thieu fazem reinar um regime de terror.
Trata-se de paralisar todas as atividades patrióticas, liquidando os mili-
tantes e os suspeitos, encarcerando qualquer opositor real ou presumido; de
aterrorizar a população e de obrigá-la a aceitar a administração que Washing-
ton impõe. A coação física e psicológica pretende mesmo, como é habitual em
regime ditatorial, obrigar os nacionalistas e os resistentes a renegar as suas
convicções, para os fazer passar para o serviço do ocupante.
Com este objetivo, é montado todo um aparelho de repressão. Toda uma
rede de prisões, de trabalhos forçados, de campos de detenção, todo um siste-
ma de torturas físicas e morais é "modernizado" por especialistas e contando
com maciça ajuda financeira e técnica de Washington. A experiência coloni-
al francesa e inglesa - particularmente com Robert Thompson, promovido a
conselheiro supremo de Nixon - foi aproveitada e "melhorada" pelos servi-
ços americanos especializados.

Os instrumentos

Uma força policial repressiva e invasora opera em todos os escalões da


sociedade sul-vietnamita. Mais de uma dúzia de serviços militares e civis são
autorizados a fazer detenções. Em 1971, a polícia foi separada dos serviços
civis para constituir um comando militar separado. O seu chefe, um oficial do
exército, responde diretamente ao presidente Thieu. Esta combinação da po-
Ircia civil e das funções militares reflete a visão de Robert Thompson, alto
conselheiro do presidente Nixon sobre a repressão antiinsurrecional.
Os efetivos da Polícia Nacional passam de 16 mil homens, em 1963, para
120 mil no final de 1972. As suas atribuições vão desde a organização de
146 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

arquivos sobre os habitantes com mais de quinze anos ao interrogatório das


pessoas detidas. Dispõe de um ramo paramilitar antivietcongue (tanques e
artilharia) de 25 mil homens.
A Polícia Especial, uma extensão da Polícia Nacional, está encarregada
da eliminação dos quadros da FNL e da repressão aos movimentos pacifistas e
pela neutralidade. Utiliza habitualmente a tortura nas pessoas presas e tem
em conta uma onda maciça de prisões em 1972.
A polícia recebe ordens diretas da Presidência, da CIA, dos chefes do
Estado-Maior do exército de Saigon e das forças especiais americanas. Tem
sob seu comando 20 serviços provinciais, que empregam entre 80 e 120 pes-
soas, dispõem de 300 repartições e de um exército de informantes.
Uma seção da segurança militar está implantada em cada unidade do exér-
cito e a sua área de atuação estende-se às imediações das instalações militares.
Os serviços secretos subordinam-se diretamente do presidente Thieu. Fa-
zem detenções e, sobretudo, execuções sumárias de opositores manifestos,
utilizando freqtientemente assassinos contratados.
A polícia não é a única a ter uma função de vigilância e de repressão;
todas as autoridades descentralizadas são chamadas a cooperar, quer queiram,
quer não. O mesmo acontece com as autoridades de aldeia, pois toda a admi-
nistração, até o nível da comuna, é designada por Saigon. Uma milícia popu-
lar é recrutada nas cidades, principalmente entre as crianças desocupadas de
12 a 16 anos, às quais são distribuídas armas automáticas. São encarregadas
de reprimir as manifestações de estudantes e as concentrações.
Quanto ao exército, tem todos os direitos, sobretudo fora das cidades.
Qualquer soldado pode prender e interrogar quem quiser. Todas as pressões
são permitidas para arrancar confissões de camponeses que pertencem à FNL
ou que recolhem fundos para ela. Muitos cidadãos comuns são encarcerados
em "centros de alojamento" durante as operações "Busca e Destruição" exe-
cutadas em conjunto pelo exército americano e pelo exército governamental.
Outros foram espoliados durante campanhas de pacificação denominadas
"Fênix" ou "Cigne", como suspeitos de serem simpatizantes da FNL.
Os guardas civis (Van De) são voluntários ainda mais temidos do que os
soldados. Mal pagos (metade do salário de um soldado). eles vivem da expio·
ração e da pilhagem das populações dos campos. Trabalham sob as ordens de
um chefe provincial (um militar) e dispõem das suas próprias prisões e salas de
tortura.
GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIETNAMITA 147

O quadro legal

As leis que se considera regulamentarem os processos de repressão não


visam senão a dar uma aparência de cobertura legal à arbitrariedade. É o
terror cotidiano para a população.
Assim, segundo o artigo 12 do novo Código Penal, "São considerados fora-
da-lei todos os indivíduos, partidos, ligas ou associações culpados de qualquer
ato, seja sob que forma for, que, direta ou indiretamente, tenda a promover o
neutralismo comunista ou pró-comunista."
Ou ainda (artigo 172 da lei sobre o internamento administrativo): "É con·
denado a trabalhos forçados qualquer indivíduo que cometa qualquer ato,
seja ele qual for, que vise a sabotar o espírito anticomunista da nação ou a
prejudicar a luta do povo e das Forças Armadas."
Para suprir a falta de provas, um decreto-lei conhecido como lei "an tri"
(internamento administrativo) permite encarceramento sem julgamento e
sem recurso. O artigo 192 deste decreto-lei (004/66) estipula que qualquer
pessoa "considerada perigosa para a defesa nacional e para a segurança pú·
blica" pode ser encarcerada por um período que chega a dois anos. Esta
sentença é renovável.
Hoang Due Nha, conselheiro pessoal do presidente Thieu, podia se gabar,
com orgulho, em 9 de novembro de 1974, da eficácia de uma polícia munida
destas leis de exceção, capaz de prender em duas semanas mais de 40 mil
pessoas.
Em junho de 1972, vários milhares de pessoas são presas e conduzidas
para a ilha de Con Son - nova designação de Paulo Condor, a prisão de
trabalhos forçados de passado sinistro. Na maior parte dos casos tratava-se
somente de pais, esposas e filhos de suspeitos políticos, como noticiaram di-
versos jornais americanos (Boston Globe, 24 de junho de 1972; New York Post,
28 de junho de 1972).
Ao mesmo tempo, exerce-se coação sobre os intelectuais. Em 1972, a
maioria dos dirigentes das universidades de Hué e de Saigon foi presa (Time,
10 julho de 1972).
Paralelamente aos violentos combates da primavera de 1972, ao longo
da pista Ho Chi Minh, acontecia uma onda de prisões de civis sem prece-
dentes: rusgas nos meios estudantis, prisão de reféns nas famílias de conhe-
cidos militantes políticos, prisão de membros de grupos nacionalistas oure·
ligiosos hostis à guerra e à ocupação americana. O motivo destas prisões,
148 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

sempre o mesmo, "simpatia em relação aos comunistas", é interpretado da


forma mais ampla.

A detenção antes do julgamento

A detenção é apenas o início de um percurso que conduz freqüentemente à


morte. Ainda que o seu processo não tenha sofrido grandes atrasos, um pri·
sioneiro pode passar anos na prisão aguardando julgamento. Antes disso, o
prisioneiro tem grande chance de ser conduzido a um centro de interrogatório,
que lhe arrancará - pelos processos mais terríveis, se for necessário - as con·
fissões assinadas necessárias à sua condenação. O método é comprovado.
Uma mulher testemunha desta maneira o seu encarceramento num cen·
tro de detenção da polícia de Saigon:
"Durante seu interrogatório você podia ouvir os gritos lancinantes dos
que estavam sendo torturados. Algumas vezes eramas obrigados a assistir às
torturas para intimidar e nos fazer confessar o que se queria.
"Duas mulheres da minha cela estavam grávidas. Uma foi violentamente
espancada, a outra recebeu golpes nos joelhos que infeccionaram.
"Uma estudante tentou se matar cortando os pulsos com as torneiras me·
táticas na lavanderia, mas não conseguiu. Então a torturaram enrolando for·
temente uma tira de borracha em sua cabeça. Os olhos saltaram das órbitas e
"1 ela sofria dores de cabeça atrozes ... " (New York Times, 13.08.72).
"Se eles dizem não, batam até eles dizerem sim." Era esta a regra que a
polrcia de Saigon conhecia.

Ajustiça

Os íulgamentos não são mais imparciais do que os processos que os prece·


dem. O acusado de delito político está indefeso (e sem advogado) perante a
onipotência governamental, e a sua condenação é quase certa. De acordo
com os resultados dos interrogatórios e o conteúdo dos relatórios do serviço
de informações, o detido pode ter que comparecer perante um tribunal mili·
tarou ser enviado a um Comitê Provincial de Segurança.
As condenações a trabalhos forçados, à prisão perpétua e à pena capital
são as mais freqüentes. As decisões são rápidas e sem recurso.
OUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIETNAMITA 149

Os CPS (Comitês Provinciais de Segurança) tomam-se célebres pela ar·


bitrariedade. Se lhes parece "claro" que "o suspeito constituí uma ameaça
para a segurança nacional", em função da idéia que têm da situação e das
relações de força, podem impor a sua detenção administrativa sem ter que
justificá-la legalmente.
Como escreveram dois especialistas americanos: ''.i\s formalidades judici-
ais da lei, raramente observadas durante o período recente no Vietnã do Sul,
foram completamente abandonadas a partir do início da ofensiva inimiga.
Embora o governo não tenha proclamado nada, as leis normais que regem os
direitos do acusado estão virtualmente suspensas" (Holmes Brown e Don Luce,
Hostages ofWar, 1972).

Os centros de interrogat6rio

Os prisioneiros Fênix são enviados para os centros de interrogatório pro·


vinciais (PIC). Nestes centros a tortura é tão "administrativamente" aplicada
como era antigamente nas prisões reais francesas.
Relatos lacônicos como este conseguiram chegar à imprensa americana:
"Nguyen Thi Yen foi espancada com um porrete até perder os sentidos.
Logo que recuperou a consciência foi obrigada a ficar de pé, nua, em frente a
dez torturadores que queimaram seus seios com cigarros."
"Vo Thi Bach Tuyet foi espancada e pendurada pelos pés sob uma luz
ofuscante. Em seguida foi encerrada numa cela exígua meio inundada, com os
ratos e os insetos subindo pelo seu corpo" (New York Times, 13 de agosto de
1973).
São testemunhos comprovados por outros. Segundo o Dispatch News Seroice
Intemarional de 6 de julho de 1972, "Mais de 90% das pessoas presas sofreram
interrogatórios violentos que incluíam bastonadas, descargas elétricas, unhas
arrancadas e ingestão de água com sabão".
Um médico americano, o Dr. Nelson, comprovou perante a subcomissão
da Câmara dos Representantes, em 17 de julho de 1970, ter examinado prisi·
oneiros torturados. O presidente da Associação Nacional de Estudantes do
Vietnã do Sul, Huynh Tan Mâm, ficou aleijado, surdo e cego, em conseqüên·
eia de sevícias que sofreu. Também o presidente da Associação dos Alunos do
Ensino Secundário, Le Van Nuôi, deixou de poder andar, depois de várias
bastonadas graves.
150 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Americanos participam nas atividades "anti-subversivas" dos PIC. Segundo


o jornalista Thfodore Jacqueney, "os PIC mantêm relações com os seus equi-
valentes da CIA e muitas vezes com os conselheiros de polícia da AIO" (Aid
wThieu, 1972).

& prisões

A política de terror sistemático, conduzida pelo governo sul-vietnamita


e pelo seu aliado americano se toma tão violenta que não logra obter o
apoio ou sequer a neutralidade da população. A grande arma utilizada é a
deportação maciça. Prisões em massa e a separação policiada da população
são conduzidas pelo regime de Thieu. Barcos excessivamente carregados
transportam mulheres, crianças e velhos para Con Son, sem julgamento.
São 1.500 apenas durante o mês de abril de 1972 (de acordo com o Le
Monde de 10 de janeiro de 1973). Intelectuais, budistas e estudantes de
Hué foram juntar-se a eles.
Em geral, não se sabe nada das pessoas desaparecidas. Nenhum "serviço"
se mostra competente para fornecer informações. Na realidade, o segredo é a
norma e cobre um sistema tentacular de isolamento e eliminação dos opositores
e de repressão generalizada.
Assim, longe das fantasmagorias romântico-nülistas de Apocalypse Now,
uma máquina esmagadora, que não deixa de lembrar muitos aspectos da in·
dústria de morte nazista, funciona na sombra.
Em 1970 haveriam, segundo fonte oficial americana, cerca de 100 mil
prisioneiros nas prisões sul-viemamitas (sessão do Congresso, julho-agosto de
1970). Segundo o Le Monde (10 de novembro de 1971), durante o mesmo
ano, teriam sido efetuadas 153.000 detenções.
A duplicação do orçamento americano destinado às prisões, em 1972,
permite supor que o número de prisioneiros terá também duplicado. Em
1973, milhares de novos prisioneiros amontoam-se nas prisões de Thieu. Os
números americanos aparecem claramente subavaliados. O GRP anuncia,
em 1973, que há cerca de 400 mil detidos em todo o sistema carcerário sul-
viemamita. Para a Anistia Internacional são "200 mil, pelo menos" (no·
vembro de 1972).
Existem mais de mil locais de detenção oficiais e secretos no Vietnã do
Sul. Encontram-se em todas as cidades, em todas as províncias, em todos os
GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIETNAMITA 151

distritos. Os maiores e os mais conhecidos são as prisões de Con Son ou Con


Dao (ex-Poulo Condor), de Chi Hoa, nos arredores de Saigon, de Thu Duc,
de Tan Hiep e de Cay Dua (na ilha de Phu Quoc, perto da fronteira
carnboj ana).
A forma como os prisioneiros são tratados, conhecida dos americanos -
tanto mais que oficiais do exército trabalham nas prisões em estreita cola-
boração com os sul-vietnamitas-, faz lembrar os métodos nazistas. Os prisio-
neiros conhecem a má nutrição, a promiscuidade e a degradação física e mo-
ral sistemática.

As jaulas de tigres

O "Centro Nacional de Correção de Con Son", como o apresentam as


autoridades sul-vietnamitas, fica situado numa ilha paradisíaca do mar do Sul
da China, a cerca de 220 quilômetros de Saigon. Foi construído pelos france-
ses em 1862 para servir de colônia penal. Há muito que é conhecida pelo
nome de "Ilha do Diabo". As "jaulas de tigre" do campo n2 4 são um dos seus
ornamentos. A sua existência foi, durante muito tempo, negada pelas autori-
dades, tanto americanas como vietnamitas, mas devemos urna descrição
edificante ao jornalista americano Don Luce, já citado, que publicou a sua
reportagem em vários jornais americanos.
Num setor isolado do campo, escondido dos visitantes oficiais, encon-
tram-se pequenas celas sem teto que os guardas vigiam do alto, através de
urna abertura protegida por uma grade. Em cada um desses pequenos compar-
timentos de pedra com cerca de 2,5 metros por somente 1,5 metro, amonto-
am-se três ou quatro prisioneiros. Um balde de madeira para as necessidades
é esvaziado uma vez por dia. Os detidos mostram marcas de pancadas,
ferimentos, perderam alguns dedos, encontram-se num estado de esgotamen-
to tal que não conseguem ficar de pé.
Um balde de cal, por cima de cada cela, permite ao guarda "acalmar" os
prisioneiros que pedem comida: são borrifados com cal viva, que também
cobre o solo. Com tal tratamento, os prisioneiros cospem sangue e sofrem de
tuberculose, de doenças oculares e da pele.
Um edifício adjacente abriga "jaulas de tigre" idênticas, para as mulheres.
Elas são cinco por compartimento. A mais jovem detida tem quinze anos, a
mais velha, cega, setenta.
152 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Os kapos* fazem reinar o terror, surram os mais fracos à mínima queixa.


Fora das visitas oficiais, os prisioneiros permanecem acorrentados a barras
que atravessam as paredes, vinte e quatro horas por dia, mesmo durante as
refeições, o sono e o banho, impedidos de sentar. O telhado de telhas velhas
deixa passar a água quando chove, o chão irregular está coberto de lixo.
Os ferros utilizados em Con San são fabricados pela sociedade Smith and
Wesson de Springfie\d, Massachussetts. Não são moldados e lisos (como os do
colonialismo francês), são feitos em ferro E8, material de construção. Apre-
sentam nervuras cortantes que retalham a carne dos pés e causam um verda-
deiro suplício.
Cerca de SOO detidos, homens e mulheres, são ultrajados durante longos
meses, longos anos, nas "jaulas de tigre". São mais de 10 mil em todo o campo.
Quando não estão nas "jaulas de tigre", os detidos podem se beneficiar da
hospitalidade das "jaulas de boi", preparadas em velhos estábulos da adminis-
tração francesa. Elas não diferem das primeiras senão pelo tamanho e pelo
número de prisioneiros que aí se amontoam, uns vinte, submetidos ao mesmo
regime já descrito.
Ao regime geral, já insuportável, acrescentam outras práticas para impe-
dir os detidos de se alimentarem: dão-lhes três minutos para comer, misturam
pedras ao arroz, o peixe está estragado. Há uma carência total de legumes. A
fome é tal que os prisioneiros alimentam-se de insetos, de cupins, de baratas,
de resto a única fonte de proteínas.
Aos carcereiros - mais de 100 em Paulo Condor-, uma direção com-
placente permite que desenvolvam a opiomania, a orgia (a administração
manda vir regularmente prostitutas do litoral), os jogos a dinheiro, a violação
e o livre assassinato. Desnecessário dizer que os prisioneiros são igualmente
despojados do seu dinheiro e de suas roupas à chegada. Alguns kapos entre-
gam-se a ajustes de contas no recinto do campo para se apropriarem das eco•
nomias acumuladas. Alguns juntam pecúlios de 400 mil a 500 mil piastras.
Como nos campos nazistas, os detidos por crimes comuns são, de bom grado,
utilizados como torturadores auxiliares.
A situação em Chi Hoa, próximo a Saigon, não é melhor. Em 16 de julho
de 1968, o então diretor, Nguyen Van Ve, o chefe dos "especialistas" da admi·
nistração carcerária Lo Van Khuong (ou Chin Khuong), ordena a transferên·

*Nome d3do aos prisioneiros que tinham a função de dirigir os outros pre.sos nos campos de concentra-
ção nazistas. (N. do T.)
GUERRA E REPRESSÃO: A HECATOMBE VIETNAMITA 153

eia de 120 prisioneiros doentes, tuberculosos, paralíticos ou amputados para


as "jaulas de búfalo". A zona das jaulas terá, mais tarde, o nome de "campo de
convalescença". Longe de serem tratados, como esperavam, os 120 prisionei·
ros são amontoados em celas de 12 metros por 8. Cada um dispõe de menos
de um metro quadrado. Depois de terem recusado os trabalhos forçados, os
prisioneiros não têm mais nada para comer além de arroz e de nuoc mam
(molho amargo). Em dois meses, 50% dos prisioneiros contraem beribéri de-
vido à falta de legumes frescos (Debris e Menras, Rescapés des bagnes de Saigon).
Em Thu Duc, uma prisão feminina, as mulheres são torturadas, eletro·
curadas, supliciadas com água, espancadas até à morte por bestas embriagadas.
A vítima é pendurada pelos pulsos a uma trave e em seguida espancada com
bastões por seis ou sete policiais até ao desfalecimento (chama-se a isto a
"viagem de avião"). Atormentam particularmente as estudantes e as jovens,
que sofrem violações coletivas (Escola Superior de Pedagogia de Saigon, 4 de
julho de 1970).
Em Tan Hiep são reagrupados 1.500 condenados a prisão perpétua sobre
os quais não existe qualquer acusação, a não ser o fato de terem sido apanha·
dos por tropas americanas durante uma operação. Tratam-se essencialmente
de camponeses, que apodrecem, por vezes durante anos, sem julgamento, pas·
sando de uma prisão para outra e ignorando completamente as razões do seu
encarceramento. Os guardas cortam muitas vezes os dedos e as orelhas dos
detidos a golpes de facão.
Em Cay Dua, o doutor Tran Trong Chau é torturado com choques até
perder a consciência. "Eu escava encerrado numa cela escura com apenas três
metros quadrados, onde comia e fazia as minhas necessidades. Quando cho·
via muito a água entrava em torrente e os meus excrementos flutuavam por
todo o lado. Tinha de permanecer de pé, com as costas encostadas à parede,
sem poder deitar-me para dormir" (1971).
O número, considerável, de vítimas mortais do regime de Thieu e dos
americanos no Vietnã do Sul é difícil de calcular. Foi possível apurar alguns
números. Em 1971, morreram 147 prisioneiros no campo de Phu Quoc, em
conseqüência de maus-tratos; o mesmo aconteceu com 125, entre janeiro e
maio de 1972, por falta de cuidados. A partir de 15 de setembro de 1971,
ordens especiais autorizam a polícia militar a atirar contra os prisioneiros, sem
aviso prévio. O resultado imediato são 200 mortos e feridos. Vários prisionei-
ros se suicidam rasgando o ventre (News from Vietnam, 1 de março de 1973,
Canadá).
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Como reconhece um portn -voz dll All~ncl11 pnrn o Dcsc11volvimcn1·0 ln·
tcm11clon11l (AID) 1''A Ali) npolou o pn>~~mma de scg11rr1111;;a plthllca no Ylctnn
n portlr Jc 1955, A funçno Jn AIO conHl ~ tla cm a)11J;1r a polida naclonnl no
recrutamento, trclnnmcnto e organizaçtln de uma força pnrn n mnnutcnçl'lo
du pnz e da mdl!m. Ao todo, mais Jc 7 mil nmcrlcnnos trnbalhnrnm por contn
do progrnma de 'Scgurnnça Pt1hlicn' no Victn1l do Sul" (Hcarlng 011 US
A.slblarice) .
De 1968 11 1971, mais de 100 bilhões de dólares foram gasto~ pela CIA,
pelo Dcportamtnto de Defesa (DOO) e AJO. O slsrcmu policial victnumltn
foi complctumentc rcmoddado cm poucos anos. Dos 300 mil victnomltas en·
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Thlcu cont'lmmr com ns prisões, 11 dcrcnçno, as torturas e o mnssncrc de prlslo·
nclros pol!tlcos" (Saigon's /irLmnners, USA, 1973). A Imprensa nmcricnna re•
conhecia n pcrmnnl!ncía de "20 mil 'conselheiros clvls' opós o rctlmda das
tropas fardadas" e o pleno funcionamento da "opcrnçõo Fl!nlx - cm breve
156 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

substituída pelo programa F6 com os mesmos objetivos-, um programa apa-


drinhado pela CIA para eliminar os adversários de Thieu e os suspeitos"
(Llberation News Service, 6 de dezembro de 1972).
Dei.xemos a conclusão a um jornalista americano, Michael Klare (En
suroeillant l'Empire tricontinental, n2 21, 1972) : "A ajuda e a direção da Divisão
de Segurança Pública (Public Safery Division) estão tão bem desenvolvidas
que, na realidade, a polícia nacional podia muito bem ser considerada uma
força mercenária dos Estados Unidos, em vez de uma instituição local."

François Derivery é pintor (grupo DDP), autor de inúmeros arcigos de estética e de crítica e
sccrctãrio da revista Es!hétique Cahiers (1988-199i) . Atualmente é chefe de redação adjunto
da revista lntervention.
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÃ
FRANÇOIS DERIVERY
Aos meus amigos -onde estão lwje? -do Partido Tudeh, do Irã

O Irã - a Pérsia -, um país ancestral, berço da humanidade, um país


cuja história milenar e cultura sofisticada envolvem o viajante, como o calor,
logo que ele põe os pés no tarmak do aeroporto de Mehrabad, em Teerã.
Na primavera de 1975, eram necessárias longas horas para superar os vá·
rios serviços, cheios de espiões da Savak e de soldados armados, até chegar à
saída. Os estrangeiros eram francamente mais bem tratados que os iranianos,
que eram especial e meticulosamente controlados.
Antes desse controle, cada passageiro tinha todo o tempo de contemplar,
isolados em um setor reservado do aeroporto, os grandes aviões pintados de
cáqui que transportavam militares americanos e não faziam nada para se es·
conderem. Não deixava também de notar, um pouco mais tarde, a fábrica de
Coca-Cola instalada em pleno centro da cidade.
Apesar da desconfiança e da vigilância exercida sobre as conversas (em
particular os iranianos dizem que um em cada cinco indivíduos encontrados
nos lugares públicos está de perto ou de longe ligado à Savak; um em cada três
nas universidades), e embora certos nomes sejam tabus, ninguém esqueceu o
golpe de Estado de 1953 conduzido pela CIA que pôs fim ao governo de inde·
pendência nacional do doutor Mossadegh e recolocou o país sob o tacão das
companhias petrolíferas anglo-americanas.
Além da sua posição estratégica fundamental, na fronteira da URSS ("pri·
meira linha de defesa do mundo ocidental"), o Irã apresenta também um in·
teresse substancial: o seu petróleo.
A guerra pelo petróleo remonta a 1870. O país está há muito tempo sob
influência estrangeira, sobretudo inglesa e russa. A Anglo-Persian Company
concede ao Irã 16% dos lucros do petróleo. A Rússia (Companhia dos Petró-
leos Georgianos), mais tarde União Soviética, ocupará militarmente, durante
muito tempo, o noroeste do país.
Embora a cultura persa seja milenar e requintada, a sua história não deixa
de estar repleta de acontecimentos sangrentos. É uma longa seqüência de
guerras, assassinatos, repressão e violência. Nesse país, quase sempre dirigido
160 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

por potentados pouco preocupados com os direitos humanos, a eliminação


física aparece freqüentemente como o meio mais simples e mais rápido de
resolver as diferenças, especialmente políticas.
A conjunção desses dois fatores - um fundo de violência ancestral na
base do despotismo e a guerra do petróleo atiçada pelas conspirações e pelas
intervenções do capitalismo anglo-saxão - fará nascer o regime do xá, uma
sinistra máquina de oprimir, assassinar e explorar todo um povo. Nada menos
do que seis presidentes dos Estados Unidos terão velado pelo destino do sobe·
rano, tanto quanto pela boa rentabilidade dos seus investimentos, que repou·
savam nos ombros de um indivíduo de mau gênio que se tomou um ditador
megalômano. Isso antes do dia de 1979 em que a revolução islâmica mostrou
a ele e aos seus amigos a porta da saída.
Mohamad Reza Pahlavi tinha a quem puxar. O pai, Reza Khan, modesta·
mente intitulado "o Grande", tinha deposto o último quadjar por meio de um
golpe de Estado militar à frente de um regimento de cossacos. Proclamado rei
em dezembro de 1925, foi coroado pelas suas tropas em 24 de abril de 1926 e
fundou a dinastia dos Pahlavi. Nascido num bairro pobre dos arredores de
Teerã, era um militar capaz de lançar pela janela, com as próprias mãos, um
ministro recalcitrante durante uma reunião. Para consolidar seu poder, não
hesitou em lançar expedições punitivas contra minorias ativas, massacrando·
as sem piedade: bakhtuanis, curdos, kashga1s.
Em 1933 obteve a renegociação dos acordos petrolrferos com a Anglo·
Persian, que se tornou Anglo-Iranian. A parte do Irã sobre as receitas do
petróleo passou então para 25 por cento.
No inkio da Segunda Guerra Mundial, não escondeu a sua simpatia pelos
alemães, tal como Ataturk, o seu modelo. Um centro de propaganda nazista
foi aberto em Teerã em 1940. Os aliados ocuparam então o país, para reduzir
a influência alemã e estabelecer uma via de fornecimento de petróleo a partir
do Golfo, via URSS. Obrigaram Reza a abdicar a favor de seu filho Mohamad
Reza.

Os americanos não sairão mais. Roosevelt toma a decisão no final de 1942.


Quando da conferência de Teerã, em 1943, armas e conselheiros militares são
enviados, a pretexto de ajudar na reconstrução do país.
As primeiras dificuldades do novo regime aparecem no final de 1944, com
o levante comunista do Azerbaijão, apoiado pela URSS. A repressão é feroz e
faz 200 mortos por dia. As gigantescas manifestações que se realizam diante
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÃ 161

do Parlamento em apoio do Azerbaijão, em lspahan e em Teerã, por iniciativa


do partido Tudeh, são igualmente reprimidas de maneira selvagem.
Em 1946, há tentativas de secessão em várias regiões da "zona russa" das
margens do Cáspio - Guilan, Khorassan, Mazanderan - e a tentativa de
criar a "República Independente do Curdistão". O banho de sangue prosse-
gue e os americanos começam a chegar em 194 7. Esses conflitos permitem aos
Estados Unidos obter aquilo que há longo tempo buscavam: a retirada do Irã
da URSS.
Em junho de 1947, concedem um crédito de 26 milhões de dólares em
auxílio militar. Georges Allen é o novo embaixador dos Estados Unidos. O
general Vernon Evans é nomeado chefe da missão militar. O general
Schwartzkopf é designado para reorganizar as forças policiais.
Nesse mesmo ano, em 194 7, Truman cria a CIA.
No dia 2 de fevereiro de 1949, o xá é alvo de uma tentativa de assassina-
to em Teerã. Este acontecimento irá marcar o espírito do soberano, especial-
mente frente àquele que ele considera seu inimigo principal e contra o qual
manterá uma guerra impiedosa: o partido Tudeh do Irã, marxista-leninista.
Embora a responsabilidade do Tudeh não tenha sido claramente estabelecida
- principalmente em função do imediato linchamento do agressor, o fotó-
grafo Fakhr Arai' - , o xá nunca abandonará essa convicção. E também
porque a ideologia comunista constitui uma censura permanente à vida de
sátrapa que ele leva, frente à miséria ostensiva da população. A burguesia
mal existe no Irã e não terá importância antes dos anos 70, com a chegada
dos lucros do petróleo. Mas o xá é um adepto dos julgamentos e dos méto-
dos sumários, o que provou em fevereiro de 1948, mandando assassinar a
tireis o jornalista Massoud, diretor do periódico Marde Emrouz (0 homem
do dia), diante da porta do seu jornal. Este ameaçava fazer revelações sobre
o modo de vida da família real. Já corria na cidade o boato de que o xá
mantinha uma tropa de fanáticos para liquidar sem formalidades os adver-
sários mais ativos.
No início de 1951, as intervenções estrangeiras e a dominação pelas com-
panhias anglo-americanas suscitam uma renovação nacionalista e garantem o
sucesso popular do Partido da Frente Nacional, do doutor Mossadegh.
Mohamad Hedayat, dito Mossadegh (O valoroso}, nasceu em 1881. Hábil
político, estudou em Paris e foi inspetor de finanças aos quinze anos. Com o
assassinato do primeiro-ministro do xá Razmara (que era acusado de ter
mandado cozinhar prisioneiros vivos) no Bazar de Teerã por Khalid
162 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Taharassebi (7 de março de 1951), o aiatolá El Kachani apóia publicamente


a candidatura de Mossadegh. Porém, o xá nomeia Hossein Ala, seu embai·
xador em Washington. A população protesta. O Bazar levanta-se contra o
xá. No dia 13 de maio ele é forçado a ceder e nomeia Mossadegh primeiro-
ministro.
Este conduz imediatamente uma política claramente antibritânica e em
30 de abril de 1951 obtém do parlamento a lei da nacionalização do petróleo
iraniano, o que cassa a concessão dos imensos campos petrolíferos da Anglo-
lranian.
Houve espanto e incredulidade nas Bolsas de Londres e Nova York, com
todos se dizendo "escandalizados". Mossadegh é chamado de "louco". É neces·
sário dizer que a Anglo-lranian, como é normal, financiava boa parte dos
deputados ...
Em 10 de junho de 1951, a bandeira iraniana flutua na sede da Anglo·
Iranian, em Khoramshahr. Uma vitória do povo, daquelas que são raras. O
embaixador dos EUA, Harriman, tendo apoiado abertamente os ingleses, vê
seu carro ser cercado por manifestantes em Teerã.
Os compromissos do xá com os anglo-saxônicos e sua hostilidade a
Mossadegh são especialmente mal aceitos pela população. Mossadegh é reeleito
em 1952. Em 26 de fevereiro de 1953, aparentemente vencido, o xá parte
para o exílio em Roma, escondido em um pequeno avião particular. A sua
escala no aeroporto de Bagdá dará a Soraya a ocasião de demonstrar a sua
inconsciência e a sua frivolidade: interessava-se apenas pelas suas malas e
pelas suas jóias. Uma constante no seu comportamento.
Éa intervenção da CIA que vai salvar o xá - e evitará ao Irã a vergonha
internacional de um governo de esquerda. A operação vai ser conduzida por
dois compadres: o americano Kim Roosevelt, enviado da CIA que forneceu o
apoio logístico, e o renegado Zahedi, um antigo partidário de Mossadegh,
"retomado" pelos ingleses depois de um rapto rocambolesco. Em agosto de
1953 ele consegue o apoio de tropas ainda favoráveis ao xá para depor
Mossadegh.
Zahedi, durante a Segunda Guerra Mundial, não escondia sua simpatia
pelo nazismo. Personagem de caráter duvidoso, corrompido pelo jogo e obce•
cada por sexo (gabava-se de possuir o endereço de todas as prostitutas de
lspahan), é ele que, como recompensa por sua traição, irá suceder Mossadegh
no cargo de primeiro-ministro.
Em 13 de agosto de 1953, o xá, de volta do exílio, demite Mossadegh
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÃ 163

por meio de uma ordem que lhe é entregue por Nassiri, o futuro chefe da
Savak.
Em 19 de agosto, Mossadegh foge. Será capturado, cercado na sua peque·
na casa de tijolos de Teerã, preso, julgado em 8 de novembro de 1953, conde-
nado à morte (pela comutada pelo xá, que não quer fazer dele um mártir) e
finalmente condenado a três anos de prisão.
Os recursos necessários para o golpe foram fornecidos pelos Estados Uni-
dos (400 mil dólares), e pelo Banco Melli do Irã. Além dos dois principais
protagonistas, alguns outros personagens participaram da conspiração, como
aconteceu com o general Nassiri. Mas foi Allen Dulles que supervisionou o
processo e moveu as cordas, com o seu adjunto Richard Helms, que se toma·
rá, em 1974, embaixador dos Estados Unidos em Teerã.
O golpe de Estado de 19 de agosto de 1953 não teve mais de 200 morros,
fato excepcional na história do Irã!
O retomo das companhias petrolíferas é imediato.
No dia 5 de agosto de 1954 é assinado um acordo com um consórcio
internacional do petróleo do qual fazem pane ingleses, franceses, holandeses
e americanos. Está criada a Sociedade Nacional do Petróleo iraniana. O con·
sórcio deverá restituir uma parte dos 260 mil quilômetros quadrados de cam·
pos petrolíferos que tinha sob controle.
Durante esse tempo, um indivíduo intrigante prossegue a sua rota a cami·
nho do poder: o general Teymour Bakhtiar, governador de Teerã. Inicialmen-
te partidário de Mossadegh, traiu-o para conduzir o seu próprio jogo. Orde-
nou o massacre dos partidários do Tudeh - 800 prisioneiros - no pátio da
prisão de Gharz. Com a ajuda do procurador-geral Azmoudeh, encarregado
de dar a essas operações uma cobertura legal, faz também "desaparecer" mais
de 3 mil partidários de Mossadegh por meio de execuções sumárias (Le Monde
de 13-14 de novembro de 1955).
É esse carrasco que em 1956 cria a Savak, a polícia política do xá, de
reputação sinistra, verdadeiro estado policial dentro do Estado, com apoio
técnico e financeiro dos Estados Unidos e do Mossad (o serviço secreto de
Israel) . A ambição desmedida de Bakhtiar está na origem da sua derrota. Depois
de ter tentado rivalizar com o xá, será assassinado no Iraque (1959).

Estes diversos acontecimentos acabaram reforçando o poder do xá, que se


tomou um déspota absoluto, concentrando todos os poderes, enquanto os
164 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

americanos, solidamente implantados, utilizavam o Irã na sua política de cer-


co à URSS, através do rearmamento do Cento, o pacto pró-americano que
reunia o Irã, a Turquia e o Paquistão. Investido no papel de polícia da região,
no norte como no sul do Golfo, o Irã militarizado trabalha em ligação estreita
com a logística e as forças americanas.
O dinheiro do petróleo começa a chegar em grande volume. A fortuna do
xá e da sua corte aumenta. Os jornais ocidentais relatam o fausto dos palácios
de Golestan ou de Niavran situados nas partes mais altas da cidade, as extra·
vagâncias de Achraf, a irmã do xá, capaz de perder milhões de dólares numa
noite em Monte Cario. Toda a corte viaja, pelo prazer mas também para fazer
negócios e concluir contratos rentosos com grandes sociedades internado·
nais às quais o país vai sendo entregue. A corrupção está à vista, mas os jor-
nais estão censurados, qualquer contestação é reprimida. Nos jornais euro·
peus só se fala das múltiplas aventuras sexuais do xá - um "colecionador"
sexual - e das angústias de Farah Diba. O xá passa o inverno em Saint·
Moritz, viaja ao México, é recebido por Giscard d'Estaing, pela rainha da
Inglaterra e todo o Gotha. Conversa regularmente com Kissinger. Antes dis·
so, ápice simbólico deste período de esplendor e de sucesso de mídia, o xá vai
coroar a si mesmo, numa demonstração de luxo esfuziante, por ocasião da
celebração dos 2.500 anos de Persépolis, perante uma platéia de homens de
Estado e de cabeças coroadas, honradas com o seu convite (26 de outubro de
1967). 1
No entanto, ao mesmo tempo em que Achraf manda construir em pleno
deserto um palácio com o telhado folheado a ouro, de look modernista, cerca·
do de mirantes e arame farpado, a miséria da população nunca foi tão insupor·
tável, apesar de, com a alta dos preços do petróleo, a renda anual per capita,
ames uma das menores do mundo, chegar em 1972 a 870 dólares (oito vezes
mais a do Paquistão). Mas a grande massa dos iranianos não vê esse dinheiro,
e sim uma inflação constante e um custo de vida insuportável. Empurrado
pela fome e pela necessidade, o povo manifesta-se regularmente, como con·
segue, e também é regularmente massacrado na rua - porque a polícia, tal
como o exército, não se detém em detalhes. Entre 1960 e 1979, milhares de
mortos acompanham, desse modo, os múltiplos movimentos das multidões e
dos protestos.
Em 1961, por exemplo, é a greve dos fabricantes de tijolos de Teerã. São
30 mil pessoas, vítimas de uma exploração feroz. Recebem 35 riais (4 dólares)
para fabricar mil tijolos, que rendem ao empreiteiro 3.500 riais. A polícia pro·
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÃ 165 '·

move um massacre. Que repete pouco depois, reprimindo uma manifestação


de estudantes, em 21 de janeiro de 1961 (100 mortos). Em 4 de abril de 1963,
o aiatolá Khomeini, depois de ter criticado publicamente o xá, é preso em
Qom. Durante a enorme manifestação de protesto que se segue, são mortas
mais de mil pessoas (Le Monde, 20 de fevereiro de 1964).

A Savak2

Como se vê, os tiros contra a multidão e as hecatombes quase cotidianas


que marcaram o fim do regime do xá em 1979 tinham antecedentes. Apesar
de gestos publicitários (a "Revolução Branca" de 1963) e de declarações bom-
básticas ("a sua união profunda com o seu povo"), o xá nunca teve, em rela-
ção a esse povo, mais do que uma política de repressão sistemática, sanguiná-
ria, fora de toda e qualquer crítica ou contestação. Tratava-se, para ele, não
só de reinar sozinho como déspota absoluto, mas também de controlar o país
segundo os acordos estratégicos e políticos fumados com o aliado e mentor
americano, o qual, sem mais escrúpulos no Irã do que em qualquer outra
nação, manejava sua marionete ensangüentada. A título de reciprocidade, no
entanto, segundo o jornalista americano Jack Anderson (que lançou as pri-
meiras luzes sobre o caso Watergate), o xá, com a ajuda de Richard Helms,
seu conselheiro da CIA, teria auxiliado Nixon a ser reeleito, graças a um
presente de vários milhões de dólares que teriam transitado pelo México para
ali serem devidamente "lavados''.
Seria difícil falar da Savak, a polícia política, sem um retrospecto que
situe seu surgimento e seu campo atuação. A Savak é apenas o elemento mais
aterrorizante de um aparelho complexo. Mas é também a base, o fundamento,
tanto do poder pessoal do xá quanto da organização e da eficácia desse poder.
A Savak é, em todos os seus aspectos, o reflexo do xá, que fez dela o seu
instrumento pessoal desde que se conseguiu desembaraçar de Bakhtiar, o fim-
dador. Primeiro, a partir de 1961, o general Pakravan, depois, em 1966, o
general Nassiri ("um intelectual substituído por um homem de pulso firme"),
assumirão a sua direção.
Em 1975, o exército iraniano contava oficialmente com 400 mil homens,
a polícia com 80 mil, a Savak pelo menos mil.
A organização é controlada por uma "Super-Savak", a Imperial lnspectorat
Organisation (110), que se encontra sob a direção do general Yasdanpanah, e
166 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

depois, de Hosscin Fardous. Este organismo tem cerca de 200 oficiais supe·
riores. Finalmente, um gabinete especial é composto por quinze oficiais esco·
lhidos a dedo. Éa cúpula da organização e controla rigidamente as atividades
do conjunto do sistema. Só presta contas ao xá.
Esta polícia secreta, organismo de infiltração, e de vigilância e controle da
população, está em todos os lugares. Qualquer iraniano pode sentir-se espio·
nado a todo o momento, portanto deve controlar suas opiniões. Esta psicose
permanente não é fruto da imaginação. No Irã, a liberdade de expressão não
existe. Qualquer crítica ao regime, e especialmente ao xá ou à sua família, é
um crime passível de prisão imediata. O nome da organização secreta é taro·
bém um tabu. Em cada lar devem figurar, obrigatoriamente, o retrato do xá ou
do seu filho. Logo que um desconhecido aparece numa rua, o tom baixa, a
conversa é interrompida. Quantos transeuntes inocentes, ou até mesmo au·
tênticos patriotas, não foram suspeitos, sem razão, de pertencer à temida po·
!feia e quantos outros também foram mas com justiça? Estão sob constante
vigilância os lugares públicos, as mesquitas, o Bazar (que, com as universida·
des, será o principal foco da resistência popular), e também as fábricas, os
estabelecimentos comerciais e, claro, os hotéis internacionais (o Interconti-
nental, o Royal Teheran Hilron), onde os empregados são freqüentemente
agentes da informação. Microfones e filmadoras estão escondidos nos quartos
de hotel. Vigia-se tudo. A correspondência comum é aberta, sobretudo aque-
la que é endereçada ao exterior. Políticos, militantes, estudantes instalados na
Europa, nos Estados Unidos ou na URSS estão sob vigilância constante - e
há, evidentemente, agentes da Savak que tentam se infiltrar nos meios oposi-
cionistas no exterior -, e as suas famílias e amigos são fichados e por vezes
presos.
Os funcionários públicos e políticos também são suspeitos, todas as per-
sonalidades do regime são vigiadas por agentes da segurança. Os escritórios
da Savak são numerosos em Teerã; o quartel-general situa-se perto de
Chemirand, na encruzilhada de Saadabad. O "Comitê", temido com razão,
é um edifício enorme, de paredes grossas, cheio de antenas. Os indivíduos
_: suspeitos de um crime - que pode ir de um simples delito de opinião até a
acusação de pertencer a uma organização política proibida, como o Tudeh
- são presos e conduzidos a prisões ou centros de interrogatório. É o início
de uma viagem incerta, freqüentemente de horror, porque a tortura é prati-
cada regularmente. Os presos vivem em péssimas condições e, sob a orien-
tação dos conselheiros israelenses e americanos, também são praticadas chan-
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRA 167

tagem, prisão e tortura dos familiares. Além dos julgamentos a portas fecha-
das que transcorrem sob a ~gide de um tribunal militar cujas decisões nunca
são justificadas, das execuções sumárias e das mortes durante tortura, há
outras práticas abjetas, como a transmissão pela TY, quase diariamente, dt.
confissões e de autocríticas de prisioneiros, que todos sabem serem obtidas
por meio de tortura e chantagem; os "arrependidos" são maquiados para
disfarçar os ferimentos.
Numerosos intelectuais e artistas iranianos passaram pelas masmorras do
xá; muitos morreram. À margem do fausto de Persépolis, o regime pareceu
querer expurgar completamente do povo suas elites democráticas. A impren-
sa ocidental e alguns organismos internacionais acabaram por transmitir ecos
tímidos desses atentados aos direitos humanos. Mas quando um jornalista
ousa perguntar ao xá - que sempre negou a tortura - o que ele pensa disso,
ele responde: '~istia Internacional? O que é isso? Não fazemos a mínima
idéia!" (Actue! 2, 24 de junho de 1974).
Em 1971 teve lugar o processo do "Grupo dos Dezoito" em Teerã. Sob
tortura, todos confessaram ser comunistas, depois negaram. Um observador
francês, Mignon, que pôde assistir a duas audiências do tribunal (acusação e
"defesa" asseguradas por militares) relata que vários dos detidos mostravam
cicatrizes e seqüelas de torturas. Um acusado, Chokrollah Paknejad, afir-
mou: "Fui conduzido, após a minha prisão, aos porões da Savak em
Khorarnshahr onde fui despido em meio a socos. Fui surrado durante vinte
horas de interrogatório. A seguir, passei uma semana nos rnictórios da prisão
de Abadan, sem roupa. Fui depois transferido para Evine (prisão no norte
de Teerã), onde fui novamente torturado, surrado e chicoteado. Depois co-
locaram-me algemas nos pés e, suspenso, com as mãos atrás da nuca, me
prenderam pesos cada vez maiores e fui novamente espancado." Outro acu-
sado, Nasser Kakhsar, dirá corno viu morrer o engenheiro Nikadvoudi sob
tortura na prisão de Ghezel-Galeh, em conseqüência de uma lesão na me-
dula. O seu delito era o de "ler livros". O aiatolá Sa1di morreu também nessa
prisão.
Nouri Albala e Libertaris, da Federação Internacional de Juristas Demo-
cratas, assistiram também a processos de opositores iranianos detidos em Evine.
Entre 28 de janeiro e 6 de fevereiro de 1972, seis presos foram condenados à
morte. Outros eram acusados de assaltos a bancos e a postos policiais ... Ape-
sar da lei, as audiências transcorriam a portas fechadas. Os prisioneiros são
torturados durante sessões de longa duração. Alguns contam como era. Sadegh
168 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

foi golpeado na cabeça com a coronha do revólver, sofrendo uma hemorragia


interna e entrando em coma. Outros foram ligados a uma mesa metálica
aquecida. Era em geral no momento da prisão que as sevícias eram mais vio-
lentas. "O detido passa pelas mãos de especialistas em caratê e judô, e acaba
entrando em coma. Geralmente as mãos, os pés ou o nariz são partidos. Quando
desperta, o prisioneiro deve assinar confissões, garantindo que não sofreu tor-
tura."
"Os agemes da Savak obrigaram Asghar Badizadegan a sentar-se numa
cadeira elétrica durante quatro horas. Desmaiou. A queimadura tinha atingi·
do a coluna vertebral e ele soltava um cheiro tal que ninguém se aproximava
da nossa cela. Não morreu, mas foram necessárias três intervenções cirúrgi·
cas. Hoje, para caminhar, tem de se ajudar com as mãos."
Quanto a Mehdo Savalani, "já não pode caminhar, teve as duas pernas
quebradas. A tortura por choques elétricos é a mais comum, pois não deixa
marcas mas provoca uma paralisia geral. Também injetavam medicamentos,
como o cardiazol, que enlouquece o ritmo cardíaco; arrancavam as unhas,
submetiam os prisioneiros a ultra-sons, a choques na cabeça"; "vi também um
prisioneiro incapaz de urinar, porque tinham pendurado pesos no sexo."
Descrições da prisão de Evine: "os calabouços são escuros e tão úrnidos
que o açúcar derrete sozinho; medem 1,20 por 2 metros, com 2 metros de
1 '
altura e uma pequena abertura gradeada de 40 centímetros. Nenhuma outra
luz. Somos três pessoas vivendo ali."
Durante os últimos anos do regime do xá, os mais sangrentos, aconte·
cem debates e assembléias na América e na Europa, especialmente nas uni·
versidades, para denunciar as torturas e exigir a liberdade de expressão no
Irã. O xá é vaiado pela multidão na Suíça, mas a Savak está fortemente
implantada nas universidades (o número estimado em 1975 era de 4 mil
agentes no exterior) a ponto de intervir fisicamente para se opor ao Tudeh e
saquear seus estandes durante as manifestações de apoio (Cidade Universi·
cária, Paris, 1977). É a guerra: a da oposição para conseguir a queda do
ditador, a do regime por sua sobrevivência. E no Irã é o massacre cotidiano
de um povo que se revolta.
Quanto à imprensa, jornais como Le Monde, Suru1ay Times e até o Financial
Times publicam reportagens sobre os casos de tortura no Irã. Em 1975, o ad·
vogado parisiense Yves Baudelot investiga no Irã o desaparecimento de três
presos políticos, Sirnin Salehi, Loftollah Meysarnie e Hosseyn Djaveri. O ge·
neral Azizi, diretor do sistema penitenciário, declara não saber nada desses
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÁ 169

detidos, que, segundo testemunhas, teriam sido torturados. A Anistia Inter-


nacional revelaria mais tarde que Salehi morrera sob tortura, grávida de oito
meses. As condições de detenção, segundo Baudelot, são consideradas pelos
torturadores "propícias a confissões", confissões a que os prisioneiros resistem
enquanto podem. Segundo o advogado, a tortura dos familiares próximos é
comum. Mulheres são estupradas em frente aos maridos, filhos, mesmo os de
muito pouca idade, são torturados para obrigar o detido a confessar.
O Sunday Times de 19 de janeiro de 1975 publica um testemunho do
jornalista Philip Jacobson, que afirma que a investigação realizada pelo jornal
estabelece, sem contestação possível, a realidade da tortura no Irã. Segundo
ele, os prisioneiros torturados pertencem a três categorias: os que são suspei-
tos de pertencer a organizações políticas de esquerda ou de terem participado
de ações de guerrilha; os religiosos hostis ao xá; os intelectuais da classe média
e as pessoas do povo que de alguma forma criticaram o regime em público.
Vários testemunhos atestam a presença do chefe da Savak, Nemet-Ollah
Nassiri, nas câmaras de tortura. "Alguns prisioneiros", acrescenta Jacobson,
"são preparados para a sua própria execução por meio de refinadas torturas
psicológicas."
A Savak usa com freqüência uma inovação em matéria de tortura, vari-
ante da cadeira elétrica tão cara ao Tio Sam: a "mesa quente" ou ainda "a
grelha" ou "a chapa de assar". Jacobson descreve este instrumento como "uma
rede de ferro semelhante a uma rede de colchão, no qual circula uma corrente
elétrica como numa grelha. Os supliciados são ligados a essa base até começa-
rem a grelhar. As mulheres são preferencialmente espancadas selvagemente,
depois de terem sido violadas".
Nos Estados Unidos, especialmente a partir da Universidade de Berkeley,
em 1975, foram feitos pedidos de informações acerca de desaparecidos, como
o doutor Ali Shariati, teólogo, a senhora Hadjebi Tabrizi, o doutor
Gholamhossein Sa'edi e S. Soltanpur, ambos escritores. Os requerentes (mais
de dois mil) são recebidos no átrio da Embaixada por um empregado que se
recusa dizer seu nome. São convidados a enviar cartas a Teerã. Escritores e
artistas americanos, como Noam Chomsky, Lawrence Ferlinghetti, Kay Boyle,
Joan Baez, participam dessas ações.
Em 1975, estimava-se que cerca de 137 mil prisioneiros passaram pelo
Comitê da Savak - o quartel-general, especialmente odiado. É necessário
acrescentar ainda um número igual de pessoas enviadas a Gashr ou Evine e
que foram torturadas nesses centros. De cada sete homens presos, em média,
170 O UVRO ECRO DO CAPITAl.lS iO

s6 um teria escapado à tomlra. Em 1977, a a da Juventude e dos


Estudantes Democm.as Iranianos c.akulava em 300 rrul o número de tortura-
dos, homens e mulheres, n:u prisões da ,-ak duninte vime anos da sua
existência.
N:u salas de interrogatório, °' í tnuncnt d tortura ficava m pendura·
dos nas paredes, como 001 anr::ros sa"""""""Ai"'·.... w que tão na moda hoje,
antros onde se expnme o fancwna uma ' 1olênc1a civilizada. Mas
no Irã as conseqüências eram ma ía podia levar à morte. Os
chicotes metálicos pendundos cm cassetetes elétricos alinhados
em tamboretes, a pínça de arranc.ax ~ exp'.)St.a em lugar de destaque. Sem
falar do cavalete e da grelha d • Mas Oll.O"aS torturas eram praticadas: a
introdução de ~gua fervcn e l'IOl por m o e disteres , a eletrocução
dos órgãos gemtalS, que "faz :u í ~ hom e mulheres, uivarem como
lobos". Ou ainda, a mu f rasa na boca dos supliciados
(Cai~ New~kuer, Nova Y, 75) .

Não se cOTUCguma pormenonzar a lista das vítimas. A soma,


Não w menre para o xá, um maní·
n1 c:.....i'Loln1r.•
d.a a.A rúo teria sido mais do que um
'3degh continua sendo o herói na·
úvel de Khomeini, o qual, à sua
maneira, continuou ua IUl.3 . Stj o que~ diga no O cidente (onde a
propaganda amcncana faz a let), o lrã n!io é apt-ruu um grande país - sempre
foi-. mas é tambtm um ah moei e evoluído onde, depois da queda do
xá, foram realiwdos enormes pr ogro~ no ampo i;ociaL
Pelo contrãrio, o ~t0l pc: <l E.sr da OA. de 1953, e a política hegemónica
americana que i.e i.eguiu, :wim como o 3 in«>n<li ional ao sátrapa de uma
outra era, Reza Pahlavi, condenaram o Ir ã 25 an06 de enagnaçã.o , provo·
amdo além disso um pass1v de alguns m1lhôct de mo e um enorme sofri·
mento.
Poderíamos n.finnnr ainda que a ma<lntlMivel
interferência nos assuntos mremos d outro • fs, ~ am ~ pnmclro re:Spon·
sáveis pelo fracas~ da tentariva de um gov mo laico e democránc no Ir .
Assim como sào diretamente rcspons:1vcis pelo vento Je uma rl-púbhca
islâmica, junto da qual o m[nimo que poJc dizer é que eles nilo u~m nc·
nhum crédito. De reHo, os Esrados Unidos nunca perdoaram o Ir por rí!-los
expulsado, visto que, assim como fazem com Cuba, a Líbia e o Iraque, ubme•
MASSACRES E REPRESSÃO NO IRÁ 171

tem o país a um bloqueío severo, indo ao cúmulo de ameaçar com retaliação


qualquer país que negocie com ele (leí Helms-Burton de 1996). A liberdade
capitalista mantém a sua lógica.

Notas:

1. De Gaulle fez-se representar por Pompidou.


2. Sazemane Etelaat Va Aamiace Kechvar - Organização de Informação e Segurança do
País.
-- .... - . ... ._. - ---------- - - - - - --- -- 11
/.
~. !
GENOCÍDIO ANTICOMUNISTA
NA INDONÉSIA
JACQUES JURQUET
-. ------ ....
Com cerca de três mil ilhas, a Indonésia tem, em 1988, uma população da
ordem de duzentos milhões de habitantes, o que lhe confere a qualidade de
país mais populoso do Sudeste Asiático. A sua capital, Jacarta, tem cerca de
10 milhões de habitantes.
As ilhas mais importantes são Java, Sumatra, Kalimantan (ou Bornéu), os
arquipélagos das Celebes e das Malucas e, por último, a parte ocidental da
Nova Guiné, de nome Irian.
No prolongamento de Java, a possessão do leste da ilha de Tlffior, antiga
colônia portuguesa, permanece há décadas o cerne de uma guerra de anexa-
ção conduzida pelo exército indonésio contra a Fretiün, organização local
que fundou um Estado independente, reconhecido e apoiado por toda a po-
pulação. (Veja o texto sobre esta questão publicado em seguida.)
O nome Indonésia é de criação relativamente recente, datando da véspe-
ra da Primeira Guerra Mundial. Na realidade, o conjunto deste território,
onde 90% da população é constituída por camponeses, foi ocupado e pilhado
pelo colonialismo holandês desde o início do século XVII.
A partir de 1602, os Países Baixos fundaram uma companhia de comércio
de nome "Vereenigde Oostindissche Compagnie" (Companhia das Índias
Orientais) que viria a tomar-se, ao longo da segunda metade do século XVII,
a "Companhia Holandesa", exercendo o seu monopólio sobre todos os produ-
tos agrícolas locais: arroz, milho, chá, café, mandioca, copra etc.
Depois, em 1799, o próprio Estado holandês desmontou a companlúa,
instituindo as "Índias Holandesas", e apoderou-se diretamente da sua gestão
colonial, defendendo os interesses holandeses contra outros colonialistas.
As manufaturas do tabaco antecederam os investimentos nas jazidas de
petróleo.
As populações que habitavam estas ilhas, pertencendo a várias etnias,
foram majoritariamente convertidas ao islaminismo e minoritariamente ao
cristianismo. Durante três séculos, foram submetidas a uma exploração colo-
nial clássica que incluiu períodos de conquista e de repressão criminosa. Em
1740, por exemplo, uma revolta generalizada dos chineses que habitavam es-
tas ilhas foi esmagada de forma sangrenta, causando milhares de vítimas das
quais ninguém se lembra hoje.
176 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

De 1830 a 1877, o excedente colonial foi estimado em 800 milhões de


florins. A partir de 1900 e até 1910, nos países capitalistas falava-se oficial-
mente do império colonial holandês. O mundo estava então dividido entre os
grandes impérios coloniais dominados pelos Estados ocidentais que rivaliza-
vam entre si, tais corno a França e a Grã-Bretanha, mas que sabiam unir-se,
quando era preciso, para tirar proveito das populações escravizadas e explora-
das da África, da Ásia e da América Latina.
O nacionalismo indonésio surgiu em 1908 e desenvolveu-se ao longo das
décadas seguintes.
Simultaneamente, as idéias do comunismo manifestaram-se a partir da
criação, em 1920, do primeiro partido comunista da Ásia, o Partido Comunis-
ta da Indonésia (PKI), antes mesmo do nascimento do Partido Comunista
Chinês ou do Partido dos Trabalhadores do Viemã. Porém, no ano seguinte
aconteceu a ruptura entre militantes muçulmanos e laicos. Depois, e na se-
qüência de uma insurreição em Java e em Sumatra, o partido foi proibido
pelas autoridades coloniais em 1927. Milhares de pessoas foram deportadas
para as montanhas inóspitas de lrian, e os dirigentes comunistas foram encar-
cerados em campos especiais.
A corrente anticolonialista desenvolveu-se mais lentamente. A organiza-
ção "Perhimpunan lndonesia", à qual aderiram muitos intelectuais, multipli-
cou as associações de reflexão. Em Bandung surgiu um jovem engenheiro
dotado de excepcional eloqüência, cujo sonho era unificar nacionalismo,
islamismo e marxismo. Nascido em 1901 , filho de um professor primário e
depois estudante em Bandung, este militante nacionalista era ninguém me-
nos que o futuro "pai da independência indonésia", Achmed Sukarno. Em
1927 ele fundou o Partido Nacional Indonésio e formulou, em outubro de
1928, a palavra de ordem fundamental de um "juramento da juventude":
"uma pátria, uma nação, uma língua." Mas os colonialistas holandeses o pren-
deram em 1929. No tribunal ao qual compareceu, lançou o slogan "A Indonésia
acusa". O PNI foi simultaneamente dissolvido.
A crise económica de 1929 teve conseqüências severas para a Indonésia.
A queda dos preços mundiais dos produtos de exportação levou ao au-
mento considerável do desemprego e provocou terrível miséria entre as ca-
madas menos favorecidas da população.
O crescimento simultãneo dos movimentos nacionalista e comunista, umas
vezes convergentes, outras vezes discordantes, conheceu então múltiplas der-
rotas, em função de uma repressão colonial muito dura, detenções e execu-
GENOCfDIO ANTICOMUNISTA NA INDON~IA 177

ções capitais. O desacordo essencial entre as idéias de Sukamo e as dos comu-


nistas era o princípio da "luta de classes".
O PNI proibido foi substituído pelo Partido. O seu dirigente Sukamo foi
preso pelos colonialistas uma segunda vez em 1933.
Foi então que, em 193 7, nasceu uma organização mais antifascista do que
anticolonialista, a "Gerindo" e, em 1939, foi criado o GAPI, Grupo Nacional
Antifascista. Este último adotou as reivindicações unitárias, tais como a lín-
gua indonésia, a bandeira vermelha e branca e o hino nacional. Em 1941
criou um Conselho Nacional do Povo Indonésio. Porém, o governo holandês,
apesar de refugiado em Londres depois da ocupação do seu país pelos ale-
mães, recusou todas estas iniciativas. A rainha Guilhermina desejava prosse-
guir com a guerra contra a Alemanha nazista apoiando-se no que chamava de
"Índias Holandesas". Posição de um capitalismo em luta com os nazistas e
desejoso de se apoiar em seu próprio colonialismo.
A situação na Indonésia era caótica depois do desembarque das forças
militares japonesas em 1942 e da ocupação que substituiu o colonialismo dos
Países Baixos. O poder holandês, velho de três séculos, desmoronava-se, não
sem criar entre a população indonésia algumas ilusões em relação aos japone-
ses, sobretudo nas classes sociais mais favorecidas, numa burguesia jã consti-
tuída e operacional. Os novos ocupantes procuraram ganhar o apoio de
Sukamo e dos seus amigos nacionalistas, que aceitaram "jogar o jogo", pelo
menos temporariamente. Mas um deles, chamado Sjahrir, militante do Parti-
do Socialista, organizou novas redes de resistência. Um dirigente ainda mais
ativo, Amir Sjarifuddin, foi preso e torturado pelos serviços japoneses, assim
como vários dos seus companheiros.
Assim, sucedendo ao colonialismo holandês, o imperialismo japonês, tam-
bém baseado no sistema capitalista, utilizou contra o povo indonésio os mes·
mos métodos de violência e crime de seu antecessor.
Quando as ilusões populares foram destruídas pela brutalidade dos novos
ocupantes, foi criada uma nova força política em Java, o Putera, ou "Centro
das forças do povo", cujos fundadores foram Sukamo e os seus amigos Hatta,
Ki Hdjar e Dewandro. Os japoneses toleraram este movimento na tentativa
de se apoderarem do seu controle. Isso era fruto da inquietação que já alimen-
tavam quanto ao seu próprio destino.
Assim, as autoridades ocupantes chegaram mesmo a aceitar que fosse cri-
ada, em outubro de 1943, a Peta ("Voluntários defensores da pátria"), que
viria a tomar-se o futuro exército indonésio. Vários futuros oficiais superiores
178 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

e generais iniciaram ali sua carreira militar, ao lado dos militares japoneses.
Foi o caso de Suharto, futuro ditador fascista.
Em setembro de 1944, num momento em que os dirigentes de Tóquio
sentiam aproximar-se a sua derrota com o fim da Segunda Guerra Mundial, o
governo acaba prometendo a independência aos indonésios.
Suharto pôde intervir de modo mais eficaz, e em 111 de junho de 1945,
baseado no gotong royong, ou entendimento mútuo, formulou os Pantja Sila, os
cinco princípios: nacionalismo, internacionalismo, democracia, justiça social
e crença em Deus. Em 17 de agosto de 1945, dois dias após a queda do Japão,
pressionados pelos jovens ativistas nacionalistas indonésios, Sukamo e Hatta
'l proclamaram a independência da República da Indonésia. A soberania das
ilhas, ainda submetida a pressões ocidentais, exprimia-se sob o nome de "Es-
tados Unidos da Indonésia".
Mas isso não eliminou as dificuldades sociais do povo, e o descontenta·
mento tomava-se cada vez mais forte, quer nas cidades, quer nas aldeias.
Os comunistas tentaram uma insurreição em Madiun, e foram injusta-
mente acusados de terem tentado tomar o poder em setembro de 1948, um
ponto da história que permanece confuso. O fato é que foram perseguidos e
rapidamente esmagados pela divisão Siliwangi do coronel Nasution, chefe do
Estado-Maior do exército indonésio. Trinta mil dos seus homens foram mor-
tos, entre eles os seus principais dirigentes: Amir Sjarifuddin e Musso, que
regressara da URSS um mês antes. Este acontecimento teve um aspecto pre·
monitório em relação aos massacres muito maiores que aconteceriam dezessete
anos mais tarde.
Os colonialistas holandeses quiseram aproveitar a situação e capturaram
Sukamo e os membros de seu governo. Porém, os Estados Unidos, animados
com a vitória da ação militar anticomunista e, por outro lado, muito inquietos
pela chegada ao poder de Mao Tsé-tung na China, impuseram aos Países Bai·
xos os acordos assinados em Haia, em novembro de 1949. Para os imperialis-
tas americanos, convinha sobretudo não fazer o que quer que fosse que pu•
desse colocar os Indonésios no campo dos comunistas. Na época, falava-se
freqüentemente da teoria do dominó, ameaça concreta que pesava sobre toda
a Ásia.
Os "Estados Unidos da Indonésia" deram então lugar à "República Unida
da Indonésia", cujo presidente era Ahmed Sukamo. Foi instaurado um regi-
me parlamentar, apesar de o presidente ser o defensor do partido único. Este
regime tumultuado teve seis governos em sete anos.
GENOCfDIO ANTICOMUNISTA NA INDON~IA 179

Durante este período, o Estado indonésio entregou a monopólios anglo-


americanos a exploração dos poços de petróleo indonésios. As companhias
Shell, Standard Oil e Caltex geriram, para as economias imperialistas ociden·
tais, essencialmente americanas e inglesas, as ricas jazidas da antiga colônia
holandesa. A burguesia e os elementos capitalistas burocráticos indonésios
conheceram então um desenvolvimento acelerado, baseado na corrupção in·
temacional.
Os oficiais superiores do exército representavam as camadas sociais privi·
legiadas, enquanto os comunistas se apoiavam nas classes mais pobres, nas
cidades e, em menor escala, nas aldeias. Sukamo mantinha-se o símbolo vivo
da independência e tentava administrar as rivalidades entre uns e outros.
Em 17 de outubro de 1950, o coronel Nasution, chefe do Estado-Maior
do exército indonésio, desencadeou um golpe de Estado, mas o presidente,
apoiado por uma parte dos oficiais e do exército ainda influenciados pelo seu
passado nacionalista, conseguiu repelir esta tentativa. Demitiu Nasution, mas
não aplicou a ele qualquer punição mais severa. Sukamo foi ativamente apoi·
ado pelo partido que tinha criado, o PNI, que representava sobretudo a bur·
guesia nacional antiimperialista. Os comunistas também o apoiaram.
Ocorreram novas tentativas de militares, especialmente uma em 17 de
outubro de 1952, com o objetivo de obrigar o presidente a dissolver o Parla·
mento, mas os golpistas, em desacordo entre si, não tiveram sucesso.
A partir desse ponto Sukarno mudou sua política externa, reforçando as
relações com a URSS e com a China Popular. Tinha compreendido que os
Estados Unidos apoiavam o exército indonésio contra a maioria do povo. De
julho de 1953 a julho de 1955, o primeiro-ministro Sastroamidjojo concreti·
zou as aproximações com estes países socialistas.
Em abril de 1955 foi adotado um estatuto que dizia respeito aos chineses
que habitavam a Indonésia. Esta medida teve o mérito de atacar frontalmente
um antigo racismo, mas não conseguiu eliminá-lo. A burguesia emergente
sofria a concorrência comercial de chineses muito ricos com negócios em pa·
fses ocidentais, surgindo daí uma rivalidade que facilmente se transformava
em racismo.
Depois, durante o mesmo período, teve lugar a famosa Conferência Afro·
Asiática de Bandung, cujo impacto mundial foi considerável: participaram
nela 29 Estados afro-asiáticos, confirmando o despertar do Terceiro Mundo.
Personalidades internacionais como Nehru e o primeiro-ministro Chu En-lai
tiveram participação importante. O presidente Sukarno ganhou prestígio en·
18\l O LNRO NEGRO DO CAPITALISMO

tre os países da África e da Ásia, mas o sucesso deste encontro incomodou


simultaneamente os Estados Unidos, os países da Europa Ocidental e a União
Soviética, que não tinha tido nenhuma participação.
Em novembro de 1956 o presidente indonésio fez uma longa vi.agem, pri-
meiro à URSS e depois à China Popular.
Alguns generais recomeçaram a planejar a insurreição. Sukamo aceitou
devolver ao general Nasution as funções de chefe de Estado-Maior do exérci·
to. A guerra civil que ameaçava irromper foi dominada por este oficial, ainda
fiel a Sukamo, enquanto os militares rebeldes eram apoiados, quase aber·
tamente, pelos Estados Unidos.
Em fevereiro de 1957, o chefe de Estado decidiu abandonar a opção pela
democracia ocidental e adotar uma concepção que ele sempre acalentara, a
"democracia dirigida", manifestação concreta de uma vasta corrente populista.
Podia ver-se aí, de fato, o resultado de uma aproximação momentânea entre
ele e o chefe de Estado-Maior, general Nasution. Mas foi apenas em 1959 que
ele decretou a dissolução da Assembléia Constituinte, que vi.gorava desde
1956. A questão de se a Indonésia seria um Estado fundado sobre o islã ou
sobre os princípios do Pantja Sila ainda não estava definida.
Agindo desta forma, Sukamo tinha retomado a iniciativa política. Man·
dou interditar os partidos políticos que tinham apoiado a rebelião militar.
Preconizou então o Nasakom, união das três grandes correntes ideológicas
presentes entre as camadas populares: o nacionalismo, a religião e o corou•
nismo.
Em 1961, com três milhões de adeptos, o Partido Comunista Indonésio
era uma uma força considerável, com mais influência política que o exército,
mas sem qualquer armamento, frente a um exército reacionário que se encon•
trava sensivelmente reforçado pelo fornecimento de armas soviéticas. Nesta
época, aliás, Sukamo substituiu o general Nasution por um outro oficial, o
general Yani.
Quando a Indonésia decidiu recuperar o território do Irian Ocidental,
ainda ocupado pelos colonialistas holandeses, a URSS apoiou-a. Então, te·
roendo ver a Indonésia cair em terreno socialista, os Estados Unidos impuse•
ram aos Países Baixos a aceitação de uma solução negociada. Os acordos fo.
ram assinados no mês de agosto de 1962. Simultaneamente, os imperialistas
americanos ofereceram apoio econômico à Indonésia.
Mas em dezembro de 1962, a situação da Malásia desestabilizou a região
do Kalimantan. A Inglaterra e os Estados Unidos, de um lado, e a Indonésia,
GENOCÍDIO ANTICOMUNISTA NA INDONés!A 181

do outro, apoiaram lados opostos. Sulcamo e o exército indonésio, apesar de


já infiltrado por agentes americanos, apoiaram as lutas nacionais dos povos de
Bornéu Setentrional. Finalmente os americanos, envolvidos nas operações do
Viemã, julgaram mais prudente abandonar a operação na Malásia.
Desde 1964 que Sukamo interpelava rudemente Washington, proclamando
sem rodeios: ''.Ao diabo sua ajuda!"
A sua política de "socialismo à moda da Indonésia" foi acentuada. Apro-
ximou-se da China Popular. Chegou mesmo a retirar a Indonésia das Nações
Unidas e a propor a substituição da ONU por uma organização de novas for-
ças emergentes. É claro que Pequim, que não tinha assento na organização
internacional, apoiou sem reservas a proposta de Sukamo.
Por seu lado, o PKI tomou posição a favor do Partido Comunista Chinês
na controvérsia ideológica e política o opunha ao Partido Comunista da
União Soviética. Simultaneamente, lançava uma campanha de propaganda
contra os capitalistas burocratas indonésios.
Mas a situação interna do país ficou tensa. Lutas violentas opuseram os
camponeses sem terra e os proprietários, sobretudo na ilha de Java. A associ-
ação unitária do Nasakom fundada por Sukamo esteve a ponto de se
desmembrar, com os comunistas se opondo aos proprietários de terras e a
parcelas do Partido Nacionalista Indonésio apoiadas pelo exército.
Sentindo-se em posição desfavorável, o PKI decidiu acabar com as ações
dos camponeses pobres, obtendo assim do chefe de Estado a proibição de
importantes movimentos anticomunistas, como o Manikebu e o Murba.
A cooperação entre Sukamo e os comunistas prosseguiu sem grandes di-
ficuldades . O presidente adotou a postura de reconciliar todas as forças soci-
ais com o exército. Na realidade estava ali um sonho que só se explicava pelo
seu desejo feroz de negar o princípio da luta de classes. É o mesmo que dizer
que ele acreditava na quadratura do círculo.
Por tudo isto, o ano de 1965 começou com muita tensão. A situação na
Malásia não se atenuou, apesar da retirada, pelo menos aparente, dos ameri-
canos. O exército, novamente comandado pelo general Nasution, enviou co-
mandos de pára-quedistas para a região. Os oficiais do Estado-Maior rejeita-
ram categoricamente a proposta do PKI de armar os operários e os camponeses
para constituir uma força complementar.
As ações dos camponeses sem terra tinham contribuído para a união de
todas as forças anticomunistas, que temiam o crescimento do PKI e a política
externa de Sukamo.
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Os Estados Unidos achavam preocupantes as relações de Sukamo com a


China Popular, e seu prestígio.
Nos meios internacionais, os diplomatas defendiam agora o eixo Jacar·
ta-Pequim, baseado em Pyongyang, Hanói e Phnom Penh.
O que os generais reacionários tramavam há anos acabou acontecendo
no final do ano.
Na noite de 30 de setembro de 1965, um coronel chamado Untung man·
dou prender e executar seis generais do alto-comando do exército. Entre es·
tes figurava o ex-chefe do Estado-Maior, o general Ahrnad Yani. O general A.
H. Nasution escapou por pouco.
A versão mais aceita nos dias seguintes atribuía estes atentados a uma
organização chamada "Movimento do 30 de setembro", formada por "oficiais
progressistas" que pertenceriam à Força Aérea. Eles teriam conseguido tomar
alguns pontos-chave da capital para salvar o presidente Sukamo, abortando
um golpe de Estado preparado pelos generais apoiados pelos americanos e
ligados à CIA
A situação era confusa. Os oficiais favoráveis a Sukamo formaram um
"Conselho Revolucionário".
O PKl, surpreendido, teria publicado um comunicado de apoio, mas ten·
do o cuidado de sublinhar que se tratava apenas de uma "ação interna do
exército". Negou qualquer participação ou responsabilidade na operação.
Quanto a Sulcamo, teve o cuidado de não exprimir a sua aprovação aos gene·
rais que tinham querido apoiá-lo contra um conluio militar prestes a eclodir.
Nestas circunstâncias, foi com extrema rapidez que um general, chefe de
reserva estratégica, o general Suhano, nascido em 1921 de uma família de
comerciantes, com um pai chefe religioso muçulmano, assumiu o controle da
situação contra a vontade do presidente; proclamou-se chefe do Exército e
em vinte e quatro horas tomou o controle da capital e depois da base aérea
onde estavam refugiados oficiais do "Movimento do 30 de setembro".
No poder, o exército acusou os comunistas de serem os responsáveis pela
tentativa de golpe de Estado que custou a vida de seis generais.
Uma repressão cega e criminosa contra os comunistas estendeu-se a toda
a Indonésia. O racismo antichinês também levou a inúmeros massacres de
famílias inteiras que, a maioria das vezes, nada tinham a ver com os comunis·
tas, tampouco com os progressistas.
Segundo fontes, o número de vítimas dos massacres ordenados pelo gene·
ral Suharto varia de quinhentos mil a um milhão de pessoas (Cf. Encyclo·
GENOC!DIO ANTICOMUNISTA NA INOONSIA 183

paedia Universalis, edição de 1988, corpus 9, página 1.049). Todos os dirigen·


tes do PKI que estavam no país foram executados sem julgamento, centenas
de milhares de famílias suspeitas de serem simpatizantes do comunismo foram
exterminadas seja de forma clássica ou em incêndios ateados em suas casas
pelos militares.
Outros cidadãos indonésios foram jogados, às centenas de milhares, em
prisões e campos de concentração. No seu relatório de 1971, a organização
Anistia Internacional estimava em duzentos mil o número de prisioneiros
detidos.
Os dias e os anos que se seguiram aos acontecimentos de 30 de setembro
de 1965 permitem, aos olhos da história, apontar as forças sociais, políticas e
econômicas que tiraram partido da tomada de poder pelo general Suharto e
pelo exército fascista indonésio. É aqui que O livro negro do capitalismo contri·
bui para revelar de forma incontestável o peso trágico dos crimes cometidos
sob aquele regime.
No momento deste golpe de Estado, deveria ter início em Jacarta uma
conferência internacional organizada por Sukamo. Delegados estrangeiros con·
vidados tomaram-se testemunhas involuntárias do terror desencadeado pelo
exército.
Dois franceses chegaram a Jacarta no próprio dia do golpe fascista para
participar da conferência convocada pelo presidente Sukamo. Régis Bergeron
era um jornalista conhecido que fora secretário de redação do semanário Les
Lettres Françaises e produzira a página cultural do diário r Hmnanicé, antes de
partir para a China Popular como professor de francês e revisor da revista
Llttérature Chinoise. Christian Maillet, pintor politicamente ativo, tinha sido
militante do Partido Comunista marroquino na juventude; após ter combati-
do na Resistência na França, pertencera ao Partido Comunista francês até
1964, na época defendendo as teses chinesas contra as teses soviéticas. Eis o
testemunho de Christian Maillet sobre o golpe de Estado fascista de Suharto:
"O camarada Régis Bergeron e eu chegamos ao aeroporto de Jacarta em
12 de outubro de 1965, por volta das dez horas da manhã. Estávamos repre-
sentando o MCF (ml) na 'Conferência Internacional para a Destruição das
Bases Imperialistas no Mundo' (KIAPMA) que aconteceria em Jacarta.
"Quando chegamos, constatamos que o exército rebelde tinha a situação
sob controle. O caminho estava inteiramente bloqueado por tanques, metra·
lhadoras automáticas e outros veículos militares bem armados e com muitos
homens.
r

184 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

"O exército ocupou-se de nós de imediato e levou-nos para um hotel si-


tuado no Nordeste de Jacana. Durante o dia, tínhamos o direito de circular
na cidade: as ruas estavam quase vazias, as lojas abertas mas praticamente
sem compradores. O exército ocupava todos os pontos estratégicos e os edifí.
cios administrativos. À noite, o toque do recolher obrigatório impedia a saída
dos edifícios. Subíamos então ao terraço, de onde tínhamos uma visão pano·
râmica de toda a cidade. Podíamos ver os veículos militares que circulavam
lentamente em fila indiana, a intervalos de cerca de vinte metros, com os
faróis acesos, apesar de as ruas estarem iluminadas como se fosse dia. Regular·
mente, e de todos os pontos da cidade, ecoavam rajadas de armas automáticas
e o vennelho das chamas erguia-se de diferentes bairros de Jacarta.
"Pudemos ouvir as metralhadoras e ver os incêndios durante três noites ...
após o que fomos levados pelo exército para o Hotel Indonésia, imensa cons·
trução de luxo situada no centro de Jacana e onde todos os delegados da
Conferência estavam concentrados. Os militares informaram-nos, 'para nos·
sa segurança', que não devíamos sair do hotel!
"Não tivemos mais como saber o que se passava na cidade.
"Várias vezes por dia caminhões do exército, cheios de indonésios em
trajes civis e levando na testa faixas brancas nas quais estavam escritas pala·
vras de ordem ilegíveis para nós, estacionavam durante muito tempo em fren·
te ao hotel... Os indonésios nos caminhões gritavam incansavelmente
'Comunistes gantoung!', o que significa, segundo o pessoal do hotel: 'É preci·
so apanhar os comunistas!' O objetivo era impressionar os delegados.
"O hotel tinha um pátio interno onde nos encontrávamos para escapar
um pouco à atmosfera confinada e sufocante dos edifícios ... e discutir mais
livremente entre nós, pois era claro que estávamos cercados por ouvidos indis·
eretos. Pessoas hostis lançavam garrafas de cerveja vazias do alto das janelas
dos andares superiores. Conseguimos identificar uma das janelas. Depois de
termos protestado energicamente junto aos responsáveis do hotel, as agressões
cessaram. Confessaram que elas vinham de quartos ocupados por americanos!
"Naquele momento, o alvo dos militares estava limitado apenas aos co·
munistas. A conferência internacional podia ter lugar mais tarde, assim que
os comunistas e pró-comunistas indonésios tivessem sido eliminados.
"Para acalmar os delegados, fomos levados num avião de carga da aero·
náutica para a ilha de Bali, onde fomos recebidos calorosamente pelo gover·
nadar, rodeado pelas autoridades da ilha. Tinha sido organizada uma recep·
ção oficial no palácio do governador. Alguns dias depois, em Pequim, soubemos
GENOCÍOIO ANTICOMUNISTA NA INDONÉSIA 185

que os militares tinham trancado todos os administradores e políticos, com


suas famt'lias, no palácio, que foi incendiado! Todos tinham sido acusados de
serem comunistas e todos foram eliminados."
Já Régis Bergeron preparou, em 1975, uma brochura intitulada "Para uma
Indonésia livre e democrática", publicando em língua francesa um discurso
de Jusuf Adjitorop, membro do Comitê Central do Partido Comunista da
Indonésia, que, estando no exterior no momento do golpe de Estado, foi um
dos raros membros da direção do partido a sobreviver. Ao ler este prefácio
percebemos que dez anos depois a repressão assassina fascista ainda não havia
terminado:
"... Pela terceira vez na sua história, depois de 1926 e 1948, a direção [do
PKI] foi quase totalmente exterminada. A repressão atinge-a de novo: em 28
de agosto de 1975, por exemplo, Asep Suyaman, preso em 1971 emBandung,
foi condenado à morte. Os militantes pereceram também em combate, como
Ahmed Sofyan, primeiro secretário do Partido para Kalimantan Ocidental
(ex-Bornéu), assassinado durante uma 'operação de limpeza', em 12 de janei-
ro de 1974.
"Já não se contam nem os mortos nem os prisioneiros. A Indonésia tor-
nou-se um vasto campo de concentração onde, segundo as mais recentes es-
timativas, cerca de cem mil presos políticos sofrem e, ao que parece, em con-
dições ainda piores, quer na prisão de Salemba Oacarta), onde três deles
morreram de fome em 1974, quer na ilha sinistra de Buru e em muitos outros
locais de tortura e de morte: Mabarawa, Kalisotok, Koblen, etc...
"... Que o Partido Comunista Indonésio não tenha estado implicado no
'golpe' que serviu de pretexto aos generais fascistas para tomar o poder, já
ninguém duvida ...
"É certo que a tomada do poder pelos militares foi facilitada pela CIA,
organização do imperialismo americano que não tardaria a operar uma reen-
trada em força na Indonésia.
"... A viúva de Sukamo, em outubro de 1974, denunciou o papel que o
Japão desempenhou mais tarde para consolidar o poder dos generais. Quan-
do o prêmio Nobel da Paz foi atribuído ao ex-primeiro-ministro japonês Eisako
Sato, ela revelou que este tinha 'desempenhado um papel importante para
ajudar os militares e os estudantes profissionais que, após o golpe de Estado
de 1966 (isto é, após a derrota de Sukamo), massacraram um milhão de
pessoas acusadas de serem comunistas mas que eram apenas partidárias de
Sukarno'."
186 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Hoje, o imperialismo domina inteiramente a economia indonésia e, con·


seqüentemente, a sua política.
A glória do regime da "Nova Ordem" deve-se ao fato de este ter aberto
inteiramente o país aos investimentos estrangeiros ... O dinheiro corre fácil
nas caixas de Suharto sob a forma de empréstimos, de ajudas etc. que nu·
merosos organismos internacionais (americanos e japoneses) lhe concedem...
(Cf. Pour une Indonésie libre e démocracique , Jusuf Adjitorop, Editions du
Centenaire, coleção "Le Tiers Monde en Lurte", 1975. O texto do líder indoné·
sio data de 23 de maio de 1975, dia do 55 2 aniversário da fundação do PKI).
Às indicações precisas de Bergeron acrescentemos aquelas que foram igual·
mente publicadas em 1975 pelo Comitê Indonésia-França sob o título ''A
Indonésia dos generais... dez anos de fascismo" :
"... Os prisioneiros estão divididos em quatro categorias: A, B, C e X. Para
a categoria A, o governo afirma possuir provas formais da participação no
golpe de Estado de ourubro de 1965 (são ao todo cinco mil); os da categoria
B, segundo as declarações oficiais, nunca serão julgados por falta de provas,
mas, enquanto 'comunistas puros', representam um perigo para o país. Na
categoria e, o governo inclui aqueles que foram presos 'legitimamente', mas
que serão depois libertados, quando a situação o permitir. Não existe qualquer
prova contra eles.
''A Organização Internacional do Trabalho (Genebra) pediu ao governo
indonésio um relatório sobre os trabalhos forçados impostos aos prisioneiros
políticos (designados sob o nome de "tapo!", segundo uma abreviatura do
indonésio "tahanan politik"). Sobre este assunto, declarava-se em Jacarta, em
outubro de 1974, que desde 1973 nenhum "tapo!" realizava trabalhos força·
dos ... (o que constituía, pelo menos, o reconhecimento de que esses trabalhos
forçados tinham sido realizados até 1973, portanto, oito anos após o golpe de
Estado) ... "

Em 11 de março de 1966, o fascista Suharto tomou para si todos os pode·


res, os quais já exercia de fato desde o primeiro dia do golpe de Estado. Decre·
tou imediatamente a proibição do Partido Comunista Indonésio, cujas forças
vivas ele já tinha eliminado na quase totalidade. Mandou prender 15 minis·
tros acusados de serem comunistas; ignoramos se eles o eram de fato e pensa·
mos que eles poderiam ser apenas amigos do presidente Sukamo. Depois,
reagrupou autoritariamente os partidos políticos em duas forças distintas, ambas
sujeitas às suas decisões. Organizou novas eleições para salvar as aparências e
GENOCIDIO ANTICOMUNISTA NA INOONÉSIA 187

fez-se nomear presidente em 1968. Sukarno não pôde ou não quis fazer nada
de decisivo para se opor às manobras cínicas e violentas deste general que o
afastara progressivamente de toda a atividade política. Fechado em sua casa,
o "pai da independência indonésia" morreu em junho de 1970. A "Nova Or-
dem" fascista estava instalada. O novo chefe de Estado dispunha, sem reser-
vas, de um reagrupamento político fundado por sua iniciativa - o Golkar.
Em janeiro de 1974 foram reprimidas selvagemente algumas manifestações
de estudantes e novamente feitas centenas de detenções e prisões. Foram
interditados dez jornais. O mesmo aconteceu em 1978.
As ligações entre os governantes americanos e Suharto continuaram a se
intensificar. Os presidentes americanos Nixon e Ford visitaram a Indonésia em
1969eem1975. Note-se que, doze horas depois desta visita, o exército indonésio
lançava uma violenta agressão ao Estado independente de Timor-Leste.
Por sua vez, Suharto visitou os Estados Unidos em 1970, 1975 e 1982.
A partir daquele momento, o imperialismo americano estava seguro do
seu cúmplice ou agente indonésio. Basta investigar as despesas sucessivas da
ajuda militar dos Estados Unidos à Indonésia para perceber isso. Por exemplo,
o montante de 34 milhões de dólares concedido em 1979 tinha subido, em
1983, para 53 milhões de dólares (um aumento de 64%) . Destaquemos, por
outro lado, a informação fornecida em 1975 pela publicação já citada editada
pelo Comitê Indonésia-França: " ... Presidente do IGGI (Consórcio Internaci-
onal de Ajuda à Indonésia, do qual a França fazia parte desde a sua criação
em 1967), o ministro holandês M. Pronk deslocou-se para a Indonésia em
novembro de 1973. Às autoridades indonésias com quem discutiu o montan-
te e as modalidades da ajuda do IGGI à Indonésia para o ano de 1974, ele
manifesta a inquietação do seu governo quanto à situação dos prisioneiros
políticos indonésios. Na Conferência do IGGI em Amsterdã, em maio de 1974,
a questão foi colocada na ordem do dia, para grande embaraço da delegação
de Jacarta, o que não impediu que a Indonésia obtivesse os seus 850 milhões
de dólares anuais ... "
Naturalmente, seria fácil acrescentar a todos estes dados específicos uma
verdadeira enciclopédia de crimes e outros atos bárbaros do fascismo indonésio,
cuja instauração foi apoiada pelo capitalismo ocidental. Mas é desde logo evi-
dente que o general Suharto tomou a seu cargo o genocídio dos comunistas
do seu próprio país, sem poupar aliás, todas aqueles que, progressistas ou pura
e simplesmente nacionalistas antiimperialistas, foram igualmente vítimas da
sua ferocidade.
188 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Foi com o apoio ativo do imperialismo americano, dos países capitalistas


do Ocidente e do Japão que ele pôde impor a sua "Nova Ordem", ordem
fascista que se mantém até hoje.
O Golkar, partido do poder na Indonésia, reafirmou no início de janeiro
de 1998 que mantinha a sua decisão de apresentar este carrasco do seu povo
como candidato à sua própria sucessão, para um sétimo mandato de presiden,
te da República Indonésia. Apesar da crise econômica que conduziu o país à
falência e gerou 6 milhões de desempregados, o Fundo Monetário Intemacio,
nal assinou, em 15 de janeiro de 1988, um acordo com o general,presidente,
que não disfarçou sua satisfação nem a da sua família multimilionária.
Está, assim, bem estabelecida a prova de que o capitalismo, quando se
trata dos seus interesses, não hesita nem um instante em apoiar um criminoso
de guerra contra a humanidade.

Jacques ]urquet é escritor, anticolonialista e militante comunista desde a Resistência. Após o


golpe de Estado fascista de Suharto, encontrou-se diversas vezes, em Pequim e na Europa,
com dirigentes sobreviventes do Partido Comunista indonésio.

'
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE
JACQUES JURQUET
A ilha de Timor faz parte do arquipélago das ilhas Sonda.
Sua parte oriental situa-se a 350 quilômetros da Indonésia e a 500 quilô-
metros a norte da Austrália.
A população nativa, com cerca de 600 mil habitantes em 1975 e com-
posta por 90% de camponeses, foi fortemente marcada pela colonização
portuguesa, que durou pouco mais de quatro séculos e meio. Assim, e ao
contrário das populações que habitavam a parte ocidental da ilha e prati-
cavam o islamismo, os habitantes de Timor-Leste passaram de práticas
animistas ao cristianismo. O clero católico mantém uma longa influência
sobre o povo.
Em 1975, o analfabetismo na ilha era grande e as condições sanitárias
muito ruins: uma taxa de mortalidade infantil muito elevada, perto de 40%,
tuberculose e malária endêmicas e apenas 20 médicos para todo o país, todos
residindo na capital. Os escassos 30 quilômetros de estrada asfaltada tomavam
praticamente impossível fazer chegar quaisquer cuidados ao interior.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses desembarcaram em
Timor-Leste e se impuseram pelas armas contra os portugueses. A ocupação
violenta custou a vida de cerca de 50 mil timorenses, mas estas vítimas foram
ignoradas pelo Ocidente. Em relação ao conjunto da população de Timor-
Leste, foi o mais alto percentual de mortes de todos os massacres perpetrados
contra os povos da Ásia.
Assim, em 1945 e depois da derrota dos japoneses, Timor-Leste passou a
ser um ponto estratégico cobiçado pela longínqua Grã-Bretanha e pela vizi-
nha Austrália.
Por outro lado, os governantes indonésios, livres do colonialismo holan-
dês, consideravam este pafs parte do seu e, na mesma época em que Sukamo
ainda governava sem uma oposição forte, alguns militares de extrema-direita
desenvolveram atitudes hostis aos portugueses. Em junho de 1959, na região
de Viqueque, houve uma revolta, provavelmente encabeçada por esses mili-
tares, contra os colonos portugueses que viviam e trabalhavam nas fazendas.
A repressão colonial, imediata e extremamente violenta, fez cerca de mil mortos
entre os timorenses, e outras centenas foram encarceradas em condições de-
sumanas.
192 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

O patriotismo anticolonialista das populações locais ganhou nova força.


O mundo vivia a era da descolonização, e a Assembléia Geral das Nações
Unidas viria rapidamente a votar, em 14 de dezembro de 1960, a "Declara-
ção sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais". A
reivindicação nacional ganhou força depois da Revolução dos Cravos em
Portugal. No dia 16 de maio de 1974, o general Spínola, novo chefe de
Estado de Portugal, anunciou que as colônias portuguesas deveriam ser li-
bertadas.
Aos olhos da história, a escalada do nacionalismo foi rápida e, como em
todos os lugares, gerou entre o povo contradições sobre a estratégia e a tática
a serem adotadas.
A Associação Social Democrática Timorense (ASD1), dirigida por um
grupo de intelectuais "católicos progressistas", tomou-se muito mais influen·
te do que as outras formações políticas. Em 1974, os seus fundadores, Francis-
co Xavier do Amaral e Nicolau Lobato, sofreram fortes pressões dos elemen·
tos mais jovens, como Roque Rodrigues e Abílio Araújo, adeptos das idéias e
dos princípios de Mao Tsé-tung. Logo que a Austrália anunciou o seu apoio à
intenção da Indonésia de anexar Tunor-Leste, estes jovens dirigentes decidi-
ram radicalizar as suas posições e, em 12 de setembro de 1974, transformaram
a ASDT na Frente Revolucionária para um Timor-Leste Independente, a
Fretilin.
No início do ano de 1975, este partido tomou-se o mais popular, superan·
do todos os outros grupos. A Fretilin declarou que o único caminho possível
para libertar o povo da exploração e da opressão sob todas as formas "era a
independência".
Há muito tempo que a Indonésia, dirigida pelo general fascista Suharto,
planejava, não sem hesitações, concretizar seu projeto de dominar Timor·
Leste. A Indonésia agiu de forma hábil e discreta, usando uma organização
ligada ao exército, o Bakin (Agência para a Coordenação dos Serviços de
Informações Nacionais), organização que pode ser comparada aos serviços
secretos de todos os países capitalistas e, mais concretamente, com a Gestapo
nazista. Notícias falsas difundidas pela rádio nacional indonésia davam conta
de que armamento e conselheiros militares soviéticos, chineses e vietnamitas
tinham sido enviados para Timor-Leste para apoiar um "grupo minoritário de
intelectuais comunistas".
Os agentes deste serviço bem especial conseguiram provocar uma cisão
entre os dirigentes da UDT e a Fretilin. Com firmeza, proclamaram que a
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 193

Indonésia jamais aceitaria que um governo composto por comunistas se insta·


lasse em Timor-Leste, a seu lado. No dia 14 de abril de 1975, o dirigente da
UDT, Domingos de Oliveira, assustado, cancelou uma viagem, em campa·
nhia de Nicolau Lobato, à África então ocupada pelo colonialismo português,
e à Europa, muito provavelmente Portugal, onde militavam numerosos portu·
gueses anticolonialistas, inclusive nos meios governamentais.
Única representante do nacionalismo anticolonialista, profundamente ar·
raigado entre as classes populares, a Fretilin eliminou em 17 dias de guerra
civil a Apodeti, Associação Popular e Democrática Timorense, apoiada pelo
Bakin e pela CIA, bem como a UDT, que implorava aos colonialistas portu·
gueses que ficassem.
Os patriotas revolucionários começaram a organizar o governo do Timor·
Leste independente em agosto de 197 5 e entregaram-se com ardor à tarefa de
superar as inúmeras dificuldades históricas do país. No dia 28 de novembro de
1975, apoiada pela imensa maioria do povo, a Fretilin proclamou a indepen·
dência da "República Democrática de Timor-Leste". O seu presidente, Fran·
cisco do Amaral, exaltou os combates armados do povo pela independência e
declarou: "Fazemos à Indonésia um apelo à paz, mas mantemo-nos fiéis à
máxima: a independência ou a morte."
Num relatório apresentado mais tarde ao Conselho de Segurança das Na·
ções Unidas, o deputado australiano Ken Fry, que esteve em Timor-Leste de
setembro a dezembro de 1975, deu o seguinte testemunho: "Encontramos ali
uma administração responsável e moderada que gozava de um sólido apoio
popular... Como todos os australianos que visitaram o Timor português du·
rante este período, regressei cheio de admiração pelo Comitê Central da
Fretilin. Fiquei imensamente impressionado com sua moderação, com sua in·
tegridade e com sua inteligência perante a difícil situação com que se via
confrontada" (Cf. Timor· Est génocide oublié - Droits d'un peuple et raisons d' états,
de Gabriel Defert, página 83, tHarmattan, 1992).
Precedida de ações de comandos e de incursões militares que violavam a
fronteira entre Indonésia e Timor-Leste, na noite de 6 para 7 de dezembro de
1975 foi desencadeada uma agressão do exército indonésio (Abri). Cerca de
20 navios de guerra bombarderam o centro da capital, Díli, e os seus arredo·
res. Depois, por volta de cinco horas da manhã, foi coordenado um desembar·
que geral com o lançamento de numerosos pára-quedistas sobre a avenida
costeira. A operação envolveu 10 mil homens, sob o comando do general
Murdani, braço direito do ditador fascista Suharto. Mas a resistência dos sol·
194 O LIVRO NEGRO DO CAPITALI MO

dados da Fretilin, reorganizado nas Falintil (Força de Libertoç!io Nacional


de 1lmor-Leste), impediu a ocupaç!io da capital e m 24 h rns como previa 0
plano. Os agressores só conseguiram ocupar toda a cidade ao fim de trl!s se-
manas.
Poderíamos destacar os graves erros militares que levara m à morte por
afogamento de numerosos pára-quedi tas ou combate das próprias unidades
de lnvas:lo entre si, mas o mais importante, d pont de vi ta histórico, são as
manifestaçl'lcs de selvageria das tropas indon ia comand adas por oficiais
dignos das SS nazistas, que foram cul p. d de m acres deliberados. Logo
após os dois primeiros dias, ma ndaram exo:: uro.r no porto, a san gue-frio, cin-
qüenta prisioneiros, na maiori a civi , ho men e mulheres que nào pertenciam
nem à Frctilin nem às Falintil. Os co rpo foram jogados no mar. A população
dos subúrbios a sudeste da cidade foi reunida à força num estádio e fuzilada
com rajadas de armas automática . Houve apenas alguns sobreviventes, feri·
dos, que conseguiram se esconder entre os cadãvercs.
A população e os combatentes timorenses se retiraram e abandonaram
algumas cidades para prosseguir com a luta nos campos e nas montanhas. A
própria rádio indonésia provocou um endurecimento patriótico com as ame-
aças de matar todos os soldados comunistas da Fretilin.
Os últimos militares portugue6C:S ainda pre entes na ilha de Ataúro fugi-
ram com destino a Darwin, a 8 de dezembro, encerrando 460 anos de presen-
ça colonial portuguesa.
A ofensiva indonésia não permitiu ao general Murdani levar a cabo o
plano de conquista de todo o país. As Falintil, auxiliadas pelo seu conheci-
mento do terreno, conseguiram manter sob co ntrole dois terços do território.
O Abri foi então obrigado a enviar nov05 reforços para conquistar as prin·
cipais cidades. Dez mil fuzileiros desembarcaram para reforçar os dez mil sol-
dados já presentes mas cujas operações estavam paralisadas. Ocuparam as
maiores cídades, mas n:io conseguiram eliminar as forças da resistência. O
Comitê Central da Frctilin recuou para o sudoeste da ilha, em Ainaro. Final-
mente, a Indonésia, incapaz de esmagar a guerrilha timorense, aumentou para
32 mil o número de homens em Timor-Leste, enquanto urna reserva de outros
10 mil soldados estacionava em Timor Ocidental.
Por seu lado, as Falintil contavam com 2.500 soldados oriundos do cxfrci·
to português de ocupação: 7 mil soldados de infantaria que, no passado, ti·
nham cumprido o seu serviço militar naquele exército e 10 mil voluntários
sem formação militar efetiva.
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR·LESTE 195

Em todos os comunicados emitidos entre 1975 e 1977, a Fretilin assegu·


rou que controlava 90 1.Yci do território e, embora possa mos considerar esta afir-
mação exagerada, convém sublinhar que os poucos jornalistas que puderam
deslocar-se graçus às autoridades indo nésias relataram que o Abri só contro•
lava 30% do país. Esta situação ele relativo fraca sso náo impediu o governo de
Jacarta de proclamar, cm 17 de julho de 1976, que a partir daquele momento
Timor-Leste constituía a 27u província da Indonésia.
O comportamento dos soldados e dos oficiais indonésios era feroz. Mas·
sacravam mulheres, crianças e velhos em todas as aldeias onde não canse·
guiam penetrar. Em 1976, todos os chineses da cidade de Maubara foram
reunidos numa praia e abatidos, enquanto as suas mulheres e filhas eram
violadas . No mesmo ano, o Abri utilizou armas químicas, assim como bom·
bas de napalm. Os Estados capitalistas ocidentais e os Estados Unidos for·
ncceram a quase totalidade do armamento utilizado. Além do apoio
multiforme dos Estados Unidos, vários contratos ligaram a Indonésia com
a Holanda, a Austrália, a Espanha e a República Federal da Alemanha. A
contribuição da França traduziu-se no envio de helicópteros Alouettc e
Puma 330.
A enorme superioridade cm armas do Abri não lhe permitiu, porém, do
final de 1975 ao final de 1977, atingir os objetivos estratégicos esrabclecidos
no início da invasão. Os ataques contínuos das Falintil e as emboscadas segui-
das de retirada para as zonas livres infligiram pesadas baixas aos conquistadores.
Se acrescentarmos os balanços dos combates levados a cabo pela Fretilin en·
tre 1975 e 1979, atingiremos o número de 17 mil invasores mortos e milhares
de feridos.
As baixas sofridas tanto pela Frctilin como pela população civil timorense
são difíceis de avaliar se as limitarmos apenas a este período, mas é evidente
que foram muito superiores às dos agn:ssores. De fato, estes dispunham de
armamento sofisticado, incluindo, além da artilharia ligeira e pesada, um do-
mínio absoluto do ar que lhes permitia bombardeios que aterrorizavam a po·
pulaçfo.
Em 7 de setembro de 1977 houve um acontecimento de conseqüências
nefastas. Durante o ano anterior, vários acordos estratégicos tinham oposto o
presidente da Frctilin aos membros do seu comitê político. Xavier do Amaral
propusera abrir negociações com o ocupante. Além disso, achava que o Co-
mitê Central di.:via tomar a iniciativa de pedir às Nações Unidas a organiza-
ção de um referendo de autodeterminação. Xavier do Amaral foi então dcsti-
l96 O UVRO NEGRO DO CAPITALISMO

tu(do e preso por outros dirigentes da Fretilin, que acentuaram o caráter radi·
cal de seu discurso e suas ações. Acusado de traição, logo caiu nas mãos do
Abri, não tendo sido executado mas enviado para um campo. O seu substitu·
to foi Nicolau Lobato.
Nestas circunstâncias, o Abri decidiu fazer tudo para destruir a resistência.
De setembro de 1977 a março de 1979, desencadeou três ofensivas, parte de
uma campanha estratégica de "cerco e aniquilação". O objetivo inicial con·
sistia em isolar os combatentes da guerrilha do seu apoio logístico, a popula·
ção. Vieram depois duas campanhas sucessivas que reduziram as populações
civis à fome, em 1979 e em 1981. Estas operações militares recorreram a ar·
mamento novo e moderno, a bombardeios e à destruição sistemática das cul·
turas sob a palavra de ordem: "busca e destruição". A resistência foi tenaz,
mas sofreu derrotas inevitáveis.
O clero católico não abandonou os patriotas. Eis o que escreveu um padre
de Díli a duas irmãs dominicanas: "Desde o final de setembro, a guerra inten·
sificou-se ainda mais. Os bombardeios duram da manhã à noite. Centenas de
seres humanos morrem diariamente, e os seus corpos são deixados de repasto
para os abutres (se não são as balas que matam, são as epidemias) . Algumas
aldeias foram completamente destruídas e algumas tribos dizimadas. A barbárie,
a crueldade, as destruições inqualificáveis, as execuções sem motivo, numa
palavra, 'o inferno organizado', ganharam raízes profundas em Timor... Nas
ruas de Díli só se vêem soldados indonésios. Os poucos timorenses que restam
estão refugiados nas florestaS, mortos ou na prisão" (Ibid., obra de O. Defert,
página 110).
Ao fim de algum tempo, e após furiosos confrontos, os combatentes da
Fretilin e 60 mil civis não armados retiraram-se para as montanhas nas
profundezas da selva. Os principais dirigentes que sobreviveram foram captu·
rados após combates de uma intensidade assustadora e, em seguida, mortos.
O presidente da Fretilin, Nicolau Lobato, foi ferido, morrendo depois no avião
que o transportava para Díli, sem dúvida assassinado. Com exceção daqueles

1 que pertenciam à delegação externa do governo da República Democrática
de Timor-Leste e de três membros do Comitê Central, todos os dirigentes da
Fretilin foram exterminados.
A barbárie fascista, aprovada e apoiada de maneira discreta pelos ameri·
canos e deliberadamente ignorada pelos governos ocidentais e australiano,
apresentava as mesmas características que a dos nazistas. A Anistia Interna·
cional falou abertamente da execução sistemática de civis e soldados que ti·
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 197

nham se rendido ou que haviam sido capturados pelo Abri. Soube-se também
que alguns entre eles tinham sido queimados vivos depois de torturados, e de
outros lançados de helicópteros. Em várias regiões montanhosas, milhares de
timorenses foram abatidos em operações de limpeza sistemáticas.
Aldeias com habitantes que não tinham tido tempo de fugir foram trans·
formadas em campos especiais. Estes campos, cerca de 150, mantinham deti-
das entre 250 mil e 350 mil pessoas que, cobertas apenas com andrajos, não
dispunham de nenhum alimento e eram vítimas de epidemias sem receber
qualquer tratamento.
Um jornalista ocidental que conseguiu visitar um destes campos, pro·
vavelmente em nome da Cruz Vermelha indonésia, fez este relato chocan-
te: "Homens, mulheres e crianças, todos apresentavam marcas de priva-
ções: corpos debilitados, vestidos com farrapos, rostos descamados e vazios,
já tocados pela morte. Os ventres inchados das crianças eram de tal forma
protuberantes que os menores tinham que tirar os calções" (lbid., página
118).
A tuberculose, a malária, as disenterias e outras infecções provocaram
a morte de dezenas de milhares destas pessoas que viviam mais ou menos
a mesma existência dos campos de extermínio nazistas (se descontarmos o
caráter industrial das câmaras de gás e fomos crematórios de Auschwitz).
Aqueles que se afastavam da aldeia em busca de comida eram abatidos
sem aviso.
No entanto, apesar de 80% dos seus efetivos terem sido eliminados, as
Falintil não se renderam. Um dos três membros restantes do Comitê Central,
Alexandre Gusmão, o Xanana, dotado de uma energia e de uma coragem
lendárias, conseguiu reconstituir algumas unidades e lançou operações arro·
jadas até o coração de Díli. Durante o verão de 1980, conseguiram sabotar
uma emissora da televisão indonésia que tinha acabado de ser construída na
capital timorense.
A nova direção da Fretilin decidiu mudar de estratégia. Era preciso levar
em consideração a situação criada no pafs, onde todas as cidades, bem como
muitas regiões agrícolas, estavam ocupadas. As Falintil já não eram suficien·
temente numerosas para efetuar grandes operações, semelhantes às de antes
das derrotas sofridas no final de 1978. Foi suspensa a tática de reorganizar as
forças sobreviventes em pequenas unidades capazes de realizar operações rá-
pidas, seguidas de retiradas imediatas.
O sucessor de Nicolau Lobato foi Xanana Gusmão, que tinha se empe-
\98 O LlVRO NEGRO DO CAPITALISMO

nhado na luta desde a época do ASDT. Tomou-se o novo líder da Fretilin e da


resistência.
A mudança de estratégia não se limitou apenas às questões militares,
mas também ao plano ideológico. Em vez de uma formação única tendo
sozinha todas as verdades e dirigindo o combate justo do povo timorense, a
Fretilin abriu-se às outras, apesar das antigas contradições. O único ponto
exigido a um voluntário para integrar a resistência era a realidade do seu
patriotismo, não mais o seu juramento de fidelidade incondicional às idéias
dos dirigentes. Foi assim que antigos partidários da Apodeti e da UDT se
juntaram às Falintil.
O representante apostólico de Dt1i anunciou em 1983 que a Fretilin era
indissociável do conjunto da população de Timor-Leste e que esta se encon-
trava inteiramente solidária com as suas atividades.
Por seu lado, os generais do Abri acreditavam que tinham se desembara-
çado definitivamente da Fretilin após a execução sem julgamento de 80 dos
seus dirigentes.
O golpe efetuado em Díli em 1980 provocou surpresa e cólera nos
fascistas indonésios. Puseram então em prática uma repressão que a Anis-
tia Internacional considerou a mais violenta e a mais mortífera desde o
início da guerra. Torturas e execuções capitais sucederam-se em condi-
ções ferozes. Seiscentos habitantes de Díli foram presos e deportados para
a ilha de Ataúro, enquanto centenas de outros eram sumariamente mor·
tos nas ruas da capital. O exército indonésio agia exatamente da mesma
forma que em outubro de 1965, em Jacarta, contra os comunistas ou supos·
tos comunistas.
O exército indonésio adaptou-se à nova estratégia da resistência. Pôs em
prática a tática de "barreiras humanas". Os soldados indonésios obrigaram os
timorenses a formar cadeias humanas de várias dezenas de quilômetros de
comprimento destinadas a passar um pente fino na ilha de leste a oeste. Os
generais fascistas acreditavam que assim poderiam apanhar as Falintil, supos·
tamente incapazes de escapar a esta busca.
Antes de mais nada, esta medida teve como resultado a morte de nume·
rosos civis timorenses por causa do frio, da fome, do cansaço e da malária,
enquanto todos aqueles que tentavam escapar eram abatidos sem piedade.
Simultaneamente, os ocupantes fascistas incendiavam todas as áreas deve-
getação onde os resistentes pudessem esconder-se, queimando vivos muitos
deles. No entanto, um certo número de combatentes das Falintil conseguiu
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 199

atravessar a barreira humana com a cumplicidade dos seus compatriotas


Percebendo isso, os oficiais tornaram-se cada vez mais criminosos, se é que
isso era poss(vel. Durante o outono de 1981, começaram a massacrar de
modo mais sistemático. Em 7 de setembro de 1981, depois de um motim de
uma unidade de suplentes por eles organizada, aniquilaram a tiros de metra-
lhadora toda a população de Craras, próximo de Viqueque. Primeiro 200
pessoas e depois outras 800 que tinham conseguido atravessar um riacho.
Houve um único sobrevivente. Mais tarde, os soldados fascistas que partici-
param da operação se vangloriaram e contaram como obrigavam os
timorenses a cavar as próprias sepulturas e depois os fuzilavam à queima-
roupa, fazendo-os cair na vala.
A operação teve outra conseqüência grave. As pessoas necessárias para
esta tarefa eram quase todas camponeses que não puderam cuidar das suas
plantações. Assim, a produção agrícola para a alimentação das populações
locais caiu a um nível muito baixo. Má nutrição e doenças foram as conseqüên-
cias diretas daquela operação. A segunda grande fome atingiu então o povo
de Timor-Leste, provocando milhares de vítimas.
Ao contrário do que esperavam os generais fascistas, as Falintil escaparam
com relativa facilidade dessa nova forma de cerco e aniquilação. Em
contrapartida, todos os civis forçados a participar da cadeia humana, pelo
menos aqueles que sobreviveram, pediram espontaneamente para se junta-
rem às Falintil. Xanana recusou-se a integrá-los às unidades já existentes, que
ele pretendia conservar com características de guerrilha. Mas organizou-os
em grupos de três a seis pessoas que permaneciam na cidade ou nas aldeias
com a missão de controlar as atividades dos soldados indonésios e enviar ime-
diatamente à Fretilin um relatório dos acontecimentos. Em todo o país foram
organizados estes grupos, chamados "Nurep", e o fracasso da iniciativa
indonésia ficou claro.
Também no final de 1982 foi designado um novo comandante militar
para Timor-Leste, o coronel Purwanto. A sua missão consistia em tentar con-
quistar a simpatia dos timorenses não pela força das armas mas pela negocia-
ção. Depois de várias tentativas, o general indonésio Purwanto e Xanana
Gusmão, presidente da Fretilin, tiveram um encontro em terreno neutro, em
Lari Guto, de 11 a 13 de março de 1983. O partido da resistência exigia "um
contingente das Nações Unidas que se interpusesse entre as partes beligeran-
tes e garantisse a realização de um plebiscito livre e democrático sobre a ins-
tauração de um sistema parlamentar em Timor-Leste''. O representante dos
100 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

fascistas indonésios recusou, invocando o fato de que a discussão só dizia


respeito às condições e formas de rendição das Falintil.
No entanto, quatro meses de trégua permitiram que os resistentes
timorenses se reorganizassem e reforçassem. Ao mesmo tempo, isso legitimou
a destituição do coronel Purwamo, 5Ubstirufdo por oficiais próximos ao gene·
ral Murdani, conhecido como criminoso de guerra.
Os gravíssimos incidentes ocorridos em Díli, em novembro de 1991, pro·
varo que a população timorense, apesar de desarmada, recusa sempre a ocu·
pação indonésia.
Atendendo ao pedido dos patriotas de Timor-Leste, tinha ficado deci·
dida, em 1982, uma visita de delegados da ONU, organizada pelo secretário·
geral, Perez de Cuellar. Havia também a decisão de convocar uma votação de
referendo da autodeterminaç.ão sob os auspíáos da antiga potência colonial,
Ponuga\, considerada pel.u Nações Unidas como detendo, pelo menos, o po·
der administrativo de Timor-Leste. Os fascistas indonésios opuseram-se a es·
tas decisões.
Porém, em 13 de outubro de 1991, a primeira destas iniciativas foi adiada
sine die . Uma comissão composta por parlamentares ponugueses e indonésios
devia reunir-se, mas estes afumaram que a delegação ponuguesa incluía um
membro da Fretilin, justificando amm a sua oposição à investigação. Tratava·
se apenas, evidentemente, de um mero pretexto.
Dez dias mais tarde, a 23 de ourubro de 1991, sem dúvida durante uma
manifestação de protesto, um jovem timorense, Sebastião Gomes, foi morto
pela polícia. No dia 12 de novembro, às 8 horas da manhã, mais de cem
jovens dirigiram-se ao cemitério de Santa Cruz para honrar a memória do
seu camarada em uma cerimônia reli giosa. Reuniram-se na igreja de Moatel
para assistir a uma missa, mas ao final foram para o Hotel Resende, onde
estava hospedado um representante das Nações Unidas que fora investigar
casos de tortura. Teriam jogado pedras na fachada do edifício e gritado slo·
gans a favor da independência de Timor·wte. Não levavam nenhuma arma.
A polícia indonésia interveio imediatamente e disparou, sem aviso, contra
o grupo.
O governo de )acarta reconheceu que cerca de 50 pessoas foram monas.
O diário Le Monde de 19 de novembro de 1991 , reproduzindo os telegramas
da AFP e da Reuter, relatou entre "19 a 200 mortos, conforme as fontes". A
Associação Indonésia dos Direitos do Homem assegurou que 80 jovens presos
foram executados após os incidentes, em 15 de novembro de 199 I .
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 201

Pouco depois de um ano, em 20 de novembro de 1992, Xanana Gusmão


foi capturado pelas forças de segurança do Abri. No día 2 de dezembro, a
televisão indonésia apresentou uma suposta entrevista na qual ele teria díto
"que aceitava a anexação de Timor-Leste" e "que apelava aos seus antigos
camaradas guerrilheiros que se rendessem". Ele teria sido vítima de torturas
ou de pressões psicológicas em relação à segurança de sua farru1ía, ou tratava-
se simplesmente de uma montagem audiovísual? Nenhum dos seus compa-
nheiros e compatriotas acreditou nessa mudança, contrária ao caráter conhe-
cido do presidente da Fretilin. Em todo o caso, a agêncía noticíosa portuguesa
Lusa publicou em 2 de janeiro de 1995, segunda-feira, pouco mais de dois
anos depois, "um apelo do líder da resistêncía timorense, Xanana Gusmão,
atualmente preso, pedindo que o estatuto da ilha fosse determínado por refe-
rendo".
A prisão de Xanana foi um duro golpe para a resistêncía dos patriotas
timorenses.
Por outro lado, em 1993 foi assinado um acordo entre Austrália e Indonésia
para explorar uma jazída de petróleo descoberta no mar de Timor. Com isso, a
motivação econômica da anexação fascista começava a ficar clara.
Segundo um artigo de Cecília Gabizon, no jornal Llbéracion de 12 de no-
vembro de 1994, os portugueses puderam ver na televisão os soldados indo-
nésios atirando à queima-roupa sobre uma multidão de jovens timorenses ...
"Entre os 100 mortos oficiais e os 500 anunciados pelos comitês de apoio à
causa dos Mauberes (e mia majoritária em Timor), os portugueses ficam com
a segunda versão, e acrescentam que os soldados teriam acabado com os feri-
dos usando veneno."
As manifestações dos jovens timorenses, que já não podiam recorrer à
luta armada, não cessaram. No dia 20 de dezembro de 1994, o Llbéracion rela-
tava: "A antiga colônia portuguesa conheceu uma nova revolta com a ocupa-
ção da embaixada dos Estados Unidos por manifestantes independentistas
quando da visita do presidente Bill Clinton."
Em 25 de novembro de 1996, os jornalistas lsabelle Bouc e Pierre Haski
anunciaram que José Ramos Horta e monsenhor Ximenes Belo acabavam de
ganhar o prêmio Nobel da Paz "pela sua ação de resistência à ocupação
indonésia de Timor-Leste".
Por fim, muito recentemente, podia ler-se no jornal Llbération, edição
de 15 de novembro de 1997, página 7: "O bispo timorense Ximenes Belo,
prêmio Nobel da Paz 1996, denunciou a 'brutalidade inaudita' dos militares
202 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

indonésios que abriram fogo sexta-feira na Universidade de Drli ... Por seu
lado, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) protestou oficial-
mente contra as ações dos policiais, que levaram à força um jovem grave-
mente ferido que a Cruz Vermelha socorria: "[este] homem, atingido no
pescoço e coberto de sangue, foi tirado do veículo da CICV e arrastado
pelos policiais que o levaram para dentro de um ônibus. Quatro a seis estu·
dantes ficaram feridos, e algumas informações não confirmadas davam con-
ta de um morto" (AFP).
Esta guerra de conquista colonialista por um Estado fascista apoiado pelo
capitalismo internacional ganhou stacus de genocídio ou emocídio quase com·
pleto. Os próprios serviços indonésios reconheciam entre 170 mil e 212 mil
mortos na população de Timor-Leste. Os representantes da Igreja Católica
fornecem avaliações mais confiáveis, avaliando o número de vítimas de 308
mil a 345 mil, numa população que no início do confronto era estimada em
600 mil habitantes.
Mas estes dados estatísticos só se referem ao período de 1975 a dezembro
de 1981. Depois disso novas matanças foram perpetradas contra a população
de Timor-Leste. Em 1998 há todos os motivos para se estimar que dois terços
do povo do país foram dizimados. Consideremos estes números com objetivi·
dade, comparando o que representa esta percentagem aplicada, por exemplo,
à França, Se os crimes tivessem sido cometidos nesse país teriam resultado em
40 milhões de mortos, o que, excetuando uma guerra atômica, é evidente·
mente inimaginável.
E é aqui que se pode medir o caráter criminoso e cúmplice do mundo
capitalista, quando se sabe que nunca foi ramada nenhuma medida con•
ereta para salvar o povo de Timor-Leste deste massacre. Logo a seguir à
proclamação da independência de Timor-Leste pela Fretilin, um determi·
nado número de países reconheceu a sua soberania, entre eles, a China
Popular, vários países da Ásia, o Vietnã e os países de África colonizados
por Portugal.
O ministro das Relações Exteriores do governo de Díli, José Ramos
Horta, tinha partido cm 4 de dezembro de 1975 numa viagem pelo mun•
do, com o objetivo de garantir apoio diplomático para o caso de os fascistas
indonésios lançarem contra o seu país uma agressão militar visando a ane·
xação.
Os acontecimentos apanharam-no de surpresa e, logo depois da invasão
do Abri e do ataque contra Díli, restou a ele aceitar um convite do Conselho

! _i
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 203

de Segurança da ONU, datado de 15 de dezembro, para vir expor o ponto de


vista do seu governo. Aquele organismo internacional, depois de ter escutado
igualmente os representantes da Indonésia e de Portugal, votou por unanimi-
dade, em 22 de dezembro de 1975, a resolução número 384 "pedindo a reti-
rada imediata das forças armadas indonésias de Timor-Leste" e "pedindo ao
governo português, enquanto potência administrativa, que cooperasse plena-
mente com a Organização das Nações Unidas a fim de permitir ao povo de
Timor-Leste exercer livremente o seu direito à autodeterminação". O texto
do Conselho de Segurança continha outras determinações e decisões, indo
todas ao encontro das exigências formuladas pelo governo de Timor-Leste.
Um representante especial devia ser enviado ao local e o secretário-geral da
ONU estava incumbido de zelar pela aplicação da resolução aceita por unani-
midade.
O governo de Jacarta opôs-se às decisões do Conselho de Segurança, com
argumentos cada vez mais mais falaciosos. A agressão fascista continuou e
apenas a resistência tenaz das Falintil conseguiu refrear sua progressão.
Foi necessário esperar pelo 24 de abril de 1976 para que o Conselho de
Segurança, de novo interpelado por vários países do Terceiro Mundo, reite-
rasse a exigência de que a Indonésia se retirasse de Timor-Leste e reconheces-
se o direito do povo à autodeterminação. As deliberações em causa eram de-
terminadas a milhares de quilômetros de distância e não tinham outro valor
além daquele que o papel e a tinta lhes conferiam. Aliás, os Estados Unidos e
o Japão começaram a tirar a máscara neste caso, recusando votar a nova de-
claração.
Em 1988 e 1991, novas decisões reuniram maiorias de organismos oficiais
ocidentais. O Parlamento Europeu, sob proposta de Portugal, votou uma reso-
lução condenando a ocupação de Timor-Leste pela Indonésia. Mas isto foi
apenas uma decisão sem seqüência.
O fracasso evidente de todas estas resoluções gerou passividade nos orga-
nismos internacionais - ONU, Conselho de Segurança, Comitê de
Descolonização da ONU, Parlamento Europeu - que evitaram decidir qual-
quer intervenção militar ou outro embargo contra o agressor, para restabele-
cer a legalidade de Timor-Leste. Os Estados Unidos, superpotência que se
atribui o papel de polícia do mundo, sustentaram constantemente, de forma
disfarçada ou direta, o governo de um país onde dispunham de um cúmplice
no poder - a Indonésia dirigida pelo general Suharto.
Quando de uma passagem por Paris depois dos graves acontecimentos em
204 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Díli, em novembro de 1991, José Ramos Horta, representante do Comitê Na-


cional da Resistência Timorense, foi duro com a comunidade internacional:
"A nossa tragédia é a de sermos um pequeno país, perdido num canto do
Sudoeste Asiático." Ramos Horta concedeu uma entrevista coletiva na Fun-
dação France-Liberté, na presença de Danielle Mitterrand, mulher do presi-
dente da República, para lembrar as últimas propostas da Fretilin (que já não
se inspiravam no marxismo): "Negociações incondicionais com a Indonésia
sob a égide da ONU."
Pedia "que todos os membros da CEE se reunissem em Portugal para exigir
uma nova reunião do Conselho de Segurança" e que os países que vendiam
armas à Indonésia (a Grã-Bretanha em particular) impusessem um embargo
imediato.
As suas duas últimas palavras foram: '~judem-nos!"
Nas últimas linhas da sua obra Timor-Leste, le génocide oublié - Droit d'un
peuple et raisons d'État, repleta de documentação inquestionável, Gabriel Defert
escrevia em 1992: "Enquanto o respeito a um texto depender exclusivamente
dos interesses em jogo, poderemos certamente continuar a achar que o Iraque
não deve considerar o Kuwait como uma parte do seu território, mas a Indonésia
pode sem dificuldades apropriar-se de Timor-Leste; no entanto, teremos difi..
culdade em conceder às arbitragens internacionais outra legitimidade que
não a da força" (cf. pág. 289) . E Bill Clinton poderá ameaçar o Iraque com
"armamento estratégico", até mesmo nuclear, como fez diariamente nestes
meses de janeiro e fevereiro de 1998.
Sem que qualquer um possa permitir-se classificar de anti-semitismo a
condenação política de Netanyahu, chefe de Estado de Israel, não podemos
considerá-la também caracterizada pela recusa sistemática ao cumprimento
das decisões da ONU, sem que os países ocidentais determinem a mais leve
sanção, o menor embargo?
Portanto, há dois pesos e duas medidas. Para os países que não se sub ..
metem à vontade hegemônica da superpotência americana e dos seus cúmpli..
ces, para os pequenos povos, para os pobres, o capitalismo, assim como o
colonialismo, há muito tempo se tomou o Inferno sobre a Terra.
Concluindo, as 350 mil a 400 mil vítimas exterminadas em Timor-Leste
desde 197 5 provam sem qualquer equívoco que O Llvro negro do capitalismo é
mesmo um "l'ivro negro".
ANEXAÇÃO FASCISTA DE TIMOR-LESTE 205

Bibliografia:

Gabriel Defert, Timor-Est: Le génocide oublié. Doit d'un peuple ec raisons d'États, C Harmattan,
novembro de 1992.
Ubéracion, diversas edições entre 1991 e 1998.
I.! Humanité-rouge, anos de 1975 e 1976, especialmente o número 509, de 15 de junho de
1976, e a nota de solidariedade do Partido Comunista da Indonésia.
Le Monde, especialmente as edições dos dias 13, 14 e 19 de novembro de 1991.
Amnesty Intemational, Londres, 1977.
Prolécariat, número 12, primeiro trimestre de 1976, página 56 e seguintes.
Mary Mac Killop, publicação do lnstitute of East Timorese Studies, Austrália.
-

O IRAQUE, VÍTIMA DO PETRÓLEO


SUBHITOMA
A guerra pelo pet róleo começou no Iraque quando, em 1908, o imperador
Guilherme li obteve do sultão Abdul Hamid a concessão sobre uma faixa de
terra de mil e quinhentos quilômetros de comprimento, atravessando a Tur-
quia e a Mesopotâmia. Por esta concessão, a Alemanha tinha adquirido não
só o direito de construir uma estrada de ferro de Constantinopla até Bagdá,
mas também de explorar as riquezas minerais do subsolo numa faixa de trinta
quilômetros de cada lado da via férrea.
A derrota do Império Otomano em 1920 permite à Inglaterra ocupar a
maior parte do Oriente Médio. O Reino Unido, para evitar os problemas ine-
rentes à administração desse vasto território povoado por múltiplas comuni-
dades (árabes, curdos, sunitas, xiitas, cristãos, beduínos), forma vários Esta-
dos no território rico em petróleo. Assim, foram criados diversos principados,
entre os quais o do Kuwait, ao sul do Iraque. O mandato britânico sobre o
emirado foi fixado em 99 anos, mas, em 1938, o rei do Iraque, Ghazi, exigiu a
anexação do Kuwait ao seu país, considerando-se espoliado pelos britânicos.
Iniciou uma série de manobras nesse sentido junto ao colonizador, bem como
uma ampla campanha de informação dirigida às populações dos dois territó·
rios. Foi instalada uma estação de rádio no palácio real de Bagdá para incitar
os habitantes do Kuwait a revoltarem-se. Em 1938, durante uma viagem à
Suíça, o rei Ghazi morre em conseqüência de um acidente obscuro que pode
ter sido criminoso. Depois disso, nenhum governo iraquiano abandonou essa
reivindicação. Nem sequer Nuri ai Said, apesar de ter sido o homem dos bri·
tânicos; este, no entanto, tentou convencer os americanos a pressionarem a
Inglaterra para a restituição do Kuwait. Também ele morreu assassinado.
Em 1961, três anos depois de subir ao poder, o general Kassem, líder da
revolução, decide recuperar o Kuwait pela força. As tropas britânicas, enviadas
às pressas, detêm o avanço do exército iraquiano. Em fevereiro de 1963, Kassem
é assassinado por uma junta de oficiais apoiada pelo governo do Kuwait. No
mês de março, o novo regime iraquiano, pressionado pelas companhias petro·
l!feras, reconhece imediatamente o Kuwait. O emirado entregará trinta e dois
milhões de dinares ao novo chefe de Bagdá. A Inglaterra, enfraquecida pela
Segunda Guerra Mundial, já não podia garantir as posições das grandes com·
panhias petrolfferas no Oriente Médio, então propôs aos Estados Unidos um
r
210 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

pacto entre os principais países da região. Aparentemente, este acordo visava


a defender o "mundo livre" contra as ameaças soviéticas, mas, na realidade,
tratava-se de uma nova aliança entre os países da região no sentido de assegu-
rar a proteção das companhias petrolíferas ocidentais e a exploração do petró·
leo pelos Estados Unidos e a Inglaterra.
O acordo entre a Alemanha e o Império Otomano para construir uma
ferrovia ligando Berlim a Bagdá e para eferuar pesquisas petrolíferas não agra·
dou a Grã· Bretanha, que em 1914 invadiu o Iraque, então província turca,
com o auxfüo das tropas indianas. 1 Essa foi uma das causas da Primeira Guerra
Mundial. Depois desta, a revolta dos iraquianos, especialmente no Sul, abri·
gou as tropas britânicas a abandonar o país, mas em 1920 a Grã-Bretanha
conseguiu que a Sociedade das Nações lhe atribuísse um mandato sobre o
Iraque.
Depois dessa Primeira Guerra, a Inglaterra e a França impuseram a sua
concepção do direito ao Oriente Médio, desenhando a partir de Paris as fron·
teiras de acordo com os seus interesses petrolíferos. A questão do direito in·
ternacional nunca foi colocada, porque esse direito era sempre adaptado de
modo a preservar os interesses petrolíferos. De resto, foi possível constatar
posteriormente como os Estados Unidos e os outros membros do Conselho de
Segurança interpretaram o direito internacional.
Em 1932, o poder volta às mãos dos iraquianos, cujo governo real conclui
um pacto com os britânicos. De 1920 a 1958, uma série de revoltas custa ao
povo enormes sacrifícios: repressões, execuções, enforcamentos praticados pelo
poder real apoiado pelos ingleses.
Em 1958, as forças progressistas, o centro-esquerda, a esquerda e os naci·
analistas formam a Frente Parriótica Unida. A revolução de 14 de julho de
1958 põe fim à realeza e aos pactos com a Grã-Bretanha. Diversas reformas
são iniciadas, entre as quais a reforma agrária, o código de garantias indivi·
duais, a igualdade da mulher no caso de herança. O sistema feudal instiruído
pelos britânicos, que tinha dado 95% das terras a 5% da população, é revoga·
do. A terra é distribuída aos camponeses.
Em 1963, cinco anos após a fundação da República, o novo regime
iraquiano que chegara ao poder com enorme apoio popular tinha iniciado
uma queda de braço com a poderosa IPC, companhia de petróleo iraquiana
de propriedade do Reino Unido, da França e dos Países Baixos, que controla-
vam as riquezas do país desde o fim da Primeira Guerra Mundial e não utiliza·
vam a totalidade do potencial petrolífero a fim de manter os preços, deixando
O IRAQUE, VÍTIMA DO PETRÓLEO 211

para os iraquianos uma parte irrisória dos lucros. O Estado iraquiano esperava
ter o direito de interferir na exploração do seu petróleo e exigia um aumento
da produção para financiar a reconstrução do país pilhado pelo Império
Otomano e pelos britânicos, mas a IPC não queria ceder. O governo pediu
que fosse anulado o mandato inglês sobre o Kuwait, que considerava provín·
eia iraquiana (a fronteira tinha sido delimitada em 1922 pelo protetorado
britânico que confiou o poder ao xeque antes que a Kuwait Oi! Company,
anglo-americana, reservasse para si mesma e por 99 anos a concessão das
pesquisas e da exploração petrolífera). Com a recusa inglesa, o governo deci-
diu então pela nacionalização de 90% das terras, incluindo jazidas ainda não
exploradas pela IPC.
A nacionalização provocou a ira dos homens do petróleo, que em 1963
fomentaram um golpe de Estado organizado pelo partido Bath, com a aju·
da dos diversos grupos de interesses anglo-saxônicos e financiado pelos
kuwaitiano. Depois de vários dias de bombardeios à sede do governo repu·
blicano e de confrontos com a população nas ruas de Bagdá, a junta mili·
tar conseguiu executar Kassem, chefe do governo e líder da revolução, e
vários dos seus companheiros, e implantar um regime de terror que durou
nove meses, durante os quais todas as formas de repressão, de tortura e
violência foram infligidas aos patriotas antiimperialistas e aos legalistas
republicanos. Mais de 400 mil pessoas foram presas e torturadas, sendo
que 20 mil delas nunca regressaram dos campos de concentração, mortas
sob tortura ou sumariamente executadas. Um grande número de sindica-
listas, chefes do Partido Comunista, intelectuais e simples militantes
antiimperialistas foram eliminados em alguns meses. O movimento patrió·
tico foi decapitado.
Esse golpe permitiu que as empresas petrolíferas conseguissem a anulação
da lei n2 80 sobre a nacionalização do petróleo, a supressão do novo código
civil (que estabelecia a igualdade entre homens e mulheres), a abolição da
reforma agrária, restituindo as terras aos grandes proprietários, a supressão do
direito ao trabalho e o fim das negociações sobre os direitos do povo curdo.
Alguns anos mais tarde, vários líderes do golpe revelaram que estavam ligados
aos ingleses e americanos. Ali Salh al Saadi, número dois do partido e minis·
tro do Interior, declarou em 1968 à revista libanesa Estudos árabes: "O nosso
partido foi conduzido ao poder por um comboio americano."
Em julho de 1963, o ministro da Defesa iraquiano informou oficialmente
o seu governo de que o adido militar dos Estados Unidos, lotado em Bagdá,
212 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

tinha pedido para acolher os peritos americanos encarregados de estudar os


carros de assalto T 54 e os aviões MIO 21 do exército iraquiano. Em
contrapartida, o governo dos Estados Unidos estaria disposto a armar o Iraque
na sua guerra contra os curdos. Desse modo, esta guerra revelava a ausência
de soberania do governo iraquiano frente aos Estados Unidos.2
Em 1964, o partido Bath deixa o poder e os novos dirigentes de Bagdá
mostram a sua simpatia por Nasser e tentam instaurar no Iraque um socialis-
mo calcado no modelo egípcio. Após a nacionalização do setor bancário e das
grandes indústrias, o governo decide criar uma companhia nacional do petró·
leo iraquiano (INOC) e inicia negociações com a IPC, com vista a um acordo
que permitisse associar o Iraque à exploração do seu petróleo. Acordos sepa·
rados foram assinados com a URSS e com a França, mas o conflito com a IPC
determinou a queda do governo.
Em julho de 1968, o partido Bath volta ao poder. Inicia uma repressão
impiedosa à oposição e firma alianças táticas com as superpotências.
Em 1975, os novos governantes nacionalizam o petróleo. Inicia-se um
vasto programa de reconstrução do país, industrialização, obras de infra·
estrutura, investimento em educação (o Iraque ganha três medalhas da
Unesco), e uma campanha de alfabetização. A receita do petróleo deve ser·
vir para reconstruir o país. A industrialização em 1991 é comparável à da
Europa. A Guerra do Golfo irá atrasar o país cinqüenta anos. Entre 1970 e
1975, o governo iraquiano investiu 1,5 bilhão de dólares no desenvolvi·
mento do Curdistão.
O ensino era obrigatório e gratuito. O número de alunos do ensino primá·
rio era de 2,2 milhões em 1968. No ensino secundário, 640 mil e 90 mil no
ensino técnico. Nas cinco urúversidades, 130 mil estudantes. No total, em
1986, um terço da população estudava - cerca de três milhões de alunos e
estudantes e dois milhões de adultos em cursos de alfabetização.
Se há um problema de liberdade política, a liberdade da mulher é certa.
As mulheres passaram a ocupar um lugar importante na sociedade moderna
iraquiana, embora um grande número delas ainda trabalhe a terra. Antes da
primeira Guerra do Golfo, as mulheres representavam 38% do professorado,
31 % dos médicos, 30% do funcionalismo, 11 % dos empregados nas fábricas.
Ao todo, 30% da população ativa.
O IRAQUE, VITIMA DO PETRÓLEO 213

Aguerra com o Irã

A Grã-Bretanha tinha conscientemente traçado fronteiras imprecisas entre


o Irã e o Iraque, e disputas fronteiriças foram a causa da guerra conduzida por
Saddam Hussein. A França, assim como outros países, emprestou aviões e
vendeu armamento ao Iraque. Três dezenas de governos e mais de mil empre-
sas rivalizaram em zelo e em engenho para dotar o Iraque de uma poderosa
máquina de guerra. 3 Uma perda global em produto bruto de 500 bilhões de
dólares. Por seu lado, os comerciantes de armas forneceram 50 bilhões de
dólares de armamento a crédito.
O Iraque dispunha de 15 bilhões de dólares de reservas cambiais em 1980,
antes da guerra, e em 1988 tinha 70 bilhões de dólares de dívida externa,
sendo 40 bilhões devidos ao Ocidente e ao terceiro mundo e 30 milhões aos
países do Golfo (Arábia Saudita e Kuwait). A dívida com a França chegava a
28 bilhões de francos.
O Iraque tinha sido apoiado e encorajado ao mesmo tempo pelo Ocidente
e pelas monarquias do petróleo para confrontar a república iraniana. Todos os
países da Europa e os Estados Unidos eram amigos do Iraque. Durante esse
tempo, o Kuwait dispunha de um campo petrolífero iraquiano (Roumaliyah)
para aumentar a sua produção e provocar a queda dos preços.
Uma guerra de oito anos fará três milhões de mortos e deixará dois países
esgotados.

A armadilha

Os ocidentais querem conservar o domínio do petróleo no Oriente Médio


e, por conseqüência, os Estados não devem poder conseguir independência.
No Irã, quando o primeiro-ministro Mossadegh nacionalizou o petróleo, a
ClA enviou o seu agente, o general Schwartzkopf {pai do general da Guerra
do Golfo!) para fomentar uma revolta contra o governo eleito em sufrágio
universal. Schwartzkopf mantinha excelentes relações com os oficiais do exér·
cito imperial, do qual tinha sido instrutor de 1942 a 1948. Conduziu a re-
pressão com o seu amigo, o general Zahedi. Depois de ter condenado o pri·
meiro-ministro Mossadegh à morte por alta traição, o governo do xá infligiu
ao povo uma repressão sangrenta, em especial nos campos petrolíferos, onde
milhares de operários foram assassinados, e em Abadan, onde milhares de
214 O UVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

pessoas foram presas ou fuziladas. O imperialismo americano sempre se esfor-


çou para manter conflitos para se apoderar das riquezas. Apoiou-se no enfra-
quecimento da região para assegurar o seu poder econômico. A sua política
não permite que haja algum Estado capaz de assegurar a sua independência.
Depois da guerra contra o Irã, os americanos pedem imediatamente ao
Iraque que reduza a sua capacidade militar e decretam o embargo para obrigá-
\o a se curvar. Quando Saddam Hussein revela seu desejo de reconquistar o
Kuwait, os Estados Unidos tranqüilizam os iraquianos: "É um assunto que não
nos diz respeito." No fim de julho de 1990, o Iraque concentra as suas tropas
na fronteira do Kuwait, movimento que os Estados Unidos seguem hora a
hora desde o 14 de julho.4 Saddam acredita ter sinal verde, os Ocidentais
deviam-lhe isso.
Mas, uma vez invadido o Kuwait, o processo de guerra começa.
Em 6 de agosto de 1990, o Conselho de Segurança determina sanções
militares e econômicas contra o Iraque. Em 25 de setembro, impõe o embargo
aéreo. Em 29 de novembro, autoriza a utilização de todos os meios para que o
Iraque seja castigado, decisão a vigorar a partir de 15 de janeiro de 1991.
Várias vezes o mesmo Conselho tentou impor sanções contra Israel sem qual-
quer sucesso, em função dos vetos americanos. Eis alguns exemplos: veto
americano à resolução do Conselho de Segurança que determinava embargo
militar e econômico a Israel em 1982 em função da ocupação dos territórios
sírios. Em junho de 1982, os Estados Unidos vetam a resolução do Conselho
que visava a impor sanções a Israel por sua recusa em abandonar o Líbano.
Em agosto de 1982, os Estados Unidos reiteram seu veto a uma nova resolu-
ção que exigia a rerirada de Israel do Líbano. Em agosto de 1983, os Estados
Unidos opõem-se à resolução do Conselho de Segurança que ameaçava im·
por sanções a Israel devido à sua políáca expansionista. Em janeiro de 1988,
novo veto americano a uma resolução condenando Israel pela sua política de
desrespeito aos direitos dos palestinos. Em 1989, o Conselho de Segurança
elabora cinco resoluções que condenam Israel. Os Estados Unidos abortam
três delas graças ao direito de veto. Em maio de 1989, veto americano à reso-
lução do Conselho de Segurança que condena a ocupação por Israel do sul do
Líbano. Em novembro de 1989, o veto dos Estados Unidos impede a vitória
da resolução que protesta contra a destruição das habitações palestinas. Em
novembro de 1989, a resolução da Assembléia Geral das Nações Unidas que
apelava à resolução do problema palesáno-israelense com a criação de dois
Estados recebia 151 votos favoráveis contra três votos (Estados Unidos, Israel
O IRAQUE, VITIMA DO PETRÓLEO 215

e República Dominicana), mas no dia seguinte o New York Times publicava


um artigo denunciando a influência dos Estados árabes sobre a ONU. No
entanto, esse mesmo jornal nunca mencionou as pressões dos Estados Unidos
sobre o Conselho de Segurança. 5 Até 1990, nenhum Estado tinha realmente
respeitado as múltiplas resoluções das Nações Unidas.
Uma aliança de 33 países entre os mais poderosos do mundo. Uma propa-
ganda sem precedentes para mobilizar a opinião pública. Os iraquianos são
retratados como 18 milhões de fascistas que ameaçam a humanidade. A opi-
nião assim manipulada aceita a idéia de uma guerra: o Iraque tinha se tornado
uma ameaça para a paz mundial, apesar sua economia representar apenas 1/
1.000 das potências rivais. Na Arábia Saudita e em Israel a imprensa estava
submetida ao controle militar. Durante a guerra, os jornalistas ocidentais pu-
deram trabalhar em melhores condições no Iraque do que naqueles dois paí·
ses. Na mídia o Iraque já saía vencido. No grande jogo da propaganda, da
desinformação, da mentira, Saddam e os seus não tinham peso.6
O arsenal químico de Saddam Hussein era rudimentar. Seus dois gases
prediletos, o tabun e o sarin, já usados pelos alemães contra os judeus, são
gases que, espalhando-se no ar, matam aqueles que o respiram. A bomba FAE
(Fuel air explosive) ou a bomba de vácuo, último pequeno engenho da
tecnologia americana, mata tudo o que respira, aspirando, por um efeito de
combustão, todo o oxigênio disponível num círculo de um quilômetro qua-
drado. Os americanos, que de fato proibiram Saddam Hussein de usar o tabun
e o sarin, se permitiram a bomba de vácuo, sem falar das bombas de napalm e
de fósforo, armas eminentemente limpas que eliminam tudo o que tocam.
Quanto ao uso do urânio, este teria contaminado 60 mil soldados americanos
e 10 mil britânicos. Não se conhece o seu impacto sobre as populações do sul
do Iraque.
Uma guerra limpa, rápida, eficaz, barata. Era o slogan. Esquece-se a mais
poderosa força aérea já reunida, levantando vôo diariamente da Arábia Saudita,
da Turquia, da França, da Inglaterra, do mar Vermelho e do Oceano Índico
para largar bombas assassinas sobre um país de 18 milhões de habitantes. Es-
quecem-se os mísseis, o napalm, as bombas de depressão e de fragmentação.
Resultado: o conflito teve efeitos que podem ser considerados quase apo-
calípticos na infra-estrutura econômica do país que era, até janeiro de 1991,
uma sociedade altamente urbanizada e mecanizada. A maior parte dos meios
de apoio da vida moderna foram destruídos ou tomados precários. O Iraque
foi devolvido, por longo tempo, para uma era pré-industrial, mas com todos os
216 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

inconvenientes de uma dependência pós-industrial comparada com a utiliza-


ção intensiva da energia e da tecnologia. 7 Bush tinha prometido: não se pode
aceitar que um governo independente administre a sua riqueza.
Os EUA travaram contra o Iraque três tipos de guerras: militar, de embar-
go, de destruição do tecido social. Em primeiro lugar a destruição das forças
militares e da infra-estrutura. Em seguida, a tentativa de destruição da unida-
de nacional pela manipulação do povo curdo e dos xiitas. Promete-se ajuda e
proteção para a revolta, depois abandona-se os revoltados à repressão. Os
curdos foram peças de chantagem e de manipulação. Na verdade, nem os
Estados Unidos nem a Inglaterra quiseram alguma vez resolver o problema
curdo, nunca aceitaram a independência do Curdistão. Em 1920, os acordos
de S~vres, de Lausanne e de Versalhes não concederam a independência aos
curdos. Em 1922, quando um rei curdo foi proclamado após a Primeira Guer-
ra Mundial, as populações foram bombardeadas e atacadas com gás pelos in-
gleses. Desde 1991, os curdos foram submetidos a embargo. A Turquia faz
dezenas de milhares de mortos no Curdistão, mas a Turquia está no "campo
certo", sendo, portanto, inatacável. Dividir para reinar é o lema, são encora·
jadas as rebeliões étnicas, confessionais: xiitas, sunitas, árabes, cristãos. O Lí-
bano é o exemplo mais trágico disso.
O objetivo do conflito era ter petróleo barato. Para isso era necessário
colocar sob tutela uma nação, massacrar uma população e destruir o aparelho
produtivo de um país.

Para os Estados Unidos, o primeiro resultado industrial da guerra contra o


Iraque foi o domínio da maioria dos mercados compradores de armamento da
região. Os lucros dos fabricantes de armas vêm mais dos mercados externos
que do mercado interno. Esses mercados externos encolheram consideravel·
mente antes de 1990 porque os grandes compradores, como os do Oriente
Médio, viram diminuir as fontes de receita. O mercado mundial de armas
caiu 60% em 1990. Isso aumentou a concorrência de preços e resultou por•
tanto em uma busca de economia nos custos que levou logicamente a uma
redução drástica do número de operadores no mercado. Foi desse modo que a
indústria americana da defesa conheceu em doze anos urna onda de
reestruturações e concentrações sem precedente, e os negócios entre ernpre•
sas do setor superaram 100 bilhões de dólares.5 Essas operações levaram ao
surgimento de três gigantes. As vendas de armas somadas das sociedades que
fazem agora parte da Lokheed-Martin, Boeing-MacDonnel Douglas e Rayrheon
O IRAQUE, V{TIMA DO PETRÓLEO 217

chegaram, em 1996, a perto de 50 bilhões de dólares e representavam mais ou


menos tanto quanto o orçamento de compras (excluída a pesquisa) do
Pentágono. A indústria americana, animada pelo fim da União Soviética e
sobretudo pelo seu papel dirigente na coligação contra o Iraque, aumenta a
distância entre ela e os seus concorrentes, segundo os dados fornecidos pelo
instituto Internacional de Pesquisa sobre a Paz, de Estocolmo (SIPRI) . Em
1996, os Estados Unidos garantem para si 44% do mercado (alguns especialis-
tas chegam mesmo ao índice de 50%) . Nesse setor, gozam de uma supremacia
que não dispõem em nenhuma área civil.9 Após a Guerra do Golfo, os Estados
Unidos, em quatro ou cinco anos, asseguraram o controle da metade dos mer-
cados (inclusive de todos os materiais). A França tinha em 1985 perto de 10%
do mercado mundial, em 1998 não possuía mais do que 4 a 5%, depois de ter
sido destronada pelos ingleses, que detinham o dobro. 10
Devastado o Iraque, a guerra contra o país prossegue economicamente
através do embargo. As receitas do petróleo eram de 20 bilhões de dólares,
dos quais S bilhões eram destinados à importação de medicamentos e alimen-
tos. Oito anos depois, apenas 2 bilhões da venda de petróleo são autorizados,
e o essencial serve para pagar a dívida de guerra com o Kuwait.
O embargo não é mais do que um processo destinado a fazer regredir o
Iraque para a era pré-industrial e eliminar a possibilidade de independência
econômica no que diz respeito ao petróleo. As potências ocidentais não pre-
tendem deixar um Estado independente, com poderio militar, desenvolver-se
e ter um papel importante na região. Elas pretendem controlar toda a riqueza
do petróleo. O solo do Iraque tem petróleo ainda para um ou dois séculos. Era
inevitável que ele fosse atacado.
O controle do armamento é uma farsa que já não engana ninguém. Nin-
guém poderá acreditar que em oito anos os peritos de ONU, especialmente os
americanos, com os ultra-sofisticados meios de detecção de que dispõem, as
telecomunicações, os radares, os satélites etc., não puderam confirmar sua
existência.
Antes do embargo, em 1990, o Iraque correspondia aos critérios da Orga-
nização Mundial quanto à saúde. Para cada iraquiano, o país investia trinta
dólares por mês, enquanto hoje não gasta mais do que dois dólares, ou seja,
uma queda de 93%.
AB conseqüências mais trágicas do embargo são especialmente sentidas
nas camadas mais frágeis da população, sobretudo as crianças.
Em 1977, os pesquisadores franceses enviados ao Iraque estimavam uma
218 O LNRO NEGRO DO CAPITALISMO

população de 25 milhões no fim do século. 11 Agora, a previsão será apenas de


22 milhões. O Unicef, a FAO e a Comissão dos Direitos Sociais e Econômicos
das Nações Unidas avaliam em um milhão e trezentos mil o número de crian-
ças mortas antes dos cinco anos em conseqüência do embargo. Um milhão de
crianças não vai à escola. Em cinco milhões de crianças de menos de cinco
anos, um milhão terá sua capacidade mental reduzida por falta de proteínas e
de leite para desenvolver o cérebro. Deste modo, um quarto da população
futura é agora considerada perdida.
Por razões puramente econômicas, sacrifica-se um povo em oferenda ao
deus petróleo.
Enquanto, outrora, havia no Iraque vários milhões de emigrados dos paí-
ses vizinhos, hoje assistimos à migração para o exterior dos intelectuais, das
mentes mais brilhantes. Há nisto uma perda de substância para a sociedade
iraquiana. Muitas famílias são dilaceradas pela migração. Muitas mulheres se
vêem sozinhas. Famílias se esfacelam, a delinqüência aumenta. As mulheres
controlam a miséria familiar, dividindo a alimentação entre os seus filhos: um
deles comerá um dia, no dia seguinte será a vez do outro. Um pai caminha
vinte quilômetros para levar seu filho doente a um hospital, onde não poderá
ser devidamente tratado por falta de medicamentos.
Os iraquianos não podem imponar medicamentos nem produtos alimen-
tares, nem peças de substituição para os aparelhos médicos, para a maquina-
ria, para os vekulos, nem cadernos, lápis, livros para as crianças das escolas.
Há oito anos o Iraque não pode importar publicações científicas. Os pesquisa-
dores não podem se deslocar ao exterior nem para assistir a conferências in-
ternacionais. O país não pode se equipar em infonnática nem ter acesso à
Internet, aos conhecimentos que os outros países desenvolvem. Avalia-se que
o atraso será de trinta a quarenta anos, reduzindo a possibilidade de o país
entrar em contato com a nova cultura do mundo. Isto em todos os setores. Há
um desejo deliberado de reduzir o Iraque ao nível de um país do Terceiro
Mundo. O acordo "petróleo contra alimentação" não resolveu nada. Serve
essencialmente para pagar a dívida de guerra. O país recebe apenas 20%. No
que diz respeito às despesas de saúde acontece o mesmo. E os acordos de
importação sequer são respeitados. Quanto ao dinheiro do Iraque congelado
no estrangeiro, trata-se manifestamente de um roubo.
Éo desejo dos poderosos que domina o Conselho de Segurança e o leva a
detenninar um bloqueio sem precedentes para impedir um país de se desen-
volver, para destruir seu futuro, um país que tinha os meios econômicos ne-
O IRAQUE, VITIMA DO PETRÓLEO 219

cessãrios para auxiliar o Terceiro Mundo. Após a guerra imunda, o embargo é


ainda, e sobretudo, uma guerra colonial de carãter econômico, qualquer que
seja o pretexto, ainda que se invoque o direito internacional.
No entanto, este povo demonstrou vontade de resistir e sobreviver, de
preservar sua dignidade. Mas não se pode pedir ao povo que sacrifique sua
honra. Ele vê atacada sua garantia de sobrevivência. Ao contrãrio do que se
esperara ao decretar o embargo, as divergências com o regime perderam força
ou foram esquecidas. Uma população esfomeada só pensa em se alimentar,
não faz a revolução. Os iraquianos estão conscientes de que aquilo que supor-
tam é feito para impedir o seu país de se desenvolver. Resistem, mas não pode-
rão resistir mais dez anos. Este povo estã em perigo. Se uma guerra civil come-
çasse no Iraque, não poderia ser contida; toda a região seria contaminada. Os
americanos jogam como aprendizes de feiticeiro mas não sabem manter o
controle quando a caixa de Pandora estã aberta. Não conseguiram dominar o
integrismo e os conflitos suscitados no Afeganistão hã vime e cinco anos.
Qualquer que seja o regime, é ao povo que compete escolher. O embargo é a
guerra feita contra todos os regimes progressistas ou indóceis aos Estados
Unidos. A solidariedade com o povo iraquiano deveria envolver todas as for-
ças progressistas do mundo.

Antes do embargo:

30 mil leitos em hospitais construfdos após a nacionalização do petróleo.


Orçamento: 500 milhões de dólares. Os suprimentos médicos eram de
250 milhões.
Mortalidade infantil: 24 em mil. Menos de cinco anos: 540 por mês. Mais
de cinco anos: 650.

Depois do embargo:

Orçamento: 3 7 milhões de dólares. Sem suprimentos.


Mortalidade infantil: 92 em mil. Menos de cinco anos: 7, 5 mil por mês.
Mais de cinco anos: 9 mil por mês.
Desnutrição: 1.100 calorias por pessoa, em vez de 2.500. Peso das crian-
ças reduzido em 22%.

Unicef. ObseTVatório da saúde


220 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Subhi Toma é sociólogo de origem lraquiana, exilado na França desde 1971. Foi secretário·
11cral dos estudantes de oposição ao regime de Bagdá. Co-fundador da coordenação interna·
danai contra os embargos, chefiou várias missões de observação no Iraque depois da guerra
de 1991.

Notas:

I. Uonard Moslcy, La g11erre d11 pérrole, Prcsse de la Cité, 1974.


2. Charles Saint·Prot, Saddam Hussein, Albin Michel, 1987.
3. Alain Gresh e Dominique Vida!, Golfe, clefs poLIT une gi=re, l..e Monde édition, 1991
4. Bob Woodward, Chefs de ~e, Calmann.Levy, 1991.
5. Norman Finklstcn, Al Quds, 16 de dezembro de 1997.
6. Dominiquc Jamct e Régine Déforge.s, La partie de Golfe, 1991.
7. ~lat6rio da missão da ONU no Iraque, 20 de março de 1991.
8. Pierre Dussauge, l.e Monde, 20 de janeiro de 1998.
9. Claude Sefarti, l.e Monde, 20 de janeiro 1998.
10. Christian Schmid, l.e Monde, 20 de janeiro de 1998.
11. Alain Guerreau, C lrak, dáielcppcnent et contradiaion, l.e Sycomore, 1978.

' ~
A ÁFfilCA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO
FRANCESA
JEAN SURET-CANALE
Ao longo do século XIX, o antigo sistema colonial cscravagista e mer-
cantil foi desaparecendo, pouco a pouco, para dar lugar à colonização "mo-
derna", aquela que predominou do último quarto do século XIX a meados
do século XX. Esta colonização "moderna" é marcada por um retomo ao
protecionismo no quadro "imperial": cada grande potência reserva para si
os mercados das suas colônias e zonas de influência que cobrem o mundo
inteiro.
A França, que a partir de 1830 se empenhou na conquista da Argélia,
completa as suas "velhas colônias" herdadas do Antigo Regime e restituídas
em 1815 com novas aquisições, sob a Monarquia de julho e sob o Segundo
Império.
Mas seria a Terceira República que viria a constituir, entre 1876 e 1903,
um vasto império, cujas peças principais do ponto de vista econômico foram a
África do Norte e a Indochina, mas cuja maior parcela se situa na África
tropical, com a África Ocidental Francesa, a África Equatorial Francesa, às
quais se juntaram em 1918 a maior parte das antigas colônias alemãs de Ca-
marões e Togo. Um território contínuo através do Saara, com os domínios
franceses da África do Norte, completados no oceano Índico por Madagascar
e o território de Djibuti.
Na colonização "à nova maneira", os grupos financeiros resultantes da
fusão por concentração das grandes empresas industriais e bancárias parti-
lham entre si os mercados, substituindo o monopólio pela livre concorrência,
e, nas colônias, dão primazia à exportação de capitais sobre a exportação de
mercadorias e a importação de matérias-primas. A África negra francesa, nes-
ta perspectiva, é a exceção. Ar, a exploração permanece essencialmente co-
mercial, monopolizada por um número restrito de empresas de Marselha e
Bordeaux integradas tardiamente no capital financeiro, que, tendo limitado
ao mínimo os seus investimentos, praticam a troca dos produtos agrícolas
fornecidos pela agricultura tradicional por mercadorias importadas (tecidos,
materiais de construção, pequenas ferramentas).
224 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

A conquista colonial

A partilha do continente africano a partir de feitorias costeiras herdadas


da época do tráfico de escravos acontecerá essencialmente entre 18 76 e 1900.
Ela irá opor a França sobretudo à Grã-Bretanha, numa rivalidade que
culminará, em 1898, com o "incidente" de Fachoda, quando a missão de Jean
Baptiste Marchand, ao tentar estabelecer uma ligação entre a África Central
e Djibuti, enfrenta as tropas inglesas de Kitchener no Alto Nilo. A França
será forçada a abandonar as suas pretensões nessa área. Mas, estando o es-
sencial da partilha consumado, a Emente Cordiale, concluída em 1904, irá
acabar com o conflito franco-britânico.
A conquista colonial esconde-se atrás de pretextos humanitários: trata-se
de pôr fim ao tráfico e à escravarura, de eliminar os "régulos cruéis" que pu-
nham a África a ferro e fogo, de abrir a África ao comércio e, portanto, à
civilização. O missionário (principalmente católico no domínio francês) é,
para conquistar as almas, associado ao soldado e ao administrador. Em 1884-
1885, a conferência africana de Berlim, que reuniu as principais potências
européias e os Estados Unidos, afirmará, em nome destes princípios, o direito
das potências européias de partilharem a África.
A prática colonial, como veremos, se desviará dos princípios proclamados.
Para os militares franceses, a conquista da África, no dia que se seguiu à
derrota de 1871 e à perda da Alsácia-Lorena, é uma forma de recuperar a
glória militar perdida e, numa avenrura muitas vezes perigosa, de ganhar no-
toriedade e galões.
Militares e comerciantes estão às vezes divididos, por exemplo nos mo-
mentos em que as autoridades políticas pretendem proibir, com grande prejuí-
zo para os comerciantes, a importação de armas de fogo e munição. Mas, no
conjunto, o donúnio territorial serve aos interesses do comércio europeu que
elimina a concorrência de comerciantes africanos e estabelece, da costa para
o interior, uma rede de feitorias onde se trocam os produtos da região por
mercadorias importadas.
A resistência dos chefes de Estado africanos, Lat Dior no Senegal,
Ahmadou no Sudão (hoje Mali), Samory na Alta Guiné, Béhanzin no Daomé
(hoje Benim) etc., será quebrada em função da superioridade dos conquista·
dores em armamento (espingardas de repetição, artilharia): a resistência das
populações "sem Estado", que viviam em comunidades tribais ou aldeias au•
tônomas, irá durar mais tempo, até o século XX ("pacificação" da Costa do
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 225

Marfim interior, de 1908 a 1916; insurreição dos Gbayas na África Equatorial,


de 1928 a 1931) . Os confins saarianos da Mauritânia e de Marrocos só serão
submetidos em 1936.
Os "tratados" feitos com os soberanos africanos, que fundamentavam os
"direitos" da França face aos seus concorrentes coloniais, serão acintosamente
reduzidos a pedaços de papel como as autoridades coloniais queriam: assim,
na África Ocidental francesa, um decreto de 23 de outubro de 1904 pura e
simplesmente anexa os territórios "sob protetorado".

Os métodos de guerra

Os métodos de guerra são rápidos e impiedosos. Sendo os efetivos euro-


peus em número reduzido, haverá o recrutamento local, e serão essencial·
mente soldados africanos que conquistarão a África para a França. Faidherbe,
governador do Senegal no Segundo Império, tinha criado as primeiras unida·
desde "atiradores senegaleses", que manterão esta designação apesar de se·
rem mais tarde recrutados principalmente fora do Senegal.
Prêmios e soldos podem atrair os futuros soldados: mas, na conquista do
Sudão, procedia-se freqüentemente de outra forma. Quando havia necessi·
dade de efetivos, abriam-se nos "postos" (guarnições) registros de "alistamen·
to voluntário". Avisados, os mercadores de escravos levavam as suas "merca·
darias": o "cativo" em boas condições para o serviço era, em geral, comprado
(nos anos 1895-1900) por menos de 300 francos. Vendido com direito a reci-
bo e assinatura de um "ato de libertação", esperava-se que, depois de ter sido
"libertado", se alistasse "voluntariamente".
Nas grandes campanhas, recorreu-se amplamente, além das tropas regu-
lares, aos "auxiliares" recrutados sem soldo, com a promessa de participação
na pilhagem e principalmente à partilha dos vencidos reduzidos à escravidão.
Um oficial francês que participou da tomada de Sikasso (Mali) em 1898, des·
creveu assim o saque da cidade:
"Depois do cerco, o ataque ... É dada a ordem de pilhagem. Todos são
aprisionados ou mortos. Todos os cativos, cerca de 4 mil, amontoados como
um rebanho. O coronel inicia a distribuição. Escrevia ele mesmo num livro de
notas, depois desistiu, dizendo: 'Partilhem vocês isto.' A partilha decorreu
entre disputas e golpes. Em seguida, a caminho! Cada europeu recebeu uma
mulher à escolha ... No regresso fizemos etapas de 40 quilômetros com estes
226 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

cativos. As crianças e todos os que ficam cansados são mortos a coronhadas e


golpes de baioneta ... Os cadáveres eram abandonados à beira das estradas...
Nestas mesmas etapas, os homens requisitados para transportar grãos ficam
sem ração durante cinco dias: recebem 50 chicotadas se ficam com um pu-
nhado do que transportam." 1
Outro autor explica: ''.As cenas que acompanharam, ano passado, a con·
quista de Sikasso não foram senão a reprodução daquelas que se tinham se-
guido ao saque de Ségu, de Nioro, e de todas as aldeias que tomamos pelas
armas ... É às centenas, aos milhares, que as nossas infindáveis colônias au-
mentam assim o número de escravos ... "2
Quando, na Câmara de Depurados, na sessão de 30 de novembro de 1900,
Vigné d'Octon denuncia os horrores da conquista do Sudão, Le Myre de Vilers,
colonialista convicto, responde: "O nosso distinco colega atribui as culpas aos
agentes de execução: eu acuso os governos; eles não podem ignorar que, ao
enviar tropas a muitos milhares de quilômetros da sua base de operações, sem
meios de transporte, sem víveres, sem mercadoria para troca, as tropas são
obrigadas a viver à custa dos índigenas, a requisitar inúmeros carregadores,
que semeiam os caminhos com os seus cadáveres ..."3
As guerras africanas do século XIX eram línútadas nos seus efeitos pela
mediocridade do armamento, devastando apenas algumas regiões. As guerras
de conquista colonial causaram estragos em coda a parte, não poupando os
aldeamentos "amigos", salvos da destruição mas arruinados quase outro tanto
pelas requisições de sementes, de gado, de carregadores.
Um extremo do horror foi atingido em 1899 pela "Missão Voulet-Chanoine"
(do nome de dois comandantes que a chefiavam) . Estes dois oficiais já tinham
ficado "célebres" no território Mossi (hoje Burkina-Faso) pelos seus métodos
"prussianos". Tendo partido do Sudão, têm de se juntar, no lago Tchad, às
missões Foureau-Lamy, que partira da Argélia, e Gentil, que partira do Congo,
para assegurar o domínio francês da margem norte do Chad, e tomar efetiva
a continuidade das possessões francesas no continente africano. Muito pesa·
da e, tendo que atravessar uma região com falta de alimentos e água, a missão
multiplicará as suas atrocidades, que um membro da missão demitido após
divergências revelará na França. Citaremos apenas um exemplo. Na noite de
8 para 9 de janeiro de 1899, são ordenados reconhecimentos:
"Patrulhas devem aproximar-se das aldeias, tomá-las com arma branca,
matar todos os que resistirem, trazer os habitantes presos, apoderar-se dos
rebanhos. Na manhã do dia 9, o grupo de reconhecimento regressa ao acam·
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 227

pamento com 250 bois, 500 carneiros, 28 cavalos, 80 prisioneiros. Alguns


atiradores tinham ficado feridos . Para 'dar o exemplo', o capitão Voulet man-
da prender vinte mães com crianças pequenas em idade de amamentação, e
manda matá-las a golpes de lança, a algumas centenas de metros do acampa-
mento. Os corpos foram depois encontrados pelo comandante do posto de
Say." 4
Numa outra aldeia, tendo sido pedidos carregadores, os homens saudá-
veis refugiam-se no mato. "Ficaram só os velhos, as mulheres e as crianças.
Obrigaram-nos a sair e depois, colocados em fila são abatidos a tiros até o
último."5 Foram contados 111 cadáveres depois deste "incidente".
Inquietos, menos com os procedimentos usados e revelados pela imprensa
do que com o atraso da missão em relação ao calendário previsto, as autorida-
des do Sudão enviam o tenente-coronel Klobb e o tenente Meynier em busca
da missão, para assumir o comando. Cinqüenta anos depois, Meynier, já gene-
ral, recorda assim a missão:
"Muitas pegadas nas ervas e nos caminhos, objetos diversos abandona-
dos etc. e, sobretudo, aldeias incendiadas e ossadas humanas dispersas ...
[Em Birni Nkoni] pudemos ler no solo e entre as ruínas da pequena cidade,
as diversas fases do ataque, do incêndio e do massacre ... Os fossos tinham
sido transformados em valas comuns e viam-se, aqui e ali, despojos huma-
nos com os quais grandes cães esquálidos saciavam a fome. Quanto mais
avançava a coluna, mais freqüentes e terríveis se tomavam estes espetácu-
los macabros. Eram os cadáveres de dezenas de mulheres enforcadas nos
bosques que circundavam o grande aldeamento de Tibéry. Ou então, no
cruzamento de duas trilhas, descobria-se o cadáver de um guia suspeito de
tentar enganar a missão. A impressão mais penosa foi provocada pela des-
coberta de dois cadáveres de crianças (nove e dez anos) dependuradas de
um grande ramo de árvore, na orla do pequeno aldeamento de Koran-Kalgo.
Nas aldeias que encontramos, os poços estão quase todos cheios ou poluídos
com pedaços de cadáveres, e se toma difícil distinguir se são de animais ou
de seres humanos." 6
Quando os dois oficiais se juntam a Voulet e Chanoine, estes, furiosos por
terem sido afastados da sua "missão", mandam atirar contra eles: Klobb foi
morto, Meynier ficou ferido. Mas quando Voulet e Chanoine revelam aos
atiradores que vão fundar com eles um império independente nos lugares que
conquistaram e que não regressarão a casa com o saque, estes amotinam-se.
Youlet e Chanoine são mortos. O "incidente" será atribuído a uma crise de
228 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

loucura, e uma censura cuidadosa impedirá, durante cerca de meio século,


que se fale deste assunto incômodo.

O sistema colonial

Como se apresenta o sistema colonial africano quando se estabiliza, no


início do século XX, e como irá manter-se até aos anos cinqüenta desse século?
Até a entrada em vigor da Constituição de 1946, as novas colônias (as
que não foram legadas pelo Velho Regime) foram administradas de acordo
com a decisão do Senado de 3 de maio de 1854 (durante o Segundo Império),
que deixava a administração destas colônias a cargo do chefe de Estado, o
imperador. A Terceira República mantém esta situação, deixando-a a critério
do presidente da República, que delega poder ao ministro das Colônias. Salvo
disposição em contrário, as leis votadas pelo Parlamento não se aplicam às
colônias (tal como as leis sobre a liberdade de imprensa ou sobre a liberdade
de associação). O ministro legisla por decreto, estendendo a certas colônias,
se o julgar útil, a legislação metropolitana, ou estabelecendo disposições espe-
ciais para elas.
Os colonizados são "súditos" franceses, mas não cidadãos: eles não vo·
tam; estão sujeitos à autoridade dos governadores gerais, governadores e ad·
ministradores europeus. Posturas locais regulamentam o estatuto destes "sú·
ditos" conhecidos pela designação de "indigenato". A administração local
européia pode aplicar penas de prisão e multas aos sóditos por simples decisão
administrativa, sem julgamento, por motivos tão variados como "a negligên·
eia no pagamento do imposto", a "desobediência aos chefes da aldeia ou do
cantão", queixas "não fundamentadas", ou ainda o "atentado ao respeito de·
vido à autoridade francesa". Os governadores e governadores gerais poderão
aplicar penas de deportação. O governador da Costa do Marfim, Angoulvant,
em 1916, lamenta que não esteja prevista a pena capital, mas observa que,
segundo as estatísticas, a deportação dá o mesmo resultado. 7 Com efeito, o
envio de deportados das regiões de floresta para Port Étienne, na Mauritânia,
em pleno Saara, não deixa senão uma escassa esperança de vida aos condena•
dos, e aconselha-se, aliás, aos "notáveis" atingidos por esta medida que façam
o testamento antes da partida.
O "atentado ao respeito devido à autoridade francesa" por parte de um
indígena é, por exemplo, esquecer-se de descobrir a cabeça ou de fazer a sau•
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 229

dação militar à passagem de um chefe branco (e todos os brancos são, mais ou


menos, chefes) . Quando o chefe é magnânimo, contenta-se em mandar um
guarda confiscar o que o delinqüente trazia na cabeça, juntamente com a
ordem de ir buscá-lo "na secretaria", onde o objeto lhe será restituído em
troca de alguns golpes de "rnanigolo", o chicote de pele de hipopótamo, requi·
sito obrigatório, embora não previsto pela legislação, dos guardas. É punida
qualquer crítica, qualquer reclamação contra a autoridade.
Os súditos estão sujeitos ao chamado imposto individual, a ser pago por
todos, homens e mulheres, dos 16 aos 60 anos. A quantia é igual para ricos
(há muito poucos!) e pobres, com urna tarifa que varia segundo as regiões. Em
compensação, os colonos (que é necessário atrair, oferecendo "vantagens"),
estão isentos da maior parte dos impostos que são exigidos na metrópole.
Os súditos estão sujeitos a trabalho obrigatório: em princípio, alguns dias
de "prestação" por ano. Mas, em caso de necessidade, ultrapassa-se sem es·
crúpulo o número de dias previstos, e em certos casos, os "requisitados" são
mandados, durante meses, para lugares a centenas de quilômetros. O traba·
lho obrigatório destina-se à construção e à conservação dos edifícios adminis·
trativos, das ruas, estradas, ferrovias.
Entre 1921 e 1934, a construção da ferrovia Congo-Oceano, de Pointe
Noire a Brazzaville, termina em massacre, denunciada na época pelo jomalis·
ta Albert Londres.8 Corno não eram suficientes os requisitados locais, manda·
ram vir trabalhadores de uma distância de 3 mil quilômetros ou mais, de
Oubangui-Chari (atual República Centro-Africana) e do Chad, uma parte a
pé, outra parte pela via fluvial de Oubangui e do Congo. O esgotamento pro·
vocado pela viagem, as sucessivas epidemias causadas pelo amontoamento
nas barcaças, quase sem comida e em condições de higiene inimagináveis, a
transição para o clima úmido das populações vindas das savanas e com um
regime alimentar diferente, matam os requisitados como moscas. Os sobrevi·
ventes são obrigados a trabalhar sob ameaça do chicote dos contramestres,
trabalhando a rocha com pás e picaretas. Em 1929, Albert Londres calcula o
número de mortos (quando falta ainda construir 300 quilômetros) em 17 mil.
Ele nota, no entanto, urna "melhoria", dado que a mortalidade, de acordo
com as estatísticas oficiais, fora reduzida de 45,20%, em 1927, para 17,34%
em 19291 9
Outro grande canteiro de hecatombes: a Administração do Níger. Nesta
zona central, no atual Mali, o Níger divide-se em muitos braços e lagos: é o
delta central do Níger. Concebeu-se a idéia de organizar esta zona em períme·
230 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

tros irrigados, a fim de fazer um novo Egito, proporcionando à França um


fornecimento nacional de algodão. A operação foi entregue a administrado-
res e engenheiros que desconheciam completamente o solo, ignoravam como
reagiria à irrigação e quais os métodos de cultura. Foi com a prática que perce-
beram que a irrigação, depois de ter levado a uma produção abaixo da média,
acabava por esgotar os solos. Trocou-se o algodão pelo arroz. Para "valorizar"
as obras do Níger, habitantes do território Mossi (atual Burkina Faso) foram
deportados em massa, instalados em aldeias submetidas a uma disciplina mili-
tar, com trabalho forçado do nascer ao pôr-do-sol, proibição de circulação e
imposto a pagar por utilização dos equipamentos e da água.
Existem outras formas de trabalho forçado. As culturas de exportação são
encorajadas por diversos meios, o mais simples dos quais é a obrigatoriedade
de pagar o imposto. Nas regiões onde o uso do dinheiro não está generalizado,
o único meio de conseguir o dinheiro do imposto é plantar e vender produtos
procurados pelas sociedades comerciais, como o amendoim, o algodão, o café,
ou produtos nativos como a borracha fornecida por uma planta das savanas e
muito procurada no princípio do século, o óleo de palma, a sumaúma. Os
agricultores suprem os mercados, colocados sob controle da administração e
onde os comerciantes europeus ou os seus agentes compram ao preço do "mer-
cado administrativo", preço quase sempre fixado abaixo do valor real da mer-
cadoria. Finalmente, os agricultores são freqüentemente logrados, com balan-
ças desequilibradas, mercadorias que não são pagas a pretexto de "má
qualidade" mas comercializadas logo a seguir...
A exploração é ainda mais flagrante nas regiões (sobretudo as da África
Equatorial) onde o regime é o de "culturas obrigatórias". É o caso de Ubangui-
Chari (hoje República Centro-Africana) e do Tchad para a cultura do algo-
dão, a partir de 1929. Nas zonas algodoeiras, cada contribuinte está obrigado
a cultivar uma parcela de determinada dimensão com algodão e a entregar os
produtos a "companhias concessionárias" que têm o monopólio da compra e
do tratamento do algodão. Sob a fiscalização da administração e de agentes
das companhias, e sob pena de sanções, o camponês é obrigado a entregar aos
"compradores" da companhia o algodão exigido. O preço fixado é irrisório.
Ele permite, quando muito, pagar o imposto. 10
Mas este regime não é nada comparado com aquele a que estiveram sujei. .
tas estas populações no princípio do século. O "Congo francês", que viria a
ser, em 1910, a África Equatorial Francesa, esteve, em 1899, quase inteira-
mente dividido entre quarenta "companhias concessionárias" que detinham
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 231

o monopólio da exploração de recursos locais no seu território, e, de fato, do


comércio.11
Não farão quase nenhum investimento e um grande número irá falir rapi-
damente, depois de ter depenado alguns tolos na Bolsa. As que estão em
atividade exploram a borracha nativa, sendo o trabalho forçado remunerado
apenas como "trabalho de colheita", pois as companhias alegam que o que é
colhido é produto do solo, que lhes pertence na qualidade de concessionários.
Sobre este sistema, temos o testemunho de um missionário, R. P. Daigre,
um legítimo colonialista:
"Às ordens de coleta da borracha, a maior parte das aldeias respondeu
com uma recusa e, para apoiar a administração, colunas móveis de vigilância
foram enviadas para a região ... " É usada a coação. "Cada aldeia ou grupo de
aldeias foi então ocupada por um ou vários guardas, assistidos por um certo
número de auxiliares, e a exploração da borracha começou ... No fim do mês,
o que tinha sido recolhido era levado à sede, onde tinha lugar a venda, à razão
de quinze sous o quilo. A administração procedia à pesagem, e o comprador,
ao arrematar a mercadoria, pagava à vista, não aos que faziam a colheita, mas
ao funcionário que depositava o montante no imposto da aldeia. O povo tra-
balhava assim nove meses consecutivos sem ter direito à núnima remuneração."
O missionário explica que, nos dois primeiros anos, as populações pude-
ram subsistir graças às suas antigas plantações de mandioca. Mas, pouco a
pouco, os recursos acabaram. Os "coletores" têm de trabalhar cada vez mais
longe das suas aldeias, as plantas rareiam na proximidade das aldeias. "Perto
do fim do mês, concedia-se-lhes dois ou três dias para irem abastecer-se na
aldeia, mas na maioria das vezes regressavam de mãos vazias, não sendo já
renovadas as plantações ... Os doentes e as crianças pequenas (que permane-
ciam na aldeia) morriam de fome. Visitei várias vezes uma região onde os
menos doentes matavam os mais para comê-los; vi covas abertas de onde
tinham retirado os cadáveres para comê-los. Crianças esqueléticas remexiam
montes de detritos procurando formigas e outros insetos, que comiam crus.
Crânios e tíbias estavam espalhados nos caminhos de acesso às aldeias." 12

O exercício da "autoridade francesa"

Como dissemos, a autoridade está inteiramente nas mãos de uma hierar·


quia de funcionários europeus: governador geral (comandando os "grupos de
232 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

territórios" da África Ocidental Francesa, da África Equatorial Francesa e de


grandes colônias como Madagascar; Camarões, território sob mandato da So·
ciedade das Nações, é governado por um governador geral que detém o título
de "Alto Comissário"), governador, administrador (comandante de círculo ou
de subdivisão - o círculo comporta, por vezes, algumas subdivisões, coloca·
das sob a autoridade de um administrador subalterno dependente do coman·
dante de círculo).
As funções do comandante de círculo são: a cobrança do imposto, o for·
necimento e a comercialização dos produtos exigidos pelas sociedades comer·
dais, o recrutamento para o trabalho forçado e, a partir da Primeira Guerra
Mundial, o recrutamento militar para um serviço militar de três anos. Para
cumprir essas tarefas, o administrador necessita de auxiliares indígenas. A
princípio, são funcionários (escrirurários, intérpretes) que ocupam estes escri·
tórios; mas sobretudo os "chefes tradicionais". Por vezes, esses chefes são oriun·
dos das antigas dinastias pré-coloniais; outras, é um antigo soldado; ou mes·
mo um antigo criado ou cozinheiro de um governador, por ele recompensado.
O chefe de cantão e os chefes de aldeia a ele subordinados não têm ne·
nhuma legitimidade, nenhuma estabilidade: "O chefe de cantão, escreve o
governador-geral Van Vollenhoven numa circular, mesmo que seja o descen·
dente do rei com quem negociamos, não tem poder nenhum: nomeado por
nós após uma escolha, em princípio, discricionária, não passa de um instru·
mento nosso."ll Se não desempenhar satisfatoriamente as suas obrigações, o
chefe pode ser demitido ou preso a qualquer momento.
Ele tem inúmeros encargos. Com a ajuda dos chefes de aldeia nomeados
sob indicação sua, ele cobra o imposto, sobre o qual embolsa uma modesta
comissão. A isto ele acrescenta, por conta própria, "foros consuetudinários" e
impostos braçais, a que a administração fecha os olhos. O imposto é cobrado
de cada chefe de família, em função do número dos que estão sob a sua res·
ponsabilidade. Mas o montante, calculado para cada cantão e aldeia em fun·
ção de um "recenseamento" aproximado, é variável. Se o número real de
tributáveis é inferior ao do recenseamento, o imposto real será aumentado na
mesma proporção. Os presentes pagam pelos recenseados fictícios, fugitivos
ou mortos. Para cobrar o imposto - e fazer face às suas outras obrigações -
, o chefe mantém à sua custa um pequeno exército.
Ao administrador e etnólogo Gi\bert Vieillard, que censurava a estes "no•
táveis" o fato de se rodearem de "refinados canalhas", estes respondiam:
"Quereis ou não que cobremos o imposto, que forneçamos indivíduos sujeitos
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 233

a trabalho braçal e conscritos? Não o conseguiremos fazer pela brandura e


pela persuasão. Se as pessoas não têm medo de prisão e espancamento, riem
de nós." 14
Vemos que são citadas as outras duas obrigações que competem ao chefe:
fornecer os recrutas para o trabalho forçado e, depois da guerra de 1914-18,
para a conscrição (contingente fixado para cada cantão, serviço militar de
três anos). A escolha é arbitrária: naturalmente, os pais, amigos e protegidos
dos chefes ficam tanto quanto possível isentos; o peso das requisições e da
conscrição cai prioritariamente sobre os humildes, em primeiro lugar sobre os
antigos escravos.
Se os homens do chefe não conseguem cumprir estes objetivos, recorre-se
à força armada dos guardas, e tanto a cobrança do imposto quanto o recruta-
mento dos sujeitos a trabalho braçal e dos conscritos parece uma razia: aldeias
cercadas de surpresa, bens confiscados e vendidos em leilão público, conscri-
tos atados com cordas para serem levados até o local de incorporação.
O chefe tem ainda obrigação de receber e de sustentar o administrador
em visita de inspeção, sua comitiva, os guardas, os diversos funcionários de
passagem. A vida cotidiana é dominada pelo medo, aquele que resulta da
arbitrariedade: arbitrariedade dos chefes e dos seus asseclas, arbitrariedade
dos chefes brancos.
Não há outro relacionamento entre brancos e negros que não seja o de
"patrão" para "subordinado". Qualquer familiaridade, inclusive (e talvez so-
bretudo) com aqueles a quem condescendentemente chamam de "evoluí-
dos", aqueles que freqüentaram a escola e se tornaram funcionários, professo-
res primários, médicos, é mal vista, eventualmente punida, como comprova
esta anotação na ficha de um funcionário europeu: "Freqüenta a casa dos
indígenas e até os recebe à sua mesa. Não é feito para a vida colonial." Quan-
do a esposa de um branco não está satisfeita com o seu criado ou com o seu
cozinheiro que quebrou um bule ou estragou o molho, ela o envia ao "escritó-
rio" do comandante de círculo com um bilhete indicando o número de chico-
tadas que deve receber dos guardas.
Em 1944, o socialista Albert Gazier, membro da Assembléia Consultiva
Provisória da Argélia, tendo feito uma viagem pelas colônias francesas na
África, faz a seguinte pergunta a quarenta europeus: "Senhor (ou Senhora),
seu criado é surrado?" E constata: "Não recebi uma única resposta negativa." 15
234 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Da lenda colonial d realidade


Os jovens franceses aprendiam, através dos livros escolares e da propa-
ganda {particulannente a da "Liga Marítima e Colonial"), que a França tinha
levado às populações coloniais as estradas, as escolas, os hospitais, em suma, o
progresso e a civilização, melhorando assim suas condições de vida.
O que acontecia na realidade?
No início do século a colonização tinha começado a implantar uma rede
de ferrovias que ficou inacabada: nunca foi concluídaa ligação de algumas
vias que iam da costa para o interior. Essas linhas, de bitola estreita {lmetro,
contra 1,44m das vias nonnais) tinham uma capacidade reduzida. Original-
mente tinham sido concebidas para o transporte de tropas - avanço rápido
das forças armadas para onde fosse necessário. Depois, serviram para trans·
portar os produtos da região até aos portos e, em sentido inverso, as mercado-
rias importadas. Essas vias férreas, assim como as estradas, foram essencial-
mente constru(das e depois conservadas por trabalho forçado.
E as escolas? Foram concebidas com o intuito de garantir à colonização o
pessoal auxiliar necessário - intérpretes, funcionários administrativos - e,
em um n(vel mais alto, professores primários e médicos. Estas últimas funções
eram as mais elevadas a que um "indígena" podia aspirar mas ocupando sem·
pre uma posição subalterna em relação aos professores primários e médicos
franceses. Os seus diplomas eram locais e davam acesso apenas às funções
administrativas locais. Não eram válidos na França, e a falta de acesso aos
diplomas franceses (diploma superior e bacharelato) eliminava a possibilidade
de os nativos chegarem ao ensino superior. Havia, em cada colônia {e em
Brazzaville para a África Equatorial Francesa) uma escola primária superior.
Os alunos mais brilhantes chegavam à "École Normale William Ponty", que
formava os professores primários e os médicos "indígenas". Só em 1946 é que
alguns diplomados de Ponty foram admitidos no Liceu de Dacar, onde se pre·
paravam para fazer estudos superiores na França. Podiam ser contados nos
dedos os africanos que graças a circunstâncias especiais tinham podido fazer
estudos superiores na França, como Me Lamine Gueye, advogado, ou Leopold
Sédar Senghor, professor de gramática.
Em 1945, a taxa de escolarização primária na África Ocidental Francesa
não ultrapassava os 5%; havia apenas dois liceus, em S. Luís do Senegal e em
Dacar, inicialmente reservados aos europeus. A Universidade de Dacar só foi
criada pouco antes da independência, em 1957. Na África Equatorial France·
A ÁFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 235

sa, a situação era ainda pior: foi preciso esperar até 1937 para que fosse criado
um serviço de ensino em Brazzaville; anteriormente as raras escolas estavam
ligadas ao serviço dos "Assuntos Políticos e Administrativos". Existia uma única
escola superior primária, em Brazzaville.
Passemos à Saúde Pública: o "Serviço de Saúde Colonial", militarizado
(iria permanecer assim até as independências) era primeiro reservado aos eu·
ropeus e aos soldados, depois aos funcionários indígenas. As missões, por seu
lado, tinham criado enfermarias e dispensários. Só em 1905 é que foi criada
na África Ocidental a "assistência médica indígena", orientada para a mediei·
nade massa, com uma rede de hospitais "indígenas" (3em1910) e dispensários.
Em 1908, as estatísticas indicam 150 mil doentes tratados, em 12 milhões de
habitantes.
Às doenças endêmicas (malária, febre amarela etc.) a colonização veio
acrescentar as doenças importadas, mais terríveis na medida em que os africa-
nos não estavam imunizados e elas se manifestavam de forma brutal (sífilis,
tuberculose). Os deslocamentos constantes da população devido às maciças
requisições de mão-de-obra e o desenvolvimento das relações comerciais con·
tribuíram para as epidemias. O diretor do Serviço de Saúde de Camarões
escreveu, em 1945:
"As doenças, se desempenham um papel muito importante na degradação
das populações indígenas, não são as únicas responsáveis, e devem ser apon·
tadas outras causas que propiciam os males e que têm uma grande importãn·
eia mas que escapam à ação do Serviço de Saúde: a subalimentação e a falta
mais ou menos generalizada de alimentos nitrogenados, uma política econô·
mica leviana que, em determinadas regiões, forçou o desenvolvimento de
culturas ricas (de exportação) em prejuízo de culturas alimentares, o
desequilíbrio que existe entre os salários dos indígenas e os preços dos artigos
essenciais." 16
Por esse motivo, as taxas de mortalidade, essencialmente infantil, são
muito elevadas. É só a partir dos anos 20 que as campanhas de vacinação
vão contribuir para reduzir a mortalidade. Entre as doenças mais temíveis,
objeto de uma profilaxia maciça, se destaca a tripanossomíase africana (do·
ença do sono).
Para enfrentar tudo isso, a Administração colonial cria serviços
especializados móveis. Mas, para reunir as populações, recenseá-las e rastrear
as doenças, as equipes móveis usavam métodos muito idênticos aos utilizados
para o recrutamento civil ou militar ou para a cobrança do imposto, que pare·
236 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

cíam uma caça ao homem. A falta de entusiasmo das populações pelos cuida-
dos prestados explica-se facilmente: as equipes móveis de enfermeiros e o seu
séquito, na boa tradição colonial, viviam à custa da região, desavergonhada.
mente exigindo víveres, mulheres etc. As punções lombares indispensáveis
aos exames bacteriológicos, efetuados por enfermeiros nem sempre aptos, e
em condições de higiene sumárias, por vezes causavam acidentes graves. Por
outro lado, a terapia usada não era isenta de riscos, podendo provocar, em
caso de erro nas dosagens, lesões graves (nefrites, cegueira).
Será necessário esperar os anos 50 para que os sistemas de tratamento e
de profilaxia se tomem verdadeiramente eficazes e que se assista a uma revi·
ravolta nas tendências demográficas, passando da redução ou estabilidade
para o crescimento, e, a partir de 1955 aproximadamente, para uma explosão.
Uma última palavra sobre os "objetivos" invocados para a colonização: a
luta contra a escravatura. Já vimos que numa primeira fase, a da conquista, a
escravatura, longe de recuar, conheceu um nítido crescimento. Mais tarde, e
apenas gradualmente, foi concretizada a proibição do comércio de escravos
(promulgada na África Ocidental Francesa apenas em 1905) e depois a aboli·
ção da escravatura.
A libertação de escravos foi geralmente adotada como recompensa na
administração de populações rebeldes ou insubmissas. Mas onde o apoio das
classes dirigentes era considerado politicamente necessário, como no Fouta·
Djalon (Guiné) ou nas regiões a sul do Saara, a escravatura manteve-se inal·
terável, e a administração ratificava (ou encobria) a prática do "direito de
sucessão" (busca, captura e restituição dos escravos fugitivos aos seus senha·
res). Na Guiné, o primeiro recenseamento por sondagem realizado em 1954·
1955 recenseou à parte, em Fouta-Djalon, os "cativos". Na Mauritânia, a con·
tinuação da escravatura, com o apoio da administração, foi denunciada em
1929 por um professor primário do Daomé, Louis Hunkanrin, condenado a
urna pena de dez anos de degredo na Mauritânia. Ele denunciou a prática em
um folheto cujo texto conseguiu fazer chegar a França e que foi publicado por
uma seção local da Liga dos Direitos do Homem. 17 Esta situação continuou
após as independências e sabe-se que, muito recentemente, militantes dos
direitos humanos foram presos e condenados na Mauritânia por terem de·
nunciado a escravidão.
A AFRICA NEGRA SOB A COLONIZAÇÃO FRANCESA 237

Os dados demográficos

O tráfico de escravos, do século XVI ao XIX, tinha já enfraquecido


demograficamente a África. O choque da conquista foi um novo golpe, talvez
mais brutal, embora mais limitado no tempo. Os combates, depois o excesso
de deslocamentos e de requisições de homens, víveres e gado aumentam a
mortalidade. Deixam as populações enfraquecidas, mais suscetíveis a epide-
mias e vulneráveis a acontecimentos como secas. "O menor acidente -seca
excepcional, praga de gafanhotos - era agravado pelo saque colonial de ví-
veres e de mão-de-obra simultaneamente, sem que a administração utilizasse
os meios de ii:itervenção necessários." 1e
O período de 1880-1920 foi o de maior queda demográfica, difícil de ava-
liar devido à insuficiência de informações estatísticas. No Daomé (hoje Benim)
uma das colônias mais densamente povoadas e relativamente pacificada, foi
registrada uma queda de 9% entre 1900 e 1920. 19 O retrocesso foi certamente
mais sensível em regiões de recursos mais limitados e atingidas por requisições
de homens, gado e víveres desproporcionais em relação aos seus recursos,
como o Nfger 20 ou a Mauritânia.
A queda foi ainda mais acentuada (entre 30 e 50%) nas regiões da África
Equatorial Francesa, já despovoadas e devastadas pelos abusos do sistema de con-
cessões (República Centro-Africana) ou pela exploração de madeira (Gabão:
homens adultos "requisitados" por contratos de dois anos para trabalhar nas
florestas; aldeias onde restavam apenas mulheres, crianças e velhos "taxadas" em
mandioca para alimentar os trabalhadores}.21 Nas regiões sudano-saarianas, as
grandes secas de 1913-1914, de 1930-1933, cujas conseqüências foram agravadas
pelo contexto político-econômico (guerra de 1914-18, crise e depressão dos anos
30) e, por fim, a seca de 1972 e anos seguintes, causaram miséria e fome.
Os primeiros efeitos da medicina de massa não foram sentidos antes dos
anos 30. A África das independências passou da regressão demográfica à ex-
plosão, mas as conseqüências de um regime econômico herdado da coloniza-
ção são a miséria e a subalimentação, agravadas pelos conflitos internos. Mas
isso é uma outra história.

Oi dados aqui utilliados foram em grande parte retirados das obras: Afrique noire occidemale:
glographie, clvilLsatlon, histoire, Paris, Éditlons sociales, 1958 (reed. 1968) e Afrique noirt -
~recolonlale (1900-1945), Paris, Éditions sociales, 1964 (reed. 1982).
l38 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Notas:

1. Citado por Vigné d'Octon: La gloire du sabre, Paris, Flammarion, 1900, pp.131 e seguintes
(Notas de uma testemunha da tomada de Sikasso) .
2. Jean Rodes: Un regard sur le Soudan, La revue blanche, novembro de 1899.
3. Câmara dos Deputados, sessão de 30 de novembro de 1900 (Annales de la Chambre des
Députés, 1900, p. 580).
4. P. Vigné d'Octon, op. cit., pp. 40-41.
5. Testemunho do sargento Tourcau, cm P. Vigné d'Onon, op. cit., pp. 142-143.
6. General Mcynicr: La MissionJoalland-MeynieT, Paris, Éditions de l'Empire français, 1947,
PP· 39-40.
7. G. Angoulvant: La pacificaiion de la Cõtt d'Iuoin, Paris, Larose, 1916.
8. Albert Londres: Tem d'ébene, Paris, Albin Michel, 1929.
9. R. Sussct: La llérité sur le Cameroun et l'AE.F., Paris, Éd. de la Nouvelle revue critique,
1934.
10. Ver Jean Cabot: La culture du cotor\ au Tchad, Annales de géographie, 1957, pp. 499-508.
11. O. Coquery-Vidrovitch: u Congo au temps des g.aricles compagnies concessionnaires (1898·
1930), Paris-La Hayc, Mouton, 1972.
12. R.P. Daigre: Oubangui-Chari, témoignagt SUT son ~ution (1900-1940). lssoudun, Dillen
etCie, 1947, pp.113-116.
13. Citado por R. Comevin: l.!évolution dcs c.hefferics dans l'Afrique noir d'expression
française, Recuei( Penant, n~ 687, junho-agosto 1961 , p. 380.
14. Oilbert Vieillard: Notes S1'T le.s Ptu/5 du Fouia-Djalon, Bullctin de l'lnstitut français d'Afrique
noire, Dakar, nQ 1, p. 171.
15. Testemunho do Colóquio do lnstitut d'Histoirc du temps présent, publicado em 1986
pelas Éditions du C.N.R.S. com o título - l...es chemins de la décolonisation de l'Empire
{rançais (1936-1956).
16. Coronel-médico Farinaud: Relatório ~ico 1945. Orado in "Afrique noire: l'ere coloni·
111'', op. cit., p. 493.
17. J. Surct-Canale: Un pionnitr miconnu du mouverneru démocratique en Afrique: Louis
Hunkanrin, Études dahomécnncs, nouvelle série, nQ 3, Porto Novo, dezembro de 1964,
pp. 5-30.
18. C. Coqucry·Vidrovltch: Afrique noire, pennanences et ruptures, Paris, Payot, 1985, p. 52.
19. Ibidem, p. 57.
20. Ver ldrissa Kimba: La forma1ion de la colonie du Niger 1880· 1920. Thesc d'État, Universi~
de Paris VII, 1983.
21. e. Coquecry.Yidrovitch, op. clt., p. 56
ARGÉLIA 1830-1998:
DOS PRIMÓRDIOS DO CAPITALISMO
COLONIAL À EMPRESA MONOPOLISTA DE
RECOLONIZAÇÃO "GLOBALIZADA''
ANDRÉ PRENANT
. ____________ - '
)•
Na Argélia, o capitalismo, mesmo tendo tido pequena responsabilidade na
decisão da conquista, intervém desde o seu início (com exceção das duas décadas
posteriores à independência), e até hoje. Antes de 1962, como mcx:lelo que foi do
capitalismo colonial, dos seus primórdios mercantilistas até suas fixações petrolí-
feras; hoje, no quadro da globalização, como um tipo de recolonização monopolista.
Écerto que, em 1830, o capital não dispunha ainda de grande autoridade
na França. Mas foi durante sua evolução que ele comandou, na Argélia, a
estruturação da legislação e da economia colonial e sua manutenção frente à
resistência, até a violência final por meio da qual tentou não ser despejado.
Depois da independência o capital tem tentado provocar crises jogando com
a fragilidade e a dependência externa da economia "não capitalista" e com o
antagonismo entre classes sociais acirrado pelas contradições dessa econo-
mia. A crise ofereceu a oportunidade de reintroduzir obrigações que agrava-
ram e agravam a crise econômica, determinando a violência imposta ao país,
utilizadas para colocá-lo em seu lugar perante "a nova ordem mundial".
Desligado da decisão da expedição de 1830 (nascida da recusa pela mo-
narquia francesa de assumir uma dívida), o sistema capitalista deternúnou os
quarenta anos de guerra e de violência necessários para controlar o país (1830-
1871), os setenta e cinco anos que se seguiram em que pôde explorá-lo sem
violência "ilegal" maciça (1871-1945) e os dezessete anos (1945-1962) que
vão dos massacres de Setif-Guelma à independência. Falta avaliar o papel que
desempenhou e ainda desempenha - já não em escala francesa, mas sim em
escala "européia", digamos "globalizada" - na desestruturação/destruição da
economia e da sociedade da Argélia independente e no recomeço da violên-
cia (islâmico), dos anos 80 até hoje.

Capitalismo nascente e conquista colonial

O papel do capital na decisão da expedição de Argel

Paradoxalmente, a expedição de Argel, que aconteceu após a transição


da França do mercantilismo para a Revolução Industrial, foi feita contra a
242 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

recomendação dos defensores do liberalismo econômico e dos representantes


da manufatura, que se opuseram a despesas públicas onde não viam perspec·
tivas de lucros. Ao contrário das explorações coloniais seguintes, como a da
Inglaterra sobre o Egito, eles não invocam dívidas pendentes do país que se
quer dominar, o conflito tem origem no não pagamento pela França, durante
o Império e depois durante a Restauração, de fornecimentos de cereais feitos
ao Diretório; 7.942.992 francos-ouro, dos quais 300 mil devidos ao hei, o
governador muçulmano, representando em 182 7, com juros acumulados, algo
como 24 milhões-ouro, dos quais 1,25 devidos ao hei.
Os círculos mercantilistas do porto de Marselha não deixaram de acirrar o
conflito, em particular através do jogo sujo do cônsul Deval. Este, nã.o tendo
transmitido ao hei 478.891 francos-ouro (cerca de 6 milhões de francos atu·
ais) liberados por Luís XVIII a partir de 1816, determinou em 1825 a ocupa·
ção militar da feitoria de La Calle, penhorada por Argel, e fez com que Carlos
X exigisse, além da sua cessão sem pagamento, a soberania da planície
circundante, de Bône até à fronteira tunisiana. A rivalidade colonial tem aqui
o seu papel: o ministro da Guerra, Clemont·Tonnerre (numa intervenção no
Conselho de Ministros), propõe, a partir de 14 de outubro de 1827, "aprovei·
taro embaraço em que se encontra (... ) a Inglaterra para conquistar o Estado
de Argel". E o economista Sismondi, hostil ao mercado livre, escreve em maio
de 1830, três meses antes do desembarque:1 "Esse reino de Argel (...) será
uma colônia, (...) um país novo no qual o excedente da população e das ativi·
dades francesas poderão se expandir." Portanto, há uma visão de exploração
capitalista ainda incipiente, embora os líderes de interesses opostos comba·
tam a expedição, fonte de gastos humanos e financeiros, escudando-se no
direito internacional. Alexandre de Laborde2 recusa a conquista de Argel
"sem poder mantê· lo (e sem que) as despesas possam gerar lucros": é em nome
desta "massa de homens laboriosos (... ) que irão ver a saída (... ) de somas
enormes das quais não compreendem o objetivo nem a causa" que ele denun·
eia "os últimos desenvolvimentos sem crédito aberto" para uma guerra que
ele "não teme classificar de injusta'', pelo menos enquanto a ocupação de
Argel não é realizada. O mesmo diz Bignon, deputado do Eure (e dos têxteis
de Evreux), declarando em 10 de junho de 18293 que "as causas da ruptura
não mereciam a décima parte dos sacrifícios que esta(...) já tinha custado".
As duas tendências persistem depois de 1830: o liberalismo preconizando
a utilização na França dos capitais gastos na Argélia; e "um pequeno número
de monopolistas" especulando sobre a terra "comprada de modo fictício e a
ARGÉLIA 1830-1998 243

bom preço" para a (re-)vender muito mais cara. Esses monopolistas são de-
nunciados em 20 de maio de 1835 por Desjobert, deputado de Seine-Maritime,
igualmente uma região têxtil. 4 Aos olhos dele, os monopolistas são movidos
por interesses pessoais: 5 "o único resultado" da conquista, em 1835, foi "o de
ter transportado para Marselha os negócios que antes se espalhavam por toda
aFrança". Em 1839, ele não poderá, no entanto "conceder (à guerra) nem um
homem nem um centavo". O conde de Sade, lembrando em 1835 que "as
terras não são disponíveis", 6 recusa-se a "exterminar os nativos antes de os
espoliar". Hippolyte Passy, futuro ministro de Napoleão III, defende, ainda
em 1837,7 "proibir, ou pelo menos limitar( ... ) as aquisições de terras", e pro-
põe, no mesmo sentido, "negociar com as potências interessadas nesse país" e
de "o colocar... em tal estado que possamos ter com ele relações amigáveis e
traficar sem receio ... e retirar lucros para provisão das nossas províncias meri-
dionais".
Os segundos viam, como o marechal Gérard em 12 de novembro de 1830,
na mesma linha de pensamento de Sismondi, "uma vasta saída para o exce-
dente da nossa população e (...) o escoamento dos produtos das nossas manu-
faturas".8 Em 21 de março de 1832,9 depois de em 20 o marechal Clauzel (ele
mesmo com participação, em Mitidja, em várias sociedades - duas de Paris
com capital de 2 e 3 milhões [ouro], duas de Marselha com valor de 5 e 6
milhões e várias inglesas) ter declarado que "Argel recebe agora mais barcos
do que recebia em três anos", o deputado marselhês Reynard anuncia a cria-
ção de uma companhia "para a construção de navios a vapor para a navegação".
A guerra de conquista é sem dúvida, com eles, a da "nuvem de
especuladores (...) que se abate sobre Argel para comprar a baixo preço e
revender (...) os imóveis da cidade e dos campos", 10 arrastando para o gover-
no "compromissos tácitos a respeito dos agricultores, dos industriais, dos capi-
talistas que ele permitiu que se instalassem" .11 A tendência do capitalismo em
desenvolvimento foi o de, desde a origem, assumir o risco de guerra, de mas-
sacres, risco admitido em 7 de julho de 1833 pela Comissão da África, que
propôs, após ter constatado "a contradição da marcha da ocupação", "ampliar
a colonização sob a proteção militar" para não reduzir "o fruto de tantos esfor-
ços".12 A tomada de Constantina, em 1837, congregará, descontados os últi-
mos ataques de Desjobert, os liberais num "pensamento único" do capitalis-
mo francês.
2+! O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

A guerra feita ao povo, uma política deliberada. 1830-1871

Instrumento de conquista, a guerra tinha, desde o início, produzido atro·


cidades. A Comissão da África tinha conhecimento disso e, antes de decidir
pela continuação, relatava: "Enviamos para o suplício, com uma simples sus·
peita e sem processo, pessoas cuja culpabilidade depois se manteve mais do
que duvidosa ; massacramos pessoas portadoras de salvo-condutos; matamos,
por suspeita, populaçõt!s inteiras que em seguida se verificou serem inocentes;
levamos a julgamento homens considerados santos (bastante corajosos) por
intercederem a favor dos seus infelizes comparriotas (... ),que se tenham en·
centrado juízes para condenar e homens civilizados para os executarem."13
O "desprezo de uma capitulação solene, (... ) dos direitos ... mais naturais
dos povos", assim reconhecidos pela própria decisão que os violava, marcava
em 1833 a vontade de prosseguir com a guerra para ampliar a ocupação do
país. Seguindo o exemplo, Voirol, a partir de 1834 no Algérois, depois Trézel,
em 1835 em Oranie, violavam o Tratado Desmichels, concluído em 6 de ja·
neiro de 1834 com Abd-el-Kader, para terem as mãos livres contra o hei de
Constantina. Do mesmo modo, uma vez tomada a cidade, o emir reagia ofen·
sivamente, provocado pelo desafio deliberado, em 1839, do Tratado de Tafna,
concluído para o mesmo fim com o mesmo parceiro, e em 30 de maio de 1837,
com o deslocamento deliberado de tropas numa zona em liágio em função da
ambiguidade entre o texto árabe e a tradução francesa. Bugeaud tinha dito na
Câmara, em 8 de junho de 1838: "Os tratados nunca uniram as nações a não
ser quando são adequados aos seus interesscs." 14

Os lTULlsacres

Em 1833 já tinha havido massacres; por exemplo, em 1832, o massacre da


tribo d'el-Oufia, cm Mitidja, relatado por um oficial nas suas memórias:15 "um
corpo militar surpreendeu ... a tribo adormecida ... e degolou os infelizes ... sem
que algum deles tivesse tentado defender-se (... ); não houve qualquer distin·
ção de idade ou de sexo. No regresso dessa vergonhosa expedição, os nossos
cavaleiros traziam cabeças espetadas nas suas lanças. Todo o gado foi vendido
(...); o resto do saque, despojos sangrentos ... foi exposto no mercado Bab·
Azoun (...) braceletes femininos ainda em punhos cortados, brincos penden·
rcs de pedaços de carne (... ), tudo foi partilhado entre os matadores e uma
ordem-do-dia, em 8 de abril... proclamou a grande satisfação do general". No
ARG~LIA 1830-1998 245

seu livro imediatamente posterior, 16 o geógrafo do corpo expedicionário Rozet


encarava a necessidade, para colonizar Mitidja, "de exterminar todos os
berberes das montanhas de Beni-Menad, de Chenoua etc.". Pouco depois, o
general Cavaignac, lamentando não ter encontrado um turco "que vá apre-
sentar a sua bandeira nas tribos com 300 ou 400 turcos que cortam mil a duas
mil cabeças, faça tremer uma província e regresse carregado de despojos",
estimava, ao mesmo tempo, que os argelinos não "devem ter visto no regime
francês mais do que a violência turca entre as mãos dos cristãos". 17 Bugeaud
julgará ainda, após a ruptura do tratado com Abd-el-Kader, que os seus pre-
decessores pecaram por fraqueza: "É necessário", declara ele à Câmara, em 14
de maio de 1840, "uma grande invasão que se assemelhe ao que faziam os
francos, ao que faziam os godos".
Esses princípios serão metodicamente aplicados na guerra conduzida con-
tra Abd-el-Kader a partir de 1840. O coronel de Montagnac relata em 17 de
janeiro de 1842 que confiscou do "inimigo", na região de Mascara, "mulheres,
crianças, animais, trigo, cevada" e, em 11 de fevereiro, que o general Bedeau
roubou "mulheres, crianças e animais" de uma tribo das margens do Chelíf. 18
Em 19 de novembro do ano anterior, elogiara seu chefe Lamoricíere pordes-
cobrir os árabes e lhes tomar "mulheres, crianças, rebanhos". Em 1845, a "téc-
nica" recomendada por Bugeaud é a das fumigações iniciadas por Cavaignac
contra os Sbeha no Ouarsenis. Em 12 de agosto, Saint-Amaud utiliza essa
técnica contra os Beni-Ma-doun de Tenes, fazendo 500 mortos. Como "com-
pensação" pela derrota de Sidi-Brahim, Pélissier fumiga, em 19 de junho, os
Ouled-Ríah no Oeste, provocando 700 mortos e não deixando mais do que
quarenta de sobreviventes. Esses massacres são qualificados de "medidas de
rigor" pelo Tableau des Etablíssements Français. 19
A rendição de Abd-el-Kader não encerra os massacres, repetidos a cada
reconquista e a cada repressão, tanto durante a Segunda República quanto
durante o Segundo Império. Uma simples coleta de impostos faz 40 mortos e
29 mulheres prisioneiras entre os Beni-Snous, perto de Tlemcen, em 27 de
setembro de 1848. 20 Após utilizar tais métodos nos Biban, nas aldeias "devas-
tadas" dos Beni-Abbes e dos Zouaoua em 1847, há as operações de extermí-
nio de Saint-Amaud nos Guergour, nos Babor e no Oued el-Kebir em 1851.21
Em 1849, no Aures e nos Ziban, as populações de Nara e de Zacatcha são
massacradas após o assalto: em Nara, "tudo o que tinha sido trancado foi
passado pelas armas ou esmagado pela queda dos terraços das casas" .22 Em
1857, na altura da ocupação da grande Cabida, segundo o conde d'Hérisson, 23
246 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

"as orelhas indígenas valeram durante muito tempo 10 francos o par; as mu·
lheres foram, como os homens, urna caça perfeita", tal corno no sul, de onde,
sem ter disparado um único tiro, ele confessava ter trazido um "barril cheio".

Pilhagens e destruições

As pilhagens tinham começado com a tornada de Argel, com o saque do


"Tesouro da Qaçba", avaliado em "30 milhões de piastras fortes" (mais de 1,5
milhão hoje) e "diminuído de dois terços e da totalidade das pedras precio·
sas",24 violando assim o acordo de capitulação e desprezando as reclamações
dobei. Após o embargo dos 51,7 milhões de francos-ouro inventariados no
tesouro argelino (mais de 600 milhões atuais), as pilhagens não pararam de
aumentar, "oficializando-se", confundindo-se com a cobrança de impostos,
de penalidades, de multas, de contribuições de guerra ou a colocação sob
seqüestro. Contribuíram assim para o recuo econômico do país.
A partir de 8 de setembro de 1830, desprezando a convenção da capi·
tulação de 5 de julho que garantia aos "habitantes de todas as espécies a sua
religião, as suas propriedades, os seus comércios e as suas indústrias''. o signa·
tário Bourmont seqüestrava os bens dos argelinos-turcos expulsos, os das ins·
tituíçôes islâmicas e habbou.s destinados ao culto e ao ensino do Corão, assimi·
lados aos domínios de um Estado suprimido, mas não substituído pela
convenção. A pilhagem acompanhou o massacre de El-Oufia e todos os que
se seguiram. Em 1836, segundo o próprio Cavaignac, o árabe que vinha ven·
der ao mercado de 11emcen era "obrigado a ceder o quarto, a metade, o todo".
Em 1837, a tomada de Constantina foi seguida pelo saque da cidade, como ia
ser toda a tomada de cidades a partir da guerra contra o Estado de Abd-el·
Kader: Miliana em 1839, Medea em 1840 etc. Ar.é 1872, o orçamento da
Argélia ia ter um capítulo intitulado "Tomadas ao inimigo" que cobria o pro·
duto das vendas públicas de bens mobiliários, colheitas e gado confiscado.
Em março de 1839, "2,5 mil carneiros e 600 bois", e, um ano mais tarde,
"uma grande quantidade de gado" foram tomados de um grupo dos Harakta
(de Constantina) na seqüência do assassinato de um xeque já punido com a
execução de seis condenados.is É poss!vel especificar, na longa lista destes
casos, a captura, com 3 mil prisioneiros, de "1,5 mil camelos, 300 cavalos e
mulas e 15 mil ou 16 mil cabeças de gado... trazidas" dos Beni Menacer, a
oeste de Argel, em 1842;26 a de 3 mil cabeças de gado aos Ouled Defelten
(Ouarserus) em maio de 1845; e, em junho, por "insubordinação", a de 20 mil
1 ARG.éLIA ISJ0-1998 247

carneiros, 800 bois e 500 camelos aos Nememcha; de 500 carneiros, 350 bois,
250 camelos aos Moui'adat (S. de Medea); de 700 e depois mil bois; de 2 mil
depois 15 mil carneiros, 300 animais de carga e 30 camelos de refugiados da
região de 11emcen, no Marrocos; em 1846, a captura "diária [de} rebanhos
importantes (... ) de alguma fração dos Ouled Na.II"; de 33 mil carneiros, 500
camelos, cavalos e tendas aos Hamyan, em 13 de janeiro de 1847.27
As contribuições de guerra podem simplesmente formalizar esses roubos,
como, em Djebel Amour, em apenas três dias de maio de 1846, de 3 mil bois
e 7 mil.28 As contribuições podem ser substituídas ou aumentadas pelo paga·
mento em dinheiro: os 58 mil francos-ouro em 10 dias de 1844 sobre Bellezma;
em 1845, perto de Tenes, uma contribuição "bastante forte" foi exigida aos
Beni Hidja e aos Beni Macdoun, estes antes de serem "fumigados", e 120 mil
francos são pedidos aos Beni Chougran; em 1846, 20 mil francos são tomados
dos Ouled 'Abdi após o incêndio da sua aldeia, e 200 a 300 francos por cabeça
aos Harrar de Chergui (ou seja, a receita média de dois anos); são ainda co·
brados nesse ano 20 mil francos aos Amoucha (Babar), 30 mil em três dias
sobre os Ouled Sidi-Yahia, perto de Tebessa, 55 mil sobre os limítrofes de
Philippeville e, em 10 de fevereiro de 1847, 50 mil francos sobre os Ouled
Jellal. No mesmo mês de 1848, os Hamyan, já privados dos seus rebanhos,
ficavam sem 100 mil francos e 10 acampamentos por não terem pago. Multas
puniam a recusa (ou a incapacidade) de pagar as contribuições de guerra ou
os impostos: exemplos destas multas são as que, em 1848, no Ovarsenis, os
Ouled Defelten, privados dos seus rebanhos dois anos antes, tiveram de pagar
por se recusarem a pagar impostos, tal como os Beni Zouqzouq, os Righa, os
Beni-Menad próximos de Miliana, e os Beni Hassan do Titteri; em 1849, a
multa devida por Bou Sacada pelas barricadas erguidas na cidade e os 10 mil
francos exigidos aos Ouled Faradj vizinhos, bem como as multas aplicadas aos
Ouled Soltan e Ouled Sylem, do Ouarsenis, e os Ouled Younes, do Dhahra;
em 1850, as que castigam os Harakta, onze anos depois do confisco dos seus
rebanhos, e os Segnia do Hodna.29
À destruição das fontes de renda que restam às populações ocupadas,
sobretudo suas plantações e gado, é somada a transferência para o ocupante
das colheitas e receitas monetárias, com a finalidade de empobrecer o mais
pobre em proveito do mais rico e de impor a ele a dependência. Essas destrui-
ções são, com efeito, a destruição do próprio ser humano, arma maior da re-
pressão. Logo no primeiro ano, Rozer30 define as tribos das cercanias de Biida
tomo "aquelas que nós saqueamos com o general Berthezene (em) maio de
248 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

1831" e avalia em 400 mil o consumo de frutas tomadas no inverno anterior


pelo exército aos habitantes nos 400 hectares de laranjeiras de Biida, ainda
que "isso não se notasse", e assinala que "os nossos acampamentos abriram
algumas clareiras" nos olivais da Mitidja e que esta planície não estava culti-
vada no sentido de Birtouta e Boufarik senão "quando ali passamos pela pri·
meira vez".
De novo, tratava-se apenas da vida da tropa no país. A destruição foi
depois sistemática. Lembremos que para Montagnac31 "todas as populações
que não aceitem as nossas condições devem ser arrasadas, tudo deve ser to·
mado, saqueado, sem distinção de idade ou de sexo''. O jornai oficial, Monite11r
Algerien, de 14 de abril de 1844, publicaria a ameaça de Bugeaud aos Cabilas
do lsser: "queimar as aldeias e cortar as árvores frutíferas se eles não expulsa·
rem Ben-Salem". Durante a guerra contra o Estado de Abd el-Kader, a litania
começa, acelerando-se à medida que a resistência argelina enfraquecia: são
os acampamentos Hadjour destruídos no oeste de Mitidja em 12 e 13 de mar·
ço de 1840; o segundo "castigo severo" dos Cabilas de Mouzafa e dos Beni·
Salah, do Atlas de Blida em 27 e 28 de agosto, depois a "ruína" dos Righa do
Sul de Setifligados ao emir.n Em 1842, entre os próximos de Beni Menacer,
Saint-Arnaud33 diz disparar "poucos tiros de espingarda", mas queimar "todos
os acampamentos, todas as cidades, todas as choupanas" e, dois meses mais
tarde, confirma: "destroça-se, queima-se, pilha-se, destroem-se as casas e as
árvores''. Em 2 de outubro de 1844, escreve: "queimar (na Cabila) as proprie·
dades de Ben-Salem e Bel-Cassem" e "abater as laranjeiras", executando as
ameaças de Bugeaud já mencionadas, depois de ter "quase arruinado inteira·
mente" os habitantes e queimado as colheitas de 19 frações dos Flissa.34 Esses
métodos continuarão a ser executados após a rendição de Abd el-Kader, du·
rante a ocupação das Cabilas e até a repressão da insurreição de 1871. Em
1845, os Ouled 'Abdi, em lugar da multa, têm "as suas principais aldeias
incendiadas";35 em janeiro de 1847, o mesmo tratamento para os Ouled Younes,
e sete acampamentos Ouled-Nall, a fim de "prevenir qualquer tentativa".36
Em 1848, entre as destruições, citaremos a de Tameksalet, perto de Tlemcen,
as que foram praticadas entre os Zouagha, os Ouled Sidi-Cheikh, os Zouaoua,
a das aldeias Mzala perto de Bejaia, "a devastação" das aldeias e das colheitas
dos Beni-Abbes; em 1850, a destruição das aldeias Tifra do Sebaou, e o incên·
dio das de Beni-Immel do Guergour. Em 1851, Saint-Arnaud reincide: incen·
deia a 10 de abril, no rio Sahel, Selloum e os seus habitantes; em 12 de maio
as aldeias dos Ouled Mimoun e Ouled Asker; em 19 "mais de cinqüenta ai·
ARGÉLIA 1830-1998 249

deias cercadas de pomares e jardins"; em 26 e 27 as dos Beni Foughal; em 9 de


junho, três aldeias Beni'Aissa; em julho, no Collo, mais três dos Djebala, e
outras ainda antes de, em julho, serem incendiadas aldeias e colheitas mais a
oeste, no Guergour e na Soummam, entre os Ouzellaguen, os Beni AYdel e os
Beni lmmel.37 Ele próprio escreve, da Pequena Cabila: "todas as aldeias, cerca
de duzentas, foram incendiadas, todos os jardins saqueados, as oliveiras corta·
das". 38 De 1854 a 1857, a resistência da Grande Cabila acabou, derrotada
pelo incêndio sistemático das aldeias e das colheitas, isso após a recusa de
aceitar a submissão das tribos.39
As destruições urbanas atingiram a maior parte das cidades da Argélia
não-saariana, mesmo aquelas que não tinham visto combates. Entre estas,
especialmente as primeiras tomadas ao Estado turco antes da guerra popular.
Argel viu, desde 1831, segundo Rozet, o seu "pequeno arrabalde" de Babel·
Oued "destrufdo em parte" e as canalizações rompidas para "dar de beber aos
nossos cavalos". Blida foi saqueada e, quanto às "belas casas" de Oran, "os
nossos soldados destruíram-nas quase todas, a fim de tirar a madeira dos
assoalhos para cozinhar".40 Nas cidades que, após 1840, se renderam sem com·
bate (Tlemcen, Nedroma), a derrubada das proteções e a abertura de vias
destrufram inúmeras casas (em Argel, centenas). As cidades que resistiam
suportaram não só os assaltos e a destruição das proteções (um terço de
Constantina em 1837), mas também o saque após a ocupação. Clauzel sa·
queou e incendiou Mascara, capital do emir, de 6 a 9 de dezembro de 1835, de
modo que em 1838 o subúrbio de Arqoub Ismail estava "em rumas e quase
despido de habitantes" e os de Baba Ali viviam "em cabanas ... em cima das
ruínas das suas casas" .41 A guerra generalizada a partir de 1840 multiplicou a
destruição de cidades. Nesse ano, Mascara e Medea foram mais uma vez
incendiadas. Em Miliana, "às destruições dos incêndios juntaram-se inevitá·
veis degradações, conseqüências do abandono da cidade (...) e das primeiras
necessidades da ocupação militar" .42 Em 1841, a tomada das cidades criadas
pelo emir deixou arrasada a sua capital, Tagdemt (perto de Tiaret), mas tam·
bém Scai'da, Sebdou, Boghar, T'aza, ao mesmo tempo em que as tentativas
para retomar as que já tinham sido perdidas eram castigadas com novas des-
truições em Miliana, Medea, Mascara, em 1842 em Tiemcen, em 1843 em
Tenes, Laghouat, Biskra.
Todas estas destruições foram acompanhadas pela fuga dos habitantes: de
todos os judeus e muçulmanos de Miliana; de todos de Medea, Mascara,
Chercel, Tenes; de 7 mil dos 10 mil habitantes de Oran, de mais de um terço
250 O UVRO

o~

t. dade a origem, o objetivo final


~ e tcrraS fértei.s ", tinha dito
c.olonOi, sem perguntar a quem

1.c:wno com a prc!>Cnça colo·


'J."111''· ~..-o de 1830, Caruran1in .1 em

de um pov m;;nto rural ou


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coletividades ~guiu logo a !Cg\lir, p ~ descru!ç e c.xronõcs
para ocupar su~ rruelhom tcrraJ, ckpols da c.oloaiçã aob seq1lcstro 00 de
AROÊLIA 18J0- 1998

confl e<» de árco m tftul°', c m centr05 de coloni zação povoados especial-


mente com os dcportoJo Je junho de 1848. Esse "acantonamento" ocupa
freqUcntcmcntc mais de metade do 'arch. Uma extensão de 224.993 hectares
de 'azel foram perdidos pa ra os se us 5.232 exploradores , expulsos antes do fim
do Segundo lmpfrio. Se o obj e tivo da decisão de 1863 é estabelecer aproprie-
dade das tribos, isso vai sobretudo pe rmitir destacar eventualmente seções
não reconhecidas das melhores terras. O seqüestro, prejudicando as tribos
refugiadas no Marrocos ou castigando os insurrectos de 1863-1864, coloca as
terras mais férteis à disposição da colonização: uma reserva de 568.817 hecta-
res em 1871, 47 tirando dos Cabilas as pastagens de inverno das planícies e as
alras planícies produtoras de cereais de Medjana; esse seqüestro é acompa-
nhado da deportação dos Hachem dessa planície para a estepe árida do Hodna
e aextorsão, como contribuição de guerra, de 27.4 52 mil francos-ouro, colo-
cando populações inteiras à mercê de empréstimos usurários. Esta extorsão
beneficia, a parrir desta fase, a concentração do capital imobiliário, pela inter-
1·cnção do crédito bancário em proveito dos mais ricos e, depois disso, pelas
grandes conces õcs entregues à subexploração latifundiária: vinte mil hecta·
~para a Société Gencvoise , perto de Setif a partir de 1853; 100 mil para a
Société Généralc Algé rienne em 1856, cm pleno "Reino Árabe•, contra um
empréstimo de 100 milhões de francos-ouro. Ela desestruturou e empobreceu
asociedade rural , colocando-a à mercê de "compras" imposta.s, enquanto, já
ames do seqüestro de 1871, mais de 500 mil hectan:s tinham sido retirados
pela colonização, 96% dos quais pdo Estado colonial. Este tem , de resto, in·
corporado ao · u domínio ou to m ado comunais ãr.:us de igual exten.s.ão.

Al corueqürncias: o "desa.me dcmogr fico '' ~lir

para o país, como bem


68, um wJ esastre dcmo-
n · combates, os massa-
lcv:mrnmentos de fundos, a

)
254 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

tiu a epidemia de cólera de 1867, que provocou devastação entre os "ind(.


genas mal vestidos e mal nutridos" e gerou a fome que em 1868 levou popu-
lações para a planície, "onde esperavam encontrar aveia e trigo ... , massas
compactas de árabes (que) abandonaram os seus acampamentos para virem
implorar a compaixão dos colonos. As nossas cidades e os nossos campos
encheram-se com essas multidões esfomeadas" .54 Esse relatório, que "avalia
em mais de 300 mil o número de vítimas", está, como se viu, muito abaixo
da realidade.
Não é possível avaliar os efeitos humanos do primeiro desastre, dada a
falta de dados sobre os movimentos demográficos; pode-se apenas avaliar os
do segundo nas cidades. Sari fomece 55 toda uma série de curvas de evolução
da mortalidade em Medea, Miliana, Mostaganem, Oran, Tlemcen, Mascara,
Constantina, durante os anos de 1860 que mostram freqüentemente (em Oran,
em Constantina) um movimento natural negativo ao longo de todo o perío·
do, apenas exacerbado de 1866 a 1868, surgido por vezes (em Tlemcen) em
1865, novamente acentuado em 1867 e sobretudo em 1868, e mantendo-se,
de forma menos marcante, até 1870. Os efeitos dos invernos são ali muito
acentuados. Em Miliana, o resultado é um pouco negativo para os europeus
(mas não para os judeus) em 1867 e 1868, e para os muçulmanos da comuna,
salvo em 1865 e 1870, com 485 mortos em 1867 e 1868, depois 354 mortos
por cada 3 mil habitantes (16,2 depois 11,8%!) e um déficit de crescimento de
379, depois de 281 indivíduos. O sinal de uma sobremortalidade rural pelo
menos tão grave está na inscrição (normalmente insignificante) de 107 des·
conhecidos, e depois de 486 exteriores à comuna que chegaram para se refu·
giarem e morrerem nesses dois anos.

As conseqilências: o povo francês empobrecido e martirizado

Embora a conquista colonial signifique para a Argélia a integração a es·


truturas de exploração colonial comandadas por uma minoria de recém·che·
gados considerados representantes da França, esta mudança nem por isso se
faz com vantagem para o povo francês .
Durante esses quarenta e um anos as despesas públicas, a cargo do tesouro
francês, tiveram de fazer frente às despesas de guerra e ao mesmo tempo às
despesas civis dos ministérios da metrópole (Cultura, Justiça, Instrução Públi·
ca, Finanças), bem como às que se destinavam a cobrir o déficit argelino. Em
todo este período, a participação real do Estado francês nas despesas civis
ARGÉLIA 1830-1998 255

chegou a 192 milhões de francos-ouro 56 (cerca de 2,7 bilhões atuais), dos


quais 37% (71 milhões) usados para cobrir o déficit do orçamento argelino.
Ora esse déficit não diminuía, tanto em função das facilidades fiscais concedi-
das às empresas coloniais quanto pela diminuição crescente de bens tributáveis
argelinos, devido às pilhagens, destruições, transferências de propriedade,
abusos dos "impostos árabes" e das sanções impostas a um povo empobrecido
incapaz de pagar. A contribuição da metrópole, que em 1836 correspondia a
45% dos recursos locais (2,5 milhões-ouro), elevava-se a 59% desses recursos
(3,15 milhões) em 1839, 54% (8,5 milhões) em 1841e101 % (12,86 milhões)
em 1844. Em 1836, 11% (2 .316 mil francos-ouro) correspondiam a simples
despesas civis - um quarto das despesas totais - , despesas improdutivas
consagradas simplesmente à administração. De 1831 a 1849, essas despesas
representavam muito pouco em comparação com as despesas militares, intei-
ramente cobertas pelo orçamento de guerra francês: em 1839, só os créditos
do serviço de saúde e da engenharia militares (6.893.038 francos-ouro)
correspondiam a 80% do orçamento civil total e, em 1863, ano de trégua nos
combates, a previsão de despesas do exército atingia 62.067 .553 francos-ouro
(perto de um bilhão hoje) .
Os lucros iam para as empresas coloniais, em primeiro lugar as financeiras
e comerciais, sem enriquecer nem equipar a Argélia, salvo no necessário para
instalar a colonização e drenar a produção. A instalação de um sistema de
trocas de produtos brutos da colonização, então agrícolas, em mais de 40% do
seu valor- cereais exportados e importação de farinha, mesmo em 1867! 57
-contra importação de produtos elaborados, criava aqueles lucros e ao mes-
mo tempo um déficit permanente da ordem dos 40 a 50 milhões de francos-
ouro (entre 20 e 50% das exportações), levando as exportações a menos de 10
milhões em 1850, a 108 milhões em 1864, e 165 milhões em 1872; e as impor-
tações de 50 a 130 milhões, depois a 206 milhões. 58 Era também esse déficit
que compensava o gasto de fundos públicos.
As perdas humanas, afetando sobretudo agrupamentos populares incapa-
zes de pagar os substitutos para o serviço militar de sete anos, ultrapassaram os
200 mil mortos durante esses quarenta anos. Com efeito, a guerra reteve anu-
almente, pelo menos até 1871, mais de 70 mil soldados da metrópole (73.188
em um efetivo total de 83.870 em 1844, 70.611 do total de 83.870 em 1859,
anos relativamente calmos) e muitos mais quando das ofensivas e sublevações
(em 1835-1836, 1840-1842, 1845-1846) quando eles foram bem mais de 100
mil: um para trinta argelinos, mulheres e crianças incluídas. Aconteceu o
256 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

mesmo em 1857, 1863-1865 e mesmo em 1871, antes da insurreição, enquan·


to o exército alemão invadia a França.
Desses efetivos, os 125 mil mortos nas ambulâncias e nos hospitais, ou
seja, mais de 3 mil por ano (4%) , correspondem, numa população de jovens
fisicamente "aptos", a duas vezes a taxa média dos falecimentos civis de en-
tão. Para uma taxa de 1% do efetivo nos anos calmos (em 1861-1863), ou 2%
(em 1852-1853), chega-se a 4% em 1847, 5% em 1838 e 10% em 1832-1833;
ou, a 14% (9.587) em 1836-1837, 12% (7.802) em 1840 e 1841, no início da
guerra contra Abd el-Kader, e outro tanto em 1851 e 1857, quando da cam·
panha das Cabilas, em 1859 e em 1871. O que significa que mais de 100 mil
desses mortos foram vítimas direcas da guerra. O número de mortos em com·
bate, quando é mencionado (254 em Macra em 1835, "centenas" em Tafna
em 1836, mais de mil em 183 7 nos dois assaltos a Constantina, 108 em Mitidja
a 21 de novembro de 1839, 332 no desfiladeiro de MouzaYa em 12 de maio e
15 de junho de 1840, 400 em Sidi Brahim em 1845, toda a coluna Beauprêtre
em 1864), é freqüentemente superior e raramente inferior a metade dos feri·
dos, e ainda bem mais do que os mortos por ferimentos nos hospitais. O que
permite um número aproximado das perdas totais.
Falta dizer que entre os generais do exército da Argélia figuram Cavaignac,
que, de volta à França, dirigiu a repressão assassina das jornadas de junho de
1848, e Saint·Amaud, organizador do 2 de dezembro de 1851 e da repressão
que se seguiu.

A exploração da ·~rgélia Francesa" (1871-1954)

A repressão da insurreição de 1871 permitiu durante 75 anos, e depois,


após uma repressão ainda mais sangrenta em 1945 e por mais dez anos, peno·
dos de "calma" favorável aos "negócios".

A "calma" do esgotamento

Trata-se, na realidade, do fim da resistência militar, apenas perturbada


por movimentos esporádicos. Foi obtida pela destruição física de uma parcela
importante da população, sobretudo masculina, da ruína econômica da gran•
de maioria, da desestruturação social e ruptura cultural em conseqüência dos
ARG~LIA 1830·1998 257

quarenta anos de guerra anteriores. É característico que os levantamentos


mais importantes ocorridos neste período, em 1881 entre os Ouled Sidi-Cheikh,
sob Bou Amama e em 1916 no Aures e no Saara, de caráter apenas local,
tenham sido feitos no sul, fora das regiões de colonização agrária, em zonas
socialmente menos desestruturadas, apesar da repressão anterior, mas vítimas
do código do indigenato. A primeira destas zonas, onde já se dera uma revolta
em 1881, estava submetida ao regime militar; a segunda recusou o alistamen-
to para a guerra estrangeira de 1914-1918 na Europa. É também notável que
o caso de Margueritte, acontecido perto de Miliana em terra colonizada, le-
vante problemas (não já diretamente de recusa de domínio e de insubmissão,
como os precedentes, mas de relações sociais) e questões políticas de resistên-
cia a um domínio econômico.
Éque, embora a potência colonial retome, a partir de 1880, nas orlas do
sul do país, operações militares para anexar o Saara (com o objetivo-nunca
verdadeiramente alcançado - de abrir ao capital francês uma via comercial
terrestre em direção ao seu império africano), a "pacificação" obtida pelo es-
gotamento deve permitir organizar, estabilizando as relações de domínio, a
exploração dos recursos e da força de trabalho do país. É contra essa explora·
ção, e ao mesmo tempo contra a dependência política e cultural que a possi·
bilira, que, a partir da Primeira Guerra Mundial, o movimento político se
organiza cada vez mais em tomo de uma reivindicação nacional. É contra
essa politização que a exploração colonial, desde o fim do século XIX, impõe
a legislação discriminatória, corolário da discriminação socioeconômica.

O que representa a "obra da França"?

Até a independência da Argélia, os estudantes franceses ouviram


exaltações à "obra da França"; depois de 1962, são reavivadas as memórias da
"infra-estrutura excepcional" legada pelo colonizador ao seu colonizado agora
independente: estradas, vias férreas, vinhedos, saúde, escolas etc., - sendo
entendido que a Argélia nada disso teria em 1830 e que tudo lhe foi "dado"
depois.
No quadro de um "revisionismo" colonial mais sutil, Jacques Marseille, na
edição da sua tese,~9 estima que a importância dos fundos públicos franceses
nesse pafsõ() atestaria a amplidão do "esforço metropolitano". Este teria assim
colocado no lugar "as estruturas geradoras do desequilíbrio", permitindo sa·
158 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

úsfazer a demanda "à custa do déficit comercial", esforço consentido "para


salvar a Argélia da miséria e da rebelião" .6 1 Apresenta como provas o fato de
que a posse do país "não teria sido de grande comodidade para a metrópole",
e a manutenção através desse financiamento - e das transferências dos emi-
grados - de um consumo local e, a posceriori, a constatação de que, com a
independência, "o desaparecimento da zona protegida não acarretou qual-
quer prejuízo grave"•2 para a França, ao passo que, segundo Les échos, do dia
12 de março de 1956, ela deveria ter conduzido sem dúvida ao desemprego. A
evolução favorável à "Argélia" dos termos de troca durante a crise e a Segun-
da Guerra Mundial provaria que a "França" não aproveitou para "impor pre-
ços inflacionados aos seus clientes argelinos (e) abastecer-se de forma bara·
ta".63 No limite, seria a generosidade do capital francês o responsável pela
degradação do "estado de equilíbrio (... ) da economia argelina" que Jacques
Marseille pensa constatar de 1914 a 1945, na "situação satisfatória das finan-
ças públicas e das trocas comerciais exteriores", suscitando, por meio da pari-
dade de salários com a França, a segurança social, os abonos de família, uma
"nova série de handicaps" para "atrair os capitais". O autor retoma, por outro
lado e por sua conta, a tese do Figaro, que afirmava, em 11 de outubro de
1953, que, "se a metade das ma55as rurais muçulmanas (... ) morre lentamente
de fome", isso é "conseqüência da higiene trazida pela França": o aumento do
déficit comercial exprimiria apenas "um desequilíbrio entre a evolução
demográfica e a evolução da produção".64 Marseille vê ainda o desenvolvi-
mento da infra-estrutura como o responsável pelo rápido agravamento da
dependência financeira após 1945.&1
Basta. O que é verdade nesta tese é a realidade dos déficits orçamentário
e comercial argelinos, de fato permanentes - exceto em 1931, quando os
termos de troca estão equilibrados ou até positivos. Esses déficits precedem
subsídios familiares e segurança social, na verdade atribuídos com parcimônia
a assalariados muçulmanos e nunca antes de 194 7, e uma paridade de salários
que nunca foi aplicada. Sustentar estas teses só é possível amalgamando as
realidades no seio de grandes categorias: "França" ou "Argélia", sem a{ distin·
guir muitas partes do público e do privado, do capital e do trabalho; classifi-
cando na Argélia "colonos", "sociedades mineiras" e "muçulmanos", sem se-
parar, por exemplo, o seu conjunto da pequena percentagem que contribui
para as exportações etc. É negligenciar a constatação, em 1955, pela muito
oficial "Comissão Maspétiol", da impossibilidade de acentuar a pressão fiscal
sobre as massas indígenas.
ARG~LIA 1830-1998 259

Na realidade, a demografia não deve à França mais do que as vacinas


(desconhecidas tanto na França quando na Argélia em 1830), aplicadas tar-
diamente face a contágios insensíveis à diferença entre colonos e indígenas.
Onúmero de médicos, incluindo funcionários, de 1.033 em 1939 e de 1.074
em 1943, só se elevou para 1.356 em 1945, 1.449 em 1949, 1.629 em 1952
(242 em hospitais), sendo 916 em Argel e Oran (um para cada 900 habitan-
tes, 64% europeus), e 713 para o resto do país (um para cada 11 mil habitan-
tes, 95% muçulmanos) . Enquanto J. Marseílle afirma que "um mínimo vital
(é) garantido minimamente para urna grande maioria da população", os anos
de 1941-1942 e de 1945-1946 reencontram, em pleno período de "equilíbrio
econômico" (por causa dele?), urna demografia próxima dos anos de fome,
1867-1868. Embora as estatísticas gerais mascarem este fato (em especial mortes
de crianças), isso é denunciado pelos registros civis urbanos, como três quar-
tos de século antes: em Setif,66 em 1942, a taxa de mortalidade (4,88%, quase
o dobro da taxa mínima, já elevada, de 1932, 1936 e 1948), ultrapassava a
taxa de natalidade, que foi igualada em 1945 (a 3,9%) apesar do falecimento
de crianças ainda não declarado, com os picos do inverno e do fim do verão e,
em 1945, num período de transição, de março a maio. Em Sidi Bel-~bbes,67
segundo as certidões, a taxa de mortalidade (4,77% em 1941, 5,32% em 1942,
4,8% em 1945) excedia a da natalidade (3,77%, depois 4%, depois 4,27%),
deixando um déficit de crescimento natural de 238, de 326 e depois de 135
indivíduos; este déficit era compensado em mais ou menos 115em1948, com
4,57% contra 5,08%, entre taxas habituais de ainda 2,52% em 1951e3,72%
em 1943, o dobro, apesar da juventude da população, das dos colonos de
então; nos bairros marginais, bem como no "loteamento" Sénéclauze, onde a
taxa de mortalidade se mantinha em 2,8% em 1951, provocada sobretudo
pelos 191 falecimentos por mil crianças com menos de um ano e onde a espe-
rança de vida no momento do nascimento não ultrapassava 17 anos. O mes-
mo acontecia nas zonas suburbanas de Tlemcen, Miliana e Nedroma, por
exemplo.68 As precárias condições sanitárias e a miséria dos campos agravava
ainda mais esse desequilíbrio, mesmo se a não notificação parecia dar um
aspecto de bem-estar. Em 1947, 1948 e 1949 tinham falecido em menos de
um ano 245, depois 195, depois 201 crianças por cada mil nascidos nas prefei-
turas e subprefeituras do pafs. 60 Pode-se perguntar quanto da diferença entre
as 276 mil crianças muçulmanas declaradas em 1948 e as 195 mil recenseadas
se deve a essa mortalidade infantil.
Do mesmo modo, a escolarização chegava a muito poucas crianças mu-
260 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

çulmanas de idade escolar, na esmagadora maioria meninos urbanos: em 1951-


1952, contavam-se 168.940 rapazes e 56. 796 moças nas classes primárias -
16% das crianças em idade escolar, ou 25% e 8,8% de cada sexo, contra 10%
em 1940. No entanto, segundo Rozet, 70 em 1830, "quase todos os homens
sabiam ler, escrever e contar" e "havia (em Argel) 100 escolas ... onde se ensi·
navam as crianças a ler e a escrever o Corão, e algumas vezes um pouco de
cálculo". A verdade é que no fim do período colonial a segregação não permi·
tia que as crianças "muçulmanas" tivessem acesso, a não ser muito excepcional·
mente, à escola primária, ao ensino secundário (um para cada cinco euro·
peus) e mesmo aos cursos complementares, onde eram 5.567, das quais 1.625
moças, 0,6% do seu grupo etário, comparado com 10.111 colonos; na Univer·
sidade, quando da independência, os muçulmanos não eram mais do que 5%.
Quanto à infra-estrutura técnica, existia apenas em função das exigências
da colonização e do capital. Em 1830 evidentemente não havia na Argélia
um só quilômetro de ferrovia - mas na França também não. Mas os 4.372
quilômetros em mão única, freqüentemente de bitola estreita, plantados a
partir de 1860, não representavam, em um território que tinha quatro vezes a
superfície e um quinto da população da França, mais do que um quinze avos
das vias férreas da metrópole, servindo apenas à minoria colonial e a um déci·
mo dos colonizados, equivalentes em número. No traçado e no tráfego, as
linhas férreas serviam apenas à necessidade de escoar para os portos os produ·

i tos de exportação, ligando Marrocos e Tunísia por Oran, Argel, Bône (~aba)
através das planícies colonizadas, levando a esses portos e a Nemours
(Ghazaouet), Bougie (Bejaia) e Philippeville (Skikda), zinco de Zellidja, alfa

i de Crampel (Ras·el·Mâ), de Bechar/Kenadza (com a hulha) e de Djelfa, tâ·


maras de Touggourt e Biskra, fosfatos e ferro do Kouif e de Ouenza. Todos os
postos não rentáveis de Tlemcen a Beni·Saf, no sentido de Arzew e
Mostaganem, mesmo os trigais de Tiaret, sobretudo nas Altas Planícies do
Leste entre Meskiana, Khenchela e Tebessa, já tinham sido abandonados.
Através de uma rede de escradas (traçada, como a linha de Bechar, por razões
estratégicas), os transportes rodoviários privados completavam, com 43.078
caminhões em 1951, 40% de uma frota automotiva em que as 56.391 viaturas
particulares correspondiam à taxa francesa de serviço de transportes (1 para
40 almas) incluindo o milhão de europeus e um argelino em cada dez.
ARG~LIA 1830-1998 261

Ofertas? Sim, não à Argélia, mas ao Capital


O que resta de verdade na tese de J. Marseille é a constância dos déficits,
salvo em certos anos entre as guerras mundiais. Mas trata-se de déficits públi·
cos que não têm origem em despesas de interesse geral, muito menos sociais,
realizadas "para a Argélia". Como se viu, "o estado de equilíbrio" ligado à
"situação satisfatória das finanças públicas" de 1914 a 1945 não é acompa·
nhado de modo algum por "um mínimo vital relativamente mantido para
uma grande maioria da população" 71 que, antes de 1941-1942 e 1945, conhe-
cia taxas de mortalidade urbana que ultrapassavam 4% de 1911a1929, 4,5%
de 1917 a 1922 e de 1927 a 1929 e mesmo 5% em 1920-1922. Estas taxas
estão ligadas à desnutrição, à ausência de cuidados e ao déficit demográfico. É
que, como nota A. Nouschi, apenas "5 a 10% dos indígenas (estão) inseridos
no movimento comercial" e, como reconhece Marseille, n a diferença em re·
lação ao preço pago ao produtor conta muito.
De fato, as despesas do Estado resultam da fraqueza do investimento pri·
vado e da ajuda fornecida a este para realizar lucros. O próprio J. Marseille o
diz, quando mostra, 73 em 1927, "os viticultores franceses exasperados pelas
importações da Argélia, submetidas a cargas fiscais infinitamente menores",
subvencionadas, pagando a gasolina dos tratores por cinco vezes menos, e
quando lembra a ausência de segurança social. A citação que ele faz de Giscard
d'Estaing retomando as palavras de H . de Molinari em 1898, segundo o qual
a "Argélia tinha já custado mais de 4 bilhões (e) reclama todos os anos de 20
a 30 milhões à metrópole para cobrir o seu orçamento", sublinha a perrnanên·
eia do desequilíbrio entre a entrega desses fundos públicos e a fragilidade do
esforço privado para retirar os seus lucros: se, de 1865 a 1937, as despesas
públicas como capital de primeiro investimento chegaram a 1,531 bilhão de
francos, 74 em comparação, o capital social das companhias não ultrapassou 94
milhões. A Argélia, para esse autor, é, com a Indochina, um dos dois donúnios
de "bons negócios" ... "nos quais estão implantadas 20 das 32 sociedades" 75
que tiveram mais lucros.
Na verdade, esses "bons lucros" foram obtidos à custa do povo argelino e
em benefício de uma minoria de proprietários coloniais e das grandes socieda-
des capitalistas francesas, sobretudo mineradoras ou comerciais. O mais claro
é a transferência de terras, a partir da lei Warnier (1873), realizada mais por
meio de transações forçadas (dívidas, hipotecas etc.) do que por atribuições
oficiais, muito freqüentemente a favor de homens de negócios das cidades.
262 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Nos anos 1950 essas transferências deixam nas mãos de 20 mil proprietários
cerca de 2,7 milhões de hectares, um terço (o melhor) das terras cultiváveis
do pafs, metade pertencente a apenas 10% deles. Quase 99% dos proprietári·
os argelinos dividem os dois terços restantes, reduzidos a uma produção insu-
ficiente ou ao trabalho assalariado, eventualmente complementar. Eis o prin·
cipal fator do êxodo rural.
Nos anos que precederam a Segunda Guerra Mundial e nos seguintes, a
diminuição da produção e as dificuldades devidas à crise e depois à guerra
provocaram a queda das exportações francesas e, conseqüentemente, a redu-
ção ou mesmo eliminação do déficit da balança argelina. Esse déficit, acresci·
do, como se viu, de 28 a 90 milhões de francos-ouro de 1863 a 1873, cresceu,
de 1950 a 1954, em 34 a 78 bilhões de francos, com a França, mas também
cada vez mais com outros países.
De 1950 a 1953, o orçamento da metrópole atribuiu à Argélia 286 bilhões
de francos (cerca de 40 bilhões de francos atuais), dos quais, segundo a Co-
nússão Maspétiol,76 em 1953, "50%... parecem poder ser considerados como
uma ajuda à Argélia" . Assim, em 1953, de 93 bilhões de francos, 62 eram
relacionados com despesas de funcionamento, dois terços das quais militares,
servindo os créditos de investimentos (35,7 bilhões) para reembolsar emprés·
timos anteriores (6 bilhões) e 27 bilhões para subvencionar as empresas colo·
niais em 6% das despesas, ou conceder-lhes empréstimos por 27%. Estas se
beneficiavam de "vantagens já acordadas em matéria fiscal", das quais o Rela·
tório Maspétiol sublinhava a importância. A carga fiscal, de 33% na França,
baixava para 19% (16,4% na metalurgia, contra 28,4; 16,2% nos têxteis, con·
tra 26,2%); em face de impostos sobre o rendimento imobiliário e benefícios
agrícolas reduzidos de 6% do orçamento em 1949 para 1,8% em 1953, as
taxas sobre os salários duplicaram, o imposto sobre o rendimento foi mantido
a uma taxa constante e os impostos indiretos aumentaram. Isso era prolongar
a tendência permanente de "fazer os pobres pagar" aplicada um século antes,
quando os muçulmanos, de 1863 a 1872, tinham fornecido em "imposto ára·
be" e em contribuições de guerra 28% do orçamento argelino, contra 2,8%
fornecido pelos beneficiários da colonização; ou em 1890, quando os "impos·
tos árabes" forneciam três quartos das contribuições diretas (15% dos recur·
sos orçamentais), quando os colonos ainda eram isentos de imposto imobiliá·
rio. No PlB argelino de 1953, a parte dos lucros era de 47% (239 bilhões de
francos), a dos salários somente de 34% (160 bilhões), e a proporção dos capi·
tais acumulados reinvestidos localmente de 52%: o repatriamento do resto
ARG~LIA 1830-1998 263

(46 bilhões nesse ano) e o montante do déficit comercial representavam o


êxodo dos capitais que os fundos públicos vinham compensar.

Omassacre e as reivindicações políticas crescentes

Uma legislação de exceção mantendo a segregação foi a arma utilizada


para impor aos argelinos uma situação de desigualdade, legalizando sua explo-
ração. O código do indigenato, legalizado em 1874, estendido às "comunas
mistas" dos territórios civis em 1881, revisto em 1881, depois em 1914, sus·
tentou esse apartheid até à Segunda Guerra Mundial. Definia uma série de
delitos específicos dos argelinos muçulmanos, que iam das "palavras contra a
França e o Governo" até o "atraso no pagamento dos impostos" e colocava-os
sob o arbítrio, não da justiça, mas da administração exercida por funcionários
nomeados pelas autoridades. Este processo de exceção, que comporta, além
das penas de privação de liberdade, penas de trabalho gratuito e de seqüestro,
persistirá após a Segunda Guerra Mundial, sem os "Territórios do Sul" sob
administração militar. Soma-se a isso um código florestal que exclui os argeli·
nos de uma fonte essencial e, ignorando direitos elementares, admite respon·
sabilidade e sanções coletivas. Este processo é reforçado, em todo o território,
a partir de 1935, pelo Decreto Régnier, que ameaçava com prisão e multas
"quem quer que tenha ... instado ... indígenas argelinos ... a desordens ou a
manifestações contra a soberania francesa".
Essas são as únicas respostas dadas, entre as duas guerras mundiais, a um
movimento político que inicialmente reivindica justiça e acesso à igualdade,
para os notáveis, pelo direito à gestão, mesmo que limitada, dos seus próprios
negócios, seja a uma cidadania francesa sem imposição da renúncia ao esta tu·
to pessoal. Essas respostas, a partir da migração para a França de trabalhado-
res argelinos, são as dadas à reivindicação nacional, conduzida, nos anos de
1920, pela Étoile Nord-Africaine. Criada por Messali Hadj com o apoio dos
comunistas franceses, desiludida nas suas aspirações, como todo o movimen-
to nacional, pelos desvios do "Front Populaire", ela toma-se o PPA (Partido
Popular Argelino). Proibido e com os seus líderes na prisão, reivindica a inde-
pendência, tal como a UDMA (União Democrática do Manifesto Argelino),
que, representando principalmente a pequena e média burguesia, não rejeita
a manutenção de laços com a França.
Estas reivindicações, associadas à celebração do armistício (entendido
264 O LIVRO NEORO DO CAPITALISMO

como o anúncio da liberdade dos povos) e intoleráveis para o capitalismo e os


dominadores coloniais, têm como resposta, em 8 de maio de 1945, a proibição
das manifestações e, em Setif e em Guclma, bandeiras arrancadas e os primei·
ros tiros. As 88 vítimas da reação dos manifestantes levam à repressão pela
qual o capital colonial acreditava afirmar seu poder, cm especial sobre toda a
região ao norte de Setif, os Babar, onde há resistência. Bombardeios aéreos,
bombardeios navais do litoral, pilhagem da região, destruição de fazendas e
aldeias, deslocamento de populações inteiras, execuções sem julgamento, tra·
balhos forçados nas florestas, afogamentos etc., em Kherrata somam-se aos
1,5 mil mortos oficiais em "operações", um número de mortos avaliado
freqüentemente em 45 mil e, segundo os próprios militares franceses, em de 6
mil a 8 mil.
A ruptura do 8 de maio permite, no entanto, que continue a exploração
pelo capital colonial: o estatuto da Argélia faz dos argelinos cidadãos de se·
gunda classe no seu país, não tendo mais do que um número reduzido de
eleitos na Assembléia Argelina, no Parlamento francês, nas Assembléias lo·
cais, número dez vezes menor que o dos colonizadores. Nessas eleições "à
argelina", reina a fraude, sistematizada pelo socialista Naegelen, continuando
as "comunas mistas" a administrar a maior pane dos espaços, sobretudo ru·
rais, de povoamento argelino dominante. É o meio escolhido para que, com a
repressão e as manobras de divisão do movimento nacional, em especial entre
partidos, mas também no seio do MTID (Movimento para o Triunfo das Li·
herdades Democráticas), a exploração possa prosseguir. É essa constatação
que leva à insurreição um núcleo saído da OS (Organização Especial), divisão
do PPA, que em 111 de novembro de 1954 inicia a ação armada que oito anos
depois levará à independência.

1954-1962. Uma guerra para continuar a exploração

Volta dos massacres, das destruições, das desestruturações

O número de mortos argelinos na guerra da independência é incerto,


embora se situe, sem dúvida, entre o milhão e meio afirmado pela FLN e os
330 mil das contas oficiais francesas, que têm o cuidado de não somar os
cadáveres das valas comuns descobertas de tempos a tempos. A não coinci•
dência dos resultados dos recenseamentos de 1954, 1960 e 1966 e dos balan·
AROÍ'.LIA 1830-1998 265

ços do crescimento natural feitos a partir dos registros deve ser analisada ten•
do cm conta o aumento da subdcclaração, quer dos nascimentos quer dos
falecimentos. Esta é evidente no caso dos nascimentos, cuja taxa, de 1950 a
1955, se mantinha constante entre 4,2 e 4,4% e que a partir de 1962 se eleva·
rá a perto de 5%. E afeta os falecimentos, cujo nómero declarado, durante
esses oito anos, supera os 115 mil de 1954 (mesmo número de 1963), chegan·
do a um número entre 140 mil e 154 mil depois de 1956, ou seja, uma
sobremortalidade anual de 0,4 a 0,5% (já então acima dos números oficiais
franceses) . O recenseamento de 1960 encontra, além disso, 168 mil habitan·
tesa menos do que previa o crescimento natural declarado, no momento em
que a emigração para França começou a diminuir; e o recenseamento de 1966
apresenta um outro déficit de 160 mil, atribuível, no essencial, aos anos de
1960-1962, que seria apenas devido ao regresso dos refugiados em 1963-1964.
Podemos desse modo considerar verosímil a perda de 600 mil vidas humanas
argelinas, sem contar os mortos franceses, devido à obstinação do capital co-
lonial francês, sobretudo depois das descobertas dos hidrocarbonetos saarianos,
em conservar a Argélia. É muito mais do que as simples vítimas dos combates.
Aos mortos na Argélia devem ser somadas as destruições de aldeias, de
culturas e de florestas, bem mais eficazes do que as da guerra de conquista que
ignorava bombas e napalm, ou muito mais ainda do que os delitos florestais,
verdadeiros ou suspeitos, que o código específico castigava; e o deslocamento
das populações (de pelo menos 1,8 milhões de almas), 77 expulsas das zonas
proibidas, afastadas das suas culturas e "reagrupadas" (concentradas) na pla·
nkie, em zonas de apropriação colonial mecanizada sem oferta de trabalho,
ou em tomo das cidades. O êxodo rural, iniciado no final do século passado
pela proibição de posse pelos camponeses, fellahs, reforçada depois de 1918
pela supressão de empregos ligada à mecanização da agricultura, é exacerba-
do, acentuando o desequilíbrio e a distorção entre povoamento e economia
das cidades desprovidas de habitat (até o êxodo colonial de 1962), de infra-
estrutura social e industrial.

& repercussões nefastas sobre a França

O desequilíbrio financeiro e déficit orçamental acentuam-se na França de


1954 até à independência, em função do aumento de despesas militares que
tinham provocado seu surgimento 124 anos antes. Desde 1955, a contribui·
266 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

ção do orçamento da metrópole para o da Argélia tinha crescido um terço -


de 107 para 140 bilhões de francos 78 (cerca de 17 bilhões atuais)-, fora as
despesas militares devidas ao envio, em 1954-1955, dos "reservistas" e mais
tarde das tropas convocadas e ao prolongamento por um ano do serviço mili·
tar, permitido pela concessão de "poderes especiais" a Guy Mollet, em março
de 1956.
Esta política de conservação da "Argélia Francesa" consagra somas cres·
centes à manutenção no território, até 1962, de meio milhão de homens, ou
seja, um oitavo do efetivo dos exércitos franceses de 1916, ou perto de duas
vezes o dos exércitos franceses da Libertação (1944-1945) . Há uma série de
atos de violência, em primeiro lugar o 13 de maio de 1958, que "autoriza" a
presença da Quinta República com o apoio do capitalismo francês. J. Marseille79
reconhece "que os grupos patronais participaram na campanha pela Argélia
Francesa", mais tarde prolongada pelo "complô dos generais", pelas "barrica·
das de Argel" e pela OAS, culpada tanto de atentados em França como de
massacres na Argélia, mesmo que ele não queira ver nisso "uma prova formal
do apego daqueles à forma colonial do imperialismo". Tais violências, na França,
se refletem também na atitude racista da polícia, que pratica a "caça por apa·
rêm:ia" e encontrarão seu paroxismo em 17 de ourubro de 1961, após a chega·
da à chefia da polfcia de Maurice Papon, ex-prefeito de Constantina, quando
200 argelinos em manifestação pacífica são mortos, principalmente por afoga·
menta no Sena, por comandos da polícia.80 Essas violências são exercidas tam•
bém contra os franceses que protestam dois meses depois em Charonne, onde
nove manifestantes morreram.

O interesse petrolífero. Déficit agravado, lucros aumentados

Desde antes do 13 de maio, as descobertas de gás e petróleo na Argélia


(Edjeleh, Hassi Mass'aoud), interessando inicialmente a CFP, Esso-Rep e a
SN Repa! tinham trazido novas motivações para o prosseguimento da guerra.
Um plano de partilha à israelita, sugerido por Guy Mollet, tinha sido prepara•
do para De Gaulle por Allain Peyrefitte,81 reagrupando população colonial e
instalações petrolíferas fixadas em Arzew, entre Mitidja e as planícies de Oran
e Sidi be\.'Abbes, com os corredores saarianos dos oleodutos e gasodutos, dei•
xando aos argelinos a Argélia não petrolífera, não vitffera e não produtora de
cftricos.
ARG~LIA 1830· 1998 267

A partir do lançamento, em 1959, do "Plano de Constantina", às des·


pesas ligadas à manutenção no território de meio milhão de homens se
somaram às destinadas a "amarrar a Argélia à França", promovendo, as-
sim, "uma forma de descentralização metropolitana". 82 Esta nova orienta·
ção é fruto da constatação do ministério da Argélia, em 1958, de que "os
limites naturais da agricultura levam a admitir que a indústria deve ser a
base principal da expansão" .83 Esta idéia provoca a aceleração da pesquisa
e da produção de hidrocarbonetos. O regime gaulista cria a empresa públi-
ca ELF/Argélia e, apenas em 1958-1959, são investidos 188 bilhões anti·
gos que permitem, em dois anos, a exploração de jazidas que podiam pro·
duzir anualmente 20 milhões de toneladas. A idéia também determina
essencialmente, com poucas exceções (Berliet, Michelin), investimentos
públicos de empresas nacionais (Renault) e sobretudo os primeiros gastos
estatais maciços em estrutura, que entre 1950 e 1955 não tinham passado
de 14 a 25 bilhões84 (de 27 a 18% dos fundos públicos civis transferidos).
Essas despesas reforçam a densificação estratégica da rede de estradas pe·
los militares, multiplicam as "cidades" de urgência ou as que "acolhem" as
famílias argelinas de sete ou oito pessoas em "alojamentos" de um ou dois
cômodos, e servem sobretudo como um substancial suporte para inves-
tidores privados. Em função da anunciada meta de aumentar o nível de
vida em 5% através da criação de 875 mil empregos não-agrícolas, e com
o estímulo oficial aos "industriais", que receberiam da Argélia (além de
uma certa expansão prevista do mercado) uma ajuda na instalação das
empresas85 (ajuda fornecida pelo orçamento francês), "todos os relatórios
apontavam evasões de poupança" .86 Assim, nesse período, o investimento
público fez o possível para compensar a ausência de financiamentos priva-
dos e permitir, apesar disso, a obtenção de lucros, que em sua maioria
foram repatriados. Mendes-France, ao declarar, em 11 de abril de 1961,
que "a Argélia custa-nos (... ) mais caro do que aquilo que nos fornece", 87
omitia o retorno do capital privado. Resta dizer que, pela primeira vez na
história da colonização, decerto na ilusão de poder garantir sua utilização,
o Estado capitalista colonial francês criou na Argélia (e deu a ela em 1962
com a independência), uma estrutura produtiva, embora concebida ex-
clusivamente para as necessidades do capitalismo francês.
268 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

1980-1998. Para o "ajustamento estrutural" através do


terrorismo islamico

É um aparelho produtivo criado para as necessidades nacionais argelinas,


oferecendo quatro vezes mais empregos que antes da independência e na di·
reção de uma estruturação amplamente integrada, o que a abertura para o
"mercado" neutraliza a partir de 1978-1980, antes de o imobilizar e destruir,
desestruturando novamente a sociedade argelina. Durante os dezoito anos
anteriores, ao longo dos quais a Argélia esteve ligada ao capitalismo interna·
cional apenas pela troca de 95 a 98% dos seus hidrocarbonetos por importa·
ções sobretudo de equipamentos (mais de um terço) e de matérias-primas e
produtos semi-acabados (outro terço), a produção de energia (sobretudo ele-
tricidade) tinha sido multiplicada por sete. A produção industrial diversificada,
sobretudo pública, tivera seu valor mais do que triplicado, atendendo a mais
de metade das necessidades. A agricultura, apesar da diminuição dos vinhe·
dos com o fim das subvenções, tinha-se mantido constante, mas para uma
população que tinha quase dobrado de tamanho e era mais exigente. As ex·
portações petrolíferas (8 bilhões de dólares) representavam apenas 15% do
PIB, quadruplicado desde a independência, e que representava por habitante
2,3 vezes o da Tunísia, 4 vezes o de Marrocos. A divisão das criações, planifi·
cada para reequilibrar, entre regiões e entre campos e cidades, o emprego e o
povoamento, implicava a aceitação de custos maiores, acrescidos do pedido
de habitação e de necessidades sociais: escolarização primária elevada a 75%
(60% para as moças), escolarização média a 40%, e secundária a 25%.
Foi abrindo espaço para o instrumento clássico da penhora colonial, a
dívida, contraída para responder com importações às dificuldades nascidas do
aumento de demanda e retomar a uma produção não-competitiva para diver·
·~ sificar as exportações, que a Argélia se rendeu ao grande capital. Mas a
recolonização, que já não é o feito de um Estado, passa pela sua integração
subordinada à "nova ordem mundial". A busca de um aumento do valor das
exportações através da muito custosa valorização dos hidrocarbonetos (o pia·
no "Valhyd") provocou o aumento da dívida externa de 11 bilhões de dólares
em 1978 para 19 bilhões de dólares em 1980. A tolerância com um mercado
paralelo nascido das dificuldades vividas em especial pelas classes mais abas·
tados, e com o câmbio que corroía o valor do dinar, o que dava lucros às
classes dirigentes, explica a perda de poder do "Front" em classes sociais opos·
tas, o que o levou a ligar-se à burguesia. Sob a presidência de Chadli, a dimi-
ARG~LIA 1830-1998 269

nuição e posterior fim dos investimentos públicos produtivos, as sucessivas


alterações do teto das capitalizações privadas, a abertura ao capital intemaci·
onal (freqüentemente graças ao pagamento de comissões), o reconhecimento
do tráfico de divisas, a "reestruturação" de empresas públicas visando a maior
rentabilidade mas muitas vezes à custa da produção, como as das unidades da
Revolução agrária, agravaram a dependência do capitalismo argelino nascen-
te, ele próprio ligado ao seu equivalente estrangeiro. Tomado "capitalista" e
parando de investir, o Estado viu a sua dívida chegar a 25 bilhões de dólares
em 1986, devido à queda do preço do petróleo bruto, enquanto o serviço
anual da dfvida ultrapassava o superávit comercial. O reescalonamento auto·
rizado em 1994 (até 1998 e 2002) foi feito sob as condições do FMI, e os
ajustes estruturais, depois de quatro anos, levaram à abertura, à desvaloriza·
ção, às privatizações e à liberalização. Os esforços do "bom aluno" não impe-
diram, no entanto, no inverno de 1998, que os "bons resultados"
macroeconômicos fossem anulados pela queda do preço do petróleo bruto, na
ausência de novas fontes de receita.
Efetivamente, as conseqüências são, em primeiro lugar, a queda radical da
produção, quase sempre à metade, que se devia ao envelhecimento do
maquinário, que não era renovado - assim como não havia importação de
matérias-primas e produtos semi-acabados - , e à diminuição do mercado
interno e à falta de competitividade frente aos concorrentes do "Norte".
Foi, na lógica neoliberal, o ajuste do nível de emprego a essa queda88 que
provocou, só em 1997, o fechamento de 300 empresas públicas e a demissão
de 132 mil pessoas, que se juntaram aos 2,5 milhões de desempregados - um
terço dos argelinos na ativa. É o prolongamento da desestruturação da socie-
dade argelina iniciada nos anos 1980, pelas medidas que visavam a impedir
qualquer oposição operária e buscar o apoio islâmico: artigo 120, de 1982,
impondo aos sindicatos as direções da FLN, o código de farnflia em 1984, a
segregação social expulsando dos bairros de "standing" os elementos popula-
res marginalizados oferecidos ao populismo islâmico. 69
São também os atentados e os massacres do terrorismo islâmico, ma·
nipulado, muito antes de 1990, por lfderes ligados ao poder do Estado e ao
neoliberalismo - tanto o da burguesia argelina quanto o das multinacionais
- com eixo nas capitais ocidentais, sobretudo em Londres. Eles instrumen·
talizam uma identidade que querem confundir com o islã na esperança de
recrutar os marginalizados do sistema, em especial nos subúrbios. A violência,
utilizada desde os anos 1980 (pelos guerrilheiros de Boufali, entre outros),
270 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

tem origem numa estratégia fascista do terror. Visou, antes de 1995, sindica-
listas e intelectuais, artistas e jornalistas, e cri tores e universitários que a com-
batiam; depois, além dos estrangeiros não-muçulmanos, a massa, homens,
mulheres, crianças, aqueles que desobedeciam trabalhando, votando, estu·
dando, em especial nas aldeias isoladas, em 1995-1996 e no inverno de 1997-
1998; depois os marginais que tinham escapado e reencontrado aqueles que
tinham fugido nos novos bairros periféricos de Argel. Esse terrorismo, de que
pouco se sabe, destruiu também unidades de prcxiução públicas, nunca priva·
das nem pertencentes ao grande capital estrangeiro, estabelecimentos púbU-
cos escolares, sanitários e sociali, em paralelo com sua desestabilização pela
especulação e o ajuste estrutural. A morte de 36 mil civis em seis anos, segun·
do as estaústicas oficiais, sem contar membros da polícia e do exército, é o
resultado mais dramático. O recomeço, por razões de segurança, do êxodo
rural maciço em direção às grandes cidades que tinha sido interrompido nos
anos 1970 e que freqGentememe implica o abandono das plantações, indica
um futura crise, assim como o aumento da mortalidade, inclusive infantil,
com a degradação dos serviços de saúde. A queda nas taxas de natalidade,
que fora interrompida entre 1990 e 1994, já não se deve ao planejamento
familiar, como depois de 1972, mas a uma ausência de ordem.90
As multinacionais, americanas, canadenses, japonesas, coreanas ou itaU·
anas, investem atualmente sobretudo em petróleo, de onde podem facilmen·
te tirar sua parte desse rendimento. Juntamente com os capitais franceses,
que estão preocupados cm vc.-stir a máscara de "europeus", as multinacionais
querem recuperar por um preço baixo as bases industriais mais importantes,
atualizá-las e reconvertê-las, deslocando unidades: a força do trabalho dos
desempregados argelinos formados no trabalho industrial sendo usada para
produzir, não para o mercado argelino, exausto, !11aJ! para o vizinho mercado
europeu, pode exercer na Europa de Schengen uma pressão mais eficaz sobre
os salários do que mantendo ali o imigrados. Com esta finalidade, o capital
pode esperar um entorpecimento da violência ao preço de um compromisso
que suponha a partilha do poder com os islâmicos: sete ministros do Hamas já
estão no governo de Argel.
A empreitada de recolonização imperialista pelo capital mundializado uti·
liza desta vez a pressão clássica das empresas coloniais do século XlX: o endl·
vidamento do país que se quer dominar, por um modelo ideológico e econô·
mico, mais do que pela coação militar. Nem por isso usa menos a violência e
as ameaças de violência fascista para enfraquecer o potencial do país, a Argé·
ARG~LIA 1830-1998 271

lia, e para, urna vez apaziguado, explorá-lo sem grandes investimentos, como
satélite "desregulador" da Europa.

André Prenant é geógrafo.

Notas:

l. ln Re1111e Encyclopédique, maio 1830.


2. Au roi et aux chambres sur les véTitables causes de la rupture avec Alger. Paris 1830.
3. Archives parlementaires, t.61, in R.Valec, CAfrique devant le parlement au X1Xe si~cle,
Paris, 1824.
4. Ibid.,t. 96, in R.Valet, obra citada.
5. lbid.
6. lbid.,t. 96, in R.Valet, obra citada.
7. lbid.,t. 110, in R.Valet, obra citada.
8. Citação de Dubois e Terrier, Un siecle d'expansion coloniale.
9. Arquivos parlamenrares, t. 66, in R. Valet, obra citada.
10. Larcher, Traité élémentaire de législation algérienne, t. II. Paris, 1911.
11. R. Valet, obra citada.
12. Proces-verbaux et rapports de la commission nommée parle roi la 7 juillet 1833.
13. lbid. (Paris 1834).
14. Citado por Azan (coronel P), l..'. Emir Abd-E-Kader, Paris,1925.
15. Christia, !..'. Afrique française, Paris, 1863.
16. Vcryage dans la Régence d'Alger, t. III, Paris, 1833.
17. Cavaignac, Lettre au Général Létang, 19 de abril de 1834, in M. Emerit, CAlgérie au temps
d'Abdelkader.
18. Monragnac (Coronel de), l..ettres d'un soldat, Paris, 1885.
19. TEF (Tableau des Etablissements Français dans l'Algérie) 1844-45.
20. lbid. (1846-49) p. 7.
21. lbid. (1846-49), p. 11, (1850-52) pp. 2, 3, 5, 7 e 8.
22. lbid. (1846-49), p. 11.
23. Hcrisson (Conde d'), La chasse à l'liomme, Paris, 1866.
24. Banillat (marquês de), Relation de la campagne d'Afrique en 1830, Paris, 1833.
25. TEF 1839 e 1840.
26. lbid ., 1842.
27. lbid., 1844-45, pp. Z a 5 , e 1846-49, p. 2.
28. lbid., 1845-46, p. 8.
29. lbid., 1846-1849, p. 7 n 11.
30. Rozct, obra citadn, e. Ili, pp. 202 a 214.
31. Montagnllc, obra cltadn, p. 334.
32. TEF, 1840.
33. Salnt· Arnaud (utrm du Maréclial de) , t. 1, Paris, 1858.
34. TEF (1884) .
35. lbid. (1844 -45), pp. 2 a 5.
m O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

36. lbul. (1846-49) .


37. lbid. (1850-52) pp. 2 a 8.
38. Saint-Arnaud, obra citada, t. li.
39. Caso do general Youssouf relatado por d' Héri.sson. Segundo Hazan (obra citada, p. 59),
em 1854, no Haut-Sebaou, "as casas... foram, por ioda a pane, d.>molidas em grande pane ...
as árvores de fruw, oliveiras, figueiras, eram conadas para os trabalhadores".
40. Rozet, obra citada, t. 1, p. 120, t. IIl, pp. 264 e 204.
41. TEF (1838), pp. 263-264.
42. lbid. (1840).
43. TEF (1840), pp. 364-65.
44. Discurso na Cdmara dos Deputados, 14 de maio d.> 1840.
45. Dados retirados pelo essencial dos números comparados da população.
46. Para relOTllllr o cículo de um li~.,.o de Djilali Sari, Argel, 1975.
47. Número retirado a A. Nouschi, assim como oucros dados deste parágrafo, in Lacosce,
Nouschi, Prenam, !.'. Algéne, passi et pr&ru, Paris, 1960,
48. Sari (Djilall), Le disascre démograhique, Argel,1982.
49. Cf. Yacono (X), Pode-se avaliar a população da Argélia na véspera da conquista, in Re1114e
Africaine, 1954, e Prenant, A. in Lacoste, Nouschi, Prenam, obra citada.
50. Cf. Prenant, in Lacostc, Nouschi, Prenant in p. 21 da obra citada.
51. lbid, p. 320.
52. TEF (1846-1849), p. 13.
53. Carta ao duque de Magenta (Mac Mahon), 20 de junho, 1865.
54. TEF (1866-1872), pp. 62-64.
55. Sari(Dj.), obra citada.
56. Estatística geral da Argélia (1865-66) pp. 110-111, e (1866-72), pp. 212-213. A evolução é
fornecida pdos TEF (1830-37, 1838, 1839, 1840-41, 1842-43, 1844-45, 1846-49, 1850-
52, 1853-58, 1859-61, 1862, 1863-64) .
57. Cf. Sari (Dj) , obra citada, pp.188-191epp. 208-209
58. Prenant (A.), la dépmdance de l'Algérie et les finances françaises , in Économie et Poli tique,
novembro de 1956, pp. 42-51.
59. Empire colonial el capitalisme [rançais , hisioire d'un divarce, Paris, Albin Michel, 1984.
60. "de 1865 a 1937, '211 titre du capital de premler investissement ... 1531,3 millions de francs",
Jbid. p.116.
61. lbid. pp. 141-142.
62. lbid., p. 32.
63. lbid., p. 68.
64. lbid., pp. 145 e 139.
65. lbid., pp. 135-137.
66. Prenam (A), Facceurs de peuplomient d'une viUe d'Algérie intérieure: Setif, in Annales de
Oéographie, Paris, 1953, pp. 434-451.
67. Questions de structure urbaine clans trois faubourgs de Sisí-Bel-Abb~s, in Bulletin de
l'Association de Géographes Français, 1956, pp. 62-75.
68. Releués d'Érat-ciuil, et Diplômes d'Etudes Supérieurs de H. Delannoy (Annexe) et M.-A.
Thumelin-Prenant (1956).
69. Annuoire Sratistique de l'Algérie, Argel, 1948-49, 1950, 1951.
70. Rozet, obra citada, t. li, p. 75.
71. Marseille Ol, obra citada, p. 140.
ARG~LIA 1830-1998 273

72, !d. Ibid., p. 72.


73. Ickm, p. 237.
74, Idem, p. 116.
75. Idem, p. 132.
76. Os dados do Relatório do Grupo de Estudos das Relações Financeiras entre a França e a
Argélia são aqui amplamente aproveitados em parágrafos que tentam resumir A. Prenant,
artigo citado in Économie et Politique, nov. 1956
77. Cf. I.:Évbiement du]eudi, 25 a 31 de outubro de 1990.
78. Prenant (A.), artigo citado, 1956, p. 43.
79. Marseille (}.), obra citada, p. 256.
80. Ver Einaudi (J.L.), La Bataille de Paris, 17 octobre 1961, Paris, Seuil, 1991.
81. Peyrefite, (Alain), C'érait de Gaulle, t. l, Paris, Fayard, 1994, pp. 76· 77.
82. Citado por J. Marseille, p. 349 da obra citada.
83. Citado, id., Ibid.
84. Prenant (A), artigo citado, 1956, p. 44.
85. Citado in Marseille (}.), p. 146.
86. Ibid., p.147.
87. Numa conferência de imprensa citada por J. Touchard, Le Gaullisme, 1940-1969, Paris,
Seuil, 1978, retomada por Marseille (}.), Ibíd., p. 73
88. Cf. Prenant (A.) e Semmoud (Bouziane): Algérie: la déconstrucrion d'un tisso industriei, in
Méditerranée, Aix, n2 3-4, 1997.
89. Cf. Les Cahiers du Gremamo, n2 12: Semoud (B) Croissance urbaine, mobiliei et changement
social dans l'agglamération oranaise (1995) e n2 14: Recherches urbaines sur l'Algérie (1997),
in Aujoud'hui l'Afrique, n2 67, fevereiro de 1988.
90. Algirie: une rigression risistible, in Aujourd'hui l'Afrique, n2 67, fevereiro de 1998.
A ÁFRICA DAS INDEPENDÊNCIAS E
O "COMUNISMO" (1960~1998)
FRANCIS ARZALIER
Vivemos neste fim de século um tempo de estranhos arrependimentos.
Os desastres, os dramas, os crimes das três gerações anteriores saltam sobre
nós como gatos furiosos, com as garras de fora. Devemos por isso perder
todo o senso comum, toda a capacidade de análise, transformar os sonhos
de felicidade dos nossos pais e os nossos em estatística de mortes? Devemos
por isso abandonar toda a lucidez, todo o ideal de progresso, e integrar a
multidão dos penitentes, fazendo mea culpa ao som de trombetas pelos pe·
cados dos outros?
Evidentemente, é tempo de saber como movimentos nascidos dos ideais
de libertação social e política puderam transformar-se no seu contrário, em
grupos terroristas, massacrando o povo que pretendiam libertar. Esse trabalho
foi iniciado pelos historiadores e prossegue no silêncio da mídia. E está certo,
porque do olhar lúcido sobre o vigésimo século depende o nosso futuro.
Não era esse o propósito do Uvro negro do comunismo, ao qual os seus
mentores destinaram um objetivo ideológico, até mesmo político: criminalizar
ocomunismo, "sacralizar" assim a sociedade capitalista nessa ótica de "fim da
história" que inventou o senhor Fukuyama.
Seria um trabalho muito longo levantar nas 900 páginas daquele livro as
incongruências históricas. Limitemo-nos ao exemplo preciso da passagem (25
páginas) consagrada a três dos regimes da África que se disseram marxistas
(Etiópia, Angola, Moçambique), sob o título ·~o-comunismo".
Por que, de resto, esses três e apenas esses? Quem não se recorda das
proclamações inflamadas de "marxismo-leninismo" na Guiné de Sekou Touré,
no Congo de Sassou·Nguesso primeira fórmula, no Benim de Mathieu Kérékou
antes da sua queda seguida de um retorno por meio das umas? Em que é que
essas experiências de socialismo assumido nos anos 70 teriam menos a ver
com o "comunismo real" do que as outras selecionadas? Seria porque os episó-
dios revolucionários acima citados, ainda que não tenham podido cumprir
suas proclamadas metas de democracia e de igualdade social, não apresentam
massacres? Assim funciona a "análise" do Sr. Santamaria: o único "comunis·
mo de modelo africanos" é aquele ao qual seja possfvel imputar carnificinas.
De início, cinco páginas confusas pretendem demonstrar que Moçambique,
Angola e a Etiópia, embora africanos, eram claramente comunistas, portanto
278 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

criminosos, ou criminosos porque eram comunistas: isso tudo em virtude da


"dimensão criminosa do comunismo", africano ou não.
No final desta "demonstração", semeada de erros émicos - "a Frente
Patriótica de Ruanda (Tutsi)", (sic) ; "Ruanda, com o genocídio dos Hutus''.
(sic) -, começa a história do "Império vermelho: a Etiópia": embora a crono-
logia seja mais ou menos exata, os acontecimentos são citados fora do contex·
to político e social. Em 1974, o Império de Ha!lé Sélassié "desfaz-se sem gran-
des sobressaltos", e o chefe do governo militar Mengistu "coloca abertamente
o país na via do socialismo". Nasceu bastardo, portanto revolucionário e cri·
minoso: o autor não hesita em retomar a velha cantiga da historiografia con-
tra-revolucionária do século XIX francês ... A partir daí, 10 páginas desfiam
em avalanche uma ladainha de vocábulos imprecatórios: "liquidação", "sorte
decidida a metralhadora", "despojos imperiais endossados", "sobreviventes",
"destruição física", "extennírúo", "terror vermelho", "rios de sangue", "execu·
ção", "estranguladores", "esquadrões da morte", "vítimas do terror", "assassi·
natos polfticos", "ossários", "Saturno bolchevique", "carretas de condenados",
"ritual do pronto a liquidar", "valas comuns", "desaparecidos", "condenados
à morte", "exposição das vítimas torturadas", "crianças assassinadas", "extor·
sões", "envenenamentos por gás", "desfraldar da barbárie", "Oradour-sur·
Glane",* "massacres de populações civis amontoadas nas igrejas", "camifici·
nas", "campos de concentração", "guerra total", "represálias maciças e raides
de terror aéreo", "violações sistemáticas", "fome", "arma alimentar", "desvio
das ajudas", "transferências forçadas", "deportações maciças" ... As palavras
não são inocentes, os lingüistas e os psicanalistas bem o sabem. Elas têm aqui
o papel de prova e compensam a superficialidade das afirmativas, os números
de mortos que se limitam a probabilidades ("para o período de fevereiro de
1977 -junho de 1978, foi levantado o número de 10 mil assassinatos políticos",
página 751 da edição francesa). A invectiva é elevada à categoria de análise
histórica, estruturada apenas sobre os aspectos negativos do período de 1974
a 1991. Dezessete anos de história dos povos da Etiópia são assim diabolizados,
amputados de tudo o que foi progresso ou luta popular durante uma geração.
Voltemos à realidade histórica: a revolução de 1974, sob a direção de militares
e de intelectuais progressistas do DERG, fez cair o Império Etíope, um dos
regimes feudais mais anacrônicos do globo. A revolução tentou, nos anos se·

•Massacre da população de Oraadour-sur-Glane, na região de Haute.Yienne pelas SS em 10 d · ho


de 1944. (N. do T.) ' ' e iun
A ÁFRICA DAS INDEPENDtNCIAS E O "COMUNISMO" 279

guintes, levar à força a sociedade etíope para uma modernidade tingida de


socialismo: reforma agrária e desenvolvimento cooperativo, laicização de um
Estado até então clerical, alfabetização, reformas salariais, unidade nacional
etc. De 1974 a 1980, o número de alunos nas escolas primárias passa de 850
mil para 1,4 milhão, e a campanha de alfabetização de adultos é citada como
exemplo pela Unicef. Todas as análises dos especialistas em assuntos africanos
confirmam: a Etiópia dos anos de 1975 a 1980 afirmou-se "um caso quase
único de uma revolução agrária africana ... um notável amálgama entre uma
vontade de coletívização socialista e a referência aos costumes comunitários
africanos" (C. Coquery-Vidrovitch in Afrique noire, permanence et ruptures, I.'.
Harmattan, 1992). Todo o mundo registrou o apoio camponês inicial, sobre-
tudo no Sul, comparada com a hostilidade provocada pela coletívização buro-
crática a partir de 1984. É certo que o "terror vermelho" de 1975 a 1980 foi
bem real, certamente para além das obrigações forçadas e necessárias a um
poder de Estado desejoso de reformas. Os erros foram numerosos, e o desastre
final teve sua origem quando o poder se encontrou isolado frente ao apareci-
mento de revoltas regionais armadas, amplamente apoiadas pelos Estados
Unidos. No entanto, constatar esse desastre não significa que se possa esque-
cer os progressos iniciais.
Depois da Etiópia, Angola e Moçambique têm direito a dez páginas do
mesmo tipo: verborragia acusatória disfarçada de provas; modo condicional
permitindo veicular todo o tipo de boato, segundo o processo tão caro aos
nossos comentaristas televisivos; mortificante contagem do conjunto das víti-
mas da guerra e do seu corolário, a fome, tudo isso evidentemente atribuído
ao "modelo soviético" e à "natureza profundamente leninista dos Estados afri-
canos"! Não valeria a pena demorarmo-nos neste exame, se essa descrição
das antigas colônias portuguesas há vinte e cinco anos não levasse a
instrumentalização da história ao ponto de ignorar o papel da África do Sul
do apartheid. No entanto, ela esteve bem presente, e de que maneira, em
subsídios, em homens e em armas, até a vitória do Congresso Nacional Afri.
cano em 1994. O autor não hesita em inverter os fatos mais reconhecidos e
provados: a União Sul-Africana teria intervindo em Angola ao lado da Unita
de Jonas Savimbi em resposta à presença em Luanda de forças cubanas e
soviéticas. Será então necessário lembrar aquilo que nem a imprensa ociden-
tal negava: os racistas, no poder em Pretória, reivindicaram orgulhosamente
ao longo dos anos a sua intervenção "para travar o comunismo".
Em Angola, a repressão colonial conduzida de 1961 a 1974 pelo regime
280 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

fascista português contra os movimentos armados de libertação (MPLA, de


inspiração marxista, Unita e FNLA de caráter étnico e anticomunista) de.
semboca na independência graças à revolução democrática portuguesa, acha·
mada "Revolução dos Cravos". Mas o povo de Angola não goza por muito
tempo da sua nova liberdade: em 197 5, a FNLA e sobretudo a Uni ta instalam
o seu poder separatista, especialmente nas regiões produtoras de diamantes,
com o apoio financeiro, material e humano da CIA e dos dois governos pró·
ocidentais do Zaire e da África do Sul. A verdade é que, derrotados no terre·
no pelas forças do governo do MPLA auxiliadas por um contingente cubano,
os mercenários da Unita, treinados pelos serviços especiais sul-africanos e
oficialmente apoiados pelos Estados Unidos dos presidentes Reagan e Bush,
continuam a controlar diversas partes do país, a multiplicar os ataques contra
as aldeias que não aceitam sua lei. Segundo as publicações da ONU, após uma
década de guerra, de 1978 a 1988, o balanço é de mais de 300 mil mortos,
centenas de milhares de mutilados e outros tantos refugiados. A progressiva
derrocada do apartheid na África do Sul obrigou finalmente a Unita e os seus
protetores americanos a aceitar o fim dos combates: os acordos de paz de
1992 previam explicitamente a saída dos contingentes estrangeiros e as elei·
ções. Estas tiveram lugar em 1992, sob o controle de observadores vindos do
mundo inteiro, e deram uma ampla maioria ao MPLA. A Unita de Savimbi,
recusando o veredicto popular, recomeça a guerra civil: em 1994, a ONU
estima que o novo conflito mata mil angolanos por dia! Será necessário espe·
rar a derrota do Zaire de Mobutu, em 1997, e dos seus protegidos da Unita
para ver renascer a esperança na Angola destruída por 30 anos de guerras.
Onde diabo estão nisto os crimes do comunismo?
Moçambique tem uma história paralela. Também esse país, logo que foi
libertado do domínio português, teve de suportar a destruição da guerra
conduzida pelas forças separatistas da Renamo, financiadas e armadas duran·
te dezesseis anos pela racista África do Sul e, hipocritamente, por certas gran·
des potências ocidentais, entre as quais, infelizmente, a França. Também aqui,
o processo de paz, trabalhosamente instalado após 1994 (na África do Sul está
no poder o Congresso Nacional Africano de Mandela), deu uma ampla maio·
ria à Frelimo (muito pouco marxista, ainda que isso desagrade ao Sr. Courtois).
Resta-lhe agora reconstruir um país devastado, que perdeu, além de centenas
de milhares de cidadãos, o essencial dos seus equipamentos industriais, e cujas
terras cultiváveis estão semeadas de minas que ainda arrancarão vidas e mem·
bros por algumas décadas. Crimes do comunismo? Os autores do Sr. Courtois
A ÁFRICA DAS INDEPEND~CIAS E O "COMUNISMO" 281

deviam estudar um pouco a história da África negra em livros diferentes dos


utilizados em Pretória há 1Oanos!
Angola e Moçambique foram exauridas por conflitos nascidos essencial-
mente dos apetites das grandes potências e das sociedades multinacionais que
visavam às riquezas do subsolo, aos diamantes e ao petróleo. Nesse balanço
dramático, qual o peso de algumas exações, atentados aos direitos do homem,
execuções imputadas à Frelimo e ao MPLA "comunistas" pelos autores que
citamos?
Angola, Moçambique: crimes do comunismo ou conseqilências crimino-
sas do capitalismo africano e internacional?

O capitalismo e a África a partir dos anos 60

Porque, afinal, é justamente disso que se trata: o "continente negro" não


é um caso isolado; é habitado pelas mesmas controvérsias ideológicas, as mes-
mas estruturas econômicas e sociais do resto do universo.
Não retomemos pelo avesso as manipulações do livro negro do comunismo:
as ideologias não são responsáveis pelas tendências criminosas daqueles que
delas se queixam.
Em Ruanda, em 1994, perto de um milhão de seres humanos, porque
eram tutsis ou democratas, foram exterminados em algumas semanas pelas
milícias lnterhahwe dos fascistas e racistas do "Hutu Power". Esses assassinos
foram durante anos, e até a sua derrota, armados, financiados e protegidos
pelo braço secular do presidente Mitterrand. Isso não permite que se impute a
responsabilidade do crime à ideologia social-democrata.
É também deploravelmente verdadeiro que certos padres de Ruanda, o
país mais católico da África, aprovaram e até participaram dos massacres ra·
cistas: isso não autoriza ninguém a falar de crime do catolicismo nesse caso.
Épúblico e notório que a ditadura integrista e militarista que impõe a sua
lei ao Sudão há dez anos sempre teve relações muito cordiais com as redes
francesas de Charles Pasqua e Marchiani: isso não autoriza que se atribua ao
gaullismo a responsabilidade da guerra feroz conduzida pelo poder integrista
contra os povos do Sudão do Sul que fez, em doze anos, milhões de mortos e
de refugiados.
Pelo contrário, uma realidade inegável é que a África contemporânea, do
Norte e do Sul, do Leste e do Oeste, está inserida nos mecanismos mundiais
282 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

do capitalismo. Os chefes das grandes potências ocidentais, especialmente


através das organizações internacionais que eles controlam (FMI, Banco
Mundial, Conselho de Segurança da ONU etc.) exercem uma vigilância coti-
diana sobre os Estados da África. O preço dos produtos básicos que constitu·
em o essencial das exportações africanas é da competência única dos merca-
dos financeiros do Ocidente e não deixou de baixar a longo prazo; os produtos
industriais ou alimentares que a África não-desenvolvida deve comprar são,
pelo contrário, cada vez mais caros.
Os recentes diagnósticos do Banco Mundial são indiscutíveis no que diz
respeito à África: ainda mais do que antes, as economias africanas e os Esta·
dos africanos estão esmagados pela dívida, a pomo de poderem apenas sonhar
com uma vida independente. Apesar de uma tímida progressão das exporta·
ções de matérias-primas e dos acordos de redução da dívida, a situação dos
países da África subsaariana continuou a deteriorar. A sua dívida representa,
em média, 170% das exportações (1 mil% em Moçambique, 600% na Costa
do Marfim).
Segundo os "quadros da dívida" publicados pelo Banco Mundial, de 40
países fortemente endividados, 33 pertencem à África subsaariana. O Magreb
não está melhor: na Argélia o desequih'brio dívida/receita de exportação é de
308%, no Marrocos de 247%, no Egito de 214%. São muitos os peritos do
Banco Mundial e do FMI que se dão ao luxo de reconhecer que muitas dessas
dívidas nunca poderão ser pagas: o continente africano e os seus povos devem
continuar estrangulados pela dívida. Para as grandes potências financeiras e
políticas esta é mais uma arma política do que uma fonte de lucros: o total das
dívidas da África subsaariana (223 bilhões de dólares) mal ultrapassa 10% do
total mundial. Mas permite impor aos governos africanos os "planos de ajuste
estrutural", quer dizer, controlar suas decisões políticas, econômicas e sociais
(austeridade para os serviços públicos e privatização das riquezas). Melhor
ainda: esta dominação do capitalismo mundial é, na África de 1998, mais
forte do que foi na era colonial. A maior parte das aldeias da África Ocidental
Francesa vivia, em 1930, numa quase autarquia comunitária e só sentia o
peso da autoridade colonial no trabalho forçado e nos impostos. No final do
século XX, o aldeão da Costa do Marfim ou do Senegal sabe que o preço das
suas colheitas de cacau ou de amendoim depende das Bolsas ocidentais!
Nesse universo regulado pelas leis do mercado mundial, onde não se in-
veste senão em função do lucro previsto (na "África útil" segundo a termi·
nologia dos financeiros), a rede dos interesses capitalistas tem os seus postos
A ÁFRICA DAS INDEPEND~CIAS E O "COMUNISMO" 283

de controle locais impregnados do credo "liberal", aptos a propagandeá-lo e a


fazer com que seja respeitado pelas populações que com ele sofrem, receben-
do os lucros que decorrem do sistema: foram, durante muito tempo (de 1960
a 1990), militares de uma ferocidade brutal, como Bokassa na Républica Cen-
tro-Africana ou ldi Arnin Dada em Uganda, tiranos corruptos como Mobutu
no Zaire, e muitos outros: todos esses devem as riquezas que acumularam e a
sua longevidade política apenas ao apoio multiforme dos poderosos do Oci-
dente, em nome do anticomunismo. Alguns deles ainda sobrevivem, como
Eyadema em Togo, mantido pelo apoio francês após uma repressão impiedosa.
Mas uma nova geração de dirigentes africanos devotados ao capitalismo
mundial, que não vale mais que a anterior, está ocupando o poder: são os
tecnocratas, belos tagarelas formados pelo FMI e pelo Banco Mundial, que
não cessam de louvar as virtudes do pluripartidarismo, confundido por eles
com democracia, e as leis do sacrossanto mercado mundial. Soglo era um
desses, a quem o povo do Benim acaba de dispensar, depois de ter constatado
que ele não fez mais do que agravar a sua pobreza.
Os novos donos do capitalismo mundial, sentindo o solo africano estre-
mecer debaixo deles, estão prontos, de resto, a recorrer a todos os meios, a
defender o controle por dirigentes de ideologias muito variadas, desde que
estes assegurem o essencial, a estabilidade política, a obediência às "leis do
mercado" ... e os "planos de ajuste estrutural". Aqui um antigo marxista con-
vertido, acolá um ex-resistente dos maquis dos anos 60, além um integrista
confesso: o FMI é muito "plural" - espera deles apenas a capacidade de fazer
com que os seus povos aceitem a necessidade do lucro capitalista.
Desde a aurora das independências africanas, o capitalismo foi o contexto
de alguns dos piores massacres coletivos do século XX.
1. Em 1966, começa na Nigéria a guerra de Biafra. Esta antiga colônia
btitânica, a mais populosa da África subsaariana, tinha conseguido federar
vários povos num país unificado: a sua unidade, tanto quanto o seu petróleo,
podiam permitir que ela saísse do seu subdesenvolvimento. Mas isso era não
contar com o apetite das grandes sociedades capitalistas dos Estados ociden-
tais e a sua capacidade de jogar com o separatismo. Os problemas étnicos
opondo os lbos de Leste aos Haoussas majoritários de Lagos desembocam na
proclamação pelos primeiros de uma República de Biafra, querendo guardar
apenas para si os benefícios dos campos petrolíferos. As companhias britâni-
cas (Shell, BP) sustentam o Estado federal, mas o Biafra de Ojukwu é auxi-
liado, e mesmo encorajado na sua teimosia militar, pelos seus concorrentes,
O LIVRO NEGRO DO CAPITAU M

que vêem na ocasião um meio de alargar a ua rona de influência. A França


de De Gaulle e Foccart, os seus fiéis african ' Houphouet·Boigny da Costado
Marfim e Bongo de Gabão assumem a causa d separnri tns e fornecem ar.
mas e mercenórios: o SDECE e Bob Dennrd entram na aventura.
A oplnifo francesa é em!\o ultrnj antemente manipulada nos seus bons
sentimentos por uma campanha onde todo o tipo de argumento serve para os
tenores do "humanitário"; as imagen de crianças esfome:idas, mutiladas pelo
fato de se estar cm guerra, "demonstram a jusra cau a de Biafra". Até o flm, a
secessão de Blafra se alimenta de sórdidos de fgnios de financeiros e pol!ticos
prontos a combater aré o últi mo homem de Biafra ainda vivo. Após tr~s anos
de combates e de fome, o saldo reconhecido por todos os analistas é eloqUen·
te: perto de dois milhões de mortos ~
2. Neste quadro de honra do crime contra os povos africanos, lembremos
o que acima foi dito de Sudão e Ruanda.
O Sudão, vasto país entre a África muçulmana arabizada e a África negra
animista ou cristã, sofre hã trinta anos com ódios étnicos, autoritarismo mili·
tar e integrismo: e não esqueçamos que todos esses males são suscitados e
alimentados pelo anticomunismo.
Em 1971, um desa.moso levante de militares da extrema-esquerda levou
à crradicaç~o do movimento sindical e do Partido Comunista Sudanês, o mais
poderoso do continente. O integrismo começa então a se desenvolver, sobre·
tudo no seio da burguesia muçulmana e do exército, com dois componentes
ideológicos essenciais: o ódio ao comunismo e à democracia, o fanatismo reli·
gloso e o desprezo racista pelos cristãos negros do Sudão do Sul. Isso até 1989,
quando o exército instaura uma ditadura militar cujo ideólogo é o integrista
Tournbi. Não nos deixemos enganar: os chefes integristas de Canum não são
mais "antiocidentais" do que os nazistas eram "anticapitalistas". A sua oposi·
ção aos Estados Unidos e à Arãbia Saudita é de ordem gcogrãfka, não ideoló·
gica, nascida sobretudo da sua vontade de representar o papel principal no
nordeste do continente. A sua gestão econômica inspira-se nos critérios mais
puros do "liberalismo".
O regime Integrista que a França oficial ajudou durante tanto tempo (em
virtude do qual nos entregou Carlos, esse terrorista reformado) chafurda no
sangue ao sul do pais desde o seu nascimento: os números adiantados pelas
Nações Unidas e as ONGs, assim como os da Anistia Internacional, são assom·
brosos: 1,3 milhão de mortos em 10 anos, 3 milhões de pessoas deslocadas,
vários milhões de subalimentados etc.
A ÁFRICA DAS INDEPEND~CIAS E O "COMUNISMO" 285

Enquanto ele impõe ao povo de Cartum, cada vez mais reticente, a sua lei
cm nome do isl11, o poder militar fornece armas e munições à guerrilha de
integristas crist5os (Exfacito de Resistl:ncia do Senhor) que devasta o norte
de Uganda, aterrorizando o povo das aldeia : demonstração implacável, caso
ainda fosse necessá ria, de que os integrismos não são movimentos religiosos, e
sim manipulações políticas do religioso. Mas será preciso aguardar a derroca-
da do regime atual do Sudão para que desapareça o apoio hipócrita de certas
organizações francesas que ainda se pensam na era de Fachada/ O dossier
realizado a esse respeito por Pax-Christi France cm junho de 1995 era assusta-
dor e mantém-se parcialmente atual.
Não há necessidade de insistir no assombroso massacre de Ruanda, cujos
autores são bem conhecidos (os "fascistas tropicais" do defunto Habyarimana)
juntamente com os seus cúmplices que os armaram. Em 4 de fevereiro de
1998, e. Josselin, ministro delegado para a cooperação, lamenta a fraca pre-
sença da França em Ruanda, "país com o qual a nossa relação diplomática
não é a melhor". Será preciso fingir admiração, quando se conhece o passa-
do da França oficial nesse país a reconstruir, quando está bem fresca a recor-
dação da "Operação Turquesa" do exfacito francês : uma operação que, ar-
mada de grandes pr e textos humanitários, evitou sobrecudo que os
lnterhamwes chacinadores do fascismo ruandês, já então vencidos em tor-
no de Kigali, fossem definitivamente impossibilitados de causar prejuízos.
Em conseqüência disso, puderam continuar a combater no Congo, ao servi·
ço de Mobutu e de Lissouba, e a encorajar ainda hojt.: uma sangrenta guer·
rilha em Ruanda. Resta desejar aos povos da região que novas ingerências
não reacendam as brasas étnicas sempre presentes, quer sejam de Estado
(EUA ou França), de organismos internacionais (Banco Mundial) ou priva·
dos (sociedades multinacionais capitalistas): as pressões externas só podem
adiar a cicatrização das feridas deixadas pela história recente; isso o passado
demonstra claramente.
3. E finalmente, como esquecer o longo martírio do povo da África do Sul
sob o regime racista do a/1archeid a partir dos anos 1960? O apariheid é em si
mesmo um crime, porque repousa sobre o racismo legalizado, a desigualdade
"genética" erigida em lei e a recusa da democracia teorizada em prindpios
políticos. Será ainda preciso lembrar que a República Sul-Africana do apariheid
era na África o exemplo perfeito do capitalismo, dirigido por uma burguesia
cujo nível de vida ultrapassava o dos seus equivalentes franceses, graças à
supcrexploração da mão-de-obra negra das minas e dos campos? Capitalismo
286 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

local, regulando a economia da única potência industrial ao sul do Saara, mas


sustentada durante toda. a Guerra Fria pelos Estados Unidos e outras potênci·
as ocidentais em nome da luta contra a influência soviética. Mesmo depois de
1977 e das diversas decisões de embargo tomadas pela Assembléia Geral das
Nações Unidas contra o apartheid, as sociedades multinacionais (Shell) e os
Estados ocidentais, entre os quais a França, forneceram ao poder racista de
Pretória as armas, a tecnologia nuclear, o petróleo que lhe faltava. Melhor
ainda, se assim se pode dizer: em 29 de março de 1988, Dulcie September,
representante na França dos combatentes do Congresso Nacional Africano,
era assassinada em Paris. A justiça francesa arquivou o processo em 1992 por
não ter obtido resultados. Seis anos mais tarde, na África do Sul libertada, a
"Comissão Verdade e Reconciliação" questiona a ajuda que membros dos ser·
viços secretos franceses teriam podido dar aos assassinos, no momento em
que Dukie se preparava para denunciar o projeto francês de fornecer mísseis
terra-ar Mistral ao governo de Pretória.
A gestão cotidiana do apartheid desde 1960 foi uma longa opressão paliei·
ale judiciária, ornada de assassinatos coletivos nos casos de resistência popu·
lar organizada:
- em março de 1960, em Sharpeville, a polícia metralhava a multidão,
fazendo 69 mortos e centenas de feridos;
- em junho e julho de 1976, as manifestações de estudantes universitá·
rios e secundaristas são reprimidas com ferocidade: 300 mortos em Soweto,
mil em todo o país ...
Isso até a rendição, em 1990, do "poder branco", asfixiado pela revolta
popular, o fim do apoio americano, à vitória eleitoral do Congresso Nacional
em 1994. Nada está definitivamente encerrado na África do Sul, com a pesa·
da herança do apartheid ainda gravado nas desigualdades sociais; e a burgue·
sia "liberal" branca ou negra sonha mais em servir de ponto de apoio ao capi·
rallsmo americano na África do que com progressos sociais. Mas o futuro do
continente está sendo jogado ali.
Por fim, além desses massacres coletivos periódicos, o capitalismo é res·
pensável ainda mais diretamente na África por conseqüências dramáticas:
pobreza maciça, falência dos serviços públicos mais elementares, analfabetis·
mo crescente há dez anos, desemprego maciço nos centros urbanos empobre·
ciclos são o lote comum da maioria dos Estados submetidos à impiedosa lei do
endividamento e dos planos de ajuste estrutural que impedem qualquer de·
senvolvimento industrial endógeno.
A ÁFRICA DAS INDEPEND~CIAS E O "COMUNISMO" 287

Algumas das chagas da África que freqüentemente são mostradas como


características exclusivas nas imagens simplistas exibidas pelas televisões oci·
dentais são fruto direto das relações Norte-Sul no quadro do capitalismo
mundial e africano.
Em primeiro lugar a corrupção, que corrói a administração da maioria dos
Estados africanos e os hábitos de numerosos dirigentes políticos e administra·
tivas. Os Estados ocidentais e as sociedades privadas que disputam entre si os
mercados africanos são os corruptores: a distribuição mal disfarçada de pre·
sentes, para eles núnimos em função do que está em jogo, permite a eles ga·
rantir clientela política e negócios pródigos. Em função da disparidade das
moedas, a percentagem discreta de O, l % do valor de um contrato de compra
de armas representa para o interessado africano, ministro ou simples fundo·
nário, o equivalente a anos de salário. Nestas condições, que industrial oci·
dental se privaria de corromper?
Nesta "lógica de mercado", a época dos mercadores de escravos foi subs·
tituída pela dos mercadores de veneno. As indústrias dos países ocidentais
vão sendo cada vez mais esmagadas por seus resíduos à medida que a consci·
ência ecológica vai se tomando majoritária na opinião pública. Desde então,
despejar os resíduos mais tóxicos ao longo das costas africanas ao menor custo
possível e entregar a algum presidente ou ministro uma soma vultosa para que
feche os olhos - que há de mais fácil para os dirigentes das grandes empresas
transnacionais? Em 1988, um contrato assinado pela sociedade britânica Sesco-
Gibraltar com quatro ministros de Benim previa a entrega de 1 a 5 milhões de
toneladas de resíduos tóxicos, durante dez anos, contra o rfdiculo pagamento
de 2,5 dólares por tonelada. Pierre Péan (r Argent noir, Fayard, 1988) revelou
alguns outros elementos visíveis desse problema: como um iceberg, o essenci-
al está escondido, mas é bem real.
Outro aspecto da realidade africana, a fome, que no nosso universo domi·
nado pela mídia foi transformado como que em um símbolo do continente
negro. Quem não tem na memória essas imagens de crianças de abdômen
dilatado, de multidões disputando o saco de arroz salvador enviado por almas
generosas? Ora, esta imagem da África, ainda que tivesse nascido de bons
sentimentos, é falsa; basta visitar cidades e aldeias.
Evidentemente, a fome é um flagelo bem real, que aniquilou dezenas de
milhares de africanos nos últimos dez anos e deve continuar. Evidentemente,
essa fome endêmica tem por vezes origem nas condições climáticas (no Sahel,
onde o deserto se alonga) e mais ainda demográficas (população e rebanhos
288 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

demasiado numerosos para zonas de pastagem frágeis) . Mas a fome é apenas


uma contingência na África; produz-se, num contexto de dificuldades, quan·
do a sociedade é perturbada por um confli to armado que impossibilita plantio
e colheita, transporte e conservação d alimem . A produção agrícola glo·
bal tem aumentado, de maneira certamente i uficiente, mas animadora: se·
gundo a FAO, a produção de cereais na África tem crescido 1.95% ao ano, de
1961a1990, e a produtividade32% entre 1986 e 1990. Todas as fomes impor·
tantes dos anos recentes esúveram ligadas a conflitos militares, externos ou
internos, à destruição do potencial agrí a e industrial e aos deslocamentos
populacionais decorrentes: foi o caso da Etiópia, da Somália, do Sudão, de
Chade, de Moçambique etc.
Ora, a verdade é que esses conflitos estão intrinsecamente ligados às ar·
mas vendidas na África aos d1·~ beligerantes, governos ou grupos arma·
dos, por traficantes de todo tipo. na primeira fila dos quais se encontram paí·
ses como a França e os Estados nidos, grandes produtores de engenhos de
morte de todos os gêneros. ~ que a produção e a venda de armas de fogo,
desde o mfasil terra-ar à metralhadora cujo preço é acessível aos mais pobres,
são exclusividade da emprei4.! industriais do Ocidente, que nessas vendas
obtêm lucros de bilh~ de dó~ anua~. Na África, só a África do Sul e o
Egito produzem armas; além disso, este último serve freqüentemente apenas
de intermcdi5rio, e, por outro lado, o governo de Mandela mantém esse negó-
cio assassino com algum pud , di vidido entre a necessidade de divisas e os
seus objetivos de moral internacional.
A constatação, em todo o CahO, é bem clara: guerras e, portanto, fome
generalizada só ataca m a África em corueqOência do comércio de armas, ne·
gócio polpudo para os fab ricantes ocidentais, mecanismo capitalista inerente
às relações Norte-Sul contemporâneas. Acaso 6C notou que, curiosamente, os
planos de ajuste estrutural impostos aos países africanos pelo FMI exigiam
sempre uma redução drástica das de pellas de saúde e de educação, mas não
de equipamentos militares? A companhia perrolífera Elf soube muito bem
financiar, em 1997, as milícias que tomaram o poder em Brazzaville, ao preço
de uns 10 mil mortos.
Não se pode valorizar tudo em razão desta "lógica do mercado mundial
capitalista" no mal africano atual. Concluamos esta panorámica com um exem·
pio elucidativo, recentemente sublinhado pelo relatório da OMS e da ONU
sobre a Aids, publicado em 26 de novembro de 1997. Na África subsaariana,
7,4% dos homens e das mulheres entre 15 e 49 anos estão infectados pelo
A ÁFRICA DAS INDEPEND~CIAS E O "COMUNISMO" 289

v[rus. São 2,4 milhões na África do Sul, 25 a 30% dos adultos em Botswana.
Em todos os países, a esperança de vida, que tinha crescido perto de 15 anos
de 1960 a 1990, recua novamente.
A constatação mais dramática é o fosso crescente em matéria de trata·
mento entre os países industrializados e os africanos. Na Europa ocidental, o
número de casos declarados de Aids é, em 1997, 30% inferior aos de 1995:
isso é devido, no essencial, à eficácia dos tratamentos atuais, especialmente o
coquetel de drogas, que custa mais de 100 mil francos por ano na Europa.
Nessas condições, os doze países africanos que sozinhos respondem por 50%
dos soropositivos do planeta não têm qualquer possibilidade de dar aos seus
povos esse tratamento existente e eficaz. No encontro internacional de
Abidjan, em dezembro de 1997, o presidente e o ministro da Saúde da França
manifestaram o seu orgulho pela criação, pelos países induStrializados, de um
"fundo internacional de solidariedade terapêutica" para os doentes de Aids
dos países do Sul. Mas os representantes do Banco Mundial nessa conferência
recusaram imediatamente essa possibilidade, contrária à saudável lógica "li-
beral".
O professor Gentilini, por seu lado, denunciou aos congressistas esse "cri·
me contra a humanidade pelo qual as gerações futuras nos censurarão tragi-
camente".
Vamos dizer claramente: este crime contra o homem, na África, chama-
se lucro capitalista. O século que vai começar seguramente responderá àquilo
que por agora são apenas interrogações e incertezas. Não se sabe em que sen·
tido. Mas uma coisa é clara, ainda que desagrade às ideologias dos "crimes do
comunismo": nesta África que se batiza de francófona porque foi colônia fran-
cesa há meio século, os sonhos e as esperanças de melhoria, de igualdade e de
liberdade não se incarnam nos tecnocratas nem nos ditadores fabricados pe·
las academias francesas ou pelo FMI: esse sonho chama-se Thomas Sankara,
imagem mítica do reformador incorruptível, lutador desordenado e generoso
pelos direitos dos mais pobres e das mulheres, assassinado em 1987, que reco-
nhecia ser inspirado pelo ideal comunista.

Francis Arwller ~ historiador, professor na IUFM de Beauvais, responsável pela revista


Aujourd'hui l'A/Tique.
290 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

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AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS
NA AMÉRICA LATINA
PACOPENA
O processo de emancipação das colônias espanholas, iniciado em princí-
pios do século XIX, terminou na segunda década do século passado, encer-
rando o domínio da fapanha no Novo Mundo. Em 1898, os últimos bastiões
no continente - Cuba e Porto Rico - foram arrancados ao poder espanhol
pelos Estados Unidos, caindo então sob o seu domínio.
Uma vez rompida a ligação colonial com a Espanha e anulado o seu mo-
nopólio comercial, serão sobretudo companhias inglesas, depois norte-ameri-
canas, que irão predominar na América Latina. A preponderância inglesa,
que suplantou o rígido monopólio comercial espanhol, manifestou-se ao lon-
go de todo o século XIX através do desenvolvimento do comércio britânico
com as colônias recém-independentes: eram sobretudo navios ingleses que
chegavam aos principais portos americanos: Vera Cruz, Buenos Aires,
Valparaíso, Havana e Callao.
Tratava-se essencialmente de uma supremacia comercial que não procu-
rava o domínio político direto, se bem que a Inglaterra também tivesse tenta-
do arranjar um lugar ao sol no Novo Mundo, empregando a força: à conquista
de Buenos Aires em 1806 seguiu-se o desembarque em outros territórios e nas
Antilhas e até mesmo a criação de um virtual "Reino de Mosquitia" na costa
atlântica da Nicarágua, e a ocupação, em 1833, das Ilhas Malvinas, que eram
povoadas por colonos argentinos desde 1829.
A Inglaterra pôde impor-se na América Latina durante a primeira metade
do século XIX, apesar das pretensões dos outros candidatos por zonas de in-
fluência na região: a França e os Estados Unidos.
A França não pôde fazer frente à polftica britânica e teve de se contentar
com o domínio da Royal Navy, ao mesmo tempo que procurava ganhar ou
conservar territórios em certas parcelas do continente: o Haiti, as Antilhas, a
Guiana e o México. Este último sempre atra(ra o interesse dos franceses e o
primeiro choque deu-se durante a Monarquia de julho, no penado da rocam-
bolesca "guerre des gâteaux" (guerra dos bolos) (1838). Mais séria será a in-
tervenção da França e das potências européias depois de 1861, que terminou
com a derrota e execução de Maximiliano da Áustria em Queretaro, em 1867.
Os Estados Unidos, por seu lado, procuraram em vão, durante a primeira
metade do século XIX, disputar a hegemonia inglesa. Não tendo os meios
294 O LIVRO NEGRO 00 CAPITAL!SMO

para uma política mais ambiciosa nesse momento, se contentarão com a ab.
sorção dos territórios adjacentes à Costa Leste. Ainda não era chegada a hora
do aruchluss* e das intervenções militares. Essa chegará em 1835, quando a
onda expansionista norte·americana absorver metade dos territórios perten·
cenres ao México (o Texas, a Califórnia, o Novo México). Os Estados Unidos
levarão a Grã-Bretanha a ceder-lhes o Oregon em 1846, e comprarão o Alasca
da Rússia em 1867.
No final do século XIX, esta política de expansão permite a formação de
um vasto território e, após a Guerra da Secessão-que desviou a atenção eos
esforços dos norte-americanos para os problemas internos-, os Estados Uni·
dos se dedicarão a estabelecer o seu domínio político e econômico na Améri·
ca Latina, substiruindo a Inglaterra e comprometendo-se num processo de
desenvolvimento e de industrialização que irá colocá-los à frente dos países
capitalistas no século XX.
Estas breves linhas têm o propósito de relatar a história das intervenções
imperialistas na América Latina, que ajudaram de forma marcante o cresci·
mento do país que viria a ser a primeira potência do planeta e ponta·de-lança
do capitalismo mundial. A política intervencionista dos Estados Unidos ma·
nifestou-se muito cedo na América Latina. Embora tivesse um adversário de
peso- a Grã-Bretanha-, os norte-americanos olharam sempre com cobiça
os territórios que durante três séculos tinham estado submetidos ao poder
colonial espanhol e que, no início do século XIX - após sua independência
-, conheceram longos períodos de anarquia, como resultado das lutas inter·
nas que se desenrolaram em quase todas as jovens repúblicas.
O processo de expansão territorial dos Estados Unidos começou no final
do século XVIII. Sendo a fronteira ocidental "elástica", adquiriram vários ter·
ritórios entre 1792 e 1821. 1O processo desenvolveu-se também para Ociden•
te e Sul, onde a voracidade da União engoliu grandes extensões do Meio·
Oeste obtidas através da cessão ou da compra dos territórios às potências
européias. Compra e cessão feitas nas costas das populações autóctones- ºos
peles-vermelhas"-, que foram reprimidas ou exterminadas. Foi assim que os
Estados Unidos conseguiram aumentar significativamente o seu território
inicial.
Apesar da posição oficial de não-intervencionismo anunciada por George
Washington ao recusar um terceiro mandaro presidencial em 1796, os Esta•

•[nlc11f1çlo econômica e pollrlc1 d1 Áw1rl1 no Ili Rcich alcmlo, cm março de 1938. (N. do T.)
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 295

dos Unidos pensaram desde o início em apoderar-se dos territórios contíguos


aos da União. Foi o caso da Flórida. Um súdito do rei de Espanha, Pedro
Menendez de Avilés, fundou a cidade de San Augustin em setembro de 1565.
Esta península foi ocupada pelos ingleses de 1763 a 1783. Os Estados Unidos,
por seu lado, afirmavam que a fronteira sul ia até o paralelo 31, mas a ocupa-
ção espanhola ia até o paralelo 33; e existia uma disputa séria sobre o Mississippi,
cuja navegação era condicionada pelo monopólio que esta exercia sobre o
tráfego do rio.
Em 1811, aproveitando a presença das tropas de Napoleão na Espanha, o
Congresso Norte-americano vota uma resolução em que declara ter a intenção
de ocupar a Flórida e lá permanecer. O texto diz muito sobre a nascente voca-
ção intervencionista norte-americana: "O s Estados Unidos, nas circunstâncias
especiais da crise atual, vêem com grande inquietação que uma parte destes
te1Titórios possa passar para as mãos de uma potência estrangeira ... A sua pró-
pria segurança obriga-os a proceder à ocupação temporária destes territórios ...
(que) permanecerão nas nossas mãos com vistas a futuras negociações." 2 Em
1818, o general André Jackson ocupou definitivamente a Flórida e, no ano
seguinte, a Espanha aceitou vender ao novo e ávido Estado um território quase
tão vasto como a Inglaterra, pela bagatela de 5 milhões de dólares ...
Mas a cobiça dos Estados Unidos não se limitou apenas à Flórida. Luis de
Onis, à época embaixador espanhol, alertava seu governo para as ambições
norte-americanas. Em 1812 - durante a segunda guerra entre a União e a
Grã-Bretanha - alertava para as verdadeiras pretensões da diplomacia nor-
te-americana: "Este Governo propôs-se nem mais nem menos do que fixar as
suas fronteiras a partir da embocadura do Rio Bravo ... em linha reta até ao
Padfico, incluindo, pois, as províncias do Texas, Nuevo Santander, Coahuila
e uma parte de Nueva Viscaya e Sonora ... Isso pode parecer delirante, mas é
fato que o proj eto existe e que eles fizeram um mapa que inclui Cuba como
parte integrante desta República." 1
Cuba, já então na mira dos Estados Unidos ...
A Espanha de Fernando Vll - reinvestido no trono depois do episódio
napoleõnico - , apoiado por França, Rússia, Prússia e Áustria, tinha sonhado
e tentado conquistar os seus antigos territórios americanos. Mas os interesses
das potências imperialistas divergiam. A Inglaterra, que fora a primeira a se
beneficiar com a perda das colônias americanas da Espanha, não estava dis-
posta a permitir que o poder espanhol regressasse à força às suas antigas pos-
sessões.
296 O UVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Éassim que, por volta da segunda década do século XIX, quando a monar·
quia espanhola pretendeu recomeçar a guerra para reconquistar os antigos
territórios, deparou com a oposição de Sua Majestade Sereníssima, que ten-
tou uma espécie de acordo com os Estados Unidos. O ministro britânico,
George Canning, convidou os norte-americanos a abraçarem a mesma causa
e a oporem-se à pretensão espanhola.
É então que o ex-presidente Jefferson responde ao presidente Monroe,
que o consultava sobre a atitude a adotar com as potências européias: ''A
nossa atitude fundamental deve ser não nos imiscuim1os nos imbróglios euro·
peus ... (e) não aceitar que a Europa intervenha nos assuntos americanos ... A
Grã-Bretanha é a nação que mais nos pode prejudicar; tendo-a do nosso lado,
não receamos o mundo inteiro... "
Mais tarde, o ex-presidente explicava melhor o seu pensamento: "Deve·
mos colocar-nos a seguinte questão: desejamos adquirir para a nossa Confe·
deração algumas províncias hispano-americanas? ... Confesso sinceramente que
sempre fui de opinião que Cuba seria a aquisição mais interessante que pode·
ríamos fazer para juntar ao conjunto dos nossos Estados ... O domínio desta
ilha e da Flórida nos daria o controle do Golfo do México e dos países do
istmo ..."1
A Flórida caiu nas mãos dos americanos em 1819. Cuba, a obsessão da
diplomacia norte-americana, foi reduzida à situação de protetorado em 1898.

Algumas semanas mais tarde, o presidente Monroe, na sua mensagem


anual à Nação, iria fixar as diretivas que a diplomacia dos Estados Unidos
devia adotar frente à cobiça manifestada pelas potências européias em rela·
ção às nações hispano·americanas. Tratava-se daquilo que se apelidou poste·
riormente de "doutrina Monroe". Retomando um certo número de idéias já
enunciadas por Washington e Hamilton, Monroe anunciou que os Estados
Unidos não se imiscuiriam nunca nos assuntos europeus e que adotariam uma
atitude de estrita neutralidade. Por outro lado, a União garantiria a indepen·
dência dos países hispano-americanos, opondo-se a que a Espanha recon•
quistasse suas antigas colônias no continente e a qualquer tentativa nesse
sentido por parte de qualquer outra potência européia.
Na sua mensagem anual de 2 de dezembro de 1823, o presidente Monroe
informou os norte-americanos sobre as conversações que tivera com os repre·
sentantes da Rússia e da Grã-Bretanha. Estes foram advertidos de que os Es·
tados Unidos consideravam que as nações latino-americanas eram livres e
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 297

independentes, e que por conseguinte, elas "não podiam ser sujeitas a uma
futura colonização por nenhuma potência européia ... Nós consideraríamos
perigosa para a nossa paz e segurança qualquer tentativa de ocupar uma par-
cela deste hemisfério". 5
Por outro lado, Monroe, reafirmando a neutralidade norte-americana nos
assuntos europeus, entrincheirou-se na política isolacionista que iria caracte-
rizar o relacionamento dos Estados Unidos com a Europa: "Nas guerras entre
as potências européias e nos assuntos da sua alçada, nós nunca tomamos par-
tido ... A nossa política face à Europa - adotada no início das guerras que a
agitaram recentemente - permanece inalterável: não interferir nos seus as-
suntos internos e considerar os governos de fato como legítimos."6
Embora a "doutrina Monroe" tenha dissuadido as potências européias dos
seus sonhos de reconquista, não pôde impedir ingerência e intervenção diver-
sas vezes: a Inglaterra desempenhou um papel importante em La Plata e em
1828 conseguiu criar um Estado-tampão entre o Brasil e a Argentina, sepa-
rando as Províncias Unidas, a Margem Oriental e o Uruguai.
As ameaças contidas na "doutrina" permaneceram também letra-morta
quando da invasão inglesa das Malvinas em 1833 e da intervenção francesa
emSan Juan de Ulna, no México, em 1838. O mesmo aconteceu quando se
deu a agressão anglo-francesa à Argentina de Rosas e ao Uruguai de Oribe e
quando, em 1837, o porto de Buenos Aires ficou sujeito ao bloqueio da Mari-
nha francesa; da mesma forma quando franceses e britânicos organizaram, em
1845, uma expedição militar no rio Paraná, fechado à navegação estrangeira
por sucessivos governos argentinos; o mesmo silêncio quando a frota espa-
nhola bombardeou Valparaíso e os portos peruanos em 1866, e quando da
cessão da ilha de São Bartolomeu à França pela Suécia, em 1876. A "doutri-
na" também não impediu a invasão do México em 1861 pelas tropas franco-
anglo-espanholas e a tentativa de criação de um "império latino", com
Maximiliano da Áustria.
Por outro lado, nos textos surgidos durante a década de 1840, começa a
manifestar-se a idéia justificadora do expansionismo americano, que os publi-
citários da época - escritores e parlamentares - deram o nome de Destino
Manifesco . O destino teria concedido - idéia próxima da noção de
predestinação, tão cara ao protestantismo presbiteriano - à nação america-
na uma missão civilizadora, fazendo desta, além disso, o anjo da guarda da
liberdade e da democracia, ao outorgar-lhe vastos territórios para conquistar
e uma vocação de domínio sobre todo o Novo Mundo. É claro que os paladi-
298 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

nos do Destino Manifesto nada diziam sobre a sorte reservada aos milhares de
negros que viviam no território da União, para quem o destino evidente se
manifestava precisamente sob a forma de uma escravidão descarada.
Desde o infcio da independência das nações hispano-americanas, os Esta·
dos Unidos e a Grã-Bretanha não viram com bons olhos as tentativas de uni·
ficação de Bolívar. As duas nações anglo-saxônicas preferiam um continente
dividido, separado por conflitos e fronteiras, em vez de um país único e pode.
rosa que podia tomar-se num concorrente temível.
Bolfvar, em 1826, convocou o Primeiro Congresso Pan-Americano no Pa-
namá e colocou na ordem do dia a questão da libertação de Cuba e de Porto
Rico, ainda nas mãos de Espanha. Mas os esforços conjugados dos britânicos
e dos norte-americanos conseguiram boicotá-lo, e o Congresso foi um fiasco.
A Inglaterra conseguiu que os delegados argentinos e brasileiros não estives·
sem presentes. E, dos delegados dos Estados Unidos, um morreu durante a
viagem, o outro, munido das instruções redigidas pelo secretário de Estado
Henry Clay e do presidente John Quincy Adams, tinha de opor-se à guerra,
pregada por Bolívar, pela libertação das últimas colônias espanholas na Amé·
rica.
As instruções de Adams e de Clay tendiam no sentido da manutenção do
status quo. Em relação a Cuba, as diretivas para os delegados norte·america·
nos diziam: ''Nenhuma potência, nem mesmo a Espanha ... tem um interesse
tão grande no futuro desta ilha quanto os Estados Unidos ... Não desejamos
qualquer mudança em relação à sua posse ou à sua situação política ... Não
veremos com indiferença a transferência para outra potência européia que
não seja a Espanha. Também não queremos que ela seja cedida ou anexada a
um novo Estado americano." 7
Os Estados Unidos aplicavam muito escrupulosamente a idéia contida na
mensagem de Monroe: "a América para os americanos". Simplesmente eles
interpretaram-na de fato como se tivessem ouvido: "a América para os norte•
americanos". A história da espoliação do México é, nesta matéria, dramatica·
mente instrutiva.

O desmembramento do México

. O Texas - um território maior do que a França - sempre havia perten•


c1do, desde a chegada dos conquistadores, à coroa espanhola, e depois ao
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMtRICA LATINA 299

México. As autoridades coloniais mantinham um controle relativo, graças à


ação combinada das guarnições militares e das missões católicas: eram os
Presidias.
A partir do século XVIII, farru1ias espanholas tinham se instalado no Texas.
Mas, por volta de 1817, um processo de infiltração - "imigração clandesti-
na", diríamos hoje - começou a aparecer: norte-americanos, alemães, polo-
neses, até mesmo oficiais e soldados do exército de Napoleão foram expulsos
pelas autoridades depois de confrontos com a população espanhola católica.
O verdadeiro problema começou quando 300 famílias anglo-saxônicas
foram autorizadas pelo Congresso mexicano a fixar-se em 30 mil hectares de
terra cedidos gratuitamente. Essas famílias reintroduziram a escravatura -
que fora abolida no México - e o governo mexicano aceitou abrir uma exce-
ção e autorizou a prática por parte dos recém-chegados.
Em dezembro de 1826, um aventureiro - Hayden Edwards - procla-
mou a "República Livre de Fredonia", rapidamente aniquilada pelo exército
mexicano. Uma outra tentativa separatista aconteceu no ano seguinte. Signi-
ficativamente, começaram a aparecer, em diversos estados da União, publica-
ções denunciando o México como sendo culpado de se ter "apoderado" do
Texas.
Em 1835, no momento em que no México foi aprovada uma nova Cons-
tituição - que vai estar na origem de um conflito interno entre federalistas e
centralistas - o colono americano Stephan Austin proclamou a independên-
cia do Texas. Os Estados Unidos aproveitaram então a ocasião, que favorecia
suas pretensões expansionistas. Enviaram de Nova Orleans navios com armas
e munições.
O México entendeu, por seu lado, que devia fazer respeitar a sua sobera-
nia e enviou o célebre general Santa Anna. Depois de alguns êxitos do exér-
cito mexicano em San Patrício, Encinal dei Perdido e EI Alamo - que os
jornais apresentaram à opinião pública norte-americana como a derrota de
uma causa sublime -, Santa Anna foi vencido em 21 de abril de 1836, em
San Jacinto. Feito prisioneiro, viu-se forçado a assinar um acordo leonino
("Convenio Publico") em Puerto Velasco, em 14 de maio de 1836, em que
ficou acordado que os mexicanos se retirariam do Texas para a margem sul de
Rio Bravo. O acordo previa que todas "as propriedades particulares, incluin-
do cavalos e escravos negros, nas mãos do exército mexicano ou que tenham
estado do lado deste exército ~erão entregues ao comando das forças texanas".8
As tropas texanas, mais bem equipedas, tinham imposto um acordo que,
300 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

doze anos mais tarde, iria ter um papel imponante no desmembramento de


mais de metade dos territórios mexicanos. O apoio norte-americano aos aven·
tureiros texanos será confirmado nos anos 1840 pelo presidente John Tyler,
que declarou, a propósito da separação do Texas do México: "A simples possi·
bitidade de que a escravatura possa ser abolida nos territórios vizinhos deve
ser motivo suficiente para os anexar. "9
Em 1845, o Texas entra na União como estado escravagista. A campanha
eleitoral conduzida pelo sucessor de Tyler, James Polk - presidente dos Esta·
dos Unidos de 1846 a 1850 - tinha sido: ·~exação do Texas. 542/40 11 ou a
morte." (Ele fazia alusão à fronteira americana e aos territórios retirados ao
México.)

O anschluss do Novo México e da Califórnia

Uma vez engolido o Texas, o anschluss seguinte foi realizado em duas OU·
tras grandes províncias mexicanas: o Novo México e a Califórnia.
O Texas - ex-província mexicana - começou a reclamar ao Novo Mé·
xico certos territórios que sempre tinham penencido ao México, sendo apoi·
ado pelo governo dos Estados Unidos na sua pretensão. Depois, uma vez o
Texas anexado pela União (1845), foi o próprio governo norte-americano que
avançou para a guerra de conquista.
A Califórnia - cujo subsolo rico em ouro seria descoberto dentro de
pouco tempo - tinha uma população reduzida (apenas cerca de mil norte·
americanos) e sofreu várias afrontas: urna "expedição científica" armada, en·
viada pelo presidente Polk, e o desembarque, em janeiro de 1843, de tropas
sob o comando de um oficial da Marinha que ocupou "por engano" o porto
mexicano de Monterrey, na Califórnia. Perante a firmeza das autoridades me·
xicanas, foi obrigado a embarcar novamente.
O pretexto procurado pelos Estados Unidos foi fornecido por uma escara·
muça entre duas patrulhas fronteiriças dos dois exércícos em 24 de abril de
1846, em Carricitos, território mexicano. Alguns dias mais tarde, no Con·
gresso, Polk anunciou que o México tinha invadido o território dos Estados
Unidos e derramado sangue norte-americano.
A guerra foi declarada de imediato e somente algumas vozes eminentes se
elevaram para condenar o planejado anschluss. Entre elas, a de Abraham
Lincoln, representante de Illinois: "Creio que o Presidente está profunda·
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMtRICA LATINA 301

mente convencido de que se encontra numa posição errada, que ele sabe que
o sangue desta guerra - tal como o de Abel - o acusa." 1º
Em 4 de julho, quando as hostilidades já tinham começado, um bando de
aventureiros norte-americanos proclamava oportunamente na Califórnia a
República do Urso, que teve, contudo, vida curta. Os invasores desembarca-
ram em Vera Cruz e, após duros combates, ocuparam a cidade do México em
setembro de 1847. Urna longa lista de batalhas marcou esta guerra de con-
quista: Palo Alto, Monterrey, Angostura, Vera Cruz, Cerro Gordo, Padierna,
Chapultepec.
O povo da cidade de México manifestou-se então contra o ocupante.
Ocorreram motins, e as tropas norte-americanas tiveram de abandonar a ci-
dade. Tanto mais que houve as deserções entre os invasores: dezenas de irlan-
deses do batalhão Saint Patrick recusaram-se a continuar a guerra contra um
povo católico. Tratava-se de pobres e miseráveis que fugiam da fome no seu
país de origem e que tinham sido alistados para combater os "bárbaros mexi-
canos". Trinta e dois foram enforcados por deserção na capital asteca.
As hostilidades duraram até 1848, data em que o México teve de assinar
o Tratado de Guadalupe Hidalgo. Em dez anos o México fora amputado de
metade do seu território. Nos anos que se seguiram, teve início a exploração
de ouro na Califórnia e posteriom1ente de petróleo e gás no Texas, que foi
fundamental para o desenvolvimento dos Estados Unidos.
Mas uma das conseqüências mais importantes será talvez o secular res-
sentimento e rancor dos mexicanos face a esta exploração, que irá marcar, de
forma indelével, as relações entre os dois países. Por outro lado, o sentimento
antiamericano, latente nos latino-americanos, nasceu destas terras mexica-
nas usurpadas. Um presidente mexicano gostava de usar um velho ditado
impregnado de fatalismo quando queria explicar a situação geográfica parti-
cular do seu país, que era fonte de desgraça para o seu povo: "Tão longe de
Deus e tão perto dos Estados Unidos."
As preocupações dos Estados Unidos durante grande parte do século XIX
foram orientadas para a resolução dos problemas internos - ocupação eco-
lonização do Oeste, controvérsia sobre a escravatura, destruição dos enclaves
pré-capitalistas pela Guerra da Secessão, desenvolvimento da agricultura. O
país absteve-se de participar em conflitos diretos com as grandes potências.
Isso é verdadeiro nas suas relações com a Europa. Mas no que diz respeito
aos países da América Latina, os Estados Unidos praticaram, desde o início,
uma política intervencionista. Essas intervenções e ingerências não se limita-
302 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

ram aos pafsee vizinhos, chegando também, através de intervenções militares


ou o envio de expedições armadas, à longínqua América do Sul. A expedição
naval ao Paraguai em 1858-59 é disso exemplo.

A expedição ao Paraguai

Em 1851, o governo dos Estados Unidos tinha designado como cônsul em


Assunção Edward A. Hopkins - da United States and Paraguay Navigation
Company-, um dos proprietários de uma empresa de navegação domiciliada
em Rhode Island. Hopkins, velho marinheiro e aventureiro, conhecia o
Paraguai, onde tinha vivido depois de 1845. Munido das cartas que o identi·
ficavam como representante oficial do governo dos Estados Unidos, tinha-se
infiltrado nos corredores do poder e conhecia o presidente do Paraguai, Carlos
Antonio Lopez.11
Uma série de intrigas, em que se misturavam ofertas de mediação norte·
americana para enganar seus vizinhos num litígio fronteiriço e os assuntos
privados e os interesses dos Estados Unidos, que prentendiam aproveitar a via
fluvial do Paraná, tiveram como resultado a não ratificação pelo Paraguai, em
1854, do Tratado de Comércio e de Navegação. A Paraguay Navigation
Company foi punida em 1854 por ter infringido a legislação paraguaia e noti·
ficada da proibição de operar no país. Hopkins, por sua vez, foi expulso por
desrespeito, após um confuso enfrentamento com soldados paraguaios.
De amigo do Paraguai e do presidente Lopez, ele se transforma em seu
inimigo feroz, movendo nos círculos oficiais e na roda do presidente Pierce, e
depois do presidente Buchanan, uma campanha que encorajava a interven·
ção militar norte-americana "neste país de berberes asiáticos", esta
"excrescência da comunidade internacional. .. menos civilizado do que o
Sultanato de Mascate". Ele afirmava nas suas diatribes que os sul-americanos
eram bárbaros que deviam "receber um tratamento adequado. Falar com eles
é pura perda de tempo; é preciso falar-lhes com os nossos canhões".u
Foi então que entrou oportunamente em cena o Water Witch, navio da
Marinha norte-americana que, ultrapassando a autorização que lhe tinha sido
concedida, atravessou a fronteira paraguaia e chegou ao porto brasileiro de
Corumbá. As autorizações de passagem pacífica foram suspensas, e um decre•
to presidencial proibiu a navegação dos barcos de guerra estrangeiros. Em 1v
de fevereiro de 1855, o Water Wicch, desrespeitando o decreto paraguaio, ten·
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 303

tou forçar uma barreira no Paraná. O oficial da guarnição paraguaia do Forte


ltapiru que controlava a passagem dos navios ordenou-lhe que retrocedesse;
depois disparou dois tiros de advertência. Perante a recusa em obedecer, um
tiro de canhão destruiu o leme, matando o timoneiro do barco americano. O
Water Witch foi então conduzido ao longo das águas do rio e obrigado a reti·
rar-se.
Começou então uma grande campanha de imprensa e de intirrúdação para
obrigar o Paraguai a apresentar desculpas. Finalmente, em maio de 1857, o
Congresso dos Estados Unidos aprovou o envio de uma "pequena armada",
composta de vinte navios, que partiu em outubro de 1857. Segundo Pablo
Max Ynfrans, o brinde ao sucesso do empreendimento foi saudado por um
dos oficiais com um arrebatamento transbordante de exuberância geopolítica:
"Ergo a minha taça ... para que as nossas dificuldades com o Paraguai terrrú·
nem e nós acabemos por anexar toda a bacia do rio de la Plata ... "13
Este desejo, felizmente, não será satisfeito. Mas a "pequena armada" che·
gou ao Paraguai no início de 1859 e o presidente Carlos Lopez teve de render-
se. O Paraguai apresentou desculpas - culpado de ter feito respeitar a sua
soberania no seu próprio território-, indenizou a família do marinheiro mor·
to durante o confronto de Itapiru e foi obrigado a aceitar, sob a ameaça da
força, o tratado proposto pelos Estados Unidos. A United States and Paraguay
Navigation Company sustentava, por seu lado, um longo processo contra o
governo paraguaio que mais tarde foi declarado improcedente.

Os piratas

Em meados do século XIX, o conflito de interesses que opunha a Grã·


Bretanha aos Estados Unidos pelo controle das Antilhas agravou-se. Os dois
países foram levados a assinar o tratado de Clayton-Bulwer, pelo qual as par·
tes declaravam trabalhar para a construção de um canal interoceânico em
território nicaragüense, sem que tenham disso informado a Nicarágua. Reco·
nheciam prerrogativas em relação à sua futura utilização e afirmavam que não
tinham qualquer intenção de construir fortificações nem "de ocupar a Nica-
rágua ... ou exercer domínio sobre qualquer território da América Central... "1•
Como muitos países da região, nos anos 50 do século XIX a Nicarágua
vivia mergulhada em guerras civis permanentes. Em 1854, um conflito entre
liberais e conservadores degenerou em conflito internacional: os liberais cha·
304 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

maram em seu auxfüo mercenários americanos. Tinha chegado a hora dos


piratas. Entre eles, William Walker, feroz partidário da escravatura e de sua
implantação na América Central, que tentou apoderar-se da Nicarágua, procla-
mando-se presidente em 1856. Apesar da neutralidade oficial anunciada pe-
los Estados Unidos, um emissário de Walker foi recebido pelo presidente
Franklin Pierce, mas os países da América Central acabaram com a aventura. 15
Por seu lado, a Grã-Bretanha procurava resistir ao poderio americano na
região empenhando-se num "Estado" inventado por ela, o "Reino de
Mosquitia". Com fronteiras indefinidas, povoado pelos índios misquitos, num
lugar vago, o "reino" devia situar-se em território nicaragüense. Tratava-se de
uma ficção, e todos sabiam que era uma farsa. A Grã-Bretanha, com este
reino-fantasma, pretendia não perder para os Estados Unidos os seus direitos
sobre o futuro canal interoceânico.
O fim do século marcou, no entanto, o crescimento de poderio dos Esta·
dos Unidos no mundo. Envolvidos na sua Guerra de Secessão nos anos 1860,
eles exigiram depois, com muita firmeza, a partida das tropas francesas do
México. Tinham o propósito de permanecer os únicos senhores da América
Central e de conseguir fazer das Antilhas um novo Mare Nostrum.
É costume datar do final do século XIX o desejo de expansão norte-ame-
ricana, que se traduziria numa política externa ativa. Ora, este desejo de ex·
pansão, como vimos, já existia há muito, à custa das nações latino-america·
nas. O que é verdade é que no final do século XIX os Estados Unidos
intervieram no cenário internacional, substituindo na América Latina o pa·
pel hegemônico desempenhado até então pelos ingleses. Os Estados Unidos
tinham se tomado uma grande potência industrial e chegado a uma fase im·
perialista, quando iria disputar com as outras potências a sua parte nos inte-
resses mundiais.
Alguns autores assinalam o papel desempenhado na nova política externa
de sucessivos governos da época por Alfred Mahan, autor de l.'. influence da la
puissance maritime dans l'histoire (A influência do domínio marítimo na Histó·
ria) . Nessa obra Mahan recorda a superioridade dos impérios marítimos sobre
as potências terrestres ao longo da História. Nesta perspectiva, a criação de
uma poderosa Marinha de Guerra, associada à posse de bases e de vias maríti·
mas e fluviais, revelava-se indispensável.
Antecipando esta teoria, que iria estar em moda na virada do século, o
presidente Ulysses Grant apresentava, em maio de 1870, um projeto ao Sena·
do para a compra de São Domingos, considerado um ponto estratégico no
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 305

Mare Nostrum americano. O projeto deixa transparecer um interesse antigo e


que será uma obsessão permanente dos governos norte-americanos: pôr as
mãos em Cuba.
No seu projeto, Grant afirmava que São Domingos era uma nação débil,
mas que o seu território era rico, "os mais ricos que existem na face da Terra,
capazes de acolher com fartura 10 milhões de seres humanos ... A aquisição de
São Domingos nos convém pela sua posição ... nos daria o controle de todas as
ilhas de que falei ... A aquisição de São Domingos ... é uma medida de seguran-
ça nacional ... trata-se de assegurar o controle do tráfego comercial de Darien
(Panamá) e de resolver a infeliz situação em que se encontra Cuba ... "16
Contra os projetos de anexação de São Domingos e de Cuba, erguia-se
em Nova York, em 21 de março de 1889, das "entranhas do monstro", a pena
do apóstolo da independência cubana, José Martí. Martí dirigia um comentá·
rio a The Manufacturer em que censurava os cubanos sem dignidade que ape·
lavam à anexação pura e simples da ilha pelos Estados Unidos: ''Nenhum
cubano digno pode querer ver o seu país anexado por outro... Aqueles que
fizeram a guerra e que estiveram exilados ... Aqueles que constroem com o seu
suor... uma pátria, os engenheiros, professores, jornalistas, advogados e poe·
tas ... não desejam a anexação pelos Estados Unidos e desconfiam dos elemen·
tos funestos que, tal como vermes no sangue, iniciaram a sua obra de des·
truição ...".17
Os Estados Unidos, imbuídos de um sentimento nacionalista muito forte
-era a época do jingoísmo18 - , foram ao ponto de encarar uma intervenção
contra o longínquo Chile. Com efeito, em 1891 ocorreu o incidente do
Baltimore em Valparaíso. 19
O Baltimore era um navio de guerra americano de 4,6 toneladas que aca·
bara de ser construído na Inglaterra. Tinha a reputação de ser "o barco mais
rápido do mundo". Encontrava-se em frente às costas chilenas desde abril de
1891 - durante a guerra civil que tinha eclodido contra o presidente
Balmaceda -, tendo por missão proteger os cidadãos norte-americanos. Em
16 de outubro de 1891, ocorreu uma rixa de bêbados no bairro portuário de
Valparafso, entre marinheiros americanos e trabalhadores do porto. Em con·
seqüência da briga generalizada, vários marinheiros foram feridos com faca·
das. Houve dois norte-americanos mortos.
Ora, os Estados Unidos transformaram uma rixa, no final de contas ba·
nal, num conflito internacional, culpando o novo governo chileno - que,
apoiado por Londres, acabava de vencer a guerra civil contra o presidente
O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Balmaceda - , e adotaram uma atitude arrogante que o governo chileno


considerou inaceitável. Os preparativos bélicos do governo norte-amcrica·
no de Benjamin Harrison estavam muito avançados. Gonzalo Via! conta
que o pai do "poder naval" em pessoa, Alfrcd Mahan, foi chamado a Wa-
shington para consultas. 20
O governo chileno se curvou perante a ameaça de utilização da força e
aceitou apresentar desculpas aos Estados Unidos, indenizar as famílias dos
marinheiros e se retratar pelas palavras pronunciadas pelo ministro das Rela-
ções Exteriores, Manuel António Matta, consideradas injuriosas pelos norte·
americanos. Na realidade, o conflito de interesses entre os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha usava outros países como intermediários.
Assim, três anos depois, em 1895, desencadeou-se um conflito fronteiriço
entre a Venezuela e o governo colonial de Georgetown, na Guiana britânica.
Face aos preparativos bélicos britânicos, os Estados Unidos advertiram a Grã-
Bretanha de que não tolerariam uma intervenção. E o secretário de Estado do
presidente Cleveland instruiu seu embaixador em Londres, afirmando que os
direitos dos Estados Unidos advinham dos "seus recursos infinitos".
No final do século, as intervenções americanas se multiplicaram: Havaf,
Pono Rico, Filipinas, Cuba, Guam, Samoa, os ponos da China e Panamá.
Consternado, Mark Twain escreveu então: "Pintem-se de negro as listras bran-
cas e acrescentem-se as tíbias e a caveira onde estão colocadas as estrelas."

Cuba sob a bota norte-americana

Depois de 1868, os patriotas cubanos pegaram em armas contra o po-


der colonial espanhol. Vencidos após dez anos de luta, recomeçaram a
guerra em 1895. Tinham conseguido êxitos. A vitória e a independência
estavam ao seu alcance. É então que os Estados Unidos se apressam a
intervir. Os investimentos americanos nas plantações de açúcar e nas mi-
nas da ilha eram importantes, e os dirigentes dos Estados Unidos não faziam
cerimônia em dizer publicamente que, para eles, o açúcar cubano era de
importância vital, como o trigo e o algodão da Índia e do Egito eram para
a Grã-Bretanha.
Desta vez, o pretexto encontrado foi a explosão do couraçado Maine, em
Havana, que provocou a morte de mais de 250 tripulantes. Nada provava a
participação da Espanha - soube-se mais tarde que se tratara de uma expio-
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMflllCA LATINA 307

silo acidental - , mas o presidente MacKinley, impelido pela histeria jingofsta,


declarou guerra à Espanha cm 21 de abril de 1898.
O conflito teve curta duração. A frota espanhola foi aniquilada em Santi-
ago de Cuba e as tropas americanas desembarcaram em Cuba. Entre os Rough
Ridcrs, voluntários da cavalaria que ocuparam a ilha, encontrava-se Theodore
Roosevelt, futuro presidente dos Estados Unidos, que iria se tomar o cam-
peão da política intervencionista com o Big Scick.
Pelo Tratado de Paris (10 de dezembro), a Espanha cedia aos Estados
Unidos Porto Rico e as Filipinas.
A guerra entre a Espanha e os Estados Unidos marcou a entrada em cena
deste país como um dos principais atores no cenário internacional. Em
contrapartida, para a Espanha este foi o último ato de um progressivo declínio
internacional, que a levaria a fechar-se em si mesma. Cuba, que se tomara
teoricamente independente, ficou sujeita à autoridade do governador militar
americano Leonard Wood, comandante das tropas de ocupação, que perma-
necerão lá durante três anos.
Foi o próptio Wood que convocou uma Assembléia Constituinte. Uma
emenda, redigida pelo senador do Connecticut Orville Platt, foi aprovada,
apesar da oposição de vários constituintes, que consideraram que se tratava
de uma ingerência inaceitável que violava a soberania e a independência de
Cuba. Em Havana, eclodiram manifestações contra este diktat e o governador
Wood lançou um ultimato: "Os Estados Unidos continuarão a ocupar a ilha
até ser formado um governo cubano, cuja Constituição inclua, como parte
integrante, todas as disposições da Emenda Platt." 21
A Emenda Platt era uma demonstração flagrante do estado de vassalagem
a que Cuba fora reduzida. Em 23 de maio de 1903, foi incluída na Constitui-
ção. Somente em 1934 serão modificadas certas cláusulas. Eis algumas preci-
osidades: artigo 1: "O Governo de Cuba não assinará qualquer acordo que
permita a uma potência estrangeira obter, para fins navais ou militares, uma
parte da ilha ... "
O artigo III era particularmente humilhante: "O Governo de Cuba aceita
que os Estados Unidos possam exercer o direito de intervir para preservar a
independência cubana (sic !) e a manutenção de um governo adequado à pro-
teção da vida, da propriedade ..."
O artigo VII dava o direito de instalar bases militares no território cuba-
no. Ouantanamo é, hoje, uma prova viva de um tempo pretensamente termi·
nado.
l08 O UVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Não se enganava o governador Wood quando, numa cana dirigida a


Roosevelt em 1903, escrevia: "Pouca, na verdade, ou n enhuma independên·
eia deixou a Emenda Platt a Cuba. Os cubanos mais sensíveis compreendem
isso e pensam que a única coisa positiva que lhes resta faze r é pedir a anexa·
ção."22 lnvocando a emenda, as tropas americanas desembarcarão várias ve·
zes na ilha: em 1906, 1912, 1917. Só em 1934 é que Franklin D. Roosevelt
aceitará retirar certas cláusulas, particularmente constrangedoras.

A doutrina Drago e os "corolários Rooswelt" da doutrina Monroe

Em dezembro de 1902, havia, ao largo da costa venezuelana, navios de


guerra britânicos, alemães e italianos que afundaram alguns navios e bloque·
aram os portos . Exigiam o pagamento das indenizações devidas aos cidadãos
europeus. "Teddy" Roosevelt, en ão presidente dos Estados Unidos, aprovou
a ação naval das potências européias. Mas os países latino-americanos fica·
ram indignados com a agressão.
O ministro das Relações Exteriores argentino, Luís Maria Drago, enviou
uma nota ao Depanamemo de Estado - que mais tarde fez jurisprudência e
foi adotada pela Conferência de Haia de 1907 -em que pedia a proibição do
recurso à força corno meio de cobrar as dívidas contraídas por qualquer Esta·
do. Tinha nascido a "doutrina Drago".
Mas Roosevelt não queria deixar as potências européias policiar a sua
zona de influência. Esse direito de polícia ele reservava exclusivamente para
os Estados Unidos. Em 6 de dezembro de 1904, na sua mensagem anual, o
presidente nane-americano determinava: "Se uma nação demonstra que sabe
agir com razoável eficácia e de forma decente ... se mantém a ordem interna e
paga as suas dividas, não será necessária a intervenção dos Estados Unidos ...
Os erros ... ou a impotência ... podem obrigar os Estados Unidos ... a exercer
um papel de polícia internacional..." 2l
Um ano depois, Roosevelt - que tinha sido chefe da polícia de Nova
York - advertia, na sua mensagem anual às nações latino-americanas, que
tinha a intenção de não aplicar a udoutrina Monroe", ou seja, de não impedir
as ações punitivas das potências estrangeiras no continente: "Se uma repúbli·
ca do Sul ... comete uma falta contra qualquer nação ... A doutrina Monroe
não nos obrigará a intervir para impedir a correção da falta, salvo para impe•
dir que a correção se transforme em ocupação do território ... "24
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMéRICA LATINA 309

Os dois discursos de Roosevelt irão justificar a política imperialista ameri-


cana, que se traduzirá por intervenções no Panamá, Cuba, Nicarágua, Haiti e
São Domingos. A política do Big Stíck - "falar suavemente e carregar um
porrete" - iria ser a política oficial do governo americano durante as primei-
ras décadas deste século.

Asecessão do Panamá

Desde o tempo da conquista espanhola, inúmeras pessoas tinham se em-


penhado em conceber uma passagem interoceânica na América Central. Ti-
nham sido feitos diversos projetos e prospecções para encontrar o local mais
adequado. Foram feitas "sondagens" nos territórios da Nicarágua e do Pana-
má. Será este último país que, em conseqüência de uma secessão organizada e
fomentada pela potência imperial, se abrigará o cobiçado canal.
O Panamá tinha se declarado independente em 1821 e proclamou volun-
tariamente sua ligação com a Colômbia. Dez anos depois, um movimento
separatista proclamava a sua autonomia, declarando, ao mesmo tempo, fazer
parte da Confederação Colombiana. Em agosto de 1831, o exército obrigou o
istmo a regressar à Confederação.
Em 1840 e 1855 verificaram-se outras tentativas separatistas. Na primei-
ra, organizada pelo general Tomas Herrera, foi proclamado um "Estado Libre
dei Istmo". Reconduzido ao bom caminho pelo exército da confederação, o
Panamá conhecerá uma nova tentativa separatista em 1855, mas declarando
igualmente fazer parte da "Nueva Granada" (Colômbia"). Em 1858, foi pro-
mulgada a nova Constituição da "Confederacion Granadina", da qual o istmo
continuava a fazer parte.
Após a anexação da Califórnia, a província colombiana do Panamá tor-
nou-se para os Estados Unidos um vital ponto de comunicação Leste-Oeste.
Apartir de 1851, uma sociedade americana, a Panama Rail Road Company,
tinha conseguido pôr em funcionamento a primeira linha, e em 1854 uma
locomotiva atravessou o istmo. A ferrovia tinha sido construída numa zona
particularmente insalubre e propícia 1'is doenças tropicais. Mais de 6 mil pes-
soas perderam a vida em conseqüência da malária e de outras doenças: coolies
chineses, antilhanos e um número considerável de irlandeses, alemães e aus-
tríacos.
A corrida ao ouro californiano forçou milhares de homens a atravessar o
310 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

istmo - passagem obrigatória quando se vinha do Leste - , e os Estados


Unidos adquiriram o hábito deplorável de deslocar as suas tropas através do
Panamá sem pedir autorização à Colômbia. Diversos projetos de tratados fo.
ram apresentados pelas companhias americanos aos colombianos, mas estes
nunca foram aprovados pelo Congresso de Bogotá. O embaixador americano
Sullivan escrevia ao seu governo em 1869: "Se quereis obter os direitos sobre
o canal por uma via diversa de um tratado, as coisas podem ser mais fáceis no
Congresso colombiano com alguns fundos dos serviços secretos."25
Mas, apesar dos esforços norte-americanos, será Lucien Bonaparte Wyse
- neto de Lucien Bonaparte - que, entre 1878 e 1880, obterá, para os
franceses da Société Civile Internacional, "o privilégio exclusivo para a exe·
cução e exploração de um canal marítimo entre o Atlântico e o Pacífico,
através do seu território"26 • O presidente dos Estados Unidos, Rutherford Hayes,
fez ameaças e declarou que queria abrir um outro canal na Nicarágua. Ele
punha de sobreaviso a comunidade internacional ao reclamar "o direito de
exercer um protetorado exclusivo sobre o canal que os franceses projetavam
abrir no território colombiano". 27
Wyse convenceu Ferdinand de Lesseps - o construtor do canal do Suez
em 1869 - a encarregar-se dos trabalhos, financiados por um empréstimo
lançado pela Compagrúe Universelle du Canal lnter-Océanique. Mas, nos
anos seguintes, explodiu um grande escândalo financeiro que, somado a ai·
guns erros técnicos cometidos na abertura do canal, provocou a falência da
companhia em fevereiro de 1889.
Éentão que intervém um aventureiro francês, liquidante da companhia,
Philippe Bunau-Yarilla, que tenta vender aos Estados Unidos a concessão do
canal. Ao mesmo tempo, a Grã-Bretanha libertava estes últimos dos compro·
missas assumidos quando do tratado Clayton-Bulwer, o que lhes permitia re·
digir um projeto de tratado com a Colômbia (Tratado Herran-Clay), que ti·
nha de ser ratificado pelo Congresso de Bogotá. A maioria dos senadores
colombianos considerou o projeto um atentado à soberania da Colômbia e, a
12 de agosto de 1903, se recusou a ratificá-lo. Perante esta recusa, os Estados
Unidos provocaram então a secessão e a sublevação da província colombiana
do Panamá.
Um dia antes da declaração da independência, em 3 de novembro de
1903, o Departamento de Estado enviou um cabograma ao cônsul americano
no Panamá: ".lnfo~em o Departamento de Estado logo que a sublevação
aconteça ... Ainda nao, a sublevação deve acontecer durante a noite ... "l& A
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMéRICA LATINA 311

revolta foi proclamada, e foi constituída uma junta em Puerto Colon. Tropas
americanas desembarcaram de navios que estavam oportunamente no local e
que impediram as forças colombianas de abafar a rebelião. Em 6 de novem-
bro, os Estados Unidos reconheciam a "independência" do Panamá.
Philippe Bunau.Yarilla, cidadão francês que tinha tomado parte na rebe-
lião sem sair da suíte 1162 do Waldorf Astoria de Nova York, reconhecerá
mais tarde que a idéia de secessão fora discutida com o presidente Roosevelt. 29
Ele veio a ser nomeado pela junta, rapidamente, ministro plenipotenciário do
Panamá e assinou com o secretário de Estado Hay, em Washington, em 18 de
novembro- um dia antes dos emissários panamenhos-, um tratado leonino
que hipotecava para sempre a soberania do istmo.
Três anos mais tarde, Theodore Roosevelt recebia o prêmio Nobel da
Paz. Em 1936, Roosevelt (Franklin) deu alguns retoques no tratado. O co-
mandante da Guarda Nacional, coronel José Antonio Remon, conseguiu
obter de Eisenhower algumas alterações, em 1955. Mais tarde, Kennedy
aceitou que fosse içada a bandeira panamenha ao lado da bandeira america-
na, o que não impediu que em 1954 houvesse confrontos entre tropas ame·
ricanas e estudantes panamenhos, que causaram mais de 20 mortos e uma
centena de feridos.
O coronel Omar Torrijos negociará com Carter, em 1977, o fim da ocupa-
ção americana do canal e a recuperação da soberania deste pelo Panamá,
prevista, no Tratado Torrijos-Carter, para o ano 2000. Remon e Torrijos aca-
bam morrendo em dois misteriosos acidentes aéreos.

Intervencionismo nas Antilhas

A zona das Antilhas foi um lugar privilegiado das intervenções armadas


norte-americanas. Em 1901, a primeira intervenção do século aconteceu na
Nicarágua, e em 1903, como vimos, no Panamá. O canal abriu uma nova via
ao Destino Manifesto.
É em 1905 que, respondendo ao apelo de vários dirigentes da oligarquia
dominicana, o futuro prêmio Nobel "Teddy" Roosevelt, instalou, com o apoio
dos marines, coletores de impostos americanos nas alfândegas da República
Dominicana .. . A presença dos diligentes especialistas durou quatro anos. O
secretário de Estado, Elihu Root, deixou claro ao longo desses anos que as
intervenções teriam lugar "sempre que estivessem em risco os capitais norte·
O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

americanos".30 Um novo desembarque dos marines, em 1916, irá colocar São


Domingos sob a bota americana até 1924.
Na Nicarágua, o presidente José Santos Zelaya, do partido liberal, ocupava o
poder desde 1893. Tinha conseguido livrar-se dos ingleses na costa atlântica e
tentou atrair os japoneses para a construção de um canal interoceânico. Os Esta·
dos Unidos consideraram esta atitude uma afronta e armaram os conservadores,
que tinham se rebelado contra Zelaya e desembarcado em Bluefields. Zelaya re·
nunciou, assim como seu sucessor, José Madriz. A presidência vai assim para Adolfo
Diaz, um ex-empregado da companhia mineradora americana Fletcher.
Em 1912 eclodiu uma nova revolta encabeçada pelos liberais, e o presi·
dente Taft enviou 1,7 mil marines para proteger o presidente conservador
Adolfo Diaz. Eles permanecerão no país até 1925. Ao mesmo tempo, os Esta·
dos Unidos impunham à Nicarágua o Tratado Bryan-Chamorro (5 de agosto
de 1914), pelo qual obtinham o direito de estabelecer uma base naval no
Golfo Fonseca, bem como a cessão, por 99 anos, de várias ilhas e ilhotas.
El Salvador foi ocupado em 1921, e Honduras em 1924. A ingerência
americana chegou a tal ponto que a designação de um presidente hondurenho
se realizou a bordo do couraçado nane-americano Tacoma. Terá sido um pre·
cedente do futuro juramento prestado em 1989 no Panamá, numa base ame·
ricana, pelo "presidente" Endara?
Na Guatemala, a companhia United Fruit, de capital none-americano-
pertencente a Foster Dulles, secretário de Estado e irmão do chefe da ClA-
dominava a região desde o princípio do século. Verdadeiro Estado dentro do
Estado, tinha assinado um primeiro contrato em 1901 com o ditador
guatemalteco Estrada Cabrera, imortalizado por Miguel Angel Asturias em
"EI Sefior Presidente". No final da Primeira Grande Guerra, os Estados Uni·
dos tinham começado a afastar da América Latina a influência européia -
principalmente britânica, mas também alemã e francesa. Sobre esse período,
Fernando Henrique Cardoso e E. Faletto mostram que" ... a presença amerí·
cana ampliou-se rapidamente ... Os países da costa do Pacífico foram total·
mente incorporados à economia dos Estados Unidos, e os do Atlântico, como
o Brasil, o Uruguai e a Argentina, caíram sob a sua influência". 31
A partir do final dos anos 20, os capitais norte-americanos irão exercer
uma preponderância incontestável na região. A presença de capitais norte·
americanos tinha o seu corolário numa política imperialista que, como vimos,
se manifestou repetidas vezes ao longo desses anos. As recentes intervenções
no México foram um exemplo disso.
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 313

As intervenções em Vera Cruz e Tampico

Após a derrubada e o assassinato do presidente Francisco Madero em


1913 - com a participação do embaixador americano Henry Lane Wilson-,
ogeneral Huerta tomou o poder. Venustíano Carranza, ex-governador no tempo
de Porfirio Diaz, insurgiu-se então contra Huerta, que considerava um
usurpador. O presidente Taft recusou-se a reconhecer Huerta como chefe do
governo mexicano e concentrava tropas na fronteira desde 1912.
No meio do turbilhão da revolução mexicana, o general Victoriano Huena
procurou o apoio de investidores ingleses e conseguiu. Ao mesmo tempo, ten·
tou uma aproximação com a Alemanha e o Japão.
Entretanto, Wilson tinha sucedido a Taft e enviado navios de guerra para
acosta mexicana. Foi assim que, em 6 de abril de 1914, ocorreu um incidente
entre soldados mexicanos e marinheiros americanos que tinham desembarca-
do ilegalmente.
Foram feitas aos mexicanos exigências de reparação inaceitáveis, e, quando
expirou um ultimato, 50 navios de guerra com 23 mil homens surgiram em Tarnpico.
No dia 20 do mesmo mês deu-se o desembarque em Vera Cruz. Apesar de uma
resistência renhida, as tropas americanos conseguiram tomar a cidade e apoderar-
se de 8 milhões de dólares que se encontravam nos cofres das alfândegas. No
mesmo dia, o presidente Wilson dirigiu-se ao Congresso para pedir a sua aprova·
ção "para que as Forças Armadas dos Estados Unidos possam ser usadas (contra)
o general Huerta ... e obter dele o reconhecimento dos nossos direitos... "32
Cinco anos mais tarde, em 1919, Woodrow Wilson recebia, também ele, o
prêmio Nobel da Paz.
Quando, em 1924, o general Obregon designou o seu sucessor - Elias
Calles -, uma parte do exército não aceitou esta decisão e sublevou-se. Calles
exerceu uma repressão severa e para neutralizar esta rebelião contou com o
apoio das tropas americanas, bem como a dos cristeros, camponeses que se
tinham revoltado contra as medidas tomadas por Calles contra a Igreja e en·
frentado o exército durante três anos (1926-1929).

A intervenção no Haiti

Os investimentos norte-americanos no Haiti estavam calculados em 15


milhões de dólares. Além de interesses em açúcar, transportes e portos, os
314 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

investidores americanos dispunham de 50% das ações no Banco Nacional


haitiano.
Um dos homens de negócios mais imponantes era Roger Farham1. Vice·
presidente do Banco Nacional e da Railroad de Haiti, era também funcioná·
rio do National City Bank. A.ssunúu um papel principal no conflito que opôs
o governo de Davilmar Théodore - depoi.s o de V1lbrun Guil\aume Sam, em
1915 - aos banqueiros americanos e dirigiu a campanha que provocou a
intervenção militar norte-americana. Em 17 de dezembro de 1914, a seu pe·
dido, m.ariflt'.5 do cruzador MadUa.s desembarcaram e levaram dos cofres do
Banco Nacional haitiano 500 mil dólares que penenciam ao Haiti.
Respondendo aos protestos do governo haitiano, o secretário de Estado
Bryan assinalou que os Estados Unidos tinham de "proteger os interesses nor·
te-americanos, que se encontravam ameaçados", acrescentando que se trata·
va "de uma mera transfe.rência de fundos" .33 As pressões dos homens de negó·
dos americanos sobre o Departamento de Estado pretendiam forçá-lo a assumir
o controle das alfândegas haitianas. O pretexto foi a situação de caos e guerra
civil que se desenvolveu a partir de abril de 1915 e que provocou excessos de
um lado e de outro, levando à horrível morre do presidente Sam.
Em 28 de julho os marines desembarcaram no Haiti. Desta vez irão ficar
durante 19 anos. O presidente do Senado haitiano, deputados, ex·ministrose
notáveis - protegidos pelas armas dos marines - apressaram-se a assegurar
ao almirante Cappenon, comandante das tropas de ocupação, que concorda·
vam em colocar as alfândegas e as finanças haitianas sob controle americano.
Foi Capperton em peswa quem deu luz verde para a designação de Sudre
Dartiguenave. Em 11 de agosto, este tornava-se presidente por um período de
sete anos. Três dias depois, o projeto de acordo com os Estados Unidos era
submetido aos deputados e senadores. As condições eram tão humilhantes
para o Haiti que até no seio daquela assembléia tão submissa surgiram vozes
de protesto: "Segundo as declarações dos seus agentes, os Estados Unidos -
em nome da humanidade - realizaram uma intervenção humanitária no nosso
pa{s e, com as suas baionetas ... , os seus canhões e os seus navios de guerra,
apresentaram-nos um plano. O que é então esse plano? Um protetorado im·
posto ao Haiti por miscer Wilson ... "Ji
O plano foi aprovado em 16 de novembro. Em 1918 era promulgada uma
nova Constituição, cujo inspirador e um dos redatores era o subsecretário da
Marinha americano, Franklin D. Roosevelt, teórico da doutrina da "boa vizi·
nhança".
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 315

Com o tempo, o próprio Dartiguenave acabará por manifestar uma certa


resistência aos seus protetores. Ele será substituído em 1922 pelo dócil Luís
Bomo. Deste maneira, o Haiti foi entregue à voracidade imperialista. Foi abo-
lido o artigo V da Constituição que, há um século, vetava aos brancos a pro-
priedade do solo.
Os camponeses haitianos foram as primeiras vítimas da chegada de pro-
prietários, que compraram e desenvolveram novas plantações. Isso, somado à
repressão sistemática levada a cabo pelas tropas de ocupação, provocou um
verdadeiro êxodo de camponeses para Cuba: o número passou de 23.490, em
1915, para mais de 30 mil, em 1920. Houve ainda outro fluxo migratório para
São Domingos.
A colaboração despudorada das elites burguesas foi contrabalançada pela
epopéia dos "Cacos" de Charlemagne Peralte que, ao longo de quatro anos
(1915-1919), levou a cabo uma guerrilha e enfrentou as tropas de ocupação
antes de ser traiçoeiramente assassinado.
Os marines só deixaram o Haiti em julho de 1934.

Aterceira intervenção na Nicarágua

Em agosto de 1925, os marines abandonaram o país, após treze anos de


ocupação. Dois meses mais tarde, Emiliano Chamorro destituiu o presidente
Carlos Solorzano, mas foi forçado a entregar o poder ao antigo presidente
Adolfo Diaz - ex-empregado de uma companhia mineira americana e ho-
mem de confiança do Departamento de Estado-, que assim voltou à Presi-
dência.
Em dezembro de 1926, o vice -presidente Juan Bautista Sacasa encabeçou
uma força para restabelecer a legalidade, mas o almirante americano Latimer
desembarcou com 2 mil soldados e obrigou as partes em conflito a assinar a
paz e a entregar as armas aos marines. Um dos chefes liberais, Augusto Cesar
Sandino, opôs-se a isso e dirigiu-se para as montanhas do Norte.
Em 10 de janeiro de 1927, o presidente dos Estados Unidos, Calvin
Coolidge, na sua mensagem anual, explicava que a intervenção americana
tinha se revelado necessária porque "atualmente temos grandes investimen-
tos nas serrarias, nas minas, nas plantações de café e nos bananais ... Se a
revolução continuasse, os investimentos norte-americanos seriam seriamente
afetados ..."35
316 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Sandino e o seu "exercitozinho ridículo" irão resistir vitoriosamente nas


montanhas, ao longo de seis anos, às tropas americanas, que se entregavam à
pilhagem e bombardeavam os campos e as aldeias . S andino fez da luta pelo
restabelecimento da legalidade ultrajada uma guerra de libertação nacional
contra o ocupante estrangeiro: "Luto para e>..1Julsar d a minha Pátria o invasor
estrangeiro ... A única maneira de pôr fim a esta luta é através da retirada
imediata das forças que invadiram o solo nacional..." 36
Confrontado com a impossibilidade de uma vitória militar, os Estados Uni·
dos forçaram um acordo poütico: Sacasa, o vice-presidente, tomou-se presi·
dente, como queria Sandino, e os marines abandonaram a Nicarágua em janeiro
de 1933. Mas o verdadeiro homem-forte, o comandante da Guarda Nacional,
Anastasio Somoza, velho jogador de pôquer e falsário, era fiel aos americanos.
É ele quem organiza, em 21 de fevereiro de 1934, a detenção e o assassi·
nato de Sandino. Este crime abriu para ele as portas do poder, em 1936. Fiel
aos interesses imperialistas, o seu governo foi uma seqüência de abjeções, cri·
roes e corrupções. Permaneceu no poder até 1956, quando foi crivado de ba·
las pelo poeta Rigoberto Perez. Franklin D. Roosevelt havia dito de Somoza, o
homem dos Estados Unidos: "Somoza may be a son of a bitch, but he's our son
of a bitch." (Somoza pode ser um filho da puta, mas é o nosso filho da puta.)

A Guerra do Chaco: expressão das rivalidades imperialistas

Entre 1932 e 1935 aconteceu a sangrenta Guerra do Chaco. Um antigo


conflito acerca do traçado das fronteiras entre o Paraguai e a Bolívia agravou·
se quando a companhia americana Standard Oi! pensou ter descoberto no
território boliviano o que parecia ser uma importante jazida de petróleo. Por
seu lado, a companhia anglo-holandesa Royal Dutch fazia uma descoberta
semelhante no Chaco paraguaio.
Os dois países entregaram-se então a uma campanha nacionalista encara·
jada de ambos os lados pelas companhias petrolíferas. A guerra eclodiu em
junho de 1932 e foi particularmente feroz. O armistício concluído em junho
de 1935 obrigou a Bolívia a recuar sua fronteira 300 quilômetros, e a existên·
eia de petróleo no Chaco paraguaio revelou-se ilusória. Mais de 130 mil
paraguaios e bolivianos se mataram, impelidos pela histeria nacionalista e pelo
apetite voraz das companhias petrolíferas.
A Vl Conferência dos Estados Americanos em Havana, em 1928, conde·
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 317

nou o intervencionismo americano, a ocupação do Haiti, de urna parte do


Panamá e a manutenção da Emenda Platt em Cuba. Na VII Conferência de
1933 em Montevideu, Franklin D. Roosevelt teve de enunciar a po!ftica da
boa vizinhança, e a Conferência, na parte consagrada aos "Direitos e deve·
res", declarava: "Nenhum Estado tem o direito de intervir nos assuntos inter·
nos de outro Estado. "37 O secretário de Estado americano Cordell Hull votou
oartigo "com reservas", mas evitou uma condenação do protecionismo adua-
neiro praticado pelos Estados Unidos.
Em seguida, a VIII Conferência, realizada em Lima, autorizou as reuniões
de consulta dos ministros das Relações Exteriores. Foi durante a Segunda
Guerra Mundial que aconteceram as reuniões, e os Estados Unidos impuse·
ram aos países latino-americanos a ruptura das relações diplomáticas com o
Eixo. Apenas o Chile e a Argentina decidiram não se submeter. Foi preciso
aguardar 1944 para que o governo argentino rompesse com a Alemanha e o
Japão, o que provocou um golpe de estado organizado por militares que dis·
cordaram desta decisão.
Em 1945, o Ato de Chapultepec, aprovado na Conferência lnteramericana
sobre os Problemas da Guerra e da Paz realizada no México - onde foi
marcante a ausência da Argentina -, definia o compromisso dos países do
Novo Mundo a enfrentar conjuntamente o agressor em caso de um ataque. O
seu artigo 3 especificava que: "Qualquer agressão... contra um Estado ameri·
cano será considerada como uma agressão contra os Estados signatários."38
Esta disposição, que deveria ter funcionado plenamente em 1982, na guerra
das Malvinas, não foi aplicada. Em 2 de setembro de 1947, foi assinado, no
Rio de Janeiro, o Tratado de Ajuda Mútua, definindo os efeitos da Conferên·
eia do México. A Argentina esperou até 1950 para assinar o tratado.

Os Estados Unidos e Per6n

A desavença entre a Argentina e os Estados Unidos datava da Segunda


Guerra Mundial. Perón, que chegara ao poder legalmente em 1946, esteve
lotado na Itália de Mussolini de 1939 a 1941. Acusado de simpatias pró-fas·
cistas, tomou parte no movimento militar de 1943 e tomou-se ministro do
Trabalho em 1944. Defendia uma política nacionalista que contrariava os in-
teresses norte-americanos, e os Estados Unidos se esforçaram por dificultar
sua vida.
318 LIVRO NEGRO DO CAPITALI M

O embaixador americano em Bue n A iro:: , prullt: Bra Jen, um homem


da companhia petrolífera E o , o n d uz1u um. a m pn nha abertamente
anciperonista . Apoiado pd o o rnuni ta , intcrfi nu n a ca mpanha presidcnci·
ai publica ndo um "Lívr azul " em u u ava l\:r n de -cr nazista. Pcrón
respondeu com um "Livro a: ul e ran o" , n qual afirm ava que os Estados
Unido pretendiam "instalar... um o ·mo dde_, um gove rno -fa ntoche, e para
tal eles começavam por e a gur r de t · uisli n g' disponfvcis". 19
Por eu laJ o, por in t erm~1 0 d mb:u . ad r Bradc n, a C asa Branca não
teve roJeio : "A mai ri a <lo po\·o arg ntino mp re foi d emocrata e contrária
às idéia tot a lit~ri a ... oGov m o o modelo alemão de 1933 ... ""°0resul·
tado da cleiçõe J cu uma larg.a mai ria a Paón , e o jornal Saumlay Evening
Posr, comentando a polín a e intervenção no ass unto internos argentinos
conduzida pel o DepJrtamenco d Srado, e cre vc u : "É urna prova de
e quizofrcnia política, qu nuna o pr fgio e a in fl uência norte-americanos.
O povo argentin o r pondeu co ria re pondido qualquer povo quando
e trangciros e sentem autonzados a 1car-lhe a polírica que devem seguir..."• 1

O "guatemalato"

A Guerra Fri a fe: aumentar a paranóia dos Stados Unidos que, por detrás
de cada greve o u mam~ ta o , viam a mão dos comunistas. A política de
contenção linha ido enunciada por Truman , e a C asa Branca esforçava-se
por contrariar a expansão comunina no mundo.
Em 1944, na Gu atemala, uma revolta de escudantes, camponeses e ofi·
ciais afastava do poder o homens de Wa5hi ngton ligados à poderosa campa·
nhia Uníted Fruit (Mamila Yunai, como cha ma vam os guatemaltecos).
Os governos sucessivos de Arévalo e Arbcnz realizaram reformas: parti·
cularmcnte o primeiro, que iniciou uma tímida redistribuição da terra, que o
coronel Arbenz-eleito em 1951 - procurou alargar, decretando uma refor-
ma agrária que respondia às aspirações dos camponeses, setor majoritário da
população. Foram expropriados 85 mil hectares da Unitcd Fruir. Era não con·
tar com a reação da poderosa Mamita Y1'nai, de Foster Dulle , ecretário de
Estado, e do seu im1ão Allen, chefe da CIA.
Em plena Guerra Fria, eles agitaram o espantalho do comunismo e, na
conferência pan-americana de Caracas (março de 1954), Foster Dulles ten·
tou associar a presença dos comunistas em qualquer governo do hemisfério a
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 319

umn "ngrcssão extracontinental". Enquanto isso, com a cumplicidade do go-


verno hondurenho, o seu irmão Allen armava um exército "de libertação"
que foi colocado sob as ordens do coronel Castillo Armas, ligado à lntematíonal
Railways of Centre America, filial da United Fruit.
Na Conferência de Caracas, Foster Dulles tinha declarado que "o dom(·
nio e o controle de instituições políticas de qualquer Estado americano pelo
movimento comunista internacional constituiria uma intervenção de uma
potência estrangeira, e seria uma ameaça à paz na América".42
O governo de Arbenz tinha expropriado terras, estabelecido a segurança
social, construído estradas - a United Fruir detinha o monopólio dos trans·
portes-e lançado as bases para a construção de um novo porto, pois o único
disponível pertencia à Mamita Yunai. Simultaneamente, iniciou uma reforma
da educação, ao mesmo tempo em que garantia direitos e liberdades políticas
antes desconhecidos. Mas os Estados Unidos apenas viam a mão do comunis-
mo por detrás do Governo Arbenz, e a conferência aprovou uma declaração
que ia no sentido desejado por Dulles.
No mês de maio começaram os vôos de aviões americanos sobre a
Guatemala. Seguiram-se os bombardeios de Puerto Barrios e Puerto San José.
Assistiu-se ao desembarque dos mercenários de Castillo Armas e, pouco de-
pois, a Ciudad de Guatemala caía nas mãos dos "libertadores", enquanto um
jovem médico argentino de vinte e seis anos - Ernesto Guevara - procura·
va desesperadamente organizar a defesa do governo legal de Arbenz.
A primavera guatemalteca tinha acabado.
Depois de chegar ao poder, Castillo Armas revogou a reforma agrária e as
outras medidas tomadas por Jacobo Arbenz.

Baía dos Porcos

Triunfante em 1959, a Revolução cubana provocou um tremor de terra


em todo o continente. A alguns quilômetros das costas americanas instalava-
se um poder revolucionário que ia se transformar no pesadelo de nove presi·
dentes norte-americanos.
Depois de o governo cubano ter decretado a reforma agrária e os norte·
americanos, como medida de represália, terem se recusado a refinar o petró-
leo soviético e suspendido a compra de açúcar cubano, ocorreram provoca·
çõcs e agressões. O conflito atingiu um ponto sem volta em 17 de abril de
320 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

1961, quando a CIA, devidamente autorizada pelo presidente Kennedy, orga·


nizou um desembarque na Bafa dos Porcos.
A CIA, que utilizara anticastristas cubanos e da América Central, supu·
nha que a notícia do desembarque iria provocar uma insurreição na ilha. Mas,
desta vez, o irmãozinho Dulles enganava-se. Em poucos dias, a tentativa foi
frustrada por milicianos cubanos e mais de 1 mil "gusanos" (literalmente, mj..
nhocas) foram feitos prisioneiros.
Kennedy ficou arrasado e desmentiu a participação americana na ques·
tão. Mas, quando as provas da participação norte-americana se tomaram
irrefutáveis - pilotos abatidos pela defesa aérea cubana - e, apesar de a
invasão planejada ter sido legada a ele pelo seu antecessor, Dwight Eisenhower,
Kennedy assumiu nestes termos a responsabilidade do fracasso: "Se alguma
vez a doutrina interamericana de não-intervenção ocultar ou permitir uma
política de passividade, se as nações deste hemisfério falharem na sua luta
contra a penetração comunista, então, quero que fique claro que o meu go·
vemo não hesitará em assumir as suas responsabilidades ... Se alguma vez che·
gar esse momento, não tencionamos receber lições de não-intervenção... "13
Desde então, a história de Cuba é a história de uma resistência perma·
nente para frustrar os planos de intervenção e para fazer frente à ingerência
tramada pelos Estados Unidos. AJJ encorajamento de grupos de opositores,
seguiram· se tentativas de assassinato de dirigentes cubanos. Forçada a resistir
à maior potência da História, Cuba não teve outra alternativa senão a fuga
para a frente. Assim, além do açúcar e do rum, a exportação de um produto
"não tradicional" tomou-se, ao longo de mais de duas décadas, a arma com a
qual Cuba contra-atacava: a exportação da revolução.
As últimas intervenções projetadas para tomar ainda mais difícil a situa·
ção econômica em Cuba (Lei Torricelli, 1992) prevêem sanções econômicas
contra os pa(ses que prestassem assistência: proibição às filiais das empresas
norte-americanas em outros países de comerciar com Cuba e proibição de
atracar em portos americanos para os navios que tivessem atracado em portos
cubanos nos últimos seis meses.
Esta lei foi largamente condenada pela comunidade internacional. O seu
caráter de extraterritorialidade viola o Direito Internacional e procura desen·
corajar as relações comerciais de outros países com Cuba, que sofre, há mais
de trinta anos, um embargo impiedoso.
Os Estados Unidos assumiram, desde o advento da Guerra Fria, a missão
de formar os oficiais dos exércitos da América Latina. Formaram-nos para 0
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMÉRICA LATINA 321

combate contra o comunismo, que eles acreditavam ver em cada contestação


social ou nas inúmeras lutas por melhores condições de vida que deflagraram
no continente nos anos 60.
Kennedy, perturbado com o prestígio crescente da Revolução cubana, lan-
çou, em 1961, a idéia de um vasto programa de ajuda econômica e social: a
Aliança para o Progresso. Este pequeno "Plano Marshall" será abandonado
por Johnson alguns anos mais tarde, quando o esforço na luta contra o comu·
nismo se traduziu no conluio entre Washington e os militares latino-ameri-
canos.

Golpe de Estado no Brasil

O golpe de Estado no Brasil contra o presidente João Goulart deu início a


uma série de golpes de Estado em que os Estados Unidos apareceram direta-
mente implicados. O governo de Goulart tinha manifestado a sua vontade de
lutar contra as condições miseráveis em que se encontravam milhares de com·
patriotas seus. Anunciou o direito de voto para os analfabetos e a sua inten·
ção de aprovar uma lei de reforma agrária.
Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas depuseram Goulart, tendo
assumido o controle do país, e o presidente Lyndon Johnson apressou-se, em
2de abril, a enviar aos militares "os seus mais calorosos votos", acrescentando
que o povo norte-americano tinha "observado com ansiedade as dificuldades
políticas e econômicas atravessadas pela vossa grande Nação... Nós admira·
mos a firme vontade da comunidade brasileira de resolver estas dificuldades
no quadro da democracia constitucional... (sic!) ".
As convicções democráticas dos militares ficaram claras nos anos seguin·
tes. Desencadearam uma repressão selvagem contra os movimentos e parti·
dos de esquerda que tentavam resistir à ditadura.
Somente a partir de 1979 começou o retomo ao regime civil.

AIntervenção na Rep1(blica Dominicana

Os Estados Unidos intervieram e ocuparam a República Dominicana no


período compreendido entre 1916 e 1924. Rafael Leonidas Trujillo, homem
de confiança dos norte-americanos, tinha tomado o poder em 1930. Assim
m O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

começou a "era Trujillo" com a sua história de mortes, torturas e violência. O


"Benfeitor" - ditador megalômano que, neste século, só pode ser compara·
do, nos seus excessos, a um outro protegido de Washington, Anastasio Somoza
- permaneceu no poder durante mais de trinta anos, com a aquiescência dos
Estados Unidos.
O ditador foi morto num atentado em 1961, e um dos seus fiéis - Joaquin
Balaguer - apressadamente reconvertido em democrata, foi, então, promo·
vido a presidente. Uma sucessão de golpes e de contragolpes terminou com as
primeiras eleições verdadeiramente democráticas, em dezembro de 1962. Juan
Bosch, um democrata exilado durante vinte e cinco anos, venceu sem esforço.
A vitória de Bosch não estava nos planos de Washington. Apesar de
anticomunista, ele não tinha a confiança dos Estados Unidos. Em setembro
de 1963, foi derrubado pelo coronel Elias Wessin y Wessin. Mas um grupo de
oficiais constitucionalistas, à frente do qual se encontrava o coronel Francis·
co Caamafio, pegou em armas contra os golpistas e proclamou - apoiado
pela grande maioria da população - a sua intenção de devolver às suas fun·
ções o presidente derrubado, Juan Bosch. Os confrontos irromperam, e os
constitucionalistas de Caamafio estavam em posição de vencer. Foi então que
Johnson decidiu enviar os marines, uma vez que o embaixador Tapley Bennet
havia anunciado a sua intenção de proteger os residentes norte-americanos.
O mundo assistiu então, assombrado, a uma opereta em que Johnson se
empenhava em negar as violações mais flagrantes à Carta da OEA, e teve,
após várias tergiversações e falsidades - e perante a onda de indignação parti·
cularmente forte na América Latina, onde as embaixadas e as empresas ame•
ricanas foram tomadas de assalto pelos manifestantes - de disfarçar a inter·
venção americana com a participação de tropas de quatro ditadores militares,
os únicos que aceitaram acompanhar Washington na sua invasão: o Brasil dos
militares golpistas, a Nicarágua de Somoza, o Paraguai de Stroessner e
Honduras.
Tratava-se, para os norte-americanos, de impedir o aparecimento de uma
nova Cuba, o que a seus olhos justificava todas as violações às normas esta•
belecidas pela própria OEA: "Compreendi que não havia tempo a perder,
para falar e conferenciar... As nações americanas não podem, não devem e
não permitirão a fundação de outro governo comunista no hemisfério ociden•
tal..."-H
Em setembro do mesmo ano, uma resolução da Câmara de Representantes
dos Estados Unidos (Resolução Selden) declarava que, face à mera ameaça
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AMÉRICA LATINA 323

do perigo comunista, as nações americanas podiam e deviam prestar auxílio


mútuo.
Balaguer, o velho amigo dedicado do ditador Trujillo, foi aceito pelos nor-
te-americanos e eleito presidente em 1966. O coronel Caamafto, cercado de
imenso prestígio, morreu alguns anos mais tarde, numa derradeira tentativa
de levar a luta armada à República Dominicana.

Os mil dias da Unidade Popular

Oespectro do comunismo - obsessão de Washington - pareceu tomar·


se realidade quando o médico socialista chileno Salvador Allende, apoiado
por uma coligação de partidos de esquerda, a Unidade Popular, venceu as
eleições em 4 de setembro de 1970.
OChile estava em festa, e da varanda da histórica Federação de Estudan·
tes do Chile, no centro de Santiago, Salvador Allende, comovido, compro·
meteu-se, perante os seus eleitores, a concretizar o programa que prometera.
Em seguida, pediu-lhes que se retirassem serenamente e que não respondes-
sem às provocações. Não se verificou uma única desordem, nem um só inci·
dente, não houve nenhum vidro partido nessa noite, e o povo chileno feste·
jou, com sobriedade, sua vitória.
Mas, nos bairros elegantes, nas casas opulentas e à sombra das grossas
paredes da Embaixada dos Estados Unidos, aqueles que haviam acusado a
esquerda de trazer consigo a barbárie já afiavam as facas.
A intervenção americana no Chile tomou-se largamente conhecida, de-
pois de terem sido publicados os documentos secretos da IIT e o relatório
"Covert Action" apresentado ao Senado pela Comissão Church.
A ação dos Estados Unidos, em comum acordo com a direita chilena,
começou durante a campanha presidencial. A CIA subornava os jornais e os
partidos de centro e de direita. O inefável secretário de Estado Henry Kissinger
sentiu-se na obrigação de declarar, em junho de 1970: "Não vejo por que
razão havíamos de cruzar os braços, sem agir, ao vermos um pa{s tomar-se
comunista devido à irresponsabilidade do seu povo ... "45
O dono do principal órgão da imprensa chilena, EI Mercurio, e o vice·
presidente da Pepsi reuniram-se dia 15 de setembro de 1970 em Washington
com o diretor da CIA, Richard Helms. Nessa mesma noite, Henry Kissinger,
Richard Helms e o presidente Nixon coordenavam um plano de ação- Track
l

O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

1-destinado a impedir que o Congresso proclamasse Salvador Allende pre.


sidente da República.
Segundo a comissão Church, as instruções de Nixon foram rigorosas, es.
cri tas de próprio punho: "Salvem o Chile ... não importa calcular os riscos, não
comprometer a embaixada, 10 milhões se for necessário ... trabalho em tempo
integral. .. plano de ação em 48 horas ... "46 O plano Track 2 tinha diversas fases,
que iam do suborno de deputados, generais e almirantes, até o assassinato do
comandante-em-chefe do exército, que se recusou a seguir os golpistas e caiu
numa emboscada em outubro de 1970.
As instruções de Nixon eram, como se disse, rigorosas: era preciso fazer
tudo para impedir Allende de chegar ao poder, exceto uma ação como aquela
que tinha sido empreendida na República Dominicana. Nathaniel Davis, em·
baixador dos Estados Unidos no Chile, deixou uma dúvida sobre o projeto de
assassinato de Allende pela CIA.
Apesar disso, Allende foi empossado pelo Congresso e governou durante
três anos. Pôs em prática os programas prometidos: nacionalizações do cobre,
da banca, do nitrato, dos telefones, dos seguros, reforma agrária etc. Mas o
Chile enfrentava uma trama invisível, "Um Viemã silencioso", como afumou
o poeta Pablo Neruda, que, pegando na sua arma, a caneta, escreveu: "Incita·
mento ao Nixoniddio ... "
Um plano, apoiado do exterior, desestabilizou o país e desembocou no
golpe de Estado de 11 de setembro de 1973. Navios da marinha americana, o
Richard Turner, o Tatrersall, o Vesol e o submarino Clamagore, estavam nesse
dia, oportunamente, junto à costa chilena, para participar nas manobras na·
vais "Unitas". Em poucas horas, os militares atravessaram a fronteira estreita
que separa a civilização da barbárie. Allende imolava-se no seu palácio em
chamas.
A contra-revolução vitoriosa pôde então restaurar o capitalismo sobre
novas bases, mergulhando o país, durante dezessete anos, numa ditadura san·
grenta, que se propunha "extirpar para sempre o cancro marxista". Milhares
de opositores foram presos, torturados, mortos e/ou dados como desaparecidos.
Iniciou-se uma transição democrática a partir de 1989, quando o ditador
Pinochet foi obrigado a convocar um plebiscito. Vencido, teve de ceder o
lugar em 1990 a um civil eleito democraticamente, permanecendo como co·
mandante-em-chefe do exército até 1998, quando aceitou aposentar-se ... do
Senado ... esse mesmo Senado que ele fechara em 1973.
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 325

Aintervenção na Nicarágua
Em 19 de julho de 1979, as tropas da Frente Sandinista entraram em uma
Manágua libertada. Dois dias antes, Anastasio Somoza Debayle, herdeiro de
uma dinastia fundada pelo seu pai em 1936, colocara-se em fuga. O governo
sandinista se viu então diante da tarefa de reconstruir um país devastado.
Implantou uma reforma agrária, redistribuiu terras, desenvolveu uma ampla
campanha de alfabetização, lutando, ao mesmo tempo, desde os primeiros
meses, contra os ex-guardas de Somoza, que se concentravam na fronteira
hondurenha.
O governo Reagan, que durante a campanha presidencial denunciara
os sandinistas como agentes de Moscou, iniciou uma gigantesca campanha
internacional acusando o governo de Manágua de querer apoderar-se de
toda a América Central. No início dos 11nos 80, iniciava-se a invasão silen-
ciosa da Nicarágua. Reagan proíbe o crédito, encoraja os partidos da oposi-
ção, ao mesmo tempo em que financia e arma os contras, baseados em
Honduras.
Na campanha internacional, a administração Reagan dava ênfase ao
"armamentismo" sandinista, que representava um perigo evidente - dizia
Reagan - para os governos "livres" da região. O Irangate comprovou a inter-
venção americana na Nicarágua através do fornecimento de fundos e armas
aos contras, que utilizavam o território de Honduras como principal base de
operações.
A Nicarágua foi destroçada pela guerra decidida por Reagan e conduzida
por intermédio dos contras. O governo dos Estados Unidos foi condenado
pelo Tribunal Internacional de Justiça pela sua participação em atos terroris-
tas, tais como o do porto de Corinto.
Nesta "cinturinha da América Latina", como a chamou Pablo Neruda,
jogou-se, nos anos 80, um pouco da dignidade da América Latina. Carlos
Fuentes, o célebre escritor mexicano, disse-o à sua maneira no México, em
uma manifestação de apoio à Nicarágua: "A guerra desta época ... a guerra que
nos diz respeito a todos, é conduzida pelos nicaragüenses em nome de todos ...
A guerra que está sendo feita na Nicarágua é disfarçada com pretextos ideo-
lógicos ... Mas querem ser eles a restaurar ou a criar a democracia, aqueles
que, ao longo de um século e meio, nunca se preocuparam senão com os seus
próprios privilégios ... Exige-se da Nicarágua que se transforme naquilo que
nenhuma nação da América Latina pode ser: uma democracia como os Esta-
326 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

dos Unidos, coisa que jamais se exigiu de Somoza ou se pediria aos contras no
poder."
A "guerra de baixa intensidade", os atentados, a violência generalizada, a
morte de jovens soldados, abatidos pelos concras em e mboscadas, acabaram
por cansar uma parte da população. Em 1990, o governo sandinista - apesar
de desacreditado como um regime totalitário - organizou eleições. A
candidata da oposição unida, Violeta Barrios de Chamorro, conseguiu a vitó-
ria, num país devastado por anos de conflito.

A lnt1asão de Granada

A invasão da minúscula ilha de Granada inscreve-se no quadro da nova


guerra fria que teve lugar durante a primeira metade dos anos 80.
Os Estados Unidos, que tinham a sensasão de ter sido destroçados no
plano internacional nos filá mos anos - Viemã, Irã, Nicarágua, África,
Afeganistão e Líbano - . quiseram mostrar ao mundo, e particularmente à
União Soviética e aos seus aliados, que "a América estava de volta". Reagan
tentou contrariar os movimentos revolucionários na América Central e, na
sua cruzada contra "o império do mal", apoiou a escalada militar dos contras
na Nicarágua e encorajou os sucessivos governos salvadorenhos na sua luta
contra a guerrilha.
É neste contexto que os Estados Unidos invadiram, em 25 de outubro de
1983, a pequena ilha de Granada - 110 núl habitantes - nas Antilhas. Um
conflito entre duas fações que disputavam o poder, que "punha em perigo a
vida de cidadãos norte-americanos", foi o pretexto encontrado por Reagan.
Depois, acrescentou, para efeito de propaganda, que cubanos preparavam a
pista do aeroporto de Pointe Salines com o intuito evidente de permitir o
pouso de grandes aviões soviéticos ... E a h isteria intervencionista apoderou·
se de milhões de norte-americanos. Sem temer o ridículo, o presidente Reagan
chegou ao ponto de afirmar, muito seriamente, que a intervenção tinha sido
decidida "após um pedido urgente" procedente de cinco países das Antilhas,
cujo peso na cena internacional se pode avaliar: Ant!gua, Barbados, Domínica,
Santa Luzia, São Vicente ...
A "vitória de Granada" - mais de 6 mil marines fortemente armados
contra operários da construção civil cubanos - ia ser útil a Reagan du·
rante a sua campanha para a reeleição no ano seguinte . Para a administra·
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 327

ção norte-americana, tratava-se igualmente de apagar o fiasco no Líbano,


onde, algumas semanas antes, mais de meia centena de soldados tinham
sido abatidos. A operação que "libertara Granada de uma ditadura mar-
xista" tinha um objetivo eleitoral, mas, ao mesmo tempo, serviu para mos-
trar ao mundo a determinação da administração Reagan na sua luta con-
tra o comunismo.

Aoperação "Justa causa"

Em 2 de outubro de 1977, um referendo ratificou, no Panamá, o novo


Tratado Carter-Torrijos. O povo panamenho revogava, assim, o leonino Tra-
tado Hay-Bunau Varilla, "jamais assinado por um panamenho", como gostava
de repetir o general Omar Torrijos. O Panamá, nos tennos do tratado, obterá
a plena soberania sobre o canal e suas instalações no ano 2000. O general
Torrijos, comandante da Guarda Nacional, teve de ultrapassar os obstáculos e
dificuldades que os senadores americanos - inimigos do tratado - opuse-
ram à assinatura.
A emenda do senador De Concini acrescentava uma cláusula que preten-
dia garantir aos Estados Unidos o direito de intervir militarmente no canal:
"Se o canal estiver fechado ou as suas operações impedidas ... os Estados Uni-
dos terão o direito de tomar medidas ... incluindo a utilização da força mili-
tar..."47Torrijos escreveu então a Carter, e este comprometeu-se a "não utili-
zar esta emenda como justificativa legal para uma eventual nova intervenção
no Panamá".
Torrijos morreu em 1981, num misterioso e jamais esclarecido acidente
aéreo. Os panamenhos reconhecem o mérito de ter conseguido negociar no-
vos acordos sobre o canal em condições extremamente difíceis.
O general Noriega toma-se, depois da morte de Torrijos, comandante da
Guarda Nacional. Ele era considerado um homem dos americanos, tendo tra·
balhando durante anos para a CIA. Como se sabe, o governo de Bush não se
prendeu, em 1989, a sutilezas jurídicas nem a um suposto direito ao cargo por
antigüidade.
Nesse ano tiveram lugar as eleições presidenciais. A oposição reagrupou-
sc cm tomo de Guillermo Endara, que em seguida se declara vencedor. Mas,
por pressão da Guarda Nacional, Francisco Rodriguez foi designado presi·
dente da República. Um braço-de-ferro estabeleceu-se então entre a oposi-
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

ção - apoiada pelos Estados Unidos - e a Guarda Nacional do general


Noriega.
O general Noriega, que provavelmente trabalhara alguns anos antes para
a ClA - e, nessa qualidade, era um ex-empregado de Bush -, foi por este
acusado de participação no tráfico de drogas. Um mandado de captura foi
emitido contra ele. Ao mesmo tempo, as tropas americanas estacionadas na
zona do canal iniciaram as provocações e as ações de intimidação contra a
população que, em parte, apoiava Noriega.
Em 20 de dezembro de 1989, Bush - alguns dias depois de Malta, onde
ele brindara com Gorbatchev, celebrando o fim da Guerra Fria - lançava a
operação "Justa causa". E as tropas americanas, sem se preocuparem com jus-
tificativas legais, invadiram uma vez mais o Panamá, utilizando milhares de
soldados, a aviação e helicópteros. Mas a Guarda resistiu, assim como os bair·
ros populares, onde tinham sido distribuídas armas. Foram bombardeados pe·
los soldados da "Justa causa", única fom1a de pôr fim à resistência encontrada
pela invasão. Foram contados mais de dois mil mortos nos escombros dos
bairros bombardeados.
O líder da oposição, Guillerrno Endara, preferiu o conforto e o ar-con·
dicionado numa base militar americana - prova da tranqüilidade que reina·
va no país e da adesão popular ao golpe norte-americano -para prestar jura·
mento como presidente da Repeíblica ... Bush impôs um presidente que, nos
anos 70, criara uma empresa baseada no Panamá e na qual era associado ao
general Manuel Contreras, chefe da polícia secreta de Pinochet.
Noriega foi preso pelos seus ex-patrões em 3 de janeiro de 1990. Leva·
do para os Estados Unidos, foi condenado a quarenta anos de prisão. Em
maio de 1994, Ernesto Perez Valladares, do partido de Noriega, triunfava
nas eleições.
Os panamenhos seguram o fôlego enquanto aguardam o ano 2000, que,
segundo o último tratado, lhes trará a soberania plena sobre o canal. A não
ser que ...

A intervenção humanitária no Haiti

Ao contrário do que muitas pessoas pensam saber, a intervenção norte·


americana dos anos 90 no Haiti não data de 15 de outubro de 1994, mas ... de
30 de setembro de 1991, quando o presidente Aristide foi derrubado por um
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 319

golpe de Estado organizado por militares haitianos com o "apoio da CIA e da


embaixada americana". 48
Em 1971, Jean-Claude Duvalier, "Baby Doe", tinha sucedido a seu pai-
François Duvalier, "Papa Doe"-, no poder desde 1957. "Baby Doe" foi der-
rubado em 1986, e instalou-se na França, uma vez que o governo doprimeiro-
mínistro Laurent Fabius lhe tinha concedido uma autorização de permanên-
cia. Encontrou um refúgio muito confortável na Côte d'Azur, onde, desde
então, passa os seus dias de reforma forçada.
O general Raoul Cendras, chefe da Junta que derrubara o padre Aristide
em setembro de 1991, tinha levado a cabo o 172º golpe de Estado desde que
o Haiti conseguira a independência, em 1804, há quase dois séculos.
Christophe Wargny escreveu, em 1996, com Pierre Mouterde, um livro
que tem o sugestivo título de Apre bal cambou lou: cinco anos de duplicidade
americana no Haiti, 1991-1996,49 onde mostra a ação combinada contra Aristide
- não isenta de contradições - dos Estados Unidos, dos militares, da oligar-
quia haitiana e do Vaticano. Este último era contrário ao padre Aristide, devi-
do ao seu apoio à Teologia da Libertação.
A última intervenção militar norte-americana na América Latina - se-
tembro de 1994- fez regressar então o presidente Aristide a Port-au-Prince.
Tratava-se de uma "operação humanitária" autorizada pela ONU. Assim, três
anos após ter sido derrubado, o padre Aristide regressava ao poder pelas mãos
da potência que tinha contribuído para a sua queda.

Paco Peiia, professor e jornalista chileno, é colaborador de Punto Final.

Notas:

1. Vermont em 1791, Kentucky, em 1792, Tennessee, em 1796. Estes dois últimos territóri·
os, bem como Mississippi, Alabama, Illinois, Indiana e Ohio foram adquiridos pela União
na época do Tratado de Paris, em 1783. Outros, mais a oeste, serão comprados de Bonaparte
em 1803.
2, Carlos Machado, Doc11mentos, Estados Unidos y América Latina, Editorial Patria Grande,
Montevideo, 1968, p. 11.
J. Carlos Machado, Documencos , op. cit., p. 13.
4. Idem, p. 15.
5. Carlos Machado, Dorumencos, p. 18.
6. Idem, p. 19.
7. Ibidem, p. 23.
330 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

8. Leo)Xlldo Maninez Caroza, La inten1enci6n norteamericana em Mexico, 1846-1848, Pano-


rama Editorial, México, 1985, p. 19.
9. Idem, p. 27.
10. Carlos Machado, op. ci1., p. 32.
11. Carlos Antonio Lopez, 1790-1862, presidente do Paraguai entre 1840 e 1862.
12 . Ynsfran Pablo Max, La expedición norteamericana conira el Paraguay, 1858-1859, Editorial
Guarania, México, Buenos Aires, 1954, 2 vol., p. 208.
13. Idem, vol. 11, p. 42 .
14. Lemaitre Edouardo, Panamá' su separación de Colombia, Ediciones Corralito de Piedra,
Bogotá, 1972, p. 66.
15. Existe um relato deste episódio: La guerre de N icaragua, traduzida do inglês por Ricardo
Femández Guardia, Ediciones Universidad Centroamerica, San José, Costa Rica, 1970.
16. Carlos Machado, op. ci1., p. 41.
17. Idem, p. 43.
18. )ingoism: "expressão inglesa sinônimo de chauvinismo patriótico".
19. Via\ Gonzalo, Historia de Chile, vol.. li (1891-1920), edições Santillana, Santiago do Chi·
\e, 1983.
20. Gonzalo Via\, op. ci1., p. 165.
21. Carlos Machado, op. ci1., p. 53.
22. Idem, p. 55.
23. Idem, p. 64.
24. Ibidem, p. 66.
25. Lcmaitre Edouardo, op. cit., p. 75.
26. Idem, p. 95.
27. Ibidem, p. 128.
28 Carlos Machado, op. cit., p. 57.
29. Buneau Varilla Philippe, De Panama d Verdun, p. 162 e seguintes.
30. Castor Sucy, l..a ocupación norieamerican de Haiti., su.s consecuencias, Casa de las Americas,
Havana, 1974, p. 22.
31. Cardoso F. H. e E. Faletto, Dépendance et dé11eloppemen1 en Amérique Latine, PUF, 1983, p.
83.
32. Carlos Machado, op. cit., p. 75.
33. Castor Sucy, op. ci~, p. 28.
34. Idem, p. 35.
35. Carlos Machado, op. cit., p. 85.
36. "Ou rêve à la ~volu1ion", Solidariti Nicaragua n11 3, Paris, 1982, p. 5.
37. Carlos Machado, op. cit., p. 87.
38. Idem, p. 89.
39. Ibidem, p. 90.
40. Carlos Machado, op. cit., p. 91.
41. Idem.
42. Carlos Machado, op. cit., p. 96.
43. Idem, p. 101.
44. Ibidem, p. 109.
45. Davis Nathaniel, Los dos últimos anos de Sal11ador Allende, Plaza y Janes editores, Barcelo·
na, 1986, p. 18.
46. Idem, p. 19.
AS INTERVENÇÕES NORTE-AMERICANAS NA AM~RICA LATINA 331

47, Conte Porras Jorge, Dei Tratado Hay-Buneau Varilla, ai Tratado Torrijos·Carter, lmpresora
Panamá, 1982, p. 144.
48. Wargny Christophe, "Maniere de voir" nº 33, fevereiro 1997, Le Monde Diplomatique, p.
68-C.
49. Éditions Austral, 1996.
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO
-A LONGA MARCHA DOS
AFRO-AMERICANOS
ROBERT PAC

)
./'
O que aconteceu ao sonho de Martin Luther King, o sonho sobre o qual
ele falava em agosto de 1963, em Washington, perante uma multidão de 250
mil pessoas negras e brancas que se acotovelavam? O sonho de uma América
multicolor, finalmente libertada do racismo, da pobreza e da exploração? Hoje,
35 anos mais tarde, o sonho dele continua irrealizado e os afro-americanos
encontram-se numa situação ainda pior do que em 1963, pior do que antes da
lei sobre os direitos civis arrancada em 1964.
As lutas dos afro-americanos por seus direitos civis duraram mais de 40
anos terminando com uma vitória, pelo menos nos textos, por volta de 1970,
graças àação, infelizmente muitas vezes desordenada, de Malcom X, de Martin
Luther King, dos Panteras Negras, dos juristas da NMCP, dos liberais bran-
cos e negros e dos radicais do Partido Democrático.
Após os assassinatos de Malcom X em 1965 e de Luther King em 1968,
sobre os quais paira a sombra do FBI, uma repressão impiedosa quase esmagou
completamente a revolta dos afro-americanos e das outras minorias nos anos
70. Foi uma verdadeira guerra secreta contra a dissidência interna conduzida
pelo FBI e pela CIA no quadro do Cointelpro (Counter Intelligence Program),
uma ofensiva dissimulada mas maciça contra as organizações e os grupos de
esquerda, o Partido Comunista, os movimentos pacifistas, os negros, os estu·
dantes e outras forças democráticas. Esse programa tinha por finalidade "des-
mascarar, desmembrar, desacreditar ou neutralizar", matando, se necessário,
os dirigentes, os membros ou simpatizantes desses grupos. A execução desse
plano, dirigido pelo diretor do FBI, Hoover, que declarou que os Panteras
Negras eram "a maior ameaça que pesava sobre a segurança nacional", foi
completado de setembro de 1968 a dezembro de 1969 com o assassinato pra-
ticado pela polícia de 14 dirigentes dos Panteras e a prisão de centenas de
militantes, dos quais alguns continuam na prisão e ameaçados de ali termina-
rem os seus dias.
Embora oficialmente abandonado há já 20 anos, esse programa continua
a ser executado, como o provam as perseguições que ainda continuam contra
Leonard Peltier, o dirigente índio do American Indian Movement, condena-
do a prisão perpétua em 1976, e contra Mumia Abu Jamal, jornalista negro,
antigo porta-voz dos Panteras Negras de Filadélfia, condenado à morte em
l36 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

1982, vítimas, um e outro, de um gol pe mon tado pelo FBI e de um processo


manchado por numerosas irregularidades. H oje já n fo existe m grandes orga·
nizações negras nacionais e estruturadas, n e m d irige ntes carismáticos, nem
grandes movimentos de massas.

Uma vitória revlsta

Desde os anos 70, o benefíà o de uma legislaçao duramente adquirida,


destinada oficialmente a pôr fim à exclusão racial , fo i anulado por uma estra·
tégia governamental de cerco fís co e isolamento econômico, que produziu
uma verdadeira decadência da vida social nos guetos.
Esta estratégia, ina ugurada por nald Rea gan em 1980, e continuada
pelos seus sue , Bush e Oin on, levou a cortes violentos nos orçamen·
tos de ajuda social, de educ.lÇão, de saúde, de construção, de alojamentos e
de renovação urbana. Os a&o-americ.anos pa ga ram maciçamente as despesas
desse desmantelamento. ·e, 35% das fa tnn ias negras situam-se abaixo da
linha da pobreza (contra 6% das famílias brancas). Em média, a receita de
uma família negra repre$Cnta S8% daquela de uma farru1ia branca, número
Inferior ao de 19671
A taxa oficial de desemprego dos afro -americanos é duas vezes a taxa
média nacional, cujo modo de cálculo e.st.á sujeira a caução (5,5%!) . Na rea·
\idade, a dos negros deve iruar-sc em cerca de 25%. Para os jovens negros de
16 a 19 anos, e a taxa eleva-se a S7%. Em 1967 era de 26,5%! Hoje, no
Harlem, 75% dos joveru estão sem emprego. Acentuando ainda mais a guerra
contra os pobres, Reagan reduzi u à metade a duração do seguro-desemprego:
13 semanas, em lugar de 26.
A esperança de vida para um homem negro é de 69 anos, contra 76 para
um branco. A taxa de mortalidade infantil entre os negros é de 16,5 para mil,
contra 8, l para os brancos. Os mais desprovidos, cc ntc n~ de milhares de
famflias, vêem-se pouco a pouco privados do auxílio social, sem o qual não
podem sobreviver (como os abonos do welfare ou os food sramps criados por
Kennedy em 1961 e que continuam a existir). Calcula- se que 12 milhões de
crianças nos Estados Unidos não recebem a quantidade mínima de calorias
necessária. Privando o governo federal dos fundos n ecessários, a administra·
ção Reagan· Bush tirou da autoridade central a gestão do welfare. Desse modo,
é extraordinário constatar que hoje, nos Estados Unidos, a saúde, a reforma
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 337

urbana, a guarda das crianças, a educação, a renovação do centro das cidades


e o alojamento social são um negócio privado nas mãos de trustes (Corporaie
welfare).
Por fim, assistiu-se no decurso dos últimos anos a uma ofensiva puramente
racista. Os negros, sempre explorados e que, através dos tempos, têm consti·
ruido um subproletariado sobre o qual foi construída a riqueza das finanças
brancas, são hoje apontados como a causa das dificuldades da América. Os
magros subsídios que alguns recebem para sobreviver são apresentados como
prêmio à preguiça que se insiste em considerar congênita nos negros. O go·
vemo apóia-se nesta propaganda racista para justificar os programas que ten·
dem a eliminar pouco a pouco as conquistas dos direitos cívicos. Foi desse
modo que praticamente terminaram o busing e a integração escolar ou a ação
afirmativa que se destinava a garantir às vítimas da discriminação de ontem e
de hoje a igualdade de oportunidades na educação e no emprego.

Uma política de genoddio

"Todos os anos, a nossa economia produz cada vez mais produtos com
cada vez menos homens. Os trabalhos penosos e não-especializados - aque·
les que ninguém queria, aqueles graças aos quais eram tolerados os negros na
América, a espécie de trabalhos que nós, os niggers, sempre fizemos - estão a
desaparecer rapidamente. Mesmo no Sul - no Mississippi, por exemplo-,
mais de 95% do algodão é colhido por uma máquina. Hoje, o trabalho negro
já não é rentável, nem mesmo procurado; a economia americana já não pre·
cisa." Assim se exprimia o ator e ativista Ossie Davis no prefácio de We charge
genocide, em 1970 (lnternational Publishers Co. lnc.) .
Os novos empregos convenientemente remunerados são pouco acessfveis
aos afro-americanos porque, no conjunto, estes dispõem de pouco estudo e
poucos diplomas. Um bom número de sociólogos e militantes negros vê na
política governamental a respeito dos afro-americanos uma vontade genocida
de manter cm um certo nível financeiramente aceitável uma pequena parte
da população negra, eliminando aquilo a que os dirigentes americanos cha-
mam "excedente populacional".
O exemplo destas últimas décadas mostra que esta solução foi aceita e
iniciada: o genocídio limitado. As armas desse genocídio, além da miséria, da
fome, da dispersão das famílias e do desemprego, são o isolamento social (os
338 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

guetos) e a introdução nas comunidades negras da droga e da Aids. E ainda a


eliminação de uma grande parte da população negra pelo sistema judiciário e
penitenciário americano.

Os guetos: um apartheid na América

A questão negra nos Estados Unidos é o resultado de uma política secular


de exclusão sob os seus aspectos econômicos, culturais, ideológicos, sociais e
políticos. A estratégia atual de pôr de lado os afro-americanos só podia tradu-
zir-se num apartheid à americana. Não se trata, evidentemente, de colocar os
negros em wwruhips cercadas de arame farpado como na África do Sul nos
tempos do apanheid. Mas essas cidades existem realmente no próprio centro
das grandes cidades dos Estados Unidos: são as doumtowns, os guetos que
podem ser cercados e enquadrados pela polícia e o exército em poucas horas.
Os guetos são assim abandonados aos afro-americanos pelos ricos e pelos pe·
queno-burgueses brancos que podem, desse modo, dormir descansados nos
seus belos cottages dos arrabaldes policiados e autoprotegidos.
O isolamento vigente desde 19í2 conseguiu aquilo que a escravatura e a
segregação não tinham conseguido completamente, quer dizer, a colocação
1 sob vigilância, sem torres de observação nem cercas de arame farpado, de
97% dos negros americanos.
1.
O gueto está isolado da economia oficial e do resto da sociedade. À de·
gradação do habitat soma-se uma forte criminalidade, uma elevada taxa de
mortalidade, estruturas sociais e educacionais deficientes e um desemprego
crônico. É uma microssociedade à parte, um mundo fechado provido de es·
truturas e de uma linguagem espedficas. A violência, o desmembramento das
famílias (56,2 % das famílias são dirigidas por uma mulher sozinha), o alcoolis·
mo, a droga, conduzem à inércia ou ao desespero que leva a revoltas suicidas.
O isolamento dos afro-americanos nos guetos está na alçada do Artigo II,
§C da Convenção Internacional para a prevenção e repressão do crime de
genocídio, ratificada pelos Estados Unidos, que estipula: "Na presente Con-
venção, por genocídio entende-se qualquer um dos atos abaixo-assinalados,
cometidos na intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,
étnico, racial ou religioso, como tal: (... ) Artigo II C : Submissão intencional
do grupo a condições de existência que conduzam à sua destruição física total
ou parcial."
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABAOO 339

Quase todas as famílias negras do gueto sobrevivem apenas graças à ajuda


pública que é um fator essencial do desmembramento das farru1ias negras e, ao
mesmo tempo, um instrumento de opressão. Com o welfare o negro toma-se
escravo da pior espécie, o escravo que reclama grilhões.
E a fome reina freqüentemente nesses lares desmunidos. Como viver com
três dólares por dia quando um hambúrguer custa dois? Não existe segurança
social nos Estados Unidos. Os orçamentos sociais, jã reduzidos pela adminis·
tração Reagan, foram ainda mais diminuídos pelos seus sucessores, Bush e
Clinton. O Harlem, por exemplo, é o lugar do mundo onde a criminalidade é
mais elevada. A delinqüência amplia-se, porque a sobrevivência no gueto é
uma luta cotidiana. Mata-se seis vezes mais do que no resto de Nova York ou
em Chicago. Da maior parte dos crimes nunca se saberã quais os motivos nem
os autores. Os homens negros arriscam-se sete vezes mais a serem vítimas de
um assassinato do que um branco. Um negro que viva no Harlem tem menos
possibilidades de atingir os 65 anos do que um habitante do Bangladesh. "Se-
gundo estudos feitos, você tem menos sono, arrisca-se a ser mais obeso e a ter
hipertensão. Isso não se deve apenas à pobreza. A sua vida mais curta e peno·
sa é fruto, em grande parte, das ansiedades provocadas pelo fato de ser um
negro na América. 1"
A propósito dos motins de Los Angeles de abril de 1992, o editorial do
New York Times de 7 de maio de 1992 afirmava que "os incêndios de Los
Angeles iluminam com uma luz crua e nova o modo como a América passa
uma borracha sobre certas questões (... ). Pior ainda, a América apaga as pes-
soas: uma geração de jovens negros".
Sobre o projeto de uma, por assim dizer, "reforma" da ajuda social no
início dos anos 80: "Não é uma reforma do apoio social, é um plano para
transformar os guetos em vastos cemitérios - porque ali não hã trabalho.
O objetivo desta legislação é garantir que morram camadas inteiras das
minorias, porque esse sistema capitalista degradado ja não tem necesidade
delas." 2

Adroga

Nas mãos do homem branco a droga sempre foi um instrumento impor·


tante da sua vontade de oprimir os homens de outras raças. O exemplo mais
conhecido é a importação para a China do ópio da Índia, que viria a provocar
340 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

a famosa "guerra do ópio" (1839-1842} entre a Inglaterra e a China, cujo


governo queria proibir o tráfico. Vencida a China, o donúnio da Inglaterra foi
facilitado por um regime corrupto e, sobretudo, pelo envenenamento organi·
zado de todo um povo por meio da droga.
O envenenamento é o termo que empregava Ho Chi Minh em 1925, no
seu livro clandestino O processo da colonização francesa, no qual ele denunci-
ava a política francesa na Indochina que impunha a cada indochinês um con·
sumo importante de álcool e de ópio.
Este método de aniquilamento da vontade de revolta entre os coloruza·
dos era de uso geral entre os colonizadores. Foi especialmente muito utilizada
pelos conquistadores da América do Norte contra os ameríndios. Foi a famosa
"água de fogo" bem conhecida dos amantes de westems que, acrescentada aos
massacres e às doenças importadas pela "civilização", precipitou a degradação
dos índios.
A arma da droga continua a ser utilizada nos nossos dias contra esses
colonizados no interior da sua metrópole que são os negros dos Estados Uru·
dos. No passado, a marijuana e, mais tarde, o ópio, a morfina, a heroína e a
cocaína foram toleradas entre os negros, ou pelo menos a repressão era feita
de maneira a não destruir o nível geral do tráfico.
Nos nossos dias, o Harlem, por exemplo, possui oito vezes mais drogados
que o resto do aglomerado nova-iorquino. Neste momento, 40% dos crimes
têm relação com a droga. Os afro-americanos do Harlem substituíram a coca·
fna e a heroína pelo crack, esse derivado mais barato da cocaína de efeitos
violentos e imediatos.
Essa droga, que age sobre o cérebro, produz uma euforia seguida de um
estado depressivo, de irritabilidade, de ansiedade e de psicose paranóica. Se·
guem-se enfisemas pulmonares e uma overdose, que pode provocar um infarto
ou um aumento do ritmo cardíaco e da pressão sangüínea; o toxicômano tem
alucinações e a impressão de que o seu corpo é percorrido por um exército de
insetos. Há também anorexia e perda de peso considerável. Finalmente, a
morte.
A droga encontra-se em todo o mundo nos guetos. O aumento rápido do
fornecimento de crack provocou a queda do preço da dose, que caiu de 40
dólares em 1988 para um valor que oscila hoje entre 3 e 10 dólares. Esta
queda provocou um fluxo de consumidores com baixo poder de compra. Além
do mais, esta cocaína traficada, consumível sem seringa, afasta o medo da
Aids. No estado de Nova York, mais de um terço dos consumidores de crack
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 341

são afro-americanos, embora eles não constituam mais do que 14,6% da po-
pulação total do estado.
Os afro-americanos representam 50% dos usuários de drogas injetáveis,
estimados em 1,2 milhões, dos quais cerca de 300 mil estão infectados com o
vírus da Aids. No estado da Geórgia, os afro-americanos do sexo masculino
constituem 8 dos 10 (79%) casos atribuíveis unicamente ao uso das drogas
intravenosas. Eles representam 43% de todos os casos de Aids em Detroit e
76% de todos os casos de Aids devidos ao uso de drogas intravenosas em abril
de 1987.
Os afro-americanos constituem uma percentagem desproporcional (2 7%)
de todos os casos de Aids registados pelo CDC (Center for Disease Control)
de Atlanta. As crianças afro-americanas e hispânicas representam aproxima-
damente 80% de todas as crianças infectadas pelo vírus da Aids nos Estados
Unidos. Dois terços de todos os casos de negros infectados com vírus da Aids
estão concentrados em Nova York, Nova Jersey e Flórida. Os negros correm
três vezes mais riscos de contrair Aids que os brancos. As miseráveis condi-
ções de vida dos negros e também a falta de defesas dos atingidos pela Aids
explicam a rápida propagação da tuberculose nos guetos.

Os bebês-cocaína

Uma em cada cinco crianças negras que nascem hoje no gueto é depen-
dente de drogas. Dependente mesmo antes de nascer, adquirindo o vício ain·
da no ventre da mãe que se droga, freqüentemente consumindo crack. ''A
toxicomania tem efeitos diretos e múltiplos sobre a gravidez. A cada dez cri·
anças que nascem no Harlem, uma tem um peso inferior à média. Na mater·
nidade do Grande Hospital do Harlem, em cada 3 milhões de nascimentos, a
taxa de nascituros drogados é de 15%. Chamam-nos 'bebês-coca{na'. Prema·
turos de dois meses pesam 600 gramas menos que as outras crianças nesse
estágio e correm três vezes mais riscos de morrer nos primeiros anos. Nesse
mesmo hospital, a taxa de mães que abortam naturalmente é duas vezes mais
elevada que a média."3
"O crack afeta o feto durante seu desenvolvimento, muito mais do que a
hero{na ou outras drogas."4
O "bebê-cocaína" que escapa à mortalidade infantil sofrerá durante toda
a sua curta vida os efeitos diretos e múltiplos da toxicomania sobre a gravidez:
342 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

epilepsia, paralisias, deformações, atrasos motores e mentais, agitação febril,


incomunicabilidade ...
"Os 'bebês-cocaína' correm 15 vezes mais risco de serem vítimas da 'mor·
te súbita' do que as outras crianças. Mas, para elas, a morte é talvez a melhor
coisa. Para muitos dos 'bebês-cocaína' que sobrevivem, a primeira experiên-
cia de vida é a agonia causada pela 'falta' de cocaína. Sofrem horrivelmente.
São tão sensíveis que não é possível segurá-los ou alimentá-los nonnalmente.
Movem os membros incessantemente em busca de alívio. Mesmo os mais
endurecidos dos médicos especialistas não podem suportar os gritos intolerá·
veis desses bebês. 'Nunca, no decurso da minha carreira médica, vi um sofri·
menta como aquele que é causado pela cocaína', declarou o diretor da mater·
nidade do Hospital Geral do Distrito de Columbia ao Wall Screet]oumal." 5

O genocídio

A droga espalhou-se como uma epidemia nos guetos negros americanos.


Esta banalização é fruto do acaso? Esta pergunta, apresentada a três membros
do Conselho da Cidade de Detroit, tristemente célebre pelos seus guetos,
obteve as respostas seguintes: "É uma indústria capitalista e um meio de ação
psicológica." "A droga é, em primeiro lugar, fonte de lucros. Mas foi intro·
duzida na comunidade negra para lutar contra os movimentos dos direitos
dvicos. É uma nova forma de escravatura, como, no século passado, a que o
álcool provocou nos índios. É necessário constatar que, embora ela faça estra·
gos entre os brancos, é entre eles muito melhor controlada." Depois de ter
evocado as causas sociais da toxicomania, uma terceira eleita acrescenta:" ...
Mas não se pode esquecer que a droga mantém o povo tranqüilo. 116
Afirmações de Leonard McNeil, do American Friends Service Comnúttee
recolhidas durante uma conferência sobre crack no District Tenderloin de
San Francisco, em 27 de abril de 1990, e citadas por Recoveríng Issue, em 18 de
junho de 1990: "Mas o crack, acrescentado à curta esperança de vida entre os
negros, às taxas de mortalidade infantil elevadas, à percentagem desproporci·
onada de negros encarcerados ou mortos pela polícia, aos sem-teto, aos de·
sempregados, à vida no meio de lixo tóxico, à Aids e à falta de estruturas de
saúde provam, de forma evidente, urna ofensiva deliberada contra as minorias."
Durante a mesma conferência, Daniel Sheehan, do Christic Institute, de·
senvolveu a teoria de que um mercado para o crack foi deliberadamente cria·
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABAOO 343

do pelo governo dos Estados Unidos para assegurar lucros controlando a fa,
bricação e a importação de drogas. Esses lucros são usados para financiar ope·
rações ilegais como o fornecimento de armas aos "contras" da Nicarágua.
"O fato de os afro-americanos terem se tornado o alvo da 'guerra contra a
droga' e de serem essencialmente condenados devido a este problema", diz
Sheehan, "faz parte de uma estratégia para culpabilizar as vítimas", a fim de
afastar suspeitas dos verdadeiros culpados: "os fornecedores e os membros do
governo que tentam desagregar as comunidades minoritárias e talvez mesmo
destruí-las."
"Eu estou assustado. Vamos comprometer o futuro de toda uma geração
de pessoas que não poderão encontrar o seu lugar na sociedade e dela se
tomarem membros produtivos", diz o doutor Sterling Williams, diretor do
Departamento de Obstetrícia no Harlem Hospital.7 O governo federal calcula
que no ano 2000 poderá haver de 1 a 4 milhões de crianças expostas ao crack
nos Estados Unidos. E que pelo menos 100 mil viverão em cinco quarteirões
da cidade de Nova York. 8
Um artigo publicado em 21 de abril de 1990 no Oakland Tribune mostra
sem ambigüidades que a guerra contra a droga se tornou uma guerra contra a
comunidade afro-americana. 9 Em agosto de 1996, o diário californiano San
]ose Mercury News publicou uma reportagem retumbante de um repórter do
jornal, Gary Webb, acusando a CIA de estar na origem, durante os anos 80,
da introdução do crack; "a cocaína dos pobres", nos guetos negros das cidades
americanas. Intitulada "Aliança sombria" e rapidamente difundida na edição
virtual do jornal, a reportagem acusava os traficantes de droga nicaragüenses
de terem colocado no mercado, em Los Angeles, grandes quantidades de crack
para financiar, de acordo com a CIA, a resistência dos "contras" ao regime
sandinista. A reportagem provocou comoção na comunidade negra e levou à
abertura de um inquérito interno da CIA.
A reação da CIA teve um efeito imediato inteiramente previsível. A dire-
ção do jornal iniciou uma investigação interna no final do qual admitiu ter
acusado a CIA sem provas. Jerry Ceppos, o responsável da redação, escrevia:
"Embora traficantes de droga tenham efetivamente tido ligações com os líde-
res dos 'contras' pagos pela CIA, e embora Webb pense que as relações com a
CIA eram estreitas, não creio que tenhamos a prova de que os altos responsá·
veis da CIA tenham estado a par dessas relações." (!)
Apesar deste uolce-face (espontâneo?) do San ]ase Mercury News, é pos·
sível ver, como pensam numerosos sociólogos e militantes afro-americanos,
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

que o comércio do crack da cocaína e da heroína, tal como a Aids, são outros
tantos elementos de uma conspiração secreta e inconfessável da parte do go·
vemo e da CIA para exterminar uma grande parte da população negra.

Brutalidade policial

O assassinato pelos policiais de Miami de Arthur McDuffy, um agente de


segurança negro culpado de ter ultrapassado um sinal fechado na sua moto
em 1979; as cenas do espancamento de Rodney King, outro negro, gravadas
por um amador em Los Angeles, em março de 1991; o ignóbil martírio infligi·
do a um residente haitiano, espancado e sodomizado com um bastão de ma·
<leira nas instalações da 701 delegacia no Brooklin, que provocaram um es·
cândalo e tumultos nos dois primeiros casos, são apenas uma parte visível do
iceberg.
Num país onde a opinião púbüca considera que o fato de se ser de origem
africana já é um crime, toda a comunidade negra é considerada "predisposta
ao crime" e o sistema de justiça criminal se esforça não em reduzir a
criminalidade, mas sim em prender e condenar um número cada vez maior de
"criminosos".
O jornal lnquirer, da Filadélfia, investigou as brutalidades policiais duran·
te os interrogatórios: "uma técnica consistia em cobrir a cabeça do suspeito
com uma lista telefônica, martelando-a em seguida com um objeto pesado.
Mas, em outras ocasiões, os agentes batiam nos suspeitos com canos de chum·
bo, com bastões, socos-ingleses, algemas, cadeiras e pés de mesa. Por vezes,
obrigavam os outros suspeitos a verem as brutalidades através de vidros
espelhados e os agentes da polícia diziam-lhes que eles teriam o mesmo trata·
mento se não colaborassem com a polícia".
O assassinato é geralmente usado sem provocação e com muita frcqüên·
eia. E normalmente a justificativa é que os policiais foram atacados e, portan•
to, dispararam cm legítima defesa. A um jornalista do diário francês Le Marin,
um agente de polícia da 28ª delegacia do Harlcm declarou: "Quando se mata
alguém, o processo é arquivado imediatamente. 11 10
De 1968 até hoje, o sistema judiciário foi utilizado sistematicamente para
justificar os assassinatos cometidos pelas forças da ordem e da lei contra os
membros das minorias. Lembremos somente alguns exemplos:
Mais de 30 militantes do Partido dos Panteras Negras foram assassinados
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 345

pela polícia ou por indivíduos que agiram por instigação da polícia, como depois
se provou. Todos esses assassinatos que necessitavam de uma justificativa legal
foram classificados como "homicídios justificados" (inclusive o assassinato de
Fred Hampton, morto com uma bala na cabeça disparada à queima-roupa en-
quanto dormia). Numerosos estudantes negros foram mortos durante manifes-
tações, como em Orangebourg, Carolina do Sul, em 1968 (três estudantes mor-
tos), em Jackson State, Mississippi, em 1970 (dois estudantes mortos) e na
Southem University da Luisiana em 1972 (dois estudantes mortos).
Não é possível enganarmo-nos acerca dos objetivos do programa gover-
namental quando se examinam as armas usadas nos guetos e fornecidas aos
departamentos de polícia através do país. O revólver calibre 38 foi substituído
em numerosos setores pela Magnum 357, mais potente. As balas dessas pisto-
las são capazes de atravessar o bloco do motor de um automóvel, o que signi-
fica que a utilização desta arma numa zona urbana pode facilmente provocar
numerosas vítimas, podendo um só projétil atravessar o corpo de várias pes-
soas em fila.
"Os agentes da polícia da cidade de Nova York começarão a trocar seus
revólveres calibre 38 por pistolas semi-automáticas 9 mm. Esta decisão traduz
uma alteração da posição do Departamento, que até agora tinha se recusado
a empregar armas mais potentes e mais rápidas." 11
O equipamento padrão de muitas viaturas de patrulha inclui a espingarda
antimotim calibre 12 que pode disparar balas dundum e cartuchos que con-
têm uma carga de 9 chumbos da espessura de um projétil de calibre 32. 12 Essas
espingardas são chamadas "antimotim" porque o seu cano de 45 centímetros
permite cobrir um amplo ângulo de tiro, matando ou ferindo indiferente-
mente.
Com essas armas, e no contexto repressivo do sistema político americano,
não é de surpreender que, a cada ano, mais de 600 homens, mulheres e crian-
ças dos 10 aos 81 anos, sejam mortos pela polícia. De 45% a 55% das pessoas
mortas pela polfcia são afro-americanos. Em Chicago e na Filadélfia, mais de
70% das pessoas mortas pela polícia são negras.

A justiça e as prisões

"São as suas criações, meu tio: os grilhões e os bastões. O senhor as criou


há quatrocentos anos e as utiliza até hoje. O senhor as criou. Mas isso não
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

representa mais do que uma fração da sua barbárie, meu tio. O senhor utilizou
a árvore e a corda para enforcá-lo. Utilizou a faca para castrá-lo enquanto ele
lutava com a corda para recuperar o alento. Utilizou o fogo para que ele se
contorces>e ainda mais, porque o enforcamento e a castração não eram diver·
timento suficiente. Depois o senhor utilizou outra coisa - urna das suas cria·
ções-essa coisa a que o senhor chama de lei. Era escrita pelo senhor, para o
senhor e os de sua espécie, e todo o homem que não era da sua espécie devia
infringi-la mais cedo ou mais tarde ... u
Fruto de uma longa história, o racismo americano não reside somente no
espírito dos brancos, está instirucionalizado em todas as engrenagens da soei·
edade americana. E especialmente no sistema da justiça criminal. O sinal
mais evidente desse racismo é a composição racial do sistema. Num país onde
20% dos cidadãos são de origem não-européia, o sistema de justiça criminal é
composto por 95% de pessoas de origem européia.
"No caso mais comum, o negro suspeito de ter cometido um crime é deti·
do por um policial branco, apresentado a um juiz branco, a um procurador
branco e a um júri branco, num tribunal cujos debates são registados por
escrivães brancos. O lugar habirual do negro nesse sistema judiciário nas mãos
dos brancos é o do acusado. Semelhante situação convence-o de que a justiça
é um instrumento de opressão nas mãos dos brancos e que esta situação influ·
encia a aplicação da justiça. Daí só podem resultar discriminações na acusa·
ção e na condenação. E mesmo quando os brancos, agindo dentro do sistema
judiciário, não têm preconceitos irutalados, as barreiras culturais e de classe
que se erguem entre eles e o acusado invariavelmente colocam este numa
situação desvantajosa."'!
O resultado desta justiça racista é que perto de metade (48%) das l.630.940
pessoas que povoam as penitenciárias, as prisões do Estado e as municipais
são afro-americanas, embora estas não rcpreiK"Tltcm mais do que 12% da po•
pulação. Há a mesma percentagem de negros entre os 3.350 condenados à
morte nos "corredores da morte". Nos Estados Unidos prendem-se os negros
muito mais do que na África do Sul nos tempos do apanheíd : 3.109 em cada
10 mil, contra 729 na África do Sul.LS
Um estudo desta situação mostra que não existe relação entre a taxa de
delinqüência dos negros (embora seja elevada) e a taxa do seu encarceramento,
como também não há com a proporção de negros que vivem em um estado da
federação. Num plano geral, descobre-se que o aumento para o dobro da taxa
de encarceramento constatado há cinco anos nos Estados Unidos não tem
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 347

qualquer relação com a criminalidade, que não aumentou na mesma propor·


ção (teria mesmo diminuído nos dois últimos anos, segundo relatórios triun·
fantes do Departamento da Justiça).
Em 1996, a taxa de encarceramento dos negros era de 800 por 100 mil
habitantes, contra 114 para os brancos, o que significa que um negro é sete
vezes mais suscetível de ir para a prisão do que um branco; em Illinois, por
exemplo, é dez vezes.
Éigualmente edificante comparar as taxas de encarceramento através do
mundo. Segundo os últimos números disponíveis, constata-se que nos Esta·
dos Unidos a taxa de encarceramento dos brancos é similar à que se regista na
maior parte dos países europeus ocidentais. Mas, fato inacreditável, os negros
nos Estados Unidos vão para a prisão mais freqüentemente do que os da Áfri.
ca do Sul no tempo do apartheid. De fato, a taxa de encarceramento dos ne•
gros nos Estados Unidos é a mais elevada do mundo.
A polícia prende sete vezes mais freqüentemente os homens negros e onze
vezes mais freqüentemente as mulheres negras. Formula acusações sete e doze
vezes mais, respectivamente. Obtém condenações de privação de liberdade
oito e dezoito vezes mais. E consegue condenar à prisão dez a quatorze vezes
mais freqüentemente os negros que os homens e as mulheres brancas.
Um afro-americano é intimado, ao passo que um branco não o seria nas
mesmas circunstâncias; pede-se ao negro uma fiança que se sabe muito bem
que ele não poderá pagar. Vai, pois, para a prisão, afastado dos seus, sem ter
como pagar um advogado; não pode preparar a sua defesa e é forçado a acei-
tar um defensor público que nem tem tempo de estudar o seu processo, par-
tindo do princípio que teria essa intenção. No caso mais habitual, é apresen-
tado a um juiz branco e a um júri branco e volta para a prisão. Ajustiça racista
irá condená-lo a uma pena longa por um delito real ou inventado, pelo qual
muitos brancos seriam absolvidos ou seriam condenados a urna pena de prisão
muito mais curta.
Em 1979 um estudo governamental revelava que um em cada cinco ne-
gros iria para a prisão no decurso da sua vida. Desde então isto agravou-se e
hoje esta proporção está próxima de um em cada quatro. O número total dos
afro-americanos que foram para a prisão é de mais ou menos 3 milhões, quase
a população de Chicago.
Em fevereiro de 1990, um estudo conduzido pelo Sentencing Project, urna
associação de advogados de Washington D.C., mostrou que a delinqüência
negra, aliada ao racismo do sistema judiciário americano, tinha como canse-
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

qüência que um jovem negro em cada quatro, entre os 20 e os 29 anos, estava


atrás das grades, em liberdade condicional ou em liberdade vigiada. Este estu·
do concluía que toda uma geração de negros corria o risco de ser excluída
para sempre da vida ativa. Uma geração sacrificada.
Como não ver nesta política que coloca os afro-americanos à margem
da sociedade um aspecto da execução do genocídio limitado? Mais de meta·
de dos falecimentos de prisioneiros nos estados do nordeste dos Estados
Unidos, em 1991, teve como causa a Aids, segundo o Centro de Estatísticas
Judiciais. Em nível nacional, 28% dos 1.863 prisioneiros que morreram du·
rante o cumprimento da pena foram vítimas de Aids. Em Nova Jersey, 69%
dos falecimentos de detidos estavam ligados à Aids, 66% em Nova York,
44% na Flórida, 33% em Maryland e 30% na Carolina do Sul e em
Massachusetts. 16
O Centro de Controle de Doenças de Atlanta, Geórgia, indica que os
casos de Aids estão aumentando nas prisões americanas. Estavam infectados
com Aids 5.279 presos em 1994, ou seja, 5,2 casos a cada mil detidos, quase
seis vezes a taxa da população geral adulta, que é de 0,9 por mil.'7

O "crime Bill"

No dia 19 de novembro de 1993, o Senado adotou um importante "proje·


to de lei relativo à criminalidade" que propõe, entre outras coisas, estender a
aplicação da pena de morte a mais de 60 novos crimes. Citemos especialmen·
te o assassinato de funcionários federais, o genocídio, a sabotagem que leva ao
descarrilamento de trens, o assassinato de cidadãos americanos no estrangei·
roe os assassinatos cometidos com arma de fogo transportada de um estado
para outro.
"Essa legislação, com centenas de milhares de dólares para as prisões e a
administração penitenciária, é de tal modo draconiana que nem Reagan nem
Bush teriam podido adotá-la. Na sua essência, o projeto é um programa de
emprego público que mobiliza mais de 30 bilhões de dólares para os trabalha·
dores brancos. Eis um programa social, se assim se pode chamar, que reflete
bem a evolução sociopolítica e econôrrúca dos Estados Unidos." 1 ª
Durante os debates sobre o projeto, os senadores pronunciaram-se por 52
votos contra 41 pelo adiamento do exame de uma emenda que proibia a exe·
cução de delinqüentes menores de idade.
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 349

Por 314 votos contra 111, a Câmara dos Representantes derrotou a posi-
ção do Senado sobre a pena capital.

Baseball e justiça

Em março de 1995, Jerry D. Williams, 25 anos, dois filhos, californiano e


negro, roubou um pedaço de pizza pepperoni de uns rapazes num fast food de
Redondo Beach e, por isso, foi condenado a 25 anos de prisão pela aplicação
da lei three strikes assinada pelo presidente Clinton em 1994.
Inspirada por uma regra do jogo de baseball, "Three strikes and you're
out", esta lei estipula que os reincidentes condenados por duas vezes são pas·
síveis, quando do terceiro comparecimento perante um juiz, de uma pena de
25 anos de prisão sem a possibilidade de liberdade condicional. Foi o caso de
Williams.
Um pedaço de pizza vale 25 anos de prisão, corno um assalto à mão arma-
da, como urna violação, como um assassinato. Um jornalista de t Humanité
fazia notar que "se o baseball determina a jurisprudência americana, pode-se
recear que nos próximos anos os condenados sejam pura e simplesmente en-
tregues aos leões do circo".

Condição carcerária

Apesar dos discursos dos responsáveis pelo sistema carcerário dos Estados
Unidos, elogiando a humanidade das prisões americanas, os presos e as pesso-
as que os visitam afirmam que as brutalidades nas prisões nunca desaparece-
ram e até que tornaram uma forma nova, freqüentemente dissimulada.
Foi esta divergência de opiniões que levou o Prisoners Rights Union (PRU)
de Sacramento (Califórnia) a realizar em 1989 o Prison Discipline Srudy (PDS),
uma sondagem feita com os próprios presos. O resultado desse estudo foi ob-
jeto de um Relatório intitulado Mych of Humane Imprisomnent. Mais de 70%
dos presos que responderam à sondagem declararam que as brutalidades físi-
cas e psicológicas eram a norma nas prisões de segurança máxima nos Estados
Unidos. Isolamento em solitária, supressão de "privilégios" e brutalidades físi-
cas são práticas habituais na maior parte das prisões de alta segurança.
"Os abusos físicos têm um começo e um fim, ao passo que os abusos psico-
350 O LIVRO NEGRO 00 CAPITAU MO

lógicos estão sempre presentes. Até os mai5 endureci d ão afetado por cada
pequeno pormenor desses abusos: um olhar, um novo emprego do tempo,
uma mudança da alimentação, uma carta entregue com atraso, uma visita
recusada, uma observação acerca do e nteúdo do correio. Pormenores Que
podem ter múltiplas razões e provocar sérias medidas disciplinares."
Ainda que a prática do isolamento seja c ruiderada conveniente e legal
pelos tribunais e pelas autoridades carcerárias, e e é ralvez o método mais
devastador do abuso psicológico. Embora os responsáveis pelas prisões ameri·
canas afirmem que a maior pane dos presos não passa mais do que alguns dias
em isolamento, a sondagem rev a q e esta punição é freqüentemente supor·
tada durante anos. Os pre505 afumam também que o isolamento é muitas
vezes arbitrario, em ~<pedal para os detidos que sofrem de distúrbios psiquiá·
tricos.
Muitos preso5 revelaram manobru de intimidação sobre as pessoas que os
visitam, incluindo ameaças proferidas pelos guardas a respeito de membros
das farru1ias dos detid e o assédio sexual às visitantes.
Quase 40% dos pr~ interrogados viram detidos receber tratamento psi·
quiátrico ou médico contra a ua vontade. E 32 % relataram incidentes causa·
dos por agre~õe! verba.li e iru • r.os racistas, a deterioração da alimentação,
cxtonão de dinheiro, revisw corporais e ameaças de morte - incluindo as
que foram perpetradas pd05 guardas da pri5ão do condado de Los Angeles
que eram membros da Ku Klux Klan.
Noventa por cento d05 presos entrevistados confirmaram as brutalidades
físicas, e 70% deles afumaram sofrer agressões pelo menos uma vez por mês.
Os funcionãrlos usam 05 punhos, os p6, cassetetes elétricos, gás lacrimogê·
neo, mangueiras de incêndio, lanternas elétricas, cabos de vassoura, tubos de
borracha e de espingardas que disparam balas de madeira.
Cerca de cem presos afirmaram ter vi.5ro presos al gemados sendo espanca·
dos. Quarenta tinham visto guardas entrcga.rem- se ao bod'Y slam vogar um
preso contra o chão ou contra uma parede, com a cabeça para a frente), com
presos com as mãos algemadas às costas. Trinta tinham vin o goon squads em
atuação (um grupo de guardas espancando um preso, a maior parte das vem
algemado).
Trinta e cinco mulheres interrogadas testemunharam que tinham sido
espancadas, violentadas ou amarradas nuas em cima de uma cama e sujeitai
ao deboche dos guardas. Urna delas afirmou ter perdido o seu íiltimo bebê
depois de os guardas terem atirado sobre ela com as suas scun guns.
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 351

Cinqüenta e cinco presos interrogados testemunharam abusos físicos "dis-


simulados". Consiste em os guardas provocarem combates entre os presos,
alojando detidos inimigos na mesma cela ou introduzindo inimigos ao mesmo
tempo num local comum - os guardas chamam a isso dog fights (combates de
cães) ou cock fighcs (combates de galos). Os detidos são igualmente espanca-
dos nas suas celas ou transferidos para locais de segurança para lhes baterem
longe dos olhares dos outros presos. Outros detidos lamentaram-se de serem
forçados a tarefas penosas quando estão doentes.
Apenas 10% dos detidos declararam não terem sido testemunhas de tais
brutalidades.
As principais motivações do pessoal das prisões que o levam a cometer
essas brutalidades são os seus preconceitos raciais ou políticos. Os preconcei-
tos políticos são os mais freqüentes, contra os presos que lutam contra injusti-
ças e que encorajam e ajudam os outros detidos a fazer o mesmo. Os "advoga-
dos das prisões" são o alvo mais freqüente do pessoal penitenciário. Eles ajudam
os outros presos, muitos dos quais analfabetos, a redigirem suas queixas, seus
recursos contra as prisões e os tribunais. Como o sistema interno em todas as
prisões é arbitrário, discriminatório e incoerente, a maior pane dos presos tem
constantes conflitos com a administração e a justiça. Por causa disso, os guar-
das e os administradores têm como política habitual "isolar" os "advogados".
Por fim, 30% dos presos designaram como alvo da administração penitenciá-
ria os "presos políticos".
O grupo mais freqüentemente visado depois dos "advogados das prisões"
é constituído pelos afro-americanos. Havia freqüentes queixas de "disciplina
seletiva baseada em preconceitos raciais". Denunciava-se a natureza racista
do sistema de justiça criminal que coloca na prisão um número desproporcio-
nal de pessoas não-brancas com penas mais longas e mais severas (por exem-
plo: a pena de morte).
Em seguida vinham os presos com deficiência mental. Colocados num
recinto inapropriado e sem tratamento adequado, os deficientes mentais cri-
am problemas para os guardas, que freqüentemente não encontram outra so-
lução que não seja a violência. Detestados pelo pessoal, são com frequência
alojados com os Instáveis e os agicados, corno forma de punição.
No dia 3 de maio de 1995, a imprensa foi convocada pelo governador
republicano do Alabama para assistir a um acontecimento: o regresso à prisão
dos que, com grilhões nos pés, acorrentados em grupos de cinco, foram leva-
dos para o trabalho forçado na conservação das emadas. Um espetáculo que
352 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

não se via há trinta anos. O chefe da administração penitenciária do estado,


Ron Jones, explica que esta medida foi tomada para fazer economia de pessoal
de guarda e a fim de tomar a prisão tão "desagradável" que os delinqüentes
não tenham nenhuma vontade de voltar. "Sem os ferros e as correntes, tenho
necessidade de um guarda para vigiar vinte e oito detidos. Com as correntes,
basta um para quarenta." Os presos têm um mínimo de trinta dias desse regi-
me especial: doze horas de trabalho por dia, acorrentados, sem rádio, sem
televisão, sem visitas, sem "cantina". A Flórida e o Arizona pretendiam seguir
o exemplo do Alabama .
Este método de tomar as prisões mais desumanas se dissemina: o xerife de
Phoenix, no Arizona, instalou os detidos num acampamento rudimentar, em
pleno deserto, sem o menor conforto. Em outros lugares, os presos perdem as
salas de exercício físico e a televisão, os programas de reinserção ou de trata-
mento para os delinqüentes sexuais são abandonados. Os grupos de defesa
dos direitos humanos contestam esta tendência nacional de "castigos cruéis e
inusitados", proibidos pela Constituição.

A pena de morte

O racismo tem igualmente o seu papel na aplicação da pena de morte. É


uma loteria horrível, declara a Anistia Internacional no seu Relatório de 1987
sobre a pena de morte nos Estados Unidos. Uma loteria em que alguns têm
mais chance de "ganhar" que outros. São os pobres, os afro-americanos e os
membros de outras minorias émicas.
Há hoje nos Estados Unidos 3.350 condenados à morte que esperam o
castigo no "corredor da morte", por vezes durante mais de dez anos, e a cada
ano esse número aumenta em 250 pessoas. E 48% desses condenados são
negros que, lembremos, não constituem mais do que 12% da população.
De 1967 a 1977, não houve execuções nos Estados Unidos, embora não
tenham sido suspensas as condenaçãos à morte. Em 1972, o Supremo Tribu·
nal declarou anticonstitucional e nula a lei em vigor sobre a pena de morte,
baseando-se no fato de que a maior parte das leis aplicadas até essa época
constituía um castigo "cruel e não-habitual", em violação das 8ª e 14~ emen·
das da Constituição dos Estados Unidos. Em 1976, uma moratória que sus·
pendia as execuções durante dez anos foi anulada por uma decisão do Supre•
mo Tribunal, segundo a qual a pena de morte era constitucional se fosse
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 353

pronunciada em determinadas condições. Depois disso, 38 estados reviram as


suas leis e a pena de morte foi restabelecida. De 1976 a 1997, foram executa·
dos433presos, dos quais 38 em 1993, 31em1994, 56em1995, 45em1996e
74 em 1997. O que significa que o ritmo das execuções se acelera. E isso vai ao
encontro das teorias de segurança pelas quais a opinião pública mostra sim-
patia.
A pena de morte nos Estados Unidos é racista, como todo o sistema judi-
cia\ americano. No seu relatório sobre a pena de morte, publicado em 1987, a
Anistia Internacional constatava que: "Parece que os negros culpados do as-
sassinato de brancos são condenados à morte com mais freqüência do que
qualquer outra categoria de pessoas; pelo contrário, os brancos são raramente
condenados à pena capital por terem assassinado negros." (Um antigo mem-
bro da Ku Klux Klan, Henry Francis Hays, que foi executado em 6 de junho
de 1997, foi o primeiro branco executado pelo assassinato de um negro desde
1944.) Verifica-se que, como para as outras penas, a justiça americana estabe-
lece uma ordem de gravidade dos delitos na qual são considerados mais gra-
ves os processos em que os agressores são negros e as vítimas são brancas,
seguidos dos casos em que os agressores e as vítimas são brancos, e finalmente
aqueles em que os agressores são brancos e as vítimas são negras. Éa constatação
da Anistia Internacional no seu relatório: "Nota-se que, na Flórida e no Texas,
os negros culpados de assassinato de brancos corriam respectivamente cinco
a seis vezes mais o risco de serem condenados à morte do que brancos que
tinham matado outros brancos. Na Flórida, os negros responsáveis pelo assas-
sinato de brancos arriscavam-se quarenta vezes mais a serem condenados à
morte do que aqueles que tinham matado negros." A maior parte dos negros
no corredor da morte foi acusada da morte de um branco. "Nunca um branco
foi executado pelo estupro de uma mulher negra, enquanto 54% dos negros
que estupraram mulheres brancas foram executados entre 1930 e 1967; 89%
dos homens executados por estupro eram negros." 19
Acrescentemos que, nos Estados Unidos, em geral a pena de morte é apli-
cada principalmente aos pobres. Cerca 60% dos condenados estavam sem
emprego na época da sua prisão; 65% não têm especialidade; 50% não termi·
naram o estudo fundamental; 90% são pobres demais para pagar a um advo-
gado. Na Califórnia, durante um período de oito anos, 42% dos trabalhadores
acusados de crimes de primeiro grau foram condenados à morte, enquanto
para os colarinhos-brancos a proporção era de 5%.
E, no entanto, é sabido que a pena de morte não tem qualquer poder de
354 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

dissuasão: o Canadá aboliu a pena de morte e a taxa de assassinatos baixou; a


Flórida e o Texas restabeleceram a pena de morte e a taxa de assassinato não
parou de crescer. Um certo número de psicólogos tem mesmo apresentado a
teoria de que a pena de morte encoraja um comportamento psicopático no
qual uma pessoa procura a sua própria morte numa espécie de suiddio progra.
mado.
Certas decisões recentes do Supremo Tribunal sobre os recursos apresen·
tados em vários casos de pena de morte limitaram as possibilidades de utiliza·
ção desse recurso, permitindo acelerar as execuções nos Estados Unidos, tan·
to mais que o presidente do Supremo Tribunal, o ultra-reacionário William
Rehnquist, nomeado por Ronald Reagan, propôs ao Congresso um texto gene·
ralizando essas decisões. Sustentou até uma proposta do Comitê Especial dos
Jufzes recomendando que não fosse admitido mais do que um recurso (habeas
corpus) perante os tribunais federais após a rejeição do recurso do Tribunal do
Estado.
O cúmulo do horror é que em caso de erro (erro entre aspas), este é irre·
vers{vel. Em novembro de 1985, a Associação Americana dos Direitos Cfvi.
cos revelou que 25 pessoas tinham sido executadas por erro judicial nos Esta·
dos Unidos, desde o início do século, por crimes que não tinham cometido ou
que nem sequer tinham existido. Conhecemos bem o caso Sacco e Vanzetti, o
dos Rosenberg ou William McGee. Mas quantos outros ignoramos que estive·
ram na mesma situação? Não é possível manter silêncio sobre tais atentados
aos direitos do homem.

Execuções de menores

Em outubro de 1991, a Anistia Internacional declarou que os Estados


Unidos executam mais menores de idade do que qualquer outro país no mun·
do, excluindo o Iraque e o Irã. Entre 1989 e 1994, só outros cinco países
executaram menores de 18 anos: o Iraque, o Irã, a Nigéria, o Paquistão e a
Arábia Saudita. Durante o mesmo período, oito menores delinqüentes foram
executados nos Estados Unidos, dos quais cinco no Texas.
Esta prática escandalosa dos Estados Unidos é uma violação das normas e
tratados internacionais relativos aos direitos humanos. Com efeito, segundo o
Artigo 6, alínea S do pacto internacional relativo aos direitos civis e polfticos,
"Uma sentença de morte não pode ser imposta por crimes cometidos por pes·
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABAOO 355

soas com menos de dezoito anos e não pode ser executada contra mulheres
grávidas." Do mesmo modo, segundo o Artigo 4, alínea 5 da Convenção
Americana, relativo aos direitos do homem, ''A pena de morte não pode ser
infligida às pessoas que, no momento em que o crime tenha sido cometido,
tenham menos de dezoito ou mais de setenta anos ... ". O governo americano
assinou estes dois tratados em 1977, mas ainda não os ratificou.
"Apesar deste texto, apenas nove estados americanos que mantinham a
pena de morte interditavam a sua aplicação a pessoas com menos de dezoito
anos. (...) Em dezessete estados, a legislação autoriza a condenação à morte
de menores de dezoito anos. Este limite é fixado, quer pelos textos legislativos
relativos à pena capital, quer por leis que especificam a idade em que os me•
nores podem ser julgados pela jurisdição penal. Este limite de idade é de dez
anos em Indiana e Vermont, de doze anos em Montana, de 13 anos em
Mississippi, de 14 anos em Alabama, Idaho, Kentucky, Missouri, Carolina do
Norte e Utah, de 15 anos em Arkansas, Louisiana e Virgínia, de 16 anos em
Nevada e de 17 anos no Texas, na Geórgia e em New Hampshire. Onze ou·
tros estados não especificam qualquer limite de idade."2º
Tal como para os adultos, a raça tem uma influência na condenação à
morte em numerosos estados. No Texas, oito dos nove menores condenados à
pena de morte citados pela Anistia Internacional num relatório de janeiro de
1994 eram negros ou hispânicos, como Curtis Harris e Ruben Cantu, os dois
menores executados naquele estado no decorrer do ano de 1993. Tal corno
para os negros adultos, esses acusados são mal representados e defendidos,
com freqüência por advogados inexperientes e desmotivados. Não fazem va·
ler a influência do meio e não mencionam circunstâncias atenuantes, entre as
quais deveria, em primeiro lugar, figurar precisamente a sua juventude, que os
toma influenciáveis tanto para o bem como para o mal.
Num estudo publicado em 1991 sobre os jovens condenados à pena capi·
tal nos Estados Unidos, a Anistia Internacional constatava que estes eram
oriundos, na sua maioria, de famílias especialmente desfavorecidas. A maioria
deles tinha suportado graves violências físicas ou sexuais e possuíam uma ln·
tcligência inferior à média, ou sofriam ainda de doenças mentais ou de lesões
cerebrais. Finalmente, muitos deles não tinham se beneficiado, durante o seu
processo, de uma defesa conveniente. 21
"Foi constatado que cm certos estados os menores passíveis da pena de
morte eram automaticamente julgados pela jurisdição do direito comum na
ausência de qualquer avaliação individual da capacidade do acusado de ser
356 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

julgado como um adulto. Em outros casos, é o fato de o sistema de justiça dos


menores não dispor de estabelecimentos que possam acolher condenados a
longas penas que parece, mais do que a maturidade do acusado, ser a razão
principal para o envio perante uma juridisção de direito comum.22
"Num parecer de 1989 que considerava ser aceitável a execução de me-
nores de 16 a 17 anos, o Supremo Tribunal observava que as normas interna·
cionais não eram pertinentes face 'às normas morais americanas'. Não deverí-
amos aspirar a elevar as normas morais americanas ao nível das normas
internacionais reconhecidas em matéria dos direitos do homem?" 23

Execuções de pessoas com problemas mentais e deficiências

Um grande número de presos com problemas mentais foi condenado à


morte, e numerosos outros foram já executados nos Estado Unidos. As garan·
tias internacionais, assim como um relatório da comissão presidencial em 1991,
visam a eliminação da pena de morte a acusados deficientes mentais. A resa·
lução nll 1989/64 adotada pela Ecosoc em maio de 1988, relativa à aplicação
das garantias de proteção dos direitos das pessoas passíveis de serem condena·
das à pena de morte, recomenda "suprinúr a pena de morte, tanto no estágio
da condenação quanto no da execução, para os deficientes mentais ou para as
pessoas cujas capacidades mentais sejam extremamente limitadas". O comitê
presidencial sobre deficiência mental sublinha especialmente a necessidade
de identificar os acusados desse tipo. "As pessoas acusadas que sofrem de de-
ficiência mental e que não são identificadas como tais terão grave desvanta·
gem na organização da sua defesa ... Os seus direitos correm o risco de ser
menos bem protegidos e pode acontecer que as disposições úteis à sua causa
não sejam tomadas. É pouco provável que essas pessoas sejam conscientes do
seu direito de manter silêncio ou de recusar responder a perguntas sobre sua
culpa." A Anistia Internacional reuniu informações acerca de mais de cin·
qüenta presos executados nos Estados Unidos, desde 1982, que sofriam de
deficiência mental.
Embora, em princípio, a legislação americana proíba a execução de doen·
tes mentais, a avaliação da aptidão mental de um condenado é muito super·
ficial em muitos estados. Apenas nove estados proíbem a aplicação da pena
de morte a deficientes mentais e vários deles prevêem um quociente intelec·
tual muito inferior àquele que, em 1992, foi apontado pela Associação Ame·
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 357

ricana sobre Deficiência Mental. Esta associação define a deficiência mental


como o fato de uma pessoa ter um quociente intelectual que não ultrapassa
70 a 75 antes dos 18 anos. No entanto, a Carolina do Norte só proíbe a exe-
cução se os acusados tiverem um Q.I. inferior a 60. O Arkansas só admite
deficiência mental para um Q.I. inferior a 65. Em junho de 1986, Jerome
Bowden, um negro de 35 anos, deficiente mental, foi executado na Geórgia
por ter matado uma mulher branca dez anos antes, durante um assalto. Evi-
dentemente, tinha sido julgado e condenado por um juiz branco e por um júri
cujo procurador tinha recusado todos os negros. Um psicólogo fez um teste de
inteligência de três horas na prisão. Segundo os resultados desse teste, o seu
Q.l. era de 65, número demasiado elevado para o poupar da execução segun-
do as regras da Geórgia. No dia seguinte foi executado na cadeira elétrica.
Um membro do Conselho dos Indultos teria em seguida indicado que Jerome
Bowden teria sido colocado num estabelecimento especializado se o seu Q.I.
fosse inferior a 45. Desse modo, Jerome Bowden, que tinha doze anos de ida-
de mental e que sequer compreendia o que significava uma condenação, um
ser a quem a morte a título punitivo nada representava, foi julgado inteligente
demais para viver!

As Unidades de Controle

Situada no sul do estado de Illinois, a penitenciária de Marion abriu as


portas em 1963 para substituir Alcatraz, que fechou no mesmo ano. Foi em
Marion que a Unidade de Controle começou a funcionar, em julho de 1972.
Sessenta detidos foram colocados em isolamento sensorial, e toda a prisão se
tomou uma unidade de controle em 1983.
Depois disso, os presos são fechados nas suas celas vinte e três horas por
dia, completamente isolados dos outros presos, numa cela de 2,40 m por 1,80
m, equipada apenas com uma "cama" de concreto, um lavatório e um buraco
servindo como latrina. Comem, dormem e fazem as suas necessidades nessa
cela. Sofrem violência física e psicológica: surras, pesquisas retais e outras
medidas degradantes. Os presos permanecem freqüentemente deitados, acor-
rentados à cama, por vezes durante vários dias. As visitas são limitadas, assim
como o direito de receber cartas ou material para escrever. A alimentação é
insuficiente, o acesso a cuidados médicos é mínimo. A penitenciária é vigiada
por guardas conhecidos pela sua brutalidade. As tendências suicidas provocadas
358 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

pelo isolamento sensorial e pelos programas de "modificação do compona.


rnenco" praticados ali são alarmantes. A Unidad e d e Controle de Marion tem
urna taxa de suicídios cinco vezes superior à taxa n acional.
Em 1993, uma nova unidade de controle foi abe rta em Florence 1 Colorado1
onde os poucos contatos humanos existentes e m M arion foram ainda reduzi·
dos. Marion e Florence não são casos isolados. As unidades de controle mui·
tiplicam-se em todo o país.
A prisão estadual de Pdícan Ba , n a Califórnia, abriu em dezembro de
1989 sua Securiry Housin g Uni t (SHU), concebida para o isolamento penna·
nente dos presos. Estes são en cerrados vin te e duas horas e meia por dia na
cela de 7,4 metros quadrados e não têm direi to a mais do que um período de
90 minutos de "exercício", sozinhos n um "pátio" cimentado, do tamanho de
três celas, entre muros de seis metros d e al tura e sob urna grade metálica. As
portas das celas são manobradas à distância pelos guardas e estes utilizam
alto-falantes para co mandar os reses. Estes estão sempre acorrentados e quan·
do deixam a cela são acompanhados por dois guardas armados com cassetetes.
À exceção do som de urna porta batendo ou da voz pelo alto-falante, o SHU
é perfeitamente silencioso.
A Califórnia possui urna segunda unidade de controle na Prisão de Folsom
onde as camas são substituídas por estrados de c.oncreto. Na Prisão de Stateville,
Illinois, os presos "inc.onrroláveis" são isolados em pequenas celas sem janela,
com apenas uma pequena fenda na porta para os pratos de comida. Outras
unidades do mesmo tipo existem em Coxsachie, no estado de Nova York, ou
em Labanon, Ohio, e a lista aumenta todos os anos. Segundo um estudo rea·
lizado cm 1990 pela direção de Marion, 36 estados adotaram unidades de
isolamento inspiradas na de Marion.
Os responsáveis pelas prisões afirmam que as unidades de controle sedes-
tinam aos presos considerados demasiado violentos para ficarem nas outras
prisões. Mas já em 1983 um relatório do Congresso afirmava que 80% dos
presos de Marion não justificavam esse nível de segurança. Na realidade, os
presos são enviados para Marion por outras razões: por organizar interrupções
do trabalho, praticar sua religião ou impetar muitas ações na justiça. Além
disso, muitos presos políticos são enviados para Marion. O líder do American
lndian Movement, Leonard Peltier, e o membro do Exército de Libertação
Negra, Sekou Odinga, foram enviados diretamente do tribunal que os conde-
nara para Marion, o que desmente o mito de que os presos de Marion eram
violentos em outras prisões. De resto, em 1975, Ralph Arons, 0 diretor de
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 359

Marion, declarava: "O objetivo da Unidade de Controle é dominar os com-


portamentos revolucionários no sistema penitenciário e na sociedade exterior."
Em 1987, a Anistia Internacional publicou um relatório que condenava a
penitenciária de Marion em termos extremamente severos. Esse relatório con-
cluía que as práticas de Marion violavam "as regras mínimas das Nações Uni-
das para o tratamento dos presos" e acrescentava que as condições carcerárias
de Marion constituíam "um tratamento cruel, desumano e degradante, con-
denado pela Constituição dos Estados Unidos e pela Declaração Universal
dos Direitos do Homem''.

Os presos políticos

Em 1978, numa entrevista concedida ao jornal francês Le Matin, Andrew


Young, membro da comunidade negra, então embaixador dos Estados Unidos
junto à ONU, tinha declarado: "Há centenas, talvez mesmo milhares de pre-
sos políticos nas prisões americanas." Esta frase fez com que fosse imediatamente
afastado pelo presidente Carter.
Evidentemente, não poderia haver presos políticos nos Estados Unidos,
país da liberdade de expressão. No entanto, essas centenas, esses milhares de
homens e mulheres a que Andrew Young se referia foram presos e lançados
nas prisões, alguns mesmo condenados à morte, por causa das suas idéias po-
líticas ou da sua luta pelos direitos cívicos. Foram vítimas do programa
Cointelpro (Counter Intelligence Program) aplicado pelo FBl de 1956 a 1971.
OFBI inventava contra eles acusações criminais baseado em falsos testemu-
nhos, provas forjadas, recusa de recurso ou de apelo ... Embora esse programa
já não esteja em vigor, os métodos do FBI continuam iguais. Os militantes
estão isolados, acusados de assassinos, drogados e estupradores pela imprensa
e pela justiça... o que toma difíceis os movimentos de solidariedade. A quase
totalidade desses presos pertence a minorias étnicas e o racismo toma a defe-
sa das causas ainda mais difícil. Entre esses presos políticos conta-se também
um certo número de brancos, detidos por causa da ajuda prática que deram à
causa dessas minorias. Os presos políticos sofrem condições de encarceramento
muito duras. Na sua maior parte são encarcerados em unidades de controle
destinadas a "domesticar os rebeldes e os líderes". Um capitulo é consagrado a
essas masmorras sinistras.
Os presos políticos mais conhecidos foram o pastor negro Ben Chavis e os
360 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

"Dez de Wümington", Johnny "Imani" Harris (libertado sob condicional em


1991, após uma primeira condenação à morte e doze anos de prisão), Terrence
Johnson (encarcerado em 1978 com quinze anos e libertado em 1994, após
dezesseis anos de prisão), Dhoruba Bin Wahad (condenado em 1973 à prisão
perpétua, obteve uma absolvição em 1990, depois de preso durante dezessete
anos) e Elmer "Geronimo" Pratt, antigo dirigente dos Panteras Negras da
Califórnia, preso desde 1968 e libertado sob fiança em 10 de junho de 1997,
após a pressão de um forte movimento de solidariedade internacional. Conti-
nuam atrás das grades o líder do American Indian Movement, Leonard Peltier,
na prisão desde 1976; David Rice e Ed Poindexter, ambos membros dos Pan-
teras Negras, na prisão desde 1971; e Mumia Abu Jamal, antigo dirigente dos
Panteras Negras e presidente do Sindicato dos Jornalistas Negros da Filadél-
fia, condenado à morte em 1982 e ainda hoje no corredor da morte. Todos
foram vítimas de armadilhas montadas pelo FBI.

Elmer "Geronimo" Pratt

Depois de vinte e seis anos passados na prisão, catorze pedidos de liberda-


de condicional recusados e quatro apelos infrutíferos, Elmer "Geronimo" Pratt
foi übertado sob fiança em 10 de junho de 1997, na expectativa de um novo
processo que se espera que seja imparcial. Ele cumpriu uma pena de prisão
perpétua por um assassinato que todos sabem que não cometeu.
Oeronimo é um preso político, o mais antigo preso político atual. É o
símbolo da resistência à repressão e da luta pela libertação do povo negro nos
Estados Unidos. É um veterano da guerra do Vietnã, várias vezes elogiado
oficialmente. Desmobilizado em 1968, estabeleceu-se em Los Angeles, onde
começou a participar nas atividades do Partido dos Panteras Negras. A sua
ação no partido, do qual se tomou um dos dirigentes na Califórnia, fez dele
um alvo preferencial do FBI no quadro da operação Cointelpro. Em 8 de
dezembro de 1969, a sede do partido em Los Angeles sofreu um verdadeiro
ataque militar conduzido pela polícia. Capturado com a sua mulher e sete
outros membros do partido, Geronimo foi condenado a uma pena de prisão
por "posse ilegal de arma"!
Enquanto estava na prisão foi acusado de roubo e do assassinato de uma
mulher branca cometido em 8 de dezembro de 1968 em Santa Mônica,
Caüfómia. Declarado culpado em 28 de julho de 1972, foi condenado à pri·
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 361

são perpétua. Geronimo sempre alegou ser inocente e afirmou que o caso
tinha sido montado pelo FBI no quadro da operação Cointelpro, e que no dia
do assassinato estava a 600 quilômetros do lugar do crime, numa concentra·
çáo dos Panteras Negras em Oakland. De resto, o FBI, que o vigiava constan·
temente, tinha essa pista nos seus arquivos. No entanto, quando Geronimo
pediu, em obediência à Lei de Liberdade de Informação,24 que o FBI forneces·
se esse documento, o órgão se recusou a fazê-lo.
Geronimo foi declarado culpado com base no testemunho do marido da
vítima. Este admitiu só ter visto o agressor uma única vez quatro anos antes, e
durante poucos instantes. No entanto, identificou Geronimo como sendo o
assassino, embora algumas semanas depois do crime o tenha descrito como
um homem muito grande e muito negro de pele, ao passo que Geronimo é
bastante pequeno e tinha o tom de pele mais próximo da de um índio (daí o
seu apelido).
Mas a principal testemunha de acusação foi Julius Butler, antigo membro
do partido, que declarou que Geronimo tinha dado a ele uma carta em que
admitia ser culpado do crime. Ora, foi revelado que Butler era um informante
do FBI, o que ele tinha negado durante o processo. Após a condenação de
Oeronimo, foram reveladas outras provas de irregularidades cometidas pelo
FBI durante a instrução: três informantes tinham sido colocados na equipe
encarregada da defesa de Geronimo e fornecido documentos sobre a estraté·
~a e a tática previstas, assim como sobre os depoimentos de pelo menos duas
testemunhas de defesa. Uma testemunha ocular do crime identificou outra
pessoa como podendo ser o assassino; no entanto, essa informação não foi
fornecida ao advogado de Geronimo. O FBI e a polícia de Los Angeles ti·
nham trabalhado em conjunto e trocado informações a respeito da instrução,
da detenção e do processo no caso Pratt.
A libertação de Geronimo é uma vitória. A sua vitória. A dos seus advo·
gados e de todos aqueles que, nos Estados Unidos e em todo o mundo, fizeram
campanha pela sua libertação. É também um imenso encorajamento para as
lutas pela libertação dos outros presos políticos no Estados Unidos.

Leonard Peltier

Leonard Peltier, índio Anishinabe-Lakota (sioux), é um dos líderes do


American lndian Movement (AIM) desde 1970. Cumpre atualmente o seu
362 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

vigésímo segundo ano de encarceramento por um crime que não cometeu,


vítima de um conluio entre o FBI e a justiça americana para neutralizar o
AIM, após a ocupação de Wounded Knee, na reserva sioux de Pine Ridge, em
1973.
Leonard foi condenado a duas penas de prisão perpétua consecutivas pelo
assassinato de dois agentes do FBI nessa mesma reserva, em Dakota do Sul.
As acusações pelas quais foi preso, assim como as "provas" que levaram à sua
condenação, foram inteiramente fabricadas pelo FBI, que apresentou provas
falsas, relatórios balísticos falsificados, ameaçou e intimidou testemunhas para
levá-las a assinar depoimentos falsos. No entanto, até hoje nenhum tribunal
conseguiu provar sua culpa. Muito pelo contrário, quando dos seus processos
e recursos, juntaram-se numerosos elementos provando o procedimento do
FBI. Num telex de 31 de outubro de 1975, os peritos em balística do FBI
relatam que nenhuma das balas encontradas no lugar do tiroteio podia
corresponder à espingarda que pertencia a Leonard Peltier. Esta prova foi re·
tirada do processo e só reapareceu, com outros documentos, graças à Lei de
Liberdade de Informação. Além disso, o FBI utilizou declarações falsas para
obter a extradição de Leonard Peltier do Canadá para os Estados Unidos, o
1
1
que constitui uma grave violação do Direito Internacional e do tratado de
extradição existente entre os dois países. À luz dos novos elementos que pro·
vam a atitude condenável e práticas impróprias quando da acusação, o procu·
rador-geral Lynn Crooks admitiu em 9 de novembro de 1992, perante o Oita·
vo Juízo do Tribunal de Relação de Saint Paul (Minnesota): "Nós não podemos
provar que ele matou esses agentes." No entanto, esse mesmo tribunal recu·
sou, em 1993, a revisão do processo que teria pemútido demonstrar a inocên·
eia de Peltier e provar as ações do FBI e do governo americano nesse processo.
Em março de 1996, apesar do parecer favorável do procurador, o Departa·
mento Federal de Libertação Condicional se recusou, mais uma vez, a conce·
der a Leonard a liberdade condicional e informou que poderiam estudar no·
vamente sobre o seu caso... em 2008. Doze anos de esperai
Privado dos cuidados necessários, Leonard Peltier ficou cego de um olho e
o seu estado geral é preocupante. A única esperança que lhe resta é o presi·
dente Clinton, que não respondeu ainda ao pedido de indulto presidencial
enviado por Leonard em 1993.
ESTADOS UNIDOS: O SONHO INACABADO 363

Mumla Abu Jamal

Mumia Abu Jamal foi educado na Filadélfia. Foi um dos membros fun-
dadores (aos 15 anos) do Comitê dos Panteras Negras da Filadélfia, onde
iniciou a sua carreira de jornalista. Escrevia no jornal do partido como minis·
tro da Informação do comitê local.
Prosseguiu a sua carreira de jornalista como comentarista em diversas es-
tações de rádio da cidade. Durante os anos 70, Mumia publicou vigorosas
críticas à polícia da Filadélfia e ao seu chefe, Frank Rizzo. Rejeitou a versão
apresentada por Rizzo do cerco policial de 1985 contra a organização negra
Move, em Powelton Village, no qual participaram mais de 600 agentes anna-
dos e que tenninou com a morte de onze membros do movimento (seis adul-
tos e cinco crianças). O seu engajamento na luta a favor dos pobres e dos
discriminados valeu a ele o título de a voz dos sem-voz. O seu empenho nessa
forma de jornalismo fez com que fosse despedido da sua estação de rádio. Foi
obrigado a trabalhar como motorista de táxi à noite para alimentar a sua família.
No dia 9 de dezembro de 1981, um pouco antes das quatro horas da ma·
nhã, circulando no táxi e vendo um policial espancando seu irmão, correu
para ajudá-lo. Os policiais chamados pelo agente Faulkner encontraram-no
deitado no chão, atingido por balas nas costas e no rosto. A alguns passos,
sangrando, estava Mumia Abu Jamal. O revólver calibre 38 que ele comprara
depois de ter sido assaltado duas vezes foi encontrado no local. O policial
Faulkner morreu uma hora depois do tiroteio, no mesmo hospital universitá·
rio onde Mumia foi submetido a uma intervenção cirúrgica: uma bala dispara-
da pela anna de Faulkner tinha atingido-o no peito e se alojado perto da
coluna vertebral.
Alegando inocência, Mumia Abu Jamal foi acusado do assassinato dopo·
licial, apesar do testemunho de quatro pessoas que afim1avam ter visto um
terceiro homem disparar e fugir. Foi entregue à justiça no início de 1982. O
processo foi confiado ao juiz Sabo, conhecido como "o rei do corredor da
morte", que tinha o recorde das condenações à morte nos Estados Unidos:
31, das quais 29 de negros. Era, além disso, membro do mesmo sindicato da
polícia que Faulkner: a "Fraternidade da Polícia", o que põe em dúvida a sua
imparcialidade.
O processo foi clássico, tratando-se de um negro. Mumia Abu Jamal foi
impedido de escolher advogado e privado dos meios financeiros necessários à
sua defesa. Foi proibido de exercer ele mesmo essa defesa. Foi-lhe imposto um
364 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

advogado conhecido pela sua incompetência. Todos os jurados negros, exceto


um, foram excluídos do júri. A lista das irregularidades que "adornaram" o
processo é longa: suborno e intimidação de testemunhas; dissimulação de pro·
vas favoráveis à defesa; politização excessiva na fase final do processo, com a
utilização dos dossiês do FBI relativos às suas atividades no Pa.rtido dos Pante·
ras Negras como provas definitivas "justificativas da pena de morte"; recusa
de, no recurso, levar em conta as revelações de testemunhas arrependidas
denunciando o estado de intimidação policial quando do processo de 1982 e
afirmando terem visto outro homem armado fugindo do lugar do tiroteio. Por
fim, a manutenção no processo do juiz Sabo, apesar de este já estar aposentado.
Em 2 de julho de 1982, Mumia Abu Jamal, acusado de homicídio VO·
\untãrio, foi condenado à morte pelo juiz Sabo. Deveria ter sido executado
em agosto de 1995. Graças à pressão de um poderoso movimento internacio·
nal, Mumia conseguiu o adiMnento da execução, mas o juiz Sabo descartou a
abertura de um novo processo até a sua aposentadoria em 26 de novembro de
1997.
No momento em que esr.as linhas são escritas (fevereiro de 1998), o Su·
premo Tribunal da Pensilvânia examina as conclusões do 6ltimo apelo apre·
sentado pelos defensores de Mumia Abu Jamal. Em caso de rejeição, que será
seguido de um mandado de execução, um 6\timo recurso poderá ser feito em
nível federal.
Do fundo da sua cela. há dezesseís anos, Mumia nunca cessou de escrever
artigos e de militar pela justiça e contra o racismo. Escreveu duas obras impor·
cantes: Llve from Death Row e Deaih Blossoms (The Plough Publishing House
Editors, Farmíngton PA, USA) .

Robnt Pac ~jornalista, empenhado há maU de 25 ano. ru luta ao lado dos negros, dos índios
e dos membros de ou1ns minorias ~miau das cru ~r!c.as. É au!Dr de As gwma.s índias hoít·

Now:

1. Handrew Hacker in Two Nadons, C/imkJ Scribner'J Son, Macmillan Publi.!híng Company,
Nova York, 1992.
2. Gcnocide USA, WorlcLn Vanguard nP 463, 21 de outobro de 1988.
3. !.'. Humani!é, 22 de fevereiro de 1990.
4. N.:w York Pasi, 9 de maio de 1990.
5. N.:w York Posi, 9 de maio de 1990.
ESTAOOS UNIOOS: O SONHO INACABADO 365

6. Citado cm l'Humanlré, 8 de novembro de 1988.


7. New York Post, 9 de maio de 1990.
8. Citado em I.:Humaníté, 8 de maio de 1990.
9. People5 Daily World, 3 de maio de 1990.
10. u Marin suplemento, 29/30 de dezembro de 1979.
li. /nremacional Hera/d Tribune, 23 de agosto de 1993.
12. Center for Research on Criminal Justice, Berkeley, Califórnia, The Iron Fist and Velvet
Glove.
13. ln Par la pecice porte, de Emest J. Gaines, Liana Levi Editor, 1996.
14. Lennox Inds, in Illusion ofJustice, Universicy of Iowa, 1978.
15. Sentencing Project 1991.
16. /ncemacional Herald Tribune, 14 de setembro de 1933.
17. lnremational Herald Tribune, 617 de abril de 1996.
18. Mumia Abu Jamal in En direct du couloir de la mort, édições La Découvcrtc, 1996.
19. Anistia Internacional, Relatório sobre a pena de morte, 1987.
20. Anistia Internacional, Relatório sobre a pena de morte, 1987.
21. Anistia Internacional: Estados Unidos, Menores no "corredor da morte" (lndcx A 1: AMR
51f23.i91, publicado em 1991).
22. Greenwald Helene B., Capital Punishement for Minors: An Height Amendment Analisys,
inJ011mal of Criminal l.Aw and Criminology, volume 74, n2 74, 1983.
23. Anistia Internacional, documento interno, Londres, janeiro de 1994.
24. Fmdom of lnformacion Acc (Lei de liberdade de informação), vacada pelo Congresso em
1966 e revista em 1974 num sentido liberal, garantindo a cada cidadão americano o
direito de acesso às "fichas" e outras "informações" na posse das autoridades que os pre·
judicariam ou teriam prejudicado.
·---......-.--.- ------
CENTENÁRIO DE UM GENOCÍDIO EM CUBA
-A "RECONCENTRAÇÃO" DE WEYLER
JEANLAILLE
• 1
Um livro negro do capitalismo na América Latina, se se quisesse exausti·
vo, deveria ser um trabalho documental, reunindo as obras lústóricas em
matéria de penetração a ferro e fogo do capitalismo plenamente triunfante,
desde o Rio Grande até a Terra do Fogo. Outro método consistiria em lançar
luzes sobre um ou outro episódio mais conhecido dos lústoriadores que do
grande público, mas significativo dos desgastes irreparáveis que podem ser
imputados aos ferozes apetites imperialistas britânicos, franceses e depois
americanos impondo a lei do capital colonial, submetendo os povos que mal
acabavam de se livrar do jugo do imenso império feudal hispano-português.
Pensa-se então nas inumeráveis vítimas em torno das ilhas Malvinas desde
que a Inglaterra viu ali um interesse baleeiro em detrimento da República
Argentina, em torno do opulento Paraguai com a Tríplice Aliança (Argenti-
na, Brasil, Uruguai) que em 1870, após cinco anos sangrentos, exterminou
toda a população masculina dessa encruzilhada de grandes rios navegáveis.
Pensa-se nos dissabores do Peru, da Bolívia e do Chile ainda mal independen·
tes porque o guano, destronado mais tarde pelo nitrato chileno, provocou
cinco anos da guerra dita do "Pacífico", de 1879 a 1884, em nome dos interes-
ses capitalistas, dilacerando um ou outro desses três países, arbitrados pelos
Estados Unidos, e privando a Bolívia do seu acesso ao mar. Morrer por fertili-
zantes tão lucrativos não impediu os bolivianos e os paraguaios de se matarem
nos combates fratricidas da guerra do Chaco (60 mil vítimas, segundo parece)
por duas companhias de um petróleo que em seguida nem foi explorado. Como
fazer uma escolha entre o cone sul e os confins do istmo central onde as
companhias fruteiras penetraram pelo ferro da moderna pirataria ferroviária
em proveito da United Fruit, da Colômbia até a Guatemala?
Como falar do "Papa verde" melhor do que Miguel Angel Asturias, ou das
greves bananeiras corno Gabriel Garda Márquez? Como tratar a exploração
da terra brasileira tão intensamente quanto Jorge Amado nos seus romances?
Ou como apreciar melhor o slogan "Terra e Liberdade" do que nos afrescos
mexicanos de Siqueirosl
Uma vez escrito, este livro negro terá os seus detratores saídos da eterna
coligação de liberais e conservadores para tomarem a defesa das virtudes
civilizadoras, corno antes deles o fizeram os espanhóis rejeitando, sob o nome
370 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

de "lenda negra", a menor crítica do seu império americano evangelizado pela


espada e pelo fogo. Esse debate ressurgiu em 1992, quando a celebração do
quinto centenário da descoberta da América suscitou polêmicas no momento
da Exposição Universal de Sevilha: a tese do encontro entre dois mundos, a
do choque e a da destruição pura e simples. Foi por essa palavra "destruição"
que o escândalo chegou em 1552, pela pena desse bispo de Chiapas Gá en·
tão!) chamado Bartolomé de las Casas que está na origem da tão controversa
"lenda negra". Intitulado Muito breve relação da destruição das Índias, o seu
tratado teve uma difusão imediata na Espanha e na América e tomou-se uma
fonte de longas discussões com a autoridade colonial. Ele desembarcou inici·
almente em Cuba, ao fim de seus estudos em Salamanca, e constatou a funes·
ta sorte dos pacíficos índios da ilha, e o seu próximo texto ecoaria, séculos
depois, no discurso de boas-vindas do presidente Fidel Castro ao papa João
Paulo I1 no dia 21 de janeiro de 1998: "não encontrareis aqui os pacíficos e
doces habitantes que j>Ovoavam esta ilha quando os primeiros europeus aqui
aportaram? Os homens foram quase todos exterminados pela exploração e
pela escravatura que não conseguiram suportar, as mulheres foram converti·
das em objetos de prazer ou em escravas domésticas. Houve também os que
morreram sob o fio das espadas homicidas ou vítimas de doenças desconheci·
das que os conquistadores trouxeram consigo. Alguns missionários deixaram
testemunhos dilacerantes de protesto contra tais crimes. (...) Em condições
extremamente difíceis, Cuba acabou por constituir uma nação. Lutou sozinha
com insuperável heroísmo pela sua independência. Sofreu para isso, há cem
anos, um verdadeiro holocausto nos campos de concentração onde pereceu
uma parte considerável da sua população, principalmente mulheres, velhos e
crianças; crime dos colonialistas que, embora possa estar esquecido pela cons·
ciência da humanidade, não é por isso menos monstruoso."
Temos, pois, com Cuba as duas pontas de um livro negro que se abre a
partir de 1492 e que ainda não se fechou, urna vez que este povo recusa há
quarenta anos "submeter-se à imposição e ao império da maior potência eco·
nômica, política e militar da história". Por que não folhear urna dessas páginas
negra~ do capitalismo na América Latina, escrita pelo próprio capitalismo há
exatamente um século, quando ele adquiria a sua expansão açucareira em
Cuba, último farrapo desse império que durante cinco séculos foi explorado
pela coroa espanhola? No momento em que o poderoso vizinho do Norte se
dispõe a colher esse fruto maduro, a Espanha humilhada agarra-se vergonha·
sarnente a ele, e é sob as ordens do capitão-general Don Yaleriano Weyler que
CENTENÁRIO DE UM OENOCfDIO EM CUBA 371

se inicia a "reconcentração", afinal a deportação de um povo na sua própria


terra, de 1896 a 1898. 1

Uma colônia em suspensão (espera?, sursis?)

Cuba era, no século XVII, o primeiro produtor mundial de açúcar de cana,


tendo a rentabilidade dos escravos negros nos imensos domínios da colônia
espanhola possibilitado abrir, desde a primeira metade do século XIX, a era do
capitalismo açucareiro no setor agrário já existente desde Havana até Matanzas.
Os quatro engenhos de açúcar de 1784 eram 22 antes de 1830, situados nas
proximidades dos portos nas zonas cada vez mais vastas conquistadas à flores-
ta subtropical, que tinham uma espantosa fertilidade. A existência de ancora·
douros marítimos ou fluviais permitiam, em 1830, exportar 90.492 toneladas
métricas para a Europa. Os proprietários de bens primários, no seu otimismo
de classe em expansão, viam-se confrontados com o encarecimento dos cus-
tos de produção. Em 1820, a Espanha viu-se obrigada, por pressão inglesa, a
abolir o tráfico de negros, cuja compra clandestina ficava mais cara a cada
dia, ao mesmo tempo em que apareciam na França as primeiras fábricas de
açúcar de beterraba. Mas pagar escravos de contrabando não dispensava o
transporte das mercadorias à medida que as zonas de produção se afastavam
das costas.
Eis como o capitalismo açucareiro teve necessidade da via férrea para se
desenvolver. Já não era possível, com as colheitas cada vez mais abundantes,
transportar cargas pesadas em direção aos portos por caminhos pedregosos e
poeirentos na seca e impraticáveis durante as chuvas, quando animais de car·
ga e carros atolavam. Os proprietários dos engenhos de açúcar perdiam di-
nheiro consertando caminhos e estradas. A alimentação de um negro, à razão
de duas refeições diárias, ficava por real e meio, ao passo que eram necessários
três reais para alimentar um boi. Eis o porquê de terem se voltado para a
ferrovia, para cuja construção os primeiros capitais foram reunidos em 1830
mas que só prosperou a partir de 1837, quando em 19 de novembro, dia do
aniversário da rainha Isabel II, onze anos antes de na metrópole espanhola, os
quarenta mil quilômetros de Havana a Bejucal foram colocadas em funciona-
mento. Esta linha desempregava 1.200 carroceiros e outros tantos escravos
negros ao seu serviço, sem contar 300 ou 400 condutores de mulas. Eis como,
sem que faltassem acionistas cubanos, se criavam sociedades anônimas entre·
372 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

gues a todo tipo de "cavalheiros de indústria" que tinham facilidade em apre·


goar as suas pretensões num domínio em que os próprios europeus davam os
primeiros passos. Era preciso sobretudo ter boas relações em Londres e, para
isso, ter intermediários norte-americanos que, possuindo plantações em Cuba,
ofereciam as suas relações e os seus capitais, porque uma locomotiva só podia
ser inglesa. Os capitalistas da ilha desconfiavam do governo colonial, arbitrá·
rio e corrupto. Por seu lado, os banqueiros de Londres não tinham qualquer
confiança nas finanças de Madri. Era portanto necessário que o banqueiro
inglês Robertson emprestasse dois milhões de pesos, garantidos pelas receitas
fiscais dos portos cubanos, a começar pelo porto de Havana. Foi assim que a
primeira ferovia hispano-americana foi cubana. Um testa-de-ferro, Don Clau·
dio Martinez de Pinillos, bem cotado na corte de Madri, administrador do
fisco colonial, garantia a Havana o empréstimo inglês. Tendo cada um deles
metido o bolso a sua respectiva comissão, as locomotivas e os vagões chega·
ram finalmente de Londres e o.s trabalhos puderam começar, não sem que o
cônsul da Espanha em Nova York tivesse recrutado engenheiros americanos
munidos de contratos excelentes.
Os engenhos tinham· se tomado "centrais açucareiras". Essas verdadeiras
fábricas recebiam a cana a partir de campos cada vez mais afastados e os seu
raio de ação não parava de aumentar, até englobarem o leste de Cuba, ainda
ignorado pelos plantadores de cana. Só restava aos grandes investidores liga·
dos aos Estados Unidos comprar as linhas para que a ferrovia ligada aos lati·
fúndios açucareiros fosse o vetor da sacarocracia americana, cobrindo toda a
ilha sob a égide do poder colonial espanhol. Esperaremos pacientemente o
fim do século para vê-lo ser confiscado em proveito do imperialismo norte·
americano. Comélius van Home, construtor do "Canadien Pacifique", cujo
pai tinha levado a cabo a conquista do açúcar pela ferrovia, foi um daqueles
que triunfaram tanto que no momento da sua morte podia dizer: "Quando
penso em tudo o que eu poderia fazer, gostaria de viver 500 anos ... " Em 1902,
o governo Estrada Palma, da pseudo-república cubana, levava o seu servilis·
mo ao ponto de propor ao Congresso liberar fundos públicos durante três
anos para pagar a van Home os juros do capital que ele tinha arriscado numa
linha que ainda não tinha dado nada ... Mas não antecipemos esse século XIX
que viu Cuba revoltar-se duas vezes contra os dois domínios coloniais que ela
não aceitava suportar, mesmo se estes dispunham de poderosas ligações
internas.
CENTENÁRIO DE UM GENOCfDIO EM CUBA

Oúltimo quarto de hora


Enquanto a administração espanhola se caracteriza por uma corrupção e
um absolutismo em contraste com as proezas dos libertadores da parte conti·
nental do Império, é como reação dos setores abastados (combinada com um
profundo descontentamento popular) que irrompe em 1868 a primeira Guer·
ra de Independência, vista com suspeita pelos Estados Unidos, que recusam o
seu apoio, e com indiferença pelos europeus. A coroa espanhola tem com que
se preocupar: a proclamada solidariedade dos antigos vice-reinos em plena
emancipação. Dez anos de guerra, de 1868 a 1878, levaram à falsa paz de
Zanjon, que não acertou nada senão as tímidas leis emancipadoras dos negros
cubanos. Este período cobre o ensinamento da dignidade nacional que ema·
na de José Martí, "o apóstolo da independência" (1853-1898), ele próprio
influenciado por letrados formados na "escola das Luzes" desde o início do
século XIX no próprio seio das mais respeitáveis instituições humanistas da
colônia. As tendências reformistas e revolucionárias dividiam os cubanos en·
tre os partidários da pura e simples anexação aos Estados Unidos ou de um
prudente grau de autonomia face à coroa espanhola, e aqueles que, partidári-
os da revolução, não viam qualquer vantagem a não ser na independência
real.
Desde o malogro da "Guerra Chica", em 1878, quando os Estados Unidos
tinham (já então) fechado o seu mercado ao açúcar de Cuba, os cubanos
compreenderam que a independência não era uma simples questão de senti·
mentas. Tinham necessidade dela para negociar tratados de reciprocidade ou
para figurar bem no sistema norte-americano.
Quinze anos mais tarde, os mais eminentes lutadores inspirados por José
Martí iniciaram novas campanhas militares para libertar Cuba do jugo espa-
nhol. Em 1895, a guerra alargou-se de leste a oeste, tomando proporções bem
maiores que as do conflito anterior. José Martf foi morto em 19 de maio de
1895, no momento em que tentava interceptar uma coluna espanhola de 600
cavaleiros. Esse revés duplicou as forças dos patriotas sob as ordens de Maximo
Gomez e Antonio Maceo que, no final de 1895, invadiam o oeste de Cuba,
penetrando na rica região de Matanzas, onde queimaram as plantações, im-
pedindo a colheita e paralisando quase inteiramente a indústria açucareira
por falta de matéria-prima. De 1.034.794 toneladas em 1895, a safra cai para
232.068 toneladas no ano seguinte, e para ainda menos em 1897, em conse·
qüência da ação militar dos guerilheiros mambises,2 que obrigou as tropas
37'4 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

coloniais a se recolherem às guarnições fortificadas. Ao mesmo tempo, o pre·


ço do açúcar caía para a metade, enquanto a máquina a vapor, mecanizando
a elaboração e a produção do açúcar, tinha mobilizado capitais enormes para
a substituição dos negros libertados em 1886. Daí os enorn1es investimentos
americanos substituindo os dos banqueiros ingleses e acionistas espanhóis que
vêem ameaçada sua soberania colonial. As ferrovias aumentam as tarifas, o
transporte de tropas representa metade do movimento: como esse serviço
não era cobrado da autoridade militar, era preciso recuperar com o açúcar. E
a introdução do trabalho assalariado significava que uma nova despesa abria
na coluna dos preços de revenda .. . No entanto, a multiplicação dos desastres
militares na ilha, as enormes somas de dinheiro que a obstinação do governo
de Madri gastava para vencer aquela última guerra colonial, a incompetência
do estado-maior, a impopularidade do serviço ultramarino entre os recrutas,
que não hesitavam em apelar para a automutilação para fugir do uniforme, o
pesado passivo da corrupção colonial, tudo recomendava que Don Antonio
Canovas dei Castillo, o chefe do governo espanhol, acabasse com a guerra o
mais depressa possível e por quaisquer meios. Impaciente e autoritário, hesi·
cava em conceder a Cuba uma autonomia que recusava à Catalunha. Não
resistiu à maior oferta da oligarquia ligada aos interesses coloniais nem aos
oficiais que reclamavam uma guerra sem tréguas contra os rebeldes cubanos.
Para capitão-general para Cuba ele nomeara Arsenio Martinez Campos, o
mesmo que, em 1874, à frente de um punhado de homens, tinha posto fim à
primeira República Espanhola e restaurado Afonso XII sem disparar um único
tiro. Ele sequer conhecia Cuba: em julho de 1895, derrotado no combate de
Peralejo por Antonio Maceo, propôs ao seu chefe do governo escolher uma
estratégia própria para liquidar de uma vez por todas aquela rebelião. Todas as
medidas militares adotadas revelavam-se ineficazes contra as tochas incendi-
árias dos guerrilheiros que destruíam as plantações. Os comboios que trans-
portavam cana eram precedidos por locomotivas destinadas a reconhecer o
terreno, fortins eram construídos ao longo da via férrea em cada entronca-
mento, ponte ou estação. Os jornais ilustrados de Madri publicavam reporta-
gens com gravuras de comboios destruídos na sabotagem das pontes da ferro-
via da época. Nada foi feito, salvo a vontade ainda maior dos comerciantes e
fornecedores do açúcar de se protegerem atrás das baionetas espanholas. Re-
cordaram-se então de um oficial conhecido como "o homem de ferro", que já
se tinha distinguido na "Guerra dos dez anos" (1868-1878) pela sua crueldade
contra a população civil, e nomearam-no capitão-general de Cuba em substi-
CENTENÁRIO DE UM GENOC(DIO EM CUBA 375

tuição a Martinez Campos. Foi Don Valeriano Weyler,3 conhecido pela sua
imaginação repressiva. Reconhecendo que esta guerra era diferente da que a
precedera, o próprio Martinez Campos tinha proposto tirar a água do aquário
para assim capturar os peixes: um chefe tão experiente como Weyler era ca-
paz, disse, de aplicar essa medida de "reconcentração" que pessoalmente o
repugnava. O processo já tinha sido utilizado, embora em menor escala, du-
rante a "Grande guerra", mas sem ter alguma vez ultrapassado o número de 40
mil civis reagrupados depois de terem sido forçados a abandonar suas aldeias.
Este processo político-militar foi portanto aplicado com a finalidade de privar
de provisões, homens e cavalos as forças "mambises", que recebiam suprimen·
tos de todas as aldeias e dos campos, onde eles estavam como peixes na água.
Após as primeiras experiências, foi em 21 de outubro de 1896 que Weyler
publicou uma ordem de campanha em que decretou a "reconcentração" de
todos os habitantes em certos aglomerados, e tudo isso num prazo de oito
dias, proibindo a retirada de alimentos das aldeias ou o seu trânsito por mar
sem uma permissão das autoridades militares espanholas. À população, acres·
centou o gado.
"Centenas de milhares de pessoas foram reunidas. Em poucos dias, as lo-
calidades que tinham guarnições sediadas transformaram-se em imensas pri·
sões para velhos, mulheres e crianças sem meios de subsistência. Depois de
terem reunido as pessoas, as tropas espanholas tinham carta branca para arra·
sar tudo, queimar as habitações, destruir os campos e sacrificar os animais que
não podiam subtrair às necessidades de aprovisionamento do exército de li·
bertação", explica o coronel Raul lzquierdo Canoso, que acaba de publicar
um estudo intitulado A reconcentração 4•

Um verdadeiro genocídio

Esta medida foi aplicada durante os dois anos que durou a missão de Weyler
em Cuba, 1896 e 1897. Foram encontrados indícios dos acontecimentos nos
arquivos da ferrovia cubana: "É verdade que a terceira classe é aquela que
transporta o maior número de viajantes da Companhia. E, como a maioria
deles são jornaleiros que foram reconcentrados nas vilas e aldeias sem sequer
oindispensável para se alimentarem, estavam ainda mais desprovidos de mei·
os para se deslocarem. Tendo as autoridades da cidade [de Matanzas] deseja·
do que eles regressassem às antigas aldeias de onde tinham vindo aos milha-
376 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALJSMO

res, a Companhia forneceu a todos bilhetes gra tuitos durante os mesesde


abril e maio de 1897, para que pudC$Cm voltar para as zonas de cultur.i, ou
para fazer com que deixassemesta cidade, onde s6 podemviver da mendicãn·
eia. Desse modo, 2.325 peswas puderam r transportadas, mas foi preciso
repetir a operação em dezembro para que tod os reconcentrados que aqui
viviam pudessem ir procurar trabalho nas fá ricas de açúcar e preparar asafra
da cana." Assim, transportaram-se mais 2. -s 1. Este documento data bem a
duração desse reagrupamento desumano iniciado em meados de 1896 eim·
posto militarmente cm outub , mas mrnado insuportável desde o final de
1897, porque apesar de rudo era preciso aumentar a produção do açúcar, que
estava cm queda livre, sem contar e o Estado não remunerava suficiente·
mente o transporte da! unidad militares de reforço que desembarcavam
maciçamente durante todo o ano e 1897. Em 1896, a ferrovia de Matanzas
tinha faturado aos tran:spom:s militares 117.398 pesos e não tinha recebido
mais do que 77.81 6: a difercnça era considerada como serviços gratuitos em
benefício do Estado. No em.anca, a companhia conseguiu distribuir aos seus
acionistas 2%de divtdendos. tendo, em 1896, recebido, alojado e transporta·
do 4.322 soldados d~mbarcados da Espanha em Regia, entrada do porto de
Havana.
A Espanha acabou encerrando esta operação de esvaziamento, mas sim·
piesmente porque ela foi makuc.ed:ida em todos os seus aspectos. A política do
último quarto de hora correspondia em.ão ao slogan ~ até o último homem, até
a última peseta" que foi necõSário abandonar nesse triste fim de 1897 quando
o general Ramón Blanco chegou a Havana em substituição a Weyler com as
instruções bruscamente al terad.aJ para "nem mais um homem, nemmais uma
peseta!" Genocídio agravado pela premeditação: era apenas uma experiência,
não deu cm nada. A ponto de novamente se peruar em instalar um governo
autônomo, idéia rapidamente colocada de lado, uma vez que, não podendo
conceder a Cuba o que se rec usava ~ Catalunha, dilacerada pelas convulsões
do anarquismo nascente, dá-se a esta, embreve, o pre ente de um novo capi·
cão-general que se chama ... Don Valeriano \Veyler. Barcelona vivia então uma
epidemia de bombas e de arentados que acrescentava uma referência cubana
aos seus alvos. Em 1892, o general Martinez Campos escapava a uma bomba,
mas Canovas dei Castillo estava em tratamento nas termas de Santa Aguda,
em 8 de maio de 1897, quando foi assassinado pelo anarquista italiano
Angiolillo. Era a resposta às prisões maciças com que Weyler superlotara os
calabouços de Monrjuich com supostos anarquistas ou com inofensivos
CENTENÁ.RIO DE UM GENOCIDIO EM CUBA 377

anticlericais, horrivelmente torturados ou executados: não deixava de ter boas


referências aquele que fora capitão-general de Cuba.
Como em Barcelona, a "reconcentração" de Weyler fazia inocentes paga-
rem o preço da política de extermínio decidida pelo governo colonial e, num
caso como no outro, a engrenagem clássica da escalada funcionou como um
bumerangue. A maioria dos homens ameaçados por este "reagrupamento"
escolheu juntar-se ao exército de libertação, assim como em Barcelona se
juntava ao anarquismo em função dos horrores de uma repressão que provo-
cava gigantescas manifestações de indignação até Trafalgar Square.
Que preço tinha então sido pago pelo povo cubano? É ao mesmo tempo
difícil e fácil estabelecer os números, uma vez que a sua fonte é americana;
mas eles os teriam inflacionado cinicamente para poderem justificar a sua
intervenção militar de 1898 que, entre outras boas razões, pretendia ter uma
preocupação humanitária contra o horrível colonizador espanhol. Temos os
números do recenseamento de 1887: 1.631.676 (sendo 1.102.887 os brancos,
orestante negros, mestiços e asiáticos). E o recenseamento de 1899, realizado
pelo governo intervencionista dos Estados Unidos, que somou 1,570 milhão.
Adiminuição constatada não é significativa, uma vez que Cuba já lhes per-
tencia e eles se instalaram em número elevado. O registro dos falecimentos
em 1898 somou 109.272, em grande parte imputáveis à fome e às doenças,
devidas ao bloqueio naval estabelecido desde a declaração de guerra dos Esta-
dos Unidos à Espanha, tornando ainda mais crítica a sobre .ivência das víti-
1

mas da "reconcentração". Um relatório da Cruz Vermelha dos Estados Uni-


dos, enviado de Havana, descrevia em outubro de 1898 que dezenas de
milhares de pessoas perambulavam pelas ruas, inclusive gente abastada que
nada tivera a ver com a "reconcentração", e tiravam do lLxo uma subsistência
miserável. Clara Barton, presidente da Cruz Vem1elha americana, tinha envi-
ado alimentos, medicamentos e roupas recolhidas por sua iniciativa ainda
antes do início das hostilidades contra a Espanha. No entanto, o bloqueio das
costas cubanas impediu (já então!) a chegada desse auxílio, parcialmente uti-
lizado cm proveito das tropas americanas, o que motivou uma queixa de Clara
Barton ao presidente dos Estados Unidos, William McKinley. Cem anos de-
pois, Raul lzquierdo Canosa considera uma ordem de grandeza de 300 mil
vítimas, sabendo que não é possível ser exato, mas outros historiadores che-
gam a 400 mil ou 500 mil, também sem poderem provar. Para uma população
de pouco mais de milhão e meio de habitantes, o número de 300 mil, mesmo
calculado por baixo, é horrível o bastante.
378 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Porque, mesmo passado um século, não faltam testemunhos da amplidão


do extermínio. Lola Maria, pseudônimo li rerário de Dolores Maria de Ximeno
y Cruz, rica herdeira de uma fanu1ia crioula da cidade de Maranzas, escreveu
as suas memórias. Nelas narrava o mundo de opulência no qual vivia, não
afastando os resremunhos dos episódios mais dramáticos da "reconcentração"
vividos pessoalmente."(... ) Toda a ilha tinha se transformado em uma imensa
ratoeira; éramos perseguidos por rodos os lados ... Parecia mais uma cidade de
dementes que um ;menso hospital de alienados. Crianças em proporção alar·
mante, homens e mulheres na força da idade, velhos decrépitos com apenas
vinre e cinco anos. Um dia a nossa casa encheu-se com uma numerosa familia
de 'reconcenrrados' - não queriam pão, mas um teto - e, ela, minha mãe,
sabia de uma casinha isolada perco da linha férrea, fora da cidade ... a emigra·
ção era pavorosa, só ficavam aqueles que não tinham qualquer possibilidade
de fugir... nós, a casa mais opulenta e a despensa mais bem guarnecida de
Maranzas, recorríamos agora à sopa daquelas beldroegas que crescem até nos
passeios da rua e que a minha mãe trabalhava excelentemente, como se se
tratasse de requintados raviólis ... Todos os dias os jornais noticiavam as proe·
zas guerreiras dos espanhóis que, a cada confronto com os rebeldes, os pulve·
rizavam. Concluindo: nada de novo pelo nosso lado. Vivi aqueles dias como
se fossem um século... Emagreci uma arroba. "5
Estas recordações foram publicadas em Cuba, em 1983, quando o ma·
nuscrito de Lola Maria foi reencontrado, e foi então possível fazer uma sele·
ção da qual o que vamos transcrever é mais um exemplo: "(...) O cheiro,
aquele cheiro que não se parecia com nada e que era o da 'reconcentração'.
era o que o clima difundia como a doença própria dos cadáveres que, incha·
dos como sapos, espalhavam-se pelas ruas. Toda aquela legião de infelizes
morreu sem protestar, nos hospitais, na via pública, debaixo das arcadas. Por
vezes, uma vela enfiada numa garrafa de cerveja vazia, colocada ali por ai·
guém, indicava ao transeunte que ali se encontrava um cadáver. O total das
mortes parece ter subido a quatrocentas mil."
Qualquer que seja a exatidão do número desses verdadeiros reféns do
exército espanhol, é necessário acrescentar um número inesperado de estran·
geiros, que pesquisas recentes feitas nos Arquivos Nacionais de Cuba têm
revelado. As certidões de óbito - sempre em Matanzas - revelam um
percentual elevado de vítimas de origem espanhola ou das ilhas Canárias.
Encontram-se, sem surpresa, mais de três mil chineses, emigrados para o tra·
balho na agricultura desde a segunda metade do século; mas nenhum ou muito
CENTENÁRIO DE UM GENOCf DlO EM CUBA 379

poucos franceses, talvez por gratidão das autoridades espanholas satisfeitas


com as verdadeiras fortalezas em que se tinham tomado as suas plantações de
café na região de Santiago de Cuba, prova da sua hostilidade aos sublevados.
Mais espantoso é o número de 1. 758 norte-americanos, assinalado em dezem-
bro de 1897 entre as atas de falecimento que identificavam alemães, mexica-
nos e várias outras nacionalidades européias ou americanas minoritárias, sem
contar a menção "africanos" sem qualquer outra especificação.

Eos Estados Unidos limpam a mesa

Sabe-se o que aconteceu depois. No momento em que a Espanha lutava


para garantir sua existência de potência decadente no derradeiro farrapo do
seu império colonial, ao imperialismo conquistador bastava atravessar o es-
treito da Flórida para colher, como um fruto maduro, a maior e mais rica das
ilhas do Caribe. Sem nenhuma concorrência da Inglaterra, a maior exporta-
dora de capitais do mundo durante todo o século XIX, inclusive em Cuba,
onde bastava conservar seus interesses nas ferrovias ocidentais para garantir
investimentos anteriores. Afastado o leão castelhano, era preciso afastar tam-
bém qualquer veleidade de vir a ser criado um Estado independente cubano.
Muito antes de 1898, a Standard Oil Company, a American Sugar Refining e
a Bethlehem Iron Works tinham investido em níquel e manganês, e havia a
American Tobacco Company.
Faltava apenas preparar a opinião pública com o pretexto, aparentemente
generoso Uá então!), do direito dos cubanos à liberdade. Para tal era necessá-
rio apagar a contradição entre as palavras de condenação da desumanidade
da "reconcentração" e a realidade das circunstâncias agravantes do bloqueio
naval da ilha, primeira medida militar da intervenção armada, datada oficial-
mente do dia 12 de janeiro de 1899. O famoso memorando do secretário de
Estado da Guerra não disfarçava as suas palavras: "Cuba, com um território
maior, tem também uma população maior do que Porto Rico, brancos, negros,
asiáticos e suas misturas. Os habitantes são geralmente indolentes e apáticos.
Éevidente que a sua imediata anexação à nossa federação seria uma loucura
e, antes de agir assim devemos limpar o pafs, ainda que para o fazer tenhamos
de utilizar os mesmos métodos que a Divina Providência aplicou às cidades de
Sodoma e Oomorra."
Presente no porto de Havana desde 25 de janeiro de 1898, o couraçado
380 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Maine, da marinha dos Estados Unidos, explodiu muito oportunamente no


dia 15 de fevereiro, matando 266 pessoas a bordo, enquanto todo o Estado.
Maior se encontrava em terra "milagrosamente". ·~qui está tudo calmo!",
telegrafava de Havana o repórter das empresas Hearst ao seu patrão; ao que
este respondeu "Envie fotografias e eu farei a guerra!" O instrumento legal
que o presidente MacKinley obteve do Congresso, a famosa "Resolução con-
junta", detem'linava que "o direito dos cubanos a serem livres" passava pela
"faculdade outorgada ao presidente dos Estados Unidos de dispor dos recur-
sos necessários para intervir na guerra da independência cubana e pacificar o
país".
Na obra Caminhos para o açúcar, Oscar Zanetti e Alejandro Garcia6 acres·
centam: "A tática pérfida do comandante militar norte-americano da ilha foi
a de negar a guerra às forças cubanas, apoiando-se separadamente nos seus
diferentes chefes locais e, uma vez consumada a derrota espanhola, proibir a
entrada dos combatentes cubanos ·nas principais cidades com o objetivo de
evitar que o exército espanhol capitulasse perante os patriotas ... [que] foram
excluídos da assinatura do protocolo que ratificava a rendição espanhola. A
soberania das ilhas passou assim das mãos do colonialismo espanhol às do
imperialismo norte-americano. O Tratado de Paris, formalmente inspirado
em 'princípios humanitários e altos deveres sociais e morais', dissimulava na
realidade a ocupação militar de Cuba pelos norte-americanos por tempo
indeterminado e a aquisição das colônias espanholas do Caribe e do Pacífico
na qualidade de despojos de guerra."
Não foi preciso esperar muito tempo para que a aposta que estava na mesa
de jogo fosse embolsada: os quatro anos de ocupação militar de Cuba só aca·
baram em 2 de maio de 1901, e a Assembléia "Constituinte" cubana adota a
célebre emenda imposta pelo senador americano Orvill Platt que limita, nas
proporções que se sabe, a independência do país. Votada por essa pseudo·
Constituinte em 21 de fevereiro, esse corretivo foi brutalmente imposto até
precisamente antes da promulgação oficial em 20 de maio, sob o pretexto
cínico "de organizar a entrega do governo da ilha ao seu próprio povo". A esse
cinismo, e recordando-se talvez das devastações de 1896-1897, a emenda
Platt acrescenta que o governo dos Estados Unidos recebe do governo de
Cuba "o direito de intervenção para conservar a sua independência nacional,
para manter um governo adequado à proteção das vidas, interesses e liberda·
des e para garantir a aplicação e o desenvolvimento de todos os planos sanitá·
rios que tendam a beneficiar as relações entre a ilha e os Estados Unidos" ...
CENTENÁRIO DE UM GENOCÍDIO EM CUBA 381

José Mart[, morto em combate antes de ter vivido quer as atribulações do


seu povo com a "reconcentração", quer a humilhação da vitória confiscada e
da independência traída, escrevia isto, em 29 de outubro de 1889, em Nova
York: "para que a ilha seja norte-americana nós não teremos de fazer nenhum
esforço, porque se não aproveitarmos o pouco tempo que nos resta para impe-
dir que isso venha a acontecer, isso acontecerá pela sua própria decomposi·
ção. É o que este país espera, e aquilo a que nos devemos opor (...) porque,
uma vez os Estados Unidos em Cuba, quem os obrigará a sair?" Se a vontade
do povo cubano há quarenta anos o leva a enfrentar com eficácia esse desafio
revolucionário de José Martí, não é de admirar que o atual chefe de Estado
cubano tivesse querido assistir à apresentação do livro sobre a "reconcentração"
do qual citamos aqui algumas passagens. Foi para ele a ocasião de lembrar que
os Estados Unidos recorreram ao mesmo método no Viemã, naquilo que eles
chamavam "cidades estratégicas", cópia daquilo que ele não hesitou em com-
parar com esses "campos de concentração de Cuba". Daí a considerar que
dois dos maiores genocídios da nossa época têm um precedente cubano... Foi
pelo menos uma escola para o nazismo e para o imperialismo.
Por seu lado, o coronel Raul lzquierdo Canosa, autor do livro citado, de-
clarava à revista Granma, em 3 de fevereiro de 1889: "Manter um número tão
elevado de pessoas em locais fortificados ou em zonas militarmente controladas
implicava um reforço das medidas de segurança em meios e em homens, ape-
sar de ser claro que as autoridades coloniais não se preocuparam com o aco-
lhimento de 'reconcentrados'. Na minha opinião, o erro inicial de Weyler, ao
aplicar uma medida tão ampla e complexa, foi não ter criado antes condições
indispensáveis para a sua realização. Quando tomaram consciência do pro·
blema que haviam criado, os espanhóis adotaram medidas como a criação, no
dia 12 de janeiro de 1897, de zonas de cultivo nos terrenos fora das áreas
fortificadas. Era demasiado tarde para Weyler, que não conseguiu evitar a
sequência de derrotas nesse ano.
"Ao regressar à Espanha, conheceu a triste glória de ter sido comparado
ao duque de Alba, que Felipe II tinha encarregado de eliminar o protestantis·
mo nos Países Baixos, sem sucesso apesar da execução de 8 mil pessoas. Mor-
reu no seu leito em 1930, aos 92 anos, não sem conhecer um último acréscimo
ao seu retrato: condenado por participação num complô contra o ditador
Primo de Riviera, o que vinha desmentir um zeloso biógrafo que lhe concede-
ra 'a elegância de jamais se ter sublevado com armas contra o governo'. Está·
vamos então em plena guerra do Rif, a Espanha tinha desembarcado em Mar-
382 O LNRO NEGRO DO CAPITALISMO

rocos cantos soldados como em Cuba, 30 anos antes. Weyler era demasiado
velho para lhe propor os seus serviços ... "

Notas:

l. A palavra espanhola "reconcentração" foi aqui conservada voluntariamente em vezdc


"reagrupamento", que não transmitiria exatamente a ' 'ontade concentracionária dopo·
der colonial espanhol.
2. "Mambi", no plural "mambi.ses": guerrilheil'Oli da luta patriótica contra os espanhóis, a
partir da Guerra dos Dez Anos (1868-1878). A exprc5São talvez venha do nome de um
oficial negro, Juan Ethninius Mamby, desertor do exército espanhol. A não ser que se
trate de uma palavra cubana p~·colombíana que designa "o rebelde ao cacique".
3. Patronímico que nada tem de espanhol e que remonta aos mercenários da Guarda
Valonianados Bourbonde Espanha. À falta de voluntários, a ela se acrescentaram suíços,
lrlande&e& e a~ alemães, como foi o caso do b~vô Weyler, de origem renana. O general,
seu bisneto, nascido em Palma de Maiorca, filho de um médico militar, a 17 de setembro
de 1837, reivindicava esta origem catalã insular.
4. Vlll1 Feira Internacional do livro cm Havana, fevereiro de 1998.
5. 1KSOO, antiga medida castelhana..
6. Camino.s Para El Atucar, Editorial ck Qé:ncias Sociales, Havana.
O GENOCÍDIO DOS ÍNDIOS
ROBERT PAC
------ - - - -·------ - -- -
Os índios das Américas foram vítimas do maior genocídio da história da
humanidade. Para satisfazer a fome de riqueza dos europeus, os povos indíge-
nas das Américas foram exterminados no Caribe, no México, na América do
Sul, no Brasil e na América do Norte pelos espanhóis, porrugueses e anglo-
saxões. Este genocídio prossegue ainda hoje sob formas freqüentemente mui-
to diferentes.
As Grandes Antilhas (Cuba, Hispaniola, Jamaica) tinham cerca de 1,5
milhões de nativos em 1492, quando Cristóvão Colombo chegou. Em 1550,
nessas ilhas não restava um só índio. Os relatos de Bartholomé de Las Casas
confirmam: "Os índios estavam em paz com os cristãos, mas estes invadiram
os países como lobos enraivecidos que se lançam sobre carneiros pacíficos e
mansos. E, como todos esses homens que vieram de Castela eram pessoas
pouco preocupadas com a alma, sedentos de riquezas e possuídos pelas pai-
xões mais vis, empenharam-se de tal modo em destruir esses países que ne-
nhuma pena, nem mesmo nenhuma língua bastariam para relatar isso; tanto e
tão bem que a população, calculada quando da partida em um milhão e cem
mil almas, está inteiramente dissipada e destruída." 1
"Outras populações indígenas mais agressivas organizaram-se para o com-
bate, mas teriam a mesma sorte: os Caniba (Martinica, Guadalupe), os
Puelches, Picunches, Tehuelches do Pampa e da Patagônia; tal como os
Araucans (Chile) cuja resistência e coragem espantaram os conquistadores
comandados por Valdivia, que pagou com a vida por sua obstinação; tal como
os Chibchas (Colômbia), que se opuseram à penetração das colunas militares
dejimenez de Quesada em busca do Eldorado."2

OBrasil

Quando os portugueses "descobriram" o Brasil em 1500, este era povoado


por cerca de três milhões de índios. Em 1940, calculava-se que seriam 500
mil. Em 1950 eram não mais que 150 mil. Hoje não devem passar de 100 mil.
Épossível medir a extensão do genocídio. Podemos também constatar que
esse genocídio prossegue nos nossos dias, pois 800 mil índios foram "liquida-
386 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

dos fisicamente" desde 1900. Depois dessa data, 90 tribos desapareceram to·
talmente.
Cada avanço da "civilização industrial" empurrou os índios para zonas
cada vez mais inóspitas. Na segunda metade do século XIX houve o surto da
borracha industrial. Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção dos Índios
(SPI), cuja função era, a princípio, assistir os índios no exercício dos seus
"direitos" e promover melhores condições de vida. Em 1968, explode o escân·
dalo. As autoridades reconhecem que os funcionários do SPI eram facilmente
subornados pelos colonos; aventureiros e funcionários corruptos, torturavam
e vendiam os indígenas, vendiam as terras indígenas, e fechavam os olhos aos
métodos atrozes usados pelos compradores, isso quando não chegavam a ajudâ·
los: massacres usando metralhadoras, destruição de aldeias e dos seus habi·
tantes com dinamite, envenenamento por meio de arsênico e pesticidas. As·
sim desapareceram tribos inteiras, corno os Cintas Largas ou os Tapalunas,
nos quais o exército experimentou novos métodos de metralhar; e pereceram
muitos Parintintins, acusados de terem morto um mílítar, os Bocas Negras,
declarados rebeldes, e os Pacas Novos, que foram pacificados com comida
envenenada.
A Funai substituiu o SPI, mas logo se revelou impotente para realizar a
sua missão. Mais ainda, foi acusada de subordinar as necessidades do povo
índio aos objetivos da expansão nacional e do desenvolvimento capitalista.
Acordos da Funai com companhias privadas foram freqüentemente denun·
ciados por vozes respeitadas. Além do mais, o orçamento da Funai é ínsufi·
ciente.
A Funai e a legislação sobre os índios do Brasil visam sobretudo a promo·
ver "a integração dos índios na comunidade nacional". É o objetivo do Esta·
tu to do Índio que reúne as medidas legais que lhe dizem respeito. O Capítulo
II do Estatuto indica que, enquanto um índio não estiver assimilado, está sob
a tutela do Estado e não pode ser protegido pela Constituição Brasileira. Mas
um índio assimilado já não é um índio, uma vez que renunciou à sua cultura.
Para o índio, esta "assimilação" é descer ao mais baixo nível da escala social. É
a miséria, a mendicância, o álcool, a prostituição para as mulheres ... O índio
não tem existência legal na sua alteridade e na sua especificidade e não pode
levar a cabo atos jurídicos válidos sem a assistência do organismo tutelar com·
petente. Certos peritos estimam que o sistema de tutela priva os índios dos
direitos humanos fundamentais e coloca-os numa situação semelhante à de
uma escravatura legalizada.
O GENOC(DIO DOS iNDIOS 387

O Estatuto do Índio nega aos indígenas a possibilidade de escolha em


relação ao seu futuro. O artigo 60 do Estatuto fala de "desenvolvimento psí·
quico" mais do que de desenvolvimento cultural e considera o índio um ho·
mem ainda não desenvolvido, ou seja, uma criança! E de fato, acaso o consi·
dera um homem?
O Estatuto do Índio não reconhece a propriedade da terra pelo índio (que
se mantém um bem do Estado Federal). Os arrigos 34, 35 e 36 do título 3
permitem a deportação de populações indígenas inteiras por simples decreto
do presidente da República por diversos motivos, entre os quais a "segurança
nacional" e o "desenvolvimento da região no mais elevado interesse nacional".

México e Guatemala

Segundo os trabalhos da Escola de Berkeley, havia doze milhões de índios


no México quando da chegada de Cortez em 1519. Cento e vinte anos mais
tarde, em meados do século XVII, não eram mais do que 1.270 mil, segundo
Eric Wolf. Tal como em toda a América dita "latina", o contato entre os dois
povos, o espanhol e o índio, traduziu-se em uma queda vertiginosa da popula-
ção indígena. Carências, repressão, massacres, trabalhos forçados e as doen·
ças trazidas pelos europeus (sobretudo a varíola}, contra as quais os habitan·
tes do Novo Mundo não possuíam imunidade, pois tinham vivido em circuito
fechado<lesde o paleolítico, mataram 90% da população indígena do México
no decorrer do século XVI.
Depois, foi a conquista do Império Maia por Alvarado em 1523, e do
Império Inca pelo sanguinário Francisco Pizarro, de 1532 a 1537. "Assim, no
espaço de uns vinte anos, impérios construídos ao longo de vários séculos
foram aniquilados, comunidades autóctones desmanteladas e escravizadas,
minadas as bases de civilizações espantosas."3 A população da América Cen-
tral e do Sul, calculada pelo doutor Rivet e pela Escola de Berkeley em 70
milhões antes da chegada dos espanhóis, cai para uns 20 milhões. O Império
Asteca, com uma população de 25 milhões de índios em 1519, não tem, trinta
anos mais tarde, mais de seis milhões, sendo reduzido a cerca de um milhão
no final do século XVI. Nessa data, na América Central e do Sul, a população
índia não passa de sete milhões de pessoas, ou seja, dez vezes menos do que
oitenta anos antes!
Os massacres de índios prosseguem hoje nessas regiões, como demonstra·
388 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

ramos recentes acontecimentos de Chiapas. A Anistia Internacional, em um


relatório de 1985, falava de massacres nesse mesmo território de Chiapas, em
Tzacacum, em 24 de março de 1983, e na região de Comitan em 1985. Na
Guatemala, foi o massacre de 108 índios em Panzos, em maio de 1978. Em31
de janeiro de 1980, 21 índios quiché foram queimados vivos com lança-cha-
mas na Embaixada da Espanha na Cidade da Guatemala por membros do
exército guatemalteco. Os massacres de índios por esse exército e pelas milíci·
as "antimotins" multiplicaram-se nos últimos anos, porque eles são sistema·
ticamente suspeitos de serem cúmplices dos grupos guerrilheiros.
Em toda a América do Sul são relatados massacres de índios. Na Colôm·
bia, no Peru, no Chile ... Os índios são vítimas das sociedades multinacionais e
da política do big stick segundo a qual os Estados Unidos têm direito de vigi·
lância e de intervenção na evolução política desses países.

Estados Unidos

No território atual dos Estados Unidos, a avaliação da população à che·


gada dos ingleses, no início do século XVII, foi durante muito tempo impreci·
sa. Mas há hoje acordo quanto ao número de dez a doze milhões de indivídu·
os. Oficialmente, os americanos insistiram durante muito tempo no número
de um milhão, o que era um meio de reduzir a importância dos índios e de
minimizar a extensão do genocídio, que reduziu a população para 250 mil em
1900.
O genocídio foi uma série longa, trágica e sangrenta de massacres, de
tratados violados pelos europeus, de epidemias, de doenças importadas con·
tra as quais os índios não possuíam imunidade. Tudo isso acompanhado do
roubo de territórios e de uma política de destruição das culturas ancestrais
dos ameríndios.
As "reservas", que quando da sua criação eram verdadeiros campos de
concentração e nas quais os índios continuam confinados, constituem viola·
ções graves dos artigos II B e II C da Convenção Internacional das Nações
Unidas para a prevenção e repressão do crime de genocídio, que condena o
"grave atentado à integridade física ou mental dos membros do grupo e a
submissão intencional deste a condições de existência que poderiam levar à
sua destruição total ou parcial".
Por exemplo: as más condições de vida nas reservas provocam a morte de
O OENOCfDIO DOS ÍNDIOS 389

uma criança em cada três nos seis meses posteriores ao nascimento. Em certas
reservas lamenta-se a média de 100 falecimentos para mil nascimentos, con·
tra 8, 1 para os brancos. A esperança média de vida de um índio é de 63 anos,
contra 76 anos para os brancos, mas há reservas onde essa esperança de vida
cai para 46 anos.
Os suicídios entre os índios são o dobro do que entre os brancos: 21,8 em
100 mil contra 11 ,3 em 100 mil pessoas. Atingem principalmente os jovens.
Um índio entre os 14 e os 24 anos é quatro vezes mais suscetível ao suicídio
que uma pessoa branca. Cerca de 75% dos índios sofrem de subnutrição.
O alcoolismo atinge um homem em cada quatro e urna mulher em cada
oito. Os índios das cidades sofrem mais desse flagelo do que os das reservas,
mas 80% dos índios são vítimas, em diferentes graus, dessa forma de alienação
provocada pela inação e pela consciência da perda de identidade. A droga,
especialmente o crack, faz hoje muitas vítimas entre os índios.

Notas:

!. "Rapport des dominicains de l'Isle Espagnole à M. de Chievres" (1519) in las Casas et la


cléfense eles lndiens, Tulliard, Éd. Páris, 1971.
2. Felix Reichlen, in Les Amérindiens et leur extennination clélibérée, Éd. Pierre Marcel Fabre,
Lausanne, 1987.
3. Felix Reichlen, in op. cit.
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA
YVESGRENET
A marcha da humanidade segue um caminho ascendente, mas com avan-
ços e recuos, progressos rápidos em certos povos ou em certos continentes,
enquanto outros marcam passo. A partir do século XVI, a Europa ganha força
com o desenvolvimento das ciências e das técnicas, mas também com o cres-
cimento de um capitalismo comercial que em breve iniciaria a conquista do
mundo. Durante esse tempo, depois de ter estado à frente da Europa durante
milênios, a Ásia mantinha-se na Idade Média com os seus impérios e seus
reinos tradicionais, um feudalismo cristalizado e um modo de pensamento
que não se renovava.
No início do segundo milênio da nossa era, juncos chineses - embarca-
ções de tamanho desconhecido na Europa - iam freqüentemente à Índia e à
Indonésia. Na segunda metade desse milênio, são barcos europeus de autono-
mia cada vez maior que abordam as costas da Ásia, navios mercantes mas
também navios de guerra. Vasco da Gama chega a Calicute em 1498, e o
monopólio português é definitivamente estabelecido em 1507 à custa do co-
mércio árabe-veneziano. Dois anos depois, os portugueses atingem Málaca,
em 1511 chegam a Amboine, em 1514 à China. Os interesses europeus rivais
enfrentam-se na Ásia - portugueses e espanhóis nas Molucas, por exemplo,
em 1526. Os primeiros abordam o Japão em 1542, ano em que os segundos se
instalam nas Filipinas.
Ávidos por produtos asiáticos, outros chegam a essas águas. A primeira
expedição inglesa às Índias Orientais data de 1591. Os holandeses desembar-
cam no Japão em 1599, depois novamente em 1609; é o ano da criação do
Banco de Amsterdã, que, em 1619, assina um tratado com a Companhia das
Índias. Os ingleses começam a penetrar na península indiana, instalando-se
em Madras em 1639 e em Bombaim em 1662. Os franceses fundam, por sua
vez, a sua Companhia das Índias em 1664, estabelecem-se em Surate em 1668
e em Pondichéry em 1674. A criação do Banco de Inglaterra (1694) segue de
perto a fundação de Calcutá (1690); trata-se já de saber o que rende mais:
fabricar na Europa ou importar; o Parlamento inglês proíbe o fabrico de indi-
anas em 1719. Desde que foi reconstituída a Companhia das Índias francesas
(1723) e fundada a Bolsa de Paris (1724), os franceses interessam-se cada vez
mais pelas Índias. O conflito entre a França e a Inglaterra nesse território não
394 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

é apenas um prolongamento das guerras que travam na Europa; é a rivalidade


entre dois capitalismos comerciais no momento e m que aumenta o capitalis·
mo industrial. O Tratado de Paris d e 1763 d eixa a Inglaterra com as mãos
livres para colonizar as Índias, como mostram n esse mesmo ano a deposição
do soubab de Bengala e no ano seguinte a derrota do grão-mogol em Buxad.
As idéias do liberalismo que acompanham o progresso opõem-se, em nome do
laissez-faire, aos conceitos mercantilistas envelhecidos. O conflito entre o an·
tigo e o novo conduz à supressão do privilégio da Companhia das Índias fran·
cesa, em 1769; depois à sua recriação por C alonne, em 1785; ao Regulating
Act sobre a Companhia das Índias inglesa, em 177 3, e ao Indian Act de 1784.
Face à primeira invasão ocidental, os povos da Ásia combateram, como
foi o caso na península indiana: os Mahrattes lutaram contra os franceses e os
ingleses, e diversos soberanos indianos tentaram aproveitar as rivalidades dos
dois países europeus para preservar a independência dos seus Estados. Os
chineses combateram a Rússia ainda amplamente pré-capitalista e dela obti·
veram a capitulação de Albasin (1685); esforçaram-se por manter os euro·
peus longe das suas costas, limitando a possibilidade de ali desembarcarem.
Quanto ao Japão, este tinha desde 1638 vetado o acesso ao seu território a
todo e qualquer estrangeiro, assim como qualquer viagem ao exterior aos sú·
ditos do Império, o que visava a proteger uma independência que era hostil a
qualquer mudança.

A Ásia coloniwda pelo capitalismo ocidental

Já antes do século XIX, um número determinado de vidas humanas tinha


sido perdida na Ásia com a chegada dos europeus, seu desejo de conquista à
custa dos asiáticos e os conflitos para os quais os indígenas tinham sido arras·
tados. Algumas das riquezas desses povos já tinham sido drenadas para o Oci·
dente, dando a sua contribuição para a acumulação primitiva necessária para
que o capitalismo liberal deslanchasse.
No século XIX, o desejo de ter acesso às fontes de matérias-primas e de
se abrir a todos os mercados levou ao projeto de colonizar toda a Ásia. No
momento do Congresso de Viena (1815), a Inglaterra controla toda a Índia,
salvo o Assam, o Pundjab e o Sindh; mais a leste ela ocupa Málaca e Penang.
Os Países Baixos dominam Java e têm postos nas Índias Holandesas, a fucu·
ra Indonésia. A Espanha domina há muito tempo as Filipinas. É necessário
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 395

acrescentar na fndia os entrepostos comerciais franceses, dinamarquês (em


Bengala) e português (Goa) . Portugal também controla Timor e o porto de
Macau, na China. Este conjunto um pouco disparatado tenta estender-se
ainda mais.
As potências coloniais administram esses territórios atendendo aos inte-
resses das suas classes dirigentes. A Inglaterra renovou em 1813 o privilégio
da Companhia das Índias Orientais, com sede em Londres e governador-geral
em Calcutá; ocupava metade do território indiano e cobrava impostos para a
metrópole. Até então a Índia exportava tecidos de algodão; agora é obrigada
aexportar o seu algodão em estado bruto, e é Manchester que fabrica tecidos
de algodão, para maior lucro dos seus capitalistas, o que permite, entre outras
coisas, financiar os trabalhos dos economistas partidários do liberalismo e da
liberdade de trocas, precisamente a escola de Manchester. O artesanato têxtil
da Índia é arruinado, a miséria instala-se entre os camponeses, provocando
doenças e mortes que podem ser registradas, sem reservas, no livro negro do
capitalismo britânico.
Nos países da Ásia que conservam a independência, a econonúa é ainda
pré-capitalista, baseada em uma produção agrária de subsistência. Há oficinas
e manufaturas feudais pertencentes aos daimyo no Japão, grandes manufatu-
ras privadas de têxteis e de porcelana na China. Os comerciantes desses paí-
ses não conseguem quebrar os quadros tradicionais. Germes do seu capitalismo
constantemente renascidos são constantemente abafados. A China da dinas-
tia manchu Qing, o Viemã da dinastia Nguyen, o Japão dos ~hogun continu-
am sendo Estados conservadores e esclerosados, como a Birmânia, o Sião, o
Laos e o Camboja. As relações com o Ocidente são, no início do século XIX,
ainda mais limitadas do que nos séculos anteriores. Os japoneses só adnútem
as trocas com os holandeses na ilha de Deshima, na enseada de Nagasaki; a
China recebe os estrangeiros em Cantão; existem alguns postos comerciais na
costa do Tonkin. Os ocidentais impacientam-se com a demora na abertura
desses mercados.
Enquanto esperam, utilizam a primeira metade do século XIX para alargar
as possessões já existentes. A Inglaterra conquista na Índia o Sindh e o
Baluquistão, e combate os sikhs do Punjab em 1845 e 1848. Instala-se em
Cingapura em 1819 e agarra-se, na Malásia, a tudo o que pode. Ocupa a costa
da Birmânia em 1825, antes de conquistar a Baixa Birmânia em 1852. Os
Países Baixos submetem os últimos sultanatos independentes vizinhos dos seus
territórios, sendo o último o de Atjeh, em Sumatra, em 1869. A Espanha
396 O UVRO NEGRO DO CAPITALISMO

termina a conquista do sul das Filipin~ em 1840. O sangue nativo corre em


toda a Ásia, mas que importa! A madeira, o estanho, o carvão, o arroz, su-
prem a Europa e novos mercados se abrem. Não é isso o essencial?
Quanto à França, fixa-se nos territórios que cercam Amã. De 1862 a 1867
toma a Cochinchina, ao sul de Amã, impondo sem muita dificuldade o seu
protetorado ao Camboja, em 1863. Um quarto de século depois é a vez da
conquista de Tonkin (1883-1885) à custa de combates sangrentos, com a Ter·
ceira República continuando o trabalho do Segundo Império. Mas os interes·
ses são os mesmos. Com os protetorados de Amã e Laos, vai existir urna
Indochina francesa durante setenta anos. O Sião deve à sua situação inter·
mediária, entre os territórios britãnicos e franceses, a possibilidade de manter
uma independência política limitada: de fato é uma sernicolônia.
Mas é seguramente na China que se encontra a obra-prima da exploração
do capitalismo ocidental, permitindo suaves aparências de soberania. O go·
vemo chinês, fechado às belezas do livre comércio, continuava se recusando
a abrir seus portos ao comércio exterior; o contrabando era praticado na costa
chinesa pelos comerciantes ingleses, trocando o ópio cultivado pela Compa·
nhia das Índias em Bengala pelo chá chinês. A apreensão de uma carga de
ópio pelo vice-rei de Cantão serviu de pretexto à primeira Guerra do Ópio,
encerrada em 1842 pelo Tratado de Nanquim, que abria cinco portos do su·
doeste da China ao comércio estrangeiro e cedia Hong Kong aos ingleses. A
segunda (1856) e a terceira (1858) guerras do ópio, com a participação da
França, levaram à concessão, pelos dois tratados de Tien Tsin (1858 e 1860),
de mais onze portos. As potências capitalistas tinham se portado como trafi·
cantes de droga e milhares de vidas chinesas tinham sido sacrificadas (além
dos mortos em combate, a fome de 1857 fez oito milhões de mortos) . Mas o
mercado chinês estava aberto e ia durar.
O capitalismo europeu está agora instalado na Ásia por um longo período.
A Companhia das Índias inglesa viu renovado o seu privilégio de comércio e
o seu direito a administrar o vasto conjunto indiano em 1833, depois em
1853, mas já existe um incipiente movimento de libertação contra os ingleses.
Em 1857, eclode a revolta dos cipaios, uma parte das suas tropas, cuja rebelião
faz Londres tremer. É sufocada em sangue: 320 mil indianos são executados,
entre os quais 200 mil civis. A Companhia das Índias, de estrutura tão distan·
te do liberalismo, é dissolvida em 1858. O aparecimento do liberalismo é mar•
cado pela abertura das terras aos colonos britânicos e aos interesses capitalis·
tas da Grã-Bretanha, que agem por intermédio dos seus representantes
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 397

(managing agencies). Os camponeses cujas terras escapam à avidez dos coloni-


zadores vêem a sua economia rural monetarizada para que possam pagar o
imposto, primeiro à Companhia, depois à administração da Coroa. Há terrí-
veis períodos de fome em 1860, 1866, 1873 e 1877, que provocam milhões de
mortos. O último desses períodos de fome coincide com os festejos pela eleva-
ção da rainha Vitória a Imperatriz das Índias.
Nas Índias Holandesas pratica-se de preferência uma espécie de capitalis-
mo de Estado cujos dois pilares são a "Sociedade Holandesa de Comércio" e o
Banco de Java, criados respectivamente em 1825 e 1828. Um quinto das ter-
ras, geralmente as mais férteis, é entregue aos holandeses e cultivado por cam-
poneses submetidos a trabalhos forçados. Mas muitos dos capita~stas da me-
trópole, em nome de um liberalismo adequado aos seus interesses, queriam a
abolição desse sistema, e a partir de 1860 o monopólio foi sendo abolido e as
culturas de exportação foram abertas ao livre comércio. Na Indochina fran-
cesa, depois de 1885, além das plantações da Cochinchina, as terras, esvazia-
das dos seus habitantes durante a guerra do Tonkin, são entregues a compa-
nhias com sede na metrópole. Em todos os lugares, os produtos das indústrias
metropolitanas encontram mercado.
Nesta Ásia colonizada, a China mantém-se teoricamente independente.
Independência muito relativa. A partir do Tratado de Nanquim (1842) as
alfândegas chinesas não podem impor mais do que 5% de impostos às merca-
dorias das indústrias européias. Após a terceira Guerra do Ópio, as alfândegas
são colocadas nas mãos de funcionários das potências capitalistas (1861), que
aproveitam para arrancar concessões sobre fatos consumados, como a Ingla-
terra fez em Xangai. O Japão, sempre fechado aos estrangeiros, foi finalmente
"aberto" em 1853 pela esquadra americana do comodoro Perry, que, pelo Tra-
tado de Kanagawa, forçou o governo do Xogum a deixar os ocidentais atraca-
rem em seus portos (1854). Também aí houve limitação dos direitos alfande-
gários em benefício das exportações ocidentais e o reconhecimento forçado
da extraterritorialidade de certas áreas do território japonês. Mas, ao contrá-
rio do caso da China, onde a revolta dos Tal-Ping não triunfou nos anos 50, o
Xogum, acusado de excessiva complacência com os bárbaros do Ocidente, foi
derrubado em 1867, o que vai permitir ao capitalismo o acesso rápido a essa
parte da Ásia.
398 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Nascimento e desenvolvimento de um capitalismo asiático

O capitalismo conseguiu vencer em outros continentes através das revo-


luções da Inglaterra, da América e da França dos séculos XVII e XVIII, tendo
a burguesia desses países utilizado os movimentos populares para se impor
como classe dominante. Em troca, a instauração de um capitalismo asiático
começou, paradoxalmente, por uma restauração monárquica. Para passar de
um regime econômico e social a outro, os caminhos são diversos; e isto não é
verdade apenas para o regime capitalista.
O contato com os ocidentais tinha provocado no Japão a alta dos preços,
a perda das suas reservas em ouro e revoltas camponesas. Em 1863 uma nova
expedição tinha provado mais uma vez a superioridade material dos ociden·
tais. A ascensão ao trono do novo imperador Mutso-Hito, em 1867, provoca
a abolição das funções do Xogum e o início da era Meiji, a do "governo escla-
recido". O feudalismo é abolido nos seus diversos aspectos, mas a nova classe
dirigente japonesa é composta não apenas pela burguesia comercial, mas tam·
bém por muitos senhores feudais que passam facilmente ao capitalismo, como
fizeram numerosos senhores ingleses do século anterior. Mas no Japão é o
Estado que permite o desenvolvimento de uma economia moderna, sem a
qual a acumulação primitiva teria sido insuficiente. As empresas fundadas
pelo Estado japonês são entregues ao setor privado a partir de 1881, a preços
muito baLxos. Existem empresas de portes diversos, mas algumas dominam as
outras e organizam-se em cartéis (zaibatsu) a partir de 1893, sendo as mais
célebres Mitsui, Mitsubishi e Sumitomo. O Japão capitalista lança-se para a
frente depressa, muito depressa.
Na China, um setor capitalista fez a sua aparição e se inicia urna certa
industrialização nessa segunda metade do século XIX. As importações do
mundo capitalista exterior prejudicam certas indústrias chinesas (especial·
mente as têxteis). No entanto, os portos abertos aos estrangeiros constituem
centros de difusão do capitalismo; para marcar a síntese possível do antigo e
do novo, fala-se mesmo de "capitalismo confuciano". Mas o interior do país e
o camponês mantêm-se tradicionais. Existe um subproletariado flutuante, uma
parte do qual emigra para todo o Pacífico, enquanto elementos menos
desfavorecidos se juntam a essa diáspora chinesa que terá um papel no capita·
lismo do século XX, especialmente no Sudeste Asiático. Na China, o capita·
!ismo vive em estreita relação com a burocracia, o que de modo algum gera os
mesmos resultados que no Japão. Os capitais são insuficientes, a gestão é ge·
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA l99

ralmente pouco racional, os mercados são limitados. Outro obstáculo impor-


tante na rota do capitalismo chinês é a concorrência dos ocidentais, mais bem
organizados, dispondo de um setor bancário eficaz e controlando o comércio
exterior.
Em outros países da Ásia, o domínio colonial é um empecilho. Raras são
as grandes empresas criadas nessas condições, como as da famflia Biria ou da
familia Tata na Índia, cujas minas e fábricas de aço de Jamshedpur se desen-
volvem muito no final do século XIX. A burguesia indiana também cria certas
estruturas, como a Madras Trade Association, criada em 1856 e transformada
em 1910 em South lndia Chamber of Commerce. Nos países coloniais a bur-
guesia é sobretudo uma burguesia compradora, a serviço do capitalismo es-
trangeiro; a que trabalha para a instauração de empresas nacionais é muito
limitada.

Rivalidades entre capitalismos na Ásia

"Na Ásia hã lugar para todos nós", proclamava Lord Salisbury em 1880.
Mesmo que o "todos nós" designasse os Estados capitalistas ocidentais, era já
uma visão otimista, como demonstravam as rivalidades no Sudeste Asiático
na mesma época. Além disso, havia o expansionismo japonês, que precisaria
ser levado em conta. As noções de império e imperialismo eram divulgadas de
maneira elogiosa por autores ingleses, de Disraeli a Kipling, antes de Hobson,
Hilferding e Lenin definirem que o imperialismo era a união do capital indus-
trial e do capital bancário para formar um capital financeiro com o objetivo
de dominar o mundo.
No início da era Meiji, como a classe dominante japonesa não se sentia
preparada, renunciou a atacar a Coréia em 1873. Tinha, no entanto, assegu-
rado seu domínio nas ilhas Bonun, Kurilas e Ryukyu. Mais tarde, em 1891, o
Japão propôs à China estabelecer um condomínio sobre a Coréia, projeto que
foi abandonado. Pelo contrário, o desejo expansionista levou o Japão das gran-
des sociedades integradas, o Japão imperialista, a lançar-se sobre a China em
1894. Pelo Tratado de Shimonoseki (1895), obteve não só Taiwan e as ilhas
Pescadores, como também uma importante indenização (que serviu para de-
senvolver ainda mais rapidamente o capitalismo japonês), e o direito de criar
empresas no nordeste da China (Manchúria) . Mas teve de abandonar Port-
Arthur, por pressão da Rússia.
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

As potências imperialistas lançaram-se então a urna batalha de conces-


sões (1896-1902), cada urna delas - Grã-Bretanha, França, Alemanha,
Rússia, Japão -se esforçando para ficar com a melhor parte, vigiando inve·
josamenre a do vizinho. Elas entraram em acordo depois da revolta dos
Boxers, a fim de intervirem, em 1900, com toda a brutalidade de que as suas
tropas eram capazes. Pela primeira vez, o Japão ataca um Estado europeu, a
Rússia (1904-1905), e vence; o Tratado de Potsmouth valeu ao Japão o
Liaodong, na China, o sul da Sakalina e as mãos livres na Manchúria e na
Coréia. Os Estados Unidos, que não conseguiram urna zona de influência
no solo chinês, tiraram dos espanhóis as Filipinas, que tinham sido cedidas
pelo Tratado de Paris (1898) .
A formação de uma burguesia, de um proletariado e de uma intelligentsia
chinesa ligada aos progressos do capitalismo não pode acontecer sem canse·
qüências políticas. Fundadas por Sun Yat-Sen, a União para a renascença da
China (1894) e, depois, a Llga Tong Meng-Hui (1905), iniciam atividades
rebeldes que em 1911 levam à Revolução de Outubro. Classificada por auto·
res britânicos como "revolução burguesa invisível", esta instaura a República,
em breve comandada pelo general reacionário Yuan Shi-Kai, com o qual os
ocidentais se apressam a fechar um "empréstimo de reorganização". Na mes·
ma época, 1912, os maiores grupos financeiros implantados na Ásia (Hong
Kong and Shangai Banking Corporation, Yokohama Specie Bank, Banque de
l'lndochine, Deutsche Asiastische Bank, Banco Russo-Asiático e vários ban·
cos americanos) formam o "Primeiro Consórcio", com o objetivo de dividir os
lucros. Este ensaio de superimperialismo não conseguiu durar muito porque
em seguida eclodiu a Primeira Grande Guerra.
Na Ásia, esta guerra beneficia sobretudo o imperialismo japonês. O
Japão - que em 1905 tinha imposto o seu protetorado à Coréia, anexada
em 1910 com toda a brutalidade - entra na guerra ao lado dos aliados
logo em 1914, ao passo que a China espera até 1917 para fazer o mesmo. O
Japão aproveitou para exigir desta que ela aceitasse os seus "vinte e um
pedidos", para se instalar em Shandong e penetrar mais do que nunca no
mercado chinês. Após a Revolução Russa de 1917, os aliados entendem•
se com o Japão para intervir no Extremo Oriente contra as forças dos
russos. Com o Tratado de Versalhes (1919), o Japão consegue substituir a
Alemanha em Shandong, mas na Conferência de Washington ( 1921-1922)
os ocidentais o obrigam a restituir aquele território à China, bem como a
renunciar ao seu projeto de anexar uma parte da Sibéria Oriental e da
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 401

Mongólia. O furor dos imperialistas japoneses impediu então a realização


de um Segundo Consórcio. Decididamente o superimperialismo era bem
difícil de praticar!
Os impérios coloniais saídos do século XIX continuam a se desenvolver
nos primeiros quarenta anos do século XX. Na Índia, o capitalismo colonial
britânico ainda domina, mas o capitalismo indiano amplia-se, conduzido
especialmente pelos Parsis de Bombaim e os Marwaris de Rajputana, que
faziam empréstimos. No conjunto, os homens de negócios se concentram
na indústria leve, mas há exceções: o grupo Tata se dedica à indústria pesa·
da. Os capitalistas indianos agrupam-se a partir de 1927 na Federation of
lndian Chambers of Commerce and lndustry, se queixam do escoamento
das riquezas em benefício da Grã-Bretanha e inspiram o Partido do Con·
gresso, fundado em 1920. A concessão de certos poderes regionais aos indi-
anos, com as reformas Montaigu-Chelmsford de 1919, bem como as confe-
rências de 1930-1931, não os satisfazem. Ligada ao capitalismo mundial, a
Índia ressente-se duramente das conseqüências da crise de 1929, que atinge
operários, camponeses e funcionários. O movimento da desobediência civil
impulsionado por Gandhi em 1932-1933 leva Londres a conceder, pelo Es-
tatuto de 1935, uma autonomia interna que, embora muito limitada, não
deixa de ser real.
Nas colônias do Sudeste Asiático (Índias Holandesas, Filipinas,
Indochina francesa, Malásia), a burguesia ligada ao capitalismo estrangeiro
é, como se viu, em geral mais forte que a burguesia nacional. Para os traba-
lhadores das plantações, bem como para os das minas e dos portos, as condi-
ções de vida são muito duras. Movimentos sociais levantam-se contra a
exploração de que são vítimas os trabalhadores, à semelhança das greves
operárias de Saigon em 1927-1929. Uma insurreição nas Índias Holandesas
fracassou em 1926-192 7. Em todos esses países a crise do capitalismo mun·
dial de 1929 atinge os povos. A diminuição das encomendas de matérias·
primas e a queda dos preços atinge as sociedades coloniais, que dispensam
trabalhadores, e os pequenos produtores locais, que são privados de merca·
dos. Os camponeses do norte de Luçon, nas Filipinas, revoltam-se em 1931;
greves estalam em Manila, outras na Malásia, outras em Rangum. Na
Indochina, o levante de Nghe-An em 1931 é reprimido militarmente com
um saldo de centenas de mortos e milhares de condenados a trabalhos for·
çados em Poulo Condore. O poder colonial se mantém intocado até a guer·
ra, tanto ali quanto nas Índias Holandesas. Ao contrário, os americanos
402 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

julgam mais inteligente conceder autonomia às Filipinas, e os ingleses fazem


o mesmo na Birmânia, desligada da Índia em 1935.
O período entre 1917 e 1923 foi classificado pelos autores britânicos de
"idade de ouro do capitalismo chinês". Com efeito, este tinha se beneficiado
das encomendas do mundo em guerra. Numerosos bancos foram criados na
trilha do oficial Bank ofChina. O boom durou até 1923. Mas os "senhores da
guerra" tinham uma parte importante das províncias, freqüentemente apoia-
das pelas potências ocidentais que se beneficiavam de tratados desiguais como
alfândegas, extraterritorialidade, concessões, privilégios fiscais. De 1924 a 1927,
as tropas do Kuomintang. dirigidas por Chang Kai-chek expulsam os "senho-
res da guerra". Ele próprio tem, como cunhados, os financeiros Kong e Song,
e não tem nada a recusar à burguesia. Pressionado pelos dois, ele rompe em
1927 com os comunistas, que vão formar em 1931 a República dos Sovietes
Chineses, antes de conduzir, em 1934, a Longa Marcha até o Shenxi. Por sua
vez, o Kuomintang recebe o apoio dos imperialistas ocidentais, que oferecem
vantagens alfandegárias e jurídicas para reforçar sua posição em relação ao
povo chinês. O Plano de Quatro Anos tem, por fim, o reforço da indústria
chinesa, na qual os bancos investem capitais enormes. A taxa de crescimento
anual eleva-se de 8% para 9%. Mas a crise mundial atinge a China em 1932,
de modo que um quarto das indústrias chinesas pára de produzir em 1935. Os
comunistas tinham iniciado negociações com Chang e um acordo estava à
vista quando o Japão desencadeia uma guerra geral contra a China em julho
de 1937.
O capitalismo japonês desenvolveu-se durante esse tempo, e em 1930 sua
indústria pesada podia rivalizar com a dos ocidentais. Uma parte da burguesia
japonesa busca uma expansão que não é forçosamente militar. O Japão expor-
ta os seus capitais, especialmente para o Leste Asiático. Os investimentos
japoneses na China mais do que quintuplicaram entre 1914 e 1930. Os zaibatsu
Mitsui e Mitsubishi controlam a Companhia da Manchúria do Sul, a banca de
Taiwan e a imensa sociedade algodoeira Naigai Wata Kaisha, com numerosas
fábricas na China. Os grupos japoneses também possuem minas e ferrovias. A
exploração colonial típica é feita em Taiwan e na Coréia. No entanto, o orça·
mento militar japonês é reduzido a mais de metade entre 1919 e 1926. Os
gabinetes Kinseikai-Minseito de 1924-192 7 e de 1929-1931 procuram se en-
tender com os nacionalistas chineses do Kuomintang e com os Estados Uni-
dos. Mas, enquanto isso, uma expedição militar é enviada em 1928 a Shandong
para combater as tropas de Chang.
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 403

Suportando as conseqüências da crise de 1929, o imperialismo japonês


toma-se francamente militar e agressivo. A partir de 1932, o exército está de
fato no poder e o grande capital permite que ele opere a expansão por méto·
dos que exigem um forte aumento do orçamento militar. O incidente manchu
de 1931, seguido de um desembarque em Xangai, leva à criação, em setembro
de 1932, do Estado-fantoche do Mandchukuo. Após o assassinato de vários
po~ticos por jovens oficiais em fevereiro de 1936, os militares deixam de ter
obstáculos aos seus objetivos agressivos, mesmo se certos zaibatsu se inquie·
tam com os acontecimentos. A "Grande Ásia" sob o domínio japonês era o
seu ideal. Um recontro entre tropas chinesas e japonesas, em julho de 1937,
perto de Pequim, é utilizado pelos militaristas para lançar o Japão à conquista
da China.

Imperialismo japonês, movimentos de libertação e fim da


colonitação na Ásia

ASegunda Guerra Mundial começou no solo da Ásia em 1937. Astro·


pas japonesas avançaram em 1937-1938 no norte da China, na bacia do
Yang-Tsé·Kiang e em tomo de Cantão. Esta guerra na China foi de uma
crueldade extrema, com assassinatos maciços e a utilização de gases de com·
bate (que não serão utilizados em outros locais até 1945). A tomada de
Nanquim e os massacres fazem 300 mil mortos que ficaram na memória
chinesa. O governo nacionalista, refugiado em Chongking, conserva apenas
osul e o oeste da China, enquanto os japoneses instalam em Nanquim, em
1940, um governo-fantoche dirigido por Wang Jing-wei. Enquanto isso, as
guerrilhas nacionalistas e sobretudo comunistas organizam-se para resistir
às tropas japonesas.
A generalização da guerra conduzida pelo imperialismo japonês na Ásia
começa com o ataque a Pearl Harbor, Havaí, em 7 de dezembro de 1941,
colocando o país em confronto com os Estados Unidos e a Grã-Bretanha no
Pacífico e na Ásia. Em alguns meses as tropas japonesas ocupam Hong Kong,
a Malásia, Cingapura, as Índias Holandesas, as Filipinas e a Birmânia. A
Tailândia deixa passar as suas tropas, em função de um acordo fechado em
dezembro de 1941 . Os militares avançam até as portas da Índia e da Austrália.
Oimperialismo japonês instala a sua "esfera de co·prosperidade asiática", fa.
chada discreta para o seu domínio sem partilha. O Japão explora, em proveito
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

da sua economia de guerra, o carvão da China, o petróleo da Indonésia e da


Binnânia, o estanho e a bauxita da Malásia e da Indonésia, o algodão das
Filipinas, o arroz da Tailândia e da Cochinchina. Como no caso da Coréia, 0
Japão recruta brutalmente a mão-de-obra da Malásia e da Indonésia. O capi·
talismo japonês aumenta os lucros com a guerra. Em 194 2, as quatro grandes
~aibatsu controlam 50% do capital financeiro, 32% da indústria pesada e 61%
dos transportes marítimos do Japão; financiam as "Companhias de Desenvol·
vimento" da China ocupada, assegurando a máxima exploração das riquezas
chinesas.
Mas os outros capitalismos asiáticos também ganham com a guerra. Do
lado do governo de Chongking, as "quatro grandes farru1ias" (Chen, Tchang,
Kong, Song) enriquecem, tanto no controle da produção como na especula·
ção com o dólar. Uma inflação galopante devasta a China nacionalista, sendo
também forte no Japão e na Índia. Os salários não são reajustados. Operários,
camponeses e membros da classe média vivem sob condições de vida piores
do que nunca. Além das vítimas direras dos combates, a fome faz quatro mi·
!hões de mortos em 1942 em Henan, pelo menos três milhões em 1942-1943
em Bengala e faz dois milhões em 1944 em Tonkin. Vítimas que nunca terão
lugar em qualquer monumento aos morros, mas merecem figurar neste livro
negro.
Quando as forças japonesas são obógadas a se retirar; quando a bomba
atômica é lançada sobre Hiroshíma e Nagasaki e o Japão se sente obrigado a
capitular em agosto de 1945, a fisionomia da Ásia muda para sempre. Como
na China, os japoneses tinham instalado governos fiéis na Birmânia, no Vietnã,
nas Filipinas e na Indonésia, e alguns nacionalistas desses países tinham
aceitado segui-los. Mas os povos tinham compreendido rapidamente que a
"esfera da co·prosperidade asiática" funcionava apenas no interesse do Japão.
Movimentos como o Exército Popular Antijaponês da Malásia; a Liga Popular
Antifascista pela Liberdade, na Birmânia; o Viet-Minh, no Vietnã; os
Hukbalahap, nas Filipinas - todos somando às reivindicações de indepen•
dência nacional as de progresso social - obtinham o apoio popular. Após a
capitulação japonesa, o poder foi tomado pelos nacionalistas na Birmânia e
na Indonésia, mas neste último país esse poder não tardou a ser contestado.
Os Estados capitalistas e colonialistas ocidentais tinham de escolher entre
duas opções: reconhecer os movimentos de libertação nacional, concedendo
a independência pela qual lutavam, ou usar a força. Os Estados Unidos admi·
tiram a independência das Filipinas em 1946; a Grã-Bretanha libertou a
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA '!OS

Birmânia e o Ceilão em 1948. A luta armada foi o que sobrou para a Indonésia
em 1947-1948 e o Vietnã de 1946 a 1954. Os Países Baixos e a França, tendo
feito escolhas erradas, perderam todas as suas posições econômicas e deixa·
ram, por um tempo, de ter qualquer papel no Sudeste Asiático. Além disso, a
não aplicação dos acordos de Genebra de 1954 levou a guerra americana ao
Vietnã de 1959 a 1975 e a reunificação do país sob um regime socialista que
nenhum capitalismo desejava. Na Malásia, a Grã-Bretanha combateu o mo-
vimento progressista de libertação de 1948 a 1953, quando entregou o poder
aos elementos pró-ocidentais, continuando o capitalismo britânico a ter um
papel dominante na península malaia. O Japão, bem entendido, perdeu todas
as suas colônias: a Coréia independente mas dividida entre um Norte socialis-
ta e um Sul capitalista, e Taiwan, entregue à China nacionalista.
A Grã-Bretanha trabalhista tinha reconhecido desde 1945 o princípio da
independência para os habitantes da península indiana, o que desagradava
bastante a Churchíll. Mas o colonialismo inglês tinha semeado os germes da
divisão entre o Partido do Congresso, de tendência laica, e a Liga muçulma-
na. Quando a independência chegou, em agosto de 1947, foi concedida à
Índia, de um lado, e ao Paquistão do outro. Londres conseguiu fazer deles dois
domínios no seio da Comunidade Britânica, mas houve pelo menos 300 mil
mortos em massacres e execuções, 500 mil pela fome e 7 milhões de refugia-
dos que perderam tudo nas estradas.
Na China, o Kuomintang tinha saído da guerra muito enfraquecido e os
comunistas muito reforçados. As "quatro grandes famílias" do capitalismo
chinês só pensavam em apoderar-se das empresas japonesas confiscadas, en·
quanto a inflação crescia e o povo sofria fome e repressão. Depois da tentativa
de formar um governo de coalisão, a guerra civil renasceu em 1946. As tropas
do Kuomintang, inicialmente expulsas das aldeias, perderam as cidades cerca-
das: Shenyang (Mukden), Beijing (Pequim), Nanquim, Xangai, e Wuhan. Com
aproclamação da República Popular da China, no dia 12 de outubro de 1949,
e apesar da manutenção de um "capitalismo nacional", o capitalismo chinês
parecia agora ver terminar seus belos dias.

As economias capitalistas na Ásia do p6s-girerra

No final da Segunda Guerra Mundial, o Japão tinha dois milhões de mor·


tos, e sua economia estava em ruínas. Os ocupantes americanos quiseram
406 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

desmantelar a potência financeira das zaibatsu. fu sociedades tiveram de en.


tregar as suas ações às autoridades e foram "descartelizadas". Tratava-se mais
de medidas antitruste do que anticapitalistas, o que não é surprendente da
parte do capitalismo americano vencedor. De resto, essa política foi abando-
nada a partir de 1948 com o acirramento da Guerra Fria e a proximidade do
sucesso comunista na China. Com a ajuda dos ocupantes, o patronato japo·
nês acabou com as greves e afastou das empresas os elementos progressistas.
O início da guerra da Coréia, em 1950, trouxe o Tratado de Paz de San Fran·
cisco, entre os Estados Unidos, alguns dos Aliados e o Japão (1951) e o
renascimento de um embrião de exército japonês. Começa a recuperação da
economia, conhecida como "Jimmu Boom", e em 1955 a produção volta ao
nível da dos anos 30. O produto nacional bruto aumenta 10% ao ano. O
Japão consegue, também em 1955, ser admitido no Gatt. O governo Kishi
negocia com os Estados Unidos um novo rratado restringindo a utilização das
bases americanas no Japão para operações na Ásia, assinado no início de 1960;
porém, como esse tratado prorroga a aliança com os Estados Unidos, a ratifi·
cação enfrenta o protesto popular. O novo primeiro-ministro, Ikeda, promete
o dobro do PNB em dez anos, mas o país atinge a meta em cinco (1965) e
continua a crescer de 10% a 14% ao ano. Em 1970, o Japão é a terceira potên·
eia econômica do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da União Sovié·
rica. O capitalismo japonês organiza com o Estado um Ministério da Indústria
e Comércio Internacional que o ajuda nas suas compras e vendas; as filiais das
empresas japonesas multiplicam-se na Coréia do Sul, em Taiwan, em Hong
Kong e em Cingapura.
Tendo se tomado o segundo parceiro comercial dos Estados Unidos, em
cujos mercados conseguiu penetrar graças a preços inferiores aos americanos,
o Japão tem muitos atritos com a outra potência imperialista. A balança co·
mercial americana é deficitária (bilhões de dólares por ano, em média) en·
quanto os capitalistas japoneses se recusam a reduzir os seus próprios impostos
alfandegários. O fim da conversibilidade do dólar em ouro, anunciado por
Nixon em 1971, é acompanhado de uma sobretaxa comercial que penaliza os
produtos japoneses. O primeiro choque do petróleo (197 3) provoca um défi-
cit da balança de pagamentos do Japão. Com o iene tornado moeda forte
procurada nos mercados de câmbio, as exportações japonesas sofrem as con·
seqüências a partir de 1976. Este período, no entanto, começou com o boom
econômico lzanagi (1965-1970). De 1963 a 1972 a taxa de crescimento foi
em média de 10,5% ao ano, mas mais baixa de 1973 a 1985, na ordem de
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 407

4,1% por ano. A alta do iene em 1985-1986, causada pela desvalorização


voluntária do dólar, ameaça novamente as exportações japonesas. O Japão
responde economizando energia, desenvolvendo a pesquisa nas grandes em-
presas (Fujitsu, Honda, Hitachi, Nippon Electric, Nissan, Toshiba, Toyota),
descentralizando as indústrias e utilizando mão-de-obra no Sudeste Asiático,
investindo também nos países desenvolvidos. O capitalismo japonês dispõe
de um alto nvel de poupança (4,5% do produto interno bruto), de uma admi-
nistração e de uma informação sem par, os adiantamentos obrigatórios são os
mais baixos dos países desenvolvidos e as despesas militares somente da or-
dem de 1% do PNB. No entanto, após o boom Heisei (1986-1990), menos
forte que os precedentes, o país entra, em 1992, num período de fraco cresci-
mento (1,4% de crescimento médio). E em 1997-1998 conhece a mais clássi-
ca das crises de super produção, ou seja de subconsumo, com que todo capita-
lismo está ameaçado.
A Segunda Guerra Mundial foi, como a primeira, um período benéfico
para o capitalismo indiano. O governo britânico tomou-se o grande cliente
das fábricas de aço e das indústrias têxteis da península, e rapidamente a
Índia passou da situação de devedora à de credora. Um plano para quinze
anos (1947-1962), chamado Plano de Bombaim, foi adotado, prevendo dupli-
caro rendimento per capita durante esse período. De acordo com este plano,
o Estado devia financiar as indústrias de base e os capitalistas privados, que
prometiam lucro rápido. Esta concepção, muito encantadora para aqueles,
tinha recebido o nome de "economia mista". O Plano de Bombaim inspirou
durante muito tempo a economia indiana. Nehru colocou em votação três
planos qüinqüenais: 1951-1956, 1956-1961e1961-1966. A indústria privada
se beneficiava de tarifas protecionistas e até eram proibidas as importações.
Os 163 milhões de rúpias de investimentos públicos durante os três planos
favoreceram a indústria e os serviços à custa da agricultura. A indústria pesa-
da desenvolveu-se rapidamente; a dos bens de consumo, com muito menos
rapidez. A Índia recebeu mais de nove bilhões de dólares de ajuda de 1951 a
1966.
A Revolução Verde dominou os períodos de 1961-1965 e 1966-1970, e a
produção agrícola cresceu mais depressa que a população. Mas 1965-1967
foram anos de recessão industrial. As fragilidades do capitalismo indiano fica-
ram claras, assim como a ineficácia do setor público. A recuperação da indús-
tria nos anos 1970-1977 foi acompanhada de concentração. Em troca, em
1971 Indira Gandhi privatizou por algum tempo os bancos indianos. A produ-
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

ção industrial cresceu lentamente até 1984, depois com maior rapidez (8% ao
ano) até 1990. Nos anos 80, o investimento representava perto de 25% do
produto interno bruto. O Banco Mundial tinha obrigado a Índia a desvalo-
rizar a rúpia em 50% em 1966. Nesse mesmo ano, o conflito com o Pa-
quistão acabara em Tachkent, mas fora retomado quando do levante do
Paquistão Oriental em 1971, que deu origem a Bangladesh. O capitalismo
indiano conseguiu em 1981 proibir as greves nos sNores "essenciais", o que
não impediu que uma greve geral no início de 1982 acabasse com 700 mortos.
A Índia procura investimentos estrangeiros para as suas indústrias e esforça·
se por conseguir mercados no Sudeste Asiático. Sob os governos de lndira
Gandhi, assassinada em 1984, e, depois, do seu filho Rajiv (1984· 1989) e de
Narasimha Rao (1990-1996), a Índia realizou um teste nuclear e muniu-se de
um míssil de um alcance de 2.500 km. A tensão persistente provoca o temor
de que a Índia, de agora em diante uma das grandes potências capitalistas
mundiais, venha a enfrentar, mais tarde ou mais cedo, o vizinho Paquistão.
Com efeito, o Paquistão está em conflito com a Índia, especialmente a
propósito de Caxemira. Aquele país oscilou sempre entre a adoção de uma
posição de Estado islâmico, que tomou várias vezes depois de 1956, e uma
atitude laica. Reformas progressistas (nacionalizações, reforma agrária) fo.
ram adotadas em 1971 por Zulfikar Ali Bhutto e, em 1973, por Fazal Elahi
Chaudri. Mas um golpe de Estado militar em 1978 colocou no poder o ge·
neral Mohammed Zia al-Haq, sendo a "charia" adotada como lei suprema.
O país teve papel ativo na guerra do Afeganistão e recebeu três bilhões de
dólares de auxílio americano em seis anos. Filha de Ali Bhutto, executado
em 1979, Benazir Bhutto tomou-se primeira-ministra cm 1988; foi destitu·
ída em 1990, mas voltou ao poder em 1993. Apesar das perturbações, a taxa
de crescimento oscilou durante esses últimos anos entre 4% e 6% ao ano. A
classe dirigente paquistanesa conserva muito mais traços de feudalismo que
a da Índia. Isto, sem dúvida, explica em parte as oscilações políticas do país.
A Índia reconheceu, em 1992, poder fabricar armas nucleares, e muitos
pensam que isso já começou. A península indiana pode explodir de um
momento para o outro, em conseqüência de rivalidades nacionais entre elas·
ses dirigentes adversárias, que não deixam de lembrar o que aconteceu na
Europa capitalista no século XIX e no início do século XX, mas desta vez na
era nuclear.
As economias dos países do Sudeste Asiático saíram da Segunda Guerra
Mundial extremamente enfraquecidas pela destruição (Birmânia, Filipinas) e
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 409

outras conseqüências da guerra. Quaisquer que sejam as diferenças de um


país para outro, todos os movimentos de libertação tinham no seu programa o
desenvolvimento econômico. Os Estados que agora eram novamente inde-
pendentes criaram bancos centrais, o que era recomendado nos anos 50 e 60
pelo Banco Mundial, assim como a planificação centralizada, o que basta para
mostrar que se trata de uma época longínqua. Assim nasceram o plano
qüinqüenal (Repelira 1) na Indonésia, em 1969, o primeiro plano malaio, em
1970, o plano de vinte anos da Birmânia, em 1972, e três planos quinquenais
na Tailândia após aquela data. A participação do Estado na econonúa era
forte na Indonésia, em Cingapura, na Malásia, na Tailândia e nas Filipinas,
respondendo por índices de 10% e 40% do produto nacional bruto. Estes
Estados recorriam ao protecionismo para favorecer o crescimento das suas
indústrias emergentes. Alguns deles pretendiam situar-se entre o capitalismo
e o socialismo. Tratava-se em geral de um capitalismo no qual o Estado repre-
sentava um papel importante e no qual o neocolonialismo das antigas potên-
cias coloniais tinha posições ainda fortes (Birmânia, Malásia). Para manter
esses países no seu campo de influência, os Estados Unidos forneceram uma
ajuda (2,6 bilhões de dólares para a Tailândia entre 1950 e 1975, por exem-
plo) evidentemente bem acolhida pelas classes dirigentes pró-ocidentais.
Após a derrota americana no Vietnã (1975), os capitalismos do Sudeste
Asiático adotaram políticas de crescimento das suas indústrias, do seu comér-
cio e das suas atividades financeiras. Já na Indonésia, a partir de 1967, após o
golpe de Estado de 1965 (que tinha provocado 500 núl mortes e 700 mil
prisões), Suharto deu ao país um impulso nacionalista e ao mesmo tempo
favorável aos grandes interesses, desenvolvendo um verdadeiro colonialismo
(Nova Guiné Ocidental, Celebes, Malucas, Timor). Os golpes de Estado nú-
litares na Tailândia ( 1975, 1977 e 1988), assim como a presidência de Marcos
(1965-1986), a de Cory Aquino (1986-1992) e a de Fidel Ramos (a partir de
1992) nas Filipinas consolidaram o capitalismo. Os novos países industrializa-
dos abrem as suas portas ao capitalismo estrangeiro, obedecendo às regras do
neoliberalismo preconizado pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Ban-
co Mundial. As taxas de crescimento nos anos 90 são estabelecidas em torno
de 8% por ano. Os novos tigres são apresentados como exemplos de como
encontrar o canúnho do crescimento econômico.
A esses novos tigres é necessário acrescentar os novos dragões, não me-
nos capitalistas que eles. Taiwan teve, de 1977 a 1996, uma taxa de cresci-
mento anual médio de 6, 7%, com picos de até 13%. Hong Kong estabeleceu
410 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

uma taxa de 5% há dez anos, e a Coréia do Sul de 8,4%. Esta tornou-se a


décima primeira potência industrial do mundo. O capitalismo sul-coreano
distingue-se pela atividade dos conglomerados, ou chaebol (Samsung, Daewoo,
Kia, Halla, Hyundai, L.G., Sangyong), que só podem ser comparadas às zaibatsli
japonesas. É também marcado por numerosos escândalos da sua classe diri·
gente, que nunca teve vergonha de exercer uma repressão cruel contra os
operários, os estudantes e os oposicores. Dois antigos presidentes da Repúbli-
ca foram condenados em 1996- um deles, Chun Doo-Hwan, à prisão perpé·
tua, o outro, Roh Tae-Woo, a dezessete anos de prisão - pelo golpe de Estado
militar de 1979 e o massacre de pelo menos 2 mil pessoas que participaram
nas manifestações populares de Kuangj u em 1980. Os dirigentes dos princi·
pais chaebol foram punidos pela justiça por corrupção.
Os sucessos econômicos dos novos dragões, assim como o dos novos ti·
gres, atraíram os capitais estrangeiros para países cujas moedas estavam ali·
nhadas com o dólar, mas onde os lucros seriam superiores aos obtidos no mun·
do ocidental. Quando as dificuldades apareceram, em 1997, esses capitais
especulativos começaram a fugir dos países capitalistas do Leste Asiático. A
crise começou na Tailândia em julho, estendendo- se depois a Filipinas, Malásia
e Indonésia. As moedas tiveram de ser desvalorizadas (de 15% a 55%), e foi
pedida ajuda ao FMI e ao Japão. A catá.strofe se espalhou de bolsa de valores
a bolsa de valores. Hong Kong, devolvida em julho à China mas formando
uma região administrativa especial plenamente nacionalista, foi atingida em
outubro, e a Coréia do Sul em dezembro. Ali, naquele mesmo mês, o descon·
tentamento levou à eleição para a Presidência de K.im Oae· Jung, da oposição,
que aceitou o plano do FMI, contemplou seus antecessores e os dirigentes dos
chaebol, mas exigiu destes um grande rigor administrativo. Em março de 1998,
a crise financeira ainda não tinha terminado. O que é certo é que a taxa de
crescimento dos países do Leste Asiático será inferior à dos anos anteriores
pelo menos até o ano 2000, e sem dúvída ainda depois dessa data. As falênci·
as e o fim dos investimentos estrangeiros levaram às demissões, ao desempre•
go e a movimentos de protesto reprimidos pela força, como na Indonésia. O
capitalismo asiático ligado ao neoliberalismo já não aparece como modelo
que bastava imitar para que o Terceiro Mundo atingisse um verdadeiro desen•
volvimento.
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA

Qual poderá ser o futuro do capitalismo na Ásia?


AÁsia teve um papel essencial no processo de reivindicação de indepen·
dência dos povos após a Segunda Guerra Mundial. Os vinte e nove países
asiáticos e africanos reunidos em Bandung em 1955 tinham exigido o fim do
colonialismo e o direito de os novos Estados assumirem a sua própria inde·
pendência. Em seguida, o Movimento dos Não-Alinhados, que personalida·
des asiáticas como o indiano Nehru tinham contribuído fortemente para im·
pulsionar, afirmava o direito de cada povo escolher seu caminho, capitalista
ou socialista, e de dispor das suas riquezas naturais no quadro de uma nova
ordem econômica internacional (Argel 197 3).
O capitalismo, portanto, não era inevitável. Se esse caminho foi seguido
em numerosos países da Ásia, como acabamos de ver, foi no interesse das
classes dirigentes locais, fortemente apoiadas e auxiliadas pela maior potência
capitalista do mundo, os Estados Unidos da América. E estes, mesmo assim,
tiveram dificuldades desde o início: quando quiseram, em 1954, seguindo o
modelo da Otan, criar a Otase (Organização do Tratado do Sudeste Asiático)
encontraram apenas três Estados interessados (as Filipinas, a Tailândia e o
Paquistão) . É verdade que os americanos continuaram a ocupar a Coréia do
Sul, exercendo uma forte influência nos anos de progresso do seu capitalismo.
Eé também verdade que os americanos protegeram os nacionalistas chineses,
mantendo-os em Taiwan mesmo depois de terem reconhecido a República
Popular da China em 1979, tudo isso em função dos seus interesses. O papel
representado por eles na Tailândia, na Indonésia, no Vietnã do Sul até 1975,
enas Filipinas não poderia ser subestimado.
A ação dos americanos sempre foi apoiada pelo Fundo Monetário Inter·
nacional e pelo Banco Mundial, onde os Estados Unidos têm as maiores cotas
e que, por isso, são sediados em Washington. Estas instituições financeiras
são, há vinte anos, as paladinas do neoliberalismo, na Ásia como em todo o
mundo. O Banco Asiático de Desenvolvimento, ao assegurar empréstimos
sem juros ou a taxas reduzidas, também teve um papel no desenvolvimento
do capitalismo na Ásia.
ACoréia do Norte a partir de 1946, a China continental após 1949, o
Vietnã do Norte após 1954, todo o Vietnã desde 1975 e, finalmente, o Laos,
escolheram um caminho diferente. Entretanto, na China foram autorizadas
empresas privadas depois de 197 8. Sociedades mistas foram criadas com capi·
tais estrangeiros a partir de 1980 e foram estabelecidas zonas econômicas es·
412 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

pedais. A palavra de ordem da "economia socialista de mercado" foi lançada


em 1992. Surgiram 3.200 sociedades por ações cotadas na bolsa (Xenzen e
Xangai). Os investimentos estrangeiros cresceram. O Vietnã seguiu uma via
análoga, embora até aqui não haja qualquer bolsa de valores nesse país e os
seus dirigentes dêem mostras de uma grande prudência. O FMI e o Banco
Mundial insistem que as refonnas nesses dois Estados sejam levadas até o fim,
o que, no espírito dessas instituições financeiras, significaria um regresso pie·
no ao capitalismo. Os responsáveis pelos dois países têm sempre, no entanto,
apresentado as reformas como medidas que não questionam o caráter soda·
lista dos seus regimes.
A nossa época é a das integrações econômicas em todos os continentes. A
Associação da Ásia do Sul para a Cooperação Regional (Bangladesh, Butão,
Índia, Maldivas, Nepal, Paquistão, Sri Lanka) não conseguiu ter mais do que
um papel limitado por causa da rivalidade indo-paquistanesa. Mas a Associa·
ção das Nações do Sudeste Asiático (Brunei, Indonésia, Malásia, Filipinas,
Cingapura, Tailândia), criada em 1967 em Bangkok, é uma organização im·
portante, econômica e politicamente, mantendo laços com a União Européia
e outros agrupamentos de Estados. O Vietnã juntou-se a ela em 1995. Por
outro lado, os imperialistas japoneses aproveitam todas as oportunidades, como
por exemplo a crise financeira do leste asiático, para tentar estabelecer uma
"zona iene" na Ásia, na qual se pode ver uma versão suavizada da esfera de
co·prosperidade de péssima lembrança. O cavalo de batalha dos seus rivais
americanos é sobretudo a Asian Pacific Economic Cooperation, lançada em
1989 pela Austrália mas que eles passaram a dominar em 1994, e que, do seu
ponto de vista, deveria atingir em 2010 uma vasta zona de livre comércio
englobando as duas margens do Pacífico.
Depois do retorno ao capitalismo dos países da ex-União Soviética e dos
países da Europa Oriental, o pensamento dominante no Ocidente é que isso
também deve acontecer na Ásia e no resto do mundo, porque o capitalismo é
o único regime humano concebível. Que ele seja humano é o que a leitura
deste livro pode legitimamente fazer duvidar. Que ele seja o único concebível
não é igualmente uma verdade. Houve regimes anteriores que não eram capi·
calistas e neste século XX ele rivalizou com outro que igualmente não o era. O
domínio do grande capital é difícil de suportar. Apesar do domínio sobre a
informação e do "pensamento t'.mico", disso se dão conta os povos todos os
dias e, entre eles, as massas asiáticas confrontadas com as conseqüências da
crise financeira. É inevitável que todos eles aspirem a um outro modelo que
O CAPITALISMO ASSALTA A ÁSIA 413

possa dar garantias de uma vida melhor e que, por isso, tentem encontrar um
novo caminho para chegar a ele. Porque o capitalismo não é o futuro, nem
para a Ásia nem para o resto do mundo.

Yves Grenet é economista. Dirige o Comitê Nacional para a Independência e o Desenvolvi-


mento (CNID). É um antigo membro da presidência do Conselho Mundial da Paz.
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XIX E XX:
CONTRIBUIÇÃO PARA A HISTÓRIA DO
CAPITALISMO
CAROLINE ANDREANI

., .
Os homens sempre migraram, e pode-se legitimamente questionar por
que o capitalismo teria uma responsabilidade particular nas migrações dos
séculos XIX e XX. Não será apenas um ponto de vista teórico, má vontade
com um sistema que, afinal de contas, não faz mais do que tirar partido de
um fenômeno natural - as migrações humanas - que ocorre desde a pré-
história?
Tradicionalmente, os historiadores das migrações decompõem as suas cau-
sas em dois pólos: as causas repulsivas e as causas atrativas. As causas repulsi-
vas são o conjunto das razões que podem levar os indivíduos a deixar o local
onde vivem: miséria, fome, guerras, conflitos políticos ou religiosos. As causas
atrativas são a procura de novas terras e o apelo da fortuna. Os mesmos histo-
riadores estabelecem depois distinções sutis entre as migrações "espontâneas"
e as migrações organizadas.
Tais definições evidentemente orientam a percepção que podemos ter dos
fenômenos migratórios. Primeiramente, causas repulsivas e causas atrativas
combinam-se na maior parte dos casos. É improvável que um indivíduo ex-
pulso do seu país por múltiplas razões procure um lugar para viver a mesma
miséria e as mesmas perseguições. Segundo, a própria noção de migrações
"espontâneas" é falaciosa. Migra-se espontaneamente quando se foge de si-
tuações políticas ou econômicas intoleráveis? Seria sem dúvida mais conveni-
ente falar de migrações forçadas e de itinerários individuais ou coletivos.
As migrações são, na sua essência, a conseqüência de situações extremas
nas quais o indivíduo só tem como escapatória partir para um destino desco-
nhecido. É possível então, sem dúvida, fazer-se a distinção entre itinerário de
promoção social e migrações de sobrevivência. O itinerário de promoção so-
cial é planificado pelos indivíduos que deixam o seu local de residência com
uma estratégia de ascensão social a médio e longo prazos, para eles ou para a
geração seguinte. As migrações de sobrevivência são a resposta imediata a
situações intoleráveis: as pessoas fogem para assegurar a sua sobrevivência.
Este tipo de migração assume muitas vezes um caráter de longa duração cujos
intervenientes não tinham inicialmente previsto.
Para o período que nos interessa, proporia uma classificação - com os
limites que qualquer classificação implica - distingüindo as migrações de
418 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

caráter colonial, as migrações de caráter econômico e as migrações de caráter


político. Umas e outras podem, aliás, combinar-se.

Migrações de caráter colonial

As migrações de caráter colonial tiveram início com a colonização das


Américas a partir do século XVI. Se os fluxos populacionais forem regulares,
mantêm-se limitados pela deficiência dos meios técnicos. Julga-se que o nú·
mero de espanhóis que partiram para colonizar a América Latina nos séculos
XVII e XVIII chega a dois milhões de indivíduos, e os portugueses a um mi·
lhão. O comércio e o transpone de escravos negros teriam envolvido, no mesmo
período, entre sete e nove milhões de indivíduos. 1
A influência do capitalismo sobre as migrações encontra ali a sua primeira
expressão. Confrontados com o problema material da "valorização" da Amé·
rica Latina, espanhóis e portugueses cedo trataram de dissimular o desapare-
cimento de escravos índios importando uma mão-de-obra proveniente da
África. Capturados, transponados como mercadoria, os escravos africanos são
utilizados nas minas e explorações agrícolas em benefício das elites européias,
espanholas e portuguesas e, logo depois, holandesas, francesas e inglesas.
No século XIX, a atenção dos eur;peus volta-se para a Ásia, a Oceania e
a África. Não é que estes continentes não fossem conhecidos antes. Mas os
fenômenos conjugados do desenvolvimento do capitalismo industrial e seus
imperativos (acesso a matérias-primas de baixo preço, desenvolvimento de
novos mercados de consumo etc.) e do desenvolvimento de meios técnicos
facilitam as conquistas e permitem a manutenção da presença européia em
continentes até então dificilmente acessíveis.
Os fluxos populacionais para estes continentes foram menos importantes
do que para as Américas. Apesar de uma forte incitação de caráter ideológico
- manuais escolares, exposições coloniais, narrativas de viagem de socieda-
des de geografia, propaganda religiosa engrandecendo a empreitada colonial
- , os milhões de europeus candidatos à emigração na sua maioria preferiram
a América a outros destinos.
A necessidade econômica levava os europeus para as colônias. O teste•
munho de Marguerite Duras sobre os pequenos colonos franceses na lndochina2
e o de Simenon na sua reportagem publicada em 19 3 2 em Voilà sobre a África
colonial, mostram bem as motivações da partida: um futuro limitado na me-
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XIX E XX 419

trópole, a possibilidade de viver melhor em países onde, mesmo sem dinheiro,


oeuropeu possui fatalmente uma vantagem sobre o colonizado. Na sua repor..
cagem intitulada "I..:. heure du n egre ", Simenon não deixa espaço para ambi..
güidades: "Ele (o colono europeu) partirá também porque ali há um criado
negro que engraxa seus sapatos e que ele tem o direito de chatear! Partirá
sobretudo porque não há outro futuro, porque os postos de trabalho são escas ..
sos na França. ( ... ) Ali, pelo menos o fato de ser branco, o mais miserável dos
brancos, já é uma grande vantagem... "
Os políticos e os teóricos do século XIX tinham preconizado as colônias
de povoamento. Esta aposta foi ganha na Oceania: Austrália, Nova Zelândia
e Tasmânia tornaram.. se, a exemplo da América do Norte, colônias de povo..
amento habitadas quase exclusivamente por europeus. A colonização inglesa
quase não deixou chance de sobrevivência para os povos oceânicos. Os
tasmanianos foram completamente exterminados,3 aborígines da Austrália e
maoris da Nova Zelândia foram massacrados, expulsos para as terras menos
produtivas, colocados em reservas.4 Ainda hoje continuam a morrer lenta..
mente: desemprego, delinqüência e alcoolismo são o seu quotidiano.
A colonização da Austrália teve início no final do século XVIII. Os britâ..
nicas tudo fizeram para impedir a fixação de populações não .. européias, espe ..
cialmente de chineses e de japoneses. Inicialmente povoada por condenados
às galés (eram cerca de 150 mil no início do século XIX), a Austrália atraiu
depois criadores de gado e mais tarde garimpeiros, a partir de 1851, com a
descoberta de ouro. Esta colonização continuou até tarde, uma vez que a
partir de 1946 o governo australiano favoreceu a instalação de 1,5 milhão de
migrantes, essencialmente britânicos. Este movimento migratório ainda hoje
continua: desde o fim do apartheid, numerosos "brancos de segunda" da Áfri..
ca do Sul fixaram.. se na Austrália.
Os europeus igualmente tentaram transformar certas regiões da África
em colônias de povoamento. A África do Sul e a Rodésia são destinos fre ..
qüentes para as migrações inglesas a partir de 1806, data da tomada de posse
do território pela Inglaterra. À colonização européia preexistente5 vem jun..
tar-se uma colonização inglesa em massa a partir de 1820. Esta população
européia vai conhecer um outro grande crescimento a partir de 1860 com a
descoberta de minas de ouro e diamantes. A colonização inglesa inventa en..
tão a deportação em grande escala de colonizados de outros continentes: en..
tre 1860 e 1909, 120 mil indianos são assim enviados para África do Sul para
trabalhar na indústria mineira, em condições de quase escravatura.
420 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Outras tentativas terminaram em fracasso. A partir de 1870, a França


quis transformar a Argélia em colônia de povoamento. Através de uma políti·
ca de naturalização automática de argelinos judeus (1870) e europeus (1896),
conseguiu aumentar artificialmente a população européia. A França procu·
rou atrair candidatos à emigração oferecendo terras.6 Estes colonos campone·
ses, vítimas dos grandes colonos e das sociedades financeiras que os espolia·
ram, foram rapidamente apanhados pelas restruturações de terra organizadas
pelos seus proprietários. A população européia manteve-se nas cidades e cres·
ceu pouco: não chegará a um milhão de homens em 1954. 7 A guerra e a
adesão da maioria da população européia à repressão do movimento nacional
argelino, depois a política da OAS, levaram os europeus a abandonar a Argé·
lia em 1962, com a independência.
Por fim, o último exemplo da colonização francesa de povoamento, a Nova
Caledônia. Anexada pela França em 1853, ela serve, antes de mais nada, de
prisão. Também lá as deportações são utilizadas. Com a resistência da popula·
ção kanak (e o risco da sua extinção pura e simples), os franceses importarão,
a partir de 1893, trabalhadores japoneses para trabalhar nas minas de níquel,
e migrantes vietnamitas, a partir de 1924, com contratos de trabalho que os
deixam sem qualquer defesa perante o empresariado francês local. Mas o exem·
pio da Nova Caledônia é interessante em virtude da política voluntária de
diminuição do povo kanak, conduzida racionalmente a partir de 1972 por
determinação do primeiro-ministro da época, Pierre Messmer.
l Este último, numa carta ao ministro dos DOM-TOM, escrevia então:
"A Nova Caledônia, colônia de povoamento, é provavelmente o último
território tropical não independente no mundo para onde um país desenvol·
vido pode fazer emigrar os seus cidadãos. A curto e a médio prazos, a emigra·
ção em grande escala de cidadãos franceses originários da metrópole ou do
Ultramar (Reunião) deveria permitir evitar este perigo (uma reivindicação
nacionalista, NDLR), mantendo e melhorando a relação numérica das comu·
nidades. (...) O sucesso desta empreitada, indispensável à manutenção de
posições francesas a sul do Suez depende, entre outras condições, da nossa
aptidão para finalmente ter êxito, depois de tantos fracassos na nossa Histó·
ria, numa operação de povoamento além-mar."
Esperemos que a situação atual na Nova Caledônia, conseqüência da ado·
ção desta política, levada a cabo por todos os governos que sucederam Pierre
Messmer, o conforte nas suas análises.
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XIX E XX 421

Migrações de caráter econômico

A partir da segunda metade do século XIX, com a revolução industrial


transformando as economias de certos países da Europa ocidental- entre os
quais, e em primeiro lugar, a Inglaterra, a Alemanha e a França-, majorita·
riamente rurais em economias de caráter industrial, as migrações européias
assumiram grandes proporções.
Os camponeses ingleses estiveram entre os primeiros a suportar os custos
da revolução industrial. Desde o início do século XIX a Inglaterra, envolvida
num processo global de transformação econômica, reforma sua produção agrí·
cola. A agricultura, ameaçada no mercado interno inglês pelas agriculturas
européia e colonial, é substituída pela criação de gado. Os camponeses ingle-
ses, agora inúteis, são expulsos das terras. A incapacidade das indústrias emer·
gentes de absorver a totalidade desta mão-de-obra força um grande número
de ingleses a expatriarem-se para a América do Norte, para a Índia, para
África e para a Oceania. De 1825 a 1920, 17 milhões de ingleses deixam seu
pafs.8
AAlemanha conhece um fenômeno idêntico: entre 1820 e 1933, seis
milhões de alemães emigram para os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina.
Amaior parte dos países europeus, incluindo a Europa Oriental,9 com um
intervalo de tempo em relação à Europa Ocidental, conhece estes fenômenos
de emigração. Estados Unidos e América Latina absorvem a maior parte dos
emigrantes europeus.
AFrança é um caso à parte. A sua falta de dinamismo demográfico - a
França do século XIX é um país pouco povoado-, combinada com o fato de
asua agricultura ter resistido melhor do que a agricultura inglesa quando da
revolução industrial, faz deste país um pólo de imigração.
Ocaso da Irlanda do século XIX é exemplar. A Irlanda é nesta época um
país rural cujos habitantes são na maioria pequenos camponeses vivendo em
áreas minúsculas. Entre 1814 e 1841, a população irlandesa passou de 6 mi·
lhões para 8 milhões de habitantes. As más colheitas que se seguiram à doen·
ça da batata de 1846 a 1851 provocaram a fome. Juntamente com epidemias
de cólera, elas são responsáveis pelo desaparecimento de um milhão de pesso·
as. No mesmo período, um milhão de irlandeses abandonam o seu país e par·
tem para Inglaterra, Austrália, Canadá ou Estados Unidos, num fluxo migra·
tório que não termina.
A maioria dos migrantes irlandeses embarcou para os Estados·Unidos 10
----.i

422 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

até os anos 1920, quando leis restritivas bloquearam sua entrada no território
americano. A partir desse momento, os fluxos migratórios orientaram-se no-
vamente para a Grã-Bretanha. Os Estados Unidos ofereciam um maior nú-
mero de possibilidades de promoção e sucesso social do que a Inglaterra. Por
outro lado, davam provas de uma maior tolerância religiosa do que a Inglater-
ra, país colonizador- a Irlanda virá a obter a sua independência em 1921-
e opressor.
Em 1890, os irlandeses eram mais numerosos no exterior do que na pró-
pria Irlanda.
Durante todo o século XIX, os irlandeses desenvolveram uma cultura
de emigração. A passagem de barco para os Estados Unidos era conseguida
com a família e os vizinhos. Podia igualmente ser enviada por membros da
família já instalados no estrangeiro. Desembarcado nos Estados Unidos, no
Canadá ou na Austrália, o migrante irlandês nunca estava isolado porque
encontrava redes de ajuda. Chegado ao país de destino, juntava-se aos
migrantes que o tinham precedido, instalando-se na mesma cidade e no
mesmo bairro. A rede de ajuda acolhia-o, alojava-o e arranjava-lhe um
emprego.
Apesar das suas características rurais, os migrantes irlandeses em países
de emigração instalaram-se majoritariamente em cidades. Pouco qualificados
mesmo para a agricultura, tinham maiores possibilidades de sobrevivência no
meio urbano. Em 1940, 90% dos irlandeses nos Estados Unidos estavam nas
cidades. A maioria deles vivia nas cinco maiores cidades americanas, Nova
York, Chicago, Filadélfia, Boston e San Francisco.
Na sua forma de migrarem e de se instalarem, privilegiando relações de
caráter comunitário, os irlandeses nos Estados Unidos não diferem dos outros
migrantes do mesmo período: italianos, russos, armênios, judeus do leste eu-
ropeu, chineses, japoneses etc. procedem da mesma forma recriando redes de
sociabilidade com seus compatriotas no país de destino. Para o migrante, tra·
ta-se de reconstituir um espaço social privilegiado. É uma questão de sobrevi·
vência num meio que se revela claramente hostil. É preciso esperar a segunda
geração para que as relações privilegiadas se dissipem. Elas resistem graças a
associações políticas, culturais, religiosas etc.
Sem extrapolar demasiado, percebemos que as solidariedades "comunitá·
rias" 11 - solidariedade na partida, solidariedade à chegada, solidariedade no
processo de inserção - continuam a funcionar do mesmo modo hoje.
As migrações de caráter econômico não são forçosamente migrações in·
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XIX E XX 423

tercontinentais. Em muitos casos, as migrações são migrações transcontinentais,


até mesmo migrações internas.
A França, país de imigração desde o século XIX, acolheu desde os anos
1850 belgas, poloneses, italianos, espanhóis, atraídos pelas possibilidades de
emprego que o país oferecia. Simultaneamente, esta solicitação era em parte
satisfeita pelas migrações internas do país. Os rurais franceses cedo abando-
naram as suas terras para migrar para as cidades em busca de um rendimento
complementar 12 ou de um trabalho mais bem remunerado. O século XIX e a
primeira metade do século XX vêem os homens e as mulheres das regiões mais
repulsivas abandonar a sua "terra" para trabalhar na "cidade" que tanto pode
ser a cidade mais importante da região quanto a capital do distrito ou Paris.
Os seus itinerários são muitas vezes semelhantes às migrações intercontinen-
tais. Bretões, naturais da Córsega ou de Auvergne, para citar os mais numero-
sos, chegam à cidade onde redes de solidariedade semelhantes às dos migrantes
estrangeiros os acolhem.
As reações à sua presença não são, aliás, nada pacíficas. Quantos textos e
artigos de jornais para denunciar estes provincianos corno sendo "porcos",
"rudes", "inassimiláveis" ... Quantos outros para explicar que os poloneses não
professam o "mesmo cristianismo" que os franceses e que não são capazes de
se integrar à sociedade francesa.
Em todos os casos estudados há um fenômeno de concorrência no mer-
cado de trabalho entre nacionais e migrantes, exacerbado no caso de dificul-
dades econômicas, e que o empresariado sabe aproveitar para fazer baixar os
salários.
A França do século XIX e da primeira metade do século XX conhece
numerosas prepotências contra os migrantes. O norte e Pas-de-Calais são agi-
tados ao longo deste período por bastonadas, caças ao homem, expulsões co-
letivas. Em 1892, em Drocourt, Pas-de-Calais, a população francesa organiza-
se para expulsar as famílias belgas instaladas na aldeia. Entre os abusos mais
dramáticos, o pogrom de que foram vítimas os italianos em Aigues Mortes, em
1893, fez numerosos feridos e mortos.
Este tipo de violência coletiva parece estar hoje banido, apesar de os jor-
nais diários serem férteis em agressões e assassinatos de caráter racista. O
jovem lançado ao Sena em Paris, em 12 de maio de 1995, quando da manifes·
tação da Frente Nacional por um grupo de skinheads mostra a que ponto as
tentações e os riscos existem.
424 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Migrações de caráter político

As migrações de caráter político abundam na história e a este propósito


poderíamos citar numerosos exemplos. Traduzem-se em migrações em grande
escala de populações, das quais algumas desaparecem quase totalmente dos
locais onde viviam tradicionalmente.
Entre as mais importantes, se é que é possível hierarquizá-las, convém
falar das migrações dos judeus da Europa oriental devido aos pogrons e per-
seguições ao longo do século XIX. Este fenômeno clássico de exacerbação de
ódios e de utilização do racismo num contexto geral de transformação das
sociedades européias encontrou o seu ápice com a Segunda Guerra Mundial e
a operação de extermínio sistemático dos judeus levada a cabo pelos nazistas.
Os judeus da Europa Oriental que escaparam ao extermínio escolheram, na
sua grande maioria, a expatriação para Israel, para os Estados Unidos, para a
Europa Ocidental. Em alguns países, na Polônia, por exemplo, os judeus pra-
ticamente desapareceram.
O genocídio perpetrado pelos turcos e pelos curdos contra os armênios
entre 1915 e 1923 teve conseqüências similares. Massacres e deslocamentos
da população orquestrados pelas autoridades turcas da época não deixaram
escolha aos armênios, que tiveram que fugir para a Cilícia, região da Ásia
Menor onde viviam há séculos. Se uma parte deles voltou à Armênia soviéti·
ca, muitos outros refugiaram-se na Europa e nos Estados Unidos. Tal como o
genocídio dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, o genocídio armênio
é uma das maiores violências do século XX.
O século XX é rico em acontecimentos políticos e militares que obriga-
ram povos inteiros a fugir. Nenhum continente está isento destes fenômenos,
que na sua maioria constituem problemas deixados em suspenso e que prome·
tem conflitos vindouros: palestinos, saarianos etc. Para alguns, a espera dura
décadas.
A miséria na qual os países são mantidos, orquestrada pelo sistema capita·
Usta, é mais do que nunca propícia ao desenvolvimento de ideologias de cará·
ter fascista que vão do islamismo ao etnicismo. Atualmente, os povos e os seus
dirigentes têm cada vez menos reivindicações em termos de revolta e de resis·
tência à ordem estabelecida e cada vez mais em termos de oposição entre
povos, populações, etnias, comunidades etc. Numerosos países conhecem si·
tuações de implosão, que terminam em conflitos internos e na debandada de
AS MIGRAÇÕES NOS S~CULOS XIX E XX 42S

grupos populacionais: é o que acontece na Mauritânia, em Ruanda, em


Burundi ...

Asituação atual

Enquanto os europeus constituíram a maior pane dos migrantes do século


XIX, a partir dos anos 1920-1930 os fluxos começam a rarear. A grande modi-
ficação tem início após a Segunda Guerra Mundial: são os povos dos outros
continentes que se tomam candidatos às migrações.
O fenômeno não é propriamente novo. Desde o primeiro conflito mundi-
al os países europeus solicitaram às suas colônias o envio de homens para o
combate, mas também para suprir a falta de mão-de-obra. A indústria france-
sa solicitou indochineses, argelinos, marroquinos, sendo que alguns deles fi-
caram na metrópole depois do conflito. No mesmo movimento, os recrutadores
fizeram vir para França, a partir de 191 Oe por um período de tempo ilimitado,
várias centenas de chineses que foram empregados como artífices, operários,
enfermeiros etc.
As migrações em grande escala começam depois da Segunda Guerra Mun-
dial. Os recrutadores são então numerosos e decididos a mandar vir uma mão-
de-obra barata, que não pode ter grandes exigências de proteção social e qua-
lidade de vida, isto a pedido das grandes empresas mineiras, automobilísticas,
da construção e de obras públicas. Outros tantos setores que necessitam de
mão-de-obra pouco qualificada aceitam condições de trabalho difíceis.
A mudança aconteceu nos anos 1970. Com a crise econômica iminente e
as restruturações industriais, o governo francês anuncia seu desejo de uma
"imigração zero". A França, como a Europa Ocidental, já não precisa de
migrantes. Ela não pode, segundo uma fórmula que viria a ser famosa mais
tarde, "acolher toda a miséria do mundo". Os países ricos imediatamente co-
locam em funcionamento barreiras jurídicas e um arsenal policial para res-
tringir a entrada nos seus territórios destes migrantes provenientes de países
denominados ora "países do Terceiro Mundo" ora "países subdesenvolvidos",
"países em vias de desenvolvimento", "países do Sul''. ..
Esta política embute uma grande hipocrisia, que é empregar migrantes, de
preferência em situação ilegal, a preços inferiores aos nacionais. Ao impor
salários inferiores aos usualmente aplicados, as empresas sabem que num pra-
zo mais ou menos longo os salários de todos baixarão. É assim, por exemplo,
426 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

que a agro-indústria californiana emprega trabalhadores mexicanos ilegais com


o conhecimento de todos. São os trabalhadores mexicanos que são encurrala·
dos pela polícia americana quando atravessam as fronteiras, enquanto as em-
presas que os exploram nunca são incomodadas. A mesma hipocrisia prevale-
ceu e prevalece ainda na França onde, em nome da concorrência, os grandes
impõem preços que não permitem aos pequenos ganhar a vida, a não ser re-
correndo ao trabalho clandestino.
Mas a visão mais deformada vem do debate político francês. Com efeito,
ao escutar os discursos de uns e de outros, poderíamos pensar que estas hordas
de esfomeados estão nas nossas fronteiras, prestes a invadir a França e a Euro·
pa. Ora, isto é não avaliar a realidade . De fato, os fluxos migratórios com
destino aos países ricos são muito reduzidos. Eles mal representam um quinto
dos fluxos migratórios mundiais o que é, feitas as contas, muito pouco.
Há várias razões para isto. Antes de tudo, a maior parte dos candidatos à
emigração possui muito poucos recursos no momento da partida. Estão, por·
tanto, inscritos em processos de migração que são mais do domínio da sobre·
vivência do que de qualquer outra coisa. É, por exemplo, o caso deste milhão
e meio de mulheres asiáticas hoje recenseadas como migrantes, que oferecem
seus serviços em profissões muito pouco qualificadas (diaristas, empregadas
domésticas etc.) ou na prostituição. Algumas suportam situações que são quase
escravatura. Os migrantes paquistaneses ou filipinos, por exemplo, obrigados
a expatriar-se para os Estados do Golfo - grandes recrutadores de mão-de·
obra proveniente do Terceiro Mundo - , têm os passaportes confiscados na
chegada e são obrigados a trabalhar em quaisquer condições. O caso de uma
Sarah Balabagan ou de uma Véronique Akobé é revelador de novas condi·
ções oferecidas aos migrantes: cada vez mais precariedade, cada vez menos
segurança.
Segunda razão: as restrições à emigração para os países ricos, que põem
em prática estratégias cada vez mais repressivas para os emigrantes. Apesar de
os países ricos terem usufruído diretamente do empobrecimento dos países do
Terceiro Mundo, construindo sua riqueza em parte sobre a pilhagem dos seus
recursos, alimentando-se do seu subdesenvolvimento e do seu endividamento,
hoje se recusam a assumir as conseqüências lógicas desta situação.
Terceira razão: o capitalismo é um sistema em constante evolução e adap·
tação. Hoje os constrangimentos técnicos são diferentes dos que prevaleciam
nos anos 50. Para quê produzir nos países ricos, onde é preciso pagar - mais
ou menos - corretamente o trabalho e respeitar as leis do trabalho, se basta
AS MIGRAÇÕES NOS SÉCULOS XlX E XX 427

deslocar as unidades de produção para se beneficiar de uma mão-de-obra


c.uio sa\ári.o é de tal maneira baixo que se torna mui.to pequeno no custo total
de produção? É assim que o peso do salário sobre o preço de um par de tênis
Nike representa O, 125% do seu preço de venda ... Compreende-se facilmente
que a Mouli.nex feche suas fábricas em Alençon para instalar-se no México.
Em todas as épocas, o capitalismo soube impulsionar, para as suas necessi-
dades, grandes fluxos migratórios. Quando não os impulsionou diretamente,
soube tirar parti.do deles. Vi.vemos atualmente um período de transição no
qual as migrações }á não constituem forçosamente, como em outros tempos,
um benefício para o capitalismo.

Caroline Andreani é historiadora.

Notas:

1. Os números sobre o comércio são controversos: alguns fazem uma estimativa altamente
improvável de 100 milhões de africanos deportados. A análise desmente os números,
sobretudo se levannos em conta a densidade populacional africana e a capacidade de
transporte dos navios que faziam a travessia do Atlântico.
2. "Le barrage contre le Pacifique", Paris, 1950.
3. O último tasmaniano morreu em 1874.
4. No final do século XVIII, os aborígines eram sem dúvida entre 300 mil e 400 mil espalha-
dos sobre o conjunto do território. Em 1989, estavam recenseados 40 mil, bem como 30
mil mestiços. Recentemente, o governo australiano foi interpelado sobre a política prati-
cada desde os anos 50 que consistia em tirar as crianças aborígines de suas famílias e
entregá-las a instituições do Estado .. . Centenas de crianças foram vítimas destas práticas.
5. Desde o século XVII, os emigrantes holandeses e franceses (huguenotes expulsos pela
revogação do Édito de Nantes), instalaram-se na África do Sul, constituindo um núcleo
inicial de povoamento europeu. No início do século XIX, antes da chegada dos britâni-
cos, esta colônia de povoamento mantém-se restrita. Confinada à província do Cap, in-
cluía então 80 mil pessoas, sendo cerca de 16 mil européias.
6. Os estragos provocados nas vinhas pela filoxera (1878) levam efetivamente numerosos
viticultores do Midi a instala r-se na Argélia.
7. Os europeus eram 109 mil em 1847; 272 mil em 1872; 578 mil em 1896; 829 mil em
1921; 984 mil em 1954.
8. Destes, 80% instalaram-se nos Estados Unidos e no Canadá, 11% na Austrália, 5% na
África do Sul.
9. De 1875 a 1913, emigraram quatro milhões de pessoas do Império Austro-Húngaro. De
1900 a 1914, a Rússia conta apenas com dois milhões e meio de emigrantes, entre os
quais se registra um grande número de poloneses e judeus expulsos pela Intensificação
das perseguições religiosas.
428 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

10. Entre 1876 e 1926, 84% dos emigrantes holandeses partiram para os Estados Unidos.
11. O termo "comunitário" é, tal como o termo "etnia", de utilização delicada. Ele pressupõe
que os migrantes de um mesmo país se organizam num todo coerente com reações coleti·
vas e idênticas. Nada é mais errado. Existem redes de sociabilidade, mais ou menos bem
organizadas. No caso precedente, na falta de um tem10 mais adequado, este termo deslg·
na a rede de acolhimento à volta do migrante, da sua família, dos seus vizinhos, dos seus
amigos ...
12. Numerosos camponeses franceses, espanhóis ou italianos procuravam durante as esta·
ções baixas um emprego assalariado que depois abandonavam para voltar a cultivar e a
colher. Este caso encontra· se sempre que uma cultura agrícola não é suficiente para asse·
gurar a sobrevivência da famrlia. Por vezes são as próprias crianças que oferecem o seu
trabalho, esperando contribuir por sua vez para o rendimento familiar.
------,

CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA


E CO:M:ÉRCIO DE ARMAS
YVESGRENET
O capitalismo sempre manteve laços estreitos com a morte. É certo
que os sistemas econômicos que o precederam não ignoraram a fabrica-
ção, o uso e o comércio de armas. A própria guerra remonta a cerca de 7
mil anos, ao neolítico na Europa Ocidental, quando pareceu possível que
um grupo de homens se pusesse de acordo e se armasse a fim de forçar um
outro grupo a ceder suas riquezas ou a ser escravizado a serviço do vence·
dor. O que significa que a guerra nasceu com as sociedades de classe. Mais
tarde, quer seja na Antigüidade, na Idade Média quer nos tempos moder·
nos, armas e guerras se desenvolveram, o aperfeiçoamento dos primeiros
(antigas máquinas de guerra, artilharia, armas de fogo) permitindo o su·
cesso das segundas.
O progresso das ciências e das técnicas, acelerado a partir do século
XVIII, desempenha um papel importante, porém mais importantes ainda
são as relações de produção. O general e filósofo prussiano Karl von
Clausewitz escrevia na sua obra-prima Da guerra, em 182 7, durante o perio·
do de expansão do capitalismo na Europa, que a guerra "é um conflito de
grandes interesses que só se resolve com derramamento de sangue e que só
nisso difere de todos os outros conflitos que surgem entre os homens. Ela
tem muito menos relações com as artes e as ciências do que com o comér·
cio, que igualmente constitui um conflito de grandes interesses, mas aproxi·
ma-se ainda mais da política, que é ela mesma uma espécie de comércio de
maiores dimensões, na qual se desenvolve como o menino no seio da mãe."
Depois acrescentava, estudando as guerras da Revolução: "Os fatos novos
que se manifestam no campo militar devem ser atribuídos menos às inven·
ções e às novas idéias militares do que a essa mudança do estado social e das
relações sociais."
Clausewitz ignora, evidentemente o termo "capitalismo", mas tinha pres-
sentido a ligação essencial entre a atividade da guerra e esse regime. O capi-
talismo está na origem das corridas armamentistas: a que acompanhou as
guerras da Revolução e do Império ou a guerra civil americana no século
XIX, aquelas que prepararam e marcaram as duas guerras mundiais do sécu·
lo XX, aquela, enfim, que teria podido desembocar numa Terceira Guerra
Mundial e que ainda dura, embora muitos pretendam fazer crer que o peri·
432 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

go já foi afastado. Empresas capitalistas praticaram sempre o comércio de


armas, destinadas a servir aqui ou ali no mundo. Assim, este comércio con·
tribuiu para ensangüentar o mundo em uma escala desconhecida antes de 0
capitalismo fazer a sua entrada na cena mundial e de se impor a todo o
planeta.

Expansão do capitalismo e primeira corrida armamentista

Os progressos do capitalismo industrial na Europa Ocidental, na segunda


parte do século XVlll e na primeira metade do século XIX, aplicam-se tam·
bém à produção de armas. Até aí, as armas saíam essencialmente dos arsenais
reais da época do mercantilismo. Com a expansão do liberalismo vão ser pro·
duzidas cada vez mais por empresas privadas, mesmo que seja o Estado o prin·
cipal ou único destinatário. A disputa entre arsenais e produtores privados
data dessa época. E não está terminada.
Nesta evolução, a Inglaterra é seguida pela França e depois por outros
países. "No decurso do século XVIII - como escreve o inglês Hobsbawn -
as fundições de ferro assemelhavam-se mais ou menos à moldagem de ca·
nhões. É verdade que os seus compatriotas estavam mais avani;ados no pro·
11

cesso que permitia a fundição em ferro e em aço e que a máquina de furar e


retificar metais, inventada em 1774 por Wilkinson, ia servir para a produção
de armas. Mas a França teve também os seus avanços. O general Jean-Florent
de Valliere normalizou, em 1732, o calibre dos canhões e o seu comprimento
(25 vezes o do calibre). O engenheiro militar Cugnot aprontou, em 1771, o
seu fardier, uma viatura a vapor projetada para arrastar as peças de artilharia.
Estas são modernizadas em 1776 pelo inspector·geral de artilharia, Jean-Baptiste
de Gribeauval: os canhões que ele modelou equiparam todos os exércitos da
Revolução e do Império.
As guerras que se vão suceder de 1792 a 1815 trazem consigo uma cor·
rida armamentista que atinge um volume que não permite comparação com
os conflitos do Ancien Régime. Estando a França cercada por todas as mo·
narquias da Europa, a República jacobina cria a Comissão da Subsistência,
que dá prioridade aos exércitos. O país transforma-se num poderoso arma·
zém militar destinado a abastecer o exército. No início da guerra, os contra-
tos com o Estado eram passados por adjudicação, e só as sociedades finan•
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS 433

ceiras dispunham dos capitais necessários. O capitalismo se alimentava da


corrida armamentista. O recrutamento em massa devia fornecer um milhão
de homens. Mas, exclama Barêre em agosto de 1793: "Não basta ter ho-
mens ... Armas, armas e mantimentos! É o grito da necessidade." O Comitê
de Salvação Pública não pode se contentar com o capitalismo liberal. O
Estado toma o controle de certas empresas e cria manufaturas nacionais
segundo o modelo do regime anterior. Em fevereiro de 1794, a Comissão
Extraordinária de Armas e Explosivos é na realidade um Ministério do Ar-
mamento, do qual dependem minas e siderurgia, produção de canhões, es·
pingardas e munição. Canhões e armas novas são fundidas. São fabricadaos
240 mil espingardas e 7 mil canhões por ano, números consideráveis para a
época.
Depois do Thermidor, a tendência é abandonar esse estatismo para vol·
tar ao capital liberal e aos "fornecedores dos exércitos", que enriquecem. As
companhias financeiras proibidas em 1793 são novamente legalizadas em
1795. Os 400 mil homens recrutados pelo Diretório têm armamento suficien·
te para fazer face aos exércitos da coligação, mas é num ambiente de espe-
culação e de peculato que vão destruir esse regime. Durante o Consulado e
o Império, a indústria vai modernizar-se, pelo menos em alguns dos seus
ramos. A imensidão do mercado oferecido pelo Império e seus vassalos é
muito favorável a esse progresso. O armamento tem o seu lugar e faz a pros-
peridade de certos capitalistas, como o fabricante de balas de canhão Jean-
Nicolas Gendarme. Os bancos parisienses contribuem para que tenham o
seu lugar ao sol uma siderurgia, ainda que menos experiente que a sua rival
inglesa, e uma indústria do cobre, as quais fornecem para o exército e a
marinha imperiais.
No campo rival, "a guerra coincidia com a emergência da Grã-Bretanha
como potência industrial dominante no mundo", como destacou A. D.
Harvey (Collision of Empires). Ali se realizam invenções militares como a
nova munição de artilharia, inventada em 1803 por Henry Shrapnel; os
shrapnel são utizados com sucesso nos bombardeios de Copenhague em
1807 e Vimeiro em 1808. Os navios ingleses são reforçados com chapas de
/
ferro. Em 1806, das 305 mil toneladas de ferro produzidas nas fábricas
britânicas, 56 mil atendiam às necessidades de guerra do governo. De 1803
a 1815, os britânicos fabricaram 2.700 mil armas de fogo e compraram 293
mil no exterior. No mesmo período os franceses fabricavam o mesmo nú-
mero e capturavam 700 mil armas dos adversários. Uns e outros supriam
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

seus aliados: 220 mil armas de fogo inglesas para a Espanha de 1808 a
1811, por exemplo.
A dualidade entre indústria capitalista privada e arsenais do Estado
existia no país durante esta corrida armamentista nos inícios do século
XIX, mas não sem relações entre eles. Assim, novos métodos de produção
de armas levados a cabo na Escócia pela companhia Carron são utilizados
em 1809 pela fábrica de Woolwich; a iluminação a gás utilizada por
Boulton's Soho Works em Birmingham em 1802 é adotada, a partir de
1807, para iluminar 24 horas por dia a produção de equipamentos de co·
bre para a Marinha Real inglesa nas docas de Portsmouth. Mas a superio·
ridade do capitalismo britânico sobre o capitalismo francês era sobretudo
de ordem financeira. Em 1806, o orçamento francês era o equivalente a
27,6 milhões de libras esterlinas, o orçamento britânico elevava-se a 76,5
milhões e em 1813 os dois orçamentos eram respectivamente de 46,5 mi·
lhões e de 109 milhões. A campanha de Waterloo em 1815 custou ao go·
vemo britânico 21,3 milhões de libras para o seu exército, 12,9 milhões
para serviços extraordinários e 11 milhões para empréstimos e adianta·
mentos aos seus aliados. A "cavalaria de São Jorge", de que o capitalismo
britânico sempre soube fazer bom uso, sobretudo se era acompanhada da
entrega de armas, permitiu ganhar guerras.

Desenvolvimento do capitalismo e dos armamentos durante


o século XIX

O capitalismo prossegue a sua expansão após o Congresso de Viena de


1814-1815. A Santa Aliança (setembro de 1815) contém demasiados ele·
mentos do passado para lhe ser inteiramente favorável, e a ideologia dos
liberais é nele melhor adaptada. O seu braço secular, a Quádrupla Aliança
(Inglaterra, Prússia, Áustria, Rússia) , de novembro de 1815, peça essencial
do sistema de Metternich, tem necessidade de armas para dominar as revol·
tas dos povos que o Congresso de Viena tornou inevitáveis. Os levantes do
general Pepe em Nápoles (1821), de Riego em Cádis (1820), do exército
português (1820), de Turim (1821); as revoluções da França, da Bélgica e
da Polônia (1830); o movimento dos canuts de Lyon (1831), as novas revai·
tas na Itália (1832), o motim do claustro Saint Merry em Paris (1832), uma
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS 435

nova revolta na Espanha (1843), o levante na Irlanda, a grande greve dos


tecelões da Silésia ( 1846), as manifestações antiaustríacas em Milão (1846),
a revolta do Porto em Portugal ( 1846-1847), tudo isso exige armas para a
repressão. A "primavera dos povos" da Europa em 1848 traduz-se por uma
agitação popular na Itália, na Alemanha, na Áustria, pela Revolução de
Fevereiro e as jornadas de junho na França e por verdadeiras operações de
guerra na Boêmia, na Áustria, na Hungria, no reino de Nápoles, no sul da
Alemanha. Há necessidade de armas para as forças não apenas da reação
mas também para as de libertação. No entanto, a sua produção regular não
deu lugar a uma corrida armamentista comparável à da época napoleônica.
A Inglaterra reduziu seu arsenal a partir de 1816, enquanto os outros países
mantiveram ou aumentaram ligeiramente os seus.
O desenvolvimento do capitalismo operou-se notoriamente na Grã..
Bretanha através da sucessão de períodos de prosperidade e de crises que
lhe são próprias. As graves crises econômicas e bancárias britânicas de
1825, 182 7 e de 1836.. 1839 marcaram de maneira notável esse período. A
de 1847 estendeu.. se a toda a Europa arrastando os acontecimentos de
1848. Os progressos da indústria, especialmente os da siderurgia, tiveram
repercussões sobre o armamento, mas a um ritmo relativamente lento. A
espingarda que se carregava pela boca no século XVIII foi progressiva..
mente substituída pela espingarda que se carrega pela culatra, mas com
alguns dissabores, como aqueles que teve o governo prussiano em 1841,
com 60 mil espingardas Dreyse desse tipo que explodiam. Os canhões de
interior liso cada vez mais dão lugar aos canhões estriados em todos os
exércitos europeus. Os progressos mais notáveis nos armamentos são no
setor marítimo. Os veleiros de grande porte em madeira contendo de 70 a
130 canhões são reforçados com blindagens em 1820-1830. O primeiro
navio de guerra a vapor apareceu na Inglaterra em 1814, mas as rodas
exteriores estão demasiado expostas ao fogo inimigo. Só depois da inven..
ção da hélice, em 1840, todas as marinhas do mundo capitalista vão ado ..
tar o vapor, ao mesmo tempo que os canhões estriados e as granadas in..
ventadas em 1822 pelo general francês Paixhans, que permitiam no mar
uma trajetória quase horizontal e grande precisão.
O capitalismo triunfante dos anos 1850.. 1890 avança apesar das crises,
como as crises financeiras britânicas de 1857 e 1866, e sobretudo a pri..
meira crise verdadeiramente mundial, de 1873. As guerras da Criméia
0845-1856), da Itália (1859), a Guerra da Secessão (1861 .. 1865), a do
436 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

México (1864- 1867) e a guerra austro-prussiana de 1866, a guerra franco.


alemã de 1870-1871 e a guerra russo-turca de 1877-1878 vêm lembrar
que, tal corno o império, o capitalismo não é a paz. Foi durante este perío-
do que os armamentos tiveram grandes progressos, ligados aos da química,
da siderurgia e da mecânica. Em 1846, o sábio alemão Schõnbein tinha
inventado a piroxilina, bem mais perigosa do que a pólvora de canhão; em
1847 o químico italiano Sobrero inventou a nitroglicerina. Em 1862, o
sueco Nobel iniciou a fabricação da nitroglicerina em escala industrial;
em 1867, a da dinamite (75% de nitroglicerina mais 25% de terra porosa),
que explodia com um detonador de fulminante de mercúrio; depois, em
1888, a dinamite-pólvora Nobel. Com fábricas na Suécia, na Alemanha,
na França e em outros países, Nobel é o tipo acabado de capitalista do
armamento, embora tenha preferido ficar na memória pela criação do prê·
mio Nobel da Paz. Surgem outras misturas químicas do gênero: tolite, lidite,
melinite etc. As propriedades do ácido pícrico, que detona com o calor,
são cada vez mais usadas até a Primeira Grande Guerra. As fábricas quími·
cas podem elaborar, além dos explosivos, armas que são elas mesmas quí·
micas. Desse modo, a Grã-Bretanha dispõe, a partir de 1855, de projéteis
capazes de espalhar gases amoniacais, que não serão utilizados. O almi·
rante britânico Dundonald propõe reduzir, nesse mesmo ano, a guarnição
de Sebastopol por vapores de enxofre e o americano Doughty propõe uti·
lizar os gases de cloro em 1862, durante a Guerra da Secessão; as autoriza-
ções foram recusadas. Mas a idéia da guerra química, que os progressos
industriais tomam possível, está no ar.
A interdependência dos armamentos e do capitalismo manifestou-se com
grande clareza durante a Guerra da Secessão, confronto entre o capitalismo
americano e o Sul, que em certos aspectos era ainda pré-capitalista. Os
progressos industriais realizados pelos Estados Unidos permitiram a adoção
da espingarda estriada, de tiro mais preciso, o carregamento dos canhões
pela culatra, o emprego dos morteiros, a utilização de armas automáticas.
Tanto o Norte quanto o Sul dispunham de navios de guerra a vapor aperfei·
çoados, entre os quais os ironclads, especialmente os Merrimac dos Confc·
derados e o Monitor dos partidários da União. Sob muitos aspectos, mais
ainda que os da Revolução e do Império, foi uma guerra total, que fez mais
de 500 mil mortos nos dois campos, anunciando as grandes matanças das
guerras mundiais.
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS · 437

Imperialismo, corrida armamentista e Primeira Guerra Mundial

A concentração é uma tendência natural' do capitalismo que o coloca


incessantemente em contradição com os princípios do liberalismo que profes-
sa. A reunião num único capital financeiro do capital industrial e do capital
bancário, que recebeu o nome de imperialismo, aumenta os efeitos dessa con-
centração ao permitir a criação de imensas sociedades por ações. Ao mesmo
tempo, a busca das matérias-primas e a vontade de abrir novos mercados
provocaram, não apenas a prepotência do capitalismo sobre as colônias ou
sernicolônias da África, da Ásia e da América Latina, mas também, após ten-
tativas de entendimento, uma partilha do mundo que duas guerras mundiais
iam esforçar-se por colocar em questão. O progresso do imperialismo está
estreitamente imbricado na corrida armamentista que precede a Primeira
Guerra Mundial e conduz à Segunda.
A capacidade industrial das grandes potências permite, mais do que
nunca, o desenvolvimento das técnicas hélicas. São utilizados aços da mais
alta qualidade, máquinas especializadas e descobertas da química, bem
corno a indústria dos transportes. A artilharia faz progressos considerá-
veis. Os canhões prussianos, carregados pela culatra, eram superiores aos
canhões franceses em 1870. Mas os industriais e militares franceses conse-
guiram, em 1893, um canhão de tiro rápido que amortecia o choque do
recuo e permitia uma barragem de fogo com um alcance eficaz de oito
quilômetros , o famoso 75. Os ingleses adotaram, depois da Guerra da
Criméia, a bala de espingarda cilíndrica, do coronel francês Minié, graças
à qual o cano estriado das espingardas permitia um tiro muito exato a 650
metros e bastante exato até aos 1.300 metros. A espingarda automática foi
inventada entre 1870 e 1880. A artilharia, e mais tarde as espingardas, se
beneficiaram da pólvora sem fumaça conseguida na França em 1884, pro-
gresso imitado em outros países, de modo que a Grã-Bretanha, a Alema-
nha, a Rússia e os Estados Unidos podiam dispor dela no início do século
XX. Mas a nova arma de infantaria foi a metralhadora. Durante a Guerra
da Secessão, em 1862, Richard J. Gatling apresentou um modelo de dez
canos rotativos movidos por uma manivela. Na França, alguns anos mais
tarde, passa-se para vinte canos e 125 tiros por minuto. A verdadeira me-
tralhadora moderna é obra de Hiram S. Maxim em 1884; a metralhadora
Maxim foi adotada ou imitada em todo o mundo. Uma arma tão assassina
438 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

que alguns acreditavam poder dizer que ela tomaria a guerra impossfvel.
Infelizmente não foi assim...
Uma forma de corrida armamentista entre grandes Estados imperialis-
tas especialmente espetacular é a rivalidade naval que opõe a Grã-Bretanha
à Alemanha nos anos que precederam a guerra de 1914. Os couraçados
britânicos acabam por ser monstros de velocidade superior a 30 nós, des-
locando 60 mil toneladas e cujos 16 canhões principais são capazes de
disparar projéteis de 2 mil libras com precisão a mais de 20 milhas. É ne·
cessário acrescentar os cruzadores, os contratorpedeiros e outros tipos de
navios de superfície. A corrida toma a forma de urna competição entre a
couraça dos barcos e o poder de penetração dos obuses ou dos torpedos
modernos ajustados antes de 1914. As minas marítimas, já utilizadas du-
rante a Guerra da Secessão, foram aperfeiçoadas no início do século XX.
Nas vésperas da guerra, todas as grandes potências possuíam submarinos
munidos de torpedos.
A arma aérea é tão velha quanto o acesso ao poder do capitalismo, uma
vez que balões sobrevoavam a batalha de Fleurus e que um corpo de aerostatos
da República tinha existido de 1793 a 1798. Em seguida orientaram-se para
balões livres, depois dirigíveis como o de Henri Giffard em 1852. O russo
Tsialkowski tinha adaptado um quadro metálico a um dirigível em 1887 e o
alemão Ferdinand von Zeppelin tinha experimentado, em 1900, um outro
que ia ser desenvolvido para fins militares até 1914. Todavia, para esse fim,
algo mais pesado do que o ar mostrava-se mais promissor. O primeiro aeroplano
moderno foi aquele com que o russo Mojaiski obteve o brevê em 1881. Vie·
ram depois o alemão Otto Liliemhal, o francês Clément Ader (1897) e os
irmãos Wright (1900). Os motores foram aperfeiçoados de 1903 a 1908 e as
hélices de 1906 a 1912, de modo que estavam prontos aviões para missões de
reconhecimento, de bombardeio e de combate (oh, quão modestos ainda!)
quando a guerra explodiu.
A corrida armamentista apela aos arsenais dos Estados capitalistas, mas
o capitalismo privado tem a{ um papel preponderante. As grandes socieda-
des produtoras de armamentos desse início do imperialismo chamam-se
Krupp, na Alemanha, Vickers-Armstrong, na Grã-Bretanha (que fabrica a
metralhadora Maxim), Schneider-Le Creusot, em França, Skoda, na Boê·
mia austríaca, Putiloff, na Rússia. A especialização como fabricantes de ar·
mas é conseqüência das suas atividades indusrriais gerais, especialmente a
siderurgia. Assim, Krupp apresentou no Palácio de Cristal de Londres um
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 439

cilindro de duas toneladas e um quarto de aço no qual pode ser visto o


protótipo de um dos seus canhões gigantes. As armas se beneficiam até mesmo
de processos que para uso corrente são considerados demasiado onerosos.
Assim, os grandes lingotes de aços especiais fundidos em cadinho são desti·
nados, tanto por Krupp quanto por seus concorrentes, para canhões cuja
perfuração é a etapa seguinte. "O consórcio conduzindo ao extermínio, eis a
última invenção do capitalismo moderno", exclama Jaures em 1909, na
Câmara dos Deputados.
Embora sejam as grandes sociedades capitalistas que produzem, são no
entanto os Estados imperialistas que pagam os armamentos. Em 1920, o eco·
nomista Charles Gide calculou as despesas necessárias para a preparação da
guerra entre os seus principais protagonistas:

1883* 1913* Crescimento

França 789 1.471 86%

Grã-Bretanha 702 1.943 177%

Rússia 894 2.642 195%

Itália 311 749 140%

Alemanha 504 2.302 357%

Áustria-Hungria 318 822 158%

•Em milhões de froncoti

A aceleração da corrida armamentista está bem clara nesta tabela. Ela foi
lllenor para a França, que tinha começado mais cedo, do que para a Alema·
nha e para a Grã-Bretanha.

A Primeira Guerra Mundial foi um conflito de imperialismos espe·


cíalmente caro para o mundo. Milhões de homens morreram nos campos de
batalha, sem contar as vítimas civis. No nosso campo, a guerra foi um per{·
odo de atividade intensa, com as empresas capitalistas fabricando arma·
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

mento em ritmo acelerado, acelerando a pesquisa de avanços técnicos. Foi


preciso esperar até 1916 para que os franceses e os ingleses atingissem o
nível dos alemães e dos austríacos no domínio da artilharia pesada. Os obuses
de todos os calibres, os Minimuerfer alemães e os canhões pequenos france-
ses, as minas subterrâneas, as granadas e os lança-chamas transformavam as
frentes de batalha em infernos. Evidentemente, todos esses engenhos ga·
rantiam um alto nível de atividade nas indústrias metalúrgicas e químicas.
As indústrias automobilísticas britânicas, francesas e alemãs iniciaram a fa.
bricação de tanques, utilizados a partir de 1917, armados com canhões e
com metralhadoras, sendo mais conhecido na frente ocidental o tanque
Renault, saído da célebre empresa de Billancourt. A indústria química en·
centrou novas saídas com a guerra química: cloro, fosgênio, ácido cianídrico,
iperite (30 mil mortos num dia perto de Ypres em 1917), lewisite. As 120
mil toneladas de produtos químicos tóxicos utilizados durante a guerra pro·
vocaram 300 mil vítimas, das quais mais de 100 mil mortos na frente oci·
dental. Enquanto os dirigíveis Zeppelin bombardeavam Paris e Londres, os
fabricantes de aviões dos dois campos aperfeiçoavam caças e bombardeiros
(como o Vickers Vimy britânico, munido com bombas de 2.500 libras). A
guerra submarina foi outra inovação: os U-booce alemães afundaram 11 mi·
!hões de toneladas de navios aliados, preparando com essas destruições a
atividade futura dos estaleiros navais.
Apesar de um controle de Estado reforçado em todos os países em guer·
ra, e que na França foi incarnado pelo ministro do Armamento Albert
Thomas, esta foi uma guerra capitalista não só pelos seus fornecedores de
armamentos mas também pelos seus objetivos e resultados. Utilizou ampla·
mente a arma econômica do bloqueio. A corrida armamentista foi acampa·
nhada pelo fornecimento de armas pelos Estados imperialistas aos seus futu·
ros parceiros (por exemplo, a Alemanha à Turquia, a Grã-Bretanha ao Japão).
O fornecimento intensificou-se durante a guerra para os novos beligerantes
(Itália) bem como para permitir às tropas das colônias apoderarem-se dos
territórios alemães (Camarões, Tanganica). O comércio de armas tem, por
razões econômicas e ideológicas, acompanhado toda a vida do capitalismo
em momentos fortes (guerras da Revolução e do Império, Guerra de Seces·
são, Primeira Grande Guerra). É parte dele tanto quanto a produção de
armamentos.
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMtRCIO DE ARMAS 441

Nova corrida armamentista e Segunda Guerra Mundial

No final da Primeira Grande Guerra, os imperialismos ocidencais são ao


mesmo tempo vencedores e contestados pela Revolução Russa e as que se
seguiram (Alemanha, Hungria). A intervenção dos Aliados contra os soviéti-
cos foi feita com as mesmas armas que serviram durante a Primeira Guerra
Mundial, incluindo as armas químicas, fato sobre o qual costuma se silenciar.
O tratado de Versalhes e seus corolários impunham o desarmamento dos Es·
tados vencidos. Os vencedores enviaram suas tropas de volta para casa e num
primeiro tempo reduziram suas despesas militares. Mas é com surpresa que se
constata que, num estudo histórico do Stockholm lntemational Peace Research
lnstitute, as despesas militares mundiais de 1925 são superiores às de 1913,
ápice da corrida armamen tista que precedeu a guerra de 1914-1918. Éverda·
de que essas despesas incluem as de: um Estado que já não é capitalista e que,
sentindo-se cercado, investe na sua defesa (mas os números de 1913 incluíam
também a Rússia). É igualmente verdade que esses dados reagrupam a um
tempo as despesas de funcionamento (manutenção das tropas) e as de equi·
pamenro. E, finalmente, é verdade que este equipamento consiste em ar·
mamemos cada vez mais caros, que dão cada vez mais lucros aos seus fabri·
cantes.
Entre as duas guerras o tamanho dos morteiros aumentou (de 80 para
120 milímetros), bem como o seu alcance (quatro quilômetros). A Alema-
nha muniu-se de canhões de 88 mm e os Estados Unidos de 90 mm, que
serão as armas da Segunda Guerra Mundial. Os teóricos das guerras futu-
ras prevêem o uso maciço dos tanques e da aviação, o que exigia progres-
sos, mas os primeiros mantêm-se freqüentemente pequenos e mal blinda·
dos, como o Bren inglês, e os segundos fazem progressos bastante lentos
até que a Alemanha nazista cria a Luftwaffe em 1935. No setor naval, a
discussão entre os países imperialistas em confronto conduziu na confe·
rência de Washington em 1922 a uma limitação da tonelagem dos cruza-
dores e couraçados a 525 mil toneladas para a Grã-Bretanha e os Estados
Unidos, 315 mil para o Japão e 175 mil para a França e a Itália; os que
viram nesse acordo o prelúdio de um desarmamento geral tiveram de re·
conhecer o seu erro.
442 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Despesas militares mundiais anuais


(em bilhões de dólares americanos estáveis de 1970)

1908 9,0

1913 14,S

1925 19,3

1926 19,6

1927 21,S

1928 21,S

1929 21,7

1930 23,2

1931 21,9

1932 20,3

1933 20,l

1934 23,9

1935 32,6

1936 47,l

1937 58,8

1938 61,6

Embora a crise econômica de 1920-1921 tenha sido seguida por uma


recuperação bastante rápida, apesar das dificuldades financeiras e mo-
netárias dos pa[ses capitalistas nos anos 20, a crise de 1929 fez tremer o
próprio capitalismo. A tomada do poder por Hitler em janeiro de 1933
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMéRCIO DE ARMAS +43

lançou a Alemanha na rota do rearmamento acelerado com o resta·


belecimento do serviço militar em 1935, a reintegração da Renânia em
1936 e um espaço importante para o rearmamento no plano quadrienal
de Gõring. Foi o capitalismo alemão, os Krupp, os Thyssen, os Hugenberg,
os Schacht, que colocaram Hitler no poder e se beneficiaram do
rearmamento. A Guerra Espanhola (1936-1939) serve de banco de tes·
tes armamentista, especialmente para tanques e aviões. No Extremo
Oriente o militarismo japonês tem o mesmo papel que o nazismo na Eu·
rapa, e invade a China em 193 7. A corrida armamentista recomeça em
todo o mundo e as despesas militares mundiais triplicam de 1933a1938.
Quando da declaração de guerra, a Alemanha está preparada. Em maio
de 1940 ela alinha 136 divisões, das quais 10 divisões Panzer, e 2. 700
aviões militares frente a um número igual de divisões aliadas mas com
apenas 1.330 aviões. A sua superioridade estratégica permite-lhe vencer
nesse momento e fazer da Europa o fornecedor de matérias-primas, de
mão-de-obra e de capitais para um capital alemão mais imperialista que
nunca. Infelizmente para ele, Hitler invade a URSS em junho de 1941 e
oseu aliado japonês ataca Pearl Harbour em dezembro, o que colocou os
americanos no mesmo campo que os britânicos e os soviéticos e garantiu
a vitória aos aliados em 1945.
O capitalismo americano já é o mais poderoso do mundo e ainda irá se
reforçar durante a Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos tomam-se
agigantesca fábrica de armamentos de todos os aliados e as grandes empre·
sas se aproveitam disso: Boeing, Lockheed, Hughes, McDonnel, Raytheon,
Martin, General Motors etc. O rifle de assalto, intermediário entre a espin·
garda e a metralhadora, é desenvolvido nos Estados Unidos (e melhorado
em 1944 na Alemanha). A bazuca é inventada (2,36 pol. M9), e o lança-
foguetes US 4,5 polegadas é capaz de disparar 24 projéteis ao mesmo tempo.
O carro de assalto M4 Sherman entra em serviço em 1942, especialmente
no norte da África (El Alamein), mantendo-se como o principal blindado ~·
dos exércitos britânico e americano até ao fim da guerra. Para fazer frente
aos Panther alemães foi completado nos Estados Unidos o M26 Pershing,
carro pesado, nos últimos meses do conflito. As forças americanas dispunham
de uma profusão de veículos desde o jeep até os half-tracks de lagartas e os
5crapers gigantes.
A Segunda Guerra Mundial revelou, no setor naval, as possibtlidades dos
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

porta-aviões e confirmou as dos submarinos. Os porta-aviões japoneses des-


truíram quase completamente a frota americana do Pacífico em Pearl Harbor,
em dezembro de 1941. Mas o poderio industrial dos Estados Unidos permitiu
a eles construir porta-aviões rapidamente, navios que são o principal apoio
dos outros navios de guerra e das forças anfi"bias que avançam de ilha em ilha
até o Japão. Os submarinos alemães afundaram, de 1939 a 1945, mais de 14
milhões de toneladas de navios aliados, muito mais do que durante a Primeira
Grande Guerra (11 milhões de toneladas), sendo pelo menos 200 grandes
navios de guerra. Os submarinos americanos afundaram cinco milhões de to·
neladas de navios japoneses, mas essa tonelagem representava uma maior pro·
porção das capacidades do Império do Sol Nascente. Só as indústrias britâni-
ca e americana permitiram a construção dos elementos necessários para o
desembarque de junho de 1944, na Normandia, tal como o radar e o sonar,
que permitiam localizar respectivamente os aviões e navios de superfície ou os
submarinos.
No setor aéreo, a guerra tinha oposto, nos seu início, os caças Spitfire III
aos Messerschmitt 109, e a campanha de França tinha revelado os Stuka
Ounkers 87). A iniciativa passa em seguida para a indústria americana, es-
pecialmente para a Boeing, que criou o Bl 7 (fortaleza voadora) com um
raio de ação de mil quilômetros, depois o B29 (superfortaleza voadora) que
ultrapassava as 45 toneladas. Um ataque dos primeiros, transportando bom-
bas de fósforo, causou 42 mil mortos em julho de 1943, em Hamburgo, e um
outro, sempre com bombas incendiárias, fez 185 mil vítimas em março de
1945, em Tóquio. Foram os B29 que fizeram o bombardeio atômico de
Hiroshima e de Nagasaki em agosto de 1945, com bombas que equivaliam
cada uma a 20 mil toneladas de TNT (20 quilotons), fazendo respectiva·
mente 72 mil mortos e 80 mil feridos e 40 mil mortos e 40 mil feridos de
imediato, sem contar os que morreram depois pelos efeitos da radiação. O
fim da Segunda Guerra Mundial foi também marcado pelo início da era
nuclear.

A corrida mmamentista durante a Guerra Fria

Os Aliados venceram, mas só os pa!ses ocidentais se reconhecem no capi·


talismo. A URSS, cujo Exército Vermelho suportou o peso principal da guerra
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS 445

terrestre na Europa e avançou até Berlim, aparece aos olhos daqueles como
um corpo estranho que eles vão tratar de enfraquecer e eliminar. Os Estados
Unidos dispõem do monopólio atômico. Para fazer frente à "cortina de ferro",
eles reúnem os países capitalistas da Europa no Tratado do Atlântico Norte,
concluído em abril de 1949, e a organização resultante (Otan) vai dominar os
anos da "Guerra Fria". Os EUA esforçam-se por completar o seu dispositivo
com o Anzus (Austrália-Nova Zelândia-Estados Unidos), em 1951; a Seato
(South·Eas t Asian Treaty Organization), saída do pacto de Manila de 1954; e
a Cento (Central Treaty Organization), nascida do pacto de Bagdá de 1955.
A criação da República Popular da China em 1949 e a guerra da Coréia (1950·
1953) explicam esta "pactomania" com objetivos militares, que a URSS sente
como um cerco.
Inicia-se então uma nova corrida armamentista nos dois campos. As
despesas militares mundiais, desde 1948, em moeda estável, ultrapassaram
as de 1938. A guerra da Coréia faz disparar as despesas, que praticamente
dobram de 1950 a 1953 e diminuem um pouco a partir de 1954, ainda
assim mantendo-se em um nível alto. A escalada recomeça nos anos 60:
as despesas militares mundiais em cada ano aumentam 60% entre 1960 e
1970 e ainda mais 20% entre 1970 e 1980. Em 1975, o mundo destina
para fins militares receitas superiores à totalidade da produção mundial
em 1900. No final dos anos 70, um terço das despesas mundiais de pesqui·
sa e desenvolvimento tem a guerra como objetivo; 500 mil cientistas, pes·
quisadores e engenheiros trabalham nisso, cerca de 350 mil deles nos paf·
ses capitalistas.
O trabalho desses homens conduz à produção de novos armamentos em
um ritmo acelerado. No campo terrestre, os Estados Unidos pediram à sua
indústria automotiva veículos militares pesados, enquanto a Grã-Bretanha e
a França utilizaram mais veículos ligeiros off-road usados pela França na guer·
ra da Argélia (1954· 1962), pelos portugueses nas suas colônias da África até
1974 e pelos marroquinos no Saara Ocidental a partir de 1976. Para os tan·
ques, os Estados Unidos criaram versões derivadas do M4 Sherman, e a Fran·
ça o AMX 30. Canhões de calibre 120 mm montados em veículos rápidos
tomaram-se comuns. Nos anos 70, os Estados Unidos lançaram um novo de·
senho de porta-aviões de 78 mil toneladas, a classe Forrestal, transportando
76 aviões de combate; em 1970 entra em serviço o caça Grumman F 14 Tomcat,
americano, de duas turbinas. É também a época do Dassault F 1 de uma tur·
bina (1966) e do aparelho de apoio tático britânico V STOL Hawker-Siddeley
O UVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Harrier (1969) de decolagem curta. Os aparelhos passam do subsônico ao


supersônico. O Comando Estratégico Aéreo dos Estados Unidos é dotado
pela Boeing de bombardeiros B36 e B47, que podem transportar bombas nu-
cleares, e B52, cujas bombas pesadas vão provocar inúmeras vítimas no Vietnã
de 1965 até 1973.

Acesso dos Estados Unidos às novas armas

Bomba atômica 1945

Bomba de hidrogênio 1952

Novo bombardeiro estratégico 1953

Misseis de médio alcance 1953

Armas nucleares táticas 1955

Misseis intercontinentais
ballsticos (ICBM) 1955

Submarinos nucleares 1956

Satélites artificiais 1958

Mísseis disparados de submarinos (SLBM) 1959

Misseis intercontinentais de
combustível sólido 1962

Misseis de ogivas múltiplas 1964

Misseis de ogivas múltiplas


programadas de modo independente (MIRV) 1970

Misseis de cruzeiro 1978

Armas de nêutrons 1981


CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 447

Foram os Estados Unidos que fizeram o mundo entrar na era das armas
nucleares. Inicialmente de fissão (bomba atômica), depois de fusão (bom-
ba de hidrogênio ou termonuclear), estas encontraram rapidamente as suas
correspondentes no campo adversário (para a última desde 1953). Dentro
da corrida armamentista houve urna corrida à rnegatonelagem entre os
Estados Unidos e a URSS. A Grã-Bretanha possui a arma atômica desde
1954, e a França desde 1958. O progresso consiste em reduzir o peso e o
tamanho dos engenhos. Embora numerosos bombardeiros estratégicos como
o B47 tenham sido criados, são os mísseis que vão ter um papel prepon-
derante. A Nasa desenvolveu nos anos 60 sucessores da V2 alemã, do tipo
Minuteman ou Titan. Aos mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) com
bases em terra juntaram-se os dos submarinos (SLBM) do tipo Polaris de
três ogivas ( 1960), mais tarde do tipo Poseidon de dez ogivas programadas
de maneira independente (1970). A criação dos MIRV e uma maior preci-
são dos engenhos põem fim à corrida à megatonelagem. A isso acrescen-
tam-se os mísseis de médio alcance (de 1.100 a 2.775 km) e de alcance
intermediário (de 2.275 a 5.500 km), corno o Pershing II. Os mísseis de
cruzeiro lançados de aviões ou submarinos, como o ALCM da Boeing,
tomaram-se especialmente eficazes no início dos anos 80. As armas nuclea-
res táticas multiplicaram-se, transportadas por veículos, como o Pluton
francês, utilizado em 1974.
A guerra foa entre países capitalistas e socialistas deu à corrida
armamentista um caráter cada vez mais amplo, o que traduz a evolução das
despesas militares mundiais. Os "trinta anos gloriosos", de 1945 a 1975, per-
mitem ao setor capitalista financiar a enorme massa de armamentos, cada
vez mais sofisticados, que opõe aos seus adversários, por sua vez forçados a
segui-lo nesse caminho. Para retomar a corrida armamentista, os seus parti-
dários nos Estados Unidos periodicamente alegam pretensas insuficiências
bélicas (por exemplo, o missile gap para justificar a criação de novos tipos de
mísseis).
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Despesas militares mundiais, anuais


(em bilhões de dólares americanos estáveis de 1980)

1948 146,3 1968 473,0

1949 153,5 1969 481,4

1950 166,2 1970 472,5

1951 241,9 1971 472,7

1952 310,2 1972 476,7

1953 318,6 1973 480,0

1954 286,5 1974 482,0

1955 288,l 1975 483,4

1956 286,0 1976 522,5

1957 291,2 1977 531,9

1958 286,7 1978 547,1

1959 297,8 1979 561,8

1960 295,7 1980 567,l

1961 324,9 1981 579,6


1962 356,3 1982 615,l
1963 371,0 1983 631,6
1964 366,7 1984 642,6
1965 366,7 1985 663,l
1966 403,8 1986 681,0
1967 445,2 1987 701,4
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 449

Fim da Guerra Fria e manutenção dos complexos militar-industriais


A corrida armamentista no período da Guerra Fria deflagrou uma nova
fase da evolução do capitalismo. O presidente americano Dwight D. Eisenhower
não se enganou quando falou de "complexo militar-industrial" em 1954. A
estreita ligação entre o capital financeiro e as grandes estruturas militares
caracterizam o imperialismo da segunda metade do século XX, que é domina·
da pelas mesmas sociedades, preparando a tendência para a concentração e
integração inerentes ao regime capitalista. Nos Estados Unidos, a McDonnell-
Douglas, empresa resultante de uma fusão, trabalha para a aviação, a eletrô·
nica e os mísseis; a General Dynamics tem os mesmos ramos, mais os veículos
militares e os mísseis; a General Motors fabrica evidentemente todas as espé·
cies de engenhos terrestres, mas estende as suas atividades aos mísseis, à ele-
trônica e aos aviões. Nestes últimos anos, apesar do fim da Guerra Fria, esta
concentração exacerbou-se. Entre 1990 e 1995, nos Estados Unidos, a
Northrop e a Grumman fundiram a sua produção de aviões e de eletrônica. O
fabricante de mísseis Martin Marietta foi absorvido pela Lockheed para for-
mar um gigantesco grupo de produção de aviões e mísseis. Mas Lockheed-
Martin não se deteve e adquiriu em 1996 todas as atividades militares da
Loral. Este mesmo ano de 1996 viu a Boeing comprar a McDonnell Douglas e
as atividades aeroespaciais da Rockwell para assumir um papel dirigente nesse
setor, ao mesmo tempo em que a Raytheon juntou as atividades de mísseis e
radar da Texas lnstruments e as da eletrônica militar da Chrysler. Depois disso,
em 1997, resgatou a Hughes Electronics. O movimento de concentração está
destinado a prosseguir.
A rápida evolução das empresas americanas inquieta seus concorrentes eu-
ropeus de potência geralmente inferior. Écerro que os Estados Unidos, no qua-
dro da Otan, entregaram durante os anos da Guerra Fria numerosos armamen-
tos aos seus parceiros europeus (Alemanha Federal, Países Baixos, Bélgica, Itália,
Espanha, Portugal). A partir daí estes passaram a fabricar sob licença; mais tar-
de, certas bases nacionais das indústrias de armamento foram reconstituídas.
Um verdadeiro complexo militar-industrial alemão ocidental, tal como a fênix,
renasceu das cinzas do seu antecessor nazista, com empresas como a
Messerschmitt, a Daimler, MTU ou Rheinmetall (Grupo Rõchling); no entan-
to, os interesses americanos estão presentes especialmente nesta última. A Grã-
Bretanha manteve, apesar do declínio da sua indústria, um alto nível de produ-
ção militar (50% da produção aeronáutica, por exemplo, tem esse caráter), saída
450 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

de empresas como a British Aerospace, GEC, Lucas Industries, Rolls Royce,


Vsel, Hunting. A França conduziu uma política de produção militar indepen-
dente, reflexo da determinação gaullista, com proveito para as empresas
Thomson, DCN, Dassault, Aérospatiale, GIAT, Marra. No quadro nacional
tiveram lugar concentrações como a fusão da Daimler-Benz e Messerschmitt, o
reagrupamento da Krupp Maschinenbau e Rheinmetall em 1990, a absorção da
Ferranti e da Plessey pela GEC e a vontade atual de aproximar a Aérospatiale e
a Dassault, apesar das reticências desta.
Mas estas concentrações cada vez mais põem em jogo empresas de diferen·
tes países europeus. A Siemens partilha com a GEC os despojos da Plessey, a
Thomson compra o grande especialista holandês em eletrônica militar HSA e a
indústria belga de armamento desaparece, absorvida especialmente pela fran·
cesa. As empresas extra-européias participam nesse movimento: a sociedade
canadense Bombardier retoma Shorts, a maior empresa de armamentos da Ir·
landa do Norte, e a fábrica de blindados de Bruges, na Bélgica; a americana
United Technologies detém 40% do capital da britânica Westland. A União
Européia ambiciona criar empresas de tamanho comparável às dos Estados
Unidos com a criação da Agência Européia de Armamento. De resto, existe
desde 1976 um Grupamento europeu independente de programa (GEIP). No
entanto, as empresas de armamento, sobretudo britânicas, mas também alemãs,
têm laços além-Atlântico, e as encomendas de aviões dos Estados europeus são
muitas vezes feitas aos Estados Unidos - as eternas contradições do imperialismo.
Entre as condições que opõem os europeus aos Estados Unidos, a que diz
respeito à União da Europa Ocidental não está entre as menores. Criada pe·
los acordos de Paris de 1954 como substituto da finada Comunidade Européia
de Defesa, esta UEO foi escolhida no tratado de Maastricht de 1991 como
estrutura militar da União Européia. Mas ao mesmo tempo ela é considerada
como "pilar europeu da Aliança Atlântica", sob direção americana. Disso re·
sultam divertidíssimas distorções do texto de Maastricht. Quem levará a me·
lhor entre a submissão ao imperialismo americano e o desejo dos Estados capi·
talistas de manter a independência militar suficiente perante o risco de uma
confrontação com aquele?
A onda do neoliberalismo passou também pelas indústrias de armas. Foi
assim que as Royal Ordnance Factories, arsenais criados muito antes do nas·
cimento do capitalismo industrial, foram privatizadas em 1988 por Margaret
Thatcher. Desse ponto de vista, o fato de a Direção Geral dos Armamentos
(DOA), o Agrupamento Industrial dos Armamentos Terrestres (GIAT), a
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS 451

Direção das Construções Navais (DCN) e o Comissariado da Energia Atômi·


ca (CEA), na França, dependerem do Estado representa, aos olhos dos
neoliberais, uma verdadeira heresia, que devia terminar com a sua privatização
o mais rapidamente possível. A defesa dos arsenais feita pelos sindicatos a isso
se opõe. O verdadeiro problema é a diversificação das atividades e a reconversão
com vista à fabricação de produtos civis de uma indústria de armamentos
superdimensionada em relação às necessidades reais.
A Guerra Fria atingiu o seu ápice com a Iniciativa Estratégica de Defesa
(IDS). projeto de bases antimísseis no espaço, lançado em 1984 pelo presi-
dente Reagan e do qual os grandes grupos militares esperavam enormes lu·
cros. Disso retiraram muitas vantagens, mas o projeto nunca foi realizado. As
pressões da opinião pública tinham levado a certas limitações dos armamen·
tos no que diz respeito aos sistemas de mísseis antibalísticos e do número de ~
mísseis dos submarinos (acordos Salt l, de maio de 1972) e as armas estratégi-
cas ofensivas (Salt 2, de junho de 1979) entre os Estados Unidos e a URSS.
Conversações entre as duas potências estavam em curso (Start) quando o
primeiro acordo de desarmamento com efeito nos mísseis de alcance interme·
diário na Europa foi assinado em dezembro de 1987 em Washington. O pri·
meiro tratado Start acabava de ser anunciado em julho de 1991, em Londres,
quando os acontecimentos de agosto em Moscou conduziram à dissolução da
União Soviética em dezembro e ao fim da Guerra Fria.
A corrida armamentista, imposta pelo capitalismo ao seu adversário, con·
tribuiu para as dificuldades econômicas deste, preparando portanto a sua queda,
embora não tenha sido a única causa. Tendo desaparecido a tensão Leste·
Oeste, era possível perguntar se a enorme acumulação de armas e as despesas
a isso destinadas não iam progressivamente desaparecer, permitindo aos po·
vos receber os "dividendos da paz". Seria conhecer mal o capitalismo. Embora
o Tratado de Varsóvia tenha sido dissolvido, a Otan continuou a existir e a se
estender em direção ao Leste Europeu. As despesas militares mundiais, depois
de terem atingido o recorde absoluto de um trilhão de dólares correntes em
1989, começaram a diminuir a partir de 1990 e em 1996 situaram-se em tomo
de 700 bilhões de dólares.
As despesas militares da Otan (incluindo a França) diminuíram 31% en·
tre 1989 e 1996, mas continuam gigantescas. As despesas de pesquisa e desen·
volvimento militar dos Estados Unidos diminufram 25% entre essas duas datas,
as da Alemanha diminuíram 21 %, as da França e da Grã-Bretanha, respectiva-
mente 19 e 15%.
452 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

As 25 maiores sociedades ocidentais que fabricaram armamentos


em 1990 e 1995 (Venda de armamentos em milhões de dólares US)

1990
1 Me DonneU-Douglas (US) 9.020

2 General Dynamics (US) 8.300

3 British Aerospace (GB) 7.520

4 Lockheed (US) 7.500

5 General Motors (US) 7.380

6 General Electric (US) 6.450

7 Raytheon (US) 5.500

8 Thomson (Fr) 5.250

9 Boeing (US) 5.100

10 Northrop (US) 4.700

11 Martin Marietta (US) 4.600


12 GEC (GB) 4.280

13 United Technologies (US) 4.100

14 Rockwell lntemational (US) 4.100


-
15 Daimler-Benz (Al) 4.020
Direction des Constructions
\
l 17 Mitsubishi Qap) 3.040
-
18 Litton Industries (US) 3.000
-
19 TRW (US) 3.000
-
\\ 20 Grumman (US) 2.900
\1 -
1 21 Aérospatiale (Fr) 2.860
-
22 IRI (lt) 2.670
, 1
-
1 J 23 Westinghouse (US) 2.330
q
I •

1,
-
24 Dassault Aviation (Fr) 2.260
' ~ -
25 Texas lnstruments (US) 2.120
~
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 453

Evolução das despesas militares da Otan


(em bilhões de dólares americanos a preços estáveis de 1990)

1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996

Estados Unidos 331,2 323,9 320,4 306,2 269,0 284.1 269,1 254.0 238,2 226.4

Canadá 11,5 11,6 11,5 11,5 10.4 10,5 10.4 10,2 9,6 8,8

OtanEuropa 186,6 184,7 186,2 186,4 184.6 176.J 171,6 166.S 159,0 159,7

Otan total 529,3 520,2 518,l 504,1 464.0 470,9 451.l 430,7 406,8 394,9

O Tratado Start 1 entre os Estados Unidos e a Rússia, assinado em 1991,


limitando a 6 mil o número de ogivas nucleares estratégicas possuídas por
cada um desses países, entrou em vigor em 1994. O Tratado Start 2, assinado
pelos mesmos em janeiro de 1993, previa a redução do número dessas ogivas
a 3 mil-3.500 por cada um deles até 1 de janeiro de 2003. Apesar das dificul-
dades das negociações e das ratificações, são realmente tratados que restrin-
gem os armamentos nucleares entre as duas potências, uma e outra assumin-
do-se defensoras do capitalismo. Mas, sobretudo quando se somam os outros
detentores oficiais (França, Grã-Bretanha, China) ou oficiosos (Israel,
Paquistão ... ) dessas armas, ainda subsistem, neste fim de século, armas nucle-
ares suficientes para destruir integralmente o planeta.
Foram concluídos diversos acordos: a convenção que proibia as armas
químicas foi assinada em Paris em janeiro de 1993, o Tratado de Não-proli-
feração de Armas Nucleares (TNP) foi prorrogado indefinidamente em maio
de 1995 e o Tratado de Proibição Total de Testes Nucleares (CI"BT) foi con-
cluído em setembro de 1996. Por um lado, esses tratados são medidas desejá-
veis na direção do desarmamento, que os homens padficos não podem deixar
de aprovar; por outro lado, constituem limitações impostas pelas potências
capitalistas que possuem armas nucleares aos países do Terceiro Mundo que
não as possuem, ao passo que aquelas potências não aplicam o Artigo VI do
TNP, segundo o qual devem caminhar no sentido do desarmamento nuclear.
Além disso, sete países capitalistas (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,
Alemanha Federal, Itália, Canadá, Japão) concordaram com a criação do
454 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Missile Technology Contrai Regime (MTOR) em 198 7, para impedir o acesso


dos outros países às tecnologias que lhes permitiriam ter mísseis estratégicos.
Os países do Sul sentem essa discriminação, que levou o Paquistão e a Índia a
não assinarem o TNP, prorrogado indefinidamente. A Guerra do Golfo, em
janeiro-fevereiro de 1991, e as medidas de controle impostas ao Iraque, que
quase provocavam outro conflito armado em fevereiro de 1998, resultam do
mesmo espírito que pretende impor a submissão do resto do mundo aos gran-
des imperialismos. Os Estados Unidos se consideram representar o papel diri-
gente nesse mundo unipolar, como periodicamente lembra o presidente
Clinton. A corrida am1amentista perpetua-se com a pesquisa, especialmente
nos Estados Unidos e na França, por meio da simulação de armas nucleares
mais sofisticadas para o século XXI. Os imperialismos na época de globalização
poderão continuar a entender-se entre eles frente aos povos, ou, pelo contrá-
rio, as suas oposições vencerão, fazendo com que as suas contradições tomem
mais fáceis as lutas dos povos mas aumentem ainda mais os riscos de guerra?

Capitalismo e comércio de armas

No regime capitalista as armas são mercadorias, mas não mercadorias como


quaisquer outras. Efetivamente, qualquer mercadoria precisa de um mercado,
incluindo um número de consunúdores mais ou menos amplo. Os produtores
de armas têm um único cliente: o Estado. Quer essas armas saiam dos arsenais
deste ou - como é cada vez mais freqüente - de empresas privadas, os seus
destinatários são em primeiro lugar as forças armadas do país. Em lugar de
procurar clientes num mercado amplo, basta convencer essas forças armadas,
que, aliás, mantêm estreita simbiose com os fabricantes - e é esse o significa-
do do termo "complexo militar-industrial". É evidente que pode haver con-
corrência entre empresas (por exemplo, nos Estados Unidos entre diferentes
modelos de mísseis), mas desde que se obtenha o acordo das forças armadas, a
mercadoria está colocada. Melhor ainda, o contrato assinado com o Estado
pode sofrer aumentos de preço, por exemplo, para incluir aperfeiçoamentos
durante a fabricação: a experiência prova que esta situação é freqüente. Tam-
bém desse ponto de vista, as armas são uma mercadoria maravilhosa.
Ao uso nacional, convém acrescentar as vendas de armas ao exterior, de
Estado a Estado, ou porque este é seu aliado ou porque isso convém aos seus
interesses geoestratégicos ou ainda, muito simplesmente, porque isso favore-
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COM~RCIO DE ARMAS 455

ce o equilíbrio da sua balança comercial. Todos os Estados capitalistas produ-


tores de armas as comercializam. As exportações de armas são, no entanto,
submetidas a urna autorização com várias modalidades de controle: na Ale-
manha é necessária a autorização do Bundestag; na França é dada pelo gover-
no, aconselhado pela Comissão lnterministerial para o estudo das exporta-
ções de material de guerra, sendo o posterior controle pelo Parlamento muito
teórico; na Grã-Bretanha o Departamento de Venda de Armas encarrega-se
de tudo e o Head of Defence Sales é geralmente o dirigente de um grande
grupo capitalista de armamento - é um sistema mais franco.
Pode acontecer que um Estado se recuse a vender esse ou aquele tipo de
armamento ou qualquer tipo de armamento a um país, por exemplo, por
este estar submetido a um embargo. Nesse caso não é raro que armas
pretensamente vendidas a um país se encontrem num segundo ou num ter-
ceiro após escalas mais ou menos longas; esses desvios ilegais desembocam
freqüentemente em "negócios" que põem em causa um ou outro grupo in-
dustrial que enganou o Estado (foi o caso Luchaire para entrega de obuses
ao Irã em 1983, estando este país submetido a um embargo). Sociedades
capitalistas dedicam-se legalmente ao comércio de armas, sendo as mais
importantes a Interarms em Londres, a AGWAf:I em Dusseldorf, a Levy
Industries em Toronto, a Firearrns Intemational em Montreal, a Cogswell e
a Harrison, também em Londres. E existe o tráfico ilegal realizado de um
modo muito mais discreto por escritórios que se abastecem nos excedentes
militares de países que não são muito rigorosos e cujos métodos se asseme·
lham muito mais ao gangsterismo, incluindo assassinatos, do que ao estilo
habitual do comércio em países capitalistas.
Mas no seu conjunto, o comércio das armas, comércio de morte, provoca
vivas críticas por parte das autoridades morais, das igrejas e de políticos no
seio dos próprios Estados capitalistas. Os defensores do comércio de armas
justificam-no dizendo que o investimento em armamentos modernos é dema-
siado alto para ser amortizado por um só país; o argumento é que as "longas
séries" são necessárias à defesa nacional e que, no interesse desta, é preciso
colocar no exterior a maior quantidade de armas possível. Mas essas vendas
favorecem os conflitos locais, custam caro especialmente aos países do Tercei·
ro Mundo, aumentam a sua dívida e a insegurança internacional. Os países
capitalistas não se privam, no entanto, de venderem as suas armas ao Sul: é
mesmo o essencial das suas vendas há muitos anos.
O comércio de armas acompanhou todo o desenvolvimento do regime
456 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

capitalista. Já no final do século XIX, Beaumarchais fornecia espingardas


aos americanos revoltosos. A Revolução enviava-as aos seus aliados da
Europa, e a Inglaterra às monarquias do continente. Durante o século
XIX foram vendidas armas pelos países produtores da Europa, especial-
mente durante a Guerra de Secessão americana. As potências coloniais
fornecem por vezes armamentos aos adversários dos países concorrentes
no quadro das rivalidades que os opõem. Os Estados capitalistas fornece-
ram armas aos países que tomaram parte nas guerras balcânicas ou aos
seus futuros aliados da Primeira Grande Guerra (por vezes são os mes-
mos). Os anos de 1920 e 1930 constituem o grande período dos "comer-
ciantes de canhões". As duas guerras do Chaco de 1928-1929 e 1932-
1935, entre a Bolívia e o Paraguai, que são de fato guerras entre interesses
petrolíferos capitalistas para explorar esse território, permitem a esses co-
merciantes suprir os dois lados em guerras que foram particularmente san-
,1 grentas. O papel desses "comerciantes de canhões" era de tal forma im-
portante que em 1934 foi criada nos Estados Unidos, pelo senador George
1
1 Norris, uma comissão especial destinada a investigar, com Gerald P. Nye,
1 o papel dos fabricantes de munição americanos, ao mesmo tempo em que
'!
aparecia o célebre número especial da Fortune, Arms and the Men {As ar-
mas e os homens) e o livro Merchant of Death, Iron, Blood and Profits (Mer-
cadores de morte, de ferro, de sangue e de lucros), um título que bem
merecia ser citado neste Uvro negro, vindo do maior país capitalista do
mundo a propósito de armamentos.
A Guerra Fria deu um impulso sem precedentes ao comércio de armas
por parte dos dois lados . Os americanos supriram os países ocidentais no
quadro da sua política de contenção do perigo representado pelo Leste.
Eles abasteceram os seus aliados na Guerra da Coréia de 1950 a 1953,
enviando para o mundo todo carregamentos de armas batizados como "aju-
da militar". Por seu lado, as outras potências capitalistas não só utilizavam
as suas armas nas próprias guerras coloniais {Indonésia, Vietnã, Malásia,
Quênia, Argélia), mas também as forneciam para as dos outros Estados:
Portugal fez a guerra de Angola, de Guiné-Bissau e de Moçambique com
material francês, de 1961 a 1974. A guerra americana do Vietnã obrigou a
fortes correntes de armas para o Vietnã do Sul e os países limítrofes, até
197 5. As exportações de armas dos Estados Unidos foram multiplicadas
seis vezes de 1961 a 197 5. O que é notável é que continuaram a aumentar
rapidamente após a guerra do Vietnã com um ponto alto excepcional em
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMtRCIO DE ARMAS 457

1978 (13 vezes as de 1961) sob a influência da exacerbação da Guerra


Fria.
As exportações de armas pelos países capitalistas, tal como as do mundo
inteiro, depois de terem diminuído ligeiramente no final dos anos 70, recome-
çaram a crescer para atingirem um ponto máximo em 1987. Os anos 80 foram
marcados não só pela manutenção, em alta, do comércio de armas dos Esta-
dos Unidos, mas também por um crescimento extraordinário das vendas de
armas pela França, cujo montante por vezes ultrapassou 40% das vendas ame-
ricanas e 70% das vendas para o Sul. Isso fazia da França oprimeiro exporta·
dor de armas por habitante no mundo. Os destinatários situavam-se em boa
parte no Oriente Médio, de modo que, no momento da guerra do Golfo, no
início de 1971, a opinião francesa pôde temer que soldados franceses fossem
mortos por armas francesas entregues ao Iraque nos anos anteriores. Acalma
internacional a partir de 1988 explica bastante bem o muito rápido declínio

Exportação das principais armas convencionais pelos países capitalistas


de 1982 a 1990 (em milhões de dólares americanos estáveis de 1985)

1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990

Estados Unidos 12.707 11.878 10.226 8.800 10.304 12.596 10.503 11.669 8.738

França 3.472 3.460 3.853 3.970 4.096 3.011 2.300 2.577 1.799

Reino Unido 2.065 1.077 1.908 1.699 1.500 1.817 1.401 1.816 l.!20

RFA 861 1.826 2.535 1.075 1.120 676 l.270 716 963

Pa!ses Baixos 154 87 98 88 240 265 532 725 152

Itália 1.350 973 869 646 457 389 471 169 96

Outros pa!scs 818 1.565 J.250 850 1.232 1.740 1.363 1.341 m

Total países
desenvolvidos 21.427 20.866 20.739 17.128 18.949 20.494 17.840 19.013 13.280

Total mundo 33.600 32.703 34.112 32.504 36.453 39.777 33.767 33.509 21.726
458 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

do comércio capitalista de armas, tal como o do seu rival nos últimos anos da
Guerra Fria.
As principai armas convencionai compreendem seis categorias de ar·
mas, as armas mais oftsricadas e mais caras: carros e veículos blindados, arti·
lharia, mísseis , aviões militares, navi de guerra e eletrônica militar. As ar·
mas nucleares, dado que não podem ser vendidas segundo o TNP, não fazem
pane deste quadro.

Exportações das principais armas convencionais para os países


capitalistas de 1991 a 1996
(em milhões de dólares americanos aos preços estáveis de 1990)

1991 1992 1993 1994 1995 1996

Es tadOI Unidos 13.041 14.187 14.270 12.029 10.972 10.228

Rw sia 3.838 2.91 8 3.773 763 3.505 4.512

Franç;a 1.090 1.302 1.308 971 785 2.101

Reino Unido l.1 56 1.315 1.300 1.346 1.568 1.773

Alernanlu 2.505 1.527 1.727 2.448 1.549 1.464

PaC.ct Baixos 453 333 395 581 430 450

Itália 360 434 447 330 377 158


-
Outros paC.es i:apltaww J.828 1.855 1.567 2.586 3.006 1.700
-
Toial p:iúe1 upitaww 24.271 23.871 24 .787 21.054 22 .192 22.386
-
Resto do mundo 1.2 55 969 766 997 594
1.657
-
22 .980

---
Total mundial 25.526 24.840 26.444 2 l.820 23 .189

Núr1111ro• "'!l"rulo o Sipri Ytarbook 199 7 Thi Tradt m Maior Conwnuonal W.:aporu
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 459

O fim da Guerra Fria provocou portanto um certo abrandamento do co-


mércio de armas. A Guerra do Golfo traduziu-se ao mesmo tempo em novas
exportações de armas para o Oriente Médio e na vontade de "moralizar" o
comércio de armas, o que levou à criação de um "Registro" das Nações Uni-
das sobre armas convencionais (1991) para o qual nem todos os países contri·
buem e que é, portanto, muito incompleto. O Conselho Europeu adotou, nas
suas sessões de Luxemburgo em 1991 e de Lisboa em 1992, um código de
conduta para as transferências de armamentos. Por outro lado, um "código de
conduta internacional" foi apresentado em 1997 por ganhadores do Prêmio
Nobel. Essas tentativas de moralização na época da globalização e do
neoliberalismo podem enfrentar um certo ceticismo, por maior que seja a boa
vontade dos autores dessas propostas. O capitalismo continuará a vender ar·
mas onde e quando isso pareça rentável, a não ser que enfrente uma ampla
reação da opinião pública.
Em 1996 as vendas dos países capitalistas representavam 92% das de 1991.
Os Estados Unidos lideram com folga, seguidos dos três grandes da Europa
Ocidental (França, Alemanha e Reino Unido). O comércio alemão de armas
cresceu ao longo desses anos pelo fato de a RFA ter vendido material do
exército da RDA a diversos países do mundo. O Reino Unido conseguiu por
vezes ultrapassar a França. À Guerra do Golfo seguiu-se um aumento das
encomendas do Oriente Médio. Depois do tratado de 1990 sobre as forças
armadas convencionais na Europa (CFE), assistiu-se a vendas "em cascata",
com os países mais desenvolvidos cedendo o seu material menos sofisticado
ao países de "segundo escalão" e estes por sua vez enviando o seu próprio
equipamento para o Terceiro Mundo. Hoje o destinatário principal das ven·
das dos países capitalistas já não é o Oriente Médio (que ainda recebe perto
de um quarto), mas a Ásia (que recebe metade). Para qual conflito servirão
essas armas? Índia-Paquistão, mar da China, Coréia? Zonas explosivas não
faltam nesse continente.
Os industriais bélicos franceses estão inquietos com a evolução do co·
mércio de armas, apesar do aumento das exportações em 1996, que colocam
a França no terceiro lugar mundial. Entre as encomendas mais notáveis
figuram uma, destinada a Taiwan, de 60 Mirage 2000-5 da empresa Dassault·
Aviation em 1996, e outra de seis fragatas La Fayette da DCN, feita muito
discretamente no final de janeiro de 1998, com pagamento antecipado de
modo a evitar qualquer bloqueio da China continental. O armamento de
460 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

uma zona potencial de conflito fica assim reforçado. Outra encomenda se


delineia de forma cada vez mais evidente para o subcontinente indiano: o
Paquistão assegurou para si a modernização de 40 Mirage 3 Dassault, a aqui·
sição de três aviões Atlantique 1 e, sobretudo, o fornecimento de três sub-
marinos Agasta pela Direção das Construções Navais. Este último mercado
coloca o problema das "compensações", uma vez que o terceiro submarino
deve ser construído em Karachi, graças à transferência de tecnologia fran·
cesa. Há outros casos, como o dos 30 helicópteros AS 532 Cougar para a
Turquia (destinados, como os outros 20 comprados em 1993, à repressão aos
curdos), que a Eurocopter concordou em produzir em Ancara. Estas "com·
pensações", que privam os capitalistas do armamento de um lucro antecipa·
do, são uma das suas atuais preocupações. Por outro lado, temem que as
encomendas feitas em 1996-1997 (por exemplo, de 40 Mirage 2000 por Abu·
Dabi à Dassault-Aviation; de 12 helicópteros pela Arábia Saudita e de cin·
co por Israel à Eurocopter; de mísseis Mistral à Matra pela Indonésia e dos
mísseis Exocet à Aérospatiale por Omã e pelo Qatar) não sejam suficientes
para assegurar a atividade nos próximos anos. A redução, ainda que limita·
da, das verbas para reequipamento e pesquisa, ligada a uma defasagem dos
programas da lei de programação militar 1997-2002, contribui para o pessi·
mismo. A diversificação das atividades e a reconversão com vista à prote·
ção do emprego são algumas das saídas desejáveis, que só o movimento po·
pular poderá impor àqueles que temem que estas venham a gerar tanto lucro
quanto os engenhos de morte.
O capitalismo continua com a corrida armamentista e a venda de armas
.• quase como se nada tivesse mudado com o fim da Guerra Fria. Não só os seus
dirigentes preservaram a Otan, como ainda se esforçam por levá-la aos países
do Leste Europeu, o que provoca protestos da nova Rússia capitalista. Para
justificar o prosseguimento da política de armamento, deixa-se subentendido
no Ocidente que um novo perigo poderia surgir a Leste, e diz-se abertamente
que o principal perigo se situa no Sul (o Livro Branco sobre a defesa francesa
é cristalino a este respeito, tal como certas declarações do presidente Clinton).
Continuarão os povos do Sul a suportar as conseqüências de uma corrida
armamentista, que impede o verdadeiro desenvolvimento? Não encontrarão
os meios de juntar os seus esforços aos dos povos do Norte para caminharem
no sentido do desarmamento e da paz? O capitalismo, pela sua política de
armamento forçado, faz correr rios de sangue dos povos há dois séculos. Seria
bom que o século XXI não fosse um novo século sangrento ou que não aca·
CAPITALISMO, CORRIDA ARMAMENTISTA E COMÉRCIO DE ARMAS 461

basse prematuramente com uma catástrofe nuclear, sempre possível no mun-


do atual. A resposta não pertence aos senhores dos armamentos, pertence aos
povos.

Y11es Grenet é economista. Dirige o Comitê Nacional para a Independência e o Desenvolvi-


mento (CNID). É um antigo membro da presidência do Conselho Mundial da Paz.
OS MORTOS,VJVOS DA GLOBALIZAÇÃO
PHILIPPE PARA.IRE
-·-
É um fato, e não é contestado sequer pelos partidários da globalização do
capitalismo: o agravamento das desigualdades do modo de vida tanto nos
países ricos como nos países pobres (batizado de "polarização social") e a adap-
tação de todo o planeta ao mercado livre (chamada "modernização") são a
conseqüência de uma organização econômica e política que só reconhece
como fundamento moral os valores gerados pelas necessidades desta
globalização. Os prejuízos econômicos e sociais aparecem portanto apenas
como "disfunções", quando o que eles são de fato é o produto de uma nova
colonização do mundo pelas forças dominantes dos países ricos. Este proces-
so, que neste final do século XX corresponde a uma vitória estratégica do
capitalismo em terreno socialista e não-alinhado, baseia-se numa utopia as-
sassina, a globalização, cujas primeiras aplicações têm um balanço negativo,
em todos os campos, para o futuro do planeta.
Com efeito, a própria crise ecológica é analisada claramente como uma
crise social e como o produto de um sistema no qual a abundânàa não pode
ser partilhada. Para assegurar o nível de conforto de 20% da humanidade, é
necessário hoje desviar as produções de cereais do mundo pobre, derrubar
suas florestas, destruir seus modos de vida tradicionais, deportar os campone-
ses expropriados ou arruinados para as favelas da América Latina, para os
bairros fechados do sul da Ásia, para os arredores de Manila, para as favelas de
Dacar; é preciso organizar um mercado de matérias-primas baseado na rapina
que lança na extrema miséria bilhões de seres humanos. Com efeito, bem
abaixo da escala social, um em cada seis habitantes do nosso planeta tem
apenas um dólar por dia para sobreviver!
A globalização econômica, cujos méritos a ideologia dominante não se
cansa de louvar, não é mais do que um processo que não está acabado nem é
definitivo. As suas fraquezas são grandes e numerosas. Vêm à cabeça as pro-
messas não cumpridas da riqueza partilhada que, por definição, o capitalismo,
mesmo globalizado, não pode cumprir. Gerando mais exclusão do que bem·
estar, mais riquezas especulativas do que desenvolvimento autêntico, e infini.
tamente mais rancor do que esperança, este sistema criminoso continua a
produzir sofrimento e a destruir milhões de existências, mantendo um terço
da humanidade no nível de vida da Idade Média européia.
O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

No momento em que nos aproximamos do ano 2000, dois bilhões de ho-


mens, mulheres e crianças são mantidos no ano 1000 pela lei do lucro. Meta·
de deles não sabe sequer se poderá comer amanhã.

1945-1990: a recolonização, prelúdio da globalização

A globalização do capital, definida de forma empírica e progressiva no


quadro da política externa dos Estados Unidos durante a Guerra Fria, era um
dos objetivos visados pelas "instiruições de Bretton Woods". A estratégia des-
ses organismos de ajuda e cooperação tomou-se rapidamente agressiva. Com
algumas modificações e algumas resistências, estas agências tornaram-se ins·
trumentos da hegemonia americana. Apesar de inicialmente distintos, o Ban·
co Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o Gatt/OMC, completados
agora pela AMI (conjunto de acordos de liberalização do comércio mundial),
coordenaram as suas políticas conjuntas com a do 07. Depois do desmorona·
mento do bloco soviético e da passagem gradual da China ao capitalismo,
estas instituições adquiriram um estatuto mais estrutural do que conjuntural,
e progressivamente se transformaram em uma espécie de centro de reflexão,
de encontros e de decisões funcionando em benefício do capitalismo domi·
nante.
A estratégia do grupo Bird/FMI/Gatt foi evolutiva. É possível distinguir
quatro grandes fases desde 1945, paralelas às da estratégia americana no mundo:
numa primeira fase, fixou como objetivo a dependência técnica e financeira
dos países pobres descolonizados através de uma política sistemática de ajuda
ao desenvolvimento baseada no equipamento pesado, na concentração urba-
na, nas grandes obras e na industrialização das zonas rurais. Esta primeira fase
durou de 1947 (primeiros empréstimos do Bird e do FMI) até 1968 (chegada
de Robert McNarnara, ex-secretário da Defesa americana, à chefia do Banco
Mundial) e transformou radicalmente a cadeia inicial de produção dos países
pobres, de forma autoritária, rápida e irreversível. Em muitos países, esta fase
prossegue segundo os mesmos métodos de ingerência. Os empréstimos conti·
nuam a privilegiar os grandes projetos, como as duas mil barragens do vale de
Narmada, na Índia, ou o dos Três Rios, na China, ignorando os milhões de
pessoas que deverão ser deslocadas para a abertura das comportas. Os exces-
sos sistemáticos tomam indispensáveis outros empréstimos, acentuando a
dependência financeira do país que tem que, cada vez mais, ceder à chanta-
OS MORTOS-VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 467

gem da "condicionalidade", bonito tenno tecnocrata carregado de ameaças


para os países pobres endividados e para as 110 economias do Sul oficialmen·
te consideradas pelo Bird e pelo FMI em situação de "ajuste estrutural". Esta
expressão designa um conjunto de medidas constrangedoras acompanhando
uma passagem forçada para a economia de mercado pelo desmantelamento
de toda a função reguladora do Estado.
Depois de ter representado a comédia da ajuda financeira e técnica, a
estratégia orientava-se em seguida para o endividamento, entre 1968 e 1982,
ano da "grande crise da dívida" que se seguiu à moratória do México, primeiro
devedor naquela época. Entre 1968 e 1971 McNamara multiplicou por seis os
empréstimos e os investimentos. A moda era então uma abordagem "quanti·
tativa" da ajuda ao desenvolvimento dos países pobres. Em 1971, o fim da
convertibilidade do dólar decretada pelo presidente Nixon transfonnou o FMI
em reciclador de dinheiro flutuante. A esmola, uma vez emprestada ao mun·
do pobre, reencontrava valor como que por milagre: transformava-se numa
dívida a pagar. O investimento privado dos dólares especulativos foi ainda
multiplicado pelas crises do petróleo de 1973 e 1979. Naquele momento, o
endividamento dos países pobres acabou por atingir mais de mil vezes o do
início dos anos 60. O Banco Mundial e o FMI desempenharam então o duplo
papel de financiadores públicos e de credores privados: a invenção do "ajuste
estrutural" em 1979 permitiu garantir os credores privados na eventualidade
de os países pobres consideradamente endividados pretenderem não pagar, o
que era uma possibilidade real.
Esta crise teve lugar em 1982 e marcou uma terceira fase na história das
instituições de Bretton Woods. Pôs-se em prática uma ação de corrosão das
bases de sustentação da União Soviética através do "ajuste estrutural" for-
çado (obtido por chantagem) dos países do Terceiro Mundo: entre 1982 e
1987, o Bird e o FMI, no final de um condicionalismo estrito definido por
contrato, reconduziram os países pobres à economia de mercado, o que os fez
efetivamente sair da órbita soviética.
Note-se que McNamara pediu demissão em 1981, ano seguinte à chegada
ao poder de Ronald Reagan, uma vez que a geoestratégia americana evoluiu
imediatamente do conceito de contenção em voga desde a doutrina Truman
e perpetuado pelos políticos de coexistência pacffica no confronto -
Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon e Carter- para o meio-tenno estraté·
gico do neoliberalismo econômico da equipe Reagan. A partir de então a
doutrina oficial radicalizou-se, passando a ser chamada de reconquista. De 82
468 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

a 92, o "ajuste estrutural" toma-se o conceito-chave de uma estratégia agres-


siva que foi o principal fator externo da crise política, econômica, ambiental e
social dos países "ajustados". O FMI, o Banco Mundial e o Gatt, oficialmente
associados desde 1988, puseram o mundo pobre de joelhos. A União Soviéti-
ca, cercada e a pouco e pouco privada de aliados, dissolveu-se lentamente na
glasnost e na perestroika para finalmente se afundar pouco tempo depois da
queda do Muro de Berlim, em 1989. Depois, em poucos anos, o "ajuste estru-
tural" Uá globalizado pelo plano Baker em Seul em 1985) acabou por conven-
cer os últimos recalcitrantes: a Índia cedeu ao FMI em 1991, a nova Rússia no
mesmo ano. Cuba e Vietnã abriram-se ao turismo de massas e a China restau·
rou a economia de mercado nas "zonas econômicas especiais''. No início de
1998, em plena crise asiática, o Estado chinês liberou todos os preços, exceto
os da habitação, saúde e transpones.
Em 1998, as 200 maiores empresas internacionais controlavam 80% da
produção mundial agrícola e industrial, bem como 70% dos serviços e das
trocas comerciais do planeta, portanto mais de dois terços dos 25 trilhões de
dólare que representam o produto mundial bruto (há cem anos, não chegava
a um trilhão de dólares).
Participando dos debates e decisões dos encontros do 08, os executivos
dos trustes (agro-alimentares, petrolíferos ou de armamento) intervêm dire-
tamente nos negócios do mundo. Em colaboração com os gigantes financeiros
do capital global (os fundos de pen.são, os grandes bancos internacionais e os
especuladores institucionalizados), as agências do FMI e do Bird elaboram os
seus diktats, arruinam as economias, subjugam os Estados vítimas da
recolonização. Todos estes managers e todos estes "presidentes", para benefí-
cio do top one (o 1% mais rico do mundo), organizam o sofrimento dos sixty
bottom (os 60% mais pobres) ...
A ideologia neoliberal, radicalizada pelos seus sucessos estratégicos,
globaliza igualmente os seus alvos: lançada na reconquista da totalidade do
mercado mundial, ela visa ao estabelecimento de um "ajuste estrutural uni·
versa!", que deve controlar as potências rivais emergentes (NPI e o Japão em
particular) mas sobretudo obter a destruição dos sistemas de bem-estar social
dos países desenvolvidos, através do fim das políticas sociais e das leis traba-
lhistas obtidas num século e meio de luras renhidas. Desregulamentação e
privatização, mesmo nos países ricos, são os objetivos mais decisivos da ofen-
siva liberal. Um recuo generalizado dos direitos dos trabalhadores dos países
desenvolvidos ao qual se segue o empobrecimento dos do Leste e a servidão
OS MORTOS-VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 469

dos trabalhadores do mundo pobre é o objetivo programado do capitalismo


vitorioso. Desindustrialização dos países mais pobres, estagnação prolongada
para os outros, desruralização do Sul, subemprego em todo o mundo, transfor-
mação da pequena produção e da pequena distribuição em todo o planeta em
trabalho assalariado, reorientação dos investimentos para um crescimento não-
gerador de empregos no q uai os maiores lucros são obtidos em mercados vicia-
dos pela troca desigual e pela especulação. Os efeitos mortais deste sistema
predador são tão destruidores, tão profundos e tão importantes que chegam
mesmo a repercutir no equilíbrio vital do nosso meio ambiente global.

Crise ecológica, lucro privado e êxodo rural forçado

O balanço ecológico do desenvolvimento industrial da Europa está con·


cluído, e o velho continente mostra feridas graves: arruinada pela agricultura
intensiva, profanada pela urbanização, rasgada pela rede de auto-estradas,
atravessada por cloacas que antes se chamavam rios, esta terra desfigurada
tem as marcas de um combate de mil anos. Mas se a América do Norte foi
desbravada em cem anos, as florestas tropicais do Brasil e da África desapare·
ceram em trinta anos e, não demora muito, pouco ou nada restará das flores-
tas equatoriais da Malásia e da Indonésia que são exploradas há apenas vime
anos. Esta aceleração está ligada à expansão do "mercado livre".
É um fato: a organização desigual do mundo interfere com os equilíbrios
·físicos, químicos e biológicos. É possível que, pela primeira vez, uma distribui·
ção mais equilibrada dos recursos entre os homens seja desejada não em fun.
ção dos sonhos generosos de uma filosofia redistributiva qualquer, mas por
uma ameaça global: o planeta não está manchado pela indústria, mas por uma
política industrial produtivista e destrutiva baseada na obtenção privada de
lucros em nívd mundial. Os solos não estão destruídos pelos adubos químicos
e pelos pesticidas, mas pdas estratégias comerciais iníquas das empresas agro·
alimentares internacionais. A floresta arde na Amazônia, na África e na
Indonésia porque os camponeses miseráveis expulsos das suas terras procu·
ram sobreviver em culturas itinerantes, mas especialmente porque esta ou
aquela cadeia de fasc-food européia ou americana, este ou aquele truste agro·
alimentar decidiu instalar ali uma fazenda gigantesca ou uma plantação de
bananas destinada a produzir para exportar para os países ricos. O deserto
avança ao mesmo tempo que a pobreza, a floresta recua ao mesmo tempo que
470 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

a justiça, as favelas dos países pobres aumentam ao mesmo tempo que os lu-
cros das empresas transnacionais que se apoderam das terras do Terceiro
Mundo, as crianças subnutridas definham e morrem na África enquanto as
classes médias dos países ricos não sabem mais o que inventar para perder
seus quilos a mais.
De longe, de muito longe mesmo, a substância mais poluente do planeta é
a desigualdade: muito mais do que as descargas tóxicas das indústrias próspe·
ras do Norte e do Sul que são fruto dela, muito mais do que os incêndios das
florestas, as guerras, as fomes que ela produz, a desigualdade destrói o planeta
impondo favelas, pilhando o capital verde dos países pobres que, à falta de
dinheiro, não podem fazer nada além de pagar a sua dívida com a natureza.
Feitas as contas, qual é o balanço de mais de meio século de abordagem
liberal da pretensa "ajuda ao desenvolvimento"? É forçoso reconhecer que é
negativo sob todos os aspectos: não só nenhuma das economias do mundo
pobre é viável ou independente, como ainda por cima a dependência econô·
mica e a destruição ecológica são duplicadas por um diferencial social agrava·
do: as "elites" colaboradoracionistas dos países do Sul esmagam brutalmente
as revoltas da fome, os funcionários mal pagos e corruptos desviam o dinheiro
público, os chefes recebem ordens nos gabinetes dos seus equivalentes oci·
dentais ou nos conselhos de administração das empresas transnacionais. Es·
magados por uma dívida externa insuportável, os países pobres literalmente
financiam os países ricos em mais de 1% da taxa de crescimento.
Assim, o êxodo rural forçado enche as favelas enquanto a miséria alimen·
ta as guerrilhas que vão do simples banditismo, como na Libéria ou na Somália,
à barbárie na Argélia. O desenvolvimento do livre mercado foi apenas a opor·
tunidade para saquear os países pobres com cobertura de assistência técnica:
as agências da ONU foram apenas o vetor de implantações parasitárias, as dos
trustes agro-alimentares que esgotam os solos do mundo pobre para exportar
para os países ricos, as dos comerciantes de armas que fabricam a política
externa de todos os países, grandes e pequenos, as dos financistas ávidos por
depósitos rentáveis, que manipulam as instituições internacionais.
Depois de cinqüenta anos de "assistência", o Sul está arruinado: mais de
metade dos seus habitantes vive abaixo da linha de pobreza estabelecida pelas
Nações Unidas. Estes países estão ecologicamente devastados, as populações
das cidades e dos campos levam existências indignas. A famosa "decolagem"
de Rostow não aconteceu: o avião do Terceiro Mundo, superlotado e fétido,
apodrece no final da pista sem piloto nem combustível. Quanto ao célebre
OS MORTOS-VNOS DA GLOBALIZAÇÃO 471

efeito de ricochete, que segundo os economistas liberais deveria enriquecer


os pobres depois de ter enriquecido os ricos, mostra os limites do cinismo:
artificialmente apoiadas em economias e sociedades mutiladas pela colorúza·
ção, as receitas do desenvolvimento à ocidental apenas organizaram mais ra·
cionalmente, modernizando-as, as antigas formas colorúais de transferência
de capitais e mercadorias.
Apesar das crises em cascata (Tailândia, Hong Kong e mesmo Tóquio), os
nossos economistas liberais insistem em manipular as noções que mascaram a
realidade dos povos do Sul: a China, exausta e poluída, vende uma das suas
províncias, o Guang Dong, aos investidores privados, para preparar o terreno
para as reformas econômicas destinadas a restaurar a economia de mercado e
a antecipar a abertura às grandes empresas japonesas e americanas. A Índia
está convulsionada pelo gigantismo e pela corrupção, pelas desigualdades so-
ciais intoleráveis, com as suas legiões de mendigos, multidões de crianças mi·
seráveis penduradas nos braços dos turistas, a mão estendida, olhar suplican·
te. O México, tão poluído, tão devastado, está de tal forma colonizado que as
compras são feitas em dólar, com as notas verdes do grande vizinho do Norte.
A Coréia imita Hong Kong, Cingapura, onde operários de treze anos são pri·
vados das belezas da vida, das alegrias da adolescência, durante treze horas
por dia. A Tailândia, primeiro exportador mundial de arroz, é um pa{s onde
poderíamos acreditar que, por isso mesmo, todos comem até estarem sacia·
dos. Mas ali é possível comprar uma pequena escrava por cinco dólares, e o
aluguel de uma "amiga" não custa mais do que trezentos dólares por semana.
E a Indonésia, as Filipinas, o Brasil? Florestas incendiadas e devastadas, in·
dústrias destrutivas; em todo o mundo e sempre, com a "nova industrializa-
ção", o cortejo dos benefícios da sociedade capitalista: bairros miseráveis, moças
de aluguel, favelas, drogas, poluição do ar, Coca-Cola, automóveis, fast foods,
néon, delinqüência e ... telefones celulares. Isto permite a todos os especialis·
tas liberais explicar que há na Índia, por exemplo, uma nova classe média,
com cerca de 200 milhões de consumidores. Esquecemos, como por acaso, os
restantes 700 milhões, dos quais dois terços sobrevivem com menos de um
dólar por pessoa e por dia. É isto, sem dúvida, o "milagre indiano"!
Esquecem-se todos que o "desenvolvimento", do modo como é concebi-
do pelas agências do Bird e do FMI (que servem de escolta aos grandes bancos
privados e aos gigantescos trustes do equipamento pesado da consttução e das
grandes obras), promoveu urna deportação oficial: as barragens de Singrauli,
na Índia, iniciadas em 1962, deslocaram à força mais de 300 mil pessoas numa
472 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

primeira fase. A construção de centrais termoelétricas (onze no total) visa a


expulsar um número suplementar de 150 mil pessoas. Desde 1970, o progra-
ma energético indiano, financiado em dois terços pelo Banco Mundial, de-
portou, além das vítimas do projeto Singrauli, mais de 200 mil pessoas que
viviam em um regime de subsistência em florestas ainda praticamente
intocadas. Os 2 mil megawatts da nova central de Dahanu expulsaram mais
de 100 mil adiuasis (nome dado na Índia aos povos das zonas pouco explora-
das), secando os pântanos e os manguezais onde viviam. Os pescadores da
costa foram arruinados pelo despejo de água quente e enxofre. Oficialmente,
os programas de "compensação" dizem respeito a mais de 10 mil pescadores
artesanais. Apesar destes desastres repetidos, os empréstimos continuam a
estimular esta destruição planejada: 250 mil pessoas deslocadas pela barragem
de Upper Krishna em 1978 não impediram o financiamento da segunda fren-
te de trabalho dez anos mais tarde. Os 120 mil deportados do Subernarekha
não fizeram sequer pestanejar os peritos do Banco Mundial e menos ainda a
resistência dos deportados do Srisailam, que apesar de tudo conseguiram, com
luta, a reinstalação de 64 mil das 150 mil pessoas.
Na China, a faraônica barragem dos Três Rios, que produzirá o maior lago
artificial do mundo (numa zona de instabilidade sísmica, não esqueçamos!),
só será realizada graças ao apoio financeiro do Banco Mundial e do FMI. Na
política de não-transpa rência que caracteriza o atual regime pró-capitalista
da China Popular, estima-se em mais de dois milhões o número de pessoas a
serem retiradas do local. Por outro lado, o perigo potencial obrigará o Estado
chinês a evacuar todos os habitantes abaixo da barragem numa área de pelo
menos duzentos quilômetros. Chega-se ao total de três milhões de deporta-
dos ... Os trabalhos já começaram. As revoltas que surgiram foram neutraliza-
das e disfarçadas como "incidentes entre etnias"!
É impossível fazer a lista completa dos deslocamentos forçados de popula-
ções em função de "grandes empreendimentos". Um grande número de orga-
nizações internacionais e grupos locais procurou alertar a opinião mundial
para o destino das populações rurais ou das etnias que no mundo inteiro fo.
raro engrossar as filas dos excluídos das grandes cidades em benefício das gran-
des instituições de crédito e dos trustes que financiam e executam todas as
grandes obras do mundo.
O mais espantoso neste negócio é o fato de este enorme desperdício hu-
mano, ampliado por verdadeiras catástrofes ecológicas, ter sido feito para ne-
nhum resultado, mesmo no sentido técnico do termo: dois relatórios internos
OS MORTOS.VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 473

sucessivos do Banco Mundial, redigidos no início dos anos 90 por grupos de


especialistas nomeados pelo próprio banco, estabeleceram que apenas 43%
das obras iniciadas e financiadas com o apoio do Banco Mundial funciona·
vam. Barragens cheias de areia, estradas por concluir, poços secos. Que quadro!
O dinheiro desapareceu, e é aos povos que se pede que o reembolsem com
novos sacrifícios! Mais de trinta anos depois desta invasão tecnológica, a Arné·
rica Latina sofre ajustes estruturais mortais para pagar as dívidas contraídas
por ocasião da construção das enormes obras de Grande Carajás, do Polo·
noroeste, que submergiu as terras de 30 mil índios da Amazônia. A enorme
barragem de Yacerita expulsou mais de 50 mil pessoas no Paraguai e na Ar·
gentina. No Brasil, ltaipu; na Tailândia, Pak Mun e Sirindhom; como
contabilizar estas obras que destruíram modos de vida, despedaçaram milha·
res de vidas, desorganizaram sistemas de produção milenares para único be·
nefício do imperialismo? Agravamento da dívida com o dinheiro sujo assim
reciclado e chantagem política acrescida, sem dúvida dezenas de milhões de
pessoas obrigadas ao exílio interno ou à emigração pela destruição de sistemas
econômicos e ecológicos tradicionais, tendo como resultado final a subnutrição
(mais de bilhões de homens neste fim de século): a soma é ainda mais pesada,
pois o balanço impossível das mortes por fome diretamente imputáveis à re·
conquista brutal das antigas colônias desde 1950 eleva-se talvez a 500 mi·
lhões em meio século. O número de homens e de mulheres a quem a extrema
pobreza concede apenas uma existência breve atinge um terço da humanida-
de. O capitalismo mata, não é nenhuma novidade. Assassina lentamente os
bilhões de sobreviventes da sua reconquista. Seria necessário um novo Dickens
para descrever a extraordinária quantidade de sofrimentos que ele provoca.
Este êxodo rural forçado atingiu, em meio século, pelo menos 500 milhões
de homens. No espaço de duas gerações a destruição dos espaços rurais ou
selvagens e a destruição dos modos de produção tradicionais gerou uma pola·
rização inversa da relação cidade/campo. A partir de agora os camponeses já
não são majoritários no mundo pobre: alguns países caminham rapidamente
para as proporções que definem a situação na Europa ou na América do Nor·
te. Um mundo sem agricultores, uma agricultura de altíssimo rendimento em
terras vazias de homens, propriedade dos trustes, eis o modelo social e econô-
mico imposto pela agricultura capitalista moderna.
Em oposição a noções como "auto-suficiência alimentar" e "desen·
volvimento autocentrado" assistimos à instalação de um sistema fundado na
desruralização e no subemprego, cujo objetivo não é alimentar as populações,
474 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

mas produzir excedentes para exportar para os países ricos, seja qual for o
custo humano e ecológico local.
Na China, anualmente depois da implantação em 1990 da nova política,
20 milhões de camponeses pobres vão para as cidades. O Estado abandona a
vigilância do sistema autocentrado das "comunas populares'', deixa o lucro
privado enraizar-se de novo nos campos, desorganizando assim o comércio
local baseado na permuta de gêneros e serviços. Ora, este processo de troca,
controlado pelas instituições de crédito público, funcionou bastante bem du-
rante mais de trinta anos, preservando a China da sua fome anual, velha
chaga do antigo regime feudal. Mas a chegada dos peritos do Banco Mundial
e do FMI e a invasão do sul pelos especuladores estrangeiros produziu os mes-
mos efeitos que na Índia. Os camponeses refugiados nas cidades trabalham
por menos de meio dólar a hora e os que não têm emprego vivem na rua: com
um milhão de sem-teto nas cidades, a China ex-comunista desliza lentamente
para uma situação "à indiana". O subcontinente, fortemente desruralizado
numa geração, viu chegar às grandes cidades mais de dez milhões de campo-
neses arruinados, em cada ano da década de 1970, e mais de vinte milhões ao
longo dos anos 80 e 90. O Brasil, que já tem apenas 35% de camponeses, e o
México, que privatiza os ejidos, essas quintas coletivas da época zapatista, es-
tão muito longe de poder administrar a massa de refugiados do desenvolvi-
mento. Desde 1950, quantos camponeses foram arruinados pelas expropria-
ções, a poluição das suas águas e o diktat dos preços impostos pelas Bolsas de
Londres e de Chicago, que fixam os preços agrícolas do mundo inteiro? Por-
tanto, o esquema colonial capitalista clássico está apenas em vias de
reinstalação.

O "ajuste estrutural" promove uma guerra aos pobres

Em 1998, 45 países do mundo são oficialmente declarados em desequilíbrio


alimentar: a ração diária está compreendida entre 73 e 95% da norma FAO
(2.345 calorias por dia). Na África saariana, depois de três décadas de ajuda
para o desenvolvimento e dez anos de ajuste estrutural, a ração alimentar
diária média é de 1.730 calorias (exatamente metade da média nos Estados
Unidos!). A Índia, com 2.200 calorias, quase se aproxima da ração adequada.
Ora, considerando as desigualdades sociais, observa-se que, estando abaixo
de 95% da norma FAO na média nacional, quase um terço da humanidade
OS MORTOS-VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 475

está subnutrida. Em 85% surgem as "revoltas da fome" ou as guerras civis. Em


75% aparecem fomes esporádicas ...
Entre 1965 e 1980 o rendimento anual médio por habitante cresceu, nos
países do Norte (países do Leste excluídos), mais de 900 dólares; no mesmo
período, o enriquecimento anual por habitante dos países do Sul (Opep ex-
cluída) não ultrapassou três dólares. Os países ricos, com demografia contro-
lada e instrumentos econômicos afinados, apesar das crises, conheceram um
extraordinário aumento do nível de vida entre 1950e 1980. Os países do Sul,
durante estes "trinta anos gloriosos", conheceram sucessivamente uma déca-
da de desordens políticas economicamente paralisadoras, uma década de in-
vasão financeira e técnica por ocasião da "Revolução verde" e uma década
mergulhados na dívida externa com paralisação brutal de todo o equipamen-
to técnico e de todo o progresso social. Os anos 90 acabaram por subjugar os
recalcitrantes, anulando, usando a dívida como chantagem, independências
por vezes duramente adquiridas. Assim, a ingerência destruidora na agricul-
tura fez do egoísmo alimentar dos países ricos uma moral aceita, e do donúnio
pela fome um sistema de governo mundial. Depois o ajuste esrrutural deu o
golpe de misericórdia nas economias gangrenadas pela dependência técnica e
financeira organizada na primeira fase da nova colonização. O seu custo hu-
mano é enorme, impossível de calcular com precisão; para satisfazer a sede de
lucro do pequeno grupo de convertidos à filosofia do ultraliberalismo que
toma as decisões, milhões de homens morrem prematuramente de subnutrição
ou de doenças provocadas pela subnutrição. Um milhão de mortos-vivos, cuja
existência quase animal é imputável às escolhas estratégicas do capitalismo
contemporâneo, engrossa o catastrófico balanço da globalização do capitalismo.
Tradicionalmente, um programa de "ajuste esrrutural" é acompanhado de
empréstimos a "alta condicionalidade"; isto significa que, se o governo con-
templado não avança rapidamente com as suas reformas, os empréstimos com·
plementares não são concedidos. Recentemente, a Índia, o Egito, a Costa do
Marfim, a Zâmbia e a Argélia tiveram que suportar esta chantagem várias
vezes. A própria França foi intimada pelo FMI a não ir rapidamente em socor-
ro do franco CFA nem do dinar argelino em 1994. Os preços dispararam e a
pobreza deu um passo gigantesco naqueles países.
O primeiro princípio do "ajuste estrutural" é a limitação das despesas pú-
blicas, com o objetivo de oferecer à concorrência os serviços públicos rentá-
veis. O Estado deve dispensar funcionários, reduzir as despesas sociais, de
saúde e de educação para provocar o aparecimento de novos agentes privados
476 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

destes serviços. Paralelamente, o Estado deve abandonar toda e qualquer for-


ma de controle direto na produção agrícola e industrial, bem como nos servi-
ços de alta tecnologia (telecomunicações, televisão e rádio). Tudo deve ser
privatizado.
Mais de 11 O países que estão hoje oficialmente em processo de "ajuste
estrutural" puseram em prática o primeiro princípio, ao qual o Banco Mundial
e o FMI acrescentam um segundo: a desregulamentação geral dos preços e
dos salários. A abolição do "preço máximo" de alguns produtos alimentares
de primeira necessidade impõe a subnutrição a milhões de fanu1ias pobres. O
salário mínimo igualmente desaparece, agravando o fenômeno. O controle
dos preços e dos salários é apresentado pelo Banco Mundial e pelo FMI como
um instrumento "anti-econômico", prejudicial à "dinâmica da concorrência".
De fato, o ajuste tem como único objetivo abrir espaços.
Para liberar um bom volume de produtos, não consumidos no local em
'
1 função do aumento de preços, o FMI lembrou-se por fim de obrigar os países
a promover a desvalorização imediata da moeda e a aumentar as taxas de
11 juros. Com o consumo interno despencando por causa da alta de preços, nu·
merosos gêneros e produtos são reservados para a exportação para os países
ricos. Assim, a pobreza financia o pagamento da dívida. Com esta terceira
medida, o cinto fica apertado.
Desnecessário afirmar que este "tratamento de choque" (expressão oficial
utilizada pelos autores do Plano Baker), aplicado a economias pós-coloniais
fragilizadas, constitui efetivamente uma forma disfarçada de guerra contra os
pobres.
Os primeiros empréstimos de adaptação aprovados pelo Banco Mundial e
pelo FMI datam de meados da década de 1970. Tratava-se de financiar com·
pensações nos países onde as privatizações de serviços públicos corriam o ris·
co de se tomarem demasiado impopulares. Depois começou-se a falar de "em·
préstimos de ajuste estrutural" para descrever os sistemas de financiamento
mais complexos destinados a acelerar a passagem ao "livre mercado". O pri·
meiro "programa de ajuste estrutural", formado por uma longa sucessão de
medidas, cada uma delas acompanhada de empréstimos adequados, atingiu a
Turquia em 1980 e foi completado por um direito de saque especial nos fun·
dos do FMI em 1981, depois em 1985, ao nível de (!), 5 bilhão de dólares.
Depois o Banco Mundial acrescentou em 1985 um outro empréstimo a longo
prazo, tendo em conta o avanço das medidas de ajuste tomadas pelo governo
turco.
OS MORTOS.VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO

Passados quase vinte anos, qual é a situação na Turquia? O êxodo rural


destruiu a agricultura de subsistência, Istambul cresceu 600% em condições
insuportáveis em todos os níveis. O Estado turco não cumpriu a sua tarefa de
apoio econômico (dando as costas ao nacionalismo de Atatürk) e operou a
sua transição liberal sob uma ditadura militar. As desvalorizações sucessivas
provocaram altas de preços catastróficas, ao mesmo tempo em que o salário
mínimo era abolido, bem como o controle dos preços. Lançado na miséria,
vencido pela ditadura, aos poucos o povo turco deixou-se levar pela propa-
ganda fundamentalista que não se cansa de atacar as negociatas, a polariza·
ção social e a decadência dos costumes. Muito próximo do cenário catastrófi·
co do Irã, com os mulás se seguindo à "revolução branca" do xá, que aplicara
ao seu país o tratamento de choque da modernização da província e da urba-
nização desenfreada.
É na seqüência dos graves acontecimentos no Irã que os teóricos do Ban·
co Mundial e do FMI compreenderam a necessidade de acompanhar finan·
ceiramente nos países pobres a degradação da proteção social, a redução dos
direitos trabalhistas e a destruição dos serviços públicos, que acontecem si·
multaneamente à concentração das terras e aos deslocamentos populacionais.
Depois da Conferência de Cancún e do Plano Baker, que marcaram a
transformação dos programas de "ajuste estrutural" em uma verdadeira arma
de penetração nas economias dos Estados que ainda escapavam ao livre roer·
cado, os anos 80 foram anos de caos para os países "ajustados": a brutalidade
das privatizações fez aumentar subitamente o nível da pobreza, do subemprego
e a subnutrição. Mas nunca foi feito nenhum programa de ajuste estrutural
sem verbas para o reequipamento e treinamento do aparelho de manutenção
da ordem. Desde o início dos anos 80, o "ajuste esrrutural" provocou as "re·
voltas da fome" que os observadores locais denominaram "revoltas FMI". A
intensidade dos protestos contra o ajuste capitalista das economias estatiza·
das do mundo pobre não parou de aumentar, ainda que os trabalhadores e os
desempregados mais desprotegidos, nestes países já pobres, pudessem estar
cansados da burocracia excessiva e do mau funcionamento dos sistemas esta·
tizados (por exemplo, falta de molho de tomate na Argélia é inaceitável!). É
igualmente certo que o anúncio do fim dos Estados de capitalismo dirigido,
sinônimo de "sociedades nacionais", freqüentemente incompetentes, pode
num dado momento contar com apoio popular. Mas era um pouco precipita·
do esquecer os resultados menos visíveis que os governos dos países pobres
tinham conseguido em cerca de vinte anos: alfabetização em massa, garantia
478 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

de preços agrícolas e subvenção da distribuição, redução dos encargos de saú-


de, controle dos preços dos medicamentos, transportes quase gratuitos. Logo
nos primeiros anos de ajuste o choque foi muito violento: a abolição de todos
os subsídios estatais, imposta pelos programas de ajuste em nome da religião
dos preços, da produtividade, da competitividade, da eficácia econômica e da
modernização, produziu situações sociais explosivas. Estas resultaram no au-
mento da violência urbana espontânea (saques a supermercados, ataques e
roubos a bancos e escritórios) e em uma resistência rural mais organizada:
grupos como o Sendero Luminoso, no Peru, revoltas de camponeses na Índia,
no México, grupos revolucionários nas Filipinas, na Indonésia, na Turquia,
terrorismo fundamentalista no Egito, na Argélia, grupos revolucionários no
Senegal, sem falar no crescimento vertiginoso da delinqüência pura e simples.
Mais de uma centena de Estados atingidos pelos programas de ajuste es-
trutural receberam empréstimos de "alta condicionalidade". Totalmente to·
mados pelos especialistas do Banco Mundial e do FMI, recorreram
freqüentemente às armas para impedir uma mudança à iraniana. É preciso
dizer claramente: o "ajuste estrutural" fez-se, em todos os casos, de arma em
punho.
As revoltas de dezembro de 1983 na Tunísia marcam o início da resistên-
cia do Magreb ao ajuste imposto. As centenas de prisões e de desaparecimen-
tos não desanimam outros revoltosos, no Marrocos, de sair às ruas no mês
seguinte para protestar. O exército dispara contra a multidão e oficialmente
mata 400 pessoas. Em abril de 1984, a alta dos preços em São Domingos em-
purra os manifestantes para os bairros elegantes. Mais de 186 mortos a bala,
500 feridos, milhares de prisões por saques. Cada ano traz o seu lote de mortos
do ajuste estrutural, a ponto de, em 1985, um senador democrata apresentar
ao Congresso dos Estados Unidos o problema da utilização dos fundos do
Banco Mundial. Mas nada muda: em Zâmbia, o exército dispara contra os
"revoltosos da fome" e oficialmente mata 180 pessoas, entre elas numerosas
donas-de-casa que tinham ido protestar contra a alta dos preços dos alimen-
tos após a segunda onda de privatização. No mesmo ano, no Sudão violenta-
mente "reajustado", as tropas reprimiram a invasão, pelos pobres, dos bairros
do centro da capital. Milhares de mortos. Em setembro de 1988, a juventude
de Argel vai às ruas para protestar contra a alta de preços, o desemprego e a
especulação imobiliária. Um conflito de várias horas em Bab el Oued, que
estava ocupada militarmente, terminou com mais de 300 jovens assassinados
e perto de uma centena de outros mortos nas ruelas da velha medina. Na
OS MORTOS.VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 479

Venezuela, dirigida por políticos que se proclamam socialdemocratas mas que


aplicaram um ajuste estrutural muito violento, os trabalhadores das periferias
manifestam-se com as suas famílias contra a alta de 200% dos preços dos
transportes e contra a escassez alimentos e medicamentos. As forças policiais
atiram contra a multidão: 500 mortos, números oficiais, claro. No ano seguin-
te, na Argentina, a aplicação estrita de medidas de ajuste provoca agitação e
manifestações diárias em todas as cidades do país. Em uma ação coordenada,
o exército ataca os "revoltosos da fome" nas grandes cidades invadidas pelos
pobres. A polícia anuncia 20 mortes e 500 detenções. Março de 1990: os
revoltosos de Abidjan são severamente reprimidos. Em Zâmbia, dois meses
mais tarde, o exército mata 20 manifestantes. No Zaire, cada ano traz a sua
quota de revoltosos mortos ...
Durante toda a década de 1990, o mesmo cenário dos "revoltosos da fome"
reprimidos com sangue repetiu-se centenas de vezes, de Kinshasa a Jacarta,
de Chiapas ao Paquistão e à Índia, sempre com o mesmo epaogo. De uma
forma geral, ninguém sai às ruas para enfrentar as metralhadoras das forças
policiais sem motivo. É preciso ter sido muito pressionado por uma situação
intolerável.
A deterioração dos sistemas de proteção social e de saúde, o desman-
telamento dos serviços públicos e a redução das taxas de escolarização são
certamente causas legítimas de protesto. Os próprios trabalhadores dos países
ricos, que também sofrem este tipo de pressão, conhecem um pouco esta situ·
ação. Os movimentos pedindo reformas na Itália, seguidos pelos movimentos
de dezembro de 199 5 na França e a revolta dos subempregados e desemprega·
dos em 1998 mostram que a aplicação de medidas ultraliberais é dolorosa,
mesmo em economias desenvolvidas. Mas nos países pobres o ajuste estrutu·
ral empurrou centenas de milhares de pessoas para a miséria. O problema
atinge aí uma dimensão completamente diferente, quer no plano quantitati·
vo, quer no plano qualitativo.
Oficialmente há hoje dois bilhões de pessoas subnutridas e outros bilhões
sofrem episodicamente de fome . Todos os peritos (mesmo os do Banco Mun·
dial, que insistem no caráter "provisório" do fenômeno) admitem que a po·
breza aumentou em gravidade, em proporção e em números absolutos desde
1985. Um dos índices claros da selvageria do ajuste é o destino reservado às
crianças dos países pobres, países do Leste incluídos. Na Argentina, por exem·
plo, a mortalidade perinatal atinge cinqüenta crianças em cada mil, isto é, 1,5
mais do que em 1980. Em Zâmbia, a subnutrição matava 13% das crianças
~o O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

com menos de três anos em 1980. Em 1998, a taxa é de 42%, aproximada-


mente os índices do século XII na França. Nos países ajustados da África, seis
mulheres em cada mil morrem de pano. N a Ásia, quatro; na América Latina,
2,5. Nos países do G8, a taxa é sessenta vezes menor, mas duas vezes maior do
que no início dos anos 80.
A desregulamentação das economias coloca as legislações protetoras em
segundo plano no momento em que os jovens estudantes franceses protesta-
vam na rua contra o "SMIC jeunes", de Édouard Balladur, as crianças india-
nas ocupavam as ruas para exigir um salário igual por um trabalho igual. Ten-
do o FMI sugerido ao governo Rao que baixasse a idade mínima para o trabalho
infantil e abolisse o salário mínimo, o Estado indiano, que trabalha por conta
dos peritos ultraliberais do FMI e do Bird, impôs este plano e enviou a polícia
para impedir as greves. Nenhuma convenção internacional conseguiu até hoje
regulamentar concretamente o problema da progressão exponencial do tra-
balho infantil, que se resume numa escravatura autorizada pelos Estados inte-
ressados nele.

Conclusão: o crime não compensará sempre

Um número desconhecido de mortos pela fome ou pelas doenças da po-


breza; um agravamento, em nível planetário, da polarização das riquezas; per-
to de quinhentos milhões de camponeses pobres expulsos das suas terras em
conseqüência da especulação, dos grandes empreendimentos, dos grandes pro-
prietários ou do exército. Em nome da dinâmica do "mercado livre". Duzen-
tos milhões de crianças, pelo menos, trabalham gratuitamente nas fábricas
transferidas, há vinte milhões de escravos sexuais no mundo.
Dois bilhões de homens, mulheres e crianças vivem abaixo da linha desta
pobreza que o capitalismo ultraliberal prometeu erradicar! Entre estes
desprotegidos, bilhões de subalimen tados e 20 milhões de mortos pela fome
em cinqüenta anos de ajuda ao desenvolvimento. Um número desconhecido
de mortos entre os que resistem ao ajuste forçado. Desde 1980, pelo menos
dez mil pessoas abatidas no mundo inteiro durante as "revoltas da fome".
Poluição das terras e das águas continentais e marinhas para produzir cada
vez mais, para encher o bolso cada vez mais, para enriquecer sempre os mes-
mos. Incomensurável! Destruição de metade da superfície das florestas tropi-
cais e equatoriais para pagar a dívida de uma ajuda ao desenvolvimento que
OS MORTOS-VIVOS DA GLOBALIZAÇÃO 4.'11

apenas contribui para o aumento dos lucros das grandes multinacionais. Es·
tragos incalculáveis provocados pela troca desigual.
Redução da escolarização e do acesso aos cuidados mínimos em todos os
pafscs ajustados; subemprego programado, abolição dos direitos trabalhistas,
aumento mundial da delinquência e do crime organizado, generalização da
prostituição como solução para a pobreza, multiplicação dos conflitos émicos,
escalada dos nacionalismos, desenvolvimento do tráfico de armas. lmpossfvel
quantificar.
A contabilidade macabra do custo em vidas humanas da nova coloni·
zação do mundo pobre e da invasão dos países ex-comunistas talvez seja difícil
de fazer, mas é simples de avaliar: o alinhamento forçado sob as regras do
capitalismo globalizado pode matar bilhões de homens em cínqüenca anos e
devastar completamente o planeta a ponto de colocar oproblema ecológico
em termos de sobrevivência. Que importa a quantidade/
A globalização do capitalismo é antes de mais nada aglobalização de uma
falência ética que coloca a humanidade no nível dos animais selvagens devo·
rando-se em volta da sua presa, é o fracasso de construções filosóficas basea·
das na legitimação do egoísmo doentio e da sede do pode~ Tencando dissolver
a própria idéia de uma humanidade ligada por um interesse partilhado, aide-
ologia criminosa que sustenta o capitalismo coloca-se agora fora da lei natu·
ral, pondo em perigo toda a espécie humana. Por este fato, condena-se a si
própria. O capitalismo ultraliberal não cria os seus coveiros. Cava ele mesmo
a sua sepultura.

Philippe Paraire é o autor de l:environnement expliqué aux tnfanu, Hachette·Jeunesse, 1990,


col. "Réponses aux petits curieux"; Comprendre l'tnl'ironnement, Hachette·Jeunesse, 1991,
col. "Échos"; I.'.environnrnum (obra coletiva), Hachette·Jeunesse, 1992, col. "Géant' ; CU1opil
verte, écologie des ríches, écologie iUs paiwres, Hachecce·Jeune55e, 1993, cal. 'Pluriel"; ul'illact
monde et san chllreau, essai contre le FMI, l'OMC et la Banque Mon&.ak, l.t Tcll1p! des Cerises,
1995.

Bibliogra#a:
François Chesnais, l.a mondialisatian du capital, Syros, 1994.
Susan George, Crédiis sans fronti~m. La Découverte, 1994.
René Dumont, l.a croissance ... de la famine!, Seuil, 1975.
Elsa Assidon, 1..es théories ecanomiques du dévewpptrnrnl, La Découvcnc, 1992.
Pascal Amaud, l.a de11e du ciers monde, La Découverte, 1984.
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A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL EAS
CAUSASDASAMEAÇASDABARBÁRIE
FRANÇOIS CHESNAIS
Eis-nos na hora da globalização do capital. Nos próximos anos, os fatos a
registrar no Llvro negro do capitalismo poderiam estar entre os mais aterradores
de toda a sua história. Philippe Paraire iniciou o trabalho. Eu irei mais longe
sobre as conclusões do último livro de Claude Meillassoux. A minha tarefa
aqui é tentar definir a nova configuração do imperialismo e do regime de
acumulação especial que corresponde a ele.

Mas antes, algumas lembranças políticas são indispensáveis. A liberdade


que o capital, industrial e financeiro, encontra para se espalhar mundialmen·
te como nunca tinha podido fazer desde 1914 tem sua origem na força que
recuperou durante a longa fase de acumulação ininterrupta dos "trinta anos
gloriosos" (uma, senão a mais longa de todas as histórias do capitalismo). No
entanto, o capital não teria nunca conseguido alcançar seus objetivos sem o
sucesso da "revolução conservadora" do fim da década de 1970. O triunfo do
"mercado" não poderia ter sido atingido sem as repetidas intervenções das
instâncias políticas dos Estados capitalistas mais poderosos, apoiados pelas
organizações capitalistas internacionais mais importantes, o FMI e o Gatt/
OMC em primeiro lugar. Estas intervenções tiveram início muito antes de
1989 ou 1991. Elas começaram dez anos antes, na virada dos anos 1970-1980.
Éeste o momento em que as forças políticas mais antioperariado dos países da
OCDE iniciaram o processo de liberalização, de desregulamentação e de
privatização. Mas o caminho foi amplamente preparado. Os políticos
antioperariado nunca teriam conseguido levar adiante seus objetivos se a con·
tra-revolução brejneviana não tivesse esmagado previamente a primavera de
Praga, assim como o movimento do proletariado polonês do mesmo período;
se as direções dos partidos comunistas da França e da Itália, especialmente,
não tivessem interferido de 1968 a 1978 para conter e repelir o potencial
verdadeiramente democrático e conseqüentemente anticapitalista dos gran·
des movimentos sociais - operários e estudantis - que apareceram um pou·
co por todo o mundo na década de 1968-78 na Europa, bem como nos Esta·
dos Unidos e na América Latina.

Por outro lado, a atual vitória do capitalismo é tão completa que mesmo
entre aqueles que combatiam os seus efeitos há muitas pessoas que já não utili-
486 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

zam o termo. Chamam a ele de "neoliberalismo" e não têm contra ele mais do
que a espe rança, quimérica, 1 julgo, de um retom o às formas mais humanas da
sociedade capitalista. Alguns ficariam certamente surpreendidos, senão choca-
dos, se lhes d issesse m que ao recuarem perante a palavra "capitalismo" estão
dando apoio a todos aqu eles que afi m1am - confiantes no balanço desolador
do "socialismo real" que o desmoronamento da URSS acabou de revelar-que
"a vitória da democracia e do mercado" assinala "o fim da história" ou ainda "o
horizonte inultrapassável" das variantes de organização política e social funda-
das sobre a propriedade privada dos meios de produção.
O uso do tem10 "neoliberalis mo" também está muitas vezes associado à
idéia de que seria impossh·el combater os efeitos do capitalismo globalizado sem
atacar os seus fundamentos, o que não é verdade. Tenninou um período histó-
rico que não foi apenas aquele em que, em escala mundial, reinou a ilusão de
um modelo de sociedade rival do capitalismo, socialmente superior a ele, "coe-
xistindo pacificamen te" com ele, estando à altura de competir militarmente
com ele, se necessário. Foi rambém o período durante o qual, particularmente
na Europa Ocidental, o capitalismo parecia ter sido "domesticado", ladeado por
relações políticas enrre as classes mais poderosas e as instituições irreversíveis,
saídas umas e ourras dos grandes combates da revolução contida, isto é, frustra-
da, do fim da Segunda Guerra Mundial. Na França, terreno de grandes lutas de
1936 e depois de 1945, alimentara m-se durante muito tempo ilusões particular-
mente forres qu anto à capacidade de estas relações e estas instituições fornece-
rem as bases para uma melhoria contínua da situação tanto da classe operária
quanto de largas camadas da socieda de. Pierre Bourdieu, por quem tenho, aliás,
um grande respeito, não tem razão ao esvaziar a questão do capitalismo e da sua
superação e de se concentrar no neoliberalismo. Mas ele está longe de ser o
único à esquerda a chorar a morte de "urna civilização do serviço público" ca-
racterística da França e que se L>stende a outros países na Europa.

A atualidade da noção de parasitismo

O título do capítulo Vlll de O Imperialismo , estágio su/>remo do ca/Jitalísmo,


"O parasitismo e a putrefação do capitalismo", se mpre inco mod ou muito os
teóricos dos partidos comunistas ocidentais. Isto era ve rd ade no passado. Na
época, a "coexistência pacífica" com o capitalismo, be m co mo as suas diferen-
tes metamorfoses, dificilmente podia basear-se apenas na defesa da "pátria
A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL 487

socialista". Mesmo dominado pelo "imperialismo americano", era preciso que


o sistema com o qual a coexistência estava proibida tivesse qualquer coisa,
por muito pouco que fosse, de "positivo"; que parecesse ainda suscetível de
oferecer à classe operária e às suas camadas sociais aliadas algumas perspecti,
vas de melhoria das suas condições materiais e morais de existência. O caráter
"perturbador" da análise de Lenin é ainda hoje mais evidente no que diz res,
peito ao que resta destes partidos. No entanto, o segmento histórico corres·
pondente àquilo que se chama de "globalização" ou ainda a "globalização do
capital" é certamente aquele em que um conjunto de tendências analisadas
por Lenin com a ajuda de Hobson se reafirmou numa escala ainda mais gigan,
tesca do que na véspera da Primeira Guerra Mundial.
Durante algum tempo, nos anos 1950 e 1960, o capital industrial-aquele
que Marx afirma, no capítulo I do Livro II de O capical, ser "o úrúco modo de
existência do capital onde a sua função não consiste apenas em apropriação,
mas também em criação de mais-valia, dito de outra forma, de sobreproduro"
- pareceu dominar de novo as economias capitalistas avançadas. A "classe dos
rendeiros, isto é, das pessoas que vivem do 'corte dos coupons', • pessoas que
fazem da ociosidade profissão" (Lenin, Capítulo VII), parecia ter desaparecido
e ter apenas uma existência teórica. Do mesmo modo, colocada sob a égide de
grupos industriais (as sociedades multinacionais), a dominação imperialista so·
bre os países neocoloniais ou "dependentes" parecia progredir muito pouco,
pois era acompanhada da ampliação das relações de produção capitalistas e da
formação de uma classe operária autóctone. O capitalismo não parecia conse,
guir se definir de forma lapidar como uma "imensa acumulação de capital-di·
nheiro num pequeno número de países", a saber, os países identificáveis como
"Estados rendeiros" (ibid). A produção parecia sobrepor-se à apropriação; a in·
dústria, à finança; o lucro (largamente investido); à renda financeira. Larga·
mente centrado na existência da figura do rendeiro, o capítulo VIII da obra de
Lenin estava entre aqueles pelos quais era possível passar muito depressa.
Hoje, deste ponto de vista, as coisas são ainda piores: evidentemente não
há alinhamento possível numa social-democracia ela própria transformada
em social liberal, se não ignorarmos a análise de Lenin, com o risco de dizer,
mos que ela era válida no passado, mas não o seria hoje. Infelizmente não é o
caso. Neste final de século XX, a sociedade mundial encontra-se de novo sob

ºCoupon - Documento comprovativo do direito a receber juros um emprestimo obrigacionista. (N.


doT.)
488 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

o controle férreo de um capitalismo dominado por contratos de rendimentos,


um capitalismo cuja avidez e ferocidade são tanto mais fortes quanto ele é
parasitário. É simultaneamente no sentido de Lenin, isto é, organizado em
tomo de instituições (os mercados financeiros) e de Estados (os Estados Uni-
dos e o Reino Unido em primeiro lugar), cuja única característica possível é a
de rendeiro, e no de Marx, ou seja, marcado por formas de acumulação que
estão mais voltadas para a apropriação do que para a criação de mais-valia.
Um pouco mais à frente, no mesmo capítulo do livro II, Marx escreve de fato
qualquer coisa cujo alcance passou praticamente despercebido até hoje: "É
porque o aspecto dinheiro do valor é a sua forma independente e tangível que
a forma A ...N., cujo ponto de partida e de chegada são o dinheiro real, expri-
me da forma mais tangível a idéia 'fazer dinheiro', principal motor da produ-
ção capitalista. O processo de produção capitalista aparece apenas como um
intermediário inevitá ·d, um mal necessário para fazer dinheiro. É por isso
que todas as nações dediudas ao modo de produção capitalista são periodica-
mente apanhadas pela vertigem de querer fazer dinheiro sem o intermediário
do processo de prod ução." Hoje, os grandes Estados capitalistas fizeram mais
do que ceder a ~ta vertigem. Colocando os "mercados" no comando, coloca-
ram a economia mundial tanto a dos seus próprios países corno a do globo
inteiro, nas mãos de pessoas cuja visão do mundo é precisamente essa.

Uma acumulação correspondente às prioridades do capital-dinheiro

Na sua configuração atual, o movimento do sistema capitalista mundial é


comandado antes de mais nada pela reconstituição de forças de concentração
do capital-dinheiro tão poderosas quanto inovadoras (os grandes fundos de co-
leta de poupança e de aplicação financeira), bem como a transferência, em
benefício dos mercados financeiros nos paC5es centrais, de funções importantes
de distribui<;ão de recursos e de regulações econômicas essenciais que durante
muito tempo foram controladas pelos Estados. Os grandes grupos industriais
têm um papel primordial, mas não são eles que comandam o movimento de
acumulação no seu conjunto. Esta é ordenada a partir de gigantescas transfe-
rências de valor e de mais-valia em benefício do capital-dinheiro vivendo dos
dividendos e dos juros sobre os empréstimos.2 A promoção da esfera financeira
na posição de "força autônoma" por parte das pessoas que ignoram tudo do
ciclo "encurtado" do capital A ... N., corno da análise do caráter idólatra das

'
A GLOBALIZAÇÃO 00 CAPITAL 489

finanças, teve por função ocultar o papel desempenhado pelos próprios Estados
na gênese da "tirania dos mercados". Esta permite disfarçar os mecanismos atra·
vés dos quais a esfera financeira, antes de instalar os circuitos fechados de distri·
buição interna de ganhos e perdas puramente financeiros, se alimenta de trans·
ferências de riquezas muito concretas. Os capitais que se valorizam na esfera
financeira nasceram - e continuam a nascer-no setor produtivo. A valoriza·
ção, ou "frutificação" da maior parte dos recursos reais captados pelas institui·
ções financeiras , é feita sob a forma de aplicações em obrigações e ações, isco é,
em títulos de crédito sobre a atividade econômica futura.
Estes títulos, chamados ativos financeiros , têm uma dupla dimensão Ôctf·
eia. Têm uma existência própria nos mercados secundários de títulos, onde
conhecem processos de aumento de valor que s6 valem enquanto persistem as
avaliações ou convenções entre operadores financeiros relativos a este valor. O
seu valor na bolsa pode, portanto, despencar e não corresponder a mais do que
um pedaço de papel. Conforme demonstrou a experiência dos anos 30, os crédi·
tos sobre a atividade futura podem, de um dia para o outro, não valer mais nada.
Mas, enquanto a acumulação não for interrompida por graves crises que abalem
simultaneamente a produção, o comércio e os mercados financeiros, ou en·
quanto não surgirem acontecimentos políticos de vulto que levem a uma mora·
t6ria, até mesmo ao cancelamento das dívidas do Estado, o capital pertencente
à categoria "capital-dinheiro de empréstimo" ou capital financeiro, se beneficia
de um fluxo de recursos alimentado por altas "reais" sobre os recursos primários
constitufdos na produção de valores e de novas riquezas.
Duas características marcam o capital-dinheiro de forma inerente. A pri·
meira é a convicção de que os fundos em que investe sob a forma de ativos
negociáveis nos mercados financeiros, isto é, que coloca financeiramente, têm
a "propriedade natural" de "produzir rendimentos". É ao que Marx se referiu
um dia dizendo que, para os seus detentores, os ativos deviam produzir recursos
(dividendos e juros em primeiro lugar), "com a mesma regularidade que a perei·
ra produz peras" (0 capital, III, capftulo XXIV). A segunda característica, inti·
mamente ligada à primeira, é o de ser portador daquilo a que se chama no jargão
atual uma "abordagem patrimonial"1 que desenvolve em todo o detentor de
ativos financeiros a propensão para manter um estoque de riquezas em vez de
correr riscos para aumentá-lo. Independentemente das riquezas especulativas
às quais ele pode se entregar, a característica deste capital é a de estar situado
em locais e de ter horizontes de valorização distintos e muito afastadas do local
onde se desenvolvem as atividades de investimento, de produção e de
490 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

comercialização (sendo que estas asseguram a conclusão indispensável do ciclo


de valorização do capital produtivo) . A distância não é meramente física; é
ideal. É com toda a razão que Lenin, no mesmo capítulo, fala a propósito da
classe dos rendeiros como "pessoas completamente isoladas da participação em
qualquer empresa". Esta caracterização permanece exata mesmo quando os re·
presentantes do capital-dinheiro rendeiro fazem parte de "comissões de audito-
ria" a partir das quais eles exercem o "governo da empresa". As instituições que
operam nos mercados financeiros têm a sua própria representação do mundo, a
começar pela da economia. Necessitam dos fluxos regulares de recursos das suas
colocações, de rendimentos seguros pelo menor custo. Os prazos de amadureci·
mento da grande maioria dos investimentos produtivos situam-se totalmente
fora do seu horizonte. Entre as colocações financeiras, os títulos da dívida públi-
ca, especialmente os dos Estados cuja credibilidade financeira é mais elevada,
ocupam um lugar de destaque. A segurança e a regularidade dos rendimentos
fazem deles a escolha por excelência das concentrações contemporâneas do
capital financeiro cuja função é assegurar os fluxos de rendimentos permanen·
tese estáveis. Mas os dividendos recebidos monetariamente a partir dos lucros
dos grupos industriais adquiriram uma importância crescente. É o nível e a
regularidade dos fluxos de dividendos que as comissões de auditoria têm por
missão controlar sem descanso.

Os traços originais do capital-dinheiro rendeiro contemporâneo

Na época contemporânea, o poder econômico e social sem precedentes


adquirido por este capital é indissociável do lugar ocupado pelos sistemas de
reformas (ou "pensões") privadas.4 Nos países mais centrais e mais poderosos
do sistema-mundo do imperialismo, estes captam uma importante poupança
salarial em benefício dos mercados financeiros. A categoria do capital defini·
do como rendimento por Marx, mas também mais tarde por Keynes (a incom•
patibilidade profunda do rendeiro com uma economia voltada para o investi·
mento e emprego conduz este último a preconizar o seu desaparecimento
"por eutanásia" no último capítulo da Teoria geral), é hoje qualitativamente
reforçada pela formação e crescimento destes fundos. O pagamento das apo-
sentadorias de dezenas de milhões de pessoas já corresponde a parcelas muito
significativas do PIB e é feito à custa de retiradas regulares sobre a riqueza
gerada, cujos intermediários são os mercados financeiros. A existência mate-
A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL 491

rial destes aposentados depende da saúde dos "mercados". Há quinze anos


que o pagamento das aposentadorias se baseia particularmente no regime de
taxas de juros reais positivas. Ora, estas estão na origem direta do crescimento
em bola de neve da dívida pública que é o ponta-de-lança da destruição dos
sistemas de proteção social e pública e do deslocamento da capacidade de
ação econômica dos Estados. O segundo elemento constitutivo dos recursos
de fundos de pensão e de aplicações são os dividendos sobre os lucros. Feitos
reféns pelo capital financeiro, os antigos assalariados tornaram-se igualmente
uma camada social que está, por agora, "objetivamente interessada" em que a
taxa de exploração dos assalariados no trabalho seja a mais elevada possível.
Lenin diria que o capital-dinheiro rendeiro tentou e conseguiu talvez parcial·
mente atrair uma parte da aristocracia trabalhadora para o seu lado. Em al-
guns países, os representantes dos assalariados nos conselhos de vigilância dos
sistemas de aposentadoria dos grandes grupos ou de corporações começaram
a preocupar-se com a forma como a sua poupança serve de força de interven·
ção econômica, política e social para maior benefício dos mercados financei·
ros. Mas a sua solicitude raramente se estende além das fronteiras do seu
próprio país. É raro vê-los interrogar-se sobre a função dos mercados ditos
"emergentes", isto é, dos países ou territórios políticos que possuem uma pra·
ça financeira onde os capitais estrangeiros podem vir lançar as bases de fluxos
de recursos para as metrópoles estrangeiras.
As tendências ecumênicas da "esquerda pluralista" em todas as suas compo-
nentes estão gerando urna certa calma em relação aos sistemas de apo.5entadoria
por capitalização. Não se trata do sistema de alguns dos "vizinhos e sócios da
França" que exigiria a este título o nosso respeito? Esta calma não é por acaso. Os
fundos de aplicação da poupança social estão associados a mecanismos de trans·
ferências de riquezas profundamente perniciosoo. Fazem parte do conjunto de
processos que conduzem a um baixo nível de investimento, à degradação acelera·
da do mercado de trabalho e da relação social, bem como à consolidação, no
plano mundial, de relações de subordinação de tipo rendeiro entre Estados. 1t
Os artigos da imprensa financeira mais prestigiada dos países anglo-saxões
têm todo o interesse em usar de uma franqueza absoluta sobre todas esras ques-
tões. O mesmo se passa com o Finantial Times, do qual citarei um longo editorial
de 6 de março de 1998. Sob o título O ponto de vista do Doutor Pangloss sobre a
globalização, este editorial questiona a viabilidade a longo prazo de um sistema
colocado sob o comando do capital-dinheiro. Ele exprime a inquietação de se
encontrar, no Ocidente, perante "investidores financeiros enaltecidos com a idéia
492 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

de que seriam eles quem, em última instância, correriam os riscos e que teriam
igualmente um direito de origem divina ao espólio em dividendos dos resultados
de empresas das sociedades do setor industrial". Falando dos mecanismos de cap·
ração dos fluxos de recursos mundiais pelos Estados rendeiros, o editorial conti·
nua a inquietar-se pelo fato de a crise econômico-financeira asiática não ser vista
como um aviso: "O Doutor Pangloss era um partidário precoce da globalização,
com a sua afirmação de que tudo ia bem, no melhor dos mundos. No entanto, a
moral do conto de Voltaire, Cândido, alude à violação permanente dos direitos
humanos e dos direitos de propriedade. É possível, evidentemente, que as refor-
mas ocidentais venham a ser pagas na base do trabalho das populações chinesas.
Mas, por agora, nem tudo vai bem no mundo do capital global. E os riscos políti·
cos da globalização estão sendo especialmente minimizados."

O capital industrial num contexto de acumulação


predominantemente rendeira

Os grupos industriais foram os principais beneficiários da liberalização dos


investimentos e dos câmbios tão enaltecida pelos adeptos do capitalismo
globalizado. Serviram-se dela para sobrecarregar os seus assalariados, não com
a ameaça e a prática efetiva de transferênciada produção para os países onde
a mão-de-obra é mais barata e os assalariados estão pouco ou nada protegi·
dos. Utilizaram a liberalização comercial simultaneamente para estabelecer as
redes de aprovisionamento e de subcontratação onde os custos são os mais
baixos e para se entregar a uma concorrência desigual com as empresas com
produtividade mais baixa dos países onde se força a abertura dos mercados.
Mas a força adquirida pelos grupos financeiros também marcou, de forma
crescente, as estratégias do capital industrial. Depois de um século desde a
passagem do capitalismo de livre concorrência ao capitalismo de monopólio,
o grupo industrial é sem exceção "um grupo financeiro de dominante indus·
trial". O caso alemão que serve de exemplo a Hilferding e a Lenin, no qual o
capital bancário estabelece o seu domínio sobre o capital industrial, nunca foi
a única forma desta interpenetração. Nos Estados Unidos, os Carnegie e os
Rockfeller foram os pioneiros de formas organizacionais nas quais o "industri·
al", para preservar a sua autonomia face ao "banqueiro", se trasformou em
grupo (a "corporação") e se tomou financeiro e industrial.
O ressurgimento do capital-dinheiro concentrado e o controle das alavancas
A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL 493

do sistema capitalista mundial foram acompanhados de dois desenvolvimentos


que tomam o trabalho de Lenin simultaneamente pertinente e referente a urna
dupla atualização no plano das formas de interpretação que originam o "capital
financeiro". A primeira é a acentuação do processo designado com a ajuda da
expressão "financiamento crescente dos grupos industriais". Aexpressão não tem
um grande valor conceituai. Trata-se antes de mais nada de uma forma cômoda
de exprimir o fato de, no quadro da globalização financeira, o grupo industrial ter
acentuado consideravelmente os seus traços de grupo financeiro, não fosse o caso
de estar simultaneamente submetido ao imperativo e às oportunidades de efetuar
investimentos financeiros "puros". Sempre que podem, os grupos industriais ba-
tem-se para decidir eles próprios o emprego estritamente financeiro e muitas ve-
zes completamente especulativo de uma fração do "lucro não investido". Num
contexto de crescimento lento e de acumulação industrial sucessiva, eles serão
levados a privilegiar as operações de investimento a curto prazo. ficamos assim a
saber que o retomo à "rentabilidade" da Renault se baseou em dois pilares: demis-
sões em massa, a flexibilidade e a "disciplina salarial"; e os lucros financeiros irn·
portantes devidos à "boa saúde dos mercados". O outro grande novo mecanismo
de interpenetração é a entrada de fundos de investimento financeiro no capital e
direção dos grupos. Eles trazem critérios de rentabilidade puramente financeiros
que agravam ainda mais a exploração dos assalariados, mas que pretendem igual-
mente atingir o investimento a longo prazo.
Não é apenas no processo de financiamento que os traços rendeiros de uma
acumulação sob dominação financeira se manifestam nos grupos industriais.
Muitos outros mecanismos vão no mesmo sentido, e a sua força acentuou-se
igualmente a favor da liberalização financeira e da globalização. As fusões-aqui-
sições são típicas de uma conjuntura de tom deflacionista de que são uma con·
seqüência e simultaneamente um fator agravante. Têm a propriedade de não
visar a extensão da produção por meio da criação de capacidades novas, mas
unicamente a sua reestruturação com redução de efetivos, bem como a transfe·
rência, em benefício do grupo comprador, de partes de mercado dos grupos ou
empresas fundidas (e aqui está um dos objetivos principais das operações). As·
sistimos assim a um crescimento da rentabilidade do capital, por vezes notável,
no contexto de economias com crescimento fraco ou muito fraco. Mas os efei-
tos não ficam por aqui. Por causa da concentração e centralização, acrescidas
do capital resultante destas fusões, conheceu-se uma alta generalizada e quase
contínua do "grau de monopólio". Este, por sua vez, está na origem de um
crescimento considerável no "resultado bruto da empresa" dos grupos do ele-
494 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

menta "apropriação de &ações de valor produzidas pelas empresas mais peque-


nas ou mais fracas na sua capacidade de negociação". A emergência daquilo a
que chamamos "empresas-rede" anda a par de um profundo processo de
"indefinição" das fronteiras entre o "lucro" e a "renda" na formação do lucro de
exploração dos grupos, bem como o peso crescente das operações que são do
domínio da apropriação de valores já criados por intermédio de levantamentos
sobre a atividade produtiva e os extras de outras empresas. O crescimento "pa·
radoxal" dos lucros e das capacidades de autofinanciamento dos grupos indus·
triais, no meio da quase estagnação das economias, assenta pois igualmente nos
mecanismos de captação do valor com origem no poder de monopólio que se
acrescenta aos mecanismos ligados ao agravamento da exploração do trabalho
por cada grupo industrial considerado separadamente.
Mas ela está fundada de forma ainda mais central sobre as modificações
da relação entre capital e trabalho ou relação salarial, aspecto-chave da
globalização nascida da liberalização e do desregulamento. 5 Em ritmos e con·
<lições que variaram fortemente entre os países da OCDE - uma vez que
nem todos os países puseram em prática as políticas de liberalização e de
desregulamentação de salários e de condições de emprego tão rápida e brutal-
mente como os Estados Unidos e o Reino Unido - , os grupos industriais
tiraram partido do aumento do desemprego e da reconstituição do "exército
de reserva mundial" para agravarem os salários e as condições de contratação,
do mesmo modo que impuseram as novas tecnologias para impor novas normas
de trabalho em oficina e escritórios. E puderam fazê-lo tanto mais facilmente
quanto a liberalização conduziu a uma forma de constituição do exército de
reserva industrial como "exército mundial". Os deslocamentos, quer sobre a
forma de investimento direto, quer sobre a forma de subcontratação interna·
cional, permitem aos grupos industriais utilizar as reservas mundiais de mão-
de-obra indiferenciada, sem ter que fazê-la emigrar para as metrópoles, mas
servindo-se dela também para iniciar o processo de alinhamento internacio-
nal dos salários pelos níveis mais baixos para a mão-de-obra especializada.

Os países sob dominação imperialista no seio de um sistema


em contração

Com base em critérios políticos, principalmente, Lenin caracterizava o


imperialismo como "a reação em toda a linha". Ele notava a presença de ten-
A GLOBALIZAÇÃO 00 CAPITAL 495

dências para a estagnação criadas pelas posições de monopólio. Mas, no mo-


mento em que escreve, ele ainda não descortinava o domínio das tendências
que iam no sentido da contração do sistema capitalista. Trotski será o primei·
ro a identificar por trás da crise dos anos 30, a existência de tais tendências.
Mas a teoria do "neocapitalismo", da qual o partido comunista italiano foi o
principal laboratório, foi-lhe logo de seguida oposta. Durante a longa fase de
expansão de 1950-1974, o capitalismo pareceu renovar-se com a reprodução
alargada. Esta terminou com a recessão de 1974-75 que vê efetivamente a
abertura daquilo a que chamámos "a crise", termo não suficientemente preci·
so mas também não totalmente impróprio.
Hoje vivemos um período contraditório. Por um lado, o capitalismo pare·
ce triunfar. No quadro da globalização, ele acaba de subordinar as regiões e as
atividades que lhe tinham escapado. Mas fá-lo, na realidade, no contexto de
um abrandamento contínuo sobre o longo período de investimento e de cres·
cimento e no quadro de uma situação marcada pela presença de indicadores
traduzindo a contração tendencial da acumulação, mais do que o seu alar-
gamento. Inspirando-se na distinção clássica do "Capítulo inédito do Capi-
tal", podemos dizer que a subordinação que ele impõe decorre de mecanismos
que se assemelham mais a uma submissão formal mais do que a uma submis-
são real. Os mecanismos de "esvaziamento" do valor superam os da sua pró-
pria criação. A escolha dos indicadores para apreciar uma tendência não é
neutra, evidentemente. Ele remete para postulados teóricos e políticos.6 Se
considerarmos o indicador de crescimento do produto nacional por habitan·
te, que é um indicador sério do estado da produção da riqueza antes que
intervenham as condições da sua distribuição, constata-se que esta taxa de
crescimento anual se aproxima dos 4% entre 1960 e 1973, depois caiu para
2,4% entre 1973 e 1980 e não ultrapassou 1,2% entre 1980e 1993. Um outro
indicador, que muitos economistas consideram crucial, é odo nível do investi·
mento privado. Nos países da OCDE, isto é, nos mais ricos, as curvas de
investimento e de poupança são ambas claramente descendentes de tal modo
que se está no limite de uma situação de reprodução alargada. Em 1994, a
Organização Mundial do Comércio (a OMC de triste reputação) publicou
uma longa série estatística que mostra a queda regular, para além das flutuações
cíclicas, da taxa anual média do crescimento mundial. No período de 1984-
94, esta taxa caiu para 2% e poderá ainda ser inferior na virada do núlênio.
Uma sobreprodução em permanente crescimento que se transforma em super
produção aberta a cada crise, como é o caso hoje da Coréia, Japão e em breve
496 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

do Taiwan e da China7 é apenas uma das manifestações mais gritantes de um


regime de acumulação, no qual o sistema capitalista como um todo não produz
valor suficiente, e isto mesmo tendo recomeçado com a exploração de crian-
ças em grande escala e aumentado por todo o lado o grau de exploração dos
trabalhadores que emprega. Permito-me insistir: a massa total do valor criado
não assenta apenas na taxa de mais-valia, mas também no volume de capital
posto em movimento na produção. No momento este tem tendência a baixar.
É no contexto desta contração tendencial do sistema capitalista no seu
centro que é preciso examinar o destino dos pafses situados na periferia. Os
únicos países que interessam ao capital-dinheiro são aqueles que possuem
uma posição financeira suficientemente desenvolvida para aspirar ao esta-
tuto de "mercado financeiro emergente". Fora dos países da OCDE, exis-
tem menos de vinte . E este interesse é o de pôr em marcha os mecanismos
de "sifonagem" dos recursos para os países centrais. Por seu lado, os grupos
industriais dos países imperialistas só se interessam pelos outros países de
uma forma muito selectiva. Fazem-no a três títulos. Em primeiro lugar pelos
mercados, quando as exponações feitas pelos grandes grupos industriais,
por intermédio das suas filiais de comercialização, se tornaram a opção pre-
ferida e o investimento direto, em sentido estrito apenas é uma solução de
segunda linha utilizada em cenas circunstâncias. Continuamos a criar filiais
de produção enquanto esta forma de presença direta no mercado se impõe
proporcionalmente à dimensão do mercado e da importância estratégica
regional do país (a China e o Brasil); proporcionalmente à presença antiga
de rivais mundiais cujas estratégias devem ser impedidas localmente; ou
ainda à existência de oponunidades locais que não podem ser exploradas
sem investimento direto. Mas , de outra forma, os níveis de produtividade e
as reservas de capacidade industrial dos países capitalistas centrais levam os
grupos a preferir a exportação corno forma de tirar partido de um mercado.
Os países exteriores à Tríade são igualmente requeridos corno fonte de ma-
t térias-primas. Mas só se não forem ameaçados por produtos de substituição.
A sua terceira função é a de servir em indústrias intensivas em mão-de-obra
indiferenciada para operações de subcontratação deslocalizada que requei-
ram urna mão-de-obra industrial simultaneamente qualificada (ou mesmo
muito qualificada), muito disciplinada e muito barata. Mas também aqui o
número de países que satisfaz estas condições é em número tanto mais res·
trito quanto as necessidades do capital estão limitadas pela fraqueza geral
da acumulação.
A GLOBALIZAÇÃO 00 CAPITAL 497

Éneste contexto que se coloca a escalada da fome, as pandemias e as guer-


ras intestinas em numerosas partes do mundo. É o caso da África negra, cujo
sistema rejeita uma grande parte das matérias-primas agrícolas prcxluzidas no
seio da economia de plantação antecipadamente instalada à custa das prcxlu-
ções de subsistência e cuja mão-de-obra não reúne as numerosas qualidades da
dos países da Ásia e do Sudeste. O que se passa de há quinze anos para cá não é
obra do acaso. É o resultado direto, mediatizado pela corrupção política típica
dos "Estados-apêndice" do neocolonialismo, da marginalização da maioria dos
países do continente nas trocas mundiais. O "contingente" traduz aí a "necessi-
dade" do capitalismo a apodrecer. A ONU acaba de reconhecer o genocídio
ruandês como o terceiro deste século, depois do dos armênios e do Holocausto.
Ora, se o primeiro pode ainda ser analisado sem recurso à teoria do imperialis-
mo, o Holocausto não. Ainda que se tenha passado de forma diferente, ames-
ma observação é válida para o genocídio ruandês. No âmbito de um trabalho
minucioso sobre a África, Claude Meillassoux conclui a reativação, pelo capita-
lismo, da lei de Malthus: "O controle da demografia dos povos explorados atra-
vés de meios demográficos (controle dos nascimentos, esterilização etc.) falhou.
Uma forma de controle pela fome, pela doença e pela morte, mais eficaz e mais
cruel, instalou-se a pretexto de uma 'racionalização econômica' e de um 'ajuste
estrutural': a lição de Malthus foi entendida."5
Dir-me-ão que se trata de exageros tipicamente de "esquerda". Talvez.
Mas que ninguém nos venha dizer mais tarde "que não estava informado",
que não tinha "compreendido". Desta vez, os "hospícios" em massa do capital
são do conhecimento público e exibidos nas reportagens da mesma forma que
é do conhecimento de todos que o "gulag" se perpetua na China. Mas há
ainda poucas pessoas dispostas a associar estes fatos com uma caracterização
séria deste capitalismo ao qual nos convidam de forma veemente a "adaptarrno-
nos", já que o socialismo seria, na melhor das hipóteses, uma utopia e, na pior,
o anúncio de um novo totalitarismo.

Para concluir

Mais do que nunca é necessário continuar a divulgar o livro negro do


capitalismo, iniciado depois que as Américas ca{ram na dupla submissão do
capitalismo mercantil e da Igreja. Mas esta tarefa não nos demite de respon-
der aos terríveis problemas levantados pela falência do "socialismo real" e a
498 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

amplitude dos escombros deixados depois de quase 60 anos de dominação


stalinista sem partilha, no país onde a Revolução de Outubro teve lugar. Ela
supõe igualmente que se faça luz sobre a configuração atual do capitalismo
moribundo. Poucas pessoas vieram ainda contradizer os apologistas da "nova
ordem mundial" sob a dominação americana depois que estes declararam,
após o desmoronamento da URSS, que "a vitória da democracia e do merca·
do" assinalava "o fim da história" ou ainda "o horizonte inultrapassável" da
propriedade privada dos meios de produção.
A luta de classes começou já, indiscutivelmente, a dar-lhes um desmentido
formal em numerosos países, mas este desmentido da "práxis" só ficará com·
pleto se avançar com um imenso trabalho teórico. Este trabalho supõe que se
faça, do lado da classe operária e dos oprimidos, o balanço do stalinismo e da
sua vitória, assim como das mentiras, dos crimes e das calúnias ditas em seu
nome fora da URSS e na França, particularmente. Mas exige igualmente ser
reforçado com análises que não apaguem a putrefação do capitalismo e que
expliquem que período é que terminou: aquele em que o capitalismo tinha
alguma coisa para oferecer à humanidade. É este o sentido da minha partici·
pação nesta tão bem-vinda coletânea.

François Chesnais é economista, autor de inúmeras obras, entre as quais La Mondialisacion du


Capital, Éditioru Syros, Paris, 1997

Notas:

l. Ver a conclusão do importante livro de Ellen Meiksing Woods, Democracy against


Capitalism, Cambridge University Press, 1995.
2. Permito-me remeter para a segunda edição estruturada e aumentada do meu livro La
Mondia!isation du Capital, Edições Syros, Paris, 1997.
3. Ver Georges Maarek, l.:économie de !'en!isement: intérêt, change, emploi dans les années quatre·
11ingt dix, Economica, Paris 1997.
4. Ver o artigo que publiquei no Monde Diplomatique, abril de 1997.
5. Ver o artigo que publiquei no Monde Diplomatique, abril de 1997.
6. Ver os capítulos l e 12 de La Mondialisation du Capital, op. cit.
7. Ver o meu artigo em Carré Rouge, n11 7, março 1997 (B.P. 125, 7 5463, Paris Cedex 10).
8. Claude Meillassoux, l.:économie de la vie, Cahiers libres, Éditions Page2, Lausanne, 1997.
OS BANQUEIROS SUÍÇOS MATAM SEM
lvIBTRALHADORAS
JEAN ZIEOLER
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l:
Graças ao seu sigilo bancário, às suas contas numeradas, à lei da livre
convertibilidade, ao cinismo e à extrema competência técnica dos seus ban-
queiros, a Suíça é hoje a caixa-forte do mundo. Em 1998 era o primeiro país
mais rico do mundo (rendimento per capita segundo o método de cálculo do
Banco Mundial). Cerca de 40% das fortunas privadas do mundo feitas fora do
seu país de origem são geradas na Suíça. Os fortes bancários helvéticos, as
filiais mundo afora não só acolhem o espólio dos cartéis do crime organizado
de todo o mundo, os astronômicos bens dos senhores do crime russo, mas
também o tesouro das classes dominantes e despóticas da África, Ásia e Amé·
rica Latina.
Que relação há entre o dinheiro sujo do crime organizado internacional e
o capital ilícito que escapa do Terceiro Mundo? Ambos são lavados e reciclados
pelos mesmos emires, por meio de técnicas bancárias idênticas. São muitas
vezes as mesmas organizações que reúnem estes capitais, os fazem atravessar
os continentes e entrar na Suíça. Os mesmos analistas financeiros, geradores
de fortunas, conselheiros da bolsa e agentes de câmbio reinvestem os capitais
em fuga do Terceiro Mundo e o dinheiro sujo da droga.
Os adolescentes drogados das ruas de Nova York, Milão e Londres agoni·
zam por causa das obras dos senhores do crime que reciclam e lavam seus
lucros na Suíça. Nas Filipinas, no Brasil, no Congo, crianças morrem aos mi·
lhares de subnutrição, prostituem-se, correm risco de abandono e de doença.
Grandes fortunas locais, em vez de contribuírem para criar hospitais, escolas,
empregos, refugiam-se na Suíça; são recicladas e reinvestidas na especulação
imobiliária em Paris, Roma, Tóquio ou alimentam as bolsas de Nova York,
Londres e Zurique.
O saque financeiro do Terceiro Mundo e o tráfico de droga são duas obras
de morte que provocam desastres sociais, físicos e psicológicos análogos. Ambos
se beneficiam da reconhecida competência, da assistência especializada, da
cumplicidade eficaz dos banqueiros suíços.
Eis alguns exemplos referentes a um período de análise de pouco mais de
dez anos.
502 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

As Filipinas

Em 1986, Ferdinand Edralin Marcos mais uma vez frauda astuciosamente


as eleições nacionais. Mas desta vez foi longe demais ... A insurreição popular
varre Manila. Na madrugada de 25 de fevereiro, o protetor americano ordena
a fuga: helicópteros das forças aéreas dos Estados Unidos pousam sobre o
gramado do palácio de Malacanang. Resgatam lmelda, Ferdinand e oitenta e
três dos seus familiares e associados para a base americana de Subic Bay.
Ferdinand Marcos morreu a 28 de setembro de 1989, quinta-feira, num hos-
pital americano do Havaf.
O déspota asiático foi durante toda a sua vida um cliente quase ideal para
os emires helvéticos: era imensamente rico; obcecado por uma verdadeira
mania da acumulação de riqueza. A retirada do tesouro não é nenhum pro-
blema: o cleptocrata está, ele próprio, no poder. Além disso, o homem man-
tém permanentemente um jogo duplo com os seus protetores americanos e
japoneses. Como é igualmente dotado de uma extraordinária complexidade
psíquica, é vulnerável. Os emires podem depená-lo à vontade, impondo con-
dições de investimento e de reciclagem draconianas.
Ferdinand Edralin Marcos nasceu em 1917 num ambiente modesto, no
extremo setentrional do arquipélago, em Ilocos Norte. A população desta
província é taciturna, trabalhadora. A sua atividade principal: o contrabando
com Taiwan e Hong Kong. Os três nomes de criança indicam o drama do seu
nascimento: Ferdinand Chua, rico comerciante chinês, toma-se de amores
pela ainda muito jovem Josefa Edralin. Josefa é bela, alegre, inteligente, mas
pobre. Por outro lado, é filipina. O clã Chua opõe-se ao casamento (Ferdinand
Chua virá a casar com uma herdeira chinesa Fukien). Dá-se a ruptura. Mas
Josefa está grávida. A sua farru1ia pertence ao meio católico tradicional do
Norte, um meio fanático, cruel, que não perdoa o nascimento "ilegítimo".
Josefa procura desesperadamente um marido para ocultar o seu pecado ... e
um pai para a criança que vai nascer. Um estudante da aldeia, pobre corno Jó,
catorze anos de idade, fará o papel: Mariano Marcos. O adolescente é violen-
to, esperto, ambicioso e virá a ser o modelo social da criança que crescerá a
seu lado.
O jovem Ferdinand e aquele que durante muito tempo considerará seu
oâi pertencem praticamente à mesma geração: une-os uma imensa solidarie-
dade. 1935: Mariano é candidato a deputado. Perde as eleições. O candidato
opositor comerciante e banqueiro abastado da terra, humilha a sua família:
os BANQUEIROS sufços MATAM SEM METRALHAOORAS 503

ousa mesmo fazer desfilar um ataúde sob suas janelas. Alguns dias depois o
novíssimo deputado de llocos Norte será encontrado numa curva da estrada
com uma bala na cabeça.
Ferdinand, dezoito anos, é preso, considerado culpado e condenado por
assassinato. Mariano conseguirá a sua libertação três anos mais tarde: um dos
seus amigos, José Laurel, tornou-se juiz no Supremo Tribunal. Laurel é tam-
bém ele um ex-condenado.
Ferdinand é belo, ágil, inteligente. Termina brilhantemente os seus estu-
dos de Direito em Manila. Será um advogado famoso. Por volta dos vinte
anos, Ferdinand descobre o segredo do seu nascimento e contacta o seu pai
de sangue. A sua aliança com a poderosa comunidade chinesa do arquipélago
abre para ele uma fulgurante carreira política: deputado, senador, presidente
do Senado e depois, em 1965, chefe de Estado.
Dois episódios na vida de Marcos merecem atenção especial. Durante a
ocupação japonesa ele dirige um grupo de marginais chamado Maharlika. O
grupo pratica a resistência antijaponesa, o contrabando e o tráfico de armas.
Mas Marcos é demasiado inteligente para colocar todos os ovos no mesmo
cesto: agente japonês, trai numerosos dos seus camaradas resistentes. Quan-
do da libertação, é julgado pelas autoridades americanas, escapa da execu-
ção ... e torna-se o protegido da nova potência ocupante.
Segundo episódio: em 1954, o jovem deputado encontra lmelda Ro-
mualdez. lmelda é simultaneamente atriz, cantora e rainha da beleza. Neta de
um padre católico, teve uma infância e uma adolescência de humilhação e
miséria. A sua sede de vingança é considerável. Após a vitória das tropas
americanas sobre o colonizador espanhol em 1898, reina no arquipélago uma
oligarquia local de plantadores de cana-de-açúcar, de financistas e de grandes
comerciantes. Ferdinand partilha o ódio de Imelda pela oligarquia.
lmelda e Ferdinand fomrnm um casal temível: tribuno dotado, sedicioso e
demagogo, Marcos é adorado pelas multidões. Os pobres gostam de lmelda,
que distribui arroz e vestidos nas favelas. Até 1972 Marcos é reeleito sem
problemas. Depois a situação se deteriora: o ódio à oligarquia cega o casal. A
sua paixão por palácios, jóias e dinheiro ·é ilimitada, e o casal literalmente
pilha o país. Marcos, lentamente, transforma-se em um déspota asiático;
lmelda, em Lady Macbeth. Marcos gosta de mulheres; é generoso: Carmen
Ortega e os seus três filhos - uma das numerosas famílias paralelas de Marcos
- estão hoje entre os clãs mais ricos de Manila.
23 de setembro de 1973: o déspota decreta o estado de sítio (regularmen-
504 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

te renovado até 1986). O general Ver, chefe dos serviços secretos e sócio em
negócios de Marcos, instaura a tortura e faz desaparecer os opositores. Pressi-
onando os seus protetores americanos, que mantêm no arquipélago a base
aérea, marítima e terrestre mais poderosa da Ásia, Marcos mantém ao mesmo
tempo excelentes relações com a direita nacionalista japonesa que serviu du-
rante a guerra. Resumindo: o seu futuro parece assegurado. Os emires suíços
não têm dúvidas de ter apostado no cavalo certo.
Voltemos àquela manhã de 25 de fevereiro de 1986, quando o protetor
americano deixa cair o cleptocrata e se instala no palácio de Malacanang uma
mulher da oligarquia, Cory Aquino, viúva de um opositor assassinado por
Marcos em 21 de agosto de 1983. Evacuados à força de Subic Bay, Marcos, a
sua mulher e a sua família são levados no mesmo dia para o Havaí, nos Esta-
dos Unidos. Assim que descem do avião, em Honolulu, agentes do FBI avan·
çam para Marcos e para os seus familiares e confiscam-lhes as malas e os sacos
que continham os nomes de código, os números, a localização das contas
bancárias distribuídas pelo mundo. O FBI entrega estes documentos à nova
presidente das Filipinas, Cory Aquino.
O raciocínio do presidente Reagan é tão simples quanto convincente:
três exércitos de guerrilha, dos quais dois fazem progressos rapidamente, ame-
açam o frágil poder pró-americano da senhora Aquino. O sucesso desta guer-
rilha, sem ligações notáveis com qualquer potência estrangeira, alimenta-se
essencialmente da miséria abissal das farru1ias dos campos semifeudais e das
cidades proletarizadas. Se Cory Aquino quer sobreviver, tem de rapidamente
fazer investimentos sociais maciços na cidade, uma reforma agrária conse-
qüente, uma reconversão das plantações de açúcar no campo. Tudo isto cus-
tará centenas de milhões de dólares. Para o presidente Reagan, não há qual-
quer razão para que os contribuintes americanos paguem estes elevadíssimos
e despropositados créditos ... enquanto bilhões de dólares, roubados por Mar-
cos e pelos seus, repousam tranquilamente nos bancos suíços.
Mas, como já dissemos, contra os emires o governo da Confederação nada
1
pode. É mais impotente do que um recém-nascido. Os bancos são fortalezas
impenetráveis. Nenhuma lei permite ao Estado, ao seu governo, ao seu Parla-
1 mento obter sequer uma mera informação sobre a identificação do credor, o
montante do depósito, a origem dos capitais que alimentam as contas nume-
radas.
A pressão do presidente Reagan, do FBI e do secretário americano do
1 Tesouro toma-se cada vez mais forte. O Conselho Federal tenta usar subter·

1
OS BANQUEIROS SUÍÇOS MATAM SEM METRALHADORAS 505

fúgios, explicar a singular impotência: há alguns anos que as autoridades ame-


ricanas se mostram de uma enorme brutalidade para a Suíça ... A administração
Reagan não se deixa levar pela argumentação e exige de forma imperativa,
com o apoio de ameaças de sanções comerciais, o bloqueio e a restituição dos
milhões roubados pelo cleptocrata de Manila.
Drama comeliano no palácio de Berna: será necessário violar a lei suíça,
virar contra si os emires, agradar aos americanos e assim bloquear as contas?
Ou mais vale enfrentar as sanções americanas, proteger o sigilo bancário e
deixar o Crédit Suisse, a União dos Bancos Suíços etc. devolver pacificamen-
te a Marcos e aos seus cortesãos o seu tesouro escondido?
Na noite de segunda-feira, 24 de março de 1986, surge uma idéia bri-
lhante durante o jantar de gala oferecido pelo governo ao presidente da
República da Finlândia, Koivisto, no grande átrio medieval da Câmara
Municipal da cidade de Berna. A atmosfera, do lado dos ministros federais,
é sinistra: as pressões americanas - telefonemas, manobras diplomáticas,
ameaças cada vez mais consistentes sobre as exportações suíças para os Es-
tados Unidos - não pararam de crescer durante o fim de semana. Os con-
vivas sentam-se à mesa. O professor Mathias Krafft, conselheiro jurídico
das Relações Exteriores, consegue dos serviços de segurança permissão para
penetrar no grande átrio. Vai direito a Pierre Aubert, ministro das Relações
Exteriores, e estende-lhe um papel. Aubert, radiante, inclina-se sobre o
presidente da Confederação, Alphonse Egli. Mal tinham pronunciado os
últimos discursos, a sobremesa engolida rapidamente, Egli reúne os seus
colegas no salão da Câmara Municipal onde transcorria o jantar. O Conse-
lho Federal decide bloquear provisoriamente, com efeito imediato, todos os
bens do cleptocrata, da sua família, dos seus aliados em todos os bancos em
território suíço. Tremor de terra: é a primeira vez, na história de muitos
séculos do país, que tal decisão é tomada contra os emires. Os funcionários
transmitem a má notícia por telefone e na mesma noite. Quanto ao público
estupefato, será oficialmente informado por um comunicado, quarta-feira,
26 de março.
Qual o fundamento jurídico desta decisão temerária? Única e simplesmente
a Constituição Federal. No seu Preâmbulo, esta invoca Deus, instância supre-
ma: "Em nome de Deus Todo-Poderoso, a Confederação Suíça, querendo for-
talecer a aliança dos Confederados, manter e aumentar a unidade, a força e a
honra da nação suíça" etc. O artigo 102, alínea 8, obriga o Conselho Federal
a "zelar pelos interesses da Confederação no exterior"; deve especialmente
506 O LNRO NEGRO DO CAPITALISMO

assumir "a observância das relações internacionais" e está "em geral encarre-
gada das relações exteriores".
Obrigado a escolher entre os interesses "de fora" e os interesses "de den-
tro", o Conselho Federal, num assomo de lucidez, optou pelos primeiros.
Ferdinand Marcos reinaria 23 anos no seu palácio de Malacanang. A par-
tir de 1973, governa através da repressão de sindicatos, da Igreja, de organiza-
ções de camponeses; pelo assassinato sistemático de opositores de peso; pela
tortura metódica, pelo "desaparecimento" freqüente de homens, mulheres e
adolescentes que contestavam apenas a sua megalomania, o seu desJ?Otismo,
a sua insondável corrupção.
Eis a forma como o cleptocrata organizava a pilhagem do seu povo:
1. Todos os anos, Marcos levantava somas equivalentes a vários milhões
de dólares das caixas do Banco Central e dos fundos destinados aos serviços
secretos.
2. Em duas décadas, o Japão, antiga potência ocupante, entregou ao go-
verno de Manila centenas de milhões de dólares a título de indenizações de
guerra. Marcos retirava a sua parte por cada depósito.
3. As Filipinas são um dos trinta e cinco países mais pobres da terra. O
Banco Mundial, as organizações especializadas das Nações Unidas, as obras
de solidariedade privadas depositaram, ao longo dos anos, dezenas de milhões
de dólares e investiram outros milhões em numerosos projetos ditos de desen-
volvimento. Marcos, a sua corte, os seus cúmplices, serviram-se constante-
mente de quase todas estas transferências, de cada um destes projetos.
4. Perante a importuna insubmissão do povo esfomeado, Marcos teve que
proclamar rapidamente o estado de emergência e de renová-lo ano após ano.
Concentrando nas suas mãos quase todos os poderes civis e militares, Marcos
utilizava o exército para ocupar e depois expropriar as centenas de planta·
ções, sociedades comerciais, sociedades imobiliárias e bancos pertencentes a
seus críticos, para atribuir as propriedades aos seus próprios generais, corte-
sãos e conselheiros. Numerosas sociedades e plantações passaram assim dire-
tamente para as mãos da sua farru1ia e da de Imelda.
Mas Ferdinand Marcos, vaidoso, ávido e cruel, era também um homem
previdente. Tinha poucas ilusões sobre os sentimentos que inspirava no seu
povo. Um consórcio de emires helvéticos ajudava-o a evacuar anualmente o
seu espólio. Um deles foi mesmo especialmente destacado para junto do sátrapa
de Manil<>.. Aconselhava-o permanentemente sobre a forma mais discreta e
mais eficaz de transferir para o exterior e de aí reinvestir os seus capitais.
OS BANQUEIROS SU[ÇOS MATAM SEM METRALHADORAS 507

Qual é o montante total do espólio escondido no exterior, principalmente


na Europa e nos Estados Unidos? Uma estimativa séria avalia o tesouro depo-
sitado no Crédit Suisse e em cerca de outros quarenta bancos suíços em algo
compreendido entre um bilhão e um bilhão e meio de dólares.
A camuflagem do tesouro de Marcos e dos seus obedecia a uma estratégia
complexa. O emir que tinha sido destacado para Manila e o seu Estado-Maior
ocupava-se praticamente todo o tempo (desde 1968) da avaliação e da
reciclagem do dinheiro. Eles conseguiram manter um contato cotidiano com
o cleptocrata, inclusive quando da sua internação (a partir de março de 1986)
na base aérea americana de Hickham, em Honolulu. Num primeiro momen·
to, este rio de dinheiro sujo era encaminhado para múltiplas contas numera·
das no Crédit Suisse de Zurique. Primeira lavagem. Depois o espólio era trans·
ferido para a sociedade fiduciária Fides, onde mais uma vez mudava de
identidade. A sociedade Fides pertence ao império do Crédit Suisse. Final-
mente, terceira lavagem: Fides abria as suas comportas, os rios lamacentos
partiam de novo, desta vez para Liechtenstein. Af, infiltravam-se em estrutu·
ras cuidadosamente preparadas, as famosas Anstalten (termo intraduzível, pró·
prio do Liechtenstein, significando aproximadamente estabelecimento). No
estado atual dos processos, descobriram-se onze. Todas têm nomes poéticos:
"Aurora", "Charis", "Avertina", "Wintrop" etc.
Pormenor pitoresco: desde 1978, com o objetivo de racionalizar a trans·
ferência dos capitais, Marcos nomeou cônsul-geral das Filipinas, em Zurique,
um diretor do Crédit Suisse!
Na sua correspondência com os emires, o nome de código utilizado por
Marcos é (desde 1968) "William Sanders"; o da sua mulher, "Jane Ryan". Os
banqueiros suíços criarão dezenas de sociedades de investimento em
Liechtenstein e no Panamá; comprarão centena5 de imóveis em Paris, Gene-
bra, Manhattan, Tóquio; tratarão de centenas de milhares de operações na
Bolsa para a conta misteriosa do casal Sanders-Ryan.
Apesar da habilidade proverbial dos emires suíços, o império americano
de Sanders-Ryan resistirá apenas parcialmente à queda do sátrapa. Os juízes
nova-iorquinos culpam Ryan-lmelda. Acusam-na de ter efetuado em territó·
rio americano, por mais de 100 milhões de dólares, aquisições privadas, pagas
com dinheiro roubado ao Tesouro filipino. Dezenas de imóveis comprados
pelo mesmo processo por Sanders-Marcos (ou por sociedades fictícias) são
lacrados. Os juízes americanos - definitivamente sem-vergonha! - man-
dam mesmo prender pela lnterpol um dos testas-de-ferro mais distintos do
508 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

cleptocrata deposto: Adnan Kashogi, milionário sudanês. É apanhado ao sair


da cama, numa manhã de maio de 1989, no hotel Schweizerhof de Berna.
Será encarcerado na prisão central de Berna antes de ser extraditado para os
Estados Unidos.
Mas o que é feito do espólio escondido na Suíça? A pressão americana é
tremenda. Pela primeira vez, desde que o sistema bancário helvético funcio·
na, um queixoso de envergadura dispõe de documentos exatos que provam a
localização, a origem criminosa, a identidade das contas. A habitual e cômo-
da defesa das autoridades suíças, invocando a inviolabilidade do sigilo bancá-
rio e alegando inocência, já não é suficiente. Glória à administração republi-
cana e reacionária do presidente Reagan! A sua brutalidade vale a pena. Em
cinco cantões suíços são abertos processos para restituição de bens roubados,
a pedido do governo das Filipinas.
Cory Aquino, brilhantemente aconselhada pelo tutor americano, desig·
na três políticos e advogados respeitáveis para recuperar o espólio: Guy
Fontanet, de Genebra, ex-conselheiro de Estado e conselheiro nacional do
Partido Democrata Cristão; Moritz Leuenberger, de Zurique, conselheiro
nacional do Partido Socialista; o conselheiro nacional Sergio Salvioni de
Locamo, membro do Partido Radical. Estes homens honestos e experimen·
tados estão hoje esgotados, pois os conselheiros fiscais, as redes de escolta
do consórcio bancário helvético, fizeram um trabalho admirável de camu·
flagem.
Manila é a capital asiática da prostituição infantil. Milhões de cortadores
de cana-de-açúcar vivem na mais absoluta miséria.Os seus filhos tentam so·
breviver como podem. A subnutrição e as doenças endêmicas devidas à fome
devastam milhares de famílias nas ilhas de Luçon, Mindanao, Vebu. Em 1997
o produto nacional bruto pouco ultrapassava os 40 bilhões de dólares. (Na
Suíça, é de cerca de 133 bilhões de dólares.) Dois terços dos 58 milhões de
filipinos vivem no que o Banco Mundial chama pudicamente de "pobreza
absoluta".
Terão estas crianças, mulheres e homens martirizados alguma chance de
ver regressar ao país os bilhões de dólares roubados por Marcos e seu bando?
Honestamente, não acredito. Regimentos de advogados capazes e brilhantes
estão mobilizados a serviço de Marcos e de outros vinte e nove titulares de
contas seqüestradas: eles interpõem recurso após recurso contra a mais ínfima
das decisões de processo do mais modesto dos juízes cantonais (geralmente
ultrapassado pelo resultado da batalha).
os BANQUEIROS sufços MATAM SEM METRALHAOORAS 509

Na primavera de 1998, apenas uma pequena fração do espólio havia re-


gressado às Filipinas.

Os haitianos

Primavera de 1986: cai um outro ditador. "Baby Doe" Duvalier é despeja-


do como um miserável nojento do seu palácio de Port-au-Prince. Repete-se o
mesmo cenário. O tutor norte-americano do Haiti retira um grande número
de documentos da bagagem do fugitivo. Entrega-os aos novos sátrapas do
Haiti. Duvalier, a sua família e a farm1ia da sua mulher tinham esgotado as
reservas de divisas do Banco Nacional, pilhado as empresas do Estado, vendi-
do licenças de exportação em proveito próprio etc.
Junho de 1986: um pedido de auxílio judicial internacional chega ao
palácio federal de Berna. O mesmo embaraço. As mesmas pressões america-
nas. O presidente Reagan exige a restituição do espólio ao Estado haitiano,
exaurido depois de 40 anos de reinado do clã Duvalier. O Conselho federal
- pressionado pelo corajoso ministro socialista das Finanças, Otto Stich-
é obrigado a ordenar o seqüestro provisório dos fundos Duvalier e Cia. nos
bancos suíços.
Desta vez, o essencial do espólio encontra-se em Genebra. Os impérios
bancários multinacionais - União de Bancos Suíços, Sociedade da Banca
Suíça, Crédit Suisse etc. - fazem efetivamente uma judiciosa divisão do tra·
balho.
Entre as suas filiais, Zurique drena os fundos provenientes da Ásia e do
Oriente Médio; Genebra, dos países da África, do Caribe e da América
Latina.
O povo miserável da ilha de Haiti tem, como o povo filipino, muito pou-
cas chances de recuperar os seus bens. Graças à tenaz resistência dos bancos
- chama-se a isto "defender o cliente por todos os meios" - nenhum dos
inúmeros processos levantados contra Duvalier e os seus está em vias de con·
clusão. Enquanto isso, "Baby Doe" e o seu clã usufruem de uma aposentado·
ria suntuosa nas montanhas de Grasse. Em 1998 mudam-se para o Jura. Em
1998, a fortuna dos Duvalier, fruto de uma pilhagem feroz de várias décadas,
continua a repousar sobre as contas numeradas de grandes bancos suíços.
510 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

Os zairenses, hoje congoleses

O povo do Zaire é um mendigo sentado numa pilha de ouro. O sub-


continente, com 2,3 milhões de quilômetros quadrados, transborda de rique-
zas. As sociedades multinacionais mineiras, bancárias e comerciais estrangei-
ras, em perfeita colaboração com a oligarquia local, pilham meticulosamente
o país. Em Kinshasa (mais de 3 milhões de habitantes), Kisangani, e até mes-
mo em Lubumbashi, as famílias de funcionários só comem uma vez por dia.
No final de 1997, a dívida externa elevava-se a mais de 9 bilhões de dólares.
No sua região natal de Gbadolite, nas margens do rio profundo, na floresta
densa que da "Cuvette" (Zaire) se estende através das planícies bateke até o
Gabão e o Atlântico, o marechal Moburu construiu um verdadeiro Versalhes
das florestas. Trimas e sete mil habitantes, casas em barro amassado e palha,
em terra batida ... e avenidas iluminadas noite e dia, um amontoado de palá-
cios, de vivendas, piscinas, urna fábrica da Coca-Cola, urna gigantesca usina
hidroelétrica (situada a 15 quilômetros da aldeia, em Mobayi, Oubangui),
uma catedral onde padres jesuítas ensinam o canto gregoriano aos geniozinhos
da tribo, um aeroporto ultramoderno onde diariamente pousa um Boeing 737
vindo diretamente de Kinshasa.
Em 1997 o Departamento de Estado americano estima em cinco bilhões
de dólares a fortuna pessoal que Moburu colocou no estrangeiro. Quanto ao
rendimento médio por habitante, ele é de 180 dólares por ano, o que faz do
Zaire o oitavo país mais pobre do planeta. Subnutrição, corrupção, miséria e
repressão policial fazem vítimas diariamente. Em função, por um lado, da só-
lida cumplicidade do capital ocidental com o regime; e por outro da fraqueza,
da corrupção e da indigência intelectual de alguns grupelhos de opositores
exilados ou clandestinos, o horizonte do povo zairense é sombrio: reduz-se à
promessa de novos sofrimentos, humilhações repetidas, desespero.
Mobutu, antigo delator da polícia colonial belga, foi um dos chefes de
Estado mais complexos e mais astutos que a história tumultuada da des-
colonização já produziu. Gozava de sólida proteção estrangeira e estava pron-
to a pagar por ela. Era um negociador inigualável. Por exemplo: quando de
uma das suas numerosas visitas "privadas" a Washington (fevereiro de 1997),
Mobutu assinou com o Pentágono um acordo pelo qual cede aos Estados
Unidos, através de um arrendamento a longo prazo, a base militar e aérea de
Karnina, em Shaba; é de Kamina que a partir de então os americanos organi-

1 zam o seu apoio logístico à Uni ta angolana. Em contrapartida (além dos depó-
OS BANQUEIROS SU(ÇOS MATAM SEM METRALHADORAS S11

sitos em divisas à guisa de aluguel), o regime obtém, em maio do mesmo ano,


um novo reescalonamento da sua dívida externa. Ao mesmo tempo que a
lassidão da sua política econômica é universalmente reconhecida, o regime
arranca do FMI, em 1987, um crédito de 370 milhões de dólares.
O sistema dito de "segurança interna" é temível: as unidades de coman·
dos treinadas por israelenses e franceses que guardam Mobutu, o seu governo
e a sua família são quase todos originários da "Cuvette", da antiga província
do Equador. Dispondo de vários palácios presidenciais, de um iate suntuoso,
de casas de repouso etc., Mobutu prefere dormir entre os seus: o seu local de
trabalho e de residência habitual situa-se no coração do acampamento de
unidades de pára-quedistas de Kalina (bairro ocidental de Kinshasa).
No entanto, e ao contrário da maioria dos seus equivalentes do Oriente
Médio, da Ásia ou da África, Mobutu evita cuidadosamente colonizar o Esta·
do e a sociedade civil instalando aí parentes e amigos. Impõe uma rotatividade'
nos quadros do governo, do partido único, da economia: periodicamente,
toda a direção das sociedades de Estado, dos ministérios, do Partido, governa·
dores de província etc., são afastados com palavras de agradecimento e subs-
tituídos por equipes novas, que se julgam autorizadas, cada uma por seu lado,
a enriquecer livremente. A corrupção, a prevaricação, o saque do erário pú·
blico (a monopolização das licenças de importação, de exportação etc.) são
assim erigidas como método de governo. Este sistema assegura a perenidade
do poder supremo. Cada clã, cada grande tribo, cada rede familiar pode espe·
rar ter um dia os cofres públicos à mão. Basta esperar, manter-se dócil e provar
um mínimo de adesão ao regime.
Por vezes surge um pequeno imprevisto. Por exemplo: um estudante
contestador instalado na Europa, Nguzà Karl-i-Bond, é recrutado como em·
baixador e enviado para \V'ashington. Nguzà Karl-i-Bond toma-se primeiro·
ministro em 1977. Depois é destituído. Como não suporta sua queda, parte
para o exílio em Bruxelas, onde publica um livro incendiário contra o "tira-
no", mantém contato com intelectuais europeus antiimperialistas e pretende
negociar com os Estados Unidos a formação de um governo no exílio. Nessa
época enviou-me uma carta cheia de revolta, solicitando um encontro urgen·
te em Genebra e a minha ajuda na denúncia do regime. Alguns meses mais
tarde, o tenaz opositor decide voltar a Kinshasa. Alguns maços de dólares
trazidos por discretos emissários, a perspectiva de rapidamente voltar a andar
de Mercedes climatizado, de ocupar uma luxuosa residência oficial e de fazer
fortuna estiveram na origem da sua determinação. Karl-i-Bond, de novo con-
512 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

vocado, toma-se ministro das Relações Exteriores e depois de novo primeiro·


ministro.
Evoco um episódio. Num dia de primavera em Genebra, o senhor absolu-
to do Zaire, o marechal Mobutu Sese Seko, desembarca do seu Boeing priva-
do no aeroporto de Genebra-Cointrin. Tapete vermelho, discurso hipócrita
dos oficiais helvéticos junto à passadeira. Com o seu bivaque de leopardo
(sugerindo a filiação com os Mwami Kongo), vestido com uma blusa preta
curta de inspiração coreana (revista e corrigida pelo carogênio dos costureiros
parisienses), o vinco das calças irrepreensível, o marechal, seguido pelos seus
cortesãos de sorriso untuoso, dirige-se ao átrio central e depois à saída. Os
seus guarda-costas dão encontrões nos irritados policiais de Genebra. A colu-
na de Mercedes, dos quais muiros são blindados, põe-se em marcha sob a luz
da tarde primaveril. Destino: o hotel Noga-Hilton, Quai Wilson.
Mobutu, a sua irmã, os seus guardas e as suas mulheres estão em visita
privada. Dois dos seus filhos estudaram na Universidade de Genebra. O ma·
rechal vai alojar-se algumas noites no Noga-Hilton, do seu amigo, Nessim
Gaon, ligado ao ramo imobiliário e negociante de petróleo e algodão africa-
nos. Depois irá para a sua propriedade de Savigny, imensa residência senho-
rial no alro de Lausanne. Mas no momento Mobutu recebe os seus banqueiros
de Genebra. Enquanto isso, os seus ministros, amigos, oficiais e mulheres as-
saltam as lojas de luxo da rua de Rhône, as ourivesarias do Quai des Berges,
pagando rios de pérolas, alfinetes e diamantes, relógios Rolex e anéis em ouro
com os maços de notas de 1.000 francos suíços que os caixas de bancos aca·
bam de entregar aos seus guarda-costas.
Em frente ao hotel, encostados à balaustrada do cais, algumas dezenas de
exilados brandem cartazes toscamente pintados com slogans habituais: "Li·
berdade para os prisioneiros políticos", ''.Abaixo a tirania!", "Não à tortura dos
nossos camaradas". Os suíços que passeiam naquela bela tarde fazem um des·
vio para evitar um grupo de exilados. Bruscamente, da entrada do hotel, sur-
gem dezenas de gorilas zairenses armados. Pulam sobre os estudantes. São
verdadeiros profissionais: os jovens tentam fugir, mas os colossos os capturam,
um após o outro. Eles são cercados, jogados ao chão, revistados. A violência é
tal que um membro do serviço de segurança do hotel, revoltado, chama a
polícia de Genebra. Chegam dois policiais. Não intervêm. Encostados às ár·
vores do cais, os cartazes dos estudantes rasgados balançam melancolicamen·
te sob a brisa da tarde.
A ação dos guarda-costas do marechal é completamente ilegal: os estu·
os BANQUEIROS sufços MATAM SEM METRALHAOORAS 513

dantes manifestavam-se pacificamente na via pública. Vários estudantes iri-


am mais tarde ao posto de polícia, onde apresentariam queixa por golpes e
feridas. Nenhuma destas queixas foi ouvida. Como diria um transeunte: "Ne-
gros espancaram negros ..."
Mobutu é, na época, um dos homens mais ricos da Terra: o seu país imen·
so transborda de diamantes, magnésio, cobalto, urânio e cobre. Encontran·
do-se uma boa parte da sua fortuna no subsolo dos bancos suíços, os emires
locais ganham anualmente polpudas comissões sobre o tesouro do chefe de
Estado do Zaire. Resumindo: as autoridades federais não podem recusar nada
ao respeitado cliente dos grandes bancos. Alguns dias mais tarde alguns des·
tes opositores serão empurrados para dentro de um avião da Swissair, algema·
dos durante todo o vôo. Destino: aeroporto de Ndjili, Kinshasa. A polícia
secreta receberá os exilados no desembarque. fu férias de Mobutu Sese Seko
começaram verdadeiramente nesse momento.
Quando da sua partida da Suíça, três semanas mais tarde, os jornais -
estupefatos - disseram-me que o marechal teve que alugar um caminhão
pesado para transportar até o seu Boeing privado a montanha de "presentes",
de compras de toda a espécie que os seus acompanhantes tinham acumulado
durante a sua estadia nas margens do Leman.
Em junho de 1997, a.s forças revolucionarias da AFDL (Aliança das For·
ças Democráticas de Libertação) de Laurent Kabila entram em Kinshasa.
Mobutu e os seus fogem para o Gabão, depois para Marrocos. O cleptocrata
morreu pouco tempo depois em Tânger, de câncer. O novo governo da Re.-
pública Democrática do Congo pede ao governo suíço o seqüestro dos bens
de Mobutu, dos seus parentes mais próximos e dos seus cúmplices. fu con·
tas são bloqueadas na Suíça. Mas unicamente aquelas que tinham o nome
de Mobutu (e dos seus). Operação irrisória: 99% do império financeiro do
cleptocrata, que durante 38 anos (recordemos que Mobutu chegou ao po·
der em novembro de 1965) foram beneficiados pela especializadíssima assis·
tência dos melhores banqueiros helvéticos, consistem em sociedades offshore,
em Anstalten, Liechtenstein, em contas fiduciárias - em suma: bens dos
quais apenas uma ínfima parte estão em nome de Mobutu. A Suíça bloqueia
portanto apenas 6 milhões de dólares. O restante dos onze bilhões de dóla·
res procurados oficialmente pelo "Departamento dos Bens de Origem Ouvi·
dosa" (título oficial) do governo de Kinshasa permanecem, por assim dizer,
impossíveis de encontrar.
514 O UVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

Em conclusão: Nas suas Investigações sobre a natureza e as causas da riqueza


~nações Adam Smith escreve, em 1TlQ: "Wealth like health is taken from
nobody" (''A riqueza, como a saúde, não se tira a ninguém").
Engano seu! Os inúmeros bilhões de dólares provenientes do Congo, das
Filipinas, do Haiti e de muitos outros países do Terceiro Mundo, que repou-
sam sob o solo da Bahnofstrasse de Zurique, do Corso Helvético de Lugano ou
da Corraterie de Genebra, ou ainda que transitam nas contas fiduciárias antes
de irem ao encontro das bolsas do Ocidente, são o sangue, a miséria dos povos
dos três continentes. Enquanto na África. na América Latina e na Ásia as
crianças se prostituem ou morrem de fome, as famílias sucumbem, os homens
éãs mulheres procuram em vão um abrigo ou um trabalho, os bilhões da
corrupção, da evasão fiscal e do saque praticado pelas "elites" dirigentes des-
§ países se acumulam na Suíça. _ •
O capítulo XVIII do livro dos Levitas (edição francesa da Bíblia de Jerusa-
lém) menciona a estranha e aterradora história da-divindade do Oriente Mé-
dio gue se chamava Moloch. Os cananeus regularmente sacrificavam a ele
crianças roubadas das tribos prisioneiras, das fanll1ias mais pobres. Perante a
-imensa e impassível estátua de bronze erigida sobre uma montanha em pleno
deserto, um fogo ardia noite e dia. A cada décima terceira lua, colunas de
crianças tremendo de medo, miseráveis e esfomeadas eram levadas perante o
~nstro; eram então degoladas e os ~us corpos decepado~ atirados em sua
~norme goela abe~. -..__
Tal como Moloch, a oliggrguia bancária multinacional helvétic~
se da carne, do sangue dos ovo ti vos sujeitos ao tributo dos três conti·
ntes mais pobres do nosso planeta.

Jean Ziegler é deputado de Genebra no Parlamento da Confederação helvética e professor de


Sociologia na Universidade de Genebra, autor de A Suíça, o ouro e os mortos, entre outras
obras.
UM ANÚNCIO VALE MIL B01vffiAS... OS
CRThfES PUBLICITÁRIOS NA GUERRA
MODERNA
YVES FRÉMION
r

·~
1
Alguns crimínosos agem de forma brutal: preferem a arma de fogo, o pu·
nhal, a bomba, a violêncía imediata, acabar com tudo num instante. Outros, ..
mais prudentes, preferem ganhar tempo: o veneno é a sua arma favorita. Dis-
creto, insidioso, invisível, lento e progressivo.

Durante muito tempo, acreditamos que o mundo da mercadoria, aquele


onde tudo se compra e tudo se vende, se manteria confinado aos limites do
mundo comercial. Que a parte da nossa vida que escapava à lógica mercantil
e financeira se manteria assim eternamente. Que a educação, a informação, a
saúde, as redes de transportes, o fornecimento de energia, a justiça, a segu·
rança, as telecomunicações se manteriam nas mãos da coletividade. Chega·
mos até a pensar que o mesmo aconteceria naturalmente com a qualidade do
ambiente, da água ou do ar, com a cultura.
Mas foi justamente o contrário que aconteceu.Jm todos os países~
e desenvolvidos, o desmantelamento dos serviços públicos revelou a exten·
são da guerra sub-repticiamente maquinada há anos. A~d~ pela queda
do Muro de Berlim e do Bloco de Leste, o universo da merca orla invadiu
t~do.
-invadiu primeiro os países pouco desenvolvidos, mas também, nos países
do Ocidente, os setores que até aqui escapavam desta influência. Educação,
saúde, informação, tudo foi entregue à rentabilidade, às cotas de mercado, ao
sucesso comercial, ao imediatismo. ~Illlí!Qa desta conquista colonial é
a publicidade que alicia os espíri~o~elo se:i matraquear incessante e mata
com mais ferocidade ~om a~dm
E o próprio Oliviero Toscani, um dos seus protagonistas, célebre pelas
escandalosas campanhas para a Benetton, quem faz a lista das "invasões" da
publicidade no seu livro La pub esc une charogne qui nous sourit (A publicidade
é um cadáver que nos sorri), no qual, com a maior naturalidade, despreza o
que o fez enriquecer: ·~ publicidade cobre agora cada esquina de rua, cada
praça histórica, cada jardim, pontos de ônibus, o metrô, os aeroportos, as
estações de trem, os jornais, os cafés, as farmácias, as tabacarias, os isqueiros,
as listas telefônicas, interrompe os filmes na televisão, invade as rádios, as
revistas, as praias, os esportes, as roupas, e até as marcas nas solas dos nossos
518 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

sapatos, todo o nosso universo, todo o planeta! (... ) É o Big Brother, sempre
sorridente! Acho aterrador que todo este imenso espaço de expressão, de ex-
posição e de afixação, o maior museu vivo de arte moderna, cem mil vezes
maior que Beaubourg e o Museu de Arte Contemporânea de Nova York jun-
tos, estes milhares de quilômetros quadrados de cartazes afixados pelo mundo
inteiro, estes painéis gigantescos, estes slogans pintados, estas centenas de mi-
lhares de páginas de jornais impressas, estas centenas de horas de televisão, de
mensagens radiofônicas, se mantenham reservados a esta imagética paradisíaca
imbecil, irreal e enganadora ... " E tudo isto financiado pelo consumidor, com o
seu custo integrado no preço do produto ("a publicidade é o primeiro imposto
direto").
Sob diversos nomes - patrocínio, mecenato empresarial (lembremo-nos
de que o mecenato é desinteressado, há portanto abuso de linguagem), comu-
nicação, barcering, anunciante, apadrinhamento etc., a publicidade introdu-
ziu o interesse comercial em todo o mundo. Os exemplos que se seguem mos-
tram a extensão e a coerência desta ofensiva.

O ensino

Nos Estados Unidos, a instalação de TV a cabo nas escolas primárias não


foi feita pelas empresas públicas mas por empresas privadas. Estas equiparam
as escolas gratuitamente, mas, em troca, os programas educativos do "Channel
One" deste modo difundidos, incluem, a cada dez minutos de programa, dois
minutos de publicidade para '!S_Uelas empresas. Durante todo o ano, os alunos
são assim intelectualmente importunados pela promoção de produtos co-
merciais.
Por sua vez, a França começa a ser atingida por este fenômeno e é intensa
a pressão para que ele invada as nossas escolas. Por exemplo, infiltrando-se
insidiosamente no vazio da educação sexual que nunca foi efetivamente minis-
trada pelos professores, a empresa Tampax oferece um "programa educativo"
nos colégios para as meninas dos 72 e 82 anos de escolaridade. Assim, 60 mil
adolescentes já recebem uma informação sobre o corpo, a saúde, a higiene ...
e, claro está, sobre os produtos da marca Tampax. Estes programas são exibi·
dos nos tempos letivos da disciplina de Biologia que os professores, canse·
qüentemente, já não garantem. Estes cursos são de fato sutilmente dados por
enfermeiras transformadas em " promotoras" que distribuem amostras no fi.
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 519

nal das aulas. Satisfeitíssimos por se desembaraçarem de uma educação que


de um modo geral preferem não ter que dar, os professores, assim como os
pais, praticamente não se opuseram a estes programas. Um representante da
Tampax afirmava recentemente na imprensa: "os professores acolhem-nos com
agrado e até nos solicitam". A Educação Nacional "abençoou" a operação: é
tudo gratuito, de ora em diante o melhor argumento de toda a reflexão de
Estado!
Um acordo recente entre a Educação Nacional, as sociedades de autores
e os produtores de audiovisuais, autorizou a difusão de transmissões televisivas
nas escolas: basta patrocinar estas transmissões para que a publicidade entre
facilmente num universo que lhe era vetado.
Quantos estabelecimentos, pressionados pelas empresas, incluem hoje nas
refeições das cantinas " bebidas açucaradas" que não são mais do que Coca-
Cola; as mesmas empresas de bebidas destinadas aos jovens (Coca-Cola, Fanta)
instalam "gratuitamente" distribuidores nas escolas, sem que estes estabele-
cimentos façam alguma vez um pedido de oferta ou proponham uma alterna-
tiva: enfim, é de graça ... O mesmo acontece com as empresas que "oferecem"
às crianças das escolas os equipamentos de futebol com a sua publicidade
estampada: mas tudo isto é "gratuito" e logo o serviço público se esquece de
que ele é o serviço público.
Christian De Brie, em Le Monde Diplomarique escrevia há alguns anos:
"Será que um dia assistiremos ao ensino patrocinado nas escolas e ao profes-
sor, coberto de etiquetas, a anunciar que a aula de aritmética é 'oferecida' por
uma marca de jogos eletrônicos e o recreio por uma bebida gasosa com sabor
de aventura?" Na época De Brie fazia humor, mas agora já não se trata de uma
anedota.
Quanto às universidades, nos EUA e sobretudo em economia é freqüente
as empresas que nomeiam os professores financiarem diretamente as cadeiras
do curso. Conforme demonstrou fuisan Georg_e num artigo retumbante tam-
bém de Le Monde Diplomatique, alguns intelectuais franceses de prestígio já se
beneficiaram daquela situação (um dos arautos franceses da revisão histórica
do movimento operário, François Furet, à cabeça). A operação Fukuyama, do
nome de um funcionári~ de Estado americano autor de O fim da história,
montada artificialmente e com grande destaque por um golpe de publicidade
genial, foi inteiramente organizada pela empresa química Olin: tal como a do
Appel de Heidelberg o foi e.elos grupos de pressão da indústria farmacêutica e
do
#
amianto para desa;;.editar os ecologistas. Alguns universitários em dificuÍ:
~
520 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

dades financeiras prestaram-se, em ambos os casos com muita condescendên-


cia, a estas manipulações.

A cultura e a mídia

O modelo dos Estados Unidos, país onde 90% da cultura são financiados
por empresas privadas, ajudou os países europeus a desmantelar os seus finan-
ciamentos públicos neste campo. Progressivamente, o Estado, na França como
em toda a Europa, descompromete-se financeira e politicamente. Cerca de
30% da política francesa é patrocinada por bancos, companhias de seguros e
pela agro-indústria cujo desinteresse se adivinha. Quem pode acreditar que o
conteúdo das obras assim enquadradas não se altera?
A quase totalidade da informação escrita só se sustentava financeiramente
hã anos graças à publicidade, às bebidas alcoólicas e ao tabaco. A proibição
européia de todo esúmulo ao fumo, concretizada na França na "Lei Évin",
levou à decadência várias publicações e enfraqueceu outras, o que nos dá
uma idéia da fragilidade de nossa mídia, atada de pés e mãos por estas empre-
sas e totalmente dependentes delas: uma simples mudança de estratégia da
empresa ou de um diretor comercial e as publicações podiam acabar de um
dia para o outro, arruinadas. Quem pode pois se admirar que quem denuncia
os perigos do tabaco, urna das drogas que causa maior dependência, nunca
encontrem eco na imprensa francesa (contrariamente ao haxixe, que não
patrocina ninguém e cujos "perigos", insignificantes se comparados aos do
tabaco, são assunto de primeira página todas as semanas)?
Para a cultura, uma mudança de mentalidade vai se revelando pouco a
pouco: muitos criadores já não contam com o seu sucesso junto do público, mas
apenas com a satisfação exclusiva do financiador, de quem a existência ou não
da obra depende, com as conseqüências que se adivinham no seu conteúdo.
O patrocínio atinge agora 75% das transmissões televisivas da TV na França
(dos quais 20% são para os jogos estúpidos que preenchem os horários de
maior audiência). Ele substituiu, pouco a pouco, aos olhos dos anunciantes, a
publicidade propriamente dita: É uma resposta ao zapf1ing dos telespectadores
incomodados pela publicidade que mudam de canal quando ela chega. A par-
tir de agora, impossível escapar, a publicidade está no próprio programa! Pior
ainda, cerca de 50% do orçamento da France-Télévision vem das receitas
comerciais, quando a princípio esta percentagem deveria ser 0% ...
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS

O cúmulo chama-se,,barteri~: trata-se simplesmente de transmissões in-


teiras propostas aos canais, tipo "pronta entrega", já realizadas, com publici-
dade incluída: teJ.~novela, jogo, documentário ... O canal não tem que fazer
nada, não precisa pagar nem realizador, nem autor, nem técnico, nem anima-
dor, nem o filme ou o estúdio, e menos ainda refletir sobre como deve seduzir
o telespectador, sequer tem de arranjar dinheiro para produzir, tem apenas
que comprar um cassete e transmitir: fantástico ...
Cada vez mais estes patrocinadores querem sair do anonimato, e os abu-
sos cometidos são reveladores. Nos cartazes, desvirtuados pelos logotipos, o
nome do patrocinador tem muitas vezes maior destaque do que o do artista.
Para um escritor, o que vale uma recompensa se o nome da empresa patroci·
nadara aparece no título, como o Prêmio Strega ou AKO-Literatuurprijs? Será
prestigioso participar do Belga Jazz Festival?
A empresa Cointreau patrocinou no Zénite de Paris uma soirée "Jeune
Danse". Mas o seu logotipo, colocado no fundo do palco em letras luminosas
durante a aepresentação de uma coreógrafa muito conhecida, não foi bem
recebido pelo público, que vaiou o patrocinador.
Tudo isto influencia os conteúdos. No caso das ficções, por exemplo, as
histórias devem passar-se obrigatoriamente em ambientes familiares (em casa
é possível colocar vários produtos); os finais são felizes; a polftica, a religião, a
reflexão são banidas; cada um deve identificar-se com os heróis, os maus estão
bem identificados. As canções são alegres. Os animadores são sobretudo ani-
madoras, de preferência com grandes seios. As obras ambiciosas ou de inves-
tigação não têm aqui qualquer espaço e o princípio do "cada vez mais da
mesma coisa" é rei e senhor.
De forma mais radical, algumas empresas financiam inteiramente canais,
especialmente nos países mais pobres, para produzir os seus próprios progra-
mas. Na África, por exemplo, é a Nestlé que domina, que matraqueia o pen-
samento único e a cultura dominante do Ocidente triunfante nos teles-
pectadores que não têm alternativa nem acesso à sua própria cultura. Longe
dali, os grandes institutos de "estudos" e investigações científicas, criados pe-
las próprias empresas, alimentam com um pensamento único a mídia, pouco
preocupada em procurar informação na fonte. É assim que os maiores absur-
dos se repetem e se perpetuam; para ir no mesmo sentido do que a publicida-
de impõe. O escândalo do ar poluído em Paris levou dez anos para chegar aos
jornais financiados pela indústria automotiva; o do trabalho infantil em cer-
tos países também: crianças que trabalham para os principais patrocinadores
522 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

dos nossos canais televisivos ('! empresa Nilse em primeiro lugar) . O célebre
animador Jean Pierre Coffe, largamente utilizado pda publicidade mas que a
abandonou enojado com o que viu, confessava recentemente ao Pa risien Ubéré:
"Tentem ir ao Canal F2, F3 ou a um canal comercial e e mitir uma crítica
sobre um produto do grupo Danone. É proibido, você é cortado. E eu, como
sou um homem livre, não quero me submeter. Eis a razão pela qual faço outra
coisa." Os outros animadores não tiveram estes escrúpulos.
Para os fanáticos do zapping, que mudam de canal sempre que a publicidade
interrompe o seu filme, a solução foi encontrada: a publicidade não aparece
no intervalo, mas no próprio filme. A última moda é comprar alguns segundos
de um filme de uma major company e aí infiltrar a sua propaganda. Sucessos
internacionais como O vinga.dor do futuro, De volta para o futuro 2, Dia do
trovão, todos os filmes de James Bond estão assim recheados de produtos em
primeiro plano com a marca, inserções concebidas pelas próprias empresas e
já não pelo autor, o realizador ou o produtor; os diretores devem adaptar a sua
história a esta presença que por vezes cai como uma mosca na sopa. Na Fran-
ça, os dois Vuiteu n, sucessos de público, levaram este princípio ao seu ponto
máximo utilizando a força paródica do efeito.

O esporte

Cerca 80% dos patrocínios esportivos - na realidade, da competição e


não da prática esportiva - vão para os esportes mecânicos e as transmissões
esportivas que os exibem são patrocinadas ... pelas mesmas empresas. Uma
única competição esportiva, o Grande Prêmio de Mônaco, em 1992, viu apa-
recer na tela o mesmo nome de uma empresa de tabaco ... 1.134 vezes, quando
tal é proibido.
A corrida de cavalos de Pardubicka, na Tchecoslováquia, tida como mui-
to perigosa, ofereceu aos telespectadores do mundo inteiro espetaculares quedas
de cavalos; alguns tiveram mesmo que ser sacrificados devido às patas fratura-
das. Este show, concebido para um público mórbido, emocionou de tal modo
os amigos dos animais que foi lançada uma campanha de boicote aos patroci-
nadores, entre eles os conhaques Marte!, até que eles se retirassem.
Numerosas competições esportivas que deveriam ter sido canceladas por
más condições meteorológicas, por exemplo, foram mantidas por causa dos
horários de televisão e de contratos com as empresas que esperavam estar na
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 523

tela nesses momentos de grande audiência. O número elevado de competi·


ções mui ti plica as oportunidades de promover as marcas, por isso está sempre
inflacionado. Os atletas esgotam-se nelas, já que os patrocinadores exigem
recordes permanentes. Isto fez explodir o mercado de anabolizantes e de ou-
tras substâncias, que já mataram mais de um atleta e desvirtuam o espírito do
esporte.
Falsos conflitos multiplicaram as "autoridades mundiais" de cada modali-
dade, o que por sua vez multiplica os campeonatos (no boxe, há quatro dife-
rentes). Para atender aos interesses das câmeras, os horários e as regras foram
modificados. Por esta razão, viram-se maratonistas correr no pico do calor...
estas práticas aumentaram as pressões favorecendo todo o tipo de trapaça. O
caso Tappie só vem à luz para melhor cobrir os métodos amplamente genera-
lizados.
A publicidade não se contenta em escolher o que financiar, ela inventa
exatamente o que quer. Uma exibição tão lamentável e colonialista como o
Paris-Dakar foi inteiramente concebida pelos anunciantes, não foi pedida nem
pelos esportistas nem pelos amantes de ralis. Não tem outro objetivo que não
seja o de vender produtos.
As transmissões televisivas de acontecimentos ou de provas esportivas só
dependem dos patrocinadores, não da sua importância real ou do gosto dos
espectadores. Provas interessantes não são sequer mencionadas, enquanto o
golfe, uma modalidade que na França interessa a apenas um punhado de
pessoas, está em todas. E porquê? Os campos de golfe construídos por todo o
mundo têm a grande vantagem de permitir contornar certos obstáculos
legislativos à atividade imobiliária em terrenos protegidos ...
Berlusconi, presidente de um clube, em determinada época exigia dos
jogadores do Milan um look que lhes permitisse aparecer muitas vezes na tele-
visão. Escolhia rapazes louros e belos, ainda que não fossem tão bons jogado-
res mas bons de mídia. Em outras áreas pede-se às jogadoras de tênis para
diminuir o comprimento das saias para estimular o consumidor, masculino,
evidentemente.
Mas o pior está por vir, o patrocínio eletrônico. Uma primeira tentativa
aconteceu recentemente. Consiste em juntar a uma imagem real elementos
virtuais. Por exemplo, num jogo de futebol, um 23 2 jogador, inteiramente con-
cebido eletronicamente, chuta uma bola, também ela eletrônica, coberta com
a publicidade de uma marca (Axe, neste caso). A experiência foi recusada,
mas por motivos no mínimo fúteis e provisórios, a se acreditar no diretor da
524 O UVRO NEGRO DO CAPITAUSMO

Federação Francesa de Futebol: "pedimos a anulação pois nada havia sido


negociado conosco. Os direitos de publicidade virtual pertencem à FFF"
(übérarion, 11 de fevereiro de 1998) . A estas declarações d nicas responde a
atitude do Conselho Superior do Audiovisual o qual, sem sentimentalismos,
tinha aceitado.
Como ficar surpreso quando se sabe que todos os grandes patrões does-
porte olímpico ou das federações internacionais estiveram ou estão ligados às
grandes empresas interessadas, e continuam a ser pagos por elas durante o seu
mandato? Que os mercados de lucros generosos são dados a estas empresas,
enquanto aquelas que não "contribuem" são eliminadas sem piedade. Se se
investigasse seriamente este campo, perceberíamos que a política é compara-
tivamente menos corrupta do que o esporte. Ficamos, pois, menos surpresos
ao ver que os grandes capitães da indústria, os reis da corrupção (Tapie,
Berlusconí, para citar apenas os mais conhecidos e condenados) investiram
pesado nos clubes dos quais se dizem dirigentes. "O patrocínio é uma forma
legal de lavar o dinheiro sujo", chegou a dizer um eleito europeu, evocando as
estreitas ligações entre o esporte e as máfias.

O ambiente e a solidariedade

As empresas mais poluidoras rivalizam para ver quem constituirá a "fun-


dação" ou a associação mais dinâmica para contribuir para a qualidade do
ar, da água, da paisagem, das energias renováveis ou da reciclagem de lixo.
EDF, a Cogema ou a indústria química são todas muito ativas nestes campos
que elas destroem por um lado e ajudam a reparar por outro, ganhando nos
dois casos em imagem ou subvenções. A EDF, o maior devastador de rios na
França, nunca deixa de ajudar um festival de filmes de pesca ou uma com-
petição de caiaques, úteis para neutralizar as associações nos conflitos lo-
cais. É todo o trabalho associativo que é assim desviado, desacreditado, uti-
lizado.
Também as ONGs "humanitárias" estão gangrenadas por pseudo-ONGs
montadas pelas agro-indústrias ou empresas farmacêuticas que fazem delas
presas fáceis para os seus produtos. Escoam-se assim, por exemplo, produtos
farmacêuticos proibidos na Europa ou que já ultrapassaram os prazos de vali-
dade ou estabelecem-se contatos com certos países devastados cujas elites são
facilmente corruptíveis. Estas, ao prestarem preciosos "serviços" aos mais se-
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 525

eretos laboratórios, recebem de diversos governos apoios insubstituíveis. A


"política africana" da França recorreu freqüentemente, quer à direita quer à
esquerda, a este tipo de estratégia.

A política

Os públicos americano e francês acreditaram inocentemente que os dis-


sabores do presidente Clinton com sua braguilha não passavam de assuntos
de alcova. Escondido em detalhes escabrosos, o caso é, na realidade, econô-
mico-financeiro. Enviado pelo poderoso lobby do tabaco, Kenneth Starr, o
procurador que se lançou sobre Bill Clinton, era o seu antigo advogado. Foi
porque a política sanitária do presidente contrariava os seus interesses, espe-
cialmente pela proibição de toda a publicidade dos seus produtos, que as gran-
des empresas lançaram esta ofensiva. A onda puritana fez o resto, assim como
o pitoresco, que interessa mais à mídia que as análise profundas.
Mais seriamente, é uma banalidade dizer que as políticas externas são
mais freqüentemente conduzidas por algumas empresas pettolíferas do que
pelos Estados. Não fosse a Shell, cujos interesses estavam ameaçados pela sua
ação pública, e Ken Saro-Wiva nunca teria sido enforcado na Nigéria. Sem a
Total, que determinou a deportação de milhares de camponeses birmaneses
obstinados em viver no território do seu projetado oleoduto (75% dos inves·
timentos realizados na Birmânia), o prêmio Nobel da Paz Aung Suu-Kyi esta-
ria livre e ... seria primeiro-ministro no lugar dos ditadores militares. Os exem-
plos são inúmeros e a simples lista de crimes políticos cometidos a mando da
Elf na África dariam para encher páginas.
Assim se compreende melhor a utilidade da publicidade para silenciar
(comprando a mídia), limpar a imagem e fazer a indústria passar por comerci-
antes inofensivos.

A ideologia

Todos estamos habituados a comparar publicidade e propaganda, como se


houvesse uma diferença de natureza, quando há apenas uma diferença de
objeto, hoje diminuída quando os políticos (Bush, Gorbatchev) promovem
produtos e quando outros são promocionados (o que não significa "promovi-
526 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

dos", por mais que o termo desagrade os puristas) por agências de publicidade
famosas.
O paralelo com a propaganda dos regimes totalitários é evidente, por exem-
plo, no caso do ideal nazista. Os personagens estão de acordo com os modelos
dominantes, tanto hoje quanto naquela época. Os homens são bem constitu·
ídos, as jovens, louras e de seios fartos, todos sorriem e estão em harmonia,
aconteça o que acontecer. Os lugares são sempre os mesmos: cidades limpas e
bonitas, aldeias encantadoras e cheias de sol, o mar ou um outro local turísti·
co fascinante, o Terceiro Mundo é exótico e acolhedor, como no Clube
Méditerranée. O corpo é soberano, o cenário futurista, mas prevendo um
futuro agradável, ao qual se aspira; a competição parece ser o único interesse
das pessoas, o poder e a força são exaltados, o heroísmo é constantemente
evocado. Este ideal de "felicidade escoteira", que Toscani denuncia no seu
livro, evoca irresistivelmente as imagens das revistas nazistas ou os seus filmes
edificantes (Toscani mostra como Claudia Schiffer encarna o sonho da
Hitlerjugend). E também as imagens do idealismo socialista russo, chinês ou
coreano, na sua propaganda para a juventude. Sobretudo, como acontece nos
slogans sobre os campos de trabalho, a alegria é obrigatória e o "natural" tão
forçado que faria rir no cinema.

~
As escolhas dominantes são também reveladoras: álcool e tabaco, carros
velocidade, compras fúteis e caras ou produtos alimentares de baixa quali·
de apresentados como consumo de elite. A publicidade joga constante•
ente com o desejo sexual e raramente o faz com sutileza, mas com uma
asseria quase sempre igual.
Ela reforça sempre o discurso contra o ambiente, ou!ireitos soci~s, o
Te~o Mundo real~ a~ a c~, ex~to guando é necessário imitá·
los. E o reino do liberalismo absoluto que reforça a unanimidade dos editoriais
~onômicos da mídia onde é difundida. E, está claro, não faltam uma pincela·
da de rebeldia, que incita à compra, e uma dose de falsa inovação.
É o reino tantas vezes denunciado da "dona-de-casa com menos de 50
anos" que supostamente representa o consumidor médio, cuja ditadura sobre
a audiência é responsável pela diminuição generalizada da qualidade. Ela ven·
de, diz Toscani, "um modelo adulterado e hipnótico da felicidade" no qual,
com o produto proposto, o consumidor comprará supostamente a juventude
eterna, o poder ou a energia, a saúde definitiva. E acrescenta, neste triste
resumo da esmagadora maioria da publicidade exibida nas nossas telas: "Ah,
como é bom ter vinte anos, ir até o fim do mundo num 4x4 off-road e chapi·
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 527

nhar em águas cintilantes com namoradinhas perfeitas e sempre sorridentes."


Um sonho burguês, colonizador, dominador, ocidental e branco, proposto como
modelo de sociedade, como concepção do mundo em vez de e no lugar das
grandes ideologias desfeitas.
Como no regime nazista, os desvios ao modelo são ellminados do mundo
que a publicidade transmite: os que não se parecem com arianos, que não são
heterossexuais nem saudáveis, não têm a segurança que o dinheiro dá, não
são agressivos face ao mundo, não possuem um físico adequado, os que não
produzem, os contestadores, os pacifistas, os doentes, os pobres, os loosers ...
Como em toda a propaganda totalitária, a força e o poder libertam-se dos
músculos dos bebedores de cerveja ou dos pilotos de veículos. A vitória é
onipresente, quer o herói corra ou conquiste, conduza ou enfrente um patrão.
Enfim, ela joga apenas com os estereótipos e sempre para fincá-los mais
fundo nas cabeças: estereótipos masculino e feminino, nacionais, rurais, jo·
vens, das periferias etc.

Números

Para nos divertirmos, comparemos:


Em 1994, a publicidade (em sentido restrito) gastou 330,5 bilhões de fran·
cos na Europa, 406, 7 bilhões nos EUA e 172 bilhões no Japão;
Estes números equivalem a 50% da dívida de toda a América do Sul ou a
100% da dívida do Oriente Médio ou da África do Norte;
Na França, em comparação, o orçamento da Cultura é de 50 bilhões.

Um crime contra os espíritos

À semelhança dessas bombas modernas que matam tudo o que vive, pre·
servando os edifícios e os equipamentos, a publicidade mata toda a atividade
intelectual e cívica, preservando no indivíduo apenas reflexos de consumo,
como cães de P-avlov supercondicionados. Dúvida, pensamento, idéias, de-
sinteresse, desenvolvimento espiritual e pessoal, interesse público, senso co·
letivo e solidariedade, tudo é banido como obstáculo ao pensamento único:
comprar. A cultura mercantil já não se distingue da cultura enquanto tal,
assim como um spoc publicitário já não se distingue de um curta-metragem ou
528 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

de um uideoclip: os mesmos personagens, as mesmas referências, a mesma en·


cenação, a mesma montagem, os mesmos lugares-comuns, a mesma estética,
a mesma situação do tipo sitcom - e, conseqüentemente, os diretores são os
mesmos.
Com a regressão cultural ajudando e a passividade encorajada, a pu·
blicidade é muitas vei.es a única informação de que dispõem alguns cidadãos
sobre os produtos, os países estrangeiros ou os elementos do saber. Os jovens
são mais particularmente atingidos por este fenômeno. Principal plagiador,
sobretudo do cinema, a publicidade só vive do que imita ou rouba: em vão se
procuraria uma idéia original saída de suas fileiras. Esta usurpação, paga cem
vezes mais caro do que a obra plagiada, não vale o trabalho que dá: tanto
brainstorming para um resultado tão pobre, tão pouco eficaz (o seu impacto
sobre as vendas é globalmente irrisório) , é um desperdício inqualificável. Mas
favorece a confusão.
Para o telespectador médio, a diferença entre uma transmissão, um docu-
mentário ou um filme de ficção e a publicidade é pequena. Acredita-se tanto
ou tão pouco no que apresenta o telejornal quanto no comediante que elogia
um automóvel. De tal forma é verdade que o que não foi "visto na televisão"
não existe {recorde-se a Guerra do Golfo), que aquilo que foi visto, mesmo
distorcido, é aceito (mesmo exemplo) .
A publicidade é também o principal vetor do virtual, cuja promoção não
tem por objetivo a competição com o real, mas sua substituição, como bem o
demonstra a insistência de certos produtos em fazerem-se passar pelos autên·
ticos e elogiados que pretendem substituir (exemplo: os anúncios do chá Lipton
filmados no Himalaia ou os do arroz americano filmado nos arrozais da Ásia
que vai arruinar).
O mundo da publicidade, organizado como uma máfia, funciona como
tal, a serviço da ideologia mais autoritária que existe. O assédio comercial que
ela faz chegar mesmo aos locais mais distantes do mundo não deixa aos seus
opositores espaço para sobreviver. Portanto, é preciso saudar os novos comba·
tentes deste anticapitalismo do século XXI que são iniciativas como a Resis·
tência à Agressão Publicitária na França ou o Greenpeace de Londres, que
levantou o processo contra o McDonald's, que os acusava de divulgar menti·
ras prejudiciais à sua imagem. E também ao "subcomandante Marcos da
antipublicidade", Kalle Lasn, da Media Foundation, que realiza contra-spois,
antislogans, desmonta a publicidade revelando as suas mentiras e criou os "Dias
sem compras".
UM ANÚNCIO VALE MIL BOMBAS 529

É preciso desmantelar o universo da publicidade como se faz com as ar·


mas de destruição em massa, pois a publicidade também é uma delas. Inútil
ou nefasta do ponto de vista social, ambiental, artístico, cultural, e mesmo
comercial (os produtos de qualidade muitas vezes são vendidos sem publici·
dade), este "crime contra a inteligência, a criatividade, a linguagem" (ainda
Toscani) que nos propõe uma visão machista, racista, colonialista, totalitária,
ocidental e redutora, só serve a aqueles que nos conduzem ao abismo.
Arma psicológica, ela substitui as armas clássicas, nucleares ou químicas,
pois atualmente o capitalismo deve manter vivas as suas vítimas, transforma·
das em meros consumidores: ele já não mata, elimina cérebros. Esta ofensiva
generalizada da mercadoria gera fomes, catástrofes ecológicas e sanitárias, de·
semprego e exclusão. Os seus mísseis chamam-se publicidade. A ofensiva se
dá através de novas disposições da OMC, dos tratados europeus (Maastricht,
Amsterdam) , de acordos de globalização (AMI), e graças aos seus instrumen·
tos (FMI, Banco Mundial, bancos centrais). Esta primeira guerra planetária
substitui a partir de agora as duas guerras mundiais clássicas: e já fez mais
mortos ...

Y11es Frémion é escritor e jornalista, autor de mais de 80 títulos em várias áreas. Vice·presiden·
te do "Réseau Voltaire" e do conselho permanente dos escritores, dirige a série "La Plan~te
Verte" da Hachette Jeunesse. Ecologista, foi deputado europeu encarregado das Relações In-
ternacionais dos Verdes. É atualmente conselheiro regional de ile-de-France.
Últimos títulos publicados: Déluge sur Monceyrac, Accencion chien Léchanc, Le Tueur.
E :MESMO ASSIM A ABOLIÇÃO DO
CAPITALISMO NÃO SERIA SUFICIENTE...
MONIQUE E ROLAND WEYL
"O capitalismo traz em si a guerra como a nuvem traz a trovoada."

JeanJaurês

Primeiro um aforismo: "Ora! Guerra sempre houve e continuará a haver."


E, depois, a sua confirmação: "Vejam o que se passou nos países socialistas."
É verdade, sempre houve guerra, guerras entre tribos ou etnias, entre prin-
cipados, entre Estados, com os poderosos impondo pela força o seu domínio
sobre as populações para conquistar as suas terras, apoderar-se das suas rique-
zas e reduzir à escravatura os seus homens e as suas mulheres. A guerra é
apenas uma das formas de domínio dos fracos pelos fortes.
Com o capitalismo, a guerra adquire outras dimensões, um outro sentido.
Deixa de ser localizada para ser mundial, planetária ... e amanhã? Cósmica? Ela
assume um caráter permanente, tendo como prenúncios a guerra econômica, a
guerra ideológica, fazendo-se acompanhar de medidas de bloqueio e também
de outros antecedentes como os conflitos de "baixa intensidade" e sérios confli-
tos locais suscetíveis de generalização em todo o mundo. Uma vez "terminada",
a guerra perpetua-se, como vimos e vemos na Guerra do Golfo, com os Estados
Unidos vitoriosos impondo à população iraquiana um bloqueio que é mais mor-
tífero do que a própria guerra. A guerra afeta o mundo permanentemente, a tal
ponto que, como a temperatura em relação à doença, é medida agora em graus:
guerra quente ou guerra fria. Uma nova guerra fria entre países do Norte e
países do Sul veio substituir a antiga Guerra Fria entre o Leste e o Ocidente.
Finalmente a guerra (como as guerras localizadas) não poupa ninguém: as
suas vítimas são avaliadas em milhões - militares e populações civis e, entre
estas, crianças (ver relatório da UniceO. A utilização de armas de destruição
em massa cada vez mais sofisticadas não visa apenas às forças militares, assim
como o bloqueio, velho método de cerco que os Estados Unidos já defendiam
no século passado a propósito de Cuba, quando queriam substituir a domina-
ção espanhola pela sua. A ordem do dia dada em 1898 pelo secretário de
Estado Bekenbridge ao general Miles, que comandava o corpo expedicionário
em Cuba, merece ser de novo citada, de tal modo é reveladora dos métodos
534 O LIVRO NEGRO 00 CAPITALISMO

utilizados para impor a dominação aos povos : "Devemos limpar o país, mesmo
que seja preciso recorrer aos meios de que se serviu a Divina Providência em
Sodoma e Gomorra. Devemos destruir tudo o que se encontrar ao alcance
dos nossos canhões. Precisamos impor o bloqueio para que a fome e a peste
reduzam o número de civis e, finalmente, o exército."
É preciso ir ainda mais longe. A guerra responde às necessidades do capi-
talismo. Um comércio florescente de am1as gera imensos lucros, lucros ilícitos
no sentido que Fidel Castro, a propósito da corrida armamentista, denuncia-
va no seu discurso na sétima reunião de cúpula dos não-alinhados: "Este geno-
cídio por omissão que a humanidade comete diariamente, condenando à morte
milhares de seres humanos pelo simples fato de conceder tantos recursos para
o desenvolvimento de meios de matá-los de outra forma."
Para muitos defensores do capitalismo, para quem "mais vale a guerra do
que o desemprego", a guerra constitui um meio ideal de contenção do desem-
prego: sacrifica trabalhadores inúteis e, uma vez restabelecida a paz, constitui
fonte de novos lucros na sua reconstrução.
Mas a guerra está também, e talvez sobretudo, na natureza intrínseca do
capitalismo, na medida em que ela é um instrumento quase incontornável de
solução dos conflitos da concorrência no controle dos mercados, onde a dimi-
nuição constante do poder de compra que a lei do lucro origina reduz ainda
mais os canais de distribuição possíveis.
Não é tudo isto que subentende a fórmula de Jaures? Mesmo se o seu
autor, primeira vítima da guerra 1914-1918, não pôde conhecer sua abominá-
vel matança, do mesmo modo que não podia imaginar o bombardeio de popu-
lações civis, as cidades e as aldeias incendiadas (Oradour e Lidice), as depor-
tações e os campos de extermínio e a utilização da arma nuclear nas populações
de duas cidades de um Japão a ponto de capitular. É sem dúvida extrapolar a
frase de Jaures extrair dela o que ele não disse, que bastaria abolir o capitalis-
mo para pôr fim às relações de exploração e de domínio e assegurar aos indiví-
duos e aos povos a felicidade, a liberdade e a paz. Podemos dizer apenas que a
guerra é inerente ao capitalismo, o que não quer dizer que ele teria o seu
monopólio. Isto significa simplesmente que no capitalismo a guerra não pode
ser erradicada, mas que poderá ser uma vez eliminado o capitalismo.
Nestes tempos de desesperança, para conseguir que os indivíduos e os
povos se resignem à perenidade do capitalismo, classificando de utopia a cons-
trução de um mundo livre das relações de exploração sobre os homens e do
domínio sobre os povos, nada é mais fácil do que riscar um traço sobre o
E MESMO ASSIM A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO NÃO SERIA... i35

socialismo a partir da derrota de uma experiência e a partir dos seus equívocos


e dos seus erros, alguns dos quais trágicos.
É um fato que a fórmula muitas vezes repetida "O socialismo é a Paz"
proced e u inicialmente de um raciocínio a contrario demasiado simples: urna
vez que o capitalismo gera a guerra, a abolição do capitalismo elimina a
guerra eliminando-lhe a causa. Mais substancialmente, era coerente consi-
derar que, sendo a ambição do socialismo eliminar as relações de exploração
e d e dominação, a guerra, forma extrema de dominação sobre os outros
povos e sobre o seu próprio povo, é um fenômeno alheio ao socialismo.
De fato, a impregnação dos ideais de rodas as escolas sucessivas do socia-
lismo com a fraternidade humana acarretava necessariamente o corolário do
pacifismo, e era esta coerência que devia inspirar um dos primeiros atos da
Revolução Socialista no poder quando Lenin assinou o célebre "Decreto so-
bre a Paz" e o seu apelo à interferência dos povos por oposição à diplomacia
secreta. Sem dúvida, esta proclamação solene foi muitas vezes perdida de
vista, mas é preciso relativizar as razões, pois é inaceitável que se proíba toda
a ambição só porque uma ambição não foi cumprida.
Este fato não pode servir de desculpa para o capitalismo em si. Énecessário,
antes de mais nada, sublinhar o papel perverso desempenhado pela situação de
guerra que a União Soviética enfrentou permanentemente: a intervenção dos
antigos adversários da Guerra 1914-18 unindo-se contra o jovem estado sovié-
tico considerado como um exemplo perigoso {não havia a revolução sparraquista,
os motins no exército francês?); depois o apoio a Hitler e aos regimes fascistas
considerados blocos contra o comunismo; depois da derrota dos regimes fascis-
tas, em grande parte graças aos sacrifícios da URSS, a Guerra Fria, com mano-
bras subversivas contra a União Soviética e seus aliados, a ameaça de utilizar a
bomba atômica da qual os Estados Unidos detinham o monopólio até setembro
de 1949; enfim, a louca engrenagem da corrida amrnmentista.
É desde logo impossível não colocar neste contexto tudo o que fez a polí-
tica soviética se afastar do espírito do "Decreto da Paz", substituindo o inves-
timento pacifista no movimento dos Povos pela opção das soluções militares e
das n egociações entre potências e ocultar a sua impregnação defensiva. É
certo que será difícil aos historiadores definir, mesmo no incontestável papel
desempenhado pela União Soviética em proveito da paz mundial e que moti-
vou grandemente a solidariedade da qual se beneficiou, o que está de acordo
com os ideais socialistas ou com a preocupação com a segurança.
Isto não impede que se reconheça o lado positivo do balanço, especial-
536 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

mente o papel desempenhado pela URSS na elaboração dos novos princípios


de direito internacional consagrados pela Carta das Nações Unidas, transfor-
mando em regras das relações internacionais o direito de os povos disporem
de si próprios, a não-ingerência nos assuntos internos e a solução negociada
dos conflitos. Os poderes capitalistas, a começar pelos Estados Unidos, só
aceitaram estas regras em benefício próprio, apesar de não terem deixado de
violá-las e de tentar eliminá-las para voltar ao bom e velho direito exclusiva-
mente fundado nas relações entre as potências.
O drama é que a URSS tenha se deixado atrair para este terreno, fazendo a
paz depender das negociações das chancelarias e dos compromissos entre super-
potências. Acrescenta-se a isto as conseqüências negativas da ideologia da "forta-
leza" que, assim como a ideologia da segurança produzia no plano interno fenô-
menos de superestatização, levaria a engendrar uma psicose defensiva, na qual o
papel desempenhado pelo estado de sítio e pelas incessantes provocações do capi-
talismo tem uma responsabilidade da qual não podemos nos abstrair facilmente.
Curiosamente, paradoxalmente, a mudança parece ter ocorrido com
Krutchov, quando a lógica do apelo de Estocolmo deu lugar à estratégia do
sapato na tribuna da ONU, depois ao telefone vermelho e à lógica da corrida
armamentista e da ideologia de "fortaleza" que esta gerava, aos diversos acor-
dos Salt, e até a armadilha fatal da ilusão de Chevardnadze segundo a qual o
destino do mundo estaria na amizade das duas superpotências.
A história mostrou que pode haver conflitos armados entre países socia-
listas para os quais a explicação pelo contexto de uma conjuntura capitalista
não é necessariamente convincente. Não estivemos muito longe disso com a
URSS e a China, e foi necessário ultrapassar a fase da tomada de consciência
dolorosa quando da agressão chinesa ao Vietnã. Descobriu-se, com grande
sofrimento, que podia haver guerras entre países socialistas. Era preciso, por-
tanto, rever tudo e aprender também a não idealizar: o socialismo também
podia trazer em si a guerra. Isto desmentia a antítese fundamental?
Aprendia-se simplesmente que o socialismo não elimina ipso facto a guer-
ra, da mesma forma que se tinha aprendido que ele não erradicava ipso facw a
delinqüência, a corrupção, o carreirismo.
E então? Jaures teria nos contado uma grande mentira? É porque aconte-
ceu Chernobil e porque ainda havia acidentes de trabalho, alcoolismo e la-
drões nos países socialistas que se pode perdoar o capitalismo da sua culpa
intrínseca no caráter global dos desvios que ele esconde?
Um dos principais erros dos ideólogos dos países socialistas, e mais particu-
E MESMO ASSIM A ABOLIÇÃO DO CAPITALISMO NÃO SERIA... 537

larmente dos aduladores do Estado, terá sido sem dúvida o de omitir o caráter
transitório do sistema que tinham em mãos, de perder de vista a distinção dás·
síca entre uma etapa da sociedade regida por uma competição conflituosa na
divisão dos recursos disponíveis e uma etapa já livre desta situação.
O socialismo não elimina de um dia para o outro a insatisfação com o
não-atendimento de todas as necessidades dos homens, e é forçoso deduzir
que enquanto houver competição conflituosa pela distribuição dos recursos
disponíveis, será impossível não haver a luta pelo poder, logo, pela dominação.
Então, por que não voltar à simples idéia de que a guerra é a forma última
de dominação?
É neste contexto que podemos dizer que homo homini lupus, mas só nisto,
e que portanto a guerra não é eliminada ipso facto pela abolição do capitalis·
mo, mas será assim que esta abolição tiver permitido ao homem libertar-se do
lobo para se revelar como homem.
O humanismo mais elementar exige, portanto, a rejeição do abominável
aforismo da fatalidade da guerra. Se a lucidez exige compreender que não
basta a abolição do capitalismo para eliminá-la, enquanto não forem expurgadas
a sua herança e as suas seqüelas, a verdade exige também admitir que a guerra
é intrínseca, só e apenas, ao capitalismo em virtude da sua natureza baseada
na exploração.
A guerra efetivamente é intrínseca a ele porque o capitalismo se baseia na
luta pela apropriação dos recursos humanos, porque a sua natureza e a sua
razão de ser são confiscar aqueles recursos da humanidade e assim dominá-la,
se necessário através das novas formas de dominação que conhecemos hoje.
O ataque generalizado aos povos e à sua ingerência nos assuntos internado·
nais obriga os povos a abrir mão de sua soberania a favor de instituições inter-
nacionais ou supranacionais (FMI-UE-Alena), esperando que a luta acirrada
pelos mercados termine na guerra armada, que nunca anda muito longe da
guerra econômica.
Intrínseca ao capitalismo sim, porque o seu defeito original irremissível é
que no seu próprio seio se degladiam as lutas pela dominação e o controle de
mercados, de espaços e de arrendamentos de gado humano, num processo
acirrado pela redução crescente das capacidades de consumo.

Monique e Roland Weyl são advogados e autores de obras como Des mors-muie, pou11olr du
peuple e Se libérer de Maascrichc.
li ,
- \ 11
CAPITALISMO E BARBÁRIE: QUADRO
NEGRO DOS MASSACRES E DAS GUERRAS
NO SÉCULO XX (1900.. 1997)
! ~\- ~ .- -
CAPITALISMO E BARBARIE: QUADRO NEGRO OOS MASSACRES 541

As últimas repressões antiíndígenas nos Estados Unidos que marcaram o fim do


genocídio iniciado no século XIX ..................................................... 100 MIL MORTOS

A guerra anglo-boer pelo controle da África do Sul em 1902 ........... 100 MIL MORTOS

Vítimas das conquistas coloniais do final do século XIX e do início do século XX


(entre as quais a conquista da Coréia pelo Japão em 1908) .......... 500 MIL MORTOS

A guerra russo-japonesa (1904-1905) (Só a batalha de Moukden fez mais de 100 mil
mortos) .................................................................................................. .300 MIL MORTOS

A repressão da Revolução de 1905 na Rússia .................................... 100 MIL MORTOS

A guerra ítalo-turca pela Tripolitânia (1911) ......................................50 MIL MORTOS

As guerras balcânicas (1912-1913), da Turquia, Sérvia, Bulgária ........... SOO MIL MORTOS

O genocídio dos armênios na Turquia ...................................... 1 MILHÃO DE MORTOS

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) ............................. 8,5 MILHÕES DE MORTOS

A guerra civil na URSS, as fomes e as epidemias em conseqüência das intervenções


estrangeiras e ao bloqueio pelo Ocidente ...............................6 MILHÕES DE MORTOS

As repressões, aos movimentos revolucionãrios em vários países da Europa: Finlân-


dia, países bálticos, Hungria, Alemanha, Polônia, Romênia, Bulgária (1918·
1923) ................................................................................................. 200 MIL MORTOS

A guerra greco-turca (1920-1922) ...................................................... 100 MIL MORTOS

As vítimas do fascismo na Europa antes da Segunda Guerra Mundial (1924-1939)


.... ........................................................................................................ 150 MIL MORTOS

A guerra franco-espanhola contra os marroquinos (1925-1926) ......... 50 MIL MORTOS

As intervenções militares dos EUA na América Central, na América do Sul e no


Caribe ( 1910-1940) ............................................................................ 50 MIL MORTOS

A guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai pelo petróleo (1931·


1935) ..................................................................................................................... ISO MIL MOI(f()S
542 O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO

As vítimas da fome e das epidemias na Índia, na China e na Indochina (1900-1945)


....•.••..••.•......•.•.••.•••...•.........•• •...•...•.•..•.•....••........•.............8 MILHÕES DE MORTOS (6 mi·
lhões só na China)

As repressões em massa e a guerra civil desencadeadas por Chiang Kai-chek na Chi-


na (1927-1937) .......................................................................... 1 MILHÃO DE MORTOS

A guerra do fascismo italiano na Etiópia ............................................200 MIL MORTOS

A agressão do Japão à China (1931-1941) ................................ !MILHÃO DE MORTOS

A guerra civil na Espanha, desencadeada por Franco, apoiada por Hitler e Mussolini
e favorecida pela "não-intervenção" .................................................. 700 MIL MORTOS

A Segunda Guerra Mundial, provocada pela Alemanha e pelo japão militaristas, que
foi também o resultado de capitulações sucessivas dos países capitalistas ocidentais
perante o nazismo na Europa e perante o japão na Ásia (1939-1945). Vítimas milita·
res e civis, incluindo deportados e o Holocausto .................. 50 MILHÕES DE MORTOS

A guerra francesa na Indochina (1976-1955) ........................ 1.2 MILHÃO DE MORTOS

A guerra americana no Viemã (1956-1975) ............................ 2 MILHÕES DE MORTOS

As repressões colonialistas do pós-guerra, entre as quais as de Madagascar, da Argé-


lia (1945), de Marrocos, da Tunísia, da África Negra ........................ 500 MIL MORTOS

A guerra na Argélia (1956-1962) ........................................... 1,2 MILHÃO DE MORTOS

Os massacres anticomunistas na Indonésia depois de setembro de


1965 ........................................................................................ 1,5 MILHÃO DE MORTOS

As guerras e as repressões em Bengala oriental, Bangladesh (segundo a Anistia Inter·


nacional) ...................................................................................3 MILHÕES DE MORTOS

Os massacres indo-paquistaneses após a divisão da Índia (1948) (14 milhões de pes-


soas deslocadas) ......................................................................................300MILMORTOS
(algumas fontes falam em 10 milhões de mortos)

As quatro guerras árabe -israelenses no Oriente Médio (1948-1956-1967-1973), entre


as quais a guerra do Líbano .............. 300 MIL MORTOS E 700 MIL PALESTINOS EXILADOS

As repressões aos curdos da Turquia, do Irã e do Iraque ....................200 MIL MORTOS


A guerra em Biafra (Nigéria) (196 7-1970) ............................... 1 MILHÃO DE MORTOS
CAPITALISMO E BARBÁRIE: QUADRO NEGRO DOS MASSACRES 543

A guerra Irã-Iraque ...........................................................................600MILMORTOS

A Guerra do Golfo (1991), vítimas diretas ...........................................200 MIL MOITTOS


• vítimas da subnuttição em função do bloqueio...................................SOOMILMOITTOS

As intervenções diretas americanas ou pela guerrilha e grupos paramilitares na Nica-


rágua, em El Salvador, Guatemala, Panamá, República Dominicana etc .
............. •. .. . . •• ••••••.. •• . •..........................................................................200 MIL MORTOS

A guerra em Timor-Leste ...................................................................200MILMORTOS

A repressão no Chile, na Argentina, no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Colômbia etc.,


em geral apoiada pelos serviços americanos ...................................... !SOMILMORTOS

Os conflitos émícos na Transcaucásia e Ásia Central (1990-1995) entre os quais a


guerra na Chechênia em 1995 ..........................................................200 MIL MORTOS

As guerras em Angola e em Moçambique 3 MILHÕES DE MORTOS

Os massacres na Somália, na Libéria, em Ruanda, (genocídio Tutsi, 500 mil), Burundi,


Serra Leoa, Omgo/Zaire, Omgo-Brazaville etc. (1990-1997) e na África do Sul doajmheid.
No que diz respeito à África, incluúnos as vítimas da fome (Sahel, Somália, Etiópia) e as
vítimas da falta de assistência, em particular os refugiados ...........4 MILHÕF.S DE MORTOS

A guerra fundamentalista no Afeganistão depois da queda do último governo pro·


gressista .............................................................................................. 700 MIL MORTOS

As guerras e os massacres étnicos na ex-Iugoslávia provocados pelo desmembramento


do país e encorajados pela Alemanha e por outras potências ocidentais (1990-1996)
.........................................................................................................200 MIL MORTOS

Apenas entre 1990 e 1995, as guerras provocaram, em três quartos da população


mundial, cinco milhões e meio de mortos civis (Europa 250 mil, Ásia 1,5 milhão,
Oriente Médio e Próximo 200 mil, África 3,5 milhões).

A este quadro incompleto falta acrescentar a morte por subnutrição de seis milhões
de crianças, só no ano de 1997.
Os refugiados e exilados eram estimados em quarenta milhões em 1997.
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Este livro foi composto na àpologia Goudy Old
Sryle em corpo ! 1114 e impresso em
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Mas como um livro negro do
capitalismo se o gongo anunciou ao
mesmo tempo o fim da luta e o fim
da história? O capitalismo ganhou,
e sua robusta versão mafiosa pisa
sobre os despojos de seus inimigos.
Oue adversário real pode existir
ainda? Para Gilles Perrault. 0
adversário é a multidão civil
envolvida no processo: "O fantasma
daquela multidão deportada da África
para as Américas. daqueles
sacrificados nas trincheiras de
uma guerra absurda. daqueles
queimados vivos pelo napalm.
torturados até a morte nas celas
dos cães-de-guarda do capitalismo.
os fuzil adas na Espanha . os fuzi lados
na Argélia, as centenas de milhares
de massacrados na Indonésia, os
que foram quase erradicados. como
os índios das Américas. os que
foram sistematicamente assassinados
na China para garantir a livre
circulação do ópio. De todos aqueles,
as mãos dos sobreviventes receberam
a chama da revolta do hanem a quem
a dignidade foi negada. As mãos
quase inertes das crianças do
Terceiro Mundo diariamente mortas
aos milhares pela subnutrição. as
ll'ãos descarnadas dos povos condenados
a pagar os juros de uma dívida que
serviu apenas para enriquecer seus
dirigentes. as mãos trêmUlas dos
q
ue mendigam ao lado da opulência.
. ..
Mãos que ainda irão se unir.

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