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​UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO


​Reitora:​ ​Cláudia Aparecida Marliére de Lima
​Vice-reitor:​ ​Hermínio Arias Nalini Júnior

Organização do e-book

Luísa Gonçalves Martins


Maria Alice Silva Santos Félix
Naielly​ Cristina Magalhães de Jesus

Equipe técnica

Áquila Bruno Miranda- Revisão


Cristina Carla Sacramento- Revisão
Luísa Gonçalves Martins - ​Ilustração, edição e revisão
Maria Alice Silva Santos Félix - Edição e revisão
Naielly​ Cristina Magalhães de Jesus - Edição e revisão
Thaís dos Santos Domingos - Diagramação/ imagem da capa por
Angelina Balbina via Adobe Stock
Wigde ​Arcangelo - Revisão

Coordenação e idealização do projeto

Áquila Bruno Miranda


Adelina Malvina Barbosa Nunes
Cristina Carla Sacramento
Wigde ​Arcangelo
Bolsistas

Ágatha Danielli Liberato Ferreira


Luísa Fernandes Gomes
Robert Junio de Andrade Costa Gandra
Thaís dos Santos Domingos
3

Sumário

Apresentação ----------------------------------------- 4

Prefácio ------------------------------------------------ 6

Adormecer -------------------------------------------- 8

Despertar --------------------------------------------- 17

Mandingar --------------------------------------------- 29

Epílogo ------------------------------------------------ 40

Sobre os autores e autoras ----------------------- 42


4

Apresentação

Quais caminhos, nós negras e negros, percorremos até chegar à Universidade


pública? Quais são as nossas lutas para conquistar esse espaço? E quando
chegamos, qual o lugar da nossa história? Quem está disposta(o) a ouvi-la?

A obra que a(o) leitora(or) tem em mãos resulta de um projeto intitulado


UniverCidade: um encontro de trajetórias negras​, desenvolvido junto à
Pró-Reitoria Especial de Assuntos Comunitários e Estudantis, da Universidade
Federal de Ouro Preto (Prace/UFOP)​, ao longo de 2020.

A proposta foi mobilizada pela compreensão de que a Universidade é um


espaço embranquecido em seus corpos e na produção de conhecimento e que as
trajetórias universitárias de pessoas negras são, muitas vezes, marcadas por
sentimentos de inferioridade, de incapacidade e de ausência de sentimentos de
pertença, podendo se tornar, por vezes, trajetórias solitárias. E, nesse sentido, o
projeto buscou promover uma recepção afetiva das(dos) estudantes negras(os)
da UFOP, recém-ingressas(os) dos cursos oferecidos nos Instituto de Ciências
Aplicadas (ICSA) e Instituto de Ciências Humanas e Sociais (ICHS).

Neste caminho, fomos surpreendidas(os) com a pandemia da COVID-19,


contexto que nos desafiou a repensar as metodologias de trabalho, e também a
acolher, em alguma medida, o lugar simbólico de sustentação de sentido,
dessas(es) jovens que estavam ingressando na Universidade Pública.

Ao longo das rodas de conversa virtual, realizadas quinzenalmente, tivemos a


oportunidade de conhecer um pouco das histórias, expectativas, sonhos e
desafios das(dos) jovens negras(os) universitárias(os). Os encontros também
mobilizaram espaços de reconhecimento do saberes produzidos pelas(os)
participantes em seus percursos de vida, além de propiciar interlocuções com os
coletivos de resistência negra presentes na cidade de Mariana.
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Neste projeto, nossas trajetórias negras mobilizaram a construção dos temas e


da posição de escuta das narrativas compartilhadas. Nossa relação não se
orientou por hierarquias “nós /elas(es)”, uma vez que fomos tecendo juntas(os),
no encontro, esse saber/lugar negro universitário. Quão grande foi a alegria de
experimentarmos, ainda nesse percurso, os frutos dos afetos semeados:
floriram escritas poéticas e desenhos, emergiram angústias, tristezas, receios,
mas, sobretudo, força, criatividade, talento e MANDINGA.

As produções aqui reunidas foram elaboradas ao longo do caminho,


brevemente apresentado, e em momentos distintos, - especialmente, no que diz
respeito à abordagem da concepção de Mandinga, conceito proposto pela Profa.
Dra. Kassandra Muniz (DELET/UFOP) ​- mas igualmente importantes no
processo de identificação dessas(es) estudantes negras(os) com o espaço
acadêmico e com o município de Mariana. Esperamos que a(o) leitora(or)
permita-se ser afetada(o) por estes saberes, constituídos na experiência negra
de existir e resistir. Um desafio particular, para aquelas(es) que ousam assumir
sua negritude no mundo dos brancos e a construir uma sociedade antirracista.

Adelina Malvina Barbosa Nunes

Áquila Bruno Miranda

Cristina Carla Sacramento

Wigde Arcangelo
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Prefaciando Vida e agradecimentos...

Qual a potência que tem um conceito? Ele pode dizer sobre uma
coletividade? Como apontam alguns dos textos deste livro: é um conceito, uma
palavra ou formas de continuar driblando e criando quando só há racismo e
ódio? Nossas pretas véias, de nossas mães e avós até aquelas trasladadas à força
pela escravidão, nos ensina sabiamente que sempre temos escolhas. Essas
escolhas se dão pelas possibilidades de caminhos que as encruzilhadas da vida
nos colocam. Podemos escolher a morte, mas esse livro e a experiência negra no
mundo tem nos falado de Vida! Nosso povo tem sistematicamente transformado
a dor em ação. O ódio em força. O amor em revolução. E a linguagem é um lugar
de desagues desses caminhos: ao mesmo tempo que possibilita VIDA, também
extingue. Que escolhas faremos? Por mim, por nós e por todes? Como jogar essa
partida que tem como prêmio o direito de estar em espaços que sempre
disseram não ser para nós, povo preto? A Universidade, a despeito de seu
suposto caráter universal, nunca foi para todes. O povo afro-ameríndio foi
classificado como sem alma, sem cognição, sem racionalidade, sem humanidade
pela literatura acadêmica por séculos. Mesmo assim aqui estamos. Mistério.
Performance. Encruzilhada. Movimento. Reexistências. Ancestralidade.
Mandinga! Sabedoria das antigas. Malandra e subversiva. Os textos deste livro
nos mostram que saber jogar com o racismo em nossa sociedade e na
Universidade é arte engendrada nas dores e resistências. A gente cria em cima
do caos interno e externo que é estudar e professorar em um espaço que não
reconhece a contribuição inevitável do povo negro para isso que chamamos de
Ciência. Conhecimento. Epistemologia. Quando tudo parece estagnado em
ignorância e estupidez, a gente mandinga. Criamos projetos que visam acolher
estudantes e jovens da cidade e, com isso, acolhe também a quem acolhe.
Emociona e dá esperanças. Foi isso que senti lendo o livro que me deu a honra
de ter no título um conceito que estou gestando e que foi trabalhado nos
encontros do projeto UniverCidade. Saber que foi escolhido pelos jovens e pelas
jovens como possibilidade de gerir suas vidas dentro da Universidade é motivo
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de alegrias. Minha e de todo mundo que convoco quando leio, escrevo e falo.
Tanta gente maravilhosa escrevendo sobre nossas ancestralidades
mandingueiras e minha voz se soma às delas para dizer: estamos aqui e
permaneceremos. Nossos passos realmente vem de longe e não são pegadas que
se apagam igual marcas na areia. Somos um povo preto que performa o mistério
de se fazer plural e ao mesmo tempo unidos em prol da ideia de que merecemos
ser livres e viver em abundância, porque, afinal, nem todo mundo deu a sorte de
nascer negro e negra. Celebremos nossas existências e tenhamos sabedoria para
lutar as boas lutas! Pratiquemos a alegria e o amor como revolução que
impulsiona a nós e as nossas comunidades. Usemos nossas línguas como fogo
que queima o que não contribui para a coletividade, mas que usa as cinzas para
renovar nossos ambientes internos e externos reestabelecendo o ciclo da vida.
Mandinguemos na linguagem e na vida como forma de prática de sabedoria e
ancestralidade do povo preto no mundo. Um salve ao projeto UniverCidade por
celebrar as trajetórias negras e acolher as possibilidades de reexistências de
nossa população no espaço castrador e possibilitador que é a Universidade.
Gratidão e Gratidão!

Kassandra Muniz
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Meu corpo negro

Corpo? Não!
Nunca foi um corpo!
Nunca teve alma!

Corpo? Não!

Corpo feio?
Não! Coisa feia!
Corpo grosso?
Não! Coisa grossa!
Corpo exótico?
Não! Coisa exótica!

Corpo? Não!

Não! Não! Não!


Corpo! Corpo! Corpo!
Vivo! Vivo! Vivo!
Negro! Negro! Negro!

Áquila Bruno
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Qual a minha cor?

Morena, mulata, escurinha


Sorte sua não ser tão pretinha
Ter a “cor do pecado”
Mas em “traços refinados”

Talvez aos olhos da branquitude


Dessa forma se é mais tolerável
Mas não precisa ir ficando animada
“Te tolerar” tem um preço

O primeiro passo
É dar um jeito nesse cabelo
Agora me fala
Como consegue se olhar no espelho?
Com esse nariz tão grotesco

E por que o seu


Não é “corpo de mulata”?
Você é até bonita por ser assim
Mas por favor, fique longe de mim.

Luísa Martins
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Os Reis de Minas

Chicos e Chicas
Os reis de Minas
Assim batizados
Por quem pensa ter sua liberdade
Mas tem seu sangue em mãos na verdade
Sempre deixados de lado
Apagam seu legado
O lugar de lenda e mito
A nós sempre é reservado
Depois assinam qualquer papel
Dizendo que fomos alforriados
Como vou comprar algo que nunca vendi?
Mansa Musas apagados dos livros de história
Homicídio
Genocídio
& epistemicídio
Sempre cometidos pela mesma escória

Sarah Emanuelle
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Meu lugar

Cêis​ não acham que chegou nossa vez de brilhar?


Lélia Gonzalez
Bia Ferreira
Lázaro Ramos
Thais Araújo
Marielle Franco
Maju Coutinho
Milton Gonçalves
O quanto lutaram
O que não passaram
Pra chegar até lá?
E a dona Maria que nem perto pode estar?
Costureira, artesã, doméstica, babá, parteira
Pro que precisava ela é quem realmente estava lá
A filha da empregada que largou a bolsa dos sonhos e foi trabalhar
Afinal, seria impossível alcançar
Disse a madame branca, que estudou na Europa e sabe vários linguajar
Eu também quero estar lá
Ah, lembrei! Se for mulher, hmm… é porque fez o teste do sofá

Aqui não!
Hoje não!
Não, não.
A gente ouve tanto não
E por que o nosso “não” é negado?
A gente passa a ser tachado de preto metido
De isso e aquilo
Mas se for um branco rico
Ah… que isso, tá tudo certo, com ele é tranquilo

A gente foi ensinado por anos, séculos, milênios que estar bem demais é ter um
pão pra [comer
(Tá querendo mais o que?)
Só que isso não basta
A gente é preto todo dia
A gente sangra e chora todos os dias
Então por que não ter nossa identidade respeitada com igualdade todos os dias?
Uma cultura que não seja violentada e massacrada
A gente não quer esmola, a gente não é moeda de troca
O preto, o pobre, o povo.
O gueto sobreviverá
Maria Alice
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Preceito de Cor

A paz foi embora


Assim que a felicidade entrou pela porta
Foi sem se despedir,
Mas pelo menos deixou felicidade aqui.

Sensações de afeto
Não têm afeto entre si
Têm distância
Aversão.

Tão puras
Serenas
E inconstantes.

Serei feliz em paz?


Sei que não
É o preceito,
O regimento da vida.

Pensar afasta a paz e a felicidade


A tristeza vem
Afasta tudo.
E então já não sei mais o que sinto.

Naielly Cristina
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Como eu (me) escrevo?

Disseram: escreva!
Disseram: escreva-me!
Disseram!

Disseram: Não!

Escrevo!
Escrevo!
Escrevo!

Escrita tímida.
Escrita firme!
Escrita preta!
Escrita de nós!
Escrita de mim!

Áquila Bruno
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Eco Branco

“Assim,
Fique assim e
Não se mexa.
Nem mesmo um músculo.

Não pisque
Não respire
E não me olhe assim,
Você pediu por isso.

Quem mandou nascer preta(o)?


E pobre ainda!
Então só aceite.

Não pense que é minha culpa


A culpa é sua.
Por acaso teria eu branco(a) culpa de algo?

Tenho até parentes pretos(as)


Que nem mesmo lembro que existem
No churrasco de domingo
Mas uso como chaveiro

Quando sou racista e


Alguém me acusa.
Não importa, para eles
Culpado(a)
Não sou eu.”

Naielly Cristina
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Manual de Proveito

Respira querida.
É seu momento,
Foi por isso que você pediu.

Não seria aqui o paraíso?


Não seria aqui onde esse peso some?
Aqui é seu lugar,

É o mundo real.
Então respire.
Inspire,
Expire.
Sinta o ar em seus pulmões,
Antes que lhe tirem isso também.

Naielly Cristina
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Despertar​

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Relato Autobiográfico​1

Que gratidão à Aisha​2​, pensei agora! Vou enviar-lhe um presente! Ela me disse
que queria ir à praia. Ah, ainda tem o cabelo! Esse em especial não tem como
mudar, não igual ao da sua prima (anelado), como você gostaria. Quando você
tocou tão forte repetidas vezes meu cabelo seu gesto me foi paralisador. Eu quis
muito que você parasse para que eu pudesse voltar a respirar. Não achei de
modo algum que aquele seu gesto foi de agressividade a mim, o que me ocorreu
foi um desespero. Um ato de sofrimento seu que agora ​— passada exata uma
semana, ainda estou elaborando o vivido —, me ocorre, que talvez quisesse
destruir, aquele símbolo que te fazia naquele momento sofrer. Como eu lamento
que você se sinta assim, impedida de gostar do seu cabelo, de amá-lo como é.
Me desculpe por naquele momento eu não ter compreendido o gesto de
imediato dessa maneira, em partes eu sei que nos comunicamos. Porém havia
mais, e isso diz certamente mais de mim, ligada as minhas representações de
raiva na infância, do que de você. Mas esse instante que me tirou o ar pareceu
durar muito. Você só parou quando eu te interrompi e atravessei seu momento
com um “Você gostou do meu cabelo, né?”. Que eu me lembre você não me
respondeu abertamente que sim ou não, você me disse “Eu queria que o meu
fosse igual. Olha o da minha prima!”. O meu cabelo representava ali uma
ameaça ao seu Eu, algo impossível de ser alterado, e o (cabelo) da sua prima
talvez lhe pareça uma punição. Vocês duas têm ancestralidades comuns, mas
você não foi “presenteada” com os mesmos cachos. Esta raiva não é sua querida,
não numa perspectiva intrínseca individual, quem construiu a ideia de que seu
cabelo não merece afeto e precisa ser contido é o racismo. Talvez em algum
momento da vida você redirecione esse sentimento para sua mãe ou pai [talvez
se questione: E se minha mãe tivesse escolhido outro pai ou vice-versa? E se
fossem mais claros, com os cabelos mais lisos, garantiriam um mundo mais feliz
para mim?]. O que tenho pensado, Aisha, é que em uma sociedade racista,
intolerante às diferenças, não há garantias. Esse mundo que nos permite existir
com nossos corpos, aparências, culturas, religiosidades, sexualidades, ainda
estar por ser construído. Eu tenho tentado, pelas minhas, por nós — que já
estamos aqui — e por tantas outras e outros que virão. Sou grata por ter
compartilhado essa questão tão significativa para você, por ter me deixado tocar
no seu cabelo também e ter me abraçado afetivamente mesmo diante desse
momento aparente de dor.

Adelina M. B. Nunes

1
​Relato autobiográfico, construído a partir de uma visita realizada a uma escola de rede pública de
educação de Mariana – MG em 2019.
2
​Nome fictício Aisha, nome próprio significado “Ela é vida” língua Swahili, comum nos países da região
da África do Sul. Fonte: <https://www.geledes.org.br/s%20ignificados-dos-nomes-proprios-africanos/>
19

Amor Exímio

Aprendi que o amor


Está nas pequenas coisas
Na troca de olhares,
Nas palavras ditas.

Troquei olhares
Com o reflexo do espelho,
A pele preta
Gritou que me amava.
Agora a amo,

E em pétala de rosa
Brota o amor.
Somos eu mesma
E eu agora.
Nunca foi tão feliz.

Naielly Cristina
20

Eu sou uma mulher?

Eu sou uma mulher!


Dizem que não!
Eu com um grito insistente, digo que SIM!

Forte!
Fraca!
Frágil!
Firme!

Eu sou uma mulher!


Dizem que não!
Eu com uma dança potente, digo que SIM!

Rosas!
Raiva!
Reinos!

Dizem que não!


Com meu canto, eu digo:
Sou uma mulher!

Áquila Bruno
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EU SOU A PORRA DE UMA BICHA PRETA, quem diabos


iria me amar?

Eles clamam em todos os cantos por “inclusão”, mas nas ​timeline do ​Twitter só
tem bicha branca padrão. Em suas fotos eles comentam “Faria”, já as nossas
nem vale a pena comentar, toma logo um ​block na cara, dizendo: lá vem a bicha
preta me atormentar.

No quesito romance somos quase invisíveis, deixados de lado, deixados para a


terceira ou quarta opção, mas quando o negócio é Foda, logo nossos corpos se
tornam primeira opção.

Nossos corpos são usados e abusados, e ainda tem quem diga que a escravatura
tinha acabado. Não se preocupe bicha, não vou te julgar. Quem sou eu para
falar: amigo, cuidado, você só está sendo usado!

Eles ainda têm a coragem de abrir a boca e gritar: “Eu gosto é de negão”, mas no
almoço em família, não se engane, só acompanhado das brancas padrão.

Bicha, eu sei que está esgotada, cansada de orar e perguntar para Deus: Será que
algum dia serei amado? Mas sabe qual é? Estamos falando da vida real, não
espere a porra de um príncipe loiro te amar no final.

Ok​, mano. Tudo bem chorar! Porém não se sinta culpado por estar onde está.
Você é mais uma vítima, assim como eu, desse padrão de beleza retrógrado que
não aceita gente como você e eu.

Pretos, sozinhos, ridicularizados, afeminados e você ainda acredita em príncipe


encantado?

Tem quem vai dizer “Não tem nada a ver com pele”, também vão nos chamar de
vitimistas, então me explica o porquê somos as maiores vítimas.

Não estamos sozinhos, somos milhares por aí, só temos que nos juntar e nos
amar esquecendo o lado de lá. O lado que nos oprime todos os dias. Por que
queremos tanto participar?
22

Pretos, fortes prontos para serem amados, somente por aqueles que têm a
disposição para ter uma bicha preta ao lado.

Filipe Silva
23

Vento do Leste

Vento do leste nos acercou. Conseguiu abalar, mas não nos desmoronou. Somos
palmeiras. Adaptáveis, resistentes e proveitosas. Trocamos as folhas, mas não as
raízes. Não somos extensão, somos ruptura. Pois uma palmeira não se rende ao
vento.

Naielly Cristina
24

Gaiolas

Quando criança queria ser um passarinho,


Só pra ter a sensação de tocar o céu.
Voar e sentir minhas asas ruflarem
Enquanto a brisa do vento me tocava,
Deixando a certeza que eu sou livre
E só pertenço a mim mesma e a imensidão azul do céu.

Só pra poder ouvir a melodia do meu canto produziria


Anunciando a chuva,
E a cada gota caindo sobre a terra
Eu saberia que um novo dia chegaria.

Para que eu pudesse sentir o aroma das flores


E repousar no meu ninho ao cair da noite.

Eu queria ser um passarinho, pois sempre o associei com a liberdade


Mas toda vez que eu imagino sendo um
Estou dentro de uma gaiola
Impossibilitada de voar.

Luísa Martins
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Vista

Pela janela dá pra ver o céu


O azul se destoa em alguns dias
Mas continua em variações
De cores quentes e frias
E não falo só da temperatura do dia
Ligar a televisão é um aviso prévio
De que se toma café junto com as desgraças que são servidas antes do meio dia

Queria ser X-men só pra ter superpoder


De comunicação por telepatia
Saber ouvir e conversar com quem anda do outro lado da rua
Com as crianças que brincam na porta de minha casa
Compartilhando sorrisos e alegria

Que a agonia dure pouco


Que a alegria substitua em dobro
Os dias em que não podemos nos ver de perto
Mas
Barreiras invisíveis já existiam
E nos separavam antes mesmo dos muros de concreto

A poesia é a chance de falar e voar longe


Alcançando novos encontros que soem como pontes
Unidos somos mais fortes
Buscando algo que nos conforte
Aquilombar é uma boa solução.

Thaís Domingos
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Estereótipo

Quando pensa pobre


Pensa preto
Imagina a favela
Imagina o crime
Sente medo
Ala, de longe já vê o gueto

Lembra do gari da rua


Da empregada da sua casa
Das crianças de escola pública
Dos lugares onde você nunca imagina seu filho

E é justamente lá onde ele quer estar


Quer se achar o preto com ​iPhone​ na mão
Quer se misturar com os manos que dão um duro do cão

A vida é fácil pra ele


Ele é branco
Cê​ quer comparação?

É condomínio fechado
É a melhor escola da cidade
É o cursinho de inglês
É o carro todos os dias que busca na porta e
Que o menino preto de rua limpa enquanto o sinal está fechado
É o vidro que ​cêis f​ echam com medo de ser assaltado por mais um preto
favelado

E quando chega em casa


Tem o almoço feito pela preta que não merece mais que um salário mínimo
Limpando, lavando, secando, capinando
Mais de oito horas de trabalho por dia

E ainda mais quatro horas nos finais de semana para limpar a própria casa
O preto que sustenta seu ego
É o preto que é sempre o marginalizado.

Maria Alice
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Antirracismo

O cansaço de guerra
Faz guerrear
Pelo fim da guerra

Naielly Cristina
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Samba de Domingo

Com o que deu na telha


Sedução emana da saia vermelha
Rodopia pela sala
Eleva alma
Pinta-a de marsala
Com calma
Pensa e espalma
E d’alma
Desalma.

Naielly Cristina
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(R)existir é mandingar

Mandinga é sentido de vida,


É retomada de propósito,
É seguir por rotas que vêm de longe...

Adelina Malvina
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Resistir é mandingar

Eu vivo, (re)vivo e (re)existo em qualquer espaço que convivo!


Mandingas para mim é isso!
Movimentar
Balançar
E sacolejar até que os meus sobrevivam para contar!
Desmistificar
E ressignificar
UniverCidade é mandingar, então vamos juntos revolucionar!
O meu conhecimento sou eu que preciso construir, vamos lutar para que o
epistemicídio nunca mais possa existir!
E por fim, me falaram que por ser preta, pobre e da favela eu nunca iria
conseguir!
Olha meu corpo aqui. Então me escute, me estude e me conheça para você não
sair por aí falando asneiras!

Ágatha Liberato
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Movimentar é mandingar

Você mandinga ao se movimentar, eu mandingo ao me movimentar, nós


mandingamos ao nos movimentarmos. Conceito, verbo ou palavra? Nós que
definimos. Mandinga é você se movimentar, na sua fala, no seu jeito e no seu
estar! Resistir é mandingar. Sobreviver em espaços que não somos bem-vindos
é mandingar! UniverCidade é mandingar, estar aqui é mandingar! Combater o
epistemicídio é mandingar, o nosso conhecimento é mandingar, ser preto e
pobre na Universidade é mandingar. Com nossa mandinga podemos construir
arte, música, poesia, história ou qualquer outro conhecimento que nos faça
existir e viver. Pois para o nosso povo mandingar é sobreviver!

Ágatha Liberato
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Criar é mandingar

Se mandinga é movimento… e estamos, cada vez mais, entre as nossas e os


nossos, podemos juntar nossas vozes, forças e talentos para produzir
resistências, podemos e devemos contar nossas histórias, escrever poesias,
produzir conhecimentos, referenciar/reverenciar pretas e pretos que vieram
antes e festejar nossas vidas. Tudo isso ao mesmo tempo em que reivindicamos
os nossos direitos!

Cristina Carla Sacramento


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Adaptar é mandingar

Mandinga é quando aquele professor branco diz com todas as letras que nossas
questões não vão ser pautadas nas disciplinas, mas eu faço todos os trabalhos só
com fontes pretas que pautam tudo o que ele diz, e também nos pautam.

É quando num ambiente totalmente hostil, como é a Universidade, com a nossa


presença conseguimos criar espaços de existência como este. Para buscar,
sobretudo, nos sentir bem entre e com os nossos.
Que sigamos mandingando.

Robert Costa
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Palavrear é mandingar

A palavra é tudo o que temos. Assim como muita das vezes as palavras são
usadas para nos ferir, podemos tomá-las como agente da nossa vivência, luta e
empoderamento. Não só enquanto corpos desumanizados pela sociedade, mas
também enquanto seres em constante evolução. Mandinga é aprender, mesmo
que involuntariamente, a importância da palavra em nós e para nós.

Naielly Cristina
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Acreditar é mandingar

Mandinga é resistir quando me falam para desistir.


Acreditar mesmo sem motivo e se levantar para lutar.
Nunca se esquecer de onde eu vim, sem deixar de sonhar em até onde posso
chegar.
Incluir e representar os nossos, sabendo que também merecemos ser felizes.

Luísa Martins
37

Renascer é mandingar

Mandinga é dar ênfase aos nossos.


Lutar, persistir e continuar.
Mesmo apesar da dor,
Mesmo apesar da perda,
A partir dela vem nossa vitória.
Comemoramos juntos as vitórias.
Renascemos.

Maria Alice
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Aquilombar é mandingar

Se for com vocês eu vou!


Se for com vocês eu danço, eu brinco!
Com vocês…
Com vocês, a UFOP, a Mariana, as Minas Gerais!
Torna-se VIVA!
Um vivo encanto!

Áquila Bruno
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Em quais lugares nossas trajetórias se encontram?

Encontrar, encantar
Cantar, estar
Trocar, re(encantar)
Na pele, nos traços
Nas histórias, na arte
Na luta!

Quais mandingas podemos produzir juntas(os)?

Áquila Bruno
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Sigamos abrindo caminhos!

Pretas, pretos…
Sigamos lado a lado… Seguremos as nossas mãos…

E nos lembremos, de alguma forma, a cada instante, que estamos no mesmo


caminho, lutando a mesma luta, para construir os nossos sonhos!

Não devemos nos afastar, nem podemos deixar de ouvir nossas vozes, pois o que
nos aproxima é tão complexo, tão plural e, ao mesmo tempo, tão comum, que
nossas trajetórias se encontram nas angústias, dores, indignações, mas,
sobretudo, nas esperanças e potencialidades!

Aquelas e aqueles que vieram antes, cada uma e cada um, à sua maneira, nos
deixaram um legado valioso de conhecimentos, num mundo sempre disposto a
nos calar, intimidar e aniquilar. Elas e eles resistiram. Também nós
resistiremos. Também nós abriremos caminhos, para as nossas e os nossos!
E é exatamente essa convicção que deve nos mobilizar a buscar, incansáveis, por
mais pretas e pretos e a sussurrarmos, incontáveis vezes, este mesmo apelo,
como uma prece: Sigamos lado a lado... Seguremos as nossas mãos...

Cristina Carla Sacramento


42

Sobre os autores e autoras

Adelina Malvina B. Nunes​, é mulher cisgênero, negra,


nascida na cidade de Inhapim-MG. Uma criança inquieta com muitas coisas
para falar que aprendeu rápido que não é todo mundo que pode dizer, existem
códigos. Quis saber mais disso e assim se pôs a voar, inspirada pelo símbolo da
cidade, um pássaro. Graduou em Psicologia na cidade de Ipatinga - MG,
especializou na modalidade à distância pela UFOP, seu horizonte se ampliou e
por que não ir mais? Morou em Belo Horizonte- MG, dedicou-se lá ao trabalho
com políticas públicas de álcool e outras drogas, e inspirada pela resistência
antimanicomial se reencontrou com as palavras e o poder que elas constroem
discursos que movem sonhos, o sonho do ativismo pela liberdade. Foi na ciência
que encontrou a possibilidade de expressar seu desejo de contribuir por uma
sociedade antirracista se tornando Mestra em Educação pela UFOP. É
idealizadora e colaboradora do projeto UniverCidade PIDC/UFOP.

Ágatha Liberato, mulher Preta e favelada, 24 anos, casada.


Nasceu e cresceu na cidade de Mariana – MG. Atualmente cursa o 3° Período de
Pedagogia na UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto. As lutas e
resistências do povo negro sempre a atravessaram, mesmo não entendendo os
porquês dos seus sofrimentos, como por exemplo ser umas das poucas crianças
negras na escola que estudava. O projeto UniverCidade contribuiu
significativamente para sua caminhada, que ainda tão curta, mas com uma
potência maravilhosa, a partir dele pode identificar os processos que marcam o
povo preto dentro e fora da Universidade, e assim cada dia mais fortalecer suas
mandingas.
43

Áquila Bruno Miranda, suas raízes surgiram em Carlos


Chagas - Nordeste de Minas Gerais. Uma mulher cisgênero, negra, companheira
do Lívio e mãinha da Hortência. Começou, com o apoio das/dos
companheiras(os) do projeto UniverCidade, a trilhar o caminho da escrita
poética. É psicóloga (UFMG/UNIBO - Itália), Mestra em Educação (UFMG),
especialista em Saúde da Família (PUC-Minas/Ministério da Saúde) e
psicodramatista em formação (IMPSI). Atualmente está como professora
substituta do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP). É uma das idealizadoras e coorientadora do projeto
“UniverCidade: um encontro de trajetórias negras” (PIDIC/UFOP), vivências
que convidaram-na a revisitar suas histórias e a entoar novos cantos para o povo
preto na universidade pública brasileira.

Cristina Carla Sacramento - ​Natural de São João del-Rei


(MG), é a primeira de sua família a ingressar na universidade, em 2004, no
curso de Pedagogia. A oportunidade de participar de um grupo de estudos sobre
a História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, bem como ser bolsista de
extensão em um projeto com a mesma temática, possibilitou-a perceber-se
como uma mulher negra e vislumbrar uma carreira acadêmica, investigando a
presença da população negra em livros didáticos de História do Brasil.
Atualmente é Doutora em Educação e professora do Departamento de Educação
da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), onde resiste por meio da
realização de parcerias que viabilizam a elaboração de projetos que abordam
raça, gênero e classe. É também idealizadora e orientadora do projeto
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“UniverCidade: um encontro de trajetórias negras” (PIDIC/UFOP), que trouxe


para ela muitas alegrias e a permitiu aprender muito com as trajetórias e as
potencialidades das(dos) estudantes negras(os).

Filipe Silva Dias é um jovem negro com 20 anos de idade,


nasceu e cresceu na cidade de Itabira-MG. Sempre participativo em projetos
sociais, esteve presente na edição de 2017 do Parlamento Jovem, onde junto de
seus colegas foi responsável pela criação de uma proposta no qual foi aprovada
na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Além de ter sido colaborador do
projeto esportivo da sua antiga escola Antônio Linhares Guerra após a
conclusão do ensino médio. Atualmente, iniciou o curso de História pela
Universidade Federal de Ouro Preto. Em âmbito acadêmico juntou-se ao projeto
UniverCidade juntamente com outros jovens negros participando de suas
atividades e fóruns de discussão. Durante o período de pandemia, integrou-se
também ao projeto Itabira. Antirracista na companhia de seus amigos a fim de
levar as múltiplas questões raciais aos seus seguidores em sua página no
Instagram, levando as suas experiências para as demais pessoas na sociedade
brasileira.

Luísa Gonçalves Martins, nascida e criada em


Sabinópolis(MG). Uma mulher com seus 19 anos, que recentemente se
descobriu e se reconheceu como negra, o que permitiu à ela o entendimento de
várias situações vividas quando criança/adolescente. Apaixonada por política,
bem como pelas causas sociais, decidiu começar a graduação de Serviço Social
(2020.1; UFOP). Desde criança sabia que era diferente, e não se encaixava
naqueles moldes que insistiam em colocá-la, diversas foram as vezes em que se
sentiu incompreendida e sozinha, diante disso a arte foi como refúgio, como um
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lugar seguro, talvez o único. E hoje, está participando do UniverCidade e ter a


oportunidade de contribuir com um pouco da sua arte, é algo único, inexplicável
e de imensa felicidade! Faz ela continuar cheia de sonhos, acreditando, lutando,
tocando, pintando, amando, sentindo, vivendo e resistindo.

Maria Alice Silva Santos Félix​, sempre cheia de energias


dedicou-se ao esporte, a música, a dança e a vida de modelo. Aos dezoito anos se
tornou graduanda no curso de Serviço Social (2020.1) pela Universidade
Federal de Ouro Preto. Nasceu na famosa Terra de Drummond – Itabira-MG, e
por acaso ou não, apaixonada demais por pessoas e artes, traz timidamente as
poesias por debaixo dos braços. A primeira exposição de alguns dos seus
poemas está neste livro que, graças ao projeto “UniverCidade: um encontro de
trajetórias negras” foi oportunizada de compartilhar um pouco dos seus
sentimentos como mulher negra periférica. Mudou-se apaixonadamente para
Mariana -MG e desde então pensa em ir além carregando consigo os seus pretxs
para o corpo acadêmico, a fim de resistir, visto que, ainda no século XXI,
precisa-se e deve-se reafirmar a epistemologia negra diariamente, e para além
da academia, que vão e voem para onde quiserem ir!

Naielly Cristina Magalhães de Jesus ​é mulher negra


cisgênero​, nascida em Nova Serrana (MG) no ano de 2002. Aos dezoito anos se
torna graduanda em Letras Estudos Literários pela UFOP ​— sendo a primeira
da família ingressar na universidade pública ​—​, atua como revisora e assessora
de Marketing na Empresa Júnior Rever. Descobriu seu amor pela literatura aos
quatro anos quando alfabetizada pelos pais usando-a como maneira de
resiliência, não se restringindo a leitura, mas expandindo sua paixão para o
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papel criando suas próprias histórias e versos. É através do projeto


UniverCidade que reitera seu processo de escrita, partilha e encontra histórias
parecidas com a sua se aproximando mais de sua própria história.

Robert Costa tem 21 anos, nascido e criado em Contagem -


MG, atualmente estuda História na Universidade Federal de Ouro Preto. Foi
bolsista desse lindo projeto que é o ​UniverCidade: um encontro de trajetórias
negras,​ é membro do Coletivo Negro Braima Mané e também mais um dos
milhares que o Hip Hop salvou, sendo ele seu primeiro e principal agente de
formação e educação racial e política, o que faz com que acredite que ele é uma
das milhares de formas e maneiras que seu povo criou e desenvolveu para
praticar algo que foi bastante abordado nesse e-book: a prática de mandingar.

​Sarah Emanuelle Batista Araújo ​nascida no Vale do Aço,


na cidade de Timóteo, sempre foi aficionada por história. Sempre
conscientizada de sua negritude pela mãe, o interesse pela história do povo
preto foi despertado ao longo dos anos, sem sucesso por causa do epistemicídio
que nos cerca. No primeiro semestre de 2020 tornou-se graduanda em História
pela UFOP na modalidade licenciatura e pretende não somente aprender mais
sobre a história negra como também ensinar as próximas gerações. O contato
com o Projeto UniverCidade foi importante para o contato com pessoas negras
dentro do meio universitário e o compartilhamento de suas trajetórias.
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Thaís dos Santos Domingos​, baiana, preta e escritora,


cresceu na cidade de Nova Viçosa- BA e há 5 anos a vista plana que tinha do mar
foi substituída pelas montanhas de Minas. Nesse trajeto, residiu em Betim, Belo
Horizonte e atualmente pousou na cidade de Mariana. Desde criança, sempre
foi apaixonada por ouvir histórias e encantou-se por contá-las por meio da
escrita. Estudante de jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto, é
bolsista do projeto UniverCidade: um encontro de trajetórias negras, onde pode
ouvir e compartilhar de percursos de afeto, enfrentamento e sobretudo, de
resistência. Histórias traçadas pelos que vieram antes dela, histórias de si e
histórias de seu povo. Estejamos juntos, com os ouvidos atentos para ouvir e
seguir os passos que vêm de longe.
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