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Organização do e-book
Equipe técnica
Sumário
Apresentação ----------------------------------------- 4
Prefácio ------------------------------------------------ 6
Adormecer -------------------------------------------- 8
Despertar --------------------------------------------- 17
Mandingar --------------------------------------------- 29
Epílogo ------------------------------------------------ 40
Apresentação
Wigde Arcangelo
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Qual a potência que tem um conceito? Ele pode dizer sobre uma
coletividade? Como apontam alguns dos textos deste livro: é um conceito, uma
palavra ou formas de continuar driblando e criando quando só há racismo e
ódio? Nossas pretas véias, de nossas mães e avós até aquelas trasladadas à força
pela escravidão, nos ensina sabiamente que sempre temos escolhas. Essas
escolhas se dão pelas possibilidades de caminhos que as encruzilhadas da vida
nos colocam. Podemos escolher a morte, mas esse livro e a experiência negra no
mundo tem nos falado de Vida! Nosso povo tem sistematicamente transformado
a dor em ação. O ódio em força. O amor em revolução. E a linguagem é um lugar
de desagues desses caminhos: ao mesmo tempo que possibilita VIDA, também
extingue. Que escolhas faremos? Por mim, por nós e por todes? Como jogar essa
partida que tem como prêmio o direito de estar em espaços que sempre
disseram não ser para nós, povo preto? A Universidade, a despeito de seu
suposto caráter universal, nunca foi para todes. O povo afro-ameríndio foi
classificado como sem alma, sem cognição, sem racionalidade, sem humanidade
pela literatura acadêmica por séculos. Mesmo assim aqui estamos. Mistério.
Performance. Encruzilhada. Movimento. Reexistências. Ancestralidade.
Mandinga! Sabedoria das antigas. Malandra e subversiva. Os textos deste livro
nos mostram que saber jogar com o racismo em nossa sociedade e na
Universidade é arte engendrada nas dores e resistências. A gente cria em cima
do caos interno e externo que é estudar e professorar em um espaço que não
reconhece a contribuição inevitável do povo negro para isso que chamamos de
Ciência. Conhecimento. Epistemologia. Quando tudo parece estagnado em
ignorância e estupidez, a gente mandinga. Criamos projetos que visam acolher
estudantes e jovens da cidade e, com isso, acolhe também a quem acolhe.
Emociona e dá esperanças. Foi isso que senti lendo o livro que me deu a honra
de ter no título um conceito que estou gestando e que foi trabalhado nos
encontros do projeto UniverCidade. Saber que foi escolhido pelos jovens e pelas
jovens como possibilidade de gerir suas vidas dentro da Universidade é motivo
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de alegrias. Minha e de todo mundo que convoco quando leio, escrevo e falo.
Tanta gente maravilhosa escrevendo sobre nossas ancestralidades
mandingueiras e minha voz se soma às delas para dizer: estamos aqui e
permaneceremos. Nossos passos realmente vem de longe e não são pegadas que
se apagam igual marcas na areia. Somos um povo preto que performa o mistério
de se fazer plural e ao mesmo tempo unidos em prol da ideia de que merecemos
ser livres e viver em abundância, porque, afinal, nem todo mundo deu a sorte de
nascer negro e negra. Celebremos nossas existências e tenhamos sabedoria para
lutar as boas lutas! Pratiquemos a alegria e o amor como revolução que
impulsiona a nós e as nossas comunidades. Usemos nossas línguas como fogo
que queima o que não contribui para a coletividade, mas que usa as cinzas para
renovar nossos ambientes internos e externos reestabelecendo o ciclo da vida.
Mandinguemos na linguagem e na vida como forma de prática de sabedoria e
ancestralidade do povo preto no mundo. Um salve ao projeto UniverCidade por
celebrar as trajetórias negras e acolher as possibilidades de reexistências de
nossa população no espaço castrador e possibilitador que é a Universidade.
Gratidão e Gratidão!
Kassandra Muniz
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Corpo? Não!
Nunca foi um corpo!
Nunca teve alma!
Corpo? Não!
Corpo feio?
Não! Coisa feia!
Corpo grosso?
Não! Coisa grossa!
Corpo exótico?
Não! Coisa exótica!
Corpo? Não!
Áquila Bruno
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O primeiro passo
É dar um jeito nesse cabelo
Agora me fala
Como consegue se olhar no espelho?
Com esse nariz tão grotesco
Luísa Martins
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Os Reis de Minas
Chicos e Chicas
Os reis de Minas
Assim batizados
Por quem pensa ter sua liberdade
Mas tem seu sangue em mãos na verdade
Sempre deixados de lado
Apagam seu legado
O lugar de lenda e mito
A nós sempre é reservado
Depois assinam qualquer papel
Dizendo que fomos alforriados
Como vou comprar algo que nunca vendi?
Mansa Musas apagados dos livros de história
Homicídio
Genocídio
& epistemicídio
Sempre cometidos pela mesma escória
Sarah Emanuelle
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Meu lugar
Aqui não!
Hoje não!
Não, não.
A gente ouve tanto não
E por que o nosso “não” é negado?
A gente passa a ser tachado de preto metido
De isso e aquilo
Mas se for um branco rico
Ah… que isso, tá tudo certo, com ele é tranquilo
A gente foi ensinado por anos, séculos, milênios que estar bem demais é ter um
pão pra [comer
(Tá querendo mais o que?)
Só que isso não basta
A gente é preto todo dia
A gente sangra e chora todos os dias
Então por que não ter nossa identidade respeitada com igualdade todos os dias?
Uma cultura que não seja violentada e massacrada
A gente não quer esmola, a gente não é moeda de troca
O preto, o pobre, o povo.
O gueto sobreviverá
Maria Alice
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Preceito de Cor
Sensações de afeto
Não têm afeto entre si
Têm distância
Aversão.
Tão puras
Serenas
E inconstantes.
Naielly Cristina
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Disseram: escreva!
Disseram: escreva-me!
Disseram!
Disseram: Não!
Escrevo!
Escrevo!
Escrevo!
Escrita tímida.
Escrita firme!
Escrita preta!
Escrita de nós!
Escrita de mim!
Áquila Bruno
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Eco Branco
“Assim,
Fique assim e
Não se mexa.
Nem mesmo um músculo.
Não pisque
Não respire
E não me olhe assim,
Você pediu por isso.
Naielly Cristina
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Manual de Proveito
Respira querida.
É seu momento,
Foi por isso que você pediu.
É o mundo real.
Então respire.
Inspire,
Expire.
Sinta o ar em seus pulmões,
Antes que lhe tirem isso também.
Naielly Cristina
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Despertar
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Relato Autobiográfico1
Que gratidão à Aisha2, pensei agora! Vou enviar-lhe um presente! Ela me disse
que queria ir à praia. Ah, ainda tem o cabelo! Esse em especial não tem como
mudar, não igual ao da sua prima (anelado), como você gostaria. Quando você
tocou tão forte repetidas vezes meu cabelo seu gesto me foi paralisador. Eu quis
muito que você parasse para que eu pudesse voltar a respirar. Não achei de
modo algum que aquele seu gesto foi de agressividade a mim, o que me ocorreu
foi um desespero. Um ato de sofrimento seu que agora — passada exata uma
semana, ainda estou elaborando o vivido —, me ocorre, que talvez quisesse
destruir, aquele símbolo que te fazia naquele momento sofrer. Como eu lamento
que você se sinta assim, impedida de gostar do seu cabelo, de amá-lo como é.
Me desculpe por naquele momento eu não ter compreendido o gesto de
imediato dessa maneira, em partes eu sei que nos comunicamos. Porém havia
mais, e isso diz certamente mais de mim, ligada as minhas representações de
raiva na infância, do que de você. Mas esse instante que me tirou o ar pareceu
durar muito. Você só parou quando eu te interrompi e atravessei seu momento
com um “Você gostou do meu cabelo, né?”. Que eu me lembre você não me
respondeu abertamente que sim ou não, você me disse “Eu queria que o meu
fosse igual. Olha o da minha prima!”. O meu cabelo representava ali uma
ameaça ao seu Eu, algo impossível de ser alterado, e o (cabelo) da sua prima
talvez lhe pareça uma punição. Vocês duas têm ancestralidades comuns, mas
você não foi “presenteada” com os mesmos cachos. Esta raiva não é sua querida,
não numa perspectiva intrínseca individual, quem construiu a ideia de que seu
cabelo não merece afeto e precisa ser contido é o racismo. Talvez em algum
momento da vida você redirecione esse sentimento para sua mãe ou pai [talvez
se questione: E se minha mãe tivesse escolhido outro pai ou vice-versa? E se
fossem mais claros, com os cabelos mais lisos, garantiriam um mundo mais feliz
para mim?]. O que tenho pensado, Aisha, é que em uma sociedade racista,
intolerante às diferenças, não há garantias. Esse mundo que nos permite existir
com nossos corpos, aparências, culturas, religiosidades, sexualidades, ainda
estar por ser construído. Eu tenho tentado, pelas minhas, por nós — que já
estamos aqui — e por tantas outras e outros que virão. Sou grata por ter
compartilhado essa questão tão significativa para você, por ter me deixado tocar
no seu cabelo também e ter me abraçado afetivamente mesmo diante desse
momento aparente de dor.
Adelina M. B. Nunes
1
Relato autobiográfico, construído a partir de uma visita realizada a uma escola de rede pública de
educação de Mariana – MG em 2019.
2
Nome fictício Aisha, nome próprio significado “Ela é vida” língua Swahili, comum nos países da região
da África do Sul. Fonte: <https://www.geledes.org.br/s%20ignificados-dos-nomes-proprios-africanos/>
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Amor Exímio
Troquei olhares
Com o reflexo do espelho,
A pele preta
Gritou que me amava.
Agora a amo,
E em pétala de rosa
Brota o amor.
Somos eu mesma
E eu agora.
Nunca foi tão feliz.
Naielly Cristina
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Forte!
Fraca!
Frágil!
Firme!
Rosas!
Raiva!
Reinos!
Áquila Bruno
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Eles clamam em todos os cantos por “inclusão”, mas nas timeline do Twitter só
tem bicha branca padrão. Em suas fotos eles comentam “Faria”, já as nossas
nem vale a pena comentar, toma logo um block na cara, dizendo: lá vem a bicha
preta me atormentar.
Nossos corpos são usados e abusados, e ainda tem quem diga que a escravatura
tinha acabado. Não se preocupe bicha, não vou te julgar. Quem sou eu para
falar: amigo, cuidado, você só está sendo usado!
Eles ainda têm a coragem de abrir a boca e gritar: “Eu gosto é de negão”, mas no
almoço em família, não se engane, só acompanhado das brancas padrão.
Bicha, eu sei que está esgotada, cansada de orar e perguntar para Deus: Será que
algum dia serei amado? Mas sabe qual é? Estamos falando da vida real, não
espere a porra de um príncipe loiro te amar no final.
Ok, mano. Tudo bem chorar! Porém não se sinta culpado por estar onde está.
Você é mais uma vítima, assim como eu, desse padrão de beleza retrógrado que
não aceita gente como você e eu.
Tem quem vai dizer “Não tem nada a ver com pele”, também vão nos chamar de
vitimistas, então me explica o porquê somos as maiores vítimas.
Não estamos sozinhos, somos milhares por aí, só temos que nos juntar e nos
amar esquecendo o lado de lá. O lado que nos oprime todos os dias. Por que
queremos tanto participar?
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Pretos, fortes prontos para serem amados, somente por aqueles que têm a
disposição para ter uma bicha preta ao lado.
Filipe Silva
23
Vento do Leste
Vento do leste nos acercou. Conseguiu abalar, mas não nos desmoronou. Somos
palmeiras. Adaptáveis, resistentes e proveitosas. Trocamos as folhas, mas não as
raízes. Não somos extensão, somos ruptura. Pois uma palmeira não se rende ao
vento.
Naielly Cristina
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Gaiolas
Luísa Martins
25
Vista
Thaís Domingos
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Estereótipo
É condomínio fechado
É a melhor escola da cidade
É o cursinho de inglês
É o carro todos os dias que busca na porta e
Que o menino preto de rua limpa enquanto o sinal está fechado
É o vidro que cêis f echam com medo de ser assaltado por mais um preto
favelado
E ainda mais quatro horas nos finais de semana para limpar a própria casa
O preto que sustenta seu ego
É o preto que é sempre o marginalizado.
Maria Alice
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Antirracismo
O cansaço de guerra
Faz guerrear
Pelo fim da guerra
Naielly Cristina
28
Samba de Domingo
Naielly Cristina
29
30
(R)existir é mandingar
Adelina Malvina
31
Resistir é mandingar
Ágatha Liberato
32
Movimentar é mandingar
Ágatha Liberato
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Criar é mandingar
Adaptar é mandingar
Mandinga é quando aquele professor branco diz com todas as letras que nossas
questões não vão ser pautadas nas disciplinas, mas eu faço todos os trabalhos só
com fontes pretas que pautam tudo o que ele diz, e também nos pautam.
Robert Costa
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Palavrear é mandingar
A palavra é tudo o que temos. Assim como muita das vezes as palavras são
usadas para nos ferir, podemos tomá-las como agente da nossa vivência, luta e
empoderamento. Não só enquanto corpos desumanizados pela sociedade, mas
também enquanto seres em constante evolução. Mandinga é aprender, mesmo
que involuntariamente, a importância da palavra em nós e para nós.
Naielly Cristina
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Acreditar é mandingar
Luísa Martins
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Renascer é mandingar
Maria Alice
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Aquilombar é mandingar
Áquila Bruno
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Encontrar, encantar
Cantar, estar
Trocar, re(encantar)
Na pele, nos traços
Nas histórias, na arte
Na luta!
Áquila Bruno
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Pretas, pretos…
Sigamos lado a lado… Seguremos as nossas mãos…
Não devemos nos afastar, nem podemos deixar de ouvir nossas vozes, pois o que
nos aproxima é tão complexo, tão plural e, ao mesmo tempo, tão comum, que
nossas trajetórias se encontram nas angústias, dores, indignações, mas,
sobretudo, nas esperanças e potencialidades!
Aquelas e aqueles que vieram antes, cada uma e cada um, à sua maneira, nos
deixaram um legado valioso de conhecimentos, num mundo sempre disposto a
nos calar, intimidar e aniquilar. Elas e eles resistiram. Também nós
resistiremos. Também nós abriremos caminhos, para as nossas e os nossos!
E é exatamente essa convicção que deve nos mobilizar a buscar, incansáveis, por
mais pretas e pretos e a sussurrarmos, incontáveis vezes, este mesmo apelo,
como uma prece: Sigamos lado a lado... Seguremos as nossas mãos...