Você está na página 1de 16
Bioética e aborto' Debora Diniz O tema do aborto é, dentre a totalidade das situagées analisa- das pela bioética, aquele sobre 0 qual mais se tem esctito, debati- do e realizado encontros, congtessos e discussdes piiblicas. Isso nao significa, no entanto, que tenham ocorrido mudangas argu- mentativas substanciais sobre a quest&o nestes tiltimos anos ou mesmo que se tenham alcangado alguns consensos democrticos, ainda que tempordrios, pata a questao. Ao contratio. O aborto € um exemplo nftido tanto da dificuldade de se estabelecer didlo- gos frente a posigées morais distintas, quanto do obstaculo em se criar um discurso académico independente sobre a questo, uma vez que a paixdo argumentativa € a t6nica dos escritos sobre 0 tema. Para uma pessoa ndo-iniciada no tema do aborto, a maior dificuldade ao ser apresentada & literatura relativa ao aborto € discernir quais sdo os argumentos te6ricos consistentes dentre a infinidade de manipulacdes retéricas que visam apenas arrebatar multiddes para o campo de batalha travado sobre o assunto. Nesse contexto, nfo é tarefa facil apresentar um panorama dos estudos bioéticos relativos ao aborto. Misturam-se textos académi- 1 — Palestta proferida por ocasio das comemoragées relativas ao dia 08 de marco de 2001, no Mi- niseério Publico do Distrito Federal. Este artigo € uma verséo modificada de: Diniz, D. e Almei- da, M. “Bioética e Aborto”. In : Costa, S. et al (org.) Iniciagio & Bioética. Brasilia: CFM. 1998. 116 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA cos, politicos e religiosos, e selecionar quais séo os argumentos mais significativos para o debate parece ser sempre uma tarefa injusta. E, em alguma medida, o é. Desta forma, serao apresentadas algumas idéias pontuais que marcaram o debate contempordneo para, a par- tir dos argumentos de seus autores e autoras, ser tragado um pano- rama bioético acerca do aborto. A discusséo foi dividida em trés partes: em um primeiro momento, serao apresentados a terminolo- gia e os principais tipos de aborto; em seguida, serao discutidos da- dos sobre legislago comparada, sendo que a terceira parte sera de- dicada ao debate bioético propriamente dito sobre o tema. Uma avaliagao semantica dos conceitos utilizados pelos pesqui- sadotes e pelas pesquisadoras que escreveram sobre o aborto seria de extrema valia para os estudos bioéticos. A variedade conceitual é proporcional ao impacto social causado pela escolha de cada termo. Infelizmente, ¢ isso é claro para qualquer pessoa interessada no tema do aborto, os conceitos nao sao escolhidos impunemente. Cada cate- goria possui sua forga na guerrilha lingiifstica, algumas vezes sutil, escondendo-a por tras das definic6es selecionadas. Fala-se de aborto terapéutico como sendo aborto eugénico, deste como aborto seleti- vo ou racista, numa cadeia de definigdes intermindveis que gera uma confus%o sem4ntica aparentemente intransponivel a quem tenta se aproximar do campo. No entanto, ao invés de se deixar aba- lar pela diversidade conceitual, 0 primeiro passo de uma pesquisa sobre o aborto € desvendar quais os pressupostos morais que estdo por trds das escolhas. Hé uma certa regularidade moral na selegao de cada conceito. Basicamente, pode-se reduzir as situagdes de aborto a quatro grandes tipos: 1. Interrupgdo eugénica da gestacao (IEG): sao os casos de aborto ocorridos em nome de praticas eugénicas, isto é, situagdes em que se interrompe a gestacZo por valores racistas, sexistas, €tnicos etc. Os atos praticados pela medicina nazista sio comu- mente citados como exemplos de IEG, j4 que mulheres foram obrigadas a abortar por serem judias, ciganas ou negras.* Em ge- 2— Miller-Hill, B. Ciéncia Assassina: como cientistas alemaes contribuiram para a eliminagéo de judeus, ciganos ¢ outras minorias durante o nazismo. Rio de Janeiro: Xenon. 1993. ENSAIOS: BIOETICA uy ral, a IEG processa-se contra a vontade da mulher gravida, sendo esta obrigada a abortar; 2. Interrupgdo terapéutica da gestacéo (ITG): sao os casos de aborto ocorridos em nome da satide materna, isto é, situagdes em que se interrompe a gestag4o para salvar a vida da mulher gravida. Hoje em dia, em face do avango cientiffico e tecnolégico ocorrido na Medicina, os casos de ITG sao cada vez em menor nimero, sen- do raras as situagdes terapéuticas que exigem tal procedimento; 3. Interrupgio seletiva da gestacao (ISG): séo os casos de abor- to ocorridos em nome de anomalias fetais, isto é, situagGes em que se interrompe a gestacdo pela constatacao de ma-formagées fetais. Em geral, os casos que justificam as solicitagdes de ISG sao de patologias incompativeis com a vida extra-uterina, sendo o exem- pho chéssico © da anencefalia’. No Brasil, apés a apreventagio de uma aco judicial no Supremo Tribunal Federal, a proposta é que os casos de anencefalia no sejam qualificados como aborto, mas como antecipacao terapéutica do parti 4, Interrupgao voluntaria da gestacio (IVG): sao os casos de aborto ocorridos em nome da autonomia reprodutiva da mulher gra- vida ou do casal, isto é, situagdes em que se interrompe a gestagdo porque a mulher ou o casal no mais deseja a gravidez, seja ela fruto de um estupro ou de uma relaco consensual. Muitas vezes, as legis- laces que permitem a IVG impéem limites gestacionais 4 pratica. Com excecio da Interrupgao Eugénica da Gestacio, todas as ou- tras formas de aborto, por principio, levam em consideragao a von- tade da mulher gravida ou do casal de manter a gravidez. Para a maioria das pessoas, esta € uma diferenca fundamental entre as pré- ticas, uma vez que a autonomia reprodutiva das mulheres € um dos pilares de grande parte das teorias bioéticas. Assim, no que concerne A terminologia, os trés altimos tipos de aborto € que sero aqui dis- cutidos, por serem estes os que mais diretamente estéo em pauta na discussao bioética. 3 — Diniz, D. O aborto seletivo no Brasil e os alvards judiciais. Bioética. 5. 1997: 19-24. 4 ~ Diniz, D. ¢ Ribeiro, D. Aborto por Anomalia Fetal. 2. ed. Brasilia: LetrasLivres. 2004. 118 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA Em geral, Interrupcao Seletiva da Gestacao € também denomi- nada como Interrup¢ao Terapéutica da Gestagao, sendo esta a jus- taposicao de termos mais comum. Na verdade, muitos pesquisa- dores e pesquisadoras utilizam Interrupgao Terapéutica como um conceito agregador para 0 que aqui subdivido em Interrupgio Se- letiva e Interrupgdo Terapéutica. Esta é uma tradic&o semantica herdada, principalmente, de paises onde a legislagio permite am- bos os tipos de aborto, nao sendo necessdrio, assim, estabelecer uma diferenciagao entre as praticas. No entanto, por considerar que, mesmo para estes pafses onde o conceito Interrupcio Tera- péutica é mais adequado, em alguma medida ele ainda pode gerar confusdes, uma vez que hd limites gestacionais diferenciados para Os casos em que se interrompe a gestacao em nome da satide ma- terna ou de anomalias fetais. Além disso, o alvo das atencdes € di- ferente nos casos de Interrupg&o Seletiva e Interrupgao Terapéuti- ca: no primeiro, a satide do feto é a razao do aborto; no segundo, a satide materna. O outro motivo que justifica diferenciar a sade materna da satide fetal para a escolha da terminologia a ser adota- da € 0 fato de varios escritores denominarem a Interrupgao Seleti- va de Interrupcao Eugénica. Este é um exemplo interessante da “terminologia de guerra” do campo. O termo “seletivo” remete diretamente & pratica a que se refere: € um feto que, devido a ma-formagao fetal, em geral in- compativel com a vida extra-uterina, faz com que a mulher gravi- da nfo deseje o prosseguimento da gestacao. Houve, é claro, uma seleg&o, s6 que em nome da impossibilidade da vida extra-uterina. Tratar, no entanto, o aborto seletivo como eugénico é intencional- mente confundir as prdticas. Especialmente porque a ideologia eugénica ficou conhecida por nao respeitar a vontade individual. A diferenga fundamental entre a prdtica do aborto seletivo e a do aborto eugénico € que nao hd a obrigatoriedade de se interromper a gestacZo em nome de alguma ideologia de exterminio de pessoas consideradas como indesejaveis, como fez a medicina nazista. A Interrupgao Seletiva da Gestagao ocorre por op¢ao da mulher. Muitos autores e autoras, especialmente os vinculados a movimentos sociais como 0 movimento de mulheres, preferem falar em autonomia reprodutiva ao invés de Interrupcao ENSAIOS: BIOETICA 119 Voluntdria da Gestac&o.’ Na verdade, entre ambos os conceitos hd uma relagio de dependéncia e nao de excluséo. Apesar de o valor que rege a Interrupc&o Voluntéria ser 0 da autonomia reprodutiva, a autonomia reprodutiva pode ser considerado um conceito “guarda-chuva” que abarca néo apenas a questao do aborto, mas tudo o que concerne a satide reprodutiva. Na verdade, como jé foi dito, o principio do respeito 4 autonomia é © pano-de-fundo de boa parte das discussdes contemporaneas em bioética secular. Além da variedade conceitual, outro ponto interessante, no to- cante ao estilo dos artigos sobre 0 aborto, é a escolha dos adjetivos utilizados pelos autores e autoras para se referir a seus oponentes mo- rais. Nao raro, encontram-se artigos que chamam profissionais bio- médicos, operadores e operadoras do Direito que realizam ou auto- rizam o aborto como “abotteiros”, “homicidas”, “assassinos” ou “car- niceiros”.* Na verdade, ha relatos de casos de clinicas de aborto que foram incendiadas e pessoas que nelas trabalhavam agredidas por grupos contrarios ao aborto — grupos “defensores da vida", como se autodenominam. Fala-se do feto abortado como “vitima inocente” ou mesmo “crianga inocente”. Adjetivos como “hipécrita” ou “cri- minoso” valem para ambos os lados, sejam de quem aceita ou resiste & pratica. Nem mesmo sobre o resultado de um aborto hé consenso: as denominagGes variam desde “embrio” e “feto” até “crianga”, “nZo nascido”, “pessoa” ou “individuo”.” Um exemplo classico, porém pontual, desta retérica sedutora e violenta que é a ténica do debate sobre 0 aborto, € 0 video Grito Silencioso (The Silent Scream), editado por grupos contr4rios a pré- tica do aborto. O filme mostra as supostas reacdes de um feto de 12 semanas (tempo méximo permitido por varias legislag6es pata a Interrup¢ao Voluntéria da Gestaco) durante um aborto. Vale a pena conferir um trecho da narragdo em que as pessoas sao convidadas a 5 — Lloyd, L. “Abortion and health care etnics Ii . An | Gulon, K. CO) x HancAES Vac care ethics. Chichester: John Wiley and Sons. 1994: 559-76. 6 — Mori, M. “Abortion and health care ethics I: a critical analysis of the main arguments”. In : Gillon, R. (ed.) Principles of health care ethics. Chichester: John Wiley and Sons. 1994: 531-46. 7 = Finnis, J. “Abortion and health care ethics” II. In : Gillon, R. (ed.). Principles of health care ethics. Chichester: John Wiley and Sons. 1994: 547-57; Video The Silent Scream. Human Life International. American Portrait Films Educational. 28 min. 120 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA identificar-se com 0 feto: “.... esta pequena pessoa, com 12 semanas, é um ser humano completamente formado e absolutamente identi- ficdvel. Tem apresentado ondas cerebrais desde as seis semanas...”.° Nao é preciso recorrer a argumentos baseados na neurofisioembrio- logia, como fizeram alguns autores e autoras na intengao de provar a impossibilidade de um feto de 12 semanas sentir dor, para analisar 0 objetivo de um video como esse. A idéia é provocar, em quem vé, a compaixao pela suposta dor do feto durante 0 aborto e, conseqiien- temente, sustentar o principio do direito & vida desde a fecundacao que, como veremos mais adiante, é um dos pilares da argumentagao contréria ao aborto. No entanto, é precisamente esse tipo de discurso que gera uma das maiores dificuldades na selecao da literatura sobre o aborto: misturam-se argumentos cientificos e crengas morais com a mesma facilidade com que se combinam ingredientes em uma re- ceita de bolo. Caso fosse possivel estabelecer uma escala onde os extrernos mo- tais sobre 0 aborto estivessem nas pontas, a representacio seria algo do tipo: O quadro apesar de ser uma redugio grosseira das realidades mo- rais & linguagem grdfica, possui o mérito de facilitar a compreensao e localizagao das idéias sobre o aborto. Entre os extremos morais re- presentados, hd uma infinidade de pequenas variac6es que, aparen- temente, sao incoerentes aos principios maiores, sejam eles o“da hete- ronomia ou da autonomia. Eis alguns exemplos: certos grupos de- fensores da heteronomia da vida sao, especificamente no que se refere Heteronomia da vida Autonomia reprodutiva v v Santidade da vida Tangibilidade da vida v v Aborto é crime ___ Aborto € moraimente neutro 8 — Video The Silent Scream. Human Life International. American Portrait Films Educational. 28 min. ENSAIOS: BIOETICA 121 ao aborto, defensores incondicionais da autonomia reprodutiva das mulheres, portanto, reconhecem em alguma medida a tangibilidade da vida do feto. O exemplo mais conhecido desta combinagZo € 0 grupo Catdlicas Pelo Direito de Decidir. Este movimento é compos- to por mulheres catdlicas, inclusive tedlogas, que defendem o direito de a mulher decidir sobre sua reprodugio. Pelo vinculo religioso, estas mulheres encontram-se sob o ideal da heteronomia, porém, ao mesmo tempo, séo adeptas de um movimento social que defende a autonomia no campo reprodutivo. Outro exemplo sao alguns lideres politicos reconhecidamente defensores da liberdade individual e, conseqiientemente, defensores da autonomia, porém adeptos do principio da heteronomia da vida no que concerne ao aborto. Isso ocorre basicamente porque no campo da moral, com raras exceg6es, as pessoas nao se comportam com a coeréncia légica co- mum aos tratados de Filosofia Moral. As escolhas morais processam- se de intimeras maneiras — com influéncias da familia, do matriméd- nio, da escola, dos meios de comunicacg&o em massa etc. — 0 que acaba por mesclar principios e crengas aparentemente inconcilidveis. Na verdade, grande parte das pessoas encontra-se confusa entre os extfemos motrais acima representados. Poucos séo os grupos ou movimentos sociais e religiosos que se identificariam com um deles. No entanto, a eficdcia do grafico est4 na propriedade de resumir 0 objeto de conflito no debate bioético. Grande parte das publicagdes sobre o tema do aborto gira em torno dos principios da heteronomia e da autonomia. Assim, para fins de compreensdo, chamaremos os autores e autoras defensoras da heteronomia da vida e os defensores e defensoras da autonomia reprodutiva, respectivamente, como opo- nentes € proponentes da questao do aborto. Esta é apenas uma ma- neira de agregar as diferencas entre as tendéncias com o intuito de esclarecer por onde se conduz, hoje, o debate sobre o aborto em bioé- tica. Além disso, os extremos morais, exatamente por sua radica li- dade, possuem propriedades heuristicas na andlise da questiio. O argumento principal dos defensores da legalizagao ou des- criminag&o do aborto é 0 do respeito 4 autonomia reprodutiva da mulher, baseado no principio da liberdade individual. Na bioéti- ca, o aborto nao é tema exclusivo de mulheres ou de militantes de movimentos sociais; a idéia de autonomia individual possui uma 122 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA penetracdo imensa na bioética secular. E em torno do principio do respeito 4 autonomia reprodutiva que os proponentes da questdo do aborto agregam-se. E, historicamente, o que melhor representa a idéia de autonomia reprodutiva para os proponentes é a analo- gia feita em 1971, por Judith Thompson, no artigo Uma Defe- sa do Aborto (A Defense of Abortion), entre a mulher que nao deseja 0 prosseguimento da gestac&o e a mulher presa involunta- riamente a um violinista famoso.’ Vale conferir um pequeno tre- cho da fantdstica histéria de Thompson: “_. Vocé acorda no meio da manhi e se vé, lado a lado, na cama com um violinista inconsciente. Um famoso violinista inconscien- te. Ele descobriu que tinha uma doenga renal fatal e a Sociedade dos Amantes da Musica, apés avaliar todos os recursos médicos disponiveis, descobriu que vocé era a tinica que tinha exatamente © tipo sangiiineo capaz de socorré-lo. Eles tinham lhe seqiiestrado e, na noite anterior, o sistema circulatério do violinista fora ligado ao seu, de forma que seus rins poderiam ser usados para extrair as impurezas do sangue dele bem como as do seu sangue. Neste mo- mento, o diretor do hospital lhe diz: ‘Entenda, nds nos sentimos mal pelo que a Sociedade dos Amantes da Miisica fizeram com vocé — nds jamais permitiriamos, se soubéssemos antes. Mas agora, eles jd 0 fizeram, e 0 violinista esté ligado a vocé. Para desliga-lo, ele morrerd(...) Mas nZo se desespere, serd apenas por nove meses. Depois disso, ele ir4 recuperar-se com alimentagao propria e poderd ser desligado de vocé a salvo’...”."° Esta histéria provocou uma verdadeira onda de discussdes e debates, tendo quem argumentasse que 0 exemplo de Thompson servitia apenas para casos onde a gestacao fosse fruto de wioléncia sexual e quem sustentasse que 0 respeito ao principio da autono- mia era a quest4o-chave do relato. J os oponentes do aborto tém como questio central a hetero- , nomia, isto é, a idéia de que a vida humana € intocdvel. Na bioé- tica, os oponentes do aborto nao sao apenas aqueles vinculados a crengas religiosas, sendo esta, a0 contrério, uma idéia difundida até mesmo entre pesquisadores e pesquisadoras laicas. Na verda- 9 — Thomson, J. J. A defense of abortion. Philosophy and Public Affairs. 1971: 1:47-66. 10 — Thomson, J. J. A defense of abortion. Philosophy and Public Affairs. 1971: 1:51 ENSAIOS: BIOETICA 123 de, 0 principio da heteronomia da vida estd tao arraigado na for- magao de profissionais de satide e de operadores do Direito que te- mas como a eutandsia e a clonagem nao sao bem-vindos. A crenga em um sentido para a vida humana além do corpo é muito difun- dida no mundo ocidental cristao. Se, por um lado, os proponentes da legalizacdo do aborto en- contram abrigo no princfpio da autonomia reprodutiva e, por ou- tro, Os Oponentes no principio da heteronomia da vida humana, as diferengas entre os dois grupos se acentuam ainda mais nos desdo- bramentos argumentativos destes principios. Enquanto os propo- nentes se unem em torno do valor da autonomia, os oponentes esforgam-se por desdobrar 0 principio da heteronomia em pegas de retérica que irdo determinar, de uma vez por todas, o debate sobre o aborto. A partir do instante em que os desdobramentos ar- gumentativos dos oponentes passaram a fazer parte do discurso bioético em torno do aborto, a discussfo tomou rumos jamais imaginados. Desde ent&o, os oponentes se fazem presentes com um discurso ativo, a0 passo que os proponentes se caracterizam por ter assumido um posicionamento reativo aos argumentos con- trdrios ao aborto. Uma vez aceito o principio da heteronomia da vida humana, os teéricos preocupados em sustentd-lo partem constantemente ao encontro de argumentos filoséficos, morais ou cientificos para manté-lo. Alguns deles j4 se tornaram classicos no debate sobre o aborto. Dois argumentos sao centrais e, por estarem vinculados, é impossivel analisd-los em separado. O primeiro é a crenga de que 0 feto € pessoa humana desde a fecundacao; o segundo, a defesa da potencialidade do feto em tornar-se pessoa humana. Sustentar a idéia de que o feto € pessoa humana desde a fecun- dagio € transferir para o feto os direitos e conquistas sociais consi- derados restritos aos seres humanos em detrimento dos outros animais. O principal direito — e o mais alardeado pelos oponentes da questao do aborto — é 0 direito 4 vida. Todas as implicagdes ju- ridicas e antropolégicas do status de pessoa humana seriam, com isso, reconhecidas no feto. E, para os mais extremistas, sendo o feto uma pessoa humana, torna-se impossfvel qualquer dispositi- vo legal que permita o aborto. John Finnis pode ser considerado 124 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA um exemplo interessante deste posicionamento extremo, quando diz: “... sustento que o tinico argumento razoavel € que 0 nao-nas- cido é j4 pessoa humana (...) Todo ser humano individual deve ser visto como uma pessoa (...) Uma lei justa e ética médica decente que impeca a morte dos nao-nascidos nfo pode admitir a excecao ‘para salvar a vida da me’...”."" Jé a segunda idéia, a de que o feto € uma pessoa humana em potencial, tem ainda maior ntimero de defensores do que a que concede o status de pessoa ao feto desde a fecundacao. A teoria da potencialidade sugere que o feto humano representa a possibilida- de de uma pessoa humana e, portanto, nao pode ser eliminado. Para os representantes da teoria da potencialidade, a transforma- Zo de feto em pessoa humana completa € apenas uma questao de tempo e, € claro, de evolucao. Assim, em nome da fucura transfor- magéo do feto em crianga, sendo 0 grande marco o nascimento, 0 aborto nao pode ser permitido. Tanto pata os defensores da teoria da potencialidade quanto para os defensores da idéia de que o feto é ja pessoa humana desde a fecundacao, o aborto possui o signifi- cado moral e jurfdico de um assassinato ~— e € desta maneita que seus expoentes se referem A pratica. Diante de argumentos como estes, os proponentes da legalidade do aborto assumem, entdo, uma argumentac&o reativa. Com algu- mas exceces, na bioética, os defensores do aborto rararnente utili- zam uma positividade no discurso.'? Em geral, quando os argumen- tos favordveis ao aborto se afastam do principio da autonomia repro- dutiva, 0 alvo € desconstruir a retérica contratia ao aborto, especial- mente as duas teorias anteriormente expostas. Frente a defesa de que 0 feto € pessoa humana desde a fecundacio, o contra-argumento é que a idéia de “pessoa humana” € antes um conceito antropolégico que juridico, exigindo, portanto, a relagao social para fazer sentido. O status de pessoa nao é mera concessao, mas sobretudo uma con- quista através da interagao social. Por outro lado, hé autores e auto- ras na bioética que argumentam que, mesmo havendo alguma mo- ralidade no feto, se a mulher desejar interromper a gestago, seus Ti — Finis, J. “Abortion and health care ethics II". In : Gillon, R (ed.). Principles of health care ethics, Chichester: John Wiley and Sons. 1994: 547-57. 12 — Singer, Peter. Etica prética. Sao Paulo: Martins Fontes, 1993; Kuhse, H.; Singer, P. Should the baby live?. Oxford: Oxford Press. 1985 ENSAIOS: BIOETICA 125 direitos reprodutivos devem ser soberanos.ao suposto direito a vida do feto. A conclusao € que os direitos reprodutivos da mulher de- vem prevalecer sob os interesses do feto.” A teoria da potencialidade, assim como entre os oponentes, também apresenta maior simpatia dos proponentes do aborto e isso pode ser visto na enorme discussao quanto aos limites gesta- cionais em que um aborto seria moralmente aceitavel. Em geral, os limites estabelecidos baseiam-se em argumentagGes cientificas tais como: quando 0 feto comeca a sentir dor, quando iniciam os movimentos fetais, quando hé a possibilidade de vida extra-uteri- na, etc. No entanto, nao sao os dados evolutivos da fisiologia fetal que decidem quando se pode ou nao abortar, mas sim os valores sociais associados a cada conquista organica do feto. Sentir ou nao dor, ter ou n&o consciéncia, assim como a mobilidade sao valores sociais que, transferidos para o feto, estruturam os limites entre o que pode e o que nao pode ser autorizado no campo do aborto. Alguns autores e autoras consideram que nao ha diferenga moral entre um embriao, um feto ou um recém-nascido e que qualquer imposicgao de limites gestacionais para a execugdo do aborto faz parte de um exercicio arbitr4rio de restrigao da autonomia repro- dutiva. Por outro lado, 0 argumento da potencialidade pode per- mitir que se afirme que as células sexuais do ser humano sao po- tencialmente uma pessoa, uma idéia considerada absurda para gtande parte das pessoas. No entanto, a maioria dos defensores do aborto argumenta que € necessdria a imposigao de limites gesta- cionais, sendo o nascimento um divisor de 4guas, estando, assim, o infanticfdio fora das possibilidades morais.“ Apesar das diferengas entre proponentes e oponentes, hd alguns pontos em que o didlogo torna-se possivel. Existe uma maior simpatia, tanto do pensamento cientifico quanto do senso comum, pela aceitagao de aborto quando fruto de estupro, de riscos a satide materna ou de anomalias fetais incompativeis com a vida. As divergéncias entre as partes voltam a acentuar-se quando é€ preciso definir os limites gestacionais para cada pratica. De fato, 0 centro 13~ Harris, J. “Nor all babies should be kept alive as long as possible”. In : Gillon, R. (ed.) Principles of health care ethics. Chichester: John Wiley and Sons. 1994: 644-55. 14 — Bermiidez, J. L. The moral significance of birth. Ethics. 106. 1996: 378-403. 126 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA das diferencas esté na possibilidade da mulher decidir sobre a reproducio. Apesat de bastante difundido, o problema da mo- ralidade do aborto é socialmente estruturado e qualquer tentativa de soluciond-lo tem que levar em considerago a diversidade moral ¢ cultural das populacdes envolvidas. Como péde ser constatado, o aborto € uma das questdes paradigméticas da bioética exatamente porque nele reside a esséncia trégica dos conflitos morais. Para certos conflitos morais nao existem solugées imediatas e, talvez, nao seja sequer possivel soluciond-los, cabendo-nos apenas sair 4 procura de mecanismos que nos garantam a convivéncia na diferenca. Doutor, eu quero morrer' Sérgio Costa Recentemente, fui convidado a visitar um centro clfnico de uma pequena cidade estadunidense. Apés rapida permanéncia nas dependéncias do estabelecimento, em verdade uma corrida aos leitos de algumas pessoas doentes e agonizantes, outras em cadei- ras de rodas cercadas por familiares e pessoas amigas, poucas em completa solidi, aproximei-me de uma delas, cujo olhar retrata- va o softimento, nZo escondendo o estado caquético, embora ltici- do, em que se encontrava largada sobre o leito. Mesmo sem jamais ter tido qualquer contato comigo, ao menor sinal de minha apro- ximagdo, sua inica solicitagdo era um suplicio pela morte. Surpre- so, perguntei-lhe o que mais desejava, além do inesperado pedido que me fazia. Ela, prontamente, respondeu: “livre-me desse sofri- mento”. No posto de enfermagem, tive acesso a0 prontudrio, em cujo resumo da doenga constava os seguintes dados sobre a pessoa: “J.H.C., 74 anos, vitivo, geégrafo e professor aposen- tado; portador de cancer gdstrico ha cinco anos, tendo se submetido a quatro intervengdes cirtirgicas, sendo a mais recente uma duodenostomia para a nutricao. A- tualmente apresenta metdstase dssea_generalizada. 1 — Publicado no Jornal do CREMRS. n. 77. ano XVIII. Fev. 2000. 146 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA Submeteu-se também 4 radio e 4 quimioterapia. Inter- nado por apresentar falta de ar e dores em todo 0 corpo que nao cediam com a medicac&o que lhe fora prescri- ta hd mais de trinta dias pelo médico que o visitara na residéncia de um parente”. As ptescrig6es j4 no centro clinico, desde 0 dia da internacao, constavam de analgésicos injetaveis e ansioliticos, além de cuidados gerais. Indaguei 4 enfermeira que me acompanhava sobre o destino dos familiares e fui informado que a esposa falecera hé 6 meses no mesmo estabelecimento e que nao tiveram filhos. Senti-me no de- ver de retornar ao leito e dizer-lhe que na condig&o de visitante nada poderia fazer para minimizar o seu sofrimento ou mesmo para aten- der a stiplica que me fizera. Acrescentei ainda que a minha condi¢&o de estrangeiro imobilizava-me ainda mais. Diante de minhas reite- tadas explicagdes, ele pediu-me entao para realizar uma pequena confissio. Com a voz sOfrega e resistente, ele murmurou: “.., quanto mais me visitam, sei que mais tentam fazer por mim, embora, muito pouco se faca pelo meu sofri- mento. Sou medicado para permanecer vivo rogando a morte. Espero um dia nao poder soltar mais nenhum dos gemidos atrozes, principalmente, quando tento mudar de posi¢&o no leito. De qualquer forma, obfi- gado pela visita...”. Por respeito 4 dignidade daquele senhor, ao expressar-se com tanta convicgio por uma solu¢o alternativa para o seu sofrimen- to, tive a sensagao de que, naquele exato momento, na qualidade de médico, nao me sentia devidamente preparado para encarar a finitude da vida com a mesma trangqililidade que lido, cotidiana- mente, com a dor fisica. Fui avisado pela enfermeira que me acompanhara na visita que o sr. J.H.C. falecera trés semanas depois de nossa conversa. Ela ressaltou ainda que nos dez dias que precederam a sua morte, ele j4 nao falava, nao gemia, nem se mo- via no leito. Para qualquer pessoa doente, o real significado.da morte € a sua prépria morte, seja ela fisica ou social. Desta forma, para a ENSAIOS: BIOETICA 147 pessoa doente, é normal que se solicite o melhor processo de mor- rer, de acordo com as suas convicgdes pessoais e seus valores mo- tais. Por isso mesmo, perante 4 morte, nem sempre as expectativas de quem esta doente e de quem cuida serao coincidentes. Se, por um lado, é frustrante para nés, médicos e médicas, tomar conhe- cimento que alguém recusou determinado tratamento sabendo que poderia salvar-lhe a vida ou mesmo prolongé-la, sentimento igual experimentard a pessoa que se sentiré marginalizada, igno- rada ou simplesmente abandonada por quem deveria lhe assistir, mas que lhe nega alivio imediato para o seu sofrimento. O confli- to que se instala entre a pessoa doente que deseja a morte e o mé- dico ou a médica que julga ter por dever “medicd-la” faz com que a pessoa se sinta extremamente isolada e incapaz, enquanto o outro se sentiré impotente diante das possibilidades triunfalistas que a Medicina costuma lhe oferecer. O reconhecimento de que a autoridade da técnica no nos confere a autoridade ética sobre as decisdes relativas 4 morte é ainda um aprendizado dificil e lento de ser assimilado. Nao € possfvel medicalizar as opgGes morais € éticas de todas as pessoas, sejam elas o sr. J.H.C. ou quaisquer outras que, cotidianamente, nos impdem conflitos morais da or- dem do experimentado por mim durante a visita ao centro clinico. Segundo Baundouin e Blondeau, em livro intitulado Etica da morte e o direito 4 morte (Ethique de la mort et droit a la mort), a morte sempre tem estado presente na histéria da humanidade e, em nome disso, € necessdrio que se faga uma andlise das safdas his- térica e socialmente estabelecidas para os conflitos impostos pelo fim-da-vida.? A eutandsia, ativa ou passiva, voluntéria ou involun- tdria, sempre existiu como uma pratica usual e aceita por quase todas as civilizagdes em algum momento de sua histéria. Quem j4 nao leu que 0 povo esquimé canadense, por exemplo, abandonava pessoas idosas sobre 0 gelo até morrerem? E que grupos japoneses, por sua vez, utilizavam a Colina da Morte? Nas civilizag6es oci- dentais, no entanto, o surgimento do pensamento cristaéo modifi- cou radicalmente esse pressuposto, tornando a morte um momento intocdvel pela cultura humana. 2 — Baundouin, J. L. ¢ Blondeau, D. Ethique de la Mort et Droit a la Mort. Paris: Presses Universicaires de France. 1993. 148 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA A despeito de todas as razGes histéricas e das pressdes morais exercidas, sejam a favor ou contrérias 4 morte por compaix4o, va- mos identificar em quase todos os segmentos sociais de diferentes sociedades contempordneas alguns paradoxos, tanto nos argumen- tos como nas condutas morais adotadas. A eutandsia ativa conti- nua sendo condenada moral, religiosa e juridicamente. Todavia, ja se admice que o ser humano tem a liberdade de fato, senao de di- reito, de deliberar sobre sua prépria morte, sem se expor necessa- tiamente as condenacGes civis ou mesmo religiosas. A liberdade de decidir sobre a prépria morte, isto é, de optar pelo limite da tolerabilidade do sofrimento fisico e mental, constitui uma das Gltimas e mais fundamentais conquistas que a coletividade huma- na deve proporcionar a seus individuos. O respeito pela dignidade do softimento de cada pessoa deve ser soberano sobre todos os te- mores e respaldos morais que apontam para os riscos citados nos debates sobre eutandsia. Definitivamente, nao é possfvel que te- nhamos que conviver com a idéia de que a morte pressupoe flage- lo ou mesmo violac’o de um dos direitos mais fundamentais do ser humano: a dignidade.

Você também pode gostar