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Debora Diniz e Sérgio Costa ENSAIOS: BIOETICA editora brasiliense LemasKuvecS Bioética no Brasil’ Debora Diniz Da Medicina ao Direito, fala-se em bioética. Os temas de bioé- tica estéo na pauta didria da midia internacional: aborto, clona- gem, eutandsia, Projeto Genoma Humano e transplante de érgdos so algumas das questées bioéticas mais conhecidas. A bioética faz parte do debate legislativo, politico e ético de grande parte dos pafses desenvolvidos onde as comissGes facionais consultivas de bioética foram instituidas desde os anos 1980.'No Brasil, temos associagoes profissionais, cursos de pés-graduacao, disciplinas de graduagao em diferentes carreiras, pessoas interessadas em bioé- tica no campo da Medicina e do Direito, em um claro indicativo do quanto a bioética é uma disciplina académica sdlida no pais. Em 2005, o tiltimo congresso brasileiro da Sociedade Brasileira de Bioética reuniu cerca de 700 pessoas. Mas o que seria a bioética? Formalmente, a bioética surgiu nos Estados Unidos na década de 1970. Este foi um perfodo marcado por intensas transformagées sociais e a bioética é resultado desse processo critico de mudanga. Como um ramo da ética aplicada a satide, a bioética consolidou-se a partir da certeza de que no bastava o ensino da técnica para a formago de profissionais biomédicos competentes. A histéria dos crimes de guerra, em especial apés o Julgamento de Nurembergue, 1 = Publicado na Revista do Terceiro Setor. Junho de 2004. 2 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA mostrou que era urgente a reflexZo ética em satide. E esta reflexio deveria ser uma tarefa realizada por diferentes profissionais e nao apenas por profissionais de satide. Desde ento, a bioética caracte- riza-se por ser um campo marcadamente multidisciplinar.? Nao hé um profissional bioeticista. Nao se formam bioeticis- tas nem no Brasil nem em nenhum lugar do mundo. O que ha sao advogados, antropélogas, assistentes sociais, dentistas, enfermei- ras, fil6ésofas, juristas, médicos, socidlogas, tedlogas, entre uma ampla gama de profissionais, sensiveis 4s questdes bioéticas. Em algum momento da vida, grande parte das pessoas, seja no exerci- cio de suas profissdes ou em suas vidas privadas, se deparard com questdes bioéticas. Decisdes delicadas, tais como se as pessoas po- dem ou nao decidir o momento em que desejam morrer ou se deve ou nfo ser permitida a comercializagéo de 6rgaos humanos, sao al- gumas das questdes bioéticas que interessam a todas as pessoas. Ao mesmo tempo em que a bioética é um instrumento poli- tico de intervengao em situagdes de conflito moral em satide, é também um campo de ensino e pesquisa em ética social. A- bioética € um campo de ensino, pesquisa e intervencao social e politica em situag6es de conflito moral em satide, uma vez que se debruga sobre temas em que nao hd um acordo moral sobre como devemos proceder. A clonagem é uma dessas situagGes e, certa- mente, uma das mais delicadas para a bioética nos tiltimos tem- pos. Se, por um lado, nao sabemos como clonar uma pessoa huma- na com seguran¢a, por outro nao dispomos de uma reflexdo social responsdvel sobre se queremos ou nao algum dia viver em uma so- ciedade que autoriza a clonagem humana. A bioética nfo se resume, portanto, 4 técnica biomédica. Por isso, a infinidade de profissionais que representa a bioética brasi- leira. Os desafios morais da clonagem, e de outros temas bioéticos mais antigos, como o aborto ou a eutandsia, devem ser analisados sob diferentes perspectivas profissionais e ndo meramente a da seguranga cientifica do procedimento ou de cédigos morais espe- cificos. Nao bastam técnicas seguras ou cédigos religiosos para solucionar nossos desafios éticos. A decisao sobre a difusao e auto- 2 — Para uma anélise mais detalhada da bioécica, vide Diniz, D. e Guilhem, D. O que é Bioética. Sio Paulo: Ed. Brasiliense. 2002. ENSAIOS: BIOETICA 23 rizagao de uma tecnologia é, acima de tudo, uma escolha moral sobre padrées sociais de bem viver. E nossas escolhas éticas devem sempre levar em consideragao a diversidade de crengas e valores da populacao brasileira. Neste momento, encontram-se em tramitagéo no Congresso Nacional projetos de lei que procuram regulamentar questées im- portantes para a bioética, como o aborto ou a clonagem humana. Infelizmente, o que motiva e fundamenta grande parte das discus- sdes legislativas nao € 0 espirito bioético da divida e da argumen- tagéo moral razodvel, em que se reconhece a impossibilidade de uma resposta tinica para os conflitos morais em satide. Alguns te- mas bioéticos, como € 0 caso do aborto, poem em discussdo nosso compromisso com a pluralidade e a tolerancia, dois princfpios éti- cos fundamentais 4 democracia e centrais 4 grande parte das teorias bioéticas vigentes. Um debate legislativo sério sobre 0 aborto, por exemplo, nao pode se resumir 4 defesa de moralidades religiosas sobre 0 estatuto do feto, mas deve enfrentar e reconhecer o direito inaliendvel de autonomia das mulheres. Mas como levar adiante este compromisso bioético se os projetos de lei em tramitag&o recu- sam-se a reconhecer os dois princfpios fundamentais da bioética, o da autonomia e da pluralidade moral? Em nome disso, € possivel resumir as ambigdes da bioética a dois pontos. O primeiro, e certamente o mais importante, a bioé- tica assumiu para si a tarefa da educacio ética sobre as questées de satide, doenca e pesquisa biomédica. £ possivel ensinar e sensibi- lizar as pessoas para 0 pensamento ético e, por isso, ha cursos de pds-graduacao em bioética nas melhores universidades brasileiras e internacionais. A bioética faz parte de nossas decisdes cotidianas em hospitais, tribunais ou parlamentos, nao se restringindo ao trabalho académico ou de pesquisa. A segunda ambicgio da bioéti- ca € democratizar o conhecimento ético, nao permitindo que este seja um discurso restrito a poucas categorias profissionais ou espe- cialistas. A reflexdo bioética faz parte da vida cotidiana de todas as pessoas e seu aprendizado tornard nossas sociedades mais demo- créticas e plurais. Bioética e conflitos morais' Sérgio Costa e Debora Diniz A Histéria conta que Rui Barbosa foi um dos maiores oposicio- nistas da vacinacdo obrigatéria no Brasil. © inicio do século XX foi um periodo marcado por grandes ¢ avassaladoras epidemias que exi- giram uma revisdo de polfticas nacionais de satide ptiblica. A obri- gatoriedade da vacinagao foi uma dessas medidas, adotada por quase todos os paises do mundo, inclusive pelo Brasil. A contrariedade de Rui Barbosa nao foi conseqiiéncia de uma insanidade temporaria do escritor ou mesmo de uma oposi¢ao politica sem fundamento 4s idéias de Oswaldo Cruz. Naquele perfodo, a possibilidade de ser imunizado por meio de vacinas era uma descoberta sem precedentes € os impactos moral e sanitério ainda nao haviam sido devidamente assimilados pela populagao, nem tampouco pelo liberal Rui Barbo- sa. O contra-argumento de Rui Barbosa era 0 de que as pessoas esta- tiam sendo desrespeitadas em sua integridade e autonomia (em suas palavras, “violavam-se as liberdades piblicas”), caso fossem subme- tidas & lei da vacinagao obrigatéria recém-promulgada, de autoria do ent&o senador Lauro Sodré. Independente dos beneffcios sociais da vacinag&o no que dizia respeito ao controle e prevencéo de epi- demias — na verdade, naquele periodo, falava-se de promessa de prevengao do que mesmo de certezas quanto 4 eficdcia das vacinas 1 Publicado em O Mundo da Satide. Sao Paulo. ano 23. vol. 23 Maio/Junho 1999: 189-190. 30 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA —, a oposi¢ao de Rui Barbosa se justificava pela defesa irrestrita das liberdades piblicas dos cidadaos. Passado pouco mais meio de século da polémica em torno da vacinagao, a figura oposicionista de Rui Barbosa perde-se na His- toria. B praticamente impossivel encontrarmos, hoje, amigos mo- fais pata as crengas contrdrias 4 vacinacao do politico-escritor. A vacinagao obrigatéria é um dos poucos itens das normas de satide plblica considerada consensualmente necesséria a0 pais. Nao se fala mais da “imoralidade”, do “desrespeito” ou mesmo da “vio- léncia” da vacinagao publica obrigatéria. Regra geral, as familias submetem-se pacificamente as exigéncias da vacinacao. Nao se noticiam mais os dilemas morais em torno da imunizagao, como €ra comum no infcio do século passado. A eticidade da vacinagao atravessa diferentes credos, classes sociais, etnias e regides. Seguramente, se a bioética tivesse surgido no inicio do século passado, o tema da vacinacao publica obrigatéria comporia o rol de referéncia dos casos analisados pela abordagem temitica, jun- tamente com outras questOes jé classicas, como 0 aborto, a euta- ndsia ou transplante de érgaos. Tanto pessoas interessadas na bio- *€tica quanto representantes de movimentos sociais organizados se empenhariam em analisar os conflitos morais e as conseqiién- cias sociais e individuais da adog&o da nova técnica de imuniza- go. Certamente adotariam uma postura semelhante & que vem sendo adotada em relagéo as novas tecnologias reprodutivas, on- de pessoas envolvidas com pesquisa na bioética quanto represen- tantes de movimentos religiosos ou de mulheres acompanham o desenvolvimento das pesquisas.? A vacinacao obrigatéria seria te- ma de simpésios, debates ou mesmo projetos de lei, tanto quan- to sao atualmente as questdes do aborto ou da Aids, por suas im- plicagdes morais na satide das populacées. Mas 0 que ha de diferente entre os temas da vacinacao obrigaté- tia e do aborto ou da eutandsia? Por que essa sélida tranqiiilidade em relagao a vacinagao nao existe em relagdo a outros temas cujas hist6rias sociais so tao ou mais antigas que a vacinagao? Dentre ou- 2 ~ Seguramente, caso venha a ser descoberta a vacina de imunizagao contra o virus HIV, uma série de questionamentos sero postos em pauta. O teor das controvérsias, no entanto, nao seré €m telagdo & imporeancia da vacinagio, mas sim aos possiveis efeitos secundétios que a vacina possa apresentar. ENSAIOS: BIOETICA 31 tras respostas possiveis a estas questdes, a bioética sugeriria o se- guinte argumento: o tema da vacinac&o conquistou uma certa sere- nidade moral ainda impossivel para os temas do aborto ou da euta- ndsia; a vacinagao nao € mais alvo de discérdias morais, havendo, portanto, um certo consenso sobre sua eticidade. E exatamente por no set ponto de conflito moral, a vacinago nZo compde o rol dos temas analisados pela bioética. A bioética preocupa-se, portanto, com as situacdes de vida, especialmente dos seres humanos, situa- Ges estas que estejam em meio a diferentes escolhas morais quanto aos padres de bem-viver. Desta forma, a proposta de mediacao dos conflitos morais sugerida pela bioética distingue-se dos discursos de ética aplicada anteriores, tais como os cédigos de ética profissional, principalmente pelo seu cardter n&io-normativo, nao-imperativo e, especialmente, por sua harmonia com uma das maiores conquistas do mundo ocidental pés-iluminismo: o respeito e a tolerancia a di- ferenca moral da humanidade. A discé6rdia moral faz parte da vida humana organizada em so- ciedades. Onde houve seres humanos reunidos em sociedades, exis- tiram diferengas, diferengas estas que conduziram ao conflito. A novidade € que, para as sociedades herdeiras dos valores iluminis- tas e defensoras da democracia liberal, considera-se 0 dissenso uma qualidade a ser cultivada. A pluralidade de sujeitos morais € a mar- ca de uma sociedade que se cré livre, democratica e que busca lidar com 0 conflito moral humano da forma menos violenta possfvel. A questo que persiste, no entanto, é saber em que medida é€ vidvel um projeto de respeito e tolerancia 4 diversidade e que respeite as particularidades de cada crenga ao mesmo tempo em que evite a _viol@ncia que acompanha os confrontos de moralidade.? A bioética faz parte de um desses projetos de tolerancia na di- versidade. Com_o reconhecimento da pluralidade moral da huma- © nidade e, conseqtientemente, da idéia de que diferentes crengas e “valores regem temas como o aborto, a eutandsia ou a doagdo de Orgaos, tornou-se imperativa a estruturacZo de uma nova disciplina académica que mediasse esses conflitos cotidianos, comuns nao ape- nas 4 pratica médica. E é sob esse espirito tolerante que a bioética 3 — Sobre o tema da diversidade moral e dos conflitos, vide: Diniz, Debora. Conflitos Morais e Bioética. Brasflia: LetrasLivres. 2001. 32 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA ‘nao elege certezas morais para a humanidade. A resposta definitiva para os conflitos nao esta nas pessoas ou nas teorias bioéticas, mas sim no préprio desenrolar da histéria moral das sociedades. Henry Beecher e a hist6ria da bioética' Debora Diniz Foi paralelamente a publicagao do livro Bioética: uma ponte para o futuro (Bioethics: bridge to the future), de Van Rensselaer Potter, criador do neologismo bioética, que Henry Beecher divul- gou um dos artigos que mais assombro provocou na comunidade cientifica mundial, desde o antincio das atrocidades cometidas pe- los médicos engajados no nazismo. Beecher era um médico aneste- sista, que colecionava relatos de pesquisas cientificas publicadas em periddicos internacionais envolvendo seres humanos em condi- Ses pouco respeitosas.? Da compilagao original de 50 artigos, Beecher publicou, em Etica e Pesquisa Clinica (Ethics and Clini- cal Research), 22 relatos em que os alvos de pesquisa eram pessoas tidas tradicionalmente com pouca representatividade politica: in- ternas em hospitais de caridade, adultos com deficiéncias mentais, criangas com retardos mentais, idosos, pacientes psiquidtricos, re- cém-nascidos, presididrios, enfim, pessoas incapazes de assumirem 1 — Publicado em © Mundo da Satide. Sao Paulo. ano 24. vol. 24. Agosto/ Serembro. 1999: 175-183. Algumas as idéias foram também discutidas em: Diniz, D. Conflitos Morais e Bioética. Brasflia: LetrasLivres. 2001 2 — Segundo Rothman, as revistas de onde Beecher extraiu seus dados eram veiculos de grande preseigio internacional, como: New England Journal of Medicine, Journal of Clinical Investigation, Journal of American Medical Association, Circulation (Rothman, D. Ethics and Human Experimentation: Henty Beecher Revisited. The New England Journal of Medicine. vol. 317. n. 19. 1987: 1196). 34 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA uma postura moralmente ativa diante de quem conduzia a pes- quisa e 0 experimento.? Da anilise desses relatos de pesquisas, uma das conclusdes teé- ricas de Beecher que ainda impressiona pelo vanguardismo foi sua critica ao uso do termo de consentimento informado como mera prescri¢ao de rotina cientifica:* “...a idéia de que o consentimento foi obtido assume pouca import&ncia, a nao ser que o sujeito ou seu responsdvel tenha capacidade de compreender o que esté sen- do feito...” Ou seja, Beecher sugeria que nao bastava o recolhi- mento do termo de consentimento como uma salvaguarda legal, mas que este deveria representar uma compreensio livre quanto ao experimento, uma idéia que hoje é consensual na bioética. Mas, em nome desta fragilidade do termo de consentimento e de um certo vacuo ético que dominava a pesquisa cientifica no periodo pés-Segunda Guerra, o autor sugeria uma significativa freqtiéncia de pesquisas envolvendo maus-tratos com humanos em torno de 25% do total dos estudos publicados. Os ntimeros e os dados de Beecher, além do 6bvio mérito denunciatério, tiveram um efeito secundério inesperado: demonstrou-se que a imoralidade nio era exclusiva dos médicos nazistas. Foi assim que Beecher conseguiu uma proeza de fazer inveja aos sensacionalistas modernos: trouxe © horror da imoralidade da ciéncia, dos confins dos campos de concentragao, para 0 meio cientifico e académico hegeménico. Independente da provocacio irénica que os dados de Beecher su- geriam em relagao ao autoritarismo ético que alguns paises exercem em relacao ao restante do mundo, a compilagao dos maus-tratos em pesquisa desencadeou outro tipo de andlise, além, é claro, do susto original provocado pela dentincia. Vale conferir a mais interessante delas, sugerida por David Rothman, autor do livro Estrangeiros 4 Beira do Leito (Strangers at the Bedside), um estudo hist6rico que desvenda o lado perverso do surgimento da bioética: “...0 julgamen- to dos médicos nazistas em Nurembergue, por exemplo, recebeu 3 — Beecher, H. Ethics and Clinical Research. The New England Journal of Medicine. june. 16. 1966: 1354-1360. 4— Apesar de o Brasil rer optado pelo conceito “consentimento livre e esclarecido”, 2 expresso usada originalmente por Beecher foi mantida, 5 — Beecher, H. Ethics and Clinical Research. The New England Journal of Medicine. June. 16. 1966: 1360. ENSAIOS: BIOETICA 35 pouca cobertuta da imprensa e, antes da década de 1970, 0 proprio cédigo raramente era citado ou discutido nas revistas médicas. Pes- quisadores e clinicos estadunidenses aparentemente consideravam Nurembergue irrelevante para seu proprio trabalho. Eles acredita- vam (erroneamente, como mais tarde se demonstrou) que os experi- mentos bizarros e cruéis nao haviam sido conduzidos por cientistas e médicos, mas por oficiais nazistas s4dicos e, portanto, que pesqui- sadores dedicados nao tinham nada a aprender da experiéncia...”. Ou seja, os tratados humanitérios e de defesa dos direitos humanos, assinados por intimeros paises, inclusive os Estados Unidos, nao haviam ecoado na pratica cientifica até os anos 1970, haja vista, por exemplo, o caso da pesquisa sobre a histéria natural da sifilis que foi desenvolvida durante quase quarenta anos com comunidades negras no estado do Alabama, em um perfodo onde os métodos de preven- GGo e cura da doenga ja estavam difundidos. O que o artigo de Beecher demonstrava era que as tegras de controle, fossem elas po- licialescas ou de efeito moral, nao eram para todas as pessoas, apenas para as imorais, uma alteridade que nao inclufa a si mesmo. Era urgente, portanto, alguma forma de difusao dos principios morais da cultura dos direitos humanos que nao fosse somente pela referén- cia a tratados e convencées de cardter tao abstrato e distante como estavam sendo a Declarac&o de Helsinque ou o Cédigo de Nurem- bergue até aquele momento. Foi neste contexto que a bioética consolidou-se como uma disci- plina académica nos principais centros de pesquisa dos Estados Uni- dos, nos anos 1970. A certeza de que a imoralidade nao era uma fa- culdade de espirito exclusiva dos médicos e pesquisadores nazistas, um fato incémodo denunciado pelo artigo de Beecher, fez com que a comunidade cientifica, especialmente a estadunidense, se deparasse com a fragilidade da protec&o ética das pesquisas envolvendo seres humanos que vigorava até aquele momento. Tornou-se, portanto, imperativa a referéncia 4 outra estrutura de pensamento que nao fos- se a moralidade de cada profissional responsdvel pela assisténcia ou pela pesquisa. Como sugere Rothman, foi esta desestruturagio da 6 — Rothman, D. Strangers at the Bedside: « history of how law and bioethics cransformed medical decision making. USA. Basic Books: 1991; Rothman, D. Ethics and Human Experimentation: Hency Beecher Revisited. The New England Journal of Medicine. vol. 317. n. 19. 1987: 1587 36 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA “ética 4 beira-do-leito” (bedside ethics) — isto é, da referéncia moral da Medicina do periodo antes da guetra, quando os atendimentos eram feitos nas residéncias e as pesquisas cientificas tinham como Participantes o préprio pesquisador e sua familia — 0 que permitiu o surgimento da bioética como uma instancia mediadora dos conflitos morais. Era preciso que profissionais de satide e responsdveis pela pesquisa passassem de confidentes morais para distantes morais, pois este seria o tinico movimento que tornaria possfvel o reconhecimento da diversidade moral de opinides e crencas. A partir de entao, passou a ser defendida a idéia de que médicos, médicas e pessdas doentes no necessitavam ter as mesmas crengas para que se respeitassem mutuamente, pois 0 encontro moral poderia ser mediado por outra instancia além da moralidade particular de cada pessoa: a bioética. O interessante desse momento inicial de estruturacio da bioé- tica foi o papel exercido pelos movimentos sociais de defesa dos direitos humanos. Os dados de Beecher apontavam, com uma cer- ta sutileza perversa, para as estruturas sociais de dominagio, fos- sem elas de raca, género, classe ou idade. Tal como sugeriu Hans Jonas, em seu pronunciamento no debate promovido pela revista Daedalus sobre o artigo de Beecher, entre as pessoas pesquisadas nao havia sequer um cientista, fato que Jonas afirmava ser incom- preensivel.’ Vale conferir a transcricio feita por Rothman da manifestagao ir6nica de Jonas: “...aqueles mais aptos para dar o consentimento, isto é, os mais educados, com maior capacidade de escolha, deveriam ser os primeiros a serem consultados para a pes- quisa. (...) os cientistas-pesquisadores deveriam estar, portanto, no topo da lista, ao contrdrio dos prisioneiros que deveriam estar no fim...”. Jonas denominava esta diferenciacio quanto 4 capacidade de consentir com a pesquisa como o “princfpio da ordem descen- dente”. Nos termos de Jonas, haveria uma espécie de gradacao na intensidade da compreensao do experimento e de seus riscos e, nessa escala de vulnerabilidade, as pessoas responsdveis pela pes- quisa seriam as mais protegidas, portanto, as mais aptas a se sub- meterem & pesquisa. Por outro lado, presidiarios e presididrias, 7 ~ Além de Jonas, outras 14 pessoas foram convidadas para comentar o artigo de Beecher, entre elas estavam o proprio Henry Beecher, Guido Calabresi, Paul Freund, Margaret Mead, Talcore Parsons ¢ Jay Katz (Rothman, D. Strangers at the Bedside: a history of how law and bioethics transformed medical decision-making. New York: USA Basic Books. 1991: 97). ENSAIOS: BIOETICA 37 pessoas idosas e deficientes mentais, isto é, todas aquelas denun- ciadas por Beecher, estariam dentre as mais vulnerdveis, devendo, assim, estar fora dos experimentos. Depois dos casos denunciados por Beecher e de seus desdobra- mentos argumentativos, a bioética viveu um impulso considerdvel. Na década de 1970, foram feitas as primeiras publicagdes teéricas que procuravam sistematizar o pensamento bioético. Dentre as pu- blicagdes mais importantes da década, estao as edicdes dos primeiros livros e propostas teéricas voltadas para a cotidianidade dos conflitos morais na pratica biomédica. O curioso desta primeira leva. de publicacdes, em que Problemas Morais na Medicina (Moral Pro- blems in Medicine) e Principios da Etica Biomédica (Principles of Biomedical Ethics) foram as mais importantes da década, foi o apelo a teorias normativas da Filosofia Moral, uma estrutura de pensa- mento que, ainda hoje, €é dominante na bioética, especialmente naquela praticada em paises periféricos da bioética como o Brasil. A teoria dos quatro principios € um exemplo paradigmiético dos fun- damentos das primeiras propostas tedricas do campo. : A referéncia aos principios éticos como sendo a instancia me- didora dos conflitos morais vem sendo um recurso de pensamento que permite transpor a incomensurabilidade dos conflitos morais, ao apelar para um ser humano além da contingéncia das culturas e das moralidades. Talvez, o principal mérito de teorias bioéticas inspiradas em um ser humano transcendental que obedeceria aos princfpios da autonomia ou beneficéncia foi apontar para uma saf- da ética para os conflitos morais, que se daria pela sublimacao das contingéncias da diversidade moral. Seguramente foi esta cons- truco filos6fica, em especial a defesa de um tribunal e de um ser humano além-das-contingéncias, 0 que propiciou o impulso 8 — Goroviez, S.; Jameron, A.; Macklin, R.; O'Connor, J.; Perrin, E.; Clair, B.; Sherwin, S. (org). Moral Problems in Medicine. New Jersey: Prentice-Hall. 1976; Beauchamp, Childress, J. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press. 1979. Para os conceitos de central e periférico na bioética, vide: Garrafa, V.; Diniz, D.; Guilhem, D. Bioethical language, its dialects and idiolects. Cad. Satide Pablica. Rio de Janeiro. 15 Gup.1). 1999: 35-42. Somente a titulo de compreensio, lembramos que 0 conceito de bioética petiférica refere-se & condico da produgio te6rica da bioética brasileira, isco é, marcadamente importadora de teorias biogticas dos paises centrais da bioética. Os conceitos de central e peri- fécico, apesar de sua feferéncia lexical 8 estrucura econémica e social, diz respeito exclusivamen- te 20 fluxo internacional do conhecimento em bioética. 38 DEBORA DINIZ E SERGIO COSTA inicial e necessdtio a estruturacdo da bioética nos centros académicos de todo o mundo. Uma caracteristica desses estudos de ética aplicada, como ini- cialmente ficou conhecida a bioética, foi o reforco de perspectivas filos6ficas metafisicas, isto é, a referéncia a autores, autoras € estruturas argumentativas que nao diretamente estavam aptas a lidar com a realidade que havia impulsionado o surgimento da bioética. As primeiras teorias bioéticas teferiam-se a uma estrutu- ta social e moral da humanidade sem contrapartida no mundo teal. Para essas teorias, havia um ser humano ideal, inserido em uma estructura deciséria também ideal, em que o sujeito kantiano, cumpridor de seus deveres, era a referéncia analitica preferida. Era um mundo idealizado, onde se supunha que as pessoas, diante de decisées importantes, como 0 momento da motte, por exemplo, mediriam sua competéncia decis6ria por meio de princfpios éticos considerados como a referéncia valorativa de bem-viver para a hu- Imanidade. Essas teorias, ao invés de enfrentar a crueldade da auséncia de sentido inerente aos conflitos de moralidades, fossem eles 0 aborto, a eutanésia ou a venda de érgaos, optaram pelo ca- minho trangiiilizador da sublimaco do trdgico. O interessante € que nfo se negou diretamente o real, nem tampouco os conflitos que 0 acompanhavam, pois, na verdade, falou-se destes conflitos como nunca antes na historia da moralidade biomédica. O que havia era apenas um siléncio em torno da incomensurabilidade dos conflitos, uma vez que a referéncia era a humanidade como uma abstracio. Em conseqiién- cia, a ilus&o de uma solugao para os conflitos morais recuperou sua forca. Foi assim que, inesperadamente, a disciplina que havia surgido para aproximar o espirito da diversidade moral e os conflitos morais no campo biomédico, decretou antecipadamente sua fraqueza para enfrentar a crueldade dos impasses préprios da tealidade e dos interesses e desejos humanos. O disfarce ético dissimulava a diversidade de crengas e amenizava a inquietagao imerente 4 tomada de decisdes. Desta forma, os prtimeiros vinte anos de exercicio da bioética caracterizaram-se pelo conforto das verdades transcendentes, em especial pela teoria dos quatro prin- cipios, que impediam a experiéncia da crueldade do real e de sua ENSAIOS: BIOETICA 39 auséncia de sentido. Escapamos das pesquisas perversas descritas por Beecher para encontrarmos repouso em outra encruzilhada: a ilusdo de solugdes éticas simples para os conflitos morais.

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