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Novas Fronteiras Culturais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

NOVAS FRONTEIRAS CULTURAIS:


Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

Sônia Regina Romancini


Edenilson Dutra de Moura
Giseli Gomes Dalla Nora
Onélia Carmem Rossetto
Edison Antônio de Souza
Organizadores

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

GAPTA/UFPA
Belém
2023

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


GRUPO ACADÊMICO PRODUÇÃO DO TERRITÓRIO E MEIO
AMBIENTE NA AMAZÔNIA

Reitor da UFPA: Prof. Dr. Emmanuel Zagury Tourinho


Líder do GAPTA: Prof. Dr. João Marcio Palheta
Editor de Publicações do GAPTA: Prof. Dr. Christian Nunes da Silva
Revisão Textual: Elaine dos Santos
Diagramação: Joyce Caetano e Christian Nunes da Silva
Imagem da Capa: Ponte Binacional na fronteira franco-brasileira -
Edenilson Dutra de Moura

Comissão Editorial GAPTA


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Prof. Dr. Adolfo Oliveira Neto

Conselho Editorial GAPTA


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Prof. Dr. Ricardo José Batista Nogueira

Conselho Consultivo GAPTA


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Prof. Dr. Cristiano Quaresma de Paula – UFRG
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Prof. Dr. David Gibbs McGrath – UFOPA
Prof. Dr. Eduardo Shiavone Cardoso – UFSM
Prof. Dr. Flávio Rodrigues do Nascimento – UFC
Prof. Dr. Gilberto de Miranda Rocha – UFPA
Prof. Dr. José Sobreiro Filho – UFPA
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Profa. Dra. Juliana Canga – UniLuanda
Profa. Dra. Lisandra Pereira Lamoso – UFGD
Profa. Dra. Maria Célia Nunes Coelho – UFRJ
Profa. Dra. Maria de Fátima Nunes Carvalho - IPBEJA
Prof. Dr. Maria Lúcia Brito da Cruz – UECE
Prof. Dr. Robert Walker – Florida University

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático:


1. Geografia 910
Tábata Alves da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9253
Os conceitos, declarações e opiniões emitidos nos manuscritos são de
responsabilidade exclusiva do (s) autor (es).
Todos os direitos reservados aos Autores
Impresso no Brasil

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
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FRONTEIRAS TEMÁTICAS 1
PAISAGENS E FRONTEIRAS CULTURAIS

Capítulo 1. Cartografia de algumas das novas-velhas


fronteiras culturais
Fernando Tadeu de Miranda Borges
24

Capítulo 2. Paisagem vernacular: visibilidades e


invisibilidades
Otávio José Lemos Costa
38

Capítulo 3. Fronteira, faixa de fronteira e paisagem


urbana fronteiriça: interpretações para a realidade
franco-brasileira a partir de Oiapoque – Amapá
Edenilson Dutra de Moura
51
José Borzacchiello da Silva

Capítulo 4. Cidades-irmãs para além da ideia de faixa de


fronteira: uma breve discussão bibliográfica
Evaldo Ferreira
76

Capítulo 5. Fronteiras e redes fronteiriças: percepções


sobre o litígio territorial entre Ceará e Piauí
Lucas Bezerra Gondim
91

Capítulo 6. Características socioespaciais no arco central


da fronteira brasileira: olhares geográficos sobre a faixa
de fronteira mato-grossense
Gabriel de Miranda Soares Silva
102

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 2
CIDADE E CAMPO – TRAJETÓRIAS
SOCIOCULTURAIS

Capítulo 7. Do Sul para a Amazônia. Exclusão e luta: 40


anos depois. Uma breve reflexão
Edison Antônio de Souza
115

Capítulo 8. O sonho de Brasil potência: os projetos


governamentais de desenvolvimento para a Amazônia
na segunda metade do século XX e seus impactos para
o século XXI 138
Vitale Joanoni Neto
Leidiane Gomes de Souza

Capítulo 9. Migrações e práticas culturais em Guarantã


do Norte MT
Sérgio Alberto Pereira
152

Capítulo 10. O lugar das trocas, fluxos, encontros e


resistências: leituras sobre a Feira Municipal de Nova
Mutum-MT 173
Swelington de Lima Fonseca

Capítulo 11. O ensino de Geografia e as escolas do


campo: olhares geográficos para realidades do estado
de Mato Grosso
Gabriella Matos Santiago
186
Giseli Gomes Dalla-Nora

Capítulo 12. Lamparinas do Pantanal: geografia do


gênero nas áreas rurais do Pantanal brasileiro
Onélia Carmem Rossetto 201

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 3
FESTA DO(A) PADROEIRO(A)!

Capítulo 13. A geografia da fé: olhares sobre a festa de


Santana em Caicó-RN
Marluce Silvino 217
José Borzacchiello da Silva

Capítulo 14. Festa de São Sebastião na Bocaina em


Santo Antônio de Leverger-MT
Bernadeth Luiza da Silva e Lima
239

Capítulo 15. A influência portuguesa da devoção


mariana na Região Metropolitana do Vale do Rio
Cuiabá 257
Sônia Regina Romancini

Capítulo 16. Viva Santo Antônio! O padroeiro de


Leverger – MT
Claudinete Magalhães da Silva
Sônia Regina Romancini
273
Edenilson Dutra de Moura

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 4
SABERES INDÍGENAS E PRÁTICAS
DECOLONIAIS

Capítulo 17. A produção colaborativa de materiais


didático em aldeias 289
Alceu Zoia

Capítulo 18. Escrita de mulheres indígenas:


desestabilizando fronteira no espaço acadêmico 302
Águeda Aparecida da Cruz Borges

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Capítulo 19. Capoeira Angola, manifestação ancestral


Lindomar José Barros 319
Capítulo 20. “Mais que batalha de rap": emoções,
espacialidades e narrativas de MC’s
Marcia Alves Soares da Silva 342
Davi dos Santos Leite “MC Mache”

Capítulo 21. Lavagem das Escadarias da Igreja de


Nossa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito
em Cuiabá: olhares, perspectivas e o debate crítico
Lucas Neris Araújo 363
Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 5
REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS EM
DIFERENTES CONTEXTOS

Capítulo 22. As galerias de arte na paisagem de Cuiabá-


MT: reflexões à luz da Psicologia Social
Sônia Regina Romancini
Aliff dos Santos Brito
382
Dienny Nayara Ribeiro

Capítulo 23. Práticas culturais no ensino de Geografia


em Poconé-MT: a dança dos Mascarados
Denize Gonçalina Valéria Vicente
Aline Celestina dos S. Silva
399
José Carlos Marinho da Silva
Sônia Regina Romancini

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Capítulo 24. A Cidade de Goiás: o Festival Internacional


de Cinema e Vídeo Ambiental e a vida vilaboense
João Victor Cordeiro Gama
411
Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

Capítulo 25. A representação do campo mato-grossense


na mídia jornalística: reflexões sobre a questão agrária
em Mato Grosso
Jania Cebalho
421
Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira

Capítulo 26. Qualidade de vida no bairro Araés: o bem-


estar urbano de um bairro cuiabano
Fernando Marcio Paiva Machado
Sônia Regina Romancini
432
Edenilson Dutra de Moura

Capítulo 27. Novos espaços urbanos: os impactos


ambientais no entorno da Avenida Contorno Leste em
Cuiabá-MT
Gilvani Leandro Sales Teixeira 444
Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

SOBRE OS AUTORES 460

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

11
Novas Fronteiras Culturais

APRESENTAÇÃO
Este livro digital traz a lume os temas discutidos no
seminário intitulado “Novas fronteiras culturais: práticas e
representações”, ocorrido entre os dias 28 de junho e 01 de julho
de 2022, na Universidade Federal de Mato Grosso, em parceria
com o Programa de Pós-graduação em Geografia, o Departamento
de Geografia, o Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade – GECA, a Universidade Federal
do Amapá – Câmpus Binacional de Oiapoque e a Universidade do
Estado de Mato Grosso – Câmpus Sinop.
O Seminário propiciou um diálogo interdisciplinar entre
professores, educadores, acadêmicos de pós-graduação e de
graduação, pesquisadores e público interessado nessa temática,
promovendo a reflexão sobre questões relevantes na
contemporaneidade.
A presente obra “Novas fronteiras culturais: paisagens e
representações na perspectiva geográfica” está organizada em
cinco sessões, assim denominadas: Fronteiras temáticas 1 -
Paisagens e fronteiras culturais, Fronteiras temáticas 2 -
Cidade e campo – trajetórias socioculturais, Fronteiras
temáticas 3 - Festa do(a) padroeiro(a)!, Fronteiras temáticas
4 - Saberes indígenas e práticas decoloniais e Fronteiras
temáticas 5 - Representações espaciais em diferentes
contextos, que colocam em evidência os debates ocorridos
durante o seminário, conforme evidenciado na sequência.

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 1
PAISAGENS E FRONTEIRAS CULTURAIS

No capítulo 1, denominado Cartografia de algumas das


novas-velhas fronteiras culturais, Fernando Tadeu de Miranda
Borges aponta que o ensaio cartografa no tempo presente a
situação das fronteiras culturais mato-grossenses em meio a
engarrafamentos, estrangulamentos e tensões. Observa que a
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

fronteira da fome alargou e que o novo das fronteiras culturais


entrelaça com as teias das velhas fronteiras culturais. Cartografar o
estado, por meio da “estadualização”, junto com a América do Sul
integrada, pode constituir-se no começo do processo de
transformação.
No capítulo 2, Paisagem vernacular: visibilidades e
invisibilidades, o autor Otávio José Lemos Costa tece uma
discussão acerca da paisagem em geografia, longe de esgotar,
parece sempre trazer questões ora elucidativas, ora questionadoras.
O texto tem por objetivo mostrar a temática da paisagem enquanto
patrimônio cultural associada à dimensão do vernáculo. Enfoca os
aspectos simbólicos de determinadas paisagens, como a arquitetura
vernacular presente na Serra da Meruoca, localizada no estado do
Ceará.
O capítulo 3, denominado Fronteira, faixa de fronteira e
paisagem urbana fronteiriça: interpretações para a realidade
franco-brasileira a partir de Oiapoque – Amapá, dos
pesquisadores Edenilson Dutra de Moura e José Borzacchiello da
Silva, apresenta uma reflexão sobre a multiplicidade analítica da
questão fronteiriça a partir de um enfoque multiescalar e uma
perspectiva teórica-propositiva sobre a fronteira do Brasil com a
Guiana Francesa. Tal abordagem revela possibilidades de
interpretação de uma paisagem urbana sob a ótica fronteiriça, que
produz, na cidade, elementos centrais para uma compreensão dos
modos de produção espacial.
No capítulo 4, Cidades-irmãs para além da ideia de
faixa de fronteira: uma breve discussão bibliográfica,
apresentado por Evaldo Ferreira, o autor destaca que a necessidade
da defesa das fronteiras, a manutenção do território e da autonomia
nacional é preocupação de qualquer nação. O capítulo apresenta
uma breve discussão sobre esses dois conceitos, utilizando, como
procedimento metodológico, a análise bibliográfica e citando
alguns acordos de cooperação realizados entre cidades-irmãs
brasileiras.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

13
Novas Fronteiras Culturais

No capítulo 5, Fronteiras e redes fronteiriças:


percepções sobre o litígio territorial entre Ceará e Piauí, o
pesquisador Lucas Bezerra Gondim afirma que, para compreender
a tensão que envolve os conflitos territoriais, é necessário
identificar os fenômenos culturais que se articulam e que são
articulados pelas pessoas que vivenciam o espaço e suas
especificidades, onde criam e recriam dinâmicas em seu cotidiano
com o meio. Nessa perspectiva, o capítulo busca instigar reflexões
acerca do litígio territorial entre Ceará e Piauí que se estende por
mais de dois séculos e hoje é oficialmente uma disputa jurídica,
representada pela Ação Cível Originária 1831, elucidando as causas
da disputa territorial protagonizada pelas duas unidades federativas
nordestinas.
O capítulo 6, intitulado Características socioespaciais
no arco central da fronteira brasileira: olhares geográficos
sobre a faixa de fronteira mato-grossense, de autoria de Gabriel
de Miranda Soares Silva, ressalta que Mato Grosso possui, como
característica marcante em seu território, espaços da fronteira,
apesar desse espaço ser tema de poucas análises e reflexões. Esta
pesquisa visa apresentar as características socioespaciais dos
espaços da fronteira do Arco Central, especificamente a área de
fronteira do Mato Grosso com a Bolívia, destacando os municípios
lindeiros, Cáceres, Porto Esperidião, Vila Bela da Santíssima
Trindade e Comodoro. Tais reflexões apresentam resultados de
pesquisa de mestrado desenvolvida pelo autor.

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 2
CIDADE E CAMPO – TRAJETÓRIAS
SOCIOCULTURAIS

No capítulo 7, intitulado Do Sul para a Amazônia.


Exclusão e luta: 40 anos depois. Uma breve reflexão, o
pesquisador Edison Antônio de Souza tece uma reflexão sobre a
colonização da Amazônia Mato-grossense no contexto do avanço
da fronteira agrícola, 40 anos depois, com seus impactos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

econômicos, sociais e ambientais. O texto apresenta um balanço


historiográfico à luz das pesquisas desenvolvidas sobre a questão
rural e a trajetória dos colonos expulsos de suas terras no Rio
Grande do Sul. Tal processo de exclusão e luta foi intensificado
por meio dos grandes projetos governamentais no sentido de
reocupação da Amazônia brasileira e a mato-grossense em
particular.
Por meio do capítulo 8, O sonho de Brasil potência: os
projetos governamentais de desenvolvimento para a
Amazônia na segunda metade do século XX e seus impactos
para o século XXI, Vitale Joanoni Neto e Leidiane Gomes de
Souza analisam os impactos dos programas governamentais na
Amazônia Legal após 1960, especificamente, os planos do governo
militar do Brasil e consideram seus impactos no bem-estar das
famílias e na qualidade de vida no sul da Amazônia. Por fim,
demonstram que as políticas de desenvolvimento na Amazônia
contribuíram para a urbanização da floresta que, por um lado,
melhoraram os serviços públicos, as comunicações e a
infraestrutura, no entanto, também levaram à reprodução de graves
problemas nacionais, incluindo os altos índices de desigualdade
social e econômica e seus efeitos sobre os mais pobres.
No capítulo 9, Migrações e práticas culturais em
Guarantã do Norte-MT, Sérgio Alberto Pereira ressalta que a
origem do município de Guarantã do Norte, localizado ao longo
da BR-163, está relacionada ao Plano de Integração Nacional que
implantou, no local, dois projetos de colonização oficial, o PAC –
Peixoto de Azevedo e o PA – Braço-Sul, além deles, centenas de
famílias foram se instalando na região a partir da construção da
rodovia, motivadas pela propaganda governamental da época. O
autor investiga as representações sociais dos envolvidos, suas
manifestações culturais e como as pessoas ou grupos organizaram-
se para manter seus hábitos culturais, incluindo festas, danças,
religiosidade e práticas esportivas.
No capítulo 10, O lugar das trocas, fluxos, encontros e
resistências: leituras sobre a Feira Municipal de Nova

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Mutum-MT, Swelington de Lima Fonseca evidencia que a feira


livre representa um fenômeno geográfico de fundamental
importância para os agentes que fazem parte dela e para a dinâmica
do município, ligando campo e cidade em uma complexa teia de
relações. Destaca, ademais, as dinâmicas econômicas e
socioculturais da Feira Municipal Felix Soupinsk, em Nova
Mutum-MT, e desenvolve uma reflexão ampliada a partir das
relações sociais que produzem esse espaço, conferindo à feira
dimensões tanto de lugar quanto de território.
O capítulo 11, O ensino de Geografia e as escolas do
campo: olhares geográficos para realidades do estado de
Mato Grosso, de Gabriella Matos Santiago e Giseli Gomes Dalla-
Nora, evidencia que a educação no campo deriva da demanda dos
povos do campo para sua manutenção e permanência, pois, assim,
garante que não seja necessário buscar a educação básica fora de
sua região de vivência. As autoras buscam conhecer o ensino de
Geografia nas escolas do campo, bem como compreender o papel
do professor de Geografia no âmbito da educação do campo na
escola de assentamento rural, procurando interpretar suas
fragilidades e potencialidades a partir da perspectiva dos
assentados.
No capítulo 12, Lamparinas do Pantanal: geografia do
gênero nas áreas rurais do Pantanal brasileiro, a pesquisadora
Onélia Carmem Rossetto busca descrever e refletir sobre o
cotidiano das mulheres que residem nas fazendas pantaneiras,
ressaltando as relações de gênero e analisa o papel feminino no
contexto intergeracional das famílias. O percurso metodológico
esteve centrado na pesquisa etnográfica, análise de conteúdo e na
perspectiva qualitativa. Os resultados apontaram que os
pantaneiros e pantaneiras sustentam os padrões da sociedade
patriarcal marcada pelo machismo que enaltece o sexo masculino
sobre o feminino e transmitem tal ideologia entre as gerações.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

16
Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 3
FESTA DO(A) PADROEIRO(A)!

No capítulo 13, intitulado A geografia da fé: olhares


sobre a festa de Santana em Caicó-RN, os autores Marluce
Silvino e José Borzacchiello da Silva salientam que espaço e tempo
são categorias inseparáveis para a compreensão de qualquer
fenômeno, pois o tempo realiza-se nos espaços e deixa, nele, as
suas marcas que revelam a história do lugar. Em Caicó, no interior
do Rio Grande do Norte, ocorre a maior festa de padroeiro do
estado, que denota um impacto socioeconômico de grande
magnitude considerando-se a escala da urbe. Essa discussão utiliza,
como lastro conceitual da escrita, a reflexão sobre a cidade, a festa
e seu desenrolar com o passar dos anos, o enfoque se dá em
compreender à luz da geografia a relação entre o surgimento e a
consolidação da cidade e o evento religioso cultural destinado à
Santana.
O capítulo 14, Festa de São Sebastião na Bocaina em
Santo Antônio de Leverger-MT, de autoria de Bernadeth Luiza
da Silva e Lima, analisa a festa de São Sebastião na Bocaina,
realizada no município de Santo Antônio de Leverger-MT. O
estudo mostra a realização da última festa nos dias 25 a 27 de
janeiro de 2020. São entoados os cânticos sacros em conjunto com
a banda da polícia militar, com foguetório, andor com a imagem de
São Sebastião e de Nossa Senhora Auxiliadora, bandeira, dentre
outros. O estudo mostra a sociabilidade e as riquezas culturais do
lugar e suas interações com outros grupos sociais.
No capítulo 15, denominado A influência portuguesa da
devoção mariana na Região Metropolitana do Vale do Rio
Cuiabá, a autora Sônia Regina Romancini destaca a importância
de Nossa Senhora na denominação de paróquias da Arquidiocese
de Cuiabá, sob diferentes títulos. O estudo evidencia que o
Santuário Eucarístico Nossa Senhora do Bom Despacho constitui
importante referencial na paisagem urbana de Cuiabá, um lugar de
memória e de práticas sociais e religiosas herdadas de outras

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

gerações, com ênfase para a Novena e Festa de Nossa Senhora do


Bom Despacho.
O capítulo 16, Viva Santo Antônio! O padroeiro de
Leverger-MT, de autoria de Claudinete Magalhães da Silva, Sônia
Regina Romancini e Edenilson Dutra de Moura, demonstra que a
festa do padroeiro constitui uma referência identitária para as
pessoas do município de Santo Antônio de Leverger- MT, que
possuem orgulho do espaço edificado pelos seus antepassados e
expressam sua devoção por meio da festa, compartilhada com os
membros da comunidade de fiéis e com os visitantes. As
manifestações culturais, como, por exemplo, a devoção aos santos
padroeiros, denotam o quão importante é para o fortalecimento
dos laços afetivos entre as pessoas, bem como para a manutenção
da vida comunitária.

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 4
SABERES INDÍGENAS E PRÁTICAS DECOLONIAIS

No capítulo 17, A produção colaborativa de materiais


didático em aldeias, o pesquisador Alceu Zoia realiza análises
teóricas dos resultados obtidos a partir da produção de materiais
didáticos realizados através do projeto Ação Saberes Indígenas na
Escola, desenvolvido em rede, de âmbito nacional, proposto pelo
MEC, na extinta SECADI e envolve diversas Universidades do
país, formando várias redes. No estado de Mato Grosso, o trabalho
foi iniciado no ano de 2017, quando a UFMT tomou a frente na
organização da rede, cuja constituição incluiu o IFMT, o
CEFAPRO e a UNEMAT. A coordenação dos trabalhos
realizados no norte do estado de Mato Grosso serviu como
motivador para desenvolver estudos sobre a produção de materiais
didáticos buscando criar novos instrumentos teóricos e
metodológicos para o desenvolvimento de ações em comunidades
indígenas.
No capítulo 18, Escrita de mulheres indígenas:
desestabilizando fronteira no espaço acadêmico, a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

18
Novas Fronteiras Culturais

pesquisadora Águeda Aparecida da Cruz Borges salienta que o


texto “materializa um compromisso com os povos originários
desde que me livrei da ignorância em relação a eles”. Para o Evento
“Novas fronteiras culturais: práticas e representações" a autora
selecionou o material que compõe a Revista Fragmentum, Nº 58, a
qual organizou. Apresenta alguns aspectos sobre a história do
processo de construção da Revista, abrindo a possibilidade de
provocar um certo tremor nas bases do rigor acadêmico que
sustenta a qualificação das revistas. Reflite sobre a escrita e faz uma
chamada à leitura da edição 58, na comemoração de 20 anos da
Fragmentum, instaurando um espaço de visibilidade à escrita de
mulheres de várias etnias.
No capítulo 19, Capoeira Angola, manifestação
ancestral, o autor Lindomar José Barros sublinha que a Capoeira
foi a manifestação mais decisiva no processo de resistência nos
séculos de escravidão no Brasil. Ela nasceu para libertar o negro. É
uma manifestação da cultura popular brasileira, em que coexistem
aspectos normalmente compreendidos de forma segmentada pela
cultura que se fez oficial, como o jogo, a dança, a mímica, a luta e
a ancestralidade, unidos de forma coesa, simples e sintética. Possui
suas origens em elementos da cultura de várias matizes de povos
africanos que foram escravizados e mantidos em cativeiro no Brasil
do século XVI até o final do século XIX, sincretizados com
elementos de culturas nativas (povos indígenas) e de origem
europeia.
No capítulo 20, “Mais que batalha de rap": emoções,
espacialidades e narrativas de MC’s, os autores Marcia Alves
Soares da Silva e Davi dos Santos Leite “MC Mache” apontam que
para pensar o espaço público, as práticas culturais, movimentos e
interações, é preciso levar em consideração a pluralidade das
experiências humanas, das trocas e encontros proporcionados pela
vida pública. Apresentam uma análise das batalhas de rap em
Cuiabá e Várzea Grande, MT, articulando conceitos como direito
à cidade, espaço público, corpografias urbanas, atmosferas afetivas
e espacialidades emocionais. Discutem tal movimento a partir das

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

19
Novas Fronteiras Culturais

experiências de vida de MCs (Mestres de Cerimônia), tendo, como


base, suas narrativas e experiências emocionais em torno dessas
batalhas, além de refletir sobre os sons como elemento importante
na constituição dessas experiências no espaço público.
No capítulo 21, Lavagem das Escadarias da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito em
Cuiabá: olhares, perspectivas e o debate crítico, os autores
Lucas Neris Araújo, Edenilson Dutra de Moura e Sônia Regina
Romancini apresentam uma análise crítica da “Lavagem das
Escadarias da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito'',
localizada no Centro Histórico de Cuiabá-MT. Com o objetivo de
situar a referida manifestação em seu contexto histórico-
geográfico, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental
sobre o papel da população preta na ocupação do entorno da Igreja
e a manifestação cultural da lavagem das escadarias, assim como
registros históricos e entrevistas com lideranças do movimento e
sacerdotes de casas de candomblé que participam ou não do ritual
da lavagem das escadarias.

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 5
REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS EM DIFERENTES
CONTEXTOS

No capítulo 22, As galerias de arte na paisagem de


Cuiabá-MT: reflexões à luz da Psicologia Social, de autoria de
Sônia Regina Romancini, Aliff dos Santos Brito e Dienny Nayara
Ribeiro, evidencia que a arte ultrapassa as fronteiras, revela
talentos, expressa a vida cotidiana de uma sociedade e perpetua
seus modos de vida, que podem ser vislumbrados por meio da
paisagem urbana. O estudo tem como objetivo central analisar a
importância da arte na vida das pessoas, partindo das experiências
de vida de três conhecidos artistas plásticos, que possuem suas
próprias galerias. Neste sentido, a pesquisa estabelece as relações
entre a paisagem, a arte e a Psicologia Social.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

20
Novas Fronteiras Culturais

No capítulo 23, Práticas culturais no ensino de


Geografia em Poconé-MT: a dança dos Mascarados, os
pesquisadores Denize Gonçalina Valéria Vicente, Aline Celestina
dos S. Silva, José Carlos Marinho da Silva e Sônia Regina
Romancini tecem uma discussão sobre a cultura da dança dos
Mascarados de Poconé e o ensino de Geografia na compreensão
da cultura e como ela pode e deve ser trabalhada na aula de campo,
enriquecendo a aprendizagem do educando. Destacam a
importância da cultura da Dança dos Mascarados para a população
poconeana e como a Geografia pode abordar a cultura
evidenciando aspectos que a legitimam. Nessa perspectiva, a
cultura do município destaca pela fé do seu povo e pela devoção
aos santos católicos, representados pelas manifestações de diversos
grupos culturais.
O capítulo 24, A Cidade de Goiás: o Festival
Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental e a vida
vilaboense apresenta a contribuição de João Victor Cordeiro
Gama, Edenilson Dutra de Moura e Sônia Regina Romancini que
demonstram as influências do Festival Internacional de Cinema e
Vídeo Ambiental no cotidiano da cidade de Goiás, notável
influência no período de realização do evento, mas há impactos da
realização do evento que afetam indiretamente o dia a dia da cidade
durante todo o ano. Nessa perspectiva, a Cidade de Goiás é
apresentada, bem como algumas características culturais
tradicionais do município, buscando relacioná-las ao festival que
passa a fazer parte da vida vilaboense.
No capítulo 25, A representação do campo mato-
grossense na mídia jornalística: reflexões sobre a questão
agrária em Mato Grosso, as pesquisadoras Jania Cebalho e
Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira trazem um recorte de uma
pesquisa sobre como a questão agrária tem sido retratada pela
mídia jornalística no estado de Mato Grosso. Assim, o trabalho
incide em descrever e analisar os discursos da mídia e sua inscrição
ideológica cultural, no modo como ela aborda e apresenta os
assuntos do campo para a sociedade, já que a mídia exerce uma

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

21
Novas Fronteiras Culturais

grande influência na formação de opinião das pessoas. Inclusive, o


dilema da questão agrária, tema debatido no interior da Geografia
no século XX e início do século XXI.
O capítulo 26, Qualidade de vida no bairro Araés: o
bem-estar urbano de um bairro cuiabano, de autoria de
Fernando Marcio Paiva Machado, Sônia Regina Romancini e
Edenilson Dutra de Moura, enfoca o bairro Araés, em Cuiabá-MT,
caracterizado pela diversidade cultural e social. O objetivo da
pesquisa foi analisar as formas de gerar bem-estar para as pessoas
no espaço físico da cidade, considerando os aspectos sociais,
econômicos, políticos e culturais para compreender o bem-estar
urbano. Os procedimentos metodológicos foram compostos por:
pesquisas bibliográficas, notícias e observação direta e
participativa, que permitiu a realização de registros que
representassem os momentos de conflito nesse espaço,
contribuindo na seleção das notícias veiculadas.
No capítulo 27, Novos espaços urbanos: os impactos
ambientais no entorno da Avenida Contorno Leste em
Cuiabá-MT os autores Gilvani Leandro Sales Teixeira, Edenilson
Dutra de Moura e Sônia Regina Romancini colocam em discussão
o planejamento urbano em Cuiabá por meio da área de estudo
constituída pela implantação da Avenida Contorno Leste,
localizada na região Sul de Cuiabá que, conforme evidenciado,
passa por uma especulação imobiliária e um adensamento de sua
área urbana, o que trouxe inúmeras consequências para o meio
ambiente, como a canalização de alguns dos afluentes do rio
Coxipó, supressão e poluição de sua mata ciliar, bem como de seu
leito, entre outros impactos.

Sônia Regina Romancini


Edenilson Dutra de Moura
Giseli Gomes Dalla Nora
Onélia Carmem Rossetto
Edison Antônio de Souza
Organizadores

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 1

PAISAGENS E FRONTEIRAS
CULTURAIS

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 1
CARTOGRAFIA DE ALGUMAS DAS
NOVAS-VELHAS
FRONTEIRAS CULTURAIS

Fernando Tadeu de Miranda Borges

Introdução

As novas-velhas fronteiras culturais instaladas na


sociedade brasileira precisam ser enfrentadas de forma rápida por
conta dos desarranjos econômicos, sociais, políticos e ambientais
existentes. A ideia de “mercado” sobrepõe-se à ideia de “estado”,
em que estão presentes dois tipos de projetos do capital: o
capitalismo de mercado e o capitalismo de estado, como se
existisse apenas o capitalismo, e o socialismo fosse o resultado de
concepções utópicas do pensamento inculcadas pelo capitalismo.
Com a abertura democrática ocorrida no Brasil em 1984, o
encerramento de 20 anos de autoritarismo e a promulgação da
constituição cidadã de 1988, o agravante foi o neoliberalismo
entrar com força na década de 1990, impondo ao país uma direção
diferente da que havia sido pensada. Na região, uma parcela
significativa da sociedade mato-grossense agiu com o objetivo de
uniformizar o pensamento neoliberal.
Nesse processo, ilhas foram criadas, barreiras e distâncias
estabelecidas, desigualdades aprofundadas e ocorreu o afastamento
dos mais diversos saberes, que, por sua vez, realizam a tarefa de
manter a crença na esperança do progresso. Com isso, o meio
ambiente, o emprego, a saúde e a educação destemperaram e o
“desenvolvimento” fortaleceu-se como “mito” (FURTADO, s/d).

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Novas Fronteiras Culturais

Nesse contexto, a ordem sobrepôs-se ao desenvolvimento social


de forma centralizada e desfocada da realidade.
Nesse bojo, as diferenças tenderam a parecer
“amenizadas”, sendo que, no caso de Mato Grosso, a situação
levou a uma certa acomodação. A modernização trouxe conflitos
aceitos como inerentes ao “progresso” e, no braseiro, o
estreitamento do “desenvolvimento” agiu de forma consentida.

Os subterrâneos das novas-velhas fronteiras

A “Geografia Econômica” e a “Demografia” deixaram de


fazer parte dos currículos do Curso de Economia da Universidade
Federal de Mato Grosso, engessando a fronteira estatal, na
tentativa de delegar as reponsabilidades para a fronteira do
mercado e, como consequência, houve o enfraquecimento na
busca por alternativas. A fronteira entre ricos e pobres foi
intensificada e a transformação ficou na retórica. O subemprego, a
fome, a concentração da renda, as desigualdades, as questões de
saúde e ambientais, tornaram-se problemas crônicos. As
perspectivas de futuro parecem ter evaporado e a dependência foi
mostrada sob variados prismas em trabalhos de autores como Caio
Prado Junior (2000), Sérgio Buarque de Holanda (1995), Darcy
Ribeiro (2000), Fernando Novais (1993) e outros.
A necessidade de atender as novas-velhas fronteiras das
pessoas que vivem com fome, que estão desempregadas, dos
velhos, dos jovens, dos índios, dos negros, dos estrangeiros, dos
estudantes, dos retirantes, dos sem-terra, dos que precisam ter os
direitos garantidos porque direitos não são privilégios, vive um
impasse. Há que resolver essa situação, tendo em vista que as
fronteiras estão cada vez mais ausentes umas das outras. Tem as
fronteiras dos bairros, fronteiras das lojas, fronteira das “cidades
proibidas”, que são os condomínios fechados, fronteiras dos bailes
e dos bares, fronteira do vestibular e do Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Contudo, as fronteiras entre ricos e pobres, a fronteira da


fome, a fronteira amazônica, as fronteiras religiosas, as fronteiras
entre magros e gordos, as fronteiras das cores, as fronteiras
políticas, as fronteiras entre jovens e velhos, as fronteiras
comportamentais, as fronteiras do invisível e do visível, as
fronteiras de gênero, as fronteiras sexuais, as fronteiras da
educação a distância, as fronteiras da educação presencial, parecem
estar em processo de crescimento e com resultados imprevisíveis.
A Universidade Federal de Mato Grosso surgiu com o
dístico de Uni-Selva-Amazônica e, em 1972, criou, junto com os
governos federal, estadual e municipal de Aripuanã, o Projeto da
Cidade Científica de Humboldt (LOMBA, 1973), em busca de
sustentabilidade para a região através de um centro de estudo e
pesquisa. Incompreendido pelas fronteiras políticas do período, o
projeto foi interrompido e a tentativa de aproximação com a
fronteira da floresta amazônica arquivada. Como consequência, o
país voltou ao começo, tendo de reajustar-se aos saberes vindos de
fora, uma espécie de “colônia” rendendo-se aos interesses da
“metrópole”. É evidente que o país não era mais uma colônia, mas
agiu como se ainda fosse. E, neste ponto a indagação, Caio Prado
Junior (2000) tinha razão quando chamou o Brasil de colônia em
pleno século XX?

O infinito como limite da fronteira geográfica e econômica

Uma fronteira que precisa ser mais pensada é a da


Amazônia, mas com ação prática porque o meio ambiente tem
pressa, a Terra clama por socorro e a poluição dos rios está à deriva
se nada for feito. A fronteira com os índios que parecia não existir
por conta das fotos e das reportagens ao estilo do século XIX, no
tempo presente, aprofundou bastante. O índio continua sendo um
desconhecido. As áreas da Amazônia deveriam ser monitoradas
por satélites o tempo todo, bem como o Pantanal e o Parque
Nacional de Chapada dos Guimarães. Mato Grosso encontra-se
localizado no Centro da América do Sul, situação que imprime

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

compromisso com a América, continente visitado por um viajante


especial, Alexandre Von Humboldt. Andrea Wulf (2015, p. 469-
472), ao tratar sobre Humboldt, ressalta:

[...] Ele foi um dos últimos polímatas, e morreu numa


época em que as disciplinas científicas começavam a se
enrijecer em campos cada vez mais restritos e
especializados. [...] No início do século XX, havia pouco
espaço para um homem cujo conhecimento abarcava uma
vasta gama de temas. À medida que os cientistas se
fechavam em suas estreitas áreas de especialidade,
dividindo e subdividindo cada vez mais, os métodos
interdisciplinares de Humboldt e seu conceito de natureza
como uma força global se perderam.
Uma das realizações de Humboldt foi tornar a ciência
acessível e popular. Todos aprenderam com ele:
agricultores e artesãos, estudantes e professores, artistas e
músicos, cientistas e políticos. Não havia um único livro
didático ou atlas nas mãos das crianças do mundo ocidental
que não tivesse sido moldado pelas ideias de Humboldt,
declarou um orador durante as celebrações do centenário,
em 1869, em Boston. Diferentemente de Cristóvão
Colombo ou Isaac Newton, Humboldt não descobriu um
continente ou uma nova lei de física. Ele não era conhecido
por um único fato ou descoberta, mas por sua visão de
mundo. Sua visão de natureza foi incutida em nossa
consciência como que por osmose.
[...]
Uma olhada no Painel Intergovernamental sobre Mudança
Climática de 2014 mostra simplesmente como
necessitamos de uma perspectiva humboldtiana. O
documento elaborado por mais de oitocentos cientistas e
especialistas, afirma que o aquecimento global terá
“impactos severos, amplos, incisivos e irreversíveis sobre
os povos e ecossistemas.” As ideias e percepções de
Humboldt de que as atuais questões sociais, econômicas e
políticas estão estreitamente ligadas a problemas
ambientais continuam sendo estrondosamente precisas e

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Novas Fronteiras Culturais

relevantes. [...] Humboldt percebeu que as colônias


baseadas na escravidão, na monocultura e na exploração
criavam um sistema de injustiça e de desastrosa devastação
ambiental, nós também temos de entender que as forças
econômicas e mudanças climáticas são parte do mesmo
sistema.
[...] Houve momentos na vida de Humboldt em que ele se
sentiu tão pessimista que pintou um retrato sombrio e
desolador da expansão do ser humano pelo espaço sideral,
quando os homens disseminariam para outros planetas a
sua letal mistura de maldade, crueldade, ganância e
ignorância. A espécie humana seria capaz de tornar
“áridas”, até mesmo as estrelas distantes e deixá-las
“devastadas”, Humboldt escreveu ainda em 1801,
exatamente como já vinha fazendo com a Terra.
A sensação é de que fechamos o ciclo. Talvez agora seja o
momento em que nós e o movimento ambientalista
devamos corrigir os desvios de rota, recolocando
Alexander von Humboldt no papel de nosso herói.

A fronteira entre Geografia e Economia precisa ser revista.


No Curso de Economia da Faculdade de Economia da
Universidade Federal de Mato Grosso, teve um Curso de
Especialização em Análise Demográfica organizado em parceria
com a extinta Fundação de Pesquisas Cândido Rondon do
Governo do Estado de Mato Grosso (FCR/MT) e a Associação
Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP), em uma época em
que parecia não estarem as fronteiras visivelmente demarcadas.
A Universidade Federal de Mato Grosso, criada em 10 de
dezembro de 1970, começou estabelecendo cursos de graduação
bastante integrados, distribuídos por centros, centro de ciências
sociais, centro de ciências humanas, centro de ciência agrárias,
centro de ciências exatas e tecnológicas e centro de ciências
biológicas e da saúde. Nos dois primeiros anos, tinha um básico
em que o estudante poderia mudar de curso caso sentisse mais
proximidade com um outro curso do mesmo centro a que
pertencia, e quando entrava no âmbito profissional, cursava
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

algumas disciplinas junto com estudantes de diversos centros. Era


realmente uma experiência universal e a universidade no mundo
nasceu com o espírito universal. A Universidade de Brasília
destacou-se no caráter universal e comunitário. Aliás, ambas,
Universidade Federal de Mato Grosso e Universidade de Brasília,
nasceram voltadas para a comunidade. Na abertura das
comemorações dos cinquenta anos da Universidade Federal de
Mato Grosso, ocorrida no dia 10 de dezembro de 2019, a
instituição outorgou o título de Doutor Honoris Causa para a Mestra
do Siriri, dona Domingas Leonor da Silva, do Grupo Flor
Ribeirinha, do bairro São Gonçalo Beira Rio, grande animadora
cultural dos projetos de extensão.
A cultura cuiabana está ligada ao movimento de vida
ribeirinho e uma das delícias de ser cuiabano é dada pela doçura do
seu rio, fonte maior de vida e alimento da população. O siriri, o
cururu, a dança de São Gonçalo preservada pelos ribeirinhos
carregam na alma as curvas do rio Cuiabá. São Gonçalo Beira Rio,
um importante bairro cuiabano, possui as raízes da história da
cidade e é onde o grupo “Flor Ribeirinha”, campeão mundial do
folclore, reside e desenvolve suas atividades. Os moradores do
bairro São Gonçalo Beira Rio pescam, fazem artesanato em
cerâmica e mantêm os costumes e as tradições. A maneira de viver
ribeirinha de Cuiabá foi herdada do rio. O padroeiro de Cuiabá,
Senhor Bom Jesus, foi trazido de canoa pelo rio e a sua imagem,
que chegou por volta do final da década de 1720, encontra-se na
Catedral Basílica, coração do centro antigo da cidade. Mas houve
o estabelecimento de uma fronteira entre o rio e a cidade a partir
do momento em que o bairro do “Porto” foi tragado pela
“Cidade”, deixando de ser o mesmo Porto que fora no passado
não tão distante.
A relação da população cuiabana e da população dos
municípios banhados pelo rio Cuiabá é de sobrevivência, pois os
ribeirinhos dependem do movimento das águas para o
funcionamento do seu corpo cartográfico: registro da resistência
de um povo a todos os tipos de dificuldades e interferências. A

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Novas Fronteiras Culturais

ligação dos ribeirinhos com o rio é importante porque trata-se de


uma questão de sustentabilidade e, hoje mais do que ontem, a água
em futuro próximo será um bem dos mais valiosos. É preciso,
portanto, cuidar dos rios, das águas, uma vez que a vida na Terra
depende disso e os estudantes e a população devem estar
conscientes dessa preocupação planetária. A fronteira economia e
meio ambiente resolveram-se confrontar e o resultado desse
embate pode resultar no aquecimento do planeta e na destruição
ambiental.
A bacia do Cuiabá tem muita história, localiza-se numa
área conhecida na Geografia como Depressão Cuiabana e continua
na região do pantanal mato-grossense. Trata-se de um importante
afluente do rio Paraguai e grande responsável pela vida social e
econômica de muitas populações ribeirinhas e citadinas,
dependentes da fertilização das suas águas. A vida da vegetação do
lugar, dos peixes e da ecologia da paisagem estão condicionadas à
bacia do Cuiabá. São vários os municípios mato-grossenses
banhados pelas suas águas, que nascem no município de Rosário
Oeste e, pelo fato das fronteiras estarem interligadas, a desarmonia
resulta de interesses econômicos.
É importante reafirmar que a localização de Cuiabá deve
muito ao rio, que a cidade esteve voltada para o rio como ponto de
chegada e ponto de partida, e que o comércio de importação e
exportação, que sustentou a capital da província de Mato Grosso,
depois de 1870, foi todo feito em suas águas (BORGES, 2010).
Com o término da Guerra do Paraguai, a economia da cidade
floresceu, sendo o contato com outros países realizados através da
navegação Cuiabá-Corumbá. Essa fase foi batizada pelo
historiador Rubens de Mendonça como o de “uma espécie de zona
franca” (MENDONÇA,1974).
O Porto, em Portugal, lembra Cuiabá e Várzea Grande,
porque as cidades do Porto e de Gaia são divididas também por
um rio, no caso o rio Douro, e foram construídas de frente para o
rio. Cuiabá e Várzea Grande são divididas pelo rio Cuiabá, só que
não estão voltadas para o rio. O rio Cuiabá, como ressaltado, era o

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Novas Fronteiras Culturais

meio de comunicação do local com o país e o mundo, uma espécie


de “trem de ferro” a impulsionar o comércio e a vida da cidade. A
lenda que afirma que a pessoa que come cabeça de pacu não sai de
Cuiabá deve-se à forte presença do rio na cidade, que batiza seus
chegantes com a cabeça do pacu. O olho do pacu faz enxergar
longe e é bom para a vista, diziam os mais antigos. O rio Cuiabá
tem algo de sagrado, pois todos banham de suas águas e bebem da
sua fonte.
Na cartografia estadual, as novas fronteiras culturais
reproduzem as formas locais das cartografias herdadas,
prevalecendo o novo-velho num espaço onde o provisório surge
com força diante do que foi considerado duradouro, estabelecendo
fronteiras entre chegantes novos e chegantes antigos. “O
Unestado” (A Universidade nas Cidades), projeto implementado
na gestão do reitor da Universidade Federal de Mato Grosso,
Professor Augusto Frederico Müller Júnior, no período de 1987 a
1991, buscou a aproximação da capital mato-grossense com as
novas-velhas fronteiras, mas, apesar dos esforços, a fronteira com
os indígenas ainda não foi superada, mesmo com o grito dado
pelos indígenas no primeiro “Unestado”, na cidade de Barra do
Garças, em que pediram universidade para que pudessem estudar,
constituindo-se numa das maiores emoções presenciadas.

Estadualização

Para levantar as novas-velhas fronteiras culturais existentes


em Mato Grosso, seria interessante a realização de um Projeto de
Governo intitulado “Estadualização”. Com a realização desse
projeto, as fronteiras culturalmente construídas poderiam vir a ser
diluídas.
A rivalidade entre Cuiabá (1719) e Mato Grosso (1748)
deu-se com a criação da primeira capital da capitania em Vila Bela
da Santíssima Trindade, em 1752 (GARCIA, 2013). Talvez pelo
fato de Cuiabá não ter sido a escolhida como primeira capital,
rivalize tanto com Mato Grosso. Nas eleições, essa rivalidade fica

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

nítida, mas com o rompimento das fronteiras culturais é possível


que venha a ser amenizada. A conexão de Cuiabá com o norte de
Mato Grosso só veio a ocorrer de fato, em 1977, com a divisão do
estado, pelo menos um resultado “positivo” dessa divisão imposta
de forma arbitrária. A geopolítica dos portugueses pensada em
1752 foi, de fato, assimilada muito tempo depois, porque aquele
plano de expansão recuou com o estabelecimento da capital em
Cuiabá, no ano de 1835, embora essa movimentação tenha
começado um pouco antes (ROSA, 1996).
Os novos municípios criados a partir da divisão de Mato
Grosso, trouxeram outras novas fronteiras culturais? Trouxeram
novas-velhas fronteiras culturais pelo fato de não terem rompido
com as heranças do passado. Por isso ocorreu a proposta da
“Estadualização”. Os malabares feitos pelas pessoas que tentam
distrair motoristas parados em sinaleiros mostram que não é
impossível equilibrar a vida econômica, política, ambiental e social,
de modo que o repensar do abismo existente entre a fronteira do
progresso e a fronteira do desenvolvimento precisa ser feito.

Projeto Estradeiro

Na regionalização, a situação não é diferente pelo fato de


que a economia regional e urbana perdeu força diante da retirada
do planejamento. As cidades deixaram de ser analisadas de forma
macro e o mercado passou a gestar a sua sobrevivência,
estabelecendo outras novas-velhas fronteiras na região, que, no
início do século XXI, presenciou o “Projeto Estradeiro”, situação
que lembra a época das monções, aliás, um livro de leitura
obrigatória, “Monções”, de Sérgio Buarque de Holanda
(HOLANDA, 1990), como também o livro “Entradas e
Bandeiras”, de Luiza Rios Ricci Volpato (VOLPATO, 1986).
É importante observar que, no segundo quartel do século
XIX, foram criadas as participações público-privadas e que
parecem ter servido de inspiração para as participações “público-
privadas-caipiras” na primeira década do século XXI, fase do

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Novas Fronteiras Culturais

“Projeto Estradeiro”. O esforço realizado pelo projeto parece ter


sido pouco ousado, uma vez que as regiões continuaram
desconhecidas, as desigualdades da renda aprofundaram, a
concentração e a centralização do capital foram fortalecidas e a
“independência” estruturou-se de forma “dependente”. As novas-
velhas fronteiras culturais, portanto, clamam por ações urgentes na
política, na saúde, na economia, no emprego, na geração de
investimentos e rendas, na cartografia da fome.
Josué de Castro, geógrafo brasileiro, nordestino, nascido
no Recife, em 1908, publicou, em 1946, o livro “Geografia da
Fome” (CASTRO, 2008), trabalho em que o autor escancara um
dos maiores problemas brasileiros. Esse geógrafo foi o responsável
por romper no território brasileiro com o pensamento de que a
fome aumentava com o crescimento populacional e mostrar que a
concentração e a desigualdade seriam as responsáveis por essa
situação. O diagnóstico foi feito nos anos 1940, mas a tese parece
permanecer ausente das preocupações de uma parcela significativa
da população.
Herbert de Souza (Betinho), nos anos 1990, dedicou-se ao
programa ação da cidadania para eliminar a fome, a miséria
(VEIGA, 2022). Foi um projeto dos mais interessantes colocados
em ação na tentativa de combate à fome.
Em 2019, a cantora Elza Soares lançou “Planeta Fome”,
dizendo, numa entrevista de 20 de janeiro de 2022, para Extra, que,
na época em que passou fome, “se tivesse alimento para os meus
filhos, não teria mais fome. O tempo passou e eu continuei com
fome, de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade e muito
mais, percebo que a fome só muda de cara, mas não tem fim”
(SOARES, 2022).
Isso se confirma na reportagem “A fome bate à porta, no
Rio, quase 2,8 milhões de pessoas não têm o que comer”, de
Natália Ribeiro e Rafael Galdo, publicada pelo Jornal O Globo, em
24 de junho de 2022, que trouxe a fala de Rodrigo Afonso, diretor
de Ação da Cidadania, quando disse que a fome possui, “CEP,
gênero e cor e que os dados do estado retratam a desigualdade e os

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

preconceitos estruturais de todo o país. A mulher negra é a que


mais sofre com a fome hoje.” Na reportagem “Vida de restos –
Mulheres estão mais vulneráveis”, de Rafael Galdo, publicada pelo
jornal O Globo, em 24 de junho de 2022, ao apontar a feminização
da fome no Brasil, entre os anos de 2019 e 2021, que aumentou de
33% para 47% enquanto a dos homens reduziu de 27% para 26%,
destacando uma análise da FGV Social, que aponta o seguinte:
A pandemia impactou mais as mulheres que foram mais afetadas
no mercado de trabalho, possivelmente porque carregam, em geral,
responsabilidade maior no cuidado dos filhos e da família,
atividade relativamente mais demandada durante o isolamento
social. Essa possível causa para a feminização da fome magnifica
suas consequências para o resto da sociedade, em particular as
crianças.

Despertar em rede e dentro de um novo modelo de


desenvolvimento

As novas-velhas fronteiras culturais no Brasil clamam por


uma cultura cartográfica que levante as necessidades do país, pois
os problemas de ontem são os de hoje ampliados e os de amanhã
deverão ser os de hoje quadruplicados se nada for feito, por isso
resolver a situação torna-se inadiável e exige participação das
universidades, do governo e do estado, visto que, como ponderou
Gilberto Gil, compositor e membro da Academia Brasileira de
Letras, no Jornal Folha de São Paulo, de 26 de junho de 2022, p. C7,
na reportagem “Cintilância para além da noite escura”, torna-se
inadiável:

[...] que pesquisadores disponham de recursos para tocar


seus projetos, elaborar novas perguntas, engajar jovens
cientistas em processo de formação, contratar
pesquisadores que sejam valorizados com bolsas que lhes
permitam total dedicação a seus projetos. Uma política
científica, assim como uma política cultural que reconheça
o território e suas gentes, tem de apostar na capacidade de
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

fazer florescer a inteligência local e na potencialização de


redes transnacionais. [..] Promover e disseminar a ciência é
um projeto cultural que aposta no melhor do humano.

Para concluir a constatação de que as novas-velhas


fronteiras culturais estão a desafiar a imaginação e, neste momento,
pedem para que as fronteiras estabelecidas com a América do Sul
sejam reduzidas/eliminadas e que juntas recriem um novo
programa de desenvolvimento.

Referências

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BORGES, Fernando Tadeu de Miranda et al. Apontamentos para
estudos sobre a produção historiográfica em Mato Grosso (1970-
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Rio de Janeiro: Gráfica do Senado, a 173, n. 456, jul./set. de 2012,
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BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Esperando o trem:
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BORGES, Fernando Tadeu de Miranda. Do extrativismo à
pecuária: algumas observações sobre a História Econômica de
Mato Grosso (1870-1930). São Paulo Scortecci, 2001.
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GALDO, Rafael. “Vida de restos – Mulheres estão mais
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GARCIA, Romyr Conde. Mato Grosso (1800-1840): Crise e
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GIL, Gilberto. “Cintilância”. Folha de São Paulo, 26 de junho de
2022, p. C7.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

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Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo:
Brasiliense, 1990.
LOMBA, Pedro Paulo. Notas preliminares (mas razoavelmente
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Cuiabá: Imprensa Universitária, Ano 1, N. 1, março de 1973.
MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg – a formação do
homem tipográfico. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972.
MENDONÇA, Rubens. História do comércio de Mato Grosso.
Goiânia: Editora Rio Bonito, 1974, p. 38.
NOVAIS, Fernando. Estrutura e dinâmica do antigo sistema
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PRADO JUNIOR, CAIO. Formação do Brasil
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ROSA, Carlos Alberto. A Vila Real do Senhor Bom Jesus de
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VEIGA, Edson. Há 25 anos o Brasil perdia Betinho, símbolo
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Novas Fronteiras Culturais

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Entradas e bandeiras. 2. ed. São


Paulo: Global Editora e distribuidora Ltda, História Popular, 1986.
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antemural da colônia (1751-1819). Dissertação de Mestrado
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WULF, Andrea. A Invenção da Natureza. A vida e as descobertas
de Alexandre Von Humboldt. Tradução de Renato Marques. 2. ed.
São Paulo: Planeta do Brasil, 2019.

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37
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 2
PAISAGEM VERNACULAR:
VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES

Otávio José Lemos Costa

Introdução

A proposta do presente artigo é discutir algumas questões


acerca da paisagem as quais estão referenciadas no entendimento
vernáculo da paisagem. Trazendo a dimensão simbólica no bojo
dessa discussão, nossa proposição aqui será abordar paisagens
patrimoniais não aquelas identificadas como institucionalizadas,
reconhecidas pelo seu caráter oficial ou pela monumentalidade ou
valor arquitetônico, mas também o patrimônio que representa a
memória do lugar, ou seja, aquelas paisagens que ensejam o
vernáculo da paisagem.
No entendimento que a paisagem expõe-se ao indivíduo
enquanto uma manifestação concreta, a uma objetivação analítica
(BERQUE, 1984), temos também a perspectiva de uma trejeção,
na qual o caráter simbólico dos lugares envolve comportamentos
e percepção, apresentando, assim, determinados aspectos do real,
enfatizando as relações entre o simbólico e o lugar. Essas relações
são mediatizadas pelos símbolos que podem ser uma realidade
material e que se unem a uma ideia, um valor, um sentimento.
Entendemos, portanto, que as mediações simbólicas permeiam as
atitudes pessoais em relação aos lugares da afetividade do
reencontro. São considerados, portanto, imagens e, no dizer de
Mircea Eliade, “invocam a nostalgia de um passado mitificado”
(ELIADE, 1986, p. 13).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

38
Novas Fronteiras Culturais

O estudo da paisagem em Geografia: considerações a partir


de Augustin Berque

O conceito de paisagem na Geografia é definidor porque


consideramos como o que mais se expõe ao nosso olhar físico. Na
clássica definição de Augustin Berque (1984), na qual ele vai nos
reportar a uma marca e uma matriz, muitas vezes utilizada nos
artigos, dissertações e teses, de forma simplista, uma vez que não
atentam para as intencionalidades das pessoas para determinadas
formas.
Berque dedica boa parte de sua obra ao estudo da
paisagem, tendo como esteio teórico que fundamentará seu
pensamento, a fenomenologia. Para o autor, a paisagem é uma das
formas de expressão da relação entre a sociedade e o meio. Dessa
forma, ele afirmará que a paisagem como manifestação concreta
está exposta a uma objetivação analítica, embora ela também
estabeleça uma relação com o sujeito coletivo, uma vez que a
sociedade que produz e reproduz essa paisagem está em função de
uma certa lógica para tentar compreender o sentido da paisagem.
Desse modo, a tarefa de Berque é buscar o sentido mais
profundo da paisagem, nos mostrando que além de olhar para a
forma (a paisagem-marca), temos que enfatizar a aproximação do
sujeito com a paisagem para entender como ele relaciona-se com a
paisagem, participando dos esquemas de percepção e ação, assim
como promovendo o encontro entre as duas dimensões objetiva e
subjetiva. Berque afirma que o conceito de paisagem foi esquecido
no que concerne à relação do homem com o meio.
Assim, em seu percurso epistemológico, Berque observa a
paisagem buscando romper com o dualismo existente no
pensamento moderno, em que há uma cisão entre um mundo
objetivo e outro subjetivo. Dessa maneira, sua discussão considera
a paisagem como uma via para compreender a realidade para além
dessa ruptura, uma realidade em que esses polos relacionam-se de
maneira incessante.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

39
Novas Fronteiras Culturais

A paisagem, portanto, é tema central em diversos de seus


textos, pois ele considera-a como instrumento para a compreensão
da constituição dos meios humanos e tentando entender essa díade
entre o meio e a sociedade, ele assinala que o mundo é abstraído
pelo sujeito, sendo constituído por objetos quantificáveis e
manipuláveis, porém estes através de um olhar trajetivo, o homem
atribuirá valores simbólicos ao mundo. Portanto, ele analisa a
realidade de maneira tanto objetiva (como marca) e subjetiva
(como matriz), pois é impossível abstrair toda realidade de forma
objetiva.
A paisagem exposta ao sujeito está eivada de sentidos, de
história e de cultura, uma vez que a paisagem é tanto física quanto
fenomenal. É uma relação constante e uma das formas possíveis
de apreender tal relação entre a humanidade e a superfície terrestre
é por meio da paisagem. Para o autor, a paisagem é uma entidade
privilegiada para alcançar essa intersubjetividade, ela é a expressão
de nossa relação com a Terra. Neste sentido, como afirma
Bonnemaison (2005, p. 31): “[...] as pessoas não lidam com seu
ambiente apenas em uma perspectiva produtivista; eles o fazem
com base em seus valores e representações”.
Assim, a paisagem não está direcionada num olhar sobre
os objetos, ela está na realidade das coisas, ou seja, na relação que
temos com o meio ambiente. Ela é uma construção mental do
homem. Também está na relação entre o objetivo e o subjetivo.
Estabelece uma integração entre os aspectos físicos e os aspectos
fenomenais em uma continua correspondência e se relacionando
de maneira ao mesmo tempo simbólica e ecológica.

A paisagem vernacular: a dimensão da invisibilidade

Nos estudos de Geografia Cultural, sobretudo a partir


Nova Geografia Cultural, que traz o significado como palavra-
chave para o entendimento das paisagens, dos lugares, dos
territórios, a paisagem vernacular pode ser definida como uma das
agendas de pesquisa, decorrendo daí sua origem e a evolução

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

40
Novas Fronteiras Culturais

associada às dimensões da natureza e da sociedade que explicitam


de maneira objetiva as manifestações concretas da paisagem a
partir do local onde ocorrem. Por serem consideradas, de certa
forma, invisíveis ao nosso olhar físico, de forma intencional ou
não, acabam passando despercebidas no debate acadêmico.
Paisagens que tenham evoluído organicamente, resultado das
sucessivas interações entre as comunidades locais e o seu ambiente
natural, aqui podemos incluir a paisagem vernacular.
Entre as formas simbólicas espaciais, podemos pensar, por
exemplo, nos sítios ou distritos nos quais podem ser encontrados
vernáculos, inclusive etnográficos, como resultado de atividades
humanas passadas e manifestas em suas escolhas. Elas podem
exibir formas simbólicas espaciais particulares, refletindo aspectos
que sugerem emoções, idiossincrasias que tipificam os lugares.
Portanto, podemos dizer que as paisagens vernaculares são
tipicamente etnográficas, podendo conter tanto aspectos naturais
e culturais e que as pessoas associadas definem como elementos
que trazem a ideia de pertencimento e afetividade.
Podemos também definir a paisagem vernacular como
uma paisagem que tenha se constituído ao redor das atividades
do cotidiano e cujas características associem-se ao uso
continuado. Tais paisagens podem ter evoluído organicamente,
a partir de adições residuais do tempo ou a partir de diretrizes
gerais de organização espacial que conformam paisagens e lugares,
mas sem perder os contornos próprios dos indivíduos ou
grupos que as realizaram. Podem também apresentar significados
e simbolismos associados a esses mesmos grupos ou atividades.
A paisagem vernacular é aquela entendida como comum,
anônima, relacionada com formas simbólicas espaciais em um
contexto do mundo vivido. Retrata uma estreita relação com as
pessoas e é mediada por símbolos nos quais permeiam as atividades
pessoais em relação aos lugares de afetividade e pertencimento.
Apresenta ainda a expressão fundamental de uma coletividade na
sua relação com o natural, geradora de uma paisagem humanizada
com intensos vínculos de identidade e pertencimento. Torna,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

41
Novas Fronteiras Culturais

assim, sua análise como algo importante enquanto valor simbólico


e permite identificar aspectos de invisibilidades no âmbito das
práticas socioespaciais.
Utilizado pela primeira vez por J. B. Jackson nos anos
1970, o conceito de paisagem vernacular foi criado para apreciar
a paisagem considerada banal, comum, observada nos Estados
Unidos da América, procurando interpretar e valorizar. Desde
então, esse conceito vem sendo trabalhado dentro dos estudos
de paisagem cultural. A despeito da riqueza de interpretações
possíveis, a paisagem vernacular não possui um tratamento teórico
e metodológico sistemático.
Na concepção de Jackson (1984), a paisagem vernacular
refere-se ao mundo material e ao cotidiano, mas sem ignorar os
aspectos simbólicos, originários, em grande medida da
formação humanista e literária do autor. O tema dominante de
sua escrita é que o termo “paisagem” pertence ao mundo material
da vida cotidiana em comum – um mundo composto por
habitações, estradas, calçadas, quintais. Aquele mundo habitado
por aquilo que Jackson entendeu como comum, ou seja, o singelo
sem ser simplório, atestando o sentido que ele passou a denominar
de paisagem vernacular.
Para J. B. Jackson, a capacidade de discernir entre uma
paisagem vernacular e outra paisagem qualquer reside em dois
aspectos fundamentais: funcionalidade e flexibilidade, isso
implica a adoção de soluções curtas e práticas. Assim como na
arquitetura vernacular, estão quase sempre associadas à
frugalidade, à simplicidade e a um senso de comunidade.

O olhar para a paisagem simbólica: a dimensão da


visualidade

Algumas singularidades dos lugares manifestam-se a partir


das formas simbólicas espaciais existentes, pelas quais retratam
uma estreita relação e que são mediatizadas por símbolos, podendo
ser uma realidade material, unindo-se a uma ideia, a um valor ou a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

42
Novas Fronteiras Culturais

um sentimento. Entendemos, portanto, que as mediações


simbólicas permeiam as atividades pessoais em relação aos lugares
de afetividade e do pertencimento.
Trazemos para a discussão o poema “Arquitetura
funcional” de Mario Quintana (2005) para tentar metaforicamente
entendermos a paisagem vernacular a partir do habitar e associar à
arquitetura vernacular presente na Serra da Meruoca, norte do
Ceará. Assim expressa-se o poeta:
Não gosto da arquitetura nova
Porque a arquitetura nova não faz casas velhas
Não gosto das casas novas
Porque as casas novas não têm fantasmas
E, quando digo fantasmas, não quero dizer essas
assombrações vulgares
Que andam por aí ....
E não sei o que de mais sutil
Nessas velhas casas
Como, em nós, a presença invisível da alma ... tu nem sabes
A pena que me dão as crianças de hoje!
Vivem desencantadas como uns órfãos
As suas casas não têm porões nem sótãos
Como pode nelas vir morar o sonho?

Olhando para o poema expresso anteriormente, somos


consoantes ao que assinala Norberg-Schulz sobre o mundo da
vida (monde de la vie) que passa a ser compreendido pelo que é dado
pela natureza, implicando, portanto, que os habitantes e suas
habitações também fazem parte desse mundo. Por isso, a
arquitetura só seria compreensível a partir dele e a linguagem, capaz
de exprimir o conteúdo que lhe inerente, dotaria esse mundo, ao
mesmo tempo, de significação. As figuras 1 e 2 são reveladoras no
que diz respeito a aspectos vernaculares e comunicam, por meio
de uma visualidade, as expressões de uma paisagem simbólica e que
possuem um sentido que implica um sistema complexo que

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

43
Novas Fronteiras Culturais

envolve processos sociais e mentais, que, conforme Berque (1984),


desenvolvem um papel simultâneo de marca e matriz.

Figura 1- Arquitetura vernacular na Serra da Meruoca-CE

Fonte: Costa (2018).

Figura 2 - Arquitetura vernacular na Serra da Meruoca-CE

Fonte: Costa (2018).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

44
Novas Fronteiras Culturais

Para Tuan (1980), o meio ambiente construído, do mesmo


modo que a linguagem, tem o poder de definir e aperfeiçoar a
sensibilidade e pode aguçar e ampliar a consciência. Para o autor, a
arquitetura também seria uma forma de comunicação, pela qual
determinados habitantes identificam-se, emitindo mensagens
significantes que podem ser compreendidas a partir de
determinadas realidades. As formas como os seres se reconhecem
no âmago das sociedades das quais fazem parte e a visão de mundo
desses habitantes são também construídas a partir do lugar – ou
lugares – onde moram.
Quando focamos nosso olhar sobre a paisagem vernacular
na Serra da Meruoca, observamos, além de casas com estilos
arquitetônicos rebuscados, também a presença de casas populares,
sem arquitetos, que guardam elementos e vestígios de um modo de
morar que não reflete apenas carência de recursos, como muitos
podem pensar, mas também ainda são provas materiais de saberes
construtivos adaptados ao clima local e de modos de habitar
próprios daquele lugar, daquelas relações e necessidades.
Essa foi uma preocupação constante durante a nossa
pesquisa, isto é, tentar entender essas leituras espaciais e essas
existências de uma forma específica, considerando perspectivas
relativas a técnicas, trocas, vivências, relações de apropriação, mas
sem tentar romantizar seus modos de viver e resistir. A tentativa
era entender o que ali era herdado, era luta, era carência de
recursos, era vontade de permanecer ou de mudar. Portanto, a
pesquisa mostrou uma tentativa de registrar e entender esses
modos de morar e habitar um espaço vivido, dentro de todas as
necessidades específicas, vontades de mudança e adaptação às
condicionantes físicas e aos impactos bons e ruins, a partir de suas
perspectivas, daquele lugar naquelas pessoas.
Podemos entender que habitar não significa apenas estar
abrigado, que a arquitetura não é apenas um refúgio, que o objetivo
principal da arquitetura está ligado a um sentido existencial, ao
habitar. A partir do momento que o homem orienta-se e identifica-
se em um lugar, ele passa a habitá-lo. O espaço onde a vida

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

45
Novas Fronteiras Culturais

verdadeiramente acontece, segundo o autor, é o lugar e esse lugar


teria o que ele chama de “genius loci”, que seria como a alma, a
essência, o espírito de um espaço determinado, do próprio lugar;
uma realidade que pode ser confrontada pelo homem na vida
cotidiana.
Conciliando a dimensão teórica com uma proposta de
investigação do real, analisamos o patrimônio rural em um
determinado município do Ceará. Trata-se do município de
Meruoca, localizado na parte noroeste do Ceará, distante 260 km
da capital, Fortaleza.
O patrimônio rural identificado elenca um conjunto de
formas simbólicas espaciais ou no entendimento de Joël
Bonnemaison (1992), corresponderá “a uma estrutura simbólica de
um meio, de um espaço, onde o geossimbolo oferece um sentido
ao mundo ou ainda a espiritualidade do lugar (genius loci)”. O
patrimônio aqui não é apenas o institucionalizado, mas também
aquele que representa a memória do lugar, ou seja, que contém o
vernáculo, enunciando não apenas a história oficial ou as paisagens
que estabelecem o poder.
Se nos referirmos a uma arquitetura oficial associada ao
poder de uma cultura dominante, em que as edificações possuem
um ator conhecido. Como referia Mário Quintana, “Não gosto da
arquitetura nova porque a arquitetura nova não faz casas velhas,
não gosto das casas novas porque casas novas não têm fantasmas”.
Metaforicamente, buscamos não as intencionalidades da
arquitetura, tão bem representadas pelo traço do arquiteto (assim
expressa nas obras de Gaudi, Niemeyer ou Calatrava), porém,
queremos identificar a casa na perspectiva da dimensão do
vernacular e que encerra relações cotidianas, aproximando o
indivíduo do lugar.

Considerações finais

Carl Sauer afirmava na “Educação do geógrafo” que a


Geografia está além da ciência. Na sua concepção, “o geógrafo e o

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

46
Novas Fronteiras Culturais

geógrafo-por-ser” são viajantes de fato quando podem na imaginação,


quando não há outro meio. Para ele, a descrição de uma cena pelo
geógrafo, seja um texto, seja a representação iconográfica a partir
de desenhos e de mapas, teria um componente que transcenderia a
ciência, oferecendo a possibilidade de ser apreciada como obra de
arte. Aqui, trazemos um questionamento: podemos ver algumas
formas simbólicas espaciais como verdadeiras obras de arte,
expondo a sua monumentalidade, por que outras são relegadas a
simples artefatos passando a serem negligenciadas pelo nosso
olhar?
Para responder a esse questionamento, ao elegermos o
recorte espacial de nossa pesquisa no município de Meruoca,
procuramos observar os símbolos presentes na paisagem rural, o
que tornou uma tarefa, que, em um primeiro momento, buscamos
criar um sistema de decodificações, decompondo as formas
simbólicas numa série de significados.
Entendemos que o simbólico daquela paisagem rural
permitiu-nos também um êxodo conceitual, pelo qual buscamos
permear, no contexto de outras disciplinas, sobretudo a
antropologia, muito embora alguns estudiosos da semiologia
afirmarem não haver uma maneira de ler os símbolos. A leitura
dessa paisagem rural foi realizada tomando como esteio teórico a
Geografia Humanista que irá trazer os conceitos de paisagem e
lugar aproximando o indivíduo na dimensão do familiar, do espaço
vivido e mediada por símbolos.
A presente proposição envolveu ainda o dimensionamento
das relações entre a paisagem e a memória e que vem se
transformando em um campo privilegiado de estudos e pesquisas
na geografia. Do ponto de vista das ciências humanas, a História
empreende uma discussão mais antiga. Ao focarmos em uma
análise sobre o patrimônio rural, colocamos aqui as considerações
de Jackson, sobre o vernáculo da paisagem, que se acham baseadas
em seu trabalho seminal, observamos que o termo vernáculo
sugere algo rústico.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

47
Novas Fronteiras Culturais

Na nossa investigação, fizemos uma conexão com a


arquitetura que busca indicar uma habitação tradicional do
morador da serra e suas relações com o ambiente. Dessa forma,
nosso entendimento sobre o vernáculo de uma paisagem no sertão
semiárido leva-nos a uma conjunção de elementos que foram
construídos a partir de técnicas e materiais locais sempre em
consonância com o ambiente local, levando em consideração a
geografia do lugar, suas tradições. Portanto, temos uma paisagem
vernacular com construções que não têm a pretensão de uma
sofisticação com rebuscamento arquitetônico.
Assim, uma maneira de conceber o real, ou seja, fazer uma
leitura de paisagens simbólicas é compreender os significados
desses contidos no espaço vivido. Investigando o patrimônio
vernacular na Serra da Meruoca, fomos além das representações
estabelecidas simplesmente pela forma que estava ali estabelecida.
Entendemos, portanto, que a paisagem tem um propósito
existencial (relembrando aqui Augustin Berque sobre a paisagem
em sua dupla orientação objetiva, sendo marca, e subjetiva, sendo
matriz), pois a paisagem também tem uma finalidade intencional.
Neste sentido, a paisagem na Serra da Meruoca apresenta formas
simbólicas aqui representadas pela arquitetura vernacular, as quais
evocam a dimensão do visível e do invisível, uma vez que a forma
edificada está diretamente ligada ao seu propósito existencial, pois
ela existe para um propósito primeiro que não pode ser dissociado
da vida do homem. Isso determina a sua essência.
Nessa perspectiva de análise, a relação sujeito-lugar-
paisagem foi de fundamental importância, pois, a partir dela,
percebemos como era estabelecida a teia de significados, sendo esta
operacionalizada no contexto das representações sociais, voltando-
se para os universos consensuais, ou seja, as falas, o cotidiano e as
ações a respeito do ambiente vivido. Nesse contexto, as
representações do vernáculo da paisagem eram elaboradas a partir
dos processos de objetivação e ancoragem, permitindo desvendar
uma lógica subjetiva na qual os elementos integrantes desse
processo tornam-se conhecidos, pois a representação de cada

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

48
Novas Fronteiras Culturais

forma simbólica espacial implicava a apreensão de todas as coisas


que faziam parte de seu cotidiano e que deveriam ser reconstruídas
e introduzidas em um espaço comum para que os símbolos fossem
compreensíveis àqueles que vivenciavam aquela paisagem.
Para concluir, é relevante ressaltar que foi importante
observar a relação pessoa-ambiente aos vínculos existenciais com
o mundo geográfico, especialmente o ambiente construído, e como
expressa Seamon “[...] os mundos da vida associados a ambientes
vernaculares podemos chamá-los de mundo da vida vernaculares”.

Referências

BERQUE, A. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da


problemática para uma geografia cultural [1984] In: Correa, R. e
Rosendahl, Z. Paisagem, tempo e cultura. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1998.
BONNEMAISON, J. Le territoire enchanté. Croyances et
territorialités en Melanésie. Geographie et Cultures. Paris:
L’Harmattan/ORSTOM, nº. 3, pp. 71-89, 1992.
BONNEMAISON, J. Culture and space. Conceiving a New
Cultural Geography. London, J.B. Tauris, 2005.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes,
1986.
JACKSON, J. B. Discovering the vernacular landscape. Yale
University Press, 1984.
NORBERG-SCHULZ, C. Genius Loci: Towards a
phenomenology of architecture. Rizzoli, 1991.
QUINTANA, M. A cor do invisível. São Paulo: Globo, 2005.
SAUER, C. The Education of a Geographer in: Annals of the
Association of American Geographers, vol. 46, 1956 , p.p. 287-
299.
SCHAMA, S. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

49
Novas Fronteiras Culturais

TUAN, Y. F. Topofilia: um estudo de percepção, atitudes, valores


do meio ambiente. A perspectiva da experiência. São Paulo:
DIFEL, 1980.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

50
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 3
FRONTEIRA, FAIXA DE FRONTEIRA E
PAISAGEM URBANA FRONTEIRIÇA:
INTERPRETAÇÕES PARA A
REALIDADE FRANCO-BRASILEIRA A
PARTIR DE OIAPOQUE – AMAPÁ

Edenilson Dutra de Moura


José Borzacchiello da Silva

Considerações iniciais

Este capítulo objetiva tecer uma reflexão sobre a


multiplicidade analítica da questão fronteiriça a partir de um
enfoque multiescalar e uma perspectiva teórica-propositiva sobre a
fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. Tal abordagem revela
possibilidades de interpretação de uma paisagem urbana sob a ótica
fronteiriça, que produz, na cidade, elementos centrais para uma
compreensão dos modos de produção espacial.
Destaca-se que a principal área de estudo para tal
proposição é a cidade de Oiapoque, localizada no estado do Amapá
na fronteira com a Guiana Francesa. O município de Oiapoque
contava com 27.778 habitantes, de acordo com a prévia do censo
demográfico de 2022 (IBGE, 2023). Ressalta-se sobre os
procedimentos técnicos e operacionais deste estudo, um
referencial teórico pautado em estudos e pesquisas anteriores de
nossa autoria (MOURA, 2018, 2020; 2021), além de levantamentos
bibliográficos e documentais sobre a realidade fronteiriça brasileira
e amapaense, bem como distintas observações de registros
fotográficos da paisagem.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

51
Novas Fronteiras Culturais

Pretende-se ressaltar com este texto diferentes


efervescências dos sentidos humanos que auxiliam a vislumbrar
especificidades regionais, por meio da espacialidade, a fim de
identificar as marcas da fronteira na produção do espaço
intraurbano e suas múltiplas paisagens: concretas e simbólicas. Tais
efervescências são produtoras de paisagens fronteiriças e estas
possibilitam uma ampliação da fronteira, enquanto lócus de
reprodução da vida e de novas fronteiras culturais.

Fronteiras...

A reflexão contemporânea sobre a multiplicidade analítica


das fronteiras traz a contribuição sociológica de José de Souza
Martins, que, em sua análise, discute o processo do avanço das
fronteiras sob a ótica capitalista de produção espacial,
essencialmente, no interior do território amazônico brasileiro. Na
obra Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano (2014), o
autor traz contribuições significativas ao esclarecer sobre o papel
das fronteiras enquanto espaços de encontros de sociedades e
culturas, considerando a fronteira como lugar da liminaridade, da
indefinição e do conflito, neste sentido, para o sociólogo
(MARTINS, 2014, p. 131):

Na minha interpretação, nesse conflito, a fronteira é


essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela
uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do
encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre
si, como os índios de um lado, e os ditos civilizados de
outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado,
e os camponeses pobres de outro. Mas o conflito faz com
que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um
lugar de descoberta do outro e de concepções de vida e
visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O
desencontro na fronteira é o desencontro de
temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está
situado diversamente no tempo da história.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

52
Novas Fronteiras Culturais

Como menciona Serres (1997, p. 198), ao apontar a


dimensão da fronteira para além de seus limites: “com efeito, senão
fronteiras ou contornos, pois todo o limite se define de acordo com
este mesmo princípio: nada pode estar/ser dentro e fora
simultaneamente”. Acerca da diversidade que está intrínseca na
conceituação de fronteira, Bento (2012, p. 2) pontua que:
A palavra fronteira também não é neutra, mas carregada de valores.
Para o exilado político, passar a fronteira significa libertação. Para
o contrabandista, fronteira significa aflição. A palavra fronteira
suscita sentimentos e valores diferentes. Mas ela é, também, uma
palavra descritiva, designa o lugar do início ou do fim: início de um
Estado, ou fim de outro Estado. Numa linha visível ou imaginária
de fronteira, um Estado termina e outro começa. Fronteira é o fim
do mundo para quem deixa o seu Estado de pertença; ou o início
do mundo para quem volta ao seu Estado de pertença.
Atualmente, o conceito de limite e fronteira está associado
também a outras abordagens do conhecimento geográfico e das
ciências sociais, como às temáticas culturais, ambientais,
econômicas, de desenvolvimento regional e, neste estudo, com
ênfase à questão urbana-fronteiriça.
Em suma, a visão de fronteira adotada nesta pesquisa
considera-a enquanto uma categoria de análise pautada em uma
abordagem contemporânea do tema. Neste sentido, registra-se a
importância da fronteira no entendimento da produção do espaço
regional, através de uma amplitude analítica que se vincula ao
cotidiano da fronteira, frente às possibilidades que permitem o
entendimento de contextos socioculturais capazes de uma maior
fidedignidade e apreensão das relações fronteiriças, estabelecidas
territorialmente na área de estudo em questão em meio à Amazônia
e suas possibilidades analíticas.
Sobre o entroncamento teórico entre fronteira e Amazônia,
considera-se a relevância intelectual deixada pela geógrafa Bertha
Becker, que foi muito perspicaz ao considerar a Amazônia como
fronteira que exige nova definição mais complexa e necessária, que
seja capaz de captar sua especificidade, sobretudo, porque é

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

53
Novas Fronteiras Culturais

necessário analisá-la como espaço excepcionalmente dinâmico e


contraditório, em suas relações com maiores totalidades que é parte
(BECKER, 1988).
Diante do exposto, constata-se que a compreensão da
dimensão de fronteira é ampla, porém, seu papel enquanto espaço
de interações sociais representa territórios de múltiplas trocas, com
singularidades específicas às suas localizações, que, nesta análise,
revelam na espacialidade urbana marcas do dinamismo dos fluxos
e articulações de redes territoriais fronteiriças.
Frente a essa diversidade teórico-prática representada pela
fronteira discutida anteriormente, sabe-se que o território brasileiro
possui um vasto território fronteiriço e apresenta inúmeras
possibilidades de análise e interpretação. Neste sentido, existem
espaços urbanos no Brasil em que as dinâmicas territoriais
estabelecidas nas fronteiras são mais intensas, diante da localização
e ao curto distanciamento geográfico entre diferentes países.
As fronteiras internacionais integram o território brasileiro
e representam, também, vastas expressões e representações sociais.
Desse modo, tais fronteiras figuram como espaços de grande
dinâmica e transformações das relações socioespaciais
estabelecidas no território brasileiro, ao longo do tempo,
necessitando, portanto, de políticas públicas que promovam a
interação entres os diferentes países e que garantam,
principalmente, a qualidade de vida para as populações fronteiriças.
Um marco político importante para o desenvolvimento da
faixa de fronteira brasileira é o documento que trata da
oficialização da consolidação dos planos de desenvolvimento e
integração das faixas de fronteira. O documento destaca, ainda, a
historicidade da faixa de fronteira presente no território brasileiro
(BRASIL, 2017, p. 9):

A Faixa de Fronteira resulta de um processo histórico que


teve como base a preocupação do Estado com a garantia
da soberania territorial desde os tempos da Colônia. A
principal legislação em vigor sobre a Faixa de Fronteira foi

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

54
Novas Fronteiras Culturais

promulgada em 1979, mas o espaço territorial de segurança


paralelo à linha de fronteira existe desde o Segundo
Império. Sob o governo de Dom Pedro II a largura
estabelecida foi de dez léguas ou 66 quilômetros. Desde
então, a extensão da Faixa de Fronteira foi sendo alterada,
primeiramente para 100 e nos anos trinta para 150
quilômetros, permanecendo até hoje. A Constituição de
1988 avalizou essa disposição que manteve o ideal focado
na defesa territorial. A Lei nº 6.634, de 1979, ainda persiste
como a referência jurídica sobre a Faixa de Fronteira, que
corresponde a aproximadamente 27% do território
Nacional com 15.719 km de extensão. Abriga cerca de 10
milhões de habitantes de 11 estados Brasileiros, e lindeia a
10 países da América do Sul.

Ao longo do território brasileiro, quinhentos e oitenta e


oito (588) municípios integram a faixa de fronteira1, inseridos nas
Regiões Norte, Centro-Oeste e Sul. A Faixa de Fronteira
caracteriza-se geograficamente por ser uma faixa de até 150 km de
largura ao longo de 15.719 km da fronteira terrestre brasileira, que
abrange 588 municípios de onze estados brasileiros: Acre, Amapá,
Amazonas, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio
Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. Essa área
corresponde a 27% do território brasileiro e reúne uma população
estimada em dez milhões de habitantes (BRASIL, 2017).
A figura 1 apresenta o mapa que foi produzido com a
intenção de localizar a faixa de fronteira, além de exibir a
localização das sedes dos municípios brasileiros que possuem
territórios inseridos nela. Optou-se, inclusive, por destacar a
localização de Oiapoque, por ser a principal área de estudo deste
capítulo.

1 A faixa de fronteira foi instituída pela Lei nº 6.634, de 02/05/79, regulamentada pelo
Decreto nº 85.064, de 26/08/1980. Ela corresponde à faixa interna na extensão de 150
km de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, agregando
informações, identificação, classificação do município dentro da faixa, considerando-os
como: fronteiriço, parcial ou totalmente na faixa (IBGE, 2018).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

55
Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 - Mapa da Faixa de Fronteira do Brasil - 2021

Fonte: IBGE (2019); DNIT (2021). Elaboração: MOURA, E. D;


SILVA, R. B. (2021).

Considera-se que a faixa de fronteira representa mais que


seu caráter locacional, significa, sobretudo, uma regionalização
capaz de pensar o desenvolvimento do território fronteiriço

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

56
Novas Fronteiras Culturais

nacional, levando em consideração as especificidades regionais em


consonância com as particularidades estrangeiras dos outros lados
do limite nacional, levando em conta que o Brasil faz fronteira com
dez países da América do Sul, fato que poderia promover o
desenvolvimento nacional e internacional, por meio da integração
econômica e da interação social entre as diferentes nacionalidades.
Grosso modo, as Políticas e Programas de
desenvolvimento da faixa de fronteira têm como objetivo principal
promover o desenvolvimento da Faixa de Fronteira por meio de
sua estruturação física, social e produtiva, com ênfase na ativação
das potencialidades locais e na articulação com outros países da
América do Sul. Com esse propósito, buscar-se-á implementar
iniciativas que respeitem a diversidade da região e sigam as
diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimento Regional –
PNDR (BRASIL, 2017).
Além disso, cabe mencionar o importante Programa de
Promoção de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF)2,
que é composto por três arcos de desenvolvimento: Central, Sul e
Norte e espaços sub-regionais. De acordo como o PDFF (2003),
para a criação das sub-regiões desses arcos, considera-se a base
produtiva e a identidade cultural.
O Arco Norte é caracterizado pelo predomínio de
indígenas e pardos, enquanto no Arco Central, especialmente a
partir do Pantanal, tem-se o predomínio de população parda,
brancos e negros em municípios de antigos quilombos em Mato
Grosso. O Arco Sul, em função do processo de colonização, é
caracterizado pela presença do branco de origem europeia
(BRASIL, 2017; PDFF, 2003).

2 Registra-se que o Programa de Promoção do Desenvolvimento da Faixa de Fronteira é


implementado mediante o estabelecimento de parcerias estratégicas, busca a
transversalidade institucional para a integração de ações convergentes. O PDFF visa a
agregar contribuições específicas à estruturação da Faixa de Fronteira, contemplando
ações de planejamento estratégico, de apoio a atividades econômicas, de infraestrutura
urbana e de melhorias sociais na região (BRASIL; PDFF, 2003, p. 24).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

57
Novas Fronteiras Culturais

Arco Norte

Como o principal objeto empírico deste estudo pertence ao


Arco Norte, esclarece-se, com maior detalhamento, as
particularidades desse eixo de desenvolvimento, levando em
consideração os municípios da Faixa de Fronteira da Região Norte
(exceto o estado de Rondônia, que está inserido no Arco Central)
e suas classificações, segundo as sub-regiões, propostas pelo
PDFF. Como destacado na tabela anterior, o Arco Norte
compreende municípios localizados nos estados do Amapá,
Amazonas, Acre, Pará e Roraima.
O Arco está subdivido em seis sub-regiões, a saber: Sub-
região Oiapoque-Tumucumaque (Sub-região Cultural Arco
Indígena Oiapoque-Tumucumaque); Sub-região Campos do Rio
Branco (Sub-região Cultural Campos do Rio Branco); Sub-região
Parima–Alto Rio Negro (Sub-região Cultural Arco Indígena
Parima–Pacaraima/RR e Sub-região Cultural Arco Indígena Alto
Rio Negro/ AM); Sub-região Alto Solimões (Sub-região Cultural
Alto Solimões); Sub-região Alto Juruá (Sub-região Cultural Alto
Juruá-Javari) e Sub-região Vale do Acre– Alto Purus (Sub-região
Cultural Vale do Acre – Alto Purus). O quadro 1 elaborado e
apresentado a seguir apresenta os municípios inseridos nas sub-
regiões do Arco Norte.

Quadro 1 - Municípios inseridos nas sub-regiões do Arco Norte


ARCO NORTE E SUAS SUBDIVISÕES
SUB-REGIÃO OIAPOQUE-TUMUCUMAQUE - SUB-REGIÃO
CULTURAL ARCO INDÍGENA OIAPOQUE-TUMUCUMAQUE
Inclui os municípios de: *Oiapoque, Laranjal do Jarí, Pedra Branca do
Amapari, Serra do Navio, Ferreira Gomes, Pracuúba, Calçoene, Amapá
no Estado do Amapá; Alenquer, Almeirim, Faro, Oriximiná, Óbidos no
Estado do Pará; Urucará, Nhamundá no Estado do Amazonas; Caroebe,
São João da Baliza e São Luiz do Anauá no Estado de Roraima.
*Grifo nosso.
Fonte: BRASIL (2017). Elaborado por Edenilson Moura (2023).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

58
Novas Fronteiras Culturais

Interpretações para a paisagem urbana fronteiriça franco-


brasileira

Diante da perspectiva interdisciplinar, teórica-conceitual e


prática de estudos fronteiriços relacionados ao processo urbano e
cultural, considera-se, neste estudo, a fronteira enquanto um
espaço multiescalar e dinâmico, passível de fluidez e
transformações territoriais em suas especificidades espaciais e de
múltiplas temporalidades.
Com a intenção de mostrar os múltiplos usos a partir do
rio Oiapoque, que configuram paisagens concretas e simbólicas,
considerando as diferentes escalas analíticas, assim como as
possibilidades de compreensão da essência desse rio, além de sua
forma e da sua importância fluvial para a hidrografia, elaborou-se
um mosaico de fotografias composto por imagens registradas nos
meses de março e abril de 2019, durante trabalho de campo (figura
2), representando a diversidade dos usos e funções sociais e
simbólicas do rio Oiapoque.
A fotografia 2-A mostra uma embarcação do Exército
Brasileiro navegando sobre o rio Oiapoque, em uma operação
militar. O registro evidencia o papel do controle territorial por
parte do Estado e pelas forças militares, sobre as águas
internacionais da fronteira franco-brasileira.
As figuras 2-B e 2-C são exemplos de barcos utilizados por
pescadores. Ressalta-se que a pesca configura-se com uma
importante atividade econômica para o município de Oiapoque.
Na “Beira” de Oiapoque, muitos pescadores atracam suas
embarcações para fazerem atividades diversas na cidade, bem
como para consertarem suas redes utilizadas na atividade
pesqueira, principalmente no Oceano Atlântico, a partir da costa
amapaense.
Na figura 2-D é possível ver um casal que se direcionava a
uma catraia, na Vila Vitória. A travessia destinava-se a Saint Georges
de l’Oyapock. Na fotografia, avista-se diferentes catraias, algumas
atracadas e outras navegando nas águas do Oiapoque. Essas

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

59
Novas Fronteiras Culturais

embarcações representam o percurso de ir e vir na fronteira. No


outro lado do rio, avista-se Saint Georges de l’Oyapock.

Figura 2 - Diversidade dos usos e funções sociais e simbólicas do


rio Oiapoque

2A

2B

2C

2D
Fonte: Edenilson Moura (2019).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

60
Novas Fronteiras Culturais

Nesse movimento de interpretação do espaço urbano


fronteiriço franco-brasileiro, como sugerido anteriormente, a
fronteira imprime à cidade de Oiapoque, em suas formas e
conteúdos, uma paisagem repleta de simbolismos e significados
inerentes ao cotidiano e de suas múltiplas ações.
Portanto, verificou-se o quanto a fronteira franco-
brasileira, tendo com perspectiva uma abordagem pan-amazônica
e urbana-regional, permite perpassar por diferentes lentes
conceituais e práticas para as cidades localizadas na fronteira,
marcadas por suas diversidades existentes em seus territórios.
Neste sentido, os postulados de Castro e Hazeu (2012, p. 25)
alinham-se, com a perspectiva adotada neste estudo, visto que:

As fronteiras são espaços etnicamente plenos e, por


isso, as cidades de fronteira na Amazônia têm a
particularidade do multiculturalismo, da diversidade de
etnias e culturas. Dimensões essas que recentemente têm
sido incorporadas na compreensão do universo urbano da
Pan-Amazônia.

É inevitável destacar, nessa lógica, os diferentes


sentimentos que são aflorados ao estar e vivenciar a fronteira do
Brasil com a Guiana Francesa, em pleno cotidiano amazônida.
Pontua-se que o município de Oiapoque é diverso em suas formas
e processos socioespaciais, principalmente por possuir, em seu
território municipal em totalidades, diferentes formas da produção
espacial, principalmente quanto à análise de sua composição
urbana, cultural, econômica e ambiental.
Desse modo, produziu-se um mapa, com a intenção de
elucidar a diversidade socioespacial presente na municipalidade de
Oiapoque. Optou-se por destacar cinco pontos nesse mapa,
representando os diferentes distritos e localidades por suas
densidades analíticas.
O ponto 1 apresenta Vila Brasil que está localizada às
margens do Rio Oiapoque, distante cerca de 105 km do distrito-
sede. Por se tratar de um lugar de difícil acesso, que ocorre por
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

61
Novas Fronteiras Culturais

meio de embarcações, a viagem pode durar cerca de oito horas, o


que pode variar de acordo com a dinâmica fluvial do rio Oiapoque.
Vila Brasil, distrito de Oiapoque, está localizada também
em um contexto de fronteira que, insere-se dentro de duas
unidades de conservação ambiental denominadas,
respectivamente, de Parque Nacional Montanhas do
Tumucumaque e Parque Amazônico da Guiana. A região é
marcada pela presença de garimpeiros de ouro e, do lado francês,
de povos indígenas que habitam a comunidade Camopi em
território francês, comunidade que possui certa organização
espacial com melhores estruturas, se comparada ao distrito
oiapoquense de Vila Brasil.
A fotografia utilizada para representar esse distrito no mapa
é a imagem de igreja católica de Santo Antônio, importante marco
da religiosidade do distrito de Vila Brasil. Pontua-se que essa
fotografia é de autoria de Humberto Baía, divulgada no portal
eletrônico amapaense Seles Nafes (selesnafes.com). Os demais
pontos que possuem registros fotográficos nos distritos e
localidades incluídos na representação cartográfica são de autoria
própria e foram realizados em dezembro de 2019, através de
pesquisas em campo.
O ponto 2 trata do distrito de Clevelândia do Norte, onde
funciona a Companhia Especial de Fronteira do 34º Batalhão de
Infantaria de Selva, que também está localizado às margens
brasileira do rio Oiapoque. Possuía uma população, em 2010, de
acordo com o IBGE, no total de 1.253 habitantes, distribuídos em
687 homens e 566 mulheres.
Além das dependências do batalhão, existem casas onde
moram oficiais do Exército Brasileiro e seus familiares e alguns
civis. Destaca-se que, nesse local, funcionou a antiga Colônia Penal
Agrícola de Clevelândia do Norte3.

3 Sobre este assunto, consultar em: BRITO (2005): Clevelândia do Norte (Oiapoque):
tensões sociais e desterro na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. E ROMANI
(2011) Clevelândia, Oiapoque: cartografias e heterotopias na década de 1920.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

62
Novas Fronteiras Culturais

O local possui, às margens do rio Oiapoque, um


monumento-réplica em tamanho reduzido da Basílica Santuário
Nossa Senhora de Nazaré, localizada em Belém no estado do Pará,
cabe elucidar que essa Santa representa a padroeira da Amazônia.
Registra-se que, em Oiapoque, a padroeira do município é Nossa
Senhora das Graças, mas também há muitos devotos da
“Nazinha”, como muitas pessoas referem-se carinhosamente à
Nossa Senhora de Nazaré.
Assim como ocorre em Belém e em Macapá, acontece,
inclusive, em Oiapoque, o Círio de Nazaré, em data posterior ao
realizado em Macapá, para não coincidir as datas do expressivo
evento religioso, que conta com milhares de fiéis e ocorre na capital
do estado. Na fronteira franco-brasileira, os devotos seguem em
procissão da Igreja Matriz da cidade, que homenageia Nossa
Senhora das Graças, até a comunidade católica existente em
Clevelândia no Norte.
Juntamente com a réplica da igreja, na decoração às margens
do rio Oiapoque, há também canhões de guerra desativados,
compondo a paisagem cênica com placas com os escritos:
“Oiapoque – Clevelândia – Aqui começa o Brasil”, além de um
mastro repleto de pequenas placas com as indicações das latitudes
e longitudes das capitais brasileiras e a bandeira nacional. Tais
elementos cênicos mostram o controle simbólico expresso pelo
caráter e pela particularidade militar do limite internacional da
fronteira pelo Estado, particularmente pelo Exército Brasileiro. A
figura 3 apresenta esse local em Clevelândia do Norte.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

63
Novas Fronteiras Culturais

Figura 3 - Paisagem em Clevelândia do Norte

Fonte: Edenilson Moura (2018).

Quanto ao ponto 3, que representa o distrito-sede,


escolheu-se a referida imagem para ilustrar o monumento que
oficialmente recebe o nome de “Monumento à Pátria”, ou como é
mais conhecido como o marco e/ou monumento “Aqui começa o
Brasil”, que figura como um dos mais simbólicos e emblemáticos
da cidade e da fronteira do Brasil com a Guiana Francesa.
O monumento localizado às margens brasileiras do rio
Oiapoque, no canteiro central, rodeado por um jardim na Avenida
Barão do Rio Branco com a rua Joaquim Caetano da Silva, que, de
acordo com o catálogo digital da Biblioteca do IBGE, consultado
em 2020, foi construído no ano de 1943 para ser o indicativo do
marco inicial do território brasileiro. Nele, há citações do Hino
Nacional e uma placa indicativa com os dizeres: “Aqui Começa o
Brasil”; “Verás que o filho teu não foge à luta”; “Do filho deste
solo és mãe gentil, Pátria amada Brasil”. Foi criado, contudo, para
consolidar a soberania nacional sobre as áreas limítrofes, face ao
contestado franco-brasileiro. É, sem dúvida, um dos locais mais
visitados e fotografados de Oiapoque, inclusive por diversas
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

64
Novas Fronteiras Culturais

autoridades brasileiras que já estiveram e registraram a passagem


pelo local que representa um potencial turístico cultural da cidade.
As figuras 4 e 5 mostram dois registros históricos: o primeiro
é do referido monumento, e a outra fotografia é da Avenida Barão
do Rio Branco, no Centro, principal avenida de Oiapoque.

Figura 4 - Registro antigo do monumento “À Pátria”

Fonte: Acervo IBGE, s/data. Consultado em 2021.

Figura 5 - Registro antigo da Avenida Barão do Rio Branco

Fonte: Acervo IBGE, s/data. Consultado em 2021.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

65
Novas Fronteiras Culturais

Os monumentos apresentados nos distintos distritos de


Oiapoque representam o poder simbólico materializado no espaço
e destacam, por sua vez, a força da fronteira na espacialidade, para
além do limite internacional.
Cabe, ainda, destacar acerca dos monumentos presentes na
cidade de Oiapoque, relacionados à fronteira, o Monumento
Laudo Suíço, localizado na Avenida Barão do Rio Branco, no
calçamento central da Avenida, na frente da Delegacia da Polícia
Federal e, do outro lado, o ginásio esportivo da Escola Estadual
Joaquim Nabuco.
O monumento foi construído nos anos 2000 para celebrar
os 100 anos da decisão arbitral, que colocou fim ao contestado
franco-brasileiro. Por se tratar de um lugar com grande potencial
turístico cultural da cidade, poderia receber maior destaque no
planejamento turístico local. Em sua estrutura, na parte superior,
tem-se o formato territorial de Oiapoque e da Guiana Francesa,
além das bandeiras do Brasil e da França.
Na parte central, há uma placa em concreto com o rosto
do Barão do Rio Branco, o sr. José Maria da Silva Paranhos Júnior,
defensor dos interesses e do território brasileiro. O apoio da
estrutura lembra braços, simbolizando uma possível união entre as
duas nações. Compõem, ainda, o monumento, placas em aço inox
com a transcrição de partes do laudo assinado em 1º de dezembro
de 1900, em Berna. Registra-se que o dia da assinatura do laudo,
ou seja, o dia primeiro dezembro é feriado municipal em
Oiapoque. A figura 6, a seguir, apresenta o referido monumento.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

66
Novas Fronteiras Culturais

Figura 6 - Monumento dedicado ao Laudo Arbitral Suíço

Fonte: Edenilson Moura (2018).

Outra espacialidade urbana importante, que será destacada


na figura 8, no ponto 4, é Vila Vitória, que contradiz, inclusive,
alguns padrões oficiais de classificação do que é considerado bairro
e do que é tido como distrito nos municípios brasileiros, haja vista
que a Vila em questão, para a prefeitura Municipal de Oiapoque, é
considerada como um bairro, mesmo estando distante cerca de 5
km, em área não conurbada do distrito-sede.
Vila Vitória está localizada, literalmente, no front. Tais
singularidades serão discutidas como elementos da constituição
socioespacial da localidade na seção intitulada: Vila Vitória: o
urbano brasileiro mais próximo da Europa.
Quanto ao ponto 5 do mapa, ele traz a localidade Primeiro
do Cassiporé, a fotografia ilustra a Escola Municipal Rio Primeiro
do Cassiporé, localizada no quilômetro 110 da BR-156, no trecho
não pavimentado.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

67
Novas Fronteiras Culturais

Ao lado da escola, existe um pequeno restaurante com


estrutura simples, considerado, informalmente, como uma parada
quase obrigatória, pois, oferece banheiros para os clientes, além de
um café sempre disponível na garrafa térmica sobre o balcão.
Igualmente, como cortesia da casa, esse local oferece informações
importantes para quem viaja pelo trecho na BR-156.
A figura 7 apresenta esse estabelecimento, que tem como
nome fantasia “Restaurante Deus Proverá”, localizado na BR-156,
no Primeiro de Cassiporé.

Figura 7 - Restaurante na BR-156, na comunidade Primeiro do


Cassiporé

Fonte: Edenilson Moura (2018).

Além dos distritos e localidades abordados e evidenciados na


produção cartográfica que segue, o mapa (figura 8) localiza e
apresenta, em sua composição, a dimensão ambiental municipal
pela presença de Unidades de Conservação (UC), projetos de
assentamentos (PA) e terras indígenas (TI), além dos Parques
Nacionais do Cabo Orange e os das Montanhas do Tumucumaque,
inseridos no território do município de Oiapoque.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

68
Novas Fronteiras Culturais

Figura 8 - Oiapoque: Distritos, localidades e especificidades


territoriais

Fonte: IBGE (2019); Trabalho de Campo. Elaboração: MOURA,


E. D; SILVA, R. B. (2021).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

69
Novas Fronteiras Culturais

No entanto, é principalmente na cidade, no distrito-sede de


Oiapoque, que ocorre a efervescência dos nossos sentidos na
fronteira, que evidenciam diferentes elementos analíticos e
processos mais latentes atrelados à fronteira no urbano.

Ponte Binacional: um marco da interação fronteiriça na


paisagem?

Entre os elementos da rede-técnica de conexidade da


fronteira franco-brasileira e com importância para a integração e
logística estado do Amapá, que provoca debates e incertezas para
diferentes protagonistas e conta com inúmeros desafios, mas que
representa potencialidades da integração transfronteiriça, trata-se
da Ponte Binacional.
O decreto 4373, de 12 de setembro de 2002, promulgou o
acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o
Governo da República Francesa, para o Projeto de Construção de
uma ponte sobre o Rio Oiapoque, celebrado em Brasília, no dia 5
de abril de 2001 (BRASIL, 2002). A figura 9, apresentada a seguir,
ilustra esse importante objeto técnico da interação entre o Amapá
e a Guiana Francesa. Nesse registro fotográfico, também é possível
visualizar uma típica embarcação utilizada por pescadores que se
destinam ao Oceano Atlântico.
Entretanto, muito antes da sua construção e inauguração, a
Ponte Binacional integrava ações para a tentativa de conectar
fisicamente os dois países e promover o aprimoramento das
relações transfronteiriças. A conclusão da ponte ocorreu primeiro
no lado francês e, quanto ao lado brasileiro, muito tempo se passou
para a finalização das suas estruturas do “lado de cá”.
A abertura total da Ponte foi prevista para o ano de 2012,
mas somente no mês de março de 2017, ela teve sua abertura. Só
se autorizou a circulação de pessoas, mediante os cumprimentos
das burocracias internacionais, como a posse do visto de
entrada/permanência e, para automóveis, os seguros devidamente
pagos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

70
Novas Fronteiras Culturais

Figura 9 - Ponte Binacional Franco-Brasileira sobre o rio Oiapoque

Fonte: Edenilson Moura (2019).

O prolongado atraso na abertura ocorreu por uma série de


fatores, principalmente estratégicos, políticos e estruturais. Como
apontado, no “lado francês”, a estrutura dos postos de fiscalização
aduaneira e demais estruturas localizadas em território francês
ficaram prontas há muito tempo, realidade diferente do lado do
Brasil, que mesmo após a abertura parcial, não concluiu a estrutura
das instituições públicas fiscalizadoras da fronteira. Registra-se que
a Polícia Federal e a Receita Federal já possuem sedes e atuam na
ponte no lado brasileiro.
A abertura da ponte, de certa forma, sinaliza
potencialidades e pode promover, por exemplo, o
desenvolvimento econômico para o Oiapoque. Representa
concretamente, no espaço geográfico, um símbolo na paisagem
fronteiriça de interação entre as duas nações.
Um exemplo da possível melhoria econômica é a atividade
turística que pode ser mais bem aproveitada diante das
potencialidades turísticas existentes em Oiapoque, principalmente,
o turismo em áreas naturais. Portanto, é na cidade que há a
concentração da oferta de hotéis, pousadas, bares e restaurantes e
demais prestadores de serviços, que já se apropriam

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

71
Novas Fronteiras Culturais

incipientemente da atividade turística oiapoquense. Dessa forma, o


espaço urbano sob a égide econômica se beneficiaria com o
turismo intensificado pós-abertura da ponte.
Silva e Granger (2019, p. 7) destacam ainda, nessa
perspectiva, os impactos econômicos advindos da Guiana
Francesa para a economia urbana presenciada em Oiapoque:
A ligação terrestre trouxe para a fronteira um número maior de
franco-guianenses e europeus, inclinados agora em conhecer o
Brasil a partir de sua fronteira com a França ou mesmo utilizar
Macapá como um ponto de deslocamento para diversos destinos.
Também surgiram em Oiapoque clientes oriundos agora mais
facilmente de Caiena e do litoral guianense, atraídos pelos preços
mais em conta das mercadorias brasileiras. Assim, a circulação
naquele espaço geográfico deixou de ser restrita aos moradores
autóctones e conectou o sistema de circulação local a uma lógica
reticular ampliada com as conexões rodoviárias.
Cabe, porém, destacar sobre a relevância do planejamento
e gestão territorial, precipuamente, tratando-se da abertura de uma
ponte que conecta fisicamente, proximidades e distâncias. Na
seara das externalidades desse processo, devem ser integralmente
priorizadas nas elaborações de políticas em diferentes âmbitos,
como econômicos políticos e culturais, evitando os conflitos que
possam provocar o distanciamento e não a integração em múltiplos
sentidos, entre os dois países, como, por exemplo, entre as cidades
gêmeas Oiapoque e Saint George.
A espacialidade urbana de Oiapoque, nessa perspectiva,
corresponde ao território mais impactado, com a abertura da Ponte
Binacional, diante das redefinições políticas e estratégicas de
múltiplas forças e poderes sobre o espaço fronteiriço que ela
desempenha e poderá desempenhar mais intensamente,
afigurando-se, portanto, a ponte como um nó na rede territorial
fronteiriço franco-brasileiro.
Como já discutido, é principalmente no espaço urbano de
Oiapoque que os fluxos e interações fronteiriças materializam-se
no espaço geográfico amapaense, configurando paisagens

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

72
Novas Fronteiras Culturais

simbólicas que afirmam a fronteira em sua materialidade e


imaterialidade espacial.

Considerações Finais

Dessa maneira, na fronteira do Brasil com a França, ou


com a Guiana Francesa, constata-se, a partir de efervescências
diversas dos sentidos humanos que auxiliam a vislumbrar
especificidades regionais, por meio da visão, audição e do paladar
na produção do espaço fronteiriço, a fim de identificar as marcas
da fronteira na produção do espaço intraurbano.
Em outros termos, vê-se fronteira na cidade, mas também
escutamos e sentimos a fronteira através de sua sonoridade, paladar
e outros sentidos do ser humano. A fronteira, com isso, aflora
sentimentos que constituem paisagens urbanas e fronteiriças, de
maneiras simbólicas, que se materializam no espaço geográfico em
cotidiano.
Os desafios para o entendimento e gestão do território
urbano fronteiriço são gigantes. No entanto, o reconhecimento
das potencialidades e limites da fronteira, além do limite
internacional instituído no exercício do controle territorial,
significa avanços para o desenvolvimento regional, que sinaliza a
necessidade de projetos que realizem, na prática, a integração
regional e o desenvolvimento territorial urbano, para além da visão
mercadológica e exploratória da fronteira franco-brasileira através
de seus diferentes recursos.

Referências

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Territorialité en Amazonie Bresilliènne: ntreprise d’Etat et
Garimpeiros a Carajas. L’espace geographique, Paris, v. 3, 1989.
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americana. Jundiaí: Paco editorial, 2013.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

BRASIL. Faixa de fronteira: Programa de Promoção do


Desenvolvimento da Faixa de Fronteira – PDFF. Secretaria de
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2005.
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integração das faixas de fronteira. Ministério da Integração
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CASTRO, Edna. HAZEU, Marcelo. Cidades, fronteiras
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https://www.periodicos.ufam.edu.br/index.php/somanlu/article
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IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Prévia da
população calculada com base nos resultados do Censo
Demográfico 2022 até 25 de dezembro de 2022. Disponível em:
https://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2022/Prev
ia_da_Populacao/AP_POP2022.pdf. Acesso em: 1 fev. 2023.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cadastro de
municípios localizados na faixa de fronteira. Disponível em:
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&view=detalhes. Acesso em: 12 jan. 2023.
MOURA, Edenilson Dutra de. Urbano-fronteiriço: espacialidades
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MOURA, Edenilson Dutra de. Território, fronteira e conec-
cidade: um olhar para a fronteira franco-brasileira. Revista Casa
da Geografia de Sobral (RCGS), v. 22, n. 3, p. 143-161, 30 dez.
2020. Disponível em:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

74
Novas Fronteiras Culturais

https://rcgs.uvanet.br/index.php/RCGS/article/view/724/579
Acesso em: 12 jan. 2023.
MOURA, Edenilson Dutra de. Do Oiapoque ao... vislumbrar
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2021. 304 f. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2021. Disponível em:
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Acesso em: 10 jan. 2023.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

75
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 4
CIDADES-IRMÃS PARA ALÉM DA IDEIA
DE FAIXA DE FRONTEIRA: UMA
BREVE DISCUSSÃO BIBLIOGRÁFICA

Evaldo Ferreira

Introdução

A preocupação com a fronteira nacional sempre esteve em


pauta na agenda do Governo do Brasil, seja em função da expansão
territorial, na época do descobrimento; por questões militares, após
a assinatura dos tratados de partilha das colônias; ou objetivando a
segurança nacional e zoofitossanitária em tempos hodiernos.
Atualmente, com a relativa paz entre as nações sul-
americanas, as atividades dos governos voltam-se para as questões
econômicas e para as interações transfronteiriças, ou seja, para a
“ação de reciprocidade, de troca, de aproximação e de
permeabilidade, que faz com pessoas de ambos os lados da
fronteira se interajam” (SILVA, 2007, p. 96), havendo, no Brasil,
leis, projetos e programas específicos visando ao desenvolvimento
desta área.
O presente artigo tem por objetivo realizar uma breve
discussão sobre faixa de fronteira e cidades-irmãs, utilizando
análise bibliográfica enquanto procedimento metodológico.

A Faixa de Fronteira e o conceito de cidades-irmãs

Considerando-se o marco jurídico-institucional, houve, no


decorrer dos anos, variação espacial e de objetivos na definição da
Faixa de Fronteira. Assim, em 1890, por meio da Lei nº. 601, de 18

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

76
Novas Fronteiras Culturais

de setembro – primeira vez em que a Faixa de Fronteira foi


definida como área geográfica com regime jurídico particular –, a
distância considerada para a delimitação desta era de 66
quilômetros, passando para 100 km, pela Constituição de 1934, e
para 150 km a partir da promulgação da Constituição de 1937
(BRASIL, 2005), sendo a concessão de terras ou de vias de
comunicação nessa área autorizada pelo Conselho de Segurança
Nacional [atual Conselho de Defesa Nacional], “responsável
também por garantir o predomínio de capitais e trabalhadores
nacionais na fronteira” (BRASIL, 2005, p. 175).
A partir de então, algumas leis relacionadas à área foram
criadas, dentre as quais se destacam a Lei nº. 2.597, de 1955, que
incluiu a Faixa de Fronteira como uma das zonas de segurança
indispensáveis à segurança nacional, estabelecendo, inclusive, que
a União aplicasse 60% de tudo o que fosse arrecadado naquela área
em viação e obras públicas, ensino, educação, saúde e
desenvolvimento da lavoura e da pecuária da própria Faixa de
Fronteira; a Lei nº. 6.634, de 02 de maio de 1979 e o Decreto nº.
85.064, de 26 de agosto de 1980, que consolidaram a Faixa de
Fronteira como área indispensável à segurança nacional,
estabelecendo restrições ao uso da terra e à realização de uma série
de atividades nessa área, sendo necessário o prévio consentimento
da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional para, por
exemplo, a abertura de vias de transportes, construção de pontes,
estradas internacionais e campos de pouso, instalação de empresas
dedicadas à pesquisa, lavra, exploração e aproveitamento de
recursos minerais e implantação de colonização e loteamentos
rurais (BRASIL, 2005).
Fisicamente, a Faixa de Fronteira brasileira está dividida em
três arcos e 17 sub-regiões (Figura 01), abrangendo, em 2010, um
total de 588 municípios classificados, conforme sua posição
geográfica em relação à linha de fronteira (Figura 02), em lindeiros
ou não-lindeiros:
O grupo dos municípios lindeiros pode ser subdividido em três
subgrupos: 1) aqueles em que o território do município faz limite

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

77
Novas Fronteiras Culturais

com o país vizinho e sua sede se localiza no limite internacional,


podendo ou não apresentar uma conurbação ou semi-conurbação
com uma localidade do país vizinho (cidades-gêmeas); 2) aqueles
cujo território faz divisa com o país vizinho, mas cuja sede não se
situa no limite internacional; e 3) aqueles cujo território faz divisa
com o país vizinho, mas cuja sede está fora da faixa de fronteira.

Figura 1 – Arcos e sub-regiões da Faixa de Fronteira

Fonte: Brasil (2009).

O grupo dos municípios não-lindeiros, situados à


retaguarda da faixa, pode ser dividido em dois subgrupos: 1)

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

78
Novas Fronteiras Culturais

aqueles com sede na faixa de fronteira e 2) aqueles com sede fora


da faixa de fronteira (BRASIL, 2009).
Essa classificação, principalmente no que tange à
denominação de “cidades-gêmeas” e suas derivações, já gerou
muitas discussões no meio acadêmico e, por questões conceituais
e de definição, um breve relato sobre a questão faz-se necessário,
uma vez que, na literatura especializada, termos como cidades-
irmãs, cidades geminadas, irmãs-siamesas, duplas urbanas e
xifópagas aparecem como sinônimo daquela.

Figura 2 – Municípios brasileiros na Faixa de Fronteira (2010)

Fonte: Brasil (s/d).


Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

79
Novas Fronteiras Culturais

Apesar de o termo “cidade-gêmea” ter sido apresentado no


Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF)
(BRASIL, 2009), como apresentado anteriormente, Moreira (2009)
e Senhoras (2013) discordam de tal denominação ao justificarem
que “gêmeos” nascem e crescem no mesmo momento e de formas
similares e isso não ocorre com cidades fronteiriças.
Já termos como “xifópagas” e “irmãs-siamesas” soam
pejorativamente, uma vez que, apesar de a ideia ser de ligação de
corpos por partes homólogas, nesses casos, a noção é de disputa
entre as partes por aquele “órgão” que os une. Por outro lado,
quando se fala em “cidades geminadas” ou “duplas urbanas”,
pensa-se, inicialmente, não nos relacionamentos entre as cidades,
mas em sua ligação física, que pode ser uma ponte ou uma rua.
Braga (2013), que utiliza cidades-gêmeas, cidades-irmãs e
cidades espelhadas como sinônimo, analisa as cidades-gêmeas em
zonas de fronteiras internacionais a partir dos processos de
conurbação transnacionais delas, justificando a denominação
“devido à intensidade e diversidade de interfaces associadas à vida
urbana, [...] a fusão entre malhas urbanas, [...] a contiguidade [...] e
a complementaridade” (p. 39; 42; 162).
Já Ritel (2002 apud Braga, 2013) prefere chamar essas
localidades de “espaços plataformas”, “produzidos por
seletividade, unidirecionalidade e diferenças na intensidade de
fluxos” (p. 164), uma vez que, para o autor, o uso do termo
cidades-gêmeas descreve uma conectividade e não integração
espacial e que “dissimilaridades morfológicas no desenvolvimento
e expansão destas cidades podem sabotar as expectativas de
integração espacial, social, econômica e a complementaridade
funcional que caracteriza o processo de conurbação” (p. 163).
Essa ponderação contraria Silva (2012), que é mais
categórico ao definir cidades-gêmeas:

As cidades gêmeas são aglomerações urbanas situadas aos


pares ao longo do limite internacional de um país que
apresentam uma paisagem específica e uma dinâmica

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

80
Novas Fronteiras Culturais

própria a sua localização junto ao limite internacional;


geradas por intensas trocas culturais, econômicas e sociais
entre Estados nacionais, assim como conflitos advindos
das diferenças políticas, culturais (p. iv).

O próprio Grupo Retis – um dos responsáveis pela


elaboração do PDFF – ao representar a distribuição geográfica das
cidades-gêmeas da fronteira do Brasil (Figura 03), o faz após deixar
clara a distinção entre Faixa e Zona de Fronteira, sendo a primeira
associada aos limites territoriais do poder do Estado, enquanto a
segunda “aponta para um espaço de interação, um paisagem
específica, um espaço social transitivo, composto por diferenças
oriundas da presença do limite internacional, e por fluxos e
interações transfronteiriças, cuja territorialidade mais evoluída é a
das cidades-gêmeas” (MACHADO et. al., 2005, p. 95).
Para esse grupo, três aspectos devem ser ressaltados na
geografia das cidades-gêmeas na fronteira do Brasil: (1) a posição
estratégica em relação às linhas de comunicação terrestre e a
infraestrutura de articulação não garante o crescimento e a simetria
urbana das cidades e, às vezes, estas podem reduzir-se a pequenos
povoados locais ou a cidades de tamanho urbano distintos, o que
indica diferenças no grau de desenvolvimento econômico dos
países e a forma como os governos centrais tratam-nas; (2) a
disposição geográfica e o tamanho urbano das cidades estão
relacionados à ação intencional dos agentes institucionais voltadas
para questões militares, eclesiásticas ou jurídico-administrativas; e
(3) a separação entre os tipos de interação predominante na linha
de fronteira do tipo de interação que caracteriza a cidade-gêmea
localizada nela (GRUPO RETIS, s/d).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

81
Novas Fronteiras Culturais

Figura 3 - Distribuição geográfica de cidades-gêmeas na fronteira


do Brasil

Fonte: Grupo Retis (s/d).

Essas interações transfronteiriças são classificadas em


margem, zona tampão, frentes, capilar e sinapse (Figura 4) e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

82
Novas Fronteiras Culturais

dependem das diferenças geográficas, do tratamento diferenciado


recebido dos órgãos de Estado e do tipo de relação estabelecida
com os povos vizinhos (BRASIL, 2005):

1. Margem: tipo de interação em que a população fronteiriça de


cada lado do limite internacional mantém pouco contato entre si,
exceto de tipo familiar ou para modestas trocas comerciais. As
relações são mais fortes com o nacional de cada país do que entre
si. A ausência de infraestrutura conectando os principais núcleos
de povoamento é uma característica do modelo.

2. Zona-tampão: o termo é aplicado às zonas estratégicas onde o


Estado Central restringe ou interdita o acesso à faixa e à zona de
fronteira, criando parques naturais nacionais, áreas protegidas ou
áreas de reserva, como é o caso das terras indígenas.

3. Frentes: o termo é usualmente empregado para caracterizar


frentes de povoamento. No caso das interações fronteiriças, a
“frente” também designa outros tipos de dinâmicas espaciais,
como a frente cultural (afinidades seletivas), a frente indígena ou a
frente militar.

4. Capilar: as interações do tipo capilar podem ocorrer somente no


nível local, como no caso das feiras, exemplo concreto de interação
e integração fronteiriça espontânea. Pode ocorrer por meio de
trocas difusas entre vizinhos com limitadas redes de comunicação,
ou resultam de zonas de integração espontânea, nas quais o Estado
intervém pouco, principalmente não patrocinando a construção de
infraestrutura de articulação transfronteiriça.

5. Sinapse: o modelo sinapse refere-se à presença de alto grau de


troca entre as populações fronteiriças; é apoiado pelos Estados
contíguos. As cidades-gêmeas mais dinâmicas podem ser
caracterizadas de acordo com esse modelo (BRASIL, 2009b).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

83
Novas Fronteiras Culturais

Por essas definições e pela análise das figuras 3 e 4, há de


se concordar com Queiroz (2007), para quem “‘cidades-gêmeas’
são núcleos urbanos simetricamente dispostos entre limites
territoriais de países” (p. 199). Em outras palavras, serão gêmeas –
mas não exatamente “univitelina”, pois pode haver diferenças de
desenvolvimento econômico e social – aquelas cidades que
mantêm intensas interações de troca (culturais, econômicas e
sociais) e cujas sedes estejam fisicamente unidas, ainda que
separadas por uma rua ou ponte. Já as cidades-irmãs são aquelas
que mantêm relações de troca, mas cujas sedes ou mesmo todo o
espaço político-administrativo não se encontram necessariamente
juntos:
Atualmente, o conceito de cidades-irmãs está mais ligado à
paradiplomacia1, em que os municípios assinam acordos de
intercâmbio com cidades nacionais ou internacionais que vão além
das relações sociais, culturais e econômicas, podendo ter
significado cultural e simbólico (VIGEVANI et. al., 2006) ou
buscam “assegurar a manutenção da paz entre os povos, baseada
nos ideais de fraternidade, felicidade, amizade e respeito recíproco
entre as nações” (CAMPOS, 2013).
São exemplos de cidades-irmãs com acordos de
cooperação assinados: São Paulo-SP e as cidades de Xangai, na
China e Seul, na Coréia do Sul (SÃO PAULO, 2013); Londrina-PR
e as cidades de Leon (Nicarágua), Toledo (Estados Unidos),
Nishinomya (Japão), Guimarães (Portugal), Modena (Itália) e
Zhenjiang (China) (LONDRINA, 2010); Brasília-DF e
Washington, nos Estados Unidos (SANT’ANNA, 2013), São José
do Rio Preto-SP e Nantong, China (CAMPOS, 2013) e, entre

1 Expressão que indica, no contexto das relações internacionais, “processos da


extroversão de atores subnacionais como governos locais e regionais, empresas,
organizações não governamentais que procuram praticar atos e acordos internacionais a
fim de se obterem recursos e resolverem problemas específicos de cada área com maior
rapidez e facilidade sem a intervenção dos governos centrais (MOREIRA et. al.,
2009).[falta um fecha aspas]

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

84
Novas Fronteiras Culturais

várias outras, Cáceres-MT e San Matías, Bolívia (MARQUES,


2013).

Figura 4 – Tipologias das interações fronteiriças

Fonte: Brasil (2005).

A Lei nº. 14.471, de 10 de julho de 2007, da Prefeitura


Municipal de São Paulo (SÃO PAULO, 2007), em seu parágrafo
terceiro, do Artigo 3º, deixa claro os objetivos dos acordos
realizados por essa cidade:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

85
Novas Fronteiras Culturais

§ 3º A declaração conjunta deverá ter por objetivos básicos, entre


outros:
I - a busca do fortalecimento dos laços de amizade entre os povos;
II - acordos e programas de ação com o fim de fomentar o mais
amplo conhecimento recíproco, para fundamentar os intercâmbios
sociais, culturais e econômicos, em especial os relativos à
organização, administração e gestão urbana;
III - a troca de informações e a difusão em ambas as comunidades
das obras culturais, turísticas, desportivas, políticas e sociais, que
respondam a seus respectivos interesses;
IV - convênios, através de programas e projetos de colaboração
que se estabelecerão nos diferentes campos de atuação;
V - a facilitação dos contatos entre empresas ou instituições
interessadas e os órgãos competentes relativos aos setores
responsáveis pelos convênios em cada país;
VI - outros programas de cooperação técnica entre ambas as
cidades que poderão ser firmados de acordo com o mútuo
interesse das partes;
VII - a realização de acordos bilaterais visando à troca de
conhecimentos sobre as raízes étnicas, folclóricas e musicais de
cada um dos países nos quais se situam as cidades-irmãs constantes
deste artigo;
VIII - a busca do incremento do intercâmbio estudantil entre as
escolas municipais, com a instituição de prêmios aos melhores
alunos, promoção de viagens de estudos, de turismo popular e a
criação de comitês de apoio formados por pais e professores.

Considerações finais

Conforme observado, não apenas na lei específica do


município de São Paulo, mas em todos os acordos de cooperação
entre cidades, estas o fazem visando ao desenvolvimento
econômico e cultural e, para muito além disso, a proposta é
promover a paz e a irmandade entre diferentes localidades.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

86
Novas Fronteiras Culturais

Oxalá, que cada vez mais haja acordos que venham


terminar com todos os tipos de fronteiras.

Referências

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

90
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 5
FRONTEIRAS E REDES
FRONTEIRIÇAS:
PERCEPÇÕES SOBRE O LITÍGIO
TERRITORIAL ENTRE CEARÁ E PIAUÍ

Lucas Bezerra Gondim

Introdução

A pesquisa que está no cerne deste capítulo foi


desenvolvida durante a conclusão de doutoramento em Geografia
pela Universidade Federal do Ceará (UFC) entre os anos 2018 e
2022, com a tese de analisar o recorte territorial do litígio entre
Ceará e Piauí enquanto lugar, buscando aumentar o protagonismo
dos moradores da área, investigando a questão litigiosa a partir do
olhar deles.
Dessa maneira, os objetivos do recorte investigativo
tratado aqui consistem em identificar as dinâmicas territoriais
existentes na área litigiosa, que se desdobram através de redes
fronteiriças e perceber a tensão entre os dois estados através dessas
redes e o que estas podem revelar sobre a disputa territorial.
Para tanto, a metodologia utilizada foi pautada na
etnogeografia (CLAVAL, 2007), que compreende os fenômenos
através do olhar dos agentes que contribuem direta e/ou
indiretamente para a (re)construção do fenômeno ou dinâmica
investigado, colocando os sujeitos como protagonistas e, por meio
dos seus discursos, percebendo como se desenvolveu e desenvolve
sua distribuição espacial e como eles relacionam-se com o espaço.
Essa metodologia proporcionou vivências e aprendizados
basilares para a construção do pensamento sobre esse conflito
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

91
Novas Fronteiras Culturais

territorial duradouro que serão discutidos no decorrer do texto, de


forma sintética, para gerar reflexões sobre a trajetória dessa disputa
e como isso impacta em várias esferas da vida de seus moradores.

A problemática do litígio territorial no Brasil

Como visto, o conflito litigioso entre Ceará e Piauí


cristalizou-se como uma disputa jurídica através da Ação Cível
Originária 1831 (ACO 1831). Mas, se buscar a(s) origem(ns) desse
conflito, pode-se observar que remonta um recorte histórico de
mais de dois séculos. Alguns investigadores desse litígio apontam
que ele inicializa durante o período que compreende o segundo
império, a partir do Decreto Imperial nº 3012, no ano de 1880,
quando D. Pedro II indica os limites de Ceará e Piauí.
No entanto, antes da oficialização dos limites dos estados
brasileiros, por meio dos decretos imperiais, pode-se perceber um
leque de problemáticas referentes ao território brasileiro desde a
sua jurisdição até a delimitação. Muitas dessas problemáticas são
refletidas, atualmente, através de questões litigiosas, algumas
resolvidas (principalmente, na virada do século XXI) como é o
caso do litígio entre Pará e Mato Grosso – resolvido em 2019 – e
outras que permanecem na incerteza de uma possível definição,
como o caso investigado aqui.
Vale ressaltar que antes dos decretos imperiais, pode-se
observar uma série de intervenções no território brasileiro,
inseridos no recorte temporal que contempla a ocupação desse
mesmo território, através de posseiros, sesmeiros, donatários e
grileiros, sendo que não interessava a formalização do
estabelecimento de limites territoriais devido às atividades
praticadas naquele período. Assim sendo, essa problemática que se
intensifica em caráter formal durante o século XX, é uma realidade
no território brasileiro praticamente desde a sua formação.
O recorte histórico desta pesquisa compreende a fronteira
litigiosa entre o estado do Ceará e do Piauí, uma área que
corresponde a 2.800 m² e compreende os munícipios de Granja

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

92
Novas Fronteiras Culturais

(CE), Viçosa do Ceará (CE), Tianguá (CE), Ubajara (CE), Ibiapina


(CE), São Benedito (CE), Carnaubal (CE), Guaraciaba do Norte
(CE), Croatá (CE), Ipueiras (CE), Poranga (CE), Ipaporanga (CE),
Crateús (CE), Cocal (PI), Cocal dos alves (PI), São da Fronteira
(PI), Domingos Mourão (PI), Pedro II (PI), Buriti dos Montes (PI),
Pedro II (PI), Buriti dos Montes (PI), como se observa no mapa 1.

Mapa 1 - Áreas de litígios entre Ceará e Piauí

Fonte: Adaptado do mapa político do Brasil, IBGE (2014).

Entende-se a fronteira litigiosa entre Ceará e o Piauí como


um campo de representações e tensões culturais e simbólicas em
que pode-se explorar as construções identitárias dos seus sujeitos,
devido às relações sociais e culturais que se desdobram (ou não)
nessa área fronteiriça através dos vetores simbólicos (OLIVEIRA,
2018).
Uma das tensões citadas, que podem ser exploradas, é a
maneira como esse processo judicial desenvolve-se. O recorte
territorial envolve milhares de famílias, distribuídas nas
comunidades que constituem a área litigiosa na fronteira entre
Ceará e Piauí. No entanto, essa disputa acontece de maneira
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

93
Novas Fronteiras Culturais

vertical, sendo que as decisões tendem a ser tomadas pelos


governos das duas unidades federativas, não existindo participação
efetiva dos moradores que residem no recorte territorial que
compreendem a área de litígio.
Paralelo a essa discussão, pode-se trazer à tona os
benefícios da posse dessas terras litigiosas. Quanto aos interesses
em recursos naturais, relacionados ao meio ambiente, provêm do
forte investimento que a área litigiosa passou a receber de empresas
nacionais e estrangeiras para a construção de usinas e parques
eólicos, como o Complexo Eólico Ventos de Tianguá e Bons
Ventos da Serra S.A. 1 e 2 (figura 1 e 2), ambas com várias unidades
de usinas eólicas espalhadas, sobretudo, na área litigiosa devido ao
grande potencial para geração de energia eólica descoberto
recentemente.

Figura 1 - Complexo Eólico Ventos de Tianguá e Bons Ventos da


Serra 2 S.A

Fonte: Acervo do autor (2021).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Mapa 2 - Empreendimentos eólicos localizados na área de litígio


entre CE/PI

Fonte: Acervo do Laboratório de Estudos Geoeducacionais e


Espaços Simbólicos (2019).

Outro ponto abordado pode ser observado em uma área


com grandes reservas de água subterrânea, como é o caso de parte
do aquífero Serra Grande presente na área litigiosa, que abastece
17 municípios cearenses e 10 piauienses (SOUZA, 2020). Além do
reservatório d’água em Poranga e os açudes Jaburu e Lontras, de

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Novas Fronteiras Culturais

grande importância para o abastecimento dos municípios e


localidades fronteiriças do Ceará (Figura 3).

Figura 3 - Açude Jaburu

Fonte: Acervo do autor (2019).

Nessa perspectiva, é possível identificar as motivações de


ambos os governos estaduais para a obtenção da posse oficial
dessas terras, uma vez que elas mostram-se como fundamentais
reservatórios de recursos naturais e de produção destes.
No entanto, o impacto dessa resolutiva, no cotidiano e nas
tomadas de decisões, será percebido, de fato, nas pessoas afetadas,
ou seja, nos moradores dessas comunidades e distritos que
constituem a área litigiosa. Dessa maneira, a perspectiva dos
moradores a respeito do processo litigioso e sua escolha entre ser
cidadão/ã cearense ou piauiense é fundamental para compreender
como os traços culturais e afetivos desses sujeitos comportam-se
em meio a esse processo.

O viver a fronteira litigiosa a partir de seus moradores

Como o intuito desta investigação é evidenciar a


perspectiva dos moradores da área litigiosa, com nossa vivência

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Novas Fronteiras Culturais

etnogeográfica (CLAVAL, 2015, p. 12), expõ-se os anseios,


necessidades e exigências dos povos que compõem a fronteira
entre Ceará e Piauí, dando-lhes voz, já que são silenciados direta
ou indiretamente pelo poder público e por sua própria condição de
esquecimento.
As práticas, as habilidades, os conhecimentos e os
discursos geográficos também dizem respeito ao tecido social no
qual evoluem as populações e as redes que o estruturam; eles
tratam das representações do além que dá sentido às suas vidas.
Esses saberes estão ligados intimamente ao modo de agir, aos
processos e às estratégias que cada um desenvolve, ou às políticas
imaginadas ao nível dos grupos.
As vivências em campo implicaram uma nova perspectiva
para o habitar, uma ideia que se amplia, apoiando-se na perspectiva
da dimensão geográfica das habilidades (CLAVAL, 2015), em que
o habitar está intrinsecamente ligado aos saberes vernaculares dos
sujeitos e aos saberes comunitários das sociedades. Como nos
aponta Claval (2015, p. 26): “as geografias vernaculares
contemplam dessa forma a arte da habitação”.
Quando aprofunda-se o conceito de habitar através da obra
de Claval (2015), cruzando-o com as experiências em campo,
observa-se que Claval permite-se setorizar o habitar em “casa”,
“trabalho”, “vizinhança” e a “familiridade com os lugares”. Pode-
se elencar ainda outro setor, o habitar a “transição”, que integra
essas ramificações e traduz a dinâmica de movimento das
comunidades que contemplam a fronteira, uma vez que, como
pontua Claval (2015, p. 44):

Habitar é estar bastante amalgamado com um grupo e estar


inserido profundamente num ambiente para com ele se
identificar: existe uma hierarquia, identidades individuais,
identidades familiares, identidades de vizinhança ou de
profissão. Elas têm em comum o fato de nascerem da
experiência direta de cada um desses indivíduos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Retomando a ideia de Geertz (1997) sobre a importância


dos discursos evidenciados e dos sujeitos numa análise etnográfica,
que devem sobrepor as tentativas de interpretação do pesquisador,
deve-se indicar a relevância fundamental das cem entrevistas
realizadas nos trabalhos de campo, além das conversas informais,
que possibilitaram adentrar nessa percepção da fronteira litigiosa
enquanto lugar.
Os relatos colhidos durante as vivências etnogeográficas
articulam, quase que unanimemente, a insatisfação/repulsa sobre a
ideia de fazer parte do estado piauiense. Muitos discursos tiveram
como base o fato daquela região da Serra Grande, gerida pelo Piauí,
apresentar déficit de auxílio e necessidades básicas alarmantes. No
bolsão central, por exemplo, alguns entrevistados pontuaram a
vinda dos moradores dos distritos de São João da Fronteira para o
Ceará procurando atendimento médico nas UBSs. As falas dos
entrevistados comumente encerravam com expressões como a do
Entrevistado-26 “lá em São João [da Fronteira] não tem nada, o pessoal
vem todo pra cá”.
Esses discursos, como o citado, remetem a uma imagética
negativa do estado piauiense, ou do recorte piauiense da Serra
Grande. Essa imagética traduz-se por meio da organização das
casas e vilas no espaço. Nota-se um padrão na disposição espacial
quando observa-se o posicionamento das comunidades. Durante
os trabalhos de campo em todos os recortes espaciais da pesquisa,
foi possível perceber, durante o trajeto até o início da fronteira
litigiosa, que, ao sair da parte central das sedes municipais,
gradativamente, as comunidades e moradias vão diminuindo em
quantidade.
Essas relações topofílicas não se resumem apenas à
localidade em questão. Por exemplo, a topofilia existente entre os
moradores do Assentamento Valparaíso e aquele espaço não se
restringe apenas ao assentamento. Evidentemente, a intensidade
dessas relações nessa localidade será maior, por conta, mais uma
vez, do histórico de ocupação. No entanto, a topofilia extravasa
para a rede existente entre as comunidades e munícipios onde

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Novas Fronteiras Culturais

realizam negociações, através do vetor político-turístico, como


Tianguá, Ubajara, Queimadas e Jaburu. Esses sujeitos, realizando a
manutenção da sua identidade transfronteiriça, extravasam esses
sentimentos para essas localidades, pois habitam o transitar, que,
nessa condição de fronteira, aflora nas movimentações da/na
fronteira.

A fronteira como lugar é um espaço intercultural de


produção de identidades, alteridades, estereótipos e formas
de discriminação, mas também de convivências, relações
de parentescos, trocas culturais e simbólicas variadas com
os vizinhos imediatos e com outros grupos étnicos e
nacionais que vivem nessas cidades fronteiriças.
Associados a essa dimensão de identidade e alteridade,
estes lugares são repletos de memórias, narrativas e
sentimentos de seus habitantes marcados pelos tempos
heterogêneos da experiência fronteiriça
(ALBUQUERQUE; CARDÍN, 2018, p. 119).

As relações topofílicas – de afeto entre o sujeito e a área


ocupada – dessas comunidades estão intimamente relacionadas
com os sentimentos de pertencimento do local e da rede que fazem
parte, evidenciando em qual posição esses sujeitos colocam-se
frente ao conflito entre Ceará e Piauí. Entender o alcance da
topofilia entre os sujeitos que habitam o trânsito na fronteira
implica perceber, através do pertencimento, o limite dos estados
cearenses e piauienses nessas disputas.

Considerações finais

A proposta desta investigação consistiu em analisar a


problemática sobre a área de litígio entre Ceará e Piauí, através da
Geografia humanística, apoiando-se na etnogeografia para
apresentar as nuances das relações estabelecidas na fronteira
litigiosa. Dessa forma, a pesquisa é um produto de trabalhos de
campo realizados, buscando identificar o cerne desse embate

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

através das populações que residem nas localidades litigiosas que


vêm sendo silenciadas no atual processo de demarcação das terras.
As confusas delimitações das capitanias hereditárias e
acordos de trocas de territórios já davam os primeiros esboços do
que viria a ser esse desentendimento entre os dois estados
nordestinos, remontando o desacordo até os dias atuais.
Neste sentido, Ceará e Piauí entendem de forma distinta a posse
dessa área litigiosa. Enquanto o governo piauiense apoia-se na
documentação histórica, composta em diferentes momentos do
governo brasileiro para alegar propriedade da área, o governo
cearense insiste na historicidade da ocupação, investimento e
gestão desta e das sociedades que vivem na localidade e seguem,
desse modo, na permanência desse litígio sem resolução até o
momento de publicação desta investigação.
Esse impasse de longo período levou a gestão do Piauí a
entrar com a ACO 1831 contra o governo do Ceará, exigindo que
a delimitação seja realizada, através da documentação legal do
governo brasileiro, pelo Departamento de Geografia do Exército
Brasileiro. No entanto, o Exército, apesar de ter experiência nesse
tipo trabalho, traçará uma limitação puramente cartesiana, sem
envolver os elementos subjetivos que impregnam e dão sentido aos
modos de vida dos habitantes das localidades envolvidas no litígio,
como verificou-se no último relatório entregue ao STF em 2016.
Nessa perspectiva, entender a escolha dessa delimitação de
forma puramente cartesiana, implica o silenciamento de milhares
de pessoas que residem na área litigiosa e construíram famílias,
culturas e laços afetivos com o local em que se encontram. A figura
do Estado, por mais que pareça exterior à relação, encontra-se
como fundamental devido às redes que este desenvolve para o
bem-estar das populações que ali se distribuem. Dessa forma, faz-
se necessária a intervenção da população residente da fronteira
litigiosa para haver maior participação popular na decisão que
afetará a vida de milhares de pessoas.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Referências

ALBUQUERQUE, José Lindomar Coelho; CARDÍN, Eric


Gustavo; PAIVA, Luís Fábio. A fronteira como campo de
pesquisa. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 49, n. 3, 2018.
CLAVAL, Paul. Terra dos homens: a geografia. São Paulo:
Contexto, 2015.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2007.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia
interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997.
OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Matergrafia e
patrimônio: santuários marianos como espaço simbólico e vetorial
de latinidade. Revista Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 13. n. 3,
2018.
SOUZA, Vládia da Silva. As divisas interestaduais brasileiras:
uma análise sobre a permanência do litígio territorial entre o Ceará
e o Piauí. 2020. 221p. Tese (Doutorado em Geografia) –
Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2020.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 6
CARACTERÍSTICAS SOCIOESPACIAIS
NO ARCO CENTRAL DA FRONTEIRA
BRASILEIRA: OLHARES GEOGRÁFICOS
SOBRE A FAIXA DE FRONTEIRA
MATO-GROSSENSE

Gabriel de Miranda Soares Silva

Introdução

Na face, que o sul contempla,


Desse Marco de Fronteira,
Há um lema que acalenta
Esta terra brasileira:
- “Justiça e Paz se oscularam”
Nestas plagas sem rivais [...]”
(MENDES, 1993, p. 27).

O Brasil possui uma extensa faixa de fronteira com cerca


de 16,4 mil quilômetros de extensão, abrangendo onze unidades da
federação (UFs) e, aproximadamente, 27% do território nacional,
segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). As fronteiras são consideradas “limites geográficos”, que
formalizam a soberania de um Estado-Nação, de modo que são
“tratadas historicamente como a linha divisória entre os Estados
nacionais, desde a época da colonização”, além de se configurarem
como espaços de integração entre territórios propícios para o
desenvolvimento de sinergias socioespaciais múltiplas (SANTOS;
BARROS, 2016, p. 53).

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Novas Fronteiras Culturais

O mosaico territorial da fronteira brasileira possui


diferentes características socioespaciais, que, a partir dos estudos
desenvolvidos pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica e
Aplicada (IPEA), foi dividida em três regiões denominadas arcos
da fronteira: Arco Norte, Arco Central e Arco Sul.
As reflexões deste capítulo partem da análise do Arco
Central, da fronteira do Mato Grosso (Brasil) com Santa Cruz
(Bolívia), buscando compreender as “[...] relações sociais de
produção, das ocupações e, por meio da leitura dos lugares,
interpretar as espacialidades da organização do espaço geográfico.
[...] potencializar um olhar diferente para as coisas, um olhar
geográfico” (CASTELLAR, 2019, p. 11).
Tais reflexões apresentam resultados da dissertação de
mestrado intitulada: “O ensino de geografia na fronteira oeste do
Mato Grosso (Brasil) com a Bolívia: práticas curriculares e
pedagógicas de professores no município de Cáceres-MT”.
Como suporte metodológico, utilizou-se uma análise
bibliográfica (livros, teses, dissertações, monografias, artigos de
periódicos científicos, jornais impressos, revistas) e documental
(relatórios, dados estatísticos etc.), tendo em vista a obtenção de
informações sobre os aspectos históricos, políticos,
socioeconômicos e culturais da área em estudo. Ainda foram
realizadas atividades de campo para análises e registros fotográficos
na área em estudo.

A formação territorial de Mato Grosso

A ocupação do estado de Mato Grosso remonta ao século


XVI, quando as áreas desse território pertenciam ao governo
espanhol, por força do Tratado de Tordesilhas, que dividia o
mundo em meridianos imaginários, entre as maiores monarquias
daquele período, em que as terras a Leste pertenciam a Portugal e
as Oeste, a Espanha. Inicialmente, o governo espanhol tinha
interesse de explorações em outros espaços da colônia latino-

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

americana, assim, viabilizando o avanço da ocupação portuguesa


(SOUZA-HIGA, 2017).
Souza-Higa (2017) ainda destaca que, ao explorar as
regiões Oeste e Sul do atual território brasileiro, as expedições dos
bandeirantes colocaram em prática os objetivos da Coroa
Portuguesa de ampliar os seus domínios além da linha do Tratado
de Tordesilhas, garantindo a expansão das fronteiras por meio da
interiorização da população e da economia.
Em meados do século XVIII, foi assinado o Tratado de
Madrid que legitimava a ocupação portuguesa nas terras ocidentais
da América do Sul, esse tratado foi fundamentado sobre a

[...] argumentação de Uti Possidetis, que Portugal e Espanha


discutiam a questão da possessão portuguesa nas áreas de
domínio espanhol, resultando na assinatura do Tratado de
Madrid, em 1750, que redefiniu os limites do oeste
brasileiro e, por consequência, os limites da então capitania
de Mato Grosso [...] (Ibidem, 2017, p. 24).

Como símbolo do acordo firmado entre as duas coroas foi


colocado, na foz do Rio Jauru, o Marco do Jauru, que representava
a fronteira do Tratado de Madrid. Anos depois, o marco foi
transferido para a praça Barão do Rio Branco – atual praça da
matriz – na Vila de Santa Maria do Paraguai – atual município de
Cáceres. Na figura 1, é possível observar o marco como importante
símbolo de memória e identidade nos espaços da fronteira
(MENDES, 2010).
A exploração aurífera ganhou destaque no início da
ocupação do território de Mato Grosso, já que, além de consolidar
a expansão das fronteiras portuguesas, consequentemente,
exploravam as jazidas auríferas presentes no território de Mato
Grosso. Neste sentido, a capitania de Mato Grosso congrega duas
importantes características, já que a capitania era fronteira
geopolítica com o Rio Grande e mineira como as Gerais, portanto
Mato Grosso era uma “capitania fronteira-mineira” (JESUS, 2011,
p. 19).
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 – Marco do Jauru em Cáceres-MT

Fonte: Acervo do autor (2019).

O conflito da Tríplice Aliança formada pelo Brasil,


Argentina e Uruguai contra o Paraguai teve início em 1864. O
exército paraguaio chegou a ocupar parte do território brasileiro e
o território de Mato Grosso foi palco de diversas batalhas, sendo
que a Tríplice Aliança saiu vencedora em abril de 1870 (JESUS,
2011). Naquele período, o território de Vila Bela da Santíssima
Trindade serviu como ponto estratégico para as tropas brasileiras,
já que o município encontra-se na faixa lindeira da fronteira com a
Bolívia.
Diante dos acontecimentos em meados do século XIX,
com a transferência da capital para Cuiabá e com o fim da Guerra
do Paraguai, os espaços da faixa de fronteira em Mato Grosso
receberam pouca atenção, transformando-se em grandes áreas de
produção agropecuária, destinadas principalmente à pecuária.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Dinâmica socioespacial na fronteira mato-grossense

Mato Grosso possui uma linha de fronteira com cerca de


730 km, sendo que 450 km são constituídas por linhas secas e 280
km de corpos d´água (SOUZA-HIGA, 2008). A faixa de fronteira
ainda abrange quatro municípios lindeiros, ou seja, aqueles que
estão na linha de fronteira: Cáceres, Porto Esperidião, Vila Bela da
Santíssima Trindade e Comodoro, além de outros 24 municípios
que, em um raio de 150 km, compõem a faixa de fronteira1, como
destaca a Figura 2.

Figura 2 - Municípios Lindeiros e Faixa de Fronteira Mato Grosso-


Bolívia

Fonte: Elaborado pelo autor, com base em Brasil (2020).

No território boliviano, está presente o Departamento de


Santa Cruz, com as províncias de Angel Sandoval, que possui uma
única seção municipal com sede na cidade de San Matias, e a

1 De acordo com a Constituição Federal de 1988, a faixa de fronteira nacional


corresponde à área de 150 km de largura disposta ao longo da linha fronteiriça com os
países vizinhos (BRASIL, 1988).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

província de Velasco, com três seções municipais: San Ignácio de


Velasco, San Miguel e San Rafael (SOUZA-HIGA, 2008).
Ademais, a autora ainda enfatiza

[...] a dinâmica territorial ao longo da faixa de fronteira


requer observações que extrapolam a linha de limite
internacional e suas imediações e se estenda por toda a área
que, de alguma forma, mantenha relações e exerça ou sofra
influência do país vizinho (Idibem, 2018, p. 17).

Sob análise do professor e pesquisador Tito Carlos


Machado de Oliveira, “[...] fronteira significa requerer a presença
do outro lado. Se não tiver o outro lado não é fronteira. É linha. É
divisa, o que você inventar” (CARLOS, 2019, p. 58). Nessa
perspectiva, os espaços da fronteira, o Arco Central em Mato
Grosso, apresentam baixa demografia e os municípios lindeiros
ainda possuem uma população rural relativamente alta, uma vez
que os postos de trabalhos ligados à agropecuária encontram-se
nesses espaços (SILVA; NORA, 2022).
Os espaços fronteiriços apresentam uma extensa
diversidade, observada a partir dos diferentes modos de ocupação
desse espaço, desde o período colonial até as ações nacionais de
integração. É notória a “densidade e diversidade de povoamento,
pelo tipo de ocupação, pelas formas de acessibilidade à zona
fronteiriça [...], traduzidas pelas relações historicamente
construídas com os países vizinhos” (NOGUEIRA, 2013, p. 82).
A zona de fronteira mato-grossense apresenta um extenso
mosaico territorial. No setor Norte, destacam-se os municípios
com grandes extensões, onde prevalece a atividade agrícola ligada
ao agronegócio com foco na exportação. O setor Sul corresponde
às áreas do Pantanal, com atividade econômica ligada à pecuária
extensiva, praticada em áreas de latifúndio (SOUZA-HIGA, 2008).
Nos municípios da área central da zona de fronteira, as
atividades econômicas estão ligadas à pecuária leiteira e de corte,
desenvolvidas de forma semiextensiva, além da produção agrícola

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

de subsistência (SOUZA-HIGA, 2008). Os municípios lindeiros


possuem características divergentes que serão apresentadas a
seguir.

Cáceres

Entre os municípios lindeiros, Cáceres destaca-se no


cenário regional, pois o município possuía uma população de
87.942 habitantes em 2010, já em 2021, a população estimada era
de 95.339 habitantes (BRASIL, 2021). Possui intensa dinâmica
fronteiriça, já que o município é denominado cidade-gêmea do
município boliviano de San Matias (BRASIL, 2020). Dados do
IPEA e do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP, 2019)
indicam a presença marcante de imigrantes no município, em sua
grande maioria, em busca de serviços relacionados à saúde e à
educação (SILVA, 2021).
Inicialmente, o município de Cáceres era considerado
cidade irmã de San Matías, já que a distância entre ambas é de 100
km, sendo que essa classificação leva em consideração o acordo
transfronteiriço firmado entre os municípios em 2013, quando foi
criado o Comitê de Integração Bilateral Cáceres/San Matias. “[...]
o acordo prescinde a necessidade da articulação física dos centros,
mas impõem o estabelecimento de ações conjuntas voltadas ao
desenvolvimento e a aspectos políticos, econômicos e culturais”
(PEGO et al., 2019, p. 23).
Entende-se que cidades-gêmeas são aglomerações urbanas
posicionadas geograficamente em ambos os lados dos limites
fronteiriços, com articulações e redes transnacionais que formam
arranjos espaciais diversificados (MACHADO, 2010).
No entanto, após a conclusão do estudo técnico da
viabilização da “cidade gêmea” Cáceres (Brasil) – San Matias
(Bolívia), em que foram ressaltados os critérios e as metodologias
adotados no referido estudo, dando ênfase para a portaria do
Ministério da Integração Nacional (MI) de nº 213, de 2016, foi

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

sugerida pelos estudos e pareceres técnicos do IPEA a inserção de


Cáceres na lista de cidades gêmeas brasileiras2.

Porto Esperidião

Ainda na zona sul da fronteira mato-grossense, encontra-


se o município de Porto Esperidião, que possui uma população
estimada em 2021 de 12.176 habitantes (BRASIL, 2022). Souza-
Higa, Anzai e Gatti (2017, p. 29) ainda sublinham que, no
município, a marcante presença de agropecuária e de áreas de
latifúndio, ligadas à pecuária leiteira, justificam o número de
habitantes vivendo nos espaços rurais do município.
Segundo dados do Instituto de Defesa Agropecuária de
Mato Grosso (INDEA), o município possui cerca de 570 mil
cabeças de gados (MATO GROSSO, 2022).

Vila Bela da Santíssima Trindade

Vila Bela da Santíssima Trindade é o município lindeiro


mais antigo na faixa de fronteira, já que, a partir do território de
Vila Bela, foram sendo criados os outros municípios lindeiros,
como Comodoro e Porto Esperidião. Segundo os dados do censo
do IBGE, de 2010, Vila Bela da Santíssima Trindade possui cerca
de 11.031 habitantes, já a estimativa para 2021 é de 12.176.
O cenário econômico do município é semelhante aos
demais da área de fronteira, com destaque à atividade pecuária, já
que o município possui o segundo maior número de cabeças de
gado do estado, chegando a totalizar 1,1 milhões de cabeças
distribuídos em 3.133 propriedades (MATO GROSSO, 2022).
No cenário cultural, em Vela Bela da Santíssima Trindade,
observam-se algumas das manifestações culturais mais importantes
de Mato Grosso, a festança de Vila Bela, onde acontece a festa do

2A inclusão de Cáceres na lista de cidades gêmeas foi formalizada por meio da publicação
da portaria de nº 1.080, de 24 de abril de 2019.

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Novas Fronteiras Culturais

Divino Espírito Santo e a de São Benedito e a tradicional Dança


do Congo, transformando o município em um rico espaço de
manutenção das tradições trazidas da África pelos escravizados que
ali foram levados e permaneceram, com heranças do forte
sincretismo religioso (ROMANCINI, 2019).
Sob esse prisma, Souza-Higa (2007, p. 29) aponta que “[...]
a religiosidade, a etnia e as dificuldades econômicas são, portanto,
os principais fatores que proporcionam certa homogeneidade aos
territórios da área limítrofe da Bolívia”.

Comodoro

Comodoro é o município mais setentrional na fronteira


Mato-grossense, os dados de população para 2010 apontavam que
o município possuía cerca de 18.178 habitantes, e a população
estimada para 2021 é de 21.249. Souza-Higa et al. (2017, p. 35)
evidenciam que neste município se destaca a produção
agropecuária que é produzida em bases modernas, bem estruturada
nos regimes extensivos e semiextensivos.

Considerações finais

Na abordagem sobre os espaços da fronteira em Mato


Grosso, é possível constatar que essas áreas possuem, como
características, a baixa dinâmica socioespacial, já que são pouco
ocupadas, seguindo um padrão do Arco Central da fronteira
brasileira, onde as atividades econômicas são desenvolvidas
majoritariamente nos espaços rurais, justificando a baixa
urbanidade nos municípios lindeiros.
Diante desse mosaico territorial da fronteira de Mato
Grosso, os municípios que se encontram na condição lindeira
possuem baixos índices de população e poucos investimentos em
políticas públicas ligadas à saúde, à educação e à infraestrutura,
justificando a busca por esses serviços nos municípios mais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

populosos da faixa de fronteira, já que possuem infraestrutura


consolidada nessas áreas.

Referências

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demográfico de 2010. Brasília: IBGE, 2010.
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no 1.080, de 24 de abril de 2019. Inclui o município no anexo da
Portaria nº 213, de 19 de julho de 2016, que estabelece o conceito
de “cidades gêmeas” nacionais, os critérios adotados para essa
definição e lista todas as cidades brasileiras por estado que se
enquadram nesta condição. Diário Oficial da União, Brasília, 29
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

113
Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 2

CIDADE E CAMPO – TRAJETÓRIAS


SOCIOCULTURAIS

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

114
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 7
DO SUL PARA A AMAZÔNIA.
EXCLUSÃO E LUTA:
40 ANOS DEPOIS. UMA BREVE
REFLEXÃO

Edison Antônio de Souza

Introdução

O presente artigo faz um breve balanço histórico sobre a


questão da fronteira norte mato-grossense, abordando mudanças
importantes que ocorreram nos últimos 40 anos do início do
processo de ocupação e colonização daquele território. Conforme
alguns estudiosos, a fronteira agrícola tem sido pensada como
espaço alternativo para os ‘excedentes rurais’ gerados nas áreas
agrícolas mais antigas. Neste sentido, a ocupação da Amazônia, por
um lado, seria fruto do processo de modernização da agricultura
no Sul do país, em particular, o Rio Grande do Sul. Os colonos
sulistas que chegaram à região cortaram e queimaram a floresta,
impactando e modificando o meio ambiente e contribuindo para a
expansão e desenvolvimento do capitalismo na fronteira.
Estudiosos dessa temática afirmam que o uso da Amazônia, como
válvula de escape para assentar pessoas sem terras, como forma de
resolução dos conflitos agrários, significou um desastre, do ponto
de vista tanto do sacrifício das famílias quanto da floresta, como da
implantação de uma forma não sustentável de agricultura para a
sua sobrevivência.
Essas políticas públicas dos governos militares permitiram
que se fale numa “modernização de caráter autoritário”, que inova
conservando, através da ação governamental na Amazônia nas
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

115
Novas Fronteiras Culturais

décadas de 1970 e 1980. É importante destacar que os conflitos


agrários na região Amazônica são oriundos, em grande parte, das
políticas do governo federal e passaram a ser formalmente
reconhecidos como questão relevante para a intervenção
governamental na segunda metade das décadas citadas. A solução
para os governantes da época consistia na transferência dos
‘excedentes populacionais’ para os projetos de colonização oficial
na Amazônia.
Nesse processo de exclusão no Sul e luta na Amazônia
mato-grossense, algumas entidades nacionais que defendem os
direitos humanos posicionaram-se e reconheceram as mobilizações
e o acirramento dos conflitos agrários na região Amazônica. Foi o
caso da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
que, ainda na ditadura do General Garrastazu Médici, procedeu à
distinção entre ‘reforma agrária’ e ‘colonização’, criticando as
transferências e remoções compulsórias de camponeses para ‘áreas
distintas das que habitavam’ e reivindicando reforma agrária com a
fixação deles nos locais em que tinham morada habitual e
cultivavam para a sua subsistência.
Dessa forma, torna-se necessário distinguir claramente
conceitos como os de questão agrária e reforma agrária, deixando
claro que a noção de questão agrária – bem mais antiga e ampla –
incidiria diretamente sobre uma longa história de lutas sociais, tão
antiga quanto a conquista portuguesa de nosso território. Já a
reforma agrária consistiria em designativo mais recente, datado de
meados da década de 1950 do século XX e que, mesmo partindo
da confluência entre os movimentos populares no campo e o
discurso estatizado, implicaria induzir, junto a seus receptores, uma
expectativa relativa a um projeto concreto, que se materializaria na
promessa de um futuro quase sempre tido como melhor, posto que
não vivido. A ocupação da Amazônia brasileira, e do norte de Mato
Grosso em particular, está inserida nesse processo histórico de
disputas, interesses e contradições relativos à questão agrária.
Trata-se de um processo de luta para apropriar-se da terra, que, em
grande parte, tem sido mantida improdutiva e apropriada

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

116
Novas Fronteiras Culturais

privadamente para servir de reserva de valor e/ou reserva


patrimonial às classes dominantes.
Afirma-se que a colonização do norte de Mato Grosso fez
parte de uma política de ocupação de áreas da Amazônia Brasileira,
na qual o Estado brasileiro agiu mais ativamente em benefício das
empresas colonizadoras. Os colonos tiveram o papel de
proporcionar os maiores lucros e assegurar o ‘sucesso’ dos projetos
aos empregadores desse negócio. Tal perspectiva leva-nos a
fornecer subsídios para que possamos entender as práticas políticas
e institucionais que, numa sociedade, tem por finalidade
esquadrinhar o tempo e os lugares, disciplinar os corpos e as
práticas, modelar as condutas e os pensamentos, pelo
reordenamento regulado dos espaços. Essas tecnologias da
vigilância e da inculcação têm sintonia com as táticas de consumo
e de utilização daqueles que elas têm por função modelar,
disciplinar e controlar. A partir de meados da década de 1970,
grandes manchas do norte mato-grossense foram ocupadas por
migrantes oriundos, sobretudo, do Sul-Sudeste. Essas áreas,
pontilhadas por cidades e vilas, resultaram numa reorganização
administrativa do estado de Mato Grosso, com o surgimento de
novos municípios. A urbanização, oficialmente estimulada como
estratégia de ocupação e controle da fronteira, constituiu- se
enquanto nova dinâmica de ocupação do espaço. Conforme
Arruda (1997, p. 25-6):

[...] nesse contexto de construção do espaço, legitimado


por um discurso ufanista, esses trabalhadores escolhidos
para a construção de 'Brasil Gigante', 'lugar do progresso
para todos' assumem papel de soldados a serviço da pátria,
onde o fervor patriótico pela terra era marcante, sendo
representado pelo trabalho/progresso. [...] esses
trabalhadores das áreas de colonização particular
retratavam a imagem de verdadeiros ‘guerreiros
disciplinados’ prontos para ocupar a nova terra. Esse tipo
de colonização implantado, considerado como modelo,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

117
Novas Fronteiras Culturais

constitui, na realidade, um controle social sobre homens e


sobre espaço.

No Norte de Mato Grosso ou Amazônia mato-grossense


como preferem alguns autores, os projetos integrados de
colonização (PIC), as agrovilas, as agrópolis e rurópolis, que
compunham tal colonização, que hoje constituem algumas cidades
como Terra Nova do Norte, revelaram-se, porém, inadequados e
não lograram êxito. Esse projeto fez parte das ‘prioridades’ de ação
do INCRA e foram definidas visando à implantação da
colonização oficial e particular, ao longo da Rodovia Cuiabá-
Santarém, vinculados aos objetivos do PIN e do Proterra. A ação
discriminatória ao longo dessa Rodovia da Amazônia Legal foi
planejada no sentido de disciplinar o ‘povoamento espontâneo’.
Tratava-se de medida complementar aos projetos de colonização
no seu propósito de promover o povoamento dirigido, uma vez
que a tensão social e os conflitos eram pensados pelos órgãos
oficiais como subproduto de um processo migratório
desordenado. Por outro lado, diversos projetos de colonização e
empreendimentos agropecuários resultaram numa incidência em
áreas indígenas ao suporem esses territórios como ‘espaços vazios’.
As terras indígenas foram consideradas como terras de domínio
público e dispostas à ocupação, o que gerou grandes problemas
sociais. Os instrumentos acirraram antagonismos e criaram áreas
críticas de conflito e tensão social entre índios, colonos e
fazendeiros. Essas práticas criaram verdadeiros latifúndios, seus
respectivos domínios constituem hoje, em grande parte, resultado
de concessões de grandes extensões de terras públicas a grupos
econômicos
Como resultado dessas práticas predatórias, ocorreu um
aumento do desmatamento na região Amazônica, como
decorrência da soma de diversas forças ligadas ao desenvolvimento
agrícola nesta e em outras regiões do Brasil. A maior parte da área
desmatada é utilizada de maneira não sustentável. Neste sentido,
são necessárias políticas públicas eficientes e eficazes para conter o

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

118
Novas Fronteiras Culturais

desmatamento e redirecionar o desenvolvimento para usos


sustentáveis da terra. Essas políticas somente serão eficazes se os
processos subjacentes que estão empurrando a derrubada da
floresta forem enfrentados. Outros fatores contribuíram para
acelerar ainda mais o processo de expansão da fronteira e o
desmatamento, quais sejam, as rodovias e os assentamentos
associados à mineração e ao desenvolvimento agrícola.

Do Sul para a Amazônia Mato-Grossense

A colonização particular realizada na Amazônia a partir de


1974, incentivada pelo governo federal, através de seus órgãos e
programas como o INCRA, SUDAM, BASA,
POLOAMAZÔNIA, FUNAI e Associação dos Empresários da
Amazônia, priorizava pequenos e médios agricultores do Sul do
País, que, segundo essas empresas, possuíam tradição agrícola e
que detinham um certo valor monetário necessário para adquirir
terras das empresas privadas de colonização. Tratava-se de uma
colonização seletiva que trouxe grandes lucros para essas empresas
de colonização.
Ao refletirmos sobre os projetos de colonização na
Amazônia Legal, perguntamos porque tal colonização tornou-se
tão necessária e urgente para o desenvolvimento do país? Qual foi
a função ideológica e as justificativas oficiais para desenvolverem
tais políticas públicas de ocupação da fronteira norte mato-
grossense? Sabe-se que esse projeto de ocupação da fronteira
Oeste do Brasil foi iniciado por Getúlio Vargas (década de 40),
com a chamada ‘Marcha para o Oeste’, que visava integrar
economicamente a Amazônia ao resto do país e que foi retomada
pelos governos militares (Médici e Geisel), com o propósito da
integração nacional, através da construção de estradas e a
transferência de trabalhadores do Sul do país para as novas frentes
de expansão da fronteira agrícola nacional.
As análises das políticas governamentais para a região
Amazônica versam, essencialmente, sobre políticas derivadas dos I

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

119
Novas Fronteiras Culturais

e II Planos Nacionais de Desenvolvimento dos governos militares.


Isso refere-se ao vigoroso ciclo de crescimento da economia
brasileira na década de 1970 e à estrutura política centralizadora e
autoritária no mesmo período. Estudiosos dessa temática afirmam
que o processo de constituição de frentes de ocupação na fronteira
gera impulsos de extensão da própria fronteira. Esses impulsos
seriam gerados basicamente pela expulsão e movimento das frentes
camponesas, valorização das terras ociosas adjacentes à frente de
ocupação e pela ação do Estado na extensão das rodovias de
penetração, como a construção da Rodovia Federal Cuiabá-
Santarém (BR-163). No processo de ocupação daquele território
em análise, intensifica-se a luta pela terra e depredação do meio
ambiente como efeitos associados.
Neste sentido, nossas análises basearam-se no processo
histórico de colonização do norte mato-grossense, refletindo sobre
os impactos ambientais e os conflitos pelo uso e posse da terra. As
intervenções federais na Amazônia mato-grossense ocorreram, sob
o ponto de vista dos governos militares, pois, segundo aquela visão,
era necessário implantar uma infraestrutura na região para a
expansão do capital e solidificar a política do governo federal. A
partir de uma forte e ampla publicidade no Sul e Sudeste do país,
essas empresas procuravam vender parte de suas terras para
pequenos e médios agricultores para que viessem ‘rasgar a floresta’
num ato de ‘bravura’, com promessas de riqueza e trabalho como
preconizavam os proprietários desses projetos de colonização.
Estradas foram abertas pelo governo federal, como a BR-163, para
viabilizar a penetração dos migrantes às ‘novas cidades de fronteira’
em busca de progresso e realização.
A respeito dos migrantes sulistas que foram para a
Amazônia a partir da década de setenta do século XX,
principalmente para a cidade de Terra Nova do Norte, Santos
(1994, p. 25) afirma que o fluxo migratório ultrapassou os limites
da região Sul em direção ao Centro-Oeste (Mato Grosso) e
Amazônia ocidental:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

120
Novas Fronteiras Culturais

Depois do Golpe de 1964, os governos militares


começaram a nova ocupação da Amazônia, desta vez
transferindo população do Sul para os Estados do Pará,
Mato Grosso, Rondônia e Acre, em programa de
colonização. A análise destes programas nos permitiu
concluir que o processo de colonização de novas terras
caracterizou-se por uma enorme irracionalidade
agronômica, econômica e social, acompanhada por uma
evidente racionalidade política e ideológica: tratava-se de
deslocar o eixo da questão agrária brasileira e de controlar
autoritariamente as populações das novas terras.

Muitos camponeses que foram para a Amazônia em busca


de terra para trabalharem e para legar aos seus filhos, incentivados
pelo discurso da colonização e acreditando nas promessas de um
futuro melhor, acabaram retornando dessas áreas, demonstrando
uma recusa à política de colonização de novas terras. A vivência
nessas áreas de colonização era difícil, pela carência de assistência
à saúde, acidentes de trabalho, malária, falta de alimentos,
principalmente, na época das chuvas. Santos (1994, p. 27) afirma
ainda que,

[...] além do mais, logo começaram a viver em uma


condição de sujeição, pois as agências de colonização, seja
as agências estatais (o INCRA ou o Banco do Brasil) e as
agências particulares de colonização (as empresas ou as
cooperativas de colonização) passaram a enquadrar os
colonos em teias de controle autoritário. Uma última
percepção da nova situação foi que, em realidade, o Estado
apenas queria manter os controles mas não mais assegurava
as funções que os colonos dele esperavam; daí a vivência
difusa de uma condição de abandono.

O Ministro do Planejamento Roberto Campos, em suas


justificativas, defendia a ocupação da Amazônia, concebendo-a
como um ‘vazio’ a ser ‘rapidamente ocupado’. Nessa estratégia de
desenvolvimento regional, a ‘operação Amazônia’ - lema do

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Projeto Rondon: “Integrar para não entregar” teve prioridade no


conjunto das políticas governamentais. Dessa forma, o lema
‘integrar’ significava abrir caminhos, criar condições para que fosse
possível a exploração dos recursos naturais pelos grandes
monopólios multinacionais. Portanto, o entendimento do lema do
Projeto Rondon deve ser feito pela leitura de seu contrário, ou seja,
“integrar para entregar.” Neste sentido, sob a bandeira de “Integrar
para não Entregar,” a partir do Governo Médici, criou-se o
Programa de Integração Nacional, destinado a construir as
Rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém (BR-163)
juntamente com a colonização na faixa de cem quilômetros de cada
lado das novas Rodovias.
Mas qual foi o papel social e político desses projetos de
colonização na Amazônia Mato-grossense? Por que os colonos
partiram do Sul do país, aderindo aos Projetos de Colonização?
Partiram porque tinham necessidade da terra para trabalhar e para
deixar aos filhos, supondo que, no Sul, a terra era pouca e a
propriedade fundiária concentrada pelos empresários rurais.
Partiram porque, no Sul, não havia mais condições de ganhar a
vida, senão como parceiros, e viviam em um estado de pobreza e
sérios conflitos com indígenas. Partiram, enfim, porque
acreditaram nas promessas que lhes foram feitas. A colonização
feita na Amazônia mato-grossense baseou-se no lucro sobre a
especulação da terra, espantando o verdadeiro colono. Havia uma
descrença por parte de alguns migrantes sobre a ocupação feita
pelas empresas colonizadoras e argumentavam a respeito do
modelo de colonização praticada no Leste de Mato Grosso pela
COOPERCANA e a da Amazônia mato-grossense pelas
colonizadoras particulares.
No norte de Mato Grosso, foram desenvolvidos alguns
projetos de colonização pública como o projeto particular Terra
Nova – criado em 1978, às margens da Rodovia Cuiabá-Santarém
(BR-163), Peixoto de Azevedo em 1980 (organizado pelo INCRA
e COTREL – Cooperativa Tritícola Erechim/RS); Lucas do Rio
Verde (INCRA) em 1981, este foi implementado como resposta

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

122
Novas Fronteiras Culturais

militar à luta pela terra dos colonos da Encruzilhada Natalino/RS,


todos às margens da mesma rodovia.
Em todos esses projetos de colonização quem se
beneficiou, principalmente, foram os colonizadores do Sul do país
que, nas décadas de 1950 e 1960, haviam desenvolvido projetos
dessa natureza naqueles estados, como é o caso da Colonizadora
Sinop e da Indeco – Alta Floresta. Para a região norte de Mato
Grosso, mais especificamente às margens da BR-163, afluiu um
grande contingente de migrantes vindos dos estados do Paraná,
Santa Catarina e Rio Grande do Sul (que, depois de 1975, sofreram
catástrofes ecológicas de enchentes, geadas e secas consecutivas,
além dos conflitos com indígenas no Norte do Rio Grande do Sul).
Esses migrantes que passaram a ocupar a região eram pequenos
proprietários rurais, posseiros, sitiantes, que ‘vendiam’ suas terras
no Sul para se tornarem pequenos proprietários em Mato Grosso.
Nesse contexto, percebemos que os migrantes partiram
fugindo de uma pobreza crescente, frente à concorrência movida
pelos grandes produtores. Para os governos militares, fronteira
segura era fronteira colonizada pelos pequenos proprietários. Os
migrantes ao chegarem às novas terras encontravam uma série de
dificuldades, como o clima extenuante, doenças tropicais e
isolamento social. Os paranaenses que conseguiram acumular um
pequeno pecúlio, quando da venda de suas terras, preferiram
dirigir-se ao estado de Mato Grosso, onde a colonização privada
oferecia condições mais favoráveis de instalação, apesar do custo
mais elevado das terras, como ocorreu nos projetos de colonização
anteriormente citados. Mas por que migrar? São várias as razões de
migrar, dentre elas, destacam-se o sonho, esteja ele associado a
questões de ordem econômica, financeira ou social. Grupos que
seguem a acumulação do capital, antes de tudo, uma condição
social e uma necessidade de sobrevivência familiar.
A decisão de migrar para Mato Grosso envolveu,
principalmente, a perspectiva de aproveitar uma oportunidade e
melhorar as condições materiais de existência. A necessidade de
reprodução social familiar aliada ao discurso oficial da existência

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

123
Novas Fronteiras Culturais

de um ‘imenso espaço vazio’ no oeste brasileiro estimulou o fluxo


migratório para a região, afora isso, o governo militar encarregou-
se na divulgação da mensagem ideológica da colonização,
utilizando preleção positivada do lugar como se fosse uma ‘terra
prometida’.
Sobre a propaganda e a constituição de um aparelho
ideológico de informação na migração, Tavares dos Santos afirma
que uma ampla rede de propaganda foi montada no Sul do país
através de rádios, Igrejas e parentes, visando ao convencimento das
pessoas para virem a Mato Grosso. Dessa forma, a migração
aparece como uma estratégia para enfrentar as dificuldades ao
longo da trajetória familiar no que se refere à reprodução social
vinculada à ideologia da terra e à constante ameaça de
proletarização (rural ou urbana) decorrente da crise agrária e do
padrão modernizador da agricultura.
A colonização é resultado de uma decisão política,
enquanto forma de expansão capitalista em novos territórios. É um
processo de acumulação e concentração de renda, terra e poder.
Historicamente, foi utilizada no Brasil como estratégia oficial de
povoação de novas terras, de responsabilidade oficial ou privada,
mediante a venda ou doação de terrenos dos Núcleos Coloniais,
com a pretensão de ocupar, de “modo organizado” os “vazios
demográficos” existentes. Linhares assinala que, num país como o
Brasil, “onde 3% da população rural detêm 43% das terras
agrícolas, enquanto 57% dispõem de apenas 3% das terras, a
questão agrária talvez permaneça como absolutamente central, não
obstante as novidades do capitalismo globalizado”.
A partir desse contexto histórico, afirmamos que o avanço
da fronteira agrícola sobre a Amazônia brasileira tem causado,
desde o início, intensos impactos ambientais e socioeconômicos na
região. Os processos de ocupação e as formas de exploração dos
recursos sempre foram baseados na usura e ambição do Estado e
dos colonizadores, que, por sua vez, nunca estiveram interessados
em conservar a inestimável biodiversidade local. A colonização
dirigida, embora não tenha atingido todos os seus objetivos,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

124
Novas Fronteiras Culturais

ofereceu aos pequenos produtores acesso aos meios de produção,


inserindo-os, seletivamente, em um novo contexto econômico e
social. A integração de novos atores sociais, associada ao
fortalecimento da economia externa, propiciou o surgimento de
diferentes faces produtivas, caracterizando a Amazônia como um
importante polo econômico, mas marcado pela extrema
desigualdade social e devastação ambiental. A distribuição
fundiária qualitativamente diferenciada contribuiu para a
heterogeneidade socioeconômica, espacial e cultural da Amazônia.
Esse cenário, agravado pela ausência de articulações políticas
eficazes, representa o estado caótico das condições sociais e
ambientais da região. Dessa forma, tornou-se necessária a aplicação
dos dispositivos legais referentes à política da reforma agrária, de
forma a minimizar as distorções impostas pelo histórico de
colonização e exploração regional.
Assim sendo, a ocupação da Amazônia mato-grossense
seguiu as políticas públicas e decisões de caráter autoritário e
tecnocrático dos governos militares da época, envolvendo
conflitos de interesses entre posseiros, grileiros, grandes
proprietários rurais e a invasão de terras indígenas. Portanto, a
fronteira amazônica norte mato-grossense é um local em
construção de intensa disputa ideológica, econômica e política.
Como resultado dessa política, ocorreu uma concentração
fundiária, com ampliação do latifúndio e essas terras foram
utilizadas como reserva de valor. O poder público, aliado do setor
privado, realizou a condução da população rural e, obedecendo à
lógica do capitalismo, dirigiu-se no sentido de transformar terras
improdutivas em valores econômicos para o mercado.
Multiplicaram-se as queixas e denúncias de colonos contra a
colonização particular.
Foi de forma autoritária e por meio de incentivos fiscais,
que ocorreu a expansão da fronteira agrícola em Mato Grosso,
favorecendo a concentração fundiária, através da aceleração da
ocupação de amplas áreas de terras públicas naquele Estado. A
colonização e a migração agravaram a questão agrária, pois

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

125
Novas Fronteiras Culturais

produziram uma urbanização na fronteira apressada e precária,


com objetivo de atender, acima de tudo, aos interesses imobiliários
das empresas privadas de colonização. Logo, a colonização no
norte de Mato Grosso constitui-se em um paraíso para o capital,
para os especuladores e para os grileiros que atuaram livremente
com ‘apoio’ do Estado brasileiro. Verdadeiros latifúndios foram
entregues ‘de graça’ para os grandes grupos econômicos
especuladores com a terra.
Nesse processo, as primeiras vítimas foram as nações
indígenas e, em seguida, os trabalhadores, colonos, peões ou
garimpeiros. Os colonizadores usaram vários ‘meios válidos’ para
justificar a sua ‘conquista’, procurando esconder os conflitos com
as diversas etnias, entre classes, que submetem à sua dominação, a
qual se estrutura através das empresas de colonização e consolida-
se com a sua herança: a emancipação desses projetos de
colonização e a sua transformação em municípios. As práticas
sociais e políticas que vão se constituindo são a expressão da
dominação existente. Os proprietários e funcionários das
colonizadoras, além daqueles que foram “eleitos”, tornaram–se os
“novos coronéis da política local e regional”. Em função desse
processo, nas últimas décadas, no estado de Mato Grosso foram
criados dezenas de municípios atendendo aos interesses desses
representantes do capital, que têm promovido a ocupação rápida
da Amazônia Legal e a mato-grossense em particular.
Nossas análises indicam que a crise fundiária e agrícola das
regiões camponesas do Sul do Brasil gerou uma situação de
conflito social, a qual vem antepondo o Estado ao campesinato.
Aquele tem restringido progressivamente as opções de resolução
da crise agrária à proposta de colonização oficial e particular na
Amazônia Legal. Por outro lado, os colonos retornados dos
projetos oficiais e particulares da Amazônia, geraram um novo
personagem social e político no Sul do País. São aqueles colonos
que iludidos, coagidos ou persuadidos, partiram para ganhar a vida,
mas que, após tentarem trabalhar e produzir voltaram para o Sul,
onde passaram a ter um papel político de estímulo à denúncia da

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

126
Novas Fronteiras Culturais

colonização enquanto alternativa à crise do campesinato


meridional. Esses fatores acima destacados mostram o fracasso dos
projetos de colonização para os colonos. Já para os capitalistas que
‘investiram’ na Amazônia mato-grossense tratou-se de um ótimo
negócio. Sabe-se que esse modelo de colonização produziu naquele
espaço uma concentração fundiária, com baixa produtividade e o
não cumprimento da função social da terra.
Os colonos que retornaram para o Sul enfrentaram vários
desafios, como falta de emprego, o espaço ocupado pela intensa
mecanização da soja e, a partir daí, começou uma luta pela terra em
sentido social como um direito de cidadania. Os fluxos migratórios
estimulados pelos programas de colonização, oficiais e particulares
e pelas políticas de desenvolvimento regional apresentaram duas
direções predominantes no sentido campo-cidade, tendo, como
destino, áreas rurais e urbanas localizadas na Amazônia. Essa
corrente motivada pelo processo de modernização da agricultura,
implementado desde os anos setenta, produziu a expropriação e a
exclusão social e expulsou os colonos para a ‘nova fronteira
agrícola na Amazônia’. Já os que preferiram ficar no Sul do País,
preferiram ocupar terras e lutar pela reforma agrária.
Os colonos do Sul do País (que participaram do Projeto de
Colonização de Terra Nova do Norte), citados nos discursos
oficiais e do Pastor Norberto Schwantes, como centro das
preocupações sociais e nos discursos de progresso, viveram uma
farsa. A maioria saiu perdendo, pois os projetos apresentados e
prometidos através do programa, com promessas de investimentos
públicos, pouco ou nada se concretizaram. Ocorreu uma evasão
das agrovilas planejadas pelo INCRA e as terras valorizaram-se,
sobretudo, perto das estradas, promovendo a reconcentração
fundiária, provocando na chamada fronteira em expansão das
décadas de 1970 e 1980, transformando-a profundamente mesmo
no contexto de refluxo da frente agrícola rumo ao Sul do País.
O processo de ocupação da Amazônia redirecionou os
processos migratórios no Brasil, que até a década de 1970,
concentravam-se em direção ao Sul e Sudeste do país. Em meados

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

da década de 1960, diante das reformas governamentais


implementadas sob o princípio de ‘mudar para se manter’, a
Amazônia passou a despertar interesse do Estado, que se
encontrava em meio a uma crise fundiária. A “Operação
Amazônia”, fundamentada em um conjunto de leis criadas no
período de 1966 a 1977, intensificou o fluxo populacional em
direção ao Centro-Oeste e Norte, devido, principalmente, aos
incentivos fiscais cedidos pelo governo para a colonização dessas
áreas.
A partir das políticas públicas dos governos militares, uma
nova dinâmica socioeconômica da Amazônia mato-grossense foi
caracterizada por um intenso processo de ocupação demográfica e
econômica, acarretando sérios impactos na estrutura produtiva e
fundiária regional. No início da década de 1970, os modelos de
colonização e modernização agrícola na Amazônia eram baseados
nos princípios da Revolução Verde, visando ao aumento da
produção e da produtividade através da abertura de novas áreas e
da busca por tecnologias agrícolas mais eficientes. Era constituído,
quase que exclusivamente, por descendentes alemães oriundos do
Rio Grande do Sul e Santa Catarina, que trouxeram consigo seus
hábitos, valores, tradições e modelos de produção
A explosão demográfica na região amazônica, e de Mato
Grosso em particular, foi ocasionada pela expansão da fronteira
agrícola através do Programa de Integração Nacional, que tinha
como meta principal promover a “integração nacional”, que,
segundo o discurso oficial, ocupando os “espaços vazios” da
Amazônia e exterminando as tensões sociais. A partir daí, foram
construídas as rodovias Transamazônica, estabelecendo uma
conexão entre as regiões Nordeste e Norte, e a Cuiabá-Santarém
(BR 163), que fez a conexão do Centro-Sul ao Norte do país. Neste
sentido, os governos militares ‘preocupados’ com a integração da
região ao restante do país adotaram uma agressiva política de
ocupação e colonização. Essa política, na realidade, não tinha por
finalidade apenas retirar a Amazônia brasileira do isolamento ao
qual se encontrava, mas era motivada por fins econômicos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

128
Novas Fronteiras Culturais

A construção da BR 163 foi, desde o início, marcada pela


violência e pelo grande derramamento de sangue. Índios,
posseiros, soldados, colonos, colonizadores e garimpeiros lutavam,
a todo custo, por seus ambiciosos interesses, provocando grandes
conflitos pela posse e uso da terra. Além dos impactos sociais, a
construção dessa rodovia gerou grandes impactos ambientais, pois,
além da retirada da vegetação para a abertura da estrada, o aumento
da ocupação e das demais atividades humanas desencadeou um
processo de esgotamento dos recursos naturais ali disponíveis. No
final da década de 1970, muitos municípios já tinham se formado
na região, mas ainda havia muita terra disponível. Em
contrapartida, os conflitos pela posse de terra na região sul do
Brasil estavam a todo vapor. Tal fato contribuiu para a
continuidade do processo migratório, mesmo diante das
adversidades impostas pela violência e falta de organização da
colonização da Amazônia mato-grossense. Motivados pelo sonho
de encontrar uma boa terra para criar seus filhos ou apenas pela
ambição de possuir sempre mais, os colonos encontraram na
região a possibilidade real de crescimento econômico e
estabelecimento de suas famílias e, mesmo diante das dificuldades,
prevaleceram e permaneceram nos projetos de colonização,
ocupando definitivamente a região. Esses colonos possuíam
famílias numerosas, com uma média de oito pessoas/família
Ainda assim, o desmatamento na Amazônia é um fator
preocupante, uma vez que resulta em perda de diversidade
biológica, modificações no balanço hídrico e na disponibilidade de
nutrientes, aumentos da temperatura atmosférica e aceleração de
processos erosivos. Em regiões onde a atividade agrícola baseia-se
no plantio de monoculturas, como é caso de algumas regiões da
Amazônia, a transformação de florestas nativas para fins agrícolas
é uma prática que ocasiona grandes perdas de Co2 devido ao
desmatamento e degradação da biomassa vegetal.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

129
Novas Fronteiras Culturais

Considerações finais

O discurso do governo federal para justificar a ocupação


da Amazônia era a integração daquela região aos grandes centros
consumidores do país, introduzindo, assim, um modelo
modernizador, visando à exploração dos recursos naturais. Este era
o projeto político de controle da Amazônia brasileira, que, acima
de tudo, visava à exploração concentrada de suas riquezas,
desconsiderando as reivindicações sociais de milhares de
trabalhares que, para aquela área, se deslocaram.
A partir da década de 1970, a questão agrária brasileira
transformou-se num assunto de ordem militar, tanto no âmbito
privado, quanto do público, ficando os movimentos sociais e a luta
pela terra submetidos à vigilância de órgãos de segurança nacional,
naquilo que Martins denominou como militarização da questão
agrária no Brasil. Na década de 1970, acentuou-se e tornou-se
forte, na Amazônia Meridional (norte de Mato Grosso), a
colonização através da iniciativa privada (a colonização privada
dirigiu-se a uma camada de migrantes um pouco mais favorecidos,
uma vez que é necessário pagar a terra), no eixo da rodovia Cuiabá-
Santarém, um processo de urbanização da nova fronteira agrícola.
Dessa forma, muitos colonos atraídos do Sul pela propaganda das
colonizadoras caíram nas armadilhas preparadas para eles,
acreditando na lisura de procedimentos dessas empresas. Essa
política dos governos militares de ocupar a Amazônia,
implementadas a partir das décadas de sessenta e setenta,
beneficiaram as grandes e médias empresas de mineração,
madeireiras e grandes fazendeiros, em detrimento das populações
indígenas, pequenos produtores, colonos e posseiros.
Portanto, vale lembrar que as desigualdades sociais e a
expropriação são características produzidas no e pelo próprio
sistema capitalista. A colonização planejada oficial ou particular
contribuiu para a expansão da fronteira, em seu significado mais
amplo. A política desenvolvida para executá-la (como os
organismos e programas criados a partir do início da década de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

130
Novas Fronteiras Culturais

1970), serviu de estratégia de controle para evitar uma colonização


maciçamente espontânea. Apesar disso, em Mato Grosso, os
projetos de colonização geraram ocupação desordenada, intensa
degradação ambiental, expulsão e extermínio de grupos indígenas,
expropriação de comunidades de seringueiros, posseiros e
imposição da grande propriedade.
A colonização no norte de Mato Grosso constituiu-se,
portanto, em um paraíso para o capital, para os especuladores e
para os grileiros que atuaram livremente com ‘apoio’ do Estado
brasileiro. Verdadeiros latifúndios foram entregues ‘de graça” para
os grandes grupos econômicos especuladores com a terra. Nesse
processo, as primeiras vítimas foram as nações indígenas e, na
sequência, os trabalhadores, colonos, peões ou garimpeiros. Os
colonizadores usaram vários ‘meios válidos’ para justificar a sua
‘conquista’, procurando esconder os conflitos com as diversas
etnias, entre classes, que submetem à sua dominação, a qual se
estrutura através das empresas de colonização e consolida-se com
a sua herança: a emancipação desses projetos de colonização e a
sua transformação em municípios.
As práticas sociais e políticas que vão se constituindo são
a expressão da dominação existente. Os proprietários e
funcionários das cooperativas e colonizadoras, além daqueles que
foram “eleitos”, tornaram–se os “novos coronéis da política local
e regional”. Em função desse processo, nas últimas décadas no
estado de Mato Grosso, foram criados dezenas de municípios
atendendo os interesses desses representantes do capital que tem
se constituído a ocupação rápida da Amazônia Legal e a mato-
grossense em particular.
A respeito das representações sobre Mato Grosso, em seus
discursos, as elites políticas criaram mitos como “terra da
promissão”, celeiro do mundo, “Estado solução”, lugar do
“progresso para todos”. Nesse jogo de afirmações, revelam-se as
desigualdades, os conflitos e as contradições dos sonhos, projetos
e utopias referentes à ocupação e colonização da região, embora
modificadas pela própria dinâmica das relações sociais ao longo da

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

131
Novas Fronteiras Culturais

História, continuam presentes ainda hoje nas formulações sobre a


fronteira agrícola, alimentando a dinâmica da expansão capitalista
e povoando o imaginário de mato-grossenses despossuídos que se
dirigiram para lá.
A Amazônia mato-grossense foi ‘reorganizada’ sob a
doutrina de segurança nacional, com significativas mudanças
(aceleradas) econômicas, políticas e espacial, nas cidades e no
campo, porém, no social, ocorreu uma situação diferente, a partir
do momento que poucos tiveram êxito na fronteira. Para ocultar
essa realidade, políticos e administradores utilizaram táticas
discursivas de tudo dizer, sem nada esclarecer à sociedade,
seguindo os interesses e a lógica dos diversos grupos de poder e de
riqueza. Os discursos de políticos e intelectuais orgânicos
apresentam as ‘vantagens da fronteira’ como sendo uma região que
possui benefícios e oportunidades para todos, justificando, dessa
forma, a devastação ambiental e o custo social dessa política de
ocupação das chamadas novas áreas da Amazônia mato-grossense.
Enquanto estratégias de controle social, utilizam mecanismos
políticos, econômicos e simbólicos para disciplinar as pessoas,
como normas sociais, práticas de correção e controle do espaço
urbano. Como o dispositivo panóptico de Benthan, que organiza
unidades espaciais, onde o olhar invisível que permite ver tudo
permanentemente sem ser visto, impregnando quem é vigiado de
tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem olha. Esses
trabalhadores das áreas da colonização particular retratavam a
imagem de verdadeiros guerreiros disciplinados prontos para
ocupar a nova terra. Esse tipo de colonização implantado,
considerado como ‘modelo’, constitui, na realidade, um controle
social sobre homens e sobre o espaço.
Mediante esse contexto, importa destacar aqui o
significado político da expansão das empresas de colonização nesse
setor. A eficácia desse discurso sobre a fronteira é importante na
construção de uma rede política entre as várias cidades do norte
mato- grossense, funcionando como impulsionador do
deslocamento coletivo de migrantes. Por outro lado, atua também

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

132
Novas Fronteiras Culturais

junto à própria população da região, fazendo com que ela aceite e


justifique as transformações drásticas e dolorosas (como o
desmatamento intensivo e depredador), provocadas pelas políticas
de ocupação e colonização de áreas ditas de fronteira, tudo em
nome do ‘progresso’.
Guimarães Neto afirma que as cidades que surgiram no
território amazônico, articuladas a uma grande rede viária e de
mercado capitalista, não são resultados ‘naturais’ do movimento de
deslocamento dos diversos grupos sociais que se dirigiram para lá,
denominado de processo migratório. Relacionam-se muito mais a
um conjunto de práticas organizadoras de políticas de controle e
monopólio da exploração da riqueza por parte dos grandes
empresários e proprietários. As cidades trazem inscritas em seu
espaço as práticas sociais de segregação, de violência e de
cerceamento dos direitos civis, que não podem ocultar. O grande
desafio é esse: a nossa sociedade vai usar a terra e a agricultura para
produzir alimentos, distribuir renda e fixar o homem no território
ou vai entregar as terras para as grandes fazendas, que vão expulsar
a população, ganhar muito dinheiro e dar prioridade para a
exportação? As pessoas foram deslocadas segundo os interesses
econômicos diretamente envolvidos nesse processo de
colonização e têm o direito de políticas públicas eficazes e que
proporcionem o seu desenvolvimento e uso adequado da terra.
O processo de urbanização do norte de Mato Grosso está
ligado à sua colonização e à concentração da população nessa
região de fronteira capitalista, ocorreu basicamente em algumas
cidades, com desigualdades sociais, resultando em segregação por
parte das pessoas que foram excluídas de algumas atividades
econômicas como a garimpeira e a madeireira. Com o impacto da
globalização, principalmente, a partir da década de 1990, ocorreu
um baixo crescimento econômico e a decadência de algumas
atividades, principalmente no extremo norte de Mato Grosso. No
centro desse processo contraditório, está a questão fundiária, ou
seja, a importância que a propriedade fundiária e imobiliária tem
na formação da sociedade norte mato-grossense. Esse problema

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

133
Novas Fronteiras Culturais

precisa ser levado em consideração, pois é um obstáculo para a


democratização da terra e um crescimento social e sustentável.
Nessas cidades de fronteira capitalista, ocorre uma grande
dimensão entre as atividades legais e ilegais ou informal, com
graves consequências sociais e ambientais, como devastação das
matas e cerrados, queimadas, conflitos agrários e concentração
fundiária. A expansão da fronteira agrícola capitalista, com
exploração dos recursos naturais como madeira, minérios,
agronegócio, tem provocado grandes mudanças regionais, com
forte concentração de terra, poder e provocando desigualdades
regionais.
A expansão da fronteira agrícola ocorreu devido à ação do
Estado a partir do fenômeno migratório, com investimentos
públicos e forte ação do capital, além da presença de outros
trabalhadores rurais e urbanos. O desempenho dessas classes
sociais e a expansão capitalista proporcionou a incorporação
econômica e política de regiões distantes dos grandes centros e do
litoral projetado e planejado pelo governo federal, favorecendo,
principalmente, a iniciativa privada. Foram milhares de
trabalhadores rurais que, deslocados da região Sul do país,
contribuíram para fundar cidades, através de projetos particulares
de colonização, contribuindo para a construção hegemônica do
capital mercantil e imobiliário, criando condições para a
emancipação política e administrativa dos novos municípios que
baseiam sua economia na agricultura, pecuária e extração vegetal,
contribuindo para a emergência de uma nova classe social – os
novos ricos da fronteira.
Constata-se que a questão social, econômica, cultural e
ambiental, com grande potencial de agravamento crítico sobre o
processo de integração da Amazônia mato-grossense ao
desenvolvimento capitalista do Brasil, procura-se mostrar tais
contradições, com suas etapas de ocupação contemporânea na
região, acumulação econômica, dinâmica demográfica, poder
público e áreas emergentes da fronteira agrícola, exclusão social,
com novas classes e grupos sociais. Os aspectos contraditórios,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

134
Novas Fronteiras Culturais

como a desaceleração da fronteira, devido ao esgotamento


estrutural da capacidade de financiamento público, com base nas
políticas públicas de desenvolvimento e ocupação regional, pois
esses instrumentos serviram para acumulação econômica e política
de grupos em detrimento de uma ocupação democrática dessas
terras, em que a especulação imobiliária, o desperdício com os
recursos naturais foram predominantes.
Conclui-se que a Amazônia mato-grossense constituiu-se
num lugar de alívio provisório para as correntes migratórias vindas
do Sul do país, influenciadas pelo modelo político-econômico
adotado pelos governos militares pós 64, que pretendiam
neutralizar os movimentos sociais reivindicatórios e,
principalmente, a questão agrária do Sul e Nordeste do Brasil. Esse
modelo de desenvolvimento produziu uma grande concentração
fundiária, uma marginalização do colono pobre que teve, por
opção, mudar para cidades maiores, como Cuiabá, seguir em frente
para as novas fronteiras agrícolas (Rondônia, Roraima) ou tornar-
se trabalhador “volante”, a chamada classe “rurbanos”,
trabalhadores que moram nas periferias de pequenas e médias
cidades do norte de Mato Grosso e trabalham nas fazendas –
agropecuária e agronegócio.
Esta reflexão insere-se no esforço de estudar a fronteira
norte mato-grossense, a partir de sua análise histórica e,
principalmente, para o conhecimento e compreensão da relação
Estado/sociedade no Norte de Mato Grosso analisados pela
perspectiva da História Social. Através desta contribui-se
significativamente para a produção científica em nossas
Instituições, procurando entender melhor o Brasil e situando-se
criticamente no espaço público da sociedade dos dias de hoje. A
importância dos estudos dessa natureza sobre o desenvolvimento
do Brasil, na verdade, permite-nos pensar as devidas contradições,
os mecanismos de controle e dominação e as relações de trabalho
na sociedade contemporânea.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

135
Novas Fronteiras Culturais

Referências

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

137
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 8
O SONHO DE BRASIL POTÊNCIA:
OS PROJETOS GOVERNAMENTAIS DE
DESENVOLVIMENTO PARA A
AMAZÔNIA NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XX E SEUS IMPACTOS PARA O
SÉCULO XXI

Vitale Joanoni Neto


Leidiane Gomes de Souza

Introdução

No século XXI, a Amazônia consolidou-se como um


importante assunto de alcance internacional. O destaque especial
coube ao Brasil, não apenas em razão do país possuir, dentro de
suas fronteiras nacionais, 68% dessa floresta, mas pela forma como
foram conduzidas as políticas federais para a sua gestão. O
desmatamento foi um tema muito debatido e preocupante, pois o
país tem oscilado entre períodos de avanço relativamente
controlado sobre a floresta primária e outros nos quais os recordes
de derrubada, queima e destruição expuseram a incapacidade do
Estado Nacional para exercer o controle sobre empresas rurais e
proprietários locais (COY; KOHLHEPP, 2005; HECHT, 2019;
HECHT, 2020).
Chega-se ao século XXI ainda buscando um entendimento
mais apurado sobre essa região tão complexa. O Estado Brasileiro,
entre 1970 e 2010, investiu cerca de 6 bilhões de dólares/ano na
Amazônia Legal (COY, 2005), mantendo propostas similares
àquelas lançadas por Golbery do Couto e Silva nos anos 1950,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

ainda embasadas no espírito da Guerra Fria, que consideravam a


Amazônia como área vulnerável, vazia, incivilizada. O Estado
Brasileiro criou uma malha tecno-política com o propósito de
facilitar a apropriação física e político-econômica do território:
redes de circulação rodoviária, de telecomunicações, urbana e
agroindustrial. Incentivos fiscais e créditos a juros baixos visaram
subsidiar o capital, incentivos à migração para o povoamento da
região e formação de um mercado de trabalho. Projetos de
colonização e superposição do território federal sobre os estaduais,
alimentados por investimentos públicos priorizaram o grande
empresário, a grande propriedade, o grande capital,
desconsiderando as comunidades locais, os saberes e culturas
locais. Tais medidas não alteraram as injustiças e as violências
contra indígenas, garimpeiros, posseiros, seringueiros. A Amazônia
contém 61% do território nacional, com 12% da população do
Brasil e 6,5% do PIB e a segunda pior concentração de renda do
país em 2017, com um índice Gini de 0,544 (IBGE). Entre 1970 e
1996, a taxa de urbanização na região foi a maior do país
(BECKER apud COY, 2005).
Contrariamente aos ideais da ‘civilização’, ou por causa
deles, ao invés de criar um mundo cada vez mais aberto, escolhe-
se cruzá-lo com uma multiplicidade de fronteiras, não unicamente
no sentido metafórico, mas, e sobretudo, em seu sentido material.
Não apenas por fronteiras nacionais (que hoje se tornam cada vez
mais literais, materializadas sob a forma de muros), mas também
por uma multiplicidade de fronteiras administrativas, territoriais e
de limites virtuais que separam os ambientes em que vivemos,
marcados por áreas opacas e limiares de distintos tipos (SERJE,
2019). São fronteiras que constroem territorialidades centrais e
seus respectivos avessos, identificados como “periferia”, nas quais
o Estado atua delegando suas competências de governo para
empresas privadas, igrejas, organizações não governamentais.
Segundo Serje (2019), ainda que tais espaços possam ser vistos
como abandonados (ou vazios) ou nas quais o Estado está
indiferente (ou ausente), de fato, as intervenções nessas fronteiras

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

são o resultado de decisões tomadas nos centros metropolitanos,


com linhas de atuação consistentes ao longo da história, pautadas
pela lógica da destruição massiva, espaços onde as relações
capitalistas desenvolvem-se em condições de excepcionalidade e,
portanto, onde as leis que regem as territorialidades centrais não
chegam. Essa condição de periferia viabiliza, torna possível a
coexistência do trabalho escravo contemporâneo, das violências
contra povos indígenas, posseiros e trabalhadores sem-terra, da
predação contra a floresta, contrastando com os avanços
tecnológicos que permitem o rastreio do gado, a agricultura de
precisão, as melhorias genéticas em plantas e animais, dentre
outros avanços da modernização do agronegócio.
A Amazônia brasileira desenvolveu-se nas últimas décadas
sob a orientação de um projeto denominado nacionalista e
desenvolvimentista, que impôs sobre a floresta, e tudo o que ela
implica, um modelo externo de organização socioeconômica. Este
texto analisa aspectos da implantação desse projeto e seus efeitos
que provocam ou reafirmam desigualdades e assimetrias sociais e
econômicas que atingem a população local. Esses aspectos têm
sido objeto de estudos de redes internacionais de pesquisa que
chamam a atenção para algo aparentemente simples, a exploração
da floresta precisa considerar os conhecimentos ancestrais dos
povos que a habitam e que convivem com ela a séculos (COY,
BARROZO; SOUZA, 2020). Parte-se do pressuposto de que a
exploração da floresta produziu um “estado de fronteira” (SERJE,
2019), que, por um lado, desconsidera os habitantes locais e suas
experiências, logo, os exclui, por outro lado, por meio das grandes
obras, reocupa e reconecta essas regiões e sua população na esfera
da economia global.
O governo ditatorial brasileiro entre os anos 1964 e 1984
sonhou com uma “pátria grande”, um Brasil potência e isso passou
pela necessidade da integração da Amazônia ao restante do país.
Em outras palavras, pretendeu-se levar a cabo os projetos de
Golbery do Couto e Silva (1981), que, desde os anos 1950, alertava
para os perigos de manter-se essa imensa região, “vazia”. Por

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

integração, entendia-se levar para a Amazônia progresso e


desenvolvimento econômico, nos moldes ocidentais, falava-se em
“civilizar” a Amazônia. Usando das prerrogativas do poder
concentrado, característica de Estados de Exceção, o Governo
Federal criou uma estrutura oficial de apoio a essa integração
(JOANONI NETO; GUIMARÃES NETO, 2017).

Análise e discussão dos resultados dos planos traçados pelo


Estado militar para a Amazônia

Pouco mais de uma década após as primeiras ações do


Estado Ditatorial sobre a Amazônia, os resultados fizeram-se
sentir. Em 1970, a Amazônia era ocupada por 4% da população
brasileira ou por aproximadamente 3,5 milhões de pessoas. Ao
longo dessa década, o número de habitantes subiu para 7 milhões,
reflexo das políticas públicas para a reocupação do território, um
terço desse contingente estava no campo (ALMEIDA, 1992), o
que põe por terra o discurso de que se estava realizando a maior
reforma agrária do mundo (IANNI, 1979). Majoritariamente, o
contingente de migrantes fixava-se nos núcleos urbanos que
nasciam durante o avanço dessa fronteira. Todos os projetos
aprovados pelo INCRA tinham, como parte obrigatória, a
estrutura viária (estradas dando acesso aos lotes rurais), logística
para transporte de pessoas e abastecimento (acessos ligando a área
dos projetos a cidades já consolidadas, próximas, o que, em alguns
casos, podia significar horas ou dias de viagem), atendimento
básico de saúde e educação.
Rapidamente, esses núcleos urbanos ganharam
importância, oferecendo mercadorias, serviços e atraindo pessoas
para as atividades comerciais que se revelavam muito mais
lucrativas que a agricultura (ALMEIDA, 1992). Em Rondônia, o
crescimento populacional foi de 324% entre 1970 e 1980 (IBGE
dados dos Censos Demográficos). Em 1991, estimava-se a
população na Amazônia Legal em 16 milhões de pessoas; em 2000,
20,3 milhões de habitantes, 68,9% na área urbana e 31,1% na área

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

rural. Em termos de população, a Amazônia legal continuou sendo


a parte menos povoada do país: mesmo tendo a região ganhado
treze milhões de habitantes de 1970 a 2000 (ou seja, aumentou
172%, enquanto o país crescia 82%). Em fins da segunda década
do século XXI, ela continuou representando apenas um pouco
mais de 12% do total da população brasileira (contra 8% em 1970)
e as densidades demográficas continuavam baixíssimas: a
Amazônia legal tem 4,2 habitantes por km² (e o estado do
Amazonas 1,8hab/Km²) enquanto a densidade nacional é de 20
habitantes por km².
O Estado ditatorial foi fortemente responsável pela
reocupação da Amazônia, porém, é preciso analisar as
características desse modelo de reocupação imposto por um
Estado militarizado (ALMEIDA, 1992; BROWDER;
PEDLOWSKI; WALKER, 2008), que optou por executar grandes
obras, como as rodovias Cuiabá-Santarém, BR-163,
Transamazônica, BR-230, usinas hidrelétricas (Coaracy-Nunes no
Amapá, 1975; Curuaá-Uma, 1977 e Tucuruí, 1984, ambas no Pará
(SILVA JR.; PETIT, 2017), bem como estimulou a migração de
milhares de famílias de agricultores e de trabalhadores para a
região. A Amazônia ora foi apresentada como terra de
oportunidades, ora como selvagem, vazia, atrasada. Esses tropos são
principalmente operacionais (SERJE, 2019) e ajudaram na
implantação dos projetos executados pelas agências
governamentais, economicamente centrípetos.
Estima-se que a colonização da Amazônia tenha
consumido US$7,5 bilhões durante a década de 70, mais da metade
correspondeu à construção de estradas, um terço às instituições de
complementação e apenas 6% aos projetos. O caro na colonização
não foi a distribuição de terras, mas o transporte para a região de
toda a infraestrutura física, econômica, social, para que as
atividades ligadas ao empreendimento pudessem operar. A
infraestrutura montada, valorizou as terras na própria fronteira,
atraindo novos interessados e dificultando qualquer proposta
redistributiva (ALMEIDA, 1992). As estradas custaram mais de

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Novas Fronteiras Culturais

vinte vezes a regularização fundiária durante os anos 70. A


expansão rodoviária custou ao Estado cerca de US$4 bilhões, mais
os custos dos projetos fundiários US$ 182 milhões (ALMEIDA,
1992). O acesso à terra na fronteira era muitíssimo mais caro em
termos físicos do que em termos legais. Grandes obras rodoviárias
como as BRs Belém-Brasília, Transamazônica, Cuiabá-Porto-
Velho, Cuiabá-Santarém, Rio Branco-Porto Velho-Manaus,
abriram a Amazônia ao tráfego rodoviário e nortearam os fluxos
migratórios e o estabelecimento dos negócios de venda de terras
ou da pecuária. Os projetos fundiários do INCRA abarcaram cerca
de 10 milhões de hectares na década de 1970 a um custo médio de
US$5,4 milhões até o final de 1981. O custo calculado para a
regularização fundiária de 33 projetos conhecidos na região
Amazônica foi de Cr$18,2 milhões (ALMEIDA, 1992).
Mais que expor o fracasso do projeto de construção de
uma pátria grande, uma potência mundial, um ufanismo retórico
que ocultou para todo o país a existência de uma rede de terrorismo
de Estado, com agentes públicos atuando à margem da legalidade,
sequestrando, torturando e tirando vidas de cidadãos brasileiros,
nossa intenção é demonstrar que os projetos para a Amazônia
foram (e ainda são) incapazes de olhar para floresta e seu povo, de
respeitar seu conhecimento ancestral sobre esse ambiente. Logo,
mais do que lastimar obras como a abertura da Rodovia
Transamazônica (hoje BR-230), iniciada em 1970, que custou
U$1,5 bilhão aos contribuintes brasileiros sem nunca ter sido
concluída, o que deve estar no foco de nossas atenções é que essa
estrada hoje liga duas regiões com os piores indicadores sociais do
Brasil (FREITAS; FREITAS; IORIS; CASTRO JR., 2017), apesar
do montante investido nela. Essa fronteira foi alvo de uma prática
de exploração massiva voltada para a extração de matérias primas,
agricultura para o mercado global que transformou uma parte
substancial da floresta em área de produção de commodities. Foi
implantada pela força do Estado Ditatorial, o que implicou sérios
prejuízos aos sistemas hídricos, geomorfológicos, de espécies e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

143
Novas Fronteiras Culturais

ecossistemas, pelo deslocamento das populações, expropriação das


terras, depreciação de sua organização social (OLIVEIRA, 2016).
Quando tratamos do capital, pensamos nos grandes
centros financeiros mundiais e ignoramos cidades como Manaus,
Cuiabá ou Belém, que possuem nexos financeiros com os grandes
centros, possíveis graças à exploração econômica estreitamente
ligada à Amazônia legal. Suas formas dinâmicas são produto de
complexos instrumentos e processos financeiros que transcendem
o Estado Nacional e tem possibilitado a elasticidade das formas de
apropriação de terras e o trabalho que caracteriza o capitalismo. As
fronteiras do capitalismo não são, de nenhuma forma, áreas em que
o capital não penetrou, senão áreas em que as regras do jogo para
o capital são outras, em que suas formas mais brutais são possíveis,
recobertas por um manto de opacidade (SERJE, 2019).
Em 1985, projetos de desenvolvimento alternativos
apareceram ligados a diferentes territorialidades e com a
participação de diferentes grupos (Ongs, Igrejas etc.). Tratava-se
de experimentos associados à sociobiodiversidade, organizados de
baixo para cima e apoiados pelas redes de comunicação em
diferentes escalas geográficas (BECKER In: COY; KOHLHEPP,
2005). Naquele momento, a Amazônia passou a ter uma nova
imagem. Deixou de ser vista como sertão, fronteira-borda, limite
da civilização, para ser a fronteira agrícola, lócus do agronegócio.
Surgiram novas geopolíticas por parte de diferentes grupos sociais.
Ongs e falsas Ongs, Estado, Igrejas, ambientalistas, diferentes
grupos da sociedade civil, cada um desses grupos produziu
propostas de reocupação e uso do território. Todos olham para a
mesma paisagem, mas com intencionalidades diferentes. A
Amazônia passou a estar mais presente no imaginário social do
brasileiro, inclusive, porque o Estado Militar fez intensa
propaganda da região não só para estimular a migração como para
justificar os pesados investimentos (e favorecimentos) feitos nela.
Depois disso, já nos anos 1980, com mais força, vieram as
preocupações de caráter ambiental internacionais que, com o

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

144
Novas Fronteiras Culturais

passar do tempo, não puderam mais ser ignoradas pelo Estado


brasileiro.
O modelo de agronegócio, tal como estabelecido na
Amazônia, constituiu-se inicialmente em sua parte meridional, no
estado de Mato Grosso, a soja é o seu principal produto e ele está
intrinsecamente ligado aos fluxos transnacionais de capital.
Segundo Ioris, ao longo dos anos 1990, sua força cresceu muito e,
nas primeiras décadas do século XXI, a soja passou a responder
por 25% do PIB brasileiro, 35% das exportações e 40% dos
empregos (FREITAS; FREITAS, IORIS; CASTRO JR., 2017, p.
244). O agrobusiness chamou a atenção do mundo por sua propalada
eficiência produtiva na Amazônia e a variedade de commodities
oferecidas aumentou, incluindo carnes (bovina, suína), milho e
algodão, cana-de-açúcar.
A balança comercial do país passou a depender dos
resultados dessas exportações que, mesmo em anos de crise,
manteve resultados positivos, razão pela qual os seguidos governos
municipais, estaduais e nacional passaram a defendê-lo e seus
representantes, reunidos em associações, federações, tornam-se
cada vez mais influentes politicamente, financiando campanhas e
construindo lideranças que passam ocupar funções públicas
diretamente. Inúmeras prefeituras foram ocupadas por grandes
produtores rurais e os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins,
Rondônia foram governados, mais de uma vez, por representantes
do agronegócio. Há, no Congresso Nacional, uma poderosa
bancada chamada de ruralista e o Ministério da Agricultura
também esteve, por mais de uma vez, sob o comando direto desse
grupo. Essa é a importância central para os resultados positivos da
balança comercial brasileira, agora fortalecida por essa cadeia de
representações políticas que se estende do local ao nacional, que
abarca os três poderes da República Brasileira, que mitiga os
impactos do avanço desse modelo produtivo sobre a floresta, sobre
as áreas indígenas e de comunidades tradicionais, ou quanto ao uso
do trabalho escravo contemporâneo, apresentando-o como
símbolo da modernidade, espelho do Brasil que deu certo e que

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

145
Novas Fronteiras Culturais

resultou em uma relação de dependência dos seguidos governos


brasileiros a essa atividade econômica.
No período de agosto de 2018 a julho de 2019, o
desmatamento da Amazônia Legal foi estimado em 9.762
quilômetros quadrados. A área de vegetação nativa desmatada
aumentou 29,54% em relação ao período anterior, de agosto de
2017 a julho de 2018 e perdeu 10.476 km² de floresta entre agosto
de 2020 e julho de 2021, meses em que se mede a temporada do
desmatamento. A taxa foi 57% maior que o período anterior
(2019/2020) e a pior dos últimos dez anos (Imazon, 2021). 14,4%
da madeira retirada da Amazônia é exportada. 56,1%, é consumida
no Sul e Sudeste do Brasil.

Considerações finais

O processo de reocupação da Amazônia empreendido


pelo Estado Ditatorial Militar após 1964 desconsiderou a existência
dos povos indígenas, das comunidades extrativistas, quilombolas,
posseiros, ribeirinhos e vinculou as ações impostas a uma visão
ufanista, grandiosa para justificá-las junto à sociedade brasileira.
Em seu avesso não foi mais que o clássico modelo de exploração
do capital, o que levou a um conjunto de ações impregnadas de
abusos e ilegalidades e gerou violentos conflitos e tensões sociais.
Os investimentos do Estado na Amazônia nos últimos 50
anos foram da ordem de 6 bilhões de dólares/ano e os benefícios
para a população local, o desenvolvimento ou integração da região
ao Brasil podem ser analisados pelos indicadores socioeconômicos.
Esse investimento mencionado foi suficiente para assegurar o
dinamismo econômico do agronegócio verificado no Sul e Sudeste
do Pará, Tocantins, Mato Grosso e Rondônia. A presença de
empresas estrangeiras, influenciando nessa cadeia produtiva, é
evidente (Fuchs, 2020) e derrubou o argumento do Estado
Ditatorial de que a intervenção na floresta visava evitar a sua
internacionalização.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

146
Novas Fronteiras Culturais

Passados 59 anos da implantação do Estado Ditatorial


militar no Brasil, responsável pela imposição de um rigoroso e
sistemático conjunto de políticas públicas voltadas para a
integração da Amazônia, que foi chamado, inicialmente, de “maior
reforma agrária do mundo” e justificado como uma ação visando
à preservação de soberania nacional; que impôs um modelo de
desenvolvimento voltado para os interesses dos grandes
empresários nacionais, estimulando a implantação de relações
plenamente capitalistas e desconsiderando a ocupação originária e
suas ancestrais relações com a natureza local, seus conhecimentos
acumulados e suas necessidades mais simples; a Amazônia tornou-
se uma floresta urbanizada. Entre 1970 e 1996, a taxa de
urbanização da região foi a maior do país. Em 1996, 61% da
população morava nas cidades e, em 2000, 69% (BECKER apud
COY; KOHLHEPP, 2005). As cidades cresceram
desordenadamente e o poder público não conseguiu atender às
demandas da população que ocupa as periferias.
Os núcleos urbanos são os nós das redes de informação,
dos mercados de trabalho que podem oferecer uma alternativa ao
avanço sobre a floresta e de um mercado para os produtos
oriundos dela. Na Amazônia, essa urbanização concentrou-se no
eixo das rodovias, recolhendo migrantes que perderam as terras,
que vieram em busca delas sem sucesso, atraídos pelas
propagandas de riqueza e êxito, que migraram em busca de
trabalho. (FOWERAKER, 1982). O modelo de desenvolvimento
encontrado nessas cidades, em síntese, é o mesmo usado para toda
a Amazônia em suas mais diferentes áreas. Elas reproduzem os
modelos de organização comuns às cidades brasileiras do sul e
sudeste e, com ele, seus conhecidos problemas: moradores de rua,
ocupação irregular, favelização, violência, tráfico de drogas, falta
de planejamento, mau uso dos recursos públicos, descuido com a
natureza e com as pessoas. Definitivamente, não existem mais
condições nem históricas nem naturais para essa reprodução. A
busca por oferecer melhores soluções para a Amazônia não tem

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

147
Novas Fronteiras Culturais

respostas válidas para todos os lugares ao mesmo tempo. Essa


intenção mostrou-se inalcançável.
O que temos ao analisar os sucessivos projetos
implantados na Amazônia é um cenário de culturas totalmente
modificadas, vidas alteradas pelas mudanças impostas ao tipo de
cotidiano e trabalho com o qual estavam acostumadas, enquanto o
desenvolvimento é celebrado com grandes investimentos
(BROWDER; PEDLOSWISK; WALKER, 2008). O saldo da
corrida pela modernização do Brasil iniciado no governo militar foi
e permanece sendo a desigualdade e a concentração de renda nas
mãos de poucos, resultando numa Amazônia dual: rica para quem
a explora e pobre colonizada para seu povo. “A pobreza encontra-
se associada com urbanização, acesso restrito a oportunidades
culturais, falta de espaços de ação política, e a destruição da floresta
e dos ecossistemas” (FREITAS; FREITAS, IORIS; CASTRO JR.,
2017, p. 273).
O governo brasileiro (2019 a 2023), teve o apoio, no
Congresso Nacional, dos deputados do grupo chamado de BBB,
ou “Bibles, beef and bullets”, e nomeou, como Ministro do Meio
Ambiente, uma pessoa controversa. Durante sua campanha,
anunciou que retomaria os paradigmas militares
desenvolvimentistas.
Ao ser eleito, manteve seu discurso de apologia à ditadura
militar e suas práticas polêmicas. Ele retomou a retórica ufanista
de que a Amazônia pertencia ao povo brasileiro, como pretexto
para permitir práticas predatórias (garimpos em áreas indígenas,
desmatamento, grilagem). Talvez esse seja o aspecto mais perverso
das heranças deixadas pelos governos militares. Bolsonaro afirmou
que a pressão internacional pela preservação da floresta,
demarcação de áreas indígenas, criação de reservas ou parques,
tinha a intenção de frear o desenvolvimento e interferir na
soberania nacional e, como um desdobramento desse argumento,
acusou ONGs de serem comunistas e de organizarem ações
revolucionárias, “eco-focos” inspirados nas práticas de Che
Guevara (HECTH, 2020).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

148
Novas Fronteiras Culturais

O projeto de desenvolvimento ancorado no crescimento


das atividades econômicas, as quais impactam diretamente sobre a
vida cotidiana das pessoas e sobre a natureza dos territórios,
implantado na Amazônia, tem relação direta com a ideia de
modernidade, um “atributo imperativo” do desenvolvimento que
transformou a floresta, um bem coletivo para os seus povos, em
propriedade privada, que excluiu as práticas de usos tradicionais e
“perpetua a desigualdade e a pobreza independente do nível de
conservação e restauração da floresta” (FREITAS; FREITAS,
IORIS ; CASTRO JUNIOR, 2017, p.279-81).
A formação dos espaços da Amazônia, similar ao que
ocorre no restante do mundo, seguiu as regras do capital e,
consequentemente, do crescimento econômico. Nesse cenário,
tanto os territórios quanto sua população são submetidos à
produção dessa realidade, (SERJE, 2019), vista na Amazônia como
a exploração da fauna e flora e o deslocamento circunstancial de
pessoas à medida que os projetos exigiram. O desenvolvimento “é
aquilo que, do ponto de vista dos respectivamente interessados,
deveria ser”. Não existem modelos capazes de explicar o mundo.
Essa aproximação deverá ser multidisciplinar e respeitar a
diversidade das Amazônias (ACOSTA apud OY; KOHLHEPP,
2005, p.127-30).
A resistência é uma constante nos povos da Amazônia.
Quando o Presidente Bolsonaro alegou que os índios realmente
queriam ficar ricos e ele ofereceu-se para “integrá-los” à sociedade
capitalista explorando suas terras no agronegócio, [Aritana
Yawlapiti, o velho sábio chefe] rejeitou a oferta fraudulenta de
Bolsonaro. Ele disse que “[...] não precisamos plantar soja [a
colheita lucrativa]. Temos nossa roça com mandioca e milho, e
nossa pesca e caça. O governo deve respeitar nosso modo de vida”
(HEMMING, 2019, p. 214).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

149
Novas Fronteiras Culturais

Referências

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Rondônia’s Post-frontier, 1992–2002. World Development vol.
36, n. 8, pp. 1469–1492, 2008.
COY, Martin; KOHLHEPP, Gerd (coord). Amazônia
Sustentável. Desenvolvimento sustentável entre políticas
públicas, estratégias inovadoras e experiências locais. Rio de
Janeiro/Tübingen: Garamond/ Geographischen Instituts der
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campo-cidade e funções urbanas em regiões do agronegócio: o
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FOWERAKER, Joe. A luta pela terra. Rio de Janeiro: Jorge
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FUCHS, V. B. Chinese-driven frontier expansion in the Amazon:
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Civitas, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 16-31, jan.-abr. 2020.
HECHT, Susanna, 2019. Darkness at Noon: Deforestation in the
new Authoritarian Era. Global Challenges, issue n. 6, November.
Disponível em:
https://globalchallenges.ch/issue/6/darkness-at-noon-
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2021.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

150
Novas Fronteiras Culturais

HECHT, Susan. Why the Brazilian Amazon Burns. Current


History (2020) 119 (814): 60–65. Disponível em:
https://www.portugueseatucla.com/uploads/1/1/2/9/11299775
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University of California Press (ucpress.edu) Acesso em: 18 maio
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HEMMING, John. The people of the rainforest. London: Hurst
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sociais na Amazônia Brasileira. Belém: Paka-Tatu, 2017.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

151
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 9
MIGRAÇÕES E PRÁTICAS CULTURAIS
EM GUARANTÃ DO NORTE-MT

Sérgio Alberto Pereira

Introdução

A partir da década de 1970, iniciou-se intenso fluxo


migratório à Amazônia brasileira e, em especial, à mato-grossense.
A criação do PIN – Plano de Integração Nacional, durante a
ditadura militar, deu origem a uma série de ações, tais como a
construção de rodovias, entre elas, a BR-163 no trecho entre as
cidades de Cuiabá no estado de Mato Grosso e Santarém no Pará
e a implantação de diversos projetos de colonização públicos ou
privados. O objetivo desse arcabouço de medidas era de integrar a
Amazônia ao restante do território brasileiro. Obviamente que esse
processo desconsiderava a presença das populações indígenas
como a dos Panarás, que ocupavam o norte de Mato Grosso.
É nesse contexto que surgiu a cidade de Guarantã do
Norte, fundada em 2 de junho de 1981. Guarantã do Norte está
distante 700 quilômetros aproximadamente da capital do estado,
sendo a última cidade mato-grossense localizada ao longo da BR
163, próxima à divisa com o estado do Pará. Historicamente, sua
gênese está relacionada a dois projetos de colonização oficial, o
PAC Peixoto de Azevedo e o PA Braço-Sul. O PAC (Projeto de
Assentamento Conjunto) Peixoto de Azevedo era uma parceria
entre o Governo Brasileiro representado pelo INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e COTREL
(Cooperativa Tritícola Erechim Ltda.), cujo objetivo era o
“assentamento de 1.600 famílias de associados, além de 240

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

152
Novas Fronteiras Culturais

famílias de agricultores desapropriados pela hidrelétrica de Passo


Real” (PRETI, 1993, p. 41).
Por sua vez, o Projeto de Assentamento Braço-Sul tinha
caráter emergencial e foi implantado para “atender as pressões de
agricultores brasileiros que trabalhavam em solo paraguaio e que
estavam prestes a serem despejados” (Ibiden, p. 42), visto que os
contratos de arrendamento das terras paraguaias estavam acabando
e muitas famílias já se encontravam acampadas na cidade de
Mundo Novo no estado de Mato Grosso do Sul. Após forte
atuação das Irmãs Dominicanas, foi dado o aval para o
assentamento de 1.130 famílias ao lado do PAC Peixoto de
Azevedo.
Salienta-se que, mesmo antes da instalação dos projetos de
colonização, o espaço onde está localizado atualmente o município
de Guarantã do Norte já estava ocupado por centenas de posseiros
oriundos das mais diversas regiões do Brasil, que iam se instalando
às margens da rodovia. Em estudos do NERU – Núcleo de
Pesquisas Rurais e Urbanas da Universidade Federal de Mato
Grosso, Barrozo (1993) identificou posseiros oriundos das regiões
Sul, Sudeste e Nordeste, totalizando nove estados brasileiros.
Esse fluxo migratório inicial que antecedeu aos projetos de
colonização oficiais implantados na região deu-se em decorrência
da intensa propaganda governamental em relação à região a ser
colonizada. Discorrendo sobre as representações construídas em
torno da Amazônia, Agra (2013, p. 233) destaca as propagandas
propaladas para atrair imigrantes das mais diversas regiões do
Brasil, classificando o lugar “desde um Éden esperando ser
desbravado, passando pelo inferno verde até o Eldorado”. A região
representava o espaço a ser conquistado, riquezas disponíveis, a
possibilidade da tão sonhada terra e de melhores condições de vida.
Sobre esse tema, Barrozo descreve que “para os projetos
de colonização privada e do INCRA, o governo federal com o
apoio e colaboração de agências sociais e religiosas fez propaganda
em áreas de colonização do sul do Brasil, sobretudo em áreas de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

153
Novas Fronteiras Culturais

minifúndios, promovendo a Amazônia como a Terra da


Promissão” (2014, p. 152).
Como consequência direta dessa enorme propaganda,
“antes mesmo da inauguração da rodovia Cuiabá – Santarém em
1976, dezenas de famílias já ocupavam lotes às suas margens,
desafiando as ameaças de despejo” (BARROZO, 1993, p. 111).
Em comum, posseiros, gaúchos e brasiguaios enfrentaram grandes
dificuldades desde a ausência de infraestrutura básica como
estradas, máquinas e ferramentas, até a falta dos produtos
necessários à sobrevivência, remédios, dinheiro e assistência
técnica, assim como a distância em relação aos centros urbanos,
uma vez que as cidades mais próximas eram Colíder e Sinop, a 130
e 220 quilômetros, respectivamente, e, principalmente, a malária
que aterrorizou a todos e dizimou inúmeras vidas.
Diante desse cenário caótico e das múltiplas origens das
migrações para a formação do município de Guarantã do Norte,
este trabalho tem como objetivo investigar as representações
sociais dos grupos envolvidos, suas manifestações culturais e como
pessoas ou grupos organizaram para manter suas práticas culturais
incluindo festas, danças, religiosidade e práticas diversas como a
esportiva.
Para a execução desta pesquisa, foram realizadas vinte
entrevistas entre os meses de março e maio do ano de 2022, com
moradores de diversos locais, idades e segmentos da sociedade
guarantanhense, incluindo pioneiros, filhos destes ou pessoas que
vieram após o surgimento da cidade, mas que vivenciaram espaços,
festas e outros momentos de manifestações culturais importantes.
Todas as entrevistas foram gravadas, totalizando aproximadamente
cinco horas de material de áudio. Essas abordagens tiveram um
caráter informal entre entrevistador e entrevistado. Segundo Gil,
“esse tipo de entrevista é o menos estruturado possível e só se
distingue da simples conversação porque tem como objetivo
básico a coleta de dados” (2008, p. 111). Neste sentido, apesar de
possuir um objetivo claro, permitia-se que a entrevista fluísse de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

154
Novas Fronteiras Culturais

acordo com os relatos das vivências experienciadas pelo


entrevistado.
Para essa análise, optou-se por um viés qualitativo uma vez
que essa tipologia de apreciação trabalha com as significações,
crenças, atitudes, valorações que devem ser interpretadas e não
mensuradas (MINAYO, 2009).
Esse tipo de análise considera a intersubjetividade do
sujeito. Ela não é traduzida por números ou valores matemáticos,
pois a “interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados
são básicos no processo de pesquisa qualitativa” (PRODONOV;
FREITAS, 2013, p. 70).
Paralelamente às entrevistas, realizou-se também um
levantamento fotográfico, em que, com a colaboração de alguns
moradores, teve-se acesso a fotos antigas que ajudaram a contar a
historiografia de Guarantã do Norte e ilustrar marcas que as
representações culturais deixaram na paisagem guarantanhense.

Migrações e práticas culturais na cidade de Guarantã do


Norte
A cidade de Guarantã do Norte (Mapa 1), localizada na
mesorregião Norte Mato-grossense e na microrregião de Colíder,
é considerada, pelo REGIC – Regiões de Influência da Cidade do
ano de 2018, como Centro de Zona B, ou seja, caracteriza-se por
possuir um índice menor de atividades relacionadas à gestão e
possuir atração direta de um número pequeno de cidades,
ofertando comércio e prestação de serviços. Segundo o IBGE
(2022), a população estimada para o ano de 2021 era de 36.439
habitantes e, como qualquer outra cidade, é um organismo
complexo e dinâmico (MOURA; ROMANCINI, p. 5).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

155
Novas Fronteiras Culturais

Mapa 1 - Guarantã do Norte – localização e núcleo urbano

Fonte: IBGE (2022). Elaboração: Gabriella Matos Santiago (2022).

Complexidade e dinamismo marcados por uma origem


ligada ao Plano de Integração Nacional criado pelo Regime Militar
com o objetivo de integrar os espaços considerados vazios. A
intensa imigração dos mais diversos estados para a Amazônia
criaram condições para que o espaço geográfico, “um campo de
representações simbólicas, rico em signos que cumprem a função
de expressarem as estruturas sociais em suas mais diversas
dimensões” (MOURA; ROMANCINI, p. 5), fosse aos poucos
tomando forma e expressando, nas paisagens, construções, hábitos
e tradições, aspectos que denunciam a presença e as representações
sociais dos grupos, geralmente, os predominantes ou os que
dispunham de maior organização.
De acordo com Correa (2005, p. 158):

A cidade como marca e matriz cultural, enquanto texto que


permite múltiplas interpretações, está recoberta por
inúmeros mapas de significados, mitos, utopias, crenças e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

156
Novas Fronteiras Culturais

valores, particularmente, não são de modo exclusivo, da


cultura dominante [...] de movimentos sistemáticos ou não,
construindo uma Geografia urbana que simultaneamente,
é cultural, econômica, social e política.

Nesse contexto, é necessário ler, decodificar e interpretar


a cidade avaliando seus significados e significâncias, suas
representações sociais. Essas representações, segundo Rigonato
(2013, p. 6), “são formas pelas quais os seres humanos expressam
os seus conhecimentos, linguagens, signos e significados”. Elas
deixaram e ainda deixam, uma vez que se trata de um processo
contínuo no tempo e no espaço, suas marcas na cidade de
Guarantã do Norte nos hábitos, festas, manifestações religiosas,
construções e práticas esportivas.
O teórico Serpa (2013, p. 172) afirma que “[...] não se pode
analisar a sociedade sem seus atributos culturais” e continua
asseverando que nem os atributos culturais podem ser estudados
desvinculados da sociedade que os produz. Em Guarantã do
Norte, a construção dessas representações vai expor claramente
um grupo preponderante, uma cultura dominante – a gaúcha. Não
necessariamente em razão de um número maior de migrantes
oriundos do Sul do país, mas em razão de outros fatores que se
combinaram.
Segundo JPS, 76 anos, brasiguaio, natural do estado da
Bahia e assentado em Guarantã do Norte no ano de 1981 dentro
do projeto Braço-Sul:

Eles tinham um amparo muito maior do que nós ali


naquela cooperativa deles, também a parte financeira deles
era melhor que a nossa e também a união deles [...] Tu sabes
que o pessoal que vem do Nordeste ou de outros cantos,
não tem a mesma mentalidade que tem eles ali de união, no
sentido disso aí. Eles tinham mais conhecimento de como
fazer do que nós que era individual, vinha gente de todos
os estados do país, então cada um pensava de maneira
diferente quando ia fazer vinha um e falava não, isso não

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

157
Novas Fronteiras Culturais

vai dar certo e eles não, quando um falava vamos fazer,


porque eles eram tudo de um lugar só, isso facilitou, esse
costume lá do sul, cooperativismo, de construir área de
lazer, então foi mais fácil para eles do que pra nós.

As condições um pouco melhores com uma infraestrutura


mínima e ajuda financeira por parte da cooperativa somada à
prática do cooperativismo que unia os migrantes oriundos do Rio
Grande do Sul e a proximidade geográfica na origem desses
colonos contrastavam com as condições dos brasiguaios,
originários de vários estados do Brasil que se reúnem
eventualmente na fronteira do Brasil com o Paraguai, em especial,
na cidade de Mundo Novo no estado de Mato Grosso do Sul,
contrapõem-se ainda mais com os posseiros que antecederam aos
dois projetos de colonização e que, oriundos de diversos estados
(Gráfico 1), aventuravam-se em poucas famílias, desassistidos,
desamparados e até perseguidos, tendo seus barracos e plantações,
por muitas vezes, queimados em represália para que desocupassem
a área (PRETI, 1993).

Gráfico 1 - Estado de origem dos posseiros

MA
CE
RS 5% 5% SP
BA 4% 23%
ES4%
4%
PR
9%
MG
18%
SC
14%
AL
14%

Fonte: Barrozo (1993). Organização: Sérgio Alberto Pereira (2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

158
Novas Fronteiras Culturais

Essa organização e mobilização dos gaúchos que vieram


para Guarantã do Norte, antítese dos moradores provenientes de
outros estados, também são destacadas por ECL, 56 anos, morador
de Guarantã do Norte desde 1986, natural do Rio Grande do Sul,
mas proveniente do Paraná, onde viveu sua infância e juventude:

O pessoal se preparou, embora o início ali tenha


acontecido com o pessoal que construiu as casas a serraria
e tudo mais, mais a expectativa ali era de trazer logo de
imediato 200, 150, 200 famílias pra cá né, embora só
tenham vindo as sete, depois é que foram vindo as outras,
mais então houve uma mobilização regional de gente que
já se conhecia e que tinham os mesmos gostos, acho que
isso tudo favoreceu né, diferente da questão das mesmas
famílias que são os brasiguaios que as irmãs trouxeram mas
eram gente do Paraná, de São Paulo, que tinha se reunido
ali no Mato Grosso do Sul que as coisas não deram certo
para eles ali.

Outro depoimento que corrobora com as falas anteriores


foi dado por PPB, 60 anos, natural de Erechim – RS e morador de
Guarantã do Norte desde 1985. Segundo ele:

Acontece o seguinte, é que lá o povo já veio de uma


organização, eles já tinham pratica de se organizar em
cooperativa, em se organizar em igrejas, a maioria era
parente um do outro, se organizar em sindicato, sindicato
foi muito forte aqui [...] então essa organização já veio de
lá. O povo já tinha esse histórico, por exemplo o meu pai
era líder de cooperativa a mais 20 anos, então eles já sabiam
o que fazer. O que que aconteceu com Guarantã, veio
gente de tudo o que é lugar, veio desorganizado. Começa
pelo grupo que as irmãs tentaram organizar aqui, uma
atitude louvável das irmãs, mas veio gente de tudo o que é
lugar.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

159
Novas Fronteiras Culturais

Como consequência, verifica-se que, na cidade de


Guarantã do Norte, é a grande influência da cultura proveniente
do Rio Grande do Sul se comparada às demais e à manutenção de
hábitos, costumes e tradições gauchescas. ARC, 26 anos, natural de
Matupá – MT, filha de moradores da Cotrel, onde também reside,
afirma que:

A parte da fala, o sotaque, os costumes continuaram os


mesmos, o costume da culinária, o costume de escutar
músicas tradicionais, festas tradicionais, encontros de
famílias tradicionais, chimarrão, minha mãe é descendente
de italiano, minha mãe fala italiano.

Parte desses elementos culturais estão presentes em


diversos lugares e aspectos, conforme é possível observar nas
figuras 1, 2, 3 e 4. A figura 1 mostra o nome de um estabelecimento
comercial que remete à tradição da cultura gaúcha, a figura 2
demonstra a arte conceitual de comemoração de 27 anos do
programa de rádio “Roda de Chimarrão”, representando a força e
a influência da música do sul na cultura radiofônica local. As outras
duas imagens, que ilustram a parte interna do ginásio de esportes
do Juventus Esporte Clube da Cotrel, mostram os escudos do
Grêmio e do Internacional, os dois times de maior torcida do Rio
Grande do Sul (Figura 3) e uma partida de bocha, jogo de muita
tradição entre os gaúchos e que é praticado por moradores de
Guarantã do Norte (Figura 4). Esses elementos reforçam a
influência sul-rio-grandense na paisagem e na cultura do município
de Guarantã do Norte.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

160
Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 - A força da cultura Figura 2 - Programa de Rádio


presente em nomes de empresas Roda de Chimarrão – 27 anos
no ar

Fonte: Sérgio Alberto Pereira Fonte: Ângela Maria Batistel


(2022). (2022).

Figura 3 - Rivalidade esportiva do Figura 4 - Bocha – esporte


RS presente no ginásio do tradicional do RS sendo praticado
Juventus em Guarantã do Norte no ginásio do Juventus

Fonte: Sérgio Alberto Pereira Fonte: Sérgio Alberto


(2022). Pereira (2022).

A manutenção de vínculos e hábitos culturais tradicionais


como os gauchescos, também os religiosos e desportivos, foram
importantes para a permanência dos migrantes em Guarantã do
Norte. VJF, 46 anos e morador de Guarantã do Norte desde 1982,
em seu relato, faz referência ao bairro Cotrel que “as pessoas que
vieram para cá, elas criaram um núcleo, um bairro onde a cultura
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

161
Novas Fronteiras Culturais

permaneceu, os costumes e hábitos”. E reforça falando da


importância das comunidades católicas e do esporte que era
praticado nesses locais na história de Guarantã do Norte e na
permanência dos migrantes no município:

Aonde você cria um módulo, você cria uma comunidade e


em cada comunidade você cria ali um salão, sem isso a
comunidade não anda, né, por que tem que ter a parte
religiosa e a parte da diversão, né. Você tem aí dezenas de
comunidades que foram criadas e algumas ainda, algumas
se mantêm como é o caso da Linha Fogo, Bairro Cotrel,
Módulo 1, Módulo 2, Módulo 3 e assim até o módulo 8 que
foram a colonização aqui rumo a Novo Mundo (PAC
Peixoto de Azevedo) e as outras aqui também Linha
Páscoa, Linha 38 (PA Braço-Sul), esse núcleo faz com que
as pessoas vivam em torno dele (observação nossa).

As comunidades católicas foram criadas a partir dos


processos de colonização. Os próprios moradores construíam, em
cada linha (estradas vicinais), uma capela, um barracão e um campo
de futebol, espaços que atraíam dezenas e, às vezes, centenas de
pessoas nos fins de semana. Como exemplos dessas comunidades,
pode-se mencionar a Comunidade São Roque na Linha Fogo; São
José, na Páscoa I e Santa Luzia, na Linha 38.
A participação na comunidade, trabalhar na construção de
barracões, capelas, ajudar nas festas religiosas era motivo de alegria,
satisfação e entretenimento para os moradores como relata JPS:
“Para nós aquilo era diversão, aquela união que nós tinha ajudou
muito a gente ali”.
As comunidades rurais foram importantes como espaços
de manifestações, festas e, principalmente, para abrandar o
sofrimento da população do município. Sobre a presença da igreja
e a participação das comunidades na formação de Guarantã do
Norte, PPB afirma que:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

162
Novas Fronteiras Culturais

Começou pela igreja né, era uma região católica. Tinha


outras pessoas que também não eram católicas que ia aos
poucos formatar suas igrejas. Você vê nossa paróquia aqui
é grande, a Cotrel primeira coisa que eles fizeram as sete
famílias construíram uma capela e essa capela, ela era o
lugar que a gente levava os mortos, que a gente celebrava
os dias festivos da igreja católica e fazia festas, sempre foi
feito festas. Futebol que é uma coisa que segurou bastante
esse pessoal, mas a gente tinha um grupo [...] mas, na época,
tinha essa fé. O sofrimento era bastante, mas a fé ajudou
bastante as pessoas a se manterem.

Frequentador das festas e dos eventos esportivos nas


comunidades na época, ou seja, nas décadas de 1980 e 1990, JRN,
63 anos, brasiguaio e morador de Guarantã do Norte desde 1983,
relembra que:

Principalmente o esporte, era muita gente, as comunidades,


principalmente as comunidades. As festas eram boas, os
torneios, os torneios vou te falar, terminava de noite, com
os carros iluminando. Espetinho de bambu, coqueiro, um
buraco assim no chão.

Com o objetivo de criar espaços para a manutenção de


vínculos culturais, lazer e desportivos, dois espaços mereceram
destaque em Guarantã do Norte. O Juventus Esporte Clube,
criado em 1982 na Cotrel, e o CTG Última Porteira, inaugurado
em 1992.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

163
Novas Fronteiras Culturais

Figura 5 - Parte externa do ginásio do Juventus Esporte Clube

Fonte: Sérgio Alberto Pereira (2022).

Localizado no bairro da Cotrel, o Clube Juventus (Figura


5) foi construído pelos próprios associados com doações de
serviço, materiais e dinheiro. Para a manutenção, cobrava-se uma
pequena mensalidade e realizavam-se dois bailes por ano, o Baile
do Chopp e o Baile da Aleluia que se tornaram tradições entre os
eventos do município. O intuito era construir um espaço coletivo
para a reuniões dos fins de semana, a prática de esporte e a
realização de festas como descreve VJF:

O Juventus iniciou a construção de todos os espaços que


hoje estão lá, foi tudo feito pelas pessoas, os associados
então um doou serviço, o outro doou tijolo o outro isso ou
aquilo, então foi construído dessa forma, é por isso as
pessoas que ali vivem que participam tem um apreço muito
grande por esse clube. A gente tem o time de futebol, a
bocha, o baralho, tem alguns eventos que a gente faz
durante o ano para manter as despesas, esse ano a gente
pretende iluminar o campo de futebol maior, está
retomando a escolinha de futebol que ficou parada por
algum tempo e assim o objetivo que em um futuro próximo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

164
Novas Fronteiras Culturais

a gente esteja participando de uma segunda divisão do


campeonato mato-grossense.

A importância do Juventus Esporte Clube para os


moradores, sobretudo da Cotrel, é destacada em vários
depoimentos como o de DTC, 47 anos, natural de Santa Catarina
e moradora de Guarantã do Norte desde 1985. Ela relata que:

O Juventus fez parte da minha infância e da minha


adolescência. Muito importante, principalmente no
esporte, a gente vinha para assistir jogo principalmente na
praça da cultura, a gente vinha todos [...] Por uma questão
de tradição mesmo, o pessoal lá do sul é muito unido, é
como eu te falei, essa roda de conversa no fim do dia, nos
finais de semana, o jogo de baralho, o jogo de campo, então
isso aproxima muito.

Por sua vez, o CTG Última Porteira (Figura 6), em


Guarantã do Norte, fundado no início da década de 1990, tinha
como objetivo criar um espaço destinado à manutenção da cultura
gauchesca na cidade, bem como divulgar e disseminar os costumes
e tradições do povo gaúcho. Logo, transformando-se em um
espaço de convívio, lazer e práticas culturais importantes, bailes e
festas tradicionais (Figura 7), encontros, práticas esportivas como
bocha e bolão, escolinhas de dança eram constantemente
desenvolvidas graças ao CTG.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

165
Novas Fronteiras Culturais

Figura 6 - Grupo de dança típica Figura 7 - Baile no CTG Última


em frente ao CTG Porteira

Fonte: Ângela Maria Batistel Fonte: Ângela Maria Batistel


(1992). (1992).

Segundo AMB, 60 anos, moradora de Guarantã do Norte


desde 1990, o CTG representava:

Tudo o que eu queria, meus filhos se criaram em um clube


que era de família, lá vai ter família, lá vai ter crianças da
idade do meu filho [...]. E eu vou fazer grupos de danças
folclórica, gaúcha e vou fazer dois grupos, um grupo mirim
que até escolhi o nome, vai ser The. Daí oito casalzinho [...]
e mais um grupo de juvenil, tudo lá com os quatorze,
quinze anos. A gente ia se apresentar na Praça, na ACEG,
nas escolas.

Fazendo referência tanto aos eventos do CTG como do


Juventus da Cotrel, LIOBA, 46 anos, natural de Nonoai no Rio
Grande do Sul e moradora de Guarantã do Norte desde 1987,
relata que:

Tinha o baile, o costelão, tinha o baile da Aleluia, as festas,


os primeiros bailes do Chopp, era a roupa, tinha que ter
roupa tradicional. Não podia ser calça, não podia ser
minissaia, então era interessante. A Cotrel era um ponto de
referência, depois a festa da igreja, o almoço do domingo,
etc.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

166
Novas Fronteiras Culturais

Ao falar sobre o que esses espaços como o Centro de


Tradições Gaúchas, o Juventus Esporte Clube e as comunidades
representaram para Guarantã do Norte, ECL classifica-os como
fundamentais para a alma do povo guarantanhense, um afago e um
bálsamo diante das dificuldades da época:

E o CTG e principalmente a questão da Cotrel ali, com esse


vínculo de manter a tradição do chimarrão, do churrasco,
do CTG, da dança isso acho que foi assim eu não fui assim
tão apegado a eles, mas eu percebo que isso foi assim um
afago muito forte para essas famílias que vieram do sul e
isso era o bálsamo que aliviava a saudade. E eu conversei
muito com eles e eles tinham esse mesmo sentimento,
tinham o vínculo com o Sul, tinham uma ligação com o Sul,
a tradição do Sul, mas a esperança, a vontade, o que eles
enxergavam para o futuro aqui era o que alimentava e dava
força então claro que acho que o CTG e essas coisas foram
fundamentais na alma, né?! De fortalecer de criar um afago.

Atualmente, o Juventus Esporte Clube está retomando


suas atividades após o período pandêmico da Covid – 19 com as
atividades esportivas, recreativas e os bailes tradicionais realizados
anualmente, ou seja, o Baile do Chopp e o Baile da Aleluia. Por sua
vez, o CTG encontra-se em processo de reestruturação, isso
porque após o acidente ocorrido em Santa Maria no estado do Rio
Grande do Sul na Boate Kiss em janeiro de 2013, quando um
incêndio iniciado no palco provocou a morte de 242 pessoas, o
salão de festas do Centro de Tradições Gaúchas Última Porteira
foi condenado por se tratar de uma construção em madeira,
material inflamável e uma nova sede teve que ser construída.
Consequentemente, o fechamento inicial acrescido da pandemia
do Coronavírus trouxeram muitas dificuldades para o CTG. A
figura 8 ilustra como o espaço imponente de antigamente tornou-
se um espaço onde tudo precisa ser retomado. O que se vê no local

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

167
Novas Fronteiras Culturais

são vidros quebrados, entulhos da construção anterior, remetendo


à ideia de espaço abandonado.

Figura 8 - Pavilhão do CTG Figura 9 - Pavilhão do CTG que está


Antigo sendo construído

Fonte: Ângela Maria Batistel Fonte: Sérgio Alberto Pereira (2022).


(1992).

Muitas das comunidades rurais também foram esvaziadas


em razão, principalmente, do êxodo rural, processo ocorrido em
todo o país com a saída de grandes levas de moradores do campo
para a cidade. Em Guarantã do Norte, esse processo ocorreu,
segundo JPS, devido à falta de apoio aos pequenos agricultores. De
acordo com ele: “as terras não tinham valor ali e o banco não
ajudava também, esse foi o grande problema. Porque depois que
eu vendi lá e os outros venderam, aí saiu financiamento, o Banco
do Brasil começou a financiar”. Em outras palavras, o
esvaziamento das comunidades foi provocado pela falta de
incentivo financeiro para os trabalhadores rurais produzirem no
campo e, assim, contribuírem para a permanência do trabalhador
no campo. Foi somente após muitos desses agricultores terem
vendido suas terras, que os financiamentos começaram.
Como consequência direta do esvaziamento das
comunidades e dos problemas enfrentados pelo CTG, os espaços
culturais foram enfraquecidos. LIOBA relata que:

Esses espaços foram, na minha opinião, esvaziados. Houve


o fechamento do São José, aquele espaço foi fechado, era

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

168
Novas Fronteiras Culturais

o melhor espaço, porque era no centro da cidade. A igreja


eu não sei te dizer o porquê e aí tem até um olhar meu que
eu não concordo com o fechamento porque aquele espaço
foi construído com o dinheiro da comunidade e até
dinheiro público. Hoje em Guarantã se eu tenho a tradição
gaúcha ficou reduzida a dois eventos, o Baile do Chopp e
o Baile da Aleluia ambos do Juventus. Esse esvaziamento
cultural ao longo dos anos nos deixou sem opções, onde
você vai hoje?

Por sua vez, AMB vê com tristeza o momento atual em


relação às manifestações culturais e espaços de representações em
Guarantã do Norte:

Da tristeza né, cultura, tá acabando tudo, até nas escolas tá


acabando tudo. Eu fico triste porque eu não consegui
continuar. E não tem quem continua, essa é a minha
tristeza, porque eu lutei tanto para conseguir esses grupos
e não só isso, cantos de igreja, essa hora era hora que vinha
os jovens da igreja [...] quem vai ensinar essas crianças
cantar? [...] Antigamente a gente tinha pessoas, não tinham
material, hoje tem material e não tem pessoas.

Considerações finais

Guarantã do Norte surgiu como resultado direto do Plano


de Integração Nacional que, nesse caso, especificamente, deu
origem a três movimentos distintos, o processo de migração
espontânea proporcionado por trabalhadores oriundos das mais
diversas regiões do país, o PA – Braço-Sul alocando brasiguaios
destituídos de terras arrendadas no Paraguai e o PAC – Peixoto de
Azevedo que assentou famílias oriundas do Rio Grande do Sul por
meio da Cotrel. Nos dois primeiros movimentos, o plano atendeu
famílias que se reuniam esporadicamente, no caso dos posseiros,
reuniram-se em pequenos grupos de quatro ou cinco famílias por
sua própria conta e risco e, no caso dos brasiguaios, pessoas de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

169
Novas Fronteiras Culturais

origens, culturas e tradições distintas, arregimentados e


capitaneados pelas Irmãs Dominicanas.
Não foi o caso dos assentados pela Cotrel. As famílias
eram originárias do Rio Grande do Sul, ou seja, proximidade
espacial e cultural, melhor organizadas e assistidas pela cooperativa,
com experiência no trabalho associativo e com tradições, hábitos e
costumes semelhantes. Essas características permitiram aos
gaúchos uma representatividade maior em relação aos aspectos
culturais na cidade de Guarantã do Norte. A fundação de espaços
como o Juventus Esporte Clube e o Centro de Tradições Gaúchas,
a forte presença do chimarrão, dos programas de rádio gauchescos,
o jogo de bocha e os bailões tradicionais são exemplos da cultura
sul-rio-grandense no município.
Também merece destaque a presença das comunidades
ligadas à Igreja Católica criadas nas linhas rurais como Linha Fogo
da Comunidade São Roque, Linha 38 da Comunidade Santa Luzia.
Desse modo, foram dezenas de comunidades que realizavam suas
festas tradicionais e torneios de futebol que atraíam centenas de
pessoas. Esses espaços e essas comunidades representavam o
momento de lazer em meio às condições tão insalubres motivadas
pelos problemas relacionados à infraestrutura, malária, ausência de
apoio governamental e distância em relação a familiares e terra
natal. Era o afago em tempos tão difíceis.
Desses espaços, alguns permanecem até os dias atuais
como é o caso do Juventus Esporte Clube da Cotrel e algumas
comunidades rurais. Outros sofreram com dificuldades diversas e
buscam reestruturação como é o caso do CTG e, infelizmente,
algumas comunidades rurais, espaços que, motivados por
mudanças sociais como o êxodo rural e a urbanização, deixaram de
existir.

Referências

Agra, K. L. de O. O processo sociorrelacional da migração:


percepções de jovens imigrantes brasileiros sobre a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

170
Novas Fronteiras Culturais

Amazônia. Acta Scientiarum. Human and Social


Sciences, 229-236. Disponível em
https://doi.org/10.4025/actascihumansoc.v35i2.20924. Acesso
em: 22 jun. 2022.
BARROZO, João Carlos. Os posseiros nos projetos de
colonização: o caso de Guarantã. Cadernos do Neru/Núcleo de
Estudos Rurais e Urbanos – ICHS – UFMT. nº 1. Cuiabá:
EdUFMT, 1993.
CORRÊA, Roberto Lobato. Cultura e cidade: uma breve
introdução ao tema. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri. LEMOS,
Amália Inês Geraiges. (orgs.). Novas
abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2005.
Gil, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6.
ed. São Paulo: Atlas, 2008.
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio da pesquisa social.
In: MINAYO, Maria Cecilia de Souza (org.). Pesquisa social:
teoria, método e criatividade. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.
MOURA, E. D.; ROMANCINI. Espacialidade das manifestações
culturais na cidade: o caso de Sinop MT. V Colóquio Nacional
do NEER (Núcleo de Estudos em Espaço e Representações):
Perspectivas contemporâneas em Geografia, 2013, Cuiabá. Anais
do V Colóquio Nacional NEER. Cuiabá, 2013. v. 1. p. 1-20.
PRETI, Oreste. Terra, ouro e sangue em Guarantã do Norte: 20
anos de luta pela terra. Cadernos do Neru/Núcleo de Estudos
Rurais e Urbanos – ICHS – UFMT. n. 1. Cuiabá: EdUFMT, 1993.
PRODANOV, Cleber Cristiano; FREITAS, Ernani Cesar de.
Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da
pesquisa e do trabalho acadêmico – 2. ed. – Novo Hamburgo:
Feevale, 2013.
RIGONATO, V. D. As representações socioculturais de grupo de
adolescentes e jovens no Oeste da Bahia. V NEER, 2013, Cuiabá.
As representações culturais no espaço: perspectivas
contemporâneas em Geografia, 2013.
SERPA, Angelo. Paisagem, lugar e região: perspectivas teórico-
metodológicas para uma geografia humana dos espaços vividos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

171
Novas Fronteiras Culturais

Geousp- espaço e tempo, n. 33, São Paulo, 2013, 168 – 185.


Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/74309. Acesso
em: 17 jul. 2020.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

172
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 10
O LUGAR DAS TROCAS, FLUXOS,
ENCONTROS E RESISTÊNCIAS:
LEITURAS SOBRE A FEIRA MUNICIPAL
DE NOVA MUTUM-MT

Swelington de Lima Fonseca

Introdução

O presente artigo destaca as diferentes dinâmicas da


produção social do município de Nova Mutum, Mato Grosso, a
partir do estudo da Feira Municipal Félix Soupinsk, entendendo-a
como um espaço multifacetado no qual se realizam interações
culturais e trocas comerciais, constituindo um lugar dos encontros,
das negociações, da socialização, das resistências, da exposição e
reprodução dos saberes, das tradições e dos costumes da
população local.
O estudo está pautado na pesquisa da dissertação de
mestrado “Influências do agronegócio na produção do espaço
rural e urbano de uma cidade do agronegócio: o caso de Nova
Mutum-MT”, que integra o projeto de pesquisa “Perspectivas da
urbanização na Amazônia Legal Mato-grossense”.
As feiras, ao longo da história, exerceram um importante
papel no desenvolvimento do comércio das cidades e na difusão
de trocas culturais, tornando-se um importante local em que se
encontram diversos grupos sociais que, através de suas interações,
produzem inúmeras relações e ações que se manifestam em um
emaranhado de fluxos de pessoas, mercadorias, capital, tradições,
costumes e sensações. Na contemporaneidade, as feiras ainda
carregam muito de sua essência, mas também inovam e
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

173
Novas Fronteiras Culturais

incorporam novos elementos característicos dos contextos sociais


dos agentes que a frequentam (AZEVEDO; PEREIRA, 2021, p.
166).
Para um pesquisador, as interações que ocorrem nas feiras
permitem identificar diversos aspectos da conjuntura social,
política e econômica de uma cidade, revelando as disputas
territoriais, as relações de trabalho e a reprodução de expressões
culturais que refletem as identidades de seus participantes. Os
objetos e as ações que se concentram nas feiras no momento de
seu funcionamento são resultantes de uma série de eventos
geográficos que se realizam em outros espaços da cidade e do
campo, movimentando um grande número de pessoas em
diferentes funções, das quais pode-se citar os trabalhos exercidos
na produção agrícola em hortas de pequenas ou médias
propriedades, a produção de derivados como queijos, ovos,
embutidos, carnes, manteigas, doces, conservas, feitos de forma
artesanal por familiares ou por cooperativas agrícolas, os artesãos,
os serviços de transporte, os comerciantes, o poder público, entre
outros agentes que articulam e dão forma às feiras.
Além dos aspectos produtivos e comerciais, as feiras
também possuem aspectos simbólicos que permeiam as sensações
e emoções vividas pelos feirantes e pelos consumidores conferindo
a esses espaços um sentido de lugar para aqueles que as
frequentam. Entendendo o lugar, na perspectiva de Souza (2018),
como uma dimensão cultural-simbólica, na qual se envolvem as
identidades, as subjetividades e as trocas simbólicas por trás das
construções de imagens e sentidos de espacialidades vividas e
percebidas.
Em Nova Mutum, a feira municipal reúne migrantes de
diversas partes do país, desde os migrantes das regiões Sul e
Sudeste, vindos durante a fundação da cidade na década de 1980,
até os novos migrantes vindos dos estados das regiões Norte e
Nordeste, que chegam em busca de trabalho nas lavouras de soja,
milho, algodão e nos frigoríficos de aves e suínos da cidade, sendo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

174
Novas Fronteiras Culturais

que essa mistura manifesta-se na diversidade dos sotaques,


costumes e produtos comercializados.
A metodologia adotada para a pesquisa é a abordagem
qualitativa, considerando as formas como os entrevistados
percebem as relações e os eventos à sua volta. Entre os
procedimentos para o desenvolvimento da pesquisa, foram
realizados levantamentos bibliográficos, pesquisas em sites oficiais,
visitação e entrevistas informais com feirantes e consumidores.

Feira Municipal Félix Soupinsk, espaços de vivências,


resistências e complementações

O município de Nova Mutum-MT tem, como sua principal


atividade econômica, o agronegócio, com uma extensiva produção
de soja, algodão e milho, produtos que são destinados ao mercado
externo. Os processos engendrados pelos agentes ligados ao
agronegócio produzem territorialidades que influenciam
diretamente na produção do espaço urbano, moldando o modelo
de urbanização, a divisão do trabalho e as relações sociais. A forma
hegemônica como o agronegócio age sobre os espaços do campo
e da cidade limitam os espaços para a produção voltada para o
abastecimento do mercado interno, porém, essa produção resiste
em pequenas e médias propriedades rurais e encontra, na feira, o
principal espaço para a comercialização de seus produtos.
A Feira Municipal Félix Soupinsk, localizada na Avenida
das Araras no bairro Alto da Colina, foi criada, em 2009, pela
Prefeitura Municipal de Nova Mutum, para atender às demandas
dos produtores locais e feirantes, remanejando os feirantes que
antes trabalhavam em galpões menores na Avenida dos Uirapurus.
A atual feira conta com uma boa infraestrutura como área coberta,
54 boxes com balcões e estandes de alvenaria, fiação elétrica,
instalação hidráulica e estacionamento. A estrutura da feira permite
que os feirantes utilizem frízeres, geladeiras, estufas, fritadeiras
elétricas e grelhas, proporcionando melhores condições de
conservação e preparo dos alimentos, o espaço dos corredores

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

175
Novas Fronteiras Culturais

permite que os feirantes disponibilizem mesas e cadeiras para um


maior conforto dos consumidores. A administração da feira fica a
cargo da Associação de Feirantes de Nova Mutum e os dias de
funcionamento são: terça: das 13h às 20h, sexta: das 13h às 17h e
domingo: das 7h às 11h.
Na feira, dezenas de expositores comercializam diversos
produtos oriundos da agricultura familiar, como legumes, frutas,
verduras, ovos, queijos, manteiga, galinhas caipiras, salames
artesanais, pães, doces em conservas, bolos e biscoitos, além de
outros alimentos que são preparados ou fritos na hora como
pasteis, caldos de cana, crepes e tapiocas. A variedade de produtos
oferecidos, o ambiente de encontros e prosas, a boa culinária local
e os preços mais acessíveis que nos estabelecimentos comerciais
convencionais são um convite à visitação para moradores de toda
a cidade.
Por ser frequentada por diferentes grupos sociais de
diversos bairros da cidade, a feira revela em si mesma as densidades
e multiplicidades que refletem a planta da cidade em incontáveis ir
e vir (COSTA; ROMANCINI, 2021). As autoras apontam que os
fluxos de pessoas e as relações que ocorrem no espaço da feira
refletem as mudanças políticas, econômicas e sociais da própria
cidade. É possível perceber, nos espaços da feira, as mudanças dos
hábitos alimentares em decorrência da mudança de perfil dos
migrantes, as transformações nas formas de produzir, as variações
do poder de compra dos consumidores e até mesmo as formas de
se comunicar.
Mesmo que a feira seja um espaço construído e pré-
fabricado pela ordem dominante, pelo poder público, aqueles que
a frequentam apoderam-se desses espaços e redefinem seus
sentidos. Costa e Romancini (2021) salientam que visitantes,
feirantes e consumidores, à sua maneira, redimensionam suas
táticas cotidianas e retraçam os passos e os caminhos que os
conduzem ao pertencimento. O sentimento de pertencimento
construído através das vivências, das histórias, dos laços afetivos,
das trocas culturais e das emoções compartilhadas por feirantes e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

176
Novas Fronteiras Culturais

consumidores nos espaços da feira faz com que esse espaço


adquira um aspecto de lugar para aqueles que o constroem,
conforme apontam Mascarenhas e Dolzani (2008, p. 83):
[...] a reprodução social da cidade requer lugares para os excluídos
da ordem dominante realizarem sua sobrevivência material
cotidiana. Requer também espaços de sociabilidade para além do
confinamento confortável das modernas opções de consumo. Por
isso as feiras resistem na paisagem urbana contemporânea: a grosso
modo, pode-se dizer que por um lado há os que precisam
sobreviver materialmente, por outro aqueles que, resolvida a
questão material, zelam pela sobrevivência sociocultural.

Mascarenhas e Dolzani (2008) revelam a importância da


feira como o lugar do encontro, da troca e da vivência coletiva, em
que os diferentes grupos sociais trabalham, consomem, realizam
formas sociais e vivenciam os limites de uma escassa cidadania.
Para os referidos autores, a feira é mais do que apenas um local
onde a população pobre pode ter acesso a emprego e renda, é mais
que um local alternativo para o consumidor urbano encontrar
produtos a preços acessíveis, assim sendo, para eles, a feira é um
lugar de realização da vida e de preservação das tradições e da
cultura popular que existe e resiste nela.
Para os pequenos produtores e para a maior parte dos
feirantes, as vendas nos dias de feira são as únicas fontes de renda
que leva o sustento para as famílias. Muitos feirantes possuem
longos vínculos com a feira, fazendo com que a história dela
misture-se à história de suas vidas e da cidade, como é o caso dos
pioneiros Alcebiades Sanches, Irani Deutschmann, Loren
Deutschmann e Antônio Martins da Cruz que trabalham com a
feira desde a sua criação (Figura 1).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

177
Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 - Box Chácara Regina do Senhor Alcebiades Sanches

Fonte: Swelington de Lima Fonseca (2022).

O senhor Alcebiades Sanches, um dos pioneiros da feira,


veio de São Paulo para Nova Mutum em 1979, é agricultor e
trabalha como feirante desde 1984. Os produtos comercializados
em seu box (leite, queijos, abóboras) são produzidos em sua
propriedade, uma chácara de 25 hectares, onde conta com o auxílio
de seus filhos e netos e com a tecnologia de ordenhas mecânicas.
Atualmente, o senhor Alcebiades é aposentado e a Feira Municipal
Félix Soupinsk é uma complementação de renda e um lugar de
lazer. Segundo ele, a feira começou de forma simples, sem a
infraestrutura que tem hoje e que a atual estrutura utilizada pelos
feirantes “foi a melhor coisa que o Prefeito Lírio já fez”.
O espaço físico da feira permite a realização daquilo que
Santos (1979, p.197) chamou de “circuito inferior da economia
urbana”, sendo um espaço para a comercialização da produção em
pequena escala, conduzida por empresas familiares,
frequentemente de forma artesanal, com pouco capital, com
tecnologia obsoleta ou tradicional e com nível organizacional
arcaico. Em Nova Mutum, o circuito inferior é preterido por um
circuito superior dominante que atua de forma hegemônica na

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

178
Novas Fronteiras Culturais

produção do espaço urbano e rural do município, caracterizado


por uma agropecuária moderna, com grande injeção de capital,
com parques industriais de alta tecnologia e capaz de uma
produção em larga escala. Dessa forma, a feira torna-se um dos
poucos locais da cidade onde pequenos agricultores de gêneros
alimentícios podem comercializar sua produção e, assim, garantir
sua sobrevivência. A importância da feira é retratada pelo casal de
pequenos produtores rurais, o senhor Irani e a senhora Loren
(Figura 2):

Figura 2 - Box do senhor Irani Deutschmann e da senhora Loren


Deutshmann

Fonte: Swelington de Lima Fonseca (2022).

O casal Irani e Loren Deutschman é produtor que


comercializa uma grande variedade de frutas, verduras e legumes
há 17 anos, é também pioneiro e fundador da feira. Seus produtos
são cultivados em sua chácara de 11 hectares com o auxílio dos
filhos e de funcionários diaristas contratados conforme a demanda.
Para eles, a feira é a principal fonte de renda de toda a família e a
importância da feira em suas vidas é evidenciada nas palavras do
senhor Irani: “Para nós, pequenos, a Feira representa tudo”.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

179
Novas Fronteiras Culturais

A feira é a fonte de sustento não apenas para os pequenos


produtores, mas também para trabalhadores urbanos que não
possuem propriedades e que comercializam produtos artesanais ou
que revendem os produtos que adquirem dos pequenos
proprietários locais. Esses novos feirantes chegaram em uma
segunda onda migratória após a década do ano 2000, em sua
maioria oriundos das regiões Norte e Nordeste e que vieram à
cidade em busca de oportunidades de emprego. Desprovidos de
poder de compra de propriedades, atuam como intermediários
entre o produtor e o consumidor final, além de agregarem novos
produtos típicos de suas regiões de origem, como é o caso da
senhora Dalva (Figura 3), que comercializa massas caseiras
preparadas por ela.

Figura 3 - Box Massas Caseiras da Cléo da senhora Dalva Alves


Porto

Fonte: Swelington de Lima Fonseca (2022).

A senhora Dalva Alves Porto migrou de Rondônia para


Nova Mutum há dois anos, acompanhando o filho que veio em
busca de trabalho. Aguardando o processo de aposentadoria, a
senhora Dalva encontra, na Feira, a sua única fonte de renda, ela

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

180
Novas Fronteiras Culturais

adquire o leite de produtores rurais locais e, em sua casa, produz o


pão caseiro, receita típica de sua região, os iogurtes, os queijos e os
doces de leite. Para transportar os produtos até a feira, ela conta
com o ajuda de seus familiares. Além de ser sua fonte de sustento,
a senhora Dalva afirma que a feira simboliza um lugar de lazer para
ela e, que o dia que não vem à feira, ela sente falta.
Os feirantes desenvolvem ligações profundas com o
espaço da feira por meio das experiências e das memórias, eles
percebem o ambiente que compartilham como o lugar do “ganha
pão”, que leva o sustento da família, o lugar onde executam o
trabalho que aprenderam durante toda a vida. Muitos feirantes
tiveram seu primeiro contato com a feira ou com a produção
familiar ainda na infância, aprimorando com o tempo os saberes
sobre as técnicas do trabalho e das negociações. Os diálogos, as
piadas, as histórias de vida compartilhadas entre feirantes e
consumidores estreitam os laços afetivos, que, através das
repetições do cotidiano, transformam-se em amizades que se
encontram no espaço da feira (Figura 4).

Figura 4 - Vista panorâmica da feira e movimentação dos visitantes

Fonte: Swelington de Lima Fonseca (2022).

A feira possui, também, diferentes sentidos para os


visitantes e consumidores, sendo que, para estes, o hábito de “fazer
a feira” representa o abastecimento alimentar a ser adquirido para
a semana, com produtos frescos e com preços mais acessíveis.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

181
Novas Fronteiras Culturais

Representa, além disso, um lugar para o passeio matinal aos


domingos com a família e amigos, ou do lanche da tarde, após o
expediente, durante a semana, para saborear as comidas típicas da
feira, como o pastel com caldo de cana, os biscoitos, os salgados.
O intenso fluxo de pessoas revela as feições de uma
população composta por muitos migrantes, principalmente,
trabalhadores e trabalhadoras, famílias de baixa renda que não
encontram outros espaços de visitação a preços acessíveis na
cidade, o que torna a feira mais do que um local para adquirir
mercadorias, mas um lugar de lazer, de sorrisos, cores, sotaques e
sabores.

Entre lugares e territorialidades: as múltiplas dimensões


produzidas nos espaços da feira

Se, por um lado, os sentidos construídos pelas interações


entre agentes sociais que fazem parte da feira produzem a
dimensão de lugar, por outro, as formas como esses agentes
apoderam-se dos espaços através de mobilizações, tensões e
conflitos também confere ao espaço um caráter territorial. O
espaço da feira é constantemente um campo de disputas, em um
primeiro momento pelas melhores localizações, pelos maiores
espaços, pela identificação com as barracas ou com os boxes e,
depois, pela atenção e fidelidade dos clientes. Os entrelaçamentos
entre os lugares e as territorialidades são descritos por Souza (2018,
p. 121) da seguinte forma:

Na prática, lugares são, menos ou mais claramente, e


menos ou mais fortemente, quase sempre territórios. Isso
tem a ver com o fato de que às identidades sócio-espaciais
se associam, sempre, relações de poder espacializadas, em
que se nota a finalidade de defender as identidades e um
modo de vida (ou também, e não raro usando isso como
pretexto, o propósito de defender os privilégios de um
grupo ou o acesso privilegiado a certos recursos).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

182
Novas Fronteiras Culturais

Souza (2018) deixa clara a importância das relações de


poder construídas nesses espaços para garantir seus modos de vida
e suas identidades, em uma luta diária pela manutenção do posto
de trabalho ou para ter acesso a localizações privilegiadas com mais
recursos ou com mais visibilidade.
A existência de uma feira de agricultura familiar em uma
cidade cujo agronegócio é dominante é, por si só, um ato de
resistência, uma afirmação de poder das classes populares, que,
através de mobilizações construídas na coletividade, conseguiram
garantir junto ao poder público um espaço para comercializar sua
produção e garantir a sua sobrevivência. A coletividade dos
feirantes é estruturada em uma associação democrática com um
presidente eleito e com reuniões periódicas realizadas no próprio
espaço da Feira, onde as decisões são tomadas através do voto.
Por decisão coletiva, os boxes foram divididos entre os
feirantes pioneiros através de sorteio e, posteriormente, os boxes
vagos foram adquiridos pelos novos feirantes por meio de uma
taxa de ingresso, que, no ano de 2022, era de R$ 400,00. Todos os
feirantes pagam uma taxa mensal de R$ 220,00, valor válido no ano
de 2022, para custear as despesas de manutenção da feira como
água, energia e limpeza.
Diferente de muitas feiras brasileiras onde os feirantes
tentam chamar a atenção dos clientes através de gritos, rimas e
promoções, na Feira Municipal Félix Soupinsk, estas não são
práticas comuns, os feirantes tentam buscar a fidelidade dos
clientes pela tradição, pela familiaridade com produtores
conhecidos, pela confiança na qualidade dos produtos e pela
simpatia no atendimento.

Considerações finais

Em Nova Mutum, a Feira Municipal Félix Soupinsk


constitui-se como um espaço de resistência e sobrevivência
popular diante de um poderoso projeto de urbanização
oligopolista. Mais do que um simples espaço comercial, a feira é

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

183
Novas Fronteiras Culturais

um produto da realização da vida coletiva, das experiências


culturais que se conectam, do trabalho árduo de homens e
mulheres simples que dão sentido ao lugar. Suas dinâmicas e
expressões contrapõem-se às relações comerciais impessoais e
formais dos mercados e supermercados modernos e propiciam
experiências ricas em sociabilidade, que se manifestam nas
negociações, nas piadas, nas histórias, nas expressões culturais e
nas emoções compartilhadas entre feirantes, consumidores e
visitantes.
As interações entre os diversos grupos sociais que
compõem o espaço da feira engendram diferentes sentidos. Muitos
frequentadores e trabalhadores desenvolvem vínculos afetivos
com o lugar, sendo que, para muitos, a feira é, além do local de
trabalho de onde se tira o sustento, o lugar de rever os conhecidos,
de diversão, de saborear delícias da culinária local, de aliviar as
tensões de um dia corrido de trabalho, de ver “gente” em uma
mistura de lazer e cotidiano.
Constatou-se, também, que além das dimensões
pertencentes ao campo do simbólico e cultural, a feira é resultado
de disputas de poder que produzem territorialidades que
expressam as lutas pela sobrevivência e pela manutenção dos
modos de vida e das tradições das camadas populares.
Por fim, verificou-se que a feira é um recorte espacial rico
para a análise geográfica, pois reflete importantes aspectos da
população, da produção econômica, das expressões culturais e do
cotidiano da cidade como um todo.

Referências

AZEVEDO, F. F.; PEREIRA, E. N. D. Agricultura urbana e feiras


livres: micro e múltiplas territorialidades na cidade de Natal – RN
– Brasil. In: MENEZES, S. S. M.; ALMEIDA, M. G. (orgs.).
Vamos às feiras: cultura e ressignificação dos circuitos curtos.
Aracaju: Criação Editora, 2021, p. 165-192.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

184
Novas Fronteiras Culturais

COSTA, A. M. R. F. M.; ROMANCINI, S. R. “Retraçando a


Visitação”: Leituras sobre feiras de Cuiabá - MT. In: MENEZES,
S. S. M.; ALMEIDA, M. G. (orgs.). Vamos às feiras: cultura e
ressignificação dos circuitos curtos. Aracaju: Criação Editora,
2021, p. 397-426.
FEIRA MUNICIPAL DE NOVA MUTUM. Visite o Mato
Grosso. Disponível em:
http://visitematogrosso.sedec.mt.gov.br/pt/atracoes/nova-
mutum/compras/feira-municipal. Acesso em: 5 jan. 2022.
MASCARENHAS, G.; DOLZANI, M. C. S. Feira Livre:
territorialidade popular e cultura na metrópole contemporânea.
Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 2, n. 2, ago. 2008. p. 72-87.
Disponível em:
https://www.revistas.ufg.br/atelie/article/viewFile/4710/3971.
Acesso em: 8 jan. 2022.
SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia
urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1979.
SOUZA, M. L. Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-
espacial. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2018.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

185
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 11
O ENSINO DE GEOGRAFIA E AS
ESCOLAS DO CAMPO: OLHARES
GEOGRÁFICOS PARA REALIDADES DO
ESTADO DE MATO GROSSO

Gabriella Matos Santiago


Giseli Gomes Dalla-Nora

Introdução

O presente trabalho parte da observação e pesquisa do


ensino de Geografia nas escolas do campo. Para isso, é necessário
compreender como se originou a discussão da educação do campo,
onde, como e porque se fez necessário pensar nessa educação,
desses povos e em que momento histórico isso se iniciou. Para os
autores trabalhados no presente texto, como Martins (2005),
Brandão (2005, 2007), Cordeiro (2009), Alves e Magalhães (2008),
Camacho (2011), entre outros, a necessidade de ter ensino, mesmo
que apenas o básico, no campo, dá-se a partir da necessidade da
manutenção do homem no campo, para que fosse refreado o
êxodo rural, após o período de tecnificação do campo. Dessa
forma, seria possível que quem estivesse no poder controlaria o
que é ensinado, para quem e até quando. Assim sendo, deixando
nas mãos de uns poucos todas as decisões que refletiriam na
dinâmica agrária e de produção do campo.
Porém, num dado momento, os camponeses viram-se na
condição de requerer melhorias, da reprodução de vida camponesa
e na necessidade de um ensino voltado para os saberes produzidos
ali. Considerando não mais suficiente a reprodução do ensino das
escolas urbanas, nas escolas rurais, por conta das diferenças
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

186
Novas Fronteiras Culturais

existentes entre elas e que não contemplam a realidade vivida no


campo.
Ainda hoje, são muitos os desafios encontrados no ensino
nas escolas do campo. No ensino de Geografia, pode-se apontar
no papel do professor de usar essas diferenças encontradas já no
livro didático, que é um só para toda a rede pública, em seus
exemplos e na maioria dos conteúdos, são mostradas com maior
grau de detalhes as relações em meio urbano. Mesmo que,
atualmente, haja a inserção de temas do ambiente rural, continua
sendo mínimo. Nesse ponto, cabe aos professores complementar
e explanar sobre essas diferenças encontradas; dando um exemplo,
o funcionamento das dinâmicas de transporte e origem dos
alimentos que são consumidos, as formas que a cidade possui e sua
paisagem no trajeto de ida para a escola, nesses casos, como são
feitas essas relações só que na escola do campo. Assim, cabe
mostrar essas diferenciações de forma pontual, para que, no dia a
dia escolar, sejam também aproveitadas as experiências que o
campo proporciona.
A pesquisa foi realizada na escola Ernesto Che Guevara,
localizada no assentamento Antônio Conselheiro, a escola foi
edificada em meados de 2001, pelo INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária). A desapropriação da Fazenda
Itapirapuã, na microrregião Médio Norte, teve início com cerca de
1.000 (um mil) famílias, divididas 36 (trinta e seis) agrovilas e 1
(uma) comunidade; não havendo um número fixo de lotes. O
assentamento foi projetado parte nos moldes “raios de sol” e um
trecho de forma convencional. Nos lotes em raio de sol, a
organização dos sistemas de infraestruturas permite maior
interação entre os assentados, seja na distribuição de água, energia
ou ainda em cooperação, interação etc. (DURÃES; NORA, 2018).
O assentamento possui três escolas, Centro Municipal de
Ensino Ernesto Che Guevara; Centro Municipal de Ensino
Marechal Cândido Rondon; e a Escola Estadual Paulo Freire.
Destas, a escola estudada Ernesto Che Guevara (Figura 1) está
localizada no território municipal de Tangará da Serra, a Escola

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

187
Novas Fronteiras Culturais

Estadual Paulo Freire no município de Barra do Bugres. Ambas


dão-se em decorrência de demanda da comunidade do
assentamento. Mas por estarem em cidades diferentes, as relações
mudam, desde a proximidade com a área urbana até a forma da
organização das escolas.

Figura 1 - Localização da Escola Ernesto Che Guevara

Fonte: IBGE. Produzido pelas autoras (2022).

Através de crescente demanda por parte dos assentados,


uma vez que era necessário atender aos jovens e adultos do
assentamento, conforme apontado por Durães (2018) e levando
em consideração que, em sua maioria, esses assentados são
militantes do movimento sem-terra, os quais compreendem que a
educação do e no campo é necessária para a manutenção do estilo
de vida camponesa. Ademais, considera-se não ser necessário sair
da terra recém adquirida, fortalecendo, assim, seu vínculo e
pertencimento.
O trabalho apresenta estrutura para compreensão do tema,
trazendo a fundamentação teórica referente à escola do campo no

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

188
Novas Fronteiras Culturais

Brasil e ao ensino de Geografia. Na sequência, estão os resultados


obtidos, seguidos pelas considerações finais.

Educação do Campo e o ensino de geografia

A educação é, desde o princípio, uma ferramenta de


dominação da classe nobre sobre a população mais pobre, pois,
assim, mantém ordem social, que a privilegia. Dessa forma, em um
estudo de caso realizado por Brandão (2007), o autor demonstra
como se deu a implantação da educação em uma comunidade
indígena e como atores compreendem essa educação, que é
implantada de fora para dentro. Entendem que é excludente, pois
descaracteriza e apaga sua cultura e o seu ser. Assim, o educador
ignora a cultura local, preexistente e decide que o meio, cultura e
conhecimentos desses indivíduos não são boas e partem do início
para modelo de aprendizagem que não condiz com as vivências da
comunidade, que nem solicitou ajuda, apagando sua formação
social para decidir o que é o padrão a ser seguido,

[...] por isso mesmo - os índios sabiam - a educação do


colonizador, que contém o saber de seu modo de vida e
ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de
domínio, na verdade não serve para ser a educação do
colonizado. Não serve e existe contra uma educação que
ele, não obstante dominado, também possui como um dos
seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura
(BRANDÃO, 2007, p.11).

Quando esse entendimento é levado para os


assentamentos, percebe-se o papel da escola quando os assentados
possuem uma forte compreensão do significado de ser assentado
e ser camponês. Quando há esse esclarecimento condizente com a
sua realidade, a escola e o ensino servem para fortalecer sua
identidade, assim como seu modo de vida.
Em 2017, ocorreu a mudança no ensino médio, através da
Lei nº 13.415/2017 (BRASIL, 2017), que visa à reorganização da
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

189
Novas Fronteiras Culturais

grade de disciplinas, por itinerários formativos: linguagens e suas


tecnologias; matemática e suas tecnologias; ciências da natureza e
suas tecnologias, com disciplinas como matemática; ciências
humanas incluindo a geografia, ciências sociais aplicadas com
sociologia e formação técnica e profissional específica, além de
outros projetos voltados para a formação do jovem, não apenas
escolar mas também de vida.
Os saberes propostos para as escolas, seja na cidade, seja
no campo, são distintos, dessa maneira, a compreensão das
relações do campo e cidade faz-se necessária, pois, a partir desse
entendimento, reflete-se como se dão essas formas de
conhecimento, bem como esses saberes condizem com as
realidades vividas, seja no campo ou na cidade.

Conheci, na Amazônia, na época mais intensa e mais crítica


da expansão da fronteira agrícola, povoados com mais de
dez mil habitantes, casas de adobe ou pau-a-pique, sem
nenhuma característica propriamente urbana, nem
instituições urbanas, cuja população e dedicava, na quase
totalidade, à agricultura. E normalmente se considera um
aglomerado humano de cinco mil pessoas como localidade
urbana e seus moradores como migrantes que se deslocam
do campo para a “cidade” (MARTINS, 2005, p. 30).

Assim mesmo no meio urbano, deve-se considerar o que é


a educação para os que estão no processo ensino-aprendizagem e,
da mesma forma, que houve migrantes em direção às cidades, ainda
hoje, observa-se o movimento de retorno ao campo.
Os princípios das propostas pedagógicas para a educação
do campo, conforme Brasil (2004) define que, em todos os níveis
de ensino, devem basear-se na diversidade cultural, os processos
de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o
acesso ao avanço científico e tecnológico voltados para o
desenvolvimento das áreas de reforma agrária. São esses os
princípios: o diálogo – assegurando o respeito à cultura do grupo,
valorização dos saberes e conhecimentos coletivos; a práxis –

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

190
Novas Fronteiras Culturais

incentivando a movimentação ação-reflexão-ação como


perspectiva da transformação da realidade; a transdisciplinaridade
– articulação de todos os saberes e conteúdos locais, regionais e
globais.
Nesses momentos em que os indivíduos encontram-se
para a conversa, ainda que informal, estão no processo de
aprendizagem, com cada um fazendo apontamentos de suas ideias
e formando um terceiro pensamento, o coletivo.
A grande relevância do ensino de Geografia no campo é
dada a partir da atribuição de diversas linguagens na abordagem
professor-aluno. É importante não se basear a dinâmica de ensino
somente em uma ou outra abordagem, como somente a
cartografia, mas é necessário que as propostas voltadas à Educação
do Campo estejam atreladas aos conteúdos geográficos para que
os discentes e docentes sejam capazes de contribuir para o
entendimento das dinâmicas territoriais e suas contradições, que
estão presentes na vida dos moradores do campo. Uma das formas
de abordagem é a cartografia, essencial na organização,
entendimento e conformação espacial de tantas temáticas
apresentadas no ensino de Geografia (TRAVALINI; OLIVEIRA,
2012).
A Escola Humanística da Geografia citada por Spironello
e Bezzi (1987) enfatiza as experiências individuais, busca valorizar
o indivíduo pelo ambiente no qual ele está inserido. Essa Escola
Geográfica apresenta como etapa fundamental manter a ligação
entre o indivíduo e a sua cultura. A cultura deve ser respeitada para
as mudanças maiores que se concluem no ensino. A Geografia
Humanística explana como o ambiente influencia a personificação
do indivíduo, pelo fator tempo, vivenciado pelo meio de visão de
uma comunidade em especial, evidenciando, análise pontual,
singular, própria daquele espaço, neste caso, espaço rural.

Nesse sentido, um professor somente realizará um bom


trabalho, se possuir uma mentalidade capaz de reconhecer
seus possíveis erros e aceitar diferentes alternativas, rever

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

191
Novas Fronteiras Culturais

suas fundamentações constantemente e procurar a


superação de suas limitações. Desta forma, o professor de
Geografia, deve ficar atento as constantes inovações
tecnológicas e estar preparado para aliar a percepção do
aluno com as novas técnicas. É necessário, portanto, trazer
a realidade para a sala de aula (SPIRONELLO; BEZZI,
1987, p 53).

Paviani (1988) descreve o ensino de Geografia como uma


vantagem em trazer o cotidiano para a Geografia, por meio da
motivação dos jovens estudantes aos chamados raciocínios e
juízos, analisando os problemas sociais, econômicos, urbanos,
ambientais e contemporâneos com base nos questionamentos e
embasamentos apresentados em sala de aula.
Como abordado por Camacho (2011), a Geografia, por se
tratar de uma ciência humana-social, está em contato direto com a
realidade dos alunos, dessa maneira, possui ferramentas que podem
auxiliar os alunos a reconhecerem-se no espaço em que vivem e
podem também motivar sua permanência no campo, ou apenas
não motivar sua desistência. Assim, observa-se a importância da
forma com que a geografia é apresentada aos educandos, pois, da
forma como vem sendo lecionada, muitas vezes, apresenta
somente uma escolha plausível aos jovens, como se estabelecesse
padrão em que o ideal seria a migração campo-cidade. O objetivo
da geografia na escola é incentivar aos alunos o conhecimento do
ser humano através do respeito à cultura e compreensão da relação
com o meio (NIEDELCOFF, 1991).
Segundo Cordeiro (2009), o ensino de Geografia serviu,
por anos, para a reprodução das ideias dominantes, como o
sentimento civil de pertencimento ao território e à nacionalidade.
Considera-se o contexto histórico e político, em que a geografia foi
provavelmente uma estratégia para possíveis guerras, o que faz
todo sentido, observando que não há guerreiros sem que haja o
sentimento de pertencimento. Entretanto, ao mascarar a
potencialidade crítica de percepção do espaço, a Geografia

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

192
Novas Fronteiras Culturais

desconsidera as práticas críticas da realidade, acabando por


perpetuar o poder de submissão aos interesses do Estado.

A geografia escolar foi e ainda é utilizada como ferramenta


de dominação a partir da propagação de interesses não-
coletivos. No Brasil o ensino foi influenciado pelo
colonialismo, assim sendo, o ensino de geografia
tradicional é oportuno ao paradigma da educação rural, já
que sempre esteve articulado à ciência moderna e a
interesses dos Estados Modernos (CORDEIRO, 2009, p.
27).

A Geografia contribui com sua visão holística no que se


refere aos aspectos tanto físicos quanto humanos, conectando os
conhecimentos necessários para compreensão do meio; como atua
na dinâmica humana e em como as essas relações humanas
interferem nesse meio. Para isso, os estudos de geografia física e
geografia humana aplicados à sala de aula buscam contribuir na
compreensão da paisagem observada e no que é vivido pelos
alunos da escola do campo e aproveitar esse momento em que a
prática e a teoria encontram-se, percebendo que é sempre uma
oportunidade de ver de forma diferente o que observa-se todos os
dias. Como afirmado por Paulo Freire (1997):

Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que


aprendemos ser possível ensinar, teríamos entendido com
facilidade a importância das experiências informais nas
ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas,
nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos,
de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam
cheios de significação (FREIRE, 1997, p. 50).

Com esse olhar atento para o observável, aprendemos


mesmo sem querer; e com a orientação para aprofundar essas
noções, sendo em que sentido olhar ou o que observar, existe ainda
mais aproveitamento dessas experiências.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

193
Novas Fronteiras Culturais

Diálogos e reflexões sobre professores, geografia e educação


do campo

Durante as entrevistas, seguindo o questionário, foram


feitas perguntas que se referem ao ensino de geografia na educação
do campo, considerando a visão das professoras. São então
apresentadas as respostas, no tópico a seguir, referente ao tema
proposto.
Os professores entrevistados, quando questionados
sobre a educação do campo, responderam o seguinte:

Entrevista 1 É importante aos jovens do campo. Tanto como


estudante quanto educadora. Considero importante
para sua formação e na valorização da identidade do
sujeito que vive no campo (camponês). Com
currículo voltado a sua realidade. E que não ocorre.
Não condiz com a realidade e, vem imposto de fora
para dentro, pois obedece ao regimento estadual e
não possui abertura para outras atividades dentro
da dinâmica escolar. E por ser uma escola,
conquistada através do movimento sem-terra –
MST, na luta pela educação no campo, não são
consideradas as demandas válidas, por terem
princípios referentes à luta, ainda que tenham
caráter pedagógico e seja condizente com a
realidade vivida pela comunidade escolar.

Entrevista 2 É bom, mas não pode trabalhar a realidade vivida


ali no assentamento, referente ao movimento.

Entrevista 3 Ela precisa ser diferenciada, precisa partir da


realidade do aluno e que seja disponibilizada para
ele no seu local de vivência.

Como verificou-se nas entrevistas, a principal queixa é a


falta de autonomia na escola do campo para trabalhar, com os
alunos, temas voltados à realidade vivida no assentamento, sendo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

194
Novas Fronteiras Culturais

por falta de maleabilidade no cronograma educacional e/ou a


dificuldade de trabalhar temas referentes à reforma agrária e de
formação política.
Sobre suas potencialidades observadas, que são apontadas
nas entrevistas, pelo interesse que os alunos demonstram dentro
das atividades, na escola, sendo que, mesmo quando estão
envolvidos em outras atividades, eles buscam melhorar, tornarem-
se melhores (pelo estudo).

Geografia e educação do campo

Nas questões voltadas ao ensino de Geografia na educação


do campo, as respostas foram positivas, no que diz respeito ao
ponto de vista do professor. Eles consideram que alguns alunos
têm interesse na disciplina, percebem como ajuda na compreensão
do cotidiano deles e têm grande curiosidade de saber mais, para
poder também aplicar no seu dia a dia, quando possível.
As dificuldades encontradas no ensino perpassam pela
política nacional atual (ou não tão atual assim), em que os
movimentos sociais são criminalizados, sendo impossibilitados e
inviabilizados de conseguir avançar nas discussões. Assim, ao
trabalhar o tema na escola, muitas vezes, os professores são
orientados a não fazer, seja por questões da família ou da prática
pedagógica escolar, em que se deve seguir à risca o conteúdo
programático, mesmo que isso fuja do real, no local.
Há a dificuldade de acesso aos repasses, seja por não ter
sido concluído, ou mesmo dificultado. Muitas vezes, deixando de
preparar uma aula diferenciada, por não ter acesso a ônibus para
uma aula fora do campus, ou mesmo a materiais de uso diário,
sendo equipamentos para observação e análises, às vezes nem
permissão pela secretaria, bem como material atualizado.
No olhar das professoras entrevistadas, a disciplina de
Geografia auxilia nas questões da educação do campo no sentido
de possibilitar que os alunos se reconheçam na realidade, na forma
de viver local. E a todos os temas que dá para se aproveitar na

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

195
Novas Fronteiras Culturais

geografia, como ao que é observável como solo, relevos, rede


hidrográfica, assim como é mais fácil assimilar o que se conhece.
Por fim, segundo as entrevistadas, a educação do campo
contribui com o estudo da geografia, pois “permite compreender a
importância de estudar a educação no e do campo” (Entrevistada
1). Assim sendo, quando os exemplos são trabalhados na sala de
aula, muitos alunos já tiveram oportunidade observar, de modo
que se envolvem mais no decorrer das aulas. Ademais, não
deixando de considerar, como a “educação do campo tem o
histórico de luta, da luta pela terra, pela própria educação, de
militância. Assim como o processo de formação da escola em si. E
a geografia permite trabalhar estes temas” (Entrevistada 3).

Considerações finais

Neste trabalho, houve o propósito de entender o papel do


professor de Geografia para a formação dos alunos da educação
do campo, no assentamento rural, buscando compreender os
desafios e as potencialidades apontadas pelos agentes envolvidos,
tanto o corpo docente. Compreende-se a escola como um
organismo dependente da ação e construção no cotidiano de todos,
mas, nessa oportunidade, optou-se por trabalhar com os
professores. A partir do levantamento bibliográfico e do estudo
dos conceitos relevantes à pesquisa, como o parecer CNE/CEB
nº36/2001, que orienta através das diretrizes para a Educação
Básica nas Escolas do Campo, buscando, assim, equilibrar as
diferenças existentes entre as escolas do campo e cidade, para
atingir uma compreensão do papel do ensino de geografia nas
escolas do campo, assim como dos professores de geografia nas
questões diárias de ensino, tendo sido definidos três objetivos
específicos:
O primeiro é a importância do ensino de Geografia na
visão dos professores, pais e alunos. Verificou-se que consideram
que a Geografia é a disciplina em que conseguem identificar-se
nessa construção do conhecimento, pois une aquilo que é

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

196
Novas Fronteiras Culturais

observado, fazendo pensar sobre o que veem todos os dias, saindo


da teoria e adentrando a prática.
A relação da Geografia e a educação do campo na visão
dos entrevistados, conforme a análise permitiu concluir que, no
viver escolar, a Geografia e a educação no campo complementam-
se e são aliadas para a compreensão de todas as outras disciplinas,
pois, na Geografia, eles são colocados de forma que se identificam
na prática.
Após identificar seus pontos de melhoria e de dificuldades,
segundo os entrevistados, a análise permitiu concluir que as
potencialidades dão-se pelo interesse que os alunos demonstram
dentro das atividades, na escola. Ainda que eles estejam envolvidos
em outras atividades, eles buscam melhorar, tornarem-se melhores
através da formação escolar.
Já as fragilidades vão desde aspectos físicos, da instituição
até burocráticos. Como a falta ou qualidade no transporte dos
alunos e a falta de repasse de recursos, mesmo os que já estão
previstos. Observa-se que as políticas não são voltadas para a
melhoria da escola do campo.
Com isso, a hipótese do trabalho de que ainda hoje são
muitos os desafios encontrados no ensino nas escolas do campo.
Como observou-se no ensino de Geografia, em que o professor
tem papel importante na compreensão das dinâmicas de trabalho,
da importância da relação campo-cidade, dos saberes e
experiências que o campo proporciona, além dos outros diversos
temas abordados cotidianamente em sala de aula, de acordo com a
faixa etária e campo do saber a ser trabalhado em cada turma,
apesar dos desafios já apontados, confirma-se, considerando a
escola trabalhada, nas entrevistas com as professoras, por contar
os desafios apresentados, que permanecem básicos, como falta de
acesso a recursos para atividades básicas, na infraestrutura escolar
e ainda no cumprimento do conteúdo, em que é necessário pensar
em alternativas para executar as atividades, visto que não possuem
o material para tal.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

197
Novas Fronteiras Culturais

Sendo assim, constata-se como a educação, em escolas do


campo, em que existe a atuação formadora de movimentos
socioterritoriais, os alunos se reconhecem nesse espaço e
identificam-se, não apenas como reprodutores de um meio de vida,
mas também de mudanças nesse espaço. Conseguem ver-se como
agentes que criam o território vivido e conhecem as ferramentas
e/ou sabem como consegui-las, para que alcancem as mudanças
necessárias.
Os instrumentos de coleta dos dados permitiram
compreender o que é e como é a realidade diária da escola e do
ensino do/no campo, que, mesmo tendo vasta maneira de
experienciar e de apresentar e praticar o que é observado em teoria,
há também dificuldades que são típicas do lugar. Nesse ponto, o
instrumento foi essencial, visto que, sem essa prática na pesquisa,
haveria apenas o que é retratado por outros autores, que possuem
seu valor, mas também, como visto na própria atividade de
entrevista, a importância e relevância na formação dos alunos em
anos iniciais aplicam-se a nós mesmos, em tempos diferentes;
construindo saberes ao longo da vida.
Em pesquisas futuras, pode-se aumentar o universo da
pesquisa, com maior número de entrevistados, com mais tempo de
vivência na escola do campo, estando mais próximas dos alunos e
da gestão escolar, pois é um campo rico de experimentações e
desafios.

Referências

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Geografia de Sobral (RCGS), [S. l.], v. 10, n. 1, 2008. Disponível
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bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que
regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação,
a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo
Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no
236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de
agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação
de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. 2017. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm>. Acesso
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

200
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 12
LAMPARINAS DO PANTANAL:
GEOGRAFIA DO GÊNERO NAS ÁREAS
RURAIS DO PANTANAL BRASILEIRO

Onélia Carmem Rossetto

- A senhora aceita que eu escreva essa história do seu filho


e sobre o que viveu aqui no Pantanal?
- Agora de que?!!! Nem num sei lê!!!
(Diálogo estabelecido com uma mulher pantaneira
e que inspirou esse texto!)

Introdução

A lamparina é um objeto da cultura material e imaterial das


áreas rurais brasileiras, muito utilizado em locais sem energia
elétrica. Segundo o Dicionário Aurélio (1997), é um substantivo
feminino, representado por uma pequena lâmpada que fornece luz
de pouca intensidade, composta de um reservatório para líquido
combustível e um pavio. Durante praticamente trinta anos de
vivência no Bioma Pantanal, sempre associei as lamparinas ao
contexto das mulheres, que, como eu, habitavam as fazendas como
pequenas luzes em um cotidiano de trabalho, isolamento e
predominância do gênero masculino.
A cultura dos grupos sociais que vivem nas áreas rurais do
pantanal brasileiro, especificamente nas fazendas, vem passando
por um intenso movimento de modernização (ROSSETTO, 2004),
todavia, o núcleo familiar composto por pai, mãe, filhos ainda
permanece, independentemente das classes sociais. Assim,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

201
Novas Fronteiras Culturais

investigar o gênero feminino no contexto das relações familiares


no Bioma Pantanal assume especial relevância, por um lado, devido
as suas características naturais, principalmente o pulso de
inundação, pois, na época das cheias, as águas recobrem os
caminhos, em alguns lugares quase inexistentes e as poucas
estradas que marcam a paisagem ficam invisíveis, assim, o
isolamento integra o cotidiano.
Por outro lado, o gênero feminino, fica inserido em um
universo totalmente masculino, o que caracteriza seu papel no
contexto do trabalho e da família, assim, a solidão é a grande
companheira das mulheres pantaneiras, principalmente, aquelas
que vivem e trabalham nas propriedades de pecuária.
Alguns autores, entre eles, Banducci Júnior (2007),
investigam o universo feminino das mulheres pantaneiras e
destacam seu papel no âmbito do trabalho doméstico, na
manutenção da alimentação diária e na higiene das casas, todavia,
escassos são os estudos sobre a condição feminina no âmbito das
relações familiares. Portanto, o ser mulher define-se em um cenário
de relações sociais e a identidade feminina é permanentemente
reelaborada, estando em constante movimento.
Silva (2003) assevera que o conceito de gênero permite
compreender que não são as diferenças dos corpos de homens e
mulheres que os posicionam em diferentes âmbitos e hierarquias,
mas a simbolização que a sociedade faz delas, como correlato, o
conceito de gênero é o conjunto de ideias que uma cultura constrói
do que é ser mulher e do que é ser homem, sem separá-lo das
relações políticas, econômicas, sociais, culturais e raciais, pois são
essas particularidades que possibilitam a análise crítica da
sociedade.
Assim, o universo feminino das mulheres que vivem nas
fazendas do Pantanal, na condição de patroas ou empregadas,
independentemente da idade ou posição na hierarquia familiar e
suas relações com o gênero masculino, é o tema central do presente
artigo que tem como objetivos descrever e refletir sobre o
cotidiano das mulheres, ressaltando as relações de gênero e, de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

202
Novas Fronteiras Culturais

forma concomitante, analisar o papel feminino no contexto


intergeracional das famílias pantaneiras.
O percurso metodológico esteve centrado na Pesquisa
Etnográfica que, na perspectiva de Wielewicki (2001), busca
descrever, interpretar ou explicar o que as pessoas fazem em um
determinado ambiente, os resultados de suas interações e o seu
entendimento do que estão fazendo. Subsidiada por essa
perspectiva, realizou-se a coleta de dados em campo, como
membro do grupo social durante 37 anos, (1985-2022),
observando, vivenciando e registrando os comportamentos, as
relações de gênero e as formas de vida.
Para o presente texto, selecionou-se, como amostra, dois
relatos e três diálogos que possibilitaram a técnica de Análise de
Conteúdo, visando obter, por procedimentos sistemáticos e
objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições
de produção/recepção dessas mensagens (BARDIN, 1977).
Portanto, adotou-se a perspectiva de análise qualitativa, em que as
sínteses foram construídas à medida que os dados particulares
foram se agrupando, ou seja, os cenários foram sendo construídos
e analisados à medida que se registravam e examinavam as partes
(MELLO, 2004). Além da presente introdução, na segunda seção
do texto, busca-se desenhar a trajetória teórica e, na sequência,
apresentam-se os resultados e respectiva análise, seguidos das
considerações finais e referências bibliográficas.

Trajetória teórica

Ao pesquisar a produção acadêmica sobre as relações de


gênero no Brasil, Silva (2000) assevera que as pesquisas
acompanharam as ações dos movimentos feministas. Desde
meados dos anos setenta, as mulheres brasileiras já se mobilizavam
contra o custo de vida, por creches e maior abertura política, mas,
a partir da década de 1980, as pesquisas começaram a analisar e
discutir temáticas pertinentes à condição da mulher no país, como

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

203
Novas Fronteiras Culturais

maior igualdade social entre os sexos, relações sociais de trabalho


e acesso às políticas públicas.
Silva (2009) pontua alguns argumentos imprescindíveis
para o entendimento da produção cientifica no âmbito da
Geografia do Gênero, entre eles, a compreensão que as pesquisas
sobre gênero não estão limitadas apenas aos estudos sobre a
feminilidade, mas envolvem as masculinidades e as vivências
“trans”. Ademais, ressalta o conceito de gênero na perspectiva da
construção social dos gêneros, sendo necessário incorporar as
dimensões temporal e espacial na análise científica, como correlato,
as temáticas de pesquisa devem ser analisadas de forma relacional
e processual na estrutura socioespacial a que pertencem.
Salienta ainda que as pesquisas sobre gênero envolvem a
perspectiva feminista, porém não se resumem apenas a esse
enfoque, uma vez que a identidade feminista é uma construção
social, assim, a geografia feminista integra a ciência geográfica e
“foi substituída pelo seu plural ‘geografias feministas’ a fim de
expressar a pluralidade científica e ideológica existente neste
campo de produção científica” (SILVA, 2009, p. 40).
A abordagem da temática gênero pressupõe uma discussão
conceitual. Scott (1995) registra que a definição de gênero assume
duas perspectivas. Na primeira, o gênero como elemento
integrante das relações sociais, em que constata-se a diferença
biológica entre os sexos masculino e feminino, já na segunda, o
gênero está relacionado às relações de poder em que as
representações dominantes são apresentadas como legítimas e
inquestionáveis.
Dessa maneira, a incorporação dessa categoria analítica no
presente texto exige uma opção conceitual, assim sendo, assume-
se gênero como uma construção histórica, social, político-cultural,
com relevante carga ideológica. Parafraseando Castro (1991),
entende-se que o gênero assume diferentes formas de acordo com
as características dos múltiplos momentos da história das
sociedades.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

204
Novas Fronteiras Culturais

Em se tratando da temática gênero no espaço rural,


especificamente na relação feminina e masculina, Ferré e Serra
(2006) assinalam a necessidade de buscar mais respostas sobre as
múltiplas vivências das mulheres, tornando visível a sua rica
complexidade, suas necessidades e aspirações, exaltando suas
potencialidades.
Para explicitar as múltiplas determinações, mediações e
contradições do cotidiano das mulheres das áreas rurais
pantaneiras no espaço familiar, recorreu-se à busca de fontes
bibliográficas que melhor elucidassem o tema. Ribeiro e Vargas
(2021) procuram proporcionar visibilidade à mulher pantaneira
como protagonista da vida no Pantanal, embora a considerem
coadjuvante na construção da história regional, enaltecem sua força
e resistência protagonizando a produção do Pantanal.
Para compreender as relações de gênero construídas por
mulheres e homens residentes nas comunidades tradicionais Nossa
Senhora da Guia e São José do Facão, no Pantanal de Cáceres –
MT, no contexto da produção em duas associações, Neves (2017)
conclui que elas ainda permanecem na invisibilidade ou
marginalizadas, desempenhando um papel secundário nas relações
de trabalho e produção.
A análise do papel da mulher na produção do espaço
turístico pantaneiro é realizada na comunidade ribeirinha do Passo
da Lontra, sub-região do Pantanal do Abobral, município de
Corumbá (MS) por Fernandes; Araújo; Ribeiro (2021), destacando
o gênero feminino integrado ao mundo do trabalho, porém, pouco
qualificada e mal remunerada, todavia, elas são consideradas como
empoderadas pelo trabalho e pela renda importante para a
melhoria da qualidade de vida da família.
É importante assinalar que, apesar de existir um número
considerável de pesquisas que envolvem o gênero feminino no
espaço pantaneiro, não foi encontrada nenhuma que reflita sobre
as relações entre os gêneros no âmbito da família e na dimensão
intergeracional. Contudo, em termos analíticos, os estudos
demonstram, de forma geral, que as mulheres continuam

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

205
Novas Fronteiras Culturais

enfrentando divergências sobre as particularidades do trabalho,


principalmente no que tange à conciliação da atividade produtiva
com a maternidade, recebem salários menores do que os do gênero
masculino e obedecem a relações hierárquicas de gênero.

Resultados

A vivência com as famílias que residem nas propriedades


rurais do pantanal brasileiro permite registrar a importância das
inovações pelas quais o lugar tem passado, pois, no convívio
cotidiano, ouvem-se histórias do “Pantanal de antigamente” (grifo
nosso), onde os caminhos encobertos pelas águas só permitiam o
transporte a cavalo, carro de boi e, em alguns lugares, apenas de
barco. As crianças que ali nasciam só iam conhecer a área urbana
já na adolescência, as famílias ficavam isoladas pelas águas e sem
acesso a meios de comunicação, com exceção do rádio que trazia
as notícias e os recados com as alegrias da vida, os encontros e as
partidas trazidas pelo falecimento de algum conhecido ou parente.
Também é comum a separação entre os “verdadeiros
pantaneiros” e aqueles que não são “os verdadeiros” (grifo nosso).
Os primeiros são aqueles que enfrentavam o Pantanal de carro de
boi, sem luz elétrica e acesso à saúde e educação formal. Já os
segundos são aqueles que residem atualmente no Pantanal, porém,
com o conforto da modernidade: luz elétrica, internet, telefone,
carros traçados, entre outros.
Todavia, questiona-se até que ponto as transformações no
espaço natural vêm influenciando as relações de gênero entre as
famílias que residem nas propriedades rurais por mais de uma
geração? Muitas histórias guardadas na memória e não registradas
revelam a divisão sexual do trabalho e a condição feminina, como
apontado no relato 1.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

206
Novas Fronteiras Culturais

Relato 1

Eu era novinha! Já tinha casado e tinha dois filhos, um de


três aninho e outro era bebezinho! Nois trabalhava numa
fazenda grande que tinha até pista de pouso. Eu acordava
as 4 horas da manhã e ia para cozinha fazer café para a
peonada, e era café, chá, farofa, arroz carreteiro! Não era
só bolo, não!! Os menino ficavam dormindo e eu amarrei
um barbante na porta, o mais veinho quando acordava
puxava o barbante, abria o trinco e vinha para cozinha. Não
tinha luz e eu deixei uma vela acesa perto da cama, o nenê
estava no berço. Fui pra cozinha e era muito trabaio e eu
sozinha pra dar conta! De repente, minha comadre entrou
e disse que tava saindo fumaça pelo telhado do quarto dos
menino! Mandei minha irmã lá pra vê! Ela voltou com o
nenê no braço, ele não chorava, só gemia! Olhei para os
pezinho dele, tava tudo queimado! O mais velho levantou,
tentou abrir a porta mas não conseguiu! O barbante
arrebentou! A vela caiu e pegou fogo na corcha! O mais
velho tava quietinho sentado perto da porta e uma
fumaceira só! Quase morri de susto!! Peguei o nenê, ele só
gemia! Olhei os pezinho e bateu desespero! Minha irmã
chamou o patrão! Ele tinha uma muezinha bem novinha!
Ele olhou o menino e disse que não era nada, a muezinha
disse que ia entrá, faze uma reza e já já o menino ia sará!
Eu só chorava, meu marido já tinha saído pro campo! Eu
agradeço muito os turista que tava lá, porque me viu
chorando e perguntou o que foi! Eu mostrei o nenê, eles
falou que ia pegar o avião pra me levar pra cidade. O patrão
viu o movimento e disse que não era nada! Não precisava!!
Mas ele falou que ia me leva, sim! Nem peguei nada, saí
com a roupa do corpo! Ai o patrão resorveu manda o
gerente me leva! Fui parar no hospitar São Luiz, em
Cáceres, a médica falou: - isso não dá pra fica assim não!
Aqui só vamos limpar, fazer curativo e dar remédio pra dor.
A senhora vai ter que levar ele pra Cuiabá. O nenê nem
mais gemia!! Fui pra Cuiabá e passei três meses com ele na
Santa Casa. Hoje, ele é assim! Não mostra o pé dele pra

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

207
Novas Fronteiras Culturais

ninguém! O médico me disse que sempre era pra dá


carmante pra ele, dei por muito tempo maracugina porque
ele sempre chorava muito e acordava assustado! - O seu
marido foi pra Cuiabá também? - Agora de quê??? Ele tinha
que fica na fazenda. Fiquei sozinha.
(Fato ocorrido em 1990 - Relato coletado em 1995)

A análise do Relato 1 revela a divisão social do trabalho na


perspectiva das desigualdades de classes e, ao mesmo tempo, no
âmbito do enfoque das diferenças entre os gêneros, sendo que a
mulher desempenha seu papel nos afazeres domésticos e o homem
atua no manejo da pecuária, todavia, o enfrentamento do “novo”
(grifo nosso) representado pela ida para a capital e o tratamento do
filho ficaram sob a responsabilidade do gênero feminino,
demonstrando, por um lado, que o cuidado dos filhos é uma
atribuição feminina e, por outro, que o papel desempenhado pela
condição de mãe é algo praticamente intangível para o gênero
masculino.
A vivência no campo da pesquisa possibilita concluir que,
no contexto doméstico e nas relações econômicas, o gênero
masculino sobrepõe-se ao feminino, entretanto, qualquer ação que
exija mudança do espaço de residência fica a cargo do gênero
feminino. Observa-se também a presença de muitos atores do
gênero masculino que vivem sozinhos nas fazendas, embora
afirmem que são casados, as esposas vivem nas áreas urbanas. A
principal justificativa é a necessidade de os filhos frequentarem as
instituições escolares, raras e localizadas a longas distância no
contexto estudado. Ademais, “na época das águas” (grifo nosso)
fica muito difícil o acesso por estradas ou barcos. Tais
características ocorrem independentemente das classes sociais,
assim patrões e empregados seguem praticamente o mesmo código
de conduta.
Os filhos dos peões – pertencentes a classe dos
empregados - abandonam cedo as escolas, apenas pequena parcela
chega aos últimos anos do ensino fundamental, voltando a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

208
Novas Fronteiras Culturais

trabalhar e morar em fazendas, reproduzindo-se enquanto classe


social que vende a sua força de trabalho.
A análise do relato 1 demonstra também a utilização da
“fé” como argumento para obter novamente a saúde, excluindo a
necessidade de cuidados médicos. Apesar de os detentores do meio
de produção terem condições financeiras e de transporte, como se
tratava da classe considerada subalterna, não era necessário
qualquer esforço ou logística de remoção da criança. Assim, as
mulheres pantaneiras são também segregadas de acordo com a
classe social a qual pertencem e seus filhos, por vezes, não têm
acesso à saúde e educação formal.
Como a área da pesquisa localiza-se a cerca de 80 km da
Bolívia, é comum encontrar, nas fazendas, trabalhadoras
domésticas chiquitanas ou “índias bolivianas” (grifo nosso),
pejorativamente chamadas de bugras. A articulação de gênero e
preconceitos étnico-raciais conduz essas mulheres a sofrerem um
duplo preconceito, que associada à classe social agrega mais
desigualdade, conforme o relato 2.

Relato 2

Na fazenda, ficavam dois senhores de idade: o patrão e o


empregado. Contrataram uma “bugra do Limão” para fazer
a comida e cuidar da casa. Uma noite, ela foi atrás de um
puxadinho que servia de banheiro e de lá não saia! ficou
mais de uma hora e eles perguntavam o que estava
ocorrendo e ela não respondia. Quando ela saiu, foi
questionada outra vez e respondeu: - nasceu um menino,
mas, não tá vivo, não!!! O empregado foi ver, no chão,
havia um bebê envolto na placenta e sangue, os cachorros
o rodeavam e cheiravam, talvez fossem comê-lo. Os
senhores pegaram o bebê e a mãe insistia que ele estava
morto! O bebê chorou alto!!! Colocaram o bebê em uma
bacia envolto em toalha de banho, levaram para o povoado
do Limão e entregaram a recém mãe para sua genitora. O
senhor que narrou o fato, concluiu da seguinte forma: - essa

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

209
Novas Fronteiras Culturais

bugrada aí não tem jeito!!! Essa daí deve ter já cinco ou seis
filhos!
(Fato ocorrido em 1995 - Relato coletado em 1995)

O discurso do relato 2 aponta a maternidade como uma


condição negativa de vida para a mãe e o trabalho que
desempenhava na fazenda, sendo que, aliado a tal fato, nota-se o
preconceito étnico-racial, evidenciando o racismo estrutural por
parte do patrão, que, junto, com a concentração de renda, são
elementos significativos para aprofundar as desigualdades raciais.
Além disso, a entrega do bebê e sua mãe para a figura feminina da
geração anterior demonstra que a avó deveria se responsabilizar
pela ação da filha e cuidar do neto, como correlato, geração após
geração, o gênero feminino é responsabilizado pelas filhas e netos,
excluindo o gênero masculino da obrigação.
A rigor, com base nos relatos até aqui descritos, torna-se
relevante analisar o papel da mulher pantaneira nas relações entre
as gerações, ou seja, até que ponto a discriminação do gênero
feminino ocorre com a conivência e aceitação no interior do
próprio gênero como reflexo da naturalização das ações (diálogos
1 e 2).

Diálogo 1

Avô: -Meninas, vão pra cozinha com a mãe de vocês! Os


guri vão montá nos bezerro, quem ficar mais tempo,
montado, vou marcá o bezerro pra ele!!
Menina: - Mãe!! Quero ir pro curral!!! Quero!!! Aqui não
tem graça nenhuma!!!
Mãe: - Não, filha!!! Curral é lugar de homem!!! Você não
pode ficar no meio da peonada!!
(Fato ocorrido em 1995 – Fato presenciado e registrado em
1995).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

210
Novas Fronteiras Culturais

Diálogo 2

Depois da lida com o gado na vacinação contra a febre


aftosa, todos almoçam juntos: patrões, peões, homens,
mulheres e crianças. Após o almoço, na hora do descanso,
as mulheres se retiram para o quarto, a menina-moça de 16
anos, entra e fala para a mãe e para a tia:
- Por que eu não posso ir lá no barracão conversar com o
pessoal? Tá todo mundo lá dando risada e a gente aqui!!!!!!
- Seus tios e primos estão lá?
-Estão, tia!
- Então, vamos lá! Eu vou com você!
(Fato ocorrido em 2018 – Fato presenciado e registrado em
2018)

Os diálogos 1 e 2 foram presenciados em um espaço de


vinte e três anos (1995-2018), todavia, ambos apresentam pontos
comuns. O primeiro é a divisão territorial do trabalho na
perspectiva de gênero, sendo que o feminino transita no espaço da
casa e o masculino no campo, manejando o gado. O segundo
ressalta que os gêneros feminino e masculino desempenham ações
consideradas trabalho, entretanto, ocorre a desvalorização do
trabalho feminino, pois apenas o masculino recebe estímulo para
competir e, ao final, recebe uma recompensa pelo esforço através
de uma premiação: “um bezerro de presente, com a marca do
vencedor” (grifo nosso).
Reitera-se, nos dois diálogos, a naturalização incorporada
sobre feminilidade e masculinidade no que tange à divisão do
trabalho na sociedade, a mulher está atrelada à ideia de fragilidade,
enquanto o homem é associado à sua masculinidade, força e
virilidade.
Já o terceiro ponto evidencia que o gênero feminino da
classe dos “patrões” (grifo nosso) deve estar excluído dos espaços
de lazer dos “peões” (grifo nosso), considerados subalternos e não
confiáveis. Assim, entende-se que a divisão de classes está ancorada

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

211
Novas Fronteiras Culturais

em um processo de construção histórica e social, permeada por


relações de poder, subordinação, exploração e dominação.
Com ações dessa natureza, os pantaneiros e pantaneiras
sustentam os padrões da sociedade patriarcal marcada pelo
machismo, que enaltece o sexo masculino sobre o feminino e
transmitem tal ideologia entre as gerações. Isso posto, é possível
afirmar que o papel do gênero feminino no grupo pesquisado
resida na guarda e transmissão dos valores machistas e da
diferenciação entre os gêneros, garantindo a reprodução do sistema
patriarcal, independentemente da faixa etária, como assinala o
diálogo 3.

Diálogo 3

O menino de 14 anos entra na cozinha:


- Mãe, hoje eu caí do cavalo, mas não conta para ninguém!
- Machucou, meu filho??? Por que não é para contar?
Embora estivesse com a testa e o braço machucados, o
menino responde:
-Não machuquei!!! Não conta para ninguém porque eles
vão zoar em mim!!! A senhora é mulher... não entende isso!
(Fato ocorrido em 2020 – Fato presenciado e registrado em
2020)

Verifica-se que as gerações recentes são também


responsáveis pela continuidade das relações de diferenciação e
discriminação entre os gêneros. As crianças de gênero masculino
são educadas para revelar a condição de subalternidade da mulher
independentemente da idade e da posição do gênero feminino no
contexto familiar. Neste sentido, quando se trata do universo
masculino, a experiência feminina é desconsiderada pelos homens
desde a mais tenra idade.
Considera-se, portanto, que o gênero feminino residente
nas fazendas pantaneiras contribui sobremaneira para a
transmissão e manutenção dos valores, estereótipos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

212
Novas Fronteiras Culturais

discriminatórios patriarcais, sexistas e machistas, o que fortalece o


gênero masculino.
Nessa perspectiva, a relação entre os gêneros feminino e
masculino no seio das famílias pesquisadas compreende relações
de poder e dominação do homem em relação à mulher por meio
da separação do que é considerado socialmente como trabalho do
homem, do que é trabalho da mulher, ou ambiente apropriado para
homem e mulher de acordo com a segregação de classes.

Considerações finais

Cumpre aqui salientar que não existe uma única visão


sobre esse tema e que gênero é um conceito polissêmico, mutável de
acordo com cultura e as práticas sociais, econômicas e históricas
de determinados grupos. Também não é possível homogeneizar
as relações de gênero nas famílias que habitam as fazendas
pantaneiras, pois, embora possuam características comuns, cada
grupo configura-se de maneira distinta, revelando dinâmicas
próprias e singulares.
Contudo, é notório afirmar que, em se tratando de gênero,
as famílias pesquisadas ainda apresentam condutas baseadas em
crenças, costumes, experiências vividas e no próprio convívio
social. Assim, elas reproduzem comportamentos inerentes aos
gêneros feminino e masculino, acreditando em códigos de
conduta da sociedade patriarcal transmitidos entre as gerações.

Referências

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relações sociais e representação de mundo no “Pantanal da
Nhecolândia”. Campo Grande: UFMS, 2007.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

BARDIN. L. Análise de conteúdo. Lisboa: Editora Edições 70,


1977.
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Janeiro). Mulher e Políticas Públicas. Rio de Janeiro:
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o Pantanar”: um estudo das relações entre as transformações
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2004. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável),
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

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Regional, 2003.
SILVA, Susana Maria Veleda da. Os estudos de gênero no Brasil:
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como construção discursiva. Acta Scientiarum. Maringá, v. 23, n.
1, p. 27-32, 2001.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

215
Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 3

FESTA DO(A) PADROEIRO(A)!

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

216
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 13
A GEOGRAFIA DA FÉ:
OLHARES SOBRE A FESTA DE
SANTANA EM CAICÓ-RN

Marluce Silvino
José Borzacchiello da Silva

Introdução

As cidades surgem pela disposição do homem de viver em


sociedade e, nelas, três pilares são observados, segundo Lefebvre
(1991): a cidade enquanto lócus do trabalho, a cidade como uma
obra e as festas. Para o autor, o uso primordial das cidades, que são
as ruas, as praças, se dará na Festa. A realização das festividades é
o imã que liga os indivíduos e é o momento cujo objetivo é
prestigiar o lazer, demonstrar riqueza e socializar-se. Para Bezerra
(2008, p. 7): “As festas desempenham um importante papel na
relação entre o homem e o meio, pois estas manifestações sempre
refletiram o modo como os grupos sociais pensam, percebem e
concebem seu ambiente, valorizam mais ou menos certos lugares”.
Sendo assim, as festas revelam-se como fenômenos predecessores
da civilização, pois é aqui que os homens atingem o maior contato
humano e, no Brasil, não se revelou de modo diferente de outros
lugares.
As festas têm uma característica marcante para a
espacialização, ocorrem sempre nas cidades e realizam-se tanto nas
capitais como nos interiores do Brasil. Cabe aqui destacar que esse
fator locacional revela diversas facetas da festa que se materializa
de modo diferente em cada lugar, se, na capital, a festa é mais um
evento, mais uma opção dentre a infinidade de atrações que a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

217
Novas Fronteiras Culturais

grande cidade oferece, nas pequenas e médias cidades do interior,


a Festa é o grande Evento, o momento de ápice da convivência dos
indivíduos no lugar.
No interior do estado do Rio Grande do Norte, está situada
uma cidade chamada Caicó, cujo maior acontecimento social é a
festa de sua padroeira, Santana, que se realiza há 275 anos e é
Patrimônio Imaterial Brasileiro pela referência de sua importância
cultural não só para a urbe como também para toda a região
imediata de Caicó. O impacto econômico e as transformações no
espaço são visíveis anualmente com o acontecer festivo. Neste
trabalho, compreende-se como a festa se inicia na cidade e qual a
percepção dos caicoenses sobre a festa e sobre a padroeira. A
metodologia utilizada parte, inicialmente, de leituras que discutem
sobre tempo, espaço e festa. Como fonte documental, foram
utilizados recortes de jornais e revistas que foram disponibilizadas
em acervos pessoais e o recorte temporal parte da origem do lugar
até a década de 2010.

Tempo, cidade e festa

A definição do que é ou representa o tempo tem sido uma


preocupação de estudiosos de várias áreas, desde historiadores e
filósofos até os físicos e independente da abordagem a afirmação é
sempre a mesma, o tempo não se faz compreensível sem se
considerar sua relação com o espaço. Sobre a questão, o
historiador Kosseleck (2014, p. 9) reafirma: “Os espaços históricos
se constituem graças ao tempo, que nos permite percorrê-los e
compreendê-los, seja do ponto de vista político ou do econômico”.
Para o autor, faz-se preciso diferenciar o tempo que é
natural, ou seja orgânico, cujo controle escapa da interferência
humana e o tempo que é histórico. Santos (2001) vê o tempo
associado ao estudo das técnicas, pois cada ferramenta construída
pelo homem simboliza a materialidade de um determinando
tempo, o autor usa exemplos como Baillard (que divide o tempo
entre o cósmico, o histórico e o existencial) e Braudel (enxerga o

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

218
Novas Fronteiras Culturais

conceito a partir de tempos longos e tempos curtos) para entender


a relação entre as cidades e o tempo. Nas cidades, o tempo parcela-
se pelo poder econômico hegemônico das grandes empresas e é
por eles que espaços de fluidez são construídos. Dividindo o
mesmo espaço está a vida humana presente em pequenos negócios,
o vendedor local, o morador humilde da cidade. Ambos convivem
no espaço, são temporalidades que demarcam e mudam
constantemente a cidade.
A cidade, assim, é resultado desse acúmulo de espaços que
são sedimentados com o tempo e que surge para corresponder a
uma determinada necessidade e vai se moldando num processo
histórico. Cada cidade possui uma história. Em relação a isso,
Carlos (1999, p. 57) afirma: “A cidade é uma realização humana,
uma criação que vai se constituindo ao longo do processo histórico
e que ganha materialização concreta, diferenciada, em função de
determinações históricas específicas”.
Na cidade, dois processos dão-se de modo entrelaçado. São
elas: as práticas espaciais realizadas pelos indivíduos e a produção
econômica viabilizada pelo modo de produção. A realidade
brasileira segue nesse limiar e todas as cidades iniciaram-se com a
mesma estrutura, tendo em vista o modo como foram
territorializadas. Na evolução da espécie humana, o agrupamento
foi um fator determinante para sua sobrevivência. Estar em
conjunto e quanto mais componentes, mais possível se fazia coletar
alimentos, predar animais, construir abrigo e sobreviver as
intempéries de uma natureza a ser explorada. Com o transcorrer
do tempo e a intelectualização do homem, foram desenvolvidas
inúmeras técnicas que permitiram a sobrevivência física sem
requerer muitos indivíduos aglomerados.
Estar em sociedade significa estar em contato constante
com o (os) outro(os) e isso ocorre em diferentes esferas; trabalho
conjunto, em família ou em eventos sociais. Dentre essas formas,
encontram-se as festas, que são, segundo Costa (2012, p. 54), “[...]
práticas socioespaciais importantes na compreensão geográfica do
mundo”. As festas denotam o reconhecimento do espaço por parte

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

219
Novas Fronteiras Culturais

do indivíduo que se agrupa, desse modo, para Costa (2012, p. 62):


“As festas são a oportunidade do encontro, do lazer, da dança, um
dos poucos momentos de lazer que acontecem, a princípio, para
todos”.
Comumente usada para comemorar a colheita de uma boa
safra ou acontecimentos relevantes como casamentos/eventos
religiosos, as festas tornam-se o momento de lazer que unifica a
convivência em grupos, deve-se lembrar que, em tempos mais
remotos, os grupos humanos habitavam espaços rurais
quilometricamente distantes e esses momentos aproximavam-nos
geograficamente, de modo que as culturas e os hábitos eram
mesclados. Sobre as festas Claval (2014, p. 5-6) aponta:

A primeira característica é a quebra que ela marca com a


vida de cada dia. Esqueçam as inquietações e as
preocupações do momento, a dureza dos tempos e sua
parcimônia, os problemas familiares, os pais que
envelhecem, os meninos preguiçosos ou insolentes, os
vizinhos barulhentos! Por alguns dias, ignoram-se as
tensões políticas ou as ameaças à segurança do país! Platão
já indicava que os deuses tinham inventado a festa para
permitir aos homens recuperar o fôlego.

O acontecer festivo só ocorre com a reunião, aglomeração


dos seres e desenvolve-se num tempo e espaço específico. Neste
sentido, Oliveira (2007, p. 23) afirma: “Toda festa corresponde a
um tempo-espaço especial. Mais precisamente, forma a
demarcação de um fazer coletivo, reunindo muito esforço e prazer
num mesmo acontecimento. Geralmente o viver na festa
demonstra a força de uma coletividade”. A festa, dessa forma,
representa a unificação para celebrar acontecimentos em comum,
seriam, com aponta Brandão (2007, p. 28):

Acontecimentos sociais de envolvimento parcialmente


coletivo, que geralmente observam frequência cíclica ou
sazonal; que produzem uma ruptura com a rotina sequente

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

220
Novas Fronteiras Culturais

da "vida social"; que criam comportamentos sobretudo


rituais, logo expressivos, e relações interativas de forma e
efeito diverso dos de períodos longos de rotina.

As festas são assim, antes de tudo, manifestações da cultura


de determinado povo. Para Laraia (2008, p. 68): “[...] o modo de
viver e ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa,
os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas
corporais são produtos de uma herança cultural”. A cultura
entendida como agente modelador do comportamento humano é,
segundo Chauí (1984, p. 11), “[...] sempre atrelada a um conjunto
de práticas, ideias e sentimentos que exprimem as relações
simbólicas dos homens com a realidade”. É um complexo que
envolve arte, costume e crenças, tendo duas dimensões: uma que é
vivenciada (no campo dos sentidos) e outra formal (material). A
materialização da cultura dá-se por objetos como ferramentas e
instrumentos, mas também por meio da sua espacialização, sendo
no acontecer festivo que a cultura de materializa.

A festa, o caicoense e a devoção a Santana

A religiosidade do caicoense está diretamente ligada à fé a


Igreja Católica, no entanto surgiram, na cidade, muitas outras
religiões que possuem seus adeptos, mas a devoção a Senhora
Santana está contida na maioria da população que, ao multiplicar-
se, foi criando diversas outras paróquias, as quais se voltam sempre
para o altar maior que reverencia a mãe de Maria. Ao todo, a cidade
conta com seis Paróquias: Fátima, São José, São Francisco, Santa
Cruz, Santo Estevam e Santa Marta de Betânia, que compõem a
Diocese de Caicó, que mostra-se mais adiante como surgiram, por
ora, aborda-se a religiosidade e devoção à Santana, que se faz
necessária para considerar a tessitura histórica que revela as origens
desse contexto.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

221
Novas Fronteiras Culturais

Segundo a historiografia da cidade1, aqui habitavam os


indígenas quando da expansão da atividade pecuarista que os
dizimou pela chegada dos homens brancos que se fixaram no lugar
e deram início à edificação da cidade, como já foi abordado.
Naquele tempo, fora construído, como já apontamos antes, a mais
antiga edificação da cidade, a casa forte do Cuó e, ao seu lado, em
1965, um tempo batizado de Capela da Nossa Senhora Santana do
Vale do Acuãã. A respeito disso, Macêdo (2007, p. 177) disserta
que “[...] o objetivo era dar assistência religiosa a e essa edificação
proporcionou aqueles que já frequentavam o local se fixassem de
forma definitiva na Ribeira e assim surgisse o Arraial de Caicó em
1700”.
Ainda segundo o mesmo autor, em 1726, os redores da
Capela de Santana foram ocupados pelos militares que
representavam a Companhia de Ordenanças do Seridó, cuja sede
deveria ficar no Arraial de Caicó. Em 07 de julho de 1735, o Arraial
tornou-se povoado e, em 15 de abril de 1748, nasceu a Freguesia
da Gloriosa Santana, instituída pelo padre Manuel Machado Freire.
Após o ato, as celebrações religiosas passaram a ser realizadas no
local onde hoje se localiza o Poço de Santana, como nos revela
Macedo (2007, p. 179):

Passados três meses da visita do Padre Manoel Machado


Freire ao Piancó, homens, mulheres e crianças
aglomeravam-se na pequena Povoação de Caicó,
notadamente numa área plana e ladeada por serrotes e
cordões de pedra, próximo a um poço d’água no leito do
Rio Seridó – conhecido, nos dias atuais, como Poço de
Sant’Ana.

Esse novo local era mais adequado e cômodo, tendo em


vista que a pequena capela edificada anteriormente tinha
acessibilidade mais restrita, pois se localizava num terreno

1Salienta-se que aqui não se pretende ser fiel à cronologia sequencial da história desses
eventos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

222
Novas Fronteiras Culturais

acidentado e já construída a muito tempo, cerca de meio século.


Passado então esse tempo, o povoado cresceu e carecia de um
novo templo para realização de seus eventos.
Num lote de terras doados por José Gomes Pereira e sua
esposa, foi edificada a nova capela (IPHAN, 2010, p. 18): “Em
Julho de 1748, o padre Francisco Alves Maia, primeiro vigário de
Caicó, ergueu um Cruzeiro, que daria início a construção da atual
Catedral de Sant’Ana”. Ao passar de capela para Paróquia de
Santana que a Igreja enfrentou inúmeras transformações até sua
finalização sob a administração de Padre Brito Guerra e
encontrava-se neste formato conforme revela a figura 1.

Figura 1 - Igreja de Santana em 1936

Fonte: www.cronicastaipuenses.blogspot.com (2021).

Segundo o levantamento feito pelo IPHAN, atualmente, a


catedral apresenta frontispício curvilíneo, ladeado por duas torres
sineiras. Possui uma porta central, assentada em vão de arco pleno,
ladeada por duas outras portas em vãos de arcos ogivais, todas com
cercaduras de massa. No coro, existem três janelas protegidas por
guarda-copos de ferro. Seu interior é constituído por capela-mor,
naves, coro e pia batismal. A finalização com segunda torre foi

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

223
Novas Fronteiras Culturais

construída em 1955 sob a responsabilidade paroquial de Dom José


Adelino Dantas e pode ser vista na figura 2.

Figura 2 - Atual Catedral de Santana

Fonte: Drone Caicó (2021).

Além da capela, hoje Igreja Matriz e catedral de Santana,


nesse mesmo local está o Arco do Triunfo com a imagem de
Fátima que foi construída na praça Monsenhor Walfredo Gurgel,
quando da passagem dessa entidade no ano de 1953 à cidade de
Caicó sob a gestão também de Dom Adelino. A Igreja tornou-se
catedral e sede da Diocese de Caicó, sendo essa jurisdição religiosa
criada a partir do desmembramento da Diocese de Natal em 25 de
novembro de 1939 pelo então Papa Pio XII. Sua instalação, porém,
só se deu, segundo a Diocese de Caicó, no ano 1940, em 28 de
julho, antes da missa solene da Festa de Santana.
Característica marcante também do caicoense está a
tradição ligada à culinária, reconhecida pela cidade da carne de sol
e do queijo de coalho, o que é consumido localmente, tem forte
influência dos derivados de leite; biscoito de nata, manteiga da
terra, purê de queijo e queijo de manteiga puro. Além disso, há
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

224
Novas Fronteiras Culturais

elementos que ressaltam a idade religiosa; os filhós com mel


consumidos, principalmente, no carnaval e arroz doce feito com
coco e rapadura na quarta-feira da Semana Santa, marcando o
início da abstinência de doces em virtude do jejum exigido nesse
momento religioso. Todos esses alimentos têm por trás do seu
consumo uma historicidade e, em alguns casos, como a carne
bovina e o queijo para além da questão identitária, também
alimentam a economia local.
Compondo a mesa do caicoense, esses produtos são
também símbolos do lugar que junto com o bordado e as
manifestações sociais religiosas marcam a cultura desse povo. O
bordado chegou em Caicó como prática trazida pelas esposas dos
portugueses no final do século XVIII e veio mais especificamente
da Ilha da Madeira, segundo Batista (1988).
Por sua origem familiar, o bordado não era visto como peça
a ser comercializada, como explica Araújo (2015, p. 35):

O bordado, até a década de 40, não tinha o caráter


comercial que existe atualmente. Na época a mulher devia
apresentar características que a classificavam como
senhoras prendadas e uma delas era dominar a arte de
bordar, as peças eram confeccionadas em enxovais de
casamento ou nascimento dos filhos e também para
presentear que significava que havia no lar uma mulher de
bom gosto e caprichosa.

Atualmente, a atividade é comercializada e atinge distâncias


para além da região e sua maior divulgação ocorre na Feira de
Artesanato dos Municípios do Seridó – FAMUSE, que ocorre
dentro da programação da Festa de Santana em Caicó.
A Festa de Sant’Ana da cidade de Caicó reúne ao mesmo
tempo o tradicional; representação da cultura, da fé e devoção do
povo caicoense, assim como a modernidade; tem tomado outras
dimensões, com shows de bandas de forró eletrônico, parques de
diversões e não é mais apenas a festa dos caicoenses, tornando-se

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

225
Novas Fronteiras Culturais

Patrimônio Cultural do Brasil no ano de 2010, segundo o IPHAN


(2010, p. 7):

A Festa de Sant’Ana de Caicó é um bem cultural da mais


alta importância para a vida dos sertanejos do Rio Grande
do Norte, e para pessoas que, vindas das mais diversas
partes do Brasil e do mundo, afluem para o Seridó Potiguar
no período da Festa. São filhos da terra vivendo em lugares
distantes, pagadores de promessa, pesquisadores, curiosos,
juntando-se à comunidade caicoense e seridoense, numa
troca coletiva de experiências culturais e de fé.

Realizada durante os últimos dez dias do mês de julho, a


festa de Sant’Ana cultua a devoção a essa entidade que foi instituída
como padroeira da cidade mesmo antes de ser núcleo urbano,
quando ainda era povoado. A Festa de Sant’Ana marca a vivência
dos caicoenses, bem como daqueles que cultuam a referida
entidade ou que têm parentes no lugar e vêm movidos pela emoção
que os caicoenses demonstram pela celebração desse evento.

Narrativas da cidade: as memórias caicoenses sobre a festa


de Santana

Realizada há 275 anos, a Festa de Santana já pertence à


identidade da cidade. Pensar em Caicó, no contexto histórico, é
destacar os festejos da Padroeira como o grande evento social. A
identidade da cidade seria, por sua vez, aqueles elementos
identitários mais relevantes considerados pelos caicoenses e que
foram se consolidando com o passar do tempo, seja pelas próprias
vivências ou pelas narrativas dos familiares e relatos
historiográficos.
De acordo com a língua portuguesa, as narrativas têm
elementos caracterizadores: tempo, espaço, personagem, narrador
e enredo. Tais narrativas advêm das falas de pessoas do lugar;
também se encontram em livros, revistas e entrevistas que
conversam com o leitor. As narrativas sempre partem de algo ou
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

226
Novas Fronteiras Culturais

evento que já ocorreu, é algo que ficou armazenado na memória e,


ao serem resgatadas, consolidam a história do fato. A memória será
coletiva ou individual e, de acordo com Ricoeur (2007), têm como
objetivo o não esquecimento de eventos, estando ligada ao espaço.
A memória é uma narrativa que busca cristalizar o tempo
e seria “a narrativa para o tempo o mesmo que a arquitetura é para
o espaço”, segundo Silva (2015, p. 35), de modo que o tempo e seu
estudo historiográfico necessitam das narrativas que ocorrem de
modo seletivo, em que se sistematiza o que se deseja guardar do
que é rememorado em livros que contam histórias, por exemplo,
ou de forma aleatória, sendo muito utilizada na busca por conhecer
o acontecer, partindo de um ponto de vista em entrevistas, a título
de exemplo.
No âmbito coletivo, as memórias são revividas através de
rituais que, por sua vez, são práticas culturais que demonstram o
valioso significado de resgatar-se eventos como festas. As festas
passam, desse modo, a ser parte da tradição desse grupo e do lugar
onde se encontram. Esse processo ocorre “[...] ao assimilar o ‘clima
de festa’ e nele se integrar, as pessoas naturalmente introjetam
imagens, que irão nutrir o imaginário da sociedade a que pertencem
e que se reativa periodicamente” (MELLO, 2000, p. 61).
A Festa de Santana em Caicó, por ausência de documentos
oficiais específicos, passou a ser registrada a partir da fundação da
Freguesia da Gloriosa Santana. Certamente, deveria haver
celebrações no âmbito doméstico dos habitantes do lugar. No
entanto, a necessidade de uma capela e da presença de um religioso
faria com que se validasse, de fato, o acontecer social/religiosos
como aponta Brasil (2010, p. 39): “Há uma tendência em
considerar-se a primeira Festa quando da instalação solene da
Freguesia, com título e invocação de Sant´Ana do Seridó, pelo
padre Francisco Alves Maia, em 26 de julho de 1748”.
Naquele momento, a comunidade ainda era pequena e a
festa contava com os rituais religiosos que garantiam a fé para
enfrentar o trabalho rural e as intempéries próprias do lugar. Sobre
como era esse ritual, Brasil (2010, p. 39) revela:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

227
Novas Fronteiras Culturais

Mesmo que ainda hajam lacunas a serem preenchidas nas


fontes oficiais, é possível vislumbrar as primeiras
manifestações festivas se for considerado o contexto
histórico e religioso daquela época. A realização de um
tríduo religioso, pelo menos, deve ter acontecido com a
presença obrigatória dos poucos moradores do lugar e de
seus arredores até uma légua de distância, conforme
determinavam as Ordenações do Reino. Pelo cerimonial
instituído pela Igreja Católica, os atos litúrgicos
possivelmente envolveram repiques de sino, iluminação da
capela, missas, récita de orações, tendo como ponto alto a
procissão conduzindo o andor com a imagem da Santa. O
cortejo provavelmente foi formado pelo sacerdote, seguido
pelos agricultores, criadores e vaqueiros instalados na
Ribeira do Seridó, acompanhados pelos moradores do
Arraial que, compungidos ou alegres, formulavam as suas
preces em meio aos cânticos religiosos.

Segundo esse mesmo documento, os festejos em honra a


Santana vieram a ter maiores solenidades com a criação da
Irmandade de Santana, em 1754, que deixava a cargo dos fiéis
organizar as festividades, demostrando, assim, a sua devoção.
Sempre em conformidade com as recomendações da Igreja
Católica, reproduzindo um mesmo modelo como era indicado por
Roma. À noite, a Matriz era toda iluminada, enfeitada e cheia de
adornos, ressaltando que, no dia seguinte, haveria ritos solenes e
esses momentos eram também para a socialização dos fiéis, sendo
que um fato chama a atenção, segundo Brasil (2010, p. 19): “Por
assim ser, o ato de festejar mereceu por parte do Bispo de
Pernambuco – Dom Thomaz da Encarnação Costa e Lima – em
1777, disposições normativas disciplinadoras[...]”, que visava
orientar sobre a realização das novenas nas casas dos fiéis que
deveriam ser evitadas, além de cantos, danças e atos ilícitos de
acordo com a moral religiosa. Essa medida corretiva faz
compreender que já existiam, naquela época, a irradiação da festa
para não somente no âmbito sagrado.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

228
Novas Fronteiras Culturais

Cabe acrescer que isso se acentua quando da proibição, em


1807, pelo então Visitador Geral e Delegado dos Crismas dos
sertões baixos do Norte, o Padre Inácio Pinto de Almeida e Castro,
das solenidades noturnas na Igreja Matriz e capelas de toda a
Freguesia, abrindo-se exceção apenas para os últimos três dias da
Semana Santa e para a Noite de Natal. Os pesquisadores da época
não tiveram clareza sobre o porquê dessa restrição, mas apontam
duas possibilidades: a primeira seria porque os festejos notívagos
estariam indo de encontro aos ideais da Igreja (oração e penitência);
e que esse horário permitia as transgressões dos bons costumes. A
segunda intenção seria de cortar gastos das capelas e matriz que, ao
serem iluminadas para os eventos noturnos, demandariam um
maior investimento por parte da Igreja.
Essas proibições não duraram muito tempo, segundo
Brasil (2010), pois a Matriz de Santana logo ficou conhecida pelo
esplendor das alfaias e o brilho do Altar, o que indica claramente
que os festejos noturnos tornaram a compor a Festa da Padroeira,
sendo que, desse marco em diante, a devoção a Santa Mãe de Jesus
tornou-se, na Vila do Príncipe como era conhecida a cidade na
época, o momento de maior relevância social, que atraía visitantes
de outras províncias vindos de Pernambuco, Ceará e Paraíba. Na
sequência2 dispõe-se um quadro com o tempo cronológico e os
acontecimentos da Festa durante os séculos XIX e meados do
século XX.
Na década de 1950, os historiadores denotam a
temporalidade de modernidade para os acontecimentos que se
desenrolaram. A festa já estava consagrada não só como símbolo
de devoção desse povo, mas também como momento de grande
comemoração e sociabilidade nos locais não religiosos.
O Clube da Associação de Atletas do Banco do Brasil
(AABB), antes Tênis Clube de Caicó, realizava o Baile dos
debutantes, outros clubes passaram a realizar os grandes eventos a

2Escolhe-se esse recurso para melhor organizar os acontecimentos pois se fosse discutir
por extenso tornaria a leitura mais densa.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

229
Novas Fronteiras Culturais

citar a Associação dos Sargentos e Subtenentes de Caicó (ASSEC).


Por sua vez, aqueles que não tinham condições favoráveis ao
protocolo exigido pela elite para estar nesses lugares podiam
vivenciar a festa no “clube dos Morenos”, como revela Brasil
(2010): “Os segmentos sociais que não tinham acesso aos clubes
das elites (fosse pela condição social ou pela cor da pele)
encontravam nesse clube um ambiente acolhedor, acalorado e
democrático”.
Nesse contexto, em meados da década de 1950, padre
Galvão Celestino mudou a data da festa e instituiu que deveria ser
encerrada no último domingo de julho, esse mesmo calendário é
seguido até os dias atuais, sendo que, em alguns momentos,
extrapola o mês de julho e encerra-se adentrando em agosto. A
partir do percurso histórico da festa e por estar entrelaçada ao
desenvolvimento da cidade, pode-se apreender o quão importante
esta é para os caicoenses e adiante demonstra-se como os
caiocoenses de outrora observavam e viviam esses festejos em
registros que divulgavam a festa de Santana no passado.
O jornal a Fôlha circulou em Caicó entre os anos de 1954-
1962 e trazia semanalmente notícias sobre a cidade, na sua
publicação3 de 31 de julho de 1954 sobre a festa, o cronista se
referia:

Nesta festa de Sant’Ana, quando todos rezam e se vestem,


eu que já me encontro de cabelos brancos, recordo o
passado, as festas de minha meninice. Como são diferentes!
Naquele tempo a cidade que terminava onde hoje se
encontra o mercado ficava apinhada de gente. Na alvorada
chegavam das fazendas as famílias com cavalos gordos e
bem tratados [...]. Era bonito ver-se a entrada da alvorada
na manhã de quarta-feira, pois as viagens se faziam de
madrugada para evitar o calor do sol. Durante o novenário,
saíam às passeatas. As moças vestidas de branco sem

3Essas transcrições foram feitas por Marcos Antônio Alves de Araújo e publicadas em
2010 no artigo Caicó em papel e Tinta na revista Espacialidades.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

230
Novas Fronteiras Culturais

decotes, com mangas que desciam abaixo dos cotovelos,


usavam largas faixas de fitas azul ou encarnada de acordo
com as suas preferências. Era a rivalidade das cores que
despertava tanta emulação [...].

Nota-se o tom nostálgico do cronista que rememora a festa


em outros tempos (na sua mocidade, provavelmente), revelando
que, na memória, já estava como esses dias eram vistos como dias
mágicos, cheios de pompa, as vestes eram renovadas com o
destaque para as moças que se enfeitavam de branco. Observa-se
a relação muito forte com a ruralidade, sendo que os cavalos bem
tratados chamavam a atenção e revelavam a riqueza dos
fazendeiros do lugar. Também verifica-se a necessidade de ser uma
entrada no início do dia, pois as temperaturas logo se elevavam
influenciando no bem-estar dos que prestigiavam os festejos. Mais
adiante, ele trata sobre como as novenas iluminavam o lugar:

Após a novena a luz fumarenta dos candeeiros, expunham-


se os alfenins tão cobiçados. Não se conhecia a luz elétrica.
Não havia retreta. Faltava praça e coreto. No primeiro
domingo de festa, a missa das 10 horas servia para a
apresentação dos vestidos e dos chapéus, dos mais variados
aspectos. Era o desfile da elegância daquele tempo. A tarde
havia o passeio a cavalo, que em parelhas levantavam a
poeira da rua.

A luz usada ainda era dos candeeiros e eles possibilitavam a


sociabilidade, chamando atenção o consumo dos alfenins vindos
de Açu; feito com açúcar, água, limão e clara de ovo, adoçava a
criançada e compunha a mesa de delícias tradicionais do sertão.
Passeando pelas lembranças desse cronista, está a descrição do
parque com cavalinhos e a banda de música da cidade. Ademais,
sobre a festa daquele ano de 1954, ele revela:

A cidade cresceu unindo os dois rios Seridó e Barra Nova.


Em vez de cavalos médios e lustrosos, os caminhões

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

231
Novas Fronteiras Culturais

poeirentos e roncadores. As passeatas desapareceram. Os


candeeiros se apagaram. A matriz foi modelada. Acabaram-
se as tribunas e todos se nivelaram na igualdade dos lugares,
sem privilégios. Os desfiles de moda são realizados nos
clubes, em festivais de caridade.

Essa descrição finaliza com a interrogação do escritor “não


sei quais as festas melhores se as de hoje, se as do meu tempo”,
demonstrando, com clareza, as mudanças que o tempo traz à vida
e como a lembrança da festa liga-se indissociavelmente à ideia que
se tem do pertencer ao espaço e ao evento, pois, como ele aponta,
no meu tempo era “diferente”, talvez melhor?! Percebe-se como as
vivências cristalizam-se no imaginário e revelam a importância da
festa.
Já na edição de 28 de julho de 1956, o jornal retratava o
encerramento da festa, declarava que o caicoense aprendeu a amar
Santana e prossegue, “quantas vezes de mãos postas e joelhos no
chão fizemos as súplicas mais confiantes e quem pode enumerar
os momentos em que sentimos a certeza de sua proteção?”.
Santana ajuda-nos, consola-nos e encoraja-nos sempre. É mãe de
todos os caicoenses, proclama o cronista. A festa é retratada como
pode-se ver na figura 3:

Figura 3 - Exemplar digitalizado do jornal a Fôlha de 28/07/1956.

Fonte: acervus.ufrn.br (2021).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

232
Novas Fronteiras Culturais

Nos últimos anos de publicação do Jornal, a Festa é


fielmente retratada e anunciada, em 29 de julho de 1961, o
periódico assim expõe: “A família caicoense viverá amanhã o seu
dia de gala na história de sua vida religiosa – a festa de sua
Padroeira”. E prossegue: “Senhora Santana – seja essa festa mais
uma prova de amor que vos dedicam todos os filhos desta
terra[...]”. Em 28 de julho de 1962, há o registro: “S. Ana é a luz
que guia a história de Caicó na sua caminhada duas vezes secular”.
E continua o escritor: “A festa de S. Ana é sempre um motivo de
congraçamento[...] É a satisfação dos filhos que corre para junto
da mãe que os acolhe no mesmo abraço de amor”. A imagem de
S. Ana está plantada no coração da terra”.
É interessante como, na linguagem jornalística da época,
usava-se muito a figura de linguagem da personificação para
ressaltar a sentimentalidade em torno de uma figura simbólica, que
é a entidade religiosa. É vista como mãe, como acalento, ternura e
suporte para seguir na vida dura dos sertões norte-rio-grandense.
Vivenciar e contribuir para a festa é prova de amor dos filhos para
com a Grande mestra e a imagem está no coração da terra, fortalece
a ideia de que o caicoense leva sua imagem no peito como deve ser
num devoto fiel.
Também revistas eram responsáveis por informar os
caicoenses sobre as notícias, dentre elas, revista Minha Caicó, o
Balaio e o Seridoense. Na edição de julho de 1997, a Revista O
seridoense, assim, revela, nas palavras de Almir Macêdo:

Nossa cidade está em Festa. A festa maior da nossa terra e


de nossa gente [...] Todos os sentidos e direções que
Sant’Ana sugerir, não poderão fugir ao autêntico
significado e à destinação única de uma fé [...] Essa é a fé
do homem sertanejo. Do homem seridoense. Do homem
caicoense [...] Caicó “vive” Sant’Ana o ano inteiro. Nestes
dias de fim de julho, existe o encontro marcado de cada um
e de todos com a Senhora, duplamente mão, porque é avó
do filho único de Deus, por natureza, e de todos nós seus
filhos adotivos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

233
Novas Fronteiras Culturais

No ano de 2000, no periódico Caicó em revista,


Monsenhor Antenor Salvino, assim, saúda aos filhos de Santana
quando da realização de mais uma festa: “Sant’Ana sombreia cada
filho e heróis destes sertões! Se longe ganhais o pão de cada dia
com vossas mãos, vosso olhar divulga a efígie de Sant’Ana no altar
de vossas origens”. Nessa fala, o religioso ressalta a importância
para os visitantes que são filhos da terra e que, mesmo longe,
retornam para participar mais uma vez das comemorações da
grande festa de Caicó. Ele comenta mais adiante como a casa
alarga-se para receber todos os filhos, o povo santo como se refere
e são santos porque são netos daquela que é mãe da graça e do
perdão.
Quando da festa de julho de 2006, na revista O Balaio,
Diego Vale, no texto intitulado Minha, sua, nossa Senhora
Sant’Ana, assim, expressa-se:

Sant’Ana, mãe da luz. Mãe de uma terra banhada pelo sol.


Sol que queima o rosto do sertanejo, mas aconchega um
horizonte de esperança por dias gloriosos [...] temos um
apego a Sant’Ana, gritamos por ela e levantamos a nossa
única bandeira [...] a bandeira da fé, o estandarte de Caicó,
da minha, da sua, da nossa Senhora Sant’Ana. O que nos
cativa e cativa o mundo é um povo apaixonado e
apaixonante, devoto de Sant’Ana, padroeira e alma da
cidade.

Para as comemorações de 262º ano de fé e devoção a


Santana, o editor da revista O Seridoense Almir Macêdo, em julho
de 2010, destacava que mais uma vez os caicoenses viviam seus
dias mais felizes do ano, que as famílias enchiam-se de júbilo e
associava o ano de boas chuvas às bênçãos da padroeira: “[...] esse
ano de modo especial, há uma visível e contagiante manifestação
de contentamento, que se traduz em forma de graças à nossa
Padroeira pela abundância das chuvas”. Ademais, prossegue
associando que seria uma espécie de compensação e
reconhecimento pela resistência do homem seridoense.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

234
Novas Fronteiras Culturais

Nota-se que quase todas as falas retratam a associação da


santa à figura de protetora, de acolhedora. A sociedade de Caicó
orgulha-se de ser tradicional, de manter as raízes de suas origens e
isso está muito ligado à religiosidade, como disse a poetisa mais
acima não se sabe quem nasce primeiro a devoção à santa ou povo
do lugar.
Além disso, mesmo distante, o retorno para a festa denota
a emoção de pertencer ao lugar, saborear as comidas, reencontrar
parentes e amigos, rememorar um tempo que se passou, mas que
é revivido pela simbologia que representa o acontecer festivo e a
própria imagem da santa. A Santana de Caicó é uma forma
simbólica. Para Corrêa (2006), as formas simbólicas podem ser
materiais ou imateriais, eventos e manifestações que expressam a
fé e são a motivação para o culto à entidade religiosa.
As pessoas desfilam, cantam, dançam, gritam, mostram-se
em espetáculo. Esses momentos para muitas localidades são o
acontecer de maior destaque, pois redimensionam o urbano que se
veste de novas cores, organiza eventos tanto sagrados quanto
profanos. Isso fica claro ao olharmos para Caicó, o fim do mês de
julho de cada ano revela essa efervescência socioespacial que
edifica, organiza, constrói, destrói e reconstrói espaços e práticas
sociais.

Considerações finais

Em todo o estado do Rio Grande do Norte, a religiosidade


católica está presente, bem como suas formas de manifestação. As
maiores manifestações são pelas festas de seus padroeiros, cada
cidade foi, ao ser criada, batizada com um santo que se torna sua
devoção, sempre ligado a lendas ou histórias místicas, essas
entidades tornam-se o estandarte espiritual de quem pratica a
religião. Em Caicó, a santa reverenciada é a Gloriosa Senhora
Sant’Ana que é a avó de Jesus e avó por afeição religiosa da maioria
dos caicoenses que cultuam sua importância.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

235
Novas Fronteiras Culturais

O caicoense é também um seridoense e, por ser assim,


como já apontava em sua tese Morais (2005), um resistente e parte
dessa figura criou-se pela sobrevivência não apenas às intempéries
climáticas, mas também ao desenrolar dos tempos marcados por
quedas e ascensões de diversas bases econômicas, o que revela o
apego à entidade. A cidade de Caicó é enredada pelos mesmos
ensejos políticos e sociais que criaram o Seridó. Seus habitantes, os
caicoenses, representam a força do homem do sertão que desbrava
essas terras para a implantação da pecuária e, nesse cenário, é
construída a fé/religião, a culinária e a cultura local.
A cidade é conhecida por produtos regionais como o
bordado, que é referência não só no cenário local, mas abrange
uma escala nacional e chega a ser importado até para outros países,
segundo as artesãs do lugar, o valioso desse bordado é que ele
apresenta um avesso perfeito, no qual as peças têm uma
acabamento de luxo e cuidado que revela o trabalho minucioso,
que era feito manualmente; a carne de sol e o queijo também são
produtos conhecidos do lugar, remetem ainda à qualidade do gado
e ao modo de produção dos seus derivados quando essa era a
principal atividade da cidade.
Sua religiosidade atrelada ao catolicismo revela como
espaços são criados e recriados anualmente em decorrência da
festa. Este trabalho evidenciou como, historicamente, essa relação
de devoção foi tecida e quais as marcas que imprime ao lugar, desde
a criação da capela, depois a catedral, até os espaços simbólicos
como a procissão e a feirinha de Santana que só ocorrem em
detrimento dos dias festivos. Muito ainda se pode analisar sobre
esse fenômeno e sua irradiação cultural econômica e espacial, que
versa sobre o impacto que as ações sociais construídas pelo tempo
organizam e transformam os lugares.

Referências

ALVES, I. A festiva devoção no Círio de Nossa Senhora de


Nazaré. Estudos Avançados 19 (54), p. 315-332, 2005.

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Novas Fronteiras Culturais

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

238
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 14
FESTA DE SÃO SEBASTIÃO NA
BOCAINA EM SANTO ANTÔNIO DE
LEVERGER-MT

Bernadeth Luiza da Silva e Lima

São Sebastião Santo


De Jesus querido
Livrai-nos das pestes
E de todos os perigos.
(Domínio público)

Introdução

Este estudo tem, como objetivo, evidenciar a importância


da festividade dedicada a São Sebastião cuja finalidade consiste em
divulgar essa devoção à Comunidade de Bocaina, pertencente ao
município de Santo Antônio de Leverger-MT, e que foi realizada
no período de 2020, no Salão Comunitário.
O estudo mostra considerações significativas do lugar e,
para tanto, foi realizado o levantamento bibliográfico e
documental, relacionado ao tema e à área de estudo através de
jornais, poesias, artigos, livros, dentre outros. Cabe fazer a
abordagem sobre as conversas informais e entrevistas com os
devotos que participaram dos festejos de São Sebastião no período
de agosto a dezembro de 2019.
Sabe-se que a paisagem, o lugar e as festividades estão
intimamente relacionadas. Assim, Tuan (1983) destaca que o
“lugar-mundo-vivido” possui o movimento do cotidiano e da

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

239
Novas Fronteiras Culturais

história, mas é visto, sobretudo, como “pausa”, o que revela a


construção da familiaridade pelo encontro das experiências em
comum. Alguns moradores, de acordo com suas narrativas, têm a
relação simbólica com o lugar, com a comunidade, com os espaços,
agregando sentimento de pertença, resistência, aconchego e
práticas de grandes singularidades.
A Comunidade de Bocaina localiza-se atrás do Morro de
Santo Antônio, tombado por lei estadual 7.381/01 de 2002 da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente - SEMA, hoje considerado
patrimônio ambiental, distante 35 quilômetros de Cuiabá, está a
500 metros acima do nível do mar. Sua imponência é um dos
cartões postais do município, margeado pelo rio Cuiabá e o
Pantanal. As paisagens naturais são marcadas pelos elementos que
dão profundo significado ao lugar, que é a beleza do “Morro de
Santo Antônio”, e os cerrados.
No tocante à Comunidade de Bocaina, Maria do Carmo da
Silva Sigarini destaca que, nesse lugar, a maioria das pessoas é
aposentada então elas trabalham na área rural, criam galinha, têm
criação de peixe, plantam mandioca, abóbora e vários tipos de
frutas e verduras, assim sendo, elas vivem da agricultura familiar.
Constam dos registros dessas terras rurais que, no século
XIX, faziam parte das Sesmarias de Furnas, as áreas rurais de
Bocaina, Engenho Velho e Miguel Velho. Em 1850, as Sesmarias
foram legalizadas através da doação e ocupação efetiva das terras e
os ocupantes puderam demarcá-las por meio de medição,
posteriormente, efetivaram os pagamentos de impostos e taxas
legitimando sua propriedade. Por volta de 1892, recebeu o nome
de Gleba Bom Jesus, pelo Instituto de Terras de Mato Grosso –
INTERMAT.
Cabe referir à noção de lugar festivo argumentada por
Ferreira (2003), que sugere que o lugar festivo é uma das
manifestações espaciais que produzem sujeitos e educações
espaciais que transmitem saberes e técnicas entre gerações e
constrói/mantém identidades sócio-territoriais.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

240
Novas Fronteiras Culturais

A festa de São Sebastião na Comunidade de Bocaina é um


campo privilegiado para compreender-se a importância das
diversas formas de sociabilidade, as quais implicam dimensões
educativas presentes na comunidade e que revelam suas marcas
culturais e de identidade na sua forma de agir, de pensar, de ser e
de estar no mundo.
A sociabilidade decorrente da ajuda mútua acontece por
necessidades concretas de sobrevivência. Essas relações tornam-se
ainda mais importantes no âmbito cultural, pois é a partir delas que
as tradições e práticas culturais sobrevivem, repassando-as de
gerações em gerações para que se (re)afirmem enquanto
comunidade. Nessa perspectiva, para Claval (1999, p. 44):

[...] ao viver em comunidade ou sociedade, os saberes e


culturas que impermeiam essas relações são repassadas às
gerações seguintes mantendo, de certa maneira, a
reprodução da vida em sociedade, garantindo assim o
sentido de viver em comunidade. Sentidos os quais são
culturais e são compartilhados entre famílias e vizinhanças.

As festividades são temporárias, sendo representações do


sagrado e do profano, representam símbolos territoriais que
identificam e qualificam os lugares e as paisagens, conforme
Almeida (2011), onde acontecem os festejos de forma marcante,
criando significados e valores culturais. Assim, os festejos de
Sebastião na Bocaina expressam as formas identitárias de grupos
sociais, em que o motivo de encontro, de fé ou simplesmente de
celebrar, identifica os devotos com a mesma identidade.
Castells (1999), em seus estudos acerca do poder da
identidade, orienta a abordagem acerca do processo político de
construção da identidade coletiva presente na Comunidade de
Bocaina. O autor em seus estudos aponta “[...] uma vez que a
construção social da identidade sempre ocorre em um contexto
marcado por relações de poder” (CASTELLS, 1999, p. 24).
A festa religiosa de base popular torna-se, portanto, parte
do cotidiano daqueles que a elaboram e realizam, tanto quanto
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

241
Novas Fronteiras Culturais

daqueles que simplesmente a vivenciam. Neste sentido, a festa em


louvor a São Sebastião, na comunidade de Bocaina, não significa
rompimento instantâneo com o cotidiano, pois os sujeitos
envolvem-se no tempo da festa. Em alguns momentos, muitos
moradores dedicam seus trabalhos à preparação da festa, aos seus
símbolos e rituais. Neste caso, as atividades referentes ao trabalho
e aos festejos complementam-se, sinalizando que as regras sociais
continuam presentes na festa. Para Rosa (2002, p. 24):

Como forma de lazer, a festa denota sentidos e significados


diversos, como ordem, desordem, diversão, trabalho,
segurança, conflito, devoção, convivências, efervescências,
excesso, ambiguidade, gratuidade e espontaneidade.
Tempos e espaços festivos tem enunciados, dentre suas
características peculiares, como um local e um tempo, mas
não é uma experiência desestruturada socialmente, nessa
atividade, outras regras são estabelecidas, mas não se
rompe com as cotidianas. Não vejo, pois, a festa como uma
transgressão. Beber, comer, namorar, dançar e divertir são
ações cotidianas, mesmo ocorrendo na festa de forma
ampliada.

A existência de tais festejos religiosos apresenta-se como


manifestação mais facilmente notável, por seu caráter festivo e
público, de redes de relações sociais e de solidariedade criadas por
laços de vizinhança, parentesco, comunhão religiosa na
Comunidade de Bocaina, no seu entorno, e Região Metropolitana
do Vale do Rio Cuiabá. Assim, a festa pode ser compreendida
como parte da vida de quem a vivencia na sua elaboração,
organização e realização, como também um momento de
congraçamento entre pessoas que se identificam com o que está
sendo celebrado através dos rituais, os quais caracterizam, de modo
particular, a maneira de ser e de viver de uma sociedade.
Segundo Mendes (2010, p. 19), “[...] o culto ao santo
constitui uma das principais manifestações que envolvem as
crenças e práticas dos fiéis e devotos”. O culto a um santo numa

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

242
Novas Fronteiras Culturais

espacialidade é sempre datado historicamente e descortina uma


série de manifestações materiais e simbólicas. A partir da
experiência religiosa, pode-se compreender a organização espacial
afetada pela religiosidade. Neste aspecto, se estabelece como
territorialidade que tem São Sebastião como ponto de referência
para que se possa olhar e apreender as relações que solidificam
durante os festejos do santo na Comunidade de Bocaina em Santo
Antônio de Leverger.
Para aprofundar a discussão sobre a conceituação das festas
é importante observar que estas são atos coletivos, que
demonstram a força e a participação de uma coletividade, como
aponta Rosendahl (1999, p. 42):

As festas religiosas, procissões e romarias são as práticas


mais sensacionais da religião popular. Esses eventos
merecem ser estudados pelo seu caráter aglutinador de
pessoas, centrado no santo padroeiro, no costume local, na
tradição religiosa herdada do colonizador.

As festas religiosas são fatores de destaque entre essas


populações. Maia (1999, p. 204) define-as como: “[...]
manifestações culturais que se caracterizam, entre outros aspectos,
por serem eventos efêmeros e transitórios, perdurando algumas
horas, dias ou semanas”. Elas estão ligadas à religiosidade e ao
costume de “pagar” e de “fazer” promessas.
De acordo com Rosendahl (1999, p. 61), “[...] a prática
religiosa de “fazer” e “pagar” promessas constitui uma devoção
tradicional e muito comum no espaço sagrado dos santuários
católicos”. A realidade vivida pela comunidade da Bocaina está
ligada ao seu comportamento religioso, e tal comportamento está
arraigado ao seu modo de vida, conforme Durkheim (1989, p. 68):

[...] todas as crenças religiosas conhecidas, sejam elas


simples ou complexas, apresentam um mesmo caráter
comum: supõem uma classificação das coisas, reais ou
ideais, que os homens representam, em duas classes ou em

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

243
Novas Fronteiras Culturais

dois gêneros opostos, designados geralmente bem, pelas


palavras profano e sagrado (DURKHEIM, 1989, p. 68).

O profano no contexto da realidade da comunidade de


Bocaina é ainda mais difícil de ser percebido, pois não há separação
do seu modo de vida entre o sagrado e o profano, os
acontecimentos relacionados à fé e à devoção é que vão determinar
a existência do sagrado e do profano.
O surgimento das múltiplas territorialidades durante os
festejos religiosos permite o surgimento do espaço profano, que é
algo adverso ao apresentado no sagrado, “[...] o sagrado e o
profano se opõem e, ao mesmo tempo se atraem. Jamais, porém,
se misturam”, conforme Rosendahl (1996, p. 31). Isso conota uma
imbricação desses espaços, embora de natureza paradoxal, eles
modelam os territórios durante o período festivo.
A comunidade de Bocaina cumpre suas promessas e graças
recebidas na forma de festa religiosa em homenagem ao São
Sebastião, almoços, missas, procissões, novenas, entre outras
atividades. Como forma de agradecer, a devoção representa uma
renovação, um reinício das atividades do dia a dia, porém, em
outros casos é o agradecimento por uma causa perdida ou a
recuperação da saúde.
Por meio desse simbolismo religioso e pelo caráter do
sagrado atribuído ao espaço, pode-se denominar esses locais, de
acordo com Rosendahl (1999), como os centros de ligação ou
micros santuários, os quais são espaços de convergência, marcados
por tempos (de festividades) próprios de cada local.
As atribuições dadas ao espaço e à forma de organizar-se
nele estão ligados à cultura e modo de vida da população. Na
comunidade de Bocaina, as crenças, os mitos e a religiosidade
destacam-se dentro da cultura, tornando-se fatores responsáveis
pela organização socioespacial da comunidade e de toda a
comunidade no seu entorno.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

244
Novas Fronteiras Culturais

Início da devoção a São Sebastião

A devoção a São Sebastião aconteceu por iniciativa do casal


Abdão Pedroso da Silva e Rita Rodrigues de Souza, assim como os
seus filhos Maria Florência, Emiliano Pedroso e Atalia Pedroso,
que fizeram a promessa para não morrer de pestes as galinhas, os
bois ou quaisquer outros animais, e que seria ofertado o melhor
animal viçoso e forte para que todos os presentes pudessem
externar seu profundo amor, respeito e devoção à tradição com
uma reza e, depois, a festa ganhou notoriedade.
Emiliano Pedroso da Silva, conhecido carinhosamente pelo
apelido de Galego, antes do seu falecimento, solicitou que a filha
Maria do Carmo Silva Sigarini continuasse a devoção e que fosse
realizado de acordo com suas orientações do passado.
A entrevistada Maria do Carmo Silva Sigarini, 68 anos,
natural de Santo Antônio de Leverger, relata que, desde a infância,
participa dos festejos em honra a São Sebastião por iniciativa dos
pais Emiliano e Leonina. Aprendeu amar, rezar e agradecer
dizendo que, no começo, havia muita simplicidade. Hoje, a festa
tem uma logística maior com duração de três dias com louvores,
missa, procissão, atividades culturais formadas pelos membros da
Bocaina e comunidades vizinhas, dentre outros. Descreve a
experiência de ser festeira:

Nasci e criei em Santo Antônio de Leverger na


Comunidade de Bocaina e, com 10 anos, vim para Cuiabá
estudar. E continuo fazendo parte da comunidade. Os
nossos antepassados que faziam a festa e então abracei com
amor e devoção a pedido do meu Pai para dar continuidade
na festa de São Sebastião e não deixar morrer a tradição.
Por isso, continuo na comunidade e hoje, aposentada,
moro aqui e sou uma das líderes da festa de São Sebastião
[...]
A comida deve ser doada para a comunidade e todos os
visitantes da festa. Os cururueiros, de acordo com o Vô Galego,
teriam um tratamento diferenciado, sendo bem acolhidos e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

245
Novas Fronteiras Culturais

receptividade com amor e alegria pelos membros do lugar e seria


reservado desde ao anoitecer no sábado ao amanhecer do dia
seguinte que seria o domingo, momentos de intensas festividades
com a função que é chamada pelos cururueiros, realizando a
descida do mastro, sendo que, no dia seguinte, é ofertada mesa com
chás, bolos, biscoitos e quebra torto para eles.
Os períodos que antecedem as festividades são cheios de
alegrias, fé, orações, novenas, louvor, em honra a São Sebastião,
segundo a tradição, “para o Santo homenageado tudo tem que ser
de melhor qualidade”. As lenhas do cerrado são tiradas três meses
antes do acontecimento pelos devotos de promessas, pois o mês é
verão, tipicamente, chuvoso. Há uma preocupação dos membros
da comunidade em mantê-las secas, empilhadas e cobertas para não
molhar, sendo usadas no preparo dos alimentos durante o período
festivo. Há um envolvimento de todos no trabalho, na
organização, na limpeza do salão e de suas dependências
(despensas, cozinha, banheiros) em torno do salão. A
ornamentação é realizada com bandeirolas, cartazes e banners e,
nesse período, faz-se a reza do terço com louvores, cenáculos que
são realizados no salão comunitário.
Para a realização da festa de São Sebastião, na comunidade
de Bocaina, tudo é preparado com antecedência. As reuniões que
antecedem a festa começam no mês de julho, quando os festeiros
e equipe de coordenação deliberam os eventos e promoções que
serão realizados para arrecadar fundos para a concretude da festa.
No mês de novembro, é deliberado o cardápio e são distribuídos
os encargos diretos aos festeiros.
A coordenação das festividades hoje é da responsabilidade
de Geraldo Régis de Lima e Maria do Carmo Silva Sigarini, em
conjunto com os festeiros para organizar as equipes de trabalho,
sendo as principais: decoração do Salão de festa, onde é realizada
a celebração litúrgica e demais atos festivos; preparação e oferta do
café da manhã de domingo; produção dos doces que serão servidos
no decorrer da festa; cozinha que cuida dos pratos que serão
servidos no decorrer da festa, observado o cardápio previamente

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

246
Novas Fronteiras Culturais

aprovado; limpeza e higienização do espaço físico; contratação das


bandas musicais e sonorização para fazerem a animação da festa;
reunião, transporte e alimentação dos cururueiros; barraca do
pastel; barraca do bolo de arroz; barraca de camisetas e rifas;
vigilância e segurança; recepção e acolhimento; grupo de siriri Flor
do Cerrado: mirim e adulto, entre outras.
A presidente da Associação dos Devotos de São Sebastião
da Comunidade de Bocaina – ADESSCOB é Maria do Carmo Silva
Sigarini e o vice-presidente falam com orgulho do papel que
assumem na festa. Nesse sentido, o entrevistado Geraldo Régis, 63
anos, natural de Alpinópolis-MG, destaca a importância da
festividade, sendo gratificante, na sua realização, o compromisso
festivo para a manutenção da tradição cultural. No tocante à sua
participação na festa, ressalta:

Como um dos coordenadores assumo com


responsabilidade esse compromisso, com fé, devoção e
amor ao Glorioso São Sebastião a tarefa a mim confiada.
Fui eleito pela comunidade de Bocaina para ajudar nas
festividades e para compor a diretoria da associação
auxiliado nas promoções e eventos. Como devoto, fui
agraciado por ter família estendida pelos membros da
Comunidade e recebi a graça de ser aprovado no concurso
público e também no tocante à saúde da família com a cura
da minha esposa, grande cirurgia das mamas.

A procissão na Bocaina

São Sebastião Santo


Do céu alto e Claro
Roga contra as pestes
Por seu filho amparo (BIS)

A procissão é realizada no dia da festa, no sábado, às 7h30


min, saindo do salão comunitário e percorrendo a pé pela estrada,
passando de casa em casa, com alegria, oração, súplica e louvor,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

247
Novas Fronteiras Culturais

com a reza do terço, indo em direção à casa dos festeiros daquele


ano. A comunidade de Bocaina recebe a caminhada dos devotos
de São Sebastião provenientes das localidades próximas, que vêm,
em romaria, para a missa e para participarem da festa.
O andor de São Sebastião percorre em procissão as casas
dos festeiros em Bocaina, com a reza do terço acompanhada pela
música tocada pela Banda da Polícia Militar. Ao retornar, a imagem
de São Sebastião é colocada em um pequeno altar ornamentado
com flores, juntamente com a imagem de nossa Senhora.
Em cada casa que passa, são levados o andor com a imagem
do Santo Padroeiro “São Sebastião”, a bandeira, assim como os
ramalhetes que fazem parte do ato festivo. Nas casas, fazem uma
oração e as bênçãos do Santo Milagroso, o que é deixado para ser
estendido a todas as famílias que abrem a porta para entrar.
Em Bocaina, no sábado, é realizada a Missa solene em Ação
de Graças ao Glorioso São Sebastião, com queima de fogos de
artifício e procissão em direção à casa dos festeiros que residem na
Comunidade de Bocaina. Toda essa cerimônia é realizada com
acompanhamento de uma banda da Polícia Militar que toca os
cantos processionais e os devotos que acompanham, cantam com
alegria, recitando o terço.
Logo, em seguida os festeiros e convidados vão para o
salão, onde é realizada a Santa Missa, com intensa participação e
devoção dos convidados presentes. O salão é todo enfeitado com
bandeirolas, chitão e arranjos de flores naturais.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

248
Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 - Parada da procissão na casa da festeira Maria do Carmo

Fonte: Bernadeth Lima (2012).

Manifestações culturais na Comunidade de Bocaina

Ao longo do tempo, são realizados, na Comunidade de


Bocaina, projetos culturais durante três anos consecutivos, com o
apoio da Secretaria Estadual de Cultura, valorizando as tradições
locais. Conforme Maria do Carmo da Silva Sigarini, existem ações
de valorização da cultura local desenvolvidas por filhos e amigos
da comunidade. Assim, de acordo com as informações da
entrevistada:

Tem várias iniciativas para ação cultural, tem a professora


Bernadeth, o pessoal da comunidade que participa. São
filhos da comunidade e participam do cururu, siriri, o
rasqueado cuiabano, todos gostam e trabalham para que
isso não morra.

O acontecimento festivo é de grande interatividade e


criatividade, com os saberes e vivências típicas do meio rural e as
riquezas da festa, que preservam as tradições culturais, ou seja, o
cururu e o siriri. Algumas considerações são tecidas como tradições

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

249
Novas Fronteiras Culturais

seculares e de origem indígena que ocorrem nas comunidades


rurais dos Pantanais e dos Cerrados. Essas danças têm a viola-de-
cocho como elemento essencial. Este é instrumento musical
singular, produzido exclusivamente de forma artesanal, utilizando
um tronco de madeira inteiriça, esculpida no formato de uma viola.
Teve seus modos de fazer relatados no livro de registro dos saberes
e foi reconhecida como patrimônio cultural brasileiro pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN
em 2005 (ROMANCINI, 2005).
A festa, conforme narra Maria do Carmo da Silva Sigarini,
é organizada mediante lideranças locais:

A liderança são várias pessoas que fazem parte. Temos uma


associação dos devotos de São Sebastião. Temos um grupo
de pessoas que trabalham em prol da festa. Netos, bisnetos
e parentes e amigos e as pessoas que fazem parte da
comunidade. (Entrevista realizada em 2012).

O recurso arrecadado com os projetos foi aplicado para a


confecção de roupas, decoração, arranjos do grupo e
ornamentação do andor, bandeiras, bandeirolas, pagamento de
coreógrafo, dentre outros. Para os participantes do grupo, estar
envolvido nessa atividade cultural é muito importante. Esse
sentimento de pertencimento constitui a essência da comunidade.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

250
Novas Fronteiras Culturais

Figura 2 - Banner da divulgação dos Grupos Flor do Cerrado


Juvenil e Adulto Festa de São Sebastião Bocaina

Fonte: Bernadeth Lima (2014).

A dança do siriri deve ser mantida todo domingo para


conservar a tradição do lugar. O mês de janeiro é sagrado e bastante
movimentado na comunidade de Bocaina, pois, no dia 20
comemora-se “São Sebastião”, padroeiro do lugar. Há uma grande
responsabilidade dos festeiros, devotos, colaboradores e
moradores no envolvimento e preparação festiva.

Missa no salão comunitário da Comunidade de Bocaina

São Sebastião
Santo Seu nome se encerra
Livrai-nos das pestes
De fome e de guerra...

A preparação para a missa na Bocaina conforme os estudos


realizados por Ribeiro (2004) estão literalmente em conformidade
com os símbolos e a identidade do lugar, é expressão de uma

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

251
Novas Fronteiras Culturais

comunidade que se reúne por interesses comuns pela fé, ou apenas


para celebrar.
Neste sentido, a missa festiva realizada no salão
comunitário da Comunidade de Bocaina, tem intensa participação
dos fiéis e devotos como também das comunidades vizinhas. Há
participação dos visitantes de Cuiabá, como também de outros
estados e até de turistas, assim, a Bocaina tem atrativo turístico
cultural para o enriquecimento das atividades proporcionando
motivações dos participantes.
Antes da pandemia do Covid 19, as reuniões realizadas na
Comunidade de Bocaina eram intensas com manifestação do
sagrado em tudo que existe no lugar, através dos encontros
marcados todos os sábados, em que a comunidade reúne para fazer
o cenáculo através da reza do terço, consagração à Nossa Senhora.
Os homens reúnem-se desde o ano de 2012 aos sábados às 7h da
manhã diante da Imagem de Jesus Misericordioso, São Sebastião e
Nossa Senhora para rezar o terço da divina misericórdia, oração de
Maria Passa na Frente, Oração de Cura e Oração de São Sebastião.
Os ritos da missa festiva são preparados com carinho e
muito esmero, tudo de melhor com arranjos de flores, toalhas
brancas, velas, galhetas com água e vinho, ministério de música,
testemunhos, ornamentação do salão, com enfeites, bandeirolas, o
altar do santo enfeitado com as cores: branco, vermelho e amarelo,
a cruz, a Bíblia Sagrada.
Todos os festeiros são envolvidos na participação como as
leituras, a oração da Comunidade, a coleta e o ofertório. Na
celebração eucarística, tem oração em honra a São Sebastião,
cântico em louvor ao santo, ocorrendo também a aspersão da água
e, no final da celebração eucarística, a bênção da água, sal, velas,
óleo e os testemunhos através da intercessão de São Sebastião na
cura das doenças.
Todos os domingos, ocorre a celebração da palavra no
salão comunitário e há a missa, que é realizada aos segundos
sábados do mês com a participação do pároco do município de
Santo Antônio de Leverger.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

252
Novas Fronteiras Culturais

Há mais de 20 anos, é realizada missa em homenagem à


Nossa Senhora Auxiliadora no mês de maio, a convite do saudoso
Pe. Firmo Pinto Duarte Filho (in memoriam), que realizava as missas
festivas na Bocaina e pediu para que, todos os anos, a Comunidade
se deslocasse fazendo uma romaria rumo ao Santuário de Nossa
Senhora Auxiliadora em Cuiabá, agradecendo a Deus e à Virgem
Maria por todos os benefícios recebidos.
Atendendo ao chamado, todos os anos, a Comunidade de
Bocaina participa da missa, realizada às 19h com fervor e alegria,
trazendo cestas dos frutos da terra, queijo, leite, doces, biscoitos,
bolo de arroz e pães, que, ao final da celebração, são oferecidos aos
fiéis, quando duas crianças da Bocaina fazem a coroação de Nossa
Senhora Auxiliadora.
O ensinar e aprender na Comunidade de Bocaina é de
grande significado e conta com a reza do terço, orações em louvor
a Deus, fazendo novenas, adorações. Tudo é realizado com muito
amor e fé. A tradição e a valoração dos antepassados enriquecem
tudo o que acontece no lugar. Através de reuniões, encontros,
visitas com intensa familiaridade e hospitalidade marcantes pelos
grupos sociais do lugar propiciam uma aprendizagem contínua,
havendo sentimento de pertencimento, afetividade, familiaridade e
relações de poder.

Considerações finais

A festa de São Sebastião na comunidade de Bocaina está


ligada à sobrevivência da comunidade tradicional em manter a fé,
religiosidade e cultura dos antepassados. O lugar é marcado pela
identidade e memória inseridas no grupo para preservação dos
valores e vivências presentes no espaço territorial. É
impressionante a intensidade da devoção, concretizando seus
clamores sociais, originando espaços diferenciados, o sagrado e o
profano. Entende-se que a religiosidade é um fator de fundamental
importância na produção do espaço e na festa religiosa de São

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

253
Novas Fronteiras Culturais

Sebastião, visto que as representações sociais e culturais são


evidentes.
As atividades da festa religiosa de São Sebastião são de
expressividades e suas identidades apresentam uma relação forte
com o santo padroeiro. Essas festas são instantes de alegria,
integração, em que o santo é cultuado e celebrado, há um
estreitamento dos laços afetivos marcados pela fé dos devotos e
agradecimentos dos festeiros de promessas por graças alcançadas,
bem como renovação dos pedidos que fazem à imagem do santo
protetor, revivendo a memória dos antepassados a cada ano.
São Sebastião é um santo que emerge das mais profundas
e variadas formas de devoção e fé. Neste sentido, as práticas
festivas são fundamentais do ponto de vista da organização social,
política e cultural e para a manutenção de vínculos afetivos e
identitários da comunidade de Bocaina em Santo Antônio de
Leverger. Ao analisar a festa, entende-se que esta é carregada de
simbolizações impressas no espaço, constituindo a paisagem e a
cultura que dão suporte à memória religiosa e fazem emergir as
relações de cooperação, além de suas variadas formas de
sociabilidade, marcas culturais significativas e difundidas durante
os festejos realizados na comunidade.
A festa de São Sebastião na Comunidade de Bocaina é um
campo privilegiado para compreender-se a importância das
diversas formas de sociabilidade, as quais implicam dimensões
educativas presentes na comunidade e que revelam suas marcas
culturais e de identidade na sua forma de agir, de pensar, de ser e
de estar no mundo. Os festejos religiosos da comunidade de
Bocaina são carregados de expressividades em suas identidades e
territorialidades ao apresentar as diversidades de manifestações
culturais presentes, como as danças, rezas cantadas, missas,
novenas, procissões, culinária local e devoção ao santo padroeiro,
São Sebastião. Nessa perspectiva, os festejos são sinais
significativos, marcados pelo entusiasmo que contagia a todos os
participantes e devotos. As danças do siriri e do cururu em
homenagem ao santo padroeiro, que dinamizam a cultura,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

254
Novas Fronteiras Culturais

compartilham e interagem as histórias e vivências dos grupos


sociais.
O patrimônio cultural da comunidade propicia a
preservação das tradições culturais, heranças deixadas pelos
antepassados. Reitera-se, neste estudo, as riquezas do universo
festivo e religioso devocional (sacros e profanos), que envolvem
São Sebastião na Bocaina.

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

256
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 15
A INFLUÊNCIA PORTUGUESA DA
DEVOÇÃO MARIANA NA REGIÃO
METROPOLITANA DO VALE DO RIO
CUIABÁ

Sônia Regina Romancini

Introdução

Este estudo tem como objeto central investigar o espaço


sagrado da devoção mariana na Região Metropolitana do Vale do
Rio Cuiabá (RMVRC). Ele apresenta os resultados parciais da
pesquisa intitulada: “O espaço sagrado da devoção mariana na
Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá: representações
simbólicas, templos e festividades”, em desenvolvimento junto ao
Departamento de Geografia da Universidade Federal de Mato
Grosso. A Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá
(RMVRC), reconhecida legalmente pela Lei Complementar N.
359/2009/MT, apresenta, inicialmente, quatro municípios que
compõem o Núcleo da RMVRC: Cuiabá, Várzea Grande, Nossa
Senhora do Livramento e Santo Antônio de Leverger. Os
municípios de Acorizal e Chapada dos Guimarães passaram a
compor legalmente o Núcleo da RMVRC a partir da Lei
Complementar N. 577/2016/MT.
A pesquisa está pautada na geografia humanista que, para
estudar a intencionalidade da ação humana, tendo em vista
compreender o significado social do mundo vivido, centra parte de
suas investigações nos laços entre os indivíduos e o meio material,
expressos nos lugares, insistindo na construção social deles e tendo
em conta aspectos como sua carga emotiva, estética e simbólica,
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

257
Novas Fronteiras Culturais

conforme destaca a teórica García Ballesteros (1998). A partir


dessa metodologia, o desenvolvimento da pesquisa foi realizado
por meio de observações da autora na festividade a Nossa Senhora
do Bom Despacho, de conversas informais e entrevistas a fiéis,
bem como o levantamento bibliográfico e documental.
A bibliografia consultada propõe uma maneira de se olhar
as cidades em relação ao seu contexto cultural, estabelecendo um
elo entre religião, a gênese da cidade e uma de suas funções. No
contexto da cidade e religião, o templo situa-se como atributo forte
de conexão entre o urbano e o sagrado, espaço cuja presença é
evidenciada de diferentes formas nas cidades da RMVRC. Assim,
a pesquisa, que considera o sagrado como elemento de produção
do espaço, busca interpretar as características dos templos e festas
marianas na RMVRC, com base nos estudos culturais e simbólicos
dos eventos religiosos, capazes de relacionar ritos religiosos ao
patrimônio imaterial das cidades.
Rosendahl evidencia que o homem religioso sente
necessidade de viver numa atmosfera impregnada do sagrado; por
isso, elaboram-se técnicas de construção do sagrado: “esse trabalho
humano de consagrar um espaço, essa necessidade de construir
ritualmente o espaço sagrado, nos revela que o mundo é, para o
homem religioso, um mundo sagrado” (ROSENDAHL, 1996, p.
29-30).
No tocante à produção do espaço, Rosendahl (1999) afirma
que as construções são moldadas pelas ideias de uma sociedade,
suas formas de organização econômica e social, a distribuição de
recursos e autoridade, suas atividades, crenças e valores. A autora
propõe uma maneira de olhar as cidades em relação a seu contexto
cultural, estabelecendo um elo entre religião, a gênese da cidade e
uma de suas funções.
Pautada em Eliade e Yi-Fu Tuan, a teórica destaca que “o
verdadeiro significado do sagrado vai além de imagens, templos e
santuários”, uma vez que “as experiências emocionais dos
fenômenos sagrados são o que se destacam da rotina e do lugar
comum” (ROSENDAHL, 2010, p. 27).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

258
Novas Fronteiras Culturais

O critério utilizado para este estudo foi a origem


portuguesa da devoção (ou devoções propagadas pelos
portugueses):
Cuiabá: Nossa Senhora da Penha de França - Distrito do
Coxipó do Ouro (origem espanhola, devoção trazida pelos
portugueses); Nossa Senhora do Rosário e São Benedito – Bairro
Baú (origem irlandesa, devoção trazida pelos portugueses);
Santuário Eucarístico Nossa Senhora do Bom Despacho – Bairro
Dom Aquino; Nossa Senhora Mãe dos Homens – Bairro
Quilombo (devoção proveniente de Lisboa); Nossa Senhora
Aparecida – Coxipó (Nossa Senhora da Conceição é a padroeira
de Portugal. A imagem desta santa, encontrada nas águas do rio
Paraíba do Sul, foi denominada Aparecida e elegida como a
padroeira do Brasil); Coração Imaculado de Maria e São João
Batista – Bairro Morada da Serra; Nossa Senhora da Guia - Bairro
Jardim Shangri-la (origem ortodoxa, devoção trazida pelos
portugueses); Matriz Nossa Senhora da Guia – Distrito da Guia;
Comunidade Nossa Senhora da Boa Morte e da Glória (culto
mariano mais antigo de tradição oriental, trazido pelos
portugueses).
Acorizal: Matriz Nossa Senhora de Brotas (proveniente do
alto Alentejo).
Nossa Senhora do Livramento: Matriz Nossa Senhora do
Livramento (proveniente da Arquidiocese de Braga).
Várzea Grande – Comunidades: Capela Nossa Senhora da
Guia (Padroeira de Várzea Grande); Capela Nossa Senhora da
Conceição – Passagem da Conceição.

As Igrejas Marianas da RMVRC

A origem de Cuiabá remonta à mineração no início do


século XVIII e a primeira igreja erigida foi no Coxipó-Mirim, no
arraial denominado Forquilha, fundado em 1719, por Pascoal
Moreira Cabral e outros bandeirantes, que levantaram uma capela
dedicada a Nossa Senhora da Penha de França. Posteriormente,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

259
Novas Fronteiras Culturais

em outubro de 1722, no córrego da Prainha, abaixo do outeiro


onde se situa a Igreja do Rosário, o sorocabano Miguel Sutil,
juntamente com dois índios e o companheiro português chamado
Barbado, descobriu as minas de ouro denominadas Lavras do Sutil,
em torno das quais se formou a cidade de Cuiabá. Esse veio
aurífero, devido à sua importância, atraiu a população da Forquilha.
Nos registros históricos realizados pelo secretário do
governador da Capitania de São Paulo, Rodrigo Cezar de Menezes,
que chegou em Cuiabá em novembro de 1726, está evidenciada a
existência de uma capela a Nossa Senhora do Bom Despacho, na
colina de mesmo nome. No Plano da Vila do Cuyabá, na Capitania
de Mato Grosso, 1770/1780, são destacados, como formadores da
então vila de Cuiabá, a matriz, dedicada ao Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, a capela de Nossa Senhora do Bom Despacho e a capela
do Rosário (REIS, 2000).
A devoção a Maria no Brasil e em Mato Grosso tem origem
no processo de colonização realizado pelos portugueses que,
conforme ressalta o teólogo Cipolini (2010), representaram-na
como modelo do cristão e imagem ideal da Igreja. Maria,
geralmente denominada de Nossa Senhora, é também a padroeira
de inúmeras nações da América Latina, contando com inúmeros
templos nesses países, onde os fiéis lhe prestam culto.
Por meio de inúmeros títulos, Maria ocupa o lugar de
destaque de santa padroeira das nações latino-americanas. Entre os
santuários oficiais espalhados pelo Brasil, mais de 60% deles são
dedicados a ela. Também os movimentos católicos, por exemplo,
o Opus Dei, os Arautos do Evangelho e a Renovação Carismática,
centram suas ações no culto a Nossa Senhora (OLIVEIRA, 1999).
Oliveira e Oliveira (2015) salientam a importância dos dois
conjuntos de invocações marianas nas 17 províncias episcopais do
Brasil, diante de todas as demais formas de nomear “Santa Maria”.
São eles: a) o Grupo Imaculada-Conceição Aparecida; b) o Grupo
Rosário-Fátima. Esses dois grupos lideram as invocações pelas
raízes lusitanas da formação religiosa brasileira. Destaca-se o peso
da padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Conceição, atualizada

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

260
Novas Fronteiras Culturais

tanto pelo dogma da concepção virginal (sem pecado) de Maria,


em 1858, como pela proclamação de Aparecida, rainha e padroeira
do Brasil, em 1904 e 1930, respectivamente. Igualmente relevante
é a devoção Nossa Senhora do Rosário, também com fortes raízes
coloniais e dominicanas, atualizadas pela aparição, no início do
século XX, da Virgem do Rosário em Fátima, Portugal.
Em consonância com esse quadro de devoção, atualmente,
entre as 31 paróquias existentes na Arquidiocese de Cuiabá, 16 são
dedicadas à Nossa Senhora, uma ao Coração Imaculado de Maria
e uma à Sagrada Família. O título predominante é o de Nossa
Senhora da Guia, com três paróquias, seguido pelos de Nossa
Senhora Aparecida e Nossa Senhora do Rosário, ambos com duas
paróquias. Entre as mais de 400 comunidades, consolidadas ou em
formação, que compõem as paróquias, destacam-se as
homenagens a Nossa Senhora (da Conceição) Aparecida, seguida
por Nossa Senhora de Fátima, Imaculada Conceição, Nossa
Senhora da Guia, Nossa Senhora das Graças e Nossa Senhora
(Rainha) da Paz (ARQUIDIOCESE, 2022).
Devido ao período da pandemia da Covid-19, as festas
religiosas foram suspensas e, posteriormente, modificadas para
atender às recomendações da vigilância sanitária. Assim, não foi
possível participar das festividades, conforme proposta inicial.
Nessa perspectiva, optou-se por ilustrar o presente capítulo com a
festa dedicada à Nossa Senhora do Bom Despacho, cuja coleta de
dados aconteceu em anos anteriores aos da pandemia.

Santuário Eucarístico Nossa Senhora do Bom Despacho

Conforme os registros históricos, quando foi construído o


Seminário da Conceição, em 1858, por Dom José Antônio dos
Reis, primeiro Bispo Diocesano de Cuiabá, já existia, no Morro do
Bom Despacho, a pequena capela do Bom Despacho que, no início
do século XX, foi substituída por um novo templo
(ROMANCINI, 2004).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

261
Novas Fronteiras Culturais

A Igreja de Nossa Senhora do Bom Despacho, com estilo


neogótico, foi idealizada pelo francês Frei Ambrósio Daydé, sendo
que o seu construtor foi o engenheiro francês Léon Joseph Louis
Mousnier. A pedra fundamental foi lançada em 8 de setembro de
1918, pelo Arcebispo Dom Carlos Luís D’Amour. A obra foi
iniciada durante a presidência estadual de Dom Francisco de
Aquino Corrêa (1918-1922), então bispo-auxiliar da Arquidiocese
de Cuiabá.
De acordo com Cometti (s.d.), com o falecimento de Dom
Carlos, em 1921, as obras da igreja ficaram paralisadas. O novo
Arcebispo, Dom Francisco de Aquino Corrêa, motivado pelo
Centenário da Independência do Brasil, considerou um momento
propício para reiniciar as obras. Assim, o sentimento patriótico
motivou ações que possibilitaram cobrir o Santuário, conforme a
narrativa de Cometti (s.d., p. 184-5): “Festas populares, bandos
precatórios percorrendo a cidade a pedirem esmolas, crianças indo
ao porto com latas trazendo a areia do rio, saraus artísticos,
quermesses, tudo foi escogitado e feito para cobrir o templo”.
Cometti (s.d., p. 185) observa que o semanário intitulado
“A Cruz” publicava, frequentemente, convites e outras iniciativas
para angariar meios para a construção: “A Praça Alencastro era
teatro de animadas quermesses e jantares; as ruas da cidade [...]
viam-se invadidas por alegres bandos precatórios que, com a banda
à frente, iam solicitar a todas as casas o óbolo para a casa da
Senhora do Bom Despacho”.
Em 1923, chegaram a Cuiabá, provenientes da Bélgica, as
telhas para a cobertura da igreja e zinco para as calhas e canaletes.
Em setembro de 1924, o templo foi tijolado e coberto, com a
capela-mor e as duas capelas laterais terminadas. Entre 1955 e
1956, Dom Antônio Campelo de Aragão, Bispo Auxiliar de Dom
Aquino Corrêa, deu continuidade ao projeto para concluir a obra
(MATO GROSSO, 2004).
Segundo Cometti (s.d., p. 185): “a construção do templo
gótico do Bom Despacho representa um documento [...] de fé e de
generosidade do povo cuiabano, tendo à testa Frei Ambrósio,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

262
Novas Fronteiras Culturais

tenaz, dinâmico, impetuoso, e o Arcebispo, afável, cativante,


generoso”. No transcorrer de 34 anos, de 1922 a 1956, “[...] Dom
Aquino passava largas horas em oração e meditação. Ali celebrava,
de madrugada, a Santa Missa. Ali celebrou suas Bodas de Prata
Sacerdotais [...]” (COMETTI, s.d., p. 185).
O arquiteto Alex de Matos afirma que a igreja constitui uma
obra-prima e que “obedeceu a princípios refinados de geometria,
certamente para agir como uma ‘torre’ geradora de harmonia
irradiante, para toda a cidade” (MATOS, 2011, p. 16).
Matos (2011, p. 114) destaca os registros realizados por
Gervázio Leite Rabelo, secretário do governador da Capitania de
São Paulo, Rodrigo Cezar de Menezes, que chegou em Cuiabá no
dia 15 de novembro de 1726, evidenciando a existência de uma
capela a Nossa Senhora do Bom Despacho: “Junto deste Arraial e
a sudoeste dele, está no morro, em que a devoção de alguns
devotos colocou a milagrosa imagem de nossa Senhora do Bom
Despacho...”
O referido autor informa que os primeiros registros da
devoção a Nossa Senhora do Bom Despacho datam do século
XVII, com as primeiras festas e romarias realizadas em Portugal,
onde também é conhecida como a Senhora do Sol (MATOS,
2011).
No ano de 1977, a Igreja de Nossa Senhora do Bom
Despacho e o Seminário da Conceição foram tombados como
patrimônio público estadual. Posteriormente, pela Lei n. 3265 de
11 de janeiro de 1994, a Igreja de Nossa Senhora do Bom
Despacho foi declarada como “Símbolo Cuiabano de Tradição e
Cultura” do Município de Cuiabá (CUIABÁ, 2000).
Com o apoio do Governo de Mato Grosso, por meio da
Secretaria de Estado de Cultura, a Igreja do Bom Despacho foi
restaurada, com recursos doados por uma empresa do sistema
financeiro, e reaberta em 30 de agosto de 2004, com a presença de
autoridades civis e religiosas e centenas de fiéis. Na
contemporaneidade, a igreja foi promovida a Santuário
Eucarístico.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

263
Novas Fronteiras Culturais

Novena e Festa de Nossa Senhora do Bom Despacho

Entre as festividades realizadas no Santuário, destaca-se a


Novena de Nossa Senhora do Bom Despacho, entre os dias trinta
de agosto e oito de setembro, em homenagem à padroeira do
templo, pois, no dia oito, comemora-se o aniversário natalício de
Nossa Senhora, uma vez que bom despacho significa bom
nascimento.
A partir de 2015, foi introduzida uma festa no final de
semana após o dia 8, tendo continuidade nos anos subsequentes.
A festa caracteriza-se pela participação das pessoas nos jantares
organizados no sábado à noite e, no domingo, pela celebração da
Santa Missa, seguida por um almoço festivo no pátio do Centro
Educacional Maria Auxiliadora (CEMA), mantendo o espírito de
comunidade dos fiéis que congregam no Santuário Eucarístico
Nossa Senhora do Bom Despacho (Figura 1).

Figura 1 - Fachada do Santuário e Imagem de Nossa Senhora da


Conceição

Fonte: Sônia Romancini (2017).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

264
Novas Fronteiras Culturais

O livreto da Novena de Nossa Senhora do Bom Despacho


de 2013 apresenta um texto elaborado pelo saudoso Dom
Bonifácio Piccinini – SDB, então Arcebispo Emérito de Cuiabá:

A devoção a Nossa Senhora do Bom Despacho faz parte


da história do povo católico de Cuiabá [...]
Nos anos 60 do século passado, os fiéis católicos, ajudados
pelas irmãs Salesianas que trabalhavam no DASA (atual
CEMA) e com o entusiasmo de Dom Orlando Chaves e
do Padre Pedro Cometti, iniciaram a novena da penitência
em preparação da festa da Natividade de Nossa Senhora –
festa de Nossa Senhora do Bom Despacho no dia 8 de
setembro.
Todas as manhãs, às 5h00 sai a procissão percorrendo as
ruas próximas ao Santuário, rezando e cantando os
louvores de Nossa Senhora do Bom Despacho.
Quando cheguei a Cuiabá, logo em 1976, continuei a
belíssima tradição que com a graça de Deus, continua
sendo uma grande benção para o povo católico de Cuiabá.
A novena e a festa do dia 8 de setembro sempre se
caracterizaram pela penitência, pelas confissões, pela Santa
Missa e pelas orações em pleno recolhimento, com muita
simplicidade (NOVENA, 2013, p. 6).

No diálogo com Dom Bonifácio Piccinini, no ano de 2014,


ele falou com entusiasmo sobre a jornada de realizar a novena por
quatro décadas, uma cerimônia religiosa caracterizada pelo
despojamento. Entre as poucas modificações que aconteceram nos
últimos anos, destacou que, anteriormente, quem levava o
crucifixo à frente da procissão eram as senhoras representantes das
comunidades da paróquia. Atualmente, quem realiza essa função é
um acólito.
Segundo Dom Bonifácio, quando chegou em Cuiabá na
década de 1970, no dia 8 de setembro, às 15h, havia a bênção das
crianças que era muito prestigiada. Essa prática foi encerrada antes
da década de 1990.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

265
Novas Fronteiras Culturais

A novena começava no interior do Santuário, quando Dom


Bonifácio Piccinini fazia a oração inicial, de autoria de Dom Bosco,
que foi ele introduzida por nessa cerimônia. Em seguida, a
procissão percorria as ruas do entorno do Santuário, entoando o
cântico a Nossa Senhora do Bom Despacho e meditando sobre os
mistérios do terço. A procissão era precedida por um acólito que
levava nas mãos um pequeno crucifixo, seguido pelo Arcebispo
Emérito de Cuiabá, Dom Bonifácio Piccinini, pelo então Reitor do
Santuário, Pe. Kleberson Paes de Silva e por outros sacerdotes.
Muitos homens e mulheres que têm devoção a Nossa Senhora do
Bom Despacho acompanhavam a procissão. Um carro de som
conduzia a pessoa responsável pela reza do terço.
A procissão retornava ao Santuário, onde era celebrada a
Santa Missa com atendimento de confissões. Após a missa, era
rezada a oração de Nossa Senhora do Bom Despacho. Em anos
recentes, no pátio, tem sido montada uma barraca com café, bolo
de arroz e pão de queijo, vendidos a preços simbólicos.
Nos últimos anos, a paróquia tem organizado um pequeno
livro com as orações, liturgia e cânticos que contemplam todos os
dias da novena. Há também um folder com as principais
informações sobre a novena e, no verso, as especificações sobre o
trajeto de cada dia, sempre no entorno do Santuário.
No dia 7 de setembro, nono dia da novena, a imagem de
Nossa Senhora do Bom Despacho é levada, em procissão, para a
Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
Na Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, o
andor de Nossa Senhora do Bom Despacho é colocado em frente
à Capela do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
No dia 8 de setembro, os fiéis acompanham a procissão
com velas acesas para reconduzir a imagem de Nossa Senhora ao
Santuário, onde é recebida com pétalas de rosas. Na sequência,
acontece a Celebração Eucarística solene em honra à padroeira.
A figura apresentada a seguir registra um dos momentos
em que, após o retorno ao Santuário, a imagem de Nossa Senhora

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

266
Novas Fronteiras Culturais

do Bom Despacho é envolvida pelo toque das mãos dos fiéis que
lhe dirigem preces silenciosas (Figura 2).

Figura 2 - Devoção a Nossa Senhora do Bom Despacho

Fonte: Sônia Romancini (2014).

Para exemplificar o significado da novena para alguns


participantes, foram selecionados dois depoimentos, coletados no
ano de 2014, que relatam a vivência na cerimônia. O depoimento
da professora Suíse Monteiro Leon Bordest evidencia sua
admiração e contentamento pela recente participação na novena:

Apesar de ser católica praticante, este ano de 2014 foi a


primeira vez que participei da Novena de Nossa Senhora
do Bom Despacho. Essa igreja tem um significado
importante para mim, pois foi aqui que me casei em 1968
e, algumas vezes, vim às missas de domingo com meus
filhos pequenos.
Quanto à Novena, apreciei emocionada a presença
calorosa de fiéis na madrugada e fiquei comovida com a
maneira como a cerimônia foi conduzida pelo Arcebispo
Emérito Dom Bonifácio, pelo pároco, pelos padres e
tantos devotos de Nossa Senhora.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

267
Novas Fronteiras Culturais

Foram momentos de muita emoção: acompanhar a


procissão na madrugada, rezando o terço, participar da
missa com belos cânticos e homilias, além de poder
apreciar as andorinhas dentro e no entorno da igreja, ao
alvorecer.
Na minha interpretação, a Novena de Nossa Senhora do
Bom Despacho se mantém próxima àquela praticada
tradicionalmente, ainda longe da espetacularização e de
práticas mercadológicas, próprias do mundo atual, como
acontece hoje em muitas festividades de santo.

O depoimento da senhora Elizabeth Augusta Rodrigues


Oliveira revela a persistência e espírito de oração dessa devota que
há mais de trinta anos participa da Novena a Nossa Senhora do
Bom Despacho. Ela informa que a novena sempre foi muito
parecida e afirma: “esta ocasião em que eu vou todos os dias dedico
a agradecer as coisas boas que recebo e também as não tão boas,
das quais tiro proveito e se tornam em coisas boas”.
No tocante ao número de participantes na novena, a
senhora Elizabeth acha que tem sido o mesmo, pois a igreja
encontra-se sempre lotada. Contudo, desde alguns anos anteriores,
observou que, no primeiro dia da novena, havia menos pessoas,
havendo maior número do terceiro dia em diante. Assim como os
outros entrevistados, ela ressalta os momentos de oração e
intimidade com Deus e com Nossa Senhora do Bom Despacho,
que são propiciados pela festividade.
Os depoimentos das pessoas participantes na Novena e
Festa de Nossa Senhora do Bom Despacho estão em consonância
com os estudos realizados por Bossé (2004, p. 161), segundo o qual
a identificação com o lugar traduz-se, “tanto para o indivíduo
como para o grupo, por um sentimento de pertencimento comum,
de partilha e de coesão sociais”.
O afetuoso olhar dos habitantes de Cuiabá para a paisagem
do Santuário Eucarístico Nossa Senhora do Bom Despacho
remete à afirmativa de Berque (1998) de que ela é simultaneamente
marca e matriz. Constitui uma marca, porque o grupo contribui

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

268
Novas Fronteiras Culturais

para modificar o espaço que utiliza e gravar, nele, os sinais de sua


atividade e os símbolos de sua identidade. A paisagem é também
uma matriz, visto que a organização e as formas que a estruturam
contribuem para transmitir usos e significações de uma geração a
outra.
A partir de 2015, foi dinamizada a parte social da
festividade. Em 2016, aconteceu a segunda festa realizada pelo
pároco e equipe de festeiros, contando com café da manhã
partilhado (08/09), jantar (10/09), missa dos festeiros (11/09),
almoço: churrasco (11/09).
A festividade de Nossa Senhora do Bom Despacho
continuou sendo realizada nos anos subsequentes, havendo uma
suspensão com as dinâmicas aqui narradas, devido à pandemia da
Covid-19, que impôs mudanças em relação às atividades religiosas
e festivas.
Contudo, o Santuário Eucarístico manifestou sua
solidariedade às vítimas e aos familiares por meio da exposição
“Imensuráveis - Memorial das vítimas da Covid-19 em Mato
Grosso”, organizada pelo Museu de Arte Sacra de Mato Grosso
em parceria com o Santuário Eucarístico Nossa Senhora do Bom
Despacho, em Cuiabá, que foi exposta na Praça do Seminário, nos
meses de novembro de 2020 a janeiro de 2021.
Para fazer essa homenagem às vítimas da doença, os
organizadores reuniram fotos e informações sobre elas. De acordo
com os idealizadores, o memorial constituiu uma forma de permitir
a despedida para aqueles que perderam familiares e amigos para a
Covid-19 e não tiveram a oportunidade de velar, apropriadamente,
seus entes queridos.
Nos anos de 2021 e 2022, a Paróquia Santuário Eucarístico
Nossa Senhora do Bom Despacho realizou a Novena de Nossa
Senhora do Bom Despacho, com a celebração de Santas Missas
durante a semana às 7h, 11h30min e 18h, aos sábados às 7h e
11h30min e aos domingos às 7h, 9h, 17h e 19h
(ARQUIDIOCESE, 2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

269
Novas Fronteiras Culturais

Considerações finais

A devoção mariana presente em Cuiabá evidencia que,


entre as preces elevadas aos céus, sempre haverá uma destinada a
Nossa Senhora, evocada por meio de seus inúmeros títulos.
O estudo realizado mostra que o Santuário Eucarístico
Nossa Senhora do Bom Despacho constitui importante referencial
na paisagem urbana de Cuiabá, um lugar de memória, onde o novo
e o moderno convivem com formas e práticas sociais e religiosas
antigas, herdadas de outras gerações. Conforme verificado, a
construção do templo constituiu a realização dos ideais do Frei
Ambrósio Daydé, de Dom Aquino Corrêa e da população que se
empenhou para viabilizar os recursos necessários à edificação do
templo.
Constatou-se que a Novena e Festa de Nossa Senhora do
Bom Despacho constitui um tempo de penitência e de oração,
propiciando a reconciliação do homem com o Pai Misericordioso,
tendo, na figura de Nossa Senhora, uma poderosa intercessora. A
festividade denominada Natividade de Nossa Senhora,
comemorada no dia 8 de setembro, caracteriza-se pela celebração
solene, mantendo o espírito de oração cultivado durante o período
da novena.
A cada ano, novos fiéis somam-se à festividade para
dedicar suas manhãs à oração. Para as pessoas entrevistadas, as
inovações como o café da manhã oferecido a preços simbólicos ao
final das celebrações é algo muito bom, pois propicia o
congraçamento entre as pessoas. Quanto ao café da manhã
partilhado no último dia da novena foi agradável para os fiéis que
puderam participar desse momento de confraternização. Salienta-
se que, para as pessoas entrevistadas, o mais importante é a
oportunidade de participar de uma festividade, em que a essência é
a devoção a Nossa Senhora do Bom Despacho.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

270
Novas Fronteiras Culturais

Referências

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Arquidiocese. Disponível em:
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BOSSÉ, Mathias Le. As questões de identidade em geografia
cultural – algumas concepções contemporâneas. In: CORRÊA,
Roberto L.; ROSENDAHL, Zeny. Paisagens, textos e
identidade (orgs.). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004. 179 p. p. 157-
179.
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wFile/7774/5519. Acesso em: 17 abr. 2018.
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CUIABÁ. Prefeitura Municipal. Instituto de Pesquisa e
Desenvolvimento Urbano – IPDU. Ementário da legislação
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ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões.
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Igreja Nossa Senhora do Bom Despacho. Cuiabá, Secretaria de
Estado de Cultura, 2004.
MATOS, Alex de. Templos secretos: história e arquitetura
sagrada das igrejas neogóticas de Mato Grosso. Cuiabá: [Editora
do autor], 2011.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

271
Novas Fronteiras Culturais

NOVENA de Nossa Senhora do Bom Despacho 2013. Santuário


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OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Basílica de
Aparecida: um templo para a cidade-mãe. 1999. 146p. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais: Geografia Humana) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1999.
OLIVEIRA, Christian D. Monteiro de; OLIVEIRA, Cristina
Imaculada S. Festa e devoção mariana em representações
imagéticas: comunicação geográfica de múltiplas sacralidades. In:
ROMANCINI, Sonia R.; ROSSETTO, Onélia C.; NORA, Giseli
Dalla (orgs.). As representações culturais no espaço:
perspectivas contemporâneas em geografia / – Documento
Eletrônico. -- Porto Alegre: Imprensa Livre, 2015. p. 196-230.
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Imprensa Oficial do Estado: Fapesp, 2000. (Uspiana – Brasil 500
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Trilhas do sagrado. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 11-34.
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ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem
geográfica. Rio de Janeiro: UERJ, NEPEC, 1996.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

272
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 16
VIVO SANTO ANTÔNIO! O
PADROEIRO DE LEVERGER - MT

Claudinete Magalhães da Silva


Sônia Regina Romancini
Edenilson Dutra de Moura

Introdução

Este trabalho tem objetivo de analisar as possíveis relações


sociais, religiosas e culturais presentes durante o período da festa
do Padroeiro em Santo Antônio de Leverger em Mato Grosso
como fator de configuração do espaço e das relações espaciais do
município. Em consonância com Lüdke e André (1989), no que
se refere à pesquisa qualitativa, que “[...] supõe o contato direto e
prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está
sendo investigada, geralmente através do trabalho intensivo de
campo” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 11), buscou-se durante o
festejo, ouvir as pessoas, participando dos atos religiosos e culturais
para conhecer suas vivências na festividade.
Santo Antônio do Rio Abaixo, atualmente, denominado
Santo Antônio de Leverger, foi desmembrado do município de
Cuiabá em 1890 (Ferreira, 2001). Como afirma Oliveira (2019, p.
59): “[...] o início da sua história mostra que as terras do rio abaixo
foram povoadas desde 1721, conforme registram as cartas de
Sesmarias doadas pelo então governador da Capitania de São Paulo
Rodrigo César de Menezes”. O município está localizado a 35 km
de Cuiabá e possui uma população estimada em pouco mais de 18
mil habitantes, segundo o censo de 2010 do IBGE – Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, IBGE, 2021), Santo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

273
Novas Fronteiras Culturais

Antônio do Leverger tem valor imensurável quando se trata da


formação cultural, econômica, social e política de Mato
Grosso. As origens de Santo Antônio de Leverger ligam-se às de
Cuiabá.
A tradição popular guardou a história da imagem de Santo
Antônio, desde seus primórdios, envolvendo um misto de mitos e
lendas acerca da imagem do Santo. Conta-se que uma monção
paulista subia o rio Cuiabá em demanda das minas de ouro
descobertas por Miguel Sutil. A expedição, por ter sofrido ataque
dos temidos índios canoeiros da tribo Guató, estava com avarias
nas embarcações e perdas de pessoal. Resolveram pernoitar nas
imediações onde fica a cidade atualmente para refazer-se da perda.
No dia seguinte, retomaram a viagem, porém, um dos batelões
ficou preso como se estivesse encalhado nos bancos de areia.
Apesar de todos os esforços, não se conseguiu mover a
embarcação. Os supersticiosos bandeirantes desembarcaram a
imagem de Santo Antônio, que transportavam, o batelão soltou-se
e seguiram viagem. Em ocasião diferente, outra expedição quis
levar a imagem que ficara no lugar e o estranho fenômeno
acontecera novamente.
Após esses fatos, os paulistas levantaram uma pequena
capela no local. Ali nasceu o povoamento de Santo Antônio de
Leverger. Os relatos sobre essa lenda são amplamente
disseminados como origem da cidade. Com o passar do tempo, na
configuração das relações no espaço, o município formou-se com
um povo com fortes laços culturais, costumes e crenças próprias
ou adaptadas a seu modo, e isso perpetua-se por quase 300 anos
de história.

Discussão teórico-conceitual

A religião é um dos temas trabalhados pela Geografia,


criadora de espaços urbanos no e de movimentos em diversos
locais. Muitos são os geógrafos especializados em religião que
estudam o espaço geográfico "através da análise do sagrado,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

274
Novas Fronteiras Culturais

desvendando sua ligação com a paisagem e com a linguagem


codificada pelo homem religioso em sua vivência no espaço"
(ROSENDAHL, 1998, apud CAMPOS, 2007, p. 86).
É possível dizer que Religião e Geografia podem ser
entendidas como extremamente relacionadas. São duas formas de
(re)ação no espaço: a religião, na realidade, normatiza alguns
procedimentos dos homens em relação ao espaço e o
conhecimento geográfico proporciona capacidades estratégicas de
atuação no espaço. Os espaços de ação de ambas são os sociais,
culturais, políticos, econômicos etc. Evidencia, dessa forma, que as
duas formas de conhecimento atuam nas várias dimensões que
norteiam a vida do ser humano. Na verdade, as ações que o homem
promove nesse sentido no espaço, a fim de o entender, refletem
um modo de pensar com o propósito de elucidar as questões
relacionadas ao divino.
Como afirma Rosendahl (1995), ao relacionar a Geografia
com a religião, pois no movimento das atividades sagradas e a
fluidez no espaço há atribuições de valor, as festas religiosas são
manifestações culturais que estimulam a sociedade a transmitir
conhecimento por meio das diferentes tradições, crenças, valores
com o objetivo de fortalecer o sentimento de pertencimento de
cada ser, como sendo único em seu grupo, compartilhando as
mesmas convicções religiosas. As festas, tal como as tradições
religiosas, apresentam elementos como mito, rito, símbolo, música,
dança, luxo e beleza. O mito é a primeira tentativa do homem para
entender o cosmos e a vida.
As tradições religiosas fazem parte da existência dos
homens por se constituírem na primeira ferramenta da nossa
humanização. Desde sua origem, as religiões procuram humanizar
os homens, afastando-os dos determinismos biológicos,
geográficos e culturais, é por meio da percepção do sagrado que a
vida foi se estruturando. A religião foi a primeira a utilizar os mitos
como ferramenta para a compreensão da vida, os mitos serviram
de base para os textos sagrados que estruturaram a organização
pessoal e social dos homens, as religiões propiciaram-lhes um

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

275
Novas Fronteiras Culturais

processo de descobertas, primeiro da finitude, fazendo-os perceber


que a morte faz parte da vida e que, em vida, iremos morrer várias
vezes para propiciar o nascimento de um homem novo, tal como
a fênix.
Diante de tamanha importância da ciência geográfica, não
só como se percebeu no âmbito religioso do ser humano, mas em
basicamente todos os seus campos são fundamentais. Assim,
mesmo que, atualmente, o mundo esteja cada vez mais conectado
através da tecnologia da informação e comunicação (TIC), vemo-
nos diante da transformação do modo de interação dos seres
humanos, suas formas de aprender e comunicar, enfim de
conviver.
Um significativo número de pessoas está migrando dos
lugares físicos de socialização, de encontro, de troca, de ensino, de
trabalho, de festa, entre outros, para espaços de socialização
virtuais. O convívio, nesses espaços, é mediado por dispositivos
eletrônicos, favorecendo, por vezes, a descaracterização dos
grupos culturais já existentes e o desenvolvimento de um “novo”
modelo cultural, o cibernético. Assim, percebe-se que os
elementos culturais construídos ao longo do tempo, na interação
homem/meio e homem/homem, vão deixando de existir ou
ganham nova roupagem, nova característica na era da informática,
da tecnologia de ponta em que vive-se e que, na atualidade, chega
aos lugares mais longínquos. Alguns elementos dessa nova
roupagem, vale frisar, dependendo da comunidade, muitas vezes,
sofrem resistência.
A cultura local expressa a identidade de um povo e revela
sua história, notando-se que ela vem sendo comprometida pela
globalização, pois já não encontra-se essa identidade cultural tão
nítida, mas assume características globais híbridas. Essa nova
realidade acontece, graças ao advento dos novos aparatos
tecnológicos e informacionais que possibilitam a instantaneidade
das ações e acontecimentos que invadem e criam territórios.
Esse modelo vigente é possível devido ao uso crescente
de técnicas que, cada dia mais, encurtam relações entre as pessoas

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

276
Novas Fronteiras Culturais

e mesclam suas culturas e hábitos, conforme explicita Santos (2010,


p. 172):

[...] graças ao progresso fulminante da informação, o


mundo fica mais perto de cada um, não importa onde
esteja. O outro, isto é, o resto da humanidade, parece estar
próximo. Cria-se para todos a certeza e, logo depois, a
consciência de ser o mundo e de estar no mundo, mesmo
se ainda não o alcançarmos em plenitude de material ou
cultural.

A influência global nas culturas locais ocorre no âmbito


da alimentação, vestimenta, música, idioma, religiosidade etc. São
mudanças nos nossos costumes atrelados ao fenômeno da
globalização. Uma integração da sociedade ao redor do globo, que
mundializa nossos costumes. Sobre essas atuações do global nas
culturas locais, Santos (2010, p. 143-144) pondera que:

Sem dúvida, o mercado vai impondo, com maior ou menor


força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da
cultura de massa, indispensável, como ela é ao reino do
mercado, e a expansão paralela das formas de globalização
econômica, financeira técnica e cultural. Essa conquista,
mais ou menos eficaz segundo os lugares e as sociedades,
jamais é completa, pois encontra a resistência da cultura
preexistente. Constituem-se, assim formas mistas
sincréticas, entre as quais, oferecida como espetáculo, uma
cultura popular domesticada associando a um fundo
genuíno de formas exóticas que incluem novas técnicas.

Vale destacar que essa imposição da cultura global não tem


apenas seu lado positivo, consequências mais marcantes da
apropriação cultural é a descaracterização de alguns elementos de
determinada a cultura. Quando se retira algo do seu contexto
cultural e atribui-lhe outro(s) significado(s), esse elemento perde o
seu valor original, esvaziando o seu sentido genuíno. Daí, a
importância de manter a essência apesar do novo.
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

277
Novas Fronteiras Culturais

No entanto, mesmo com a urbanização e consequente


urbanização das paróquias, com a globalização e ascensão da
tecnologia como já expresso, nos bairros e lugares que o
crescimento demográfico fez surgir, a profunda devoção dos
crentes levou à edificação de templos dedicados principalmente a
Nossa Senhora, sob multiplicas invocações, a Cristo Ressuscitado
e aos Santos, constituindo autênticas comunidades locais coesas à
volta dos seus patronos. Essa ligação é tão forte que, mesmo
quando as pessoas afastam-se para longes terras, por motivos de
emigração ou deslocação temporária, ficam de tal modo presos ao
seu lugar e ao seu padroeiro que, no dia da sua festa anual, aí estão
de volta, vindos até dos confins da terra. Caso ocorrente,
anualmente, na festa do Padroeiro Santo Antônio em Leverger-
MT.

O festejo ao padroeiro

Embora vive-se em uma época envolta pela tecnologia,


mídias diversas e muitos aparelhos eletrônicos, participar de
manifestações culturais e suas representações parece ainda ser
importante em alguns espaços. Neste sentido, as festas revelam a
essência fundante de respeito à fé e à fraternidade comunal, que
alimentam as manifestações religiosas e perpetuam as tradições que
constituem um verdadeiro patrimônio cultural. Portanto, é
importante entender o que move esses festejos, marcados
majoritariamente por procissões, que simbolizam o caminho
percorrido pelos devotos em direção a esse sagrado. O cortejo é
um meio, um instrumento que significa muito mais que o simples
fato de um grupo de pessoas marcharem juntas, uma vez que,
naquele momento, estão irmanados. Assim, a representação é a
caminhada espiritual e espacial. São festas que, mesmo diante da
tecnologia moderna, resistem ao tempo, no entanto, sofrem
algumas alterações em sociedades mais desenvolvidas e, em menor
grau, nas sociedades menos desenvolvidas.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

278
Novas Fronteiras Culturais

As festas religiosas são manifestações culturais que


estimulam a sociedade a transmitir conhecimento por meio das
diferentes tradições, crenças, valores com o objetivo de fortalecer
o sentimento de pertencimento de cada ser, como sendo único em
seu grupo, compartilhando as mesmas convicções religiosas. As
festas, tal como as tradições religiosas, apresentam elementos
como mito, rito, símbolo, música, dança, luxo e beleza. O mito é a
primeira tentativa do homem para entender o cosmos e a vida.
Assim, entende-se a importância das festas dentro das tradições
religiosas, mesmo que, para muitos, tenha uma aparência profana
e, talvez para alguns, maléfica, é fundamental, para tanto inicia-se
essa reflexão como evidencia Durkheim (1996, p. 351):

Toda festa, mesmo que seja puramente leiga em suas


origens, possui certas características de cerimônia religiosa,
pois tem por efeito aproximar os indivíduos, colocar
massas em movimentos e suscitar assim um estado de
efervescência, algumas vezes mesmo em delírio, que não é
sem parentesco com o estado religioso. Nelas o sagrado e
o profano estão tão entrelaçados que às vezes é quase
impossível separá-los e distingui-los.

Evidencia-se que, nos preparos para a festa, bem como na


festa em si, há um esquecimento da realidade objetiva, massacrada
pelas questões econômicas, políticas e cercada por todos os graves
problemas sociais. A reunião das pessoas em uma localidade
pitoresca, o movimento das divisões que acontece pelas doações
em dinheiro e produtos, o preparo das roupas e outros
movimentos em comunidade, elevam o sentimento do
compartilhar, isso porque há beleza e felicidade em todas as ações.
A festa do padroeiro é a referência identitária para o povo
do município que possui orgulho do edificado pelos seus
antepassados e expressa por meio da festa, porque, nelas, a cultura
local é posta à vista de todos e compartilhada com os membros da
comunidade de fiéis e com visitantes. Podem ser entendidas como

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

279
Novas Fronteiras Culturais

um substrato, em que as articulações entre o sagrado e o profano


desenvolvem-se (OLIVEIRA, 2007).
O município de Santo Antônio de Leverger, no ano de
2023, completa 123 anos de Emancipação Política e
Administrativa, possui quase 300 anos de história e uma
diversidade cultural, religiosa e geográfica que o destaca. Uma
história em que os hábitos, costumes, manifestações, expressões,
sentimentos e outros estão inseridos, identificando cada
componente dessas manifestações culturais que representam a
história de vida do seu povo.
A festa do padroeiro, geralmente, começa no dia 9 de junho
e termina no dia 13, com a coroação de Santo Antônio e a escolha
dos novos festeiros. Durante a semana da festa, há missas,
quermesse, vendas de comidas típicas e bailão. A comunidade une-
se para fazer a comida, assim como promover todas as vendas.
Esses mesmos fiéis desde o mês de março de cada ano saem por
todo o município com a imagem de Santo Antônio esmolando, o
que se constitui em um momento muito esperado pela
comunidade, é o momento que o Santo adentra os lares dos fiéis.
Outro momento marcante da festa acontece no dia 12, quando a
imagem de Santo Antônio sobe o rio com os cururueiros e os
sacerdotes, desde a localidade da Praia do Poço até a Igreja Matriz,
sendo que, nesse dia, há muitos fogos de artifício e a população
fica esperando a imagem no barranco para acompanhar até a matriz
e finalizar com a Santa Missa. É um período de festividade que
recebe muitos visitantes de outros municípios, seja pela curiosidade
por causa da divulgação ou por serem amigos, familiares ou antigos
moradores do município. O que merece ser destacado durante esse
período é a mobilização e organização que existe para que a festa
aconteça. Todo trabalho voluntário feito pelos fiéis é desenvolvido
com muito amor e dedicação. Isso acontece desde o momento que
procuram doações dos alimentos que serão feitos os pratos típicos
para serem comercializados durante a festa como prêmios para o
Bingo que busca angariar fundos para manter as despesas da
Igreja durante o ano todo.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

280
Novas Fronteiras Culturais

Neste sentido, as festas populares em Leverger, que,


normalmente, fazem parte das atividades religiosas, geralmente,
compartilham o lado religioso e o profano. Assim sendo, ao
mesmo tempo em que se pratica a fé, satisfaz-se também a
necessidade de lazer e entretenimento, atuando, desse modo,
dentro da complexidade religiosa. O aspecto cultural faz-se
presente diariamente através do cururu, siriri e bailão com
rasqueado. No mundo globalizado, observa-se o novo ser
incorporado, sem perder totalmente a essência do festejo santo e,
quando há uma tentativa dos párocos ou do poder público em
mudar essa dinâmica, a população resiste.
Pode-se dizer que, em 2022, o festejo ao padroeiro foi
muito aguardado, uma vez que, devido à pandemia, foram dois
anos sem esse momento tão esperado por todos durante o
ano. Em 2022, o pároco propôs trazer mais religiosidade para a
festa. Buscou-se desmembrar a parte religiosa da cultural, assim,
houve a trezena de Santo Antônio que começou dia 31 de maio e
foi até dia 12 de junho. No dia 11 de junho, aconteceu a tradicional
quermesse, com show católico e bingo. No dia 12, a celebração
religiosa começou com a procissão fluvial que teve início com a
missa na Praia do Poço, subindo o rio Cuiabá até a praia de Santo
Antônio de Leverger, onde, após desembarcar a imagem do santo
e ser acompanhado por vários cururueiros até a Igreja Matriz
, encerrou-se com a trezena. No dia 13, dia do Padroeiro, pela
manhã, houve a missa promovida pelas autoridades e, à noite,
missa promovida pela igreja, logo após, aconteceu a procissão e
carreata com a imagem do santo pelas ruas da cidade, terminando
com a coroação de Santo Antônio.
Na figura 1, observa-se a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição, construída às margens do Rio Cuiabá na Comunidade
de Praia do Poço, local onde é celebrada a missa que antecede a
saída da procissão fluvial. Nessa igreja, a população da
comunidade participa desse ato de fé, juntamente com os festeiros,
cururueiros, políticos, enfim devotos de todo município que para

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

281
Novas Fronteiras Culturais

lá se deslocam com o objetivo de subir o rio com a imagem do


santo.

Figura 1 - Igreja de Nossa Senhora da Conceição na Praia do Poço


– início da procissão fluvial

Fonte: Claudinete Magalhães (2022).

Figura 2 - Imagem de Santo Antônio durante a procissão fluvial

Fonte: Júlio Rocha (2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

282
Novas Fronteiras Culturais

As figuras 2 e 3 registram o momento da procissão fluvial,


durante os festejos de Santo Antônio, historicamente, esse ato está
ligado à chegada da imagem do santo ao município de Santo
Antônio de Leverger durante sua colonização.

Figura 3 - Procissão fluvial

Fonte: Júlio Rocha (2022).

A chegada da procissão à Igreja Matriz marca um


momento de alegria com a queima de fogos, dança do cururu e
cantos populares (Figura 4). É o momento em que a imagem
adentra a igreja seguida de muitos fiéis, louvando e pedindo
proteção ao seu padroeiro.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

283
Novas Fronteiras Culturais

Figura 4 - Chegada da procissão na Igreja Matriz de Santo Antônio


de Leverger

Fonte: Júlio Rocha (2022).

Sobre Santo Antônio, o padroeiro

No dia 13 de junho, a Igreja celebra a festa de um dos


santos mais queridos e populares no mundo, Santo Antônio de
Pádua, também chamado Santo Antônio de Lisboa, cidade onde
nasceu e que, segundo a tradição, é invocado para encontrar
objetos perdidos, o que se deve a um problema que teve com um
noviço, e ainda como o santo casamenteiro, devido à ajuda dada a
uma jovem pobre. Santo Antônio é ainda o Santo dos pobres, das
mulheres estéreis, dos padeiros, pedreiros e dos casais de
namorados. Foi declarado Doutor da Igreja por Pio XII, em 1946,
ficando conhecido como o “Doutor do Evangelho”. Seu nome de
batismo era Fernando de Bulhões, mas, quando vestiu o hábito
franciscano, adotou o nome de Antônio, Frei Antônio.
Santo Antônio nasceu em Portugal, em 1195, em uma
família nobre. Desde criança, consagrou-se à Santíssima Virgem.
Em sua juventude, foi atacado por paixões sensuais, mas, com a
ajuda de Deus, dominou-as, encontrando sua força nas visitas ao
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

284
Novas Fronteiras Culturais

Santíssimo Sacramento. Ingressou muito jovem na Ordem dos


Cônegos Regulares de Santo Agostinho (Ordem dos
Agostinianos). Fez seus estudos filosóficos e teológicos em
Coimbra e foi lá também que se ordenou sacerdote. Nesse tempo,
ainda estava vivo Francisco de Assis e os primeiros frades dirigidos
por ele chegavam a Portugal. Empolgado com o estilo de vida e de
trabalho dos franciscanos, resolveu também ir pregar no Marrocos.
Entrou na Ordem, vestiu o hábito dos franciscanos e tomou o
nome de Antônio. Foi admitido pelos franciscanos no início de
1221, participou, em Assis, do capítulo geral da ordem desse ano
e, mais tarde, foi enviado para pregar em várias cidades, obtendo
um grande êxito na conversão dos hereges.
Ele é venerado popularmente por ajudar a arranjar
casamentos. No Brasil, ele é homenageado numa das festas mais
alegres e populares, as festas juninas e no Dia dos Namorados.
Santo Antônio é também conhecido pelos seus incontáveis
milagres. Homem de oração, Santo Antônio tornou-se santo
porque dedicou toda a sua vida para os mais pobres e para o serviço
de Deus. Diversos fatos marcaram a vida desse santo, mas um, em
especial, era a devoção à Maria. Em sua pregação e em sua vida, a
figura materna de Maria estava presente. Santo Antônio encontrava
em Maria, além do conforto, a inspiração de vida. O seu culto tem
sido objeto de grande devoção popular e é difundido por todo o
mundo.
Pode-se dizer que, em 2022, o festejo ao padroeiro foi
muito aguardado, uma vez que devido à pandemia foram dois anos
sem esse evento. A parte cultural da festa tradicionalmente
acontecia junto à religiosa, com o bailão popular, apresentação de
cururu, siriri, shows culturais, promovidos pela secretaria de
cultura e o poder público. No entanto, atualmente, os dirigentes
da igreja consideram que essas manifestações culturais não devem
ser desenvolvidas no espaço religioso. Assim, essas atividades
ocorreram em uma praça ao lado da igreja, o que causou certa
revolta na comunidade.
Considerações finais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

285
Novas Fronteiras Culturais

As festas revelam a essência fundante de respeito à fé e à


fraternidade comunal, que alimentam as manifestações religiosas e
perpetuam as tradições que constituem um verdadeiro patrimônio
cultural. Assim, configuram-se as festas brasileiras desde os
primeiros séculos de colonização. Envolvem a participação
popular, com música, danças típicas, rituais religiosos, entre outros.
É uma cultura que se herda da sociedade, por meio de
diversas pessoas de vários lugares com hábitos e costumes
diferentes, tais costumes são adquiridos e podem ser expressos
através de diversas modalidades de expressão como o artesanato,
dança culinária, crendices, entre outras. Ela é importante, pois,
mantém as tradições culturais de um povo, trazendo conhecimento
para a população, gerando, assim, oportunidades para que outros
povos conheçam diversas culturas e tradições históricas como a do
padroeiro Santo Antônio.
Verifica-se que a festa do padroeiro Santo Antônio é um
festejo religioso/cultural em que se demonstra o quão importante
é o convívio, tanto para manutenção dos laços afetivos entre as
pessoas, como para a manutenção das suas tradições, seus valores
e a vida comunitária, enfim para manifestar o encontro com o
sagrado.

Referências

BRASIL. IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros.


V.35. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. Disponível em
https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-
catalogo?view=detalhes&id=227295 Acesso em: 2 out. 2021.
BRASIL. IBGE. Santo Antônio de Leverger. Disponível em
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mt/santo-antonio-do-
leverger/panorama Acesso em: 5 out. 2021.
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o
sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

286
Novas Fronteiras Culturais

FERREIRA, J. C. V. Mato Grosso e seus municípios. Cuiabá:


Secretaria de Estado da Educação, 2001.
LÜDKE, M.; ANDRE, M. E. D. A. Pesquisa em educação:
abordagens qualitativas. São Paulo: E.P.U, 1986.
OLIVEIRA, L. B. et al. Ensino religioso: fundamentos e
métodos. São Paulo: Cortez, 2007. (Coleção docência em
formação. Série ensino fundamental).
ROSENDAHL, Z. Porto das Caixas: espaço sagrado da Baixada
Fluminense. Tese (Doutorado) Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas. Departamento de Geografia. Universidade de
São Paulo - USP. São Paulo: 1994.
ROSENDAHL, Z. Geografia e religião. Boletim Gaúcho de
Geografia. 20: 96-99, dez.,1995. Disponível em:
https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/espacoecultura/
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SANTOS, M. Por outra globalização: do pensamento único à
consciência universal.
Rio de janeiro: Record, 2010.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

287
Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 4

SABERES INDÍGENAS E PRÁTICAS


DECOLONIAIS

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

288
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 17
A PRODUÇÃO COLABORATIVA DE
MATERIAIS DIDÁTICO EM ALDEIAS

Alceu Zoia

Introdução

As reflexões aqui tecidas emergem a partir da pesquisa


desenvolvida durante o estágio pós doutoral realizado na
Universidade Federal do Paraná, que teve como objetivo analisar
as experiências realizadas no projeto Ação Saberes Indígenas na
escola, para avaliar os resultados que têm sido obtidos e, a partir
deles, sistematizar os princípios de educação escolar indígena
presentes nas ações de pesquisa e extensão realizadas nas aldeias.
Objetivamos compreender como a educação manifesta-se
na sua relação com a cultura popular, com a tradição oral e com a
ancestralidade dos povos originários, como forma de resistência à
pressão dos processos de escolarização dominante e de base
eurocêntrica, buscando uma forma de educar emancipatória e
libertadora, que trilhe pelos caminhos da resistência e da
valorização dos saberes tradicionais, opondo-se a todos os
movimentos históricos de dominação que ainda imperam em
muitas escolas.
De acordo com Brandão (1986), especificidades de cada
cultura são encaradas, entre outras compreensões de suas
dimensões, como:

[...] o conjunto de práticas através das quais, em qualquer


situação, no interior de sua própria cultura e através de suas
redes e regras as pessoas das classes populares vivem

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

289
Novas Fronteiras Culturais

experiências endógenas de produções e transferência de


seu próprio saber (BRANDÃO, 1986, p. 148).

Neste sentido, trabalhamos, junto ao NPPD/UFPR, no


desenvolvimento de reflexões que se voltaram para a análise de
dois eixos constitutivos das ações desenvolvidas pelo projeto Ação
Saberes Indígenas na Escola: a) a perspectiva de pesquisar de modo
colaborativo, junto às comunidades, saberes que possam contribuir
e subsidiar a produção de material didático em línguas indígenas,
para a alfabetização e séries iniciais do Ensino Fundamental; b) as
formas de fomentar e desenvolver pesquisas com professores e
alunos indígenas para buscar fundamentos para a produção de
materiais didáticos e paradidáticos em diversas línguas, de acordo
com a situação sociolinguística das comunidades.
Foi a partir do estudo desses dois eixos de pesquisa que
buscamos definir referenciais necessários para problematizar e
analisar os princípios educativos da educação escolar indígena
presentes no desenvolvimento das ações na escola e, assim,
estabelecer suas contribuições e limites, perspectivando novas
possibilidades para a continuidade dos projetos de pesquisa e
extensão com as comunidades.
Nessa perspectiva, buscamos calcar nossas ações na
pesquisa de caráter qualitativo, em que os sujeitos colaboradores
estavam diretamente envolvidos com a execução das atividades do
projeto. Os sujeitos foram selecionados pelo fato de
considerarmos que são pessoas que expressam nas suas diversas
vivências em uma participação ativa com as atividades escolares e
exercem papéis de lideranças em suas comunidades.
Considerando que a educação estatal é assegurada por
instrumentos legais internacionais e nacionais como um direito
humano e social, com fundamentos nos princípios da igualdade
social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo, do
multilinguismo e das especificidades da escola indígena, gerando
autonomia para atuar conforme a necessidade e o querer
comunitário, é que nos propomos a realizar este trabalho

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

290
Novas Fronteiras Culturais

juntamente com os professores, buscando envolver toda a


comunidade na formação e na elaboração desses materiais
didáticos-pedagógicos que servirão de apoio para os professores
no seu trabalho diário em sala de aula.

A produção de materiais didáticos em aldeias: um inédito


viável

Tratarmos da produção colaborativa de materiais didáticos


em aldeias sem pensarmos em Paulo Freire parece-nos uma tarefa
impossível. Para tanto, buscamos uma aproximação dessa ideia
com o conceito de inédito viável, que não chegou a ter um conceito
claro elaborado por Freire, no entanto Ana Freire sugere que:

O ‘inédito-viável’ é na realidade, pois, uma coisa que era


inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas
quando se torna um ‘percebido destacado’ pelos que
pensam utopicamente, o problema não é mais um sonho,
ele pode se tornar realidade (FREIRE, 2014, p. 225).

Portanto, esse inédito viável é algo que o sonho utópico


tem certeza que existe, mas ele, de fato, só se concretizará com
muita dedicação e com o exercício permanente de uma práxis
libertadora e emancipadora. A cultura, a arte, a identidade formam-
se e concretizam-se quando aqueles que sonham utopicamente
confiam que isso é possível de tornar-se realidade. Quando
tratamos da produção coletiva e colaborativa desses materiais,
temos a certeza de que mais importante que o resultado final é o
aprendizado todo que o caminho percorrido para realização
proporcionou para todos os que se entregaram a este trabalho.
Transformar saberes tradicionais em práticas pedagógicas,
em epistemologias locais, decoloniais, é transferir o que se sabe e
aprender enquanto se ensina. Nessa categoria de saberes,
depositamos todos os trabalhos realizados com povos ribeirinhos,
e pantaneiros, assentados, pequenos produtores que possuem

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

291
Novas Fronteiras Culturais

outros olhares para a produção, a partir de outra visão de


economia, da economia sócio-solidária. Os trabalhos realizados de
produção de materiais didáticos em aldeias andam nessa
perspectiva, trazem inovação, comunicação e saberes tradicionais.
Destacamos a grande necessidade que essas comunidades
têm de produzir os seus próprios materiais didáticos e pedagógicos
que façam sentido para elas, contextualizados com a sua realidade.
Somos sabedores que essa seria uma tarefa do Estado, é um direito
de suas escolas receber materiais específicos e diferenciados, como
determina a legislação nacional. No entanto, essa não é a realidade
encontrada nas escolas das aldeias. O máximo que se encontra
nessas escolas é materiais precarizados e descontextualizados,
apresentando uma realidade distante daquilo que os olhares das
crianças vivenciam no seu dia a dia.
Sendo assim, professores e alunos, desde as séries iniciais,
procuram desenvolver uma metodologia de produção de materiais
específicos e diferenciados, que retratam a realidade em que vivem,
os animais, o território, as plantas, os conhecimentos e saberes dos
povos desde o norte amazônico.
Trabalhando nessa direção é possível tratar do uso de
plantas medicinais e da soberania alimentar a partir de seu entorno
e de seu etnoterritório, do extrativismo da castanha, do patuá, do
açaí, do pequi, entre outros. Tudo isso é alimento fornecido pela
floresta e que faz parte da soberania alimentar de cada povo.
Entretanto, em sala de aula, é transformado para além de sua
função de alimentar as famílias. Eles são transformados em textos,
em arte, em música, em receitas de chás e outras infinidades de
situações possíveis.
O pequi, por exemplo, depois de servir de alimento, sua
castanha passa a ser usada como um chocalho amarrado no
tornozelo e usado durante as danças. O ouriço da castanha serve
como carvão ou até mesmo como matéria prima para diversos
tipos de artesanatos. Assim como diversos tipos de sementes
também são usadas na confecção de roupas, colares, brincos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

292
Novas Fronteiras Culturais

A inovação presente na produção desses materiais faz-se


presente em todas as etapas e envolve praticamente toda a
comunidade. Dessa forma, tratar de educação comunitária faz todo
sentido. A educação não se faz, não se produz e reproduz entre
quatro paredes. A educação comunitária verdadeira desenvolve-se
colaborativamente com todos os membros da comunidade
participando das atividades. Portanto, são materiais que não vêm
de editoras comerciais, surgem do pensamento coletivo, realizados
dentro das comunidades, envolvendo todos num trabalho que é
eleito como importante para cada situação e para cada povo.
Neste sentido, entendemos qual é o papel da universidade
nesse processo. Cada ente deve auxiliar naquilo que é de sua
expertise, sendo assim, a universidade entra com a formação e
instrumentação para que os professores possam ter mais segurança
na realização de seus trabalhos. Os professores e alunos fazem o
trabalho de pesquisa com os “sabedores” de suas comunidades,
para que esses materiais reflitam a realidade vivida por eles e a
escola, em sala de aula, trabalha esses materiais para que tudo ganhe
forma e que possam sere usados por todos os estudantes (ZOIA;
RONDON, 2021).
Esses materiais exercem uma comunicação que é
decolonial, que vem do interior de cada comunidade. Ousamos
afirmar que é decolonial e intracultural, pois são produzidos a partir
do reconhecimento dos próprios povos indígenas e específicos
para cada comunidade. Entendemos ainda como um produto que
expressa o empoderamento e a alteridade, reconhecendo que o
processo de educação pode ser feito pelas decisões que vêm de
dentro das próprias comunidades.
É importante nessa prática destacar:
- a formação de lideranças;
- a formação intelectual;
- a defesa de seus territórios.
Quando possibilitamos o protagonismo dos povos
indígenas, estamos contribuindo com os processos de inovação, de
produção de materiais, de autonomia e de um processo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

293
Novas Fronteiras Culturais

emancipatório, colaborando com a construção identitária e de


pertencimento desses povos.
Neste sentido, Ferreira e Ibiapina (2011, p. 122) esclarecem
que:

A pesquisa colaborativa propõe abordagem em que os


objetivos da pesquisa e da formação se encontram
imbricados, exigindo a inter-relação entre os atores do
processo, distinguindo-se de outras modalidades pelo
caráter de participação, colaboração e reflexão crítica que
lhe é inerente. [...] Nessa perspectiva, o foco da Pesquisa
Colaborativa é a vida real do professorado, bem como do
processo educativo e as relações estabelecidas pelos
professores e pesquisadores como sujeitos da história que
constroem no desenvolvimento da atividade docente,
tornando-os mais conscientes do contexto no qual estão
inseridos, alicerçados por visão e compreensão crítica das
suas atuações. [...] pesquisar, na proposta colaborativa,
implica refletir sobre o agir e sobre as teorias que lhe
servem de esteio, como também criar formas de interpretá-
los e transformá-los.

Para tanto, a compreensão e o respeito pela cultura e pelos


conhecimentos dos outros é fundamental e, neste sentido, o
conceito de cultura, que é um dos mais polissêmicos que existem,
pode referir-se desde o ato de cultivar a terra até o ato de cultivar
o espírito. De uma forma geral, a cultura pode ser definida como
o conjunto de conhecimentos acumulados, de comportamentos,
instituições, crenças, costumes, em uma determinada organização
social, que constituem um patrimônio da sociedade (BELELI et
al., 2009). Esse conceito é fundamental para a elaboração desses
materiais didáticos-pedagógicos que servirão de apoio nas escolas
indígenas de cada comunidade, de modo que os aspectos
históricos, sociais e culturais dos protagonistas devem estar sempre
em primeiro plano neste trabalho (ZOIA; MENDES, 2017).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

294
Novas Fronteiras Culturais

Na busca pela valorização do sujeito, Freire (1992, p. 16)


afirma que:

A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela


desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas,
como ‘seres para si’, não teria significação. Esta somente é
possível porque a desumanização, mesmo que um fato
concreto na história, não é, porém, destino dado, mas
resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos
opressores e esta, o ser menos.

Assim como Freire, compreendemos que a luta necessária


para a desalienação deve ser travada diariamente. Para tanto,
conhecer a própria história e a cultura é fundamental nesse
processo.
Dessa forma, buscamos, por meio desse trabalho, refletir
sobre o processo de produção de materiais didáticos para as escolas
das aldeias envolvidas no projeto, conduzido e elaborado pelos
próprios sujeitos da escola indígena, viabilizado com a participação
dos demais sabedores da cultura de suas comunidades e
pesquisadores da universidade.
Dentro do processo de autonomia desejado pelo projeto,
foi possível que cada povo escolhesse a temática e a forma de
materiais didáticos e pedagógicos que julgassem mais apropriados
para as atividades que planejaram realizar nas suas comunidades. O
Povo Munduruku decidiu que realizaria uma pesquisa que
envolveria as frutas silvestres que existem na sua Terra indígena e
que eles utilizam na alimentação, num primeiro material e, para o
segundo, foi trabalhado com os cânticos Munduruku.
Dessa forma, por intermédio da pesquisa com os
sabedores da comunidade, coordenada pelos professores e com os
estudantes da aldeia, eles foram em busca das informações
necessárias para o desenvolvimento do trabalho.
Um dos professores indígena, que é coordenador do
projeto, apresenta, dessa forma, o trabalho realizado:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

295
Novas Fronteiras Culturais

O tema do trabalho que a gente colocou aqui são as frutas


silvestres que fazem parte da alimentação do povo
Munduruku, da terra indígena Apiaká/Kaiabi. E qual foi a
intenção nossa de querer fazer esse tema? Que nossos
alunos conheçam isso lá, futuramente, que essas frutas
fazem parte da nossa alimentação. Até pra ter os modos de
conhecer que existem os Munduruku no Pará, Amazonas,
mas nós queremos fazer o nosso aqui de Mato Grosso. E
isso é importante pra mostrar pra comunidade e pro nosso
povo e para as crianças, pra elas conhecerem essas frutas.
Fazendo uma comparação da terra indígena Munduruku
no Pará, com a terra indígena Apiaká/Kaiabi, que é onde
os Munduruku daqui habitam[...] (Professor Munduruku).

O professor destaca ainda que este foi um trabalho


produzido juntamente com os estudantes e a comunidade, que
“não foi um trabalho de dois, três dias, porque não teve só a
participação dos alunos com a parte teórica, mas teve a participação
também da comunidade como um todo”.
Sobre a importância de envolver a comunidade, ele afirma:

A gente precisava trazer ancião pra sala de aula, para que


ele traduzisse aquilo que era na língua materna. Então
precisamos trazer ele, um ancião ou anciã para fazer essa
tradução, apesar que nós na comunidade lá, a gente tem
falado, mas quando chega nessa parte de escrita, de passar
mais conhecimento do passado, então nós temos que
trazer o ancião, porque é mais difícil a gente escrever a
língua Munduruku e ler. Então, por isso que a gente trouxe
os anciãos (Professor Munduruku).

Esse trabalho desenvolveu-se também fora da escola, a


partir de uma reunião comunitária, no salão da comunidade, onde
todos participaram, adultos, crianças e anciãos, sendo explicado o
projeto e a importância do envolvimento de todos para que o
trabalho saísse da forma como desejavam. Assim, receber o livro
impresso nas mãos foi uma grande emoção:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

296
Novas Fronteiras Culturais

E eu até hoje fiquei emocionado, contente de ver o livro,


porque eu estava tão curioso de ver esse trabalho, ai
quando cheguei aqui e vi a professora com as fotos, eu
fiquei muito emocionado e eu penso que pra minha
comunidade também vai ficar emocionada com esse
resultado do trabalho, quando a gente chegar lá vai ser
surpresa pra eles e fico contente mesmo com o projeto e
com esse trabalho pra gente fazer (Professor Munduruku).

Ao tratar do trabalho junto ao povo Apiaká e do livro que


foi produzido, a professora indígena também destaca o trabalho
realizado, as dificuldades enfrentadas e a importância que esse
trabalho representará para o seu povo, ajudando no ensino na sala
de aula.

[...] quero falar pra vocês do trabalho que fizemos, esse


material e foi muito importante, a gente está dentro do
Saberes Indígenas, desse programa e realizando essa
atividade, a gente fez esse trabalho com toda comunidade
primeiro e, depois, a gente reuniu os professores todos
juntos, definimos como nós íamos trabalhar. Lá na minha
aldeia, teve dificuldade por motivo de o povo lá não falar
mais a língua materna, então a gente tem material lá que
são palavras soltas, ainda faltou muita coisa pra ser
colocado nesse livro e a gente optou por fazer esse
dicionário. Então, a gente colocou os que têm e os que não
têm no dicionário que a gente já tem produzido (Professora
Apiaká).

Na sequência, a professora segue destacando a importância


do material produzido para o seu povo e que ajudará muito na
escola e que “a gente pra fazer esse material foi fazer pesquisa com
algumas pessoas que conhecem as palavras, principalmente, uma
das professoras lá que ajudou muito porque ela entende um pouco
da língua, ela ajudou a gente a fazer esse trabalho”. Salienta ainda
que “teve dificuldade, mas a gente conseguiu estar realizando essa
atividade”.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

297
Novas Fronteiras Culturais

Outro aspecto importante destacado pela professora diz


respeito aos diversos trabalhos já realizados e que foram perdidos
ou esquecidos nos armários devido à impossibilidade de
publicação. Dessa forma, afirma: “Fiquei muito feliz vendo um
trabalho que foi publicado, que a gente teve esperança de um dia
ser publicado, não só fazer e deixar lá, mas a gente conseguiu levar
pra publicação, então eu só tenho a agradecer a todos”.
A professora Kayabi (Kawaiwete) também ressalta o
trabalho realizado, apontando a importância dele para a
comunidade e que essa cartilha servirá para que os alunos
aprendam com mais facilidade a língua e os saberes de seu povo,
destacando que isso será fundamental para o trabalho na escola:

[...] foi um prazer de estar participando deste projeto e foi


uma surpresa de ver o livrinho pronto. Aí tem o trabalho
de professor e englobou tudo e deu certo que ficou o livro
com a capa do Kawaiwete e trouxe também a curiosidade
pra comunidade porque o que eles queriam mesmo era que
o professor começasse a registrar seus trabalhos, pois têm
dificuldade de registrar, fala mais oralmente, mas registrar
é importante. Essa cartilha vai voltar pra escola e eles
mesmo vão perceber que algumas palavras estão erradas,
vamos usar os dicionário e é onde eu falei pro professor
que eu fiquei assim feliz que ele deixou a parte do livrinho
e ficou bem organizado o trabalho do professor, chegando
lá a gente pode tá mostrando e é a valorização da nossa
comunidade envolvendo tudo, eles vão ver que não foi só,
foi os aluninhos, foi o próprio povo também que ajudou,
colaborou, então a gente fica agradecido também por eles
estarem incentivando a gente enquanto professora, em
muitos lugares não valoriza professor indígena, então lá é
o contrário, a gente fica lá na escola e a gente é exigido e
exige da comunidade, então é um projeto legal, é isso
mesmo que a gente precisa (Professora Kayabi).

A aprendizagem acontece a todo momento e o


fortalecimento da educação intercultural e bilíngue serve como

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

298
Novas Fronteiras Culturais

incentivo na produção desses materiais. Percebemos que este é um


trabalho que não para. Vários professores que se envolveram no
trabalho seguiram seus estudos, ou em cursos de graduação ou até
mesmo no mestrado, onde essas práticas podem também serem
ressignificadas e transformadas em objetos de estudos pelos
próprios professores indígenas em seus projetos de pesquisas.

Considerações finais

Durante esse percurso, no diálogo com os alunos,


professores e as comunidades, foi possível conhecer a realidade
vivida por eles e as suas perspectivas quanto à necessidade e à
valorização da formação e capacitação dos professores indígenas.
Tal valorização passa pelo acesso a programas de formação inicial
e continuada em busca do fortalecimento do magistério,
respeitando a diversidade sociocultural, com a produção de
materiais didáticos culturalmente apropriados e que contribuam
para o desenvolvimento de práticas pedagógicas adequadas ao
contexto desses povos (ZOIA, 2009).
Foi no seio de todas essas modificações implantadas no
país nos últimos anos, que se abriram as possibilidades de pensar e
repensar a educação indígena fora do domínio da religião e da
doutrina humanitária positivista que, até então, haviam definido a
atuação indigenista. Com essa perspectiva que passam agora a
vigorar os objetivos educacionais a voltaram-se cada vez mais para
a valorização dos “intelectuais autóctones”, para a formação de
professores indígenas, para a elaboração de programas, currículos
e materiais específicos que dizem respeito à língua originária e aos
processos próprios de aprendizagem de cada povo, servindo como
base para a implantação de escolas voltadas para a realidade
socioeconômica e cultural das sociedades indígenas.
Entendemos, daí, a necessidade de buscar uma educação
que esteja voltada à realidade das comunidades indígenas, num
constante diálogo intercultural entre os diversos saberes que aí se
encontram, com o objetivo central de formação de professores

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

299
Novas Fronteiras Culturais

indígenas comprometidos com o exercício da docência,


respeitando a cosmovisão e os valores das diferentes etnias.
Quando Nietta Monte (1996) afirma que é como se as
vozes das sociedades indígenas, que há séculos estavam silenciadas
pelas políticas educacionais, finalmente pudessem formular e
explicitar seu projeto de escola, fazê-lo ecoar e reproduzir, ainda
que sob intenso debate e conflito, em forma de novas propostas e
políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado Brasileiro.
Neste sentido, pensar no papel da Universidade e em
cursos de formação e de capacitação dos professores indígenas, é
pensar em programas de atendimento em serviço para esses
profissionais, que deverão buscar sua capacitação
concomitantemente com a sua própria escolarização e com o seu
próprio trabalho já iniciado como professores na escola indígena.
Ainda temos muitos professores indígenas que atuam em
suas comunidades por esse Brasil adentro, que não passaram por
quaisquer programas de formação para o magistério. Eles apenas
destacam-se na comunidade por possuir um domínio um pouco
maior que os demais da Língua Portuguesa e por conhecerem os
conhecimentos próprios de sua cultura, motivo geralmente
considerado fundamental pelas comunidades para que esses
indivíduos tornem-se professores em suas aldeias.
A defesa da escola indígena diferenciada, intercultural,
bilíngue/multilingue, específica, de qualidade e que respeite o
tempo de maturação de suas decisões é uma bandeira que precisa
ser levantada por todos aqueles que pregam a necessidade da
implantação de um programa de formação de professores
indígenas comprometidos com as reais necessidades das
comunidades indígenas. De fato, a escola só se tornará
politicamente relevante para as comunidades quando for possível
compreender todos esses princípios e que os indígenas possam ser,
de fato, protagonistas de seus processos de aprendizagem, em que
os materiais didáticos pedagógicos sejam também apropriados para
cada povo.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

300
Novas Fronteiras Culturais

Referências

BELELI, Iara; MISKOLCI, Richard; RISCAL, Sandra;


SILVÉRIO, Valter Roberto. Marcas da diferença no ensino
escolar. São Carlos: UFSCar virtual, 2009.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (organização). Pesquisa
participante. São Paulo: Brasiliense, 2006.
BRANDÃO, Carlos R. A educação como cultura. 2. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1986.
FERREIRA, M.S.; IBIAPINA. I. M. L. M. A pesquisa colaborativa
como espaço formativo. In: MAGALHÃES, M. C. C.; FIDALGO.
S. S. (orgs.). Questões de método e de linguagem na formação
docente. São Paulo: Mercado das Letras, 2011.
FREIRE, Ana M. A. Notas explicativas. In: FREIRE, Paulo
(org.). Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia
do oprimido. 21. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz &
Terra, 1992.
ZOIA, Alceu. A comunidade indígena Terena do Norte de
Mato Grosso: infância, identidade e educação. Tese (Doutorado
em Educação) – Universidade Federal de Goiás, 2009.
ZOIA, Alceu; MENDES, Matilde. Protagonismo PaiterSuruí:
práticas político-pedagógicas e suas relações com os
etnoconhecimentos. R. Educ. Públ. Cuiabá, v. 26, n. 62/1, p. 405-
419, maio/ago. 2017.
ZOIA, Alceu; RONDON, Micael Turi. Conhecimento tradicional
e produção de materiais didáticos para o fortalecimento das línguas
indígenas em Mato Grosso (Brasil). Pedagogía Social. Revista
Interuniversitaria, 39, 61-73. 2021. DOI:
10.7179/PSRI_2021.39.04

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

301
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 18
ESCRITA DE MULHERES INDÍGENAS:
DESESTABILIZANDO FRONTEIRA NO
ESPAÇO ACADÊMICO

Águeda Aparecida da Cruz Borges

Nem todo conhecimento dá conta de ser guardado em um livro


Se encontra no território e no epistemológico nativo.
Produzindo seus conceitos, inspirado no corpo da vivência,
Tecendo nossas narrativas por meio da experiência.
Os nossos mestres são os mais velhos que na palavra carrega
identidade,
Se a academia forma seus mestres e doutores,
Nós também formamos doutores da oralidade.
A força desta ciência do território, muitos não têm o poder de
ver,
Pois a força da oralidade, nem tudo se pode escrever.
Existe a universidade da vida e a vida na universidade,
Estar na academia só tem sentindo se não exterminar a
identidade.
Na luta também adquirimos conhecimento
Portanto toda luta é epistêmica,
Não há lugar de um único saber isso seria matar a “diferença”.
Muitas vezes a sociedade se assusta quando se fala no
etnocídio, sendo que na academia somos vítimas da produção do
epistemicídio.
Quando tentam negar o nosso conhecimento,
É uma violência física e simbolicamente,
Quando negam o território e o nosso saber, nos matam
coletivamente.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

302
Novas Fronteiras Culturais

Muitos conhecimentos se materializam


Outros carregam imaterialidade,
O conhecimento que não é palpável porque carrega
subjetividade.
A luta pelo território nos ensina, prepara-nos em outra
dimensão
Se na retomada (de terra) enfrentamos os fazendeiros.
Na academia enfrentamos a sua geração.
Na retomada enfrentamos armas de fogo,
Viver lá é uma incerteza.
Já na academia a arma que nos aponta é a escrita e a caneta.
A tutelagem apreende mentes e corpos expressão.
Resulta em violência e opressão,
Mas enquanto povos, reagimos e superamos com a força e expressão.
(XAKRIABÁ, 2018, p. 96-97 [itálico da autora], sic.).

Introdução

Este texto não começa aqui, ele é uma continuidade do


compromisso histórico que assumi com os povos originários desde
que me livrei da ignorância em relação a eles. Assim, quando fui
convidada para participar do evento: “Novas fronteiras culturais:
práticas e representações", vislumbrei a oportunidade de falar
sobre a organização da Revista Fragmentum de n. 58, que fiz com o
objetivo de criar um espaço de visibilidade à escrita de mulheres
indígenas, de várias etnias. Considerando que o ingresso,
principalmente de mulheres indígenas, na Universidade é tardio,
seria incoerente produzir a revista apenas com textos acadêmicos.
Assim sendo, contatei com muitas mulheres, solicitei para que
produzissem textos que poderiam se inscrever em vários gêneros:
científicos, relatos, histórias, memoriais, autobiografias, poemas,
além de artísticos: fotos, pinturas e outros. Aconteceu, recebi uma
variedade de materiais de extrema representação.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

303
Novas Fronteiras Culturais

Então, este não é um artigo resultado de pesquisa, com


análises de um determinado “corpus”. É um texto em que tomo a
liberdade de primeiro pontuar alguns aspectos sobre a história do
processo de construção da referida revista, que, de certo modo,
pelo caráter de especialidade que a constitui, abre-se a possibilidade
de provocar um certo tremor nas bases do rigor acadêmico que
sustenta a qualificação das revistas, de modo a alcançar esse
objetivo, teço uma reflexão fundamentada em teóricos da Análise
de Discurso de base materialista e, particularmente, textos de
Xakriabá (2018) e Jardim (2019), que lê Xakriabá, reflito um pouco
sobre a escrita e por fim apresento a revista aos leitores.

Entre refletir e teorizar

Como já anunciado, a Fragmentum de n. 58 não contém


artigos científicos de 15 a 20 páginas, formatados nas normas da
ABNT, com referências de autores consagrados, estrangeiros, com
exceção de dois deles, resultados de pesquisas em programas
acadêmicos. A maioria dos textos, são as próprias referências, eles
contam histórias de vida, de fazeres, de saberes, de lutas, de
políticas, de linguagens e por que não de ciências? Se me oriento
pelo dispositivo da Análise de Discurso de base materialista, como
“uma práxis teórica não servil”, é possível desestabilizar a relação
sobredeterminada pela colonização. Orlandi escreve:
Descolonizar a vida intelectual não é a minha preocupação
menor. Porque temos a colonização em nossa história, não
é pequeno o risco, quando olho à minha volta, dos que
estabelecem com o que vem de fora de uma relação de
adulação intelectual e de submissão, próprias à ideologia do
colonizador (ORLANDI, 2011, p.13).

Vejamos o que nos escreve Letícia Krahô1, uma dentre


poucas indígenas que estão no ensino superior, quando ingressou

1 A citação está no texto que ela escreveu para a Revista Fragmentum n. 58.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

304
Novas Fronteiras Culturais

na Universidade: “Entrei fui sentar no canto, pois não sabia como


reagir, fiquei lá quando o professor chegou foi logo conversando
com a gente e eu ali ainda apreensiva, quando ele começou falar
dos grandes teóricos Ingleses, Franceses eu não estava entendendo
nada, pois tudo que ele fala eu não tinha conhecimento algum, tudo
era novidade para minha mente” (sic.).
Xakriabá (2018)2 diz que o mais importante não é ela ser a
primeira do seu povo a ser mestre numa Universidade, com as suas
palavras:
[...] um dos nossos desafios é ser ética ser perder a étnica,
pois aqui tem um apagamento, um desbotamento de
identidade, mas é também uma ferramenta importante de
luta que nós precisamos dominar e reapropriar do
conhecimento acadêmico e trazer para dentro da academia
a produção do conhecimento indígena que não é menor,
esse é mais um dos desafios. Sabe e fala-se do genocídio,
etnocídio indígena, mas na universidade sofremos muito
de episteminicídio, pois a produção do conhecimento em
território indígena, não tem validade.

Xakriabá (2018), na sua dissertação de mestrado, discute


que a escrita e a leitura vêm como uma necessidade, como uma
arma, uma vez que na época do descobrimento, a escrita chegava
para confrontar, numa tentativa de retirar o território por meio de
cartas e documentação. Ela escreve:
Quem tinha o poder da leitura construía uma narrativa de
poder, a favor ou contra o reconhecimento do território
Xakriabá, a escrita no primeiro momento ela veio para
reafirmar a identidade a partir do direito territorial. Na
década de 1960 e início de 1970 havia somente uma ou
duas pessoas que sabiam ler, então se organizaram e essas
duas pessoas se tornaram professores, ensinavam e eram

2Célia Xakriabá defende produção acadêmica indígena, In:


https://www.youtube.com/watch?v=gdlEP0v0CW8. Acesso em julho de 2021.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

305
Novas Fronteiras Culturais

pagos, ou melhor dizendo, recebiam uma pequena


gratificação por aqueles que queriam estudar e tinha
condição de pagar. E o ensinar ler e escrever era repassado,
multiplicado pelo aprendiz que frequentava a escola
(XAKRIABÁ, 2018, p.199).

Pensemos, as mulheres indígenas são lideranças


fundamentais na luta dos povos originários pelo reconhecimento
étnico, pela terra, pela identidade. Como nós mulheres ocidentais,
elas se dividem entre muitos afazeres e responsabilidades, além de
enfrentar a violência de gênero que irrompe sempre que levantam
sua voz e, geralmente, são ignoradas por mulheres ocidentais, mais
um motivo que justifica a especialidade do número especial da
Fragmentum, com escrita diversa, também de uma diversidade étnica
de mulheres.
Sustentada na Análise de Discurso, me apego ao conceito
de memória discursiva para seguir a reflexão, a memória discursiva
possui um laço estreito com a subjetivação e, de certa forma,
contribui para explicar o porquê do desejo de reunir escritos dessas
mulheres e desenhar em letras sentimentos que me constituem na
relação com elas. Seria um jeito de imprimir um gesto que significa
afeto, agradecimento e homenagem à inscrição de muitas delas em
mim, assim, este é, também um texto sobre mim e, por isso,
embora eu busque alguns autores para contribuir nas reflexões e
tenha tido uma parceira, a Naine Terena, que assinou comigo a
organização da revista, escrevo este texto em primeira pessoa.
Valho-me, ainda, da liberdade de tipos e gêneros textuais
permitida pela escrita e do conhecimento produzido, em especial,
por pesquisadores da Análise de Discurso de linhagem francesa
ampliada no Brasil, para a minha compreensão do acontecimento
dessa revista. Por assim ser, digo que este é um “entretexto”, pois
carrega uma narrativa histórica, costurada por reflexões teóricas,
que imprimem sentidos dos materiais recebidos.
Este “entretexto” é inspirado na posição confortável de
quem pratica uma teoria como a Análise de Discurso, que trabalha

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

306
Novas Fronteiras Culturais

no entremeio, o que implica, segundo Orlandi (1996, p. 23) “uma


disciplina não positiva, ou seja, ela não acumula conhecimentos
meramente, pois discute seus pressupostos continuamente”.
O pressuposto teórico referido me leva a reafirmar que a
história, discursivamente, não se define pela cronologia, nem por
seus acidentes, nem é tampouco evolução, mas produção de
sentidos. Cada texto que a revista comporta reformula na história
o conhecimento de povos originários, pelas lentes de mulheres
fortes e sábias em determinadas condições de produção.
Os textos não são artigos científicos num padrão
acadêmico ocidental, não são carregados de citações porque
materializam saberes produzidos no cotidiano vida e, mesmo
algumas que estão na Universidade, optaram por escrever sobre si,
sobre as relações que se estabelecem entre etnias, entre aldeia e
cidade, por isso mesmo, exigem leitores atentos.
Lembro Pêcheux (1999) quando diz que a linguagem não
é transparente e o discurso é tomado na opacidade, num lugar
particular em que a relação da materialidade com a exterioridade
explicita os mecanismos de determinação histórica dos processos
de significação e estabelece como central a relação do simbólico
com o político.
Os sentidos não estão na superficialidade material, não
estão na evidência. O modo como mulheres indígenas, no
silenciamento de suas línguas, se apodera da língua do outro é o
objeto em que o ponto das amarras entre línguas faladas, escritas,
desenhadas e os seus efeitos no processo de subjetivação me
impulsionam na escrita deste texto. Orlandi (2015, p. 575) segue
contribuindo na reflexão:
A escrita, segundo penso, especifica a natureza da memória
mobilizada, isto é, ela define o estatuto do interdiscurso
que determina a produção de sentidos e a posição dos
sujeitos, definindo assim, em grande parte, os processos de
individuação desses sujeitos. A forma-sujeito histórica
individuada pela escrita se distingue da individuada pela
oralidade. Por isso não adianta “aprender” a escrever, é

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

307
Novas Fronteiras Culturais

preciso que esta aprendizagem não seja só transcrição, mas


que inscreva o sujeito na estrutura social, da cultura
ocidental cristã. Com seus valores. A escrita apresenta-se
como um trabalho da memória que estrutura as relações
sociais.

A condição de mulher indígena que usa a escrita como


instrumento de luta em favor dos direitos de seu povo, coloca as
autoras desta Revista, dentre tantas, em posição de singularidade
no contexto da escrita brasileira, elas movimentam entre o ser
indígenas e ser ocidentais. Elas são exemplares, de mulheres
indígenas que vêm se ocupando daquilo que pode ser chamado de
escrita indígena (grifo meu).
Sabemos que muitos povos indígenas, a exemplo os
Xavante, com quem trabalhei na minha pesquisa de doutorado,
foram catequizados pelos salesianos. Nos internatos salesianos,
crianças e jovens que não entendessem o Português chegavam a
ficar meses sem ter com quem conversar, e outras que tentavam
falar com parentes em suas próprias línguas eram castigadas e
humilhadas carregando uma tabuleta no peito com os dizeres: “Eu
não sei Português”, e que só se livravam desse castigo se
“entregassem” outro colega que cometesse a mesma “falta”.
Tratava-se de uma prática de língua que fazia calar uma
subjetividade funcionando a política da interdição do dizer.
Proibiam-se certas palavras para proibir certos sentidos.
Busco, novamente, Orlandi, e me detenho no que ela diz
sobre o silêncio: “Em face da sua dimensão política, o silêncio pode
ser considerado tanto parte da retórica da dominação (a da
opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da
resistência)” (ORLANDI, 2007, p. 29). É assim que identifico a
retórica de algumas dessas mulheres, que foram obrigadas a
silenciar a língua própria.
À revelia do silenciamento de suas línguas e diante da
emergência de vozes, nas condições de produção vigentes, que
desestabilizem as narrativas historicamente construídas sobre os

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

308
Novas Fronteiras Culturais

povos indígenas, elas se posicionam politicamente nos seus textos,


no seu grafismo, nas suas imagens, nos seus saberes, numa tomada
de posição em que dão corpo à voz feminina, se dispersando em
múltiplas vozes de mulheres indígenas, que têm em comum uma
história de violência, deslocamentos, imposições silenciamentos,
mas, no entanto, constroem uma história de afirmação subjetiva e
de luta pela manutenção de seus costumes e ancestralidade.
Em uma perspectiva discursiva, segundo Orlandi (2001, p.
204), “a escrita é uma forma de relação social”, sendo a letra o traço
da entrada do sujeito no simbólico. “Traço que marca o sujeito
enquanto sujeito, em sua possibilidade de autoria, frente à escrita”
(idem). Ainda, conforme Orlandi (2002, p. 233), “a escrita
especifica a natureza da memória, ou seja, define o estatuto da
memória (o saber discursivo que determina a produção dos
sentidos e a posição dos sujeitos), definindo assim, pelo menos em
parte, os processos de individualização do sujeito”.
Então, é pelo processo da escrita que, aqui, essas mulheres
se subjetivam, ocupando a posição-sujeito autoras, numa escrita
própria constitutiva de suas identidades, através da memória e das
relações de identificação com a escrita alfabética, num constante
movimento entre a singularidade e a alteridade, entre serem
indígenas e ocidentais.
Toda escrita, toda tomada de palavra é um gesto de
interpretação e a leitura também é uma tomada de palavra do leitor
frente aquilo que ele se propõe a ler. Esta reflexão, embora não
aprofundada, converge para o fato de que os povos indígenas não
são de uma tradição alfabética, no entanto não são ágrafos, por isso
mesmo os materiais que dão corpo à Revista Fragmentum, exigem
uma leitura apurada. Atentemos à citação que segue:
A existência dos grafismos, nas sociedades, permite
questionar ou, ao menos, relativizar sua definição corrente
como ‘sociedades ágrafas’ (...) A arte gráfica, enquanto
sistema de comunicação visual, afeta, portanto, o exercício
da memória social (...) ao se produzir como exercício de
repetição de motivos e estilos que definem cada cultura em

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

309
Novas Fronteiras Culturais

especial, e como campo fértil de expressão da criatividade


individual, da incorporação de temas, motivos, técnicas,
significados e dimensões que, ao mesmo tempo, refletem
o momento histórico vivenciado com os desafios e
acomodações que exige, a percepção individual do
processo e a base cultural, a tradição compartilhada, a partir
da qual o artista constitui sua visão e seu modo de
expressão e se mostra como representante de seu grupo e
de seu povo (VIDAL; SILVA, apud VIDAL, 1992, p.
293).

Reflitamos, se a escrita alfabética materializa o nosso


mundo, há que se perscrutar a história dos sentidos da escrita para
cada povo. A escuta, em largo sentido, é o melhor percurso. O que
os rituais consubstancializam? A questão que me coloco como
leitora é: como alcançar a robustez da memória discursiva e
profundidade histórica dos sentidos nas manifestações impressas
em cada texto, em cada grafismo, em cada rosto estampado nas
fotografias. A escrita funciona, portanto, como espaço de
articulação entre língua, história, sujeito e, assim sendo, o que
percebo é que, embora os textos estejam em escrita alfabética eles
materializam uma diferença.
Em outras palavras, o sujeito se singulariza no gesto da
escrita. As escritoras dessa Revista não estão na língua própria
porque essa foi apagada em condições perversas na história, mas
aprendem/escrevem/registram na língua do Outro, e tomam
posição de se dizerem, de se manterem indígenas e alcançarem a
autoria.
Eu diria que estes sentidos tomam também o modo do
sujeito se relacionar com a língua interditada historicamente, já que
a língua válida é a língua “civilizada” oficializada, para se assegurar
num espaço que não é o seu, não é o da sua cultura e se sentir
seguro, se sentir pertencente e cidadãs no espaço/cultura alheios,
rebentar fronteiras.
No encontro com a diferença, nos estudos e trabalhos com
povos indígenas, penso cultura como um processo poroso que

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

310
Novas Fronteiras Culturais

impossibilita generalizações que naturalizam o conceito. Na


cultura, por exemplo, se prendem as relações identitárias,
pensemos: dentre as mulheres que nos enviaram os textos, há
algumas que estão na Universidade, são estudantes de mestrado,
doutorado, professoras, mas não deixaram de ser indígenas. Como
vimos, se os modos de ser indígenas são descritos com tamanha
densidade, é porque eles constituem significados para elas e, se nos
deixamos afetar, para nós.

Um percurso sobre os textos: um chamado à leitura

Não foi uma tarefa fácil reunir os textos para a Revista


Fragmentum, por mais que eu insistisse através de vários canais, os
textos não chegavam, fiquei muito angustiada e, pelo jogo de
imaginário, comecei a desacreditar de mim e, até a duvidar do
significado das minhas relações, foi quando chegou o primeiro
texto mediado pela querida Eunice de Paula (a Nice), que me enviou
um “Memorial” da Makato Tapirapé, o resumo do Memorial lhe
abstrairia os sentidos da autoria, leiam!
Passados alguns dias, tive a felicidade de receber, resultado
do contato da amiga Elizete Beatriz Azambuja com o povo Karajá,
desta vez o texto intitulado: “Mulheres indígenas Iny em busca de
reconhecimento para um futuro melhor” escrito por Sandra Kuady,
a inscrição do pedido de reconhecimento faz sentido na
materialização do desejo da Sandra no seu texto, é preciso ler.
Na sequência, também, por meio da Elizete, veio “Pinturas
corporais e grafismo”, um composto de imagens/fotos com as
respetivas descrições e quem assina é Lilialeia Manackiru Mauri
Karajá (Myna Mauri: nome artístico).
Recuperei o ânimo e, mais ainda, reafirmei a ideia de que
quanto mais escritas dessas mulheres eu conseguisse mais
importância se agregaria à revista.
Elaborei uma carta convite, busquei quantos contatos de
mulheres indígenas eu conhecia e outras pelas redes sociais e
encaminhei a carta.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

311
Novas Fronteiras Culturais

Maria Leusa Munduruku, num texto entre autobiográfico


vinculado aos enfretamentos do seu povo, escreve “Vida, luta e
resistência”, a sua voz ressoa no entremeio das palavras escritas, na
língua do Outro, mas para defender a sua gente “Mesmo com
dificuldades frente aos gananciosos, permaneço na luta, pois tenho
muito respeito pelas mulheres, caciques e crianças. Os caciques
dependem das nossas vozes, eles têm confiança em mim, porque
sabem qual é a minha posição, que sempre foi ficar na defesa da
vida do meu povo”.
Para a Ro’otsitsina (Tsitsina), com quem já participara de
um evento e de uma banca de apresentação de um documentário
Xavante, enviei algumas perguntas e ela atendeu prontamente
retornando a entrevista que ela intitulou, “Brasil: um pai encoraja
para uma vida diferente”. Tsitsina é esclarecedora e imprime uma
sabedoria profunda na sua escrita “Dizer que nós mulheres
indígenas não enfrentamos violência é mentira [...] Nós mulheres
não somos parte do povo, nós somos o povo. Então, violando uma
menina, violando uma mulher, você está violando o povo. Ou seja,
qualquer pessoa que faça mal a mim, que machuque fisicamente ou
verbalmente a mim, ou a qualquer mulher, ele está fazendo algo
contra o meu povo e a minha cultura”.
A cada texto, um aprendizado novo, a Letícia Krahô quis
contar sobre o processo de deslocamento para a cidade, as relações
na Universidade e a relação com o seu povo, parte do trabalho
desenvolvido na Universidade, do modo como sintetiza o título do
texto “Um pouco da minha trajetória e do meu povo”.
No percurso, recebemos o texto: “Kurr Kar Kre” de Genecí
Fidélis André, indígena Kaingang, que apresenta algumas reflexões
acerca do processo criativo desenvolvido numa disciplina de
serigrafia, do curso de Licenciatura em Artes Visuais – desenho e
plástica, da Universidade Federal de Santa Maria. A autora mostra
como a cultura Kaingang, consegue, por meio das tramas, se
inscrever no espaço educativo tradicional.
A entrevista, cedida por Fabiana Reinholz, do Jornal Brasil de
Fato, do Rio Grande do Sul e autorizada por Raquel Kubeo, a qual

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

312
Novas Fronteiras Culturais

mostra um panorama sobre sua vida, a luta indígena, apropriação


cultural e a cultura indígena. Natural do Amazonas, filha de mãe
descendente dos Tukanos e Kubeos, a entrevistada ressalta “a
existência desse corpo indígena político, que ora se pinta ou não,
de urucum, jenipapo” e o que isso significa na história dos povos
indígenas.
“Relato sobre o Projeto Kywagâ: muito além de roupas” é
o título do texto de Isabel Teresa Cristina Taukane, que como ela
escreve trata de uma “tentativa de trazer a cultura dos grafismos da
etnia para a Moda, gerar alternativas de renda para mulheres kurâ-
bakairi, que foi idealizado o projeto. A palavra Kywagâ, no idioma
desse povo indígena pode ser dito e entendido de duas maneiras.
A primeira compreensão é para dizer sobre nós, a história do povo
indígena, por meio arte do grafismo e da icnografia e a segunda
compreensão é para dizer sobre o que é posto no o corpo, tais
como, ornamentos (roupa, assessórios e outros)”.
Coincidentemente, a professora/pesquisadora Graça
Graúna traz um relato da “Oficina Kywagâ” que “nos convida a
refletir o lugar da cultura indígena durante a pandemia; o uso do
grafismo ancestral na Oficina de Estamparia e a renda familiar”,
como ela conta.
Como o próprio título, “É tempo de ser e estar no mundo:
as dualidades de Idioriê”, diz Clara Idiorê, numa certa leveza narra
o movimento da vida entre ser e estar no mundo indígena e no
ocidental e as implicâncias disso na sua constituição.
Por mais que eu tenha ciência da morte e de determinados
tipos de morte como é o caso do suicídio, fiquei muito impactada
com o texto a Jijuké Karajá, ela enviou um artigo produzido a partir
de um capítulo da sua dissertação de Mestrado, “Suicídio entre os
povos indígenas do Brasil e entre os Inỹ da aldeia Hawaló”, ela
escreve: “Queria compreender quais os fatores e causas que
contribuem e levam pessoas indígenas ao ato de acabar com a
própria vida e apontar caminhos para a redução desses números.
Escolhi a aldeia Hawaló (Santa Isabel do Morro), onde meu pai
nasceu e vivem muitos dos meus parentes, como objeto da

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

313
Novas Fronteiras Culturais

pesquisa. No curso da pesquisa entendi que qualquer solução passa


pela escuta da comunidade”.
Considerando a importância do Projeto Ibaorebu3 para o
povo Munduruku, com quem trabalhei durante muitos anos e,
particularmente, a proposta de alfabetização com base em Paulo
Freire, no Tempo Escola, que era quando íamos para a aldeia Sai-
Cinza, e pelo fato de não ter conseguido fazer contato com a
professora Claudeth Saw que nos assistiu naquele trabalho, decidi
juntar os relatórios e um artigo que escrevemos para juntar aos
demais textos da revista, para apresentar uma experiência muito
significativa: “Alfabetizar na língua Munduruku: uma prática
conjunta de resistência”.
A escrita de mulheres indígenas carrega um quê de
encantamento e quando em forma de poesia se mostra numa
metáfora paradoxal que imprime a leveza dos banzeiros dos rios e
a força dos ventos das florestas, como em “Simplesmente amar”,
que Célia Xakriabá, num tom de denúncia, faz um apelo/clamor
para as lutas contra toda forma de violência.
O poema de Márcia Kambeba como o próprio texto
imprime: “A força da mulher indígena” é um tratado dessa
fortaleza. Até mesmo a escrita em que Márcia se apresenta escapa
da dureza comum das biografias, pois é plena de poesia.
Cada material é composto por fotografias coloridas que
encantam e materializam traços de uma alegria potente e resistente
aos mais de 522 anos de luta e aos efeitos de sentido da
colonização.

3 O Projeto Ibaorebu foi resultado de uma iniciativa coordenada pela FUNAI,


juntamente com os Munduruku do Pará, com cerca de 210 cursistas, divididos em turmas
de Magistério Intercultural, Técnico em Enfermagem e Técnico em Agroecologia. Foi
realizado com o apoio técnico e financeiro da Coordenação Geral de Promoção da
Cidadania – CGPC e Coordenação Regional do Tapajós, além do eventual apoio de
outras Coordenações Gerais da FUNAI e da parceria com o Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IFPA. Para a realização de algumas Etapas,
também contou com o apoio financeiro do Ministério da Educação – MEC, graças à
articulação política dos próprios Munduruku, que demandaram o apoio durante reunião
realizada em Brasília.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

314
Novas Fronteiras Culturais

A Isabel Re’amo Xavante foi impedida de nos escrever, ela,


assim como tantas outras guerreiras faleceram no intervalo de
tempo de produção da Revista Fragmentun, então fizemos um texto
de “Homenagem”4.

Algumas considerações
Para fechar o texto, pois os sentidos eu aprendi que não se
fecham, posso afirmar que cultura, resistência, cidadania brotam
das palavras das mulheres que escrevem a Fragmentun de número
58, no seu aniversário de 20 anos, embora na escrita alfabética,
deixam transpirar a essência indígena. Essa escrita legitimada pela
língua portuguesa, pelo apagamento das outras tantas línguas é que
marca a diferença e instaura essa potente escrita indígena,
desestabilizando fronteira no espaço acadêmico.
Considerando que, a língua portuguesa não é a primeira
língua das mulheres de diferentes etnias que publicam nesta revista,
decidi por não interferir nos textos que foram enviados. Assim, é
importante que nos desprendamos do olhar etnocêntrico e
estrutural para a leitura dos escritos desta revista, pois, muito além
da exigência normativa da escrita alfabética, eles materializam a
significação de vidas.
Encontro os questionamentos de Amanda Jardim:
Frases longas. Repetição de ideias. Discordâncias verbais e
de gênero. Uso de pronomes que transitam na primeira
pessoa do singular (eu) e plural (nós). Esses e outros
elementos textuais são tomados como informais ou
inadequados aos padrões, códigos e normas acadêmicas.
Entretanto, tais elementos prevalecem na escrita acadêmica
indígena e, como desviantes dos cânones acadêmicos
previstos, podem ser considerados subversores de uma
ordenação textual. No entanto, geralmente são

4 Parte deste texto compõe a apresentação da Revista Fragmentum, n. 58:


https://periodicos.ufsm.br/fragmentum/issue/view/2216. Acesso em novembro de
2022.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

315
Novas Fronteiras Culturais

considerados “menos científicos”, “pouco rebuscados”,


“confusos demais”, etc. Tal valoração seria própria de um
etnocentrismo acadêmico?

E quero considerar, junto com Célia Xakriabá:


Outra questão que tomo como desafio é: como criar
caminhos possíveis para contribuir no fortalecimento da
oralidade na escrita? É possível guardar a oralidade na
escrita? Pensei e me desafiei a criar – coletivamente -
caminhos alternativos, mas como descrevo em meu
trabalho, acabo constatando que o melhor jeito, o modo
mais eficaz de guardar a oralidade é na memória, então a
melhor alternativa é potencializar a circulação da oralidade,
por meio das narrativas nativas e as narrativas ativas, nas
aldeias, nos territórios e em todos aqueles lugares em que
nos fazemos comunidades. Pensar o processo de
descolonização do pensamento requer conceber uma
transformação das estruturas sistêmicas. Para transgredir
esse pensamento a uma educação territorializada,
carecemos ter um movimento cotidiano de práticas
subversivas, para isso se faz necessário reaprender sem se
prender, isso significa uma retomada de valores. A maior
inquietação é pensar como fazê- lo. Não há bula, o que
podemos fazer é nos lançar na construção do novo.
Subverter requer colocar nosso corpo e mente em ação, e
isso provoca deslocamento, portanto, não há outra
alternativa senão a de começar e fazer.

E como fazer? Como descolonizar, também a escrita


colonial? É preciso começar por algum lugar. Quem sabe, lendo
autoras(es) indígenas relacionando dialogando com os
conhecimentos teóricos produzidos na Academia. É preciso que
nos deixemos afetar pelos saberes da vida, por outras
temporalidades, outras territorialidades, outros modos de ler e
escrever.
É emergente levar em conta as condições de produção
atuais, de inserção e formação de intelectuais indígenas no meio
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

316
Novas Fronteiras Culturais

acadêmico brasileiro. O discurso e a escrita acadêmica hegemônica,


caso não provoquem a reflexão, podem silenciar outras formas de
conhecimento, inclusive, fomentar visões equivocadas sobre
modos de pensar a escrita em quaisquer campos epistemológicos5.

Referências

ALBUQUERQUE, Judite Gonçalves. Educação escolar


indígena: do panóptico a um espaço possível de subjetivação na
resistência. Tese de doutorado UNICAMP, sob a orientação de
ZOPPI-FONTANA, M.G. em Campinas, SP, 2007.
BORGES, Águeda Aparecida da Cruz. Da aldeia para a cidade:
processos de identificação/subjetivação e resistência indígena.
Cuiabá: EdUFMT, 2018.
JARDIM, Amanda. Do inusitado à subversão: a escrita acadêmica
de uma liderança Xakriabá como resistência intelectual- Anais do
43º Encontro Anual da ANPOCS, publicado em 12 de
novembro de 2019. Disponível em:
https://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/43-
encontro-anual-da-anpocs/spg-6/spg07-6/11912-do-inusitado-a-
subversao-a-escrita-academica-de-uma-lideranca-xakriaba-como-
resistencia-intelectual -PDF. Acesso em: out. de 2022.
LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina. (2003). O quadro atual
da análise de discurso no Brasil. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Recuperado de
http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-
2.2.2/index.php/letras/article/viewFile/ 11896/7318. Acesso em:
set. de 2022.
LEANDRO-FERREIRA, Maria Cristina. O lugar social e da
cultura numa dimensão discursiva. In: INDURSKY, F.;
MITTIMANN; S. LEANDRO-FERREIRAM M. C. Memória e

5 Este texto foi inspirado e ampliado da apresentação que eu escrevi para a Revista
Fragmentum, n. 58, Mulheres indígenas: entre o ontem e o hoje. Universidade Federal de
Santa Maria/UFSM. 2022-02-04.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

317
Novas Fronteiras Culturais

história na/da Análise de Discurso (org.). Campinas, SP:


Mercado das Letras, 2011, p. 55-66.
ORLANDI, Eni. Entrevista. Polifonia, Cuiabá, MT, v. 22, n. 31,
p. 565-585, janeiro-junho, 2015.
ORLANDI, Eni. A linguagem e seu funcionamento: as formas
do discurso. Campinas: Pontes, 2011.
ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e
procedimentos. 7. ed. Campinas: Pontes, 2007.
ORLANDI, Eni. Análise de discurso. In: ORLANDI, E.;
LAGAZZI-RODRIGUES, S. (orgs.). Discurso e textualidade.
Campinas: Pontes, 2006. p. 11-31.
ORLANDI, Eni. Língua e conhecimento linguístico: para uma
história das ideias no Brasil. São Paulo: Cortez, p. 2002.
ORLANDI, Eni. Discurso e texto: formulação e circulação dos
sentidos. Campinas: Pontes, 2001.
ORLANDI, Eni. Interpretação, autoria, leitura e efeitos do
trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, P. et al.
(org.) Papel da memória. Campinas, Pontes, 1999, p.49-57.
VIDAL, Lux; SILVA, Aracy Lopes. 1992. Antropologia estética:
enfoques teóricos e contribuições metodológicas. In: L. VIDAL
(org.). Grafismo Indígena. Estudos de antropologia estética. São
Paulo, Studio Nobel/ FAPESP/EDUSP, p. 279-293.
XAKRIABÁ, Célia. O barro, o genipapo e o giz no fazer
epistemológico de autoria Xakriabá: reativação da memória por
uma educação territorializada. Dissertação de Mestrado, orientada
por Cristiane Assis Portela, PPG-PDS/UNB-Brasília, DF. 2018.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

318
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 19
CAPOEIRA ANGOLA: MANIFESTAÇÃO
ANCESTRAL

Lindomar José Barros

Introdução

O presente artigo foi proposto seguindo o percurso de uma


análise crítica, baseada no processo construtivo e interpretativo da
continuidade do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) no
curso de pós-graduação em Lazer e Recreação com o título
“Capoeira Angola: brincadeira escrava - o lúdico e a libertação”
(UFMT, 2006), embasada pela abordagem qualitativa, com estudos
e referencias na diáspora africana.
A capoeiragem pode ser uma das principais experiências
históricas afro-brasileiras. A Capoeira Ancestral, que emergiu,
aproximadamente, entre 1850 e 1920, fundamenta-se em processos
coletivos, éticos, conscientes, de resistência. Ela apresenta, até os
dias de hoje, um caráter decolonial e sem fins
capitalistas/mercadológicos.
Os fundamentos da Capoeira Ancestral constituíram-se a
partir de saberes africano. Seus ritos de guerra, de festejos e
religiosos apresentavam um fazer comum, um eixo norteador: a
condução do corpo, permeado pela música e pelo canto. A
comunicação sempre se fez presente pelo som (tambores, palmas,
corpos, vozes): a corpo-oralidade como método de preservação
das identidades étnicas, dos valores e saberes ancestrais (BARROS,
2006).
O Recôncavo Baiano foi o berço da capoeiragem,
agregando os fundamentos codificados no berimbau e nos cantos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

319
Novas Fronteiras Culturais

— e os Candomblés, os Sambas de Roda e o Batuque também se


desenvolveram segundo a mesma episteme africana
(BIANCARDI, 2006).
Na Capoeira Angola, cada toque de berimbau tem função,
cada formação de bateria codifica um saber corporal que precisa
ser decifrado. Resgatar a capoeira ancestral torna-se um passo
importante na reparação das memórias e fundamentos ancestrais
da capoeiragem, resistindo por décadas ao silenciamento e
invizibilização, porém, ainda hoje, vivos (BARROS, 2006).
“Certa vez perguntaram a Mestre Pastinha o que é
Capoeira? Ele responde: é Tudo que a boca come”.
“Capoeira Angola, mandinga de escravo em ânsia de
liberdade. Seu princípio não tem método e o seu fim é inconcebível
ao mais sábio capoeirista” (mestre Pastinha e sua academia –
capoeira angola – produtora Fontana, formato vinil, lp, rissue,
lançado em 1979).
Vicente Ferreira Pastinha, mestre Pastinha guardião da
Capoeira Angola, costumava dizer que "cada um é cada um",
mostrando sintonia com ancestralidade e, assim, pois o Angoleiro
leva a ética da roda para a sua vida. Os negros africanos no Brasil,
movidos por seu instinto de sobrevivência, reagiram
desenvolvendo uma estratégia de luta: a Capoeira Angola (REGO,
1968).
Disfarçando a luta em dança, o escravo pode treinar a única
arma que possuía, o seu corpo. Os movimentos de ataque e defesa
vieram da observação do funcionamento dos instrumentos de
trabalho (martelo, foice), das formas de luta dos animais (coice de
mula, rabo de arraia) e da cultura original mesclada a uma cultura
estranha. A capoeira, depois da libertação dos escravos, continuou
a existir, sempre próxima às classes exploradas, aos marginais da
sociedade. Ela evoluiu, modificou-se, mas sempre manteve sua
ideologia de libertação. Hoje, só a Capoeira Angola preserva essa
ideologia, com a mandinga, a estratégia, o jogo, o diálogo (DIAS,
2006).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

320
Novas Fronteiras Culturais

Assim, em junção com os aspectos que permearam a


Capoeira Angola ao longo dos séculos de sua existência, podemos
dizer que uma forte ligação entre essa manifestação com a nossa
ancestralidade, seja ela no aspecto religioso de matriz africana
como cultural, e nesse contexto de uma análise crítica, na qual
abordamos o tema durante o seminário “Novas Fronteiras
Culturais: práticas e representações”, através do eixo Expressões
Urbanas: Práticas culturais decoloniais, com o tema “Capoeira
Angola: manifestações ancestrais”.

Que é ancestralidade e seus elementos na Capoeira Angola?

Para que possamos entender sobre os elementos que


compõem a Capoeira Angola como uma prática ancestral,
devemos entender alguns conceitos que permeiam a
ancestralidade, assim sendo, dividimos a ancestralidade em partes
distintas conforme os seus conceitos e, desse modo, definiremos
os três pilares da ancestralidade: no físico – estão presentes na
nossa biologia, nossos cromossomos, os traços, aparências até
mesmo as doenças; no mental – está em nossas crenças e forma
de pensar; no espiritual – está a herança que, muitas vezes,
trazemos de geração em geração e podemos acessar quando
reconectamos com os que vieram antes, com o nosso passado, e
que produziram nossa história, todos aqueles que contribuíram no
que somos hoje. Portanto, a ancestralidade refere-se aos
antepassados ou antecessores (DICIONÁRIO AURÉLIO, 1975).
Etimologicamente a origem da palavra ancestralidade é
uma junção de ancestral+idade. Neste sentido, exemplificamos
uma pele Preta pode remeter que nossos antecessores têm uma
bagagem hereditária do continente africano, assim como os olhos
puxados do oriente, bem como os povos indígenas. Para o
desenvolvimento dessa teoria sobre a ancestralidade é que
abordaremos um instrumento considerado um dos principais
elementos ancestrais criados e utilizados na capoeira ao longo do
seu surgimento e que constitui o símbolo maior da capoeira, o

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

321
Novas Fronteiras Culturais

berimbau. Para ilustrar essa abordagem, citaremos a lenda do


berimbau, por meio de um conto existente no leste e no norte
africano (Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, n.
80 de 1956):

Uma menina saiu a passeio e ao atravessar um córrego


abaixou-se para tomar um gole de água nos côncavos de
suas mãos. No momento em que saciava sua sede um
homem apareceu e deu-lhe uma forte pancada na nuca e a
menina morreu naquele lugar, e ao morrer transformou
imediatamente em um arco musical, seu corpo converteu
em madeira, seus membros na corda, sua cabeça na caixa
de ressonância e seu espírito na música dolente e
sentimental. (Kioni, a pequena mandingueira, produção
audiovisual, 2008)

A lenda citada é justamente a do surgimento do Hungu ou


Berimbau. A lenda é contada da história de uma lenda africana
muito conhecida, na qual a alma de uma mulher vira música. Mas
muitos, talvez, não saibam do que se trata esse belo instrumento
musical. O nome Hungu é angolano. Em Angola, também se usa
o nome Mbulumbumba.
Se falarmos Xitende, os moçambicanos certamente
entenderiam melhor. Mas e os brasileiros? Bem, uma alternativa de
nome ao Hungu é, com certeza, muito conhecida no Brasil –
berimbau. Mas, então, qual a diferença entre Hungu e Berimbau?
E Xitende? Na prática, nenhuma, além do nome. Os três referem-
se ao mesmo instrumento de cordas obtido pela junção entre uma
cabaça, um arco, cordas e tocado com dobrão e baqueta. O
instrumento sempre foi comum ao povo Banto – situados,
principalmente, em Angola e Moçambique (OLIVEIRA, 2019).
Tradicional acompanhante da capoeira, a arte-marcial afro-
brasileira, o Hungu veio ao Brasil pelas mãos das pessoas
escravizadas durante o século XVI, mas se especula que tenha
origens que remontam à antiguidade. Inclusive, teria sido
influência e inspiração para a criação da cítara e da harpa. A

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

322
Novas Fronteiras Culturais

introdução desse instrumento no Brasil deu-se com a chegada dos


negros bantos de Angola, na época da escravidão, mas significa que
tenha sido criado por eles (OLIVEIRA, 2019).
Biancardi (2006), na obra “Raízes Musicais da Bahia”,
afirma acreditar que o arco musical já estava em uso há 15.000 anos
antes de Cristo e, possivelmente, a harpa vem da origem desse arco
musical que é datado de 4.000 anos antes de Cristo. Não é possível
definir com exatidão a origem do vocábulo berimbau, nem tão
pouco quando se perdeu o nome de origem e quem herdou o
termo usado e conhecido atualmente. O berimbau ou hungo,
também conhecido como berimbau de peito em Portugal e hungu
na África, é também conhecido entre os angolanos como
m'bolumbumba.
Em outra parte da África, é conhecido por Urucungo. O
berimbau tem um som muitas vezes melancólico como o de um
lamento ou, quem sabe, um chamado saudoso das raízes ancestrais.
Em Cuba, por exemplo, esse instrumento era utilizado diretamente
nos rituais religiosos e a própria etimologia da palavra, naquele país,
é dada pelo diálogo entre esse instrumento e os espíritos (Literatura
Afro-brasileira, 2006):

Eu vou ler o be-a-bá


Be-a-bá do berimbau
A cabaça e o caxixi
Colega véi, e um pedaço de pau
A moeda e o arame
Colega véi, ai está um berimbau.
Berimbau é um instrumento
Quo toca numa corda só
Toca São Bento Grande
Colega véi, e Angola em dó maior.
Agora acabei de crer
Colega véi, berimbau é o maior...
(Mestre Pastinha, 1979)

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

323
Novas Fronteiras Culturais

O berimbau é um instrumento de cordas percutidas, que é


emblemático da cultura afro-brasileira, especialmente associado às
tradições da capoeira. É considerado um instrumento ancestral que
foi trazido da África durante o período da escravatura e adaptado
à cultura brasileira.
Embora haja poucos registros históricos precisos e
confiáveis sobre a origem do berimbau, acredita-se que ele tenha
sido usado em rituais religiosos em algumas partes do continente
africano. O berimbau é mencionado em relatos de viajantes e
exploradores que visitaram a África no século XIX e início do
século XX (OLIVEIRA, 2019).
Ao chegar ao Brasil, o berimbau foi integrado à cultura
popular brasileira, sobretudo à Capoeira, que é uma arte marcial de
origem afro-brasileira. O som do berimbau é usado para marcar o
ritmo dos movimentos de capoeira e para acompanhar cantos e
palmas. Além disso, o berimbau também é usado em outras formas
de música brasileira, como a Samba e o Maracatu (OLIVEIRA,
2019).
Um aspecto interessante do berimbau é que ele exige que
o músico use seu próprio corpo para produzir o som, batendo na
corda com uma baqueta e ajustando a tensão da corda com um
arame dobrado. Assim, o berimbau é um exemplo de como os
africanos escravizados foram capazes de adaptar sua cultura à
realidade do Brasil colonial, aproveitando as ferramentas e os
materiais disponíveis (BIANCARDI, 2006).
Em resumo, o berimbau é um elemento ancestral
importante que representa a cultura africana no Brasil e é um
símbolo da resistência e da resiliência dos escravos africanos que
foram capazes de trazer sua música e tradições para um novo
mundo.

Capoeira Angola como elemento ancestral

A Capoeira Angola pode ser compreendida como um


elemento ancestral por sua conexão direta com as tradições e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

324
Novas Fronteiras Culturais

práticas dos antigos africanos que foram trazidos para o Brasil


durante a era da escravidão. Ela carrega consigo uma herança
cultural rica e profundamente enraizada nas raízes africanas.
A capoeira em si é uma forma de expressão que combina
elementos de luta, dança música e jogo. Ela originou-se nas
comunidades de escravos afro-brasileiros como uma maneira de
resistir à opressão e manter viva a sua cultura. Ao longo dos
séculos, essas práticas evoluíram e desenvolveram-se, mas a
Capoeira Angola é considerada uma forma mais tradicional e
preservadora desse legado ancestral (BARROS, 2006).
Através da Capoeira Angola, é possível reconectar-se com
os antigos conhecimentos e sabedorias transmitidos pelas gerações
passadas. Os movimentos, os ritmos e os cantos presentes nesse
estilo de capoeira são heranças vivas dos antigos africanos,
representando uma continuidade cultural que transcende o tempo
e as fronteiras geográficas.
Além disso, a Capoeira Angola também está
intrinsecamente ligada às cosmovisões e espiritualidades africanas.
Ela incorpora elementos de rituais, simbologia e crenças ancestrais,
permitindo que seus praticantes conectem-se com o mundo
espiritual e honrem seus antepassados (DECÂNIO, 1997).
Por meio da prática da Capoeira Angola, os indivíduos
podem explorar e vivenciar uma parte importante de sua própria
história e identidade ancestral. Ela oferece uma maneira de honrar
e celebrar os legados daqueles que vieram antes de nós, enquanto
também promove a resistência, a autonomia e a valorização das
culturas afro-brasileiras.
Portanto, a Capoeira Angola pode ser vista como um
elemento ancestral, um tesouro cultural que nos conecta
diretamente com as tradições, os conhecimentos e os espíritos
daqueles que nos precederam, mantendo-os vivos e relevantes nos
dias de hoje (BARROS, 2006).
Outro aspecto que evidencia a ancestralidade da Capoeira
Angola é que ela foi praticada, durante muito tempo, de forma
clandestina e marginalizada pela sociedade brasileira. Assim, a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

325
Novas Fronteiras Culturais

transmissão dessa prática dava-se, muitas vezes, de forma oral,


entre as comunidades que a praticavam, o que contribuiu para a
preservação de suas características originais.
Além disso, cabe destacar que a Capoeira Angola é uma
prática que incorpora elementos rituais e simbólicos que remetem
às tradições e crenças dos povos africanos que a desenvolveram. A
roda de Capoeira, por exemplo, é uma representação do círculo
sagrado que simboliza a conexão entre os participantes, a natureza
e os ancestrais. As músicas, por sua vez, trazem letras que falam
sobre histórias, lutas e tradições africanas (DIAS, 2006).
Por todos esses motivos, a Capoeira Angola é vista como
um elemento ancestral que representa a luta, a resistência e a
identidade dos povos africanos que foram trazidos para o Brasil
como escravos, bem como sua contribuição para a construção da
cultura brasileira.

A Capoeira Angola na visão de Mestre Pastinha

A Capoeira Angola é um estilo tradicional de capoeira que


se originou no Brasil durante o período da escravidão. Mestre
Pastinha, cujo nome verdadeiro era Vicente Ferreira Pastinha, foi
um dos mestres mais importantes e influentes nesse estilo.
Mestre Pastinha nasceu em Salvador, Bahia, em 1889, e
dedicou sua vida à prática e preservação da Capoeira Angola. Ele
foi fundamental para a valorização e reconhecimento da Capoeira
Angola como uma expressão cultural legítima. Pastinha acreditava
que a capoeira era muito mais do que uma forma de luta, era uma
forma de arte, cultura e resistência (PASTINHA, 1998).
Uma das principais características da Capoeira Angola,
segundo a visão de Mestre Pastinha, é a conexão com as raízes
africanas. Ele enfatizava a importância de preservar as tradições e
os rituais associados à capoeira, como a música, o canto, o jogo de
corpo e a roda. Pastinha acreditava que esses elementos eram
essenciais para manter a autenticidade e a essência da Capoeira
Angola (PASTINHA, 1998).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

326
Novas Fronteiras Culturais

Além disso, Mestre Pastinha valorizava a filosofia por trás


da capoeira. Ele via a capoeira como uma forma de autoexpressão,
autoconhecimento e desenvolvimento pessoal. Pastinha acreditava
que a prática da capoeira poderia ajudar os praticantes a
desenvolver habilidades físicas, mentais e espirituais, além de
promover a solidariedade e a união entre as pessoas (PASTINHA,
1998).
Mestre Pastinha também lutou contra a marginalização e
criminalização da capoeira. Durante muito tempo, a capoeira foi
perseguida e considerada ilegal no Brasil. Pastinha trabalhou
incansavelmente para reverter essa situação, lutando pelos direitos
dos capoeiristas e promovendo a visão de que a capoeira era uma
arte e um patrimônio cultural brasileiro.
Em 1941, Vicente Pastinha fundou em Salvador, junto a
outros importantes capoeiristas do seu tempo, o Centro Esportivo
de Capoeira Angola (CECA), imbuído da necessidade de resistir às
transformações modernizantes que a capoeira vinha sofrendo
naquela época. Seu objetivo era adequar-se às novas necessidades
da prática da capoeira, sem perder o contato com suas raízes
tradicionais, daí o nome Angola, são teorias que eram acreditadas,
relacionadas empiricamente aos lugares de onde uma grande parte
dos escravos saiu. Mesmo aceitando alguns aspectos dessa
modernização da capoeira, como a criação de um espaço social,
com sede, regulamento e hierarquias para a prática e o ensino da
Capoeira Angola, Pastinha buscava manter vivos os aspectos
primordiais da capoeira mãe (DECÂNIO FILHO, 1997).
Hoje, o legado de Mestre Pastinha vive através de seus
ensinamentos, seguidores e da própria prática da Capoeira Angola.
Sua visão sobre a capoeira, como uma forma de arte, cultura e
resistência, continua a influenciar e inspirar capoeiristas ao redor
do mundo.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

327
Novas Fronteiras Culturais

Analogia crônica da nomenclatura Capoeira Angola

A Capoeira Angola, também conhecida simplesmente


como Angola, é um estilo tradicional de capoeira que tem suas
raízes históricas no Brasil colonial. Para entender a analogia crônica
do nome "Capoeira Angola", vamos explorar algumas
características desse estilo e sua relação com a história (REGO,
1968).
A palavra "Capoeira" tem origem incerta, mas uma das
teorias mais aceitas é que ela deriva do termo africano "kapwera",
que significa "mato rasteiro" ou "floresta". Essa associação pode
ser relacionada ao ambiente onde os escravos africanos fugitivos
escondiam-se durante o período da escravidão no Brasil. Eles
utilizavam técnicas de luta e dança para defenderem-se e
preservarem sua cultura (BARROS, 2006).
Já o termo "Angola" é uma referência ao país de origem de
muitos africanos escravizados trazidos para o Brasil. Durante o
período colonial, a maioria dos escravos africanos tinha origem em
Angola, que era uma das regiões mais afetadas pelo tráfico negreiro
(REGO, 1968).
A analogia crônica do nome "Capoeira Angola" pode ser
entendida através de uma metáfora. Assim como Angola
representa a terra de origem dos escravos africanos, a Capoeira
Angola representa a preservação e continuação dessas tradições
culturais no Brasil (BARROS, 2006).
A Capoeira Angola é caracterizada por movimentos mais
lentos e próximos ao chão, enfatizando a malícia, a astúcia e a
tradição. Ela incorpora elementos de dança, música e luta, com
uma grande ênfase na interação entre os praticantes. Ao longo do
tempo, a Capoeira Angola foi transmitida oralmente de geração em
geração, resistindo à opressão e preservando sua identidade
cultural (MACHADO, 2006).
Assim como Angola, a Capoeira Angola representa a força,
a resistência e a resiliência dos africanos escravizados no Brasil. O
nome "Capoeira Angola" é uma síntese poderosa que nos remete

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

328
Novas Fronteiras Culturais

à luta pela liberdade, à preservação cultural e ao legado dos povos


africanos que ajudaram a moldar a identidade brasileira.
A Capoeira Angola passou por várias fases de adaptação
aos ditos populares e da oralidade da língua portuguesa do Brasil e
em diversas fases de transformação da Capoeira Angola passou por
nomenclaturas diferenciadas exemplo de registros como:
Brinquedo de Angola, Brincadeira de Angola, Capoeira de Angola
e Capoeira Angola, entretanto não existe nenhum registro sobre
como foi o percurso do nome propriamente dito e que hoje é
consolidado como a capoeira mãe de todas as vertentes da
capoeira, porém, sabemos que Vicente Ferreira Pastinha, o Mestre
Pastinha, é o legítimo representante da Capoeira Angola, que
passou na vida terrena e trouxe toda a sua ancestralidade consigo
no ensino, na tradição e na preservação da capoeira angola, assim
como seus ancestrais confiram-lhe e passaram o dom de ser um
Griô no universo da capoeiragem. A importância de sua
contribuição é resumida por ele na frase: “Enquanto existir
Capoeira, meu nome será lembrado” (Mestre Pastinha, 1998).

Aspectos que permearam a junção da Capoeira Angola com


ancestralidade

A Capoeira Angola é uma expressão cultural que integra


aspectos da história e cultura afro-brasileira. Sua prática está
intrinsecamente ligada à memória e à ancestralidade dos povos
africanos que foram trazidos como escravos para o Brasil. A junção
da Capoeira Angola com a ancestralidade pode ser observada em
diversos aspectos, tais como:
1. Preservação da tradição oral: A Capoeira Angola não possui um
registro escrito e é transmitida, principalmente, de forma oral. Essa
forma de preservação do conhecimento é típica das culturas
africanas, em que a palavra falada tem grande importância na
transmissão dos valores e tradições.
2. Uso de instrumentos musicais: Os instrumentos musicais
utilizados na Capoeira Angola foram trazidos da África e são

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

329
Novas Fronteiras Culturais

utilizados como uma forma de conexão com as raízes africanas. O


berimbau, o atabaque e o pandeiro têm origem africana e são
elementos fundamentais na prática da Capoeira Angola.
3. Celebração de ancestrais: A Capoeira Angola é uma forma de
celebração da ancestralidade, tanto através dos seus movimentos e
ritmos, quanto da sua filosofia. A roda de capoeira é um espaço de
encontro e celebração, em que os participantes honram seus
ancestrais e a cultura afro-brasileira.
4. Conexão com a natureza: A Capoeira Angola tem forte ligação
com a natureza, que é uma fonte de inspiração e aprendizado para
a sua prática. Os movimentos da Capoeira Angola são inspirados
nos movimentos dos animais e da natureza em geral, sendo que,
muitas vezes, a prática acontece ao ar livre, em contato direto com
o meio ambiente.
5. Valorização da diversidade cultural: A Capoeira Angola é uma
expressão cultural que valoriza a diversidade cultural e promove a
igualdade entre as pessoas. Na roda de capoeira, não importa a
raça, a classe social, o gênero ou a religião dos participantes, mas a
sua habilidade e o respeito mútuo.
Assim posto, a Capoeira Angola é uma prática que permeia
a ancestralidade, por meio da preservação da tradição oral, do uso
de instrumentos musicais africanos, da celebração de ancestrais, da
conexão com a natureza e da valorização da diversidade cultural.
(MACHADO, 2006)

Elementos do jogo da Capoeira Angola: tradição e


fundamentos

A Capoeira Angola é uma das formas mais tradicionais de


capoeira e possui elementos chave que são fundamentais na prática
e na compreensão desse jogo. Na sequência, seguem alguns dos
principais elementos da Capoeira Angola, de acordo com Barros
(2006):
1. Ginga: A ginga é o movimento fundamental da Capoeira Angola,
um movimento circular que lembra um balanço. Ela é usada para

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

330
Novas Fronteiras Culturais

iniciar e finalizar as sequências de movimentos na capoeira, além


de ser utilizada para deslocar-se e esquivar-se de golpes durante o
jogo.
2. Instrumentos: Os instrumentos da Capoeira Angola são
fundamentais para criar a atmosfera do jogo. O berimbau, o
atabaque e o pandeiro são os principais e cada um deles tem uma
função específica durante o jogo.
3. Roda: A roda é onde acontece o jogo de Capoeira Angola. Ela é
formada pelos jogadores, pelos instrumentos e pelos cantos, sendo
considerado um espaço sagrado para a prática da capoeira.
4. Cantos: Os cantos são uma parte importante da Capoeira
Angola, pois contam histórias e tradições da capoeira, além de
definir o ritmo do jogo. Eles são cantados pelos jogadores e pelos
músicos que acompanham a roda.
5. Malícia: A malícia é uma habilidade chave na Capoeira Angola.
Ela é uma forma de antecipar-se e esquivar-se dos ataques do
adversário, além de criar oportunidades para contra-atacar.
6. Aparência: A aparência na Capoeira Angola é importante, pois
ela expressa respeito e identidade com os elementos tradicionais da
capoeira. Ela pode incluir roupas brancas, símbolos e acessórios
específicos que representam a cultura do jogo.
Esses são apenas alguns dos elementos chave da Capoeira
Angola, mas eles são fundamentais para a prática e para a
compreensão do jogo (ABIB, 2005).

A religiosidade na Capoeira Angola

A religiosidade está presente em muitas manifestações


culturais brasileiras, incluindo a capoeira. A capoeira é uma mistura
de arte marcial, dança e música, tendo raízes históricas na cultura
afro-brasileira. A presença da religiosidade na capoeira está
relacionada com as tradições e práticas das religiões afro-
brasileiras, como o candomblé e a umbanda, que são associadas à
capoeira em algumas regiões do Brasil (SODRÉ, 1985).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

331
Novas Fronteiras Culturais

Algumas pessoas que praticam capoeira acreditam que ela


tem uma conexão espiritual e que os movimentos da capoeira têm
um significado mais profundo do que apenas a arte marcial ou a
dança em si. Por exemplo, algumas partes da música da capoeira
são em homenagem aos orixás, que são divindades da religião
candomblé (SODRÉ, 1985).
No entanto, é importante notar que nem todas as pessoas
que praticam capoeira estão envolvidas com religiões afro-
brasileiras e que a capoeira é uma prática aberta para pessoas de
todas as religiões ou sem nenhuma religião. A capoeira é, acima de
tudo, uma forma de expressão cultural e de exercício físico, de
modo que cada pessoa pode interpretá-la e praticá-la de forma
diferente.

Aspectos que norteiam a religiosidade na Capoeira Angola

A religiosidade na Capoeira Angola é uma característica que


tem origem na sua história e nas suas raízes culturais afro-
brasileiras. A Capoeira Angola é uma forma mais tradicional de
capoeira que se desenvolveu na Bahia no período colonial e tem
uma forte conexão com as religiões afro-brasileiras, como o
Candomblé e a Umbanda (SODRÉ, 1985).
Segundo Barros (2006), algumas das principais
características que norteiam a religiosidade na capoeira angola são:
1. Música: a música tem uma importância fundamental na Capoeira
Angola e, muitas vezes, é religiosa, é inspirada pelos rituais das
religiões afro-brasileiras. As canções são, muitas vezes, em
homenagem aos orixás e outras divindades, tendo um forte
conteúdo simbólico.
2. Ritualização: a Capoeira Angola é, diversas vezes, praticada em
rodas ou círculos sagrados, que simbolizam a conexão com o
mundo espiritual. Os jogadores de capoeira também costumam
fazer oferendas aos orixás antes ou depois das rodas.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

332
Novas Fronteiras Culturais

3. Vestimenta: na Capoeira Angola, os jogadores podem usar


roupas brancas, que são uma representação simbólica da pureza e
da conexão com os orixás.
4. Intenção: muitos praticantes de Capoeira Angola acreditam que
a prática da capoeira está conectada com a espiritualidade e que os
movimentos e ações dentro da roda têm um significado mais
profundo do que apenas a luta.
É importante ressaltar que cada grupo de capoeira angola
tem a sua própria abordagem e práticas em relação à religiosidade
na Capoeira Angola. Algumas práticas podem ser mais centradas
na religião, enquanto outras podem ter uma abordagem mais
secular.

A música: elemento que representa a religiosidade na


Capoeira Angola

Na Capoeira Angola, o canto desempenha um papel


fundamental como elemento que representa a religiosidade e a
tradição dessa arte marcial afro-brasileira. A Capoeira Angola tem
suas raízes nas tradições africanas, sendo, muitas vezes, associadas
a práticas religiosas, como o Candomblé e a Umbanda. Aqui estão
algumas maneiras de identificar o canto como elemento religioso
na capoeira Angola (BARROS, 2006):
Letras e temáticas: Os cantos na Capoeira Angola,
geralmente, apresentam letras que abordam temas relacionados à
religiosidade, tradições africanas, mitologia e espiritualidade. Eles
podem fazer referência a orixás, entidades espirituais, rituais e
histórias sagradas. Preste atenção às palavras e ao conteúdo das
letras, pois elas podem revelar aspectos religiosos.
Línguas africanas: Alguns cantos na Capoeira Angola são
entoados em línguas africanas, como o yorubá, o quimbundo ou o
kikongo. Essas línguas são usadas em práticas religiosas afro-
brasileiras, o que indica uma conexão direta com a religiosidade.
Toques específicos: Alguns toques de berimbau são associados a
entidades espirituais específicas no Candomblé e na Umbanda. Por

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

333
Novas Fronteiras Culturais

exemplo, o toque de "São Bento Grande" pode estar relacionado


ao orixá Oxalá. Ao identificar os toques, você pode encontrar
pistas sobre a presença de elementos religiosos (MACHADO,
2006).
Energia e intenção: Além das letras e dos toques, preste
atenção na energia e na intenção transmitidas pelos cantos na roda
de Capoeira Angola. Muitas vezes, os cantos carregam uma
atmosfera espiritual, com uma conexão profunda entre os
praticantes e as entidades reverenciadas. Observe se há um
ambiente de respeito, devoção e conexão com o sagrado durante
os cantos (BARROS, 2006).
É importante lembrar que a Capoeira Angola é uma prática
cultural complexa e nem todos os cantos estão diretamente
relacionados à religiosidade. Alguns cantos podem ter um caráter
mais folclórico, histórico ou de simples diversão. No entanto, ao
observar essas características mencionadas anteriormente, você
terá uma melhor compreensão dos cantos que representam a
religiosidade na Capoeira Angola.

A musicalidade que apresenta a religiosidade no jogo e ritual


da Capoeira Angola

Menino quem foi seu mestre, oi iaiá


Meu mestre foi Salomão
Andava de pé pra cima, ai meu Deus.
Com a cabeça no chão
A ele devo saber saúde e obrigação
Sou discípulo que aprendo
Sou mestre que da lição segredo de São Cosme q
Só quem sabe e São Damião camará
(Mestre Pastinha)

Preto velho Benedito


Assim dizia vai menino
Vai menino vai brincar
Tu não vai mais apanhar

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

334
Novas Fronteiras Culturais

Quem ne você um dia bateu


Hoje pode até chorar
Porque Preto Benedito
Te ensinou a mandingar
(Mestre Zequinha)

O mundo de Deus é grande


O mundo de Deus é grande
Deus traz numa mão fechada
O pouco com Deus é muito
Ai ai ai o muito sem Deus é nada
Noite de escuro não serve
(Mestre Paulo dos Anjos)

Pisa caboclo quero ver você pisar


Pisa lá que eu piso cá
Quero ver você pisar
Pisa caboclo quero ver você pisar
Na batida do meu gunga
Quero ver você pisa
(Autor desconhecido)

Capoeira como prática de cultura popular decolonial em


Cuiabá

A capoeira como prática de cultura popular decolonial em


Cuiabá, assim como em outras regiões do Brasil, é um exemplo
sobre como essa arte marcial afro-brasileira tornou-se um símbolo
de resistência e empoderamento das comunidades negras.
A capoeira nasceu durante o período da escravidão no
Brasil, em que os africanos escravizados buscavam preservar sua
cultura e resistir ao sistema opressor. Ao longo dos anos, a capoeira
passou por diferentes fases e transformações, sendo, muitas vezes,
perseguida e marginalizada. No entanto, hoje ela é reconhecida
como patrimônio cultural imaterial do Brasil e difundida em todo
o mundo (LEME, 2019).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

335
Novas Fronteiras Culturais

Em Cuiabá, a capoeira tem se fortalecido como uma prática


de cultura popular decolonial por diversas razões:
1. Resgate da história: A capoeira em Cuiabá contribui para resgatar
a história da população negra local, valorizando suas raízes e
tradições. Através da prática da capoeira, os praticantes têm a
oportunidade de reconectar-se com suas origens e resgatar sua
identidade cultural.
2. Empoderamento e combate ao racismo: A capoeira é uma forma
de empoderamento para as comunidades negras, quebrando
estereótipos e promovendo a autoestima. Além disso, a capoeira
tem sido utilizada como ferramenta de combate ao racismo e à
discriminação, promovendo a igualdade e a valorização da
diversidade cultural.
3. Espaço de sociabilidade e formação de vínculos: A prática da
capoeira em Cuiabá promove a criação de espaços de sociabilidade,
onde as pessoas podem reunir-se, trocar experiências e estabelecer
vínculos comunitários. Esses espaços são importantes para
fortalecer a união e a solidariedade entre os praticantes,
contribuindo para a construção de uma comunidade mais coesa e
unida.
4. Expressão artística e educativa: A capoeira é uma manifestação
cultural que envolve música, dança, luta e jogo. Ela possui um
caráter artístico e educativo, transmitindo valores como respeito,
disciplina, cooperação e superação. Por meio da capoeira, os
praticantes desenvolvem habilidades físicas, cognitivas e
emocionais, além de aprenderem sobre a história e a cultura afro-
brasileira (BARROS, 2006).
Em síntese, a capoeira em Cuiabá representa uma prática
de cultura popular decolonial, resgatando a história, promovendo
o empoderamento das comunidades negras, combatendo o
racismo, estabelecendo espaços de sociabilidade e contribuindo
para a expressão artística e educativa. Essa manifestação cultural
fortalece a identidade e a diversidade cultural, sendo um
importante instrumento de transformação social e de promoção da
igualdade.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

336
Novas Fronteiras Culturais

Linha do tempo da introdução da capoeira em Cuiabá

A capoeira na capital de Mato Grosso é considerada uma


prática nova que se tem registro a partir das décadas de 70/80, ela
é neófita em relação a muitos estados brasileiros, sendo que, em
muitos deles, passou a ser inserida na sociedade a partir dos guetos,
dos bairros periféricos e dos quilombos urbanos. Pouco se sabe ou
se tem registro sobre como a capoeira foi introduzida na capital
mato-grossense e, em especial, no território mato-grossense.
Reportando a introdução da capoeira na capital mato-
grossense, sendo que, a partir das décadas 1970/80, aparecem os
primeiros relatos de movimentos da prática da capoeira em Cuiabá,
quando os estudantes provenientes de outros estados em especial
da Bahia começaram a migra e ensinar a capoeira no fundo de
quintal, práticas relatadas através do ensino-aprendizado com as
crianças e adolescente da época, mas que hoje são considerados os
percursores da introdução da prática da capoeira em Cuiabá.
Podemos citar os mestres: Rochinha, Zenon, Edmundo Souza (in
memoriam), Eron e Sombra (LEME, 2019).
A introdução da Capoeira Angola em Cuiabá foi marcada
pelo trabalho do Professor Lindomar, que começou a ensinar a
Capoeira Angola na cidade de Cuiabá, em meados de 1990.
Professor, na época, trouxe consigo não apenas as técnicas da
Capoeira Angola, mas eventos e oficinas com grandes mestres
tradicionais do estado da Bahia, a fim de uma melhor conexão
ancestral e de uma grande rede de intercâmbios. Inicialmente, a
Capoeira Angola em Cuiabá enfrentou resistência e preconceito,
visto que a prática era associada à criminalidade e marginalidade.
No entanto, com o tempo, mestre Lindomar conseguiu conquistar
o respeito e a admiração de muitas pessoas na cidade, tornando-se
uma referência na cena da Capoeira Angola em Mato Grosso e que
era praticada nas dependências do SESC/Porto. Hoje, a Capoeira
Angola é praticada em algumas cidades do interior de Mato Grosso
e até mesmo pelos grupos considerados capoeira regional e/ou
“contemporânea”, que vem ganhando cada vez mais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

337
Novas Fronteiras Culturais

reconhecimento como arte e expressão cultural brasileira (LEME,


2019).
A Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira
foram reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro pelo
Iphan, em 2008, e estão inscritos no Livro de Registro das Formas
de Expressão e no Livro de Registro dos Saberes, respectivamente
(IPHAN, 2023).
No tocante ao reconhecimento internacional, a 9ª Sessão
do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda aprovou, em
novembro de 2014, em Paris, a Roda de Capoeira como um dos
símbolos do Brasil mais reconhecidos internacionalmente, como
Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade (IPHAN, 2023).
Em Mato Grosso, a partir de 2012, com a constituição do Fórum
da Capoeira de Mato Grosso, teve um papel importante no cenário
brasileiro, no que se refere à sua contribuição para o tombamento
da capoeira com Patrimônio Imaterial da Humanidade, quando
aprovado na sede da UNESCO.
Em Mato Grosso, a capoeira encontra-se em um patamar
bem diferente da década de 1980, mas é necessária uma política
pública para a capoeira no estado. Talvez seja por descuido do
próprio capoeirista em não ter um envolvimento e participar dos
debates e discursões em torno de políticas para a própria classe,
muitas vezes, realizando trabalhos individualizados, sem se
preocupar com o segmento e a coletividade. Hoje, o próprio
IPHAN oferece essas ferramentas e a coletividade do Fórum da
Capoeira de Mato Grosso, mas há pouco interesse e envolvimento
(LEME, 2019).
A capoeira nas últimas décadas vem tendo uma grande
contribuição cultural não só em Cuiabá, mas também em todo
território mato-grossense. Ela faz parte do patrimônio imaterial e
é reconhecida como um importante elemento da cultura afro-
brasileira.
Apesar de a capoeira ser bem nova em nosso estado em
relação alguns outros, a capoeira em Mato Grosso tem suas raízes
na história da escravidão. Os escravos que foram transportados da

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

338
Novas Fronteiras Culturais

África para o Brasil foram proibidos de praticar suas tradições


culturais, o que incluía danças, músicas e lutas. Para manter essas
tradições vivas, eles adaptaram-nas de forma que parecessem
menos ameaçadoras para seus opressores. Assim, a capoeira foi
criada como uma forma de resistência cultural e luta pela liberdade.
Hoje em dia, a capoeira é praticada em quase todo território
de Mato Grosso, é valorizada como uma forma de expressão
cultural e física. Ela é ensinada em escolas, instituições culturais e
academias, é uma ferramenta importante para promover a inclusão
social e a educação. Além disso, a capoeira em Mato Grosso é
frequentemente apresentada em festivais, eventos culturais e
turísticos, como uma atração que celebra a diversidade cultural e a
história do estado (LEME, 2019).
Em resumo, a capoeira tem uma grande contribuição
cultural em Mato Grosso, ajudando a preservar as tradições afro-
brasileiras e promovendo a inclusão e a educação por meio da
prática dessa forma de arte marcial.

Considerações finais

A Capoeira Angola representa uma das formas mais


tradicionais e autênticas de capoeira existentes no Brasil. Ela tem
raízes profundas na cultura e na espiritualidade afro-brasileira,
sendo marcada por uma forte conexão com as religiões afro-
brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda.
Ao longo dos anos, a Capoeira Angola ancestral passou por
diversas transformações e adaptações, mas ainda preserva muitas
das suas características originais. A música, a ritualização, a
vestimenta e a intenção são algumas das principais características
que norteiam a religiosidade na capoeira angola ancestral.
Embora cada grupo de Capoeira Angola tenha a sua
própria abordagem em relação à religiosidade, a capoeira angola
ancestral como um todo representa uma prática que vai além da
simples luta ou da dança. Ela é uma forma de conexão com a
espiritualidade, com a ancestralidade e com a cultura afro-

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

339
Novas Fronteiras Culturais

brasileira, assim como tem um valor histórico e cultural inestimável


para o Brasil e para o mundo.
Em Mato Grosso, a prática da capoeira pode variar entre
uma manifestação ancestral e uma expressão mais voltada para a
capoeira esportiva. É importante ressaltar que a capoeira possui
diferentes abordagens e formas de ser praticada, refletindo a
diversidade de perspectivas e contextos em que ela desenvolve-se.
Em algumas comunidades e grupos de capoeira em Mato
Grosso, a ênfase pode ser colocada na preservação das tradições
ancestrais e culturais da Capoeira Angola. Nesses casos, a capoeira
é vista como uma manifestação artística, histórica e cultural,
valorizando os aspectos rituais, os cantos tradicionais, as músicas,
os movimentos característicos e a conexão com a ancestralidade
africana. A prática é, frequentemente, transmitida por mestres e
contramestres que têm uma forte ligação com a tradição da
Capoeira Angola.
Por outro lado, em outros contextos e grupos, a capoeira
pode manifestar-se de forma mais voltada para a capoeira
esportiva. Nesse caso, a ênfase está na competição, na acrobacia e
no treinamento físico. A prática pode envolver a participação em
campeonatos, o desenvolvimento de habilidades técnicas e o
aprimoramento do condicionamento físico. Embora ainda esteja
presente a influência da cultura e da história da capoeira, o foco
principal é o desempenho atlético e as regras de jogo.
É importante destacar que essas duas abordagens não são
mutuamente excludentes e que muitos grupos de capoeira podem
integrar elementos de ambas as práticas. A capoeira é uma
expressão cultural dinâmica que evoluiu ao longo do tempo,
adaptando-se a diferentes contextos e influências. Portanto, em
Mato Grosso, é possível encontrar uma diversidade de abordagens
da capoeira, tanto como uma manifestação ancestral quanto como
uma capoeira esportiva.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

340
Novas Fronteiras Culturais

Referências

ABIB, Pedro R J. Capoeira Angola: cultura popular e o jogo dos


saberes na roda. Campinas: CMU/Unicamp / EDUFBA, 2005.
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

341
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 20
“MAIS QUE BATALHA DE RAP":
EMOÇÕES, ESPACIALIDADES
E NARRATIVAS DE MC’S

Marcia Alves Soares da Silva


Davi dos Santos Leite “MC Mache”

Introdução

As dinâmicas das cidades acompanham e ao mesmo tempo


são o palco das mudanças da vida cotidiana. Para entender o que
acontece no contexto urbano, é preciso parar para ouvir a cidade.
Há muito a ser desvelado nas práticas urbanas e no uso e
apropriação das cidades e seus espaços públicos.
Pensando as culturas urbanas – incluindo os grupos sociais
distintos e suas práticas na cidade –, as batalhas de rap constituem
uma experiência significativa no uso e ocupação dos espaços
públicos das cidades brasileiras. Enquanto movimento artístico,
periférico, negro e de resistência, incluído como parte de uma
proposta mais ampla – o movimento hip-hop –, as batalhas de rap
mostram-se cada vez mais emergentes como voz ativa de grupos
marginalizados, que buscam, na arte, o caminho para serem
literalmente ouvidos.
Neste sentido, levando em consideração a relevância da
questão sonora para as batalhas de rap, pensamos como essas
performatividades urbanas constituem paisagens sonoras
específicas e colaboram nas relações de sociabilidade entre os
envolvidos nessa prática cultural. Entendemos que há uma
atmosfera afetiva que sustenta tal prática, justamente por esse
contexto social em comum e pelas pautas e temas que adentram

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

342
Novas Fronteiras Culturais

nas rimas nas batalhas, que tratam da vida cotidiana de jovens, que,
por meio das batidas e das rimas, expressam o que sentem.
Em função do contexto da pandemia da Covid-19, as
batalhas de rap foram afetadas diretamente, já que os encontros
acontecem no espaço público e a aglomeração, a proximidade e a
participação do público, interagindo e encorajando as rimas e as
batalhas, são parte inerente da experiência dos MCs.
Assim, nosso debate também apresenta as experiências de
vida dos MC’s de Cuiabá e Várzea Grande, MT, relatando a
importância do espaço e do cotidiano na vida urbana, a partir de
suas narrativas. Em 2021, foram realizadas entrevistas narrativas,
pela plataforma Google Meet, sendo que utilizamos a metodologia
de uma pergunta geradora, em que os MCs puderam pensar sobre
suas experiências nas batalhas e conduzir a narrativa de acordo com
os elementos de sentido e significado nos encontros que
estruturam tal cultura urbana, a partir de suas próprias histórias de
vida.
Refletindo, em especial, sobre o que sentem quando estão
numa batalha de rap, temas como pertencimento,
responsabilidade, aceitação, família, identidade, preconceito,
violência, medo, machismo, conhecimento, trocas, coletividade,
dentre outros, foram abordados pelos MCs, que puderam fazer
uma reflexão individual a partir de uma experiência coletiva. Tais
narrativas mostram-se relevantes quando pensamos na pluralidade
da experiência urbana, cujas práticas marginalizadas, certamente,
são um caminho importante para pensarmos cidades mais
democráticas, justas, inclusivas e plurais e que levem em
consideração as dimensões subjetivas, como a experiência
emocional nas interações espaciais.

Os sons na/da cidade: performatividades urbanas ao nível do


ouvido

Os corpos que constituem as batalhas de rap, a partir de


suas experiências emocionais, compõem mais uma das

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

343
Novas Fronteiras Culturais

corpografias urbanas, que revelam a multiplicidade e a pluralidade


da vida urbana. Conceitos como corpografias e performatividades
urbanas, atmosferas afetivas, paisagens sonoras e espacialidades
emocionais são temas que podem dialogar na discussão sobre os
sons na/da cidade de Cuiabá.
De acordo com Pallasmaa (2014), a atmosfera é como uma
troca entre propriedades materiais ou existentes do lugar e o reino
imaterial da percepção e imaginação humana, portanto, são
“criações” experienciais humanas. A atmosfera de uma situação
social pode ser favorável ou desencorajadora, libertadora ou
sufocante, inspiradora ou maçante. Podemos até falar de
atmosferas específicas na escala de cultura, regional ou nacional.
Assim, entendemos que as batalhas de rap criam atmosferas
singulares, ligando som, corpos, emoções e movimentos espaciais.
Pallasmaa (2014) entende que captamos a atmosfera antes
de identificar seus detalhes ou entendê-la intelectualmente.
Podemos ser incapazes de dizer qualquer coisa significativa sobre
as características de uma situação, mas temos uma imagem firme,
uma atitude emotiva e uma lembrança dela. Por exemplo, à medida
que entramos em uma nova cidade, apreendemos seu caráter geral,
mesmo sem ter analisado conscientemente suas inúmeras
propriedades materiais, geométricas ou dimensionais, porque
percebemos as atmosferas através de nossa sensibilidade
emocional – uma forma de percepção que funciona incrivelmente
rápido, e que nós, humanos, evidentemente precisamos para nos
ajudar a sobreviver.
Nessas percepções, Pallasmaa (2011) afirma que uma
experiência de mundo exclusiva da visão não abarca a
complexidade, a abrangência e a plasticidade inatas do sistema
sensorial, o que reforça a sensação de isolamento e alienação. Para
o teórico, a audição estrutura e articula a experiência e o
entendimento do espaço e, normalmente, não estamos cientes da
importância da audição na experiência espacial, embora o som,
muitas vezes, forneça o continuum temporal, no qual as impressões
visuais estão inseridas. “O espaço analisado pelo ouvido se torna

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

344
Novas Fronteiras Culturais

uma cavidade esculpida diretamente no interior da mente”


(PALLASMAA, 2011, p. 47).
Sobre isso, Queiroz Filho e Borges (2020) apontam que,
ao caminhar, ouvimos, sentimos cheiros, esbarramos, tocamos,
portanto, produzimos experimentações corpo-sonoro-polifônicas.
Os sons são parte da polifonia da comunicação urbana e de
inúmeras experimentações sonoras. Neste sentido, pensamos que
as culturas urbanas, como o movimento hip-hop e, mais
especificamente, as batalhas de rap, são elementos fundamentais
para a comunicação urbana pela via da sonoridade, tanto das rimas,
quanto dos beats.
De que forma é preciso pensar e valorizar a cidade a partir
do nível do ouvido? Went (2015) afirma que, embora a aparência
da cidade seja importante para a sua apreciação, o som, muitas
vezes, é responsável por como nos sentimos num lugar particular,
sendo que o som é experienciado numa atmosfera, cobrindo 360
graus de todas as direções à nossa volta. O espaço acústico que
indivíduos e objetos ocupam é, na maioria dos casos, muito maior
que o seu espaço físico. Nós podemos escolher para o que
olhamos, mas não necessariamente o que ouvimos.
O autor trata da importância do contexto para que o som
seja entendido como algo agradável ou um barulho. Não é o nível,
mas o significado ou o contexto do som que é o mais importante.
Dependendo do contexto, consideramos o som um incômodo e
buscamos um equilíbrio funcional acústico entre o contexto
espacial, temporal, social e cultural do entorno para ser construída
uma soundscape satisfatória.
No rap, a importância das melodias é muito clara, porque
está presente desde a concepção da sigla “rap” ("rhythm and
"poetry”, em inglês), isto é, ritmo e poesia. Por vezes, o ritmo é
deixado de lado (em função, por exemplo, da falta de
infraestrutura) e todo valor é transferido para os versos quando, na
verdade, o ritmo é um dos grandes geradores de emoções.
Chamado de “beat” ou “batida”, o ritmo, muitas vezes, é
responsável por inspirar a criação de versos, sendo o “pontapé”

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

345
Novas Fronteiras Culturais

para as rimas, determinando o seu tema além das variações


rítmicas, chamadas de “flow”, que são usadas para prender a
atenção do ouvinte e público, causando uma sensação de novidade
a cada novo compasso. Geralmente os “MC’s” (como são
chamados os Mestres de Cerimônias que participam das batalhas)
mais habilidosos na arte do flow destacam-se nas batalhas e na
apreciação do público.
A importância do “beat” no rap é perceptível quando
vemos que não existe álbum de rap sem beat, mas existem álbuns
de rap sem “MC’s” e rimas, apenas com as batidas que são
chamados de “beatapes” com conjunto de batidas feitos
geralmente para promover o “beatmaker”.
Nas batalhas de rima, as melodias também são relevantes,
visto que, antes mesmo das batalhas começarem, são entoados os
gritos de guerras de cada batalha, gritos que determinam o começo
da batalha, mas também determinam sua personalidade.
Geralmente, esses mesmos gritos são usados quando as batalhas
não estão muito animadas, na intenção de esquentar novamente o
público, levando a energia do grito para o público e a energia do
público para os MC’s que vão batalhar. Nas batalhas, o “beat” varia
entre “beat” feito para as batalhas, “beat” de músicas usado nas
batalhas e o “beatbox”. Cada um deles tem seu lugar e importância
nas batalhas, sintonizando os MC’s e o público.
O “beatbox” é a criação de uma batida usando apenas a
própria garganta e caixa toráxica. É usado em duas circunstâncias:
a primeira quando faltam caixas de músicas e a segunda é quando
se quer passar uma energia mais tradicional para determinada
batalha. O “beatbox” é uma das artes de fazer beat mais
valorizadas, chegando ao nível de existirem batalhas só de
“beatbox” e essas batalhas terem um grande público.
Os “beats” de músicas, geralmente, são retirados de sons
de rap populares pelo público e é usado quando você quer passar
uma energia maior para o público. A energia que se transmite uma
batida de um som do grupo de rap “Racionais”, por exemplo, eleva
o público ao êxtase e o público devolve essa mesma energia aos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

346
Novas Fronteiras Culturais

MC’s que, geralmente, são contagiados pela euforia do público e


faz com que a batalha ganhe mais fôlego. Além disso, os “beats”
feitos para as batalhas são, via de regra, os mais desafiadores, sendo
que os MC’s precisam estar atentos para não se perder dentro deles
e da própria métrica. Assim, entendemos que os sons são parte da
performatividade das batalhas de rap.
As batalhas de rap constituem uma paisagem sonora
significativa, levando em consideração as performances realizadas
no espaço urbano, dialogando o corpo e a cidade. Lindón (2009)
entende que performatividade é atuar no espaço e tem a capacidade
de construir nossos lugares na cidade, não só como coisas, mas
também como configurações espaciais dotadas de significados.
Para a autora, o conceito de performatividade discute sobre a
capacidade da linguagem para construir a realidade social,
pensando as palavras, a ação, a motricidade e a expressividade do
corpo dentro dos contextos sociais. Sobre isso, apresenta a ideia de
performatividades urbanas, afirmando que o corpo e a
corporeidade dialogam constantemente com o sujeito e seus
espaços de cidade.
A paisagem sonora é cultural, pois reflete a identidade de
um lugar e de seus habitantes. Os sons dos animais e dos
fenômenos da natureza não se exprimem da mesma maneira em
todos os lugares. Os sons provenientes da circulação de carros,
além dos sons dos motores, obedecem a códigos que são
específicos em cada grupo social. As buzinas podem ser sons
agressivos em uma localidade, enquanto em outra são encarados
de maneira natural. Sons da construção civil podem ser tolerados
até tarde da noite em algumas localidades, enquanto em outras são
estabelecidas leis ou critérios para que não ultrapassem os horários
comerciais. Uma festa pode durar uma noite inteira em certos
lugares, ao som de músicas em alto volume, conversas e risadas,
enquanto em outros existem limites de decibéis e/ou horários
estabelecidos para que as festas aconteçam. Assim, cada lugar
apresenta sua especificidade na paisagem sonora (TORRES, 2009).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

347
Novas Fronteiras Culturais

De acordo com Colusso (2016, s/p): “As pessoas dão


sentido ao som e esse sentido está diretamente ligada a nossa
cultura”. Sendo assim, o ato de oprimir um movimento sonoro
periférico de um espaço público é o mesmo que a repressão de
uma cultura inteira e podemos chamar isso de “dominância
sonora”. A forma como você pode dominar e parar é silenciando-
o, utilizando formas de dominação e poder. No caso das batalhas
de rap, a forma que muitos órgãos públicos encontram para acabar
com o movimento das batalhas de rap é confiscando as caixas de
sons, reprimindo os presentes e calando a voz que dá alma aos
lugares e para a vida pública.
Moreaux (2018) aponta o sonoro como uma requalificação
do visual, vislumbrando diferentemente a experiência geográfica,
ao reconsiderar a escala do corpo do pesquisador como uma escala
de apreensão do espaço geográfico, valorizando ontologicamente
a experiência material do mundo e da existência através da
reabilitação da escala do corpo na Geografia, revalorizando outros
sentidos e afetos.
Seu foco principal é pensar a questão sonora em relação
aos afetos. Para Moreaux (2018), o som como afeto retira as
camadas discursivas e socioculturais para começar a análise num
nível mais básico, com o movimento vibracional dos corpos, sendo
que focar nesse aspecto afetivo do som permite vislumbrar as
relações, trocas e movimentos entre os corpos e os ambientes. Tal
proposta dialoga diretamente com a nossa pesquisa, ao pensar a
corpografia urbana das batalhas de rap.
A reflexão do autor dialoga com as contribuições de Paiva
(s/d), quando busca compreender a formação de territórios
sonoros em Lisboa, focando no espaço e no tempo urbano, nas
relações entre os elementos que os compõem, as diferentes
tipologias sonoras existentes e os elementos que estabilizam a sua
territorialização. O autor busca analisar as relações afetivas que se
desenvolvem entre os cidadãos e os vários territórios sonoros,
incidindo sobre o papel do som na transmissão afetiva em espaços
urbanos, os processos de sintonização e feedback nos territórios

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

sonoros urbanos, assim como a avaliação do impacto do som


urbano no corpo dos indivíduos.
A partir de metodologias múltiplas, como entrevistas,
diários de anotação, observações em campo, Paiva (s/d) expressa
algumas perguntas em evidência, que são também questões
relevantes para o nosso projeto: como é que a experiência sonora
muda ao longo do dia? Como é que o corpo é afetado pela
experiência sonora? Como é que a experiência sonora liga-se a
outros sentidos, nomeadamente visão? Como é que os sentimentos
e conhecimento do lugar são produzidos a partir da experiência
sonora situada? Para tanto, Paiva (2019) faz um mapeamento de
sonoridades, usando a georreferenciação de gravações de áudio em
sistemas de informação geográficos, articulando representações
visuais, como fotografias; representações sonoras, através da
gravação dos sons dos lugares; e mapeamento, apresentando
espacialidades, sonoridades e visualidades.
Paiva (2020) acredita que o som – através de inflexões
vocais, de música, ou de outras práticas sonoras afetivas – dá-nos
informação emocional e codificada que não é facilmente transcrita
para texto. Os sons de um lugar oscilam de um momento para o
outro, sendo que à medida que os elementos da paisagem movem-
se ou as suas condições alteram-se, a gravação de campo obriga a
um conhecimento profundo dos ritmos (diários, horários etc.) e
fluxos de um lugar. Por isso, o autor sugere o uso do diário sonoro,
que “é um método útil para produzir conhecimento sobre como a
experiência do espaço e dos eventos dá lugar a emoções,
pensamentos, memórias e representações, especialmente através
da relação entre corpo, sentidos e lugares” (PAIVA, 2020, p. 7).
Assim, entendemos que os sons na/da cidade na relação
com a cultura urbana e as batalhas de rap dotam os lugares de
significados, construindo performances de ação tanto dos que
participam ativamente das batalhas, quanto dos transeuntes que
percebem as batalhas e são afetados sonoramente por elas.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

As corpografias urbanas e a experiências de MC’s nas


batalhas de rap em Cuiabá

A experiência dos sons e das batalhas de rap no espaço


público faz parte do que Jacques (2008) define como
“transformação cenográfica”, em que as corpografias resultantes
de experimentações denunciam, por sua simples presença e
existência, a domesticação dos espaços mais espetacularizados.
Portanto, as batalhas de rap são uma “corpografia urbana de
resistência”.
Entendemos que há uma experiência urbana que é
encarnada no corpo, no caso, o corpo que constitui as batalhas de
rap: os próprios MCs. É o que Jacques (2008) chama de
“corpografias urbanas”. De acordo com a autora:

Uma corpografia urbana é um tipo de cartografia realizada


pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no
corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie
de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita
mas também configura o corpo de quem a experimenta
(JACQUES, 2008, s/p).

Para a autora, o corpo – corpo ordinário, vivido, cotidiano


e cidade, pode “mostrar alguns caminhos alternativos, desvios,
linhas de fuga, micro-políticas ou ações moleculares de resistência
ao processo molar de espetacularização das cidades
contemporâneas” (JACQUES, 2008, s/p).
A reflexão da autora é visível na experiência urbana de
Cuiabá, pensando o contexto dos espaços públicos, palcos
fundamentais das culturas urbanas, como as batalhas de rap. É
perceptível que nem sempre esses lugares são de acesso para todos.
A Praça Alencastro, por exemplo, no ano de 2018, durante sua
reforma e alguns meses depois, ficou restrita apenas para
passagem, sendo que ficavam guardas municipais no local, que, por
vezes, agiam na retirada de jovens que parassem na praça,
proibindo, assim, que as batalhas acontecessem no seu local de
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

350
Novas Fronteiras Culturais

criação. Notamos que tal ato não se restringe à Praça Alencastro


ou à cidade de Cuiabá, já que é sabido sobre as várias formas de
repressão de práticas culturais nos espaços públicos das cidades
brasileiras, quando tais práticas não “obedecem” necessariamente
a uma ordem esperada.
Os novos espaços públicos contemporâneos, cada vez
mais privatizados ou não apropriados, levam-nos a repensar as
relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo
do cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário, mas, mais do que
isso, ela ganha corpo a partir do momento em que ela é praticada,
torna-se “outro” corpo. Dessa relação entre o corpo do cidadão e
esse “outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de
apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de
intervenção na cidade contemporânea (BERENSTEIN, 2008,
s/p).
A corpografia parte da hipótese de que a experiência
urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no
próprio corpo daquele que a experimenta e, dessa forma, também
o define, mesmo que involuntariamente – o que pode ser
determinante nas cartografias de coreografias ou carto-
coreografias.
Pensando que a vida é constituída de movimentos em
relação à experiência emocional, podemos articular que os fluxos
afetivos são como movimentos espaço-tempo, que afetam os
corpos na relação com o mundo (PAIVA, 2017). Nesses
movimentos e fluxos que compõem as corpografias urbanas,
compreendemos que há uma atmosfera emocional que propicia o
encontro e fortalece o movimento, sendo que estar na rua, ocupar
a praça e fazer as rimas, são todos envolvidos pela experiência
emocional dos MCs, desde o percurso desses corpos até a praça, a
batalha em si, o êxtase da vitória ou a raiva do fracasso, sempre
motivados para o próximo encontro, batalha e rima que irá sair no
duelo.
Esses corpos ordinários e cotidianos que constituem as
batalhas de rap em Mato Grosso vivem uma relação intrínseca com

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

o espaço público. Os MC’s chegam horas antes das batalhas na


intenção de rever os amigos, ouvir música, conversar e colocar o
nome na lista para hora de rimar, criando, nesse espaço, uma
relação de trocas e múltiplas experiências.
Os praticantes ordinários das cidades atualizam os projetos
urbanos e o próprio urbanismo, através da prática, vivência ou
experiência dos espaços urbanos. Os urbanistas indicam usos
possíveis para o espaço projetado, mas são aqueles que o
experimentam no cotidiano que os atualizam. São as apropriações
e improvisações dos espaços que legitimam ou não aquilo que foi
projetado, ou seja, são essas experiências do espaço pelos
habitantes, passantes ou errantes que reinventam esses espaços no
seu cotidiano. Para os errantes – praticantes voluntários de
errâncias – são, sobretudo, as vivências e as ações que contam, as
apropriações feitas a posteriori, com seus desvios e atalhos e estas
não precisam necessariamente ser vistas (como ocorre com a
imagem ou cenário espetacular), mas experimentadas, com os
outros sentidos corporais. Os praticantes da cidade, como os
errantes, realmente experimentam os espaços quando os
percorrem e, assim, dão-lhe “corpo” pela simples ação de percorrê-
los (JACQUES, 2008, s/p).
Em uma batalha de rap tradicional, existem 45 segundos
de ataque e 45 segundos de resposta, sendo separados por dois
rounds. O MC 1 ataca durante 45 segundos e, no fim, desse tempo,
acaba o seu primeiro round dando o exato tempo de 45 segundos
para o MC 2 fazer sua resposta. No fim do tempo de resposta, o
MC 2 ganha mais 45 segundo para fazer seu ataque, iniciando o
segundo round. O MC 1 termina a batalha tradicional e, se existir
um equilíbrio na mente da plateia, a batalha é levada para um
terceiro round, que seria em um formato bate e volta com dois
versos para cada.
As emoções são um dos pilares mais importantes para uma
batalha e ela começa manifestar-se pouco antes do horário
marcado, a roda começa a formar-se no centro da praça e os MC’s
colocam o nome na lista, a adrenalina manifesta-se e aquele lugar

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

transforma-se em um ponto de grande tensão pra todos que vão


participar. A plateia toda cria uma camada de energia e expectativa
e é muito comum o MC deslocar-se para trás, distante da plateia na
busca de respirar e acalmar-se pela última vez antes do início da
batalha.
As batalhas de rap encaixam-se nessa definição, pois, como
um ponto de encontro de diversas tribos, esse local ressignifica-se
com uma identidade própria: a de resistência cultural. Essa conexão
com o espaço fez com que, por muitas vezes, no contexto da
pandemia, os MC’s, que tinham um diário programado de cada
batalha, experienciassem diversas emoções, uma certo vazio e uma
falta de estar no espaço da batalha, tendo que ficar em casa em um
momento, em que, com certeza, estariam na praça rimando e
batalhando.
Pensando nesse contexto, apresentaremos aqui algumas
das experiências compartilhadas pelos MCs nas entrevistas
concedidas no mês de abril de 2021. Os MCs serão identificados
com nomes fictícios, para preservar suas identidades, conforme
prevê os princípios éticos da pesquisa científica. As entrevistas
narrativas foram realizadas via Google Meet, com duração de cerca
de 30 minuto, com a abordagem de diferentes temas, contribuindo
para importantes reflexões e análises. As entrevistas foram
gravadas e transcritas na íntegra. Foram entrevistados dois homens
héteros, um homem transgênero, um homem bissexual e uma
mulher.
A entrevista narrativa é uma forma de entrevista não
estruturada, de profundidade, com características específicas e que
emprega elementos da comunicação cotidiana: o contar e escutar
histórias (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2013). A narração segue
um esquema autogerador, sendo que a influência do entrevistador
é mínima. O uso da metodologia narrativa pressupõe trocas,
diálogo, confiança entre o narrador e o ouvinte e tem por objetivo
entender como os MCs percebem as batalhas, suas expectativas
com relação ao movimento, como se relacionam com os lugares
onde ocorrem as batalhas, como são vistos pela família e pelos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

amigos sendo MCs. Essas experiências foram analisadas a partir da


análise de conteúdo, construindo categorias de reflexão com base
nos relatos dos narradores, sendo uma interpretação pessoal por
parte do pesquisador com relação à percepção que tem dos dados,
no caso, pensando as questões que envolvem espaço e emoções.
Sobre isso, MC “A.Q” comentou a respeito das diferentes
emoções que o constituem quando está batalhando:

[...] Quando eu tô esperando ali, cara eu fico no processo


de me acalmar, mais do que de construir algo para rimar...
Respirar fundo, pensar em coisas realmente positivas... Eu
estou sempre assim cara, ‘se concentra’, toda vez que eu
estou bem comigo mesmo, estou bem mentalmente, assim
tipo tranquilo com aquilo eu fui muito bem, eu brinco, eu
canto então isso sempre me ajudou nas batalhas, porque
quando eu tô fechado e penso vai ser difícil eu começo a
rimar sério e eu não sou esse cara, eu sou o cara que se
diverte e é esse cara que eu gosto de ser. (MC A.Q,
entrevista concedida em abril de 2021).

Mesmo com o aumento no número do público nas


batalhas, com o apoio das casas de cultura e, algumas vezes, até
mesmo da prefeitura, as batalhas de rap ainda são vistas de uma
forma muito preconceituosa como grande “bagunça” e não como
um movimento cultural. Por isso, para o MC V. D., é muito
importante refletir sobre o que sente na batalha, não só por ser
organizador de batalha, mas também por ser um transexual que
sofre, além da homofobia, diversos preconceitos por estar
envolvido no rap. Em sua entrevista narrativa, ao ser provocado
sobre isso, respondeu:

Uma das primeiras coisas que a batalhas me trouxe de


sentimento foi a primeira vez que eu entrei em uma quando
eu tinha só dez anos de idade, era uma praça que eu andava
de skate com minha família, então desde o começo foi algo
de família, de rua, de estar ali com o pessoal. Um

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Novas Fronteiras Culturais

sentimento que acho que me marca como MC é a energia,


cada batalha tem uma energia única, eu já batalhei em Mato
Grosso do Sul e aqui em Mato Grosso e toda energia é
diferente, mas ao mesmo tempo muito parecido na questão
de ser boa, de força, ânimo e alta astral! (MC V.D,
entrevista concedida em abril de 2021).

Segundo ele, uma das coisas que mais sentiu quando parou
de rimar “é que eu tinha perdido parte de mim e, quando eu volto,
eu sinto que eu me encontrei, a batalha é onde a gente se encontra,
mas é aonde a gente também pode se perder” (MC V.D, entrevista
concedida em abril de 2021). O MC compartilha a experiência de
acolhimento na cidade de Cuiabá, de sentir-se “abraçado”. Afirma
que “a energia da galera me motivando quando eu travava, minha
primeira batalha na Alencastro foi contra o Machel e ele me ajudou
muito a me sentir bem”. Compartilha ainda uma certa pressão que
existia antigamente, mas que “hoje eu acho que eu só não posso
cair, a pressão de hoje em dia é mais por consolidação, minha
pressão é pra quebrar estereótipos”.
A fala do MC V.D é importante no sentido de pensar o
espaço da batalha de rap como uma atmosfera afetiva de
acolhimento, pertencimento, respeito e luta. Ele ainda relata que:
“Batalhar na batalha que eu criei é uma sensação de lar, como se
eu tivesse jogando futebol dentro do meu estádio, uma sensação
de conforto e amor, meus amigos, os MCs que eu vi começando, é
satisfatório demais, como se fosse um retorno”.
Entendemos que as batalhas de rap fazem parte de um
movimento muito maior do que a própria competição entre os
MCs, que é o do hip-hop. O movimento criado por pretos e pretas
que buscavam expressar seus sentimentos e divertirem-se entre as
minorias norte-americanas. Compreendendo isso, a MC C.M., uma
das entrevistadas na pesquisa e uma das melhores MCs do estado
de Mato Grosso, sendo uma mulher negra, entende que seus
sentimentos nas batalhas de rima:

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Novas Fronteiras Culturais

De alguma forma, como se eu tivesse é... batendo de frente


em questão tipo de alguma coisa que eu acho que seja
injusta mais de uma forma assim de frente sabe, porque ali
eu vou estar lidando com várias pessoas e em várias
pessoas em volta, ouvindo também, tipo é uma coisa que
ajuda também, sabe na questão de opinião, de perceber as
coisas na sua volta e você demonstrar aquilo que você acha
errado, então, tipo eu me sinto assim, tipo sempre, é algo
que sempre me anima muito e é algo que sempre me ensina
muito também, é tipo quando eu estou numa batalha assim,
eu me sinto bastante em casa e sinto que me anima de
alguma forma sabe, tipo me dá uma esperança de por uma
perspectiva diferente, então tipo assim, eu acho que é a
questão de você estar ali batalhando, eu sinto que assim
porque você está lidando com várias pessoas, então tipo
assim, às vezes você tem uma visão e a pessoa que está
envolta com você, ela tem uma visão diferente, então é uma
troca de perspectivas (MC C. M., entrevista concedida em
abril de 2021).

Pensando sua condição enquanto mulher e entendendo


que o movimento hip-hop, apesar de abraçar minorias, ainda é
bastante machista, refere que: “Eu me sinto como se tivesse uma
responsabilidade muito grande de alguma forma, tipo eu sei que eu
estou ali, mas que tem vários olhos e eu não posso errar, tipo eu
sinto como se eu não pudesse errar” (MC C. M., entrevista
concedida em abril de 2021). Ela entende que as pessoas esperam
um certo comportamento nas batalhas, por isso, fala sobre uma
responsabilidade, especialmente, porque “tem pessoas que não
entendem a causa e que estão ali só esperando um errinho seu para
poder de criticar a causa inteira, então isso é uma responsabilidade
bem grande” (MC C. M., entrevista concedida em abril de 2021).
Na pesquisa, fica muito claro quando todos os MCs,
independentemente do gênero, do tempo e das conquistas, em
algum momento, chamaram as praças das batalhas de “casa”. Isso
reforça o nosso pressuposto inicial de que o encontro na vida
pública é fundamental para reforçar os “nós” afetivos que unem as
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

356
Novas Fronteiras Culturais

pessoas em torno de um sentimento e uma experiência em comum.


Isso foi abordado pelo MC G. R:

Pensar ali como uma casa né, o que que é uma casa? Uma
casa é o local... onde você relaxa, onde você tem conforto,
mas uma casa também é um local de problemas, uma casa
também é um local de muitas coisas, então você observa
que cara, aqui é um local de prazer, mas muitos aspectos
ainda precisam ser melhorados, você começa a pensar bem
mais a fundo a realidade que cerca, por exemplo, eu falo
que fiquei muito mais crítico em relação a muita coisa
depois que eu participei das batalhas, porque batalha, ele é
um local de construção de conhecimento... (MC G. R.,
entrevista concedida em abril de 2021).

Ele fala que quando pensa a batalha de rap como casa,


entende que é “porque a casa tem momentos bons, uma casa tem
problemas sabe, ninguém está isento de sofrimento então
nenhuma casa tá isenta de sofrimento... ali vai ter variações mas
também vai ter momentos prazerosos...” (MC G. R., entrevista
concedida em abril de 2021).
É importante analisar as batalhas como um ambiente de
diversão, aceitação e de conforto, mas, mesmo assim, não pode
esquecer o objetivo fundamental do rap. As batalhas de rap são um
espetáculo, mas ainda são parte de um movimento do hip hop que
nasceu como uma emancipação, como a voz das minorias. Sobre
isso, o MC G. R refere que: “Eu sigo a minha filosofia que o rap
tem cor, tem como tema trazer problemas sociais. A batalha para
mim é um ambiente tão grande tão potente para mudar ou pelo
menos amenizar tantas e tantas coisas, permitir que mais pessoas,
expressem sua arte que, que elas se expressem” (MC G. R.,
entrevista concedida em abril de 2021).
Além da diversão e do trabalho, as batalhas de rap
carregam um grande poder de agregar conteúdo e conhecimento
para a vida das pessoas, um lugar em que você ensina o que sabe e
aprende o que desconhece. As batalhas de rap têm o poder de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

357
Novas Fronteiras Culturais

discutir tabus da sociedade de uma forma artística e cultural. No


rap, existem as famosas escolas, onde os que fazem parte da velha
escola são os MC’s das gerações mais antigas, que conheceram o
hip-hop em um momento diferente, assim como a nova escola é a
recente, os que ainda estão conhecendo o rap. Ou seja, o rap, em
sua essência, é destinado a ensinar.
Por exemplo, a Batalha do Pedra 90, carrega uma
grandiosidade singular, que é o poder de atrair adolescentes e
crianças para as rodas. O MC Y. fala mais sobre o poder das
batalhas e como elas são importantes:

É um aprendizado também, eu já aprendi muita coisa, já vi


batalhas com caras que tem umas ideia muito inteligentes
sabe, que é um local onde a gente consegue facilmente
discutir problemas sociais e sem vergonha, sem tabus saca?
Ali você pode se expressar, você não precisa ficar
preocupado com alguém apontar o dedo para você, é claro
que em todo local que a gente vai, a gente vai achar alguém
que discorde da gente saca, mas na batalha de rap você tem
a liberdade de se expressar saca? Quantas discussões sociais
como o próprio racismo, xenofobia, homofobia é um local
onde essas discussões elas são colocadas em pauta,
entendeu? (MC Y., entrevista concedida em abril de 2021).

Aqui, o MC Y. reforça a importância das batalhas como


um movimento coletivo, que envolve diferentes emoções e
experiências de vida, mas que encontra pontos e elementos em
comum: as denúncias sociais. Neste sentido, entendemos que as
experiências emocionais das pessoas são fontes fundamentais de
construção do conhecimento para políticas públicas, movimentos
sociais, pautas sobre a vida urbana e sobre caminhos relevantes de
diminuição das desigualdades e ampliação da inclusão. Sobre isso,
o MC Y. concebe que, nas batalhas, é possível encontrar
“construções inteligentes de rima. Eu aprecio muito esses MCs que
colocam esses tipos de argumentos, de argumentação em pauta”
(MC Y., entrevista concedida em abril de 2021).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

358
Novas Fronteiras Culturais

Enquanto um lugar de aprendizado, as praças, a rua, o


espaço público, é o palco do “acontecimento solidário”, do reforço
de laços sociais, de construção de uma atmosfera afetiva plural e
relevante. Para o MC Y., “ batalha passa a sensação de um pai e de
uma mãe que realmente tem paciência para ensinar basta a cada
pessoa que vai numa batalha de rap, como ela, como ela vai
conseguir enxergar aquilo saca?” (MC Y., entrevista concedida em
abril de 2021).
O MC Y. afirma que muitos assuntos são discutidos na
batalha de rap. Para ele, nas batalhas, são distribuídos
conhecimentos, que é um lugar de aprendizado, de trocas:

[…] sempre que eu vou numa batalha de rap diferente,


acho que é uma coisa que me mantém vivo, sabe, é sempre
que eu vou é pra me divertir e aprender ao mesmo tempo,
acho que não tem nada mais construtivo do que isso, é a
metodologia que acho que todo professor gostaria de ter
saca? Eu tenho dois professores em casa, por isso que eu
falo isso, quem consegue divertir e consegue ensinar ao
mesmo tempo vai conseguir fazer qualquer pessoa
aprender sabe? Os meus pais fizeram isso comigo e na
batalha de rap eu consegui ver esse exemplo saca? Eles vão
conseguir comparar esse sentimento que eu tive dentro de
casa e conseguir juntar na batalha. Eu dou graças a Deus
pelos meus pais me apoiarem bastante com o que eu faço
sabe? Eu sei que nem todo mundo tem essa sorte, mas eu
acho fantástico sabe? É uma coisa que realmente me
empolga sempre que eu falo de batalha, eu posso falar por
horas e por horas e horas, mas tipo a sensação sempre vai
ser a mesma… (MC Y., entrevista concedida em abril de
2021).

Com essas experiências que aprendemos e


compartilhamos e que envolveram temas como família,
conhecimento, resistência, casa, rua, respeito, diversidade,
identidade, arte, experiência, críticas sociais, preconceito,
acolhimento, encontros, diversão, trocas, percebemos, nas
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

359
Novas Fronteiras Culturais

narrativas dos MCs, o quanto o movimento hip-hop e as batalhas


de rap são essenciais para entendermos a pluralidade da cultura
urbana. É preciso espaços de diálogo e escuta para pessoas que
vivem a rua e fazem dela o palco de suas vidas. Todas as narrativas
foram envolvidas por emoções, resgatadas pela memória no ato de
narrar, envolvendo diferentes temporalidades e espacialidades, mas
que expressam a relevância da experiência emocional para pensar
uma Geografia e uma ciência mais humana, condizente com as
necessidades sociais e com a pluralidade das práticas cotidianas.

Considerações finais

Pensando as dinâmicas contemporâneas e o uso de


ferramentas para a captação de outras dinâmicas espaciais,
podemos entender que a possível pensar a importância dos sons
para compreender os ritmos urbanos, as práticas culturais e as
diferentes formas de utilizar a cidade. Além da questão sonora, as
batalhas de rap são importantes tanto em seu aspecto cultural,
como no que diz respeito à ocupação do espaço público, sendo um
movimento político e de resistência.
Todo esse contexto faz entender que as batalhas de rap
constituem uma experiência emocional no/do espaço público e
mostra a relevância de incluir as emoções como fontes de
conhecimento na experiência desses corpos cotidianos. Os corpos
que constituem as batalhas de rap, a partir de suas experiências
emocionais, compõem mais uma das corpografias urbanas, que
revelam a multiplicidade e pluralidade da cidade, que não é única,
mas muitas.
Do ponto de vista geográfico, dar atenção às emoções é
colocar em evidência uma experiência que não é apenas individual,
interiorizada e subjetiva, mas que reverbera na experiência espacial,
nas relações, nos movimentos, sendo também parte da política
urbana e do ser e estar no espaço urbano.
Referências

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

360
Novas Fronteiras Culturais

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Disponível em
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

362
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 21
LAVAGEM DAS ESCADARIAS DA
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO
ROSÁRIO E CAPELA DE SÃO
BENEDITO EM CUIABÁ:
OLHARES, PERSPECTIVAS E O
DEBATE CRÍTICO

Lucas Neris Araújo


Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

Introdução

Este texto apresenta os resultados do trabalho de pesquisa


bibliográfica e documental, além de entrevistas, envolvendo a
manifestação cultural da “Lavagem das Escadarias da Igreja de
Nossa Senhora do Rosário e Capela de São Benedito”. Ela é
protagonizada por religiosos de matriz africana no Centro
Histórico de Cuiabá, Mato Grosso.
Para isso, evidencia, primeiramente, um histórico da
ocupação desse espaço urbano e o papel da população de negros
(escravizados e livres) na formação do espaço geográfico do
entorno da Igreja do Rosário e São Benedito, a partir da
colonização no século XVIII. Posteriormente, situando-se a atual
posição histórico-geográfica, investiga a lavagem das escadarias da
referida igreja, interpretando-a como uma manifestação cultural
religiosa de reocupação desse território negro a partir de registros
em matérias de sites de notícia e imprensa oficial, artigos científicos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

363
Novas Fronteiras Culturais

e entrevistas com líderes do movimento cultural e religiosos de


casas de candomblé de tradição Ketu e Angola.
De início, é importante salientar que o candomblé é uma
religião sincrética criada no Brasil por meio da herança cultural,
religiosa e filosófica trazida pelos africanos escravizados, sendo
aqui reformulado para poder adaptar-se às novas condições
ambientais (BARROS, 2009). No passado, o sincretismo
funcionou como uma estratégia de resistência dos cultos a
divindades africanas. Sequestrados compulsoriamente na condição
de escravizados em seu território de origem, a fusão do culto a
diferentes divindades africanas foi uma necessidade e, em meio a
outros fatores, permitiu o estabelecimento e continuidade da
manifestação religiosa afro diaspórica. A palavra "candomblé", de
acordo com o autor, parece ter se originado de um termo da nação
Bantu, candombe, traduzido como "dança, batuque", denominação
especificamente brasileira.
Entre os séculos XIV e XVI, africanos de diversos grupos
étnicos foram capturados e trazidos ao Brasil como escravos. O
povo Banto veio de regiões conhecidas hoje como Angola, Congo,
Guiné, Moçambique, Zaire etc. Os Yorubás de cidades da atual
Nigéria como Ilexá, Oyó, Ketu, Abeokutá, Ekiti, Ondô, Ijexá,
Egbá, Egbado etc (BARROS, 2009). Além deles, segundo o autor,
também foram trazidos de outras regiões africanas pessoas dos
grupos étnicos Fon, Ewe e Ashanti.
Sem contar o povo africano de Daomé, negros islamizados,
em sua maioria de origem Nagô, que foram importantes
influenciadores no Conflito dos Males na Bahia, revolta que tinha
como objetivo a libertação dos africanos da condição de cativos e
introdução do islamismo como religião oficial da Província Baiana
no século XIX (SANTOS, 2020).

Breve histórico de ocupação do Largo do Rosário

No início da formação do espaço urbano de Cuiabá, século


XVIII, os bandeirantes - homens contratados pelo estado ou

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

364
Novas Fronteiras Culturais

particulares para atuar na captura de escravos fugitivos, destruição


de quilombos, aprisionamento de indígenas, mapeamento de
territórios e na procura de pedras e metais preciosos - chegaram e
fixaram-se na região após descobrirem enormes jazidas de ouro.
Primeiramente, no Rio Coxipó e, posteriormente, no Córrego da
Prainha, nas imediações da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
(VILARINHO NETO, 2008).
Segundo Pereira (2016), a partir da descoberta de ouro de
aluvião, a cidade de Cuiabá estruturou-se e organizou-se seguindo
a topografia, de modo que, em cada morro, existia uma igreja: a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no Morro do Rosário, a Igreja
de Nossa Senhora do Bom Despacho e o Seminário da Conceição
ficavam no Morro do Bom Despacho, com exceção da Igreja do
Senhor dos Passos, que foi construída em cotas inferiores, próxima
ao córrego da Prainha.
Na perspectiva do autor, com base nos dados do censo
demográfico de 1872, a cidade de Cuiabá foi classificada como
“Cidade Negra” por Flávio dos Santos Gomes e Carlos Eduardo
Moreira, porque guardava semelhanças com outros centros
urbanos, onde as ruas eram dominadas pelos negros (escravizados
e livres). Para Reis e Silva (1989) apud Pereira (2016), na mais
distante Cidade de Cuiabá, da província de Mato Grosso, havia
apenas 1.394 escravos, porém 5.585 pardos e pretos livres. Todos
representavam 63% da população cuiabana no período.
Na igreja de Nossa Senhora do Rosário, também conhecida
como igreja dos pretos, devido à presença significativa de devotos
negros, foi instituída a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos no século XVIII. A Irmandade contribuiu na
construção do espaço urbano negro, pois os confrades doavam e
construíam espaços sagrados, segundo sua devoção (PEREIRA,
2016; SILVA, 2001).
Conforme Pereira (2016), as irmandades estavam presentes
nas horas mais difíceis, criando laços de solidariedade e devoção.
Igualmente, eram espaços de pequenas conquistas individuais aos
cativos, resguardando o mínimo de dignidade e respeito social,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

365
Novas Fronteiras Culturais

chegando ao caso dessas organizações financiarem a alforria de


escravizados. Mendes (2011) destaca o rigor do poder eclesiástico
no controle das irmandades formadas por africanos, que eram
sempre as “mais suspeitas” de heresia.
Atualmente, a igreja de Nossa Senhora do Rosário
representa um poder religioso sobrevivente, dado que é a mais
antiga igreja existente em Cuiabá. Constitui um dos territórios
negros na cidade por meio das irmandades negras existentes em
seu recinto (SILVA, 2001).
Não foram encontrados registros históricos do culto a
divindades africanas no período colonial em Cuiabá, o que,
provavelmente, deve-se à repressão a qual os escravizados foram
submetidos. Eles, geralmente, eram catequizados e impedidos de
cultuar suas próprias divindades. O fato da transmissão do
conhecimento ancestral africano, tradicionalmente, ser feito
através da oralidade sem a existência de um livro base, contendo
escrituras sagradas dessa cosmovisão, pode ter contribuído para o
fato.

Registros sobre a Lavagem das Escadarias do Rosário

Num contexto mais contemporâneo, em meados do ano


de 2018, a Câmara Municipal de Cuiabá aprovou o projeto do
vereador Marcos Veloso, do Partido Verde (PV), estabelecendo,
no calendário oficial da cidade Cuiabá, o evento religioso
“Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito” (ROMANCINI; MOURA, 2020).

Estamos preservando parte da nossa história, cultura


identidade, costume de um povo, que se chama cuiabano e
de Mato Grosso e até do Brasil, já que Cuiabá é uma das
poucas capitais a manter a tradição”, disse o parlamentar
ao ter o projeto de sua autoria aprovado [...] Essa função
ainda era feita pelos antigos escravos, em preparação da
Igreja do Rosário para o festejo e aqui estamos nós

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

366
Novas Fronteiras Culturais

mantendo a tradição e garantindo preservação da nossa


história [...] (CUIABÁ, 2019, p. 1087).

O evento contou com o apoio da Prefeitura Municipal de


Cuiabá e da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer,
“constituindo importante ritual que precede a festa de São
Benedito” (ROMANCINI; MOURA, 2020, p. 1087). Em 2019, na
sua terceira edição, a manifestação cultural teve como tema
“Fraternidade - Caminhos de Luz e Axé”. Sendo que a primeira
aconteceu em 2017, a segunda em 2018 e a terceira em 2019. Com
o calendário interrompido pela pandemia do coronavírus, voltou
às suas atividades em 2021, acontecendo em período diferente, por
conta da pandemia, como Moura e Romancini (2022, p.149)
pontuam:

Tradicionalmente, a Lavagem ocorre no mês de junho,


sempre no sábado que antecede a Festa de São Benedito,
marcada pelo levantamento do mastro após a missa das
cinco horas, na terça-feira, seguida pelo tríduo, que
consiste em três missas campais, de quinta-feira a sábado,
também às cinco da manhã, e demais festividades que
ocorrem no sábado à noite e no domingo, com o
encerramento após a grandiosa procissão de São Benedito,
pelas ruas da capital. No entanto, no ano de 2021, o ato
cultural e ecumênico realizou-se no dia 2 do mês de
outubro, o adiamento da data ocorreu devido à pandemia,
uma vez que, em outubro, mais pessoas já estavam
vacinadas.

Ainda na perspectiva de analisar geograficamente sob a


ótica cultural a primeira edição da Lavagem das Escadarias, no
tempo pandêmico, Moura e Romancini (2022, p. 151) pontuam
sobre o uso do acessório de segurança utilizado mundialmente, as
máscaras de proteção:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

367
Novas Fronteiras Culturais

Mesmo com os sorrisos das pessoas tampados pelas


máscaras, os olhares revelavam a alegria e a fé dos
participantes e dos demais que acompanharam o evento,
clamando por paz e fraternidade no largo do Rosário e seu
entorno, importante espacialidade da rota da ancestralidade
em Cuiabá. A Comissão da Lavagem confeccionou e
distribuiu previamente para muitas pessoas participantes
da festividade máscaras de tecido na cor branca, bordadas
e pintadas com as palavras: gratidão, seja grato,
representando o sentimento de agradecimento pela vida,
que se tornou ainda mais especial, frente a tantas mortes
causadas pela Covid-19.

Uma matéria no site oficial da Prefeitura de Cuiabá assinala:


“A celebração afro propõe unir a cultura e a religiosidade, com a
pretensão de exaltar referências africanas mato-grossenses, com a
participação de religiões de matrizes africanas e com as
comunidades quilombolas” (BARBOSA, 2018).
Romancini e Moura (2020, p. 1091) mencionam que a
Lavagem das Escadarias do Rosário apresenta-se como:

[...] uma cerimônia marcada por ritos que valorizam


elementos da fé católica, associada às religiões de matrizes
africanas, como a umbanda e o candomblé, portanto, trata-
se de um movimento religioso sincrético em Cuiabá, em
busca da construção da tradição por meio de um
simbolismo religioso, em detrimento de um ato simbólico:
o de lavar as escadarias de uma igreja que foi edificada por
pessoas que foram escravizadas.

Em 21 de Junho de 2022, a prefeitura de Cuiabá anunciou:


“a 6ª edição da tradicional lavagem das escadarias da igreja Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito será realizada no próximo
sábado (25), no centro histórico de Cuiabá. A programação começa
a partir das 5h, no Museu da Imagem e do Som de Cuiabá (MISC)”
(CUIABÁ, 2022, s/p).
Segundo a reportagem:
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

368
Novas Fronteiras Culturais

O evento consta no calendário oficial de eventos culturais


do município de Cuiabá (lei 6.304 de 28 de setembro 2018)
e está em processo de registro no Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-MT). Na última
edição, a celebração reuniu cerca de 900 pessoas durante a
caminhada com cânticos, louvores e hinos religiosos, toque
de tambores, xequerês, danças e água de cheiro (CUIABÁ,
2022, s/p).

Conforme pode ser observado nos registros apresentados,


o evento da Lavagem das Escadarias da Igreja do Rosário e São
Benedito é apresentado como uma significativa manifestação
cultural, constando, inclusive, em calendários oficiais.
Contudo, apesar da versão oficial apresentar convergências
com a visão de participantes do evento, por meio da gravação de
entrevistas com lideranças do movimento e sacerdotes de terreiros
de candomblé, foi possível refletir com maior profundidade sobre
a manifestação cultural e seus reflexos no dia a dia do povo de
terreiro.

A Lavagem das escadarias na visão de fundadores e


sacerdotes de terreiros de candomblé

Embora a manifestação cultural da Lavagem das


Escadarias do Rosário e São Benedito seja composta por religiosos
de diferentes vertentes, como mulçumanos e católicos, entende-se
que os religiosos de matriz africana têm protagonismo, assim como
ocorre na Lavagem das Escadarias da Igreja de Nosso Senhor do
Bonfim e em outras cidades brasileiras.
De acordo com Mendes (2006, p. 1), a Lavagem das
Escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador -
BA, constitui:

[...] um momento de festejo religioso popular envolvendo


várias camadas da sociedade baiana e de presença marcante
de africanos e seus descendentes. Santos (2009, p. 18)

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

369
Novas Fronteiras Culturais

descreve a Lavagem das Escadarias da Igreja de Nossa


Senhora da Conceição em Aracaju - SE como “um
exemplo das influências das religiões afro no catolicismo
popular''.

Portanto, objetivou-se, nesta pesquisa, explorar a opinião


de participantes da manifestação cultural e lideranças religiosas do
Candomblé que participam e que não participam da lavagem,
entendendo que eles também trazem importantes elementos para
a discussão sobre o tema.
Neste sentido, ao indagar por meio de entrevista o senhor
Cristóvão Luís Gonçalves da Silva, pesquisador da área de relações
étnico-raciais e um dos participantes fundadores da Lavagem em
Cuiabá, sobre como surgiu e o que a manifestação cultural
representa hoje, ele responde:

[...] chegamos ao ato da Lavagem das escadarias através do


movimento Kizomba - Na roda da ancestralidade. [...] é um
momento de egrégora entre várias religiões, onde mães
munidas com suas quartinhas com água de cheiro, vão
purificando e lavando toda raiva, todo ódio, toda
homofobia, toda discriminação e todo preconceito.
Agregando-se os valores da paz, da harmonia, do bem
querer. [...] É um movimento em prol da preservação dessa
cultura afro cuiabana que se encontra aqui nesse quilombo
urbano chamado Centro Histórico de Cuiabá
(CRISTÓVÃO LUÍS GONÇALVES DA SILVA, em
21/06/2022).

Segundo Cristóvão (CRISTÓVÃO LUÍS GONÇALVES


DA SILVA, em 21/06/2022), “as primeiras edições da Lavagem
foram protagonizadas pelo movimento Kizomba, que reivindicava
a memória material e imaterial dos africanos trazidos para Cuiabá
na condição de escravizados no período colonial”. Ao agregar
religiosos de matriz africana, a manifestação cultural ganhou força
na comunidade religiosa.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

370
Novas Fronteiras Culturais

O Babalorixá Paulo Henrique da Silva (Pai Paulo de


Oxumarê), liderança religiosa do Ilê Dará Osumare Axé Omin Ibu
(casa de Candomblé Nação Ketu) e sumo sacerdote da liturgia da
lavagem traz um pouco do histórico e de suas impressões sobre o
tema:

[...] a proposta foi que levássemos para as ruas a fala e a


apresentação do povo de religião de matriz africana e a
cultura afro-brasileira. De bate e pronto foi-se falado muito
da umbanda. Daí, no final da reunião eu perguntei: Mas e
o Candomblé? O culto a Orixá? Na Bahia a lavagem do
Bonfim é feita pelo povo do santo e canta-se em Iorubá e
o toque é o Ijexá! Quando se fala de lavar, se remete
automaticamente às Águas de Oxalá1. Quando se fala de
caminhada da paz, nos remetemos aos Orixás Fun Fun em
um momento de limpeza, purificação, resignação, de rever
nossos conceitos, os nossos passos e de irmanar-se com
seres de outras religiões. Daí iniciamos os ensaios. Então
eu fiz uma provocação: como vamos trazer a cultura de
terreiro para as ruas sem fazer uma consulta oracular2?
Então me prontifiquei a fazer isso aqui na casa de
Oxumarê. As religiões de matriz africana sempre foram
massacradas, então essa foi uma oportunidade de mostrar
a nossa cultura de forma diferente. [...] A partir da
Lavagem, muitas pessoas bateram na porta da casa de
candomblé porque receberam essa mensagem nas ruas.
(PAI PAULO DE OXUMARÊ, em 22/06/2022).

1 Ritual feito no candomblé, em que, segundo a tradição Iorubá, faz-se a lavagem e


alimentação do corpo de Oxalá (Orixá Fun Fun pai de todos os Orixás) após ser preso
injustamente por sete anos no reino de Xangô (Oió - território contido hoje no sudeste
da Nigéria), sem o seu conhecimento.
2 O jogo de Búzios é o oráculo sagrado, oficial do Candomblé, e tem o nome de

mérìndílógún ou "jogo dos dezesseis", porque é composto por 16 búzios. A função


principal do jogo de búzios é orientar o consulente nos mais variados assuntos (Pai Paulo
de Oxalá, disponível em:
<https://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/pai-paulo-de-oxala/a-real-funcao-do-
jogo-de-buzios-24976106.html>

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

371
Novas Fronteiras Culturais

Babá Paulo de Oxumarê (ENTREVISTA, em


22/06/2022) ressalta que:

[...] a lavagem se apresenta como uma estratégia de


sobrevivência das religiões de matriz africana que, segundo
ele, vem sendo massacradas pelo racismo religioso. Uma
tentativa de expor à população a beleza da cultura ancestral
afrodescendente como forma de contrapor a negatividade
historicamente associada às religiões afro pela cultura cristã
colonialista.

Com o propósito de obter diferentes narrativas e


perspectivas críticas sobre a Lavagem das Escadarias do Rosário,
entrevistou-se o Historiador João Bosco, que é Babalorixá na casa
de Candomblé (Nação Ketu) Ilè Okowoò - Asè Ya Lomin’Osà
Egbe Omorisa Sango, o qual foi indagado se compõe o grupo de
religiosos que constroem o movimento da Lavagem. A partir da
negativa, questionou-se por que o sacerdote não compõe o
movimento cultural da Lavagem das Escadarias da Igreja do
Rosário e São Benedito. Sem “fazer pouco caso”, o historiador
respondeu:

Muito interessante! Agora vamos aos fatos. Por que não


participo deste evento: o evento se intitula por uma cultura
de paz. Mas, quem promove o racismo religioso é
exatamente as culturas cristãs. Tanto no passado, quanto
no presente. Então, quais as causas dos religiosos de matriz
africana promover um evento pedindo paz a uma
Instituição que tanto no passado quanto no presente
promove a cultura da indiferença, da
homo/trans/lesbofobia, bem como colocam as Religiões
de Matriz Africana em um patamar inferior a qualquer
outra Religião? A Instituição Igreja Católica, no final do
século XIV, instituiu a escravidão no mundo moderno
através de Bulas Papais. E com a escravidão de africanos
ela lucrava muito monetariamente. Assim como a Igreja
tinha seu plantel de escravizados. Portanto, ela foi

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

372
Novas Fronteiras Culturais

conivente com a situação da escravidão seja de africanos,


seja de ameríndios. No presente essa instituição raramente
levanta a voz a favor das religiões afro, ao contrário, ela usa
os padres artistas, tal como padre Fábio de Melo, para
inferiorizar as religiões afro em seus espetáculos públicos.
Os religiosos de matriz africana devem sair da aba da Igreja
Católica e construir uma cultura de paz por nós mesmos,
com nossos ritos e rituais. Sem vassouras na mão, sem
lavagem de escadas. Nada contra quem queira lavar
escadas. Mas, esse gesto, apenas demonstra qual o lugar
dos religiosos afro: fazendo um trabalho de profunda
degradação. [...] São por essas razões, entre outras, que não
coloco meus axòs branco3, pego uma vassoura e sigo em
direção a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito para lavar as escadas por uma cultura de paz.
(JOÃO BOSCO DA SILVA, em 16/06/2022)

Colocando em evidência o papel da igreja católica na


constituição da sociedade brasileira, o sacerdote questiona a
representação da instituição enquanto elemento de legitimação da
escravidão e de inferiorização das religiões de matriz africana,
assim como a “comunhão” dela com as religiões de matriz africana,
que segundo ele, não acontece de fato.
Em encontro com o Tata-de-Nkise José Carlos de Moura
Rodrigues, líder espiritual do Nso Kabila Duilo Diazambi (Casa de
Candomblé - Nação Angola), foi perguntado sua opinião sobre a
manifestação da Lavagem, o qual, em resposta, expressou-se:

[...] Eu tenho a impressão que, levando pro lado espiritual,


não tem nenhum tipo de ligação no sentido religioso
tradicionalista. Remetemos a manifestação da Lavagem das
Escadarias do Nosso Senhor do Bonfim. Ela ocorre nas
águas de Oxalá. E lá existe toda uma tradição, todo um
sincretismo, toda uma participação tanto da igreja, quanto
dos religiosos afro lá da Bahia. Aqui eu não vejo a

3 Vestimenta utilizada por religiosos de matriz africana.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

373
Novas Fronteiras Culturais

finalidade dessa lavagem das escadarias, sendo que não


existe sincretismo nenhum. Lembrando que, pela minha
tradição, não há nenhuma sincretização com São Benedito
nem com Nossa Senhora do Rosário dentro do
candomblé. [...] Então eu vejo que a Lavagem é um ato
composto por vários movimentos, mas que não é religioso.
Então, pra mim, é um ato bem discriminatório porque ele
faz com que as pessoas de religião de matriz africana vão
lavar uma escadaria de uma sociedade católica, remetendo
à época da escravidão. Naquele tempo em que o negro
tinha que se esconder perante a igreja católica e negar a sua
crença. Nós temos os nossos próprios ritos, a nossa
própria cultura, a nossa própria tradição que não precisa
ser necessariamente ligada à igreja católica e é bem
diferente dessa manifestação cultural [...] Por isso resolvi
não participar, pois eu acho humilhante pra nós (JOSÉ
CARLOS DE MOURA RODRIGUES, em 20/06/2022)

Também como uma impressão negativa da ressignificação


da lavagem das escadarias, Tata José Carlos coloca em evidência o
papel de subalternidade implícito na sociedade escravagista, em
que o negro é remetido ao papel de inferioridade com relação aos
não negros, realizando trabalhos considerados pela maioria de
menor importância social. Segundo ele, o ato chega a ser
humilhante para os religiosos afro-brasileiros.
Em entrevista com Fabrício Aparecido de Morais Silva
(Tata Idangorole), Tateto na Inzo de Hangorô (Casa do Senhor do
Arco Íris), um templo religioso de Candomblé - Nação Angola,
também foi interrogado sobre a manifestação cultural.

[...] O evento em si é muito valioso, mas a proporção no


sentido de combater a intolerância, e a favor da união dos
povos, na realidade, não acontece. Na época que eu
participei de todo o ritual, uma coisa muito interessante
que não foi muito do meu agrado, até porque é um evento
para unificar os povos, foi que me deparei com as portas
da igreja fechada, e também não me encontrei com

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

374
Novas Fronteiras Culturais

nenhuma liderança religiosa da igreja. Então, pra mim, não


fez mais sentido. Não senti uma satisfação por completo.
O ritual é muito lindo, todos os terreiros unidos, mas faltou
a compreensão por parte dos católicos pra poder quebrar
esse preconceito. Então a lavagem das escadarias não faz
muito sentido ir para a lavagem das escadarias e se deparar
com a igreja fechada. eu acho que deveria ter uma
consideração a mais para que isso pudesse valer a pena [...]
(FABRÍCIO APARECIDO DE MORAIS SILVA, em
22/06/2022).

Para Tata Fabrício (ENTREVISTA, 22/06/2022), assim


como para os dois líderes religiosos que o antecederam, a união
entre as diferentes religiões não acontece de fato, apesar da
manifestação cultural constituir um valioso ato no sentido de
combater a intolerância religiosa e unir as religiões de matriz
africana.
Na Lavagem das Escadarias da Igreja de Nosso Senhor do
Bonfim, na Bahia, as festividades teriam se originado do Culto a
Oxalá, que era realizado às escondidas devido às perseguições por
parte das autoridades da época. Com a chegada dos voluntários da
pátria4, “o culto se uniu à Lavagem das Escadarias por negros e
mestiços, dando notoriedade, no espaço urbano, ao culto de Oxalá
motivado por uma promessa de um soldado que lutou na guerra
do Paraguai5” (SALLES, 2005; MENDES, 2006, p. 2).
Apesar do candomblé ser uma religião sincrética por
essência, tendo em vista que o culto às divindades africanas foi
reformulado em terras brasileiras como uma estratégia de
sobrevivência do culto aos Orixás e Nkise, o sincretismo religioso
de divindades africanas com santos católicos não é bem-visto por

4 Voluntários da Pátria foram os assim chamados recrutas, em sua maioria negros e


mestiços, que foram lutar na Guerra do Paraguai que durou de 1866 até 1870.
5 "A Guerra do Paraguai foi reflexo da consolidação das nações da Bacia Platina

(Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai) e resultou em uma enorme destruição do país e


um grande número de mortos." Fonte:
<https://brasilescola.uol.com.br/historiab/guerra-paraguai.htm>

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

375
Novas Fronteiras Culturais

todos os adeptos da religião na atualidade, quando a prática


apresenta-se como uma opção e não como uma estratégia de
sobrevivência.
Eneida Leal (1988, p. 71), na obra “Os Orixás no Brasil”,
pondera que “os negros escravizados muitas vezes afirmavam a sua
conversão à igreja católica levados pelo medo, mentindo para não
sofrerem castigo. Porém, secretamente, continuavam a venerar
seus Orixás de origem”, impulsionando, assim, a prática sincrética.
Hoje, pode-se optar por um templo que cultua os Orixás e Nkises
de forma sincretizada com santos católicos ou não, já que não
existe uma proibição oficial. Apesar disso, ambos são alvos do
racismo religioso.
Na II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e
Cultura, realizada durante o período de 17 a 23 de julho de 1983,
em carta aberta ao povo de candomblé, lideranças como Mãe
Menininha do Gantois (Iyalorixá do Axé Ilé Iya Omin Iyamassé),
Mãe Stella de Oxossi (Iyalorixá do Ilé Axé Opô Afonjá), Mãe Tete
de Yansã (Iyalorixá do Ilé Nasso Oke), Mãe Olga de Alaketo
(Iyaloriá do Ilé Maroia Lage) e Mãe Nicinha do Bogum (Iyalorixá
do Zogodô Bogum Malê Ki-Rundo) afirmaram:

[...] deixamos pública nossa posição a respeito do fato de


nossa religião não ser uma seita, uma prática animista
primitiva consequentemente rejeitamos o sincretismo
como fruto da nossa religião desde que ele foi criado pela
escravidão à qual foram submetidos nossos antepassados
(JORNAL DA BAHIA SALVADOR, 12 de agosto de
1983).

Dessa forma, constata-se que o sincretismo apresenta-se na


contemporaneidade como uma prática de parte das casas de
candomblé, porém é rejeitado por uma porção significativa de
líderes religiosos que o interpretam como uma imposição do
período escravocrata, que não deve ser incorporada ao culto de
divindades africanas. Por esse motivo, entre outros, parte dos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

376
Novas Fronteiras Culturais

líderes religiosos do candomblé não compõe a manifestação


cultural da Lavagem das Escadarias.
Mais adiante na carta, as lideranças complementam:

Vemos que todas as incoerências surgidas entre as pessoas


do Candomblé que querem ir à lavagem do Bonfim
carregando suas quartinhas, que querem continuar
adorando Oyá e Sta. Bárbara, como dois aspectos da
mesma moeda, são resíduos, marcas da escravidão
econômica, cultural e social que nosso povo ainda sofre
(JORNAL DA BAHIA SALVADOR, 12 de agosto de
1983).

Neste trecho, as Iyas referem-se ao sincretismo da


divindade Oyá com Santa Bárbara, dentro do sincretismo, como
exemplo a não ser seguido, tendo em vista que não existe mais a
necessidade de esconder-se o culto às divindades africanas através
do sincretismo com santos católicos, o que só é possível graças à
resistência ancestral em manter a religiosidade africana e seus
rituais. Da mesma forma, pode-se reportar ao sincretismo de Oxalá
com Jesus Cristo (Nosso Senhor do Bonfim) e outros santos
católicos.

Considerações finais

A Lavagem das Escadarias da Igreja de Nossa Senhora do


Rosário e Capela de São Benedito é uma manifestação cultural
sincrética que tem como objetivo unir a cultura e a religiosidade,
com a pretensão de exaltar referências africanas mato-grossenses,
com a participação de religiões de matrizes africanas e com as
comunidades quilombolas, além da presença de líderes religiosos
de distintas doutrinas. Possui o importante papel de divulgar a
importância dos africanos e sua cultura na constituição da
sociedade cuiabana. Conta com o apoio de órgãos oficiais e de
parte da mídia em diferentes recursos e meios de comunicação da
imprensa local.
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

377
Novas Fronteiras Culturais

O ato de lavagem das escadarias, como observado por


alguns dos entrevistados, apesar de seu importante papel
mobilizador, pode reforçar, de acordo com a perspectiva crítica de
análise, o status de subalternidade dos africanos e afro-brasileiros
na constituição da sociedade em suas estruturas racistas e
etnocêntricas ao resgatar um ato de preparação feito por negros
escravizados em uma festa católica, cuja instituição representou, no
passado, um importante pilar de manutenção do período
escravagista, tal análise, não anula a importância e o espaço da
Lavagem na sociedade, principalmente, se tratando de uma
manifestação que traz a presença de diferentes grupos sociais que
clamam por respeito.
Entre outros motivos, observa-se que, por essa razão,
partes dos religiosos de matriz africana não se sentem
representados pela Lavagem das escadarias. Por isso, constata-se,
de acordo com as narrativas presente neste capítulo, que há a
necessidade de organização dos religiosos de matriz africana em
torno de suas reivindicações específicas, com referência em
personalidades africanas e afro-brasileiras que tiveram e têm papel
de destaque na defesa da tradição africana e na luta pela
emancipação do povo preto no Brasil.

Referências

BARBOSA, Alessandra. Lavagem das Escadarias das igrejas


do Rosário e São Benedito acontece neste sábado. Prefeitura
Municipal de Cuiabá. Cuiabá-MT, 2018. Disponível em:
<https://www.cuiaba.mt.gov.br/cultura-esporte-e-
turismo/lavagem-das-escadarias-das-igrejas-do-rosario-e-sao-
benedito-acontece-neste-sabado/17574> Acesso em:
31/08/2022.
BARROS, Marcelo; KELEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera. O
candomblé bem explicado (nações Bantu, Iorubá e Fon).
Higienópolis, Rio de Janeiro: Pallas Editora e Distribuidora, 2009.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

378
Novas Fronteiras Culturais

JORNAL DA BAHIA. Candomblé diz não ao sincretismo.


Salvador, 1983.
LEAL, Eneida. Os Orixás no Brasil (The Orishas in Brazil). Rio de
Janeiro: Spala Editora Ltda, 1988.
MAGALHÃES, Emily. Tradicional lavagem das escadarias do
Rosário será realizada no próximo sábado (25). Prefeitura de
Cuiabá. Cuiabá-MT, 2022. Disponível em:
<https://www.cuiaba.mt.gov.br/secretarias/cultura-esporte-e-
lazer/tradicional-lavagem-das-escadarias-do-rosario-sera-
realizada-no-proximo-sabado-25/27794> Acesso em:
31/08/2022.
MENDES, Érika do Nascimento Pinheiro Mendes. A Lavagem
das Escadarias do Nosso Senhor do Bonfim da Bahia:
identidade e memória no final dos oitocentos. Universidade
Estadual do Rio de Janeiro-UERJ. Rio de Janeiro-RJ, 2006.
MENDES, Marcos Amaral. devoção e território: a irmandade de
São benedito em Cuiabá (1722-1897). Revista Territórios e
Fronteiras v. 4 n. 1 – Jan/Jul2011 Programa de Pós-Graduação –
Mestrado em História do ICHS/UFMT. p. 84 - 108.
MOURA, Edenilson Dutra de. ROMANCINI, Sônia Regina.
Sorriso mascarado, alegria no olhar e fé na cidade: a Lavagem das
Escadarias da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito no
tempo pandêmico. In: DALLA-NORA, Giseli Gomes et al (orgs.).
Geografia e humanidades: múltiplos olhares. Ed. 1, Curitiba,
Appris, 2022, 149-162.
PEREIRA, Antutérpio Dias. O viver escravo em Cuiabá:
relações sociais, solidariedade e autonomia (1831-1888). 2016. 180
p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal da
Grande Dourados. Dourados-MS, 2016.
REIS, João J.; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das
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ROMANCINI, Sônia Regina; MOURA, Edenilson Dutra de. A
Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa Senhora do Rosário e
Capela de São Benedito em Cuiabá-MT - Brasil. Narrativas,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

379
Novas Fronteiras Culturais

Geografias e Cartografias: para viver é preciso espaço.


Organizadores: Ana Francisca Azevedo, colaborador [IGEO,
Departamento de Geociências da UFRGS]. Porto Alegre: Ed.
Compasso Lugar Cultura, 2020. v. 2: p. 1080 - 1108.
SALLES, Ricardo; SOARES, Mariza. Episódios de história afro-
brasileira. Rio de Janeiro: DPA/FASE, 2005.
SANTOS, Anderson Pereira. Festa a Oxum: um estudo
sociológico da Lavagem das Escadarias da Catedral em Aracaju
(1982-2007). Dissertação de Mestrado. São Cristóvão. Núcleo de
Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Sergipe - UFS. São Cristóvão - SE, 2009.
SANTOS, André Luís Rodrigues. Revolta dos malês (1835):
apontamentos sobre o levante dos nagôs islamizados. Revista
Eletrônica Discente História.com, Cachoeira, v. 7, n. 14, p. 327-
339, 2020. Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, Irmãos no poder: a
irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos na Vila Real
do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751-1819). 173 p. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso.
Cuiabá-MT, 2001.
VILARINHO NETO, Cornélio Silvano. Cuiabá, uma metrópole
regional. In: ROMANCINI, Sônia R. (org.). Novas
territorialidades urbanas em Cuiabá. Cuiabá:
EdUFMT/FAPEMAT, 2008. p. 15-40.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

380
Novas Fronteiras Culturais

FRONTEIRAS TEMÁTICAS 5

REPRESENTAÇÕES ESPACIAIS EM
DIFERENTES CONTEXTOS

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

381
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 22
AS GALERIAS DE ARTE NA PAISAGEM
DE CUIABÁ-MT: REFLEXÕES À LUZ DA
PSICOLOGIA SOCIAL

Sônia Regina Romancini


Aliff dos Santos Brito
Dienny Nayara Ribeiro

Introdução

Só a arte é útil.
Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa.
Só a arte fica,
por isso só a arte se vê, porque dura.
(Fernando Pessoa)

O teórico Paul Claval destaca que a paisagem traz a marca


da atividade produtiva dos homens e de seus esforços para habitar
o mundo, adaptando-o às suas necessidades. Ela é marcada pelas
técnicas materiais que a sociedade domina e moldada para
responder às convicções religiosas, às paixões ideológicas ou aos
gostos estéticos dos grupos. Ela constitui, dessa forma, um
documento-chave para compreender as culturas, em diferentes
tempos e contextos (CLAVAL, 1999).
Nessa perspectiva, o presente estudo tem como objetivo
central analisar a importância da arte na vida das pessoas, partindo
das experiências de vida de três conhecidos artistas plásticos, que
possuem suas próprias galerias, que se destacam no contexto

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

382
Novas Fronteiras Culturais

regional, a Galeria do Pádua e a Galeria Fogaça. Neste sentido, a


pesquisa estabeleceu as relações entre a paisagem, a arte e a
Psicologia Social. A escolha do tema justifica-se pela relevância da
arte e da cultura para a sociedade, especialmente, no ano de 2022,
em que se comemora o centenário da Semana de Arte Moderna de
São Paulo, que aconteceu entre os 13 e 18 de fevereiro de 1922,
cujas influências estenderam-se à produção artística nacional.
A pesquisa teve uma abordagem qualitativa, que se pauta
na análise dos significados que os indivíduos dão às suas ações, seja
nos lugares onde vivem, onde compartilham os seus modos de vida
e produzem o seu espaço e suas relações (CHIZZOTTI, 2003). A
escolha desse método justifica-se, uma vez que a pesquisa
qualitativa, por meio do levantamento bibliográfico, consultas a
sites da internet e entrevistas, permite a aproximação de processos e
significados que não são rigorosamente examinados e medidos
(D’ORIO, 2010).
Tittoni e Jacques (2013, p. 74) destacam que: “A atividade
de pesquisar em psicologia social, de imediato, coloca em questão
as nossas imagens vinculadas ao cientista e ao seu laboratório, por
ter o “social” como referência para sua produção de
conhecimento”. Portanto, a psicologia social dialoga com as
ciências sociais, pois têm em comum o estudo dos processos e
fenômenos sociais.
Os primeiros contatos com os artistas plásticos
aconteceram no mês de março de 2022, por meio de uma visita
presencial de uma representante do grupo. Após esclarecimentos
sobre a proposta do trabalho a ser desenvolvido, foi combinado
com os artistas uma nova visita para a realização das entrevistas e
registros fotográficos, que aconteceram no mês de maio do mesmo
ano.
Segundo Frayze-Pereira (1994), a aproximação entre a arte
e a Psicologia não é um movimento recente, pois é anterior ao
próprio advento da Psicologia como disciplina científica. Em suas
origens, foi a própria Estética que se abriu à Psicologia que estava

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

383
Novas Fronteiras Culturais

por vir, conforme análise realizada por Nunes (1989) citado por
Frayze-Pereira (1994 n.p.):

[...] foi a perspectiva do Belo, como domínio da


sensibilidade, imediatamente relacionado com a percepção,
os sentimentos e a imaginação, que Baumgarten
incorporou ao conteúdo dessa disciplina, o qual apareceu
numa época em que a Beleza e a Arte eram geralmente, ou
marginalizadas pela reflexão filosófica, que as tinha na
conta de irrelevantes, ou consideradas apenas sob o
aspecto racional das normas aplicáveis ao reconhecimento
de uma e à produção da outra.

Nessa perspectiva, as correntes que destacaram o aspecto


objetivo da experiência estética focalizaram os elementos materiais
(sons, cores, linhas, volumes), as relações formais puras (ritmo,
harmonia, proporção, simetria), as formas concretas no espaço e
no tempo, que produziam efeitos estéticos. Dentre essas correntes,
as mais recentes, que consideram as obras de arte como objetos
estéticos privilegiados, no tocante a sua estrutura, pretendem
determinar-lhes características essenciais e, só com base nesse
levantamento, estabelecer conclusões de ordem geral e objetiva,
aplicáveis a todas as artes (FRAYZE-PEREIRA, 1994).
No tocante às galerias e ateliê de artes que inspiram este
estudo, aborda-se as representações dos artistas que utilizam
diferentes recursos e materiais, como a cerâmica artesanal, o vidro,
o ferro, entre outros, para moldar peças que retratam o imaginário
da vida cotidiana na Região Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá
(RMVRC).
Pautados em Andriolo (2014), entende-se que a arte e a
Psicologia Social propiciam um campo de explorações e leituras
das imagens da vida social, que evidenciam os processos sociais
nos quais a imagem representa o movimento de mediação entre o
objeto icônico, a experiência corporal e a imagem mental, que
traduz a transformação do mundo em imagem dos processos
políticos e culturais.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

384
Novas Fronteiras Culturais

A abordagem cultural será pautada no conceito


apresentado por Claval (1999, p. 63):

A cultura é a soma dos comportamentos, dos saberes, das


técnicas, dos conhecimentos e dos valores acumulados
pelos indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala,
pelo conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é
uma herança transmitida de uma geração a outra.

Sob esse prisma, considera-se que as culturas combinam


heranças do passado e lições do presente. Bonin (2013) ressalta que
o termo cultura pode ser definido como um conjunto de hábitos,
instrumentos, objetos de arte, tipos de relações interpessoais,
regras sociais e instituições em um dado grupo. Nessa perspectiva,
aponta que a pessoa é um agente intencional em um mundo que é
constituído de interpretações e objetos culturais. Assim sendo, a
mente está inserida nas práticas e atividades de um grupo cultural.
A cultura expressa-se nos objetos utilizados e/ou fabricados pelo
homem.
As galerias de arte selecionadas para o presente estudo
constituem estabelecimentos privados, com espaço para a
produção de obras e exposição dos trabalhos, especialmente, dos
seus proprietários. Com menor oferta de peças, expõem, para a
venda, obras de outros artistas.

Galeria Fogaça

O destino quis que a gente se achasse


na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase.
(Paulo Leminski)

No bairro Ribeirão do Lipa, na Rua Projetada S, aos fundos


do Centro de Eventos Pantanal, onde a paisagem apresenta áreas
vegetadas e a presença de uma fauna silvestre, desponta a Galeria

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

385
Novas Fronteiras Culturais

Fogaça, que se destaca como um espaço de produção e venda de


obras de arte, além de um viveiro de plantas que ornamenta a
propriedade. Na fachada da galeria, destaca-se a arte de Régis
Gomes, que representa a cultura regional em inúmeros pontos da
cidade de Cuiabá, bem como é ressaltada a placa como lugar de
interesse turístico e cultural pela Prefeitura Municipal de Cuiabá
(Figura 1).

Figura 1 - Galeria Fogaça

Fonte: Sônia Romancini (2022).

O casal de artistas Alair e Fred Fogaça uniu a arte e a alegria


de uma vida a dois, desde o ano de 2002, apoiando-se mutuamente
na vida pessoal e profissional (Figura 2).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

386
Novas Fronteiras Culturais

Figura 2 - Alair e Fred Fogaça no interior da galeria

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Fred Fogaça

A arte é a expressão da sociedade no seu conjunto:


crenças, ideias que faz de si e do mundo.
Diz tanto quanto os textos do seu tempo, às vezes até mais.
(Georges Duby)

O artista plástico Fred Hortelli Fogaça (65 anos) nasceu em


Itapeva-SP, morou em diversas cidades do estado de São Paulo e
na cidade de Curitiba/PR. Trabalhou com oficina mecânica,
desenvolvendo 17 especialidades nessa área e dando início à
elaboração de obras feitas a partir de sucatas, utilizando seus
conhecimentos sobre os materiais e as ferramentas. Foi empresário
de diferentes tipos de lojas, até decidir dedicar-se totalmente à arte.
É escultor e utiliza, como materiais básicos para suas obras, argila,
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

387
Novas Fronteiras Culturais

cimento, fibra de vidro, sucata, chapas de inox e até raízes.


Participou de várias exposições nacionalmente e tem
confeccionado importantes esculturas que representam a cultura
mato-grossense.
Fred Fogaça reconhece a predileção pela arte abstrata,
utilizando vidro, sucata, raízes, cimento e chapas para criar obras
com formas retorcidas, que transmitem diferentes sensações a
depender do ângulo de visão e do estado de espírito do espectador
(VILELA, 2019). Seu campo de atuação vai além da produção de
obras de arte, implementou um viveiro de mudas e a produção de
vasos de porcelanato, contando com a ajuda de um técnico.
Por fazer grandes peças que ornamentam espaços públicos
e institucionais, Fred Fogaça é um artista que atua em diversos
municípios mato-grossenses, bem como para o governo de Mato
Grosso. Também realiza obras de restauro de peças antigas. Ele
não se considera um artista, afirma que: “É uma profissão normal,
igual às outras, não fico me vangloriando, não posto em redes
sociais”. Tudo o que deseja é uma sobrevivência em paz. Gosta
que as pessoas que o rodeiam também tenham paz. Trabalha no
ateliê com muitas árvores ao redor, pássaros, macaquinhos e seus
cachorros.

Alair Fogaça

A arte é a contemplação;
é o prazer do espírito que penetra a natureza
e descobre que a natureza também tem alma.
(Auguste Rodin)

Nascida em Acorizal-MT, Alair Xavier dos Santos Fogaça


(53 anos) destaca-se no cenário das escultoras contemporâneas.
Inspira-se nos temas regionais e afirma:

Trabalho com o regional, nossa cultura, conto a nossa


história, é isso que transmito no dia a dia [...] Gosto de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

388
Novas Fronteiras Culturais

relembrar o passado porque muita coisa que eu crio hoje,


que eu passo para as pessoas como arte, é uma arte de algo
que já existiu [...] como brincadeiras de roda, que as
crianças de hoje brincam com o celular... Dava as mãos,
todo mundo brincava, era parceria. São coisas que acho
maravilhosas.

Alair nasceu no campo e, quando criança, brincava com a


argila que retirava das margens do rio, fazendo suas panelas de
barro. Mas a arte somente aflorou após a união com Fred Fogaça.
Sua vida é simples, sabe modelar a argila e conhece as técnicas para
queimar as peças. Também domina a arte de pintá-las, dando-lhes
forte colorido e vivacidade (Figura 3).

Figura 3 - Mulheres

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

389
Novas Fronteiras Culturais

Alair ressaltou que, durante a pandemia, evitou ver


televisão e preferiu dedicar-se ao trabalho. Teve muito serviço.
Pensou sobre como passar aquele momento, recebeu encomendas,
não entrou em desespero. Para ela, foi um momento de pausa e
observou que muitas pessoas procuram a arte. Entretanto,
reconhece que, para muitos artistas que expõem na galeria, foi um
momento difícil.
A artista procura diversificar a sua arte, cria coisas
diferentes e preocupa-se com o mercado das peças. A galeria é
visitada por pessoas da região e por turistas de outros estados e
países. Ela tem clientes dos Estados Unidos, de Portugal, da Suíça,
entre outros países. Eles mantêm uma conexão com ela,
fotografam as peças e enviam-lhe as fotos para mostrar onde
colocaram a obra de arte. Ela considera que essas pessoas
valorizam muito o seu trabalho. Alair também faz peças que
denunciam as injustiças sociais, são peças muito valorizadas pelos
estrangeiros.
Para finalizar a entrevista, Alair lembrou que: “Gosto do
colorido, é vida, alegria, chama a atenção. Muitos querem meu
material, querem meu sorriso, porque eu faço as coisas com amor”.
Suas peças já foram expostas em diversos espaços culturais de
Cuiabá e de outros países. Por isso, Alair diz que se sente uma
pessoa “realizada e feliz, graças a Deus [...] Só tenho a agradecer o
público que tenho”.

Galeria do Pádua

Outros viram o que é e perguntaram por quê.


Eu vi o que poderia ser e perguntei: por que não?
(Pablo Picasso)

A Galeria do Pádua localiza-se na Avenida Miguel Sutil, no


bairro Duque de Caxias, no entorno do Parque Mãe Bonifácia,
numa ampla área de 1500 metros quadrados. A galeria chama a
atenção pelo porte da sua construção, que abriga, além disso, a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

390
Novas Fronteiras Culturais

imobiliária de seu filho e o escritório de advocacia da filha. À


entrada, uma estátua da deusa grega Atena, com um jacaré sobre a
cabeça, recepciona o visitante. O espaço é reconhecido como de
interesse turístico e cultural pela Prefeitura Municipal de Cuiabá
(Figura 4).

Figura 4 - Galeria do Pádua

Fonte: Sônia Romancini (2022).

As paredes também contam uma história por meio de


esculturas (Figura 5). Fujimori (2018) salienta que, ao lado da
grande porta, há um guerreiro dando boas vindas e anunciando a
chegada. Também tem uma mulher saudando o sol, que gera a vida.
Há ainda uma escada em caracol que leva até o teatro, ainda não
concluído, no segundo piso. Com capacidade para 350 pessoas, o
local precisa de equipamentos como poltronas, climatização,
sistema acústico e elevador. Diversas esculturas de argila com
influências romanas, asiáticas, religiosas e abstratas ocupam os

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

391
Novas Fronteiras Culturais

espaços. No teto, diversas imagens de anjos. Nos fundos da galeria,


há um belo jardim com esculturas clássicas e contemporâneas, com
uma vista para o Parque Mãe Bonifácia.

Figura 5 - Interior da Galeria do Pádua

Fonte: Alair Ribeiro, Midia News (2018)

Antônio de Pádua

A arte é uma forma de crescimento para a liberdade,


um caminho para a vida.
(Fayga Ostrower)

Antônio de Pádua Nobre (68 anos) (Figura 6) nasceu no


interior do Ceará, onde passou a infância em contato com o campo,
sua primeira fonte de inspiração na produção dos próprios
brinquedos. Pádua acredita que já nasceu com a arte, que o seu
talento é natural e sua trajetória de vida desenvolveu-se nessa
perspectiva.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

392
Novas Fronteiras Culturais

Figura 6 - Antônio de Pádua

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Em entrevista concedida a Fujimori (2018, n.p.), Pádua


ressaltou:

Acho que minha vida foi toda voltada para a arte, desde
criança que eu gosto. Ainda rapazinho eu já me interessava
pelos museus, tudo o que era relacionado com a arte.
Sempre fui muito sensível à arte, mas nunca me vi como
artista. Para mim foi um processo tão natural. Foi assim
toda a minha vida. Até hoje, não carrego esse rótulo de
artista.

No ano de 1981, Pádua formou-se em Letras e Artes:


Interpretação, pela Universidade do Rio de Janeiro (Unirio). O
teatro fascinava-o por seu movimento, algo que inspira suas
esculturas. Após formar-se na faculdade, Antônio de Pádua
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

393
Novas Fronteiras Culturais

trabalhou um tempo como ator, passando para a produção de


cenário, adereços, figurinos, joias, esculturas para teatros. Porém,
guardava a vontade de desenvolver a arte em si.
Ainda no Rio de Janeiro, fez uma exposição que foi
mostrada no programa da jornalista Leda Nagle, na TV Globo.
Além disso, a revista Casa Jardim publicou uma página divulgando
o seu trabalho. Em 1983, sua esposa passou num concurso dos
Correios, cuja vaga era em Cuiabá. Assim, a família mudou-se para
cá, Pádua fez amizades com alguns arquitetos locais e seu nome já
estava conhecido devido à divulgação em nível nacional.
Em Cuiabá, Pádua teve uma Galeria Bar, na Avenida
Getúlio Vargas, fazia leilões de arte e afirma: “eu acreditei no meu
trabalho”. Com recursos adquiridos por meio da venda de obras
de arte em um leilão, adquiriu um terreno de 1.500 metros
quadrados, na Avenida Miguel Sutil, local à época pouco
valorizado. Em 1993, iniciou a construção da Galeria do Pádua,
que se estendeu por vários anos, não estando, ainda, totalmente
pronta. Segundo Pádua, mesmo a obra sendo grande, não sentiu o
peso da construção, organizou eventos, exposições e salienta:
“Você consegue com determinação, vai à luta”.
Na sequência, apresenta-se alguns registros fotográficos de
obras expostas na Galeria do Pádua (Figuras 7 a 9), todas de sua
autoria. Embora o artista não denomine suas obras, titulou-se as
imagens de acordo com sua descrição sobre elas.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 7 - Arte contemporânea

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Figura 8 - Reverência à mãe Júlia

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

395
Novas Fronteiras Culturais

Figura 9 - Chuva

Fonte: Sônia Romancini (2022).

Considerações finais

A arte é um passo do que é óbvio e familiar


na direção do que é misterioso e oculto.
(Kahlil Gibran)

A realização deste estudo colocou em relevo duas


importantes galerias de arte que se destacam na paisagem urbana
de Cuiabá, a Galeria do Pádua e a Galeria Fogaça, que expõem
peças dos artistas proprietários e de outros artistas da Região
Metropolitana do Vale do Rio Cuiabá.
O estudo evidencia a importância do tema no centenário
da Semana de Arte Moderna (1922 – 2022), evento que influenciou
e ainda influencia a produção artística no Brasil, que passou a

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

valorizar sua população e práticas culturais, a exemplo dos artistas


entrevistados.
Constatou-se que a arte, além de influir na sociabilidade das
pessoas, propicia que os artistas plásticos entrevistados tenham
sentimentos de paz, liberdade, autoconfiança, serenidade e alegria
de viver. Isso confirma a importância da arte para o bem-estar das
pessoas, podendo, inclusive, ser utilizada nos tratamentos
terapêuticos.

Referências

ANDRIOLO, Arley. A transformação do mundo em pintura:


estudos em psicologia social do fenômeno das imagens. 2014. 212
p. Tese (Livre-Docência) – Instituto de Psicologia, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2014.
BONIN, Luiz Fernando R. Indivíduo, cultura e sociedade. In:
STREY, Marlene Neves. et al. Psicologia social
contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 58-72.
CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e
sociais. São Paulo: Cortez, 2003.
CLAVAL, Paul. A geografia cultural. Tradução de Luiz F.
Pimenta e Margareth C. A. Pimenta. Florianópolis: EdUFSC, 1999.
D’ORIO, Rosana Teresinha. Histórias de fins, histórias sem
fins... um estudo sobre rituais no processo de luto. 2010. 209 f.
Tese (Doutorado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo: São Paulo, 2010.
FRAYZE-PEREIRA, João A. A alteridade da arte: estética e
psicologi. Psicol. USP v. 5 n. 1-2 São Paulo, 1994. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1
678-51771994000100004 Acesso em: 5 abr. 2022.
FUJIMORI, Bianca. Grandiosa, Galeria do Pádua abriga mais de
100 obras e um teatro. Midia News. Cuiabá, 23/09/2018.
Disponível em:
https://www.midianews.com.br/cotidiano/grandiosa-galeria-do-
padua-abriga-mais-de-100-obras-e-um-

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

397
Novas Fronteiras Culturais

teatro/334174#:~:text=Aos%2060%20anos%2C%20P%C3%A1
dua%20lamenta,com%20o%20passar%20do%20tempo. Acesso
em 10 jun. 2022.
TITTONI, Jaqueline; JACQUES, Maria da Graça C. Pesquisa. In:
STREY, Marlene Neves. et al. Psicologia social
contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 73-85.
VILELA, Túlio Paniago. Um elo afetivo entre o contemporâneo e
o tradicional. In: Sesc- Serviço Social do Comércio. Artesanato de
Mato Grosso: saberes pelas mãos do tempo. Cuiabá: Editora
Sustentável, 2019.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

398
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 23
PRÁTICAS CULTURAIS NO ENSINO DE
GEOGRAFIA EM POCONÉ-MT:
A DANÇA DOS MASCARADOS

Denize Gonçalina Valéria da Silva


Aline Celestina dos S. Silva
José Carlos Marinho da Silva
Sônia Regina Romancini

Introdução

O presente artigo foi elaborado como atividade avaliativa


da disciplina Cidades e Territorialidades Urbanas, ministrada no
Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Mato
Grosso, PPGEO – UFMT/2021.
Partindo de um levantamento bibliográfico sobre a cultura
da dança dos Mascarados de Poconé-MT e o ensino de Geografia,
propôs-se como metodologia realizar uma aula de campo, pois,
através dessa aula, é possível despertar no aluno o interesse real em
analisar as diferentes culturas que estão presentes no seu estado,
cidade ou bairro. Neste sentido, a aula de campo torna-se uma
importante e essencial intervenção pedagógica que oportuniza
trabalhar os conceitos da geografia, como os de região e lugar,
fazendo-o como forma de instigar nos educandos questões de
pertencimento e apropriação da cultura do meio em que vivem.
A cidade de Poconé-MT está localizada a
aproximadamente 100 km de Cuiabá, possui uma cultura que,
através do tempo, conseguiu transmitir de geração em geração.
Essa cultura destaca-se pela fé do seu povo e pela devoção aos
santos católicos. Representada culturalmente por manifestações de

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

399
Novas Fronteiras Culturais

vários grupos culturais, entre eles podem ser salientandos, segundo


informações da Prefeitura Municipal, as festas: de São Benedito,
festa do Divino Espírito Santo, danças de Siriri, Cururu, a Dança
dos Mascarados e a Cavalhada.
A Dança dos Mascarados, assim como muitas danças do
folclore brasileiro, é contagiante, a música é alegre e envolvente,
com ritmo marcante e figurino exuberante com muito brilho e
cores vibrantes, no entanto, com a especificidade de ser dançada
por pares e estes compostos somente por homens. Essa dança tem
grande representatividade cultural da paisagem do município e da
natureza que a circunda, em meio ao bioma Pantanal.
Essa manifestação cultural propicia uma fantástica imersão
ao mundo das emoções, em que cada ser envolvido, dançarinos e
plateia possam despir-se, metaforicamente, no momento da
apresentação de todas as amarras da vida real.
Quanto a Geografia, ao ser trabalhada de forma didática
com aporte na ludicidade das manifestações culturais, o educador
leva os educandos ao reconhecimento de si e da subjetividade que
envolve sua comunidade, na apropriação de sua cultura, essas
crianças e jovens garantem a sobrevivência e a manutenção de seus
signos e os símbolos que a representa. Nesse prisma, a Geografia
é a ciência que busca, em sua essência, compreender a relação
homem e natureza na construção de seus meios e práticas de vida.
Partindo de seus conceitos, teorias e métodos, ela realiza análises
que abrangem a relação intrínseca do ser humano com a natureza
das coisas e saberes que o cercam.
Enquanto disciplina escolar, a Geografia ampara-se por
essas mesmas teorias, conceitos e métodos, incorporando saberes
distintos, com objetivo de dar a seus educandos oportunidade de
compreender e analisar, de forma crítica, a sociedade em que
vivem, capazes de distinguir-se e identificar-se com outras, em suas
diferenças e igualdades, no processo de formação de sua identidade
e consciência socioespacial.
O município de Poconé (Figura 1), localizado na
microrregião denominada Alto Pantanal, segundo estimativas do

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

400
Novas Fronteiras Culturais

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021,


apresentava uma população estimada em 33.386 pessoas (IBGE,
2023). Foi batizado, inicialmente, de Beripoconé, uma
denominação proveniente dos indígenas que habitavam a região.

Figura 1 - Localização do Município de Poconé

Fonte: SEPLAN-MT (2021).

Segundo Ferreira e Silva (2008), o núcleo inicial de


povoamento, do qual se originou o atual município de Poconé,
surgiu por volta de 1777, devido à descoberta de ricos veios
auríferos aluvionais. A abundância de ouro atraiu muitas pessoas à
região.
Com o passar do tempo, houve a escassez do ouro,
ocorrendo a necessidade dos moradores dedicarem-se a outras
atividades econômicas como a agricultura e pecuária. A economia
do município, atualmente, baseia-se na pecuária intensiva, na
agricultura de subsistência, no extrativismo mineral e no turismo
ecológico.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

401
Novas Fronteiras Culturais

O fato de Poconé estar na região do Pantanal, a cidade


possui uma rica diversidade de fauna e flora e vários pontos
turísticos, atraindo visitantes durante o ano todo. A beleza natural
é algo ímpar na região. A cultura é tão encantadora quanto a
natureza exuberante, a raiz cultural do município é riquíssima, há
um laço forte da população com a cultura local, propiciando a
preservação das tradições, manifestações de cunho religioso e
festas populares. Esses aspectos ficam evidentes ao visitante desde
a entrada da cidade ao deparar-se com um portal que o remete ao
castelo da rainha da Cavalhada e, nele, as iconografias das diversas
manifestações culturais do município (figura). Conforme Ferreira
(2001, p. 93), “[...] o poconeano cultua secularmente suas tradições,
conservando características originais das festas que encantam no
conjunto das maravilhas culturais do município”.

Figura 2 - Portal da entrada da cidade de Poconé

Fonte: Prefeitura de Poconé (2022).

A cultura do município destaca-se pela fé do seu povo e


pela devoção aos santos católicos. Poconé é representado
culturalmente pelas manifestações de diversos grupos culturais,
entre eles, salientam-se, segundo informações da Prefeitura
Municipal (POCONÉ, 2019), festa de São Benedito, festa do
Divino Espírito Santo, danças de Siriri, Cururu e Mascarados. Tais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

402
Novas Fronteiras Culturais

manifestações são de grande relevância para comunidade e


fortalecidas por elas, sendo que, nesse panorama, organizam-se
para propagar sua cultura seja pelas festas religiosas, músicas,
danças, entre outras, realizados com muito enaltecimento e
resistência cultural.

Dança dos Mascarados

Dentre as manifestações culturais relevantes do município,


evidencia-se a Dança dos Mascarados, que é uma dança tradicional
e folclórica local. Os relatos sobre o início dessa dança datam a
partir do final do século XVII, provavelmente ela originou-se a
partir da fusão das culturas indígenas, europeia e africana.
Conforme o povo poconeano, a Dança dos Mascarados é uma
herança dos índios Beripoconés.
O Senhor João Benedito, líder dos Mascarados corrobora
essa afirmação relatando que “a dança é de origem indígena, só
existe em Poconé, em nenhum lugar do mundo não existe,
praticamente criada pelos índios Beripoconé, o chefe dessa tribo
na época era o Congo Mongo, nesse período os moradores da
cidade tinham laços de amizade com os indígenas o que propiciava
assistir as suas manifestações culturais como as danças e rituais
religiosos”.
O líder dos mascarados continua dizendo que “isso aguçou
o interesse dos moradores, pelo fato dela ser contagiante
envolvente e divertida, levando-os a copiar partes da dança e alguns
passos. Assim, na época formaram o grupo com o nome de
Contradança, posteriormente Mascarados, devido ao uso da
máscara”.
Outra versão sobre a origem da Dança dos Mascarados, de
acordo com Amaral e Moreira (2020, p.123), pautados nos estudos
de Lott (1987), Brandão (1978) e Abreu (2006), esclarecem que a
dança é de origem europeia:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

403
Novas Fronteiras Culturais

A dança tem seus passos baseados na contradança


europeia: a forma de se colocar para realizar a dança, o
ritmo da música e as movimentações remetem às danças
de salão realizadas pela corte portuguesa, que na região se
instalou para acompanhar a exploração das minas de ouro.
Como forma de representação e fortalecimento da cultura
erudita, eram ofertadas danças, espetáculos teatrais e outras
distrações como entretenimento para a população que
sofria com a exploração da mão de obra e vivia em
condições precárias na região.

A Dança dos Mascarados (figura 2), assim como muitas


danças do folclore brasileiro, é contagiante, música alegre e
envolvente, ritmo marcante, figurino exuberante com muito brilho
e cores vibrantes. Essa dança tem grande representatividade
cultural da paisagem do município.

Figura 2 - Dança dos Mascarados

Fonte: Funarte portal das artes (2022).

Conforme Caetano e Bezzi (2011, p.461), as expressões


culturais manifestam-se na paisagem, através do estilo
arquitetônico das casas, arte, gastronomia, religião, músicas, danças
e festividades, entre outros elementos. Uma das características

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

404
Novas Fronteiras Culturais

dessa dança que difere das outras é o fato de ser realizada por pares,
porém, os participantes são somente homens mascarados, que
desempenham papel de damas e galãs, eles usam máscaras com
intuito de manter o mistério sobre a sua identidade.

A cultura no ensino de Geografia e aula de campo

A Geografia é a ciência que busca, em sua essência,


compreender a relação homem e natureza, na construção de seus
meios e práticas de vida. Partindo de seus conceitos, teorias e
métodos, realiza análises que abrangem a relação intrínseca do ser
humano com a natureza das coisas e saberes que o cercam.
Enquanto disciplina escolar, a Geografia ampara-se por essas
mesmas teorias, conceitos e métodos, incorporando saberes
distintos, oriundos de outras matérias com objetivo de dar a seus
educandos oportunidade de compreender e analisar, de forma
crítica, a sociedade em que vivem capazes de distinguir-se e
identificar-se com outras, em suas diferenças e igualdades, no
processo de formação de sua identidade e consciência social.
Nessa perspectiva, Lana de S. Cavalcanti (2016, p.6-7)
elucida:

A relação entre uma ciência e a matéria de ensino é


complexa; ambas formam uma unidade, mas não são
idênticas. A ciência geográfica constitui-se de teorias,
conceitos e métodos referentes à problemática de seu
objeto de investigação. A matéria de ensino Geografia
corresponde ao conjunto de saberes dessa ciência, e de
outras que não têm lugar no ensino fundamental e médio
como Astronomia, Economia, Geologia, convertidos em
conteúdos escolares a partir de uma seleção e de uma
organização daqueles conhecimentos e procedimentos
tidos como necessários à educação geral. Em razão dessa
distinção, a seleção e organização de conteúdos implicam
ingredientes não apenas lógico- formais como, também,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

405
Novas Fronteiras Culturais

pedagógicos, epistemológicos, psicocognitivos, didáticos,


tendo em vista a formação da personalidade dos alunos.

Sendo assim, além de preparar os conteúdos de abordagem


geográfica, o professor de geografia também precisa preocupar-se
com o aprendizado do educando, analisando e compreendendo,
para tanto, os meios socioespacial, sociocultural e socioeconômico,
que estão inseridos esses estudantes. Sob esse prisma, Cavalcanti
(2016, p. 8) salienta: “É preciso que se considere, além disso, a
relação entre essa ciência e sua organização para o ensino,
incluindo aí a aprendizagem dos alunos conforme suas
características físicas, afetivas, intelectuais, socioculturais”. Neste
sentido, compreendendo o aluno como sujeito produtor e
reprodutor na sociedade, a qual ele está inserido, com
características físicas e subjetividades diferenciadas.
Neste aspecto, entra o trabalho da geografia humana, com
abordagem voltada para os aspectos culturais da geografia,
elaborando uma abordagem transdisciplinar para além da matéria
de ensino em si. De forma transversal fazendo um diálogo com
elas, para compor uma dimensão não estática do processo de
ensino-aprendizagem.
A Geografia pode alcançar os educandos, de várias formas,
acentuando suas características culturais, promovendo uma
aprendizagem, não somente voltada aos meios didáticos
convencionais, mas elencando os signos e os simbolismos, aos
quais os discentes inserem-se de forma intrínseca.
Segundo abordagem de Claval (2007, p. 63), a cultura é
definida em perspectiva espacial, como:

A soma dos comportamentos, dos saberes, das técnicas,


dos conhecimentos e dos valores acumulados pelos
indivíduos durante suas vidas e, em uma outra escala, pelo
conjunto dos grupos de que fazem parte. A cultura é uma
herança transmitida de uma geração a outra. [...] Não é,
portanto, um conjunto fechado e imutável de técnicas e de
comportamentos. Os contatos entre povos de diferentes

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

406
Novas Fronteiras Culturais

culturas são algumas vezes conflitantes, mas constituem


uma fonte de enriquecimento mútuo.

É inegável que a cultura faz parte das nossas atividades


cotidianas, somos criadores e compartilhamos a cultura do grupo
social ao qual pertencemos. Sendo assim, ela não é imutável,
estática, porém, adapta-se aos novos formatos de sua comunidade
ao passar do tempo, mantendo suas bases características, sem
perder de vista sua identidade.
Atualmente, o estudo da cultura no processo ensino-
aprendizagem é de grande relevância e está assegurado pela Lei de
Diretrizes e Base (LDB), o artigo 3° diz que o ensino será
ministrado com base nos seguintes princípios: II- liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a
arte e o saber. À vista disso, Kramer (1998, p.16) afirma que “uma
escola básica que se compromete com a cidadania e com a
democracia precisa ter na formação cultural um de seus elementos
básicos”, para que, assim, possa assegurar uma cidadania plena.
A cultura, no processo educativo, está prevista na
legislação, o art. 26 da Lei 12.796/2013, alterando a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 9394/96), em
que se expressa que a cultura é necessária e obrigatória no processo
educativo. Neste sentido, com propósito de orientação
multicultural e respeito à diversidade cultural nas unidades
escolares faz-se necessário evidenciar o reconhecimento da
diferença. Bastos (2017, p. 113) ratifica que:

O multiculturalismo manifestado nas análises educacionais


tem gerado importantes desafios nas investigações a
respeito do conhecimento e oferecido leques que
proporcionaram reflexões tanto nas práticas pedagógicas,
quanto na formação do indivíduo como mero
reconhecedor do respeito à diferença e a pluralidade
cultural. A solução de supostos conflitos entre culturas
devem ter origem na família e na escola, com o objetivo de
atenuá-los, uma vez que ambas estão imbuídas de preparar

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

407
Novas Fronteiras Culturais

indivíduos para viverem em sociedade, sendo necessário


esse respeito e compreensão mútua entre os mesmos.

Verifica-se que a cultura é relevante no processo


ensino/aprendizagem, pois na medida que educadores buscam
aprender sobre a cultura de seus alunos, têm a oportunidade de
conhecê-los melhor e realizar uma troca de saberes com eles, que
transcenderá os limites físicos da escola.
Sendo assim, a aula de campo é um método que propicia
ao educando ir além dos muros da escola e entrar em contato direto
com o objeto de estudo, possibilitando ampliar o aprendizado do
conteúdo que está sendo ministrado em sala de aula.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacional (PCNs), as
aulas de campo favorecem:

Uma participação ativa do aluno na elaboração de


conhecimentos, como uma atividade construtiva que
depende, ao mesmo tempo, da interpretação, da seleção e
das formas de estabelecer relações entre informações.
Favorece, por outro lado, a explicitação de que o
conhecimento é uma organização específica de
informação, sustentando tanto na materialidade da vida
concreta como a partir de teorias organizadas sobre ela.
Favorece, também, a compreensão de que os documentos
e as realidades não falam por si mesmo; que para lê-los é
necessário formular perguntas, fazer recortes temáticos,
relacioná-los a outros documentos, a outras informações e
a outras realidades (BRASIL, 1997, p.91).

Desse modo, é explícito que a aula de campo é propositiva


e dinâmica, levando os discentes a adquirir novos aprendizados de
forma mais eficaz, prazerosa e instigante, outro fator importante
que acontece durante a aula de campo é a aproximação do
professor e alunos, isso contribui para que aja maior troca de
conhecimento entre ambos.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

408
Novas Fronteiras Culturais

Assim sendo, conjectura-se que a aula de campo e a


Geografia como meio, a partir do qual pode-se trabalhar a cultura
de forma singular e plural, também de forma estática e dinâmica,
pois, suas abordagens podem ser trabalhadas em seus principais
conceitos: espaço, lugar, território, paisagem, região etc. Desse
modo, podemos distinguir a cultura de determinado grupo de
indivíduos, destacando suas formas e atuação frente a esse ou
àquele grupo.

Considerações finais

Evidencia-se que o fator cultural de um povo como marca


expressiva de sua identidade, meio através do qual sobrevivem
heranças de símbolos que resgatam a fé, a força e a resistência de
um povo, pela permanência expressiva de seus saberes.
A Geografia é uma ciência distinta e enquanto disciplina
escolar pode ser ajustada de forma interdisciplinar e transversal, em
conversa com outras disciplinas, para melhor compor meios
estratégicos de elencar e trabalhar aspectos da cultura regional e
local de determinada comunidade.
Ao abordar-se temas culturais na aula de campo,
oportuniza-se aos educandos meios para entrar em contato e
refletir sobre a diversidade cultural, assim como conhecerem
outras vivências e realidades ao averiguar espaços que estão
entrando em contato.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que debate-se sobre os
elementos culturais de uma comunidade, numa aula de campo,
elencando suas especificidades, contribui-se fornecendo subsídios
para que ela perpetue-se no tempo, pois ela compreende muito da
identidade de um povo.

Referências

AMARAL, Ivoneides Maria Batista do. A performance cultural


na dança dos Mascarados. Cuiabá: UFMT, 2015. Disponível em:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

409
Novas Fronteiras Culturais

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20Maria%20Batista%20do%20Amaral.pdf>. Acesso em: 15 abr.
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

410
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 24
A CIDADE DE GOIÁS: O FESTIVAL
INTERNACIONAL DE CINEMA E
VÍDEO AMBIENTAL E A VIDA
VILABOENSE

João Victor Cordeiro Gama


Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

Introdução

Para a realização do presente trabalho, foi realizado um


levantamento bibliográfico com o intuito de demonstrar aspectos
culturais e históricos da Cidade de Goiás, bem como obras que
abordassem o festival sobre a perspectiva dos vilaboenses, com o
objetivo de relacionar o Festival Internacional de Cinema e Vídeo
Ambiental (FICA) com a vida cotidiana do município que
extrapola as datas de realização do evento.
O Festival de Cinema e Vídeo Ambiental acontece na
Cidade de Goiás, sendo que, no ano de 2022, aconteceu a vigésima
terceira edição do festival. Em 1999, foi realizada a primeira edição
do festival e, anualmente, vem sendo realizado, sempre na Cidade
de Goiás, antiga Vila Boa, que surgiu no século XVIII com a
chegada dos primeiros bandeirantes e começou a desenvolver-se a
partir da atividade mineradora.
A fundação de Vila Boa aconteceu no período colonial às
margens do Rio Vermelho, pertencente à bacia do Rio Araguaia,
onde se encontrava o ouro de aluvião. A Cidade de Goiás fica
próxima à Serra Dourada (Figura 1), o que lhe confere um relevo
acidentado e possibilitou que o ouro intemperizado na serra fosse
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

411
Novas Fronteiras Culturais

depositado no leito do Rio Vermelho, onde se originou a cidade


em decorrência da atividade mineradora.

Figura 1 - Foto panorâmica Cidade de Goiás e Serra Dourada -


1957

Fonte: IBGE - Alfredo José Porto Domingues; Tomas Somlo


(1957).

No período de surgimento da atual Cidade de Goiás,


segundo Carneiro (2005, p. 29), a cidade, que ainda não possuía
esse status, chamava-se Arraial de Sant`Anna, sendo que, somente
em 1749, foi é elevada à categoria de Vila, quando se tornou a
capital da capitania de Goiás e, em 1818, foi elevada ao status de
cidade, passando a chamar-se Cidade de Goiás, a primeira capital
de Goiás. Na década de 1930, durante o governo de Pedro
Ludovico Teixeira, passou a ser planejada uma nova capital para o
estado de Goiás, que representasse a modernidade, sendo criada,
assim, Goiânia que se tornou capital do estado de Goiás em 1935.
A transferência da sede da capital do estado de Goiás
impactou de diversas maneiras a Cidade de Goiás, que deixou de
ser centralizadora das decisões políticas que ocorriam no estado de
Goiás, os impactos da transferência não afetaram somente a vida
política da cidade, mas também questões econômicas e sociais.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

412
Novas Fronteiras Culturais

A Cidade de Goiás perdeu e muito com a criação de


Goiânia, deixou de ser o principal centro comercial do estado,
dando o lugar de protagonismo à nova capital, Goiânia. Por tratar-
se de uma cidade do século XVIII, Goiás possuí um vasto legado
histórico que dá notoriedade ao município.
Andando pelas ruas da antiga Vila Boa, é notável a presença
de inúmeros patrimônios históricos, desde igrejas, chafariz, coreto,
quartel-general e praças. Monumentos que darão à Cidade de
Goiás o título de Patrimônio Histórico-Cultural da Humanidade
pela Unesco. Além do patrimônio material, a Cidade de Goiás
possui uma tradição cultural muito forte, as festas religiosas
destacam-se nesse cenário, garantindo-lhe não só patrimônios
materiais, mas também patrimônios imateriais ligados à cultura.
Em 1978, houve o reconhecimento da Cidade de Goiás
como patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN). Segundo Souza (2020), a Cidade de
Goiás possui vários elementos emblemáticos da cultura local, entre
esses elementos, destacam-se as tradicionais festas religiosas, como
a Festa do Rosário, Procissão do Fogaréu (Figura 2), Semana dos
Passos e das Dores, Festa do Divino Espírito Santo. Além das
festividades religiosas, outro aspecto salientado pelo autor que
evidencia a cultura vilaboense é a culinária, destacando a produção
de doces típicos. Há, na cidade, a produção de bordados, pinturas
em porcelana, esculturas em pedra sabão, madeira talhada, bebidas
típicas, panelas e refratários em barro que dão destaque ao
município na produção artesanal.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

413
Novas Fronteiras Culturais

Figura 2 - Farricocos durante a Procissão do Fogaréu, em Goiás -


2013

Fonte: Vitor Santana/G1 (2013).

Em 2001, a Cidade de Goiás foi reconhecida como


Patrimônio Histórico-Cultural da Humanidade pela Unesco, sendo
que, com o título de patrimônio reconhecido internacionalmente,
no mesmo ano em que ocorreu a terceira edição do FICA na
cidade, assim a Cidade de Goiás ganhou cada vez mais destaque
como palco de produções culturais.

O Festival de Cinema e Vídeo Ambiental - FICA

O FICA por tratar-se de um festival em nível internacional


atrai telespectadores de diferentes localidades, não somente no
âmbito nacional. O público bastante diversificado do festival
movimenta a cidade desde sua primeira edição, vale ressaltar que
todas as edições desse festival ocorreram na Cidade de Goiás,
conforme exposto anteriormente, cidade que possuí bastante
relevância patrimonial no cenário nacional e internacional.
Segundo o jornalista Jaime Sautchuk (2006, p.19), um dos
cofundadores do festival, a ideia da realização surgiu em 1998,
quando o publicitário e seu amigo pessoal Luiz Gonzaga Soares

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

414
Novas Fronteiras Culturais

entraram em contato para dizer que o recém-eleito governador de


Goiás que, tomaria posse no ano seguinte, Marconi Perillo e seu
futuro secretário de Comunicação Luiz Felipe Gabriel, queriam
projetar o estado de Goiás em nível nacional culturalmente. Foi
durante o Vídeo Terra, festival de vídeo e cinema que trabalha com
a questão agrária que surgiu a ideia da realização de um festival de
cinema que projetasse o estado de Goiás em nível nacional em
termos de produção cultural.
A realização do primeiro festival ocorreu em junho de
1999, um ano antes da cidade ser escolhida, como patrimônio
histórico da humanidade pela Unesco. Já na primeira edição do
festival, houve 154 obras inscritas, que reuniam produções de 17
países diferentes, sendo que, desde então, o festival passou a ser
realizado anualmente na cidade.
A idealização de projetar o estado de Goiás culturalmente
no cenário nacional obteve grande sucesso, visto que, em 2022,
será realizada a vigésima terceira edição do festival, que conta com
participação de cineastas nacionais e internacionais, principalmente
da América Latina.
Em sua 23ª edição, o festival trouxe quatro mostras
diferentes no evento, entre elas, aponta-se: Mostra Washington
Novaes, Mostra do Cinema Goiano, que ganha destaque por ter
apenas produções em nível estadual, Mostra de Videoclipes. E, por
último e não menos importante que as demais, a Mostra Becos da
Minha Terra, que tem por objetivo a exibição de produções
audiovisuais de cineastas vilaboenses. As premiações do festival
variaram entre três mil e trinta mil reais.
O evento que mescla produções audiovisuais de diferentes
lugares traz esse ano uma temática bastante pertinente na atual
conjuntura em nível nacional e internacional, “Meio Ambiente e
Saúde - onde estamos e para onde vamos” (Figura 3). Diante dessa
perspectiva, a Cidade de Goiás ganha um novo destaque cultural,
para além daquele constituído historicamente por seu patrimônio
material e imaterial, o festival agrega discussões pertinentes e que
atraem pessoas de diferentes lugares para apreciação do festival.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

415
Novas Fronteiras Culturais

Além dos olhares internacionais para o festival, há grande


participação dos habitantes da cidade.

Figura 3 - Panfleto do 23º Festival Internacional de Cinema


Ambiental - 2022

Fonte: Governo de Goiás (2022).

O júri da 23ª edição do evento foi composto por cineastas,


sociólogos, diretores, documentaristas, comunicadores sociais e
professores universitários que vivem na Cidade de Goiás. Entre as
obras exibidas no evento, os documentários de distintas origens,
com obras produzidas na própria cidade onde se realiza o evento e
produções internacionais de países como: Hong Kong, França,
Holanda, Suíça, Japão e os Estados Unidos da América.

Os citadinos da cidadela

Conforme exposto nos tópicos anteriores, a antiga Vila


Boa destaca-se, atualmente, no cenário cultural. No período que
antecede à realização do FICA, a Cidade de Goiás passou e vem

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

416
Novas Fronteiras Culturais

passando por diversas transformações no decorrer do tempo. A


cidade, que surge da mineração e ganha notoriedade política no
cenário estadual durante quase 200 anos de sua história, perde o
papel de destaque político estadual, dando lugar à nova capital
Goiânia, mas, ainda assim, evidencia-se por tornar-se patrimônio
nacional com reconhecimento pelo IPHAN em 1978 e, em 2001,
veio o título de Patrimônio Histórico-cultural da Humanidade pela
Unesco.
Fora a importância patrimonial, atualmente, a Cidade de
Goiás é sede de um dos mais prestigiados festivais de cinema no
Brasil, o Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, que
há 23 anos, vem sendo realizado anualmente na cidade, sendo
projetado para dar destaque ao estado de Goiás nas produções
culturais em nível nacional. O festival atraí cineasta do Brasil todo
e de diferentes partes do Mundo, notavelmente a cidade recebe
durante a realização do evento um público bastante diversificado,
os habitantes da cidade também participam efetivamente da
realização do FICA.
Ao estudar a disseminação e a produção da consciência
ambiental a partir do FICA, Caneiro (2005, p.52) assinala os relatos
e os fatos vividos pelos moradores da Cidade de Goiás,
notavelmente, o festival proporciona uma grande arrecadação
financeira para a esfera municipal, movimentando vários setores de
comércio e serviços da cidade, principalmente, ligados ao turismo,
o que faz com que o festival tenha aceitação pela população
municipal, o FICA também agrega valores ambientais antes
desconhecidos.
Porém, Caneiro (2005, p.126) ainda enfatiza que há
problemas que a população também os reconhece, como os
transtornos para a preparação do festival, ruas interditadas, sons
altos, além do fato dos moradores pertencentes à cidade verem-se
em meio a desconhecidos que nem sempre prezam pelo cuidado
com os patrimônios e valores culturais.
Ressalta-se, portanto, que o festival apresenta seus ônus e
bônus reconhecidos pela população local que sofre os impactos

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

417
Novas Fronteiras Culturais

diretos da realização do evento, a qual proporciona mudanças no


cotidiano vilaboense, que extrapolam as datas de realização e
preparação para o evento.
Além da significância cultural, o município de Goiás
apresenta um polo educacional estadual com as Instituições de
Ensino Superior, como a Universidade Federal de Goiás,
Universidade Estadual de Goiás (Figura 4) e o Instituto Federal de
Goiás, além de universidades particulares. Alguns cursos passaram
a ser ofertados na cidade, posteriormente, à chegada do evento,
com destaque para os cursos de Bacharelado em Cinema e
Audiovisual, e Licenciatura em Artes Visuais, cursos com ligações
diretas com produções audiovisuais.

Figura 4 - Câmpus Cora Coralina da Universidade Estadual de


Goiás na Cidade de Goiás

Fonte: Universidade Estadual de Goiás (2022).

No festival, em 2022, foram exibidas nove produções na


Mostra Becos da Minha Terra, lembrando que essa categoria é
destinada a produções realizadas na Cidade de Goiás, evidenciando
que, além das datas do festival, acontecem atividades no município
vinculadas ao FICA.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

418
Novas Fronteiras Culturais

Considerações finais

Fica evidente que o FICA na Cidade de Goiás, trocadilhos


à parte, o Festival de Cinema e Vídeo Ambiental apresenta fortes
influências na vida vilaboense, seja nos dias de preparação da
cidade para receber o evento com transtornos para a população
que se depara com ruas interditadas, ou durante a realização do
evento, que provoca grande movimentação no município e,
consequentemente, uma maior arrecadação financeira. O fato é
que os habitantes da Cidade de Goiás convivem com o festival há
23 anos, esse festival levanta questões culturais antes
desconhecidas por boa parte da população e impacta a vida
cotidiana.
A presença dos cursos ligados a produções audiovisuais
movimenta a cidade, colocando, em sua prática cotidiana, uma
herança do FICA que permanece todo o tempo. Assim como a sua
característica patrimonial que remete a tempos de colonização e
mineração, tendo também a tradição religiosa e culinária
permanentes, assim a Cidade de Goiás é constituída desse
pluralismo cultural, que mescla o tradicional e o novo.

Referências

CARNEIRO, Gracielly Cristina. O Festival Internacional de


Cinema e Vídeo Ambiental - FICA na produção e
disseminação da consciência ambiental. 2005. 134 f.
Dissertação (Mestrado) - Curso de Geografia, Instituto de Estudos
Sócio-Ambientais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2005.
DOMINGUES, Alfredo José Porto; SMLO, Tomas. 1957. Foto
panorâmica Cidade de Goiás. 635 x 417 pixels.
GOIÁS. 2022. Panfleto de divulgação do 23º Festival
Internacional de Cinema Ambiental. 1008 x 640 pixels.
Disponível em:
https://ficafestival2022.com.br/storage/uploads/gyl7YePufHiw

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

419
Novas Fronteiras Culturais

FOQWZtZaU4oaZF2Bb8aPtX0rRDiP.pdf. Acesso em: 8 out.


2022.
SANTANA, Vitor. 2013. Farricocos durante a Procissão do
Fogaréu. 1008 x 603 pixels. Disponível em:
https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2021/03/31/procissao-
do-fogareu-da-cidade-de-goias-nao-e-realizada-pela-2a-vez-em-
276-anos-por-causa-da-pandemia-da-covid-19.ghtml. Acesso em:
10 out. 2022.
SAUTCHUK, Jaime. Dossier FICA: aventura maravilhosa.
Revista UFG, Goiânia, v. 1, n. 8, p. 18-21, jun. 2006. Disponível
em:
https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48063/2344
4. Acesso em: 15 jun. 2022.
SOUZA, Vinícius Antonelli de. Cidade de Goiás: o patrimônio
em questão dissertação de mestrado apresentada ao programa de
pós-graduação projeto e cidade da faculdade de artes visuais da
universidade federal de goiás, como requisito para a obtenção do
título de mestre em projeto e cidade. 2020. 2020. 252 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Programa de Pós-Graduação Projeto e
Cidade, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2020.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS. 2022. Campus
Cora Coralina da Universidade Estadual de Goiás na Cidade
de Goiás. Disponível em:
https://www.ueg.br/campuscoracoralina/conteudo/4689_aprese
ntacao. Acesso em: 10 out. 2022.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

420
Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 25
A REPRESENTAÇÃO DO CAMPO
MATO-GROSSENSE NA MÍDIA
JORNALÍSTICA : REFLEXÕES SOBRE A
QUESTÃO AGRÁRIA EM MATO GROSSO

Jania Cebalho
Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira

Introdução

Este texto é um recorte de uma pesquisa sobre como a


questão agrária tem sido retratada pela mídia jornalística no estado
de Mato Grosso. Assim sendo, o trabalho incide em descrever e
analisar os discursos da mídia e sua inscrição ideológica cultural, no
modo como ela aborda e apresenta os assuntos do campo para a
sociedade, já que a mídia exerce uma grande influência na formação
de opinião das pessoas, inclusive, o dilema da questão agrária, tema
debatido no interior da Geografia no século XX e início do século
XXI. Assim, observa-se algumas características e peculiaridades da
questão agrária, como a exploração, exclusão, desigualdade,
expulsão, injustiça social e estruturação no espaço geográfico
(OLIVEIRA, 2012). A questão agrária é compreendida como o
conjunto de problemas próprios ao desenvolvimento do
capitalismo no campo, nasce no final da década de 60 com o
objetivo de “avançar em direção a uma posição mais crítica na
Geografia Agrária brasileira frente à questão agrária” (OLIVEIRA,
2001, p.10). A questão agrária envolve a concentração fundiária,
também a má divisão/distribuição de terras e renda rural, tal como
a luta pela terra e reforma agrária no Brasil.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

421
Novas Fronteiras Culturais

Oliveira (2012) também advoga que a questão agrária é


vista como um conjunto de problemas referentes à concentração
de propriedade e à ocupação territorial, bem como às tocantes lutas
entre as diferentes classes sociais que visam ao uso da terra para o
desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária. Assim,
aqui entende-se que a questão agrária envolve a concentração
fundiária, também a má divisão/distribuição de terras e renda rural,
tal como a luta pela terra e reforma agrária no Brasil.
Em Mato Grosso, a concentração fundiária é decorrente
do surgimento da Marcha para Oeste – fronteira agrícola a partir
da década de 1960, que trouxe consigo a imensa mobilidade
populacional com a vida de agentes colonizadores e levas de
trabalhadores de outros estados brasileiros. Esses movimentos
demográficos transformaram-se em um projeto intenso e insensato
e, com o passar do tempo, consolidou-se profundamente na
concessão das terras devolutas no estado de Mato Grosso, onde se
generalizou plenamente em meios de produções de monoculturas
e desenvolvimento de técnicas produtivas. Desse modo, nasceu o
avanço da modernização tecnológica do agronegócio no campo
mato-grossense.

Metodologia

A metodologia utilizada nesta pesquisa foi de levantamento


bibliográfico e documental sobre a temática questão agrária e mídia
jornalística, bem como a utilização da análise de conteúdo, análise
de discurso com seleção, sistematização de matérias on-line sobre
o campo mato-grossense. Sendo assim, a pesquisa só faz sentido
se o seu resultado possibilitar à sociedade (re)pensar, (re)configurar
e (re)organizar suas estruturas e, com base nessa suposição,
discute-se os fundamentos e procedimentos metodológicos
aplicados neste estudo, ao debate dos conceitos das ciências
geográficas que permitem um melhor entendimento da questão
agrária levantada pela Gazeta Digital on-line.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

422
Novas Fronteiras Culturais

A análise de conteúdo da mídia é uma técnica de descrição


objetiva, sistemática a uma exploração qualitativa de mensagens e
informações do material analisado e coletado, podendo ter, de
acordo com Herscovitz, (2010, p. 125), redução da “quantidade de
textos a uma mera base de dados não proporciona um quadro
completo dos significados e dos códigos contextuais, porque os
textos podem enfatizar outros aspectos do que aqueles meramente
repetidos”.
A análise do discurso é uma área de pesquisa que visa
compreender o significado da produção e reprodução social na
espacialidade.

A questão agrária e mídia jornalística: como problema de


estudos no Brasil e em Mato Grosso

A questão agrária remete a questões de norma social,


econômica, política e cultural no primórdio da herança histórica,
rejeitada pelo processo de colonização e apropriação das terras
feitas pelos portugueses por meio das capitanias
hereditárias/sesmarias, em que grandes extensões de terras foram
doadas a particulares que tivessem recursos. Assim sendo, criou-
se, na essência da sociedade brasileira, o desejo de livrar-se da
dominação, exploração e injustiça social que ainda se inscrevem no
âmbito do país (FERREIRA, 2012).
A questão agrária insere-se dentro da discussão em torno
do conceito de território que também suscita intensas discussões
teóricas no espaço da ciência geográfica, nas universidades, bem
como nos movimentos sociais na busca de uma política
participativa para servir aos interesses de diferentes grupos
associados à luta para conseguir a terra para sua produção e
reprodução de vida.
Corroborando com a temática, Haesbaert (2010, p. 166)
afirma:

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

423
Novas Fronteiras Culturais

[...] o território se define mais estritamente a partir de uma


abordagem sobre o espaço que prioriza ou que coloca seu
foco, no interior dessa dimensão espacial, n-a “dimensão”,
ou melhor, n-as problemáticas de caráter político ou que
envolvem a manifestação/realização das relações de poder,
em suas múltiplas esferas.

O território refere-se tanto ao poder no sentido concreto,


de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico de
apropriação espacial. Contudo, também como um campo de forças
interconectadas entre as mais diferentes manifestações
econômicas, culturais, ambientais e entre os grupos que contestam
áreas e anunciam o controle de dominação capitalista em suas
transformações espaciais. O território e o poder são inseparáveis e
configuram um campo de forças interligado com a relação de
poder que age sobre o sujeito no espaço que produz diferentes
tipos de territórios, os quais dependem das distintas formas de
poder que surgem no espaço. Tratar de território remete à noção
de limite, contudo, é preciso levar em consideração que ele não
pode ser o único pressuposto para o surgimento de um território.
Assim, a questão agrária elencada no país está enraizada
devido a diversos fatores contraditórios, como a exploração, a
opressão, a desigualdade e a injustiça, decorrentes da terra
submeter-se ao controle do mercado da produção de
monoculturas.
Sobre a questão agrária, Girardi (2015) menciona que sua
origem e essência estão na concentração da terra e do poder
político-econômico que visa ao desenvolvimento do capitalismo,
tendo, como principal consequência, o empobrecimento e a
desintegração do campesinato. Ainda segundo o autor, a
concentração da terra fere o princípio de que a terra é a fonte única
e básica da existência humana e, por isso, deve ser considerada um
bem especial e de interesse coletivo, antes de ser submetida à
propriedade privada.
A resistência do agricultor camponês é uma luta de longo
prazo, sendo que, após a aquisição da terra, outras lutas começam.
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

424
Novas Fronteiras Culturais

Essa é uma luta pela sobrevivência da família na terra, luta pelo


crédito e pela infraestrutura que torna viável a vida nesse espaço.
A questão agrária no país coloca em destaque as
contradições de um país que se formou por meio de uma
colonização perversa, que colonizou as mentes das pessoas que
aqui vivem. Neste sentido, uma educação decolonial é preciso para,
quem sabe, lutar contra a exploração da terra que visa ao controle
da produção do mercado, bem como da produção de monocultura.
Constata-se que, historicamente, a mídia jornalística no
Brasil tem funcionado como importante precursora na construção
de identidade, da manipulação das notícias publicadas, na formação
de ideias, valores e comportamentos. Na maioria das vezes, sendo
articuladora de decisão política e influenciadora de opinião da
sociedade de forma pejorativa, o que é um fato presente nos dias
atuais, não dando margem para que a sociedade tire suas próprias
conclusões do que é noticiado. Nessa perspectiva, a mídia
jornalística sempre existiu no Brasil como uma grande aliada nos
propósitos de subordinação política, econômica e cultural durante
os diversos governos brasileiros, a verdade é que a mídia do mundo
inteiro age assim.
Historicamente, a mídia brasileira tem desempenhado um
importante papel pioneiro na construção da identidade,
manipulação das notícias publicadas, formação de ideias, valores e
comportamentos e, na maioria das vezes, como dominadora de
decisões políticas e opiniões sociais. Influenciadores depreciativos
são fatos existentes hoje e a sociedade não tem espaço para tirar
suas próprias conclusões do que é relatado. É justamente nessas
circunstâncias que a mídia noticiosa sempre existiu no Brasil e
tornou-se uma grande aliada na subordinação política, econômica
e cultural de diversos governos brasileiros. No Brasil, devido a uma
série de ambientes históricos e culturais, a influência da mídia dos
EUA é particularmente esmagadora graças a uma série de
circunstâncias históricas e culturais, em geral, bem sintonizadas
com a inserção do país na periferia do sistema capitalista, com mais
precisão nas últimas décadas, ou seja, a subordinação geopolítica e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

425
Novas Fronteiras Culturais

interesses economicamente alinhados beneficiaram os Estados


Unidos, primeiro, no contexto da Guerra Fria e, depois, no mundo
globalizado.
No Brasil, a mídia jornalística consolidou-se como um
instrumento eficaz de difusão muito poderoso durante o período
da ditadura militar de 1964 e serviu como uma grande aliada nos
seus propósitos de subordinação política, econômica e cultural.
Ferreira (2012) aponta que o poder da mídia é simbólico e
persuasivo, pois tem a capacidade de controlar o pensamento do
interlocutor por meio da difusão de ações simbólicas, distorcendo
os métodos de informação indireta, conforme seu discurso.

A visão geográfica da questão agrária em Mato Grosso,


conforme noticiado na mídia

Neste trabalho de pesquisa, foi definido como objeto de


análise o jornal Gazeta Digital on-line do estado de Mato Grosso,
sendo examinado o universo total de matérias produzidas sobre a
questão agrária em Mato Grosso, no período de 2019 a 2020.
Dessa maneira, define-se, neste corpus de pesquisa, a
seleção das matérias publicadas nos arquivos eletrônicos do jornal
Gazeta Digital (GAZETA, 2022), onde realizamos, primeiramente,
o levantamento dos conteúdos que abordam a questão do campo
mato-grossense como: agricultura familiar, a agricultura
camponesa, agricultura rural e o agronegócio. Diante da
multiplicidade das matérias levantadas e selecionadas em diferentes
dias e meses de março de 2019 a março de 2020, pormenoriza-se,
assim, um recorte temporal das matérias vinculadas no site do
jornal Gazeta Digital online no estado de Mato Grosso - Brasil.
Assim, leva-se em considerações as datas e os meses das
matérias publicadas sobre as ocorrências no campo agrário mato-
grossense no que se refere às chamadas das matérias enunciadas
sobre: agricultura familiar, agricultura camponesa, agricultura rural,
agricultura, movimentos sociais, conflitos sociais, reforma agrária,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

426
Novas Fronteiras Culturais

pecuária, assentamentos, bem como o agronegócio. Segue o


resultado desse levantamento (Tabela 1).

Tabela 1 - Matérias por mês – março/2019 a março/2020


N. de
Conteúdos Matérias/ Período Total
Publicadas
Agricultura Familiar 12 2019 a 2020 12
Agricultura Camponesa - 2019 a 2020 -
Agricultura Rural 5 2019 a 2020 5
Agronegócio 111 2019 a 2020 111
Conflitos Sociais - 2019 a 2020 -
Movimentos Sociais - 2019 a 2020 -
Agricultura 2 2019 a 2020 2
Reforma Agrária - 2019 a 2020 -
Assentamentos 1 2019 a 2020 1
Pecuarista 3 2019 a 2020 3
TOTAL 134
Fonte: Gazeta Digital Online (2019 e 2020).

Pode-se ver, na tabela anterior, que na maior parte dos


conteúdos publicado no jornal (GD) não aparece diretamente, no
tópico, a questão agrária no material coletado. Embora os
conteúdos das notícias analisadas estejam presentes e, na grande
parte das notícias veiculadas pelos jornais, a questão agrária
manifeste-se de forma indiretamente. Isso significa que algumas
matérias coletadas e analisadas ainda sobre o tema relevante para
pesquisa e envolvem o dilema da questão agrária, que estão nas
páginas explícitas do jornal (GD).
Constata-se, no material coletado, através das chamadas
nos temas publicados, nas páginas do jornal (GD), somente
agricultura familiar, agricultura rural, agricultura, pecuarista,
assentamentos e o agronegócio como mostra no (Gráfico 1).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

427
Novas Fronteiras Culturais

Gráfico 1 - Porcentagens de matérias coletadas no período de 2019


a 2020
AGRICULTURA FAMILIAR AGRICULTURA RURAL
AGRONEGÓCIO AGRICULTURA
ASSENTAMENTO PECUÁRIA
1% 1% 2% 9%
4%

83%
Fonte: Elaboração das autoras (2021).

As matérias citadas no gráfico mostram a quantidade do


material levantado e coletado no período de 2019 a 2020 nos
arquivos do jornal (GD), assim, chegando a 134 notícias, o
equivalente ao total de 100% das matérias coletadas, que
envolveram a abordagem de tema sobre a questão agrária no estado
de Mato Grosso. Na busca das matérias analisadas e colhidas nos
acervos do jornal (GD), verifica-se somente textos que retratavam
a:
• Agricultura familiar: 9%
• Agricultura rural: 4%
• Agricultura: 1%
• Assentamento: 1%
• Pecuária; 2%
• Agronegócio. 83%

Na análise dessas notícias, percebe-se que o jornal (GD)


prevalece, na maioria das vezes, em seus textos discursivos abrindo
espaços em suas edições à oportunidade, que é a credibilidade para
o agronegócio, retratando, nas chamadas, como sendo o percursor
no desenvolvimento e expansão de alimentos para a sociedade
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

428
Novas Fronteiras Culturais

brasileira e mato-grossense. É sobre esse contexto que o jornal


(GD), em seu discurso midiático, visualiza o agronegócio, com
avanço do capitalismo no campo, trazendo investimentos altos em
tecnologias avançadas para o desenvolvimento de exportações em
grandes escalas mundiais de grãos, como: soja, algodão milho e
cana-de-açúcar, que se espalharam por toda a região de Mato
Grosso. Ademais, o jornal (GD), em suas edições publicadas no
site, pouco retrata sobre a agricultura familiar, pecuária,
assentamento, agricultura e agricultura rural, ou seja, a credibilidade
nos discursos de suas edições é mínima.
Ainda observa-se que o jornal (GD) não dá créditos em
suas reportagens referentes a notícias como, por exemplo:
agricultura camponesa, movimentos sociais, conflitos sociais e
reforma agrária, que (é um conjunto de medidas/políticas do
governo federal destinadas a promover uma melhor distribuição da
terra por meio da alteração da propriedade e do uso da terra, de
forma a cumprir os princípios da justiça social e aumentar a
produtividade para as famílias que necessitam realmente da terra
para produção e reprodução de vida) são temas de suma
importância a serem retratados, questionados e direcionados em
pautas na mídia jornalística para que seu público alvo possa ter suas
opiniões e conclusões próprias defendidas para a sociedade em
geral.
A mídia faz parte da dinâmica da sociedade e ajuda a
formar ideias e preconceitos por meio de seu discurso. Dessa
forma, o discurso das notícias desempenha dois papéis
relacionados: narrar notícias, esforçar-se para ser objetivo e justo,
assim alcançar, portanto, sua função de informação; a outra
expressa-se por meio do significado e do sistema de valores
relacionado ao veículo, é o assunto da expressão.

Considerações finais

Ao investigar em nossas análises, nota-se que a informação


da notícia é um experimento pré-formado do mediador e sistema

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

429
Novas Fronteiras Culturais

de inserção, isto é, a mídia é vista como um importante canal de


informação (televisão, jornais e revistas), é visualizada e/ou
considerada como um importante canal de esclarecimento da
população, como sendo instrutora de ideias, opiniões, valores,
comportamentos e discursos culturalmente ideológicos e
hegemônicos, os quais perpassam para a população mais
necessitada do país e que fazem uso dessa mídia, como sendo a
única opção de lazer, interatividade e cultural.
Verifica-se também que, em geral, a mídia jornalística
reproduz um discurso político e ideológico que mantém o status
quo, embora esses discursos sejam ambíguos e tangíveis, repletos
de interesses hostis em diferentes momentos, sempre defendem os
interesses da tutela e das estruturas capitalistas que perpetuam
acirradamente no país. A sociedade como um todo, ou seja, dá
privilégios aos grupos minoritários que controlam o país.
No que diz respeito à discussão do dilema da questão
agrária e todas as variantes aqui tratadas neste estudo, tem-se
constatado as chamadas vinculadas na mídia, que proporcionam as
discordâncias e interpretações da realidade postas no país, ou seja,
isso ocorre porque as chamadas e/ou mensagens publicadas
associam-se diretamente ao modelo de produção e
desenvolvimento capitalista (agronegócio), o valor do campo é
usado como um espaço de produção para ajuste de preços e a mídia
relata, em seu texto discursivo, como um fator positivo, eficiente
na modernização das tecnologias avançadas em modelo de grande
escala mercantil de exportações.
Averígua-se também que, em geral, a mídia jornalística
reproduz um discurso político e ideológico que mantém o status
quo, embora esses discursos sejam ambíguos e tangíveis, repletos
de interesses hostis em diferentes momentos, sempre defendem os
interesses da tutela e das estruturas capitalistas que perpetuam
acirradamente no país. Porém, quando as chamadas e /ou
informações veiculadas associam-se ao modo de produção
camponesa, agricultura familiar relata o campo como, espaço de
convivência, ou seja, apresentam-se esses fatos, de maneira,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

430
Novas Fronteiras Culturais

ambígua, controversa e parcial. A sociedade como um todo dá


privilégios aos grupos minoritários que controlam o país.
No estado de Mato Grosso, as matérias noticiadas pelo
jornal Gazeta Digital on-line, relacionadas à questão agrária, quase
sempre são contraditórias, não retratando a natureza das ações /
práticas dos movimentos sociais e do desenvolvimento dos sujeitos
do campo. De fato, notícias / fatos / informações sobre o campo
mato-grossenses são influenciadas e legitimadas pela visão
capitalista, não permitindo discussões mais amplas ou a formação
de uma consciência crítica sobre o assunto e os sujeitos que
produzem e reproduzem suas vidas no campo brasileiro e mato-
grossense.

Referências

FERREIRA, Sonia M. A mídia e o MST: heróis e vilões na trama


do discurso jornalístico. Rio de Janeiro: UERJ, 2012.
GAZETA DIGITAL. 2022. Disponível em:
http://www.gazetadigital.com.br. Acesso em: 14 abr. 2022.
GIRARDI, Eduardo P. Atlas da Questão Agrária Brasileira.
Revista NERA. Disponível em: http://www.fct.unesp.br/atlas.
Acesso em: 10 maio 2018.
HAESBAERT, R. Regional-Global: Dilemas da Região e da
Globalização na Geografia Contemporânea. Rio de Janeiro:
Bertrand-Brasil, 2010.
HERSCOVITZ, H. Análise de conteúdo em jornalismo. In:
LAGO, Claudia; BENETTI, M. (Org.). Metodologia de
pesquisa em jornalismo. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010, p.
120-127.
OLIVEIRA, A. U. Agricultura camponesa no Brasil. 4. ed. São
Paulo: Contexto, 2001.
OLIVEIRA, A. U. A Mundialização da Agricultura Brasileira In:
XII Colóquio Internacional de Geocrítica, Bogotá. Actas do
XII Colóquio. Barcelona: Geocrítica, v.1. p.1-15, 2012.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 26
QUALIDADE DE VIDA NO BAIRRO
ARAÉS: O BEM-ESTAR URBANO DE UM
BAIRRO CUIABANO

Fernando Marcio Paiva Macado


Sônia Regina Romancini
Edenilson Dutra de Moura

Introdução

O mapeamento dos enfrentamentos socioambientais


evidencia conceitos relevantes de abordagens que se concentram
no ser humano, nos fatos sociais e na própria natureza.
Historicamente, o progresso econômico do século XX propiciou
transformações importantes no mundo, mas também desencadeou
rupturas significativas no contexto social (ALMEIDA; HAYASHI,
2020). No século XXI, o reposicionamento da economia capitalista
global, através da continuidade e da ampliação de inúmeros e
diversos processos de reestruturação produtiva e espacial, está
provocando a emergência de novas aglomerações produtivas,
assim como a refuncionalização de aglomerações produtivas
tradicionais (SOARES, 2018).
Entretanto, as limitações das articulações no campo social
são, muitas vezes, provenientes da forma como se estabelece o
poder de decisão e, sobretudo, do próprio desinteresse da
sociedade, que é derivado da descrença nos políticos e do
descrédito repassado pelas instituições (ALMEIDA; HAYASHI,
2020). As relações do espaço urbano e da transformação social
produz a melhor qualidade de vida nas pessoas. Essa qualidade de
vida relaciona-se com o bem-estar, que pode ser diferenciado em

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

432
Novas Fronteiras Culturais

dois domínios, que englobam áreas diferentes e complementares


na composição da subjetividade humana: o bem-estar psicológico4
e o bem-estar subjetivo5 (CACOZZI, 2021). Nesta pesquisa, foi
adotado o bem-estar subjetivo como referência de análise.
O objetivo da pesquisa é analisar as formas de gerar bem-
estar para as pessoas no espaço físico da cidade. O local
selecionado é o bairro Araés, em Cuiabá-MT. A representatividade
desse bairro pode ser compreendida pela fala de Edinéia Costa,
então presidente do bloco de carnaval campeão de 2017 – Tradição
do Araés:

Nosso bloco é fruto da miscigenação de raças e temos


pessoas que possuem origens diversas, que se uniram para
formar uma coisa só. O Bairro Araés é reflexo dessa
representatividade e nós não poderíamos deixar de abordar
essa essência tão rica no Carnaval. Tal como nosso samba
fala da aquarela da diversidade, esta bela festa também
carrega este aspecto. E como pessoas que querem trazer a
cultura de forma responsável, nada melhor que cantar essa
mistura (OLHAR CONCEITO, 2 mar 2017).

A importância desse bairro vem desde as décadas de 1970


e 1980. Políticas públicas de desenvolvimento urbano foram
implementadas nessa área, sendo que, naquele período, a sua
comunidade local experimentou a implementação de uma dessas
políticas. O bairro participou de um projeto piloto de um programa
de intervenção urbana do Estado, o Programa de
Complementação Urbana – CURA (Comunidade Urbana de
Recuperação Acelerada). Na Figura 1, uma das intervenções do
Projeto CURA foi o parque linear ao Córrego do Sargento.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 1 - Córrego do Sargento, próximo à Avenida Miguel Sutil

Fonte: Google Earth (2022).

O Projeto CURA influenciou a dinâmica da ocupação do


solo da região e entorno. A fim de captar a influência dessa
dinâmica, a análise da pesquisa considerou os aspectos sociais,
econômicos, políticos e culturais para a construção do bem-estar
urbano. Salienta-se que a interpretação do bem-estar pode ser
diferente entre as pessoas (CACOZZI, 2021). Para verificar as
experiências das pessoas, foram utilizadas as reportagens de
notícias, envolvendo o bairro Araés, para a construção da relação
qualidade de vida e cidade.
A pesquisa trata-se por exploratória e qualitativa. Os
procedimentos metodológicos foram distribuídos em pesquisa
bibliográfica, notícias e observação direta e participativa do autor
que, desde 1996, vislumbra de sua janela o bairro vizinho, o bairro
Araés. Assim como recomendam Machado e Carvalho (2022), foi
realizada a análise das notícias relacionadas ao bairro Araés. Foram
coletadas reportagens dos últimos nove anos, por meio da regra da
representatividade, para a definição das notícias e conteúdo do
período de 2014 a 2022, veiculados em portais de notícias de
abrangência nacional, regional e local. A seleção das notícias foi
por meio do site de busca Google Notícias, a partir do emprego de
palavras-chave como “Bairro Araés” e “Cuiabá”.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

434
Novas Fronteiras Culturais

O bem-estar urbano

Quando o desenvolvimento econômico está associado


somente ao bem-estar, pode levar a indicações enganosas sobre o
bem-estar das pessoas e implicar decisões políticas erradas, por não
considerar aspectos não-monetários de bem-estar (CACOZZI,
2021). No acelerado processo de expansão urbana contemporânea,
o planejamento urbano, que faz parte das políticas públicas, entra
em conflito direto com os habitantes, que, muitas vezes, sentem-
se expulsos de seus bairros e de suas casas em função do processo
causado pela renovação urbana (MACHADO; CARVALHO;
BARDEN, 2019).
Após a Segunda Guerra Mundial e até meados da década
de 1960, o modelo de acumulação capitalista nos países
hegemônicos, denominado Estado de Bem-estar Social,
apresentou características que distinguem das fases antecedentes
da evolução capitalista (DELCOL, 2018). No período, buscava-se
o equilíbrio entre os ganhos da produtividade e salário real,
envolvendo os grupos sociais ao gerar os conflitos sociais. Neste
sentido, reitera-se a respeito das classes sociais distintas:

Os países hegemônicos mensuravam seu grau de


desenvolvimento pelo nível de sua produção, ou seja,
tinha-se como destaque o capital industrial, logo, enquanto
a economia, a produção e o capital se apresentavam em
movimento ascendente, foi possível legitimar a
acumulação capitalista e o crescimento econômico em prol
da sociedade, sem deixar transparecer a essência
contraditória do sistema, que produz classes sociais
distintas (DELCOL, 2018, p. 45).

Na década de 1970, mesmo período da criação oficial do


bairro Araés, ele integrou o projeto piloto do projeto CURA que
se baseava no adensamento da população urbana e na execução
integrada de infraestrutura urbana e comunitária (VILARINHO
NETO, 1982). O bairro possui mais de 150 anos de existência e,

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

435
Novas Fronteiras Culturais

naquela década, o conceito de bem-estar começou a ser estudado


de maneira teórica e empírica. O bem-estar social subjetivo passou
a ser utilizado como sinônimo de felicidade (CACOZZI, 2021).
Dessa forma, a felicidade pode estar no campinho de areia da
principal praça do bairro, a Praça Tufik Affi. Sobre o conceito de
bem-estar relacionado aos equipamentos urbanos públicos, afirma-
se que:
A paisagem tem uma dinâmica própria. Tão fundamental
como construir é deixar e preservar os espaços vazio como
condição existencial para o acesso ao direito humano à
paisagem. Sem a existência destes espaços vazios, não há
condição para a criação, entretenimento, cuidado com a
saúde, e nem para a concretização da maximização do bem-
estar. Nesse sentido, as praças e parques são locais de
respiro, os vazios são necessários em meio ao caos urbano
dos edifícios, dos bairros fragmentados, dos fragmentos
fortificados, das comunidades fechadas. Nos vazios a
cidade respira, dorme, relaxa. E o vazio não está vazio!
(COELHO, 2018).

Essa praça fica às margens do Córrego do General, que,


mais à frente, juntar-se-á ao Córrego do Sargento e, logo mais
adiante, esses dois córregos integram-se ao Córrego da Prainha.
Nessa praça, os moradores utilizam a estrutura física para o
convívio social.
De crianças a idosos, todos utilizam os equipamentos
urbanos na Praça Tufik Affi instalados. Contudo, os moradores
relataram, em 2014, o descaso da esfera pública, além de
questionarem a falta de apoio da população (G1, 27 dez. 2014). Em
2022, foi apontado que nem mais o campo de areia existia no local
(MIDIA NEWS, 2 fev. 2022). Acrescenta-se, nessa realidade local,
o problema relatado por moradores do mato alto, o tráfico e o
consumo de drogas na praça e a falta de conservação das praças e
nas áreas próximas aos cursos d´água.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

436
Novas Fronteiras Culturais

Decorre que os insucessos ou sucessos parciais das


informações apresentadas como indicadores sociais são rejeitadas
por diversos administradores, afastando o uso de indicadores no
processo decisório de políticas públicas (DELCOL, 2018). Como
consequência, os problemas urbanos continuam gerando
insatisfação sem atender as necessidades da sua comunidade. Cita-
se o título de pior calçada de Cuiabá. As calçadas do bairro Araés
caracterizam-se, de um lado, com a presença de areia e cascalho e,
do outro lado, o pedestre dividindo o passeio com o carro
estacionado e com mato alto e entulhos (G1, 21 jul. 2021). Em uma
pesquisa do Portal Mobilize, foram avaliados a qualidade do piso,
a largura do passeio, a inclinação e os degraus e a existência de
barreiras e rampas de acessibilidade das calçadas. Cuiabá ficou
classificada como a cidade com a terceira pior calçada do Brasil,
atrás de Belém e Fortaleza, respectivamente, primeiro lugar e
segundo lugar.
Figura 2 - Cruzamento da Rua Carmem Cenita com a Rua Osório
Duque Estrada

Fonte: Google Earth (2022).


Entre a Avenida Miguel Sutil e a Avenida Historiador
Rubens de Mendonça, localiza-se o Córrego do Sargento, que
possui um parque linear semelhante à área do Córrego do General.
A figura 2 mostra um trecho do Córrego do Sargento.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

437
Novas Fronteiras Culturais

Referente à figura anterior, a Rua Osório Duque Estrada


está paralela ao Córrego do Sargento e à Rua Carmem Cenita,
perpendicular ao mesmo córrego. Nessa área localizada atrás de
uma loja de departamentos local (Decorliz), a passarela exclusiva
para pedestres é utilizada para o deslocamento de carros e
caminhões. Reclamações semelhantes à Praça Tufik Affi também
são identificadas nas áreas próximas ao Córrego do Sargento. Os
moradores reclamam que não há a ajuda e colaborações dos
próprios moradores (G1, 27 dez. 2014).
Mesmo após o projeto CURA, implantado nas décadas de
1970 e 1980, em Cuiabá, resultando a diminuição das desigualdades
de distribuição de equipamentos urbanos nos bairros próximos ao
centro da cidade (FEST, 2005), a insatisfação da comunidade local
reflete as mudanças da estruturação territorial, em que as relações
sociais e de trabalho acontecem. Assim, no mesmo espaço urbano,
onde ocorre a abertura de novos empreendimentos comerciais,
como o “Marido na Cozinha Rotisseira” (G1, 17 mar. 2021),
fomentando a economia local e possibilitando novos
investimentos privados e públicos para a comunidade, também há
a insegurança dos moradores com os assaltos constantes
(REPORTER MT, 6 abr. 2022).
Dessa forma, averígua-se que há realidades distintas no
bairro. Assim sendo, mesmo quando a população não tem acesso
direto à satisfação de suas necessidades básicas ainda é possível ter
um nível alto de satisfação com a vida. Isso acontece quando a
população tem um alto nível de capital social, ou seja, valoriza o
coletivo (CACOZZI, 2021). Essa característica na identidade social
verificou-se por meio do relato do Cleyton Normando, um dos
diretores, em 2018, do bloco de carnaval, Unidos do Araés. Ele
confirmou a presença do coletivo em uma entrevista dada a um
veículo de comunicação local:

A comunidade do Araés tem essa tendência de abraçar os


blocos que por ali passam, só que ela é muito desconfiada,
depende de quem está fazendo. E como nós vivemos na

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

comunidade, no meio deles, a gente conhece todo mundo.


A gente vem de uma geração, eu e esses meninos, que a
gente assistiu o pessoal do Urubu Cheiroso e do Estrela do
Oriente fazer carnaval, e hoje a gente vem fazer carnaval e
levamos nossos filhos pra lá (OLHAR CONCEITO, 11
fev. 2018).

Nessa perspectiva, a comunidade local utiliza mecanismos


na busca do seu bem-estar urbano. O centro comunitário é o local
de atendimento às necessidades da população de seu bairro. Assim,
o presidente do bairro é o representante da comunidade local. Ele
buscará junto a Prefeitura saciar as insatisfações de sua
comunidade. Da mesma forma, o Prefeito de uma cidade,
representando a sua comunidade, articulará para suprir os desejos
da sua população. O Governador de um Estado representa a sua
população em nível regional. Ele contribuirá na articulação entre
as esferas local e federal. O Presidente de um país representa a sua
comunidade em nível federal. Cada representante busca solucionar
as insatisfações urbanas. É somente por meio da união de cada
membro da comunidade que o bem-estar urbano terá êxito.
Entretanto, variáveis externas, como renda e nível
educacional, podem interferir na percepção do bem-estar subjetivo
da população e as pesquisas parecem apontar que o dinheiro pode
trazer felicidade (CACOZZI, 2021). Em meio a diversidade de
sensações das pessoas, a qualidade de vida nem sempre está ligada
à felicidade e ao senso de comunidade local ajuda nos
enfrentamentos das dificuldades urbanas para aumentar a
percepção de bem-estar urbano.

Considerações finais

O Projeto CURA atendeu às principais reivindicações da


sociedade da época. Os problemas socioespaciais na década de
1970 faziam parte da heteronomia e o Brasil, por meio de
programas como este, começava a dar uma resposta à sociedade,
agindo com autonomia, de forma a buscar uma mudança para

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

439
Novas Fronteiras Culturais

melhorar o dia a dia da comunidade local. No mundo, naquele


período, os aspectos socioambientais foram discutidos e
idealizados como formas de inserção nas políticas públicas para
contribuição no espaço urbano. Esse programa preocupou-se com
a população que ocupava a periferia da cidade, criando
mecanismos que pudessem evitar as condições de vulnerabilidade
a um conjunto de mazelas, que seria resultado das condições
precárias do ambiente onde estão situadas. A comunidade do
bairro Araés foi resiliente, garantindo o direito à cidade ao
revalorizar o valor de uso da cidade, contrariando o modo
capitalista que marginaliza a população.
O espaço urbano é construído de direitos e de
cumprimentos das obrigações. A concretização desse espaço é feita
pela coletividade, assim sendo, esse espaço assume características
econômicas, sociais e culturais. A complexidade das relações
sociais dificulta a dinâmica de produção e reprodução do espaço
urbano, favorecendo a cidade desigual. Dessa forma, garantir
condições menos precárias de vida para população faz parte do
planejamento urbano e entender a dinâmica do desenvolvimento
socioespacial contribui no despertar de novos valores. Esta
pesquisa ajudou na compreensão do bem-estar urbano, a partir do
entendimento que a cidade não é estática e a participação da
população contribuirá na experimentação das transformações das
relações sociais e do espaço, produzindo melhor qualidade de vida
e maior justiça social.

Referências

ALMEIDA, R.; HAYASHI, C. R. M. Capacidade de organização


social em enfrentamentos socioambientais. R. Katál.,
Florianópolis, v. 23, n. 2, p. 276-288, maio/ago. 2020.
CACOZZI, A. Fatores associados ao bem estar subjetivo nas
duas maiores cidades brasileiras. 2021. 103 f. Tese (Doutorado
em Saúde Coletiva) – Universidade Católica de Santos, Santos,
2021.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

COELHO, P. A. O direito humano à paisagem e a


maximização do bem-estar socioesconômico. São Paulo:
Editora Dialética, 2022.
DELCOL, R. F. R. Regiões metropolitanas via elaboração de
índices: o IBEU, Índice de Bem-estar Urbano. Geografia em
Questão, [S. l.], v. 11, n. 1, 2018. DOI:
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FEST, F. D. de C. Projeto CURA – complementação urbana e
mudanças espaciais. 2005. 186 f. Dissertação (Mestrado em
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2022.
MACHADO, F.; CARVALHO, A.; BARDEN, D. Spoilers
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América do Sul: Resenha para Várzea Grande, MT. In: II Simpósio
Nacional de Gestão e Engenharia Urbana: SINGEURB, 2019, São
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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

MACHADO, F. M. P.; CARVALHO, S. R. F. As implicações da


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Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

REPORTER MT. Geral. 6 abr. 2022. Bandidos roubam Corolla


nas proximidades de base de PM em Cuiabá. Disponível em:
https://redacaomt.com.br/policia/bandidos-roubam-corolla-nas-
proximidades-de-base-da-pm-em-cuiaba-veja-video/. Acesso em:
23 jun. 2022.
VILARINHO NETO, C. S. Projeto CURA Cuiabá: um exemplo
da intervenção do Estado nas transformações do espaço urbano.
1982. 301 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – UNESP,
Campus de Rio Claro, Rio Claro-SP, 1982.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

CAPÍTULO 27
NOVOS ESPAÇOS URBANOS: OS
IMPACTOS AMBIENTAIS NO
ENTORNO DA AVENIDA CONTORNO
LESTE EM CUIABÁ-MT

Gilvani Leandro Sales Teixeira


Edenilson Dutra de Moura
Sônia Regina Romancini

Introdução

Conforme expressa Carlos (2007, p. 14): “[...] os lugares da


metrópole redefinidos por estratégias imobiliárias submetidas à
mediação do mercado, transformam o espaço em mercadoria”, o
espaço, tanto o urbano como o geográfico, é coisificado e
associado meramente a um objeto econômico. O urbano, dentro
desse arquétipo, representa um espaço dotado de um valor de troca
para ser consumido, isto é, acessível, principalmente, para os que
podem pagar, dessa forma, o acesso à moradia para famílias menos
favorecidas é difícil.
Projetos como o “Minha Casa, Minha Vida”, criado em
2009, pelo Governo Lula, vem na contramão dessa realidade, para
buscar a diminuição dessa desigualdade, facilitando o acesso à
moradia, através do sistema de conjuntos habitacionais.
Entretanto, a diminuição dessa diferença deve ser feita de forma
ímpar com a conservação ambiental.
Na abordagem sobre esse tema em Cuiabá, destacam-se as
contribuições de Dauar (2017, p. 79) que afirma que deve-se "[...]
considerar a vegetação da cidade como próprio patrimônio de
cultura, que passa desse modo, a ter uma função social de primeira

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

444
Novas Fronteiras Culturais

importância”, pois, conforme ela: “[...] Cuiabá ficou conhecida


como Cidade Verde, porque seus quintais e ruas contavam com
abundante arborização” (Ibid., p. 74), portanto, a vegetação
assume uma importância de caráter tanto cultural quanto de
“qualidade ambiental urbana” (Ibid., p. 26).
Nesse mesmo segmento, no que tange à dinâmica estadual
de Mato Grosso aponta-se as contribuições de Souza-Higa,
Romancini e Nunes (2009, p. 356) que afirmam ter havido, em
Cuiabá e no estado de Mato Grosso, um período de:

[...] incremento populacional ocorrido na segunda metade


do século XX, especialmente após 1960, quando tiveram
início os programas de incentivos governamentais que
fomentaram a ocupação do Norte e do Centro-Oeste do
país.

Em decorrência desse adensamento populacional após as


pressões das correntes migratórias sob o discurso de integração nacional,
em particular na cidade de Cuiabá, que mesmo diminuindo a
desigualdade social através dos conjuntos habitacionais não o
fizeram de forma ímpar para com o meio ambiente, degradando-o
no processo (DAUAR, 2017). Portanto, a ideia que este trabalho
defende é a diminuição da desigualdade no acesso à moradia,
porém sem criar agravantes ao meio ambiente.
Esse paralelo entre a moradia e natureza, em que a moradia
sempre se sobrepõe ao ambiental, iniciou após a criação do modelo
habitacional do Banco Nacional de Habitação em 1964, que foi
implantado em vários estados brasileiros. Contudo, mesmo após o
seu fim, o projeto ao longo da sua vigência solidificou esse modelo
institucional e político em muitos projetos de habitação, porém
seria ditado pelo interesse econômico, que não só teria mais valor
que o meio ambiente, mas também que o social.
Acerca da questão da moradia na cidade, o fator
determinante é a capacidade de empregar-se e manter-se na
centralidade, entretanto, conforme ressalta Santos (2003, p. 83):

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

445
Novas Fronteiras Culturais

As vantagens locacionais para as atividades, o emprego, as


elites e a população mudam em benefício do centro motor
e desencadeiam poderosos movimentos migratórios. As
atividades modernas que criam esse desequilíbrio são
incapazes de fornecer empregos suficientes. Aqueles que
não encontram trabalho no setor moderno, refugiam-se,
então, no circuito inferior da economia urbana.

De forma sucinta, pode-se compreender que, com o


avanço do capital sobre as áreas centrais da cidade, o morador de
menor poder aquisitivo é expulso para as regiões periféricas, até
que o processo capitalista exige novas “fronteiras” e move-os para
cada vez mais longe do centro da cidade. Assim como evidencia
Carlos (2007, p. 14), ocorre a “[...] expulsão da mancha urbana de
parte da população para a periferia como consequência de um
processo de valorização dos lugares pela concentração de
investimentos”, uma vez que, nesse modelo capitalista de moradia,
a permanência nas centralidades da cidade é constantemente
encarecida, justamente para o processo de expulsão ser constante,
de acordo com o avanço dessas “fronteiras”.
O confluir da segregação social causada pela especulação
imobiliária reflete, também, nos impactos causados na natureza.
Essa reflexão será aplicada à área de estudo, que corresponde ao
entorno do rio Coxipó e dos bairros São João Del Rei e Osmar
Cabral, com ênfase na Avenida Contorno Leste.
Os impactos ambientais que serão aplicados a essa área de
estudo seguem as diretrizes da Resolução Conama (Conselho
Nacional do Meio Ambiente) n.1/86, art. 1º como:

Qualquer alteração das propriedades físicas, químicas ou


biológicas no meio ambiente, causada por qualquer forma
de matéria ou energia resultante das atividades humanas,
que direta ou indiretamente afetem: I- a saúde, a segurança
e o bem estar da população; II- as atividades sociais e
econômicas; III- as condições estéticas e sanitárias do meio
ambiente; IV- a qualidade dos recursos ambientais

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

446
Novas Fronteiras Culturais

(IBAMA, 1986.).

Com o objetivo de demonstrar as consequências do


planejamento unitário, ou seja, que não leva em consideração todas
as partes que formam um todo, conforme será evidenciado na área
de estudo, ela passa por um processo de especulação imobiliária e
um adensamento de sua área urbana, o que trouxe inúmeras
consequências para o meio ambiente, como a canalização de alguns
dos afluentes do rio Coxipó, supressão e poluição de sua mata
ciliar, bem como de seu leito.
A área de estudo foi escolhida partindo de um viés
metodológico por apresentar dados acessíveis e de possível
comprovação, bem como sua dinâmica de alteração do uso e
ocupação ao longo do tempo, que demonstrou um recuo da
vegetação do entorno dos afluentes e um avanço constante da área
urbana.

Figura 1 – Cuiabá - Evolução do perímetro urbano

Fonte: Prefeitura Municipal de Cuiabá (2022).

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Conforme as Leis municipais n. 3.267/94, 3.723/97 e


4.719/04, a área de estudo encontra-se na Região Sul, nas
proximidades do bairro São João Del Rei e Osmar Cabral, em
Cuiabá-MT, às margens do rio Coxipó. Segundo a Lei n. 3.412, de
30 de dezembro de 1994, que consta no Plano Diretor de Cuiabá,
a área estudada passou a pertencer ao perímetro urbano de Cuiabá,
conforme pode ser visto no mapeamento disponível no plano
diretor de Cuiabá (Figura 1).

Fundamentação teórica

A base para discussão dessa temática, que, em suma, parte


do pressuposto que há ideias diferentes, em que um
posicionamento é defendido e contradito logo depois, é o que
caracteriza o Método Dialético. Para este trabalho, também será
colocado que a dialética é uma forma de analisar a realidade a partir
da confrontação de teses, hipóteses ou teorias e tem origem na
Grécia antiga, com filósofos clássicos como Sócrates, Platão,
Aristóteles e Heráclito. Para Platão, a dialética era a própria
definição do pensamento científico, ou seja, a dialética era
simplesmente a investigação racional de um conceito. A dialética
só se torna método científico a partir de Karl Marx, que critica o
idealismo da filosofia clássica alemã e propõe a dialética
materialista, ou seja, a utilização do pensamento dialético como
método de análise da realidade, utilizando a própria realidade como
argumento.
Quando se aprofunda na apresentação da área de estudo,
acredita-se que a melhor lente para discuti-la é partindo da
categoria de análise do território, que pode-se afirmar que ele é
produzido por atores através da energia e da informação, por meio
de redes de circulação e comunicação, conforme destaca Raffestin
(2005), o qual aponta relações de poder com atividades produtivas,
representações simbólicas, que se expressam através de políticas,
que são a integração do sistemas territorial.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Sob esse prisma, no sistema presente no entorno da


Avenida Contorno Leste, são percebidos elementos de
territorialidades, para as quais não há necessidade de um território
físico, mas é um movimento que apresenta elementos homogêneos
e que, portanto, formam um grupo de relações sociais simétricas,
que se desenvolveram ao longo do tempo histórico. O que dá base
para fazer uma interligação com a concepção histórica e relacional
da teoria de valor de Karl Marx.

Área de estudo: Avenida Contorno Leste

A escolha da Avenida Contorno Leste (Quadro 1) deve-se


ao seu impacto na área de estudo, pois, com sua constituição, a
base do avanço da área urbana foi consolidada, de forma que, com
a sua construção, houve impactos positivos, como a vinda de
empreendimentos, bens e serviços. Entretanto, foi evidenciada
uma metodologia de canalização que altera profundamente o curso
do possível afluente do rio Coxipó, bem como prejudica a proposta
de relação harmônica e sustentável entre a sociedade e a natureza.

Quadro 1 - Construção da Avenida Contorno Leste

Fonte: Alves (2021); Prefeitura de Cuiabá (2021).

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Novas Fronteiras Culturais

Essa metodologia de canalização foi evidenciada também na


construção da avenida e da ponte sobre o rio Coxipó, o
desenvolvimento dessa avenida está acontecendo, porém defende-
se, neste trabalho, que a metodologia de planejamento escolhida, a
canalização do rio não é a ideal para a manutenção do meio
ambiente, entende-se que constitui uma desarmonia na relação
homem-natureza. Portanto, a recomendação seria executar um
planejamento alinhado com a proposta de harmonia dentro da
totalidade dessa paisagem, sendo que uma possível medida pode
ser a manutenção e preservação da mata ciliar e em parte da
vegetação nativa do entorno.
Segundo Vicente (2021), a nova via terá a extensão de 17,3
quilômetros com pista dupla, cada uma com duas faixas de
rolamento interligando os bairros Altos da Serra e Dr. Fábio à área
de estudo no entorno dos bairros São João Del Rei e Osmar
Cabral. No artigo, foi relatado o valor de 125 milhões investidos,
advindo de uma operação de crédito formalizada com a Caixa
Econômica Federal (CEF). Foi apontado que está sendo efetuada
a construção da rede de drenagem de águas pluviais, o que é um
fato diferente do que foi comprovado na ida a campo, pois foi
visualizada a drenagem de um afluente do rio Coxipó.

Trabalho de campo

A motivação do trabalho de campo foi evidenciar os fatos


intuídos durante o processo do geoprocessamento pelo autor,
entretanto, muitos outros foram revelados, eis a importância da sua
realização. No mapa das fotos (Figura 2), é possível visualizar, em
pontos amarelos, os locais onde o rio foi canalizado; em roxo, os
locais próximos aos rios que se tornaram lixões ou onde o rio está
sendo poluído e encanado ao mesmo tempo.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 2 - Mapeamento das fotos registradas na área de estudo

Fonte: Imagem de base utilizada Sentinel 2 MSI. Elaborado por


Teixeira (2021).

No local mais distante da Avenida Contorno Leste, foi


possível identificar, há uma maior preservação da mata ciliar e uma
manutenção da drenagem, buscando não alterar o
desenvolvimento do curso natural do rio, o que se entende como
a única área evidenciada durante o trabalho de campo onde há
maior proximidade com uma conservação ideal dentro da área de
estudo, conforme pode ser evidenciado na figura 3.
Uma hipótese que é possível de ser levantada com a análise
das fotos presentes no google street view é que o afluente que foi
mais conservado, de acordo com o que foi evidenciado nas fotos
da figura 4 e 5, o rio teve um significativo desenvolvimento em seu
canal e em sua mata ciliar, pois, conforme pode ser visto na figura
4, ele estava poluído em 2012, porém, nas fotos mais recentes em
2021, ele encontrava-se sem as mesmas características de poluição,
talvez ainda existam, porém amenizadas pela filtragem feita pela
vegetação.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 3 - Afluente mais conservado que ainda apresenta mata ciliar

Fonte: Gilvani Teixeira (2021).

Contudo, isso evidencia uma melhoria, através de seu


processo de retenção dos sedimentos, evitando o assoreamento do
rio e trabalhando concomitantemente em reter os nutrientes
carregados pela chuva, o que pode diminuir os poluentes químicos
presentes na água. Contudo, para realizar essa afirmação com mais
segurança seria necessário realizar um estudo histórico de
qualidade de água, sendo a comparação do Índice de Qualidade de
Água (IQA) considerada um dos possíveis métodos para realizar
essa análise.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Figura 4 - Rio poluído em 2012

Fonte: Google Earth (2022).

Figura 5 - Rio que estava poluído em 2012, recuperado pela


manutenção da mata ciliar

Fonte: Gilvani Teixeira (2021).

Uma realidade que foi visualizada também neste estudo


das imagens disponíveis no Google Street View, quando comparadas

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

com as fotos registradas durante o trabalho de campo foi o


desaparecimento de uma continuidade de um afluente que, em sua
retenção, formava um pequeno lago, conforme pode ser
evidenciado nas figuras 6 e 7.

Figura 6 - Lago em 2011

Fonte: Google Earth (2011).

Figura 7: Lago em 2021

Fonte: Gilvani Teixeira (2021).

Entende-se que esta é uma pequena introdução qualitativa


do real motivo dessas análises, que seria evidenciar a importância
da manutenção do rio e da mata ciliar, pois, nesses dois contrastes

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

454
Novas Fronteiras Culturais

dessas análises, observam-se duas realidades diferentes, uma que,


dentro dos moldes propostos neste trabalho, é entendida como um
problema ambiental, o desaparecimento do lago, visto que é mais
uma exemplificação das consequências da desarmonização na
relação homem-natureza, segundo se observa no quadro 2.

Quadro 2 - Fotos da situação dos afluentes

Fonte: Gilvani Teixeira (2021).

Acerca das canalizações, em suma, as áreas tiveram uma


parcela significativa da sua mata ciliar desmatada, tornando-se um
local de acúmulo de lixo. Ressalta-se que as fotos foram registradas
durante o período de estiagem, portanto, explica-se parcialmente o
fato de não identificação da possível drenagem desse afluente do
rio Coxipó. Entretanto, seguindo os parâmetros do Código
Florestal (Lei n. 4.771/65) e da Lei n. 7.511/86, infere-se que essas

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

455
Novas Fronteiras Culturais

áreas estão em condições insuficientes para a conservação e


preservação da mata ciliar e do afluente.

Quadro 3 - Imagens da poluição

Fonte: Gilvani Teixeira (2021).

Uma das questões relevantes visualizadas durante o


trabalho de campo foi a poluição presente na área de estudo.
Conforme pode ser visualizado no quadro 3, o local no entorno do
rio que apresenta apenas seu caminho de drenagem tornou-se um
local de grande concentração de lixo, sem qualquer resquício de
saneamento básico ou de educação ambiental, seja pelos
moradores da área ou por incentivo do governo.
Em concordância com o que foi observado na área de
estudo, pode-se afirmar que o possível afluente do rio Coxipó,
dentro do bairro, está em condições de poluição, consequência da
não manutenção da mata ciliar, conforme evidenciado na área mais
conservada e mais distante de avenida Contorno Leste. Caso
houvesse a conservação, poderia haver uma possível redução da
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

456
Novas Fronteiras Culturais

poluição presente no rio, entretanto, essa manutenção deveria ser


feita pelo governo do Estado, o qual também deveria elaborar um
processo de educação ambiental para os moradores dessa área,
segundo supracitado, visto que, conforme evidenciado, revela que
não há qualquer orientação nesse sentido.

Considerações finais

Assim como Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e


Alexander von Humboldt (1769-1859) realizaram suas viagens
para consumação de seus estudos e, por consequência, a criação da
ideia do curso de geografia que temos hoje, o trabalho de campo
foi essencial para o prognóstico deste trabalho, pois, por meio dele,
foi possível observar de forma muito mais aguçada o que já havia
sido cogitado pelo autor e considerado no campo da hipótese.
Dentre essas observações, pode-se incluir o avanço da área
urbana que foi revelado com o estudo das mudanças de uso e
ocupação, e da pesquisa sobre os projetos desenvolvidos na área,
evidenciando que está acontecendo uma especulação imobiliária
causada pela criação de uma nova avenida vicinal. A ocorrência do
descumprimento das leis que assegurem a preservação da mata
ciliar, em particular dos afluentes que se encontravam dentro dos
bairros, que segundo se pode ver, formaram uma desarmonia com
o ambiente que estavam, pois entende-se que a poluição e a
degradação representam uma direção que vai na contramão da
proposta deste trabalho, em que a realidade deve ser vista como
um todo, integrado, uma união entre a ciência e a arte, que,
traduzindo para os dias de hoje, seria a junção das técnicas com a
sensibilidade sobre a área ou objeto estudado.
A recomendação para a questão da poluição visualizada na
área de estudo é a educação ambiental, que mostrou-se ausente,
esse programa deve ser incentivado pelo governo, pois, de acordo
com o que foi constatado, o incentivo é na direção contrária da
preservação, mas da degradação. O programa deve contar com a
reeducação da distribuição do lixo, para que, assim, o governo

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Novas Fronteiras Culturais

possa remover o foco de lixo ao longo dos afluentes, conforme


evidenciado, deve incentivar também a não poluição dos rios, com
a remoção e criação de uma rede de esgoto própria que não
reutilize o leito do rio para tal, precisa ainda fomentar a
manutenção e a preservação da mata ciliar para assegurar a
manutenção da rede hídrica e da qualidade de vida do ambiente.

Referências

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cidade. São Paulo: FFLCH, 2007.
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trabalho/24704. Acesso em: 1 set. 2021.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

SOBRE OS AUTORES
Águeda Aparecida da Cruz Borges
Professora Associada da UFMT/CUA-MT. Graduada em Letras
pela Unemat, Mestra e Doutora em Linguística pela Unicamp, com
Pós-doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em
Linguística (PPGL) da Unemat/Cáceres. Tem experiência em
formação de professores e ensino de língua Portuguesa para povos
indígenas, dentre os quais, os Tapirapé e Munduruku. Lidera os
grupos de pesquisa: Arte Discurso e Prática Pedagógica (UFMT/CUA-
CNPq) e participa como pesquisadora nos Grupos: Mulheres em
Discurso (Unicamp/CNPq) e O político no social: a AD no Centro-Oeste
(Unemat/PPGL).

Alceu Zoia
Realizou período de Pós-doutorado em Educação na Universidade
Federal do Paraná. Doutor em Educação pela Universidade
Federal de Goiás, Mestre em Educação pela Universidade Federal
de Mato Grosso, graduado em Filosofia pela Universidade do
Noroeste do Rio Grande do Sul, professor do Programa de Pós-
graduação em Educação e do Programa de Pós-graduação em
Ensino em Contexto Intercultural Indígena, ambos na
Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT. Coordena
o Grupo de Pesquisa Educação e Diversidade no Contexto da
Amazônia Legal Mato-grossense.

Aliff dos Santos Brito


Possui graduação em Gestão em Recursos Humanos, pela
Universidade de Cuiabá – UNIC (2020). Graduando em Psicologia
pelo Centro Universitário de Várzea Grande - UNIVAG.

Aline Celestina dos Santos Silva


Graduada em Geografia Licenciatura Plena pela Universidade
Federal de Sergipe (2017), Pós- graduada em Ensino de Geografia
(2021). Mestranda no Programa de Pós-Graduação Mestrado em
Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Geografia (PPGeo), oferecido pelo Departamento de Geografia,


Instituto de Geografia, História e Documentação (IGHD.
Professora efetiva da Secretaria de Estado de Educação de Mato
Grosso (SEDUC-MT).

Bernadeth Luiza da Silva e Lima


Possui graduação em Licenciatura e Bacharelado em Geografia
pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT (1986).
Especialização em Instrumentalização do Ensino de Ciências
Naturais e Meio Ambiente pela mesma Universidade (1999).
Mestra e Doutora em Ciências da Educação pela Universidade
Técnica de Comercialização e Desenvolvimento – UTCD (2014)
Assunção - PY. Professora do Ensino Básico na Secretaria
Municipal de Educação de Cuiabá (SME/MT).

Claudinete Magalhães da Silva


Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal de Mato
Grosso (1997). Pós- graduada em Metodologia e Didática para
Educação básica numa Visão Interdisciplinar pela UNIRONDON
(2002). Atualmente é professora da Escola Estadual Dr. Hermes
Rodrigues de Alcântara, em Santo Antônio de Leverger. Mestranda
em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da
UFMT.

Davi dos Santos Leite “MC Mache”


Estudante de Geografia da UFMT e MC de batalha de rap.
Campeão de mais de 80 batalhas de freestyle no Brasil e um dos
maiores campeões das batalhas de Cuiabá. Desenvolveu, entre os
anos de 2020 e 2022, pesquisas de iniciação científica sobre as
batalhas de rap em Mato Grosso.

Denize Gonçalina Valéria Vicente


Licenciada em Geografia pela Universidade Estadual de Mato
Grosso – UNEMAT (2011). Professora da Secretaria de Estado de
Educação (SEDUC-MT). Pós-graduada em Educação do Campo

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Saberes Pantaneiros- IFMT (2016); Comportamento Humano nas


Organizações – Mestra em Geografia pelo Programa de Pós-
graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso.
Membro do Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade (GECA/UFMT/CNPq).

Dienny Nayara Ribeiro


Mestranda em Educação pela Universidad Internacional
Iberoamericana - UNINI. Bolsista da Fundação Universitária
Iberoamericana - FUNIBER, Brasil. Graduada em Psicologia pela
Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal - FACIMED. Possui
as especializações: Psicologia Clínica e da Saúde pela FACIMED;
Impactos da Violência na Escola pela Fundação Oswaldo Cruz -
FIOCRUZ; Docência para a Educação Profissional e Tecnológica
- EPT pelo Instituto Federal do Mato Grosso - IFMT. Docente do
curso de Psicologia no Centro Universitário de Várzea Grande -
UNIVAG.

Edenilson Dutra de Moura


Docente na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), atua no
Câmpus Binacional - Oiapoque, na área de Geografia Humana.
Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em
Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), na área de
concentração: Ambiente e Desenvolvimento Regional (2015).
Bacharel em Geografia pela UFMT (2013). Líder do Grupo de
Estudos Urbanos da Amazônia Setentrional (GEURBAS / CNPq
/UNIFAP).

Edison Antônio de Souza


Possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências
e Letras Dom Bosco (1987), Especialização em Filosofia pela
mesma Instituição (1990). Mestrado em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso - UFMT (2001). Doutorado em História

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Novas Fronteiras Culturais

Social pela Universidade Federal Fluminense (2008). Pós-


doutorado em História pela UFMT (2016). Professor Adjunto da
Universidade do Estado de Mato Grosso, Câmpus de Sinop.
Pesquisador do Núcleo de Estudos Rurais e Urbanos –
NERU/UFMT. Filiado à ANPUH.

Evaldo Ferreira
Possui Doutorado em Geografia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF) - 2014, Mestrado em Engenharia de
Transportes pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Coppe/UFRJ) - 2005 e Licenciatura (2000) e Bacharelado (1999)
em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Atualmente é professor do curso de Geografia e do Programa de
Pós-graduação em Geografia (PPGGeo) da Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT), coordenador do curso de
Geografia da Diretoria de Ensino a Distância UAB/Unemat e
coordenador do Mestrado em Geografia, da UNEMAT. Coordena
o grupo de pesquisa "Análise socioeconômica e regional" e o
Laboratório de Análise Socioeconômica e Regional (Laser).

Fernando Marcio Paiva Machado


Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Federal de Mato Grosso (2004). Especialista em MBA em
Administração de Projetos - Obras. Especialista em
Desenvolvimento Urbano, pelo Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia de Mato Grosso - Câmpus Várzea Grande.
Graduando em Engenharia de Transportes, pela Universidade
Federal de Mato Grosso. Mestrando em Geografia pela
Universidade Federal de Mato Grosso. É bolsista da CAPES.

Gabriel de Miranda Soares Silva


Possui graduação em Geografia Bacharelado (2018) e Licenciatura
(2019) ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT.
Especialista em Docência no Ensino da Geografia (2020) pela
Faculdade UniBF e Mestre em Geografia (2021) pela Universidade

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

463
Novas Fronteiras Culturais

Federal de Mato Grosso - UFMT. Doutorando em Geografia pela


Universidade Federal de Goiás - UFG. Membro do Grupo de
Pesquisas em Geografia Agrária e Conservação da Biodiversidade
- GECA. Membro do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Educação
Geográfica - NEPEG.

Gabriella Matos Santiago


Bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso
(2016). Membro do Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade - GECA/UFMT. Voluntária no
Projeto: Banco de Dados da Luta pela Terra - DATALUTA/Mato
Grosso; Estagiária no Projeto de Diagnóstico para Regularização
Ambiental dos Assentamentos da Reforma Agrária -
RADIS/UFMT (agosto/2018 - dezembro/2019).

Gilvani Leandro Sales Teixeira


Graduado em Geografia Bacharelado pela Universidade Federal de
Mato Grosso (UFMT). Mestrando em Geografia pelo Programa
de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato
Grosso, com bolsa concedida pela CAPES. É membro do Grupo
de Pesquisa em História do Pensamento Geográfico e
Epistemologia da Geografia (HPGEO).

Giseli Gomes Dalla-Nora


Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal de Mato
Grosso (2007), Mestrado em Geografia pela Universidade Federal
de Mato Grosso (2008) e Doutorado em Educação pela
Universidade Federal de Mato Grosso (2018). É professora
Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso atuando nos
cursos de Pós-graduação em Geografia e Pós-graduação em
História. Líder e Pesquisadora do Grupo de Pesquisas em
Geografia Agrária e Conservação da Biodiversidade - GECA.
Atualmente é pesquisadora do Banco de Dados da Luta pela Terra
- DATALUTA e Rede Internacional de Pesquisadores em
Educação Ambiental e Justiça Climática - REAJA.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

464
Novas Fronteiras Culturais

Jania Cebalho
Possui graduação em Geografia pela Universidade do Estado de
Mato Grosso (2018). Participou como bolsista no PIBID, de 2015
a 2018. Mestra em Geografia pela Pós-graduação em Geografia
Humana - PPGGeo da Universidade do Estado de Mato Grosso
(2021). Atualmente é professora de Geografia no Colégio Dom
Bosco em Canaã dos Carajás – Pará.

João Victor Cordeiro Gama


Licenciado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás,
mestrando em Geografia pelo Programa de Pós-graduação em
Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso, professor da
Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC-
MT).

José Borzacchiello da Silva


Professor Titular e Emérito da Universidade Federal do Ceará.
Professor dos Programas de Pós- graduação em Geografia da
Universidade Federal do Ceará e da Pontifícia Universidade
Católica - PUC-RIO. Pós-doutor em Geografia Humana pela
Université de Paris IV - Sorbonne. Doutor e Mestre em Geografia
Humana pela Universidade de São Paulo. Coordenou a área de
Geografia da CAPES (2008/2010). Presidiu a AGB (1986-1988).
Presidiu a ANPEGE (2003-2005). Atua na área de Geografia
Urbana, especialmente no enfoque dos Movimentos Sociais.
Associado Efetivo do Instituto do Ceará (Histórico, Geográfico e
Antropológico).

José Carlos Marinho da Silva


Graduado em Geografia Licenciatura Plena (2013), com
Especialização em Educação das Relações Étnico-raciais no
Contexto da Educação de Jovens e Adultos (2015), ambos pela
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Mestre em
Geografia pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da
UFMT. Membro do Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

465
Novas Fronteiras Culturais

Conservação da Biodiversidade – GECA. Professor efetivo da


Secretaria de Estado de Educação (SEDUC-MT) e professor da
rede privada de ensino, atuando na educação básica.

Leidiane Gomes de Souza


Possui Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em Educação
UFMT/Rondonópolis na Linha de Pesquisa Formação de
Professores e Políticas Públicas Educacionais; graduação em
Processos Gerenciais pela Universidade Norte do Paraná (2009) e
graduação em Licenciatura Plena em História pela Universidade
Federal de Mato Grosso, Câmpus de Rondonópolis (2010) com
Especialização em História da América Latina. Atualmente
compõe o NAPP - Núcleo de Apoio Psicossocial Pedagógico.
Doutoranda em História pelo Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal de Mato Grosso.

Lindomar Barros
Graduado em Educação Física pela Universidade Federal de Mato
Grosso, onde também concluiu a Pós-graduação em Lazer e
Recreação. É professor efetivo da Rede Municipal de Educação de
Cuiabá. Atualmente ocupa o cargo de vice-presidente da Federação
Mato-grossense de Capoeira. Mestre de Capoeira Angola, membro
titular do Comitê Estadual dos Povos e Comunidade Tradicional
(CEPT), Conselheiro de Política Cultural para o Município de
Cuiabá, Diretor Geral do Canal da Web Kizomba TV, o canal da
resistência Viva em Mato Grosso. Fundador do Instituto
Kizomba.

Lisanil da Conceição Patrocínio Pereira


Licenciada, Bacharel, Mestre e Doutora em Geografia. Licenciada
em Pedagogia e Bacharel em Administração. É professora adjunta
da Universidade do Estado de Mato Grosso. Líder do grupo de
pesquisa Laboratório de Estudos e Pesquisa da Diversidade da
Amazônia Legal - LEAL (CNPq). Desenvolveu o Pós-
doutoramento em Educação (PPGE/UFMT). Atualmente é

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

466
Novas Fronteiras Culturais

professora permanente do Programa de Pós-graduação em


Geografia (PPGGEO) e do Programa de Pós-graduação em
Ensino em Contexto Indígena Intercultural da Universidade do
Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

Lucas Bezerra Gondim


Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
onde possui graduação em Geografia – licenciatura plena – e
Mestrado, pelo Programa de Pós-graduação em Geografia
(PROPGEO/UFC). Atua no ensino básico, com vínculo ao
Laboratório de Estudos Geoeducacionais e Espaços Simbólicos
(LEGES) e ao Observatório de Paisagens Patrimoniais e Artísticas
Latino-Americanas.

Lucas Neris Araújo


Graduado em Engenharia Florestal e em Geografia pela
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Atualmente é
mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Geografia da
Universidade Federal de Mato Grosso.

Marcia Alves Soares da Silva


Professora Adjunta do Departamento de Geografia e do Programa
de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Mato
Grosso, Câmpus Cuiabá (UFMT). Doutora em Geografia pela
Universidade Federal do Paraná (2019). Desenvolve pesquisas no
campo das Geografias Emocionais ligadas às questões urbanas.

Marluce Silvino
Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Docente do estado do Rio Grande do
Norte.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

467
Novas Fronteiras Culturais

Onélia Carmem Rossetto


Possui graduação em Licenciatura e Bacharelado em Geografia
pela Universidade Federal de Mato Grosso (1986), Mestrado em
Educação pela mesma Universidade (1997) e Doutorado em
Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília -
Centro de Desenvolvimento Sustentável - UnB-CDS.
Pesquisadora Associada ao Programa de Pós-graduação em
Geografia -PPGEO/ Universidade Federal de Mato
Grosso/UFMT; Pesquisadora do Grupo de Pesquisas em
Geografia Agrária e Conservação da Biodiversidade -
GECA/UFMT.

Otávio José Lemos Costa


Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
- UFRJ. Mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará
- UECE. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade
Estadual do Ceará, lecionando no curso de graduação e no
Programa de Pós-graduação em Geografia da UECE.
Coordenador do Laboratório de Estudos em Geografia Cultural -
LEGEC. Desenvolve pesquisas na área de Geografia Cultural,
especificamente voltado para as temáticas: Espaço, cultura e
patrimônio, paisagem vernacular, Geografia e Cinema.

Sérgio Alberto Pereira


Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso,
professor da Rede Municipal de Guarantã do Norte – MT e da
Secretaria de Estado de Educação (SEDUC/MT). Membro do
Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e Conservação da
Biodiversidade (GECA).

Sônia Regina Romancini


Professora Titular do Departamento de Geografia da Universidade
Federal de Mato Grosso. Doutora em Geografia pela Universidade
Estadual Paulista (2001), com Pós-doutoramento em Geografia
Humana pela Universidade de São Paulo (2011). Membro do

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

468
Novas Fronteiras Culturais

Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT),


integra a rede NEER (Núcleo de Estudos em Espaço e
Representações) e o Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade - GECA.

Swelington de Lima Fonseca


Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT) - Câmpus Cuiabá (2022); Especialização em Filosofia e
Sociologia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante (FAVENI)
(2020); Graduado em Licenciatura Plena em Geografia pela
Universidade Estadual de Goiás - Câmpus de Itapuranga (2011).
Atualmente é professor efetivo pela Secretaria de Estado de
Educação (SEDUC-MT), atuando no Município de Diamantino-
MT. Integra o Grupo de Pesquisas em Geografia Agrária e
Conservação da Biodiversidade (GECA).

Vitale Joanoni Neto


Professor titular do Departamento de História da Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT), com Doutorado em História
pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) e Pós-doutorado na
School of Geosciences at the University of Edinburgh. Desenvolve
pesquisas com temas relacionados ao Brasil e ao Mato Grosso na
segunda metade do século XX, com foco privilegiado em
Fronteira, Migração, Trabalho e Igreja Católica. Membro do
Núcleo de Pesquisa em História, da Rede Internacional de
Pesquisa Agrocultures e líder do Grupo de Pesquisa História, Terra
e Trabalho.

Paisagens e Representações na Perspectiva Geográfica

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Todos os direitos reservados aos autores

Contatos: cnsgeo@yahoo.com.br

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