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Realização Apoio

I Jornada
Interdisciplinar
de expressões culturais

Estudos, Práticas e Saberes Musicais


Aproximações entre o científico e o popular
Giovane do Nascimento · Karina Barra Gomes
Priscilla Gonçalves de Azevedo · Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira
Realização Apoio

I Jornada
Interdisciplinar
de expressões culturais

Estudos, Práticas e Saberes Musicais


Aproximações entre o científico e o popular
Giovane do Nascimento · Karina Barra Gomes
Priscilla Gonçalves de Azevedo · Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira

Campos dos Goytacazes

2022
© 2022 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Todos os direitos reservados. All rights reserved.
*Os capítulos são de inteira responsabilidade dos autores.

FICHA CATALOGRÁFICA
Preparada pela Biblioteca do CCH / UENF

J82 Jornada Interdisciplinar de Expressões Culturais (1. : 2021).


993 Estudos, práticas e saberes musicais : aproximações entre o científico
e o popular [recurso eletrônico] / (organizado por) Giovane do
Nascimento, Karina Barra Gomes, Priscilla Gonçalves de Azevedo e
Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira – Campos dos Goytacazes, RJ :
EdUENF, 2022.
Ebook : PDF.
Evento virtual.
Grupo de Estudos e Práticas Musicais (GEPMU).
ISBN : 978-65-87726-22-9.

1. Cultura Musical - Brasil. 2. Cultura Afrodiaspórica. 3. Música –


Identidade Cultural. 4. Cultura Popular. 5. Expressões Culturais. I.
Nascimento, Giovane do (Org.). II. Gomes, Karina Barra (Org.). III.
Azevedo, Priscilla Gonçalves de (Org.). IV. Oliveira, Jéssica Cristina
Alvaro de (Org.). V. Título.

CDD : 306.484

Conselho Editorial:
Leonardo Rogério Miguel
Maura Cunha
Sérgio Arruda de Moura
Claudia Lopes Prins
Roberto Trindade F. Junior
Ana Bianca Rocha Miranda

Revisão textual:
Letícia Cunha Braga

Capa, projeto gráfico e diagramação:


Larissa De Paula Viana Souza

Ilustrações da capa:
Iasmine dos Santos Ribeiro Machado

Catalogação:
Biblioteca do CCH - UENF

EdUENF
Editora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
E-mail: eduenf@uenf.br
www.uenf.br/extensao/editora
Av. Alberto Lamego, 2000 – Parque Califórnia – Campos dos Goytacazes – RJ – CEP: 28013-602
Sumário

Apresentação 07
Agradecimentos 09
Prefácio – Giovane do Nascimento 10
GT 1 12
MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Mestre Juvenal Tocador e a Capoeira Insubmissa: a musicalidade 13
da capoeira como forma de resistência
Caxambu de Andorinha: experiência do protagonismo cultural 20
no município de Jerônimo Monteiro
Identidade e Memória Afro-amapaense na Poética dos Versos 25
do Batuque Raízes do Bolão
A Musicalidade da Capoeira e suas Conexões com Outras 30
Manifestações Afro-descendentes
A Afrocentricidade dos Povos Bantu na Cadência do Samba: 40
tagarelando as influências das artes, sons, músicas, histórias,
culturas e línguas de origens africanas no chão da escola
Diálogos Culturais no Norte Fluminense: a Mana-Chica do Caboio 46
e o fado de Quissamã
GT 2 51
CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE
FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
A Rua e a Rede como Palco dos Territórios nas Batalhas de Poesia 52
do Slam das Minas — RJ
A Performance Cultural de Clara Nunes 58
Jogos e Cantigas Tradicionais na Preparação da Cena de Teatro: 65
escrevivências e memórias do corpo negro no processo de
criação cênica
Reflexões Errantes sobre Cidade e as Artes da Cena: devoração 73
cultural em Campos dos Goytacazes
Três Décadas de Resistência da Cultura Negra no Município de 80
Campos dos Goytacazes: um relato de experiência do Núcleo de
Arte e Cultura de Campos (NACC)
Travessias e Atravessamentos de uma Corpo-saia Rodante 85
“Na Boca de Quem não Presta Pombagira é Vagabunda”: 92
revisitando o olhar sobre as Pombogiras
Identidades a Flor de Piel: a performance da palenquera em 99
Cartagena das Índias
GT 3 104
COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
A Polifonia do Espaço: walkscapes, urbanismo tático e 105
territorialidade sônica
Corporalidades Negras em Festa: relatos de viajantes estrangeiros 110
no Rio de Janeiro do século XIX
(Ins)Urgências Poéticas: Bk’ e o endereçamento no rap 116
contemporâneo
Conexões entre Locos de Rua e Torcidas de Futebol: a musicalidade 122
da Fanfarra Festiva Tricolor e do bloco da Urubuzada
GT 4 126
EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS E CONTAÇÃO DE
HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
A Formação das Expressões Socioculturais da Comunidade 127
Pesqueira Artesanal de Arraial do Cabo, Região dos Lagos/RJ:
“ser cabista é ser pescador”
Memórias do Povo Indígena da Etnia Puri: identidade(s) e 133
ressurgência
Histórias com Cheiro de Barro E Tanino 138
Narrativas de Marcelo Reis e as Memórias de um Legado Musical 143
Geracional
Memórias e Práticas Culturais na Sociedade Musical Usina Santa 149
Maria (SMUSM)
GT 5 156
A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA:
MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
A Presença da Música Cortesã de Matriz Europeia na Laje do 157
Muriaé do Último Quartel do Século XIX: uma conquista da mente
e uma conquista de mentes na região Noroeste Fluminense
Memória e Resistência da Lyra de Apollo: aspectos histórico- 163
musicais da banda campista no século XX
GT 6 169
MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Conexões entre o Ensino de Música em Aulas On-Line em Grupo e 170
a Saúde Mental dos Discentes: diálogos no “novo normal”
Musicoterapia em Grupos com Autismo: relato de experiência 177
GT 7 184
POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Arte e Interdisciplinaridade: a inserção de saberes e a expressão 189
de emoções através de ferramentas musicais
O Papel da Música na Educação Infantil: uma experiência 194
criadora
Bois Pintadinhos: apontamentos para uma investigação acerca 201
de aprendizagens informais em música
GT 8 207
EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
“Há Muito Tempo Atrás, na Velha Bahia”: Raul Seixas, habitus, 209
identidade e juventude na Salvador dos anos 1950 e 1960
Ascensão e Queda de Celly Campelo: uma análise sociológica 214
Apresentação

O Grupo de Estudos e Práticas Musicais (GEPMU) da UENF é uma organização


interdisciplinar de pesquisa que se propõe a investigar as expressões musicais e
artísticas presentes na cultura brasileira, incluindo a experimentação dos processos
de musicalização e as práticas musicais a ela relacionadas. Nesse sentido, o GEPMU/
UENF busca valorizar a percepção do indivíduo a partir de sua experiência e formação
musical, podendo esta ser de caráter formal ou não formal.
Atualmente, o GEPMU é coordenado pelo professor Giovane do Nascimento, doutor
em Políticas Públicas e Formação Humana, que atua na área de Fundamentos da
Educação, tratando de temas relacionados à percepção, cultura e criação. Conta
com a participação de graduandos, pós-graduandos dos programas de Cognição
e Linguagem (UENF), Políticas Sociais (UENF) e de diversas instituições de ensino
superior do país.
O grupo objetiva promover espaços de discussões, favorecendo uma formação que
inclua a percepção do indivíduo e a prática musical como um projeto multiplicador
para o preparo de futuros pesquisadores e educadores. Com a finalidade de reunir
pesquisadores, estudantes, artistas e mestres da cultura popular das mais diversas
expressões culturais que integram não só a região Norte Fluminense, mas a cultura
musical brasileira, a I Jornada Interdisciplinar de Expressões Culturais marcou os sete
anos de existência do GEPMU, com o tema: “Estudos, Práticas e Saberes Musicais:
aproximações entre o científico e o popular”.
Em 2021, com a organização das(os) pós-graduandas(os) pertencentes ao Grupo
de Estudos e Práticas Musicais (GEPMU) e aos programas de Cognição e Linguagem e
Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), foi
possível a realização da I Jornada Interdisciplinar de Expressões Culturais, em edição
remota, que contou com 8 Grupos de Trabalho (GTs), compostos por pesquisadores
de todo o país. O intuito das discussões desenvolvidas nos GTs foi diversificar as
temáticas nos espaços em que foram abordadas e proporcionar a experiência de
coordenação de GTs para alunas(os) e profissionais em diferentes etapas de suas
carreiras acadêmicas.
Com a intenção de guardar as memórias desse evento científico que colaborou
com ricas discussões em torno dos fazeres culturais, numa perspectiva da
interdisciplinaridade, o GEPMU encontrou a forma de e-book para esse registro. Assim,
esta coletânea de textos aqui agrupados, a partir dos temas dos Grupos de Trabalho
(GTs), torna-se cara e importante para os participantes da I JINECULT, coordenadores
de GTs, autores de textos apresentados, nossos convidados para as mesas, rodas de
conversa e todos que fizeram dessa jornada um grande evento, o qual celebrou e
engrandeceu a cultura brasileira popular.
Apresentação

À vista disso, este e-book foi construído com os trabalhos apresentados durante
a I JINECULT, o que nos faz rememorar discussões que expandiram os debates e
proporcionaram uma visão mais ampliada da cultura e reconhecer que é possível
aproximar o científico do popular, o nosso maior propósito. Comemoremos, portanto,
essa conquista coletiva!

8
Agradecimentos

Nesta oportunidade, não podemos deixar de agradecer às pessoas que tornaram


possível a realização da I JINECULT. Foram várias mãos trabalhando juntas e com grande
intensidade antes, durante e ainda após o evento, tornando-o, assim, uma realidade.
Dessa forma, agradecemos a toda a equipe GEPMU/UENF e aos nossos apoiadores:
UESI, PPGPS, PPGCL, Assessoria de Cultura da UENF e EdUENF.
Um agradecimento especial à equipe da Rádio IFF Educativa: Saulo Queiroz
Nascimento, André Soares Velasco e Diego da Silva Sales, determinados na cobertura
e transmissão simultânea de todas as mesas e rodas de conversa pelo canal do
YouTube “Rádio IFF Educativa”. A vocês que foram incansáveis, o nosso muito obrigado!
Agradecemos aos convidados para as mesas e rodas de conversa: Carlos Sandroni,
Luis Ricardo Silva Queiroz, Marcos Moreira, Richely Pinto, Caroline Araújo, Orávio de
Campos Soares, Kalyla Maroun, Neusinha da Hora, Neide da Hora, Lilian Sagio Cezar,
Clea Moraes Almeida, Júlia Dias Pereira, Tarianne Bertoza, Gilmar da Cruz Moraes, Marta
Chagas Medeiros, Ronalt Aguiar, Augusto Lima, Edinho Oliveira (in memoriam) e Elias
Alfredo. Vocês trouxeram, além de um simbolismo marcante, momentos expressivos
a esta I Jornada.
A toda a equipe organizadora: Elisabeth Soares da Rocha, Fernanda Morales, Giovane
do Nascimento, Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira, Karina Barra Gomes, Priscila
Gonçalves de Azevedo, Raquel Gomes, Rackel Peralva Menezes Vasconcellos e Wilson
dos Santos; vocês foram essenciais.
Mencionamos, também, os coordenadores dos Grupos de Trabalho, que tanto se
empenharam: Hermetac Leite dos Santos, Diego Bezerra Belfante, Joel Alves Bezerra,
Alissan Maria da Silva, Takna Mendonça Formaggini, Flávia Magalhães Barroso,
Rodrigo Rossi Morelato, Manuela Chagas Manhães, Sulamita Conceição Ribeiro,
Paula Aparecida Martins Borges Bastos, Thadeu de Moraes Almeida, Márcio Luiz Mello,
Nureane Menezes, Raquel Gomes, Hélio da Silva Júnior, Adler dos Santos Tatagiba,
Gustavo Landim Soffiati e Guintter Ferreira de Oliveira. O trabalho de vocês foi
fundamental para o sucesso da I Jornada, que se tornou referência para nós.
Lembramos, aqui, de todos os inscritos que, de alguma forma, participaram
e contribuíram para os debates nos GTs e dos pesquisadores de todo o país que
apresentaram seus trabalhos!
Por fim, nossa gratidão à EdUENF pelo apoio e editoração deste material, tornando-o
acessível à comunidade científica e aos interessados nos temas culturais aqui abordados.
Prefácio

Este material é fruto direto de um longo processo de inúmeros encontros realizados


num momento bastante delicado que afetou a todos nós, o período em que fomos
assolados pela pandemia mundial. O grande desafio era o de justificar, naquele
momento, o sentido de continuar a agir, a acreditar num mundo que se despedaçava
diante de nós. O sentimento de profunda falência das instituições, o descrédito em
relação aos projetos de futuro, o desprestígio da função da cultura e da educação se
faziam acompanhar de uma espécie de aligeiramento do sentido crítico do exame
que cada sociedade estabelecia em relação às formas instituídas de promover o
cuidado com seus membros, efetivados nas ações equivocadas, ou mesmo nas
omissões das autoridades, o que levou a uma situação-limite, promovendo, em
muitos casos, a morte de tantos queridos e os riscos sofridos por muitos de nós.
O Grupo de Estudos e Práticas Musicais (GEPMU), como tantas outras esferas da
sociedade, sofreu imensamente nesse período pela limitação das suas ações,
que se fundam, por princípio, no reunir, no aglomerar, no abraçar, enfim, no prazer
promovido pela presença. Os desafios impostos nos levaram a refletir sobre as
alternativas de construção de outros modos de vivências. Mas, de certa forma, o
que nos mantém vivos e nos faz alimentar “crenças” é a possibilidade de “criar”
algo “novo”, apresentar novas propostas de comunidade, sociedade, novos valores,
enfim, novas “formas de vida”, nas palavras de Wittgenstein. Essas novas “formas
de vida” estão diretamente ligadas ao modo como o humano se relaciona com
as significações imaginárias; evidentemente, esse percurso envolve a linguagem
entendida de uma maneira geral.
Cornelius Castoriadis já nos dizia que pensar a sociedade como autoinstituição
é abrir espaço para o tema da criação, de uma constante inventividade que se
constitui no traço essencial do ser humano. É importante observar que, ao instituir os
valores e normas, o humano institui igualmente a realidade, ou um mundo de coisas,
pois o mundo humano é constituído pelo que Castoriadis denomina de significações
sociais imaginárias. E elas são assim chamadas por não serem totalmente racionais
ou resultado de uma construção lógica; e, por outro lado, não são igualmente reais,
tendo em vista que não se originam da realidade, ou das coisas.
Ora, se não estão inteiramente submetidas às ideias racionais tampouco aos objetos
naturais, elas são criações do indivíduo, relacionam-se diretamente com a realidade
em si, mas também com a imaginação; no entanto, cumpre notar que, embora
expressas pelo indivíduo, essas significações jamais têm apenas sua dimensão
individual, porém devem ser entendidas como imaginário social. Em outras palavras,
as criações sociais não podem ser pensadas por um só indivíduo, embora ele seja
um autêntico representante dessa sociedade, na medida em que ele porta em si o
Prefácio

todo dessa sociedade; além disso, o que é instituído socialmente não se dá por um só
indivíduo, mas é um resultante do que Castoriadis irá chamar de coletivo anônimo1.
Nesse sentido, buscamos materializar, de alguma maneira, as mais variadas
formas de expressões culturais através da nossa I Jornada de Expressões Culturais
(JINECULT), realizada on-line. Os textos que vêm a seguir reúnem, na medida do
possível, a riqueza das discussões dos mais variados estilos, formas e modos de
vida tendo como base principal as culturas brasileiras. Cuidando de não cometer
o equívoco de uma hierarquia de saberes, ou mais ainda, evitando estabelecer
distinções qualitativas entre “saber” e “conhecer”, promovemos uma interlocução
que contemplasse os fazedores de cultura numa horizontalidade capaz de nos trazer
o fulcro do fenômeno cultural apresentado, em muitas situações, pela potência e
autoridade do(a) griot, do(a) sambista, do(a) fadista, do(a) jongueiro(a), de músicos,
musicistas e mestres(as) de bandas civis. Desse modo, chegamos a esse resultado
que muito nos orgulha e acreditamos ser uma forma justa de se estabelecer um
diálogo para, a partir deste, sermos fortalecidos por um modo democrático desde
sempre praticado nos terreiros, guardando a dimensão comunitária, em que canto,
dança e percussão formam um todo. É importante registrar a fecunda parceria
entre a Universidade Estadual Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e o Instituto Federal
Fluminense de Campos dos Goytacazes, sobretudo devido ao belíssimo trabalho
realizado pela Rádio IFF Educativa, que nos permitiu o contato com os mais variados
lugares do Brasil. Foi através desse modo de organização que nos deixamos construir
pelas ações desse processo, iniciado e mantido pelo grupo de estudos — composto
por pesquisadores(as), mestres(as) e fazedores(as) de cultura em geral. O trabalho
se estabeleceu, por diversas mãos, nos moldes de uma auto-organização e
autorregulação coletivas para, quem sabe, ser início de tantas outras ações a serem
desenvolvidas no trajeto do nosso coletivo anônimo.

Giovane do Nascimento.

1
Cornelius Castoriadis. Uma sociedade à deriva. São Paulo: Idéias e Letras, 2006, p. 65-67.

11
GT 1

MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E
IDENTIDADE CULTURAL
Coordenadores: Diego Bezerra Belfante (Universidade Federal do Ceará), Hermetac
Leite dos Santos (Universidade Federal do Ceará) e Joel Alves Bezerra (Universidade
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).

O GT propõe promover debates sobre a relação entre oralidades/musicalidade afro-


brasileira e identidade cultural, enfocando as práticas da cultura popular, relações
identitárias culturais, processos de ensino/aprendizagem formais e não formais de
música afro-brasileira, por meio das relações entre o oral e o escrito. Buscamos
apresentar o espaço para trabalhos focados em discussões sobre as disputas pela
legitimidade e inserção social das práticas culturais afro-brasileiras de forma a pensar
as suas múltiplas temporalidades. Nosso objetivo é principalmente promover debates
sobre a sociedade brasileira por meio de trabalhos que utilizem como fonte para suas
indagações musicalidade e performance, com enfoque para pluralidade cultural
brasileira no reconhecimento dos saberes populares e investigação de suas práticas
culturais, bem como dos seus processos de ensino-aprendizagem musical. O grupo
pretende assegurar a interlocução de forma interdisciplinar aprofundando debates
e propiciando um espaço à construção de saberes musicais, históricos, culturais e
sociais da musicalidade afro-brasileira e seus processos de reconhecimento, tão
fundamentais para a construção de uma sociedade culturalmente democrática.
Mestre Juvenal Tocador e a Capoeira Insubmissa: a
musicalidade da capoeira como forma de resistência

Diego Bezerra Belfante


Universidade Federal do Ceará

Resumo

Na década de 1940, entre os mestres de capoeira renomados da Bahia, estava o


Mestre Juvenal Tocador. Ele era tão famoso ao ponto de, para além de menções
feitas por mestres e intelectuais baianos da época, ter sido entrevistado, no ano
de 1948, pela Revista Cruzeiro, a mais importante do país naquele período, em
que é chamado de “o rei da capoeira”. Para mais, foi um dos mestres de capoeira
procurados pelo linguista norte-americano Lourenzo Turner para a realização de
gravações de cantigas populares de origem africana. Também é notável como ele
circulava com figuras de grande prestígio e reconhecidas, como Samuel Querido de
Deus e Noronha, tendo boas relações com vários mestres. Com o passar das décadas,
Juvenal foi caindo no esquecimento. Buscamos apresentar hipóteses que ajudem a
pensar o que na sociedade brasileira possibilita o esquecimento de agentes culturais
antes vistos como importantes, e agora, pouco ou nada significam. Na tentativa
de entender como se forma a identidade nacional brasileira, partimos da seguinte
suposição: mestres que expressassem sem medo suas africanidades e sua atitude
insubmissa poderiam sofrer uma tentativa deliberada de apagamento de suas
memórias. Lembremos que em 1964 o golpe cívico-militar inaugurou uma ditadura
que perdurou até 1985. Uma das atitudes que a ditadura teve em relação à capoeira
foi a tentativa de tutelamento. Tendo maior ou menor êxito com certos mestres. Para
aqueles que fossem insubmissos, o que o regime reservaria?

Palavras-chave: Memória e esquecimento. História do Brasil. Identidade nacional.


Capoeira insubmissa. Mestre Juvenal.

Introdução

Quando falamos sobre a capoeira e seus antigos mestres famosos, recordamos


nomes como Bimba, Pastinha, Waldemar, Leopoldina, João Pequeno, João Grande,
Traíra, entre outros. São nomes conhecidos na comunidade dos capoeiristas e
mesmo fora dela. Suas histórias se misturam com a da capoeira ao ponto de serem
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

confundidas, tornando impossível que se fale sobre a capoeira sem falar sobre
esses mestres. No entanto, nem todos os mestres que atuaram para que a capoeira
conseguisse subsistir e superar as perseguições estatais têm hoje seus nomes
reconhecidos. Muitos mestres tiveram seus nomes subsumidos da memória, sendo por
vezes apenas isso que restou desses mestres, seus nomes, que perderam seu sentido
para os capoeiristas de hoje. Outros nem mesmo possuem seus nomes conhecidos,
transformando-se em completos desconhecidos para as gerações atuais.
A lógica que rege a construção das narrativas de capoeira busca criar uma
consciência plena do passado, em que se constrói um todo coerente por meio de
uma consciência que tudo busca englobar. As lacunas não podem ser admitidas,
devem ser preenchidas com a imaginação para que o legado da capoeira seja
mantido. Assim, capoeiristas procuram fazer uma genealogia, por assim dizer, de
suas linhagens, de quais mestres seus mestres e os mestres deles aprenderam a
tradição. Mas nem sempre tal esforço é frutífero. As dinâmicas sociais, os trabalhos
da memória e os interesses transformam a capoeira. Estão sempre em ação, fazendo
com que acontecimentos e sujeitos antes vistos como fundamentais para capoeira
possam perder importância. Em ambos os casos, seus feitos e sua participação na
capoeira caíram nos domínios do esquecimento. Alguns em maior e outros em menor
grau sofreram um processo de apagamento da memória coletiva.

Tente fazer uma genealogia de discípulos e mestres, e você chegará a


uma surpresa. Algo inesperado. A linhagem de discípulo e mestre chega
quando muito até o começo do século XX. Talvez com muita boa vontade, nosso
rastreio chegará ao final do século passado, com algum capoeirista obscuro da
Bahia a quem não sabemos muito mais do que seu nome (BELFANTE, 2015, p.2).

Ao contrário do que se possa pensar, isso não se deu apenas com capoeiristas de
tempos remotos, quando capoeiristas tinham apenas a memória como forma de
salvaguardar a história da capoeira. Isso se deu também com mestres do século
vinte, tais qual o Mestre Juvenal Hermenegildo da Cruz. Um ativo capoeirista angoleiro
baiano até a primeira metade do século XX. Nosso ensaio busca tratar desse mestre
e suas relações com a capoeira e sociedade baiana nos meados do século XX. Na
década de 1940, ele possuía grande destaque na capoeira, sendo ligado a mestres
famosos, como Samuel Querido de Deus, imortalizado pela pena de Jorge Amado.
Em obras como “Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios da cidade de
Salvador” (1944), de forma breve o Mestre Juvenal também é citado, mas, com o
passar das décadas, esse mestre foi sendo esquecido. E é sobre esse processo que
falaremos brevemente neste pequeno texto.

14
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Desenvolvimento da pesquisa

Há muito ainda para se pesquisar sobre Mestre Juvenal. Nossa pesquisa só arranha
a superfície do mistério que resultou no seu esquecimento. Um dos registros que hoje
nos permite conhecer um pouco mais sobre o mestre é a gravação que este realizou
para o pesquisador Lourenço Turner no ano de 1940. Essa foi peculiar em comparação
com demais gravações que Turner efetuou com outros mestres de capoeira, como
Bimba. Geralmente, os mestres realizavam a execução de toques de capoeira e
cantavam cantigas tradicionais. Essa era, aliás, uma prática que acontecia na
presença de vários pesquisadores, como Simone Dreyffus, que gravou com mestre
Waldemar no ano de 1940, e Ruthe Lages, que fez gravações com capoeiristas baianos,
mas a gravação que Lourenzo fez com Juvenal se caracteriza pelos cantos de louvor
aos orixás. Era incomum que, nas gravações feitas nas décadas posteriores, mestres
de capoeira fizessem menção de forma aberta a elementos de religiões de matriz
africana. Juvenal não apenas mencionava, como não pareceu ter qualquer medo de
fazer, rompendo, assim, uma espécie de acordo velado.
Diferente de artistas e compositores consagrados, os mestres de capoeira pareciam
evitar citar diretamente os orixás em suas gravações. Algo que mudou aos poucos
já na década de 1980, ao ponto de, nos anos 2000, ter possibilitado que mestre
Toni Vargas gravasse um álbum inteiro dedicado a Obaluaê, seu orixá. Porém, em
1940 o preconceito e perseguição a práticas de matriz africana estavam na pauta
do dia. Com exceção de intelectuais que se apropriam de temas da religiosidade
africana para fazer, por assim dizer, arte, como o álbum Os Afro-Sambas, ver mestres
de capoeira falando tão abertamente sobre os orixás, e mais ainda gravando, não
seria algo visto com bons olhos pela sociedade. Assim, devemos supor que, se as
gravações feitas por Turner com Mestre Juvenal fossem transformadas na época em
um LP comercial, provavelmente gerariam um estardalhaço. Talvez a não adequação
ou não aceitação das regras do jogo fizeram com que Juvenal fosse, apesar de sua
fama, uma figura à margem. Corrobora essa nossa suposição a declaração de Mestre
Juvenal em sua entrevista a Cláudio Tavares, em que fez o seguinte pronunciamento
sobre a capoeira regional:

A Regional não é capoeira. Tem traços semelhantes a Angola. Tem


golpes adquiridos de outras lutas. Foi criado por um angoleiro dos velhos
tempos. A Regional só se conforma em pegar o adversário brutalmente no
ato de qualquer desinteligência. Fisicamente, não aplica a defesa sem que
não leve as mãos em cima do adversário. A capoeira de Angola tem golpes
para aplicar em qualquer adversário, estando solto ou segurando o angoleiro.
O capoeirista aplica a defesa sem pegar em seu competidor. Sei bem disso e
me orgulho de ter tido um mestre que me ensinou o grande valor da capoeira
de Angola. A verdade está no fato do capoeirista ser muito repentista e bom na
junta (O CRUZEIRO, 1948, p.12).

15
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Para Mestre Juvenal, a capoeira regional, na época apenas regional, se diferia não
apenas por suas características, mas por suas finalidades — sendo bruta, e não suave;
não agindo com malemolência e jogo de cintura; partindo para o enfrentamento
bruto, e não para a leveza. Assim, não se inserindo na lógica das táticas que agem
para subverter as lógicas dos poderosos (CERTEAU, 2010). Era como se Bimba
encarnasse a brutalidade, em contraste com os angoleiros, que, na luta de gato e
rato, sempre escapavam da caçada por sua destreza e esperteza. Em trecho mais
à frente da entrevista, Juvenal fala que a capoeira de Bimba seria para salões e
filhos de bacana, enquanto a Capoeira Angola seria a verdadeira capoeira. Isso não
significa que as contradições de Bimba fossem apenas a de ensinar capoeira para a
elite que perseguiu os capoeiristas. Bimba parecia estar ciente dessa contradição e
usava essa posição para finalidades de que sua visão sobre a capoeira necessitava:

Bimba tinha um entendimento do poder, de como podia se expandir utilizando a


classe média; por outro lado, ele tinha raiva do sistema: pouca gente sabe, mas
ele era militante do partido (comunista); não só militante, mas cabo eleitoral do
PC. Arregimentou toda aquela gente do candomblé e da capoeira do nordeste
de Amaralina. Em seguida ao golpe (de 1964), Bimba estava com medo de ser
preso (CAPOEIRA, 2000, p. 12).

Assim, Bimba estaria, segundo o que coloca Nestor Capoeira, agindo com
dissimulação, arregimentando aliados para difundir a capoeira, lutando para que a
prática saísse da ilegalidade. Enquanto isso, Juvenal e outros capoeiristas construíam
relações indiretas com o poder, buscavam a mediação dos intelectuais. Um jogo
em que se mostravam aos intelectuais em busca de apoio, ao mesmo tempo que
mantinham sobre si a aura de mistério e autonomia; penetravam no imaginário
social, desfazendo a imagem de desordeiros e construindo a do misticismo.
Na luta de táticas para legitimação da capoeira, não houve apenas um vencedor. Por
mais que a maneira que Bimba tenha construído seja a base para muito do que hoje
é a relação que a capoeira mantém com a sociedade, as bases do discurso sobre
a natureza da capoeira são a dos angoleiros. No entanto, nem sempre foi possível
aglutinar posições para construção da prática social da capoeira. Na disputa fora
da roda, perdeu Juvenal e ganhou Bimba. Essa capoeira mais de rua perdeu espaço
perante as academias de capoeira. E a figura de Juvenal foi esquecida.
Mas sua rixa com Bimba não significa que Mestre Juvenal estava desinteressado
em traçar relações agregadoras. Com capoeiristas angoleiros, a relação parece de
camaradagem, sendo citado por Jorge Amado, em seu “Bahia de Todos-os-Santos”
(1944), em conjunto com outros capoeiristas de Salvador, algo que parece influenciar
a forma como os pesquisadores atuais lidam com a figura de Mestre Juvenal. Talvez
isso decorra das poucas fontes que possuímos do mestre ou quem sabe a forma
como os intelectuais da década de 1960 enquadravam as relações dos mestres de

16
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

capoeira baianos do início do século XX. No entanto, ele buscava outros caminhos
para tal. Caminhos mais insubmissos.
Se a situação e possibilidades que Juvenal encontrava eram mais restritas, por
assim dizer, que as de Bimba, tudo piorou quando em 1964 os militares, em conjunto
com certos setores da sociedade civil, deram um golpe. E, diferente do que se possa
pensar, a ditadura demonstra interesse na capoeira, iniciando, assim, um processo
de tutelamento da capoeira. Devemos ter em mente que a legalização da capoeira
pode ter ocorrido nos idos dos anos de 1940. Mas a consolidação de sua legitimidade
diante da sociedade brasileira se deu durante os anos de 1960, durante a ditadura
militar. E esta buscou tutelar a capoeira limpando seus elementos subversivos. Tal
esforço não foi bem-sucedido, ou ao menos não por completo, mesmo assim deixou
marcas. Entre as marcas, podemos supor que mestres de capoeira com discursos
vistos como ameaçadores foram calados ou cooptados. Entre os discursos vistos
como perigosos estava a afirmação dos elementos de matriz africana da capoeira.
Assim como falas que induziam a noção de luta de classes. Juvenal se encaixava em
ambas. Por tanto, era um sujeito altamente subversivo.
Não podemos afirmar que o sumiço de sua memória foi devido a uma ação direta de
agentes da repressão estatal, mas podemos afirmar que o apagamento da memória
de Mestre Juvenal possui alguma relação com esse processo de tutela da capoeira,
o que auxiliou nesse acontecimento, uma vez que, como podemos notar, durante a
década de 1960, a memória de Mestre Juvenal era viva. Conforme a década de 1970
consolidava a interferência do regime militar, a memória de Juvenal ia caindo no
esquecimento. O trecho que se segue será uma tentativa de compreender como se
deu a investida do regime cívico-militar sobre a capoeira e a resistência que culminou
com a reafricanização da capoeira nos anos 1980. Na tentativa de perceber como a
figura de Mestre Juvenal foi, mesmo que timidamente, retomada pelos capoeiristas.
Assim, vamos focar esse processo de luta pelo simbólico na capoeira:

Na década de 70, ocorre algo significativo dentro desse processo, particularmente


no que se refere às relações entre os capoeiristas e o Estado. Em 1972 a capoeira
será reconhecida oficialmente como esporte, conforme portaria expedida pelo
Ministério de Educação e Cultura (MEC), iniciando se então um processo de
institucionalização e burocratização que visa promover sua homogeneização
a nível nacional. Nesse sentido procede-se à organização de torneios, à
elaboração de regras e à unificação dos golpes e contra-golpes, além de
estabelecer-se uma uniformização do método de graduação dos alunos com
base nas cores da bandeira brasileira (REIS, 2000, p. 125).

Nesse contexto, em que a capoeira estava sob a tutela da Federação Nacional


de Pugilismo e do Ministério da Educação e Cultura, buscou-se, por intermédio de
direcionamentos das federações, um apagamento das violências do passado, em

17
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

conjunto com a tentativa por parte do MEC de inculcar ideias de um patriotismo


ufanista acrítico da ideologia circundante na época, que defendia a democracia
racial de Gilberto Freyre como sendo o modelo de interação social no Brasil, negando,
assim, a existência dos preconceitos raciais.
Partimos da suposição de que uma forma de lidar com mestres que não entraram
na roda com a ditadura era a tentativa de subsumir com a memória do mestre. Por
vezes, isso deu certo; por vezes, não. O hoje famoso Mestre Pastinha teve sua academia
deslocada do prédio no Pelourinho para a Ladeira do Ferrão com a promessa de que
seria provisório, só durante o período que durasse a reforma, o que não aconteceu.
Mesmo com a tentativa de apagamento, a memória de Pastinha sobreviveu. Pastinha
era grande demais para isso. Mas aparentemente Mestre Juvenal, da década de 1960
em diante, não tinha essa mesma envergadura. E, como o mestre parecia não temer
uma espécie de acordo velado de não se pronunciar sobre certos temas, não é difícil
imaginar que ele não representava a capoeira que a ditadura desejava.

Conclusões

Ao analisarmos a trajetória de figuras como Mestre Juvenal, podemos discutir e


pensar sobre os processos de exclusão social que grupos sociais e suas práticas
socioculturais sofrem. Ao vermos como, por vezes, a sociedade e o Estado brasileiros
atuaram na busca de limar aspectos culturais de matriz africana da cultura nacional,
ao mesmo tempo que negavam o racismo estrutural que compõe nossa sociedade,
podemos compreender parte do processo formativo da nossa sociedade, o qual
coopta agentes dessas mesmas práticas que deveriam se sujeitar a um tutelamento
que buscava retirar qualquer elemento contestador se quisessem ter apoio para suas
práticas. Estas seriam utilizadas como forma de difusão e propaganda do regime
militar, ajudando a consolidar interna e externamente a ideia de que o Brasil é o país
da democracia racial. No entanto, no meio do caminho, existia uma pedra, ou melhor,
resistência de figuras como Mestre Juvenal, que deveriam, assim, ser eliminadas pelo
esquecimento, talvez. Mas, diferente do que se possa pensar, sua derrota no passado
não significou a impossibilidade de que no futuro esses sujeitos possam servir como
fonte de inspiração nas lutas.

Referências bibliográficas

ACUÑA, Mauricio. A ginga da nação: intelectuais na capoeira e capoeiristas


intelectuais. São Paulo: Alameda, 2014.

18
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

AMADO, Jorge. Bahia de todos-os-santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade
de Salvador. São Paulo: Martins, 1944.

BELFANTE, Diego Bezerra. Já diziam os velhos mestres que o berimbau é o mestre da


roda. Capoeira — Revista de Humanidades e Letras, v. 1, n. 3, p. 21-42, 2015.

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Janeiro: Record, 2001.

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Brasília: DEFER; Centro de Informação e Documentação sobre a Capoeira (CIDOCA/
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tradição. 2009. Tese (Doutorado em Letras) — PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2009.

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berimbau — 1940. [S. l.: s. n.], 18 dezembro 2015. 1 vídeo (36 min 22 s). Publicado
pelo canal Acervo da Capoeira. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=BCwE95VTwVc&gt. Acesso em: 10 out. 2020.

19
Caxambu de Andorinha: experiência do protagonismo
cultural no município de Jerônimo Monteiro
Jacyara Conceição Rosa Mardgan
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar o percurso desenvolvido pelo grupo
de cultura afro-brasileira Caxambu de Andorinha, localizado no sul do estado
do Espírito Santo, a partir das narrativas de seus brincantes, demonstrando o seu
protagonismo cultural na gestão do patrimônio imaterial brasileiro caxambu. A
pesquisa busca refletir a força motriz do grupo, no trabalho entendido como processo
de interculturalidade vivido, no qual o caxambu configura-se como estratégia de
valorização das representações socioculturais negras, a partir da manutenção e (re)
afirmação da memória, da identidade e pertencimento do grupo.

Palavras-chave: Caxambu. Cultura afro-brasileira. Protagonismo cultural.

Introdução

O trabalho busca apresentar o percurso do grupo Caxambu de Andorinha no processo


de valorização da cultura afro-brasileira através da (re)afirmação das memórias da
cultura caxambuzeira. Para melhor compreender a experiência vivida pelo grupo,
utilizamos análise e pesquisa de campo desenvolvida entre os anos de 2015 a 2019,
averiguando nexos entre os aportes teóricos e as práticas do grupo Andorinha que
materializam a performance do caxambu.
A estrutura deste artigo se constitui em três seções: 1. Apresentação do grupo
Caxambu de Andorinha; 2. Diálogos teóricos e narrativas caxambuzeiras; 3. Impressões,
apontamentos e novas perspectivas. O trabalho finaliza com a observação do
protagonismo cultural exercido pelo grupo Caxambu de Andorinha e sua experiência
de relevância cultural para o município de Jerônimo Monteiro.
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Fundamentação teórica

O Caxambu se constitui como uma prática cultural afro-brasileira, proveniente das


trocas vividas pelo negro bantu escravizado no período colonial brasileiro. Sua dinâmica
performática, entre o ritmo dos tambores, os versos metafóricos improvisados pelo
cantador jongueiro e respostas em uníssono pelo coro de dançarinos que giram em
volta dos tambores, representa em essência um ritual marcado pela espiritualidade,
ancestralidade, força e resistência da cultura afro-brasileira.
Reconhecido como patrimônio imaterial brasileiro pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2005, através de sua vertente Jongo do
Sudeste, o caxambu se traduz como importante marca simbólica cultural e de luta, que
tem por ferramenta os laços identitários da cultura e memória coletiva do povo negro
(MATTOS, 2009). O aporte teórico traçado pela pesquisa busca revisitar os conceitos
debruçados pelos autores Halbwachs (2006), Hall (2008), Walsh (2019), entre outros,
que dialogam com os apontamentos identificados na tradição caxambuzeira, como
ancestralidade, memória coletiva, pertencimento e identidade.
No percurso formativo do grupo Caxambu de Andorinha, é possível perceber
uma aproximação com o processo de interculturalidade, a partir do conceito
de decolonialidade abordado pela autora Catherine Walsh (2019), quando
observamos as experiências de trocas de conhecimentos “outros” vividas pelo
grupo. Tais conhecimentos, que durante muito tempo foram invisibilizados pelo olhar
estigmatizado de inferioridade proposto pelo sistema colonial, alimentado no discurso
do projeto neoliberal da modernidade, na perspectiva do trabalho protagonizado
pelo grupo Caxambu de Andorinha, são demarcadores no combate ao estigma da
inferiorização cultural, através de projetos de empoderamento, força e solidez na
reivindicação de espaços decoloniais de saberes, em que os modos de vida, falas
e cantorias do grupo são experienciados e projetados pelos próprios sujeitos que
constituem o saber.

Desenvolvimento da pesquisa

1.Apresentação do grupo Caxambu de Andorinha

Ao caminhar ladeada por capoeira e pasto, em uma estrada de chão de


aproximadamente 6 quilômetros até a segunda porteira que dá acesso à fazenda
Coqueiral, Dona Leir Silva descansa os passos e ganha novamente fôlego para
finalizar o percurso da caminhada ao encontrar, abrigado sobre uma colina
de pedra, o barracão do grupo Caxambu de Andorinha, do qual faz parte como
dançarina desde sua criação em 2009. “Eu venho sempre e não me canso... danço

21
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

porque eu gosto de estar com o grupo, lembra do passado, mexe com nosso interior
e faz bem, alegra o meu dia”.
Essa é a constante narrativa que ouvimos dos integrantes do grupo Caxambu
de Andorinha, um grupo cultural afro-brasileiro, reunindo aproximadamente
20 componentes das mais variadas idades, etnias e laços de parentescos,
todos frequentadores da Casa de Oração Imaculada Conceição1
— centro religioso de designação umbandista que, desde 2009, cede território para
que o caxambu possa ser tocado.
O líder espiritual e mestre caxambuzeiro Sebastião Azevedo dos Santos, em seu
relato sobre a origem do grupo, apresenta a relação entre as memórias do passado
e a vontade de (re)escrever o presente na constituição do grupo de caxambu.

Desde criança eu via caxambu. É! Eu conheci o caxambu quando eu era


criança. Eles tocavam lá na saída pro Alegre e em Boa Sorte, ... Um dia eu
vi aquilo e falei assim: “Eu vou fazer um trem desse”. Aí Messias e Zengo
apareceram com a ideia. Pedimos licença para entidade e fizemos o
caxambu aqui... Porque o caxambu é coisa do povo escravo, e é por isso
que nós fazemos o caxambu aqui, que é cultura que não pode esquecer.
(SANTOS, 2016).

2. Diálogos teóricos e narrativas caxambuzeiras

O mestre, ao relacionar a prática do caxambu com a cultura do negro escravizado,


expõe seu valor histórico-cultural enquanto demarcador da cultura afro-brasileira
e o institui como uma marca simbólica para o grupo, presente no percurso da
memória, que, de acordo com Pollak (1992), é entendida como um fenômeno social
construído coletivamente.
Assim, o grupo Andorinha compõe o caxambu a partir da dinâmica relação entre
passado e presente, tendo como ponto de partida a reorganização das referências
tradicionais estabelecidas pelos diferentes sujeitos que compartilham do espaço
social, a Casa de Oração Imaculada Conceição, e se interrelacionam na constituição
de laços ancestrais, os quais, segundo Muniz Sodré (1979), manifestam-se através
de ritos e mitos percebidos nos espaços de culto, no caso do negro em diáspora,
assim como nas experiências vividas em práticas culturais afro-brasileiras como o
caxambu, estabelecendo a manutenção da linhagem que os une enquanto grupo e
os fortalece enquanto indivíduos.

1
SILVA, Leir, Transcrição 2. [20/01/2016] Entrevistador: Jacyara Conceição Rosa Mardgan – Alegre/ES,
2016. arquivos mp3 (2h 20 min 23 s).

22
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

3. Impressões, apontamentos e novas perspectivas

É possível verificar, no trabalho do Mestre Sebastião e do coordenador do caxambu


José Ronaldo Rangel Cardoso, conhecido como Zengo, ações e projetos que articulam
a valorização e perpetuação da prática do caxambu, por meio de um protagonismo
cultural estabelecido pelo engajamento do grupo em um viés social e político. Ações
como a participação em editais de fomento e projetos socioeducativos se destacam e
direcionam o trabalho do grupo para o desenvolvimento de iniciativas educativas, em
que sua preocupação se constitui na busca por ampliar os espaços de interconexão
com as práticas culturais existentes no município visando sua valorização. Dessa
forma, intercâmbios culturais são criados: o grupo recebe em sua sede a visita de
organizações culturais de Folia de Reis, Bate-Flechas, Boi Pintadinho e outros grupos de
caxambu da região, ao mesmo tempo que os prestigiam em apresentações externas.
No ano de 2018, o grupo foi contemplado, no Edital da Secult, com o projeto “Valorização
de Saberes Culturais”, uma proposta de ensino e transmissão de conhecimento da
cultura afro-brasileira, em que uma série de atividades voltadas para o ensino da
música, dança e conhecimento da prática cultural caxambuzeira foram desenvolvidas
em espaços de ensino, desde orientações e capacitações para educadores até
atividades de oficinas orientadas por integrantes do grupo, direcionadas ao ensino
de crianças, jovens e adultos.

Conclusões

O grupo Caxambu de Andorinha, em seus 12 anos de história, cumpre o papel


demarcador da cultura afro-brasileira na região de Jerônimo Monteiro. Na visão
emancipadora do mestre caxambuzeiro Sebastião e na experiência ativa de seus
brincantes, o grupo Andorinha constitui a prática do caxambu como um território de
memórias e saberes culturais.
Reverberando em diferentes contextos culturais, compreendidos em eventos internos
e externos ao município de Jerônimo Monteiro, o grupo Caxambu de Andorinha
assume o papel de protagonista na atuação cultural do município ao reivindicar, em
seus projetos e ações socioeducativas, a garantia de direitos culturais na perspectiva
da tradição afro-brasileira, tarefa extremamente difícil perante as barreiras dos
preconceitos cultural, racial, social, religioso e político para com as práticas culturais
populares de matrizes africanas, enfrentadas hodiernamente pela população afro-
brasileira subalternizada devido à história de desigualdades no país. Nesse sentido,
reverberar o trabalho desenvolvido pelo grupo Caxambu de Andorinhana mobiliza a
(re)afirmação da memória, identidade e pertencimento da cultura negra, por isso se
faz necessário para que outros grupos possam ser tocados. Como narra a integrante

23
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

do grupo Dona Marinete da Silva: “Caxambu é sarna, né. Pega na gente! É bom demais,
e eu peço a Deus que ele não pode acabar não. É por isso que nós dança”2.

Referências bibliográficas

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo:


Centauro, 2006.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG, 2008.

MATTOS, H e A.M. Pelos caminhos do jongo e do caxambu. História, Memória e


Patrimônio, v. 1. Niterói: UFF NEAMI, 2009.

SODRÉ, Muniz. Samba o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. (Coleção
Alternativa)

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento e


posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da
Faculdade de Direito de Pelotas, v. 05, n. 1, p. 34, 2019.

2
SILVA, Marinete da. Transcrição 2. [20/01/2016] Entrevistador: Jacyara Conceição Rosa Mardgan.
Jerônimo Monteiro.

24
Identidade e Memória Afro-amapaense na Poética
dos Versos do Batuque Raízes do Bolão
José Helder de Sousa Brandão
Universidade Federal do Amapá

Resumo

A proposta deste projeto de pesquisa visa identificar, através da poética dos versos
das bandaias, cantigas do batuque afro-amapaense, a presença da identidade e
memória da cultura comunitária do quilombo Curiaú/Cria-ú. O enfoque principal é
analisar os versos do batuque afro-amapaense do grupo Raízes do Bolão, através da
relação entre música e literatura, ambas as artes como registro poético, documento
identitário e linguagens que se complementam. Identificaram-se, por meio dessa
relação, os elementos que representam a continuidade das tradições ancestrais
de matrizes africanas, formadoras da cultura das comunidades afro-amapaenses.
Este projeto de pesquisa busca também colaborar para o melhor entendimento
das diferenças entre o batuque afro-amapaense e o Marabaixo, duas grandes
manifestações culturais, celebradas com base nos santos do catolicismo e com
elementos de origens africanas, pertencentes à cultura do estado do Amapá.

Palavras-chave: Batuque afro-amapaense. Música. Literatura. Identidade. Memória.

Introdução

O Amapá é um estado que tem na sua cultura muitas particularidades e diversas


manifestações culturais, dentre as quais destaca-se o Ciclo do Marabaixo, evento
que compõe o calendário cultural do estado, organizado e realizado pelas famílias
tradicionais das comunidades afro-amapaenses. O Ciclo do Marabaixo tem como
base as festividades celebrando os santos do catolicismo com elementos de origens
africanas. Em destaque, há as festas com louvor ao Divino Espírito Santo e Santíssima
Trindade e ao glorioso São Joaquim, padroeiro da comunidade do Curiaú (Cria-ú). O
batuque afro-amapaense e o Marabaixo são expressões culturais que se fundem e
dialogam, conectadas em diversos aspectos: cultural, religioso, profano, lúdico e musical.
Durante todo o período de festividade, o batuque e o Marabaixo têm apresentações
similares, mas que se diferem mais especificamente como ritmos tocados e cantigas
entoadas durante a celebração do ciclo, cada um com suas particularidades.
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

O Marabaixo, quanto ao ritmo, basicamente se caracteriza por ser musicalmente


mais cadenciado, mais de lamento e de saudosismo por representar os negros
aprisionados. Por isso, seus movimentos são circulares, simulando os pés dos negros
escravos acorrentados; suas cantigas e versos são denominadas “ladrões”. O Batuque
(afro-amapaense) se apresenta como o ritmo festivo, mais alegre, mais ritmado e
acelerado por representar os negros libertos; suas cantigas e versos são conhecidos
como “bandaias”. Ednaldo Tartaglia (2021) descreve: enquanto no Marabaixo as
danças lembram os negros acorrentados, com ritmo mais lento, no Batuque as danças
são alegres, com ritmo mais acelerado. Quanto às cantigas, Videira (2010) aponta as
seguintes definições: nas práticas de Marabaixo, elas são chamadas de “ladrões”;
já no Batuque, recebem o nome de “bandaias”, ou “cantiga de Batuque”. São rimas
produzidas no improviso com os fatos ocorridos dentro da comunidade negra.
Desse modo, chama atenção a poética do Batuque afro-amapaense do grupo
Raízes do Bolão, considerando o ritmo da música e a poesia dos versos cantados
nas suas bandaias ou cantigas de Batuque. Por esses constituintes representarem a
essência do canto coletivo, legitima e evoca a preservação da identidade, memória
e territorialidade cultural do povo afro-amapaense. Portanto, essa condição mobiliza
um maior conhecimento a respeito da cultura das comunidades afrodescendentes
amapaenses. Portanto, usando como recurso norteador para esta pesquisa a relação
entre música e literatura, abordaremos o Batuque afro-amapaense quanto música e
linguagem literária dada sua importância histórica, de resistência e marco territorial
da cultura afrodescendente do estado do Amapá.

Fundamentação teórica

O Amapá é um estado que apresenta uma riqueza cultural diversa. Dentre tantas
manifestações culturais amapaenses, destaca-se o Ciclo do Marabaixo. Festividade
realizada por famílias tradicionais afro-amapaenses que vivem em comunidades
por quase todo o nosso estado. O Ciclo do Marabaixo celebra os santos católicos
seguindo o calendário da igreja, utilizando elementos de origem africana como
tradição herdada de seus antepassados trazidos como escravos, durante o período
de colonização do norte do Brasil. Vale destacar o que diz Araújo (2016, p. 57) sobre o
Batuque e o Marabaixo, que “são danças cuja forte caracterização é o arrastar dos
pés no ritmo imposto pelos tambores, no sentido circular e anti-horário”.
A música caracteriza-se por alegria e espontaneidade e é o meio pelo qual
agradecem aos santos padroeiros intercessores pelas graças alcançadas. Também,
homenageia os negros antepassados que sofreram. A poética de ambos é muito
simples e reflete o cotidiano das comunidades e seus ressentimentos, suas afirmações
étnicas identitárias. Quanto ao Batuque, é relevante destacar que, segundo Araújo

26
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

(2016, p. 71), “assim como o Marabaixo, é uma festa dedicada aos santos concatenada
com rituais africanos”. Trata-se também de um dos gêneros musicais africanos mais
conhecido do Brasil. Por todo o nosso território, existem comunidades negras que se
manifestam cultural e religiosamente através do Batuque. No Brasil, é expressado de
diversas formas e teve origem nos cultos aos orixás.
Originalmente, o termo Batuque não era utilizado pelos negros. Esse era o termo
que os brancos usavam para identificar os negros nesses rituais religiosos. Segundo
Wisnik (2006), a poesia é a arte da palavra, a palavra articulada através da voz de
forma cantada, ritmada, e sendo interpretada como poema desde a antiguidade,
originalmente chamada de canção. A palavra tem poder migratório e tem aporte na
melodia e no ritmo, quando se encontra no ambiente musical, cantada como letra de
música. Música e literatura são artes diferentes, mas que se aproximam nas relações
dentro dos contextos poéticos e históricos.
Dessa forma, contextualizando nossos ritmos tradicionais, Batuque e Marabaixo,
como canções populares, encontramos música e literatura se completando através
de narrativas e sonoridades, como representação poética da memória, da identidade
e da cultura de uma determinada comunidade. Destacam-se, aqui especificamente,
as comunidades negras quilombolas e afro-amapaenses que buscam, por meio
da arte e da produção cultural, um caminho à identidade e ao reconhecimento das
tradições afrodescendentes em nossa sociedade. O Batuque afro-amapaense e o
Marabaixo são duas expressões culturais, bastante difundidas nas comunidades
quilombolas do Amapá, onde os versos reproduzidos através da música propiciam
rimas e enredos referentes à história desses povos, contribuindo, desse modo, para
criação de um ambiente de manutenção e preservação da memória e dos traços
que revelam a trajetória da construção da identidade negra, paralela ao processo de
desenvolvimento da sociedade em nosso estado.
Conforme observa Thiago de Oliveira Pinto, “as músicas e os ritmos produzidos nos
eventos tradicionais das populações negras do estado do Amapá são tão originais
quanto sugerem os seus nomes, Marabaixo, Sairé ou Zimba. Mesmo o Batuque, no
único remanescente de antigo quilombo no estado, o Cria-ú, diverge em muitos
aspectos dos Batuques do sul do país” (PINTO, 2000 apud VIDEIRA, 2010, p. 77). Tomando
como base essa assertiva, a proposta de pesquisa apresentada no bojo deste projeto
investiga, sob a perspectiva da música e da literatura, o papel da poética dos versos
do Batuque Raízes do Bolão no processo de identidade e memória da cultura afro-
amapaense. Espera-se, assim, desenvolver uma pesquisa que demonstre a riqueza
da musicalidade e das narrativas existentes na poética das bandaias, ou cantigas
de Batuque, na construção da cidadania e da memória coletiva, além de difundir e
preservar traços culturais e de subjetividade de um determinado grupo social, bem
como mobilizar o entendimento da importância da cultura afro-amapaense para o
processo de construção da identidade do povo brasileiro.

27
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Desenvolvimento da pesquisa

A pesquisa será de natureza qualitativa, envolvendo uma abordagem etnográfica,


considerando a necessidade de abordar um fenômeno que envolve práticas culturais,
pois é assim que se entende a poética dos versos do Batuque afro-amapaense,
manifestação cultural pertencente ao povo do estado do Amapá, oriunda das
comunidades tradicionais afrodescendentes. A pesquisa será realizada em duas
etapas: a) investigação baseada em pesquisa bibliográfica a partir da leitura de
artigos, livros, periódicos, dissertações e teses sobre o assunto; b) coleta de músicas
cantadas no Batuque afro-amapaense, para que, assim, seja possível realizar análise
da poética dos versos das bandaias, ou cantigas de Batuque, com destaque para os
seguintes tópicos: enredo, ritmo e narrativa dos versos, música, memória, identidade —
elementos significativos para a compreensão e conhecimento a respeito do Batuque
afro-amapaense do grupo Raízes do Bolão, bem como dos aspectos composicionais
dessa manifestação cultural.

Conclusões

A referida pesquisa encontra-se na fase inicial. O pré-projeto de pesquisa


foi selecionado no PPGLET/UNIFAP 2021, curso de mestrado em Letras, área de
concentração Linguagens na Amazônia, linha Literatura, Cultura e Memória.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Marcos José Martins. O Batuque e o Marabaixo Protestante: panorama


musical do Quilombo do Mel da Pedreira. São Paulo, 2016.

ARAÚJO, Gessé Almeida. Poética(s): a criação artística em fricção com o(s)


tempo(s) presente(s). Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, set./dez. 2017, p. 111-120.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena.

COELHO, Tatiana Alberto; DINIZ, Raimundo Erundino Santos. Batuque, arte e educação
na comunidade quilombola são pedro dos bois. MARGENS - Revista Interdisciplinar.
v.10, n. 15, p. 133-149, 2016.

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Belo


Horizonte: Scrita, v.13, n. 25, p.17-31, 2009.

28
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

VIDEIRA, P. L. Batuques, Folias e Ladainhas: a cultura do quilombo do Curiaú em


Macapá e sua educação. Tese (Doutorado em Educação Brasileira) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2010.

WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras. 2006.

29
A Musicalidade da Capoeira e suas Conexões com
Outras Manifestações Afro-descendentes
Nicolas Catalni Zamboni Kiekebusch
Universidade Federal do Vale do São Francisco

Resumo

Dentre as várias manifestações afrodescendentes, encontra-se a capoeira, estilo


de luta/jogo muito conhecido por ser acompanhado de música. A música tem
uma grande importância nas rodas de capoeira, tornando-a muito importante de
ser entendida por aqueles que buscam estudar essa arte. Assim, por meio de uma
revisão bibliográfica e análise dos CDs de capoeira e de manifestações afins, conclui-
se que a música de capoeira carrega parte da própria identidade dos capoeiristas e
a percepção deles sobre o mundo e sua própria história.

Palavras-chave: Música de capoeira. Capoeira. Ancestralidade. Cultura afrodescendente.

Introdução

Ao longo da história, os humanos criaram várias formas de se expressarem, como


a música. A música pode ser definida como a arte de combinar os sons de maneira
harmoniosa e o produto dessas combinações. Como arte, a música é parte e, portanto,
fruto das várias culturas; logo, carrega parte da identidade de um povo, como pode
ser visto nas músicas de capoeira.
A capoeira é uma expressão cultural afro-brasileira interpretada de múltiplas
maneiras, como luta, jogo, dança, entre outros. Sua origem, mesmo etimológica, é
muito controversa em geral, inclusive entre capoeiristas; considera-se que ela foi
criada pelos escravos africanos no Brasil.
Assim, ela é influenciada pelas culturas africanas, já que ela é fruto de uma mistura de
lutas e manifestações desse povo e, até mesmo, dos afrodescendentes. Sua música
carrega parte de sua identidade, além de ser fundamental tanto na transmissão
da história da capoeira e lições de vida quanto na roda de maneira ativa, tornando
essencial entendê-la. Para tal, foi feita uma pesquisa de revisão bibliográfica, bem
como uma profunda análise de músicas e gravações diversas de capoeira, maculelê
e puxada de rede, somadas à minha experiência de 15 anos como capoeirista.
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Fundamentação teórica

Dentre as várias manifestações afrodescendentes, encontra-se a capoeira. A


capoeira é uma manifestação afro-brasileira entendida, de maneira geral, como um
estilo de luta, jogo ou dança acompanhado por música, ainda que os capoeiristas
em si tenham uma análise muito mais profunda e até mesmo espiritual de sua arte.
Como dito anteriormente, a origem da capoeira é motivo de controvérsia, havendo
múltiplas discussões sobre o tema. Isso pode ser claramente percebido em trabalhos
como “A Capoeira Escrava no Rio de Janeiro” (1808-1850), de Carlos Eugênio Líbano
Soares, que discorre sobre a capoeira na primeira metade do século XIX no Rio de
Janeiro, e “Capoeiras e Valentões na História de São Paulo” (1830-1930), de Pedro
Figueiredo Alves da Cunha.
A origem de seu nome é razão de muitas discussões também, como Carlos Eugênio
demonstra na primeira parte do capítulo 1 de sua tese. De maneira geral, a teoria mais
popular de todas é a que a palavra “capoeira” vem do tupi ka’a pûer, que significaria
“o que foi mata”, denominação dada para o mato ralo crescido em uma área que
já perdeu sua mata virgem. Outro significado para “capoeira” é o nome do cesto
capoeira, que era carregado por escravos da cidade, carregadores estes também
chamados de capoeiras.
Habitualmente entre os acadêmicos, considera-se que a capoeira ou foi criada pelos
escravos nas capoeiras das fazendas, ou que foi criada nas cidades, sendo praticada
pelos carregadores de cestos nomeados capoeiras. Cunha (2011) também afirma
que poderia ser praticada nas capoeiras das cidades, assim como muitas práticas
africanas e afrodescendentes proibidas e perseguidas faziam. Além de haver essas
suposições, também há a de que ela teria sido criada em quilombos, inclusive no
Quilombo dos Palmares, ou até mesmo ser uma antiga luta de povos indígenas ou
de algum povo africano.
Entre os capoeiristas em geral, a explicação mais popular, como vista em várias
de suas músicas, é a de uma luta criada no ambiente das fazendas pelos escravos
africanos e, às vezes, criada nos quilombos, em especial no Quilombo dos Palmares,
ou pelo menos praticada lá pelos guerreiros e por Zumbi. Para mais, apesar de não ser
apontado como local de origem, é reconhecido como local de prática o Quilombo de
Camugerê, local cuja existência ainda não foi comprovada, mas sua história vive nas
rodas de capoeira em músicas como “Aidê Negra Africana”, de Marquinho Coreba, e
as de domínio público, “Ai, Ai Aidê” e “Batalha de Camugerê”.
Dessarte, assumindo uma origem africana, entende-se que a importância da música na
capoeira está desde antes de ela surgi. Na tradição fon os contos, que ocupam um papel
importante na própria educação tradicional africana, são contados sempre iniciando e
terminando com uma música, além de terem usualmente pelo menos uma música no
meio; sendo assim, como ele afirma, há o canto inicial, o canto do meio e o canto final.

31
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Mais que isso, a importância da música nas tradições africanas, bem como
afrodescendentes, também pode ser constatada em outros momentos e
manifestações, como nas músicas nos terreiros das religiões de matriz africana,
por exemplo, já que pode se verificar que a música está a todo o momento em
conexão com o povo de santo (CRUZ, 2018). Também poderia ser vista nas práticas
dos próprios escravos e trabalhadores livres, já que era muito comum se realizar um
serviço cantando, como faziam os carregadores de piano na Bahia, de acordo com
Fred Abreu, ou os pescadores quando iam fazer a puxada da rede no Xaréu, como é
registrado no CD “Viva Bahia, volume 1” do Conjunto Folclórico da Bahia de 1968.

Desenvolvimento da pesquisa

A partir da escuta ativa e da visualização de rodas, pode-se perceber que a capoeira


usa vários instrumentos musicais, os principais e mais comuns são o berimbau, o
pandeiro e o atabaque, além do uso da palma para acompanhar os instrumentos.
Já em “baterias” (como é chamado o conjunto de instrumentos da roda) mais
completas, utiliza-se o agogô e o reco-reco, porém podem ser encontrados outros,
como o triângulo, ainda que não comumente nem tradicionalmente.
Quanto à origem dos instrumentos utilizados, o pandeiro é o único que foi, possivelmente,
conforme Barbosa (2015), introduzido no Brasil pelos portugueses, os outros são
de origem africana, de acordo com Oliveira (2019), Lazzary (2017) e Sá (2013). Todos
são usados em outras manifestações afrodescendentes; por exemplo, no samba de
roda, há a presença de berimbau, pandeiro, atabaque e palma; no maculelê é usado
atabaque e agogô, além dos bastões/facões; na puxada de rede, usa-se o atabaque;
nos ritos do candomblé, também tem a presença do atabaque e do agogô.
Sobre as funções dos instrumentos, observa-se que, nos ritos do candomblé, são
utilizados três atabaques diferentes, um maior, um de tamanho médio e um menor,
cujos nomes variam, tendo cada um uma função. O maior faz as variações e solos,
o mediano serve de base para as variações do maior, e o menor complementa o
mediano na manutenção da base do toque. Essa configuração é semelhante à vista
na capoeira, que se utiliza três berimbaus, um de cabaça maior (gunga), um de
cabaça de tamanho médio (médio) e um de cabaça menor (viola), e cada um tem
uma função: o gunga determina o ritmo e o toque; o médio complementa o gunga;
enquanto o viola faz improvisos.
Com o tempo, foram desenvolvidos vários toques de berimbau, e alguns deles
acabaram por ganhar um jogo específico, como o de iúna, idalina e benguela. Outros
conquistaram ou foram criados com uma função específica, como o de amazonas,
o qual homenageia um mestre que vem de fora, e o de cavalaria, que alertava a
chegada da polícia. Atualmente, eles são, basicamente, o toque de Angola, de São

32
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Bento Pequeno, de São Bento Grande da Angola, de benguela (também chamado de


banguela, como foi nomeado por Mestre Bimba, seu criador), de São Bento Grande
da regional, de Santa Maria, de idalina, de iúna, de amazonas e de cavalaria.
Por meio de uma análise das letras, percebe-se que as canções de capoeira podem
ser divididas em cinco grupos diferentes, embora tradicionalmente divida-se em quatro
grupos: as ladainhas, as quadras, as chulas e os corridos, mas atualmente tem surgido e
se desenvolvido um quinto grupo, que eu chamei de complexas. As ladainhas, também
nomeadas de lamento e de louvação, são cantadas exclusivamente no início das rodas
de capoeira angola, caracterizadas por serem entoadas apenas pelo cantador, não
tendo coro ou divisão de estrofes, comumente longas e com pouca variação na letra,
mudando uma ou outra palavra. Em alguns casos com pequenas acreções de versos
e algumas expressões como “ai meu pai”, “aiaiai”, “ai meu Deus”, entre outros. Ainda,
costumam ser iniciadas com um “iê” e terminadas com “camará”, “camaradinha” e
“camaradinho”; um exemplo é a ladainha “Eu Já Vivo Enjoado”, como cantada no CD
“Capoeira Angola” por Mestre Pastinha e Sua Academia, de 1969 (ver Anexo 1).
Já as quadras têm uma configuração semelhante às das ladainhas, só que mais
curtas, tendo as mais longas uns 10 versos, com função parecida: a de dar início à
roda contando um fato, uma história ou apresentando uma lição de moral, de vida
ou reflexões, entre outras. Mas elas são exclusivas da capoeira regional, um exemplo
é “Iê Tinha um Vizinho”, registrada no CD “Curso de Capoeira Regional”, de Mestre
Bimba, 1962 (ver Anexo 2).
As chulas são concebidas diferentemente: elas são cantadas permutando cantador
e coro, um verso cada; às vezes, o cantador canta “iê”, às vezes usa um substituto
e diz alguma coisa como “iê, viva meu Deus” ou só “viva meu Deus”, entre outras
possibilidades; o coro responde invariavelmente cantando uma forma fixa (um “iê”, o
trecho do cantador e um “camará”, como o exemplo “iê, viva meu Deus, camará”). Nas
chulas, de maneira geral, o objetivo é prestar homenagem a alguém, como quando
se canta “iê, viva meu mestre/ iê, viva meu mestre, camará”, ou falar de elementos
do cotidiano, como “iê, água de beber/ iê, água de beber, camará” e “iê, goma de
engomar/ iê, goma de engomar, camará”, ou até componentes do jogo da capoeira
ou da vida, dependendo da interpretação, por exemplo: “iê, quer me vencer/ iê quer
me vencer, camará/”, “iê, na falsidade/ iê, na falsidade, camará”, “iê, faca de ponta/
iê, faca de ponta, camará/” e “iê, pode furar/ iê, pode furar, camará”.
Os corridos são os de configuração mais livre, constituem-se basicamente de
quatro partes, as quais identifiquei como o canto inicial, a parte fixa, o improviso
e o coro. O canto inicial tem a função de iniciar e introduzir o corrido, ele não está
presente em todos os corridos, mas pode ser criado, mesmo que originalmente o
corrido não exista, ou pode não ser cantado, mesmo que o corrido tenha sido feito
com essa parte. A parte fixa refere-se ao corrido propriamente dito, da letra dele,
mas também não é necessário cantá-la, já o improviso é aquilo que o cantador,

33
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

conforme vai cantando, inventa o que originalmente não tinha no corrido, podendo
ser até trechos de ladainhas e quadras ou algo que ele ouviu outro cantar, sendo
também de caráter não obrigatório. Por fim, há o coro, a única parte que sempre
ocorrerá e não é cantada pelo cantador, mas pelos outros participantes da roda,
sendo também a única realmente invariável, no sentido de não haver improvisos,
pois alguns possuem versões diferentes. Um exemplo disso é “São Bento Me Chama”,
do CD de Mestre Bimba, de 1962 (ver Anexo 3).
Nesse corrido, não há um canto inicial, ele já começa com a parte fixa, que é a repetida,
embora haja algumas variações. “São Bento Me Chama” conta com a presença do
coro “Ai, ai, ai, ai” e do improviso, “Aranha me puxa/ Mas me joga no chão/ Eh, castiga
esse nêgo/ Conforme a razão”. Um exemplo com canto inicial é “Quando Eu Morrer”,
cantada no CD “Capoeira da Bahia”, de Mestre Traíra, de 1963, transcrita parcialmente
(ver Anexo 4). Nessa, o canto inicial vai de “Quando eu morrer” até o penúltimo verso
da primeira estrofe.
Por fim, as complexas não seguem as estruturas já descritas, tratam-se de canções
compostas por uma letra fixa que varia tanto quanto as das ladainhas e quadras.
São cantadas nos mesmos momentos que os corridos, seguindo a permutação do
cantador e coro, e possuem uma estrutura de estrofes que geralmente tem 4 versos e 4
estrofes, fora o coro, mas podem ter outras quantidades. Não podem ser consideradas
corridos pelo fato de as estrofes serem, normalmente, longas e a estrutura da música
não permitir o improviso; um exemplo de uma complexa é a composta por Mestre
Paraná e cantada pelo próprio no seu CD (ver Anexo 5).
De todos, o corrido é o que mais demonstra conexões com a musicalidade escrava,
pois ele obedece a mesma estrutura vista em canções de outras manifestações,
como o maculelê, a puxada de rede e o samba de roda, inclusive compartilhando
essas artes com as cantadas pelos trabalhadores da Bahia, como é visto pelos
registros de Abreu:

“E, cuê…/ Ganhado/ Ganha dinheiro/ Pr’a seu sinhô” [carregadores não
especificados]; “Le, Ie, Ie, iaiá/ Vamos ri, vamos chora/ Que o vapo entrou na
barra/ O telegra fez sina./ [...]/ Água de beber,/ Ferro de engomar,/ Minha mãe
me deu/ foi pra me matar” [carregadores de piano]; “Tabaréu/ Que vem do
sertão,/ Vendendo quiabo,/ Maxixe e limão” [vendedores de verduras. Essa é
cantada ainda hoje nas rodas de capoeira] (ABREU, 2005).

Conclusões

Analisando a composição musical da capoeira, conclui-se que ela carrega um forte


traço cultural afrodescendente, uma vez que não apenas os seus instrumentos são
em sua maioria de origem africana, como também sua “bateria” segue uma lógica

34
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

semelhante à composição dos ritmos presentes no candomblé. Além disso, a estrutura


de suas canções guarda grande relação com as canções de outras manifestações
afrodescendentes, compartilhando, inclusive, algumas, como “Negro Nagô”, cantada
também em maculelê, “Ogum ê”, cantada em maculelê e em puxada de rede, e
“Tabaréu que Vem do Sertão”, que era cantada pelos vendedores de verduras na Bahia.

Referências bibliográficas

ABREU, Frederico José de. Capoeiras: Bahia, sec. XIX: imaginário e documentação.
Salvador: Instituto Jair Moura, 2005.

BARBOSA, Katiusca Lamara dos Santos. Marcos Suzano: inovações técnicas,


tecnológicas e influências na performance do pandeiro. 2015. 79 f. Dissertação
(Mestrado em Música) — Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015.
Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/18433/1/
KatiuscaLamaraDosSantosBarbosa_Dissert.pdf. Acesso em: 19 out. 2021.

CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo
(1830-1930). 2011, 341 f. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2011.

CRUZ, Eval. O papel ordenador da música nos rituais de religião de matriz africana.
Revista Horizontes Históricos, Sergipe, v. 1, n. 1, p. 50-63, 2018.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello.


Pequeno dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2015.

LAZZARY, Joseane Carmen Xavier. Tambores: das raízes africanas à musicalidade


no Brasil, 2017. 71 f. Dissertação (Pós-graduação lato sensu em História da África)
— Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2017. Disponível em: https://
repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/5720/1/joseanecarmemxavierlazarry.pdf.
Acesso em: 19 out. 2021.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires de. Urucungo de Cassange: um ensaio sobre o arco


musical no espaço atlântico (Angola e Brasil). Itabuna: Mondrongo, 2019.

SÁ, Pedro. A entrada do instrumento musical reco-reco no Brasil. Rio de Janeiro:


Biblioteca Alberto Nepomuceno, 2013. Disponível em: https://www.mvim.com.br/wp-
content/uploads/2020/01/reco-reco-no-Brasil_Paulo-Sa.pdf. Acesso em: 19 out. 2021.

35
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava no Rio de Janeiro, 1808-1850.


1998. 539 f. Tese (Doutorado em História Social do Trabalho) — Universidade Estadual
de Campinas, Campinas, 1998.

Anexo 1

Eu já vivo enjoado
De viver aqui na Terra
Ó, mamãe eu vou pra Lua
Falei com minha mulher
Ela então me respondeu
Nós vamos se Deus quiser
Vamos fazer um ranchinho
Todo cheio de sapé
Amanhã às 7 horas
Nós vamos tomar café
E que eu nunca acreditei
Não posso me conformar
Que a Lua vem a Terra
Que a Terra vai a Lua
Tudo isso é conversa
Pra comer sem trabalhar
O senhor, amigo meu
Veja bem o meu cantar
Quem é dono não enciúma
Quem não é quer enciumar

Anexo 2

Iê, tinha um vizinho


Oh, perto de mim, tinha um vizinho
Que enricou sem trabalhar
O meu pai trabalhou tanto
Nunca foi de enricar
Não deitava uma noite
Que deixasse de rezar, camará

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GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Anexo 3

Ai, ai, ai, ai


São Bento me chama
Coro: Ai, ai, ai, ai
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Aranha me puxa
Coro
Mas, me joga no chão
Coro
Eh, castiga esse nêgo
Coro
Conforme a razão
Coro
Ih, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Mas, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama

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GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro

Anexo 4
Quando eu morrer
Não quero grito nem mistério
Quando eu morrer
Não quero grito nem mistério
Quero um berimbau tocando
Na porta do cemitério
Com uma fita amarela
Gravação do nome dela
E ainda depois de morto
Oh, meu bem, Besouro Cordão de Ouro
Como é meu nome?
Coro: É Besouro
Como é que me chamo?
Coro

Anexo 5

Coro: Avisa meu mano


Avisa meu mano
Avisa meu mano
Que mamãe mandou lhe chamar

38
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Avisa meu mano


Avisa meu mano
Avisa meu mano
Que mamãe mandou lhe chamar
Eu mandei esse recado
Pela filha da vizinha
Você não apareceu
Ontem à noite na tendinha
Coro
Eu mandei esse recado
Você não apareceu
Quero que você me diga
O que lhe aconteceu
Coro
Eu mandei esse recado
Pela filha da vizinha
Você não apareceu
Ontem à noite na tendinha
Coro
Eu mandei esse recado
Você não apareceu
Quero que você me diga
O que lhe aconteceu
Coro
Eu mandei esse recado
Pela filha da vizinha
Você não apareceu
Ontem à noite na tendinha
Coro

39
A Afrocentricidade dos Povos Bantu na Cadência
do Samba: tagarelando as influências das artes,
sons, músicas, histórias, culturas e línguas de
origens africanas no chão da escola
Wudson Guilherme de Oliveira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Resumo

O presente trabalho é resultado de um plano de intervenção pedagógica que


pretende tratar das implementações das Leis Federais nº 10.639, de 2003, e 11.645,
de 2008, a partir de reflexões e influências dos povos Bantu no campo do samba no
ensino de História. Com uma turma do 1º ano do Ensino Médio, evidenciou-se uma
pedagogia antirracista e decolonial por meio de pesquisas, apresentações de vídeos,
sambas-enredos, ritmos, imagens de carros alegóricos, apresentação de instrumentos
musicais de origem africana e rodas de conversa, traçando e aplicando estratégias
sólidas para a contribuição da valorização e a construção das identidades negras
em prol da redução do racismo.

Palavras-chave: Educação étnico-racial. Samba. Valores civilizatórios afro-


brasileiros.

Introdução

É de fundamental importância rememorar que, há exatamente 18 anos, no mês de


janeiro do ano de 2003, ocorreu a sanção da implementação da Lei Federal 10.639/2003 , 2

a qual simbolizava, simultaneamente, “um ponto de chegada das lutas antirracistas


no Brasil e um ponto de partida para a renovação da qualidade social da educação
brasileira” (BRASIL, 2009, p. 9), que transmutou o Artigo 26 A da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDBEN). Assim, avançou e conquistou resultados reivindicados
pelos Movimentos Negros, estabelecendo a indispensabilidade do ensino de História e
Cultura Africana e Afro-brasileira, como mecanismo possível para propor mudanças
estruturais no sistema educacional brasileiro, em todos os currículos escolares da
Educação Básica.
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Figura 1 — Slide sobre a importância das Leis Federais

Fonte: Wudson Guilherme de Oliveira (professor).

Em 11 de março de 2008, a Lei 10.639/2003 foi substituída pela Lei 11.645/2008, que
torna obrigatório, também, o ensino ligado à História e Cultura dos Povos Indígenas
nos currículos oficiais da educação nacional.
Baseado nisso, o objetivo deste trabalho é apresentar reflexões comprometidas em
consolidar a efetivação dessas leis a partir da afrocentricidade presente nas criações
e nas múltiplas influências das escolas de samba do Rio de Janeiro, como modo de
dialogar (CABRAL, 1996) acerca da ancestralidade, história, cultura e língua dos povos
Bantu1, “grande conjunto de povos africanos disseminados do centro para o leste, sul
e sudeste do continente. Falantes de línguas semelhantes no Congo, em Angola, na
Tanzânia, em Moçambique, na África do Sul” (LOPES, 2008, p. 31). Dos quatro milhões de
indivíduos que foram forçados a atravessar o Atlântico, vindos do continente africano
para o Brasil, 75% desses corpos eram provindos dos territórios Bantu.

1
Para saber mais sobre o tráfico atlântico de corpos negros escravizados nos séculos passados, incluindo
mapas, estimativas e análises históricas relativas ao tema, acesse o site www.slavevoyages.org.

41
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Figura 2 — Slide sobre a migração dos povos Bantu

Fonte: The Nystrom Atlas of Word History/ arte de Wudson Guilherme de Oliveira (professor).

Vale destacar que esses grupos deixaram variadas contribuições históricas, culturais,
filosóficas e linguísticas, as quais estão impressas em nossa sociedade. Como
modo norteador, fizemos levantamento de fontes bibliográficas e históricas sobre
alguns sambas-enredos utilizados no carnaval carioca que utilizaram as palavras
do tronco linguístico Bantu, bem como as suas artes, culturas, sons, resiliências,
histórias e resistências. Além disso, recorrem a algumas características de outras
manifestações folclóricas que caminham junto com a religiosidade da cultura
afrodescendente, como os festejos religiosos, folguedos, danças e outros (GALVÃO,
2009), sempre amparados em metodologias sensibilizadoras, inspiradas nos “valores
civilizatórios afro-brasileiros” (circularidade, oralidade, corporeidade, energia vital,
religiosidade, ludicidade, musicalidade, comunitarismo, memória e ancestralidade),
partilhados por Azoilda Loretto da Trindade (2010).

42
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Figura 3 — Slide sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros

Fonte: Wudson Guilherme de Oliveira (professor).

1. No chão da escola, na cadência do samba

Com uma turma do 1º ano do Ensino Médio, composta por alunados jovens negros(as),
pardos(as) e brancos(as) inseridos em uma instituição privada de educação na
cidade do Rio de Janeiro, evidenciou-se uma pedagogia antirracista (GOMES, 2017)
e decolonial (WALSH, 2013). Isso foi possível a partir de pesquisas e apresentações de
vídeos, sambas-enredos, ritmos, imagens de carros alegóricos, instrumentos musicais
de origem africana e rodas de conversa, sempre amparados na afroperspectiva.
As ações afirmativas foram realizadas com a intenção de implementar as Leis
Federais 10.639/03 e 11.645/08 e as suas perspectivas, que acercam as histórias e
culturas africanas, indígenas e afro-brasileiras, para que sejam incorporadas nos
conteúdos curriculares do ensino de História.

43
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Figura 4 — Slide sobre a educação étnico-racial no chão da escola

Fonte: Wudson Guilherme de Oliveira (professor).

A metodologia empregada foi criada por meio de oficinas, rodas de debate, exposições
de livros de literaturas africanas, indígenas e afro-brasileiras, além de apresentações
de vídeos, textos e slides pautados na afrocentricidade. Tudo isso serviu de subsídio
para as trocas de ideias sobre as perspectivas das Leis Federais 10.639/03 e 11.645/2008,
o respeito e as contribuições dos povos Bantu, que imprimiram sambas-enredos, a
cultura do carnaval, a religiosidade presente em nossa sociedade, a diversidade e a
igualdade em prol da luta contra o racismo, “ideologia de superioridade racial que
tende a beneficiar as pessoas brancas” (MALOMALO, 2018, p. 491).
Durante as ações afirmativas, também emergiram novas discussões acaloradas que
questionaram e dinamizaram os conhecimentos sobre desigualdade racial, violência,
preconceito, ações afirmativas, gênero, racismo e intolerância contra os adeptos das
religiões afro-brasileiras. Outras intervenções epistemológicas e teóricas das ciências
sociais, humanas, jurídicas e da saúde foram consideradas, inclusive as produções
críticas das teorias do século XIX, que ainda são presentes no imaginário pedagógico,
teórico e social (GOMES, 2017).

Conclusões

Consideramos ser de suma importância descolonizar os pensamentos baseados em


moldes eurocêntricos, para que possamos revisar as correntes hegemônicas
presentes em nossa sociedade e, em especial, nos currículos utilizados no chão da

44
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

escola que se articulam na disciplina de História. Essas microações afirmativas


levantam reflexões acerca de uma educação étnico-racial cotidiana, combatendo
as propagações dos preconceitos, das discriminações nos espaços educacionais,
traçando e construindo estratégias sólidas para a contribuição da valorização e a
construção das identidades negras através do samba, em prol da redução do racismo.

Referências bibliográficas

BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Brasília: SECAD; SEPPIR, 2009.

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. Rio
de Janeiro: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

LOPES, Nei. História e cultura africana e afro-brasileira. São Paulo: Barsa Planeta, 2008.

MALOMALO, Bas’Ilele. Uma agenda pan-africanista na década internacional


de afrodescendentes. In: KOMINEK, Andrea Maila Voss; VANALI, Ana Crhistina (Orgs.)
Roteiros temáticos da diáspora: caminhos para o enfrentamento ao racismo no
Brasil. Porto Alegre: Editora Fi, p. 467-499, 2018.

TRINDADE, Azoilda Loretto da. O projeto político pedagógico na escola: aplicação da


lei 10.639/03. Rio de Janeiro: CEAP, 2010.

WALSH, Catherine. Pedagogias decoloniais: práticas insurgentes de resistir, (re)existir


y (re)vivir. Tomo I Serie Pensamiento Decolonial. Equador: Editora Abya Yala, 2013.

45
Diálogos Culturais no Norte Fluminense:
a Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã
Priscilla Gonçalves de Azevedo
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Fernanda Morales dos S. Rios
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense

Resumo

Este trabalho discorre sobre a aproximação entre duas expressões culturais do


Norte Fluminense — a Mana-Chica do Caboio, em Campos dos Goytacazes e o fado
de Quissamã — e pretende investigar sobre a oralidade como principal recurso
utilizado pelos grupos para a manutenção dessas práticas culturais até os dias
atuais. Como estratégia metodológica, esta pesquisa foi desenvolvida a partir de
uma abordagem qualitativa, utilizando-se essencialmente de um levantamento
bibliográfico sobre os temas abordados. O repertório musical dessas expressões
culturais é representado pelo canto retratando diversas temáticas que estão na
memória de seus integrantes. Suas coreografias possuem semelhanças e nos
remetem aos gingados dos nossos antepassados. Nesse sentido, esta pesquisa, de
natureza bibliográfica, propõe um diálogo teórico entre a Mana-Chica do Caboio
e o fado de Quissamã, abrangendo os processos de transmissão desses saberes
culturais a partir da oralidade.

Palavras-chave: Mana-Chica do Caboio. Fado de Quissamã. Oralidade. Influência


musical.

Introdução

O presente trabalho discute a respeito da aproximação musical de duas expressões


culturais do Norte Fluminense, são elas: a Mana-Chica do Caboio, do município de
Campos dos Goytacazes, e o fado de Quissamã. Pretende-se averiguar a inserção
da oralidade como principal artifício utilizado pelos grupos que representam essas
práticas culturais para a sua manutenção. A linguagem oral é o pilar das práticas de
matrizes africanas, as diferenças e semelhanças existentes entre essas manifestações
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

nos revelam a importância de difundir a valorização dessas expressões e sua


representação por meio dos grupos existentes no presente.
Como estratégia metodológica, esta pesquisa possui uma abordagem qualitativa e
se desenvolve particularmente por meio de um levantamento bibliográfico sobre os
temas abordados. Por conseguinte, esta pesquisa, de natureza bibliográfica, propõe
um diálogo teórico entre a Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã, abrangendo
os processos de transmissão desses saberes culturais a partir da oralidade até os
dias atuais.

Fundamentação teórica

1. A oralidade

A oralidade possui uma relação intensa com as práticas sociais de matriz africana,
tornando-se a principal forma de transmissão do conhecimento. A referência da
tradição da história africana liga-se diretamente à tradição oral, e nenhuma tentativa
de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade, a menos que se
apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos
de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos (BÂ, 1982).
A tradição oral é a grande escola da vida para os afrodescendentes, fundamentada
na experiência capaz de transportar o homem a sua totalidade, pois ela não se
limita a lendas, narrativas mitológicas ou relatos históricos. Por meio da palavra,
as estruturas sociais são organizadas, ou seja, há um valor moral e simbólico na
oralidade, possuindo um caráter sagrado. Nas tradições africanas, fatores como a
religião, a sociedade e a magia mantêm suas práticas apoiadas por contextos de
transmissão oral. Sendo assim, o uso da palavra quando pronunciada se remete a
sua origem, por meio das forças ocultas e divinas que nela existem, empossando-se
de valores morais e sagrados (BÂ, 1982).
Bâ (1982) pondera sobre a impossibilidade de uma real comprovação de que a
escrita é mais fidedigna do que o testemunho oral, evidenciando a vulnerabilidade dos
documentos escritos, principalmente no que tange as possibilidades de falsificações. A
partir do avanço científico, percebe-se uma relação de superioridade da escrita sobre
a oralidade, o que ocasiona um equivocado julgamento, de que as comunidades orais
são tidas também como sem cultura. Nesse sentido, a ligação do homem à palavra
abarca o próprio valor do homem que faz o testemunho, a cadeia de transmissão da
qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individuais e coletivas e a idoneidade
atribuída à verdade em uma determinada sociedade (BÂ, 1982).
Nas práticas de matrizes africanas, a linguagem oral opera como alicerce e
fundamento cultural, pois, a partir da oralidade, os grupos e comunidades preservam
suas práticas, seus rituais, suas memórias e suas histórias. Dito isso, apresentaremos

47
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

duas expressões culturais do Norte Fluminense, a Mana-Chica do Caboio e o fado de


Quissamã, sinalizando as semelhanças e diferenças existentes entre elas, de forma
a evidenciar a inserção da oralidade como principal recurso para a manutenção e
preservação dessas práticas culturais.

2. A Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã

A Mana-Chica do Caboio é uma dança popular que surgiu por volta de 1780 em
Campos dos Goytacazes, cidade do norte do estado do Rio de Janeiro, sendo
considerada uma espécie de quadrilha, supostamente inventada por uma mulher
chamada Francisca — seu nome poderia ser Mariana Francisca, Inácia Francisca ou
Francisca Maria. Porém, sua coreografia foi essencialmente concebida pelos negros
a partir dos movimentos observados por eles nas festas dos nobres fazendeiros;
sua tradição vem pela oralidade, ou seja, transmitida de pai para filho, através das
gerações, e foi desenvolvida inicialmente na Baixada Campista. A sua música tem
um ritmo semelhante aos versos de cantadores repentistas. Entre os instrumentos
musicais estavam basicamente o chocalho indígena, a viola portuguesa e o pandeiro
africano, compreendendo as três etnias principais que constituem o povo brasileiro
(LAMEGO FILHO, 1996).
De acordo com Pais (2018), o fado resulta de “múltiplos trânsitos culturais” (PAIS,
2018, p. 221) e, ainda afirma, é um ritmo derivado dos tempos da escravidão, havendo
diferentes danças relacionadas a essa expressão cultural. Essas danças são
tocadas e dançadas com ritmos parecidos, tendo como características principais o
bater de palmas e o sapateado. O acompanhamento musical é também com violas
e pandeiros, teoricamente os mesmos instrumentos musicais utilizados na Mana-
Chica do Caboio.
Nessa perspectiva, o elo musical entre o fado e a Mana-Chica relaciona-se
diretamente ao lundu, às modinhas, ao fandango, à chamarrita, à cana verde,
à chula, entre outros ritmos, que culminam em interfaces com os instrumentos
musicais citados. Já na dança, o bater de palmas, as umbigadas (apenas no fado)
e os sapateados vão para além da música e constituem os aspectos coreográficos
em várias danças brasileiras, incluindo as danças do Norte Fluminense (PAIS, 2018).
No entanto, em uma visita ao município de Quissamã, o autor supracitado conhece
Dona Guilhermina, uma das participantes do grupo de fado, e relata que ela se
preocupava em dizer que “o fado é de Deus, ele é bento, é sagrado!” (PAIS, 2018, p.
222). Descreve que o fado de Quissamã é dançado em cruz, diferente do jongo, que é
em roda, porém não relaciona a dança do fado com a dança Mana-Chica do Caboio.
Considerados gêneros musicais populares, símbolos da cultura afrodescendente,
a Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã possuem características musicais
similares, ambos se apresentam como canções de lamento e melancolia,

48
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

tradicionalmente acompanhadas por instrumentos de percussão. Outras semelhanças


estão nas suas danças, que possuem caráter sincopado, de origem afro-brasileira,
concatenadas aos tempos da escravatura e apresentam um sapateado conduzido
ao som da viola e do adufe, atualmente substituído pelo pandeiro (PARADA, 1995).
O repertório musical de ambas as expressões culturais do Norte Fluminense
é essencialmente reproduzido a partir do canto e retrata cenas do cotidiano, versa
sobre as histórias da vida simples dessas comunidades, lendas, amores, encontros
e desencontros, dentre tantas outras temáticas sustentadas nas memórias
compartilhadas desses grupos evocadas a partir da oralidade.
A execução das coreografias da Mana-Chica do Caboio e do fado de Quissamã
remete-se aos requebrados e gingados de nossos antepassados, que são ensinados
pelos brincantes mais experientes utilizando essencialmente o recurso da oralidade
para ensinar os passos de cada parte da dança.
Nesse sentido, pode-se evidenciar, mesmo que de forma breve, que a sustentação
das práticas da Mana-Chica do Caboio e do fado de Quissamã se dá sobretudo a
partir de contextos de tradição oral, nos quais destacam-se as práticas musicais e de
dança dessas referidas expressões culturais do Norte Fluminense.

Desenvolvimento da pesquisa

Para desenvolvimento deste trabalho, foi utilizada como metodologia uma pesquisa
de abordagem qualitativa, de natureza bibliográfica, buscando compreender
o processamento dos saberes culturais transmitidos através de gerações até o
momento presente. Para Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é aplicada em qualquer
trabalho científico, oportunizando ao pesquisador o acesso ao conhecimento já
produzido em determinada temática.
Como apresenta Gil (2002), “[...] embora em quase todos os estudos seja exigido
algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente
a partir de fontes bibliográficas” (GIL, 2002, p. 44). Dessa forma, as produções
bibliográficas possuem as informações indispensáveis para alcançarem as
respostas sobre os objetos de estudo determinados pela investigação. A principal
vantagem desse método de pesquisa é a facilidade do pesquisador em lidar com o
problema, permitindo enfatizar certas informações e dados que se encontram muitas
vezes segmentados (GIL, 2002).
Portanto, a pesquisa bibliográfica é de suma importância, pois se posiciona como
um estímulo ao aprendizado de novos conhecimentos, tendo em vista suas proporções
entre os avanços e as novas descobertas nas diversas áreas do conhecimento a
partir de informações já fornecidas e elaboradas por meio de outras investigações.

49
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL

Conclusões

A partir do exposto, tornou-se possível compreender os aspectos identitários de duas


expressões culturais do interior do estado do Rio de Janeiro, evidenciando que ambas
se constituem enquanto práticas de origem afrodescendente. Estes patrimônios vivos
remetem-se aos tempos da escravatura, como uma herança cultural advinda das
senzalas, e resistem como importantes manifestações da região Norte Fluminense
que carregam consigo histórias e memórias dos nossos antepassados. Assim,
esta pesquisa justificou-se pela apreensão da manutenção dessas importantes
manifestações culturais, buscando contribuir para a salvaguarda desses saberes
culturais decorrentes de processos de tradição oral, a fim de valorizar tais práticas,
que sustentam e recriam reminiscências culturais afrodescendentes.
Dessarte, torna-se fundamental a disseminação de trabalhos que propiciem
registros e fomentem diferentes estratégias de salvaguarda de práticas que
se apoiam essencialmente na oralidade, com a finalidade de mantê-las vivas e
assegurar a sua continuidade.

Referências bibliográficas

BÂ, Hampaté. A tradição viva. In: ZERBO, J-KI (Org.). História Geral da África. São
Paulo: África, 1982. p. 167-211.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo, SP: Atlas, 2002.

LAMEGO FILHO, Alberto. A planície do solar e da senzala. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo
público do estado do Rio de Janeiro/Imprensa oficial do estado do Rio de Janeiro.
Livraria Católica (1934). Ed. Rio de Janeiro, 1996.

PAIS, José Machado. Fados do fado: enredos, cronótopos e trânsitos culturais.


Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, v. 22, n. 1, p. 219-235,
2018. Disponível em: https://journals.openedition.org/etnografica/5210. Acesso em:
26 set. 2021.

PARADA, Antonio Alvarez. Histórias curtas e antigas de Macaé. Rio de Janeiro:


Petrobrás, 1995.

50
GT 2

CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES


DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE
FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Coordenadoras: Takna Mendonça Formaggini (Instituto Federal do Rio de Janeiro) e
Alissan Maria da Silva (Instituto Federal Fluminense).

Os aspectos cênicos e performativos presentes nas práticas das culturas tradicionais
— ou populares, como também são abordadas — que incluem saberes relacionados
às expressões de organização e deslocamentos no espaço (rodas, cortejos, desfiles),
múltiplas sonoridades e musicalidades, bem como corporeidades, caracterizações e
visualidades nas artes da cena, possuem formas de expressão de caráter subjetivo e
artesanal pertencentes a contextos regionais, étnicos, religiosos, sagrados, populares
e periféricos. O diálogo dessas práticas com as artes cênicas sempre esteve presente
na dimensão simbólica da cena e dos corpos em performatividade, enredando
sentidos, significados, conhecimentos e saberes, conformando e conflitando
diferentes contextos sociais e históricos. Este GT propõe estreitar o debate acerca
das diversas e plurais expressividades existentes entre o heterogêneo campo das
culturas tradicionais e o campo do teatro. Os eixos de discussão pretendem abranger
práticas de sujeitos, grupos e comunidades com pesquisas que criem, recriem
e discutam estéticas e pertencimentos presentes nas formas de expressão das
culturas tradicionais, em seus diálogos e fronteiras com as artes da cena, sobretudo
os que privilegiem os debates ameríndios e afrorreferenciados. Estas experiências
culturais coletivas que englobam rituais, festas, culturas populares e manifestações
performáticas em suas estruturas, sociabilidades festivas e pertencimentos identitários
reúnem um imprescindível campo investigativo de estudos interdisciplinares que
pretende aprofundar a discussão da presença dessas experiências e expressões
simbólicas na hibridação entre tradições nos contextos das práticas de encenação
teatral e suas epistemologias. As estéticas refletem e estão refletidas pelos modos de
ser e estar no mundo próprios das filosofias, éticas, cosmovisões, pertencimentos dos
contextos culturais de seus atores sociais. O caráter multidimensional de tais práticas
borra fronteiras rígidas entre as linguagens e expressões artísticas convencionadas
pelo pensamento ocidental ortodoxo — teatralidades, performances, musicalidades,
visualidades — e dilui o sentido de classificações como “popular” e “erudito”,
corroborando para o debate proposto acerca da multidisciplinaridade nas artes da
cena, a corporeidade como epicentro e o diálogo entre os saberes do mundo.
A Rua e a Rede como Palco dos Territórios nas
Batalhas de Poesia do Slam das Minas — RJ
Ana Paula Almeida Moreira
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Neste artigo, foram analisados o espaço e o acesso amparados no segmento


das redes do coletivo Slam das Minas — RJ. Para isso, utilizou-se o livro “Activismos
tecnopolíticos: constelaciones de performance”, de Marcela Fuentes (2020), e, ainda,
o olhar perante o ambiente das redes sociais do coletivo da cidade maravilhosa
como um “não lugar”, conceito de Marc Augé (2012). Por fim, é proposta uma reflexão
sobre o palco da ocupação das ruas e das redes como um viés de ativismo político
do coletivo.

Palavras-chave: Rua. Rede. Acesso. Slam das Minas — RJ.

Introdução

A poesia do Slam das Minas ocupa os espaços que não lhe são permitidos,
reivindicando e lutando por um ativismo das vozes no país. Outro ponto é que, com o
advento do movimento no Brasil, esses locais, hoje, são constituídos de uma grande
parte marginalizada da população. Esses ambientes surgiram pela luta contra
opressão que muitas dessas pessoas sofriam. Com o surgimento do poetry slam
no território brasileiro, muitos desses lugares eram ocupados, em sua maioria, por
homens que eram sexistas. Vale ressaltar que muitas delas sofriam vaias no próprio
movimento. Bell hooks, no livro “O Feminismo é para Todo Mundo” (2015) ressalta
que “feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, exploração sexista
e opressão” (HOOKS, 2015, p. 13). Essa definição deixa claro que o problema nunca
deixou de ser o patriarcado. Por isso, elas necessitaram criar um espaço para terem
voz e, primordialmente, tentarem se fazer ouvidas.
Portanto, influenciadas pelo Slam das Minas do Distrito Federal, vários outros
movimentos começaram a surgir no país; consequentemente, na cidade do Rio
de Janeiro, o Slam das Minas — RJ. A batalha também já havia chegado às terras
cariocas, porém no ano de 2017; inspirado por esse coletivo, nasceu o movimento na
metrópole carioca. É necessário dizer que o contexto muda, as mulheres da cidade
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

querem é um lugar em que elas sejam respeitadas. Desse modo, elas ocupam o
espaço e levam a sua poesia ao centro urbano. Na página do coletivo no Facebook,
elas falam em espaço seguro, mas este se refere ao fato de elas poderem discursar,
e não sobre segurança, já que seria contraditório, pois a cidade do Rio de Janeiro é
altamente violenta.

Fundamentação teórica

Três autores foram fundamentais para pensar a rede e a rua como questões atrativas
para o movimento do Slam das Minas. Primeiro, ao abordar sobre rua, foi necessário
pensar no “rizoma”, ideia proposta por Deleuze e Guattari (1995). Para ambos, o rizoma
é oriundo da botânica e consiste em uma haste subterrânea com ramificações em
todos os sentidos, como os bulbos e os tubérculos. De forma antitética, tem-se a
árvore, com o caule e ramificações, que se desdobram desse eixo central (DELEUZE;
GUATTARI, 1995). O rizoma, logo, é como as ruas, que fazem conexões e se constituem
de pluralidades.
Para pensar em não lugares, utilizou-se o livro do teórico Marc Augé. Segundo o
antropólogo, “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um
espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional e nem
como histórico, definirá um não-lugar” (AUGÉ, 2012, p. 52). A ideia de um não lugar para
o teórico representa um espaço intercambiável onde os seres humanos permanecem
anônimos e não possuem significado suficiente para serem considerados “lugares”.
Por isso, com o advento das redes, estamos em não lugares permanentes. Com as
inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e informacionais
ocorridas nas últimas décadas, primordialmente as mídias sociais deveriam ser
usadas para difundir o conhecimento, porque é resultado das redes a adulteração do
momento, do local e do instante. Portanto, para o teórico, em entrevista concedida ao
jornal El País, esses dispositivos estão permanentemente nos colocando em um não
lugar. Nós os carregamos não lugar em cima, conosco... (GELI, 2019).
Para concluir, duas questões foram abordadas, são elas: pensar a rua como palco das
políticas públicas, necessariamente neste contexto de silenciamento das mulheres
da poesia marginal, e o espaço da rede. Embora estejamos vivendo uma pandemia,
em que as redes são elos fundamentais para a constituição de uma pseudointeração
social, alguns fatores são importantes de serem mencionados: as mídias sociais
cresceram a uma taxa muito rápida, e, devido ao impacto de um público mais amplo
em um ritmo maior, as redes sociais possibilitam informação. Nelas, ocorre uma
interação maior do público com este “activismo político”, termo abordado no livro da
Marcela Fuentes (2020), uma pesquisadora argentina. É válido destacar a entrevista
concedida pela teórica ao jornal Página 12: na apresentação à entrevistadora, Laura

53
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Rosso ressalta que “sus trabajos exploran las vidas transnacionales, los nuevos
modos de colaboración artística y movilización política facilitados por la tecnología y
las formas emergentes de control y resistencia que se dan en contextos neoliberales”
(https://www.pagina12.com.ar/351586-la-politica-tambien-se-juega-en-las-redes).

Desenvolvimento da pesquisa

Todas as integrantes do movimento são oriundas das diversas periferias do Rio


de Janeiro. A busca pelo espaço representa a luta das mulheres que fazem parte e
participam do Slam das Minas — RJ, reivindicando um espaço para serem ouvidas.
Antes do período pandêmico em que vivemos, o grupo locomovia-se pelos centros
urbanos do Rio. Como as batalhas acontecem uma vez por mês, as minas circulam
pelos pontos “móveis” da cidade. A rua é móvel, ou seja, busca-se pensá-la como
um “rizoma”. Isso significa abrir mão da noção de que os conceitos se constituem
como certezas sobre algo e reconhecem, por conseguinte, que o conhecimento é
uma produção genuinamente circunstancial. Essa ideia de que o rizoma seria um
emaranhado de linhas que não conseguem fazer uma designação do fim. A rua não
é um espaço fixo.
Para o antropólogo Marc Augé (2012), os não lugares são locais de circulação e
espaço de comunicação global. Desse modo, são espaços que os indivíduos mantêm
com eles, assim classifica Augé (ibidem).
Vários são os questionamentos para se pensar: espaço, acesso e visibilidade. Esses
fatores estão radicados na base, não somente do modus operandi, mas também
no social-histórico que recentemente emergiu como estrutura pública e ainda está
implicada na transformação social. Desse modo, há diferentes formas de uso e
apropriação do espaço. A vertente do movimento das minas na cidade maravilhosa
ocorre no centro da cidade; logo, o acesso é para todas as pessoas que querem
reivindicar um lugar que sempre foi transitado pelos corpos, mas nunca puderam se
solidificar nesses ambientes.
Desse modo, o que se pode definir é que a rua e a rede caminham juntas. Os espaços
fixos como a rua, no caso dos movimentos, também necessitam dos espaços das
mídias sociais. Para que elas possam se manifestar nesses locais, elas precisam
divulgar esses eventos nas páginas do Facebook e do Instagram, já que são as redes
que o coletivo possui.
Além de refletir sobre o acesso e o espaço, é necessário questionar a questão
da visibilidade ou da invisibilidade. Sobretudo, muitas das vezes esses encontros
são visíveis para alguns; em outros momentos, invisíveis, perceptíveis apenas aos
passantes que, como figurantes em uma cena de teatro, compõem o cenário. Assim,
o que de certa forma nos faz visíveis pode, ao mesmo tempo, nos tornar invisíveis aos

54
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

olhos do outro. Na cidade os espaços se multiplicam, mudam suas configurações.


Este trabalho não busca oferecer respostas definitivas ou reforçar homogeneidades
já construídas, o que traz é uma ideia para pensarmos juntos no campo das imagens
e sobre o modo de olhar, as formas de ver, como modo de organização das cenas
de visibilidade, de “partilha do sensível” (RANCIÈRE, 2000) e de construção de uma
amálgama entre corpo e imagem que formam um modo de visibilizar essa cena.
Portanto, é nítido que a aparição delas nos espaços promove uma “máquina
de guerra”, termo cunhado por Deleuze e Guattari em “Mil Platôs” (2012), que se
manifesta contra um Estado e um patriarcado ofensivo e tóxico. Assim, buscam-se
as experiências que dão visibilidade à contingência das designações hierárquicas da
sociedade, mas também às fraturas possíveis de seus deslocamentos.
A literatura no caso dessas batalhas de poesias pode ser pensada, portanto, como
um conceito de justiça poética, em que mulheres se reúnem para reivindicar um
direito que lhe foi roubado. Nesse contexto, as manifestações ocorridas no Chile,
ressaltadas no livro da Fuentes, remontam àquilo que podemos ver no Brasil, ou seja,
na cidade do Rio de Janeiro. Pensar como as mulheres desafiam a posição do governo
neoliberal e ainda desafiam todas as opressões sofridas. Os corpos que vão para
rua e começam a questionar neste momento a conjuntura atual da sociedade são
posições de espaços virtuais que desafiam um governo fascista. É um discurso que
quer, isto é, precisa mudar esta realidade. Ressalto a fala da escritora boliviana Maria
Galindo1: “o corpo surge como território de todas as lutas”. Isso significa que a mulher
fala de si a partir das suas experiências. Por meio disso, as relações de espaço (re)
criam relações de poder que são criadas pelo corpo e passam a vigorar nas relações
políticas em um recorte no espaço que se constituem territórios. Para Ruy Moreira
(2002), “o território é um recorte espacial [...] espaço de poder de um corpo, é o ponto
de referência da regulação e da hegemonia no plano global do arranjo”, sendo que
cada recorte “é um plano de domínio, pluralizando do poderio dentro da sociedade
e do Estado” (MOREIRA, 2002, p. 53). Pensar nesse corpo é necessariamente refletir no
silêncio das mulheres e de como elas são feitas para esconder a sua vida. O registro
histórico sempre privilegiou os eventos acontecidos na esfera pública, e a mulher ficou
reduzida ao espaço privado, ela nunca foi chamada a fazer parte da cena histórica
e teve de desenvolver estratégias de sobrevivência naquilo que lhe restou: o lar. Por
isso, a memória do privado coube à mulher. Por fim, a rua é um palco livre, mas que
necessita do amparo das redes, no caso do coletivo do Slam das Minas. Ocupam-
se as ruas, mas também ocupam-se as redes. Ocupar a rua para ganhar espaço e
possuir o direito de ter sua voz ouvida ou de incomodar os ouvidos.

1
Palestra proferida no evento “Literatura e Feminismos: criação, crítica e teoria”, no dia 28 de janeiro
de 2021.

55
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Conclusões

O tema deste artigo não chegou ao fim, uma vez que esta é uma parte da minha
pesquisa de mestrado. Também acredito que nada chega ao fim. Refletir, mesmo
que superficialmente, sobre o movimento na cidade do Rio de Janeiro é tarefa árdua,
ainda tem muito o que frisar. Pensando em grandes estruturas, o contexto geopolítico
é amplo. Tentei me aproximar um pouco mais dessa questão para pensar que a
poesia desce da periferia e se faz ouvir no centro, ou tenta. Há muito o que se pensar
entre a poesia e a ocupação da rua com o amparo das redes. A rua precisa da rede,
e a rede precisa da rua. Neste período pandêmico, vemos muitas manifestações
acontecerem nas redes. Acredito que a rede seja o ponto de encontro da rua. É o
barzinho em que marcamos de nos encontrar. Em suma, a poesia enunciada nesses
eventos culturais acentua-se ainda por ser dotada de um significativo teor político
ao abranger principalmente temas como racismo e machismo em performances
poéticas. As batalhas tornam a poesia e a cidade mais democráticas.

Referências bibliográficas

AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.


Campinas: Papirus, 2012.

GELI, Carles. Marc Augé: “Com a tecnologia já carregamos o ‘não lugar’ em cima,
conosco”. El País, Barcelona, 04 fev. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2019/01/31/tecnologia/1548961654_584973.html. Acesso em: 03 set. 2021.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI. Félix. Mil Platôs. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI. Félix. Mil Platôs. 2. ed, v. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.

ROSSO, Laura. La política también se juega en las redes. Página 12, Buenos Aires, 02
jul. 2021. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/351586-la-politica-tambien-
se-juega-en-las-redes. Acesso em: 20 set. 2021.

FUENTES, Marcela. Activismos tecnopolíticos: constelaciones de performance.


Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2020.

HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de


Janeiro: Rosa dos Tempos, 2015.

56
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

MOREIRA, Ruy. O espaço e o contra-espaço: as dimensões territoriais da sociedade


civil e do Estado, do privado e do público na ordem espacial burguesa. In: SANTOS,
M. et al. (Org.). Território, territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de
Janeiro: Lamparina Editora, 2002.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2000.

57
A Performance Cultural de Clara Nunes
Emerson de Paula Silva
Universidade Federal do Amapá

Resumo

Este resumo expandido é oriundo da minha pesquisa de doutorado, que pretendeu


sinalizar os processos e procedimentos da religiosidade afro-brasileira na performance
cultural da cantora mineira Clara Nunes. A partir da perspectiva de construção da sua
identidade artística em conjunto com sua formação identitária religiosa, observou-
se a contribuição dessa performer para os Estudos da Performance Cultural em
diálogo com os Estudos Literários. Nesse sentido, procuramos entender seu processo
de aproximação com a religiosidade afro-brasileira como produtor de uma
escrita dialógica entre arte e vida, estabelecendo Clara como um acontecimento
performático que promoveu uma escrita que dialoga com som, corpo, música e
movimento, encontrando em Clara Nunes o estabelecimento do corpo como texto.

Palavras-chave: Clara Nunes. Performance cultural. Religiões afro-brasileiras. Corpo.


História.

Introdução

Clara Nunes (1942-1983) foi uma cantora brasileira de grande projeção nacional,
que revolucionou o cenário musical e artístico do país no fim dos anos de 1970 e início
dos anos de 1980, ao lado de grandes nomes da MPB, como João Nogueira e Martinho
da Vila. Além disso, revelaram-se consigo grandes artistas, como Romildo e Toninho
Nascimento, Gisa Nogueira e o Clube do Samba. Sua obra é até hoje reverenciada no
país, sendo ela a primeira mulher a vender discos no Brasil no que tange a números
realmente expressivos e carreira consolidada. Celebrada até mesmo no exterior,
Clara difundiu o Brasil cantando em português e elevando o samba ao mais alto
patamar de referência musical brasileira. Registra-se ainda o lugar da mulher num
ambiente até então marcado pela forte presença masculina.
A cantora transitou, durante o percurso de sua carreira, entre as baladas
românticas e a Jovem Guarda, dialogando com os estilos musicais que cada
época produzia, mas foi no encontro com a cultura afro-brasileira, o samba e, em
especial, a umbanda e o candomblé que ela efetivou uma guinada em sua carreira.
Assim, a mineira Clara Nunes dedicou-se a pesquisar a cultura afro-brasileira,
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

trazendo à cena artística referências das religiões de matriz africana, seja cantando
pontos (nome específico dos cânticos às entidades) aos guias e aos orixás, seja
apresentando composições que enalteciam nossa ancestralidade africana, o eco
dessa ancestralidade no Brasil e o percurso do povo negro. Esta dualidade entre a
ancestralidade africana e a realidade em ser afro-brasileiro perpassa a obra de
Clara. Sua música traz marcas e possui ritos que confrontam uma realidade de
predominância judaico-cristã.
Fernandes (2007), em sua biografia sobre a cantora, intitulada “Clara Nunes:
Guerreira da Utopia”, informa-nos, na contracapa da obra, que:

Quando surgia nos bastidores, à frente das câmeras de TV ou sob os holofotes


no palco, não havia quem não se impressionasse com ela. Era uma mulher
incomum [...] Clara era uma explosão [...] Clara foi a primeira cantora a romper
com o estigma de que mulher não vendia disco [...] Acreditava no amor, nos
amigos, no seu canto como instrumento de conciliação, na sua arte como
veículo de transformação social, traços de personalidade de uma sonhadora.
Mas sonhava com tudo o que poderia ser aplicado de forma concreta. [...]
Brasileira, absolutamente sincrética, “batia cabeça” e cantava ponto em terreiro
de umbanda ou candomblé, tomava passe em centro kardecista e comungava
em igreja católica. Clara era tudo, uma espiritualista por natureza. A voz tornou-
se sua arma de batalha (FERNANDES, 2007).

Essa voz guerreira fortalecida através da evocação da cultura afro-brasileira


promoveu uma guinada na carreira/vida de Clara Nunes e consequentemente a
estabeleceu no cenário artístico musical a partir do samba “Você Passa, Eu Acho
Graça”. O samba, estilo musical outrora marginalizado, passa a ter novo status com
Clara. Sabemos que o samba, de acordo com Santos (2003), na obra “Contando a
História do Samba”:

Já nasceu polêmico, atravessou o Atlântico nos navios negreiros(tumbeiros),


incorporou os chocalhos e maracás dos povos indígenas, anexou a viola dos
portugueses, e deu origem ao ritmo de maior popularidade no país e que hoje
é referência do Brasil em qualquer parte do mundo. Cantar e contar a história
do samba é fortalecer um movimento de resistência e de afirmação do povo
negro, que a partir das batidas do tambor das rodas de candomblé e capoeira
da Bahia, estendeu-se pelo Brasil (SANTOS, 2003, p. 28).

Portanto, a mudança estilística na carreira musical de Clara, a partir do


samba, já possui importante significação, principalmente num campo marcado
pela forte presença de sambistas homens, evidenciando uma fundamental relação
entre imagem e linguagem no que tange à sua presença nesse universo musical,
ocupando o lugar de uma mulher que canta de forma ativa, pontuando-se e em
primeira pessoa.

59
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Clara Nunes já se configura como uma artista que incitou pesquisas em nível de mestrado
e doutorado em alguns programas de pós-graduação, mas estas tendo como foco a
questão da sua musicalidade (análise das composições com uma abordagem das letras
e dos arranjos) e da mestiçagem. Entretanto, a presente reflexão pretende promover uma
análise da performance cultural de Clara Nunes, a partir das confluências entre arte e
vida, entendendo Clara Nunes como um acontecimento performático.
A afrobrasilidade na música popular brasileira (MPB) não é algo exclusivo da
performer Clara Nunes. Músicas exaltando nossas ancestralidades e a constituição
de uma cultura afro-brasileira permeiam diversos estilos musicais, tendo o samba
como um importante expoente para esse fim. Apesar disso, é importante registrar
que, na música popular brasileira, existem artistas que se consagraram trazendo, em
praticamente toda a sua obra, a referência à matriz afro e o reflexo dela no Brasil,
registrando, além disso, que as mulheres lideram esse espaço. Cantoras antecessoras
e sucessoras de Clara tiveram na temática afro-brasileira sua projeção artística,
tendo como alguns exemplos Carmen Miranda, Jovelina Pérola Negra, Clementina
de Jesus, Margareth Menezes, Daniela Mercury e Mariene de Castro. Na performance
do samba, definida pelo pesquisador Zeca Ligiéro (2011) para estudar as formas e
funções do samba delineadas pelos sambistas das primeiras décadas do século XX
a partir de suas próprias práticas, tanto no âmbito da composição musical, quanto
da escolha temática, temos em Clara uma performer que não só enaltece o samba,
mas incorpora a ele o diálogo entre dois campos do saber, o religioso e o artístico.
Esses dois aspectos encontram-se estruturados na híbrida relação que compõe a
sua performance cultural.
As cantoras anteriormente citadas dialogam com as definições apresentadas
por Zeca Ligiéro (2011), que são: samba-brincadeira; samba-ritual; samba-drama
e samba-épico — cabe a nós aqui acrescentarmos a essas definições a reflexão
sobre o samba-afro e o samba-reggae. A musicalidade dessas cantoras, em suas
diferentes performances, criou/cria visualidades que apresentam imagens, ora se
referenciam à ancestralidade, ora estabelecem um diálogo entre a ancestralidade
e a contemporaneidade. São carreiras que se construíram mediante uma interseção
entre os campos da religião e da arte.
Entretanto, Clara Nunes destaca-se por projetar a sua carreira para além
da musicalidade e do texto que suas canções enunciam. A imagem da performer
mobiliza trânsitos nela mesma e no público, uma vez que há, na construção de sua
performance cultural, um entrelaçamento entre arte e vida. O que passa depois a ir
ao palco é algo mais que visual: trata-se de seu discurso pessoal.
Adentrando em um recorte conceitual de performances culturais, entende-se que:

A designação Performances Culturais foi estabelecida pela primeira vez em 1955


pelo antropólogo, filósofo e psicólogo polonês, naturalizado norte-americano,
Milton Borah Singer (1912-1994) em estreito diálogo com as construções teóricas

60
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

de seu companheiro de trabalho da Universidade de Chicago, o sociólogo,


comunicador e etnolinguista Robert Redfield (1897-1958). Há que se entender
o particular significado deste conceito plural e a abordagem metodológica
distinta que este propõe, para que se evite um entendimento parcial ou apenas
formal deste, para que as Performances Culturais não sejam entendidas apenas
como o estudo de uma determinada performance ou uma forma específica de
estudo de um fenômeno ou como etapa evolutiva de um determinado ramo ou
área de saber. Performances Culturais é um conceito que, primeiramente, está
inserido numa proposta metodológica interdisciplinar e que pretende o estudo
comparativo das civilizações em suas múltiplas determinações concretas;
visa também o estabelecimento do processo de desenvolvimento destas e
de suas possíveis contaminações; assim como do entendimento das culturas
através de seus produtos “culturais” em sua profusa diversidade, ou seja, como
o homem as elabora, as experimenta, as percebe e se percebe, sua gênese, sua
estrutura, suas contradições e seu vir-a-ser. Neste movimento as performances
são sempre plurais, pois pretendem o estudo comparativo, seja a partir de uma
perspectiva macro (os grandes elementos da cultura, as Grandes Tradições,
assim chamadas por Singer e Redfield) em contraste com as micro experiências
(as variadas formas não oficializadas e diversas a que temos acesso) ou mesmo
entre as pequenas tradições ou vice-versa (CAMARGO, 2012, p. 1).

Pensaremos as performances culturais como uma área de fronteira entre a linguagem


e a experiência. Dessa forma, entende-se a construção de processos identitários a
partir do contato com manifestações culturais e os traços sociais e subjetivos que
tais processos estabelecem na performance cotidiana/artística dos indivíduos, tendo
no corpo seu canal de realização, acontecimento, estabelecimento e partilha, indo ao
encontro de sua relação entre arte e vida.
A encruzilhada arte x vida produz, então, sentidos e traz o cruzamento de
discursos diversos inseridos no corpo (lugar de história) da cantora, reverberando
em suas músicas e na cena a qual ela evoca. Mas a cantora promove um outro
olhar, que transforma dois campos opostos em um ponto de congruência, arte=vida,
apresentando performaticamente relações como: o vivido e o teorizado; fios de
lembrança e esquecimento; por dentro e por fora; ir e vir. A imagem formada por
essa artista está mediada pela imagem presente em seu corpo e um sentimento
difuso que convive “no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico
ou social que circunda o sujeito” (BOSI, 1994, p. 44).
A performance cultural de Clara Nunes nos faz refletir sobre um corpo brasileiro que
é mesclado, mestiço e plural, que tende a buscar, nas dobras de seu próprio corpo,
“os tempos curvos da memória e da história” (MARTINS, 2003, p. 82). Seu ponto de vista
é desde dentro até fora, havendo a história da cultura afro-brasileira, com ênfase na
religiosidade, como material autobiográfico. Clara é uma narradora capaz de trazer
o signo afro-brasileiro como recurso estético e político entrelaçando tensões de uma
memória comum e uma memória de resistência, entre a sua voz e a voz do outro,

61
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

pois “seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição extraiu da própria dor;
sua dignidade é contá-la até o fim, sem medo. Uma atmosfera sagrada circunda o
narrador” (BOSI, 1994, p. 91).
Aprofundando neste percurso teórico, Clara Nunes pode ser vista também como
uma performer na encruzilhada entre ser interventora e intérprete, entendendo que
o intérprete é considerado “aquele que busca interpretar o outro ou mesmo uma
obra que foi composta pelo outro, de maneira idiossincrática” (SANTANA, 2009, p. 27).
Nesse sentido, Santana ainda amplia a discussão nos mostrando que interpretar não
é algo solitário, mas aberto, destacando que o intérprete é uma figura capaz de “dar
conta de uma personagem/agente/ator social, ou, como queiramos denominá-lo,
da forma como este indivíduo traduz o seu cantar em constante transformação por
conta do espaço em que se relaciona e move” (SANTANA, 2009, p. 27).
Todos esses elementos, em confluência, estão presentes na performance cultural
de Clara Nunes, vinculando-se a algo que a antecede, mas que ao mesmo tempo a
constitui. Em suas apresentações, ela narrava para si e para os outros seu percurso
individual, que fazia parte, indissociavelmente, de uma coletividade.
A performance cultural de Clara Nunes dialoga com o conceito de “corpo da história”
do pesquisador Zeca Ligiéro, que nos apresenta uma análise do corpo que “se
retroalimenta ao mesmo tempo em que vive do seu passado, em constante reação a
tudo que percebe ao seu redor; o ‘corpo da história’ é um corpo que vive das relações
e das interações” (LIGIÉRO, 2011, p. 90). Portanto, o trânsito religioso pessoal de Clara e
a presença dele na sua performance se inserem no campo das artes performativas,
nas quais, segundo Ligiéro (2011):

o corpo centraliza a expressão, seja por meio de mimesis ou mesmo de


elaboradas formas simbólicas, sem abrir mão, em ambos os casos, do ritmo e
do movimento. Nas artes performativas, quase sempre os territórios do sagrado
e do profano estão unidos ou ligados por contínuos processos de ritualização
(LIGIÉRO, 2011, p. 195).

Sua performance cultural traz marcas e possui ritos que confrontam uma realidade
de predominância judaico-cristã. A sua relação com divindades múltiplas suscita
questionamentos, uma vez que o candomblé, por exemplo, é “fortemente apoiado
no uso de oráculos como forma de comunicação direta com as forças inteligentes
da natureza (Orixás) e com os demais espíritos que se expressam por meio dos
fenômenos naturais” (LIGIÉRO, 2004, p. 43). Sendo assim, temos, no acontecimento
performático Clara Nunes, um novo olhar sobre ela, entendendo o processo de sua
performance cultural como um espaço sagrado criado no imaginário brasileiro
através da relação religião e arte, presentes nas performances de subjetividades
afrodescendentes vivenciadas/produzidas pela cantora, que reverberaram na mídia
e na população brasileira.

62
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Entender Clara como constituinte dos estudos das performances culturais brasileiras
é oferecer uma rica e importante contribuição epistemológica sobre algumas
práticas culturais performáticas, tradicionais e contemporâneas, em particular as
afrodescendentes, todas elas abordadas sob a ótica dos Estudos da Performance
(MARTINS, 2011). Nessa perspectiva, Clara Nunes nos revela através do corpo (o
que é vivido e o que é vivenciado) a imagem (o que o corpo apresenta) de nossa
própria cultura, buscando na performance oriunda da vivência pessoal, junto com
a religiosidade afro-brasileira, uma linguagem proveniente do corpo caligrafado
pelo movimento da performance, na qual as coreografias do vivido encorpam a
produção estética nos vários âmbitos e contextos culturais, em que se tecem como
circunstância, estilo, permanência e efemeridade (MARTINS, 2011).
A trajetória artística e conceitual da cantora Clara Nunes está construída num enredo
marcado pela não linearidade, apresentando-nos vias diversas de interpretação
e gerando encruzilhadas que nos exibem corporeidades, memórias, linguagens e
confluências. Sua performance cultural é uma travessia e traz a vivência do sagrado
como elemento de resistência da cultura afro-brasileira ecoada na visualidade que
ela evoca/promove. São passagens como essas que fazem com que a encruzilhada
se torne também elemento integrante da performance cultural de Clara, uma vez que,
como aponta Martins (1997), Clara Nunes pode ser vista como um “lócus tangencial”:

(...) [do] qual se processam vias diversas de elaborações discursivas, motivadas


pelos próprios discursos que a coabitam, da esfera do rito e, portanto, da
performance, é lugar radial de centramento e descentramento, interseções e
desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências,
fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem
e disseminação (MARTINS, 1997, p. 28).

Nesse sentido é que o corpo da performer Clara escreve simbologias e reflexões


no ato em que acontece em si e se eterniza por estar associado à experiência vivida
pela própria cantora, tornando-se a “expressão de uma teorização sobre a vida e
como ela deve ser vivida e simbolizada” (ESTEVES, 2007, p. 23).
Veículo de comunicação e socialização, a performance cultural discute o corpo
e sua significação social, mostrando que Clara Nunes nos apresenta um texto não
escrito, e sim um texto performado no qual ela se transforma em coautora a partir do
momento em que sua proposta de criação, ou seja, o contato com a religiosidade de
matriz africana passa a fazer parte de sua vida.

63
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Referências bibliográficas

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.

CAMARGO, Robson Corrêa de. Performances culturais: um conceito interdisciplinar


e uma metodologia de análise. [S. l.]: UFG, 2012. p. 1-25. Disponível em: https://
files.cercomp.ufg.br/weby/up/378/o/Performances_culturais__um_conceito_
interdisciplinar_e_uma_metodologia_de_an%C3%A1lise-Robson_Camargo.pdf.
Acesso em: 21 jul. 2020.

ESTEVES, Ana Maria Pereira. Jenipapo, carvão e água: consentimento e resistência. In:
LIGIÉRO, Zeca; ZENICOLA, Denise (Org.). Performance Afro-Ameríndia. Rio de Janeiro:
Publit Soluções Editoriais, 2007. p. 81-95.

FERNANDES, Vagner. Clara Nunes: guerreira da utopia. Rio de Janeiro: EDIOURO, 2007.

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro:
Garamond, 2011.

LIGIÉRO, Zeca. Iniciação ao candomblé. Rio de Janeiro: Nova Era, 2004.

MARTINS, Leda. Orelha do livro. In: LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das
performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

MARTINS, Leda. Performances do tempo e da memória. O Percevejo — Revista de


Teatro, Crítica e Estética, v. 11, n. 12, p. 68-83, 2003.

MARTINS, Leda. Afrografias da memória: o reinado do rosário no jatobá. São Paulo:


Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Eduções, 1997.

SANTANA, Marilda. As donas do canto: o sucesso das estrelas-intérpretes no


carnaval de Salvador. Salvador: EDUFBA, 2009.

SANTOS, Elzelina Dóris dos. Contando a história do samba. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2003.

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Jogos e Cantigas Tradicionais na Preparação da
Cena de Teatro: escrevivências e memórias do corpo
negro no processo de criação cênica
Patrick Lian Pereira Lopes
Instituto Federal Fluminense
Takna Mendonça Formaggini
Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo

O presente resumo aborda e relata o processo de desenvolvimento da preparação


corporal, vocal e cênica para o teatro, a partir de jogos, cantigas e brincadeiras
tradicionais. Pensando no corpo negro como um patrimônio que merece ser
protegido, cuidado e valorizado no processo de construção da cena, refletiu-se
sobre a ginga desse corpo como forma de resistência ao racismo, que massacra
a população negra. Tendo como base a cultura afro-brasileira, foi considerado o
processo de criação em teatro apoiado pelos valores civilizatórios afro-brasileiros
em relação com jogos e cantigas tradicionais, memórias e vivências do corpo negro
como disparadores para o desenvolvimento corporal de atores e a construção da
cena em teatro. Entre o lúdico, os sonhos e as nossas memórias de criança, passeia-
se entre o passado, o presente e o futuro, em que todos nós teremos os mesmos
direitos dentro de nossas diferenças, independente da cor da pele. Para isso, faz-
se necessário resgatar memórias que foram apagadas e trazer de volta o canto, a
dança, o batuque, a brincadeira e outros legados construídos pelo povo negro.

Palavras-chave: Teatro Negro. Corpo-documento. Brincadeiras. Valores civilizatórios


afro-brasileiros. Processo de criação.

Introdução

Pensando no corpo negro como um registro que merece ser protegido, cuidado e
valorizado, a pesquisa deste trabalho reflete no processo de construção da cena a
partir do relato de memória dos atores, tanto memórias traumáticas (abordagens
violentas, racismo etc.) quanto brincadeiras de nossas infâncias. Esses resgates
da trajetória dos artistas envolvidos na construção da cena como forma de
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

resistência ao racismo, que massacra a população negra, tornam-se um caminho


pedagógico de investigação.
Em busca do desenvolvimento de uma preparação corporal, vocal e cênica de
trabalho, buscou-se resgatar memórias pessoais e coletivas das vivências do corpo
negro, e que foram apagadas, para trazer de volta elementos como o canto, a dança,
a brincadeira e outros legados para uma construção de cena, visando restaurar a
tradição do povo preto, a qual faz parte da cultura universal, no entanto tem sido
esquecida ou deixada de lado pela ideologia dita como dominante. Nesse sentido,
traz-se a reflexão sobre uma dramaturgia que pretende ter como base a memória
(individual e coletiva) e a escrevivência de si como caminho da construção de
dramaturgia para um Teatro Negro.
Este trabalho, em processo, vem sendo investigado pelo Coletivo Lista Negra,
que, formado por atores negros e atrizes negras, pesquisa dramaturgias que
pretendem partir das memórias enquanto escrevivências. A cena construída relatada
neste artigo trata do encontro de dois corpos negros que caminham, esbarram-se
e se espelham pela cor da pele e vivências de seu cotidiano. A principal inquietação
na linha de condução para a criação dessa cena foi a temática do confronto do
corpo negro com a polícia. Durante o processo de construção, várias crianças negras,
como João Pedro1, de 14 anos, Ágatha Félix2, de 8 anos, entre outras crianças, foram
vitimadas por arma de fogo em contexto de violência no Rio de Janeiro desde 2007.
Diante desses acontecimentos que foram ocorrendo no percurso do processo,
sentimos a necessidade de trazer esses nomes como um protesto aos assassinatos
de crianças negras que foram expostas à violência de forma direta, citando seus
nomes para que não sejam esquecidas e de forma indireta, através dos aspectos das
características de cada caso: João Pedro brincava no quintal de sua casa quando foi
baleado. Dados estes que foram o estopim para que as referências às brincadeiras
de criança ganhassem força na cena. Portanto, a partir da memória de cantigas e
brincadeiras infantis, como “Escravos de Jó” e “polícia e ladrão”, somada à poesia que
tínhamos inicialmente, criou-se uma dramaturgia que, atrelada a outros elementos
no processo de criação, foi dando cheiro, cor, imagem e desenho à proposta cênica.

1
Fonte para o caso João Pedro: https://www.google.com/url?q=https://www.bbc.com/portuguese/
geral-52731882.amp&sa=D&source=docs&ust=1637012729548000&usg=AOvVaw0wNECCt1nQFTpdoEPQOPj6.
Acesso em: 12 nov. 2021.
2
Fonte para o caso Ágatha: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-
como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml.
Acesso em: 12 nov. 2021.

66
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Fundamentação teórica

Com objetivo de refletir sobre os espaços de criação teatral, novas narrativas e novas
metodologias de desenvolvimento artístico da cena negra, o processo de criação da
cena “Quando a Polícia Para” foi inspirado na trajetória de Abdias do Nascimento e no
Teatro Experimental do Negro (TEN), como referências iniciais para que pudéssemos
rememorar e fortalecer nossas vivências pessoais e resgatar relatos de pessoas
negras. O Teatro Negro feito por negros presente no Brasil, historicamente uma
tentativa de preservar a identidade da pessoa negra, infelizmente nem sempre foi
visto, a partir de lentes dignas de serem valorizadas, como produto estético. Por muito
tempo, foi e ainda é utilizado como uma manutenção de um sistema já estabelecido,
no qual a pessoa negra era exposta a partir dos estereótipos que reforçam o racismo
no Brasil, como o escravo fiel, o criminoso e o caricatural. Além de não propor uma
mudança de perspectiva, esse grupo era exposto como “um valor de significância
negativo para o signo negro” (MARTINS, 1995, p. 43).
No entanto, o panorama do teatro (feito por negros) começa a mudar a partir de
acontecimentos significativos na primeira metade do século XX, graças ao TEN,
um grupo interessado em engajar o teatro feito por pessoas negras e foi fundado
por Abdias do Nascimento, influenciando e dando norte a vários grupos de teatro
negro desde então. Com objetivo de contribuir para o pensamento da construção
cênica negra contemporânea, caminhou-se a partir da criação de novas narrativas
e estratégias políticas, assim como o desenvolvimento de novas metodologias
pedagógicas para evolução artística do Teatro Negro.
Para isso, este trabalho apoiou-se no conceito de corpo-documento e memórias,
trazido por Beatriz Nascimento e Leda Martins, além de experienciarmos em nosso
próprio corpo o conceito de escrevivência, presente no estudo da pesquisadora
Conceição Evaristo, trazendo essa reflexão para o trabalho pedagógico de
construção do projeto. A escolha da utilização de jogos tradicionais e brincadeiras de
infância corrobora o conceito de corpo-documento proposto por Beatriz Nascimento,
escrevivência e memória individual e coletiva, assim como a leveza dessas
brincadeiras contrastam com a crueza das abordagens policiais ao corpo negro.
Para Alex Ratts (2006), o corpo-documento, no conceito da pesquisadora Beatriz
Nascimento, é o resultado da separação dos corpos ancestrais da “terra de origem”,
África. Este ser ancestral que teve sua cultura ameaçada durante a travessia e nas
novas terras americanas. Esse corpo, até os dias de hoje, carece de uma definição
que não venha de uma lente colonizada, eurocêntrica e racista, por isso o corpo
negro segue sendo a prova, a marca de uma ancestralidade que tentaram apagar

67
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

— seja pelo sequestro transatlântico, pelo apagamento ou pela mestiçagem3


desses corpos. Nesse sentido, a resistência e o legado do povo negro foram passados
através do corpo — que possui memória — e, por isso, é um corpo como documento,
um registro: “o corpo é também pontuado de significados [...] é igualmente memória”
(RATTS, 2006, p. 68).
Conceição Evaristo também defende que o corpo é um resgate da memória e das
imagens pessoais, como um conceito de escrevivência, que dá força motriz para
falar, escrever e desejar algo. Pensa-se, portanto, nesse conceito como um resgate
da memória de um corpo que traz “a experiência, a vivência de nossa condição
de pessoa brasileira de origem africana” (EVARISTO, 2020, p. 30). A escritora cria
personagens humanizados junto com as questões que os cercam. Essas construções
“se con(fundem) com a vida, essa vida que eu experimento, que nós experimentamos
em nosso lugar, ou vivendo con(fundido) com outra pessoa, ou com o coletivo,
originalmente de nossa pertença” (EVARISTO, 2020, p. 31).
Durante as escolhas de caminho para preparação corporal e para a dramaturgia,
também investigou-se a capoeira4, que é brincadeira, luta e resistência. Segundo
Lima (2002), essa arte marcial criada pelos negros é resistente, pois está ligada à
estratégia de grupo. Na definição dessa autora, a capoeira é uma prática que:

[...] tem na esquiva sua maior forma de escapar ao golpe do adversário e


utiliza-se de movimentos complementares de modo que um movimento de
jogador provoca um movimento no outro, sendo que todo movimento contém
uma defesa e um ataque e vice-versa. É uma prática corporal que prima
por inter-relação de um conjunto de elementos (música, jogo, luta e dança)
simultaneamente (LIMA, 2002, p. 45).

Usar esses elementos tão bem colocados pela pesquisadora como treinamento
corporal dos atores da cena foi potente, pois nossos corpos ganharam expansão,
equilíbrio e presença. A peça, assim como a capoeira, é uma orquestra que ginga
entre a leveza e o caótico, em que os corpos ora são iguais, ora estão em combate,
ora cantam e dançam, provocando um movimento no outro. Dessa forma, palavras
como “esquiva”, “ataque” e “defesa”, que, segundo a pesquisadora, ressalta ao falar da
capoeira, mantêm o corpo atento, presente no aqui e agora. Esse estado de presença
foi fundamental para que a cena tivesse o ritmo e a dinâmica que ela precisava, pois
construíram-se imagens, sons, danças e brincadeiras durante a criação. Por isso, trazer
a capoeira para compor a cena foi mais do que preparar o corpo dos atores para a cena,

3
Para melhor compreensão do assunto, sugerimos a leitura da obra “Rediscutindo a Mestiçagem no
Brasil” de Munanga (2020) que expõe um projeto genocida de tentativa de diminuir o número de
pessoas negras no Brasil pós-colônia. (MUNANGA, 2020).
4
A capoeira foi reconhecida como patrimônio cultural (imaterial) brasileiro, no dia 18 de julho de 2008,
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

68
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

ela esteve presente o tempo todo dentro da roda. A capoeira, assim como o jongo5, o xirê6
e muitas brincadeiras e jogos, acontece de maneira circular.
Partindo da perspectiva de que essa arte marcial faz parte da memória coletiva do
povo negro enquanto brincadeira, luta e resistência, ela foi utilizada como cosmovisão
para a pesquisa referente aos valores afro-brasileiros. Os valores civilizatórios afro-
brasileiros são os legados principais deixados pelos negros em território brasileiro
durante e após a escravidão. Essa cosmovisão tem guiado de maneira viva as
manifestações como a capoeira, brincadeiras e outras atividades. Nas palavras da
pesquisadora Flavia Candusso, os valores afro-brasileiros são:

[...] portanto, um conjunto de princípios que foram ‘extraído’ de práticas,


discursos, atitudes, maneiras de sentir e ver o mundo típico dos grupos sociais
afrodescendentes (...) identificados nos seguintes referenciais: circularidade,
musicalidade, corporeidade, ludicidade, corporativismo/comunitarismo,
memória, ancestralidade, oralidade, energia vital (axé) e religiosidade [...] esses
valores, é bom esclarecer, não são estanques, nem fixos, mas se relacionam
interpenetram, articulam, hibridizam e seguem os fluxos e conexões que
acontecem normalmente no dia a dia (CANDUSSO, 2009, p. 54-56).

Nesse sentido, utilizar os valores dentro da perspectiva cênica nos permite combinar,
juntar e criar relações dentro do processo de criação teatral. Como não são fixos e
podemos entender a cosmovisão africana como algo que não se separa, e sim está
em relação, uma coisa não está isolada da outra, ou seja, a circularidade está em
sintonia com a memória e também com a energia vital, e assim por diante.
Por isso, é nesse atravessamento que ações cênicas são confundidas com o
coletivo na construção de cenas feitas por atores negros e atrizes negras, pelas quais
acontece a identificação mediante conflitos, sentimentos e desejos presentes na
ação cênica. Isso porque ali estão personalidades e identidades que surgiram destas
escrevivências, dessa forma, na cena em processo, o ator e atriz performer refletem
sua identidade de serem negro e negra.

Desenvolvimento da pesquisa

A ideia de transformar brincadeiras e jogos para a criação de ações cênicas surgiu


do desejo de resgatar a memória dos atores para pensar a construção, preparação
corporal e vocal a partir das nossas escrevivências. Inicialmente, a poesia era a
indutora para a criação do texto, e, na adaptação dramatúrgica, sentimos falta

5
Jongo é também considerado uma expressão cultural de identidade do povo afrodescendente, com
destaque aos remanescentes de quilombos.
6
Xirê: festa.

69
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

de pensarmos em transições que ligassem os episódios da cena — isso dentro da


própria necessidade de pensar em uma cena “in process”7, abordando, assim, o
corpo performer como um corpo-registro que se utiliza da própria vivência para a
criação da cena. Foi nessa busca que resgatamos as nossas brincadeiras de criança,
destacadas abaixo, transformando-as em ações físicas e remetendo essas vivências
de criança à conexão com todas as questões sociais implicadas na cena.
A capoeira: os valores da capoeira estavam presentes na cena como delimitação
espacial (uma corda fazendo um círculo no chão delimitando e emoldurando o
espaço) e como estética. O girar dos corpos nesse espaço era como uma alavanca
cênica, que fazia com que a energia não se perdesse. Assim como simbolizava uma
cena contínua sem hierarquia entre os corpos ali presentes, todos eram protagonistas
da cena. Entendendo também esse círculo como um símbolo sem começo ou fim,
a dramaturgia torna-se uma encruzilhada histórica contada a partir da lente das
pessoas negras, interligando passado, presente e futuro.
O cabo de guerra: uma das cenas da peça fala sobre ser pardo ou negro como
tentativa de fuga do racismo. Parte da cena acontece com a brincadeira de cabo
de guerra (ou puxa a corda). Os atores disputam, através do puxar da corda, para
convencer o outro de que ele é negro, enquanto o seu amigo tenta fugir da imagem
negativa construída sobre a pessoa negra através da nova classe social parda.
O lado pardo vence a batalha, e a mesma corda vira um chicote como forma de
punição de um corpo sobre o outro — remetendo-se às práticas de punição no
período escravocrata, quando a tortura era entendida como uma prática legal —,
punindo o corpo do outro, durante a cena, para que se questione: quais são os corpos
considerados perigosos? “Meu corpo preto”. Percebe-se aqui, entre outros valores,
a presença da ludicidade, corporeidade e memória, por exemplo. Ensina-se que
a corporeidade “pode ser abordada, enquanto corpo coletivo e corpo individual,
sendo sempre necessário levar em consideração como eles foram historicamente e
socialmente construídos” (CANDUSSO, 2009, p. 65).
O jogo de polícia e ladrão: esse jogo também está presente, como um momento de
transição de uma cena para outra, fazendo a representação da polícia que está sempre
atrás de pessoas, e geralmente essas pessoas têm uma cor: negra. Essa brincadeira
também pode ser entendida como um ensaio ou uma tentativa de dar uma lição às
pessoas, afinal a brincadeira acaba quando todos os “ladrões” são presos.
Músicas tradicionais: falando sobre cantar, brincar, dançar e girar na busca
de ações físicas como pular, andar e girar, além de cantar e aquecer a voz e o
corpo para a cena, trouxemos as músicas “Chicotinho Queimado” e “Escravos
de Jó” com a proposta de fazer as pessoas refletirem sobre o quão racistas
são e como reforçam o genocídio do povo preto. Essas cantigas tradicionais

7
Trabalho em processo. Termo utilizado pelo pesquisador do teatro Renato Cohen no livro “Work in
Process na Cena Contemporânea: criação, recepção e encenação”.

70
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

são exemplos de como o corpo negro se comporta e como cria estratégia de


sobrevivência. “Chicotinho Queimado” e “Escravos de Jó” são músicas e brincadeiras
tradicionais que falam sobre os negros escravizados e os senhores de escravos8.
Simamaká: por fim, entre os jogos utilizados nos processos de criação de cena,
apenas esta brincadeira não fazia parte do nosso repertório de memória infantil,
pois veio de uma experiência no componente curricular do curso de Licenciatura em
Teatro, chamado Dança na Escola. Simamaká é uma brincadeira que veio de um
país africano chamado Tanzânia. Sabe-se que o continente africano exerce grande
influência na construção da identidade brasileira (ANDRADE, 2020). O jogo, além de
ter ações físicas como agachar, pular, andar e correr, inclui em sua prática também
o canto. Na brincadeira, a criança, espontaneamente, está aquecendo, preparando
seu corpo, criando resistência corporal e ainda expressando-se através de cantigas.

Conclusões

Este trabalho visou analisar a cena construída a partir de relatos dos atores negros
envolvidos no processo de criação e de seus referenciais, abordando a relação entre
os jogos tradicionais de criança, que são costurados aos acontecimentos políticos e
sociais do tempo presente e dialogam com a temática que amarra esse documento:
o corpo negro. Esse corpo-documento sempre esteve presente na história do Brasil,
primeiramente trazido como escravo dos senhores brancos e, depois, passado a
objeto de narrativas contadas apenas do ponto de vista do homem branco.
Esta pesquisa exploratória, portanto, vem desaguar no refletir sobre práticas artísticas
de criação apoiadas nos saberes populares dos jogos de infância e memória enquanto
conceitos de escrevivência. Dessa forma, busca-se estratégias de democratização
de práticas pedagógicas no campo da arte e na contribuição para o combate ao
racismo através da validação das questões de cultura e memória negras e periféricas
em um tempo em que “nós mesmos falarmos de nós mesmos” exige a necessidade
constante do impulso para criação de novas narrativas cênicas.

Referências bibliográficas

ALEXANDRE, Marcos Antônio. O Teatro Negro em Perspectiva: Dramaturgia e Cena


Negra no Brasil e em Cuba. 1 ed. Rio de Janeiro: Malê, 2017,428p.

8
Ver mais sobre o tema em: https://super.abril.com.br/historia/quem-era-jo-por-que-ele-tinha-
escravos-e-o-que-diabo-e-caxanga/. Acesso em: 10 nov. 2021.

71
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

ANDRADE, Leonardo Carlos de. Explorando a cultura africana pelo brincar. In:
SANTOS, Tatianne Silva; NOLL, Matias; ANDRADE, Leonardo Carlos de. Diversão e
conhecimento: um resgate de brincadeiras e jogos da comunidade quilombola do
Cedro. Goiâna: IF Goiano, 2020. p. 27 - 32.

CANDUSSO, Flavia. Capoeira angola, educação musical e valores civilizatórios


afro-brasileiros. 2009. 258p. Tese (Doutorado em Música) — Escola de Música,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

EVARISTO, Conceição. A Escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância L.;


NUNES, Isabella R. (Orgs). Escrevivência: a escrita de nós: Reflexões sobre a obra de
Conceição Evaristo. 1. ed. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020.

LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola como Treinamento para o Ator. Dissertação de
Mestrado - Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal
da Bahia. Salvador/Bahia, p. 202. 2002

MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. 1. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.

RATTS, Alex J. P. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. 1.


ed. São Paulo: Imprensa Oficial/Instituto Kuanza, 2006.

72
Reflexões Errantes sobre Cidade e as Artes da Cena:
devoração cultural em Campos dos Goytacazes
Takna Mendonça Formaggini
Instituto Federal do Rio de Janeiro

Resumo

Este trabalho busca refletir sobre alguns aspectos das possibilidades


presentes na ação entre deambulação e percepção do espaço público que
contribuam para a provocação de porosidades nas relações do corpo atuador1
em suas práticas pedagógicas de pesquisa da cena teatral que se dá no espaço urbano.
Essa provocação se apropria do termo “devoração cultural”, dentro do sentido de busca de
uma autonomia cultural, desejos e afetos de pertencimentos de memória coletiva para uma
prática porosa entre teatro e cidade.

Palavras-chave: Teatro de rua. Antropofagia. Devoração cultural. Arte e cidade.

Introdução

As reflexões acerca da compreensão de pertencimento dentro das relações entre


a sociedade e a natureza urbana estão abordadas neste trabalho. Adentra-se
em um debate pretendido sobre o fazer teatral em espaços urbanos, entendendo
a qualidade da experiência estética enquanto “devoração cultural” e disparadora
da reflexão de ações para um teatro que pretende ocupar as ruas em sapiência de
porosidades, colocando-se, para isso, enquanto força revitalizadora que pretende
ser capaz de produzir ação artística sobre cotidianidades. Os indivíduos envolvidos,
ao recuperarem sua condição de cidadãos pertencentes a este espaço urbano por

1
“O termo atuador, no teatro brasileiro, aparece pela primeira vez em um manifesto do Teatro
Oficina na década de 70, que trazia entre seus objetivos a busca por cativar o público que não tinha
acesso ao teatro; a ocupação de outros espaços, além dos teatros convencionais; a reformulação
da cena de forma que fosse concebida como um testemunho, sem divisão entre palco e plateia,
sem máscara, representação tradicional, maquiagem, fantasia ou qualquer elemento que pudesse
produzir fascínio ou distanciamento entre o espectador e a ação. A fim de cumprir todos esses
objetivos, a denominação ator – componente do grupo – deveria ser substituída por atuador” (SILVA,
1981, p. 203). No foco do presente projeto, os atuadores também se reconhecem como pesquisadores
durante os itinerários de investigação corpo-cidade. Por isso, “atuadores pesquisadores”.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

eles vivenciado, são instigados a desvelar novas possibilidades de compreensão e


atuação no mundo que os rodeiam, como um processo mesmo de antropofagia,
defendido por Oswald de Andrade em seu “Manifesto Antropófago”, de 1928.
A reflexão sobre o termo “devoração cultural”, quando relacionado a lugares onde
há existência de discursos diversos de posição autodepreciativa em relação à sua
própria cultura, traz questionamentos tanto no respeito aos sujeitos que sentem
que seu espaço, memória, cultura e história não têm valor quanto sobre quais
ações, ou falta de ações, em políticas públicas teriam contribuído para este (des)
pertencimento que é o compreender-se enquanto cidadão, enquanto ator dessas
políticas e enquanto possuidor de uma cultura histórica de valores e afetos.
Penetrar a cidade ao mesmo tempo em que se permite à cidade também estar
presente nesta ação dinâmica de constante interferência e reflexão pode ser uma
ação compreendida como devoração cultural. Para isso, o teatro vem propor a
ação como uma forma política de reexistência perante a condição de cidades que
vêm sendo corroídas em sua essência de fundamento da vida pública. No caso da
cidade de Campos dos Goytacazes, a devoração cultural vem propor o “perceber-se
Goitacá”, a partir da relação sensível que é a construção cultural ancestral da cidade,
tendo como conexão o acontecimento artístico.

1. Goitacá or not Goitacá: uma questão de deambulação

“Tupy, or not tupy that is the question. [...]


Só me interessa o que não é meu.
Lei do homem. Lei do antropófago.”
(Oswald de Andrade, 1928, p.3)

“Devoração cultural” tem sua definição alicerçada no termo “antropofágico”, presente


na publicação do “Manifesto Antropófago” (1928), na revista Antropofagia, em São Paulo,
de Oswald de Andrade, a partir dos movimentos advindos da Semana de Arte Moderna
de 1922, na qual os artistas brasileiros buscavam uma arte que representasse o Brasil
para além das inspirações e cópias da estética europeia. O termo trouxe a associação
direta com a palavra “antropofagia”, em referência aos rituais em que indígenas
consumiam carne humana. Nessa cultura ritualística, essas cerimônias evocavam
o sobrenatural na crença de que o indivíduo amplia sua força pela assimilação de
outros poderosos e perigosos, sejam guerreiros ou inimigos. No caso da proposta da
antropofagia cultural de Oswald de Andrade, esta promovia a ideia de deglutição,
porém da cultura estrangeira, como uma metáfora simbólica de que a influência
cultural de outros países não deveria ser copiada, e sim devorada e assimilada.
O ato de deambular, flanar, vaguear pelas ruas da cidade enquanto sujeitos errantes
(BENJAMIN, 2015; JACQUES, 2014) permite a atuadores pesquisadores elaborarem

74
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

conexões integradas à construção de pertencimento entre o urbano e a sociedade


justamente no processo de deambulação, que permita ao corpo sensível perceber a
cidade em todos os seus desejos.

Todos os afetos estão na cidade. Ódios, paixões, vergonhas, compaixões,


ressentimentos, desejos. Quanto mais a cidade puder absorver esses afetos,
mais densamente humana ela vai-se tornando. E quanto mais complexos
forem esses afetos e tanto mais variada a rede de relações humanas e sociais,
tanto maior a elaboração será necessária para a decodificação de seu sistema
de valores e à sua representação (PECHMAN, 2009, p. 1).

Na busca deste olhar significante sobre o lugar enquanto concentração do


acontecimento urbano e enquanto rede de relações humanas, como nos aponta
Pechman (2009), é que atuadores percorrem de forma errante o espaço público, no
rastro de recortes visuais pertencentes à poética presente na rotina da cidade. Na
construção de pontos significativos, experimentando, assim, trajetórias inesperadas,
sugeridas pelos parceiros de jogo.
A performance cênica urbana traz experiências que promovem impacto entre os
sujeitos presentes nesses aleatórios ou determinados espaços urbanos. Os locais
onde ocorrem tais ações de vivência e presença da cena de rua atravessam olhares e
afetos por meio da experiência estética então vivenciada. Nesse sentido, Saskia Sassen
(2018) nos provoca em suas reflexões sobre a memória coletiva urbana observando
que “uma determinada cidade possui múltiplos mundos. Há um imaginário urbano e
não apenas o imóvel urbano” (SASSEN, 2018, s. p.).
Esta relação entre sociedade e espaço urbano tem sido discutida por diversas
perspectivas que incluem também a apreensão entre a relação sujeito e objeto
enquanto complementação de sentidos, em que não se encontrariam como um
campo puro na compreensão da ciência, mas como campos complementares.
A não percepção de sua própria identidade cultural empobrece a experiência
de envolvimento da sociedade, no que diz respeito aos sentimentos de afeto e de
pertencimento cultural e cidadão, tão importantes em uma cidade que está vendo
seu patrimônio material e imaterial em um processo de constante desvalorização,
depreciação e esvaziamento de seus sentidos, disse Darcy Ribeiro (2014) em seu livro
“Utopia Selvagem: saudades da inocência perdida. Uma fábula”. Na obra, entende
tanto a miscigenação quanto a construção cultural de nosso povo brasileiro;
considerando a contribuição da relação antropofágica modernista, observa:

As gentes estranhas que Colombo e Américo viram viraram colombianos, americanos


e bolivianos além de abrasados e prateados e até equatorianos. (...) Esgotados e
enjoados do esforço de simular ser quem não somos, aprendemos, afinal, a lavar os
olhos e compor espelhos para ver. Neles nossa figura surge debuxada no Guesa, em
Macunaíma e, sobretudo, no Grito Antropofágico (RIBEIRO, 2014, p. 33).

75
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

A expressão de Darcy “esgotados e enjoados do esforço de simular ser quem não


somos”, ou seja, a não percepção de nossa própria identidade cultural empobrece
a experiência de envolvimento da sociedade no que diz respeito aos sentimentos de
afeto, pertencimento cultural e cidadão. É urgente ser devorador cultural da cidade em
que se vive. Esse conjunto de elementos faz com que moradores da cidade acabem
por nutrir uma relação de distanciamento e mesmo de desprezo pelos espaços
públicos, impactando, consequentemente, o convívio com o outro. Isso acarreta um
esvaziamento de encontros, experiências e criação de afeto pela cidade, sua história,
possibilidades de vivência, observação e aprendizado, destituindo pouco a pouco
esses sujeitos das experiências coletivas. É nessa cidade, possuidora de memórias,
que o teatro deseja estar — para devorar e ser devorado.

2. O atuador pesquisador: devorador cultural da rua, do teatro e de si mesmo

A prática da cena teatral para a rua, assim como para outros espaços não
convencionais de encenação, necessita de um constante refletir sobre as relações
estabelecidas entre atuadores e a semântica desses espaços. Por essa razão, ao se
colocarem também como sujeitos errantes na percepção de sua relação com as ruas
e os espaços urbanos, é que atuadores pesquisadores, em trabalho de preparação
para a linguagem do teatro de rua, permitem-se, empiricamente, práticas de grupo
que envolvem saídas para o espaço público e percepção sensível da cidade, debater
uma experiência artística, justamente dentro da ideia de porosidade — esta enquanto
trama de percepções histórico-afetivas envolvidas na relação de compreensão
sensível para com o espaço urbano.
Para que haja significação no processo que inclui a percepção do olhar sensível sobre
a cidade em todos os seus afetos, o artista também deve construir seu processo a partir
da experiência de seus próprios afetos sobre a cidade, oportunizando, assim, o conceito
híbrido e transdisciplinar proposto para preparação que antecede a experiência de
fruição pretendida para a etapa de intervenções urbanas. A manifestação teatral,
por conter um conjunto de signos, permite ao espectador a associação desses
signos pertencentes a esse sistema para que haja o processo de descoberta dos
seus significados (HONZL, 1988). Portanto, para um projeto artístico que se proponha
à produção de sentidos a partir de diversas possibilidades de experiências, vivências
e sensorialidades entre os que o vivenciam, é necessário considerar a investigação
no tocante às referências significativas que o artista envolvido, o atuador, irá operar.
Em vista disso, percebe-se, nesse campo investigativo de estudo, um significativo
debate que se refere a praticar a cidade também como criadores, dentro da
compreensão de que não são apenas os imóveis que estão presentes em uma
cidade, mas sim toda a memória coletiva que ela carrega em si e onde, neste debate,

76
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

o teatro errante vem nos convidar a (re)pensar sobre esses sentidos. Percebe-se
a tríade sociedade-espaço-tempo como algo indissociável, não como relação de
pertencimento de um para com o outro, mas dentro de uma relação indissociável de
existência. Percebe-se esses sujeitos da ação na relação com os ambientes diversos
e enquanto partes interligadas constituintes do ensino-aprendizagem, em uma
relação que considere o caráter híbrido existente entre atuadores, espectadores e
espaço urbano.
O levantamento de uma metodologia de trabalho, portanto, que busque essa
porosidade de relações entre experiências concretas sobre arte e cidade é necessário.
A cidade é percebida/devorada em seus valores a partir de experiência significativa/
devoração cultural, que se dão tanto para os sujeitos passantes quanto para os
atuadores pesquisadores que se propõem a essa jornada errante, além de tecerem
itinerários a partir da busca pessoal de compreensão particular e coletiva de cidade
na construção da ação artística pessoal. Buscam-se trabalhos corporais de atuação
em teatro, dentro da procura de uma linguagem de apropriação desses sentidos da
cidade e da relação de si mesmos com o espaço e com o outro, como busca por essa
porosidade afetiva.
A proposta que relaciona devoração cultural e teatro de rua, quando pensada dentro
do panorama vivenciado pela sociedade global nos anos de 2020 e 2021, em que o
espaço público colocou-se como “perigoso” devido à pandemia mundial do vírus de
Covid-19, vem, a partir daqui, trazer um sentido extremamente mais potente enquanto
ação. Nunca se desejou tanto a devoração do espaço urbano, do espaço público.
Nunca se desejou tanto novamente a devoração das copresenças e a devoração
cultural do cotidiano de uma cidade. A arte pública, através de ações teatrais em
espaços da cidade, vem propor o retorno e a ampliação das possibilidades de
convivência em diversidade cultural e artística dentro de um contexto em que a
prática do teatro de rua e da arte pública faça-se cada vez mais necessária, e o
espaço urbano possa prevalecer como lugar de experiência estética.
Os goitacazes (cidadãos campistas) do presente trazem consigo, como herança
ancestral, toda a história que vem desses povos nativos dizimados, negros brutalmente
escravizados, europeus colonizadores, membros de ordens religiosas e tantas outras
histórias presentes nesses assuntos. De lutas, guerras, heróis e anti-heróis. Do horror e
injustiça à herança de danças e costumes de doces, frutas e cozidos. Essas reflexões
acerca da compreensão de pertencimento dentro das relações entre a sociedade
e a natureza urbana estão presentes no pensamento do fazer teatral para esses
espaços, trazendo a qualidade da experiência estética em arte como disparadora
da ideia de devoração cultural. Perceber-se Goitacá a partir da relação sensível que
é a construção cultural de si próprio com a cidade.

77
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Conclusões

A intenção da assimilação das temáticas devoração cultural e pertencimento


contribui com o debate que inclui a multidisciplinaridade nas artes da cena, a
corporeidade e suas relações dentro da compreensão do universo da cidade, de
sua história e cultura. A ampliação da percepção desses desejos e afetividades
por parte de atuadores pesquisadores que investiguem as relações entre o teatro
e a rua pretende a devoração dos sentidos de cidades que enfrentam desafios de
reconhecimento e criação de valores relativos à suas próprias histórias, ao seu povo
e ao seu espaço.
Para uma cidade plena de desejos, como propõe Pechman (2009), é necessária
uma sociedade que perceba a potencialidade do espaço urbano como local de
encontro e de festa; talvez isso seja o grande fator que fará com que a cidade possa
ser um lugar possível da manifestação e percepção de todos os desejos. Ver e sentir
a cidade culturalmente a partir dessas novas significações é devorar a cidade e a
deglutir na ação da criação artística.
Este campo de estudo interdisciplinar vem trazer contribuições para um debate na
retomada de um pensamento sobre a relação arte-cidade. Um desenvolvimento
urbano necessita de um envolvimento urbano. O contexto relativo à pandemia
de Covid-19 trouxe uma convivência urbana deslocada, em que as relações de
pertencimento e de encontro estiveram em período de confinamento. Pensamentos
que nos ofereçam outras e novas presenças, outras e novas potências sonoras a
partir também de um novo entorno urbano. Reflexões de práticas artísticas, sociais
e culturais que deem conta dessas novas relações entre o teatro e a rua. Retoma-
se Paola Jacques (2014), que traz o pertencimento coletivo urbano promovido pela
errância e o desejo de que a devoração cultural seja fonte de encontro e reconstrução
de afetos e desejos, tendo a potencialidade da relação entre o teatro e a cidade
como possível fio condutor desses processos.

Referências bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago. Revista de Antropofagia, São Paulo, v.


1, n. 1, 1928.

BENJAMIM, Walter. Baudelaire e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

HONZL, Jindrich. A mobilidade do signo teatral. In: GUINSBURG, Jacó; NETTO, José
Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves (Orgs.). Semiologia do teatro. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1988.

78
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2014.

PECHMAN, Robert Moses. Cenas, algumas obs-cenas, da rua. Fractal: Revista de


Psicologia, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 351-368, 2009.

RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem. 1. ed. São Paulo: Global Editora, 2014.

SASSEN, Saskia. Futuro imperfeito. Entrevista cedida a Pedro Zimmermann. Telos


Cultural: Fronteiras do Pensamento, 2018. Disponível em: https://canalcurta.tv.br/
filme/?name=futuro_imperfeito. Acesso em: 10 ago. 2021.

79
Três Décadas de Resistência da Cultura Negra
no Município de Campos dos Goytacazes:
um relato de experiência do Núcleo de Arte e
Cultura de Campos (NACC)
Neusimar da Hora Silva
Instituto Federal Fluminense

Resumo

Este trabalho é resultado da pesquisa de TCC realizada no contexto de formação da autora,


em Licenciatura em Teatro no IFF, que teve como foco apresentar a trajetória do Núcleo de
Arte e Cultura de Campos (Cia Gente de Teatro), o qual durante três décadas desenvolveu,
com ênfase nas manifestações culturais locais, espetáculos teatrais, tais como “A Mana
Chica do Caboio”, “O Grande Momento do Jongo”, “A História do Boi Lambeu e seus alegres
brincantes” e o “Balé Afro Ilê Sain à Oxalá”, entre outros. Essa ação, desde o início, envolveu a
manutenção de uma cultura de resistência, a qual, tendo sua gênese no passado, encontra-
se viva atualmente. Busca-se, portanto, neste breve relato, registrar as atividades artísticas
do Núcleo de Arte e Cultura de Campos, assim como as manifestações culturais preservadas
por meio do grupo, por meio do relato de experiência da própria autora e dos integrantes do
grupo, cujo objetivo é o de resgatar a trajetória do Núcleo de Arte e Cultura de Campos e,
principalmente, as expressões culturais do jongo e da Mana-Chica como espectros culturais
da região, mais especificamente do município de Campos dos Goytacazes.

Palavras-chave: NACC. Cultura afrodescendente. Memória.

Introdução

A partir de uma concepção fenomenológica, este trabalho considera a ação sujeito/


objeto indissociável quanto à ação de quem pesquisa e de quem é pesquisado. Isso
significa que, no movimento de conhecer, o conhecimento é humanamente constituído,
e, por assim ser, o estudado não se revela conforme método que procura estabelecer
categorização prévia, universalmente aplicada, mas, como seres humanos que são,
as produções apresentadas também são possibilidades e desvelamentos. Assim,
a percepção se faz no encontro homem-objeto no mundo, aquele que ao mesmo
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

tempo percebe e é percebido, envolvendo-se em uma “dança de conhecimento”


(BATISTA; MOCROSKY; MONDINI, 2017, p. 47) na qual todos os sentidos são participantes.
Dessa forma, na autoria deste relato, coloco-me como sujeito/objeto desta narrativa
que nasce do encontro identitário de uma mulher negra, atriz, diretora artística,
jongueira, umbandista e animadora cultural — que, desde os 14 anos de idade,
conheceu a linguagem do teatro a partir da escola de Cultura Dramática que havia
em Campos, cuja iniciativa deve-se ao grupo de artistas pertencentes ao teatro local,
que integravam a Associação Regional de Teatro Amador (ARTA) — com sua gente.
A relevância da narrativa da experiência do Núcleo de Arte e Cultura de Campos
(NACC) justifica-se e torna-se urgente pelo fato de ainda termos em nosso convívio os
sujeitos que vivenciaram a experiência das manifestações culturais de matriz negra,
tornando, assim, imperiosa a construção deste relato a fim de que sua memória seja
preservada e passada às futuras gerações.

Fundamentação teórica

Este trabalho encontra-se em consonância com dois princípios teóricos:


primeiramente, o do sociólogo Maurice Halbwachs (2013), tendo como categoria
fundante a “memória coletiva”, mediante a qual a memória deixa de ter apenas
a dimensão individual, tendo em vista que as memórias de um sujeito nunca são
apenas suas, ao passo que nenhuma lembrança pode coexistir isolada de um grupo
social; e o conceito de “outro teatro”, a partir da pesquisa de Zeca Ligiéro (2012).
A relação entre arte e transcendência se deu de forma intrínseca em toda a minha
trajetória de vida, num processo gradativo de conscientização cada vez maior das
implicações socioculturais que demandavam desse mesmo processo. Porém, tive
minha percepção aguçada e instigada a compreender a indissociabilidade entre
cultura-ancestralidade-arte, a partir do conhecimento da abordagem de Ligiéro
(2012), criador do termo “outro teatro”, o qual aborda a diversidade de formas do
teatro e da dança vindos de outros povos, proporcionando uma nova estética teatral
em relação ao teatro eurocêntrico vivenciado até o início do século XX.
O contato com a obra do pesquisador Zeca Ligiéro possibilitou-me aprofundar as
questões que envolvem a performance cultural, ou motrizes culturais, e concluir que o
processo de vivência das memórias culturais as quais tive a oportunidade de experienciar
encontra-se dialogicamente com o pensamento desse autor. Ligiéro (2012) afirma que:

[...] devemos estender a questão do Outro Teatro a outros parâmetros para


perceber que a teatralidade não reside apenas na psicologia dos personagens
e na trama de seus destinos enquanto texto falado, mas, sobretudo, nos seus
aspectos ritualísticos, fantásticos, metafísicos, expressos especialmente na
combinação dos distintos elementos como a música, a dança, o uso de
máscaras, o canto, a cenografia e a narrativa épica (LIGIÉRO, 2012, p. 23).

81
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Ainda tomamos como base o conceito de memória coletiva, termo cunhado pelo
sociólogo francês Maurice Halbwachs (2013), que consiste em definir a memória
coletiva como aquela compreendida no processo de reconstrução do passado
vivido e experimentado por um determinado grupo social. Para mais, há o conceito
de história oral dentro da concepção do autor inglês Paul Thompson (1998). Segundo
Halbwachs (2013),

[...] não basta reconstituir pedaço por pedaço a imagem de um acontecimento


passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a
partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e, também
no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aqueles e vice-
versa, o que será possível se somente tiverem feito e continuarem fazendo parte
de uma mesma sociedade de um mesmo grupo (HALBWACHS, 2013, p. 39).

Assim, esta pesquisa visa não apenas colher as lembranças individuais, mas a
memória do coletivo denominado Núcleo de Arte e Cultura de Campos (Cia. Gente
de Teatro). No decorrer de 33 anos de existência, esse grupo tem mantido viva a
história e memória das manifestações culturais, de forma mais específica, neste
estudo, a Mana-Chica e o jongo do município de Campos dos Goytacazes.
Portanto, como diz o provérbio africano, “Hasta que los leones tengan sus propios
historiadores, las historias de cacería seguirán glorificando al cazador”1; logo,
enquanto não nos dispusermos a ser os contadores de nossa própria história, o
mundo e as gerações seguintes a ouvirão exaltar quem nos oprime e se assume
como protagonista da “verdade” que de nós mesmos inventou. Sendo assim,
a sabedoria do mestre que é capaz de conservar necessita transmitir os seus
conhecimentos aos mais jovens, pois, do contrário, as tradições serão esquecidas
para sempre.

Desenvolvimento da pesquisa

A relação com a ancestralidade, responsável por deixar heranças culturais dos


nossos antepassados, como a umbanda, fazia parte da minha infância através do
Terreiro de Mãe Elda, localizado na mesma rua onde morávamos e éramos levados
para rezar — Rua Teixeira de Melo, situada no Parque Leopoldina.
Enquanto expressão artística, as representações relacionadas à cultura de matriz
africana foram sendo vivenciadas através do Balé Afro Ilê Sain à Oxalá, que realizou
diversas montagens. Dentre elas, podemos destacar: “O Auto da Anunciação”, “Favela
Ponto Cinco”, “O Grande Momento do Jongo”, “Cantares à Planície Goitacá”, “Mana-
1
“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caça continuarão glorificando
o caçador”. Provérbio africano (tradução da autora).

82
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Chica do Caboio” e “A História do Boi Lambeu e seus alegres Brincantes”, todos de


autoria do professor/mestre Orávio de Campos Soares.
Assim, iniciamos nossa trajetória no teatro campista, no Grupo Experimental de
Teatro do SESC. Quando digo “iniciamos”, refiro-me à minha prima Neinha da Hora,
minha sobrinha, Jovana da Hora e a mim. Tal proximidade levou com que nos
denominassem “As Cajazeiras”, pelo fato de estarmos sempre juntas nas atividades
artísticas, principalmente na Escola de Teatro, em que fizemos parte da montagem
dirigida e de autoria do professor e mestre Orávio de Campos, intitulada “O Auto do
Lavrador na Volta do Êxodo”. A temática abordava a história da cultura canavieira
em Campos, com um caráter denunciante da exploração escrava dos cortadores
de cana da região. Dentro do espetáculo, as referências culturais traziam o jongo, a
Mana-Chica do Caboio e a umbanda como manifestações religiosas.
A partir desse espetáculo, sentimo-nos motivadas a buscar um aprofundamento
da linguagem do jongo, enfrentando muitas barreiras numa cidade que considerou
toda cultura ligada à matriz africana com muito preconceito.
Porém, o fato de viver dentro de uma família ligada às tradições do samba
nos ajudou a assumir nossa identidade, a valorizar essa cultura e a aprender a
expressá-la. Aos poucos, fomos descobrindo familiares que dançavam o jongo, na
comunidade da Baleeira, próxima ao bairro onde morávamos; ainda, minha mãe
nos falou sobre Manoel André e o seu terreiro, na Rua Rocha Leão, como “terreiro
bravo”, apropriando-se com certa naturalidade da linguagem preconceituosa com
que referiam-se à nossa religião.
Em 1997, mudanças políticas na filosofia da instituição extinguiram o trabalho do Grupo
Experimental de Teatro do SESC. Perdemos o espaço físico para as oficinas e ensaios e
o apoio do SESC, mas não perdemos a vontade de continuar atuando pela vida.
É nesse momento que o amor pela arte unido à convicção do papel social, como
grupo de artistas negros, em sua maioria detentores de vivência em nossas raízes
culturais, incentivou-nos a formarmos um grupo independente para dar continuidade
às nossas atividades culturais. Isso trouxe como consequência, em 1998, a criação,
por meio de estatuto, do Núcleo de Arte e Cultura de Campos (Cia Gente de Teatro),
que continua até os dias atuais.
Vale ressaltar o trabalho de pesquisa do professor/mestre Orávio, assim como o seu
incentivo pelo reconhecimento de nossa identidade cultural, que muito contribuiu
para que o NACC se tornasse referência cultural. Assim, o grupo vem reforçando a
importância de preservar não só o jongo, mas as manifestações de cultura popular
do nosso município.

83
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Conclusões

Podemos concluir que, com essa prática jongueira que vivenciamos, ressignificamos
e cultuamos a nossa memória ancestral, enfrentando o preconceito e o racismo,
compondo novos jongos e levando a cultura para as escolas, universidades e
comunidade em geral. Acreditamos ser assim a única forma de reafirmar a nossa
identidade, colocando-nos na condição de pertencimento e, por sua vez, valorizando
o jongo, já que em nosso município ele esteve adormecido como um ato negacionista
de apagar a memória histórica, cultural e social de nossos antepassados.
Atualmente, nossos principais objetivos são promover a conscientização de nossas
crianças a partir da cultura oral e manter viva a manifestação do jongo, uma vez
que historicamente a criança não dançava jongo em função do horário em que
as rodas aconteciam. Portanto, a partir do entendimento de que as crianças e os
jovens são a base afirmativa e positiva de nossa cultura, abrimos espaço para que
elas participassem junto com os adultos e se sentissem, dessa forma, conhecedoras
e familiarizadas com sua própria cultura. Essa experiência com as crianças tem
demonstrado que, através de seus corpos, elas vão livremente construindo e
ressignificando a nossa história.

Referências bibliográficas

BATISTA, Josiel de Oliveira; MOCROSKY, Luciane Ferreira; MONDINI, Fabiane. ACTIO –


Docência em Ciências, Curitiba, v. 2, n. 3, p. 44-59, out./dez. 2017.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2. ed. São


Paulo: Centauro, 2013.

LIGIÉRO, Zeca. Outro teatro: Arte e educação entre a tradição e as experiências


performáticas. Revista Poiésis, n. 19, p. 15-28, 2012.

THOMPSON, Paul. A voz do passado – história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

84
Travessias e Atravessamentos de
uma Corpo-saia Rodante
Alissan Maria da Silva
IFFluminense/NEPAA-UNIRIO

Resumo

As considerações apresentadas para este encontro integram o escopo da pesquisa


do processo de doutoramento em Artes Cênicas (2020), realizada com o Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) — Unirio, cuja centralidade está na
performance da saia que compõe o traje feminino do candomblé. No recorte deste
texto estão privilegiadas como eixo conceitual as nossas histórias tradicionais — ítans
— como epistemologia de terreiro em articulação com um arcabouço teórico com
vistas à afroperspectiva. Dessa maneira, é pretendido compartilhar considerações
sobre as travessias e os atravessamentos das construções de conhecimento de
uma corpo-saia, na concepção de uma pesquisadora que, antevendo as relações
pressupostas pela academia, é uma iniciada no contexto da tradição religiosa
pesquisada. É considerado que a saia é tornada prolongamento do corpo que a
preenche e também é expandido diametralmente. Por sua vez, o prolongamento
desse corpo feminino expandido torna-se também extensão do movimento que se
entende circular, expressando a sacralidade do tempo espiralar.

Palavras-chave: Candomblé. Saia. Performance. Mulher. Axé.

1. Nas águas do candomblé

“Águas. Mares. Travessias. Diásporas. A história dos negros nas Américas


escreve-se numa narrativa de migrações e travessias, nas quais a vivência
do sagrado, de modo singular, constitui um índice de resistência cultural e de
sobrevivência étnica, política e social.” (Leda Maria Martins, 1997, p.24)

As considerações apresentadas para este encontro integram o escopo da pesquisa


do processo de doutoramento em Artes Cênicas (2020), realizada com o Programa
de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) — Unirio, cuja centralidade está na
performance da saia que compõe o traje feminino do candomblé.
O candomblé, compreendido por esta pesquisa como um complexo cultural, é uma
das várias religiões que compõem um grupo de cultos de motrizes africanas (LIGIÉRO,
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

2011) no Brasil, como o tambor de mina, umbanda, quimbanda, xangôs, batuques,


terecô, entre outros, que se configuram numa vastíssima gama de diversidades. Em
acordo com Pessoa de Barros (2003), compreendo que as comunidades de terreiro,
as quais são denominadas candomblé, “se constituíram como lócus privilegiado de
manutenção de uma identidade afro-brasileira, contribuindo significativamente para
a preservação da memória africana no Brasil” (BARROS, 2003, p. 59).
Assim, interessa a este estudo a saia que passa a integrar um conjunto de elementos
significativos na composição das vestimentas femininas tradicionais, construídas por
africanos e seus descendentes a partir do contexto da diáspora africana no Brasil.
Tem-se em vista que suas formas de expressão e existência são vividas no interior
das tradições, mas ainda não devidamente investigadas e reconhecidas como
disparadoras de conhecimentos que performam cosmovisões específicas.

2. A saia como fio da meada

Articulando-me ao universo pesquisado, considerando o meu pertencimento ao


candomblé, passo a cunhar o termo “saias de axé” para concentrar-me naquelas
utilizadas por mulheres no espaço-tempo das tradições dos nossos terreiros de
candomblé, nos quais exercemos nossos papéis e funções no cotidiano e na liturgia
da tradição. O campo dos Estudos da Performance, nesse sentido, é compreendido
como terreno fértil em sua relação com as artes cênicas, tendo em vista a premissa
da articulação de caminho(s) que atenda(m) a natureza da investigação planejada,
em relação tanto ao próprio fenômeno quanto ao olhar pretendido sobre ele. A
performance como lente metodológica traz para a investigação a possibilidade de
confrontação do vivido, da experiência em si, e não apenas análises de registros e
materiais decorrentes do fenômeno, embora não exclua essas possibilidades na
medida em que se façam necessárias.
Dessa maneira, a pesquisa articulou a experiência vivencial da pesquisadora
com o campo, como eixo central numa endoperspectiva, sob a lente da noção de
comportamento restaurado (SCHECHNER, 2003). Isso está em consonância com um
arcabouço teórico visando à construção de um pensamento em afroperspectiva, de
modo a enfatizar a perspectiva ancestral para a saia em relação às suas sujeitos1.
No recorte deste texto estão privilegiadas como eixo conceitual as nossas
histórias tradicionais — ítans — como epistemologia de terreiro em consonância
com a articulação com esse léxico, a fim de apresentar considerações sobre
as travessias e os atravessamentos das construções de conhecimento de uma
corpo-saia. Isso se dá na perspectiva de uma pesquisadora que, antevendo as

1
Utilizo aqui o pronome “suas” no feminino na relação com o substantivo masculino “sujeitos” como
forma de enfatizar o feminino que é sujeito da saia.

86
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

relações pressupostas pela academia, é uma adoxo, ou, num termo mais popular,
rodante — aquela que expressa a divindade no corpo (transe) — e iaô – iniciada
no contexto da tradição do candomblé.

3. Lancei-me ao mar com Yemonjá,

[...] Aí eu comecei a entender as coisas com essa história que ela me contou. Ela
disse assim “Um dia, era uma vez”. Então, ela instaurou o mito. Esse era uma vez
é fantástico porque ele instaura a história mítica. Era uma vez um guerreiro. Um
guerreiro africano e ele chegou na aldeia dele e não viu as pessoas. Então, ele
perguntou onde é que estavam as pessoas: “Onde é que está o meu povo?”. Ele
era o rei daquela cidade. E alguém disse para ele “Levaram. São escravos hoje”.
Então ele muito nervoso vai para a floresta, arranca uma imensa árvore, um
grande Iroco, joga no mar e trepa no Iroco e vem nadando mar afora. No meio
das águas ele encontra uma mulher linda e ele conta a história que estava
buscando o povo dele. Ela disse “Vou com você. Eu também quero lutar junto
com você”. Chamava-se Iemanjá Ogunté. E os dois vieram conversando sobre
as estratégias e quando chegaram a Salvador eram três, que tinham nascido
Ogunjá. Quer dizer, três guerreiros que vieram para Salvador para libertar o seu
povo. Que coisa maravilhosa, gente! Como é que esse mito restaura a dignidade.
E como é que esses deuses vindos para o Brasil dão uma nova dimensão na
luta social [...] (BARROS, s.p., 2013).

A narrativa contada por Pessoa de Barros (2013) delineia os nossos sentidos e


percepções como divindades africanas, de maneira humanizada; teriam feito a mesma
travessia que os africanos escravizados — seus filhos —, de modo a acompanhá-
los diante do inevitável sequestro. Tendo aqui a saia como alusão a esse mar, uma
grande saia que se expande com a diáspora, auxilia-nos na compreensão dos fluxos
e refluxos (VERGER, 1987) compreendidos nestes trânsitos que não se findam quando
negros africanos chegam — ou melhor, quando conseguem chegar — à terra firme.
Assim como esse ítan faz parte das construções e reconstruções desses sujeitos em
trânsito diante das consequências dessa travessia imposta, compreendamos que
essas saias não faziam parte da indumentária das mulheres em terras africanas.
Como aponta Pessoa de Barros (2013), é a partir desse mar que se fez território
de travessia, ou talvez seja melhor dizer atravessamento, que a narrativa mítica é
construída na perspectiva de restaurar a dignidade de um povo com base na(s) sua(s)
ancestralidade(s). Dessa maneira, em contraposição à ideia de uma dominação
pela saia — vestir a imposição do dominador —, há processos de negociação de
liberdade diante da imposição hegemônica, que precisamos levar em consideração.
É necessário percebê-la a partir de outros prismas e pontos de vista, e são essas
rotas que deram início ao seu cartografar aqui, devagar, ao balanço do mar.

87
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

A perspectiva da saia como o mar que expande os povos africanos em


diáspora encontra também respaldo na exemplaridade na narrativa mítica, na
qual o ítan procura dar conta de explicar a existência desses sujeitos em diáspora.
Seria demasiada ousadia nos lançar à indagação de que, da mesma forma que
não se usavam essas saias rodadas em África, o guerreiro também não teria feito
essa travessia se seus filhos não tivessem sido forçados a tal? Então, poderíamos
até ousar supor que originalmente esse ítan não existiria em solo africano, mas faz
parte das reconstruções de povos que, na recuperação de sua dignidade, entendem
também seus ancestrais e deuses em negociações para sua existência. E isso o torna
imensamente verdade.
De acordo com Oliveira (2003), o fenômeno histórico da diáspora provoca uma
desterritorialização de símbolos restritos às comunidades de origem dos africanos
escravizados, transpondo fronteiras culturais e, até mesmo, universalizando seus
significados. Seria necessário, então, pensar a reterritorialização dos negros no Brasil
para pensar a cultura negra, já que o território afro-brasileiro não é o espaço físico
africano, mas sim a forma como os negros brasileiros singularizam este território: “O
espaço físico reterritorializado é um espaço simbólico cultural” (OLIVEIRA, 2003, p. 83).
A cosmovisão africana é fortemente marcada pela religiosidade (OLIVEIRA, 2003),
e a religião não se separa dos ritos e mitos da tradição; assim, a vida é ritualizada
e sacralizada continuamente no cotidiano das instituições negro-africanas. Dessa
forma, é essa riqueza de mitos e ritos que permitiu uma atualização criativa dessas
instituições em terras alheias. O candomblé é, portanto, uma prática cultural religiosa
que revive uma cosmovisão africana no Brasil (OLIVEIRA, 2003), sem deixar de levar
em consideração outros atravessamentos mediante nossa história colonial, mas
que não acarretaram um apagamento, e sim “reelaborações” inteligentes para a
promoção de existência.

Este complexo simbólico, inscrito no espaço, é a presença forte que afirma


“que não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial”
(Halbwachs, 1941, p. 85). Outros aspectos falam da importância e da presença
da cultura iorubá espacialmente a de Oió. O complexo arquitetônico das casas-
de-santo redesenha, no caso brasileiro, este antigo reinado federativo, onde
os quartos-de-santo, ou ilês-orixá, representam as antigas cidades-estado,
inscritas no território simbólico. Neste sentido, “a epistemologia não estuda o
espaço unicamente do ponto de vista da materialização do território, porém
sobre sua construção, sua organização, sua disposição e suas inscrições, vistas
como fenômenos culturais enquanto formas de representações que se fazem
do seu território, os grupos que nele vivem” (BARROS, 2000, p. 77).

Logo, essa “singularização” se dá pela vivificação da cultura negra em um território


que não corresponde apenas a uma questão de espaço físico, muito menos a
estabelecimento de noções restritas de origens como marcos iniciais, mas um

88
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

território singularizado pelas relações nele construídas, o real vivido, por sua filosofia
imanente, por sua dinâmica civilizatória, portanto aspectos civilizatórios africanos
reinterpretados no Brasil. Esse território pode ser compreendido como o espaço físico
que, habitado por esse corpo — o terreiro —, também habita material e imaterialmente
o próprio corpo habitado pelo sujeito. Por isso, no caso do olhar proposto por este
estudo, a saia que habita e é habitada pelo corpo feminino se torna também território
singularizado à medida que desenha no espaço a cinesfera desse ser redondo.
Oliveira (2003) aponta ainda que essa cosmovisão se pauta não pela contraposição,
mas a partir da complementaridade como princípio, no qual “o” deus não é apenas
masculino, e o feminino não é apenas uma costela de Adão. Òrun (o invisível) e Àiyé
(o visível) coexistem e se interpenetram, bem como as forças femininas e masculinas
também coexistem interligando-se, tendo deuses, forças, poderes femininos,
masculinos e andróginos. Desse modo, o culto aos orixás está extremamente ligado
ao culto aos ancestrais2. A cosmovisão africana retira dele praticamente todos os seus
elementos (OLIVEIRA, 2003), inclusive o princípio da complementaridade. Embora os
cultos para os orixás e ancestrais não sejam os mesmos, os ancestrais e os orixás são
complementares no Òrun. A complementaridade entre Òrun e o Àiyé, vida e morte,
feminino e masculino, por exemplo, é preservada e atualizada pelas práticas e lógicas
africanas de compreender e atuar no mundo, restauradas por seus descendentes.

Na condensação do terreiro, transpõe-se muito da concepção espacial contida


na cosmovisão nagô. Ali se acham presentes nas representações dos grandes
espaços em que se assentam a existência: o òrun (ou o invisível, o além) e o
àiyé (mundo visível). Visível e invisível são como duas metades de uma cabaça
(igba nla meji), antes unidas, depois separadas pela violação de um tabu –
segundo um mito de origem. Òrun e àiyé, embora diferentes interpenetram,
coexistem (SODRÉ, 1998, p. 51).

Portanto, considero que há uma conexão entre a forma circular da saia e o feminino
na cosmovisão que, em diáspora, soube se construir alegoricamente no corpo da
mulher que preenche a saia e a faz mover como que propagando ondas pelo espaço.
Mais uma estratégia simbólica em singularizar — “restaurando comportamentos” —
elementos que, a princípio, não lhe constituíam sob essa forma (saia) naquilo que é
seu (corpo), expressando sua cosmovisão (circular) e sua gênese (“mulher/feminino
que gera”) em movimento (“afrografia”) nos tempos reversos da ancestralidade
(espiral). Dessa maneira, a performance do movimento do corpo que utiliza a saia
não é acessada; saberes provenientes da performance da saia, cujo movimento

2
Em relação aos cultos aos ancestrais de tradição nagô no Brasil, “Os Esa, os Egungun e as Iya-mi
Agba. [...] Os Esa são considerados os ancestrais coletivos dos afrobrasileiros [...] destacam-se por
seu trabalho junto às comunidades [...] Egungun é o culto dos ancestrais masculinos [...] A Geledes é
o culto às ancestrais femininas [...] também chamadas Iya-mi-Agba” (OLIVEIRA, 2003, p. 62-64).

89
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

é gerado a partir do feminino que dança, são acessados. O desafio posto foi o de
conectar as linhas diante das possibilidades que essa encruzilhada apresentou como
hipótese: pensar esse elemento que veste o corpo feminino no candomblé — a saia,
que, ao girar, prolonga o corpo e estende o movimento — como expressão de uma
cosmovisão ancestral, mantendo o equilíbrio e restaurando a tradição.

4. Para a costura de ondas da minha própria saia

A saia é “tornada” axé à medida que se torna prolongamento desse corpo que a
preenche e também é expandido diametralmente. Por sua vez, o prolongamento desse
corpo feminino expandido torna-se também extensão do movimento que se entende
circular, mesmo que não esteja literalmente dançando em giros a todo momento.
Muito embora esteja posto que o movimento giratório desenha a “afrografia” dessa
performance que expressa a sacralidade do tempo espiralar, fazendo também das
saias de axé, em sua unidade corpo-saia, “portais de inscrições de saberes de vária
ordem, dentre elas a filosófica” (MARTINS, 2002, p. 72).
O corpo como princípio dinâmico do movimento dinamiza a circulação do axé. No
entanto, se corpo — bára — somos todos, a singularização da saia que a esse princípio
dinâmico dá vida é a própria manutenção da vida, tornando-nos conceito de espirais
em movimento com nome, sobrenome e identidade, responsáveis pela continuidade
dessa mesma vida — iaôs mulheres espirais. Como corpos singularizados por saias
que singularizam corpos, carregamos o tempo no próprio corpo como um portal.
Somos como Iemanjá, aquela que deu à luz Exu, princípio dinâmico da vida e dono do
corpo, dentro de uma concha, o ogó. Mantenedoras dos mistérios, somos mães do
movimento de uma performance do tempo espiralar (MARTINS, 2002).
A saia girando, ou a noção da saia girando, transforma a performance da saia de
axé na medida em que o compartilhamento da emanação da energia é importante
aspecto desse equilíbrio buscado. Assim, essa performance é como ensinou equede
Raquel, minha mãe pequena: como a água que brota da nascente e se torna cachoeira;
como a voz que, como extensão do corpo, atinge o outro em comunicação; como o
doburu e o ebô, que se multiplicam depois do seu cozimento e podem alimentar a
todos — humanos e divindades —, tornando a saia possível signo de emanação de
axé, que, em seus rodopios e ondas, faz a guarda dos mistérios do nascimento de
uma nova vida e, também, de uma vida em renascimento — a iaô.

Referências bibliográficas

LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro:
Garamond, 2011.

90
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o reinado do Rosário no Jatobá. São


Paulo: Perspectiva, 1997.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: MARTINS, Leda Maria;
RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia. Performance, exílio, fronteiras, errâncias
territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. p. 69-92.

BARROS, José Flavio Pessoa de. Mito, memória e história: a música sacra de Xangô
no Brasil. In: CONDURU, Roberto; SIQUEIRA, Vera Beatriz (Orgs.). Políticas públicas de
cultura do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius; FAPERJ, 2003.

BARROS, José Flavio Pessoa de. O espaço sagrado no candomblé nagô. In: LEMOS,
Maria Teresa Toríbio Brittes; MORAES, Nilson Alves de; PARENTE, Paulo André Letra
(Orgs.). Memória e identidade. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.

BARROS, José Flavio Pessoa de. CULTNE - Curso de História Negra - UERJ - Prof.
Jose Flavio Pessoa. [S. l.: s. n.], 1 abril 2013. 1 vídeo (46 min 14 s). Publicado pelo canal
Cultne . Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MSh7wj80XC8&t=353s.
Acesso em: 7 maio 2018.

SCHECHNER, Richard. O que é performance. Revista O percevejo, Rio de Janeiro, v. 12,


n. 11, 2003.

SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benin
e a Bahia de todos os Santos. São Paulo: Editora Corrupio, 1987.

OLIVEIRA, Eduardo David. Cosmovisão africana no Brasil: elementos da filosofia


afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.

91
“Na Boca de Quem não Presta Pombagira é
Vagabunda1”: revisitando o olhar sobre as Pombogiras
Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense

Resumo 1

Esta pesquisa é resultante da investigação de uma médium, ativista acadêmica no


que tange a interpretação sobre as pombogiras. O trabalho é suleado pela seguinte
questão: as pombogiras em sua multiplicidade são representações de arquétipos
transgressores femininos ou são imagens de controle de mulheres negras e não
brancas de diferentes épocas? A pesquisa foi de cunho qualitativo, e os procedimentos
metodológicos utilizados constaram de uma revisão bibliográfica e relato de
experiência. Por fim, realizou-se o registro em forma de considerações, afirmando
que os processos de objetivação, ou seja, de transformar pessoas negras, ou até os
espíritos, em objetos explicáveis segundo meu ponto de vista, podem ser praticados
por qualquer pessoa formada sob os moldes de uma educação ocidentalizada, até
mesmo eu, uma mulher negra.

Palavras-chave: Pombogiras. Imagens de controle. Objetivação. Mulher negra.

Introdução

“Deu meia noite, a lua se escondeu, lá na encruzilhada dando a sua gargalhada


pombogira apareceu. E laroyê, e laroyê, e layoê. E Mojubá, e mojuba, e mojuba.
Ela é odara quem tem fé nessa levada é só pedir que ela dá.”

Após saudar as donas das encruzilhadas com meu ponto preferido, inicio os trabalhos
ritmados pelo som do atabaque e guiados pela levada da intuição de uma médium,
ativista intelectual. A discussão sobre o feminino nas religiões de matriz africana não

1
O título faz menção a um ponto de pombogira que demonstra o que chamamos de objetivação
neste trabalho. O ponto completo é: “Pombagira é mulher de domingo até segunda. Pombagira é
mulher de domingo até segunda. Na boca de quem não presta Pombagira é vagabunda. Na boca
de quem não presta Pombagira é vagabunda”.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

é recente, diversos autores e autoras se dedicaram ao debate sobre os arquétipos


femininos presentes nas Orixás do candomblé, nas caboclas da umbanda e até nos
arquétipos das pombogiras da quimbanda, tema deste trabalho.
Vista como a mulher-diabo, ou a mulher do diabo por ser a representação feminina
de Exu, um dos Orixás mais complexos do panteão yorubá, a pombogira é comumente
caracterizada enquanto espírito desviante que precisa vir à terra com o objetivo de
trabalhar e galgar a absolvição de uma vida regada de pecados relacionados aos
prazeres da carne, seja pelo abuso de droga e álcool, seja pela prostituição.
Inicialmente, o objetivo deste trabalho era apresentar a lógica de transgressão
feminina a partir dessa figura tão presente nas giras. Contudo, a partir da conversa
com minha yalorixá, entendi que, assim como nós, mulheres negras, somos
objetivadas, as pombogiras, ou seja, os espíritos de mulheres negras ou não brancas
de outros períodos também o são, de modo que a cantiga que evoca o espírito de
Dona Campeira, uma mulher que morreu virgem, diz que ela tinha sete maridos.
Dessa maneira, este trabalho visa refletir sobre possibilidades de objetivação dessas
entidades denominadas pombogiras, ou Exu-mulher.
No tópico intitulado “Formas de objetivação”, traço brevemente o conceito de
objetivação no contexto deste debate; seguido de “A outra face de Exu-homem:
pombogira”, no qual apresento a contextualização sobre a figura de Exu, que não se
encaixa na binaridade ocidental de homem/mulher; e, por fim, em “O dizível: para além
da energia sentida”, exponho reflexões acerca de conceitos e discussões presentes
no trabalho, pois, para além destes, existe uma relação de partilha entre médium e
entidade que (co)habitam um corpo humano no processo de incorporação.
Discutindo com as donas das encruzilhadas, entendi que a melhor forma de concluir
este trabalho é limpando os caminhos cheios de adjetivos atribuídos a elas, para que
consigamos pensá-las em suas multiplicidades de histórias e, consequentemente,
em suas multiplicidades de arquétipos. Sem perder de vista o meu primeiro objetivo,
foi possível observar que a maior transgressão de uma mulher que vive ou viveu numa
matriz de dominação que justapõe múltiplas opressões é ser entendida e respeitada
pelo que realmente é ou foi, e não pelo que falam sobre ela.

1. Formas de objetivação

O processo da diáspora africana é entendido neste trabalho enquanto migração


forçada de sociedades africanas para o trabalho forçado nas colônias de exploração
e/ou de moradia de europeus. Estes últimos projetaram na pessoa africana em
diáspora, bem como na pessoa colonizada, a imagem do outro, ou seja, da pessoa
que não é vista em si mesma, e sim como projeção dos adjetivos rejeitados pelos
homens europeus. Contudo, há a dimensão do intercâmbio entre culturas do

93
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

continente africano, das colônias e da própria Europa que não poderá deixar de
ser mencionado neste trabalho, já que as próprias religiões de matriz africana, em
especial o candomblé e a umbanda, são sínteses desses contatos.
No processo de escravidão, que perdurou por quase quatro séculos, diversas
foram as formas de organização que buscaram a liberdade das populações
escravizadas, inclusive organizadas por europeus brancos, conhecidos como
abolicionistas. No que se refere às atividades realizadas pelos(as) abolicionistas,
José Castiano (2010) diz que estes utilizam ex-escravizados(as) como instrumentos
de veracidade para suas narrativas pró-abolição da escravatura. Com isso,
construíam uma espécie de script limitando o que seria importante para comover
as plateias, ou seja, as pessoas africanas, a partir do contato com os europeus,
bem-intencionados ou não, passaram por processos que as tornaram objetos,
por meio do que ele denomina “objetivação”.
Castiano (2010) compreende por objetivação a maneira como as pessoas africanas
são utilizadas como instrumento para suprir as necessidades europeias, ainda que as
demandas destas primeiras sejam atendidas, em alguma instância. Assim, mesmo
que em condições de reconhecimento de suas humanidades e, dessa forma, uma
pessoa africana seja compreendida como alguém dotada de conhecimentos, ela
não possui autonomia e/ou a patente sobre eles, estando muitas vezes relegada à
função de ilustrar textos científicos que sistematizam, segundo moldes europeus, os
conhecimentos desenvolvidos por sociedades africanas.

2. A outra face de “Exu-homem”: pombogira

“Arreda homem que aí vem mulher, arreda homem que aí vem mulher, ela é
a pombogira, rainha do Cabaré.”

Nas religiões de matriz africana, bem como nas religiões de matriz cristã, a figura
de Exu possui grande centralidade. Se, de um lado, ele é a autoridade dos poderes
divinos com os quais Olorum cria o universo, de outro, ele é transformado em diabo
judaico-cristão, como lembra Rufino (2019). Assim, as investidas coloniais da Europa
não somente converteram a figura do orixá, fundamental na circulação da energia
vital das religiões de matriz africana, em demônio, como também masculinizaram
sua imagem. Tal pensamento coaduna com Vagner Silva (2015) quando afirma que
Exu não se deixa restringir às divisões de genêro. Portanto, podemos concluir que sua
masculinização está relacionada à interpretação ocidental de um dos símbolos que
representa esse Orixá, ou seja, o falo ereto, sinônimo de fertilidade.
O Orixá Exu, parte do panteão yorubá, assim como a população afrodiaspórica,
realiza trocas e intercâmbios que resultam na sua aparição em outras religiões como
parte das divindades cultuadas. Na umbanda, por exemplo, ele deixa de ser cultuado

94
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

como Orixá para ser compreendido como entidade. No contexto dessa religião afro-
brasileira, Tulani Pereira da Silva (2017) lembra que:

[...] Exu se apresenta como um espírito. Uma vida que se findou no plano material
e continua sua existência no plano espiritual, trabalhando na condição de
entidade. Exu aparece assim, de maneira tão brasileira. Malandreando as regras,
é o compadre de todas as horas na caminhada da vida, pois acompanha, de
maneira tão humana os problemas das pessoas. Interfere nos acontecimentos,
desviando ou não as bonanças/malefícios que os cercam (SILVA, 2017).

Na cosmologia da umbanda, esses espíritos são desviantes e suas vindas à terra


estão atreladas à necessidade de absolvição dos pecados cometidos em vida, por
meio do trabalho. Cabe salientar que a influência de valores ocidentais na cosmovisão
dessa religião é expressa na forma binária de ver o mundo real e espiritual, separando
os elementos contidos nesses mundos em bem e mal, direita e esquerda, feminino
e masculino. A própria umbanda teria seu lado ruim, ou seja, a quimbanda, linha em
que Exu é cultuado.
Se tudo possui uma outra face, com a entidade não seria diferente. A face feminina
de Exu, as pombogiras, é entendida e interpretada como a face masculina da
entidade, ou seja, como pessoas que em vida tiveram sexualidade desenfreadas,
eram drogadas, bêbadas e, no caso das mulheres, há o agravante do corpo que se
prostitui. Barros e Bairrão (2015) afirmam que as pombogiras são entendidas como o
lado ruim de Exu. Nesse sentido, Barros (2006) diz que:

Nessa ambiguidade masculino/feminino, na umbanda, Pomba-gira encontra se


relegada ao pólo negativo por ser entidade feminina e Exu ao pólo positivo por
ser entidade masculina. Contudo, Pomba-gira é duplamente “negativizada” e
discriminada uma vez que pertence, ao lado de Exu, também do pólo negativo
- da ala da quimbanda (BARROS, 2006, p. 47).

Três são as características importantes das pombogiras que apresento aqui: a


primeira é a forma peculiar com que elas se comunicam com as pessoas, no abraço
carinhoso, seguido de chamadas de atenção sobre alguma área da vida, conselhos
cheios de sarcasmos e, sempre que possível, finalizados com a receita de algum
trabalho para resolver alguma situação. A segunda é o valor que dão aos seus trajes,
que vão desde a roupa até os copos e taças que utilizam para beber suas bebidas
— de sidra até cachaça, como martini, contini, entre outras. A terceira é que suas
performances variam com suas características, as pombogiras do Cabaré costumam
ser mais sensuais, mas nem todas, pois, como relatam Barros e Bairrão (2015):

Encontramos mulheres de um outro tempo com porte de belas meretrizes, mas é


possível nos depararmos com aquelas que se vestem com túnicas pretas e emitem
grunhidos, amedrontando–nos tal como a morte. Há as que se apresentam

95
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

“meninas” sedutoras, ou ainda as que se dizem “malandras”, prendendo os


cabelos em rabo de cavalo e amarrando a saia com um nó porque dizem preferir
calça. São plurais, mas todas se dizem “mulheres”, são vistas como tal e parecem
estar muito “certas de si (BARROS; BAIRRÃO, 2015, p.26)

3. O dizível: para além da energia sentida

Segundo Barros e Bairrão (2015), a pombogira possivelmente é a transformação do


nome “bombogira”, falado nos terreiros desde a década de 1940. Mais do que uma
origem, expresso aqui minha relação com o sagrado e o processo de mudança em
minha visão acerca dessas entidades ocorrido no desenvolvimento deste trabalho.
Desde 2015, quando iniciei minha relação com as religiões de matriz africana, o Orixá
Exu sempre esteve em meus caminhos, seja por meio de sonhos, seja por sentir seu axé,
ou ainda ouvindo seus conselhos, em alguma gira. A figura da pombogira me causava,
nesse processo, um misto de sentimentos no que diz respeito à representação de um
feminino que transgredia a lógica de submissão imposta pela matriz de dominação
estabelecida pelo ocidente.
Nos meus primeiros processos de incorporação em que (co)habitei meu corpo
com Dona Maria Padilha Rainha do Cabaré, pude sentir sua energia e como meu
corpo se comportava em posse de Dona Padilha, ou seja, um corpo que gargalhava
estrondosamente, para expressar afirmação ou escárnio; colocava as mãos na cintura
com o objetivo de confrontar, mas também de sensualizar; requebrava os ombros a
todo tempo. Além disso, um corpo que dança, sempre que possível, principalmente
quando se sente prestigiado ao ouvir sua cantiga: “Arreda homem que aí vem mulher,
arreda homem que aí vem mulher, ela é Maria Padilha rainha do Cabaré”.
Sob os olhares atentos desta pesquisadora, que ainda não teve uma incorporação
completa — por isso consegue entender que (co)habita um corpo com outro espírito,
entretanto não consegue utilizar qualquer função deste corpo, neste momento —,
logo responderam afirmativamente a pergunta de pesquisa da autora Silva (2017),
que é: será que a performance da pombagira, a partir das práticas rito-litúrgicas
dessa determinada instituição religiosa, aponta a nós características de um feminino
emancipador? Contudo, tudo mudou no ato de uma conversa com minha yalorixá, ou
seja, uma sacerdotisa do culto aos Orixás de uma casa de candomblé, da nação Ketu.
Ao ser interrogada sobre o que ela entendia da figura da pombogira, ela respondeu:

Eu não sei te explicar ou conversar, eu só sei sentir. O que eu sei de pombogira é


uma coisa mágica, eu convivi minha vida toda com uma pombogira, até o nome
dela era diferente: Pombogira do Campo Santo, que significa cemitério, e ela na
verdade era um egum2. Ela viveu e dizia que o nome dela era Maria da Glória,

2
Egun é o termo utilizado para se referir ao espírito de pessoas falecidas.

96
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Maria da Glória não, Maria de Jesus [...] ela havia voltado, mas havia falecido
com 27 anos e foi assassinada sem ter feito nada, só porque o pai dela não valia
um tustão. Não esqueço essas palavras: ‘meu pai era tão filha da p*, tão filha da
p* que quando eu nasci ele gritou: nasceu a p*’[...].

E ela continua:

Mas ela era uma pessoa boa, pura. Essa pombogira é muito diferente, a
gente canta que ela tem sete maridos, mas ela não tem sete maridos. E ela dizia
‘eu não tenho sete maridos porque morri moça, apesar de ninguém acreditar,
eu morri moça, não transei com ninguém’. E aí a gente cantava: ‘ela é mulher que
não tem marido’ ao invés de cantar ‘ela é mulher com sete maridos’. Não mexa
com ela, Campeira é um perigo. Entendeu?

A partir dessa conversa, indaguei: será que as pombogiras em sua multiplicidade são
representações de arquétipos transgressores femininos ou são imagens de controle3
de mulheres negras e não brancas de diferentes épocas? Pois, ao afirmar que ela não
possui sete maridos, mas que ninguém acredita em sua história de vida, Dona Campeira
abre um leque de possibilidades sobre histórias de vidas outras, experienciadas por
outras pombogiras, as quais os adeptos das religiões desacreditaram tanto que
elas já nem ousam contar. Mas, para afirmar tal tese, demandaria um trabalho de
investigação muito mais amplo.
O que a fala de Dona Campeira promoveu no meu entendimento sobre as pombogiras
não será possível expressar em sua totalidade neste trabalho. Porém, assim como
trabalhos anteriores me ensinaram a negar o prisma que enxerga mulheres negras
a partir dos binômios resistente e cansada ou, ainda, forte e fraca, com este trabalho
deixo de reivindicar o lugar de transgressora da lógica patriarcal para entender
as pombogiras no que de fato são, diversas, e precisam ser ouvidas para além do
momento que estão receitando um trabalho.
Vale ressaltar que denomino aqui por imagens de controle uma lógica de poder que
nomeia, caracteriza, manipula e dissemina significados carregados de estereótipos sobre
as vidas de mulheres negras, diferente do que elas falam sobre si mesmas (COLLINS, 2019).

Conclusões

Enquanto adepta do candomblé e pesquisadora, ao ouvir os relatos de Dona


Campeira, passei a refletir sobre as seguintes questões: enquanto adeptas(os),
estamos escutando e acreditando em tudo o que as pombogiras falam, ou apenas
3
Patricia Hill Collins compreende por matriz de dominação, ou seja, relações estabelecidas dentro da
organização de dada sociedade, onde as opressões interseccionais se originam, se desenvolvem e
estão inseridas (COLLINS, 2019).

97
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

no que nos interessa, isto é, nos trabalhos que elas passam para recuperar amor,
para conseguir emprego e prosperidade? Como pesquisadoras(es), estamos
preocupadas(os) em compreender a complexa dinâmica presente na discussão
dos arquétipos femininos existentes na matriz africana, ou mais interessadas(os) em
apontar a existência de alternativas à lógica hegemônica?
Ao mobilizar os conceitos de objetivação, matriz de opressões e imagens de controle,
busquei refletir sobre as impossibilidades de contarmos nossas próprias histórias
que rondam nossas experiências enquanto mulheres negras. De alguma maneira,
mesmo que sejamos compreendidas enquanto sujeitas e, no caso das pombogiras,
vistas na sua eficiência em resolver demandas, o ocidente cria estratégias para
contar e manipular nossas histórias segundo o que acredita saber de nós. Para além
disso, nós, pessoas que se posicionam contra um projeto colonial de dominação,
assumindo uma postura divergente à lógica proposta, seja por posicionamento
político, seja por sermos adeptas a uma religião cuja matriz não é judaico-cristã, não
podemos ignorar a possibilidade de incorrer ao erro de objetivar o(a) outro(a), pois
somos formados(as) conforme a razão ocidental.

Maria amarra a saia, é hora, é hora. Maria amarra saia, exu vai embora. Pombogira
quando chama, pra dizer que está na hora. Pombogira quando chama a falange
vai embora.

Referências bibliográficas

BARROS, Mariana Leal de; BAIRRÃO, José Francisco Francisco Miguel Henriques.
Gender performances in umbanda: the pombagira as an afrobrazilian interpretation
of woman? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 62, p. 126, nov. 2015.

CASTIANO, José Paulo. Referenciais da filosofia africana: em busca da


intersubjectivação. 1. ed. Maputo: Ndira, 2010.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a


política do empoderamento. 1. ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. 495 p.

SILVA, Tulani Pereira. “ARREDA HOMEM, QUE AÍ VEM MULHER...”: dimensões do corpo
na performance da Pombagira. 2017. 173 f. Dissertação (Mestrado em Relações
Étnico-Raciais) — Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca, Rio de Janeiro, 2017.

98
Identidades a Flor de Piel: a performance da
palenquera em Cartagena das Índias
Léa Maria Schmitt Leal
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

O presente trabalho que se encontra em andamento pretende desenvolver alguns


aspectos sobre as representações imagéticas das distintas influências culturais e
sociais que perpassam historicamente, até os dias de hoje, a forma de vestir das
mulheres afro-colombianas (palenqueras)1 incorporadas no discurso turístico na
Colômbia. Efetuou-se uma análise a partir de uma leitura crítica, junto com imagens e
textos turísticos vinculados conjuntamente na indústria turística, tendo a intenção de
compreender a maneira como é construída discursivamente a mulher palenquera,
conhecida como a vendedora de frutas tropicais e doces pelas ruas de Cartagena
das Índias, que muitas das vezes permite, por alguns trocados, ser fotografada.

Palavras-chave: Performance. Cultura. Afro-colombianas.

Introdução

“Palenque es una región que se conoce por la lluvia y por la selva


húmeda, voluptuosa y virgen que se siente a flor de piel y estremece el alma
avivando el deseo de explorarla, mientras el cuerpo extasiado se contiene
hasta sudar (Fucsia, enero-febrero de 2002). Los habitantes de la región se
caracterizan por -su alegría.” (El Tiempo)

Na costa do caribe colombiano, a uma hora da cidade de Cartagena das Índias,


entre montanhas e pântanos, há um lugar onde, apesar da passagem do tempo,
seus habitantes vivem como fizeram há vários séculos, guiados pelos seus costumes,
tradições e ritos africanos. Seus moradores preferem chamá-lo de Comunidade San
Basílio de Palenque, e não Palenque de San Basílio, argumentando que a cidade não
é do santo, mas o santo é do povo.

1
Palenquera é a designação da mulher originária de San Basílio de Palenque, pequena cidade
localizada a mais ou menos 70 quilômetros de Cartagena das Índias. Sua fundação é atribuída a
Benkos Biohó e um grupo de africanos escravizados quilombolas.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Determinadas mulheres pertencentes a essa comunidade quilombola constituíram-


se em um dos ícones representativos dessas duas conhecidas cidades do Caribe. Sua
origem remonta à época da colônia espanhola, quando os escravizados liderados por
Benkos Biohó2 conseguiram escapar e se organizaram em um palenque (quilombo).
Dessarte, San Basílio de Palenque é o primeiro território livre da América (1713), e
conservaram e amalgamaram os costumes, os ritos e as formas de expressão das
comunidades africanas das quais faziam parte originalmente.
Em particular, esse lugar é basicamente conhecido pelo seu símbolo nacional:
as palenqueras. São mulheres de pele escura que se vestem com uma roupa muito
especial, composta por vestidos multicoloridos com tecido de cetim e/ou algodão. Elas
são caracterizadas por sua maneira de andar, movendo seus quadris e balançando
em suas cabeças as bacias que carregam diariamente de sua cidade natal até
Cartagena das Índias.
Além disso, os trajes típicos de San Basílio de Palenque são geralmente acompanhados
por música tradicional, resultante de uma mistura de música latina e africana,
juntamente com instrumentos característicos de sua própria fabricação, como os
tambores. Entre os instrumentos inconfundíveis desse palenque, destacam-se: o
bongo, a timba, o bombo, o pechiche, o alegre, o chamador, as maracas e a marimbula.
Falar sobre a clássica indumentária nessa área sem mencionar as festividades, as
danças, as músicas e os instrumentos levaria a uma definição incompleta.
A profusa imagem em circulação das mulheres palenqueras em fotografias e
textos turísticos, de acordo com Dominguez (2014; 2019), seria considerada uma das
imagens mais propagadas virtualmente em todo o mundo3, tornando-se uma atração
exaltada e celebrada pelas ruas de Cartagena das Índias. Porém, se analisarmos
historicamente o “caminho” que essas mulheres tiveram que perpassar para chegar
ao reconhecimento de serem e se tornarem uma “atração turística”, reconhecida
pelo governo e governantes, veremos que esta ressignificação imagética ocorreu
há poucas décadas do século XX. Desse modo, tenho a intenção de demonstrar
que, somente após os anos 1990, posso conjeturar que essas mulheres e seus
pertencimentos cultural, social, econômico e histórico puderam ser respeitados
dentro da sociedade colombiana.
Deavila (2014) demonstra, por exemplo, que as palenqueras apareciam na imprensa
associadas ao turismo desde os anos 80 do século XX. Porém, com a massificação do
turismo, essas mulheres e todas aquelas trabalhadoras informais que se apresentavam e

2
Benkos Biohó, também conhecido como Domingo Biohó, nasceu na região de Biohó, Guiné-Bissau,
África Ocidental, onde foi sequestrado pelo traficante português Pedro Gómez Reynal, vendido ao
comerciante Juan de Palacios e revendido por este como escravo ao espanhol Alonso Campo, em
1596, na cidade de Cartagena das Índias.
3
Uma breve busca na rede mundial de computadores, no caso o Google, ao inserir a palavra
“palenqueras”, acarretou mais de 226 mil resultados.

100
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

trabalhavam nas praias assumem uma relevância, pois começaram a ser vistas como a
face informal que persegue e pode “afetar” o turismo, tornando-se objeto de intervenção e
controle por parte do governo local. Posso dizer que foi significativa a propagação da sua
imagem a partir dos anos 1990, pois a administração local determinou uma uniformização
referente às cores4 que essas mulheres poderiam utilizar pelas calles.

Fundamentação teórica

Esta pesquisa se constituirá de acompanhar e compreender o movimento das


mulheres negras palenqueras em circulação pelas ruas com as suas comidas, seus
típicos trajes e, principalmente, no que tange à perpetuação de uma tradição que
existe até hoje nas sociedades das Américas, além de buscar reforçar e assimilar a
importância dessas mulheres para os fluxos, os deslocamentos, as interações e os
significados dessa atividade em termos das relações de gênero, trabalho e classe
social. Assumindo que o gênero está inexoravelmente conectado à oportunidade
ocupacional (BRANCH, 2007), pretendemos articular como o gênero, a cor e a classe
reforçam determinadas categorias estruturais em espaços econômicos e sociais e
como são vivenciadas através dos corpos das mulheres negras.
Pensar as mulheres de descendência africana e seus típicos trajes reelaborados
significa pensá-las como patrimônio cultural, cuja característica é a de transformar-
se em uma performance social (GOFFMAN, 2002). Para este autor, a performance é,
portanto, um evento de transmissão de informações e códigos culturais, e a relação
estabelecida entre performer e espectador é uma qualidade essencial desses
eventos sociais.

Desenvolvimento da pesquisa

Cartagena das Índias e Palenque de San Basílio são duas cidades turísticas que
se encontram no departamento de Bolívar, no caribe colombiano, situadas a uma
distância de 70 quilômetros de distância. Ambas as localidades representam
atualmente, devido à sua trajetória histórica, destinos para os visitantes e turistas
que se encontram interessados em conhecer e apreciar as suas particularidades
socioculturais, uma atração cativante para aqueles que têm a possibilidade de flanar
por ambas as cidades. Nos dois casos, o patrimônio cultural é o principal argumento
a seu favor, pois Cartagena foi declarada patrimônio mundial pela Unesco em 1984,
e San Basílio de Palenque foi considerada uma obra-prima de patrimônio oral e
imaterial da humanidade em 2005 pelo mesmo órgão.

4
As palenqueras foram obrigadas a utilizar nas suas vestes as cores da bandeira da Colômbia
(amarelo, vermelho e azul).

101
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

Com a patrimonialização dessas cidades, o sistema de fortificações fez de Cartagena


a principal localidade da Espanha na América, e o substrato africano de escravos
que se rebelaram contra as autoridades coloniais na então Província de Cartagena
adquiriram, no que diz respeito à ativação da dimensão econômica do patrimônio,
um novo valor, passando a definir e identificar a oferta de destinos, como evidenciado
nos textos turísticos que o promovem e comercializam.
Na tarefa de construção de uma imagem que possa ser reconhecida pelo turismo,
as representações de Cartagena baseiam-se principalmente em referências do
patrimônio tangível — fortalezas e muros, por exemplo —, e as de Palenque de San
Basílio, em referências do patrimônio imaterial — um repertório de características
e práticas culturais, como a língua crioulla dos palenqueros, os rituais funerários, a
música, a medicina tradicional e as formas de organização social que se manifestam
e/ou são evocadas, a partir de “geografias simbólicas” (VELA, 2012), a ligação com
África. A mobilização de acontecimentos históricos, expressões culturais e identidades
territoriais, étnicas e raciais participa, assim, da configuração dos significados que
melhor “vendem” esses dois lugares.

Conclusões

Tenho a intenção, na minha pesquisa de doutorado, que se encontra em andamento,


de examinar os efeitos ideológicos que vinculam a produção e a circulação de uma
atrativa imagem idealizada nos mais distintos meios de propaganda turística, pois
a imagem desta mulher carregando em sua cabeça cestas com distintos produtos
para a comercialização exerce uma leitura errônea e estereotipada referente às
realidades social, cultural e econômica vinculadas nas distintas propagandas. Uma
imagem idealizada e fictícia concernente à dificuldade que essa mulher encontra na
vida real para a manutenção da sua herança africana.

Referências bibliográficas

BRANCH, Enobong Hannah. The creation of restricted opportunity due to the


intersection of race & sex: black women in the bottom class. Race, Gender & Class. v.
14, n. 3-4, p. 247-264, 2007.

DEAVILA, Orlando Pertuz. Las otras caras del paraíso: veinte años en la historiografía
del turismo en el Caribe. Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe,
Barranquilla, n. 23, p. 76-95, 2014.

102
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS

DOMINGUEZ, Freddy Àvila. Las representaciones de Cartagena de Indias y


palenque de San Basilio (Colombia) en el discurso turístico, 2005-2018. 2019. Tese
(Doutorado em Espanhol) — Universidad de Salamanca, Salamanca, 2019.

DOMINGUEZ, Freddy Àvila. Lo “Afro” en el discurso turistico de Cartagena:


subexposicíon y sobreexpoción. In: MONTFORT, Ricardo Perez; RINAUDO, Christian.
Circulaciones Culturales. Lo afrocaribeño entre Cartagena, Veracruz y la Habana.
Marseille: IRD Éditions, 2014. p. 189-213.

GOFFMAN, Erving. A representação de eu na vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.

VELA, Jordi de San Eugenio. Aproximacion teoricas y conceptuales para una


definicíon del estado del arte de la comunicacíon de los destinos turisticos.
Andamios, v. 9, n. 20, p. 211-236, 2012.

103
GT 3

COMUNICAÇÃO, MÚSICA E
INTERCULTURALIDADE
Coordenadores: Flávia Magalhães Barroso (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
e Rodrigo Rossi Morelato (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).

Nos anos 1930, a rápida modernização do país, o surgimento da indústria do


entretenimento e a implementação das comunicações de massa ameaçavam
destruir por completo todo o rico patrimônio da cultura popular brasileira. Esse cenário
deu origem a diversas iniciativas folcloristas, como a mítica caravana modernista, as
quais se propuseram, com o auxílio das tecnologias de comunicação, a realizar a
cartografia, o registro, a captura e o inventário das formas de expressão dispersas
por um Brasil aparentemente profundo e intocado — tendo a música como elemento
privilegiado. Mais de oitenta anos passados, os prognósticos apocalípticos não
vingaram: a cultura popular brasileira mostrou vitalidade suficiente para se defender
e reinventar — com ou contra a cultura das mídias. Partindo dessas questões e tendo
como chave de entendimento os processos de hibridização cultural que compõem
o estudo das interculturalidades, o atual grupo de trabalho tem interesse em relatos
de experiências e processos de pesquisa que coloquem em contato os campos da
comunicação, da música e da cultura.
A Polifonia do Espaço: walkscapes, urbanismo
tático e territorialidade sônica
Rodrigo Rossi Morelato
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Neste trabalho, procuro apresentar como diversas comunidades se apropriam de


espaços da cidade, produzindo territorialidades sônicas que evidenciam a polifonia
do espaço urbano. Para tanto, realizei um walkscape por uma rua, conversei com
moradores e visitantes, descrevi como pessoas se apropriam de espaços através de
táticas que transformaram um simples e abandonado estacionamento clandestino
numa efervescente praça, que se tornou ponto de encontro do choro carioca.

Palavras-chave: Cidade. Urbanismo tático. Roda de choro da Glória.

Introdução

Uma igreja construída no século XVIII, no que era então uma freguesia rural, fonte
de peregrinação ao longo de Brasil Colônia e Império, empresta seu nome ao bairro
que atualmente faz a fronteira entre o Centro e a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro:
o pequeno bairro da Glória.
Lá, é possível ler, na placa afixada à saída da estação de metrô, a Rua
Benjamin Constant, “articulador da República”. Essa toponímia, forma de relação do
espaço, ganha outra dimensão ao percorrermos a pequena rua que começa com
vistas ao Outeiro da Glória, passa por sua estação de metrô, é margeada por casario
do século XIX, edifícios do século XX, a outrora famosa, e hoje abandonada, Igreja
Positivista do Brasil, sede de conspirações republicanas, e desemboca numa pequena
comunidade composta de algumas casas que espremem a pequena escadaria a
qual leva até um dos inúmeros mirantes do bairro de Santa Teresa.
Aproximadamente na metade do caminho, no entanto, é possível encontrar um
curioso elemento que programa (VIVANT, 2012) a vida cultural local: há um bar na
esquina de uma escadaria e um entroncamento que levam aos bairros vizinhos.
Desde os anos 1990, em frente ao bar, moradores dos arredores vêm construindo
uma churrasqueira comunitária, fizeram bancos de concreto, improvisaram mesas
de madeira e um pequeno parquinho para crianças com escorrega e trepa-trepa.
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Em vista desse espaço acolhedor, entre os anos 2014 e 2019, uma pequena
comunidade de músicos lá se encontrava para realizar a ressignificação desse
espaço com apresentações semanais de choro, todas as quartas-feiras, das 19h às
22h. Neste pequeno resumo, partilho uma caminhada e diálogos por essa rua tão
pitoresca do bairro da Glória; como esse walkscape constrói uma paisagem toda
própria através da percepção do espaço; como comunidades se apropriam da
cidade e exercitam um urbanismo tático; como territorialidades sônicas são tecidas
a partir da convivialidade de novos vizinhos que vieram habitar essa rua.

1. Sobre o urbanismo tático

As cidades são um tipo de problema que requer atenção especial. Por mais
planejados, planificados, racionalizados e funcionais que sejam os traçados de suas ruas,
o perfil de seus prédios e a densidade de suas quadras, as cidades saudáveis devem estar
sempre abertas ao uso que os cidadãos fazem daquilo que foi construído por arquitetos e
engenheiros: devemos ter atenção privilegiada às calçadas (JACOBS, 2011).
Essa diferença entre a cidade construída e a habitada (SENETT, 2018) é muito evidente
na Rua Benjamin Constant, de aproximadamente um quilômetro de extensão, que
parte do Largo da Glória, onde se localiza a estação de metrô do bairro, e adentra os
morros da região, diluindo-se em uma pequena comunidade de casas empilhadas
sobre uma escadaria. No meio exato da rua, há um bar e aquilo que outrora fora um
estacionamento irregular, mas agora é um tipo de praça construída pelos próprios
moradores, como conta um local:

Isso aqui era um estacionamento, a pessoa vinha e parava, só tinha carro.


Aí fomos nós, eu e meu irmão, que conseguimos, com a subprefeitura,
que botasse os grampos pros carros não subirem mais... Aí depois veio
um bostinha desses, que queria ser vereador, e queria que a gente fizesse
campanha pra ele. A gente falou que, se ele cimentasse e calçasse o chão,
a gente fazia campanha pra ele. Ele calçou e entregou os panfletos pra
gente... Mas a gente jogou os panfletos tudo fora! Era mais que a obrigação
de ele fazer a pracinha aqui! Não fizemos campanha nada! Enganamos ele!1

Esse tipo de ação do mais fraco, que tenta tirar vantagem dos poderes estabelecidos,
compõe o que o filósofo Michel de Certeau (2014) chama de tática, que, numa série
de golpes proporcionados pela oportunidade, tenta garantir vantagens como o
calçamento de uma praça construída de modo autônomo pelos próprios moradores
do bairro. Esse tipo de urbanismo tático (LYNDON, 2016) tem transformado aquilo que
era um estacionamento numa pequena praça, onde se encontra uma churrasqueira

1
Em depoimento para o autor em maio de 2019.

106
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

comunitária, bancos em concreto, uma enorme mesa de madeira, um pequeno jardim


de ervas aromáticas e brinquedos para crianças. É ali que uma série de antigos e
novos moradores da Rua Benjamin Constant se encontram, comemoram aniversários,
assistem aos jogos de futebol e, até o passado recente, recebiam muitos visitantes às
quartas-feiras, para uma roda de choro que acontecia no local: o Chorinho da Glória.

2. Da territorialidade sônica

A pequena Rua Benjamin Constant começou a ficar pequena para o tamanho de


sua fama lá pelos idos de 2014. Naquele ano de Copa do Mundo, a rua chamara
a atenção pela decoração com bandeiras, o asfalto pintado, muros decorados e
a escadaria que leva para Santa Teresa pintada de verde e amarelo. Centenas de
pessoas se reuniam no bar da esquina “da Benja” para assistir aos jogos da Copa.
Naquele mesmo ano, uma outra territorialidade sônica (HERSCHMANN; FERNANDES,
2011), muito diferente dos gritos, hinos e palavrões dos jogos de futebol, passou a criar
a ambiência dessa rua: todas as quartas-feiras, das 19h às 22h, passou a acontecer
uma pequena roda de choro nesse espaço constituído de um bar com cerveja barata
e uma pracinha construída pelos próprios moradores.

Figura 1 — A roda de choro da Glória no bar da Benja

Fonte: http://leschiensnoirs.blogspot.com/2016/10/.

107
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

A roda foi idealizada por dois amigos músicos que vieram morar na Rua Benjamin
Constant e, ao se depararem com o espaço construído pelo urbanismo tático de seus
vizinhos e com o econômico preço da cerveja do bar ao lado, decidiram se apresentar
semanalmente, como lembram:

Eu vim morar aqui na Rua Benjamin Constant, e o meu vizinho era o Diego. Ele
morava no final da rua, e eu morava um pouco mais pra baixo... Aí a gente sentia
falta de reunir os amigos pra tocar choro, uma vez por semana, em algum lugar
que fosse agradável e a gente pudesse tocar de uma forma bem agradável
e informal... Aí um dia a gente tava passando e viemos falar com os donos do
bar, pois eles estavam aqui na frente... Se a gente podia fazer a roda, assim, de
brincadeira mesmo... E eles concordaram! Aí chamamos os amigos, fizemos a
primeira roda, e foi dando certo...2

Figura 2 — Visão do topo da escadaria da comunidade

Fonte: http://leschiensnoirs.blogspot.com/2016/10/.

Entre os anos 2014 e 2019, o Choro da Glória, como ficou conhecido, se apresentou
semanalmente na praça da Rua Benjamin Constant, ocupou o espaço público e gerou
renda aos proprietários do comércio local, constituindo-se parte de um roteiro cultural
entre o Centro e a Zona Sul da cidade, ponto de difusão de festa e energia nas ruas
do Rio de Janeiro. Embora terminassem suas apresentações às 22h, de acordo com

2
Depoimento dos músicos Lucas e Diego para o vídeo “Origem do Choro da Glória”. Disponível
em: http://chorodagloria.com.br/about-me/. Acesso em: 14 out. 2021.

108
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

a lei do silêncio, os espectadores continuavam a beber no bar ou com ambulantes


durante muito mais tempo, gerando desconforto e conflitos com os moradores dos
arredores, o que acabou por levar a iniciativa a outros lugares da cidade e, com o
atual período pandêmico, a suspender as apresentações.

Conclusões

Embora planejadas de modo racional e obedecendo a critérios de funcionalidade,


as cidades devem ser pensadas como organismos vivos onde as pessoas se
apropriam de modo criativo dos espaços. Neste caso, trouxe como exemplo um
espaço abandonado que servia de estacionamento irregular e se tornou uma praça,
construída de modo independente, que foi apropriada por diversas comunidades de
moradores e visitantes, gerando, ao final, uma territorialidade sônica que exercitava
a polifonia do espaço.

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.

HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cíntia SanMartin. Territorialidades sônicas e re-


significação de espaços no Rio de Janeiro. Revista Logos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, 2011.

JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.

LYNDON, Mike. Tactical urbanism: short-term action for long-term change.


Washington: Island Press, 2016

SENETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro:
Record, 2018.

109
Corporalidades Negras em Festa: relatos de viajantes
estrangeiros no Rio de Janeiro do século XIX
Flávia Magalhães Barroso
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

O presente ensaio analisou relatos de viajantes estrangeiros sobre festividades negras


no Rio de Janeiro do século XIX. Buscamos assinalar as narrativas sobre as técnicas
corporais forjadas pela matriz cultural africana em contraponto ao imaginário europeu
do corpo. O encontro dos observadores com outros registros de corporalidades
revela a configuração moderna do corpo concebida no apagamento do prazer, na
instrumentalização do corpo e na programação do tempo. Observaram-se, através
da coleta documental dos relatos sobre as festividades negras, as representações
sociais constituídas da concepção moderna do corpo e as fissuras constituídas neste
processo do “deparar” com corpos negros festivos, dançantes e catárticos.

Palavras-chave: Música. Cidade. Festas negras. Racismo.

Introdução

As festas do Rio de Janeiro do final do século XIX e começo do século XX foram


marcadas por um ambiente cultural fervilhante, com a abertura dos portos, a
consequente circulação de imigrantes e mercadorias e o estabelecimento da família
real na cidade. Nesse contexto de aceleração do processo de urbanização, cenas
festivas se intensificaram, sobretudo nas regiões mais pobres da cidade, onde
foram forjados espaços de festa e de encontro entre escravos livres, trabalhadores,
migrantes de outros estados e imigrantes que, no Rio de Janeiro, vieram trabalhar.
Os relatos, crônicas e imagens que encontramos sobre as festividades, ao mesmo tempo
que, por vezes, informam os posicionamentos moralistas, racistas e misóginos da época,
apresentam informações sobre a presença e atuação das mulheres em seus festejos mais
cotidianos. Em textos minuciosos e atentos às miudezas dos fazeres banais, os viajantes
montam uma “crônica hostil que nos fornece informações preciosas” (GUINZBURG, 2017, p.
5). Dentre as cenas descritas, chamou a nossa atenção a presença de um denso material
descritivo sobre as festas de rua organizadas fora dos modelos da cultura oficial e de
relatos sobre o aparecimento e atuação de mulheres nesses espaços festivos.
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Seguindo o campo das cotidianidades como perspectiva fundamental da


cidade (CERTEAU, 1994), selecionamos relatos que destacam não apenas a posição
racista e misógina que orienta este “deparar” com outras técnicas corporais, mas,
principalmente, o deslocamento das corporeidades femininas do lugar de passividade
e submissão para o de atuação e presença nos ambientes de festa, possibilitando
que pintemos quadros menos essencialistas da realidade social ao considerar
as práticas que se desenrolam nos interstícios da vida cotidiana. As descrições
sobre as festividades negras no final do século XIX revelam a tensão provocada no
encontro de técnicas corporais que não estão inscritas no imaginário europeu, ou
seja, não compartilham de gestos e movimentos forjados no campo simbólico dos
observadores estrangeiros.

1. Festividades negras: as crônicas hostis do corpo africano

Os registros sobre as festividades da época são realizados em maioria por homens


brancos, viajantes estrangeiros, o que nos posicionou, num primeiro momento, em
alerta sobre possíveis abrandamentos do discurso e invisibilizações. A surpresa
que tivemos foi perceber que nos escritos, principalmente dos estrangeiros recém-
chegados, os relatos sobre as festas negras e a presença da mulher eram recorrentes
e detalhadamente descritos. As posições da mulher, por exemplo:

[...] em seus diferentes papéis na vida cotidiana, apagava[m]-se para os


habitantes enquanto despertava[m] o interesse do visitante. A comparação
com a situação equivalente em seu local de origem lhe permite consciente ou
inconscientemente, uma percepção menos parcial (QUEIROZ, 1988)

A exemplos disso, Von Rango e Von Leithold, estrangeiros recém-chegados,


mencionam que a música negra ressoava de modo onipresente, dessa forma era
possível ouvir “a todo o tempo o canto monótono dos negros acompanhado de
instrumentos que eles próprios constroem e, quando três deles se reúnem mesmo
nos mais rudes trabalhos, sempre há um que canta ou faz soar as cordas” (LEITHOLD;
RANGO, 1966, p. 151). Dentre os relatos sobre as festividades no Rio de Janeiro, é notório
o protagonismo das descrições das festividades negras. Rugendas (1998), desenhista
alemão vindo ao Brasil em uma expedição científica, foi um dos primeiros a levar
para o mundo desenhos dos costumes do país. Em relato sobre um batuque no Rio
de Janeiro, o viajante descreve em detalhes o ritual da festa, em que primeiramente

se reúnem alguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mãos; é o sinal
de chamada e de provocação à dança. O Batuque é dirigido por um figurante;
consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareçam demasiado
expressivos (RUGENDAS, 1998, p. 157).

111
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

A surpresa diante das festividades negras se desvela principalmente nos detalhes


minuciosos dos movimentos dos corpos: “são principalmente as ancas que se agitam,
enquanto o dançarino faz estalar a língua e os dedos, acompanhando um canto
monótono” (RUGENDAS, 1998, p. 157). Outras descrições, como a de Carl Seidel sobre
um casamento de negros que acompanhara, marcam a posição discriminatória em
relação às vestimentas, à música e, sobretudo, ao corpo negro:

Mal era meio-dia, surgiram os esperados hóspedes, na maioria negros e mulatos,


em geral enfeitados de trapos multicores e toda espécie de bugigangas.
[...] Acompanhava a música um berreiro de alegria, muito pior que o de mil
papagaios na floresta virgem brasileira e ameaçava romper-nos o aliás rijo
tímpano do ouvido. Imaginem-se as mais detestáveis contorções musculares,
sem cadência, os mais inocentes requebros das pernas e braços seminus, os
mais ousados saltos, as saias esvoaçantes, a mímica mais nojenta, em que se
revelava a mais crua volúpia carnal — tal era a dança em que, desde o começo,
as graças se transmudavam em bacantes fúrias (apud SCHWARCZ, 2001, p. 613).

O batuque é a prática festiva pela qual os viajantes marcam, informados pela sua
formação cultural, o encontro com outro registro do corpo. As reiteradas descrições
espantadas com o movimento corpóreo, suas formas e curvas destacam a posição do
corpo estrangeiro diante das cenas festivas negras. A contenção do corpo e de seus
movimentos é parte do processo civilizador europeu, pelo qual, apoiados na moral cristã,
foram desencadeadas camadas de comedimento do corpo: a separação do corpo e
espírito, a culpa do corpo e a carne fraca do pecado (SOIHET, 2003; LE BRETON, 2003).

O Batuque é dançado por um bailarino só e uma bailarina, os quais, dando


estalidos com os dedos e com movimentos dissolutos e pantomimas
desenfreadas, ora se aproximam ora se afastam um do outro. O principal
encanto desta dança para os brasileiros está nas rotações e contorções
artificiais da bacia, nas quais quase alcançam os faquires das Índias Orientais.
Dura às vezes, aos monótonos acordes da viola, várias horas sem interrupção,
ou alternado só por cantigas improvisadas e modinhas nacionais, cujo tema
corresponde à sua grosseria. Às vezes aparecem também bailarinos vestidos
de mulher (MARTIUS; SPIX, 1981, p. 180).

Ao descrever a música negra, os viajantes ressaltam a mediocridade dessas


musicalidades, que se caracterizariam pelos monótonos acordes da viola, pela
harmonia selvagem, cujo tema corresponde à sua grosseria. Outro argumento
presente é a falta de civilidade e erudição das músicas, as quais poderiam ser
confundidas com “um berreiro de alegria, muito pior que o de mil papagaios na floresta
virgem brasileira”. As danças negras são encaradas como movimentos do corpo
que talvez pareçam demasiado expressivos, dissolutos e pantomimas desenfreadas
pelos quais se apresentavam as contorções musculares, a feição obscena da dança

112
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

e, por fim, a mais crua volúpia carnal. As representações do corpo negro revelam
a constituição moderna de desconfiança do corpo que “encanaria a parte má” (LE
BRETON, 2003) e, por sua vez, precisaria ser corrigido, domado por técnicas funcionais
pelas quais desvinculariam a corporalidade do tempo do prazer e do despropósito
festivo. O tempo festivo é encarado como uma patologia, algo que deve ser gerido
por técnicas corporais que confiram funcionalidade e programação à carne arcaica,
sórdida e duvidosa.
A imagem de um povo festeiro e musical foi paulatinamente sendo arquitetada
nos relatos dos viajantes, compondo, assim, um quadro imaginário do Rio de Janeiro
facilmente identificado nos dias atuais. Ao passo que as descrições das festas negras
eram impregnadas de julgamentos morais e discriminatórios, elas também sinalizam, pela
riqueza de detalhes e pelo volume de relatos encontrados, a posição de arrebatamento e
perplexidade dos viajantes diante das cenas festivas que presenciaram.

Apesar da feição obscena desta dança, é espalhada em todo o Brasil e por


toda parte é a preferida da classe inferior do povo, que dela não se priva, nem
por proibição da Igreja (MARTIUS; SPIX, 1981, p. 180).

Golbery, viajante estrangeiro, em seu relato sobre sua experiência no país, reflete
acerca do espaço da festa enquanto espaço de proteção e manutenção dos laços
culturais destroçados pela escravidão:

[...] suportando a dura lei da escravidão, os negros nada perderam de seu amor
por seu exercício de predileção; conservavam o uso de todos os instrumentos
próprios de sua nação. [...] O Batuque, que alternativamente exprime as
repulsas e os prazeres do amor; a capoeira em que se finge o combate; o lundu,
que mesmo no teatro se dança, e cuja graça consiste principalmente num
movimento particular das partes inferiores do corpo, [...] todas essas danças
apaixonantes que mil vezes têm sido descritas pelos viajantes (apud DENIS,
1980, p. 156).

A festa, enquanto experiência em que o povo dela não se priva, nem por proibição
da Igreja, quiçá das autoridades, encontra seus espaços de brecha em toda a
história da cidade, sendo esta formadora de uma narrativa essencial urbana. O
memorialista Ferreira de Rezende, do século XIX, faz extensas menções ao convívio
social mobilizado pelas festas. Em certo relato sobre um Batuque no Catumbi, narra a
presença de negros, de “padres relaxados” e até delegados no festejo. Assustado com
a cena que presenciara da interação dos padres, delegados e negros, o memorialista
afirma, em posição de julgamento e espanto, que os sacerdotes e delegados não
recuavam nem diante do maior escândalo; se portavam com uma tal indecência e
um descomedimento que não se poderia descrever; dançavam como o mais furioso
dos dançadores, ficando ali todo o resto da noite.

113
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Diante desses relatos que nos incluem nas cenas cotidianas do Rio de Janeiro
do século XIX, notamos que a festa é vetor comunicacional fundamental para se
compreender não só as posições de hierarquia e exclusão, mas também as práticas
de resistências, as sobrevivências da matriz africana, as diversidades dos modos de
expressão, o convívio social, a pluralidade de linguagens estéticas e as narrativas.
O que vemos, através dos relatos dos viajantes estrangeiros que se debruçaram
“ao nível da rua” — com toda a sua bagagem eurocentrada —, é a representação
de técnicas corporais dissidentes que revelam uma cidade heterogênea em suas
práticas, palco de conflitos e tensões. Ao passo que a representação do corpo negro
festivo apresenta a constituição do imaginário urbano de um povo festeiro, sórdido e
degradado em suas práticas, também assimila a presença e pujança de seus fazeres
na constituição de uma contradição social.

Conclusões

A festa participa como uma narrativa, entre outras, de si e de um grupo enunciada


em grande medida pelo corpo e suas técnicas. Ao encarar as festividades enquanto
experiência cotidiana capaz de narrar uma identidade em processo, encontramos
uma saída para este aparente paradoxo. A festa negra é a narrativa pela qual se
externalizam os processos de recuperação da expressão do corpo, de suas linguagens
culturais e de seus laços comunitários. Vemos nessas narrativas cotidianas,
expressas pelo corpo, pela dança e pela música, que o ambiente festivo é um
momento temporário de borramento das estruturas de violência e opressão, onde
os grupos historicamente precarizados rompem provisoriamente com as posições
de subordinação que lhes são impostas ou as enfrentam a partir dessa experiência.
As narrativas que analisamos constituem representações históricas que localizam o
corpo enquanto detentor de historicidade, enunciador de dimensões da vida social.
Os modos com que as mulheres negras são representadas se ligam ao imaginário
de cidade festiva, sensual e vulgar expresso atualmente a partir de outras narrativas,
assinalando a sobrevivência da imagem da mulher negra festiva do século XIX. Ao
mesmo tempo, as narrativas coletadas apresentam modos do feminino experimentar
a cidade, sendo possível afirmar que esses modos táticos (CERTEAU, 1994) ressoam
na história da cidade com a sobrevivência das matrizes culturais negras. A festa
historicamente compõe experiências que destacam a processualidade do feminino
— em movimento, não essencialista e difuso —, sendo este dado fundamental para
compreender, por exemplo, as práticas artísticas e musicais vinculadas a questões
de gênero e raça atuais.

114
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Referências bibliográficas

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.

LE BRETON, David. Adeus ao corpo. Campinas: Papirus Editora, 2003.

LEITHOLD, Theodor Von; RANGO, Ludwig Von; LEÃO FILHO, Joaquim de Sousa. O Rio de
Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1966.

MARTIUS, Spix; SPIX, Johan Baptist Von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Tradução de
Lúcia Furquim Lahmeyer. São Paulo: EdUSP, v. 1, p. 34, 1981.

RUGENDAS, Johann Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil. Belo Horizonte:


Editora Itatiaia,1998.

SOIHET, Rachel. A sensualidade em festa: representações do corpo feminino nas


festas populares no Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX. In: MATOS,
Maria Izilda Santos de; SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo:
Unesp, 2003. p. 177-198.

115
(Ins)Urgências Poéticas:
Bk’ e o endereçamento no rap contemporâneo
Adilson da Silva Santos Junior
Universidade Federal Fluminense

Resumo

O presente trabalho procurou discutir, a partir das concepções contemporâneas da


crítica poética, os pormenores discursivos relacionados ao gênero rap. Nesse sentido,
através das análises realizadas na poesia do rapper Bk’, refletimos sobre a questão do
endereçamento lírico, por meio da perspectiva de envio derridiano e de comunidade
de Rancière (1995), em suas produções, como um procedimento estético remetido a
um destinatário-leitor-ouvinte anônimo ou a uma comunidade. Assim, sinalizamos
que, em sua poesia moderna, além do caráter subversivo e de revolta, é possível
perceber a instância poética como um discurso que prioriza a centralização do “eu”,
a alteridade e a experiência.

Palavras-chave: Poesia. Endereçamento. Política. Alteridade. Experiência.

Introdução

Sendo o rap um movimento poético que insurge contra as repercussões negativas


do sistema, é possível, para Salles (2004), enxergá-lo em seu aspecto estético e
procedural, uma vez que, a cada composição, torna-se perceptível um esforço para
criar uma estrutura na qual estão presentes as batidas, a seleção dos samples e
toda a sua relação com a escolha articulatória e expressiva do artista. Dentro dessas
colocações, de que maneira, então, o discurso ou os modos discursivos interagem
com esse estilo? Salles (2004) afirma que ao rap está vinculada uma centralidade do
“eu” associada a uma busca por coletividade, um “nós”.
Assim, no rap, a partir de um método do fazer poético contemporâneo conhecido
como “endereçamento”, investigaremos a colocação pronominal do “eu”, do “tu” ou
do “você”, apontando para uma tensão entre essas pessoas do discurso, de maneira
a desfazer “a lógica da distância formal entre o eu e o outro” (RAIZEL, 2020, p. 34).
Nesse contexto, para endossar nossas ideias, objetivamos neste artigo oferecer uma
revisão bibliográfica dos conceitos de endereçamento a partir das contribuições de
Pedrosa (2014; 2018) e Raizel (2020), esta última apoiando-se nos conceitos filosóficos
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

de envio, de Jacques Derrida, e de comunidade, de Jacques Rancière (1995), a fim de


verificar, em alguns versos do rapper Bk, a presença de tal característica.

Fundamentação teórica

Pretende-se aprofundar o conhecimento sobre o endereçamento poético e, a partir


deste estudo, compreender como esse conceito pode ser aplicado aos versos do
rapper Bk’. Dessa maneira, a pesquisa será realizada a partir de trabalhos anteriores
na literatura específica, analisando conclusões e sugestões apresentadas em livros,
artigos e publicações. Portanto, para a elaboração do trabalho, foi escolhida a
pesquisa bibliográfica. Em relação aos estudos e definições dos conceitos de envio e
comunidade, serão utilizadas publicações e trabalhos dos filósofos Jacques Derrida,
“O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além” (2007) e “Psiqué: inventions de l‘autre”
(1987), e Jacques Rancière, “Políticas da escrita” (1995).
Em relação ao procedimento estético conhecido como endereçamento, as
contribuições de Célia Pedrosa, em “Indicionário do contemporâneo” (2018)
e “Poesia, crítica, endereçamento” (2014), e a dissertação de mestrado de
Denise Raizel, “O endereçamento na poesia de Idea Vilariño” (2020), esta última
investigando minuciosamente os conceitos filosóficos de envio e comunidade
expostos acima, trarão bases relevantes às considerações acerca do
endereçamento nos versos analisados. Além dessas fontes, as contribuições de
Ecio de Salles (2004), Gilles Deleuze (1977), Adam Bradley (2017), Silviano Santiago
(2019), Marcos Siscar (2016) e Luciana di Leone (2014) serão de grande peso para
o desenvolvimento deste estudo.

Desenvolvimento da pesquisa

No primeiro tópico, discutimos a questão do endereçamento como recorrente na


crítica literária contemporânea sempre que há problematização do modo de escrita
e a sua relação com a alteridade, revelando questões urgentes que lidam com a
comunidade e a diferença. Isso manifesta, pois, para Raizel (2020), um sintoma, visto
que, em meio à crise contemporânea, diversos autores modernos falarão da crise de
sentido em virtude da descrença na modernidade através de uma poesia que buscará
romper com a tradição. Nesse sentido, Raizel afirma que Rancière, sob influência da
análise crítica de Derrida sobre a problemática da representação, compreende que
a literatura se constitui como um modo enunciativo que “desfaz a divisão do discurso
e dos corpos” (RAIZEL, op. cit., p. 39).

117
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Ao abrir mão desta noção jurídica ou filosófica do ser1, o filósofo francês compreende
o outro como uma potência de leitura, pois “o poema está endereçado, deixa de
pertencer exclusivamente à mão que o escreve e conclama a possibilidade de
pertencimento ao outro, no momento em que existe e que casualmente alguém o lê”
(ibid., p. 34). Já Derrida, a partir das perguntas endereçáveis materializadas em seu
outro livro (2007): “Quem escreve? Para quem? E para enviar, destinar, expedir o quê?”
(RAIZEL, op. cit., p. 42). A autora considera uma possível teoria geral do envio no qual
o pensamento derridiano consolida paradoxalmente a ideia de que o que é enviado
pertence ao emissor e ao receptor ao mesmo tempo, não pertencendo a nenhum
dos dois, e sim ao próprio ato de endereçamento.
O desdobramento da teoria derridiana sobre envio, alcance e recepção pode ser
pensado também na perspectiva da coletividade. Assim, para Rancière (1995), a
relação entre um poema e o seu pertencimento acontece se, e somente se, o poema
não pertencer a ninguém, uma vez que a ele é dada a possibilidade de abranger uma
multiplicidade de nomes e distintos modos de materialidade. Nesse sentido, atingindo
o fator comunitário, Rancière (1995) diz que os poetas endereçam seus poemas a uma
coletividade de sujeitos anônimos, como exercício de uma subjetividade coletiva.
Assim, os versos contemporâneos escritos pelos rappers assumiriam, em hipótese,
tanto na perspectiva derridiana quanto na racieriana da destinação, um potencial
de criação estética, gerando efeitos a partir das múltiplas experiências dos poetas
mais jovens, desdobrando-se nas mais variadas possibilidades de práticas sociais
e problematizando questionamentos que sinalizam uma visão de mundo e se
encaminham para o coletivo. Portanto, associada à questão do endereçamento
como um componente de ruptura e desterritorialização, a poética do rap irá romper
com a tradição da língua e da ordem social hegemônica, ao construir, de modo
inventivo, uma subjetividade que foge à normalidade, almejando a visibilidade do
coletivo através de um literário marginalizado.
No segundo tópico, explicamos que, no intuito de eliminar as barreiras entre o rap
e a poesia contemporânea, o crítico e poeta Ederval Fernandes, em seu dossiê para
a revista de poesia Modo de Usar & Co (2015)., dissertando acerca do compositor e
rapper Mano Brown, dos Racionais MC, enumerou uma série de elementos dos quais
o estilo foi precursor nos anos 80 e é utilizada na poesia atual: “o aparato multimídia,
a poesia-performance, a diluição das fronteiras entre as linguagens artísticas,
o sample como um recurso intertextual e criador de camadas de significação
(colagens), o aprofundamento da oralidade como recurso estético (a poesia dialetal,
etc.)” (FERNANDES, 2015, s. p). Para Pedrosa (2014), alguns procedimentos narrativos
se associaram ao hibridismo de verso e prosa na década de 90 e, segundo julgamos,
também se fazem presentes no rap.

1
Para uma discussão mais detida acerca de seu pensamento, conferir Rancière (1995).

118
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Essas características, relacionadas à experiência e ao uso da linguagem,


chamaram atenção por sua complexidade quando encadeadas à marca
discursiva do endereçamento. Nesse conceito, o “eu” se articula num dado contexto
comunicativo com o “tu” ou com o “você”, estabelecendo uma relação de “oposição
e reversibilidade” (PEDROSA, op. cit., p. 1)2. Assim, o querido destinatário em “My
Dear” denota “a cumplicidade entre o poético e o leitor, o jogo entre o esconder e
o revelar, a incompreensão de escrever para alguém único e específico que pode
ser qualquer pessoa” (OLIVEIRA; VALDATI, 2019, p. 7): “Mãos e pés frios sob controle.
/Notícias imprecisas, fique sabendo. É de propósito? Medo de dar bandeira? Ouça
muito Roberto: quase chamei você mas olhei para mim mesmo etc. Já tirei as letras
que você pediu” (CESAR, 1992, p. 87, grifo nosso).
Sob o mesmo fio condutor, percebemos que o rap também utiliza procedimento
similar, no sentido do poema prosaizado com o valor de correspondência. Assim,
demonstramos um excerto dos versos do grupo 509-E, a título de exemplo de
endereçamento:

Me lembro das festas que a gente fazia/ Saía às dez da noite e só voltava no
outro dia/ Que barato só alegria/ Lembra? Qualquer lugar a gente ia/ Sempre
fui considerado, você também/ Lembra da Simone e da Neném? (509-E; DEXTER,
2018, grifo nosso).

No terceiro e último tópico, analisamos os versos do rapper Bk’. Excertos de músicas


atestam o uso dos pronomes “tu” e “você”, performatizando o envio à classe
burguesa, àqueles que preferem se manter numa posição politicamente neutra, bem
como essa voz também se dirige às classes marginalizadas, aconselhando aos mais
jovens que não se deixem sucumbir ao mundo do crime, como “Favela Vive parte II”
(2016): “E quem sobe pra me matar é o mesmo que me vende a arma/ Então você
que não sabe ou finge que não sabe/ Pense bem na hora de apontar, ó o carma”;
“Reunião” (2016): “Olhe essas ruas, somos apóstolos apócrifos/ De milhas em milhas
escrevendo nossas bíblias/ As marcas de bala na parede são hieróglifos/ Contam
um pouco da nossa história/ Enquanto ficam online no 3G/ Te deixam offline com
G3”; “Folhas” (2017): “Vocês querem o Brasil colônia/ Estamos indo de volta pra casa
grande, não!/ Viu que o seu herói é farsa, criança/ Esperou pelo socorro e quem te
atropelou foi a ambulância”. Em todos os trechos analisados, percebe-se como o
rapper se preocupa com os problemas que giram em torno da política, do racismo
estrutural e da desigualdade social.

2
Pedrosa esclarece que Silviano Santiago, em seu ensaio “Singular e Anônimo” (1985[1986]), abre mão
da oposição entre lirismo e antilirismo. Desse modo, abandonou uma postura que por muito ainda
calcificaria a crítica poética brasileira, o ensaísta conceberá o elo entre a poesia e o endereçamento
como um gesto de ternura que se endereça ao um sujeito ora específico, ora desconhecido.

119
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

Conclusões

Os estudos aqui empregados buscaram compreender alguns processos de construção


enunciativa no lírico do rap contemporâneo, a partir de um procedimento estético
conhecido como endereçamento. Com isso, podemos constatar que o rapper, além
de ainda assumir, em termos de performance, a tradicional posição de centralidade
no discurso, ou seja, a marca discursiva do “eu” ocupando predominantemente a
posição central na figura do enunciador, no rap contemporâneo, sobretudo, nos versos
do artista Bk’ aqui estudados, é perceptível a ruptura com as tradições de poesia ao
investir em novas formas de alcançar outras dimensões de uma coletividade através
das colocações pronominais que configuram a destinação.
Verificou-se também que o foco discursivo do rap ainda se baseia na intimidade
e nas experiências de vida do enunciador, que vive a opressão racial e violenta das
periferias. Assim, esse discurso que rompe com a lógica da copresença e desestabiliza
a noção tradicional do corpo, sempre em transição ao outro, que aconselha e acredita
no poder da mudança social, desterritorializa-se ao subverter as convenções da
língua e do cânone literário, manifestando no rap o seu caráter poético como um tipo
de produção que insurge contra as desigualdades sociais e raciais, características
de um sistema social opressor.

Referências bibliográficas

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E. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m_kbgI1K4IQ. Acesso em: 3
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120
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

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121
Conexões entre Locos de Rua e Torcidas de Futebol:
a musicalidade da Fanfarra Festiva Tricolor
e do bloco da Urubuzada
Victor Belart
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo

Neste trabalho, busco apresentar o quanto torcidas de futebol estão constantemente


conectadas a outros movimentos culturais da cidade. Para isso, faço uma aproximação
entre autores da comunicação e esporte e dos estudos de som e música. Apesar de
tratados muitas vezes como vilões, movimentos de torcedores podem relacionar-se
com outras dinâmicas das culturas urbanas. Assim, acompanhamos duas torcidas
de futebol do Rio que se comunicam com as recentes transformações do Carnaval
de rua carioca. Com ensaios nas ruas e até realização de cortejos no calendário
oficial da folia da cidade, esses grupos modificam a estética de torcer nos estádios
e estabelecem trânsitos interculturais entre dois importantes fenômenos populares
do país.

Palavras-chave: Fanfarra Festiva Tricolor. Urubuzada. Carnaval de rua. Torcidas de futebol.

Introdução

Torcedores e foliões têm muito em comum. Ambos, no entanto, podem ser


constantemente vilanizados. “Distúrbios nas ruas”, “confusões”, “brigas” e “sujeira” são
algumas das palavras que instâncias conservadoras utilizam cotidianamente para
tratarem esses grupos. Costa (2020), apresentando questões relacionadas ao esporte
e seus personagens, emprega o conceito de “vilões do futebol”. Essa pesquisadora
não trata diretamente de torcedores, mas de atletas que normalmente tiveram essas
suas imagens atreladas ao que fizeram dentro de campo. É, entretanto, perfeitamente
possível perceber o quanto torcedores e foliões são também constantemente
associados a uma ideia de vilões da cidade.
Tentando escapar exatamente dessa ideia de vilania desses grupos, busco,
basicamente, encontrar aqui conexões criativas entre as torcidas do Rio e o
contemporâneo Carnaval de rua, considerando sua inovação musical e potência
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

inventiva. Para isso, proponho uma breve exploração pelas transformações sonoras
de torcidas organizadas ao longo das primeiras décadas do século XXI.

1. A música dos estádios e das ruas

Num estádio, diretores de bateria ou “puxadores de músicas” em torcidas podem


performar de maneira muito semelhante a alguns personagens de escolas de samba.
Essa experiência pode remeter ao que Gumbretch (2007) chama de intensidade
focada. O autor trata especialmente de incríveis movimentos executados em
gramados, capazes de aproximar a experiência da competição em campo de um
olhar que se costuma dar a objetos artísticos.
Algumas vezes, possivelmente, o musicista (muitas vezes amador) que toca num
estádio pode estar desinteressado em olhar para aquilo que se passa dentro de
campo, mas, entre epifanias sonoras e visuais, busca fazer com que corpos cantem
e balancem. É claro que talvez a principal função de um torcedor no estádio continua
associada ao ânimo oferecido a seus jogadores, mas destaco aqui a experiência
estética desses percussionistas, compositores e indivíduos que pensam na vivência
em torno do jogo interessados em produzir criatividades sonoras.
Por isso, me aproximo aqui das noções de territorialidades sônico-musicais presentes
nos estudos de Herschmann e Fernandes (2016), ao tratar das distintas relações entre a
festa e a cidade. Esses autores abordam um ativismo musical nas ruas do Rio de Janeiro
e as reinvenções do espaço urbano. Em linha que considero parecida, Santos e Helal
(2016) apresentam a noção de uma “postura militante” por parte de alguns torcedores
na sociedade globalizada, aproximando a ideia do direito ao estádio como processo
de direito à cidade. Inspirado nisso, procuro apresentar aqui como, a partir do estádio,
sujeitos metropolitanos utilizam a comunhão música e futebol como fonte de socialidade
e integração com outros fenômenos urbanos. Para isso, procuro metodologicamente fazer
um mergulho e uma escuta de algumas experiências de torcedoras no Rio de Janeiro e
sua busca por se reinventar de maneira sonora com o passar dos anos.

2. Iniciativas musicais e torcedoras que disputam as ruas

Damatta (1982), nos anos 80, afirmava que “o Carnaval e o futebol que permitem
o brasileiro entrar em contato com o permanente de seu mundo social” (DAMATTA,
1982, p. 39). Ainda assim, destaca-se como, no avançar de uma sociedade
globalizada que incorporava outras relações híbridas, podemos entender que a
noção carnavalesca e festiva associada ao futebol poderia converter-se em arena
para algumas disputas e mutações.

123
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

As experiências de algumas torcidas surgidas em meados dos anos 2000 passam


um pouco por isso, como conta Juliana Mattos (2021), historiadora e integrante da
Urubuzada, torcida rubro-negra que apareceu em 2006. Segundo ela, a torcida
surge como “uma dissidência de outras organizadas, mais focada na cultura de
arquibancada” (MATTOS, 2021)1. Como conta a torcedora, a partir dessa experiência, o
grupo passou a realizar alguns ensaios e a ter maior preocupação com a musicalidade
orgânica e maior uso de instrumentos (como acontecia décadas passadas) e até
criou um bloco que desfila no Carnaval próximo ao Maracanã.
Essa experiência do bloco da Urubuzada coincide com o crescimento de várias iniciativas
carnavalescas oriundas do Rio de Janeiro, especialmente no final dos anos 2000 e começo
dos anos 2010, num momento de redescoberta da potência festiva nas ruas. Devemos
destacar que a sociedade carioca nesse mesmo período iniciava também um ciclo de
transformações em torno do esporte e da cultura. No período, ressaltaram-se a profusão
de megaeventos e as diferentes interdições do Maracanã para obras.
É interessante também pensar como, neste exato momento, nas ruas, um importante
movimento musical e ativista começou a crescer. Observando trabalhos de Micael
Herschmann, desta vez a respeito das mudanças carnavalescas do Rio (2014) e o
crescimento das neofanfarras (2013) de rua, podemos perceber como, em meados
dos anos 2000 em diante, um forte movimento musical passou a surgir em terras
cariocas, incorporando referências sonoras cosmopolitas. Podemos observar a
importância do aparecimento de grupos carnavalescos, como Songoro Cosongo e
Orquestra Voadora, influenciados, respectivamente, por temáticas latinas e pelas
bandas de jazz e blues de Nova Orleans. Destaca-se, entretanto, como esse período
veio acompanhado da maior política de controle ao redor da cidade, normalmente
atrelada à Guarda Municipal, à polícia e a outras forças de segurança.
Talvez o ápice dessa associação futebolística com esse novo Carnaval tenha se
desenvolvido, inclusive, no final dos anos 2010, quando a Fanfarra Festiva Tricolor
apareceu. Esse grupo, ainda pequeno e composto intensamente de torcedores do
Fluminense frequentadores do novo Carnaval de rua do Rio, tem uma forte presença
de instrumentos de sopro (como acontece nos novos blocos do Rio). O grupo costuma
realizar cortejos ao redor do Maracanã como se fosse um bloco e realizou ensaios na
Praça Paris, localidade no bairro da Glória que também é espaço de convívio para
muitos cortejos e blocos de rua da nova cena carioca.

Conclusões

É interessante notar brevemente como, a partir dos anos em que essas torcidas
começaram a se desenvolver, popularizavam-se no planeta tanto o acesso rápido e

1
Entrevista concedida ao autor do texto. Janeiro de 2021, por telefone.

124
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE

fácil aos vídeos do YouTube como o aumento de transmissões de ligas estrangeiras,


seja na TV aberta do Brasil ou em canais de streaming. Nesse sentido, é interessante
perceber as aproximações entre Carnaval e futebol, que se desdobram em referências
da cultura pop e se articulam através da cidade.
Aproximados ao que as metrópoles reverberam, blocos de Carnaval e torcidas
futebolísticas estão entrelaçados enquanto fenômenos urbanos contemporâneos
e são importantes sujeitos citadinos que devem despertar atenção do campo das
pesquisas científicas a partir de suas constantes interseções e disputas. Por isso, é
possível afirmar que esse seja um campo frutífero para investigações nas áreas da
comunicação e cultura, que são incorporadas de modo híbrido.

Referências bibliográficas

COSTA, Leda Maria. Os vilões do futebol: jornalismo esportivo e imaginação


melodramática. Curitiba: Editora Appris Ltda, 2020.

DAMATTA, Roberto. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de


Janeiro: Pinakotheke, 1982.

FERNANDES, Cíntia Sanmartin; HERSCHMANN, Micael. Relevância da cultura de rua no Rio


de Janeiro em um contexto de valorização dos megaeventos. Curitiba: Compós, 2016.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Perdido numa intensidade foca: esportes e estratégias de


reencantamento. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, v. 15, n. 1, p. 11-19, 2007.

MATTOS, Juliana. Entrevista concedida ao autor. 2021

SANTOS, Irlan Simões; HELAL, Ronaldo George. Do espectador ao militante: a torcida


de futebol e a luta pelo direito ao estádio e ao clube. Tríade: comunicação, cultura
e mídia. Sorocaba, v. 4, n. 7, p. 53-69, jun. 2016.

125
GT 4

EXPRESSÕES CULTURAIS NAS


NARRATIVAS, MEMÓRIAS E
CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS
COMUNIDADES TRADICIONAIS
Coordenadoras: Manuela Chagas Manhães (UENF/PEA PESCARTE/UENF/PETROBRAS/
IBAMA) e Sulamita Conceição Ribeiro (UENF/PEA PESCARTE/UENF/PETROBRAS/IBAMA).

O objetivo deste GT é realizar uma discussão ampla sobre a relação das expressões
culturais constituídas de diferentes narrativas que são compartilhadas entre os
membros de comunidades tradicionais e favorecem a compreensão dos modos de
vida, da importância da memória social e coletiva para a constituição do sentimento
de pertencimento. Do mesmo modo, visa refletir sobre os distintos significados e
representações que permeiam o cotidiano das comunidades tradicionais. Para tanto,
partimos do pressuposto de que as narrativas são pessoais, no entanto acontecem
num espaço (ambiente/território) em momentos específicos da interação social,
e este seria um dos motivos para podermos entendê-las como representantes do
próprio ethos do grupo no qual o ator social está inserido. Desse modo, ao falar de si, de
suas memórias, recortes e lembranças, lendas e poesias, ou a recontar histórias que
trazem representações da própria comunidade, o indivíduo recai na esfera coletiva.
Assim, por mais que sejam experiências singulares e íntimas, ao compor a narrativa, o
sujeito social traz um aspecto essencial da afirmação de si e da demarcação simbólica
da identidade cultural, tanto individual quanto coletiva, constituído dos diferentes
formatos narrativos, o fenômeno da intertextualidade. Desse modo, a contação de
história, algo comum pela oralidade entre os membros das comunidades tradicionais,
alicerça não só suas memórias, mas também seus significados e representações,
construindo a relação de tais narrativas e rememorações com o sentido de vida e
criando distintos modos de vida.
A Formação das Expressões Socioculturais da
Comunidade Pesqueira Artesanal de Arraial do Cabo,
Região dos Lagos/RJ: “ser cabista é ser pescador”
Manuela Chagas Manhães
UNESA/UENF/PEA PESCARTE/PETROBRÁS/IBAMA
Sulamita Conceição Ribeiro
UENF/PEA PESCARTE/UENF/PETROBRÁS/IBAMA

Resumo

Este artigo é resultado de pesquisa financiada pelo Projeto de Educação Ambiental


(PEA) Pescarte, que é uma medida de mitigação exigida pelo Licenciamento
Ambiental Federal, conduzida pelo IBAMA. Desse modo, nossa pesquisa traz como
sujeitos sociais os pescadores artesanais de Arraial do Cabo, Região dos Lagos/
RJ. Neste presente artigo, salientamos a formação dessa cidade e como isso se
tornou definidor da comunidade pesqueira artesanal dita cabista. Pontuamos que
a formação dos pescadores, que traz as tradições, os conhecimentos e os saberes
adquiridos pela oralidade, é vivenciada na relação com a natureza e entre eles
enquanto pescadores ou sujeitos envolvidos com a pesca artesanal. Isso permite a
formação da consciência de si mesmo e (re)constituição da sua representatividade
social. Nesse aspecto, haveria um desdobramento normativo e um progresso moral
determinantes do reconhecimento recíproco e, posteriormente, das três formas de
reconhecimento definidas na teoria honnethiana. Sendo assim, ainda que persistam
determinados conflitos internos e a formação de estigmas e estereótipos, estes
poderiam ser ultrapassados diante das novas condições sociais, em prol da existência
da comunidade no futuro. Isso favoreceria tanto a sua continuidade quanto a luta
pelos reconhecimentos social e societário.

Palavras-chave: Pescadores artesanais. Arraial do Cabo. Socialização. Memória e


cultura.

Introdução

Os modos de vida das comunidades tradicionais são formados por particularidades,


um conjunto de atributos culturais que funcionam por meio da interrelação entre
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

esses membros. Isso permite aos indivíduos identificarem-se e diferenciarem-se dos


demais, pois esses pontos estão repletos de elementos simbólicos e materiais que
são principais definidores do modo de vida e de sua organização. Essas comunidades
vivenciam conflitos ao serem expostas a novos desafios e mudanças resultantes da
própria dinâmica social e da territoriedade.
Quando se pensa em comunidades tradicionais, é observado que nelas pode-
se encontrar especificidades as quais permitam reconhecê-las e defini-las. Existe
todo um parâmetro para que comunidades tradicionais sejam consideradas como
tais, tendo, então, a dinâmica da tradição, a autodefinição (autoidentificação)
e a imbricação entre identidade e territoriedade como pontos fundamentais —
comunidades quilombolas, ribeirinhas, indígenas e pesqueiras, por exemplo. Dessa
forma, a historicidade e os atributos culturais da comunidade fazem com que
os membros se reconheçam entre si e se autorreconheçam e, assim, sejam parte
integrante da manutenção e reinvenção do seu modo de vida.
Para melhor compreensão das comunidades tradicionais e a formação de suas
identidades culturais, exemplificaremos por meio de uma discussão sobre a história do
surgimento da cidade de Arraial, seus conflitos em volta da concepção evolucionista e
na Era Vargas, projetos desenvolvimentistas, que fadaram a comunidade ao estigma
e ao esquecimento cultural de suas práticas e narrativas, para que se reflita sobre a
comunidade tradicional pesqueira e a importância da ressignificação da memória
para trazer autonomia, autoestima e fortalecimento do elo integrador social.

Fundamentação teórica

A história de Arraial do Cabo, cidade da Região dos Lagos, inicia-se em 1503,


quando o navegador Florentino Américo Vespúcio, a serviço da Coroa Portuguesa,
desembarca na Praia da Rama, em Arraial do Cabo, com um contingente de 24
homens e 12 peças de artilharia, as quais foram deixadas pelo navegador em Arraial
do Cabo com mantimentos suficientes para seis meses. Foi dessa forma que houve
a primeira construção de benfeitoria do lugar, denominada Casa da Pedra (Casa da
Piedra, hoje Fundação Roberto Marinho). Três anos depois ergueu-se a primeira igreja,
já demonstrando a relação existente entre a Coroa, a Igreja Católica e a burguesia
mercantil nas expedições além-mar. Nesse ponto, iniciaria-se a exploração do pau-
brasil na Região dos Lagos.
As raízes da pesca remontam ao século XVIII, período que é conhecido como
a consolidação da conquista portuguesa desse novo espaço geográfico. Prado
(2002) salienta que há documentação que data desde 1729 a legitimação dessa
exploração marítima. Longe de sua terra natal, tais colonizadores aprenderam a viver
nessa nova terra, ocorrendo sucessivamente um processo de aculturação. Dessa

128
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

forma, a formação dos nativos de Arraial do Cabo foi, na verdade, uma formação
dos filhos do isolamento social e geográfico (ambiental). Esses nativos têm como
referência determinadas culturas, como indígenas, africanas e a dos colonizadores,
em sua maioria, portugueses. Nesse aspecto, Prado (2002) denomina os nativos de
“descendentes do isolamento”, devido não só à morfologia de Arraial do Cabo, mas
também devido ao seu caráter histórico e contextual de imigração inicial.
O século XIX foi marcado pela teoria evolucionista, que culminou na formação de
estigmas da população, que era tida como filha do isolamento social e geográfico.
Houve, então, a separação entre o civilizado e a barbárie, não só dos povos, mas dos
territórios. Nesse contexto, Arraial do Cabo foi percebida como um lugar no qual a
população ainda estaria num nível inferior na escala evolutiva, considerando, então,
a comunidade primitiva, devido ao seu modo de vida. Isso constituiu estereótipos
determinantes para essa comunidade, como “muxuango”, que significa primitivo,
incivilizado, inferior, assim como o “Jeca Tatu”, o caipira, o matuto, o interiorano.
Com base no evolucionismo, na Era Vargas a cidade foi palco de políticas
desenvolvimentistas nacionalistas, com o objetivo de elevar a população rumo ao
sentido de civilização. Essa política desenvolvimentista provocou uma mudança
social que fomentou a hierarquização entre as diferenças culturais, constituídas de um
processo evolutivo em escalas. Essas diferenças estariam presentes nas formulações
teóricas, teocráticas e desenvolvimentistas que justificaram Arraial como um lugar
que deveria ter a implementação da indústria.
Assim, além de buscar a elevação do Brasil diante do continente, objetivou-se
civilizar os nativos de Arraial do Cabo, promovendo mudanças sociais vistas como
necessárias para levar ao desenvolvimento dessa população muxuanga. População
esta que teve construção de seus costumes, seus hábitos e sua identidade cultural
determinada pelo isolamento social e geográfico. Tais nativos abandonados entre os
morros, dunas e restingas alimentaram-se de um orgulho do passado histórico de
“conquistadores” de terras, formando, então, a memória social e coletiva.

Desenvolvimento da pesquisa

Para que não haja a perda da cultura e sua prática, a qual gera elos integradores
dentro da comunidade, é necessário que o indivíduo que compõe a comunidade
passe por um processo de formação de consciência social e comece a enxergar a
si mesmo e o outro ser que compartilha a mesma cultura e prática como agentes
formadores. Para Braga (2000), o processo de conhecimento, no qual se tem a
formação do indivíduo como membro de uma comunidade, realiza-se nas interações
sujeito/sujeito/objeto.

129
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Assim sendo, tem-se a compreensão de que ocorre a constituição do sujeito


cabista com seus conhecimentos, formas de atuação e ações sociais. Por sua vez,
essa constituição pode ser entendida a partir da sua relação com os outros num
espaço que é preenchido pela intersubjetividade, e a formação da consciência social
é intermediada pela cultura como contexto, definida pela historicidade, narrativas e
aculturação. Por isso, a base é a relação entre o “eu” e o “outro” na qual, em nosso
caso específico, há a apreensão de conhecimentos sobre a pesca, seus ritos e valores.
Nessa relação, os elementos estruturantes passaram por manutenção e modificação
ao longo da historicidade da comunidade cabista, por meio das interações sociais
vivenciadas. Isso significa dizer que os princípios da formação moral, da consciência
moral, dos valores estéticos, éticos, religiosos, entre outros são encontrados no meio
sociocultural ao qual os sujeitos sociais pertencem e passam a se reconhecer e
compartilhar esse acervo de conhecimentos e valores. Da mesma forma, os ritos,
os mitos e as tradições que os membros compartilham são elos integradores entre
eles. Pode-se considerar, então, que a formação da comunidade cabista é uma
consequência do meio em que vive, da vida que experimenta e, consequentemente,
das possíveis nuances e transformações que estão presentes na dinâmica social.
Tanto a memória quanto a modernidade têm raízes sociais e culturais comuns.
Elas têm suas origens no mundo em transformação. Por isso, as memórias social e
coletiva na modernidade não aparecem apenas como um depósito de lembranças,
mas sim com uma pluralidade de funções. Há uma rede de atividades de seleção,
que filtra seus símbolos, seus saberes, sua divisão social do trabalho, suas tradições
para que haja uma reestruturação. Esta, por sua vez, corresponde às necessidades e
demandas do presente diante das novas condições sociais.
É perceptível a relevância do processo de socialização, composto de diversos elementos
estruturantes e significantes implementados, vivenciados na vida cotidiana, nas interações
sociais, as quais ganham sempre novos sentidos e interpretações e envolvem os membros
da comunidade. Da mesma forma, as memórias social e coletiva correspondem a uma
forma de conhecimento e são uma verdadeira colcha de retalhos, reconstruída por meio
da historicidade e das necessidades da própria comunidade. Logo, mantê-las vivas é
também uma maneira de dar continuidade à existência da comunidade e de seu modo
de vida. As memórias social e coletiva tornam-se elementos-chave para que se identifique
a historicidade da comunidade, ainda que seja em novos contextos sociais e culturais, na
relação dos atores sociais envolvidos.
Segundo Tedesco (2004) a ancestralidade e a historicidade de um grupo, comunidade
são baseadas na reconstrução da memória coletiva. Dessa forma, o que representa
essa comunidade é composto de simbologia; possibilita a ideia de continuidade, de
significação atemporal. Isso é possível devido à relação objeto/sujeito no meio social,
em que o espaço, o local permite que a memória, de maneira geral, seja funcional
para a comunidade. Desse modo, as memórias social e coletiva fornecem formas

130
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

de constituir recordações nas atividades, nas relações por meio das mais diversas
narrativas que, ao serem lembradas, estarão presentes no imaginário coletivo, tendo
um enorme valor simbólico.

Há objetos que assumem no imaginário coletivo um enorme valor simbólico


(...) a prática social e cultural reenvia a capacidade da memória exteriorizar-se
e objetivar-se, isto é, de tomar forma e sedimentar as representações sociais
de um certo passado em determinados objetos, símbolos, artefatos culturais e
comunitários, Os objetos da memória objetiva e subjetivamente, depende do
contexto, dos grupos e significados em questão, possuem um poder evocativo,
ao mesmo tempo em relação de reciprocidade (TEDESCO, 2004, p. 80-81).

Segundo Berger e Luckmann (1985), o processo de socialização acontece porque


há um acervo social de conhecimentos. Tal acervo inclui uma compreensão sobre a
realidade social, assim como conhece os limites que existem. Dessa forma, quando
o indivíduo participa da vida cotidiana, ele está participando desse acervo de
conhecimento, que permite a sua “localização” no grupo, na comunidade, além de
permitir que ele exerça sua função social de maneira apropriada. Isso se deve a um
acúmulo de conhecimentos que são, primeiramente, selecionados e significados, para
que sejam rememorados, narrados, repassados de uma geração a outra. Da mesma
forma acontece com os códigos morais e estéticos e a formação da consciência de
si mesmo para a vida comunitária.

Conclusões

A comunidade de pesca artesanal cabista traz em seu interior um acervo de


conhecimento que, ao longo de sua história, também passou por um processo seletivo
e significador. Essa comunidade encontra-se no meio social, sendo desafiada a todo
instante, e é colocada à prova diante de novos enfrentamentos. É de suma importância
que essa comunidade, para sobreviver ao tempo, reinvente suas tradições, seus
elementos culturais, mas é necessário nessa reinvenção haver a persistência de seu
orgulho sobre sua própria formação, sobre suas memórias social e coletiva.
A forma pela qual essas memórias social e coletiva são vivenciadas no
cotidiano possibilita a existência de estruturas significantes fundamentais para o
reconhecimento comunitário, ainda que haja limitações, como já foi demonstrado.
Embora muitas vezes os conflitos internos existam, quando se trata de ser cabista, há
o sentimento de pertencimento entre os membros dessa comunidade respaldados
por tais estruturas significantes presentes nas memórias em torno do que a pesca
artesanal representou no passado e ainda representa.

131
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

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BRAGA, Elizabeth dos Santos. A constituição da memória: uma perspectiva


histórico-cultural. Ijuí: Ed. Unijuí, 2000.

PRADO, Simone Moutinho. Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre


injunções de mudanças sociais em Arraial do Cabo. Niterói: EdUFF, 2002.

TEDESCO, João. Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração.


Passo Fundo: UPF, 2004.

132
Memórias do Povo Indígena da Etnia Puri:
identidade(s) e ressurgência
Samara Tobias de Castro
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus
Lindalva Martins de Sá
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus

Resumo

O presente resumo tem como objetivo iniciar uma reflexão e discussão a partir das
memórias, representações e expressões artístico-musicais do povo Puri, apresentando
parcialmente os resultados alcançados no processo de investigação realizado pelo
projeto de pesquisa “Música Indígena aos Arredores de Campos dos Goytacazes e seu
Ensino”. A metodologia utilizada consistiu no levantamento bibliográfico de materiais
com fontes históricas referentes aos povos nativos que habitaram a região Norte
Fluminense. Possivelmente como forma de fuga da subordinação e da escravidão,
muitos desses grupos migraram para outras regiões ou se uniram a outros grupos
indígenas, tornando-se sobreviventes. A pesquisa nos levou à descoberta de
remanescentes do povo Puri, que têm, por meio da arte, disseminado sua cultura,
promovendo a revitalização da tradição e a ressurgência de seu povo.

Palavras-chave: Índios Puri. Identidade cultural. Música indígena.

Introdução

Este trabalho é fruto de um estudo realizado pelo projeto de pesquisa “Música


Indígena aos Arredores de Campos dos Goytacazes e seu Ensino” e apresenta os
indígenas da etnia Puri, povo originário, considerados habitantes antigos da região
sudeste brasileira. Destacamos o estado do Rio de Janeiro, em especial a região Norte
Fluminense, que é o campo deste estudo, território onde podemos encontrar os Puri,
onde firmaram suas raízes.
A importância de revisitar as heranças cultural e histórica dos nativos que constituem
a base do país e, assim, trazer à memória suas representações e expressões artístico-
musicais, como também seus signos e modos de vida que (re)constroem sua(s)
identidade(s), é justificada na relevância deste trabalho, sobretudo para reforçar o
Movimento de Ressurgência Puri. Assim, os caminhos metodológicos desta pesquisa
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

de abordagem qualitativa consistem no levantamento geral de publicações com


fontes históricas (arquivos, artigos, dissertações, livros, materiais digitais) referentes
à presença de grupos indígenas na região e suas manifestações culturais.

Fundamentação teórica

A pesquisa fundamenta-se na corrente da etnomusicologia, área responsável pelo


estudo da música de determinados grupos e culturas. Seeger (2008) define música
como “um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos
por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros’’
(SEEGER, 2008, p. 239). Salientamos a importância de se ter a consciência de que
não há manifestação musical sem a presença de sons humanamente organizados,
carregados das mais variadas intenções, formas, identidades e origens.
Barros (2006) nos atenta para uma compreensão acerca da música indígena, sob
um olhar fora dos padrões musicais europeus, possuindo uma dimensão social
importante para a comunidade, da qual todos participam simultaneamente como
produtores e ouvintes. Ocorrendo ao ar livre, a música indígena coexiste com a
presença de sons externos vindos da natureza ou das atividades cotidianas.
Uma outra corrente que dá base ao trabalho é a etnogênese, caracterizada como
um processo histórico que reflete o dinamismo cultural de grupos étnicos com
formações consideradas distintas de outras sociedades, resultante de processos
de migrações e invasões, que possuem patrimônios social, linguístico e cultural
exclusivos (BARTOLOMÉ, 2006), como o caso dos índios Puris.
A trajetória dos indígenas reflete os impactos da colonização sobre os povos
originários brasileiros, que, a partir do século XVI, tiveram suas terras confiscadas,
seus hábitos usurpados, suas crenças banalizadas em nome da catequização; na
visão do europeu, civilizados, mas, na verdade, invisibilizados e sem direitos.
Os nativos possuem uma gama de tradições e conhecimentos, muitos praticamos
sem saber e foram deixados de herança para o país. Como afirma Puri (2020), “a
cultura não veio com a colonização, ela já existia, de outra forma e em outro modelo”
(PURI, 2020, p. 15). O indígena adquire seus conhecimentos por meio das experiências
de seus ancestrais, passadas de geração a geração. Essa tradição veio para preservar
muitos costumes e manter viva a cultura, ainda que invisibilizada.

Desenvolvimento da pesquisa

A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento de materiais com fontes


históricas que pudessem nos mostrar quais eram as etnias indígenas da região e
suas manifestações. Num primeiro momento, o objetivo era enumerar e identificar os

134
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

materiais disponíveis sobre os povos originários de Campos dos Goytacazes e região,


o que foi feito através de levantamento bibliográfico, leitura e análise de referências
e publicações científicas.
Os artigos continham relatos de viajantes, cronistas e memorialistas que estiveram
presentes na região entre os séculos XVI e XVII; outros ainda traziam relatórios dos
presidentes de Província e relatórios dos ministros dos Negócios da Agricultura do
século XIX. Essa região foi território dos índios Goitacá, que pertenciam ao tronco
linguístico Macro-Jê e habitavam entre o rio Macaé e o Paraíba do Sul.
Os Goitacá se dividiam em três ramos: Goitacá-camopi, Goytacá-guassú e Goitacá-
jacoritó. As tribos viviam em constante hostilidade umas com as outras. Esse povo era
considerado valente, forte, ótimo guerreiro, e, apesar disso, o seu desaparecimento se
deu pela catequização e pelo extermínio por parte dos colonizadores. Neste processo
de deslegitimação étnica, quase nada se encontra a respeito desse povo, que teve sua
identidade apagada e sua tribo dizimada. Posteriormente, outros grupos indígenas
habitaram a região, como os Puri, Coroado e Coropó.
A partir daí, a pesquisa, em sua próxima etapa, direcionou-se para o grupo Puri,
também denominado Telikong ou Paqui, pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê.
Eram nômades, deslocavam-se à procura de alimentos e habitavam próximos a rios
e lagos. Originalmente viviam na região do Vale do Paraíba e eram um dos grupos
indígenas mais populosos, porém o uso exploratório da força de trabalho os levou à
migração para outras regiões na busca pela liberdade e sobrevivência, espalhando-
se por toda a região Sudeste do Brasil.
Em relação às suas manifestações culturais, Ramos (2017) relata:

A região do Vale do Paraíba já foi conhecida como Vale dos Maracás e Vale dos
Tambores. Muitos sons, danças e rituais já foram realizados nestas terras. Índios
e negros se interagiam e se misturavam, contribuindo para a formação social
amerindiafricana da população do Vale (RAMOS, 2017, p. 132).

No decorrer da pesquisa, descobrimos que hoje há uma ação de revitalização


da cultura e reconstrução de novas identidades Puri, que acontece mediante
manifestações de remanescentes e pesquisadores, como Dauá Puri, no Rio de Janeiro,
e Jurandir Puri, em Minas Gerais. Em busca de suas origens, eles realizam um trabalho
de resgate cultural dentro do Movimento de Ressurgência Puri1, produzindo textos
literários, contando histórias, poesias; transcrevendo e compondo músicas na língua
Puri. Suas produções2 incluem elementos da natureza e conhecimentos milenares
que são ensinados e compartilhados com os demais remanescentes indígenas.

1
Movimento que reúne e articula indivíduos autodeclarados Puri, engajados na busca e na construção
da identidade da etnia desse povo.
2
Essas produções podem ser encontradas no acervo do Centro de Memória do Povo Puri: https://
povopuri.wixsite.com/memoriapuri/centro-de-memoria-do-povo-puri.

135
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

A seguir, um trecho de uma canção — e, após, uma breve explanação de seu


significado — transcrita por Dauá Puri, apresentada originalmente em Puri, com
tradução em português:

Thiùli Opeh Grande Estrela (Estrela Magna) Sol

Ho thiùli Opeh Ó grande estrela sol


Ho thùli Opeh Ó grande estrela sol
Omi diéh prehtôma Um seu calor
Brit tou ah immih E esquenta meu corpo

Esse é um canto ritualístico em reverência e respeito ao sol; os Puri caminhavam no


sol do meio-dia e se recolhiam ao sair do sol, pelas energias das montanhas. Eis aqui
mais um trecho de um canto Puri, sobre a vitória da guerra com os Botocudos, grupos
indígenas do Espírito Santo, agora com a transcrição de Jurandir Puri:

Hô Hô bugre Ô, ô bugre

Hô hô bugre Ô, ô bugre
Ita naji Os inimigos foram vencidos
Guaschantl’eh, Guaschantl’eh pular, pular
Guaschantl’eh, Guaschantl’eh pular, pular
Ah, ah, canjana Eu, eu, cachaça
Maschê, tch’mbá Comer, beber

Os cantos e as danças eram bem presentes na cultura desse povo, em seu cotidiano,
em rituais relacionados à luta, espiritualidade, religião, mantendo em sua tradição o
respeito à lua, às estrelas e ao sol. Seus instrumentos musicais eram construídos com
materiais próprios da natureza, como o maracá, que é uma espécie de chocalho feito
de cabaça cheia de sementes; a flauta, feita de ossos, bambu ou taquara; o “rapuin
ponamo” (instrumento de percussão), feito de madeira roliça com sulcos e uma
vareta de bambu que produzia o som (reco-reco); tambores de bambu, taquara ou
madeira, com ou sem pele por cima. Há também o registro da viola de taquara, de
duas a três cordas. Desde a tenra idade, os nativos valorizavam e desenvolviam sua
musicalidade, de forma a ser comum dançarem e marcarem o ritmo em dupla ou
em roda, sacudindo o maracá com as mãos.

136
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Conclusões

Ainda se nota no Brasil uma visão estereotipada e romantizada dos indígenas e


suas manifestações culturais, reforçada pelos livros didáticos escolares e pela mídia,
sendo apresentados como aqueles indivíduos selvagens caracterizados, que vivem
isolados na floresta, disputando terras com madeireiros e mineradores. Essa ideia
acaba deturpando e anulando a identidade cultural, portanto obriga muitos a se
calarem para sobreviverem às acusações e ameaças às quais são submetidos.
É possível resgatar pessoas e saberes para recompor a história do povo Puri a
partir da recuperação de suas tradições culturais, que são ignoradas por parte da
tradição historiográfica brasileira e colocadas num lugar inferior. Tal posição resultou
no apagamento e, consequentemente, no desconhecimento das manifestações
musicais para a região Norte do estado do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

BARROS, José D‘Assunção. Música indígena brasileira: filtragens e apropriações


históricas. Proj. História, São Paulo, v. 32, p. 153-169, 2006.

BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. As etnogêneses: velhos atores e novos papéis no cenário


cultural e político. MANA, v. 12, n. 1, p. 39-68, 2006.

PURI, Zélia Balbina. Memórias de vida: ancestralidade. [S. l.]: Coleção semear, 2020.

RAMOS, Melissa Ferreira. Re-existência e ressurgência indígena: diáspora e


transformações do povo Puri. 2017. 227 f. Dissertação (Mestrado em Educação) —
Universidade Federal de Viçosa, Viçosa, 2017.

SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de Campos, São Paulo, v. 17, n. 17,
p. 237-260, 2008.

137
Histórias com Cheiro de Barro E Tanino
Jamilda Alves Rodrigues Bento
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Resumo

Este trabalho tem como intuito apresentar o engajamento de griôs de Goiabeiras,


Vitória (ES), que, através do seu modo de ser e estar no mundo, preservam e promovem
a nossa cultura que brota pelas mãos das paneleiras nos lugares de saber e fazer
panelas de barro (quintais e galpão), bem como por meio das vozes encarnadas
das cantadeiras de roda, de congo e de folia de reis, pela brincadeira do boi Estrela e
pelos congueiros, que, num vai e vem das mãos, esquentam os tambores e os fazem
falar de forma mais lenta ou num ritmo mais rápido, dando o tom às cantigas e à
dança da vida bem-vivida durante as atividades mencionadas.

Palavras-chave: Paneleiras de Goiabeiras. Expressões culturais. Goiabeiras.


Interculturalidade de saberes.

Introdução

O ofício das paneleiras de Goiabeiras, Vitória (ES), foi o primeiro patrimônio cultural
imaterial brasileiro reconhecido e registrado no Livro de Registro dos Saberes do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e revalidado em agosto de
2021. Ressalta-se que esse ofício já fora legitimado pelas detentoras desse saber, que,
há diversas décadas, embarreando as mãos, modelam, dão acabamento, alisam e
açoitam com tanino as panelas de barro produzidas, garantindo a completude ou parte
significativa do orçamento doméstico. Esse saber também fora há muito reconhecido
pela comunidade goiabeirense e por todas/os que adentram os quintais das paneleiras,
sejam comerciantes, sejam turistas que visitam o Espírito Santo desde há muito.
Sim, reconhecimento da importância desse ofício vem de dentro, através do ato de
compartilhar os saberes/fazeres para as outras futuras paneleiras, desde a ação de
modelarem quantas panelas sejam necessárias para garantir o sustento de suas
famílias até como manter as suas/seus filhas/filhos na escola, a partir da década de
1940, quando o processo de superação do desfavorecimento da escolarização das
filhas e filhos de paneleiras tornou-se mais robusto. Uma fala emocionante de uma
antiga griô, 80 anos, recorrente nas falas de tantas outras, revela-nos a importância
que essas mulheres do barro davam à escola:
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Eu não pude ser enfermeira porque o meu pai não deixou, mas as minhas
crianças eu mandei para escola, porque eu não posso deixar que eles passem
pela vergonha que eu passei a vida inteira por não saber ler nem escrever
(NASCIMENTO, 1997).

1. O aprendizado do ofício de paneleira

A metodologia da história oral fundamenta o nosso caminhar neste trabalho.


Acreditamos na história oral como área do conhecimento que necessita de uma
metodologia apropriada para investigação dos saberes tradicionais (BENTO, 2004,
p. 12). Nesse sentido, o movimento que desenvolvo neste trabalho é, dentre outras
questões, o de desenvolver uma escuta atenta às narrativas das nossas/nossos griôs
e, sobretudo, pesquisar com elas/eles.
Muito se tem escrito e falado sobre o protagonismo feminino na atualidade. Ouso
afirmar que esse conceito sempre foi vivenciado nos quintais das paneleiras, que
ensinavam às aprendizes também a forma de produzir um dos ícones da nossa
cultura. Dentro do contexto socioeconômico da época, isso possibilitava às mulheres
terem autonomia econômica, como nos diz a cantiga de congo, cantada por dona
Ilza Barboza, 84 anos, paneleira e cantadeira de congo: “Era pequena, minha mãe já
me dizia, aprenda a fazer panela pra comprar suas coisinhas”.
Nas rodas de conversa formadas nos quintais das antigas paneleiras e nos cortejos da
banda de congo, folia de reis e boi Estrela, aprendemos os ofícios e as expressões culturais
através das falas encarnadas de nossas/os griôs, como nos mostra a história de vida,
referente ao aprendizado do ofício, da paneleira Jenette Alves Rodrigues, 82 anos:

Minha filha, eu de tanto ver a labuta de mamãe com o barro, mas também
de saber que ela nunca precisou de pedir dinheiro a papai para comprar o
que queria, resolvi que também queria ganhar o meu dinheiro para comprar
as minhas coisinhas. Eu já ajudava, alisando as panelas, escolhendo o barro,
casando as panelas filhas nas panelas mães e já observava mamãe fazendo
panela todo dia. Eu já sabia da ciência de fazer, só precisava me dedicar mais,
porque parece fácil, mas fazer panela de barro tem toda uma ciência. Um dia,
eu falei pra mamãe que queria fazer panela depois que voltasse da escola e
perguntei se ela podia me ajudar no começo. Ela falou que sim, desde que eu
me dedicasse, então me lancei a aprender o ofício. Só que mamãe não era
fácil não, ela exigia capricho. Eu achando que estava abafando, um dia fiz uma
panela e mostrei para ela. Ela sem dó me disse: “Isso aí não é uma panela de
barro não, minha filha, isso está mais para um caquinho para torrar miséria, e
isso ninguém compra! Desmancha e começa tudo de novo, eu vou te mostrando
o jeito certo de se fazer panela de barro”. Eu fiquei um pouco contrariada, mas
eu tinha um propósito, aprender o ofício, e aí fiz: desmanchei, fiz, desmanchei,
ouvindo mamãe falar como devia fazer. Enfim, depois de longos meses, eu fiz

139
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

uma panela de barro que, pra mim, estava bonita, aí chamei mamãe para ver
a minha panela. Mamãe olhou a minha panela de barro, verificou o beiço, as
orelhas, o acabamento por um todo e me disse: “Parabéns, minha filha, agora
sim você pode se considerar uma paneleira, paneleira de Goiabeiras.” Eu
fiquei toda satisfeita e, de lá pra cá, não parei mais. Primeiro eu fazia panelas
pequenas chamadas “filhas” e mais tarde comecei também a fazer as panelas
maiores, que a gente chama de “mãe”, porque uma vai dentro da outra, a
panela casada, você sabe.

Esse conjunto formado por duas panelas de barro, mãe e filha, é chamado até hoje de
panela casada. Não, esse nome não se refere ao estado civil, e sim à maternagem que
emana no momento que a panela mãe recebe e acomoda em seu interior a panela
menor, a filha. Esse conjunto de panelas não tem tampas, por isso transborda afeto.
Hoje, a outrora menina, já vividas 8 décadas, com a maternagem à flor da pele,
continua transbordando afeto pelas/os filhas/os e por todas/os que fazem parte
da sua trajetória de vida. Por fim, quando um doutor em Educação, com a cabeça
aninhada em seu colo, perguntou-lhe o que ela gostaria de ser caso não fosse uma
paneleira, respondeu transbordando de alegria:

Meu filho, eu gostaria de ser professora para ensinar na escola as coisas da


escola. Mas não deu, porque não me formei professora, mas de qualquer modo
ando ensinando sobre as nossas coisas aos estudantes quando me procuram,
você sabe, até estudantes da Ufes já vieram me procurar.

2. Saberes em diálogo?

Essas expressões culturais que sustentam o nosso modo de estar no mundo são
aprendidas pelas/os mais jovens através da observação, da escuta atenta às
narrativas das/os mais velhos, nossas/os griôs. O princípio da incompletude de todos
os saberes é condição da possibilidade de diálogos e debate epistemológicos entre
diferentes formas de conhecimento (SANTOS, 2008).
Não se forma na escola uma paneleira, ou uma cantadeira de folia de reis, ou uma
cantadeira de roda, mas esses saberes devem e podem ser cada uma das duas
pontas do bambu verde que está sendo provocado a não mais perpetuar-se por
um formato retilíneo, mas traduzir-se por um movimento de interculturalidade. Essas
pontas, ao se encontrarem, poderão promover um dos valores civilizatórios afro-
brasileiros, a circularidade, vivenciada através da possibilidade de enxergarmos,
nesse saber de cá e naquele saber de lá, aproximações, sentidos mais plurais que a
interculturalidade de saberes pode proporcionar.

Os métodos de transmissão de conhecimentos utilizados pelos povos tradicionais


são muito variados e quase sempre baseados na oralidade, na escuta e na

140
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

prática contínua e cotidiana. Pensando no modelo junguiano das quatro funções


de captação do conhecimento, podemos dizer que os seus processos de ensino
integram razão, emoção, intuição e sensação, e acionam consistentemente
instâncias do sagrado e do profano; e alcançam e formam o indivíduo na sua
integralidade como sujeito ativo do conhecimento. Por outro lado, no nosso
ambiente acadêmico, a vida cotidiana de quem ensina e de quem aprende é
suspensa e são afastadas, com exceção da área das Artes, as instâncias da
intuição, da sensação e da emoção (CARVALHO; VIANNA, 2020, p. 30).

A musicalidade, a oralidade, a corporeidade e a ludicidade também são valores


afro-brasileiros. Eles medem as expressões culturais que as/os griôs de Goiabeiras
preservam e compartilham com crianças, jovens, adultos e idosos, seja quando estes
visitam os quintais das paneleiras ou o galpão — territórios em que se produzem as
panelas de barro, seja quando participam das rodas de congo nos quintais e nas
ruas. Na madrugada do dia 6 de janeiro, as/os grôs acompanham a cantoria de
participantes da folia de reis de Goiabeiras, que, ao iniciarem a reza cantada com
suas vozes encarnadas, quebram o silêncio do lugar com o canto que dá início a
nossa folia de reis: “Acordai quem está dormindo!”

3. Acordai quem está dormindo

Como faço parte dessa cultura, ouso emprestar essa frase que constitui a primeira
cantiga de reis que se canta na madrugada do dia 6 de janeiro, nas seis casas que
visitamos e vivenciamos momentos de muita alegria e confraternização aqui em
Goiabeiras. Essa frase pode ser contextualizada em interlocução com esse momento
de desencanto que a humanidade viveu e ainda vive em decorrência da pandemia do
novo coronavírus SARS CoV-2. Nesse contexto de desencanto e perversa campanha
de autoridades brasileiras que tentaram descredibilizar a ciência, promovendo
também as fake news e em parte obtendo êxito, testemunhamos os movimentos de
idosas e idosos que são engajadas/os na preservação e promoção da nossa cultura,
não dando nenhum tipo de crédito às falas contrárias ao distanciamento físico e a
vacinação, por exemplo.
Essa historinha mal-acabada de que quem se vacinasse poderia virar jacaré não
emplacou em nossa terra. Há muito, em nossa terra natal, assistimos ao homem
se transformar em boi Estrela. Virar jacaré é café pequeno. O boi Estrela é um
reencontro com o nosso passado rural, quando os pobres podiam saborear com
certa frequência carne bovina, mas, como agora o agro é pop e o preço dessa
proteína animal passou a ter valor exorbitante, até o café pequeno está com um
preço indigesto para a maioria da população brasileira, pergunta-se para quem o
agro é pop? Ou para quem o agro é tudo?

141
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Na ausência de outra possibilidade como a que foi apresentada pela ciência,


decidimo-nos por vacina sim, uso de máscara, distanciamento físico e higienização
das mãos! Decidimo-nos por luta pela vida. Acordai quem está dormindo!

Referências bibliográficas

BENTO, Jamilda Alves Rodrigues. Conhecendo as benzedeiras de Goiabeiras Velha.


Vitória: Ed. Autor, 2004.

CARVALHO, José Jorge; VIANNA, Letícia Costa Rodrigues. O encontro de saberes nas
universidades: uma síntese dos dez primeiros anos. Revista Mundaú, v. 1, n. 9, p. 23-
49, 2020. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/revistamundau/article/
view/11128. Acesso em: 12 jul. 2021.

SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura


política. São Paulo: Boitempo, 2008.

142
Narrativas de Marcelo Reis e as Memórias
de um Legado Musical Geracional
Karina Barra Gomes
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Resumo

Ouvir os relatos de músicos que carregam experiências em palcos, ruas e coretos


corresponde a conhecer o que se passou, também, com seus antecessores e coetâneos;
oportuniza a recuperação dos tempos idos e as vivências abrigadas em suas memórias.
Do mesmo modo, ficamos conhecendo o que se firmou e se estabeleceu no tempo,
nos espaços de sociabilidade e nos lugares de memória. A oralidade de jovens que
contam suas vivências nos ajuda a conhecer as expectativas da juventude, ainda
que esteja inserida em grupos de origem oitocentista. Ao revelar seu envolvimento,
participação e cooperação com uma cultura centenária, jovens e adultos apresentam
novas perspectivas para modos de vida e novas gerações, dando sequência ao
aspecto da identidade e à construção da história do tempo presente.

Palavras-chave: Memória cultural. Memória social. História oral. Bandas civis. Norte
Fluminense.

Introdução

Por meio da pesquisa desenvolvida entre fazedores da cultura das bandas reconhecidas
como liras, no município de Campos dos Goytacazes, identificamos memórias de
músicos que possuem, para estes, um valor afetivo, geracional e comunitário, além de
representarem o simbolismo de uma tradição centenária, na região Norte Fluminense.
A história oral é uma metodologia apropriada para colher relatos de músicos,
uma vez que, pela oralidade e narrativas espontâneas dos sujeitos, alcançamos o
passado e sua relação com o presente. As lembranças, o legado de pertencimento
e a cooperação identificam e relacionam os entrevistados com as associações de
músicos — as bandas civis às quais pertencem.
Marcelo Reis é um dos fazedores dessa cultura, que tivemos o privilégio de entrevistar;
possuidor de uma trajetória cultural vinculada a duas liras da cidade e, ainda, de uma
herança geracional musical bem singular, que merece ser relembrada: a tradição
dos Andrade Reis no cenário da produção da cultura musical campista. Marcelo é
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

descendente direto de algumas gerações de músicos que exerceram importância


no contexto artístico nacional, desde o século XIX. Assim sendo, entendemos que seu
relato de vida pode, e muito, contribuir para a história do tempo presente, que, aqui,
estamos ajudando a construir.

Fundamentação teórica

A memória social está presente nas trajetórias de vida que são narradas; acompanha,
também, cada suspiro de esperança ou de tristeza na expressão de cada entrevistado.
Lidar com memórias individuais é lidar com o que há de mais valoroso para esses
sujeitos: o pertencimento a um legado geracional e, por vezes, genealógico, deixado
para futuras gerações e para a própria história da cidade.
Thompson (1998), Santos (2003), Dodebei (2005) e Gondar (2005) trabalham com a
memória social considerando-a como memória coletiva, por abarcar a afetividade
e o pertencimento como importantes características da vida e da narrativa dos
sujeitos. A noção de espaço e de memória que se constroem num determinado lugar
nos leva a considerar Nora (1993) como alguém que compreende os lugares como
espaços os quais comportam a construção do social, da memória no convívio, dos
fazeres coletivos das comunidades no cotidiano e nas relações humanas.
A noção de geração também é fértil para a análise histórica e para as respirações
do tempo, por ser considerada uma escala móvel do tempo; na história das culturas
políticas, a noção de geração constitui “uma escala estratigráfica operatória”
(SIRINELLI, 2000, p. 135). A história ritmada pelas gerações se dá pela sua existência
autônoma e identidade determinadas por acontecimentos que são inauguradores;
o lugar e a genealogia apoiam a construção das memórias como fundamentos da
construção histórica, argumenta Cruikshank (2000).
O processo de relembrar pode ser utilizado como meio de explorar os significados
subjetivos da experiência coletiva, a natureza da memória coletiva e individual
e a relação destas com a identidade pessoal. Por isso, o resgate das experiências
individuais promove o renascimento do estudo político, impulsionando a história da
cultura, assegurando a transmissão da experiência coletiva e contribuindo para a
formação de identidades.
Por certo, de alguma forma, a cultura celebra parte da essência na identidade de
grupos: a cultura como identidade coletiva que se forma em relações sociais e culturais
em comunidades tradicionais. Os relatos e as memórias compõem os processos
sociais construídos que, alinhavados pelas narrativas orais, tornam-se, também, um
arquivo de representações coletivas. Estes ajudam na formação das identidades,
que podem ser geracionais e/ou genealógicas, e os indivíduos as constroem como
identidades político-culturais com um agregado de interações sociais, em lugares que

144
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

podem abrigá-las, cultivá-las e favorecer a expansão, a diversidade e a pluralidade


de movimentos sociais.

Desenvolvimento da pesquisa

Marcelo Reis possui uma ascendência genealógica de tradição musical desde seu
tataravô, o Pedro de Alcântara Ferreira dos Reis. Provavelmente de origem portuguesa,
Pedro tocava piano, violino e clarineta e ensinou música ao seu filho Virgínio de
Andrade Reis (1859-1931), pianista e compositor, nascido em Patrocínio do Muriaé
(MG); Virgínio foi quem iniciou a vinda da família para Campos (RJ). Aydano Reis, filho
de Virgínio Reis e avô de Marcelo, nasceu em Santo Antônio de Pádua (RJ), em 1895,
onde fundou a Lira de Arion, em 1888, tendo ido morar em Cambuci, onde atuou como
regente de Sociedade Musical Lira Cambuciense (RANGEL JÚNIOR, 1992).
Seu avô Aydano Reis teve cinco filhos, os quais, da mesma forma, dedicaram-se ao
aprendizado musical: Waldir de Andrade Reis (pai de Marcelo, flautista, requintista,
arranjador, compositor e pianista); Luiz de Andrade Reis (pianista, arranjador e maestro
da Sociedade Musical Operários Campistas, desde 1957); Heraldo Reis (maestro,
arranjador e trompetista); Jorge Reis (trombonista); e Jair Reis (contrabaixista).
Num relato de Luiz Reis para Rangel Júnior (1992), Virgínio Reis teria estudado ou
desenvolvido amizade com Henrique Oswald1.
Os tios, o avô e o pai de Marcelo são falecidos, com exceção do próprio Marcelo,
que, dentre os músicos de banda da família, ainda pode nos relatar suas memórias
e lembranças. Os Andrade Reis tinham prestígio artístico não somente na cidade;
foram grandes nomes e expoentes da história da música do município de Campos
dos Goytacazes, mas também construíram carreira fora dele. Registramos, neste
trabalho, a passagem dos Andrade Reis pelas bandas civis da região Norte Fluminense,
tendo deixado um legado cultural e um exemplo para Marcelo, que se emociona e se
orgulha de ser descendente de uma geração de talentosos músicos.
Marcelo Reis desenvolveu o interesse pelo estudo da música por meio do incentivo
e da admiração que tinha e tem pelo seu pai, Waldir de Andrade Reis, a quem
ele se refere como a inspiração para sua vida musical (RANGEL JÚNIOR, 1992).
Waldir Reis iniciou tocando flautim na Lira de Apolo, assim como os demais tios
de Marcelo também tiveram passagem por essa banda. O maestro Luiz Reis não

1
Henrique Oswald foi pianista, compositor, concertista e diplomata brasileiro, tendo nascido no Rio de
Janeiro, em 1852, e falecido em 1931. Em 1868, recebeu uma bolsa de estudos do Imperador para estudar
na Itália e viveu em Florença, onde teve a oportunidade de conhecer Franz Liszt e desenvolver seu
inato talento, ajudado pela influência artística da cidade de Toscana. Diretor do Instituto Nacional de
Música (hoje, a Escola de Música da UFRJ) entre 1903 e 1906, Henrique Oswald tornou-se patrono da
Academia Brasileira de Música.

145
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

se vinculou a Apolo, pois escolheu estar ligado à Sociedade Musical Operários


Campistas, outra banda centenária.
Heraldo Reis tocava desde os seus 17 anos no Rio de Janeiro, tendo convivido
com músicos renomados, tais como Severino Araújo (que comandou a Orquestra
Tabajara por 74 anos). Heraldo teve participação expressiva na Banda Sinfônica
do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro e era músico integrante da Orquestra do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, chegando a acompanhar Wilson Simonal como
trompetista numa turnê internacional, na França. Alvaro Reis, tio-avô de Marcelo,
conhecido como Loquinha, foi maestro da Lira de Apolo, reconhecido por Rangel
Júnior (1992) como “um dos maiores talentos que a música campista viu passar”
(RANGEL JÚNIOR, 1992, p. 193).
Com o acontecimento da morte de Loquinha, Waldir Reis se despertou para aprender
música. Ele foi o primeiro professor de música de Marcelo, quando este tinha 12 anos
de idade. Posteriormente, seu pai decidiu levá-lo para estudar na Lira Guarany, com
professor Derico, onde ficou por um ano e meio. Antes de completar 14 anos de idade,
Marcelo desejou frequentar a Sociedade Musical Operários Campistas, onde passou
a aprender música com o professor Diomédes.
Marcelo conta que Waldir, seu pai, ao escrever um dobrado, não sabia qual nome
daria à peça. Ao perguntar a Marcelo o nome do regente da Lira Guarany, decidiu,
então, dedicar o dobrado ao maestro Ésio Ribeiro Amaral. Marcelo destaca sua
realização em pertencer a uma família de músicos e está decidido a manter a
tradição geracional, introduzindo sua filha na mesma cultura musical.
Houve um período em que Marcelo se interessou pelas bandas escolares, conhecidas
como fanfarras, aos 15 anos de idade. Chegou a ser instrutor de banda no antigo
Instituto de Educação Professor Aldo Muylaert (IEPAM) e no Colégio Estadual Nilo
Peçanha, tendo se apresentado em várias escolas. A inclinação para as fanfarras o
fez desinteressado, no período em que se dedicou a elas, pelas bandas tradicionais,
por ter encontrado na banda marcial um hobby, durante sua adolescência.
Marcelo era um bom corneteiro e sempre o spalla2 nas fanfarras, onde atuou até os
30 anos de idade. Tendo retornado à banda civil, como havia prometido ao seu pai,
deixou as bandas marciais, reconhecendo o papel das fanfarras como importantes
núcleos de sociabilidade; embora recorde que elas não oferecem o ensino de música,
como nas bandas civis, onde o acesso à leitura e ao estudo de partituras é aplicado.
Marcelo e seu amigo Rafael reiniciaram musicalmente com o maestro da Lira
Guarany, Ésio Ribeiro Amaral, em 2002. Sua primeira execução como músico de
estante foi a música “Miracema Cidade”, que estudava com o mestre Ésio, em sua
casa. A primeira apresentação que Marcelo fez foi com a Lira Guarany, na Praça
São Salvador, ao lado da igreja matriz, além de diversas apresentações no dia do

2
Spalla é um músico escolhido como liderança por qualidade e desenvoltura instrumental. Para saber
mais, acesse: https://souzalima.com.br/blog/o-que-e-um-spalla/.

146
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

padroeiro da cidade, também com a Guarany. Uma delas, no Jardim São Benedito,
em 2003 ou 2004, marcou-o bastante.
Marcelo não desejava migrar para a Sociedade Musical Operários Campistas, onde
seu tio Luiz Reis era o maestro, por haver uma cobrança muito grande em relação
ao seu nível musical e por ele pertencer a uma família de grandes músicos. Ainda
assim, ele foi para a Operários, aos 32 anos, devido à interrupção dos ensaios na Lira
Guarany, devido a motivos internos da diretoria.
Sua primeira apresentação com a Operários Campistas foi no jardim do Teatro
Trianon, em 2005. Lá, ele reencontrou o maestro Ésio, com quem tirou uma fotografia,
o professor que mais o marcou em sua trajetória e a quem ele externaliza gratidão;
relata o respeito que tem pelo regente e menciona o nome de outros músicos a quem
deve apreço e consideração por ter tocado com eles: Afonso Gualberto, Getúlio da
Silva (integrante da Lira Guarany), Luiz Reis e Aluízio Fiúza.
Marcelo tem uma divisão de paixões: a Operários Campistas, que carrega a história
musical de seus tios Jorge, Heraldo e Luiz Reis; e a Lira Guarany, que o acolheu na
pessoa do maestro Ésio Ribeiro Amaral.
Com a Sociedade Musical Operários Campistas, Marcelo tem recordações de
apresentações em diversos lugares: na Sala Cecília Meireles (Centro, RJ, por duas
vezes); no Forte de Duque de Caxias (no Leme, RJ); no Teatro Trianon, acompanhando
o Coral da Marinha; no Auditório da Santa Casa de Misericórdia de Campos; no
Jardim São Benedito; no Teatro de Bolso; na 5ª Maratona de Bandas do Estado do
Rio de Janeiro (no Projeto Banda Larga), em Encontros de Bandas de Música que
ocorreram em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Marcelo preserva, com
zelo e dedicação, os arquivos das gravações das apresentações realizadas por ele.

Conclusões

Se a genealogia e o lugar são pontos focais pelos quais a memória pode resistir
à burocracia impessoal, consideramos o relato de Marcelo Reis como parte do
processo social em curso, pois relembra o legado dos seus antecessores no cenário
histórico-cultural da região, sem deixar de apontar o papel peculiar das liras em suas
trajetórias de vida.
As narrativas de Marcelo trazem as liras como exemplos de uma cultura de identidade
comunitária que acolhe a geração, o lugar, a cooperação e a solidariedade como
esteios na construção de memórias. Narrar desafios, experiências e expectativas vem
do privilégio daqueles que discernem, para além do tempo presente, que o passado
fortalece a história que se está por construir.

147
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Referências bibliográficas

CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da história
oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 149-164.

DODEBEI, Vera. Memória, circunstância e movimento. In: GONDAR, Jô; DODEBEI, V.


(Orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em
Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005. p. 43-54.

GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI,
Vera (Orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação
em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005. p. 11-26.

NORA, Pierre. Entre memórias e histórias: a problemática dos lugares. Projeto


História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, 1993.

RANGEL JÚNIOR, Vicente Marins. Recortes da memória musical de Campos (1839-


1965): subsídios musicais para a construção de uma história da cultura campista.
Itaperuna, RJ: Damadá Arte Gráficas, 1992.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo:
Annablume, 2003.

SIRINELLI, Jean-François. A geração. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes


(Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 131-138.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

148
Memórias e Práticas Culturais na Sociedade
Musical Usina Santa Maria (SMUSM)
Danilo de Freitas Benevides
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus
Elisabeth Soares da Rocha
Instituto Federal Fluminense
Karina Barra Gomes
Universidade Estadual do Norte Fluminense

Resumo

A música faz parte da vida humana e, como tal, tem sido elemento de comunicação
e expressão nas diversas transformações vividas pelo homem ao longo da história.
O conhecimento musical nos contextos socioculturais possibilita a compreensão do
ser humano, em suas relações sociais. Este estudo aborda o resgate da história da
Sociedade Musical Usina Santa Maria, a partir das memórias dos trabalhadores da
usina e dos moradores da localidade; vislumbra ressaltar o papel desempenhado
pelos músicos em suas práticas, na produção do conhecimento e da educação
musical, contribuindo para o desenvolvimento da cultura local. A pesquisa se justifica
pelo seu valor como capital cultural pertencente à região e, ainda, como elemento
de pertencimento aos que dela foram e são participantes. Nossa proposta inclui a
valorização da memória e da identidade cultural da região, ressaltando a importância
da música no cotidiano de seus moradores.
Palavras-chave: Cultura. Memória. Sociedade Musical Usina Santa Maria. Bom Jesus
do Itabapoana (RJ).

Introdução

Esta pesquisa está relacionada às memórias cultural e histórica da Sociedade


Musical Usina Santa Maria (SMUSM), cujas reminiscências se encontram na
comunidade localizada no 8º distrito de Bom Jesus do Itabapoana, denominado
Usina Santa Maria. Por se tratar de uma significativa instituição artística que interagiu,
principalmente, na segunda metade do século XX, seu legado tem atravessado
diversas gerações de músicos.
Metodologicamente, esta pesquisa se deu em duas vertentes: primeiro, foram
realizados levantamentos documental e iconográfico da história local, que envolvem
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

os moradores e sua relação com a Sociedade Musical Usina Santa Maria; segundo,
foi coletado o depoimento dos sujeitos envolvidos em sua história. Optamos pela
entrevista semiestruturada, na qual o entrevistado, além de responder as perguntas
formuladas por meio de um roteiro, também teve a possibilidade de discorrer
sobre suas experiências, a partir do foco principal proposto pelo pesquisador, ao
mesmo tempo que permite respostas livres e espontâneas. As questões elaboradas
para a entrevista levaram em conta o embasamento teórico da investigação e as
informações que o pesquisador recolheu sobre o fenômeno social em questão.
Halbwachs (2004 apud VIEIRA, 2015) esclarece a importância das memórias que são
encontradas e colhidas nas entrevistas com mais de um entrevistado:

Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que nos tragam
seus testemunhos; é preciso também que ela não tenha deixado de concordar
com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as
outras, para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída
sobre uma base comum (HALBWACHS, 2004, p. 12 apud VIERIRA, 2015, p.7).

Assim sendo, foi possível entrevistar pessoas da comunidade, que relataram suas
experiências, expressões e histórias, contribuindo, assim, para manter viva a memória
da instituição. As lembranças de um passado não muito distante pertencem aos
moradores da Usina Santa Maria e a tantos outros que dela se desvincularam, levando
e guardando com eles suas memórias.

Fundamentação teórica

No que tange ao conceito de memória coletiva, Halbwachs foi um dos autores que
contribuiu para a compreensão desse significado. Um de seus grandes méritos foi ter
escrito sobre memória coletiva numa época em que a memória era compreendida,
basicamente, como fenômeno individual. Para Halbwachs (2003), há

uma notável distinção entre a “memória histórica”, de um lado, pressupondo a


reconstrução dos dados fornecidos pelo presente da vida social e projetada sobre
o passado reinventado, e por outro lado a “memória coletiva”, que magicamente
recompõe o passado. Entre essas duas direções da consciência coletiva e
individual se desenvolvem as diversas formas de memória, que se alteram
conforme as intenções por elas visadas (HALBWACHS, 2003, p. 13-14).

Santos (1998), ao refletir sobre essa abordagem em Halbwachs, afirma que a memória
coletiva está presente em um sistema de signos fixado no tempo e espaço social,
como uma parte das lembranças que os músicos têm dos sons que os permitem
identificar, decifrar e executar músicas.

150
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

O conhecimento musical advindo da SMUSM alcançou várias famílias de moradores


da Usina Santa Maria, incluindo a de um dos autores deste trabalho, o que nos leva a
refletir sobre a afirmação de Hall (2006):

O fato de que projetamos a “nós próprios” nessas identidades culturais, ao mesmo


tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “parte de nós”,
contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos
que ocupamos no mundo social e cultural (HALL, 2006, p. 12).

Portanto, recuperar parte da história desse lugar representa, em primeiro lugar,


revitalizar uma memória pessoal, afetiva, de identificação e pertencimento; mas,
além disso, significa tornar viva uma história que fez e ainda faz parte da cultura de
sua comunidade. Pollak (1992) afirma:

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído


social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos
também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a
memória e o sentimento de identidade (POLLAK, 1992, p. 204).

Desse modo, fica clara a importância do valor das relações afetivas dos sujeitos
com o lugar e com a banda, uma vez que famílias e gerações fazem parte dessa
história que aqui buscamos registrar. A seguir, depoimentos de músicos que
atuaram na banda confirmam e trazem algumas memórias do aprendizado
musical na instituição.

Desenvolvimento da pesquisa

Em relação ao ensino de música na Sociedade Musical Usina Santa Maria, o ex-


integrante da SMUSM e músico João Braúna, de 67 anos, possui uma relação
de pertencimento e identidade com o lugar, com a usina, com a comunidade e com
a banda, cogitando, assim, a possibilidade do resgate de sua memória.
Em entrevista cedida a esta pesquisa, ele esclareceu os diversos processos de ensino
musical da instituição, citando José Primo, o primeiro maestro da Sociedade Musical
Usina Santa Maria. Segundo ele,

José Primo utilizava o método “hartinha”. Quando terminava a “hartinha” passava


para o ABC musical1. Ele só dava o instrumento pra gente quando você já estava
na página 35, se não me engano. E assim, começava a prática no instrumento
(BRAÚNA, 2020)2.

1
ABC Musical: método completo para divisão de Paschoal Bona.
2
Informação concedida por meio de entrevista feita a João Braúna, ex-integrante da SMUSM, em 2020.

151
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Ao ser interrogado sobre esse método de ensino que, inicialmente, exigia que os
integrantes obtivessem um embasamento teórico para, posteriormente, iniciar
no instrumento, o Sr. Braúna (2020) afirmou que considerava fundamental que,
primeiramente, o músico tivesse o domínio de solfejo, leitura de partitura, ritmo
e divisão com o ABC musical. Dessa forma, conseguiria executar o instrumento e
prosseguir com o aprofundamento de exercícios mais avançados.
Em resposta à mesma indagação, o maestro Nilo Rodrigues de Oliveira, 86 anos,
atual dirigente da Lira Operária Bonjesuense, acrescentou:

Eu dou o método ABC Musical primeiro para o aluno pegar a teoria e saber o
que é música. Pois ele tem que pegar teoria, divisão, tudo antes do instrumento.
Precisa pegar antes na parte do solfejo e, em seguida, estudar o instrumento, e
somente depois entra tocando na banda (OLIVEIRA, 2019)3.

Diante desse posicionamento pedagógico de iniciar os integrantes da banda com


um estudo essencialmente de teoria musical, aplicado pelos maestros, inserimos
um segundo questionamento em nossa entrevista sobre a reação dos alunos diante
dessa metodologia e sua motivação diante da demora em conseguir um instrumento
para tocar. O maestro Nilo Oliveira explicou:

Sempre desanima um pouquinho. Mas, afinal, se tem que ter uma escada, uma
progressão, é necessário percorrer cada degrau, caso contrário, você vai pegar
no instrumento sem saber o que que vai fazer. Logo, se tem que saber quanto
vale uma nota, como tocá-la, tudo está na teoria musical. Como é que o sujeito
vai dividir o compasso se ele não sabe o valor da nota? (OLIVEIRA, 2019).

Portanto, compreendemos que a metodologia aplicada ao ensino de música na


SMUSM pelos maestros/professores priorizava o conhecimento da teoria musical,
deixando o contato inicial com o instrumento, seu manuseio e execução, como etapa
posterior. Porém, naquela época, não era incomum os procedimentos de ensino de
um instrumento musical que procediam dessa forma.
No entanto, em relação às práticas musicais não institucionalizadas, essas,
geralmente, utilizavam a observação, a imitação e o ouvido para aprender de forma
oral o instrumento musical; aconteciam de maneira informal, no meio de familiares
e amigos. Dessa forma, consideramos significativo trazer esse questionamento ao
maestro Nilo Oliveira sobre essas duas abordagens didáticas de aprendizagem, o
qual, em resposta à indagação, relatou que:

Se, ao invés de ensinar o sujeito pegando na pauta, formos ensinar as notas no


instrumento e mandá-lo soprar, ele não se torna um músico, porque ele não vai

3
Informação concedida por meio de entrevista feita a Nilo Rodrigues de Oliveira, ex-maestro da
SMUSM, em 2019.

152
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

saber dividir um ritmo, ele não vai tocar. Então, ensinamos o sujeito no método
tradicional. Se ele quiser seguir, ótimo (OLIVEIRA, 2019).

Ao levar em consideração Delors (1996), a educação se constrói em múltiplos


contextos, modos e formatos operantes, pois constitui uma área do conhecimento que
está presente em todas as sociedades. Ela se torna indispensável para construção
da justiça social, liberdade e ideais da paz para a humanidade (DELORS, 1996, p. 11
apud SENA, 2016). A banda era e sempre será um espaço independente, seu, que a
caracteriza e a faz detentora de um modo próprio de formação de músicos, com
características peculiares e apropriadas ao seu contexto.
Vale ressaltar que, na segunda metade do século XX, o ensino de música, no
Brasil, passou por significativas transformações decorrentes das diversas influências
recebidas por diferentes correntes pedagógicas. Entre os diferentes métodos de
ensino musical que passavam a ser utilizados, pode-se dizer que o “divisor de águas”
que marcaria esse período constituía em deixar de objetivar apenas a formação
de um intérprete musical de alta performance para buscar oferecer, também, um
desenvolvimento intelectual e emotivo para os estudantes de música.
Essas novas concepções elaboraram sistemas educacionais que estavam
comprometidos com esses ideais. Os principais educadores musicais que foram usados
como fonte para essa “nova” metodologia foram: Zoltán Kodály (1882-1967), Edgar
Willems (1890-1978), Carl Orff (1895-1982) e Suzuki (1898-1998) (FONTERRADA, 2005).
Do mesmo modo, não podemos deixar de ressaltar a importância da Sociedade
Musical Usina Santa Maria para a cultura da região, assim como o papel fundamental
que exerceu na educação musical e social de crianças, jovens e adultos. Os diversos
contextos em que ocorre a aprendizagem musical são abordados por Brandão:

Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou na escola, de um


modo ou de muitos, todos nós envolvemos pedaços da vida com ela: para
aprender, para ensinar, para aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser
ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação (BRANDÃO,
2007, p. 7 apud SENA, 2016, p. 37).

De acordo com o entrevistado João Braúna, 67 anos,

A banda para nós representava uma diversão, pois a gente


trabalhava normalmente na usina e não recebia nada da banda, nenhum
tostão. A gente tocava por prazer. Embora não recebesse nada em troca, o
aprendizado que a gente levava era para toda vida. Pois, se você aprendeu
música, você leva para o resto de sua vida (BRAÚNA, 2020).

Fica evidente que o João Braúna e os demais fazedores dessa cultura eram motivados
pelo convívio, solidariedade, afeto e aprendizagem, ou seja, valores permanentes e

153
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

capazes de fortalecer uma cultura que ainda pode ser reinventada pelos próprios
moradores da Usina Santa Maria.
Para Gomes (2003), a prática musical é exercida em situações em que
diferentes pessoas se reúnem em comum acordo, num espaço social, tal qual
o representado pela banda de música, onde relações sociais como amizade e
convivência são firmadas. Nesse ambiente, é possível a interação, cooperação,
diálogo, troca de saberes e estreitamento social entre os músicos, formando, entre
eles, uma mesma “família” musical.

Conclusões

Observamos que as relações sociais existentes na SMUSM se baseavam num


sentido de pertencimento e afeto, de onde se originaram as memórias que, ao
serem construídas socialmente, passaram a constituir as identidades coletivas,
em seu cotidiano.
A militância pela preservação das memórias locais, pela ressignificação da
SMUSM e pela restauração das atividades da banda inclui o desejo dos músicos de
reviverem as experiências afetivas e musicais. Logo, perpassa por uma luta contra
os apagamentos da memória e da identidade de um povo que precisa revisitar sua
história, experienciá-la e guardá-la nas vivências do cotidiano, nas lembranças, na
identidade, na razão e no coração.

Referências bibliográficas

BRAÚNA, João. Entrevista concedida ao autor. 2020

FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: um ensaio sobre música e


educação. São Paulo: UNESP, 2005.

GOMES, Karina Barra. Bandas de música: conservatório para o povo. 2003.


42f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Educação Artística) —
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003. Disponível
em: http://www.domain.adm.br/dem/licenciatura/monografia/karinagomes.pdf
Acesso em: 24 set. 2020.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

154
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva


e Guaracira Lopes Lauro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

OLIVEIRA, Nilo Rodrigues de. Entrevista concedida ao autor. 2019.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.


5, n. 10, p. 200-212, 1992. Disponível em: http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf.
Acesso em: 12 set. 2019.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Sobre a autonomia das novas identidades


coletivas: alguns problemas teóricos. Rev. Bras. Ci. Soc., v. 13, n. 38, p. 151-165, 1998.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000300010. Acesso em: 22
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SENA, Gilvanildo de Aquino. O ensino e aprendizagem de música na Banda


Marcial Padre Nicola Mazza: um estudo com os alunos egressos. 2016. Trabalho
de Conclusão de Curso (Mestrado em Música) — Universidade Federal da
Paraíba, João Pessoa, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/
bitstream/123456789/11731/1/Arquivototal.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020.

VIEIRA, Itala Maduell. A memória em Maurice Halbwachs, Pierre Nora e Michael


Pollak. XI Encontro Regional Sudeste de História Oral - Dimensões do Público,
Comunidades de Sentido e Narrativas Políticas, Niterói, RJ, UFF, jul de 2015, p.1-10.

155
GT 5

A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE


FLUMINENSE E SUL CAPIXABA:
MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Coordenadoras(es): Paula Aparecida Martins Borges Bastos (Instituto Federal
Fluminense) e Thadeu de Moraes Almeida (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O objetivo deste GT é congregar reflexões que permitam descortinar as diversas


formas de manifestação da cultura musical no Noroeste Fluminense e Sul Capixaba,
abrangendo aspectos diversos, tais como: a) estudos sobre a trajetória musical
das diversas expressões musicais em seu contexto histórico e social no território; b)
estudos sobre o patrimônio musical material e imaterial; c) festividades que tenham
as expressões musicais como um de seus componentes; d) os impactos da pandemia
sobre as manifestações artístico-musicais e suas formas de resistência e adaptação.
Apesar de haver uma riqueza musical que dialoga diretamente com o fazer e o pensar
dos sistemas sociais e culturais que os compõem, as regiões Noroeste Fluminense e
Sul Capixaba se ressentem ainda de uma abordagem mais sistemática sobre suas
expressões musicais, uma vez que grande parte das pesquisas acadêmicas tende
a se debruçar sobre territórios outros, especialmente dos grandes centros urbanos.
As duas regiões abordadas, embora distintas em relação à divisão administrativa,
possuem uma história e cultura muito próximas, o que aponta um estreito diálogo
nas expressões musicais que se manifestam/manifestaram no território. Reunir os
conhecimentos que se produzem sobre o tema, no GT proposto, permite trazer luzes e
perspectivas que potencializem e fortaleçam os estudos sobre a cultura musical em
suas várias expressões nesse território, o que, em última instância, é forma de ampliar
o conhecimento sobre a cultura musical brasileira, em sua diversidade e riqueza.
A Presença da Música Cortesã de Matriz Europeia
na Laje do Muriaé do Último Quartel do Século
XIX: uma conquista da mente e uma conquista de
mentes na região Noroeste Fluminense
Adler dos Santos Tatagiba
Instituto Federal Fluminense

Resumo

As parcas informações sobre aspectos históricos da música na região Noroeste


Fluminense, guardadas as suas especificidades, destacam que um músico italiano,
vindo do Rio de Janeiro, chegou à localidade de Laje do Muriaé na década de
1870 e modificou completamente a vida cultural lajense. O objetivo deste artigo é
dar início a uma discussão sobre como a presença de Giuseppe Masini, na região
abordada, pode ser compreendida como a própria presença da colonialidade.
Constitutiva como parte da modernidade e associada a um saber musical que,
atuando na mentalidade da localidade em finais do século XIX, se insere no processo
de aburguesamento da sociedade lajense, impulsionado pela ascensão social da
região a partir das lavouras de café, acentuado pela presença da música cortesã
de matriz europeia, que contribui decisivamente para a afirmação proléptica de um
colonialismo do pensamento musical na microrregião. O gênero historiográfico da
micro-história permite esclarecer as realidades conjunturais existentes dentro de
narrativas de estruturas já conhecidas, através da exploração das fontes destacadas
em trabalhos anteriores e fontes recém-desveladas. Utilizando os artifícios da
narrativa, para compreensão do contexto analisado, os argumentos apoiaram-se nos
estudos sobre cultura e identidade. Pretendeu-se discutir como a presença de Masini,
relatada em alguns textos, em diálogo com registros contidos nas fontes musicais e
documentais da atividade do músico italiano, confirma a existência de algum tipo
de colonialidade entre as práticas musicais historiadas na região, distinguidas neste
estudo como práticas musicais de matriz europeia: cortesãs e subalternas.

Palavras-chave: Região Noroeste Fluminense. Laje do Muriaé. Colonialidade do


saber em música. Giuseppe Masini. Acervo José Carlos Ligiero.
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

Introdução

No presente texto, pretendo discutir como a colonialidade do saber, em torno de


duas práticas musicais verificadas na Laje do Muriaé, já no último quartel do século
XIX, opera na mentalidade da sociedade local. Segundo Maldonado-Torres (2007),
tal operação se dá por meio de um padrão de poder que emergiu como resultado
do colonialismo moderno, o qual, em vez de estar limitado a uma relação formal de
poder entre os povos ou nações, refere-se à forma como trabalho, conhecimento,
autoridade e relações intersubjetivas estão articulados entre si.
Isso é evidente pela análise das fontes de consulta até então disponíveis e o
cruzamento destas com os relatos da narrativa local, que mencionam a chegada
de músicos na região e destacam a presença de Giuseppe Masini, maestro
italiano que chegou à freguesia de Laje do Muriaé e modificou “o gosto musical” da
localidade, tornando-a “chique”, “civilizada”, dentre outros adjetivos observados nas
narrativas sobre o homus historicus destacado. A utilização de recursos possíveis,
inclusive o esquecimento, age nessa operação mental, de maneira indolente e
especificamente proléptica, pela heterogeneização de práticas musicais, que se deu
a partir da presença do maestro italiano. As narrativas exerceram, assim, o controle
da subjetividade cultural, tornando-a explicitamente desigual.

Fundamentação teórica

Para tentar esclarecer este ponto de vista sobre uma ideia de progresso na história, adotei
o gênero historiográfico narrativo, visando a inserção da hermenêutica na micro-história
pretendida e procurei equilibrar as participações universalizantes e particularizantes,
segundo Astor Antônio Diehl (2002). A fim de esclarecer as realidades conjunturais
que existem dentro de narrativas e estruturas já conhecidas sobre os personagens
envolvidos, apoiei também a discussão em Carlo Ginzburg (1989). Através de uma
breve exploração das fontes conhecidas, utilizando também os artifícios da narrativa, a
pesquisa baseia-se no estudo sobre cultura e identidade. Homi Bhabha (2011), a fim de
discutir traços etnográficos descritos pelos registros encontrados também foi inserido na
discussão. Destaco também os recortes das informações bibliográficas sobre Giuseppe
Masini, compostas basicamente de três obras, duas publicadas e uma monografia não
publicada1, em diálogo com as fontes musicais, cópias reprográficas de manuscritos de
Giuseppe Masini, verificadas no Acervo José Carlos Ligiero2.
1
Porphirio Henriques (1954), Dulce Diniz (1985) e Manoel Ligiéro (1960).
2
Ao longo do trabalho de identificação dos itens do Acervo de José Carlos Ligiero (1930-2017),
realizado pelo autor, foi possível, pela adoção das técnicas de trabalho da arquivologia, destacar
que alguns conjuntos de documentos formavam fundos específicos e se referiam em diferentes
graus a uma prática musical de matriz europeia na região abordada, que foi preservada graças ao
seu recolhimento ao acervo, em circunstâncias ainda desconhecidas.

158
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

Quero aqui iniciar, com este breve artigo, algum progresso de um pensar histórico
sobre o processo descrito acima. Portanto, objetivei introduzir a discussão sobre a
colonialidade de um saber musical na região Noroeste Fluminense, que tem início
com a chegada de Giuseppe Masini. Procurei destacar que, a partir da presença do
músico napolitano, na Laje do Muriaé da segunda metade do século XIX, os mestres
de banda que, segundo os relatos, haviam chegado à mesma freguesia antes do
italiano tiveram as suas histórias ocultadas; consequência desse processo proléptico
de colonialidade. Segundo Manoel Ligiéro, em sua monografia não publicada “O
homem, o Rio e a Terra (o rio Muriaé e a Freguesia da Laje)”, que data de 1960 e
apresenta um recorte de traços históricos e geográficos da região, o músico italiano
Giuseppe Masini chegava à freguesia em 18713.

Desenvolvimento da pesquisa

Nenhuma das fontes bibliográficas consultadas sobre o maestro Masini, como


ficou conhecido, destacou que ele poderia ter vindo ao Brasil em alguma companhia
de ópera italiana, o que era mais ou menos frequente no século XIX. Foi uma atividade
intensificada, sobretudo, a partir do Segundo Reinado, com a criação da Companhia
de Ópera Nacional durante o reinado de D. Pedro II. A trajetória da chegada de Masini
ao Brasil, bem como o percurso até sua chegada na região Noroeste Fluminense, vem
sendo descortinada em minha pesquisa de doutorado.
Num primeiro momento levantamos a hipótese de que sua chegada ao Brasil poderia
ter acontecido a partir de uma companhia de ópera italiana, como foi dito acima, pelo
indício contido em uma informação observada em Paulo Castagna (2003), sobre a
participação de um cantor, chamado Giuseppe Masi, em duas óperas apresentadas
no Rio de Janeiro, na década de 1860. Uma hipótese que já se confirmou nula, visto
que Masini nasceu em torno de 1856 e veio para o Brasil como turista, desembarcando
no Rio de Janeiro quando tinha aproximadamente quinze anos de idade, em torno de
1871. Ele estava acompanhado de seu pai e de seu avô paterno.
Destaco em trabalhos anteriores que já é possível observar, segundo as
fontes consultadas, que, antes da chegada de Masini a Laje do Muriaé, é registrada
a presença de outros nomes que trazem para a região uma prática musical distinta
da introduzida por Masini. Práticas musicais que são, a priori, de matriz europeia,
e, a partir das pesquisas sobre a música da região, passei a interpretá-las como

3
Há controvérsias nas fontes consultadas quanto ao momento da chegada de Giuseppe Masini a Laje
do Muriaé, que permitem destacar o período compreendido entre 1860 e 1871, aproximadamente.
Contudo, sabemos hoje que Masini somente fixou residência em Laje do Muriaé a partir de 1874 ou 1875.

159
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

atividades relegadas à subalternidade com a chegada de Masini4. Refiro-me a


práticas musicais ligadas à atuação das bandas de música, bandas marciais ou
similares (TATAGIBA, 2011; 2019).
De acordo com minhas pesquisas sobre a música presente na freguesia da Laje do
Muriaé do século XIX, região do Noroeste Fluminense que faz divisa com uma parte
da zona da mata mineira, pude observar que mestres de bandas chegaram àquela
região pelo lado mineiro, por volta de 1860, segundo consta nas fontes consultadas.
Quer dizer, os relatos nos dizem que vieram do atual município de Muriaé (MG),
à época conhecida por São Paulo do Muriaé. Exercitando a imaginação narrativa,
arrisco-me a dizer que trouxeram uma música que já estaria, em alguma medida,
desvirtuada dos costumes e redes simbólicas europeias. Pelo menos em parte. Para
tanto, lembro que Minas Gerais do século XIX, grosso modo, já estava, em alguma
medida, livre de uma disciplina e um controle direto da ideia de colonialidade
musical, fortemente exercida ao longo dos dois séculos anteriores naquela região.
Nesse sentido, estou tentando chamar a atenção para as práticas musicais das
bandas de música ou similares que se espalharam entre os donos de fazendas
e contavam com a participação de negros escravizados e imigrados europeus,
formando, assim, uma rede de trocas simbólicas que extrapolaram a disciplina da
prática musical cortesã, restrita ao ambiente das elites.
Em torno de 1875, chegava, à região da freguesia, o maestro italiano, vindo do
efervescente Rio de Janeiro, local que recebia desde 1808, após a chegada da corte
portuguesa, a influência ainda mais marcante da música cortesã europeia, também
conhecida como influência bragantina. Segundo consta em Manoel Ligiéro (1960),
Giuseppe Masini, vindo da capital, chegava àquela localidade trazendo consigo
vários títulos e uma carta de recomendação que teria sido redigida pela Princesa
Isabel. Acrescenta em sua monografia que a princesa também teria sido aluna de
harpa do músico italiano.
Essas informações não se confirmam até o presente momento, mas foram inseridas
na narrativa historiográfica destacada, dentro dessa relação colonizadora para a
conquista de mentes, ainda que de maneira não intencional, acredito. Portanto, esses
são indícios de um pensamento proléptico da ideia de colonialidade. A despeito da
não confirmação da existência da carta mencionada por Ligiéro (1960), podemos
supor que o maestro estaria sendo recomendado para a elite cafeeira da Laje do
Muriaé. Embora não estejamos também descartando que, em algum momento,
4
Destaco que os primeiros músicos que se tem notícia através da observação dos poucos trabalhos
existentes na região Noroeste, com parcas referências à música, foram mencionados e parcialmente
discutidos em minha dissertação de mestrado. Cabe frisar que são poucas as informações sobre os
músicos pioneiros na região. Para além de alguns poucos nomes e também das poucas atividades
musicais descritas na bibliografia disponível a que tive acesso até o momento, posso destacar que
existem relações indiciárias, em fontes musicais encontradas no acervo José Carlos Ligiero (1930-
2017), ainda a serem desveladas, e, portanto, pretendo apresentá-las em trabalhos futuros.

160
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

ele possa ter tido alguma atividade ligada às bandas de música. No entanto, se ele
possuiu essa ligação com a prática musical, ela está apagada nos relatos de sua
trajetória na região de Laje do Muriaé.

Conclusões

Neste pequeno trabalho, de caráter introdutório, procurei destacar a instauração de


uma visão colonizadora sobre a música na região Noroeste Fluminense, que acomete
narrativas historiográficas e se dá a partir da chegada do maestro Masini à região;
o primeiro nome de origem europeia ligado à uma atividade musical cortesã que se
tem notícia na região. Sua atuação em Laje do Muriaé representou a chegada de uma
conquista da mente humana no campo da música, de fato, mas que, operando num
processo de colonialismo cultural, aparece também como o marco inicial de uma
conquista de mentes em torno do ideal musical de matriz europeia para a região.
Conclui-se, de maneira parcial e resumida, citando Terry Eagleton (2011), o seguinte:
embora os conceitos de cultura e civilização tenham seus fios políticos notadamente
emaranhados e travam, até certo ponto, uma guerra (fingida), em que a civilização
era no seu todo burguesa, enquanto a cultura era ao mesmo tempo aristocrática e
populista, nota-se que o emprego do termo “maestro” representa aqui a civilização,
enquanto o uso “mestre de banda” representa a cultura.
Chamo a atenção para o fato de que mesmo o mais destacado mestre de bandas na
região Noroeste Fluminense, José Carlos Ligiero (1930-2017), através de uma simples
análise dos rumos de sua carreira, pode ter demonstrado em algum momento certo
desconforto pela subalternidade imposta à sua prática musical como mestre de
banda. Provavelmente, sem saber que o seu desconforto foi induzido pelo processo
apresentado aqui. Isso significa que a presença de Masini foi introduzida e operou
nas memórias coletiva e individual como a verdadeira chegada de uma “música
civilizada”, como algo necessário e integrante, um progresso social da região, que
é possível de ser compreendido e analisado a partir de uma colonialidade do saber
musical; de um conhecimento moderno ocidental e seu paradigma apresentado
como verdade universal.

Referências bibliográficas

BHABHA, Homi. O entrelugar das culturas. In: COUTINHO, Eduardo (Org.). O bazar
global e o clube dos cavalheiros ingleses: textos seletos de Homi Bhabha. Rio de
Janeiro: Rocco, 2011. p. 80 – 95.

161
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

CASTAGNA, Paulo. Apostilas do curso de História da Música Brasileira. v. 15. São


Paulo: Instituto de Artes/UNESP, 2003.

DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação.


Bauru: EDUSC, 2002.

EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

LIGIÉRO, Manoel. O homem, o rio e a terra (o Rio Muriaé e a freguesia da Laje): traços
geográficos e históricos. [S. l.], 1960.

TATAGIBA, Adler dos Santos. O Acervo de José Carlos Ligiero. 2011. 116 f. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Música) — Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2011.

TATAGIBA, Adler dos Santos. Acervo José Carlos Ligiero e as fontes documentais
musicais da trajetória musical de tradição europeia na região Noroeste Fluminense
na segunda metade do século XIX: o caso do compositor Giuseppe Masini. In:
FONSECA, Modesto Flávio (Org.). III Encontro de Musicologia Histórica do Campo das
Vertentes. São João del Rey, 2019. p. 256–276.

162
Memória e Resistência da Lyra de Apollo: aspectos
histórico- musicais da banda campista no século XX
Lucas Nogueira Padrão
Universidade Estadual do Norte Fluminense

Resumo

Em finais do século XIX e durante a maior parte do século XX, as bandas musicais
figuraram significativamente o cenário musical da cidade de Campos dos Goytacazes
(RJ), localizada no Norte Fluminense. Dentre as diversas bandas de música em plena
atividade e operação no século XX, destaca-se a Lyra de Apollo, cuja sede situa-se
na Praça do Santíssimo Salvador, nessa cidade fluminense. Este trabalho aponta a
situação histórico-musical da banda durante o século XX.

Palavras-chave: Bandas de música. Corporações musicais. Memória musical.

Introdução

No século XX, as bandas de música figuraram como significativos atores no cenário


musical da cidade de Campos dos Goytacazes, participando de eventos religiosos
e civis, casamentos e festejos sociais. Não raramente, as bandas de música eram
também instituições culturais ligadas direta ou indiretamente à educação, ora
sendo parte integrante de escolas, internatos e orfanatos, ora sendo instituições
educacionais musicais da cidade. Uma das mais conhecidas é a Lyra de Apollo,
organização fundada no final do século XIX. Outras bandas também possuíam papéis
significativos nos eventos cívicos e culturais da cidade, como a Phil´Euterpe e a Nossa
Senhora da Conceição.
Durante grande parte do século XX, a Lyra de Apollo participou ativamente do cenário
cultural da cidade de Campos dos Goytacazes, contracenando com diversas outras
bandas e instituições culturais. Por ela, passaram músicos de expressão significativa,
como o maestro Manoel Baptista, então fundador da agremiação, e, posteriormente,
o maestro Juca Chagas, até 1930, quando se desentende com a direção e passa
a compor o quadro de músicos da Lira Conspiradora, agremiação rival da Lyra de
Apollo. A presença de tais músicos na instituição mostra seu relevo cultural nos
âmbitos musical e educacional.
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

A sua importância histórica está também diretamente ligada aos conceitos de


memória afetiva e tradição oral. Como as memórias coletivas são formadas a partir
dos saberes e afetividades que os indivíduos compartilham entre si nos grupos aos
quais pertencem, entende-se que as bandas de música constituem parte da memória
coletiva de uma comunidade. Em especial, a Lyra de Apollo não só contou com a
presença ilustre de inúmeros músicos ao longo do século XX, bem como funcionou
enquanto instrumento didático e de transmissão cultural da música na comunidade
campista; em outras palavras, manteve os saberes musicais vivos através da
memória coletiva da comunidade (GOMES; TEIXEIRA, 2019).
Aos inúmeros desafios referentes à manutenção dessas instituições sociais na
cultura urbana do século XXI, soma-se a escassez de recursos e de políticas públicas
de incentivo, o que não só ofusca, como promove a dissolução de tais agremiações,
embora o incentivo à cultura seja previsto pela legislação brasileira, bem como por
dispositivos internacionais. O caso da Lyra de Apollo é um desses inúmeros casos de
bandas centenárias e outros órgãos culturais que têm suas memórias paulatinamente
apagadas na sociedade.
Subentendendo-se que um dos papéis do Estado moderno é a manutenção
e preservação das identidades culturais por mecanismos e aparatos diversos,
sustenta-se a proposição de que a falta de incentivo cultural às bandas de música
e, em especial, à Lyra de Apollo, constitui não só uma discrepância com a legislação
interna brasileira, mas também com regulamentos internacionais.
Organizações como a Lyra de Apollo funcionam como repositórios memoriais da
sociedade e instrumentos de transmissão da cultura e tradição popular (GOMES;
TEIXEIRA, 2019). Nesse sentindo, pode-se entendê-las como parte significativa do
patrimônio histórico-musical de uma comunidade. Portanto, este trabalho busca
levantar a importância da banda no decorrer dos séculos XIX e XX, fundamentando-
se, para tal, em Rangel (1992) e Gomes e Teixeira (2019).

Fundamentação teórica

Entendendo a banda de música como um elemento integrante do repertório memorial


de uma comunidade, faz-se notar sua presença na sociedade como um instrumento de
transmissão e propulsão de saberes de diversos caráteres. Desse modo, é imprescindível
o desenvolvimento de políticas públicas que fomentem a manutenção desses
instrumentos culturais na sociedade. Nesse sentido, Gomes e Teixeira (2019) observam
que a resistência das bandas ao longo das décadas pode significar que a memória vem
sendo compartilhada no passar do tempo através da comunidade, constituindo, de
alguma maneira, uma espécie de memória coletiva. Por outro lado, é notório o fato de
que a atividade das bandas de música no município de Campos dos Goytacazes vem

164
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

declinando, principalmente por ausência de recursos. Especialmente, menciona-se o


caso da centenária Lira Conspiradora, que teve suas atividades didáticas interrompidas
em 2019, mas avança numa parceria musical com a Lira Guarany.
À Lyra de Apollo, acrescenta-se o fato de sua sede ter sido parcialmente destruída por
um incêndio no início da década de 1990; fato marcante, uma vez que o prédio teria
sido construído com o investimento dos próprios integrantes da agremiação. Ao longo
de quase 3 décadas, a sede da agremiação ficou praticamente inutilizável. Assim,
foram angariados recursos para o seu reparo. Finalmente, em 2018, foi construída
uma escada que permitia o acesso ao segundo pavimento do imóvel, o qual em 2020
completou 150 anos. Ao todo, foi gasto um milhão de reais em reparos e restauração
até o ano de 2020. Apesar disso, o restauro ainda não foi finalizado, e a instituição
conta com o apoio de beneficentes para a sua manutenção e continuidade.
Para a UNESCO (1982), a cultura é definida como um conglomerado homogêneo de
características que distingue uma sociedade. Paralelamente, a Declaração Universal
de Direitos do Homem entende que a cultura, bem como seu acesso e manutenção,
é direito a ser preservado. Dessa forma, a ONU inclui o acesso à cultura como um dos
elementos indicadores da qualidade de vida de uma sociedade. Nesse âmbito é que
o artigo 255 da Constituição Federal Brasileira de 1988 prescreve que o Estado deve
garantir o exercício de direitos culturais.
Ao resgatar a situação histórica das diversas bandas na cidade de Campos dos
Goytacazes, compreende-se que sua proliferação nos séculos XIX e XX é característica
da sociedade campista do mesmo período. Aliás, não só a campista, a brasileira
como um todo, de maneira que o Estado, ao menos em tese, deveria se ocupar da
manutenção e preservação dessas instituições, mantendo suas memórias e tradições
vivas na região.

Desenvolvimento da pesquisa

Segundo Rangel (1992), em 1879 existiam três bandas de música e uma corporação
musical de caráter orquestral, em Campos dos Goytacazes. Esses grupos eram a
Phil`Euterpe, a Lyra de Apollo e a Nossa Senhora da Conceição. O autor afirma que a
Lyra de Apollo surgiu em 1870, no dia 19 de maio, antes da Proclamação da República,
com as comemorações do fim da Guerra do Paraguai, sob o patronato de Nossa
Senhora da Glória. A agremiação teria como um de seus fundadores o então maestro
Manoel Baptista Pereira de Castro, que era também compositor de obras de cunho
religioso. Inclusive, a fundação e os primeiros ensaios foram realizados na residência
desse maestro, à época situada na hoje chamada Avenida Alberto Torres. Manoel
Baptista é o único membro fundador da Lyra de Apollo que é músico por profissão,
enquanto os outros fundadores tinham outras ocupações.

165
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

Além de Manoel Baptista Couto, outros 16 fundadores são citados nas fontes histórica,
sendo a maioria funileiros ou alfaiates. Alguns nomes constantemente citados são:
Rodolpho Antonio de Oliveira; Jozé Bento Alves; Lourenço Antonio Soares; Vicente
Lusquinha Junior; Bernardo Bento Alves; Belarmino Pedro do Rozario; Frederico
Leopoldo de Itaborahy; Antonio Jozé de Oliveira; Francisco Dominguez da Cruz.
Múcio da Paixão, dramaturgo e escritor campista, relata que:

[...] a Lyra de Apollo nasceu de uma palestra na rua da Constituição. Tiveram,


em certa noite de luar, os músicos Frederico Itaborahy, Manoel Baptista e
Rodolpho de Oliveira. Havia acabado a guerra do Paraguai, e a banda do 13
de Caçadores da Guarda Nacional [...] entrara em desorganização, ao que me
parece. Rodolpho e outros músicos tinham muitas vezes ido ao Rio de Janeiro
levar voluntários, e lá tinham ouvido tocar as melhoras bandas do tempo. Foi isso
que sugeriu a criação de uma forte banda em Campos (RANGEL, 1992)

Além do Manoel Baptista, outros regentes iniciaram atividades na banda antes da


inauguração de sua sede atual em 1914. Nomes como Luiz Cardoso Campista, Lourenço
Antonio Soares e José Ribeiro Ferraz. Rangel (1992) relata que, no século XIX, muitas
bandas eram constituídas de operários, não raramente sendo formadas bandas de
segmentos operários específicos, como barbeiros ou sapateiros. Especificamente
no caso da Lyra de Apollo, Rangel (1992) menciona ainda o fato de que a sede da
banda teria sido erguida pelas mãos dos próprios operários que, em sua maioria,
trabalhavam em canteiros de obras da cidade naquele período.
Dessa forma, as bandas eram não somente meros redutos de transmissão e
manifestação da cultura e tradição, mas também eram forjadas por diversas forças
sociais que agiam nos seus variados âmbitos promovendo o exercício da cultura
e transmissão da tradição musical através dos tempos. Vale lembrar que, inclusive,
diversos músicos importantes foram formados por essas bandas de música,
frequentemente obtendo notoriedade a nível nacional.
Salienta-se que, a princípio, muitos dos incentivos culturais e musicais estavam
ligados a particulares. Rangel (1992) menciona que uma fazenda do interior da cidade
de Campos contava com a presença de um órgão de tubos em uma pequena capela,
que teria sido destruído por uma tempestade ainda na transição do século XIX para
XX. Gomes e Teixeira(2019) mencionam ainda que o Pedro Leão executou um Te Deum
ao instrumento, quando houve a passagem do Ouvidor Geral do império pela região.
Tal fato não só demonstra uma espécie de interesse cultural geral da sociedade do
período, como levanta a suposição de que tais aparatos contavam com a presença
na região de músicos gabaritados, bem como de público interessado no gênero.
Nesse sentido, Gomes e Teixeira (2019) afirmam que, em Campos dos Goytacazes,
muitas liras e sociedades educacionais musicais foram patrocinadas por usineiros da
cana de açúcar. Citam, inclusive, que os donos da usina Santa Maria mantinham três

166
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

bandas de músicaaté a década de 70. Nesses espaços, eram atendidas principalmente


crianças e adolescentes oriundas de escolas e orfanatos da região. Muitos outros
benfeitores mantinham sociedades musicais nos mais diversos distritos da cidade,
como as hoje centenárias Lira Santo Amaro e Banda Nossa Senhora da Penha, esta
última mantida atualmente por funcionários da usina açucareira de Tocos. Também
se destacam outras bandas musicais na região, como as liras Conspiradora, Guarani,
Sociedade Musical Euterpe Sebastianense, entre outras.
As bandas musicais participavam não só de festejos religiosos, mas também de
eventos civis públicos e particulares, como casamentos e comemorações. Gomes e
Teixeira (2019) salientam a existência de um registro fotográfico em que o maestro
Juca Chagas rege a Lyra de Apollo na residência da senhora Maria de Queiróz. Tal
evento mostra o prestígio que a banda tinha na cidade nos idos anos de 1920, descrição
corroborada por Rangel (1992) quando menciona que as festas de aniversário da
Lyra de Apollo eram eventos bastante frequentados pela sociedade campista. Além
disso, o autor menciona que a banda teria se apresentado na rádio Tupy e na Feira
Internacional de Amostras, ambas no Rio de Janeiro e também no Palácio do Ingá,
em Niterói, no ano de 1937.
Gomes e Teixeira (2019) questionam como agremiações, como a Lyra de Apollo,
se mantêm até hoje, com notável escassez de recursos. As autoras entendem
que, se tais instituições fazem parte da memória cultural da cidade (e por que
não dizer da memória afetiva?), seria inquestionável a necessidade de resgate de
tais agremiações, como manutenção da identidade de um lugar. Em adição a tal
questionamento, menciona-se que diversos regulamentos nacionais e internacionais
preveem o exercício da cultura e sua manutenção como direitos essenciais ao ser
humano, devendo ser garantidos por políticas culturais.

Conclusões

Desde o século XIX, as bandas de música foram instituições de significativa


importância nas comunidades, independentemente de seu tamanho. Nesse ínterim,
surgiu, em Campos dos Goytacazes, a Lyra de Apollo, que, em conjunto com outras
agremiações musicais, dominou o cenário musical da cidade, especialmente em
finais do século XIX e início do século XX. A importância da Lyra de Apollo está ligada
não só ao espaço que a instituição ganhou ao longo dos anos, mas também pela
presença marcante em seu quadro de pessoas, de diversos músicos de renome na
sociedade campista.
Além disso, a relevância da banda está, até os dias de hoje, interligada também aos
festejos cívicos, além das atividades didáticas caracterizadas significativamente pela
tradição oral, pelas quais osdiversos participantes da banda transmitem experiências

167
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS

e conhecimento musical aos demais. Sobre esse aspecto, delinea-se a proposição


final: apesar do descaso e da ausência de políticas públicas eficientes, as memórias
da banda persistiram durante décadas a fio.
As atividades da Lyra de Apollo não estão deterioradas; pelo contrário, são exatamente
as aulas, os ensaios e as apresentações que a mantêm viva ao longo dos séculos.
Essa é a vitalidade do grupo. O que se deteriorou foi o prédio, portanto, com tudo isso,
o pior quadro que podemos identificar é a ausência de políticas que apoiem esses
grupos culturais.

Referências bibliográficas

GOMES, Karina Barra; TEIXEIRA, Simonne. Tradição e Modernidade: as bandas civis em


campos dos goytacazes. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 21, n. 11,
p. 231-252, 2019. Disponível em: https://periodicos.furg.br/rbhcs/article/view/10829.
Acesso em: 12 jul. 2021.

RANGEL, Vicente Marins. Recortes da Memória Musical de Campos (1839-1965):


Subsídios Musicais para a construção de uma História da Cultura Campista.
Itaperuna, Rio deJaneiro: Damadá Artes Gráficas, 1992.

168
GT 6

MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE:


DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Coordenadoras(es): Marcio Luiz Mello (Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ), Nureane
Menezes (Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ) e Raquel Gomes (Instituto de Estudos
Sociais e Políticos/UERJ).

No fim de 2019, o mundo foi surpreendido pela chegada de um novo vírus, o SARS-
CoV-2, que desde então tem provocado (ou pelo menos deveria estar) mudanças
e reflexões sobre nossa maneira de estar neste mundo. Nesse sentido, a música
se tornou uma forma de expressão para algumas pessoas, a fim de cruzarem as
fronteiras de suas casas no isolamento social; para outras, um exercício de ensino e
aprendizagem ou uma forma de manter sua saúde mental em tempos pandêmicos.
Tomamos a música aqui não somente como som, compreendemos os aspectos
poéticos e sociais envolvidos nesses fazeres musicais. Com isso, ganham sentido as
pesquisas que relacionam música com aspectos rituais, étnicos e culturais de grupos
sociais distintos, perpassando, ainda, marcadores sociais como os de raça, gênero
e classe social. Assim, este GT tem como objetivo propor um espaço de discussão,
trocas e interlocuções a partir de uma perspectiva antropológica da música em suas
diversas formas de expressão. O GT busca reunir estudantes e pesquisadores das
ciências humanas, das artes e das ciências da vida que estejam desenvolvendo ou
tenham concluído pesquisas e/ou relatos de experiências que, através de abordagens
teórico-metodológicas diversas, se dedicam a compreender os diferentes diálogos
possíveis entre música, saúde, ensino e o nosso modo de estar no mundo, seja no
atual contexto da Covid-19 ou em uma perspectiva pós-pandemia.
Conexões entre o Ensino de Música em Aulas On-
Line em Grupo e a Saúde Mental dos Discentes:
diálogos no “novo normal”
Harue Tanaka
Universidade Federal da Paraíba

Resumo

Esta discussão envolve as bases epistemológicas e as estratégias pedagógicas


adotadas nas aulas de música em grupo, via ensino remoto, da Universidade Federal
da Paraíba (UFPB), durante o período de mar./2020 a ago./2020, nas disciplinas de
graduação e em nível de extensão universitária, bem como na oficina de Consciência
Corporal para Performers Musicais (SIGEventos-UFPB). Há décadas observamos
que alguns discentes já demonstravam o aparecimento de transtornos mentais no
campo de estudo da música, no âmbito acadêmico e da extensão, agravados após
a deflagração da pandemia do Covid-19, o que nos levou a afinar nossos sensores.
Os transtornos mentais (orgânicos, de humor, de ansiedade etc.) são de vários
tipos, sendo os de ansiedade os que mais foram detectados entre os discentes.
Pensando em minimizar os nefastos efeitos na saúde mental dos alunos ocasionados
pela pandemia, fizemos apenas uma breve pausa para repensarmos as novas
estratégias que utilizaríamos. O presente relato procurou discutir sobre como os
recursos tecnológicos, aliados a novos parâmetros metodológicos, viabilizaram a
manutenção dos laços educativos e afetivos dos envolvidos, bem como do interesse,
da motivação e da permanência dos discentes nas aulas. Mormente, quando houve
uma imperiosa e eminente necessidade de adaptabilidade a novas configurações,
um pensamento propositivo, positivo e resolutivo foi de suma importância para
mantermos a saúde mental, a atenção e a criatividade eficientemente, diante,
inclusive, dos conhecimentos abordados, tais como meditação, consciência sobre
o corpo e a mente, práticas holísticas, discutidos durante a oficina oferecida às
comunidades interna e externa da UFPB.

Palavras-chave: Aulas on-line. Saúde mental. “Novo normal”. Consciência corporal


para performers musicais. Aprendizagem musical em grupo.
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Introdução

O presente relato de experiência concentra-se nas discussões e nos relatórios finais


e individuais da disciplina de graduação de Instrumento Complementar Piano (GRAD
— IC-PIANO), bem como do curso de extensão Aprendizagem do Piano em Grupo
(APIG), durante o período de mar./2020 a jul./2020. Considera-se, ainda, o conteúdo
programático da oficina de Consciência Corporal de Performers Musicais, proposta
no Sistema Integrado de Gestão de Eventos (SIGEventos — UFPB), que aconteceu entre
09 de junho e 11 de agosto (período suplementar 2019.4) de forma remota, com aulas
síncronas e assíncronas.
Há anos observamos que as situações pessoais e da vida cotidiana dos discentes
refletiam no modo de atuação em termos da performance e do aprendizado durante
as aulas. Situações como baixa crença de autoeficácia (BANDURA, 1997 apud NUNES,
2008), transtornos mentais (orgânicos, de humor, de ansiedade etc.)1, autismo, TDAH,
para citar apenas alguns, foram alguns dos problemas que detectamos. Em relação,
principalmente, aos transtornos mentais, os de ansiedade, entretanto, foram em
nossas observações os mais detectados.
Inclusive, para compreender atitudes e dificuldades no aprendizado dos discentes,
foi necessária uma ação conjunta, na maioria dos casos, além de um atendimento
individualizado. Conjunta no sentido de unir esforços e investigar as causas de
determinadas situações, quer seja entre os amigos e amigas dos discentes, quer seja
diretamente com os próprios, sempre nos colocando à disposição de uma “ouvidoria
libertária” (SORRENTINO, 2012, p. 445-446), dentro de uma pedagogia do acolhimento
com dialogicidade. Propositivamente, utilizamos as estratégias metodológicas
baseadas, portanto, no afã de obter resultados positivos em relação às aulas on-line
com uma nova configuração dentro das relações interpessoais.

Fundamentação teórica

Neste esteio, propusemos alternativas metodológicas, de modo criativo, seguindo


um pensamento que se norteia pela linha da pedagogia aberta, do ponto de vista
epistêmico, a qual, conforme propugna o Fórum Latino-Americano de Educação
Musical (Fladem), nas palavras de Vicenzo, é “uma pedagogia da subjetividade, uma
pedagogia da participação. Uma pedagogia que esteja permanentemente lendo
quais são as necessidades de aprendizagem das pessoas ou dos grupos com os
quais trabalhamos” (VICENZO, apud SIMONOVICH, 2018, p. 66).

1
Sobre saúde mental. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/profae/pae_cad7.
pdf. Acesso em: 3 jul. 2021.

171
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Toda tarefa pedagógica implica uma definição filosófica ou pelo menos


ideológica que a fundamenta, tanto em seus objetivos como em suas estratégias
de trabalho. [...] Eleger uma metodologia de trabalho implica fundamentos
filosóficos claramente solidários com os que a disciplina em particular requeira
(SIMONOVICH, 2018, p. 39).

Em linhas gerais, o eixo epistêmico empreendido nesta experiência nos remeteu a


outras ideias que se interconectam com a questão do profissional reflexivo (SCHÖN,
2000). Além disso, consideramos articulações pedagógicas observadas entre
mestre(a) e discípulo(a), educador(a) e educando(a), essencialmente propostas
na abordagem PONTES (OLIVEIRA, 2004), principal suporte teórico de nossa tese
(SORRENTINO, 2012).
Assim, em uma via de mão dupla, percebe-se que estamos lidando com articulações
pedagógicas em cujas relações não há só quem ensina e quem aprende, e sim
aprendizagem mediatizada pela visão de mundo de cada, consoante os próprios
ensinamentos freirianos. Do ponto de vista do design específico em nossa tese,
demonstramos, através de um quadro, os principais tópicos que traduziriam os
resultados provindos das observações sobre as articulações pedagógicas intra
e intergrupais, a partir das análises dos ambientes e de sua aplicabilidade e
funcionalidade (realização das PONTES).

O princípio em torno das PONTES é de que cada encontro educativo desenvolvido,


pode até ser similar a outro, mas nunca é exatamente o mesmo: as situações
são únicas. Para lidar com estas situações formais ou informais, os professores
de música podem, aprendem e praticam o design, a concepção, a prática,
a avaliação de diferentes PONTES ou estrutura de ensino/aprendizagem, que
são adequadas a cada situação, assim como desenvolvem uma postura de
flexibilidade natural (OLIVEIRA, 2004, p. 85 apud SORRENTINO, 2012, p. 142-143).

Um dos aspectos produzidos na tese, portanto, foi a formulação de pontos de


contato entre o pensamento de Donald Schön e de Oliveira, que definiram alguns
dos parâmetros que passamos a seguir largamente do ponto de vista teórico-
metodológico. Assim, o termo “design” corresponderia, de modo sintético:

[...] a uma linha teórica e de pensamento na qual se pretende seguir um


projeto construído a partir da natureza do professor (a pessoa), do ambiente
(o contexto cultural), voltados para atender às necessidades do público (os
alunos), orientada por intenções ou objetivos visando atingir metas didáticas
musicais funcionalmente eficazes. Tais elementos fariam parte, portanto, de
modo sintético de um programa pedagógico musical (SORRENTINO, 2012, p. 143).

172
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

1. Discussão sobre saúde mental nas aulas on-line: três momentos


no “novo normal”

O presente relato foi subdividido em 3 etapas determinadas pelas ações diversificadas,


porém no interior de uma unidade de perfis em três momentos distintos: a) na
graduação, nas disciplinas de Instrumento Complementar I e II; b) na extensão, no
curso de Aprendizagem do Piano em Grupo (APIG); c) no SIGEventos da UFPB, aberto às
comunidades interna e externa da universidade, que oferece diversos eventos (cursos,
oficinas, palestras, lives etc.). Todas as práticas foram pensadas a partir de propostas que
procuraram atender a um sentido educativo complementarmente à formação humana
e universitária; os eventos ocorreram dentro do ensino remoto emergencial (ERE).
Do primeiro grupo, lidamos com a ausência de meios para uma tentativa de
aproximação dos discentes com as aulas de piano on-line, cuja proposta suscitou a
indagação: “aulas de piano sem piano?”. Todos os métodos propostos e as atividades
musicais foram pensados no sentido de aproximar os discentes das tecnologias
da informação e comunicação (TICs), potencializando a utilização de interfaces e
recursos que atraíssem os discentes que considerassem inviável uma aula de piano
on-line, sem um instrumento fisicamente acessível.
No segundo grupo, havia turmas de extensão — abriu-se a oportunidade de receber
discentes de outros estados da federação, através do processo seletivo virtual —,
com a certeza de que com a pandemia surgiram novos interesses e motivações
que ocasionaram, inclusive, uma mudança no perfil dessa demanda para novos
aspirantes ao aprendizado do piano. Além disso, apresentou-se um novo modelo
de aula, não mais presencial, aos antigos discentes do APIG, o que, mais uma vez,
comprovou que conseguimos manter o interesse e o envolvimento dos discentes de
modo produtivo e participativo, a despeito do desafio de dar aulas on-line.
No terceiro grupo, a proposta de oficina se coadunou de modo mais contundente
com o relato, em que percebemos que houve uma busca pelos conteúdos
conectados a questões do corpo e da mente (saúde mental) em função de uma
educação somática. Segundo Costa, Santos e Rodrigues (2019), corpo somático é
o corpo sensível, pensante, subjetivante. E a educação somática é tida como um
conjunto “de técnicas corporais e processo relacional que tangencia nossa biologia,
consciência e o meio ambiente”, capaz de ser implementada nas escolas “com fins
pedagógicos e conseguir constituir-se como meio de inclusão das diversidades
corporais, comportamentais e de aptidão física”. Segundo Bois, a educação somática
pode ser vista, ainda, como um novo paradigma a ser adotado.

A Educação Somática emerge de um processo evolutivo que se constrói sobre a


base de uma pesquisa experiencial. A experiência corpórea situa-se no coração
desse novo paradigma, que começa a encontrar seus títulos de nobreza nos
meios universitário e acadêmico (BOIS, 2008, p. 9 apud BOLSANELLO, 2011, p. 307).

173
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Nessa vertente, apresentamos algumas linhas de pensamento ocidental, dentro da


educação somática, em busca de uma consciência corporal e mental, e outras, a
exemplo o yoga e o t’ai chi ch’uan, práticas orientais. O yoga une práticas físicas
e meditativas que envolvem força e flexibilidade para a saúde; o t’ai chi ch’uan
é também, além de prática, uma arte marcial chinesa que trabalha o foco e a
concentração. Além dessas, a meditação, por exemplo, do ciclo de meditação de 21
dias do centro Deepak Chopra2.
Dentro da educação somática, fizemos menção aos trabalhos de Lily Ehrenfried,
Thérèse Bertherat, Gerda Alexander, Mathias Alexander e Moshe Feldenkrais, que, de
fato, partiram de suas próprias experiências, abrindo-se à intuição, a fim de elaborar
métodos, pensando o corpo como meio de afetamento à expressão do ser humano
como um todo.
De modo geral, existe um aspecto comunal dentro das estratégias pedagógicas
adotadas como eixo, do ponto de vista metodológico, que foi a prática deliberada,
procurando um caminho mais motivador e prazeroso possível, mesmo porque a
ideia era atrair os discentes para as práticas, suplantando, inclusive, os eventuais
problemas de acesso à internet e do modo de ensino remoto. Segundo Ericsson,
Krampe e Tesch-Römer:

A prática deliberada constitui-se de um conjunto de atividades e estratégias de


estudo, cuidadosamente planejadas, que têm como objetivo ajudar o indivíduo
a superar suas fragilidades e melhorar sua performance (ERICSSON; KRAMPE;
TESCH-RÖMER,1993, p. 368 apud SANTIAGO, 2006, p. 53).

Conclusões

Os resultados do presente relato estão adstritos aos impactos causados positivamente


nos discentes, conhecidos através dos relatórios escritos individualmente, ao final das
disciplinas, e apresentados oralmente. Superando as expectativas iniciais em relação
à efetividade das aplicações das estratégias pedagógicas, entendemos que o eixo
epistêmico proposto fez-se presente centrado na possibilidade de criar situações de
ensino e aprendizagem satisfatórias do ponto de vista educativo.
Para além de aulas de música ou de instrumento, houve um fim imediato: o
comprometimento com um plano de ensino que se preocupou não apenas com a
parte instrucional dos conteúdos como substrato do processo educativo, mas com
uma formação humana e mesmo visando uma proposição maior dos próprios direitos
humanos. Nesse sentido, seguimos a sugestão da Declaração de Princípios do Fórum
Latino-Americano de Educação Musical (FLADEM), que versa: “1. A educação musical é
2
Ciclo de meditação. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UOiRz64QIcc. Acesso em:
07 out. 2021.

174
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

um direito humano, presente ao longo de toda a vida, dentro e fora do âmbito escolar.
A música deve estar a serviço das necessidades e demandas individuais e sociais”3
(SIMONOVICH, 2019, p. 15). Entendemos tal proposição como um aspecto norteador da
experiência vivida.
É importante salientar que as estratégias pensadas foram fruto de um enfrentamento
ao “novo normal”, diante da crise que atingiu todas as esferas da sociedade,
impactando sobremaneira os processos educativos, a própria vida e a saúde mental
de discentes e docentes.

Referências bibliográficas

BOLSANELLO, Débora. A educação somática e os conceitos de descondicionamento


gestual, autenticidade somática e tecnologia interna. Revista Motrivivência,
v. 23, n. 36, p. 306-322, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/
motrivivencia/article/view/2175-8042.2011v23n36p306/19656. Acesso em: 07 out. 2021.

COSTA, Fábio Soares da; SANTOS, Andreia Mendes dos; RODRIGUES, Janete de
Páscoa. A educação somática como perspectiva inclusiva nas aulas de educação
física escolar. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 9, n. 1, 2019. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/rbep/a/9Dnf5mWyGvk5vk7BXgdgrXw/?lang=pt. Acesso
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NUNES, Maiana Farias. Funcionamento e desenvolvimento das crenças de auto-


eficácia: uma revisão. Revista Brasileira de Orientação Profissional, São Paulo, v.
9, n. 1, jun. 2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1679-33902008000100004. Acesso em: 25 jul. 2021.

OLIVEIRA, Alda de Jesus. Pontes educacionais em música: relação entre o formal e


o informal. In: Seminário Nacional de Arte e Educação, 2004. Montenegro. Anais [...].
Montenegro: FUNARTE, 2004.

SANTIAGO, Patrícia. A integração da prática deliberada e da prática informal no


aprendizado da música instrumental. Per Musi, Belo Horizonte, n. 13, p. 52-62. 2006.
Disponível em: http://musica.ufmg.br/permusi/permusi/port/numeros/13/num13_
cap_04.pdf. Acesso em: 20 jul. 2021.

3 1. La educación musical es un derecho humano, presente a lo largo de toda la vida, dentro del
ámbito escolar y fuera de él. Trabaja desde la música poniéndola al servicio de las necesidades y
urgencias individuales y sociales.

175
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

SCHÖN, Donald. Educando o profissional reflexivo. Tradução de Roberto Cataldo


Costa. Porto Alegre: Artmed, 2000.

SIMONOVICH, Alejandro (org.). Apertura, identidad y musicalización: bases para


una educación musical latinoamericana. 2. ed. Buenos Aires: Foro Latinoamericano
de Educación Musical-Argentina Asociación Civil, 2009.

SORRENTINO, Harue Tanaka. Articulações pedagógicas no coro das Ganhadeiras de


Itapuã: um estudo de caso etnográfico. 2012. 550f. 2. v. Tese (Doutorado em Música)
— Programa de Pós-graduação em Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2012. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/12585. Acesso em: 07 out.

176
O Papel da Música na Sindemia

Nureane Menezes de Souza


Fundação Oswaldo Cruz

Resumo

Este trabalho apresenta algumas reflexões, ainda iniciais, da minha dissertação de


mestrado, cujo objetivo é estabelecer uma conexão entre música, ensino e promoção
da saúde, entendendo as limitações do período pandêmico e seus principais desafios.
Dentro desta perspectiva sindêmica, analisaremos e discutiremos Cienciarte, pesquisa
baseada em arte (Art Based Research – ABR), ensino não formal, promoção da saúde
e, consequentemente, saúde mental, avaliando também o quanto a sociedade, a
política e a cultura foram e continuam sendo afetadas nesse período.

Palavras-chave: Música. Ensino. Saúde. Pandemia. Sindemia.

Introdução

A pandemia da Covid-19 teve seu início em 2019. Nesses dois anos, tivemos
que encontrar maneiras não somente de sobreviver, mas também de viver com
o chamado “novo normal” que nos foi imposto da noite para o dia. Esse termo e,
consequentemente, toda essa mudança e adaptação já dominam o dia a dia e os
pensamentos de todos nós, habitantes do planeta Terra.
A pandemia, portanto, passou a ser parte integrante e fundamental de nossas
ações e reações, pois tudo que fazemos em nossa vida deve ser pensado e analisado
considerando a pandemia. Isso se dá desde o uso da máscara ou um abraço
apertado em um ente querido até mudanças drásticas em planos estruturais na
sociedade, incluindo festas tradicionais que foram canceladas, como o Carnaval
no Rio de Janeiro, reconhecido internacionalmente por ser uma festa popular que
costumeiramente arrasta multidões.
A pandemia, ou sindemia, termo este usado muito frequentemente de maneira
relevante por alguns pesquisadores dessa doença, surge na década de 90 com o
antropólogo médico americano Merrill Singer. Segundo ele, a sindemia se estabelece
onde “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores
do que a mera soma dessas duas doenças”. Em 2021, pudemos associar o termo
sindemia ao coronavírus, mais especificamente a Covid-19, já que várias outras
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

doenças associadas e, inclusive, problemas sociais foram instalados na sociedade


como um todo, individual e coletivamente.
Pensando nisso, entendemos que a Covid-19 não trouxe apenas fatores associados
à saúde física, mas também consequências imediatas na saúde mental, incluindo
mudanças vertiginosas no social, na política e na cultura. Todos os caminhos que
encontramos para estabelecer um diálogo entre possíveis ações atrelando a arte
ao ensino perpassam por questões voltadas à saúde e, neste momento, interagem
diretamente com essa sindemia.
Diante dessa situação, encontramos uma questão inesperada relacionada ao ensino
e à cultura nas escolas, a qual, em boa parte dos casos, costumava ser bastante
complicada e pouco trabalhada. Agora, com o advento da pandemia, tornou-se ainda
mais difícil entender os caminhos possíveis de se trabalhar a arte, neste caso a música,
como objeto de estudo, fazendo parte integrante do ensino e da melhora da saúde.
O caminho idealizado inicialmente foi a elaboração de oficinas dialógicas em pré-
vestibulares comunitários, tendo a música como estratégia de ensino de história.
Vale considerar ainda o importante papel dessa expressão artística no exercício da
empatia entre docentes e discentes, uma vez que a arte aprimora a aproximação em
sala de aula e fora dela e nos leva a lugares que não podemos mensurar.
Temos, portanto, um desafio diário e contínuo enquanto artistas, professores e
pesquisadores de saúde pública, na tentativa de estabelecer ou talvez encontrar
caminhos viáveis para que a música seja um lugar de conexão, empatia, refúgio e
aprendizado neste período pandêmico.

Alguns elementos para a análise

Em termos de sociedade, análises feitas por historiadores, cientistas políticos,


sociólogos e estudiosos do tema em geral mostram que estamos diante de uma
sociedade alienada, invadida em diferentes domínios pela corrupção, o que nem
sempre provoca uma reação enérgica por parte da população, pelo contrário,
por vezes temos a impressão de uma certa inércia diante dessa condição. Em
um país com tamanha desigualdade social, em muitos casos, essa falta de ação
é a consequência mais imediata da falta de educação para todos, ou da falta de
interesse, principalmente em tempos em que a frase “política não se discute” parece
ter voltado à moda.

O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação,
a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era
quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação. (...).
Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes
transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era
bilontra... (CARVALHO, 2019, p. 160).

178
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Além disso, e já carregando tantos problemas sociais, ainda percebemos a


necessidade de algumas personagens do poder público tentarem, desde a ditadura,
interferir nas questões ideológicas e pedagógicas da escola. Algo como enfraquecer
as escolas, que fazem crianças e adolescentes pensarem. Sendo assim, diante das
contradições brasileiras, nossa luta ainda continua sendo na escola, como afirmava
Florestan Fernandes (1976).
Quanto à educação, conceito central para este trabalho, vale iniciar a discussão
salientando que essa palavra possui uma gama de significados, muitos deles
bastante complexos. Toda essa jornada que permeia o aprendizado como força
geradora de conhecimento tem início no contato da criança com os pais e familiares
e com o mundo ao seu redor. Todo seu conhecimento intelectual será resultado de
sua interação com o meio e do modo como fará sua própria construção individual
da sua experiência enquanto indivíduo. Portanto, é preciso estar consciente de que a
criança e o jovem não completam seu aprendizado apenas em sala de aula, mas sim
todo seu conhecimento será reflexo da sociedade em que vive.

As melhores aulas continuarão sendo letra morta se não se apoiarem sobre a


própria experiência, assim como a inteligência das leis da física é impossível sem
a manipulação de um material concreto. Quanto à experiência da solidariedade,
é necessário que a criança a refaça por si mesma, pois as experiências dos
outros – no terreno espiritual ainda mais que no terreno material – nunca
instruíram ninguém e, por uma fatalidade da natureza humana, cada nova
geração é convocada a reaprender o que os outros já tinham descoberto por
conta própria (PIAGET, 1998, p. 66).

Piaget (1998) em sua fala caracteriza a educação como um conjunto de experiências


contidas em todas as esferas da sociedade, não apenas em uma sala de aula. A
educação, portanto, está inserida nos âmbitos formal, não formal e informal. A
educação não formal será utilizada como um dos recursos de minha pesquisa,
neste caso sendo uma tentativa de decifrar o sistema de convivência em sociedade
e sua organização, suscitando, a partir da educação, um aperfeiçoamento dessa
convivência, pois, “para [que o indivíduo] progrida rapidamente, é necessário
que a vida prática e a vida social estejam intimamente misturadas à sua cultura”
(MONTESSORI, 1972, p. 38).
A reflexão proposta por Montessori (1972) pode também ser percebida nos preceitos
defendidos por Maria da Glória Gohn (2014), em seu texto sobre educação não formal.
Gohn (2014) enfatiza a relevância da vivência do que se estuda, mas não apenas em
livros ou textos que falem sobre o assunto estudado; “não basta ficar lendo eternamente
sobre as obras de arte, é preciso vê-las, contemplá-las” (GONH, 2014, p. 46).
Nossa educação tende a ser pautada em abordagens de ensino tradicional, isso
dificulta o processo de aprendizagem. O ensino sendo distribuído de maneira uniforme

179
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

nas escolas não leva em consideração a experiência de vida e as diferentes formas de


aprendizado e de desenvolvimento. Na maioria das vezes, não leva em consideração
o ensino não formal e o informal; a educação não formal é definida como a que
proporciona a aprendizagem de conteúdos da escolarização formal em espaços
fora dos muros escolares, com atividades que sejam desenvolvidas de forma bem
direcionada. E a música pode ser um instrumento de conexão do ensino não formal
e a saúde na pandemia.
Nesse contexto, podemos associar nesta pesquisa, que abarca educação não
formal, Cienciarte e Pesquisa Baseada em Arte, a música a um caminho possível para
encontrar essa conexão. A linha de pesquisa chamada Cienciarte é fundamental
para entender as sociedades atuais, contribuindo também para a transformação,
o enriquecimento do ensino e o desenvolvimento da sociedade, pois reconcilia a
arte e a ciência, fazendo com que elas assumam a contribuição para a inovação da
educação. Isso possibilitará aos docentes e discentes desenvolverem novas intuições
e compreensões através da incorporação do processo artístico a outros processos
investigativos, ajudando na argumentação para discursos individual e coletivo com
abordagens de arte, ciência, atividades humanas e viabilizando questões relacionadas
à inter e à transdisciplinaridade.
A abordagem metodológica da ABR (Art Based Research), aliada a conceitos de
Cienciarte, possibilitou um relevante incentivo à criatividade, à busca por conhecer o
novo, além de unir o cientista e o artista ao longo desses caminhos. Com a descoberta
de novas possibilidades de aprendizagem, conseguimos entender o que é aprender
a aprender. A educação não formal coloca o indivíduo mais próximo de sua cultura e
possibilita que ele analise, produza ou apenas contemple as várias artes. Naturalmente,
isso passa a fazer parte do cotidiano, sendo um facilitador na aprendizagem, e será
um recurso para que façamos uma conexão entre as estruturas sociais e culturais e
as políticas vigentes.
Freire (2003) entende a necessidade dos discentes de criarem as possibilidades para
a produção ou construção do conhecimento pelos docentes, num processo em que o
professor e o aluno não se reduzem à condição de objeto um do outro. Entende, ainda,
que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua própria
produção ou a sua construção” (FREIRE, 2003, p. 47), portanto o conhecimento precisa ser
vivido e observado pelo docente, ciente de seu papel nessa construção de conhecimento.

Desenvolvimento da pesquisa

Na pandemia, podemos observar o quanto toda a estrutura relativa à saúde


foi modificada. Nesses dois anos de Covid-19, percebemos o quanto a saúde da
humanidade foi diretamente afetada, mas não só a saúde física, como também a saúde

180
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

mental e todo o processo sindêmico envolvido. Reinvenções profissionais, relações


afetivas, mudança obrigatória de casa, tudo foi sendo modificado, reestruturado e
recomeçado, de forma talvez totalmente diferente da pensada anteriormente.
As relações interpessoais foram totalmente alteradas. De um dia para o outro,
tivemos que parar de nos abraçar e ainda ter receio de respirar o mesmo ar ao lado
do indivíduo que talvez não pudesse ficar parado em casa esperando a pandemia
passar. Casos de depressão, angústia, estresse começaram a ser cada vez mais
frequentes, e os que puderam ficar em casa tiveram que lidar com seus monstros
mais ferozes e destruidores de nossa sanidade mental.
Nesse momento, começamos a usar a arte como forma de “apego” para tratar
as doenças provocadas pelo isolamento. A classe artística, tão prejudicada nesse
período, começou a tentar reavivar essa luta pela profissão e, consequentemente,
ajudou, de forma remota, a manter a sanidade desses indivíduos isolados.
A música, companheira da humanidade desde sua existência, assim como a linguagem,
é forma de expressão de uma comunidade. A arte na pandemia de coronavírus teve
papel fundamental, considerando termos passado pelos maiores desafios do século
XXI. A música, portanto, é carregada de emoções e subjetividade e é usada na saúde
como forma de promoção e estímulo da memória, entre outros objetivos.
A elaboração de minha dissertação tem caído em hiatos e questionamentos quando
as ferramentas possíveis de serem utilizadas para a obtenção de um resultado
satisfatório. Oficinas dialógicas, ou oficinas trabalhando o ensino não formal usando
a história e a arte para discutir saúde, precisam ser definidas para a utilização
apropriada dos resultados.
A pesquisa será realizada em pré-vestibulares comunitários com recursos da
educação não formal e auxílio da ABR. Lá, provocaremos um ambiente inspirador
utilizando a música como recurso para o ensino. A viabilidade, hoje, está em como
conseguiremos executar essa pesquisa, de forma remota ou presencial. Oficinas
dialógicas utilizando a história do Brasil e a música popular brasileira serão
empregadas para desenvolver a pesquisa.

Conclusões

Este trabalho teve como principal função fazer uma conexão entre o ensino, a música
e a saúde, para, assim, ultrapassar os desafios impostos pela sindemia neste período.
Desde o delay em canções que não podem ser mais tocadas em grupo na forma
remota até a produção da música em comunidade e toda a emoção provocada
possuem caminhos tortuosos para se chegar a um resultado.
Em qual momento podemos usar o remoto a nosso favor? Já que a arte e a música
propriamente dita precisam desse contato com o outro, fazer arte com o outro.

181
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Emocionar o outro pela tela de um computador é relativamente mais acessível, mas


fazer com que esse indivíduo participe ativamente desse momento emocional é o
que pode permear a nossa investigação, encontrando as trajetórias para chegar a
esse resultado. Como conduzir esse indivíduo ao acesso à arte e estabelecer uma
lógica plena entre a saúde e o ensino?
Como entender o Brasil e por onde podemos começar a lutar? O que fica desse
questionamento? A única alternativa viável seria entender que não é possível
começarmos a pensar em uma efetiva mudança, salvo pela educação popular ou
educação das bases. No caso específico desta dissertação, iremos ao encontro de
jovens e adultos que não tiveram melhores condições de ensino e se apoiaram no
recurso do pré-vestibular comunitário para conseguirem uma vaga na universidade,
sonhando com um futuro melhor e encontrando em nós, professores desse segmento,
um apoio para conseguir esse intento.
Levando em consideração questões sociais e políticas, é necessário pensar em
associar a arte ao contexto de melhoria das condições de ensino, auxiliando em
maneiras didáticas para o aprendizado. Além disso, é essencial entender a música
como estratégia de aprimoramento do aprendizado e primazia ou promoção das
saúdes psicológica e mental. Isso se dá ao identificarmos a relevância do ensino e
da saúde em regiões de carência ou falta de acesso aos nossos processos cultural
e intelectual, considerando que em nosso país poucos recursos para tal empreitada
são oferecidos, além de estarmos muito distantes de conseguir um acesso igualitário
de toda a estrutura remota.
Além disso, fica explícito nesta pesquisa que, além de todos os pontos já agregados
intelectual e sensitivamente, o acesso à música popular brasileira é um importante
caminho para a conexão de jovens com a cultura. As oficinas dialógicas são um
relevante recurso para criar lugares e espaços de subjetividade, criatividade e
reflexão, além de promover saúde, inter e transdisciplinaridade, excelentes recursos
para aproximação do jovem da cultura, essencial para formá-lo cidadão.

Referências bibliográficas

CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não
foi. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.

GOHN, Maria da Glória. Educação não formal, aprendizagens e saberes em


processos participativos. Investigar em educação, v. 2, n. 1, p. 35-50, 2014.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação


sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

182
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 2003.

MONTESSORI, Maria; LANE, Helen; JOOSTEN, Albert Max. Educação e paz. Chicago:
Regnery, 1972.

PIAGET, Jean. Sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.

183
Musicoterapia em Grupos com Autismo:
relato de experiência
Pedro Bicaco
Faculdade Teológica Batista de Brasília
Rosangela Mary Delphino
Faculdade Teológica Batista de Brasília
Sarah Cristina Costa Pereira
Faculdade Teológica Batista de Brasília

Resumo

Este artigo tem o objetivo de apresentar experiências de sessões de musicoterapia


em grupo com pessoas com autismo, realizadas na Associação Brasileira de Autismo,
Comportamento e Intervenção (ABRACI-DF). A improvisação e a recriação musical
foram as principais técnicas utilizadas, partindo de pressupostos da abordagem
fenomenológica e do Modelo Benenzon de musicoterapia como base teórica.
Concluiu-se que a musicoterapia em grupo pode auxiliar nos desenvolvimentos
emocional, social e expressivo desses indivíduos.

Palavras-chave: Musicoterapia. Grupo. Autismo.

Introdução

A partir de atendimentos individuais realizados em 2019 com uma família ligada


à Associação Brasileira de Autismo, Comportamento e Intervenção (ABRACI),
localizada no Distrito Federal, os autores tiveram contato com essa associação e,
desde então, tiveram um desejo de realizar atendimentos de musicoterapia com
esse público. A ABRACI-DF é uma instituição filantrópica, administrada por um grupo
de pais de crianças com autismo, os quais participaram de uma pesquisa sobre
desenvolvimento humano realizada na Universidade de Brasília (UnB), em 2002. Esse
grupo passou a se reunir na instituição para estudar a teoria e a prática das questões
ligadas ao autismo. Tais encontros começaram a ficar conhecidos, e outros pais se
interessaram pelas reuniões, procurando aprender mais a respeito do assunto. Surge,
então, a ideia de fundar uma associação com o intuito de atender semanalmente as
crianças, por um preço acessível e remunerando os profissionais psicólogos por meio
de uma taxa associativa.
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Inicialmente, não havia uma sede, por isso os atendimentos eram realizados de
forma itinerante pelo Distrito Federal. Em 2012, a ABRACI-DF, em parceria com a
Confederação Brasileira de Trabalhadores Circulistas (CBTC), conseguiu um espaço
físico para a sua sede, podendo, dessa maneira, efetuar os atendimentos. Em 2021,
a associação mudou de endereço e conseguiu ampliar seu espaço, possibilitando
melhor qualidade e acolhimento dos pacientes atendidos e suas famílias (www.
abracidf.com). Nesse contexto, os atendimentos tiveram início em dezembro de 2020
com as anamneses e, em abril de 2021, com 3 grupos de crianças, sendo 1 grupo às
quartas-feiras, no vespertino, e dois grupos às quintas-feiras, matutino.

Fundamentação teórica

A musicoterapia é um processo terapêutico sistematizado. Cada paciente/cliente


é único sonoramente. Nesse sentido, a Comissão de Prática Clínica da Federação
Mundial de Musicoterapia (1996) define: A Musicoterapia é a utilização da música
e/ou seus elementos (som, ritmo, melodia e harmonia) por um Musicoterapeuta
qualificado, com um cliente ou grupo, num processo para facilitar e promover a
comunicação, relação, aprendizagem, mobilização, expressão, organização e outros
objetivos terapêuticos relevantes, no sentido de alcançar necessidades físicas,
emocionais, mentais, sociais e cognitivas.
A musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer funções do
indivíduo para que possa alcançar uma melhor integração intra e/ou interpessoal
e, consequentemente, uma melhor qualidade de vida, pela prevenção, reabilitação
ou tratamento (UBAM, 1996). A musicoterapia em grupo aplica-se normalmente para
adultos. Porém, nessa experiência vivenciamos com 3 grupos de crianças, algumas
com diagnósticos fechados e outras ainda não de transtorno do espectro autista
(TEA). O grupo configura-se como uma experiência histórica, que se constrói num
determinado espaço e tempo, fruto de relações.
Nele apresentam-se aspectos gerais da sociedade e aspectos pessoais, vivência
subjetiva e realidade objetiva. Por natureza, todo grupo apresenta um dinamismo
que lhe é próprio: tem seus problemas, dificuldades, fracassos, sucessos e alegrias. No
interior de um grupo, as relações entre os membros evoluem constantemente (AUBRY;
SAINT-ARNAUD, 1978; FREIRE, 1992, apud VALENTIM et al., 2013). No desenvolvimento
infantil, de maneira geral, existem habilidades, como atenção compartilhada, troca
de turnos, imitação restrita ou generalizada, que necessitam ser trabalhadas para que
se desenvolvam. Na criança com TEA, as dificuldades no ganho dessas habilidades
são maiores. Para Benenzon (2012), a criança autista responde aos impulsos
inconscientes e, por isso, tem formas particulares de interrelação com o mundo que
a rodeia; todavia, nós não estamos em condições de perceber.

185
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Ainda de acordo com Benenzon (2012), a criança autista é uma incomensurável e trágica
defesa ante o mundo que a afoga em um mar cronológico e cronométrico. A utilização
do modelo Benenzon como uma das bases filosóficas de atuação se deu principalmente
pelo fato de o modelo ter como premissa o processo de comunicação não verbal, criando,
assim, um complexo corpóreo-sonoro-musical integrado ao terapeuta. Em movimentos
dinâmicos de contemplação do self do paciente dentro do setting, o princípio de ISO
(identidade sonora) se aplica de forma sistemática, permitindo estabelecimento de
vínculo e autonomia expressiva do paciente dentro do setting.
Dessa forma, episódios de isolamento tendem a diminuir, a dinâmica de tempo-
espaço ocorre de forma organizada, até o estabelecimento de vínculo e a relação do
fazer musical ativo entre terapeuta e paciente tende a melhorar. Gattino (2015) diz que
estudos revelaram que o autismo é uma desordem comportamental complexa, com
etiologias múltiplas e diferentes níveis de gravidade, os quais variam desde indivíduos
não verbais com deficiência intelectual grave até sujeitos com QI acima da média.

Desenvolvimento da pesquisa

Essa experiência com crianças autistas em sessões de musicoterapia em grupo


aconteceu na Associação Brasileira de Autismo, Comportamento e Intervenção
(ABRACI), Distrito Federal, no período de 28 de abril a 14 de julho de 2021. As sessões
ocorreram em uma sala da associação durante 2 dias da semana, com 3 grupos
separados por idade, sendo o primeiro grupo com crianças de 2 a 6 anos, o segundo de
6 a 9 anos e o terceiro de 10 aos 18 anos, em 2 turnos durante a semana, com o objetivo
principal de socializar e integrar os jovens por meio da música. A fenomenologia
existencial e o modelo Benenzon de musicoterapia foram utilizados como base
filosófica e principais bases teóricas que fundamentaram este trabalho, assim como
outras vertentes teóricas, caso fosse avaliado como sendo o melhor para o paciente.
A musicoterapia interativa, abordagem terapêutica na qual o paciente permanece
ativo no fazer musical junto com o musicoterapeuta e/ou outro indivíduo presente
no setting, foi a abordagem principal durante as sessões. A improvisação e a
experimentação musical foram as experiências predominantes durante as sessões,
seguida da recriação musical. Na improvisação, o paciente faz música tocando ou
cantando, criando melodias, ritmos e sons durante a sua execução de improviso
(BRUSCIA, 2016). A experimentação é o momento quando o paciente conhece ou
explora instrumentos, descobrindo suas possibilidades sonoras, táteis, visuais,
olfativas, o que lhe for interessante explorar. Com as experiências de recriação, o
paciente aprende ou executa músicas preexistentes ou realiza jogos e atividades
musicais estruturadas, enquanto um modelo é apresentado para que se desempenhe
papéis ou comportamentos específicos (BRUSCIA, 2016).

186
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

Para iniciarmos, uma equipe com dois musicoterapeutas foi montada, e firmou-se
uma parceria com a ABRACI-DF a fim de disponibilizar o espaço para os atendimentos
a seus associados. As anamneses foram realizadas entre dezembro de 2020 e janeiro
de 2021 já com os musicoterapeutas e duas estagiárias na equipe. A partir disso,
foram criados 3 grupos tomando como critério principal a idade dos participantes,
já que não foi observado caso em que tal critério fosse insuficiente. Os atendimentos
foram iniciados na última semana de abril de 2021 por conta da mudança de sede da
ABRACI-DF. Cada grupo tinha o limite máximo de 6 pacientes, com 2 musicoterapeutas
dentro da sessão e 5 estagiários se revezando entre as sessões. As sessões possuiam
a periodicidade semanal e duração de até 50 minutos.
O setting musicoterapêutico era formado por um tapete de EVA, almofadas e
instrumentos musicais que variam de acordo com os objetivos de cada sessão.
Os objetivos gerais foram: propiciar novos canais de comunicação e funcionar
como ponte para a comunicação verbal; trazer uma maior organização cognitiva,
emocional e motora; efetuar exploração sensorial; desenvolver habilidades grupais;
trabalhar a capacidade de intimidade interpessoal; fortalecer sua forma de ver e
interagir com o ecossistema em que está inserido; aprender a desempenhar papéis
específicos em situações interpessoais; desenvolver habilidades sensório-motoras;
melhorar habilidades interativas e de grupo (BRUSCIA, 2016). Além disso, avaliaram-
se a efetividade dos atendimentos em grupo em relação à socialização, o tempo de
atenção, a maneira como lidaram com frustrações e a troca de turno.

Conclusões

Este relato de experiência ancorou-se em um estudo com características observacionais.


Para isso, além dos objetivos gerais construídos para os grupos, foram definidos
objetivos individualizados visando as possibilidades de desenvolvimento desses
objetivos dentro de um contexto grupal. O período de atendimento musicoterapêutico,
no espaço da ABRACI-DF, foi de 28 de abril de 2021 até 15 de julho de 2021, totalizando
12 sessões realizadas para cada grupo. Utilizou-se a abordagem mista para a coleta
e análise de dados, e ocorreu um aumento na interação intermusical, imitações
espontâneas, vocalizações e verbalizações. Dados não medidos por variáveis, como
um maior interesse em se comunicar e interagir com seus pares, maior prazer no fazer
musical, melhora na socialização, desenvolvimento de novas ferramentas para lidar
com frustrações, foram observados pelo musicoterapeuta, coterapeutas e familiares
dos pacientes; esses aspectos foram corroborados com ferramentas da investigação
naturalística, como a checagem com os membros participantes.
Outras ferramentas, como a análise continuada do material, também foram utilizadas.
Ao fim, os dados observados foram sintetizados nas categorias de comunicação e

187
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS

socialização, outra etapa da investigação naturalista, em que se incluem os conceitos


observados em categorias maiores. Esse processo traz uma confiabilidade aos dados
observados pelo musicoterapeuta e seus pares (SMEIJSTERS, 2005). Ao final das doze
sessões, constatou-se que houve uma melhora significativa na interação social, nas
comunicações interpessoal e musical, aumentando o tempo de atenção e desenvolvendo
novas habilidades para socializar em grupo. Conclui-se que a musicoterapia em
grupo com pessoas diagnosticadas com TEA pode ser uma forte aliada, auxiliando nos
desenvolvimentos emocional, social e expressivo desses indivíduos.

Referências bibliográficas

BENENZON, Rolando. Cómo vivir em comunidade: autismo-soledad-família-


sociedad. 1. ed. La Plata: Al Margen, 2012.

BRUSCIA, Kenneth. Definindo musicoterapia. Traduzido por Marcus Leopoldino. 3. ed.


Barcelona: Barcelona Publishers, 2016.

GATTINO, Gustavo Schulz. Musicoterapia e autismo: teoria e prática. São Paulo:


Memnon Edições Científicas Ltda., 2015.

UBAM. União Brasileira das Associações de Musicoterapia. Revista Brasileira de


Musicoterapia, v. 1, n. 2, 1996.

188
GT 7

POSSIBILIDADES INFORMAIS
DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Coordenador: Hélio da Silva Júnior (Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro).

A despeito do quadro representado por uma visível escassez de profissionais para


o ensino da música nas escolas públicas e privadas de todo o território nacional e
do desprovimento de recursos físicos e materiais, observa-se uma subsistência de
expressões culturais, por meio da transmissão de tradições musicais entre gerações.
Tal contexto suscita algumas indagações, tais como: de que modo as tradições têm
sido transmitidas? Quais são os métodos utilizados para este “ensino” da música? Que
recursos materiais são empregados? De que maneira tais processos são avaliados?
Qual tem sido a eficácia desses processos para a manutenção de suas expressões
culturais? Diante disso, considera-se pertinente a investigação, e assinala-se como
objetivo para este grupo de trabalho o estudo de processos de educação musical
em ambientes informais de ensino, a fim de compreender seus métodos, técnicas e
materiais.

Eixos temáticos:
a) Investigações sobre metodologias informais para o ensino da música;
b) Processos de transmissão musical na cultura popular;
c) Construção de instrumentos musicais;
d) Estratégias de avaliação em música no ensino informal;
e) Relações interdisciplinares nas práticas musicais da cultura popular;
f) Relatos de interlocução entre o ensino informal da música e a educação
musical escolar;
g) Interfaces entre processos de transmissão musical da cultura popular e
outras linguagens artísticas.
Arte e Interdisciplinaridade: a inserção de saberes e a
expressão de emoções através de ferramentas musicais
Josiane Antônia de Menezes Silva Paes
Universidade Estadual de Goiás
Guilherme Alberto Paes
Faculdade Aliança de Itaberaí
Weliton Costa Gonçalves
Universidade Estadual de Goiás

Resumo

O presente artigo tem como objetivo fundamentar a importância de se trabalhar com


diferentes métodos de ensino na educação, discorrendo sobre como são inseridos os
saberes através de ferramentas musicais. A pesquisa se constitui como bibliográfica,
ancorando-se em conceitos e saberes explanados através de livros, artigos e periódicos.
Faz-se necessário revisar a literatura, a fim de construir argumentações sobre a utilização
da música em sala de aula como ferramenta de aprendizagem, visando explanar sobre
os benefícios de estabelecer contato das crianças com a ciência musical, vivenciada no
ensino de arte e na interdisciplinaridade presente no contexto escolar.

Palavras-chave: Ferramentas de ensino. Musicalidade. Educação infantil. Formação


de saberes.

Introdução

A sociedade, desde os seus primórdios, dedica-se ao ensino e à aprendizagem,


seja com objetivo de buscar ferramentas que visem encantar os alunos a ponto de se
sentirem atraídos a participar da aula, seja de assimilar o conteúdo trabalhado.
Em meio à era da tecnologia, a tarefa de prender a atenção dos alunos tem se tornado
a cada dia mais desafiadora. Os métodos e as ferramentas destinados a tomar os
espaços mentais e psicológicos estão em todo local: no celular, no computador, na
televisão, até mesmo nas fachadas dos comércios, que no passado eram utilizadas
para expressar o nome e as características do empreendimento. Com o passar dos
anos e com a evolução das metodologias de marketing, as fachadas vêm sendo
planejadas visando chamar a atenção das pessoas e induzir nelas desejos de ação.
Nas escolas, não tem sido diferente.
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

Os alunos têm chegado cada vez mais às instituições apresentando vícios aos
diferentes tipos de tela. A inserção precoce de crianças a ferramentas de comunicação
vigentes, como YouTube, Facebook, Instagram e jogos eletrônicos, faz com que aspectos
fundamentais como a criatividade deixem de ser desenvolvidos corretamente.
O papel da escola gradativamente tem ganhado mais importância no desenvolvimento
humano. Os profissionais inseridos nesses espaços de ensino têm buscado auxílio
através de recursos que possam ser utilizados associados ao conteúdo programático,
com a finalidadede colaborar nos desenvolvimentos criativo e cognitivo das crianças.
A música vem sendo trabalhada no contexto escolar como uma ferramenta positiva
para cativar o aluno e garantir sua participação nas atividades.
Ela está presente de inúmeras formas através de métodos pedagógicos, como na
descoberta dos sons feita pelas crianças na escola, etapa esta também vivenciada
nos dois primeiros anos de vida, e na construção de melodias a partir dos sons
conhecidos. Para discorrer sobre a importância da música como ferramenta de
ensino, foi realizada uma breve contextualização acerca dos fundamentos da música
e da relação presente com a educação, contribuindo para a evidenciação de novas
possibilidades a serem traçadas.

Fundamentação teórica

Ao se falar de música, é importante lembrar que existem inúmeras definições que


podem ser utilizadas para explicitar o seu significado. Podemos defini-la como fruto
da união da ciência e da arte, uma arte que resulta na combinação de diferentes
sons, a fim de formar uma melodia (FERREIRA, 2007).
O conceito de música tende a variar de acordo com a cultura. Ela se faz presente na vida
humana e integra todas as culturas de diferentes formas. Com o passar dos tempos,
ela foi se tornando uma linguagem usada para expressão de saberes, sentimentos,
emoções, pensamentos, conceitos, metodologias, entre outros. Galdino (2015) retrata a
música como uma das formas mais antigas e valiosas de expressão humana.

Possíveis relações entre a musicalidade e o ensino

A música é utilizada para diversos fins desde as primeiras civilizações. Ela é detentora
do poder de modificação de pessoas, situações e meios. No âmbito escolar, possui
um papel fundamental, pois contribui desde a educação básica infantil, passando
pelo ensino médio, colaborando com a graduação e com o processo de formação
continuada, seja fazendo parte de forma direta dessas situações, atuando como
objeto de estudo, seja indiretamente, atuando como um estímulo pessoal expresso
através de um hobby.

191
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

De acordo com Félix, Santana e Oliveira Júnior (2014), a prática musical é responsável
pela estimulação da percepção, da memória e da inteligência, colaborando para
uma melhor capacidade de assimilação de conteúdos através da sensibilidade. Brito
(2003) discorre que a música pode ser trabalhada em sala de aula pelo educador
com a finalidade de facilitar o processo de aprendizagem, fazendo com que o ensino
seja para a criança mais agradável. Assim, fomenta um melhor desempenho e maior
fixação dos assuntos estudados.
A inclusão de ferramentas musicais no Ensino Fundamental ocorre por meio da
associação a conteúdos específicos, fazendo com que as crianças e adolescentes
sintam-se motivados a participar do processo de aprendizagem, aprendendo desde
pequenos a importância da valorização da arte, como pilar educativo.

A música é definida por Merriam como um meio de interação social, produzida por
especialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical
é um comportamento aprendido, através do quais sons são organizados,
possibilitando uma forma simbólica de comunicação na interrelação entre
indivíduo e grupo (PINTO, 2001, p. 224).

Durante muito tempo, a música vinha sendo utilizada como ferramenta


colaborativa para a aprendizagem em diferentes disciplinas, outrora não era
referenciada ao aluno que a música encontra-se presente nos conteúdos da
disciplina de arte. Desse modo, ela era considerada um meio externo trazido para
sala de aula, para prender a atenção do aluno, e não como uma proposta de trabalho
interdisciplinar conjunta.
Com o papel da música enaltecido na formação educativa de crianças, adolescentes
e adultos, deve-se estabelecer que o principal objetivo da sua inserção em meio às
aulas, principalmente no Ensino Fundamental, é de auxiliar na prática pedagógica,
contribuindo para a formação do conhecimento nas crianças, e não de formar
músicos (GALDINO, 2015).

Conclusões

Por meio do presente estudo bibliográfico, que se encontra em fase inicial, nota-
se a musicalidade como uma ferramenta positiva para o processo de ensino e
aprendizagem, enaltecendo a sua importância nos anos iniciais.
Fazer com que as crianças tenham contato com a música em suas formas primitivas,
sons e melodias, não necessitando inicialmente da utilização de instrumentos
musicais, colabora no processo de autoconhecimento, possibilitando a elas a
oportunidade de se conhecerem através dos sons, além de utilizarem os sons a sua
volta para expressar seus sentimentos e vontades. Dessa forma, a música colabora
para construção de cidadãos mais comunicativos e preparados para lidar com suas

192
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

emoções em diferentes situações, sejam elas dentro do contexto escolar, sejam em


casa com a família, sejam em eventos de participação cotidiana.

Referências bibliográficas

BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil. São Paulo: Petrópolis, 2003.

FÉLIX, Geisa Ferreira Ribeiro; SANTANA, Hélio Renato Góes; OLIVEIRA JÚNIOR, Wilson. A
música como recurso didático na construção do conhecimento. Cairu em Revista,
[s. l.], v. 3, p. 17-29, 2014.

FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2007.

GALDINO, Viviane Teresinha. A música como ferramenta pedagógica no processo de


aprendizagem. Revista Eventos Pedagógicos, v. 6, n. 2, ed. 15, p. 258-267, jun./jul. 2015.

PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: questões de uma antropologia


sonora. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 221-286, 2001.

193
O Papel da Música na Educação Infantil:
uma experiência criadora
Álvaro de Siqueira Manhães
Instituto Federal Fluminense

Resumo

Este projeto de pesquisa está pautado na reflexão sobre o ensino de música como
uma experiência de criação no âmbito da musicalização infantil da Educação
Básica, tendo o educador musical, no desenvolvimento das atividades e soluções
pedagógicas, como mediador para apreensão desses saberes e identificação
das sensações descritas em sons e músicas. Ampara-se na condição tempo-
espaço, uma vez que a composição contempla os temas no exato instante em que,
geralmente, a comunidade está vivenciando-os, sejam eles temas festivos presentes
já no próprio calendário escolar, sejam eles de vivências do cotidiano, tais como: a
realização da Copa do Mundo de futebol; um momento político específico; a própria
história com acontecimentos pertinentes àquela instituição — como o nascimento do
filho da professora, a superação da utilização da fralda ou chupeta, nutrição. Dentro
de um enfrentamento muito particular nas instituições de ensino que comportam
sistema de creche e berçário, esta pesquisa dá-se metodologicamente como um
relato de experiência didático-pedagógica sobre a educação musical infantil.
Estruturalmente, este trabalho se assentou sobre uma revisão bibliográfica acerca
do tema. Por fim, descreve o processo de abordagem da criação/composição de
canções e sua aplicação didático-metodológica no universo da educação infantil,
além dos resultados obtidos, como respostas dos alunos envolvidos através dos pais
e demais membros da equipe pedagógica em questão, concluindo com uma reflexão
crítica sobre o processo didáticovivenciado considerando o pensamento dos autores
abordados na primeira parte do trabalho.

Palavras-chave: Música. Composição. Educação infantil.

Introdução

Esta pesquisa tem como foco principal apresentar um relato de experiência sobre
a interlocução entre a educação musical escolar e o trabalho que o autor desenvolve
a partir de sua experiência como músico e compositor. Para tanto, considera-se aqui
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

que o professor de música atua no processo de educação musical como pesquisador


e compositor, no que se refere à criação musical, apresentando canções como forma
de inserir eventos sonoros e os conteúdos musicais, entre outras temáticas que
transversalizam os campos de conhecimento próprios do ensino/aprendizagem da
faixa etária em questão, a saber a educação na pré-escola.
Dessa forma, este relato de experiência se dá na vivência do autor como docente, no
âmbito da educação infantil, obtida na Creche Escola Sagrada Família a partir de 2012,
quando assumiu a função de professor de musicalização infantil nessa instituição.

Fundamentação teórica

O desenvolvimento natural da comunicação oral na criança se inicia como um conjunto


de sons que passam a ser utilizados dentro de um sentido, o qual forma a enunciação de
sua fala, fazendo com que sua expressão evolua gradativamente com o uso de novos
sons que apresentam alterações de volume e de ritmo, antes mesmo de que a criança
aprenda a “falar”. Nesse processo de desenvolvimento da oralidade anterior à fala, a
criança demonstra uma capacidade de compreender e se fazer compreendida pela
linguagem oral definida por sua competência linguística (SANTOS; FARAGO, 2015).
Portanto, a relação da oralidade da criança com a música nessa fase encontra-se
diretamente ligada às suas experiências ao se mover, brincar, imitar sons, expressões
eentonações que estão contidos no seu dia a dia e fazem parte do seu convívio social.
Em suma,ao chegar à idade da pré-escola, a criança já desenvolveu grande parte de
seu vocabulário e um repertório sonoro/musical que teve acesso desde os primeiros
dias de vida (Ibid, 2015).
Com base nesses pressupostos, torna-se imprescindível que o professor que
deseje trabalhar com educação musical nessa faixa etária compreenda os fatores
inerentes à formação cognitiva da criança a fim de que seja capaz de adequar os
conteúdos da educação musical ao desenvolvimento da criança.
Justifica-se aqui a relevância da reflexão empreendida nesta pesquisa sobre a
temática do ensino de música na educação infantil e segmentos posteriores, por
corresponder a um campo de estudo que ainda carece de investigação, principalmente
no que tange ao repertório musical utilizado, o qual, na maioria das vezes, ancora-
se nos modelos musicais massificados e “impostos” pela mídia. Além disso, este
trabalho atua no enfrentamento e resistência ao colonialismo europeu, cuja herança
da música denominada clássica, assim como o colonialismo norte-americano, age
por meio dos programas infantis “The Voice Kids” e similares, provocando a absorção
dessa estética pela criança. Outra finalidade que se impõe neste estudo é a de
realocar a música como função educativa, transformadora e capaz de, mesmo nessa
tenra idade, formar uma estética musical acompanhada de um pensamento crítico.

195
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

Conforme aponta Feier e Gedoz (2015), “a estimulação do desenvolvimento afetivo,


estético, cognitivo, sensorial e musical específico, realizado através da música
é essencial como também contribui como prática social na alfabetização e no
letramento” (FEIER; GEDOZ, 2015, p. 5).
Portanto, o escopo desta pesquisa se assenta na reflexão sobre a ação do educador
musical que atua como um compositor e utiliza temas adequados à faixa etária e
ao universo cultural das crianças, ao mesmo tempo que, gradativamente, oferece
elementos sonoros para experiências e práticas que oportunizam a composição
coletiva. Essas composições “brotam”durante o momento de aula, dentro do contexto
vivenciado pelo próprio grupo de alunos, seja nas relações entre si, seja nas atividades
escolares, seja simplesmente como estímulo à apreciação artística.

Desenvolvimento da pesquisa

A atuação no segmento infantil da pré-escola ocorreu para mim de forma intensa


e objetiva. Logo nos primeiros encontros com os alunos, pude perceber o efeito que
a comunicação de conceitos por meio da linguagem musical se dava de forma
motivadora e despertava o interesse por parte de todos os alunos.
Inicialmente, busquei conhecer como acontecia a aplicação da música no contexto
da escola, que, segundo o relato dos próprios professores, era muito constante; a
música era usada com regularidade, através de cantos, paródias e/ou parlendas. Tal
relato seguiu-se de minha observação dessas “atividades musicais”, levando-me a
concluir que, na maior parte do tempo, a música utilizada fazia parte de gravações de
diversos segmentos midiáticos voltados ao entretenimento lúdico, sem um objetivo
específico de buscar o desenvolvimento da musicalidade propriamente dita. Não
havia a percepção de conceitos teóricos, premissas de um aprendizado voltado para
as habilidades relacionadas ao ouvido ativo e a uma prática que interagisse de forma
transdisciplinar com os conteúdos do letramento e o fazer musical.
Considerando o ethos da comunidade escolar, iniciei o trabalho de educação
musical respeitando a essência e a naturalidade já preexistente na equipe pedagógica
da época, buscando construir aos poucos uma credibilidade com os professores
e colocando-me sempre de forma cooperativa e disposto a trabalhar de forma
conjunta. Assim, as diferenças de posicionamento didático-pedagógico em relação à
prática musical logo puderam ser desconstruídos, e potências foram despertadas no
desdobramento do trabalho da musicalização durante o período em que as crianças
estavam na instituição.
Como exemplo de todo o material elaborado a partir do processo didático-pedagógico
narrado, destaco a experiência com o choro infantil, resultante das vivências no
processo de adaptação da criança ao ambiente escolar, em que o estranhamento por

196
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

parte de alguma criança, geralmente muito pequena, acarreta choro copioso e, muitas
vezes, se não for acalentado, desdobra-se num surto de choro coletivo, tornando a
atividade musical absolutamente impossível. Dessa forma, a música “Chora, Brinca,
Dança e Pula”, da Figura 1, surgiu com a necessidade de trabalhar as emoções na
criança, quando ela expressa seu desconforto por meio do choro.
A composição melódica feita com intervalos de 3ª menor descendente produz um
efeito de acalanto no trecho inicial de sua melodia. Na segunda parte da canção,
professoras e auxiliares fazem uma interação física com as crianças colocando uma
palma no ar e uma palma contra a palma da criança, marcando o pulso da música
sobre a letra cantada nas divisões silábicas das palavras. Na terceira parte da música,
com as crianças já incentivadas pelo acolhimento da equipe de trabalho, elas se
movimentam sob o efeito rítmico da dança conduzida durante a execução musical.
Foi surpreendente o efeito que essa composição causou nas crianças, levando-as
do choro à dança, demonstrando a superação do desconforto e o alcance de uma
atitude alegre.

197
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

Figura 1 — Partitura da música “Chora, Brinca, Dança e Pula”

198
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

Fonte: https://soundcloud.com/lvaro-manh-es/chora-brinca-danca-pula-alvaro?in=lvaro-manh-
-es/sets/primeiro-album-com-musicas-para-crianca-e-familias.

199
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

Conclusões

Com esta pesquisa, pretendeu-se ofertar um material musical didático original e


desprovido de estereótipos mercadológicos para ser aplicado na educação infantil,
disponibilizando-o como acervo de canções que colaborem com o trabalho de outros
profissionais na educação musical.
Considera-se, ainda, que a ação musical, em sua aplicação didático-pedagógica,
deve abordar os aspectos inerentes à música enquanto linguagem artística, no que
tange ao desenvolvimento da sensibilidade estética, a criatividade, a percepção
auditiva. Para mais, deve induzir comportamentos motores e gestuais direcionados às
atividades lúdicas de alfabetização,escrita e leitura, contribuindo para a compreensão
e associação dos códigos e signos linguísticos e gerando uma construção do saber.
Em resumo, a música como campo de conhecimento deve ser trabalhada tanto
como atividade artística quanto como conteúdo transversal dentro da educação
infantil. Portanto, a música não deve ser apenas elemento recreativo e festivo, pois é
capaz de atuar nos processos do desenvolvimento cognitivo da criança, ampliando
suas relações socioafetivas e promovendo a maturidade intra e inter-pessoal.

Referências bibliográficas

FEIER; Elisnara Samanta; GEDOZ, Sueli. Relação entre música, alfabetização e


letramento. In: JORNADA CIENTÍFICA DA UNIVEL: “Conflitos Mundiais: do local ao
global”, 13., 2015, Cascavel. Anais eletrônicos [...]. Cascavel: UNIVEL, 2015. Disponível
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musica_alfabetizacao_e_letramento.pdf.

SANTOS, Maria Gabriela da Silva; FARAGO, Alessandra Corrêa. O desenvolvimento


da oralidade das crianças na Educação Infantil. Cadernos de Educação: Ensino e
Sociedade, Bebedouro, v. 2, n. 1, p. 112-133, 2015. Disponível em: https://www.unifafibe.
com.br/revistasonline/arquivos/cadernodeeducacao. Acesso em: 21 set. 2021.

200
Bois Pintadinhos: apontamentos para
uma investigação acerca de aprendizagens
informais em música
Wilson dos Santos Souza
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Fernanda Morales dos S. Rios
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro

Resumo

O presente texto buscou compreender os processos de ensino-aprendizagem


musical ocorrentes em uma expressão cultural do Norte Fluminense denominada Boi
Pintadinho, mais especificamente do município de Macaé. Enquanto manifestação da
cultura popular, tais processos se configuram como informais. Cabe, então, conceituar
os termos “educação formal” e “informal”, destacando que, embora presentes em
contextos informais, as práticas musicais também ensejam aspectos “formais”.Nesse
sentido, a pesquisa etnográfica realizada junto com Boi Falcão, no bairro Miramar, bem
como no Colégio Municipal Botafogo, demonstrou que as aprendizagens musicais
se dão no cotidiano, por um “fazer-fazendo”, imersão, imitação, contato, convivência,
experimentação e improvisação. Um relato de experiência de projeto pedagógico
ocorrido no referido colégio ilustra como ocorrem os processos de construção e as
interações musicais entre adolescentes ao confeccionar e desfilar com boizinhos de
mão. Essa experiência traz à luz possibilidades de interação entre o ensino formal e
o informal de música, indo ao encontro de uma pedagogia decolonial, intercultural
crítica e libertadora.

Palavras-chave: Educação informal. Prática musical. Boi Pintadinho.

Introdução

A diversidade da musicalidade brasileira está inserida em diferentes contextos


que propiciam distintas e profícuas vivências musicais. Entre tais domínios em que
ocorrem o ensino e aprendizado musical, destacamos neste trabalho o ambiente
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

educacional, que, por sua vez, transita e articula-se a partir de contextos formais e
informais de aprendizagem. Muito tem se discutido acerca das práticas musicais
arraigadas a uma educação musical inserida em ambientes institucionalizados,
tais como escolas, conservatórios, cursos de música, orquestras etc. Porém, este
trabalho pretende destacar práticas musicais oriundas de ambientes não escolares,
de forma a considerar e a refletir sobre processos de ensino e aprendizagem que
ocorrem fora desses espaços.
Nesse sentido, esta pesquisa pretende apresentar possibilidades de uma educação
musical informal, a partir de uma pesquisa etnográfica, constando de observação
participante e do relato da experiência de ensino e aprendizagem musical de
adolescentes atrelados à expressão cultural dos Bois Pintadinhos de Macaé, interior do
estado do Rio de Janeiro. Para isso, este trabalho, de natureza qualitativa, amparou-
se fundamentalmente de um levantamento bibliográfico acerca do ensino musical
em contextos formais e informais, articulado a relatos que evidenciam e valorizam
a aprendizagem musical de crianças e adolescentes mediante vivências dos Bois
Pintadinhos de Macaé. Ainda, demonstra-se como essas aprendizagens podem
contribuir para transformar as práticas de ensino-aprendizagem em espaços formais.

1. Aspectos teóricos acerca da educação formal e da educação informal

Segundo Wille (2005), a literatura acerca da educação musical brasileira aborda


diversas discussões relacionadas ao ensino e à aprendizagem musical a partir de
diferentes contextos e espaços. Para a autora, tais abordagens promovem um olhar
mais atento a esses ambientes de aprendizagem, de forma a considerar os espaços
em que ocorrem essas relações e romper com um conceito limitado de educação
como algo meramente restrito ao cenário escolar institucionalizado. De acordo com
Wille, “A escola sempre foi considerada como responsável pelo processo educativo, o
locus do conhecimento[...]” (WILLE, 2005, p. 40).
Dessa forma, por muito tempo, atribuiu-se somente à escola a responsabilidade
do educar. Porém, a autora sinaliza que “na área específica da educação musical
atualmente percebe-se que o processo educativo não está mais restrito somente
à sala de aula” (WILLE, 2005, p. 40). A respeito disso, Souza (2001) comenta que,
atualmente, o êxito do aprendizado musical de crianças e jovens decorre muito mais
de contextos extraescolares do que da escola propriamente dita. Assim, torna-se
relevante, neste trabalho, refletir sobre esses espaços de aprendizagem musical e
compreender os conceitos de educação formal e informal.
Arroyo (2000) comenta que o uso do termo “educação formal” na educação
musical geralmente é associado a uma prática educativa escolar, oficial e dotada
de uma organização. Dessa forma, para a autora, a educação musical formal é tida

202
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

como aquela que ocorre nos espaços escolares e acadêmicos, caracterizada pelos
processos de ensino e aprendizagem. Em relação a isso, Wille discorre:

Assim, a educação musical “formal” pode ser considerada tanto aquela que
acontece nos espaços escolares e acadêmicos, envolvendo os processos de
ensino e aprendizagem, quanto aquela que acontece em espaços considerados
alternativos de música (WILLE, 2005, p. 40).

Portanto, Wille (2005) e Arroyo (2000) compreendem que a educação formal


também abarca as práticas de ensino e aprendizagem em música decorrentes de
contextos da cultura popular, uma vez que tais ambientes revelam formalidades que
caracterizam essas práticas.
Acerca do termo “não formal”, Arroyo (2000) afirma que também pode ser
compreendido como “informal”, vindo a ser considerado como uma prática musical
não oficial e não vinculada a um contexto escolar. A autora também considera que
esse termo pode ser utilizado para legitimar e endossar a educação decorrente de
situações cotidianas e atreladas às culturas populares.

2. O Boi Pintadinho e suas práticas musicais

O Boi Pintadinho é uma expressão cultural do Carnaval de Macaé, município do Norte


Fluminense, ocorrendo nos bairros periféricos, constituídos de comunidades pobres e
favelizadas, de população majoritariamente negra (OLIVEIRA, 2005). Os concursos de
Bois Pintadinhos são o ponto de destaque; acontecem nas localidades dos próprios
bois e na sexta-feira que antecede o Carnaval. Os bois são grandes alegorias, feitas
de alumínio, bambu, fibra, recobertos por pano de cetim e adereços, conduzidos
internamente por um carregador, que tem por função fazer o boi dançar. Há também
a configuração de “boizinho de mão”, muito disseminada entre as crianças e
adolescentes, que é uma miniatura do grande boi.
Os grupos formam blocos de Carnaval e, desfilando pelos bairros, buscam “arrastar”
a multidão para acompanhar o desfile/cortejo. O boi vai à frente, seguido de bateria
e comunidade de brincantes. O Boi Pintadinho é a versão macaense de uma prática
cultural amplamente disseminada pelo país, cujas denominações Boi-Bumbá e
Bumba Meu Boi são muito conhecidas no Norte e Nordeste. Há ainda o Reis de Boi, Boi
de Reis, Boi Malhadinho, Boi de Samba, Boi de Mamão, entre outros. Câmara Cascudo
(1988) esclarece que o “boi” teria surgido no Nordeste, no século XVIII, e se espalhado
por outras regiões do país.
O Boi Pintadinho de Macaé é uma prática cultural afrodiaspórica, que sofreu
modificações e hibridizações com a cultura massiva. Tal fato, no aspecto musical,
pode ser verificado nas baterias, influenciadas pelas escolas de samba nas últimas

203
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

décadas, e no repertório, constituído de canções populares de sucesso, adultas e


infantis. Essas canções são acompanhadas pela bateria em ritmo de “Carnaval” —
tendo a levada do samba muito presente.
As aprendizagens musicais em um grupo de Boi Pintadinho se dão por imersão,
imitação, contato, convivência, experimentação e improvisação, ou seja, ocorrem
na prática cotidiana, através de um “fazer-fazendo”. As crianças aprendem com os
mais velhos a tocar os instrumentos da bateria, observando e experimentando. Antes
da saída dos bois nos desfiles pelas ruas ou em direção ao concurso, há o ensaio,
em que acontece o “esquenta”. Antes e depois dos ensaios, as crianças ficam a
experimentar e improvisar os usuais instrumentos, que são os surdos de primeira,
segunda e terceira, caixas e repeniques. Ultimamente, tem-se utilizado o timbale, e
alguns usam tamborins e chocalhos.
Na pesquisa etnográfica realizada por Souza (2020), observou-se a presença intensa
das crianças entre os ritmistas antes e depois dos desfiles, inclusive durante eles. Na
medida em que vão sedesenvolvendo, são naturalmente introduzidas entre os mais
experientes. Também é comum a participação de pré-adolescentes e adolescentes
nos desfiles. O mestre de bateria de um dos grupos, o “Suave Veneno”, localizado na
comunidade da Nova Holanda, assumiu o cargo com apenas onze anos. Perguntado
sobre como as pessoas aprendiam a tocar, um outro mestre, de um Boi Malhadinho
de Quissamã, cujas práticas musicais não diferem muito do boi de Macaé, dizia: “Não
tem que ensinar. É só tocar!”.
Durante o período carnavalesco, é comum ver crianças, ao longo do dia, brincando
de tocar instrumentos feitos com sucatas, realizando com desenvoltura os padrões
rítmicos próprios dessa prática cultural. A existência da categoria “mirim” (uma
versão de tamanho um pouco menor do que a versão “adulta” e normalmente
conduzida internamente por um adolescente) tem sido um estímulo a mais para
o surgimento de novos ritmistas e donos de boi entre as novas gerações. Algumas
escolas municipais, sobretudo as localizadas em comunidades periféricas, buscam
introduzir a cultura dos Bois Pintadinhos no processo de ensino-aprendizagem.
Foi possível observar e documentar uma experiência pedagógica de aprendizagem
sobre os bois, no Colégio Municipal Botafogo, onde os alunos compartilharam seus
saberes de construção da versão “boizinho de mão”. Nessa experiência, os professores
foram os alunos, e os alunos foram os professores. Todo o processo de construção foi
documentado e fotografado, desde a base, que alguns fazem de arame e outros de
bambu ou madeira, até o esqueleto final, a cobertura com o cetim (ou outro tecido que se
achasse apropriado) e os adereços, bem como o nome, que fica sempre em destaque.
Após serem feitos os “boizinhos”, eles foram apresentados. Além do protagonismo nos
desfiles, houve também a presença de uma bateria, organizada e formada por alunos
e ex-alunos da escola, cuja aprendizagem musical se deu nos próprios grupos que
eles já participam. A prática cultural dos Bois Pintadinhos expressa saberes que não

204
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

ocorrem de forma compartimentada. Existe uma perspectiva de totalidade, na qual


os construtores são artesãos e músicos, dominando todos os momentos do processo.

Conclusões

O estudo acerca das aprendizagens ocorrentes em espaços informais de música


aponta para diversas direções. Em primeiro lugar, visibiliza saberes que foram
historicamente negados pela colonialidade, ou folclorizados, e sua penetração nos
espaços formais se dava pela exotização ou para ilustrar um evento aqui, outro
ali. Em segundo lugar, aguça nosso olhar para compreender como esses saberes/
conhecimentos/métodos/técnicas podem contribuir na transformação das práticas
de ensino no ambiente formal e promoção de uma desierarquização do ensino de
música, compartimentado e baseado em uma parafernália disciplinar que separa os
conhecimentos para depois juntá-los, ou centrado na figura do professor.
Ainda, existe a priorização da escrita e do treinamento repetitivo ou exaustivo no
ensino musical, ou seja, “uma maquinaria pedagógica baseada em esquemas
de recompensa ou reforço (gratificação), que tornam ‘fazer música’ algo pesado”
(SANTOS, 2005, p. 52). Na educação musical informal, os saberes são apreendidos de
forma totalizante, integrados a outras linguagens (artes visuais, dança, teatro etc.) e
compartilhados, como se pode observar nos grupos de Bois Pintadinhos.
Integrar os conhecimentos, os saberes e as práticas da cultura popular aos espaços
formais de educação musical é também uma ação que caminha na direção da
interculturalidade crítica, como proposta por Catherine Walsh (2019), visando romper
com as assimetrias culturais que secularmente colonizaram o ensino, promovendo
a escola como um espaço de encontro de saberes, de partilha. A interculturalidade,
cabe ressaltar, conecta-se com a pedagogia de Paulo Freire (1987), no sentido de
mergulhar no universo cultural do educando, para com ele aprender e repensar as
trajetórias de aprendizagem. Cabe lembrar, como ele mesmo enfatiza, que ninguém
se educa sozinho, as pessoas se educam “em comunhão, mediatizados pelo mundo”
(FREIRE, 1987, p. 69).

Referências bibliográficas

ARROYO, Margarete. Transitando entre o “formal” e o “informal”: um relato sobre a


formação de educadores musicais. In: SIMPÓSIO PARANAENSE DE EDUCAÇÃO, 7.,
2000, Londrina. Anais… Londrina, p. 77-90, 2000.

CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6. ed. São Paulo:


Universidade de São Paulo, 1988.

205
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.

OLIVEIRA, Luiz Fernandes. Exclusão étnico-racial: um mapeamento das


desigualdadesétnico-raciais no município de Macaé. Macaé: Programa Macaé
Cidadão, 2005.

SANTOS, Regina Márcia Simão. Música, a realidade nas escolas e políticas de


formação. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 12, p. 49-56, mar. 2005.

SOUZA, Wilson dos Santos. Parem o trânsito que o boi vai passar: etnografia dos
Bois Pintadinhos no município de Macaé - RJ. 2020. 131f. Dissertação (Mestrado
em Políticas Sociais) — Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
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SOUZA, Jusamara. Múltiplos espaços e novas demandas profissionais:


reconfigurando o campo da educação musical. In: ENCONTRO ANUAL DA
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WALSH, Catherine. Interculturalidade e decolonialidade do poder: um pensamento


e posicionamento “outro” a partir da diferença colonial. Revista Eletrônica da
Faculdade de Direito da Universidade de Pelotas. v. 5, n. 1, jan./jul. 2019.

WILLE, Regiana Blank. Educação musical formal, não formal ou informal: um estudo
sobre processos de ensino e aprendizagem musical de adolescentes. Revista da
ABEM, Porto Alegre, v. 13, p. 39-48, set. 2005.

206
GT 8

EXPRESSÕES REGIONAIS
DO ROCK NO BRASIL
Coordenadores: Adler dos Santos Tatagiba (Instituto Federal Fluminense); Gustavo
Landim Soffiati (Instituto Federal Fluminense); Guintter Ferreira de Oliveira (Instituto
Federal Fluminense).

Surgido nos EUA, na década de 1950, a partir da fusão de gêneros musicais


marginalizados — o rhythm and blues, de negros descendentes de escravos, e o country
and western, de interioranos similares aos caipiras brasileiros —, o rock (inicialmente
rock and roll), mais que uma manifestação popular, tornou-se um produto da
indústria cultural exportado para todos os países do mundo, com mais êxito até que
o jazz e as modas muitas vezes dele derivadas (one-step, ragtime, black bottom). De
música simples e dançante, ao tornar-se apenas rock, sofreu várias transformações
ao longo de sua existência, incorporando mais peso (hard rock, heavy metal e
derivações), mais elaboração (progressive rock) ou mesmo buscando retomar algo
de seu espírito inicial (punk rock, new wave). Por meio de todos esses subgêneros, a
penetração do rock, um pouco em toda parte, mostrou-se incontrolável. Assumindo
maior ou menor cor local, às vezes em função da maleabilidade do subgênero mais
em voga (o rock progressivo incorporou, em muitos países, tradições ditas folclóricas),
o rock provoca discussões a respeito do potencial de fazer desaparecerem ou se
enfraquecerem ritmos tipicamente nacionais e regionais. Por outro lado, em um
mundo cada vez mais globalizado, cria tribos urbanas comparáveis a comunidades
tradicionais (rurais, indígenas), exigindo que o estudo do fenômeno considere não
apenas a música, mas os aspectos comportamentais partilhados por aqueles que a
ela aderem (vestuário, dialeto, ritos iniciáticos e de passagem). Em várias capitais e
cidades do interior do Brasil, essas características do rock também se manifestam há
décadas, em maior ou menor relação com expressões regionais ou nacionais com
alguma força. Em cidades brasileiras, como em outras do mundo todo, os primeiros
artistas e bandas de rock surgiram, em geral, (re)produzindo covers e/ou versões
de músicas estrangeiras, passando depois à constituição de repertório autoral.
Mapear nomes que estabeleceram a cena roqueira em cidades brasileiras e a forma
como se vincularam às particularidades históricas de cada município é o principal
objetivo deste GT, que se justifica pela consolidação de um público de atores ligados
ao gênero (músicos, fãs, produtores culturais, poderes públicos, empresários), em
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

busca de representatividade e visibilidade na sociedade, por meio de eventos mais


institucionalizados — em Campos dos Goytacazes (RJ), o Dia Municipal do Rock
Goitacá, fixado por lei pela Câmara dos Vereadores, e o bloco carnavalesco de rock
“Everybode” — ou de ações pontuais (shows, gravações de material para divulgação
e/ou comercialização).

208
“Há Muito Tempo Atrás, na Velha Bahia”: Raul
Seixas, habitus, identidade e juventude na
Salvador dos anos 1950 e 1960
Lucas Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
Janaína Campos Lobo
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira

Resumo

Este trabalho analisa a infância e juventude de Raul Seixas, em Salvador (1945-1967).


O objetivo central da investigação é compreender as bagagens social e familiar por
ele herdadas e a formação de sua identidade roqueira no bojo das transformações
econômicas, sociais e culturais em processo na capital baiana na metade do século XX.

Palavras-chave: Raul Seixas. Salvador. Música popular. Habitus.

Introdução

A análise da infância e adolescência de um artista tem suas armadilhas. É comum


tentar encontrar a precocidade do seu talento criativo, de modo a revigorar a ideia
da “genialidade inata” ou do “criador incriado”, como refere Bourdieu (1983). Por outro
lado, quando os anos de juventude de um artista explicam pouco o desenrolar de sua
carreira, ou mesmo características de sua obra, a investigação acaba se tornando um
componente acessório, um mero objeto de fruição para melômanos e aficionados.
No caso aqui estudado, a atenção deve ser redobrada. Raul Seixas fez de seu trabalho
artístico um grande palanque autobiográfico e reservou à sua infância papel decisivo
nesse processo. Foi a ela que o cantor se agarrou quando o declive da carreira se
fazia agudo. A publicação do seu diário de infância (SEIXAS, 1983), trabalho que reunia
escritos, desenhos e contos feitos pelo cantor, até os dezesseis anos de idade, foi peça-
chave em suas tentativas de reconversão, no momento que sua posição no campo1
musical era cada vez mais mirrada em termos de consagração e popularidade. Mas
esse uso simbólico de suas origens não foi uma exclusividade do cantor. Em vários

1
Sobre o conceito de campo artístico, ver Bourdieu (1996).
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

momentos, sua precedência natal serviu como atestado de seu talento artístico, para
muitos daqueles que assistiam ao desenrolar de sua carreira.
Raul Santos Seixas — ou Raulzito, como era chamado neste período em foco —
nasceu em Salvador, no dia 28 de junho de 1945, e foi coetâneo de outros sujeitos
importantes, que marcaram a vida artística do país, como: Glauber Rocha, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Waly Salomão, Gal Costa, Capinam e Maria Bethânia. Antes deles,
outros baianos ilustres já haviam inscrito seus nomes na história cultural brasileira, a
começar por Gregório de Matos, Castro Alves, passando por Dorival Caymmi, Jorge
Amado e João Gilberto.
Toda essa qualificada genealogia fez da cuna baiana um “capital simbólico” valorizado
no campo musical brasileiro, na década de 1970. “Raul Santos Seixas: o mais novo e
igualmente sensacional baiano que chega”, anunciava Oliveira, no Jornal do Brasil, após
seu disco de estreia pela Philips, em 19732. O cantor foi, várias vezes, colocado como
uma espécie de epígono, um continuador criativo dos baianos que o antecederam.
Mas, artisticamente, Raul Seixas afirmou, em suas letras, uma descontinuidade com
seus antecessores. “Tenho 48 quilos certo/ 48 quilos de baião/ Não vou cantar como
a cigarra canta/ Mas desse meu canto eu não lhe abro mão” (“Krig-ha, Bandolo!”,
Philips, 1973), metaforizava o cantor em referência às suas origens e planos futuros.
Em “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” (Gita, Philips, 1974), era contra a
organicidade do termo “linha evolutiva”, cunhado por Caetano Veloso, em 1967, que o
roqueiro se insurgia: “Acredite que eu não tenho nada a ver com a ‘linha evolutiva’ da
música popular brasileira”.

Fundamentação teórica

Mesmo sendo simbólicas essas noções de comunidade e nacionalidade, como


alerta Anderson (2008), esse referencial geográfico/simbólico foi um parâmetro
importante de definição identitária dos indivíduos. Seria, por exemplo, o território da
“Bahia mitológica” o critério usado ao definir a identidade e, evidentemente, talento de
muitos baianos que despontavam no campo musical na década de 1970. O jornalista
Sérgio Cabral, ao analisar o rock nacional, em 1975, assim escreve: “Não conheço
nada mais subdesenvolvido, mais pobre que o chamado rock brasileiro” (CABRAL,
1975). Apesar do pessimismo, o crítico faz suas reservas: “Mas Raul Seixas é um caso
à parte. É baiano e deve ter dentro dele quatro séculos de criatividade baiana, coisa
da qual ninguém pode escapar vivendo lá”3.
Já se conta com uma vasta literatura que discute a autoridade desse conjunto de
estruturas mais amplas de modelação identitária, como nacionalidade, regionalidade

2
Jornal do Brasil 9/09/1973, p. 61.
3
O Globo 13/11/1975, p. 35.

210
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

ou cultura, e a capacidade que os indivíduos têm de negociar com tais constrangimentos


na formação de suas identidades e estilo de vida (GUERRA; ALVES; SOUZA, 2015). Um
processo tensivo, que coloca, de um lado, as constrições próprias das localidades de
origem dos sujeitos (cultura, economia e nacionalidade) e, de outro, formas alternativas
de identidades, forjadas através de informações culturais diversas e sentidos atribuídos
a bens de consumo e produtos artísticos (HALL, 2006; GUERRA, 2010).
Uma noção importante para se compreender a formação da identidade de Raul Seixas,
nos anos iniciais de sua socialização, vem da ideia self. O conceito pensa a formação
identitária como uma dimensão negociada socialmente no processo interativo, uma
barganha entre as aspirações que os indivíduos têm de si e as expectativas depositadas
nos “papéis sociais” que eles buscam interpretar. Mead (1972) fala de um self construído
pela mediação constante de um EU, a tendência impulsiva do indivíduo, seu estímulo
mais íntimo e desejoso, e o MIM, aquilo que a sociedade espera do sujeito em uma
dada interação, uma espécie de indivíduo convencional, generalizado. Goffman (1981,
1985), por meio da metáfora teatral, traz a possibilidade de pensar não em um, mas em
vários selfs, construídos a partir das habilidades individuais que os sujeitos possuem
de interpretar certos “papéis sociais” e cumprirem as exigências que cada função lhes
impõe (vestuário, entonação vocal, script).

Desenvolvimento da pesquisa

É preciso entender, minimamente, que Bahia é essa que enchia os olhos de tanta
gente. Grosso modo, fala-se sobre um local mitológico, ponte originária com a África,
caldeirão fundamental de nossa miscigenação, uma espécie de “célula mater” de
um Brasil híbrido, cultural e geneticamente. Nas palavras de Oliveira (2002), a cultura
baiana tornou-se uma grandiosa usina sígnica, a qual foi inspiração abundante
para a “cena cultural brasileira ao longo do tempo. Uma cultura tão rica e fortemente
criativa que inscreveu a Bahia no universo mitológico do Brasil. Sim, a Bahia é um mito
que habita o imaginário nacional” (OLIVEIRA, 2002, p. 45).
Na canção “Rock’n’roll” (LP Panela do Diano, WEA-1989)4, Raul Seixas remonta o tenso
cenário cultural que sobre ele incidia, e as dificuldades de se adotar uma identidade
insólita, forasteira da Bahia de sua juventude (“As pessoas se afastavam pensando
que eu tava tendo um ataque de epilepsia”). Por isso, Raul Seixas zomba, faz chacota
com duas fortes tradições culturais que sobre ele pesavam na Salvador de 1950-1960.
De um lado, a bossa nova (na canção chamada de “Bosta Nova”), que, após o sucesso

4
“Há muito tempo atrás, na velha Bahia/ Eu imitava Little Richard e me contorcia/ As pessoas se
afastavam pensando/ Que eu tava tendo um ataque de epilepsia (de epilepsia)/ No teatro Vila
Velha/ Velho conceito de moral/ Bosta Nova pra universitário/ Gente fina, intelectual/ Oxalá, oxum
dendê oxossi de não sei o quê”.

211
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

do baiano João Gilberto, angariava fãs e seguidores pelo Brasil; de outro, as ancestrais
culturas negras, expressas em religiões de matriz africana, como o candomblé, tão
marcantes em chão baiano (“Oxalá, oxum dendê oxossi de não sei o quê”).
Se analisada pelo viés da interação, a Salvador natal de Raul Seixas realmente não
era a mesma da de Caetano Veloso. Enquanto o tropicalista se via às voltas com
principiantes artistas e intelectuais, que rondavam a Universidade Federal da Bahia,
como Gilberto Gil, o cineasta Glauber Rocha, o teatrólogo Álvaro Guimarães, o poeta
e cronista Duda Machado e os versáteis artistas da Sociedade Teatro dos Novos5, a
sociabilidade de Raul Seixas se dava entre grupos bem menos prestigiados e quase
anônimos em suas lembranças:

“a empregada lá de casa era minha fã. Chegou uma vez para minha mãe e
disse que tinha dançado comigo [...]. Eu ia dançar também com o pessoal da TR
(uma transportadora de lixa). Era a moçada que que curtia rock”, “só empregada
doméstica, chofer de caminhão” (SEIXAS apud PASSOS, 1990, p. 47, p. 130).

Embora carregasse, com orgulho, sua origem, o cantor fez sempre questão de
se posicionar como uma espécie de dissidente ou possuidor de uma bagagem
sociocultural diferente de seus conterrâneos. Dizia Raul Seixas: “Sou tão baiano como
Cae e Gil, adoro a Bahia etc., mas não vim com o Tropicalismo. Apesar de adorar e
admirar aquele trabalho tão importante, eu sempre estive no rock, desde 1957” (SEIXAS
apud SOUZA,1993, p. 14).
Curiosamente, Caetano Veloso e Gilberto Gil, artistas que mais proximamente
estiveram às vistas de Raul Seixas na Salvador de sua mocidade, foram os alvos
prediletos do cantor em suas irônicas declarações. Caetano Veloso, várias vezes, foi
lembrado pelo esnobismo com que tratava os roqueiros baianos de 1960, e Gilberto
Gil chegou a ser chamado de “prostituto” por Raul Seixas, quando aquele anunciou
seus planos de ser prefeito de Salvador (SOUZA, 2016).

Conclusões

A análise que aqui se esboçou não se refere ao artista Raul Seixas, mas aos anos
de maturação do jovem Raulzito, à bagagem cultural que ele herda e à maneira
como se coloca como herdeiro. Dessa forma, é possível compreender como tal
herança se transforma em uma “estrutura durável” de sua personalidade, um habitus
propriamente dito, capaz de orientar sua trajetória futura e, consequentemente, sua
obra musical.

5
Entre eles, João Augusto Azevedo, Carlos Petrovich, Sonia Robatto, Tereza Sá, Carmen Bittencourt,
Martha Overbeck, Echio Reis e Othon Bastos (ver: VELOSO, 1997; DRUMMOND, NOLASCO, 2017).

212
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

Referências bibliográficas

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do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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PASSOS, Silvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 1990.

SEIXAS, Raul. As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. Rio de Janeiro: Shogun
Art, 1983.

213
Ascensão e Queda de Celly Campelo:
uma análise sociológica

Marcelo Garson
Universidade Federal do Paraná

Resumo

Na metade dos anos de 1950, o rock and roll tenta se instalar no Brasil, representando
uma “juventude transviada” com signos a serem repelidos. Este artigo objetiva
explicar como Celly Campelo faz uma transição segura para um momento cultural
de notoriedade da juventude e do gênero no país.

Palavras-chave: Juventude. Rock and roll. Celly Campelo.

Introdução

A partir de meados da década de 1950, o rock and roll tenta se instalar no cenário
musical brasileiro. Tomado como excentricidade e moda passageira, de pouca
notoriedade midiática gozava o novo gênero que colocava a juventude em seu
epicentro. O pânico moral instalado em 1958, a partir do caso Aída Curi, no qual dois
jovens da classe média carioca eram acusados do estupro e sumiço de cadáver de
uma moça “ingênua”, piorava ainda mais o quadro. Tornou-se conveniente repelir os
signos dessa “juventude transviada”, o que incluía o rock and roll. Entretanto, um ano
depois, a jovem Celly Campelo explode com o sucesso “Estúpido Cupido”, o que lhe
valerá o comando de um programa de auditório, além de ter seu nome associado a
bonecas, bicicletas e chocolates.
Este artigo tem por objetivo explicar como se construiu o fenômeno Celly Campelo.
Nesse tocante, interessa-nos analisar em que medida sua imagem pública dialogava
com dois universos. Um deles apontava para uma nova juventude em ascensão,
eivada de influências norte-americanas, e o outro para a imagem respeitável
e apoiada na família e na tradição, que as maduras artistas do rádio, então em
declínio, ainda exibiam. Neutralizando o rótulo de transviada, a cantora permitiu uma
transição segura para um novo momento cultural em que a juventude e o rock and
roll conquistaram notoriedade no cenário musical brasileiro.
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

Fundamentação teórica

A condição de jovem só em parte explica a construção da imagem de Celly.


Para compreendê-la, é necessário investigar as expectativas morais dirigidas às
cantoras de música popular como um todo. Os semanários radiofônicos eram úteis
nesse sentido. As cantoras eram estigmatizadas por se lançarem na vida pública.
No intuito de forjar uma aura respeitável para a classe artística, os semanários
acabavam funcionando como dispositivos de controle social. Eram constantes as
matérias que sinalizavam o dever moral das artistas em gerenciar a carreira sem o
prejuízo da vida privada.
Um exemplo está na série “As Estrelas Também São Donas de Casa”, publicada na
Revista do Rádio em 1959. “A artista [...] faz questão ela própria de cuidar de suas
coisas e das de seu marido, é no lar que a cantora passa os melhores momentos de
sua vida”; “Conchita é dona de casa encantadora, o seu amor ao palco não rouba
a sua dedicação ainda maior ao lar”; “Hebe adora o rádio e a TV, mas seu lar está
em primeiro lugar” (REVISTA DO RÁDIO, 1960). Tais frases sinalizam que a vida pública
nunca poderia ofuscar o cuidado ao lar e à família. Pois é essa a mesma cobrança
feita a Celly já em seu início de carreira:

RR: Acredita que o casamento prejudicaria sua vida de cantora?

CC: Só quero que a vida de cantora não prejudique o casamento, pois, se isso
acontecer, não trocarei o casamento pelo microfone (REVISTA DO RÁDIO, 1960, p. 14).

O ano de 1959 é marcado pelo lançamento de “Estúpido Cupido”, compacto que deu
a Celly Campello o título de rainha do rock and roll, legitimando um estilo musical até
então visto como moda passageira. Iniciada profissionalmente pelo irmão e parceiro
artístico Tony, Celly lançou seis LPs, comandou um programa musical e emprestou
seu nome para o lançamento de bonecas, chocolates e bicicletas. Tudo isso até
1962, quando se casa e deixa o microfone, no auge do sucesso. Na década seguinte,
ensaiaria uma tentativa malsucedida de retorno.
Diversas razões explicam o fim de sua carreira. As dificuldades que se colocavam
às profissionais da música incluíam uma rotina atribulada — que envolvia a presença
diária em programas de rádio e TV, gravações de disco, sessões de entrevistas e
viagens — em um meio extremamente competitivo cujo grau de profissionalização
incipiente tornava compulsória a inserção em redes de amizade e compadrio. No caso
das mulheres, isso as sujeitava a toda a sorte de assédios em espaços com postos
de comando — rádio, TV e gravadoras — fundamentalmente ocupados por homens.
Colocadas na mira dos holofotes, elas assumiam o papel de objetos de fascínio, desejo
e consumo. Eram corriqueiras as comparações entre atrizes, cantoras e prostitutas.
Em São Paulo, todas elas deveriam munir-se da mesma “carteira rosa”, o registro

215
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

emitido pelo Departamento de Diversões Públicas. Recrutadas majoritariamente nas


classes populares e, portanto, dispondo de poucas chances de ascensão social; era
a isso que as cantoras tinham que se sujeitar.
A diferença era bastante grande se comparada às oportunidades e ao cotidiano
que a tímida Celly experimentava no seio de uma tradicional família de classe
média na pacata Taubaté dos anos 1950. Tudo isso explica as inúmeras hesitações
experimentadas pela cantora, bem como a presença constante do pai e do irmão
na gestão de sua carreira, uma tentativa de protegê-la material e simbolicamente
dos perigos do mundo artístico. Nesse sentido, compreender a trajetória de Celly é
colocar a dimensão do gênero e da classe em destaque.
Outro complicador em sua carreira é o tipo de música ao qual se dedicava. Enquanto
os maiores ídolos de então, como Cauby Peixoto e Ângela Maria, investiam em
um grande número de estilos musicais — samba-canção, bolero, tango, rumba —,
nenhum deles segmentado por faixa etária (LENHARO, 1995), Celly apostava em um
só estilo musical, o rock and roll, endereçado a um público específico, a juventude,
segmento ainda inexistente em nosso mercado musical.

Desenvolvimento da pesquisa

Os primeiros rumores sobre o rock and roll chegaram ao Brasil no meio dos anos
de 1950, em discos de Bill Haley e Elvis Presley e em filmes como “Ao Balanço das
Horas”, que popularizou os complexos passos de dança que acompanhavam o rock,
e “Prisioneiro do Rock”, em que os rebolados e rebeldia de Presley ajudaram a selar a
associação entre rock e rebeldia. Como resultado, ao fim daquela década, o status
público do rock and roll oscilava entre o escárnio — presente em chanchadas, como
“Metido a Bacana”, em que Grande Otelo imitava Elvis — e o temor, como produto
das associações do gênero aos jovens delinquentes de classe média, a chamada
“juventude transviada”, que então ganhavam as páginas da imprensa policial. Tudo
isso levava a uma descrença no futuro do gênero, tratado como moda passageira.
Isso tudo não impediu Celly Campelo de legitimar o rock and roll diante do público e
da indústria. Compreender essas estratégias de legitimação nos levam a analisar a
construção de sua imagem pública; esse é o objetivo deste texto. Para tanto, mobilizo
as dimensões do gênero e da geração, o que permitirá analisar os lugares sociais, as
expectativas e os constrangimentos reservados à mulher e à juventude no campo
musical brasileiro (BOURDIEU, 2005), bem como de que maneira eles se traduziram
em tomadas de posição específicas ao longo da curta trajetória da cantora.
Nascida Célia Benelli Campello, em 1942, Celly passou toda a infância e juventude
em Taubaté, em uma família de classe média. Seu pai, um ex-taquígrafo, coordenou
a instalação de uma unidade do SENAC e atuou como vereador e diretor do Country

216
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

Club e Rotary Club, garantindo conforto e prestígio local à família. A estreia de Celly
no microfone se deu aos seis anos, em um programa local de talentos mirins, sem
pretensões profissionais. Aos quinze anos já se apresentava sistematicamente
na Rádio Difusora de Taubaté. Quando a música jovem inexistia como segmento
de mercado, era de Ângela Maria que Celly copiava repertório e trejeitos. Em 1958,
lançou seu primeiro compacto, que converteu Célia e o irmão Sérgio em Celly e Tony
Campello (MENEZES, 1996).
O terceiro lançamento já conta com o seu grande hit, “Estúpido Cupido”, uma versão
de “Stupid Cupid”, de Neil Sedaka. Até se casar, em 1962, emplacou diversos sucessos,
como “Banho de Lua”, “Broto Certinho” e “Lacinhos Cor de Rosa”. Seu repertório é
fundamentalmente composto de versões das baladas melódicas de Paul Anka e
Neil Sedaka, que se tornaram ídolos ao levar rock and roll para a televisão norte-
americana e adaptá-lo ao gosto da classe média branca. O sorriso, o figurino e o corte
de cabelo de Celly eram diretamente inspirados em artistas como Connie Francis,
uma intérprete de Sedaka. As letras em português seguiam o mesmo receituário
de suas matrizes estrangeiras: falavam de bailinhos, lambretas e namoros juvenis,
mas ainda ensinavam os adolescentes a se comportarem segundo as normas da
escola1, da família2 e da igreja3. Seu andamento instrumental permitia a assimilação
pelo público massivo, acostumado ao tratamento melódico-romântico do samba-
canção, tango ou bolero.
Os tributos morais que Celly prestava à instituição familiar não estavam só em
suas falas ou nas letras pudicas de suas canções, mas sobretudo na maneira como
converteu seus laços familiares em arranjos profissionais. Seu irmão viabilizou sua
carreira musical desde o início: foi com ele que fez dupla em seu primeiro disco
gravado e foi também ele seu par na apresentação do musical televisivo “Crush em
Hi-fi”. Um pouco menos evidente, mas não menos importante, é a figura de seu pai,
que se fez às vezes de empresário. Ele estava presente nas gravações, audiências
públicas e entregas de prêmios, além de administrar tudo o que Celly ganhava: “O
seu pai faz questão de lhe dar tudo o que precisa, tal como fazia antes de Celly ser
cantora e ganhar dinheiro”.
É surpreendente o controle que o pai detém sobre a narrativa da filha: são inúmeras
as vezes em que nome e fotos dele aparecem nos registros da época. A mãe, pelo
contrário, é praticamente inexistente. Em uma de suas raras fotos publicadas, aparece
ao lado dos filhos, não por acaso, servindo o jantar. Fica claro, portanto, que Celly

1
Como em “Mandamentos do Broto”: “Para um futuro com juízo/ E uma vida regular/ Não se esqueça
que é preciso/ Estudar, sempre estudar!”.
2
Como em “Querida Mamãe”: “Mamãe, mamãe...A filha que escreve, um beijo lhe manda/ E vai dormir/
E quer também, a benção pedir/ E logo dormir/ Sonhar, sonhar, com seu amor”.
3
Como em “Broto Certinho”: “Rostinho que mamãe beijou/ Playboy nenhum vai beijar/ Quando eu
crescer então eu vou/ Dizer com quem vou casar”.

217
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL

havia introjetado, desde muito cedo, a necessidade de cuidar da família seguindo


o receituário caro não somente a uma jovem, mas sobretudo a toda mulher que se
lançasse na vida pública.

Conclusões

A partir de pesquisa textual, sonora e iconográfica, este trabalhou buscou compreender


como Celly encarnou em alto grau a figura do “broto certinho”: esforçada, organizada,
religiosa, boa aluna e dedicada à família eram traços enfatizados tanto em suas
canções como em reportagens da imprensa. Esse tipo de imagem foi fundamental
para criar um solo seguro para o consumo do rock and roll no Brasil, ao despi-lo de
quaisquer associações com o desvio.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005.

CELLY Campelo diz quem é seu namorado. Revista do Rádio, Rio de Janeiro, v. 589, p.
14-14, nov. 1960.

LENHARO, Alcir. Cantores do rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart no meio
artístico do seu tempo. Campinas: Unicamp, 1995.

MENEZES, Thiago. Celly Campello: a rainha dos anos dourados. São Paulo: João
Scortecci, 1996.

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Tipologia Open Sans (Capa e Miolo)
Avone (Capa)
Public Secret (Capa)
Dancing Script (Capa e Miolo)
Poppins (Miolo)
Formato 21 x 29,7 cm

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