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I Jornada
Interdisciplinar
de expressões culturais
I Jornada
Interdisciplinar
de expressões culturais
2022
© 2022 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Todos os direitos reservados. All rights reserved.
*Os capítulos são de inteira responsabilidade dos autores.
FICHA CATALOGRÁFICA
Preparada pela Biblioteca do CCH / UENF
CDD : 306.484
Conselho Editorial:
Leonardo Rogério Miguel
Maura Cunha
Sérgio Arruda de Moura
Claudia Lopes Prins
Roberto Trindade F. Junior
Ana Bianca Rocha Miranda
Revisão textual:
Letícia Cunha Braga
Ilustrações da capa:
Iasmine dos Santos Ribeiro Machado
Catalogação:
Biblioteca do CCH - UENF
EdUENF
Editora da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
E-mail: eduenf@uenf.br
www.uenf.br/extensao/editora
Av. Alberto Lamego, 2000 – Parque Califórnia – Campos dos Goytacazes – RJ – CEP: 28013-602
Sumário
Apresentação 07
Agradecimentos 09
Prefácio – Giovane do Nascimento 10
GT 1 12
MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Mestre Juvenal Tocador e a Capoeira Insubmissa: a musicalidade 13
da capoeira como forma de resistência
Caxambu de Andorinha: experiência do protagonismo cultural 20
no município de Jerônimo Monteiro
Identidade e Memória Afro-amapaense na Poética dos Versos 25
do Batuque Raízes do Bolão
A Musicalidade da Capoeira e suas Conexões com Outras 30
Manifestações Afro-descendentes
A Afrocentricidade dos Povos Bantu na Cadência do Samba: 40
tagarelando as influências das artes, sons, músicas, histórias,
culturas e línguas de origens africanas no chão da escola
Diálogos Culturais no Norte Fluminense: a Mana-Chica do Caboio 46
e o fado de Quissamã
GT 2 51
CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE
FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
A Rua e a Rede como Palco dos Territórios nas Batalhas de Poesia 52
do Slam das Minas — RJ
A Performance Cultural de Clara Nunes 58
Jogos e Cantigas Tradicionais na Preparação da Cena de Teatro: 65
escrevivências e memórias do corpo negro no processo de
criação cênica
Reflexões Errantes sobre Cidade e as Artes da Cena: devoração 73
cultural em Campos dos Goytacazes
Três Décadas de Resistência da Cultura Negra no Município de 80
Campos dos Goytacazes: um relato de experiência do Núcleo de
Arte e Cultura de Campos (NACC)
Travessias e Atravessamentos de uma Corpo-saia Rodante 85
“Na Boca de Quem não Presta Pombagira é Vagabunda”: 92
revisitando o olhar sobre as Pombogiras
Identidades a Flor de Piel: a performance da palenquera em 99
Cartagena das Índias
GT 3 104
COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
A Polifonia do Espaço: walkscapes, urbanismo tático e 105
territorialidade sônica
Corporalidades Negras em Festa: relatos de viajantes estrangeiros 110
no Rio de Janeiro do século XIX
(Ins)Urgências Poéticas: Bk’ e o endereçamento no rap 116
contemporâneo
Conexões entre Locos de Rua e Torcidas de Futebol: a musicalidade 122
da Fanfarra Festiva Tricolor e do bloco da Urubuzada
GT 4 126
EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS E CONTAÇÃO DE
HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
A Formação das Expressões Socioculturais da Comunidade 127
Pesqueira Artesanal de Arraial do Cabo, Região dos Lagos/RJ:
“ser cabista é ser pescador”
Memórias do Povo Indígena da Etnia Puri: identidade(s) e 133
ressurgência
Histórias com Cheiro de Barro E Tanino 138
Narrativas de Marcelo Reis e as Memórias de um Legado Musical 143
Geracional
Memórias e Práticas Culturais na Sociedade Musical Usina Santa 149
Maria (SMUSM)
GT 5 156
A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA:
MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
A Presença da Música Cortesã de Matriz Europeia na Laje do 157
Muriaé do Último Quartel do Século XIX: uma conquista da mente
e uma conquista de mentes na região Noroeste Fluminense
Memória e Resistência da Lyra de Apollo: aspectos histórico- 163
musicais da banda campista no século XX
GT 6 169
MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Conexões entre o Ensino de Música em Aulas On-Line em Grupo e 170
a Saúde Mental dos Discentes: diálogos no “novo normal”
Musicoterapia em Grupos com Autismo: relato de experiência 177
GT 7 184
POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Arte e Interdisciplinaridade: a inserção de saberes e a expressão 189
de emoções através de ferramentas musicais
O Papel da Música na Educação Infantil: uma experiência 194
criadora
Bois Pintadinhos: apontamentos para uma investigação acerca 201
de aprendizagens informais em música
GT 8 207
EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
“Há Muito Tempo Atrás, na Velha Bahia”: Raul Seixas, habitus, 209
identidade e juventude na Salvador dos anos 1950 e 1960
Ascensão e Queda de Celly Campelo: uma análise sociológica 214
Apresentação
À vista disso, este e-book foi construído com os trabalhos apresentados durante
a I JINECULT, o que nos faz rememorar discussões que expandiram os debates e
proporcionaram uma visão mais ampliada da cultura e reconhecer que é possível
aproximar o científico do popular, o nosso maior propósito. Comemoremos, portanto,
essa conquista coletiva!
8
Agradecimentos
todo dessa sociedade; além disso, o que é instituído socialmente não se dá por um só
indivíduo, mas é um resultante do que Castoriadis irá chamar de coletivo anônimo1.
Nesse sentido, buscamos materializar, de alguma maneira, as mais variadas
formas de expressões culturais através da nossa I Jornada de Expressões Culturais
(JINECULT), realizada on-line. Os textos que vêm a seguir reúnem, na medida do
possível, a riqueza das discussões dos mais variados estilos, formas e modos de
vida tendo como base principal as culturas brasileiras. Cuidando de não cometer
o equívoco de uma hierarquia de saberes, ou mais ainda, evitando estabelecer
distinções qualitativas entre “saber” e “conhecer”, promovemos uma interlocução
que contemplasse os fazedores de cultura numa horizontalidade capaz de nos trazer
o fulcro do fenômeno cultural apresentado, em muitas situações, pela potência e
autoridade do(a) griot, do(a) sambista, do(a) fadista, do(a) jongueiro(a), de músicos,
musicistas e mestres(as) de bandas civis. Desse modo, chegamos a esse resultado
que muito nos orgulha e acreditamos ser uma forma justa de se estabelecer um
diálogo para, a partir deste, sermos fortalecidos por um modo democrático desde
sempre praticado nos terreiros, guardando a dimensão comunitária, em que canto,
dança e percussão formam um todo. É importante registrar a fecunda parceria
entre a Universidade Estadual Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e o Instituto Federal
Fluminense de Campos dos Goytacazes, sobretudo devido ao belíssimo trabalho
realizado pela Rádio IFF Educativa, que nos permitiu o contato com os mais variados
lugares do Brasil. Foi através desse modo de organização que nos deixamos construir
pelas ações desse processo, iniciado e mantido pelo grupo de estudos — composto
por pesquisadores(as), mestres(as) e fazedores(as) de cultura em geral. O trabalho
se estabeleceu, por diversas mãos, nos moldes de uma auto-organização e
autorregulação coletivas para, quem sabe, ser início de tantas outras ações a serem
desenvolvidas no trajeto do nosso coletivo anônimo.
Giovane do Nascimento.
1
Cornelius Castoriadis. Uma sociedade à deriva. São Paulo: Idéias e Letras, 2006, p. 65-67.
11
GT 1
MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E
IDENTIDADE CULTURAL
Coordenadores: Diego Bezerra Belfante (Universidade Federal do Ceará), Hermetac
Leite dos Santos (Universidade Federal do Ceará) e Joel Alves Bezerra (Universidade
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).
Resumo
Introdução
confundidas, tornando impossível que se fale sobre a capoeira sem falar sobre
esses mestres. No entanto, nem todos os mestres que atuaram para que a capoeira
conseguisse subsistir e superar as perseguições estatais têm hoje seus nomes
reconhecidos. Muitos mestres tiveram seus nomes subsumidos da memória, sendo por
vezes apenas isso que restou desses mestres, seus nomes, que perderam seu sentido
para os capoeiristas de hoje. Outros nem mesmo possuem seus nomes conhecidos,
transformando-se em completos desconhecidos para as gerações atuais.
A lógica que rege a construção das narrativas de capoeira busca criar uma
consciência plena do passado, em que se constrói um todo coerente por meio de
uma consciência que tudo busca englobar. As lacunas não podem ser admitidas,
devem ser preenchidas com a imaginação para que o legado da capoeira seja
mantido. Assim, capoeiristas procuram fazer uma genealogia, por assim dizer, de
suas linhagens, de quais mestres seus mestres e os mestres deles aprenderam a
tradição. Mas nem sempre tal esforço é frutífero. As dinâmicas sociais, os trabalhos
da memória e os interesses transformam a capoeira. Estão sempre em ação, fazendo
com que acontecimentos e sujeitos antes vistos como fundamentais para capoeira
possam perder importância. Em ambos os casos, seus feitos e sua participação na
capoeira caíram nos domínios do esquecimento. Alguns em maior e outros em menor
grau sofreram um processo de apagamento da memória coletiva.
Ao contrário do que se possa pensar, isso não se deu apenas com capoeiristas de
tempos remotos, quando capoeiristas tinham apenas a memória como forma de
salvaguardar a história da capoeira. Isso se deu também com mestres do século
vinte, tais qual o Mestre Juvenal Hermenegildo da Cruz. Um ativo capoeirista angoleiro
baiano até a primeira metade do século XX. Nosso ensaio busca tratar desse mestre
e suas relações com a capoeira e sociedade baiana nos meados do século XX. Na
década de 1940, ele possuía grande destaque na capoeira, sendo ligado a mestres
famosos, como Samuel Querido de Deus, imortalizado pela pena de Jorge Amado.
Em obras como “Bahia de Todos-os-Santos: guia de ruas e mistérios da cidade de
Salvador” (1944), de forma breve o Mestre Juvenal também é citado, mas, com o
passar das décadas, esse mestre foi sendo esquecido. E é sobre esse processo que
falaremos brevemente neste pequeno texto.
14
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Desenvolvimento da pesquisa
Há muito ainda para se pesquisar sobre Mestre Juvenal. Nossa pesquisa só arranha
a superfície do mistério que resultou no seu esquecimento. Um dos registros que hoje
nos permite conhecer um pouco mais sobre o mestre é a gravação que este realizou
para o pesquisador Lourenço Turner no ano de 1940. Essa foi peculiar em comparação
com demais gravações que Turner efetuou com outros mestres de capoeira, como
Bimba. Geralmente, os mestres realizavam a execução de toques de capoeira e
cantavam cantigas tradicionais. Essa era, aliás, uma prática que acontecia na
presença de vários pesquisadores, como Simone Dreyffus, que gravou com mestre
Waldemar no ano de 1940, e Ruthe Lages, que fez gravações com capoeiristas baianos,
mas a gravação que Lourenzo fez com Juvenal se caracteriza pelos cantos de louvor
aos orixás. Era incomum que, nas gravações feitas nas décadas posteriores, mestres
de capoeira fizessem menção de forma aberta a elementos de religiões de matriz
africana. Juvenal não apenas mencionava, como não pareceu ter qualquer medo de
fazer, rompendo, assim, uma espécie de acordo velado.
Diferente de artistas e compositores consagrados, os mestres de capoeira pareciam
evitar citar diretamente os orixás em suas gravações. Algo que mudou aos poucos
já na década de 1980, ao ponto de, nos anos 2000, ter possibilitado que mestre
Toni Vargas gravasse um álbum inteiro dedicado a Obaluaê, seu orixá. Porém, em
1940 o preconceito e perseguição a práticas de matriz africana estavam na pauta
do dia. Com exceção de intelectuais que se apropriam de temas da religiosidade
africana para fazer, por assim dizer, arte, como o álbum Os Afro-Sambas, ver mestres
de capoeira falando tão abertamente sobre os orixás, e mais ainda gravando, não
seria algo visto com bons olhos pela sociedade. Assim, devemos supor que, se as
gravações feitas por Turner com Mestre Juvenal fossem transformadas na época em
um LP comercial, provavelmente gerariam um estardalhaço. Talvez a não adequação
ou não aceitação das regras do jogo fizeram com que Juvenal fosse, apesar de sua
fama, uma figura à margem. Corrobora essa nossa suposição a declaração de Mestre
Juvenal em sua entrevista a Cláudio Tavares, em que fez o seguinte pronunciamento
sobre a capoeira regional:
15
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Para Mestre Juvenal, a capoeira regional, na época apenas regional, se diferia não
apenas por suas características, mas por suas finalidades — sendo bruta, e não suave;
não agindo com malemolência e jogo de cintura; partindo para o enfrentamento
bruto, e não para a leveza. Assim, não se inserindo na lógica das táticas que agem
para subverter as lógicas dos poderosos (CERTEAU, 2010). Era como se Bimba
encarnasse a brutalidade, em contraste com os angoleiros, que, na luta de gato e
rato, sempre escapavam da caçada por sua destreza e esperteza. Em trecho mais
à frente da entrevista, Juvenal fala que a capoeira de Bimba seria para salões e
filhos de bacana, enquanto a Capoeira Angola seria a verdadeira capoeira. Isso não
significa que as contradições de Bimba fossem apenas a de ensinar capoeira para a
elite que perseguiu os capoeiristas. Bimba parecia estar ciente dessa contradição e
usava essa posição para finalidades de que sua visão sobre a capoeira necessitava:
Assim, Bimba estaria, segundo o que coloca Nestor Capoeira, agindo com
dissimulação, arregimentando aliados para difundir a capoeira, lutando para que a
prática saísse da ilegalidade. Enquanto isso, Juvenal e outros capoeiristas construíam
relações indiretas com o poder, buscavam a mediação dos intelectuais. Um jogo
em que se mostravam aos intelectuais em busca de apoio, ao mesmo tempo que
mantinham sobre si a aura de mistério e autonomia; penetravam no imaginário
social, desfazendo a imagem de desordeiros e construindo a do misticismo.
Na luta de táticas para legitimação da capoeira, não houve apenas um vencedor. Por
mais que a maneira que Bimba tenha construído seja a base para muito do que hoje
é a relação que a capoeira mantém com a sociedade, as bases do discurso sobre
a natureza da capoeira são a dos angoleiros. No entanto, nem sempre foi possível
aglutinar posições para construção da prática social da capoeira. Na disputa fora
da roda, perdeu Juvenal e ganhou Bimba. Essa capoeira mais de rua perdeu espaço
perante as academias de capoeira. E a figura de Juvenal foi esquecida.
Mas sua rixa com Bimba não significa que Mestre Juvenal estava desinteressado
em traçar relações agregadoras. Com capoeiristas angoleiros, a relação parece de
camaradagem, sendo citado por Jorge Amado, em seu “Bahia de Todos-os-Santos”
(1944), em conjunto com outros capoeiristas de Salvador, algo que parece influenciar
a forma como os pesquisadores atuais lidam com a figura de Mestre Juvenal. Talvez
isso decorra das poucas fontes que possuímos do mestre ou quem sabe a forma
como os intelectuais da década de 1960 enquadravam as relações dos mestres de
16
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
capoeira baianos do início do século XX. No entanto, ele buscava outros caminhos
para tal. Caminhos mais insubmissos.
Se a situação e possibilidades que Juvenal encontrava eram mais restritas, por
assim dizer, que as de Bimba, tudo piorou quando em 1964 os militares, em conjunto
com certos setores da sociedade civil, deram um golpe. E, diferente do que se possa
pensar, a ditadura demonstra interesse na capoeira, iniciando, assim, um processo
de tutelamento da capoeira. Devemos ter em mente que a legalização da capoeira
pode ter ocorrido nos idos dos anos de 1940. Mas a consolidação de sua legitimidade
diante da sociedade brasileira se deu durante os anos de 1960, durante a ditadura
militar. E esta buscou tutelar a capoeira limpando seus elementos subversivos. Tal
esforço não foi bem-sucedido, ou ao menos não por completo, mesmo assim deixou
marcas. Entre as marcas, podemos supor que mestres de capoeira com discursos
vistos como ameaçadores foram calados ou cooptados. Entre os discursos vistos
como perigosos estava a afirmação dos elementos de matriz africana da capoeira.
Assim como falas que induziam a noção de luta de classes. Juvenal se encaixava em
ambas. Por tanto, era um sujeito altamente subversivo.
Não podemos afirmar que o sumiço de sua memória foi devido a uma ação direta de
agentes da repressão estatal, mas podemos afirmar que o apagamento da memória
de Mestre Juvenal possui alguma relação com esse processo de tutela da capoeira,
o que auxiliou nesse acontecimento, uma vez que, como podemos notar, durante a
década de 1960, a memória de Mestre Juvenal era viva. Conforme a década de 1970
consolidava a interferência do regime militar, a memória de Juvenal ia caindo no
esquecimento. O trecho que se segue será uma tentativa de compreender como se
deu a investida do regime cívico-militar sobre a capoeira e a resistência que culminou
com a reafricanização da capoeira nos anos 1980. Na tentativa de perceber como a
figura de Mestre Juvenal foi, mesmo que timidamente, retomada pelos capoeiristas.
Assim, vamos focar esse processo de luta pelo simbólico na capoeira:
17
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Conclusões
Referências bibliográficas
18
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
AMADO, Jorge. Bahia de todos-os-santos: guia das ruas e dos mistérios da cidade
de Salvador. São Paulo: Martins, 1944.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola: ensaio sócio etnográfico. Salvador: Itapoan, 1968.
REIS, Leticia Vido de Sousa. O mundo de pernas para o ar: a capoeira no Brasil. São
Paulo: Publisher Brasil, 2000.
TAVARES, Cláudio; VERGER, Pierre. Capoeira mata um! O Cruzeiro, Salvador, p. 12, 10
jan. 1948.
19
Caxambu de Andorinha: experiência do protagonismo
cultural no município de Jerônimo Monteiro
Jacyara Conceição Rosa Mardgan
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Resumo
O presente artigo tem por objetivo apresentar o percurso desenvolvido pelo grupo
de cultura afro-brasileira Caxambu de Andorinha, localizado no sul do estado
do Espírito Santo, a partir das narrativas de seus brincantes, demonstrando o seu
protagonismo cultural na gestão do patrimônio imaterial brasileiro caxambu. A
pesquisa busca refletir a força motriz do grupo, no trabalho entendido como processo
de interculturalidade vivido, no qual o caxambu configura-se como estratégia de
valorização das representações socioculturais negras, a partir da manutenção e (re)
afirmação da memória, da identidade e pertencimento do grupo.
Introdução
Fundamentação teórica
Desenvolvimento da pesquisa
21
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
porque eu gosto de estar com o grupo, lembra do passado, mexe com nosso interior
e faz bem, alegra o meu dia”.
Essa é a constante narrativa que ouvimos dos integrantes do grupo Caxambu
de Andorinha, um grupo cultural afro-brasileiro, reunindo aproximadamente
20 componentes das mais variadas idades, etnias e laços de parentescos,
todos frequentadores da Casa de Oração Imaculada Conceição1
— centro religioso de designação umbandista que, desde 2009, cede território para
que o caxambu possa ser tocado.
O líder espiritual e mestre caxambuzeiro Sebastião Azevedo dos Santos, em seu
relato sobre a origem do grupo, apresenta a relação entre as memórias do passado
e a vontade de (re)escrever o presente na constituição do grupo de caxambu.
1
SILVA, Leir, Transcrição 2. [20/01/2016] Entrevistador: Jacyara Conceição Rosa Mardgan – Alegre/ES,
2016. arquivos mp3 (2h 20 min 23 s).
22
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Conclusões
23
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
do grupo Dona Marinete da Silva: “Caxambu é sarna, né. Pega na gente! É bom demais,
e eu peço a Deus que ele não pode acabar não. É por isso que nós dança”2.
Referências bibliográficas
SODRÉ, Muniz. Samba o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979. (Coleção
Alternativa)
2
SILVA, Marinete da. Transcrição 2. [20/01/2016] Entrevistador: Jacyara Conceição Rosa Mardgan.
Jerônimo Monteiro.
24
Identidade e Memória Afro-amapaense na Poética
dos Versos do Batuque Raízes do Bolão
José Helder de Sousa Brandão
Universidade Federal do Amapá
Resumo
A proposta deste projeto de pesquisa visa identificar, através da poética dos versos
das bandaias, cantigas do batuque afro-amapaense, a presença da identidade e
memória da cultura comunitária do quilombo Curiaú/Cria-ú. O enfoque principal é
analisar os versos do batuque afro-amapaense do grupo Raízes do Bolão, através da
relação entre música e literatura, ambas as artes como registro poético, documento
identitário e linguagens que se complementam. Identificaram-se, por meio dessa
relação, os elementos que representam a continuidade das tradições ancestrais
de matrizes africanas, formadoras da cultura das comunidades afro-amapaenses.
Este projeto de pesquisa busca também colaborar para o melhor entendimento
das diferenças entre o batuque afro-amapaense e o Marabaixo, duas grandes
manifestações culturais, celebradas com base nos santos do catolicismo e com
elementos de origens africanas, pertencentes à cultura do estado do Amapá.
Introdução
Fundamentação teórica
O Amapá é um estado que apresenta uma riqueza cultural diversa. Dentre tantas
manifestações culturais amapaenses, destaca-se o Ciclo do Marabaixo. Festividade
realizada por famílias tradicionais afro-amapaenses que vivem em comunidades
por quase todo o nosso estado. O Ciclo do Marabaixo celebra os santos católicos
seguindo o calendário da igreja, utilizando elementos de origem africana como
tradição herdada de seus antepassados trazidos como escravos, durante o período
de colonização do norte do Brasil. Vale destacar o que diz Araújo (2016, p. 57) sobre o
Batuque e o Marabaixo, que “são danças cuja forte caracterização é o arrastar dos
pés no ritmo imposto pelos tambores, no sentido circular e anti-horário”.
A música caracteriza-se por alegria e espontaneidade e é o meio pelo qual
agradecem aos santos padroeiros intercessores pelas graças alcançadas. Também,
homenageia os negros antepassados que sofreram. A poética de ambos é muito
simples e reflete o cotidiano das comunidades e seus ressentimentos, suas afirmações
étnicas identitárias. Quanto ao Batuque, é relevante destacar que, segundo Araújo
26
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
(2016, p. 71), “assim como o Marabaixo, é uma festa dedicada aos santos concatenada
com rituais africanos”. Trata-se também de um dos gêneros musicais africanos mais
conhecido do Brasil. Por todo o nosso território, existem comunidades negras que se
manifestam cultural e religiosamente através do Batuque. No Brasil, é expressado de
diversas formas e teve origem nos cultos aos orixás.
Originalmente, o termo Batuque não era utilizado pelos negros. Esse era o termo
que os brancos usavam para identificar os negros nesses rituais religiosos. Segundo
Wisnik (2006), a poesia é a arte da palavra, a palavra articulada através da voz de
forma cantada, ritmada, e sendo interpretada como poema desde a antiguidade,
originalmente chamada de canção. A palavra tem poder migratório e tem aporte na
melodia e no ritmo, quando se encontra no ambiente musical, cantada como letra de
música. Música e literatura são artes diferentes, mas que se aproximam nas relações
dentro dos contextos poéticos e históricos.
Dessa forma, contextualizando nossos ritmos tradicionais, Batuque e Marabaixo,
como canções populares, encontramos música e literatura se completando através
de narrativas e sonoridades, como representação poética da memória, da identidade
e da cultura de uma determinada comunidade. Destacam-se, aqui especificamente,
as comunidades negras quilombolas e afro-amapaenses que buscam, por meio
da arte e da produção cultural, um caminho à identidade e ao reconhecimento das
tradições afrodescendentes em nossa sociedade. O Batuque afro-amapaense e o
Marabaixo são duas expressões culturais, bastante difundidas nas comunidades
quilombolas do Amapá, onde os versos reproduzidos através da música propiciam
rimas e enredos referentes à história desses povos, contribuindo, desse modo, para
criação de um ambiente de manutenção e preservação da memória e dos traços
que revelam a trajetória da construção da identidade negra, paralela ao processo de
desenvolvimento da sociedade em nosso estado.
Conforme observa Thiago de Oliveira Pinto, “as músicas e os ritmos produzidos nos
eventos tradicionais das populações negras do estado do Amapá são tão originais
quanto sugerem os seus nomes, Marabaixo, Sairé ou Zimba. Mesmo o Batuque, no
único remanescente de antigo quilombo no estado, o Cria-ú, diverge em muitos
aspectos dos Batuques do sul do país” (PINTO, 2000 apud VIDEIRA, 2010, p. 77). Tomando
como base essa assertiva, a proposta de pesquisa apresentada no bojo deste projeto
investiga, sob a perspectiva da música e da literatura, o papel da poética dos versos
do Batuque Raízes do Bolão no processo de identidade e memória da cultura afro-
amapaense. Espera-se, assim, desenvolver uma pesquisa que demonstre a riqueza
da musicalidade e das narrativas existentes na poética das bandaias, ou cantigas
de Batuque, na construção da cidadania e da memória coletiva, além de difundir e
preservar traços culturais e de subjetividade de um determinado grupo social, bem
como mobilizar o entendimento da importância da cultura afro-amapaense para o
processo de construção da identidade do povo brasileiro.
27
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Desenvolvimento da pesquisa
Conclusões
Referências bibliográficas
COELHO, Tatiana Alberto; DINIZ, Raimundo Erundino Santos. Batuque, arte e educação
na comunidade quilombola são pedro dos bois. MARGENS - Revista Interdisciplinar.
v.10, n. 15, p. 133-149, 2016.
28
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras. 2006.
29
A Musicalidade da Capoeira e suas Conexões com
Outras Manifestações Afro-descendentes
Nicolas Catalni Zamboni Kiekebusch
Universidade Federal do Vale do São Francisco
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
31
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Mais que isso, a importância da música nas tradições africanas, bem como
afrodescendentes, também pode ser constatada em outros momentos e
manifestações, como nas músicas nos terreiros das religiões de matriz africana,
por exemplo, já que pode se verificar que a música está a todo o momento em
conexão com o povo de santo (CRUZ, 2018). Também poderia ser vista nas práticas
dos próprios escravos e trabalhadores livres, já que era muito comum se realizar um
serviço cantando, como faziam os carregadores de piano na Bahia, de acordo com
Fred Abreu, ou os pescadores quando iam fazer a puxada da rede no Xaréu, como é
registrado no CD “Viva Bahia, volume 1” do Conjunto Folclórico da Bahia de 1968.
Desenvolvimento da pesquisa
32
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
33
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
conforme vai cantando, inventa o que originalmente não tinha no corrido, podendo
ser até trechos de ladainhas e quadras ou algo que ele ouviu outro cantar, sendo
também de caráter não obrigatório. Por fim, há o coro, a única parte que sempre
ocorrerá e não é cantada pelo cantador, mas pelos outros participantes da roda,
sendo também a única realmente invariável, no sentido de não haver improvisos,
pois alguns possuem versões diferentes. Um exemplo disso é “São Bento Me Chama”,
do CD de Mestre Bimba, de 1962 (ver Anexo 3).
Nesse corrido, não há um canto inicial, ele já começa com a parte fixa, que é a repetida,
embora haja algumas variações. “São Bento Me Chama” conta com a presença do
coro “Ai, ai, ai, ai” e do improviso, “Aranha me puxa/ Mas me joga no chão/ Eh, castiga
esse nêgo/ Conforme a razão”. Um exemplo com canto inicial é “Quando Eu Morrer”,
cantada no CD “Capoeira da Bahia”, de Mestre Traíra, de 1963, transcrita parcialmente
(ver Anexo 4). Nessa, o canto inicial vai de “Quando eu morrer” até o penúltimo verso
da primeira estrofe.
Por fim, as complexas não seguem as estruturas já descritas, tratam-se de canções
compostas por uma letra fixa que varia tanto quanto as das ladainhas e quadras.
São cantadas nos mesmos momentos que os corridos, seguindo a permutação do
cantador e coro, e possuem uma estrutura de estrofes que geralmente tem 4 versos e 4
estrofes, fora o coro, mas podem ter outras quantidades. Não podem ser consideradas
corridos pelo fato de as estrofes serem, normalmente, longas e a estrutura da música
não permitir o improviso; um exemplo de uma complexa é a composta por Mestre
Paraná e cantada pelo próprio no seu CD (ver Anexo 5).
De todos, o corrido é o que mais demonstra conexões com a musicalidade escrava,
pois ele obedece a mesma estrutura vista em canções de outras manifestações,
como o maculelê, a puxada de rede e o samba de roda, inclusive compartilhando
essas artes com as cantadas pelos trabalhadores da Bahia, como é visto pelos
registros de Abreu:
“E, cuê…/ Ganhado/ Ganha dinheiro/ Pr’a seu sinhô” [carregadores não
especificados]; “Le, Ie, Ie, iaiá/ Vamos ri, vamos chora/ Que o vapo entrou na
barra/ O telegra fez sina./ [...]/ Água de beber,/ Ferro de engomar,/ Minha mãe
me deu/ foi pra me matar” [carregadores de piano]; “Tabaréu/ Que vem do
sertão,/ Vendendo quiabo,/ Maxixe e limão” [vendedores de verduras. Essa é
cantada ainda hoje nas rodas de capoeira] (ABREU, 2005).
Conclusões
34
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Referências bibliográficas
ABREU, Frederico José de. Capoeiras: Bahia, sec. XIX: imaginário e documentação.
Salvador: Instituto Jair Moura, 2005.
CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo
(1830-1930). 2011, 341 f. Dissertação (Mestrado em História) — Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2011.
CRUZ, Eval. O papel ordenador da música nos rituais de religião de matriz africana.
Revista Horizontes Históricos, Sergipe, v. 1, n. 1, p. 50-63, 2018.
35
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Anexo 1
Eu já vivo enjoado
De viver aqui na Terra
Ó, mamãe eu vou pra Lua
Falei com minha mulher
Ela então me respondeu
Nós vamos se Deus quiser
Vamos fazer um ranchinho
Todo cheio de sapé
Amanhã às 7 horas
Nós vamos tomar café
E que eu nunca acreditei
Não posso me conformar
Que a Lua vem a Terra
Que a Terra vai a Lua
Tudo isso é conversa
Pra comer sem trabalhar
O senhor, amigo meu
Veja bem o meu cantar
Quem é dono não enciúma
Quem não é quer enciumar
Anexo 2
36
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Anexo 3
37
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Eh, São Bento me chama
Coro
Anexo 4
Quando eu morrer
Não quero grito nem mistério
Quando eu morrer
Não quero grito nem mistério
Quero um berimbau tocando
Na porta do cemitério
Com uma fita amarela
Gravação do nome dela
E ainda depois de morto
Oh, meu bem, Besouro Cordão de Ouro
Como é meu nome?
Coro: É Besouro
Como é que me chamo?
Coro
Anexo 5
38
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
39
A Afrocentricidade dos Povos Bantu na Cadência
do Samba: tagarelando as influências das artes,
sons, músicas, histórias, culturas e línguas de
origens africanas no chão da escola
Wudson Guilherme de Oliveira
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
Em 11 de março de 2008, a Lei 10.639/2003 foi substituída pela Lei 11.645/2008, que
torna obrigatório, também, o ensino ligado à História e Cultura dos Povos Indígenas
nos currículos oficiais da educação nacional.
Baseado nisso, o objetivo deste trabalho é apresentar reflexões comprometidas em
consolidar a efetivação dessas leis a partir da afrocentricidade presente nas criações
e nas múltiplas influências das escolas de samba do Rio de Janeiro, como modo de
dialogar (CABRAL, 1996) acerca da ancestralidade, história, cultura e língua dos povos
Bantu1, “grande conjunto de povos africanos disseminados do centro para o leste, sul
e sudeste do continente. Falantes de línguas semelhantes no Congo, em Angola, na
Tanzânia, em Moçambique, na África do Sul” (LOPES, 2008, p. 31). Dos quatro milhões de
indivíduos que foram forçados a atravessar o Atlântico, vindos do continente africano
para o Brasil, 75% desses corpos eram provindos dos territórios Bantu.
1
Para saber mais sobre o tráfico atlântico de corpos negros escravizados nos séculos passados, incluindo
mapas, estimativas e análises históricas relativas ao tema, acesse o site www.slavevoyages.org.
41
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Fonte: The Nystrom Atlas of Word History/ arte de Wudson Guilherme de Oliveira (professor).
Vale destacar que esses grupos deixaram variadas contribuições históricas, culturais,
filosóficas e linguísticas, as quais estão impressas em nossa sociedade. Como
modo norteador, fizemos levantamento de fontes bibliográficas e históricas sobre
alguns sambas-enredos utilizados no carnaval carioca que utilizaram as palavras
do tronco linguístico Bantu, bem como as suas artes, culturas, sons, resiliências,
histórias e resistências. Além disso, recorrem a algumas características de outras
manifestações folclóricas que caminham junto com a religiosidade da cultura
afrodescendente, como os festejos religiosos, folguedos, danças e outros (GALVÃO,
2009), sempre amparados em metodologias sensibilizadoras, inspiradas nos “valores
civilizatórios afro-brasileiros” (circularidade, oralidade, corporeidade, energia vital,
religiosidade, ludicidade, musicalidade, comunitarismo, memória e ancestralidade),
partilhados por Azoilda Loretto da Trindade (2010).
42
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Com uma turma do 1º ano do Ensino Médio, composta por alunados jovens negros(as),
pardos(as) e brancos(as) inseridos em uma instituição privada de educação na
cidade do Rio de Janeiro, evidenciou-se uma pedagogia antirracista (GOMES, 2017)
e decolonial (WALSH, 2013). Isso foi possível a partir de pesquisas e apresentações de
vídeos, sambas-enredos, ritmos, imagens de carros alegóricos, instrumentos musicais
de origem africana e rodas de conversa, sempre amparados na afroperspectiva.
As ações afirmativas foram realizadas com a intenção de implementar as Leis
Federais 10.639/03 e 11.645/08 e as suas perspectivas, que acercam as histórias e
culturas africanas, indígenas e afro-brasileiras, para que sejam incorporadas nos
conteúdos curriculares do ensino de História.
43
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
A metodologia empregada foi criada por meio de oficinas, rodas de debate, exposições
de livros de literaturas africanas, indígenas e afro-brasileiras, além de apresentações
de vídeos, textos e slides pautados na afrocentricidade. Tudo isso serviu de subsídio
para as trocas de ideias sobre as perspectivas das Leis Federais 10.639/03 e 11.645/2008,
o respeito e as contribuições dos povos Bantu, que imprimiram sambas-enredos, a
cultura do carnaval, a religiosidade presente em nossa sociedade, a diversidade e a
igualdade em prol da luta contra o racismo, “ideologia de superioridade racial que
tende a beneficiar as pessoas brancas” (MALOMALO, 2018, p. 491).
Durante as ações afirmativas, também emergiram novas discussões acaloradas que
questionaram e dinamizaram os conhecimentos sobre desigualdade racial, violência,
preconceito, ações afirmativas, gênero, racismo e intolerância contra os adeptos das
religiões afro-brasileiras. Outras intervenções epistemológicas e teóricas das ciências
sociais, humanas, jurídicas e da saúde foram consideradas, inclusive as produções
críticas das teorias do século XIX, que ainda são presentes no imaginário pedagógico,
teórico e social (GOMES, 2017).
Conclusões
44
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Referências bibliográficas
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.
GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao som do samba: uma leitura do carnaval carioca. Rio
de Janeiro: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
LOPES, Nei. História e cultura africana e afro-brasileira. São Paulo: Barsa Planeta, 2008.
45
Diálogos Culturais no Norte Fluminense:
a Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã
Priscilla Gonçalves de Azevedo
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Fernanda Morales dos S. Rios
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
1. A oralidade
A oralidade possui uma relação intensa com as práticas sociais de matriz africana,
tornando-se a principal forma de transmissão do conhecimento. A referência da
tradição da história africana liga-se diretamente à tradição oral, e nenhuma tentativa
de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade, a menos que se
apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos
de boca a ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos (BÂ, 1982).
A tradição oral é a grande escola da vida para os afrodescendentes, fundamentada
na experiência capaz de transportar o homem a sua totalidade, pois ela não se
limita a lendas, narrativas mitológicas ou relatos históricos. Por meio da palavra,
as estruturas sociais são organizadas, ou seja, há um valor moral e simbólico na
oralidade, possuindo um caráter sagrado. Nas tradições africanas, fatores como a
religião, a sociedade e a magia mantêm suas práticas apoiadas por contextos de
transmissão oral. Sendo assim, o uso da palavra quando pronunciada se remete a
sua origem, por meio das forças ocultas e divinas que nela existem, empossando-se
de valores morais e sagrados (BÂ, 1982).
Bâ (1982) pondera sobre a impossibilidade de uma real comprovação de que a
escrita é mais fidedigna do que o testemunho oral, evidenciando a vulnerabilidade dos
documentos escritos, principalmente no que tange as possibilidades de falsificações. A
partir do avanço científico, percebe-se uma relação de superioridade da escrita sobre
a oralidade, o que ocasiona um equivocado julgamento, de que as comunidades orais
são tidas também como sem cultura. Nesse sentido, a ligação do homem à palavra
abarca o próprio valor do homem que faz o testemunho, a cadeia de transmissão da
qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individuais e coletivas e a idoneidade
atribuída à verdade em uma determinada sociedade (BÂ, 1982).
Nas práticas de matrizes africanas, a linguagem oral opera como alicerce e
fundamento cultural, pois, a partir da oralidade, os grupos e comunidades preservam
suas práticas, seus rituais, suas memórias e suas histórias. Dito isso, apresentaremos
47
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
A Mana-Chica do Caboio é uma dança popular que surgiu por volta de 1780 em
Campos dos Goytacazes, cidade do norte do estado do Rio de Janeiro, sendo
considerada uma espécie de quadrilha, supostamente inventada por uma mulher
chamada Francisca — seu nome poderia ser Mariana Francisca, Inácia Francisca ou
Francisca Maria. Porém, sua coreografia foi essencialmente concebida pelos negros
a partir dos movimentos observados por eles nas festas dos nobres fazendeiros;
sua tradição vem pela oralidade, ou seja, transmitida de pai para filho, através das
gerações, e foi desenvolvida inicialmente na Baixada Campista. A sua música tem
um ritmo semelhante aos versos de cantadores repentistas. Entre os instrumentos
musicais estavam basicamente o chocalho indígena, a viola portuguesa e o pandeiro
africano, compreendendo as três etnias principais que constituem o povo brasileiro
(LAMEGO FILHO, 1996).
De acordo com Pais (2018), o fado resulta de “múltiplos trânsitos culturais” (PAIS,
2018, p. 221) e, ainda afirma, é um ritmo derivado dos tempos da escravidão, havendo
diferentes danças relacionadas a essa expressão cultural. Essas danças são
tocadas e dançadas com ritmos parecidos, tendo como características principais o
bater de palmas e o sapateado. O acompanhamento musical é também com violas
e pandeiros, teoricamente os mesmos instrumentos musicais utilizados na Mana-
Chica do Caboio.
Nessa perspectiva, o elo musical entre o fado e a Mana-Chica relaciona-se
diretamente ao lundu, às modinhas, ao fandango, à chamarrita, à cana verde,
à chula, entre outros ritmos, que culminam em interfaces com os instrumentos
musicais citados. Já na dança, o bater de palmas, as umbigadas (apenas no fado)
e os sapateados vão para além da música e constituem os aspectos coreográficos
em várias danças brasileiras, incluindo as danças do Norte Fluminense (PAIS, 2018).
No entanto, em uma visita ao município de Quissamã, o autor supracitado conhece
Dona Guilhermina, uma das participantes do grupo de fado, e relata que ela se
preocupava em dizer que “o fado é de Deus, ele é bento, é sagrado!” (PAIS, 2018, p.
222). Descreve que o fado de Quissamã é dançado em cruz, diferente do jongo, que é
em roda, porém não relaciona a dança do fado com a dança Mana-Chica do Caboio.
Considerados gêneros musicais populares, símbolos da cultura afrodescendente,
a Mana-Chica do Caboio e o fado de Quissamã possuem características musicais
similares, ambos se apresentam como canções de lamento e melancolia,
48
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Desenvolvimento da pesquisa
Para desenvolvimento deste trabalho, foi utilizada como metodologia uma pesquisa
de abordagem qualitativa, de natureza bibliográfica, buscando compreender
o processamento dos saberes culturais transmitidos através de gerações até o
momento presente. Para Gil (2002), a pesquisa bibliográfica é aplicada em qualquer
trabalho científico, oportunizando ao pesquisador o acesso ao conhecimento já
produzido em determinada temática.
Como apresenta Gil (2002), “[...] embora em quase todos os estudos seja exigido
algum tipo de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente
a partir de fontes bibliográficas” (GIL, 2002, p. 44). Dessa forma, as produções
bibliográficas possuem as informações indispensáveis para alcançarem as
respostas sobre os objetos de estudo determinados pela investigação. A principal
vantagem desse método de pesquisa é a facilidade do pesquisador em lidar com o
problema, permitindo enfatizar certas informações e dados que se encontram muitas
vezes segmentados (GIL, 2002).
Portanto, a pesquisa bibliográfica é de suma importância, pois se posiciona como
um estímulo ao aprendizado de novos conhecimentos, tendo em vista suas proporções
entre os avanços e as novas descobertas nas diversas áreas do conhecimento a
partir de informações já fornecidas e elaboradas por meio de outras investigações.
49
GT 1: MUSICALIDADE AFRO-BRASILEIRA E IDENTIDADE CULTURAL
Conclusões
Referências bibliográficas
BÂ, Hampaté. A tradição viva. In: ZERBO, J-KI (Org.). História Geral da África. São
Paulo: África, 1982. p. 167-211.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo, SP: Atlas, 2002.
LAMEGO FILHO, Alberto. A planície do solar e da senzala. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo
público do estado do Rio de Janeiro/Imprensa oficial do estado do Rio de Janeiro.
Livraria Católica (1934). Ed. Rio de Janeiro, 1996.
50
GT 2
Resumo
Introdução
A poesia do Slam das Minas ocupa os espaços que não lhe são permitidos,
reivindicando e lutando por um ativismo das vozes no país. Outro ponto é que, com o
advento do movimento no Brasil, esses locais, hoje, são constituídos de uma grande
parte marginalizada da população. Esses ambientes surgiram pela luta contra
opressão que muitas dessas pessoas sofriam. Com o surgimento do poetry slam
no território brasileiro, muitos desses lugares eram ocupados, em sua maioria, por
homens que eram sexistas. Vale ressaltar que muitas delas sofriam vaias no próprio
movimento. Bell hooks, no livro “O Feminismo é para Todo Mundo” (2015) ressalta
que “feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, exploração sexista
e opressão” (HOOKS, 2015, p. 13). Essa definição deixa claro que o problema nunca
deixou de ser o patriarcado. Por isso, elas necessitaram criar um espaço para terem
voz e, primordialmente, tentarem se fazer ouvidas.
Portanto, influenciadas pelo Slam das Minas do Distrito Federal, vários outros
movimentos começaram a surgir no país; consequentemente, na cidade do Rio
de Janeiro, o Slam das Minas — RJ. A batalha também já havia chegado às terras
cariocas, porém no ano de 2017; inspirado por esse coletivo, nasceu o movimento na
metrópole carioca. É necessário dizer que o contexto muda, as mulheres da cidade
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
querem é um lugar em que elas sejam respeitadas. Desse modo, elas ocupam o
espaço e levam a sua poesia ao centro urbano. Na página do coletivo no Facebook,
elas falam em espaço seguro, mas este se refere ao fato de elas poderem discursar,
e não sobre segurança, já que seria contraditório, pois a cidade do Rio de Janeiro é
altamente violenta.
Fundamentação teórica
Três autores foram fundamentais para pensar a rede e a rua como questões atrativas
para o movimento do Slam das Minas. Primeiro, ao abordar sobre rua, foi necessário
pensar no “rizoma”, ideia proposta por Deleuze e Guattari (1995). Para ambos, o rizoma
é oriundo da botânica e consiste em uma haste subterrânea com ramificações em
todos os sentidos, como os bulbos e os tubérculos. De forma antitética, tem-se a
árvore, com o caule e ramificações, que se desdobram desse eixo central (DELEUZE;
GUATTARI, 1995). O rizoma, logo, é como as ruas, que fazem conexões e se constituem
de pluralidades.
Para pensar em não lugares, utilizou-se o livro do teórico Marc Augé. Segundo o
antropólogo, “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um
espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional e nem
como histórico, definirá um não-lugar” (AUGÉ, 2012, p. 52). A ideia de um não lugar para
o teórico representa um espaço intercambiável onde os seres humanos permanecem
anônimos e não possuem significado suficiente para serem considerados “lugares”.
Por isso, com o advento das redes, estamos em não lugares permanentes. Com as
inúmeras transformações sociais, políticas, econômicas, culturais e informacionais
ocorridas nas últimas décadas, primordialmente as mídias sociais deveriam ser
usadas para difundir o conhecimento, porque é resultado das redes a adulteração do
momento, do local e do instante. Portanto, para o teórico, em entrevista concedida ao
jornal El País, esses dispositivos estão permanentemente nos colocando em um não
lugar. Nós os carregamos não lugar em cima, conosco... (GELI, 2019).
Para concluir, duas questões foram abordadas, são elas: pensar a rua como palco das
políticas públicas, necessariamente neste contexto de silenciamento das mulheres
da poesia marginal, e o espaço da rede. Embora estejamos vivendo uma pandemia,
em que as redes são elos fundamentais para a constituição de uma pseudointeração
social, alguns fatores são importantes de serem mencionados: as mídias sociais
cresceram a uma taxa muito rápida, e, devido ao impacto de um público mais amplo
em um ritmo maior, as redes sociais possibilitam informação. Nelas, ocorre uma
interação maior do público com este “activismo político”, termo abordado no livro da
Marcela Fuentes (2020), uma pesquisadora argentina. É válido destacar a entrevista
concedida pela teórica ao jornal Página 12: na apresentação à entrevistadora, Laura
53
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Rosso ressalta que “sus trabajos exploran las vidas transnacionales, los nuevos
modos de colaboración artística y movilización política facilitados por la tecnología y
las formas emergentes de control y resistencia que se dan en contextos neoliberales”
(https://www.pagina12.com.ar/351586-la-politica-tambien-se-juega-en-las-redes).
Desenvolvimento da pesquisa
54
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
1
Palestra proferida no evento “Literatura e Feminismos: criação, crítica e teoria”, no dia 28 de janeiro
de 2021.
55
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Conclusões
O tema deste artigo não chegou ao fim, uma vez que esta é uma parte da minha
pesquisa de mestrado. Também acredito que nada chega ao fim. Refletir, mesmo
que superficialmente, sobre o movimento na cidade do Rio de Janeiro é tarefa árdua,
ainda tem muito o que frisar. Pensando em grandes estruturas, o contexto geopolítico
é amplo. Tentei me aproximar um pouco mais dessa questão para pensar que a
poesia desce da periferia e se faz ouvir no centro, ou tenta. Há muito o que se pensar
entre a poesia e a ocupação da rua com o amparo das redes. A rua precisa da rede,
e a rede precisa da rua. Neste período pandêmico, vemos muitas manifestações
acontecerem nas redes. Acredito que a rede seja o ponto de encontro da rua. É o
barzinho em que marcamos de nos encontrar. Em suma, a poesia enunciada nesses
eventos culturais acentua-se ainda por ser dotada de um significativo teor político
ao abranger principalmente temas como racismo e machismo em performances
poéticas. As batalhas tornam a poesia e a cidade mais democráticas.
Referências bibliográficas
GELI, Carles. Marc Augé: “Com a tecnologia já carregamos o ‘não lugar’ em cima,
conosco”. El País, Barcelona, 04 fev. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2019/01/31/tecnologia/1548961654_584973.html. Acesso em: 03 set. 2021.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI. Félix. Mil Platôs. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI. Félix. Mil Platôs. 2. ed, v. 1. São Paulo: Editora 34, 1995.
ROSSO, Laura. La política también se juega en las redes. Página 12, Buenos Aires, 02
jul. 2021. Disponível em: https://www.pagina12.com.ar/351586-la-politica-tambien-
se-juega-en-las-redes. Acesso em: 20 set. 2021.
56
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Editora 34, 2000.
57
A Performance Cultural de Clara Nunes
Emerson de Paula Silva
Universidade Federal do Amapá
Resumo
Introdução
Clara Nunes (1942-1983) foi uma cantora brasileira de grande projeção nacional,
que revolucionou o cenário musical e artístico do país no fim dos anos de 1970 e início
dos anos de 1980, ao lado de grandes nomes da MPB, como João Nogueira e Martinho
da Vila. Além disso, revelaram-se consigo grandes artistas, como Romildo e Toninho
Nascimento, Gisa Nogueira e o Clube do Samba. Sua obra é até hoje reverenciada no
país, sendo ela a primeira mulher a vender discos no Brasil no que tange a números
realmente expressivos e carreira consolidada. Celebrada até mesmo no exterior,
Clara difundiu o Brasil cantando em português e elevando o samba ao mais alto
patamar de referência musical brasileira. Registra-se ainda o lugar da mulher num
ambiente até então marcado pela forte presença masculina.
A cantora transitou, durante o percurso de sua carreira, entre as baladas
românticas e a Jovem Guarda, dialogando com os estilos musicais que cada
época produzia, mas foi no encontro com a cultura afro-brasileira, o samba e, em
especial, a umbanda e o candomblé que ela efetivou uma guinada em sua carreira.
Assim, a mineira Clara Nunes dedicou-se a pesquisar a cultura afro-brasileira,
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
trazendo à cena artística referências das religiões de matriz africana, seja cantando
pontos (nome específico dos cânticos às entidades) aos guias e aos orixás, seja
apresentando composições que enalteciam nossa ancestralidade africana, o eco
dessa ancestralidade no Brasil e o percurso do povo negro. Esta dualidade entre a
ancestralidade africana e a realidade em ser afro-brasileiro perpassa a obra de
Clara. Sua música traz marcas e possui ritos que confrontam uma realidade de
predominância judaico-cristã.
Fernandes (2007), em sua biografia sobre a cantora, intitulada “Clara Nunes:
Guerreira da Utopia”, informa-nos, na contracapa da obra, que:
59
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Clara Nunes já se configura como uma artista que incitou pesquisas em nível de mestrado
e doutorado em alguns programas de pós-graduação, mas estas tendo como foco a
questão da sua musicalidade (análise das composições com uma abordagem das letras
e dos arranjos) e da mestiçagem. Entretanto, a presente reflexão pretende promover uma
análise da performance cultural de Clara Nunes, a partir das confluências entre arte e
vida, entendendo Clara Nunes como um acontecimento performático.
A afrobrasilidade na música popular brasileira (MPB) não é algo exclusivo da
performer Clara Nunes. Músicas exaltando nossas ancestralidades e a constituição
de uma cultura afro-brasileira permeiam diversos estilos musicais, tendo o samba
como um importante expoente para esse fim. Apesar disso, é importante registrar
que, na música popular brasileira, existem artistas que se consagraram trazendo, em
praticamente toda a sua obra, a referência à matriz afro e o reflexo dela no Brasil,
registrando, além disso, que as mulheres lideram esse espaço. Cantoras antecessoras
e sucessoras de Clara tiveram na temática afro-brasileira sua projeção artística,
tendo como alguns exemplos Carmen Miranda, Jovelina Pérola Negra, Clementina
de Jesus, Margareth Menezes, Daniela Mercury e Mariene de Castro. Na performance
do samba, definida pelo pesquisador Zeca Ligiéro (2011) para estudar as formas e
funções do samba delineadas pelos sambistas das primeiras décadas do século XX
a partir de suas próprias práticas, tanto no âmbito da composição musical, quanto
da escolha temática, temos em Clara uma performer que não só enaltece o samba,
mas incorpora a ele o diálogo entre dois campos do saber, o religioso e o artístico.
Esses dois aspectos encontram-se estruturados na híbrida relação que compõe a
sua performance cultural.
As cantoras anteriormente citadas dialogam com as definições apresentadas
por Zeca Ligiéro (2011), que são: samba-brincadeira; samba-ritual; samba-drama
e samba-épico — cabe a nós aqui acrescentarmos a essas definições a reflexão
sobre o samba-afro e o samba-reggae. A musicalidade dessas cantoras, em suas
diferentes performances, criou/cria visualidades que apresentam imagens, ora se
referenciam à ancestralidade, ora estabelecem um diálogo entre a ancestralidade
e a contemporaneidade. São carreiras que se construíram mediante uma interseção
entre os campos da religião e da arte.
Entretanto, Clara Nunes destaca-se por projetar a sua carreira para além
da musicalidade e do texto que suas canções enunciam. A imagem da performer
mobiliza trânsitos nela mesma e no público, uma vez que há, na construção de sua
performance cultural, um entrelaçamento entre arte e vida. O que passa depois a ir
ao palco é algo mais que visual: trata-se de seu discurso pessoal.
Adentrando em um recorte conceitual de performances culturais, entende-se que:
60
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
61
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
pois “seu talento de narrar lhe vem da experiência; sua lição extraiu da própria dor;
sua dignidade é contá-la até o fim, sem medo. Uma atmosfera sagrada circunda o
narrador” (BOSI, 1994, p. 91).
Aprofundando neste percurso teórico, Clara Nunes pode ser vista também como
uma performer na encruzilhada entre ser interventora e intérprete, entendendo que
o intérprete é considerado “aquele que busca interpretar o outro ou mesmo uma
obra que foi composta pelo outro, de maneira idiossincrática” (SANTANA, 2009, p. 27).
Nesse sentido, Santana ainda amplia a discussão nos mostrando que interpretar não
é algo solitário, mas aberto, destacando que o intérprete é uma figura capaz de “dar
conta de uma personagem/agente/ator social, ou, como queiramos denominá-lo,
da forma como este indivíduo traduz o seu cantar em constante transformação por
conta do espaço em que se relaciona e move” (SANTANA, 2009, p. 27).
Todos esses elementos, em confluência, estão presentes na performance cultural
de Clara Nunes, vinculando-se a algo que a antecede, mas que ao mesmo tempo a
constitui. Em suas apresentações, ela narrava para si e para os outros seu percurso
individual, que fazia parte, indissociavelmente, de uma coletividade.
A performance cultural de Clara Nunes dialoga com o conceito de “corpo da história”
do pesquisador Zeca Ligiéro, que nos apresenta uma análise do corpo que “se
retroalimenta ao mesmo tempo em que vive do seu passado, em constante reação a
tudo que percebe ao seu redor; o ‘corpo da história’ é um corpo que vive das relações
e das interações” (LIGIÉRO, 2011, p. 90). Portanto, o trânsito religioso pessoal de Clara e
a presença dele na sua performance se inserem no campo das artes performativas,
nas quais, segundo Ligiéro (2011):
Sua performance cultural traz marcas e possui ritos que confrontam uma realidade
de predominância judaico-cristã. A sua relação com divindades múltiplas suscita
questionamentos, uma vez que o candomblé, por exemplo, é “fortemente apoiado
no uso de oráculos como forma de comunicação direta com as forças inteligentes
da natureza (Orixás) e com os demais espíritos que se expressam por meio dos
fenômenos naturais” (LIGIÉRO, 2004, p. 43). Sendo assim, temos, no acontecimento
performático Clara Nunes, um novo olhar sobre ela, entendendo o processo de sua
performance cultural como um espaço sagrado criado no imaginário brasileiro
através da relação religião e arte, presentes nas performances de subjetividades
afrodescendentes vivenciadas/produzidas pela cantora, que reverberaram na mídia
e na população brasileira.
62
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Entender Clara como constituinte dos estudos das performances culturais brasileiras
é oferecer uma rica e importante contribuição epistemológica sobre algumas
práticas culturais performáticas, tradicionais e contemporâneas, em particular as
afrodescendentes, todas elas abordadas sob a ótica dos Estudos da Performance
(MARTINS, 2011). Nessa perspectiva, Clara Nunes nos revela através do corpo (o
que é vivido e o que é vivenciado) a imagem (o que o corpo apresenta) de nossa
própria cultura, buscando na performance oriunda da vivência pessoal, junto com
a religiosidade afro-brasileira, uma linguagem proveniente do corpo caligrafado
pelo movimento da performance, na qual as coreografias do vivido encorpam a
produção estética nos vários âmbitos e contextos culturais, em que se tecem como
circunstância, estilo, permanência e efemeridade (MARTINS, 2011).
A trajetória artística e conceitual da cantora Clara Nunes está construída num enredo
marcado pela não linearidade, apresentando-nos vias diversas de interpretação
e gerando encruzilhadas que nos exibem corporeidades, memórias, linguagens e
confluências. Sua performance cultural é uma travessia e traz a vivência do sagrado
como elemento de resistência da cultura afro-brasileira ecoada na visualidade que
ela evoca/promove. São passagens como essas que fazem com que a encruzilhada
se torne também elemento integrante da performance cultural de Clara, uma vez que,
como aponta Martins (1997), Clara Nunes pode ser vista como um “lócus tangencial”:
63
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Referências bibliográficas
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994.
ESTEVES, Ana Maria Pereira. Jenipapo, carvão e água: consentimento e resistência. In:
LIGIÉRO, Zeca; ZENICOLA, Denise (Org.). Performance Afro-Ameríndia. Rio de Janeiro:
Publit Soluções Editoriais, 2007. p. 81-95.
FERNANDES, Vagner. Clara Nunes: guerreira da utopia. Rio de Janeiro: EDIOURO, 2007.
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro:
Garamond, 2011.
MARTINS, Leda. Orelha do livro. In: LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das
performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
SANTOS, Elzelina Dóris dos. Contando a história do samba. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2003.
64
Jogos e Cantigas Tradicionais na Preparação da
Cena de Teatro: escrevivências e memórias do corpo
negro no processo de criação cênica
Patrick Lian Pereira Lopes
Instituto Federal Fluminense
Takna Mendonça Formaggini
Instituto Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
Pensando no corpo negro como um registro que merece ser protegido, cuidado e
valorizado, a pesquisa deste trabalho reflete no processo de construção da cena a
partir do relato de memória dos atores, tanto memórias traumáticas (abordagens
violentas, racismo etc.) quanto brincadeiras de nossas infâncias. Esses resgates
da trajetória dos artistas envolvidos na construção da cena como forma de
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
1
Fonte para o caso João Pedro: https://www.google.com/url?q=https://www.bbc.com/portuguese/
geral-52731882.amp&sa=D&source=docs&ust=1637012729548000&usg=AOvVaw0wNECCt1nQFTpdoEPQOPj6.
Acesso em: 12 nov. 2021.
2
Fonte para o caso Ágatha: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-
como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml.
Acesso em: 12 nov. 2021.
66
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Fundamentação teórica
Com objetivo de refletir sobre os espaços de criação teatral, novas narrativas e novas
metodologias de desenvolvimento artístico da cena negra, o processo de criação da
cena “Quando a Polícia Para” foi inspirado na trajetória de Abdias do Nascimento e no
Teatro Experimental do Negro (TEN), como referências iniciais para que pudéssemos
rememorar e fortalecer nossas vivências pessoais e resgatar relatos de pessoas
negras. O Teatro Negro feito por negros presente no Brasil, historicamente uma
tentativa de preservar a identidade da pessoa negra, infelizmente nem sempre foi
visto, a partir de lentes dignas de serem valorizadas, como produto estético. Por muito
tempo, foi e ainda é utilizado como uma manutenção de um sistema já estabelecido,
no qual a pessoa negra era exposta a partir dos estereótipos que reforçam o racismo
no Brasil, como o escravo fiel, o criminoso e o caricatural. Além de não propor uma
mudança de perspectiva, esse grupo era exposto como “um valor de significância
negativo para o signo negro” (MARTINS, 1995, p. 43).
No entanto, o panorama do teatro (feito por negros) começa a mudar a partir de
acontecimentos significativos na primeira metade do século XX, graças ao TEN,
um grupo interessado em engajar o teatro feito por pessoas negras e foi fundado
por Abdias do Nascimento, influenciando e dando norte a vários grupos de teatro
negro desde então. Com objetivo de contribuir para o pensamento da construção
cênica negra contemporânea, caminhou-se a partir da criação de novas narrativas
e estratégias políticas, assim como o desenvolvimento de novas metodologias
pedagógicas para evolução artística do Teatro Negro.
Para isso, este trabalho apoiou-se no conceito de corpo-documento e memórias,
trazido por Beatriz Nascimento e Leda Martins, além de experienciarmos em nosso
próprio corpo o conceito de escrevivência, presente no estudo da pesquisadora
Conceição Evaristo, trazendo essa reflexão para o trabalho pedagógico de
construção do projeto. A escolha da utilização de jogos tradicionais e brincadeiras de
infância corrobora o conceito de corpo-documento proposto por Beatriz Nascimento,
escrevivência e memória individual e coletiva, assim como a leveza dessas
brincadeiras contrastam com a crueza das abordagens policiais ao corpo negro.
Para Alex Ratts (2006), o corpo-documento, no conceito da pesquisadora Beatriz
Nascimento, é o resultado da separação dos corpos ancestrais da “terra de origem”,
África. Este ser ancestral que teve sua cultura ameaçada durante a travessia e nas
novas terras americanas. Esse corpo, até os dias de hoje, carece de uma definição
que não venha de uma lente colonizada, eurocêntrica e racista, por isso o corpo
negro segue sendo a prova, a marca de uma ancestralidade que tentaram apagar
67
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Usar esses elementos tão bem colocados pela pesquisadora como treinamento
corporal dos atores da cena foi potente, pois nossos corpos ganharam expansão,
equilíbrio e presença. A peça, assim como a capoeira, é uma orquestra que ginga
entre a leveza e o caótico, em que os corpos ora são iguais, ora estão em combate,
ora cantam e dançam, provocando um movimento no outro. Dessa forma, palavras
como “esquiva”, “ataque” e “defesa”, que, segundo a pesquisadora, ressalta ao falar da
capoeira, mantêm o corpo atento, presente no aqui e agora. Esse estado de presença
foi fundamental para que a cena tivesse o ritmo e a dinâmica que ela precisava, pois
construíram-se imagens, sons, danças e brincadeiras durante a criação. Por isso, trazer
a capoeira para compor a cena foi mais do que preparar o corpo dos atores para a cena,
3
Para melhor compreensão do assunto, sugerimos a leitura da obra “Rediscutindo a Mestiçagem no
Brasil” de Munanga (2020) que expõe um projeto genocida de tentativa de diminuir o número de
pessoas negras no Brasil pós-colônia. (MUNANGA, 2020).
4
A capoeira foi reconhecida como patrimônio cultural (imaterial) brasileiro, no dia 18 de julho de 2008,
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
68
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
ela esteve presente o tempo todo dentro da roda. A capoeira, assim como o jongo5, o xirê6
e muitas brincadeiras e jogos, acontece de maneira circular.
Partindo da perspectiva de que essa arte marcial faz parte da memória coletiva do
povo negro enquanto brincadeira, luta e resistência, ela foi utilizada como cosmovisão
para a pesquisa referente aos valores afro-brasileiros. Os valores civilizatórios afro-
brasileiros são os legados principais deixados pelos negros em território brasileiro
durante e após a escravidão. Essa cosmovisão tem guiado de maneira viva as
manifestações como a capoeira, brincadeiras e outras atividades. Nas palavras da
pesquisadora Flavia Candusso, os valores afro-brasileiros são:
Nesse sentido, utilizar os valores dentro da perspectiva cênica nos permite combinar,
juntar e criar relações dentro do processo de criação teatral. Como não são fixos e
podemos entender a cosmovisão africana como algo que não se separa, e sim está
em relação, uma coisa não está isolada da outra, ou seja, a circularidade está em
sintonia com a memória e também com a energia vital, e assim por diante.
Por isso, é nesse atravessamento que ações cênicas são confundidas com o
coletivo na construção de cenas feitas por atores negros e atrizes negras, pelas quais
acontece a identificação mediante conflitos, sentimentos e desejos presentes na
ação cênica. Isso porque ali estão personalidades e identidades que surgiram destas
escrevivências, dessa forma, na cena em processo, o ator e atriz performer refletem
sua identidade de serem negro e negra.
Desenvolvimento da pesquisa
5
Jongo é também considerado uma expressão cultural de identidade do povo afrodescendente, com
destaque aos remanescentes de quilombos.
6
Xirê: festa.
69
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
7
Trabalho em processo. Termo utilizado pelo pesquisador do teatro Renato Cohen no livro “Work in
Process na Cena Contemporânea: criação, recepção e encenação”.
70
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Conclusões
Este trabalho visou analisar a cena construída a partir de relatos dos atores negros
envolvidos no processo de criação e de seus referenciais, abordando a relação entre
os jogos tradicionais de criança, que são costurados aos acontecimentos políticos e
sociais do tempo presente e dialogam com a temática que amarra esse documento:
o corpo negro. Esse corpo-documento sempre esteve presente na história do Brasil,
primeiramente trazido como escravo dos senhores brancos e, depois, passado a
objeto de narrativas contadas apenas do ponto de vista do homem branco.
Esta pesquisa exploratória, portanto, vem desaguar no refletir sobre práticas artísticas
de criação apoiadas nos saberes populares dos jogos de infância e memória enquanto
conceitos de escrevivência. Dessa forma, busca-se estratégias de democratização
de práticas pedagógicas no campo da arte e na contribuição para o combate ao
racismo através da validação das questões de cultura e memória negras e periféricas
em um tempo em que “nós mesmos falarmos de nós mesmos” exige a necessidade
constante do impulso para criação de novas narrativas cênicas.
Referências bibliográficas
8
Ver mais sobre o tema em: https://super.abril.com.br/historia/quem-era-jo-por-que-ele-tinha-
escravos-e-o-que-diabo-e-caxanga/. Acesso em: 10 nov. 2021.
71
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
ANDRADE, Leonardo Carlos de. Explorando a cultura africana pelo brincar. In:
SANTOS, Tatianne Silva; NOLL, Matias; ANDRADE, Leonardo Carlos de. Diversão e
conhecimento: um resgate de brincadeiras e jogos da comunidade quilombola do
Cedro. Goiâna: IF Goiano, 2020. p. 27 - 32.
LIMA, Evani Tavares. Capoeira Angola como Treinamento para o Ator. Dissertação de
Mestrado - Programa de Pós- Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal
da Bahia. Salvador/Bahia, p. 202. 2002
MARTINS, Leda Maria. A cena em sombras. 1. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995.
72
Reflexões Errantes sobre Cidade e as Artes da Cena:
devoração cultural em Campos dos Goytacazes
Takna Mendonça Formaggini
Instituto Federal do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
1
“O termo atuador, no teatro brasileiro, aparece pela primeira vez em um manifesto do Teatro
Oficina na década de 70, que trazia entre seus objetivos a busca por cativar o público que não tinha
acesso ao teatro; a ocupação de outros espaços, além dos teatros convencionais; a reformulação
da cena de forma que fosse concebida como um testemunho, sem divisão entre palco e plateia,
sem máscara, representação tradicional, maquiagem, fantasia ou qualquer elemento que pudesse
produzir fascínio ou distanciamento entre o espectador e a ação. A fim de cumprir todos esses
objetivos, a denominação ator – componente do grupo – deveria ser substituída por atuador” (SILVA,
1981, p. 203). No foco do presente projeto, os atuadores também se reconhecem como pesquisadores
durante os itinerários de investigação corpo-cidade. Por isso, “atuadores pesquisadores”.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
A prática da cena teatral para a rua, assim como para outros espaços não
convencionais de encenação, necessita de um constante refletir sobre as relações
estabelecidas entre atuadores e a semântica desses espaços. Por essa razão, ao se
colocarem também como sujeitos errantes na percepção de sua relação com as ruas
e os espaços urbanos, é que atuadores pesquisadores, em trabalho de preparação
para a linguagem do teatro de rua, permitem-se, empiricamente, práticas de grupo
que envolvem saídas para o espaço público e percepção sensível da cidade, debater
uma experiência artística, justamente dentro da ideia de porosidade — esta enquanto
trama de percepções histórico-afetivas envolvidas na relação de compreensão
sensível para com o espaço urbano.
Para que haja significação no processo que inclui a percepção do olhar sensível sobre
a cidade em todos os seus afetos, o artista também deve construir seu processo a partir
da experiência de seus próprios afetos sobre a cidade, oportunizando, assim, o conceito
híbrido e transdisciplinar proposto para preparação que antecede a experiência de
fruição pretendida para a etapa de intervenções urbanas. A manifestação teatral,
por conter um conjunto de signos, permite ao espectador a associação desses
signos pertencentes a esse sistema para que haja o processo de descoberta dos
seus significados (HONZL, 1988). Portanto, para um projeto artístico que se proponha
à produção de sentidos a partir de diversas possibilidades de experiências, vivências
e sensorialidades entre os que o vivenciam, é necessário considerar a investigação
no tocante às referências significativas que o artista envolvido, o atuador, irá operar.
Em vista disso, percebe-se, nesse campo investigativo de estudo, um significativo
debate que se refere a praticar a cidade também como criadores, dentro da
compreensão de que não são apenas os imóveis que estão presentes em uma
cidade, mas sim toda a memória coletiva que ela carrega em si e onde, neste debate,
76
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
o teatro errante vem nos convidar a (re)pensar sobre esses sentidos. Percebe-se
a tríade sociedade-espaço-tempo como algo indissociável, não como relação de
pertencimento de um para com o outro, mas dentro de uma relação indissociável de
existência. Percebe-se esses sujeitos da ação na relação com os ambientes diversos
e enquanto partes interligadas constituintes do ensino-aprendizagem, em uma
relação que considere o caráter híbrido existente entre atuadores, espectadores e
espaço urbano.
O levantamento de uma metodologia de trabalho, portanto, que busque essa
porosidade de relações entre experiências concretas sobre arte e cidade é necessário.
A cidade é percebida/devorada em seus valores a partir de experiência significativa/
devoração cultural, que se dão tanto para os sujeitos passantes quanto para os
atuadores pesquisadores que se propõem a essa jornada errante, além de tecerem
itinerários a partir da busca pessoal de compreensão particular e coletiva de cidade
na construção da ação artística pessoal. Buscam-se trabalhos corporais de atuação
em teatro, dentro da procura de uma linguagem de apropriação desses sentidos da
cidade e da relação de si mesmos com o espaço e com o outro, como busca por essa
porosidade afetiva.
A proposta que relaciona devoração cultural e teatro de rua, quando pensada dentro
do panorama vivenciado pela sociedade global nos anos de 2020 e 2021, em que o
espaço público colocou-se como “perigoso” devido à pandemia mundial do vírus de
Covid-19, vem, a partir daqui, trazer um sentido extremamente mais potente enquanto
ação. Nunca se desejou tanto a devoração do espaço urbano, do espaço público.
Nunca se desejou tanto novamente a devoração das copresenças e a devoração
cultural do cotidiano de uma cidade. A arte pública, através de ações teatrais em
espaços da cidade, vem propor o retorno e a ampliação das possibilidades de
convivência em diversidade cultural e artística dentro de um contexto em que a
prática do teatro de rua e da arte pública faça-se cada vez mais necessária, e o
espaço urbano possa prevalecer como lugar de experiência estética.
Os goitacazes (cidadãos campistas) do presente trazem consigo, como herança
ancestral, toda a história que vem desses povos nativos dizimados, negros brutalmente
escravizados, europeus colonizadores, membros de ordens religiosas e tantas outras
histórias presentes nesses assuntos. De lutas, guerras, heróis e anti-heróis. Do horror e
injustiça à herança de danças e costumes de doces, frutas e cozidos. Essas reflexões
acerca da compreensão de pertencimento dentro das relações entre a sociedade
e a natureza urbana estão presentes no pensamento do fazer teatral para esses
espaços, trazendo a qualidade da experiência estética em arte como disparadora
da ideia de devoração cultural. Perceber-se Goitacá a partir da relação sensível que
é a construção cultural de si próprio com a cidade.
77
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Conclusões
Referências bibliográficas
HONZL, Jindrich. A mobilidade do signo teatral. In: GUINSBURG, Jacó; NETTO, José
Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves (Orgs.). Semiologia do teatro. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1988.
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
RIBEIRO, Darcy. Utopia selvagem. 1. ed. São Paulo: Global Editora, 2014.
79
Três Décadas de Resistência da Cultura Negra
no Município de Campos dos Goytacazes:
um relato de experiência do Núcleo de Arte e
Cultura de Campos (NACC)
Neusimar da Hora Silva
Instituto Federal Fluminense
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Ainda tomamos como base o conceito de memória coletiva, termo cunhado pelo
sociólogo francês Maurice Halbwachs (2013), que consiste em definir a memória
coletiva como aquela compreendida no processo de reconstrução do passado
vivido e experimentado por um determinado grupo social. Para mais, há o conceito
de história oral dentro da concepção do autor inglês Paul Thompson (1998). Segundo
Halbwachs (2013),
Assim, esta pesquisa visa não apenas colher as lembranças individuais, mas a
memória do coletivo denominado Núcleo de Arte e Cultura de Campos (Cia. Gente
de Teatro). No decorrer de 33 anos de existência, esse grupo tem mantido viva a
história e memória das manifestações culturais, de forma mais específica, neste
estudo, a Mana-Chica e o jongo do município de Campos dos Goytacazes.
Portanto, como diz o provérbio africano, “Hasta que los leones tengan sus propios
historiadores, las historias de cacería seguirán glorificando al cazador”1; logo,
enquanto não nos dispusermos a ser os contadores de nossa própria história, o
mundo e as gerações seguintes a ouvirão exaltar quem nos oprime e se assume
como protagonista da “verdade” que de nós mesmos inventou. Sendo assim,
a sabedoria do mestre que é capaz de conservar necessita transmitir os seus
conhecimentos aos mais jovens, pois, do contrário, as tradições serão esquecidas
para sempre.
Desenvolvimento da pesquisa
82
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Conclusões
Podemos concluir que, com essa prática jongueira que vivenciamos, ressignificamos
e cultuamos a nossa memória ancestral, enfrentando o preconceito e o racismo,
compondo novos jongos e levando a cultura para as escolas, universidades e
comunidade em geral. Acreditamos ser assim a única forma de reafirmar a nossa
identidade, colocando-nos na condição de pertencimento e, por sua vez, valorizando
o jongo, já que em nosso município ele esteve adormecido como um ato negacionista
de apagar a memória histórica, cultural e social de nossos antepassados.
Atualmente, nossos principais objetivos são promover a conscientização de nossas
crianças a partir da cultura oral e manter viva a manifestação do jongo, uma vez
que historicamente a criança não dançava jongo em função do horário em que
as rodas aconteciam. Portanto, a partir do entendimento de que as crianças e os
jovens são a base afirmativa e positiva de nossa cultura, abrimos espaço para que
elas participassem junto com os adultos e se sentissem, dessa forma, conhecedoras
e familiarizadas com sua própria cultura. Essa experiência com as crianças tem
demonstrado que, através de seus corpos, elas vão livremente construindo e
ressignificando a nossa história.
Referências bibliográficas
THOMPSON, Paul. A voz do passado – história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
84
Travessias e Atravessamentos de
uma Corpo-saia Rodante
Alissan Maria da Silva
IFFluminense/NEPAA-UNIRIO
Resumo
1
Utilizo aqui o pronome “suas” no feminino na relação com o substantivo masculino “sujeitos” como
forma de enfatizar o feminino que é sujeito da saia.
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
relações pressupostas pela academia, é uma adoxo, ou, num termo mais popular,
rodante — aquela que expressa a divindade no corpo (transe) — e iaô – iniciada
no contexto da tradição do candomblé.
[...] Aí eu comecei a entender as coisas com essa história que ela me contou. Ela
disse assim “Um dia, era uma vez”. Então, ela instaurou o mito. Esse era uma vez
é fantástico porque ele instaura a história mítica. Era uma vez um guerreiro. Um
guerreiro africano e ele chegou na aldeia dele e não viu as pessoas. Então, ele
perguntou onde é que estavam as pessoas: “Onde é que está o meu povo?”. Ele
era o rei daquela cidade. E alguém disse para ele “Levaram. São escravos hoje”.
Então ele muito nervoso vai para a floresta, arranca uma imensa árvore, um
grande Iroco, joga no mar e trepa no Iroco e vem nadando mar afora. No meio
das águas ele encontra uma mulher linda e ele conta a história que estava
buscando o povo dele. Ela disse “Vou com você. Eu também quero lutar junto
com você”. Chamava-se Iemanjá Ogunté. E os dois vieram conversando sobre
as estratégias e quando chegaram a Salvador eram três, que tinham nascido
Ogunjá. Quer dizer, três guerreiros que vieram para Salvador para libertar o seu
povo. Que coisa maravilhosa, gente! Como é que esse mito restaura a dignidade.
E como é que esses deuses vindos para o Brasil dão uma nova dimensão na
luta social [...] (BARROS, s.p., 2013).
87
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
território singularizado pelas relações nele construídas, o real vivido, por sua filosofia
imanente, por sua dinâmica civilizatória, portanto aspectos civilizatórios africanos
reinterpretados no Brasil. Esse território pode ser compreendido como o espaço físico
que, habitado por esse corpo — o terreiro —, também habita material e imaterialmente
o próprio corpo habitado pelo sujeito. Por isso, no caso do olhar proposto por este
estudo, a saia que habita e é habitada pelo corpo feminino se torna também território
singularizado à medida que desenha no espaço a cinesfera desse ser redondo.
Oliveira (2003) aponta ainda que essa cosmovisão se pauta não pela contraposição,
mas a partir da complementaridade como princípio, no qual “o” deus não é apenas
masculino, e o feminino não é apenas uma costela de Adão. Òrun (o invisível) e Àiyé
(o visível) coexistem e se interpenetram, bem como as forças femininas e masculinas
também coexistem interligando-se, tendo deuses, forças, poderes femininos,
masculinos e andróginos. Desse modo, o culto aos orixás está extremamente ligado
ao culto aos ancestrais2. A cosmovisão africana retira dele praticamente todos os seus
elementos (OLIVEIRA, 2003), inclusive o princípio da complementaridade. Embora os
cultos para os orixás e ancestrais não sejam os mesmos, os ancestrais e os orixás são
complementares no Òrun. A complementaridade entre Òrun e o Àiyé, vida e morte,
feminino e masculino, por exemplo, é preservada e atualizada pelas práticas e lógicas
africanas de compreender e atuar no mundo, restauradas por seus descendentes.
Portanto, considero que há uma conexão entre a forma circular da saia e o feminino
na cosmovisão que, em diáspora, soube se construir alegoricamente no corpo da
mulher que preenche a saia e a faz mover como que propagando ondas pelo espaço.
Mais uma estratégia simbólica em singularizar — “restaurando comportamentos” —
elementos que, a princípio, não lhe constituíam sob essa forma (saia) naquilo que é
seu (corpo), expressando sua cosmovisão (circular) e sua gênese (“mulher/feminino
que gera”) em movimento (“afrografia”) nos tempos reversos da ancestralidade
(espiral). Dessa maneira, a performance do movimento do corpo que utiliza a saia
não é acessada; saberes provenientes da performance da saia, cujo movimento
2
Em relação aos cultos aos ancestrais de tradição nagô no Brasil, “Os Esa, os Egungun e as Iya-mi
Agba. [...] Os Esa são considerados os ancestrais coletivos dos afrobrasileiros [...] destacam-se por
seu trabalho junto às comunidades [...] Egungun é o culto dos ancestrais masculinos [...] A Geledes é
o culto às ancestrais femininas [...] também chamadas Iya-mi-Agba” (OLIVEIRA, 2003, p. 62-64).
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GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
é gerado a partir do feminino que dança, são acessados. O desafio posto foi o de
conectar as linhas diante das possibilidades que essa encruzilhada apresentou como
hipótese: pensar esse elemento que veste o corpo feminino no candomblé — a saia,
que, ao girar, prolonga o corpo e estende o movimento — como expressão de uma
cosmovisão ancestral, mantendo o equilíbrio e restaurando a tradição.
A saia é “tornada” axé à medida que se torna prolongamento desse corpo que a
preenche e também é expandido diametralmente. Por sua vez, o prolongamento desse
corpo feminino expandido torna-se também extensão do movimento que se entende
circular, mesmo que não esteja literalmente dançando em giros a todo momento.
Muito embora esteja posto que o movimento giratório desenha a “afrografia” dessa
performance que expressa a sacralidade do tempo espiralar, fazendo também das
saias de axé, em sua unidade corpo-saia, “portais de inscrições de saberes de vária
ordem, dentre elas a filosófica” (MARTINS, 2002, p. 72).
O corpo como princípio dinâmico do movimento dinamiza a circulação do axé. No
entanto, se corpo — bára — somos todos, a singularização da saia que a esse princípio
dinâmico dá vida é a própria manutenção da vida, tornando-nos conceito de espirais
em movimento com nome, sobrenome e identidade, responsáveis pela continuidade
dessa mesma vida — iaôs mulheres espirais. Como corpos singularizados por saias
que singularizam corpos, carregamos o tempo no próprio corpo como um portal.
Somos como Iemanjá, aquela que deu à luz Exu, princípio dinâmico da vida e dono do
corpo, dentro de uma concha, o ogó. Mantenedoras dos mistérios, somos mães do
movimento de uma performance do tempo espiralar (MARTINS, 2002).
A saia girando, ou a noção da saia girando, transforma a performance da saia de
axé na medida em que o compartilhamento da emanação da energia é importante
aspecto desse equilíbrio buscado. Assim, essa performance é como ensinou equede
Raquel, minha mãe pequena: como a água que brota da nascente e se torna cachoeira;
como a voz que, como extensão do corpo, atinge o outro em comunicação; como o
doburu e o ebô, que se multiplicam depois do seu cozimento e podem alimentar a
todos — humanos e divindades —, tornando a saia possível signo de emanação de
axé, que, em seus rodopios e ondas, faz a guarda dos mistérios do nascimento de
uma nova vida e, também, de uma vida em renascimento — a iaô.
Referências bibliográficas
LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro:
Garamond, 2011.
90
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar. In: MARTINS, Leda Maria;
RAVETTI, Graciela; ARBEX, Márcia. Performance, exílio, fronteiras, errâncias
territoriais e textuais. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002. p. 69-92.
BARROS, José Flavio Pessoa de. Mito, memória e história: a música sacra de Xangô
no Brasil. In: CONDURU, Roberto; SIQUEIRA, Vera Beatriz (Orgs.). Políticas públicas de
cultura do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ, Rede Sirius; FAPERJ, 2003.
BARROS, José Flavio Pessoa de. O espaço sagrado no candomblé nagô. In: LEMOS,
Maria Teresa Toríbio Brittes; MORAES, Nilson Alves de; PARENTE, Paulo André Letra
(Orgs.). Memória e identidade. Rio de Janeiro: 7 letras, 2000.
BARROS, José Flavio Pessoa de. CULTNE - Curso de História Negra - UERJ - Prof.
Jose Flavio Pessoa. [S. l.: s. n.], 1 abril 2013. 1 vídeo (46 min 14 s). Publicado pelo canal
Cultne . Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MSh7wj80XC8&t=353s.
Acesso em: 7 maio 2018.
VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo do Benin
e a Bahia de todos os Santos. São Paulo: Editora Corrupio, 1987.
91
“Na Boca de Quem não Presta Pombagira é
Vagabunda1”: revisitando o olhar sobre as Pombogiras
Jéssica Cristina Alvaro de Oliveira
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Resumo 1
Introdução
Após saudar as donas das encruzilhadas com meu ponto preferido, inicio os trabalhos
ritmados pelo som do atabaque e guiados pela levada da intuição de uma médium,
ativista intelectual. A discussão sobre o feminino nas religiões de matriz africana não
1
O título faz menção a um ponto de pombogira que demonstra o que chamamos de objetivação
neste trabalho. O ponto completo é: “Pombagira é mulher de domingo até segunda. Pombagira é
mulher de domingo até segunda. Na boca de quem não presta Pombagira é vagabunda. Na boca
de quem não presta Pombagira é vagabunda”.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
1. Formas de objetivação
93
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
continente africano, das colônias e da própria Europa que não poderá deixar de
ser mencionado neste trabalho, já que as próprias religiões de matriz africana, em
especial o candomblé e a umbanda, são sínteses desses contatos.
No processo de escravidão, que perdurou por quase quatro séculos, diversas
foram as formas de organização que buscaram a liberdade das populações
escravizadas, inclusive organizadas por europeus brancos, conhecidos como
abolicionistas. No que se refere às atividades realizadas pelos(as) abolicionistas,
José Castiano (2010) diz que estes utilizam ex-escravizados(as) como instrumentos
de veracidade para suas narrativas pró-abolição da escravatura. Com isso,
construíam uma espécie de script limitando o que seria importante para comover
as plateias, ou seja, as pessoas africanas, a partir do contato com os europeus,
bem-intencionados ou não, passaram por processos que as tornaram objetos,
por meio do que ele denomina “objetivação”.
Castiano (2010) compreende por objetivação a maneira como as pessoas africanas
são utilizadas como instrumento para suprir as necessidades europeias, ainda que as
demandas destas primeiras sejam atendidas, em alguma instância. Assim, mesmo
que em condições de reconhecimento de suas humanidades e, dessa forma, uma
pessoa africana seja compreendida como alguém dotada de conhecimentos, ela
não possui autonomia e/ou a patente sobre eles, estando muitas vezes relegada à
função de ilustrar textos científicos que sistematizam, segundo moldes europeus, os
conhecimentos desenvolvidos por sociedades africanas.
“Arreda homem que aí vem mulher, arreda homem que aí vem mulher, ela é
a pombogira, rainha do Cabaré.”
Nas religiões de matriz africana, bem como nas religiões de matriz cristã, a figura
de Exu possui grande centralidade. Se, de um lado, ele é a autoridade dos poderes
divinos com os quais Olorum cria o universo, de outro, ele é transformado em diabo
judaico-cristão, como lembra Rufino (2019). Assim, as investidas coloniais da Europa
não somente converteram a figura do orixá, fundamental na circulação da energia
vital das religiões de matriz africana, em demônio, como também masculinizaram
sua imagem. Tal pensamento coaduna com Vagner Silva (2015) quando afirma que
Exu não se deixa restringir às divisões de genêro. Portanto, podemos concluir que sua
masculinização está relacionada à interpretação ocidental de um dos símbolos que
representa esse Orixá, ou seja, o falo ereto, sinônimo de fertilidade.
O Orixá Exu, parte do panteão yorubá, assim como a população afrodiaspórica,
realiza trocas e intercâmbios que resultam na sua aparição em outras religiões como
parte das divindades cultuadas. Na umbanda, por exemplo, ele deixa de ser cultuado
94
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
como Orixá para ser compreendido como entidade. No contexto dessa religião afro-
brasileira, Tulani Pereira da Silva (2017) lembra que:
[...] Exu se apresenta como um espírito. Uma vida que se findou no plano material
e continua sua existência no plano espiritual, trabalhando na condição de
entidade. Exu aparece assim, de maneira tão brasileira. Malandreando as regras,
é o compadre de todas as horas na caminhada da vida, pois acompanha, de
maneira tão humana os problemas das pessoas. Interfere nos acontecimentos,
desviando ou não as bonanças/malefícios que os cercam (SILVA, 2017).
95
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
2
Egun é o termo utilizado para se referir ao espírito de pessoas falecidas.
96
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Maria da Glória não, Maria de Jesus [...] ela havia voltado, mas havia falecido
com 27 anos e foi assassinada sem ter feito nada, só porque o pai dela não valia
um tustão. Não esqueço essas palavras: ‘meu pai era tão filha da p*, tão filha da
p* que quando eu nasci ele gritou: nasceu a p*’[...].
E ela continua:
Mas ela era uma pessoa boa, pura. Essa pombogira é muito diferente, a
gente canta que ela tem sete maridos, mas ela não tem sete maridos. E ela dizia
‘eu não tenho sete maridos porque morri moça, apesar de ninguém acreditar,
eu morri moça, não transei com ninguém’. E aí a gente cantava: ‘ela é mulher que
não tem marido’ ao invés de cantar ‘ela é mulher com sete maridos’. Não mexa
com ela, Campeira é um perigo. Entendeu?
A partir dessa conversa, indaguei: será que as pombogiras em sua multiplicidade são
representações de arquétipos transgressores femininos ou são imagens de controle3
de mulheres negras e não brancas de diferentes épocas? Pois, ao afirmar que ela não
possui sete maridos, mas que ninguém acredita em sua história de vida, Dona Campeira
abre um leque de possibilidades sobre histórias de vidas outras, experienciadas por
outras pombogiras, as quais os adeptos das religiões desacreditaram tanto que
elas já nem ousam contar. Mas, para afirmar tal tese, demandaria um trabalho de
investigação muito mais amplo.
O que a fala de Dona Campeira promoveu no meu entendimento sobre as pombogiras
não será possível expressar em sua totalidade neste trabalho. Porém, assim como
trabalhos anteriores me ensinaram a negar o prisma que enxerga mulheres negras
a partir dos binômios resistente e cansada ou, ainda, forte e fraca, com este trabalho
deixo de reivindicar o lugar de transgressora da lógica patriarcal para entender
as pombogiras no que de fato são, diversas, e precisam ser ouvidas para além do
momento que estão receitando um trabalho.
Vale ressaltar que denomino aqui por imagens de controle uma lógica de poder que
nomeia, caracteriza, manipula e dissemina significados carregados de estereótipos sobre
as vidas de mulheres negras, diferente do que elas falam sobre si mesmas (COLLINS, 2019).
Conclusões
97
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
no que nos interessa, isto é, nos trabalhos que elas passam para recuperar amor,
para conseguir emprego e prosperidade? Como pesquisadoras(es), estamos
preocupadas(os) em compreender a complexa dinâmica presente na discussão
dos arquétipos femininos existentes na matriz africana, ou mais interessadas(os) em
apontar a existência de alternativas à lógica hegemônica?
Ao mobilizar os conceitos de objetivação, matriz de opressões e imagens de controle,
busquei refletir sobre as impossibilidades de contarmos nossas próprias histórias
que rondam nossas experiências enquanto mulheres negras. De alguma maneira,
mesmo que sejamos compreendidas enquanto sujeitas e, no caso das pombogiras,
vistas na sua eficiência em resolver demandas, o ocidente cria estratégias para
contar e manipular nossas histórias segundo o que acredita saber de nós. Para além
disso, nós, pessoas que se posicionam contra um projeto colonial de dominação,
assumindo uma postura divergente à lógica proposta, seja por posicionamento
político, seja por sermos adeptas a uma religião cuja matriz não é judaico-cristã, não
podemos ignorar a possibilidade de incorrer ao erro de objetivar o(a) outro(a), pois
somos formados(as) conforme a razão ocidental.
Maria amarra a saia, é hora, é hora. Maria amarra saia, exu vai embora. Pombogira
quando chama, pra dizer que está na hora. Pombogira quando chama a falange
vai embora.
Referências bibliográficas
BARROS, Mariana Leal de; BAIRRÃO, José Francisco Francisco Miguel Henriques.
Gender performances in umbanda: the pombagira as an afrobrazilian interpretation
of woman? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 62, p. 126, nov. 2015.
SILVA, Tulani Pereira. “ARREDA HOMEM, QUE AÍ VEM MULHER...”: dimensões do corpo
na performance da Pombagira. 2017. 173 f. Dissertação (Mestrado em Relações
Étnico-Raciais) — Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca, Rio de Janeiro, 2017.
98
Identidades a Flor de Piel: a performance da
palenquera em Cartagena das Índias
Léa Maria Schmitt Leal
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
1
Palenquera é a designação da mulher originária de San Basílio de Palenque, pequena cidade
localizada a mais ou menos 70 quilômetros de Cartagena das Índias. Sua fundação é atribuída a
Benkos Biohó e um grupo de africanos escravizados quilombolas.
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
2
Benkos Biohó, também conhecido como Domingo Biohó, nasceu na região de Biohó, Guiné-Bissau,
África Ocidental, onde foi sequestrado pelo traficante português Pedro Gómez Reynal, vendido ao
comerciante Juan de Palacios e revendido por este como escravo ao espanhol Alonso Campo, em
1596, na cidade de Cartagena das Índias.
3
Uma breve busca na rede mundial de computadores, no caso o Google, ao inserir a palavra
“palenqueras”, acarretou mais de 226 mil resultados.
100
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
trabalhavam nas praias assumem uma relevância, pois começaram a ser vistas como a
face informal que persegue e pode “afetar” o turismo, tornando-se objeto de intervenção e
controle por parte do governo local. Posso dizer que foi significativa a propagação da sua
imagem a partir dos anos 1990, pois a administração local determinou uma uniformização
referente às cores4 que essas mulheres poderiam utilizar pelas calles.
Fundamentação teórica
Desenvolvimento da pesquisa
Cartagena das Índias e Palenque de San Basílio são duas cidades turísticas que
se encontram no departamento de Bolívar, no caribe colombiano, situadas a uma
distância de 70 quilômetros de distância. Ambas as localidades representam
atualmente, devido à sua trajetória histórica, destinos para os visitantes e turistas
que se encontram interessados em conhecer e apreciar as suas particularidades
socioculturais, uma atração cativante para aqueles que têm a possibilidade de flanar
por ambas as cidades. Nos dois casos, o patrimônio cultural é o principal argumento
a seu favor, pois Cartagena foi declarada patrimônio mundial pela Unesco em 1984,
e San Basílio de Palenque foi considerada uma obra-prima de patrimônio oral e
imaterial da humanidade em 2005 pelo mesmo órgão.
4
As palenqueras foram obrigadas a utilizar nas suas vestes as cores da bandeira da Colômbia
(amarelo, vermelho e azul).
101
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
Conclusões
Referências bibliográficas
DEAVILA, Orlando Pertuz. Las otras caras del paraíso: veinte años en la historiografía
del turismo en el Caribe. Revista Digital de Historia y Arqueología desde el Caribe,
Barranquilla, n. 23, p. 76-95, 2014.
102
GT 2: CULTURAS, TRADIÇÕES E AS ARTES DA CENA: DIÁLOGOS SOBRE FRONTEIRAS E BORRAMENTOS
103
GT 3
COMUNICAÇÃO, MÚSICA E
INTERCULTURALIDADE
Coordenadores: Flávia Magalhães Barroso (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)
e Rodrigo Rossi Morelato (Universidade Estadual do Rio de Janeiro).
Resumo
Introdução
Uma igreja construída no século XVIII, no que era então uma freguesia rural, fonte
de peregrinação ao longo de Brasil Colônia e Império, empresta seu nome ao bairro
que atualmente faz a fronteira entre o Centro e a Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro:
o pequeno bairro da Glória.
Lá, é possível ler, na placa afixada à saída da estação de metrô, a Rua
Benjamin Constant, “articulador da República”. Essa toponímia, forma de relação do
espaço, ganha outra dimensão ao percorrermos a pequena rua que começa com
vistas ao Outeiro da Glória, passa por sua estação de metrô, é margeada por casario
do século XIX, edifícios do século XX, a outrora famosa, e hoje abandonada, Igreja
Positivista do Brasil, sede de conspirações republicanas, e desemboca numa pequena
comunidade composta de algumas casas que espremem a pequena escadaria a
qual leva até um dos inúmeros mirantes do bairro de Santa Teresa.
Aproximadamente na metade do caminho, no entanto, é possível encontrar um
curioso elemento que programa (VIVANT, 2012) a vida cultural local: há um bar na
esquina de uma escadaria e um entroncamento que levam aos bairros vizinhos.
Desde os anos 1990, em frente ao bar, moradores dos arredores vêm construindo
uma churrasqueira comunitária, fizeram bancos de concreto, improvisaram mesas
de madeira e um pequeno parquinho para crianças com escorrega e trepa-trepa.
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Em vista desse espaço acolhedor, entre os anos 2014 e 2019, uma pequena
comunidade de músicos lá se encontrava para realizar a ressignificação desse
espaço com apresentações semanais de choro, todas as quartas-feiras, das 19h às
22h. Neste pequeno resumo, partilho uma caminhada e diálogos por essa rua tão
pitoresca do bairro da Glória; como esse walkscape constrói uma paisagem toda
própria através da percepção do espaço; como comunidades se apropriam da
cidade e exercitam um urbanismo tático; como territorialidades sônicas são tecidas
a partir da convivialidade de novos vizinhos que vieram habitar essa rua.
As cidades são um tipo de problema que requer atenção especial. Por mais
planejados, planificados, racionalizados e funcionais que sejam os traçados de suas ruas,
o perfil de seus prédios e a densidade de suas quadras, as cidades saudáveis devem estar
sempre abertas ao uso que os cidadãos fazem daquilo que foi construído por arquitetos e
engenheiros: devemos ter atenção privilegiada às calçadas (JACOBS, 2011).
Essa diferença entre a cidade construída e a habitada (SENETT, 2018) é muito evidente
na Rua Benjamin Constant, de aproximadamente um quilômetro de extensão, que
parte do Largo da Glória, onde se localiza a estação de metrô do bairro, e adentra os
morros da região, diluindo-se em uma pequena comunidade de casas empilhadas
sobre uma escadaria. No meio exato da rua, há um bar e aquilo que outrora fora um
estacionamento irregular, mas agora é um tipo de praça construída pelos próprios
moradores, como conta um local:
Esse tipo de ação do mais fraco, que tenta tirar vantagem dos poderes estabelecidos,
compõe o que o filósofo Michel de Certeau (2014) chama de tática, que, numa série
de golpes proporcionados pela oportunidade, tenta garantir vantagens como o
calçamento de uma praça construída de modo autônomo pelos próprios moradores
do bairro. Esse tipo de urbanismo tático (LYNDON, 2016) tem transformado aquilo que
era um estacionamento numa pequena praça, onde se encontra uma churrasqueira
1
Em depoimento para o autor em maio de 2019.
106
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
2. Da territorialidade sônica
Fonte: http://leschiensnoirs.blogspot.com/2016/10/.
107
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
A roda foi idealizada por dois amigos músicos que vieram morar na Rua Benjamin
Constant e, ao se depararem com o espaço construído pelo urbanismo tático de seus
vizinhos e com o econômico preço da cerveja do bar ao lado, decidiram se apresentar
semanalmente, como lembram:
Eu vim morar aqui na Rua Benjamin Constant, e o meu vizinho era o Diego. Ele
morava no final da rua, e eu morava um pouco mais pra baixo... Aí a gente sentia
falta de reunir os amigos pra tocar choro, uma vez por semana, em algum lugar
que fosse agradável e a gente pudesse tocar de uma forma bem agradável
e informal... Aí um dia a gente tava passando e viemos falar com os donos do
bar, pois eles estavam aqui na frente... Se a gente podia fazer a roda, assim, de
brincadeira mesmo... E eles concordaram! Aí chamamos os amigos, fizemos a
primeira roda, e foi dando certo...2
Fonte: http://leschiensnoirs.blogspot.com/2016/10/.
Entre os anos 2014 e 2019, o Choro da Glória, como ficou conhecido, se apresentou
semanalmente na praça da Rua Benjamin Constant, ocupou o espaço público e gerou
renda aos proprietários do comércio local, constituindo-se parte de um roteiro cultural
entre o Centro e a Zona Sul da cidade, ponto de difusão de festa e energia nas ruas
do Rio de Janeiro. Embora terminassem suas apresentações às 22h, de acordo com
2
Depoimento dos músicos Lucas e Diego para o vídeo “Origem do Choro da Glória”. Disponível
em: http://chorodagloria.com.br/about-me/. Acesso em: 14 out. 2021.
108
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Conclusões
Referências bibliográficas
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2014.
JACOBS, Jane. Morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2011.
SENETT, Richard. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro:
Record, 2018.
109
Corporalidades Negras em Festa: relatos de viajantes
estrangeiros no Rio de Janeiro do século XIX
Flávia Magalhães Barroso
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
se reúnem alguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mãos; é o sinal
de chamada e de provocação à dança. O Batuque é dirigido por um figurante;
consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareçam demasiado
expressivos (RUGENDAS, 1998, p. 157).
111
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
O batuque é a prática festiva pela qual os viajantes marcam, informados pela sua
formação cultural, o encontro com outro registro do corpo. As reiteradas descrições
espantadas com o movimento corpóreo, suas formas e curvas destacam a posição do
corpo estrangeiro diante das cenas festivas negras. A contenção do corpo e de seus
movimentos é parte do processo civilizador europeu, pelo qual, apoiados na moral cristã,
foram desencadeadas camadas de comedimento do corpo: a separação do corpo e
espírito, a culpa do corpo e a carne fraca do pecado (SOIHET, 2003; LE BRETON, 2003).
112
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
e, por fim, a mais crua volúpia carnal. As representações do corpo negro revelam
a constituição moderna de desconfiança do corpo que “encanaria a parte má” (LE
BRETON, 2003) e, por sua vez, precisaria ser corrigido, domado por técnicas funcionais
pelas quais desvinculariam a corporalidade do tempo do prazer e do despropósito
festivo. O tempo festivo é encarado como uma patologia, algo que deve ser gerido
por técnicas corporais que confiram funcionalidade e programação à carne arcaica,
sórdida e duvidosa.
A imagem de um povo festeiro e musical foi paulatinamente sendo arquitetada
nos relatos dos viajantes, compondo, assim, um quadro imaginário do Rio de Janeiro
facilmente identificado nos dias atuais. Ao passo que as descrições das festas negras
eram impregnadas de julgamentos morais e discriminatórios, elas também sinalizam, pela
riqueza de detalhes e pelo volume de relatos encontrados, a posição de arrebatamento e
perplexidade dos viajantes diante das cenas festivas que presenciaram.
Golbery, viajante estrangeiro, em seu relato sobre sua experiência no país, reflete
acerca do espaço da festa enquanto espaço de proteção e manutenção dos laços
culturais destroçados pela escravidão:
[...] suportando a dura lei da escravidão, os negros nada perderam de seu amor
por seu exercício de predileção; conservavam o uso de todos os instrumentos
próprios de sua nação. [...] O Batuque, que alternativamente exprime as
repulsas e os prazeres do amor; a capoeira em que se finge o combate; o lundu,
que mesmo no teatro se dança, e cuja graça consiste principalmente num
movimento particular das partes inferiores do corpo, [...] todas essas danças
apaixonantes que mil vezes têm sido descritas pelos viajantes (apud DENIS,
1980, p. 156).
A festa, enquanto experiência em que o povo dela não se priva, nem por proibição
da Igreja, quiçá das autoridades, encontra seus espaços de brecha em toda a
história da cidade, sendo esta formadora de uma narrativa essencial urbana. O
memorialista Ferreira de Rezende, do século XIX, faz extensas menções ao convívio
social mobilizado pelas festas. Em certo relato sobre um Batuque no Catumbi, narra a
presença de negros, de “padres relaxados” e até delegados no festejo. Assustado com
a cena que presenciara da interação dos padres, delegados e negros, o memorialista
afirma, em posição de julgamento e espanto, que os sacerdotes e delegados não
recuavam nem diante do maior escândalo; se portavam com uma tal indecência e
um descomedimento que não se poderia descrever; dançavam como o mais furioso
dos dançadores, ficando ali todo o resto da noite.
113
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Diante desses relatos que nos incluem nas cenas cotidianas do Rio de Janeiro
do século XIX, notamos que a festa é vetor comunicacional fundamental para se
compreender não só as posições de hierarquia e exclusão, mas também as práticas
de resistências, as sobrevivências da matriz africana, as diversidades dos modos de
expressão, o convívio social, a pluralidade de linguagens estéticas e as narrativas.
O que vemos, através dos relatos dos viajantes estrangeiros que se debruçaram
“ao nível da rua” — com toda a sua bagagem eurocentrada —, é a representação
de técnicas corporais dissidentes que revelam uma cidade heterogênea em suas
práticas, palco de conflitos e tensões. Ao passo que a representação do corpo negro
festivo apresenta a constituição do imaginário urbano de um povo festeiro, sórdido e
degradado em suas práticas, também assimila a presença e pujança de seus fazeres
na constituição de uma contradição social.
Conclusões
114
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Referências bibliográficas
LEITHOLD, Theodor Von; RANGO, Ludwig Von; LEÃO FILHO, Joaquim de Sousa. O Rio de
Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1966.
MARTIUS, Spix; SPIX, Johan Baptist Von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Tradução de
Lúcia Furquim Lahmeyer. São Paulo: EdUSP, v. 1, p. 34, 1981.
115
(Ins)Urgências Poéticas:
Bk’ e o endereçamento no rap contemporâneo
Adilson da Silva Santos Junior
Universidade Federal Fluminense
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
Desenvolvimento da pesquisa
117
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Ao abrir mão desta noção jurídica ou filosófica do ser1, o filósofo francês compreende
o outro como uma potência de leitura, pois “o poema está endereçado, deixa de
pertencer exclusivamente à mão que o escreve e conclama a possibilidade de
pertencimento ao outro, no momento em que existe e que casualmente alguém o lê”
(ibid., p. 34). Já Derrida, a partir das perguntas endereçáveis materializadas em seu
outro livro (2007): “Quem escreve? Para quem? E para enviar, destinar, expedir o quê?”
(RAIZEL, op. cit., p. 42). A autora considera uma possível teoria geral do envio no qual
o pensamento derridiano consolida paradoxalmente a ideia de que o que é enviado
pertence ao emissor e ao receptor ao mesmo tempo, não pertencendo a nenhum
dos dois, e sim ao próprio ato de endereçamento.
O desdobramento da teoria derridiana sobre envio, alcance e recepção pode ser
pensado também na perspectiva da coletividade. Assim, para Rancière (1995), a
relação entre um poema e o seu pertencimento acontece se, e somente se, o poema
não pertencer a ninguém, uma vez que a ele é dada a possibilidade de abranger uma
multiplicidade de nomes e distintos modos de materialidade. Nesse sentido, atingindo
o fator comunitário, Rancière (1995) diz que os poetas endereçam seus poemas a uma
coletividade de sujeitos anônimos, como exercício de uma subjetividade coletiva.
Assim, os versos contemporâneos escritos pelos rappers assumiriam, em hipótese,
tanto na perspectiva derridiana quanto na racieriana da destinação, um potencial
de criação estética, gerando efeitos a partir das múltiplas experiências dos poetas
mais jovens, desdobrando-se nas mais variadas possibilidades de práticas sociais
e problematizando questionamentos que sinalizam uma visão de mundo e se
encaminham para o coletivo. Portanto, associada à questão do endereçamento
como um componente de ruptura e desterritorialização, a poética do rap irá romper
com a tradição da língua e da ordem social hegemônica, ao construir, de modo
inventivo, uma subjetividade que foge à normalidade, almejando a visibilidade do
coletivo através de um literário marginalizado.
No segundo tópico, explicamos que, no intuito de eliminar as barreiras entre o rap
e a poesia contemporânea, o crítico e poeta Ederval Fernandes, em seu dossiê para
a revista de poesia Modo de Usar & Co (2015)., dissertando acerca do compositor e
rapper Mano Brown, dos Racionais MC, enumerou uma série de elementos dos quais
o estilo foi precursor nos anos 80 e é utilizada na poesia atual: “o aparato multimídia,
a poesia-performance, a diluição das fronteiras entre as linguagens artísticas,
o sample como um recurso intertextual e criador de camadas de significação
(colagens), o aprofundamento da oralidade como recurso estético (a poesia dialetal,
etc.)” (FERNANDES, 2015, s. p). Para Pedrosa (2014), alguns procedimentos narrativos
se associaram ao hibridismo de verso e prosa na década de 90 e, segundo julgamos,
também se fazem presentes no rap.
1
Para uma discussão mais detida acerca de seu pensamento, conferir Rancière (1995).
118
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Me lembro das festas que a gente fazia/ Saía às dez da noite e só voltava no
outro dia/ Que barato só alegria/ Lembra? Qualquer lugar a gente ia/ Sempre
fui considerado, você também/ Lembra da Simone e da Neném? (509-E; DEXTER,
2018, grifo nosso).
2
Pedrosa esclarece que Silviano Santiago, em seu ensaio “Singular e Anônimo” (1985[1986]), abre mão
da oposição entre lirismo e antilirismo. Desse modo, abandonou uma postura que por muito ainda
calcificaria a crítica poética brasileira, o ensaísta conceberá o elo entre a poesia e o endereçamento
como um gesto de ternura que se endereça ao um sujeito ora específico, ora desconhecido.
119
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Conclusões
Referências bibliográficas
509-E; DEXTER. Saudades Mil. 2018. 1 vídeo (8 min 47 seg). Publicado pelo canal 509-
E. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=m_kbgI1K4IQ. Acesso em: 3
ago. 2021.
ADL; BK; FUNKERO; BILL, MV. Favela Vive 2. 2016. 1 vídeo (7 min 37 s). Publicado pelo
canal Esfinge. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XYvrwZmjXJY.
Acesso em: 2 jul. 2021.
AKIRA; GANG, Nectar (BK); CARLOS, Luccas. Reunião. 2016. 1 vídeo (3 min 54 s).
Publicado pelo canal Pirâmide Perdida Records. Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=ILzv-H-sdAc. Acesso em: 2 jul. 2021.
BK’. Folhas. 2017. 1 vídeo (5 min 28 s). Publicado pelo canal PineappleStormTV.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jSPE7mH7lCM&ab_
channel=PineappleStormTV. Acesso em: 2 jul. 2021.
BRADLEY, Adam. Book of rhymes: The poetics of hip hop. Londres: Civitas Books, 2017.
120
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
CESAR, Ana Cristina. A teus pés. 7. Edição. São Paulo: Ática, 1992.
DELEUZE, Gilles. O que é uma literatura menor? In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI,
Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DERRIDA, Jacques Derrida. Psiqué: Inventions de l‘autre. Paris: Galilée, 1987. Disponível
em: https://www.academia.edu/31967640/DERRIDA_Psyché_Inventions_de_
lautre_-_ed._antiga.pdf. Acesso em: 2 ago. 2021.
FERNANDES, Ederval. Rap brasileiro: Mano Brown, por Ederval Fernandes. Modo de Usar
& Co, 2015. Disponível em: https://revistamododeusar.blogspot.com/2015/04/rap-
brasileiro-mano-brown-por-ederval.html?view=magazine. Acesso em: 14 set. 2021.
PEDROSA, Celia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÂMARA, Mario (org.). Indicionário do
contemporâneo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2018.
PEDROSA, Celia. Poesia, crítica, endereçamento. KIFFER, Ana Paula; GARRAMUÑO, Florencia.
Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
Vilanova, Ligia Vassalo e Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Ed. 34, 1995.
121
Conexões entre Locos de Rua e Torcidas de Futebol:
a musicalidade da Fanfarra Festiva Tricolor
e do bloco da Urubuzada
Victor Belart
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Introdução
inventiva. Para isso, proponho uma breve exploração pelas transformações sonoras
de torcidas organizadas ao longo das primeiras décadas do século XXI.
Damatta (1982), nos anos 80, afirmava que “o Carnaval e o futebol que permitem
o brasileiro entrar em contato com o permanente de seu mundo social” (DAMATTA,
1982, p. 39). Ainda assim, destaca-se como, no avançar de uma sociedade
globalizada que incorporava outras relações híbridas, podemos entender que a
noção carnavalesca e festiva associada ao futebol poderia converter-se em arena
para algumas disputas e mutações.
123
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Conclusões
É interessante notar brevemente como, a partir dos anos em que essas torcidas
começaram a se desenvolver, popularizavam-se no planeta tanto o acesso rápido e
1
Entrevista concedida ao autor do texto. Janeiro de 2021, por telefone.
124
GT 3: COMUNICAÇÃO, MÚSICA E INTERCULTURALIDADE
Referências bibliográficas
125
GT 4
O objetivo deste GT é realizar uma discussão ampla sobre a relação das expressões
culturais constituídas de diferentes narrativas que são compartilhadas entre os
membros de comunidades tradicionais e favorecem a compreensão dos modos de
vida, da importância da memória social e coletiva para a constituição do sentimento
de pertencimento. Do mesmo modo, visa refletir sobre os distintos significados e
representações que permeiam o cotidiano das comunidades tradicionais. Para tanto,
partimos do pressuposto de que as narrativas são pessoais, no entanto acontecem
num espaço (ambiente/território) em momentos específicos da interação social,
e este seria um dos motivos para podermos entendê-las como representantes do
próprio ethos do grupo no qual o ator social está inserido. Desse modo, ao falar de si, de
suas memórias, recortes e lembranças, lendas e poesias, ou a recontar histórias que
trazem representações da própria comunidade, o indivíduo recai na esfera coletiva.
Assim, por mais que sejam experiências singulares e íntimas, ao compor a narrativa, o
sujeito social traz um aspecto essencial da afirmação de si e da demarcação simbólica
da identidade cultural, tanto individual quanto coletiva, constituído dos diferentes
formatos narrativos, o fenômeno da intertextualidade. Desse modo, a contação de
história, algo comum pela oralidade entre os membros das comunidades tradicionais,
alicerça não só suas memórias, mas também seus significados e representações,
construindo a relação de tais narrativas e rememorações com o sentido de vida e
criando distintos modos de vida.
A Formação das Expressões Socioculturais da
Comunidade Pesqueira Artesanal de Arraial do Cabo,
Região dos Lagos/RJ: “ser cabista é ser pescador”
Manuela Chagas Manhães
UNESA/UENF/PEA PESCARTE/PETROBRÁS/IBAMA
Sulamita Conceição Ribeiro
UENF/PEA PESCARTE/UENF/PETROBRÁS/IBAMA
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
128
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
forma, a formação dos nativos de Arraial do Cabo foi, na verdade, uma formação
dos filhos do isolamento social e geográfico (ambiental). Esses nativos têm como
referência determinadas culturas, como indígenas, africanas e a dos colonizadores,
em sua maioria, portugueses. Nesse aspecto, Prado (2002) denomina os nativos de
“descendentes do isolamento”, devido não só à morfologia de Arraial do Cabo, mas
também devido ao seu caráter histórico e contextual de imigração inicial.
O século XIX foi marcado pela teoria evolucionista, que culminou na formação de
estigmas da população, que era tida como filha do isolamento social e geográfico.
Houve, então, a separação entre o civilizado e a barbárie, não só dos povos, mas dos
territórios. Nesse contexto, Arraial do Cabo foi percebida como um lugar no qual a
população ainda estaria num nível inferior na escala evolutiva, considerando, então,
a comunidade primitiva, devido ao seu modo de vida. Isso constituiu estereótipos
determinantes para essa comunidade, como “muxuango”, que significa primitivo,
incivilizado, inferior, assim como o “Jeca Tatu”, o caipira, o matuto, o interiorano.
Com base no evolucionismo, na Era Vargas a cidade foi palco de políticas
desenvolvimentistas nacionalistas, com o objetivo de elevar a população rumo ao
sentido de civilização. Essa política desenvolvimentista provocou uma mudança
social que fomentou a hierarquização entre as diferenças culturais, constituídas de um
processo evolutivo em escalas. Essas diferenças estariam presentes nas formulações
teóricas, teocráticas e desenvolvimentistas que justificaram Arraial como um lugar
que deveria ter a implementação da indústria.
Assim, além de buscar a elevação do Brasil diante do continente, objetivou-se
civilizar os nativos de Arraial do Cabo, promovendo mudanças sociais vistas como
necessárias para levar ao desenvolvimento dessa população muxuanga. População
esta que teve construção de seus costumes, seus hábitos e sua identidade cultural
determinada pelo isolamento social e geográfico. Tais nativos abandonados entre os
morros, dunas e restingas alimentaram-se de um orgulho do passado histórico de
“conquistadores” de terras, formando, então, a memória social e coletiva.
Desenvolvimento da pesquisa
Para que não haja a perda da cultura e sua prática, a qual gera elos integradores
dentro da comunidade, é necessário que o indivíduo que compõe a comunidade
passe por um processo de formação de consciência social e comece a enxergar a
si mesmo e o outro ser que compartilha a mesma cultura e prática como agentes
formadores. Para Braga (2000), o processo de conhecimento, no qual se tem a
formação do indivíduo como membro de uma comunidade, realiza-se nas interações
sujeito/sujeito/objeto.
129
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
130
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
de constituir recordações nas atividades, nas relações por meio das mais diversas
narrativas que, ao serem lembradas, estarão presentes no imaginário coletivo, tendo
um enorme valor simbólico.
Conclusões
131
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Referências bibliográficas
132
Memórias do Povo Indígena da Etnia Puri:
identidade(s) e ressurgência
Samara Tobias de Castro
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus
Lindalva Martins de Sá
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus
Resumo
O presente resumo tem como objetivo iniciar uma reflexão e discussão a partir das
memórias, representações e expressões artístico-musicais do povo Puri, apresentando
parcialmente os resultados alcançados no processo de investigação realizado pelo
projeto de pesquisa “Música Indígena aos Arredores de Campos dos Goytacazes e seu
Ensino”. A metodologia utilizada consistiu no levantamento bibliográfico de materiais
com fontes históricas referentes aos povos nativos que habitaram a região Norte
Fluminense. Possivelmente como forma de fuga da subordinação e da escravidão,
muitos desses grupos migraram para outras regiões ou se uniram a outros grupos
indígenas, tornando-se sobreviventes. A pesquisa nos levou à descoberta de
remanescentes do povo Puri, que têm, por meio da arte, disseminado sua cultura,
promovendo a revitalização da tradição e a ressurgência de seu povo.
Introdução
Fundamentação teórica
Desenvolvimento da pesquisa
134
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
A região do Vale do Paraíba já foi conhecida como Vale dos Maracás e Vale dos
Tambores. Muitos sons, danças e rituais já foram realizados nestas terras. Índios
e negros se interagiam e se misturavam, contribuindo para a formação social
amerindiafricana da população do Vale (RAMOS, 2017, p. 132).
1
Movimento que reúne e articula indivíduos autodeclarados Puri, engajados na busca e na construção
da identidade da etnia desse povo.
2
Essas produções podem ser encontradas no acervo do Centro de Memória do Povo Puri: https://
povopuri.wixsite.com/memoriapuri/centro-de-memoria-do-povo-puri.
135
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Hô Hô bugre Ô, ô bugre
Hô hô bugre Ô, ô bugre
Ita naji Os inimigos foram vencidos
Guaschantl’eh, Guaschantl’eh pular, pular
Guaschantl’eh, Guaschantl’eh pular, pular
Ah, ah, canjana Eu, eu, cachaça
Maschê, tch’mbá Comer, beber
Os cantos e as danças eram bem presentes na cultura desse povo, em seu cotidiano,
em rituais relacionados à luta, espiritualidade, religião, mantendo em sua tradição o
respeito à lua, às estrelas e ao sol. Seus instrumentos musicais eram construídos com
materiais próprios da natureza, como o maracá, que é uma espécie de chocalho feito
de cabaça cheia de sementes; a flauta, feita de ossos, bambu ou taquara; o “rapuin
ponamo” (instrumento de percussão), feito de madeira roliça com sulcos e uma
vareta de bambu que produzia o som (reco-reco); tambores de bambu, taquara ou
madeira, com ou sem pele por cima. Há também o registro da viola de taquara, de
duas a três cordas. Desde a tenra idade, os nativos valorizavam e desenvolviam sua
musicalidade, de forma a ser comum dançarem e marcarem o ritmo em dupla ou
em roda, sacudindo o maracá com as mãos.
136
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Conclusões
Referências bibliográficas
PURI, Zélia Balbina. Memórias de vida: ancestralidade. [S. l.]: Coleção semear, 2020.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de Campos, São Paulo, v. 17, n. 17,
p. 237-260, 2008.
137
Histórias com Cheiro de Barro E Tanino
Jamilda Alves Rodrigues Bento
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Resumo
Introdução
O ofício das paneleiras de Goiabeiras, Vitória (ES), foi o primeiro patrimônio cultural
imaterial brasileiro reconhecido e registrado no Livro de Registro dos Saberes do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e revalidado em agosto de
2021. Ressalta-se que esse ofício já fora legitimado pelas detentoras desse saber, que,
há diversas décadas, embarreando as mãos, modelam, dão acabamento, alisam e
açoitam com tanino as panelas de barro produzidas, garantindo a completude ou parte
significativa do orçamento doméstico. Esse saber também fora há muito reconhecido
pela comunidade goiabeirense e por todas/os que adentram os quintais das paneleiras,
sejam comerciantes, sejam turistas que visitam o Espírito Santo desde há muito.
Sim, reconhecimento da importância desse ofício vem de dentro, através do ato de
compartilhar os saberes/fazeres para as outras futuras paneleiras, desde a ação de
modelarem quantas panelas sejam necessárias para garantir o sustento de suas
famílias até como manter as suas/seus filhas/filhos na escola, a partir da década de
1940, quando o processo de superação do desfavorecimento da escolarização das
filhas e filhos de paneleiras tornou-se mais robusto. Uma fala emocionante de uma
antiga griô, 80 anos, recorrente nas falas de tantas outras, revela-nos a importância
que essas mulheres do barro davam à escola:
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Eu não pude ser enfermeira porque o meu pai não deixou, mas as minhas
crianças eu mandei para escola, porque eu não posso deixar que eles passem
pela vergonha que eu passei a vida inteira por não saber ler nem escrever
(NASCIMENTO, 1997).
Minha filha, eu de tanto ver a labuta de mamãe com o barro, mas também
de saber que ela nunca precisou de pedir dinheiro a papai para comprar o
que queria, resolvi que também queria ganhar o meu dinheiro para comprar
as minhas coisinhas. Eu já ajudava, alisando as panelas, escolhendo o barro,
casando as panelas filhas nas panelas mães e já observava mamãe fazendo
panela todo dia. Eu já sabia da ciência de fazer, só precisava me dedicar mais,
porque parece fácil, mas fazer panela de barro tem toda uma ciência. Um dia,
eu falei pra mamãe que queria fazer panela depois que voltasse da escola e
perguntei se ela podia me ajudar no começo. Ela falou que sim, desde que eu
me dedicasse, então me lancei a aprender o ofício. Só que mamãe não era
fácil não, ela exigia capricho. Eu achando que estava abafando, um dia fiz uma
panela e mostrei para ela. Ela sem dó me disse: “Isso aí não é uma panela de
barro não, minha filha, isso está mais para um caquinho para torrar miséria, e
isso ninguém compra! Desmancha e começa tudo de novo, eu vou te mostrando
o jeito certo de se fazer panela de barro”. Eu fiquei um pouco contrariada, mas
eu tinha um propósito, aprender o ofício, e aí fiz: desmanchei, fiz, desmanchei,
ouvindo mamãe falar como devia fazer. Enfim, depois de longos meses, eu fiz
139
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
uma panela de barro que, pra mim, estava bonita, aí chamei mamãe para ver
a minha panela. Mamãe olhou a minha panela de barro, verificou o beiço, as
orelhas, o acabamento por um todo e me disse: “Parabéns, minha filha, agora
sim você pode se considerar uma paneleira, paneleira de Goiabeiras.” Eu
fiquei toda satisfeita e, de lá pra cá, não parei mais. Primeiro eu fazia panelas
pequenas chamadas “filhas” e mais tarde comecei também a fazer as panelas
maiores, que a gente chama de “mãe”, porque uma vai dentro da outra, a
panela casada, você sabe.
Esse conjunto formado por duas panelas de barro, mãe e filha, é chamado até hoje de
panela casada. Não, esse nome não se refere ao estado civil, e sim à maternagem que
emana no momento que a panela mãe recebe e acomoda em seu interior a panela
menor, a filha. Esse conjunto de panelas não tem tampas, por isso transborda afeto.
Hoje, a outrora menina, já vividas 8 décadas, com a maternagem à flor da pele,
continua transbordando afeto pelas/os filhas/os e por todas/os que fazem parte
da sua trajetória de vida. Por fim, quando um doutor em Educação, com a cabeça
aninhada em seu colo, perguntou-lhe o que ela gostaria de ser caso não fosse uma
paneleira, respondeu transbordando de alegria:
2. Saberes em diálogo?
Essas expressões culturais que sustentam o nosso modo de estar no mundo são
aprendidas pelas/os mais jovens através da observação, da escuta atenta às
narrativas das/os mais velhos, nossas/os griôs. O princípio da incompletude de todos
os saberes é condição da possibilidade de diálogos e debate epistemológicos entre
diferentes formas de conhecimento (SANTOS, 2008).
Não se forma na escola uma paneleira, ou uma cantadeira de folia de reis, ou uma
cantadeira de roda, mas esses saberes devem e podem ser cada uma das duas
pontas do bambu verde que está sendo provocado a não mais perpetuar-se por
um formato retilíneo, mas traduzir-se por um movimento de interculturalidade. Essas
pontas, ao se encontrarem, poderão promover um dos valores civilizatórios afro-
brasileiros, a circularidade, vivenciada através da possibilidade de enxergarmos,
nesse saber de cá e naquele saber de lá, aproximações, sentidos mais plurais que a
interculturalidade de saberes pode proporcionar.
140
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Como faço parte dessa cultura, ouso emprestar essa frase que constitui a primeira
cantiga de reis que se canta na madrugada do dia 6 de janeiro, nas seis casas que
visitamos e vivenciamos momentos de muita alegria e confraternização aqui em
Goiabeiras. Essa frase pode ser contextualizada em interlocução com esse momento
de desencanto que a humanidade viveu e ainda vive em decorrência da pandemia do
novo coronavírus SARS CoV-2. Nesse contexto de desencanto e perversa campanha
de autoridades brasileiras que tentaram descredibilizar a ciência, promovendo
também as fake news e em parte obtendo êxito, testemunhamos os movimentos de
idosas e idosos que são engajadas/os na preservação e promoção da nossa cultura,
não dando nenhum tipo de crédito às falas contrárias ao distanciamento físico e a
vacinação, por exemplo.
Essa historinha mal-acabada de que quem se vacinasse poderia virar jacaré não
emplacou em nossa terra. Há muito, em nossa terra natal, assistimos ao homem
se transformar em boi Estrela. Virar jacaré é café pequeno. O boi Estrela é um
reencontro com o nosso passado rural, quando os pobres podiam saborear com
certa frequência carne bovina, mas, como agora o agro é pop e o preço dessa
proteína animal passou a ter valor exorbitante, até o café pequeno está com um
preço indigesto para a maioria da população brasileira, pergunta-se para quem o
agro é pop? Ou para quem o agro é tudo?
141
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Referências bibliográficas
CARVALHO, José Jorge; VIANNA, Letícia Costa Rodrigues. O encontro de saberes nas
universidades: uma síntese dos dez primeiros anos. Revista Mundaú, v. 1, n. 9, p. 23-
49, 2020. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/revistamundau/article/
view/11128. Acesso em: 12 jul. 2021.
142
Narrativas de Marcelo Reis e as Memórias
de um Legado Musical Geracional
Karina Barra Gomes
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Resumo
Palavras-chave: Memória cultural. Memória social. História oral. Bandas civis. Norte
Fluminense.
Introdução
Por meio da pesquisa desenvolvida entre fazedores da cultura das bandas reconhecidas
como liras, no município de Campos dos Goytacazes, identificamos memórias de
músicos que possuem, para estes, um valor afetivo, geracional e comunitário, além de
representarem o simbolismo de uma tradição centenária, na região Norte Fluminense.
A história oral é uma metodologia apropriada para colher relatos de músicos,
uma vez que, pela oralidade e narrativas espontâneas dos sujeitos, alcançamos o
passado e sua relação com o presente. As lembranças, o legado de pertencimento
e a cooperação identificam e relacionam os entrevistados com as associações de
músicos — as bandas civis às quais pertencem.
Marcelo Reis é um dos fazedores dessa cultura, que tivemos o privilégio de entrevistar;
possuidor de uma trajetória cultural vinculada a duas liras da cidade e, ainda, de uma
herança geracional musical bem singular, que merece ser relembrada: a tradição
dos Andrade Reis no cenário da produção da cultura musical campista. Marcelo é
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Fundamentação teórica
A memória social está presente nas trajetórias de vida que são narradas; acompanha,
também, cada suspiro de esperança ou de tristeza na expressão de cada entrevistado.
Lidar com memórias individuais é lidar com o que há de mais valoroso para esses
sujeitos: o pertencimento a um legado geracional e, por vezes, genealógico, deixado
para futuras gerações e para a própria história da cidade.
Thompson (1998), Santos (2003), Dodebei (2005) e Gondar (2005) trabalham com a
memória social considerando-a como memória coletiva, por abarcar a afetividade
e o pertencimento como importantes características da vida e da narrativa dos
sujeitos. A noção de espaço e de memória que se constroem num determinado lugar
nos leva a considerar Nora (1993) como alguém que compreende os lugares como
espaços os quais comportam a construção do social, da memória no convívio, dos
fazeres coletivos das comunidades no cotidiano e nas relações humanas.
A noção de geração também é fértil para a análise histórica e para as respirações
do tempo, por ser considerada uma escala móvel do tempo; na história das culturas
políticas, a noção de geração constitui “uma escala estratigráfica operatória”
(SIRINELLI, 2000, p. 135). A história ritmada pelas gerações se dá pela sua existência
autônoma e identidade determinadas por acontecimentos que são inauguradores;
o lugar e a genealogia apoiam a construção das memórias como fundamentos da
construção histórica, argumenta Cruikshank (2000).
O processo de relembrar pode ser utilizado como meio de explorar os significados
subjetivos da experiência coletiva, a natureza da memória coletiva e individual
e a relação destas com a identidade pessoal. Por isso, o resgate das experiências
individuais promove o renascimento do estudo político, impulsionando a história da
cultura, assegurando a transmissão da experiência coletiva e contribuindo para a
formação de identidades.
Por certo, de alguma forma, a cultura celebra parte da essência na identidade de
grupos: a cultura como identidade coletiva que se forma em relações sociais e culturais
em comunidades tradicionais. Os relatos e as memórias compõem os processos
sociais construídos que, alinhavados pelas narrativas orais, tornam-se, também, um
arquivo de representações coletivas. Estes ajudam na formação das identidades,
que podem ser geracionais e/ou genealógicas, e os indivíduos as constroem como
identidades político-culturais com um agregado de interações sociais, em lugares que
144
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Desenvolvimento da pesquisa
Marcelo Reis possui uma ascendência genealógica de tradição musical desde seu
tataravô, o Pedro de Alcântara Ferreira dos Reis. Provavelmente de origem portuguesa,
Pedro tocava piano, violino e clarineta e ensinou música ao seu filho Virgínio de
Andrade Reis (1859-1931), pianista e compositor, nascido em Patrocínio do Muriaé
(MG); Virgínio foi quem iniciou a vinda da família para Campos (RJ). Aydano Reis, filho
de Virgínio Reis e avô de Marcelo, nasceu em Santo Antônio de Pádua (RJ), em 1895,
onde fundou a Lira de Arion, em 1888, tendo ido morar em Cambuci, onde atuou como
regente de Sociedade Musical Lira Cambuciense (RANGEL JÚNIOR, 1992).
Seu avô Aydano Reis teve cinco filhos, os quais, da mesma forma, dedicaram-se ao
aprendizado musical: Waldir de Andrade Reis (pai de Marcelo, flautista, requintista,
arranjador, compositor e pianista); Luiz de Andrade Reis (pianista, arranjador e maestro
da Sociedade Musical Operários Campistas, desde 1957); Heraldo Reis (maestro,
arranjador e trompetista); Jorge Reis (trombonista); e Jair Reis (contrabaixista).
Num relato de Luiz Reis para Rangel Júnior (1992), Virgínio Reis teria estudado ou
desenvolvido amizade com Henrique Oswald1.
Os tios, o avô e o pai de Marcelo são falecidos, com exceção do próprio Marcelo,
que, dentre os músicos de banda da família, ainda pode nos relatar suas memórias
e lembranças. Os Andrade Reis tinham prestígio artístico não somente na cidade;
foram grandes nomes e expoentes da história da música do município de Campos
dos Goytacazes, mas também construíram carreira fora dele. Registramos, neste
trabalho, a passagem dos Andrade Reis pelas bandas civis da região Norte Fluminense,
tendo deixado um legado cultural e um exemplo para Marcelo, que se emociona e se
orgulha de ser descendente de uma geração de talentosos músicos.
Marcelo Reis desenvolveu o interesse pelo estudo da música por meio do incentivo
e da admiração que tinha e tem pelo seu pai, Waldir de Andrade Reis, a quem
ele se refere como a inspiração para sua vida musical (RANGEL JÚNIOR, 1992).
Waldir Reis iniciou tocando flautim na Lira de Apolo, assim como os demais tios
de Marcelo também tiveram passagem por essa banda. O maestro Luiz Reis não
1
Henrique Oswald foi pianista, compositor, concertista e diplomata brasileiro, tendo nascido no Rio de
Janeiro, em 1852, e falecido em 1931. Em 1868, recebeu uma bolsa de estudos do Imperador para estudar
na Itália e viveu em Florença, onde teve a oportunidade de conhecer Franz Liszt e desenvolver seu
inato talento, ajudado pela influência artística da cidade de Toscana. Diretor do Instituto Nacional de
Música (hoje, a Escola de Música da UFRJ) entre 1903 e 1906, Henrique Oswald tornou-se patrono da
Academia Brasileira de Música.
145
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
2
Spalla é um músico escolhido como liderança por qualidade e desenvoltura instrumental. Para saber
mais, acesse: https://souzalima.com.br/blog/o-que-e-um-spalla/.
146
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
padroeiro da cidade, também com a Guarany. Uma delas, no Jardim São Benedito,
em 2003 ou 2004, marcou-o bastante.
Marcelo não desejava migrar para a Sociedade Musical Operários Campistas, onde
seu tio Luiz Reis era o maestro, por haver uma cobrança muito grande em relação
ao seu nível musical e por ele pertencer a uma família de grandes músicos. Ainda
assim, ele foi para a Operários, aos 32 anos, devido à interrupção dos ensaios na Lira
Guarany, devido a motivos internos da diretoria.
Sua primeira apresentação com a Operários Campistas foi no jardim do Teatro
Trianon, em 2005. Lá, ele reencontrou o maestro Ésio, com quem tirou uma fotografia,
o professor que mais o marcou em sua trajetória e a quem ele externaliza gratidão;
relata o respeito que tem pelo regente e menciona o nome de outros músicos a quem
deve apreço e consideração por ter tocado com eles: Afonso Gualberto, Getúlio da
Silva (integrante da Lira Guarany), Luiz Reis e Aluízio Fiúza.
Marcelo tem uma divisão de paixões: a Operários Campistas, que carrega a história
musical de seus tios Jorge, Heraldo e Luiz Reis; e a Lira Guarany, que o acolheu na
pessoa do maestro Ésio Ribeiro Amaral.
Com a Sociedade Musical Operários Campistas, Marcelo tem recordações de
apresentações em diversos lugares: na Sala Cecília Meireles (Centro, RJ, por duas
vezes); no Forte de Duque de Caxias (no Leme, RJ); no Teatro Trianon, acompanhando
o Coral da Marinha; no Auditório da Santa Casa de Misericórdia de Campos; no
Jardim São Benedito; no Teatro de Bolso; na 5ª Maratona de Bandas do Estado do
Rio de Janeiro (no Projeto Banda Larga), em Encontros de Bandas de Música que
ocorreram em Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Marcelo preserva, com
zelo e dedicação, os arquivos das gravações das apresentações realizadas por ele.
Conclusões
Se a genealogia e o lugar são pontos focais pelos quais a memória pode resistir
à burocracia impessoal, consideramos o relato de Marcelo Reis como parte do
processo social em curso, pois relembra o legado dos seus antecessores no cenário
histórico-cultural da região, sem deixar de apontar o papel peculiar das liras em suas
trajetórias de vida.
As narrativas de Marcelo trazem as liras como exemplos de uma cultura de identidade
comunitária que acolhe a geração, o lugar, a cooperação e a solidariedade como
esteios na construção de memórias. Narrar desafios, experiências e expectativas vem
do privilégio daqueles que discernem, para além do tempo presente, que o passado
fortalece a história que se está por construir.
147
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Referências bibliográficas
CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs.). Usos & abusos da história
oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. p. 149-164.
GONDAR, Jô. Quatro proposições sobre memória social. In: GONDAR, Jô; DODEBEI,
Vera (Orgs.). O que é memória social? Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação
em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005. p. 11-26.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória coletiva e teoria social. São Paulo:
Annablume, 2003.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
148
Memórias e Práticas Culturais na Sociedade
Musical Usina Santa Maria (SMUSM)
Danilo de Freitas Benevides
Instituto Federal Fluminense campus Campos Guarus
Elisabeth Soares da Rocha
Instituto Federal Fluminense
Karina Barra Gomes
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Resumo
A música faz parte da vida humana e, como tal, tem sido elemento de comunicação
e expressão nas diversas transformações vividas pelo homem ao longo da história.
O conhecimento musical nos contextos socioculturais possibilita a compreensão do
ser humano, em suas relações sociais. Este estudo aborda o resgate da história da
Sociedade Musical Usina Santa Maria, a partir das memórias dos trabalhadores da
usina e dos moradores da localidade; vislumbra ressaltar o papel desempenhado
pelos músicos em suas práticas, na produção do conhecimento e da educação
musical, contribuindo para o desenvolvimento da cultura local. A pesquisa se justifica
pelo seu valor como capital cultural pertencente à região e, ainda, como elemento
de pertencimento aos que dela foram e são participantes. Nossa proposta inclui a
valorização da memória e da identidade cultural da região, ressaltando a importância
da música no cotidiano de seus moradores.
Palavras-chave: Cultura. Memória. Sociedade Musical Usina Santa Maria. Bom Jesus
do Itabapoana (RJ).
Introdução
os moradores e sua relação com a Sociedade Musical Usina Santa Maria; segundo,
foi coletado o depoimento dos sujeitos envolvidos em sua história. Optamos pela
entrevista semiestruturada, na qual o entrevistado, além de responder as perguntas
formuladas por meio de um roteiro, também teve a possibilidade de discorrer
sobre suas experiências, a partir do foco principal proposto pelo pesquisador, ao
mesmo tempo que permite respostas livres e espontâneas. As questões elaboradas
para a entrevista levaram em conta o embasamento teórico da investigação e as
informações que o pesquisador recolheu sobre o fenômeno social em questão.
Halbwachs (2004 apud VIEIRA, 2015) esclarece a importância das memórias que são
encontradas e colhidas nas entrevistas com mais de um entrevistado:
Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que nos tragam
seus testemunhos; é preciso também que ela não tenha deixado de concordar
com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as
outras, para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída
sobre uma base comum (HALBWACHS, 2004, p. 12 apud VIERIRA, 2015, p.7).
Assim sendo, foi possível entrevistar pessoas da comunidade, que relataram suas
experiências, expressões e histórias, contribuindo, assim, para manter viva a memória
da instituição. As lembranças de um passado não muito distante pertencem aos
moradores da Usina Santa Maria e a tantos outros que dela se desvincularam, levando
e guardando com eles suas memórias.
Fundamentação teórica
No que tange ao conceito de memória coletiva, Halbwachs foi um dos autores que
contribuiu para a compreensão desse significado. Um de seus grandes méritos foi ter
escrito sobre memória coletiva numa época em que a memória era compreendida,
basicamente, como fenômeno individual. Para Halbwachs (2003), há
Santos (1998), ao refletir sobre essa abordagem em Halbwachs, afirma que a memória
coletiva está presente em um sistema de signos fixado no tempo e espaço social,
como uma parte das lembranças que os músicos têm dos sons que os permitem
identificar, decifrar e executar músicas.
150
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Desse modo, fica clara a importância do valor das relações afetivas dos sujeitos
com o lugar e com a banda, uma vez que famílias e gerações fazem parte dessa
história que aqui buscamos registrar. A seguir, depoimentos de músicos que
atuaram na banda confirmam e trazem algumas memórias do aprendizado
musical na instituição.
Desenvolvimento da pesquisa
1
ABC Musical: método completo para divisão de Paschoal Bona.
2
Informação concedida por meio de entrevista feita a João Braúna, ex-integrante da SMUSM, em 2020.
151
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
Ao ser interrogado sobre esse método de ensino que, inicialmente, exigia que os
integrantes obtivessem um embasamento teórico para, posteriormente, iniciar
no instrumento, o Sr. Braúna (2020) afirmou que considerava fundamental que,
primeiramente, o músico tivesse o domínio de solfejo, leitura de partitura, ritmo
e divisão com o ABC musical. Dessa forma, conseguiria executar o instrumento e
prosseguir com o aprofundamento de exercícios mais avançados.
Em resposta à mesma indagação, o maestro Nilo Rodrigues de Oliveira, 86 anos,
atual dirigente da Lira Operária Bonjesuense, acrescentou:
Eu dou o método ABC Musical primeiro para o aluno pegar a teoria e saber o
que é música. Pois ele tem que pegar teoria, divisão, tudo antes do instrumento.
Precisa pegar antes na parte do solfejo e, em seguida, estudar o instrumento, e
somente depois entra tocando na banda (OLIVEIRA, 2019)3.
Sempre desanima um pouquinho. Mas, afinal, se tem que ter uma escada, uma
progressão, é necessário percorrer cada degrau, caso contrário, você vai pegar
no instrumento sem saber o que que vai fazer. Logo, se tem que saber quanto
vale uma nota, como tocá-la, tudo está na teoria musical. Como é que o sujeito
vai dividir o compasso se ele não sabe o valor da nota? (OLIVEIRA, 2019).
3
Informação concedida por meio de entrevista feita a Nilo Rodrigues de Oliveira, ex-maestro da
SMUSM, em 2019.
152
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
saber dividir um ritmo, ele não vai tocar. Então, ensinamos o sujeito no método
tradicional. Se ele quiser seguir, ótimo (OLIVEIRA, 2019).
Fica evidente que o João Braúna e os demais fazedores dessa cultura eram motivados
pelo convívio, solidariedade, afeto e aprendizagem, ou seja, valores permanentes e
153
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
capazes de fortalecer uma cultura que ainda pode ser reinventada pelos próprios
moradores da Usina Santa Maria.
Para Gomes (2003), a prática musical é exercida em situações em que
diferentes pessoas se reúnem em comum acordo, num espaço social, tal qual
o representado pela banda de música, onde relações sociais como amizade e
convivência são firmadas. Nesse ambiente, é possível a interação, cooperação,
diálogo, troca de saberes e estreitamento social entre os músicos, formando, entre
eles, uma mesma “família” musical.
Conclusões
Referências bibliográficas
154
GT 4: EXPRESSÕES CULTURAIS NAS NARRATIVAS, MEMÓRIAS
E CONTAÇÃO DE HISTÓRIA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
155
GT 5
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
Para tentar esclarecer este ponto de vista sobre uma ideia de progresso na história, adotei
o gênero historiográfico narrativo, visando a inserção da hermenêutica na micro-história
pretendida e procurei equilibrar as participações universalizantes e particularizantes,
segundo Astor Antônio Diehl (2002). A fim de esclarecer as realidades conjunturais
que existem dentro de narrativas e estruturas já conhecidas sobre os personagens
envolvidos, apoiei também a discussão em Carlo Ginzburg (1989). Através de uma
breve exploração das fontes conhecidas, utilizando também os artifícios da narrativa, a
pesquisa baseia-se no estudo sobre cultura e identidade. Homi Bhabha (2011), a fim de
discutir traços etnográficos descritos pelos registros encontrados também foi inserido na
discussão. Destaco também os recortes das informações bibliográficas sobre Giuseppe
Masini, compostas basicamente de três obras, duas publicadas e uma monografia não
publicada1, em diálogo com as fontes musicais, cópias reprográficas de manuscritos de
Giuseppe Masini, verificadas no Acervo José Carlos Ligiero2.
1
Porphirio Henriques (1954), Dulce Diniz (1985) e Manoel Ligiéro (1960).
2
Ao longo do trabalho de identificação dos itens do Acervo de José Carlos Ligiero (1930-2017),
realizado pelo autor, foi possível, pela adoção das técnicas de trabalho da arquivologia, destacar
que alguns conjuntos de documentos formavam fundos específicos e se referiam em diferentes
graus a uma prática musical de matriz europeia na região abordada, que foi preservada graças ao
seu recolhimento ao acervo, em circunstâncias ainda desconhecidas.
158
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Quero aqui iniciar, com este breve artigo, algum progresso de um pensar histórico
sobre o processo descrito acima. Portanto, objetivei introduzir a discussão sobre a
colonialidade de um saber musical na região Noroeste Fluminense, que tem início
com a chegada de Giuseppe Masini. Procurei destacar que, a partir da presença do
músico napolitano, na Laje do Muriaé da segunda metade do século XIX, os mestres
de banda que, segundo os relatos, haviam chegado à mesma freguesia antes do
italiano tiveram as suas histórias ocultadas; consequência desse processo proléptico
de colonialidade. Segundo Manoel Ligiéro, em sua monografia não publicada “O
homem, o Rio e a Terra (o rio Muriaé e a Freguesia da Laje)”, que data de 1960 e
apresenta um recorte de traços históricos e geográficos da região, o músico italiano
Giuseppe Masini chegava à freguesia em 18713.
Desenvolvimento da pesquisa
3
Há controvérsias nas fontes consultadas quanto ao momento da chegada de Giuseppe Masini a Laje
do Muriaé, que permitem destacar o período compreendido entre 1860 e 1871, aproximadamente.
Contudo, sabemos hoje que Masini somente fixou residência em Laje do Muriaé a partir de 1874 ou 1875.
159
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
160
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
ele possa ter tido alguma atividade ligada às bandas de música. No entanto, se ele
possuiu essa ligação com a prática musical, ela está apagada nos relatos de sua
trajetória na região de Laje do Muriaé.
Conclusões
Referências bibliográficas
BHABHA, Homi. O entrelugar das culturas. In: COUTINHO, Eduardo (Org.). O bazar
global e o clube dos cavalheiros ingleses: textos seletos de Homi Bhabha. Rio de
Janeiro: Rocco, 2011. p. 80 – 95.
161
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. 2. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
LIGIÉRO, Manoel. O homem, o rio e a terra (o Rio Muriaé e a freguesia da Laje): traços
geográficos e históricos. [S. l.], 1960.
TATAGIBA, Adler dos Santos. O Acervo de José Carlos Ligiero. 2011. 116 f. Dissertação
(Programa de Pós-Graduação em Música) — Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2011.
TATAGIBA, Adler dos Santos. Acervo José Carlos Ligiero e as fontes documentais
musicais da trajetória musical de tradição europeia na região Noroeste Fluminense
na segunda metade do século XIX: o caso do compositor Giuseppe Masini. In:
FONSECA, Modesto Flávio (Org.). III Encontro de Musicologia Histórica do Campo das
Vertentes. São João del Rey, 2019. p. 256–276.
162
Memória e Resistência da Lyra de Apollo: aspectos
histórico- musicais da banda campista no século XX
Lucas Nogueira Padrão
Universidade Estadual do Norte Fluminense
Resumo
Em finais do século XIX e durante a maior parte do século XX, as bandas musicais
figuraram significativamente o cenário musical da cidade de Campos dos Goytacazes
(RJ), localizada no Norte Fluminense. Dentre as diversas bandas de música em plena
atividade e operação no século XX, destaca-se a Lyra de Apollo, cuja sede situa-se
na Praça do Santíssimo Salvador, nessa cidade fluminense. Este trabalho aponta a
situação histórico-musical da banda durante o século XX.
Introdução
Fundamentação teórica
164
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Desenvolvimento da pesquisa
Segundo Rangel (1992), em 1879 existiam três bandas de música e uma corporação
musical de caráter orquestral, em Campos dos Goytacazes. Esses grupos eram a
Phil`Euterpe, a Lyra de Apollo e a Nossa Senhora da Conceição. O autor afirma que a
Lyra de Apollo surgiu em 1870, no dia 19 de maio, antes da Proclamação da República,
com as comemorações do fim da Guerra do Paraguai, sob o patronato de Nossa
Senhora da Glória. A agremiação teria como um de seus fundadores o então maestro
Manoel Baptista Pereira de Castro, que era também compositor de obras de cunho
religioso. Inclusive, a fundação e os primeiros ensaios foram realizados na residência
desse maestro, à época situada na hoje chamada Avenida Alberto Torres. Manoel
Baptista é o único membro fundador da Lyra de Apollo que é músico por profissão,
enquanto os outros fundadores tinham outras ocupações.
165
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Além de Manoel Baptista Couto, outros 16 fundadores são citados nas fontes histórica,
sendo a maioria funileiros ou alfaiates. Alguns nomes constantemente citados são:
Rodolpho Antonio de Oliveira; Jozé Bento Alves; Lourenço Antonio Soares; Vicente
Lusquinha Junior; Bernardo Bento Alves; Belarmino Pedro do Rozario; Frederico
Leopoldo de Itaborahy; Antonio Jozé de Oliveira; Francisco Dominguez da Cruz.
Múcio da Paixão, dramaturgo e escritor campista, relata que:
166
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Conclusões
167
GT 5: A CULTURA MUSICAL NO NOROESTE FLUMINENSE E SUL CAPIXABA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS
Referências bibliográficas
168
GT 6
No fim de 2019, o mundo foi surpreendido pela chegada de um novo vírus, o SARS-
CoV-2, que desde então tem provocado (ou pelo menos deveria estar) mudanças
e reflexões sobre nossa maneira de estar neste mundo. Nesse sentido, a música
se tornou uma forma de expressão para algumas pessoas, a fim de cruzarem as
fronteiras de suas casas no isolamento social; para outras, um exercício de ensino e
aprendizagem ou uma forma de manter sua saúde mental em tempos pandêmicos.
Tomamos a música aqui não somente como som, compreendemos os aspectos
poéticos e sociais envolvidos nesses fazeres musicais. Com isso, ganham sentido as
pesquisas que relacionam música com aspectos rituais, étnicos e culturais de grupos
sociais distintos, perpassando, ainda, marcadores sociais como os de raça, gênero
e classe social. Assim, este GT tem como objetivo propor um espaço de discussão,
trocas e interlocuções a partir de uma perspectiva antropológica da música em suas
diversas formas de expressão. O GT busca reunir estudantes e pesquisadores das
ciências humanas, das artes e das ciências da vida que estejam desenvolvendo ou
tenham concluído pesquisas e/ou relatos de experiências que, através de abordagens
teórico-metodológicas diversas, se dedicam a compreender os diferentes diálogos
possíveis entre música, saúde, ensino e o nosso modo de estar no mundo, seja no
atual contexto da Covid-19 ou em uma perspectiva pós-pandemia.
Conexões entre o Ensino de Música em Aulas On-
Line em Grupo e a Saúde Mental dos Discentes:
diálogos no “novo normal”
Harue Tanaka
Universidade Federal da Paraíba
Resumo
Introdução
Fundamentação teórica
1
Sobre saúde mental. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/profae/pae_cad7.
pdf. Acesso em: 3 jul. 2021.
171
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
172
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
173
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Conclusões
174
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
um direito humano, presente ao longo de toda a vida, dentro e fora do âmbito escolar.
A música deve estar a serviço das necessidades e demandas individuais e sociais”3
(SIMONOVICH, 2019, p. 15). Entendemos tal proposição como um aspecto norteador da
experiência vivida.
É importante salientar que as estratégias pensadas foram fruto de um enfrentamento
ao “novo normal”, diante da crise que atingiu todas as esferas da sociedade,
impactando sobremaneira os processos educativos, a própria vida e a saúde mental
de discentes e docentes.
Referências bibliográficas
COSTA, Fábio Soares da; SANTOS, Andreia Mendes dos; RODRIGUES, Janete de
Páscoa. A educação somática como perspectiva inclusiva nas aulas de educação
física escolar. Revista Brasileira de Estudos da Presença, v. 9, n. 1, 2019. Disponível
em: https://www.scielo.br/j/rbep/a/9Dnf5mWyGvk5vk7BXgdgrXw/?lang=pt. Acesso
em: 06 out. 2021.
3 1. La educación musical es un derecho humano, presente a lo largo de toda la vida, dentro del
ámbito escolar y fuera de él. Trabaja desde la música poniéndola al servicio de las necesidades y
urgencias individuales y sociales.
175
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
176
O Papel da Música na Sindemia
Resumo
Introdução
A pandemia da Covid-19 teve seu início em 2019. Nesses dois anos, tivemos
que encontrar maneiras não somente de sobreviver, mas também de viver com
o chamado “novo normal” que nos foi imposto da noite para o dia. Esse termo e,
consequentemente, toda essa mudança e adaptação já dominam o dia a dia e os
pensamentos de todos nós, habitantes do planeta Terra.
A pandemia, portanto, passou a ser parte integrante e fundamental de nossas
ações e reações, pois tudo que fazemos em nossa vida deve ser pensado e analisado
considerando a pandemia. Isso se dá desde o uso da máscara ou um abraço
apertado em um ente querido até mudanças drásticas em planos estruturais na
sociedade, incluindo festas tradicionais que foram canceladas, como o Carnaval
no Rio de Janeiro, reconhecido internacionalmente por ser uma festa popular que
costumeiramente arrasta multidões.
A pandemia, ou sindemia, termo este usado muito frequentemente de maneira
relevante por alguns pesquisadores dessa doença, surge na década de 90 com o
antropólogo médico americano Merrill Singer. Segundo ele, a sindemia se estabelece
onde “duas ou mais doenças interagem de tal forma que causam danos maiores
do que a mera soma dessas duas doenças”. Em 2021, pudemos associar o termo
sindemia ao coronavírus, mais especificamente a Covid-19, já que várias outras
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação,
a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era
quem levasse a política a sério, era o que se prestasse a manipulação. (...).
Quem apenas assistia, como fazia o povo do Rio por ocasião das grandes
transformações realizadas a sua revelia, estava longe de ser bestializado. Era
bilontra... (CARVALHO, 2019, p. 160).
178
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
179
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Desenvolvimento da pesquisa
180
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Conclusões
Este trabalho teve como principal função fazer uma conexão entre o ensino, a música
e a saúde, para, assim, ultrapassar os desafios impostos pela sindemia neste período.
Desde o delay em canções que não podem ser mais tocadas em grupo na forma
remota até a produção da música em comunidade e toda a emoção provocada
possuem caminhos tortuosos para se chegar a um resultado.
Em qual momento podemos usar o remoto a nosso favor? Já que a arte e a música
propriamente dita precisam desse contato com o outro, fazer arte com o outro.
181
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Referências bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não
foi. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.
182
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
MONTESSORI, Maria; LANE, Helen; JOOSTEN, Albert Max. Educação e paz. Chicago:
Regnery, 1972.
183
Musicoterapia em Grupos com Autismo:
relato de experiência
Pedro Bicaco
Faculdade Teológica Batista de Brasília
Rosangela Mary Delphino
Faculdade Teológica Batista de Brasília
Sarah Cristina Costa Pereira
Faculdade Teológica Batista de Brasília
Resumo
Introdução
Inicialmente, não havia uma sede, por isso os atendimentos eram realizados de
forma itinerante pelo Distrito Federal. Em 2012, a ABRACI-DF, em parceria com a
Confederação Brasileira de Trabalhadores Circulistas (CBTC), conseguiu um espaço
físico para a sua sede, podendo, dessa maneira, efetuar os atendimentos. Em 2021,
a associação mudou de endereço e conseguiu ampliar seu espaço, possibilitando
melhor qualidade e acolhimento dos pacientes atendidos e suas famílias (www.
abracidf.com). Nesse contexto, os atendimentos tiveram início em dezembro de 2020
com as anamneses e, em abril de 2021, com 3 grupos de crianças, sendo 1 grupo às
quartas-feiras, no vespertino, e dois grupos às quintas-feiras, matutino.
Fundamentação teórica
185
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Ainda de acordo com Benenzon (2012), a criança autista é uma incomensurável e trágica
defesa ante o mundo que a afoga em um mar cronológico e cronométrico. A utilização
do modelo Benenzon como uma das bases filosóficas de atuação se deu principalmente
pelo fato de o modelo ter como premissa o processo de comunicação não verbal, criando,
assim, um complexo corpóreo-sonoro-musical integrado ao terapeuta. Em movimentos
dinâmicos de contemplação do self do paciente dentro do setting, o princípio de ISO
(identidade sonora) se aplica de forma sistemática, permitindo estabelecimento de
vínculo e autonomia expressiva do paciente dentro do setting.
Dessa forma, episódios de isolamento tendem a diminuir, a dinâmica de tempo-
espaço ocorre de forma organizada, até o estabelecimento de vínculo e a relação do
fazer musical ativo entre terapeuta e paciente tende a melhorar. Gattino (2015) diz que
estudos revelaram que o autismo é uma desordem comportamental complexa, com
etiologias múltiplas e diferentes níveis de gravidade, os quais variam desde indivíduos
não verbais com deficiência intelectual grave até sujeitos com QI acima da média.
Desenvolvimento da pesquisa
186
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Para iniciarmos, uma equipe com dois musicoterapeutas foi montada, e firmou-se
uma parceria com a ABRACI-DF a fim de disponibilizar o espaço para os atendimentos
a seus associados. As anamneses foram realizadas entre dezembro de 2020 e janeiro
de 2021 já com os musicoterapeutas e duas estagiárias na equipe. A partir disso,
foram criados 3 grupos tomando como critério principal a idade dos participantes,
já que não foi observado caso em que tal critério fosse insuficiente. Os atendimentos
foram iniciados na última semana de abril de 2021 por conta da mudança de sede da
ABRACI-DF. Cada grupo tinha o limite máximo de 6 pacientes, com 2 musicoterapeutas
dentro da sessão e 5 estagiários se revezando entre as sessões. As sessões possuiam
a periodicidade semanal e duração de até 50 minutos.
O setting musicoterapêutico era formado por um tapete de EVA, almofadas e
instrumentos musicais que variam de acordo com os objetivos de cada sessão.
Os objetivos gerais foram: propiciar novos canais de comunicação e funcionar
como ponte para a comunicação verbal; trazer uma maior organização cognitiva,
emocional e motora; efetuar exploração sensorial; desenvolver habilidades grupais;
trabalhar a capacidade de intimidade interpessoal; fortalecer sua forma de ver e
interagir com o ecossistema em que está inserido; aprender a desempenhar papéis
específicos em situações interpessoais; desenvolver habilidades sensório-motoras;
melhorar habilidades interativas e de grupo (BRUSCIA, 2016). Além disso, avaliaram-
se a efetividade dos atendimentos em grupo em relação à socialização, o tempo de
atenção, a maneira como lidaram com frustrações e a troca de turno.
Conclusões
187
GT 6: MÚSICA, PANDEMIA, ENSINO E SAÚDE: DIÁLOGOS POSSÍVEIS
Referências bibliográficas
188
GT 7
POSSIBILIDADES INFORMAIS
DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Coordenador: Hélio da Silva Júnior (Universidade Estadual do Norte Fluminense
Darcy Ribeiro).
Eixos temáticos:
a) Investigações sobre metodologias informais para o ensino da música;
b) Processos de transmissão musical na cultura popular;
c) Construção de instrumentos musicais;
d) Estratégias de avaliação em música no ensino informal;
e) Relações interdisciplinares nas práticas musicais da cultura popular;
f) Relatos de interlocução entre o ensino informal da música e a educação
musical escolar;
g) Interfaces entre processos de transmissão musical da cultura popular e
outras linguagens artísticas.
Arte e Interdisciplinaridade: a inserção de saberes e a
expressão de emoções através de ferramentas musicais
Josiane Antônia de Menezes Silva Paes
Universidade Estadual de Goiás
Guilherme Alberto Paes
Faculdade Aliança de Itaberaí
Weliton Costa Gonçalves
Universidade Estadual de Goiás
Resumo
Introdução
Os alunos têm chegado cada vez mais às instituições apresentando vícios aos
diferentes tipos de tela. A inserção precoce de crianças a ferramentas de comunicação
vigentes, como YouTube, Facebook, Instagram e jogos eletrônicos, faz com que aspectos
fundamentais como a criatividade deixem de ser desenvolvidos corretamente.
O papel da escola gradativamente tem ganhado mais importância no desenvolvimento
humano. Os profissionais inseridos nesses espaços de ensino têm buscado auxílio
através de recursos que possam ser utilizados associados ao conteúdo programático,
com a finalidadede colaborar nos desenvolvimentos criativo e cognitivo das crianças.
A música vem sendo trabalhada no contexto escolar como uma ferramenta positiva
para cativar o aluno e garantir sua participação nas atividades.
Ela está presente de inúmeras formas através de métodos pedagógicos, como na
descoberta dos sons feita pelas crianças na escola, etapa esta também vivenciada
nos dois primeiros anos de vida, e na construção de melodias a partir dos sons
conhecidos. Para discorrer sobre a importância da música como ferramenta de
ensino, foi realizada uma breve contextualização acerca dos fundamentos da música
e da relação presente com a educação, contribuindo para a evidenciação de novas
possibilidades a serem traçadas.
Fundamentação teórica
A música é utilizada para diversos fins desde as primeiras civilizações. Ela é detentora
do poder de modificação de pessoas, situações e meios. No âmbito escolar, possui
um papel fundamental, pois contribui desde a educação básica infantil, passando
pelo ensino médio, colaborando com a graduação e com o processo de formação
continuada, seja fazendo parte de forma direta dessas situações, atuando como
objeto de estudo, seja indiretamente, atuando como um estímulo pessoal expresso
através de um hobby.
191
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
De acordo com Félix, Santana e Oliveira Júnior (2014), a prática musical é responsável
pela estimulação da percepção, da memória e da inteligência, colaborando para
uma melhor capacidade de assimilação de conteúdos através da sensibilidade. Brito
(2003) discorre que a música pode ser trabalhada em sala de aula pelo educador
com a finalidade de facilitar o processo de aprendizagem, fazendo com que o ensino
seja para a criança mais agradável. Assim, fomenta um melhor desempenho e maior
fixação dos assuntos estudados.
A inclusão de ferramentas musicais no Ensino Fundamental ocorre por meio da
associação a conteúdos específicos, fazendo com que as crianças e adolescentes
sintam-se motivados a participar do processo de aprendizagem, aprendendo desde
pequenos a importância da valorização da arte, como pilar educativo.
A música é definida por Merriam como um meio de interação social, produzida por
especialistas (produtores) para outras pessoas (receptores); o fazer musical
é um comportamento aprendido, através do quais sons são organizados,
possibilitando uma forma simbólica de comunicação na interrelação entre
indivíduo e grupo (PINTO, 2001, p. 224).
Conclusões
Por meio do presente estudo bibliográfico, que se encontra em fase inicial, nota-
se a musicalidade como uma ferramenta positiva para o processo de ensino e
aprendizagem, enaltecendo a sua importância nos anos iniciais.
Fazer com que as crianças tenham contato com a música em suas formas primitivas,
sons e melodias, não necessitando inicialmente da utilização de instrumentos
musicais, colabora no processo de autoconhecimento, possibilitando a elas a
oportunidade de se conhecerem através dos sons, além de utilizarem os sons a sua
volta para expressar seus sentimentos e vontades. Dessa forma, a música colabora
para construção de cidadãos mais comunicativos e preparados para lidar com suas
192
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Referências bibliográficas
BRITO, Teca Alencar de. Música na educação infantil. São Paulo: Petrópolis, 2003.
FÉLIX, Geisa Ferreira Ribeiro; SANTANA, Hélio Renato Góes; OLIVEIRA JÚNIOR, Wilson. A
música como recurso didático na construção do conhecimento. Cairu em Revista,
[s. l.], v. 3, p. 17-29, 2014.
FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2007.
193
O Papel da Música na Educação Infantil:
uma experiência criadora
Álvaro de Siqueira Manhães
Instituto Federal Fluminense
Resumo
Este projeto de pesquisa está pautado na reflexão sobre o ensino de música como
uma experiência de criação no âmbito da musicalização infantil da Educação
Básica, tendo o educador musical, no desenvolvimento das atividades e soluções
pedagógicas, como mediador para apreensão desses saberes e identificação
das sensações descritas em sons e músicas. Ampara-se na condição tempo-
espaço, uma vez que a composição contempla os temas no exato instante em que,
geralmente, a comunidade está vivenciando-os, sejam eles temas festivos presentes
já no próprio calendário escolar, sejam eles de vivências do cotidiano, tais como: a
realização da Copa do Mundo de futebol; um momento político específico; a própria
história com acontecimentos pertinentes àquela instituição — como o nascimento do
filho da professora, a superação da utilização da fralda ou chupeta, nutrição. Dentro
de um enfrentamento muito particular nas instituições de ensino que comportam
sistema de creche e berçário, esta pesquisa dá-se metodologicamente como um
relato de experiência didático-pedagógica sobre a educação musical infantil.
Estruturalmente, este trabalho se assentou sobre uma revisão bibliográfica acerca
do tema. Por fim, descreve o processo de abordagem da criação/composição de
canções e sua aplicação didático-metodológica no universo da educação infantil,
além dos resultados obtidos, como respostas dos alunos envolvidos através dos pais
e demais membros da equipe pedagógica em questão, concluindo com uma reflexão
crítica sobre o processo didáticovivenciado considerando o pensamento dos autores
abordados na primeira parte do trabalho.
Introdução
Esta pesquisa tem como foco principal apresentar um relato de experiência sobre
a interlocução entre a educação musical escolar e o trabalho que o autor desenvolve
a partir de sua experiência como músico e compositor. Para tanto, considera-se aqui
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Fundamentação teórica
195
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Desenvolvimento da pesquisa
196
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
parte de alguma criança, geralmente muito pequena, acarreta choro copioso e, muitas
vezes, se não for acalentado, desdobra-se num surto de choro coletivo, tornando a
atividade musical absolutamente impossível. Dessa forma, a música “Chora, Brinca,
Dança e Pula”, da Figura 1, surgiu com a necessidade de trabalhar as emoções na
criança, quando ela expressa seu desconforto por meio do choro.
A composição melódica feita com intervalos de 3ª menor descendente produz um
efeito de acalanto no trecho inicial de sua melodia. Na segunda parte da canção,
professoras e auxiliares fazem uma interação física com as crianças colocando uma
palma no ar e uma palma contra a palma da criança, marcando o pulso da música
sobre a letra cantada nas divisões silábicas das palavras. Na terceira parte da música,
com as crianças já incentivadas pelo acolhimento da equipe de trabalho, elas se
movimentam sob o efeito rítmico da dança conduzida durante a execução musical.
Foi surpreendente o efeito que essa composição causou nas crianças, levando-as
do choro à dança, demonstrando a superação do desconforto e o alcance de uma
atitude alegre.
197
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
198
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Fonte: https://soundcloud.com/lvaro-manh-es/chora-brinca-danca-pula-alvaro?in=lvaro-manh-
-es/sets/primeiro-album-com-musicas-para-crianca-e-familias.
199
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Conclusões
Referências bibliográficas
200
Bois Pintadinhos: apontamentos para
uma investigação acerca de aprendizagens
informais em música
Wilson dos Santos Souza
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Fernanda Morales dos S. Rios
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Giovane do Nascimento
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
Resumo
Introdução
educacional, que, por sua vez, transita e articula-se a partir de contextos formais e
informais de aprendizagem. Muito tem se discutido acerca das práticas musicais
arraigadas a uma educação musical inserida em ambientes institucionalizados,
tais como escolas, conservatórios, cursos de música, orquestras etc. Porém, este
trabalho pretende destacar práticas musicais oriundas de ambientes não escolares,
de forma a considerar e a refletir sobre processos de ensino e aprendizagem que
ocorrem fora desses espaços.
Nesse sentido, esta pesquisa pretende apresentar possibilidades de uma educação
musical informal, a partir de uma pesquisa etnográfica, constando de observação
participante e do relato da experiência de ensino e aprendizagem musical de
adolescentes atrelados à expressão cultural dos Bois Pintadinhos de Macaé, interior do
estado do Rio de Janeiro. Para isso, este trabalho, de natureza qualitativa, amparou-
se fundamentalmente de um levantamento bibliográfico acerca do ensino musical
em contextos formais e informais, articulado a relatos que evidenciam e valorizam
a aprendizagem musical de crianças e adolescentes mediante vivências dos Bois
Pintadinhos de Macaé. Ainda, demonstra-se como essas aprendizagens podem
contribuir para transformar as práticas de ensino-aprendizagem em espaços formais.
202
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
como aquela que ocorre nos espaços escolares e acadêmicos, caracterizada pelos
processos de ensino e aprendizagem. Em relação a isso, Wille discorre:
Assim, a educação musical “formal” pode ser considerada tanto aquela que
acontece nos espaços escolares e acadêmicos, envolvendo os processos de
ensino e aprendizagem, quanto aquela que acontece em espaços considerados
alternativos de música (WILLE, 2005, p. 40).
203
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
204
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
Conclusões
Referências bibliográficas
205
GT 7: POSSIBILIDADES INFORMAIS DA EDUCAÇÃO MUSICAL
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1987.
SOUZA, Wilson dos Santos. Parem o trânsito que o boi vai passar: etnografia dos
Bois Pintadinhos no município de Macaé - RJ. 2020. 131f. Dissertação (Mestrado
em Políticas Sociais) — Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
Campos dos Goytacazes, 2020.
WILLE, Regiana Blank. Educação musical formal, não formal ou informal: um estudo
sobre processos de ensino e aprendizagem musical de adolescentes. Revista da
ABEM, Porto Alegre, v. 13, p. 39-48, set. 2005.
206
GT 8
EXPRESSÕES REGIONAIS
DO ROCK NO BRASIL
Coordenadores: Adler dos Santos Tatagiba (Instituto Federal Fluminense); Gustavo
Landim Soffiati (Instituto Federal Fluminense); Guintter Ferreira de Oliveira (Instituto
Federal Fluminense).
208
“Há Muito Tempo Atrás, na Velha Bahia”: Raul
Seixas, habitus, identidade e juventude na
Salvador dos anos 1950 e 1960
Lucas Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
Janaína Campos Lobo
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira
Resumo
Introdução
1
Sobre o conceito de campo artístico, ver Bourdieu (1996).
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
momentos, sua precedência natal serviu como atestado de seu talento artístico, para
muitos daqueles que assistiam ao desenrolar de sua carreira.
Raul Santos Seixas — ou Raulzito, como era chamado neste período em foco —
nasceu em Salvador, no dia 28 de junho de 1945, e foi coetâneo de outros sujeitos
importantes, que marcaram a vida artística do país, como: Glauber Rocha, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Waly Salomão, Gal Costa, Capinam e Maria Bethânia. Antes deles,
outros baianos ilustres já haviam inscrito seus nomes na história cultural brasileira, a
começar por Gregório de Matos, Castro Alves, passando por Dorival Caymmi, Jorge
Amado e João Gilberto.
Toda essa qualificada genealogia fez da cuna baiana um “capital simbólico” valorizado
no campo musical brasileiro, na década de 1970. “Raul Santos Seixas: o mais novo e
igualmente sensacional baiano que chega”, anunciava Oliveira, no Jornal do Brasil, após
seu disco de estreia pela Philips, em 19732. O cantor foi, várias vezes, colocado como
uma espécie de epígono, um continuador criativo dos baianos que o antecederam.
Mas, artisticamente, Raul Seixas afirmou, em suas letras, uma descontinuidade com
seus antecessores. “Tenho 48 quilos certo/ 48 quilos de baião/ Não vou cantar como
a cigarra canta/ Mas desse meu canto eu não lhe abro mão” (“Krig-ha, Bandolo!”,
Philips, 1973), metaforizava o cantor em referência às suas origens e planos futuros.
Em “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” (Gita, Philips, 1974), era contra a
organicidade do termo “linha evolutiva”, cunhado por Caetano Veloso, em 1967, que o
roqueiro se insurgia: “Acredite que eu não tenho nada a ver com a ‘linha evolutiva’ da
música popular brasileira”.
Fundamentação teórica
2
Jornal do Brasil 9/09/1973, p. 61.
3
O Globo 13/11/1975, p. 35.
210
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Desenvolvimento da pesquisa
É preciso entender, minimamente, que Bahia é essa que enchia os olhos de tanta
gente. Grosso modo, fala-se sobre um local mitológico, ponte originária com a África,
caldeirão fundamental de nossa miscigenação, uma espécie de “célula mater” de
um Brasil híbrido, cultural e geneticamente. Nas palavras de Oliveira (2002), a cultura
baiana tornou-se uma grandiosa usina sígnica, a qual foi inspiração abundante
para a “cena cultural brasileira ao longo do tempo. Uma cultura tão rica e fortemente
criativa que inscreveu a Bahia no universo mitológico do Brasil. Sim, a Bahia é um mito
que habita o imaginário nacional” (OLIVEIRA, 2002, p. 45).
Na canção “Rock’n’roll” (LP Panela do Diano, WEA-1989)4, Raul Seixas remonta o tenso
cenário cultural que sobre ele incidia, e as dificuldades de se adotar uma identidade
insólita, forasteira da Bahia de sua juventude (“As pessoas se afastavam pensando
que eu tava tendo um ataque de epilepsia”). Por isso, Raul Seixas zomba, faz chacota
com duas fortes tradições culturais que sobre ele pesavam na Salvador de 1950-1960.
De um lado, a bossa nova (na canção chamada de “Bosta Nova”), que, após o sucesso
4
“Há muito tempo atrás, na velha Bahia/ Eu imitava Little Richard e me contorcia/ As pessoas se
afastavam pensando/ Que eu tava tendo um ataque de epilepsia (de epilepsia)/ No teatro Vila
Velha/ Velho conceito de moral/ Bosta Nova pra universitário/ Gente fina, intelectual/ Oxalá, oxum
dendê oxossi de não sei o quê”.
211
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
do baiano João Gilberto, angariava fãs e seguidores pelo Brasil; de outro, as ancestrais
culturas negras, expressas em religiões de matriz africana, como o candomblé, tão
marcantes em chão baiano (“Oxalá, oxum dendê oxossi de não sei o quê”).
Se analisada pelo viés da interação, a Salvador natal de Raul Seixas realmente não
era a mesma da de Caetano Veloso. Enquanto o tropicalista se via às voltas com
principiantes artistas e intelectuais, que rondavam a Universidade Federal da Bahia,
como Gilberto Gil, o cineasta Glauber Rocha, o teatrólogo Álvaro Guimarães, o poeta
e cronista Duda Machado e os versáteis artistas da Sociedade Teatro dos Novos5, a
sociabilidade de Raul Seixas se dava entre grupos bem menos prestigiados e quase
anônimos em suas lembranças:
“a empregada lá de casa era minha fã. Chegou uma vez para minha mãe e
disse que tinha dançado comigo [...]. Eu ia dançar também com o pessoal da TR
(uma transportadora de lixa). Era a moçada que que curtia rock”, “só empregada
doméstica, chofer de caminhão” (SEIXAS apud PASSOS, 1990, p. 47, p. 130).
Embora carregasse, com orgulho, sua origem, o cantor fez sempre questão de
se posicionar como uma espécie de dissidente ou possuidor de uma bagagem
sociocultural diferente de seus conterrâneos. Dizia Raul Seixas: “Sou tão baiano como
Cae e Gil, adoro a Bahia etc., mas não vim com o Tropicalismo. Apesar de adorar e
admirar aquele trabalho tão importante, eu sempre estive no rock, desde 1957” (SEIXAS
apud SOUZA,1993, p. 14).
Curiosamente, Caetano Veloso e Gilberto Gil, artistas que mais proximamente
estiveram às vistas de Raul Seixas na Salvador de sua mocidade, foram os alvos
prediletos do cantor em suas irônicas declarações. Caetano Veloso, várias vezes, foi
lembrado pelo esnobismo com que tratava os roqueiros baianos de 1960, e Gilberto
Gil chegou a ser chamado de “prostituto” por Raul Seixas, quando aquele anunciou
seus planos de ser prefeito de Salvador (SOUZA, 2016).
Conclusões
A análise que aqui se esboçou não se refere ao artista Raul Seixas, mas aos anos
de maturação do jovem Raulzito, à bagagem cultural que ele herda e à maneira
como se coloca como herdeiro. Dessa forma, é possível compreender como tal
herança se transforma em uma “estrutura durável” de sua personalidade, um habitus
propriamente dito, capaz de orientar sua trajetória futura e, consequentemente, sua
obra musical.
5
Entre eles, João Augusto Azevedo, Carlos Petrovich, Sonia Robatto, Tereza Sá, Carmen Bittencourt,
Martha Overbeck, Echio Reis e Othon Bastos (ver: VELOSO, 1997; DRUMMOND, NOLASCO, 2017).
212
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo:
Companhia das letras, 1996.
GUERRA, Paula; ALVES, Thiago; SOUZA, Lucas. Para uma nova caixa de Pandora:
esboço de um roteiro heurístico pela sociologia da música. Música Popular em
Revista, Campinas, n. 4, v. 1, p. 102-134, 2015.
MEAD, Herbert. Mind, self and society: from the standpoint of a social behaviorist.
Chicago: The University of Chicago, 1972.
PASSOS, Silvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 1990.
SEIXAS, Raul. As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor. Rio de Janeiro: Shogun
Art, 1983.
213
Ascensão e Queda de Celly Campelo:
uma análise sociológica
Marcelo Garson
Universidade Federal do Paraná
Resumo
Na metade dos anos de 1950, o rock and roll tenta se instalar no Brasil, representando
uma “juventude transviada” com signos a serem repelidos. Este artigo objetiva
explicar como Celly Campelo faz uma transição segura para um momento cultural
de notoriedade da juventude e do gênero no país.
Introdução
A partir de meados da década de 1950, o rock and roll tenta se instalar no cenário
musical brasileiro. Tomado como excentricidade e moda passageira, de pouca
notoriedade midiática gozava o novo gênero que colocava a juventude em seu
epicentro. O pânico moral instalado em 1958, a partir do caso Aída Curi, no qual dois
jovens da classe média carioca eram acusados do estupro e sumiço de cadáver de
uma moça “ingênua”, piorava ainda mais o quadro. Tornou-se conveniente repelir os
signos dessa “juventude transviada”, o que incluía o rock and roll. Entretanto, um ano
depois, a jovem Celly Campelo explode com o sucesso “Estúpido Cupido”, o que lhe
valerá o comando de um programa de auditório, além de ter seu nome associado a
bonecas, bicicletas e chocolates.
Este artigo tem por objetivo explicar como se construiu o fenômeno Celly Campelo.
Nesse tocante, interessa-nos analisar em que medida sua imagem pública dialogava
com dois universos. Um deles apontava para uma nova juventude em ascensão,
eivada de influências norte-americanas, e o outro para a imagem respeitável
e apoiada na família e na tradição, que as maduras artistas do rádio, então em
declínio, ainda exibiam. Neutralizando o rótulo de transviada, a cantora permitiu uma
transição segura para um novo momento cultural em que a juventude e o rock and
roll conquistaram notoriedade no cenário musical brasileiro.
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Fundamentação teórica
CC: Só quero que a vida de cantora não prejudique o casamento, pois, se isso
acontecer, não trocarei o casamento pelo microfone (REVISTA DO RÁDIO, 1960, p. 14).
O ano de 1959 é marcado pelo lançamento de “Estúpido Cupido”, compacto que deu
a Celly Campello o título de rainha do rock and roll, legitimando um estilo musical até
então visto como moda passageira. Iniciada profissionalmente pelo irmão e parceiro
artístico Tony, Celly lançou seis LPs, comandou um programa musical e emprestou
seu nome para o lançamento de bonecas, chocolates e bicicletas. Tudo isso até
1962, quando se casa e deixa o microfone, no auge do sucesso. Na década seguinte,
ensaiaria uma tentativa malsucedida de retorno.
Diversas razões explicam o fim de sua carreira. As dificuldades que se colocavam
às profissionais da música incluíam uma rotina atribulada — que envolvia a presença
diária em programas de rádio e TV, gravações de disco, sessões de entrevistas e
viagens — em um meio extremamente competitivo cujo grau de profissionalização
incipiente tornava compulsória a inserção em redes de amizade e compadrio. No caso
das mulheres, isso as sujeitava a toda a sorte de assédios em espaços com postos
de comando — rádio, TV e gravadoras — fundamentalmente ocupados por homens.
Colocadas na mira dos holofotes, elas assumiam o papel de objetos de fascínio, desejo
e consumo. Eram corriqueiras as comparações entre atrizes, cantoras e prostitutas.
Em São Paulo, todas elas deveriam munir-se da mesma “carteira rosa”, o registro
215
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Desenvolvimento da pesquisa
Os primeiros rumores sobre o rock and roll chegaram ao Brasil no meio dos anos
de 1950, em discos de Bill Haley e Elvis Presley e em filmes como “Ao Balanço das
Horas”, que popularizou os complexos passos de dança que acompanhavam o rock,
e “Prisioneiro do Rock”, em que os rebolados e rebeldia de Presley ajudaram a selar a
associação entre rock e rebeldia. Como resultado, ao fim daquela década, o status
público do rock and roll oscilava entre o escárnio — presente em chanchadas, como
“Metido a Bacana”, em que Grande Otelo imitava Elvis — e o temor, como produto
das associações do gênero aos jovens delinquentes de classe média, a chamada
“juventude transviada”, que então ganhavam as páginas da imprensa policial. Tudo
isso levava a uma descrença no futuro do gênero, tratado como moda passageira.
Isso tudo não impediu Celly Campelo de legitimar o rock and roll diante do público e
da indústria. Compreender essas estratégias de legitimação nos levam a analisar a
construção de sua imagem pública; esse é o objetivo deste texto. Para tanto, mobilizo
as dimensões do gênero e da geração, o que permitirá analisar os lugares sociais, as
expectativas e os constrangimentos reservados à mulher e à juventude no campo
musical brasileiro (BOURDIEU, 2005), bem como de que maneira eles se traduziram
em tomadas de posição específicas ao longo da curta trajetória da cantora.
Nascida Célia Benelli Campello, em 1942, Celly passou toda a infância e juventude
em Taubaté, em uma família de classe média. Seu pai, um ex-taquígrafo, coordenou
a instalação de uma unidade do SENAC e atuou como vereador e diretor do Country
216
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Club e Rotary Club, garantindo conforto e prestígio local à família. A estreia de Celly
no microfone se deu aos seis anos, em um programa local de talentos mirins, sem
pretensões profissionais. Aos quinze anos já se apresentava sistematicamente
na Rádio Difusora de Taubaté. Quando a música jovem inexistia como segmento
de mercado, era de Ângela Maria que Celly copiava repertório e trejeitos. Em 1958,
lançou seu primeiro compacto, que converteu Célia e o irmão Sérgio em Celly e Tony
Campello (MENEZES, 1996).
O terceiro lançamento já conta com o seu grande hit, “Estúpido Cupido”, uma versão
de “Stupid Cupid”, de Neil Sedaka. Até se casar, em 1962, emplacou diversos sucessos,
como “Banho de Lua”, “Broto Certinho” e “Lacinhos Cor de Rosa”. Seu repertório é
fundamentalmente composto de versões das baladas melódicas de Paul Anka e
Neil Sedaka, que se tornaram ídolos ao levar rock and roll para a televisão norte-
americana e adaptá-lo ao gosto da classe média branca. O sorriso, o figurino e o corte
de cabelo de Celly eram diretamente inspirados em artistas como Connie Francis,
uma intérprete de Sedaka. As letras em português seguiam o mesmo receituário
de suas matrizes estrangeiras: falavam de bailinhos, lambretas e namoros juvenis,
mas ainda ensinavam os adolescentes a se comportarem segundo as normas da
escola1, da família2 e da igreja3. Seu andamento instrumental permitia a assimilação
pelo público massivo, acostumado ao tratamento melódico-romântico do samba-
canção, tango ou bolero.
Os tributos morais que Celly prestava à instituição familiar não estavam só em
suas falas ou nas letras pudicas de suas canções, mas sobretudo na maneira como
converteu seus laços familiares em arranjos profissionais. Seu irmão viabilizou sua
carreira musical desde o início: foi com ele que fez dupla em seu primeiro disco
gravado e foi também ele seu par na apresentação do musical televisivo “Crush em
Hi-fi”. Um pouco menos evidente, mas não menos importante, é a figura de seu pai,
que se fez às vezes de empresário. Ele estava presente nas gravações, audiências
públicas e entregas de prêmios, além de administrar tudo o que Celly ganhava: “O
seu pai faz questão de lhe dar tudo o que precisa, tal como fazia antes de Celly ser
cantora e ganhar dinheiro”.
É surpreendente o controle que o pai detém sobre a narrativa da filha: são inúmeras
as vezes em que nome e fotos dele aparecem nos registros da época. A mãe, pelo
contrário, é praticamente inexistente. Em uma de suas raras fotos publicadas, aparece
ao lado dos filhos, não por acaso, servindo o jantar. Fica claro, portanto, que Celly
1
Como em “Mandamentos do Broto”: “Para um futuro com juízo/ E uma vida regular/ Não se esqueça
que é preciso/ Estudar, sempre estudar!”.
2
Como em “Querida Mamãe”: “Mamãe, mamãe...A filha que escreve, um beijo lhe manda/ E vai dormir/
E quer também, a benção pedir/ E logo dormir/ Sonhar, sonhar, com seu amor”.
3
Como em “Broto Certinho”: “Rostinho que mamãe beijou/ Playboy nenhum vai beijar/ Quando eu
crescer então eu vou/ Dizer com quem vou casar”.
217
GT 8: EXPRESSÕES REGIONAIS DO ROCK NO BRASIL
Conclusões
Referências bibliográficas
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005.
CELLY Campelo diz quem é seu namorado. Revista do Rádio, Rio de Janeiro, v. 589, p.
14-14, nov. 1960.
LENHARO, Alcir. Cantores do rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart no meio
artístico do seu tempo. Campinas: Unicamp, 1995.
MENEZES, Thiago. Celly Campello: a rainha dos anos dourados. São Paulo: João
Scortecci, 1996.
218
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